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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O TEATRO DAS MARIONETES / Alan Bradley
O TEATRO DAS MARIONETES / Alan Bradley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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EU JAZIA MORTA NO PÁTIO DA IGREJA. Uma hora se arrastara desde que os enlutados haviam dado seu último e triste adeus.
Ao meio-dia, bem na hora em que, de outra forma, deveríamos estar sentados à mesa para almoçar, se deu a partida de Buckshaw: meu caixão de jacarandá polido foi levado para fora da sala de estar, lentamente carregado através dos largos degraus de pedra até a entrada de automóveis e deslizado, com uma facilidade de cortar o coração, para dentro do carro funerário que ali aguardava, esmagando sob ele um pequeno buquê de flores silvestres que fora ali colocado com ternura por um dos aldeões enlutados.
Em seguida se deu o longo percurso que desceu a avenida de castanheiros até os Portões Mulford, cujos grifos rampantes desviaram o olhar quando passamos, porém, se foi por tristeza ou indiferença, eu nunca saberia.
Dogger, o devotado ajudante do pai, acompanhava o vagaroso carro funerário a passos calculados, cabeça baixa, a mão pousada de leve no teto, como que para resguardar meus restos mortais contra algo que só ele podia ver. Ao chegar aos portões, um dos agentes funerários mudos finalmente o persuadira, usando a linguagem de sinais, a entrar em um automóvel alugado.
E assim eles me trouxeram à aldeia de Bishop’s Lacey, passando sombriamente pelas mesmas alamedas verdes e sebes empoeiradas por onde eu andara de bicicleta todos os dias enquanto estava viva.
No pátio apinhado da igreja de São Tancredo, eles me tiraram gentilmente do carro funerário e me carregaram a passo de tartaruga enquanto subiam o caminho sob as limeiras. Ali me depositaram por um momento sobre a grama recém-aparada.
Então veio a cerimônia religiosa junto à sepultura escancarada, e havia um genuíno tom de pesar na voz do vigário quando ele pronunciou as palavras tradicionais.

 

 


 

 


Foi a primeira vez que ouvi a Ordem para o Ofício da Sepultura daquele ponto de vista. Tínhamos comparecido, junto com o pai, ao funeral do velho sr. Dean, o quitandeiro da aldeia. Seu túmulo, de fato, ficava a apenas poucos metros do lugar onde eu jazia naquele momento. Já havia desmoronado, e dele restava não muito mais que uma depressão retangular na grama que, muito frequentemente, ficava cheia de água de chuva estagnada.

Minha irmã mais velha, Ophelia, disse que o túmulo desmoronou porque o sr. Dean havia ressuscitado e seu corpo não estava mais ali, enquanto Daphne, minha outra irmã, disse que foi porque ele havia mergulhado em uma sepultura mais antiga, cujo ocupante se desintegrara.

Pensei na sopa de ossos abaixo, da qual eu estava prestes a me tornar apenas mais um ingrediente.

Flavia Sabina de Luce, 1939-1950. Eles vão mandar gravar algo simples e de bom gosto na minha lápide de mármore cinzento, sem lugar para falsos sentimentos.

Pena. Se eu tivesse vivido tempo suficiente, teria deixado instruções por escrito, exigindo um toque de Wordsworth:

 

Uma donzela à qual não havia ninguém para louvar

E muito poucos para amar.

 

E se eles se recusassem a aceitar isso, eu teria deixado isto como segunda opção:

 

Por atos cruéis, os corações mais leais

Ao desespero são propensos demais.

 

Somente Felinha, que os tocara e cantara ao piano, reconheceria os versos de O terceiro livro de ares, de Thomas Campion, e ela estaria consumida demais pela culpa para contar a quem quer que fosse.

Meus pensamentos foram interrompidos pela voz do vigário.

— ... terra à terra, cinzas às cinzas, pó ao pó; na esperança segura e certa da Ressurreição para a vida eterna, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo; que mudará o nosso corpo vil...

E de repente eles se foram, deixando-me ali sozinha — sozinha para ouvir os vermes.

E isso é tudo: o fim da linha para a pobre Flavia.

A essa altura, a família já devia estar de volta a Buckshaw, reunida em volta da longa mesa da sala de jantar: o pai, sentado em seu costumeiro silêncio pétreo, Dafi e Felinha se abraçando com rostos apáticos e borrados de lágrimas, enquanto a sra. Mullet, nossa cozinheira, trazia uma travessa com carne assada.

Lembrei-me de algo que Dafi me contara uma vez quando estava devorando A Odisseia: que carne assada, na Grécia antiga, era uma refeição fúnebre tradicional, e respondi que, tendo em vista as artes culinárias da sra. Mullet, pouca coisa mudara em dois mil e quinhentos anos.

Mas agora que eu estava morta, pensei, talvez devesse exercitar um pouco mais a indulgência.

Dogger, é claro, estaria inconsolável. Querido Dogger —mordomo-mais-chofer-mais-valete-mais-jardineiro-mais-administrador da propriedade —, uma pobre alma neurótica de guerra, cujas aptidões fluíam e refluíam como as marés do rio Severn; Dogger, que recentemente salvara a minha vida e se esquecera na manhã seguinte. Eu sentiria uma tremenda saudade dele.

E sentiria saudade do meu laboratório de química. Pensei em todas as horas douradas que havia passado lá, naquela ala abandonada de Buckshaw, jubilosamente sozinha no meio de frascos, retortas, tubos e provetas que borbulhavam alegremente. E pensar que eu nunca mais os veria de novo. Era demais para aguentar.

Ouvi o vento que começava a soprar, sussurrando nos galhos dos teixos acima de mim. Já estava esfriando aqui nas sombras da torre de São Tancredo, e logo escureceria.

Pobre Flavia! Pobre Flavia morta, fria como pedra.

A essa altura, Dafi e Felinha estariam desejando não ter sido tão detestáveis com sua irmãzinha durante seus breves onze anos nesta terra.

Ao pensar nisso, uma lágrima escorreu pelo meu rosto.

Estaria Harriet aguardando para me dar as boas-vindas ao Paraíso?

Harriet era minha mãe, que morrera em um acidente de alpinismo um ano depois do meu nascimento. Será que me reconheceria depois de dez anos? Estaria ainda vestindo os trajes de alpinista que usava quando encontrou seu fim, ou os teria trocado agora por um manto branco?

Bem, o que quer que estivesse usando, eu sabia que seria algo elegante.

Houve um súbito bater de asas: um ruído que reverberou forte na parede de pedra da igreja, amplificado até um volume alarmante pelos vitrais e pelas lápides inclinadas que me cercavam. Gelei.

Seria um anjo ou, mais provável, um arcanjo descendo para levar a preciosa alma de Flavia de volta ao Paraíso? Se eu entreabrisse os olhos, apenas uma fenda mínima, poderia ver através dos cílios, mas só de um modo indefinido.

Não tive essa sorte: era uma das gralhas maltrapilhas que estavam sempre em volta da igreja de São Tancredo. Aquelas tratantes faziam seus ninhos na torre desde que os trabalhadores do século XIII juntaram suas ferramentas e partiram.

Agora a ave idiota pousara desajeitadamente em cima de um dedo de mármore que apontava para o céu e olhava com frieza para mim, a cabeça inclinada para o lado, com seus ridículos e brilhantes olhos de botão.

As gralhas nunca aprendem. Não importava quantas vezes eu lhes pregasse essa peça, elas sempre, mais cedo ou mais tarde, desciam da torre batendo as asas para investigar. Para a mente primitiva de uma gralha, qualquer corpo em posição horizontal num pátio de igreja só poderia ter um significado: comida.

Como eu já fizera diversas vezes, fiquei de pé em um pulo e atirei a pedra que estava escondida entre meus dedos curvados. Errei; mas eu sempre errava.

Com um grasnido desdenhoso, a coisa saltou para o ar e saiu voando para trás da igreja, em direção ao rio.

Agora que eu estava de pé, me dei conta de que sentia fome. É claro! Não tinha comido nada desde cedo. Por um momento, me perguntei vagamente se conseguiria achar algumas sobras de torta ou um pedaço de bolo na cozinha do salão paroquial. A Sociedade Beneficente das Damas de São Tancredo se reunira na noite anterior, e sempre havia uma possibilidade.

Enquanto eu atravessava a grama que me batia nos joelhos, ouvi alguém fungar e, por um momento, pensei que a gralha impertinente voltara para dar a última palavra.

Parei e ouvi.

Nada.

E então ouvi de novo.

Às vezes acho que é uma maldição, às vezes acho que é uma bênção ter herdado a aguçada audição de Harriet, já que sou capaz, como gosto de dizer a Felinha, de ouvir coisas que fariam o cabelo de qualquer um arrepiar. Entre os sons com os quais tenho uma especial sintonia está o de uma pessoa chorando.

Vinha do canto noroeste do pátio da igreja, de algum lugar perto do alpendre de madeira em que o sacristão guardava suas ferramentas de abrir covas. À medida que eu avançava lentamente na ponta dos pés, o som foi ficando mais alto: alguém estava dando uma boa chorada à moda antiga, daquelas que exigem privacidade.

É um fato simples da natureza que, enquanto a maioria dos homens passa direto por uma mulher chorando como se seus olhos estivessem cobertos e seus ouvidos entupidos de areia, nenhuma mulher é capaz de ouvir o som de uma outra sofrendo sem correr instantaneamente para ajudá-la.

Espiei atrás de uma coluna de mármore negro, e lá estava ela, estirada sobre a lápide de uma tumba de pedra calcária, o rosto voltado para baixo, o cabelo vermelho derramado por cima da inscrição desgastada pelo tempo como riachos de sangue. Não fosse pelo cigarro elegantemente alojado entre seus dedos, ela poderia ter sido uma pintura de um pré-rafaelita, como Burne-Jones. Cheguei a odiar me intrometer.

— Olá — eu disse. — Você está bem?

É outro fato simples da natureza que uma pessoa sempre comece uma conversa desse tipo com uma pergunta totalmente idiota. Me arrependi no instante em que a pronunciei.

— Oh! É claro que estou bem — exclamou ela, pondo-se de pé em um pulo e enxugando os olhos. — O que você pretende se aproximando furtivamente de mim desse modo? E quem é você, afinal?

Balançando a cabeça, ela jogou o cabelo para trás e empinou o queixo. Tinha as bochechas salientes e o rosto dramaticamente triangular de uma estrela do cinema mudo, e, pelo modo como exibia os dentes, notei que estava aterrorizada.

— Flavia — eu disse. — Meu nome é Flavia de Luce. Moro aqui perto, em Buckshaw.

Fiz um gesto com o polegar, indicando a direção aproximada.

Ela ainda olhava para mim como se estivesse nas garras de um pesadelo.

— Desculpe — eu disse. — Não queria assustá-la.

Ela endireitou o corpo para mostrar toda a sua altura, que não devia passar de um metro e meio mais uns quatro ou cinco centímetros, e deu um passo em minha direção, como uma versão colérica da Vênus de Botticelli que eu tinha visto uma vez em uma lata de biscoitos Huntley and Palmers.

Fiquei firme no lugar, olhando para o vestido dela. Era de algodão creme estampado, com um corpete franzido e saia rodada, todo recoberto por uma miríade de florzinhas vermelhas, amarelas, azuis e de um laranja-vivo cor de papoula. E, não pude deixar de notar, a barra estava manchada de lama meio seca.

— Qual é o problema? — perguntou ela, dando uma tragada pedante no cigarro. — Nunca viu ninguém famoso?

Famoso? Eu não fazia a menor ideia de quem ela era. Fiquei com um pouco de vontade de lhe dizer que, sem dúvida, eu já tinha visto alguém famoso, e que era Winston Churchill. O pai apontara para ele de dentro de um táxi em Londres. Churchill estava parado na frente do Teatro Savoy com os polegares enganchados nos bolsos do colete, falando com um homem de capa de chuva amarela.

“Bom e velho Winnie”, sussurrara o pai, como se fosse consigo mesmo.

— Oh, de que adianta? — disse a mulher. — Maldito lugar... maldita gente... malditos automóveis! — E começou a chorar de novo.

— Posso fazer alguma coisa para ajudar? — perguntei.

— Oh, vá embora e deixe-me em paz — soluçou ela.

“Muito bem, então”, pensei. Na verdade, pensei mais do que isso, mas como estou tentando ser uma pessoa melhor...

Fiquei lá parada por um momento, me inclinando um pouco para a frente para ver se as lágrimas que caíam de seus olhos estavam reagindo com a superfície porosa da lápide. Lágrimas, eu sabia, eram compostas basicamente de água, cloreto de sódio, manganês e potássio, enquanto a pedra calcária era feita principalmente de calcita, que era solúvel em cloreto de sódio, mas apenas a altas temperaturas. Portanto, a não ser que a temperatura no pátio da igreja de São Tancredo subisse de repente em várias centenas de graus, parecia improvável que alguma coisa quimicamente interessante fosse acontecer ali.

Me virei e fui andando.

— Flavia...

Olhei para trás. Ela estava estendendo a mão para mim.

— Me desculpe — disse ela. — É que hoje foi um maldito dia horrível.

Parei; depois voltei devagar, desconfiada, enquanto ela enxugava os olhos com as costas da mão.

— Rupert estava com um humor detestável, mesmo antes de sairmos de Stoatmoor esta manhã. Infelizmente tivemos uma briga e tanto, e então houve todo aquele problema com a van. Foi simplesmente a última gota. Ele saiu para procurar alguém que a consertasse, e eu... bem, aqui estou.

— Gosto do seu cabelo vermelho — eu disse. Ela o tocou imediatamente e sorriu, como eu, de certo modo, esperava.

— Folhagem de cenoura, é como costumavam me chamar quando eu tinha a sua idade. Folhagem de cenoura! Imagine só!

— A folhagem das cenouras é verde — disse eu. — Quem é Rupert?

— Quem é Rupert? — repetiu ela. — Você está brincando!

Ela apontou com o dedo, e me virei para olhar: estacionada na esquina do pátio da igreja havia uma van deteriorada, uma Austin Eight. Na lateral, em chamativas letras douradas de circo, ainda legíveis através de uma camada espessa de lama e pó, liam-se as palavras marionetes de porson.

— Rupert Porson — disse ela. — Todo mundo conhece Rupert Porson. Snoddy, o Esquilo. O Reino Mágico. Você não viu na televisão?

Snoddy, o Esquilo? O Reino Mágico?

— Nós não temos televisão em Buckshaw — eu disse. — O pai diz que é uma invenção desprezível.

— O pai é um homem inusitadamente sábio — disse ela. — O pai é sem dúvida...

Foi interrompida pelo matraquear metálico de um protetor de corrente solto quando o vigário apareceu no canto da igreja, cambaleando em sua bicicleta. Ele desmontou e encostou sua surrada Raleigh na lápide mais próxima. Enquanto vinha andando em nossa direção, refleti que o clérigo Denwyn Richardson não era, para ninguém, a imagem de um vigário típico de aldeia. Ele era grande, simples, de boa índole e cordial, e se tivesse tatuagens poderia ser confundido com o capitão de um daqueles navios mercantes a vapor enferrujados e sem rota determinada, que se arrastam penosamente de um porto banhado de sol a outro em qualquer dos nauseabundos postos avançados que ainda restam do Império Britânico.

Sua batina preta estava manchada e raiada de poeira argilosa, como se ele tivesse caído da bicicleta.

— Droga! — disse quando me avistou. — Perdi a presilha da calça e estraçalhei a bainha. — E então, sacudindo o pó enquanto se aproximava de nós, acrescentou: — Cynthia vai comer o meu fígado.

Os olhos da mulher se arregalaram, e ela deu uma olhadela rápida para mim.

— Recentemente ela começou a rabiscar as minhas iniciais em meus pertences com uma agulha — disse ele —, mas isso não me impediu de perder as coisas. Na semana passada foram as folhas de estêncil para o boletim da paróquia, na semana anterior uma maçaneta de latão da sacristia. Realmente é de enlouquecer... — Ele acrescentou: — Olá, Flávia. É sempre... É sempre bom vê-la na igreja.

— Esse é o nosso vigário, o clérigo Richardson — eu disse à mulher ruiva. — Talvez ele possa ajudar.

— Apenas Denwyn — disse o vigário, estendendo a mão para a estranha. — Desde a guerra não somos mais de muita cerimônia.

A mulher esticou dois ou três dedos e tocou a palma dele, mas não disse nada. Quando ela estendeu a mão, a manga curta de seu vestido subiu, e tive um rápido vislumbre de uma feia mancha roxa na parte superior do braço dela. Ela a cobriu depressa com a mão esquerda, enquanto puxava o tecido para baixo a fim de escondê-la.

— E como eu poderia ajudar? — perguntou o vigário, fazendo um gesto em direção à van. — Não é sempre que nós, no nosso bucólico fim de mundo, somos solicitados a prestar serviços a tão augusta gente do teatro.

Ela sorriu bravamente.

— A nossa van quebrou, ou coisa que o valha. Algo a ver com o carburador. Se tivesse sido um defeito elétrico, tenho certeza de que Rupert teria consertado num piscar de olhos, mas infelizmente o sistema de combustível está além da capacidade dele.

— Meu bom Deus! — disse o vigário. — Mas tenho certeza de que Bert Archer, da oficina, poderá deixá-lo em ordem para você. Posso telefonar para ele, se quiser.

— Oh, não! — disse depressa a mulher, talvez depressa demais. — Nós não queremos causar nenhum incômodo. Rupert foi até a rua principal. Provavelmente já encontrou alguém.

— Se tivesse encontrado, a essa altura ele já teria voltado — disse o vigário. — Deixe-me ligar para Bert. De vez em quando ele vai tirar uma soneca em casa à tarde. Ele não é mais tão jovem, sabe. Na verdade, nenhum de nós é. Ainda assim, a minha máxima predileta quando se lida com mecânica de motores, mesmo quando eles são dóceis, é: Ter a bênção da Igreja nunca faz mal a ninguém.

— Oh, não, não se preocupe. Tenho certeza de que tudo dará certo.

— Bobagem — disse o vigário, já se afastando por entre a floresta de pedras tumulares e seguindo a toda a velocidade para o presbitério. — Não é incômodo nenhum. Volto num instante.

— Vigário! — chamou a mulher. — Por favor...

Ele congelou o passo e voltou relutante em nossa direção.

— É só que... entenda, nós...

— Já sei! É uma questão de dinheiro — disse o vigário.

Ela assentiu com ar triste, a cabeça baixa, o cabelo caindo em cascata por cima do rosto.

— Tenho certeza de que poderemos dar um jeito — disse o vigário. — Ah! Aí vem o seu marido.

Um homenzinho com a cabeça exageradamente grande e andar trôpego caminhava pesadamente em nossa direção através do pátio, a perna direita jogando para o lado a cada passo, em um largo e desajeitado semicírculo. Quando ele se aproximou, vi que sua panturrilha estava presa a um pesado aparelho ortopédico de ferro.

Aparentava ter cerca de quarenta anos, mas era difícil saber.

Apesar de seu tamanho diminuto, seu peito em forma de barril e seus braços poderosos pareciam prestes a explodir para fora do terno de linho listrado. Em contraste, a perna direita era patética: pelo modo como a calça grudava e pendia inutilmente em volta do que estava por baixo, vi que era pouco mais que um palito de fósforo. Com sua cabeça enorme, ele no mínimo me dava a impressão de um polvo gigante andando com arrogância sobre tentáculos desiguais pelo pátio da igreja.

Ele deu uma parada brusca e ergueu, respeitoso, um boné de chofer de aba chata, revelando uma cabeleira loira desgrenhada que combinava precisamente com seu cavanhaque à Van Dyke.

— Rupert Porson, presumo? — disse o vigário, cumprimentando o recém-chegado com um cordial-vigoroso-seja-bem-vindo-camarada aperto de mão. — Eu sou Denwyn Richardson, e esta é a minha jovem amiga Flavia de Luce.

Porson inclinou a cabeça para mim e lançou uma rápida, quase invisível, olhada sombria para a mulher, antes de abrir um luminoso sorriso de holofote.

— Um probleminha com o motor, ao que parece — prosseguiu o vigário. — Muito irritante. Ainda assim, se ele trouxe o criador de O Reino Mágico e Snoddy, o Esquilo para o nosso meio... bem, isso apenas prova o velho adágio, não é mesmo?

Ele não disse a que velho adágio se referia, e ninguém se deu ao trabalho de perguntar.

— Eu ia comentar com a sua boa esposa — disse o vigário — que a igreja de São Tancredo ficaria realmente honrada se você não visse obstáculo em apresentar um pequeno show no salão paroquial enquanto sua van está sendo consertada. Estou ciente, é claro, do quanto você é solicitado, mas eu seria negligente se não fizesse ao menos uma tentativa em benefício das crianças e, sim, também dos adultos de Bishop’s Lacey! É bom, de quando em quando, permitir que as crianças lancem um ataque aos seus cofrinhos por uma causa cultural meritória, não concorda?

— Bem, vigário — disse Porson com voz melosa (cheia demais, vibrante demais, doce demais, pensei, para um homem tão diminuto) —, nós de fato temos uma agenda bastante apertada. A nossa excursão tem sido exaustiva, entenda, e Londres exige que...

— Eu entendo — disse o vigário.

— Mas — acrescentou Porson erguendo um indicador dramático — nada nos dará maior prazer do que obter a permissão de cantar em troca do nosso jantar, por assim dizer. Não é mesmo, Nialla? Como nos velhos tempos. — A mulher assentiu, mas não disse nada. Seu olhar estava fixo nas colinas distantes.

— Muito bem. Então — disse o vigário, esfregando as mãos vigorosamente, como se estivesse acendendo fogo — está tudo combinado. Venha comigo e vou mostrar-lhe o salão. Está um tanto deteriorado, mas tem um palco, e dizem que a acústica é extraordinária.

Com isso os dois homens desapareceram por trás da igreja.

Por um momento, pareceu que não havia nada a dizer. E então a mulher falou:

— Você por acaso não teria um cigarro, teria? Estou louca por uma tragada.

Sacudi a cabeça de um jeito meio idiota.

— Humm — balbuciou ela. — Você parece o tipo de criança que poderia ter.

Pela primeira vez na vida, fiquei sem fala.

— Eu não fumo — consegui dizer.

— E por quê? — perguntou ela. — Jovem demais ou sensata demais?

— Eu estava pensando em começar na semana que vem — eu disse debilmente. — Na verdade, ainda não consegui.

Ela jogou a cabeça para trás e riu cheia de dentes, como uma estrela de cinema.

— Gosto de você, Flavia de Luce — disse ela. — Mas estou levando vantagem, não é? Você me disse o seu nome, mas eu ainda não disse o meu.

— É Nialla — eu disse. — O sr. Porson chamou você de Nialla.

— É verdade — concordou, com uma expressão sombria. — Mas você pode me chamar de Mamãe Gansa.


MAMÃE GANSA!

Eu nunca dei a mínima para os comentários frívolos das pessoas e, em particular, não dou a mínima para eles quando vêm de um adulto. Segundo a minha experiência, esse tipo de gracejo na boca de alguém com idade suficiente para saber das coisas frequentemente não passa de camuflagem para algo muito, muito pior. No entanto, me vi engolindo a resposta sarcástica (e deliciosamente ferina!) que já estava na ponta da língua e, em vez disso, consegui dar um sorriso aguado.

— Mamãe Gansa? — repeti, demonstrando dúvida.

Ela explodiu em lágrimas de novo, e fiquei feliz por ter segurado a língua. Eu estava prestes a ser recompensada com algo suculento.

Além disso, eu já começara a detectar uma ligeira e invisível atração entre mim e aquela mulher. Seria compaixão? Ou medo? Eu não sabia. Sabia apenas que alguma substância química entranhada em uma de nós clamava pelo seu há muito perdido complemento (ou antídoto?) na outra.

Pousei a mão gentilmente no ombro dela e lhe estendi meu lenço. Ela olhou para ele hesitante.

— Está limpo — eu disse. — São apenas manchas de grama.

Isso a fez dar início a uma notável contorção. Enterrou o rosto no lenço, e seus ombros sacudiram tão violentamente que por um momento pensei que ia se desfazer em pedaços. A fim de conceder-lhe algum tempo para se refazer (e por eu ter ficado um tanto embaraçada com sua explosão), me afastei um pouco para examinar a inscrição em uma lápide alta e desgastada pelo tempo que marcava o túmulo de uma certa Lydia Green, cujo “passamento” se dera em 1638 com a idade de “cento e trinta e cinco annos”.

Ella era Green outrora, todavia branca ora se tornou, estava escrito na pedra, e foi chorada por uns poucos amigos.

Se Lydia estivesse viva, refleti, teria agora quatrocentos e quarenta e sete anos e seria provavelmente uma pessoa que valeria a pena conhecer.

— Oh, sinto-me tão estúpida!

Voltei-me e vi a mulher enxugando os olhos e me dirigindo um sorriso desanimado.

— Eu sou Nialla — disse, estendendo a mão. — Assistente de Rupert.

Lutei contra minha repugnância e dei uma sacudida rápida como um relâmpago em seus dedos. Como eu suspeitava, a mão dela estava molhada e grudenta. Assim que foi possível, escondi com toda a discrição a mão atrás das costas e enxuguei-a na saia.

— Assistente? — A palavra escapou da minha boca antes que eu pudesse impedir.

— Oh, eu sei que o vigário entendeu que sou a mulher de Rupert. Mas não é isso. Sinceramente! Não é nada disso.

Sem querer, dei uma olhada na van das “Marionetes de Porson”. Ela percebeu na hora.

— Bem, sim... nós realmente viajamos juntos. Suponho que Rupert e eu tenhamos o que você poderia chamar de... uma afeição mútua muito grande. Mas marido e mulher...?

Que tipo de idiota ela achava que eu era? Não fazia mais de uma semana que Dafi estivera lendo Oliver Twist em voz alta para mim e Felinha, e tão certo quanto sei meu próprio nome eu sabia que aquela mulher, Nialla, era a Nancy do Bill Sikes de Rupert Porson. Será que ela não percebera que eu tinha visto aquele enorme e obsceno hematoma em seu braço?

— Na verdade, é tão divertido sacolejar pela Inglaterra com Rupert... Ele é reconhecido em qualquer lugar, sabe? Anteontem mesmo, por exemplo, estávamos atuando em Market Selby quando fomos vistos no Correio por uma senhora gorda que usava um chapéu que mais parecia um vaso de flores. “Rupert Porson!”, ela guinchou. “Rupert Porson usa o Correio Real como todo mundo!” — Nialla riu. — E então ela pediu um autógrafo. Eles sempre pedem, sabe? Insistiu para que ele escrevesse “Com amor, de Snoddy, o Esquilo”. Sempre que faz isso, ele desenha duas pequenas nozes. Ela disse que era para o seu sobrinho, mas eu sei das coisas. Depois que você passa muito tempo na estrada, desenvolve certa percepção para isso. Sempre dá para notar.

Ela continuou tagarelando. Se eu continuasse em silêncio, em menos de um minuto ela me confidenciaria o número de sua calcinha.

— Alguém na BBC contou a Rupert que vinte e três por cento da audiência dele era de donas de casa sem filhos. Parece muito, não é? Mas há alguma coisa em O Reino Mágico que satisfaz o desejo de fuga da realidade inato nas pessoas. Foi exatamente isso que ele disse a Rupert, “o desejo de fuga da realidade inato nas pessoas”. Todo mundo precisa fugir da realidade, não é mesmo? De um jeito ou de outro, quero dizer.

— Todo mundo, menos a Mamãe Gansa — eu disse.

Ela riu.

— Olhe, eu não estava querendo fazer você de boba. Eu sou a Mamãe Gansa. Ao menos quando visto a minha fantasia. Espere só até você ver: um chapéu alto de bruxa com aba mole e uma fivela de prata, uma peruca cinzenta com cachinhos compridos pendurados, e um enorme vestido bufante que parece ter pertencido a Mãe Shipton. Você sabe quem foi a Mãe Shipton?

É claro que eu sabia. Sabia que era uma bruxa velha que supostamente vivera no século XVI e adivinhava o futuro, prevendo, entre outras coisas, a Grande Praga, o Grande Incêndio de Londres, aviões, encouraçados, e que o mundo acabaria em 1881; como as de Nostradamus, as profecias da Mãe Shipton foram escritas em versos de pé quebrado: “Fogo e água prodígios farão” e coisas assim. Também sabia que na verdade hoje em dia ainda existem por aí pessoas que acreditam que ela previu o uso de água pesada na produção da bomba atômica. Quanto a mim, não acredito numa só palavra disso tudo. Não passa de um amontoado de besteiras.

— Já ouvi o nome — disse eu.

— Bem, não importa. É com ela que eu me pareço quando estou fantasiada para o espetáculo.

— Genial — eu disse sem querer dizer isso. Ela percebeu que eu estava um pouco desapontada.

— O que uma boa menina como você está fazendo em um lugar como este? — perguntou com um sorriso zombeteiro, abarcando todo o pátio da igreja com um gesto.

— Eu venho aqui frequentemente para pensar.

Isso pareceu diverti-la. Ela fez um beicinho e assumiu uma irritante voz de palco.

— E no que Flavia de Luce fica pensando, em seu velho e pitoresco pátio de igreja do interior?

— Em ficar sozinha — disparei, sem querer ser grosseira. Eu estava simplesmente dizendo a verdade.

— Em ficar sozinha... — repetiu, balançando a cabeça. Notei que ela não tinha se aborrecido com a minha resposta ríspida. — Há muito a ser dito sobre estar sozinha. Mas você e eu sabemos que estar sozinha e estar solitária não são de todo a mesma coisa, não é, Flávia?

Me animei um pouco. Ali estava alguém que parecia pelo menos ter pensado algumas coisas que eu mesma pensava.

— Não, não são — admiti.

Houve um longo silêncio.

— Conte-me sobre a sua família — disse Nialla afinal, mansamente.

— Não há muito o que contar — respondi. — Tenho duas irmãs, Ophelia e Daphne. Felinha tem dezessete anos, e Dafi, treze. Felinha toca piano, e Dafi lê. O pai é um filatelista. Ele é devotado a seus selos.

— E a sua mãe?

— Morta. Morreu em um acidente quando eu tinha um ano.

— Meu bom Deus! — disse ela. — Alguém me contou sobre uma família que vivia em uma grande e velha mansão decadente não muito longe daqui: um coronel excêntrico e uma família de meninas vivendo selvagens, como um bando de peles-vermelhas. Você não é uma delas, é?

Ela viu imediatamente pela minha expressão que eu era.— Oh, pobrezinha! Me desculpe, eu não queria... quero dizer...

— Tudo bem — tranquilizei-a. — Na verdade é muito pior do que isso, mas não gosto de falar no assunto.

Notei uma expressão distante surgir em seus olhos: a expressão de um adulto debatendo-se desesperadamente para encontrar um denominador comum com alguém mais jovem.

— Mas o que você faz de sua vida? — perguntou ela. — Não tem interesses... ou passatempos?

— Sou boa em química — eu respondi. — E gosto de montar álbuns de recortes.

— Verdade? — entusiasmou-se Nialla. — Ora vejam! Eu também, quando tinha a sua idade. Figurinhas de cigarros e flores prensadas: amores-perfeitos, resedás, dedaleiras, delfínios; botões velhos, cartões de Dia dos Namorados, poemas sobre a roca da vovó do Anuário das meninas... que boa e alegre diversão era aquilo!

Os meus álbuns consistiam de três gordos volumes roxos de recortes recolhidos da maré de revistas e jornais velhos que haviam transbordado e depois inundado a biblioteca e a sala de estar de Buckshaw, derramando-se para dentro dos quartos de dormir vazios e dos quartos de despejo antes de serem por fim levados embora para se decompor em pilhas úmidas e mofadas numa cripta no sótão. Daquelas páginas eu recortara cuidadosamente tudo o que consegui encontrar sobre venenos e envenenadores, até as costuras dos meus álbuns estourarem com tipos como o major Herbert Rowse Armstrong, o advogado e jardineiro amador que despachou a esposa com poções amorosamente preparadas à base de herbicida arsenioso; o major Thomas Neill Cream, Hawley Harvey Crippen e George Chapman (não é notável que o sobrenome de muitos dos maiores envenenadores comece com a letra C?), os quais, com estricnina, escopolamina e antimônio, respectivamente, mandaram um verdadeiro exército de esposas e outras mulheres para o túmulo; Mary Ann Cotton (eu não disse?), que, depois de diversas experiências bem-sucedidas com porcos, seguiu em frente e envenenou dezessete pessoas com arsênico; Daisy de Melker, a sul-africana que tinha paixão por envenenar encanadores: primeiro se casava com eles, depois se divorciava com uma dose de estricnina.

— Montar um álbum de recortes é o passatempo perfeito para uma jovem dama — dizia Nialla —, requintado... e além do mais, educativo. — Exatamente o que eu pensava. — Mamãe jogou o meu no lixo quando fugi de casa — disse ela com algo que poderia ser uma risadinha de escárnio.

— Você fugiu de casa? — perguntei.

Esse fato me intrigou quase tanto quanto as dedaleiras venenosas dela, das quais, lembrei-me, se podia extrair o alcaloide vegetal digitalina (mais conhecido entre os que se dedicam à química como C36H56O14). Por um momento, pensei com prazer nas diversas vezes em que, em meu laboratório, eu exaurira com álcool as folhas de dedaleira arrancadas da horta observando as agulhas brilhantes se cristalizar e a adorável solução verde-esmeralda que se formava quando eu as dissolvia em ácido hidroclorídrico e acrescentava água. A resina que se precipitava podia, é claro, ser restaurada ao seu matiz verde original com ácido sulfúrico, transformado em vermelho-claro com vapor de bromo, e de volta ao verde-esmeralda com a adição de água. Era mágico! E também era, claro, um veneno letal, portanto mais fascinante que botões idiotas e o Anuário das meninas.

— Hum — disse ela. — Cansei de lavar, secar, varrer e espanar, e de ouvir as pessoas vomitando na casa ao lado; cansei de ficar deitada na cama à noite, ouvindo o estrépito do cavalo do príncipe nas pedras do calçamento. — Abri um sorriso. — Rupert mudou tudo isso, é claro. “Venha comigo para o Portal de Diarbekir”, ele me disse. “Venha para o Oriente, e farei de você uma princesa vestida com sedas transparentes e diamantes do tamanho de repolhos.”

— Ele disse isso?

— Não. O que ele disse na verdade foi: “A minha maldita assistente me abandonou. Venha comigo para Lyme Regis no fim de semana, e lhe darei um guinéu, seis refeições completas e um saco para dormir. Vou lhe ensinar a arte da manipulação” — ele ofereceu, e eu fui tola o bastante para achar que ele estava falando de marionetes.

Antes que eu tivesse tempo de perguntar detalhes, ela já havia se levantado em um pulo e sacudido o pó da saia.

— Por falar em Rupert — disse —, é melhor entrarmos para ver como ele e o vigário estão se entendendo. Está tudo macabramente silencioso no salão paroquial. Você imagina que eles já assassinaram um ao outro?

Seu vestido florido farfalhou graciosamente por entre as lápides, e eu fui deixada para trotar como um cachorrinho atrás dela.


Lá dentro, encontramos o vigário de pé no meio do salão; Rupert estava em cima do palco, bem no centro, com as mãos nos quadris. Se ele tivesse sido chamado à cena para os aplausos no teatro Old Vic, a iluminação não poderia ter sido mais dramática. Como que enviado pelo destino, um raio de sol inesperado brilhava através de um vitral no fundo do salão, concentrando seu facho dourado bem no centro do rosto voltado para cima de Rupert. Ele fez uma pose e começou a declamar Shakespeare:

 

Quando minha amada jura que é feita de verdades,

Nela creio, porém sei que mente,

Que pode achar-me um jovem inculto,

Ignorante das falsas sutilezas do mundo.

Pensando em vão que ela me acha jovem,

Sabendo embora que meus melhores dias são passados,

Simplesmente credito isso à sua falsa língua:

Assim dos dois lados é suprimida a verdade simples.

 

Como o vigário mencionara, a acústica do salão era mesmo notável. Os construtores vitorianos haviam feito seu interior como uma concha de painéis curvos de madeira polida que servia de caixa de ressonância para o mais leve ruído: era como estar dentro de um violino Stradivarius. A voz quente e doce de Rupert estava por toda parte, envolvendo-nos em seu rico ressoar.

 

Mas por que razão não se diz ela injusta?

E por que razão não me reconheço velho?

Oh! é costume do amor fingir sinceridade,

E no amor a idade não quer seus anos revelados:

Portanto minto a ela e ela a mim,

E em nossas faltas com mentiras nos enaltecemos.

 

— Pode ouvir-me agora, vigário?

O encanto foi quebrado instantaneamente. Foi como se Laurence Olivier tivesse bradado “Alô! Alô! Testando... um... dois... três...” no meio de “Ser ou não ser”.

— Magnífico! — exclamou o vigário.

O que mais me surpreendeu no discurso de Rupert foi que eu sabia o que ele estava dizendo. Devido à pausa quase imperceptível no final de cada verso, e ao modo singular como ele ilustrava as sutilezas do significado com seus longos dedos brancos, eu entendi as palavras. Todas elas.

Como se elas tivessem sido absorvidas através dos meus poros por osmose, eu soube no momento em que elas foram lançadas sobre mim que estava ouvindo as amargas palavras de um velho à amada muito mais jovem do que ele.

Olhei de relance para Nialla. Ela estava com a mão na garganta.

No silêncio incômodo que se seguiu, o vigário ficou completamente imóvel, como que entalhado em mármore preto e branco.

Eu testemunhava uma situação que nem todos os presentes entendiam.

— Bravo! Bravo! — As mãos em concha do vigário repentinamente bateram uma na outra em uma série de trovões reverberantes. — Bravo! Soneto cento e trinta e oito, a não ser que eu esteja redondamente enganado. E, se eu puder oferecer a minha humilde opinião, talvez nunca antes declamado de maneira tão bela.

Rupert, sem dúvida, se envaideceu.

Do lado de fora, o sol se escondeu atrás de uma nuvem. Seu raio dourado desvaneceu-se num instante, e depois que ele se foi nos transformamos outra vez em apenas quatro pessoas comuns em um salão sombrio e empoeirado.

— Esplêndido — disse Rupert. — O salão vai servir muito bem.

Ele atravessou o palco coxeando e começou a descer, desajeitado, os degraus estreitos, os dedos de uma das mãos estendidos em direção à parede para se apoiar.

— Cuidado! — disse Nialla, dando um passo rápido na direção de Rupert.

— Para trás! — disparou ele com olhar feroz. — Posso me arranjar sozinho.

Ela parou bruscamente, como se tivesse sido esbofeteada.

— Nialla pensa que sou seu filho — disse ele, rindo e tentando fazer piada.

Pelo olhar assassino de Nialla, vi que ela não pensava nada daquilo.


— MUITO BEM, ENTÃO! — DISSE O VIGÁRIO COM VIVACIDADE, esfregando as mãos como se o momento não tivesse acontecido. — Está combinado. Por onde começamos? — Olhou impaciente de um para outro.

— Descarregando a van, imagino — disse Rupert. — Podemos deixar as coisas aqui até a hora do espetáculo?

— Ah, claro, claro — disse o vigário. — O salão paroquial é tão seguro quanto as casas. Talvez até um pouco mais.

— Depois alguém vai precisar dar uma olhada na van... e vamos querer um lugar para nos hospedar por alguns dias.

— Deixem esse departamento comigo — disse o vigário. — Estou certo de que consigo alguma coisa. Agora, então, vamos arregaçar as mangas e mãos à obra. Venha também, Flavia querida. Com certeza encontraremos alguma coisa adequada para os seus talentos especiais.

Alguma coisa adequada para os meus talentos especiais? De algum modo, eu duvidava disso. A não ser que o assunto fosse envenenamento criminoso, que era o meu principal deleite.

Mas como naquele momento eu ainda não estava disposta a ir para casa em Buckshaw, grudei no rosto meu melhor sorriso de escoteira (aposentada) para o vigário e o segui, juntamente com Rupert e Nialla, para o pátio da igreja.

Quando Rupert abriu as portas traseiras da van, tive meu primeiro vislumbre da vida de um artista itinerante. O interior escuro da van estava lindamente equipado com fileiras e mais fileiras de gavetas envernizadas, cada qual firmemente alojada em cima, ao lado e embaixo de suas vizinhas, de modo muito semelhante a caixas de sapatos em uma oficina de sapateiro bem administrada, em que cada gaveta desliza com perfeição para dentro e para fora em seu trilho. No piso da van estavam empilhadas as caixas maiores (caixotes de expedição, na verdade), com alças de corda nas duas extremidades para facilitar a remoção e arrastá-las para o local a que estivessem destinadas.

— Rupert fez tudo isso sozinho — disse Nialla, orgulhosa. — As gavetas, o palco desmontável, o equipamento de iluminação... construiu os refletores com latas velhas de tinta, não é, Rupert?

Rupert assentiu com um ar ausente, enquanto arrastava para fora do carro um fardo de tubos de ferro.

— E isso não é tudo. Ele cortou os cabos, fez os objetos de cena, pintou o cenário, esculpiu os bonecos... tudo, exceto aquilo, é claro.

Ela apontava para uma volumosa caixa preta com alça de couro e perfurações nas laterais.

— O que há lá dentro? Um animal?

Nialla riu.

— Melhor do que isso. É o orgulho e a alegria de Rupert: um gravador magnético. Encomendou dos Estados Unidos. Custou um bom dinheiro, posso garantir. Ainda assim, é mais barato do que contratar a orquestra da BBC para tocar música incidental!

Rupert já começara a puxar as caixas para fora da Austin, grunhindo enquanto trabalhava. Seus braços eram como guindastes das docas, erguendo e virando, erguendo e virando, até que afinal quase tudo estava empilhado na grama.

— Deixe eu dar uma mãozinha — disse o vigário, agarrando uma alça de corda na ponta de um baú preto em forma de caixão com a palavra “Galligantus” gravada com estêncil em letras brancas, enquanto Rupert segurava a outra ponta.

Nialla e eu fizemos algumas viagens para transportar os objetos mais leves, e em meia hora estava tudo empilhado dentro do salão paroquial na frente do palco.

— Muito bem! — disse o vigário, sacudindo o pó das mangas do casaco. — Muito bem mesmo. E agora, sábado seria adequado? Para o espetáculo, quero dizer? Vejamos... hoje é quinta-feira... isso lhe daria um dia a mais para se preparar, bem como tempo para mandar consertar a sua van.

— Me parece bom — disse Rupert. Nialla assentiu, embora não lhe tivessem perguntado nada.

— Que seja sábado, então. Vou pedir a Cynthia que imprima panfletos no mimeógrafo. Ela poderá distribuí-los pelas lojas amanhã... colar alguns em locais estratégicos. Cynthia é muito competente para essas coisas.

“Competente” não estava entre as muitas palavras que me vêm à mente para descrever Cynthia Richardson; “ogra”, no entanto, estava.

Afinal, havia sido Cynthia, com suas feições de roedor, que me pegara uma vez me equilibrando em cima do altar de São Tancredo, usando uma das navalhas do pai para raspar uma amostra de safra azul de um vitral medieval. A safra é uma base impura de arseniato de cobalto, preparada por torrefação, que os artesãos da Idade Média usavam para pintar sobre vidro, e eu estava simplesmente morrendo de vontade de analisar a substância no meu laboratório para determinar o quanto seus produtores tinham tido sucesso em deixá-la livre de ferro.

Cynthia me agarrara, me virara ao contrário e me espancara ali mesmo, fazendo o que considerei uso injusto de um exemplar de Hinos – antigos e modernos (edição clássica) que estava por perto.

“O que você fez, Flavia, não merece congratulações”, disse o pai quando relatei aquele ultraje para ele. “Você arruinou uma navalha Thiers-Issard de lâmina côncava perfeita.”

Tenho de admitir, no entanto, que Cynthia era uma excelente organizadora, mas os homens com chicotes que cuidaram da construção das pirâmides também eram. Se alguém conseguisse emporcalhar Bishop’s Lacey de ponta a ponta com panfletos em três dias, com certeza seria Cynthia Richardson.

— Espere! — exclamou o vigário. — Acabo de ter uma ideia esplêndida! Diga-me o que acha. Por que você não apresenta dois espetáculos em vez de um? Não tenho a intenção de ser um especialista na arte do teatro de marionetes, absolutamente, saber o que é possível e o que não é, e assim por diante, mas por que não apresenta um espetáculo no sábado à tarde, para as crianças, e outro no sábado à noite, quando a maioria dos adultos estará livre para comparecer?

Rupert não respondeu de imediato, mas ficou esfregando o queixo enquanto ponderava. Até eu concluí na hora que dois espetáculos dobrariam a arrecadação da bilheteria.

— Bem... — disse ele afinal. — Acho que sim. Mas teria de ser o mesmo espetáculo...

— Esplêndido! — disse o vigário. — Então o que vai ser... isto é, o programa?

— Abertura com uma breve peça musical — disse Rupert. — É uma nova na qual estive trabalhando. Ninguém viu ainda, portanto seria uma boa ocasião para testá-la. Então, João e o pé de feijão. Eles sempre clamam por ela, tanto os jovens como os adultos. É um clássico. Muito popular.

— Excelente! — disse o vigário. Ele puxou uma folha de papel e um toco de lápis de um bolso interno e rabiscou algumas notas.

— Que tal isto? — perguntou com um floreio final, e depois, com ar satisfeito, leu em voz alta o que havia escrito:

 

Diretamente de Londres!

 

— Espero que vocês me perdoem a pequena mentira e o ponto de exclamação — sussurrou para Nialla.

 

as Marionetes de Porson

(Manipuladas pelo aclamado Rupert Porson. Como visto na BBC Televisão)

 

Programa

I. Interlúdio musical

II. João e o pé de feijão

(O primeiro sendo apresentado pela primeira vez em qualquer palco; o último, declarado universalmente popular entre velhos e jovens)


Sábado, 22 de julho de 1950, no salão paroquial de São Tancredo, Bishop’s Lacey

Apresentações às 14h e às 19h em ponto!

 

— Do contrário, eles virão se arrastando aos poucos — acrescentou. — Vou mandar Cynthia fazer um desenho de uma pequena figura articulada com fios em cima. Ela é uma artista extremamente talentosa, sabem, mas não teve tantas oportunidades de se expressar quanto gostaria. Oh, Deus, receio estar divagando. É melhor eu cuidar dos meus compromissos telefônicos.

E depois de dizer isso, ele se foi.

— Pessoa curiosa, o bom velhote — observou Rupert.

— Ele não é um mau sujeito — considerei. — Apenas leva uma vida meio triste.

— Ah — disse Rupert. — Sei o que você quer dizer. Funerais, e todas essas coisas.

— Sim — concordei. — Funerais e todas essas coisas.

Mas eu estava pensando mais em Cynthia.

— Onde fica o quadro? — perguntou Rupert de repente.

Por um momento, fiquei atônita. Devo ter parecido especialmente pouco inteligente.

— O quadro — repetiu ele. — O quadro de luz. A corrente. Os controles elétricos. Mas não imagino que você saiba onde fica. Ou será que sabe?

Acontece que eu sabia. Apenas algumas semanas antes, eu fora coagida a ficar nos bastidores com a sra. Witty, ajudando a operar as pesadas alavancas do antiquado painel de controle da iluminação, enquanto suas alunas do primeiro ano de balé tropeçavam pelas tábuas do palco no recital de Os frutos dourados do sol, em que Pomona (Deidre Skidmore vestindo um mosquiteiro) cortejava Hyas (um Gerald Plunkett de cara vermelha vestindo uma malha improvisada de uma ceroula pesada de inverno), presenteando-o com um sortimento de frutas de papel-machê.

— À direita do palco — eu disse. — Atrás do regulador preto.

Rupert piscou uma ou duas vezes, disparou-me um olhar mordaz e subiu estrepitosamente os degraus estreitos que levavam ao palco. Por alguns momentos ouvimos seus resmungos lá em cima, pontuados pelos sons metálicos de painéis e interruptores sendo manipulados com estrondo.

— Não dê importância — sussurrou Nialla. — Ele sempre fica nervoso desse jeito do instante em que um espetáculo é marcado até a cortina descer ao final. Depois disso, ele geralmente fica ótimo.

Enquanto Rupert lidava com a eletricidade, Nialla começou a desamarrar diversos fardos com pilares de madeira aplainada, que estavam cingidos fortemente por tiras de couro.

— O palco — ela me explicou. — Tudo isso é montado com parafusos e borboletas. Rupert projetou e construiu tudo sozinho. Cuidado com os dedos. — Eu tinha me aproximado para ajudá-la com as peças mais compridas. — Eu posso fazer isso sozinha, obrigada — disse ela. — Fiz centenas de vezes, já é quase uma ciência. Só na hora de erguer o piso é que são necessárias duas pessoas.

Um farfalhar atrás de mim me fez virar. Lá estava o vigário, com uma expressão muito infeliz.

— Más notícias, infelizmente — disse. — A sra. Archer me contou que Bert foi a Londres para um curso e só voltará amanhã, e ninguém responde na Fazenda Culverhouse, onde eu esperava alojá-los. Por outro lado, a sra. I não costuma atender ao telefone quando está sozinha em casa. Ela vai trazer os ovos no sábado, mas a essa altura será tarde demais. Eu ofereceria o presbitério, é claro, mas Cynthia me lembrou com muita veemência que estamos no meio da pintura dos quartos de hóspedes: as camas foram desmontadas e estão empilhadas nos corredores, há guarda-roupas obstruindo os patamares, e assim por diante. É realmente frustrante.

— Não se preocupe, vigário — disse Rupert de cima do palco. — Minha pele quase se desprendeu de susto. Havia esquecido que ele estava lá. — Vamos acampar onde estamos, no pátio da igreja. Temos uma boa barraca na van, com tapetes de lã e um forro de borracha para o piso, um pequeno fogareiro e feijões em lata para o café da manhã. Estaremos tão confortáveis quanto percevejos em um cobertor.

— Bem — disse o vigário —, se dependesse só de mim, eu...

— Ah — disse Rupert erguendo um dedo —, sei o que está pensando: não dá para deixar ciganos acampar entre os túmulos. Respeito pelos entes queridos que se foram, e tudo o mais.

— Bem — disse o vigário —, pode haver uma parcela de verdade nisso, mas...

— Vamos nos instalar em algum canto desocupado, certo? Assim não haverá profanação. Não será a primeira vez que dormimos em um pátio de igreja, será, Nialla?

Nialla corou de leve e de repente ficou fascinada com alguma coisa no chão.

— Bem, suponho que então está combinado — disse o vigário. — Não temos muita escolha, temos? Além disso, é só por uma noite. Que mal pode haver? Meu Deus! — disse ele, olhando para o seu relógio de pulso. Como o tempus realmente fugit! Fiz uma promessa solene a Cynthia de voltar imediatamente. Ela está preparando o jantar mais cedo, entendam. Nós sempre jantamos mais cedo às quintas-feiras, por causa do ensaio do coro. Eu os convidaria para se juntarem a nós em uma refeição caseira, mas...

— Nem pense nisso — interrompeu Rupert. — Nós já incomodamos o suficiente para um dia, vigário. Além disso, acredite ou não, Nialla tem uma excelente mão para preparar ovos com bacon em fogueiras em pátios de igreja. Vamos comer como bandidos corsos e dormir como defuntos.

Nialla sentou-se com muita suavidade em uma caixa, e percebi que ela se sentia exausta. Olheiras pareciam ter se formado tão depressa em volta de seus olhos como nuvens de tempestade atravessando na frente da lua.

O vigário alisou o queixo.

— Flavia, querida, tive uma ideia esplêndida. Por que você não volta aqui amanhã cedinho para ajudar? Tenho certeza de que as Marionetes de Porson ficarão muito gratas pelos serviços de uma entusiástica assistente — sugeriu o vigário. — Preciso visitar doentes e inválidos amanhã, bem como a Guilda do Altar — acrescentou ele. — Você poderia atuar como a minha lugar-tenente, por assim dizer. Oferecer aos nossos hóspedes, de certo modo, liberdade de acesso à paróquia, além de servir como factótum e zelosa serviçal.

— Eu ficaria feliz — respondi, fazendo uma mesura quase imperceptível.

Nialla, ao menos, me recompensou com um sorriso.

Do lado de fora, no fundo do pátio, recuperei Gladys, a minha confiável bicicleta, no meio do capim alto, e momentos depois estávamos voando para casa através das veredas salpicadas de sol, em direção a Buckshaw.


— OLÁ, TODO MUNDO — EU DISSE PARA FELINHA, que estava de costas, após ter entrado na sala de estar sem ser notada.

Sem deixar de olhar para o espelho no qual se admirava, Felinha viu de relance o meu reflexo no vidro ondulado pelo tempo.

— Dessa vez você se complicou — disse ela. — O pai procurou por você a tarde inteira. Ele acabou de falar por telefone com o policial Linnet, na aldeia. Devo dizer que pareceu um tanto desapontado ao ouvir que eles não tinham pescado o seu corpinho encharcado na lagoa dos patos.

— Como você sabe que eles não pescaram? — reagi, astutamente. — Como você sabe que eu não sou um fantasma que voltou para assombrá-la e persegui-la até a sua tumba?

— Porque o seu sapato está desamarrado, e o seu nariz está escorrendo — disse Dafi, erguendo os olhos de seu livro. Era Entre o amor e o pecado, e ela o estava lendo pela segunda vez.

“Do que se trata?”, eu perguntara na primeira vez.

“Moscas em seiva”, dissera ela com um sorriso condescendente, e eu anotei mentalmente para colocá-lo na minha lista de leituras. Adoro livros sobre ciências naturais.

— Você não vai me perguntar por onde andei? — provoquei. Estava simplesmente morta de vontade de contar a elas sobre as Marionetes de Porson e Nialla.

— Não — respondeu Felinha, pondo um dedo na ponta do queixo, enquanto se inclinava para se olhar mais de perto. — Ninguém tem o menor interesse no que você faz. Você é como um cachorrinho indesejável.

— Eu não sou indesejável — disse eu.

— Ah, sim, você é! — reforçou ela com uma risada áspera. — Cite uma pessoa nesta casa que a queira, e eu lhe darei um guinéu. Vá, cite uma.

— Harriet! — disse eu. — Harriet me queria, ou não teria me dado à luz.

Felinha girou o corpo e cuspiu no chão. Ela realmente cuspiu!

— Para sua informação, Sarna, Harriet caiu em um profundo atoleiro mental logo depois que você nasceu.

— Ah! — disse eu. — Agora eu peguei você! Você me disse que eu tinha sido adotada.

Era verdade. Sempre que Dafi e Felinha queriam me provocar além do que eu podia aguentar, elas renovavam aquela alegação.

— E foi mesmo — disse ela. — O pai e Harriet concordaram em adotá-la antes mesmo de você nascer. Mas quando chegou o momento, você foi entregue por engano a outras pessoas, um casal em East Kent, acho. Infelizmente, eles a devolveram. Soube-se que aquela tinha sido a primeira vez em duzentos anos de história do hospital de enjeitados que alguém devolveu um bebê por não ter gostado dele.

— Harriet também não gostou muito de você depois que a trouxe para casa, e a Junta Diretora recusou-se a aceitá-la de volta pela segunda vez. Jamais vou esquecer o dia em que ouvi Harriet dizendo ao pai, no seu quarto de vestir, que nunca seria capaz de amar uma chorona com cara de rato como você. Mas o que ela podia fazer?

— Bem, ela fez o que qualquer mulher normal faria naquelas circunstâncias: caiu em um estado de profunda perturbação, do qual provavelmente nunca mais se recuperou. Ela ainda estava dominada por ele quando caiu (ou será que pulou?) daquela montanha no Tibete. O pai sempre culpou você por aquilo; certamente você tem consciência disso.

A sala ficou frígida como gelo, e de repente fiquei dormente da cabeça aos pés. Abri a boca para dizer alguma coisa, mas descobri que a minha língua secara e se encarquilhara até virar uma tira de couro enrolada. Lágrimas quentes brotaram nos meus olhos, e eu fugi da sala.

Eu mostraria uma ou duas coisinhas àquela suína da Felinha. Eu a deixaria tão amarrada e cheia de nós que teriam de chamar um marinheiro a fim de desatá-la para o funeral.

Existe uma árvore que cresce no Brasil, a Carica digitata, que os nativos chamam de chamburu. Eles acreditam que ela seja tão letalmente venenosa que o simples fato de dormir sob seus galhos causará, em primeiro lugar, chagas permanentemente supurantes, seguidas, cedo ou tarde, de uma morte maravilhosamente excruciante.

Felizmente para Felinha, no entanto, a Carica digitata não cresce na Inglaterra.

Felizmente para mim, a pequena cicuta, mais conhecida como cicuta-da-europa, cresce. De fato eu conhecia um recanto baixo e pantanoso de Seaton’s Meadow, a menos de dez minutos de Buckshaw, onde ela crescia naquele exato momento. Eu podia ir até lá e voltar antes do jantar.

Recentemente eu havia atualizado as minhas anotações sobre coniina, o princípio ativo da substância. Eu a extrairia destilando com qualquer álcali que tivesse à mão, talvez um pouco do bicarbonato de sódio que eu guardava no meu laboratório contra os excessos culinários da sra. Mullet. Então, por congelamento, eu removeria por recristalização as escamas iridescentes da menos poderosa conidrina. A coniina quase pura resultante teria um delicioso odor de rato, e seria necessário menos de meia gota da substância oleosa para acertar velhas contas.

Agitação, vômitos, convulsões, espumação pela boca, espasmos horrendos — contei os destaques nos dedos enquanto eu prosseguia:

 

Santificado cianeto

Super-rápido arsênico

Misturados-bagunçados

Dentro da sopa.

Apaguem as velas do luto

Tragam o caixão neste minuto

Ensinem como se brinca

Com Flavia de Luce!

 

Minhas palavras ecoaram de volta para mim do teto alto pintado do foyer e do madeiramento escuro e polido das galerias acima. A não ser pelo fato de que não mencionava a cicuta-da-europa, o pequeno poema, que eu compusera para uma ocasião inteiramente diferente, era a expressão perfeita dos meus atuais sentimentos.

Atravessei correndo os ladrilhos preto e branco, e fui pela escadaria curva acima até a ala leste da casa. A ala Tar, como a chamávamos, recebera esse nome em homenagem a Tarquin de Luce, um dos antigos tios de Harriet, que habitara Buckshaw antes de nós. O tio Tar passara a maior parte da vida trancafiado em um magnífico laboratório de química vitoriano, no canto sudeste da casa, investigando “as migalhas do universo”, como escrevera em uma de suas muitas cartas a Sir James Jeans, autor de A teoria dinâmica dos gases.

Diretamente abaixo do laboratório, na Longa Galeria, há um retrato a óleo do tio Tar. Ele está com os olhos afastados do microscópio, os lábios contraídos e o cenho franzido, como se alguém com um cavalete, uma paleta e uma caixa de tintas tivesse entrado sem pedir licença no momento em que ele estava prestes a descobrir o deLucium.

“Deem o fora!”, diz claramente a sua expressão. “Deem o fora e me deixem em paz!”

E assim eles deram o fora; e do mesmo modo, por fim, foi o que fez o tio Tar.

O laboratório e tudo o que havia nele agora eram meus, e isso já fazia anos. Ninguém jamais entrava ali, e era melhor assim.

Enquanto eu enfiava a mão no bolso e puxava a chave, alguma coisa branca esvoaçou para o chão. Era o lenço que eu havia emprestado a Nialla no pátio da igreja. Ele ainda estava levemente úmido ao toque.

Uma imagem surgiu na minha cabeça, a de Nialla quando a vi pela primeira vez, debruçada sobre a lápide, o rosto voltado para baixo, os cabelos espalhados como um mar vermelho, suas lágrimas quentes crepitando na poeira.

Tudo se encaixou como uma lingueta na fechadura. É claro!

A vingança teria de esperar.

Com uma tesourinha de cutícula que eu surrupiara da penteadeira de Felinha, cortei quatro discos úmidos do lenço de linho, tomando cuidado para evitar as manchas verdes de grama que eu infligira a ele, e cortando apenas partes que estavam diagonalmente opostas às manchas: os borrões sobre os quais Nialla havia chorado.

Utilizando uma pinça, enfiei-os em um tubo de ensaio, no qual injetei uma solução a três por cento de ácido sulfossalicílico para precipitar a proteína. Era o assim chamado teste de Ehrlich.

Enquanto trabalhava, pensei com prazer em quão profundamente Alexander Fleming mudara o mundo quando, sem querer, espirrara dentro de uma placa de Petri. Era o tipo de ciência que me encantava o coração. Quem, afinal, poderia dizer honestamente que jamais espirrou em cima de uma cultura? Poderia acontecer com qualquer um. Aconteceu comigo.

Depois do espirro, o magnífico observador Fleming notou que as bactérias na placa estavam se retraindo das nódoas de seu muco respingado, como se estivessem com medo. Não se passou muito tempo até que ele isolasse uma proteína em particular no muco que repelia as bactérias de um modo muito parecido com o de um cão espumando pela boca espanta ladrões. Ele a chamou de lisozima, e era essa a substância para a qual eu estava agora testando.

Felizmente, mesmo no auge do verão, os salões ancestrais de Buckshaw eram tão frios e úmidos quanto a proverbial tumba. A temperatura ambiente na ala leste, onde se localizava o meu laboratório, apesar do aquecimento que fora malevolamente instalado somente na ala oeste da casa outrora dividida, jamais passava dos quinze graus centígrados, que, por sorte, era precisamente a temperatura em que a lisozima se precipita quando se adiciona o ácido sulfossalicílico.

Observei, extasiada, enquanto o véu de cristais começava a se formar, os flocos brancos derivando gentilmente para baixo, no pequeno inverno dentro do tubo de ensaio.

Em seguida acendi um bico de Bunsen e cuidadosamente aqueci uma proveta de água a vinte e um graus. Não levou muito tempo. Quando o termômetro indicou que estava pronto, mergulhei o fundo do tubo de ensaio no banho quente e o agitei gentilmente.

Quando o precipitado recém-formado se dissolveu, deixei escapar um suspiro deleitado.

— Flavia. — A voz distante do pai evolou-se até o laboratório. Depois de atravessar o vestíbulo da frente, penetrar na ala leste e encaminhar-se pelo longo corredor abaixo até o seu ponto mais meridional, ela agora se infiltrara através da minha porta fechada, sua força exaurida, tão insubstancial como se tivesse vindo à deriva até a Inglaterra desde Ultima Thule.

— Jantar — pensei tê-lo ouvido chamar.


— É tremendamente irritante — disse o pai.

Estávamos sentados em volta da longa mesa do refeitório, o pai na ponta, Dafi e Felinha, uma de cada lado, e eu, no outro extremo, no Cabo Horn.

— É tremendamente irritante — disse ele de novo — uma pessoa sentar-se aqui e ficar ouvindo a própria filha admitir que ela se apoderou da minha água-de-colônia para usar em um maldito experimento de química.

Tanto fazia se eu negasse essas coisas ou admitisse a minha culpa; o pai achava igualmente irritante. O fato é que eu simplesmente não podia ganhar. Já aprendera que o melhor era permanecer em silêncio.

— Droga, Flavia, eu tinha acabado de comprar aquela maldita coisa. Não dá para eu ir a Londres neste calor fedendo como um quarto dianteiro de porco apodrecido, dá?

O pai era muito eloquente quando estava zangado. Eu havia surrupiado o frasco de Roger & Gallet para encher um nebulizador com o qual precisava borrifar a casa depois de um experimento que envolvera sulfeto de hidrogênio e dera espetacularmente errado.

Sacudi a cabeça.

— Me desculpe — eu disse, adotando uma expressão envergonhada e enxugando os olhos com um guardanapo. — Eu compraria um novo frasco para você, mas não tenho dinheiro.

Como se eu fosse um patinho de lata num estande de tiro, Felinha mirou-me através da longa mesa com um silencioso desdém. O nariz de Dafi estava firmemente enfiado em Virginia Woolf.

— Mas eu poderia fazer um pouco para você — eu disse, alegre. — Na verdade não é muito mais do que etanol, óleos cítricos e ervas de jardim. Vou pedir a Dogger que colha um pouco de alecrim e lavanda, e vou arranjar algumas laranjas, limões e limas com a sra. Mullet...

— Você não vai fazer nada disso, srta. Flavia — disse a sra. Mullet, invadindo impetuosa e literalmente a sala enquanto empurrava a porta com suas vastas ancas e largava uma grande travessa em cima da mesa.

— Ah, não! — ouvi Dafi sussurrando para Felinha. — É o treme-treme de novo.

O treme-treme, como o chamávamos, era uma sobremesa de lavra própria da sra. Mullet, que, até onde podíamos entender, consistia em uma espécie de gelatina verde grumosa embutida como uma salsicha, com cobertura dupla de creme coagulado e enfeitada com ramos de hortelã e outras sobras variadas de vegetais. Ficava ali, tremendo obscenamente de vez em quando, como uma enorme e abominável lesma de jardim. Não pude deixar de sentir um arrepio.

— Que delícia — disse o pai. — Realmente delicioso.

Ele estava sendo irônico. Mas as antenas da sra. Mullet não estavam sintonizadas para o sarcasmo.

— Eu sabia que vocês gostariam — disse ela. — Hoje mesmo de manhã eu dizia para o meu Alf: “Faz tempo que o Coronel e as meninas não comem uma das minhas adoráveis gelatinas. Eles sempre comentam sobre as minhas gelatinas” (isso era mesmo verdade), “e eu adoro prepará-las para eles, para os meus queridos”.

Ela fez isso soar como se os seus patrões tivessem galhadas na testa.

Felinha fez um ruído como o de um passageiro passando mal na amurada do Queen Mary em plena travessia do Atlântico Norte em novembro.

— Coma tudo, querida — disse a sra. Mullet, inabalável. — Faz bem para você. — E depois de dizer isso ela se foi.

O pai cravou aquele seu olhar em mim. Embora ele tivesse levado a última edição do The London Philatelist para a mesa, como sempre fazia, nem sequer o abrira. O pai era um entusiástico, para não dizer fanático, colecionador de selos do Correio e dedicava sua vida a ficar olhando através de lentes de aumento para um suprimento aparentemente infindável de pequenas cabeças coloridas e paisagens pitorescas. Mas agora ele não estava examinando selos. Agora ele estava olhando para mim. Os augúrios não vaticinavam nada de bom.

— Onde você esteve a tarde inteira? — perguntou.

— Na igreja — respondi prontamente, com ar afetado e, esperava, com um pouco de devoção também. Eu era mestra nesse tipo de papo furado evasivo.

— Na igreja? — perguntou ele, parecendo um tanto surpreso. — Por quê?

— Estava ajudando uma mulher — eu disse. — A van dela quebrou.

— Ah — disse ele, permitindo-se um sorriso de meio milímetro. — E você estava lá bem no momento para oferecer os seus serviços como mecânica de motores.

Dafi sorriu ironicamente para o seu livro, e percebi que ela estava ouvindo com prazer a minha humilhação. Felinha, diga-se a seu favor, continuou totalmente absorta em lustrar as unhas em sua blusa de seda branca.

— Ela está participando de um espetáculo itinerante de marionetes — eu disse. — O vigário pediu a eles... a Rupert Porson, quero dizer, e a Nialla (é o nome dela) para fazer uma apresentação no salão paroquial no sábado, e ele quer a minha ajuda.

O pai abrandou ligeiramente. O vigário era um de seus poucos amigos em Bishop’s Lacey, e era improvável que ele sonegasse os meus serviços.

— Rupert trabalha na televisão — contei. — Ele é muito famoso, na verdade.

— Não nos meus círculos — disse o pai, olhando para o relógio e afastando a cadeira da mesa. — Oito horas — disse. — Quinta-feira.

Ele não precisou se explicar. Sem uma palavra, Dafi, Felinha e eu nos levantamos e seguimos obedientemente para a sala de estar, todas em uma fila dispersa, como um comboio.

As noites de quinta-feira eram as Noites do Rádio em Buckshaw. O pai decretara recentemente que precisávamos passar mais tempo juntos como família, e assim a Noite do Rádio foi estabelecida como um suplemento à sua série compulsória de preleções nas quartas-feiras. Esta semana, seria a fabulosa Quinta Sinfonia de Ludwig van Beethoven, ou Larry, como eu o chamava sempre que queria provocar Felinha. Eu me lembrava de que Felinha certa vez nos contara que na partitura impressa original o nome de Beethoven aparecia como... Louis.

Louis Beethoven me soava como o nome de um dos gângsteres coadjuvantes em um filme de Edward G. Robinson, alguém com uma cara amarelada e esfolada, um tique alarmante e uma metralhadora Thompson em um estojo de violino.

— Toque aquela tal de Sarandalha ao Luar, do Louie B. — eu rosnava na minha voz roufenha de gângster ao entrar na sala quando ela praticava no teclado. Um momento depois eu estaria em fuga desabalada, com Felinha atrás de mim em uma perseguição implacável e uma folha de partitura esvoaçando sobre o tapete.

Agora Felinha se acomodava atarefadamente em uma pose artística de corpo inteiro sobre o sofá, como uma diva do cinema. Dafi se deixou cair de lado em uma poltrona estofada, com as pernas penduradas para fora, por cima do braço.

O pai ligou o rádio e sentou-se em uma cadeira simples de madeira, as costas retas como um pedaço de pau. Enquanto as válvulas esquentavam, dei um salto mortal através do tapete, voltei andando em cima das mãos através da sala e me deixei cair em uma posição de Buda de pernas cruzadas, com o que eu esperava ser uma fisionomia inescrutável.

O pai me lançou um olhar fulminante, mas, como o programa já estava começando, decidiu não dizer nada.

Depois de uma longa e maçante introdução de um locutor que parecia que avançaria pelo próximo século adentro, a Quinta Sinfonia finalmente começou.

Duh-duh-duh-DAH.

Segurei o queixo nas mãos em concha, apoiei os cotovelos sobre os joelhos e me entreguei à música.

O pai nos disse que a apreciação da música era de importância suprema na educação de uma mulher decente. Essas foram suas palavras exatas, e eu passei a apreciar o fato de que existe música adequada para meditação, música para escrever e música para relaxar.

Com os olhos semicerrados, virei o rosto na direção das janelas. Do meu ponto de vista, no chão, eu podia ver as duas extremidades do terraço refletidas no vidro das portas-janelas, que estavam entreabertas, e, a não ser que meus olhos estivessem me pregando uma peça, alguma coisa se movera lá fora: alguma forma escura passara do lado de fora da janela.

No entanto, não me atrevi a me pôr de pé em um pulo. O pai insistia em uma audição atenta. Até mesmo um pé marcando o ritmo encontraria instantaneamente um olhar cruel e um dedo acusador apontando para baixo.

Me inclinei ligeiramente para a frente e vi que um homem todo vestido de preto acabava de se sentar em um banco embaixo das roseiras. Estava inclinado para trás, de olhos fechados, ouvindo a música que flutuava através das portas abertas. Era Dogger.

Dogger era o Homem do pai, com H maiúsculo: jardineiro, chofer, valete, administrador da propriedade e factótum. Como eu disse antes, ele já tinha feito de tudo.

A experiência de Dogger como prisioneiro de guerra deixou alguma coisa quebrada dentro dele: alguma coisa que de vez em quando, com uma ferocidade inacreditável, atacava seu cérebro com garras e dentes, como algum tipo de besta-fera voraz que o transformava em uma trêmula pilha de nervos.

Mas naquela noite ele estava em paz. Naquela noite se vestira todo para a sinfonia, usando um terno escuro e o que poderia ter sido uma gravata militar, e seus sapatos tinham sido engraxados até brilhar como espelhos. Estava sentado imóvel no banco embaixo das rosas, de olhos fechados, o rosto voltado para cima como um dos radiantes santos coptas que eu tinha visto nas páginas de arte da Country Life, a madeixa de cabelos brancos iluminada por trás por um etéreo raio do sol poente. Era agradável saber que ele estava lá.

Me espreguicei satisfeita e voltei a atenção novamente para Beethoven e sua vigorosa Quinta.

Embora fosse de fato um grande músico e um extraordinário compositor de sinfonias, Beethoven era frequentemente um deplorável fracasso quando se tratava de terminá-las. A Quinta era um exemplo perfeito.

Me lembro de que o final dela, o allegro, era uma daquelas vezes em que Beethoven simplesmente não conseguiu encontrar o botão de desligar.

Dum... dum... dum-dum-dum, ela soava, e se poderia pensar que havia acabado.

Mas não...

Dum, dah, dum-dum-dum, dah, dum, dah, dum, dah, dum — DAH dum.

Você se levanta e se espreguiça, suspirando de satisfação com a grande obra que acabara de ouvir, e de repente:

DAH dum. DAH dum. DAH dum. E assim por diante: DAH dum.

Era como um pedaço de papel pega-moscas colado em seu dedo do qual você não consegue se livrar. A maldita coisa grudava-se à vida como uma craca.

Lembrei-me de que algumas sinfonias de Beethoven receberam nomes: a Eroica, a Pastoral, e assim por diante. Deviam ter chamado esta de Vampira, porque simplesmente se recusava a deitar e morrer.

Mas, com exceção desse final pegajoso, eu adorava a Quinta, e o que eu gostava mais era do fato de que ela era o que eu considerava... música de correr.

Eu me via de braços abertos, correndo desenfreadamente sob o sol quente pela Colina Goodger abaixo, precipitando-me em largos zigue-zagues, as minhas tranças voando atrás de mim ao vento, esgoelando a Quinta a plenos pulmões.

Meu agradável devaneio foi interrompido pela voz do pai.

— Este agora é o segundo movimento, andante con moto — dizia ele em voz alta. O pai sempre anunciava o nome dos movimentos com uma voz mais apropriada para quartel do que para sala de estar. — Significa “a passo de caminhada, com movimento” — acrescentou, recostando-se de novo na cadeira como se, por enquanto, tivesse cumprido com o seu dever.

Aquilo me pareceu redundante: como era possível um passo de caminhada sem movimento? Aquilo desafiava as leis da física, mas, por outro lado, os compositores não são como nós.

Por exemplo, em sua maior parte, eles estão mortos.

E quando pensei em estar morta e em pátios de igrejas, me lembrei de Nialla.

Nialla! Eu quase me esquecera de Nialla! A convocação do pai para o jantar chegara bem no momento em que eu estava terminando meu teste químico. Formei mentalmente a imagem da ligeira turvação, dos flocos turbilhonantes no tubo de ensaio e da excitante mensagem que transmitiam.

A não ser que eu estivesse redondamente enganada, a Mamãe Gansa estava grávida.


ME PERGUNTEI SE ELA SABIA.

Antes mesmo de ela ter se levantado chorando de sua lápide de calcário, eu já havia reparado que Nialla não usava aliança. Não que isso significasse alguma coisa: até a mãe de Oliver Twist não era casada.

Por outro lado, havia lama fresca em seu vestido. Embora eu tivesse registrado o fato em algum matagal emaranhado da minha cabeça, não havia pensado mais nisso até agora.

No entanto, quando se parava para refletir, parecia bastante óbvio que ela tinha feito pipi no pátio da igreja. Como não havia chovido, a lama fresca na barra do vestido indicava que ela fizera isso, e apressadamente, no canto noroeste, longe de olhares indiscretos, atrás do monte de terra extra que o sacristão, o sr. Haskins, deixava à mão para as operações de abertura de covas.

Ela devia estar desesperada, concluí.

Sim! Era isso! Não existe uma só mulher na face da terra que escolheria um lugar tão inamistoso (ignobilmente insalubre, teria dito Dafi), a não ser que não tivesse escolha. Havia inúmeras razões, mas uma delas me vinha à mente de imediato, e era uma com a qual eu me deparara recentemente nas páginas da Australian Women’s Weekly enquanto esperava para ser atendida na sala de espera de uma clínica odontológica na rua Farringdon. “Dez sinais precoces de um evento abençoado”, chamava-se o artigo, e a necessidade de micção frequente beirava o topo da lista.

— Quarto movimento. Allegro. Clave de dó maior — apregoou o pai, como se fosse um condutor de trem anunciando a próxima estação.

Dei uma inclinada enérgica de cabeça para ele, para mostrar que estava prestando atenção, depois mergulhei de volta nos meus pensamentos. Onde eu estava mesmo? Ah, sim. Oliver Twist.

Certa vez, em uma viagem para Londres, Dafi apontara para nós, da janela do nosso táxi, o ponto exato em Bloomsbury onde ficava o hospital de enjeitados de Oliver. Embora ele fosse agora uma praça muito agradável e luxuriante, não tive problemas em me imaginar subindo penosamente aqueles degraus da frente havia muito desaparecidos, porém ainda assim cobertos de neve, erguendo a enorme e pesada tranca e pedindo refúgio. Quando eu contasse a eles da minha vida de semiórfã em Buckshaw com Felinha e Dafi, não fariam mais nenhuma pergunta. Eu seria recebida de braços abertos.

Londres! Diabos e demônios! Eu me esquecera completamente. Hoje era o dia em que eu deveria ter ido com o pai à cidade para experimentar o aparelho dentário. Não admira que ele estivesse mal-humorado. Enquanto eu estava saboreando a morte no pátio da igreja e batendo um longo papo com Nialla e o vigário, o pai, quase com toda a certeza, estava espumando e fumegando em volta da casa como um destróier com a fornalha superalimentada. Tive a sensação de que ainda teria de lidar com aquilo.

Bem, agora já era tarde demais. Beethoven estava, por fim, seguindo fatigado por seu tortuoso caminho para casa, como o lavrador de Thomas Gray, deixando o mundo para as trevas e para mim e para o pai.

— Flavia, uma palavrinha, por favor — disse ele, desligando o rádio com um agourento clique.

Felinha e Dafi se levantaram de seus respectivos lugares e saíram da sala em silêncio, parando apenas o suficiente junto à porta para me dirigir um par de suas caretas patenteadas de “Agora você vai ouvir!”.

— Que diabo, Flavia — disse o pai depois que elas saíram. — Você sabia tão bem quanto eu que nós tínhamos um compromisso com os seus dentes esta tarde.

Com os meus dentes! Ele fez aquilo soar como se o Ministério da Saúde estivesse providenciando para mim um conjunto completo de dentaduras.

Mas o que ele dissera era verdade: não fazia muito tempo eu destruíra um aparelho perfeitamente bom quando endireitava o arame para forçar uma fechadura. O pai resmungou, é claro, mas marcou outra hora para me capturar e arrastar de volta a Londres, para aquela oficina de sucateiro no terceiro andar da rua Farringdon, onde eu seria imobilizada em uma prancha como Boris Karloff, enquanto vários itens de ferraria eram enfiados na minha boca, aparafusados e atarraxados nas minhas gengivas.

— Eu esqueci — disse eu. — Desculpe. Você devia ter me lembrado no café da manhã.

O pai piscou. Ele não esperava uma resposta tão vigorosa, ou tão primorosamente desviada! Embora ele tivesse sido oficial de carreira do Exército, quando se tratava de manobras domésticas, era pouco mais que um bebê agitado.

— Talvez possamos ir amanhã — acrescentei alegremente.

Embora possa não parecer à primeira vista, foi um golpe de mestre. O pai desprezava o telefone com uma paixão que ia além de qualquer convicção. Ele via o uso da coisa, ou “daquele instrumento”, como ele o chamava, não apenas como uma fraude ao Correio, mas como um ataque direto às tradições do Correio Real, o serviço postal do Reino Unido em geral, e ao uso de selos postais em particular. Portanto, ele se recusava terminantemente a usá-lo, a não ser nas mais terríveis circunstâncias. Eu sabia que ele levaria semanas, senão meses, para tocar no assunto de novo. Mesmo se escrevesse ao dentista, levaria tempo para completar as necessárias idas e vindas. Nesse meio-tempo, eu estaria fora de perigo.

— E lembre-se — o pai disse, como se tivesse acabado de pensar nisso — de que a sua tia Felicity chega amanhã.

Meu coração afundou como o batiscafo do Professor Picard.

Todo verão a irmã do pai saía de sua casa em Hampstead e caía em cima de nós. Embora não tivesse filhos (talvez porque nunca tivesse se casado), ela tinha opiniões deveras alarmantes sobre a educação adequada para crianças: opiniões que nunca se cansava de afirmar em voz alta.

“As crianças precisam ser açoitadas”, costumava dizer, “a não ser que desejem seguir carreira na política ou nos tribunais, caso em que deviam, somando-se a isso, ser afogadas”. O que resumia muito bem toda a sua filosofia. Ainda assim, como todos os tiranos cruéis e intimidadores, tinha algumas gotas de sentimentalismo secretadas em algum lugar dentro dela, que de vez em quando subiam borbulhando à superfície (mais frequentemente no Natal, mas, às vezes, atrasadas nos aniversários), quando então nos infligia seus presentes escolhidos a dedo.

Dafi, por exemplo, que devoraria Melmoth, o errante, ou A abadia do pesadelo, ganharia de tia Felicity um exemplar do Livro Jumbo das Meninas, e Felinha, que nunca pensara muito sobre nada além de cosméticos e de sua própria pele cheia de espinhas, rasgaria o seu embrulho para encontrar um par de galochas de guta-percha para motoristas (“Ideais para panes no campo”).

Uma vez, porém, quando zombamos de tia Felicity na frente do pai, ele ficou instantaneamente furioso, de um jeito que eu jamais tinha visto. Mas logo recobrou o controle, encostando um dedo no canto do olho para fazer parar um nervo que se contraía com espasmos.

— Nunca ocorreu a vocês — perguntou ele naquela horrível voz uniforme — que sua tia Felicity não é o que pode parecer?

— Você quer dizer — Felinha disparou de volta — que toda essa maluquice não passa de pose?

Eu só pude ficar olhando, horrorizada com o atrevimento dela.

O pai cravou nela por um momento o olhar penetrante e feroz daqueles seus “olhos de Luce” azuis, depois girou nos calcanhares e saiu pisando firme da sala.

— Ai, Jesus! — disse Dafi, mas só depois que ele se fora.

E assim os medonhos presentes de tia Felicity continuaram a ser recebidos em silêncio — pelo menos na minha presença.

Antes que eu pudesse ao menos começar a me lembrar das transgressões dela contra minha boa natureza, o pai prosseguiu:

— O trem dela chega a Doddingsley às dez e cinco, e eu gostaria que você estivesse lá para recebê-la.

— Mas...

— Por favor, não discuta, Flavia. Eu já planejei acertar algumas contas na aldeia. Ophelia vai dar algum tipo de recital no chá da manhã do Instituto das Mulheres, e Daphne simplesmente se recusa a ir.

Macacos me mordam! Eu devia saber que alguma coisa assim aconteceria.

— Vou dizer a Mundy que envie um carro. Vou combinar com ele, quando vier buscar a sra. Mullet hoje à noite.

Clarence Mundy era o dono do único táxi de Bishop’s Lacey.

A sra. Mullet ficava até mais tarde para terminar a areação semestral das panelas e frigideiras: um ritual que sempre deixava a cozinha cheia de vapor gorduroso e superaquecido, e os habitantes de Buckshaw com náuseas. Nessas ocasiões, o pai sempre insistia em, depois, mandá-la de volta para casa de táxi. Havia diversas teorias circulando em Buckshaw sobre suas razões para fazer isso.

Era óbvio que eu não poderia ir e vir de Doddingsley com tia Felicity e ao mesmo tempo ajudar Rupert e Nialla a organizar o espetáculo de marionetes. Eu simplesmente teria de estabelecer minhas prioridades e cuidar primeiro dos assuntos mais importantes.


Embora já houvesse uma faixa dourada no céu oriental, o sol ainda não havia aparecido quando eu segui velozmente pela estrada para Bishop’s Lacey. Os pneus de Gladys zuniam aquele som atarefado que as vespas costumam fazer quando estão especialmente satisfeitas.

Uma neblina baixa flutuava nos campos dos dois lados dos regos, e fiz de conta que eu era o fantasma de Cathy Earnshaw voando para Heathcliff (a não ser pela bicicleta) através dos pântanos de Yorkshire. De vez em quando, mãos esqueléticas se estendiam para fora dos espinheiros das sebes para agarrar meu suéter de lã, mas eu e Gladys éramos rápidas demais para elas.

Quando parei ao lado da igreja de São Tancredo, vi a pequena barraca branca de Rupert armada no meio do capim alto, no fundo do pátio superedificado da igreja. Ele a erguera sobre a vala comum, onde os indigentes eram postos para descansar e onde, consequentemente, havia corpos, mas não lápides. Imaginei que não tinham contado nada a Rupert e Nialla sobre isso, e decidi que não seria de mim que ouviriam.

Antes de avançar mais que uns poucos metros pelo capim molhado, meus sapatos e meias ficaram totalmente encharcados.

— Olá! — chamei de mansinho. — Tem alguém em casa?

Não houve resposta. Nenhum som. Levei um susto quando uma das gralhas curiosas deslizou de cima da torre e aterrissou com um plop perfeitamente aerodinâmico sobre o muro decadente de calcário.

— Olá! — chamei de novo. — Toc, toc, toc. Alguém em casa?

Alguma coisa farfalhou na tenda, e Rupert enfiou a cabeça para fora, os cabelos de feno caindo sobre os olhos, que estavam vermelhos como se movidos por dínamos elétricos.

— Jesus, Flavia! — ele disse. — É você?

— Desculpe. Cheguei um pouco cedo.

Ele recolheu a cabeça para dentro da barraca como uma tartaruga, e ouvi-o tentando acordar Nialla. Depois de alguns bocejos e resmungos, a lona começou a se projetar para fora em súbitos ângulos estranhos, como se alguém lá dentro estivesse varrendo cacos de vidro com uma vassoura de ramos de árvore.

Alguns minutos depois, Nialla saiu da barraca, meio se arrastando. Estava usando o mesmo vestido do dia anterior, e, embora o tecido parecesse ainda estar desconfortavelmente úmido, ela puxou um cigarro Woodbine e o acendeu antes de endireitar totalmente o corpo.

— Salve — disse, agitando uma abrangente mão para mim e fazendo a fumaça do cigarro se misturar à neblina que pairava por entre as tumbas.

Ela tossiu com um súbito e horrendo espasmo, e a gralha, inclinando a cabeça, deu vários passos de lado sobre o muro, como se estivesse com nojo.

— Você não devia ficar se defumando com essas coisas — eu disse.

— Melhor do que defumar arenques — respondeu ela, e riu da própria piada. — Além do mais, o que sabe você?

Eu sabia que o meu falecido tio-avô, Tarquin de Luce, cujo laboratório de química eu herdara, em seus dias de estudante tinha sido vaiado e literalmente arremessado para fora da Oxford Union, a associação de debates da universidade, depois de assumir uma posição afirmativa em um deles: “Está decidido: o tabaco é uma erva perniciosa”.

Não fazia muito tempo, eu havia encontrado por acaso algumas anotações do tio Tar enfiadas em um diário. Suas meticulosas pesquisas químicas pareciam ter confirmado a ligação entre o fumo e o que era então chamado de “paralisia geral”. Como, por natureza, ele era um tipo bastante tímido e reservado, sua total e abjeta humilhação, como ele descreveu, nas mãos de seus colegas estudantes, contribuiu para sua subsequente vida reclusa.

Me envolvi com os braços e dei um passo atrás.

— Não sei nada — eu disse.

Eu tinha falado demais. Estava frio e úmido no pátio da igreja, e tive uma súbita visão da cama quente da qual eu saíra para vir ajudar.

Nialla soprou para o ar o que pretendia ser dois casuais anéis de fumaça. Ela ficou olhando eles subirem até se dissipar.

— Desculpe — disse ela. — Não costumo estar na minha melhor forma ao romper da aurora. Não quis ser rude.

— Está tudo bem — eu disse. Mas não estava.

Um graveto estalou surpreendentemente alto no silêncio abafado da neblina. A gralha abriu as asas e saiu voando para o topo de um teixo.

— Quem está aí? — chamou Nialla, dando uma corrida de repente até o muro de calcário e se debruçando por cima dele. — Malditos moleques — disse ela. — Tentando nos assustar. Ouvi um deles rindo.

Embora eu tivesse herdado a audição extremamente aguçada de Harriet, não tinha ouvido nada além de um graveto se partindo. Não disse a Nialla que seria muito estranho encontrar qualquer criança de Bishop’s Lacey no pátio da igreja àquela hora da manhã.

— Vou mandar Rupert atrás deles — disse ela. — Isso vai lhes dar uma lição. Rupert! — ela gritou. — O que você está fazendo aí dentro?

— Aposto que aquele preguiçoso indolente se enfiou de novo no saco de dormir — acrescentou, dando uma piscadela.

Ela esticou a mão e deu uma puxada em uma das cordas da barraca para fazê-la vibrar, e, como um paraquedas ao vento, a coisa inteira desabou, uma massa de lona murchando lentamente. A barraca tinha sido armada na terra solta da camada superior do solo, na vala comum, que cedia ao menor toque.

Rupert saiu do meio dos destroços em um instante. Agarrou Nialla pelo pulso e o torceu por trás das costas. O cigarro dela caiu na grama.

— Nunca mais... — ele bradou. — Nunca mais...

Nialla sinalizou com os olhos na minha direção, e Rupert soltou-a imediatamente.

— Droga — disse ele. — Eu estava fazendo a barba. Podia ter cortado a minha maldita garganta.

Ele esticou o queixo para a frente e deu um puxão de lado, como se estivesse tentando se livrar de um colarinho invisível.

Estranho, pensei. Ele ainda estava com todos os pelos da barba matinal, e mais ainda: não havia o menor sinal de creme de barbear em seu rosto.


— A sorte está lançada — disse o vigário.

Ele viera cantarolando de boca fechada, cruzando o pátio da igreja como um pião, deixando entrever preto e depois branco através da neblina, esfregando as mãos e exclamando, enquanto se aproximava:

— Cynthia concordou em rodar alguns panfletos na sacristia, e faremos com que estejam distribuídos antes do almoço. E agora vamos cuidar do café da...

— Nós já comemos, obrigado — disse Rupert, apontando para trás com o polegar na direção da barraca, que agora jazia perfeitamente dobrada sobre a grama. E era verdade. Alguns vestígios de fumaça ainda se evolavam do fogo recém-apagado. Rupert havia pego uma caixa de cavacos na traseira da van e com rapidez surpreendente fizera crepitar uma admirável fogueira de acampamento. A seguir, pegara uma cafeteira, um filão de pão e um par de gravetos apontados para fazer torradas. Nialla conseguira até encontrar um pote de marmelada escocesa na bagagem.

— Têm certeza? — perguntou o vigário. — Cynthia mandou dizer que se...

— Certeza absoluta — disse Rupert. — Estamos acostumados a...

— Improvisar — disse Nialla.

— Bem, então — disse o vigário — vamos entrar?

Ele nos conduziu através do gramado até o salão paroquial, e quando tirou um molho de chaves me virei para olhar através do pátio para o antigo pórtico. Se alguém tivesse estado lá, já teria fugido às pressas. Um cemitério enevoado oferece um número infinito de lugares para se esconder. Alguém bem que poderia ficar agachado atrás de uma lápide a menos de três metros de distância, e você jamais saberia. Com uma última e apreensiva olhada nos fragmentos da neblina que se dissipava, me virei e entrei.


— Bem, Flavia, o que você acha?

Fiquei sem fôlego. O que ontem tinha sido um palco vazio era agora um primoroso teatrinho de marionetes, do tipo que poderia ter sido transportado por artes mágicas da noite para o dia da Salzburg do século XVIII.

A boca de cena, que calculei entre um metro e meio e dois de largura, estava coberta por um conjunto de cortinas de veludo vermelho, ricamente enfeitadas com borlas douradas, com as máscaras da Comédia e da Tragédia bordadas.

Rupert desapareceu atrás do palco e, enquanto eu assistia com reverência, uma fileira de luzes na ribalta — vermelhas, verdes e âmbar — se acendeu pouco a pouco até que a metade inferior das cortinas se transformou em um rico arco-íris de veludo.

Ao meu lado, o vigário inspirou fundo enquanto elas se abriam devagar. Ele juntou as mãos, extasiado.

— O Reino Mágico — arfou.

Ali, diante dos nossos olhos, aninhado entre colinas verdejantes, havia um pitoresco chalé campestre, o telhado de palha e a fachada com vigas de madeira aparentes, completo em todos os detalhes, do banco de madeira embaixo da janela até as pequeninas rosas de papel de seda no jardim da frente.

Por um momento, desejei viver ali: poder me encolher e me arrastar para dentro daquele pequeno mundo perfeito em que cada objeto parecia brilhar como se estivesse iluminado por dentro. Uma vez acomodada no chalé, eu montaria um laboratório químico atrás das pequeninas janelas separadas por mainéis e...

O encanto foi quebrado pelo som de alguma coisa caindo e por um áspero “Raios!” em algum lugar no céu pintado de azul.

— Nialla! — soou a voz de Rupert atrás das cortinas. — Onde está aquele gancho da bruzundanga?

— Desculpe, Rupert — ela gritou, e notei que não teve pressa em responder. — Ainda deve estar na van. Você ia mandar soldar, lembra?

E voltando-se para mim explicou:

— É a coisa que segura o gigante em pé. Mas, por outro lado — acrescentou, sorrindo —, não devemos revelar segredos demais. Tira todo o mistério das coisas, não acha?

Antes que eu pudesse responder, a porta no fundo do salão paroquial se abriu, e apareceu a silhueta de uma mulher contra a luz do sol. Era Cynthia, a mulher do vigário.

Ela não fez menção de entrar, apenas ficou lá, aguardando que o vigário fosse correndo até ela, coisa que ele fez prontamente. Enquanto esperava por ele, ela virou o rosto para a luz exterior, e mesmo de onde eu estava pude distinguir claramente seus frios olhos azuis.

Sua boca era franzida como se os lábios tivessem sido firmemente fechados por cadarços, e seu escasso cabelo loiro-acinzentado estava esticado, dolorosamente ao que parecia, para formar um coque oval na nuca, acima de um pescoço excepcionalmente longo. Com sua blusa de tafetá bege, saia cor de mogno e sapatos Oxford marrons, ela se parecia muito com um velho relógio de pêndulo ao qual tinham dado corda demais.

Sem falar na bela surra que ela me dera, era difícil identificar precisamente o que me causava aversão em Cynthia Richardson. Segundo o que se dizia, ela era uma santa, uma lutadora, um raio de esperança para os doentes e um conforto para os desvalidos. Suas boas obras eram legendárias em Bishop’s Lacey.

Contudo...

Havia alguma coisa em sua postura que simplesmente não soava verdadeira: uma negligência detestável, uma espécie de derrotismo hesitante e esgotado, que se podia ver na face e no corpo das vítimas dos ataques alemães em edições do tempo da guerra, na Picture Post. Mas na mulher de um vigário...?

Tudo isso passou pela minha cabeça enquanto ela conversava aos sussurros com o marido. E então, com não mais que uma olhada rápida para dentro, ela se foi.

— Excelente — disse o vigário, abrindo um sorriso enquanto vinha lentamente na nossa direção. — Os Ingleby, ao que parece, retornaram a minha chamada.

Os Ingleby, Gordon e Grace, eram donos da Fazenda Culverhouse, uma colcha de retalhos de diversas plantações e bosques antigos que ficava a noroeste de São Tancredo.

— Gordon gentilmente ofereceu um lugar para vocês armarem a sua barraca na baixada do Campo Jubileu, um local adorável. Fica à margem do rio, não é muito longe daqui. Dá para vir a pé, na verdade. Vocês terão ovos frescos à vontade, a sombra de salgueiros incomparáveis e a companhia de martins-pescadores.

— Parece perfeito — disse Nialla. — Um pedacinho do paraíso.

— Cynthia me disse que a sra. Archer também telefonou. As novidades nessa frente já não são tão alegres, infelizmente. Bert viajou a Cowley, para um curso na fábrica Morris, e só voltará amanhã à noite. A sua van tem alguma condição de andar?

Pela expressão preocupada do vigário, eu sabia que ele estava tendo visões de uma van identificada com um “Marionetes de Porson” estacionada na porta de sua igreja no domingo de manhã.

— Só um ou dois quilômetros não devem ser problema — disse Rupert, aparecendo de repente ao lado do palco. — Ela vai andar melhor agora que está descarregada, e eu posso ir dando um trato no afogador.

Uma sombra perpassou pela minha mente, mas não dei atenção.

— Esplêndido — disse o vigário. — Flavia, querida, será que você não se importaria de acompanhá-los no trajeto? Você poderia ensinar-lhes o caminho.


NATURALMENTE, TIVEMOS DE DAR A VOLTA pelo caminho mais longo.

Se tivéssemos ido a pé, não teria sido mais que um passeio à sombra, atravessando as alpondras atrás da igreja, seguindo pela margem do rio pelo velho caminho de sirgagem que marcava o limite meridional da Fazenda Malplaquet, e por cima da cerca pela escada para o Campo Jubileu.

Mas pela estrada, como não havia ponte por perto, a Fazenda Culverhouse só podia ser alcançada seguindo para oeste em direção a Hinley, depois um quilômetro e meio a oeste de Bishop’s Lacey, pegando o desvio e subindo tortuosamente o íngreme lado oeste da Colina Gibbet por uma estrada cuja poeira se levantava agora atrás de nós em nuvens brancas. Estávamos a meio caminho do topo, contornando o Bosque Gibbet por uma vereda tão estreita que as sebes arranhavam as laterais da van sacolejante.

— Não se preocupe com o osso do meu quadril — disse Nialla, rindo.

Íamos tão apertados no banco da frente quanto minhocas na lata de um pescador. Com Rupert dirigindo, Nialla e eu estávamos quase sentadas no colo uma da outra, cada qual com um braço por cima do ombro da outra.

O escapamento da Austin explodia violentamente enquanto Rupert, seguindo alguma fórmula ancestral e secreta que só ele conhecia, ficava mexendo alternadamente com o afogador e o acelerador manual.

— Esses tais de Ingleby — gritou ele por cima da sequência incessante de explosões —, conte-nos alguma coisa sobre eles.

Os Ingleby eram pessoas um tanto taciturnas que passavam a maior parte do tempo fechadas em si mesmas. De vez em quando eu via Gordon Ingleby deixando Grace, sua mulher pequenina que parecia uma boneca, no mercado da aldeia onde, sempre de preto, vendia ovos e manteiga com pouco entusiasmo embaixo de um toldo listrado. Eu sabia, como todo mundo em Bishop’s Lacey, que o isolamento dos Ingleby começara com a morte trágica de seu único filho, Robin. Antes disso, eles eram pessoas amistosas e expansivas, mas desde então se voltaram para dentro. Embora tivessem se passado cinco anos, a aldeia ainda lhes permitia viver o seu pesar.

— Eles lavram a terra — eu disse.

— Ah! — disse Rupert, como se eu tivesse acabado de desfiar a história completa da família Ingleby desde o tempo de Guilherme, o Conquistador.

A van pinoteava e sacudia enquanto subíamos ainda mais alto, e Nialla e eu tivemos de nos apoiar com as mãos no painel para não bater com a cabeça uma na outra.

— Lugar sombrio este — disse ela, indicando com a cabeça a mata densa à esquerda. Até as raras manchas de luz solar que conseguiam penetrar a folhagem densa pareciam ser engolidas pelo mundo obscuro daqueles troncos ancestrais.

— Chama-se Bosque Gibbet — eu disse. — Antigamente havia uma aldeia aqui perto chamada Colina de Wapp, até por volta do século XVIII, acho, mas agora não resta mais nada dela. O patíbulo ficava na velha encruzilhada, no meio do bosque. Se você subir por aquele caminho, ainda dá para ver o madeiramento. Mas está tudo bem apodrecido.

— Argh — disse Nialla. — Não, obrigada.

Achei melhor, ao menos por enquanto, não contar a ela que fora na encruzilhada do Bosque Gibbet que Robin Ingleby tinha sido encontrado pendurado.

— Meu bom Deus! — disse Rupert. — Que diabo é aquilo?

Ele apontou para alguma coisa pendurada em um galho de árvore — alguma coisa oscilando com a brisa da manhã.

— Meg a Louca esteve aqui — eu disse. — Ela recolhe latas vazias e outros refugos e amarra em cordões. Gosta de coisas brilhantes. Ela é como uma gralha-do-campo.

Um prato de torta, uma lata enferrujada de extrato de carne Bovril, um pedaço prateado de uma carcaça de radiador e uma colher de sopa torta se contorciam lentamente de um lado para o outro sob o sol, como uma grotesca isca gótica de pescador.

Rupert sacudiu a cabeça e voltou a atenção para o afogador e o acelerador manual. Quando chegamos ao pico da Colina Gibbet, o motor emitiu um “bum” muito assustador e, com um gorgolejo succionante, morreu de vez. A van parou com um tranco, e Rupert puxou o freio de mão.

Pelas rugas profundas em seu rosto, notei que ele estava à beira da exaustão. Ele bateu com os punhos no volante.

— Não diga o que está pensando — disse Nialla. — Temos companhia.

Pensei por um momento que ela se referia a mim, mas seu dedo apontava através do para-brisa para o lado do caminho, onde um rosto escuro e encardido nos espiava de dentro de uma sebe.

— É Meg, a Louca — eu disse. — Ela mora em algum lugar por aqui. Em algum lugar no bosque.

Quando Meg veio correndo para o lado da van, senti Nialla se encolhendo para trás.

— Não se preocupem, ela é totalmente inofensiva.

Meg, com uma roupa maltrapilha de bombazina preto-ferrugem, parecia um abutre que havia sido sugado por um tornado e depois cuspido para fora. Uma cereja de vidro vermelho pendurada em um arame bamboleava alegremente em seu chapéu preto de vaso de flores.

— Sim, inofensiva — disse Meg, toda sociável, junto à janela aberta. — “Portanto, sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas.” Olá, Flavia.

— Meg, estes são amigos meus, Rupert e Nialla.

Considerando o fato de estarmos todos espremidos lado a lado na Austin, achei que não faria mal chamar Rupert pelo seu nome de batismo.

Meg ficou algum tempo encarando Nialla calmamente. Estendeu um dedo encardido e tocou o batom de Nialla. Nialla encolheu-se um pouco, mas disfarçou muito bem com um pequeno espirro fingido.

— É Tangee — disse ela vivamente. — Vermelho teatral. Muda de cor quando você o aplica. Veja, experimente você mesma.

Foi uma atuação magnífica, e tive de dar a ela nota máxima pelo modo como ocultou o medo de um jeito aberto e jovial.

Tive de me afastar um pouco para que Nialla pudesse procurar o batom no bolso. Quando ela o estendeu, os dedos encardidos de Meg arrancaram-lhe o tubo dourado da mão. Sem tirar os olhos do rosto de Nialla, Meg pintou uma larga faixa com aquilo em seus lábios sujos e rachados, apertando-os como se estivesse bebendo de um canudinho.

— Encantador! — disse Nialla. — Deslumbrante!

Ela enfiou a mão no bolso outra vez e tirou de lá um estojo esmaltado de pó compacto, uma coisa requintada em forma de borboleta, de esmalte cor de laranja cloasonado. Ela o abriu com um movimento rápido para revelar o espelhinho redondo na tampa e, depois de uma olhadela em si mesma, entregou-o a Meg.

— Aqui, dê uma olhada.

Num ápice, Meg agarrou o pó compacto e ficou se escrutinando no espelho, virando a cabeça animadamente para um lado e para o outro. Satisfeita com o que viu, ela nos recompensou com um sorriso largo que revelou as falhas pretas deixadas por diversos dentes caídos.

— Adorável! — murmurou ela. — Maravilhoso! — E enfiou a borboleta cor de laranja no bolso.

— Ei! — Rupert tentou arrebatá-la de volta, e Meg recuou, perplexa, como se tivesse reparado nele pela primeira vez. Seu sorriso sumiu tão subitamente como aparecera.

— Eu o conheço — disse ela, sombria, os olhos fixos no cavanhaque dele. — Você é o Diabo, é o que você é. Sim, foi o que aconteceu. O Diabo voltou ao Bosque Gibbet.

E ao dizer isso ela foi recuando para dentro da sebe e desapareceu.

Rupert saltou desajeitadamente da van e bateu a porta.

— Rupert... — chamou Nialla.

Mas em vez de entrar no meio dos arbustos atrás de Meg, como imaginei que ele faria, Rupert caminhou uns poucos metros acima, olhou em volta e depois retornou lentamente, os pés agitando a poeira.

— É só uma ladeira suave, e estamos apenas a uma pequena distância do topo — relatou ele. — Se pudermos empurrá-la até aquela velha castanheira, poderemos descer em ponto morto pelo outro lado. Talvez eu até consiga fazê-la funcionar de novo Quer dirigir, Flavia?

Embora eu tivesse passado horas sentada no velho Phantom II de Harriet na nossa estrebaria, aquilo sempre foi para propósitos de reflexão ou fuga. Na verdade, eu nunca estivera no comando de um automóvel em movimento. Ainda que de início a ideia tivesse lá seus atrativos, logo me dei conta de que eu não tinha nenhuma vontade de me ver descendo em disparada o lado leste da Colina Gibbet para dar de cara com o desastre em meio à paisagem.

— Não — eu disse. — Talvez Nialla...

— Nialla não gosta de dirigir — disparou ele.

Percebi imediatamente que eu tinha dado um fora, por assim dizer. Ao sugerir que Nialla dirigisse, eu também acabara sugerindo que Rupert levantasse o traseiro e empurrasse — com sua perna atrofiada e tudo.

— O que eu quis dizer — tentei explicar — foi que você provavelmente é o único de nós capaz de fazer o motor pegar de novo.

Era o truque mais antigo de todos: apelar para a vaidade varonil, e fiquei orgulhosa de ter pensado nisso.

— Certo — disse ele, subindo de volta com esforço para o banco do motorista.

Nialla saltou para fora, e eu a segui. Quaisquer pensamentos que eu pudesse ter tido sobre a conveniência de uma pessoa no estado dela empurrar uma van colina acima em um dia quente foram imediatamente postos de lado. Além disso, eu dificilmente poderia trazer a questão à baila.

Como um raio, Nialla já tinha ido para trás da van e estava pressionando as costas contra as portas traseiras e usando suas poderosas pernas para empurrar.

— Solte o maldito freio de mão, Rupert! — gritou ela.

Tomei posição ao lado dela e, até com a última gota de energia que havia em mim, cravei os pés no chão e empurrei.

Maravilha das maravilhas, aquela coisa estúpida começou a se mover. Talvez porque a parafernália das marionetes tivesse sido descarregada no salão paroquial, a van, com o peso consideravelmente aliviado, logo estava se arrastando, como uma lesma, porém, inexoravelmente, para cima em direção ao pico da colina. Depois que a pusemos em movimento, nos viramos e passamos a empurrar com as mãos.

A van chegou a parar completamente apenas uma vez, e foi quando Rupert engatou a marcha e ligou a ignição. Uma tremenda explosão saiu do escapamento, e mesmo sem olhar para baixo eu soube que teria de explicar ao pai a destruição de mais um par de meias brancas.

— Não deixe a marcha engatada agora, espere até chegarmos ao topo! — gritou Nialla.

— Homens! — ela murmurou para mim. — Homens e seus malditos barulhos de escapamento.


Dez minutos depois estávamos no cume da Colina Gibbet. À distância, o Campo Jubileu declinava em direção ao rio, um lençol ondulante de linho de uma intensidade azul-elétrica que poderia ter feito Van Gogh chorar.

— Mais um bom empurrão — disse Nialla — e estaremos a caminho.

Gememos e grunhimos, empurrando e fazendo força contra o metal quente, e então, de repente, como se tivesse ficado sem peso, a van começou a se mover sozinha. Estávamos do lado descendente da colina.

— Depressa! Pule para dentro! — disse Nialla, e saímos correndo ao lado da van enquanto ela ganhava velocidade, aos trancos e barrancos, pela estrada irregular.

Subimos no estribo, e Nialla abriu a porta. Um momento depois, desabamos abraçadas no assento, enquanto Rupert manipulava os controles do motor. Na metade da descida, quando o motor finalmente pegou, a van soltou um estampido alarmante antes de se estabilizar em tossidelas não muito saudáveis. No sopé da colina, Rupert pisou de leve no freio, e desviamos harmoniosamente para um caminho que levava à Fazenda Culverhouse.


Superaquecida devido a tantos esforços, a Austin parou, cuspindo e fumegando como uma chaleira furada no pátio da fazenda, que dava a impressão de estar abandonado. Pela minha experiência, toda vez que você chega a uma fazenda, alguém sai de um celeiro para recebê-lo, limpando as mãos sujas de graxa em um trapo e gritando para que uma mulher com uma cesta de ovos asse algumas broas e ponha a água do chá para ferver. No mínimo, deveria haver um cachorro latindo.

Embora não houvesse porcos à vista, um chiqueiro deteriorado pelo tempo, no fim de uma fileira de telheiros dilapidados, estava repleto de urtigas altas. Além daquilo, havia um pombal em forma de torre. Diversos baldes de leite, todos enferrujados, jaziam espalhados pelo pátio, e uma galinha solitária ciscava desanimada por entre as ervas daninhas, olhando-nos com seu desconfiado olho amarelo.

Rupert saltou da van e bateu a porta com força.

— Olá! — gritou. — Tem alguém por aqui?

Não houve resposta. Ele continuou caminhando para além de um cepo maltratado até a porta dos fundos da casa e deu nela uma pancada ensurdecedora com o punho fechado.

— Olá! Alguém em casa?

Juntou as mãos em concha para espiar através da janela encardida de um recinto que outrora devia ter sido a despensa, depois sinalizou para sairmos da van.

— Estranho — sussurrou. — Há alguém de pé no meio da sala. Posso ver a silhueta da pessoa contra a janela oposta.

Deu mais umas duas batidas fortes na porta.

— Sr. Ingleby — eu gritei —, sr. Ingleby, sou eu, Flavia de Luce. Trouxe as pessoas da igreja.

Houve um prolongado silêncio, e depois ouvimos o ruído de botas pesadas sobre um chão de madeira. A porta se abriu rangendo para um interior escuro, e um homem alto e loiro, de macacão, apareceu piscando na luz.

Eu nunca o vira na minha vida.

— Sou Flavia de Luce — eu disse —, de Buckshaw. — Acenei com a mão vagamente naquela direção, a sudoeste. — O vigário me pediu para mostrar o caminho para a Fazenda Culverhouse a estas pessoas.

O homem loiro deu um passo para fora, curvando-se consideravelmente a fim de passar pela porta baixa sem bater a cabeça. Ele era o que Felinha poderia ter descrito como “indecentemente bonito”: um altaneiro deus nórdico. Quando aquele Siegfried de cabelo claro se voltou para fechar a porta com cuidado atrás de si, vi que havia um grande círculo vermelho desbotado pintado nas costas de seu macacão.

Isso significava que ele fora prisioneiro de guerra.

Minha cabeça voou instantaneamente para o cepo e o machado que não estava lá. Teria ele picado os Ingleby em pedaços e empilhado seus membros como lenha atrás do fogão da cozinha?

Que pensamento mais ridículo. A guerra acabara havia cinco anos, e eu tinha visto os Ingleby, ou pelo menos Grace, recentemente, na semana passada.

Além disso, eu já sabia que os prisioneiros de guerra alemães não eram particularmente perigosos. Os primeiros que eu tinha visto foram na minha primeira visita a um cinema, o Palace, em Hinley. Quando os prisioneiros de casacos azuis foram forçados a marchar para dentro do cinema e sentaram, Dafi me cutucou com o cotovelo e apontou.

“O inimigo!”, sussurrou ela.

Quando as luzes se apagaram e o filme começou, Felinha se inclinou para mim e disse: “Pense nisto, você vai ficar sentada com eles no escuro por duas horas. Sozinha... se Dafi e eu formos comprar balas”.

O filme era Nosso barco, nossa alma, e eu não pude deixar de notar que, quando o HMS Torrin foi afundado no Mediterrâneo pelos bombardeiros de mergulho da Luftwaffe, embora os prisioneiros não tivessem aplaudido o feito abertamente, houve sorrisos entre eles.

“Os alemães capturados não devem ser tratados de modo inumano”, nos dissera o pai quando chegamos em casa, citando algo que ele ouvira no rádio, “mas é preciso mostrar a eles muito claramente que os encaramos, oficiais e homens, como proscritos da sociedade dos homens decentes.”

Embora eu respeitasse a palavra do pai, ao menos por princípio, era evidente que o homem que nos recebera na Fazenda Culverhouse não era nenhum proscrito; nem por nenhum esforço de imaginação.

Cinco anos após a chegada da paz, ele só podia estar usando o seu macacão com um alvo nas costas por orgulho.

— Posso me apresentar? Sou Dieter Schrantz — disse com um sorriso largo, apertando a mão de cada um de nós, começando por Nialla. Bastaram aquelas poucas palavras para eu ver que ele falava um inglês quase perfeito. Ele até pronunciou seu nome do modo como qualquer britânico teria feito, com “rs” e “as” duros e nenhum rosnido desagradável no sobrenome.

— O vigário disse que vocês viriam.

— A maldita van enguiçou — disse Rupert com um movimento brusco de cabeça na direção da Austin, e vi um certo tom de agressividade. Como se ele...

Dieter abriu um sorriso.

— Não se preocupe. Vou ajudá-lo a empurrar lá para baixo, até o Campo Jubileu. É lá que você vai se aboletar, você sabe, meu velho.

Meu velho? Dieter obviamente já estava na Inglaterra havia um bom tempo.

— A sra. Ingleby está? — perguntei. Achei que talvez fosse melhor Nialla ser levada a uma excursão pelas acomodações da casa, por assim dizer, antes que ela tivesse de pedir.

A sombra de uma nuvem perpassou a face de Dieter.

— Gordon foi para algum lugar no bosque — disse ele, fazendo um gesto para a Colina Gibbet. — Ele gosta de trabalhar sozinho a maior parte do tempo. Vai descer mais tarde para ajudar Sally na campina. Deveremos vê-los quando levarmos o seu carro até o rio.

“Sally” era Sally Straw, integrante do Exército Feminino da Terra, ou “Meninas da Terra”, como eram chamadas, e havia começado a trabalhar na Fazenda Culverhouse em algum momento durante a guerra.

— Está bem — eu disse. — Olá! Aqui estão Tick e Tock.

As duas gatas malhadas da sra. Ingleby saíram sem pressa nenhuma de um telheiro, bocejando e se espreguiçando ao sol. Ela costumava levá-las ao mercado para lhe fazer companhia, como fazia com várias de suas criaturas da fazenda, inclusive, de vez em quando, a sua gansa de estimação, Matilda.

“Tick”, ela me informou uma vez quando perguntei o nome delas, “é porque ela tem tiques. E Tock porque tagarela como uma gralha-do-campo.”

Tock vinha andando direto na minha direção, já bem adiantada em uma conversa miante. Tick, nesse meio-tempo, afastou-se vagarosamente em direção ao pombal, que se erguia sombrio atrás do aglomerado de telheiros decadentes e cobertos de mato.

— Vão indo na frente — eu disse. — Desço para o campo em alguns minutos.

Peguei Tock nos braços.

— Então, quem é a gatinha mais bonita? — arrulhei, observando com o rabo do olho para ver se alguém se deixava enganar. Vi que a gata não caiu nessa: ela começou a se contorcer imediatamente.

Mas Rupert e Nialla já estavam se espremendo dentro da van, que ainda sacudia sozinha no pátio. Dieter deu um empurrão, subiu no estribo, e um momento depois, com um aceno, eles estavam sacolejando para fora do pátio e entrando no caminho que levava ao declive para o Campo Jubileu e o rio. Uma pequena explosão a meia distância confirmou a partida deles.

No momento em que desapareceram de vista, pus Tock de volta no chão, no pátio poeirento.

— Onde está Tick? — eu disse. — Vá procurá-la.

Tock retomou seu longo monólogo felino e seguiu toda pomposa em direção ao pombal.

Nem é preciso dizer que fui atrás.


O POMBAL ERA UMA OBRA DE ARTE. Não havia maneira melhor de definir, e eu não teria ficado nem um pouco surpresa se ouvisse que o patrimônio histórico nacional estava de olho nele para tombá-lo.

Foi daquele notável espécime de arquitetura que a Fazenda Culverhouse havia tirado seu nome, pois “culverhouse” é uma palavra antiga para pombal. Este era uma torre alta e redonda de tijolos muito antigos, cada qual em uma tonalidade diferente de rosa desbotado, e não havia dois iguais. Construído no tempo da rainha Anne, fora outrora usado para criar e cruzar pombos para a mesa de jantar da fazenda. Naquela época, as pernas dos pombinhos novos eram arrancadas para mantê-los engordando no ninho (esse fato foi inferido da tagarelice de cozinha da sra. Mullet). Mas os tempos haviam mudado. Gordon Ingleby era um ávido columbófilo, e as aves deste século que viveram na torre eram mais provavelmente aquecidas com as mãos do que em água fervente. Nos fins de semana, ele as enviava de trem para algum pontinho insignificante no mapa da Inglaterra, onde elas eram soltas para ir voando imediatamente de volta para a Fazenda Culverhouse. Ali, eram acolhidas com o desligamento ruidoso de elaborados cronoscópios mecânicos, muitos mimos e elogios, e grande fartura de grãos para aves.

Pelo menos assim foi até o pequeno Robin Ingleby ser encontrado pendurado pelo pescoço na forca apodrecida do Bosque Gibbet. Desde aquele dia, a não ser por uns poucos espécimes selvagens, não houve mais pombos na Fazenda Culverhouse.

O pobre Robin, quando morreu, tinha a mesma idade que eu, e achei difícil de acreditar que alguém tão jovem pudesse realmente estar morto. Mas, ainda assim, era um fato.

Quando se vive em uma aldeia, quanto mais as coisas são abafadas, mais se ouve dizer, e eu me lembrava da onda de mexericos que varrera Bishop’s Lacey na época, lambendo a aldeia como a maré lambe o madeiramento embaixo de um atracadouro.

“Estão dizendo que o jovem Robin Ingleby foi lá e se matou.” “Robin Ingleby foi morto pelos pais.” “O rapazinho foi assassinado por satanistas. Ouça o que eu estou lhe dizendo...”

A maior parte dessas teorias vazou para mim pela sra. Mullet, e eu estava pensando nelas agora, ao me aproximar da torre, olhando para cima maravilhada com sua miríade de aberturas.

Como o monge chamado de explanador fazia nos monastérios da Idade Média, Dafi com frequência lia em voz alta para nós enquanto fazíamos nossas refeições. Recentemente nos foi servida a descrição de Henry Savage Landor, em que os persas colocavam cadáveres sentados com um pedaço de pau embaixo do queixo para mantê-los eretos. Quando os corvos chegavam para disputar o corpo, considerava-se uma passagem para o paraíso se o olho direito fosse o primeiro a ser consumido. Se fosse o esquerdo, não era assim tão auspicioso.

Não pude deixar de pensar nisso agora, e na descrição do autor das curiosas torres de pombos da Pérsia, cada qual com um fundo poço central para coleta de guano, cuja produção era o único motivo para manter as aves.

Poderia haver, me perguntei, alguma estranha conexão entre torres, aves, morte e deterioração? Quando parei lá por um instante, tentando pensar qual poderia ser ela, um som peculiar veio flutuando da torre.

De início pensei que poderiam ser os murmúrios e arrulhos de pombos entre eles, lá no alto do pombal. Ou seria o vento?

Parecia prolongado demais para ser alguma dessas coisas, subia e descia como o som de uma fantasmagórica sirene de ataque aéreo, quase no limite da audição.

A porta de madeira desconjuntada estava entreaberta, e descobri que eu podia me esgueirar facilmente para dentro do centro oco da torre. Tock passou roçando pelos meus tornozelos, depois desapareceu nas sombras à procura de camundongos.

A forte fedentina do lugar me esbofeteou o rosto: o inconfundível cheiro químico do guano de pombo, que o grande Humphry Davy descobrira que produzia, por destilação, carbonato de amônia, com um resíduo de carbonato de cálcio e sal comum — descoberta que eu certa vez verificara por experimento no meu laboratório químico em Buckshaw.

Muito acima da minha cabeça, incontáveis raios de sol oblíquos entrando através das aberturas salpicavam as paredes curvas com pontos de luz amarela. Era como se eu tivesse entrado na peneira em que algum gigante passara os ossos de sua sopa. Aqui dentro, o som lamentoso era ainda mais alto, um turbilhão de ruídos amplificados pelas paredes circulares, das quais eu era o próprio centro. Eu não poderia ter gritado, mesmo se me atrevesse.

No centro da sala, em volta de um antigo pilar de madeira, havia um tablado móvel, algo como uma escada de biblioteca, que outrora devia ter sido usado pelos criadores para ter acesso às pequenas aves condenadas.

A coisa rangeu assustadoramente quando pisei nela.

Subi, centímetro por centímetro, agarrando-me pela minha vida, esticando braços e pernas para dar passos gigantes impossíveis de uma trave rangedora para a seguinte. Olhei para baixo só uma vez, e aquilo fez minha cabeça girar.

Quanto mais eu subia, mais alto ficava o som lamuriento, seus ecos agora chegando juntos em um coro de vozes que pareciam se congregar em algum tipo de lamento gritante e selvagem.

Acima de mim e à esquerda, havia uma abertura em arco que dava para um nicho maior do que os outros. Ficando na ponta dos pés e me segurando na borda de tijolos com a ponta dos dedos, fui capaz de me içar até meus olhos ficarem no mesmo nível do piso daquela gruta.

Lá dentro, havia uma mulher ajoelhada, de costas para mim. Ela estava cantando. Sua voz aguda ecoava nos tijolos e turbilhonava em volta da minha cabeça:

 

O passarinho flutuou

E com os ventos oscilou;

Em doce canção se embalou,

Feliz no balanço sonhou

Na embarcação que o acalentou.

 

Era a sra. Ingleby!

Na frente dela, em uma caixa tombada, ardia uma vela, acrescentando seu odor fumacento ao calor sufocante da pequena caverna de tijolos. A sua direita estava encostada a fotografia em preto e branco de uma criança: seu filho morto, Robin (que é um nome de passarinho), sorria alegremente para a câmera, o cabelo loiro alvejado quase ao branco pelo sol de longos dias de verão. A sua esquerda, tombado de lado como se tivesse sido arrastado para a praia para que o livrassem das cracas, havia um veleiro de brinquedo.

Prendi a respiração. Seria bom ela não ver que eu estava ali. Eu desceria de novo bem devagar e...

Minhas pernas começaram a tremer. Eu já não conseguia me segurar com muita firmeza, e minhas solas de couro estavam escorregando na estrutura de madeira envelhecida. Quando comecei a descer, deslizando, a sra. Ingleby deu início a mais um lamento, a uma outra canção, e, estranhamente, sua voz era outra: um gorgolejar áspero, fanfarrão, de pirata:

 

Então foi-se o valente passarinho,

Mas seu coração está bem vivinho,

A ele bebamos três vezes vinho!

 

E deixou escapar uma horrível gargalhada fanhosa.

Icei-me de novo na ponta dos pés, bem a tempo de vê-la torcer a rolha de uma garrafa alta e transparente e tomar um rápido e vacilante gole. Me pareceu ser gim, e era fácil ver que ela estava fazendo aquilo havia algum tempo.

Com um prolongado e trêmulo suspiro, enfiou a garrafa de volta, embaixo de um monte de palha, e acendeu uma vela nova na chama minguante da que estava morrendo. Grudou-a com pingos de cera ao lado de sua companheira esgotada.

E agora começava mais uma canção, esta em um tom menor, mais sombrio; cantava mais devagar, mais como um canto fúnebre, pronunciando cada palavra com uma clareza terrível, exagerada:

 

Passarinho mau, que quer ceia tão meiga,

Seu desjejum terá com corda e manteiga,

Convidando os seus amigos que aproveitam

E com tais feitos sinistros se deleitam.

 

Corda e manteiga? Feitos sinistros?

De repente me dei conta de que meu cabelo estava totalmente eriçado, como quando Felinha esfregou seu pente preto de ebonite no suéter de caxemira e aproximou-o da minha nuca. Mas enquanto eu ainda tentava calcular quão rápido eu poderia me arrastar de volta para baixo pela estrutura de madeira e sair correndo, a mulher falou:

— Suba, Flavia. Suba e junte-se a mim no meu pequeno réquiem.

Réquiem?, pensei. Será que eu realmente quero me arrastar para dentro de uma cela de tijolos para ficar com uma mulher que, na melhor das hipóteses, está mais do que um pouco embriagada e que, na pior, é uma maníaca homicida?

Me ergui até a penumbra.

Quando meus olhos se acostumaram à luz da vela, vi que ela usava uma blusa de algodão branco com mangas curtas bufantes e um decote baixo de camponesa. Com seu cabelo negro como penas de corvo e a saia tirolesa de cores vivas, ela facilmente poderia ser confundida com uma cigana cartomante.

— Robin se foi — disse ela.

Aquelas três palavras quase partiram meu coração. Como todo mundo em Bishop’s Lacey, eu sempre pensara que Grace Ingleby vivia em seu próprio mundo privado e isolado: um mundo onde Robin ainda brincava no pátio poeirento, perseguindo galinhas alvoroçadas de cerca a cerca, invadindo a cozinha de vez em quando para implorar por um doce.

Mas não era verdade: ela ficava, como eu, atrás da pequena lápide no pátio da igreja de São Tancredo e lia a inscrição simples: Robin Tennyson Ingleby, 1939-1945. Está dormindo com o Cordeiro.

— Robin se foi — disse ela de novo, agora quase como um gemido.

— Sim — eu disse. — Eu sei.

Partículas de pó flutuavam como pequenos mundos nos traços de lápis de uma luz solar que penetrava a obscuridade da câmara. Me sentei na palha.

Quando fiz isso, um pombo se ergueu ruidosamente de seu ninho e saiu através da pequena janela em arco. Meu coração quase parou. Eu pensava que os pombos tinham partido havia muito, e quase sentei em cima daquele bicho bobo.


Então foi-se o valente passarinho,

Mas seu coração está bem vivinho,

A ele bebamos três vezes vinho!

 


— Eu o levei para perto da praia — prosseguiu Grace, acariciando o pequeno veleiro, ignorando a ave. — Robin adorava a praia, você sabe.

Juntei os joelhos embaixo do queixo e os envolvi com os braços.

— Ele brincava na areia. Estava construindo um castelo de areia.

Houve um longo silêncio, e vi que seus pensamentos foram levados para algum lugar.

— Vocês tomaram sorvete? — perguntei, como se fosse a pergunta mais importante do mundo. Não consegui pensar em mais nada.

— Sorvete? — Ela assentiu com a cabeça. — Eles nos deram em copinhos de papel... pequenos copos de papel pontudos. Nós queríamos de baunilha... nós dois adorávamos baunilha, Robin e eu. É engraçado, mas...

Ela suspirou.

— Quando nós comíamos, tinha gosto de chocolate... como se eles não tivessem lavado a colher direito.

Balancei a cabeça sabiamente.

— Às vezes isso acontece — eu disse.

Ela estendeu a mão e tocou no veleiro de novo, passando os dedos sobre seu casco liso e pintado. E então soprou a vela.

Ficamos sentadas um instante em silêncio, entre os salpicos de luz do sol que se infiltravam na caverna de tijolos vermelhos. O útero devia ser assim, pensei. Quente. Esperando alguma coisa acontecer.

— Por que você está aqui? — ela perguntou por fim. Notei que não arrastava as palavras como antes.

— O vigário mandou algumas pessoas para acampar no Campo Jubileu. Ele me pediu para mostrar o caminho.

Ela segurou meu braço.

— Gordon sabe? — perguntou ela.

— Acho que sim — respondi. — Ele disse ao vigário que não haveria problemas se eles acampassem no fim do caminho.

— No fim do caminho. — Ela soltou um longo e lento suspiro. — Sim, não haveria problemas, não é?

— É um espetáculo itinerante de marionetes — eu disse. — As Marionetes de Porson. Eles vão fazer uma apresentação no sábado. Foi o vigário que pediu. A van deles enguiçou, entende, e...

Fui dominada por uma súbita inspiração.

— Por que vocês não vão? — perguntei. — Todos da aldeia estarão lá. Vocês podem sentar comigo e...

A sra. Ingleby olhava para mim, horrorizada.

— Não! — disse ela. — Não! Eu não posso fazer isso.

— Talvez você e o sr. Ingleby possam ir e...

— Não!

Ela se pôs de pé com esforço, levantando uma grossa nuvem de resíduos, e por alguns momentos, enquanto aquilo remoinhava a nossa volta, ficamos perfeitamente quietas, como figuras de um globo de neve em um peso de papéis.

— É melhor você ir — ela disse de repente com voz rouca. — Por favor, vá embora já.

Sem mais uma palavra, saí tateando até a abertura, os olhos lacrimejando por causa da poeira. Com um esforço surpreendentemente pequeno, fui capaz de descer pela estrutura de madeira e começar o longo caminho para baixo.

Tenho de admitir que João e o pé de feijão passaram pela minha cabeça.


O pátio da fazenda estava deserto. Dieter descera para o rio com Rupert e Nialla, e a essa altura já deviam ter acampado. Se eu tivesse sorte, poderia chegar a tempo para uma xícara de chá. Me sentia como se tivesse passado a noite acordada.

Que horas seriam, afinal?

Que Deus me cegue com um garfo de peixe! O trem de tia Felicity era esperado às dez e cinco, e eu me esquecera completamente! O pai faria tiras elásticas com as minhas tripas.

Mesmo que tia Felicity já não estivesse bufando na plataforma e espumando pela boca, como diabos eu chegaria a Doddingsley? Eram uns bons dez quilômetros desde a fazenda Culverhouse, mesmo em linha reta como o voo de um corvo, e, até onde eu sabia, eu não estava prestes a criar asas.

Desci correndo o caminho, girando os braços como um moinho de vento, como se aquilo pudesse me impelir a uma velocidade maior. Felizmente era descida o tempo todo, e, quando cheguei lá embaixo, avistei a van de Rupert estacionada entre os salgueiros.

Dieter abrira o capô da Austin e estava fuçando em suas entranhas. Nialla pendurava uma camisa nos arbustos para secar. Gordon Ingleby não estava visível, nem Sally Straw.

— Primeira oportunidade que tive para aproveitar o velho sol — disse Nialla para mim. — Dieter está dando uma olhada no motor. Por que você demorou tanto?

— Que horas são? — perguntei numa súplica.

— Como é que eu vou saber? — respondeu ela. — Rupert é o único que tem um relógio, e ele foi para algum lugar.

Como ele sempre faz. Ela não pronunciou essas palavras, mas o significado foi tão claro como se as tivesse gritado de cima do Big Ben.

— Dieter? — perguntei.

Dieter sacudiu a cabeça.

— Sinto muito. Fiquei proibido de possuir um durante tanto tempo que...

— Com licença — interrompi —, mas tenho de esperar um trem.

Antes que eles pudessem responder, eu já disparava pelo caminho de sirgagem em velocidade máxima. Foi uma corrida fácil ao longo do velho aterro que margeava o limite meridional do Campo Jubileu, e, surpreendentemente, em poucos minutos eu estava pulando as alpondras para chegar ao pátio da igreja.

O relógio da torre da igreja marcava vinte para as quatro, o que era impossível: aquela coisa idiota provavelmente havia parado durante o reinado de Henrique VIII, e ninguém se dera ao trabalho de fazê-lo funcionar de novo.

Gladys, a minha confiável bicicleta BSA, estava exatamente onde eu a havia deixado, ao lado do salão paroquial. Parti a toda para Buckshaw.

Enquanto passava em disparada pela esquina de Spindle Lane, o relógio embutido na parede da Treze Patos mostrava que era ou meio-dia ou meia-noite. Receio ter deixado escapar uma palavra um tanto rude.

Saí da aldeia como o vento, em direção sudoeste, rumo a Buckshaw, até por fim chegar aos Portões Mulford, onde Clarence Mundy estava sentado esperando, encarapitado em cima de um dos para-lamas de seu táxi, tragando avidamente um cigarro. A julgar pela quantidade de pontas na rua, deu para perceber que não era o primeiro.

— Olá, Clarence — eu disse. — Que horas são?

— Dez horas — disse ele dando uma olhada para seu elaborado relógio de pulso militar. — Melhor embarcar.

Ele engatou a marcha quando subi, e partimos como um rojão.

Enquanto avançávamos através de caminhos e sebes, Clarence manipulava a alavanca de câmbio como se fosse um encantador de serpentes lidando com uma naja obstinada, agarrando sua cabeça a cada poucos segundos e empurrando-a para algum novo quadrante da bússola. Fora da janela, os campos passavam como um borrão verde cada vez acelerando mais, até eu sentir vontade de gritar “Iu-huuu!”, mas me controlei.

Durante a guerra, Clarence pilotara os enormes hidroplanos Sunderland, patrulhando sem cessar o vasto Atlântico à procura de submarinos alemães, e enquanto passávamos praticamente voando, espremidos entre as sebes, ele parecia ainda imaginar-se nos controles de um daqueles monstros. A qualquer momento, pensei, ele vai puxar o volante para trás, e decolaremos para os ares. Talvez, durante a nossa ascensão para o céu de verão, possamos até capturar um vislumbre de Harriet.

Antes de se casar com o pai, Harriet pilotara seu próprio Havilland Gipsy Moth, que ela batizara de Espírito Alegre, e eu às vezes a imaginava flutuando sozinha lá em cima à luz do sol, mergulhando e emergindo em vales túrgidos de cúmulos, sem dar satisfações a ninguém, exceto ao vento.

Clarence parou, derrapando numa ponta da plataforma da ferrovia de Doddingsley no momento em que o trem entrava fumegando na outra extremidade.

— Dez e cinco — ele disse, olhando de relance para o relógio. — Em ponto.

Como eu previa, a primeira passageira a descer do vagão foi tia Felicity. Apesar do calor, ela usava um casaco comprido de automobilista, de cor clara, e um grande capacete de cortiça colonial, amarrado embaixo do queixo com uma larga fita azul. Um sortimento de objetos se projetava de sua pessoa em todas as direções: alfinetes de chapéu, cabos de guarda-chuva, revistas enroladas, jornais, assentos portáteis e assim por diante. Ela parecia um ninho de pássaro com pernas ou então um monte de feno ambulante.

— Vá pegar minha bagagem, Clarence — disse ela —, e cuidado com o aligátor.

— Aligátor? — exclamou Clarence, e suas sobrancelhas se ergueram.

— A bolsa — disse tia Felicity. — É nova, da Harrods, e eu não quero vê-la arruinada por algum camponês desajeitado em uma plataforma ferroviária esquecida por Deus.

— Flavia — ela disse —, você pode carregar minha bolsa de água quente.


DOGGER NOS RECEBEU NA PORTA DA FRENTE. Ele pescou no bolso um porta-moedas de pano e ergueu as sobrancelhas para Clarence.

— Dois xelins — disse Clarence —, ida e volta, incluindo a espera.

Enquanto Dogger contava as moedas, tia Felicity inclinou-se para trás e correu os olhos pela fachada da casa.

— Chocante — disse. — Este lugar está se deteriorando cada vez mais, a olhos vistos.

Eu não achei que fosse meu papel contar a ela que quando se tratava de despesas o pai quase já não sabia o que fazer. A casa na verdade pertencera a Harriet, que morrera jovem, inesperadamente e sem se preocupar em fazer um testamento. Agora, por causa do que o pai chamava de “complicações”, parecia improvável que fôssemos capazes de continuar em Buckshaw por muito tempo.

— Leve as malas para o meu quarto, Dogger — disse tia Felicity, voltando o olhar para a terra —, e cuidado com o aligátor.

— Sim, srta. Felicity — disse Dogger, com um cesto de vime já embaixo de cada braço e uma mala em cada mão. — Harrods, ao que me parece.


— A tia Felicity chegou — eu disse, entrando na cozinha com um andar indolente. — De repente não estou com muita fome. Acho que só quero um sanduíche de alface, e vou comer no meu quarto.

— Você não vai fazer nada disso — disse a sra. Mullet. — Eu preparei uma bela salada de gelatina de carne, com beterrabas e tudo o mais.

Fiz uma careta horrível, mas, quando ela inesperadamente olhou para mim, me lembrei do subterfúgio de Nialla e com habilidade a transformei em um bocejo, cobrindo a boca com a mão.

— Desculpe. Acordei muito cedo hoje — eu disse.

— Eu também. Infelizmente.

— Eu estava na fazenda dos Ingleby — contei.

— Foi o que ouvi dizer — disse ela.

Que droga! Por que a sra. Mullet não virava uma pedra? Será que não havia nada que escapasse a seus ouvidos?

— A sra. Richardson me contou que você estava ajudando aquele pessoal dos bonecos, aquela mulher com cabelo de Judas e aquele sujeito capenga.

Cynthia Richardson. Eu devia ter adivinhado. Obviamente a presença dos titereiros soltara sua língua.

— O nome dela é Nialla — eu disse —, e o dele é Rupert. Ela é uma excelente pessoa, na verdade. Faz álbuns de recortes, ou pelo menos costumava fazer.

— Está tudo muito bem, querida, mas você vai ter de...

— Encontrei a sra. Ingleby também — persisti. — De fato, tivemos uma conversinha muito interessante.

A sra. Mullet começou a lavar os pratos de salada mais devagar, e parou. Ela mordera a isca.

— Uma conversinha? Com ela? Ah! Deve ser sexta-feira, dia de beber! Pobre alma — acrescentou depressa, como se tivesse pensado melhor.

— Ela falou sobre o filho, Robin — eu disse, oferecendo-lhe uma migalha de verdade.

— Ora, baboseiras!

— Ela disse que Robin se foi.

Aquilo foi demais até para a sra. Mullet.

— Que ele se foi? Eu diria que sim. Há cinco anos ou mais está tão morto quanto uma maçaneta de porta. Morto e enterrado. Me lembro do dia em que ele foi encontrado, pendurado pelo pescoço no Bosque Gibbet. Era uma segunda-feira, dia de lavar roupa, e eu tinha acabado de pendurar um monte no varal quando Tom Batts, o carteiro, apareceu no portão. “Sra. Mullet”, ele me disse, “é melhor se preparar para ouvir más notícias”. “É o meu Alf!”, eu disse, e ele disse “Não, é o jovem Robin, o menino de Gordon Ingleby”, e UUFFF!, eu perdi o fôlego, assim sem mais. Achei que ia...

— Quem o encontrou? — interrompi. — O jovem Robin, quero dizer.

— Ora, Meg, a Louca, foi ela. Ela mora lá no Bosque Gibbet. Ela viu um brilhinho embaixo de uma árvore. É como ela chama qualquer pedaço velho de metal que encontra, “um brilhinho”, então ela foi lá pegá-lo e viu que era uma dessas pazinhas de brinquedo, dessas que você leva para a praia, e um baldinho de lata, também, lá jogados no meio do mato.

A mãe de Robin o levou para a praia, eu estava a ponto de dizer, mas me contive a tempo. Me lembrei de que um mexerico interrompido atrai mais mexericos: como moscas para um ímã, como a própria sra. Mullet comentara certa vez sobre um assunto completamente diferente.

— E então ela o viu, balançando, pendurado pelo pescoço naquela velha forca — ela prosseguiu. — A cara dele estava horrível, como um melão que ficou preto.

Eu estava começando a lamentar não ter levado meu caderno.

— Quem o matou? — perguntei bruscamente.

— Ah — disse ela —, aí é que está. Ninguém sabe.

— Ele foi assassinado?

— Com tudo isso, até pode ter sido. Mas, como eu disse, ninguém sabe com certeza. Eles fizeram o que chamam de “inquerência” na biblioteca: é a mesma coisa que uma “autopistia” em linguagem poética, diz Alf. O dr. Darby se levantou e disse que o rapazinho foi enforcado, e era tudo o que ele podia dizer. Meg, a Louca, disse que ele foi possuído pelo Diabo, mas você sabe como ela é. Eles chamaram os Ingleby e aquele alemão que dirige o trator deles, Dieter, é como ele se chama, e também Sally Straw. Tapados como o burrico de Dorothy, todos eles. Inclusive a polícia.

A polícia? É claro!

A polícia certamente teria investigado a morte de Robin Ingleby, e, se o que eu imaginava estava certo, meu velho amigo inspetor Hewitt estava envolvido naquilo.

Bem, o inspetor não era exatamente um velho amigo, mas não fazia muito tempo eu o ajudara em uma investigação na qual ele e seus colegas estavam completamente confusos.

Antes de confiar nos boatos que a sra. Mullet ouvira na aldeia, eu obteria os fatos diretamente da fonte, por assim dizer. Tudo o que eu precisava era de uma oportunidade para ir de bicicleta até a delegacia de polícia em Hinley. Eu apareceria por acaso, bem na hora do chá.


Quando passei de bicicleta pela igreja de São Tancredo, não pude deixar de me perguntar como Rupert e Nialla estariam se arranjando. Bem, pensei, enquanto freava e fazia meia-volta, eu não demoraria muito a descobrir.

Mas a porta do salão paroquial estava trancada. Dei-lhe uma boa chacoalhada e uma porção de batidas fortes, mas ninguém a abriu. Será que eles ainda estariam na fazenda Culverhouse?

Empurrei Gladys através do pátio da igreja até a margem do rio e a ergui para atravessar as alpondras. Embora estivesse coberto de vegetação em alguns pontos, e profundamente sulcado, o caminho de sirgagem me levou depressa ao Campo Jubileu.

Nialla estava sentada embaixo de uma árvore, fumando, com Dieter a seu lado. Ele se pôs de pé assim que me viu.

— Bem, bem — disse ela. — Vejam só o que o gato trouxe. Achei que você estaria na igreja.

Nialla esmagou furiosamente a ponta do cigarro contra o tronco de uma árvore.

— Imagino que nós também deveríamos estar — disse ela —, mas Rupert ainda não encontrou o caminho de volta.

Aquilo me pareceu um tanto estranho, já que presumivelmente Rupert não conhecia ninguém nas vizinhanças de Bishop’s Lacey. O quê, ou quem, poderia tê-lo segurado por tanto tempo?

— Talvez ele tenha saído para buscar alguma coisa da van — eu disse, notando que o capô da Austin agora estava fechado e travado.

— O mais provável é que ele tenha saído só para se aborrecer um pouco — disse Nialla. — Ele faz isso de vez em quando. Às vezes ele só quer ficar sozinho por algum tempo. Mas ele se foi há horas.

— Dieter acha que o viu seguindo naquela direção — acrescentou ela, apontando com um dedo por cima do ombro.

Voltei-me e encarei com interesse renovado o Bosque Gibbet.

— Flavia — disse Nialla. — Deixe pra lá.

Mas não era Rupert que eu queria ver.


Mantendo-me nas terras relvadas nos limites do campo, consegui evitar as plantações de linho enquanto me arrastava firmemente para cima. Não era uma escalada difícil demais para mim, mas para Rupert, com a perna em um aparelho de ferro, devia ter sido uma tortura.

O que teria levado aquele homem a escalar a Colina Gibbet até o alto? Teria ele alguma intenção de arrastar Meg para longe do mato cerrado e exigir que ela devolvesse o pó compacto de borboleta de Nialla? Ou estaria amuado, sentindo-se ameaçado pela bela aparência loira de Dieter?

Eu poderia pensar em mais uma dúzia de razões, porém nenhuma fazia muito sentido.

Acima de mim, o Bosque Gibbet se agarrava ao topo da Colina Gibbet como um solidéu verde. Quando me aproximei e entrei embaixo dos ramos daquela antiga floresta, foi como penetrar em uma pintura de Arthur Rackham. Ali, na obscuridade verde e turva, o ar estava azedo com o odor de decomposição: de fungos e bolor das folhas, de humo preto, de podridão escorregadia e de cascas carcomidas por besouros. Teias de aranha brilhavam suspensas como pequenas partículas de luz entre os tocos de árvores apodrecidas. Embaixo dos antigos carvalhos e árvores recobertas de liquens, campânulas despontavam das sombras profundas por entre samambaias, e ali, no outro lado da clareira, avistei as folhas serrilhadas da mercuriallis perenis venenosa que, quando mergulhada na água, produzia um lindo veneno azul-anil que eu uma vez transformara na brilhante cor vermelha de sangue arterial, simplesmente adicionando uma solução a dois por cento de ácido hidroclorídrico.

Pensei com prazer em como a amônia e os amidos liberados pelo profundo composto no solo da floresta proviam um perfeito banquete para os fungos carnívoros, que os convertiam em nitrogênio, que então armazenavam em seu protoplasma, onde serviria como alimento de bactérias. Parecia um mundo perfeito: um mundo em que a cooperação era um fato da vida.

Inspirei profundamente, sugando o odor penetrante e azedo para dentro dos pulmões e saboreando o cheiro químico de decomposição.

Mas aquele não era momento para reflexões prazerosas. O dia avançava depressa, e eu ainda tinha de encontrar meu caminho para o coração do Bosque Gibbet.

Quanto mais longe eu ia por entre as árvores, mais silencioso ele ficava. Agora, até mesmo as aves mostravam-se estranhamente quietas. Este bosque, Dafi me contara, fora outrora uma floresta real onde, muitos séculos atrás, reis da Inglaterra haviam caçado o javali selvagem. Depois, a peste negra levara a maioria dos habitantes da pequena aldeia que crescera embaixo de sua periferia.

Estremeci um pouco quando, alto nos galhos acima de mim, as folhas se agitaram caprichosamente, mas se aquilo foi pela rápida passagem dos fantasmagóricos caçadores reais ou dos espíritos conturbados das vítimas da peste (enterradas em algum lugar por perto?), eu não soube dizer.

Tropecei em uma elevação e joguei os braços para a frente, para me proteger. Um toco apodrecido de madeira coberta de musgo era tudo o que havia entre o humo e eu, e o agarrei instintivamente.

Quando recuperei o equilíbrio, vi que aquela madeira já tinha sido quadrada, não redonda. Não era nenhum galho ou tronco de árvore, mas uma viga cortada e corroída pelo tempo, que fora carcomida até virar algo parecido com um coral cinzento. Ou massa cerebral petrificada.

Minha mente reconheceu aquilo antes que eu o fizesse: só aos poucos me dei conta de que estava me agarrando desesperadamente aos restos apodrecidos do velho patíbulo.

Aquele era o lugar onde Robin Ingleby morrera.

A parte de trás dos meus braços se arrepiou, como se eles estivessem sendo acariciados por pingentes de gelo.

Larguei aquela coisa e dei um passo para trás.

A não ser pelo arcabouço e um conjunto de degraus quebrados, pouca coisa restara da estrutura. O tempo e o clima haviam desagregado tudo menos uma ou duas tábuas do piso, reduzindo a plataforma a uns poucos restos do esqueleto que se projetavam para fora dos espinheiros como os ossos da caixa torácica de um gigante.

Foi então que ouvi as vozes.

Eu possuo, como já disse, uma audição aguçada, e, enquanto estava ali embaixo das ruínas da forca, tive consciência de que havia alguém falando, embora o som viesse de uma certa distância.

Girando o corpo lentamente no lugar e colocando as mãos em concha atrás das orelhas como refletores improvisados, determinei depressa que as vozes vinham de algum lugar a minha esquerda e, com passos cautelosos, me arrastei em sua direção, movendo-me silenciosamente de árvore em árvore.

De repente o arvoredo começou a escassear, e precisei tomar um grande cuidado para me manter fora de vista. Espiando por trás do tronco de um freixo, me vi no limite de uma grande clareira que ficava bem no coração do Bosque Gibbet.

Ali, uma plantação tinha sido cultivada, e um homem de chapéu surrado e roupas de trabalho capinava laboriosamente entre fileiras de plantas bem espaçadas.

— Bem, eles estão por toda parte — dizia ele para alguém que eu ainda não podia ver. — Atrás de cada mourão de cerca... se escondendo embaixo de cada maldita meda de feno.

Quando ele tirou o chapéu para enxugar o rosto e o topo de cabeça com um lenço colorido, vi que quem falava era Gordon Ingleby.

Seus lábios, em um rosto envelhecido, tinham a surpreendente tonalidade carmesim do que o pai chamava de um “temperamento sanguíneo”, e enquanto eu olhava ele limpou o cuspe que saíra com suas palavras iradas.

— Ah! Os céus puseram espiões em cima de nós — disse a outra pessoa com uma voz dramática: uma voz que reconheci imediatamente como a de Rupert.

Ele estava reclinado na sombra embaixo de um arbusto, fumando um cigarro.

Meu coração quase parou de bater! Ele teria me avistado?

Melhor ficar quieta, pensei. Não mover nem um músculo. Se eu for pega, vou fingir que estava procurando Rupert e que me perdi no bosque, como a menina dos Cachinhos Dourados. Como há nelas algo que soa como verdade, as pessoas sempre se deixam enganar por desculpas de contos de fadas.

— O sr. Morton esteve por aqui de novo na semana passada, falando uma porção de besteiras para o Dieter. Bisbilhotando, mais provavelmente.

— Você é mais esperto do que todos eles, Gordon. Eles têm tijolos no lugar do cérebro.

— Pode ser que sim — retrucou Gordon — e pode ser que não. Mas como eu lhe contei, é o fim da linha. É onde Gordon desembarca.

— Mas, e quanto a mim, Gord? E quanto ao resto de nós? Vamos simplesmente ficar pendurados?

— Seu bastardo! — bradou Gordon, erguendo a enxada no ar como um machado de batalha e avançando dois passos ameaçadores. Ele ficou instantaneamente lívido.

Rupert pôs-se de pé desajeitadamente, estendendo um braço na defensiva à sua frente.

— Desculpe, Gord. Eu não quis dizer isso. Foi só uma expressão. Eu não pensei.

— Não, você não pensou, não é? Você nunca pensa. Você não sabe como é viver na minha pele dia e noite. Viver com uma mulher morta e o fantasma de uma criança “pendurada”!

Uma mulher morta? Poderia ele estar falando da sra. Ingleby?

Bem, seja como for, uma coisa parecia perfeitamente clara: aquela não era uma conversa entre dois homens que se encontraram pela primeira vez de manhã. Do jeito que soava, Gordon e Rupert já se conheciam havia muito, muito tempo, sem dúvida.

Eles ficaram ali parados por alguns momentos, encarando-se mutuamente, sem saber o que dizer.

— É melhor eu ir voltando — disse Rupert, afinal. — Nialla fica preocupada.— Ele se virou e caminhou até o outro lado da clareira, depois desapareceu no bosque.

Depois que ele se foi, Gordon enxugou o rosto de novo, e vi que suas mãos estavam tremendo quando puxou do bolso da camisa uma bolsa de tabaco e um pacote de papel de cigarro. Ele enrolou um cigarro tosco, deixando cair fragmentos de tabaco com a pressa, depois enfiou a mão no bolso da calça para pegar um isqueiro de latão e acendeu o cigarro, inalando profundamente a fumaça e exalando tão devagar que tive certeza de que ele devia estar sufocando.

Em um tempo surpreendentemente curto, ele terminou. Esmagando a ponta no chão com o salto da bota, pôs a enxada no ombro e foi embora.

Esperei cerca de dez minutos para ter certeza de que ele não voltaria, depois fui rapidamente até o lugar onde ele estivera. Da terra embaixo da marca de seu calcanhar, não tive dificuldade em recuperar os remanescentes empapados do cigarro. Arranquei um par de folhas de uma das plantas e, usando-as como uma luva térmica improvisada, recolhi a ponta, enrolei-a duas vezes em uma folha nova e enfiei a coisa no fundo do meu bolso. Rupert, também, deixara diversas baganas embaixo do arbusto onde estivera sentado. Estas eu igualmente recuperei e acrescentei às outras. Só então refiz meus passos através do bosque e voltei pela encosta da Colina Gibbet.


Nialla e Rupert estavam encarapitados em um par de estacas podres, deixando a água corrente refrescar seus pés descalços. Dieter não estava visível em lugar nenhum.

— Ah, vocês estão aí! — eu disse, alegremente. — Eu estava procurando-os por toda parte.

Tirei os sapatos, descalcei as meias e juntei-me a eles. O sol descambava no céu vespertino. Provavelmente já era tarde demais para ir de bicicleta a Hinley. Quando eu chegasse lá seriam mais de cinco horas, e o inspetor Hewitt teria encerrado o seu dia.

Minha curiosidade teria de esperar.

Para um homem que fora recentemente ameaçado com a lâmina de uma enxada afiada, Rupert estava com um bom humor notável. Pude ver seu pé encarquilhado se agitando na água como um peixinho pálido logo abaixo da superfície.

Ele se inclinou, mergulhou dois dedos no rio e, com um piparote, lançou alegremente algumas gotas de água na minha direção.

— É melhor você correr para casa, para uma refeição decente e uma boa noite de sono. Amanhã é o grande dia.

— Certíssimo! — eu disse, pondo-me de pé. — Não perderia isso por nada neste mundo. Eu simplesmente adoro espetáculos de marionetes.


DE ALGUM MODO, deu para sobreviver ao jantar, e a mesa foi tirada. Estávamos sentados em volta dela apenas aguardando que alguém pensasse em uma desculpa para irmos cada qual para o seu lado: o pai para os seus selos, Dafi para a biblioteca, Felinha para o seu espelho, tia Felicity para um dos remotos quartos de hóspedes, e eu para o laboratório.

— E como anda Londres hoje em dia, Lissy? — perguntou o pai.

Como menos de uma quinzena se passara desde que viajara para lá atrás de alguma exposição de selos, ele sabia perfeitamente como estava Londres. Aquelas viagens, no entanto, ele sempre tratava como operações militares estritamente confidenciais. O pai preferiria ser assado a deixar que tia Felicity soubesse que ele estivera na metrópole.

— Ela ainda tem todos os dentes — ele costumava nos dizer — e sabe como usá-los.

O que significava, disse Felinha, que ela queria tudo do seu jeito. Dafi disse que aquilo significava que ela era uma tirana empapada de sangue.

— Londres? — disse tia Felicity. — Londres é sempre a mesma: toda fuligem, pombos e o primeiro-ministro Clement Attlee. Apenas uma maldita escassez após a outra. Eles deveriam ter homens com redes para capturar aquelas crianças que a gente vê em Kensington e treiná-las para operar as usinas elétricas de Battersea e Bankside. Com um tipo de gente melhor nos comandos, a força poderia não falhar com tanta frequência.

Dafi, que por causa da companhia não era autorizada a ler durante o jantar, estava sentada à mesa bem na minha frente, deixando que seus olhos se movessem lenta e dolorosamente de um lado para outro, como se seu cérebro tivesse acabado de morrer, e os nervos ópticos e músculos estivessem em seus últimos espasmos. Eu não lhe concedi a satisfação de um sorriso.

— Não sei aonde vai parar este mundo — prosseguiu a tia Felicity. — Tremo só de pensar nas pessoas que encontramos hoje em dia; aquele homem no trem, por exemplo. Você o viu na plataforma, Flavia?

Sacudi a cabeça.

— Nem eu — continuou ela —, mas acredito que ele ficou para trás porque pensou que eu apitaria para chamar o guarda. Ficou enfiando a cabeça na cabine o tempo todo desde Londres, perguntando se já tínhamos chegado a Doddingsley. E era um indivíduo de aparência esquisita. Remendos de couro nos cotovelos e uma bandana em volta do pescoço, como um grosseiro dançarino apache de Paris. Isso não devia ser permitido. Por fim, tive de colocá-lo no seu lugar. Quando o trem parou completamente, e a tabuleta do lado de fora da janela dizia “Doddingsley”, eu disse a ele “Agora sim estamos em Doddingsley, não antes!”.

Agora parecia que o cérebro de Dafi não apenas morrera, mas tinha começado a coagular. Seu olho direito revirou para um canto, enquanto o outro parecia a ponto de explodir e saltar da cabeça.

Era um efeito no qual ela estava trabalhando havia anos: a capacidade de esbugalhar os olhos em duas direções diferentes ao mesmo tempo.

— Um toque da velha exoftalmia — explicara ela uma vez, e eu implorara que me ensinasse o truque. Pratiquei na frente do espelho até minha cabeça rachar, mas nunca consegui nada além de uma ligeira protuberância lateral.

— Deus age de modos misteriosos para Suas maravilhas realizar — disse ela quando relatei meu fracasso.

De fato. Só de pensar nas palavras de Dafi, me ocorreu uma ideia.

— Me dão licença? — perguntei, já empurrando a cadeira para trás. — Esqueci de dizer as minhas orações esta manhã. É melhor eu cuidar disso agora.

Os olhos de Dafi descruzaram, e o queixo dela caiu. Eu gostaria de pensar que foi por admiração.


Quando destranquei a porta e entrei no meu laboratório, o microscópio Leitz que outrora pertencera ao tio-avô Tar me lançou um brilho de latão de boas-vindas. Ali, perto da janela, eu seria capaz de ajustar seu espelho refletor para focalizar um raio tardio do sol através da platina para a lente do microscópio.

Recortei uma amostra em forma de losango de uma das folhas que trouxera daquela que agora eu considerava a Plantação Secreta do Bosque Gibbet e coloquei-a em uma lâmina de vidro sob a lente.

Enquanto manipulava o foco, com o instrumento regulado em uma magnificação de cem vezes, descobri quase instantaneamente o que estava procurando: os cistólitos farpados que se projetavam como espinhos da superfície da folha. Virei a folha ao contrário com uma pinça que eu surrupiara de um estojo de maquiagem de madrepérola de Felinha. Se estivesse certa, haveria um número ainda maior daqueles filamentos em forma de garras do lado de baixo; e eles estavam lá! Entrando e saindo de foco sob o focinho da lente. Fiquei lá sentada por alguns momentos, olhando para aqueles cabelos pétreos de carbonato de cálcio que, eu me lembrei, tinham sido descritos pela primeira vez por Hugh Algernon Weddell, o grande botânico e viajante.

Mais para me divertir do que por qualquer outra razão, coloquei a folha em um tubo de ensaio, no qual decantei algumas pitadas de ácido hidroclorídrico diluído e depois o arrolhei e dei uma sacudida vigorosa. Segurando contra a luz, pude ver as pequenas bolhas de dióxido de carbono se formando e subindo para a superfície quando o ácido reagiu com o carbonato de cálcio dos pequenos aguilhões.

O teste, no entanto, não era conclusivo, pois os cistólitos estavam às vezes presentes em certas urtigas, por exemplo. A fim de confirmar meus achados, eu precisaria ir um pouco além.

Eu era eternamente grata ao tio Tar, que, antes de morrer, em 1928, adquirira uma assinatura vitalícia da Extratos & Relatórios Químicos, a qual, talvez porque os editores nunca tivessem sido informados de sua morte, ainda chegava pontualmente todos os meses à mesa do vestíbulo em Buckshaw.

Montes desses atraentes exemplares, cada edição com uma capa azul no tom exato de um céu de meados de março, estavam agora empilhados em todos os cantos do meu laboratório, e foi entre eles (na verdade em uma das edições de 1941), que encontrei uma descrição do então recém-descoberto teste de Duquenois-Levine. Era a minha própria variação desse procedimento que eu estava prestes a realizar.

Primeiro precisaria de uma pequena quantidade de clorofórmio. Como eu havia usado a última garrafa disponível para uma fracassada exibição de fogos de artifício no gramado sul de Buckshaw em comemoração ao aniversário de Joseph Priestley em março, teria primeiro de manufaturar um novo suprimento.

Uma rápida incursão embaixo da escada (no armário de material de limpeza da sra. Mullet) resultou em uma lata de pó branqueador à base de cloro, e em sua despensa uma garrafa de puro extrato de baunilha.

Novamente segura no andar de cima, no laboratório, tranquei a porta e arregacei as mangas.

A lata de Bleachitol, na realidade, nada mais era que hipoclorito de cálcio. Será que se hipoclorito de cálcio tivesse outro nome, me perguntei, teria um cheiro tão doce? Aquecido com acetona a uma temperatura entre 200 e 260 graus centígrados, ou até ocorrer a reação de halofórmio, um clorofórmio bastante decente poderia depois ser extraído dos sais de acetato por simples destilação. Essa parte era, como costumam dizer, café-pequeno.

— Iuhuuu! — gritei, quando despejei os resultados em uma garrafa marrom e enfiei a rolha.

Em seguida, misturei meia colher de chá de extrato de baunilha com algumas gotas de acetaldeído (que, por ser volátil e ferver à temperatura ambiente, tio Tar ponderadamente armazenou embaixo de uma camada de argônio, em uma garrafa selada), depois virei a mistura para dentro de uma proveta limpa na qual eu já havia medido seis colheres de chá e meia de etanol, o velho e simples C2H5OH. Este, eu surrupiara do aparador do pai, onde ficara sem ser aberto por séculos depois de lhe ter sido trazido de presente por um colega filatelista que fora designado para a Rússia pelo Ministério das Relações Exteriores.

E agora o palco estava preparado.

Colocando uma amostra fresca de uma das folhas em um tubo de ensaio limpo, adicionei algumas gotas do meu preparado alcoólico-vanilínico (que pensei em chamar de reagente Duquenois-Levine-de-Luce) e, depois de aguardar um minuto, apenas uma pitadinha de ácido hidroclorídrico.

Novamente, como no meu teste anterior, pequenas bolhas subiram no tubo quando o dióxido de carbono foi formado, mas dessa vez o líquido no tubo de ensaio assumiu depressa uma tonalidade roxo-azulada.

Excitada, adicionei à mistura duas gotas do meu clorofórmio caseiro, o qual, não sendo solúvel em água, prontamente foi ao fundo.

Quando aquilo se estratificou em duas camadas distintas (o clorofórmio límpido no fundo e o roxo-azulado do reagente de Duquenois flutuando em cima dele), dei-lhe uma boa mexida com um bastão de vidro e, prendendo a respiração, aguardei que se precipitasse uma última vez.

Não demorou muito tempo. Agora a camada de clorofórmio assumira a cor de sua camada superior: o malva de uma equimose oculta.

Como eu já havia suspeitado qual seria o resultado, não me dei ao trabalho de gritar “Eureca”.

Não era pastinaca que Gordon Ingleby estava cultivando na sua clareira secreta: era cânhamo-da-índia!

Eu havia lido sobre aquilo em uma separata do ensaio de O’Shaughnessy Sobre O Preparo do Cânhamo-da-Índia, ou Gunjah; Seus Efeitos Sobre o Sistema Animal na Saúde, e Sua Utilidade no Tratamento do Tétano e Outras Doenças Convulsivas, um exemplar que eu encontrara escondido em uma das gavetas da escrivaninha do tio Tar.

Será que o tio Tar estava usando cânhamo-da-índia? Será que isso explicaria seu súbito e espetacular afastamento de Oxford quando jovem?

A gunjah, ou bhang, era conhecida havia muito tempo como substituta do ópio, e o próprio dr. Shaughnessy relatara ser um grande sucesso em seu uso para tratar um caso de convulsão infantil.

E o que mais era a paralisia infantil de Rupert, pensei, senão convulsões musculares que se prolongariam cruelmente o dia inteiro, todos os dias, até o fim de sua vida?

Testar as pontas dos cigarros que Gordon e Rupert tinham fumado foi quase um anticlímax. Os resultados foram o que eu sabia que seriam. Depois que lavei e guardei os objetos de vidro (argh! como eu detesto lavar!), escrevi no meu caderno:


Sexta-feira, 21 de julho de 1950, 21h50

Teste Duquenois-Levine de folhas e restos de

cigarros do Bosque Gibbet indica presença de

cânhamo-da-índia (Cannabis sativa). Gordon

Ingleby cultiva (e fuma) a substância. Ouvi

seu comentário de que era “o fim da linha”

para ele. O que ele quis dizer? Quem são

“o resto de nós” de que Rupert falou? Quem

é “a mulher morta”? Poderia ser a sra.

Ingleby? O que quer que esteja acontecendo

na Fazenda Culverhouse, Rupert Porson é

parte disso.


“E com isso...”, como aquele homem, Pepys, teria escrito, “para a cama.”


Mas não consegui dormir. Fiquei deitada um longo tempo, olhando para o teto, ouvindo as cortinas sussurrar mansamente uma para a outra na brisa noturna.

Em Buckshaw, o tempo não passa como em outros lugares. Em Buckshaw, o tempo parece ser controlado não por aquelas frenéticas, apressadas rodinhas dentadas no relógio do vestíbulo, que giram como hamsters em suas gaiolas fechadas, mas pelas grandes e solenes engrenagens que conseguem se arrastar dando uma única volta completa por ano.

Como eu poderia estar tão contente, me perguntei de súbito, quando alguém que eu conhecia pessoalmente estava se escondendo na torre escura de um pombal?

O que me fez pensar imediatamente, é claro, no Rei Lear. O pai nos levara para ver John Gielgud no papel-título em Stratford-upon-Avon, e, embora Gielgud estivesse maravilhoso, eram as palavras do pobre Tom, o mendigo de Bedlam na charneca tempestuosa (na verdade Edgar, disfarçado), que ainda soavam em meus ouvidos:

 

O filho Roland chegou à torre escura;

Sua palavra ainda era Fi, fo e fum!

Cheiro o sangue de um inglês comum!

 

— Shakespeare plagiou isso de João e o pé de feijão? — sussurrei ao ouvido de Dafi. — Ou o conto de fadas é que tinha tomado emprestadas as palavras de Shakespeare?

— Nenhum dos dois — sussurrou ela em resposta. — Ambos plagiaram Leve consigo para Saffron Walden, de Thomas Nashe, que, como foi representada em 1596, antecede aos dois.

Minha boa Dafi. Há momentos em que eu quase poderia perdoá-la por me odiar.

Bem, Rupert estará apresentando sua própria versão de João e o pé de feijão daqui a apenas poucas horas. Eu poderia até aprender alguma coisa com isso.

Depois de algum tempo, me levantei, me vesti e me esgueirei para fora.


Encontrei Dogger sentado em um banco que dava para o lago ornamental e para a folly.

Ele estava vestido como na noite anterior: terno escuro, sapatos bem engraxados e uma gravata que dizia muita coisa para os que estão por dentro.

A lua cheia subia no céu como um grande queijo prateado, e Dogger estava sentado muito reto, o rosto voltado para cima, como se estivesse se aquecendo aos seus raios, segurando um guarda-chuva preto acima da cabeça.

Me esgueirei silenciosamente para o banco a seu lado. Ele não olhou para mim, nem eu para ele, e ficamos sentados por algum tempo, como um par de solenes e vetustos astrônomos estudando a lua.

Depois de algum tempo, eu disse:

— Não está chovendo, Dogger.

Em algum lugar, durante a guerra, Dogger fora exposto a chuvas torrenciais e impiedosas; chuvas para as quais não havia abrigo nem escapatória. Ou, ao menos, foi o que a sra. Mullet me contou.

— Ele se sente muito reconfortado embaixo de seu guarda-chuva, querida — disse ela. — Mesmo quando os cães ofegam na poeira.

Lentamente, como um boneco mecânico, Dogger estendeu a mão para cima e soltou a trava no cabo do guarda-chuva, permitindo que a armação e o tecido à prova d’água se dobrassem como as asas de um morcego, até o seu antebraço ficar envolvido em preto.

— Você sabe alguma coisa sobre poliomielite? — perguntei afinal.

Sem desviar os olhos da lua, Dogger disse:

— Paralisia infantil. Doença de Heine-Medin. Paralisia matinal. Repouso absoluto. Pelo menos foi o que me disseram — acrescentou, olhando para mim pela primeira vez.

— Mais alguma coisa?

— Agonia — disse ele. — Agonia absoluta.

— Obrigada, Dogger. As rosas estão lindas este ano. Você trabalhou um bocado com elas.

— Obrigado por dizer isso, senhorita. As rosas são lindas todos os anos. Com Dogger ou sem Dogger.

— Boa noite — eu disse, me levantando do banco.

— Boa noite, srta. Flavia.

A meio caminho através do gramado, parei e olhei para trás. Dogger erguera de novo o seu guarda-chuva e estava sentado embaixo dele, com as costas retas como Mary Poppins, sorrindo para a lua de verão.


— POR FAVOR, NÃO SAIA PERAMBULANDO por aí hoje, Flavia — disse o pai depois do café da manhã. Eu o encontrara inesperadamente na escada.

— A sua tia Felicity quer examinar alguns papéis da família e pediu que você esteja com ela para ajudar a erguer as caixas.

— Por que Dafi não pode fazer isso? — perguntei. — Ela é a especialista em bibliotecas e coisas assim.

Isso não era inteiramente verdade, já que eu estava encarregada de uma magnificente biblioteca vitoriana de química, isso sem falar nas toneladas de papéis do tio Tar.

Eu esperava simplesmente não ter de mencionar o espetáculo de marionetes, que seria apenas dali a algumas horas. Mas o Dever superou a Diversão.

— Daphne e Ophelia foram para a aldeia despachar algumas cartas. Estão almoçando lá e depois vão a Fosters dar uma olhada no pônei de Sheila.

As covardes! Aquelas maquinadoras miseráveis!

— Mas eu prometi ao vigário — eu disse. — Ele está contando comigo. Eles estão tentando levantar dinheiro para alguma coisa... oh, nem sei o quê. Se eu não estiver na igreja às nove, Cynthia... quero dizer, a sra. Richardson, terá de vir me buscar em seu carro Oxford.

Como eu esperava, aquele golpe um tanto baixo realmente fez o pai vacilar.

Vi suas sobrancelhas se franzir enquanto ele sopesava as opções, que eram poucas: ceder graciosamente ou correr o risco de ficar cara a cara com o Naufrágio do Hesperus.

— Você não é confiável, Flavia — disse ele. — Não é nada confiável.

É claro que eu era! Era uma das coisas de que eu mais gostava em mim mesma. Não se espera que pessoas de onze anos sejam confiáveis. Nós já passamos da idade de ser bonequinhas: a idade em que as pessoas se inclinam por cima de nós e nos cutucam na barriguinha e fazem ruídos idiotas que soam como “cuti-cuti-cuti”; só de pensar nisso já sinto vontade de vomitar. No entanto, ainda não estamos na idade em que todo mundo sempre nos confunde com adultos. O fato é que somos invisíveis, exceto quando escolhemos não ser.

No momento, eu não era. Estava ligada no facho bravio do olhar de tigre do pai. Pisquei os olhos duas vezes: apenas o suficiente para não ser desrespeitosa.

Percebi o instante em que ele se abrandou. Vi em seus olhos.

— Ora, está bem — ele disse, benevolente mesmo na derrota. — Vá correndo. E transmita meus cumprimentos ao vigário.

Pintem-me com bolinhas! Eu estava livre! Simples assim!


Os pneus de Gladys cantavam alto sua canção de contentamento enquanto chispávamos pelo asfalto.

— Summer is icumen in — gorjeei para o mundo. — Lhude sing cuccu! 1

Uma vaca Jersey ergueu os olhos do seu pasto, e eu fiquei de pé sobre os pedais, fazendo-lhe uma breve mesura ao passar.

Parei do lado de fora do salão paroquial, bem quando Nialla e Rupert caminhavam através do capim alto, nos fundos do pátio da igreja.

— Dormiram bem? — gritei para eles, acenando.

— Como os mortos — respondeu Rupert.

O que descrevia exatamente a aparência de Nialla. Seu cabelo pendia em longas mechas sem lavar, e os círculos escuros em volta dos olhos vermelhos me lembraram de uma coisa na qual prefiro não pensar. Ou ela cavalgara com bruxas a noite inteira de campanário em campanário, ou ela e Rupert haviam tido uma tremenda briga.

O silêncio dela me contou que tinha sido Rupert.

— Bacon fresco... ovos frescos — prosseguiu Rupert, esmurrando o peito vigorosamente, como Tarzan. — Isso prepara um homem para o dia.

Sem nem dar uma olhada para mim, Nialla passou rapidamente e mergulhou no salão paroquial — para o banheiro das mulheres, imaginei.

Naturalmente, fui atrás dela.

Nialla estava de joelhos, gritando “Uééé!” para dentro do vaso de porcelana, chorando e vomitando ao mesmo tempo. Eu tranquei a porta.

— Você está esperando um bebê, não está? — perguntei.

Ela ergueu os olhos para mim, a boca escancarada, o rosto lívido.

— Como você soube? — ofegou ela.

Eu quis dizer “Elementar”, mas sabia que aquele não era o momento para petulâncias.

— Eu fiz um teste de lisossomos no lenço que você usou.

Nialla pôs-se em pé com dificuldade e me agarrou pelos ombros.

— Flavia, você não pode deixar transpirar nem uma palavra sobre isso! Nem uma palavra! Ninguém sabe, a não ser você.

— Nem Rupert? — perguntei. Eu mal podia acreditar.

— Especialmente Rupert — disse ela. — Ele vai me matar se souber. Prometa. Por favor, Flavia... prometa!

— Pela minha honra — eu disse, erguendo três dedos no cumprimento da organização Guia das Meninas. Embora eu tivesse sido expulsa dessa organização por insubordinação (entre outras coisas), senti que dificilmente seria necessário compartilhar os revoltantes detalhes com Nialla.

— Foi uma sorte incrível estarmos acampados no campo. Devem ter nos ouvido a quilômetros de distância, do jeito que nos pegamos violentamente. Foi por causa de mulher, claro. É sempre por causa de mulher, não é?

Aquilo ia além da minha especialidade, mas ainda assim tentei parecer atenta.

— Rupert nunca precisa de muito tempo para mirar num rabo de saia. Você viu: estávamos no Campo Jubileu havia menos de um minuto quando ele se meteu no meio do mato com aquela caipira, Sarah, ou qualquer que seja seu nome.

— Sally — eu disse.

Embora fosse uma ideia interessante, eu sabia que a verdade era que Rupert estivera fumando cânhamo-da-índia no Bosque Gibbet com Gordon Ingleby. Mas dificilmente eu podia contar isso a Nialla. Sally Straw não estava visível em lugar nenhum.

— Achei que você tivesse dito que ele tinha ido ver alguma coisa sobre a van.

— Oh, Flavia, você é tão...

Ela mordeu a língua na última hora.

— É claro que eu disse isso. Você não ia querer que eu lavasse nossa roupa suja na frente de um estranho.

Ela estava se referindo a mim ou a Dieter?

— Rupert sempre se lambuza de fumaça, tentando encobrir o cheiro das suas vagabundas. Posso sentir o cheiro nele. Mas fui longe demais — ela acrescentou tristemente. — Abri a van e joguei nele a primeira coisa que me caiu nas mãos. Não devia ter feito isso. Era a nova marionete de João: fazia semanas que ele estava trabalhando nela. A velha estava ficando meio desconjuntada, sabe, e parecia que se desmancharia no pior momento possível. Como eu — gemeu ela, e vomitou de novo.

Desejei poder ser útil, mas aquela era uma dessas situações em que um espectador não pode fazer nada para ajudar.

— Ele ficou acordado a noite inteira, tentando consertar aquela coisa.

Pelas marcas recentes no pescoço dela, vi que Rupert havia feito mais naquela noite do que consertar uma marionete.

— Ah, eu queria estar morta — gemeu ela.

Ouvimos uma batida na porta: uma sequência rápida de batidas, toc-toc-toc-toc.

— Quem está aí? — perguntou uma voz feminina, e meu coração se encolheu. Era Cynthia Richardson.

— Deve haver outras pessoas querendo usar o toalete — ela gritou. — Por favor, tenha mais consideração pelas necessidades dos outros.

— Já vai, sra. Richardson — eu gritei. — Sou eu, a Flavia.

Maldita mulher! Como eu poderia fingir que estava me sentindo mal?

Agarrei a toalha de algodão que estava pendurada na argola ao lado da pia e dei uma esfregada vigorosa no rosto. Senti o sangue subindo no momento em que fazia isso. Me descabelei, fiz correr um pouco de água da torneira, que esfreguei pela minha testa vermelha, e deixei que um fio de cuspe escorresse de um jeito horrível no canto da boca.

Então puxei a descarga e destranquei a porta.

Enquanto aguardava que Cynthia a abrisse, como eu esperava, vi um relance de mim mesma no espelho: eu era a imagem perfeita de uma vítima de malária cujo médico acabara de entrar para telefonar para o agente funerário.

Quando a maçaneta girou e a porta se moveu para dentro, dei dois passos vacilantes para o corredor, estufando as bochechas como se estivesse a ponto de vomitar. Cynthia se encolheu contra a parede.

— Sinto muito, sra. Richardson — eu disse, trêmula. — Acabei de passar mal. Deve ter sido alguma coisa que eu comi. Nialla foi muito gentil... Mas acho que com um pouco de ar fresco vou ficar bem.

E passei por ela cambaleando, com Nialla atrás de mim. Cynthia não deu nem uma olhadinha para ela.


— Você é assustadora — disse Nialla. — Realmente é. Sabia disso?

Estávamos sentadas em cima de uma lápide no pátio da igreja enquanto eu aguardava que o sol secasse meu rosto febril. Nialla pôs de lado o seu batom e vasculhou a bolsa à procura de um pente.

— Sim — eu disse sem rodeios. Era verdade, não adiantava negar.

— A-há! — disse uma voz. — Então, aqui está você!

Um homenzinho elegante de calça esporte, jaqueta e uma camisa de seda amarela vinha rapidamente em nossa direção. Seu pescoço estava envolvido por um lenço cor de malva, e um cachimbo apagado projetava-se de seus dentes. Ele dava passos cautelosos para um lado e para outro, tentando não pisar diretamente em algumas das sepulturas mais afundadas.

— Ah, meu Deus! — gemeu Nialla sem mover os lábios, e depois para ele: — Olá, Mutt. Ponto facultativo na casa dos macacos, é?

— Onde está Rupert? — perguntou ele. — Lá dentro?

— Que prazer em vê-la, Nialla — disse Nialla. — Como você está adorável hoje, Nialla. Esqueceu suas boas maneiras, Mutt?

Mutt, ou quem quer que fosse ele, girou nos calcanhares em cima da grama e saiu marchando até o salão paroquial, ainda prestando atenção onde pisava.

— Mutt Wilmott — Nialla me explicou. — O produtor de Rupert na BBC. Eles tiveram uma briga feia na semana passada, e Rupert virou as costas e saiu bem no meio dela. Deixou Mutt falando sozinho com a Titia... a Empresa, quero dizer. Mas como diabo ele nos encontrou? Rupert achou que estaríamos muito seguros aqui. “Rusticando no campo”, como ele disse.

— Ele desceu do trem em Doddingsley ontem de manhã — eu disse, dando um salto de dedução, mas sabendo que estava certa.

— É melhor eu entrar — suspirou Nialla. — Vai haver um espetáculo pirotécnico.

Mesmo antes de chegarmos à porta, ouvi a voz de Rupert se elevar furiosamente no salão reverberante.

— Tanto faz o que disse Tony. Ele que vá se sentar em cima de uma brocha, e, pensando melhor, você também, Mutt. Foi a última vez que vocês cagaram e andaram em cima de Rupert Porson. Vocês todos.

Quando entramos, Rupert estava a meio caminho de descer a pequena escada que levava ao palco. Mutt achava-se em pé no meio do salão, com as mãos na cintura. Ninguém pareceu notar nossa presença.

— Ora, pare com isso, Rupert. Tony tem todo o direito de lhe apontar quando você passou dos limites. E ouça o que eu digo, Rupert, dessa vez você passou dos limites, e por uma boa margem. Está tudo muito bem para você mexer num vespeiro e depois se esquivar das consequências, excursionando com o seu showzinho. É o que você sempre fez, não é? Mas dessa vez você pelo menos lhe deve a cortesia de ouvi-lo.

— Eu não devo ao Tony nem um assobio de padre.

— É aí que você se engana, meu velho. De quantas encrencas ele já livrou você?

Rupert não disse nada enquanto Mutt as contava nos dedos.

— Bem, vejamos: houve aquele pequeno incidente com o Marco. Depois houve aquele com Sandra Paisley, uma coisa desagradável. E então o caso com Sparkman e Blondel, que custou um saco de dinheiro para a Titia, custou mesmo. Isso para não falar do...

— Cale a boca, Mutt!

Mutt prosseguiu em seus cálculos:

— ... para não falar daquela garota em Beckenham... como era mesmo o nome dela... Lulu? Lulu, pelo amor de Deus!

— Cale a boca! Cale a boca! Cale a boca!

Rupert estava surtando. Ele desceu tempestuosamente os degraus com a sua perna dura, o aparelho retinindo de modo assustador. Dei uma olhada para Nialla, que de repente ficara pálida e paralisada como o retrato de uma Madona. Estava com a mão na boca.

— Entre no seu maldito Jaguar, homenzinho, e dirija diretamente para o inferno! — rosnou Rupert. — Deixe-me em paz!

Mutt não se intimidou. E embora eles estivessem agora nariz com nariz, ele não cedeu nem um centímetro. Em vez disso, catou um fiapo imaginário na manga de sua jaqueta e fingiu que o acompanhava flutuar até o chão.

— Não vá de carro, meu velho. Vá de trem. Você sabe tão bem quanto eu que a Titia está cortando despesas, pense no Festival da Inglaterra no ano que vem, e tudo mais.

Os olhos de Rupert se arregalaram quando ele viu Nialla.

— Quem lhe contou que estávamos aqui? — berrou ele, apontando. — Ela?

— Calma, calma — disse Mutt, a voz se elevando pela primeira vez. — Não comece a querer culpar Nialla. De fato, foi uma sra. Qualquer Coisa, bem aqui em Bishop’s Lacey. O menino dela viu sua van perto da igreja e correu para casa, para dizer à mamãe que prenderia a respiração até arrebentar se não tivesse as Marionetes de Porson na festa do seu aniversário. Mas quando ele conseguiu arrastá-la de volta, você já tinha ido embora. Ela fez um interurbano para a Titia, e a operadora a transferiu para a secretária de Tony. Ele me disse para vir e levá-lo de volta imediatamente. E aqui estou eu. Fim da história. Então, não queira pôr a culpa em Nialla.

— Você está muito à vontade com Nialla, não é? — irritou-se Rupert. — Se insinuando e...

Mutt pôs a palma da mão sobre o peito de Rupert.

— E já que estamos falando nisso, Rupert, é melhor eu lhe dizer que se você encostar um dedo que seja nela de novo, eu vou...

Rupert afastou brutalmente a mão de Mutt.

— Não me ameace, seu vermezinho nojento. Não faça isso se der valor a sua vida!

— Cavalheiros! Cavalheiros! O que é isso? Vocês precisam parar com isso imediatamente.

Era o vigário. Ele estava no vão da porta aberta, uma figura escura contra a luz do dia. Nialla passou por ele e fugiu. Eu fui depressa atrás dela.


— Cara senhora — disse o vigário, estendendo uma bandeja de coleta de latão entalhado. — Experimente um sanduíche de pepino e alface. Dizem que é um calmante extraordinário. Fui eu mesmo que fiz.

Ele mesmo fez? Será que uma guerra doméstica tinha sido declarada no presbitério?

Estávamos de novo do lado de fora, no pátio da igreja, muito perto do local onde eu encontrara Nialla pela primeira vez, chorando com o rosto voltado contra a lápide. Tinha sido havia apenas dois dias? Parecia uma eternidade.

— Não, obrigada, vigário — disse Nialla. — Já estou me sentindo eu mesma de novo, e tenho coisas a fazer.


O almoço foi uma verdadeira provação. Como as janelas do salão tinham sido cobertas por cortinas pretas para escurecer o ambiente para o espetáculo, nos sentamos em uma semiobscuridade, enquanto o vigário se alvoroçava com sanduíches e uma jarra de limonada que ele devia ter feito surgir do nada. Nialla e eu estávamos sentadas em uma ponta da primeira fila de cadeiras, com Mutt na outra ponta. Rupert desaparecera nos bastidores algum tempo antes.

— Logo teremos de abrir as portas — disse o vigário, afastando uma ponta da cortina para espiar. — O nosso público já começou a fazer fila, com os bolsos pesados de moedas para a esmola.

Ele consultou o relógio.

— Noventa minutos para subir o pano — ele avisou através das mãos em concha. — Noventa minutos.

— Flavia — disse Nialla —, seja boazinha, vá depressa aos bastidores e diga a Rupert para abaixar o volume da música quando eu começar a falar. Ele estragou tudo em Fringford, e eu não quero que isso aconteça de novo.

Olhei para ela com ar de interrogação.

— Por favor... é um favor que você me faz. Ainda preciso vestir minha roupa, e não estou com muita vontade de vê-lo neste momento.

Na verdade, eu também não estava com muita vontade de ver Rupert. Enquanto eu escalava os degraus para o palco, pensei em Sydney Carton subindo ao patíbulo para encontrar a Madame Guilhotina. Encontrei a abertura nos bastidores pretos pendurados dos dois lados do palco das marionetes e entrei em um outro mundo.

Havia pequenas manchas de luz por toda parte iluminando fileiras de interruptores e controles elétricos, com seus fios e cabos serpenteando em todas as direções. Atrás do palco, tudo descambava em trevas, e o brilho de pequenas lâmpadas, suave como era, tornava impossível enxergar além das sombras.

— Suba — disse uma voz na escuridão acima de mim. Era Rupert. — Há uma escada do outro lado. Cuidado onde pisa.

Tateei o caminho em volta da parte de trás do palco e encontrei os degraus com as mãos. Depois de escalar alguns, me vi em uma plataforma elevada de madeira que passava atrás e acima do palco das marionetes.

Um corrimão reforçado de tubos de metal servia de apoio à cintura de Rupert enquanto ele se inclinava para a frente para operar seus bonecos. Embora eles estivessem virados para o outro lado, e portanto eu não podia ver suas faces, muitos daqueles personagens articulados estavam pendurados em uma vara atrás de mim: uma velha, um homem e um menino, a julgar pelas roupas de camponeses.

De um lado, e ao alcance da mão, estava instalado um gravador de fita magnética, seus dois rolos carregados com uma fita marrom brilhante que, a julgar pela cor, achei que devia ser revestida de uma emulsão de óxido de ferro.

— Nialla pediu para você se lembrar de abaixar o volume da música quando ela começar a falar — sussurrei, como se estivesse contando um segredo.

— Tudo bem — disse ele —, não precisa cochichar. As cortinas absorvem o som. Ninguém pode nos ouvir aqui em cima.

Aquele não era um pensamento especialmente reconfortante. Se ele estivesse predisposto a isso, Rupert poderia pôr suas mãos poderosas em volta do meu pescoço e me estrangular em um silêncio voluptuoso. Ninguém lá na frente perceberia coisa alguma até que nada restasse de mim além de um cadáver flácido.

— Bem, é melhor eu voltar — disse eu. — Estou ajudando com os ingressos.

— Certo — disse Rupert —, mas dê uma olhada nisto antes. Não são muitas as crianças que têm a oportunidade de vir até os bastidores.

Enquanto falava, ele estendeu a mão e girou um grande botão, e as luzes foram se apagando no palco abaixo de nós. Quase perdi o equilíbrio quando o pequeno mundo pareceu se materializar do nada sob meus pés. Me vi subitamente olhando para baixo, como Deus, para campos de sonho com céu azul e colinas verdes pintadas. Aninhado em um vale, havia um chalé de telhado de palha com um banco no quintal e um estábulo decrépito.

Prendi a respiração.

— Você fez tudo isso?

Rupert sorriu e estendeu a mão para outro controle. Quando ele o acionou, a luz do dia se esmaeceu até a escuridão e as luzes subiram nas janelas do chalé.

Embora eu estivesse olhando para tudo aquilo de ponta-cabeça, por assim dizer, lá de cima, senti uma pontada; uma pontada estranha e inexplicável que eu nunca sentira antes.

Senti saudades de casa.

Agora, mais ainda do que antes, quando vira aquilo pela primeira vez, senti vontade de ser transportada para aquela pequena e tranquila paisagem, de subir pelo caminho, de tirar uma chave do bolso e abrir a porta do chalé, para me sentar diante da lareira, para me envolver com meus braços e ficar lá para todo o sempre.

Rupert também se transformara. Vi em seu rosto. Iluminado de baixo, as feições totalmente em paz, suas largas feições relaxadas em um sorriso gentil e benevolente.

Debruçado no cano do corrimão, ele estendeu a mão para baixo e puxou um capuz preto de algodão de cima de um objeto volumoso ao lado do palco.

— Conheça Galligantus, o gigante — disse. — Última oportunidade antes do merecido castigo dele.

Era a face de um monstro, as feições distorcidas em uma expressão de ira perpétua e salpicadas de furúnculos, o queixo coberto de pelos pretos e cinzentos, como tachinhas de carpete.

Soltei um gritinho e dei um passo para trás.

— É só papel-machê — disse Rupert. — Não se assuste, ele não é tão horrendo como parece. Pobre velho Galligantus... Na verdade gosto muito dele. Passamos muito tempo juntos aqui em cima, aguardando o fim do espetáculo.

— Ele é... maravilhoso — eu disse, engolindo em seco. — Mas não tem cordéis.

— Não, na verdade ele não é uma marionete. Não passa de cabeça e ombros. Está pendurado pelo lugar onde deveria ser a cintura, sustentado ereto fora de vista, e... eu garanto a você e não vou repetir: é um segredo profissional.

— Prometo não contar — eu disse.

— No fim da peça, quando João está derrubando o pé de feijão a machadadas, eu só preciso erguer esta barra; ele tem molas, você sabe, e...

Quando ele tocou uma ponta daquilo, uma barrinha de metal subiu voando como um semáforo de ferrovia, e Galligantus tombou para a frente, se esborrachando na frente do chalé, quase ocupando toda a largura do palco.

— Isso nunca deixa de arrancar um gritinho sufocado da plateia — disse Rupert. — Sempre tenho vontade de rir ao ouvir isso. Porém, preciso tomar cuidado para que João e sua pobre e velha mãezinha não fiquem no caminho. Não posso deixar que eles sejam esmagados por um gigante caindo.

Inclinando-se para baixo e agarrando Galligantus pelo cabelo, Rupert o puxou para cima e o travou de volta em posição.

O que surgiu borbulhando inexplicavelmente do fundo da minha memória naquele momento foi um sermão do vigário no começo do ano. Parte do seu texto, extraído do Gênese, era a frase “Naqueles dias, havia gigantes na terra”. No original hebraico, o vigário nos contou, a palavra para gigantes era nefilim, o que, disse ele, significava intimidadores cruéis ou tiranos violentos: não fisicamente grandes, mas sinistros. Não monstros, mas seres humanos repletos de malevolência.

— É melhor eu voltar — eu disse. — Obrigada por me mostrar Galligantus.


Nialla não estava visível em lugar nenhum, e eu não tinha tempo de procurar por ela.

— Ah, minha cara, minha cara — disse o vigário —, nem sei o que sugerir que você faça. Apenas faça-se útil de um modo geral, eu acho.

E foi o que eu fiz. Durante a hora seguinte, conferi os ingressos e encaminhei as pessoas (principalmente as crianças) a seus lugares. Olhei zangada para Bobby Broxton e lhe fiz sinal para que tirasse os pés de cima da cadeira na frente dele.

— Está reservada para mim — chiei ameaçadoramente.

Escalei o balcão da cozinha e encontrei a segunda chaleira, que de algum modo tinha sido enfiada bem atrás na prateleira de cima, e ajudei a sra. Delaney a colocar xícaras vazias e pires sobre uma bandeja de chá. Até subi correndo a rua principal para ir ao Correio trocar uma nota de dez libras por moedas.

— Se o vigário precisa de trocado — disse a srta. Cool, a administradora da agência —, por que ele não arromba aquelas caixas de coleta de papelão da escola dominical? Eu sei que o dinheiro é para as missões, mas ele sempre poderia enfiar notas bancárias lá dentro para substituir o que tirou. Evitaria que ele se aproveitasse de Sua Majestade para angariar centavos, não é mesmo? Mas, por outro lado, os vigários nem sempre têm um espírito tão prático quanto se poderia esperar, não é, querida?

Às duas horas, eu já estava completamente exausta.

Quando por fim me sentei no meu lugar na fileira da frente, bem no centro, a agitação ansiosa da plateia chegou ao clímax. Estávamos com a casa cheia.

Em algum lugar nos bastidores, o vigário apagou as luzes da plateia, e, por alguns momentos, ficamos na escuridão total.

Me recostei na minha cadeira, e a música começou.


1 Esta é uma antiga canção inglesa, que aqui está em inglês medieval. Significa, simplesmente, “o verão chegou e canta alto o cuco”. (N. do T.)


ERA UMA DESSAS COISINHAS DE MOZART: uma dessas melodias que fazem você pensar que já ouviu antes, mesmo que não tenha ouvido.

Eu podia imaginar os rolos do gravador de fita de Rupert girando nos bastidores, os sons da música sendo convocados, por magnetismo, do mundo subatômico do óxido de ferro. Como provavelmente haviam se passado cerca de duzentos anos desde que Mozart a ouvira pela primeira vez em sua cabeça, parecia de certo modo apropriado que os sons da orquestra sinfônica fossem armazenados em nada mais que partículas de ferrugem.

Quando as cortinas se abriram, fui pega de surpresa: em vez do chalé e das colinas idílicas que eu esperava, o palco estava todo preto. Rupert obviamente mascarara o cenário rural com um pano escuro.

Um foco de luz se acendeu lentamente, e bem no centro do palco havia uma espineta em miniatura, as teclas de marfim de seus dois teclados completamente brancas contra a escuridão circundante.

A música foi abaixando, e um silêncio expectante caiu sobre o público. Todos nos inclinamos para a frente, à espera...

Um leve movimento de um lado do palco nos chamou a atenção, e uma figura entrou marchando com confiança para a espineta. Era Mozart!

Vestido com seda verde, rendas no pescoço, meias brancas até os joelhos e sapatos com fivelas, parecia ter saído diretamente do século XVIII através de uma janela para dentro do nosso século. Sua peruca branca perfeitamente empoada emoldurava um rosto rosado e insolente, e ele pôs uma das mãos em pala sobre os olhos, perscrutando as trevas para ver quem tivera a audácia de dar uma risadinha.

Sacudindo a cabeça, foi até seu instrumento, tirou um fósforo do bolso e acendeu as velas: uma em cada ponta dos teclados da espineta.

Uma atuação extraordinária! O público irrompeu em aplausos. Cada um de nós sabia, eu acho, que estávamos testemunhando o trabalho de um mestre.

O pequeno Mozart sentou-se no banco regulável na frente do teclado, ergueu as mãos como se fosse começar... e então estalou ruidosamente as articulações dos dedos.

Uma explosão de gargalhadas subiu da plateia. Rupert devia ter gravado de perto o som de um quebra-nozes, pensei: soava como se o pequeno boneco tivesse esmagado todos os ossos das mãos.

E então ele começou a tocar, as mãos adejando com facilidade por cima das teclas como as lançadeiras em um tear. A música era a Marcha turca, uma melodia animada, forte, que me fez sorrir.

Não há necessidade de descrever tudo: do banco que desabou aos teclados gêmeos que abocanharam os dedos do boneco com os dentes de um tubarão, a coisa toda, do começo ao fim, nos fez rolar de tanto rir.

Quando por fim a pequena figura conseguiu, a despeito de tudo, chegar arduamente ao triunfante acorde final, a espineta recuou, inclinou-se cumprimentando o público e depois dobrou-se perfeitamente para dentro de uma maleta, que o boneco pegou. Ele então marchou para fora de cena sob uma tempestade de aplausos. Alguns de nós até aplaudiram de pé.

As luzes diminuíram de novo.

Houve uma pausa. Um silêncio.

Depois que o público se acalmou, sons de música, uma música diferente, chegaram flutuando aos nossos ouvidos.

Reconheci a melodia imediatamente. Era Manhã, da suíte Peer Gynt, de Edvard Grieg, e me pareceu ser a escolha perfeita.

— Bem-vindos ao País dos Contos de Fadas — disse uma voz feminina quando a música diminuiu, e um foco se acendeu para revelar a mais estranha e singular personagem.

Sentada à direita do palco (devia ter ficado em posição durante os momentos de escuridão, pensei), ela usava um rufo de renda elisabetana, um vestido preto de peregrina com um corpete de renda, sapatos pretos com fivelas quadradas de prata e um minúsculo par de óculos que se equilibravam precariamente na ponta do nariz. O cabelo era uma massa de cachos cinzentos se esparramando debaixo de um chapéu alto e pontudo.

— Meu nome é Mamãe Gansa.

Era Nialla!

Oohs e aahs subiram da plateia, e ela sentou-se, sorrindo pacientemente até toda a excitação serenar.

— Vocês querem que eu lhes conte uma história? — perguntou, com uma voz que não era a de Nialla, mas ao mesmo tempo não era a de ninguém mais.

— Sim! — gritaram todos, inclusive o vigário.

— Então, muito bem — disse a Mamãe Gansa. — Vou começar do início, e continuar contando até chegar ao fim. E então eu vou parar.

Dava para ouvir um alfinete caindo.

— Era uma vez — disse ela —, numa aldeia não muito distante...

Enquanto ela dizia essas palavras, as cortinas de veludo vermelho com suas borlas douradas se abriram lentamente para revelar o aconchegante chalé que eu vislumbrara atrás dos bastidores, mas que agora podia ver com muito mais detalhes: as janelas com vidros em forma de losângo, as malvas-rosa pintadas, a banqueta de ordenhar de três pernas.

— ... onde vivia uma pobre viúva com seu filho, que se chamava João.

Nisso, entrou em cena um menino de calça curta de couro, jaqueta bordada e colete, andando de um modo relaxado e assobiando desafinadamente uma música.

— Mãe! — ele gritou — Você está em casa? Eu quero jantar.

Quando ele se virou para olhar em volta, a mão protegendo os olhos do sol pintado, a plateia inteira inspirou fundo.

O rosto esculpido em madeira de João era uma face que todos nós reconhecemos: era como se Rupert, deliberadamente, tivesse usado como modelo para o rosto do boneco uma fotografia de Robin, o filho morto dos Ingleby. A semelhança era sinistra.

Como uma aragem nos bosques frios de novembro, uma onda de sussurros inquietos varreu o salão.

— Shhh! — fez alguém afinal. Acho que foi o vigário.

Me perguntei como ele devia estar se sentindo ao ser confrontado com o rosto de uma criança que ele sepultara no pátio da igreja.

— João era um menino muito preguiçoso — prosseguiu a Mamãe Gansa. E, como ele se recusava a trabalhar, não se passou muito tempo até que as magras economias de sua mãe estivessem completamente esgotadas. Não havia mais nada para comer em casa, e não restava nem mesmo uma insignificância para a comida.

Então apareceu a pobre viúva, vindo de trás do chalé com uma corda na mão e, na outra ponta da corda, uma vaca. Ambas eram pouco mais que pele e ossos, mas a vaca tinha a vantagem de ter um lindo par de enormes olhos castanhos.

— Vamos ter de vender a vaca para o açougueiro — disse a viúva.

E então os enormes olhos da vaca se voltaram para ela, depois para João e finalmente para o público. Me ajudem!, eles pareciam dizer.

— Aaahhh — disse todo mundo ao mesmo tempo, numa crescente manifestação de simpatia.

A viúva voltou as costas para a pobre criatura e foi embora, deixando o trabalho sujo para João fazer. Assim que ela se foi, um mascate apareceu no portão.

— 'Dia, senhor — disse ele para João. — Você parece um rapazinho esperto, do tipo que pode estar precisando de alguns feijões.

— Pode ser — disse Joãozinho.

— João se achava um negociante astuto — disse a Mamãe Gansa —, e antes que você pudesse dizer “Llanfairpwllgwyngyllgogerychwyrndrobwyllllantysiliogogogoch”, que é o nome de um lugar em Gales, ele já tinha trocado a vaca por um punhado de feijões.

A vaca ficou toda de pernas duras e cravou os calcanhares no chão, enquanto o mascate tentava arrastá-la para fora, e João ficou lá, olhando para o montinho de feijões na palma da sua mão.

Então, de repente, a mãe dele voltou.

— Onde está a vaca? — perguntou. — Seu parvo, imbecil!

E ela lhe deu um chute no traseiro.

Com isso, uma imensa gargalhada veio das crianças na plateia, e tenho de admitir que eu também dei uma risadinha. Estou na idade em que vejo esse tipo de coisa com duas cabeças, uma que ri dessas bobagens e outra que nunca vai além de um sorriso enfastiado e um tanto constrangido, como o da Mona Lisa.

Com aquele pontapé, João realmente saiu voando pelo ar, espalhando feijões por todos os lados.

Agora a plateia em peso rolava de rir.

— Você vai dormir no galinheiro — disse a viúva. — Se ficar com fome, pode ciscar milho.

E dizendo isso ela se foi.

— Ai de mim — disse João, e se esticou em cima do banco ao lado da porta do chalé.

A luz do sol desvaneceu-se muito rápido, e de repente era noite. Uma lua cheia brilhava acima das colinas envolventes. As luzes do chalé estavam acesas, a luz morna e alaranjada se esparramando pelo pátio. João estremeceu em seu sono, mudou de posição e começou a roncar.

— Mas vejam! — disse a Mamãe Gansa. — Alguma coisa está se mexendo no jardim.

Agora a música se tornara mística: o som de uma flauta em um bazar oriental.

Algo se mexia no jardim. E como que por mágica uma coisa que de início parecia um cordão verde, e depois uma corda verde, começou a se erguer serpenteando da terra, se torcendo e se contorcendo como uma naja na cesta de um faquir, até a ponta desaparecer de vista.

Enquanto aquilo se erguia para o céu, e a noite mudava rapidamente para dia, o pé de feijão crescia, cada vez mais depressa, até por fim ficar parecendo uma árvore verde-esmeralda, apequenando o chalé.

Novamente a música era Manhã.

João se espreguiçou, bocejou e rolou desajeitadamente para fora do banco. Com as mãos na cintura, ele se curvou para trás de um modo impossível, tentando relaxar as juntas enrijecidas. E então avistou o pé de feijão.

Recuou como se tivesse levado um soco, lutando para manter o equilíbrio, os pés cambaleando, os braços girando como moinhos de vento.

— Mãe! — gritou. — Mãe! Mãe! Mãe! Mãe!

A velha apareceu imediatamente, vassoura na mão, e João dançou como um louco em volta dela, apontando.

— Os feijões, como vocês veem — disse a Mamãe Gansa —, eram mágicos, e no meio da noite eles cresceram e se transformaram em um pé de feijão que ficou mais alto que as nuvens.

Bem, todo mundo conhece a história de João e o pé de feijão, portanto não é preciso que eu a conte aqui de novo. Na hora seguinte, a história prosseguiu como sempre, há centenas de anos: a escalada de João, o castelo nas nuvens, a mulher do gigante e como ela escondeu João no forno, a harpa mágica, os sacos de prata e ouro... tudo isso estava lá, trazido à vida de forma brilhante pela genialidade de Rupert.

Ele nos manteve presos à palma de sua mão do começo ao fim, como se fosse ele o gigante e todos nós fôssemos o João. Ele nos fez rir e nos fez chorar, e às vezes as duas coisas ao mesmo tempo. Eu nunca tinha visto nada parecido.

Minha cabeça estava trepidando de perguntas. Como Rupert podia operar as luzes, os efeitos sonoros, a música e os cenários do palco ao mesmo tempo que manipulava uma porção de marionetes, provendo cada qual das vozes certas? Como ele fizera o pé de feijão crescer? Como João e o gigante puderam sair perseguindo alegremente um ao outro sem que os cordéis se embaraçassem? Como o sol despontou? E a lua?

A Mamãe Gansa estava certa: os feijões eram mágicos, e nos hipnotizaram, a todos.

E agora se aproximava o final. João descia atabalhoadamente pelo pé de feijão, com sacos de ouro e prata na cintura. O gigante vinha não muito atrás.

— Pare! — trovejou a voz do gigante. — Pare, seu ladrão, pare!

Antes ainda de chegar ao chão, João já estava chamando sua mãe.

— Mamãe! Mamãe! Pegue o machado! — bradou e, arrancando-o das mãos dela, pulou para o chão e começou a golpear furiosamente o tronco do pé de feijão, que parecia se encolher, como se sentisse dor ao contato com a lâmina afiada.

A música atingiu um clímax, e houve um estranho instante em que o tempo pareceu congelar. E então o pé de feijão desabou, e um momento depois o gigante desmoronou para o chão.

Ele caiu no pátio na frente do chalé, o torso imenso fazendo o chalé parecer minúsculo, os olhos vidrados olhando sem vida por cima de nossas cabeças. O gigante estava morto como uma pedra. As crianças gritaram, e até alguns dos pais se puseram de pé.

Era, é claro, Galligantus, o monstro articulado que eu vira antes do espetáculo. Mas eu não tinha ideia de como sua queda e sua morte seriam vistas desse ângulo.

Meu coração batia forte no peito. Foi glorioso!

— E assim morreu Galligantus — disse a Mamãe Gansa —, o gigante cruel. Depois de algum tempo, a mulher dele se sentiu solitária no céu, e encontrou outro gigante para se casar. João e sua mãe, agora ricos além dos seus sonhos mais desvairados, viveram, como todas as pessoas de bem, felizes para sempre. E nós sabemos que todos vocês também, cada um de vocês.

João sacudiu o pó das mãos com displicência, como se matar um gigante fosse uma coisa corriqueira.

As cortinas vermelhas se fecharam lentamente, e, enquanto elas faziam isso, o inferno irrompeu no salão paroquial.

— É o Diabo! — gritou uma voz feminina no fundo do salão. — O Diabo agarrou o menininho e o encolheu! É o Diabo!

Me virei e vi alguém agitando os braços na porta aberta. Era Meg, a Louca. Ela apontava o dedo para o palco e então jogou as mãos para cima, cobrindo o rosto. Naquele momento, as luzes do salão se acenderam.

O vigário apareceu rapidamente a seu lado.

— Não, não! — gritou ela. — Não levem a velha Meg! — Deixem-na em paz!

De algum modo, ele conseguiu passar o braço em volta dos ombros dela e a levou gentilmente, mas com firmeza, para a cozinha do salão, onde por um ou dois minutos sua pobre voz entrecortada pôde ser ouvida gemendo: “O Diabo! O Diabo! O Diabo agarrou o pobre Robin!”.

Um silêncio caiu sobre o lugar. Os pais começaram a encaminhar suas crianças, todas elas agora caladas, para as saídas.

As mulheres da Sociedade Beneficente das Damas deram uma arrumadela a esmo e depois saíram apressadas, provavelmente para mexericar com as mãos sobre a boca, pensei.

Me vi sozinha no salão.

Nialla parecia ter sumido, embora eu não a tivesse visto sair. Como eu podia ouvir um suave murmúrio de vozes nos bastidores, Rupert presumivelmente ainda estava na ponte do seu palco de marionetes.

Foi então que pensei em pôr a física para trabalhar. Como eu disse, os projetistas vitorianos do salão fizeram de seu interior um perfeito refletor de som. As vastas extensões de lambris escuros envernizados do salão capturavam os sons mais sutis e os focalizavam de modo maravilhoso. Ficando de pé bem no centro do salão, descobri que, com minha audição aguçada, podia facilmente entender cada palavra. Uma das vozes que eu ouvira era a de Rupert.

— Mas que inferno! — ele dizia com um sonoro sussurro. — Mas que inferno, Nialla!

Nialla não disse nada, embora eu achasse ter ouvido um soluço.

— Bem, temos de dar um basta nisso. Não há dúvida.

Dar um basta no quê? Teria ela contado que estava grávida? Ou ele estava falando sobre sua discussão com Mutt Wilmott? Ou com Gordon Ingleby?

Antes que eu pudesse ouvir mais uma palavra, a porta da cozinha se abriu, e o vigário entrou no salão com Meg, a Louca, apoiada em seu braço, seguidos por Cynthia e duas damas da Sociedade Beneficente.

— Fora de questão — dizia Cynthia —, totalmente fora de questão. O lugar está simplesmente fedendo a emanações de tinta. Além disso, não temos...

— Infelizmente vamos ter de ir contra você dessa vez, minha querida. Esta pobre mulher precisa de algum lugar para descansar, e não poderíamos simplesmente expulsá-la para...

— Para uma choupana no meio do mato? — perguntou Cynthia com um intenso rubor subindo em suas faces.

— Flavia, minha querida — disse o vigário ao me avistar —, você se importaria de dar uma corrida na frente até o presbitério? A porta está aberta. Faça a gentileza de remover os livros que estão em cima do sofá no meu estúdio... pode colocá-los em qualquer lugar. Deveremos chegar lá em seguida.

Nialla apareceu de repente atrás das cortinas.

— Só um momento, vigário — disse ela. — Eu vou com vocês.

Vi que ela estava se segurando, mas com dificuldade.


O estúdio do presbitério dava a impressão de que Charles Kingsley acabara de pôr de lado a sua pena e sair da sala. As estantes, do chão ao teto, estavam atulhadas de ponta a ponta com volumes que, a julgar pelas encadernações solenes, só poderiam ser de interesse eclesiástico. Uma escrivaninha atravancada, transbordando, cobria a maior parte da única janela da sala, e um sofá de crina de cavalo preta, um verdadeiro Everest de livros empoeirados, estava encostado, num ângulo maluco, em um tapete turco esgarçado.

Eu mal acabara de pôr os livros no chão, Nialla e o vigário chegaram, conduzindo Meg solicitamente para o sofá. Ela parecia entorpecida, conseguindo pronunciar apenas alguns resmungos vagos, enquanto Nialla a ajudava a se reclinar e alisava suas roupas encardidas.

Um momento depois, a presença imponente do dr. Darby preencheu o vão da porta. Alguém devia ter subido às pressas a rua principal para ir buscá-lo em seu consultório.

— Hum — ele arriscou enquanto punha sua valise preta de médico em cima da mesa, abria o fecho e dava uma boa vasculhada lá dentro. Com um ruidoso farfalhar, tirou um saquinho de papel e extraiu lá de dentro uma pastilha de hortelã, que jogou na boca.

Resolvido o detalhe, inclinou-se por cima de Meg para dar uma olhada mais de perto nela.

— Hum — fez de novo, e foi procurar uma seringa na valise. Ele a encheu com alguma coisa tirada de um pequeno frasco de líquido transparente, arregaçou a manga de Meg e enfiou a agulha no braço dela.

Meg não proferiu nenhum som, mas olhou para ele com os olhos de um cavalo atingido por uma marreta. De um guarda-roupa alto no canto, como num passe de mágica, o vigário extraiu um travesseiro e uma manta de lã de cores brilhantes.

— Para os cochilos da tarde — sorriu ele, cobrindo-a com delicadeza, e Meg começou a roncar antes mesmo do último de nós sair silenciosamente da sala.

— Vigário — disse Nialla de repente —, sei que você vai achar isto muito feio da minha parte, mas preciso lhe pedir um grande favor.

— Pode pedir — disse o vigário, com uma olhadela preocupada para Cynthia, que andava de um lado para outro no canto oposto do salão.

— Eu ficaria eternamente grata se você me permitisse tomar um banho quente. Há tanto tempo não tomo um, que me sinto como uma criatura vivendo embaixo de uma pedra.

— Mas claro, querida — disse o vigário. — É lá em cima, no fim do corredor. Pegue sabonete e toalhas.

— E não ligue para o pequeno iate — ele acrescentou com um sorriso. É meu.

Enquanto Nialla subia a escada, um salto de borracha guinchou no assoalho encerado, e Cynthia se foi.

— Cynthia se ofereceu para levá-la de volta a Buckshaw — disse o vigário voltando-se para mim, e percebi imediatamente que ele estava mentindo. — Espero ver você de volta esta noite, com sua família.

— Sim, é claro — disse eu. — Todos estão ansiosos para ver João e o pé de feijão.


Com Gladys precariamente amarrada na capota, nos arrastamos muito devagar pelo caminho, na cansada e poeirenta Oxford. Cynthia, como toda mulher de vigário, tinha a tendência a exagerar no volante, esterçando de um lado para outro em uma série de curvas fechadas entre as sebes.

Sentada ao lado dela no banco da frente, tive uma boa oportunidade de examinar a oclusão defeituosa de seus dentes, de perto e de perfil. Mesmo com a boca fechada, ela exibia uma quantidade notável de dentes, e me vi seriamente repensando minha rebelião contra os aparelhos dentários.

— Tem sempre alguma coisa, não é mesmo? — ela disse de repente, o rosto ainda afogueado por causa da recente humilhação. — A gente está sempre sendo arrastada para fora de casa por causa de alguém mais necessitado. Não que eu me importe, é claro. Primeiro, foram os ciganos. Depois, os removidos de guerra. E, no ano passado, os ciganos vieram de novo. Denwyn foi atrás deles no Bosque Gibbet e convidou pessoalmente cada um deles para comparecer à Santa Eucaristia. Nem um único homem apareceu, é claro. Os ciganos são essencialmente selvagens ou, quem sabe, católicos romanos. Não é que eles não tenham alma; eles têm, claro. Mas a gente sempre sente que a alma deles é muito mais sombria que a nossa.

— Eu me pergunto como Nialla estará indo com seu banho — comentei alegremente, enquanto subíamos a avenida de castanheiras a caminho de Buckshaw.

Cynthia ficou olhando direto para a frente, agarrada ao volante.


— Bobagens! — declarou tia Felicity. — Devemos ir como uma família.

Estávamos na sala de estar, todos espalhados e o mais separados que era humanamente possível.

O pai resmungou alguma coisa sobre álbuns de selos, e vi que Dafi já estava prendendo a respiração numa tentativa de simular uma febre.

— Você e suas meninas precisam sair mais, Haviland. Estão todos pálidos como águas-vivas. É por minha conta. Vou chamar Clarence com seu carro assim que acabarmos de comer.

— Mas... — o pai conseguiu dizer.

— Eu não vou tolerar mais desculpas, Haviland.

Do lado de fora, Dogger estava arrancando as ervas daninhas no terraço. Tia Felicity bateu de leve na vidraça para chamar sua atenção.

— Sim, senhorita? — disse ele, entrando pela porta-janela com o chapéu de palha na mão.

— Telefone para Clarence e diga-lhe que precisamos de um táxi para sete pessoas às seis e meia.

— Às seis e meia, senhorita? — perguntou Dogger, franzindo o cenho.

— É claro — disse tia Felicity. — Ele terá de fazer duas viagens. Suponho que você e a sra. Mullet ficariam aborrecidos se fossem deixados de fora; os espetáculos de marionetes não são apenas para quem tem sangue azul, você sabe.

— Obrigado, senhorita — disse Dogger.

Tentei olhar para seus olhos, mas ele já se fora.


CLARENCE PAROU NA FRENTE DO PÓRTICO às vinte para as sete. Ele deu a volta no táxi para abrir a porta para tia Felicity, que insistira em sentar-se no banco da frente com ele a fim de, como ela disse, ficar de olho nos maus motoristas da estrada.

Ela vestira uma espécie de capa de ópera cômica por cima de um volumoso conjunto de seda vermelha que poderia ter sido surrupiado de um harém persa. Seu chapéu era um saco preto desmoronado, com uma pena de pavão ondulando atrás como a fumaça da chaminé do trem Flying Scotsman; nos pés havia um chinelo medieval amarelo-mostarda, com pontas compridas viradas para cima como um par de bolsas de gelo. O pai e Felinha desceram do outro lado do táxi.

— Agora vá buscar os outros, Clarence — comandou tia Felicity —, e não fique embromando.

Clarence ergueu um dedo indicador para a ponta de seu quepe e, com uma engrenada impertinente, foi embora.

Dentro do salão paroquial, descobrimos que toda a primeira fila de cadeiras tinha sido reservada para nós. Tia Felicity certamente não economizara na aquisição dos ingressos. Ela e o pai sentariam bem no centro, com Felinha e Dafi à esquerda. Eu ficaria à direita do pai, com Dogger e a sra. Mullet (quando chegassem) ao nosso lado.

Já estava tudo pronto. As luzes da plateia haviam sido atenuadas, e havia uma deliciosa expectativa no ar. Música incidental flutuava dos bastidores, e de quando em quando as cortinas de veludo vermelho davam uma tremida sedutora.

Toda a população de Bishop’s Lacey parecia estar presente. Mutt Wilmott, eu vi, estava em um assento encostado à parede perto do fundo. A srta. Cool, uma fileira atrás dele, ouvia Cynthia Richardson, que lhe dava toda a atenção, e atrás dela sentava-se a srta. Mountjoy, sobrinha do falecido dr. Twining, o velho mestre-escola do pai. À direita da srta. Mountjoy, vindos da Fazenda Culverhouse, estavam sentados lado a lado Dieter Schrantz e Sally Straw, a Menina da Terra. Dei-lhes um pequeno aceno, e os dois abriram um sorriso.

— Haroo, mon vieux! Flavia!

Era Maximilian Wight, nosso diminuto vizinho, que, depois de diversas excursões mundiais como concertista de piano, se estabelecera por fim em nossa aldeia para ensinar música. Felinha tinha sido uma de suas alunas, mas abrira mão das aulas quando Max começou a fazer perguntas indiscretas demais sobre seus “amantes”. Max acenou com uma luva branca, e acenei de volta.

Enquanto perscrutava as fileiras de rostos, meus olhos deram uma brecada em uma mulher de cabelo escuro que usava um conjunto de lã verde-acinzentado. Não era ninguém que eu tivesse visto antes e devia ser, pensei, uma estranha em Bishop’s Lacey. Talvez alguém visitando um parente.

O homem ao lado dela reparou no meu olhar e me deu um sorriso simpático: o inspetor Hewitt. Não fazia muito tempo, eu o ajudara a levar um assassino à justiça.

Num segundo, eu estava plantada na frente dele, movendo-me desajeitada de um pé para o outro antes de me dar conta de que provavelmente estava sendo inconveniente.

— Curioso encontrá-la aqui — disse o inspetor. Não foi um comentário especialmente original, mas disfarçava muito bem o que poderia ter sido um momento embaraçoso.

— Antigone — ele disse à mulher de cabelo escuro —, gostaria de apresentar-lhe Flavia de Luce.

Soube com certeza que ela diria: “Ah, sim, meu marido falou de você”, e diria isso com aquele sorrisinho malicioso que tanto revela sobre a conversa divertida que haveria depois.

— Estou encantada em conhecê-la — disse ela, estendendo a mão mais bonita do mundo e dando-me um bom aperto —, e em saber que você compartilha do meu amor por marionetes.

Se ela tivesse dito “Vá buscar”, eu teria ido.

— Adoro o seu nome — consegui dizer.

— É mesmo? Meu pai era grego, e minha mãe, italiana. Ela era professora de balé, e ele, um peixeiro, assim me criei dançando nas ruas de Billingsgate.

Com seu cabelo escuro-dourado e olhos verde-mar, ela era a imagem da Flora de Botticelli, cujas feições adornavam as costas de um espelho de mão que o pai um dia dera a Harriet.

Senti vontade de perguntar: “Em que ilha distante fica o seu santuário, para eu ir lá adorá-la?”, mas apenas continuei jogando o peso do corpo de um pé para o outro e murmurei:

— Foi um prazer conhecê-la, sra. Hewitt. Espero que você e o inspetor Hewitt apreciem o espetáculo.

Quando voltei ao meu lugar, o vigário marchou determinado para a frente do salão e se posicionou diante do palco. Sorriu, indulgente, aguardando Dafi, a sra. Mullet e Dogger voltarem a seus lugares.

— Senhoras e senhores, meninos e meninas, paroquianos de São Tancredo e de outras comunidades, obrigado pela presença de todos vocês. Nesta noite, sentimo-nos honrados em dar as boas-vindas ao renomado artista de marionetes, se ele me permite usar essa nomenclatura ilustre... Rupert Porson.

 

(Aplausos)

— Embora o sr. Porson, ou Rupert, se me permitem, seja mais conhecido hoje em dia por suas atuações na Televisão BBC com O Reino Mágico, que, com certeza, todos vocês sabem, é o mundo de Snoddy, o Esquilo...


(Aplausos)


— ... eu sei, de fonte segura, que ele viajou extensamente, exibindo sua arte manipulativa em todas as suas múltiplas formas e, em pelo menos uma ocasião, se apresentou perante uma das cabeças coroadas da Europa.


(Aplausos)

 

— Mas antes que João venda a vaca da sua pobre mãezinha por um punhado de feijões...

— Pssst! Não entregue a trama, vigário!

(Tully Stoker, o proprietário e senhorio da Treze Patos, foi saudado com grandes gargalhadas, inclusive a sua própria.)

— ... e enquanto o maestro prepara suas cordas encantadas, a Sociedade Beneficente das Damas de São Tancredo tem o prazer de apresentar, para o seu entretenimento musical, as senhoritas Puddock, Lavinia e Aurelia.

Oh, Senhor! Poupai-nos! Por favor, poupai-nos!

Tínhamos sido salvos de ter de ouvi-las durante a matinê unicamente porque sua Casa de Chá São Nicolau as mantivera ocupadas demais para comparecer.

As senhoritas Puddock tinham exclusividade absoluta nos eventos públicos do salão paroquial da igreja de São Tancredo. Não importava se fosse um chá oferecido pela Liga das Senhoras, um carteado da Guilda do Altar, uma Liquidação de Garagem da Sociedade Beneficente ou um show de flores da primavera do Conselho Paroquial, as senhoritas Puddock se apresentavam, no inverno ou no verão, chovesse ou fizesse sol.

A senhorita Lavinia sentava-se na frente do piano, vasculhava sua bolsa e pescava ali finalmente uma partitura esfarrapada: O último assalto de Napoleão.

Depois de uma espera interminável, durante a qual jogava o rosto para a frente até o nariz encostar na partitura, ela se endireitava, a coluna reta como um atiçador de lareira, erguia as mãos acima do teclado, deixava-as cair, dava uma segunda olhada estrábica para a partitura e então atacava, como um urso pardo agadanhando um salmão no jornal cinematográfico da Pathé.

Quando ela acabava, sua irmã, a senhorita Aurelia, tomava posição, as pontas dos dedos enluvadas de branco roçando displicentemente o piano e pipilando (desculpem, mas não existe outra palavra para o que ela fazia) O rio de Bendemeer.

Depois, o presidente anunciava que o Conselho Paroquial votara unanimemente para presentear as senhoritas Puddock com especiais: um prêmio por apreciação, como ele sempre colocava.

E elas saíam!

A senhorita Lavinia, com os olhos cravados na partitura, estava no meio de O último assalto de Napoleão, quando notei pela primeira vez que enquanto ela lia a partitura seus lábios se mexiam. Não pude deixar de me perguntar o que ela estava dizendo. A música não tinha letra; estaria dando nome aos acordes? Ou rezando?

Misericordiosamente, ela entrou naquilo em um galope um pouco mais rápido do que o usual, e logo a coisa terminou, ao menos de certa forma. Notei que os músculos do maxilar de Felinha se contraíam e que Max parecia estar mordendo um caramelo de aço inoxidável.

E agora era a vez da senhorita Aurelia. A senhorita Lavinia martelou os primeiros compassos de uma introdução antes que a irmã se juntasse a ela:

 

Há junto ao rio Bendemeer um caramanchão de rosas

E à sua volta o dia inteiro canta o rouxinol.

Nos meus tempos de infância era como um doce sonho.

(Os tempos de infância da senhorita Aurélia, olhando para ela, deviam ter sido durante o reinado de George III.)

Sentar entre as rosas e ouvir o canto dos passarinhos.

 

Quando ela acabou, houve alguns rudimentos de aplausos polidos; a senhorita Aurelia levantou-se e permaneceu com a cabeça inclinada por alguns momentos, verificando se havia alguma poeira no piano com os dedos e aguardando ser persuadida a um bis. Mas o público, sabendo bem que não devia encorajá-la, se acomodou rapidamente em seus lugares, e alguns de nós cruzaram os braços.

Quando as luzes da plateia se apagaram, me virei para dar uma última olhada no público. Um casal de retardatários acabava de se acomodar. Para meu horror, vi que eram Gordon e Grace Ingleby, ela em seu horrível traje preto de sempre, ele com um chapéu de feltro, pelo amor de Deus! E os dois não pareciam nada felizes por estar ali.

De início, senti a raiva subir e palpitar no meu peito. Por que ninguém os avisara? Por que ninguém se preocupara em mantê-los afastados? Por que eu não fizera isso?

De um jeito maluco, o que surgiu na minha cabeça foi algo que Dafi me disse uma vez: que é obrigação de um monarca constitucional avisar e aconselhar.

Se Sua Majestade Real, o Rei George VI, estivesse entre nós naquela noite, ele seria obrigado a chamá-los de lado e dizer algo sobre o boneco com a face de seu filho morto. Mas ele não estava.

Além disso, já era tarde demais. O salão estava na mais total escuridão. Ninguém além de mim parecia ter notado a presença dos Ingleby.

E então o espetáculo começou. Por causa das intermináveis senhoritas Puddock, imagino, Rupert decidira cortar a cena de Mozart e ir diretamente para a peça principal.

As cortinas de veludo vermelho se abriram, exatamente como haviam feito à tarde, revelando o chalé da viúva. O foco de luz se acendeu para iluminar Nialla em sua fantasia de Mamãe Gansa. Manhã, de Grieg, flutuava no ar, pintando na mente imagens assustadoras de florestas escuras e fiordes gelados.

— Era uma vez, numa aldeia não muito distante — começou Nialla —, onde vivia uma pobre viúva com seu filho, que se chamava João.

E João entra em cena: o João com a cara de Robin Ingleby.

Novamente, a inspiração audível e funda quando algumas pessoas da plateia reconheceram as feições do menino morto. Eu dificilmente me atreveria a me virar e olhar, mas, fingindo que minha saia ficara presa no mecanismo articulado da cadeira, consegui me torcer no lugar apenas o suficiente para lançar uma olhada furtiva na direção dos Ingleby. Os olhos de Grace estavam arregalados e olhando fixo, mas ela não gritou; parecia congelada no lugar. Gordon apertava sua mão, sem que ela notasse.

No palco, o boneco João gritou:

— Mãe, você está em casa? Eu quero jantar.

— João era um menino muito preguiçoso — disse a Mamãe Gansa. — E como ele se recusava a trabalhar, não se passou muito tempo até que as magras economias de sua mãe estivessem completamente esgotadas. Não havia mais nada para comer em casa, e não restava nem mesmo uma insignificância para a comida.

Quando os arquejos e murmúrios se abrandaram, o espetáculo prosseguiu. Rupert estava em boa forma: os movimentos das marionetes eram tão convincentes, suas vozes tão perfeitas, que a plateia logo cedeu ao encantamento, como o vigário sugerira que iria acontecer.

Iluminados pelas luzes coloridas do palco, as faces das pessoas à minha volta eram como as faces de uma pintura de Toulouse-Lautrec, vermelhos, acalorados e profundamente atentos aos pequenos atores de madeira. Enquanto tia Felicity mastigava, excitada, uma bala digestiva de hortelã, notei que até o pai tinha uma expressão meio divertida, porém, não consegui saber se era pelos bonecos ou pela irmã dele.

A cena da vaca, dos feijões e do chute nos fundilhos foi recebida com gargalhadas ainda mais ruidosas do que na apresentação da tarde.

As bocas (e até a de Dafi) se abriram quando o pé de feijão cresceu enquanto João dormia, e as pessoas começaram a se cutucar com os cotovelos, deleitadas. Quando João escalou o pé de feijão para dentro do reino do gigante, Rupert tinha Bishop’s Lacey inteira comendo em sua mão.

Como Mutt Wilmott estaria reagindo a todo esse sucesso?, me perguntei. Ali estava Rupert, obviamente em sua melhor forma em um espetáculo ao vivo (por assim dizer), sem nenhum aparato televisivo, por mais maravilhoso que fosse, entre ele e seu público. Quando me voltei para olhar, vi que Mutt se fora e que o vigário ocupara seu lugar.

E o mais estranho: Gordon Ingleby também não estava lá. Seu lugar achava-se desocupado, mas Grace ainda estava sentada imóvel, com seus olhos vagos fixos no palco, onde a mulher do gigante acabara de esconder João no grande forno de pedra.

— Fi! Fo! Fum! — rugiu o gigante ao entrar na cozinha. — Estou sentindo o sangue de um inglês comum!

— João pulou para fora do forno... — disse a Mamãe Gansa.

— Senhor! Senhor! — gritou a encantadora harpa-marionete, tangendo suas próprias cordas, agitada. Era a parte de que eu mais gostava.

— ... agarrou a harpa de ouro e saiu em disparada, com o gigante logo atrás!

Pé de feijão abaixo João desceu, as folhas verdes ondulando em volta dele. Quando finalmente a vegetação escasseou, o cenário já havia mudado para o chalé de sua mãe. Foi um efeito maravilhoso, e não fui capaz, por mais que tentasse, de descobrir como Rupert conseguira fazer aquilo. Teria de perguntar a ele.

— Mamãe! Mamãe! Pegue o machado! — gritou João, e a velha senhora veio manquilotando pelo jardim (ah, tão devagar!), com o machado nas mãos.

João atirou-se contra o pé de feijão com todas as suas forças, o machado golpeando veloz e furiosamente, o pé de feijão encolhendo de novo, e de novo, como que em agonia por causa da lâmina maldosamente reluzente.

E então, como fizera antes, o pé de feijão cedeu e desmoronou para o chão.

João parecia estar olhando para cima quando, com um ruído retumbante, o gigante despencou do céu e esborrachou-se no chão.

Por alguns momentos o monstro ficou se contraindo espasmodicamente de um modo horrível, um fio de sangue cor de rubi escorrendo do canto da boca, a cabeça pavorosa e os ombros enchendo o palco de fagulhas, enquanto fumaça e pequenas chamas erguiam-se em anéis inclementes do cabelo e do cavanhaque ardentes. Mas os olhos sem vida que olhavam sem ver para os meus não eram aqueles do gigante articulado Galligantus. Eram os olhos vidrados e moribundos de Rupert Porson.

E então todas as luzes se apagaram.


SUBITAMENTE MERGULHADO NAS TREVAS, o público deu uma inspirada funda e soltou um suspiro coletivo.

Na cozinha, alguém teve a presença de espírito de acender uma lanterna, e um momento depois trouxe-a para fora, como um fogo-fátuo dardejante, para a parte principal do salão paroquial.

Como o vigário foi perspicaz em tentar fechar as cortinas! Pelo menos era o que ele tentava fazer, quando foi interrompido por uma voz alta e autoritária:

— Não! Não! Afaste-se. Não toque em nada.

Era Dogger. Ele se pusera de pé e bloqueara o caminho do vigário, os braços totalmente estendidos e parecendo estar tão surpreso quanto todos nós com sua própria ousadia. Nialla, que se erguera bruscamente e dera um único passo em direção ao proscênio, paralisou-se de súbito no lugar.

Tudo isso aconteceu sob o facho semovente da lanterna, fazendo a cena parecer algum tipo de drama horripilante representado durante um ataque aéreo, iluminado por um holofote de busca.

Uma segunda voz veio da escuridão no fundo do salão: era do inspetor Hewitt.

— Fiquem todos parados, por favor, permaneçam onde estão. Não se movam enquanto eu não disser que podem se mover.

Ele foi rapidamente até a frente do auditório e desapareceu nos bastidores, enquanto alguém perto da porta tentava em vão acionar alguns interruptores, mas as lâmpadas incandescentes em suas arandelas de vidro fosco continuaram apagadas.

Houve alguns resmungos de protesto até que o policial Linnet, à paisana naquela noite, foi até a fila da frente com uma das mãos erguidas no ar pedindo atenção. Ele levara uma segunda lanterna, que dirigiu para o próprio rosto, o que lhe emprestou uma pavorosa aparência cadavérica.

— Por favor, façam o que o inspetor disse — recomendou ele ao público. — Agora ele está no comando aqui.

O dr. Darby, eu notei, já estava abrindo caminho pelo corredor lateral abarrotado, em direção ao palco.

Nialla, quando a vislumbrei, parecia estar enraizada no lugar; ela não tinha movido um músculo. Seu chapéu alto de Mamãe Gansa estava caído de lado, e, se a situação não fosse o que era, eu poderia ter rido muito de sua aparência.

Minha primeira reação, claro, foi ir até ela, mas fui detida pela mão do pai, firme em meu braço.

Quando o corpo de Rupert se estatelou no palco, tanto Dafi como Felinha puseram-se em pé de um salto. O pai ainda fazia sinais para elas se sentarem, mas as duas estavam excitadas demais para prestar alguma atenção a ele.

O inspetor reapareceu no vão da porta à esquerda do palco. Havia dois daqueles corredores, um de cada lado, cada qual conduzindo a uma saída e a uns poucos degraus até o palco. Era naquelas áreas fechadas que os coros de anjinhos risonhos costumavam ser postos em ordem para o desfile anual de Natal de São Tancredo.

— Policial Linnet, pode me emprestar a sua lanterna, por favor?

O policial Linnet entregou sua Eveready de cinco pilhas, que parecia daquele tipo que você vê sendo usado em filmes, nas buscas em pântanos brumosos. Ele provavelmente a levara para iluminar o caminho para casa pelas veredas depois do espetáculo, sem jamais ter pensado que poderia ser tão útil.

— Um minuto da atenção de todos, por favor — disse o inspetor Hewitt. — Estamos tentando fazer todo o possível para as luzes voltarem, mas pode demorar algum tempo até conseguirmos ligá-las de novo de forma definitiva. Poderá ser necessário, por uma questão de segurança, ligar e desligar a corrente várias vezes. Eu peço que todos voltem a seus lugares e que lá permaneçam, até que eu consiga lhes dar novas instruções. Não há nenhuma razão para se alarmarem, então, por favor, mantenham-se calmos.

Eu o ouvi dizer discretamente ao policial Linnet:

— Cubra o palco. Aquela faixa na frente do balcão vai servir. — Ele apontou para uma grande faixa de cânhamo que se estendia diante do balcão, acima da porta principal: “Sociedade Beneficente das Damas de São Tancredo”, estava escrito, com uma cruz de São Jorge em vermelho e branco. “Cem anos de serviços, 1850-1950.”

— E depois de fazer isso — acrescentou o inspetor —, telefone para Graves e Woolmer. Transmita-lhes minhas saudações e peça que venham o mais depressa possível.

— É a noite do críquete deles, senhor — disse o policial Linnet.

— Que seja. Nesse caso, transmita minhas saudações e também minhas desculpas. Estou certo de que o vigário permitirá que você use o telefone.

— Valha-me Deus! — disse o vigário, olhando em volta do salão, embaraçado. — Nós temos um telefone, é claro... para uso da Sociedade Beneficente e do Instituto das Mulheres, você sabe... mas infelizmente fomos forçados a mantê-lo trancado em um armário da cozinha... tantas pessoas fazendo interurbanos para amigos em Devon, ou até na Escócia.

— E a chave? — perguntou o inspetor Hewitt.

— Eu a entreguei a um cavalheiro de Londres logo antes do espetáculo. Ele disse que era da BBC, que precisava fazer uma chamada urgente... disse que me reembolsaria assim que a telefonista tocasse de volta informando a taxa. Que estranho, não o estou vendo aqui agora. — Ainda assim, há sempre o telefone do presbitério — acrescentou ele.

Meu primeiro impulso foi me oferecer para forçar o cadeado, mas antes que eu pudesse dizer uma palavra o inspetor Hewitt sacudiu a cabeça.

— Estou certo de que poderemos remover as dobradiças sem causar nenhum dano.

Sinalizando com um dedo, ele chamou George Carew, o carpinteiro da aldeia, que pulou do seu lugar como um projétil.

A não ser pelo fraco brilho ocasional da lanterna no palco, estávamos sentados no escuro pelo que parecia ser uma eternidade.

E então, de repente, as luzes voltaram, fazendo-nos piscar e esfregar os olhos e olhar em volta uns para os outros de um jeito ridículo.

E lá estava Rupert, a sua cara morta paralisada em um olhar de surpresa, ainda ocupando o centro do palco. Logo estariam cobrindo seu corpo com a bandeira, e me dei conta de que, se era para eu me lembrar da cena para alguma referência futura, teria de registrar uma série de instantâneos mentais. Não teria muito tempo para trabalhar.

Clic!

Os olhos: as pupilas estavam imensamente dilatadas, tanto que se eu tivesse podido chegar um pouco mais perto, teria visto a mim mesma refletida em suas superfícies convexas tão claramente como Jan van Eyck se vira refletido no espelho do quarto na sua pintura do dia do casório dos Arnolfini.

Mas não por muito tempo: as córneas já tinham começado a ficar enevoadas, e o branco dos olhos começava a perder o brilho.

Clic!

O corpo não se sacudia mais em espasmos. A pele adquirira uma coloração azulada. O canto da boca parecia ter parado de sangrar, e o pouco sangue ainda visível parecia estar ligeiramente mais escuro e mais grosso, muito embora as luzes âmbar e verdes da ribalta pudessem influenciar minha percepção das cores.

   Clic!

Na frente, logo abaixo da faixa capilar, havia uma descoloração escura do tamanho e da forma de uma moeda. Embora os fios de cabelo ainda ardessem lentamente, enchendo o salão de um odor acre que seria esperado sempre que fosse queimado um aminoácido rico em enxofre e queratina, aquilo não era o bastante para justificar a fumaça que se acumulava, ainda pairando pesadamente acima das luzes. Pude ver que as cortinas e o cenário ainda estavam totalmente intactos, portanto devia haver mais alguma coisa queimando nos bastidores. A julgar pelo cheiro de capim queimado, adivinhei que era linho — provavelmente um tecido.

    Clic!

Quando Rupert se estatelou, Nialla se pôs em pé de um salto e fez um movimento em direção à frente do palco, mas então ela parou, indecisa. Estranhamente ninguém, nem mesmo eu, foi até ela, que agora, depois de passados alguns minutos, caminhava lentamente em direção à cozinha, com as duas mãos cobrindo o rosto. Seria uma reação retardada?, eu me perguntei. Ou alguma outra coisa?

O policial Linnet foi a passos pesados até a frente do auditório, a faixa enrolada embaixo do braço e o grande canivete com o qual cortara os cordões ainda na mão. Ele e o vigário trabalharam rapidamente para pendurar o tecido entre duas araras, e ao fazer isso bloquearam a nossa visão do falecido.

Bem, eu estava pressupondo que Rupert estivesse morto. Embora o inspetor Hewitt tivesse com certeza conferido todos os sinais de vida quando foi para os bastidores pela primeira vez, eu não o ouvira chamar uma ambulância. Ninguém, até onde eu sabia, tentara uma ressuscitação. Ninguém, de fato, parecia ansioso em tocar no corpo. Nem mesmo o dr. Darby tinha saído às pressas para o salvamento.

Todo o caso acontecera, é claro, em muito menos tempo do que se leva para contá-lo: na verdade, não deve ter levado mais que cinco minutos.

Então, como o inspetor dissera que poderia acontecer, as luzes se apagaram de novo.

De início, houve uma sensação de termos mergulhado naquilo que Dafi descreve como “Escuridão do rio Styx”, e a sra. Mullet chama de “O feriado de um cego”. A sra. Mullet, aliás, estava sentada desde que o espetáculo começou, como uma figura de cera, com um meio sorriso no rosto. Eu só poderia concluir que ela ainda sorria como uma idiota para as trevas.

Era o tipo de trevas que parece, a princípio, paralisar todos os sentidos.

Mas então a gente percebe que as coisas não são exatamente tão negras como parecem. Pontos de luz, por exemplo, penetraram através das esfarrapadas cortinas usadas para cobrir as janelas desde antes da guerra, e, embora restasse pouca luz do dia do lado de fora, ela foi suficiente para criar uma leve impressão das grandes dimensões do salão.

De trás das cortinas, surgiu o som de passos prudentes, e a faixa, que fora estendida na frente do palco das marionetes, foi subitamente iluminada por trás pelo jato de luz de uma poderosa lanterna.

E agora começava o horrendo espetáculo de sombras. Via-se a silhueta do dr. Darby se abaixando e tocando o corpo, sem dúvida procurando por sinais de vida. Eu poderia ter lhe poupado o trabalho.

A sombra sacudiu a cabeça, e um grande suspiro ergueu-se do público. Me pareceu claro que, com Rupert declarado morto, o inspetor Hewitt agora quisesse que as coisas permanecessem intocadas até o sargento Woolmer chegar de Hinley com sua câmera fotográfica.

Nesse meio-tempo, tia Felicity ficou vasculhando a bolsa à procura de mais pastilhas de hortelã, e pude ouvi-la inalando e exalando pelo nariz. À minha esquerda, Dafi sussurrava para Felinha, mas como o pai, que se sentara entre nós, pigarreava a intervalos regulares, como sempre faz quando está nervoso ou aborrecido, não pude distinguir muito bem as palavras.

Depois do que pareceu outra eternidade, as luzes voltaram a se acender subitamente, e, outra vez, todos começamos a piscar.

A sra. Mullet estava tocando levemente os olhos com um lenço, os ombros tremendo, e me dei conta de que ela chorava silenciosamente. Dogger também notou. Ofereceu o braço, que ela aceitou sem erguer os olhos, e a levou para a cozinha. Ele voltou em menos de um minuto.

— Ela vai se sentir mais à vontade entre panelas e frigideiras — ele sussurrou para mim ao retomar seu lugar.

Um clarão intenso removeu todas as cores do salão por um instante, e eu e todo mundo ali nos voltamos para ver que o sargento-detetive Woolmer havia chegado. Ele montara sua avantajada câmera com tripé em cima do balcão e acabara de capturar todos nós na chapa. Quando o flash estourou uma segunda vez, me ocorreu que aquela segunda exposição não mostraria nada além de um mar de rostos brancos voltados para cima. O que talvez fosse precisamente o que ele queria.

— Por favor, posso pedir um momento da atenção de todos?

O inspetor Hewitt saíra de trás das cortinas pretas e estava de pé no centro do palco.

— Sinto muito ter de informar a vocês que houve um lamentável acidente e que o sr. Porson está morto.

Embora esse fato fosse evidente, sua confirmação fez com que uma onda de sons subisse da plateia: uma mistura de engasgos, gritos e sussurros excitados. O inspetor aguardou pacientemente até que ela se aquietasse.

— Infelizmente, terei de pedir a todos vocês que permaneçam em seus lugares um pouco mais, até que possamos anotar o nome e endereço de todos, bem como colher uma breve declaração de cada um. Esse processo levará algum tempo, e peço desculpas por isso. Depois que tiverem sido entrevistados, vocês estarão livres para partir, muito embora eu possa querer falar com vocês de novo em alguma ocasião futura. Obrigado pela atenção.

Ele fez um sinal para alguém atrás de mim, e vi que se tratava do sargento-detetive Graves. Me perguntei se o sargento se lembrava de mim. Eu o encontrara pela primeira vez em Buckshaw, durante a investigação da morte do velho colega de escola do pai, Horace Bonepenny. Mantive os olhos fixos em seu rosto quando ele foi para a frente do salão, e por fim fui recompensada com um levíssimo, porém distinto sorriso.

— Meninos de escola! — bufou tia Felicity. — Os recrutadores da polícia estão saqueando os berços da Inglaterra.

— Ele é muitíssimo experiente — sussurrei. — Já é um sargento-detetive.

— Baboseiras! — disse ela, e escavou a bolsa à procura de mais uma pastilha.

Já que o cadáver tinha sido ocultado da vista de todos, só me restava estudar as pessoas a minha volta.

Dieter, eu notei, olhava fixamente para Felinha. Embora estivesse sentado com Sally Straw, cujo rosto era uma petulante nuvem de tempestade, ele contemplava o perfil de minha irmã como se o cabelo dela fosse um altar de ouro martelado.

Dafi também notara. Quando viu a expressão intrigada em meu rosto, ela se inclinou na frente do pai e sussurrou:

— A expressão que você procura é “paixão reverencial”. — Então recostou-se e assumiu de novo a atitude de não falar comigo.

O pai não prestou nenhuma atenção em nós. Ele já se recolhera a seu próprio mundo: um mundo de tintas coloridas e perfurações-por-centímetro; um mundo de álbuns e goma-arábica; um mundo onde a nossa Graciosa Majestade, rei George VI, estava firmemente abrigada tanto no trono como nos selos postais da Grã-Bretanha; um mundo onde a tristeza e a realidade não tinham lugar.

Enfim as entrevistas começaram. Enquanto o inspetor Hewitt e o sargento Woolmer assumiam um lado do salão, o sargento Graves e o policial Linnet se encarregaram do outro.

Foi o velho, demorado e cansativo procedimento. O tempo, como dizem, pesava sobre nós ou, para ser mais precisa, sobre nossos traseiros. Até tia Felicity se remexia, incomodada em cima do seu mais-que-amplo acolchoamento posterior.

— Vocês podem se levantar e se espreguiçar — dissera o inspetor Hewitt a certa altura —, mas por favor não saiam de seus lugares.

Provavelmente não se passou mais de uma hora até que eles chegassem a nós, mas pareceu uma eternidade. O pai foi o primeiro a se dirigir até o canto onde fora instalada uma mesa simples de madeira com duas cadeiras. Não pude ouvir o que o inspetor lhe perguntou e nenhuma de suas respostas, que pareciam consistir apenas em sacudir a cabeça negativamente.

Não fazia tanto tempo que o inspetor Hewitt acusara o pai do assassinato de Horace Bonepenny, e embora o pai nunca tivesse dito isto em muitas palavras, ele ainda mantinha uma certa frieza em relação à polícia local. Ele voltou logo, e eu esperei pacientemente enquanto tia Felicity, depois Felinha e a seguir Dafi subiram para falar em voz baixa com o inspetor.

Quando cada uma voltou a seu lugar, tentei captar o olhar delas, para obter algum indício do que fora perguntado ou de como elas tinham respondido, mas não adiantou. Tanto Felinha quanto Dafi estavam com aquela cara bajuladora, santarrona que faziam depois de participar da Sagrada Comunhão, os olhos baixos e as mãos entrelaçadas na cintura em fingida humildade. O pai e tia Felicity também estavam inescrutáveis.

Já com Dogger foi outra história.

Embora tivesse aguentado bem o interrogatório do inspetor, notei que ele voltou a seu lugar como um homem andando numa corda esticada. Apareceu um tique no canto de um olho, e seu rosto tinha aquela aparência tensa, porém inexpressiva, que invariavelmente precede seus ataques. O que quer que tivesse acontecido com Dogger durante a guerra o deixara com uma incapacidade de ser confrontado de perto por qualquer tipo de autoridade.

Danem-se as consequências! Saí do meu lugar e me ajoelhei a seus pés. Apesar de ter dado uma olhada na minha direção, o inspetor Hewitt não fez nada para me impedir.

— Dogger — sussurrei —, você viu o que eu vi?

Enquanto eu deslizava para o assento ao lado dele, deixado vago pela sra. Mullet, ele ficou me olhando como se nunca tivesse me visto antes na vida, e então, como um pescador de pérolas lutando para retornar lentamente à superfície de alguma grande profundidade, ele retornou ao mundo real, balançando a cabeça em câmera lenta.

— Sim, srta. Flavia. — Infelizmente creio ter visto um homicídio.


À medida que se aproximava a minha vez de ir até a mesa, de repente me conscientizei dos batimentos do meu coração. Desejei ser um lama tibetano para poder controlar o disparo de suas válvulas.

Mas antes que eu pudesse pensar mais no assunto, o inspetor Hewitt me chamou com um gesto. Ele ficou remexendo uma pilha de papéis e formulários, aguardando até eu me sentar. Por um momento, me vi pensando de onde teriam surgido os formulários em branco. Woolmer e Graves deviam ter trazido, concluí. O inspetor certamente não estaria carregando uma pasta antes do espetáculo.

Me voltei para dar uma olhada na mulher dele, Antigone. Sim, lá estava ela, sentada calmamente em seu lugar entre os aldeões, radiante apesar da situação.

— Ela é muito bonita — sussurrei.

— Obrigado — disse ele sem erguer os olhos de seus papéis, mas pude ver pelo canto de sua boca que ele tinha gostado.

— Agora... nome e endereço?

Nome e endereço? O homem estava brincando do quê?

— Isso você já sabe — eu disse.

— É claro que eu sei. — Ele sorriu. — Mas não será oficial até você dizer.

— Flavia de Luce. Buckshaw — respondi um tanto friamente, e ele tomou nota.

— Obrigado — disse ele. — Agora, Flavia, a que horas você chegou esta noite?

— Seis e quarenta — eu disse —, em ponto. Com a minha família. De táxi. O táxi de Clarence Mundy.

— E você esteve no salão a noite inteira?

— É claro que sim. Eu fui falar com você, não está lembrado?

— Sim. Responda à pergunta, por favor.

— Certo.

Devo admitir que o inspetor estava me deixando bem mal-humorada. Eu esperava poder colaborar com ele: provê-lo de um relatório ricamente descrito, minuto a minuto, do horror que tivera lugar, quase no meu colo, naquela noite. Agora eu podia ver que seria tratada como apenas mais uma espectadora boquiaberta.

— Você viu ou falou com o sr. Porson antes do espetáculo?

O que ele queria dizer com isso? Eu tinha visto e falado com o sr. Porson em diversas ocasiões nos últimos três dias. Tinha ido de carro com o sr. Porson para a Fazenda Culverhouse e ouvira sua discussão com Gordon Ingleby no Bosque Gibbet; e isso não era tudo o que eu sabia sobre Rupert Porson. Nem de longe.

— Não — eu disse.

Era um jogo para dois.

— Entendo — disse ele. — Bem, obrigado. Isso é tudo.

Eu acabava de receber um xeque-mate.

— Você já pode ir — ele acrescentou, dando uma olhada no relógio. — Provavelmente já passa da sua hora de dormir.

A audácia do homem! Já passa da minha hora de dormir, realmente! Com quem ele achava que estava falando?

— Posso fazer uma pergunta?

— Pode — disse ele —, mas é possível que eu não possa respondê-la.

— Rupert, o sr. Porson, quero dizer, ele foi eletrocutado?

Ele olhou para mim com atenção, e vi que estava pensando cuidadosamente na resposta.

— Existe essa possibilidade. Boa noite, Flavia.

O homem estava me despachando. Rupert fritara como um linguado, e o inspetor sabia disso tão bem quanto eu.

Lâmpadas de flash ainda espoucavam atrás do palco de marionetes quando juntei-me novamente ao pai, na primeira fila. Felinha e Dafi não estavam visíveis em lugar nenhum.

— Mundy já as levou para casa — disse ele.

— Estarei pronta num instante — disse eu, seguindo para o banheiro. Ninguém, em lugar nenhum, em tempo algum na história, jamais impediu uma pessoa do sexo feminino de ir ao toalete.

No último instante, mudei de direção e me esgueirei para a cozinha, onde encontrei a sra. Mullet no comando. Ela tinha preparado uma enorme chaleira de chá e colocado xícaras fumegantes na frente de Nialla e do sargento Woolmer, que estavam sentados a uma pequena mesa.

Nialla me viu antes do sargento, e seus olhos brilharam, mas só por um instante, como os de um animal assustado. Ela acenou de leve com a cabeça para mim, de um jeito quase imperceptível, mas o significado era claro.

A comunicação sem fio das mulheres em ação. Esfreguei o nariz despreocupadamente, para que ela percebesse que a mensagem tinha sido recebida.

— Obrigado, srta. Gilfoyle — disse o sargento. — Você foi de grande ajuda.

Gilfoyle? Então era esse o nome de Nialla? Era a primeira vez que o ouvia.

O sargento Woolmer esvaziou sua xícara de um gole só, sem nenhum efeito maléfico.

— Um chá campeão, sra. Mullet — disse ele, fechando seu caderno. Ele juntou os papéis e, com um aceno gentil de cabeça na minha direção, voltou para o auditório.

O homem devia ter um estômago igual a uma caldeira de navio, pensei.

— Então, querida, como eu dizia — disse a sra. Mullet —, não adianta você voltar à Fazenda Culverhouse esta noite. Está chovendo canivetes já faz uma hora ou mais. O rio deve estar transbordando, não é seguro atravessá-lo. Além disso, ninguém espera que você vá dormir em uma tenda, em um campo encharcado, nessa situação, se entende o que quero dizer. Alf trouxe um guarda-chuva suficientemente grande para nós três, e estamos logo do outro lado do caminho. O quarto de Agnes lá em casa não é usado desde que ela saiu de casa para aprender taquigrafia Pitman vai fazer seis anos em 13 de novembro. Alf e eu o conservamos como uma espécie de santuário. Tem seu próprio fogareiro elétrico e um edredom de plumas de ganso. E nem diga que não, porque não vou ouvir.

Os olhos de Nialla ficaram subitamente marejados, e, juro pela minha vida, eu não soube dizer se era de tristeza ou de alegria.


Eu daria um guinéu para saber que palavras foram trocadas entre o pai e Dogger no banco de trás do táxi, mas a verdade é que adormeci. Com o aquecedor ligado no máximo para enfrentar a chuva gelada da noite e os limpadores de para-brisa fazendo seu tranquilo vaivém na escuridão, a indução ao sono foi irresistível. Nem mesmo uma coruja teria conseguido ficar acordada.

Quando o pai me acordou na porta de Buckshaw, subi cambaleando a escada e fui para a cama, cansada demais até para me despir.

Devo ter caído no sono de olhos abertos.


O SOL SE DERRAMAVA ESPLENDIDAMENTE através das minhas janelas, e os passarinhos nas castanheiras cantavam a plenos pulmões. O primeiro pensamento que me veio à cabeça foi o rosto de Rupert: os lábios ligeiramente separados, os dentes aparecendo de um modo obsceno.

Me virei de costas na cama e olhei fixamente para o teto. Sempre achei que uma tela em branco ajuda a esclarecer os pensamentos de um jeito maravilhoso; ajuda a colocá-los em foco.

Na morte, eu concluí, Rupert se parecia notavelmente com um cachorro morto no qual eu quase pisara certa vez em um campo além da Treze Patos, os olhos enevoados olhando fixamente, os colmilhos amarelados expostos em uma careta congelada. (Embora, no caso de Rupert, não houvesse moscas, e seus dentes estivessem na verdade bem apresentáveis.)

De algum modo, o cão me lembrou de alguma coisa; mas o quê?

Claro! Mutt Wilmott! A Treze Patos! Mutt Wilmott devia ter se hospedado na Treze Patos!

Se a sra. Mullet tiver dito a verdade, começara a chover logo depois do início do espetáculo da noite. Mutt estivera lá por volta de seis e quarenta, digamos, eu tinha visto com meus próprios olhos. Dificilmente ele teria partido para Londres debaixo de tamanho aguaceiro. Não, se ele planejara partir, teria feito isso antes do espetáculo. Parecia óbvio que ainda tinha negócios a acertar com Rupert.

Ergo: ele estava, nesse exato momento, comendo ovos com bacon na Treze Patos, a única hospedaria de Bishop’s Lacey.

Felizmente, eu já estava vestida.

Havia um silêncio de cripta na casa, quando desci a escadaria leste. A excitação da noite passada havia drenado a energia de todo mundo, por assim dizer, e estavam todos, imaginei, ainda roncando em seus respectivos quartos como um bando de vampiros convalescentes.

Enquanto eu me esgueirava pela porta da cozinha, contudo, subitamente me detive. Sobre o estrado de madeira ao lado da porta, enfiado entre os dois litros de leite que o entregador deixara à nossa porta de madrugada, havia um pacote.

Era de uma pustulenta cor roxa, com bordas que se projetavam em cima e embaixo. O celofane transparente em que aquilo estava embrulhado o protegera da chuva da noite. Na tampa, em letras douradas, estavam as palavras Chocolates da Madame — Seleção da Mais Alta Qualidade — 1 Kg da Escolha da Duquesa. Em volta dela, no sentido do comprimento, havia uma fita da cor de uma rosa desbotada. A etiqueta ainda estava presa, como no chapéu do Chapeleiro Maluco.

Eu já tinha visto aquela caixa. De fato, eu a tinha visto fazia apenas alguns dias, na vitrina infestada de varejeiras da confeitaria combinada com agência de correio da srta. Cool na rua principal, onde jazia mofando desde tempos imemoriais, talvez desde a guerra, ou ainda mais. E percebi imediatamente como ela tinha ido parar na porta dos fundos de Buckshaw: Ned Cropper.

Ned ganhava sete libras por semana fazendo biscates para Tully Stoker na Treze Patos e estava apaixonado, entre outras, pela minha irmã Ophelia. Embora ele tivesse acompanhado a filha de Tully, Mary, para assistir a João e o pé de feijão na noite anterior, isso não o impedira de deixar sua prova de amor da meia-noite na nossa soleira, como um gato afetuoso solta um camundongo morto aos pés do dono.

Os chocolates eram tão velhos, pensei, que era bem provável que estivessem a ponto de explodir com as incontáveis variedades de bolores interessantes, mas infelizmente não havia tempo para investigar. Voltei com relutância à cozinha e enfiei a caixa no compartimento superior da geladeira. Eu lidaria com Felinha mais tarde.


— Ned!

Enviei-lhe um sorriso e um aceno com os dedos generosamente separados, como a realeza é ensinada a fazer. Com as mangas arregaçadas e o cabelo cheio de brilhantina parecendo um monte de feno molhado, Ned estava bem no alto do telhado fortemente inclinado da Treze Patos, os calcanhares firmados contra uma chaminé, usando um pincel para espalhar piche quente generosamente sobre as telhas que pareciam estar lá desde que o rei Alfredo queimou os bolinhos.

— Desça daí! — gritei.

— Não posso, Flavia. Tem uma goteira na cozinha. Tully quer isso pronto antes que o inspetor apareça. Ele disse que estaria aqui bem cedinho e bem acordado. Tully diz que, de qualquer modo, está contando pelo menos com a parte do bem cedinho — acrescentou ele. — O que quer que isso signifique.

— Preciso falar com você — disse eu, baixando a voz para um sussurro alto de palco. — Não posso ficar berrando para o telhado.

— Você vai ter de subir. — Ele apontou para uma escada encostada na parede. — Olhe bem onde pisa.

A escada era tão velha quanto a estalagem, ou pelo menos era o que me parecia. Ela bamboleou e envergou-se enquanto eu subia, rangendo e gemendo de um jeito horrível. A escalada pareceu durar uma eternidade, e tentei não olhar para baixo.

— É sobre a noite passada, não é? — perguntou Ned quando cheguei mais perto do topo.

Dupla danação! Se eu era tão transparente que até alguém como Ned podia ver através de mim, seria melhor deixar aquilo para a polícia.

— Não — eu disse —, na verdade não é, Senhor Sabe-Tudo. Uma certa pessoa me pediu para lhe agradecer pelo adorável presente.

— É mesmo? — disse Ned, suas feições se expandindo em um clássico sorriso de idiota-da-aldeia. A Sociedade Folclórica o poria na frente de uma câmera de cinema antes que você pudesse se virar três vezes e cuspir contra o vento.

— Ela teria vindo pessoalmente, mas está aprisionada em sua torre pelo pai malvado, que a alimenta com varreduras e restos nojentos da mesa.

— Ah!— disse Ned. — Ela não me pareceu tão subalimentada ontem à noite.

Sua expressão se anuviou, como se tivesse acabado de se lembrar do que acontecera.

— Uma tristeza, aquele bonequeiro — disse. — Senti pena dele.

— Fico contente em saber disso, Ned. Ele não tinha muitos amigos no mundo, sabe. Seria simpático você expressar suas condolências ao sr. Wilmott. Alguém me disse que ele está hospedado aqui.

Era mentira, porém bem-intencionada.

— Está? Sei lá. Tudo o que sei neste momento é “Telhas! Telhas! Telhas e mais telhas!”. Até saírem cen-telhas! Não é engraçado? Ha-ha-ha!

Sacudi a cabeça e comecei a descer pela escada bamboleante.

— Olhe só você! — disse Ned. — Está coberta de piche.

— Como um telhado — disse eu, dando uma olhada nas minhas mãos imundas e no meu vestido. Ned ululava de tanto rir, e eu consegui forçar um sorriso patético.

Eu o daria de comer aos porcos alegremente.

— Isso não sai mais, sabe. Você ainda estará inteirinha borrada quando estiver velhinha.

Me perguntei onde Ned havia aprendido aquele tipo de folclore rústico. Provavelmente com Tully. Eu sabia, de fato, que Michael Faraday sintetizara tetracloroeteno nos anos 1820, aquecendo hexacloretano e extraindo o cloro por um tubo enquanto se decompunha. O solvente resultante removeria por completo o piche do tecido. Infelizmente, por mais que eu quisesse fazer isso, não tinha tempo para reproduzir o experimento de Faraday. Em vez disso, teria de me contentar com maionese, como recomendava o Vade-mécum do Mordomo e do Lacaio, com que eu topara em um dia chuvoso enquanto bisbilhotava na copa em Buckshaw.

— Talvez Mary saiba. Ela está por aqui?

Não me atrevi a entrar sem pedir licença e a fazer perguntas a Tully sobre um hóspede. Para ser perfeitamente honesta, eu tinha medo dele, muito embora seja difícil dizer por que com muita certeza.

— Mary? Ela foi levar a roupa suja para a lavanderia e depois, muito provavelmente, vai para a igreja.

Igreja! Me lambuzem com manteiga! Eu tinha esquecido da igreja. O pai ia ficar roxo de raiva!

— Obrigada, Ned — gritei, agarrando Gladys no bicicletário. — Depois eu vejo você!

— Não se eu vir você primeiro. — Ned riu e, como Papai Noel, voltou ao seu trabalho.


Como eu temia, o pai estava plantado junto à porta da frente, olhando furioso para o relógio quando cheguei derrapando.

— Desculpe! — eu disse. Ele nem se deu ao trabalho de perguntar nada.

Passei voando pela porta aberta e entrei no vestíbulo. Dafi estava sentada no meio da escada oeste com um livro aberto no colo. Felinha ainda não tinha descido.

Disparei pela escada leste acima até o meu quarto, enfiei meu vestido de domingo como uma artista transformista, esfreguei a cara com um pano e, em dois minutos pelo relógio, com exceção de um pouco de piche na ponta das tranças, eu estava pronta para as orações matinais.

Foi então que me lembrei dos chocolates. Era melhor recuperá-los antes que a sra. Mullet começasse a preparar seus abomináveis glacês de domingo. Se eu não fizesse isso, haveria um monte de perguntas insolentes para responder.

Desci pé ante pé a escada até a cozinha e espiei atrás de um canto. Alguma coisa repelente atingia o ponto de fervura na parte de trás do fogão, mas não havia ninguém à vista.

Retirei os chocolates da geladeira e já estava de volta lá em cima antes que você pudesse dizer “João e o pé de feijão”.

Quando abri a porta do laboratório, um lampejo de vidro chamou a atenção dos meus olhos; ele refletia um raio de sol caprichoso vindo da janela. Era um encantador dispositivo chamado Aparato de Kipp: uma das esplêndidas peças de vidro de laboratório vitorianas de Tar de Luce.

— Uma coisa bela é uma alegria para sempre — escrevera certa vez o poeta Keats — ou, pelo menos, foi o que Dafi me contou. Não poderia haver sombra de dúvida de que Keats escrevera o verso enquanto contemplava o Aparato de Kipp: um dispositivo usado para extrair o gás resultante de uma reação química.

Na forma, compunha-se essencialmente de duas bolas de vidro montadas uma em cima da outra, um tubo curto conectando as duas, com um tubo de vidro tamponado em forma de pescoço de ganso se projetando do globo superior e um tubo de respiro com uma válvula reguladora de vidro se projetando do inferior.

Meu plano tomou forma instantaneamente: um sinal seguro de inspiração divina. Mas eu só tinha alguns minutos para trabalhar, antes que o pai irrompesse para me arrastar escadaria abaixo.

Primeiro, tirei de uma gaveta uma das velhas navalhas do pai, que eu surrupiara para um experimento anterior. Cuidadosamente, deslizei a fita desbotada para fora da caixa de chocolates, virei-a de cabeça para baixo e fiz uma incisão cuidadosa e perfeitamente reta no celofane, acompanhando a linha onde estava a fita. Mais um corte de cada lado no fundo, e era tudo que eu precisava para o embrulho se abrir como uma ostra. Refazê-lo seria brincadeira de criança.

Isso feito, ergui cuidadosamente a tampa da caixa e espiei para dentro.

Perfeito! Os doces pareciam em perfeitas condições. Eu suspeitara que a idade poderia ter cobrado seu tributo, que ao abrir a caixa ela poderia revelar uma visão similar à que eu tive certa vez no pátio da igreja, quando o sr. Haskins, o sacristão, enquanto cavava uma nova sepultura, acidentalmente atingira outra, já ocupada.

Mas então me ocorreu que como os chocolates estavam hermeticamente selados (para não falar dos conservantes que poderiam ter sido adicionados), eles ainda podiam parecer frescos a olho nu. A sorte estava do meu lado.

Eu tinha escolhido meu método por causa de sua capacidade de transcorrer em temperaturas normais. Embora houvesse outros procedimentos que teriam resultado no mesmo produto, o que selecionei foi este: no fundo da esfera do Aparato de Kipp, medi uma quantidade de sulfeto de ferro. No bulbo superior, pinguei cuidadosamente ácido sulfúrico diluído, usando uma pipeta para me certificar de que o líquido entrava diretamente no recipiente-alvo.

Fiquei observando enquanto começava a reação no recipiente de baixo: uma adorável agitação que tem lugar sempre que algo contendo enxofre, inclusive o corpo humano, se decompõe. Quando achei que havia se completado, abri a válvula inferior e deixei o gás escapar para dentro de um frasco fechado com uma rolha de borracha.

A seguir vinha a parte de que eu mais gostava: peguei uma grande seringa revestida de latão de uma das gavetas da mesa do tio Tar (muitas vezes eu me perguntara se ele a usava para injetar em si mesmo uma solução a sete por cento de cocaína, como Sherlock Holmes), enfiei a agulha através da tampa de borracha, apertei o êmbolo e então puxei-a para cima de novo.

Eu agora tinha uma seringa carregada de gás de sulfeto de hidrogênio. Só faltava mais um passo.

Enfiando a agulha através da tampa de borracha de um tubo de ensaio, empurrei o êmbolo para baixo o mais forte que pude, com os dois polegares. Apenas catorze atmosferas seriam necessárias para precipitar o gás em líquido, e, como eu já sabia que aconteceria, funcionou na primeira vez.

Eu agora tinha um tubo de ensaio contendo sulfeto de hidrogênio perfeitamente puro em forma líquida. Tudo o que restava era puxar de volta o êmbolo e observar enquanto ele subia para dentro do vidro da seringa.

Com todo o cuidado, injetei em todos os chocolates uma ou duas gotas daquilo, tocando levemente o local da injeção com uma pipeta de vidro (previamente aquecida no bico de Bunsen) para amaciar o pequeno furo.

Eu realizara o procedimento de forma tão perfeita que apenas uma pequena aragem de ovo podre chegou a minhas narinas. Seguro dentro dos centros viscosos, o sulfeto de hidrogênio continuaria encapsulado, invisível, insuspeitado, até que Felinha...

— Flavia!

Era o pai, gritando do hall da frente.

— Já vou! — gritei. — Estarei aí em um instante!

Recoloquei a tampa da caixa e depois o invólucro de celofane, aplicando duas pinceladas rápidas de mucilagem no fundo para aderir à incisão quase invisível. E então recoloquei a fita.

Enquanto eu descia a escadaria curva com toda a calma, tentando desesperadamente parecer tranquila e recatada, encontrei a família reunida, esperando, aglomerada lá embaixo.

— Acho que isto é para você — disse eu, estendendo a caixa para Felinha. — Alguém deixou na porta.

Ela enrubesceu um pouco.

— E tenho uma confissão a fazer — acrescentei. Todos os olhos se voltaram para mim de repente: os do pai, os da tia Felicity, os de Dafi e até os de Dogger. — Me senti tentada a ficar com eles — disse eu, de olhos baixos —, mas hoje é domingo, e eu realmente estou me esforçando muito para ser uma pessoa melhor.

Com mãos ansiosas esticadas, Felinha mordeu a isca como um tubarão morde os pés de um nadador.


COM O PAI E TIA FELICITY À FRENTE, e Dogger na retaguarda usando um chapéu-coco preto, seguíamos separados, como sempre fazíamos, em fila indiana através dos campos, como patos indo para uma lagoa. A verde paisagem rural que nos envolvia parecia tão antiga e tão sossegada à luz da manhã quanto uma tela de Constable, e eu não teria ficado nem um pouco surpresa se descobrisse que nós na realidade não passávamos de figuras pequeninas ao fundo de uma de suas pinturas, como A carroça de feno ou Vale Dedham.

Era um dia perfeito. Prismas brilhantes de orvalho reluziam como diamantes na grama, muito embora eu soubesse que, à medida que o dia avançasse, eles seriam evaporados pelo sol.

Evaporados pelo sol! Não seria isso que o universo nos reservava? Chegaria o dia em que o sol explodiria como um balão vermelho, e todos na terra seriam reduzidos a carbono mais depressa que o flash de uma máquina fotográfica. Não era isso que dizia o Gênese? “Porquanto és pó e ao pó tornarás.” Isso era muito mais do que a velha e maçante teologia: era observação científica precisa! O carbono era o Grande Nivelador: o Anjo da Morte.

Diamantes nada mais são que carbono, mas carbono em uma estrutura molecular cristalina que o tornava o mais duro mineral conhecido na natureza. Era para essa direção que todos nós caminhávamos. Eu tinha certeza disso. Estávamos destinados a ser diamantes!

Como era excitante pensar que, muito depois de o mundo ter terminado, tudo o que restasse de nossos corpos seria transformado em uma deslumbrante nevasca de poeira de diamante, soprada rumo à eternidade sob a luz vermelha de um sol moribundo.

E para Rupert Porson esse processo já começara.

— Eu duvido muito, Haviland — dizia tia Felicity —, que eles sigam em frente com o serviço. Não me parece muito certo em vista do que aconteceu.

— A Igreja da Inglaterra, Lissy — replicou o pai —, como o tempo e as marés, não espera por ninguém. Além disso, o homem morreu no salão paroquial e não no recinto da igreja, por assim dizer.

— Pode ser — disse ela, dando uma fungada. — Ainda assim, vou ficar aborrecida se toda essa caminhada tiver sido à toa.

Mas o pai estava certo. Enquanto caminhávamos ao longo do muro de pedra que corria como um cinto apertado em volta do pátio atulhado da igreja, vi o capô do sedã Vauxhall azul do inspetor Hewitt aparecer discretamente no fim da rua. O inspetor mesmo não estava visível em lugar algum quando atravessamos o pórtico e entramos na igreja.

As preces matinais foram solenes como uma Grande Missa de Réquiem. Sei disso com certeza porque nós, os De Luce, somos católicos romanos. De fato, somos praticamente membros fundadores. Já vimos nosso quinhão de mesuras e reverências. Mas frequentamos com regularidade a igreja de São Tancredo, por causa de sua proximidade e porque o vigário é um dos grandes amigos do pai.

“Além disso”, como diz o pai, “é um dever que se impõe negociar com as firmas locais.”

Esta manhã, a igreja estava lotada até as vigas do telhado. Até o balcão embaixo da torre do sino transbordava de gente da aldeia que queria estar o mais perto possível, sem ser inconveniente, da cena do crime.

Nialla não estava em lugar nenhum. Percebi na hora. Nem a sra. Mullet nem Alf, o marido dela. Se eu conhecia a nossa sra. M, naquele exato momento ela devia estar bombardeando Nialla com salsichas e perguntas. Importunando e bisbilhotando, como diria Dafi.

Cynthia já estava de joelhos, na frente e no centro, rezando para quaisquer deuses que ela quisesse subornar antes do início do serviço. Ela era sempre a primeira a se ajoelhar e sempre a primeira a se pôr de pé em um salto. Eu às vezes pensava nela como a timoneira espiritual de São Tancredo.

Dessa vez, porque seria sobre alguém que eu conhecera pessoalmente, eu aguardava ansiosa pelo sermão. O vigário, eu esperava, pronunciaria alguma coisa inspirada no passamento de Rupert — de bom gosto e educativa. “No meio da vida estamos na morte”, era o meu palpite.

Mas quando por fim subiu ao púlpito, o vigário estava estranhamente contido, e não era apenas porque Cynthia corria um dedo indicador de luva branca pela estante de madeira onde estavam os hinários e o livro de rezas da Igreja anglicana. De fato, o vigário não fez nenhuma referência clara ao assunto até terminar o sermão.

— Em vista das trágicas circunstâncias da noite passada — disse ele em uma voz abafada e solene —, a polícia solicitou que o salão paroquial permaneça à sua disposição até que os trabalhos sejam encerrados. Por causa disso, o nosso costumeiro lanchinho, somente hoje, será servido no presbitério. Aqueles que desejarem estão cordialmente convidados para se juntar a nós depois do serviço. E agora, que Deus o Pai, Deus o Filho e Deus o Espírito Santo...

Simples assim! Sem pensamentos sobre “o estranho em nosso meio”, como ele havia dito quando Horace Bonepenny fora assassinado em Buckshaw. Sem reflexões sobre a imortalidade da alma... nada.

Para ser perfeitamente honesta, me senti mais do que um pouco frustrada.

Nunca é possível, pelo menos em São Tancredo, pular fora da igreja para a luz do sol como a rolha de uma garrafa. É preciso sempre parar à porta para apertar a mão do vigário e fazer algum comentário obrigatório sobre o sermão, o tempo e as colheitas.

O pai escolheu o sermão, e as duas, Dafi e Felinha, escolheram o tempo (as suínas!), com Dafi comentando a notável claridade do ar, e Felinha, a sua tepidez. Isso me deixou com poucas opções, e o vigário já estava segurando a minha mão.

— Como vai indo a Meg? — perguntei. Para dizer a verdade, eu já tinha esquecido tudo sobre Meg, a Louca, até aquele momento, e a pergunta simplesmente estalou na minha cabeça.

Teria o rosto do vigário se tornado ligeiramente pálido ou seria minha imaginação?

Ele olhou muito depressa primeiro para a esquerda, depois para a direita. Cynthia estava andando de um lado para o outro do lado de fora entre as sepulturas, já a meio caminho do presbitério.

— Infelizmente não posso contar — disse ele. — Entenda, ela estava...

— Vigário! Eu tenho um probleminha para discutir com você, você sabe!

Era Bunny Spirling. Bunny era um dos Spirling do Velho Salão Nautilus, que, como o pai observara certa vez, dera com os burros n’água por causa dos cavalos.

Como Bunny tinha um corpo parecido com a letra D maiúscula, ninguém conseguia passar por ele, e o vigário agora estava firmemente espremido entre a grande barriga de Bunny e o batente gótico da porta. Tia Felicity e Dogger, imagino, ainda estavam encurralados em algum lugar no vestíbulo, enfileirados como tripulantes de um submarino naufragado aguardando sua vez de se aproximarem da escotilha de escape.

Enquanto Bunny cuidava do seu probleminha (alguma coisa sobre o dízimo e o chocante mau estado do acolchoamento dos genuflexórios), vi minha oportunidade de escapar.

— Oh, Deus — comentei com o pai —, parece que o vigário vai se atrasar. Vou na frente até o presbitério para ver se posso ser útil com os copos e pratos.

Não existe um pai no mundo que pense em negar tal pedido a uma criança tão caridosa, e saí correndo como uma lebre.

— Bom dia! — gritei para Cynthia enquanto passava por ela voando.

Saltei por cima dos degraus e dei a volta correndo até o presbitério. A porta estava aberta, e ouvi vozes na cozinha, nos fundos da casa. O Instituto das Mulheres, concluí: muitas delas deviam ter se esgueirado mais cedo para fora, durante o serviço, para pôr a chaleira no fogo.

Fiquei parada no corredor mal iluminado, ouvindo. O tempo era curto, mas não seria bom ser pega bisbilhotando. Com uma última olhada para a extensão de linóleo marrom encerado, entrei no estúdio do vigário e fechei a porta atrás de mim.

Meg, é claro, já se fora havia muito, mas a manta com que o vigário a cobrira no dia anterior ainda jazia amarfanhada sobre o sofá de crina de cavalo, como se Meg a tivesse simplesmente jogado de lado, se levantado e saído da sala, deixando para trás (só para falar de um jeito mais delicado) um cheiro silvestre: um cheiro de folhas molhadas, terra escura e alguma coisa indicando uma higiene pessoal menos que perfeita.

Mas, antes que eu pudesse pôr a cabeça para trabalhar, a porta foi aberta bruscamente.

— O que você está fazendo aqui?

Nem é preciso dizer que era Cynthia. Ela fechou a porta matreiramente atrás de si.

— Ora, olá, sra. Richardson — eu disse. — Só entrei para ver se a Meg ainda estava aqui. Não que ela fosse ficar, é claro, mas, entenda, eu me preocupo com ela e...

Quando você não encontra palavras, use as mãos. Isso era uma evasiva que nunca me falhou no passado, e eu esperava que não falhasse agora.

Peguei a manta amarfanhada e comecei a dobrá-la. Enquanto eu fazia isso, alguma coisa caiu com um plop quase inaudível no tapete.

— Só pensei em dar uma arrumada e depois ver se poderiam me dar trabalho na cozinha. Droga! — eu disse, deixando uma ponta da manta escapar dos dedos. — Oh, desculpe, sra. Richardson. Parece que eu sou um tanto desajeitada. Nós somos tão mimadas em Buckshaw, sabe?

Desajeitadamente, estendi a manta no chão, me agachei na frente dela e comecei a dobrá-la de novo. Sob o disfarce dos seus quadrados coloridos de lã, e usando o corpo para bloquear a visão de Cynthia, corri os dedos pelo tapete.

Senti imediatamente: um objeto metálico, frio e chato. Usando o polegar, apertei-o com firmeza na palma da mão. Enquanto eu mantivesse as mãos em movimento, tudo daria certo. Era assim que funcionavam os truques de prestidigitação dos mágicos. Eu sempre poderia enfiar aquilo no bolso depois.

— Vamos, me dê isso — disse Cynthia.

Entrei em pânico! Ela conseguira me pegar, afinal.

Assim que ela entrou na sala, comecei a me agitar freneticamente, esperneando e jogando os cotovelos para cima como chuços.

— Oh! — disse eu. — Esta manta está me dando coceira no corpo inteiro. Eu tenho uma tremenda alergia a lã.

Comecei a me coçar furiosamente: nos braços, nas costas das mãos, nas panturrilhas... em qualquer lugar, desde que não deixasse as mãos parar.

Quando cheguei ao pescoço, enfiei a mão pela parte de cima do vestido e deixei cair o objeto que segurava. Senti que ele caía lá dentro e parava na cintura.

— Me dê isso — repetiu ela, arrancando a manta das minhas mãos.

Dei um suspiro de alívio quando percebi que ela não conseguira ver o que eu tinha pego. Era a manta que ela queria, e a entreguei alegremente, dando em mim mesma mais algumas coçadas de cachorro só por garantia.

— Vou ajudar na cozinha — eu disse, indo em direção à porta.

— Flavia — disse Cynthia, plantando-se na frente da porta e agarrando meu pulso em um único e rápido movimento.

Olhei para os seus olhos azuis pálidos e aguados, mas eles não vacilaram.

Naquele instante, porém, ouviram-se risadas do lado de fora, com a chegada dos primeiros paroquianos à igreja.

— Se existe uma coisa em que nós, as meninas De Luce, somos muito boas — eu disse, abrindo um sorriso na cara dela enquanto escapava para a porta —, é fazer chá!

Minha intenção de fazer chá era a mesma que me candidatar a burrico de mina de carvão.

Ainda assim, segui em linha reta corredor abaixo até a cozinha.

— Bom dia, sra. Roberts! Bom dia, srta. Roper! Vim só conferir se vocês têm xícaras e pires suficientes.

— Temos à vontade, obrigada, Flavia querida — disse a sra. Roberts. Ela fazia aquilo desde o princípio dos tempos.

— Mas você pode pôr os ovos na parte de baixo da geladeira quando sair — sugeriu a srta. Roper. — A mulher dos ovos deve tê-los deixado no balcão da cozinha ontem. Nada dura muito com esse tempo, pelo menos não como antigamente. E enquanto você faz isso, querida, pode encher a jarra de limonada. O sr. Sterling gosta de um bom copo de limonada depois da igreja. Ele é sempre muito generoso quando passamos a bandeja de coleta, e nós não queremos que ele nos ponha na sua lista negra, queremos?

Antes que elas pudessem inventar mais uma tarefa, escapei com ares de ocupada pela porta da cozinha. Mais tarde, quando elas tivessem um momento para isto (quando estivessem lavando os pratos, talvez), a sra. Roberts e a srta. Roper comentariam uma com a outra que boa menina eu era, e como era diferente das minhas irmãs.

Do lado de fora, no pátio da igreja, o pai ainda estava plantado no caminho de pedras, ouvindo pacientemente Bunny Spirling lhe contar, palavra por palavra, o que ele acabara de dizer ao vigário. O pai balançava a cabeça de vez em quando, provavelmente para impedir que seu pescoço adormecesse.

Saí do caminho para a grama, fingindo inspecionar a inscrição de uma lápide desgastada pelo tempo que se projetava para cima como o dente amarelado de uma gengiva verde (Hezekiah Huff 1672-1746, em Paz no Paraíso). Voltando as costas para os retardatários mexeriqueiros, extraí o objeto metálico que eu deixara cair na frente do meu vestido: era, como eu sabia que seria, o estojo esmaltado de pó compacto cor de laranja em forma de borboleta de Nialla. Estava aninhado na palma da minha mão, reluzindo suavemente à luz morna do sol. Meg devia ter deixado cair enquanto dormia no sofá do estúdio do vigário.

Eu o devolveria a Nialla mais tarde, pensei, enfiando-o no bolso. Ela ficaria feliz de tê-lo de volta.

Quando me reuni com a família, vi que Dafi estava encarapitada no muro de pedra na frente do pátio da igreja, com o nariz enfiado em A anatomia da melancolia, de Robert Burton, seu último grande entusiasmo. Como ela conseguira entrar e sair da igreja com um volume tão gordo, eu não podia nem começar a imaginar, até que cheguei suficientemente perto para ver a cruz de papel de alumínio belamente confeccionada que ela colara na capa preta. Oh, que trapaceira ela era! Muito bem, Dafi!

Felinha gargalhava embaixo de um carvalho, deixando o cabelo cair para a frente e encobrir o rosto, como ela faz quando quer parecer Veronica Lake. Desfrutando sua atenção e vestindo um terno rústico de lã, estava Dieter Schrantz, e me dei conta, não sem uma sensação meio melancólica, de que ele estava totalmente sob o domínio de Felinha, fascinado com cada palavra que ela pronunciava, como uma bola na ponta de um elástico, balançando a cabeça como um pica-pau demente e sorrindo como um idiota.

Eles nem repararam no meu olhar enojado.

Tia Felicity conversava com uma pessoa idosa, que usava um aparelho auditivo. Parecia, a julgar pela conversa delas, que eram velhas amigas.

— Mas não se deve arquear as costas e cuspir! — dizia a velha senhora, encurvando os dedos de unhas vermelhas em garra, com o que as duas gargalharam de modo obsceno.

Dogger, nesse meio-tempo, ficou pacientemente sentado em um banco embaixo de um teixo, de olhos fechados, com um leve sorriso nos lábios e o rosto virado para cima, para o sol de verão, parecendo ao mundo uma dessas esculturas modernas de bronze que chamam de Domingo.

Ninguém prestou a menor atenção em mim. Eu estava por minha conta.


As portas duplas no pórtico do salão paroquial estavam bloqueadas por uma corda, na qual se via pendurado um aviso: Cena do crime: não ultrapasse.

Eu não ultrapassei: dei a volta pelos fundos do edifício e entrei por uma das saídas.

Estava totalmente escuro lá dentro. No fim do corredor, eu sabia, havia uma porta que dava para o auditório. Alguns degraus à minha direita levavam ao palco.

Pude ouvir o ruído surdo de vozes masculinas e, por mais que forçasse os ouvidos, não consegui distinguir o que diziam. As cortinas de veludo preto que cercavam o palco deviam estar abafando as palavras.

Incapaz de extrair qualquer significado daquele murmúrio, e como não queria correr o risco de ser pega bisbilhotando, subi espalhafatosamente a escada.

— Olá! — gritei. — Alguém quer um chá?

O inspetor Hewitt estava plantado no meio de uma ilha de luz, conversando com os sargentos Woolmer e Graves. Ao me avistar, ele se calou imediatamente e veio marchando pelo palco, por trás do teatro de marionetes.

— Você não devia estar aqui. Não viu os avisos?

— Desculpe — eu disse sem responder à pergunta. — Entrei pelos fundos.

— Não há avisos nos fundos, sargento? — perguntou o inspetor a Graves.

— Desculpe, senhor — disse ele. — A culpa é toda minha.

— Bem — prosseguiu o inspetor —, já que estamos quase no fim, não é um desastre total. Mas lembre-se disso na próxima vez.

— Sim, senhor.

— Então — disse o inspetor voltando-se para mim —, o que você está fazendo por aqui? E não me venha com nenhuma conversa-fiada sobre chá.

Eu aprendera, por experiências passadas, que o melhor era ser franca com o inspetor, pelo menos respondendo a perguntas diretas. Sempre é possível ser útil, lembrei a mim mesma, sem confessar tudo.

— Eu estava tomando nota de alguns pontos.

Na verdade eu não tinha anotado nada, mas agora, pensando nisso, me dei conta de que era uma boa ideia. Cuidaria disso à noite.

— Tomando notas? Por que diabos você faria isso?

Como não consegui pensar em nada para dizer, eu não disse nada. Não poderia falar ao homem que Dogger achava que se tratava de um assassinato.

— Agora, infelizmente, vou ter de pedir a você que vá embora, Flavia.

Enquanto ele falava, olhei em volta desesperadamente, procurando alguma coisa (qualquer coisa!) em que me agarrar.

E de repente eu vi. Quase gritei de alegria. Meu coração disparou dentro de mim, e eu mal conseguia enxergar de tanto rir quando falei.

— Edgar Allan Poe! — eu disse alto. — A carta roubada.

O inspetor me encarou como se eu tivesse enlouquecido.

— Você conhece a história, inspetor? — perguntei. Dafi a lera em voz alta para nós na véspera do Natal.

— Todo mundo conhece, não é? — disse ele. — E agora, por favor, faça o favor de...

— Então você se lembra de onde a carta estava escondida: em cima da lareira, bem à vista, pendurada em uma fita azul suja.

— É claro — disse ele com um sorriso leve e indulgente.

Eu apontei para o corrimão de madeira do palco dos bonecos, que não estava mais de trinta centímetros acima de sua cabeça.

— A energia elétrica foi desligada? — perguntei.

— Nós não somos idiotas, Flavia.

— Então — eu disse, estendendo a mão para cima e quase encostando na coisa, —, talvez devamos dizer ao vigário que encontramos o prendedor de calça para bicicleta que ele perdeu.


NO COMEÇO FOI DIFÍCIL ENXERGÁ-LO. Metal preto sobre madeira pintada de preto, era quase invisível. Se não fosse pelo carbono salpicado, eu não teria reparado nele.

Preto sobre preto sobre preto. Eu estava orgulhosa de mim.

O prendedor de calça estava enfiado em um suporte de madeira, como se o suporte fosse um tornozelo. Embaixo dele corria uma extensão de cabo elétrico flexível, que se conectava com uma fileira de interruptores acima do palco para acionar as luzes coloridas da ribalta abaixo. Mesmo onde eu estava, vi o brilho do fio de cobre no lugar onde o isolamento do cabo fora removido.

— Meu bom Deus! — disse o inspetor. — O que a faz pensar que isso pertence ao vigário?

— Várias coisas — eu disse, contando-as nos dedos. — Em primeiro lugar, eu o ouvi dizer na quinta-feira à tarde que tinha perdido seu prendedor. Em segundo lugar, sei com certeza que o prendedor não estava aqui ontem à tarde antes do espetáculo. Rupert me deixou dar uma boa olhada aqui em volta um pouco antes da matinê. E, por último, o prendedor tem as iniciais do vigário gravadas. Olhe aqui: se você apertar os olhos um pouco e olhar aqui do lado, vai conseguir enxergá-las: D.R.: Denwyn Richardson. Cynthia as escreveu com uma agulha, porque ele está sempre perdendo as coisas.

— E você tem certeza absoluta de que o prendedor não estava aqui no sábado à tarde?

— Positivo. Eu estava me segurando exatamente aqui neste ponto do corrimão quando Rupert me levou para a ponte lá em cima, para me mostrar como Galligantus funcionava.

— Como foi que você disse? — A expressão do inspetor era de perplexidade.

— Galligantus. É o nome do gigante de João e o pé de feijão. Eu vou lhe mostrar. Algum problema em subirmos lá? — perguntei, apontando para a ponte.

— É extremamente irregular, mas vá em frente.

Subi pela escada até a passarela atrás do palco de marionetes, com o inspetor nos meus calcanhares.

Galligantus ainda estava firme em sua posição.

— No terceiro ato, quando João está desferindo machadadas no pé de feijão, Rupert puxa esta alavanca de ferro, que libera Galligantus. Ele é movido por uma mola, entende?

Houve um longo silêncio. Então o inspetor sacou seu caderninho e desatarraxou a tampa de sua esferográfica.

— Muito bem, Flavia — disse com um suspiro —, conte-me mais.

— Quando João derruba o pé de feijão, o gigante deveria despencar do céu. Mas ele não despencou, é claro... Em vez disso, foi Rupert quem despencou.

— Portanto, Rupert não poderia ter acionado a alavanca. É isso que você está querendo dizer?

— Exatamente! Se ele a tivesse acionado, Galligantus teria sido liberado. Mas ele não foi, é claro, porque o prendedor de calça do vigário estava enfiado na parte inferior da alavanca. Preto sobre preto. Rupert não deve ter reparado.

— Meu bom Deus! — exclamou o inspetor, dando-se conta do que eu estava dizendo. — Então não foi...

— Um trágico acidente? Não, inspetor. Eu não diria isso.

Ele deixou escapar um assobio baixo.

— Está vendo isto? Alguém cortou o isolamento deste cabo — eu prossegui —, deixando o fio nu, depois enfiou o prendedor de calça por cima para esconder. A outra ponta do prendedor está presa à parte de baixo da alavanca de Galligantus.

— Formando uma conexão elétrica — disse ele. — Um curto-circuito deliberado.

— Isso mesmo — eu disse. — Olhe, dá para ver o depósito de carbono onde a corrente formou um arco voltaico. Está vendo como a madeira embaixo está um pouco chamuscada?

O inspetor Hewitt inclinou-se para ver mais de perto, mas não disse nada.

— Me parece — acrescentei — que o prendedor de calça não poderia ter sido colocado ali até algum tempo depois da primeira apresentação. Se não fosse assim, Galligantus não poderia ter caído.

— Flavia — disse o inspetor —, você precisa me prometer que não vai discutir isso com mais ninguém. Nem uma palavra. Entendeu?

Olhei firme para ele por um momento, como se aquele mero pensamento fosse altamente ofensivo.

— Ele foi eletrocutado, não foi? — perguntei.

O inspetor assentiu.

— O dr. Darby acha muito provável. Teremos os resultados da autópsia ainda hoje, mais tarde.

Teremos os resultados da autópsia? O inspetor estaria me incluindo? Estaria contando comigo como parte da sua equipe? Eu precisava escolher as palavras com cuidado.

— Os meus lábios estão selados — eu disse. — Juro pela minha vida e...

— Obrigado, Flavia — disse ele com firmeza. — Uma simples promessa é o bastante. Agora vá embora e deixe-me continuar com isto.

Vá embora? Que audácia descomunal! Que rematado atrevimento!

Receio ter soltado um ruído pouco gentil ao sair.


Como eu suspeitava, Felinha ainda flertava com Dieter embaixo dos carvalhos.

O pai estava perto da porta da igreja, com a expressão perplexa de um homem que tinha corrido para ajudar alguém que inadvertidamente entrara na jaula de um tigre, mas que agora não conseguia se decidir muito bem sobre qual dos ocupantes da jaula precisava ser salvo do outro.

— Felinha — chamou ele afinal. — Não devemos deixar a sra. Mullet esperando.

Meu estômago se revoltou instantaneamente. Era domingo, dia em que éramos alimentados à força, como gansos de Estrasburgo, com algum dos experimentos culinários fracassados da sra. Mullet, tal como fígado de javali recheado, trazido inteiro à mesa, simulando um Falso Pão Doce de Denbighshire.

— Pai — disse Felinha pegando o touro à unha —, eu gostaria de lhe apresentar Dieter Schrantz.

O pai, é claro, como todo mundo em Bishop’s Lacey, tinha conhecimento de que havia prisioneiros alemães trabalhando nas vizinhanças. Mas até aquele momento ele nunca fora colocado na posição de ter de conversar com alguém a quem ele sempre se referia em casa, na sala de estar de Buckshaw, como O Inimigo.

Ele estendeu a mão.

— É um prazer conhecê-lo, senhor — disse Dieter, e vi que o pai se surpreendeu muito com o inglês perfeito de Dieter. Mas antes que ele pudesse responder, Felinha partiu para o segundo assalto.

— Convidei Dieter para o chá — disse —, e ele aceitou.

— Desde que o senhor concorde, é claro — acrescentou Dieter.

O pai pareceu desconcertado. Tirou os óculos do bolso do colete e começou a limpá-los com o lenço. Por sorte, tia Felicity chegou a tempo de intervir.

— É claro que ele concorda! — disse ela. — Haviland nunca foi homem de guardar rancores, não é, Havi?

Como se estivesse sonhando, o pai olhou em volta e comentou, para ninguém em particular:

— Interessante, este tempo.

Me aproveitei imediatamente de sua confusão momentânea.

— Vão andando sem mim — eu disse —, só quero dar um pulo lá dentro e me certificar de que Nialla esteja bem. Depois vou direto para casa.

E ninguém ergueu um dedo para me impedir.


O chalé da sra. Mullet se aninhava no fim da Alameda dos Sapateiros, um caminho estreito e poeirento que saía do sul da rua principal e terminava em uma escadaria. Era um lugarzinho aconchegante com malvas-rosa e um gato ruivo cochilando ao sol. Seu marido, Alf, estava sentado em um banco no pátio, esculpindo um apito de salgueiro.

— Bem, bem — disse ele quando me viu no portão —, a que devemos este tão prodigioso e imenso prazer?

— Bom dia, sr. Mullet — disse eu, assumindo sem esforço a minha melhor voz de educação refinada. — Espero que esteja passando bem.

— Razoavelmente... razoavelmente para os meus problemas de digestão — disse ele. — Às vezes sinto um chute, como o de um canguru. Ou então uma queimação como o incêndio de Roma.

— Lamento ouvir isso — disse eu, honesta em cada palavra. — Nós, os De Luce, não somos os únicos sujeitos às preparações culinárias da sra. Mullet.

— Pegue — disse Alf, estendendo-me o apito de madeira. — Dê uma soprada. Veja se consegue pegar um elfo.

Peguei o pedaço delgado de madeira e levei-o aos lábios.

— É melhor não — disse eu. — Não quero acordar Nialla.

— Ah! — fez ele. — Não tenha medo disso. Ela já se foi antes de o sol raiar.

— Ela foi embora?

Eu fiquei atônita. Como ela podia ter ido embora?

— Para onde? — perguntei.

— Só Deus sabe — disse ele, encolhendo os ombros. — De volta à Fazenda Culverhouse, talvez. Ou talvez não. É tudo o que sei. E agora dê uma apitada.

Soprei o apito, produzindo um lamento agudo, estridente, penetrante.

— Som de bruxos — disse eu, entregando-o de volta.

— Fique com ele — disse Alf. — Fiz para você. Achei que estaria por aqui em breve.

— Bacana! — disse eu, pois sabia que era isso que ele esperava de mim.


Enquanto caminhava de volta a Buckshaw para o almoço, pensei em como a minha vida se parecia com a daqueles fervilhantes clérigos das novelas de Anthony Trollope, que davam a impressão de passar os dias indo apressados da clausura para o presbitério e da aldeia para o palácio do bispo, como besouros mecânicos pretos se agitando de um lado para o outro em um labirinto verde. Eu mergulhara em O guardião durante dois dos nossos períodos de leitura compulsórios nas tardes de domingo, e algumas semanas depois complementei folheando trechos de As torres de Barchester.

Admito que, como não havia ninguém da minha faixa etária nos seus escritos, não me importei muito com Trollope. A maioria dos seus clérigos fossilizados, por exemplo, me fez ter vontade de vomitar as minhas salsichas. O personagem com o qual mais me identifiquei foi a sra. Proudie, a mulher tirana do bispo assustadiço que sabia o que queria e, na maioria das vezes, sabia como conseguir. Se a sra. Proudie entendesse de venenos, poderia ter se tornado meu personagem favorito da literatura.

Embora Trollope não tivesse mencionado isso, na minha cabeça não havia dúvida de que a sra. Proudie fora criada em um lar com duas irmãs mais velhas que a tratavam como lixo.

Por que Ophelia e Daphne me desprezavam tanto? Seria porque Harriet me odiava, como elas alegavam? Teria ela, sofrendo de depressão pós-parto, pulado para o nada de uma montanha no Tibete?

Resumindo, este era o problema: será que eu a tinha matado?

Será que o pai me responsabilizava por sua morte?

De algum modo, o dia perdera seu brilho enquanto eu me arrastava mal-humorada pelo caminho. Até mesmo o pensamento do assassinato de Rupert e suas consequências complicadas me animaram muito pouco.

Dei umas duas sopradas no apito de salgueiro, mas elas soaram como um filhote de cuco caído do ninho, chorando cheio de angústia pela mamãe. Enfiei aquilo no fundo do bolso e segui penosamente em frente.

Eu precisava de algum tempo a sós. Algum tempo para pensar.


Vista dos Portões Mulford, Buckshaw sempre teve um ar um tanto triste e abandonado, como se alguma essência vital estivesse faltando. Mas agora, enquanto eu caminhava entre as castanheiras, alguma coisa estava diferente. Vi imediatamente o que era. Várias pessoas em pé na curva de pedregulhos no pátio de acesso, e uma delas era o pai, apontando para o telhado. Comecei a correr, disparando através do gramado como uma velocista, o peito para fora, os punhos se alternando como pistões do meu lado.

Eu não precisava ter me preocupado. Quando me aproximei, vi que eram apenas tia Felicity e Dafi, as duas de um lado do pai, com Felinha do outro.

À direita dela estava Dieter. Eu não acreditava no que via!

Os olhos de Felinha faiscavam, seu cabelo luzia ao sol de verão e seu sorriso era deslumbrantemente perfeito. Com sua saia cinzenta, conjunto de suéter amarelo-canário e um colar de Harriet de pérolas cultivadas de uma única volta no pescoço, ela estava mais que vibrante... estava linda. Eu poderia tê-la estrangulado.

— Ruskin achava as goteiras quadradas abomináveis — dizia o pai —, mas ele estava sendo irônico, é claro. Mesmo o nosso melhor arenito inglês não é senão um pálido arremedo do mármore de textura fina que se encontra na Grécia.

— É verdade, senhor — concordou Dieter. — Porém, não era o seu Charles Dickens que achava que os gregos usavam mármore unicamente por causa do modo como ele aceitava pintura e cores? Ainda assim, o estilo e o material nada significam quando a goteira é colocada embaixo de um pórtico. É uma piada do arquiteto, não é?

O pai refletiu por um momento, esfregando as mãos atrás das costas enquanto olhava fixamente para a fachada da casa.

— Por Deus! — disse afinal. — Você pode ter descoberto alguma coisa.

— Ah, Flavia! — disse tia Felicity quando me avistou. — Pense no Diabo e ele aparece. Mais tarde eu gostaria de pintar, e você vai ser a minha assistente. O trabalho com os pincéis me apraz, mas eu simplesmente não suporto as bisnagas grudentas e os trapos sujos.

Dafi revirou os olhos e foi se afastando lentamente da sua velha tia louca, temendo, eu acho, ser posta para trabalhar também. Me abrandei o suficiente para fazer-lhe uma pergunta. Há momentos em que a curiosidade prevalece até sobre o orgulho.

— O que ele está fazendo aqui? — sussurrei ao ouvido dela, fazendo um ligeiro movimento de cabeça na direção de Dieter.

É claro que eu já sabia, mas aquela era uma rara oportunidade de conversar de irmã para irmã sem rancor.

— Tia Felicity insistiu. Disse que ele deveria nos acompanhar até em casa e ficar para o chá. Acho que ela está de olho nele — acrescentou com uma risadinha áspera.

Embora eu esteja bastante acostumada com os excessos de Dafi, devo admitir que fiquei chocada.

— Para a Felinha — explicou ela.

Claro! Não admira que o pai estivesse exercitando seu charme enferrujado! Uma filha a menos significaria a redução de um terço no número de bocas excedentes que ele tinha de alimentar. Não que Felinha comesse tanto assim, ela não comia, mas aliada à redução na dose de insolência cotidiana que ele teria, passá-la ardilosamente a Dieter bem que valeria o esforço.

E também, pensei, seria o fim das vastas despesas com a reprateação constante dos espelhos de Buckshaw. Felinha era um verdadeiro inferno para os espelhos.

— E o seu pai... — dizia o pai para Dieter.

Eu sabia! Ele já estava preparando o terreno!

— ... acredito que você disse algo sobre livros?

— Ele é um editor — disse Dieter. — É o Schrantz, de Schrantz e Markel. O senhor pode não ter ouvido falar deles, mas publicam em alemão edições de...

— É claro! A Luxus Ausgaben Schrantz und Markel. O Plínio deles, aquele com as pranchas de Dürer... é realmente notável.

— Vamos, Flavia — disse tia Felicity. — Você sabe como é cansativo pintar tijolos na sombra.


A distância, eu devia estar parecendo um galeão naufragando, com o cavalete de tia Felicity por cima do ombro, uma tela esticada embaixo de cada braço e uma caixa de tintas e pincéis em cada mão, vadeando descalça nas águas rasas do lago ornamental em direção à ilha na qual se situava a folly. Tia Felicity vinha logo atrás, carregando um banquinho de três pernas. Em seu conjunto de tweed, chapéu mole e guarda-pó, ela me lembrava as fotos que eu tinha visto na Country Life, de Winston Churchill espalhando suas tintas na tela em Chartwell. Só faltava o charuto.

— Há séculos eu queria reproduzir a fachada sul como era nos tempos do querido tio Tar — bradou ela, como se eu estivesse do outro lado do mundo.


— E agora, querida — disse tia Felicity depois que eu finalmente montei o equipamento de pintura a seu gosto —, chegou a hora de uma conversinha discreta. Aqui fora, pelo menos, ninguém nos ouvirá, a não ser as abelhas e os ratos-d’água.

Olhei para ela, atônita.

— Imagino que você pense que eu não sei nada sobre o tipo de vida que você leva.

Era o tipo de afirmação em relação à qual eu aprendera a ser excepcionalmente cautelosa: suas implicações eram imensas, e até ver em que direção os ventos conversacionais levavam, eu sabia que o melhor era ficar calada.

— Por outro lado — prosseguiu ela —, sei muito do que você deve sentir: a sua solidão, o seu isolamento, as suas irmãs mais velhas, o seu pai preocupado...

Eu estava a ponto de dizer que ela devia estar enganada, quando de repente percebi que a conversa poderia ser proveitosa para mim.

— Sim — eu disse, olhando ao longe por cima da água e piscando, como que para conter uma lágrima —, às vezes pode ser difícil.

— É exatamente o que sua mãe costumava dizer sobre a vida em Buckshaw. Lembro-me dela vindo para cá aos domingos, quando era uma menina, como eu antes dela.

Visualizar a tia Felicity como uma menina não era uma tarefa fácil.

— Oh, não fique tão chocada, Flavia. Na minha juventude, eu costumava correr livre por esta ilha como uma princesa indígena americana. “Mu-nu-tonowa” foi o nome que eu me dei. Surrupiava deliciosos pedacinhos de carne da despensa e fazia de conta que estava assando um cachorro em uma fogueira acesa com pauzinhos, e coisas assim.

“Mais tarde, apesar da nossa grande diferença de idade, Harriet e eu sempre fomos grandes companheiras. ‘As proscritas desprezadas’, era como nos intitulávamos. Vínhamos para cá, para esta ilha, conversar. Uma vez, quando estávamos sem nos ver fazia muito tempo, nos sentamos a noite inteira na folly, enroladas em cobertores, tagarelando até o sol nascer. O tio Tar mandou Pierrepoint, o mordomo, nos trazer biscoitos Plasmon e mocotó de pé-de-bezerro. Ele tinha nos visto das janelas do seu laboratório, entende, e...”

— E como era ela? — interrompi. — Harriet, quero dizer.

Tia Felicity deu uma pincelada escura em sua tela que, imaginei, supostamente representava o tronco de uma das castanheiras.

— Era exatamente como você — respondeu ela. — Como você bem sabe.

Engoli em seco. — Era mesmo?

— É claro que era! Como é possível que você não soubesse disso?

Eu poderia ter enchido os ouvidos dela com as histórias horríveis que Felinha e Dafi me contaram, mas preferi não fazer isso. Em boca fechada não entram moscas.

Dogger me dissera isso certa vez, quando lhe fiz uma pergunta um tanto pessoal sobre o pai. “Em boca fechada não entram moscas”, ele respondera, voltando aos seus potes de flores, e não tive coragem de perguntar quais de nós três éramos os mudos e quais eram as moscas.

Então murmurei alguma coisa pouco satisfatória, e agora me vi fazendo isso de novo.

— Céus, minha criança! Se você quer ver a sua mãe, não precisa fazer mais do que se olhar no espelho. Se você quer saber sobre o caráter dela, olhe para dentro de si mesma. Você é tão parecida com ela que me deixa nervosa.

Muito bem, então.

— O tio Tar costumava nos convidar para Buckshaw no verão — prosseguiu ela, sem perceber, ou preferindo ignorar, a minha cara vermelha.

“Ele tinha uma extraordinária teoria de que a presença de mulheres jovens na casa a mantinha unida segundo alguma obscura praxe química; alguma coisa sobre ligas e o insuspeitado gênero duplo da molécula de carbono. Louco como a Lebre de Março, Tar de Luce não passava de um velho cavalheiro, apesar de tudo. Harriet, é claro, era a sua favorita; talvez porque ela jamais se cansava de sentar-se em um banquinho alto naquele laboratório malcheiroso, tomando notas enquanto ele as ditava. ‘Minha fantástica assistente’, ele costumava chamá-la. Era uma piada entre os dois. Harriet me contou certa vez que ele se referiu a um experimento espetacular que não tinha dado certo e que poderia ter apagado Buckshaw do mapa... para não falar de Bishop’s Lacey e redondezas. Mas ela me fez jurar que ficaria calada. Nem sei por que estou contando isso a você.”

— Ele estava investigando a decomposição de primeira ordem do pentóxido de hidrogênio — eu disse. — Foi um trabalho que levou ao desenvolvimento da bomba atômica. Entre os papéis dele, havia algumas cartas do professor Arrhenius, de Estocolmo, que deixavam muito claro o que eles pretendiam.

— E sobrou você, por assim dizer, para carregar a tocha.

— Como?

— Para levar adiante o glorioso nome dos De Luce — disse ela —, aonde quer que isso a leve.

Era um pensamento interessante; nunca me ocorrera que o nome de alguém pudesse ser uma bússola.

— E onde poderia ser isso? — perguntei, um pouco maliciosa.

— Você precisa dar ouvidos a sua inspiração. Precisa deixar que a sua visão interior seja o seu guia.

— Eu tento — disse eu. Devo ter soado à tia Felicity como a idiota da aldeia.

— Eu sei que você tenta, querida. Já ouvi diversos relatos dos seus feitos. Por exemplo, houve aquela história horrível com Bunpenny, ou qualquer que seja o nome dele.

— Bonepenny — eu disse. — Horace. Ele morreu bem ali.

Apontei para o outro lado do lago, para o muro da horta da cozinha.

Apesar disso, tia Felicity seguiu em frente.

— Você nunca deve se curvar ao desagradável. Quero que se lembre disso. Embora possa não ser visível aos outros, a sua obrigação se tornará clara como uma linha branca pintada no meio da estrada. Você deve segui-la, Flavia.

— Mesmo se ela levar ao homicídio? — perguntei, subitamente atrevida.

Com o pincel estendido em toda a extensão do braço, ela pintou a sombra escura de uma árvore.

— Mesmo se levar ao homicídio.

Ficamos sentadas por alguns momentos em silêncio, tia Felicity dando suas pinceladas sem nenhum resultado particularmente empolgante, e então ela falou de novo:

— Se você não se lembrar de mais nada, lembre-se disto: a inspiração de fora do próprio ser é como o calor de um forno. Ele pode fazer pãezinhos de Bath aceitáveis. Mas a inspiração dele é como um vulcão: muda a face do mundo.

Tive vontade de jogar os braços em volta daquela velhota toda suja em sua fantasia de George Bernard Shaw e abraçá-la até espremer todo o suco para fora. Mas não fiz isso. Eu não podia.

Eu era uma De Luce.

— Obrigada, tia Felicity — disse eu, pondo-me de pé. — Você é uma fortaleza.


ESTÁVAMOS NA BIBLIOTECA TOMANDO CHÁ. A sra. Mullet tinha entrado e saído, deixando para trás uma vasta bandeja de bolo jenny lind e bolinhos de groselha. À minha pergunta sussurrada sobre Nialla, ela respondeu com um encolher de ombros e franziu a testa para me lembrar que estava de serviço.

Felinha estava ao piano. Não demorou mais de três minutos para Dieter perguntar polidamente quem de nós tocava, e Felinha respondera com seus enrubescimentos. Agora, depois de suficientemente lisonjeada e das súplicas, ela estava apenas começando o segundo movimento da sonata Patética, de Beethoven.

Era uma peça adorável, e, enquanto a música se desvanecia e subia de novo, como anseios do coração, me lembrei que era a música que Laurie Laurence tocara em Mulherzinhas, quando Jo, que rejeitou sua proposta, se afastou andando do lado de fora de sua janela, e me perguntei se Felinha a teria escolhido no subconsciente.

Sonhador, o pai dava batidinhas leves com o indicador na beirada de seu pires, o qual trazia belamente equilibrado nas mãos. Havia momentos em que, sem nenhuma razão aparente, eu sentia um enorme vagalhão de amor, ou pelo menos de respeito, por ele, e aquele foi um desses momentos.

No canto, Dafi estava enrodilhada como um gato em uma poltrona, ainda nas garras de A anatomia da melancolia, e tia Felicity sentava-se muito satisfeita perto da janela, fazendo alguma coisa intrincada com um par de agulhas e uma bola de lã amarelo-enxofre.

De repente notei que Dieter estava mordendo o canto do lábio e que havia um brilho no canto de seu olho. Ele estava quase em lágrimas, e tentando não demonstrar.

Que crueldade daquela bruxa Felinha, escolher uma coisa tão triste e tão evocativa: uma melodia de Beethoven que só poderia servir como um amargo lembrete para o nosso convidado alemão da terra natal que ele deixara para trás.

Mas naquele instante Felinha interrompeu-se bruscamente e ergueu-se do teclado em um salto.

— Oh! — ofegou ela. — Eu lamento tanto! Não tinha a intenção de...

E vi que, talvez pela primeira vez na vida, ela estava genuinamente aflita. Ela correu para o lado de Dieter e estendeu seu lenço. E, para o eterno crédito dele, Dieter o aceitou.

— Não. Sou eu que devo lamentar — disse ele, enxugando os olhos. — É só que...

— Dieter — eu senti minha boca despejar de repente —, conte-nos como você se tornou um prisioneiro de guerra. Eu estava simplesmente morrendo de vontade de perguntar. Eu gosto demais de história, você sabe.

Dava para ouvir um alfinete caindo na Antártida.

— Flavia! — o pai conseguiu dizer enfim, porém somente quando já era tarde demais para ter o efeito que ele pretendia.

Mas Dieter já sorria. Pareceu estar aliviado por ter superado o abatimento.

— Mas é claro! — disse ele. — Há cinco anos estou esperando que alguém me pergunte, mas nunca ninguém perguntou. Vocês ingleses são cavalheiros tão perfeitos, até mesmo as damas!

Tia Felicity lançou-lhe um olhar radiante de aprovação.

— Porém — acrescentou Dieter —, devo avisá-los de que é uma longa história. Vocês têm certeza de que querem ouvir?

Dafi fechou o livro e colocou-o de lado.

— Adoro longas histórias — disse ela. — De fato, quanto mais longas, melhor.

Dieter posicionou-se no tapete na frente da lareira, o cotovelo sobre o consolo. Quase dava para imaginá-lo em uma cabana de caça na Floresta Negra.

— Bem — disse ele —, acho que se poderia dizer com segurança que fui abatido na Inglaterra por causa das irmãs Brontë.

Abatido? Isso era uma novidade! Fiquei inquieta de curiosidade.

Os olhos de Dafi ficaram instantaneamente parecidos com maçanetas de porcelana, e até o pai se endireitou na cadeira.

— Meu bom Deus! — murmurou ele.

— Eu fui muito mimado quando menino — começou Dieter — e tenho de admitir isso. Fui o único filho de uma família abastada, criado por uma Kinderpflegerin, uma governanta de crianças pequenas.

“Meu pai, como eu já disse, era um editor, e minha mãe, uma arqueóloga. Embora eles me amassem muito, suponho, estavam ambos tão envolvidos em seu próprio mundo que tudo o que dizia respeito “ao menino” foi deixado para Drusilla. Esse era o nome da governanta, Drusilla.

“Drusilla era uma grande leitora de romances ingleses. Ela consumia livros como uma baleia come krill. Nunca era vista sem um livro nas mãos. De fato, ela me ensinou a ler enquanto eu ainda chupava o dedão.

“Drusilla havia lido todos os livros das irmãs Brontë, é claro: O morro dos ventos uivantes, Jane Eyre, Shirley, A moradora de Wildfell Hall. Ela os conhecia quase de cor. Eu estava meio apaixonado por ela, imagino, e achei que poderia fazer com que ela me amasse lendo seus livros favoritos em inglês, em voz alta.

“E foi assim que me tornei um anglófilo. Daquela época em diante, não havia nada que eu quisesse mais do que ler livros ingleses: Dickens, é claro, e Conan Doyle; Jane Austen e Thomas Hardy. Quando fiquei um pouco mais velho, Drusilla me deu de Natal assinaturas de O Anuário dos Meninos e Companheiros. Com doze anos, eu já era mais britânico do que um garoto de Brixton!

“Então veio o rádio. Com base em artigos da Companheiros e com a ajuda de um colega de escola que morava ao lado (seu nome era Wolfgang Zander), fui capaz de montar um receptor simples, de uma só válvula, com o qual podíamos sintonizar as transmissões da BBC.

“Éramos loucos por dispositivos elétricos, Wolfgang e eu. A primeira coisa que fizemos foi uma campainha de porta operada por bateria; a seguinte foi um telefone entre o meu quarto e o dele, com um fio esticado por cima dos telhados e através das árvores.

“Bem depois que nossas famílias estavam dormindo, o fio encapado de algodão no topo dos galhos rumorejava até altas horas com nossas especulações febris. Podíamos falar a noite inteira, sobre rádio, é claro, mas também sobre livros ingleses. Pois Wolfgang, entendam, também tinha sido atacado pelos vírus ingleses e, em especial, pelo Brontë.

“A imaginação adolescente é uma força poderosa, e imagino que nos víamos, Wolfgang e eu, como Cavaleiros da Távola Redonda que saíam cavalgando da nossa fortaleza teutônica para resgatar aquelas irmãs Brontë: aquelas três donzelas loiras e pálidas cujo próprio nome as identifica como filhas do deus do trovão, e que eram reféns de um monstro em sua fria torre de pedra no norte.

“Além disso — acrescentou ele —, havia alguma coisa naquelas jovens e desamparadas donzelas em climas sufocantes que fazia com que qualquer menino adolescente quisesse levá-las embora e se casar com elas.”

Ele fez uma pausa, aguardando o efeito de suas palavras, olhando com atenção cada um de nós, e, enquanto fazia isso, vi subitamente chocada que Dieter imaginava ter encontrado as suas Brontës em mim, Felinha e Dafi; e, em Buckshaw, a sua fria torre de pedra. Nós éramos as suas Charlotte, Emily e Anne!

E lá estávamos nós três sentadas, de boca escancarada como cães.

Minha cabeça girava quando Dieter prosseguiu.

— Mas cedo demais nós crescemos — disse ele com um suspiro. — Cedo demais assumimos as alegrias do mundo dos adultos, mas também seus problemas.

“Há sempre uma idade em que os meninos descobrem o voo, e ela veio muito cedo para mim. Meus pais me alistaram no NFSK, o Corpo Nacional-Socialista de Aviação, e quando eu tinha catorze anos me vi subitamente sozinho nos controles de um Schulgleiter, pairando como uma águia acima de Wasserkuppe, nas montanhas do Ródano, acima do Ródano hessiano.

“Do ar, aquelas montanhas, embora de uma geologia muito diferente, ostentam em alguns lugares uma semelhança surpreendente com as charnecas do norte de Yorkshire.”

— Como você sabe isso? — interrompeu Dafi.

— Daphne! — disse o pai. Sua expressão penetrante acrescentava as palavras “tenha modos”.

— Foi porque você bombardeou Sheffield?

Fez-se um silêncio chocado diante da pergunta dela. Como era atrevida! Nem mesmo eu teria questionado Dieter sobre suas atividades aéreas sobre a Inglaterra, embora, tenha de admitir, aquele mesmo pormenor me tivesse cruzado a mente havia apenas alguns minutos.

— Porque — acrescentou Dafi —, se você fez isso, você deve dizer.

— Eu ia chegar nisso — disse Dieter mansamente.

Ele prosseguiu sem piscar um olho.

— Quando a guerra começou e eu fui transferido para a Luftwaffe, sempre mantive as pequenas edições inglesas de Jane Eyre e O morro dos ventos uivantes cuidadosamente envolvidas em um xale de aviador de seda branca, no fundo da minha mochila, juntinho com Lord Byron e Shelley.

“Decidi que, quando a guerra acabasse, eu me matricularia em uma universidade, talvez até um Oxford, uma vez que já falava a língua, e ali cursaria literatura inglesa. No começo, poderia até trabalhar dobrado e aceitar um cargo no magistério em uma das grandes escolas públicas e terminaria meus dias como um honrado e respeitado professor, alguma coisa como o seu Mr. Chips.

“Adeus, Herr Schrantz, eu costumava dizer. Mas o Destino ainda não havia terminado comigo. Receberam uma ordem de que eu teria de ir imediatamente para a França.

“Meu pai, ao que parecia, tinha cruzado com um velho conhecido de Berlim: alguém bem posicionado no ministério e que poderia conseguir quase qualquer coisa que se desejasse. O pai queria um filho que voasse como combatente: alguém cujo nome saísse nas manchetes, e não alguém com o nariz enfiado em um livro. E ainda por cima em um livro inglês!

“Antes que eu pudesse protestar, me vi destacado para um grupo de reconhecimento, o Luftflotte III, baseado na França, perto de Lille. Nossa aeronave era um Messerschmitt Bf-110, uma máquina de dois motores apelidada de Zerstörer.”

— A Destruidora — disse Dafi, sombria. Havia momentos em que ela podia ser bastante mordaz.

— Sim — retrucou Dieter. — A Destruidora. Essas máquinas, no entanto, eram modificadas especificamente para missões de reconhecimento. Não transportavam bombas.

— Espionagem — disse Dafi. Suas bochechas estavam um pouco ruborizadas, mas não sei se de raiva ou de excitação.

— Sim, espionagem, se você prefere — concordou Dieter. — Na guerra, havia missões de reconhecimento de ambos os lados.

— Ele está certo, você sabe, Daphne — disse o pai.

— Como eu estava dizendo — prosseguiu Dieter, dando uma olhadela para Dafi —, o Zerstörer era uma máquina de dois motores com uma tripulação de dois: um piloto e um segundo membro, que poderia ser um operador de rádio, um navegador ou um artilheiro de retaguarda, dependendo da missão.

“No meu primeiro dia, quando eu me encaminhava para a barraca de instruções, um Oberfeldwebel, um sargento de voo, com botas de aviador, bateu os calcanhares e gritou: ‘Herr Hauptmann! Heathcliff!’. É claro que era o meu velho companheiro Wolfgang Zander.

“Olhei rapidamente em volta para ver se alguém o ouvira, já que uma tal familiaridade entre patentes não seria tolerada. Mas não havia mais ninguém ao alcance da nossa voz.

“Apertamos as mãos alegremente. ‘Sou o seu navegador, Wolfgang’, disse ele, rindo. ‘Não contaram isso a você? Entre todos os navegadores do país, o meu nome tinha de ser escolhido para ser transportado nas alturas para as guerras no seu dragão de lata!’

“Embora fosse maravilhoso vê-lo de novo, precisávamos ser discretos. Era uma situação complicada. Desenvolvemos todo um conjunto de estratagemas: um pouco como amantes vivendo um romance nos tempos da Regência.

“Íamos até a aeronave, apontávamos aqui e ali com os dedos e nos abaixávamos perto da fuselagem, como se estivéssemos discutindo a tensão dos cabos, mas a nossa conversa, naturalmente, era sobre pouca coisa além de novelas inglesas. Se alguém se aproximasse, mudávamos rápido de Hardy para Hitler.

“Foi durante uma dessas inspeções que nasceu o grande esquema. Não me lembro agora se foi Wolfgang ou se fui eu quem teve a ideia.

“Estávamos andando em volta da cauda de Kathi (Kathi era o nome sutilmente disfarçado, pintado no nariz da nossa aeronave), quando de repente um de nós, acho que pode ter sido Wolfgang... ou posso ter sido eu... disse: ‘Você acha que as urzes estão em flor agora em Haworth Moor?’

“Simples assim. Naqueles poucos instantes, a sorte, como disse Julio César, foi lançada.

“E então, como se estivesse ouvindo atrás da porta, o Destino interveio novamente. Dois dias depois nos deram um objetivo em South Yorkshire: um pátio de ferrovia e uma fábrica de bicicletas onde achavam que eram produzidos motores Rolls-Royce. Apenas fotografias. ‘Moleza’, como costumavam dizer os sujeitos da RAF. Uma oportunidade perfeita para entregar, em pessoa, o nosso presentinho.

“O voo através do Canal transcorreu sem incidentes e, para variar, não fomos rechaçados por Spitfires. O tempo estava lindo, e os motores de Kathi ronronavam como dois enormes gatos satisfeitos.

“Chegamos ao alvo a tempo, ou ‘em ponto’, como vocês dizem, e tiramos as nossas fotografias. Clic! Clic! Clic!, e terminamos. Missão cumprida! Os quinze minutos seguintes eram só nossos.

“O presbitério de Haworth estava agora a menos de dezesseis quilômetros a noroeste e, à nossa velocidade, que era de quinhentos quilômetros por hora, ficava a não mais de dois minutos.

“O problema era que estávamos voando alto demais. Embora tivéssemos descido até cinco mil metros a fim de tirar as fotografias, para a nossa missão pessoal precisaríamos perder rapidamente ainda mais altitude. Um Messerschmitt com cruzes negras nas asas mergulhando sobre uma tranquila aldeia inglesa dificilmente passaria despercebido.

“Empurrei a alavanca de comando para a frente, e fomos descendo em uma espiral gigante, os ouvidos estalando como rolhas de champanhe. Abaixo de nós, as urzes da charneca eram um mar de ondas roxas.

“A trezentos metros, comecei a me afastar e caí quase a um voo rasante. ‘Prepare-se!’, gritei para Wolfgang.

“Entramos pelo leste, e subitamente lá estava ela, no topo da sua colina: a aldeia de Haworth! Seguimos em frente, os motores roncando rasantes por cima dos campos, transpondo por pouco as chaminés da casa da fazenda.

“Quando nos aproximávamos sobrevoando a estrada de Haworth, tive o primeiro vislumbre da igreja no alto da íngreme rua principal; então, cem metros adiante, além do pátio da igreja, a forma familiar do presbitério de Brontë. Era exatamente como eu sempre a tinha imaginado: as pedras escuras e manchadas e as janelas vazias.

“‘Agora!’, gritei, e Wolfgang empurrou nosso presente para fora da portinhola aberta na carlinga e para dentro do turbilhão dos motores. Embora eu não pudesse ver, podia imaginar nossa grinalda formando um arco descendente pelo ar, tombando e virando seguidamente, sua fita roxa tremulando atrás dela enquanto caía. Mais tarde, alguém a recuperaria entre as antigas sepulturas perto da porta do presbitério e leria a mensagem, em letras douradas cor de tojo sobre seda cor de urze: ‘O Mundo Inteiro Te Ama — Descansa em Paz’.

“Era arriscado demais subir para uma altitude de cruzeiro. Tínhamos de ir para casa em voo rasante de ponto a ponto, mantendo-nos em campo aberto. É claro que queimaríamos mais combustível assim, mas nós dois éramos jovens e imprudentes e fizéramos o que tínhamos vindo fazer. Assim que fôssemos vistos, o Inferno, os Furações e os Spitfires estariam na nossa cola.

“Mas era um dia perfeito de agosto. Com um pouquinho de sorte e um vento de popa, eu dizia a Wolfgang, poderíamos até conseguir sobrevoar a casa de Thomas Hardy a caminho de casa, sem nenhum custo adicional para o Reich.

“Foi naquele preciso momento que a carlinga diante de mim se estilhaçou, explodindo em uma chuva de balas. Tínhamos sido atingidos!

“‘Spitfire!’, gritou Wolfgang. Mas era tarde demais. Uma sombra escura passou disparada por nós, depois inclinou-se de lado e voltou, os círculos em vermelho, branco e azul lampejando como olhos loucos ao sol de verão.

“‘Cuidado’, gritei. ‘Ele está voltando para um novo ataque!’

“Foi então que notei que o indicador de temperatura do nosso motor de bombordo estava grudado no topo. Havia um supera-quecimento. Olhei para o lado e, para meu horror, vi a fumaça preta e as chamas alaranjadas sendo expelidas pela cobertura do motor. Perfilei a hélice e desliguei o motor.

“A essa altura o Spitfire estava de novo atrás de nós. No que restara do meu espelho retrovisor, vi sua imagem fragmentada oscilando gentilmente de um lado para outro, no nosso vácuo. Estávamos na sua mira.

“Mas ele não disparou. Foi muito enervante.

“Vamos, pensei. Acabe logo com isso. Ele estava brincando de gato e rato conosco.

“Não sei quanto tempo aquilo durou. Você não consegue estimar o tempo quando está prestes a morrer.

“‘Por que ele não dispara?’, gritei para Wolfgang, mas não houve resposta. Preso pelo cinto, não pude me virar o bastante no meu assento para vê-lo.

“Mas mesmo só com um motor, Kathi foi facilmente capaz de se manter voando, e, pelo que me pareceu uma eternidade, aquele cão de caça britânico perseguiu a égua alemã através dos campos verdejantes. O para-brisa estilhaçado reduzira a zero a visibilidade adiante de nós, e eu tinha de manobrar bruscamente de um lado para o outro, a fim de ver o que estava à frente. Era uma situação imprevisível.

“E então o outro motor morreu. Puf! Simples assim! Eu só tinha segundos para tomar uma decisão. As árvores de uma colina coberta de mato passavam velozmente embaixo das asas. No limite do bosque havia um campo em declive. Era lá que eu teria de aterrissar. Sem as rodas, pensei. Melhor fazer um pouso de barriga e parar mais depressa.

“O ruído do choque foi muito mais alto do que eu poderia ter imaginado. A aeronave virou de um lado para o outro, como se a terra estivesse rasgando a sua barriga, chacoalhando e batendo, guinando, pinoteando... foi como ser jogado vivo em uma calha de moinho.

“E, então, o silêncio sinistro. Foi preciso um momento para nos darmos conta de que não estávamos mais em movimento. Desafivelei meu cinto, joguei para trás a coberta e pulei sobre a asa. Depois, corri de volta para ver como estava Wolfgang.

“‘Saia!’, gritei. ‘Depressa! Para fora!’

“Mas não houve resposta.

“Embaixo da coberta de vidro, em um mar de sangue, Wolfgang estava sentado com um sorriso alegre nos lábios. Seus olhos mortos olhavam para fora fixamente, quase calorosamente, para os campos ingleses verdejantes.

“Pulei de cima da asa e vomitei sobre o capim alto.

“Tínhamos aterrissado na extremidade do campo. Agora, no alto da encosta, dois homens, um grande, o outro baixo, haviam emergido do meio das árvores e desciam lenta e cautelosamente na minha direção. Um deles trazia uma espingarda de caça, e o outro, um forcado.

“Fiquei lá parado, sem me mexer. Quando eles se aproximaram, ergui uma das mãos, puxei lentamente minha pistola do coldre e a joguei longe, certificando-me de que eles estavam vendo o que eu fazia. Então ergui a outra mão.

“‘Você é alemão’”, gritou o mais alto quando eles se aproximaram.

“‘Sim’, gritei de volta, ‘mas sei falar inglês.’

“Ele pareceu um pouco surpreso.

“‘Talvez seja melhor você chamar a polícia’, sugeri, fazendo um movimento de cabeça na direção do Messerschmitt destruído. ‘Meu amigo está morto lá dentro.’

“O homem alto se aproximou cautelosamente da aeronave e espiou lá dentro. O outro manteve sua posição, olhando fixamente para mim como se eu tivesse chegado de outro planeta. Ele ergueu seu forcado, como se estivesse prestes a enfiá-lo no meu estômago.

“‘Deixe-o, Rupert’, disse o homem com a espingarda. ‘Ele apenas sofreu um acidente grave.’

“Antes que o outro homem pudesse responder, ouviu-se um estrugido agudo no céu, e o Spitfire passou em grande velocidade, subindo na extremidade do campo em uma acrobacia vitoriosa.

“Fiquei olhando, enquanto ele subia diretamente para o céu azul e a seguir disse:

“‘Ele alça voo e começa a rodear. Derrama o fio prateado de som.’

“Os dois homens olharam para mim como se eu tivesse entrado subitamente em estado de choque, e talvez fosse verdade. Só mais tarde fui violentamente atingido pela noção de que o pobre Wolfgang estava morto.

“‘George Meredith’, eu disse a eles. O voo da cotovia.


“Mais tarde, na delegacia de polícia da aldeia, o piloto do Spitfire me fez uma visita. Ele estava com um esquadrão baseado em Catterick e decolara com sua máquina para conferir os controles depois que os mecânicos fizeram alguns ajustes. Não tinha a menor intenção de entrar em uma escaramuça naquele dia, ele me contou, mas lá estávamos nós, Wolfgang e eu, de repente sob a mira das suas armas, acima de Haworth. O que mais ele poderia fazer?

“‘Que raio de desastre. Que azar, meu velho’, disse ele. ‘Sinto muitíssimo pelo seu amigo.’

“Tudo isso aconteceu há seis anos — disse Dieter com um suspiro. — O homem alto no campo com a espingarda, como eu saberia depois, era Gordon Ingleby. O outro, o homem com o forcado, como vocês talvez já tenham adivinhado, era Rupert Porson.”


RUPERT PORSON? MAS COMO ERA POSSÍVEL que o homem com o forcado fosse Rupert?

Minha cabeça girava como um pião de lata colorido.

O último lugar no mundo onde eu poderia esperar que a narrativa de Dieter terminasse era no Campo Jubileu da Fazenda Culverhouse. Mas uma coisa agora ficara perfeitamente clara: se Rupert estava na Fazenda Culverhouse há seis anos, durante a guerra, isso explicaria, pelos menos em parte, como a cara de madeira do seu boneco João fora esculpida à imagem de Robin Ingleby.

O pai deixou escapar um suspiro.

— Eu me lembro muito bem — disse ele. — A sua máquina foi derrubada no Campo Jubileu, logo abaixo do Bosque Gibbet.

Dieter assentiu.

— Eu fui mandado por um breve período para um campo de prisioneiros de guerra com trinta ou quarenta outros oficiais e soldados da Luftwaffe, onde os nossos dias eram passados cavando trincheiras e aparando sebes. Era um trabalho extenuante, mas pelo menos eu ainda estava na Inglaterra. A maioria dos pilotos alemães capturados era mandada para o exterior, para campos no Canadá, onde havia pouca esperança de fuga.

“Quando me ofereceram uma oportunidade de viver e trabalhar em uma fazenda, me agarrei a ela; embora não fosse compulsório, muitos de nós fizeram isso. Aqueles que não nos chamavam de traidores, entre outras coisas.

“Mas a guerra se aproximava do fim, sabíamos disso. Melhor começar a preparar o terreno para minha estrada pessoal rumo a Oxford, pensei, do que deixar meu futuro ao azar.

“Ninguém ficou mais surpreso do que eu ao descobrir que tinha sido designado para a fazenda dos Ingleby. Me divertia pensar que Gordon, que tão pouco tempo atrás me tinha na mira de uma espingarda, estava agora ajudando Grace a fritar meus arenques defumados na cozinha da casa da fazenda.”

— Isso foi há seis anos, você diz; em 1944? — eu perguntei.

— Foi — assentiu Dieter. — Em setembro.

Eu não pude evitar. Antes que conseguisse sufocar as palavras, me vi despejando:

— Então você devia estar na Fazenda Culverhouse quando encontraram Robin enforcado no Bosque Gibbet.

— Flavia! — disse o pai, pondo a xícara e o pires na mesa com um tinido. — Nós não vamos admitir intriguelhas sobre o sofrimento alheio.

A expressão de Dieter se tornou amarga de repente, e um fogo (poderia ser de raiva?) surgiu-lhe nos olhos.

— Fui eu — disse ele — que o encontrei.

Você o encontrou?, pensei. Impossível! A sra. Mullet deixou perfeitamente claro que foi Meg, a Louca, que descobriu o corpo de Robin.

Houve um silêncio notavelmente longo, e então Felinha pôs-se de pé em um salto para reabastecer a xícara de chá de Dieter.

— Você deve desculpar a minha irmãzinha — disse ela com uma risada tensa. — Ela tem uma fascinação um tanto doentia pela morte.

Ponto para você, Felinha, pensei. Muito embora ela tivesse acertado em cheio, não sabia nem a metade.

O resto da tarde foi um tanto maçante. O pai fez o que admito ter sido uma nobre tentativa de mudar a conversa para o tempo e a colheita de linho, enquanto Dafi, sentindo que pouca coisa mais merecia sua atenção, se enfiou de novo em seu livro.

Um a um, fomos saindo com as nossas desculpas: o pai para cuidar de seus selos, tia Felicity para dar uma cochilada antes do jantar, e Dafi para ir à biblioteca. Depois de algum tempo, cansei de ouvir Felinha tagarelando sem parar com Dieter sobre as diversas reuniões dançantes e excursões na região, e escapei para o laboratório.

Roí a parte de cima do lápis por um tempo e então escrevi:

 

Domingo, 23 de julho de 1950

Onde está todo mundo?

Essa é a pergunta fundamental.

 

Onde está Nialla? Depois de passar a noite no

chalé da sra. Mullet, ela simplesmente desaparece.

(Será que o inspetor Hewitt sabe que ela foi

embora?)

Onde está Meg, a Louca? Depois de irromper na

apresentação vespertina de João e o pé de feijão,

ela é levada para descansar no divã do vigário.

E então some.

Onde está Mutt Wilmott? Ele parece ter se

retirado furtivamente durante o espetáculo fatal.

O que Rupert fazia na Fazenda Culverhouse há

seis anos? Por quê, acima de tudo, Dieter alega

ter sido ele a achar o corpo de Robin Ingleby

enforcado no Bosque Gibbet? A sra. Mullet diz

que foi Meg, a Louca, e a sra. M raramente se

engana quando se trata de futricas da aldeia.

E no entanto, por que Dieter mentiria sobre uma

coisa dessas?

 

Por onde começar? Se isto fosse um experimento químico, o procedimento seria óbvio: eu começaria com os materiais que estivessem mais à mão.

A sra. Mullet! Com um pouco de sorte, ela ainda estaria andando de um lado para o outro na cozinha, antes de pilhar a despensa e levar seu butim diário para Alf. Corri para o alto da escada e espiei para baixo através dos balaústres. Ninguém no vestíbulo.

Desci escorregando pelo corrimão e disparei para a cozinha.

Dogger ergueu os olhos da mesa onde, com uma precisão cirúrgica, estava removendo a pele de um par de pepinos.

— Ela foi embora — disse, antes que eu perguntasse. — Uma boa meia hora atrás.

Ele é um demônio, esse Dogger! Não sei como ele faz isso.

— Ela disse alguma coisa antes de sair? Isto é, alguma coisa interessante?

Com Dogger na cozinha como plateia, a sra. M dificilmente teria resistido à tentação de ficar tagarelando sem parar sobre como recebeu Nialla (pobre criatura desamparada!), a aconchegou em uma cama confortável com uma bolsa de água quente e um copo de xerez diluído, e assim por diante, com um relatório completo sobre como ela dormiu, o que comeram no desjejum e o que ela tinha deixado no prato.

— Não. — Dogger pegou uma faca serrilhada de pão e aplicou a lâmina a um pão novo. — Apenas que o pernil está na estufa e a torta de maçã com creme azedo está na despensa.

Velhaco!

Bem, então nada restava a fazer, senão começar cedo de manhã. Eu poria o despertador para tocar ao nascer do sol, depois me poria a caminho para a Fazenda Culverhouse e o Bosque Gibbet, mais adiante. Era improvável que houvesse alguma pista depois de todos esses anos, mas Rupert e Nialla haviam acampado na parte de baixo do Campo Jubileu na noite da sexta-feira. Se meu plano fosse bem executado, eu poderia ir até lá e voltar antes que alguém em Buckshaw percebesse que eu tinha saído.

Dogger rasgou um quadrado perfeito de papel encerado e embrulhou os sanduíches de pepino com cantos de cama de hospital.

— Eu pensei em prepará-los esta noite — disse ele me entregando o pacote. — Sabia que você ia querer sair bem cedo amanhã.


Cortinas de cerração pendiam sobre os campos. O ar da manhã era úmido e gelado, e eu respirei fundo, tentando me manter completamente acordada, enchendo as narinas e depois os pulmões com o rico aroma de terra escura e grama encharcada.

Quando entrei de bicicleta no pátio da igreja de São Tancredo, vi que o Vauxhall do inspetor se fora, bem como, deduzi, o corpo de Rupert. Não que eles fossem deixá-lo no palco de marionetes de sábado à noite a segunda-feira de manhã, mas me dei conta de que o corpo não ficaria muito tempo no salão paroquial, de olhos saltados, deixando que um fio de saliva àquela altura virasse uma estalactite de cuspe...

Se eu achasse que ele estava lá, poderia ter sido tentada a entrar sem pedir licença, para dar mais uma olhada.

Atrás da igreja, tirei os sapatos e as meias e entrei empurrando Gladys através da água mais funda ao lado das alpondras submersas. A chuva de sábado à noite aumentara o volume da água, que corria agitada em volta dos raios e pneus, lavando a lama e a argila acumuladas em minha viagem a Bishop’s Lacey. Quando alcancei a outra margem, Gladys estava tão limpa quanto a carruagem pintada de uma dama.

Dei uma enxaguada final nos pés, sentei-me em um degrau de escada e calcei de novo os sapatos e as meias.

Ali, ao longo do rio, a visibilidade era ainda menor do que na estrada. Árvores e sebes assomavam como sombras pálidas, enquanto eu pedalava pela margem gramada no meio de uma névoa cinzenta e lanosa que empanava todos os sons e cores do mundo. A não ser pelo marulhar abafado da água, tudo era silêncio.

Na parte mais baixa do Campo Jubileu, estava estacionada a van de Rupert, abandonada embaixo dos salgueiros, as letras alegremente pintadas “Marionetes de Porson” destoando totalmente, tanto do lugar como das circunstâncias. Não havia sinal de vida.

Deitei Gladys com todo o cuidado na grama e fui pé ante pé até a van. Talvez Nialla tivesse voltado sorrateiramente e estivesse dormindo lá dentro, e eu não queria assustá-la. Mas a ausência de condensação no para-brisa me contou o que eu já tinha começado a sentir: que não havia ninguém respirando dentro da fria Austin.

Espiei através das janelas, mas não vi nada de anormal lá dentro. Dei a volta até a porta traseira e girei a maçaneta. Trancada.

Andei em círculos cada vez maiores pela grama, à procura de algum sinal de fogo, mas não havia nenhum. O local do acampamento estava como eu o havia deixado no sábado.

Quando cheguei ao fim do caminho, fui detida no meio do passo por uma corda atravessada na estrada, da qual pendia uma placa. Enfiei a cabeça por baixo para ler a mensagem.

 

Investigação Policial — Entrada Proibida Por Ordem da Força

Policial de Hinton

 

O inspetor Hewitt e seus detetives tinham estado ali. Mas ao pendurar sua placa, eles obviamente não pensaram que alguém pudesse chegar através do rio caudaloso. A despeito de sua promessa ao inspetor, o sargento Graves ainda não havia aprendido sua lição sobre pessoas entrando sorrateiramente pela porta dos fundos.

Muito bem, então. Já que, de um jeito ou de outro, não havia nada para ver ali, eu passaria ao meu próximo objetivo. Embora não pudesse enxergá-lo através da névoa, eu sabia que o Bosque Gibbet não ficava muito além do topo da Colina Gibbet. Devia estar tudo molhado e encharcado entre as árvores, mas eu estava querendo apostar que a polícia não estivera lá antes de mim.

Arrastei Gladys por baixo da barricada e a empurrei lentamente pela passagem acima, pois era íngreme demais para pedalar. A meio caminho do topo, enfiei-a embaixo de uma sebe de espinheiros e continuei minha escalada, cercada de todos os lados por vislumbres de linho azul.

Então, de repente, as árvores escuras do bosque assomaram para fora da névoa bem diante de mim. Eu fora dar lá sem me dar conta de como estava perto.

Uma placa de madeira, velha e desgastada, tinha sido pregada em uma árvore, ostentando as palavras em vermelho: NÃO ENTRE — OS INTRUSOS SERÃO...

O resto havia sido arrancado a tiros por caçadores ilegais.

Como eu já tinha previsto, tudo no bosque estava molhado. Estremeci na friagem úmida, juntei forças e vadeei para dentro da vegetação. Antes que eu tivesse dado meia dúzia de passos no meio das samambaias e brotos arborescentes, já estava completamente encharcada até os joelhos.

Alguma coisa estalou na vegetação rasteira. Fiquei paralisada quando uma forma escura precipitou-se com asas silenciosas através do meu caminho: uma coruja, talvez, confundindo a pesada névoa matinal com seu período de caça ao pôr do sol. Embora tivesse me assustado, sua presença era reconfortante: significava que ninguém mais estava no bosque comigo.

Fui em frente, tentando seguir as trilhas indistintas; qualquer uma delas, eu sabia, me levaria à clareira bem no centro do bosque.

Entre duas árvores muito velhas e nodosas, a passagem achava-se obstruída pelo que parecia ser uma cancela coberta de musgo, e sua madeira cinzenta estava deformada pela putrefação. Eu já me preparava para saltar por cima da barreira caindo aos pedaços quando me dei conta de que estava mais uma vez aos pés dos degraus da velha forca. Quantas almas condenadas haviam subido por aqueles mesmos degraus antes de ser desviadas para a plataforma acima? Engolindo em seco, ergui os olhos para os fragmentos da estrutura, que estava agora aberta para o céu.

Uma mão coriácea apertou meu pulso como um anel de ferro quente.

— O que você está tramando? O que pretende, bisbilhotando neste lugar?

Era Meg, a Louca.

Ela enfiou sua cara preta de fuligem tão perto da minha que pude ver os pelos amarelados na ponta de seu queixo. A Bruxa do Bos-que, pensei num momento de pânico, antes de recuperar o juízo.

— Oh, olá, Meg — eu disse, o mais calmamente que podia, tentando amansar meu coração latejante. — Estou contente por tê-la encontrado. Você me deu um susto e tanto.

Minha voz estava mais trêmula do que eu esperava.

— Os medos vivem no Bosque Gibbet — disse Meg, sombria. — Os medos vivem aqui, e em nenhum outro lugar.

— Exatamente — concordei, sem ter a mais pálida ideia do que ela estava falando. — Estou contente por você estar aqui comigo. Agora não vou mais ter medo.

— Não existe mais Diabo agora — disse Meg, esfregando as mãos. — O Diabo está morto, e já foi tarde.

Me lembrei de como ela ficara assustada na apresentação de João e o pé de feijão de Rupert. Para Meg, Rupert era o Diabo, que matara Robin Ingleby, o encolhera até virar um boneco de pau e o pusera no palco. Melhor abordar o assunto de um modo indireto.

— Deu para você descansar bem no presbitério, Meg? — perguntei.

Ela cuspiu no tronco de um carvalho como se estivesse cuspindo no olho de uma bruxa rival.

— Ela me pôs para fora — disse. — Tomou o bracelete da velha Meg e a pôs para fora, ela fez isso. “Imunda, imunda”, ela disse.

— A sra. Richardson? — perguntei. — A mulher do vigário? Ela pôs você para fora?

Meg abriu um sorriso horrendo e saiu correndo em meio às árvores, quase a galope. Eu a segui de perto, através da vegetação rasteira, das samambaias, dos troncos caídos e espinheiros escondidos. Cinco minutos depois, e sem fôlego, estávamos de volta ao lugar onde começáramos, ao pé da forca apodrecida.

— Veja ali — disse ela apontando. — Foi lá que ele o pegou.

— Pegou quem, Meg?

Ela queria dizer Robin Ingleby. Eu tinha certeza.

— O Diabo pegou Robin bem ali? — perguntei.

— Transformou ele em madeira, ele transformou — confidenciou ela, olhando por cima do ombro. — Madeira a madeira.

— Você realmente viu? O Diabo, quero dizer.

Isso era algo que não me ocorrera antes.

Haveria alguma possibilidade de Meg ter visto alguém no bosque com Robin? Afinal, ela morava em uma choça no meio das árvores, e parecia improvável que acontecesse muita coisa nos limites do Bosque Gibbet que escapasse a seu escrutínio.

— Meg viu — ela disse segura de si.

— Como ele era?

— Meg viu. A velha Meg vê muita coisa.

— Você pode desenhar? — perguntei, subitamente inspirada. Puxei do bolso meu caderno e entreguei a ela um toco de lápis. — Aqui — eu disse, virando para uma página em branco. — Desenhe o Diabo para mim. Desenhe o Diabo no Bosque Gibbet pegando o Robin.

Meg produziu um som que só posso descrever como uma risadinha de escárnio molhada. E então ela se agachou, alisou o caderno aberto contra o joelho e começou a desenhar.

Acho que eu estava esperando alguma coisa infantil: nada além de bonequinhos de círculo e linhas. Mas nos dedos encardidos de Meg o lápis ganhou vida. Na folha, apareceu a clareira do Bosque Gibbet: uma árvore aqui, outra ali; depois, a madeira podre da forca, instantaneamente reconhecível. Ela começara pelas margens e agora progredia para o centro da página.

De quando em quando ela desaprovava algo em seu trabalho, virava o lápis ao contrário e apagava uma linha. Ela era muito boa, tenho de admitir. Seu croqui provavelmente estava melhor do que eu mesma teria feito.

E então ela desenhou Robin.

Eu mal me atrevia a respirar enquanto olhava por cima do ombro dela. Pouco a pouco, o menino morto tomou forma diante dos meus olhos.

Ele pairava tranquilamente no ar, o pescoço inclinado para um lado, uma expressão de um ligeiro e surpreso contentamento no rosto, como se tivesse súbita e inesperadamente entrado em uma sala cheia de anjos. Apesar da luz tênue do bosque, seu cabelo impecavelmente repartido tinha reflexos saudáveis e, portanto, amedrontadores. Usava um suéter listrado e calça escura, enfiada com descuido dentro de um par de botas de borracha. Ele deve ter morrido depressa, pensei.

Só então ela desenhou o laço que lhe apertava o pescoço: uma coisa escura e trançada que pendia da forca para o espaço abaixo. Ela sombreou a corda com golpes irados do lápis.

Inspirei profundamente. Meg olhou para mim triunfante, buscando aprovação.

— E agora o Diabo — sussurrei. — Desenhe o Diabo, Meg.

Ela me olhou diretamente nos olhos, saboreando a atenção. Um sorriso astuto apareceu no canto de sua boca.

— Por favor, Meg... desenhe o Diabo.

Sem tirar os olhos de mim, ela lambeu um indicador e o polegar e buscou deliberadamente uma nova folha do caderno. Ela começou de novo e, enquanto desenhava, o Bosque Gibbet apareceu mais uma vez da ponta de seus dedos. Esse segundo croqui foi ficando mais escuro que o primeiro, enquanto Meg esfregava os traços do lápis, borrando-os para sugerir a meia-luz da clareira. Depois veio a forca, vista, dessa vez, de um ângulo ligeiramente diferente.

Que estranho, pensei, ela não começar pelo Diabo, como a maioria das pessoas se sentiria tentada a fazer. Mas só depois de preparar o palco com árvores e arbustos e se dar por satisfeita, ela começou a esboçar a figura que deveria ser o foco de sua criação.

Em um espaço aproximadamente oval deixado em branco na parte de cima da folha, uma figura esboçada começou a emergir: braços e ombros primeiro, seguidos por joelhos, pernas, mãos e pés.

Usava um casaco preto e estava sobre um pé só na clareira, como que flagrado no meio de uma dança frenética.

Sua calça estava pendurada pelo suspensório em um galho baixo.

Meg escondeu o papel com a mão esquerda enquanto desenhava as feições. Quando terminou, lançou o caderno para mim bruscamente, como se o papel estivesse contaminado.

Levei um momento para reconhecer o rosto: para reconhecer que a figura na clareira, o Diabo, era o vigário, Denwyn Richardson.

O vigário? Era ridículo demais para traduzir em palavras. Ou será que era possível?

Apenas há alguns minutos, Meg me dissera que o Diabo estava morto e agora desenhava o vigário como o Diabo.

O que se passaria em sua pobre mente confusa?

— Você tem mesmo certeza, Meg? — perguntei, tocando o caderno. — Este é o Diabo?

— Pssssst! — fez ela, levantando a cabeça e pondo os dedos nos meus lábios. — Vem vindo alguém!

Olhei ao redor da clareira, que, para meu sentido aguçado de audição, parecia completamente silenciosa. Quando olhei de volta, meu caderno e o lápis estavam aos meus pés e Meg desaparecera no meio das árvores. Eu sabia que não adiantaria muito chamá-la.

Fiquei lá imóvel por alguns instantes, ouvindo, esperando alguma coisa, embora não soubesse o quê.

As florestas, me lembrei, são um mundo em constante transformação. As sombras mudam de minuto em minuto, e de hora em hora a vegetação se movimenta com o sol. Insetos cavam túneis no solo, trazendo a terra para cima, empilhando-a de início em pequenas elevações, depois em elevações maiores. De mês em mês, as folhas crescem e caem, e, de ano em ano, as árvores. Dafi me disse uma vez que não é possível entrar no mesmo rio duas vezes, e a mesma coisa acontece com as florestas. Cinco invernos vieram e se foram desde que Robin Ingleby morrera ali, e agora nada restava para se ver.

Caminhei lentamente de volta, passando pela forca em desintegração e me embrenhando no mato. Em minutos, estava a céu aberto no topo do Campo Jubileu.

A menos de vinte metros de distância, quase invisível na névoa, um trator Ferguson cinza estava parado no campo, e alguém de guarda-pó verde e botas de borracha estava curvado sobre o motor. Deve ter sido o que Meg ouviu.

— Olá! — gritei. Anunciar-se cordialmente é sempre melhor do que invadir. (Embora eu tivesse inventado isso na hora, parecia ser uma boa regra geral.)

Quando a figura endireitou o corpo e se virou, me dei conta de que era Sally Straw, a garota do Exército Feminino da Terra.

— Olá — disse ela, limpando as mãos sujas de óleo com um trapo. — Você é Flavia de Luce, não é?

— Sim — eu disse, e estendi a mão. — E você é a Sal. Eu a vi no mercado. Sempre admirei suas sardas e o seu cabelo ruivo.

Para chegar ao máximo da eficácia, a bajulação fica sempre mais bem aplicada usando uma pá de pedreiro.

Ela me deu um sorriso largo e honesto e um aperto de mão que quase me esmigalhou os dedos.

— Você está certa em me chamar de Sal. É como todos os meus melhores amigos me chamam.

Ela me lembrou, de certo modo, Joyce Grenfell, a atriz: um pouco masculina no modo de se mover, mas de resto decididamente feminina.

— O meu Fergie quebrou — disse ela, apontando para o trator. Pode ser a bobina da ignição. Elas fazem isso às vezes, você sabe: ficam superaquecidas e a corrente não passa. Não há nada a fazer, senão esperar até a bendita coisa esfriar.

Como motores não são meu forte, assenti sabiamente e fiquei de boca fechada.

— O que você está fazendo aqui, tão longe?

— Só perambulando — disse eu. — Gosto de dar uma escapada de vez em quando. Dar uma caminhada, esse tipo de coisa.

— Sorte sua — disse ela. — Eu nunca escapo. Bem, quase nunca. Dieter me levou para dividir uma caneca de cerveja com ele na Treze Patos um par de vezes, mas então aconteceu uma discussão acalorada que Deus me livre. Os prisioneiros de guerra, você sabe, não podem fazer isso. Pelo menos não podiam durante a guerra. Dieter me contou que a sua irmã Ophelia o convidou para o chá ontem — acrescentou ela, com ar confidencial. Percebi na hora que ela estava jogando verde para colher maduro.

— Isso mesmo — eu disse, chutando com displicência um montinho de terra para longe e fazendo de conta que não estava nem remotamente interessada. Amiga ou não, se ela quisesse extrair mexericos de mim, eu teria de ser paga na mesma moeda.

— Vi você na apresentação de marionetes — eu disse. — Na igreja, no sábado à noite. Não foi mesmo incrível? Quero dizer, o sr. Porson?

— Foi horrível — disse ela.

— Você o conhecia?

Provavelmente não foi uma pergunta amável, e além do mais a disparei contra ela sem aviso: caída direto das nuvens.

A expressão de Sally se tornou imediatamente reservada, e ela hesitou por um instante um pouco longo demais antes de responder.

— Eu... eu o tenho visto aqui e ali — disse. A mentira era óbvia.

— Na televisão, quem sabe? — perguntei, talvez inocentemente demais. — O Reino Mágico? Snoddy, o Esquilo?

Assim que falei isso, me dei conta de que tinha ido longe demais.

— Certo — disse ela. — Aonde você quer chegar? Vamos, desembuche.

Ela plantou as mãos nos quadris e me fitou com um olhar determinado.

— Não sei o que você quer dizer — disse eu.

— Ora, deixe disso. Não me venha com essa. Todo mundo num raio de oitenta quilômetros por aqui sabe que Flavia de Luce não sai andando pelo bosque só para pegar uma corzinha no rosto.

Seria verdade? Oitenta quilômetros? A resposta dela me surpreendeu um bocado. Eu tinha imaginado uns cento e cinquenta.

— Gordon arrancaria o seu couro se a pegasse naquele bosque — disse ela, apontando para a placa.

Fiz a minha melhor cara de envergonhada, mas fiquei calada.

— Quanto você sabe sobre tudo isso? — perguntou Sally, fazendo um gesto largo e circular para abranger toda a fazenda. O que ela queria dizer estava claro.

Respirei fundo. Eu precisava confiar nela.

— Eu sei que Rupert vinha aqui para conseguir cannabis, e isso há um bocado de tempo. Sei que Gordon a cultiva em um pequeno pedaço de terra no Bosque Gibbet, não muito distante do lugar onde encontraram Robin enforcado.

— E você acha que Dieter e eu estamos de algum modo metidos em tudo isso?

— Não sei — respondi. — Espero que não.

— Eu também — disse Sally. — Eu também.


— RUPERT ERA UM SEDUTOR — disse Sally lentamente, como que relutando em pôr seus pensamentos em palavras —, mas você a essa altura provavelmente já descobriu isso.

Assenti com a cabeça, tomando cuidado para não interromper. Observando o inspetor Hewitt, eu aprendera que o silêncio é o melhor prepararativo para um eficaz bombeamento da conversação.

— Ele vinha à Fazenda Culverhouse, de tempos em tempos, há anos, desde bem antes da guerra. E Rupert não é o único, sabe. Gordon tem um pequeno exército de gente igual a ele. Fornece-lhes algo que os ajuda a suportar a dor.

— Bhang — eu disse. Não deu para segurar. — Gunjah... cânhamo-da-índia... cannabis.

Ela me olhou com os olhos contraídos e depois prosseguiu:

— Alguns, como Rupert, vêm porque tiveram paralisia infantil, ou pólio, como dizem agora; e outros, só Deus sabe.

“Entenda, Gordon considera-se uma espécie de herborista, sente-se uma pessoa que ajuda a acabar com sofrimentos quando os médicos não podem fazê-lo, ou não querem. Ele é muito discreto quanto a isso, mas por outro lado tem mesmo de ser, não é? Fora você, eu realmente acho que ninguém em Bishop’s Lacey jamais imaginou que os viajantes ocasionais que param na Fazenda Culverhouse fossem mais que pessoas perdidas ou talvez vendendo produtos agrícolas.

“Eu estou aqui há oito anos — prosseguiu Sally. — E nem se dê ao trabalho de perguntar: a resposta é não. Eu não estou entre os fumantes de Gordon.”

— Eu não esperava que você estivesse — disse eu, bajulando um pouco. Funcionou.

— Fui criada em um bom lar — continuou ela com mais entusiasmo. — Meus pais eram o que aqueles velhos romances em duas partes costumavam chamar de “pobres, porém honestos”. Minha mãe vivia indisposta o tempo todo, mas nunca nos contou o que havia de errado com ela. Nem meu pai sabia. Nesse meio-tempo, penei na escola, adquiri um pouco de conhecimento, e então veio a guerra.

“É claro que eu queria ajudar um pouco com as despesas médicas, assim, juntei-me ao Exército Feminino da Terra. Parece simples, não é? E foi mesmo. Não houve nada além disso. Eu era apenas uma garota de Kent que queria lutar contra Adolf Hitler e ver sua mãe bem outra vez.

“Eu fui alojada, junto com outras quarenta meninas, em um albergue do Exército da Terra, entre aqui e Hinley, e foi lá que pus os olhos pela primeira vez em Rupert. Atraente como o mel para uma abelha, aquele homem, não se iluda quanto a isso. Ele ficava perambulando de um lado para o outro na zona rural todos os verões, com seu pequeno espetáculo de marionetes. ‘Voltando às raízes’, era como ele chamava isso, e sempre que eu o via parecia estar com uma nova assistente. E era sempre do tipo um tanto vistoso, se entende o que quero dizer.

“Não muito tempo depois que eu vim trabalhar na Fazenda Culverhouse, Rupert apareceu para pegar um suprimento novo de material para fumar. Eu o reconheci na hora como o homenzinho coxo que estava sempre puxando conversa conosco no albergue ou no pub no fim de semana.

“Desde o começo, jurei que não me envolveria pessoalmente com ele; deixaria para as outras garotas trazê-lo um ou dois pontos para baixo. Mas então...

O olhar dela perdeu-se em um outro tempo.

Então Nialla tinha razão! Rupert tinha saído à procura de Sally no dia em que eles chegaram. As peças começavam a se encaixar.

Embora a névoa estivesse agora um pouco mais fina, ainda era bastante densa, envolvendo Sally e eu em um casulo nebuloso de silêncio estranhamente reconfortante. A não ser que tivesse cruzado conosco por acidente, ninguém saberia que estávamos ali em cima, no ponto mais alto do Campo Jubileu. Ninguém poderia ter nos ouvido por acaso, a não ser que tivesse subido toda a extensão do campo desde a parte mais baixa, ou descido arrastando-se sorrateiramente desde o bosque acima.

— Ah, Rupert era um feiticeiro, não se iluda quanto a isso — prosseguiu Sally. — Era capaz de enfeitiçar... não, não posso dizer isso na frente de gente educada, posso? Era capaz de enfeitiçar os pássaros e trazê-los para fora das árvores. Especialmente as fêmeas.

“Ele começava com Shakespeare, depois passava para coisas que ouvira em teatros de variedades. Se Romeu e Julieta não desse conta do recado, tentava suas recitações maliciosas.

“E ele escapava impune também, pelo menos na maior parte das vezes. Até tentar com a mulher de Gordon.”

Grace Ingleby? Deixei escapar um assobio involuntário.

— Isso deve ter sido há um bocado de tempo — eu disse. Sabia que soara insensível, mas não tive essa intenção.

— Anos atrás — disse Sally. — Antes de Robin morrer. Antes de ela ficar toda esquisita. Embora olhando para ela agora você possa não achar, ela era uma beldade.

— Ela parece muito triste — eu disse.

— Triste? Triste não é a palavra certa para isso, Flavia. Arrasada é mais adequado. Aquele menininho era todo o seu mundo, e no dia em que ele morreu o sol se apagou.

— Você já estava aqui então? — perguntei delicadamente. — Deve ter sido muito difícil para você.

Ela continuou como se não tivesse me ouvido.

— Gordon e Grace tinham contado a Robin mais de uma vez sobre a idílica lua de mel deles na praia, e aquilo era uma coisa que ele sempre quis fazer: a areia, as conchas, o baldinho, a pá, os castelos de areia, os sorvetes, as cabines móveis.

“Ele costumava sonhar com isso. ‘Sonhei que a maré tinha entrado em casa, Sally!’, ele me contou uma vez. ‘E eu fiquei balançando na água do mar como um balão cor-de-rosa!’ Pobre menininho.”

Ela enxugou uma lágrima com a manga áspera de seu guarda-pó.

— Deus! Por que estou contando tudo isso a você? Devo estar maluca.

— Tudo bem — eu disse. — Juro que não vou deixar escapar nem uma palavra. Sou muito boa em guardar as coisas para mim mesma.

Como prova de boa vontade, fiz toda a pantomima de “juro-pela-minha-vida” e “quero-me-ver-mortinha”, mas sem pronunciar as palavras.

Depois de uma olhadela rápida e estranhamente tímida para mim, Sally continuou sua história:

— De algum modo eles conseguiram economizar um pouco para o aniversário de Robin. Como a colheita estava muito próxima, Gordon não poderia se afastar, mas eles concordaram que Grace levaria Robin para a praia por alguns dias. Era a primeira vez em que os dois, mãe e filho, ficariam juntos em algum lugar sem Gordon, e a primeira vez que Grace tiraria férias desde que era menina.

“O tempo estava quente, mesmo para fim de agosto. Grace alugou uma cadeira de praia e comprou uma revista. Ficou olhando para Robin com seu baldinho, correndo na lama à beira da água. Ele estava perfeitamente seguro, ela sabia. Tinha-o advertido sobre o perigo das marés, e Robin era um menininho muito obediente.

“Ela caiu no sono e dormiu um tempão. Não havia se dado conta de como estava exausta até acordar e ver quanto o sol havia se movido. A maré descera, e Robin não estava em lugar nenhum ao alcance da vista. Teria desobedecido a suas advertências e fora arrastado para alto-mar? Com certeza alguém teria visto. Com certeza alguém a teria acordado.”

— Grace contou isso a você? — perguntei.

— Bom Deus, não! Tudo isso veio à tona no inquérito. Tiveram de arrancar dela aos pedacinhos, minúsculos e entrecortados. Seu estado de nervos era algo chocante.

“Ela desperdiçara tempo demais, contou, correndo pela praia para cima e para baixo, chamando o nome de Robin. Ela correu pela beira da água, esperando vislumbrar seu pequeno maiô vermelho, esperando ver seu rosto entre as crianças que chapinhavam perto da praia.

“E depois praia acima e praia abaixo de novo, implorando aos banhistas que contassem se tinham visto um menininho de cabelo loiro. Sem esperança, é claro. Deveria haver dúzias de crianças na praia correspondendo àquela descrição.

“E então, através dos olhos ofuscados pelo sol, ela viu: uma multidão reunida na sombra embaixo do passeio elevado. Ela irrompeu em lágrimas e começou a andar naquela direção, sabendo o que encontraria: Robin se afogara, e aquela aglomeração era de pessoas que haviam se juntado para olhar, boquiabertas, como idiotas. Ela já começava a odiá-las.

“Mas quando chegou mais perto, uma onda de risadas se ergueu, e ela forçou passagem até o centro da multidão, pouco se importando com o que pudessem pensar.

“Era uma apresentação com as tradicionais marionetes Punch e Judy. E ali, sentado na areia, com lágrimas de riso escorrendo pelo rosto, estava o seu Robin. Ela o agarrou e o abraçou, insegura de si mesma para dizer uma palavra que fosse. Afinal, fora culpa sua: ela adormecera, e Robin fora atraído para a barraca de Punch e Judy, como qualquer criança.

“Ela o carregou ao longo da praia e comprou-lhe um sorvete, depois outro. Então correu com ele de volta para a pequena barraca, para assistir à apresentação seguinte, e juntou-se a ele nas gargalhadas espalhafatosas, e gritou com ele ‘Não! Não’ quando Punch pegou o cassetete do policial para bater na cabeça de Judy.

“Eles riram com o resto da multidão quando Punch enganou Jack Ketch, o carrasco, levando-o a enfiar a própria cabeça no laço e...”

Eu assistia às tradicionais apresentações de Punch e Judy quase todos os anos na quermesse da igreja e estava completamente familiarizada com a trama.

— Eu não sei como ser enforcado — eu disse, citando as famosas palavras de Punch. — Você vai ter de me mostrar, depois eu faço sozinho.

— “Eu não sei como ser enforcado”— ecoou Sally. — “Você vai ter de me mostrar.” Foi o que Grace disse ao júri mais tarde, quando foi aberto um inquérito sobre a morte de Robin, e essas foram provavelmente suas últimas palavras sãs.

“Pior do que isso foi o fato de que ela pronunciou as palavras naquela voz horrível, estrangulada e grasnante que os titereiros usam para Punch: Eu não sei como ser enforcado. Você vai ter de me mostrar.

“Foi horripilante. O juiz pediu um copo d’água, e alguém no júri perdeu a compostura e riu. Grace desmoronou completamente. O médico insistiu para que ela fosse dispensada de novos interrogatórios.

“O resto do que aconteceu naquele dia horrível na praia, e depois na fazenda, tinha de ser juntado, pedaço por pedaço; cada um de nós sabia um pouco. Eu tinha visto Robin arrastando um pedaço de corda que encontrara no galpão de ferramentas. Mais tarde, Gordon o vira brincando de caubói no limite do Campo Jubileu. Foi Dieter quem o encontrou enforcado no Bosque Gibbet.

— Dieter? Eu pensei que tinha sido Meg, a Louca. — Escapou antes que eu pudesse me conter.

Sally desviou o olhar imediatamente, e me dei conta de que aquela fora uma das vezes em que em eu devia ter ficado de boca fechada e aguardado o que viria.

De repente, ela pareceu tomar uma decisão.

— Você precisa se lembrar — disse ela — de que tínhamos acabado de sair da guerra. Caso se tornasse conhecido em Bishop’s Lacey que o corpo de Robin fora encontrado enforcado no bosque por um prisioneiro de guerra alemão, bem... apenas pense nisso.

— Poderia ter sido algo como aquela cena de Frankenstein: aldeões furiosos com tochas, e coisa e tal.

— Exatamente — disse ela. — Além disso, a polícia acreditava que Meg realmente estivera lá antes de Dieter, mas que ela não tinha contado nada a ninguém.

— Como você sabe disso? — perguntei. — Quero dizer, sobre o que a polícia acreditava?

Sem perceber o que estava fazendo, Sally começou de repente a afofar o cabelo.

— Havia um certo policial jovem — disse ela —, cujo nome não me sinto livre para mencionar, que costumava me levar, à noite, para ver a lua surgir no céu acima da Colina Goodger.

— Entendi — disse eu, e tinha mesmo entendido. — Eles não queriam que Meg fosse chamada a depor no inquérito.

— Engraçado, não é? — disse ela. — Como é possível a lei ter um ponto sentimental e vulnerável como esse? Não, alguém a vira na aldeia quando Robin desapareceu, portanto ela não era realmente uma suspeita. Foi decidido que devido à sua... porque ela era... bem, para não entrar demais em pormenores, foi decidido que era melhor deixar Meg fora das coisas completamente, e assim foi feito.

— Portanto, foi Dieter quem, afinal, encontrou o corpo.

— Sim. Ele me contou naquela mesma noite. Ainda estava em estado de choque, mal falando coisa com coisa; contou tudo sobre como desceu correndo do Bosque Gibbet, gritando até ficar rouco... pulando cercas, escorregando na lama... disparando para dentro do pátio, olhando para as janelas vazias lá em cima. Eram como olhos mortos, ele ficava repetindo, como as janelas do presbitério das Brontë. Mas, como eu disse, o pobre Dieter estava em estado de choque. Ele não sabia o que dizia.

Senti um vago distúrbio no estômago, mas atribuí aquilo ao bolo Jenny Lind da sra. Mullet.

— E onde estava Rupert esse tempo todo?

— Estranho você perguntar. Parece que ninguém se lembra. Rupert ia e vinha, quase sempre à noite. À medida que o tempo passava, ele parecia estar cada vez mais viciado naquilo que Gordon lhe fornecia, e suas visitas foram ficando mais frequentes. Se ele não estava aqui quando Robin morreu, também não devia estar muito longe.

— Aposto que a polícia estava por toda parte.

— É claro que sim! No começo não sabiam se tinha sido um acidente ou se Robin fora assassinado.

— Assassinado? — O pensamento nunca me passara pela cabeça. — Quem diabos iria assassinar um menininho?

— Isso já tinha acontecido antes — respondeu Sally com tristeza. — Crianças sempre foram assassinadas sem nenhuma boa razão.

— E Robin?

— No fim, eles concluíram que não havia provas para sustentar aquela ideia. Além de Gordon, Dieter e eu (e Meg, a Louca, é claro), mais ninguém estivera no Bosque Gibbet. As pegadas de Robin, que levavam até o alto do Campo Jubileu e depois em volta do velho patíbulo, deixaram muito claro que ele fora para lá sozinho.

— E representou a cena da forca de Punch e Judy — eu disse. — Fazendo de conta primeiro que era Punch e, depois, o carrasco.

— Sim. Foi o que eles pensaram.

— Ainda assim — eu disse —, a polícia deve ter dado uma boa olhada em volta, dentro do bosque.

— Quase o arrancaram todo para fora — disse ela. — Fitas métricas, moldes de gesso, fotografias, saquinhos disso e daquilo.

— Não é estranho — disse eu — que eles não tenham encontrado a plantação de cannabis? É difícil acreditar que o inspetor Hewitt a tenha deixado passar despercebida.

— Deve ter sido antes da época dele — disse Sally. — Se não me falha a memória, era um certo inspetor Gully que estava encarregado da investigação.

A-há! Então foi esse quem decidiu ficar de boca fechada sobre a Meg. Apesar de sua falta de diligência, pelo menos o homem devia ter um coração rudimentar.

— E qual foi o resultado? — perguntei. — Do inquérito, quero dizer.

Eu sabia que poderia, mais tarde, consultar o arquivo do jornal na biblioteca, mas por ora queria ouvir a própria Sally contar. Afinal, ela também estivera lá.

— O legista disse ao júri que eles deveriam chegar a um de três veredictos: morte por assassinato, morte por homicídio acidental ou um veredicto aberto.

— E...?

— Eles decidiram pela morte por homicídio acidental, mas tiveram momentos infernais até chegarem a um acordo.

De repente me dei conta de que a neblina estava se erguendo, e Sally também. Embora uma ligeira névoa ainda pairasse sobre as árvores no bosque acima de nós, o rio e toda a extensão inclinada do Campo Jubileu se esparramavam abaixo de nós, como uma fotografia aérea colorida à mão, à luz fraca do sol.

Nós poderíamos ser claramente vistas da casa da fazenda.

Sem mais uma palavra, Sally escalou o trator até o assento e deu a partida. O motor pegou de primeira, rugiu um pouquinho, depois se estabilizou em um ronronar firme, tique-taqueando.

— Eu falei demais — ela me disse. — Não sei o que eu estava pensando. Trate de cumprir a sua promessa, Flavia. Vou cobrar de você.

Os olhos dela encontraram os meus em uma súplica.

— Eu poderia me meter em um monte de problemas, você sabe — disse ela.

Balancei a cabeça, mas na verdade não disse sim. Com um pouco de sorte, eu poderia forçar uma última pergunta:

— O que você acha que aconteceu com Robin e Rupert?

Jogando a cabeça para trás, Sally apertou os maxilares, engatou a marcha e arrancou através do campo, e torrões de lama preta voaram para cima dos pneus do trator antes de cair de volta no chão como aves abatidas.


RECUPEREI GLADYS EMBAIXO DA SEBE onde a deixara, tirei os sanduíches de pepino do bagageiro e me sentei em uma margem gramada para comer e pensar sobre o morto.

Puxei o caderno do bolso e abri no desenho de Meg: lá estava Robin pendurado pelo pescoço no madeirame encarquilhado do velho cadafalso. A expressão em seu rosto era a de uma criança dormindo tranquilamente, com um leve sorriso nos cantos dos lábios.

Alguma coisa na minha cabeça fez clic!, e eu soube que não podia mais adiar aquilo: teria de fazer uma visita à biblioteca da aldeia, ou pelo menos ao Barracão do Fosso, o anexo onde eram armazenadas as edições antigas de jornais.

O Barracão do Fosso era uma oficina de automóveis há muito extinta que ficava, cercada de mato, no Caminho das Vacas, uma vereda curta e bastante negligenciada que descia da rua principal de Bishop Lacey até o rio. A súbita lembrança de meu recente cativeiro naquele mausoléu bolorento me deu arrepios.

Parte de mim (a minha voz mais calma) dizia: “Desista. Não se intrometa. Vá para casa ficar com sua família”. Mas uma outra parte era mais insistente: “A biblioteca não vai abrir até quinta-feira”, ela parecia cochichar. “Ninguém vai vê-la.”

— Mas e a fechadura? — perguntei em voz alta. — O lugar fica trancado.

“Desde quando uma porta trancada a detém?”, replicou a voz.


O Barracão do Fosso, como eu já disse, era facilmente alcançado pela margem do rio. Atravessei de novo a água pelas alpondras atrás da igreja (nenhum sinal ainda de carros de polícia) e segui pela velha trilha de sirgagem, que me levou rapidamente, e com pouco risco de ser vista, até o Caminho das Vacas.

Não havia ninguém à vista quando tentei caminhar despreocupada até a entrada.

Dei uma sacudida na porta, mas, como eu esperava, ela estava trancada. Uma fechadura nova, de fato — uma da marca Yale —, havia sido recentemente instalada, e um aviso desenhado à mão estava afixado na janela: “Entrada estritamente proibida, salvo se acompanhado pela Bibliotecária”, dizia. Tanto o aviso como a fechadura, pensei, tinham provavelmente sido colocados ali por causa das minhas recentes travessuras.

Embora Dogger tivesse me proporcionado diversos cursos sobre a arte de forçar fechaduras, as complexidades da Yale requeriam ferramentas especiais que eu não tinha comigo.

As dobradiças da porta ficavam do lado de dentro, portanto não havia nenhuma possibilidade de remover os pinos. Mesmo que fosse possível, seria temerário tentar fazer uma coisa dessas totalmente à vista de qualquer um que passasse pela rua principal no fim do caminho.

Dei a volta até os fundos. No capim alto, bem abaixo de uma janela, havia um pedaço monstruoso de sucata enferrujada, que aparentemente tinha visto dias melhores quando era um motor em uma Daimler. Subi em cima da coisa e espiei para dentro através do vidro embaçado de poeira.

Os jornais estavam empilhados em suas prateleiras de madeira como sempre estiveram há séculos, e o interior tinha sido limpo do estrago causado por minha última visita.

Quando fiquei na ponta dos pés, escorreguei e quase fui arremessada de cabeça através da vidraça. Quando me agarrei ao peitoril para me firmar, alguma coisa se esfarelou embaixo dos meus dedos, e um rio de grãozinhos minúsculos começou a escorrer para o chão.

Madeira podre, pensei. Mas espere! Aguarde um minuto. Madeira podre não é cinzenta. Isto é massa de vidraceiro ressecada!

Pulei para baixo e em segundos estava de volta com uma chave de boca do conjunto de ferramentas de Gladys. Quando bati de leve nas bordas do vidro, pedaços duros de massa de vidraceiro em forma de cunha se soltaram com um esforço surpreendentemente pequeno. Foi fácil demais.

Depois de lascar a massa em toda a volta da vidraça, comprimi a boca contra o vidro e suguei com todas as minhas forças, para criar um vácuo. Então recuei lentamente a cabeça.

Sucesso! Quando a vidraça se soltou da moldura e se inclinou na minha direção, segurei o vidro pelas beiradas ásperas e o baixei cuidadosamente no chão. Em menos tempo do que leva para contar, eu já tinha me insinuado pela moldura e me deixado cair no piso lá dentro.

Embora os cacos de vidro de meu antigo resgate tivessem sido recolhidos, o lugar ainda me dava arrepios. Não perdi tempo para encontrar as edições de The Hinley Chronicle da última parte de 1945.

Embora as datas exatas de Robin não tivessem sido gravadas em sua sepultura, a história de Sally indicava que ele morrera algum tempo depois da colheita daquele ano. The Hinley Chronicle era, e ainda é, publicado semanalmente às sextas-feiras. Portanto, havia apenas umas duas dúzias cobrindo o período entre fim de junho e o fim do ano. Eu sabia, porém, que seria mais provável achar a história em uma edição mais antiga do que em uma posterior. E assim foi: sexta-feira, 7 de setembro de 1945.

 

Um inquérito será realizado hoje no Almoner’s Hall de Bishop’s Lacey sobre a morte de Robin Ingleby, aos cinco anos de idade, cujo corpo foi encontrado na segunda-feira no Bosque Gibbet, próximo àquela aldeia. O inspetor Josiah Gully, da força policial de Hinley, preferiu não comentar nada desta vez, porém urge fortemente qualquer pessoa do público que possa ter alguma informação sobre a morte da criança contatar as autoridades policiais imediatamente em Hinley 5272.

 

Logo abaixo, vinha impressa uma nota:

 

Informo aos clientes que a agência de Correio e confeitaria localizada na rua principal, Bishop’ Lacey, fechará hoje (sexta-feira, 7 do corrente) ao meio-dia. Ambos abrirão como de costume no sábado de manhã. O seu patrocínio é apreciado. Letitia Cool, Proprietária.

 

A srta. Cool era a agente de Correio e a fornecedora de doces da aldeia, e eu só conseguia pensar em uma razão para ela fechar a loja numa sexta-feira.

Fui ansiosamente para a semana seguinte: a edição de 14 de setembro.

 

Um inquérito convocado para investigar a morte de Robin Ingleby, de cinco anos de idade, da Fazenda Culverhouse, próxima a Bishop’s Lacey, foi encerrado na última sexta-feira, às 15h15, após quarenta minutos de debates. O juiz registrou um veredicto de morte por homicídio acidental e expressou suas condolências aos pais enlutados.

 

E era tudo. Parecia óbvio que a aldeia queria poupar os pais da aflição de ver impressos os detalhes horrendos.

Uma rápida olhada nos jornais restantes não revelou nada além de uma breve notícia do funeral, onde o caixão foi carregado por Gordon Ingleby, Bartram Tennison (o avô de Robin, que viera de Londres), Dieter Schrantz e Clarence Mundy, o dono do táxi. O nome de Rupert não foi mencionado.

Recoloquei os jornais em seu suporte e, sem nenhum dano à minha pessoa além de um joelho arranhado, me espremi de volta pela janela.

Diacho! Estava começando a chover. Uma nuvem de fundo escuro flutuou para a frente do sol, esfriando subitamente o ar.

Corri através do terreno gramado até o rio, onde gordas gotas de chuva já marcavam a superfície da água com pequenas crateras perfeitamente formadas. Desci com dificuldade a ribanceira e, com as mãos nuas, recolhi um punhado da argila grudenta que formava a margem.

E então voltei ao Barracão do Fosso, onde depositei o barro em um montinho no peitoril da janela. Tomando cuidado para não sujar a roupa, rolei punhados do material entre as palmas, fazendo uma família de serpentes cinzentas compridas e viscosas. Depois, escalando mais uma vez o motor enferrujado, peguei a vidraça pelas bordas e a ergui cautelosamente de volta à sua posição. Usando o indicador como uma espátula de vidraceiro improvisada, apertei a argila por toda a volta do vidro, formando algo que, pelo menos, ficou semelhante a uma vedação firme e robusta.

Quanto tempo ela iria durar, ninguém poderia dizer. Se a chuva não a dissolvesse e a levasse embora, poderia muito bem durar para sempre. Não que fosse preciso: na primeira oportunidade, pensei, iria substituí-la, surrupiando um pouco de massa de vidraceiro genuína e uma espátula apropriada em Buckshaw, onde Dogger estava sempre usando esse material para reforçar vidraças soltas na estufa decrépita.

“O Louco da Massa de Vidraceiro atacou outra vez!”, cochichariam os aldeões.

Depois de uma corrida até o rio para lavar a argila encrostada nas mãos, fiquei, salvo por estar totalmente encharcada, quase apresentável.

Recolhi Gladys da grama e, passeando de um jeito despreocupado, subi o Caminho das Vacas até a rua principal, como se nada tivesse acontecido.


A confeitaria da srta. Cool, que incorporava a agência de Correio da aldeia, era uma estreita relíquia georgiana, espremida entre um salão de chá e uma agência funerária a leste e uma peixaria a oeste. Suas vitrines cheias de moscas eram escassamente salpicadas de caixas de chocolate desbotadas, as tampas reproduzindo damas rechonchudas de meias listradas e plumas, que sorriam atrevidamente, sentadas meio de lado em desajeitados velocípedes de três rodas.

Foi lá que Ned havia comprado os chocolates que deixou à nossa porta. Eu tinha certeza disso, pois ali, do lado esquerdo, havia a marca escura e retangular do lugar onde a caixa repousara desde o tempo em que jardineiras puxadas por cavalos passavam trovejando pela rua principal.

Por um instante fugaz me perguntei se Felinha já teria provado a minha obra artesanal, mas afastei o pensamento na hora. Tais prazeres teriam de esperar.

A sineta em cima da porta tilintou para anunciar minha entrada, e a srta. Cool ergueu os olhos atrás do balcão do Correio.

— Flavia, querida! — disse ela. — Que surpresa agradável. Ora, mas você está toda molhada! Eu estava pensando em você não faz nem dez minutos, e aqui está você. Na verdade, era no seu pai que eu estava pensando, mas dá na mesma, não é? Tenho aqui uma tira de selos que pode interessá-lo: quatro Georges com uma perfuração extra bem no meio da cara dele. Não parece certo, parece? Totalmente desrespeitoso. A srta. Reynolds, lá da Glebe House, comprou-os na última sexta-feira e os devolveu no sábado. “Têm buracos demais!”, me disse ela. “Não vou admitir que minhas cartas para Hannah (é a sobrinha dela em Shropshire, querida) sejam confiscadas por violação da Lei Postal.”

Ela me entregou um envelope translúcido.

— Obrigada, srta. Cool. Tenho certeza de que o pai vai apreciar ter estes selos na sua coleção, e sei que ele gostaria que eu lhe agradecesse pela gentileza.

— Você é uma menina tão boa, Flavia — disse ela, enrubescendo. — Ele deve ter muito orgulho de você.

— Sim — disse eu —, ele tem. Muito.

Na verdade, aquele foi um pensamento que nunca me passou pela cabeça.

— Você realmente não deve ficar por aí desse jeito, toda molhada, querida. Vá até meu quartinho no fundo e tire suas roupas. Vou pendurá-las na cozinha para secar. Você encontrará uma manta nos pés da minha cama. Enrole-se nela, e vamos ter uma conversa gostosa e aconchegante.

Cinco minutos depois, estávamos de volta à loja, eu parecendo um índio americano pé-negro enrolado num cobertor, e a srta. Cool, com seus óculos pequeninos, lembrava em tudo o feitor de um entreposto comercial no Golfo de Hudson.

Ela já estava atravessando a loja na direção do pote alto de palitos de marroio-branco.

— Quantos você vai querer hoje, querida?

— Nenhum, obrigada, srta. Cool. Saí de casa com muita pressa de manhã, e não trouxe a minha bolsa.

— Pegue um assim mesmo — disse ela, estendendo o pote. — Acho que eu também vou pegar um. Palitos de marroio-branco devem ser compartilhados com amigos, você não acha?

Ela estava completamente enganada: os palitos de marroio-branco eram feitos para ser devorados em solitária gulodice, de preferência em um quarto trancado, mas não me arrisquei a dizer isso. Estava ocupada demais preparando minha armadilha.

Ficamos sentadas por alguns minutos em um silêncio amigável, chupando nossos doces. Uma luz cinzenta diluída infiltrava-se através da janela para o interior da loja, iluminando de dentro as fileiras de potes de vidro com doces, emprestando-lhes um brilho pálido e doentio. Devemos estar parecendo, pensei, sem tirar nem pôr, um par de alquimistas planejando nosso próximo ataque aos elementos.

— Robin Ingleby gostava de palitos de marroio-branco, srta. Cool?

— Ora, mas que pergunta mais estranha! O que a fez pensar nisso?

— Ah, não sei — eu disse com ar displicente, correndo o dedo pela borda de um mostruário de vidro. — Imagino que foi ao ver o rosto do pobre Robin naquele boneco no salão paroquial. Foi um choque e tanto. Não consigo mais tirá-lo da cabeça.

Isso era bem verdade.

— Oh, pobrezinha! — disse ela. — Estou certa de que ninguém de nós consegue, mas as pessoas não quiseram mencionar isso. Foi quase... como é mesmo a palavra? Obsceno. E aquele pobre homem! Que tragédia. Eu não consegui mais pregar o olho depois do que aconteceu. Por outro lado, suponho que aquilo tenha sido uma reviravolta e tanto para todos nós, não foi?

— Você estava no júri do inquérito de Robin, não estava?

Eu estava ficando muito boa nisso. Em um instante, ela ficou confusa.

— Ora... ora, sim, eu estava. Mas como diabos você sabe disso?

— Acho que o pai deve ter mencionado alguma vez. Ele sente um profundo respeito por você, srta. Cool. Mas com certeza você já sabe.

— Um respeito que é inteiramente mútuo, eu lhe asseguro — disse ela. — Sim, eu era um membro do júri. Por que você pergunta?

— Bem, para ser honesta, minha irmã Ophelia e eu tivemos uma discussão sobre isso. Ela disse que no começo pensaram que o Robin havia sido assassinado. Eu discordei. Foi um acidente, não foi?

— Não sei se estou autorizada a discutir isso, querida — disse ela. — Mas foi há tantos anos, não é? Acho que posso contar a você (de amiga para amiga, veja bem) que a polícia de fato considerou essa possibilidade. Mas não havia nada nela. Nem sombra de alguma prova. O menininho subiu para o bosque sozinho e se enforcou sozinho. Foi um acidente. Foi o nosso veredicto: morte por homicídio acidental, é o nome que eles dão.

— Mas como você soube que ele estava sozinho? Você deve ter sido tremendamente esperta para descobrir isso.

— Ora, por causa das pegadas, meu amor! Por causa das pegadas! Não havia outras em lugar nenhum por perto daquela velha forca. Ele subiu até o bosque sozinho.

Meu olhar se desviou para a janela da loja. O aguaceiro começara a diminuir.

— Estava chovendo? — perguntei numa súbita inspiração. — Antes de ele ser encontrado?

— De fato estava — respondeu ela. — Chovia torrencialmente.

— Ah — disse eu, evasiva. — Esteve aqui um sr. Mutt Wilmott para pegar a correspondência dele? Deve ter sido uma posta-restante.

Percebi na hora que eu tinha ido longe demais.

— Sinto muito, querida — disse a srta. Cool, com uma fungada quase imperceptível. — Mas não temos permissão para divulgar esse tipo de informação.

— Ele é um produtor da BBC — eu disse com minha melhor cara de ligeiramente arrasada. — Muito famoso, na verdade. Ele é — ou pelo menos era — o responsável pelo programa de televisão do pobre sr. Porson, O Reino Mágico. Eu esperava conseguir um autógrafo dele.

— Se ele aparecer, eu digo que você perguntou por ele — disse a srta. Cool, abrandando-se. — Não creio ter tido ainda o prazer de conhecer o cavalheiro.

— Oh, obrigada, srta. Cool! — balbuciei. — Eu simplesmente adoro acrescentar algumas personalidades da BBC à minha pequena coleção.

Às vezes eu me odiava. Mas não por muito tempo.

— Bem, parece que a chuva parou — eu disse. — Preciso mesmo ir andando. Acho que minhas roupas já devem estar secas o bastante para me levar para casa, e eu não gostaria que o pai ficasse preocupado. Ele já tem tanta coisa na cabeça hoje em dia.

Eu sabia muito bem que todo mundo em Bishop’s Lacey tinha conhecimento das dificuldades financeiras do pai. Contas pagas em atraso em uma aldeia eram como um foguete sinalizador no meio da noite. Eu bem que podia ganhar alguns pontos pela minha atitude.

— Que criança sensível você é, Flavia — disse ela. — Pegue mais um palito de marroio-branco.

Minutos depois, eu já estava vestida diante da porta. Do lado de fora, o sol saíra, e um perfeito arco-íris cruzava o céu.

— Obrigada pela adorável conversa, srta. Cool, e pelo marroio-branco. Da próxima vez será por minha conta, eu insisto.

— Vá para casa em segurança, querida — ela me disse. — Cuidado com as poças. E guarde-os embaixo do chapéu; os selos, quero dizer. Nós não deveríamos deixar os defeituosos circular.

Dei-lhe uma horrenda piscadela conspiratória e acenei com os dedos.

Ela não havia respondido à minha pergunta sobre se Robin gostava de palitos de marroio-branco, mas também aquilo não tinha muita importância, tinha?


DEI UMA BOA SACUDIDA EM GLADYS, e gotas de chuva saíram voando de sua estrutura como água de um cão encharcado. Eu estava prestes a ir para casa quando alguma coisa na vitrine da loja do agente funerário me chamou a atenção: na verdade, não mais que um ligeiro movimento.

Embora estivesse funcionando no mesmo lugar desde a morte de George III, a loja de Sowbell & Filhos erguia-se discreta e indiferente, como se estivesse esperando um ônibus. Na verdade, era um tanto inusitado ver alguém entrar ou sair daquele lugar.

Despreocupada, me aproximei um pouco mais, fingindo um grande interesse nos cartões fúnebres com margens pretas expostos na vitrine de vidro laminado. Embora nenhum dos mortos (Dennison Chatfield, Arthur Bronson-Willowes, Margaret Beatrice Peddle) fosse alguém que eu conhecesse, estudei atentamente os nomes, dedicando a cada um deles uma pesarosa sacudida de cabeça.

Movendo os olhos da esquerda para a direita, como se estivesse lendo as letras menores dos cartões, porém mudando o foco para o interior sombrio da loja, dava para ver alguém lá dentro agitando as mãos enquanto falava. Foram a camisa de seda amarela e a gravata cor de malva que me chamaram a atenção: era Mutt Wilmott!

Antes que o bom senso pudesse puxar o freio, eu já tinha irrompido para dentro da loja.

— Oh, olá, sr. Sowbell — eu disse. — Espero não estar interrompendo nada. Eu só queria dar uma parada para lhe informar que nosso pequeno experimento químico funcionou admiravelmente, afinal.

Admito que isso foi lustrar um pouquinho os fatos. A verdade é que num domingo eu o peguei de surpresa no pátio da igreja de São Tancredo, depois das orações matinais, para pedir sua opinião pessoal como especialista em conservantes, por assim dizer, sobre se era possível obter um fluido embalsamador confiável a um custo baixo colhendo, macerando, fervendo e destilando o ácido fórmico de um grande número de formigas ruivas (Formica rufa).

Ele alisou o queixo comprido, coçou a cabeça e ficou olhando para cima, para dentro das copas dos teixos, por um bom tempo antes de dizer que na verdade nunca havia pensado nisso.

“É algo que eu vou ter de pesquisar, srta. Flavia”, disse.

Mas eu sabia que ele jamais faria isso de verdade, e estava certa. Os artesãos mais velhos podem ficar terrivelmente taciturnos quando se trata de discutir os truques de seu ofício.

Ele estava de pé nas sombras perto de uma porta almofadada escura que levava a algum sem dúvida pavoroso quartinho dos fundos: um quartinho que eu daria um guinéu para conhecer.

— Flavia — ele saudou; algo cauteloso, pensei. — Infelizmente você terá de nos desculpar — disse. — Estamos no meio de um importante...

— Ora, ora — disse Mutt Wilmott —, se não é a ubíqua jovem protegida de Rupert, a senhorita...

— De Luce — eu disse.

— Sim, claro, De Luce. — Ele sorriu condescendente, como se soubesse o tempo todo; como se só estivesse me provocando.

Tenho de admitir que, como Rupert, o homem tinha uma voz profissional absolutamente maravilhosa: uma fluência melíflua de palavras que saíam como se ele tivesse um órgão de tubos de madeira no lugar da laringe. A BBC devia criar essas pessoas em alguma fazenda secreta.

— Como uma das jovens protegidas de Rupert, por assim dizer — prosseguiu Mutt —, você talvez se sinta confortada por saber que a Titia, como nós os íntimos chamamos a British Broadcasting Corporation, está planejando o tipo de funeral que uma de suas estrelas mais brilhantes merece. Não é exatamente a Abadia de Westminster, você entende, mas a segunda melhor opção. Assim que o sr. Sowbell aqui mandar os... hã... restos mortais para Londres, o luto público poderá começar: a câmara-ardente, os tributos florais, a enrubescida mãe de dez filhos de Weston-super-Mare se ajoelhando junto ao ataúde ao lado dos filhos afogados em lágrimas, e tudo isso com as câmeras de televisão assistindo. Ninguém menos que o diretor-geral em pessoa sugeriu que poderia ser um toque pungente pôr Snoddy, o Esquilo de guarda ao pé do caixão, montado em uma luva vazia.

— Ele está aqui? — perguntei, com um gesto na direção do quartinho dos fundos. — Rupert ainda está aqui?

— Ele está em boas mãos. — Mutt Wilmott assentiu, e o sr. Sowbell, com um sorriso forçado, fez uma humilde e pequena reverência de agradecimento.

Eu nunca na vida tive tanta vontade de fazer alguma coisa, como de perguntar se poderia dar uma olhada no cadáver, mas dessa vez meu cérebro normalmente ágil me falhou. Não consegui pensar em uma única razão plausível para dar uma espiada nos restos mortais de Rupert, como disse Mutt Wilmott; e também não consegui pensar em nenhuma razão implausível.

— Como Nialla está suportando tudo isso? — perguntei, dando um tresloucado tiro no escuro.

Mutt franziu o cenho.

— Nialla? Ela foi embora para algum lugar — disse ele. — Ao que parece, ninguém sabe para onde.

— Talvez ela tenha alugado um quarto na Treze Patos — sugeri. — Devia estar precisando de um banho quente.

Eu esperava que Mutt mordesse a isca, e ele mordeu.

— Ela não está na Treze Patos — retrucou. — Eu mesmo fiquei acampado ali quando cheguei.

Então! Como eu suspeitava, Mutt Wilmott estava a uma curta distância de São Tancredo antes, durante e talvez depois que Rupert foi assassinado.

— Bem — eu disse —, desculpe por incomodá-lo.

Eles continuaram a planejar, antes ainda de eu atravessar a porta.


Como acontece frequentemente no verão, o céu clareou depressa. As nuvens escuras se afastaram para o leste, e passarinhos cantavam exageradamente. Embora ainda fosse um tanto cedo, e a despeito do ar fresco e do sol tépido, me vi bocejando como um gato enquanto pedalava pelos caminhos rumo a Buckshaw. Talvez fosse porque eu acordara antes do amanhecer; talvez porque eu ficara acordada até tarde na noite anterior.

Seja qual for o caso, subitamente fiquei exausta demais. Dafi certa vez comentara que Samuel Pepys, o diarista, estava sempre deitando na cama, e o pai sempre falava dos poderes restauradores de um cochilo rápido. Dessa vez entendi como eles se sentiam.

Mas como entrar em casa sem ser vista? A sra. Mullet montava guarda na cozinha como um Leão Imperial guardando a tumba de um imperador chinês, mas, se eu usasse a porta da frente, correria o risco de cair numa emboscada de tia Felicity e ser designada para deveres indesejáveis pelo resto do dia.

A estrebaria era o único lugar onde alguém poderia facilmente entrar e sair sem ser visto ou perturbado.

Estacionei Gladys atrás de uma das maiores castanheiras que ladeavam a entrada e dei a volta sorrateiramente pelo lado da casa.

Uma porta no outro lado da estrebaria se abria para aquilo que outrora era chamado de pequeno paddock. Escalei a cerca, ergui a tranca de ferro fundido e entrei discretamente pela lateral da casa.

Embora meus olhos estivessem um pouco ofuscados pela luz de fora, ainda consegui distinguir a avultante forma escura do Rolls-Royce clássico de Harriet, um Phantom II, o radiador niquelado luzindo seu brilho empanado na penumbra. Apenas uma luz difusa e pálida conseguia achar seu caminho através das janelas pequenas e empoeiradas, e eu sabia que teria de olhar onde pisava.

Às vezes eu ia ali pensar. Subia a bordo daquele palácio sobre rodas e, em seu confortável interior, ficava sentada sobre o couro cor de creme, fazendo de conta que era Harriet, prestes a engatar a marcha e sair dirigindo rumo a uma vida melhor.

Segurei a maçaneta da porta e a girei silenciosamente. Se Dogger estivesse por perto, sei que seria alertado pelo mais leve ruído e iria correndo ver quem estava invadindo a estrebaria. Que Deus abençoe a boa nave Rolls-Royce e todos os que nela navegam, pensei, quando a pesada porta se abriu em silêncio total e me icei para o banco do motorista.

Inalei o aroma aveludado do carro, como Harriet devia ter feito antigamente, e me preparei para me enrodilhar como uma bola. Com um pouco de sorte, e a quase escuridão, eu estaria dormindo em menos de um minuto. Depois haveria tempo bastante para pensar em assassinatos.

Enquanto eu me espreguiçava voluptuosamente, meus dedos encostaram em alguma coisa: a pele de uma perna humana, pelo tato. Antes que eu pudesse soltar um berro, alguém pôs a mão com força na minha boca.

— Fique quieta! — chiou uma voz ao meu ouvido.

Meus olhos se reviraram como os de um cavalo num matadouro. Mesmo naquela luz fraca dava para ver o rosto da pessoa que me asfixiava.

Era Nialla.

Minha primeira reação foi arrancar um de seus dedos com uma mordida: eu tenho um tipo de fobia contra ser fisicamente contida, e havia ocasiões em que meus reflexos eram mais rápidos do que a razão.

— Não faça nenhum barulho! — sussurrou ela, dando-me uma pequena sacudida. — Eu preciso da sua ajuda.

Raios! Ela me dera a senha feminina: pronunciara aquelas palavras mágicas que remetiam, desde as mais remotas brumas do tempo, a uma aliança formada em algum pântano primordial. Eu estava sob seu domínio. Relaxei o corpo imediatamente e assenti com a cabeça. Ela tirou a mão.

— A polícia está me procurando? — perguntou ela.

— Eu... eu acho que não. Não sei — disse. — Não estou exatamente entre os confidentes deles.

Eu ainda estava um pouco magoada por ter sido agarrada e chacoalhada.

— Ora, pare com isso, Flavia — disse ela. — Não fique toda ofendida comigo. Eu preciso saber. Estão procurando por mim?

— Não vejo a polícia desde sábado à noite — disse eu —, logo depois que Rupert... Logo depois que Rupert foi...

Embora eu não tivesse medos no mundo, não consegui me forçar a dizer aquilo na cara de Nialla.

— Assassinado — disse ela, deixando-se cair de volta no banco. — Nem eu. Aquele inspetor simplesmente não parava de me fazer perguntas. Foi horrível.

— Assassinado? — Eu despejei a palavra como se o pensamento jamais tivesse me ocorrido. — O que a leva a pensar que Rupert foi assassinado?

— É o que todo mundo pensa: a polícia, e agora você. Você estava dizendo “logo depois que Rupert foi...”. Isso implica alguma coisa, não é? Assassinado... morto, que diferença faz? Você certamente não ia dizer “logo depois que Rupert morreu”, e não faça de conta que não foi isso. Eu não sou boba, Flavia, então, por favor, não continue me tratando como se eu fosse.

— Talvez tenha sido um acidente — eu disse, esquivando-me para organizar os pensamentos.

— A polícia teria passado metade da noite interrogando o público se achasse que foi um acidente?

Ela tinha razão.

— O que é pior — ela prosseguiu — é que eles pensam que fui eu que fiz isso.

— Dá para entender por quê — eu disse.

— O quê? De que lado você está, afinal? Eu disse que precisava de ajuda, e de repente você me acusa de assassinato!

— Eu não estou acusando você de assassinato. Só estou afirmando o óbvio.

— Que é...?

Ela estava ficando mais zangada a cada minuto.

— Que é — eu disse, respirando fundo — o fato de que você estava escondida, de que Rupert batia em você, de que havia outra mulher e de que você está grávida.

Naquelas águas, eu estava mergulhada bem fundo, mas ainda determinada a nadar como um cão jogado de cima de um atracadouro. Mesmo assim, o efeito de minhas palavras sobre Nialla foi realmente notável. Pensei por um instante que ela me esbofetearia.

— Isso é tão óbvio? — perguntou com os lábios tremendo.

— Para mim, é — retruquei. — Não posso falar por mais ninguém.

— Você acha que fui eu? Quem matou Rupert, quero dizer?

— Não sei — respondi. — Eu não devia ter considerado você capaz de uma coisa dessas, mas, por outro lado, não sou nenhum Spilsbury.

Embora Sir Bernard tivesse sido um especialista em apontar assassinos, inclusive aqueles dois grandes envenenadores, o dr. Crippen e o major Armstrong, ele, por estranho que pareça, havia tirado a própria vida envenenando-se com gás em seu laboratório. Ainda assim, pensei, se Spilsbury estivesse vivo, teria sido o primeiro a ressaltar que Nialla tivera os meios, o motivo e a oportunidade.

— Pare de tagarelar! — disse ela. — Você acha que fui eu quem assassinou Rupert?

— Foi? — eu disparei de volta.

— Não posso responder — disse ela. — Você não deve perguntar.

Eu não era inexperiente nesse tipo de disputa feminina: onze anos debaixo do mesmo teto com Felinha e Dafi me deixaram totalmente imune àquele tipo de evasivas e esquivas.

— Tudo bem — insisti —, mas se não foi você, então quem foi?

A essa altura, eu já tinha me acostumado à luz poeirenta da estrebaria e vi os olhos de Nialla se arregalar como luminosas luas gêmeas.

Houve um longo e muito desagradável silêncio.

— Se não foi você — eu disse afinal —, então por que estava se escondendo aqui?

— Eu não estou me escondendo! Eu precisava escapar. Já contei isso. A polícia, os Mullet...

— Entendo quanto aos Mullet — eu disse. — Eu preferiria passar uma manhã na cadeira do dentista a ficar ouvindo a sra. Mullet matraqueando por uma hora.

— Você não devia falar essas coisas — disse Nialla. — Eles foram, os dois, muito gentis, especialmente Alf. Ele é um velho cavalheiro encantador; me lembra meu avô. Mas eu precisava me esconder em algum lugar para pensar, para me recompor. Você não sabe como é ficar arrasada.

— Sim, eu sei — disse eu. — Mais do que você pode imaginar. Muitas vezes venho aqui eu mesma, quando preciso ficar sozinha.

— Devo ter sentido aquilo. Pensei em Buckshaw imediatamente. Ninguém jamais pensaria em me procurar aqui. O lugar não era na verdade tão difícil de achar.

— É melhor você voltar — eu disse —, antes que percebam que você foi embora. O inspetor não estava na igreja quando passei por lá. Acho que eles trabalharam até bem tarde. Como ele já a interrogou, não há razão para você não fazer um longo passeio pelo campo, não é?

— Não — disse ela, hesitante.

— Além disso — acrescentei, voltando à minha alegre personalidade —, ninguém além de mim sabe que você esteve aqui.

Nialla estendeu a mão para a bolsa lateral do Rolls-Royce e puxou de lá alguma coisa. Veio com um farfalhar de papel encerado. Quando ela a abriu no colo, não pude deixar de notar as dobras perfeitas no papel.

— Ninguém sabe — disse ela, me passando um sanduíche de pepino —, fora você, e mais uma outra pessoa. Vamos, coma isto. Você deve estar com fome.


— VAMOS, VAMOS! — resmungava Dogger com as mãos trêmulas como as últimas duas folhas do outono. Ele não me viu lá de pé, na soleira da estufa.

Com uma lâmina de seu canivete aberta quase em ângulo reto, ele tentava desajeitadamente afiá-la em uma pedra úmida. A lâmina deslizava de um jeito maluco de um lado para outro, produzindo ruídos rascantes horrorosos sobre a superfície preta.

Pobre Dogger. Aqueles episódios caíam em cima dele sem aviso, e quase qualquer coisa poderia detoná-los: uma palavra pronunciada, um cheiro ou um fragmento de melodia ao léu. Ele estava à mercê de sua memória arruinada.

Recuei lentamente até ficar atrás do muro do jardim. Então comecei a assobiar baixinho, aumentando o volume aos poucos. Soaria como se eu acabasse de atravessar o gramado em direção à horta da cozinha. A meio caminho da estufa, comecei a cantar; uma canção australiana para cantar em volta da fogueira que eu aprendera logo antes de ser excomungada da organização Guia das Meninas:

 

À margem da lagoa um alegre vagabundo,

Sob a sombra de um eucalipto encontrou abrigo.

E ele cantava esperando a chaleira ferver:

“Quem vai querer ser um bom mochileiro comigo?”

 

Entrei de ombros erguidos na estufa.

— Bom dia, companheiro! — eu disse com um cordial sorriso australiano.

— McCorquedale? É você? — chamou Dogger com a voz fraca e tênue como a brisa nas cordas de uma velha harpa. — Bennett está com você? Vocês recuperaram as suas línguas?

Sua cabeça estava inclinada para o lado, escutando, a munheca erguida para proteger os olhos, cegamente voltados para a luz ofuscante do vidro da estufa.

Me senti como se tivesse invadido um santuário, e a minha nuca formigava.

— Sou eu, Dogger, Flavia — consegui falar.

Suas sobrancelhas se juntaram em uma expressão de perplexidade.

— Flavia?

Meu nome saiu de sua garganta como o sussurro de um poço abandonado.

Vi que ele lutava para voltar do que quer que o havia tomado, a luz retornando a seus olhos muito cautelosamente das profundezas para a superfície, como peixinhos dourados em uma lagoa ornamental.

— Srta. Flavia?

— Desculpe — disse eu, tirando o canivete de suas mãos trêmulas. — Será que eu quebrei? Peguei emprestado ontem para cortar um pedaço de barbante e posso ter estragado o fio da lâmina. Se eu fiz isso, vou comprar um novo para você.

Isso era pura fantasia. Eu não tinha encostado a mão naquela coisa, mas aprendi que sob certas circunstâncias uma mentirinha inocente não só é permissível como pode ser um ato de perfeita benevolência. Tirei o canivete de suas mãos, abri-o completamente e comecei a esfregar a lâmina em círculos suaves sobre a superfície da pedra.

— Não, ela está ótima — eu disse. — Ufa! Eu estaria encrencada se tivesse estragado o seu melhor canivete, não estaria?

Fechei a lâmina e entreguei o canivete de volta. Dogger o pegou, os dedos agora muito mais seguros.

Virei ao contrário um balde vazio e me sentei nele enquanto compartilhávamos um silêncio.

— Foi bondade sua pensar em dar comida a Nialla — eu disse depois de algum tempo.

— Ela precisa de um amigo — disse ele. — Ela está...

— Grávida — despejei.

— Sim.

— Mas como você sabia? Com certeza ela não contou a você.

— Excesso de salivação — disse Dogger — e telangiectasia.

— Tel-o-quê?

— Telangiectasia — disse ele com uma voz mecânica, como se estivesse lendo em um livro invisível. — Aranhas vasculares na proximidade da boca, do nariz e do queixo. Incomum, mas não desconhecido no início da gravidez.

— Você me surpreende, Dogger — eu disse. — Como diabos você sabe essas coisas?

— Elas flutuam na minha cabeça — respondeu ele mansamente — como rolhas no mar. Eu li livros, acho. Tive um bocado de tempo nas minhas mãos.

— Ah! — disse eu. Aquilo tinha sido o máximo que eu já o ouvira dizer em séculos.

Mas o antigo cativeiro de Dogger não era um tópico aberto a discussões, e eu soube que era hora de mudar de assunto.

— Você acha que ela fez aquilo? — perguntei. — Quero dizer, que matou Rupert?

Dogger juntou as sobrancelhas, como se o pensamento lhe viesse com um esforço imenso.

— A polícia vai pensar isso — disse ele, assentindo lentamente. — Sim, é isso que a polícia vai pensar. Logo estará aqui.

Como se viu, ele estava certo.


— É um fato bem conhecido — trombeteou tia Felicity — que a peste negra foi trazida à Inglaterra pelos advogados. Shakespeare disse que devíamos ter enforcado uma porção deles, e, à luz da moderna reforma sanitária, sabemos agora que ele estava certo. Isso nunca vai dar certo, Haviland!

Ela enfiou um punhado de papéis em uma poeirenta caixa de chapéu e fechou a tampa.

— É uma perfeita ignomínia — ela acrescentou — a maneira como você deixa as coisas escapar; a não ser que aconteça alguma coisa, logo você não terá opção senão vender Buckshaw e ficar em um apartamento sem água quente em Battersea.

— Olá, todo mundo — disse eu, entrando despreocupada na biblioteca, fingindo pela segunda vez em menos de meia hora que estava por fora de tudo o que acontecia.

— Ah, Flavia — disse o pai. — Acho que a sra. Mullet está precisando de mais duas mãos na cozinha.

— É claro — disse eu, e aproveitei para perguntar: — E então, vou ter permissão para ir ao baile?

O pai pareceu ficar intrigado. A minha engenhosa resposta se perdeu totalmente para ele.

— Flavia! — disse tia Felicity. — Isso não é maneira de uma criança falar com seu pai. Eu deveria imaginar que você a essa altura já tinha superado essa atitude impertinente. Não sei como você deixa essas meninas se safar com isso, Haviland.

O pai foi até a janela e olhou para fora através do lago ornamental e na direção da folly. Ele se refugiava, como sempre fazia, deixando pelo menos os olhos escapar de uma situação desagradável.

De repente, ele se voltou para encará-la.

— Com os diabos, Lissy — disse com uma voz tão forte que acho que surpreendeu inclusive a ele. — Nem sempre as coisas são fáceis para elas. Não... nem sempre é fácil para elas.

Acho que minha boca se escancarou quando a dele se fechou.

Querido velho pai! Eu poderia tê-lo abraçado, e se um de nós dois fosse diferente de quem somos, acho que teria feito isso.

Tia Felicity voltou a remexer os papéis.

— Legados obrigatórios... bens pessoais — disse ela com uma fungada. — Aonde isso tudo vai parar?


— Flavia — disse Felinha assim que passei pela porta aberta da sala de estar —, um momento?

Ela soava suspeitosamente cortês. Estava tramando alguma.

Quando entrei, Dafi, que estava em pé perto da porta, fechou-a suavemente atrás de mim.

— Estávamos esperando você — disse Felinha. — Por favor, sente-se.

— Prefiro não — disse eu. As duas continuavam em pé, pondo-me em desvantagem caso houvesse necessidade de uma fuga súbita.

— Como queira — disse Felinha, sentando-se atrás de uma pequena mesa e colocando seus óculos. Dafi ficou em pé, com as costas contra a porta.

— Infelizmente tenho algumas notícias bem desagradáveis para você — disse Felinha, brincando com os óculos como um juiz no tribunal Old Bailey.

Eu não disse nada.

— Enquanto você vagabundeava pelos campos, tivemos uma reunião e decidimos que você vai ter de ir.

— Em suma, fizemos uma votação e expulsamos você da família — disse Dafi. — Por unanimidade.

— Unanimidade? — eu disse. — Isso não passa de mais uma das suas estúpidas...

— Dogger, naturalmente, apelou por leniência, mas foi indeferido pela tia Felicity, que tem um peso muito maior nesses assuntos. Ele queria que você fosse autorizada a ficar até o fim da semana, mas infelizmente não poderemos permitir. Ficou decidido que você estará fora daqui até o pôr do sol.

— Mas...

— O pai já deu instruções ao sr. Pringle, o advogado dele, para minutar um Acordo de Reversão, o que significa, é claro, que você será devolvida ao Lar das Mães Solteiras, que não terá alternativa senão aceitá-la de volta.

— Por causa do Acordo, entenda — disse Dafi. — Está no estatuto deles. Eles não podem dizer não. Não podem recusar.

Apertei os punhos quando senti as lágrimas começando a se formar nos meus olhos. Não adiantava aguardar pela justiça.

Empurrei Dafi bruscamente para longe da porta.

— Você já comeu aqueles chocolates? — perguntei a Felinha.

Ela ficou um pouco perplexa com a rispidez da minha voz.

— Bem, não... — ela disse.

— Melhor não — cuspi. — Eles podem estar envenenados.

Assim que as palavras saíram da minha boca, soube que tinha feito a coisa errada.

Maldição! Eu tinha me entregado. Todo aquele trabalho no laboratório desperdiçado!

Flavia, pensei, às vezes você não é mais brilhante do que um lagarto atingido por um raio.

Zangada comigo mesma por estar zangada, saí marchando da sala por princípios gerais, e ninguém tentou me impedir.


Respirei fundo, relaxei os ombros e abri a porta da cozinha.

— Flavia — chamou a sra. Mullet —, seja boazinha e me traga um copo de xerez da despensa. Eu fiquei estranha. Mas veja lá, não vá exagerar, senão eu vou ficar tontinha.

Ela estava toda esticada em uma cadeira perto da janela, os calcanhares nos ladrilhos, se abanando com uma frigideirinha.

Fiz o que me mandara, e ela engoliu a bebida num instante.

— O que foi, sra. M? — perguntei. — O que aconteceu?

— A polícia, queridinha. Eles me deixaram tonta, quando vieram buscar aquela moça do jeito que fizeram.

— Que moça? Você quer dizer Nialla?

Ela assentiu, taciturna, sacudindo o copo vazio. Eu o enchi de novo.

— Tão boazinha, ela é. Nunca fez mal a ninguém. Ela bateu aqui na porta da cozinha para me agradecer, e ao Alf, é claro, por termos lhe dado abrigo naquela noite. Disse que estava indo embora e não queria que achássemos que ela era uma ingrata, essas coisas. Nem bem as palavras saíram de sua boca e aquele inspetor como-é-que-chama...?

— Hewitt — eu disse.

— Hewitt. É ele. Ele mesmo. Apareceu na porta bem atrás dela. Viu ela atravessar vindo da cocheira, ele viu.

— E então?

— Ele perguntou se podia ter uma palavrinha do lado de fora. E tudo o que sei é que depois a pobre menina foi embora no carro com ele. Eu tive de correr em volta da casa para poder dar uma boa olhada. Aquilo me deixou exausta, se deixou!

Reabasteci seu copo.

— Eu não devia ter feito isso, queridinha — disse ela —, mas o meu pobre e velho coração já não está mais à altura de tamanho pandemônio.

— Você já está com uma aparência melhor, sra. M — eu disse. — Há mais alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?

— Eu estava para pôr aquelas coisas no forno — disse ela, apontando para uma bateria de assadeiras cheias de massa de pão em cima da mesa, e pondo-se pesadamente de pé.

— Abra a tampa do forno para mim... boa menina.

Grande parte da minha vida foi dedicada a segurar a porta do forno do fogão Aga enquanto a sra. M alimenta aquela bocarra escancarada com montes de comida para assar. Nem no Inferno do Paraíso perdido de Milton há algo que se compare com a minha labuta.

— Ficamos completamente sem doces, nós ficamos — disse ela. — Quando se trata de gulodices, aquele rapaz da srta. Ophelia parece ter um estômago sem fundo.

O rapaz da srta. Ophelia? Já tinha chegado a isso? Será que as minhas perambulações em volta da aldeia me fizeram perder alguma cena de galanteio sensacional?

— Dieter? — perguntei.

— Mesmo sendo um alemão — disse ela inclinando a cabeça —, ele é muito mais refinado do que aquele descarado que fica deixando os seus presentes de lixo no degrau da porta da cozinha.

Pobre Ned!, pensei. Até a sra. Mullet estava contra ele.

— Por acaso ouvi um pouco do que ele disse enquanto eu espanava o vestíbulo: sobre Heathcliff e tudo o mais. Me lembro de quando eu e minha amiga, a sra. Waller, pegamos o ônibus para Hinley para ir ver ele no cinema. O morro dos ventos uivantes, se chamava, e é um bom nome para aquilo! Aquele tal de Heathcliff, ora, ele mantinha a mulher escondida no sótão, como se ela fosse uma velha camareira! Não admira que ela ficasse maluca. Eu ficaria! E agora, então, do que você está rindo, senhorita?

— Da ideia — eu disse — de Dieter chapinhando na lama através do Campo Jubileu debaixo de chuva e raios, para levar embora a Bela Ophelia.

— Bem, ele pode fazer isso — disse ela. — Mas não sem o devido espalhafato de Sally Straw e, dizem alguns, da própria velha senhora.

— A velha senhora? Grace Ingleby? Certamente você não quer dizer Grace Ingleby?

De repente a sra. Mullet ficou vermelha como uma panela de beterrabas fervendo.

— Eu já falei demais — disse, perturbada. — É o xerez, veja bem. Alf sempre fala como o xerez derruba o guarda que devia estar vigiando a minha língua. Agora, então, nem mais uma palavra. Vá agora, queridinha. E lembre-se: eu não disse nada.

Bem!, eu pensei. Bem, bem, bem, bem, bem!


HÁ ALGUMA COISA QUE CLAREIA A MENTE quando estamos lidando com venenos. Quando a mais leve escorregadela da mão pode provar ser fatal, a atenção da pessoa é forçada a se focalizar como uma lente ustória em cima do experimento, e é então que as respostas para as perguntas semiformadas muitas vezes vêm fervilhando à mente de modo tão fácil quanto abelhas voltando para a colmeia.

Com uma boa quantidade de ácido sulfúrico já decantado para um frasco recém-lavado e ligeiramente aquecido, acrescentei com cuidado uma pelota de gel cristalino e fiquei olhando maravilhada enquanto aquilo se dissolvia devagar, palpitando e se contorcendo no banho ácido como um filhote de lula translúcido.

Eu tinha extraído aquilo, com água e álcool, das raízes de um jasmim-amarelo (Gelsemium sempervirens) que, para meu deleite, eu descobrira florescendo beatificamente no canto da estufa, as flores parecidas com pequenas trombetas esculpidas em manteiga fresca.

A planta é nativa das Américas, Dogger me contou, mas tinha sido trazida para as estufas inglesas por viajantes; aquele espécime em particular, pela minha mãe, Harriet.

Perguntei se podia ficar com ela para o meu laboratório e Dogger concordou prontamente.

A raiz continha um adorável alcaloide chamado gelsemina, que ficara de espreita sem ser detectado dentro da planta desde a Criação, até ser trazido à tona por um homem da Filadélfia com o charmoso nome de Wormley, o qual administrou o veneno amargo a um coelho, que deu um salto mortal completo para trás e morreu em vinte minutos.

A gelsemina era uma assassina cuja companhia eu apreciava muito.

E agora vinha a mágica!

Introduzi no líquido, na ponta de uma faca, uma pequena dose de K2Cr2O7, ou dicromato de potássio, cujos sais vermelhos, iluminados por um raio fortuito do sol vindo das esquadrias da janela, o tornaram no matiz vermelho-cereja pálido do sangue de uma vítima de monóxido de carbono.

Mas isso era só o começo! Havia mais por vir.

O brilho cereja já estava desbotando, e a solução assumia a impressionante cor violeta de uma velha equimose. Prendi a respiração e... sim!, aqui estava, a fase final do verde-amarelado.

A gelsemina é um dos camaleões da química, mudando de cor em delicioso abandono, e sem um vestígio sequer do seu matiz original.

As pessoas também são assim. Nialla, por exemplo.

Por outro lado, ela era prisioneira de um titereiro viajante; uma mulher jovem que, a não ser pelo bebê que agora trazia na barriga, praticamente não tinha família; uma mulher jovem deixada agora sem dinheiro e sem nenhum meio de sustento visível. Ainda assim, de um modo confuso que eu não entendia inteiramente, ela não tinha a minha completa simpatia.

Seria porque tinha fugido da cena do crime, por assim dizer, e se escondido na cocheira em Buckshaw? Eu podia entender sua vontade de ficar sozinha, mas ela tinha escolhido o que dificilmente se poderia chamar de o melhor momento.

Onde estaria ela agora?, me perguntei. O inspetor Hewitt a teria prendido e arrastado para uma cela em Hinley?

Escrevi Nialla em um pedaço de papel.

E então havia Mutt Wilmott: um personagem impressionante, que parecia ter saído diretamente de um filme de Orson Welles. Não querendo exagerar nas minúcias, foi Mutt chegar e Rupert morrer; Mutt desapareceu depois de discutir com Rupert, e a seguir foi visto fazendo arranjos para embarcar o corpo para Londres, para um funeral de gala.

Seria Mutt um assassino contratado pela BBC? Teria a briga de Rupert com o misterioso Tony pressionado demais a “Titia” e seu diretor-geral? Seria o fim torpe de Rupert em cima do palco de um teatro rústico de marionetes não mais que o desfecho de uma amarga disputa contratual?

E Grace Ingleby? Para ser honesta, a sombria mulherzinha me dava arrepios. Seu santuário para uma criança morta em um pombal abandonado era o bastante para assombrar qualquer um; e agora a sra. Mullet insinuava que a mulher do fazendeiro era mais do que apenas uma senhoria para Dieter.

E Dieter! Apesar de toda a sua aparência de deus nórdico e de sua paixão pela literatura inglesa, parecia que ele havia conspirado com seus captores para cultivar e fornecer cannabis para o que Sally Straw chamara de “um pequeno exército de gente igual a ele”. Quem eram eles?, me perguntei.

Rupert, claro, era o chefe e visitava a fazenda Ingleby com a regularidade de um bonde. Era um mulherengo, não havia dúvidas a respeito (Sally de novo). Com quem ele entrara em conflito? Quem queria tanto vê-lo morto a ponto de matá-lo?

Quanto a Sally, tanto Rupert como Dieter estavam interessados nela. Teria Rupert sido empurrado para a eternidade por um rival no amor?

Sally parecia ser uma figura central: vivia na fazenda Ingleby havia anos. Estava claro que tinha uma queda por Dieter, mas se suas paixões eram correspondidas, isso já era outra história. E havia Gordon Ingleby. Gordon, o santo coberto de linho que fazia pelos sofredores o que nenhum médico estava disposto a fazer; Gordon, o horticultor; Gordon, o pai da criança morta no bosque.

Isso para não falar em Meg, a Louca, que estava no Bosque Gibbet quando Robin morreu, ou pelo menos não muito tempo depois.

E Cynthia, a querida Cynthia Richardson, mulher do vigário, cuja única paixão era seu ódio ao pecado. O súbito aparecimento de uma dupla de titereiros promíscuos propondo-se a apresentar um espetáculo no salão paroquial de seu marido deve ter calcinado sua alma como o lago de fogo no Livro do Apocalipse.

A despeito de tudo isso, a alma de Cynthia não era uma incubadora de caridade cristã. O que foi mesmo que Meg disse quando perguntei sobre sua soneca no presbitério? Que Cynthia tomara o bracelete dela e a pusera para fora porque era suja. Sem dúvida estava se referindo ao estojo de pó compacto em forma de borboleta de Nialla, mas se fosse esse o caso, por que eu o encontrara enroscado na manta de lã do estúdio? Teria Cynthia pego o pó compacto de Meg e então, surpreendida no ato por um entre as dezenas de aldeões que circulam pelo presbitério, o escondera para poder usá-lo depois?

Parecia improvável: se existia um pecado do qual Cynthia Richardson não podia ser culpada, era o da vaidade. Só uma olhada para ela já bastava para saber que a maquiagem jamais poluíra aquela cara pálida de furão, que joias jamais penderam daquele pescoço mirrado nem deram vida àqueles pulsos de palito de fósforo. Para dizer de modo mais educado, a mulher era despojada como um pudim.

Apontei o lápis e acrescentei seis nomes a minha lista: Mutt Wilmott, Grace Ingleby, Dieter Schrantz, Sally Straw, Meg, a Louca (uma vez Dafi me contou que o sobrenome de Meg era Grosvenor, mas eu não acreditei)... e Cynthia Richardson.

Tracei uma linha e abaixo dela escrevi em letras maiúsculas — CASOS AMOROSOS: PESQUISAR.

Embora eu tivesse uma ideia superficial do que acontecia entre duas pessoas que estão tendo um caso, eu na verdade não conhecia os detalhes mecânicos precisos. Uma vez, quando o pai esteve fora por vários dias para uma exposição de selos em Glasgow, Dafi insistiu em ler Madame Bovary em voz alta para nós em todas as refeições, de manhã, ao meio-dia e à noite, incluindo o chá, e terminou no terceiro dia bem quando o pai cruzava a porta.

Na época quase morri de tédio, muito embora aquele tenha se tornado desde então um dos meus livros favoritos, por conter, como contém, aquela que deve ser a melhor e mais empolgante descrição da morte por arsênico de toda a literatura. Me deleitei em particular com o modo como Emma, a envenenada, “ergueu-se como um cadáver galvanizado”. Mas agora me dou conta de que estava tão fascinada com a empolgação do suicídio da pobre Madame Bovary que deixei de assimilar as minúcias de seus diversos casos. Tudo o que eu conseguia lembrar era que, sozinha com Rodolfo junto à lagoa dos lírios, cercada por lentilhas-d’água e rãs saltadoras, Emma Bovary, em lágrimas, escondendo o rosto, e com um longo arrepio, “entregou-se a ele”.

O que quer que signifique isso. Eu iria perguntar a Dogger.


— Dogger — eu disse quando finalmente o encontrei, arrancando as ervas daninhas na horta da cozinha com uma enxada de cabo longo —, você leu Madame Bovary?

Dogger fez uma pausa em seu trabalho e extraiu um lenço do bolso do peitilho do macacão. Deu uma enxugada geral no rosto antes de responder.

— Um romance francês, não é? — perguntou.

— Flaubert.

— Ah — disse Dogger, e enfiou o lenço de volta no bolso. — Aquele onde uma pessoa extremamente infeliz se envenena com arsênico.

— Arsênico de um pote azul! — eu deixei escapar, pulando de um pé para o outro de tanta excitação.

— Sim — disse Dogger —, de um pote azul. Azul, não devido a qualquer risco de decomposição ou oxidação do conteúdo, mas para...

— Para não ser confundido com um pote contendo uma substância inofensiva.

— Exatamente — disse Dogger.

— Emma Bovary engole aquilo por causa de vários casos infelizes — eu disse.

Dogger, deliberadamente, raspou um torrão de barro da sola do sapato com a enxada.

— Ela teve um caso com um homem chamado Rodolfo — acrescentei — e depois com outro chamado Leon. Não ao mesmo tempo, é claro.

— É claro — disse Dogger, e silenciou.

— Um caso implica o quê, exatamente? — perguntei, esperando que minha escolha de palavras subentendesse, mesmo que ligeiramente, que eu já sabia a resposta.

Pensei por um momento que poderia vencê-lo pelo cansaço, muito embora no fundo soubesse que tentar vencer Dogger pelo cansaço seria um esforço inútil.

— O que Flaubert quis dizer — perguntei afinal — quando disse que Madame Bovary se entregou a Rodolfo?

— Ele quis dizer — disse Dogger — que eles se tornaram os maiores amigos. Os maiores amigos mesmo.

— Ah — disse eu. — Bem como eu pensava.

— Dogger! Suba aqui imediatamente, antes que eu me cause uma grave lesão interna.

A voz de tia Felicity desceu trombeteando de uma janela de cima.

— Estou indo, srta. Felicity — ele gritou e depois disse, num aparte para mim: — A srta. Felicity precisa de ajuda com a sua bagagem.

— Sua bagagem? — perguntei. — Ela está indo embora?

Dogger assentiu evasivamente.

— Queijo! — eu exclamei. Era uma oração secreta de graças, cujo significado só Deus e eu conhecíamos.


Tia Felicity já tinha descido metade da escadaria oeste usando um conjunto de lona que sugeria a África e não as terras selvagens de Hampstead. O táxi de Clarence Mundy estava à porta, e Dogger ajudava Bert a içar a bordo a carga de tia Felicity.

— Vamos sentir saudades, tia Fê — disse Felinha.

Tia Fê? Parece que na minha ausência Felinha andou se insinuando para a irmã do pai, muito provavelmente, pensei, na esperança de herdar as joias da família De Luce: aquela medonha coleção de quinquilharias que meu avô De Luce (do lado do pai e de tia Felicity) havia empurrado para minha avó, que, ao receber cada peça, jogava-a displicentemente com o polegar e o indicador em uma caixa de papelão, como se fosse uma inofensiva cobra-capim, e nunca mais olhava para ela outra vez.

Felinha desperdiçara uma tarde inteira babando em cima daquele lixo na última vez em que fomos a Hampstead para um dos chás compulsórios de tia Felicity.

— É tão romântico! — ela murmurou quando tia Felicity, muito a contragosto, emprestou-lhe um pingente de vidro cor-de-rosa que não ficaria nada mal no úbere de uma vaca. — Vou usá-lo na festa de debutante de Rosalind Norton, e todos os olhos estarão voltados para esta sua criada. Pobre Rosalind, ela é tão terrivelmente ansiosa!

— Sinto muito que tenha dado nisso, Haviland — berrou tia Felicity do patamar —, mas você fez tudo errado. Nem todos os cavalos do rei e todos os homens do rei conseguiriam pôr suas contas em ordem outra vez. Eu ficaria, é claro, mais que feliz em salvá-lo de seus excessos, se não tivesse investido tão pesadamente em títulos da dívida pública. Nada resta a fazer agora senão vender esses selos postais ridículos.

O pai havia entrado tão silenciosamente no vestíbulo que eu não reparara nele até então. Estava em pé, uma das mãos segurando o braço de Dafi, de olhos baixos, como se estivesse estudando com toda a atenção os ladrilhos preto e branco sob seus pés.

— Obrigado por ter vindo, Felicity — disse ele mansamente, sem erguer os olhos. — Foi muito gentil de sua parte.

Tive vontade de esbofetear a cara da mulher!

Eu de fato cheguei a dar meio passo para a frente antes que uma mão firme caísse no meu ombro, detendo-me instantaneamente. Era Dogger.

— Vai precisar de mais alguma coisa, srta. Felicity? — perguntou ele.

— Não, obrigada, Dogger — disse ela remexendo a bolsa com dois dedos. Das suas profundezas, como uma cegonha puxando um peixe de uma lagoa, ela extraiu o que parecia ser um xelim e entregou a ele com um suspiro.

— Obrigado, senhorita — disse ele, embolsando o insulto com naturalidade (e sem olhar para ele), como se fosse algo que costumava fazer todos os dias.

E com isso tia Felicity se foi. Um momento depois, o pai tinha adentrado as sombras do grande vestíbulo, seguido de perto por Dafi e Felinha, e Dogger desaparecera sem uma palavra em seu pequeno corredor atrás da escada.

Foi como um daqueles momentos eletrizantes logo antes de cortina final baixar em uma peça no West End: aquele momento em que todas os personagens coadjuvantes desaparecem nos bastidores, deixando a heroína sozinha no centro do palco para dizer sua esplendorosa fala final a uma casa silenciosa que aguarda suas palavras com a respiração presa.

— Que inferno! — disse, e saí para respirar um pouco de ar fresco.


O problema conosco, os De Luce, concluí, é que estamos infestados de história, quase do mesmo jeito que outras pessoas se infestam de piolhos. Os De Luce estão em Buckshaw desde que o rei Harold deteve uma flecha com seu olho na Batalha de Hastings, e a maioria deles era infeliz de um jeito ou de outro bem complicado. Parece que nascemos com traços tanto de glória como de melancolia nas veias e nunca podemos ter certeza, em dado momento, de qual das duas está nos impelindo.

Por um lado, eu sabia que nunca seria como tia Felicity, mas, por outro, será que algum dia seria como Harriet? Oito anos depois de sua morte, Harriet ainda era tão parte de mim quanto as unhas dos dedos dos meus pés, muito embora esta provavelmente não fosse a melhor maneira de definir as coisas.

Eu li os livros que eram dela, pedalei em sua bicicleta, sentei-me em seu Rolls-Royce, e o pai uma vez, em um momento de distração, me chamou pelo nome dela. Até tia Felicity chegou a deixar de lado seu jeito de górgona por tempo suficiente para me contar como eu era parecida com Harriet.

Teria sido um elogio ou um aviso?

A maior parte do tempo eu me sentia uma impostora; uma criança que foi trocada ao nascer; uma substituta de cilício e cinzas daquela menina de ouro que foi arrebatada pelo Destino e arremessada pela encosta da montanha em direção a uma terra absurdamente distante. Todo mundo parece que seria muito mais feliz se Harriet fosse trazida de volta à vida, e eu, suprimida.

Esses pensamentos, e outros, turbilhonavam na minha cabeça como folhas de outono em uma correnteza enquanto eu seguia pelo caminho poeirento que daria na aldeia. Sem sequer notar, eu já tinha passado pelos grifos entalhados dos Portões Mulford, que marcavam a entrada para Buckshaw, e agora Bishop’s Lacey já estava à vista.

Enquanto eu me arrastava em frente, um pouco desalentada (tudo bem, eu admito, estava furiosa com tia Felicity por fazer Dogger de idiota!), enfiei a mão no bolso e meus dedos entraram em contato com um objeto metálico redondo: algo que não estava lá antes. Uma moeda.

— Epa! — eu disse. — O que é isto?

Puxei-a para fora e olhei para ela. Assim que vi a coisa, soube o que era e como tinha vindo parar no meu bolso. Virei a moeda ao contrário e dei uma bela de uma olhada no reverso.

Sim, não podia haver dúvida a respeito. Nenhuma dúvida.


VISTA DO OUTRO LADO DA RUA PRINCIPAL, a casa de chá São Nicolau era parecida com um cartão-postal da velha Inglaterra. Suas salas de cima, com as pequenas janelas em arco, foram a residência dos atuais avós do sr. Sowbell na época em que eles moravam acima da sua manufatura de esquifes e móveis.

As mesas, aparadores e cômodas, que já foram conhecidos pela ferocidade de seu negro lustroso e pelo brilho dos ornados botões e puxadores de gaveta de prata, caíram em desgraça e agora eram muitas vezes encontrados em leilões de espólio, emburrados e solitários na entrada de carros até serem arrematados no fim do dia por pouco mais que uma ou duas libras.

— Por trapaceiros inescrupulosos que usam a madeira para transformar cômodas compradas na Woolworth’s em antiguidades — Dafi me contara uma vez.

A loja do agente funerário, notei, agora tinha um relógio de papelão na vitrine, suspenso por um V invertido de cordão preto. O ponteiro dos minutos apontava para as doze horas, e não havia ponteiro de horas. O sr. Sowbell obviamente fora à Treze Patos para a sua caneca da tarde.

Atravessei a rua e, abrindo a porta do salão de chá, avancei para dentro. À minha direita havia uma escada íngreme de madeira, com uma pequena mão azul pintada apontando para cima: Salão de Chá no Andar Superior. Ao lado da escada, uma passagem estreita e mal iluminada desaparecia nas trevas da parte traseira do edifício. Na parede, mais uma prestativa mão pintada, esta em vermelho, marcada com Toaletes para Cavalheiros e Senhoras, apontava o caminho discretamente.

Eu sabia que o salão de chá e a agência funerária compartilhavam os banheiros. Felinha insistira em nos arrastar para lá, para o chá em uma tarde de outono, e eu ficara pasma ao ver três mulheres de vestido preto e véu preto tagarelando alegremente à porta do banheiro como se estivessem em um congresso de corvos dentuços, antes de reassumirem sua conduta austera e se esgueirarem de volta às dependências do sr. Sowbell. A porta através da qual elas desapareceram se abria diretamente para os recintos do agente funerário.

Eu estava certa! Um discreto “Sowbell & Filhos” em letras douradas acima do verniz escuro devia estar ali para lembrar aos enlutados que não deveriam cometer o erro de perambular para dentro do corredor do salão de chá depois de “ensaboar as mãos”, como disse a sra. Mullet.

A porta almofadada escura se abriu, girando sobre dobradiças silenciosas.

Me vi em um escuro salão vitoriano com papel de parede de padrões pretos e de um tom creme-amarelado. Nos três lados da sala havia cadeiras espigadas de madeira e uma pequena mesa redonda com cravos-de-amor artificiais. O lugar cheirava a poeira, com uma base química subjacente.

A parede do outro lado da sala estava nua, a não ser por uma escura reprodução do Angelus, de Millet, em que um homem e uma mulher, obviamente lavradores flamengos, estão de pé sozinhos em um campo ao ocaso. As enormes mãos de trabalhadora braçal da mulher estão entrelaçadas no peito em oração. O homem havia tirado o chapéu, que segurava, desconfortável, na frente dele. Colocara de lado seu forcado, cravando-o até a metade na terra fofa. Enquanto os corvos se congregavam acima deles como abutres, o casal permanecia de olhos baixos. Entre eles, meio vazia no chão, jazia uma cesta de vime.

Max Wight me contara uma vez que quando o original da pintura de Millet foi exposto na América, a venda de reproduções foi no mínimo morosa, até que alguém pensou em mudar o nome de O Angelus para Sepultando o bebê.

Era embaixo daquela reprodução, imaginei, que os esquifes deviam ficar normalmente estacionados. Uma vez que o lugar estava vazio, era óbvio que o corpo de Rupert, se é que ainda estava no local, devia estar em alguma outra sala.

À direita, havia uma partição em L. Tinha de haver outra porta atrás dela.

Dei uma espiada em volta por trás da meia parede e me vi olhando para uma sala quase gêmea da primeira. A única diferença que eu percebia era o papel de parede preto e creme-rosado, e a reprodução na parede oposta era Luz do mundo, de Holman Hunt, em que Jesus está à porta como Diógenes procurando um homem honesto, com uma lanterna de lata nas mãos.

Atrás da sua moldura escura, sobre cavaletes, havia um caixão.

Fui para lá muito devagar e na ponta dos pés, os ouvidos ligados ao menor dos sons.

Corri os dedos pela superfície altamente polida da madeira, do modo como alguém poderia acariciar a tampa de um piano antes de erguê-la para revelar as teclas. Pus os polegares embaixo da junta e senti que ela se erguia ligeiramente.

Eu estava com sorte! A tampa não estava aparafusada. Levantei-a e olhei para dentro.

Ali, como uma boneca em uma caixa, jazia Rupert. Quando vivo, sua personalidade o fizera parecer tão maior que eu esquecera o quanto ele era pequeno.

Se fiquei apavorada a ponto de enlouquecer? Creio que não. Desde o dia em que encontrei um corpo na horta da cozinha em Buckshaw, desenvolvi uma fascinação pela morte, com ênfase especial na química da putrefação.

De fato, eu já começara a fazer anotações para um trabalho definitivo, que eu chamaria de De Luce sobre a decomposição, no qual delinearia, passo a passo, o processo da degradação cadavérica humana.

Como era empolgante refletir sobre o fato de que, minutos após a morte, os órgãos do corpo, com a falta de oxigênio, começam a digerir a si próprios! Os níveis de amônia começam a subir, e, com a ajuda da ação bacteriana, o metano (mais conhecido como gás dos pântanos) é produzido, juntamente com sulfeto de hidrogênio, dióxido de carbono e mercaptan, um cativante álcool sulfúrico em cuja estrutura o enxofre toma o lugar do oxigênio, o que explica o cheiro pútrido.

Que curioso, pensei, que nós, humanos, tenhamos levado milhões de anos nos arrastando para fora dos pântanos e no entanto, minutos antes da morte, já estamos deslizando de volta para ele ladeira abaixo.

Meu agudo sentido de olfato me disse que o sr. Sowbell usara em Rupert um fluido embalsamador baseado em formalina (uma solução a dois por cento de formaldeído parecia ser o mais provável, com um ligeiro buquê de mais alguma coisa: clorofórmio, a julgar pelo cheiro). E pelo ligeiro matiz esverdeado na ponta do nariz de Rupert, eu podia dizer que o agente funerário fora mesquinho com os ingredientes. Só era possível esperar que o funeral de gala da BBC fosse um evento com caixão fechado.

Mas era melhor eu me apressar, pensei. O sr. Sowbell poderia entrar a qualquer momento.

As mãos pálidas de Rupert estavam cruzadas por cima de seu abdômen, com a mão direita por cima. Segurei seus dedos (era como erguer salsichas encadeadas da geladeira) e os puxei para cima.

Para meu espanto, a mão esquerda veio junto, e vi na hora que elas tinham sido engenhosamente costuradas. Torcendo as mãos frias e me curvando para ver melhor embaixo delas, vi o que estava procurando: um canal enegrecido que ia da base de seu polegar esquerdo até as pontas do primeiro e do segundo dedos.

Apesar dos esforços de embalsamamento do sr. Sowbell, Rupert ainda exalava um cheiro bastante chamuscado. E não podia haver dúvida quanto a isto: a queimadura na palma de sua mão esquerda tinha a largura exata da alavanca que operava o Galligantus.

Uma tábua do assoalho rangeu.

Quando fechei a tampa do caixão, a porta se abriu e o sr. Sowbell entrou na sala. Eu não o ouvira chegar.

Como eu ainda estava semiagachada, inspecionando os dedos queimados de Rupert, consegui me erguer lentamente até ficar de pé.

— Amém — eu disse, fazendo um extravagante sinal da cruz.

— Que diabo...? — disse o sr. Sowbell.

— Oh, olá, sr. Sowbell — eu disse com um tom apropriadamente contido. — Eu só entrei para apresentar meus respeitos. Não havia ninguém aqui, mas achei que uma oração silenciosa seria apropriada. O sr. Porson não tinha amigos em Bishop’s Lacey, o senhor sabe — acrescentei, puxando um lenço do bolso e enxugando uma lágrima imaginária. — Parecia tão lamentável, e achei que não faria mal nenhum se eu... Desculpe se...

— Vamos, vamos — disse ele. — A morte chega para todos nós, você sabe, velhos e jovens igualmente...

Estaria ele me ameaçando, ou a minha imaginação estava estimulada demais?

— E embora nós a esperemos — prosseguiu ele —, ela no fim sempre chega como um choque.

Certamente chegara para Rupert. Mas será que o homem estava brincando?

Claro que não, pois o seu rosto comprido conservava a polidez profissional.

— E agora, se me permite — disse ele. — Preciso prepará-lo para sua jornada final.

Jornada final? Onde ele tinha ido buscar esse tipo de conversa fiada? Será que havia um livro de frases feito para a área funerária?

Dei-lhe meu sorriso de menina-de-dez-anos-chegando-aos-onze e simulei uma saída desconcertada.


A sineta acima da porta da Casa de Chá São Nicolau soou alegremente quando entrei. O estabelecimento, uma bela escalada até o topo da escada, era propriedade de ninguém menos que a srta. Lavinia e a srta. Aurelia, as irmãs Puddock: aquelas mesmas duas relíquias que nos ofereceram o prelúdio musical para a espetacular morte de Rupert.

A srta. Lavinia, a um canto na extremidade da sala, parecia travar um combate mortal contra um grande samovar de prata. A despeito da simplicidade da tarefa, que era ferver a água, aquela geringonça digna de um cartum de Heath Robinson era uma espécie de lula bulbosa de tubos, válvulas e mostradores que cuspia água quente enquanto gorgolejava e chiava como um dragão acuado.

— Não teremos chá, infelizmente — disse por cima do ombro. Ela ainda não tinha visto quem entrara na loja.

— Algo que eu possa fazer para ajudar, srta. Puddock? — me ofereci alegremente.

Ela deixou escapar um gritinho quando sua mão passou sem querer por um jato de vapor quente e a xícara de porcelana que ela segurava se estilhaçou no chão, de onde voou em uma centena de pedaços pálidos.

— Oh, é a pequena De Luce — disse, dando meia-volta. — Meu Deus! Você me deu um susto e tanto. Eu não estava esperando ouvir sua voz.

Como eu podia ver que ela tinha queimado a mão, ignorei meus impulsos mais básicos.

— Algo que eu possa fazer para ajudar? — repeti.

— Oh, Deus — disse ela, perturbada além do normal. — Pedro sempre resolve se comportar mal quando Aurelia não está aqui. Ela é muito melhor com ele do que eu.

— Pedro? — perguntei.

— O samovar — disse ela, enxugando as mãos vermelhas e molhadas em uma toalha de chá. — Pedro, o Grande.

— Deixe-me... — disse eu.

Sem mais uma palavra, peguei uma tigela de fatias de limão em uma das mesas redondas e espremi uma por uma em uma jarra de água gelada. Então peguei um guardanapo branco e limpo, mergulhei ali até ficar empapado, torci e enrolei em volta da mão da srta. Puddock. Ela se encolheu quando a toquei e depois relaxou.

— Posso? — perguntei, removendo um broche de opala de sua lapela e usando-o para prender as pontas da atadura improvisada.

— Oh! Já estou me sentindo melhor — disse ela com um sorriso dorido. — Onde você aprendeu este truque?

— Quando estive no Guia das Meninas — menti.

A experiência me ensinou que uma resposta esperada é muitas vezes melhor do que a verdade. Na realidade, eu tinha pesquisado arduamente o remédio em um dos livros domésticos de referência da sra. Mullet, depois que um tubo de ensaio superaquecido tostara a maior parte da carne em volta de dois dedos meus.

— A srta. Cool sempre falou muito bem de você — disse ela. — Vou contar a ela que “acertou o alvo”, como aqueles simpáticos rapazes dos bombardeiros da RAF costumavam dizer.

Dei a ela o mais modesto dos meus sorrisos.

— Não foi nada, srta. Puddock: apenas foi uma grande sorte eu estar por aqui. Eu estava aqui ao lado, na casa do sr. Sowbell, sabe, dizendo uma ou duas preces junto ao caixão do sr. Porson. Acho que não há mal nenhum nisso, não é?

Me dei conta de que estava enfeitando demais as coisas, usando um esfregão no lugar de pincel, mas negócios são negócios.

— Ora, não, querida — disse ela. — Acho que o sr. Porson teria ficado sensibilizado.

Ela não sabia nem a metade das coisas!

— Foi tão triste. — Abaixei o tom de voz para um sussurro conspiratório e toquei o seu braço bom. — Mas preciso dizer, srta. Puddock, que apesar da tragédia da noite de sábado, minha família e eu apreciamos O último assalto de Napoleão e O rio de Bendemeer. O pai contou que não se ouve muito esse tipo de música hoje em dia.

— Ora, obrigada, querida — murmurou ela sem muito entusiasmo. — É muito gentil de sua parte dizer isso. É claro que, misericordiosamente, não vimos realmente o que aconteceu com o pobre sr. Porson, já que estávamos ocupadas na cozinha, por assim dizer. Ser proprietária do único salão de chá em Bishop’s Lacey implica algumas expectativas, infelizmente. Não que levemos a mal...

— Não, é claro que não — disse eu. — Mas com certeza deve haver uma porção de gente se oferecendo para ajudar.

Ela soltou um gritinho:

— Ajudar? A maioria das pessoas não conhece o significado dessa palavra. Não, Aurelia e eu fomos deixadas sozinhas na cozinha do começo ao fim. Servimos duzentas e sessenta e três xícaras de chá, mas, naturalmente, isso inclui as que servimos depois que a polícia assumiu o caso.

— E ninguém se ofereceu para ajudar? — perguntei, dando-lhe uma olhada incrédula.

— Ninguém. Como eu disse, Aurelia e eu ficamos sozinhas na cozinha o tempo todo. E eu fiquei completamente por minha conta quando Aurelia foi levar uma xícara de chá para o titereiro.

Minhas orelhas ficaram em pé como uma bandeira em um mastro.

— Ela foi levar uma xícara de chá para Rupert?

— Bem, ela tentou, querida, mas a porta estava trancada.

— A porta para o palco? Do outro lado da cozinha?

— Não, não... ela não quis usar aquela. Teria de passar roçando naquela Mamãe Gansa, aquela mulher que estava embaixo da luz do refletor, contando a história. Não, ela deu toda a volta com o chá por trás do salão e desceu pela outra porta.

— Aquela na passagem do outro lado?

— Bem, sim. É a única outra, não é, querida? Mas, como eu disse, ela estava trancada.

— Durante o espetáculo de marionetes?

— Ora, sim. Estranho, não é? O sr. Porson nos pediu, antes de começar, que lhe levássemos uma boa xícara de chá durante o espetáculo. “Apenas deixem em cima da mesinha atrás do palco”, disse ele. “Vou encontrá-la. O teatro de marionetes é um trabalho que deixa a gente seco, sabe”, e deu uma piscadela para nós. Então, por que diabos ele trancaria a porta?

Enquanto ela falava, já dava para sentir os fatos começando a se organizar na minha cabeça.

— Estas foram as palavras exatas de Aurelia quando ela deu toda a volta com a xícara de chá ainda nas mãos: “O que será que deu nele para trancar a porta?”.

— Talvez ele não tenha feito isso — eu disse com uma súbita inspiração. — Talvez outra pessoa tenha trancado. Quem tinha a chave, você sabe?

— Existem duas chaves para as portas do palco, querida. Ambas abrem as duas portas de cada lado do palco. O vigário guarda uma em seu chaveiro, e a duplicata fica em um prego no estúdio dele, no presbitério. Tudo isso por causa daquela vez em que ele foi a Brighton para o jogo de críquete entre os Curadores e os Sacristões, e levou Tom Stoddart. Tom é o serralheiro, você sabe, e depois que os dois se foram ninguém podia entrar ou sair do palco sem uma escada. Isso causou problemas com a produção do Rei Lear pelo Little Theater Group, eu vou lhe dizer!

— E não havia mais ninguém por perto?

— Ninguém, querida. Aurelia e eu estávamos na cozinha o tempo todo. Estávamos com a porta semicerrada, para que a luz da cozinha não atrapalhasse a escuridão no corredor.

— Não havia ninguém no corredor?

— Não, é claro que não. Teriam de passar pelo raio de luz que vinha da porta da cozinha, bem embaixo do nosso nariz, por assim dizer. Depois que pusemos a água para ferver, Aurelia e eu ficamos bem ali, junto à abertura da porta, para poder pelo menos ouvir o espetáculo de marionetes. “Fi! Fo! e Fum!” Ah, fico toda arrepiada só de pensar nisso agora.

Eu fiquei perfeitamente imóvel e prendi a respiração, sem mover um músculo. Fiquei de boca fechada e deixei o silêncio se prolongar.

— A não ser... — disse ela com o olhar vacilante. — Eu pensei...

— Sim?

— Eu pensei ter ouvido passos no vestíbulo. Dei uma olhada no relógio de parede e meus olhos estavam um pouco ofuscados pela luz acima do fogão. Olhei para fora e vi...

— Você se lembra da hora?

— Eram sete e vinte e cinco. Estávamos com o chá preparado para as oito horas, e essas grandes chaleiras elétricas demoram um bom tempo para ferver. Curioso você perguntar. Aquele simpático jovem policial, como é mesmo o nome dele? O rapazinho loiro com covinhas e um sorriso adorável.

— Sargento-detetive Graves — disse eu.

— Sim, é ele: sargento-detetive Graves. Engraçado, não é? Ele me fez a mesma pergunta, e eu lhe dei a mesma resposta que vou lhe dar agora.

— Qual é?

— Era a mulher do vigário, Cynthia Richardson.


CYNTHIA, A VINGADORA COM CARA DE ROEDOR! Eu devia saber! Cynthia, que aquinhoava boas obras na paróquia de São Tancredo com a mão de um Herodes. Eu podia vê-la assumindo pessoalmente a punição de Rupert, o notório mulherengo. O salão paroquial era parte do reino dela; a chave de reserva para as portas do palco ficava pendurada em um prego no estúdio de seu marido.

Como ela chegou a estar de posse do prendedor de calça perdido continua sendo meio misterioso, mas não poderia ele ter estado no presbitério o tempo todo?

Como o vigário mesmo admitiu, suas distrações estavam se tornando um problema. Por isso as iniciais gravadas. Talvez ele tivesse saído de casa sem o prendedor na última quinta-feira e retalhado a barra da calça porque não o estava usando.

Os detalhes não eram importantes. De uma coisa eu tinha certeza: havia mais coisas acontecendo no presbitério do que se imaginava, e o que quer que fosse (marido dançando nu no bosque, e assim por diante) parecia provável que Cynthia estivesse no âmago daquilo tudo.

— O que você está pensando, querida? — A voz da srta. Puddock interrompeu os meus pensamentos. — Você ficou tão quieta de repente!

Eu precisava de tempo para chegar ao fundo das coisas, e precisava dele agora. Era improvável que eu tivesse uma segunda oportunidade de sondar as profundezas do conhecimento da srta. Puddock sobre a aldeia.

— Eu... eu não estou me sentindo muito bem — eu disse, me agarrando à beirada de uma mesa, e arriei o corpo em uma das cadeiras com espaldar de arame. — Pode ter sido a visão da sua pobre mão escaldada, srta. Puddock. Uma reação retardada, talvez. Uma pitada de choque.

Suponho que deve ter havido ocasiões em que odiei a mim mesma por praticar esse tipo de fraude, mas não consegui pensar em nenhuma outra no momento. Se tinha sido o Destino, afinal, que me jogara no meio daquelas coisas, que o Destino então assumisse a culpa.

— Oh, pobrezinha! — disse a srta. Puddock. — Fique exatamente onde está, e eu vou buscar uma boa xícara de chá e um bolinho. Você gosta de bolinhos, não gosta?

— E-eu a-a-doro b-bolinhos — disse eu, lembrando-me de repente de que as vítimas de choque, sabidamente, sentem calafrios e tremores. Quando ela voltou com os bolinhos, meus dentes batiam como bolinhas de gude sacudidas em um pote.

Ela retirou um vaso de lírios-do-vale (Convallaria majalis) de uma das mesas, puxou fora a toalha de linho engomada e envolveu meus ombros com ela. Quando o cheiro adocicado das flores me chegou às narinas, lembrei-me com prazer de que a planta continha uma poção de bruxa de glicocídeos cardioativos, inclusive convalotoxina e glucoconvalosida, e que até a água em que essas flores ficaram mergulhadas era venenosa. Nossos antepassados a chamavam de lágrimas de Nossa Senhora, ou escada para o céu, e com razão!

— Você não deve pegar friagem — disse a srta. Puddock, maternalmente solícita, enquanto me servia uma xícara de chá do parrudo samovar.

— Pedro, o Grande, parece estar se comportando bem agora — observei, com um tremor calculado e um aceno de cabeça para a máquina reluzente.

— Ele às vezes fica muito indisciplinado — sorriu ela. — Imagino que seja porque é russo.

— Ele é mesmo russo? — perguntei, incentivando-a a falar.

— Das suas distintas cabeças — disse ela apontando para a águia negra de duas cabeças que funcionava como uma torneira de água quente — ao seu regiamente arredondado fundo. Foi manufaturado na oficina dos irmãos Martiniuk, os renomados prateiros de Odessa, e disseram que outrora foi usado para fazer chá para o czar Nicolau e as suas desafortunadas filhas. Quando a cidade foi ocupada pelos vermelhos depois da Revolução, o mais jovem dos Martiniuk, Vladimir, que tinha apenas dezesseis anos na época, o envolveu em uma pele de lobo, amarrou-o em um carrinho de mão e fugiu com ele a pé (a pé, imagine só!) para a Holanda, onde montou uma oficina em uma das alamedas calçadas com pedras de Amsterdã, e mudou seu nome para Van den Maarten.

— Pedro — disse ela, dando uma palmadinha leve mas carinhosa no samovar — era a sua única propriedade, fora o carrinho de mão, é claro. Ele planejou fazer fortuna produzindo incontáveis cópias e vendendo-as aos aristocratas holandeses, que diziam ser loucos pelo chá russo.

— E eram mesmo? — perguntei.

— Eu não sei — respondeu ela —, nem Vladimir ficou sabendo. Ele morreu de gripe na grande epidemia de 1918, deixando a oficina e tudo o que ela continha para a sua senhoria, Margriet van Rijn. Margriet casou-se com um roceiro de Bishop’s Lacey, Arthur Elkins, que havia combatido em Flandres e que a trouxe consigo de volta à Inglaterra não muito tempo depois do fim da Grande Guerra.

— Arthur morreu quando uma chaminé de fábrica desabou em cima dele em 1924, e Margriet morreu de choque quando lhe deram a notícia. Depois da morte dela, minha irmã e eu descobrimos que Margriet tinha deixado Pedro, o Grande, para nós, e não restava nada a fazer senão abrir a Casa de Chá São Nicolau. Foi há vinte e cinco anos e, como você pode ver, ainda estamos aqui.

“Ele é um velho samovar muito temperamental, sabe — prosseguiu ela, fazendo menção de acariciar sua superfície argêntea, mas pensando melhor nisso. — É claro que ele é uma tremenda de uma velha fraude. Oh, ele cospe água fervendo e faz queimar fusíveis de vez em quando, mas embaixo disso tudo ele tem um coração de ouro, ou pelo menos de prata.”

— Ele é bem imponente — eu disse.

— E você acha que ele não sabe? Bem, bem, aqui estou eu falando dele como se fosse de um gato. Quando Grace estava conosco, ela costumava chamá-lo de “O Tirano”. Imagine só! “O Tirano quer ser lustrado”, dizia ela, “O Tirano quer que os seus contatos elétricos sejam limpos”.

— Grace? — perguntei.

— Grace Tennyson, ou Ingleby, como se chama hoje.

— Grace Ingleby trabalhava aqui?

— Ah, sim! Até ela sair para se casar com Gordon, era a estrela das nossas garçonetes. Você não imaginaria isso olhando para ela, mas era forte como um touro. Não se vê isso com muita frequência numa coisinha tão pequena.

“E ela não ficava nem um pouquinho intimidada com Pedro e os seus humores. Por mais que ele cuspisse e soltasse fagulhas, Grace nunca teve medo de arregaçar as mangas e dar uma boa revisada em suas entranhas.”

— Parece que ela era muito engenhosa — eu disse.

— Ela era tudo isso — riu a srta. Puddock. — Tudo isso e muito mais. E não admira! Um dos nossos clientes uma vez nos disse (em segredo, é claro) que Grace tinha o QI mais alto que ele já tinha visto no “sexo frágil”, como ele exemplificou: que se o pessoal das Operações Especiais não a tivesse sequestrado para fazer um trabalho ultrassecreto, ela podia muito bem ter passado o resto da guerra instalando conjuntos sem fio em Spitfires.

— Trabalho ultrassecreto? — ofeguei. Pensar em Grace Ingleby fazendo qualquer coisa diferente do que se encolher em sua torre de pombal como uma donzela cativa esperando ser resgatada por Sir Lancelot era quase risível.

— É claro que ela jamais disse uma palavra a respeito. — A srta. Puddock abaixou o tom de voz, do mesmo modo que muitas vezes as pessoas fazem quando falam sobre a guerra. — Não é permitido, sabe. Mas também nós raramente a vemos hoje em dia. Desde aquela tragédia com seu menininho...

— Robin — disse eu.

— Sim. Desde então, ela se fechou. Infelizmente não é mais a mesma menina risonha que costumava pôr Pedro, o Grande, no seu lugar.

— Gordon também era membro das Operações Especiais? — perguntei.

— Gordon? — ela riu. — Meu bom Deus, não. Gordon nasceu lavrador, e lavrador há de morrer, como escreveu Shakespeare. Ou será que foi Harry Lauder ou George Formby, ou alguém assim? Minha memória ficou cheia de buracos de minhoca, e a sua, com o tempo, também vai ficar.

Não consegui pensar em alguma coisa para dizer e vi imediatamente que ela achava que tinha me ofendido.

— Mas vai demorar muitos anos ainda, querida. Não, tenho certeza absoluta de que sua memória ainda estará se fortalecendo quando o resto de nós estiver na sepultura e sendo pavimentado por cima para a construção do estacionamento dos palácios de boliche.

— Você viu a sra. Ingleby recentemente? — perguntei.

— Não desde sábado à noite no salão paroquial. Naturalmente, não tive oportunidade de conversar com ela, por causa do nosso pequeno número musical na minha cabeça. O restante da noite foi um pesadelo, não foi? A morte daquele pobre homem, e o boneco esculpido com a cara de Robin. Não sei o que Gordon pensou quando levou Grace para lá, ela estando tão frágil. Mas ele também não tinha como saber, tinha?

— Não — eu disse. — Imagino que não.


Quando parti para Buckshaw, a hora do almoço já havia passado fazia tempo. Felizmente a srta. Puddock embrulhara dois bolinhos amanteigados e insistira em enfiá-los no meu bolso. Mordisquei-os distraidamente enquanto pedalava pela estrada, perdida em pensamentos.

No fim da rua principal, a estrada fazia um ângulo suave para o sudoeste, contornando o perímetro sul do pátio da igreja de São Tancredo.

Se eu não tivesse dado uma olhada para a direita, poderia não ter visto a van Austin com “Marionetes de Porson” em letras douradas nas portas, estacionada ao lado do salão paroquial. Os pneus de Gladys derraparam na poeira quando apliquei os freios e guinei para dentro do pátio da igreja.

Quando parei, Nialla estava enfiando toda sorte de coisas no interior da van.

— Você conseguiu fazê-la funcionar! — gritei. Ela me deu o tipo de olhada que você poderia dar para um pouco de cocô de cachorro no seu mingau e continuou com seu trabalho.

— Sou eu, Flavia — disse eu. — Você já me esqueceu?

— Dê o fora, sua pequena traidora — disparou ela. — Deixe-me em paz.

Por um instante, pensei que eu estava de volta a Buckshaw, falando com Felinha. Era o tipo de rejeição que eu já vivera mil vezes, e à qual sobrevivera, pensei. Decidi fincar pé.

— Por quê? O que foi que eu fiz?

— Ora, pare com isso, Flavia. Você sabe tão bem quanto eu. Você disse à polícia que eu estava em Buckshaw. Eles acharam que eu estava me escondendo, ou fugindo, ou como queira chamar isso.

— Eu não fiz nada disso! — protestei. — Não ponho os olhos em um policial desde que a vi na cocheira.

— Mas você era a única que sabia que eu estava lá.

Como sempre acontecia quando eu estava zangada, minha cabeça fervilhava com uma clareza cristalina.

— Eu sabia que você estava lá, Dogger sabia que você estava lá, e também a sra. Mullet, só para citar três.

— Mal posso acreditar que Dogger me denunciaria.

— Nem a sra. Mullet — disse eu.

Bom Deus! Eu estava realmente defendendo a sra. M?

— Ela pode ser uma maldita fofoqueira, mas não é má — disse eu. — Ela nunca a trairia. O inspetor Hewitt veio a Buckshaw provavelmente para me fazer mais algumas perguntas sobre sábado à noite e por acaso viu você andando da cocheira para a cozinha. Não existe mais nada além disso. Tenho certeza.

Vi que Nialla estava pensando a respeito. Não havia nada que eu quisesse mais do que segurá-la pelos ombros e dar-lhe uma sacudida, porém tinha de manter em mente o fato de que suas emoções estavam sendo alimentadas por uma tempestade de hormônios: nuvens impetuosas de hidrogênio, nitrogênio, oxigênio, carbono e enxofre, combinando e recombinando nas danças eternas da vida.

Aquilo quase me fez perdoá-la.

— Aqui — eu disse, puxando dramaticamente o compacto de borboleta do meu bolso e estendendo-o para ela. — Acho que isto lhe pertence.

Abracei a mim mesma, esperando um vagalhão de gratidão e louvor. Mas não veio nada disso.

— Obrigada — disse Nialla, e enfiou aquilo no bolso.

Obrigada? Apenas obrigada? Que audácia! Eu mostraria a ela: fingiria que ela me ofendera; faria de conta que não me importava.

— Não pude deixar de notar — observei despreocupadamente — que você está carregando a van, o que quer dizer que Bert Archer a consertou e você está prestes a partir. Como o inspetor Hewitt não está por perto, imagino que isso significa que você está livre para ir.

— Livre? — repetiu ela, e cuspiu no chão. — Livre? O vigário me deu quatro libras, seis xelins e oito centavos, arrecadados no espetáculo. A conta de Bert Archer é de sete libras e dez. E é só porque o vigário intercedeu por mim que ele está disposto a me deixar dirigir até Overton para penhorar tudo o que eu puder. Se você chama isso de estar livre, então estou livre. É tudo muito bom para a pequena senhorita endinheirada, que mora em uma casa do tamanho do Palácio de Buckingham, fazer as suas deduções espertas. Então, pense o que quiser pensar, não me menospreze.

— Está bem — disse eu. — Não tive a intenção. Aqui, pegue isto, por favor.

Enfiei a mão no bolso de novo e puxei a moeda que tia Felicity empurrara para Dogger, achando que era um xelim. Dogger, por sua vez, a plantara no meu bolso, acreditando, talvez, que ela logo seria gasta em palitos de hortelã na loja da srta. Cool.

Entreguei-a a Nialla, que olhou para ela incrédula.

— Quatro pence! — disse ela. — Malditos quatro pence!

Suas lágrimas corriam livremente quando ela a atirou para longe, no meio das sepulturas.

— Sim, são apenas quatro pence — disse eu. Mas são quatro pence em dinheiro de Maundy. As moedas são produzidas pela Casa da Moeda Real, para ser distribuídas pelo Soberano...

— Maldito seja o Soberano! — gritou ela. — E maldita seja a Casa da Moeda Real!

— ... na quinta-feira de Maundy. Elas são muito raras. Se bem me lembro, Bert Archer é um colecionador de moedas, e acho que você vai descobrir que a moeda de quatro centavos de Maundy vai pagar de sobra pela sua van.

Com toda a dignidade honrosa que consegui reunir, segurei Gladys pelo guidão e empurrei-a para casa. Quando olhei para trás pelo canto da igreja, Nialla já estava de quatro, se arrastando na grama do pátio da igreja, e eu não soube dizer se as lágrimas que ela enxugava eram de raiva ou de felicidade.


— MUITO BEM, DOGGER — eu disse —, o jogo acabou.

Eu o encontrara na copa, engraxando os sapatos do pai.

As funções de Dogger em Buckshaw variavam na proporção direta das suas capacidades de momento, sua participação na nossa vida diária subindo e descendo, como aquelas bolas coloridas no termômetro de Galileu que flutuam em níveis diferentes em um tubo de vidro, dependendo da temperatura. O fato de ele estar cuidando dos sapatos era um bom sinal. Indicava claramente que havia sido promovido mais uma vez, de jardineiro para mordomo.

Ele ergueu os olhos do seu trabalho.

— Acabou? — perguntou ele.

— Lance a sua mente, por favor, de volta para sábado à noite no salão paroquial. Você está sentado ao meu lado assistindo a João e o pé de feijão, quando de repente acontece algo de errado nos bastidores. Rupert desaba estrepitosamente, morto, e minutos depois você está me dizendo recear ter visto um homicídio. Como você fez aquilo? Como sabia que não foi um acidente?

Essa pergunta vinha roendo meu subconsciente como um rato rói uma corda, mas, até aquele exato momento, eu ainda não tinha me dado conta plenamente disso.

Antes de responder, Dogger bafejou em cima de uma das botas wellington regimentais de cano curto do pai, dando na superfície preta e lustrosa como vidro uma afetuosa esfregadela final com a manga da camisa.

— As circunstâncias falavam contra essa possibilidade — disse ele. — O sr. Porson era um perfeccionista. Construía ele mesmo todo o seu equipamento. Um titereiro trabalha no escuro. Não há espaço para erros. Um fio elétrico desgastado seria uma coisa fora de questão.

— Não estava desgastado — disse eu. — Eu vi quando fui para os bastidores com o inspetor Hewitt. O isolamento foi raspado.

— Eu ficaria surpreso se não tivesse sido — disse ele.

— Congratulações por uma brilhante dedução — disse eu. — Embora essa não tenha me ocorrido.

E não me ocorrera mesmo, porque a mente feminina não funciona desse modo.

Vista de cima, a mente masculina deve se parecer bastante com os canais da Europa, com ideias sendo rebocadas ao longo de caminhos de sirgagem gastos pelo uso por cavalos de tiro de passo pesado. Nunca existe dúvida alguma de que elas, a despeito do vento e do clima, chegarão a seus destinos seguindo uma série simples de linhas conectadas.

Mas a mente feminina, mesmo considerando minha limitada experiência, mais parece um vasto e fervilhante pântano, porém um pântano que fica sabendo na hora toda vez que um estranho, mesmo a quilômetros de distância, mergulha um dedão do pé que seja em suas águas. As pessoas que se referem a esse fenômeno, a maioria das quais não sabe muito a respeito dele, chamam-no de “intuição feminina”.

Muito embora eu tivesse chegado quase à mesma conclusão que Dogger, mas por um caminho muito diferente.

Em primeiro lugar, embora fosse óbvio que Rupert tivesse sido assassinado pelo que fizera a uma mulher, acho que desde o momento de sua morte eu já sabia que não fora Nialla a sua assassina.

— No instante em que ele desmoronou em cima do palco — eu disse —, Nialla levantou-se de um pulo e se moveu na direção dele. Seu primeiro e automático impulso foi de socorrê-lo.

Dogger alisou o queixo e assentiu.

— Mas ela se forçou a parar — eu prossegui — assim que viu a fumaça e as fagulhas. Rapidamente, se deu conta de que tocar qualquer parte do corpo dele poderia significar morte instantânea. Para ela e seu bebê.

— Sim — disse Dogger. — Eu também notei isso.

— Portanto, Nialla não é a assassina.

— Acredito que você pode removê-la com segurança de sua lista — disse Dogger.


Foi só depois que eu já estava na estrada, na metade do caminho para a Fazenda Culverhouse, que percebi o quanto me sentia cansada. Tinha acordado antes de o sol nascer e desde então estava a pleno vapor. Mas o tempo era essencial: se eu não chegasse lá antes do inspetor Hewitt, não ficaria sabendo dos horripilantes detalhes até ler sobre eles no News of the World.

Dessa vez, não atravessei o rio por trás da igreja, mas decidi dar a volta pela estrada de Hinley e me aproximar da fazenda pelo lado oeste. Fazendo isso, eu teria a vantagem da altura para fazer o reconhecimento do terreno, além de ficar sob a proteção do Bosque Gibbet. Agora que o laço, por assim dizer, se apertava, não seria conveniente cair na emboscada de um assassino a sangue-frio.

A meio caminho da subida argilosa da Colina Gibbet, eu me sentia como se meu sangue fosse lama e meus sapatos fossem feitos de chumbo. Sob quaisquer outras circunstâncias, eu poderia ter me arrastado para dentro de alguma moita tranquila e tirado uma soneca, mas isso não podia acontecer. O tempo estava se esgotando, e, como o pai gostava de dizer: “Cansaço é desculpa de caipira”.

Enquanto eu ouvia o vento suspirar e sussurrar nas copas das árvores do Bosque Gibbet, me vi quase esperando que Meg, a Louca, pulasse para fora do mato e me distraísse da minha missão. Mas não aconteceu: além de um pica-pau dando suas leves marteladas como um sapateiro atarefado do outro lado do bosque, não havia outros sinais de vida.

Quando cheguei ao topo da colina, o Campo Jubileu descia para longe de mim em direção ao rio, como um lençol azul elétrico. Quando estourou a guerra, Gordon foi forçado a plantar linho, ou pelo menos foi o que a sra. Mullet me contou, por ordem do Governo de Sua Majestade, que precisava do material para a confecção de paraquedas. Mas a Batalha da Grã-Bretanha ocorrera anos atrás, e os paraquedas nem de longe eram requisitados na mesma quantidade.

Ainda assim, trabalhando sob o manto da necessidade de guerra, parecia que Gordon conseguira manter sua plantação secreta de cannabis habilmente enfiada entre as árvores do Bosque Gibbet, sua existência conhecida por não mais que um punhado de pessoas.

Qual delas, me perguntei, se é que foi uma delas, além de odiá-lo apaixonadamente o bastante para matar, possuía conhecimentos suficientes de eletricidade para eletrocutar Rupert Porson?

Um clarão atingiu meus olhos: um reflexo vindo do lado da estrada. Vi imediatamente que era um dos ornamentos de Meg, a Louca, feitos com sucatas recolhidas na beira da estrada, penduradas por um cordão em um espinheiro. Não era nada mais que um pedaço irregular de acabamento cromado, que se soltara do radiador de algum carro devido às más condições da estrada. Pendurado abaixo dele, e girando vagarosamente ao sol (foi o que me chamou a atenção), havia um pequeno disco sulcado prateado que, a julgar pelas manchas vermelhas, tinha sido outrora a tampa de uma lata de tinta de um quarto de litro.

Por estranho que pareça, aquilo me lembrou algo que eu vivenciara no ano passado, quando o pai levou Ophelia, Daphne e eu a Londres, para uma missa à meia-noite no Oratório de Brompton. Na elevação da hóstia, quando o padre segurou a bolacha branca (que alguns de nós acreditavam ser o Corpo de Cristo) acima da cabeça por um tempo exageradamente longo, ela, por apenas um instante, captou a luz das velas e dos reflexos coloridos do coro, luzindo com um sobrenatural resplendor iridescente que não era nem sólido nem vaporoso. Na época, me pareceu um sinal de que algo de momentoso estava para acontecer.

Agora, na orla do Bosque Gibbet, um dente bem lubrificado de alguma engrenagem mental se encaixou no lugar, com uma série de clics quase audíveis.

Igreja. Clic! Vigário. Clic! Círculo suspenso. Clic! Prendedor de calça. Clic! Tampa de tinta. Clic! Meg. Clic!

E vi tudo como que em uma visão ofuscante: o vigário estivera ali, na Fazenda Culverhouse, na última quinta-feira. Foi onde ele prendeu a calça na corrente da bicicleta e perdeu seu prendedor. Ele o estava usando, afinal! E foi ali, na poeira argilosa, que ele levou um tombo. As manchas brancas em seus trajes pretos de clérigo tinham vindo exatamente dessa estrada.

Meg, a Louca, a eterna pega, encontrara o prendedor, como encontrava todos os objetos metálicos e brilhantes caídos nas vizinhanças do Bosque Gibbet, o recolhera e o levara com ela para o presbitério.

— Ela me pôs para fora — disse ela. — Tomou o bracelete da velha Meg e a pôs para fora... “Imunda, imunda!”, ela disse.

As palavras de Meg ecoavam na minha memória. Ela estava falando da mulher do vigário.

Tinha sido Cynthia Richardson quem pegara dela o prendedor de calça (o “bracelete” de Meg) e a pusera para fora do presbitério.

Do presbitério, era só um pulinho até o salão paroquial, onde a coisa apareceu nos bastidores, como a arma do crime, no teatro de marionetes de Rupert.

É assim que deve ter acontecido. Eu estava certa disso, tão certa quanto meu nome é Flavia de Luce. E mal podia esperar para contar ao Inspetor Hewitt!

Abaixo de mim, ao longe, na praia distante de um mar de linho azul, um trator Ferguson cinzento se arrastava lentamente ao longo de um muro de pedra, rebocando uma plataforma atrás dele. Um lampejo de cabelo loiro à luz do sol me disse que o homem a pé, descarregando pedras para consertar o muro, devia ser Dieter, e não havia dúvida de que a pessoa de macacão ao volante do trator era Sally. Mesmo se eles estivessem prestando atenção (coisa que não estavam), a distância era grande demais para me avistarem esgueirando-me para baixo, rumo à casa da fazenda.

Enquanto eu avançava cautelosa através do pátio, o lugar parecia mergulhado em sombras: velhas pedras empilhadas sobre outras, com janelas inexpressivas (como dissera Sally) olhando cegamente para coisa nenhuma. Qual das vidraças vazias, me perguntei, tinha sido a do quarto de Robin? Qual das janelas vazias emoldurara seu rostinho solitário antes daquela impensável segunda-feira de setembro de 1945, quando sua breve vida terminara tão abruptamente na ponta de uma corda?

Dei uma batida simbólica na porta e aguardei por respeitosos trinta segundos. Depois disso, girei a maçaneta e entrei.

— Sra. Ingleby? — chamei. — Sr. Ingleby? Sou eu, Flavia. Vim ver se vocês têm alguns ovos extragrandes.

Não imaginei que haveria uma resposta, e estava certa. Gordon Ingleby trabalhava duro demais para estar flanando por perto da casa enquanto ainda havia um vestígio de luz do dia do lado de fora, e Grace... bem, Grace estava ou na sua torre-pombal ou perambulando pelas colinas. A inquisitiva sra. Mullet uma vez me perguntara se eu já tinha cruzado com ela durante minhas perambulações pelo condado.

“Ela é uma pessoa estranha, aquela Grace Ingleby”, dissera ela. “Minha amiga Edith (é a Edith Crowly, querida, que era Edith Fisher antes de se casar com Jack) estava indo para um compromisso com seu encarregado do coro em Nether Stowell. Ela tinha perdido o ônibus, entenda, e viu Grace saindo do mato na parte mais baixa da Biddy’s Lane, que passa por cima da colina para lugar nenhum.

“‘Grace!’, ela gritou. ‘Iu-hu, Grace Ingleby!’ Mas Grace resvalou por uns degraus por cima da cerca (foram exatamente essas as suas palavras, ‘Grace resvalou por uns degraus por cima da cerca’), e, quando ela mesma chegou lá, Grace tinha sumido. ‘Sumiu como um bafo de cachorro em dezembro’. Foi o que ela disse.”

Quando se tratava de mexericos da aldeia, a sra. M era infalível, como o Papa Pio IX.

Segui devagar pelo corredor, razoavelmente confiante de que estava sozinha na casa. No fim do corredor, ao lado de uma janela redonda, um relógio de pêndulo tiquetaqueava para si mesmo, o único som na silenciosa casa da fazenda.

Dei uma olhada rápida para cada ambiente: sala de estar, lavatórios, cozinha, copa...

Ao lado do relógio, dois degraus levavam a um pequeno patamar quadrado, e, espiando pelo canto, vi que uma escada estreita continuava subindo até o primeiro andar.

Enfiado embaixo dos degraus, havia um armário, cuja porta de tábuas encaixadas, estranhamente angulosa, era equipada com uma esplêndida maçaneta de cerâmica verde e branca que só podia ser Wedgwood. Eu daria uma boa vasculhada nele mais tarde.

Cada degrau emitia seu próprio e singular gemido de madeira enquanto eu subia: como uma série de velhas tampas de caixão sendo forçadas e abertas, pensei com um arrepio gostoso.

Firme, Flavinha, minha velha. Não tem sentido ficar apavorada.

No topo da escada havia um segundo pequeno patamar do qual, em ângulos retos, mais três degraus levavam ao corredor de cima.

Parecia óbvio que todos os aposentos superiores fossem quartos de dormir, e eu estava certa: uma olhada para dentro de cada um dos dois primeiros revelou cômodos frios e espartanos com uma cama de solteiro, um lavatório, um guarda-roupa e mais nada.

O quarto grande na frente da casa era de Gordon e Grace; nenhuma dúvida quanto a isso. A não ser por uma cômoda dupla e uma cama dupla com um acolchoado surrado, o quarto era tão frio e estéril quanto os demais.

Dei uma bisbilhotada rápida nas gavetas da cômoda: no lado dele, meias, roupa de baixo, um relógio de pulso sem pulseira e um gorduroso e muito manuseado baralho de cartas ostentando a insígnia dos Scots Greys; no dela, combinações, calcinhas, um pote de cápsulas para dormir aviadas sob receita (o meu velho amigo hidrato de cloral, eu notei: C2H3Cl3O2: um poderoso hipnótico que, quando misturado disfarçadamente ao álcool, era chamado pelos gângsteres americanos de Mickey Finn; na Inglaterra, era receitado para donas de casa extremamente nervosas por médicos do interior e chamado de “alguma coisa para ajudá-la a dormir”).

Não contive um sorriso rápido quando pensei naquela vez em que, usando nada mais que álcool, limpador de latrina e uma garrafa de branqueador à base de cloro, sintetizei uma boa quantidade da substância e dei, dentro de uma maçã preparada, para Phoebe Snow, uma porca premiada que pertencia ao nosso vizinho, Max Wight. Phoebe dormiu por cinco dias e dezessete horas até o efeito passar e, por algum tempo, “A Incrível Porca Adormecida” ficou sendo a oitava maravilha do mundo agrícola britânico. Mas ele a emprestou graciosamente para a quermesse de São Tancredo, onde Phoebe podia ser vista, por seis centavos de cada vez, roncando na traseira de um caminhão com os dizeres “A Bela Adormecida”. No fim, ela arrecadou quase cinco libras para o fundo para as sobrepelizes do coro.

Com um suspiro, voltei ao meu trabalho.

No fundo da gaveta de Grace, enfiada embaixo de um lenço de linho sujo, estava uma Bíblia bem manuseada. Abri a capa e li as palavras na folha de guarda: “Favor devolver à igreja paroquial de São Tancredo, Bishop’s Lacey”.

Quando eu a estava colocando de volta na gaveta, uma tira de papel caiu de dentro dela e desceu flutuando até o chão. Recolhi-a com as unhas, tomando muito cuidado para não deixar minhas digitais naquilo.

As palavras tinham sido escritas com tinta roxa: “Grace, por favor me procure se eu puder prover qualquer conforto a mais”. E estava assinado “Denwyn”.

Denwyn Richardson, o vigário. O qual Meg, a Louca, tinha visto dançando nu no vizinho Bosque Gibbet.

Pus a prova no bolso.

Tudo o que restava agora era o pequeno dormitório nos fundos da casa. O quarto de Robin. Tinha de ser. Atravessei o patamar silencioso e parei na frente da porta fechada. Só então comecei a sentir uma certa apreensão. E se Gordon ou Grace entrasse de repente, furioso, pela casa e subisse a escada? Como eu explicaria minha invasão de seus quartos?

Encostei um ouvido no revestimento escuro da porta e prestei atenção. Nenhum som.

Girei a maçaneta e entrei.

Como eu suspeitava, era o quarto de Robin, mas era o quarto de um menininho morto há cinco anos: uma cama pateticamente pequena, cobertores dobrados, um guarda-roupa vazio e linóleo no chão. Sem santuário, sem velas, sem retratos emoldurados do falecido montado em um cavalinho de balanço ou pendurado de ponta-cabeça pelos joelhos em uma macieira. Que amargo desapontamento!

Ele era tão despojado e simples quanto o Quarto em Arles, de Van Gogh, mas sem o seu calor; o quarto era tão impessoal quanto a lua de inverno.

Depois de uma rápida olhada em volta, não havia mais nada para ver, e eu saí, fechando a porta respeitosamente, quase com ternura.

Então ouvi passos embaixo.

O que fazer? As possibilidades passaram rápidas como raios pelo meu cérebro. Eu poderia galopar escada abaixo em lágrimas, fingindo ter me perdido e ficado desnorteada enquanto caminhava dormindo. Poderia alegar que estava sofrendo um colapso nervoso e não sabia onde me encontrava; que tinha visto, do pátio da fazenda, um rosto numa janela de cima, acenando para mim com um dedo comprido: que eu tinha pensado ser Grace Ingleby em perigo.

Por mais interessantes que fossem, todas essas tramas trariam consequências, e se existia uma coisa de que eu não precisava era introduzir complicações na minha vida. Não, pensei, vou me esgueirar pela escada abaixo e torcer como louca para não ser pega.

Mas a ideia morreu quase antes de nascer. No instante em que pus o pé sobre o degrau de cima, ele soltou um gemido apavorante.

Houve um agitar de asas perto do pé da escada, como se um grande pássaro estivesse preso na casa. Devagar, mas com toda a segurança, desci a escada. Já embaixo, espiei pelo canto, e meu sangue gelou.

Um raio intenso de sol iluminava o fim do corredor, e ali um menininho de botas de borracha e roupa de marinheiro desaparecia pela porta aberta.


EU TINHA CERTEZA.

Ele estava no armário embaixo da escada o tempo todo. Fiquei lá parada, completamente imóvel diante da porta aberta, defrontando-me com um dilema. O que fazer? Eu sabia com certeza que, assim que pusesse um pé para fora daquela casa de fazenda, seria provável que eu jamais voltasse a entrar. Seria melhor eu dar uma rápida olhada atrás da porta angulosa antes de sair em perseguição à aparição de roupa de marinheiro.

Dentro do armário escuro, um pedaço de cordel pendia de uma lâmpada nua. Dei uma puxada, e o espaço surgiu iluminado por uma luz fraca. Estava vazio.

Isto é, vazio a não ser por um par de botas de borracha de criança muito semelhante ao que eu acabara de ver nos pés da figura no vão da porta.

A principal diferença era que essas botas Dunlop estavam incrustadas de barro, ainda molhadas da chuva da manhã.

Ou da sepultura.

Quando passei correndo pela porta da frente aberta, vi de relance a roupa de marinheiro azul-marinho desaparecer atrás do galpão de implementos. Além daquelas paredes galvanizadas ferrugentas, eu sabia, havia um desconcertante aglomerado de anexos: um labirinto de galpões, cada um dos quais poderia facilmente conter uma dúzia de esconderijos.

Saí a passos largos, como um cão de caça farejando. Nem me passou pela cabeça sentir medo.

Mas então dei uma freada súbita. Atrás do galpão de implementos, uma ruela estreita levava à saída pela direita. Teria o fugitivo disparado por ela para me despistar? Avancei lentamente pela passagem estreita, tomando muito cuidado para não tocar nas paredes abandonadas de ambos os lados. Um só arranhão causado por uma daquelas pontas de lata rasgada, afiadas como navalhas, quase certamente daria em tétano, e eu acabaria imobilizada em uma ala de hospital, espumando pela boca e atormentada por espasmos de quebrar os ossos.

Como Dafi e Felinha ficariam felizes!

“Eu bem que avisei que ela acabaria mal”, diria Dafi ao pai. “Ela nunca devia ter sido autorizada a andar solta por aí.”

Assim, me arrastei lentamente como um caranguejo pela passagem estreita. Quando finalmente cheguei ao fim, vi meu caminho bloqueado à esquerda por uma pilha de surrados tambores de gasolina e, à direita, por um chiqueiro infestado de espinheiros.

Enquanto retornava pela Passagem da Morte, que parecia ainda mais estreita na jornada de volta, parei para escutar mas, além do distante cacarejar de galinhas e da minha respiração, não ouvi mais nada.

Segui pé ante pé, suavemente, entre os galpões dilapidados, muito atenta à minha visão periférica, consciente de que, a qualquer momento, alguma coisa poderia se lançar sobre mim vinda de alguma porta escura.

Só então reparei nos rastos no chão: pegadas pequeninas que só poderiam ter sido deixadas pelas solas de padrão quadriculado de uma bota infantil de borracha Dunlop.

Com todos os sentidos alerta, segui a trilha.

Ela me levou para além do galpão de implementos, para além da carcaça enferrujada de um velho trator que se inclinava para um lado de modo bizarro, sem uma das rodas de trás, parecendo uma coisa meio enterrada na areia — alguma máquina muito antiga trazida à praia pelo mar.

Mais uma pequena corrida para a esquerda, e me vi ao pé do pombal, que se erguia acima de mim como um castelo de conto de fadas, os tijolos desiguais manchados de um quase dourado pela luz do fim do dia.

Embora eu já tivesse estado ali, tinha chegado por um caminho diferente, e me arrastei bem devagar em volta da decrépita porta de madeira, com o cheiro penetrante de excrementos de pombos já começando a encher minhas narinas.

Talvez eu estivesse enganada, pensei por um momento: talvez o menino de roupa de marinheiro tivesse passado correndo pela torre e estava, a essa altura, bem longe, além dos campos. Mas as pegadas no solo provavam outra coisa: elas levavam diretamente à porta do pombal.

Alguma coisa roçou minha perna, e meu coração quase parou.

— Miau! — fez uma voz.

Era Tock, a mais eloquente das gatas Ingleby.

Pus um dedo nos lábios para silenciá-la, antes de me lembrar de que gatos são incapazes de ler a linguagem gestual. Mas talvez sejam, pois sem mais nenhum som ela se agachou bem perto do chão e se safou para dentro das sombras do interior do pombal.

Hesitante, eu a segui.

Lá dentro, o lugar era como eu me lembrava: uma miríade de luzes se infiltrando através das fendas da alvenaria antiga; o ar claustrofóbico, abafado, poeirento. Dessa vez, porém, não havia lamúrias de espíritos vindo da sala acima. O lugar estava tão silencioso quanto a cripta que fica além do castelo da própria Morte.

Pus um pé na estrutura e olhei para o alto, tentando ver onde ela desaparecia na penumbra acima da minha cabeça. A madeira velha soltou um grasnido agourento, e eu parei. Quem ou o que quer que estivesse acima de mim na semiobscuridade, agora sabia que estava encurralado.

— Olá! — gritei, mais para me encorajar. — Olá! Sou eu, Flavia. Tem alguém aí?

O único som que veio de cima foi o zumbido de abelhas em volta das janelas superiores do pombal, grotescamente amplificado pela estrutura oca da torre.

— Não tenha medo — gritei. — Estou subindo.

Aos poucos, um degrau de cada vez, comecei minha precária ascensão. Novamente me senti como João, dessa vez escalando o pé de feijão; me arrastando para cima, centímetro por centímetro, para enfrentar algum horror desconhecido. A madeira velha rangia de um modo horrível, e eu sabia que poderia desmoronar a qualquer momento, fazendo-me despencar para a morte certa nas pedras abaixo de um jeito muito semelhante ao do gigante, e de Rupert, se estatelando em cima do palco de marionetes.

A escalada parecia não ter fim. Parei para ouvir: ainda não havia som nenhum, fora o das abelhas.

Sempre para cima eu prossegui, pondo os pés cautelosamente de um degrau para o outro, agarrando-me às travessas com dedos que já começavam a ficar adormecidos.

Quando meus olhos finalmente ficaram no mesmo nível da abertura em arco, o interior da câmara superior entrou no meu campo de visão. Um vulto estava debruçado sobre o santuário de Robin Ingleby: o mesmo vulto que fugira da casa da fazenda.

De joelhos, as costas voltadas para mim, a pequena aparição vestia uma roupa de marinheiro branca e azul-marinho, com colarinho folgado e calça curta; as solas quadriculadas de suas botas de borracha estavam quase na minha cara. Eu poderia ter esticado a mão e tocado nelas.

Meus joelhos começaram a tremer violentamente, ameaçando ceder e me arremessar para baixo, no abismo pedregoso.

— Socorro — eu disse, as palavras surgindo de repente sem explicação, e de forma surpreendente, de alguma ancestral parte reptiliana do meu cérebro.

Uma mão se estendeu, dedos brancos seguraram os meus e com uma força surpreendente me içaram para a segurança. Um momento depois, me vi encolhida, segura, mas trêmula, frente a frente com o espectro.

Embora a roupa branca de marinheiro, com a jaqueta ostentando a coroa e a âncora, e as botas Dunlop sem dúvida pertencessem ao falecido Robin Ingleby, o rosto tenso e emaciado que me olhava por baixo do boné do HMS Hood era o de sua diminuta mãe, Grace.

— Você — eu disse, incapaz de me conter. — Foi você.

O rosto dela estava triste e repentinamente muito, muito velho. Era difícil acreditar que ainda restasse naquela mulher um átomo que fosse de Grace Tennyson, aquela garota alegre, expansiva, que uma vez subjugara as entranhas eletrificadas de Pedro, o Grande, o samovar de prata na Casa de Chá São Nicolau.

— Robin se foi — disse ela com uma tossida. — O Diabo o levou.

O Diabo o levou! Quase as mesmas palavras que Meg, a Louca, usara no Bosque Gibbet.

— E quem era o diabo, sra. Ingleby? Eu pensei por um instante que fosse Rupert, mas não era. Era você, não era?

— Rupert agora está morto — disse ela, tocando as têmporas com os dedos, como se estivesse atordoada.

— Sim — eu disse. — Rupert está morto. Era ele o homem de Punch e Judy na praia, não era? Você combinou se encontrar lá com ele, e Robin viu vocês dois juntos. Você ficou com medo de ele contar a Gordon.

Ela me lançou um sorriso meio precavido.

— Na praia? — disse com uma tossida e uma risadinha. — Não, não. Não na praia. Aqui... no pombal!

Fazia algum tempo eu já suspeitava que o único conjunto de pegadas, aquelas que foram encontradas cinco anos atrás levando ao Campo Jubileu e ao Bosque Gibbet, era de Grace Ingleby carregando o corpo de Robin nos braços. A fim de deixar apenas as pegadas dele, ela calçara as botas de borracha do filho. Eram, afinal, do mesmo tamanho das suas. Como que para provar isso, ela as estava usando hoje.

Cinco anos após sua morte, ainda estava vestindo as roupas de Robin, tentando desesperadamente conjurar seu filho de volta dos mortos. Ou se redimir do que havia feito.

— Você o carregou para o bosque e o pendurou em uma árvore. Mas Robin morreu aqui, não foi? Foi por isso que você fez aqui o pequeno santuário dele, e não no quarto de Robin.

Por mais trivial que parecesse aquela conversa com uma louca, eu sabia que se conseguisse chegar a Buckshaw em segurança, precisaria de um banho prolongado, quente e fumegante.

— Eu falei para ele ficar lá embaixo — disse ela um tanto petulante. — “Volte para casa, Robin”, eu gritei. “Você não pode subir aqui.” Mas ele não me ouviu. Os menininhos às vezes são assim. Desobedientes.

Ela tossiu de novo e sacudiu a cabeça com tristeza.

— “Eu sei fazer um truque com a corda!”, ele gritou de volta. Estivera brincando de caubói o dia inteiro com uma corda que achara em um galpão.

Bem como Sally havia dito. Grace devia estar contando a verdade.

— Ele subiu aqui antes que eu pudesse impedi-lo. Rupert ficou furioso. Agarrou Robin para lhe dar uma sacudida, mas seu aparelho ortopédico de ferro escorregou nos tijolos. Robin...

Agora, lágrimas silenciosas escorriam por seu rosto.

— Caiu — disse eu. Não havia necessidade de mais detalhes.

— Caiu — repetiu ela, e o modo como ela arrastou a palavra a fez ecoar nos tijolos, pairando de um jeito grotesco na câmara circular: um som que jamais esquecerei.

Com ele, veio uma ideia.

— Foi Rupert quem pensou na história de Punch e Judy? Que Robin estava representando a cena de Punch e o carrasco?

— Onde você ouviu isso? — perguntou ela, subitamente lúcida, sagaz. Pensei no sorriso de Meg, a Louca, no Bosque Gibbet; aquelas duas mulheres tinham muita coisa em comum.

— O seu depoimento ao júri no inquérito — respondi. — É de conhecimento público.

Não achei necessário acrescentar que tinha ouvido de Sally.

— Ele me obrigou a fazer isso — disse ela, enxugando os olhos com a manga da roupa de marinheiro, e pela primeira vez me dei conta de quanto ela se parecia com Robin. Uma vez percebida, a semelhança era assustadora.

— Rupert me disse que ninguém jamais ficaria sabendo. O pescoço de Robin tinha sido quebrado na queda, e se nós... se eu...

Um arrepio percorreu todo o seu corpo.

— Se eu não fizesse como ele ordenara, ele contaria a Gordon o que estava havendo entre nós. Eu seria punida. Gordon é rápido com os punhos, você sabe.

Assim como Rupert. Eu tinha visto as equimoses que ele deixara no braço de Nialla. Dois homens de temperamento exaltado que, em vez de resolverem as coisas brigando entre si, fizeram saco de pancada das respectivas mulheres.

— Não havia ninguém com quem você pudesse falar? O vigário, por exemplo?

Isso pareceu estimulá-la, e ela foi tomada por um prolongado acesso de tosse. Esperei até Grace Ingleby terminar.

— O vigário — disse ela, ofegante — é o único que tornou estes meus últimos cinco anos suportáveis.

— Ele sabia sobre Robin?

— Os lábios de um clérigo são selados — disse ela. — Ele nunca deixou escapar uma palavra. Tentou vir para a Fazenda Culverhouse uma vez por semana, só para me deixar falar. O homem é um santo. A mulher dele achava que ele estava...

— Apaixonado por você.

Ela assentiu, fechando os olhos com força, como se estivesse com dores excruciantes.

— Você está bem? — perguntei.

— Espere alguns minutos — disse ela —, e ficarei muito bem.

Seu corpo desmoronava diante dos meus olhos, inclinando-se na direção da abertura que dava para o poço.

Agarrei seu braço e, quando fiz isso, um frasco de vidro que ela apertava na mão fechada caiu no piso de tijolos e resvalou, tilintando, até o canto, o que fez um pombo subir estrepitosamente para a abertura. Arrastei Grace para o centro da câmara e lancei-me atrás do frasco, que fora parar em um montículo de guano ancestral.

O rótulo me contou tudo o que eu precisava saber: “Cianureto de cálcio”, estava escrito. “Veneno.”

Veneno de rato! A substância era de uso comum em fazendas, particularmente naquelas onde galinheiros atraíam a praga. Ainda havia um dos tabletes brancos no fundo. Tirei a tampa e cheirei. Nada.

Grace estava estatelada no chão, crispando-se, os membros se agitando.

Caí de joelhos e cheirei seus lábios. Odor de amêndoas amargas.

Os tabletes brancos de cianureto de cálcio, eu sabia, assim que encontrassem a umidade em sua boca, garganta e estômago, produziriam cianureto de hidrogênio, um gás tóxico que podia matar em cinco minutos.

Não havia tempo a perder. A vida dela estava em minhas mãos. Quase entrei em pânico ao pensar nisso, mas não entrei.

Dei uma olhada cuidadosa em volta, registrando cada detalhe. Além da vela, do santuário, da fotografia de Robin e de seu veleiro de brinquedo, não havia nada na câmara, a não ser entulho.

Bem, não exatamente nada. Em uma parede havia um antigo dispositivo para fornecer água às aves: um bulbo de vidro invertido com um tubo, cuja alimentação por gravidade mantinha uma tigela cheia para os pombos mergulharem os bicos. Pela transparência da água, parecia que Grace o enchera recentemente.

Um registro de vidro permitia que a alimentação por gravidade fosse fechada. Dei-lhe uma girada e com cuidado puxei a tigela cheia para fora das presilhas de mola.

Grace gemia horrivelmente no chão e parecia não estar mais consciente da minha presença.

Com passos cautelosos, fui até o lugar de onde o pombo tinha voado. Apalpando cuidadosamente a palha com a ponta dos dedos, logo me vi recompensada. Um ovo. Não, dois ovinhos!

Depois de colocá-los gentilmente ao lado da tigela, ergui o veleiro. Na parte de baixo de sua quilha de lata havia um peso de chumbo. Droga!

Cravei a coisa no espaço entre dois tijolos no peitoril da janela e puxei com toda a minha força, e então puxei de novo. Na terceira vez, o peso se soltou com um estalo.

Usando a afilada extremidade inferior da quilha como uma espátula improvisada, me inclinei para fora da abertura para a larga projeção que durante séculos servira de poleiro.

Abaixo de mim, o pátio da fazenda estava vazio. Não tinha sentido desperdiçar tempo gritando por socorro.

Fui passando a delgada quilha ao longo da projeção até conseguir juntar o que eu precisava e depois, com um dedo relutante, raspei aquilo para dentro da tigela de água.

Faltava uma última etapa.

Embora seu tamanho diminuto fizesse daquilo um trabalhinho delicado, quebrei os ovos, um de cada vez, do jeito que a sra. Mullet me ensinara: uma batidinha seca no meio e depois, usando as duas metades da casca como dois porta-ovos gêmeos, virando a gema de uma metade para a outra até que a última gota de clara tivesse escorrido para dentro da tigela de água que aguardava.

Pegando o frasco dos tabletes, usei-o como mão de almofariz: torcendo, moendo e mexendo até conseguir talvez meia xícara de chá de uma lama coagulada e acinzentada com o mais leve matiz de amarelo.

Para que nenhuma de nós a derrubasse (Grace agora agitava as pernas debilmente e estava com o rosto rosado por falta de oxigênio), eu me sentei no chão ao lado dela, de pernas cruzadas, e puxei sua cabeça para o meu colo, com o rosto para cima. Ela estava fraca demais para resistir.

Então, apertando o nariz dela entre o polegar e o indicador, puxei sua boca para abri-la, esperando que, nos seus espasmos, ela não me mordesse.

Ela fechou-a bruscamente. Aquilo não seria tão fácil como eu tinha pensado.

Apertei-lhe o nariz um pouco mais. Agora, se ela realmente quisesse respirar, teria de ser pela boca. Me odiei pelo que estava fazendo com ela.

Ela se debateu, os olhos saltados; e então a boca se abriu de repente e ela encheu os pulmões, depois fechou-se violentamente outra vez.

Tão lenta e gentilmente quanto eu era capaz, me inclinei e peguei a tigela cheia até a borda, aguardando o momento certo.

Ele chegou mais cedo do que eu esperava. Com uma arfada, a boca de Grace se abriu subitamente e, enquanto ela aspirava o ar de novo, despejei o conteúdo da tigela em sua boca, depois fechei-a com força com a mão embaixo de seu queixo. A tigela vazia caiu no chão estrepitosamente.

Mas Grace lutava comigo, dava para ver. Uma parte dela estava tão determinada a morrer que estava segurando a substância na boca, recusando-se a engolir.

Com o dedinho da mão direita, comecei a cutucar sua goela, como uma ave marinha cavando a areia.

Devíamos estar parecendo lutadores gregos: ela, com a cabeça firmemente travada no meu braço, eu, curvada por cima dela, tremendo com o mero esforço físico de tentar impedi-la de cuspir a mistura nauseante.

E então, um pouco antes de largar o corpo, eu a ouvi engolir. Ela não estava mais resistindo. Cuidadosamente, forcei a boca a se abrir. Com exceção de um leve e desagradável brilho de corpo estranho, ela estava vazia.

Corri até a janela, inclinando-me para fora o mais que podia sob a luz do sol.

Meu coração desfaleceu. O pátio da fazenda ainda estava vazio.

Então, de repente, ouvi um ruído de máquina se aproximando, e um momento depois o Fergie cinzento apareceu barulhento pelo caminho, com Sally sacolejando ao volante e Dieter com as pernas compridas penduradas para fora do reboque.

— Sally! Dieter! — gritei para eles.

No começo eles não sabiam de onde vinha a minha voz. Olhavam para todos os lados do pátio, perplexos.

— Aqui em cima — no pombal!

Enfiei a mão no bolso, pesquei o apito de salgueiro de Alf e soprei como um guarda ensandecido.

Afinal eles me avistaram. Sally acenou para mim.

— É Grace! — berrei. — Tomou veneno! Ligue para o dr. Darby, diga para ele vir agora!

Dieter já disparava para a casa da fazenda, correndo a toda, como ele devia ter feito outrora, quando corria para o seu Messerschmitt.

— E diga para ele verificar se tem nitrito de amila e tiossulfato de sódio em sua valise! — gritei, lutando contra um par de lágrimas impertinentes. — Ele vai precisar!


— EXCREMENTOS DE POMBO? — disse o inspetor Hewitt, quem sabe pela terceira vez. — Você está me dizendo que preparou um antídoto com excrementos de pombo?

Estávamos sentados no estúdio do vigário, avaliando um ao outro.

— Sim — eu disse. — Não tive escolha. O guano de pombo, quando deixado exposto à luz do sol, é extraordinariamente rico em NaNO3, que é nitrato de sódio. E essa é a razão por que tive de raspá-lo do poleiro de fora, em vez de usar o material mais antigo que estava na câmara. O nitrato de sódio é um antídoto para o envenenamento por cianureto. Usei as claras de ovos de pomba para produzir a suspensão. Espero que ela esteja bem.

— Ela está ótima — disse o inspetor —, muito embora estejamos buscando uma opinião sobre se devemos acusar você de praticar medicina sem licença.

Estudei seu rosto para ver se ele estava brincando, mas ele não parecia estar.

— Mas — protestei — o dr. Darby disse que ele mesmo não poderia ter feito melhor.

— O que não é grande coisa — disse o inspetor, desviando os olhos de mim e olhando através da janela.

Vi que o havia derrotado.

O inspetor Hewitt me parara no caminho de volta a Buckshaw e pedira para eu justificar minha presença na Fazenda Culverhouse.

Uma história fabricada às pressas sobre ir buscar ovos para a sra. Mullet, que queria fazer um pão de ló, aparentemente me tirara da enrascada. Pelo menos por enquanto.

O inspetor me assegurara que Grace Ingleby ainda estava viva; que ela tinha sido levada para o hospital em Hinley.

Ele não disse que meu antídoto salvara a vida dela. Imaginei que só o tempo diria.

O vigário, que cedera sua escrivaninha e sua cadeira para o inspetor Hewitt, estava plantado no canto como uma cegonha preta, esfregando os óculos com um lenço de linho.

Enquanto o sargento-detetive Woolmer se postava junto a uma das janelas, fingindo polir uma lente anastigmática da sua preciosa câmera, o sargento-detetive Graves ergueu os olhos de suas anotações por um tempo apenas suficiente para me dar um sorriso radiante. Eu gostaria de pensar que a quase imperceptível sacudida de cabeça que veio junto era um sinal de admiração.

E apesar de eles ainda não terem consciência um do outro, eu também gostaria de pensar que o sargento Graves um dia se casará com minha detestável irmã Ophelia e a levará embora para um chalé coberto de hera, distante de Buckshaw apenas o suficiente para eu poder aparecer lá sempre que me der vontade de um bom bate-papo sobre assassinatos.

Mas agora havia Dieter para levar em conta. A vida estava ficando tão complicada!

— Simplesmente comece do começo — disse o inspetor Hewitt, voltando de súbito do seu devaneio. — Quero me certificar de que não deixei passar nada.

Estaria eu detectando um tom de sarcasmo? Esperava que não, já que eu realmente gostava do homem, apesar de ele ser um pouco lento.

— A sra. Ingleby, Grace, estava tendo um caso com Rupert Porson. Rupert vinha sempre para a Fazenda Culverhouse há anos, porque... porque Gordon lhe fornecia maconha. Aliviava as dores da sua pólio, entenda.

Ele deve ter percebido minha hesitação.

— Não precisa se preocupar em traí-lo — ele disse. — O sr. Ingleby foi completamente franco conosco. O que quero é ouvir a sua versão.

— Rupert e Grace combinaram se encontrar na praia anos atrás — eu disse. — Robin os viu lá juntos. Ele topou com os dois por acaso, mais uma vez, no pombal. Quando Rupert tentou agarrá-lo, ou coisa assim, Robin desabou pelo poço central e quebrou o pescoço. Foi um acidente, mas ainda assim Robin estava morto. Rupert maquinou a ideia de forçar Grace a carregar o corpo dele, depois que escurecesse, para o Bosque Gibbet e pendurá-lo em uma árvore. Várias pessoas tinham visto Robin brincando com uma corda.

“Foi Rupert, também, quem inventou a história de que Robin estivera representando a cena entre Punch e Jack Ketch, que ele tinha visto no espetáculo de bonecos da praia. O conto de Punch e o carrasco é conhecido por todas as crianças da Inglaterra. Ninguém questionaria a história de que Robin se enforcara por acidente. Ela era simplesmente bizarra o bastante para ser verdadeira. Como titereiro conhecido que era, Rupert não podia permitir que seu nome ficasse associado, de qualquer modo, à morte de uma criança. Ele precisava desaparecer da cena da morte de Robin. Além de Grace, ninguém sabia que ele estivera na fazenda naquele dia.

“Por isso ele a ameaçou. Disse que se ela não fizesse como ele queria, daria com a língua nos dentes para Gordon... desculpe, quero dizer que ele informaria a Gordon que estava tendo um caso com a mulher dele. Grace perderia os dois, o filho e o marido. Ela já estava meio enlouquecida de tristeza e medo, portanto é provável que tenha sido bem fácil ele manipulá-la.

“Como ela é muito pequena, conseguiu calçar as botas de borracha de Robin para carregar seu corpo até o Bosque Gibbet. Ela é excepcionalmente forte para o seu tamanho. Descobri isso quando me içou para dentro da câmara do pombal. Depois de pendurar o corpo de Robin na árvore, ela calçou as botas nos pés dele e foi para casa dando a volta pelo caminho mais comprido, descalça.”

O inspetor Hewitt balançou a cabeça e rabiscou uma anotação com a sua microscópica caligrafia.

— Meg, a Louca, topou com o corpo lá pendurado e achou que fosse obra do Diabo. Eu já lhe entreguei a folha do meu caderno, portanto você viu o desenho que ela fez. Ela é muito boa, na verdade, não acha?

— Hum — disse o inspetor. Aquilo era um mau hábito que ele estava adquirindo por conviver demais com o dr. Darby.

— Por isso ela teve medo de tocá-lo, ou mesmo de contar a alguém. O corpo de Robin ficou pendurado no Bosque Gibbet até Dieter encontrá-lo.

“Sábado passado, no salão paroquial, quando Meg viu o rosto de Robin no João, o boneco, pensou que o Diabo tinha trazido o menino morto de volta à vida, o encolhido e posto ele para trabalhar no palco. O tempo, para Meg, é uma coisa muito confusa. Dá para ver isso no desenho: Robin pendurado na árvore é uma cena que ela viu há cinco anos. O vigário tirando a roupa no bosque é algo que ela viu na quinta-feira passada.”

O vigário ficou vermelho-beterraba e correu um dedo por dentro de seu colarinho eclesiástico.

— Sim, bem... você sabe...

— Ah, eu sabia que você tinha levado um tombo, vigário — eu disse. — Soube no instante em que o vi no cemitério, no dia em que encontrou Rupert e Nialla, está lembrado? A perna da sua calça estava rasgada, você estava coberto de manchas de poeira argilosa da estrada para a Fazenda Culverhouse e tinha perdido o prendedor de calça da sua bicicleta.

— É verdade — disse o vigário. — Minha calça ficou presa na bendita corrente e eu fui atirado para dentro da valeta.

— O que explica por que você entrou no meio das árvores no Bosque Gibbet para tirar as roupas e tentar limpá-las. Você estava com medo do que Cynthia diria... desculpe, a sra. Richardson. Você mesmo disse, no pátio da igreja. Alguma coisa sobre Cynthia comer o seu fígado.

O vigário continuou em silêncio, e não creio que jamais o tenha admirado tanto como naquele momento.

— Como você estava indo à Fazenda Culverhouse pelo menos uma vez por semana desde que Robin morreu, há cinco anos, Cynthia... quero dizer, a sra. Richardson, de algum modo, concluiu que havia mais nos seus encontros com Grace Ingleby do que podia parecer. Por isso você, de um tempo para cá, vem mantendo suas visitas em segredo.

— Eu realmente não me sinto livre para discutir isso — disse o vigário. — O uso do colarinho eclesiástico põe fim a qualquer tendência que se tenha para tagarelar. Mas devo acrescentar, em defesa dela, que Cynthia é muito leal. Sua vida nem sempre é muito fácil.

— Nem a de Grace Ingleby — observei.

— Não, nem a de Grace.

— De um jeito ou de outro — prossegui —, Meg vive em uma velha choça, em algum lugar nas profundezas do Bosque Gibbet. Ela não perde muita coisa do que acontece por ali.

Ou em qualquer outro lugar, tive vontade de acrescentar. Acabara de me ocorrer que, quase com certeza, foi Meg que Rupert e Nialla ouviram rondando perto da tenda deles no pátio da igreja.

— Ela o viu tirando a calça ao lado da velha forca, e no lugar exato em que vira Robin pendurado. Por isso ela o incluiu em seu desenho.

— Entendo — disse o vigário. — Ao menos, acho que entendo.

— Meg pegou seu prendedor de calça na estrada com a intenção de usá-lo em uma daquelas suas esculturas de coisas penduradas, mas o reconheceu como seu e...

— Tem as minhas iniciais — disse o vigário. — Cynthia as escreveu lá.

— Meg não sabe ler — disse eu —, mas é muito observadora. Veja os detalhes no desenho dela. Ela se lembrou até do pequeno distintivo da Igreja da Inglaterra de sua lapela.

— Céus — disse o vigário, dando a volta para espiar por cima do ombro do inspetor Hewitt. — Lembrou mesmo.

— Ela veio aqui no sábado à tarde para devolver o prendedor de calça e, enquanto o procurava, foi dar por acaso no salão da paróquia durante o espetáculo de Rupert. Quando viu Robin encolhido no palco, ela surtou. Você e Nialla a carregaram para o presbitério e a acomodaram no seu sofá, no estúdio. Foi quando o prendedor (e o pó compacto de Nialla) caiu do bolso dela. Achei o pó compacto no chão atrás do sofá no dia seguinte. Não achei o prendedor porque Grace Ingleby já o pegara no dia anterior.

— Espere — disse o inspetor. — Ninguém alegou ter visto a sra. Ingleby em lugar nenhum perto do presbitério nem do salão paroquial no sábado à tarde.

— Não mesmo — eu disse. — O que eles, sim, disseram foi que a moça dos ovos esteve lá.

Se o inspetor Hewitt fosse daquele tipo de homem cuja boca era sujeita a se abrir quando atônito, ele estaria boquiaberto como uma gárgula.

— Meu bom Deus — ele disse, serenamente. — Quem lhe contou isso?

— A sra. Roberts e a srta. Roper — disse eu. — Elas estavam na cozinha do presbitério ontem depois da igreja. Eu supus que você as tivesse interrogado.

— Acredito que fizemos isso — disse o inspetor Hewitt, erguendo uma sobrancelha para o sargento Graves, que folheou as páginas do seu caderno.

— Sim, senhor — disse o sargento Graves. — As duas deram depoimentos, mas nada foi dito sobre moça dos ovos.

— A moça dos ovos era Grace Ingleby, é claro — eu disse, solícita. — Ela desceu tarde da Fazenda Culverhouse naquele sábado, com ovos para o presbitério. Não havia mais ninguém por perto. Alguma coisa a fez ir até o estúdio do vigário. Talvez ela tenha ouvido Meg roncar, não sei. Mas achou o prendedor de calça no chão, pegou-o e o enfiou no bolso.

— Como você pode ter tanta certeza? — perguntou o inspetor Hewitt.

— Não posso ter certeza — disse eu. — O que posso ter certeza, porque ele me contou, é de que o vigário perdeu o seu prendedor de calça na última quinta-feira...

O vigário balançou a cabeça, concordando.

— ... na estrada, na Colina Gibbet... e que você e eu, inspetor, o encontramos no domingo de manhã, preso ao corrimão do teatro de marionetes. O resto é mera especulação.

O inspetor coçou o nariz, fez mais uma anotação e ergueu os olhos para mim como se tivesse sido enganado no troco.

— O que claramente nos leva de volta a Rupert Porson — disse.

— Sim — retruquei. — O que claramente nos leva de volta a Rupert Porson.

— A respeito de quem você estava prestes a nos esclarecer.

Ignorei sua crítica e continuei:

— Grace conhecia Rupert fazia muitos anos. Talvez desde antes de conhecer Gordon. Até onde eu sei, ela até pode ter viajado com ele por um tempo, como sua assistente.

Eu soube pela súbita expressão fechada do inspetor Hewitt que havia acertado a cabeça do prego. Bravo, Flavia!, pensei. Vai ganhar o prêmio de melhor aluna!

Havia momentos em que eu surpreendia até a mim mesma.

— E mesmo que não tenha viajado com ele — acrescentei —, ela certamente assistiu a alguns dos espetáculos que ele apresentou pelo interior. Ela deve ter prestado uma atenção especial à instalação elétrica. Como Rupert fabricava todo o seu equipamento de iluminação, acho difícil acreditar que ele não aproveitou a oportunidade para mostrar os detalhes a uma colega eletricista. Ele era muito vaidoso de seus talentos, você sabe.

“Eu imagino que Grace pegou as chaves no presbitério e foi diretamente ao salão paroquial através do pátio da igreja. A essa altura a apresentação da tarde já havia acabado; o público tinha ido embora, e Rupert também. Havia pouca chance de ela ser vista. Mesmo que tivesse sido avistada, ninguém prestaria a menor atenção nela, não é? Afinal, ela era apenas a moça dos ovos. Além disso, ela e o marido são paroquianos de São Tancredo, portanto ninguém olharia duas vezes.

“Ela entrou no salão e, usando o corredor à esquerda (e trancando a porta atrás dela), subiu os dois pequenos lances que levam ao palco.

“Ela subiu para a ponte do palco de marionetes e raspou o isolamento do fio, usando o prendedor de calça como uma espécie de desbastador. Então passou o prendedor por cima da estrutura de madeira do palco, tocando o fio elétrico exposto com uma ponta e a haste metálica que liberava Galligantus na outra. E é isso! Não houve nada além disso. Se você chegou a dar uma olhada de perto no prendedor de calça, provavelmente já descobriu uma pequena marca de abrasão do lado de dentro, no centro. E talvez ligeiros indícios de cobre.”

— Verdade! — deixou escapar o sargento Woolmer, e o inspetor Hewitt o fulminou com o olhar.

Diferentemente da maioria dos outros suspeitos (com exceção de Dieter, é claro, que construía aparelhos de rádio quando menino na Alemanha), Grace Ingleby tinha o treinamento requerido em eletricidade. Antes da guerra, antes de se casar com Gordon, ela trabalhava em uma indústria que instalava rádios em Spitfires. Me disseram que o QI dela é quase igual ao número de salmos.

— Maldição! — bradou o inspetor Hewitt, pondo-se em pé de um salto. — Desculpe, vigário. Mas por que não descobrimos essas coisas, sargento-detetive?

Ele olhou furioso de um de seus homens para o outro, incluindo os dois na sua exasperação.

— Com todo o respeito, senhor — arriscou o sargento Woolmer —, poderia ser porque nós não somos a srta. De Luce.

Foi uma coisa atrevida para se dizer, e temerária. Se o que vi no cinema era verdade, aquele foi o tipo de comentário que poderia transformar o sargento Woolmer em um remendador de estradas antes do pôr do sol.

Depois de um silêncio enervante, o inspetor disse:

— Você está certo, é claro, sargento. Não temos o mesmo acesso às casas e aos lares de Bishop’s Lacey, temos? É uma área onde poderíamos atuar melhor. Anote isso.

Não admira que seus subordinados o adorassem!

— Sim, senhor — disse o sargento Graves, rabiscando alguma coisa em seu caderno.

— Então — prossegui —, depois de preparar a armadilha, Grace saiu pela porta do corredor à direita do palco e trancou essa porta também, provavelmente para impedir qualquer pessoa de chegar aos bastidores e descobrir o que ela havia feito. Como eu disse, ela é uma mulher muito inteligente.

— Mas — disse o inspetor Hewitt — se ambas as portas estavam trancadas, como Porson subiu ao palco para a apresentação? Ele não poderia ter se trancado por dentro, já que não tinha a chave.

— Ele usou aquela pequena escada na frente do palco — disse eu. — Não é tão íngreme quanto as duas nos corredores laterais, e é só um lance. As escadas estreitas eram difíceis para Rupert, por causa do aparelho ortopédico, e ele pegava o caminho mais curto. Notei isso na última quinta-feira, quando ele verificava a acústica do salão.

— Uma teoria bem engenhosa — disse o inspetor Hewitt. — Mas ela não explica tudo. Como, por exemplo, o suposto assassino saberia que um pedaço de lata tão sem valor resultaria na morte de Porson?

— Porque Rupert sempre se apoiava em um corrimão feito de canos de ferro enquanto operava os bonecos. Com todo o equipamento de iluminação que estava instalado nos bastidores, o corrimão tinha de ser aterrado através da rede elétrica. No instante em que Rupert tocou na alavanca energizada de Galligantus, com a parte de baixo do corpo fortemente pressionada contra o corrimão como estava e a perna direita presa em um aparelho ortopédico, a corrente teria passado diretamente pelo seu braço acima e através...

— Do coração — disse o inspetor. — Sim, entendi.

— Igual a São Lourenço — eu disse —, que, como você sabe, foi executado sobre uma grelha.

— Obrigado, Flavia — disse o inspetor Hewitt. — Acho que você já se expressou muito convincentemente.

— Sim — disse eu, um tanto convencida. — Foi o que eu fiz. Então, isso é tudo?

O sargento Graves sorria por cima de seu caderno como Scrooge por cima dos livros de contabilidade.

O inspetor Hewitt franziu a testa com uma expressão que eu já tinha visto: uma expressão de curiosidade exasperada firmemente contida por anos de treinamento e um forte senso de dever.

— Acho que sim, a não ser, talvez, por um ou dois pormenores.

Dei-lhe aquele sorriso radiante, superior: com todos os dentes e lábios finos. Quase me odiei por fazer isso.

— Sim, inspetor?

Ele foi até a janela, as mãos entrelaçadas atrás das costas, como eu já o vira fazer antes em várias ocasiões. Por fim, se voltou:

— Talvez eu seja um pouco lento — disse.

Se ele estava esperando que eu o contradissesse, esperaria até as vacas voltarem para casa de pijama roxo.

— As suas observações sobre a morte de Rupert Porson foram muito elucidativas. Mas, por mais que eu tenha tentado, falhei redondamente em acompanhar seu raciocínio no caso da morte de Robin Ingleby.

— As botas, sim... talvez. É uma possibilidade, admito, mas está longe de ser uma certeza. Uma prova fraca, quando o caso for a julgamento. Isto é, se o caso for reaberto. Mas vamos precisar de muito mais do que um par de botas de criança, se quisermos prevalecer sobre Suas Excelências.

Seu tom era quase uma súplica. Eu já tinha decidido que havia certas observações que deveriam permanecer para sempre trancadas na minha cabeça: pepitas seletas de dedução que eu guardaria para o meu deleite particular. Afinal, o inspetor tinha muito mais recursos à sua disposição do que eu.

Mas então pensei em sua linda esposa, Antigone. O que ela pensaria de mim se descobrisse que eu criara obstáculos para ele? Uma coisa era certa: seria o fim de qualquer ideia que eu pudesse ter tido de tomar chá no jardim de sua casinha decorada com muito bom gosto.

— Muito bem — eu disse com relutância. — Há mais alguns pormenores. O primeiro é: quando Dieter voltou correndo para o pátio da fazenda, logo depois de descobrir o corpo de Robin pendurado no Bosque Gibbet, não havia ninguém nas janelas da casa. Ninguém estava aguardando a chegada dele, como era de se esperar. Com certeza, a mãe de uma criança desaparecida estaria frenética, aguardando por alguma novidade, por menor que fosse. Mas Grace Ingleby não estava vigiando as janelas. E por que não? A razão é simples: ela já sabia que Robin estava morto.

Em algum lugar atrás de mim, o vigário ofegou.

— Entendo — assentiu o inspetor Hewitt. — Uma teoria engenhosa... muito engenhosa. Mas, ainda assim, dificilmente o bastante para fundamentar um caso.

— Concordo — disse eu —, porém há mais.

Olhei de um para outro: o vigário, o inspetor Hewitt e o sargento Graves, seus rostos sôfregos projetados para a frente, atentos a cada palavra minha. Até o parrudo sargento Woolmer começou a polir mais devagar suas lentes intrincadas.

— O cabelo de Robin Ingleby sempre pareceu um monte de feno — disse eu. — Desgrenhado talvez seja a palavra certa. Pode-se ver nas suas fotos. No entanto, quando ele foi encontrado pendurado no madeiramento da velha forca, seu cabelo estava muito bem penteado, como se ele tivesse acabado de sair da cadeira do barbeiro. Meg capturou isso perfeitamente em seu desenho. Estão vendo?

Houve uma tomada de fôlego geral quando todos se amontoaram por cima da folha do meu caderno.

— Uma coisa que só uma mãe faria — eu disse. — Ela não resistiu. Grace Ingleby queria que seu filho estivesse apresentável quando fosse encontrado, pendurado pelo pescoço, morto no Bosque Gibbet.

— Meu bom Deus! — disse o inspetor Hewitt.


— MEU BOM DEUS! — Exclamou o pai. — Lá é a sede da BBC. Eles instalaram câmeras em Portland Place.

Ele se levantou da cadeira pela enésima vez e atravessou a sala de estar apressadamente para mexer nos botões da televisão.

— Por favor, fique quieto, Haviland — disse tia Felicity. — Se eles estivessem interessados no seu comentário, a BBC teria mandado alguém atrás de você.

Tia Felicity, que mal chegara em casa em Hampstead, voltara às pressas para Buckshaw assim que a ideia surgira em sua cabeça. Ela alugara o televisor para a ocasião (a um custo enorme, ela se apressou a enfatizar), e por causa disso agora desfrutava de poderes ditatoriais vastamente incrementados.

De manhã cedo no dia anterior, os trabalhadores haviam começado a erigir uma antena para a recepção em cima dos baluartes de Buckshaw.

— Ela precisa estar suficientemente alta para captar o sinal da nova torre de transmissão em Sutton Coldfield —, dissera tia Felicity, em uma voz que sugeria que a televisão era uma invenção dela. — Eu queria que todos nós fôssemos a Londres para as exéquias de Porson — continuou ela —, mas quando Lady Burwash deixou escapar que os Sitwell tinham mandado instalar uma televisão... Não, não, não proteste, Haviland. Ela é educativa. Estou fazendo isso pelo bem das meninas.

Vários trabalhadores musculosos usando macacões tinham arrastado o aparelho da traseira de uma camionete de mudança para dentro da sala de estar. E, agora, lá estava ele de tocaia, o seu único olho cinzento a olhar fixamente, como um ciclope tremeluzente, para todos nós, reunidos sob sua luminescência maligna.

Dafi e Felinha estavam juntas, aconchegadas em um sofá, fingindo enfado. O pai convidara o vigário e dissera a elas para tomar cuidado com a linguagem.

A sra. Mullet estava entronizada em uma confortável bergère, e Dogger, que preferia não se sentar na presença do pai, postou-se silenciosamente atrás dela.

— Me pergunto se eles têm televisores em Portland Place — disse Felinha ociosamente —, ou se, em vez disso, ficam olhando para fora pela janela.

Reconheci aquilo imediatamente como uma tentativa de provocar o pai, cujo desprezo pela televisão era legendário.

— A televisão não passa de um traste — ele respondia sempre que implorávamos pela instalação de um receptor. — Se Deus quisesse que imagens fossem mandadas pelo ar, Ele nunca teria nos dado o cinema... Ou a Galeria Nacional — ele acrescentava acidamente.

Mas nesse caso ele tinha sido voto vencido.

— Mas isto é história, Haviland — dissera tia Felicity com uma voz sonora. — Você teria negado às suas filhas a oportunidade de ver Henrique V se dirigir a seus homens no dia de São Crispim?

Ela assumira uma posição no meio da sala de estar.

 

Esta história o homem bom ensinará ao seu filho.

E a festa de Crispim e Crispiano jamais acontecerá,

Deste dia e até o fim do mundo,

Sem que nela sejamos lembrados;

Nós poucos, nós poucos felizes, nós um bando de irmãos...

 

— Bobagens! — disse o pai, mas tia Felicity, como Henrique V, foi em frente, impávida:

 

Pois aquele que hoje derrama seu sangue comigo

Será meu irmão; por mais vil que seja ele,

Este dia abrandará sua condição:

E os gentis homens na Inglaterra que ora dormem

Se acharão malditos por aqui não estarem,

E julgarão sua hombridade desprezível quando alguém falar

Que lutou conosco no dia de São Crispim.

 

— Tudo isso é ótimo, mas eles não tinham televisão em 1415 — disse o pai, mal-humorado e sem entender bem o que ela queria dizer.

Mas então, ontem, aconteceu uma coisa notável. Um dos técnicos, o que estava na sala de estar, atentamente de olho no receptor, começou a gritar instruções pela janela para um colega no gramado, que as transmitiu, com uma voz de sargento-instrutor, para o homem no telhado.

— Pare, Harry! Para trás... para trás... para trás. Não... você a perdeu. Volte para o outro lado...

Naquele exato momento, o pai tinha entrado na sala, planejando, acho eu, manifestar seu escárnio por toda aquela operação, quando seu olhar foi atraído por alguma coisa na tela salpicada de neve.

— Pare! — gritou ele, e sua ordem foi passada adiante em ecos cada vez mais distantes pelos técnicos, para fora da janela e para cima dos baluartes.

— Céus — disse ele. — É a Guiana Inglesa de 1856.

— Volte um pouco! — gritou, agitando as mãos para ilustrar.

Novamente a sua instrução foi transmitida para cima como baldes d’água em uma brigada de incêndio, e a imagem ficou um pouco mais clara.

— Bem como eu pensei — disse ele. — Eu a reconheceria em qualquer lugar. Está indo a leilão. Aumente o som.

Como que por obra do Destino, a BBC estava transmitindo naquele momento um programa sobre filatelia, e um momento depois o pai já tinha puxado uma cadeira, prendido seus óculos com armação de arame na ponta do nariz e se recusava a sair do lugar.

— Silêncio, Felicity! — latiu ele quando ela tentou intervir. — Isto é da maior importância.

E foi assim que o pai permitiu que a Besta-de-Um-Olho-Só se instalasse na sua sala de estar. Pelo menos por enquanto.

E agora, quando se aproximava o momento da inumação de Rupert (uma palavra que eu ouvira Dafi usar para impressionar a sra. Mullet), Dogger se esgueirou para o foyer para receber o vigário, que, apesar de não estar conduzindo o funeral, sentiu uma necessidade profissional de apertar a mão de cada um de nós ao entrar na sala.

— Meu Deus, meu Deus — disse ele. E pensar que o pobre homem expirou bem aqui, em Bishop’s Lacey.

Nem bem ele havia sentado no sofá, a campainha da porta tocou de novo, e alguns momentos depois Dogger retornou com um convidado inesperado.

— O sr. Dieter Schrantz — anunciou ele à porta, assumindo de novo com naturalidade seu papel de mordomo.

Felinha levantou-se em um salto e foi pairando através da sala receber Dieter, mãos estendidas, palmas para baixo, como uma sonâmbula.

Ela estava radiante, a megera!

Rezei para ela tropeçar no tapete.

— Puxe as cortinas, por favor, Dogger — disse o pai, e, quando Dogger obedeceu, a luz desapareceu da sala e nos deixou a todos sentados na penumbra.

Na campo de visão da pequena tela, como eu disse, entrou flutuando o pavimento molhado de Portland Place na frente da sede da BBC, enquanto a voz abafada e solene do locutor assumia a narrativa (poderia ter sido Richard Dimbleby ou talvez apenas alguém que soava como ele):

— E agora, de todos os recantos do reino, vêm as crianças. Foram trazidas aqui hoje por suas mães, e umas poucas, ouso dizer, pelos avós.

“Estão todos aqui em pé, em Portland Place, por horas debaixo de chuva, jovens e velhos, cada qual esperando pacientemente sua vez de dar um último e triste adeus ao homem que cativou seus corações; para prestar as últimas homenagens a Rupert Porson, o gênio que todos os dias, às quatro horas da tarde, os sequestrava de sua vida cotidiana e, como o Flautista de Hamelin, os levava para o seu Reino Mágico.”

Gênio? Bem, isso já era um pouco de exagero. Rupert era um apresentador brilhante; não havia dúvidas quanto a isso. Mas gênio? O homem era um patife, um mulherengo, um valentão, um bruto.

Mas será que isso o desqualificava como gênio? Acho que não. Cérebro e moral não têm nada a ver um com o outro. Eu, por exemplo: muitas vezes as pessoas me acham notavelmente brilhante, no entanto meu cérebro, com muita frequência, fica ocupado em engendrar jeitos novos e interessantes de levar meus inimigos a uma súbita, sufocante, convulsiva e agonizante morte.

Continuo firme na minha crença de que os venenos foram postos no mundo, em primeiro lugar, para ser descobertos e bem utilizados por aqueles que têm a inteligência, mas não necessariamente a força física para...

O veneno! Eu me esquecera completamente daqueles chocolates envenenados!

Será que Felinha os comera? Parecia improvável, pois, se tivesse comido, não estaria aqui sentada nessa calma enlouquecedora enquanto Dieter, como um criador de cavalos admirando sua potranca por cima da cerca de um paddock, contemplava apreciativamente as suas melhores características.

De qualquer modo, o sulfeto de hidrogênio que eu injetara nos chocolates não era suficiente para matar. Uma vez dentro do organismo, partindo-se do princípio que alguém seria suficientemente estúpido para engoli-lo, se oxidaria, transformando-se em sulfato de hidrogênio e, nessa forma, seria eventualmente eliminado na urina.

Seria assim tão criminoso o que eu tinha feito? O dimetilsulfeto era introduzido aos montes nos doces artificialmente aromatizados, e ninguém, até onde eu sabia, tinha sido enforcado por causa disso.

Quando meus olhos se acostumaram com a penumbra da sala de estar, consegui dar uma olhada rápida em volta, perscrutando os rostos iluminados pelo do televisor. A sra. Mullet? Não. Felinha não teria desperdiçado seus chocolates com a sra. Mullet. O pai e Dogger também estavam fora de questão, bem como o vigário.

Havia uma remota possibilidade de que tia Felicity os tivesse devorado, mas, se tivesse, o seu trombetear indignado teria feito até o elefante de Sabu disparar para as colinas.

Portanto, os chocolates ainda deviam estar no quarto de Felinha. Se ao menos eu pudesse sair sorrateiramente, despercebida na semiescuridão...

— Flavia — disse o pai com um aceno na direção da telinha —, eu sei como isto deve estar sendo particularmente difícil para você. Pode sair, se quiser.

Salvação! Aos chocolates envenenados!

Mas espere: se eu caísse fora agora, o que Dieter pensaria de mim? Quanto aos outros, eu não ligava a mínima... bem, talvez um pouco pelo vigário. Mas parecer fraca aos olhos de um homem que realmente fora abatido em chamas...

— Obrigada, pai — eu disse. — Acho que consigo aguentar.

Eu sabia que aquele era o tipo de reação orgulhosa que ele queria, e eu estava certa. Depois de fazer os ruídos paternais requeridos, ele se afundou novamente em sua poltrona com algo parecido com um suspiro.

Um ruído de batráquio veio das profundezas da poltrona no canto, e eu soube na hora que vinha de Dafi.

As câmeras de televisão estavam cortando para dentro do estúdio: um grande estúdio cheio até o teto de flores, e lá, entre elas, jazia Rupert, ou pelo menos o seu caixão: uma peça de mobiliário ornamentada que refletia as luzes da televisão e os enlutados próximos na sua superfície altamente polida, as alças folheadas de prata reluzindo na penumbra.

Agora outra câmera mostrava uma menininha se aproximando do esquife... hesitante... titubeante... forçada para a frente por uma série de empurrões dados pela mãe constrangida. A criança enxugou uma lágrima antes de depositar uma coroa de flores silvestres junto à barreira na frente do caixão.

A cena foi cortada para um close-up de uma mulher adulta chorando.

A seguir, um homem vestido de preto-funeral deu um passo à frente. Ele arrancou três rosas da parede de tributos florais e delicadamente presenteou com cada uma delas: a criança, a mãe e a mulher que chorava. Feito isso, puxou do bolso um grande lenço branco, virou de costas para a câmera e assoou o nariz com uma energia tomada de aflição.

Era Mutt Wilmott! Ele estava fazendo a direção de cena daquilo tudo! Exatamente como dissera que faria. Mutt Wilmott: aos olhos do mundo, um homem alquebrado.

Mesmo em um momento de luto nacional, Mutt estava a postos para providenciar os momentos memoráveis — as imagens inesquecíveis exigidas pela morte. Eu quase fiquei de pé para aplaudir. Eu sabia que as pessoas que testemunharam aquelas simples devoções, ao vivo ou pela televisão, seguiriam falando delas até estarem sentadas um dia sem dentes em um banco de madeira no jardim de um chalé, esperando seu coração parar de bater.

— Mutt Wilmott — prosseguiu a voz de Dimbleby —, produtor do Reino Mágico de Rupert Porson. Soubemos que ele ficou devastado com a notícia da morte do titereiro; que ele foi levado às pressas ao hospital para controlar seus batimentos cardíacos, mas que, a despeito disso e contra as ordens do médico, insistiu em estar aqui hoje para prestar tributo ao seu colega recentemente falecido... muito embora saibamos de boa fonte que uma ambulância está de prontidão, caso seja necessário.

Houve um corte para a imagem transmitida por uma câmera que até agora não tínhamos visto. Fazendo a tomada do alto, como que de cima de uma rotunda, a câmera desceu lentamente para o estúdio — como se aquilo estivesse sendo visto pelos olhos de um anjo vindo dos céus — e se aproximou cada vez mais do caixão até que, bem ao seu pé, se deteve sobre a figura notável de ninguém menos que Snoddy, o Esquilo.

Montado talvez em cima de um suporte de madeira, o boneco, com suas pequenas orelhas de couro, dentes salientes e uma cauda peluda em forma de ponto de interrogação, tinha sido arrumado com todo o cuidado para olhar com expressão triste para o caixão de seu mestre, as patinhas de esquilo reverentemente cruzadas em atitude humilde de oração.

Houve várias ocasiões, e esta era uma delas, em que, como se debaixo do súbito e cegante espoucar da câmera de um repórter fotográfico, eu enxergava tudo. A morte nada mais era que uma simples mascarada. E também, mais ainda, era a Vida! Ambas engenhosamente dirigidas por alguma coisa: algum Mutt Wilmott celestial dos bastidores.

Todos nós éramos marionetes postas em ação no palco por Deus, ou pelo Destino, ou pela Química, chamem como quiserem, e ali éramos movidos pelas mãos enluvadas e manipuladoras dos Rupert Porson e Mutt Wilmott deste mundo. Ou pelas Ophelia e Daphne de Luce.

Eu quis deixar escapar um oba!

Como eu quis que Nialla estivesse aqui para eu poder compartilhar minha descoberta com ela. Afinal, ninguém merecia mais. Mas àquela altura, até onde eu sabia, ela já conduzia a decrépita van Austin pelas ladeiras de alguma montanha galesa a caminho de alguma aldeia onde, com a ajuda de uma Mamãe Gansa improvisada às pressas, ela descarregaria seus caixotes de madeira e, mais tarde, à noite, ergueria as cortinas para os aldeões simplórios em algum distante Salão de São Davi, apresentando sua versão pessoal de João e o pé de feijão.

Depois que Rupert se foi, quem de nós, agora, seria Galligantus?, me perguntei. Quem de nós, agora, seria o monstro que desabaria inesperadamente dos céus para dentro da vida de outras pessoas?

— Homenagens comoventes continuam a se derramar desde a Cornualha até John O’Groats — dizia o locutor —, e do exterior. — Ele fez uma pausa e suspirou levemente, como se estivesse devastado por aquele momento.

“Aqui em Londres, apesar do aguaceiro, a fila continua a aumentar, estendendo-se até a igreja de Todas as Almas e além, para Langham Place. De cima das portas da BBC, as estátuas de Próspero e Ariel olham para as hordas de enlutados, observando, como se elas também compartilhassem do pesar comum.

“Imediatamente após as cerimônias de hoje na sede da BBC” — prosseguiu ele bravamente —, “o caixão de Rupert Porson será levado à estação de Waterloo e de lá seguirá para o local de sepultamento, no cemitério Brookwood, em Surrey.”

A essa altura, até Felinha podia ver que já bastava.

— Chega dessa choradeira inútil! — anunciou ela, atravessando a sala e desligando o interruptor. A imagem na televisão se retraiu até um minúsculo ponto de luz e desapareceu.

— Abra as cortinas, Dafi — ordenou ela, e Dafi pulou sob o seu comando. — Isso é tão cansativo, tudo isso. Um pouco de luz, para variar.

O que ela realmente queria, claro, era poder olhar melhor para Dieter. Vaidosa demais para usar seus óculos, Felinha provavelmente não vira nada do funeral de Rupert além de um borrão aguado. E não seria inútil ser admirada de perto por um pretendente ansioso quando se é incapaz de ver o arrebatamento do dito pretendente?

Não pude deixar de notar que o pai parecia ter deixado passar o modo como o nosso primeiro vislumbre da televisão fora abruptamente encerrado e que ele já se refugiava em seu mundo privado.

Dogger e a sra. Mullet cuidavam discretamente de suas obrigações, deixando apenas tia Felicity para protestar fracamente.

— Com efeito, Ophelia — ela bufou —, você é extremamente ingrata. Eu queria olhar mais de perto as alças do caixão. O filho da minha faxineira, Arnold, trabalha como decorador de cenários na BBC e os seus serviços são especialmente requisitados. Eles lhe dão um guinéu para descobrir alguns acessórios fotogênicos.

— Desculpe, tia Felicity — disse Felinha com ar distraído —, mas os funerais me dão um tremendo arrepio... mesmo na televisão. Simplesmente não suporto assisti-los.

Por um momento, um silêncio pairou no ar, indicando que tia Felicity não tinha sido tão facilmente apaziguada.

— Já sei — disse Felinha com vivacidade. — Deixem-me oferecer chocolate a todos.

E ela foi até a gaveta de uma mesinha auxiliar.

Visões de algum inferno vitoriano começaram a passar pela minha cabeça: cavernas, chamas, abismos ardentes, almas perdidas em fila, como os enlutados do lado de fora da sede da BBC; todos aguardando para ser lançados por um anjo vingador para dentro do fogo e do enxofre derretido.

O enxofre, afinal, era súlfur (símbolo químico S), com cujo dióxido eu recheara os chocolates. Uma vez mordidos, eles iriam... bem, dificilmente valeria a pena pensar nisso.

Felinha já ia em direção ao vigário, rasgando o celofane da caixa de chocolates ancestrais que Ned deixara na soleira da porta; a caixa que eu tão carinhosamente adulterara.

— Vigário? Tia Felicity? — ofereceu ela, removendo a tampa e estendendo a caixa. — Sirvam-se de um chocolate. Os nougats de amêndoas são especialmente interessantes.

Eu não podia deixar aquilo acontecer, mas o que fazer? Era óbvio que Felinha considerara o aviso prévio que eu deixara escapar como um blefe bobo.

Agora o vigário estendia a mão para pegar um bombom, seus dedos pairando acima dos chocolates como se estivessem sobre um tabuleiro Ouija, à espera de que algum espírito o direcionasse para o confeito mais saboroso.

— Eu tenho direito aos nougats de amêndoas! — gritei. — Você prometeu, Felinha!

Me atirei para a frente e arranquei o chocolate dos dedos do vigário, e no mesmo instante consegui tropeçar na beirada do tapete, as minhas mãos descontroladas arrebatando a caixa das mãos de Felinha.

— Sua besta! — gritou Felinha. — Sua bestinha nojenta!

Como nos velhos tempos.

Antes que ela pudesse se refazer do susto, eu já havia pisoteado a caixa e, como um moinho de vento, em uma tentativa desajeitada, porém lindamente coreografada, de recobrar o equilíbrio, esmagara toda aquela meleca grudenta em cima do tapete Axminster.

Dieter, eu notei, tinha um largo sorriso no rosto, como se tudo aquilo fosse uma grande diversão. Felinha também viu, e observei que ela estava dividida entre a atuação de duquesa e a vontade de me estapear na cara.

Enquanto isso, os vapores de sulfeto de hidrogênio, liberados depois de eu ter pisoteado os chocolates, começaram seu trabalho mortífero. A sala foi subitamente tomada pelo cheiro de ovos podres. E que fedentina! Fedia como se um dinossauro tivesse soltado um pum, e me lembro de por um instante ter me perguntado se a sala de estar voltaria um dia a ser o que era.

Tudo isso aconteceu em menos tempo do que leva para contar, e as minhas reflexões em fogo alto foram interrompidas pela voz do pai.

— Flavia — disse ele com aquela voz baixa e neutra que ele usa para expressar sua fúria —, vá para o seu quarto. Agora. — O seu dedo tremia quando ele apontou.

Não adiantava discutir. Com os ombros encurvados, como se eu estivesse caminhando sobre neve funda, me arrastei para a porta.

Com exceção do pai, todos na sala fingiram que nada tinha acontecido. Dieter ajeitava o colarinho, Felinha, empoleirada a seu lado no sofá, ajeitava a saia, e Dafi já estava pegando um desgastado exemplar de As minas do rei Salomão. Até tia Felicity lançava um olhar feroz para um fio solto na manga de seu casaco de tweed, e o vigário, que se afastara discretamente para além da porta-janela, olhava para fora fingindo interesse pelo lago ornamental e pela folly além dele.

A meio caminho para sair da sala, parei e voltei até onde estava meu pai. Eu quase me esquecera de uma coisa. Enfiei a mão no bolso, puxei o envelope com perfurações extras que a srta. Cool me dera e entreguei ao pai.

— É para você. Espero que goste — eu disse. Sem olhar, o pai pegou o envelope da minha mão, o seu dedo trêmulo ainda apontando. Atravessei a sala envergonhada.

Dei uma parada à porta e me voltei.

— Se alguém me procurar — eu disse —, estou lá em cima chorando, no fundo do meu armário.

EU JAZIA MORTA NO PÁTIO DA IGREJA. Uma hora se arrastara desde que os enlutados haviam dado seu último e triste adeus.
Ao meio-dia, bem na hora em que, de outra forma, deveríamos estar sentados à mesa para almoçar, se deu a partida de Buckshaw: meu caixão de jacarandá polido foi levado para fora da sala de estar, lentamente carregado através dos largos degraus de pedra até a entrada de automóveis e deslizado, com uma facilidade de cortar o coração, para dentro do carro funerário que ali aguardava, esmagando sob ele um pequeno buquê de flores silvestres que fora ali colocado com ternura por um dos aldeões enlutados.
Em seguida se deu o longo percurso que desceu a avenida de castanheiros até os Portões Mulford, cujos grifos rampantes desviaram o olhar quando passamos, porém, se foi por tristeza ou indiferença, eu nunca saberia.
Dogger, o devotado ajudante do pai, acompanhava o vagaroso carro funerário a passos calculados, cabeça baixa, a mão pousada de leve no teto, como que para resguardar meus restos mortais contra algo que só ele podia ver. Ao chegar aos portões, um dos agentes funerários mudos finalmente o persuadira, usando a linguagem de sinais, a entrar em um automóvel alugado.
E assim eles me trouxeram à aldeia de Bishop’s Lacey, passando sombriamente pelas mesmas alamedas verdes e sebes empoeiradas por onde eu andara de bicicleta todos os dias enquanto estava viva.
No pátio apinhado da igreja de São Tancredo, eles me tiraram gentilmente do carro funerário e me carregaram a passo de tartaruga enquanto subiam o caminho sob as limeiras. Ali me depositaram por um momento sobre a grama recém-aparada.
Então veio a cerimônia religiosa junto à sepultura escancarada, e havia um genuíno tom de pesar na voz do vigário quando ele pronunciou as palavras tradicionais.


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Foi a primeira vez que ouvi a Ordem para o Ofício da Sepultura daquele ponto de vista. Tínhamos comparecido, junto com o pai, ao funeral do velho sr. Dean, o quitandeiro da aldeia. Seu túmulo, de fato, ficava a apenas poucos metros do lugar onde eu jazia naquele momento. Já havia desmoronado, e dele restava não muito mais que uma depressão retangular na grama que, muito frequentemente, ficava cheia de água de chuva estagnada.

Minha irmã mais velha, Ophelia, disse que o túmulo desmoronou porque o sr. Dean havia ressuscitado e seu corpo não estava mais ali, enquanto Daphne, minha outra irmã, disse que foi porque ele havia mergulhado em uma sepultura mais antiga, cujo ocupante se desintegrara.

Pensei na sopa de ossos abaixo, da qual eu estava prestes a me tornar apenas mais um ingrediente.

Flavia Sabina de Luce, 1939-1950. Eles vão mandar gravar algo simples e de bom gosto na minha lápide de mármore cinzento, sem lugar para falsos sentimentos.

Pena. Se eu tivesse vivido tempo suficiente, teria deixado instruções por escrito, exigindo um toque de Wordsworth:

 

Uma donzela à qual não havia ninguém para louvar

E muito poucos para amar.

 

E se eles se recusassem a aceitar isso, eu teria deixado isto como segunda opção:

 

Por atos cruéis, os corações mais leais

Ao desespero são propensos demais.

 

Somente Felinha, que os tocara e cantara ao piano, reconheceria os versos de O terceiro livro de ares, de Thomas Campion, e ela estaria consumida demais pela culpa para contar a quem quer que fosse.

Meus pensamentos foram interrompidos pela voz do vigário.

— ... terra à terra, cinzas às cinzas, pó ao pó; na esperança segura e certa da Ressurreição para a vida eterna, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo; que mudará o nosso corpo vil...

E de repente eles se foram, deixando-me ali sozinha — sozinha para ouvir os vermes.

E isso é tudo: o fim da linha para a pobre Flavia.

A essa altura, a família já devia estar de volta a Buckshaw, reunida em volta da longa mesa da sala de jantar: o pai, sentado em seu costumeiro silêncio pétreo, Dafi e Felinha se abraçando com rostos apáticos e borrados de lágrimas, enquanto a sra. Mullet, nossa cozinheira, trazia uma travessa com carne assada.

Lembrei-me de algo que Dafi me contara uma vez quando estava devorando A Odisseia: que carne assada, na Grécia antiga, era uma refeição fúnebre tradicional, e respondi que, tendo em vista as artes culinárias da sra. Mullet, pouca coisa mudara em dois mil e quinhentos anos.

Mas agora que eu estava morta, pensei, talvez devesse exercitar um pouco mais a indulgência.

Dogger, é claro, estaria inconsolável. Querido Dogger —mordomo-mais-chofer-mais-valete-mais-jardineiro-mais-administrador da propriedade —, uma pobre alma neurótica de guerra, cujas aptidões fluíam e refluíam como as marés do rio Severn; Dogger, que recentemente salvara a minha vida e se esquecera na manhã seguinte. Eu sentiria uma tremenda saudade dele.

E sentiria saudade do meu laboratório de química. Pensei em todas as horas douradas que havia passado lá, naquela ala abandonada de Buckshaw, jubilosamente sozinha no meio de frascos, retortas, tubos e provetas que borbulhavam alegremente. E pensar que eu nunca mais os veria de novo. Era demais para aguentar.

Ouvi o vento que começava a soprar, sussurrando nos galhos dos teixos acima de mim. Já estava esfriando aqui nas sombras da torre de São Tancredo, e logo escureceria.

Pobre Flavia! Pobre Flavia morta, fria como pedra.

A essa altura, Dafi e Felinha estariam desejando não ter sido tão detestáveis com sua irmãzinha durante seus breves onze anos nesta terra.

Ao pensar nisso, uma lágrima escorreu pelo meu rosto.

Estaria Harriet aguardando para me dar as boas-vindas ao Paraíso?

Harriet era minha mãe, que morrera em um acidente de alpinismo um ano depois do meu nascimento. Será que me reconheceria depois de dez anos? Estaria ainda vestindo os trajes de alpinista que usava quando encontrou seu fim, ou os teria trocado agora por um manto branco?

Bem, o que quer que estivesse usando, eu sabia que seria algo elegante.

Houve um súbito bater de asas: um ruído que reverberou forte na parede de pedra da igreja, amplificado até um volume alarmante pelos vitrais e pelas lápides inclinadas que me cercavam. Gelei.

Seria um anjo ou, mais provável, um arcanjo descendo para levar a preciosa alma de Flavia de volta ao Paraíso? Se eu entreabrisse os olhos, apenas uma fenda mínima, poderia ver através dos cílios, mas só de um modo indefinido.

Não tive essa sorte: era uma das gralhas maltrapilhas que estavam sempre em volta da igreja de São Tancredo. Aquelas tratantes faziam seus ninhos na torre desde que os trabalhadores do século XIII juntaram suas ferramentas e partiram.

Agora a ave idiota pousara desajeitadamente em cima de um dedo de mármore que apontava para o céu e olhava com frieza para mim, a cabeça inclinada para o lado, com seus ridículos e brilhantes olhos de botão.

As gralhas nunca aprendem. Não importava quantas vezes eu lhes pregasse essa peça, elas sempre, mais cedo ou mais tarde, desciam da torre batendo as asas para investigar. Para a mente primitiva de uma gralha, qualquer corpo em posição horizontal num pátio de igreja só poderia ter um significado: comida.

Como eu já fizera diversas vezes, fiquei de pé em um pulo e atirei a pedra que estava escondida entre meus dedos curvados. Errei; mas eu sempre errava.

Com um grasnido desdenhoso, a coisa saltou para o ar e saiu voando para trás da igreja, em direção ao rio.

Agora que eu estava de pé, me dei conta de que sentia fome. É claro! Não tinha comido nada desde cedo. Por um momento, me perguntei vagamente se conseguiria achar algumas sobras de torta ou um pedaço de bolo na cozinha do salão paroquial. A Sociedade Beneficente das Damas de São Tancredo se reunira na noite anterior, e sempre havia uma possibilidade.

Enquanto eu atravessava a grama que me batia nos joelhos, ouvi alguém fungar e, por um momento, pensei que a gralha impertinente voltara para dar a última palavra.

Parei e ouvi.

Nada.

E então ouvi de novo.

Às vezes acho que é uma maldição, às vezes acho que é uma bênção ter herdado a aguçada audição de Harriet, já que sou capaz, como gosto de dizer a Felinha, de ouvir coisas que fariam o cabelo de qualquer um arrepiar. Entre os sons com os quais tenho uma especial sintonia está o de uma pessoa chorando.

Vinha do canto noroeste do pátio da igreja, de algum lugar perto do alpendre de madeira em que o sacristão guardava suas ferramentas de abrir covas. À medida que eu avançava lentamente na ponta dos pés, o som foi ficando mais alto: alguém estava dando uma boa chorada à moda antiga, daquelas que exigem privacidade.

É um fato simples da natureza que, enquanto a maioria dos homens passa direto por uma mulher chorando como se seus olhos estivessem cobertos e seus ouvidos entupidos de areia, nenhuma mulher é capaz de ouvir o som de uma outra sofrendo sem correr instantaneamente para ajudá-la.

Espiei atrás de uma coluna de mármore negro, e lá estava ela, estirada sobre a lápide de uma tumba de pedra calcária, o rosto voltado para baixo, o cabelo vermelho derramado por cima da inscrição desgastada pelo tempo como riachos de sangue. Não fosse pelo cigarro elegantemente alojado entre seus dedos, ela poderia ter sido uma pintura de um pré-rafaelita, como Burne-Jones. Cheguei a odiar me intrometer.

— Olá — eu disse. — Você está bem?

É outro fato simples da natureza que uma pessoa sempre comece uma conversa desse tipo com uma pergunta totalmente idiota. Me arrependi no instante em que a pronunciei.

— Oh! É claro que estou bem — exclamou ela, pondo-se de pé em um pulo e enxugando os olhos. — O que você pretende se aproximando furtivamente de mim desse modo? E quem é você, afinal?

Balançando a cabeça, ela jogou o cabelo para trás e empinou o queixo. Tinha as bochechas salientes e o rosto dramaticamente triangular de uma estrela do cinema mudo, e, pelo modo como exibia os dentes, notei que estava aterrorizada.

— Flavia — eu disse. — Meu nome é Flavia de Luce. Moro aqui perto, em Buckshaw.

Fiz um gesto com o polegar, indicando a direção aproximada.

Ela ainda olhava para mim como se estivesse nas garras de um pesadelo.

— Desculpe — eu disse. — Não queria assustá-la.

Ela endireitou o corpo para mostrar toda a sua altura, que não devia passar de um metro e meio mais uns quatro ou cinco centímetros, e deu um passo em minha direção, como uma versão colérica da Vênus de Botticelli que eu tinha visto uma vez em uma lata de biscoitos Huntley and Palmers.

Fiquei firme no lugar, olhando para o vestido dela. Era de algodão creme estampado, com um corpete franzido e saia rodada, todo recoberto por uma miríade de florzinhas vermelhas, amarelas, azuis e de um laranja-vivo cor de papoula. E, não pude deixar de notar, a barra estava manchada de lama meio seca.

— Qual é o problema? — perguntou ela, dando uma tragada pedante no cigarro. — Nunca viu ninguém famoso?

Famoso? Eu não fazia a menor ideia de quem ela era. Fiquei com um pouco de vontade de lhe dizer que, sem dúvida, eu já tinha visto alguém famoso, e que era Winston Churchill. O pai apontara para ele de dentro de um táxi em Londres. Churchill estava parado na frente do Teatro Savoy com os polegares enganchados nos bolsos do colete, falando com um homem de capa de chuva amarela.

“Bom e velho Winnie”, sussurrara o pai, como se fosse consigo mesmo.

— Oh, de que adianta? — disse a mulher. — Maldito lugar... maldita gente... malditos automóveis! — E começou a chorar de novo.

— Posso fazer alguma coisa para ajudar? — perguntei.

— Oh, vá embora e deixe-me em paz — soluçou ela.

“Muito bem, então”, pensei. Na verdade, pensei mais do que isso, mas como estou tentando ser uma pessoa melhor...

Fiquei lá parada por um momento, me inclinando um pouco para a frente para ver se as lágrimas que caíam de seus olhos estavam reagindo com a superfície porosa da lápide. Lágrimas, eu sabia, eram compostas basicamente de água, cloreto de sódio, manganês e potássio, enquanto a pedra calcária era feita principalmente de calcita, que era solúvel em cloreto de sódio, mas apenas a altas temperaturas. Portanto, a não ser que a temperatura no pátio da igreja de São Tancredo subisse de repente em várias centenas de graus, parecia improvável que alguma coisa quimicamente interessante fosse acontecer ali.

Me virei e fui andando.

— Flavia...

Olhei para trás. Ela estava estendendo a mão para mim.

— Me desculpe — disse ela. — É que hoje foi um maldito dia horrível.

Parei; depois voltei devagar, desconfiada, enquanto ela enxugava os olhos com as costas da mão.

— Rupert estava com um humor detestável, mesmo antes de sairmos de Stoatmoor esta manhã. Infelizmente tivemos uma briga e tanto, e então houve todo aquele problema com a van. Foi simplesmente a última gota. Ele saiu para procurar alguém que a consertasse, e eu... bem, aqui estou.

— Gosto do seu cabelo vermelho — eu disse. Ela o tocou imediatamente e sorriu, como eu, de certo modo, esperava.

— Folhagem de cenoura, é como costumavam me chamar quando eu tinha a sua idade. Folhagem de cenoura! Imagine só!

— A folhagem das cenouras é verde — disse eu. — Quem é Rupert?

— Quem é Rupert? — repetiu ela. — Você está brincando!

Ela apontou com o dedo, e me virei para olhar: estacionada na esquina do pátio da igreja havia uma van deteriorada, uma Austin Eight. Na lateral, em chamativas letras douradas de circo, ainda legíveis através de uma camada espessa de lama e pó, liam-se as palavras marionetes de porson.

— Rupert Porson — disse ela. — Todo mundo conhece Rupert Porson. Snoddy, o Esquilo. O Reino Mágico. Você não viu na televisão?

Snoddy, o Esquilo? O Reino Mágico?

— Nós não temos televisão em Buckshaw — eu disse. — O pai diz que é uma invenção desprezível.

— O pai é um homem inusitadamente sábio — disse ela. — O pai é sem dúvida...

Foi interrompida pelo matraquear metálico de um protetor de corrente solto quando o vigário apareceu no canto da igreja, cambaleando em sua bicicleta. Ele desmontou e encostou sua surrada Raleigh na lápide mais próxima. Enquanto vinha andando em nossa direção, refleti que o clérigo Denwyn Richardson não era, para ninguém, a imagem de um vigário típico de aldeia. Ele era grande, simples, de boa índole e cordial, e se tivesse tatuagens poderia ser confundido com o capitão de um daqueles navios mercantes a vapor enferrujados e sem rota determinada, que se arrastam penosamente de um porto banhado de sol a outro em qualquer dos nauseabundos postos avançados que ainda restam do Império Britânico.

Sua batina preta estava manchada e raiada de poeira argilosa, como se ele tivesse caído da bicicleta.

— Droga! — disse quando me avistou. — Perdi a presilha da calça e estraçalhei a bainha. — E então, sacudindo o pó enquanto se aproximava de nós, acrescentou: — Cynthia vai comer o meu fígado.

Os olhos da mulher se arregalaram, e ela deu uma olhadela rápida para mim.

— Recentemente ela começou a rabiscar as minhas iniciais em meus pertences com uma agulha — disse ele —, mas isso não me impediu de perder as coisas. Na semana passada foram as folhas de estêncil para o boletim da paróquia, na semana anterior uma maçaneta de latão da sacristia. Realmente é de enlouquecer... — Ele acrescentou: — Olá, Flávia. É sempre... É sempre bom vê-la na igreja.

— Esse é o nosso vigário, o clérigo Richardson — eu disse à mulher ruiva. — Talvez ele possa ajudar.

— Apenas Denwyn — disse o vigário, estendendo a mão para a estranha. — Desde a guerra não somos mais de muita cerimônia.

A mulher esticou dois ou três dedos e tocou a palma dele, mas não disse nada. Quando ela estendeu a mão, a manga curta de seu vestido subiu, e tive um rápido vislumbre de uma feia mancha roxa na parte superior do braço dela. Ela a cobriu depressa com a mão esquerda, enquanto puxava o tecido para baixo a fim de escondê-la.

— E como eu poderia ajudar? — perguntou o vigário, fazendo um gesto em direção à van. — Não é sempre que nós, no nosso bucólico fim de mundo, somos solicitados a prestar serviços a tão augusta gente do teatro.

Ela sorriu bravamente.

— A nossa van quebrou, ou coisa que o valha. Algo a ver com o carburador. Se tivesse sido um defeito elétrico, tenho certeza de que Rupert teria consertado num piscar de olhos, mas infelizmente o sistema de combustível está além da capacidade dele.

— Meu bom Deus! — disse o vigário. — Mas tenho certeza de que Bert Archer, da oficina, poderá deixá-lo em ordem para você. Posso telefonar para ele, se quiser.

— Oh, não! — disse depressa a mulher, talvez depressa demais. — Nós não queremos causar nenhum incômodo. Rupert foi até a rua principal. Provavelmente já encontrou alguém.

— Se tivesse encontrado, a essa altura ele já teria voltado — disse o vigário. — Deixe-me ligar para Bert. De vez em quando ele vai tirar uma soneca em casa à tarde. Ele não é mais tão jovem, sabe. Na verdade, nenhum de nós é. Ainda assim, a minha máxima predileta quando se lida com mecânica de motores, mesmo quando eles são dóceis, é: Ter a bênção da Igreja nunca faz mal a ninguém.

— Oh, não, não se preocupe. Tenho certeza de que tudo dará certo.

— Bobagem — disse o vigário, já se afastando por entre a floresta de pedras tumulares e seguindo a toda a velocidade para o presbitério. — Não é incômodo nenhum. Volto num instante.

— Vigário! — chamou a mulher. — Por favor...

Ele congelou o passo e voltou relutante em nossa direção.

— É só que... entenda, nós...

— Já sei! É uma questão de dinheiro — disse o vigário.

Ela assentiu com ar triste, a cabeça baixa, o cabelo caindo em cascata por cima do rosto.

— Tenho certeza de que poderemos dar um jeito — disse o vigário. — Ah! Aí vem o seu marido.

Um homenzinho com a cabeça exageradamente grande e andar trôpego caminhava pesadamente em nossa direção através do pátio, a perna direita jogando para o lado a cada passo, em um largo e desajeitado semicírculo. Quando ele se aproximou, vi que sua panturrilha estava presa a um pesado aparelho ortopédico de ferro.

Aparentava ter cerca de quarenta anos, mas era difícil saber.

Apesar de seu tamanho diminuto, seu peito em forma de barril e seus braços poderosos pareciam prestes a explodir para fora do terno de linho listrado. Em contraste, a perna direita era patética: pelo modo como a calça grudava e pendia inutilmente em volta do que estava por baixo, vi que era pouco mais que um palito de fósforo. Com sua cabeça enorme, ele no mínimo me dava a impressão de um polvo gigante andando com arrogância sobre tentáculos desiguais pelo pátio da igreja.

Ele deu uma parada brusca e ergueu, respeitoso, um boné de chofer de aba chata, revelando uma cabeleira loira desgrenhada que combinava precisamente com seu cavanhaque à Van Dyke.

— Rupert Porson, presumo? — disse o vigário, cumprimentando o recém-chegado com um cordial-vigoroso-seja-bem-vindo-camarada aperto de mão. — Eu sou Denwyn Richardson, e esta é a minha jovem amiga Flavia de Luce.

Porson inclinou a cabeça para mim e lançou uma rápida, quase invisível, olhada sombria para a mulher, antes de abrir um luminoso sorriso de holofote.

— Um probleminha com o motor, ao que parece — prosseguiu o vigário. — Muito irritante. Ainda assim, se ele trouxe o criador de O Reino Mágico e Snoddy, o Esquilo para o nosso meio... bem, isso apenas prova o velho adágio, não é mesmo?

Ele não disse a que velho adágio se referia, e ninguém se deu ao trabalho de perguntar.

— Eu ia comentar com a sua boa esposa — disse o vigário — que a igreja de São Tancredo ficaria realmente honrada se você não visse obstáculo em apresentar um pequeno show no salão paroquial enquanto sua van está sendo consertada. Estou ciente, é claro, do quanto você é solicitado, mas eu seria negligente se não fizesse ao menos uma tentativa em benefício das crianças e, sim, também dos adultos de Bishop’s Lacey! É bom, de quando em quando, permitir que as crianças lancem um ataque aos seus cofrinhos por uma causa cultural meritória, não concorda?

— Bem, vigário — disse Porson com voz melosa (cheia demais, vibrante demais, doce demais, pensei, para um homem tão diminuto) —, nós de fato temos uma agenda bastante apertada. A nossa excursão tem sido exaustiva, entenda, e Londres exige que...

— Eu entendo — disse o vigário.

— Mas — acrescentou Porson erguendo um indicador dramático — nada nos dará maior prazer do que obter a permissão de cantar em troca do nosso jantar, por assim dizer. Não é mesmo, Nialla? Como nos velhos tempos. — A mulher assentiu, mas não disse nada. Seu olhar estava fixo nas colinas distantes.

— Muito bem. Então — disse o vigário, esfregando as mãos vigorosamente, como se estivesse acendendo fogo — está tudo combinado. Venha comigo e vou mostrar-lhe o salão. Está um tanto deteriorado, mas tem um palco, e dizem que a acústica é extraordinária.

Com isso os dois homens desapareceram por trás da igreja.

Por um momento, pareceu que não havia nada a dizer. E então a mulher falou:

— Você por acaso não teria um cigarro, teria? Estou louca por uma tragada.

Sacudi a cabeça de um jeito meio idiota.

— Humm — balbuciou ela. — Você parece o tipo de criança que poderia ter.

Pela primeira vez na vida, fiquei sem fala.

— Eu não fumo — consegui dizer.

— E por quê? — perguntou ela. — Jovem demais ou sensata demais?

— Eu estava pensando em começar na semana que vem — eu disse debilmente. — Na verdade, ainda não consegui.

Ela jogou a cabeça para trás e riu cheia de dentes, como uma estrela de cinema.

— Gosto de você, Flavia de Luce — disse ela. — Mas estou levando vantagem, não é? Você me disse o seu nome, mas eu ainda não disse o meu.

— É Nialla — eu disse. — O sr. Porson chamou você de Nialla.

— É verdade — concordou, com uma expressão sombria. — Mas você pode me chamar de Mamãe Gansa.


MAMÃE GANSA!

Eu nunca dei a mínima para os comentários frívolos das pessoas e, em particular, não dou a mínima para eles quando vêm de um adulto. Segundo a minha experiência, esse tipo de gracejo na boca de alguém com idade suficiente para saber das coisas frequentemente não passa de camuflagem para algo muito, muito pior. No entanto, me vi engolindo a resposta sarcástica (e deliciosamente ferina!) que já estava na ponta da língua e, em vez disso, consegui dar um sorriso aguado.

— Mamãe Gansa? — repeti, demonstrando dúvida.

Ela explodiu em lágrimas de novo, e fiquei feliz por ter segurado a língua. Eu estava prestes a ser recompensada com algo suculento.

Além disso, eu já começara a detectar uma ligeira e invisível atração entre mim e aquela mulher. Seria compaixão? Ou medo? Eu não sabia. Sabia apenas que alguma substância química entranhada em uma de nós clamava pelo seu há muito perdido complemento (ou antídoto?) na outra.

Pousei a mão gentilmente no ombro dela e lhe estendi meu lenço. Ela olhou para ele hesitante.

— Está limpo — eu disse. — São apenas manchas de grama.

Isso a fez dar início a uma notável contorção. Enterrou o rosto no lenço, e seus ombros sacudiram tão violentamente que por um momento pensei que ia se desfazer em pedaços. A fim de conceder-lhe algum tempo para se refazer (e por eu ter ficado um tanto embaraçada com sua explosão), me afastei um pouco para examinar a inscrição em uma lápide alta e desgastada pelo tempo que marcava o túmulo de uma certa Lydia Green, cujo “passamento” se dera em 1638 com a idade de “cento e trinta e cinco annos”.

Ella era Green outrora, todavia branca ora se tornou, estava escrito na pedra, e foi chorada por uns poucos amigos.

Se Lydia estivesse viva, refleti, teria agora quatrocentos e quarenta e sete anos e seria provavelmente uma pessoa que valeria a pena conhecer.

— Oh, sinto-me tão estúpida!

Voltei-me e vi a mulher enxugando os olhos e me dirigindo um sorriso desanimado.

— Eu sou Nialla — disse, estendendo a mão. — Assistente de Rupert.

Lutei contra minha repugnância e dei uma sacudida rápida como um relâmpago em seus dedos. Como eu suspeitava, a mão dela estava molhada e grudenta. Assim que foi possível, escondi com toda a discrição a mão atrás das costas e enxuguei-a na saia.

— Assistente? — A palavra escapou da minha boca antes que eu pudesse impedir.

— Oh, eu sei que o vigário entendeu que sou a mulher de Rupert. Mas não é isso. Sinceramente! Não é nada disso.

Sem querer, dei uma olhada na van das “Marionetes de Porson”. Ela percebeu na hora.

— Bem, sim... nós realmente viajamos juntos. Suponho que Rupert e eu tenhamos o que você poderia chamar de... uma afeição mútua muito grande. Mas marido e mulher...?

Que tipo de idiota ela achava que eu era? Não fazia mais de uma semana que Dafi estivera lendo Oliver Twist em voz alta para mim e Felinha, e tão certo quanto sei meu próprio nome eu sabia que aquela mulher, Nialla, era a Nancy do Bill Sikes de Rupert Porson. Será que ela não percebera que eu tinha visto aquele enorme e obsceno hematoma em seu braço?

— Na verdade, é tão divertido sacolejar pela Inglaterra com Rupert... Ele é reconhecido em qualquer lugar, sabe? Anteontem mesmo, por exemplo, estávamos atuando em Market Selby quando fomos vistos no Correio por uma senhora gorda que usava um chapéu que mais parecia um vaso de flores. “Rupert Porson!”, ela guinchou. “Rupert Porson usa o Correio Real como todo mundo!” — Nialla riu. — E então ela pediu um autógrafo. Eles sempre pedem, sabe? Insistiu para que ele escrevesse “Com amor, de Snoddy, o Esquilo”. Sempre que faz isso, ele desenha duas pequenas nozes. Ela disse que era para o seu sobrinho, mas eu sei das coisas. Depois que você passa muito tempo na estrada, desenvolve certa percepção para isso. Sempre dá para notar.

Ela continuou tagarelando. Se eu continuasse em silêncio, em menos de um minuto ela me confidenciaria o número de sua calcinha.

— Alguém na BBC contou a Rupert que vinte e três por cento da audiência dele era de donas de casa sem filhos. Parece muito, não é? Mas há alguma coisa em O Reino Mágico que satisfaz o desejo de fuga da realidade inato nas pessoas. Foi exatamente isso que ele disse a Rupert, “o desejo de fuga da realidade inato nas pessoas”. Todo mundo precisa fugir da realidade, não é mesmo? De um jeito ou de outro, quero dizer.

— Todo mundo, menos a Mamãe Gansa — eu disse.

Ela riu.

— Olhe, eu não estava querendo fazer você de boba. Eu sou a Mamãe Gansa. Ao menos quando visto a minha fantasia. Espere só até você ver: um chapéu alto de bruxa com aba mole e uma fivela de prata, uma peruca cinzenta com cachinhos compridos pendurados, e um enorme vestido bufante que parece ter pertencido a Mãe Shipton. Você sabe quem foi a Mãe Shipton?

É claro que eu sabia. Sabia que era uma bruxa velha que supostamente vivera no século XVI e adivinhava o futuro, prevendo, entre outras coisas, a Grande Praga, o Grande Incêndio de Londres, aviões, encouraçados, e que o mundo acabaria em 1881; como as de Nostradamus, as profecias da Mãe Shipton foram escritas em versos de pé quebrado: “Fogo e água prodígios farão” e coisas assim. Também sabia que na verdade hoje em dia ainda existem por aí pessoas que acreditam que ela previu o uso de água pesada na produção da bomba atômica. Quanto a mim, não acredito numa só palavra disso tudo. Não passa de um amontoado de besteiras.

— Já ouvi o nome — disse eu.

— Bem, não importa. É com ela que eu me pareço quando estou fantasiada para o espetáculo.

— Genial — eu disse sem querer dizer isso. Ela percebeu que eu estava um pouco desapontada.

— O que uma boa menina como você está fazendo em um lugar como este? — perguntou com um sorriso zombeteiro, abarcando todo o pátio da igreja com um gesto.

— Eu venho aqui frequentemente para pensar.

Isso pareceu diverti-la. Ela fez um beicinho e assumiu uma irritante voz de palco.

— E no que Flavia de Luce fica pensando, em seu velho e pitoresco pátio de igreja do interior?

— Em ficar sozinha — disparei, sem querer ser grosseira. Eu estava simplesmente dizendo a verdade.

— Em ficar sozinha... — repetiu, balançando a cabeça. Notei que ela não tinha se aborrecido com a minha resposta ríspida. — Há muito a ser dito sobre estar sozinha. Mas você e eu sabemos que estar sozinha e estar solitária não são de todo a mesma coisa, não é, Flávia?

Me animei um pouco. Ali estava alguém que parecia pelo menos ter pensado algumas coisas que eu mesma pensava.

— Não, não são — admiti.

Houve um longo silêncio.

— Conte-me sobre a sua família — disse Nialla afinal, mansamente.

— Não há muito o que contar — respondi. — Tenho duas irmãs, Ophelia e Daphne. Felinha tem dezessete anos, e Dafi, treze. Felinha toca piano, e Dafi lê. O pai é um filatelista. Ele é devotado a seus selos.

— E a sua mãe?

— Morta. Morreu em um acidente quando eu tinha um ano.

— Meu bom Deus! — disse ela. — Alguém me contou sobre uma família que vivia em uma grande e velha mansão decadente não muito longe daqui: um coronel excêntrico e uma família de meninas vivendo selvagens, como um bando de peles-vermelhas. Você não é uma delas, é?

Ela viu imediatamente pela minha expressão que eu era.— Oh, pobrezinha! Me desculpe, eu não queria... quero dizer...

— Tudo bem — tranquilizei-a. — Na verdade é muito pior do que isso, mas não gosto de falar no assunto.

Notei uma expressão distante surgir em seus olhos: a expressão de um adulto debatendo-se desesperadamente para encontrar um denominador comum com alguém mais jovem.

— Mas o que você faz de sua vida? — perguntou ela. — Não tem interesses... ou passatempos?

— Sou boa em química — eu respondi. — E gosto de montar álbuns de recortes.

— Verdade? — entusiasmou-se Nialla. — Ora vejam! Eu também, quando tinha a sua idade. Figurinhas de cigarros e flores prensadas: amores-perfeitos, resedás, dedaleiras, delfínios; botões velhos, cartões de Dia dos Namorados, poemas sobre a roca da vovó do Anuário das meninas... que boa e alegre diversão era aquilo!

Os meus álbuns consistiam de três gordos volumes roxos de recortes recolhidos da maré de revistas e jornais velhos que haviam transbordado e depois inundado a biblioteca e a sala de estar de Buckshaw, derramando-se para dentro dos quartos de dormir vazios e dos quartos de despejo antes de serem por fim levados embora para se decompor em pilhas úmidas e mofadas numa cripta no sótão. Daquelas páginas eu recortara cuidadosamente tudo o que consegui encontrar sobre venenos e envenenadores, até as costuras dos meus álbuns estourarem com tipos como o major Herbert Rowse Armstrong, o advogado e jardineiro amador que despachou a esposa com poções amorosamente preparadas à base de herbicida arsenioso; o major Thomas Neill Cream, Hawley Harvey Crippen e George Chapman (não é notável que o sobrenome de muitos dos maiores envenenadores comece com a letra C?), os quais, com estricnina, escopolamina e antimônio, respectivamente, mandaram um verdadeiro exército de esposas e outras mulheres para o túmulo; Mary Ann Cotton (eu não disse?), que, depois de diversas experiências bem-sucedidas com porcos, seguiu em frente e envenenou dezessete pessoas com arsênico; Daisy de Melker, a sul-africana que tinha paixão por envenenar encanadores: primeiro se casava com eles, depois se divorciava com uma dose de estricnina.

— Montar um álbum de recortes é o passatempo perfeito para uma jovem dama — dizia Nialla —, requintado... e além do mais, educativo. — Exatamente o que eu pensava. — Mamãe jogou o meu no lixo quando fugi de casa — disse ela com algo que poderia ser uma risadinha de escárnio.

— Você fugiu de casa? — perguntei.

Esse fato me intrigou quase tanto quanto as dedaleiras venenosas dela, das quais, lembrei-me, se podia extrair o alcaloide vegetal digitalina (mais conhecido entre os que se dedicam à química como C36H56O14). Por um momento, pensei com prazer nas diversas vezes em que, em meu laboratório, eu exaurira com álcool as folhas de dedaleira arrancadas da horta observando as agulhas brilhantes se cristalizar e a adorável solução verde-esmeralda que se formava quando eu as dissolvia em ácido hidroclorídrico e acrescentava água. A resina que se precipitava podia, é claro, ser restaurada ao seu matiz verde original com ácido sulfúrico, transformado em vermelho-claro com vapor de bromo, e de volta ao verde-esmeralda com a adição de água. Era mágico! E também era, claro, um veneno letal, portanto mais fascinante que botões idiotas e o Anuário das meninas.

— Hum — disse ela. — Cansei de lavar, secar, varrer e espanar, e de ouvir as pessoas vomitando na casa ao lado; cansei de ficar deitada na cama à noite, ouvindo o estrépito do cavalo do príncipe nas pedras do calçamento. — Abri um sorriso. — Rupert mudou tudo isso, é claro. “Venha comigo para o Portal de Diarbekir”, ele me disse. “Venha para o Oriente, e farei de você uma princesa vestida com sedas transparentes e diamantes do tamanho de repolhos.”

— Ele disse isso?

— Não. O que ele disse na verdade foi: “A minha maldita assistente me abandonou. Venha comigo para Lyme Regis no fim de semana, e lhe darei um guinéu, seis refeições completas e um saco para dormir. Vou lhe ensinar a arte da manipulação” — ele ofereceu, e eu fui tola o bastante para achar que ele estava falando de marionetes.

Antes que eu tivesse tempo de perguntar detalhes, ela já havia se levantado em um pulo e sacudido o pó da saia.

— Por falar em Rupert — disse —, é melhor entrarmos para ver como ele e o vigário estão se entendendo. Está tudo macabramente silencioso no salão paroquial. Você imagina que eles já assassinaram um ao outro?

Seu vestido florido farfalhou graciosamente por entre as lápides, e eu fui deixada para trotar como um cachorrinho atrás dela.


Lá dentro, encontramos o vigário de pé no meio do salão; Rupert estava em cima do palco, bem no centro, com as mãos nos quadris. Se ele tivesse sido chamado à cena para os aplausos no teatro Old Vic, a iluminação não poderia ter sido mais dramática. Como que enviado pelo destino, um raio de sol inesperado brilhava através de um vitral no fundo do salão, concentrando seu facho dourado bem no centro do rosto voltado para cima de Rupert. Ele fez uma pose e começou a declamar Shakespeare:

 

Quando minha amada jura que é feita de verdades,

Nela creio, porém sei que mente,

Que pode achar-me um jovem inculto,

Ignorante das falsas sutilezas do mundo.

Pensando em vão que ela me acha jovem,

Sabendo embora que meus melhores dias são passados,

Simplesmente credito isso à sua falsa língua:

Assim dos dois lados é suprimida a verdade simples.

 

Como o vigário mencionara, a acústica do salão era mesmo notável. Os construtores vitorianos haviam feito seu interior como uma concha de painéis curvos de madeira polida que servia de caixa de ressonância para o mais leve ruído: era como estar dentro de um violino Stradivarius. A voz quente e doce de Rupert estava por toda parte, envolvendo-nos em seu rico ressoar.

 

Mas por que razão não se diz ela injusta?

E por que razão não me reconheço velho?

Oh! é costume do amor fingir sinceridade,

E no amor a idade não quer seus anos revelados:

Portanto minto a ela e ela a mim,

E em nossas faltas com mentiras nos enaltecemos.

 

— Pode ouvir-me agora, vigário?

O encanto foi quebrado instantaneamente. Foi como se Laurence Olivier tivesse bradado “Alô! Alô! Testando... um... dois... três...” no meio de “Ser ou não ser”.

— Magnífico! — exclamou o vigário.

O que mais me surpreendeu no discurso de Rupert foi que eu sabia o que ele estava dizendo. Devido à pausa quase imperceptível no final de cada verso, e ao modo singular como ele ilustrava as sutilezas do significado com seus longos dedos brancos, eu entendi as palavras. Todas elas.

Como se elas tivessem sido absorvidas através dos meus poros por osmose, eu soube no momento em que elas foram lançadas sobre mim que estava ouvindo as amargas palavras de um velho à amada muito mais jovem do que ele.

Olhei de relance para Nialla. Ela estava com a mão na garganta.

No silêncio incômodo que se seguiu, o vigário ficou completamente imóvel, como que entalhado em mármore preto e branco.

Eu testemunhava uma situação que nem todos os presentes entendiam.

— Bravo! Bravo! — As mãos em concha do vigário repentinamente bateram uma na outra em uma série de trovões reverberantes. — Bravo! Soneto cento e trinta e oito, a não ser que eu esteja redondamente enganado. E, se eu puder oferecer a minha humilde opinião, talvez nunca antes declamado de maneira tão bela.

Rupert, sem dúvida, se envaideceu.

Do lado de fora, o sol se escondeu atrás de uma nuvem. Seu raio dourado desvaneceu-se num instante, e depois que ele se foi nos transformamos outra vez em apenas quatro pessoas comuns em um salão sombrio e empoeirado.

— Esplêndido — disse Rupert. — O salão vai servir muito bem.

Ele atravessou o palco coxeando e começou a descer, desajeitado, os degraus estreitos, os dedos de uma das mãos estendidos em direção à parede para se apoiar.

— Cuidado! — disse Nialla, dando um passo rápido na direção de Rupert.

— Para trás! — disparou ele com olhar feroz. — Posso me arranjar sozinho.

Ela parou bruscamente, como se tivesse sido esbofeteada.

— Nialla pensa que sou seu filho — disse ele, rindo e tentando fazer piada.

Pelo olhar assassino de Nialla, vi que ela não pensava nada daquilo.


— MUITO BEM, ENTÃO! — DISSE O VIGÁRIO COM VIVACIDADE, esfregando as mãos como se o momento não tivesse acontecido. — Está combinado. Por onde começamos? — Olhou impaciente de um para outro.

— Descarregando a van, imagino — disse Rupert. — Podemos deixar as coisas aqui até a hora do espetáculo?

— Ah, claro, claro — disse o vigário. — O salão paroquial é tão seguro quanto as casas. Talvez até um pouco mais.

— Depois alguém vai precisar dar uma olhada na van... e vamos querer um lugar para nos hospedar por alguns dias.

— Deixem esse departamento comigo — disse o vigário. — Estou certo de que consigo alguma coisa. Agora, então, vamos arregaçar as mangas e mãos à obra. Venha também, Flavia querida. Com certeza encontraremos alguma coisa adequada para os seus talentos especiais.

Alguma coisa adequada para os meus talentos especiais? De algum modo, eu duvidava disso. A não ser que o assunto fosse envenenamento criminoso, que era o meu principal deleite.

Mas como naquele momento eu ainda não estava disposta a ir para casa em Buckshaw, grudei no rosto meu melhor sorriso de escoteira (aposentada) para o vigário e o segui, juntamente com Rupert e Nialla, para o pátio da igreja.

Quando Rupert abriu as portas traseiras da van, tive meu primeiro vislumbre da vida de um artista itinerante. O interior escuro da van estava lindamente equipado com fileiras e mais fileiras de gavetas envernizadas, cada qual firmemente alojada em cima, ao lado e embaixo de suas vizinhas, de modo muito semelhante a caixas de sapatos em uma oficina de sapateiro bem administrada, em que cada gaveta desliza com perfeição para dentro e para fora em seu trilho. No piso da van estavam empilhadas as caixas maiores (caixotes de expedição, na verdade), com alças de corda nas duas extremidades para facilitar a remoção e arrastá-las para o local a que estivessem destinadas.

— Rupert fez tudo isso sozinho — disse Nialla, orgulhosa. — As gavetas, o palco desmontável, o equipamento de iluminação... construiu os refletores com latas velhas de tinta, não é, Rupert?

Rupert assentiu com um ar ausente, enquanto arrastava para fora do carro um fardo de tubos de ferro.

— E isso não é tudo. Ele cortou os cabos, fez os objetos de cena, pintou o cenário, esculpiu os bonecos... tudo, exceto aquilo, é claro.

Ela apontava para uma volumosa caixa preta com alça de couro e perfurações nas laterais.

— O que há lá dentro? Um animal?

Nialla riu.

— Melhor do que isso. É o orgulho e a alegria de Rupert: um gravador magnético. Encomendou dos Estados Unidos. Custou um bom dinheiro, posso garantir. Ainda assim, é mais barato do que contratar a orquestra da BBC para tocar música incidental!

Rupert já começara a puxar as caixas para fora da Austin, grunhindo enquanto trabalhava. Seus braços eram como guindastes das docas, erguendo e virando, erguendo e virando, até que afinal quase tudo estava empilhado na grama.

— Deixe eu dar uma mãozinha — disse o vigário, agarrando uma alça de corda na ponta de um baú preto em forma de caixão com a palavra “Galligantus” gravada com estêncil em letras brancas, enquanto Rupert segurava a outra ponta.

Nialla e eu fizemos algumas viagens para transportar os objetos mais leves, e em meia hora estava tudo empilhado dentro do salão paroquial na frente do palco.

— Muito bem! — disse o vigário, sacudindo o pó das mangas do casaco. — Muito bem mesmo. E agora, sábado seria adequado? Para o espetáculo, quero dizer? Vejamos... hoje é quinta-feira... isso lhe daria um dia a mais para se preparar, bem como tempo para mandar consertar a sua van.

— Me parece bom — disse Rupert. Nialla assentiu, embora não lhe tivessem perguntado nada.

— Que seja sábado, então. Vou pedir a Cynthia que imprima panfletos no mimeógrafo. Ela poderá distribuí-los pelas lojas amanhã... colar alguns em locais estratégicos. Cynthia é muito competente para essas coisas.

“Competente” não estava entre as muitas palavras que me vêm à mente para descrever Cynthia Richardson; “ogra”, no entanto, estava.

Afinal, havia sido Cynthia, com suas feições de roedor, que me pegara uma vez me equilibrando em cima do altar de São Tancredo, usando uma das navalhas do pai para raspar uma amostra de safra azul de um vitral medieval. A safra é uma base impura de arseniato de cobalto, preparada por torrefação, que os artesãos da Idade Média usavam para pintar sobre vidro, e eu estava simplesmente morrendo de vontade de analisar a substância no meu laboratório para determinar o quanto seus produtores tinham tido sucesso em deixá-la livre de ferro.

Cynthia me agarrara, me virara ao contrário e me espancara ali mesmo, fazendo o que considerei uso injusto de um exemplar de Hinos – antigos e modernos (edição clássica) que estava por perto.

“O que você fez, Flavia, não merece congratulações”, disse o pai quando relatei aquele ultraje para ele. “Você arruinou uma navalha Thiers-Issard de lâmina côncava perfeita.”

Tenho de admitir, no entanto, que Cynthia era uma excelente organizadora, mas os homens com chicotes que cuidaram da construção das pirâmides também eram. Se alguém conseguisse emporcalhar Bishop’s Lacey de ponta a ponta com panfletos em três dias, com certeza seria Cynthia Richardson.

— Espere! — exclamou o vigário. — Acabo de ter uma ideia esplêndida! Diga-me o que acha. Por que você não apresenta dois espetáculos em vez de um? Não tenho a intenção de ser um especialista na arte do teatro de marionetes, absolutamente, saber o que é possível e o que não é, e assim por diante, mas por que não apresenta um espetáculo no sábado à tarde, para as crianças, e outro no sábado à noite, quando a maioria dos adultos estará livre para comparecer?

Rupert não respondeu de imediato, mas ficou esfregando o queixo enquanto ponderava. Até eu concluí na hora que dois espetáculos dobrariam a arrecadação da bilheteria.

— Bem... — disse ele afinal. — Acho que sim. Mas teria de ser o mesmo espetáculo...

— Esplêndido! — disse o vigário. — Então o que vai ser... isto é, o programa?

— Abertura com uma breve peça musical — disse Rupert. — É uma nova na qual estive trabalhando. Ninguém viu ainda, portanto seria uma boa ocasião para testá-la. Então, João e o pé de feijão. Eles sempre clamam por ela, tanto os jovens como os adultos. É um clássico. Muito popular.

— Excelente! — disse o vigário. Ele puxou uma folha de papel e um toco de lápis de um bolso interno e rabiscou algumas notas.

— Que tal isto? — perguntou com um floreio final, e depois, com ar satisfeito, leu em voz alta o que havia escrito:

 

Diretamente de Londres!

 

— Espero que vocês me perdoem a pequena mentira e o ponto de exclamação — sussurrou para Nialla.

 

as Marionetes de Porson

(Manipuladas pelo aclamado Rupert Porson. Como visto na BBC Televisão)

 

Programa

I. Interlúdio musical

II. João e o pé de feijão

(O primeiro sendo apresentado pela primeira vez em qualquer palco; o último, declarado universalmente popular entre velhos e jovens)


Sábado, 22 de julho de 1950, no salão paroquial de São Tancredo, Bishop’s Lacey

Apresentações às 14h e às 19h em ponto!

 

— Do contrário, eles virão se arrastando aos poucos — acrescentou. — Vou mandar Cynthia fazer um desenho de uma pequena figura articulada com fios em cima. Ela é uma artista extremamente talentosa, sabem, mas não teve tantas oportunidades de se expressar quanto gostaria. Oh, Deus, receio estar divagando. É melhor eu cuidar dos meus compromissos telefônicos.

E depois de dizer isso, ele se foi.

— Pessoa curiosa, o bom velhote — observou Rupert.

— Ele não é um mau sujeito — considerei. — Apenas leva uma vida meio triste.

— Ah — disse Rupert. — Sei o que você quer dizer. Funerais, e todas essas coisas.

— Sim — concordei. — Funerais e todas essas coisas.

Mas eu estava pensando mais em Cynthia.

— Onde fica o quadro? — perguntou Rupert de repente.

Por um momento, fiquei atônita. Devo ter parecido especialmente pouco inteligente.

— O quadro — repetiu ele. — O quadro de luz. A corrente. Os controles elétricos. Mas não imagino que você saiba onde fica. Ou será que sabe?

Acontece que eu sabia. Apenas algumas semanas antes, eu fora coagida a ficar nos bastidores com a sra. Witty, ajudando a operar as pesadas alavancas do antiquado painel de controle da iluminação, enquanto suas alunas do primeiro ano de balé tropeçavam pelas tábuas do palco no recital de Os frutos dourados do sol, em que Pomona (Deidre Skidmore vestindo um mosquiteiro) cortejava Hyas (um Gerald Plunkett de cara vermelha vestindo uma malha improvisada de uma ceroula pesada de inverno), presenteando-o com um sortimento de frutas de papel-machê.

— À direita do palco — eu disse. — Atrás do regulador preto.

Rupert piscou uma ou duas vezes, disparou-me um olhar mordaz e subiu estrepitosamente os degraus estreitos que levavam ao palco. Por alguns momentos ouvimos seus resmungos lá em cima, pontuados pelos sons metálicos de painéis e interruptores sendo manipulados com estrondo.

— Não dê importância — sussurrou Nialla. — Ele sempre fica nervoso desse jeito do instante em que um espetáculo é marcado até a cortina descer ao final. Depois disso, ele geralmente fica ótimo.

Enquanto Rupert lidava com a eletricidade, Nialla começou a desamarrar diversos fardos com pilares de madeira aplainada, que estavam cingidos fortemente por tiras de couro.

— O palco — ela me explicou. — Tudo isso é montado com parafusos e borboletas. Rupert projetou e construiu tudo sozinho. Cuidado com os dedos. — Eu tinha me aproximado para ajudá-la com as peças mais compridas. — Eu posso fazer isso sozinha, obrigada — disse ela. — Fiz centenas de vezes, já é quase uma ciência. Só na hora de erguer o piso é que são necessárias duas pessoas.

Um farfalhar atrás de mim me fez virar. Lá estava o vigário, com uma expressão muito infeliz.

— Más notícias, infelizmente — disse. — A sra. Archer me contou que Bert foi a Londres para um curso e só voltará amanhã, e ninguém responde na Fazenda Culverhouse, onde eu esperava alojá-los. Por outro lado, a sra. I não costuma atender ao telefone quando está sozinha em casa. Ela vai trazer os ovos no sábado, mas a essa altura será tarde demais. Eu ofereceria o presbitério, é claro, mas Cynthia me lembrou com muita veemência que estamos no meio da pintura dos quartos de hóspedes: as camas foram desmontadas e estão empilhadas nos corredores, há guarda-roupas obstruindo os patamares, e assim por diante. É realmente frustrante.

— Não se preocupe, vigário — disse Rupert de cima do palco. — Minha pele quase se desprendeu de susto. Havia esquecido que ele estava lá. — Vamos acampar onde estamos, no pátio da igreja. Temos uma boa barraca na van, com tapetes de lã e um forro de borracha para o piso, um pequeno fogareiro e feijões em lata para o café da manhã. Estaremos tão confortáveis quanto percevejos em um cobertor.

— Bem — disse o vigário —, se dependesse só de mim, eu...

— Ah — disse Rupert erguendo um dedo —, sei o que está pensando: não dá para deixar ciganos acampar entre os túmulos. Respeito pelos entes queridos que se foram, e tudo o mais.

— Bem — disse o vigário —, pode haver uma parcela de verdade nisso, mas...

— Vamos nos instalar em algum canto desocupado, certo? Assim não haverá profanação. Não será a primeira vez que dormimos em um pátio de igreja, será, Nialla?

Nialla corou de leve e de repente ficou fascinada com alguma coisa no chão.

— Bem, suponho que então está combinado — disse o vigário. — Não temos muita escolha, temos? Além disso, é só por uma noite. Que mal pode haver? Meu Deus! — disse ele, olhando para o seu relógio de pulso. Como o tempus realmente fugit! Fiz uma promessa solene a Cynthia de voltar imediatamente. Ela está preparando o jantar mais cedo, entendam. Nós sempre jantamos mais cedo às quintas-feiras, por causa do ensaio do coro. Eu os convidaria para se juntarem a nós em uma refeição caseira, mas...

— Nem pense nisso — interrompeu Rupert. — Nós já incomodamos o suficiente para um dia, vigário. Além disso, acredite ou não, Nialla tem uma excelente mão para preparar ovos com bacon em fogueiras em pátios de igreja. Vamos comer como bandidos corsos e dormir como defuntos.

Nialla sentou-se com muita suavidade em uma caixa, e percebi que ela se sentia exausta. Olheiras pareciam ter se formado tão depressa em volta de seus olhos como nuvens de tempestade atravessando na frente da lua.

O vigário alisou o queixo.

— Flavia, querida, tive uma ideia esplêndida. Por que você não volta aqui amanhã cedinho para ajudar? Tenho certeza de que as Marionetes de Porson ficarão muito gratas pelos serviços de uma entusiástica assistente — sugeriu o vigário. — Preciso visitar doentes e inválidos amanhã, bem como a Guilda do Altar — acrescentou ele. — Você poderia atuar como a minha lugar-tenente, por assim dizer. Oferecer aos nossos hóspedes, de certo modo, liberdade de acesso à paróquia, além de servir como factótum e zelosa serviçal.

— Eu ficaria feliz — respondi, fazendo uma mesura quase imperceptível.

Nialla, ao menos, me recompensou com um sorriso.

Do lado de fora, no fundo do pátio, recuperei Gladys, a minha confiável bicicleta, no meio do capim alto, e momentos depois estávamos voando para casa através das veredas salpicadas de sol, em direção a Buckshaw.


— OLÁ, TODO MUNDO — EU DISSE PARA FELINHA, que estava de costas, após ter entrado na sala de estar sem ser notada.

Sem deixar de olhar para o espelho no qual se admirava, Felinha viu de relance o meu reflexo no vidro ondulado pelo tempo.

— Dessa vez você se complicou — disse ela. — O pai procurou por você a tarde inteira. Ele acabou de falar por telefone com o policial Linnet, na aldeia. Devo dizer que pareceu um tanto desapontado ao ouvir que eles não tinham pescado o seu corpinho encharcado na lagoa dos patos.

— Como você sabe que eles não pescaram? — reagi, astutamente. — Como você sabe que eu não sou um fantasma que voltou para assombrá-la e persegui-la até a sua tumba?

— Porque o seu sapato está desamarrado, e o seu nariz está escorrendo — disse Dafi, erguendo os olhos de seu livro. Era Entre o amor e o pecado, e ela o estava lendo pela segunda vez.

“Do que se trata?”, eu perguntara na primeira vez.

“Moscas em seiva”, dissera ela com um sorriso condescendente, e eu anotei mentalmente para colocá-lo na minha lista de leituras. Adoro livros sobre ciências naturais.

— Você não vai me perguntar por onde andei? — provoquei. Estava simplesmente morta de vontade de contar a elas sobre as Marionetes de Porson e Nialla.

— Não — respondeu Felinha, pondo um dedo na ponta do queixo, enquanto se inclinava para se olhar mais de perto. — Ninguém tem o menor interesse no que você faz. Você é como um cachorrinho indesejável.

— Eu não sou indesejável — disse eu.

— Ah, sim, você é! — reforçou ela com uma risada áspera. — Cite uma pessoa nesta casa que a queira, e eu lhe darei um guinéu. Vá, cite uma.

— Harriet! — disse eu. — Harriet me queria, ou não teria me dado à luz.

Felinha girou o corpo e cuspiu no chão. Ela realmente cuspiu!

— Para sua informação, Sarna, Harriet caiu em um profundo atoleiro mental logo depois que você nasceu.

— Ah! — disse eu. — Agora eu peguei você! Você me disse que eu tinha sido adotada.

Era verdade. Sempre que Dafi e Felinha queriam me provocar além do que eu podia aguentar, elas renovavam aquela alegação.

— E foi mesmo — disse ela. — O pai e Harriet concordaram em adotá-la antes mesmo de você nascer. Mas quando chegou o momento, você foi entregue por engano a outras pessoas, um casal em East Kent, acho. Infelizmente, eles a devolveram. Soube-se que aquela tinha sido a primeira vez em duzentos anos de história do hospital de enjeitados que alguém devolveu um bebê por não ter gostado dele.

— Harriet também não gostou muito de você depois que a trouxe para casa, e a Junta Diretora recusou-se a aceitá-la de volta pela segunda vez. Jamais vou esquecer o dia em que ouvi Harriet dizendo ao pai, no seu quarto de vestir, que nunca seria capaz de amar uma chorona com cara de rato como você. Mas o que ela podia fazer?

— Bem, ela fez o que qualquer mulher normal faria naquelas circunstâncias: caiu em um estado de profunda perturbação, do qual provavelmente nunca mais se recuperou. Ela ainda estava dominada por ele quando caiu (ou será que pulou?) daquela montanha no Tibete. O pai sempre culpou você por aquilo; certamente você tem consciência disso.

A sala ficou frígida como gelo, e de repente fiquei dormente da cabeça aos pés. Abri a boca para dizer alguma coisa, mas descobri que a minha língua secara e se encarquilhara até virar uma tira de couro enrolada. Lágrimas quentes brotaram nos meus olhos, e eu fugi da sala.

Eu mostraria uma ou duas coisinhas àquela suína da Felinha. Eu a deixaria tão amarrada e cheia de nós que teriam de chamar um marinheiro a fim de desatá-la para o funeral.

Existe uma árvore que cresce no Brasil, a Carica digitata, que os nativos chamam de chamburu. Eles acreditam que ela seja tão letalmente venenosa que o simples fato de dormir sob seus galhos causará, em primeiro lugar, chagas permanentemente supurantes, seguidas, cedo ou tarde, de uma morte maravilhosamente excruciante.

Felizmente para Felinha, no entanto, a Carica digitata não cresce na Inglaterra.

Felizmente para mim, a pequena cicuta, mais conhecida como cicuta-da-europa, cresce. De fato eu conhecia um recanto baixo e pantanoso de Seaton’s Meadow, a menos de dez minutos de Buckshaw, onde ela crescia naquele exato momento. Eu podia ir até lá e voltar antes do jantar.

Recentemente eu havia atualizado as minhas anotações sobre coniina, o princípio ativo da substância. Eu a extrairia destilando com qualquer álcali que tivesse à mão, talvez um pouco do bicarbonato de sódio que eu guardava no meu laboratório contra os excessos culinários da sra. Mullet. Então, por congelamento, eu removeria por recristalização as escamas iridescentes da menos poderosa conidrina. A coniina quase pura resultante teria um delicioso odor de rato, e seria necessário menos de meia gota da substância oleosa para acertar velhas contas.

Agitação, vômitos, convulsões, espumação pela boca, espasmos horrendos — contei os destaques nos dedos enquanto eu prosseguia:

 

Santificado cianeto

Super-rápido arsênico

Misturados-bagunçados

Dentro da sopa.

Apaguem as velas do luto

Tragam o caixão neste minuto

Ensinem como se brinca

Com Flavia de Luce!

 

Minhas palavras ecoaram de volta para mim do teto alto pintado do foyer e do madeiramento escuro e polido das galerias acima. A não ser pelo fato de que não mencionava a cicuta-da-europa, o pequeno poema, que eu compusera para uma ocasião inteiramente diferente, era a expressão perfeita dos meus atuais sentimentos.

Atravessei correndo os ladrilhos preto e branco, e fui pela escadaria curva acima até a ala leste da casa. A ala Tar, como a chamávamos, recebera esse nome em homenagem a Tarquin de Luce, um dos antigos tios de Harriet, que habitara Buckshaw antes de nós. O tio Tar passara a maior parte da vida trancafiado em um magnífico laboratório de química vitoriano, no canto sudeste da casa, investigando “as migalhas do universo”, como escrevera em uma de suas muitas cartas a Sir James Jeans, autor de A teoria dinâmica dos gases.

Diretamente abaixo do laboratório, na Longa Galeria, há um retrato a óleo do tio Tar. Ele está com os olhos afastados do microscópio, os lábios contraídos e o cenho franzido, como se alguém com um cavalete, uma paleta e uma caixa de tintas tivesse entrado sem pedir licença no momento em que ele estava prestes a descobrir o deLucium.

“Deem o fora!”, diz claramente a sua expressão. “Deem o fora e me deixem em paz!”

E assim eles deram o fora; e do mesmo modo, por fim, foi o que fez o tio Tar.

O laboratório e tudo o que havia nele agora eram meus, e isso já fazia anos. Ninguém jamais entrava ali, e era melhor assim.

Enquanto eu enfiava a mão no bolso e puxava a chave, alguma coisa branca esvoaçou para o chão. Era o lenço que eu havia emprestado a Nialla no pátio da igreja. Ele ainda estava levemente úmido ao toque.

Uma imagem surgiu na minha cabeça, a de Nialla quando a vi pela primeira vez, debruçada sobre a lápide, o rosto voltado para baixo, os cabelos espalhados como um mar vermelho, suas lágrimas quentes crepitando na poeira.

Tudo se encaixou como uma lingueta na fechadura. É claro!

A vingança teria de esperar.

Com uma tesourinha de cutícula que eu surrupiara da penteadeira de Felinha, cortei quatro discos úmidos do lenço de linho, tomando cuidado para evitar as manchas verdes de grama que eu infligira a ele, e cortando apenas partes que estavam diagonalmente opostas às manchas: os borrões sobre os quais Nialla havia chorado.

Utilizando uma pinça, enfiei-os em um tubo de ensaio, no qual injetei uma solução a três por cento de ácido sulfossalicílico para precipitar a proteína. Era o assim chamado teste de Ehrlich.

Enquanto trabalhava, pensei com prazer em quão profundamente Alexander Fleming mudara o mundo quando, sem querer, espirrara dentro de uma placa de Petri. Era o tipo de ciência que me encantava o coração. Quem, afinal, poderia dizer honestamente que jamais espirrou em cima de uma cultura? Poderia acontecer com qualquer um. Aconteceu comigo.

Depois do espirro, o magnífico observador Fleming notou que as bactérias na placa estavam se retraindo das nódoas de seu muco respingado, como se estivessem com medo. Não se passou muito tempo até que ele isolasse uma proteína em particular no muco que repelia as bactérias de um modo muito parecido com o de um cão espumando pela boca espanta ladrões. Ele a chamou de lisozima, e era essa a substância para a qual eu estava agora testando.

Felizmente, mesmo no auge do verão, os salões ancestrais de Buckshaw eram tão frios e úmidos quanto a proverbial tumba. A temperatura ambiente na ala leste, onde se localizava o meu laboratório, apesar do aquecimento que fora malevolamente instalado somente na ala oeste da casa outrora dividida, jamais passava dos quinze graus centígrados, que, por sorte, era precisamente a temperatura em que a lisozima se precipita quando se adiciona o ácido sulfossalicílico.

Observei, extasiada, enquanto o véu de cristais começava a se formar, os flocos brancos derivando gentilmente para baixo, no pequeno inverno dentro do tubo de ensaio.

Em seguida acendi um bico de Bunsen e cuidadosamente aqueci uma proveta de água a vinte e um graus. Não levou muito tempo. Quando o termômetro indicou que estava pronto, mergulhei o fundo do tubo de ensaio no banho quente e o agitei gentilmente.

Quando o precipitado recém-formado se dissolveu, deixei escapar um suspiro deleitado.

— Flavia. — A voz distante do pai evolou-se até o laboratório. Depois de atravessar o vestíbulo da frente, penetrar na ala leste e encaminhar-se pelo longo corredor abaixo até o seu ponto mais meridional, ela agora se infiltrara através da minha porta fechada, sua força exaurida, tão insubstancial como se tivesse vindo à deriva até a Inglaterra desde Ultima Thule.

— Jantar — pensei tê-lo ouvido chamar.


— É tremendamente irritante — disse o pai.

Estávamos sentados em volta da longa mesa do refeitório, o pai na ponta, Dafi e Felinha, uma de cada lado, e eu, no outro extremo, no Cabo Horn.

— É tremendamente irritante — disse ele de novo — uma pessoa sentar-se aqui e ficar ouvindo a própria filha admitir que ela se apoderou da minha água-de-colônia para usar em um maldito experimento de química.

Tanto fazia se eu negasse essas coisas ou admitisse a minha culpa; o pai achava igualmente irritante. O fato é que eu simplesmente não podia ganhar. Já aprendera que o melhor era permanecer em silêncio.

— Droga, Flavia, eu tinha acabado de comprar aquela maldita coisa. Não dá para eu ir a Londres neste calor fedendo como um quarto dianteiro de porco apodrecido, dá?

O pai era muito eloquente quando estava zangado. Eu havia surrupiado o frasco de Roger & Gallet para encher um nebulizador com o qual precisava borrifar a casa depois de um experimento que envolvera sulfeto de hidrogênio e dera espetacularmente errado.

Sacudi a cabeça.

— Me desculpe — eu disse, adotando uma expressão envergonhada e enxugando os olhos com um guardanapo. — Eu compraria um novo frasco para você, mas não tenho dinheiro.

Como se eu fosse um patinho de lata num estande de tiro, Felinha mirou-me através da longa mesa com um silencioso desdém. O nariz de Dafi estava firmemente enfiado em Virginia Woolf.

— Mas eu poderia fazer um pouco para você — eu disse, alegre. — Na verdade não é muito mais do que etanol, óleos cítricos e ervas de jardim. Vou pedir a Dogger que colha um pouco de alecrim e lavanda, e vou arranjar algumas laranjas, limões e limas com a sra. Mullet...

— Você não vai fazer nada disso, srta. Flavia — disse a sra. Mullet, invadindo impetuosa e literalmente a sala enquanto empurrava a porta com suas vastas ancas e largava uma grande travessa em cima da mesa.

— Ah, não! — ouvi Dafi sussurrando para Felinha. — É o treme-treme de novo.

O treme-treme, como o chamávamos, era uma sobremesa de lavra própria da sra. Mullet, que, até onde podíamos entender, consistia em uma espécie de gelatina verde grumosa embutida como uma salsicha, com cobertura dupla de creme coagulado e enfeitada com ramos de hortelã e outras sobras variadas de vegetais. Ficava ali, tremendo obscenamente de vez em quando, como uma enorme e abominável lesma de jardim. Não pude deixar de sentir um arrepio.

— Que delícia — disse o pai. — Realmente delicioso.

Ele estava sendo irônico. Mas as antenas da sra. Mullet não estavam sintonizadas para o sarcasmo.

— Eu sabia que vocês gostariam — disse ela. — Hoje mesmo de manhã eu dizia para o meu Alf: “Faz tempo que o Coronel e as meninas não comem uma das minhas adoráveis gelatinas. Eles sempre comentam sobre as minhas gelatinas” (isso era mesmo verdade), “e eu adoro prepará-las para eles, para os meus queridos”.

Ela fez isso soar como se os seus patrões tivessem galhadas na testa.

Felinha fez um ruído como o de um passageiro passando mal na amurada do Queen Mary em plena travessia do Atlântico Norte em novembro.

— Coma tudo, querida — disse a sra. Mullet, inabalável. — Faz bem para você. — E depois de dizer isso ela se foi.

O pai cravou aquele seu olhar em mim. Embora ele tivesse levado a última edição do The London Philatelist para a mesa, como sempre fazia, nem sequer o abrira. O pai era um entusiástico, para não dizer fanático, colecionador de selos do Correio e dedicava sua vida a ficar olhando através de lentes de aumento para um suprimento aparentemente infindável de pequenas cabeças coloridas e paisagens pitorescas. Mas agora ele não estava examinando selos. Agora ele estava olhando para mim. Os augúrios não vaticinavam nada de bom.

— Onde você esteve a tarde inteira? — perguntou.

— Na igreja — respondi prontamente, com ar afetado e, esperava, com um pouco de devoção também. Eu era mestra nesse tipo de papo furado evasivo.

— Na igreja? — perguntou ele, parecendo um tanto surpreso. — Por quê?

— Estava ajudando uma mulher — eu disse. — A van dela quebrou.

— Ah — disse ele, permitindo-se um sorriso de meio milímetro. — E você estava lá bem no momento para oferecer os seus serviços como mecânica de motores.

Dafi sorriu ironicamente para o seu livro, e percebi que ela estava ouvindo com prazer a minha humilhação. Felinha, diga-se a seu favor, continuou totalmente absorta em lustrar as unhas em sua blusa de seda branca.

— Ela está participando de um espetáculo itinerante de marionetes — eu disse. — O vigário pediu a eles... a Rupert Porson, quero dizer, e a Nialla (é o nome dela) para fazer uma apresentação no salão paroquial no sábado, e ele quer a minha ajuda.

O pai abrandou ligeiramente. O vigário era um de seus poucos amigos em Bishop’s Lacey, e era improvável que ele sonegasse os meus serviços.

— Rupert trabalha na televisão — contei. — Ele é muito famoso, na verdade.

— Não nos meus círculos — disse o pai, olhando para o relógio e afastando a cadeira da mesa. — Oito horas — disse. — Quinta-feira.

Ele não precisou se explicar. Sem uma palavra, Dafi, Felinha e eu nos levantamos e seguimos obedientemente para a sala de estar, todas em uma fila dispersa, como um comboio.

As noites de quinta-feira eram as Noites do Rádio em Buckshaw. O pai decretara recentemente que precisávamos passar mais tempo juntos como família, e assim a Noite do Rádio foi estabelecida como um suplemento à sua série compulsória de preleções nas quartas-feiras. Esta semana, seria a fabulosa Quinta Sinfonia de Ludwig van Beethoven, ou Larry, como eu o chamava sempre que queria provocar Felinha. Eu me lembrava de que Felinha certa vez nos contara que na partitura impressa original o nome de Beethoven aparecia como... Louis.

Louis Beethoven me soava como o nome de um dos gângsteres coadjuvantes em um filme de Edward G. Robinson, alguém com uma cara amarelada e esfolada, um tique alarmante e uma metralhadora Thompson em um estojo de violino.

— Toque aquela tal de Sarandalha ao Luar, do Louie B. — eu rosnava na minha voz roufenha de gângster ao entrar na sala quando ela praticava no teclado. Um momento depois eu estaria em fuga desabalada, com Felinha atrás de mim em uma perseguição implacável e uma folha de partitura esvoaçando sobre o tapete.

Agora Felinha se acomodava atarefadamente em uma pose artística de corpo inteiro sobre o sofá, como uma diva do cinema. Dafi se deixou cair de lado em uma poltrona estofada, com as pernas penduradas para fora, por cima do braço.

O pai ligou o rádio e sentou-se em uma cadeira simples de madeira, as costas retas como um pedaço de pau. Enquanto as válvulas esquentavam, dei um salto mortal através do tapete, voltei andando em cima das mãos através da sala e me deixei cair em uma posição de Buda de pernas cruzadas, com o que eu esperava ser uma fisionomia inescrutável.

O pai me lançou um olhar fulminante, mas, como o programa já estava começando, decidiu não dizer nada.

Depois de uma longa e maçante introdução de um locutor que parecia que avançaria pelo próximo século adentro, a Quinta Sinfonia finalmente começou.

Duh-duh-duh-DAH.

Segurei o queixo nas mãos em concha, apoiei os cotovelos sobre os joelhos e me entreguei à música.

O pai nos disse que a apreciação da música era de importância suprema na educação de uma mulher decente. Essas foram suas palavras exatas, e eu passei a apreciar o fato de que existe música adequada para meditação, música para escrever e música para relaxar.

Com os olhos semicerrados, virei o rosto na direção das janelas. Do meu ponto de vista, no chão, eu podia ver as duas extremidades do terraço refletidas no vidro das portas-janelas, que estavam entreabertas, e, a não ser que meus olhos estivessem me pregando uma peça, alguma coisa se movera lá fora: alguma forma escura passara do lado de fora da janela.

No entanto, não me atrevi a me pôr de pé em um pulo. O pai insistia em uma audição atenta. Até mesmo um pé marcando o ritmo encontraria instantaneamente um olhar cruel e um dedo acusador apontando para baixo.

Me inclinei ligeiramente para a frente e vi que um homem todo vestido de preto acabava de se sentar em um banco embaixo das roseiras. Estava inclinado para trás, de olhos fechados, ouvindo a música que flutuava através das portas abertas. Era Dogger.

Dogger era o Homem do pai, com H maiúsculo: jardineiro, chofer, valete, administrador da propriedade e factótum. Como eu disse antes, ele já tinha feito de tudo.

A experiência de Dogger como prisioneiro de guerra deixou alguma coisa quebrada dentro dele: alguma coisa que de vez em quando, com uma ferocidade inacreditável, atacava seu cérebro com garras e dentes, como algum tipo de besta-fera voraz que o transformava em uma trêmula pilha de nervos.

Mas naquela noite ele estava em paz. Naquela noite se vestira todo para a sinfonia, usando um terno escuro e o que poderia ter sido uma gravata militar, e seus sapatos tinham sido engraxados até brilhar como espelhos. Estava sentado imóvel no banco embaixo das rosas, de olhos fechados, o rosto voltado para cima como um dos radiantes santos coptas que eu tinha visto nas páginas de arte da Country Life, a madeixa de cabelos brancos iluminada por trás por um etéreo raio do sol poente. Era agradável saber que ele estava lá.

Me espreguicei satisfeita e voltei a atenção novamente para Beethoven e sua vigorosa Quinta.

Embora fosse de fato um grande músico e um extraordinário compositor de sinfonias, Beethoven era frequentemente um deplorável fracasso quando se tratava de terminá-las. A Quinta era um exemplo perfeito.

Me lembro de que o final dela, o allegro, era uma daquelas vezes em que Beethoven simplesmente não conseguiu encontrar o botão de desligar.

Dum... dum... dum-dum-dum, ela soava, e se poderia pensar que havia acabado.

Mas não...

Dum, dah, dum-dum-dum, dah, dum, dah, dum, dah, dum — DAH dum.

Você se levanta e se espreguiça, suspirando de satisfação com a grande obra que acabara de ouvir, e de repente:

DAH dum. DAH dum. DAH dum. E assim por diante: DAH dum.

Era como um pedaço de papel pega-moscas colado em seu dedo do qual você não consegue se livrar. A maldita coisa grudava-se à vida como uma craca.

Lembrei-me de que algumas sinfonias de Beethoven receberam nomes: a Eroica, a Pastoral, e assim por diante. Deviam ter chamado esta de Vampira, porque simplesmente se recusava a deitar e morrer.

Mas, com exceção desse final pegajoso, eu adorava a Quinta, e o que eu gostava mais era do fato de que ela era o que eu considerava... música de correr.

Eu me via de braços abertos, correndo desenfreadamente sob o sol quente pela Colina Goodger abaixo, precipitando-me em largos zigue-zagues, as minhas tranças voando atrás de mim ao vento, esgoelando a Quinta a plenos pulmões.

Meu agradável devaneio foi interrompido pela voz do pai.

— Este agora é o segundo movimento, andante con moto — dizia ele em voz alta. O pai sempre anunciava o nome dos movimentos com uma voz mais apropriada para quartel do que para sala de estar. — Significa “a passo de caminhada, com movimento” — acrescentou, recostando-se de novo na cadeira como se, por enquanto, tivesse cumprido com o seu dever.

Aquilo me pareceu redundante: como era possível um passo de caminhada sem movimento? Aquilo desafiava as leis da física, mas, por outro lado, os compositores não são como nós.

Por exemplo, em sua maior parte, eles estão mortos.

E quando pensei em estar morta e em pátios de igrejas, me lembrei de Nialla.

Nialla! Eu quase me esquecera de Nialla! A convocação do pai para o jantar chegara bem no momento em que eu estava terminando meu teste químico. Formei mentalmente a imagem da ligeira turvação, dos flocos turbilhonantes no tubo de ensaio e da excitante mensagem que transmitiam.

A não ser que eu estivesse redondamente enganada, a Mamãe Gansa estava grávida.


ME PERGUNTEI SE ELA SABIA.

Antes mesmo de ela ter se levantado chorando de sua lápide de calcário, eu já havia reparado que Nialla não usava aliança. Não que isso significasse alguma coisa: até a mãe de Oliver Twist não era casada.

Por outro lado, havia lama fresca em seu vestido. Embora eu tivesse registrado o fato em algum matagal emaranhado da minha cabeça, não havia pensado mais nisso até agora.

No entanto, quando se parava para refletir, parecia bastante óbvio que ela tinha feito pipi no pátio da igreja. Como não havia chovido, a lama fresca na barra do vestido indicava que ela fizera isso, e apressadamente, no canto noroeste, longe de olhares indiscretos, atrás do monte de terra extra que o sacristão, o sr. Haskins, deixava à mão para as operações de abertura de covas.

Ela devia estar desesperada, concluí.

Sim! Era isso! Não existe uma só mulher na face da terra que escolheria um lugar tão inamistoso (ignobilmente insalubre, teria dito Dafi), a não ser que não tivesse escolha. Havia inúmeras razões, mas uma delas me vinha à mente de imediato, e era uma com a qual eu me deparara recentemente nas páginas da Australian Women’s Weekly enquanto esperava para ser atendida na sala de espera de uma clínica odontológica na rua Farringdon. “Dez sinais precoces de um evento abençoado”, chamava-se o artigo, e a necessidade de micção frequente beirava o topo da lista.

— Quarto movimento. Allegro. Clave de dó maior — apregoou o pai, como se fosse um condutor de trem anunciando a próxima estação.

Dei uma inclinada enérgica de cabeça para ele, para mostrar que estava prestando atenção, depois mergulhei de volta nos meus pensamentos. Onde eu estava mesmo? Ah, sim. Oliver Twist.

Certa vez, em uma viagem para Londres, Dafi apontara para nós, da janela do nosso táxi, o ponto exato em Bloomsbury onde ficava o hospital de enjeitados de Oliver. Embora ele fosse agora uma praça muito agradável e luxuriante, não tive problemas em me imaginar subindo penosamente aqueles degraus da frente havia muito desaparecidos, porém ainda assim cobertos de neve, erguendo a enorme e pesada tranca e pedindo refúgio. Quando eu contasse a eles da minha vida de semiórfã em Buckshaw com Felinha e Dafi, não fariam mais nenhuma pergunta. Eu seria recebida de braços abertos.

Londres! Diabos e demônios! Eu me esquecera completamente. Hoje era o dia em que eu deveria ter ido com o pai à cidade para experimentar o aparelho dentário. Não admira que ele estivesse mal-humorado. Enquanto eu estava saboreando a morte no pátio da igreja e batendo um longo papo com Nialla e o vigário, o pai, quase com toda a certeza, estava espumando e fumegando em volta da casa como um destróier com a fornalha superalimentada. Tive a sensação de que ainda teria de lidar com aquilo.

Bem, agora já era tarde demais. Beethoven estava, por fim, seguindo fatigado por seu tortuoso caminho para casa, como o lavrador de Thomas Gray, deixando o mundo para as trevas e para mim e para o pai.

— Flavia, uma palavrinha, por favor — disse ele, desligando o rádio com um agourento clique.

Felinha e Dafi se levantaram de seus respectivos lugares e saíram da sala em silêncio, parando apenas o suficiente junto à porta para me dirigir um par de suas caretas patenteadas de “Agora você vai ouvir!”.

— Que diabo, Flavia — disse o pai depois que elas saíram. — Você sabia tão bem quanto eu que nós tínhamos um compromisso com os seus dentes esta tarde.

Com os meus dentes! Ele fez aquilo soar como se o Ministério da Saúde estivesse providenciando para mim um conjunto completo de dentaduras.

Mas o que ele dissera era verdade: não fazia muito tempo eu destruíra um aparelho perfeitamente bom quando endireitava o arame para forçar uma fechadura. O pai resmungou, é claro, mas marcou outra hora para me capturar e arrastar de volta a Londres, para aquela oficina de sucateiro no terceiro andar da rua Farringdon, onde eu seria imobilizada em uma prancha como Boris Karloff, enquanto vários itens de ferraria eram enfiados na minha boca, aparafusados e atarraxados nas minhas gengivas.

— Eu esqueci — disse eu. — Desculpe. Você devia ter me lembrado no café da manhã.

O pai piscou. Ele não esperava uma resposta tão vigorosa, ou tão primorosamente desviada! Embora ele tivesse sido oficial de carreira do Exército, quando se tratava de manobras domésticas, era pouco mais que um bebê agitado.

— Talvez possamos ir amanhã — acrescentei alegremente.

Embora possa não parecer à primeira vista, foi um golpe de mestre. O pai desprezava o telefone com uma paixão que ia além de qualquer convicção. Ele via o uso da coisa, ou “daquele instrumento”, como ele o chamava, não apenas como uma fraude ao Correio, mas como um ataque direto às tradições do Correio Real, o serviço postal do Reino Unido em geral, e ao uso de selos postais em particular. Portanto, ele se recusava terminantemente a usá-lo, a não ser nas mais terríveis circunstâncias. Eu sabia que ele levaria semanas, senão meses, para tocar no assunto de novo. Mesmo se escrevesse ao dentista, levaria tempo para completar as necessárias idas e vindas. Nesse meio-tempo, eu estaria fora de perigo.

— E lembre-se — o pai disse, como se tivesse acabado de pensar nisso — de que a sua tia Felicity chega amanhã.

Meu coração afundou como o batiscafo do Professor Picard.

Todo verão a irmã do pai saía de sua casa em Hampstead e caía em cima de nós. Embora não tivesse filhos (talvez porque nunca tivesse se casado), ela tinha opiniões deveras alarmantes sobre a educação adequada para crianças: opiniões que nunca se cansava de afirmar em voz alta.

“As crianças precisam ser açoitadas”, costumava dizer, “a não ser que desejem seguir carreira na política ou nos tribunais, caso em que deviam, somando-se a isso, ser afogadas”. O que resumia muito bem toda a sua filosofia. Ainda assim, como todos os tiranos cruéis e intimidadores, tinha algumas gotas de sentimentalismo secretadas em algum lugar dentro dela, que de vez em quando subiam borbulhando à superfície (mais frequentemente no Natal, mas, às vezes, atrasadas nos aniversários), quando então nos infligia seus presentes escolhidos a dedo.

Dafi, por exemplo, que devoraria Melmoth, o errante, ou A abadia do pesadelo, ganharia de tia Felicity um exemplar do Livro Jumbo das Meninas, e Felinha, que nunca pensara muito sobre nada além de cosméticos e de sua própria pele cheia de espinhas, rasgaria o seu embrulho para encontrar um par de galochas de guta-percha para motoristas (“Ideais para panes no campo”).

Uma vez, porém, quando zombamos de tia Felicity na frente do pai, ele ficou instantaneamente furioso, de um jeito que eu jamais tinha visto. Mas logo recobrou o controle, encostando um dedo no canto do olho para fazer parar um nervo que se contraía com espasmos.

— Nunca ocorreu a vocês — perguntou ele naquela horrível voz uniforme — que sua tia Felicity não é o que pode parecer?

— Você quer dizer — Felinha disparou de volta — que toda essa maluquice não passa de pose?

Eu só pude ficar olhando, horrorizada com o atrevimento dela.

O pai cravou nela por um momento o olhar penetrante e feroz daqueles seus “olhos de Luce” azuis, depois girou nos calcanhares e saiu pisando firme da sala.

— Ai, Jesus! — disse Dafi, mas só depois que ele se fora.

E assim os medonhos presentes de tia Felicity continuaram a ser recebidos em silêncio — pelo menos na minha presença.

Antes que eu pudesse ao menos começar a me lembrar das transgressões dela contra minha boa natureza, o pai prosseguiu:

— O trem dela chega a Doddingsley às dez e cinco, e eu gostaria que você estivesse lá para recebê-la.

— Mas...

— Por favor, não discuta, Flavia. Eu já planejei acertar algumas contas na aldeia. Ophelia vai dar algum tipo de recital no chá da manhã do Instituto das Mulheres, e Daphne simplesmente se recusa a ir.

Macacos me mordam! Eu devia saber que alguma coisa assim aconteceria.

— Vou dizer a Mundy que envie um carro. Vou combinar com ele, quando vier buscar a sra. Mullet hoje à noite.

Clarence Mundy era o dono do único táxi de Bishop’s Lacey.

A sra. Mullet ficava até mais tarde para terminar a areação semestral das panelas e frigideiras: um ritual que sempre deixava a cozinha cheia de vapor gorduroso e superaquecido, e os habitantes de Buckshaw com náuseas. Nessas ocasiões, o pai sempre insistia em, depois, mandá-la de volta para casa de táxi. Havia diversas teorias circulando em Buckshaw sobre suas razões para fazer isso.

Era óbvio que eu não poderia ir e vir de Doddingsley com tia Felicity e ao mesmo tempo ajudar Rupert e Nialla a organizar o espetáculo de marionetes. Eu simplesmente teria de estabelecer minhas prioridades e cuidar primeiro dos assuntos mais importantes.


Embora já houvesse uma faixa dourada no céu oriental, o sol ainda não havia aparecido quando eu segui velozmente pela estrada para Bishop’s Lacey. Os pneus de Gladys zuniam aquele som atarefado que as vespas costumam fazer quando estão especialmente satisfeitas.

Uma neblina baixa flutuava nos campos dos dois lados dos regos, e fiz de conta que eu era o fantasma de Cathy Earnshaw voando para Heathcliff (a não ser pela bicicleta) através dos pântanos de Yorkshire. De vez em quando, mãos esqueléticas se estendiam para fora dos espinheiros das sebes para agarrar meu suéter de lã, mas eu e Gladys éramos rápidas demais para elas.

Quando parei ao lado da igreja de São Tancredo, vi a pequena barraca branca de Rupert armada no meio do capim alto, no fundo do pátio superedificado da igreja. Ele a erguera sobre a vala comum, onde os indigentes eram postos para descansar e onde, consequentemente, havia corpos, mas não lápides. Imaginei que não tinham contado nada a Rupert e Nialla sobre isso, e decidi que não seria de mim que ouviriam.

Antes de avançar mais que uns poucos metros pelo capim molhado, meus sapatos e meias ficaram totalmente encharcados.

— Olá! — chamei de mansinho. — Tem alguém em casa?

Não houve resposta. Nenhum som. Levei um susto quando uma das gralhas curiosas deslizou de cima da torre e aterrissou com um plop perfeitamente aerodinâmico sobre o muro decadente de calcário.

— Olá! — chamei de novo. — Toc, toc, toc. Alguém em casa?

Alguma coisa farfalhou na tenda, e Rupert enfiou a cabeça para fora, os cabelos de feno caindo sobre os olhos, que estavam vermelhos como se movidos por dínamos elétricos.

— Jesus, Flavia! — ele disse. — É você?

— Desculpe. Cheguei um pouco cedo.

Ele recolheu a cabeça para dentro da barraca como uma tartaruga, e ouvi-o tentando acordar Nialla. Depois de alguns bocejos e resmungos, a lona começou a se projetar para fora em súbitos ângulos estranhos, como se alguém lá dentro estivesse varrendo cacos de vidro com uma vassoura de ramos de árvore.

Alguns minutos depois, Nialla saiu da barraca, meio se arrastando. Estava usando o mesmo vestido do dia anterior, e, embora o tecido parecesse ainda estar desconfortavelmente úmido, ela puxou um cigarro Woodbine e o acendeu antes de endireitar totalmente o corpo.

— Salve — disse, agitando uma abrangente mão para mim e fazendo a fumaça do cigarro se misturar à neblina que pairava por entre as tumbas.

Ela tossiu com um súbito e horrendo espasmo, e a gralha, inclinando a cabeça, deu vários passos de lado sobre o muro, como se estivesse com nojo.

— Você não devia ficar se defumando com essas coisas — eu disse.

— Melhor do que defumar arenques — respondeu ela, e riu da própria piada. — Além do mais, o que sabe você?

Eu sabia que o meu falecido tio-avô, Tarquin de Luce, cujo laboratório de química eu herdara, em seus dias de estudante tinha sido vaiado e literalmente arremessado para fora da Oxford Union, a associação de debates da universidade, depois de assumir uma posição afirmativa em um deles: “Está decidido: o tabaco é uma erva perniciosa”.

Não fazia muito tempo, eu havia encontrado por acaso algumas anotações do tio Tar enfiadas em um diário. Suas meticulosas pesquisas químicas pareciam ter confirmado a ligação entre o fumo e o que era então chamado de “paralisia geral”. Como, por natureza, ele era um tipo bastante tímido e reservado, sua total e abjeta humilhação, como ele descreveu, nas mãos de seus colegas estudantes, contribuiu para sua subsequente vida reclusa.

Me envolvi com os braços e dei um passo atrás.

— Não sei nada — eu disse.

Eu tinha falado demais. Estava frio e úmido no pátio da igreja, e tive uma súbita visão da cama quente da qual eu saíra para vir ajudar.

Nialla soprou para o ar o que pretendia ser dois casuais anéis de fumaça. Ela ficou olhando eles subirem até se dissipar.

— Desculpe — disse ela. — Não costumo estar na minha melhor forma ao romper da aurora. Não quis ser rude.

— Está tudo bem — eu disse. Mas não estava.

Um graveto estalou surpreendentemente alto no silêncio abafado da neblina. A gralha abriu as asas e saiu voando para o topo de um teixo.

— Quem está aí? — chamou Nialla, dando uma corrida de repente até o muro de calcário e se debruçando por cima dele. — Malditos moleques — disse ela. — Tentando nos assustar. Ouvi um deles rindo.

Embora eu tivesse herdado a audição extremamente aguçada de Harriet, não tinha ouvido nada além de um graveto se partindo. Não disse a Nialla que seria muito estranho encontrar qualquer criança de Bishop’s Lacey no pátio da igreja àquela hora da manhã.

— Vou mandar Rupert atrás deles — disse ela. — Isso vai lhes dar uma lição. Rupert! — ela gritou. — O que você está fazendo aí dentro?

— Aposto que aquele preguiçoso indolente se enfiou de novo no saco de dormir — acrescentou, dando uma piscadela.

Ela esticou a mão e deu uma puxada em uma das cordas da barraca para fazê-la vibrar, e, como um paraquedas ao vento, a coisa inteira desabou, uma massa de lona murchando lentamente. A barraca tinha sido armada na terra solta da camada superior do solo, na vala comum, que cedia ao menor toque.

Rupert saiu do meio dos destroços em um instante. Agarrou Nialla pelo pulso e o torceu por trás das costas. O cigarro dela caiu na grama.

— Nunca mais... — ele bradou. — Nunca mais...

Nialla sinalizou com os olhos na minha direção, e Rupert soltou-a imediatamente.

— Droga — disse ele. — Eu estava fazendo a barba. Podia ter cortado a minha maldita garganta.

Ele esticou o queixo para a frente e deu um puxão de lado, como se estivesse tentando se livrar de um colarinho invisível.

Estranho, pensei. Ele ainda estava com todos os pelos da barba matinal, e mais ainda: não havia o menor sinal de creme de barbear em seu rosto.


— A sorte está lançada — disse o vigário.

Ele viera cantarolando de boca fechada, cruzando o pátio da igreja como um pião, deixando entrever preto e depois branco através da neblina, esfregando as mãos e exclamando, enquanto se aproximava:

— Cynthia concordou em rodar alguns panfletos na sacristia, e faremos com que estejam distribuídos antes do almoço. E agora vamos cuidar do café da...

— Nós já comemos, obrigado — disse Rupert, apontando para trás com o polegar na direção da barraca, que agora jazia perfeitamente dobrada sobre a grama. E era verdade. Alguns vestígios de fumaça ainda se evolavam do fogo recém-apagado. Rupert havia pego uma caixa de cavacos na traseira da van e com rapidez surpreendente fizera crepitar uma admirável fogueira de acampamento. A seguir, pegara uma cafeteira, um filão de pão e um par de gravetos apontados para fazer torradas. Nialla conseguira até encontrar um pote de marmelada escocesa na bagagem.

— Têm certeza? — perguntou o vigário. — Cynthia mandou dizer que se...

— Certeza absoluta — disse Rupert. — Estamos acostumados a...

— Improvisar — disse Nialla.

— Bem, então — disse o vigário — vamos entrar?

Ele nos conduziu através do gramado até o salão paroquial, e quando tirou um molho de chaves me virei para olhar através do pátio para o antigo pórtico. Se alguém tivesse estado lá, já teria fugido às pressas. Um cemitério enevoado oferece um número infinito de lugares para se esconder. Alguém bem que poderia ficar agachado atrás de uma lápide a menos de três metros de distância, e você jamais saberia. Com uma última e apreensiva olhada nos fragmentos da neblina que se dissipava, me virei e entrei.


— Bem, Flavia, o que você acha?

Fiquei sem fôlego. O que ontem tinha sido um palco vazio era agora um primoroso teatrinho de marionetes, do tipo que poderia ter sido transportado por artes mágicas da noite para o dia da Salzburg do século XVIII.

A boca de cena, que calculei entre um metro e meio e dois de largura, estava coberta por um conjunto de cortinas de veludo vermelho, ricamente enfeitadas com borlas douradas, com as máscaras da Comédia e da Tragédia bordadas.

Rupert desapareceu atrás do palco e, enquanto eu assistia com reverência, uma fileira de luzes na ribalta — vermelhas, verdes e âmbar — se acendeu pouco a pouco até que a metade inferior das cortinas se transformou em um rico arco-íris de veludo.

Ao meu lado, o vigário inspirou fundo enquanto elas se abriam devagar. Ele juntou as mãos, extasiado.

— O Reino Mágico — arfou.

Ali, diante dos nossos olhos, aninhado entre colinas verdejantes, havia um pitoresco chalé campestre, o telhado de palha e a fachada com vigas de madeira aparentes, completo em todos os detalhes, do banco de madeira embaixo da janela até as pequeninas rosas de papel de seda no jardim da frente.

Por um momento, desejei viver ali: poder me encolher e me arrastar para dentro daquele pequeno mundo perfeito em que cada objeto parecia brilhar como se estivesse iluminado por dentro. Uma vez acomodada no chalé, eu montaria um laboratório químico atrás das pequeninas janelas separadas por mainéis e...

O encanto foi quebrado pelo som de alguma coisa caindo e por um áspero “Raios!” em algum lugar no céu pintado de azul.

— Nialla! — soou a voz de Rupert atrás das cortinas. — Onde está aquele gancho da bruzundanga?

— Desculpe, Rupert — ela gritou, e notei que não teve pressa em responder. — Ainda deve estar na van. Você ia mandar soldar, lembra?

E voltando-se para mim explicou:

— É a coisa que segura o gigante em pé. Mas, por outro lado — acrescentou, sorrindo —, não devemos revelar segredos demais. Tira todo o mistério das coisas, não acha?

Antes que eu pudesse responder, a porta no fundo do salão paroquial se abriu, e apareceu a silhueta de uma mulher contra a luz do sol. Era Cynthia, a mulher do vigário.

Ela não fez menção de entrar, apenas ficou lá, aguardando que o vigário fosse correndo até ela, coisa que ele fez prontamente. Enquanto esperava por ele, ela virou o rosto para a luz exterior, e mesmo de onde eu estava pude distinguir claramente seus frios olhos azuis.

Sua boca era franzida como se os lábios tivessem sido firmemente fechados por cadarços, e seu escasso cabelo loiro-acinzentado estava esticado, dolorosamente ao que parecia, para formar um coque oval na nuca, acima de um pescoço excepcionalmente longo. Com sua blusa de tafetá bege, saia cor de mogno e sapatos Oxford marrons, ela se parecia muito com um velho relógio de pêndulo ao qual tinham dado corda demais.

Sem falar na bela surra que ela me dera, era difícil identificar precisamente o que me causava aversão em Cynthia Richardson. Segundo o que se dizia, ela era uma santa, uma lutadora, um raio de esperança para os doentes e um conforto para os desvalidos. Suas boas obras eram legendárias em Bishop’s Lacey.

Contudo...

Havia alguma coisa em sua postura que simplesmente não soava verdadeira: uma negligência detestável, uma espécie de derrotismo hesitante e esgotado, que se podia ver na face e no corpo das vítimas dos ataques alemães em edições do tempo da guerra, na Picture Post. Mas na mulher de um vigário...?

Tudo isso passou pela minha cabeça enquanto ela conversava aos sussurros com o marido. E então, com não mais que uma olhada rápida para dentro, ela se foi.

— Excelente — disse o vigário, abrindo um sorriso enquanto vinha lentamente na nossa direção. — Os Ingleby, ao que parece, retornaram a minha chamada.

Os Ingleby, Gordon e Grace, eram donos da Fazenda Culverhouse, uma colcha de retalhos de diversas plantações e bosques antigos que ficava a noroeste de São Tancredo.

— Gordon gentilmente ofereceu um lugar para vocês armarem a sua barraca na baixada do Campo Jubileu, um local adorável. Fica à margem do rio, não é muito longe daqui. Dá para vir a pé, na verdade. Vocês terão ovos frescos à vontade, a sombra de salgueiros incomparáveis e a companhia de martins-pescadores.

— Parece perfeito — disse Nialla. — Um pedacinho do paraíso.

— Cynthia me disse que a sra. Archer também telefonou. As novidades nessa frente já não são tão alegres, infelizmente. Bert viajou a Cowley, para um curso na fábrica Morris, e só voltará amanhã à noite. A sua van tem alguma condição de andar?

Pela expressão preocupada do vigário, eu sabia que ele estava tendo visões de uma van identificada com um “Marionetes de Porson” estacionada na porta de sua igreja no domingo de manhã.

— Só um ou dois quilômetros não devem ser problema — disse Rupert, aparecendo de repente ao lado do palco. — Ela vai andar melhor agora que está descarregada, e eu posso ir dando um trato no afogador.

Uma sombra perpassou pela minha mente, mas não dei atenção.

— Esplêndido — disse o vigário. — Flavia, querida, será que você não se importaria de acompanhá-los no trajeto? Você poderia ensinar-lhes o caminho.


NATURALMENTE, TIVEMOS DE DAR A VOLTA pelo caminho mais longo.

Se tivéssemos ido a pé, não teria sido mais que um passeio à sombra, atravessando as alpondras atrás da igreja, seguindo pela margem do rio pelo velho caminho de sirgagem que marcava o limite meridional da Fazenda Malplaquet, e por cima da cerca pela escada para o Campo Jubileu.

Mas pela estrada, como não havia ponte por perto, a Fazenda Culverhouse só podia ser alcançada seguindo para oeste em direção a Hinley, depois um quilômetro e meio a oeste de Bishop’s Lacey, pegando o desvio e subindo tortuosamente o íngreme lado oeste da Colina Gibbet por uma estrada cuja poeira se levantava agora atrás de nós em nuvens brancas. Estávamos a meio caminho do topo, contornando o Bosque Gibbet por uma vereda tão estreita que as sebes arranhavam as laterais da van sacolejante.

— Não se preocupe com o osso do meu quadril — disse Nialla, rindo.

Íamos tão apertados no banco da frente quanto minhocas na lata de um pescador. Com Rupert dirigindo, Nialla e eu estávamos quase sentadas no colo uma da outra, cada qual com um braço por cima do ombro da outra.

O escapamento da Austin explodia violentamente enquanto Rupert, seguindo alguma fórmula ancestral e secreta que só ele conhecia, ficava mexendo alternadamente com o afogador e o acelerador manual.

— Esses tais de Ingleby — gritou ele por cima da sequência incessante de explosões —, conte-nos alguma coisa sobre eles.

Os Ingleby eram pessoas um tanto taciturnas que passavam a maior parte do tempo fechadas em si mesmas. De vez em quando eu via Gordon Ingleby deixando Grace, sua mulher pequenina que parecia uma boneca, no mercado da aldeia onde, sempre de preto, vendia ovos e manteiga com pouco entusiasmo embaixo de um toldo listrado. Eu sabia, como todo mundo em Bishop’s Lacey, que o isolamento dos Ingleby começara com a morte trágica de seu único filho, Robin. Antes disso, eles eram pessoas amistosas e expansivas, mas desde então se voltaram para dentro. Embora tivessem se passado cinco anos, a aldeia ainda lhes permitia viver o seu pesar.

— Eles lavram a terra — eu disse.

— Ah! — disse Rupert, como se eu tivesse acabado de desfiar a história completa da família Ingleby desde o tempo de Guilherme, o Conquistador.

A van pinoteava e sacudia enquanto subíamos ainda mais alto, e Nialla e eu tivemos de nos apoiar com as mãos no painel para não bater com a cabeça uma na outra.

— Lugar sombrio este — disse ela, indicando com a cabeça a mata densa à esquerda. Até as raras manchas de luz solar que conseguiam penetrar a folhagem densa pareciam ser engolidas pelo mundo obscuro daqueles troncos ancestrais.

— Chama-se Bosque Gibbet — eu disse. — Antigamente havia uma aldeia aqui perto chamada Colina de Wapp, até por volta do século XVIII, acho, mas agora não resta mais nada dela. O patíbulo ficava na velha encruzilhada, no meio do bosque. Se você subir por aquele caminho, ainda dá para ver o madeiramento. Mas está tudo bem apodrecido.

— Argh — disse Nialla. — Não, obrigada.

Achei melhor, ao menos por enquanto, não contar a ela que fora na encruzilhada do Bosque Gibbet que Robin Ingleby tinha sido encontrado pendurado.

— Meu bom Deus! — disse Rupert. — Que diabo é aquilo?

Ele apontou para alguma coisa pendurada em um galho de árvore — alguma coisa oscilando com a brisa da manhã.

— Meg a Louca esteve aqui — eu disse. — Ela recolhe latas vazias e outros refugos e amarra em cordões. Gosta de coisas brilhantes. Ela é como uma gralha-do-campo.

Um prato de torta, uma lata enferrujada de extrato de carne Bovril, um pedaço prateado de uma carcaça de radiador e uma colher de sopa torta se contorciam lentamente de um lado para o outro sob o sol, como uma grotesca isca gótica de pescador.

Rupert sacudiu a cabeça e voltou a atenção para o afogador e o acelerador manual. Quando chegamos ao pico da Colina Gibbet, o motor emitiu um “bum” muito assustador e, com um gorgolejo succionante, morreu de vez. A van parou com um tranco, e Rupert puxou o freio de mão.

Pelas rugas profundas em seu rosto, notei que ele estava à beira da exaustão. Ele bateu com os punhos no volante.

— Não diga o que está pensando — disse Nialla. — Temos companhia.

Pensei por um momento que ela se referia a mim, mas seu dedo apontava através do para-brisa para o lado do caminho, onde um rosto escuro e encardido nos espiava de dentro de uma sebe.

— É Meg, a Louca — eu disse. — Ela mora em algum lugar por aqui. Em algum lugar no bosque.

Quando Meg veio correndo para o lado da van, senti Nialla se encolhendo para trás.

— Não se preocupem, ela é totalmente inofensiva.

Meg, com uma roupa maltrapilha de bombazina preto-ferrugem, parecia um abutre que havia sido sugado por um tornado e depois cuspido para fora. Uma cereja de vidro vermelho pendurada em um arame bamboleava alegremente em seu chapéu preto de vaso de flores.

— Sim, inofensiva — disse Meg, toda sociável, junto à janela aberta. — “Portanto, sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas.” Olá, Flavia.

— Meg, estes são amigos meus, Rupert e Nialla.

Considerando o fato de estarmos todos espremidos lado a lado na Austin, achei que não faria mal chamar Rupert pelo seu nome de batismo.

Meg ficou algum tempo encarando Nialla calmamente. Estendeu um dedo encardido e tocou o batom de Nialla. Nialla encolheu-se um pouco, mas disfarçou muito bem com um pequeno espirro fingido.

— É Tangee — disse ela vivamente. — Vermelho teatral. Muda de cor quando você o aplica. Veja, experimente você mesma.

Foi uma atuação magnífica, e tive de dar a ela nota máxima pelo modo como ocultou o medo de um jeito aberto e jovial.

Tive de me afastar um pouco para que Nialla pudesse procurar o batom no bolso. Quando ela o estendeu, os dedos encardidos de Meg arrancaram-lhe o tubo dourado da mão. Sem tirar os olhos do rosto de Nialla, Meg pintou uma larga faixa com aquilo em seus lábios sujos e rachados, apertando-os como se estivesse bebendo de um canudinho.

— Encantador! — disse Nialla. — Deslumbrante!

Ela enfiou a mão no bolso outra vez e tirou de lá um estojo esmaltado de pó compacto, uma coisa requintada em forma de borboleta, de esmalte cor de laranja cloasonado. Ela o abriu com um movimento rápido para revelar o espelhinho redondo na tampa e, depois de uma olhadela em si mesma, entregou-o a Meg.

— Aqui, dê uma olhada.

Num ápice, Meg agarrou o pó compacto e ficou se escrutinando no espelho, virando a cabeça animadamente para um lado e para o outro. Satisfeita com o que viu, ela nos recompensou com um sorriso largo que revelou as falhas pretas deixadas por diversos dentes caídos.

— Adorável! — murmurou ela. — Maravilhoso! — E enfiou a borboleta cor de laranja no bolso.

— Ei! — Rupert tentou arrebatá-la de volta, e Meg recuou, perplexa, como se tivesse reparado nele pela primeira vez. Seu sorriso sumiu tão subitamente como aparecera.

— Eu o conheço — disse ela, sombria, os olhos fixos no cavanhaque dele. — Você é o Diabo, é o que você é. Sim, foi o que aconteceu. O Diabo voltou ao Bosque Gibbet.

E ao dizer isso ela foi recuando para dentro da sebe e desapareceu.

Rupert saltou desajeitadamente da van e bateu a porta.

— Rupert... — chamou Nialla.

Mas em vez de entrar no meio dos arbustos atrás de Meg, como imaginei que ele faria, Rupert caminhou uns poucos metros acima, olhou em volta e depois retornou lentamente, os pés agitando a poeira.

— É só uma ladeira suave, e estamos apenas a uma pequena distância do topo — relatou ele. — Se pudermos empurrá-la até aquela velha castanheira, poderemos descer em ponto morto pelo outro lado. Talvez eu até consiga fazê-la funcionar de novo Quer dirigir, Flavia?

Embora eu tivesse passado horas sentada no velho Phantom II de Harriet na nossa estrebaria, aquilo sempre foi para propósitos de reflexão ou fuga. Na verdade, eu nunca estivera no comando de um automóvel em movimento. Ainda que de início a ideia tivesse lá seus atrativos, logo me dei conta de que eu não tinha nenhuma vontade de me ver descendo em disparada o lado leste da Colina Gibbet para dar de cara com o desastre em meio à paisagem.

— Não — eu disse. — Talvez Nialla...

— Nialla não gosta de dirigir — disparou ele.

Percebi imediatamente que eu tinha dado um fora, por assim dizer. Ao sugerir que Nialla dirigisse, eu também acabara sugerindo que Rupert levantasse o traseiro e empurrasse — com sua perna atrofiada e tudo.

— O que eu quis dizer — tentei explicar — foi que você provavelmente é o único de nós capaz de fazer o motor pegar de novo.

Era o truque mais antigo de todos: apelar para a vaidade varonil, e fiquei orgulhosa de ter pensado nisso.

— Certo — disse ele, subindo de volta com esforço para o banco do motorista.

Nialla saltou para fora, e eu a segui. Quaisquer pensamentos que eu pudesse ter tido sobre a conveniência de uma pessoa no estado dela empurrar uma van colina acima em um dia quente foram imediatamente postos de lado. Além disso, eu dificilmente poderia trazer a questão à baila.

Como um raio, Nialla já tinha ido para trás da van e estava pressionando as costas contra as portas traseiras e usando suas poderosas pernas para empurrar.

— Solte o maldito freio de mão, Rupert! — gritou ela.

Tomei posição ao lado dela e, até com a última gota de energia que havia em mim, cravei os pés no chão e empurrei.

Maravilha das maravilhas, aquela coisa estúpida começou a se mover. Talvez porque a parafernália das marionetes tivesse sido descarregada no salão paroquial, a van, com o peso consideravelmente aliviado, logo estava se arrastando, como uma lesma, porém, inexoravelmente, para cima em direção ao pico da colina. Depois que a pusemos em movimento, nos viramos e passamos a empurrar com as mãos.

A van chegou a parar completamente apenas uma vez, e foi quando Rupert engatou a marcha e ligou a ignição. Uma tremenda explosão saiu do escapamento, e mesmo sem olhar para baixo eu soube que teria de explicar ao pai a destruição de mais um par de meias brancas.

— Não deixe a marcha engatada agora, espere até chegarmos ao topo! — gritou Nialla.

— Homens! — ela murmurou para mim. — Homens e seus malditos barulhos de escapamento.


Dez minutos depois estávamos no cume da Colina Gibbet. À distância, o Campo Jubileu declinava em direção ao rio, um lençol ondulante de linho de uma intensidade azul-elétrica que poderia ter feito Van Gogh chorar.

— Mais um bom empurrão — disse Nialla — e estaremos a caminho.

Gememos e grunhimos, empurrando e fazendo força contra o metal quente, e então, de repente, como se tivesse ficado sem peso, a van começou a se mover sozinha. Estávamos do lado descendente da colina.

— Depressa! Pule para dentro! — disse Nialla, e saímos correndo ao lado da van enquanto ela ganhava velocidade, aos trancos e barrancos, pela estrada irregular.

Subimos no estribo, e Nialla abriu a porta. Um momento depois, desabamos abraçadas no assento, enquanto Rupert manipulava os controles do motor. Na metade da descida, quando o motor finalmente pegou, a van soltou um estampido alarmante antes de se estabilizar em tossidelas não muito saudáveis. No sopé da colina, Rupert pisou de leve no freio, e desviamos harmoniosamente para um caminho que levava à Fazenda Culverhouse.


Superaquecida devido a tantos esforços, a Austin parou, cuspindo e fumegando como uma chaleira furada no pátio da fazenda, que dava a impressão de estar abandonado. Pela minha experiência, toda vez que você chega a uma fazenda, alguém sai de um celeiro para recebê-lo, limpando as mãos sujas de graxa em um trapo e gritando para que uma mulher com uma cesta de ovos asse algumas broas e ponha a água do chá para ferver. No mínimo, deveria haver um cachorro latindo.

Embora não houvesse porcos à vista, um chiqueiro deteriorado pelo tempo, no fim de uma fileira de telheiros dilapidados, estava repleto de urtigas altas. Além daquilo, havia um pombal em forma de torre. Diversos baldes de leite, todos enferrujados, jaziam espalhados pelo pátio, e uma galinha solitária ciscava desanimada por entre as ervas daninhas, olhando-nos com seu desconfiado olho amarelo.

Rupert saltou da van e bateu a porta com força.

— Olá! — gritou. — Tem alguém por aqui?

Não houve resposta. Ele continuou caminhando para além de um cepo maltratado até a porta dos fundos da casa e deu nela uma pancada ensurdecedora com o punho fechado.

— Olá! Alguém em casa?

Juntou as mãos em concha para espiar através da janela encardida de um recinto que outrora devia ter sido a despensa, depois sinalizou para sairmos da van.

— Estranho — sussurrou. — Há alguém de pé no meio da sala. Posso ver a silhueta da pessoa contra a janela oposta.

Deu mais umas duas batidas fortes na porta.

— Sr. Ingleby — eu gritei —, sr. Ingleby, sou eu, Flavia de Luce. Trouxe as pessoas da igreja.

Houve um prolongado silêncio, e depois ouvimos o ruído de botas pesadas sobre um chão de madeira. A porta se abriu rangendo para um interior escuro, e um homem alto e loiro, de macacão, apareceu piscando na luz.

Eu nunca o vira na minha vida.

— Sou Flavia de Luce — eu disse —, de Buckshaw. — Acenei com a mão vagamente naquela direção, a sudoeste. — O vigário me pediu para mostrar o caminho para a Fazenda Culverhouse a estas pessoas.

O homem loiro deu um passo para fora, curvando-se consideravelmente a fim de passar pela porta baixa sem bater a cabeça. Ele era o que Felinha poderia ter descrito como “indecentemente bonito”: um altaneiro deus nórdico. Quando aquele Siegfried de cabelo claro se voltou para fechar a porta com cuidado atrás de si, vi que havia um grande círculo vermelho desbotado pintado nas costas de seu macacão.

Isso significava que ele fora prisioneiro de guerra.

Minha cabeça voou instantaneamente para o cepo e o machado que não estava lá. Teria ele picado os Ingleby em pedaços e empilhado seus membros como lenha atrás do fogão da cozinha?

Que pensamento mais ridículo. A guerra acabara havia cinco anos, e eu tinha visto os Ingleby, ou pelo menos Grace, recentemente, na semana passada.

Além disso, eu já sabia que os prisioneiros de guerra alemães não eram particularmente perigosos. Os primeiros que eu tinha visto foram na minha primeira visita a um cinema, o Palace, em Hinley. Quando os prisioneiros de casacos azuis foram forçados a marchar para dentro do cinema e sentaram, Dafi me cutucou com o cotovelo e apontou.

“O inimigo!”, sussurrou ela.

Quando as luzes se apagaram e o filme começou, Felinha se inclinou para mim e disse: “Pense nisto, você vai ficar sentada com eles no escuro por duas horas. Sozinha... se Dafi e eu formos comprar balas”.

O filme era Nosso barco, nossa alma, e eu não pude deixar de notar que, quando o HMS Torrin foi afundado no Mediterrâneo pelos bombardeiros de mergulho da Luftwaffe, embora os prisioneiros não tivessem aplaudido o feito abertamente, houve sorrisos entre eles.

“Os alemães capturados não devem ser tratados de modo inumano”, nos dissera o pai quando chegamos em casa, citando algo que ele ouvira no rádio, “mas é preciso mostrar a eles muito claramente que os encaramos, oficiais e homens, como proscritos da sociedade dos homens decentes.”

Embora eu respeitasse a palavra do pai, ao menos por princípio, era evidente que o homem que nos recebera na Fazenda Culverhouse não era nenhum proscrito; nem por nenhum esforço de imaginação.

Cinco anos após a chegada da paz, ele só podia estar usando o seu macacão com um alvo nas costas por orgulho.

— Posso me apresentar? Sou Dieter Schrantz — disse com um sorriso largo, apertando a mão de cada um de nós, começando por Nialla. Bastaram aquelas poucas palavras para eu ver que ele falava um inglês quase perfeito. Ele até pronunciou seu nome do modo como qualquer britânico teria feito, com “rs” e “as” duros e nenhum rosnido desagradável no sobrenome.

— O vigário disse que vocês viriam.

— A maldita van enguiçou — disse Rupert com um movimento brusco de cabeça na direção da Austin, e vi um certo tom de agressividade. Como se ele...

Dieter abriu um sorriso.

— Não se preocupe. Vou ajudá-lo a empurrar lá para baixo, até o Campo Jubileu. É lá que você vai se aboletar, você sabe, meu velho.

Meu velho? Dieter obviamente já estava na Inglaterra havia um bom tempo.

— A sra. Ingleby está? — perguntei. Achei que talvez fosse melhor Nialla ser levada a uma excursão pelas acomodações da casa, por assim dizer, antes que ela tivesse de pedir.

A sombra de uma nuvem perpassou a face de Dieter.

— Gordon foi para algum lugar no bosque — disse ele, fazendo um gesto para a Colina Gibbet. — Ele gosta de trabalhar sozinho a maior parte do tempo. Vai descer mais tarde para ajudar Sally na campina. Deveremos vê-los quando levarmos o seu carro até o rio.

“Sally” era Sally Straw, integrante do Exército Feminino da Terra, ou “Meninas da Terra”, como eram chamadas, e havia começado a trabalhar na Fazenda Culverhouse em algum momento durante a guerra.

— Está bem — eu disse. — Olá! Aqui estão Tick e Tock.

As duas gatas malhadas da sra. Ingleby saíram sem pressa nenhuma de um telheiro, bocejando e se espreguiçando ao sol. Ela costumava levá-las ao mercado para lhe fazer companhia, como fazia com várias de suas criaturas da fazenda, inclusive, de vez em quando, a sua gansa de estimação, Matilda.

“Tick”, ela me informou uma vez quando perguntei o nome delas, “é porque ela tem tiques. E Tock porque tagarela como uma gralha-do-campo.”

Tock vinha andando direto na minha direção, já bem adiantada em uma conversa miante. Tick, nesse meio-tempo, afastou-se vagarosamente em direção ao pombal, que se erguia sombrio atrás do aglomerado de telheiros decadentes e cobertos de mato.

— Vão indo na frente — eu disse. — Desço para o campo em alguns minutos.

Peguei Tock nos braços.

— Então, quem é a gatinha mais bonita? — arrulhei, observando com o rabo do olho para ver se alguém se deixava enganar. Vi que a gata não caiu nessa: ela começou a se contorcer imediatamente.

Mas Rupert e Nialla já estavam se espremendo dentro da van, que ainda sacudia sozinha no pátio. Dieter deu um empurrão, subiu no estribo, e um momento depois, com um aceno, eles estavam sacolejando para fora do pátio e entrando no caminho que levava ao declive para o Campo Jubileu e o rio. Uma pequena explosão a meia distância confirmou a partida deles.

No momento em que desapareceram de vista, pus Tock de volta no chão, no pátio poeirento.

— Onde está Tick? — eu disse. — Vá procurá-la.

Tock retomou seu longo monólogo felino e seguiu toda pomposa em direção ao pombal.

Nem é preciso dizer que fui atrás.


O POMBAL ERA UMA OBRA DE ARTE. Não havia maneira melhor de definir, e eu não teria ficado nem um pouco surpresa se ouvisse que o patrimônio histórico nacional estava de olho nele para tombá-lo.

Foi daquele notável espécime de arquitetura que a Fazenda Culverhouse havia tirado seu nome, pois “culverhouse” é uma palavra antiga para pombal. Este era uma torre alta e redonda de tijolos muito antigos, cada qual em uma tonalidade diferente de rosa desbotado, e não havia dois iguais. Construído no tempo da rainha Anne, fora outrora usado para criar e cruzar pombos para a mesa de jantar da fazenda. Naquela época, as pernas dos pombinhos novos eram arrancadas para mantê-los engordando no ninho (esse fato foi inferido da tagarelice de cozinha da sra. Mullet). Mas os tempos haviam mudado. Gordon Ingleby era um ávido columbófilo, e as aves deste século que viveram na torre eram mais provavelmente aquecidas com as mãos do que em água fervente. Nos fins de semana, ele as enviava de trem para algum pontinho insignificante no mapa da Inglaterra, onde elas eram soltas para ir voando imediatamente de volta para a Fazenda Culverhouse. Ali, eram acolhidas com o desligamento ruidoso de elaborados cronoscópios mecânicos, muitos mimos e elogios, e grande fartura de grãos para aves.

Pelo menos assim foi até o pequeno Robin Ingleby ser encontrado pendurado pelo pescoço na forca apodrecida do Bosque Gibbet. Desde aquele dia, a não ser por uns poucos espécimes selvagens, não houve mais pombos na Fazenda Culverhouse.

O pobre Robin, quando morreu, tinha a mesma idade que eu, e achei difícil de acreditar que alguém tão jovem pudesse realmente estar morto. Mas, ainda assim, era um fato.

Quando se vive em uma aldeia, quanto mais as coisas são abafadas, mais se ouve dizer, e eu me lembrava da onda de mexericos que varrera Bishop’s Lacey na época, lambendo a aldeia como a maré lambe o madeiramento embaixo de um atracadouro.

“Estão dizendo que o jovem Robin Ingleby foi lá e se matou.” “Robin Ingleby foi morto pelos pais.” “O rapazinho foi assassinado por satanistas. Ouça o que eu estou lhe dizendo...”

A maior parte dessas teorias vazou para mim pela sra. Mullet, e eu estava pensando nelas agora, ao me aproximar da torre, olhando para cima maravilhada com sua miríade de aberturas.

Como o monge chamado de explanador fazia nos monastérios da Idade Média, Dafi com frequência lia em voz alta para nós enquanto fazíamos nossas refeições. Recentemente nos foi servida a descrição de Henry Savage Landor, em que os persas colocavam cadáveres sentados com um pedaço de pau embaixo do queixo para mantê-los eretos. Quando os corvos chegavam para disputar o corpo, considerava-se uma passagem para o paraíso se o olho direito fosse o primeiro a ser consumido. Se fosse o esquerdo, não era assim tão auspicioso.

Não pude deixar de pensar nisso agora, e na descrição do autor das curiosas torres de pombos da Pérsia, cada qual com um fundo poço central para coleta de guano, cuja produção era o único motivo para manter as aves.

Poderia haver, me perguntei, alguma estranha conexão entre torres, aves, morte e deterioração? Quando parei lá por um instante, tentando pensar qual poderia ser ela, um som peculiar veio flutuando da torre.

De início pensei que poderiam ser os murmúrios e arrulhos de pombos entre eles, lá no alto do pombal. Ou seria o vento?

Parecia prolongado demais para ser alguma dessas coisas, subia e descia como o som de uma fantasmagórica sirene de ataque aéreo, quase no limite da audição.

A porta de madeira desconjuntada estava entreaberta, e descobri que eu podia me esgueirar facilmente para dentro do centro oco da torre. Tock passou roçando pelos meus tornozelos, depois desapareceu nas sombras à procura de camundongos.

A forte fedentina do lugar me esbofeteou o rosto: o inconfundível cheiro químico do guano de pombo, que o grande Humphry Davy descobrira que produzia, por destilação, carbonato de amônia, com um resíduo de carbonato de cálcio e sal comum — descoberta que eu certa vez verificara por experimento no meu laboratório químico em Buckshaw.

Muito acima da minha cabeça, incontáveis raios de sol oblíquos entrando através das aberturas salpicavam as paredes curvas com pontos de luz amarela. Era como se eu tivesse entrado na peneira em que algum gigante passara os ossos de sua sopa. Aqui dentro, o som lamentoso era ainda mais alto, um turbilhão de ruídos amplificados pelas paredes circulares, das quais eu era o próprio centro. Eu não poderia ter gritado, mesmo se me atrevesse.

No centro da sala, em volta de um antigo pilar de madeira, havia um tablado móvel, algo como uma escada de biblioteca, que outrora devia ter sido usado pelos criadores para ter acesso às pequenas aves condenadas.

A coisa rangeu assustadoramente quando pisei nela.

Subi, centímetro por centímetro, agarrando-me pela minha vida, esticando braços e pernas para dar passos gigantes impossíveis de uma trave rangedora para a seguinte. Olhei para baixo só uma vez, e aquilo fez minha cabeça girar.

Quanto mais eu subia, mais alto ficava o som lamuriento, seus ecos agora chegando juntos em um coro de vozes que pareciam se congregar em algum tipo de lamento gritante e selvagem.

Acima de mim e à esquerda, havia uma abertura em arco que dava para um nicho maior do que os outros. Ficando na ponta dos pés e me segurando na borda de tijolos com a ponta dos dedos, fui capaz de me içar até meus olhos ficarem no mesmo nível do piso daquela gruta.

Lá dentro, havia uma mulher ajoelhada, de costas para mim. Ela estava cantando. Sua voz aguda ecoava nos tijolos e turbilhonava em volta da minha cabeça:

 

O passarinho flutuou

E com os ventos oscilou;

Em doce canção se embalou,

Feliz no balanço sonhou

Na embarcação que o acalentou.

 

Era a sra. Ingleby!

Na frente dela, em uma caixa tombada, ardia uma vela, acrescentando seu odor fumacento ao calor sufocante da pequena caverna de tijolos. A sua direita estava encostada a fotografia em preto e branco de uma criança: seu filho morto, Robin (que é um nome de passarinho), sorria alegremente para a câmera, o cabelo loiro alvejado quase ao branco pelo sol de longos dias de verão. A sua esquerda, tombado de lado como se tivesse sido arrastado para a praia para que o livrassem das cracas, havia um veleiro de brinquedo.

Prendi a respiração. Seria bom ela não ver que eu estava ali. Eu desceria de novo bem devagar e...

Minhas pernas começaram a tremer. Eu já não conseguia me segurar com muita firmeza, e minhas solas de couro estavam escorregando na estrutura de madeira envelhecida. Quando comecei a descer, deslizando, a sra. Ingleby deu início a mais um lamento, a uma outra canção, e, estranhamente, sua voz era outra: um gorgolejar áspero, fanfarrão, de pirata:

 

Então foi-se o valente passarinho,

Mas seu coração está bem vivinho,

A ele bebamos três vezes vinho!

 

E deixou escapar uma horrível gargalhada fanhosa.

Icei-me de novo na ponta dos pés, bem a tempo de vê-la torcer a rolha de uma garrafa alta e transparente e tomar um rápido e vacilante gole. Me pareceu ser gim, e era fácil ver que ela estava fazendo aquilo havia algum tempo.

Com um prolongado e trêmulo suspiro, enfiou a garrafa de volta, embaixo de um monte de palha, e acendeu uma vela nova na chama minguante da que estava morrendo. Grudou-a com pingos de cera ao lado de sua companheira esgotada.

E agora começava mais uma canção, esta em um tom menor, mais sombrio; cantava mais devagar, mais como um canto fúnebre, pronunciando cada palavra com uma clareza terrível, exagerada:

 

Passarinho mau, que quer ceia tão meiga,

Seu desjejum terá com corda e manteiga,

Convidando os seus amigos que aproveitam

E com tais feitos sinistros se deleitam.

 

Corda e manteiga? Feitos sinistros?

De repente me dei conta de que meu cabelo estava totalmente eriçado, como quando Felinha esfregou seu pente preto de ebonite no suéter de caxemira e aproximou-o da minha nuca. Mas enquanto eu ainda tentava calcular quão rápido eu poderia me arrastar de volta para baixo pela estrutura de madeira e sair correndo, a mulher falou:

— Suba, Flavia. Suba e junte-se a mim no meu pequeno réquiem.

Réquiem?, pensei. Será que eu realmente quero me arrastar para dentro de uma cela de tijolos para ficar com uma mulher que, na melhor das hipóteses, está mais do que um pouco embriagada e que, na pior, é uma maníaca homicida?

Me ergui até a penumbra.

Quando meus olhos se acostumaram à luz da vela, vi que ela usava uma blusa de algodão branco com mangas curtas bufantes e um decote baixo de camponesa. Com seu cabelo negro como penas de corvo e a saia tirolesa de cores vivas, ela facilmente poderia ser confundida com uma cigana cartomante.

— Robin se foi — disse ela.

Aquelas três palavras quase partiram meu coração. Como todo mundo em Bishop’s Lacey, eu sempre pensara que Grace Ingleby vivia em seu próprio mundo privado e isolado: um mundo onde Robin ainda brincava no pátio poeirento, perseguindo galinhas alvoroçadas de cerca a cerca, invadindo a cozinha de vez em quando para implorar por um doce.

Mas não era verdade: ela ficava, como eu, atrás da pequena lápide no pátio da igreja de São Tancredo e lia a inscrição simples: Robin Tennyson Ingleby, 1939-1945. Está dormindo com o Cordeiro.

— Robin se foi — disse ela de novo, agora quase como um gemido.

— Sim — eu disse. — Eu sei.

Partículas de pó flutuavam como pequenos mundos nos traços de lápis de uma luz solar que penetrava a obscuridade da câmara. Me sentei na palha.

Quando fiz isso, um pombo se ergueu ruidosamente de seu ninho e saiu através da pequena janela em arco. Meu coração quase parou. Eu pensava que os pombos tinham partido havia muito, e quase sentei em cima daquele bicho bobo.


Então foi-se o valente passarinho,

Mas seu coração está bem vivinho,

A ele bebamos três vezes vinho!

 


— Eu o levei para perto da praia — prosseguiu Grace, acariciando o pequeno veleiro, ignorando a ave. — Robin adorava a praia, você sabe.

Juntei os joelhos embaixo do queixo e os envolvi com os braços.

— Ele brincava na areia. Estava construindo um castelo de areia.

Houve um longo silêncio, e vi que seus pensamentos foram levados para algum lugar.

— Vocês tomaram sorvete? — perguntei, como se fosse a pergunta mais importante do mundo. Não consegui pensar em mais nada.

— Sorvete? — Ela assentiu com a cabeça. — Eles nos deram em copinhos de papel... pequenos copos de papel pontudos. Nós queríamos de baunilha... nós dois adorávamos baunilha, Robin e eu. É engraçado, mas...

Ela suspirou.

— Quando nós comíamos, tinha gosto de chocolate... como se eles não tivessem lavado a colher direito.

Balancei a cabeça sabiamente.

— Às vezes isso acontece — eu disse.

Ela estendeu a mão e tocou no veleiro de novo, passando os dedos sobre seu casco liso e pintado. E então soprou a vela.

Ficamos sentadas um instante em silêncio, entre os salpicos de luz do sol que se infiltravam na caverna de tijolos vermelhos. O útero devia ser assim, pensei. Quente. Esperando alguma coisa acontecer.

— Por que você está aqui? — ela perguntou por fim. Notei que não arrastava as palavras como antes.

— O vigário mandou algumas pessoas para acampar no Campo Jubileu. Ele me pediu para mostrar o caminho.

Ela segurou meu braço.

— Gordon sabe? — perguntou ela.

— Acho que sim — respondi. — Ele disse ao vigário que não haveria problemas se eles acampassem no fim do caminho.

— No fim do caminho. — Ela soltou um longo e lento suspiro. — Sim, não haveria problemas, não é?

— É um espetáculo itinerante de marionetes — eu disse. — As Marionetes de Porson. Eles vão fazer uma apresentação no sábado. Foi o vigário que pediu. A van deles enguiçou, entende, e...

Fui dominada por uma súbita inspiração.

— Por que vocês não vão? — perguntei. — Todos da aldeia estarão lá. Vocês podem sentar comigo e...

A sra. Ingleby olhava para mim, horrorizada.

— Não! — disse ela. — Não! Eu não posso fazer isso.

— Talvez você e o sr. Ingleby possam ir e...

— Não!

Ela se pôs de pé com esforço, levantando uma grossa nuvem de resíduos, e por alguns momentos, enquanto aquilo remoinhava a nossa volta, ficamos perfeitamente quietas, como figuras de um globo de neve em um peso de papéis.

— É melhor você ir — ela disse de repente com voz rouca. — Por favor, vá embora já.

Sem mais uma palavra, saí tateando até a abertura, os olhos lacrimejando por causa da poeira. Com um esforço surpreendentemente pequeno, fui capaz de descer pela estrutura de madeira e começar o longo caminho para baixo.

Tenho de admitir que João e o pé de feijão passaram pela minha cabeça.


O pátio da fazenda estava deserto. Dieter descera para o rio com Rupert e Nialla, e a essa altura já deviam ter acampado. Se eu tivesse sorte, poderia chegar a tempo para uma xícara de chá. Me sentia como se tivesse passado a noite acordada.

Que horas seriam, afinal?

Que Deus me cegue com um garfo de peixe! O trem de tia Felicity era esperado às dez e cinco, e eu me esquecera completamente! O pai faria tiras elásticas com as minhas tripas.

Mesmo que tia Felicity já não estivesse bufando na plataforma e espumando pela boca, como diabos eu chegaria a Doddingsley? Eram uns bons dez quilômetros desde a fazenda Culverhouse, mesmo em linha reta como o voo de um corvo, e, até onde eu sabia, eu não estava prestes a criar asas.

Desci correndo o caminho, girando os braços como um moinho de vento, como se aquilo pudesse me impelir a uma velocidade maior. Felizmente era descida o tempo todo, e, quando cheguei lá embaixo, avistei a van de Rupert estacionada entre os salgueiros.

Dieter abrira o capô da Austin e estava fuçando em suas entranhas. Nialla pendurava uma camisa nos arbustos para secar. Gordon Ingleby não estava visível, nem Sally Straw.

— Primeira oportunidade que tive para aproveitar o velho sol — disse Nialla para mim. — Dieter está dando uma olhada no motor. Por que você demorou tanto?

— Que horas são? — perguntei numa súplica.

— Como é que eu vou saber? — respondeu ela. — Rupert é o único que tem um relógio, e ele foi para algum lugar.

Como ele sempre faz. Ela não pronunciou essas palavras, mas o significado foi tão claro como se as tivesse gritado de cima do Big Ben.

— Dieter? — perguntei.

Dieter sacudiu a cabeça.

— Sinto muito. Fiquei proibido de possuir um durante tanto tempo que...

— Com licença — interrompi —, mas tenho de esperar um trem.

Antes que eles pudessem responder, eu já disparava pelo caminho de sirgagem em velocidade máxima. Foi uma corrida fácil ao longo do velho aterro que margeava o limite meridional do Campo Jubileu, e, surpreendentemente, em poucos minutos eu estava pulando as alpondras para chegar ao pátio da igreja.

O relógio da torre da igreja marcava vinte para as quatro, o que era impossível: aquela coisa idiota provavelmente havia parado durante o reinado de Henrique VIII, e ninguém se dera ao trabalho de fazê-lo funcionar de novo.

Gladys, a minha confiável bicicleta BSA, estava exatamente onde eu a havia deixado, ao lado do salão paroquial. Parti a toda para Buckshaw.

Enquanto passava em disparada pela esquina de Spindle Lane, o relógio embutido na parede da Treze Patos mostrava que era ou meio-dia ou meia-noite. Receio ter deixado escapar uma palavra um tanto rude.

Saí da aldeia como o vento, em direção sudoeste, rumo a Buckshaw, até por fim chegar aos Portões Mulford, onde Clarence Mundy estava sentado esperando, encarapitado em cima de um dos para-lamas de seu táxi, tragando avidamente um cigarro. A julgar pela quantidade de pontas na rua, deu para perceber que não era o primeiro.

— Olá, Clarence — eu disse. — Que horas são?

— Dez horas — disse ele dando uma olhada para seu elaborado relógio de pulso militar. — Melhor embarcar.

Ele engatou a marcha quando subi, e partimos como um rojão.

Enquanto avançávamos através de caminhos e sebes, Clarence manipulava a alavanca de câmbio como se fosse um encantador de serpentes lidando com uma naja obstinada, agarrando sua cabeça a cada poucos segundos e empurrando-a para algum novo quadrante da bússola. Fora da janela, os campos passavam como um borrão verde cada vez acelerando mais, até eu sentir vontade de gritar “Iu-huuu!”, mas me controlei.

Durante a guerra, Clarence pilotara os enormes hidroplanos Sunderland, patrulhando sem cessar o vasto Atlântico à procura de submarinos alemães, e enquanto passávamos praticamente voando, espremidos entre as sebes, ele parecia ainda imaginar-se nos controles de um daqueles monstros. A qualquer momento, pensei, ele vai puxar o volante para trás, e decolaremos para os ares. Talvez, durante a nossa ascensão para o céu de verão, possamos até capturar um vislumbre de Harriet.

Antes de se casar com o pai, Harriet pilotara seu próprio Havilland Gipsy Moth, que ela batizara de Espírito Alegre, e eu às vezes a imaginava flutuando sozinha lá em cima à luz do sol, mergulhando e emergindo em vales túrgidos de cúmulos, sem dar satisfações a ninguém, exceto ao vento.

Clarence parou, derrapando numa ponta da plataforma da ferrovia de Doddingsley no momento em que o trem entrava fumegando na outra extremidade.

— Dez e cinco — ele disse, olhando de relance para o relógio. — Em ponto.

Como eu previa, a primeira passageira a descer do vagão foi tia Felicity. Apesar do calor, ela usava um casaco comprido de automobilista, de cor clara, e um grande capacete de cortiça colonial, amarrado embaixo do queixo com uma larga fita azul. Um sortimento de objetos se projetava de sua pessoa em todas as direções: alfinetes de chapéu, cabos de guarda-chuva, revistas enroladas, jornais, assentos portáteis e assim por diante. Ela parecia um ninho de pássaro com pernas ou então um monte de feno ambulante.

— Vá pegar minha bagagem, Clarence — disse ela —, e cuidado com o aligátor.

— Aligátor? — exclamou Clarence, e suas sobrancelhas se ergueram.

— A bolsa — disse tia Felicity. — É nova, da Harrods, e eu não quero vê-la arruinada por algum camponês desajeitado em uma plataforma ferroviária esquecida por Deus.

— Flavia — ela disse —, você pode carregar minha bolsa de água quente.


DOGGER NOS RECEBEU NA PORTA DA FRENTE. Ele pescou no bolso um porta-moedas de pano e ergueu as sobrancelhas para Clarence.

— Dois xelins — disse Clarence —, ida e volta, incluindo a espera.

Enquanto Dogger contava as moedas, tia Felicity inclinou-se para trás e correu os olhos pela fachada da casa.

— Chocante — disse. — Este lugar está se deteriorando cada vez mais, a olhos vistos.

Eu não achei que fosse meu papel contar a ela que quando se tratava de despesas o pai quase já não sabia o que fazer. A casa na verdade pertencera a Harriet, que morrera jovem, inesperadamente e sem se preocupar em fazer um testamento. Agora, por causa do que o pai chamava de “complicações”, parecia improvável que fôssemos capazes de continuar em Buckshaw por muito tempo.

— Leve as malas para o meu quarto, Dogger — disse tia Felicity, voltando o olhar para a terra —, e cuidado com o aligátor.

— Sim, srta. Felicity — disse Dogger, com um cesto de vime já embaixo de cada braço e uma mala em cada mão. — Harrods, ao que me parece.


— A tia Felicity chegou — eu disse, entrando na cozinha com um andar indolente. — De repente não estou com muita fome. Acho que só quero um sanduíche de alface, e vou comer no meu quarto.

— Você não vai fazer nada disso — disse a sra. Mullet. — Eu preparei uma bela salada de gelatina de carne, com beterrabas e tudo o mais.

Fiz uma careta horrível, mas, quando ela inesperadamente olhou para mim, me lembrei do subterfúgio de Nialla e com habilidade a transformei em um bocejo, cobrindo a boca com a mão.

— Desculpe. Acordei muito cedo hoje — eu disse.

— Eu também. Infelizmente.

— Eu estava na fazenda dos Ingleby — contei.

— Foi o que ouvi dizer — disse ela.

Que droga! Por que a sra. Mullet não virava uma pedra? Será que não havia nada que escapasse a seus ouvidos?

— A sra. Richardson me contou que você estava ajudando aquele pessoal dos bonecos, aquela mulher com cabelo de Judas e aquele sujeito capenga.

Cynthia Richardson. Eu devia ter adivinhado. Obviamente a presença dos titereiros soltara sua língua.

— O nome dela é Nialla — eu disse —, e o dele é Rupert. Ela é uma excelente pessoa, na verdade. Faz álbuns de recortes, ou pelo menos costumava fazer.

— Está tudo muito bem, querida, mas você vai ter de...

— Encontrei a sra. Ingleby também — persisti. — De fato, tivemos uma conversinha muito interessante.

A sra. Mullet começou a lavar os pratos de salada mais devagar, e parou. Ela mordera a isca.

— Uma conversinha? Com ela? Ah! Deve ser sexta-feira, dia de beber! Pobre alma — acrescentou depressa, como se tivesse pensado melhor.

— Ela falou sobre o filho, Robin — eu disse, oferecendo-lhe uma migalha de verdade.

— Ora, baboseiras!

— Ela disse que Robin se foi.

Aquilo foi demais até para a sra. Mullet.

— Que ele se foi? Eu diria que sim. Há cinco anos ou mais está tão morto quanto uma maçaneta de porta. Morto e enterrado. Me lembro do dia em que ele foi encontrado, pendurado pelo pescoço no Bosque Gibbet. Era uma segunda-feira, dia de lavar roupa, e eu tinha acabado de pendurar um monte no varal quando Tom Batts, o carteiro, apareceu no portão. “Sra. Mullet”, ele me disse, “é melhor se preparar para ouvir más notícias”. “É o meu Alf!”, eu disse, e ele disse “Não, é o jovem Robin, o menino de Gordon Ingleby”, e UUFFF!, eu perdi o fôlego, assim sem mais. Achei que ia...

— Quem o encontrou? — interrompi. — O jovem Robin, quero dizer.

— Ora, Meg, a Louca, foi ela. Ela mora lá no Bosque Gibbet. Ela viu um brilhinho embaixo de uma árvore. É como ela chama qualquer pedaço velho de metal que encontra, “um brilhinho”, então ela foi lá pegá-lo e viu que era uma dessas pazinhas de brinquedo, dessas que você leva para a praia, e um baldinho de lata, também, lá jogados no meio do mato.

A mãe de Robin o levou para a praia, eu estava a ponto de dizer, mas me contive a tempo. Me lembrei de que um mexerico interrompido atrai mais mexericos: como moscas para um ímã, como a própria sra. Mullet comentara certa vez sobre um assunto completamente diferente.

— E então ela o viu, balançando, pendurado pelo pescoço naquela velha forca — ela prosseguiu. — A cara dele estava horrível, como um melão que ficou preto.

Eu estava começando a lamentar não ter levado meu caderno.

— Quem o matou? — perguntei bruscamente.

— Ah — disse ela —, aí é que está. Ninguém sabe.

— Ele foi assassinado?

— Com tudo isso, até pode ter sido. Mas, como eu disse, ninguém sabe com certeza. Eles fizeram o que chamam de “inquerência” na biblioteca: é a mesma coisa que uma “autopistia” em linguagem poética, diz Alf. O dr. Darby se levantou e disse que o rapazinho foi enforcado, e era tudo o que ele podia dizer. Meg, a Louca, disse que ele foi possuído pelo Diabo, mas você sabe como ela é. Eles chamaram os Ingleby e aquele alemão que dirige o trator deles, Dieter, é como ele se chama, e também Sally Straw. Tapados como o burrico de Dorothy, todos eles. Inclusive a polícia.

A polícia? É claro!

A polícia certamente teria investigado a morte de Robin Ingleby, e, se o que eu imaginava estava certo, meu velho amigo inspetor Hewitt estava envolvido naquilo.

Bem, o inspetor não era exatamente um velho amigo, mas não fazia muito tempo eu o ajudara em uma investigação na qual ele e seus colegas estavam completamente confusos.

Antes de confiar nos boatos que a sra. Mullet ouvira na aldeia, eu obteria os fatos diretamente da fonte, por assim dizer. Tudo o que eu precisava era de uma oportunidade para ir de bicicleta até a delegacia de polícia em Hinley. Eu apareceria por acaso, bem na hora do chá.


Quando passei de bicicleta pela igreja de São Tancredo, não pude deixar de me perguntar como Rupert e Nialla estariam se arranjando. Bem, pensei, enquanto freava e fazia meia-volta, eu não demoraria muito a descobrir.

Mas a porta do salão paroquial estava trancada. Dei-lhe uma boa chacoalhada e uma porção de batidas fortes, mas ninguém a abriu. Será que eles ainda estariam na fazenda Culverhouse?

Empurrei Gladys através do pátio da igreja até a margem do rio e a ergui para atravessar as alpondras. Embora estivesse coberto de vegetação em alguns pontos, e profundamente sulcado, o caminho de sirgagem me levou depressa ao Campo Jubileu.

Nialla estava sentada embaixo de uma árvore, fumando, com Dieter a seu lado. Ele se pôs de pé assim que me viu.

— Bem, bem — disse ela. — Vejam só o que o gato trouxe. Achei que você estaria na igreja.

Nialla esmagou furiosamente a ponta do cigarro contra o tronco de uma árvore.

— Imagino que nós também deveríamos estar — disse ela —, mas Rupert ainda não encontrou o caminho de volta.

Aquilo me pareceu um tanto estranho, já que presumivelmente Rupert não conhecia ninguém nas vizinhanças de Bishop’s Lacey. O quê, ou quem, poderia tê-lo segurado por tanto tempo?

— Talvez ele tenha saído para buscar alguma coisa da van — eu disse, notando que o capô da Austin agora estava fechado e travado.

— O mais provável é que ele tenha saído só para se aborrecer um pouco — disse Nialla. — Ele faz isso de vez em quando. Às vezes ele só quer ficar sozinho por algum tempo. Mas ele se foi há horas.

— Dieter acha que o viu seguindo naquela direção — acrescentou ela, apontando com um dedo por cima do ombro.

Voltei-me e encarei com interesse renovado o Bosque Gibbet.

— Flavia — disse Nialla. — Deixe pra lá.

Mas não era Rupert que eu queria ver.


Mantendo-me nas terras relvadas nos limites do campo, consegui evitar as plantações de linho enquanto me arrastava firmemente para cima. Não era uma escalada difícil demais para mim, mas para Rupert, com a perna em um aparelho de ferro, devia ter sido uma tortura.

O que teria levado aquele homem a escalar a Colina Gibbet até o alto? Teria ele alguma intenção de arrastar Meg para longe do mato cerrado e exigir que ela devolvesse o pó compacto de borboleta de Nialla? Ou estaria amuado, sentindo-se ameaçado pela bela aparência loira de Dieter?

Eu poderia pensar em mais uma dúzia de razões, porém nenhuma fazia muito sentido.

Acima de mim, o Bosque Gibbet se agarrava ao topo da Colina Gibbet como um solidéu verde. Quando me aproximei e entrei embaixo dos ramos daquela antiga floresta, foi como penetrar em uma pintura de Arthur Rackham. Ali, na obscuridade verde e turva, o ar estava azedo com o odor de decomposição: de fungos e bolor das folhas, de humo preto, de podridão escorregadia e de cascas carcomidas por besouros. Teias de aranha brilhavam suspensas como pequenas partículas de luz entre os tocos de árvores apodrecidas. Embaixo dos antigos carvalhos e árvores recobertas de liquens, campânulas despontavam das sombras profundas por entre samambaias, e ali, no outro lado da clareira, avistei as folhas serrilhadas da mercuriallis perenis venenosa que, quando mergulhada na água, produzia um lindo veneno azul-anil que eu uma vez transformara na brilhante cor vermelha de sangue arterial, simplesmente adicionando uma solução a dois por cento de ácido hidroclorídrico.

Pensei com prazer em como a amônia e os amidos liberados pelo profundo composto no solo da floresta proviam um perfeito banquete para os fungos carnívoros, que os convertiam em nitrogênio, que então armazenavam em seu protoplasma, onde serviria como alimento de bactérias. Parecia um mundo perfeito: um mundo em que a cooperação era um fato da vida.

Inspirei profundamente, sugando o odor penetrante e azedo para dentro dos pulmões e saboreando o cheiro químico de decomposição.

Mas aquele não era momento para reflexões prazerosas. O dia avançava depressa, e eu ainda tinha de encontrar meu caminho para o coração do Bosque Gibbet.

Quanto mais longe eu ia por entre as árvores, mais silencioso ele ficava. Agora, até mesmo as aves mostravam-se estranhamente quietas. Este bosque, Dafi me contara, fora outrora uma floresta real onde, muitos séculos atrás, reis da Inglaterra haviam caçado o javali selvagem. Depois, a peste negra levara a maioria dos habitantes da pequena aldeia que crescera embaixo de sua periferia.

Estremeci um pouco quando, alto nos galhos acima de mim, as folhas se agitaram caprichosamente, mas se aquilo foi pela rápida passagem dos fantasmagóricos caçadores reais ou dos espíritos conturbados das vítimas da peste (enterradas em algum lugar por perto?), eu não soube dizer.

Tropecei em uma elevação e joguei os braços para a frente, para me proteger. Um toco apodrecido de madeira coberta de musgo era tudo o que havia entre o humo e eu, e o agarrei instintivamente.

Quando recuperei o equilíbrio, vi que aquela madeira já tinha sido quadrada, não redonda. Não era nenhum galho ou tronco de árvore, mas uma viga cortada e corroída pelo tempo, que fora carcomida até virar algo parecido com um coral cinzento. Ou massa cerebral petrificada.

Minha mente reconheceu aquilo antes que eu o fizesse: só aos poucos me dei conta de que estava me agarrando desesperadamente aos restos apodrecidos do velho patíbulo.

Aquele era o lugar onde Robin Ingleby morrera.

A parte de trás dos meus braços se arrepiou, como se eles estivessem sendo acariciados por pingentes de gelo.

Larguei aquela coisa e dei um passo para trás.

A não ser pelo arcabouço e um conjunto de degraus quebrados, pouca coisa restara da estrutura. O tempo e o clima haviam desagregado tudo menos uma ou duas tábuas do piso, reduzindo a plataforma a uns poucos restos do esqueleto que se projetavam para fora dos espinheiros como os ossos da caixa torácica de um gigante.

Foi então que ouvi as vozes.

Eu possuo, como já disse, uma audição aguçada, e, enquanto estava ali embaixo das ruínas da forca, tive consciência de que havia alguém falando, embora o som viesse de uma certa distância.

Girando o corpo lentamente no lugar e colocando as mãos em concha atrás das orelhas como refletores improvisados, determinei depressa que as vozes vinham de algum lugar a minha esquerda e, com passos cautelosos, me arrastei em sua direção, movendo-me silenciosamente de árvore em árvore.

De repente o arvoredo começou a escassear, e precisei tomar um grande cuidado para me manter fora de vista. Espiando por trás do tronco de um freixo, me vi no limite de uma grande clareira que ficava bem no coração do Bosque Gibbet.

Ali, uma plantação tinha sido cultivada, e um homem de chapéu surrado e roupas de trabalho capinava laboriosamente entre fileiras de plantas bem espaçadas.

— Bem, eles estão por toda parte — dizia ele para alguém que eu ainda não podia ver. — Atrás de cada mourão de cerca... se escondendo embaixo de cada maldita meda de feno.

Quando ele tirou o chapéu para enxugar o rosto e o topo de cabeça com um lenço colorido, vi que quem falava era Gordon Ingleby.

Seus lábios, em um rosto envelhecido, tinham a surpreendente tonalidade carmesim do que o pai chamava de um “temperamento sanguíneo”, e enquanto eu olhava ele limpou o cuspe que saíra com suas palavras iradas.

— Ah! Os céus puseram espiões em cima de nós — disse a outra pessoa com uma voz dramática: uma voz que reconheci imediatamente como a de Rupert.

Ele estava reclinado na sombra embaixo de um arbusto, fumando um cigarro.

Meu coração quase parou de bater! Ele teria me avistado?

Melhor ficar quieta, pensei. Não mover nem um músculo. Se eu for pega, vou fingir que estava procurando Rupert e que me perdi no bosque, como a menina dos Cachinhos Dourados. Como há nelas algo que soa como verdade, as pessoas sempre se deixam enganar por desculpas de contos de fadas.

— O sr. Morton esteve por aqui de novo na semana passada, falando uma porção de besteiras para o Dieter. Bisbilhotando, mais provavelmente.

— Você é mais esperto do que todos eles, Gordon. Eles têm tijolos no lugar do cérebro.

— Pode ser que sim — retrucou Gordon — e pode ser que não. Mas como eu lhe contei, é o fim da linha. É onde Gordon desembarca.

— Mas, e quanto a mim, Gord? E quanto ao resto de nós? Vamos simplesmente ficar pendurados?

— Seu bastardo! — bradou Gordon, erguendo a enxada no ar como um machado de batalha e avançando dois passos ameaçadores. Ele ficou instantaneamente lívido.

Rupert pôs-se de pé desajeitadamente, estendendo um braço na defensiva à sua frente.

— Desculpe, Gord. Eu não quis dizer isso. Foi só uma expressão. Eu não pensei.

— Não, você não pensou, não é? Você nunca pensa. Você não sabe como é viver na minha pele dia e noite. Viver com uma mulher morta e o fantasma de uma criança “pendurada”!

Uma mulher morta? Poderia ele estar falando da sra. Ingleby?

Bem, seja como for, uma coisa parecia perfeitamente clara: aquela não era uma conversa entre dois homens que se encontraram pela primeira vez de manhã. Do jeito que soava, Gordon e Rupert já se conheciam havia muito, muito tempo, sem dúvida.

Eles ficaram ali parados por alguns momentos, encarando-se mutuamente, sem saber o que dizer.

— É melhor eu ir voltando — disse Rupert, afinal. — Nialla fica preocupada.— Ele se virou e caminhou até o outro lado da clareira, depois desapareceu no bosque.

Depois que ele se foi, Gordon enxugou o rosto de novo, e vi que suas mãos estavam tremendo quando puxou do bolso da camisa uma bolsa de tabaco e um pacote de papel de cigarro. Ele enrolou um cigarro tosco, deixando cair fragmentos de tabaco com a pressa, depois enfiou a mão no bolso da calça para pegar um isqueiro de latão e acendeu o cigarro, inalando profundamente a fumaça e exalando tão devagar que tive certeza de que ele devia estar sufocando.

Em um tempo surpreendentemente curto, ele terminou. Esmagando a ponta no chão com o salto da bota, pôs a enxada no ombro e foi embora.

Esperei cerca de dez minutos para ter certeza de que ele não voltaria, depois fui rapidamente até o lugar onde ele estivera. Da terra embaixo da marca de seu calcanhar, não tive dificuldade em recuperar os remanescentes empapados do cigarro. Arranquei um par de folhas de uma das plantas e, usando-as como uma luva térmica improvisada, recolhi a ponta, enrolei-a duas vezes em uma folha nova e enfiei a coisa no fundo do meu bolso. Rupert, também, deixara diversas baganas embaixo do arbusto onde estivera sentado. Estas eu igualmente recuperei e acrescentei às outras. Só então refiz meus passos através do bosque e voltei pela encosta da Colina Gibbet.


Nialla e Rupert estavam encarapitados em um par de estacas podres, deixando a água corrente refrescar seus pés descalços. Dieter não estava visível em lugar nenhum.

— Ah, vocês estão aí! — eu disse, alegremente. — Eu estava procurando-os por toda parte.

Tirei os sapatos, descalcei as meias e juntei-me a eles. O sol descambava no céu vespertino. Provavelmente já era tarde demais para ir de bicicleta a Hinley. Quando eu chegasse lá seriam mais de cinco horas, e o inspetor Hewitt teria encerrado o seu dia.

Minha curiosidade teria de esperar.

Para um homem que fora recentemente ameaçado com a lâmina de uma enxada afiada, Rupert estava com um bom humor notável. Pude ver seu pé encarquilhado se agitando na água como um peixinho pálido logo abaixo da superfície.

Ele se inclinou, mergulhou dois dedos no rio e, com um piparote, lançou alegremente algumas gotas de água na minha direção.

— É melhor você correr para casa, para uma refeição decente e uma boa noite de sono. Amanhã é o grande dia.

— Certíssimo! — eu disse, pondo-me de pé. — Não perderia isso por nada neste mundo. Eu simplesmente adoro espetáculos de marionetes.


DE ALGUM MODO, deu para sobreviver ao jantar, e a mesa foi tirada. Estávamos sentados em volta dela apenas aguardando que alguém pensasse em uma desculpa para irmos cada qual para o seu lado: o pai para os seus selos, Dafi para a biblioteca, Felinha para o seu espelho, tia Felicity para um dos remotos quartos de hóspedes, e eu para o laboratório.

— E como anda Londres hoje em dia, Lissy? — perguntou o pai.

Como menos de uma quinzena se passara desde que viajara para lá atrás de alguma exposição de selos, ele sabia perfeitamente como estava Londres. Aquelas viagens, no entanto, ele sempre tratava como operações militares estritamente confidenciais. O pai preferiria ser assado a deixar que tia Felicity soubesse que ele estivera na metrópole.

— Ela ainda tem todos os dentes — ele costumava nos dizer — e sabe como usá-los.

O que significava, disse Felinha, que ela queria tudo do seu jeito. Dafi disse que aquilo significava que ela era uma tirana empapada de sangue.

— Londres? — disse tia Felicity. — Londres é sempre a mesma: toda fuligem, pombos e o primeiro-ministro Clement Attlee. Apenas uma maldita escassez após a outra. Eles deveriam ter homens com redes para capturar aquelas crianças que a gente vê em Kensington e treiná-las para operar as usinas elétricas de Battersea e Bankside. Com um tipo de gente melhor nos comandos, a força poderia não falhar com tanta frequência.

Dafi, que por causa da companhia não era autorizada a ler durante o jantar, estava sentada à mesa bem na minha frente, deixando que seus olhos se movessem lenta e dolorosamente de um lado para outro, como se seu cérebro tivesse acabado de morrer, e os nervos ópticos e músculos estivessem em seus últimos espasmos. Eu não lhe concedi a satisfação de um sorriso.

— Não sei aonde vai parar este mundo — prosseguiu a tia Felicity. — Tremo só de pensar nas pessoas que encontramos hoje em dia; aquele homem no trem, por exemplo. Você o viu na plataforma, Flavia?

Sacudi a cabeça.

— Nem eu — continuou ela —, mas acredito que ele ficou para trás porque pensou que eu apitaria para chamar o guarda. Ficou enfiando a cabeça na cabine o tempo todo desde Londres, perguntando se já tínhamos chegado a Doddingsley. E era um indivíduo de aparência esquisita. Remendos de couro nos cotovelos e uma bandana em volta do pescoço, como um grosseiro dançarino apache de Paris. Isso não devia ser permitido. Por fim, tive de colocá-lo no seu lugar. Quando o trem parou completamente, e a tabuleta do lado de fora da janela dizia “Doddingsley”, eu disse a ele “Agora sim estamos em Doddingsley, não antes!”.

Agora parecia que o cérebro de Dafi não apenas morrera, mas tinha começado a coagular. Seu olho direito revirou para um canto, enquanto o outro parecia a ponto de explodir e saltar da cabeça.

Era um efeito no qual ela estava trabalhando havia anos: a capacidade de esbugalhar os olhos em duas direções diferentes ao mesmo tempo.

— Um toque da velha exoftalmia — explicara ela uma vez, e eu implorara que me ensinasse o truque. Pratiquei na frente do espelho até minha cabeça rachar, mas nunca consegui nada além de uma ligeira protuberância lateral.

— Deus age de modos misteriosos para Suas maravilhas realizar — disse ela quando relatei meu fracasso.

De fato. Só de pensar nas palavras de Dafi, me ocorreu uma ideia.

— Me dão licença? — perguntei, já empurrando a cadeira para trás. — Esqueci de dizer as minhas orações esta manhã. É melhor eu cuidar disso agora.

Os olhos de Dafi descruzaram, e o queixo dela caiu. Eu gostaria de pensar que foi por admiração.


Quando destranquei a porta e entrei no meu laboratório, o microscópio Leitz que outrora pertencera ao tio-avô Tar me lançou um brilho de latão de boas-vindas. Ali, perto da janela, eu seria capaz de ajustar seu espelho refletor para focalizar um raio tardio do sol através da platina para a lente do microscópio.

Recortei uma amostra em forma de losango de uma das folhas que trouxera daquela que agora eu considerava a Plantação Secreta do Bosque Gibbet e coloquei-a em uma lâmina de vidro sob a lente.

Enquanto manipulava o foco, com o instrumento regulado em uma magnificação de cem vezes, descobri quase instantaneamente o que estava procurando: os cistólitos farpados que se projetavam como espinhos da superfície da folha. Virei a folha ao contrário com uma pinça que eu surrupiara de um estojo de maquiagem de madrepérola de Felinha. Se estivesse certa, haveria um número ainda maior daqueles filamentos em forma de garras do lado de baixo; e eles estavam lá! Entrando e saindo de foco sob o focinho da lente. Fiquei lá sentada por alguns momentos, olhando para aqueles cabelos pétreos de carbonato de cálcio que, eu me lembrei, tinham sido descritos pela primeira vez por Hugh Algernon Weddell, o grande botânico e viajante.

Mais para me divertir do que por qualquer outra razão, coloquei a folha em um tubo de ensaio, no qual decantei algumas pitadas de ácido hidroclorídrico diluído e depois o arrolhei e dei uma sacudida vigorosa. Segurando contra a luz, pude ver as pequenas bolhas de dióxido de carbono se formando e subindo para a superfície quando o ácido reagiu com o carbonato de cálcio dos pequenos aguilhões.

O teste, no entanto, não era conclusivo, pois os cistólitos estavam às vezes presentes em certas urtigas, por exemplo. A fim de confirmar meus achados, eu precisaria ir um pouco além.

Eu era eternamente grata ao tio Tar, que, antes de morrer, em 1928, adquirira uma assinatura vitalícia da Extratos & Relatórios Químicos, a qual, talvez porque os editores nunca tivessem sido informados de sua morte, ainda chegava pontualmente todos os meses à mesa do vestíbulo em Buckshaw.

Montes desses atraentes exemplares, cada edição com uma capa azul no tom exato de um céu de meados de março, estavam agora empilhados em todos os cantos do meu laboratório, e foi entre eles (na verdade em uma das edições de 1941), que encontrei uma descrição do então recém-descoberto teste de Duquenois-Levine. Era a minha própria variação desse procedimento que eu estava prestes a realizar.

Primeiro precisaria de uma pequena quantidade de clorofórmio. Como eu havia usado a última garrafa disponível para uma fracassada exibição de fogos de artifício no gramado sul de Buckshaw em comemoração ao aniversário de Joseph Priestley em março, teria primeiro de manufaturar um novo suprimento.

Uma rápida incursão embaixo da escada (no armário de material de limpeza da sra. Mullet) resultou em uma lata de pó branqueador à base de cloro, e em sua despensa uma garrafa de puro extrato de baunilha.

Novamente segura no andar de cima, no laboratório, tranquei a porta e arregacei as mangas.

A lata de Bleachitol, na realidade, nada mais era que hipoclorito de cálcio. Será que se hipoclorito de cálcio tivesse outro nome, me perguntei, teria um cheiro tão doce? Aquecido com acetona a uma temperatura entre 200 e 260 graus centígrados, ou até ocorrer a reação de halofórmio, um clorofórmio bastante decente poderia depois ser extraído dos sais de acetato por simples destilação. Essa parte era, como costumam dizer, café-pequeno.

— Iuhuuu! — gritei, quando despejei os resultados em uma garrafa marrom e enfiei a rolha.

Em seguida, misturei meia colher de chá de extrato de baunilha com algumas gotas de acetaldeído (que, por ser volátil e ferver à temperatura ambiente, tio Tar ponderadamente armazenou embaixo de uma camada de argônio, em uma garrafa selada), depois virei a mistura para dentro de uma proveta limpa na qual eu já havia medido seis colheres de chá e meia de etanol, o velho e simples C2H5OH. Este, eu surrupiara do aparador do pai, onde ficara sem ser aberto por séculos depois de lhe ter sido trazido de presente por um colega filatelista que fora designado para a Rússia pelo Ministério das Relações Exteriores.

E agora o palco estava preparado.

Colocando uma amostra fresca de uma das folhas em um tubo de ensaio limpo, adicionei algumas gotas do meu preparado alcoólico-vanilínico (que pensei em chamar de reagente Duquenois-Levine-de-Luce) e, depois de aguardar um minuto, apenas uma pitadinha de ácido hidroclorídrico.

Novamente, como no meu teste anterior, pequenas bolhas subiram no tubo quando o dióxido de carbono foi formado, mas dessa vez o líquido no tubo de ensaio assumiu depressa uma tonalidade roxo-azulada.

Excitada, adicionei à mistura duas gotas do meu clorofórmio caseiro, o qual, não sendo solúvel em água, prontamente foi ao fundo.

Quando aquilo se estratificou em duas camadas distintas (o clorofórmio límpido no fundo e o roxo-azulado do reagente de Duquenois flutuando em cima dele), dei-lhe uma boa mexida com um bastão de vidro e, prendendo a respiração, aguardei que se precipitasse uma última vez.

Não demorou muito tempo. Agora a camada de clorofórmio assumira a cor de sua camada superior: o malva de uma equimose oculta.

Como eu já havia suspeitado qual seria o resultado, não me dei ao trabalho de gritar “Eureca”.

Não era pastinaca que Gordon Ingleby estava cultivando na sua clareira secreta: era cânhamo-da-índia!

Eu havia lido sobre aquilo em uma separata do ensaio de O’Shaughnessy Sobre O Preparo do Cânhamo-da-Índia, ou Gunjah; Seus Efeitos Sobre o Sistema Animal na Saúde, e Sua Utilidade no Tratamento do Tétano e Outras Doenças Convulsivas, um exemplar que eu encontrara escondido em uma das gavetas da escrivaninha do tio Tar.

Será que o tio Tar estava usando cânhamo-da-índia? Será que isso explicaria seu súbito e espetacular afastamento de Oxford quando jovem?

A gunjah, ou bhang, era conhecida havia muito tempo como substituta do ópio, e o próprio dr. Shaughnessy relatara ser um grande sucesso em seu uso para tratar um caso de convulsão infantil.

E o que mais era a paralisia infantil de Rupert, pensei, senão convulsões musculares que se prolongariam cruelmente o dia inteiro, todos os dias, até o fim de sua vida?

Testar as pontas dos cigarros que Gordon e Rupert tinham fumado foi quase um anticlímax. Os resultados foram o que eu sabia que seriam. Depois que lavei e guardei os objetos de vidro (argh! como eu detesto lavar!), escrevi no meu caderno:


Sexta-feira, 21 de julho de 1950, 21h50

Teste Duquenois-Levine de folhas e restos de

cigarros do Bosque Gibbet indica presença de

cânhamo-da-índia (Cannabis sativa). Gordon

Ingleby cultiva (e fuma) a substância. Ouvi

seu comentário de que era “o fim da linha”

para ele. O que ele quis dizer? Quem são

“o resto de nós” de que Rupert falou? Quem

é “a mulher morta”? Poderia ser a sra.

Ingleby? O que quer que esteja acontecendo

na Fazenda Culverhouse, Rupert Porson é

parte disso.


“E com isso...”, como aquele homem, Pepys, teria escrito, “para a cama.”


Mas não consegui dormir. Fiquei deitada um longo tempo, olhando para o teto, ouvindo as cortinas sussurrar mansamente uma para a outra na brisa noturna.

Em Buckshaw, o tempo não passa como em outros lugares. Em Buckshaw, o tempo parece ser controlado não por aquelas frenéticas, apressadas rodinhas dentadas no relógio do vestíbulo, que giram como hamsters em suas gaiolas fechadas, mas pelas grandes e solenes engrenagens que conseguem se arrastar dando uma única volta completa por ano.

Como eu poderia estar tão contente, me perguntei de súbito, quando alguém que eu conhecia pessoalmente estava se escondendo na torre escura de um pombal?

O que me fez pensar imediatamente, é claro, no Rei Lear. O pai nos levara para ver John Gielgud no papel-título em Stratford-upon-Avon, e, embora Gielgud estivesse maravilhoso, eram as palavras do pobre Tom, o mendigo de Bedlam na charneca tempestuosa (na verdade Edgar, disfarçado), que ainda soavam em meus ouvidos:

 

O filho Roland chegou à torre escura;

Sua palavra ainda era Fi, fo e fum!

Cheiro o sangue de um inglês comum!

 

— Shakespeare plagiou isso de João e o pé de feijão? — sussurrei ao ouvido de Dafi. — Ou o conto de fadas é que tinha tomado emprestadas as palavras de Shakespeare?

— Nenhum dos dois — sussurrou ela em resposta. — Ambos plagiaram Leve consigo para Saffron Walden, de Thomas Nashe, que, como foi representada em 1596, antecede aos dois.

Minha boa Dafi. Há momentos em que eu quase poderia perdoá-la por me odiar.

Bem, Rupert estará apresentando sua própria versão de João e o pé de feijão daqui a apenas poucas horas. Eu poderia até aprender alguma coisa com isso.

Depois de algum tempo, me levantei, me vesti e me esgueirei para fora.


Encontrei Dogger sentado em um banco que dava para o lago ornamental e para a folly.

Ele estava vestido como na noite anterior: terno escuro, sapatos bem engraxados e uma gravata que dizia muita coisa para os que estão por dentro.

A lua cheia subia no céu como um grande queijo prateado, e Dogger estava sentado muito reto, o rosto voltado para cima, como se estivesse se aquecendo aos seus raios, segurando um guarda-chuva preto acima da cabeça.

Me esgueirei silenciosamente para o banco a seu lado. Ele não olhou para mim, nem eu para ele, e ficamos sentados por algum tempo, como um par de solenes e vetustos astrônomos estudando a lua.

Depois de algum tempo, eu disse:

— Não está chovendo, Dogger.

Em algum lugar, durante a guerra, Dogger fora exposto a chuvas torrenciais e impiedosas; chuvas para as quais não havia abrigo nem escapatória. Ou, ao menos, foi o que a sra. Mullet me contou.

— Ele se sente muito reconfortado embaixo de seu guarda-chuva, querida — disse ela. — Mesmo quando os cães ofegam na poeira.

Lentamente, como um boneco mecânico, Dogger estendeu a mão para cima e soltou a trava no cabo do guarda-chuva, permitindo que a armação e o tecido à prova d’água se dobrassem como as asas de um morcego, até o seu antebraço ficar envolvido em preto.

— Você sabe alguma coisa sobre poliomielite? — perguntei afinal.

Sem desviar os olhos da lua, Dogger disse:

— Paralisia infantil. Doença de Heine-Medin. Paralisia matinal. Repouso absoluto. Pelo menos foi o que me disseram — acrescentou, olhando para mim pela primeira vez.

— Mais alguma coisa?

— Agonia — disse ele. — Agonia absoluta.

— Obrigada, Dogger. As rosas estão lindas este ano. Você trabalhou um bocado com elas.

— Obrigado por dizer isso, senhorita. As rosas são lindas todos os anos. Com Dogger ou sem Dogger.

— Boa noite — eu disse, me levantando do banco.

— Boa noite, srta. Flavia.

A meio caminho através do gramado, parei e olhei para trás. Dogger erguera de novo o seu guarda-chuva e estava sentado embaixo dele, com as costas retas como Mary Poppins, sorrindo para a lua de verão.


— POR FAVOR, NÃO SAIA PERAMBULANDO por aí hoje, Flavia — disse o pai depois do café da manhã. Eu o encontrara inesperadamente na escada.

— A sua tia Felicity quer examinar alguns papéis da família e pediu que você esteja com ela para ajudar a erguer as caixas.

— Por que Dafi não pode fazer isso? — perguntei. — Ela é a especialista em bibliotecas e coisas assim.

Isso não era inteiramente verdade, já que eu estava encarregada de uma magnificente biblioteca vitoriana de química, isso sem falar nas toneladas de papéis do tio Tar.

Eu esperava simplesmente não ter de mencionar o espetáculo de marionetes, que seria apenas dali a algumas horas. Mas o Dever superou a Diversão.

— Daphne e Ophelia foram para a aldeia despachar algumas cartas. Estão almoçando lá e depois vão a Fosters dar uma olhada no pônei de Sheila.

As covardes! Aquelas maquinadoras miseráveis!

— Mas eu prometi ao vigário — eu disse. — Ele está contando comigo. Eles estão tentando levantar dinheiro para alguma coisa... oh, nem sei o quê. Se eu não estiver na igreja às nove, Cynthia... quero dizer, a sra. Richardson, terá de vir me buscar em seu carro Oxford.

Como eu esperava, aquele golpe um tanto baixo realmente fez o pai vacilar.

Vi suas sobrancelhas se franzir enquanto ele sopesava as opções, que eram poucas: ceder graciosamente ou correr o risco de ficar cara a cara com o Naufrágio do Hesperus.

— Você não é confiável, Flavia — disse ele. — Não é nada confiável.

É claro que eu era! Era uma das coisas de que eu mais gostava em mim mesma. Não se espera que pessoas de onze anos sejam confiáveis. Nós já passamos da idade de ser bonequinhas: a idade em que as pessoas se inclinam por cima de nós e nos cutucam na barriguinha e fazem ruídos idiotas que soam como “cuti-cuti-cuti”; só de pensar nisso já sinto vontade de vomitar. No entanto, ainda não estamos na idade em que todo mundo sempre nos confunde com adultos. O fato é que somos invisíveis, exceto quando escolhemos não ser.

No momento, eu não era. Estava ligada no facho bravio do olhar de tigre do pai. Pisquei os olhos duas vezes: apenas o suficiente para não ser desrespeitosa.

Percebi o instante em que ele se abrandou. Vi em seus olhos.

— Ora, está bem — ele disse, benevolente mesmo na derrota. — Vá correndo. E transmita meus cumprimentos ao vigário.

Pintem-me com bolinhas! Eu estava livre! Simples assim!


Os pneus de Gladys cantavam alto sua canção de contentamento enquanto chispávamos pelo asfalto.

— Summer is icumen in — gorjeei para o mundo. — Lhude sing cuccu! 1

Uma vaca Jersey ergueu os olhos do seu pasto, e eu fiquei de pé sobre os pedais, fazendo-lhe uma breve mesura ao passar.

Parei do lado de fora do salão paroquial, bem quando Nialla e Rupert caminhavam através do capim alto, nos fundos do pátio da igreja.

— Dormiram bem? — gritei para eles, acenando.

— Como os mortos — respondeu Rupert.

O que descrevia exatamente a aparência de Nialla. Seu cabelo pendia em longas mechas sem lavar, e os círculos escuros em volta dos olhos vermelhos me lembraram de uma coisa na qual prefiro não pensar. Ou ela cavalgara com bruxas a noite inteira de campanário em campanário, ou ela e Rupert haviam tido uma tremenda briga.

O silêncio dela me contou que tinha sido Rupert.

— Bacon fresco... ovos frescos — prosseguiu Rupert, esmurrando o peito vigorosamente, como Tarzan. — Isso prepara um homem para o dia.

Sem nem dar uma olhada para mim, Nialla passou rapidamente e mergulhou no salão paroquial — para o banheiro das mulheres, imaginei.

Naturalmente, fui atrás dela.

Nialla estava de joelhos, gritando “Uééé!” para dentro do vaso de porcelana, chorando e vomitando ao mesmo tempo. Eu tranquei a porta.

— Você está esperando um bebê, não está? — perguntei.

Ela ergueu os olhos para mim, a boca escancarada, o rosto lívido.

— Como você soube? — ofegou ela.

Eu quis dizer “Elementar”, mas sabia que aquele não era o momento para petulâncias.

— Eu fiz um teste de lisossomos no lenço que você usou.

Nialla pôs-se em pé com dificuldade e me agarrou pelos ombros.

— Flavia, você não pode deixar transpirar nem uma palavra sobre isso! Nem uma palavra! Ninguém sabe, a não ser você.

— Nem Rupert? — perguntei. Eu mal podia acreditar.

— Especialmente Rupert — disse ela. — Ele vai me matar se souber. Prometa. Por favor, Flavia... prometa!

— Pela minha honra — eu disse, erguendo três dedos no cumprimento da organização Guia das Meninas. Embora eu tivesse sido expulsa dessa organização por insubordinação (entre outras coisas), senti que dificilmente seria necessário compartilhar os revoltantes detalhes com Nialla.

— Foi uma sorte incrível estarmos acampados no campo. Devem ter nos ouvido a quilômetros de distância, do jeito que nos pegamos violentamente. Foi por causa de mulher, claro. É sempre por causa de mulher, não é?

Aquilo ia além da minha especialidade, mas ainda assim tentei parecer atenta.

— Rupert nunca precisa de muito tempo para mirar num rabo de saia. Você viu: estávamos no Campo Jubileu havia menos de um minuto quando ele se meteu no meio do mato com aquela caipira, Sarah, ou qualquer que seja seu nome.

— Sally — eu disse.

Embora fosse uma ideia interessante, eu sabia que a verdade era que Rupert estivera fumando cânhamo-da-índia no Bosque Gibbet com Gordon Ingleby. Mas dificilmente eu podia contar isso a Nialla. Sally Straw não estava visível em lugar nenhum.

— Achei que você tivesse dito que ele tinha ido ver alguma coisa sobre a van.

— Oh, Flavia, você é tão...

Ela mordeu a língua na última hora.

— É claro que eu disse isso. Você não ia querer que eu lavasse nossa roupa suja na frente de um estranho.

Ela estava se referindo a mim ou a Dieter?

— Rupert sempre se lambuza de fumaça, tentando encobrir o cheiro das suas vagabundas. Posso sentir o cheiro nele. Mas fui longe demais — ela acrescentou tristemente. — Abri a van e joguei nele a primeira coisa que me caiu nas mãos. Não devia ter feito isso. Era a nova marionete de João: fazia semanas que ele estava trabalhando nela. A velha estava ficando meio desconjuntada, sabe, e parecia que se desmancharia no pior momento possível. Como eu — gemeu ela, e vomitou de novo.

Desejei poder ser útil, mas aquela era uma dessas situações em que um espectador não pode fazer nada para ajudar.

— Ele ficou acordado a noite inteira, tentando consertar aquela coisa.

Pelas marcas recentes no pescoço dela, vi que Rupert havia feito mais naquela noite do que consertar uma marionete.

— Ah, eu queria estar morta — gemeu ela.

Ouvimos uma batida na porta: uma sequência rápida de batidas, toc-toc-toc-toc.

— Quem está aí? — perguntou uma voz feminina, e meu coração se encolheu. Era Cynthia Richardson.

— Deve haver outras pessoas querendo usar o toalete — ela gritou. — Por favor, tenha mais consideração pelas necessidades dos outros.

— Já vai, sra. Richardson — eu gritei. — Sou eu, a Flavia.

Maldita mulher! Como eu poderia fingir que estava me sentindo mal?

Agarrei a toalha de algodão que estava pendurada na argola ao lado da pia e dei uma esfregada vigorosa no rosto. Senti o sangue subindo no momento em que fazia isso. Me descabelei, fiz correr um pouco de água da torneira, que esfreguei pela minha testa vermelha, e deixei que um fio de cuspe escorresse de um jeito horrível no canto da boca.

Então puxei a descarga e destranquei a porta.

Enquanto aguardava que Cynthia a abrisse, como eu esperava, vi um relance de mim mesma no espelho: eu era a imagem perfeita de uma vítima de malária cujo médico acabara de entrar para telefonar para o agente funerário.

Quando a maçaneta girou e a porta se moveu para dentro, dei dois passos vacilantes para o corredor, estufando as bochechas como se estivesse a ponto de vomitar. Cynthia se encolheu contra a parede.

— Sinto muito, sra. Richardson — eu disse, trêmula. — Acabei de passar mal. Deve ter sido alguma coisa que eu comi. Nialla foi muito gentil... Mas acho que com um pouco de ar fresco vou ficar bem.

E passei por ela cambaleando, com Nialla atrás de mim. Cynthia não deu nem uma olhadinha para ela.


— Você é assustadora — disse Nialla. — Realmente é. Sabia disso?

Estávamos sentadas em cima de uma lápide no pátio da igreja enquanto eu aguardava que o sol secasse meu rosto febril. Nialla pôs de lado o seu batom e vasculhou a bolsa à procura de um pente.

— Sim — eu disse sem rodeios. Era verdade, não adiantava negar.

— A-há! — disse uma voz. — Então, aqui está você!

Um homenzinho elegante de calça esporte, jaqueta e uma camisa de seda amarela vinha rapidamente em nossa direção. Seu pescoço estava envolvido por um lenço cor de malva, e um cachimbo apagado projetava-se de seus dentes. Ele dava passos cautelosos para um lado e para outro, tentando não pisar diretamente em algumas das sepulturas mais afundadas.

— Ah, meu Deus! — gemeu Nialla sem mover os lábios, e depois para ele: — Olá, Mutt. Ponto facultativo na casa dos macacos, é?

— Onde está Rupert? — perguntou ele. — Lá dentro?

— Que prazer em vê-la, Nialla — disse Nialla. — Como você está adorável hoje, Nialla. Esqueceu suas boas maneiras, Mutt?

Mutt, ou quem quer que fosse ele, girou nos calcanhares em cima da grama e saiu marchando até o salão paroquial, ainda prestando atenção onde pisava.

— Mutt Wilmott — Nialla me explicou. — O produtor de Rupert na BBC. Eles tiveram uma briga feia na semana passada, e Rupert virou as costas e saiu bem no meio dela. Deixou Mutt falando sozinho com a Titia... a Empresa, quero dizer. Mas como diabo ele nos encontrou? Rupert achou que estaríamos muito seguros aqui. “Rusticando no campo”, como ele disse.

— Ele desceu do trem em Doddingsley ontem de manhã — eu disse, dando um salto de dedução, mas sabendo que estava certa.

— É melhor eu entrar — suspirou Nialla. — Vai haver um espetáculo pirotécnico.

Mesmo antes de chegarmos à porta, ouvi a voz de Rupert se elevar furiosamente no salão reverberante.

— Tanto faz o que disse Tony. Ele que vá se sentar em cima de uma brocha, e, pensando melhor, você também, Mutt. Foi a última vez que vocês cagaram e andaram em cima de Rupert Porson. Vocês todos.

Quando entramos, Rupert estava a meio caminho de descer a pequena escada que levava ao palco. Mutt achava-se em pé no meio do salão, com as mãos na cintura. Ninguém pareceu notar nossa presença.

— Ora, pare com isso, Rupert. Tony tem todo o direito de lhe apontar quando você passou dos limites. E ouça o que eu digo, Rupert, dessa vez você passou dos limites, e por uma boa margem. Está tudo muito bem para você mexer num vespeiro e depois se esquivar das consequências, excursionando com o seu showzinho. É o que você sempre fez, não é? Mas dessa vez você pelo menos lhe deve a cortesia de ouvi-lo.

— Eu não devo ao Tony nem um assobio de padre.

— É aí que você se engana, meu velho. De quantas encrencas ele já livrou você?

Rupert não disse nada enquanto Mutt as contava nos dedos.

— Bem, vejamos: houve aquele pequeno incidente com o Marco. Depois houve aquele com Sandra Paisley, uma coisa desagradável. E então o caso com Sparkman e Blondel, que custou um saco de dinheiro para a Titia, custou mesmo. Isso para não falar do...

— Cale a boca, Mutt!

Mutt prosseguiu em seus cálculos:

— ... para não falar daquela garota em Beckenham... como era mesmo o nome dela... Lulu? Lulu, pelo amor de Deus!

— Cale a boca! Cale a boca! Cale a boca!

Rupert estava surtando. Ele desceu tempestuosamente os degraus com a sua perna dura, o aparelho retinindo de modo assustador. Dei uma olhada para Nialla, que de repente ficara pálida e paralisada como o retrato de uma Madona. Estava com a mão na boca.

— Entre no seu maldito Jaguar, homenzinho, e dirija diretamente para o inferno! — rosnou Rupert. — Deixe-me em paz!

Mutt não se intimidou. E embora eles estivessem agora nariz com nariz, ele não cedeu nem um centímetro. Em vez disso, catou um fiapo imaginário na manga de sua jaqueta e fingiu que o acompanhava flutuar até o chão.

— Não vá de carro, meu velho. Vá de trem. Você sabe tão bem quanto eu que a Titia está cortando despesas, pense no Festival da Inglaterra no ano que vem, e tudo mais.

Os olhos de Rupert se arregalaram quando ele viu Nialla.

— Quem lhe contou que estávamos aqui? — berrou ele, apontando. — Ela?

— Calma, calma — disse Mutt, a voz se elevando pela primeira vez. — Não comece a querer culpar Nialla. De fato, foi uma sra. Qualquer Coisa, bem aqui em Bishop’s Lacey. O menino dela viu sua van perto da igreja e correu para casa, para dizer à mamãe que prenderia a respiração até arrebentar se não tivesse as Marionetes de Porson na festa do seu aniversário. Mas quando ele conseguiu arrastá-la de volta, você já tinha ido embora. Ela fez um interurbano para a Titia, e a operadora a transferiu para a secretária de Tony. Ele me disse para vir e levá-lo de volta imediatamente. E aqui estou eu. Fim da história. Então, não queira pôr a culpa em Nialla.

— Você está muito à vontade com Nialla, não é? — irritou-se Rupert. — Se insinuando e...

Mutt pôs a palma da mão sobre o peito de Rupert.

— E já que estamos falando nisso, Rupert, é melhor eu lhe dizer que se você encostar um dedo que seja nela de novo, eu vou...

Rupert afastou brutalmente a mão de Mutt.

— Não me ameace, seu vermezinho nojento. Não faça isso se der valor a sua vida!

— Cavalheiros! Cavalheiros! O que é isso? Vocês precisam parar com isso imediatamente.

Era o vigário. Ele estava no vão da porta aberta, uma figura escura contra a luz do dia. Nialla passou por ele e fugiu. Eu fui depressa atrás dela.


— Cara senhora — disse o vigário, estendendo uma bandeja de coleta de latão entalhado. — Experimente um sanduíche de pepino e alface. Dizem que é um calmante extraordinário. Fui eu mesmo que fiz.

Ele mesmo fez? Será que uma guerra doméstica tinha sido declarada no presbitério?

Estávamos de novo do lado de fora, no pátio da igreja, muito perto do local onde eu encontrara Nialla pela primeira vez, chorando com o rosto voltado contra a lápide. Tinha sido havia apenas dois dias? Parecia uma eternidade.

— Não, obrigada, vigário — disse Nialla. — Já estou me sentindo eu mesma de novo, e tenho coisas a fazer.


O almoço foi uma verdadeira provação. Como as janelas do salão tinham sido cobertas por cortinas pretas para escurecer o ambiente para o espetáculo, nos sentamos em uma semiobscuridade, enquanto o vigário se alvoroçava com sanduíches e uma jarra de limonada que ele devia ter feito surgir do nada. Nialla e eu estávamos sentadas em uma ponta da primeira fila de cadeiras, com Mutt na outra ponta. Rupert desaparecera nos bastidores algum tempo antes.

— Logo teremos de abrir as portas — disse o vigário, afastando uma ponta da cortina para espiar. — O nosso público já começou a fazer fila, com os bolsos pesados de moedas para a esmola.

Ele consultou o relógio.

— Noventa minutos para subir o pano — ele avisou através das mãos em concha. — Noventa minutos.

— Flavia — disse Nialla —, seja boazinha, vá depressa aos bastidores e diga a Rupert para abaixar o volume da música quando eu começar a falar. Ele estragou tudo em Fringford, e eu não quero que isso aconteça de novo.

Olhei para ela com ar de interrogação.

— Por favor... é um favor que você me faz. Ainda preciso vestir minha roupa, e não estou com muita vontade de vê-lo neste momento.

Na verdade, eu também não estava com muita vontade de ver Rupert. Enquanto eu escalava os degraus para o palco, pensei em Sydney Carton subindo ao patíbulo para encontrar a Madame Guilhotina. Encontrei a abertura nos bastidores pretos pendurados dos dois lados do palco das marionetes e entrei em um outro mundo.

Havia pequenas manchas de luz por toda parte iluminando fileiras de interruptores e controles elétricos, com seus fios e cabos serpenteando em todas as direções. Atrás do palco, tudo descambava em trevas, e o brilho de pequenas lâmpadas, suave como era, tornava impossível enxergar além das sombras.

— Suba — disse uma voz na escuridão acima de mim. Era Rupert. — Há uma escada do outro lado. Cuidado onde pisa.

Tateei o caminho em volta da parte de trás do palco e encontrei os degraus com as mãos. Depois de escalar alguns, me vi em uma plataforma elevada de madeira que passava atrás e acima do palco das marionetes.

Um corrimão reforçado de tubos de metal servia de apoio à cintura de Rupert enquanto ele se inclinava para a frente para operar seus bonecos. Embora eles estivessem virados para o outro lado, e portanto eu não podia ver suas faces, muitos daqueles personagens articulados estavam pendurados em uma vara atrás de mim: uma velha, um homem e um menino, a julgar pelas roupas de camponeses.

De um lado, e ao alcance da mão, estava instalado um gravador de fita magnética, seus dois rolos carregados com uma fita marrom brilhante que, a julgar pela cor, achei que devia ser revestida de uma emulsão de óxido de ferro.

— Nialla pediu para você se lembrar de abaixar o volume da música quando ela começar a falar — sussurrei, como se estivesse contando um segredo.

— Tudo bem — disse ele —, não precisa cochichar. As cortinas absorvem o som. Ninguém pode nos ouvir aqui em cima.

Aquele não era um pensamento especialmente reconfortante. Se ele estivesse predisposto a isso, Rupert poderia pôr suas mãos poderosas em volta do meu pescoço e me estrangular em um silêncio voluptuoso. Ninguém lá na frente perceberia coisa alguma até que nada restasse de mim além de um cadáver flácido.

— Bem, é melhor eu voltar — disse eu. — Estou ajudando com os ingressos.

— Certo — disse Rupert —, mas dê uma olhada nisto antes. Não são muitas as crianças que têm a oportunidade de vir até os bastidores.

Enquanto falava, ele estendeu a mão e girou um grande botão, e as luzes foram se apagando no palco abaixo de nós. Quase perdi o equilíbrio quando o pequeno mundo pareceu se materializar do nada sob meus pés. Me vi subitamente olhando para baixo, como Deus, para campos de sonho com céu azul e colinas verdes pintadas. Aninhado em um vale, havia um chalé de telhado de palha com um banco no quintal e um estábulo decrépito.

Prendi a respiração.

— Você fez tudo isso?

Rupert sorriu e estendeu a mão para outro controle. Quando ele o acionou, a luz do dia se esmaeceu até a escuridão e as luzes subiram nas janelas do chalé.

Embora eu estivesse olhando para tudo aquilo de ponta-cabeça, por assim dizer, lá de cima, senti uma pontada; uma pontada estranha e inexplicável que eu nunca sentira antes.

Senti saudades de casa.

Agora, mais ainda do que antes, quando vira aquilo pela primeira vez, senti vontade de ser transportada para aquela pequena e tranquila paisagem, de subir pelo caminho, de tirar uma chave do bolso e abrir a porta do chalé, para me sentar diante da lareira, para me envolver com meus braços e ficar lá para todo o sempre.

Rupert também se transformara. Vi em seu rosto. Iluminado de baixo, as feições totalmente em paz, suas largas feições relaxadas em um sorriso gentil e benevolente.

Debruçado no cano do corrimão, ele estendeu a mão para baixo e puxou um capuz preto de algodão de cima de um objeto volumoso ao lado do palco.

— Conheça Galligantus, o gigante — disse. — Última oportunidade antes do merecido castigo dele.

Era a face de um monstro, as feições distorcidas em uma expressão de ira perpétua e salpicadas de furúnculos, o queixo coberto de pelos pretos e cinzentos, como tachinhas de carpete.

Soltei um gritinho e dei um passo para trás.

— É só papel-machê — disse Rupert. — Não se assuste, ele não é tão horrendo como parece. Pobre velho Galligantus... Na verdade gosto muito dele. Passamos muito tempo juntos aqui em cima, aguardando o fim do espetáculo.

— Ele é... maravilhoso — eu disse, engolindo em seco. — Mas não tem cordéis.

— Não, na verdade ele não é uma marionete. Não passa de cabeça e ombros. Está pendurado pelo lugar onde deveria ser a cintura, sustentado ereto fora de vista, e... eu garanto a você e não vou repetir: é um segredo profissional.

— Prometo não contar — eu disse.

— No fim da peça, quando João está derrubando o pé de feijão a machadadas, eu só preciso erguer esta barra; ele tem molas, você sabe, e...

Quando ele tocou uma ponta daquilo, uma barrinha de metal subiu voando como um semáforo de ferrovia, e Galligantus tombou para a frente, se esborrachando na frente do chalé, quase ocupando toda a largura do palco.

— Isso nunca deixa de arrancar um gritinho sufocado da plateia — disse Rupert. — Sempre tenho vontade de rir ao ouvir isso. Porém, preciso tomar cuidado para que João e sua pobre e velha mãezinha não fiquem no caminho. Não posso deixar que eles sejam esmagados por um gigante caindo.

Inclinando-se para baixo e agarrando Galligantus pelo cabelo, Rupert o puxou para cima e o travou de volta em posição.

O que surgiu borbulhando inexplicavelmente do fundo da minha memória naquele momento foi um sermão do vigário no começo do ano. Parte do seu texto, extraído do Gênese, era a frase “Naqueles dias, havia gigantes na terra”. No original hebraico, o vigário nos contou, a palavra para gigantes era nefilim, o que, disse ele, significava intimidadores cruéis ou tiranos violentos: não fisicamente grandes, mas sinistros. Não monstros, mas seres humanos repletos de malevolência.

— É melhor eu voltar — eu disse. — Obrigada por me mostrar Galligantus.


Nialla não estava visível em lugar nenhum, e eu não tinha tempo de procurar por ela.

— Ah, minha cara, minha cara — disse o vigário —, nem sei o que sugerir que você faça. Apenas faça-se útil de um modo geral, eu acho.

E foi o que eu fiz. Durante a hora seguinte, conferi os ingressos e encaminhei as pessoas (principalmente as crianças) a seus lugares. Olhei zangada para Bobby Broxton e lhe fiz sinal para que tirasse os pés de cima da cadeira na frente dele.

— Está reservada para mim — chiei ameaçadoramente.

Escalei o balcão da cozinha e encontrei a segunda chaleira, que de algum modo tinha sido enfiada bem atrás na prateleira de cima, e ajudei a sra. Delaney a colocar xícaras vazias e pires sobre uma bandeja de chá. Até subi correndo a rua principal para ir ao Correio trocar uma nota de dez libras por moedas.

— Se o vigário precisa de trocado — disse a srta. Cool, a administradora da agência —, por que ele não arromba aquelas caixas de coleta de papelão da escola dominical? Eu sei que o dinheiro é para as missões, mas ele sempre poderia enfiar notas bancárias lá dentro para substituir o que tirou. Evitaria que ele se aproveitasse de Sua Majestade para angariar centavos, não é mesmo? Mas, por outro lado, os vigários nem sempre têm um espírito tão prático quanto se poderia esperar, não é, querida?

Às duas horas, eu já estava completamente exausta.

Quando por fim me sentei no meu lugar na fileira da frente, bem no centro, a agitação ansiosa da plateia chegou ao clímax. Estávamos com a casa cheia.

Em algum lugar nos bastidores, o vigário apagou as luzes da plateia, e, por alguns momentos, ficamos na escuridão total.

Me recostei na minha cadeira, e a música começou.


1 Esta é uma antiga canção inglesa, que aqui está em inglês medieval. Significa, simplesmente, “o verão chegou e canta alto o cuco”. (N. do T.)


ERA UMA DESSAS COISINHAS DE MOZART: uma dessas melodias que fazem você pensar que já ouviu antes, mesmo que não tenha ouvido.

Eu podia imaginar os rolos do gravador de fita de Rupert girando nos bastidores, os sons da música sendo convocados, por magnetismo, do mundo subatômico do óxido de ferro. Como provavelmente haviam se passado cerca de duzentos anos desde que Mozart a ouvira pela primeira vez em sua cabeça, parecia de certo modo apropriado que os sons da orquestra sinfônica fossem armazenados em nada mais que partículas de ferrugem.

Quando as cortinas se abriram, fui pega de surpresa: em vez do chalé e das colinas idílicas que eu esperava, o palco estava todo preto. Rupert obviamente mascarara o cenário rural com um pano escuro.

Um foco de luz se acendeu lentamente, e bem no centro do palco havia uma espineta em miniatura, as teclas de marfim de seus dois teclados completamente brancas contra a escuridão circundante.

A música foi abaixando, e um silêncio expectante caiu sobre o público. Todos nos inclinamos para a frente, à espera...

Um leve movimento de um lado do palco nos chamou a atenção, e uma figura entrou marchando com confiança para a espineta. Era Mozart!

Vestido com seda verde, rendas no pescoço, meias brancas até os joelhos e sapatos com fivelas, parecia ter saído diretamente do século XVIII através de uma janela para dentro do nosso século. Sua peruca branca perfeitamente empoada emoldurava um rosto rosado e insolente, e ele pôs uma das mãos em pala sobre os olhos, perscrutando as trevas para ver quem tivera a audácia de dar uma risadinha.

Sacudindo a cabeça, foi até seu instrumento, tirou um fósforo do bolso e acendeu as velas: uma em cada ponta dos teclados da espineta.

Uma atuação extraordinária! O público irrompeu em aplausos. Cada um de nós sabia, eu acho, que estávamos testemunhando o trabalho de um mestre.

O pequeno Mozart sentou-se no banco regulável na frente do teclado, ergueu as mãos como se fosse começar... e então estalou ruidosamente as articulações dos dedos.

Uma explosão de gargalhadas subiu da plateia. Rupert devia ter gravado de perto o som de um quebra-nozes, pensei: soava como se o pequeno boneco tivesse esmagado todos os ossos das mãos.

E então ele começou a tocar, as mãos adejando com facilidade por cima das teclas como as lançadeiras em um tear. A música era a Marcha turca, uma melodia animada, forte, que me fez sorrir.

Não há necessidade de descrever tudo: do banco que desabou aos teclados gêmeos que abocanharam os dedos do boneco com os dentes de um tubarão, a coisa toda, do começo ao fim, nos fez rolar de tanto rir.

Quando por fim a pequena figura conseguiu, a despeito de tudo, chegar arduamente ao triunfante acorde final, a espineta recuou, inclinou-se cumprimentando o público e depois dobrou-se perfeitamente para dentro de uma maleta, que o boneco pegou. Ele então marchou para fora de cena sob uma tempestade de aplausos. Alguns de nós até aplaudiram de pé.

As luzes diminuíram de novo.

Houve uma pausa. Um silêncio.

Depois que o público se acalmou, sons de música, uma música diferente, chegaram flutuando aos nossos ouvidos.

Reconheci a melodia imediatamente. Era Manhã, da suíte Peer Gynt, de Edvard Grieg, e me pareceu ser a escolha perfeita.

— Bem-vindos ao País dos Contos de Fadas — disse uma voz feminina quando a música diminuiu, e um foco se acendeu para revelar a mais estranha e singular personagem.

Sentada à direita do palco (devia ter ficado em posição durante os momentos de escuridão, pensei), ela usava um rufo de renda elisabetana, um vestido preto de peregrina com um corpete de renda, sapatos pretos com fivelas quadradas de prata e um minúsculo par de óculos que se equilibravam precariamente na ponta do nariz. O cabelo era uma massa de cachos cinzentos se esparramando debaixo de um chapéu alto e pontudo.

— Meu nome é Mamãe Gansa.

Era Nialla!

Oohs e aahs subiram da plateia, e ela sentou-se, sorrindo pacientemente até toda a excitação serenar.

— Vocês querem que eu lhes conte uma história? — perguntou, com uma voz que não era a de Nialla, mas ao mesmo tempo não era a de ninguém mais.

— Sim! — gritaram todos, inclusive o vigário.

— Então, muito bem — disse a Mamãe Gansa. — Vou começar do início, e continuar contando até chegar ao fim. E então eu vou parar.

Dava para ouvir um alfinete caindo.

— Era uma vez — disse ela —, numa aldeia não muito distante...

Enquanto ela dizia essas palavras, as cortinas de veludo vermelho com suas borlas douradas se abriram lentamente para revelar o aconchegante chalé que eu vislumbrara atrás dos bastidores, mas que agora podia ver com muito mais detalhes: as janelas com vidros em forma de losângo, as malvas-rosa pintadas, a banqueta de ordenhar de três pernas.

— ... onde vivia uma pobre viúva com seu filho, que se chamava João.

Nisso, entrou em cena um menino de calça curta de couro, jaqueta bordada e colete, andando de um modo relaxado e assobiando desafinadamente uma música.

— Mãe! — ele gritou — Você está em casa? Eu quero jantar.

Quando ele se virou para olhar em volta, a mão protegendo os olhos do sol pintado, a plateia inteira inspirou fundo.

O rosto esculpido em madeira de João era uma face que todos nós reconhecemos: era como se Rupert, deliberadamente, tivesse usado como modelo para o rosto do boneco uma fotografia de Robin, o filho morto dos Ingleby. A semelhança era sinistra.

Como uma aragem nos bosques frios de novembro, uma onda de sussurros inquietos varreu o salão.

— Shhh! — fez alguém afinal. Acho que foi o vigário.

Me perguntei como ele devia estar se sentindo ao ser confrontado com o rosto de uma criança que ele sepultara no pátio da igreja.

— João era um menino muito preguiçoso — prosseguiu a Mamãe Gansa. E, como ele se recusava a trabalhar, não se passou muito tempo até que as magras economias de sua mãe estivessem completamente esgotadas. Não havia mais nada para comer em casa, e não restava nem mesmo uma insignificância para a comida.

Então apareceu a pobre viúva, vindo de trás do chalé com uma corda na mão e, na outra ponta da corda, uma vaca. Ambas eram pouco mais que pele e ossos, mas a vaca tinha a vantagem de ter um lindo par de enormes olhos castanhos.

— Vamos ter de vender a vaca para o açougueiro — disse a viúva.

E então os enormes olhos da vaca se voltaram para ela, depois para João e finalmente para o público. Me ajudem!, eles pareciam dizer.

— Aaahhh — disse todo mundo ao mesmo tempo, numa crescente manifestação de simpatia.

A viúva voltou as costas para a pobre criatura e foi embora, deixando o trabalho sujo para João fazer. Assim que ela se foi, um mascate apareceu no portão.

— 'Dia, senhor — disse ele para João. — Você parece um rapazinho esperto, do tipo que pode estar precisando de alguns feijões.

— Pode ser — disse Joãozinho.

— João se achava um negociante astuto — disse a Mamãe Gansa —, e antes que você pudesse dizer “Llanfairpwllgwyngyllgogerychwyrndrobwyllllantysiliogogogoch”, que é o nome de um lugar em Gales, ele já tinha trocado a vaca por um punhado de feijões.

A vaca ficou toda de pernas duras e cravou os calcanhares no chão, enquanto o mascate tentava arrastá-la para fora, e João ficou lá, olhando para o montinho de feijões na palma da sua mão.

Então, de repente, a mãe dele voltou.

— Onde está a vaca? — perguntou. — Seu parvo, imbecil!

E ela lhe deu um chute no traseiro.

Com isso, uma imensa gargalhada veio das crianças na plateia, e tenho de admitir que eu também dei uma risadinha. Estou na idade em que vejo esse tipo de coisa com duas cabeças, uma que ri dessas bobagens e outra que nunca vai além de um sorriso enfastiado e um tanto constrangido, como o da Mona Lisa.

Com aquele pontapé, João realmente saiu voando pelo ar, espalhando feijões por todos os lados.

Agora a plateia em peso rolava de rir.

— Você vai dormir no galinheiro — disse a viúva. — Se ficar com fome, pode ciscar milho.

E dizendo isso ela se foi.

— Ai de mim — disse João, e se esticou em cima do banco ao lado da porta do chalé.

A luz do sol desvaneceu-se muito rápido, e de repente era noite. Uma lua cheia brilhava acima das colinas envolventes. As luzes do chalé estavam acesas, a luz morna e alaranjada se esparramando pelo pátio. João estremeceu em seu sono, mudou de posição e começou a roncar.

— Mas vejam! — disse a Mamãe Gansa. — Alguma coisa está se mexendo no jardim.

Agora a música se tornara mística: o som de uma flauta em um bazar oriental.

Algo se mexia no jardim. E como que por mágica uma coisa que de início parecia um cordão verde, e depois uma corda verde, começou a se erguer serpenteando da terra, se torcendo e se contorcendo como uma naja na cesta de um faquir, até a ponta desaparecer de vista.

Enquanto aquilo se erguia para o céu, e a noite mudava rapidamente para dia, o pé de feijão crescia, cada vez mais depressa, até por fim ficar parecendo uma árvore verde-esmeralda, apequenando o chalé.

Novamente a música era Manhã.

João se espreguiçou, bocejou e rolou desajeitadamente para fora do banco. Com as mãos na cintura, ele se curvou para trás de um modo impossível, tentando relaxar as juntas enrijecidas. E então avistou o pé de feijão.

Recuou como se tivesse levado um soco, lutando para manter o equilíbrio, os pés cambaleando, os braços girando como moinhos de vento.

— Mãe! — gritou. — Mãe! Mãe! Mãe! Mãe!

A velha apareceu imediatamente, vassoura na mão, e João dançou como um louco em volta dela, apontando.

— Os feijões, como vocês veem — disse a Mamãe Gansa —, eram mágicos, e no meio da noite eles cresceram e se transformaram em um pé de feijão que ficou mais alto que as nuvens.

Bem, todo mundo conhece a história de João e o pé de feijão, portanto não é preciso que eu a conte aqui de novo. Na hora seguinte, a história prosseguiu como sempre, há centenas de anos: a escalada de João, o castelo nas nuvens, a mulher do gigante e como ela escondeu João no forno, a harpa mágica, os sacos de prata e ouro... tudo isso estava lá, trazido à vida de forma brilhante pela genialidade de Rupert.

Ele nos manteve presos à palma de sua mão do começo ao fim, como se fosse ele o gigante e todos nós fôssemos o João. Ele nos fez rir e nos fez chorar, e às vezes as duas coisas ao mesmo tempo. Eu nunca tinha visto nada parecido.

Minha cabeça estava trepidando de perguntas. Como Rupert podia operar as luzes, os efeitos sonoros, a música e os cenários do palco ao mesmo tempo que manipulava uma porção de marionetes, provendo cada qual das vozes certas? Como ele fizera o pé de feijão crescer? Como João e o gigante puderam sair perseguindo alegremente um ao outro sem que os cordéis se embaraçassem? Como o sol despontou? E a lua?

A Mamãe Gansa estava certa: os feijões eram mágicos, e nos hipnotizaram, a todos.

E agora se aproximava o final. João descia atabalhoadamente pelo pé de feijão, com sacos de ouro e prata na cintura. O gigante vinha não muito atrás.

— Pare! — trovejou a voz do gigante. — Pare, seu ladrão, pare!

Antes ainda de chegar ao chão, João já estava chamando sua mãe.

— Mamãe! Mamãe! Pegue o machado! — bradou e, arrancando-o das mãos dela, pulou para o chão e começou a golpear furiosamente o tronco do pé de feijão, que parecia se encolher, como se sentisse dor ao contato com a lâmina afiada.

A música atingiu um clímax, e houve um estranho instante em que o tempo pareceu congelar. E então o pé de feijão desabou, e um momento depois o gigante desmoronou para o chão.

Ele caiu no pátio na frente do chalé, o torso imenso fazendo o chalé parecer minúsculo, os olhos vidrados olhando sem vida por cima de nossas cabeças. O gigante estava morto como uma pedra. As crianças gritaram, e até alguns dos pais se puseram de pé.

Era, é claro, Galligantus, o monstro articulado que eu vira antes do espetáculo. Mas eu não tinha ideia de como sua queda e sua morte seriam vistas desse ângulo.

Meu coração batia forte no peito. Foi glorioso!

— E assim morreu Galligantus — disse a Mamãe Gansa —, o gigante cruel. Depois de algum tempo, a mulher dele se sentiu solitária no céu, e encontrou outro gigante para se casar. João e sua mãe, agora ricos além dos seus sonhos mais desvairados, viveram, como todas as pessoas de bem, felizes para sempre. E nós sabemos que todos vocês também, cada um de vocês.

João sacudiu o pó das mãos com displicência, como se matar um gigante fosse uma coisa corriqueira.

As cortinas vermelhas se fecharam lentamente, e, enquanto elas faziam isso, o inferno irrompeu no salão paroquial.

— É o Diabo! — gritou uma voz feminina no fundo do salão. — O Diabo agarrou o menininho e o encolheu! É o Diabo!

Me virei e vi alguém agitando os braços na porta aberta. Era Meg, a Louca. Ela apontava o dedo para o palco e então jogou as mãos para cima, cobrindo o rosto. Naquele momento, as luzes do salão se acenderam.

O vigário apareceu rapidamente a seu lado.

— Não, não! — gritou ela. — Não levem a velha Meg! — Deixem-na em paz!

De algum modo, ele conseguiu passar o braço em volta dos ombros dela e a levou gentilmente, mas com firmeza, para a cozinha do salão, onde por um ou dois minutos sua pobre voz entrecortada pôde ser ouvida gemendo: “O Diabo! O Diabo! O Diabo agarrou o pobre Robin!”.

Um silêncio caiu sobre o lugar. Os pais começaram a encaminhar suas crianças, todas elas agora caladas, para as saídas.

As mulheres da Sociedade Beneficente das Damas deram uma arrumadela a esmo e depois saíram apressadas, provavelmente para mexericar com as mãos sobre a boca, pensei.

Me vi sozinha no salão.

Nialla parecia ter sumido, embora eu não a tivesse visto sair. Como eu podia ouvir um suave murmúrio de vozes nos bastidores, Rupert presumivelmente ainda estava na ponte do seu palco de marionetes.

Foi então que pensei em pôr a física para trabalhar. Como eu disse, os projetistas vitorianos do salão fizeram de seu interior um perfeito refletor de som. As vastas extensões de lambris escuros envernizados do salão capturavam os sons mais sutis e os focalizavam de modo maravilhoso. Ficando de pé bem no centro do salão, descobri que, com minha audição aguçada, podia facilmente entender cada palavra. Uma das vozes que eu ouvira era a de Rupert.

— Mas que inferno! — ele dizia com um sonoro sussurro. — Mas que inferno, Nialla!

Nialla não disse nada, embora eu achasse ter ouvido um soluço.

— Bem, temos de dar um basta nisso. Não há dúvida.

Dar um basta no quê? Teria ela contado que estava grávida? Ou ele estava falando sobre sua discussão com Mutt Wilmott? Ou com Gordon Ingleby?

Antes que eu pudesse ouvir mais uma palavra, a porta da cozinha se abriu, e o vigário entrou no salão com Meg, a Louca, apoiada em seu braço, seguidos por Cynthia e duas damas da Sociedade Beneficente.

— Fora de questão — dizia Cynthia —, totalmente fora de questão. O lugar está simplesmente fedendo a emanações de tinta. Além disso, não temos...

— Infelizmente vamos ter de ir contra você dessa vez, minha querida. Esta pobre mulher precisa de algum lugar para descansar, e não poderíamos simplesmente expulsá-la para...

— Para uma choupana no meio do mato? — perguntou Cynthia com um intenso rubor subindo em suas faces.

— Flavia, minha querida — disse o vigário ao me avistar —, você se importaria de dar uma corrida na frente até o presbitério? A porta está aberta. Faça a gentileza de remover os livros que estão em cima do sofá no meu estúdio... pode colocá-los em qualquer lugar. Deveremos chegar lá em seguida.

Nialla apareceu de repente atrás das cortinas.

— Só um momento, vigário — disse ela. — Eu vou com vocês.

Vi que ela estava se segurando, mas com dificuldade.


O estúdio do presbitério dava a impressão de que Charles Kingsley acabara de pôr de lado a sua pena e sair da sala. As estantes, do chão ao teto, estavam atulhadas de ponta a ponta com volumes que, a julgar pelas encadernações solenes, só poderiam ser de interesse eclesiástico. Uma escrivaninha atravancada, transbordando, cobria a maior parte da única janela da sala, e um sofá de crina de cavalo preta, um verdadeiro Everest de livros empoeirados, estava encostado, num ângulo maluco, em um tapete turco esgarçado.

Eu mal acabara de pôr os livros no chão, Nialla e o vigário chegaram, conduzindo Meg solicitamente para o sofá. Ela parecia entorpecida, conseguindo pronunciar apenas alguns resmungos vagos, enquanto Nialla a ajudava a se reclinar e alisava suas roupas encardidas.

Um momento depois, a presença imponente do dr. Darby preencheu o vão da porta. Alguém devia ter subido às pressas a rua principal para ir buscá-lo em seu consultório.

— Hum — ele arriscou enquanto punha sua valise preta de médico em cima da mesa, abria o fecho e dava uma boa vasculhada lá dentro. Com um ruidoso farfalhar, tirou um saquinho de papel e extraiu lá de dentro uma pastilha de hortelã, que jogou na boca.

Resolvido o detalhe, inclinou-se por cima de Meg para dar uma olhada mais de perto nela.

— Hum — fez de novo, e foi procurar uma seringa na valise. Ele a encheu com alguma coisa tirada de um pequeno frasco de líquido transparente, arregaçou a manga de Meg e enfiou a agulha no braço dela.

Meg não proferiu nenhum som, mas olhou para ele com os olhos de um cavalo atingido por uma marreta. De um guarda-roupa alto no canto, como num passe de mágica, o vigário extraiu um travesseiro e uma manta de lã de cores brilhantes.

— Para os cochilos da tarde — sorriu ele, cobrindo-a com delicadeza, e Meg começou a roncar antes mesmo do último de nós sair silenciosamente da sala.

— Vigário — disse Nialla de repente —, sei que você vai achar isto muito feio da minha parte, mas preciso lhe pedir um grande favor.

— Pode pedir — disse o vigário, com uma olhadela preocupada para Cynthia, que andava de um lado para outro no canto oposto do salão.

— Eu ficaria eternamente grata se você me permitisse tomar um banho quente. Há tanto tempo não tomo um, que me sinto como uma criatura vivendo embaixo de uma pedra.

— Mas claro, querida — disse o vigário. — É lá em cima, no fim do corredor. Pegue sabonete e toalhas.

— E não ligue para o pequeno iate — ele acrescentou com um sorriso. É meu.

Enquanto Nialla subia a escada, um salto de borracha guinchou no assoalho encerado, e Cynthia se foi.

— Cynthia se ofereceu para levá-la de volta a Buckshaw — disse o vigário voltando-se para mim, e percebi imediatamente que ele estava mentindo. — Espero ver você de volta esta noite, com sua família.

— Sim, é claro — disse eu. — Todos estão ansiosos para ver João e o pé de feijão.


Com Gladys precariamente amarrada na capota, nos arrastamos muito devagar pelo caminho, na cansada e poeirenta Oxford. Cynthia, como toda mulher de vigário, tinha a tendência a exagerar no volante, esterçando de um lado para outro em uma série de curvas fechadas entre as sebes.

Sentada ao lado dela no banco da frente, tive uma boa oportunidade de examinar a oclusão defeituosa de seus dentes, de perto e de perfil. Mesmo com a boca fechada, ela exibia uma quantidade notável de dentes, e me vi seriamente repensando minha rebelião contra os aparelhos dentários.

— Tem sempre alguma coisa, não é mesmo? — ela disse de repente, o rosto ainda afogueado por causa da recente humilhação. — A gente está sempre sendo arrastada para fora de casa por causa de alguém mais necessitado. Não que eu me importe, é claro. Primeiro, foram os ciganos. Depois, os removidos de guerra. E, no ano passado, os ciganos vieram de novo. Denwyn foi atrás deles no Bosque Gibbet e convidou pessoalmente cada um deles para comparecer à Santa Eucaristia. Nem um único homem apareceu, é claro. Os ciganos são essencialmente selvagens ou, quem sabe, católicos romanos. Não é que eles não tenham alma; eles têm, claro. Mas a gente sempre sente que a alma deles é muito mais sombria que a nossa.

— Eu me pergunto como Nialla estará indo com seu banho — comentei alegremente, enquanto subíamos a avenida de castanheiras a caminho de Buckshaw.

Cynthia ficou olhando direto para a frente, agarrada ao volante.


— Bobagens! — declarou tia Felicity. — Devemos ir como uma família.

Estávamos na sala de estar, todos espalhados e o mais separados que era humanamente possível.

O pai resmungou alguma coisa sobre álbuns de selos, e vi que Dafi já estava prendendo a respiração numa tentativa de simular uma febre.

— Você e suas meninas precisam sair mais, Haviland. Estão todos pálidos como águas-vivas. É por minha conta. Vou chamar Clarence com seu carro assim que acabarmos de comer.

— Mas... — o pai conseguiu dizer.

— Eu não vou tolerar mais desculpas, Haviland.

Do lado de fora, Dogger estava arrancando as ervas daninhas no terraço. Tia Felicity bateu de leve na vidraça para chamar sua atenção.

— Sim, senhorita? — disse ele, entrando pela porta-janela com o chapéu de palha na mão.

— Telefone para Clarence e diga-lhe que precisamos de um táxi para sete pessoas às seis e meia.

— Às seis e meia, senhorita? — perguntou Dogger, franzindo o cenho.

— É claro — disse tia Felicity. — Ele terá de fazer duas viagens. Suponho que você e a sra. Mullet ficariam aborrecidos se fossem deixados de fora; os espetáculos de marionetes não são apenas para quem tem sangue azul, você sabe.

— Obrigado, senhorita — disse Dogger.

Tentei olhar para seus olhos, mas ele já se fora.


CLARENCE PAROU NA FRENTE DO PÓRTICO às vinte para as sete. Ele deu a volta no táxi para abrir a porta para tia Felicity, que insistira em sentar-se no banco da frente com ele a fim de, como ela disse, ficar de olho nos maus motoristas da estrada.

Ela vestira uma espécie de capa de ópera cômica por cima de um volumoso conjunto de seda vermelha que poderia ter sido surrupiado de um harém persa. Seu chapéu era um saco preto desmoronado, com uma pena de pavão ondulando atrás como a fumaça da chaminé do trem Flying Scotsman; nos pés havia um chinelo medieval amarelo-mostarda, com pontas compridas viradas para cima como um par de bolsas de gelo. O pai e Felinha desceram do outro lado do táxi.

— Agora vá buscar os outros, Clarence — comandou tia Felicity —, e não fique embromando.

Clarence ergueu um dedo indicador para a ponta de seu quepe e, com uma engrenada impertinente, foi embora.

Dentro do salão paroquial, descobrimos que toda a primeira fila de cadeiras tinha sido reservada para nós. Tia Felicity certamente não economizara na aquisição dos ingressos. Ela e o pai sentariam bem no centro, com Felinha e Dafi à esquerda. Eu ficaria à direita do pai, com Dogger e a sra. Mullet (quando chegassem) ao nosso lado.

Já estava tudo pronto. As luzes da plateia haviam sido atenuadas, e havia uma deliciosa expectativa no ar. Música incidental flutuava dos bastidores, e de quando em quando as cortinas de veludo vermelho davam uma tremida sedutora.

Toda a população de Bishop’s Lacey parecia estar presente. Mutt Wilmott, eu vi, estava em um assento encostado à parede perto do fundo. A srta. Cool, uma fileira atrás dele, ouvia Cynthia Richardson, que lhe dava toda a atenção, e atrás dela sentava-se a srta. Mountjoy, sobrinha do falecido dr. Twining, o velho mestre-escola do pai. À direita da srta. Mountjoy, vindos da Fazenda Culverhouse, estavam sentados lado a lado Dieter Schrantz e Sally Straw, a Menina da Terra. Dei-lhes um pequeno aceno, e os dois abriram um sorriso.

— Haroo, mon vieux! Flavia!

Era Maximilian Wight, nosso diminuto vizinho, que, depois de diversas excursões mundiais como concertista de piano, se estabelecera por fim em nossa aldeia para ensinar música. Felinha tinha sido uma de suas alunas, mas abrira mão das aulas quando Max começou a fazer perguntas indiscretas demais sobre seus “amantes”. Max acenou com uma luva branca, e acenei de volta.

Enquanto perscrutava as fileiras de rostos, meus olhos deram uma brecada em uma mulher de cabelo escuro que usava um conjunto de lã verde-acinzentado. Não era ninguém que eu tivesse visto antes e devia ser, pensei, uma estranha em Bishop’s Lacey. Talvez alguém visitando um parente.

O homem ao lado dela reparou no meu olhar e me deu um sorriso simpático: o inspetor Hewitt. Não fazia muito tempo, eu o ajudara a levar um assassino à justiça.

Num segundo, eu estava plantada na frente dele, movendo-me desajeitada de um pé para o outro antes de me dar conta de que provavelmente estava sendo inconveniente.

— Curioso encontrá-la aqui — disse o inspetor. Não foi um comentário especialmente original, mas disfarçava muito bem o que poderia ter sido um momento embaraçoso.

— Antigone — ele disse à mulher de cabelo escuro —, gostaria de apresentar-lhe Flavia de Luce.

Soube com certeza que ela diria: “Ah, sim, meu marido falou de você”, e diria isso com aquele sorrisinho malicioso que tanto revela sobre a conversa divertida que haveria depois.

— Estou encantada em conhecê-la — disse ela, estendendo a mão mais bonita do mundo e dando-me um bom aperto —, e em saber que você compartilha do meu amor por marionetes.

Se ela tivesse dito “Vá buscar”, eu teria ido.

— Adoro o seu nome — consegui dizer.

— É mesmo? Meu pai era grego, e minha mãe, italiana. Ela era professora de balé, e ele, um peixeiro, assim me criei dançando nas ruas de Billingsgate.

Com seu cabelo escuro-dourado e olhos verde-mar, ela era a imagem da Flora de Botticelli, cujas feições adornavam as costas de um espelho de mão que o pai um dia dera a Harriet.

Senti vontade de perguntar: “Em que ilha distante fica o seu santuário, para eu ir lá adorá-la?”, mas apenas continuei jogando o peso do corpo de um pé para o outro e murmurei:

— Foi um prazer conhecê-la, sra. Hewitt. Espero que você e o inspetor Hewitt apreciem o espetáculo.

Quando voltei ao meu lugar, o vigário marchou determinado para a frente do salão e se posicionou diante do palco. Sorriu, indulgente, aguardando Dafi, a sra. Mullet e Dogger voltarem a seus lugares.

— Senhoras e senhores, meninos e meninas, paroquianos de São Tancredo e de outras comunidades, obrigado pela presença de todos vocês. Nesta noite, sentimo-nos honrados em dar as boas-vindas ao renomado artista de marionetes, se ele me permite usar essa nomenclatura ilustre... Rupert Porson.

 

(Aplausos)

— Embora o sr. Porson, ou Rupert, se me permitem, seja mais conhecido hoje em dia por suas atuações na Televisão BBC com O Reino Mágico, que, com certeza, todos vocês sabem, é o mundo de Snoddy, o Esquilo...


(Aplausos)


— ... eu sei, de fonte segura, que ele viajou extensamente, exibindo sua arte manipulativa em todas as suas múltiplas formas e, em pelo menos uma ocasião, se apresentou perante uma das cabeças coroadas da Europa.


(Aplausos)

 

— Mas antes que João venda a vaca da sua pobre mãezinha por um punhado de feijões...

— Pssst! Não entregue a trama, vigário!

(Tully Stoker, o proprietário e senhorio da Treze Patos, foi saudado com grandes gargalhadas, inclusive a sua própria.)

— ... e enquanto o maestro prepara suas cordas encantadas, a Sociedade Beneficente das Damas de São Tancredo tem o prazer de apresentar, para o seu entretenimento musical, as senhoritas Puddock, Lavinia e Aurelia.

Oh, Senhor! Poupai-nos! Por favor, poupai-nos!

Tínhamos sido salvos de ter de ouvi-las durante a matinê unicamente porque sua Casa de Chá São Nicolau as mantivera ocupadas demais para comparecer.

As senhoritas Puddock tinham exclusividade absoluta nos eventos públicos do salão paroquial da igreja de São Tancredo. Não importava se fosse um chá oferecido pela Liga das Senhoras, um carteado da Guilda do Altar, uma Liquidação de Garagem da Sociedade Beneficente ou um show de flores da primavera do Conselho Paroquial, as senhoritas Puddock se apresentavam, no inverno ou no verão, chovesse ou fizesse sol.

A senhorita Lavinia sentava-se na frente do piano, vasculhava sua bolsa e pescava ali finalmente uma partitura esfarrapada: O último assalto de Napoleão.

Depois de uma espera interminável, durante a qual jogava o rosto para a frente até o nariz encostar na partitura, ela se endireitava, a coluna reta como um atiçador de lareira, erguia as mãos acima do teclado, deixava-as cair, dava uma segunda olhada estrábica para a partitura e então atacava, como um urso pardo agadanhando um salmão no jornal cinematográfico da Pathé.

Quando ela acabava, sua irmã, a senhorita Aurelia, tomava posição, as pontas dos dedos enluvadas de branco roçando displicentemente o piano e pipilando (desculpem, mas não existe outra palavra para o que ela fazia) O rio de Bendemeer.

Depois, o presidente anunciava que o Conselho Paroquial votara unanimemente para presentear as senhoritas Puddock com especiais: um prêmio por apreciação, como ele sempre colocava.

E elas saíam!

A senhorita Lavinia, com os olhos cravados na partitura, estava no meio de O último assalto de Napoleão, quando notei pela primeira vez que enquanto ela lia a partitura seus lábios se mexiam. Não pude deixar de me perguntar o que ela estava dizendo. A música não tinha letra; estaria dando nome aos acordes? Ou rezando?

Misericordiosamente, ela entrou naquilo em um galope um pouco mais rápido do que o usual, e logo a coisa terminou, ao menos de certa forma. Notei que os músculos do maxilar de Felinha se contraíam e que Max parecia estar mordendo um caramelo de aço inoxidável.

E agora era a vez da senhorita Aurelia. A senhorita Lavinia martelou os primeiros compassos de uma introdução antes que a irmã se juntasse a ela:

 

Há junto ao rio Bendemeer um caramanchão de rosas

E à sua volta o dia inteiro canta o rouxinol.

Nos meus tempos de infância era como um doce sonho.

(Os tempos de infância da senhorita Aurélia, olhando para ela, deviam ter sido durante o reinado de George III.)

Sentar entre as rosas e ouvir o canto dos passarinhos.

 

Quando ela acabou, houve alguns rudimentos de aplausos polidos; a senhorita Aurelia levantou-se e permaneceu com a cabeça inclinada por alguns momentos, verificando se havia alguma poeira no piano com os dedos e aguardando ser persuadida a um bis. Mas o público, sabendo bem que não devia encorajá-la, se acomodou rapidamente em seus lugares, e alguns de nós cruzaram os braços.

Quando as luzes da plateia se apagaram, me virei para dar uma última olhada no público. Um casal de retardatários acabava de se acomodar. Para meu horror, vi que eram Gordon e Grace Ingleby, ela em seu horrível traje preto de sempre, ele com um chapéu de feltro, pelo amor de Deus! E os dois não pareciam nada felizes por estar ali.

De início, senti a raiva subir e palpitar no meu peito. Por que ninguém os avisara? Por que ninguém se preocupara em mantê-los afastados? Por que eu não fizera isso?

De um jeito maluco, o que surgiu na minha cabeça foi algo que Dafi me disse uma vez: que é obrigação de um monarca constitucional avisar e aconselhar.

Se Sua Majestade Real, o Rei George VI, estivesse entre nós naquela noite, ele seria obrigado a chamá-los de lado e dizer algo sobre o boneco com a face de seu filho morto. Mas ele não estava.

Além disso, já era tarde demais. O salão estava na mais total escuridão. Ninguém além de mim parecia ter notado a presença dos Ingleby.

E então o espetáculo começou. Por causa das intermináveis senhoritas Puddock, imagino, Rupert decidira cortar a cena de Mozart e ir diretamente para a peça principal.

As cortinas de veludo vermelho se abriram, exatamente como haviam feito à tarde, revelando o chalé da viúva. O foco de luz se acendeu para iluminar Nialla em sua fantasia de Mamãe Gansa. Manhã, de Grieg, flutuava no ar, pintando na mente imagens assustadoras de florestas escuras e fiordes gelados.

— Era uma vez, numa aldeia não muito distante — começou Nialla —, onde vivia uma pobre viúva com seu filho, que se chamava João.

E João entra em cena: o João com a cara de Robin Ingleby.

Novamente, a inspiração audível e funda quando algumas pessoas da plateia reconheceram as feições do menino morto. Eu dificilmente me atreveria a me virar e olhar, mas, fingindo que minha saia ficara presa no mecanismo articulado da cadeira, consegui me torcer no lugar apenas o suficiente para lançar uma olhada furtiva na direção dos Ingleby. Os olhos de Grace estavam arregalados e olhando fixo, mas ela não gritou; parecia congelada no lugar. Gordon apertava sua mão, sem que ela notasse.

No palco, o boneco João gritou:

— Mãe, você está em casa? Eu quero jantar.

— João era um menino muito preguiçoso — disse a Mamãe Gansa. — E como ele se recusava a trabalhar, não se passou muito tempo até que as magras economias de sua mãe estivessem completamente esgotadas. Não havia mais nada para comer em casa, e não restava nem mesmo uma insignificância para a comida.

Quando os arquejos e murmúrios se abrandaram, o espetáculo prosseguiu. Rupert estava em boa forma: os movimentos das marionetes eram tão convincentes, suas vozes tão perfeitas, que a plateia logo cedeu ao encantamento, como o vigário sugerira que iria acontecer.

Iluminados pelas luzes coloridas do palco, as faces das pessoas à minha volta eram como as faces de uma pintura de Toulouse-Lautrec, vermelhos, acalorados e profundamente atentos aos pequenos atores de madeira. Enquanto tia Felicity mastigava, excitada, uma bala digestiva de hortelã, notei que até o pai tinha uma expressão meio divertida, porém, não consegui saber se era pelos bonecos ou pela irmã dele.

A cena da vaca, dos feijões e do chute nos fundilhos foi recebida com gargalhadas ainda mais ruidosas do que na apresentação da tarde.

As bocas (e até a de Dafi) se abriram quando o pé de feijão cresceu enquanto João dormia, e as pessoas começaram a se cutucar com os cotovelos, deleitadas. Quando João escalou o pé de feijão para dentro do reino do gigante, Rupert tinha Bishop’s Lacey inteira comendo em sua mão.

Como Mutt Wilmott estaria reagindo a todo esse sucesso?, me perguntei. Ali estava Rupert, obviamente em sua melhor forma em um espetáculo ao vivo (por assim dizer), sem nenhum aparato televisivo, por mais maravilhoso que fosse, entre ele e seu público. Quando me voltei para olhar, vi que Mutt se fora e que o vigário ocupara seu lugar.

E o mais estranho: Gordon Ingleby também não estava lá. Seu lugar achava-se desocupado, mas Grace ainda estava sentada imóvel, com seus olhos vagos fixos no palco, onde a mulher do gigante acabara de esconder João no grande forno de pedra.

— Fi! Fo! Fum! — rugiu o gigante ao entrar na cozinha. — Estou sentindo o sangue de um inglês comum!

— João pulou para fora do forno... — disse a Mamãe Gansa.

— Senhor! Senhor! — gritou a encantadora harpa-marionete, tangendo suas próprias cordas, agitada. Era a parte de que eu mais gostava.

— ... agarrou a harpa de ouro e saiu em disparada, com o gigante logo atrás!

Pé de feijão abaixo João desceu, as folhas verdes ondulando em volta dele. Quando finalmente a vegetação escasseou, o cenário já havia mudado para o chalé de sua mãe. Foi um efeito maravilhoso, e não fui capaz, por mais que tentasse, de descobrir como Rupert conseguira fazer aquilo. Teria de perguntar a ele.

— Mamãe! Mamãe! Pegue o machado! — gritou João, e a velha senhora veio manquilotando pelo jardim (ah, tão devagar!), com o machado nas mãos.

João atirou-se contra o pé de feijão com todas as suas forças, o machado golpeando veloz e furiosamente, o pé de feijão encolhendo de novo, e de novo, como que em agonia por causa da lâmina maldosamente reluzente.

E então, como fizera antes, o pé de feijão cedeu e desmoronou para o chão.

João parecia estar olhando para cima quando, com um ruído retumbante, o gigante despencou do céu e esborrachou-se no chão.

Por alguns momentos o monstro ficou se contraindo espasmodicamente de um modo horrível, um fio de sangue cor de rubi escorrendo do canto da boca, a cabeça pavorosa e os ombros enchendo o palco de fagulhas, enquanto fumaça e pequenas chamas erguiam-se em anéis inclementes do cabelo e do cavanhaque ardentes. Mas os olhos sem vida que olhavam sem ver para os meus não eram aqueles do gigante articulado Galligantus. Eram os olhos vidrados e moribundos de Rupert Porson.

E então todas as luzes se apagaram.


SUBITAMENTE MERGULHADO NAS TREVAS, o público deu uma inspirada funda e soltou um suspiro coletivo.

Na cozinha, alguém teve a presença de espírito de acender uma lanterna, e um momento depois trouxe-a para fora, como um fogo-fátuo dardejante, para a parte principal do salão paroquial.

Como o vigário foi perspicaz em tentar fechar as cortinas! Pelo menos era o que ele tentava fazer, quando foi interrompido por uma voz alta e autoritária:

— Não! Não! Afaste-se. Não toque em nada.

Era Dogger. Ele se pusera de pé e bloqueara o caminho do vigário, os braços totalmente estendidos e parecendo estar tão surpreso quanto todos nós com sua própria ousadia. Nialla, que se erguera bruscamente e dera um único passo em direção ao proscênio, paralisou-se de súbito no lugar.

Tudo isso aconteceu sob o facho semovente da lanterna, fazendo a cena parecer algum tipo de drama horripilante representado durante um ataque aéreo, iluminado por um holofote de busca.

Uma segunda voz veio da escuridão no fundo do salão: era do inspetor Hewitt.

— Fiquem todos parados, por favor, permaneçam onde estão. Não se movam enquanto eu não disser que podem se mover.

Ele foi rapidamente até a frente do auditório e desapareceu nos bastidores, enquanto alguém perto da porta tentava em vão acionar alguns interruptores, mas as lâmpadas incandescentes em suas arandelas de vidro fosco continuaram apagadas.

Houve alguns resmungos de protesto até que o policial Linnet, à paisana naquela noite, foi até a fila da frente com uma das mãos erguidas no ar pedindo atenção. Ele levara uma segunda lanterna, que dirigiu para o próprio rosto, o que lhe emprestou uma pavorosa aparência cadavérica.

— Por favor, façam o que o inspetor disse — recomendou ele ao público. — Agora ele está no comando aqui.

O dr. Darby, eu notei, já estava abrindo caminho pelo corredor lateral abarrotado, em direção ao palco.

Nialla, quando a vislumbrei, parecia estar enraizada no lugar; ela não tinha movido um músculo. Seu chapéu alto de Mamãe Gansa estava caído de lado, e, se a situação não fosse o que era, eu poderia ter rido muito de sua aparência.

Minha primeira reação, claro, foi ir até ela, mas fui detida pela mão do pai, firme em meu braço.

Quando o corpo de Rupert se estatelou no palco, tanto Dafi como Felinha puseram-se em pé de um salto. O pai ainda fazia sinais para elas se sentarem, mas as duas estavam excitadas demais para prestar alguma atenção a ele.

O inspetor reapareceu no vão da porta à esquerda do palco. Havia dois daqueles corredores, um de cada lado, cada qual conduzindo a uma saída e a uns poucos degraus até o palco. Era naquelas áreas fechadas que os coros de anjinhos risonhos costumavam ser postos em ordem para o desfile anual de Natal de São Tancredo.

— Policial Linnet, pode me emprestar a sua lanterna, por favor?

O policial Linnet entregou sua Eveready de cinco pilhas, que parecia daquele tipo que você vê sendo usado em filmes, nas buscas em pântanos brumosos. Ele provavelmente a levara para iluminar o caminho para casa pelas veredas depois do espetáculo, sem jamais ter pensado que poderia ser tão útil.

— Um minuto da atenção de todos, por favor — disse o inspetor Hewitt. — Estamos tentando fazer todo o possível para as luzes voltarem, mas pode demorar algum tempo até conseguirmos ligá-las de novo de forma definitiva. Poderá ser necessário, por uma questão de segurança, ligar e desligar a corrente várias vezes. Eu peço que todos voltem a seus lugares e que lá permaneçam, até que eu consiga lhes dar novas instruções. Não há nenhuma razão para se alarmarem, então, por favor, mantenham-se calmos.

Eu o ouvi dizer discretamente ao policial Linnet:

— Cubra o palco. Aquela faixa na frente do balcão vai servir. — Ele apontou para uma grande faixa de cânhamo que se estendia diante do balcão, acima da porta principal: “Sociedade Beneficente das Damas de São Tancredo”, estava escrito, com uma cruz de São Jorge em vermelho e branco. “Cem anos de serviços, 1850-1950.”

— E depois de fazer isso — acrescentou o inspetor —, telefone para Graves e Woolmer. Transmita-lhes minhas saudações e peça que venham o mais depressa possível.

— É a noite do críquete deles, senhor — disse o policial Linnet.

— Que seja. Nesse caso, transmita minhas saudações e também minhas desculpas. Estou certo de que o vigário permitirá que você use o telefone.

— Valha-me Deus! — disse o vigário, olhando em volta do salão, embaraçado. — Nós temos um telefone, é claro... para uso da Sociedade Beneficente e do Instituto das Mulheres, você sabe... mas infelizmente fomos forçados a mantê-lo trancado em um armário da cozinha... tantas pessoas fazendo interurbanos para amigos em Devon, ou até na Escócia.

— E a chave? — perguntou o inspetor Hewitt.

— Eu a entreguei a um cavalheiro de Londres logo antes do espetáculo. Ele disse que era da BBC, que precisava fazer uma chamada urgente... disse que me reembolsaria assim que a telefonista tocasse de volta informando a taxa. Que estranho, não o estou vendo aqui agora. — Ainda assim, há sempre o telefone do presbitério — acrescentou ele.

Meu primeiro impulso foi me oferecer para forçar o cadeado, mas antes que eu pudesse dizer uma palavra o inspetor Hewitt sacudiu a cabeça.

— Estou certo de que poderemos remover as dobradiças sem causar nenhum dano.

Sinalizando com um dedo, ele chamou George Carew, o carpinteiro da aldeia, que pulou do seu lugar como um projétil.

A não ser pelo fraco brilho ocasional da lanterna no palco, estávamos sentados no escuro pelo que parecia ser uma eternidade.

E então, de repente, as luzes voltaram, fazendo-nos piscar e esfregar os olhos e olhar em volta uns para os outros de um jeito ridículo.

E lá estava Rupert, a sua cara morta paralisada em um olhar de surpresa, ainda ocupando o centro do palco. Logo estariam cobrindo seu corpo com a bandeira, e me dei conta de que, se era para eu me lembrar da cena para alguma referência futura, teria de registrar uma série de instantâneos mentais. Não teria muito tempo para trabalhar.

Clic!

Os olhos: as pupilas estavam imensamente dilatadas, tanto que se eu tivesse podido chegar um pouco mais perto, teria visto a mim mesma refletida em suas superfícies convexas tão claramente como Jan van Eyck se vira refletido no espelho do quarto na sua pintura do dia do casório dos Arnolfini.

Mas não por muito tempo: as córneas já tinham começado a ficar enevoadas, e o branco dos olhos começava a perder o brilho.

Clic!

O corpo não se sacudia mais em espasmos. A pele adquirira uma coloração azulada. O canto da boca parecia ter parado de sangrar, e o pouco sangue ainda visível parecia estar ligeiramente mais escuro e mais grosso, muito embora as luzes âmbar e verdes da ribalta pudessem influenciar minha percepção das cores.

   Clic!

Na frente, logo abaixo da faixa capilar, havia uma descoloração escura do tamanho e da forma de uma moeda. Embora os fios de cabelo ainda ardessem lentamente, enchendo o salão de um odor acre que seria esperado sempre que fosse queimado um aminoácido rico em enxofre e queratina, aquilo não era o bastante para justificar a fumaça que se acumulava, ainda pairando pesadamente acima das luzes. Pude ver que as cortinas e o cenário ainda estavam totalmente intactos, portanto devia haver mais alguma coisa queimando nos bastidores. A julgar pelo cheiro de capim queimado, adivinhei que era linho — provavelmente um tecido.

    Clic!

Quando Rupert se estatelou, Nialla se pôs em pé de um salto e fez um movimento em direção à frente do palco, mas então ela parou, indecisa. Estranhamente ninguém, nem mesmo eu, foi até ela, que agora, depois de passados alguns minutos, caminhava lentamente em direção à cozinha, com as duas mãos cobrindo o rosto. Seria uma reação retardada?, eu me perguntei. Ou alguma outra coisa?

O policial Linnet foi a passos pesados até a frente do auditório, a faixa enrolada embaixo do braço e o grande canivete com o qual cortara os cordões ainda na mão. Ele e o vigário trabalharam rapidamente para pendurar o tecido entre duas araras, e ao fazer isso bloquearam a nossa visão do falecido.

Bem, eu estava pressupondo que Rupert estivesse morto. Embora o inspetor Hewitt tivesse com certeza conferido todos os sinais de vida quando foi para os bastidores pela primeira vez, eu não o ouvira chamar uma ambulância. Ninguém, até onde eu sabia, tentara uma ressuscitação. Ninguém, de fato, parecia ansioso em tocar no corpo. Nem mesmo o dr. Darby tinha saído às pressas para o salvamento.

Todo o caso acontecera, é claro, em muito menos tempo do que se leva para contá-lo: na verdade, não deve ter levado mais que cinco minutos.

Então, como o inspetor dissera que poderia acontecer, as luzes se apagaram de novo.

De início, houve uma sensação de termos mergulhado naquilo que Dafi descreve como “Escuridão do rio Styx”, e a sra. Mullet chama de “O feriado de um cego”. A sra. Mullet, aliás, estava sentada desde que o espetáculo começou, como uma figura de cera, com um meio sorriso no rosto. Eu só poderia concluir que ela ainda sorria como uma idiota para as trevas.

Era o tipo de trevas que parece, a princípio, paralisar todos os sentidos.

Mas então a gente percebe que as coisas não são exatamente tão negras como parecem. Pontos de luz, por exemplo, penetraram através das esfarrapadas cortinas usadas para cobrir as janelas desde antes da guerra, e, embora restasse pouca luz do dia do lado de fora, ela foi suficiente para criar uma leve impressão das grandes dimensões do salão.

De trás das cortinas, surgiu o som de passos prudentes, e a faixa, que fora estendida na frente do palco das marionetes, foi subitamente iluminada por trás pelo jato de luz de uma poderosa lanterna.

E agora começava o horrendo espetáculo de sombras. Via-se a silhueta do dr. Darby se abaixando e tocando o corpo, sem dúvida procurando por sinais de vida. Eu poderia ter lhe poupado o trabalho.

A sombra sacudiu a cabeça, e um grande suspiro ergueu-se do público. Me pareceu claro que, com Rupert declarado morto, o inspetor Hewitt agora quisesse que as coisas permanecessem intocadas até o sargento Woolmer chegar de Hinley com sua câmera fotográfica.

Nesse meio-tempo, tia Felicity ficou vasculhando a bolsa à procura de mais pastilhas de hortelã, e pude ouvi-la inalando e exalando pelo nariz. À minha esquerda, Dafi sussurrava para Felinha, mas como o pai, que se sentara entre nós, pigarreava a intervalos regulares, como sempre faz quando está nervoso ou aborrecido, não pude distinguir muito bem as palavras.

Depois do que pareceu outra eternidade, as luzes voltaram a se acender subitamente, e, outra vez, todos começamos a piscar.

A sra. Mullet estava tocando levemente os olhos com um lenço, os ombros tremendo, e me dei conta de que ela chorava silenciosamente. Dogger também notou. Ofereceu o braço, que ela aceitou sem erguer os olhos, e a levou para a cozinha. Ele voltou em menos de um minuto.

— Ela vai se sentir mais à vontade entre panelas e frigideiras — ele sussurrou para mim ao retomar seu lugar.

Um clarão intenso removeu todas as cores do salão por um instante, e eu e todo mundo ali nos voltamos para ver que o sargento-detetive Woolmer havia chegado. Ele montara sua avantajada câmera com tripé em cima do balcão e acabara de capturar todos nós na chapa. Quando o flash estourou uma segunda vez, me ocorreu que aquela segunda exposição não mostraria nada além de um mar de rostos brancos voltados para cima. O que talvez fosse precisamente o que ele queria.

— Por favor, posso pedir um momento da atenção de todos?

O inspetor Hewitt saíra de trás das cortinas pretas e estava de pé no centro do palco.

— Sinto muito ter de informar a vocês que houve um lamentável acidente e que o sr. Porson está morto.

Embora esse fato fosse evidente, sua confirmação fez com que uma onda de sons subisse da plateia: uma mistura de engasgos, gritos e sussurros excitados. O inspetor aguardou pacientemente até que ela se aquietasse.

— Infelizmente, terei de pedir a todos vocês que permaneçam em seus lugares um pouco mais, até que possamos anotar o nome e endereço de todos, bem como colher uma breve declaração de cada um. Esse processo levará algum tempo, e peço desculpas por isso. Depois que tiverem sido entrevistados, vocês estarão livres para partir, muito embora eu possa querer falar com vocês de novo em alguma ocasião futura. Obrigado pela atenção.

Ele fez um sinal para alguém atrás de mim, e vi que se tratava do sargento-detetive Graves. Me perguntei se o sargento se lembrava de mim. Eu o encontrara pela primeira vez em Buckshaw, durante a investigação da morte do velho colega de escola do pai, Horace Bonepenny. Mantive os olhos fixos em seu rosto quando ele foi para a frente do salão, e por fim fui recompensada com um levíssimo, porém distinto sorriso.

— Meninos de escola! — bufou tia Felicity. — Os recrutadores da polícia estão saqueando os berços da Inglaterra.

— Ele é muitíssimo experiente — sussurrei. — Já é um sargento-detetive.

— Baboseiras! — disse ela, e escavou a bolsa à procura de mais uma pastilha.

Já que o cadáver tinha sido ocultado da vista de todos, só me restava estudar as pessoas a minha volta.

Dieter, eu notei, olhava fixamente para Felinha. Embora estivesse sentado com Sally Straw, cujo rosto era uma petulante nuvem de tempestade, ele contemplava o perfil de minha irmã como se o cabelo dela fosse um altar de ouro martelado.

Dafi também notara. Quando viu a expressão intrigada em meu rosto, ela se inclinou na frente do pai e sussurrou:

— A expressão que você procura é “paixão reverencial”. — Então recostou-se e assumiu de novo a atitude de não falar comigo.

O pai não prestou nenhuma atenção em nós. Ele já se recolhera a seu próprio mundo: um mundo de tintas coloridas e perfurações-por-centímetro; um mundo de álbuns e goma-arábica; um mundo onde a nossa Graciosa Majestade, rei George VI, estava firmemente abrigada tanto no trono como nos selos postais da Grã-Bretanha; um mundo onde a tristeza e a realidade não tinham lugar.

Enfim as entrevistas começaram. Enquanto o inspetor Hewitt e o sargento Woolmer assumiam um lado do salão, o sargento Graves e o policial Linnet se encarregaram do outro.

Foi o velho, demorado e cansativo procedimento. O tempo, como dizem, pesava sobre nós ou, para ser mais precisa, sobre nossos traseiros. Até tia Felicity se remexia, incomodada em cima do seu mais-que-amplo acolchoamento posterior.

— Vocês podem se levantar e se espreguiçar — dissera o inspetor Hewitt a certa altura —, mas por favor não saiam de seus lugares.

Provavelmente não se passou mais de uma hora até que eles chegassem a nós, mas pareceu uma eternidade. O pai foi o primeiro a se dirigir até o canto onde fora instalada uma mesa simples de madeira com duas cadeiras. Não pude ouvir o que o inspetor lhe perguntou e nenhuma de suas respostas, que pareciam consistir apenas em sacudir a cabeça negativamente.

Não fazia tanto tempo que o inspetor Hewitt acusara o pai do assassinato de Horace Bonepenny, e embora o pai nunca tivesse dito isto em muitas palavras, ele ainda mantinha uma certa frieza em relação à polícia local. Ele voltou logo, e eu esperei pacientemente enquanto tia Felicity, depois Felinha e a seguir Dafi subiram para falar em voz baixa com o inspetor.

Quando cada uma voltou a seu lugar, tentei captar o olhar delas, para obter algum indício do que fora perguntado ou de como elas tinham respondido, mas não adiantou. Tanto Felinha quanto Dafi estavam com aquela cara bajuladora, santarrona que faziam depois de participar da Sagrada Comunhão, os olhos baixos e as mãos entrelaçadas na cintura em fingida humildade. O pai e tia Felicity também estavam inescrutáveis.

Já com Dogger foi outra história.

Embora tivesse aguentado bem o interrogatório do inspetor, notei que ele voltou a seu lugar como um homem andando numa corda esticada. Apareceu um tique no canto de um olho, e seu rosto tinha aquela aparência tensa, porém inexpressiva, que invariavelmente precede seus ataques. O que quer que tivesse acontecido com Dogger durante a guerra o deixara com uma incapacidade de ser confrontado de perto por qualquer tipo de autoridade.

Danem-se as consequências! Saí do meu lugar e me ajoelhei a seus pés. Apesar de ter dado uma olhada na minha direção, o inspetor Hewitt não fez nada para me impedir.

— Dogger — sussurrei —, você viu o que eu vi?

Enquanto eu deslizava para o assento ao lado dele, deixado vago pela sra. Mullet, ele ficou me olhando como se nunca tivesse me visto antes na vida, e então, como um pescador de pérolas lutando para retornar lentamente à superfície de alguma grande profundidade, ele retornou ao mundo real, balançando a cabeça em câmera lenta.

— Sim, srta. Flavia. — Infelizmente creio ter visto um homicídio.


À medida que se aproximava a minha vez de ir até a mesa, de repente me conscientizei dos batimentos do meu coração. Desejei ser um lama tibetano para poder controlar o disparo de suas válvulas.

Mas antes que eu pudesse pensar mais no assunto, o inspetor Hewitt me chamou com um gesto. Ele ficou remexendo uma pilha de papéis e formulários, aguardando até eu me sentar. Por um momento, me vi pensando de onde teriam surgido os formulários em branco. Woolmer e Graves deviam ter trazido, concluí. O inspetor certamente não estaria carregando uma pasta antes do espetáculo.

Me voltei para dar uma olhada na mulher dele, Antigone. Sim, lá estava ela, sentada calmamente em seu lugar entre os aldeões, radiante apesar da situação.

— Ela é muito bonita — sussurrei.

— Obrigado — disse ele sem erguer os olhos de seus papéis, mas pude ver pelo canto de sua boca que ele tinha gostado.

— Agora... nome e endereço?

Nome e endereço? O homem estava brincando do quê?

— Isso você já sabe — eu disse.

— É claro que eu sei. — Ele sorriu. — Mas não será oficial até você dizer.

— Flavia de Luce. Buckshaw — respondi um tanto friamente, e ele tomou nota.

— Obrigado — disse ele. — Agora, Flavia, a que horas você chegou esta noite?

— Seis e quarenta — eu disse —, em ponto. Com a minha família. De táxi. O táxi de Clarence Mundy.

— E você esteve no salão a noite inteira?

— É claro que sim. Eu fui falar com você, não está lembrado?

— Sim. Responda à pergunta, por favor.

— Certo.

Devo admitir que o inspetor estava me deixando bem mal-humorada. Eu esperava poder colaborar com ele: provê-lo de um relatório ricamente descrito, minuto a minuto, do horror que tivera lugar, quase no meu colo, naquela noite. Agora eu podia ver que seria tratada como apenas mais uma espectadora boquiaberta.

— Você viu ou falou com o sr. Porson antes do espetáculo?

O que ele queria dizer com isso? Eu tinha visto e falado com o sr. Porson em diversas ocasiões nos últimos três dias. Tinha ido de carro com o sr. Porson para a Fazenda Culverhouse e ouvira sua discussão com Gordon Ingleby no Bosque Gibbet; e isso não era tudo o que eu sabia sobre Rupert Porson. Nem de longe.

— Não — eu disse.

Era um jogo para dois.

— Entendo — disse ele. — Bem, obrigado. Isso é tudo.

Eu acabava de receber um xeque-mate.

— Você já pode ir — ele acrescentou, dando uma olhada no relógio. — Provavelmente já passa da sua hora de dormir.

A audácia do homem! Já passa da minha hora de dormir, realmente! Com quem ele achava que estava falando?

— Posso fazer uma pergunta?

— Pode — disse ele —, mas é possível que eu não possa respondê-la.

— Rupert, o sr. Porson, quero dizer, ele foi eletrocutado?

Ele olhou para mim com atenção, e vi que estava pensando cuidadosamente na resposta.

— Existe essa possibilidade. Boa noite, Flavia.

O homem estava me despachando. Rupert fritara como um linguado, e o inspetor sabia disso tão bem quanto eu.

Lâmpadas de flash ainda espoucavam atrás do palco de marionetes quando juntei-me novamente ao pai, na primeira fila. Felinha e Dafi não estavam visíveis em lugar nenhum.

— Mundy já as levou para casa — disse ele.

— Estarei pronta num instante — disse eu, seguindo para o banheiro. Ninguém, em lugar nenhum, em tempo algum na história, jamais impediu uma pessoa do sexo feminino de ir ao toalete.

No último instante, mudei de direção e me esgueirei para a cozinha, onde encontrei a sra. Mullet no comando. Ela tinha preparado uma enorme chaleira de chá e colocado xícaras fumegantes na frente de Nialla e do sargento Woolmer, que estavam sentados a uma pequena mesa.

Nialla me viu antes do sargento, e seus olhos brilharam, mas só por um instante, como os de um animal assustado. Ela acenou de leve com a cabeça para mim, de um jeito quase imperceptível, mas o significado era claro.

A comunicação sem fio das mulheres em ação. Esfreguei o nariz despreocupadamente, para que ela percebesse que a mensagem tinha sido recebida.

— Obrigado, srta. Gilfoyle — disse o sargento. — Você foi de grande ajuda.

Gilfoyle? Então era esse o nome de Nialla? Era a primeira vez que o ouvia.

O sargento Woolmer esvaziou sua xícara de um gole só, sem nenhum efeito maléfico.

— Um chá campeão, sra. Mullet — disse ele, fechando seu caderno. Ele juntou os papéis e, com um aceno gentil de cabeça na minha direção, voltou para o auditório.

O homem devia ter um estômago igual a uma caldeira de navio, pensei.

— Então, querida, como eu dizia — disse a sra. Mullet —, não adianta você voltar à Fazenda Culverhouse esta noite. Está chovendo canivetes já faz uma hora ou mais. O rio deve estar transbordando, não é seguro atravessá-lo. Além disso, ninguém espera que você vá dormir em uma tenda, em um campo encharcado, nessa situação, se entende o que quero dizer. Alf trouxe um guarda-chuva suficientemente grande para nós três, e estamos logo do outro lado do caminho. O quarto de Agnes lá em casa não é usado desde que ela saiu de casa para aprender taquigrafia Pitman vai fazer seis anos em 13 de novembro. Alf e eu o conservamos como uma espécie de santuário. Tem seu próprio fogareiro elétrico e um edredom de plumas de ganso. E nem diga que não, porque não vou ouvir.

Os olhos de Nialla ficaram subitamente marejados, e, juro pela minha vida, eu não soube dizer se era de tristeza ou de alegria.


Eu daria um guinéu para saber que palavras foram trocadas entre o pai e Dogger no banco de trás do táxi, mas a verdade é que adormeci. Com o aquecedor ligado no máximo para enfrentar a chuva gelada da noite e os limpadores de para-brisa fazendo seu tranquilo vaivém na escuridão, a indução ao sono foi irresistível. Nem mesmo uma coruja teria conseguido ficar acordada.

Quando o pai me acordou na porta de Buckshaw, subi cambaleando a escada e fui para a cama, cansada demais até para me despir.

Devo ter caído no sono de olhos abertos.


O SOL SE DERRAMAVA ESPLENDIDAMENTE através das minhas janelas, e os passarinhos nas castanheiras cantavam a plenos pulmões. O primeiro pensamento que me veio à cabeça foi o rosto de Rupert: os lábios ligeiramente separados, os dentes aparecendo de um modo obsceno.

Me virei de costas na cama e olhei fixamente para o teto. Sempre achei que uma tela em branco ajuda a esclarecer os pensamentos de um jeito maravilhoso; ajuda a colocá-los em foco.

Na morte, eu concluí, Rupert se parecia notavelmente com um cachorro morto no qual eu quase pisara certa vez em um campo além da Treze Patos, os olhos enevoados olhando fixamente, os colmilhos amarelados expostos em uma careta congelada. (Embora, no caso de Rupert, não houvesse moscas, e seus dentes estivessem na verdade bem apresentáveis.)

De algum modo, o cão me lembrou de alguma coisa; mas o quê?

Claro! Mutt Wilmott! A Treze Patos! Mutt Wilmott devia ter se hospedado na Treze Patos!

Se a sra. Mullet tiver dito a verdade, começara a chover logo depois do início do espetáculo da noite. Mutt estivera lá por volta de seis e quarenta, digamos, eu tinha visto com meus próprios olhos. Dificilmente ele teria partido para Londres debaixo de tamanho aguaceiro. Não, se ele planejara partir, teria feito isso antes do espetáculo. Parecia óbvio que ainda tinha negócios a acertar com Rupert.

Ergo: ele estava, nesse exato momento, comendo ovos com bacon na Treze Patos, a única hospedaria de Bishop’s Lacey.

Felizmente, eu já estava vestida.

Havia um silêncio de cripta na casa, quando desci a escadaria leste. A excitação da noite passada havia drenado a energia de todo mundo, por assim dizer, e estavam todos, imaginei, ainda roncando em seus respectivos quartos como um bando de vampiros convalescentes.

Enquanto eu me esgueirava pela porta da cozinha, contudo, subitamente me detive. Sobre o estrado de madeira ao lado da porta, enfiado entre os dois litros de leite que o entregador deixara à nossa porta de madrugada, havia um pacote.

Era de uma pustulenta cor roxa, com bordas que se projetavam em cima e embaixo. O celofane transparente em que aquilo estava embrulhado o protegera da chuva da noite. Na tampa, em letras douradas, estavam as palavras Chocolates da Madame — Seleção da Mais Alta Qualidade — 1 Kg da Escolha da Duquesa. Em volta dela, no sentido do comprimento, havia uma fita da cor de uma rosa desbotada. A etiqueta ainda estava presa, como no chapéu do Chapeleiro Maluco.

Eu já tinha visto aquela caixa. De fato, eu a tinha visto fazia apenas alguns dias, na vitrina infestada de varejeiras da confeitaria combinada com agência de correio da srta. Cool na rua principal, onde jazia mofando desde tempos imemoriais, talvez desde a guerra, ou ainda mais. E percebi imediatamente como ela tinha ido parar na porta dos fundos de Buckshaw: Ned Cropper.

Ned ganhava sete libras por semana fazendo biscates para Tully Stoker na Treze Patos e estava apaixonado, entre outras, pela minha irmã Ophelia. Embora ele tivesse acompanhado a filha de Tully, Mary, para assistir a João e o pé de feijão na noite anterior, isso não o impedira de deixar sua prova de amor da meia-noite na nossa soleira, como um gato afetuoso solta um camundongo morto aos pés do dono.

Os chocolates eram tão velhos, pensei, que era bem provável que estivessem a ponto de explodir com as incontáveis variedades de bolores interessantes, mas infelizmente não havia tempo para investigar. Voltei com relutância à cozinha e enfiei a caixa no compartimento superior da geladeira. Eu lidaria com Felinha mais tarde.


— Ned!

Enviei-lhe um sorriso e um aceno com os dedos generosamente separados, como a realeza é ensinada a fazer. Com as mangas arregaçadas e o cabelo cheio de brilhantina parecendo um monte de feno molhado, Ned estava bem no alto do telhado fortemente inclinado da Treze Patos, os calcanhares firmados contra uma chaminé, usando um pincel para espalhar piche quente generosamente sobre as telhas que pareciam estar lá desde que o rei Alfredo queimou os bolinhos.

— Desça daí! — gritei.

— Não posso, Flavia. Tem uma goteira na cozinha. Tully quer isso pronto antes que o inspetor apareça. Ele disse que estaria aqui bem cedinho e bem acordado. Tully diz que, de qualquer modo, está contando pelo menos com a parte do bem cedinho — acrescentou ele. — O que quer que isso signifique.

— Preciso falar com você — disse eu, baixando a voz para um sussurro alto de palco. — Não posso ficar berrando para o telhado.

— Você vai ter de subir. — Ele apontou para uma escada encostada na parede. — Olhe bem onde pisa.

A escada era tão velha quanto a estalagem, ou pelo menos era o que me parecia. Ela bamboleou e envergou-se enquanto eu subia, rangendo e gemendo de um jeito horrível. A escalada pareceu durar uma eternidade, e tentei não olhar para baixo.

— É sobre a noite passada, não é? — perguntou Ned quando cheguei mais perto do topo.

Dupla danação! Se eu era tão transparente que até alguém como Ned podia ver através de mim, seria melhor deixar aquilo para a polícia.

— Não — eu disse —, na verdade não é, Senhor Sabe-Tudo. Uma certa pessoa me pediu para lhe agradecer pelo adorável presente.

— É mesmo? — disse Ned, suas feições se expandindo em um clássico sorriso de idiota-da-aldeia. A Sociedade Folclórica o poria na frente de uma câmera de cinema antes que você pudesse se virar três vezes e cuspir contra o vento.

— Ela teria vindo pessoalmente, mas está aprisionada em sua torre pelo pai malvado, que a alimenta com varreduras e restos nojentos da mesa.

— Ah!— disse Ned. — Ela não me pareceu tão subalimentada ontem à noite.

Sua expressão se anuviou, como se tivesse acabado de se lembrar do que acontecera.

— Uma tristeza, aquele bonequeiro — disse. — Senti pena dele.

— Fico contente em saber disso, Ned. Ele não tinha muitos amigos no mundo, sabe. Seria simpático você expressar suas condolências ao sr. Wilmott. Alguém me disse que ele está hospedado aqui.

Era mentira, porém bem-intencionada.

— Está? Sei lá. Tudo o que sei neste momento é “Telhas! Telhas! Telhas e mais telhas!”. Até saírem cen-telhas! Não é engraçado? Ha-ha-ha!

Sacudi a cabeça e comecei a descer pela escada bamboleante.

— Olhe só você! — disse Ned. — Está coberta de piche.

— Como um telhado — disse eu, dando uma olhada nas minhas mãos imundas e no meu vestido. Ned ululava de tanto rir, e eu consegui forçar um sorriso patético.

Eu o daria de comer aos porcos alegremente.

— Isso não sai mais, sabe. Você ainda estará inteirinha borrada quando estiver velhinha.

Me perguntei onde Ned havia aprendido aquele tipo de folclore rústico. Provavelmente com Tully. Eu sabia, de fato, que Michael Faraday sintetizara tetracloroeteno nos anos 1820, aquecendo hexacloretano e extraindo o cloro por um tubo enquanto se decompunha. O solvente resultante removeria por completo o piche do tecido. Infelizmente, por mais que eu quisesse fazer isso, não tinha tempo para reproduzir o experimento de Faraday. Em vez disso, teria de me contentar com maionese, como recomendava o Vade-mécum do Mordomo e do Lacaio, com que eu topara em um dia chuvoso enquanto bisbilhotava na copa em Buckshaw.

— Talvez Mary saiba. Ela está por aqui?

Não me atrevi a entrar sem pedir licença e a fazer perguntas a Tully sobre um hóspede. Para ser perfeitamente honesta, eu tinha medo dele, muito embora seja difícil dizer por que com muita certeza.

— Mary? Ela foi levar a roupa suja para a lavanderia e depois, muito provavelmente, vai para a igreja.

Igreja! Me lambuzem com manteiga! Eu tinha esquecido da igreja. O pai ia ficar roxo de raiva!

— Obrigada, Ned — gritei, agarrando Gladys no bicicletário. — Depois eu vejo você!

— Não se eu vir você primeiro. — Ned riu e, como Papai Noel, voltou ao seu trabalho.


Como eu temia, o pai estava plantado junto à porta da frente, olhando furioso para o relógio quando cheguei derrapando.

— Desculpe! — eu disse. Ele nem se deu ao trabalho de perguntar nada.

Passei voando pela porta aberta e entrei no vestíbulo. Dafi estava sentada no meio da escada oeste com um livro aberto no colo. Felinha ainda não tinha descido.

Disparei pela escada leste acima até o meu quarto, enfiei meu vestido de domingo como uma artista transformista, esfreguei a cara com um pano e, em dois minutos pelo relógio, com exceção de um pouco de piche na ponta das tranças, eu estava pronta para as orações matinais.

Foi então que me lembrei dos chocolates. Era melhor recuperá-los antes que a sra. Mullet começasse a preparar seus abomináveis glacês de domingo. Se eu não fizesse isso, haveria um monte de perguntas insolentes para responder.

Desci pé ante pé a escada até a cozinha e espiei atrás de um canto. Alguma coisa repelente atingia o ponto de fervura na parte de trás do fogão, mas não havia ninguém à vista.

Retirei os chocolates da geladeira e já estava de volta lá em cima antes que você pudesse dizer “João e o pé de feijão”.

Quando abri a porta do laboratório, um lampejo de vidro chamou a atenção dos meus olhos; ele refletia um raio de sol caprichoso vindo da janela. Era um encantador dispositivo chamado Aparato de Kipp: uma das esplêndidas peças de vidro de laboratório vitorianas de Tar de Luce.

— Uma coisa bela é uma alegria para sempre — escrevera certa vez o poeta Keats — ou, pelo menos, foi o que Dafi me contou. Não poderia haver sombra de dúvida de que Keats escrevera o verso enquanto contemplava o Aparato de Kipp: um dispositivo usado para extrair o gás resultante de uma reação química.

Na forma, compunha-se essencialmente de duas bolas de vidro montadas uma em cima da outra, um tubo curto conectando as duas, com um tubo de vidro tamponado em forma de pescoço de ganso se projetando do globo superior e um tubo de respiro com uma válvula reguladora de vidro se projetando do inferior.

Meu plano tomou forma instantaneamente: um sinal seguro de inspiração divina. Mas eu só tinha alguns minutos para trabalhar, antes que o pai irrompesse para me arrastar escadaria abaixo.

Primeiro, tirei de uma gaveta uma das velhas navalhas do pai, que eu surrupiara para um experimento anterior. Cuidadosamente, deslizei a fita desbotada para fora da caixa de chocolates, virei-a de cabeça para baixo e fiz uma incisão cuidadosa e perfeitamente reta no celofane, acompanhando a linha onde estava a fita. Mais um corte de cada lado no fundo, e era tudo que eu precisava para o embrulho se abrir como uma ostra. Refazê-lo seria brincadeira de criança.

Isso feito, ergui cuidadosamente a tampa da caixa e espiei para dentro.

Perfeito! Os doces pareciam em perfeitas condições. Eu suspeitara que a idade poderia ter cobrado seu tributo, que ao abrir a caixa ela poderia revelar uma visão similar à que eu tive certa vez no pátio da igreja, quando o sr. Haskins, o sacristão, enquanto cavava uma nova sepultura, acidentalmente atingira outra, já ocupada.

Mas então me ocorreu que como os chocolates estavam hermeticamente selados (para não falar dos conservantes que poderiam ter sido adicionados), eles ainda podiam parecer frescos a olho nu. A sorte estava do meu lado.

Eu tinha escolhido meu método por causa de sua capacidade de transcorrer em temperaturas normais. Embora houvesse outros procedimentos que teriam resultado no mesmo produto, o que selecionei foi este: no fundo da esfera do Aparato de Kipp, medi uma quantidade de sulfeto de ferro. No bulbo superior, pinguei cuidadosamente ácido sulfúrico diluído, usando uma pipeta para me certificar de que o líquido entrava diretamente no recipiente-alvo.

Fiquei observando enquanto começava a reação no recipiente de baixo: uma adorável agitação que tem lugar sempre que algo contendo enxofre, inclusive o corpo humano, se decompõe. Quando achei que havia se completado, abri a válvula inferior e deixei o gás escapar para dentro de um frasco fechado com uma rolha de borracha.

A seguir vinha a parte de que eu mais gostava: peguei uma grande seringa revestida de latão de uma das gavetas da mesa do tio Tar (muitas vezes eu me perguntara se ele a usava para injetar em si mesmo uma solução a sete por cento de cocaína, como Sherlock Holmes), enfiei a agulha através da tampa de borracha, apertei o êmbolo e então puxei-a para cima de novo.

Eu agora tinha uma seringa carregada de gás de sulfeto de hidrogênio. Só faltava mais um passo.

Enfiando a agulha através da tampa de borracha de um tubo de ensaio, empurrei o êmbolo para baixo o mais forte que pude, com os dois polegares. Apenas catorze atmosferas seriam necessárias para precipitar o gás em líquido, e, como eu já sabia que aconteceria, funcionou na primeira vez.

Eu agora tinha um tubo de ensaio contendo sulfeto de hidrogênio perfeitamente puro em forma líquida. Tudo o que restava era puxar de volta o êmbolo e observar enquanto ele subia para dentro do vidro da seringa.

Com todo o cuidado, injetei em todos os chocolates uma ou duas gotas daquilo, tocando levemente o local da injeção com uma pipeta de vidro (previamente aquecida no bico de Bunsen) para amaciar o pequeno furo.

Eu realizara o procedimento de forma tão perfeita que apenas uma pequena aragem de ovo podre chegou a minhas narinas. Seguro dentro dos centros viscosos, o sulfeto de hidrogênio continuaria encapsulado, invisível, insuspeitado, até que Felinha...

— Flavia!

Era o pai, gritando do hall da frente.

— Já vou! — gritei. — Estarei aí em um instante!

Recoloquei a tampa da caixa e depois o invólucro de celofane, aplicando duas pinceladas rápidas de mucilagem no fundo para aderir à incisão quase invisível. E então recoloquei a fita.

Enquanto eu descia a escadaria curva com toda a calma, tentando desesperadamente parecer tranquila e recatada, encontrei a família reunida, esperando, aglomerada lá embaixo.

— Acho que isto é para você — disse eu, estendendo a caixa para Felinha. — Alguém deixou na porta.

Ela enrubesceu um pouco.

— E tenho uma confissão a fazer — acrescentei. Todos os olhos se voltaram para mim de repente: os do pai, os da tia Felicity, os de Dafi e até os de Dogger. — Me senti tentada a ficar com eles — disse eu, de olhos baixos —, mas hoje é domingo, e eu realmente estou me esforçando muito para ser uma pessoa melhor.

Com mãos ansiosas esticadas, Felinha mordeu a isca como um tubarão morde os pés de um nadador.


COM O PAI E TIA FELICITY À FRENTE, e Dogger na retaguarda usando um chapéu-coco preto, seguíamos separados, como sempre fazíamos, em fila indiana através dos campos, como patos indo para uma lagoa. A verde paisagem rural que nos envolvia parecia tão antiga e tão sossegada à luz da manhã quanto uma tela de Constable, e eu não teria ficado nem um pouco surpresa se descobrisse que nós na realidade não passávamos de figuras pequeninas ao fundo de uma de suas pinturas, como A carroça de feno ou Vale Dedham.

Era um dia perfeito. Prismas brilhantes de orvalho reluziam como diamantes na grama, muito embora eu soubesse que, à medida que o dia avançasse, eles seriam evaporados pelo sol.

Evaporados pelo sol! Não seria isso que o universo nos reservava? Chegaria o dia em que o sol explodiria como um balão vermelho, e todos na terra seriam reduzidos a carbono mais depressa que o flash de uma máquina fotográfica. Não era isso que dizia o Gênese? “Porquanto és pó e ao pó tornarás.” Isso era muito mais do que a velha e maçante teologia: era observação científica precisa! O carbono era o Grande Nivelador: o Anjo da Morte.

Diamantes nada mais são que carbono, mas carbono em uma estrutura molecular cristalina que o tornava o mais duro mineral conhecido na natureza. Era para essa direção que todos nós caminhávamos. Eu tinha certeza disso. Estávamos destinados a ser diamantes!

Como era excitante pensar que, muito depois de o mundo ter terminado, tudo o que restasse de nossos corpos seria transformado em uma deslumbrante nevasca de poeira de diamante, soprada rumo à eternidade sob a luz vermelha de um sol moribundo.

E para Rupert Porson esse processo já começara.

— Eu duvido muito, Haviland — dizia tia Felicity —, que eles sigam em frente com o serviço. Não me parece muito certo em vista do que aconteceu.

— A Igreja da Inglaterra, Lissy — replicou o pai —, como o tempo e as marés, não espera por ninguém. Além disso, o homem morreu no salão paroquial e não no recinto da igreja, por assim dizer.

— Pode ser — disse ela, dando uma fungada. — Ainda assim, vou ficar aborrecida se toda essa caminhada tiver sido à toa.

Mas o pai estava certo. Enquanto caminhávamos ao longo do muro de pedra que corria como um cinto apertado em volta do pátio atulhado da igreja, vi o capô do sedã Vauxhall azul do inspetor Hewitt aparecer discretamente no fim da rua. O inspetor mesmo não estava visível em lugar algum quando atravessamos o pórtico e entramos na igreja.

As preces matinais foram solenes como uma Grande Missa de Réquiem. Sei disso com certeza porque nós, os De Luce, somos católicos romanos. De fato, somos praticamente membros fundadores. Já vimos nosso quinhão de mesuras e reverências. Mas frequentamos com regularidade a igreja de São Tancredo, por causa de sua proximidade e porque o vigário é um dos grandes amigos do pai.

“Além disso”, como diz o pai, “é um dever que se impõe negociar com as firmas locais.”

Esta manhã, a igreja estava lotada até as vigas do telhado. Até o balcão embaixo da torre do sino transbordava de gente da aldeia que queria estar o mais perto possível, sem ser inconveniente, da cena do crime.

Nialla não estava em lugar nenhum. Percebi na hora. Nem a sra. Mullet nem Alf, o marido dela. Se eu conhecia a nossa sra. M, naquele exato momento ela devia estar bombardeando Nialla com salsichas e perguntas. Importunando e bisbilhotando, como diria Dafi.

Cynthia já estava de joelhos, na frente e no centro, rezando para quaisquer deuses que ela quisesse subornar antes do início do serviço. Ela era sempre a primeira a se ajoelhar e sempre a primeira a se pôr de pé em um salto. Eu às vezes pensava nela como a timoneira espiritual de São Tancredo.

Dessa vez, porque seria sobre alguém que eu conhecera pessoalmente, eu aguardava ansiosa pelo sermão. O vigário, eu esperava, pronunciaria alguma coisa inspirada no passamento de Rupert — de bom gosto e educativa. “No meio da vida estamos na morte”, era o meu palpite.

Mas quando por fim subiu ao púlpito, o vigário estava estranhamente contido, e não era apenas porque Cynthia corria um dedo indicador de luva branca pela estante de madeira onde estavam os hinários e o livro de rezas da Igreja anglicana. De fato, o vigário não fez nenhuma referência clara ao assunto até terminar o sermão.

— Em vista das trágicas circunstâncias da noite passada — disse ele em uma voz abafada e solene —, a polícia solicitou que o salão paroquial permaneça à sua disposição até que os trabalhos sejam encerrados. Por causa disso, o nosso costumeiro lanchinho, somente hoje, será servido no presbitério. Aqueles que desejarem estão cordialmente convidados para se juntar a nós depois do serviço. E agora, que Deus o Pai, Deus o Filho e Deus o Espírito Santo...

Simples assim! Sem pensamentos sobre “o estranho em nosso meio”, como ele havia dito quando Horace Bonepenny fora assassinado em Buckshaw. Sem reflexões sobre a imortalidade da alma... nada.

Para ser perfeitamente honesta, me senti mais do que um pouco frustrada.

Nunca é possível, pelo menos em São Tancredo, pular fora da igreja para a luz do sol como a rolha de uma garrafa. É preciso sempre parar à porta para apertar a mão do vigário e fazer algum comentário obrigatório sobre o sermão, o tempo e as colheitas.

O pai escolheu o sermão, e as duas, Dafi e Felinha, escolheram o tempo (as suínas!), com Dafi comentando a notável claridade do ar, e Felinha, a sua tepidez. Isso me deixou com poucas opções, e o vigário já estava segurando a minha mão.

— Como vai indo a Meg? — perguntei. Para dizer a verdade, eu já tinha esquecido tudo sobre Meg, a Louca, até aquele momento, e a pergunta simplesmente estalou na minha cabeça.

Teria o rosto do vigário se tornado ligeiramente pálido ou seria minha imaginação?

Ele olhou muito depressa primeiro para a esquerda, depois para a direita. Cynthia estava andando de um lado para o outro do lado de fora entre as sepulturas, já a meio caminho do presbitério.

— Infelizmente não posso contar — disse ele. — Entenda, ela estava...

— Vigário! Eu tenho um probleminha para discutir com você, você sabe!

Era Bunny Spirling. Bunny era um dos Spirling do Velho Salão Nautilus, que, como o pai observara certa vez, dera com os burros n’água por causa dos cavalos.

Como Bunny tinha um corpo parecido com a letra D maiúscula, ninguém conseguia passar por ele, e o vigário agora estava firmemente espremido entre a grande barriga de Bunny e o batente gótico da porta. Tia Felicity e Dogger, imagino, ainda estavam encurralados em algum lugar no vestíbulo, enfileirados como tripulantes de um submarino naufragado aguardando sua vez de se aproximarem da escotilha de escape.

Enquanto Bunny cuidava do seu probleminha (alguma coisa sobre o dízimo e o chocante mau estado do acolchoamento dos genuflexórios), vi minha oportunidade de escapar.

— Oh, Deus — comentei com o pai —, parece que o vigário vai se atrasar. Vou na frente até o presbitério para ver se posso ser útil com os copos e pratos.

Não existe um pai no mundo que pense em negar tal pedido a uma criança tão caridosa, e saí correndo como uma lebre.

— Bom dia! — gritei para Cynthia enquanto passava por ela voando.

Saltei por cima dos degraus e dei a volta correndo até o presbitério. A porta estava aberta, e ouvi vozes na cozinha, nos fundos da casa. O Instituto das Mulheres, concluí: muitas delas deviam ter se esgueirado mais cedo para fora, durante o serviço, para pôr a chaleira no fogo.

Fiquei parada no corredor mal iluminado, ouvindo. O tempo era curto, mas não seria bom ser pega bisbilhotando. Com uma última olhada para a extensão de linóleo marrom encerado, entrei no estúdio do vigário e fechei a porta atrás de mim.

Meg, é claro, já se fora havia muito, mas a manta com que o vigário a cobrira no dia anterior ainda jazia amarfanhada sobre o sofá de crina de cavalo, como se Meg a tivesse simplesmente jogado de lado, se levantado e saído da sala, deixando para trás (só para falar de um jeito mais delicado) um cheiro silvestre: um cheiro de folhas molhadas, terra escura e alguma coisa indicando uma higiene pessoal menos que perfeita.

Mas, antes que eu pudesse pôr a cabeça para trabalhar, a porta foi aberta bruscamente.

— O que você está fazendo aqui?

Nem é preciso dizer que era Cynthia. Ela fechou a porta matreiramente atrás de si.

— Ora, olá, sra. Richardson — eu disse. — Só entrei para ver se a Meg ainda estava aqui. Não que ela fosse ficar, é claro, mas, entenda, eu me preocupo com ela e...

Quando você não encontra palavras, use as mãos. Isso era uma evasiva que nunca me falhou no passado, e eu esperava que não falhasse agora.

Peguei a manta amarfanhada e comecei a dobrá-la. Enquanto eu fazia isso, alguma coisa caiu com um plop quase inaudível no tapete.

— Só pensei em dar uma arrumada e depois ver se poderiam me dar trabalho na cozinha. Droga! — eu disse, deixando uma ponta da manta escapar dos dedos. — Oh, desculpe, sra. Richardson. Parece que eu sou um tanto desajeitada. Nós somos tão mimadas em Buckshaw, sabe?

Desajeitadamente, estendi a manta no chão, me agachei na frente dela e comecei a dobrá-la de novo. Sob o disfarce dos seus quadrados coloridos de lã, e usando o corpo para bloquear a visão de Cynthia, corri os dedos pelo tapete.

Senti imediatamente: um objeto metálico, frio e chato. Usando o polegar, apertei-o com firmeza na palma da mão. Enquanto eu mantivesse as mãos em movimento, tudo daria certo. Era assim que funcionavam os truques de prestidigitação dos mágicos. Eu sempre poderia enfiar aquilo no bolso depois.

— Vamos, me dê isso — disse Cynthia.

Entrei em pânico! Ela conseguira me pegar, afinal.

Assim que ela entrou na sala, comecei a me agitar freneticamente, esperneando e jogando os cotovelos para cima como chuços.

— Oh! — disse eu. — Esta manta está me dando coceira no corpo inteiro. Eu tenho uma tremenda alergia a lã.

Comecei a me coçar furiosamente: nos braços, nas costas das mãos, nas panturrilhas... em qualquer lugar, desde que não deixasse as mãos parar.

Quando cheguei ao pescoço, enfiei a mão pela parte de cima do vestido e deixei cair o objeto que segurava. Senti que ele caía lá dentro e parava na cintura.

— Me dê isso — repetiu ela, arrancando a manta das minhas mãos.

Dei um suspiro de alívio quando percebi que ela não conseguira ver o que eu tinha pego. Era a manta que ela queria, e a entreguei alegremente, dando em mim mesma mais algumas coçadas de cachorro só por garantia.

— Vou ajudar na cozinha — eu disse, indo em direção à porta.

— Flavia — disse Cynthia, plantando-se na frente da porta e agarrando meu pulso em um único e rápido movimento.

Olhei para os seus olhos azuis pálidos e aguados, mas eles não vacilaram.

Naquele instante, porém, ouviram-se risadas do lado de fora, com a chegada dos primeiros paroquianos à igreja.

— Se existe uma coisa em que nós, as meninas De Luce, somos muito boas — eu disse, abrindo um sorriso na cara dela enquanto escapava para a porta —, é fazer chá!

Minha intenção de fazer chá era a mesma que me candidatar a burrico de mina de carvão.

Ainda assim, segui em linha reta corredor abaixo até a cozinha.

— Bom dia, sra. Roberts! Bom dia, srta. Roper! Vim só conferir se vocês têm xícaras e pires suficientes.

— Temos à vontade, obrigada, Flavia querida — disse a sra. Roberts. Ela fazia aquilo desde o princípio dos tempos.

— Mas você pode pôr os ovos na parte de baixo da geladeira quando sair — sugeriu a srta. Roper. — A mulher dos ovos deve tê-los deixado no balcão da cozinha ontem. Nada dura muito com esse tempo, pelo menos não como antigamente. E enquanto você faz isso, querida, pode encher a jarra de limonada. O sr. Sterling gosta de um bom copo de limonada depois da igreja. Ele é sempre muito generoso quando passamos a bandeja de coleta, e nós não queremos que ele nos ponha na sua lista negra, queremos?

Antes que elas pudessem inventar mais uma tarefa, escapei com ares de ocupada pela porta da cozinha. Mais tarde, quando elas tivessem um momento para isto (quando estivessem lavando os pratos, talvez), a sra. Roberts e a srta. Roper comentariam uma com a outra que boa menina eu era, e como era diferente das minhas irmãs.

Do lado de fora, no pátio da igreja, o pai ainda estava plantado no caminho de pedras, ouvindo pacientemente Bunny Spirling lhe contar, palavra por palavra, o que ele acabara de dizer ao vigário. O pai balançava a cabeça de vez em quando, provavelmente para impedir que seu pescoço adormecesse.

Saí do caminho para a grama, fingindo inspecionar a inscrição de uma lápide desgastada pelo tempo que se projetava para cima como o dente amarelado de uma gengiva verde (Hezekiah Huff 1672-1746, em Paz no Paraíso). Voltando as costas para os retardatários mexeriqueiros, extraí o objeto metálico que eu deixara cair na frente do meu vestido: era, como eu sabia que seria, o estojo esmaltado de pó compacto cor de laranja em forma de borboleta de Nialla. Estava aninhado na palma da minha mão, reluzindo suavemente à luz morna do sol. Meg devia ter deixado cair enquanto dormia no sofá do estúdio do vigário.

Eu o devolveria a Nialla mais tarde, pensei, enfiando-o no bolso. Ela ficaria feliz de tê-lo de volta.

Quando me reuni com a família, vi que Dafi estava encarapitada no muro de pedra na frente do pátio da igreja, com o nariz enfiado em A anatomia da melancolia, de Robert Burton, seu último grande entusiasmo. Como ela conseguira entrar e sair da igreja com um volume tão gordo, eu não podia nem começar a imaginar, até que cheguei suficientemente perto para ver a cruz de papel de alumínio belamente confeccionada que ela colara na capa preta. Oh, que trapaceira ela era! Muito bem, Dafi!

Felinha gargalhava embaixo de um carvalho, deixando o cabelo cair para a frente e encobrir o rosto, como ela faz quando quer parecer Veronica Lake. Desfrutando sua atenção e vestindo um terno rústico de lã, estava Dieter Schrantz, e me dei conta, não sem uma sensação meio melancólica, de que ele estava totalmente sob o domínio de Felinha, fascinado com cada palavra que ela pronunciava, como uma bola na ponta de um elástico, balançando a cabeça como um pica-pau demente e sorrindo como um idiota.

Eles nem repararam no meu olhar enojado.

Tia Felicity conversava com uma pessoa idosa, que usava um aparelho auditivo. Parecia, a julgar pela conversa delas, que eram velhas amigas.

— Mas não se deve arquear as costas e cuspir! — dizia a velha senhora, encurvando os dedos de unhas vermelhas em garra, com o que as duas gargalharam de modo obsceno.

Dogger, nesse meio-tempo, ficou pacientemente sentado em um banco embaixo de um teixo, de olhos fechados, com um leve sorriso nos lábios e o rosto virado para cima, para o sol de verão, parecendo ao mundo uma dessas esculturas modernas de bronze que chamam de Domingo.

Ninguém prestou a menor atenção em mim. Eu estava por minha conta.


As portas duplas no pórtico do salão paroquial estavam bloqueadas por uma corda, na qual se via pendurado um aviso: Cena do crime: não ultrapasse.

Eu não ultrapassei: dei a volta pelos fundos do edifício e entrei por uma das saídas.

Estava totalmente escuro lá dentro. No fim do corredor, eu sabia, havia uma porta que dava para o auditório. Alguns degraus à minha direita levavam ao palco.

Pude ouvir o ruído surdo de vozes masculinas e, por mais que forçasse os ouvidos, não consegui distinguir o que diziam. As cortinas de veludo preto que cercavam o palco deviam estar abafando as palavras.

Incapaz de extrair qualquer significado daquele murmúrio, e como não queria correr o risco de ser pega bisbilhotando, subi espalhafatosamente a escada.

— Olá! — gritei. — Alguém quer um chá?

O inspetor Hewitt estava plantado no meio de uma ilha de luz, conversando com os sargentos Woolmer e Graves. Ao me avistar, ele se calou imediatamente e veio marchando pelo palco, por trás do teatro de marionetes.

— Você não devia estar aqui. Não viu os avisos?

— Desculpe — eu disse sem responder à pergunta. — Entrei pelos fundos.

— Não há avisos nos fundos, sargento? — perguntou o inspetor a Graves.

— Desculpe, senhor — disse ele. — A culpa é toda minha.

— Bem — prosseguiu o inspetor —, já que estamos quase no fim, não é um desastre total. Mas lembre-se disso na próxima vez.

— Sim, senhor.

— Então — disse o inspetor voltando-se para mim —, o que você está fazendo por aqui? E não me venha com nenhuma conversa-fiada sobre chá.

Eu aprendera, por experiências passadas, que o melhor era ser franca com o inspetor, pelo menos respondendo a perguntas diretas. Sempre é possível ser útil, lembrei a mim mesma, sem confessar tudo.

— Eu estava tomando nota de alguns pontos.

Na verdade eu não tinha anotado nada, mas agora, pensando nisso, me dei conta de que era uma boa ideia. Cuidaria disso à noite.

— Tomando notas? Por que diabos você faria isso?

Como não consegui pensar em nada para dizer, eu não disse nada. Não poderia falar ao homem que Dogger achava que se tratava de um assassinato.

— Agora, infelizmente, vou ter de pedir a você que vá embora, Flavia.

Enquanto ele falava, olhei em volta desesperadamente, procurando alguma coisa (qualquer coisa!) em que me agarrar.

E de repente eu vi. Quase gritei de alegria. Meu coração disparou dentro de mim, e eu mal conseguia enxergar de tanto rir quando falei.

— Edgar Allan Poe! — eu disse alto. — A carta roubada.

O inspetor me encarou como se eu tivesse enlouquecido.

— Você conhece a história, inspetor? — perguntei. Dafi a lera em voz alta para nós na véspera do Natal.

— Todo mundo conhece, não é? — disse ele. — E agora, por favor, faça o favor de...

— Então você se lembra de onde a carta estava escondida: em cima da lareira, bem à vista, pendurada em uma fita azul suja.

— É claro — disse ele com um sorriso leve e indulgente.

Eu apontei para o corrimão de madeira do palco dos bonecos, que não estava mais de trinta centímetros acima de sua cabeça.

— A energia elétrica foi desligada? — perguntei.

— Nós não somos idiotas, Flavia.

— Então — eu disse, estendendo a mão para cima e quase encostando na coisa, —, talvez devamos dizer ao vigário que encontramos o prendedor de calça para bicicleta que ele perdeu.


NO COMEÇO FOI DIFÍCIL ENXERGÁ-LO. Metal preto sobre madeira pintada de preto, era quase invisível. Se não fosse pelo carbono salpicado, eu não teria reparado nele.

Preto sobre preto sobre preto. Eu estava orgulhosa de mim.

O prendedor de calça estava enfiado em um suporte de madeira, como se o suporte fosse um tornozelo. Embaixo dele corria uma extensão de cabo elétrico flexível, que se conectava com uma fileira de interruptores acima do palco para acionar as luzes coloridas da ribalta abaixo. Mesmo onde eu estava, vi o brilho do fio de cobre no lugar onde o isolamento do cabo fora removido.

— Meu bom Deus! — disse o inspetor. — O que a faz pensar que isso pertence ao vigário?

— Várias coisas — eu disse, contando-as nos dedos. — Em primeiro lugar, eu o ouvi dizer na quinta-feira à tarde que tinha perdido seu prendedor. Em segundo lugar, sei com certeza que o prendedor não estava aqui ontem à tarde antes do espetáculo. Rupert me deixou dar uma boa olhada aqui em volta um pouco antes da matinê. E, por último, o prendedor tem as iniciais do vigário gravadas. Olhe aqui: se você apertar os olhos um pouco e olhar aqui do lado, vai conseguir enxergá-las: D.R.: Denwyn Richardson. Cynthia as escreveu com uma agulha, porque ele está sempre perdendo as coisas.

— E você tem certeza absoluta de que o prendedor não estava aqui no sábado à tarde?

— Positivo. Eu estava me segurando exatamente aqui neste ponto do corrimão quando Rupert me levou para a ponte lá em cima, para me mostrar como Galligantus funcionava.

— Como foi que você disse? — A expressão do inspetor era de perplexidade.

— Galligantus. É o nome do gigante de João e o pé de feijão. Eu vou lhe mostrar. Algum problema em subirmos lá? — perguntei, apontando para a ponte.

— É extremamente irregular, mas vá em frente.

Subi pela escada até a passarela atrás do palco de marionetes, com o inspetor nos meus calcanhares.

Galligantus ainda estava firme em sua posição.

— No terceiro ato, quando João está desferindo machadadas no pé de feijão, Rupert puxa esta alavanca de ferro, que libera Galligantus. Ele é movido por uma mola, entende?

Houve um longo silêncio. Então o inspetor sacou seu caderninho e desatarraxou a tampa de sua esferográfica.

— Muito bem, Flavia — disse com um suspiro —, conte-me mais.

— Quando João derruba o pé de feijão, o gigante deveria despencar do céu. Mas ele não despencou, é claro... Em vez disso, foi Rupert quem despencou.

— Portanto, Rupert não poderia ter acionado a alavanca. É isso que você está querendo dizer?

— Exatamente! Se ele a tivesse acionado, Galligantus teria sido liberado. Mas ele não foi, é claro, porque o prendedor de calça do vigário estava enfiado na parte inferior da alavanca. Preto sobre preto. Rupert não deve ter reparado.

— Meu bom Deus! — exclamou o inspetor, dando-se conta do que eu estava dizendo. — Então não foi...

— Um trágico acidente? Não, inspetor. Eu não diria isso.

Ele deixou escapar um assobio baixo.

— Está vendo isto? Alguém cortou o isolamento deste cabo — eu prossegui —, deixando o fio nu, depois enfiou o prendedor de calça por cima para esconder. A outra ponta do prendedor está presa à parte de baixo da alavanca de Galligantus.

— Formando uma conexão elétrica — disse ele. — Um curto-circuito deliberado.

— Isso mesmo — eu disse. — Olhe, dá para ver o depósito de carbono onde a corrente formou um arco voltaico. Está vendo como a madeira embaixo está um pouco chamuscada?

O inspetor Hewitt inclinou-se para ver mais de perto, mas não disse nada.

— Me parece — acrescentei — que o prendedor de calça não poderia ter sido colocado ali até algum tempo depois da primeira apresentação. Se não fosse assim, Galligantus não poderia ter caído.

— Flavia — disse o inspetor —, você precisa me prometer que não vai discutir isso com mais ninguém. Nem uma palavra. Entendeu?

Olhei firme para ele por um momento, como se aquele mero pensamento fosse altamente ofensivo.

— Ele foi eletrocutado, não foi? — perguntei.

O inspetor assentiu.

— O dr. Darby acha muito provável. Teremos os resultados da autópsia ainda hoje, mais tarde.

Teremos os resultados da autópsia? O inspetor estaria me incluindo? Estaria contando comigo como parte da sua equipe? Eu precisava escolher as palavras com cuidado.

— Os meus lábios estão selados — eu disse. — Juro pela minha vida e...

— Obrigado, Flavia — disse ele com firmeza. — Uma simples promessa é o bastante. Agora vá embora e deixe-me continuar com isto.

Vá embora? Que audácia descomunal! Que rematado atrevimento!

Receio ter soltado um ruído pouco gentil ao sair.


Como eu suspeitava, Felinha ainda flertava com Dieter embaixo dos carvalhos.

O pai estava perto da porta da igreja, com a expressão perplexa de um homem que tinha corrido para ajudar alguém que inadvertidamente entrara na jaula de um tigre, mas que agora não conseguia se decidir muito bem sobre qual dos ocupantes da jaula precisava ser salvo do outro.

— Felinha — chamou ele afinal. — Não devemos deixar a sra. Mullet esperando.

Meu estômago se revoltou instantaneamente. Era domingo, dia em que éramos alimentados à força, como gansos de Estrasburgo, com algum dos experimentos culinários fracassados da sra. Mullet, tal como fígado de javali recheado, trazido inteiro à mesa, simulando um Falso Pão Doce de Denbighshire.

— Pai — disse Felinha pegando o touro à unha —, eu gostaria de lhe apresentar Dieter Schrantz.

O pai, é claro, como todo mundo em Bishop’s Lacey, tinha conhecimento de que havia prisioneiros alemães trabalhando nas vizinhanças. Mas até aquele momento ele nunca fora colocado na posição de ter de conversar com alguém a quem ele sempre se referia em casa, na sala de estar de Buckshaw, como O Inimigo.

Ele estendeu a mão.

— É um prazer conhecê-lo, senhor — disse Dieter, e vi que o pai se surpreendeu muito com o inglês perfeito de Dieter. Mas antes que ele pudesse responder, Felinha partiu para o segundo assalto.

— Convidei Dieter para o chá — disse —, e ele aceitou.

— Desde que o senhor concorde, é claro — acrescentou Dieter.

O pai pareceu desconcertado. Tirou os óculos do bolso do colete e começou a limpá-los com o lenço. Por sorte, tia Felicity chegou a tempo de intervir.

— É claro que ele concorda! — disse ela. — Haviland nunca foi homem de guardar rancores, não é, Havi?

Como se estivesse sonhando, o pai olhou em volta e comentou, para ninguém em particular:

— Interessante, este tempo.

Me aproveitei imediatamente de sua confusão momentânea.

— Vão andando sem mim — eu disse —, só quero dar um pulo lá dentro e me certificar de que Nialla esteja bem. Depois vou direto para casa.

E ninguém ergueu um dedo para me impedir.


O chalé da sra. Mullet se aninhava no fim da Alameda dos Sapateiros, um caminho estreito e poeirento que saía do sul da rua principal e terminava em uma escadaria. Era um lugarzinho aconchegante com malvas-rosa e um gato ruivo cochilando ao sol. Seu marido, Alf, estava sentado em um banco no pátio, esculpindo um apito de salgueiro.

— Bem, bem — disse ele quando me viu no portão —, a que devemos este tão prodigioso e imenso prazer?

— Bom dia, sr. Mullet — disse eu, assumindo sem esforço a minha melhor voz de educação refinada. — Espero que esteja passando bem.

— Razoavelmente... razoavelmente para os meus problemas de digestão — disse ele. — Às vezes sinto um chute, como o de um canguru. Ou então uma queimação como o incêndio de Roma.

— Lamento ouvir isso — disse eu, honesta em cada palavra. — Nós, os De Luce, não somos os únicos sujeitos às preparações culinárias da sra. Mullet.

— Pegue — disse Alf, estendendo-me o apito de madeira. — Dê uma soprada. Veja se consegue pegar um elfo.

Peguei o pedaço delgado de madeira e levei-o aos lábios.

— É melhor não — disse eu. — Não quero acordar Nialla.

— Ah! — fez ele. — Não tenha medo disso. Ela já se foi antes de o sol raiar.

— Ela foi embora?

Eu fiquei atônita. Como ela podia ter ido embora?

— Para onde? — perguntei.

— Só Deus sabe — disse ele, encolhendo os ombros. — De volta à Fazenda Culverhouse, talvez. Ou talvez não. É tudo o que sei. E agora dê uma apitada.

Soprei o apito, produzindo um lamento agudo, estridente, penetrante.

— Som de bruxos — disse eu, entregando-o de volta.

— Fique com ele — disse Alf. — Fiz para você. Achei que estaria por aqui em breve.

— Bacana! — disse eu, pois sabia que era isso que ele esperava de mim.


Enquanto caminhava de volta a Buckshaw para o almoço, pensei em como a minha vida se parecia com a daqueles fervilhantes clérigos das novelas de Anthony Trollope, que davam a impressão de passar os dias indo apressados da clausura para o presbitério e da aldeia para o palácio do bispo, como besouros mecânicos pretos se agitando de um lado para o outro em um labirinto verde. Eu mergulhara em O guardião durante dois dos nossos períodos de leitura compulsórios nas tardes de domingo, e algumas semanas depois complementei folheando trechos de As torres de Barchester.

Admito que, como não havia ninguém da minha faixa etária nos seus escritos, não me importei muito com Trollope. A maioria dos seus clérigos fossilizados, por exemplo, me fez ter vontade de vomitar as minhas salsichas. O personagem com o qual mais me identifiquei foi a sra. Proudie, a mulher tirana do bispo assustadiço que sabia o que queria e, na maioria das vezes, sabia como conseguir. Se a sra. Proudie entendesse de venenos, poderia ter se tornado meu personagem favorito da literatura.

Embora Trollope não tivesse mencionado isso, na minha cabeça não havia dúvida de que a sra. Proudie fora criada em um lar com duas irmãs mais velhas que a tratavam como lixo.

Por que Ophelia e Daphne me desprezavam tanto? Seria porque Harriet me odiava, como elas alegavam? Teria ela, sofrendo de depressão pós-parto, pulado para o nada de uma montanha no Tibete?

Resumindo, este era o problema: será que eu a tinha matado?

Será que o pai me responsabilizava por sua morte?

De algum modo, o dia perdera seu brilho enquanto eu me arrastava mal-humorada pelo caminho. Até mesmo o pensamento do assassinato de Rupert e suas consequências complicadas me animaram muito pouco.

Dei umas duas sopradas no apito de salgueiro, mas elas soaram como um filhote de cuco caído do ninho, chorando cheio de angústia pela mamãe. Enfiei aquilo no fundo do bolso e segui penosamente em frente.

Eu precisava de algum tempo a sós. Algum tempo para pensar.


Vista dos Portões Mulford, Buckshaw sempre teve um ar um tanto triste e abandonado, como se alguma essência vital estivesse faltando. Mas agora, enquanto eu caminhava entre as castanheiras, alguma coisa estava diferente. Vi imediatamente o que era. Várias pessoas em pé na curva de pedregulhos no pátio de acesso, e uma delas era o pai, apontando para o telhado. Comecei a correr, disparando através do gramado como uma velocista, o peito para fora, os punhos se alternando como pistões do meu lado.

Eu não precisava ter me preocupado. Quando me aproximei, vi que eram apenas tia Felicity e Dafi, as duas de um lado do pai, com Felinha do outro.

À direita dela estava Dieter. Eu não acreditava no que via!

Os olhos de Felinha faiscavam, seu cabelo luzia ao sol de verão e seu sorriso era deslumbrantemente perfeito. Com sua saia cinzenta, conjunto de suéter amarelo-canário e um colar de Harriet de pérolas cultivadas de uma única volta no pescoço, ela estava mais que vibrante... estava linda. Eu poderia tê-la estrangulado.

— Ruskin achava as goteiras quadradas abomináveis — dizia o pai —, mas ele estava sendo irônico, é claro. Mesmo o nosso melhor arenito inglês não é senão um pálido arremedo do mármore de textura fina que se encontra na Grécia.

— É verdade, senhor — concordou Dieter. — Porém, não era o seu Charles Dickens que achava que os gregos usavam mármore unicamente por causa do modo como ele aceitava pintura e cores? Ainda assim, o estilo e o material nada significam quando a goteira é colocada embaixo de um pórtico. É uma piada do arquiteto, não é?

O pai refletiu por um momento, esfregando as mãos atrás das costas enquanto olhava fixamente para a fachada da casa.

— Por Deus! — disse afinal. — Você pode ter descoberto alguma coisa.

— Ah, Flavia! — disse tia Felicity quando me avistou. — Pense no Diabo e ele aparece. Mais tarde eu gostaria de pintar, e você vai ser a minha assistente. O trabalho com os pincéis me apraz, mas eu simplesmente não suporto as bisnagas grudentas e os trapos sujos.

Dafi revirou os olhos e foi se afastando lentamente da sua velha tia louca, temendo, eu acho, ser posta para trabalhar também. Me abrandei o suficiente para fazer-lhe uma pergunta. Há momentos em que a curiosidade prevalece até sobre o orgulho.

— O que ele está fazendo aqui? — sussurrei ao ouvido dela, fazendo um ligeiro movimento de cabeça na direção de Dieter.

É claro que eu já sabia, mas aquela era uma rara oportunidade de conversar de irmã para irmã sem rancor.

— Tia Felicity insistiu. Disse que ele deveria nos acompanhar até em casa e ficar para o chá. Acho que ela está de olho nele — acrescentou com uma risadinha áspera.

Embora eu esteja bastante acostumada com os excessos de Dafi, devo admitir que fiquei chocada.

— Para a Felinha — explicou ela.

Claro! Não admira que o pai estivesse exercitando seu charme enferrujado! Uma filha a menos significaria a redução de um terço no número de bocas excedentes que ele tinha de alimentar. Não que Felinha comesse tanto assim, ela não comia, mas aliada à redução na dose de insolência cotidiana que ele teria, passá-la ardilosamente a Dieter bem que valeria o esforço.

E também, pensei, seria o fim das vastas despesas com a reprateação constante dos espelhos de Buckshaw. Felinha era um verdadeiro inferno para os espelhos.

— E o seu pai... — dizia o pai para Dieter.

Eu sabia! Ele já estava preparando o terreno!

— ... acredito que você disse algo sobre livros?

— Ele é um editor — disse Dieter. — É o Schrantz, de Schrantz e Markel. O senhor pode não ter ouvido falar deles, mas publicam em alemão edições de...

— É claro! A Luxus Ausgaben Schrantz und Markel. O Plínio deles, aquele com as pranchas de Dürer... é realmente notável.

— Vamos, Flavia — disse tia Felicity. — Você sabe como é cansativo pintar tijolos na sombra.


A distância, eu devia estar parecendo um galeão naufragando, com o cavalete de tia Felicity por cima do ombro, uma tela esticada embaixo de cada braço e uma caixa de tintas e pincéis em cada mão, vadeando descalça nas águas rasas do lago ornamental em direção à ilha na qual se situava a folly. Tia Felicity vinha logo atrás, carregando um banquinho de três pernas. Em seu conjunto de tweed, chapéu mole e guarda-pó, ela me lembrava as fotos que eu tinha visto na Country Life, de Winston Churchill espalhando suas tintas na tela em Chartwell. Só faltava o charuto.

— Há séculos eu queria reproduzir a fachada sul como era nos tempos do querido tio Tar — bradou ela, como se eu estivesse do outro lado do mundo.


— E agora, querida — disse tia Felicity depois que eu finalmente montei o equipamento de pintura a seu gosto —, chegou a hora de uma conversinha discreta. Aqui fora, pelo menos, ninguém nos ouvirá, a não ser as abelhas e os ratos-d’água.

Olhei para ela, atônita.

— Imagino que você pense que eu não sei nada sobre o tipo de vida que você leva.

Era o tipo de afirmação em relação à qual eu aprendera a ser excepcionalmente cautelosa: suas implicações eram imensas, e até ver em que direção os ventos conversacionais levavam, eu sabia que o melhor era ficar calada.

— Por outro lado — prosseguiu ela —, sei muito do que você deve sentir: a sua solidão, o seu isolamento, as suas irmãs mais velhas, o seu pai preocupado...

Eu estava a ponto de dizer que ela devia estar enganada, quando de repente percebi que a conversa poderia ser proveitosa para mim.

— Sim — eu disse, olhando ao longe por cima da água e piscando, como que para conter uma lágrima —, às vezes pode ser difícil.

— É exatamente o que sua mãe costumava dizer sobre a vida em Buckshaw. Lembro-me dela vindo para cá aos domingos, quando era uma menina, como eu antes dela.

Visualizar a tia Felicity como uma menina não era uma tarefa fácil.

— Oh, não fique tão chocada, Flavia. Na minha juventude, eu costumava correr livre por esta ilha como uma princesa indígena americana. “Mu-nu-tonowa” foi o nome que eu me dei. Surrupiava deliciosos pedacinhos de carne da despensa e fazia de conta que estava assando um cachorro em uma fogueira acesa com pauzinhos, e coisas assim.

“Mais tarde, apesar da nossa grande diferença de idade, Harriet e eu sempre fomos grandes companheiras. ‘As proscritas desprezadas’, era como nos intitulávamos. Vínhamos para cá, para esta ilha, conversar. Uma vez, quando estávamos sem nos ver fazia muito tempo, nos sentamos a noite inteira na folly, enroladas em cobertores, tagarelando até o sol nascer. O tio Tar mandou Pierrepoint, o mordomo, nos trazer biscoitos Plasmon e mocotó de pé-de-bezerro. Ele tinha nos visto das janelas do seu laboratório, entende, e...”

— E como era ela? — interrompi. — Harriet, quero dizer.

Tia Felicity deu uma pincelada escura em sua tela que, imaginei, supostamente representava o tronco de uma das castanheiras.

— Era exatamente como você — respondeu ela. — Como você bem sabe.

Engoli em seco. — Era mesmo?

— É claro que era! Como é possível que você não soubesse disso?

Eu poderia ter enchido os ouvidos dela com as histórias horríveis que Felinha e Dafi me contaram, mas preferi não fazer isso. Em boca fechada não entram moscas.

Dogger me dissera isso certa vez, quando lhe fiz uma pergunta um tanto pessoal sobre o pai. “Em boca fechada não entram moscas”, ele respondera, voltando aos seus potes de flores, e não tive coragem de perguntar quais de nós três éramos os mudos e quais eram as moscas.

Então murmurei alguma coisa pouco satisfatória, e agora me vi fazendo isso de novo.

— Céus, minha criança! Se você quer ver a sua mãe, não precisa fazer mais do que se olhar no espelho. Se você quer saber sobre o caráter dela, olhe para dentro de si mesma. Você é tão parecida com ela que me deixa nervosa.

Muito bem, então.

— O tio Tar costumava nos convidar para Buckshaw no verão — prosseguiu ela, sem perceber, ou preferindo ignorar, a minha cara vermelha.

“Ele tinha uma extraordinária teoria de que a presença de mulheres jovens na casa a mantinha unida segundo alguma obscura praxe química; alguma coisa sobre ligas e o insuspeitado gênero duplo da molécula de carbono. Louco como a Lebre de Março, Tar de Luce não passava de um velho cavalheiro, apesar de tudo. Harriet, é claro, era a sua favorita; talvez porque ela jamais se cansava de sentar-se em um banquinho alto naquele laboratório malcheiroso, tomando notas enquanto ele as ditava. ‘Minha fantástica assistente’, ele costumava chamá-la. Era uma piada entre os dois. Harriet me contou certa vez que ele se referiu a um experimento espetacular que não tinha dado certo e que poderia ter apagado Buckshaw do mapa... para não falar de Bishop’s Lacey e redondezas. Mas ela me fez jurar que ficaria calada. Nem sei por que estou contando isso a você.”

— Ele estava investigando a decomposição de primeira ordem do pentóxido de hidrogênio — eu disse. — Foi um trabalho que levou ao desenvolvimento da bomba atômica. Entre os papéis dele, havia algumas cartas do professor Arrhenius, de Estocolmo, que deixavam muito claro o que eles pretendiam.

— E sobrou você, por assim dizer, para carregar a tocha.

— Como?

— Para levar adiante o glorioso nome dos De Luce — disse ela —, aonde quer que isso a leve.

Era um pensamento interessante; nunca me ocorrera que o nome de alguém pudesse ser uma bússola.

— E onde poderia ser isso? — perguntei, um pouco maliciosa.

— Você precisa dar ouvidos a sua inspiração. Precisa deixar que a sua visão interior seja o seu guia.

— Eu tento — disse eu. Devo ter soado à tia Felicity como a idiota da aldeia.

— Eu sei que você tenta, querida. Já ouvi diversos relatos dos seus feitos. Por exemplo, houve aquela história horrível com Bunpenny, ou qualquer que seja o nome dele.

— Bonepenny — eu disse. — Horace. Ele morreu bem ali.

Apontei para o outro lado do lago, para o muro da horta da cozinha.

Apesar disso, tia Felicity seguiu em frente.

— Você nunca deve se curvar ao desagradável. Quero que se lembre disso. Embora possa não ser visível aos outros, a sua obrigação se tornará clara como uma linha branca pintada no meio da estrada. Você deve segui-la, Flavia.

— Mesmo se ela levar ao homicídio? — perguntei, subitamente atrevida.

Com o pincel estendido em toda a extensão do braço, ela pintou a sombra escura de uma árvore.

— Mesmo se levar ao homicídio.

Ficamos sentadas por alguns momentos em silêncio, tia Felicity dando suas pinceladas sem nenhum resultado particularmente empolgante, e então ela falou de novo:

— Se você não se lembrar de mais nada, lembre-se disto: a inspiração de fora do próprio ser é como o calor de um forno. Ele pode fazer pãezinhos de Bath aceitáveis. Mas a inspiração dele é como um vulcão: muda a face do mundo.

Tive vontade de jogar os braços em volta daquela velhota toda suja em sua fantasia de George Bernard Shaw e abraçá-la até espremer todo o suco para fora. Mas não fiz isso. Eu não podia.

Eu era uma De Luce.

— Obrigada, tia Felicity — disse eu, pondo-me de pé. — Você é uma fortaleza.


ESTÁVAMOS NA BIBLIOTECA TOMANDO CHÁ. A sra. Mullet tinha entrado e saído, deixando para trás uma vasta bandeja de bolo jenny lind e bolinhos de groselha. À minha pergunta sussurrada sobre Nialla, ela respondeu com um encolher de ombros e franziu a testa para me lembrar que estava de serviço.

Felinha estava ao piano. Não demorou mais de três minutos para Dieter perguntar polidamente quem de nós tocava, e Felinha respondera com seus enrubescimentos. Agora, depois de suficientemente lisonjeada e das súplicas, ela estava apenas começando o segundo movimento da sonata Patética, de Beethoven.

Era uma peça adorável, e, enquanto a música se desvanecia e subia de novo, como anseios do coração, me lembrei que era a música que Laurie Laurence tocara em Mulherzinhas, quando Jo, que rejeitou sua proposta, se afastou andando do lado de fora de sua janela, e me perguntei se Felinha a teria escolhido no subconsciente.

Sonhador, o pai dava batidinhas leves com o indicador na beirada de seu pires, o qual trazia belamente equilibrado nas mãos. Havia momentos em que, sem nenhuma razão aparente, eu sentia um enorme vagalhão de amor, ou pelo menos de respeito, por ele, e aquele foi um desses momentos.

No canto, Dafi estava enrodilhada como um gato em uma poltrona, ainda nas garras de A anatomia da melancolia, e tia Felicity sentava-se muito satisfeita perto da janela, fazendo alguma coisa intrincada com um par de agulhas e uma bola de lã amarelo-enxofre.

De repente notei que Dieter estava mordendo o canto do lábio e que havia um brilho no canto de seu olho. Ele estava quase em lágrimas, e tentando não demonstrar.

Que crueldade daquela bruxa Felinha, escolher uma coisa tão triste e tão evocativa: uma melodia de Beethoven que só poderia servir como um amargo lembrete para o nosso convidado alemão da terra natal que ele deixara para trás.

Mas naquele instante Felinha interrompeu-se bruscamente e ergueu-se do teclado em um salto.

— Oh! — ofegou ela. — Eu lamento tanto! Não tinha a intenção de...

E vi que, talvez pela primeira vez na vida, ela estava genuinamente aflita. Ela correu para o lado de Dieter e estendeu seu lenço. E, para o eterno crédito dele, Dieter o aceitou.

— Não. Sou eu que devo lamentar — disse ele, enxugando os olhos. — É só que...

— Dieter — eu senti minha boca despejar de repente —, conte-nos como você se tornou um prisioneiro de guerra. Eu estava simplesmente morrendo de vontade de perguntar. Eu gosto demais de história, você sabe.

Dava para ouvir um alfinete caindo na Antártida.

— Flavia! — o pai conseguiu dizer enfim, porém somente quando já era tarde demais para ter o efeito que ele pretendia.

Mas Dieter já sorria. Pareceu estar aliviado por ter superado o abatimento.

— Mas é claro! — disse ele. — Há cinco anos estou esperando que alguém me pergunte, mas nunca ninguém perguntou. Vocês ingleses são cavalheiros tão perfeitos, até mesmo as damas!

Tia Felicity lançou-lhe um olhar radiante de aprovação.

— Porém — acrescentou Dieter —, devo avisá-los de que é uma longa história. Vocês têm certeza de que querem ouvir?

Dafi fechou o livro e colocou-o de lado.

— Adoro longas histórias — disse ela. — De fato, quanto mais longas, melhor.

Dieter posicionou-se no tapete na frente da lareira, o cotovelo sobre o consolo. Quase dava para imaginá-lo em uma cabana de caça na Floresta Negra.

— Bem — disse ele —, acho que se poderia dizer com segurança que fui abatido na Inglaterra por causa das irmãs Brontë.

Abatido? Isso era uma novidade! Fiquei inquieta de curiosidade.

Os olhos de Dafi ficaram instantaneamente parecidos com maçanetas de porcelana, e até o pai se endireitou na cadeira.

— Meu bom Deus! — murmurou ele.

— Eu fui muito mimado quando menino — começou Dieter — e tenho de admitir isso. Fui o único filho de uma família abastada, criado por uma Kinderpflegerin, uma governanta de crianças pequenas.

“Meu pai, como eu já disse, era um editor, e minha mãe, uma arqueóloga. Embora eles me amassem muito, suponho, estavam ambos tão envolvidos em seu próprio mundo que tudo o que dizia respeito “ao menino” foi deixado para Drusilla. Esse era o nome da governanta, Drusilla.

“Drusilla era uma grande leitora de romances ingleses. Ela consumia livros como uma baleia come krill. Nunca era vista sem um livro nas mãos. De fato, ela me ensinou a ler enquanto eu ainda chupava o dedão.

“Drusilla havia lido todos os livros das irmãs Brontë, é claro: O morro dos ventos uivantes, Jane Eyre, Shirley, A moradora de Wildfell Hall. Ela os conhecia quase de cor. Eu estava meio apaixonado por ela, imagino, e achei que poderia fazer com que ela me amasse lendo seus livros favoritos em inglês, em voz alta.

“E foi assim que me tornei um anglófilo. Daquela época em diante, não havia nada que eu quisesse mais do que ler livros ingleses: Dickens, é claro, e Conan Doyle; Jane Austen e Thomas Hardy. Quando fiquei um pouco mais velho, Drusilla me deu de Natal assinaturas de O Anuário dos Meninos e Companheiros. Com doze anos, eu já era mais britânico do que um garoto de Brixton!

“Então veio o rádio. Com base em artigos da Companheiros e com a ajuda de um colega de escola que morava ao lado (seu nome era Wolfgang Zander), fui capaz de montar um receptor simples, de uma só válvula, com o qual podíamos sintonizar as transmissões da BBC.

“Éramos loucos por dispositivos elétricos, Wolfgang e eu. A primeira coisa que fizemos foi uma campainha de porta operada por bateria; a seguinte foi um telefone entre o meu quarto e o dele, com um fio esticado por cima dos telhados e através das árvores.

“Bem depois que nossas famílias estavam dormindo, o fio encapado de algodão no topo dos galhos rumorejava até altas horas com nossas especulações febris. Podíamos falar a noite inteira, sobre rádio, é claro, mas também sobre livros ingleses. Pois Wolfgang, entendam, também tinha sido atacado pelos vírus ingleses e, em especial, pelo Brontë.

“A imaginação adolescente é uma força poderosa, e imagino que nos víamos, Wolfgang e eu, como Cavaleiros da Távola Redonda que saíam cavalgando da nossa fortaleza teutônica para resgatar aquelas irmãs Brontë: aquelas três donzelas loiras e pálidas cujo próprio nome as identifica como filhas do deus do trovão, e que eram reféns de um monstro em sua fria torre de pedra no norte.

“Além disso — acrescentou ele —, havia alguma coisa naquelas jovens e desamparadas donzelas em climas sufocantes que fazia com que qualquer menino adolescente quisesse levá-las embora e se casar com elas.”

Ele fez uma pausa, aguardando o efeito de suas palavras, olhando com atenção cada um de nós, e, enquanto fazia isso, vi subitamente chocada que Dieter imaginava ter encontrado as suas Brontës em mim, Felinha e Dafi; e, em Buckshaw, a sua fria torre de pedra. Nós éramos as suas Charlotte, Emily e Anne!

E lá estávamos nós três sentadas, de boca escancarada como cães.

Minha cabeça girava quando Dieter prosseguiu.

— Mas cedo demais nós crescemos — disse ele com um suspiro. — Cedo demais assumimos as alegrias do mundo dos adultos, mas também seus problemas.

“Há sempre uma idade em que os meninos descobrem o voo, e ela veio muito cedo para mim. Meus pais me alistaram no NFSK, o Corpo Nacional-Socialista de Aviação, e quando eu tinha catorze anos me vi subitamente sozinho nos controles de um Schulgleiter, pairando como uma águia acima de Wasserkuppe, nas montanhas do Ródano, acima do Ródano hessiano.

“Do ar, aquelas montanhas, embora de uma geologia muito diferente, ostentam em alguns lugares uma semelhança surpreendente com as charnecas do norte de Yorkshire.”

— Como você sabe isso? — interrompeu Dafi.

— Daphne! — disse o pai. Sua expressão penetrante acrescentava as palavras “tenha modos”.

— Foi porque você bombardeou Sheffield?

Fez-se um silêncio chocado diante da pergunta dela. Como era atrevida! Nem mesmo eu teria questionado Dieter sobre suas atividades aéreas sobre a Inglaterra, embora, tenha de admitir, aquele mesmo pormenor me tivesse cruzado a mente havia apenas alguns minutos.

— Porque — acrescentou Dafi —, se você fez isso, você deve dizer.

— Eu ia chegar nisso — disse Dieter mansamente.

Ele prosseguiu sem piscar um olho.

— Quando a guerra começou e eu fui transferido para a Luftwaffe, sempre mantive as pequenas edições inglesas de Jane Eyre e O morro dos ventos uivantes cuidadosamente envolvidas em um xale de aviador de seda branca, no fundo da minha mochila, juntinho com Lord Byron e Shelley.

“Decidi que, quando a guerra acabasse, eu me matricularia em uma universidade, talvez até um Oxford, uma vez que já falava a língua, e ali cursaria literatura inglesa. No começo, poderia até trabalhar dobrado e aceitar um cargo no magistério em uma das grandes escolas públicas e terminaria meus dias como um honrado e respeitado professor, alguma coisa como o seu Mr. Chips.

“Adeus, Herr Schrantz, eu costumava dizer. Mas o Destino ainda não havia terminado comigo. Receberam uma ordem de que eu teria de ir imediatamente para a França.

“Meu pai, ao que parecia, tinha cruzado com um velho conhecido de Berlim: alguém bem posicionado no ministério e que poderia conseguir quase qualquer coisa que se desejasse. O pai queria um filho que voasse como combatente: alguém cujo nome saísse nas manchetes, e não alguém com o nariz enfiado em um livro. E ainda por cima em um livro inglês!

“Antes que eu pudesse protestar, me vi destacado para um grupo de reconhecimento, o Luftflotte III, baseado na França, perto de Lille. Nossa aeronave era um Messerschmitt Bf-110, uma máquina de dois motores apelidada de Zerstörer.”

— A Destruidora — disse Dafi, sombria. Havia momentos em que ela podia ser bastante mordaz.

— Sim — retrucou Dieter. — A Destruidora. Essas máquinas, no entanto, eram modificadas especificamente para missões de reconhecimento. Não transportavam bombas.

— Espionagem — disse Dafi. Suas bochechas estavam um pouco ruborizadas, mas não sei se de raiva ou de excitação.

— Sim, espionagem, se você prefere — concordou Dieter. — Na guerra, havia missões de reconhecimento de ambos os lados.

— Ele está certo, você sabe, Daphne — disse o pai.

— Como eu estava dizendo — prosseguiu Dieter, dando uma olhadela para Dafi —, o Zerstörer era uma máquina de dois motores com uma tripulação de dois: um piloto e um segundo membro, que poderia ser um operador de rádio, um navegador ou um artilheiro de retaguarda, dependendo da missão.

“No meu primeiro dia, quando eu me encaminhava para a barraca de instruções, um Oberfeldwebel, um sargento de voo, com botas de aviador, bateu os calcanhares e gritou: ‘Herr Hauptmann! Heathcliff!’. É claro que era o meu velho companheiro Wolfgang Zander.

“Olhei rapidamente em volta para ver se alguém o ouvira, já que uma tal familiaridade entre patentes não seria tolerada. Mas não havia mais ninguém ao alcance da nossa voz.

“Apertamos as mãos alegremente. ‘Sou o seu navegador, Wolfgang’, disse ele, rindo. ‘Não contaram isso a você? Entre todos os navegadores do país, o meu nome tinha de ser escolhido para ser transportado nas alturas para as guerras no seu dragão de lata!’

“Embora fosse maravilhoso vê-lo de novo, precisávamos ser discretos. Era uma situação complicada. Desenvolvemos todo um conjunto de estratagemas: um pouco como amantes vivendo um romance nos tempos da Regência.

“Íamos até a aeronave, apontávamos aqui e ali com os dedos e nos abaixávamos perto da fuselagem, como se estivéssemos discutindo a tensão dos cabos, mas a nossa conversa, naturalmente, era sobre pouca coisa além de novelas inglesas. Se alguém se aproximasse, mudávamos rápido de Hardy para Hitler.

“Foi durante uma dessas inspeções que nasceu o grande esquema. Não me lembro agora se foi Wolfgang ou se fui eu quem teve a ideia.

“Estávamos andando em volta da cauda de Kathi (Kathi era o nome sutilmente disfarçado, pintado no nariz da nossa aeronave), quando de repente um de nós, acho que pode ter sido Wolfgang... ou posso ter sido eu... disse: ‘Você acha que as urzes estão em flor agora em Haworth Moor?’

“Simples assim. Naqueles poucos instantes, a sorte, como disse Julio César, foi lançada.

“E então, como se estivesse ouvindo atrás da porta, o Destino interveio novamente. Dois dias depois nos deram um objetivo em South Yorkshire: um pátio de ferrovia e uma fábrica de bicicletas onde achavam que eram produzidos motores Rolls-Royce. Apenas fotografias. ‘Moleza’, como costumavam dizer os sujeitos da RAF. Uma oportunidade perfeita para entregar, em pessoa, o nosso presentinho.

“O voo através do Canal transcorreu sem incidentes e, para variar, não fomos rechaçados por Spitfires. O tempo estava lindo, e os motores de Kathi ronronavam como dois enormes gatos satisfeitos.

“Chegamos ao alvo a tempo, ou ‘em ponto’, como vocês dizem, e tiramos as nossas fotografias. Clic! Clic! Clic!, e terminamos. Missão cumprida! Os quinze minutos seguintes eram só nossos.

“O presbitério de Haworth estava agora a menos de dezesseis quilômetros a noroeste e, à nossa velocidade, que era de quinhentos quilômetros por hora, ficava a não mais de dois minutos.

“O problema era que estávamos voando alto demais. Embora tivéssemos descido até cinco mil metros a fim de tirar as fotografias, para a nossa missão pessoal precisaríamos perder rapidamente ainda mais altitude. Um Messerschmitt com cruzes negras nas asas mergulhando sobre uma tranquila aldeia inglesa dificilmente passaria despercebido.

“Empurrei a alavanca de comando para a frente, e fomos descendo em uma espiral gigante, os ouvidos estalando como rolhas de champanhe. Abaixo de nós, as urzes da charneca eram um mar de ondas roxas.

“A trezentos metros, comecei a me afastar e caí quase a um voo rasante. ‘Prepare-se!’, gritei para Wolfgang.

“Entramos pelo leste, e subitamente lá estava ela, no topo da sua colina: a aldeia de Haworth! Seguimos em frente, os motores roncando rasantes por cima dos campos, transpondo por pouco as chaminés da casa da fazenda.

“Quando nos aproximávamos sobrevoando a estrada de Haworth, tive o primeiro vislumbre da igreja no alto da íngreme rua principal; então, cem metros adiante, além do pátio da igreja, a forma familiar do presbitério de Brontë. Era exatamente como eu sempre a tinha imaginado: as pedras escuras e manchadas e as janelas vazias.

“‘Agora!’, gritei, e Wolfgang empurrou nosso presente para fora da portinhola aberta na carlinga e para dentro do turbilhão dos motores. Embora eu não pudesse ver, podia imaginar nossa grinalda formando um arco descendente pelo ar, tombando e virando seguidamente, sua fita roxa tremulando atrás dela enquanto caía. Mais tarde, alguém a recuperaria entre as antigas sepulturas perto da porta do presbitério e leria a mensagem, em letras douradas cor de tojo sobre seda cor de urze: ‘O Mundo Inteiro Te Ama — Descansa em Paz’.

“Era arriscado demais subir para uma altitude de cruzeiro. Tínhamos de ir para casa em voo rasante de ponto a ponto, mantendo-nos em campo aberto. É claro que queimaríamos mais combustível assim, mas nós dois éramos jovens e imprudentes e fizéramos o que tínhamos vindo fazer. Assim que fôssemos vistos, o Inferno, os Furações e os Spitfires estariam na nossa cola.

“Mas era um dia perfeito de agosto. Com um pouquinho de sorte e um vento de popa, eu dizia a Wolfgang, poderíamos até conseguir sobrevoar a casa de Thomas Hardy a caminho de casa, sem nenhum custo adicional para o Reich.

“Foi naquele preciso momento que a carlinga diante de mim se estilhaçou, explodindo em uma chuva de balas. Tínhamos sido atingidos!

“‘Spitfire!’, gritou Wolfgang. Mas era tarde demais. Uma sombra escura passou disparada por nós, depois inclinou-se de lado e voltou, os círculos em vermelho, branco e azul lampejando como olhos loucos ao sol de verão.

“‘Cuidado’, gritei. ‘Ele está voltando para um novo ataque!’

“Foi então que notei que o indicador de temperatura do nosso motor de bombordo estava grudado no topo. Havia um supera-quecimento. Olhei para o lado e, para meu horror, vi a fumaça preta e as chamas alaranjadas sendo expelidas pela cobertura do motor. Perfilei a hélice e desliguei o motor.

“A essa altura o Spitfire estava de novo atrás de nós. No que restara do meu espelho retrovisor, vi sua imagem fragmentada oscilando gentilmente de um lado para outro, no nosso vácuo. Estávamos na sua mira.

“Mas ele não disparou. Foi muito enervante.

“Vamos, pensei. Acabe logo com isso. Ele estava brincando de gato e rato conosco.

“Não sei quanto tempo aquilo durou. Você não consegue estimar o tempo quando está prestes a morrer.

“‘Por que ele não dispara?’, gritei para Wolfgang, mas não houve resposta. Preso pelo cinto, não pude me virar o bastante no meu assento para vê-lo.

“Mas mesmo só com um motor, Kathi foi facilmente capaz de se manter voando, e, pelo que me pareceu uma eternidade, aquele cão de caça britânico perseguiu a égua alemã através dos campos verdejantes. O para-brisa estilhaçado reduzira a zero a visibilidade adiante de nós, e eu tinha de manobrar bruscamente de um lado para o outro, a fim de ver o que estava à frente. Era uma situação imprevisível.

“E então o outro motor morreu. Puf! Simples assim! Eu só tinha segundos para tomar uma decisão. As árvores de uma colina coberta de mato passavam velozmente embaixo das asas. No limite do bosque havia um campo em declive. Era lá que eu teria de aterrissar. Sem as rodas, pensei. Melhor fazer um pouso de barriga e parar mais depressa.

“O ruído do choque foi muito mais alto do que eu poderia ter imaginado. A aeronave virou de um lado para o outro, como se a terra estivesse rasgando a sua barriga, chacoalhando e batendo, guinando, pinoteando... foi como ser jogado vivo em uma calha de moinho.

“E, então, o silêncio sinistro. Foi preciso um momento para nos darmos conta de que não estávamos mais em movimento. Desafivelei meu cinto, joguei para trás a coberta e pulei sobre a asa. Depois, corri de volta para ver como estava Wolfgang.

“‘Saia!’, gritei. ‘Depressa! Para fora!’

“Mas não houve resposta.

“Embaixo da coberta de vidro, em um mar de sangue, Wolfgang estava sentado com um sorriso alegre nos lábios. Seus olhos mortos olhavam para fora fixamente, quase calorosamente, para os campos ingleses verdejantes.

“Pulei de cima da asa e vomitei sobre o capim alto.

“Tínhamos aterrissado na extremidade do campo. Agora, no alto da encosta, dois homens, um grande, o outro baixo, haviam emergido do meio das árvores e desciam lenta e cautelosamente na minha direção. Um deles trazia uma espingarda de caça, e o outro, um forcado.

“Fiquei lá parado, sem me mexer. Quando eles se aproximaram, ergui uma das mãos, puxei lentamente minha pistola do coldre e a joguei longe, certificando-me de que eles estavam vendo o que eu fazia. Então ergui a outra mão.

“‘Você é alemão’”, gritou o mais alto quando eles se aproximaram.

“‘Sim’, gritei de volta, ‘mas sei falar inglês.’

“Ele pareceu um pouco surpreso.

“‘Talvez seja melhor você chamar a polícia’, sugeri, fazendo um movimento de cabeça na direção do Messerschmitt destruído. ‘Meu amigo está morto lá dentro.’

“O homem alto se aproximou cautelosamente da aeronave e espiou lá dentro. O outro manteve sua posição, olhando fixamente para mim como se eu tivesse chegado de outro planeta. Ele ergueu seu forcado, como se estivesse prestes a enfiá-lo no meu estômago.

“‘Deixe-o, Rupert’, disse o homem com a espingarda. ‘Ele apenas sofreu um acidente grave.’

“Antes que o outro homem pudesse responder, ouviu-se um estrugido agudo no céu, e o Spitfire passou em grande velocidade, subindo na extremidade do campo em uma acrobacia vitoriosa.

“Fiquei olhando, enquanto ele subia diretamente para o céu azul e a seguir disse:

“‘Ele alça voo e começa a rodear. Derrama o fio prateado de som.’

“Os dois homens olharam para mim como se eu tivesse entrado subitamente em estado de choque, e talvez fosse verdade. Só mais tarde fui violentamente atingido pela noção de que o pobre Wolfgang estava morto.

“‘George Meredith’, eu disse a eles. O voo da cotovia.


“Mais tarde, na delegacia de polícia da aldeia, o piloto do Spitfire me fez uma visita. Ele estava com um esquadrão baseado em Catterick e decolara com sua máquina para conferir os controles depois que os mecânicos fizeram alguns ajustes. Não tinha a menor intenção de entrar em uma escaramuça naquele dia, ele me contou, mas lá estávamos nós, Wolfgang e eu, de repente sob a mira das suas armas, acima de Haworth. O que mais ele poderia fazer?

“‘Que raio de desastre. Que azar, meu velho’, disse ele. ‘Sinto muitíssimo pelo seu amigo.’

“Tudo isso aconteceu há seis anos — disse Dieter com um suspiro. — O homem alto no campo com a espingarda, como eu saberia depois, era Gordon Ingleby. O outro, o homem com o forcado, como vocês talvez já tenham adivinhado, era Rupert Porson.”


RUPERT PORSON? MAS COMO ERA POSSÍVEL que o homem com o forcado fosse Rupert?

Minha cabeça girava como um pião de lata colorido.

O último lugar no mundo onde eu poderia esperar que a narrativa de Dieter terminasse era no Campo Jubileu da Fazenda Culverhouse. Mas uma coisa agora ficara perfeitamente clara: se Rupert estava na Fazenda Culverhouse há seis anos, durante a guerra, isso explicaria, pelos menos em parte, como a cara de madeira do seu boneco João fora esculpida à imagem de Robin Ingleby.

O pai deixou escapar um suspiro.

— Eu me lembro muito bem — disse ele. — A sua máquina foi derrubada no Campo Jubileu, logo abaixo do Bosque Gibbet.

Dieter assentiu.

— Eu fui mandado por um breve período para um campo de prisioneiros de guerra com trinta ou quarenta outros oficiais e soldados da Luftwaffe, onde os nossos dias eram passados cavando trincheiras e aparando sebes. Era um trabalho extenuante, mas pelo menos eu ainda estava na Inglaterra. A maioria dos pilotos alemães capturados era mandada para o exterior, para campos no Canadá, onde havia pouca esperança de fuga.

“Quando me ofereceram uma oportunidade de viver e trabalhar em uma fazenda, me agarrei a ela; embora não fosse compulsório, muitos de nós fizeram isso. Aqueles que não nos chamavam de traidores, entre outras coisas.

“Mas a guerra se aproximava do fim, sabíamos disso. Melhor começar a preparar o terreno para minha estrada pessoal rumo a Oxford, pensei, do que deixar meu futuro ao azar.

“Ninguém ficou mais surpreso do que eu ao descobrir que tinha sido designado para a fazenda dos Ingleby. Me divertia pensar que Gordon, que tão pouco tempo atrás me tinha na mira de uma espingarda, estava agora ajudando Grace a fritar meus arenques defumados na cozinha da casa da fazenda.”

— Isso foi há seis anos, você diz; em 1944? — eu perguntei.

— Foi — assentiu Dieter. — Em setembro.

Eu não pude evitar. Antes que conseguisse sufocar as palavras, me vi despejando:

— Então você devia estar na Fazenda Culverhouse quando encontraram Robin enforcado no Bosque Gibbet.

— Flavia! — disse o pai, pondo a xícara e o pires na mesa com um tinido. — Nós não vamos admitir intriguelhas sobre o sofrimento alheio.

A expressão de Dieter se tornou amarga de repente, e um fogo (poderia ser de raiva?) surgiu-lhe nos olhos.

— Fui eu — disse ele — que o encontrei.

Você o encontrou?, pensei. Impossível! A sra. Mullet deixou perfeitamente claro que foi Meg, a Louca, que descobriu o corpo de Robin.

Houve um silêncio notavelmente longo, e então Felinha pôs-se de pé em um salto para reabastecer a xícara de chá de Dieter.

— Você deve desculpar a minha irmãzinha — disse ela com uma risada tensa. — Ela tem uma fascinação um tanto doentia pela morte.

Ponto para você, Felinha, pensei. Muito embora ela tivesse acertado em cheio, não sabia nem a metade.

O resto da tarde foi um tanto maçante. O pai fez o que admito ter sido uma nobre tentativa de mudar a conversa para o tempo e a colheita de linho, enquanto Dafi, sentindo que pouca coisa mais merecia sua atenção, se enfiou de novo em seu livro.

Um a um, fomos saindo com as nossas desculpas: o pai para cuidar de seus selos, tia Felicity para dar uma cochilada antes do jantar, e Dafi para ir à biblioteca. Depois de algum tempo, cansei de ouvir Felinha tagarelando sem parar com Dieter sobre as diversas reuniões dançantes e excursões na região, e escapei para o laboratório.

Roí a parte de cima do lápis por um tempo e então escrevi:

 

Domingo, 23 de julho de 1950

Onde está todo mundo?

Essa é a pergunta fundamental.

 

Onde está Nialla? Depois de passar a noite no

chalé da sra. Mullet, ela simplesmente desaparece.

(Será que o inspetor Hewitt sabe que ela foi

embora?)

Onde está Meg, a Louca? Depois de irromper na

apresentação vespertina de João e o pé de feijão,

ela é levada para descansar no divã do vigário.

E então some.

Onde está Mutt Wilmott? Ele parece ter se

retirado furtivamente durante o espetáculo fatal.

O que Rupert fazia na Fazenda Culverhouse há

seis anos? Por quê, acima de tudo, Dieter alega

ter sido ele a achar o corpo de Robin Ingleby

enforcado no Bosque Gibbet? A sra. Mullet diz

que foi Meg, a Louca, e a sra. M raramente se

engana quando se trata de futricas da aldeia.

E no entanto, por que Dieter mentiria sobre uma

coisa dessas?

 

Por onde começar? Se isto fosse um experimento químico, o procedimento seria óbvio: eu começaria com os materiais que estivessem mais à mão.

A sra. Mullet! Com um pouco de sorte, ela ainda estaria andando de um lado para o outro na cozinha, antes de pilhar a despensa e levar seu butim diário para Alf. Corri para o alto da escada e espiei para baixo através dos balaústres. Ninguém no vestíbulo.

Desci escorregando pelo corrimão e disparei para a cozinha.

Dogger ergueu os olhos da mesa onde, com uma precisão cirúrgica, estava removendo a pele de um par de pepinos.

— Ela foi embora — disse, antes que eu perguntasse. — Uma boa meia hora atrás.

Ele é um demônio, esse Dogger! Não sei como ele faz isso.

— Ela disse alguma coisa antes de sair? Isto é, alguma coisa interessante?

Com Dogger na cozinha como plateia, a sra. M dificilmente teria resistido à tentação de ficar tagarelando sem parar sobre como recebeu Nialla (pobre criatura desamparada!), a aconchegou em uma cama confortável com uma bolsa de água quente e um copo de xerez diluído, e assim por diante, com um relatório completo sobre como ela dormiu, o que comeram no desjejum e o que ela tinha deixado no prato.

— Não. — Dogger pegou uma faca serrilhada de pão e aplicou a lâmina a um pão novo. — Apenas que o pernil está na estufa e a torta de maçã com creme azedo está na despensa.

Velhaco!

Bem, então nada restava a fazer, senão começar cedo de manhã. Eu poria o despertador para tocar ao nascer do sol, depois me poria a caminho para a Fazenda Culverhouse e o Bosque Gibbet, mais adiante. Era improvável que houvesse alguma pista depois de todos esses anos, mas Rupert e Nialla haviam acampado na parte de baixo do Campo Jubileu na noite da sexta-feira. Se meu plano fosse bem executado, eu poderia ir até lá e voltar antes que alguém em Buckshaw percebesse que eu tinha saído.

Dogger rasgou um quadrado perfeito de papel encerado e embrulhou os sanduíches de pepino com cantos de cama de hospital.

— Eu pensei em prepará-los esta noite — disse ele me entregando o pacote. — Sabia que você ia querer sair bem cedo amanhã.


Cortinas de cerração pendiam sobre os campos. O ar da manhã era úmido e gelado, e eu respirei fundo, tentando me manter completamente acordada, enchendo as narinas e depois os pulmões com o rico aroma de terra escura e grama encharcada.

Quando entrei de bicicleta no pátio da igreja de São Tancredo, vi que o Vauxhall do inspetor se fora, bem como, deduzi, o corpo de Rupert. Não que eles fossem deixá-lo no palco de marionetes de sábado à noite a segunda-feira de manhã, mas me dei conta de que o corpo não ficaria muito tempo no salão paroquial, de olhos saltados, deixando que um fio de saliva àquela altura virasse uma estalactite de cuspe...

Se eu achasse que ele estava lá, poderia ter sido tentada a entrar sem pedir licença, para dar mais uma olhada.

Atrás da igreja, tirei os sapatos e as meias e entrei empurrando Gladys através da água mais funda ao lado das alpondras submersas. A chuva de sábado à noite aumentara o volume da água, que corria agitada em volta dos raios e pneus, lavando a lama e a argila acumuladas em minha viagem a Bishop’s Lacey. Quando alcancei a outra margem, Gladys estava tão limpa quanto a carruagem pintada de uma dama.

Dei uma enxaguada final nos pés, sentei-me em um degrau de escada e calcei de novo os sapatos e as meias.

Ali, ao longo do rio, a visibilidade era ainda menor do que na estrada. Árvores e sebes assomavam como sombras pálidas, enquanto eu pedalava pela margem gramada no meio de uma névoa cinzenta e lanosa que empanava todos os sons e cores do mundo. A não ser pelo marulhar abafado da água, tudo era silêncio.

Na parte mais baixa do Campo Jubileu, estava estacionada a van de Rupert, abandonada embaixo dos salgueiros, as letras alegremente pintadas “Marionetes de Porson” destoando totalmente, tanto do lugar como das circunstâncias. Não havia sinal de vida.

Deitei Gladys com todo o cuidado na grama e fui pé ante pé até a van. Talvez Nialla tivesse voltado sorrateiramente e estivesse dormindo lá dentro, e eu não queria assustá-la. Mas a ausência de condensação no para-brisa me contou o que eu já tinha começado a sentir: que não havia ninguém respirando dentro da fria Austin.

Espiei através das janelas, mas não vi nada de anormal lá dentro. Dei a volta até a porta traseira e girei a maçaneta. Trancada.

Andei em círculos cada vez maiores pela grama, à procura de algum sinal de fogo, mas não havia nenhum. O local do acampamento estava como eu o havia deixado no sábado.

Quando cheguei ao fim do caminho, fui detida no meio do passo por uma corda atravessada na estrada, da qual pendia uma placa. Enfiei a cabeça por baixo para ler a mensagem.

 

Investigação Policial — Entrada Proibida Por Ordem da Força

Policial de Hinton

 

O inspetor Hewitt e seus detetives tinham estado ali. Mas ao pendurar sua placa, eles obviamente não pensaram que alguém pudesse chegar através do rio caudaloso. A despeito de sua promessa ao inspetor, o sargento Graves ainda não havia aprendido sua lição sobre pessoas entrando sorrateiramente pela porta dos fundos.

Muito bem, então. Já que, de um jeito ou de outro, não havia nada para ver ali, eu passaria ao meu próximo objetivo. Embora não pudesse enxergá-lo através da névoa, eu sabia que o Bosque Gibbet não ficava muito além do topo da Colina Gibbet. Devia estar tudo molhado e encharcado entre as árvores, mas eu estava querendo apostar que a polícia não estivera lá antes de mim.

Arrastei Gladys por baixo da barricada e a empurrei lentamente pela passagem acima, pois era íngreme demais para pedalar. A meio caminho do topo, enfiei-a embaixo de uma sebe de espinheiros e continuei minha escalada, cercada de todos os lados por vislumbres de linho azul.

Então, de repente, as árvores escuras do bosque assomaram para fora da névoa bem diante de mim. Eu fora dar lá sem me dar conta de como estava perto.

Uma placa de madeira, velha e desgastada, tinha sido pregada em uma árvore, ostentando as palavras em vermelho: NÃO ENTRE — OS INTRUSOS SERÃO...

O resto havia sido arrancado a tiros por caçadores ilegais.

Como eu já tinha previsto, tudo no bosque estava molhado. Estremeci na friagem úmida, juntei forças e vadeei para dentro da vegetação. Antes que eu tivesse dado meia dúzia de passos no meio das samambaias e brotos arborescentes, já estava completamente encharcada até os joelhos.

Alguma coisa estalou na vegetação rasteira. Fiquei paralisada quando uma forma escura precipitou-se com asas silenciosas através do meu caminho: uma coruja, talvez, confundindo a pesada névoa matinal com seu período de caça ao pôr do sol. Embora tivesse me assustado, sua presença era reconfortante: significava que ninguém mais estava no bosque comigo.

Fui em frente, tentando seguir as trilhas indistintas; qualquer uma delas, eu sabia, me levaria à clareira bem no centro do bosque.

Entre duas árvores muito velhas e nodosas, a passagem achava-se obstruída pelo que parecia ser uma cancela coberta de musgo, e sua madeira cinzenta estava deformada pela putrefação. Eu já me preparava para saltar por cima da barreira caindo aos pedaços quando me dei conta de que estava mais uma vez aos pés dos degraus da velha forca. Quantas almas condenadas haviam subido por aqueles mesmos degraus antes de ser desviadas para a plataforma acima? Engolindo em seco, ergui os olhos para os fragmentos da estrutura, que estava agora aberta para o céu.

Uma mão coriácea apertou meu pulso como um anel de ferro quente.

— O que você está tramando? O que pretende, bisbilhotando neste lugar?

Era Meg, a Louca.

Ela enfiou sua cara preta de fuligem tão perto da minha que pude ver os pelos amarelados na ponta de seu queixo. A Bruxa do Bos-que, pensei num momento de pânico, antes de recuperar o juízo.

— Oh, olá, Meg — eu disse, o mais calmamente que podia, tentando amansar meu coração latejante. — Estou contente por tê-la encontrado. Você me deu um susto e tanto.

Minha voz estava mais trêmula do que eu esperava.

— Os medos vivem no Bosque Gibbet — disse Meg, sombria. — Os medos vivem aqui, e em nenhum outro lugar.

— Exatamente — concordei, sem ter a mais pálida ideia do que ela estava falando. — Estou contente por você estar aqui comigo. Agora não vou mais ter medo.

— Não existe mais Diabo agora — disse Meg, esfregando as mãos. — O Diabo está morto, e já foi tarde.

Me lembrei de como ela ficara assustada na apresentação de João e o pé de feijão de Rupert. Para Meg, Rupert era o Diabo, que matara Robin Ingleby, o encolhera até virar um boneco de pau e o pusera no palco. Melhor abordar o assunto de um modo indireto.

— Deu para você descansar bem no presbitério, Meg? — perguntei.

Ela cuspiu no tronco de um carvalho como se estivesse cuspindo no olho de uma bruxa rival.

— Ela me pôs para fora — disse. — Tomou o bracelete da velha Meg e a pôs para fora, ela fez isso. “Imunda, imunda”, ela disse.

— A sra. Richardson? — perguntei. — A mulher do vigário? Ela pôs você para fora?

Meg abriu um sorriso horrendo e saiu correndo em meio às árvores, quase a galope. Eu a segui de perto, através da vegetação rasteira, das samambaias, dos troncos caídos e espinheiros escondidos. Cinco minutos depois, e sem fôlego, estávamos de volta ao lugar onde começáramos, ao pé da forca apodrecida.

— Veja ali — disse ela apontando. — Foi lá que ele o pegou.

— Pegou quem, Meg?

Ela queria dizer Robin Ingleby. Eu tinha certeza.

— O Diabo pegou Robin bem ali? — perguntei.

— Transformou ele em madeira, ele transformou — confidenciou ela, olhando por cima do ombro. — Madeira a madeira.

— Você realmente viu? O Diabo, quero dizer.

Isso era algo que não me ocorrera antes.

Haveria alguma possibilidade de Meg ter visto alguém no bosque com Robin? Afinal, ela morava em uma choça no meio das árvores, e parecia improvável que acontecesse muita coisa nos limites do Bosque Gibbet que escapasse a seu escrutínio.

— Meg viu — ela disse segura de si.

— Como ele era?

— Meg viu. A velha Meg vê muita coisa.

— Você pode desenhar? — perguntei, subitamente inspirada. Puxei do bolso meu caderno e entreguei a ela um toco de lápis. — Aqui — eu disse, virando para uma página em branco. — Desenhe o Diabo para mim. Desenhe o Diabo no Bosque Gibbet pegando o Robin.

Meg produziu um som que só posso descrever como uma risadinha de escárnio molhada. E então ela se agachou, alisou o caderno aberto contra o joelho e começou a desenhar.

Acho que eu estava esperando alguma coisa infantil: nada além de bonequinhos de círculo e linhas. Mas nos dedos encardidos de Meg o lápis ganhou vida. Na folha, apareceu a clareira do Bosque Gibbet: uma árvore aqui, outra ali; depois, a madeira podre da forca, instantaneamente reconhecível. Ela começara pelas margens e agora progredia para o centro da página.

De quando em quando ela desaprovava algo em seu trabalho, virava o lápis ao contrário e apagava uma linha. Ela era muito boa, tenho de admitir. Seu croqui provavelmente estava melhor do que eu mesma teria feito.

E então ela desenhou Robin.

Eu mal me atrevia a respirar enquanto olhava por cima do ombro dela. Pouco a pouco, o menino morto tomou forma diante dos meus olhos.

Ele pairava tranquilamente no ar, o pescoço inclinado para um lado, uma expressão de um ligeiro e surpreso contentamento no rosto, como se tivesse súbita e inesperadamente entrado em uma sala cheia de anjos. Apesar da luz tênue do bosque, seu cabelo impecavelmente repartido tinha reflexos saudáveis e, portanto, amedrontadores. Usava um suéter listrado e calça escura, enfiada com descuido dentro de um par de botas de borracha. Ele deve ter morrido depressa, pensei.

Só então ela desenhou o laço que lhe apertava o pescoço: uma coisa escura e trançada que pendia da forca para o espaço abaixo. Ela sombreou a corda com golpes irados do lápis.

Inspirei profundamente. Meg olhou para mim triunfante, buscando aprovação.

— E agora o Diabo — sussurrei. — Desenhe o Diabo, Meg.

Ela me olhou diretamente nos olhos, saboreando a atenção. Um sorriso astuto apareceu no canto de sua boca.

— Por favor, Meg... desenhe o Diabo.

Sem tirar os olhos de mim, ela lambeu um indicador e o polegar e buscou deliberadamente uma nova folha do caderno. Ela começou de novo e, enquanto desenhava, o Bosque Gibbet apareceu mais uma vez da ponta de seus dedos. Esse segundo croqui foi ficando mais escuro que o primeiro, enquanto Meg esfregava os traços do lápis, borrando-os para sugerir a meia-luz da clareira. Depois veio a forca, vista, dessa vez, de um ângulo ligeiramente diferente.

Que estranho, pensei, ela não começar pelo Diabo, como a maioria das pessoas se sentiria tentada a fazer. Mas só depois de preparar o palco com árvores e arbustos e se dar por satisfeita, ela começou a esboçar a figura que deveria ser o foco de sua criação.

Em um espaço aproximadamente oval deixado em branco na parte de cima da folha, uma figura esboçada começou a emergir: braços e ombros primeiro, seguidos por joelhos, pernas, mãos e pés.

Usava um casaco preto e estava sobre um pé só na clareira, como que flagrado no meio de uma dança frenética.

Sua calça estava pendurada pelo suspensório em um galho baixo.

Meg escondeu o papel com a mão esquerda enquanto desenhava as feições. Quando terminou, lançou o caderno para mim bruscamente, como se o papel estivesse contaminado.

Levei um momento para reconhecer o rosto: para reconhecer que a figura na clareira, o Diabo, era o vigário, Denwyn Richardson.

O vigário? Era ridículo demais para traduzir em palavras. Ou será que era possível?

Apenas há alguns minutos, Meg me dissera que o Diabo estava morto e agora desenhava o vigário como o Diabo.

O que se passaria em sua pobre mente confusa?

— Você tem mesmo certeza, Meg? — perguntei, tocando o caderno. — Este é o Diabo?

— Pssssst! — fez ela, levantando a cabeça e pondo os dedos nos meus lábios. — Vem vindo alguém!

Olhei ao redor da clareira, que, para meu sentido aguçado de audição, parecia completamente silenciosa. Quando olhei de volta, meu caderno e o lápis estavam aos meus pés e Meg desaparecera no meio das árvores. Eu sabia que não adiantaria muito chamá-la.

Fiquei lá imóvel por alguns instantes, ouvindo, esperando alguma coisa, embora não soubesse o quê.

As florestas, me lembrei, são um mundo em constante transformação. As sombras mudam de minuto em minuto, e de hora em hora a vegetação se movimenta com o sol. Insetos cavam túneis no solo, trazendo a terra para cima, empilhando-a de início em pequenas elevações, depois em elevações maiores. De mês em mês, as folhas crescem e caem, e, de ano em ano, as árvores. Dafi me disse uma vez que não é possível entrar no mesmo rio duas vezes, e a mesma coisa acontece com as florestas. Cinco invernos vieram e se foram desde que Robin Ingleby morrera ali, e agora nada restava para se ver.

Caminhei lentamente de volta, passando pela forca em desintegração e me embrenhando no mato. Em minutos, estava a céu aberto no topo do Campo Jubileu.

A menos de vinte metros de distância, quase invisível na névoa, um trator Ferguson cinza estava parado no campo, e alguém de guarda-pó verde e botas de borracha estava curvado sobre o motor. Deve ter sido o que Meg ouviu.

— Olá! — gritei. Anunciar-se cordialmente é sempre melhor do que invadir. (Embora eu tivesse inventado isso na hora, parecia ser uma boa regra geral.)

Quando a figura endireitou o corpo e se virou, me dei conta de que era Sally Straw, a garota do Exército Feminino da Terra.

— Olá — disse ela, limpando as mãos sujas de óleo com um trapo. — Você é Flavia de Luce, não é?

— Sim — eu disse, e estendi a mão. — E você é a Sal. Eu a vi no mercado. Sempre admirei suas sardas e o seu cabelo ruivo.

Para chegar ao máximo da eficácia, a bajulação fica sempre mais bem aplicada usando uma pá de pedreiro.

Ela me deu um sorriso largo e honesto e um aperto de mão que quase me esmigalhou os dedos.

— Você está certa em me chamar de Sal. É como todos os meus melhores amigos me chamam.

Ela me lembrou, de certo modo, Joyce Grenfell, a atriz: um pouco masculina no modo de se mover, mas de resto decididamente feminina.

— O meu Fergie quebrou — disse ela, apontando para o trator. Pode ser a bobina da ignição. Elas fazem isso às vezes, você sabe: ficam superaquecidas e a corrente não passa. Não há nada a fazer, senão esperar até a bendita coisa esfriar.

Como motores não são meu forte, assenti sabiamente e fiquei de boca fechada.

— O que você está fazendo aqui, tão longe?

— Só perambulando — disse eu. — Gosto de dar uma escapada de vez em quando. Dar uma caminhada, esse tipo de coisa.

— Sorte sua — disse ela. — Eu nunca escapo. Bem, quase nunca. Dieter me levou para dividir uma caneca de cerveja com ele na Treze Patos um par de vezes, mas então aconteceu uma discussão acalorada que Deus me livre. Os prisioneiros de guerra, você sabe, não podem fazer isso. Pelo menos não podiam durante a guerra. Dieter me contou que a sua irmã Ophelia o convidou para o chá ontem — acrescentou ela, com ar confidencial. Percebi na hora que ela estava jogando verde para colher maduro.

— Isso mesmo — eu disse, chutando com displicência um montinho de terra para longe e fazendo de conta que não estava nem remotamente interessada. Amiga ou não, se ela quisesse extrair mexericos de mim, eu teria de ser paga na mesma moeda.

— Vi você na apresentação de marionetes — eu disse. — Na igreja, no sábado à noite. Não foi mesmo incrível? Quero dizer, o sr. Porson?

— Foi horrível — disse ela.

— Você o conhecia?

Provavelmente não foi uma pergunta amável, e além do mais a disparei contra ela sem aviso: caída direto das nuvens.

A expressão de Sally se tornou imediatamente reservada, e ela hesitou por um instante um pouco longo demais antes de responder.

— Eu... eu o tenho visto aqui e ali — disse. A mentira era óbvia.

— Na televisão, quem sabe? — perguntei, talvez inocentemente demais. — O Reino Mágico? Snoddy, o Esquilo?

Assim que falei isso, me dei conta de que tinha ido longe demais.

— Certo — disse ela. — Aonde você quer chegar? Vamos, desembuche.

Ela plantou as mãos nos quadris e me fitou com um olhar determinado.

— Não sei o que você quer dizer — disse eu.

— Ora, deixe disso. Não me venha com essa. Todo mundo num raio de oitenta quilômetros por aqui sabe que Flavia de Luce não sai andando pelo bosque só para pegar uma corzinha no rosto.

Seria verdade? Oitenta quilômetros? A resposta dela me surpreendeu um bocado. Eu tinha imaginado uns cento e cinquenta.

— Gordon arrancaria o seu couro se a pegasse naquele bosque — disse ela, apontando para a placa.

Fiz a minha melhor cara de envergonhada, mas fiquei calada.

— Quanto você sabe sobre tudo isso? — perguntou Sally, fazendo um gesto largo e circular para abranger toda a fazenda. O que ela queria dizer estava claro.

Respirei fundo. Eu precisava confiar nela.

— Eu sei que Rupert vinha aqui para conseguir cannabis, e isso há um bocado de tempo. Sei que Gordon a cultiva em um pequeno pedaço de terra no Bosque Gibbet, não muito distante do lugar onde encontraram Robin enforcado.

— E você acha que Dieter e eu estamos de algum modo metidos em tudo isso?

— Não sei — respondi. — Espero que não.

— Eu também — disse Sally. — Eu também.


— RUPERT ERA UM SEDUTOR — disse Sally lentamente, como que relutando em pôr seus pensamentos em palavras —, mas você a essa altura provavelmente já descobriu isso.

Assenti com a cabeça, tomando cuidado para não interromper. Observando o inspetor Hewitt, eu aprendera que o silêncio é o melhor prepararativo para um eficaz bombeamento da conversação.

— Ele vinha à Fazenda Culverhouse, de tempos em tempos, há anos, desde bem antes da guerra. E Rupert não é o único, sabe. Gordon tem um pequeno exército de gente igual a ele. Fornece-lhes algo que os ajuda a suportar a dor.

— Bhang — eu disse. Não deu para segurar. — Gunjah... cânhamo-da-índia... cannabis.

Ela me olhou com os olhos contraídos e depois prosseguiu:

— Alguns, como Rupert, vêm porque tiveram paralisia infantil, ou pólio, como dizem agora; e outros, só Deus sabe.

“Entenda, Gordon considera-se uma espécie de herborista, sente-se uma pessoa que ajuda a acabar com sofrimentos quando os médicos não podem fazê-lo, ou não querem. Ele é muito discreto quanto a isso, mas por outro lado tem mesmo de ser, não é? Fora você, eu realmente acho que ninguém em Bishop’s Lacey jamais imaginou que os viajantes ocasionais que param na Fazenda Culverhouse fossem mais que pessoas perdidas ou talvez vendendo produtos agrícolas.

“Eu estou aqui há oito anos — prosseguiu Sally. — E nem se dê ao trabalho de perguntar: a resposta é não. Eu não estou entre os fumantes de Gordon.”

— Eu não esperava que você estivesse — disse eu, bajulando um pouco. Funcionou.

— Fui criada em um bom lar — continuou ela com mais entusiasmo. — Meus pais eram o que aqueles velhos romances em duas partes costumavam chamar de “pobres, porém honestos”. Minha mãe vivia indisposta o tempo todo, mas nunca nos contou o que havia de errado com ela. Nem meu pai sabia. Nesse meio-tempo, penei na escola, adquiri um pouco de conhecimento, e então veio a guerra.

“É claro que eu queria ajudar um pouco com as despesas médicas, assim, juntei-me ao Exército Feminino da Terra. Parece simples, não é? E foi mesmo. Não houve nada além disso. Eu era apenas uma garota de Kent que queria lutar contra Adolf Hitler e ver sua mãe bem outra vez.

“Eu fui alojada, junto com outras quarenta meninas, em um albergue do Exército da Terra, entre aqui e Hinley, e foi lá que pus os olhos pela primeira vez em Rupert. Atraente como o mel para uma abelha, aquele homem, não se iluda quanto a isso. Ele ficava perambulando de um lado para o outro na zona rural todos os verões, com seu pequeno espetáculo de marionetes. ‘Voltando às raízes’, era como ele chamava isso, e sempre que eu o via parecia estar com uma nova assistente. E era sempre do tipo um tanto vistoso, se entende o que quero dizer.

“Não muito tempo depois que eu vim trabalhar na Fazenda Culverhouse, Rupert apareceu para pegar um suprimento novo de material para fumar. Eu o reconheci na hora como o homenzinho coxo que estava sempre puxando conversa conosco no albergue ou no pub no fim de semana.

“Desde o começo, jurei que não me envolveria pessoalmente com ele; deixaria para as outras garotas trazê-lo um ou dois pontos para baixo. Mas então...

O olhar dela perdeu-se em um outro tempo.

Então Nialla tinha razão! Rupert tinha saído à procura de Sally no dia em que eles chegaram. As peças começavam a se encaixar.

Embora a névoa estivesse agora um pouco mais fina, ainda era bastante densa, envolvendo Sally e eu em um casulo nebuloso de silêncio estranhamente reconfortante. A não ser que tivesse cruzado conosco por acidente, ninguém saberia que estávamos ali em cima, no ponto mais alto do Campo Jubileu. Ninguém poderia ter nos ouvido por acaso, a não ser que tivesse subido toda a extensão do campo desde a parte mais baixa, ou descido arrastando-se sorrateiramente desde o bosque acima.

— Ah, Rupert era um feiticeiro, não se iluda quanto a isso — prosseguiu Sally. — Era capaz de enfeitiçar... não, não posso dizer isso na frente de gente educada, posso? Era capaz de enfeitiçar os pássaros e trazê-los para fora das árvores. Especialmente as fêmeas.

“Ele começava com Shakespeare, depois passava para coisas que ouvira em teatros de variedades. Se Romeu e Julieta não desse conta do recado, tentava suas recitações maliciosas.

“E ele escapava impune também, pelo menos na maior parte das vezes. Até tentar com a mulher de Gordon.”

Grace Ingleby? Deixei escapar um assobio involuntário.

— Isso deve ter sido há um bocado de tempo — eu disse. Sabia que soara insensível, mas não tive essa intenção.

— Anos atrás — disse Sally. — Antes de Robin morrer. Antes de ela ficar toda esquisita. Embora olhando para ela agora você possa não achar, ela era uma beldade.

— Ela parece muito triste — eu disse.

— Triste? Triste não é a palavra certa para isso, Flavia. Arrasada é mais adequado. Aquele menininho era todo o seu mundo, e no dia em que ele morreu o sol se apagou.

— Você já estava aqui então? — perguntei delicadamente. — Deve ter sido muito difícil para você.

Ela continuou como se não tivesse me ouvido.

— Gordon e Grace tinham contado a Robin mais de uma vez sobre a idílica lua de mel deles na praia, e aquilo era uma coisa que ele sempre quis fazer: a areia, as conchas, o baldinho, a pá, os castelos de areia, os sorvetes, as cabines móveis.

“Ele costumava sonhar com isso. ‘Sonhei que a maré tinha entrado em casa, Sally!’, ele me contou uma vez. ‘E eu fiquei balançando na água do mar como um balão cor-de-rosa!’ Pobre menininho.”

Ela enxugou uma lágrima com a manga áspera de seu guarda-pó.

— Deus! Por que estou contando tudo isso a você? Devo estar maluca.

— Tudo bem — eu disse. — Juro que não vou deixar escapar nem uma palavra. Sou muito boa em guardar as coisas para mim mesma.

Como prova de boa vontade, fiz toda a pantomima de “juro-pela-minha-vida” e “quero-me-ver-mortinha”, mas sem pronunciar as palavras.

Depois de uma olhadela rápida e estranhamente tímida para mim, Sally continuou sua história:

— De algum modo eles conseguiram economizar um pouco para o aniversário de Robin. Como a colheita estava muito próxima, Gordon não poderia se afastar, mas eles concordaram que Grace levaria Robin para a praia por alguns dias. Era a primeira vez em que os dois, mãe e filho, ficariam juntos em algum lugar sem Gordon, e a primeira vez que Grace tiraria férias desde que era menina.

“O tempo estava quente, mesmo para fim de agosto. Grace alugou uma cadeira de praia e comprou uma revista. Ficou olhando para Robin com seu baldinho, correndo na lama à beira da água. Ele estava perfeitamente seguro, ela sabia. Tinha-o advertido sobre o perigo das marés, e Robin era um menininho muito obediente.

“Ela caiu no sono e dormiu um tempão. Não havia se dado conta de como estava exausta até acordar e ver quanto o sol havia se movido. A maré descera, e Robin não estava em lugar nenhum ao alcance da vista. Teria desobedecido a suas advertências e fora arrastado para alto-mar? Com certeza alguém teria visto. Com certeza alguém a teria acordado.”

— Grace contou isso a você? — perguntei.

— Bom Deus, não! Tudo isso veio à tona no inquérito. Tiveram de arrancar dela aos pedacinhos, minúsculos e entrecortados. Seu estado de nervos era algo chocante.

“Ela desperdiçara tempo demais, contou, correndo pela praia para cima e para baixo, chamando o nome de Robin. Ela correu pela beira da água, esperando vislumbrar seu pequeno maiô vermelho, esperando ver seu rosto entre as crianças que chapinhavam perto da praia.

“E depois praia acima e praia abaixo de novo, implorando aos banhistas que contassem se tinham visto um menininho de cabelo loiro. Sem esperança, é claro. Deveria haver dúzias de crianças na praia correspondendo àquela descrição.

“E então, através dos olhos ofuscados pelo sol, ela viu: uma multidão reunida na sombra embaixo do passeio elevado. Ela irrompeu em lágrimas e começou a andar naquela direção, sabendo o que encontraria: Robin se afogara, e aquela aglomeração era de pessoas que haviam se juntado para olhar, boquiabertas, como idiotas. Ela já começava a odiá-las.

“Mas quando chegou mais perto, uma onda de risadas se ergueu, e ela forçou passagem até o centro da multidão, pouco se importando com o que pudessem pensar.

“Era uma apresentação com as tradicionais marionetes Punch e Judy. E ali, sentado na areia, com lágrimas de riso escorrendo pelo rosto, estava o seu Robin. Ela o agarrou e o abraçou, insegura de si mesma para dizer uma palavra que fosse. Afinal, fora culpa sua: ela adormecera, e Robin fora atraído para a barraca de Punch e Judy, como qualquer criança.

“Ela o carregou ao longo da praia e comprou-lhe um sorvete, depois outro. Então correu com ele de volta para a pequena barraca, para assistir à apresentação seguinte, e juntou-se a ele nas gargalhadas espalhafatosas, e gritou com ele ‘Não! Não’ quando Punch pegou o cassetete do policial para bater na cabeça de Judy.

“Eles riram com o resto da multidão quando Punch enganou Jack Ketch, o carrasco, levando-o a enfiar a própria cabeça no laço e...”

Eu assistia às tradicionais apresentações de Punch e Judy quase todos os anos na quermesse da igreja e estava completamente familiarizada com a trama.

— Eu não sei como ser enforcado — eu disse, citando as famosas palavras de Punch. — Você vai ter de me mostrar, depois eu faço sozinho.

— “Eu não sei como ser enforcado”— ecoou Sally. — “Você vai ter de me mostrar.” Foi o que Grace disse ao júri mais tarde, quando foi aberto um inquérito sobre a morte de Robin, e essas foram provavelmente suas últimas palavras sãs.

“Pior do que isso foi o fato de que ela pronunciou as palavras naquela voz horrível, estrangulada e grasnante que os titereiros usam para Punch: Eu não sei como ser enforcado. Você vai ter de me mostrar.

“Foi horripilante. O juiz pediu um copo d’água, e alguém no júri perdeu a compostura e riu. Grace desmoronou completamente. O médico insistiu para que ela fosse dispensada de novos interrogatórios.

“O resto do que aconteceu naquele dia horrível na praia, e depois na fazenda, tinha de ser juntado, pedaço por pedaço; cada um de nós sabia um pouco. Eu tinha visto Robin arrastando um pedaço de corda que encontrara no galpão de ferramentas. Mais tarde, Gordon o vira brincando de caubói no limite do Campo Jubileu. Foi Dieter quem o encontrou enforcado no Bosque Gibbet.

— Dieter? Eu pensei que tinha sido Meg, a Louca. — Escapou antes que eu pudesse me conter.

Sally desviou o olhar imediatamente, e me dei conta de que aquela fora uma das vezes em que em eu devia ter ficado de boca fechada e aguardado o que viria.

De repente, ela pareceu tomar uma decisão.

— Você precisa se lembrar — disse ela — de que tínhamos acabado de sair da guerra. Caso se tornasse conhecido em Bishop’s Lacey que o corpo de Robin fora encontrado enforcado no bosque por um prisioneiro de guerra alemão, bem... apenas pense nisso.

— Poderia ter sido algo como aquela cena de Frankenstein: aldeões furiosos com tochas, e coisa e tal.

— Exatamente — disse ela. — Além disso, a polícia acreditava que Meg realmente estivera lá antes de Dieter, mas que ela não tinha contado nada a ninguém.

— Como você sabe disso? — perguntei. — Quero dizer, sobre o que a polícia acreditava?

Sem perceber o que estava fazendo, Sally começou de repente a afofar o cabelo.

— Havia um certo policial jovem — disse ela —, cujo nome não me sinto livre para mencionar, que costumava me levar, à noite, para ver a lua surgir no céu acima da Colina Goodger.

— Entendi — disse eu, e tinha mesmo entendido. — Eles não queriam que Meg fosse chamada a depor no inquérito.

— Engraçado, não é? — disse ela. — Como é possível a lei ter um ponto sentimental e vulnerável como esse? Não, alguém a vira na aldeia quando Robin desapareceu, portanto ela não era realmente uma suspeita. Foi decidido que devido à sua... porque ela era... bem, para não entrar demais em pormenores, foi decidido que era melhor deixar Meg fora das coisas completamente, e assim foi feito.

— Portanto, foi Dieter quem, afinal, encontrou o corpo.

— Sim. Ele me contou naquela mesma noite. Ainda estava em estado de choque, mal falando coisa com coisa; contou tudo sobre como desceu correndo do Bosque Gibbet, gritando até ficar rouco... pulando cercas, escorregando na lama... disparando para dentro do pátio, olhando para as janelas vazias lá em cima. Eram como olhos mortos, ele ficava repetindo, como as janelas do presbitério das Brontë. Mas, como eu disse, o pobre Dieter estava em estado de choque. Ele não sabia o que dizia.

Senti um vago distúrbio no estômago, mas atribuí aquilo ao bolo Jenny Lind da sra. Mullet.

— E onde estava Rupert esse tempo todo?

— Estranho você perguntar. Parece que ninguém se lembra. Rupert ia e vinha, quase sempre à noite. À medida que o tempo passava, ele parecia estar cada vez mais viciado naquilo que Gordon lhe fornecia, e suas visitas foram ficando mais frequentes. Se ele não estava aqui quando Robin morreu, também não devia estar muito longe.

— Aposto que a polícia estava por toda parte.

— É claro que sim! No começo não sabiam se tinha sido um acidente ou se Robin fora assassinado.

— Assassinado? — O pensamento nunca me passara pela cabeça. — Quem diabos iria assassinar um menininho?

— Isso já tinha acontecido antes — respondeu Sally com tristeza. — Crianças sempre foram assassinadas sem nenhuma boa razão.

— E Robin?

— No fim, eles concluíram que não havia provas para sustentar aquela ideia. Além de Gordon, Dieter e eu (e Meg, a Louca, é claro), mais ninguém estivera no Bosque Gibbet. As pegadas de Robin, que levavam até o alto do Campo Jubileu e depois em volta do velho patíbulo, deixaram muito claro que ele fora para lá sozinho.

— E representou a cena da forca de Punch e Judy — eu disse. — Fazendo de conta primeiro que era Punch e, depois, o carrasco.

— Sim. Foi o que eles pensaram.

— Ainda assim — eu disse —, a polícia deve ter dado uma boa olhada em volta, dentro do bosque.

— Quase o arrancaram todo para fora — disse ela. — Fitas métricas, moldes de gesso, fotografias, saquinhos disso e daquilo.

— Não é estranho — disse eu — que eles não tenham encontrado a plantação de cannabis? É difícil acreditar que o inspetor Hewitt a tenha deixado passar despercebida.

— Deve ter sido antes da época dele — disse Sally. — Se não me falha a memória, era um certo inspetor Gully que estava encarregado da investigação.

A-há! Então foi esse quem decidiu ficar de boca fechada sobre a Meg. Apesar de sua falta de diligência, pelo menos o homem devia ter um coração rudimentar.

— E qual foi o resultado? — perguntei. — Do inquérito, quero dizer.

Eu sabia que poderia, mais tarde, consultar o arquivo do jornal na biblioteca, mas por ora queria ouvir a própria Sally contar. Afinal, ela também estivera lá.

— O legista disse ao júri que eles deveriam chegar a um de três veredictos: morte por assassinato, morte por homicídio acidental ou um veredicto aberto.

— E...?

— Eles decidiram pela morte por homicídio acidental, mas tiveram momentos infernais até chegarem a um acordo.

De repente me dei conta de que a neblina estava se erguendo, e Sally também. Embora uma ligeira névoa ainda pairasse sobre as árvores no bosque acima de nós, o rio e toda a extensão inclinada do Campo Jubileu se esparramavam abaixo de nós, como uma fotografia aérea colorida à mão, à luz fraca do sol.

Nós poderíamos ser claramente vistas da casa da fazenda.

Sem mais uma palavra, Sally escalou o trator até o assento e deu a partida. O motor pegou de primeira, rugiu um pouquinho, depois se estabilizou em um ronronar firme, tique-taqueando.

— Eu falei demais — ela me disse. — Não sei o que eu estava pensando. Trate de cumprir a sua promessa, Flavia. Vou cobrar de você.

Os olhos dela encontraram os meus em uma súplica.

— Eu poderia me meter em um monte de problemas, você sabe — disse ela.

Balancei a cabeça, mas na verdade não disse sim. Com um pouco de sorte, eu poderia forçar uma última pergunta:

— O que você acha que aconteceu com Robin e Rupert?

Jogando a cabeça para trás, Sally apertou os maxilares, engatou a marcha e arrancou através do campo, e torrões de lama preta voaram para cima dos pneus do trator antes de cair de volta no chão como aves abatidas.


RECUPEREI GLADYS EMBAIXO DA SEBE onde a deixara, tirei os sanduíches de pepino do bagageiro e me sentei em uma margem gramada para comer e pensar sobre o morto.

Puxei o caderno do bolso e abri no desenho de Meg: lá estava Robin pendurado pelo pescoço no madeirame encarquilhado do velho cadafalso. A expressão em seu rosto era a de uma criança dormindo tranquilamente, com um leve sorriso nos cantos dos lábios.

Alguma coisa na minha cabeça fez clic!, e eu soube que não podia mais adiar aquilo: teria de fazer uma visita à biblioteca da aldeia, ou pelo menos ao Barracão do Fosso, o anexo onde eram armazenadas as edições antigas de jornais.

O Barracão do Fosso era uma oficina de automóveis há muito extinta que ficava, cercada de mato, no Caminho das Vacas, uma vereda curta e bastante negligenciada que descia da rua principal de Bishop Lacey até o rio. A súbita lembrança de meu recente cativeiro naquele mausoléu bolorento me deu arrepios.

Parte de mim (a minha voz mais calma) dizia: “Desista. Não se intrometa. Vá para casa ficar com sua família”. Mas uma outra parte era mais insistente: “A biblioteca não vai abrir até quinta-feira”, ela parecia cochichar. “Ninguém vai vê-la.”

— Mas e a fechadura? — perguntei em voz alta. — O lugar fica trancado.

“Desde quando uma porta trancada a detém?”, replicou a voz.


O Barracão do Fosso, como eu já disse, era facilmente alcançado pela margem do rio. Atravessei de novo a água pelas alpondras atrás da igreja (nenhum sinal ainda de carros de polícia) e segui pela velha trilha de sirgagem, que me levou rapidamente, e com pouco risco de ser vista, até o Caminho das Vacas.

Não havia ninguém à vista quando tentei caminhar despreocupada até a entrada.

Dei uma sacudida na porta, mas, como eu esperava, ela estava trancada. Uma fechadura nova, de fato — uma da marca Yale —, havia sido recentemente instalada, e um aviso desenhado à mão estava afixado na janela: “Entrada estritamente proibida, salvo se acompanhado pela Bibliotecária”, dizia. Tanto o aviso como a fechadura, pensei, tinham provavelmente sido colocados ali por causa das minhas recentes travessuras.

Embora Dogger tivesse me proporcionado diversos cursos sobre a arte de forçar fechaduras, as complexidades da Yale requeriam ferramentas especiais que eu não tinha comigo.

As dobradiças da porta ficavam do lado de dentro, portanto não havia nenhuma possibilidade de remover os pinos. Mesmo que fosse possível, seria temerário tentar fazer uma coisa dessas totalmente à vista de qualquer um que passasse pela rua principal no fim do caminho.

Dei a volta até os fundos. No capim alto, bem abaixo de uma janela, havia um pedaço monstruoso de sucata enferrujada, que aparentemente tinha visto dias melhores quando era um motor em uma Daimler. Subi em cima da coisa e espiei para dentro através do vidro embaçado de poeira.

Os jornais estavam empilhados em suas prateleiras de madeira como sempre estiveram há séculos, e o interior tinha sido limpo do estrago causado por minha última visita.

Quando fiquei na ponta dos pés, escorreguei e quase fui arremessada de cabeça através da vidraça. Quando me agarrei ao peitoril para me firmar, alguma coisa se esfarelou embaixo dos meus dedos, e um rio de grãozinhos minúsculos começou a escorrer para o chão.

Madeira podre, pensei. Mas espere! Aguarde um minuto. Madeira podre não é cinzenta. Isto é massa de vidraceiro ressecada!

Pulei para baixo e em segundos estava de volta com uma chave de boca do conjunto de ferramentas de Gladys. Quando bati de leve nas bordas do vidro, pedaços duros de massa de vidraceiro em forma de cunha se soltaram com um esforço surpreendentemente pequeno. Foi fácil demais.

Depois de lascar a massa em toda a volta da vidraça, comprimi a boca contra o vidro e suguei com todas as minhas forças, para criar um vácuo. Então recuei lentamente a cabeça.

Sucesso! Quando a vidraça se soltou da moldura e se inclinou na minha direção, segurei o vidro pelas beiradas ásperas e o baixei cuidadosamente no chão. Em menos tempo do que leva para contar, eu já tinha me insinuado pela moldura e me deixado cair no piso lá dentro.

Embora os cacos de vidro de meu antigo resgate tivessem sido recolhidos, o lugar ainda me dava arrepios. Não perdi tempo para encontrar as edições de The Hinley Chronicle da última parte de 1945.

Embora as datas exatas de Robin não tivessem sido gravadas em sua sepultura, a história de Sally indicava que ele morrera algum tempo depois da colheita daquele ano. The Hinley Chronicle era, e ainda é, publicado semanalmente às sextas-feiras. Portanto, havia apenas umas duas dúzias cobrindo o período entre fim de junho e o fim do ano. Eu sabia, porém, que seria mais provável achar a história em uma edição mais antiga do que em uma posterior. E assim foi: sexta-feira, 7 de setembro de 1945.

 

Um inquérito será realizado hoje no Almoner’s Hall de Bishop’s Lacey sobre a morte de Robin Ingleby, aos cinco anos de idade, cujo corpo foi encontrado na segunda-feira no Bosque Gibbet, próximo àquela aldeia. O inspetor Josiah Gully, da força policial de Hinley, preferiu não comentar nada desta vez, porém urge fortemente qualquer pessoa do público que possa ter alguma informação sobre a morte da criança contatar as autoridades policiais imediatamente em Hinley 5272.

 

Logo abaixo, vinha impressa uma nota:

 

Informo aos clientes que a agência de Correio e confeitaria localizada na rua principal, Bishop’ Lacey, fechará hoje (sexta-feira, 7 do corrente) ao meio-dia. Ambos abrirão como de costume no sábado de manhã. O seu patrocínio é apreciado. Letitia Cool, Proprietária.

 

A srta. Cool era a agente de Correio e a fornecedora de doces da aldeia, e eu só conseguia pensar em uma razão para ela fechar a loja numa sexta-feira.

Fui ansiosamente para a semana seguinte: a edição de 14 de setembro.

 

Um inquérito convocado para investigar a morte de Robin Ingleby, de cinco anos de idade, da Fazenda Culverhouse, próxima a Bishop’s Lacey, foi encerrado na última sexta-feira, às 15h15, após quarenta minutos de debates. O juiz registrou um veredicto de morte por homicídio acidental e expressou suas condolências aos pais enlutados.

 

E era tudo. Parecia óbvio que a aldeia queria poupar os pais da aflição de ver impressos os detalhes horrendos.

Uma rápida olhada nos jornais restantes não revelou nada além de uma breve notícia do funeral, onde o caixão foi carregado por Gordon Ingleby, Bartram Tennison (o avô de Robin, que viera de Londres), Dieter Schrantz e Clarence Mundy, o dono do táxi. O nome de Rupert não foi mencionado.

Recoloquei os jornais em seu suporte e, sem nenhum dano à minha pessoa além de um joelho arranhado, me espremi de volta pela janela.

Diacho! Estava começando a chover. Uma nuvem de fundo escuro flutuou para a frente do sol, esfriando subitamente o ar.

Corri através do terreno gramado até o rio, onde gordas gotas de chuva já marcavam a superfície da água com pequenas crateras perfeitamente formadas. Desci com dificuldade a ribanceira e, com as mãos nuas, recolhi um punhado da argila grudenta que formava a margem.

E então voltei ao Barracão do Fosso, onde depositei o barro em um montinho no peitoril da janela. Tomando cuidado para não sujar a roupa, rolei punhados do material entre as palmas, fazendo uma família de serpentes cinzentas compridas e viscosas. Depois, escalando mais uma vez o motor enferrujado, peguei a vidraça pelas bordas e a ergui cautelosamente de volta à sua posição. Usando o indicador como uma espátula de vidraceiro improvisada, apertei a argila por toda a volta do vidro, formando algo que, pelo menos, ficou semelhante a uma vedação firme e robusta.

Quanto tempo ela iria durar, ninguém poderia dizer. Se a chuva não a dissolvesse e a levasse embora, poderia muito bem durar para sempre. Não que fosse preciso: na primeira oportunidade, pensei, iria substituí-la, surrupiando um pouco de massa de vidraceiro genuína e uma espátula apropriada em Buckshaw, onde Dogger estava sempre usando esse material para reforçar vidraças soltas na estufa decrépita.

“O Louco da Massa de Vidraceiro atacou outra vez!”, cochichariam os aldeões.

Depois de uma corrida até o rio para lavar a argila encrostada nas mãos, fiquei, salvo por estar totalmente encharcada, quase apresentável.

Recolhi Gladys da grama e, passeando de um jeito despreocupado, subi o Caminho das Vacas até a rua principal, como se nada tivesse acontecido.


A confeitaria da srta. Cool, que incorporava a agência de Correio da aldeia, era uma estreita relíquia georgiana, espremida entre um salão de chá e uma agência funerária a leste e uma peixaria a oeste. Suas vitrines cheias de moscas eram escassamente salpicadas de caixas de chocolate desbotadas, as tampas reproduzindo damas rechonchudas de meias listradas e plumas, que sorriam atrevidamente, sentadas meio de lado em desajeitados velocípedes de três rodas.

Foi lá que Ned havia comprado os chocolates que deixou à nossa porta. Eu tinha certeza disso, pois ali, do lado esquerdo, havia a marca escura e retangular do lugar onde a caixa repousara desde o tempo em que jardineiras puxadas por cavalos passavam trovejando pela rua principal.

Por um instante fugaz me perguntei se Felinha já teria provado a minha obra artesanal, mas afastei o pensamento na hora. Tais prazeres teriam de esperar.

A sineta em cima da porta tilintou para anunciar minha entrada, e a srta. Cool ergueu os olhos atrás do balcão do Correio.

— Flavia, querida! — disse ela. — Que surpresa agradável. Ora, mas você está toda molhada! Eu estava pensando em você não faz nem dez minutos, e aqui está você. Na verdade, era no seu pai que eu estava pensando, mas dá na mesma, não é? Tenho aqui uma tira de selos que pode interessá-lo: quatro Georges com uma perfuração extra bem no meio da cara dele. Não parece certo, parece? Totalmente desrespeitoso. A srta. Reynolds, lá da Glebe House, comprou-os na última sexta-feira e os devolveu no sábado. “Têm buracos demais!”, me disse ela. “Não vou admitir que minhas cartas para Hannah (é a sobrinha dela em Shropshire, querida) sejam confiscadas por violação da Lei Postal.”

Ela me entregou um envelope translúcido.

— Obrigada, srta. Cool. Tenho certeza de que o pai vai apreciar ter estes selos na sua coleção, e sei que ele gostaria que eu lhe agradecesse pela gentileza.

— Você é uma menina tão boa, Flavia — disse ela, enrubescendo. — Ele deve ter muito orgulho de você.

— Sim — disse eu —, ele tem. Muito.

Na verdade, aquele foi um pensamento que nunca me passou pela cabeça.

— Você realmente não deve ficar por aí desse jeito, toda molhada, querida. Vá até meu quartinho no fundo e tire suas roupas. Vou pendurá-las na cozinha para secar. Você encontrará uma manta nos pés da minha cama. Enrole-se nela, e vamos ter uma conversa gostosa e aconchegante.

Cinco minutos depois, estávamos de volta à loja, eu parecendo um índio americano pé-negro enrolado num cobertor, e a srta. Cool, com seus óculos pequeninos, lembrava em tudo o feitor de um entreposto comercial no Golfo de Hudson.

Ela já estava atravessando a loja na direção do pote alto de palitos de marroio-branco.

— Quantos você vai querer hoje, querida?

— Nenhum, obrigada, srta. Cool. Saí de casa com muita pressa de manhã, e não trouxe a minha bolsa.

— Pegue um assim mesmo — disse ela, estendendo o pote. — Acho que eu também vou pegar um. Palitos de marroio-branco devem ser compartilhados com amigos, você não acha?

Ela estava completamente enganada: os palitos de marroio-branco eram feitos para ser devorados em solitária gulodice, de preferência em um quarto trancado, mas não me arrisquei a dizer isso. Estava ocupada demais preparando minha armadilha.

Ficamos sentadas por alguns minutos em um silêncio amigável, chupando nossos doces. Uma luz cinzenta diluída infiltrava-se através da janela para o interior da loja, iluminando de dentro as fileiras de potes de vidro com doces, emprestando-lhes um brilho pálido e doentio. Devemos estar parecendo, pensei, sem tirar nem pôr, um par de alquimistas planejando nosso próximo ataque aos elementos.

— Robin Ingleby gostava de palitos de marroio-branco, srta. Cool?

— Ora, mas que pergunta mais estranha! O que a fez pensar nisso?

— Ah, não sei — eu disse com ar displicente, correndo o dedo pela borda de um mostruário de vidro. — Imagino que foi ao ver o rosto do pobre Robin naquele boneco no salão paroquial. Foi um choque e tanto. Não consigo mais tirá-lo da cabeça.

Isso era bem verdade.

— Oh, pobrezinha! — disse ela. — Estou certa de que ninguém de nós consegue, mas as pessoas não quiseram mencionar isso. Foi quase... como é mesmo a palavra? Obsceno. E aquele pobre homem! Que tragédia. Eu não consegui mais pregar o olho depois do que aconteceu. Por outro lado, suponho que aquilo tenha sido uma reviravolta e tanto para todos nós, não foi?

— Você estava no júri do inquérito de Robin, não estava?

Eu estava ficando muito boa nisso. Em um instante, ela ficou confusa.

— Ora... ora, sim, eu estava. Mas como diabos você sabe disso?

— Acho que o pai deve ter mencionado alguma vez. Ele sente um profundo respeito por você, srta. Cool. Mas com certeza você já sabe.

— Um respeito que é inteiramente mútuo, eu lhe asseguro — disse ela. — Sim, eu era um membro do júri. Por que você pergunta?

— Bem, para ser honesta, minha irmã Ophelia e eu tivemos uma discussão sobre isso. Ela disse que no começo pensaram que o Robin havia sido assassinado. Eu discordei. Foi um acidente, não foi?

— Não sei se estou autorizada a discutir isso, querida — disse ela. — Mas foi há tantos anos, não é? Acho que posso contar a você (de amiga para amiga, veja bem) que a polícia de fato considerou essa possibilidade. Mas não havia nada nela. Nem sombra de alguma prova. O menininho subiu para o bosque sozinho e se enforcou sozinho. Foi um acidente. Foi o nosso veredicto: morte por homicídio acidental, é o nome que eles dão.

— Mas como você soube que ele estava sozinho? Você deve ter sido tremendamente esperta para descobrir isso.

— Ora, por causa das pegadas, meu amor! Por causa das pegadas! Não havia outras em lugar nenhum por perto daquela velha forca. Ele subiu até o bosque sozinho.

Meu olhar se desviou para a janela da loja. O aguaceiro começara a diminuir.

— Estava chovendo? — perguntei numa súbita inspiração. — Antes de ele ser encontrado?

— De fato estava — respondeu ela. — Chovia torrencialmente.

— Ah — disse eu, evasiva. — Esteve aqui um sr. Mutt Wilmott para pegar a correspondência dele? Deve ter sido uma posta-restante.

Percebi na hora que eu tinha ido longe demais.

— Sinto muito, querida — disse a srta. Cool, com uma fungada quase imperceptível. — Mas não temos permissão para divulgar esse tipo de informação.

— Ele é um produtor da BBC — eu disse com minha melhor cara de ligeiramente arrasada. — Muito famoso, na verdade. Ele é — ou pelo menos era — o responsável pelo programa de televisão do pobre sr. Porson, O Reino Mágico. Eu esperava conseguir um autógrafo dele.

— Se ele aparecer, eu digo que você perguntou por ele — disse a srta. Cool, abrandando-se. — Não creio ter tido ainda o prazer de conhecer o cavalheiro.

— Oh, obrigada, srta. Cool! — balbuciei. — Eu simplesmente adoro acrescentar algumas personalidades da BBC à minha pequena coleção.

Às vezes eu me odiava. Mas não por muito tempo.

— Bem, parece que a chuva parou — eu disse. — Preciso mesmo ir andando. Acho que minhas roupas já devem estar secas o bastante para me levar para casa, e eu não gostaria que o pai ficasse preocupado. Ele já tem tanta coisa na cabeça hoje em dia.

Eu sabia muito bem que todo mundo em Bishop’s Lacey tinha conhecimento das dificuldades financeiras do pai. Contas pagas em atraso em uma aldeia eram como um foguete sinalizador no meio da noite. Eu bem que podia ganhar alguns pontos pela minha atitude.

— Que criança sensível você é, Flavia — disse ela. — Pegue mais um palito de marroio-branco.

Minutos depois, eu já estava vestida diante da porta. Do lado de fora, o sol saíra, e um perfeito arco-íris cruzava o céu.

— Obrigada pela adorável conversa, srta. Cool, e pelo marroio-branco. Da próxima vez será por minha conta, eu insisto.

— Vá para casa em segurança, querida — ela me disse. — Cuidado com as poças. E guarde-os embaixo do chapéu; os selos, quero dizer. Nós não deveríamos deixar os defeituosos circular.

Dei-lhe uma horrenda piscadela conspiratória e acenei com os dedos.

Ela não havia respondido à minha pergunta sobre se Robin gostava de palitos de marroio-branco, mas também aquilo não tinha muita importância, tinha?


DEI UMA BOA SACUDIDA EM GLADYS, e gotas de chuva saíram voando de sua estrutura como água de um cão encharcado. Eu estava prestes a ir para casa quando alguma coisa na vitrine da loja do agente funerário me chamou a atenção: na verdade, não mais que um ligeiro movimento.

Embora estivesse funcionando no mesmo lugar desde a morte de George III, a loja de Sowbell & Filhos erguia-se discreta e indiferente, como se estivesse esperando um ônibus. Na verdade, era um tanto inusitado ver alguém entrar ou sair daquele lugar.

Despreocupada, me aproximei um pouco mais, fingindo um grande interesse nos cartões fúnebres com margens pretas expostos na vitrine de vidro laminado. Embora nenhum dos mortos (Dennison Chatfield, Arthur Bronson-Willowes, Margaret Beatrice Peddle) fosse alguém que eu conhecesse, estudei atentamente os nomes, dedicando a cada um deles uma pesarosa sacudida de cabeça.

Movendo os olhos da esquerda para a direita, como se estivesse lendo as letras menores dos cartões, porém mudando o foco para o interior sombrio da loja, dava para ver alguém lá dentro agitando as mãos enquanto falava. Foram a camisa de seda amarela e a gravata cor de malva que me chamaram a atenção: era Mutt Wilmott!

Antes que o bom senso pudesse puxar o freio, eu já tinha irrompido para dentro da loja.

— Oh, olá, sr. Sowbell — eu disse. — Espero não estar interrompendo nada. Eu só queria dar uma parada para lhe informar que nosso pequeno experimento químico funcionou admiravelmente, afinal.

Admito que isso foi lustrar um pouquinho os fatos. A verdade é que num domingo eu o peguei de surpresa no pátio da igreja de São Tancredo, depois das orações matinais, para pedir sua opinião pessoal como especialista em conservantes, por assim dizer, sobre se era possível obter um fluido embalsamador confiável a um custo baixo colhendo, macerando, fervendo e destilando o ácido fórmico de um grande número de formigas ruivas (Formica rufa).

Ele alisou o queixo comprido, coçou a cabeça e ficou olhando para cima, para dentro das copas dos teixos, por um bom tempo antes de dizer que na verdade nunca havia pensado nisso.

“É algo que eu vou ter de pesquisar, srta. Flavia”, disse.

Mas eu sabia que ele jamais faria isso de verdade, e estava certa. Os artesãos mais velhos podem ficar terrivelmente taciturnos quando se trata de discutir os truques de seu ofício.

Ele estava de pé nas sombras perto de uma porta almofadada escura que levava a algum sem dúvida pavoroso quartinho dos fundos: um quartinho que eu daria um guinéu para conhecer.

— Flavia — ele saudou; algo cauteloso, pensei. — Infelizmente você terá de nos desculpar — disse. — Estamos no meio de um importante...

— Ora, ora — disse Mutt Wilmott —, se não é a ubíqua jovem protegida de Rupert, a senhorita...

— De Luce — eu disse.

— Sim, claro, De Luce. — Ele sorriu condescendente, como se soubesse o tempo todo; como se só estivesse me provocando.

Tenho de admitir que, como Rupert, o homem tinha uma voz profissional absolutamente maravilhosa: uma fluência melíflua de palavras que saíam como se ele tivesse um órgão de tubos de madeira no lugar da laringe. A BBC devia criar essas pessoas em alguma fazenda secreta.

— Como uma das jovens protegidas de Rupert, por assim dizer — prosseguiu Mutt —, você talvez se sinta confortada por saber que a Titia, como nós os íntimos chamamos a British Broadcasting Corporation, está planejando o tipo de funeral que uma de suas estrelas mais brilhantes merece. Não é exatamente a Abadia de Westminster, você entende, mas a segunda melhor opção. Assim que o sr. Sowbell aqui mandar os... hã... restos mortais para Londres, o luto público poderá começar: a câmara-ardente, os tributos florais, a enrubescida mãe de dez filhos de Weston-super-Mare se ajoelhando junto ao ataúde ao lado dos filhos afogados em lágrimas, e tudo isso com as câmeras de televisão assistindo. Ninguém menos que o diretor-geral em pessoa sugeriu que poderia ser um toque pungente pôr Snoddy, o Esquilo de guarda ao pé do caixão, montado em uma luva vazia.

— Ele está aqui? — perguntei, com um gesto na direção do quartinho dos fundos. — Rupert ainda está aqui?

— Ele está em boas mãos. — Mutt Wilmott assentiu, e o sr. Sowbell, com um sorriso forçado, fez uma humilde e pequena reverência de agradecimento.

Eu nunca na vida tive tanta vontade de fazer alguma coisa, como de perguntar se poderia dar uma olhada no cadáver, mas dessa vez meu cérebro normalmente ágil me falhou. Não consegui pensar em uma única razão plausível para dar uma espiada nos restos mortais de Rupert, como disse Mutt Wilmott; e também não consegui pensar em nenhuma razão implausível.

— Como Nialla está suportando tudo isso? — perguntei, dando um tresloucado tiro no escuro.

Mutt franziu o cenho.

— Nialla? Ela foi embora para algum lugar — disse ele. — Ao que parece, ninguém sabe para onde.

— Talvez ela tenha alugado um quarto na Treze Patos — sugeri. — Devia estar precisando de um banho quente.

Eu esperava que Mutt mordesse a isca, e ele mordeu.

— Ela não está na Treze Patos — retrucou. — Eu mesmo fiquei acampado ali quando cheguei.

Então! Como eu suspeitava, Mutt Wilmott estava a uma curta distância de São Tancredo antes, durante e talvez depois que Rupert foi assassinado.

— Bem — eu disse —, desculpe por incomodá-lo.

Eles continuaram a planejar, antes ainda de eu atravessar a porta.


Como acontece frequentemente no verão, o céu clareou depressa. As nuvens escuras se afastaram para o leste, e passarinhos cantavam exageradamente. Embora ainda fosse um tanto cedo, e a despeito do ar fresco e do sol tépido, me vi bocejando como um gato enquanto pedalava pelos caminhos rumo a Buckshaw. Talvez fosse porque eu acordara antes do amanhecer; talvez porque eu ficara acordada até tarde na noite anterior.

Seja qual for o caso, subitamente fiquei exausta demais. Dafi certa vez comentara que Samuel Pepys, o diarista, estava sempre deitando na cama, e o pai sempre falava dos poderes restauradores de um cochilo rápido. Dessa vez entendi como eles se sentiam.

Mas como entrar em casa sem ser vista? A sra. Mullet montava guarda na cozinha como um Leão Imperial guardando a tumba de um imperador chinês, mas, se eu usasse a porta da frente, correria o risco de cair numa emboscada de tia Felicity e ser designada para deveres indesejáveis pelo resto do dia.

A estrebaria era o único lugar onde alguém poderia facilmente entrar e sair sem ser visto ou perturbado.

Estacionei Gladys atrás de uma das maiores castanheiras que ladeavam a entrada e dei a volta sorrateiramente pelo lado da casa.

Uma porta no outro lado da estrebaria se abria para aquilo que outrora era chamado de pequeno paddock. Escalei a cerca, ergui a tranca de ferro fundido e entrei discretamente pela lateral da casa.

Embora meus olhos estivessem um pouco ofuscados pela luz de fora, ainda consegui distinguir a avultante forma escura do Rolls-Royce clássico de Harriet, um Phantom II, o radiador niquelado luzindo seu brilho empanado na penumbra. Apenas uma luz difusa e pálida conseguia achar seu caminho através das janelas pequenas e empoeiradas, e eu sabia que teria de olhar onde pisava.

Às vezes eu ia ali pensar. Subia a bordo daquele palácio sobre rodas e, em seu confortável interior, ficava sentada sobre o couro cor de creme, fazendo de conta que era Harriet, prestes a engatar a marcha e sair dirigindo rumo a uma vida melhor.

Segurei a maçaneta da porta e a girei silenciosamente. Se Dogger estivesse por perto, sei que seria alertado pelo mais leve ruído e iria correndo ver quem estava invadindo a estrebaria. Que Deus abençoe a boa nave Rolls-Royce e todos os que nela navegam, pensei, quando a pesada porta se abriu em silêncio total e me icei para o banco do motorista.

Inalei o aroma aveludado do carro, como Harriet devia ter feito antigamente, e me preparei para me enrodilhar como uma bola. Com um pouco de sorte, e a quase escuridão, eu estaria dormindo em menos de um minuto. Depois haveria tempo bastante para pensar em assassinatos.

Enquanto eu me espreguiçava voluptuosamente, meus dedos encostaram em alguma coisa: a pele de uma perna humana, pelo tato. Antes que eu pudesse soltar um berro, alguém pôs a mão com força na minha boca.

— Fique quieta! — chiou uma voz ao meu ouvido.

Meus olhos se reviraram como os de um cavalo num matadouro. Mesmo naquela luz fraca dava para ver o rosto da pessoa que me asfixiava.

Era Nialla.

Minha primeira reação foi arrancar um de seus dedos com uma mordida: eu tenho um tipo de fobia contra ser fisicamente contida, e havia ocasiões em que meus reflexos eram mais rápidos do que a razão.

— Não faça nenhum barulho! — sussurrou ela, dando-me uma pequena sacudida. — Eu preciso da sua ajuda.

Raios! Ela me dera a senha feminina: pronunciara aquelas palavras mágicas que remetiam, desde as mais remotas brumas do tempo, a uma aliança formada em algum pântano primordial. Eu estava sob seu domínio. Relaxei o corpo imediatamente e assenti com a cabeça. Ela tirou a mão.

— A polícia está me procurando? — perguntou ela.

— Eu... eu acho que não. Não sei — disse. — Não estou exatamente entre os confidentes deles.

Eu ainda estava um pouco magoada por ter sido agarrada e chacoalhada.

— Ora, pare com isso, Flavia — disse ela. — Não fique toda ofendida comigo. Eu preciso saber. Estão procurando por mim?

— Não vejo a polícia desde sábado à noite — disse eu —, logo depois que Rupert... Logo depois que Rupert foi...

Embora eu não tivesse medos no mundo, não consegui me forçar a dizer aquilo na cara de Nialla.

— Assassinado — disse ela, deixando-se cair de volta no banco. — Nem eu. Aquele inspetor simplesmente não parava de me fazer perguntas. Foi horrível.

— Assassinado? — Eu despejei a palavra como se o pensamento jamais tivesse me ocorrido. — O que a leva a pensar que Rupert foi assassinado?

— É o que todo mundo pensa: a polícia, e agora você. Você estava dizendo “logo depois que Rupert foi...”. Isso implica alguma coisa, não é? Assassinado... morto, que diferença faz? Você certamente não ia dizer “logo depois que Rupert morreu”, e não faça de conta que não foi isso. Eu não sou boba, Flavia, então, por favor, não continue me tratando como se eu fosse.

— Talvez tenha sido um acidente — eu disse, esquivando-me para organizar os pensamentos.

— A polícia teria passado metade da noite interrogando o público se achasse que foi um acidente?

Ela tinha razão.

— O que é pior — ela prosseguiu — é que eles pensam que fui eu que fiz isso.

— Dá para entender por quê — eu disse.

— O quê? De que lado você está, afinal? Eu disse que precisava de ajuda, e de repente você me acusa de assassinato!

— Eu não estou acusando você de assassinato. Só estou afirmando o óbvio.

— Que é...?

Ela estava ficando mais zangada a cada minuto.

— Que é — eu disse, respirando fundo — o fato de que você estava escondida, de que Rupert batia em você, de que havia outra mulher e de que você está grávida.

Naquelas águas, eu estava mergulhada bem fundo, mas ainda determinada a nadar como um cão jogado de cima de um atracadouro. Mesmo assim, o efeito de minhas palavras sobre Nialla foi realmente notável. Pensei por um instante que ela me esbofetearia.

— Isso é tão óbvio? — perguntou com os lábios tremendo.

— Para mim, é — retruquei. — Não posso falar por mais ninguém.

— Você acha que fui eu? Quem matou Rupert, quero dizer?

— Não sei — respondi. — Eu não devia ter considerado você capaz de uma coisa dessas, mas, por outro lado, não sou nenhum Spilsbury.

Embora Sir Bernard tivesse sido um especialista em apontar assassinos, inclusive aqueles dois grandes envenenadores, o dr. Crippen e o major Armstrong, ele, por estranho que pareça, havia tirado a própria vida envenenando-se com gás em seu laboratório. Ainda assim, pensei, se Spilsbury estivesse vivo, teria sido o primeiro a ressaltar que Nialla tivera os meios, o motivo e a oportunidade.

— Pare de tagarelar! — disse ela. — Você acha que fui eu quem assassinou Rupert?

— Foi? — eu disparei de volta.

— Não posso responder — disse ela. — Você não deve perguntar.

Eu não era inexperiente nesse tipo de disputa feminina: onze anos debaixo do mesmo teto com Felinha e Dafi me deixaram totalmente imune àquele tipo de evasivas e esquivas.

— Tudo bem — insisti —, mas se não foi você, então quem foi?

A essa altura, eu já tinha me acostumado à luz poeirenta da estrebaria e vi os olhos de Nialla se arregalar como luminosas luas gêmeas.

Houve um longo e muito desagradável silêncio.

— Se não foi você — eu disse afinal —, então por que estava se escondendo aqui?

— Eu não estou me escondendo! Eu precisava escapar. Já contei isso. A polícia, os Mullet...

— Entendo quanto aos Mullet — eu disse. — Eu preferiria passar uma manhã na cadeira do dentista a ficar ouvindo a sra. Mullet matraqueando por uma hora.

— Você não devia falar essas coisas — disse Nialla. — Eles foram, os dois, muito gentis, especialmente Alf. Ele é um velho cavalheiro encantador; me lembra meu avô. Mas eu precisava me esconder em algum lugar para pensar, para me recompor. Você não sabe como é ficar arrasada.

— Sim, eu sei — disse eu. — Mais do que você pode imaginar. Muitas vezes venho aqui eu mesma, quando preciso ficar sozinha.

— Devo ter sentido aquilo. Pensei em Buckshaw imediatamente. Ninguém jamais pensaria em me procurar aqui. O lugar não era na verdade tão difícil de achar.

— É melhor você voltar — eu disse —, antes que percebam que você foi embora. O inspetor não estava na igreja quando passei por lá. Acho que eles trabalharam até bem tarde. Como ele já a interrogou, não há razão para você não fazer um longo passeio pelo campo, não é?

— Não — disse ela, hesitante.

— Além disso — acrescentei, voltando à minha alegre personalidade —, ninguém além de mim sabe que você esteve aqui.

Nialla estendeu a mão para a bolsa lateral do Rolls-Royce e puxou de lá alguma coisa. Veio com um farfalhar de papel encerado. Quando ela a abriu no colo, não pude deixar de notar as dobras perfeitas no papel.

— Ninguém sabe — disse ela, me passando um sanduíche de pepino —, fora você, e mais uma outra pessoa. Vamos, coma isto. Você deve estar com fome.


— VAMOS, VAMOS! — resmungava Dogger com as mãos trêmulas como as últimas duas folhas do outono. Ele não me viu lá de pé, na soleira da estufa.

Com uma lâmina de seu canivete aberta quase em ângulo reto, ele tentava desajeitadamente afiá-la em uma pedra úmida. A lâmina deslizava de um jeito maluco de um lado para outro, produzindo ruídos rascantes horrorosos sobre a superfície preta.

Pobre Dogger. Aqueles episódios caíam em cima dele sem aviso, e quase qualquer coisa poderia detoná-los: uma palavra pronunciada, um cheiro ou um fragmento de melodia ao léu. Ele estava à mercê de sua memória arruinada.

Recuei lentamente até ficar atrás do muro do jardim. Então comecei a assobiar baixinho, aumentando o volume aos poucos. Soaria como se eu acabasse de atravessar o gramado em direção à horta da cozinha. A meio caminho da estufa, comecei a cantar; uma canção australiana para cantar em volta da fogueira que eu aprendera logo antes de ser excomungada da organização Guia das Meninas:

 

À margem da lagoa um alegre vagabundo,

Sob a sombra de um eucalipto encontrou abrigo.

E ele cantava esperando a chaleira ferver:

“Quem vai querer ser um bom mochileiro comigo?”

 

Entrei de ombros erguidos na estufa.

— Bom dia, companheiro! — eu disse com um cordial sorriso australiano.

— McCorquedale? É você? — chamou Dogger com a voz fraca e tênue como a brisa nas cordas de uma velha harpa. — Bennett está com você? Vocês recuperaram as suas línguas?

Sua cabeça estava inclinada para o lado, escutando, a munheca erguida para proteger os olhos, cegamente voltados para a luz ofuscante do vidro da estufa.

Me senti como se tivesse invadido um santuário, e a minha nuca formigava.

— Sou eu, Dogger, Flavia — consegui falar.

Suas sobrancelhas se juntaram em uma expressão de perplexidade.

— Flavia?

Meu nome saiu de sua garganta como o sussurro de um poço abandonado.

Vi que ele lutava para voltar do que quer que o havia tomado, a luz retornando a seus olhos muito cautelosamente das profundezas para a superfície, como peixinhos dourados em uma lagoa ornamental.

— Srta. Flavia?

— Desculpe — disse eu, tirando o canivete de suas mãos trêmulas. — Será que eu quebrei? Peguei emprestado ontem para cortar um pedaço de barbante e posso ter estragado o fio da lâmina. Se eu fiz isso, vou comprar um novo para você.

Isso era pura fantasia. Eu não tinha encostado a mão naquela coisa, mas aprendi que sob certas circunstâncias uma mentirinha inocente não só é permissível como pode ser um ato de perfeita benevolência. Tirei o canivete de suas mãos, abri-o completamente e comecei a esfregar a lâmina em círculos suaves sobre a superfície da pedra.

— Não, ela está ótima — eu disse. — Ufa! Eu estaria encrencada se tivesse estragado o seu melhor canivete, não estaria?

Fechei a lâmina e entreguei o canivete de volta. Dogger o pegou, os dedos agora muito mais seguros.

Virei ao contrário um balde vazio e me sentei nele enquanto compartilhávamos um silêncio.

— Foi bondade sua pensar em dar comida a Nialla — eu disse depois de algum tempo.

— Ela precisa de um amigo — disse ele. — Ela está...

— Grávida — despejei.

— Sim.

— Mas como você sabia? Com certeza ela não contou a você.

— Excesso de salivação — disse Dogger — e telangiectasia.

— Tel-o-quê?

— Telangiectasia — disse ele com uma voz mecânica, como se estivesse lendo em um livro invisível. — Aranhas vasculares na proximidade da boca, do nariz e do queixo. Incomum, mas não desconhecido no início da gravidez.

— Você me surpreende, Dogger — eu disse. — Como diabos você sabe essas coisas?

— Elas flutuam na minha cabeça — respondeu ele mansamente — como rolhas no mar. Eu li livros, acho. Tive um bocado de tempo nas minhas mãos.

— Ah! — disse eu. Aquilo tinha sido o máximo que eu já o ouvira dizer em séculos.

Mas o antigo cativeiro de Dogger não era um tópico aberto a discussões, e eu soube que era hora de mudar de assunto.

— Você acha que ela fez aquilo? — perguntei. — Quero dizer, que matou Rupert?

Dogger juntou as sobrancelhas, como se o pensamento lhe viesse com um esforço imenso.

— A polícia vai pensar isso — disse ele, assentindo lentamente. — Sim, é isso que a polícia vai pensar. Logo estará aqui.

Como se viu, ele estava certo.


— É um fato bem conhecido — trombeteou tia Felicity — que a peste negra foi trazida à Inglaterra pelos advogados. Shakespeare disse que devíamos ter enforcado uma porção deles, e, à luz da moderna reforma sanitária, sabemos agora que ele estava certo. Isso nunca vai dar certo, Haviland!

Ela enfiou um punhado de papéis em uma poeirenta caixa de chapéu e fechou a tampa.

— É uma perfeita ignomínia — ela acrescentou — a maneira como você deixa as coisas escapar; a não ser que aconteça alguma coisa, logo você não terá opção senão vender Buckshaw e ficar em um apartamento sem água quente em Battersea.

— Olá, todo mundo — disse eu, entrando despreocupada na biblioteca, fingindo pela segunda vez em menos de meia hora que estava por fora de tudo o que acontecia.

— Ah, Flavia — disse o pai. — Acho que a sra. Mullet está precisando de mais duas mãos na cozinha.

— É claro — disse eu, e aproveitei para perguntar: — E então, vou ter permissão para ir ao baile?

O pai pareceu ficar intrigado. A minha engenhosa resposta se perdeu totalmente para ele.

— Flavia! — disse tia Felicity. — Isso não é maneira de uma criança falar com seu pai. Eu deveria imaginar que você a essa altura já tinha superado essa atitude impertinente. Não sei como você deixa essas meninas se safar com isso, Haviland.

O pai foi até a janela e olhou para fora através do lago ornamental e na direção da folly. Ele se refugiava, como sempre fazia, deixando pelo menos os olhos escapar de uma situação desagradável.

De repente, ele se voltou para encará-la.

— Com os diabos, Lissy — disse com uma voz tão forte que acho que surpreendeu inclusive a ele. — Nem sempre as coisas são fáceis para elas. Não... nem sempre é fácil para elas.

Acho que minha boca se escancarou quando a dele se fechou.

Querido velho pai! Eu poderia tê-lo abraçado, e se um de nós dois fosse diferente de quem somos, acho que teria feito isso.

Tia Felicity voltou a remexer os papéis.

— Legados obrigatórios... bens pessoais — disse ela com uma fungada. — Aonde isso tudo vai parar?


— Flavia — disse Felinha assim que passei pela porta aberta da sala de estar —, um momento?

Ela soava suspeitosamente cortês. Estava tramando alguma.

Quando entrei, Dafi, que estava em pé perto da porta, fechou-a suavemente atrás de mim.

— Estávamos esperando você — disse Felinha. — Por favor, sente-se.

— Prefiro não — disse eu. As duas continuavam em pé, pondo-me em desvantagem caso houvesse necessidade de uma fuga súbita.

— Como queira — disse Felinha, sentando-se atrás de uma pequena mesa e colocando seus óculos. Dafi ficou em pé, com as costas contra a porta.

— Infelizmente tenho algumas notícias bem desagradáveis para você — disse Felinha, brincando com os óculos como um juiz no tribunal Old Bailey.

Eu não disse nada.

— Enquanto você vagabundeava pelos campos, tivemos uma reunião e decidimos que você vai ter de ir.

— Em suma, fizemos uma votação e expulsamos você da família — disse Dafi. — Por unanimidade.

— Unanimidade? — eu disse. — Isso não passa de mais uma das suas estúpidas...

— Dogger, naturalmente, apelou por leniência, mas foi indeferido pela tia Felicity, que tem um peso muito maior nesses assuntos. Ele queria que você fosse autorizada a ficar até o fim da semana, mas infelizmente não poderemos permitir. Ficou decidido que você estará fora daqui até o pôr do sol.

— Mas...

— O pai já deu instruções ao sr. Pringle, o advogado dele, para minutar um Acordo de Reversão, o que significa, é claro, que você será devolvida ao Lar das Mães Solteiras, que não terá alternativa senão aceitá-la de volta.

— Por causa do Acordo, entenda — disse Dafi. — Está no estatuto deles. Eles não podem dizer não. Não podem recusar.

Apertei os punhos quando senti as lágrimas começando a se formar nos meus olhos. Não adiantava aguardar pela justiça.

Empurrei Dafi bruscamente para longe da porta.

— Você já comeu aqueles chocolates? — perguntei a Felinha.

Ela ficou um pouco perplexa com a rispidez da minha voz.

— Bem, não... — ela disse.

— Melhor não — cuspi. — Eles podem estar envenenados.

Assim que as palavras saíram da minha boca, soube que tinha feito a coisa errada.

Maldição! Eu tinha me entregado. Todo aquele trabalho no laboratório desperdiçado!

Flavia, pensei, às vezes você não é mais brilhante do que um lagarto atingido por um raio.

Zangada comigo mesma por estar zangada, saí marchando da sala por princípios gerais, e ninguém tentou me impedir.


Respirei fundo, relaxei os ombros e abri a porta da cozinha.

— Flavia — chamou a sra. Mullet —, seja boazinha e me traga um copo de xerez da despensa. Eu fiquei estranha. Mas veja lá, não vá exagerar, senão eu vou ficar tontinha.

Ela estava toda esticada em uma cadeira perto da janela, os calcanhares nos ladrilhos, se abanando com uma frigideirinha.

Fiz o que me mandara, e ela engoliu a bebida num instante.

— O que foi, sra. M? — perguntei. — O que aconteceu?

— A polícia, queridinha. Eles me deixaram tonta, quando vieram buscar aquela moça do jeito que fizeram.

— Que moça? Você quer dizer Nialla?

Ela assentiu, taciturna, sacudindo o copo vazio. Eu o enchi de novo.

— Tão boazinha, ela é. Nunca fez mal a ninguém. Ela bateu aqui na porta da cozinha para me agradecer, e ao Alf, é claro, por termos lhe dado abrigo naquela noite. Disse que estava indo embora e não queria que achássemos que ela era uma ingrata, essas coisas. Nem bem as palavras saíram de sua boca e aquele inspetor como-é-que-chama...?

— Hewitt — eu disse.

— Hewitt. É ele. Ele mesmo. Apareceu na porta bem atrás dela. Viu ela atravessar vindo da cocheira, ele viu.

— E então?

— Ele perguntou se podia ter uma palavrinha do lado de fora. E tudo o que sei é que depois a pobre menina foi embora no carro com ele. Eu tive de correr em volta da casa para poder dar uma boa olhada. Aquilo me deixou exausta, se deixou!

Reabasteci seu copo.

— Eu não devia ter feito isso, queridinha — disse ela —, mas o meu pobre e velho coração já não está mais à altura de tamanho pandemônio.

— Você já está com uma aparência melhor, sra. M — eu disse. — Há mais alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?

— Eu estava para pôr aquelas coisas no forno — disse ela, apontando para uma bateria de assadeiras cheias de massa de pão em cima da mesa, e pondo-se pesadamente de pé.

— Abra a tampa do forno para mim... boa menina.

Grande parte da minha vida foi dedicada a segurar a porta do forno do fogão Aga enquanto a sra. M alimenta aquela bocarra escancarada com montes de comida para assar. Nem no Inferno do Paraíso perdido de Milton há algo que se compare com a minha labuta.

— Ficamos completamente sem doces, nós ficamos — disse ela. — Quando se trata de gulodices, aquele rapaz da srta. Ophelia parece ter um estômago sem fundo.

O rapaz da srta. Ophelia? Já tinha chegado a isso? Será que as minhas perambulações em volta da aldeia me fizeram perder alguma cena de galanteio sensacional?

— Dieter? — perguntei.

— Mesmo sendo um alemão — disse ela inclinando a cabeça —, ele é muito mais refinado do que aquele descarado que fica deixando os seus presentes de lixo no degrau da porta da cozinha.

Pobre Ned!, pensei. Até a sra. Mullet estava contra ele.

— Por acaso ouvi um pouco do que ele disse enquanto eu espanava o vestíbulo: sobre Heathcliff e tudo o mais. Me lembro de quando eu e minha amiga, a sra. Waller, pegamos o ônibus para Hinley para ir ver ele no cinema. O morro dos ventos uivantes, se chamava, e é um bom nome para aquilo! Aquele tal de Heathcliff, ora, ele mantinha a mulher escondida no sótão, como se ela fosse uma velha camareira! Não admira que ela ficasse maluca. Eu ficaria! E agora, então, do que você está rindo, senhorita?

— Da ideia — eu disse — de Dieter chapinhando na lama através do Campo Jubileu debaixo de chuva e raios, para levar embora a Bela Ophelia.

— Bem, ele pode fazer isso — disse ela. — Mas não sem o devido espalhafato de Sally Straw e, dizem alguns, da própria velha senhora.

— A velha senhora? Grace Ingleby? Certamente você não quer dizer Grace Ingleby?

De repente a sra. Mullet ficou vermelha como uma panela de beterrabas fervendo.

— Eu já falei demais — disse, perturbada. — É o xerez, veja bem. Alf sempre fala como o xerez derruba o guarda que devia estar vigiando a minha língua. Agora, então, nem mais uma palavra. Vá agora, queridinha. E lembre-se: eu não disse nada.

Bem!, eu pensei. Bem, bem, bem, bem, bem!


HÁ ALGUMA COISA QUE CLAREIA A MENTE quando estamos lidando com venenos. Quando a mais leve escorregadela da mão pode provar ser fatal, a atenção da pessoa é forçada a se focalizar como uma lente ustória em cima do experimento, e é então que as respostas para as perguntas semiformadas muitas vezes vêm fervilhando à mente de modo tão fácil quanto abelhas voltando para a colmeia.

Com uma boa quantidade de ácido sulfúrico já decantado para um frasco recém-lavado e ligeiramente aquecido, acrescentei com cuidado uma pelota de gel cristalino e fiquei olhando maravilhada enquanto aquilo se dissolvia devagar, palpitando e se contorcendo no banho ácido como um filhote de lula translúcido.

Eu tinha extraído aquilo, com água e álcool, das raízes de um jasmim-amarelo (Gelsemium sempervirens) que, para meu deleite, eu descobrira florescendo beatificamente no canto da estufa, as flores parecidas com pequenas trombetas esculpidas em manteiga fresca.

A planta é nativa das Américas, Dogger me contou, mas tinha sido trazida para as estufas inglesas por viajantes; aquele espécime em particular, pela minha mãe, Harriet.

Perguntei se podia ficar com ela para o meu laboratório e Dogger concordou prontamente.

A raiz continha um adorável alcaloide chamado gelsemina, que ficara de espreita sem ser detectado dentro da planta desde a Criação, até ser trazido à tona por um homem da Filadélfia com o charmoso nome de Wormley, o qual administrou o veneno amargo a um coelho, que deu um salto mortal completo para trás e morreu em vinte minutos.

A gelsemina era uma assassina cuja companhia eu apreciava muito.

E agora vinha a mágica!

Introduzi no líquido, na ponta de uma faca, uma pequena dose de K2Cr2O7, ou dicromato de potássio, cujos sais vermelhos, iluminados por um raio fortuito do sol vindo das esquadrias da janela, o tornaram no matiz vermelho-cereja pálido do sangue de uma vítima de monóxido de carbono.

Mas isso era só o começo! Havia mais por vir.

O brilho cereja já estava desbotando, e a solução assumia a impressionante cor violeta de uma velha equimose. Prendi a respiração e... sim!, aqui estava, a fase final do verde-amarelado.

A gelsemina é um dos camaleões da química, mudando de cor em delicioso abandono, e sem um vestígio sequer do seu matiz original.

As pessoas também são assim. Nialla, por exemplo.

Por outro lado, ela era prisioneira de um titereiro viajante; uma mulher jovem que, a não ser pelo bebê que agora trazia na barriga, praticamente não tinha família; uma mulher jovem deixada agora sem dinheiro e sem nenhum meio de sustento visível. Ainda assim, de um modo confuso que eu não entendia inteiramente, ela não tinha a minha completa simpatia.

Seria porque tinha fugido da cena do crime, por assim dizer, e se escondido na cocheira em Buckshaw? Eu podia entender sua vontade de ficar sozinha, mas ela tinha escolhido o que dificilmente se poderia chamar de o melhor momento.

Onde estaria ela agora?, me perguntei. O inspetor Hewitt a teria prendido e arrastado para uma cela em Hinley?

Escrevi Nialla em um pedaço de papel.

E então havia Mutt Wilmott: um personagem impressionante, que parecia ter saído diretamente de um filme de Orson Welles. Não querendo exagerar nas minúcias, foi Mutt chegar e Rupert morrer; Mutt desapareceu depois de discutir com Rupert, e a seguir foi visto fazendo arranjos para embarcar o corpo para Londres, para um funeral de gala.

Seria Mutt um assassino contratado pela BBC? Teria a briga de Rupert com o misterioso Tony pressionado demais a “Titia” e seu diretor-geral? Seria o fim torpe de Rupert em cima do palco de um teatro rústico de marionetes não mais que o desfecho de uma amarga disputa contratual?

E Grace Ingleby? Para ser honesta, a sombria mulherzinha me dava arrepios. Seu santuário para uma criança morta em um pombal abandonado era o bastante para assombrar qualquer um; e agora a sra. Mullet insinuava que a mulher do fazendeiro era mais do que apenas uma senhoria para Dieter.

E Dieter! Apesar de toda a sua aparência de deus nórdico e de sua paixão pela literatura inglesa, parecia que ele havia conspirado com seus captores para cultivar e fornecer cannabis para o que Sally Straw chamara de “um pequeno exército de gente igual a ele”. Quem eram eles?, me perguntei.

Rupert, claro, era o chefe e visitava a fazenda Ingleby com a regularidade de um bonde. Era um mulherengo, não havia dúvidas a respeito (Sally de novo). Com quem ele entrara em conflito? Quem queria tanto vê-lo morto a ponto de matá-lo?

Quanto a Sally, tanto Rupert como Dieter estavam interessados nela. Teria Rupert sido empurrado para a eternidade por um rival no amor?

Sally parecia ser uma figura central: vivia na fazenda Ingleby havia anos. Estava claro que tinha uma queda por Dieter, mas se suas paixões eram correspondidas, isso já era outra história. E havia Gordon Ingleby. Gordon, o santo coberto de linho que fazia pelos sofredores o que nenhum médico estava disposto a fazer; Gordon, o horticultor; Gordon, o pai da criança morta no bosque.

Isso para não falar em Meg, a Louca, que estava no Bosque Gibbet quando Robin morreu, ou pelo menos não muito tempo depois.

E Cynthia, a querida Cynthia Richardson, mulher do vigário, cuja única paixão era seu ódio ao pecado. O súbito aparecimento de uma dupla de titereiros promíscuos propondo-se a apresentar um espetáculo no salão paroquial de seu marido deve ter calcinado sua alma como o lago de fogo no Livro do Apocalipse.

A despeito de tudo isso, a alma de Cynthia não era uma incubadora de caridade cristã. O que foi mesmo que Meg disse quando perguntei sobre sua soneca no presbitério? Que Cynthia tomara o bracelete dela e a pusera para fora porque era suja. Sem dúvida estava se referindo ao estojo de pó compacto em forma de borboleta de Nialla, mas se fosse esse o caso, por que eu o encontrara enroscado na manta de lã do estúdio? Teria Cynthia pego o pó compacto de Meg e então, surpreendida no ato por um entre as dezenas de aldeões que circulam pelo presbitério, o escondera para poder usá-lo depois?

Parecia improvável: se existia um pecado do qual Cynthia Richardson não podia ser culpada, era o da vaidade. Só uma olhada para ela já bastava para saber que a maquiagem jamais poluíra aquela cara pálida de furão, que joias jamais penderam daquele pescoço mirrado nem deram vida àqueles pulsos de palito de fósforo. Para dizer de modo mais educado, a mulher era despojada como um pudim.

Apontei o lápis e acrescentei seis nomes a minha lista: Mutt Wilmott, Grace Ingleby, Dieter Schrantz, Sally Straw, Meg, a Louca (uma vez Dafi me contou que o sobrenome de Meg era Grosvenor, mas eu não acreditei)... e Cynthia Richardson.

Tracei uma linha e abaixo dela escrevi em letras maiúsculas — CASOS AMOROSOS: PESQUISAR.

Embora eu tivesse uma ideia superficial do que acontecia entre duas pessoas que estão tendo um caso, eu na verdade não conhecia os detalhes mecânicos precisos. Uma vez, quando o pai esteve fora por vários dias para uma exposição de selos em Glasgow, Dafi insistiu em ler Madame Bovary em voz alta para nós em todas as refeições, de manhã, ao meio-dia e à noite, incluindo o chá, e terminou no terceiro dia bem quando o pai cruzava a porta.

Na época quase morri de tédio, muito embora aquele tenha se tornado desde então um dos meus livros favoritos, por conter, como contém, aquela que deve ser a melhor e mais empolgante descrição da morte por arsênico de toda a literatura. Me deleitei em particular com o modo como Emma, a envenenada, “ergueu-se como um cadáver galvanizado”. Mas agora me dou conta de que estava tão fascinada com a empolgação do suicídio da pobre Madame Bovary que deixei de assimilar as minúcias de seus diversos casos. Tudo o que eu conseguia lembrar era que, sozinha com Rodolfo junto à lagoa dos lírios, cercada por lentilhas-d’água e rãs saltadoras, Emma Bovary, em lágrimas, escondendo o rosto, e com um longo arrepio, “entregou-se a ele”.

O que quer que signifique isso. Eu iria perguntar a Dogger.


— Dogger — eu disse quando finalmente o encontrei, arrancando as ervas daninhas na horta da cozinha com uma enxada de cabo longo —, você leu Madame Bovary?

Dogger fez uma pausa em seu trabalho e extraiu um lenço do bolso do peitilho do macacão. Deu uma enxugada geral no rosto antes de responder.

— Um romance francês, não é? — perguntou.

— Flaubert.

— Ah — disse Dogger, e enfiou o lenço de volta no bolso. — Aquele onde uma pessoa extremamente infeliz se envenena com arsênico.

— Arsênico de um pote azul! — eu deixei escapar, pulando de um pé para o outro de tanta excitação.

— Sim — disse Dogger —, de um pote azul. Azul, não devido a qualquer risco de decomposição ou oxidação do conteúdo, mas para...

— Para não ser confundido com um pote contendo uma substância inofensiva.

— Exatamente — disse Dogger.

— Emma Bovary engole aquilo por causa de vários casos infelizes — eu disse.

Dogger, deliberadamente, raspou um torrão de barro da sola do sapato com a enxada.

— Ela teve um caso com um homem chamado Rodolfo — acrescentei — e depois com outro chamado Leon. Não ao mesmo tempo, é claro.

— É claro — disse Dogger, e silenciou.

— Um caso implica o quê, exatamente? — perguntei, esperando que minha escolha de palavras subentendesse, mesmo que ligeiramente, que eu já sabia a resposta.

Pensei por um momento que poderia vencê-lo pelo cansaço, muito embora no fundo soubesse que tentar vencer Dogger pelo cansaço seria um esforço inútil.

— O que Flaubert quis dizer — perguntei afinal — quando disse que Madame Bovary se entregou a Rodolfo?

— Ele quis dizer — disse Dogger — que eles se tornaram os maiores amigos. Os maiores amigos mesmo.

— Ah — disse eu. — Bem como eu pensava.

— Dogger! Suba aqui imediatamente, antes que eu me cause uma grave lesão interna.

A voz de tia Felicity desceu trombeteando de uma janela de cima.

— Estou indo, srta. Felicity — ele gritou e depois disse, num aparte para mim: — A srta. Felicity precisa de ajuda com a sua bagagem.

— Sua bagagem? — perguntei. — Ela está indo embora?

Dogger assentiu evasivamente.

— Queijo! — eu exclamei. Era uma oração secreta de graças, cujo significado só Deus e eu conhecíamos.


Tia Felicity já tinha descido metade da escadaria oeste usando um conjunto de lona que sugeria a África e não as terras selvagens de Hampstead. O táxi de Clarence Mundy estava à porta, e Dogger ajudava Bert a içar a bordo a carga de tia Felicity.

— Vamos sentir saudades, tia Fê — disse Felinha.

Tia Fê? Parece que na minha ausência Felinha andou se insinuando para a irmã do pai, muito provavelmente, pensei, na esperança de herdar as joias da família De Luce: aquela medonha coleção de quinquilharias que meu avô De Luce (do lado do pai e de tia Felicity) havia empurrado para minha avó, que, ao receber cada peça, jogava-a displicentemente com o polegar e o indicador em uma caixa de papelão, como se fosse uma inofensiva cobra-capim, e nunca mais olhava para ela outra vez.

Felinha desperdiçara uma tarde inteira babando em cima daquele lixo na última vez em que fomos a Hampstead para um dos chás compulsórios de tia Felicity.

— É tão romântico! — ela murmurou quando tia Felicity, muito a contragosto, emprestou-lhe um pingente de vidro cor-de-rosa que não ficaria nada mal no úbere de uma vaca. — Vou usá-lo na festa de debutante de Rosalind Norton, e todos os olhos estarão voltados para esta sua criada. Pobre Rosalind, ela é tão terrivelmente ansiosa!

— Sinto muito que tenha dado nisso, Haviland — berrou tia Felicity do patamar —, mas você fez tudo errado. Nem todos os cavalos do rei e todos os homens do rei conseguiriam pôr suas contas em ordem outra vez. Eu ficaria, é claro, mais que feliz em salvá-lo de seus excessos, se não tivesse investido tão pesadamente em títulos da dívida pública. Nada resta a fazer agora senão vender esses selos postais ridículos.

O pai havia entrado tão silenciosamente no vestíbulo que eu não reparara nele até então. Estava em pé, uma das mãos segurando o braço de Dafi, de olhos baixos, como se estivesse estudando com toda a atenção os ladrilhos preto e branco sob seus pés.

— Obrigado por ter vindo, Felicity — disse ele mansamente, sem erguer os olhos. — Foi muito gentil de sua parte.

Tive vontade de esbofetear a cara da mulher!

Eu de fato cheguei a dar meio passo para a frente antes que uma mão firme caísse no meu ombro, detendo-me instantaneamente. Era Dogger.

— Vai precisar de mais alguma coisa, srta. Felicity? — perguntou ele.

— Não, obrigada, Dogger — disse ela remexendo a bolsa com dois dedos. Das suas profundezas, como uma cegonha puxando um peixe de uma lagoa, ela extraiu o que parecia ser um xelim e entregou a ele com um suspiro.

— Obrigado, senhorita — disse ele, embolsando o insulto com naturalidade (e sem olhar para ele), como se fosse algo que costumava fazer todos os dias.

E com isso tia Felicity se foi. Um momento depois, o pai tinha adentrado as sombras do grande vestíbulo, seguido de perto por Dafi e Felinha, e Dogger desaparecera sem uma palavra em seu pequeno corredor atrás da escada.

Foi como um daqueles momentos eletrizantes logo antes de cortina final baixar em uma peça no West End: aquele momento em que todas os personagens coadjuvantes desaparecem nos bastidores, deixando a heroína sozinha no centro do palco para dizer sua esplendorosa fala final a uma casa silenciosa que aguarda suas palavras com a respiração presa.

— Que inferno! — disse, e saí para respirar um pouco de ar fresco.


O problema conosco, os De Luce, concluí, é que estamos infestados de história, quase do mesmo jeito que outras pessoas se infestam de piolhos. Os De Luce estão em Buckshaw desde que o rei Harold deteve uma flecha com seu olho na Batalha de Hastings, e a maioria deles era infeliz de um jeito ou de outro bem complicado. Parece que nascemos com traços tanto de glória como de melancolia nas veias e nunca podemos ter certeza, em dado momento, de qual das duas está nos impelindo.

Por um lado, eu sabia que nunca seria como tia Felicity, mas, por outro, será que algum dia seria como Harriet? Oito anos depois de sua morte, Harriet ainda era tão parte de mim quanto as unhas dos dedos dos meus pés, muito embora esta provavelmente não fosse a melhor maneira de definir as coisas.

Eu li os livros que eram dela, pedalei em sua bicicleta, sentei-me em seu Rolls-Royce, e o pai uma vez, em um momento de distração, me chamou pelo nome dela. Até tia Felicity chegou a deixar de lado seu jeito de górgona por tempo suficiente para me contar como eu era parecida com Harriet.

Teria sido um elogio ou um aviso?

A maior parte do tempo eu me sentia uma impostora; uma criança que foi trocada ao nascer; uma substituta de cilício e cinzas daquela menina de ouro que foi arrebatada pelo Destino e arremessada pela encosta da montanha em direção a uma terra absurdamente distante. Todo mundo parece que seria muito mais feliz se Harriet fosse trazida de volta à vida, e eu, suprimida.

Esses pensamentos, e outros, turbilhonavam na minha cabeça como folhas de outono em uma correnteza enquanto eu seguia pelo caminho poeirento que daria na aldeia. Sem sequer notar, eu já tinha passado pelos grifos entalhados dos Portões Mulford, que marcavam a entrada para Buckshaw, e agora Bishop’s Lacey já estava à vista.

Enquanto eu me arrastava em frente, um pouco desalentada (tudo bem, eu admito, estava furiosa com tia Felicity por fazer Dogger de idiota!), enfiei a mão no bolso e meus dedos entraram em contato com um objeto metálico redondo: algo que não estava lá antes. Uma moeda.

— Epa! — eu disse. — O que é isto?

Puxei-a para fora e olhei para ela. Assim que vi a coisa, soube o que era e como tinha vindo parar no meu bolso. Virei a moeda ao contrário e dei uma bela de uma olhada no reverso.

Sim, não podia haver dúvida a respeito. Nenhuma dúvida.


VISTA DO OUTRO LADO DA RUA PRINCIPAL, a casa de chá São Nicolau era parecida com um cartão-postal da velha Inglaterra. Suas salas de cima, com as pequenas janelas em arco, foram a residência dos atuais avós do sr. Sowbell na época em que eles moravam acima da sua manufatura de esquifes e móveis.

As mesas, aparadores e cômodas, que já foram conhecidos pela ferocidade de seu negro lustroso e pelo brilho dos ornados botões e puxadores de gaveta de prata, caíram em desgraça e agora eram muitas vezes encontrados em leilões de espólio, emburrados e solitários na entrada de carros até serem arrematados no fim do dia por pouco mais que uma ou duas libras.

— Por trapaceiros inescrupulosos que usam a madeira para transformar cômodas compradas na Woolworth’s em antiguidades — Dafi me contara uma vez.

A loja do agente funerário, notei, agora tinha um relógio de papelão na vitrine, suspenso por um V invertido de cordão preto. O ponteiro dos minutos apontava para as doze horas, e não havia ponteiro de horas. O sr. Sowbell obviamente fora à Treze Patos para a sua caneca da tarde.

Atravessei a rua e, abrindo a porta do salão de chá, avancei para dentro. À minha direita havia uma escada íngreme de madeira, com uma pequena mão azul pintada apontando para cima: Salão de Chá no Andar Superior. Ao lado da escada, uma passagem estreita e mal iluminada desaparecia nas trevas da parte traseira do edifício. Na parede, mais uma prestativa mão pintada, esta em vermelho, marcada com Toaletes para Cavalheiros e Senhoras, apontava o caminho discretamente.

Eu sabia que o salão de chá e a agência funerária compartilhavam os banheiros. Felinha insistira em nos arrastar para lá, para o chá em uma tarde de outono, e eu ficara pasma ao ver três mulheres de vestido preto e véu preto tagarelando alegremente à porta do banheiro como se estivessem em um congresso de corvos dentuços, antes de reassumirem sua conduta austera e se esgueirarem de volta às dependências do sr. Sowbell. A porta através da qual elas desapareceram se abria diretamente para os recintos do agente funerário.

Eu estava certa! Um discreto “Sowbell & Filhos” em letras douradas acima do verniz escuro devia estar ali para lembrar aos enlutados que não deveriam cometer o erro de perambular para dentro do corredor do salão de chá depois de “ensaboar as mãos”, como disse a sra. Mullet.

A porta almofadada escura se abriu, girando sobre dobradiças silenciosas.

Me vi em um escuro salão vitoriano com papel de parede de padrões pretos e de um tom creme-amarelado. Nos três lados da sala havia cadeiras espigadas de madeira e uma pequena mesa redonda com cravos-de-amor artificiais. O lugar cheirava a poeira, com uma base química subjacente.

A parede do outro lado da sala estava nua, a não ser por uma escura reprodução do Angelus, de Millet, em que um homem e uma mulher, obviamente lavradores flamengos, estão de pé sozinhos em um campo ao ocaso. As enormes mãos de trabalhadora braçal da mulher estão entrelaçadas no peito em oração. O homem havia tirado o chapéu, que segurava, desconfortável, na frente dele. Colocara de lado seu forcado, cravando-o até a metade na terra fofa. Enquanto os corvos se congregavam acima deles como abutres, o casal permanecia de olhos baixos. Entre eles, meio vazia no chão, jazia uma cesta de vime.

Max Wight me contara uma vez que quando o original da pintura de Millet foi exposto na América, a venda de reproduções foi no mínimo morosa, até que alguém pensou em mudar o nome de O Angelus para Sepultando o bebê.

Era embaixo daquela reprodução, imaginei, que os esquifes deviam ficar normalmente estacionados. Uma vez que o lugar estava vazio, era óbvio que o corpo de Rupert, se é que ainda estava no local, devia estar em alguma outra sala.

À direita, havia uma partição em L. Tinha de haver outra porta atrás dela.

Dei uma espiada em volta por trás da meia parede e me vi olhando para uma sala quase gêmea da primeira. A única diferença que eu percebia era o papel de parede preto e creme-rosado, e a reprodução na parede oposta era Luz do mundo, de Holman Hunt, em que Jesus está à porta como Diógenes procurando um homem honesto, com uma lanterna de lata nas mãos.

Atrás da sua moldura escura, sobre cavaletes, havia um caixão.

Fui para lá muito devagar e na ponta dos pés, os ouvidos ligados ao menor dos sons.

Corri os dedos pela superfície altamente polida da madeira, do modo como alguém poderia acariciar a tampa de um piano antes de erguê-la para revelar as teclas. Pus os polegares embaixo da junta e senti que ela se erguia ligeiramente.

Eu estava com sorte! A tampa não estava aparafusada. Levantei-a e olhei para dentro.

Ali, como uma boneca em uma caixa, jazia Rupert. Quando vivo, sua personalidade o fizera parecer tão maior que eu esquecera o quanto ele era pequeno.

Se fiquei apavorada a ponto de enlouquecer? Creio que não. Desde o dia em que encontrei um corpo na horta da cozinha em Buckshaw, desenvolvi uma fascinação pela morte, com ênfase especial na química da putrefação.

De fato, eu já começara a fazer anotações para um trabalho definitivo, que eu chamaria de De Luce sobre a decomposição, no qual delinearia, passo a passo, o processo da degradação cadavérica humana.

Como era empolgante refletir sobre o fato de que, minutos após a morte, os órgãos do corpo, com a falta de oxigênio, começam a digerir a si próprios! Os níveis de amônia começam a subir, e, com a ajuda da ação bacteriana, o metano (mais conhecido como gás dos pântanos) é produzido, juntamente com sulfeto de hidrogênio, dióxido de carbono e mercaptan, um cativante álcool sulfúrico em cuja estrutura o enxofre toma o lugar do oxigênio, o que explica o cheiro pútrido.

Que curioso, pensei, que nós, humanos, tenhamos levado milhões de anos nos arrastando para fora dos pântanos e no entanto, minutos antes da morte, já estamos deslizando de volta para ele ladeira abaixo.

Meu agudo sentido de olfato me disse que o sr. Sowbell usara em Rupert um fluido embalsamador baseado em formalina (uma solução a dois por cento de formaldeído parecia ser o mais provável, com um ligeiro buquê de mais alguma coisa: clorofórmio, a julgar pelo cheiro). E pelo ligeiro matiz esverdeado na ponta do nariz de Rupert, eu podia dizer que o agente funerário fora mesquinho com os ingredientes. Só era possível esperar que o funeral de gala da BBC fosse um evento com caixão fechado.

Mas era melhor eu me apressar, pensei. O sr. Sowbell poderia entrar a qualquer momento.

As mãos pálidas de Rupert estavam cruzadas por cima de seu abdômen, com a mão direita por cima. Segurei seus dedos (era como erguer salsichas encadeadas da geladeira) e os puxei para cima.

Para meu espanto, a mão esquerda veio junto, e vi na hora que elas tinham sido engenhosamente costuradas. Torcendo as mãos frias e me curvando para ver melhor embaixo delas, vi o que estava procurando: um canal enegrecido que ia da base de seu polegar esquerdo até as pontas do primeiro e do segundo dedos.

Apesar dos esforços de embalsamamento do sr. Sowbell, Rupert ainda exalava um cheiro bastante chamuscado. E não podia haver dúvida quanto a isto: a queimadura na palma de sua mão esquerda tinha a largura exata da alavanca que operava o Galligantus.

Uma tábua do assoalho rangeu.

Quando fechei a tampa do caixão, a porta se abriu e o sr. Sowbell entrou na sala. Eu não o ouvira chegar.

Como eu ainda estava semiagachada, inspecionando os dedos queimados de Rupert, consegui me erguer lentamente até ficar de pé.

— Amém — eu disse, fazendo um extravagante sinal da cruz.

— Que diabo...? — disse o sr. Sowbell.

— Oh, olá, sr. Sowbell — eu disse com um tom apropriadamente contido. — Eu só entrei para apresentar meus respeitos. Não havia ninguém aqui, mas achei que uma oração silenciosa seria apropriada. O sr. Porson não tinha amigos em Bishop’s Lacey, o senhor sabe — acrescentei, puxando um lenço do bolso e enxugando uma lágrima imaginária. — Parecia tão lamentável, e achei que não faria mal nenhum se eu... Desculpe se...

— Vamos, vamos — disse ele. — A morte chega para todos nós, você sabe, velhos e jovens igualmente...

Estaria ele me ameaçando, ou a minha imaginação estava estimulada demais?

— E embora nós a esperemos — prosseguiu ele —, ela no fim sempre chega como um choque.

Certamente chegara para Rupert. Mas será que o homem estava brincando?

Claro que não, pois o seu rosto comprido conservava a polidez profissional.

— E agora, se me permite — disse ele. — Preciso prepará-lo para sua jornada final.

Jornada final? Onde ele tinha ido buscar esse tipo de conversa fiada? Será que havia um livro de frases feito para a área funerária?

Dei-lhe meu sorriso de menina-de-dez-anos-chegando-aos-onze e simulei uma saída desconcertada.


A sineta acima da porta da Casa de Chá São Nicolau soou alegremente quando entrei. O estabelecimento, uma bela escalada até o topo da escada, era propriedade de ninguém menos que a srta. Lavinia e a srta. Aurelia, as irmãs Puddock: aquelas mesmas duas relíquias que nos ofereceram o prelúdio musical para a espetacular morte de Rupert.

A srta. Lavinia, a um canto na extremidade da sala, parecia travar um combate mortal contra um grande samovar de prata. A despeito da simplicidade da tarefa, que era ferver a água, aquela geringonça digna de um cartum de Heath Robinson era uma espécie de lula bulbosa de tubos, válvulas e mostradores que cuspia água quente enquanto gorgolejava e chiava como um dragão acuado.

— Não teremos chá, infelizmente — disse por cima do ombro. Ela ainda não tinha visto quem entrara na loja.

— Algo que eu possa fazer para ajudar, srta. Puddock? — me ofereci alegremente.

Ela deixou escapar um gritinho quando sua mão passou sem querer por um jato de vapor quente e a xícara de porcelana que ela segurava se estilhaçou no chão, de onde voou em uma centena de pedaços pálidos.

— Oh, é a pequena De Luce — disse, dando meia-volta. — Meu Deus! Você me deu um susto e tanto. Eu não estava esperando ouvir sua voz.

Como eu podia ver que ela tinha queimado a mão, ignorei meus impulsos mais básicos.

— Algo que eu possa fazer para ajudar? — repeti.

— Oh, Deus — disse ela, perturbada além do normal. — Pedro sempre resolve se comportar mal quando Aurelia não está aqui. Ela é muito melhor com ele do que eu.

— Pedro? — perguntei.

— O samovar — disse ela, enxugando as mãos vermelhas e molhadas em uma toalha de chá. — Pedro, o Grande.

— Deixe-me... — disse eu.

Sem mais uma palavra, peguei uma tigela de fatias de limão em uma das mesas redondas e espremi uma por uma em uma jarra de água gelada. Então peguei um guardanapo branco e limpo, mergulhei ali até ficar empapado, torci e enrolei em volta da mão da srta. Puddock. Ela se encolheu quando a toquei e depois relaxou.

— Posso? — perguntei, removendo um broche de opala de sua lapela e usando-o para prender as pontas da atadura improvisada.

— Oh! Já estou me sentindo melhor — disse ela com um sorriso dorido. — Onde você aprendeu este truque?

— Quando estive no Guia das Meninas — menti.

A experiência me ensinou que uma resposta esperada é muitas vezes melhor do que a verdade. Na realidade, eu tinha pesquisado arduamente o remédio em um dos livros domésticos de referência da sra. Mullet, depois que um tubo de ensaio superaquecido tostara a maior parte da carne em volta de dois dedos meus.

— A srta. Cool sempre falou muito bem de você — disse ela. — Vou contar a ela que “acertou o alvo”, como aqueles simpáticos rapazes dos bombardeiros da RAF costumavam dizer.

Dei a ela o mais modesto dos meus sorrisos.

— Não foi nada, srta. Puddock: apenas foi uma grande sorte eu estar por aqui. Eu estava aqui ao lado, na casa do sr. Sowbell, sabe, dizendo uma ou duas preces junto ao caixão do sr. Porson. Acho que não há mal nenhum nisso, não é?

Me dei conta de que estava enfeitando demais as coisas, usando um esfregão no lugar de pincel, mas negócios são negócios.

— Ora, não, querida — disse ela. — Acho que o sr. Porson teria ficado sensibilizado.

Ela não sabia nem a metade das coisas!

— Foi tão triste. — Abaixei o tom de voz para um sussurro conspiratório e toquei o seu braço bom. — Mas preciso dizer, srta. Puddock, que apesar da tragédia da noite de sábado, minha família e eu apreciamos O último assalto de Napoleão e O rio de Bendemeer. O pai contou que não se ouve muito esse tipo de música hoje em dia.

— Ora, obrigada, querida — murmurou ela sem muito entusiasmo. — É muito gentil de sua parte dizer isso. É claro que, misericordiosamente, não vimos realmente o que aconteceu com o pobre sr. Porson, já que estávamos ocupadas na cozinha, por assim dizer. Ser proprietária do único salão de chá em Bishop’s Lacey implica algumas expectativas, infelizmente. Não que levemos a mal...

— Não, é claro que não — disse eu. — Mas com certeza deve haver uma porção de gente se oferecendo para ajudar.

Ela soltou um gritinho:

— Ajudar? A maioria das pessoas não conhece o significado dessa palavra. Não, Aurelia e eu fomos deixadas sozinhas na cozinha do começo ao fim. Servimos duzentas e sessenta e três xícaras de chá, mas, naturalmente, isso inclui as que servimos depois que a polícia assumiu o caso.

— E ninguém se ofereceu para ajudar? — perguntei, dando-lhe uma olhada incrédula.

— Ninguém. Como eu disse, Aurelia e eu ficamos sozinhas na cozinha o tempo todo. E eu fiquei completamente por minha conta quando Aurelia foi levar uma xícara de chá para o titereiro.

Minhas orelhas ficaram em pé como uma bandeira em um mastro.

— Ela foi levar uma xícara de chá para Rupert?

— Bem, ela tentou, querida, mas a porta estava trancada.

— A porta para o palco? Do outro lado da cozinha?

— Não, não... ela não quis usar aquela. Teria de passar roçando naquela Mamãe Gansa, aquela mulher que estava embaixo da luz do refletor, contando a história. Não, ela deu toda a volta com o chá por trás do salão e desceu pela outra porta.

— Aquela na passagem do outro lado?

— Bem, sim. É a única outra, não é, querida? Mas, como eu disse, ela estava trancada.

— Durante o espetáculo de marionetes?

— Ora, sim. Estranho, não é? O sr. Porson nos pediu, antes de começar, que lhe levássemos uma boa xícara de chá durante o espetáculo. “Apenas deixem em cima da mesinha atrás do palco”, disse ele. “Vou encontrá-la. O teatro de marionetes é um trabalho que deixa a gente seco, sabe”, e deu uma piscadela para nós. Então, por que diabos ele trancaria a porta?

Enquanto ela falava, já dava para sentir os fatos começando a se organizar na minha cabeça.

— Estas foram as palavras exatas de Aurelia quando ela deu toda a volta com a xícara de chá ainda nas mãos: “O que será que deu nele para trancar a porta?”.

— Talvez ele não tenha feito isso — eu disse com uma súbita inspiração. — Talvez outra pessoa tenha trancado. Quem tinha a chave, você sabe?

— Existem duas chaves para as portas do palco, querida. Ambas abrem as duas portas de cada lado do palco. O vigário guarda uma em seu chaveiro, e a duplicata fica em um prego no estúdio dele, no presbitério. Tudo isso por causa daquela vez em que ele foi a Brighton para o jogo de críquete entre os Curadores e os Sacristões, e levou Tom Stoddart. Tom é o serralheiro, você sabe, e depois que os dois se foram ninguém podia entrar ou sair do palco sem uma escada. Isso causou problemas com a produção do Rei Lear pelo Little Theater Group, eu vou lhe dizer!

— E não havia mais ninguém por perto?

— Ninguém, querida. Aurelia e eu estávamos na cozinha o tempo todo. Estávamos com a porta semicerrada, para que a luz da cozinha não atrapalhasse a escuridão no corredor.

— Não havia ninguém no corredor?

— Não, é claro que não. Teriam de passar pelo raio de luz que vinha da porta da cozinha, bem embaixo do nosso nariz, por assim dizer. Depois que pusemos a água para ferver, Aurelia e eu ficamos bem ali, junto à abertura da porta, para poder pelo menos ouvir o espetáculo de marionetes. “Fi! Fo! e Fum!” Ah, fico toda arrepiada só de pensar nisso agora.

Eu fiquei perfeitamente imóvel e prendi a respiração, sem mover um músculo. Fiquei de boca fechada e deixei o silêncio se prolongar.

— A não ser... — disse ela com o olhar vacilante. — Eu pensei...

— Sim?

— Eu pensei ter ouvido passos no vestíbulo. Dei uma olhada no relógio de parede e meus olhos estavam um pouco ofuscados pela luz acima do fogão. Olhei para fora e vi...

— Você se lembra da hora?

— Eram sete e vinte e cinco. Estávamos com o chá preparado para as oito horas, e essas grandes chaleiras elétricas demoram um bom tempo para ferver. Curioso você perguntar. Aquele simpático jovem policial, como é mesmo o nome dele? O rapazinho loiro com covinhas e um sorriso adorável.

— Sargento-detetive Graves — disse eu.

— Sim, é ele: sargento-detetive Graves. Engraçado, não é? Ele me fez a mesma pergunta, e eu lhe dei a mesma resposta que vou lhe dar agora.

— Qual é?

— Era a mulher do vigário, Cynthia Richardson.


CYNTHIA, A VINGADORA COM CARA DE ROEDOR! Eu devia saber! Cynthia, que aquinhoava boas obras na paróquia de São Tancredo com a mão de um Herodes. Eu podia vê-la assumindo pessoalmente a punição de Rupert, o notório mulherengo. O salão paroquial era parte do reino dela; a chave de reserva para as portas do palco ficava pendurada em um prego no estúdio de seu marido.

Como ela chegou a estar de posse do prendedor de calça perdido continua sendo meio misterioso, mas não poderia ele ter estado no presbitério o tempo todo?

Como o vigário mesmo admitiu, suas distrações estavam se tornando um problema. Por isso as iniciais gravadas. Talvez ele tivesse saído de casa sem o prendedor na última quinta-feira e retalhado a barra da calça porque não o estava usando.

Os detalhes não eram importantes. De uma coisa eu tinha certeza: havia mais coisas acontecendo no presbitério do que se imaginava, e o que quer que fosse (marido dançando nu no bosque, e assim por diante) parecia provável que Cynthia estivesse no âmago daquilo tudo.

— O que você está pensando, querida? — A voz da srta. Puddock interrompeu os meus pensamentos. — Você ficou tão quieta de repente!

Eu precisava de tempo para chegar ao fundo das coisas, e precisava dele agora. Era improvável que eu tivesse uma segunda oportunidade de sondar as profundezas do conhecimento da srta. Puddock sobre a aldeia.

— Eu... eu não estou me sentindo muito bem — eu disse, me agarrando à beirada de uma mesa, e arriei o corpo em uma das cadeiras com espaldar de arame. — Pode ter sido a visão da sua pobre mão escaldada, srta. Puddock. Uma reação retardada, talvez. Uma pitada de choque.

Suponho que deve ter havido ocasiões em que odiei a mim mesma por praticar esse tipo de fraude, mas não consegui pensar em nenhuma outra no momento. Se tinha sido o Destino, afinal, que me jogara no meio daquelas coisas, que o Destino então assumisse a culpa.

— Oh, pobrezinha! — disse a srta. Puddock. — Fique exatamente onde está, e eu vou buscar uma boa xícara de chá e um bolinho. Você gosta de bolinhos, não gosta?

— E-eu a-a-doro b-bolinhos — disse eu, lembrando-me de repente de que as vítimas de choque, sabidamente, sentem calafrios e tremores. Quando ela voltou com os bolinhos, meus dentes batiam como bolinhas de gude sacudidas em um pote.

Ela retirou um vaso de lírios-do-vale (Convallaria majalis) de uma das mesas, puxou fora a toalha de linho engomada e envolveu meus ombros com ela. Quando o cheiro adocicado das flores me chegou às narinas, lembrei-me com prazer de que a planta continha uma poção de bruxa de glicocídeos cardioativos, inclusive convalotoxina e glucoconvalosida, e que até a água em que essas flores ficaram mergulhadas era venenosa. Nossos antepassados a chamavam de lágrimas de Nossa Senhora, ou escada para o céu, e com razão!

— Você não deve pegar friagem — disse a srta. Puddock, maternalmente solícita, enquanto me servia uma xícara de chá do parrudo samovar.

— Pedro, o Grande, parece estar se comportando bem agora — observei, com um tremor calculado e um aceno de cabeça para a máquina reluzente.

— Ele às vezes fica muito indisciplinado — sorriu ela. — Imagino que seja porque é russo.

— Ele é mesmo russo? — perguntei, incentivando-a a falar.

— Das suas distintas cabeças — disse ela apontando para a águia negra de duas cabeças que funcionava como uma torneira de água quente — ao seu regiamente arredondado fundo. Foi manufaturado na oficina dos irmãos Martiniuk, os renomados prateiros de Odessa, e disseram que outrora foi usado para fazer chá para o czar Nicolau e as suas desafortunadas filhas. Quando a cidade foi ocupada pelos vermelhos depois da Revolução, o mais jovem dos Martiniuk, Vladimir, que tinha apenas dezesseis anos na época, o envolveu em uma pele de lobo, amarrou-o em um carrinho de mão e fugiu com ele a pé (a pé, imagine só!) para a Holanda, onde montou uma oficina em uma das alamedas calçadas com pedras de Amsterdã, e mudou seu nome para Van den Maarten.

— Pedro — disse ela, dando uma palmadinha leve mas carinhosa no samovar — era a sua única propriedade, fora o carrinho de mão, é claro. Ele planejou fazer fortuna produzindo incontáveis cópias e vendendo-as aos aristocratas holandeses, que diziam ser loucos pelo chá russo.

— E eram mesmo? — perguntei.

— Eu não sei — respondeu ela —, nem Vladimir ficou sabendo. Ele morreu de gripe na grande epidemia de 1918, deixando a oficina e tudo o que ela continha para a sua senhoria, Margriet van Rijn. Margriet casou-se com um roceiro de Bishop’s Lacey, Arthur Elkins, que havia combatido em Flandres e que a trouxe consigo de volta à Inglaterra não muito tempo depois do fim da Grande Guerra.

— Arthur morreu quando uma chaminé de fábrica desabou em cima dele em 1924, e Margriet morreu de choque quando lhe deram a notícia. Depois da morte dela, minha irmã e eu descobrimos que Margriet tinha deixado Pedro, o Grande, para nós, e não restava nada a fazer senão abrir a Casa de Chá São Nicolau. Foi há vinte e cinco anos e, como você pode ver, ainda estamos aqui.

“Ele é um velho samovar muito temperamental, sabe — prosseguiu ela, fazendo menção de acariciar sua superfície argêntea, mas pensando melhor nisso. — É claro que ele é uma tremenda de uma velha fraude. Oh, ele cospe água fervendo e faz queimar fusíveis de vez em quando, mas embaixo disso tudo ele tem um coração de ouro, ou pelo menos de prata.”

— Ele é bem imponente — eu disse.

— E você acha que ele não sabe? Bem, bem, aqui estou eu falando dele como se fosse de um gato. Quando Grace estava conosco, ela costumava chamá-lo de “O Tirano”. Imagine só! “O Tirano quer ser lustrado”, dizia ela, “O Tirano quer que os seus contatos elétricos sejam limpos”.

— Grace? — perguntei.

— Grace Tennyson, ou Ingleby, como se chama hoje.

— Grace Ingleby trabalhava aqui?

— Ah, sim! Até ela sair para se casar com Gordon, era a estrela das nossas garçonetes. Você não imaginaria isso olhando para ela, mas era forte como um touro. Não se vê isso com muita frequência numa coisinha tão pequena.

“E ela não ficava nem um pouquinho intimidada com Pedro e os seus humores. Por mais que ele cuspisse e soltasse fagulhas, Grace nunca teve medo de arregaçar as mangas e dar uma boa revisada em suas entranhas.”

— Parece que ela era muito engenhosa — eu disse.

— Ela era tudo isso — riu a srta. Puddock. — Tudo isso e muito mais. E não admira! Um dos nossos clientes uma vez nos disse (em segredo, é claro) que Grace tinha o QI mais alto que ele já tinha visto no “sexo frágil”, como ele exemplificou: que se o pessoal das Operações Especiais não a tivesse sequestrado para fazer um trabalho ultrassecreto, ela podia muito bem ter passado o resto da guerra instalando conjuntos sem fio em Spitfires.

— Trabalho ultrassecreto? — ofeguei. Pensar em Grace Ingleby fazendo qualquer coisa diferente do que se encolher em sua torre de pombal como uma donzela cativa esperando ser resgatada por Sir Lancelot era quase risível.

— É claro que ela jamais disse uma palavra a respeito. — A srta. Puddock abaixou o tom de voz, do mesmo modo que muitas vezes as pessoas fazem quando falam sobre a guerra. — Não é permitido, sabe. Mas também nós raramente a vemos hoje em dia. Desde aquela tragédia com seu menininho...

— Robin — disse eu.

— Sim. Desde então, ela se fechou. Infelizmente não é mais a mesma menina risonha que costumava pôr Pedro, o Grande, no seu lugar.

— Gordon também era membro das Operações Especiais? — perguntei.

— Gordon? — ela riu. — Meu bom Deus, não. Gordon nasceu lavrador, e lavrador há de morrer, como escreveu Shakespeare. Ou será que foi Harry Lauder ou George Formby, ou alguém assim? Minha memória ficou cheia de buracos de minhoca, e a sua, com o tempo, também vai ficar.

Não consegui pensar em alguma coisa para dizer e vi imediatamente que ela achava que tinha me ofendido.

— Mas vai demorar muitos anos ainda, querida. Não, tenho certeza absoluta de que sua memória ainda estará se fortalecendo quando o resto de nós estiver na sepultura e sendo pavimentado por cima para a construção do estacionamento dos palácios de boliche.

— Você viu a sra. Ingleby recentemente? — perguntei.

— Não desde sábado à noite no salão paroquial. Naturalmente, não tive oportunidade de conversar com ela, por causa do nosso pequeno número musical na minha cabeça. O restante da noite foi um pesadelo, não foi? A morte daquele pobre homem, e o boneco esculpido com a cara de Robin. Não sei o que Gordon pensou quando levou Grace para lá, ela estando tão frágil. Mas ele também não tinha como saber, tinha?

— Não — eu disse. — Imagino que não.


Quando parti para Buckshaw, a hora do almoço já havia passado fazia tempo. Felizmente a srta. Puddock embrulhara dois bolinhos amanteigados e insistira em enfiá-los no meu bolso. Mordisquei-os distraidamente enquanto pedalava pela estrada, perdida em pensamentos.

No fim da rua principal, a estrada fazia um ângulo suave para o sudoeste, contornando o perímetro sul do pátio da igreja de São Tancredo.

Se eu não tivesse dado uma olhada para a direita, poderia não ter visto a van Austin com “Marionetes de Porson” em letras douradas nas portas, estacionada ao lado do salão paroquial. Os pneus de Gladys derraparam na poeira quando apliquei os freios e guinei para dentro do pátio da igreja.

Quando parei, Nialla estava enfiando toda sorte de coisas no interior da van.

— Você conseguiu fazê-la funcionar! — gritei. Ela me deu o tipo de olhada que você poderia dar para um pouco de cocô de cachorro no seu mingau e continuou com seu trabalho.

— Sou eu, Flavia — disse eu. — Você já me esqueceu?

— Dê o fora, sua pequena traidora — disparou ela. — Deixe-me em paz.

Por um instante, pensei que eu estava de volta a Buckshaw, falando com Felinha. Era o tipo de rejeição que eu já vivera mil vezes, e à qual sobrevivera, pensei. Decidi fincar pé.

— Por quê? O que foi que eu fiz?

— Ora, pare com isso, Flavia. Você sabe tão bem quanto eu. Você disse à polícia que eu estava em Buckshaw. Eles acharam que eu estava me escondendo, ou fugindo, ou como queira chamar isso.

— Eu não fiz nada disso! — protestei. — Não ponho os olhos em um policial desde que a vi na cocheira.

— Mas você era a única que sabia que eu estava lá.

Como sempre acontecia quando eu estava zangada, minha cabeça fervilhava com uma clareza cristalina.

— Eu sabia que você estava lá, Dogger sabia que você estava lá, e também a sra. Mullet, só para citar três.

— Mal posso acreditar que Dogger me denunciaria.

— Nem a sra. Mullet — disse eu.

Bom Deus! Eu estava realmente defendendo a sra. M?

— Ela pode ser uma maldita fofoqueira, mas não é má — disse eu. — Ela nunca a trairia. O inspetor Hewitt veio a Buckshaw provavelmente para me fazer mais algumas perguntas sobre sábado à noite e por acaso viu você andando da cocheira para a cozinha. Não existe mais nada além disso. Tenho certeza.

Vi que Nialla estava pensando a respeito. Não havia nada que eu quisesse mais do que segurá-la pelos ombros e dar-lhe uma sacudida, porém tinha de manter em mente o fato de que suas emoções estavam sendo alimentadas por uma tempestade de hormônios: nuvens impetuosas de hidrogênio, nitrogênio, oxigênio, carbono e enxofre, combinando e recombinando nas danças eternas da vida.

Aquilo quase me fez perdoá-la.

— Aqui — eu disse, puxando dramaticamente o compacto de borboleta do meu bolso e estendendo-o para ela. — Acho que isto lhe pertence.

Abracei a mim mesma, esperando um vagalhão de gratidão e louvor. Mas não veio nada disso.

— Obrigada — disse Nialla, e enfiou aquilo no bolso.

Obrigada? Apenas obrigada? Que audácia! Eu mostraria a ela: fingiria que ela me ofendera; faria de conta que não me importava.

— Não pude deixar de notar — observei despreocupadamente — que você está carregando a van, o que quer dizer que Bert Archer a consertou e você está prestes a partir. Como o inspetor Hewitt não está por perto, imagino que isso significa que você está livre para ir.

— Livre? — repetiu ela, e cuspiu no chão. — Livre? O vigário me deu quatro libras, seis xelins e oito centavos, arrecadados no espetáculo. A conta de Bert Archer é de sete libras e dez. E é só porque o vigário intercedeu por mim que ele está disposto a me deixar dirigir até Overton para penhorar tudo o que eu puder. Se você chama isso de estar livre, então estou livre. É tudo muito bom para a pequena senhorita endinheirada, que mora em uma casa do tamanho do Palácio de Buckingham, fazer as suas deduções espertas. Então, pense o que quiser pensar, não me menospreze.

— Está bem — disse eu. — Não tive a intenção. Aqui, pegue isto, por favor.

Enfiei a mão no bolso de novo e puxei a moeda que tia Felicity empurrara para Dogger, achando que era um xelim. Dogger, por sua vez, a plantara no meu bolso, acreditando, talvez, que ela logo seria gasta em palitos de hortelã na loja da srta. Cool.

Entreguei-a a Nialla, que olhou para ela incrédula.

— Quatro pence! — disse ela. — Malditos quatro pence!

Suas lágrimas corriam livremente quando ela a atirou para longe, no meio das sepulturas.

— Sim, são apenas quatro pence — disse eu. Mas são quatro pence em dinheiro de Maundy. As moedas são produzidas pela Casa da Moeda Real, para ser distribuídas pelo Soberano...

— Maldito seja o Soberano! — gritou ela. — E maldita seja a Casa da Moeda Real!

— ... na quinta-feira de Maundy. Elas são muito raras. Se bem me lembro, Bert Archer é um colecionador de moedas, e acho que você vai descobrir que a moeda de quatro centavos de Maundy vai pagar de sobra pela sua van.

Com toda a dignidade honrosa que consegui reunir, segurei Gladys pelo guidão e empurrei-a para casa. Quando olhei para trás pelo canto da igreja, Nialla já estava de quatro, se arrastando na grama do pátio da igreja, e eu não soube dizer se as lágrimas que ela enxugava eram de raiva ou de felicidade.


— MUITO BEM, DOGGER — eu disse —, o jogo acabou.

Eu o encontrara na copa, engraxando os sapatos do pai.

As funções de Dogger em Buckshaw variavam na proporção direta das suas capacidades de momento, sua participação na nossa vida diária subindo e descendo, como aquelas bolas coloridas no termômetro de Galileu que flutuam em níveis diferentes em um tubo de vidro, dependendo da temperatura. O fato de ele estar cuidando dos sapatos era um bom sinal. Indicava claramente que havia sido promovido mais uma vez, de jardineiro para mordomo.

Ele ergueu os olhos do seu trabalho.

— Acabou? — perguntou ele.

— Lance a sua mente, por favor, de volta para sábado à noite no salão paroquial. Você está sentado ao meu lado assistindo a João e o pé de feijão, quando de repente acontece algo de errado nos bastidores. Rupert desaba estrepitosamente, morto, e minutos depois você está me dizendo recear ter visto um homicídio. Como você fez aquilo? Como sabia que não foi um acidente?

Essa pergunta vinha roendo meu subconsciente como um rato rói uma corda, mas, até aquele exato momento, eu ainda não tinha me dado conta plenamente disso.

Antes de responder, Dogger bafejou em cima de uma das botas wellington regimentais de cano curto do pai, dando na superfície preta e lustrosa como vidro uma afetuosa esfregadela final com a manga da camisa.

— As circunstâncias falavam contra essa possibilidade — disse ele. — O sr. Porson era um perfeccionista. Construía ele mesmo todo o seu equipamento. Um titereiro trabalha no escuro. Não há espaço para erros. Um fio elétrico desgastado seria uma coisa fora de questão.

— Não estava desgastado — disse eu. — Eu vi quando fui para os bastidores com o inspetor Hewitt. O isolamento foi raspado.

— Eu ficaria surpreso se não tivesse sido — disse ele.

— Congratulações por uma brilhante dedução — disse eu. — Embora essa não tenha me ocorrido.

E não me ocorrera mesmo, porque a mente feminina não funciona desse modo.

Vista de cima, a mente masculina deve se parecer bastante com os canais da Europa, com ideias sendo rebocadas ao longo de caminhos de sirgagem gastos pelo uso por cavalos de tiro de passo pesado. Nunca existe dúvida alguma de que elas, a despeito do vento e do clima, chegarão a seus destinos seguindo uma série simples de linhas conectadas.

Mas a mente feminina, mesmo considerando minha limitada experiência, mais parece um vasto e fervilhante pântano, porém um pântano que fica sabendo na hora toda vez que um estranho, mesmo a quilômetros de distância, mergulha um dedão do pé que seja em suas águas. As pessoas que se referem a esse fenômeno, a maioria das quais não sabe muito a respeito dele, chamam-no de “intuição feminina”.

Muito embora eu tivesse chegado quase à mesma conclusão que Dogger, mas por um caminho muito diferente.

Em primeiro lugar, embora fosse óbvio que Rupert tivesse sido assassinado pelo que fizera a uma mulher, acho que desde o momento de sua morte eu já sabia que não fora Nialla a sua assassina.

— No instante em que ele desmoronou em cima do palco — eu disse —, Nialla levantou-se de um pulo e se moveu na direção dele. Seu primeiro e automático impulso foi de socorrê-lo.

Dogger alisou o queixo e assentiu.

— Mas ela se forçou a parar — eu prossegui — assim que viu a fumaça e as fagulhas. Rapidamente, se deu conta de que tocar qualquer parte do corpo dele poderia significar morte instantânea. Para ela e seu bebê.

— Sim — disse Dogger. — Eu também notei isso.

— Portanto, Nialla não é a assassina.

— Acredito que você pode removê-la com segurança de sua lista — disse Dogger.


Foi só depois que eu já estava na estrada, na metade do caminho para a Fazenda Culverhouse, que percebi o quanto me sentia cansada. Tinha acordado antes de o sol nascer e desde então estava a pleno vapor. Mas o tempo era essencial: se eu não chegasse lá antes do inspetor Hewitt, não ficaria sabendo dos horripilantes detalhes até ler sobre eles no News of the World.

Dessa vez, não atravessei o rio por trás da igreja, mas decidi dar a volta pela estrada de Hinley e me aproximar da fazenda pelo lado oeste. Fazendo isso, eu teria a vantagem da altura para fazer o reconhecimento do terreno, além de ficar sob a proteção do Bosque Gibbet. Agora que o laço, por assim dizer, se apertava, não seria conveniente cair na emboscada de um assassino a sangue-frio.

A meio caminho da subida argilosa da Colina Gibbet, eu me sentia como se meu sangue fosse lama e meus sapatos fossem feitos de chumbo. Sob quaisquer outras circunstâncias, eu poderia ter me arrastado para dentro de alguma moita tranquila e tirado uma soneca, mas isso não podia acontecer. O tempo estava se esgotando, e, como o pai gostava de dizer: “Cansaço é desculpa de caipira”.

Enquanto eu ouvia o vento suspirar e sussurrar nas copas das árvores do Bosque Gibbet, me vi quase esperando que Meg, a Louca, pulasse para fora do mato e me distraísse da minha missão. Mas não aconteceu: além de um pica-pau dando suas leves marteladas como um sapateiro atarefado do outro lado do bosque, não havia outros sinais de vida.

Quando cheguei ao topo da colina, o Campo Jubileu descia para longe de mim em direção ao rio, como um lençol azul elétrico. Quando estourou a guerra, Gordon foi forçado a plantar linho, ou pelo menos foi o que a sra. Mullet me contou, por ordem do Governo de Sua Majestade, que precisava do material para a confecção de paraquedas. Mas a Batalha da Grã-Bretanha ocorrera anos atrás, e os paraquedas nem de longe eram requisitados na mesma quantidade.

Ainda assim, trabalhando sob o manto da necessidade de guerra, parecia que Gordon conseguira manter sua plantação secreta de cannabis habilmente enfiada entre as árvores do Bosque Gibbet, sua existência conhecida por não mais que um punhado de pessoas.

Qual delas, me perguntei, se é que foi uma delas, além de odiá-lo apaixonadamente o bastante para matar, possuía conhecimentos suficientes de eletricidade para eletrocutar Rupert Porson?

Um clarão atingiu meus olhos: um reflexo vindo do lado da estrada. Vi imediatamente que era um dos ornamentos de Meg, a Louca, feitos com sucatas recolhidas na beira da estrada, penduradas por um cordão em um espinheiro. Não era nada mais que um pedaço irregular de acabamento cromado, que se soltara do radiador de algum carro devido às más condições da estrada. Pendurado abaixo dele, e girando vagarosamente ao sol (foi o que me chamou a atenção), havia um pequeno disco sulcado prateado que, a julgar pelas manchas vermelhas, tinha sido outrora a tampa de uma lata de tinta de um quarto de litro.

Por estranho que pareça, aquilo me lembrou algo que eu vivenciara no ano passado, quando o pai levou Ophelia, Daphne e eu a Londres, para uma missa à meia-noite no Oratório de Brompton. Na elevação da hóstia, quando o padre segurou a bolacha branca (que alguns de nós acreditavam ser o Corpo de Cristo) acima da cabeça por um tempo exageradamente longo, ela, por apenas um instante, captou a luz das velas e dos reflexos coloridos do coro, luzindo com um sobrenatural resplendor iridescente que não era nem sólido nem vaporoso. Na época, me pareceu um sinal de que algo de momentoso estava para acontecer.

Agora, na orla do Bosque Gibbet, um dente bem lubrificado de alguma engrenagem mental se encaixou no lugar, com uma série de clics quase audíveis.

Igreja. Clic! Vigário. Clic! Círculo suspenso. Clic! Prendedor de calça. Clic! Tampa de tinta. Clic! Meg. Clic!

E vi tudo como que em uma visão ofuscante: o vigário estivera ali, na Fazenda Culverhouse, na última quinta-feira. Foi onde ele prendeu a calça na corrente da bicicleta e perdeu seu prendedor. Ele o estava usando, afinal! E foi ali, na poeira argilosa, que ele levou um tombo. As manchas brancas em seus trajes pretos de clérigo tinham vindo exatamente dessa estrada.

Meg, a Louca, a eterna pega, encontrara o prendedor, como encontrava todos os objetos metálicos e brilhantes caídos nas vizinhanças do Bosque Gibbet, o recolhera e o levara com ela para o presbitério.

— Ela me pôs para fora — disse ela. — Tomou o bracelete da velha Meg e a pôs para fora... “Imunda, imunda!”, ela disse.

As palavras de Meg ecoavam na minha memória. Ela estava falando da mulher do vigário.

Tinha sido Cynthia Richardson quem pegara dela o prendedor de calça (o “bracelete” de Meg) e a pusera para fora do presbitério.

Do presbitério, era só um pulinho até o salão paroquial, onde a coisa apareceu nos bastidores, como a arma do crime, no teatro de marionetes de Rupert.

É assim que deve ter acontecido. Eu estava certa disso, tão certa quanto meu nome é Flavia de Luce. E mal podia esperar para contar ao Inspetor Hewitt!

Abaixo de mim, ao longe, na praia distante de um mar de linho azul, um trator Ferguson cinzento se arrastava lentamente ao longo de um muro de pedra, rebocando uma plataforma atrás dele. Um lampejo de cabelo loiro à luz do sol me disse que o homem a pé, descarregando pedras para consertar o muro, devia ser Dieter, e não havia dúvida de que a pessoa de macacão ao volante do trator era Sally. Mesmo se eles estivessem prestando atenção (coisa que não estavam), a distância era grande demais para me avistarem esgueirando-me para baixo, rumo à casa da fazenda.

Enquanto eu avançava cautelosa através do pátio, o lugar parecia mergulhado em sombras: velhas pedras empilhadas sobre outras, com janelas inexpressivas (como dissera Sally) olhando cegamente para coisa nenhuma. Qual das vidraças vazias, me perguntei, tinha sido a do quarto de Robin? Qual das janelas vazias emoldurara seu rostinho solitário antes daquela impensável segunda-feira de setembro de 1945, quando sua breve vida terminara tão abruptamente na ponta de uma corda?

Dei uma batida simbólica na porta e aguardei por respeitosos trinta segundos. Depois disso, girei a maçaneta e entrei.

— Sra. Ingleby? — chamei. — Sr. Ingleby? Sou eu, Flavia. Vim ver se vocês têm alguns ovos extragrandes.

Não imaginei que haveria uma resposta, e estava certa. Gordon Ingleby trabalhava duro demais para estar flanando por perto da casa enquanto ainda havia um vestígio de luz do dia do lado de fora, e Grace... bem, Grace estava ou na sua torre-pombal ou perambulando pelas colinas. A inquisitiva sra. Mullet uma vez me perguntara se eu já tinha cruzado com ela durante minhas perambulações pelo condado.

“Ela é uma pessoa estranha, aquela Grace Ingleby”, dissera ela. “Minha amiga Edith (é a Edith Crowly, querida, que era Edith Fisher antes de se casar com Jack) estava indo para um compromisso com seu encarregado do coro em Nether Stowell. Ela tinha perdido o ônibus, entenda, e viu Grace saindo do mato na parte mais baixa da Biddy’s Lane, que passa por cima da colina para lugar nenhum.

“‘Grace!’, ela gritou. ‘Iu-hu, Grace Ingleby!’ Mas Grace resvalou por uns degraus por cima da cerca (foram exatamente essas as suas palavras, ‘Grace resvalou por uns degraus por cima da cerca’), e, quando ela mesma chegou lá, Grace tinha sumido. ‘Sumiu como um bafo de cachorro em dezembro’. Foi o que ela disse.”

Quando se tratava de mexericos da aldeia, a sra. M era infalível, como o Papa Pio IX.

Segui devagar pelo corredor, razoavelmente confiante de que estava sozinha na casa. No fim do corredor, ao lado de uma janela redonda, um relógio de pêndulo tiquetaqueava para si mesmo, o único som na silenciosa casa da fazenda.

Dei uma olhada rápida para cada ambiente: sala de estar, lavatórios, cozinha, copa...

Ao lado do relógio, dois degraus levavam a um pequeno patamar quadrado, e, espiando pelo canto, vi que uma escada estreita continuava subindo até o primeiro andar.

Enfiado embaixo dos degraus, havia um armário, cuja porta de tábuas encaixadas, estranhamente angulosa, era equipada com uma esplêndida maçaneta de cerâmica verde e branca que só podia ser Wedgwood. Eu daria uma boa vasculhada nele mais tarde.

Cada degrau emitia seu próprio e singular gemido de madeira enquanto eu subia: como uma série de velhas tampas de caixão sendo forçadas e abertas, pensei com um arrepio gostoso.

Firme, Flavinha, minha velha. Não tem sentido ficar apavorada.

No topo da escada havia um segundo pequeno patamar do qual, em ângulos retos, mais três degraus levavam ao corredor de cima.

Parecia óbvio que todos os aposentos superiores fossem quartos de dormir, e eu estava certa: uma olhada para dentro de cada um dos dois primeiros revelou cômodos frios e espartanos com uma cama de solteiro, um lavatório, um guarda-roupa e mais nada.

O quarto grande na frente da casa era de Gordon e Grace; nenhuma dúvida quanto a isso. A não ser por uma cômoda dupla e uma cama dupla com um acolchoado surrado, o quarto era tão frio e estéril quanto os demais.

Dei uma bisbilhotada rápida nas gavetas da cômoda: no lado dele, meias, roupa de baixo, um relógio de pulso sem pulseira e um gorduroso e muito manuseado baralho de cartas ostentando a insígnia dos Scots Greys; no dela, combinações, calcinhas, um pote de cápsulas para dormir aviadas sob receita (o meu velho amigo hidrato de cloral, eu notei: C2H3Cl3O2: um poderoso hipnótico que, quando misturado disfarçadamente ao álcool, era chamado pelos gângsteres americanos de Mickey Finn; na Inglaterra, era receitado para donas de casa extremamente nervosas por médicos do interior e chamado de “alguma coisa para ajudá-la a dormir”).

Não contive um sorriso rápido quando pensei naquela vez em que, usando nada mais que álcool, limpador de latrina e uma garrafa de branqueador à base de cloro, sintetizei uma boa quantidade da substância e dei, dentro de uma maçã preparada, para Phoebe Snow, uma porca premiada que pertencia ao nosso vizinho, Max Wight. Phoebe dormiu por cinco dias e dezessete horas até o efeito passar e, por algum tempo, “A Incrível Porca Adormecida” ficou sendo a oitava maravilha do mundo agrícola britânico. Mas ele a emprestou graciosamente para a quermesse de São Tancredo, onde Phoebe podia ser vista, por seis centavos de cada vez, roncando na traseira de um caminhão com os dizeres “A Bela Adormecida”. No fim, ela arrecadou quase cinco libras para o fundo para as sobrepelizes do coro.

Com um suspiro, voltei ao meu trabalho.

No fundo da gaveta de Grace, enfiada embaixo de um lenço de linho sujo, estava uma Bíblia bem manuseada. Abri a capa e li as palavras na folha de guarda: “Favor devolver à igreja paroquial de São Tancredo, Bishop’s Lacey”.

Quando eu a estava colocando de volta na gaveta, uma tira de papel caiu de dentro dela e desceu flutuando até o chão. Recolhi-a com as unhas, tomando muito cuidado para não deixar minhas digitais naquilo.

As palavras tinham sido escritas com tinta roxa: “Grace, por favor me procure se eu puder prover qualquer conforto a mais”. E estava assinado “Denwyn”.

Denwyn Richardson, o vigário. O qual Meg, a Louca, tinha visto dançando nu no vizinho Bosque Gibbet.

Pus a prova no bolso.

Tudo o que restava agora era o pequeno dormitório nos fundos da casa. O quarto de Robin. Tinha de ser. Atravessei o patamar silencioso e parei na frente da porta fechada. Só então comecei a sentir uma certa apreensão. E se Gordon ou Grace entrasse de repente, furioso, pela casa e subisse a escada? Como eu explicaria minha invasão de seus quartos?

Encostei um ouvido no revestimento escuro da porta e prestei atenção. Nenhum som.

Girei a maçaneta e entrei.

Como eu suspeitava, era o quarto de Robin, mas era o quarto de um menininho morto há cinco anos: uma cama pateticamente pequena, cobertores dobrados, um guarda-roupa vazio e linóleo no chão. Sem santuário, sem velas, sem retratos emoldurados do falecido montado em um cavalinho de balanço ou pendurado de ponta-cabeça pelos joelhos em uma macieira. Que amargo desapontamento!

Ele era tão despojado e simples quanto o Quarto em Arles, de Van Gogh, mas sem o seu calor; o quarto era tão impessoal quanto a lua de inverno.

Depois de uma rápida olhada em volta, não havia mais nada para ver, e eu saí, fechando a porta respeitosamente, quase com ternura.

Então ouvi passos embaixo.

O que fazer? As possibilidades passaram rápidas como raios pelo meu cérebro. Eu poderia galopar escada abaixo em lágrimas, fingindo ter me perdido e ficado desnorteada enquanto caminhava dormindo. Poderia alegar que estava sofrendo um colapso nervoso e não sabia onde me encontrava; que tinha visto, do pátio da fazenda, um rosto numa janela de cima, acenando para mim com um dedo comprido: que eu tinha pensado ser Grace Ingleby em perigo.

Por mais interessantes que fossem, todas essas tramas trariam consequências, e se existia uma coisa de que eu não precisava era introduzir complicações na minha vida. Não, pensei, vou me esgueirar pela escada abaixo e torcer como louca para não ser pega.

Mas a ideia morreu quase antes de nascer. No instante em que pus o pé sobre o degrau de cima, ele soltou um gemido apavorante.

Houve um agitar de asas perto do pé da escada, como se um grande pássaro estivesse preso na casa. Devagar, mas com toda a segurança, desci a escada. Já embaixo, espiei pelo canto, e meu sangue gelou.

Um raio intenso de sol iluminava o fim do corredor, e ali um menininho de botas de borracha e roupa de marinheiro desaparecia pela porta aberta.


EU TINHA CERTEZA.

Ele estava no armário embaixo da escada o tempo todo. Fiquei lá parada, completamente imóvel diante da porta aberta, defrontando-me com um dilema. O que fazer? Eu sabia com certeza que, assim que pusesse um pé para fora daquela casa de fazenda, seria provável que eu jamais voltasse a entrar. Seria melhor eu dar uma rápida olhada atrás da porta angulosa antes de sair em perseguição à aparição de roupa de marinheiro.

Dentro do armário escuro, um pedaço de cordel pendia de uma lâmpada nua. Dei uma puxada, e o espaço surgiu iluminado por uma luz fraca. Estava vazio.

Isto é, vazio a não ser por um par de botas de borracha de criança muito semelhante ao que eu acabara de ver nos pés da figura no vão da porta.

A principal diferença era que essas botas Dunlop estavam incrustadas de barro, ainda molhadas da chuva da manhã.

Ou da sepultura.

Quando passei correndo pela porta da frente aberta, vi de relance a roupa de marinheiro azul-marinho desaparecer atrás do galpão de implementos. Além daquelas paredes galvanizadas ferrugentas, eu sabia, havia um desconcertante aglomerado de anexos: um labirinto de galpões, cada um dos quais poderia facilmente conter uma dúzia de esconderijos.

Saí a passos largos, como um cão de caça farejando. Nem me passou pela cabeça sentir medo.

Mas então dei uma freada súbita. Atrás do galpão de implementos, uma ruela estreita levava à saída pela direita. Teria o fugitivo disparado por ela para me despistar? Avancei lentamente pela passagem estreita, tomando muito cuidado para não tocar nas paredes abandonadas de ambos os lados. Um só arranhão causado por uma daquelas pontas de lata rasgada, afiadas como navalhas, quase certamente daria em tétano, e eu acabaria imobilizada em uma ala de hospital, espumando pela boca e atormentada por espasmos de quebrar os ossos.

Como Dafi e Felinha ficariam felizes!

“Eu bem que avisei que ela acabaria mal”, diria Dafi ao pai. “Ela nunca devia ter sido autorizada a andar solta por aí.”

Assim, me arrastei lentamente como um caranguejo pela passagem estreita. Quando finalmente cheguei ao fim, vi meu caminho bloqueado à esquerda por uma pilha de surrados tambores de gasolina e, à direita, por um chiqueiro infestado de espinheiros.

Enquanto retornava pela Passagem da Morte, que parecia ainda mais estreita na jornada de volta, parei para escutar mas, além do distante cacarejar de galinhas e da minha respiração, não ouvi mais nada.

Segui pé ante pé, suavemente, entre os galpões dilapidados, muito atenta à minha visão periférica, consciente de que, a qualquer momento, alguma coisa poderia se lançar sobre mim vinda de alguma porta escura.

Só então reparei nos rastos no chão: pegadas pequeninas que só poderiam ter sido deixadas pelas solas de padrão quadriculado de uma bota infantil de borracha Dunlop.

Com todos os sentidos alerta, segui a trilha.

Ela me levou para além do galpão de implementos, para além da carcaça enferrujada de um velho trator que se inclinava para um lado de modo bizarro, sem uma das rodas de trás, parecendo uma coisa meio enterrada na areia — alguma máquina muito antiga trazida à praia pelo mar.

Mais uma pequena corrida para a esquerda, e me vi ao pé do pombal, que se erguia acima de mim como um castelo de conto de fadas, os tijolos desiguais manchados de um quase dourado pela luz do fim do dia.

Embora eu já tivesse estado ali, tinha chegado por um caminho diferente, e me arrastei bem devagar em volta da decrépita porta de madeira, com o cheiro penetrante de excrementos de pombos já começando a encher minhas narinas.

Talvez eu estivesse enganada, pensei por um momento: talvez o menino de roupa de marinheiro tivesse passado correndo pela torre e estava, a essa altura, bem longe, além dos campos. Mas as pegadas no solo provavam outra coisa: elas levavam diretamente à porta do pombal.

Alguma coisa roçou minha perna, e meu coração quase parou.

— Miau! — fez uma voz.

Era Tock, a mais eloquente das gatas Ingleby.

Pus um dedo nos lábios para silenciá-la, antes de me lembrar de que gatos são incapazes de ler a linguagem gestual. Mas talvez sejam, pois sem mais nenhum som ela se agachou bem perto do chão e se safou para dentro das sombras do interior do pombal.

Hesitante, eu a segui.

Lá dentro, o lugar era como eu me lembrava: uma miríade de luzes se infiltrando através das fendas da alvenaria antiga; o ar claustrofóbico, abafado, poeirento. Dessa vez, porém, não havia lamúrias de espíritos vindo da sala acima. O lugar estava tão silencioso quanto a cripta que fica além do castelo da própria Morte.

Pus um pé na estrutura e olhei para o alto, tentando ver onde ela desaparecia na penumbra acima da minha cabeça. A madeira velha soltou um grasnido agourento, e eu parei. Quem ou o que quer que estivesse acima de mim na semiobscuridade, agora sabia que estava encurralado.

— Olá! — gritei, mais para me encorajar. — Olá! Sou eu, Flavia. Tem alguém aí?

O único som que veio de cima foi o zumbido de abelhas em volta das janelas superiores do pombal, grotescamente amplificado pela estrutura oca da torre.

— Não tenha medo — gritei. — Estou subindo.

Aos poucos, um degrau de cada vez, comecei minha precária ascensão. Novamente me senti como João, dessa vez escalando o pé de feijão; me arrastando para cima, centímetro por centímetro, para enfrentar algum horror desconhecido. A madeira velha rangia de um modo horrível, e eu sabia que poderia desmoronar a qualquer momento, fazendo-me despencar para a morte certa nas pedras abaixo de um jeito muito semelhante ao do gigante, e de Rupert, se estatelando em cima do palco de marionetes.

A escalada parecia não ter fim. Parei para ouvir: ainda não havia som nenhum, fora o das abelhas.

Sempre para cima eu prossegui, pondo os pés cautelosamente de um degrau para o outro, agarrando-me às travessas com dedos que já começavam a ficar adormecidos.

Quando meus olhos finalmente ficaram no mesmo nível da abertura em arco, o interior da câmara superior entrou no meu campo de visão. Um vulto estava debruçado sobre o santuário de Robin Ingleby: o mesmo vulto que fugira da casa da fazenda.

De joelhos, as costas voltadas para mim, a pequena aparição vestia uma roupa de marinheiro branca e azul-marinho, com colarinho folgado e calça curta; as solas quadriculadas de suas botas de borracha estavam quase na minha cara. Eu poderia ter esticado a mão e tocado nelas.

Meus joelhos começaram a tremer violentamente, ameaçando ceder e me arremessar para baixo, no abismo pedregoso.

— Socorro — eu disse, as palavras surgindo de repente sem explicação, e de forma surpreendente, de alguma ancestral parte reptiliana do meu cérebro.

Uma mão se estendeu, dedos brancos seguraram os meus e com uma força surpreendente me içaram para a segurança. Um momento depois, me vi encolhida, segura, mas trêmula, frente a frente com o espectro.

Embora a roupa branca de marinheiro, com a jaqueta ostentando a coroa e a âncora, e as botas Dunlop sem dúvida pertencessem ao falecido Robin Ingleby, o rosto tenso e emaciado que me olhava por baixo do boné do HMS Hood era o de sua diminuta mãe, Grace.

— Você — eu disse, incapaz de me conter. — Foi você.

O rosto dela estava triste e repentinamente muito, muito velho. Era difícil acreditar que ainda restasse naquela mulher um átomo que fosse de Grace Tennyson, aquela garota alegre, expansiva, que uma vez subjugara as entranhas eletrificadas de Pedro, o Grande, o samovar de prata na Casa de Chá São Nicolau.

— Robin se foi — disse ela com uma tossida. — O Diabo o levou.

O Diabo o levou! Quase as mesmas palavras que Meg, a Louca, usara no Bosque Gibbet.

— E quem era o diabo, sra. Ingleby? Eu pensei por um instante que fosse Rupert, mas não era. Era você, não era?

— Rupert agora está morto — disse ela, tocando as têmporas com os dedos, como se estivesse atordoada.

— Sim — eu disse. — Rupert está morto. Era ele o homem de Punch e Judy na praia, não era? Você combinou se encontrar lá com ele, e Robin viu vocês dois juntos. Você ficou com medo de ele contar a Gordon.

Ela me lançou um sorriso meio precavido.

— Na praia? — disse com uma tossida e uma risadinha. — Não, não. Não na praia. Aqui... no pombal!

Fazia algum tempo eu já suspeitava que o único conjunto de pegadas, aquelas que foram encontradas cinco anos atrás levando ao Campo Jubileu e ao Bosque Gibbet, era de Grace Ingleby carregando o corpo de Robin nos braços. A fim de deixar apenas as pegadas dele, ela calçara as botas de borracha do filho. Eram, afinal, do mesmo tamanho das suas. Como que para provar isso, ela as estava usando hoje.

Cinco anos após sua morte, ainda estava vestindo as roupas de Robin, tentando desesperadamente conjurar seu filho de volta dos mortos. Ou se redimir do que havia feito.

— Você o carregou para o bosque e o pendurou em uma árvore. Mas Robin morreu aqui, não foi? Foi por isso que você fez aqui o pequeno santuário dele, e não no quarto de Robin.

Por mais trivial que parecesse aquela conversa com uma louca, eu sabia que se conseguisse chegar a Buckshaw em segurança, precisaria de um banho prolongado, quente e fumegante.

— Eu falei para ele ficar lá embaixo — disse ela um tanto petulante. — “Volte para casa, Robin”, eu gritei. “Você não pode subir aqui.” Mas ele não me ouviu. Os menininhos às vezes são assim. Desobedientes.

Ela tossiu de novo e sacudiu a cabeça com tristeza.

— “Eu sei fazer um truque com a corda!”, ele gritou de volta. Estivera brincando de caubói o dia inteiro com uma corda que achara em um galpão.

Bem como Sally havia dito. Grace devia estar contando a verdade.

— Ele subiu aqui antes que eu pudesse impedi-lo. Rupert ficou furioso. Agarrou Robin para lhe dar uma sacudida, mas seu aparelho ortopédico de ferro escorregou nos tijolos. Robin...

Agora, lágrimas silenciosas escorriam por seu rosto.

— Caiu — disse eu. Não havia necessidade de mais detalhes.

— Caiu — repetiu ela, e o modo como ela arrastou a palavra a fez ecoar nos tijolos, pairando de um jeito grotesco na câmara circular: um som que jamais esquecerei.

Com ele, veio uma ideia.

— Foi Rupert quem pensou na história de Punch e Judy? Que Robin estava representando a cena de Punch e o carrasco?

— Onde você ouviu isso? — perguntou ela, subitamente lúcida, sagaz. Pensei no sorriso de Meg, a Louca, no Bosque Gibbet; aquelas duas mulheres tinham muita coisa em comum.

— O seu depoimento ao júri no inquérito — respondi. — É de conhecimento público.

Não achei necessário acrescentar que tinha ouvido de Sally.

— Ele me obrigou a fazer isso — disse ela, enxugando os olhos com a manga da roupa de marinheiro, e pela primeira vez me dei conta de quanto ela se parecia com Robin. Uma vez percebida, a semelhança era assustadora.

— Rupert me disse que ninguém jamais ficaria sabendo. O pescoço de Robin tinha sido quebrado na queda, e se nós... se eu...

Um arrepio percorreu todo o seu corpo.

— Se eu não fizesse como ele ordenara, ele contaria a Gordon o que estava havendo entre nós. Eu seria punida. Gordon é rápido com os punhos, você sabe.

Assim como Rupert. Eu tinha visto as equimoses que ele deixara no braço de Nialla. Dois homens de temperamento exaltado que, em vez de resolverem as coisas brigando entre si, fizeram saco de pancada das respectivas mulheres.

— Não havia ninguém com quem você pudesse falar? O vigário, por exemplo?

Isso pareceu estimulá-la, e ela foi tomada por um prolongado acesso de tosse. Esperei até Grace Ingleby terminar.

— O vigário — disse ela, ofegante — é o único que tornou estes meus últimos cinco anos suportáveis.

— Ele sabia sobre Robin?

— Os lábios de um clérigo são selados — disse ela. — Ele nunca deixou escapar uma palavra. Tentou vir para a Fazenda Culverhouse uma vez por semana, só para me deixar falar. O homem é um santo. A mulher dele achava que ele estava...

— Apaixonado por você.

Ela assentiu, fechando os olhos com força, como se estivesse com dores excruciantes.

— Você está bem? — perguntei.

— Espere alguns minutos — disse ela —, e ficarei muito bem.

Seu corpo desmoronava diante dos meus olhos, inclinando-se na direção da abertura que dava para o poço.

Agarrei seu braço e, quando fiz isso, um frasco de vidro que ela apertava na mão fechada caiu no piso de tijolos e resvalou, tilintando, até o canto, o que fez um pombo subir estrepitosamente para a abertura. Arrastei Grace para o centro da câmara e lancei-me atrás do frasco, que fora parar em um montículo de guano ancestral.

O rótulo me contou tudo o que eu precisava saber: “Cianureto de cálcio”, estava escrito. “Veneno.”

Veneno de rato! A substância era de uso comum em fazendas, particularmente naquelas onde galinheiros atraíam a praga. Ainda havia um dos tabletes brancos no fundo. Tirei a tampa e cheirei. Nada.

Grace estava estatelada no chão, crispando-se, os membros se agitando.

Caí de joelhos e cheirei seus lábios. Odor de amêndoas amargas.

Os tabletes brancos de cianureto de cálcio, eu sabia, assim que encontrassem a umidade em sua boca, garganta e estômago, produziriam cianureto de hidrogênio, um gás tóxico que podia matar em cinco minutos.

Não havia tempo a perder. A vida dela estava em minhas mãos. Quase entrei em pânico ao pensar nisso, mas não entrei.

Dei uma olhada cuidadosa em volta, registrando cada detalhe. Além da vela, do santuário, da fotografia de Robin e de seu veleiro de brinquedo, não havia nada na câmara, a não ser entulho.

Bem, não exatamente nada. Em uma parede havia um antigo dispositivo para fornecer água às aves: um bulbo de vidro invertido com um tubo, cuja alimentação por gravidade mantinha uma tigela cheia para os pombos mergulharem os bicos. Pela transparência da água, parecia que Grace o enchera recentemente.

Um registro de vidro permitia que a alimentação por gravidade fosse fechada. Dei-lhe uma girada e com cuidado puxei a tigela cheia para fora das presilhas de mola.

Grace gemia horrivelmente no chão e parecia não estar mais consciente da minha presença.

Com passos cautelosos, fui até o lugar de onde o pombo tinha voado. Apalpando cuidadosamente a palha com a ponta dos dedos, logo me vi recompensada. Um ovo. Não, dois ovinhos!

Depois de colocá-los gentilmente ao lado da tigela, ergui o veleiro. Na parte de baixo de sua quilha de lata havia um peso de chumbo. Droga!

Cravei a coisa no espaço entre dois tijolos no peitoril da janela e puxei com toda a minha força, e então puxei de novo. Na terceira vez, o peso se soltou com um estalo.

Usando a afilada extremidade inferior da quilha como uma espátula improvisada, me inclinei para fora da abertura para a larga projeção que durante séculos servira de poleiro.

Abaixo de mim, o pátio da fazenda estava vazio. Não tinha sentido desperdiçar tempo gritando por socorro.

Fui passando a delgada quilha ao longo da projeção até conseguir juntar o que eu precisava e depois, com um dedo relutante, raspei aquilo para dentro da tigela de água.

Faltava uma última etapa.

Embora seu tamanho diminuto fizesse daquilo um trabalhinho delicado, quebrei os ovos, um de cada vez, do jeito que a sra. Mullet me ensinara: uma batidinha seca no meio e depois, usando as duas metades da casca como dois porta-ovos gêmeos, virando a gema de uma metade para a outra até que a última gota de clara tivesse escorrido para dentro da tigela de água que aguardava.

Pegando o frasco dos tabletes, usei-o como mão de almofariz: torcendo, moendo e mexendo até conseguir talvez meia xícara de chá de uma lama coagulada e acinzentada com o mais leve matiz de amarelo.

Para que nenhuma de nós a derrubasse (Grace agora agitava as pernas debilmente e estava com o rosto rosado por falta de oxigênio), eu me sentei no chão ao lado dela, de pernas cruzadas, e puxei sua cabeça para o meu colo, com o rosto para cima. Ela estava fraca demais para resistir.

Então, apertando o nariz dela entre o polegar e o indicador, puxei sua boca para abri-la, esperando que, nos seus espasmos, ela não me mordesse.

Ela fechou-a bruscamente. Aquilo não seria tão fácil como eu tinha pensado.

Apertei-lhe o nariz um pouco mais. Agora, se ela realmente quisesse respirar, teria de ser pela boca. Me odiei pelo que estava fazendo com ela.

Ela se debateu, os olhos saltados; e então a boca se abriu de repente e ela encheu os pulmões, depois fechou-se violentamente outra vez.

Tão lenta e gentilmente quanto eu era capaz, me inclinei e peguei a tigela cheia até a borda, aguardando o momento certo.

Ele chegou mais cedo do que eu esperava. Com uma arfada, a boca de Grace se abriu subitamente e, enquanto ela aspirava o ar de novo, despejei o conteúdo da tigela em sua boca, depois fechei-a com força com a mão embaixo de seu queixo. A tigela vazia caiu no chão estrepitosamente.

Mas Grace lutava comigo, dava para ver. Uma parte dela estava tão determinada a morrer que estava segurando a substância na boca, recusando-se a engolir.

Com o dedinho da mão direita, comecei a cutucar sua goela, como uma ave marinha cavando a areia.

Devíamos estar parecendo lutadores gregos: ela, com a cabeça firmemente travada no meu braço, eu, curvada por cima dela, tremendo com o mero esforço físico de tentar impedi-la de cuspir a mistura nauseante.

E então, um pouco antes de largar o corpo, eu a ouvi engolir. Ela não estava mais resistindo. Cuidadosamente, forcei a boca a se abrir. Com exceção de um leve e desagradável brilho de corpo estranho, ela estava vazia.

Corri até a janela, inclinando-me para fora o mais que podia sob a luz do sol.

Meu coração desfaleceu. O pátio da fazenda ainda estava vazio.

Então, de repente, ouvi um ruído de máquina se aproximando, e um momento depois o Fergie cinzento apareceu barulhento pelo caminho, com Sally sacolejando ao volante e Dieter com as pernas compridas penduradas para fora do reboque.

— Sally! Dieter! — gritei para eles.

No começo eles não sabiam de onde vinha a minha voz. Olhavam para todos os lados do pátio, perplexos.

— Aqui em cima — no pombal!

Enfiei a mão no bolso, pesquei o apito de salgueiro de Alf e soprei como um guarda ensandecido.

Afinal eles me avistaram. Sally acenou para mim.

— É Grace! — berrei. — Tomou veneno! Ligue para o dr. Darby, diga para ele vir agora!

Dieter já disparava para a casa da fazenda, correndo a toda, como ele devia ter feito outrora, quando corria para o seu Messerschmitt.

— E diga para ele verificar se tem nitrito de amila e tiossulfato de sódio em sua valise! — gritei, lutando contra um par de lágrimas impertinentes. — Ele vai precisar!


— EXCREMENTOS DE POMBO? — disse o inspetor Hewitt, quem sabe pela terceira vez. — Você está me dizendo que preparou um antídoto com excrementos de pombo?

Estávamos sentados no estúdio do vigário, avaliando um ao outro.

— Sim — eu disse. — Não tive escolha. O guano de pombo, quando deixado exposto à luz do sol, é extraordinariamente rico em NaNO3, que é nitrato de sódio. E essa é a razão por que tive de raspá-lo do poleiro de fora, em vez de usar o material mais antigo que estava na câmara. O nitrato de sódio é um antídoto para o envenenamento por cianureto. Usei as claras de ovos de pomba para produzir a suspensão. Espero que ela esteja bem.

— Ela está ótima — disse o inspetor —, muito embora estejamos buscando uma opinião sobre se devemos acusar você de praticar medicina sem licença.

Estudei seu rosto para ver se ele estava brincando, mas ele não parecia estar.

— Mas — protestei — o dr. Darby disse que ele mesmo não poderia ter feito melhor.

— O que não é grande coisa — disse o inspetor, desviando os olhos de mim e olhando através da janela.

Vi que o havia derrotado.

O inspetor Hewitt me parara no caminho de volta a Buckshaw e pedira para eu justificar minha presença na Fazenda Culverhouse.

Uma história fabricada às pressas sobre ir buscar ovos para a sra. Mullet, que queria fazer um pão de ló, aparentemente me tirara da enrascada. Pelo menos por enquanto.

O inspetor me assegurara que Grace Ingleby ainda estava viva; que ela tinha sido levada para o hospital em Hinley.

Ele não disse que meu antídoto salvara a vida dela. Imaginei que só o tempo diria.

O vigário, que cedera sua escrivaninha e sua cadeira para o inspetor Hewitt, estava plantado no canto como uma cegonha preta, esfregando os óculos com um lenço de linho.

Enquanto o sargento-detetive Woolmer se postava junto a uma das janelas, fingindo polir uma lente anastigmática da sua preciosa câmera, o sargento-detetive Graves ergueu os olhos de suas anotações por um tempo apenas suficiente para me dar um sorriso radiante. Eu gostaria de pensar que a quase imperceptível sacudida de cabeça que veio junto era um sinal de admiração.

E apesar de eles ainda não terem consciência um do outro, eu também gostaria de pensar que o sargento Graves um dia se casará com minha detestável irmã Ophelia e a levará embora para um chalé coberto de hera, distante de Buckshaw apenas o suficiente para eu poder aparecer lá sempre que me der vontade de um bom bate-papo sobre assassinatos.

Mas agora havia Dieter para levar em conta. A vida estava ficando tão complicada!

— Simplesmente comece do começo — disse o inspetor Hewitt, voltando de súbito do seu devaneio. — Quero me certificar de que não deixei passar nada.

Estaria eu detectando um tom de sarcasmo? Esperava que não, já que eu realmente gostava do homem, apesar de ele ser um pouco lento.

— A sra. Ingleby, Grace, estava tendo um caso com Rupert Porson. Rupert vinha sempre para a Fazenda Culverhouse há anos, porque... porque Gordon lhe fornecia maconha. Aliviava as dores da sua pólio, entenda.

Ele deve ter percebido minha hesitação.

— Não precisa se preocupar em traí-lo — ele disse. — O sr. Ingleby foi completamente franco conosco. O que quero é ouvir a sua versão.

— Rupert e Grace combinaram se encontrar na praia anos atrás — eu disse. — Robin os viu lá juntos. Ele topou com os dois por acaso, mais uma vez, no pombal. Quando Rupert tentou agarrá-lo, ou coisa assim, Robin desabou pelo poço central e quebrou o pescoço. Foi um acidente, mas ainda assim Robin estava morto. Rupert maquinou a ideia de forçar Grace a carregar o corpo dele, depois que escurecesse, para o Bosque Gibbet e pendurá-lo em uma árvore. Várias pessoas tinham visto Robin brincando com uma corda.

“Foi Rupert, também, quem inventou a história de que Robin estivera representando a cena entre Punch e Jack Ketch, que ele tinha visto no espetáculo de bonecos da praia. O conto de Punch e o carrasco é conhecido por todas as crianças da Inglaterra. Ninguém questionaria a história de que Robin se enforcara por acidente. Ela era simplesmente bizarra o bastante para ser verdadeira. Como titereiro conhecido que era, Rupert não podia permitir que seu nome ficasse associado, de qualquer modo, à morte de uma criança. Ele precisava desaparecer da cena da morte de Robin. Além de Grace, ninguém sabia que ele estivera na fazenda naquele dia.

“Por isso ele a ameaçou. Disse que se ela não fizesse como ele queria, daria com a língua nos dentes para Gordon... desculpe, quero dizer que ele informaria a Gordon que estava tendo um caso com a mulher dele. Grace perderia os dois, o filho e o marido. Ela já estava meio enlouquecida de tristeza e medo, portanto é provável que tenha sido bem fácil ele manipulá-la.

“Como ela é muito pequena, conseguiu calçar as botas de borracha de Robin para carregar seu corpo até o Bosque Gibbet. Ela é excepcionalmente forte para o seu tamanho. Descobri isso quando me içou para dentro da câmara do pombal. Depois de pendurar o corpo de Robin na árvore, ela calçou as botas nos pés dele e foi para casa dando a volta pelo caminho mais comprido, descalça.”

O inspetor Hewitt balançou a cabeça e rabiscou uma anotação com a sua microscópica caligrafia.

— Meg, a Louca, topou com o corpo lá pendurado e achou que fosse obra do Diabo. Eu já lhe entreguei a folha do meu caderno, portanto você viu o desenho que ela fez. Ela é muito boa, na verdade, não acha?

— Hum — disse o inspetor. Aquilo era um mau hábito que ele estava adquirindo por conviver demais com o dr. Darby.

— Por isso ela teve medo de tocá-lo, ou mesmo de contar a alguém. O corpo de Robin ficou pendurado no Bosque Gibbet até Dieter encontrá-lo.

“Sábado passado, no salão paroquial, quando Meg viu o rosto de Robin no João, o boneco, pensou que o Diabo tinha trazido o menino morto de volta à vida, o encolhido e posto ele para trabalhar no palco. O tempo, para Meg, é uma coisa muito confusa. Dá para ver isso no desenho: Robin pendurado na árvore é uma cena que ela viu há cinco anos. O vigário tirando a roupa no bosque é algo que ela viu na quinta-feira passada.”

O vigário ficou vermelho-beterraba e correu um dedo por dentro de seu colarinho eclesiástico.

— Sim, bem... você sabe...

— Ah, eu sabia que você tinha levado um tombo, vigário — eu disse. — Soube no instante em que o vi no cemitério, no dia em que encontrou Rupert e Nialla, está lembrado? A perna da sua calça estava rasgada, você estava coberto de manchas de poeira argilosa da estrada para a Fazenda Culverhouse e tinha perdido o prendedor de calça da sua bicicleta.

— É verdade — disse o vigário. — Minha calça ficou presa na bendita corrente e eu fui atirado para dentro da valeta.

— O que explica por que você entrou no meio das árvores no Bosque Gibbet para tirar as roupas e tentar limpá-las. Você estava com medo do que Cynthia diria... desculpe, a sra. Richardson. Você mesmo disse, no pátio da igreja. Alguma coisa sobre Cynthia comer o seu fígado.

O vigário continuou em silêncio, e não creio que jamais o tenha admirado tanto como naquele momento.

— Como você estava indo à Fazenda Culverhouse pelo menos uma vez por semana desde que Robin morreu, há cinco anos, Cynthia... quero dizer, a sra. Richardson, de algum modo, concluiu que havia mais nos seus encontros com Grace Ingleby do que podia parecer. Por isso você, de um tempo para cá, vem mantendo suas visitas em segredo.

— Eu realmente não me sinto livre para discutir isso — disse o vigário. — O uso do colarinho eclesiástico põe fim a qualquer tendência que se tenha para tagarelar. Mas devo acrescentar, em defesa dela, que Cynthia é muito leal. Sua vida nem sempre é muito fácil.

— Nem a de Grace Ingleby — observei.

— Não, nem a de Grace.

— De um jeito ou de outro — prossegui —, Meg vive em uma velha choça, em algum lugar nas profundezas do Bosque Gibbet. Ela não perde muita coisa do que acontece por ali.

Ou em qualquer outro lugar, tive vontade de acrescentar. Acabara de me ocorrer que, quase com certeza, foi Meg que Rupert e Nialla ouviram rondando perto da tenda deles no pátio da igreja.

— Ela o viu tirando a calça ao lado da velha forca, e no lugar exato em que vira Robin pendurado. Por isso ela o incluiu em seu desenho.

— Entendo — disse o vigário. — Ao menos, acho que entendo.

— Meg pegou seu prendedor de calça na estrada com a intenção de usá-lo em uma daquelas suas esculturas de coisas penduradas, mas o reconheceu como seu e...

— Tem as minhas iniciais — disse o vigário. — Cynthia as escreveu lá.

— Meg não sabe ler — disse eu —, mas é muito observadora. Veja os detalhes no desenho dela. Ela se lembrou até do pequeno distintivo da Igreja da Inglaterra de sua lapela.

— Céus — disse o vigário, dando a volta para espiar por cima do ombro do inspetor Hewitt. — Lembrou mesmo.

— Ela veio aqui no sábado à tarde para devolver o prendedor de calça e, enquanto o procurava, foi dar por acaso no salão da paróquia durante o espetáculo de Rupert. Quando viu Robin encolhido no palco, ela surtou. Você e Nialla a carregaram para o presbitério e a acomodaram no seu sofá, no estúdio. Foi quando o prendedor (e o pó compacto de Nialla) caiu do bolso dela. Achei o pó compacto no chão atrás do sofá no dia seguinte. Não achei o prendedor porque Grace Ingleby já o pegara no dia anterior.

— Espere — disse o inspetor. — Ninguém alegou ter visto a sra. Ingleby em lugar nenhum perto do presbitério nem do salão paroquial no sábado à tarde.

— Não mesmo — eu disse. — O que eles, sim, disseram foi que a moça dos ovos esteve lá.

Se o inspetor Hewitt fosse daquele tipo de homem cuja boca era sujeita a se abrir quando atônito, ele estaria boquiaberto como uma gárgula.

— Meu bom Deus — ele disse, serenamente. — Quem lhe contou isso?

— A sra. Roberts e a srta. Roper — disse eu. — Elas estavam na cozinha do presbitério ontem depois da igreja. Eu supus que você as tivesse interrogado.

— Acredito que fizemos isso — disse o inspetor Hewitt, erguendo uma sobrancelha para o sargento Graves, que folheou as páginas do seu caderno.

— Sim, senhor — disse o sargento Graves. — As duas deram depoimentos, mas nada foi dito sobre moça dos ovos.

— A moça dos ovos era Grace Ingleby, é claro — eu disse, solícita. — Ela desceu tarde da Fazenda Culverhouse naquele sábado, com ovos para o presbitério. Não havia mais ninguém por perto. Alguma coisa a fez ir até o estúdio do vigário. Talvez ela tenha ouvido Meg roncar, não sei. Mas achou o prendedor de calça no chão, pegou-o e o enfiou no bolso.

— Como você pode ter tanta certeza? — perguntou o inspetor Hewitt.

— Não posso ter certeza — disse eu. — O que posso ter certeza, porque ele me contou, é de que o vigário perdeu o seu prendedor de calça na última quinta-feira...

O vigário balançou a cabeça, concordando.

— ... na estrada, na Colina Gibbet... e que você e eu, inspetor, o encontramos no domingo de manhã, preso ao corrimão do teatro de marionetes. O resto é mera especulação.

O inspetor coçou o nariz, fez mais uma anotação e ergueu os olhos para mim como se tivesse sido enganado no troco.

— O que claramente nos leva de volta a Rupert Porson — disse.

— Sim — retruquei. — O que claramente nos leva de volta a Rupert Porson.

— A respeito de quem você estava prestes a nos esclarecer.

Ignorei sua crítica e continuei:

— Grace conhecia Rupert fazia muitos anos. Talvez desde antes de conhecer Gordon. Até onde eu sei, ela até pode ter viajado com ele por um tempo, como sua assistente.

Eu soube pela súbita expressão fechada do inspetor Hewitt que havia acertado a cabeça do prego. Bravo, Flavia!, pensei. Vai ganhar o prêmio de melhor aluna!

Havia momentos em que eu surpreendia até a mim mesma.

— E mesmo que não tenha viajado com ele — acrescentei —, ela certamente assistiu a alguns dos espetáculos que ele apresentou pelo interior. Ela deve ter prestado uma atenção especial à instalação elétrica. Como Rupert fabricava todo o seu equipamento de iluminação, acho difícil acreditar que ele não aproveitou a oportunidade para mostrar os detalhes a uma colega eletricista. Ele era muito vaidoso de seus talentos, você sabe.

“Eu imagino que Grace pegou as chaves no presbitério e foi diretamente ao salão paroquial através do pátio da igreja. A essa altura a apresentação da tarde já havia acabado; o público tinha ido embora, e Rupert também. Havia pouca chance de ela ser vista. Mesmo que tivesse sido avistada, ninguém prestaria a menor atenção nela, não é? Afinal, ela era apenas a moça dos ovos. Além disso, ela e o marido são paroquianos de São Tancredo, portanto ninguém olharia duas vezes.

“Ela entrou no salão e, usando o corredor à esquerda (e trancando a porta atrás dela), subiu os dois pequenos lances que levam ao palco.

“Ela subiu para a ponte do palco de marionetes e raspou o isolamento do fio, usando o prendedor de calça como uma espécie de desbastador. Então passou o prendedor por cima da estrutura de madeira do palco, tocando o fio elétrico exposto com uma ponta e a haste metálica que liberava Galligantus na outra. E é isso! Não houve nada além disso. Se você chegou a dar uma olhada de perto no prendedor de calça, provavelmente já descobriu uma pequena marca de abrasão do lado de dentro, no centro. E talvez ligeiros indícios de cobre.”

— Verdade! — deixou escapar o sargento Woolmer, e o inspetor Hewitt o fulminou com o olhar.

Diferentemente da maioria dos outros suspeitos (com exceção de Dieter, é claro, que construía aparelhos de rádio quando menino na Alemanha), Grace Ingleby tinha o treinamento requerido em eletricidade. Antes da guerra, antes de se casar com Gordon, ela trabalhava em uma indústria que instalava rádios em Spitfires. Me disseram que o QI dela é quase igual ao número de salmos.

— Maldição! — bradou o inspetor Hewitt, pondo-se em pé de um salto. — Desculpe, vigário. Mas por que não descobrimos essas coisas, sargento-detetive?

Ele olhou furioso de um de seus homens para o outro, incluindo os dois na sua exasperação.

— Com todo o respeito, senhor — arriscou o sargento Woolmer —, poderia ser porque nós não somos a srta. De Luce.

Foi uma coisa atrevida para se dizer, e temerária. Se o que vi no cinema era verdade, aquele foi o tipo de comentário que poderia transformar o sargento Woolmer em um remendador de estradas antes do pôr do sol.

Depois de um silêncio enervante, o inspetor disse:

— Você está certo, é claro, sargento. Não temos o mesmo acesso às casas e aos lares de Bishop’s Lacey, temos? É uma área onde poderíamos atuar melhor. Anote isso.

Não admira que seus subordinados o adorassem!

— Sim, senhor — disse o sargento Graves, rabiscando alguma coisa em seu caderno.

— Então — prossegui —, depois de preparar a armadilha, Grace saiu pela porta do corredor à direita do palco e trancou essa porta também, provavelmente para impedir qualquer pessoa de chegar aos bastidores e descobrir o que ela havia feito. Como eu disse, ela é uma mulher muito inteligente.

— Mas — disse o inspetor Hewitt — se ambas as portas estavam trancadas, como Porson subiu ao palco para a apresentação? Ele não poderia ter se trancado por dentro, já que não tinha a chave.

— Ele usou aquela pequena escada na frente do palco — disse eu. — Não é tão íngreme quanto as duas nos corredores laterais, e é só um lance. As escadas estreitas eram difíceis para Rupert, por causa do aparelho ortopédico, e ele pegava o caminho mais curto. Notei isso na última quinta-feira, quando ele verificava a acústica do salão.

— Uma teoria bem engenhosa — disse o inspetor Hewitt. — Mas ela não explica tudo. Como, por exemplo, o suposto assassino saberia que um pedaço de lata tão sem valor resultaria na morte de Porson?

— Porque Rupert sempre se apoiava em um corrimão feito de canos de ferro enquanto operava os bonecos. Com todo o equipamento de iluminação que estava instalado nos bastidores, o corrimão tinha de ser aterrado através da rede elétrica. No instante em que Rupert tocou na alavanca energizada de Galligantus, com a parte de baixo do corpo fortemente pressionada contra o corrimão como estava e a perna direita presa em um aparelho ortopédico, a corrente teria passado diretamente pelo seu braço acima e através...

— Do coração — disse o inspetor. — Sim, entendi.

— Igual a São Lourenço — eu disse —, que, como você sabe, foi executado sobre uma grelha.

— Obrigado, Flavia — disse o inspetor Hewitt. — Acho que você já se expressou muito convincentemente.

— Sim — disse eu, um tanto convencida. — Foi o que eu fiz. Então, isso é tudo?

O sargento Graves sorria por cima de seu caderno como Scrooge por cima dos livros de contabilidade.

O inspetor Hewitt franziu a testa com uma expressão que eu já tinha visto: uma expressão de curiosidade exasperada firmemente contida por anos de treinamento e um forte senso de dever.

— Acho que sim, a não ser, talvez, por um ou dois pormenores.

Dei-lhe aquele sorriso radiante, superior: com todos os dentes e lábios finos. Quase me odiei por fazer isso.

— Sim, inspetor?

Ele foi até a janela, as mãos entrelaçadas atrás das costas, como eu já o vira fazer antes em várias ocasiões. Por fim, se voltou:

— Talvez eu seja um pouco lento — disse.

Se ele estava esperando que eu o contradissesse, esperaria até as vacas voltarem para casa de pijama roxo.

— As suas observações sobre a morte de Rupert Porson foram muito elucidativas. Mas, por mais que eu tenha tentado, falhei redondamente em acompanhar seu raciocínio no caso da morte de Robin Ingleby.

— As botas, sim... talvez. É uma possibilidade, admito, mas está longe de ser uma certeza. Uma prova fraca, quando o caso for a julgamento. Isto é, se o caso for reaberto. Mas vamos precisar de muito mais do que um par de botas de criança, se quisermos prevalecer sobre Suas Excelências.

Seu tom era quase uma súplica. Eu já tinha decidido que havia certas observações que deveriam permanecer para sempre trancadas na minha cabeça: pepitas seletas de dedução que eu guardaria para o meu deleite particular. Afinal, o inspetor tinha muito mais recursos à sua disposição do que eu.

Mas então pensei em sua linda esposa, Antigone. O que ela pensaria de mim se descobrisse que eu criara obstáculos para ele? Uma coisa era certa: seria o fim de qualquer ideia que eu pudesse ter tido de tomar chá no jardim de sua casinha decorada com muito bom gosto.

— Muito bem — eu disse com relutância. — Há mais alguns pormenores. O primeiro é: quando Dieter voltou correndo para o pátio da fazenda, logo depois de descobrir o corpo de Robin pendurado no Bosque Gibbet, não havia ninguém nas janelas da casa. Ninguém estava aguardando a chegada dele, como era de se esperar. Com certeza, a mãe de uma criança desaparecida estaria frenética, aguardando por alguma novidade, por menor que fosse. Mas Grace Ingleby não estava vigiando as janelas. E por que não? A razão é simples: ela já sabia que Robin estava morto.

Em algum lugar atrás de mim, o vigário ofegou.

— Entendo — assentiu o inspetor Hewitt. — Uma teoria engenhosa... muito engenhosa. Mas, ainda assim, dificilmente o bastante para fundamentar um caso.

— Concordo — disse eu —, porém há mais.

Olhei de um para outro: o vigário, o inspetor Hewitt e o sargento Graves, seus rostos sôfregos projetados para a frente, atentos a cada palavra minha. Até o parrudo sargento Woolmer começou a polir mais devagar suas lentes intrincadas.

— O cabelo de Robin Ingleby sempre pareceu um monte de feno — disse eu. — Desgrenhado talvez seja a palavra certa. Pode-se ver nas suas fotos. No entanto, quando ele foi encontrado pendurado no madeiramento da velha forca, seu cabelo estava muito bem penteado, como se ele tivesse acabado de sair da cadeira do barbeiro. Meg capturou isso perfeitamente em seu desenho. Estão vendo?

Houve uma tomada de fôlego geral quando todos se amontoaram por cima da folha do meu caderno.

— Uma coisa que só uma mãe faria — eu disse. — Ela não resistiu. Grace Ingleby queria que seu filho estivesse apresentável quando fosse encontrado, pendurado pelo pescoço, morto no Bosque Gibbet.

— Meu bom Deus! — disse o inspetor Hewitt.


— MEU BOM DEUS! — Exclamou o pai. — Lá é a sede da BBC. Eles instalaram câmeras em Portland Place.

Ele se levantou da cadeira pela enésima vez e atravessou a sala de estar apressadamente para mexer nos botões da televisão.

— Por favor, fique quieto, Haviland — disse tia Felicity. — Se eles estivessem interessados no seu comentário, a BBC teria mandado alguém atrás de você.

Tia Felicity, que mal chegara em casa em Hampstead, voltara às pressas para Buckshaw assim que a ideia surgira em sua cabeça. Ela alugara o televisor para a ocasião (a um custo enorme, ela se apressou a enfatizar), e por causa disso agora desfrutava de poderes ditatoriais vastamente incrementados.

De manhã cedo no dia anterior, os trabalhadores haviam começado a erigir uma antena para a recepção em cima dos baluartes de Buckshaw.

— Ela precisa estar suficientemente alta para captar o sinal da nova torre de transmissão em Sutton Coldfield —, dissera tia Felicity, em uma voz que sugeria que a televisão era uma invenção dela. — Eu queria que todos nós fôssemos a Londres para as exéquias de Porson — continuou ela —, mas quando Lady Burwash deixou escapar que os Sitwell tinham mandado instalar uma televisão... Não, não, não proteste, Haviland. Ela é educativa. Estou fazendo isso pelo bem das meninas.

Vários trabalhadores musculosos usando macacões tinham arrastado o aparelho da traseira de uma camionete de mudança para dentro da sala de estar. E, agora, lá estava ele de tocaia, o seu único olho cinzento a olhar fixamente, como um ciclope tremeluzente, para todos nós, reunidos sob sua luminescência maligna.

Dafi e Felinha estavam juntas, aconchegadas em um sofá, fingindo enfado. O pai convidara o vigário e dissera a elas para tomar cuidado com a linguagem.

A sra. Mullet estava entronizada em uma confortável bergère, e Dogger, que preferia não se sentar na presença do pai, postou-se silenciosamente atrás dela.

— Me pergunto se eles têm televisores em Portland Place — disse Felinha ociosamente —, ou se, em vez disso, ficam olhando para fora pela janela.

Reconheci aquilo imediatamente como uma tentativa de provocar o pai, cujo desprezo pela televisão era legendário.

— A televisão não passa de um traste — ele respondia sempre que implorávamos pela instalação de um receptor. — Se Deus quisesse que imagens fossem mandadas pelo ar, Ele nunca teria nos dado o cinema... Ou a Galeria Nacional — ele acrescentava acidamente.

Mas nesse caso ele tinha sido voto vencido.

— Mas isto é história, Haviland — dissera tia Felicity com uma voz sonora. — Você teria negado às suas filhas a oportunidade de ver Henrique V se dirigir a seus homens no dia de São Crispim?

Ela assumira uma posição no meio da sala de estar.

 

Esta história o homem bom ensinará ao seu filho.

E a festa de Crispim e Crispiano jamais acontecerá,

Deste dia e até o fim do mundo,

Sem que nela sejamos lembrados;

Nós poucos, nós poucos felizes, nós um bando de irmãos...

 

— Bobagens! — disse o pai, mas tia Felicity, como Henrique V, foi em frente, impávida:

 

Pois aquele que hoje derrama seu sangue comigo

Será meu irmão; por mais vil que seja ele,

Este dia abrandará sua condição:

E os gentis homens na Inglaterra que ora dormem

Se acharão malditos por aqui não estarem,

E julgarão sua hombridade desprezível quando alguém falar

Que lutou conosco no dia de São Crispim.

 

— Tudo isso é ótimo, mas eles não tinham televisão em 1415 — disse o pai, mal-humorado e sem entender bem o que ela queria dizer.

Mas então, ontem, aconteceu uma coisa notável. Um dos técnicos, o que estava na sala de estar, atentamente de olho no receptor, começou a gritar instruções pela janela para um colega no gramado, que as transmitiu, com uma voz de sargento-instrutor, para o homem no telhado.

— Pare, Harry! Para trás... para trás... para trás. Não... você a perdeu. Volte para o outro lado...

Naquele exato momento, o pai tinha entrado na sala, planejando, acho eu, manifestar seu escárnio por toda aquela operação, quando seu olhar foi atraído por alguma coisa na tela salpicada de neve.

— Pare! — gritou ele, e sua ordem foi passada adiante em ecos cada vez mais distantes pelos técnicos, para fora da janela e para cima dos baluartes.

— Céus — disse ele. — É a Guiana Inglesa de 1856.

— Volte um pouco! — gritou, agitando as mãos para ilustrar.

Novamente a sua instrução foi transmitida para cima como baldes d’água em uma brigada de incêndio, e a imagem ficou um pouco mais clara.

— Bem como eu pensei — disse ele. — Eu a reconheceria em qualquer lugar. Está indo a leilão. Aumente o som.

Como que por obra do Destino, a BBC estava transmitindo naquele momento um programa sobre filatelia, e um momento depois o pai já tinha puxado uma cadeira, prendido seus óculos com armação de arame na ponta do nariz e se recusava a sair do lugar.

— Silêncio, Felicity! — latiu ele quando ela tentou intervir. — Isto é da maior importância.

E foi assim que o pai permitiu que a Besta-de-Um-Olho-Só se instalasse na sua sala de estar. Pelo menos por enquanto.

E agora, quando se aproximava o momento da inumação de Rupert (uma palavra que eu ouvira Dafi usar para impressionar a sra. Mullet), Dogger se esgueirou para o foyer para receber o vigário, que, apesar de não estar conduzindo o funeral, sentiu uma necessidade profissional de apertar a mão de cada um de nós ao entrar na sala.

— Meu Deus, meu Deus — disse ele. E pensar que o pobre homem expirou bem aqui, em Bishop’s Lacey.

Nem bem ele havia sentado no sofá, a campainha da porta tocou de novo, e alguns momentos depois Dogger retornou com um convidado inesperado.

— O sr. Dieter Schrantz — anunciou ele à porta, assumindo de novo com naturalidade seu papel de mordomo.

Felinha levantou-se em um salto e foi pairando através da sala receber Dieter, mãos estendidas, palmas para baixo, como uma sonâmbula.

Ela estava radiante, a megera!

Rezei para ela tropeçar no tapete.

— Puxe as cortinas, por favor, Dogger — disse o pai, e, quando Dogger obedeceu, a luz desapareceu da sala e nos deixou a todos sentados na penumbra.

Na campo de visão da pequena tela, como eu disse, entrou flutuando o pavimento molhado de Portland Place na frente da sede da BBC, enquanto a voz abafada e solene do locutor assumia a narrativa (poderia ter sido Richard Dimbleby ou talvez apenas alguém que soava como ele):

— E agora, de todos os recantos do reino, vêm as crianças. Foram trazidas aqui hoje por suas mães, e umas poucas, ouso dizer, pelos avós.

“Estão todos aqui em pé, em Portland Place, por horas debaixo de chuva, jovens e velhos, cada qual esperando pacientemente sua vez de dar um último e triste adeus ao homem que cativou seus corações; para prestar as últimas homenagens a Rupert Porson, o gênio que todos os dias, às quatro horas da tarde, os sequestrava de sua vida cotidiana e, como o Flautista de Hamelin, os levava para o seu Reino Mágico.”

Gênio? Bem, isso já era um pouco de exagero. Rupert era um apresentador brilhante; não havia dúvidas quanto a isso. Mas gênio? O homem era um patife, um mulherengo, um valentão, um bruto.

Mas será que isso o desqualificava como gênio? Acho que não. Cérebro e moral não têm nada a ver um com o outro. Eu, por exemplo: muitas vezes as pessoas me acham notavelmente brilhante, no entanto meu cérebro, com muita frequência, fica ocupado em engendrar jeitos novos e interessantes de levar meus inimigos a uma súbita, sufocante, convulsiva e agonizante morte.

Continuo firme na minha crença de que os venenos foram postos no mundo, em primeiro lugar, para ser descobertos e bem utilizados por aqueles que têm a inteligência, mas não necessariamente a força física para...

O veneno! Eu me esquecera completamente daqueles chocolates envenenados!

Será que Felinha os comera? Parecia improvável, pois, se tivesse comido, não estaria aqui sentada nessa calma enlouquecedora enquanto Dieter, como um criador de cavalos admirando sua potranca por cima da cerca de um paddock, contemplava apreciativamente as suas melhores características.

De qualquer modo, o sulfeto de hidrogênio que eu injetara nos chocolates não era suficiente para matar. Uma vez dentro do organismo, partindo-se do princípio que alguém seria suficientemente estúpido para engoli-lo, se oxidaria, transformando-se em sulfato de hidrogênio e, nessa forma, seria eventualmente eliminado na urina.

Seria assim tão criminoso o que eu tinha feito? O dimetilsulfeto era introduzido aos montes nos doces artificialmente aromatizados, e ninguém, até onde eu sabia, tinha sido enforcado por causa disso.

Quando meus olhos se acostumaram com a penumbra da sala de estar, consegui dar uma olhada rápida em volta, perscrutando os rostos iluminados pelo do televisor. A sra. Mullet? Não. Felinha não teria desperdiçado seus chocolates com a sra. Mullet. O pai e Dogger também estavam fora de questão, bem como o vigário.

Havia uma remota possibilidade de que tia Felicity os tivesse devorado, mas, se tivesse, o seu trombetear indignado teria feito até o elefante de Sabu disparar para as colinas.

Portanto, os chocolates ainda deviam estar no quarto de Felinha. Se ao menos eu pudesse sair sorrateiramente, despercebida na semiescuridão...

— Flavia — disse o pai com um aceno na direção da telinha —, eu sei como isto deve estar sendo particularmente difícil para você. Pode sair, se quiser.

Salvação! Aos chocolates envenenados!

Mas espere: se eu caísse fora agora, o que Dieter pensaria de mim? Quanto aos outros, eu não ligava a mínima... bem, talvez um pouco pelo vigário. Mas parecer fraca aos olhos de um homem que realmente fora abatido em chamas...

— Obrigada, pai — eu disse. — Acho que consigo aguentar.

Eu sabia que aquele era o tipo de reação orgulhosa que ele queria, e eu estava certa. Depois de fazer os ruídos paternais requeridos, ele se afundou novamente em sua poltrona com algo parecido com um suspiro.

Um ruído de batráquio veio das profundezas da poltrona no canto, e eu soube na hora que vinha de Dafi.

As câmeras de televisão estavam cortando para dentro do estúdio: um grande estúdio cheio até o teto de flores, e lá, entre elas, jazia Rupert, ou pelo menos o seu caixão: uma peça de mobiliário ornamentada que refletia as luzes da televisão e os enlutados próximos na sua superfície altamente polida, as alças folheadas de prata reluzindo na penumbra.

Agora outra câmera mostrava uma menininha se aproximando do esquife... hesitante... titubeante... forçada para a frente por uma série de empurrões dados pela mãe constrangida. A criança enxugou uma lágrima antes de depositar uma coroa de flores silvestres junto à barreira na frente do caixão.

A cena foi cortada para um close-up de uma mulher adulta chorando.

A seguir, um homem vestido de preto-funeral deu um passo à frente. Ele arrancou três rosas da parede de tributos florais e delicadamente presenteou com cada uma delas: a criança, a mãe e a mulher que chorava. Feito isso, puxou do bolso um grande lenço branco, virou de costas para a câmera e assoou o nariz com uma energia tomada de aflição.

Era Mutt Wilmott! Ele estava fazendo a direção de cena daquilo tudo! Exatamente como dissera que faria. Mutt Wilmott: aos olhos do mundo, um homem alquebrado.

Mesmo em um momento de luto nacional, Mutt estava a postos para providenciar os momentos memoráveis — as imagens inesquecíveis exigidas pela morte. Eu quase fiquei de pé para aplaudir. Eu sabia que as pessoas que testemunharam aquelas simples devoções, ao vivo ou pela televisão, seguiriam falando delas até estarem sentadas um dia sem dentes em um banco de madeira no jardim de um chalé, esperando seu coração parar de bater.

— Mutt Wilmott — prosseguiu a voz de Dimbleby —, produtor do Reino Mágico de Rupert Porson. Soubemos que ele ficou devastado com a notícia da morte do titereiro; que ele foi levado às pressas ao hospital para controlar seus batimentos cardíacos, mas que, a despeito disso e contra as ordens do médico, insistiu em estar aqui hoje para prestar tributo ao seu colega recentemente falecido... muito embora saibamos de boa fonte que uma ambulância está de prontidão, caso seja necessário.

Houve um corte para a imagem transmitida por uma câmera que até agora não tínhamos visto. Fazendo a tomada do alto, como que de cima de uma rotunda, a câmera desceu lentamente para o estúdio — como se aquilo estivesse sendo visto pelos olhos de um anjo vindo dos céus — e se aproximou cada vez mais do caixão até que, bem ao seu pé, se deteve sobre a figura notável de ninguém menos que Snoddy, o Esquilo.

Montado talvez em cima de um suporte de madeira, o boneco, com suas pequenas orelhas de couro, dentes salientes e uma cauda peluda em forma de ponto de interrogação, tinha sido arrumado com todo o cuidado para olhar com expressão triste para o caixão de seu mestre, as patinhas de esquilo reverentemente cruzadas em atitude humilde de oração.

Houve várias ocasiões, e esta era uma delas, em que, como se debaixo do súbito e cegante espoucar da câmera de um repórter fotográfico, eu enxergava tudo. A morte nada mais era que uma simples mascarada. E também, mais ainda, era a Vida! Ambas engenhosamente dirigidas por alguma coisa: algum Mutt Wilmott celestial dos bastidores.

Todos nós éramos marionetes postas em ação no palco por Deus, ou pelo Destino, ou pela Química, chamem como quiserem, e ali éramos movidos pelas mãos enluvadas e manipuladoras dos Rupert Porson e Mutt Wilmott deste mundo. Ou pelas Ophelia e Daphne de Luce.

Eu quis deixar escapar um oba!

Como eu quis que Nialla estivesse aqui para eu poder compartilhar minha descoberta com ela. Afinal, ninguém merecia mais. Mas àquela altura, até onde eu sabia, ela já conduzia a decrépita van Austin pelas ladeiras de alguma montanha galesa a caminho de alguma aldeia onde, com a ajuda de uma Mamãe Gansa improvisada às pressas, ela descarregaria seus caixotes de madeira e, mais tarde, à noite, ergueria as cortinas para os aldeões simplórios em algum distante Salão de São Davi, apresentando sua versão pessoal de João e o pé de feijão.

Depois que Rupert se foi, quem de nós, agora, seria Galligantus?, me perguntei. Quem de nós, agora, seria o monstro que desabaria inesperadamente dos céus para dentro da vida de outras pessoas?

— Homenagens comoventes continuam a se derramar desde a Cornualha até John O’Groats — dizia o locutor —, e do exterior. — Ele fez uma pausa e suspirou levemente, como se estivesse devastado por aquele momento.

“Aqui em Londres, apesar do aguaceiro, a fila continua a aumentar, estendendo-se até a igreja de Todas as Almas e além, para Langham Place. De cima das portas da BBC, as estátuas de Próspero e Ariel olham para as hordas de enlutados, observando, como se elas também compartilhassem do pesar comum.

“Imediatamente após as cerimônias de hoje na sede da BBC” — prosseguiu ele bravamente —, “o caixão de Rupert Porson será levado à estação de Waterloo e de lá seguirá para o local de sepultamento, no cemitério Brookwood, em Surrey.”

A essa altura, até Felinha podia ver que já bastava.

— Chega dessa choradeira inútil! — anunciou ela, atravessando a sala e desligando o interruptor. A imagem na televisão se retraiu até um minúsculo ponto de luz e desapareceu.

— Abra as cortinas, Dafi — ordenou ela, e Dafi pulou sob o seu comando. — Isso é tão cansativo, tudo isso. Um pouco de luz, para variar.

O que ela realmente queria, claro, era poder olhar melhor para Dieter. Vaidosa demais para usar seus óculos, Felinha provavelmente não vira nada do funeral de Rupert além de um borrão aguado. E não seria inútil ser admirada de perto por um pretendente ansioso quando se é incapaz de ver o arrebatamento do dito pretendente?

Não pude deixar de notar que o pai parecia ter deixado passar o modo como o nosso primeiro vislumbre da televisão fora abruptamente encerrado e que ele já se refugiava em seu mundo privado.

Dogger e a sra. Mullet cuidavam discretamente de suas obrigações, deixando apenas tia Felicity para protestar fracamente.

— Com efeito, Ophelia — ela bufou —, você é extremamente ingrata. Eu queria olhar mais de perto as alças do caixão. O filho da minha faxineira, Arnold, trabalha como decorador de cenários na BBC e os seus serviços são especialmente requisitados. Eles lhe dão um guinéu para descobrir alguns acessórios fotogênicos.

— Desculpe, tia Felicity — disse Felinha com ar distraído —, mas os funerais me dão um tremendo arrepio... mesmo na televisão. Simplesmente não suporto assisti-los.

Por um momento, um silêncio pairou no ar, indicando que tia Felicity não tinha sido tão facilmente apaziguada.

— Já sei — disse Felinha com vivacidade. — Deixem-me oferecer chocolate a todos.

E ela foi até a gaveta de uma mesinha auxiliar.

Visões de algum inferno vitoriano começaram a passar pela minha cabeça: cavernas, chamas, abismos ardentes, almas perdidas em fila, como os enlutados do lado de fora da sede da BBC; todos aguardando para ser lançados por um anjo vingador para dentro do fogo e do enxofre derretido.

O enxofre, afinal, era súlfur (símbolo químico S), com cujo dióxido eu recheara os chocolates. Uma vez mordidos, eles iriam... bem, dificilmente valeria a pena pensar nisso.

Felinha já ia em direção ao vigário, rasgando o celofane da caixa de chocolates ancestrais que Ned deixara na soleira da porta; a caixa que eu tão carinhosamente adulterara.

— Vigário? Tia Felicity? — ofereceu ela, removendo a tampa e estendendo a caixa. — Sirvam-se de um chocolate. Os nougats de amêndoas são especialmente interessantes.

Eu não podia deixar aquilo acontecer, mas o que fazer? Era óbvio que Felinha considerara o aviso prévio que eu deixara escapar como um blefe bobo.

Agora o vigário estendia a mão para pegar um bombom, seus dedos pairando acima dos chocolates como se estivessem sobre um tabuleiro Ouija, à espera de que algum espírito o direcionasse para o confeito mais saboroso.

— Eu tenho direito aos nougats de amêndoas! — gritei. — Você prometeu, Felinha!

Me atirei para a frente e arranquei o chocolate dos dedos do vigário, e no mesmo instante consegui tropeçar na beirada do tapete, as minhas mãos descontroladas arrebatando a caixa das mãos de Felinha.

— Sua besta! — gritou Felinha. — Sua bestinha nojenta!

Como nos velhos tempos.

Antes que ela pudesse se refazer do susto, eu já havia pisoteado a caixa e, como um moinho de vento, em uma tentativa desajeitada, porém lindamente coreografada, de recobrar o equilíbrio, esmagara toda aquela meleca grudenta em cima do tapete Axminster.

Dieter, eu notei, tinha um largo sorriso no rosto, como se tudo aquilo fosse uma grande diversão. Felinha também viu, e observei que ela estava dividida entre a atuação de duquesa e a vontade de me estapear na cara.

Enquanto isso, os vapores de sulfeto de hidrogênio, liberados depois de eu ter pisoteado os chocolates, começaram seu trabalho mortífero. A sala foi subitamente tomada pelo cheiro de ovos podres. E que fedentina! Fedia como se um dinossauro tivesse soltado um pum, e me lembro de por um instante ter me perguntado se a sala de estar voltaria um dia a ser o que era.

Tudo isso aconteceu em menos tempo do que leva para contar, e as minhas reflexões em fogo alto foram interrompidas pela voz do pai.

— Flavia — disse ele com aquela voz baixa e neutra que ele usa para expressar sua fúria —, vá para o seu quarto. Agora. — O seu dedo tremia quando ele apontou.

Não adiantava discutir. Com os ombros encurvados, como se eu estivesse caminhando sobre neve funda, me arrastei para a porta.

Com exceção do pai, todos na sala fingiram que nada tinha acontecido. Dieter ajeitava o colarinho, Felinha, empoleirada a seu lado no sofá, ajeitava a saia, e Dafi já estava pegando um desgastado exemplar de As minas do rei Salomão. Até tia Felicity lançava um olhar feroz para um fio solto na manga de seu casaco de tweed, e o vigário, que se afastara discretamente para além da porta-janela, olhava para fora fingindo interesse pelo lago ornamental e pela folly além dele.

A meio caminho para sair da sala, parei e voltei até onde estava meu pai. Eu quase me esquecera de uma coisa. Enfiei a mão no bolso, puxei o envelope com perfurações extras que a srta. Cool me dera e entreguei ao pai.

— É para você. Espero que goste — eu disse. Sem olhar, o pai pegou o envelope da minha mão, o seu dedo trêmulo ainda apontando. Atravessei a sala envergonhada.

Dei uma parada à porta e me voltei.

— Se alguém me procurar — eu disse —, estou lá em cima chorando, no fundo do meu armário.

EU JAZIA MORTA NO PÁTIO DA IGREJA. Uma hora se arrastara desde que os enlutados haviam dado seu último e triste adeus.
Ao meio-dia, bem na hora em que, de outra forma, deveríamos estar sentados à mesa para almoçar, se deu a partida de Buckshaw: meu caixão de jacarandá polido foi levado para fora da sala de estar, lentamente carregado através dos largos degraus de pedra até a entrada de automóveis e deslizado, com uma facilidade de cortar o coração, para dentro do carro funerário que ali aguardava, esmagando sob ele um pequeno buquê de flores silvestres que fora ali colocado com ternura por um dos aldeões enlutados.
Em seguida se deu o longo percurso que desceu a avenida de castanheiros até os Portões Mulford, cujos grifos rampantes desviaram o olhar quando passamos, porém, se foi por tristeza ou indiferença, eu nunca saberia.
Dogger, o devotado ajudante do pai, acompanhava o vagaroso carro funerário a passos calculados, cabeça baixa, a mão pousada de leve no teto, como que para resguardar meus restos mortais contra algo que só ele podia ver. Ao chegar aos portões, um dos agentes funerários mudos finalmente o persuadira, usando a linguagem de sinais, a entrar em um automóvel alugado.
E assim eles me trouxeram à aldeia de Bishop’s Lacey, passando sombriamente pelas mesmas alamedas verdes e sebes empoeiradas por onde eu andara de bicicleta todos os dias enquanto estava viva.
No pátio apinhado da igreja de São Tancredo, eles me tiraram gentilmente do carro funerário e me carregaram a passo de tartaruga enquanto subiam o caminho sob as limeiras. Ali me depositaram por um momento sobre a grama recém-aparada.
Então veio a cerimônia religiosa junto à sepultura escancarada, e havia um genuíno tom de pesar na voz do vigário quando ele pronunciou as palavras tradicionais.


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Foi a primeira vez que ouvi a Ordem para o Ofício da Sepultura daquele ponto de vista. Tínhamos comparecido, junto com o pai, ao funeral do velho sr. Dean, o quitandeiro da aldeia. Seu túmulo, de fato, ficava a apenas poucos metros do lugar onde eu jazia naquele momento. Já havia desmoronado, e dele restava não muito mais que uma depressão retangular na grama que, muito frequentemente, ficava cheia de água de chuva estagnada.

Minha irmã mais velha, Ophelia, disse que o túmulo desmoronou porque o sr. Dean havia ressuscitado e seu corpo não estava mais ali, enquanto Daphne, minha outra irmã, disse que foi porque ele havia mergulhado em uma sepultura mais antiga, cujo ocupante se desintegrara.

Pensei na sopa de ossos abaixo, da qual eu estava prestes a me tornar apenas mais um ingrediente.

Flavia Sabina de Luce, 1939-1950. Eles vão mandar gravar algo simples e de bom gosto na minha lápide de mármore cinzento, sem lugar para falsos sentimentos.

Pena. Se eu tivesse vivido tempo suficiente, teria deixado instruções por escrito, exigindo um toque de Wordsworth:

 

Uma donzela à qual não havia ninguém para louvar

E muito poucos para amar.

 

E se eles se recusassem a aceitar isso, eu teria deixado isto como segunda opção:

 

Por atos cruéis, os corações mais leais

Ao desespero são propensos demais.

 

Somente Felinha, que os tocara e cantara ao piano, reconheceria os versos de O terceiro livro de ares, de Thomas Campion, e ela estaria consumida demais pela culpa para contar a quem quer que fosse.

Meus pensamentos foram interrompidos pela voz do vigário.

— ... terra à terra, cinzas às cinzas, pó ao pó; na esperança segura e certa da Ressurreição para a vida eterna, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo; que mudará o nosso corpo vil...

E de repente eles se foram, deixando-me ali sozinha — sozinha para ouvir os vermes.

E isso é tudo: o fim da linha para a pobre Flavia.

A essa altura, a família já devia estar de volta a Buckshaw, reunida em volta da longa mesa da sala de jantar: o pai, sentado em seu costumeiro silêncio pétreo, Dafi e Felinha se abraçando com rostos apáticos e borrados de lágrimas, enquanto a sra. Mullet, nossa cozinheira, trazia uma travessa com carne assada.

Lembrei-me de algo que Dafi me contara uma vez quando estava devorando A Odisseia: que carne assada, na Grécia antiga, era uma refeição fúnebre tradicional, e respondi que, tendo em vista as artes culinárias da sra. Mullet, pouca coisa mudara em dois mil e quinhentos anos.

Mas agora que eu estava morta, pensei, talvez devesse exercitar um pouco mais a indulgência.

Dogger, é claro, estaria inconsolável. Querido Dogger —mordomo-mais-chofer-mais-valete-mais-jardineiro-mais-administrador da propriedade —, uma pobre alma neurótica de guerra, cujas aptidões fluíam e refluíam como as marés do rio Severn; Dogger, que recentemente salvara a minha vida e se esquecera na manhã seguinte. Eu sentiria uma tremenda saudade dele.

E sentiria saudade do meu laboratório de química. Pensei em todas as horas douradas que havia passado lá, naquela ala abandonada de Buckshaw, jubilosamente sozinha no meio de frascos, retortas, tubos e provetas que borbulhavam alegremente. E pensar que eu nunca mais os veria de novo. Era demais para aguentar.

Ouvi o vento que começava a soprar, sussurrando nos galhos dos teixos acima de mim. Já estava esfriando aqui nas sombras da torre de São Tancredo, e logo escureceria.

Pobre Flavia! Pobre Flavia morta, fria como pedra.

A essa altura, Dafi e Felinha estariam desejando não ter sido tão detestáveis com sua irmãzinha durante seus breves onze anos nesta terra.

Ao pensar nisso, uma lágrima escorreu pelo meu rosto.

Estaria Harriet aguardando para me dar as boas-vindas ao Paraíso?

Harriet era minha mãe, que morrera em um acidente de alpinismo um ano depois do meu nascimento. Será que me reconheceria depois de dez anos? Estaria ainda vestindo os trajes de alpinista que usava quando encontrou seu fim, ou os teria trocado agora por um manto branco?

Bem, o que quer que estivesse usando, eu sabia que seria algo elegante.

Houve um súbito bater de asas: um ruído que reverberou forte na parede de pedra da igreja, amplificado até um volume alarmante pelos vitrais e pelas lápides inclinadas que me cercavam. Gelei.

Seria um anjo ou, mais provável, um arcanjo descendo para levar a preciosa alma de Flavia de volta ao Paraíso? Se eu entreabrisse os olhos, apenas uma fenda mínima, poderia ver através dos cílios, mas só de um modo indefinido.

Não tive essa sorte: era uma das gralhas maltrapilhas que estavam sempre em volta da igreja de São Tancredo. Aquelas tratantes faziam seus ninhos na torre desde que os trabalhadores do século XIII juntaram suas ferramentas e partiram.

Agora a ave idiota pousara desajeitadamente em cima de um dedo de mármore que apontava para o céu e olhava com frieza para mim, a cabeça inclinada para o lado, com seus ridículos e brilhantes olhos de botão.

As gralhas nunca aprendem. Não importava quantas vezes eu lhes pregasse essa peça, elas sempre, mais cedo ou mais tarde, desciam da torre batendo as asas para investigar. Para a mente primitiva de uma gralha, qualquer corpo em posição horizontal num pátio de igreja só poderia ter um significado: comida.

Como eu já fizera diversas vezes, fiquei de pé em um pulo e atirei a pedra que estava escondida entre meus dedos curvados. Errei; mas eu sempre errava.

Com um grasnido desdenhoso, a coisa saltou para o ar e saiu voando para trás da igreja, em direção ao rio.

Agora que eu estava de pé, me dei conta de que sentia fome. É claro! Não tinha comido nada desde cedo. Por um momento, me perguntei vagamente se conseguiria achar algumas sobras de torta ou um pedaço de bolo na cozinha do salão paroquial. A Sociedade Beneficente das Damas de São Tancredo se reunira na noite anterior, e sempre havia uma possibilidade.

Enquanto eu atravessava a grama que me batia nos joelhos, ouvi alguém fungar e, por um momento, pensei que a gralha impertinente voltara para dar a última palavra.

Parei e ouvi.

Nada.

E então ouvi de novo.

Às vezes acho que é uma maldição, às vezes acho que é uma bênção ter herdado a aguçada audição de Harriet, já que sou capaz, como gosto de dizer a Felinha, de ouvir coisas que fariam o cabelo de qualquer um arrepiar. Entre os sons com os quais tenho uma especial sintonia está o de uma pessoa chorando.

Vinha do canto noroeste do pátio da igreja, de algum lugar perto do alpendre de madeira em que o sacristão guardava suas ferramentas de abrir covas. À medida que eu avançava lentamente na ponta dos pés, o som foi ficando mais alto: alguém estava dando uma boa chorada à moda antiga, daquelas que exigem privacidade.

É um fato simples da natureza que, enquanto a maioria dos homens passa direto por uma mulher chorando como se seus olhos estivessem cobertos e seus ouvidos entupidos de areia, nenhuma mulher é capaz de ouvir o som de uma outra sofrendo sem correr instantaneamente para ajudá-la.

Espiei atrás de uma coluna de mármore negro, e lá estava ela, estirada sobre a lápide de uma tumba de pedra calcária, o rosto voltado para baixo, o cabelo vermelho derramado por cima da inscrição desgastada pelo tempo como riachos de sangue. Não fosse pelo cigarro elegantemente alojado entre seus dedos, ela poderia ter sido uma pintura de um pré-rafaelita, como Burne-Jones. Cheguei a odiar me intrometer.

— Olá — eu disse. — Você está bem?

É outro fato simples da natureza que uma pessoa sempre comece uma conversa desse tipo com uma pergunta totalmente idiota. Me arrependi no instante em que a pronunciei.

— Oh! É claro que estou bem — exclamou ela, pondo-se de pé em um pulo e enxugando os olhos. — O que você pretende se aproximando furtivamente de mim desse modo? E quem é você, afinal?

Balançando a cabeça, ela jogou o cabelo para trás e empinou o queixo. Tinha as bochechas salientes e o rosto dramaticamente triangular de uma estrela do cinema mudo, e, pelo modo como exibia os dentes, notei que estava aterrorizada.

— Flavia — eu disse. — Meu nome é Flavia de Luce. Moro aqui perto, em Buckshaw.

Fiz um gesto com o polegar, indicando a direção aproximada.

Ela ainda olhava para mim como se estivesse nas garras de um pesadelo.

— Desculpe — eu disse. — Não queria assustá-la.

Ela endireitou o corpo para mostrar toda a sua altura, que não devia passar de um metro e meio mais uns quatro ou cinco centímetros, e deu um passo em minha direção, como uma versão colérica da Vênus de Botticelli que eu tinha visto uma vez em uma lata de biscoitos Huntley and Palmers.

Fiquei firme no lugar, olhando para o vestido dela. Era de algodão creme estampado, com um corpete franzido e saia rodada, todo recoberto por uma miríade de florzinhas vermelhas, amarelas, azuis e de um laranja-vivo cor de papoula. E, não pude deixar de notar, a barra estava manchada de lama meio seca.

— Qual é o problema? — perguntou ela, dando uma tragada pedante no cigarro. — Nunca viu ninguém famoso?

Famoso? Eu não fazia a menor ideia de quem ela era. Fiquei com um pouco de vontade de lhe dizer que, sem dúvida, eu já tinha visto alguém famoso, e que era Winston Churchill. O pai apontara para ele de dentro de um táxi em Londres. Churchill estava parado na frente do Teatro Savoy com os polegares enganchados nos bolsos do colete, falando com um homem de capa de chuva amarela.

“Bom e velho Winnie”, sussurrara o pai, como se fosse consigo mesmo.

— Oh, de que adianta? — disse a mulher. — Maldito lugar... maldita gente... malditos automóveis! — E começou a chorar de novo.

— Posso fazer alguma coisa para ajudar? — perguntei.

— Oh, vá embora e deixe-me em paz — soluçou ela.

“Muito bem, então”, pensei. Na verdade, pensei mais do que isso, mas como estou tentando ser uma pessoa melhor...

Fiquei lá parada por um momento, me inclinando um pouco para a frente para ver se as lágrimas que caíam de seus olhos estavam reagindo com a superfície porosa da lápide. Lágrimas, eu sabia, eram compostas basicamente de água, cloreto de sódio, manganês e potássio, enquanto a pedra calcária era feita principalmente de calcita, que era solúvel em cloreto de sódio, mas apenas a altas temperaturas. Portanto, a não ser que a temperatura no pátio da igreja de São Tancredo subisse de repente em várias centenas de graus, parecia improvável que alguma coisa quimicamente interessante fosse acontecer ali.

Me virei e fui andando.

— Flavia...

Olhei para trás. Ela estava estendendo a mão para mim.

— Me desculpe — disse ela. — É que hoje foi um maldito dia horrível.

Parei; depois voltei devagar, desconfiada, enquanto ela enxugava os olhos com as costas da mão.

— Rupert estava com um humor detestável, mesmo antes de sairmos de Stoatmoor esta manhã. Infelizmente tivemos uma briga e tanto, e então houve todo aquele problema com a van. Foi simplesmente a última gota. Ele saiu para procurar alguém que a consertasse, e eu... bem, aqui estou.

— Gosto do seu cabelo vermelho — eu disse. Ela o tocou imediatamente e sorriu, como eu, de certo modo, esperava.

— Folhagem de cenoura, é como costumavam me chamar quando eu tinha a sua idade. Folhagem de cenoura! Imagine só!

— A folhagem das cenouras é verde — disse eu. — Quem é Rupert?

— Quem é Rupert? — repetiu ela. — Você está brincando!

Ela apontou com o dedo, e me virei para olhar: estacionada na esquina do pátio da igreja havia uma van deteriorada, uma Austin Eight. Na lateral, em chamativas letras douradas de circo, ainda legíveis através de uma camada espessa de lama e pó, liam-se as palavras marionetes de porson.

— Rupert Porson — disse ela. — Todo mundo conhece Rupert Porson. Snoddy, o Esquilo. O Reino Mágico. Você não viu na televisão?

Snoddy, o Esquilo? O Reino Mágico?

— Nós não temos televisão em Buckshaw — eu disse. — O pai diz que é uma invenção desprezível.

— O pai é um homem inusitadamente sábio — disse ela. — O pai é sem dúvida...

Foi interrompida pelo matraquear metálico de um protetor de corrente solto quando o vigário apareceu no canto da igreja, cambaleando em sua bicicleta. Ele desmontou e encostou sua surrada Raleigh na lápide mais próxima. Enquanto vinha andando em nossa direção, refleti que o clérigo Denwyn Richardson não era, para ninguém, a imagem de um vigário típico de aldeia. Ele era grande, simples, de boa índole e cordial, e se tivesse tatuagens poderia ser confundido com o capitão de um daqueles navios mercantes a vapor enferrujados e sem rota determinada, que se arrastam penosamente de um porto banhado de sol a outro em qualquer dos nauseabundos postos avançados que ainda restam do Império Britânico.

Sua batina preta estava manchada e raiada de poeira argilosa, como se ele tivesse caído da bicicleta.

— Droga! — disse quando me avistou. — Perdi a presilha da calça e estraçalhei a bainha. — E então, sacudindo o pó enquanto se aproximava de nós, acrescentou: — Cynthia vai comer o meu fígado.

Os olhos da mulher se arregalaram, e ela deu uma olhadela rápida para mim.

— Recentemente ela começou a rabiscar as minhas iniciais em meus pertences com uma agulha — disse ele —, mas isso não me impediu de perder as coisas. Na semana passada foram as folhas de estêncil para o boletim da paróquia, na semana anterior uma maçaneta de latão da sacristia. Realmente é de enlouquecer... — Ele acrescentou: — Olá, Flávia. É sempre... É sempre bom vê-la na igreja.

— Esse é o nosso vigário, o clérigo Richardson — eu disse à mulher ruiva. — Talvez ele possa ajudar.

— Apenas Denwyn — disse o vigário, estendendo a mão para a estranha. — Desde a guerra não somos mais de muita cerimônia.

A mulher esticou dois ou três dedos e tocou a palma dele, mas não disse nada. Quando ela estendeu a mão, a manga curta de seu vestido subiu, e tive um rápido vislumbre de uma feia mancha roxa na parte superior do braço dela. Ela a cobriu depressa com a mão esquerda, enquanto puxava o tecido para baixo a fim de escondê-la.

— E como eu poderia ajudar? — perguntou o vigário, fazendo um gesto em direção à van. — Não é sempre que nós, no nosso bucólico fim de mundo, somos solicitados a prestar serviços a tão augusta gente do teatro.

Ela sorriu bravamente.

— A nossa van quebrou, ou coisa que o valha. Algo a ver com o carburador. Se tivesse sido um defeito elétrico, tenho certeza de que Rupert teria consertado num piscar de olhos, mas infelizmente o sistema de combustível está além da capacidade dele.

— Meu bom Deus! — disse o vigário. — Mas tenho certeza de que Bert Archer, da oficina, poderá deixá-lo em ordem para você. Posso telefonar para ele, se quiser.

— Oh, não! — disse depressa a mulher, talvez depressa demais. — Nós não queremos causar nenhum incômodo. Rupert foi até a rua principal. Provavelmente já encontrou alguém.

— Se tivesse encontrado, a essa altura ele já teria voltado — disse o vigário. — Deixe-me ligar para Bert. De vez em quando ele vai tirar uma soneca em casa à tarde. Ele não é mais tão jovem, sabe. Na verdade, nenhum de nós é. Ainda assim, a minha máxima predileta quando se lida com mecânica de motores, mesmo quando eles são dóceis, é: Ter a bênção da Igreja nunca faz mal a ninguém.

— Oh, não, não se preocupe. Tenho certeza de que tudo dará certo.

— Bobagem — disse o vigário, já se afastando por entre a floresta de pedras tumulares e seguindo a toda a velocidade para o presbitério. — Não é incômodo nenhum. Volto num instante.

— Vigário! — chamou a mulher. — Por favor...

Ele congelou o passo e voltou relutante em nossa direção.

— É só que... entenda, nós...

— Já sei! É uma questão de dinheiro — disse o vigário.

Ela assentiu com ar triste, a cabeça baixa, o cabelo caindo em cascata por cima do rosto.

— Tenho certeza de que poderemos dar um jeito — disse o vigário. — Ah! Aí vem o seu marido.

Um homenzinho com a cabeça exageradamente grande e andar trôpego caminhava pesadamente em nossa direção através do pátio, a perna direita jogando para o lado a cada passo, em um largo e desajeitado semicírculo. Quando ele se aproximou, vi que sua panturrilha estava presa a um pesado aparelho ortopédico de ferro.

Aparentava ter cerca de quarenta anos, mas era difícil saber.

Apesar de seu tamanho diminuto, seu peito em forma de barril e seus braços poderosos pareciam prestes a explodir para fora do terno de linho listrado. Em contraste, a perna direita era patética: pelo modo como a calça grudava e pendia inutilmente em volta do que estava por baixo, vi que era pouco mais que um palito de fósforo. Com sua cabeça enorme, ele no mínimo me dava a impressão de um polvo gigante andando com arrogância sobre tentáculos desiguais pelo pátio da igreja.

Ele deu uma parada brusca e ergueu, respeitoso, um boné de chofer de aba chata, revelando uma cabeleira loira desgrenhada que combinava precisamente com seu cavanhaque à Van Dyke.

— Rupert Porson, presumo? — disse o vigário, cumprimentando o recém-chegado com um cordial-vigoroso-seja-bem-vindo-camarada aperto de mão. — Eu sou Denwyn Richardson, e esta é a minha jovem amiga Flavia de Luce.

Porson inclinou a cabeça para mim e lançou uma rápida, quase invisível, olhada sombria para a mulher, antes de abrir um luminoso sorriso de holofote.

— Um probleminha com o motor, ao que parece — prosseguiu o vigário. — Muito irritante. Ainda assim, se ele trouxe o criador de O Reino Mágico e Snoddy, o Esquilo para o nosso meio... bem, isso apenas prova o velho adágio, não é mesmo?

Ele não disse a que velho adágio se referia, e ninguém se deu ao trabalho de perguntar.

— Eu ia comentar com a sua boa esposa — disse o vigário — que a igreja de São Tancredo ficaria realmente honrada se você não visse obstáculo em apresentar um pequeno show no salão paroquial enquanto sua van está sendo consertada. Estou ciente, é claro, do quanto você é solicitado, mas eu seria negligente se não fizesse ao menos uma tentativa em benefício das crianças e, sim, também dos adultos de Bishop’s Lacey! É bom, de quando em quando, permitir que as crianças lancem um ataque aos seus cofrinhos por uma causa cultural meritória, não concorda?

— Bem, vigário — disse Porson com voz melosa (cheia demais, vibrante demais, doce demais, pensei, para um homem tão diminuto) —, nós de fato temos uma agenda bastante apertada. A nossa excursão tem sido exaustiva, entenda, e Londres exige que...

— Eu entendo — disse o vigário.

— Mas — acrescentou Porson erguendo um indicador dramático — nada nos dará maior prazer do que obter a permissão de cantar em troca do nosso jantar, por assim dizer. Não é mesmo, Nialla? Como nos velhos tempos. — A mulher assentiu, mas não disse nada. Seu olhar estava fixo nas colinas distantes.

— Muito bem. Então — disse o vigário, esfregando as mãos vigorosamente, como se estivesse acendendo fogo — está tudo combinado. Venha comigo e vou mostrar-lhe o salão. Está um tanto deteriorado, mas tem um palco, e dizem que a acústica é extraordinária.

Com isso os dois homens desapareceram por trás da igreja.

Por um momento, pareceu que não havia nada a dizer. E então a mulher falou:

— Você por acaso não teria um cigarro, teria? Estou louca por uma tragada.

Sacudi a cabeça de um jeito meio idiota.

— Humm — balbuciou ela. — Você parece o tipo de criança que poderia ter.

Pela primeira vez na vida, fiquei sem fala.

— Eu não fumo — consegui dizer.

— E por quê? — perguntou ela. — Jovem demais ou sensata demais?

— Eu estava pensando em começar na semana que vem — eu disse debilmente. — Na verdade, ainda não consegui.

Ela jogou a cabeça para trás e riu cheia de dentes, como uma estrela de cinema.

— Gosto de você, Flavia de Luce — disse ela. — Mas estou levando vantagem, não é? Você me disse o seu nome, mas eu ainda não disse o meu.

— É Nialla — eu disse. — O sr. Porson chamou você de Nialla.

— É verdade — concordou, com uma expressão sombria. — Mas você pode me chamar de Mamãe Gansa.


MAMÃE GANSA!

Eu nunca dei a mínima para os comentários frívolos das pessoas e, em particular, não dou a mínima para eles quando vêm de um adulto. Segundo a minha experiência, esse tipo de gracejo na boca de alguém com idade suficiente para saber das coisas frequentemente não passa de camuflagem para algo muito, muito pior. No entanto, me vi engolindo a resposta sarcástica (e deliciosamente ferina!) que já estava na ponta da língua e, em vez disso, consegui dar um sorriso aguado.

— Mamãe Gansa? — repeti, demonstrando dúvida.

Ela explodiu em lágrimas de novo, e fiquei feliz por ter segurado a língua. Eu estava prestes a ser recompensada com algo suculento.

Além disso, eu já começara a detectar uma ligeira e invisível atração entre mim e aquela mulher. Seria compaixão? Ou medo? Eu não sabia. Sabia apenas que alguma substância química entranhada em uma de nós clamava pelo seu há muito perdido complemento (ou antídoto?) na outra.

Pousei a mão gentilmente no ombro dela e lhe estendi meu lenço. Ela olhou para ele hesitante.

— Está limpo — eu disse. — São apenas manchas de grama.

Isso a fez dar início a uma notável contorção. Enterrou o rosto no lenço, e seus ombros sacudiram tão violentamente que por um momento pensei que ia se desfazer em pedaços. A fim de conceder-lhe algum tempo para se refazer (e por eu ter ficado um tanto embaraçada com sua explosão), me afastei um pouco para examinar a inscrição em uma lápide alta e desgastada pelo tempo que marcava o túmulo de uma certa Lydia Green, cujo “passamento” se dera em 1638 com a idade de “cento e trinta e cinco annos”.

Ella era Green outrora, todavia branca ora se tornou, estava escrito na pedra, e foi chorada por uns poucos amigos.

Se Lydia estivesse viva, refleti, teria agora quatrocentos e quarenta e sete anos e seria provavelmente uma pessoa que valeria a pena conhecer.

— Oh, sinto-me tão estúpida!

Voltei-me e vi a mulher enxugando os olhos e me dirigindo um sorriso desanimado.

— Eu sou Nialla — disse, estendendo a mão. — Assistente de Rupert.

Lutei contra minha repugnância e dei uma sacudida rápida como um relâmpago em seus dedos. Como eu suspeitava, a mão dela estava molhada e grudenta. Assim que foi possível, escondi com toda a discrição a mão atrás das costas e enxuguei-a na saia.

— Assistente? — A palavra escapou da minha boca antes que eu pudesse impedir.

— Oh, eu sei que o vigário entendeu que sou a mulher de Rupert. Mas não é isso. Sinceramente! Não é nada disso.

Sem querer, dei uma olhada na van das “Marionetes de Porson”. Ela percebeu na hora.

— Bem, sim... nós realmente viajamos juntos. Suponho que Rupert e eu tenhamos o que você poderia chamar de... uma afeição mútua muito grande. Mas marido e mulher...?

Que tipo de idiota ela achava que eu era? Não fazia mais de uma semana que Dafi estivera lendo Oliver Twist em voz alta para mim e Felinha, e tão certo quanto sei meu próprio nome eu sabia que aquela mulher, Nialla, era a Nancy do Bill Sikes de Rupert Porson. Será que ela não percebera que eu tinha visto aquele enorme e obsceno hematoma em seu braço?

— Na verdade, é tão divertido sacolejar pela Inglaterra com Rupert... Ele é reconhecido em qualquer lugar, sabe? Anteontem mesmo, por exemplo, estávamos atuando em Market Selby quando fomos vistos no Correio por uma senhora gorda que usava um chapéu que mais parecia um vaso de flores. “Rupert Porson!”, ela guinchou. “Rupert Porson usa o Correio Real como todo mundo!” — Nialla riu. — E então ela pediu um autógrafo. Eles sempre pedem, sabe? Insistiu para que ele escrevesse “Com amor, de Snoddy, o Esquilo”. Sempre que faz isso, ele desenha duas pequenas nozes. Ela disse que era para o seu sobrinho, mas eu sei das coisas. Depois que você passa muito tempo na estrada, desenvolve certa percepção para isso. Sempre dá para notar.

Ela continuou tagarelando. Se eu continuasse em silêncio, em menos de um minuto ela me confidenciaria o número de sua calcinha.

— Alguém na BBC contou a Rupert que vinte e três por cento da audiência dele era de donas de casa sem filhos. Parece muito, não é? Mas há alguma coisa em O Reino Mágico que satisfaz o desejo de fuga da realidade inato nas pessoas. Foi exatamente isso que ele disse a Rupert, “o desejo de fuga da realidade inato nas pessoas”. Todo mundo precisa fugir da realidade, não é mesmo? De um jeito ou de outro, quero dizer.

— Todo mundo, menos a Mamãe Gansa — eu disse.

Ela riu.

— Olhe, eu não estava querendo fazer você de boba. Eu sou a Mamãe Gansa. Ao menos quando visto a minha fantasia. Espere só até você ver: um chapéu alto de bruxa com aba mole e uma fivela de prata, uma peruca cinzenta com cachinhos compridos pendurados, e um enorme vestido bufante que parece ter pertencido a Mãe Shipton. Você sabe quem foi a Mãe Shipton?

É claro que eu sabia. Sabia que era uma bruxa velha que supostamente vivera no século XVI e adivinhava o futuro, prevendo, entre outras coisas, a Grande Praga, o Grande Incêndio de Londres, aviões, encouraçados, e que o mundo acabaria em 1881; como as de Nostradamus, as profecias da Mãe Shipton foram escritas em versos de pé quebrado: “Fogo e água prodígios farão” e coisas assim. Também sabia que na verdade hoje em dia ainda existem por aí pessoas que acreditam que ela previu o uso de água pesada na produção da bomba atômica. Quanto a mim, não acredito numa só palavra disso tudo. Não passa de um amontoado de besteiras.

— Já ouvi o nome — disse eu.

— Bem, não importa. É com ela que eu me pareço quando estou fantasiada para o espetáculo.

— Genial — eu disse sem querer dizer isso. Ela percebeu que eu estava um pouco desapontada.

— O que uma boa menina como você está fazendo em um lugar como este? — perguntou com um sorriso zombeteiro, abarcando todo o pátio da igreja com um gesto.

— Eu venho aqui frequentemente para pensar.

Isso pareceu diverti-la. Ela fez um beicinho e assumiu uma irritante voz de palco.

— E no que Flavia de Luce fica pensando, em seu velho e pitoresco pátio de igreja do interior?

— Em ficar sozinha — disparei, sem querer ser grosseira. Eu estava simplesmente dizendo a verdade.

— Em ficar sozinha... — repetiu, balançando a cabeça. Notei que ela não tinha se aborrecido com a minha resposta ríspida. — Há muito a ser dito sobre estar sozinha. Mas você e eu sabemos que estar sozinha e estar solitária não são de todo a mesma coisa, não é, Flávia?

Me animei um pouco. Ali estava alguém que parecia pelo menos ter pensado algumas coisas que eu mesma pensava.

— Não, não são — admiti.

Houve um longo silêncio.

— Conte-me sobre a sua família — disse Nialla afinal, mansamente.

— Não há muito o que contar — respondi. — Tenho duas irmãs, Ophelia e Daphne. Felinha tem dezessete anos, e Dafi, treze. Felinha toca piano, e Dafi lê. O pai é um filatelista. Ele é devotado a seus selos.

— E a sua mãe?

— Morta. Morreu em um acidente quando eu tinha um ano.

— Meu bom Deus! — disse ela. — Alguém me contou sobre uma família que vivia em uma grande e velha mansão decadente não muito longe daqui: um coronel excêntrico e uma família de meninas vivendo selvagens, como um bando de peles-vermelhas. Você não é uma delas, é?

Ela viu imediatamente pela minha expressão que eu era.— Oh, pobrezinha! Me desculpe, eu não queria... quero dizer...

— Tudo bem — tranquilizei-a. — Na verdade é muito pior do que isso, mas não gosto de falar no assunto.

Notei uma expressão distante surgir em seus olhos: a expressão de um adulto debatendo-se desesperadamente para encontrar um denominador comum com alguém mais jovem.

— Mas o que você faz de sua vida? — perguntou ela. — Não tem interesses... ou passatempos?

— Sou boa em química — eu respondi. — E gosto de montar álbuns de recortes.

— Verdade? — entusiasmou-se Nialla. — Ora vejam! Eu também, quando tinha a sua idade. Figurinhas de cigarros e flores prensadas: amores-perfeitos, resedás, dedaleiras, delfínios; botões velhos, cartões de Dia dos Namorados, poemas sobre a roca da vovó do Anuário das meninas... que boa e alegre diversão era aquilo!

Os meus álbuns consistiam de três gordos volumes roxos de recortes recolhidos da maré de revistas e jornais velhos que haviam transbordado e depois inundado a biblioteca e a sala de estar de Buckshaw, derramando-se para dentro dos quartos de dormir vazios e dos quartos de despejo antes de serem por fim levados embora para se decompor em pilhas úmidas e mofadas numa cripta no sótão. Daquelas páginas eu recortara cuidadosamente tudo o que consegui encontrar sobre venenos e envenenadores, até as costuras dos meus álbuns estourarem com tipos como o major Herbert Rowse Armstrong, o advogado e jardineiro amador que despachou a esposa com poções amorosamente preparadas à base de herbicida arsenioso; o major Thomas Neill Cream, Hawley Harvey Crippen e George Chapman (não é notável que o sobrenome de muitos dos maiores envenenadores comece com a letra C?), os quais, com estricnina, escopolamina e antimônio, respectivamente, mandaram um verdadeiro exército de esposas e outras mulheres para o túmulo; Mary Ann Cotton (eu não disse?), que, depois de diversas experiências bem-sucedidas com porcos, seguiu em frente e envenenou dezessete pessoas com arsênico; Daisy de Melker, a sul-africana que tinha paixão por envenenar encanadores: primeiro se casava com eles, depois se divorciava com uma dose de estricnina.

— Montar um álbum de recortes é o passatempo perfeito para uma jovem dama — dizia Nialla —, requintado... e além do mais, educativo. — Exatamente o que eu pensava. — Mamãe jogou o meu no lixo quando fugi de casa — disse ela com algo que poderia ser uma risadinha de escárnio.

— Você fugiu de casa? — perguntei.

Esse fato me intrigou quase tanto quanto as dedaleiras venenosas dela, das quais, lembrei-me, se podia extrair o alcaloide vegetal digitalina (mais conhecido entre os que se dedicam à química como C36H56O14). Por um momento, pensei com prazer nas diversas vezes em que, em meu laboratório, eu exaurira com álcool as folhas de dedaleira arrancadas da horta observando as agulhas brilhantes se cristalizar e a adorável solução verde-esmeralda que se formava quando eu as dissolvia em ácido hidroclorídrico e acrescentava água. A resina que se precipitava podia, é claro, ser restaurada ao seu matiz verde original com ácido sulfúrico, transformado em vermelho-claro com vapor de bromo, e de volta ao verde-esmeralda com a adição de água. Era mágico! E também era, claro, um veneno letal, portanto mais fascinante que botões idiotas e o Anuário das meninas.

— Hum — disse ela. — Cansei de lavar, secar, varrer e espanar, e de ouvir as pessoas vomitando na casa ao lado; cansei de ficar deitada na cama à noite, ouvindo o estrépito do cavalo do príncipe nas pedras do calçamento. — Abri um sorriso. — Rupert mudou tudo isso, é claro. “Venha comigo para o Portal de Diarbekir”, ele me disse. “Venha para o Oriente, e farei de você uma princesa vestida com sedas transparentes e diamantes do tamanho de repolhos.”

— Ele disse isso?

— Não. O que ele disse na verdade foi: “A minha maldita assistente me abandonou. Venha comigo para Lyme Regis no fim de semana, e lhe darei um guinéu, seis refeições completas e um saco para dormir. Vou lhe ensinar a arte da manipulação” — ele ofereceu, e eu fui tola o bastante para achar que ele estava falando de marionetes.

Antes que eu tivesse tempo de perguntar detalhes, ela já havia se levantado em um pulo e sacudido o pó da saia.

— Por falar em Rupert — disse —, é melhor entrarmos para ver como ele e o vigário estão se entendendo. Está tudo macabramente silencioso no salão paroquial. Você imagina que eles já assassinaram um ao outro?

Seu vestido florido farfalhou graciosamente por entre as lápides, e eu fui deixada para trotar como um cachorrinho atrás dela.


Lá dentro, encontramos o vigário de pé no meio do salão; Rupert estava em cima do palco, bem no centro, com as mãos nos quadris. Se ele tivesse sido chamado à cena para os aplausos no teatro Old Vic, a iluminação não poderia ter sido mais dramática. Como que enviado pelo destino, um raio de sol inesperado brilhava através de um vitral no fundo do salão, concentrando seu facho dourado bem no centro do rosto voltado para cima de Rupert. Ele fez uma pose e começou a declamar Shakespeare:

 

Quando minha amada jura que é feita de verdades,

Nela creio, porém sei que mente,

Que pode achar-me um jovem inculto,

Ignorante das falsas sutilezas do mundo.

Pensando em vão que ela me acha jovem,

Sabendo embora que meus melhores dias são passados,

Simplesmente credito isso à sua falsa língua:

Assim dos dois lados é suprimida a verdade simples.

 

Como o vigário mencionara, a acústica do salão era mesmo notável. Os construtores vitorianos haviam feito seu interior como uma concha de painéis curvos de madeira polida que servia de caixa de ressonância para o mais leve ruído: era como estar dentro de um violino Stradivarius. A voz quente e doce de Rupert estava por toda parte, envolvendo-nos em seu rico ressoar.

 

Mas por que razão não se diz ela injusta?

E por que razão não me reconheço velho?

Oh! é costume do amor fingir sinceridade,

E no amor a idade não quer seus anos revelados:

Portanto minto a ela e ela a mim,

E em nossas faltas com mentiras nos enaltecemos.

 

— Pode ouvir-me agora, vigário?

O encanto foi quebrado instantaneamente. Foi como se Laurence Olivier tivesse bradado “Alô! Alô! Testando... um... dois... três...” no meio de “Ser ou não ser”.

— Magnífico! — exclamou o vigário.

O que mais me surpreendeu no discurso de Rupert foi que eu sabia o que ele estava dizendo. Devido à pausa quase imperceptível no final de cada verso, e ao modo singular como ele ilustrava as sutilezas do significado com seus longos dedos brancos, eu entendi as palavras. Todas elas.

Como se elas tivessem sido absorvidas através dos meus poros por osmose, eu soube no momento em que elas foram lançadas sobre mim que estava ouvindo as amargas palavras de um velho à amada muito mais jovem do que ele.

Olhei de relance para Nialla. Ela estava com a mão na garganta.

No silêncio incômodo que se seguiu, o vigário ficou completamente imóvel, como que entalhado em mármore preto e branco.

Eu testemunhava uma situação que nem todos os presentes entendiam.

— Bravo! Bravo! — As mãos em concha do vigário repentinamente bateram uma na outra em uma série de trovões reverberantes. — Bravo! Soneto cento e trinta e oito, a não ser que eu esteja redondamente enganado. E, se eu puder oferecer a minha humilde opinião, talvez nunca antes declamado de maneira tão bela.

Rupert, sem dúvida, se envaideceu.

Do lado de fora, o sol se escondeu atrás de uma nuvem. Seu raio dourado desvaneceu-se num instante, e depois que ele se foi nos transformamos outra vez em apenas quatro pessoas comuns em um salão sombrio e empoeirado.

— Esplêndido — disse Rupert. — O salão vai servir muito bem.

Ele atravessou o palco coxeando e começou a descer, desajeitado, os degraus estreitos, os dedos de uma das mãos estendidos em direção à parede para se apoiar.

— Cuidado! — disse Nialla, dando um passo rápido na direção de Rupert.

— Para trás! — disparou ele com olhar feroz. — Posso me arranjar sozinho.

Ela parou bruscamente, como se tivesse sido esbofeteada.

— Nialla pensa que sou seu filho — disse ele, rindo e tentando fazer piada.

Pelo olhar assassino de Nialla, vi que ela não pensava nada daquilo.


— MUITO BEM, ENTÃO! — DISSE O VIGÁRIO COM VIVACIDADE, esfregando as mãos como se o momento não tivesse acontecido. — Está combinado. Por onde começamos? — Olhou impaciente de um para outro.

— Descarregando a van, imagino — disse Rupert. — Podemos deixar as coisas aqui até a hora do espetáculo?

— Ah, claro, claro — disse o vigário. — O salão paroquial é tão seguro quanto as casas. Talvez até um pouco mais.

— Depois alguém vai precisar dar uma olhada na van... e vamos querer um lugar para nos hospedar por alguns dias.

— Deixem esse departamento comigo — disse o vigário. — Estou certo de que consigo alguma coisa. Agora, então, vamos arregaçar as mangas e mãos à obra. Venha também, Flavia querida. Com certeza encontraremos alguma coisa adequada para os seus talentos especiais.

Alguma coisa adequada para os meus talentos especiais? De algum modo, eu duvidava disso. A não ser que o assunto fosse envenenamento criminoso, que era o meu principal deleite.

Mas como naquele momento eu ainda não estava disposta a ir para casa em Buckshaw, grudei no rosto meu melhor sorriso de escoteira (aposentada) para o vigário e o segui, juntamente com Rupert e Nialla, para o pátio da igreja.

Quando Rupert abriu as portas traseiras da van, tive meu primeiro vislumbre da vida de um artista itinerante. O interior escuro da van estava lindamente equipado com fileiras e mais fileiras de gavetas envernizadas, cada qual firmemente alojada em cima, ao lado e embaixo de suas vizinhas, de modo muito semelhante a caixas de sapatos em uma oficina de sapateiro bem administrada, em que cada gaveta desliza com perfeição para dentro e para fora em seu trilho. No piso da van estavam empilhadas as caixas maiores (caixotes de expedição, na verdade), com alças de corda nas duas extremidades para facilitar a remoção e arrastá-las para o local a que estivessem destinadas.

— Rupert fez tudo isso sozinho — disse Nialla, orgulhosa. — As gavetas, o palco desmontável, o equipamento de iluminação... construiu os refletores com latas velhas de tinta, não é, Rupert?

Rupert assentiu com um ar ausente, enquanto arrastava para fora do carro um fardo de tubos de ferro.

— E isso não é tudo. Ele cortou os cabos, fez os objetos de cena, pintou o cenário, esculpiu os bonecos... tudo, exceto aquilo, é claro.

Ela apontava para uma volumosa caixa preta com alça de couro e perfurações nas laterais.

— O que há lá dentro? Um animal?

Nialla riu.

— Melhor do que isso. É o orgulho e a alegria de Rupert: um gravador magnético. Encomendou dos Estados Unidos. Custou um bom dinheiro, posso garantir. Ainda assim, é mais barato do que contratar a orquestra da BBC para tocar música incidental!

Rupert já começara a puxar as caixas para fora da Austin, grunhindo enquanto trabalhava. Seus braços eram como guindastes das docas, erguendo e virando, erguendo e virando, até que afinal quase tudo estava empilhado na grama.

— Deixe eu dar uma mãozinha — disse o vigário, agarrando uma alça de corda na ponta de um baú preto em forma de caixão com a palavra “Galligantus” gravada com estêncil em letras brancas, enquanto Rupert segurava a outra ponta.

Nialla e eu fizemos algumas viagens para transportar os objetos mais leves, e em meia hora estava tudo empilhado dentro do salão paroquial na frente do palco.

— Muito bem! — disse o vigário, sacudindo o pó das mangas do casaco. — Muito bem mesmo. E agora, sábado seria adequado? Para o espetáculo, quero dizer? Vejamos... hoje é quinta-feira... isso lhe daria um dia a mais para se preparar, bem como tempo para mandar consertar a sua van.

— Me parece bom — disse Rupert. Nialla assentiu, embora não lhe tivessem perguntado nada.

— Que seja sábado, então. Vou pedir a Cynthia que imprima panfletos no mimeógrafo. Ela poderá distribuí-los pelas lojas amanhã... colar alguns em locais estratégicos. Cynthia é muito competente para essas coisas.

“Competente” não estava entre as muitas palavras que me vêm à mente para descrever Cynthia Richardson; “ogra”, no entanto, estava.

Afinal, havia sido Cynthia, com suas feições de roedor, que me pegara uma vez me equilibrando em cima do altar de São Tancredo, usando uma das navalhas do pai para raspar uma amostra de safra azul de um vitral medieval. A safra é uma base impura de arseniato de cobalto, preparada por torrefação, que os artesãos da Idade Média usavam para pintar sobre vidro, e eu estava simplesmente morrendo de vontade de analisar a substância no meu laboratório para determinar o quanto seus produtores tinham tido sucesso em deixá-la livre de ferro.

Cynthia me agarrara, me virara ao contrário e me espancara ali mesmo, fazendo o que considerei uso injusto de um exemplar de Hinos – antigos e modernos (edição clássica) que estava por perto.

“O que você fez, Flavia, não merece congratulações”, disse o pai quando relatei aquele ultraje para ele. “Você arruinou uma navalha Thiers-Issard de lâmina côncava perfeita.”

Tenho de admitir, no entanto, que Cynthia era uma excelente organizadora, mas os homens com chicotes que cuidaram da construção das pirâmides também eram. Se alguém conseguisse emporcalhar Bishop’s Lacey de ponta a ponta com panfletos em três dias, com certeza seria Cynthia Richardson.

— Espere! — exclamou o vigário. — Acabo de ter uma ideia esplêndida! Diga-me o que acha. Por que você não apresenta dois espetáculos em vez de um? Não tenho a intenção de ser um especialista na arte do teatro de marionetes, absolutamente, saber o que é possível e o que não é, e assim por diante, mas por que não apresenta um espetáculo no sábado à tarde, para as crianças, e outro no sábado à noite, quando a maioria dos adultos estará livre para comparecer?

Rupert não respondeu de imediato, mas ficou esfregando o queixo enquanto ponderava. Até eu concluí na hora que dois espetáculos dobrariam a arrecadação da bilheteria.

— Bem... — disse ele afinal. — Acho que sim. Mas teria de ser o mesmo espetáculo...

— Esplêndido! — disse o vigário. — Então o que vai ser... isto é, o programa?

— Abertura com uma breve peça musical — disse Rupert. — É uma nova na qual estive trabalhando. Ninguém viu ainda, portanto seria uma boa ocasião para testá-la. Então, João e o pé de feijão. Eles sempre clamam por ela, tanto os jovens como os adultos. É um clássico. Muito popular.

— Excelente! — disse o vigário. Ele puxou uma folha de papel e um toco de lápis de um bolso interno e rabiscou algumas notas.

— Que tal isto? — perguntou com um floreio final, e depois, com ar satisfeito, leu em voz alta o que havia escrito:

 

Diretamente de Londres!

 

— Espero que vocês me perdoem a pequena mentira e o ponto de exclamação — sussurrou para Nialla.

 

as Marionetes de Porson

(Manipuladas pelo aclamado Rupert Porson. Como visto na BBC Televisão)

 

Programa

I. Interlúdio musical

II. João e o pé de feijão

(O primeiro sendo apresentado pela primeira vez em qualquer palco; o último, declarado universalmente popular entre velhos e jovens)


Sábado, 22 de julho de 1950, no salão paroquial de São Tancredo, Bishop’s Lacey

Apresentações às 14h e às 19h em ponto!

 

— Do contrário, eles virão se arrastando aos poucos — acrescentou. — Vou mandar Cynthia fazer um desenho de uma pequena figura articulada com fios em cima. Ela é uma artista extremamente talentosa, sabem, mas não teve tantas oportunidades de se expressar quanto gostaria. Oh, Deus, receio estar divagando. É melhor eu cuidar dos meus compromissos telefônicos.

E depois de dizer isso, ele se foi.

— Pessoa curiosa, o bom velhote — observou Rupert.

— Ele não é um mau sujeito — considerei. — Apenas leva uma vida meio triste.

— Ah — disse Rupert. — Sei o que você quer dizer. Funerais, e todas essas coisas.

— Sim — concordei. — Funerais e todas essas coisas.

Mas eu estava pensando mais em Cynthia.

— Onde fica o quadro? — perguntou Rupert de repente.

Por um momento, fiquei atônita. Devo ter parecido especialmente pouco inteligente.

— O quadro — repetiu ele. — O quadro de luz. A corrente. Os controles elétricos. Mas não imagino que você saiba onde fica. Ou será que sabe?

Acontece que eu sabia. Apenas algumas semanas antes, eu fora coagida a ficar nos bastidores com a sra. Witty, ajudando a operar as pesadas alavancas do antiquado painel de controle da iluminação, enquanto suas alunas do primeiro ano de balé tropeçavam pelas tábuas do palco no recital de Os frutos dourados do sol, em que Pomona (Deidre Skidmore vestindo um mosquiteiro) cortejava Hyas (um Gerald Plunkett de cara vermelha vestindo uma malha improvisada de uma ceroula pesada de inverno), presenteando-o com um sortimento de frutas de papel-machê.

— À direita do palco — eu disse. — Atrás do regulador preto.

Rupert piscou uma ou duas vezes, disparou-me um olhar mordaz e subiu estrepitosamente os degraus estreitos que levavam ao palco. Por alguns momentos ouvimos seus resmungos lá em cima, pontuados pelos sons metálicos de painéis e interruptores sendo manipulados com estrondo.

— Não dê importância — sussurrou Nialla. — Ele sempre fica nervoso desse jeito do instante em que um espetáculo é marcado até a cortina descer ao final. Depois disso, ele geralmente fica ótimo.

Enquanto Rupert lidava com a eletricidade, Nialla começou a desamarrar diversos fardos com pilares de madeira aplainada, que estavam cingidos fortemente por tiras de couro.

— O palco — ela me explicou. — Tudo isso é montado com parafusos e borboletas. Rupert projetou e construiu tudo sozinho. Cuidado com os dedos. — Eu tinha me aproximado para ajudá-la com as peças mais compridas. — Eu posso fazer isso sozinha, obrigada — disse ela. — Fiz centenas de vezes, já é quase uma ciência. Só na hora de erguer o piso é que são necessárias duas pessoas.

Um farfalhar atrás de mim me fez virar. Lá estava o vigário, com uma expressão muito infeliz.

— Más notícias, infelizmente — disse. — A sra. Archer me contou que Bert foi a Londres para um curso e só voltará amanhã, e ninguém responde na Fazenda Culverhouse, onde eu esperava alojá-los. Por outro lado, a sra. I não costuma atender ao telefone quando está sozinha em casa. Ela vai trazer os ovos no sábado, mas a essa altura será tarde demais. Eu ofereceria o presbitério, é claro, mas Cynthia me lembrou com muita veemência que estamos no meio da pintura dos quartos de hóspedes: as camas foram desmontadas e estão empilhadas nos corredores, há guarda-roupas obstruindo os patamares, e assim por diante. É realmente frustrante.

— Não se preocupe, vigário — disse Rupert de cima do palco. — Minha pele quase se desprendeu de susto. Havia esquecido que ele estava lá. — Vamos acampar onde estamos, no pátio da igreja. Temos uma boa barraca na van, com tapetes de lã e um forro de borracha para o piso, um pequeno fogareiro e feijões em lata para o café da manhã. Estaremos tão confortáveis quanto percevejos em um cobertor.

— Bem — disse o vigário —, se dependesse só de mim, eu...

— Ah — disse Rupert erguendo um dedo —, sei o que está pensando: não dá para deixar ciganos acampar entre os túmulos. Respeito pelos entes queridos que se foram, e tudo o mais.

— Bem — disse o vigário —, pode haver uma parcela de verdade nisso, mas...

— Vamos nos instalar em algum canto desocupado, certo? Assim não haverá profanação. Não será a primeira vez que dormimos em um pátio de igreja, será, Nialla?

Nialla corou de leve e de repente ficou fascinada com alguma coisa no chão.

— Bem, suponho que então está combinado — disse o vigário. — Não temos muita escolha, temos? Além disso, é só por uma noite. Que mal pode haver? Meu Deus! — disse ele, olhando para o seu relógio de pulso. Como o tempus realmente fugit! Fiz uma promessa solene a Cynthia de voltar imediatamente. Ela está preparando o jantar mais cedo, entendam. Nós sempre jantamos mais cedo às quintas-feiras, por causa do ensaio do coro. Eu os convidaria para se juntarem a nós em uma refeição caseira, mas...

— Nem pense nisso — interrompeu Rupert. — Nós já incomodamos o suficiente para um dia, vigário. Além disso, acredite ou não, Nialla tem uma excelente mão para preparar ovos com bacon em fogueiras em pátios de igreja. Vamos comer como bandidos corsos e dormir como defuntos.

Nialla sentou-se com muita suavidade em uma caixa, e percebi que ela se sentia exausta. Olheiras pareciam ter se formado tão depressa em volta de seus olhos como nuvens de tempestade atravessando na frente da lua.

O vigário alisou o queixo.

— Flavia, querida, tive uma ideia esplêndida. Por que você não volta aqui amanhã cedinho para ajudar? Tenho certeza de que as Marionetes de Porson ficarão muito gratas pelos serviços de uma entusiástica assistente — sugeriu o vigário. — Preciso visitar doentes e inválidos amanhã, bem como a Guilda do Altar — acrescentou ele. — Você poderia atuar como a minha lugar-tenente, por assim dizer. Oferecer aos nossos hóspedes, de certo modo, liberdade de acesso à paróquia, além de servir como factótum e zelosa serviçal.

— Eu ficaria feliz — respondi, fazendo uma mesura quase imperceptível.

Nialla, ao menos, me recompensou com um sorriso.

Do lado de fora, no fundo do pátio, recuperei Gladys, a minha confiável bicicleta, no meio do capim alto, e momentos depois estávamos voando para casa através das veredas salpicadas de sol, em direção a Buckshaw.


— OLÁ, TODO MUNDO — EU DISSE PARA FELINHA, que estava de costas, após ter entrado na sala de estar sem ser notada.

Sem deixar de olhar para o espelho no qual se admirava, Felinha viu de relance o meu reflexo no vidro ondulado pelo tempo.

— Dessa vez você se complicou — disse ela. — O pai procurou por você a tarde inteira. Ele acabou de falar por telefone com o policial Linnet, na aldeia. Devo dizer que pareceu um tanto desapontado ao ouvir que eles não tinham pescado o seu corpinho encharcado na lagoa dos patos.

— Como você sabe que eles não pescaram? — reagi, astutamente. — Como você sabe que eu não sou um fantasma que voltou para assombrá-la e persegui-la até a sua tumba?

— Porque o seu sapato está desamarrado, e o seu nariz está escorrendo — disse Dafi, erguendo os olhos de seu livro. Era Entre o amor e o pecado, e ela o estava lendo pela segunda vez.

“Do que se trata?”, eu perguntara na primeira vez.

“Moscas em seiva”, dissera ela com um sorriso condescendente, e eu anotei mentalmente para colocá-lo na minha lista de leituras. Adoro livros sobre ciências naturais.

— Você não vai me perguntar por onde andei? — provoquei. Estava simplesmente morta de vontade de contar a elas sobre as Marionetes de Porson e Nialla.

— Não — respondeu Felinha, pondo um dedo na ponta do queixo, enquanto se inclinava para se olhar mais de perto. — Ninguém tem o menor interesse no que você faz. Você é como um cachorrinho indesejável.

— Eu não sou indesejável — disse eu.

— Ah, sim, você é! — reforçou ela com uma risada áspera. — Cite uma pessoa nesta casa que a queira, e eu lhe darei um guinéu. Vá, cite uma.

— Harriet! — disse eu. — Harriet me queria, ou não teria me dado à luz.

Felinha girou o corpo e cuspiu no chão. Ela realmente cuspiu!

— Para sua informação, Sarna, Harriet caiu em um profundo atoleiro mental logo depois que você nasceu.

— Ah! — disse eu. — Agora eu peguei você! Você me disse que eu tinha sido adotada.

Era verdade. Sempre que Dafi e Felinha queriam me provocar além do que eu podia aguentar, elas renovavam aquela alegação.

— E foi mesmo — disse ela. — O pai e Harriet concordaram em adotá-la antes mesmo de você nascer. Mas quando chegou o momento, você foi entregue por engano a outras pessoas, um casal em East Kent, acho. Infelizmente, eles a devolveram. Soube-se que aquela tinha sido a primeira vez em duzentos anos de história do hospital de enjeitados que alguém devolveu um bebê por não ter gostado dele.

— Harriet também não gostou muito de você depois que a trouxe para casa, e a Junta Diretora recusou-se a aceitá-la de volta pela segunda vez. Jamais vou esquecer o dia em que ouvi Harriet dizendo ao pai, no seu quarto de vestir, que nunca seria capaz de amar uma chorona com cara de rato como você. Mas o que ela podia fazer?

— Bem, ela fez o que qualquer mulher normal faria naquelas circunstâncias: caiu em um estado de profunda perturbação, do qual provavelmente nunca mais se recuperou. Ela ainda estava dominada por ele quando caiu (ou será que pulou?) daquela montanha no Tibete. O pai sempre culpou você por aquilo; certamente você tem consciência disso.

A sala ficou frígida como gelo, e de repente fiquei dormente da cabeça aos pés. Abri a boca para dizer alguma coisa, mas descobri que a minha língua secara e se encarquilhara até virar uma tira de couro enrolada. Lágrimas quentes brotaram nos meus olhos, e eu fugi da sala.

Eu mostraria uma ou duas coisinhas àquela suína da Felinha. Eu a deixaria tão amarrada e cheia de nós que teriam de chamar um marinheiro a fim de desatá-la para o funeral.

Existe uma árvore que cresce no Brasil, a Carica digitata, que os nativos chamam de chamburu. Eles acreditam que ela seja tão letalmente venenosa que o simples fato de dormir sob seus galhos causará, em primeiro lugar, chagas permanentemente supurantes, seguidas, cedo ou tarde, de uma morte maravilhosamente excruciante.

Felizmente para Felinha, no entanto, a Carica digitata não cresce na Inglaterra.

Felizmente para mim, a pequena cicuta, mais conhecida como cicuta-da-europa, cresce. De fato eu conhecia um recanto baixo e pantanoso de Seaton’s Meadow, a menos de dez minutos de Buckshaw, onde ela crescia naquele exato momento. Eu podia ir até lá e voltar antes do jantar.

Recentemente eu havia atualizado as minhas anotações sobre coniina, o princípio ativo da substância. Eu a extrairia destilando com qualquer álcali que tivesse à mão, talvez um pouco do bicarbonato de sódio que eu guardava no meu laboratório contra os excessos culinários da sra. Mullet. Então, por congelamento, eu removeria por recristalização as escamas iridescentes da menos poderosa conidrina. A coniina quase pura resultante teria um delicioso odor de rato, e seria necessário menos de meia gota da substância oleosa para acertar velhas contas.

Agitação, vômitos, convulsões, espumação pela boca, espasmos horrendos — contei os destaques nos dedos enquanto eu prosseguia:

 

Santificado cianeto

Super-rápido arsênico

Misturados-bagunçados

Dentro da sopa.

Apaguem as velas do luto

Tragam o caixão neste minuto

Ensinem como se brinca

Com Flavia de Luce!

 

Minhas palavras ecoaram de volta para mim do teto alto pintado do foyer e do madeiramento escuro e polido das galerias acima. A não ser pelo fato de que não mencionava a cicuta-da-europa, o pequeno poema, que eu compusera para uma ocasião inteiramente diferente, era a expressão perfeita dos meus atuais sentimentos.

Atravessei correndo os ladrilhos preto e branco, e fui pela escadaria curva acima até a ala leste da casa. A ala Tar, como a chamávamos, recebera esse nome em homenagem a Tarquin de Luce, um dos antigos tios de Harriet, que habitara Buckshaw antes de nós. O tio Tar passara a maior parte da vida trancafiado em um magnífico laboratório de química vitoriano, no canto sudeste da casa, investigando “as migalhas do universo”, como escrevera em uma de suas muitas cartas a Sir James Jeans, autor de A teoria dinâmica dos gases.

Diretamente abaixo do laboratório, na Longa Galeria, há um retrato a óleo do tio Tar. Ele está com os olhos afastados do microscópio, os lábios contraídos e o cenho franzido, como se alguém com um cavalete, uma paleta e uma caixa de tintas tivesse entrado sem pedir licença no momento em que ele estava prestes a descobrir o deLucium.

“Deem o fora!”, diz claramente a sua expressão. “Deem o fora e me deixem em paz!”

E assim eles deram o fora; e do mesmo modo, por fim, foi o que fez o tio Tar.

O laboratório e tudo o que havia nele agora eram meus, e isso já fazia anos. Ninguém jamais entrava ali, e era melhor assim.

Enquanto eu enfiava a mão no bolso e puxava a chave, alguma coisa branca esvoaçou para o chão. Era o lenço que eu havia emprestado a Nialla no pátio da igreja. Ele ainda estava levemente úmido ao toque.

Uma imagem surgiu na minha cabeça, a de Nialla quando a vi pela primeira vez, debruçada sobre a lápide, o rosto voltado para baixo, os cabelos espalhados como um mar vermelho, suas lágrimas quentes crepitando na poeira.

Tudo se encaixou como uma lingueta na fechadura. É claro!

A vingança teria de esperar.

Com uma tesourinha de cutícula que eu surrupiara da penteadeira de Felinha, cortei quatro discos úmidos do lenço de linho, tomando cuidado para evitar as manchas verdes de grama que eu infligira a ele, e cortando apenas partes que estavam diagonalmente opostas às manchas: os borrões sobre os quais Nialla havia chorado.

Utilizando uma pinça, enfiei-os em um tubo de ensaio, no qual injetei uma solução a três por cento de ácido sulfossalicílico para precipitar a proteína. Era o assim chamado teste de Ehrlich.

Enquanto trabalhava, pensei com prazer em quão profundamente Alexander Fleming mudara o mundo quando, sem querer, espirrara dentro de uma placa de Petri. Era o tipo de ciência que me encantava o coração. Quem, afinal, poderia dizer honestamente que jamais espirrou em cima de uma cultura? Poderia acontecer com qualquer um. Aconteceu comigo.

Depois do espirro, o magnífico observador Fleming notou que as bactérias na placa estavam se retraindo das nódoas de seu muco respingado, como se estivessem com medo. Não se passou muito tempo até que ele isolasse uma proteína em particular no muco que repelia as bactérias de um modo muito parecido com o de um cão espumando pela boca espanta ladrões. Ele a chamou de lisozima, e era essa a substância para a qual eu estava agora testando.

Felizmente, mesmo no auge do verão, os salões ancestrais de Buckshaw eram tão frios e úmidos quanto a proverbial tumba. A temperatura ambiente na ala leste, onde se localizava o meu laboratório, apesar do aquecimento que fora malevolamente instalado somente na ala oeste da casa outrora dividida, jamais passava dos quinze graus centígrados, que, por sorte, era precisamente a temperatura em que a lisozima se precipita quando se adiciona o ácido sulfossalicílico.

Observei, extasiada, enquanto o véu de cristais começava a se formar, os flocos brancos derivando gentilmente para baixo, no pequeno inverno dentro do tubo de ensaio.

Em seguida acendi um bico de Bunsen e cuidadosamente aqueci uma proveta de água a vinte e um graus. Não levou muito tempo. Quando o termômetro indicou que estava pronto, mergulhei o fundo do tubo de ensaio no banho quente e o agitei gentilmente.

Quando o precipitado recém-formado se dissolveu, deixei escapar um suspiro deleitado.

— Flavia. — A voz distante do pai evolou-se até o laboratório. Depois de atravessar o vestíbulo da frente, penetrar na ala leste e encaminhar-se pelo longo corredor abaixo até o seu ponto mais meridional, ela agora se infiltrara através da minha porta fechada, sua força exaurida, tão insubstancial como se tivesse vindo à deriva até a Inglaterra desde Ultima Thule.

— Jantar — pensei tê-lo ouvido chamar.


— É tremendamente irritante — disse o pai.

Estávamos sentados em volta da longa mesa do refeitório, o pai na ponta, Dafi e Felinha, uma de cada lado, e eu, no outro extremo, no Cabo Horn.

— É tremendamente irritante — disse ele de novo — uma pessoa sentar-se aqui e ficar ouvindo a própria filha admitir que ela se apoderou da minha água-de-colônia para usar em um maldito experimento de química.

Tanto fazia se eu negasse essas coisas ou admitisse a minha culpa; o pai achava igualmente irritante. O fato é que eu simplesmente não podia ganhar. Já aprendera que o melhor era permanecer em silêncio.

— Droga, Flavia, eu tinha acabado de comprar aquela maldita coisa. Não dá para eu ir a Londres neste calor fedendo como um quarto dianteiro de porco apodrecido, dá?

O pai era muito eloquente quando estava zangado. Eu havia surrupiado o frasco de Roger & Gallet para encher um nebulizador com o qual precisava borrifar a casa depois de um experimento que envolvera sulfeto de hidrogênio e dera espetacularmente errado.

Sacudi a cabeça.

— Me desculpe — eu disse, adotando uma expressão envergonhada e enxugando os olhos com um guardanapo. — Eu compraria um novo frasco para você, mas não tenho dinheiro.

Como se eu fosse um patinho de lata num estande de tiro, Felinha mirou-me através da longa mesa com um silencioso desdém. O nariz de Dafi estava firmemente enfiado em Virginia Woolf.

— Mas eu poderia fazer um pouco para você — eu disse, alegre. — Na verdade não é muito mais do que etanol, óleos cítricos e ervas de jardim. Vou pedir a Dogger que colha um pouco de alecrim e lavanda, e vou arranjar algumas laranjas, limões e limas com a sra. Mullet...

— Você não vai fazer nada disso, srta. Flavia — disse a sra. Mullet, invadindo impetuosa e literalmente a sala enquanto empurrava a porta com suas vastas ancas e largava uma grande travessa em cima da mesa.

— Ah, não! — ouvi Dafi sussurrando para Felinha. — É o treme-treme de novo.

O treme-treme, como o chamávamos, era uma sobremesa de lavra própria da sra. Mullet, que, até onde podíamos entender, consistia em uma espécie de gelatina verde grumosa embutida como uma salsicha, com cobertura dupla de creme coagulado e enfeitada com ramos de hortelã e outras sobras variadas de vegetais. Ficava ali, tremendo obscenamente de vez em quando, como uma enorme e abominável lesma de jardim. Não pude deixar de sentir um arrepio.

— Que delícia — disse o pai. — Realmente delicioso.

Ele estava sendo irônico. Mas as antenas da sra. Mullet não estavam sintonizadas para o sarcasmo.

— Eu sabia que vocês gostariam — disse ela. — Hoje mesmo de manhã eu dizia para o meu Alf: “Faz tempo que o Coronel e as meninas não comem uma das minhas adoráveis gelatinas. Eles sempre comentam sobre as minhas gelatinas” (isso era mesmo verdade), “e eu adoro prepará-las para eles, para os meus queridos”.

Ela fez isso soar como se os seus patrões tivessem galhadas na testa.

Felinha fez um ruído como o de um passageiro passando mal na amurada do Queen Mary em plena travessia do Atlântico Norte em novembro.

— Coma tudo, querida — disse a sra. Mullet, inabalável. — Faz bem para você. — E depois de dizer isso ela se foi.

O pai cravou aquele seu olhar em mim. Embora ele tivesse levado a última edição do The London Philatelist para a mesa, como sempre fazia, nem sequer o abrira. O pai era um entusiástico, para não dizer fanático, colecionador de selos do Correio e dedicava sua vida a ficar olhando através de lentes de aumento para um suprimento aparentemente infindável de pequenas cabeças coloridas e paisagens pitorescas. Mas agora ele não estava examinando selos. Agora ele estava olhando para mim. Os augúrios não vaticinavam nada de bom.

— Onde você esteve a tarde inteira? — perguntou.

— Na igreja — respondi prontamente, com ar afetado e, esperava, com um pouco de devoção também. Eu era mestra nesse tipo de papo furado evasivo.

— Na igreja? — perguntou ele, parecendo um tanto surpreso. — Por quê?

— Estava ajudando uma mulher — eu disse. — A van dela quebrou.

— Ah — disse ele, permitindo-se um sorriso de meio milímetro. — E você estava lá bem no momento para oferecer os seus serviços como mecânica de motores.

Dafi sorriu ironicamente para o seu livro, e percebi que ela estava ouvindo com prazer a minha humilhação. Felinha, diga-se a seu favor, continuou totalmente absorta em lustrar as unhas em sua blusa de seda branca.

— Ela está participando de um espetáculo itinerante de marionetes — eu disse. — O vigário pediu a eles... a Rupert Porson, quero dizer, e a Nialla (é o nome dela) para fazer uma apresentação no salão paroquial no sábado, e ele quer a minha ajuda.

O pai abrandou ligeiramente. O vigário era um de seus poucos amigos em Bishop’s Lacey, e era improvável que ele sonegasse os meus serviços.

— Rupert trabalha na televisão — contei. — Ele é muito famoso, na verdade.

— Não nos meus círculos — disse o pai, olhando para o relógio e afastando a cadeira da mesa. — Oito horas — disse. — Quinta-feira.

Ele não precisou se explicar. Sem uma palavra, Dafi, Felinha e eu nos levantamos e seguimos obedientemente para a sala de estar, todas em uma fila dispersa, como um comboio.

As noites de quinta-feira eram as Noites do Rádio em Buckshaw. O pai decretara recentemente que precisávamos passar mais tempo juntos como família, e assim a Noite do Rádio foi estabelecida como um suplemento à sua série compulsória de preleções nas quartas-feiras. Esta semana, seria a fabulosa Quinta Sinfonia de Ludwig van Beethoven, ou Larry, como eu o chamava sempre que queria provocar Felinha. Eu me lembrava de que Felinha certa vez nos contara que na partitura impressa original o nome de Beethoven aparecia como... Louis.

Louis Beethoven me soava como o nome de um dos gângsteres coadjuvantes em um filme de Edward G. Robinson, alguém com uma cara amarelada e esfolada, um tique alarmante e uma metralhadora Thompson em um estojo de violino.

— Toque aquela tal de Sarandalha ao Luar, do Louie B. — eu rosnava na minha voz roufenha de gângster ao entrar na sala quando ela praticava no teclado. Um momento depois eu estaria em fuga desabalada, com Felinha atrás de mim em uma perseguição implacável e uma folha de partitura esvoaçando sobre o tapete.

Agora Felinha se acomodava atarefadamente em uma pose artística de corpo inteiro sobre o sofá, como uma diva do cinema. Dafi se deixou cair de lado em uma poltrona estofada, com as pernas penduradas para fora, por cima do braço.

O pai ligou o rádio e sentou-se em uma cadeira simples de madeira, as costas retas como um pedaço de pau. Enquanto as válvulas esquentavam, dei um salto mortal através do tapete, voltei andando em cima das mãos através da sala e me deixei cair em uma posição de Buda de pernas cruzadas, com o que eu esperava ser uma fisionomia inescrutável.

O pai me lançou um olhar fulminante, mas, como o programa já estava começando, decidiu não dizer nada.

Depois de uma longa e maçante introdução de um locutor que parecia que avançaria pelo próximo século adentro, a Quinta Sinfonia finalmente começou.

Duh-duh-duh-DAH.

Segurei o queixo nas mãos em concha, apoiei os cotovelos sobre os joelhos e me entreguei à música.

O pai nos disse que a apreciação da música era de importância suprema na educação de uma mulher decente. Essas foram suas palavras exatas, e eu passei a apreciar o fato de que existe música adequada para meditação, música para escrever e música para relaxar.

Com os olhos semicerrados, virei o rosto na direção das janelas. Do meu ponto de vista, no chão, eu podia ver as duas extremidades do terraço refletidas no vidro das portas-janelas, que estavam entreabertas, e, a não ser que meus olhos estivessem me pregando uma peça, alguma coisa se movera lá fora: alguma forma escura passara do lado de fora da janela.

No entanto, não me atrevi a me pôr de pé em um pulo. O pai insistia em uma audição atenta. Até mesmo um pé marcando o ritmo encontraria instantaneamente um olhar cruel e um dedo acusador apontando para baixo.

Me inclinei ligeiramente para a frente e vi que um homem todo vestido de preto acabava de se sentar em um banco embaixo das roseiras. Estava inclinado para trás, de olhos fechados, ouvindo a música que flutuava através das portas abertas. Era Dogger.

Dogger era o Homem do pai, com H maiúsculo: jardineiro, chofer, valete, administrador da propriedade e factótum. Como eu disse antes, ele já tinha feito de tudo.

A experiência de Dogger como prisioneiro de guerra deixou alguma coisa quebrada dentro dele: alguma coisa que de vez em quando, com uma ferocidade inacreditável, atacava seu cérebro com garras e dentes, como algum tipo de besta-fera voraz que o transformava em uma trêmula pilha de nervos.

Mas naquela noite ele estava em paz. Naquela noite se vestira todo para a sinfonia, usando um terno escuro e o que poderia ter sido uma gravata militar, e seus sapatos tinham sido engraxados até brilhar como espelhos. Estava sentado imóvel no banco embaixo das rosas, de olhos fechados, o rosto voltado para cima como um dos radiantes santos coptas que eu tinha visto nas páginas de arte da Country Life, a madeixa de cabelos brancos iluminada por trás por um etéreo raio do sol poente. Era agradável saber que ele estava lá.

Me espreguicei satisfeita e voltei a atenção novamente para Beethoven e sua vigorosa Quinta.

Embora fosse de fato um grande músico e um extraordinário compositor de sinfonias, Beethoven era frequentemente um deplorável fracasso quando se tratava de terminá-las. A Quinta era um exemplo perfeito.

Me lembro de que o final dela, o allegro, era uma daquelas vezes em que Beethoven simplesmente não conseguiu encontrar o botão de desligar.

Dum... dum... dum-dum-dum, ela soava, e se poderia pensar que havia acabado.

Mas não...

Dum, dah, dum-dum-dum, dah, dum, dah, dum, dah, dum — DAH dum.

Você se levanta e se espreguiça, suspirando de satisfação com a grande obra que acabara de ouvir, e de repente:

DAH dum. DAH dum. DAH dum. E assim por diante: DAH dum.

Era como um pedaço de papel pega-moscas colado em seu dedo do qual você não consegue se livrar. A maldita coisa grudava-se à vida como uma craca.

Lembrei-me de que algumas sinfonias de Beethoven receberam nomes: a Eroica, a Pastoral, e assim por diante. Deviam ter chamado esta de Vampira, porque simplesmente se recusava a deitar e morrer.

Mas, com exceção desse final pegajoso, eu adorava a Quinta, e o que eu gostava mais era do fato de que ela era o que eu considerava... música de correr.

Eu me via de braços abertos, correndo desenfreadamente sob o sol quente pela Colina Goodger abaixo, precipitando-me em largos zigue-zagues, as minhas tranças voando atrás de mim ao vento, esgoelando a Quinta a plenos pulmões.

Meu agradável devaneio foi interrompido pela voz do pai.

— Este agora é o segundo movimento, andante con moto — dizia ele em voz alta. O pai sempre anunciava o nome dos movimentos com uma voz mais apropriada para quartel do que para sala de estar. — Significa “a passo de caminhada, com movimento” — acrescentou, recostando-se de novo na cadeira como se, por enquanto, tivesse cumprido com o seu dever.

Aquilo me pareceu redundante: como era possível um passo de caminhada sem movimento? Aquilo desafiava as leis da física, mas, por outro lado, os compositores não são como nós.

Por exemplo, em sua maior parte, eles estão mortos.

E quando pensei em estar morta e em pátios de igrejas, me lembrei de Nialla.

Nialla! Eu quase me esquecera de Nialla! A convocação do pai para o jantar chegara bem no momento em que eu estava terminando meu teste químico. Formei mentalmente a imagem da ligeira turvação, dos flocos turbilhonantes no tubo de ensaio e da excitante mensagem que transmitiam.

A não ser que eu estivesse redondamente enganada, a Mamãe Gansa estava grávida.


ME PERGUNTEI SE ELA SABIA.

Antes mesmo de ela ter se levantado chorando de sua lápide de calcário, eu já havia reparado que Nialla não usava aliança. Não que isso significasse alguma coisa: até a mãe de Oliver Twist não era casada.

Por outro lado, havia lama fresca em seu vestido. Embora eu tivesse registrado o fato em algum matagal emaranhado da minha cabeça, não havia pensado mais nisso até agora.

No entanto, quando se parava para refletir, parecia bastante óbvio que ela tinha feito pipi no pátio da igreja. Como não havia chovido, a lama fresca na barra do vestido indicava que ela fizera isso, e apressadamente, no canto noroeste, longe de olhares indiscretos, atrás do monte de terra extra que o sacristão, o sr. Haskins, deixava à mão para as operações de abertura de covas.

Ela devia estar desesperada, concluí.

Sim! Era isso! Não existe uma só mulher na face da terra que escolheria um lugar tão inamistoso (ignobilmente insalubre, teria dito Dafi), a não ser que não tivesse escolha. Havia inúmeras razões, mas uma delas me vinha à mente de imediato, e era uma com a qual eu me deparara recentemente nas páginas da Australian Women’s Weekly enquanto esperava para ser atendida na sala de espera de uma clínica odontológica na rua Farringdon. “Dez sinais precoces de um evento abençoado”, chamava-se o artigo, e a necessidade de micção frequente beirava o topo da lista.

— Quarto movimento. Allegro. Clave de dó maior — apregoou o pai, como se fosse um condutor de trem anunciando a próxima estação.

Dei uma inclinada enérgica de cabeça para ele, para mostrar que estava prestando atenção, depois mergulhei de volta nos meus pensamentos. Onde eu estava mesmo? Ah, sim. Oliver Twist.

Certa vez, em uma viagem para Londres, Dafi apontara para nós, da janela do nosso táxi, o ponto exato em Bloomsbury onde ficava o hospital de enjeitados de Oliver. Embora ele fosse agora uma praça muito agradável e luxuriante, não tive problemas em me imaginar subindo penosamente aqueles degraus da frente havia muito desaparecidos, porém ainda assim cobertos de neve, erguendo a enorme e pesada tranca e pedindo refúgio. Quando eu contasse a eles da minha vida de semiórfã em Buckshaw com Felinha e Dafi, não fariam mais nenhuma pergunta. Eu seria recebida de braços abertos.

Londres! Diabos e demônios! Eu me esquecera completamente. Hoje era o dia em que eu deveria ter ido com o pai à cidade para experimentar o aparelho dentário. Não admira que ele estivesse mal-humorado. Enquanto eu estava saboreando a morte no pátio da igreja e batendo um longo papo com Nialla e o vigário, o pai, quase com toda a certeza, estava espumando e fumegando em volta da casa como um destróier com a fornalha superalimentada. Tive a sensação de que ainda teria de lidar com aquilo.

Bem, agora já era tarde demais. Beethoven estava, por fim, seguindo fatigado por seu tortuoso caminho para casa, como o lavrador de Thomas Gray, deixando o mundo para as trevas e para mim e para o pai.

— Flavia, uma palavrinha, por favor — disse ele, desligando o rádio com um agourento clique.

Felinha e Dafi se levantaram de seus respectivos lugares e saíram da sala em silêncio, parando apenas o suficiente junto à porta para me dirigir um par de suas caretas patenteadas de “Agora você vai ouvir!”.

— Que diabo, Flavia — disse o pai depois que elas saíram. — Você sabia tão bem quanto eu que nós tínhamos um compromisso com os seus dentes esta tarde.

Com os meus dentes! Ele fez aquilo soar como se o Ministério da Saúde estivesse providenciando para mim um conjunto completo de dentaduras.

Mas o que ele dissera era verdade: não fazia muito tempo eu destruíra um aparelho perfeitamente bom quando endireitava o arame para forçar uma fechadura. O pai resmungou, é claro, mas marcou outra hora para me capturar e arrastar de volta a Londres, para aquela oficina de sucateiro no terceiro andar da rua Farringdon, onde eu seria imobilizada em uma prancha como Boris Karloff, enquanto vários itens de ferraria eram enfiados na minha boca, aparafusados e atarraxados nas minhas gengivas.

— Eu esqueci — disse eu. — Desculpe. Você devia ter me lembrado no café da manhã.

O pai piscou. Ele não esperava uma resposta tão vigorosa, ou tão primorosamente desviada! Embora ele tivesse sido oficial de carreira do Exército, quando se tratava de manobras domésticas, era pouco mais que um bebê agitado.

— Talvez possamos ir amanhã — acrescentei alegremente.

Embora possa não parecer à primeira vista, foi um golpe de mestre. O pai desprezava o telefone com uma paixão que ia além de qualquer convicção. Ele via o uso da coisa, ou “daquele instrumento”, como ele o chamava, não apenas como uma fraude ao Correio, mas como um ataque direto às tradições do Correio Real, o serviço postal do Reino Unido em geral, e ao uso de selos postais em particular. Portanto, ele se recusava terminantemente a usá-lo, a não ser nas mais terríveis circunstâncias. Eu sabia que ele levaria semanas, senão meses, para tocar no assunto de novo. Mesmo se escrevesse ao dentista, levaria tempo para completar as necessárias idas e vindas. Nesse meio-tempo, eu estaria fora de perigo.

— E lembre-se — o pai disse, como se tivesse acabado de pensar nisso — de que a sua tia Felicity chega amanhã.

Meu coração afundou como o batiscafo do Professor Picard.

Todo verão a irmã do pai saía de sua casa em Hampstead e caía em cima de nós. Embora não tivesse filhos (talvez porque nunca tivesse se casado), ela tinha opiniões deveras alarmantes sobre a educação adequada para crianças: opiniões que nunca se cansava de afirmar em voz alta.

“As crianças precisam ser açoitadas”, costumava dizer, “a não ser que desejem seguir carreira na política ou nos tribunais, caso em que deviam, somando-se a isso, ser afogadas”. O que resumia muito bem toda a sua filosofia. Ainda assim, como todos os tiranos cruéis e intimidadores, tinha algumas gotas de sentimentalismo secretadas em algum lugar dentro dela, que de vez em quando subiam borbulhando à superfície (mais frequentemente no Natal, mas, às vezes, atrasadas nos aniversários), quando então nos infligia seus presentes escolhidos a dedo.

Dafi, por exemplo, que devoraria Melmoth, o errante, ou A abadia do pesadelo, ganharia de tia Felicity um exemplar do Livro Jumbo das Meninas, e Felinha, que nunca pensara muito sobre nada além de cosméticos e de sua própria pele cheia de espinhas, rasgaria o seu embrulho para encontrar um par de galochas de guta-percha para motoristas (“Ideais para panes no campo”).

Uma vez, porém, quando zombamos de tia Felicity na frente do pai, ele ficou instantaneamente furioso, de um jeito que eu jamais tinha visto. Mas logo recobrou o controle, encostando um dedo no canto do olho para fazer parar um nervo que se contraía com espasmos.

— Nunca ocorreu a vocês — perguntou ele naquela horrível voz uniforme — que sua tia Felicity não é o que pode parecer?

— Você quer dizer — Felinha disparou de volta — que toda essa maluquice não passa de pose?

Eu só pude ficar olhando, horrorizada com o atrevimento dela.

O pai cravou nela por um momento o olhar penetrante e feroz daqueles seus “olhos de Luce” azuis, depois girou nos calcanhares e saiu pisando firme da sala.

— Ai, Jesus! — disse Dafi, mas só depois que ele se fora.

E assim os medonhos presentes de tia Felicity continuaram a ser recebidos em silêncio — pelo menos na minha presença.

Antes que eu pudesse ao menos começar a me lembrar das transgressões dela contra minha boa natureza, o pai prosseguiu:

— O trem dela chega a Doddingsley às dez e cinco, e eu gostaria que você estivesse lá para recebê-la.

— Mas...

— Por favor, não discuta, Flavia. Eu já planejei acertar algumas contas na aldeia. Ophelia vai dar algum tipo de recital no chá da manhã do Instituto das Mulheres, e Daphne simplesmente se recusa a ir.

Macacos me mordam! Eu devia saber que alguma coisa assim aconteceria.

— Vou dizer a Mundy que envie um carro. Vou combinar com ele, quando vier buscar a sra. Mullet hoje à noite.

Clarence Mundy era o dono do único táxi de Bishop’s Lacey.

A sra. Mullet ficava até mais tarde para terminar a areação semestral das panelas e frigideiras: um ritual que sempre deixava a cozinha cheia de vapor gorduroso e superaquecido, e os habitantes de Buckshaw com náuseas. Nessas ocasiões, o pai sempre insistia em, depois, mandá-la de volta para casa de táxi. Havia diversas teorias circulando em Buckshaw sobre suas razões para fazer isso.

Era óbvio que eu não poderia ir e vir de Doddingsley com tia Felicity e ao mesmo tempo ajudar Rupert e Nialla a organizar o espetáculo de marionetes. Eu simplesmente teria de estabelecer minhas prioridades e cuidar primeiro dos assuntos mais importantes.


Embora já houvesse uma faixa dourada no céu oriental, o sol ainda não havia aparecido quando eu segui velozmente pela estrada para Bishop’s Lacey. Os pneus de Gladys zuniam aquele som atarefado que as vespas costumam fazer quando estão especialmente satisfeitas.

Uma neblina baixa flutuava nos campos dos dois lados dos regos, e fiz de conta que eu era o fantasma de Cathy Earnshaw voando para Heathcliff (a não ser pela bicicleta) através dos pântanos de Yorkshire. De vez em quando, mãos esqueléticas se estendiam para fora dos espinheiros das sebes para agarrar meu suéter de lã, mas eu e Gladys éramos rápidas demais para elas.

Quando parei ao lado da igreja de São Tancredo, vi a pequena barraca branca de Rupert armada no meio do capim alto, no fundo do pátio superedificado da igreja. Ele a erguera sobre a vala comum, onde os indigentes eram postos para descansar e onde, consequentemente, havia corpos, mas não lápides. Imaginei que não tinham contado nada a Rupert e Nialla sobre isso, e decidi que não seria de mim que ouviriam.

Antes de avançar mais que uns poucos metros pelo capim molhado, meus sapatos e meias ficaram totalmente encharcados.

— Olá! — chamei de mansinho. — Tem alguém em casa?

Não houve resposta. Nenhum som. Levei um susto quando uma das gralhas curiosas deslizou de cima da torre e aterrissou com um plop perfeitamente aerodinâmico sobre o muro decadente de calcário.

— Olá! — chamei de novo. — Toc, toc, toc. Alguém em casa?

Alguma coisa farfalhou na tenda, e Rupert enfiou a cabeça para fora, os cabelos de feno caindo sobre os olhos, que estavam vermelhos como se movidos por dínamos elétricos.

— Jesus, Flavia! — ele disse. — É você?

— Desculpe. Cheguei um pouco cedo.

Ele recolheu a cabeça para dentro da barraca como uma tartaruga, e ouvi-o tentando acordar Nialla. Depois de alguns bocejos e resmungos, a lona começou a se projetar para fora em súbitos ângulos estranhos, como se alguém lá dentro estivesse varrendo cacos de vidro com uma vassoura de ramos de árvore.

Alguns minutos depois, Nialla saiu da barraca, meio se arrastando. Estava usando o mesmo vestido do dia anterior, e, embora o tecido parecesse ainda estar desconfortavelmente úmido, ela puxou um cigarro Woodbine e o acendeu antes de endireitar totalmente o corpo.

— Salve — disse, agitando uma abrangente mão para mim e fazendo a fumaça do cigarro se misturar à neblina que pairava por entre as tumbas.

Ela tossiu com um súbito e horrendo espasmo, e a gralha, inclinando a cabeça, deu vários passos de lado sobre o muro, como se estivesse com nojo.

— Você não devia ficar se defumando com essas coisas — eu disse.

— Melhor do que defumar arenques — respondeu ela, e riu da própria piada. — Além do mais, o que sabe você?

Eu sabia que o meu falecido tio-avô, Tarquin de Luce, cujo laboratório de química eu herdara, em seus dias de estudante tinha sido vaiado e literalmente arremessado para fora da Oxford Union, a associação de debates da universidade, depois de assumir uma posição afirmativa em um deles: “Está decidido: o tabaco é uma erva perniciosa”.

Não fazia muito tempo, eu havia encontrado por acaso algumas anotações do tio Tar enfiadas em um diário. Suas meticulosas pesquisas químicas pareciam ter confirmado a ligação entre o fumo e o que era então chamado de “paralisia geral”. Como, por natureza, ele era um tipo bastante tímido e reservado, sua total e abjeta humilhação, como ele descreveu, nas mãos de seus colegas estudantes, contribuiu para sua subsequente vida reclusa.

Me envolvi com os braços e dei um passo atrás.

— Não sei nada — eu disse.

Eu tinha falado demais. Estava frio e úmido no pátio da igreja, e tive uma súbita visão da cama quente da qual eu saíra para vir ajudar.

Nialla soprou para o ar o que pretendia ser dois casuais anéis de fumaça. Ela ficou olhando eles subirem até se dissipar.

— Desculpe — disse ela. — Não costumo estar na minha melhor forma ao romper da aurora. Não quis ser rude.

— Está tudo bem — eu disse. Mas não estava.

Um graveto estalou surpreendentemente alto no silêncio abafado da neblina. A gralha abriu as asas e saiu voando para o topo de um teixo.

— Quem está aí? — chamou Nialla, dando uma corrida de repente até o muro de calcário e se debruçando por cima dele. — Malditos moleques — disse ela. — Tentando nos assustar. Ouvi um deles rindo.

Embora eu tivesse herdado a audição extremamente aguçada de Harriet, não tinha ouvido nada além de um graveto se partindo. Não disse a Nialla que seria muito estranho encontrar qualquer criança de Bishop’s Lacey no pátio da igreja àquela hora da manhã.

— Vou mandar Rupert atrás deles — disse ela. — Isso vai lhes dar uma lição. Rupert! — ela gritou. — O que você está fazendo aí dentro?

— Aposto que aquele preguiçoso indolente se enfiou de novo no saco de dormir — acrescentou, dando uma piscadela.

Ela esticou a mão e deu uma puxada em uma das cordas da barraca para fazê-la vibrar, e, como um paraquedas ao vento, a coisa inteira desabou, uma massa de lona murchando lentamente. A barraca tinha sido armada na terra solta da camada superior do solo, na vala comum, que cedia ao menor toque.

Rupert saiu do meio dos destroços em um instante. Agarrou Nialla pelo pulso e o torceu por trás das costas. O cigarro dela caiu na grama.

— Nunca mais... — ele bradou. — Nunca mais...

Nialla sinalizou com os olhos na minha direção, e Rupert soltou-a imediatamente.

— Droga — disse ele. — Eu estava fazendo a barba. Podia ter cortado a minha maldita garganta.

Ele esticou o queixo para a frente e deu um puxão de lado, como se estivesse tentando se livrar de um colarinho invisível.

Estranho, pensei. Ele ainda estava com todos os pelos da barba matinal, e mais ainda: não havia o menor sinal de creme de barbear em seu rosto.


— A sorte está lançada — disse o vigário.

Ele viera cantarolando de boca fechada, cruzando o pátio da igreja como um pião, deixando entrever preto e depois branco através da neblina, esfregando as mãos e exclamando, enquanto se aproximava:

— Cynthia concordou em rodar alguns panfletos na sacristia, e faremos com que estejam distribuídos antes do almoço. E agora vamos cuidar do café da...

— Nós já comemos, obrigado — disse Rupert, apontando para trás com o polegar na direção da barraca, que agora jazia perfeitamente dobrada sobre a grama. E era verdade. Alguns vestígios de fumaça ainda se evolavam do fogo recém-apagado. Rupert havia pego uma caixa de cavacos na traseira da van e com rapidez surpreendente fizera crepitar uma admirável fogueira de acampamento. A seguir, pegara uma cafeteira, um filão de pão e um par de gravetos apontados para fazer torradas. Nialla conseguira até encontrar um pote de marmelada escocesa na bagagem.

— Têm certeza? — perguntou o vigário. — Cynthia mandou dizer que se...

— Certeza absoluta — disse Rupert. — Estamos acostumados a...

— Improvisar — disse Nialla.

— Bem, então — disse o vigário — vamos entrar?

Ele nos conduziu através do gramado até o salão paroquial, e quando tirou um molho de chaves me virei para olhar através do pátio para o antigo pórtico. Se alguém tivesse estado lá, já teria fugido às pressas. Um cemitério enevoado oferece um número infinito de lugares para se esconder. Alguém bem que poderia ficar agachado atrás de uma lápide a menos de três metros de distância, e você jamais saberia. Com uma última e apreensiva olhada nos fragmentos da neblina que se dissipava, me virei e entrei.


— Bem, Flavia, o que você acha?

Fiquei sem fôlego. O que ontem tinha sido um palco vazio era agora um primoroso teatrinho de marionetes, do tipo que poderia ter sido transportado por artes mágicas da noite para o dia da Salzburg do século XVIII.

A boca de cena, que calculei entre um metro e meio e dois de largura, estava coberta por um conjunto de cortinas de veludo vermelho, ricamente enfeitadas com borlas douradas, com as máscaras da Comédia e da Tragédia bordadas.

Rupert desapareceu atrás do palco e, enquanto eu assistia com reverência, uma fileira de luzes na ribalta — vermelhas, verdes e âmbar — se acendeu pouco a pouco até que a metade inferior das cortinas se transformou em um rico arco-íris de veludo.

Ao meu lado, o vigário inspirou fundo enquanto elas se abriam devagar. Ele juntou as mãos, extasiado.

— O Reino Mágico — arfou.

Ali, diante dos nossos olhos, aninhado entre colinas verdejantes, havia um pitoresco chalé campestre, o telhado de palha e a fachada com vigas de madeira aparentes, completo em todos os detalhes, do banco de madeira embaixo da janela até as pequeninas rosas de papel de seda no jardim da frente.

Por um momento, desejei viver ali: poder me encolher e me arrastar para dentro daquele pequeno mundo perfeito em que cada objeto parecia brilhar como se estivesse iluminado por dentro. Uma vez acomodada no chalé, eu montaria um laboratório químico atrás das pequeninas janelas separadas por mainéis e...

O encanto foi quebrado pelo som de alguma coisa caindo e por um áspero “Raios!” em algum lugar no céu pintado de azul.

— Nialla! — soou a voz de Rupert atrás das cortinas. — Onde está aquele gancho da bruzundanga?

— Desculpe, Rupert — ela gritou, e notei que não teve pressa em responder. — Ainda deve estar na van. Você ia mandar soldar, lembra?

E voltando-se para mim explicou:

— É a coisa que segura o gigante em pé. Mas, por outro lado — acrescentou, sorrindo —, não devemos revelar segredos demais. Tira todo o mistério das coisas, não acha?

Antes que eu pudesse responder, a porta no fundo do salão paroquial se abriu, e apareceu a silhueta de uma mulher contra a luz do sol. Era Cynthia, a mulher do vigário.

Ela não fez menção de entrar, apenas ficou lá, aguardando que o vigário fosse correndo até ela, coisa que ele fez prontamente. Enquanto esperava por ele, ela virou o rosto para a luz exterior, e mesmo de onde eu estava pude distinguir claramente seus frios olhos azuis.

Sua boca era franzida como se os lábios tivessem sido firmemente fechados por cadarços, e seu escasso cabelo loiro-acinzentado estava esticado, dolorosamente ao que parecia, para formar um coque oval na nuca, acima de um pescoço excepcionalmente longo. Com sua blusa de tafetá bege, saia cor de mogno e sapatos Oxford marrons, ela se parecia muito com um velho relógio de pêndulo ao qual tinham dado corda demais.

Sem falar na bela surra que ela me dera, era difícil identificar precisamente o que me causava aversão em Cynthia Richardson. Segundo o que se dizia, ela era uma santa, uma lutadora, um raio de esperança para os doentes e um conforto para os desvalidos. Suas boas obras eram legendárias em Bishop’s Lacey.

Contudo...

Havia alguma coisa em sua postura que simplesmente não soava verdadeira: uma negligência detestável, uma espécie de derrotismo hesitante e esgotado, que se podia ver na face e no corpo das vítimas dos ataques alemães em edições do tempo da guerra, na Picture Post. Mas na mulher de um vigário...?

Tudo isso passou pela minha cabeça enquanto ela conversava aos sussurros com o marido. E então, com não mais que uma olhada rápida para dentro, ela se foi.

— Excelente — disse o vigário, abrindo um sorriso enquanto vinha lentamente na nossa direção. — Os Ingleby, ao que parece, retornaram a minha chamada.

Os Ingleby, Gordon e Grace, eram donos da Fazenda Culverhouse, uma colcha de retalhos de diversas plantações e bosques antigos que ficava a noroeste de São Tancredo.

— Gordon gentilmente ofereceu um lugar para vocês armarem a sua barraca na baixada do Campo Jubileu, um local adorável. Fica à margem do rio, não é muito longe daqui. Dá para vir a pé, na verdade. Vocês terão ovos frescos à vontade, a sombra de salgueiros incomparáveis e a companhia de martins-pescadores.

— Parece perfeito — disse Nialla. — Um pedacinho do paraíso.

— Cynthia me disse que a sra. Archer também telefonou. As novidades nessa frente já não são tão alegres, infelizmente. Bert viajou a Cowley, para um curso na fábrica Morris, e só voltará amanhã à noite. A sua van tem alguma condição de andar?

Pela expressão preocupada do vigário, eu sabia que ele estava tendo visões de uma van identificada com um “Marionetes de Porson” estacionada na porta de sua igreja no domingo de manhã.

— Só um ou dois quilômetros não devem ser problema — disse Rupert, aparecendo de repente ao lado do palco. — Ela vai andar melhor agora que está descarregada, e eu posso ir dando um trato no afogador.

Uma sombra perpassou pela minha mente, mas não dei atenção.

— Esplêndido — disse o vigário. — Flavia, querida, será que você não se importaria de acompanhá-los no trajeto? Você poderia ensinar-lhes o caminho.


NATURALMENTE, TIVEMOS DE DAR A VOLTA pelo caminho mais longo.

Se tivéssemos ido a pé, não teria sido mais que um passeio à sombra, atravessando as alpondras atrás da igreja, seguindo pela margem do rio pelo velho caminho de sirgagem que marcava o limite meridional da Fazenda Malplaquet, e por cima da cerca pela escada para o Campo Jubileu.

Mas pela estrada, como não havia ponte por perto, a Fazenda Culverhouse só podia ser alcançada seguindo para oeste em direção a Hinley, depois um quilômetro e meio a oeste de Bishop’s Lacey, pegando o desvio e subindo tortuosamente o íngreme lado oeste da Colina Gibbet por uma estrada cuja poeira se levantava agora atrás de nós em nuvens brancas. Estávamos a meio caminho do topo, contornando o Bosque Gibbet por uma vereda tão estreita que as sebes arranhavam as laterais da van sacolejante.

— Não se preocupe com o osso do meu quadril — disse Nialla, rindo.

Íamos tão apertados no banco da frente quanto minhocas na lata de um pescador. Com Rupert dirigindo, Nialla e eu estávamos quase sentadas no colo uma da outra, cada qual com um braço por cima do ombro da outra.

O escapamento da Austin explodia violentamente enquanto Rupert, seguindo alguma fórmula ancestral e secreta que só ele conhecia, ficava mexendo alternadamente com o afogador e o acelerador manual.

— Esses tais de Ingleby — gritou ele por cima da sequência incessante de explosões —, conte-nos alguma coisa sobre eles.

Os Ingleby eram pessoas um tanto taciturnas que passavam a maior parte do tempo fechadas em si mesmas. De vez em quando eu via Gordon Ingleby deixando Grace, sua mulher pequenina que parecia uma boneca, no mercado da aldeia onde, sempre de preto, vendia ovos e manteiga com pouco entusiasmo embaixo de um toldo listrado. Eu sabia, como todo mundo em Bishop’s Lacey, que o isolamento dos Ingleby começara com a morte trágica de seu único filho, Robin. Antes disso, eles eram pessoas amistosas e expansivas, mas desde então se voltaram para dentro. Embora tivessem se passado cinco anos, a aldeia ainda lhes permitia viver o seu pesar.

— Eles lavram a terra — eu disse.

— Ah! — disse Rupert, como se eu tivesse acabado de desfiar a história completa da família Ingleby desde o tempo de Guilherme, o Conquistador.

A van pinoteava e sacudia enquanto subíamos ainda mais alto, e Nialla e eu tivemos de nos apoiar com as mãos no painel para não bater com a cabeça uma na outra.

— Lugar sombrio este — disse ela, indicando com a cabeça a mata densa à esquerda. Até as raras manchas de luz solar que conseguiam penetrar a folhagem densa pareciam ser engolidas pelo mundo obscuro daqueles troncos ancestrais.

— Chama-se Bosque Gibbet — eu disse. — Antigamente havia uma aldeia aqui perto chamada Colina de Wapp, até por volta do século XVIII, acho, mas agora não resta mais nada dela. O patíbulo ficava na velha encruzilhada, no meio do bosque. Se você subir por aquele caminho, ainda dá para ver o madeiramento. Mas está tudo bem apodrecido.

— Argh — disse Nialla. — Não, obrigada.

Achei melhor, ao menos por enquanto, não contar a ela que fora na encruzilhada do Bosque Gibbet que Robin Ingleby tinha sido encontrado pendurado.

— Meu bom Deus! — disse Rupert. — Que diabo é aquilo?

Ele apontou para alguma coisa pendurada em um galho de árvore — alguma coisa oscilando com a brisa da manhã.

— Meg a Louca esteve aqui — eu disse. — Ela recolhe latas vazias e outros refugos e amarra em cordões. Gosta de coisas brilhantes. Ela é como uma gralha-do-campo.

Um prato de torta, uma lata enferrujada de extrato de carne Bovril, um pedaço prateado de uma carcaça de radiador e uma colher de sopa torta se contorciam lentamente de um lado para o outro sob o sol, como uma grotesca isca gótica de pescador.

Rupert sacudiu a cabeça e voltou a atenção para o afogador e o acelerador manual. Quando chegamos ao pico da Colina Gibbet, o motor emitiu um “bum” muito assustador e, com um gorgolejo succionante, morreu de vez. A van parou com um tranco, e Rupert puxou o freio de mão.

Pelas rugas profundas em seu rosto, notei que ele estava à beira da exaustão. Ele bateu com os punhos no volante.

— Não diga o que está pensando — disse Nialla. — Temos companhia.

Pensei por um momento que ela se referia a mim, mas seu dedo apontava através do para-brisa para o lado do caminho, onde um rosto escuro e encardido nos espiava de dentro de uma sebe.

— É Meg, a Louca — eu disse. — Ela mora em algum lugar por aqui. Em algum lugar no bosque.

Quando Meg veio correndo para o lado da van, senti Nialla se encolhendo para trás.

— Não se preocupem, ela é totalmente inofensiva.

Meg, com uma roupa maltrapilha de bombazina preto-ferrugem, parecia um abutre que havia sido sugado por um tornado e depois cuspido para fora. Uma cereja de vidro vermelho pendurada em um arame bamboleava alegremente em seu chapéu preto de vaso de flores.

— Sim, inofensiva — disse Meg, toda sociável, junto à janela aberta. — “Portanto, sede prudentes como as serpentes e simples como as pombas.” Olá, Flavia.

— Meg, estes são amigos meus, Rupert e Nialla.

Considerando o fato de estarmos todos espremidos lado a lado na Austin, achei que não faria mal chamar Rupert pelo seu nome de batismo.

Meg ficou algum tempo encarando Nialla calmamente. Estendeu um dedo encardido e tocou o batom de Nialla. Nialla encolheu-se um pouco, mas disfarçou muito bem com um pequeno espirro fingido.

— É Tangee — disse ela vivamente. — Vermelho teatral. Muda de cor quando você o aplica. Veja, experimente você mesma.

Foi uma atuação magnífica, e tive de dar a ela nota máxima pelo modo como ocultou o medo de um jeito aberto e jovial.

Tive de me afastar um pouco para que Nialla pudesse procurar o batom no bolso. Quando ela o estendeu, os dedos encardidos de Meg arrancaram-lhe o tubo dourado da mão. Sem tirar os olhos do rosto de Nialla, Meg pintou uma larga faixa com aquilo em seus lábios sujos e rachados, apertando-os como se estivesse bebendo de um canudinho.

— Encantador! — disse Nialla. — Deslumbrante!

Ela enfiou a mão no bolso outra vez e tirou de lá um estojo esmaltado de pó compacto, uma coisa requintada em forma de borboleta, de esmalte cor de laranja cloasonado. Ela o abriu com um movimento rápido para revelar o espelhinho redondo na tampa e, depois de uma olhadela em si mesma, entregou-o a Meg.

— Aqui, dê uma olhada.

Num ápice, Meg agarrou o pó compacto e ficou se escrutinando no espelho, virando a cabeça animadamente para um lado e para o outro. Satisfeita com o que viu, ela nos recompensou com um sorriso largo que revelou as falhas pretas deixadas por diversos dentes caídos.

— Adorável! — murmurou ela. — Maravilhoso! — E enfiou a borboleta cor de laranja no bolso.

— Ei! — Rupert tentou arrebatá-la de volta, e Meg recuou, perplexa, como se tivesse reparado nele pela primeira vez. Seu sorriso sumiu tão subitamente como aparecera.

— Eu o conheço — disse ela, sombria, os olhos fixos no cavanhaque dele. — Você é o Diabo, é o que você é. Sim, foi o que aconteceu. O Diabo voltou ao Bosque Gibbet.

E ao dizer isso ela foi recuando para dentro da sebe e desapareceu.

Rupert saltou desajeitadamente da van e bateu a porta.

— Rupert... — chamou Nialla.

Mas em vez de entrar no meio dos arbustos atrás de Meg, como imaginei que ele faria, Rupert caminhou uns poucos metros acima, olhou em volta e depois retornou lentamente, os pés agitando a poeira.

— É só uma ladeira suave, e estamos apenas a uma pequena distância do topo — relatou ele. — Se pudermos empurrá-la até aquela velha castanheira, poderemos descer em ponto morto pelo outro lado. Talvez eu até consiga fazê-la funcionar de novo Quer dirigir, Flavia?

Embora eu tivesse passado horas sentada no velho Phantom II de Harriet na nossa estrebaria, aquilo sempre foi para propósitos de reflexão ou fuga. Na verdade, eu nunca estivera no comando de um automóvel em movimento. Ainda que de início a ideia tivesse lá seus atrativos, logo me dei conta de que eu não tinha nenhuma vontade de me ver descendo em disparada o lado leste da Colina Gibbet para dar de cara com o desastre em meio à paisagem.

— Não — eu disse. — Talvez Nialla...

— Nialla não gosta de dirigir — disparou ele.

Percebi imediatamente que eu tinha dado um fora, por assim dizer. Ao sugerir que Nialla dirigisse, eu também acabara sugerindo que Rupert levantasse o traseiro e empurrasse — com sua perna atrofiada e tudo.

— O que eu quis dizer — tentei explicar — foi que você provavelmente é o único de nós capaz de fazer o motor pegar de novo.

Era o truque mais antigo de todos: apelar para a vaidade varonil, e fiquei orgulhosa de ter pensado nisso.

— Certo — disse ele, subindo de volta com esforço para o banco do motorista.

Nialla saltou para fora, e eu a segui. Quaisquer pensamentos que eu pudesse ter tido sobre a conveniência de uma pessoa no estado dela empurrar uma van colina acima em um dia quente foram imediatamente postos de lado. Além disso, eu dificilmente poderia trazer a questão à baila.

Como um raio, Nialla já tinha ido para trás da van e estava pressionando as costas contra as portas traseiras e usando suas poderosas pernas para empurrar.

— Solte o maldito freio de mão, Rupert! — gritou ela.

Tomei posição ao lado dela e, até com a última gota de energia que havia em mim, cravei os pés no chão e empurrei.

Maravilha das maravilhas, aquela coisa estúpida começou a se mover. Talvez porque a parafernália das marionetes tivesse sido descarregada no salão paroquial, a van, com o peso consideravelmente aliviado, logo estava se arrastando, como uma lesma, porém, inexoravelmente, para cima em direção ao pico da colina. Depois que a pusemos em movimento, nos viramos e passamos a empurrar com as mãos.

A van chegou a parar completamente apenas uma vez, e foi quando Rupert engatou a marcha e ligou a ignição. Uma tremenda explosão saiu do escapamento, e mesmo sem olhar para baixo eu soube que teria de explicar ao pai a destruição de mais um par de meias brancas.

— Não deixe a marcha engatada agora, espere até chegarmos ao topo! — gritou Nialla.

— Homens! — ela murmurou para mim. — Homens e seus malditos barulhos de escapamento.


Dez minutos depois estávamos no cume da Colina Gibbet. À distância, o Campo Jubileu declinava em direção ao rio, um lençol ondulante de linho de uma intensidade azul-elétrica que poderia ter feito Van Gogh chorar.

— Mais um bom empurrão — disse Nialla — e estaremos a caminho.

Gememos e grunhimos, empurrando e fazendo força contra o metal quente, e então, de repente, como se tivesse ficado sem peso, a van começou a se mover sozinha. Estávamos do lado descendente da colina.

— Depressa! Pule para dentro! — disse Nialla, e saímos correndo ao lado da van enquanto ela ganhava velocidade, aos trancos e barrancos, pela estrada irregular.

Subimos no estribo, e Nialla abriu a porta. Um momento depois, desabamos abraçadas no assento, enquanto Rupert manipulava os controles do motor. Na metade da descida, quando o motor finalmente pegou, a van soltou um estampido alarmante antes de se estabilizar em tossidelas não muito saudáveis. No sopé da colina, Rupert pisou de leve no freio, e desviamos harmoniosamente para um caminho que levava à Fazenda Culverhouse.


Superaquecida devido a tantos esforços, a Austin parou, cuspindo e fumegando como uma chaleira furada no pátio da fazenda, que dava a impressão de estar abandonado. Pela minha experiência, toda vez que você chega a uma fazenda, alguém sai de um celeiro para recebê-lo, limpando as mãos sujas de graxa em um trapo e gritando para que uma mulher com uma cesta de ovos asse algumas broas e ponha a água do chá para ferver. No mínimo, deveria haver um cachorro latindo.

Embora não houvesse porcos à vista, um chiqueiro deteriorado pelo tempo, no fim de uma fileira de telheiros dilapidados, estava repleto de urtigas altas. Além daquilo, havia um pombal em forma de torre. Diversos baldes de leite, todos enferrujados, jaziam espalhados pelo pátio, e uma galinha solitária ciscava desanimada por entre as ervas daninhas, olhando-nos com seu desconfiado olho amarelo.

Rupert saltou da van e bateu a porta com força.

— Olá! — gritou. — Tem alguém por aqui?

Não houve resposta. Ele continuou caminhando para além de um cepo maltratado até a porta dos fundos da casa e deu nela uma pancada ensurdecedora com o punho fechado.

— Olá! Alguém em casa?

Juntou as mãos em concha para espiar através da janela encardida de um recinto que outrora devia ter sido a despensa, depois sinalizou para sairmos da van.

— Estranho — sussurrou. — Há alguém de pé no meio da sala. Posso ver a silhueta da pessoa contra a janela oposta.

Deu mais umas duas batidas fortes na porta.

— Sr. Ingleby — eu gritei —, sr. Ingleby, sou eu, Flavia de Luce. Trouxe as pessoas da igreja.

Houve um prolongado silêncio, e depois ouvimos o ruído de botas pesadas sobre um chão de madeira. A porta se abriu rangendo para um interior escuro, e um homem alto e loiro, de macacão, apareceu piscando na luz.

Eu nunca o vira na minha vida.

— Sou Flavia de Luce — eu disse —, de Buckshaw. — Acenei com a mão vagamente naquela direção, a sudoeste. — O vigário me pediu para mostrar o caminho para a Fazenda Culverhouse a estas pessoas.

O homem loiro deu um passo para fora, curvando-se consideravelmente a fim de passar pela porta baixa sem bater a cabeça. Ele era o que Felinha poderia ter descrito como “indecentemente bonito”: um altaneiro deus nórdico. Quando aquele Siegfried de cabelo claro se voltou para fechar a porta com cuidado atrás de si, vi que havia um grande círculo vermelho desbotado pintado nas costas de seu macacão.

Isso significava que ele fora prisioneiro de guerra.

Minha cabeça voou instantaneamente para o cepo e o machado que não estava lá. Teria ele picado os Ingleby em pedaços e empilhado seus membros como lenha atrás do fogão da cozinha?

Que pensamento mais ridículo. A guerra acabara havia cinco anos, e eu tinha visto os Ingleby, ou pelo menos Grace, recentemente, na semana passada.

Além disso, eu já sabia que os prisioneiros de guerra alemães não eram particularmente perigosos. Os primeiros que eu tinha visto foram na minha primeira visita a um cinema, o Palace, em Hinley. Quando os prisioneiros de casacos azuis foram forçados a marchar para dentro do cinema e sentaram, Dafi me cutucou com o cotovelo e apontou.

“O inimigo!”, sussurrou ela.

Quando as luzes se apagaram e o filme começou, Felinha se inclinou para mim e disse: “Pense nisto, você vai ficar sentada com eles no escuro por duas horas. Sozinha... se Dafi e eu formos comprar balas”.

O filme era Nosso barco, nossa alma, e eu não pude deixar de notar que, quando o HMS Torrin foi afundado no Mediterrâneo pelos bombardeiros de mergulho da Luftwaffe, embora os prisioneiros não tivessem aplaudido o feito abertamente, houve sorrisos entre eles.

“Os alemães capturados não devem ser tratados de modo inumano”, nos dissera o pai quando chegamos em casa, citando algo que ele ouvira no rádio, “mas é preciso mostrar a eles muito claramente que os encaramos, oficiais e homens, como proscritos da sociedade dos homens decentes.”

Embora eu respeitasse a palavra do pai, ao menos por princípio, era evidente que o homem que nos recebera na Fazenda Culverhouse não era nenhum proscrito; nem por nenhum esforço de imaginação.

Cinco anos após a chegada da paz, ele só podia estar usando o seu macacão com um alvo nas costas por orgulho.

— Posso me apresentar? Sou Dieter Schrantz — disse com um sorriso largo, apertando a mão de cada um de nós, começando por Nialla. Bastaram aquelas poucas palavras para eu ver que ele falava um inglês quase perfeito. Ele até pronunciou seu nome do modo como qualquer britânico teria feito, com “rs” e “as” duros e nenhum rosnido desagradável no sobrenome.

— O vigário disse que vocês viriam.

— A maldita van enguiçou — disse Rupert com um movimento brusco de cabeça na direção da Austin, e vi um certo tom de agressividade. Como se ele...

Dieter abriu um sorriso.

— Não se preocupe. Vou ajudá-lo a empurrar lá para baixo, até o Campo Jubileu. É lá que você vai se aboletar, você sabe, meu velho.

Meu velho? Dieter obviamente já estava na Inglaterra havia um bom tempo.

— A sra. Ingleby está? — perguntei. Achei que talvez fosse melhor Nialla ser levada a uma excursão pelas acomodações da casa, por assim dizer, antes que ela tivesse de pedir.

A sombra de uma nuvem perpassou a face de Dieter.

— Gordon foi para algum lugar no bosque — disse ele, fazendo um gesto para a Colina Gibbet. — Ele gosta de trabalhar sozinho a maior parte do tempo. Vai descer mais tarde para ajudar Sally na campina. Deveremos vê-los quando levarmos o seu carro até o rio.

“Sally” era Sally Straw, integrante do Exército Feminino da Terra, ou “Meninas da Terra”, como eram chamadas, e havia começado a trabalhar na Fazenda Culverhouse em algum momento durante a guerra.

— Está bem — eu disse. — Olá! Aqui estão Tick e Tock.

As duas gatas malhadas da sra. Ingleby saíram sem pressa nenhuma de um telheiro, bocejando e se espreguiçando ao sol. Ela costumava levá-las ao mercado para lhe fazer companhia, como fazia com várias de suas criaturas da fazenda, inclusive, de vez em quando, a sua gansa de estimação, Matilda.

“Tick”, ela me informou uma vez quando perguntei o nome delas, “é porque ela tem tiques. E Tock porque tagarela como uma gralha-do-campo.”

Tock vinha andando direto na minha direção, já bem adiantada em uma conversa miante. Tick, nesse meio-tempo, afastou-se vagarosamente em direção ao pombal, que se erguia sombrio atrás do aglomerado de telheiros decadentes e cobertos de mato.

— Vão indo na frente — eu disse. — Desço para o campo em alguns minutos.

Peguei Tock nos braços.

— Então, quem é a gatinha mais bonita? — arrulhei, observando com o rabo do olho para ver se alguém se deixava enganar. Vi que a gata não caiu nessa: ela começou a se contorcer imediatamente.

Mas Rupert e Nialla já estavam se espremendo dentro da van, que ainda sacudia sozinha no pátio. Dieter deu um empurrão, subiu no estribo, e um momento depois, com um aceno, eles estavam sacolejando para fora do pátio e entrando no caminho que levava ao declive para o Campo Jubileu e o rio. Uma pequena explosão a meia distância confirmou a partida deles.

No momento em que desapareceram de vista, pus Tock de volta no chão, no pátio poeirento.

— Onde está Tick? — eu disse. — Vá procurá-la.

Tock retomou seu longo monólogo felino e seguiu toda pomposa em direção ao pombal.

Nem é preciso dizer que fui atrás.


O POMBAL ERA UMA OBRA DE ARTE. Não havia maneira melhor de definir, e eu não teria ficado nem um pouco surpresa se ouvisse que o patrimônio histórico nacional estava de olho nele para tombá-lo.

Foi daquele notável espécime de arquitetura que a Fazenda Culverhouse havia tirado seu nome, pois “culverhouse” é uma palavra antiga para pombal. Este era uma torre alta e redonda de tijolos muito antigos, cada qual em uma tonalidade diferente de rosa desbotado, e não havia dois iguais. Construído no tempo da rainha Anne, fora outrora usado para criar e cruzar pombos para a mesa de jantar da fazenda. Naquela época, as pernas dos pombinhos novos eram arrancadas para mantê-los engordando no ninho (esse fato foi inferido da tagarelice de cozinha da sra. Mullet). Mas os tempos haviam mudado. Gordon Ingleby era um ávido columbófilo, e as aves deste século que viveram na torre eram mais provavelmente aquecidas com as mãos do que em água fervente. Nos fins de semana, ele as enviava de trem para algum pontinho insignificante no mapa da Inglaterra, onde elas eram soltas para ir voando imediatamente de volta para a Fazenda Culverhouse. Ali, eram acolhidas com o desligamento ruidoso de elaborados cronoscópios mecânicos, muitos mimos e elogios, e grande fartura de grãos para aves.

Pelo menos assim foi até o pequeno Robin Ingleby ser encontrado pendurado pelo pescoço na forca apodrecida do Bosque Gibbet. Desde aquele dia, a não ser por uns poucos espécimes selvagens, não houve mais pombos na Fazenda Culverhouse.

O pobre Robin, quando morreu, tinha a mesma idade que eu, e achei difícil de acreditar que alguém tão jovem pudesse realmente estar morto. Mas, ainda assim, era um fato.

Quando se vive em uma aldeia, quanto mais as coisas são abafadas, mais se ouve dizer, e eu me lembrava da onda de mexericos que varrera Bishop’s Lacey na época, lambendo a aldeia como a maré lambe o madeiramento embaixo de um atracadouro.

“Estão dizendo que o jovem Robin Ingleby foi lá e se matou.” “Robin Ingleby foi morto pelos pais.” “O rapazinho foi assassinado por satanistas. Ouça o que eu estou lhe dizendo...”

A maior parte dessas teorias vazou para mim pela sra. Mullet, e eu estava pensando nelas agora, ao me aproximar da torre, olhando para cima maravilhada com sua miríade de aberturas.

Como o monge chamado de explanador fazia nos monastérios da Idade Média, Dafi com frequência lia em voz alta para nós enquanto fazíamos nossas refeições. Recentemente nos foi servida a descrição de Henry Savage Landor, em que os persas colocavam cadáveres sentados com um pedaço de pau embaixo do queixo para mantê-los eretos. Quando os corvos chegavam para disputar o corpo, considerava-se uma passagem para o paraíso se o olho direito fosse o primeiro a ser consumido. Se fosse o esquerdo, não era assim tão auspicioso.

Não pude deixar de pensar nisso agora, e na descrição do autor das curiosas torres de pombos da Pérsia, cada qual com um fundo poço central para coleta de guano, cuja produção era o único motivo para manter as aves.

Poderia haver, me perguntei, alguma estranha conexão entre torres, aves, morte e deterioração? Quando parei lá por um instante, tentando pensar qual poderia ser ela, um som peculiar veio flutuando da torre.

De início pensei que poderiam ser os murmúrios e arrulhos de pombos entre eles, lá no alto do pombal. Ou seria o vento?

Parecia prolongado demais para ser alguma dessas coisas, subia e descia como o som de uma fantasmagórica sirene de ataque aéreo, quase no limite da audição.

A porta de madeira desconjuntada estava entreaberta, e descobri que eu podia me esgueirar facilmente para dentro do centro oco da torre. Tock passou roçando pelos meus tornozelos, depois desapareceu nas sombras à procura de camundongos.

A forte fedentina do lugar me esbofeteou o rosto: o inconfundível cheiro químico do guano de pombo, que o grande Humphry Davy descobrira que produzia, por destilação, carbonato de amônia, com um resíduo de carbonato de cálcio e sal comum — descoberta que eu certa vez verificara por experimento no meu laboratório químico em Buckshaw.

Muito acima da minha cabeça, incontáveis raios de sol oblíquos entrando através das aberturas salpicavam as paredes curvas com pontos de luz amarela. Era como se eu tivesse entrado na peneira em que algum gigante passara os ossos de sua sopa. Aqui dentro, o som lamentoso era ainda mais alto, um turbilhão de ruídos amplificados pelas paredes circulares, das quais eu era o próprio centro. Eu não poderia ter gritado, mesmo se me atrevesse.

No centro da sala, em volta de um antigo pilar de madeira, havia um tablado móvel, algo como uma escada de biblioteca, que outrora devia ter sido usado pelos criadores para ter acesso às pequenas aves condenadas.

A coisa rangeu assustadoramente quando pisei nela.

Subi, centímetro por centímetro, agarrando-me pela minha vida, esticando braços e pernas para dar passos gigantes impossíveis de uma trave rangedora para a seguinte. Olhei para baixo só uma vez, e aquilo fez minha cabeça girar.

Quanto mais eu subia, mais alto ficava o som lamuriento, seus ecos agora chegando juntos em um coro de vozes que pareciam se congregar em algum tipo de lamento gritante e selvagem.

Acima de mim e à esquerda, havia uma abertura em arco que dava para um nicho maior do que os outros. Ficando na ponta dos pés e me segurando na borda de tijolos com a ponta dos dedos, fui capaz de me içar até meus olhos ficarem no mesmo nível do piso daquela gruta.

Lá dentro, havia uma mulher ajoelhada, de costas para mim. Ela estava cantando. Sua voz aguda ecoava nos tijolos e turbilhonava em volta da minha cabeça:

 

O passarinho flutuou

E com os ventos oscilou;

Em doce canção se embalou,

Feliz no balanço sonhou

Na embarcação que o acalentou.

 

Era a sra. Ingleby!

Na frente dela, em uma caixa tombada, ardia uma vela, acrescentando seu odor fumacento ao calor sufocante da pequena caverna de tijolos. A sua direita estava encostada a fotografia em preto e branco de uma criança: seu filho morto, Robin (que é um nome de passarinho), sorria alegremente para a câmera, o cabelo loiro alvejado quase ao branco pelo sol de longos dias de verão. A sua esquerda, tombado de lado como se tivesse sido arrastado para a praia para que o livrassem das cracas, havia um veleiro de brinquedo.

Prendi a respiração. Seria bom ela não ver que eu estava ali. Eu desceria de novo bem devagar e...

Minhas pernas começaram a tremer. Eu já não conseguia me segurar com muita firmeza, e minhas solas de couro estavam escorregando na estrutura de madeira envelhecida. Quando comecei a descer, deslizando, a sra. Ingleby deu início a mais um lamento, a uma outra canção, e, estranhamente, sua voz era outra: um gorgolejar áspero, fanfarrão, de pirata:

 

Então foi-se o valente passarinho,

Mas seu coração está bem vivinho,

A ele bebamos três vezes vinho!

 

E deixou escapar uma horrível gargalhada fanhosa.

Icei-me de novo na ponta dos pés, bem a tempo de vê-la torcer a rolha de uma garrafa alta e transparente e tomar um rápido e vacilante gole. Me pareceu ser gim, e era fácil ver que ela estava fazendo aquilo havia algum tempo.

Com um prolongado e trêmulo suspiro, enfiou a garrafa de volta, embaixo de um monte de palha, e acendeu uma vela nova na chama minguante da que estava morrendo. Grudou-a com pingos de cera ao lado de sua companheira esgotada.

E agora começava mais uma canção, esta em um tom menor, mais sombrio; cantava mais devagar, mais como um canto fúnebre, pronunciando cada palavra com uma clareza terrível, exagerada:

 

Passarinho mau, que quer ceia tão meiga,

Seu desjejum terá com corda e manteiga,

Convidando os seus amigos que aproveitam

E com tais feitos sinistros se deleitam.

 

Corda e manteiga? Feitos sinistros?

De repente me dei conta de que meu cabelo estava totalmente eriçado, como quando Felinha esfregou seu pente preto de ebonite no suéter de caxemira e aproximou-o da minha nuca. Mas enquanto eu ainda tentava calcular quão rápido eu poderia me arrastar de volta para baixo pela estrutura de madeira e sair correndo, a mulher falou:

— Suba, Flavia. Suba e junte-se a mim no meu pequeno réquiem.

Réquiem?, pensei. Será que eu realmente quero me arrastar para dentro de uma cela de tijolos para ficar com uma mulher que, na melhor das hipóteses, está mais do que um pouco embriagada e que, na pior, é uma maníaca homicida?

Me ergui até a penumbra.

Quando meus olhos se acostumaram à luz da vela, vi que ela usava uma blusa de algodão branco com mangas curtas bufantes e um decote baixo de camponesa. Com seu cabelo negro como penas de corvo e a saia tirolesa de cores vivas, ela facilmente poderia ser confundida com uma cigana cartomante.

— Robin se foi — disse ela.

Aquelas três palavras quase partiram meu coração. Como todo mundo em Bishop’s Lacey, eu sempre pensara que Grace Ingleby vivia em seu próprio mundo privado e isolado: um mundo onde Robin ainda brincava no pátio poeirento, perseguindo galinhas alvoroçadas de cerca a cerca, invadindo a cozinha de vez em quando para implorar por um doce.

Mas não era verdade: ela ficava, como eu, atrás da pequena lápide no pátio da igreja de São Tancredo e lia a inscrição simples: Robin Tennyson Ingleby, 1939-1945. Está dormindo com o Cordeiro.

— Robin se foi — disse ela de novo, agora quase como um gemido.

— Sim — eu disse. — Eu sei.

Partículas de pó flutuavam como pequenos mundos nos traços de lápis de uma luz solar que penetrava a obscuridade da câmara. Me sentei na palha.

Quando fiz isso, um pombo se ergueu ruidosamente de seu ninho e saiu através da pequena janela em arco. Meu coração quase parou. Eu pensava que os pombos tinham partido havia muito, e quase sentei em cima daquele bicho bobo.


Então foi-se o valente passarinho,

Mas seu coração está bem vivinho,

A ele bebamos três vezes vinho!

 


— Eu o levei para perto da praia — prosseguiu Grace, acariciando o pequeno veleiro, ignorando a ave. — Robin adorava a praia, você sabe.

Juntei os joelhos embaixo do queixo e os envolvi com os braços.

— Ele brincava na areia. Estava construindo um castelo de areia.

Houve um longo silêncio, e vi que seus pensamentos foram levados para algum lugar.

— Vocês tomaram sorvete? — perguntei, como se fosse a pergunta mais importante do mundo. Não consegui pensar em mais nada.

— Sorvete? — Ela assentiu com a cabeça. — Eles nos deram em copinhos de papel... pequenos copos de papel pontudos. Nós queríamos de baunilha... nós dois adorávamos baunilha, Robin e eu. É engraçado, mas...

Ela suspirou.

— Quando nós comíamos, tinha gosto de chocolate... como se eles não tivessem lavado a colher direito.

Balancei a cabeça sabiamente.

— Às vezes isso acontece — eu disse.

Ela estendeu a mão e tocou no veleiro de novo, passando os dedos sobre seu casco liso e pintado. E então soprou a vela.

Ficamos sentadas um instante em silêncio, entre os salpicos de luz do sol que se infiltravam na caverna de tijolos vermelhos. O útero devia ser assim, pensei. Quente. Esperando alguma coisa acontecer.

— Por que você está aqui? — ela perguntou por fim. Notei que não arrastava as palavras como antes.

— O vigário mandou algumas pessoas para acampar no Campo Jubileu. Ele me pediu para mostrar o caminho.

Ela segurou meu braço.

— Gordon sabe? — perguntou ela.

— Acho que sim — respondi. — Ele disse ao vigário que não haveria problemas se eles acampassem no fim do caminho.

— No fim do caminho. — Ela soltou um longo e lento suspiro. — Sim, não haveria problemas, não é?

— É um espetáculo itinerante de marionetes — eu disse. — As Marionetes de Porson. Eles vão fazer uma apresentação no sábado. Foi o vigário que pediu. A van deles enguiçou, entende, e...

Fui dominada por uma súbita inspiração.

— Por que vocês não vão? — perguntei. — Todos da aldeia estarão lá. Vocês podem sentar comigo e...

A sra. Ingleby olhava para mim, horrorizada.

— Não! — disse ela. — Não! Eu não posso fazer isso.

— Talvez você e o sr. Ingleby possam ir e...

— Não!

Ela se pôs de pé com esforço, levantando uma grossa nuvem de resíduos, e por alguns momentos, enquanto aquilo remoinhava a nossa volta, ficamos perfeitamente quietas, como figuras de um globo de neve em um peso de papéis.

— É melhor você ir — ela disse de repente com voz rouca. — Por favor, vá embora já.

Sem mais uma palavra, saí tateando até a abertura, os olhos lacrimejando por causa da poeira. Com um esforço surpreendentemente pequeno, fui capaz de descer pela estrutura de madeira e começar o longo caminho para baixo.

Tenho de admitir que João e o pé de feijão passaram pela minha cabeça.


O pátio da fazenda estava deserto. Dieter descera para o rio com Rupert e Nialla, e a essa altura já deviam ter acampado. Se eu tivesse sorte, poderia chegar a tempo para uma xícara de chá. Me sentia como se tivesse passado a noite acordada.

Que horas seriam, afinal?

Que Deus me cegue com um garfo de peixe! O trem de tia Felicity era esperado às dez e cinco, e eu me esquecera completamente! O pai faria tiras elásticas com as minhas tripas.

Mesmo que tia Felicity já não estivesse bufando na plataforma e espumando pela boca, como diabos eu chegaria a Doddingsley? Eram uns bons dez quilômetros desde a fazenda Culverhouse, mesmo em linha reta como o voo de um corvo, e, até onde eu sabia, eu não estava prestes a criar asas.

Desci correndo o caminho, girando os braços como um moinho de vento, como se aquilo pudesse me impelir a uma velocidade maior. Felizmente era descida o tempo todo, e, quando cheguei lá embaixo, avistei a van de Rupert estacionada entre os salgueiros.

Dieter abrira o capô da Austin e estava fuçando em suas entranhas. Nialla pendurava uma camisa nos arbustos para secar. Gordon Ingleby não estava visível, nem Sally Straw.

— Primeira oportunidade que tive para aproveitar o velho sol — disse Nialla para mim. — Dieter está dando uma olhada no motor. Por que você demorou tanto?

— Que horas são? — perguntei numa súplica.

— Como é que eu vou saber? — respondeu ela. — Rupert é o único que tem um relógio, e ele foi para algum lugar.

Como ele sempre faz. Ela não pronunciou essas palavras, mas o significado foi tão claro como se as tivesse gritado de cima do Big Ben.

— Dieter? — perguntei.

Dieter sacudiu a cabeça.

— Sinto muito. Fiquei proibido de possuir um durante tanto tempo que...

— Com licença — interrompi —, mas tenho de esperar um trem.

Antes que eles pudessem responder, eu já disparava pelo caminho de sirgagem em velocidade máxima. Foi uma corrida fácil ao longo do velho aterro que margeava o limite meridional do Campo Jubileu, e, surpreendentemente, em poucos minutos eu estava pulando as alpondras para chegar ao pátio da igreja.

O relógio da torre da igreja marcava vinte para as quatro, o que era impossível: aquela coisa idiota provavelmente havia parado durante o reinado de Henrique VIII, e ninguém se dera ao trabalho de fazê-lo funcionar de novo.

Gladys, a minha confiável bicicleta BSA, estava exatamente onde eu a havia deixado, ao lado do salão paroquial. Parti a toda para Buckshaw.

Enquanto passava em disparada pela esquina de Spindle Lane, o relógio embutido na parede da Treze Patos mostrava que era ou meio-dia ou meia-noite. Receio ter deixado escapar uma palavra um tanto rude.

Saí da aldeia como o vento, em direção sudoeste, rumo a Buckshaw, até por fim chegar aos Portões Mulford, onde Clarence Mundy estava sentado esperando, encarapitado em cima de um dos para-lamas de seu táxi, tragando avidamente um cigarro. A julgar pela quantidade de pontas na rua, deu para perceber que não era o primeiro.

— Olá, Clarence — eu disse. — Que horas são?

— Dez horas — disse ele dando uma olhada para seu elaborado relógio de pulso militar. — Melhor embarcar.

Ele engatou a marcha quando subi, e partimos como um rojão.

Enquanto avançávamos através de caminhos e sebes, Clarence manipulava a alavanca de câmbio como se fosse um encantador de serpentes lidando com uma naja obstinada, agarrando sua cabeça a cada poucos segundos e empurrando-a para algum novo quadrante da bússola. Fora da janela, os campos passavam como um borrão verde cada vez acelerando mais, até eu sentir vontade de gritar “Iu-huuu!”, mas me controlei.

Durante a guerra, Clarence pilotara os enormes hidroplanos Sunderland, patrulhando sem cessar o vasto Atlântico à procura de submarinos alemães, e enquanto passávamos praticamente voando, espremidos entre as sebes, ele parecia ainda imaginar-se nos controles de um daqueles monstros. A qualquer momento, pensei, ele vai puxar o volante para trás, e decolaremos para os ares. Talvez, durante a nossa ascensão para o céu de verão, possamos até capturar um vislumbre de Harriet.

Antes de se casar com o pai, Harriet pilotara seu próprio Havilland Gipsy Moth, que ela batizara de Espírito Alegre, e eu às vezes a imaginava flutuando sozinha lá em cima à luz do sol, mergulhando e emergindo em vales túrgidos de cúmulos, sem dar satisfações a ninguém, exceto ao vento.

Clarence parou, derrapando numa ponta da plataforma da ferrovia de Doddingsley no momento em que o trem entrava fumegando na outra extremidade.

— Dez e cinco — ele disse, olhando de relance para o relógio. — Em ponto.

Como eu previa, a primeira passageira a descer do vagão foi tia Felicity. Apesar do calor, ela usava um casaco comprido de automobilista, de cor clara, e um grande capacete de cortiça colonial, amarrado embaixo do queixo com uma larga fita azul. Um sortimento de objetos se projetava de sua pessoa em todas as direções: alfinetes de chapéu, cabos de guarda-chuva, revistas enroladas, jornais, assentos portáteis e assim por diante. Ela parecia um ninho de pássaro com pernas ou então um monte de feno ambulante.

— Vá pegar minha bagagem, Clarence — disse ela —, e cuidado com o aligátor.

— Aligátor? — exclamou Clarence, e suas sobrancelhas se ergueram.

— A bolsa — disse tia Felicity. — É nova, da Harrods, e eu não quero vê-la arruinada por algum camponês desajeitado em uma plataforma ferroviária esquecida por Deus.

— Flavia — ela disse —, você pode carregar minha bolsa de água quente.


DOGGER NOS RECEBEU NA PORTA DA FRENTE. Ele pescou no bolso um porta-moedas de pano e ergueu as sobrancelhas para Clarence.

— Dois xelins — disse Clarence —, ida e volta, incluindo a espera.

Enquanto Dogger contava as moedas, tia Felicity inclinou-se para trás e correu os olhos pela fachada da casa.

— Chocante — disse. — Este lugar está se deteriorando cada vez mais, a olhos vistos.

Eu não achei que fosse meu papel contar a ela que quando se tratava de despesas o pai quase já não sabia o que fazer. A casa na verdade pertencera a Harriet, que morrera jovem, inesperadamente e sem se preocupar em fazer um testamento. Agora, por causa do que o pai chamava de “complicações”, parecia improvável que fôssemos capazes de continuar em Buckshaw por muito tempo.

— Leve as malas para o meu quarto, Dogger — disse tia Felicity, voltando o olhar para a terra —, e cuidado com o aligátor.

— Sim, srta. Felicity — disse Dogger, com um cesto de vime já embaixo de cada braço e uma mala em cada mão. — Harrods, ao que me parece.


— A tia Felicity chegou — eu disse, entrando na cozinha com um andar indolente. — De repente não estou com muita fome. Acho que só quero um sanduíche de alface, e vou comer no meu quarto.

— Você não vai fazer nada disso — disse a sra. Mullet. — Eu preparei uma bela salada de gelatina de carne, com beterrabas e tudo o mais.

Fiz uma careta horrível, mas, quando ela inesperadamente olhou para mim, me lembrei do subterfúgio de Nialla e com habilidade a transformei em um bocejo, cobrindo a boca com a mão.

— Desculpe. Acordei muito cedo hoje — eu disse.

— Eu também. Infelizmente.

— Eu estava na fazenda dos Ingleby — contei.

— Foi o que ouvi dizer — disse ela.

Que droga! Por que a sra. Mullet não virava uma pedra? Será que não havia nada que escapasse a seus ouvidos?

— A sra. Richardson me contou que você estava ajudando aquele pessoal dos bonecos, aquela mulher com cabelo de Judas e aquele sujeito capenga.

Cynthia Richardson. Eu devia ter adivinhado. Obviamente a presença dos titereiros soltara sua língua.

— O nome dela é Nialla — eu disse —, e o dele é Rupert. Ela é uma excelente pessoa, na verdade. Faz álbuns de recortes, ou pelo menos costumava fazer.

— Está tudo muito bem, querida, mas você vai ter de...

— Encontrei a sra. Ingleby também — persisti. — De fato, tivemos uma conversinha muito interessante.

A sra. Mullet começou a lavar os pratos de salada mais devagar, e parou. Ela mordera a isca.

— Uma conversinha? Com ela? Ah! Deve ser sexta-feira, dia de beber! Pobre alma — acrescentou depressa, como se tivesse pensado melhor.

— Ela falou sobre o filho, Robin — eu disse, oferecendo-lhe uma migalha de verdade.

— Ora, baboseiras!

— Ela disse que Robin se foi.

Aquilo foi demais até para a sra. Mullet.

— Que ele se foi? Eu diria que sim. Há cinco anos ou mais está tão morto quanto uma maçaneta de porta. Morto e enterrado. Me lembro do dia em que ele foi encontrado, pendurado pelo pescoço no Bosque Gibbet. Era uma segunda-feira, dia de lavar roupa, e eu tinha acabado de pendurar um monte no varal quando Tom Batts, o carteiro, apareceu no portão. “Sra. Mullet”, ele me disse, “é melhor se preparar para ouvir más notícias”. “É o meu Alf!”, eu disse, e ele disse “Não, é o jovem Robin, o menino de Gordon Ingleby”, e UUFFF!, eu perdi o fôlego, assim sem mais. Achei que ia...

— Quem o encontrou? — interrompi. — O jovem Robin, quero dizer.

— Ora, Meg, a Louca, foi ela. Ela mora lá no Bosque Gibbet. Ela viu um brilhinho embaixo de uma árvore. É como ela chama qualquer pedaço velho de metal que encontra, “um brilhinho”, então ela foi lá pegá-lo e viu que era uma dessas pazinhas de brinquedo, dessas que você leva para a praia, e um baldinho de lata, também, lá jogados no meio do mato.

A mãe de Robin o levou para a praia, eu estava a ponto de dizer, mas me contive a tempo. Me lembrei de que um mexerico interrompido atrai mais mexericos: como moscas para um ímã, como a própria sra. Mullet comentara certa vez sobre um assunto completamente diferente.

— E então ela o viu, balançando, pendurado pelo pescoço naquela velha forca — ela prosseguiu. — A cara dele estava horrível, como um melão que ficou preto.

Eu estava começando a lamentar não ter levado meu caderno.

— Quem o matou? — perguntei bruscamente.

— Ah — disse ela —, aí é que está. Ninguém sabe.

— Ele foi assassinado?

— Com tudo isso, até pode ter sido. Mas, como eu disse, ninguém sabe com certeza. Eles fizeram o que chamam de “inquerência” na biblioteca: é a mesma coisa que uma “autopistia” em linguagem poética, diz Alf. O dr. Darby se levantou e disse que o rapazinho foi enforcado, e era tudo o que ele podia dizer. Meg, a Louca, disse que ele foi possuído pelo Diabo, mas você sabe como ela é. Eles chamaram os Ingleby e aquele alemão que dirige o trator deles, Dieter, é como ele se chama, e também Sally Straw. Tapados como o burrico de Dorothy, todos eles. Inclusive a polícia.

A polícia? É claro!

A polícia certamente teria investigado a morte de Robin Ingleby, e, se o que eu imaginava estava certo, meu velho amigo inspetor Hewitt estava envolvido naquilo.

Bem, o inspetor não era exatamente um velho amigo, mas não fazia muito tempo eu o ajudara em uma investigação na qual ele e seus colegas estavam completamente confusos.

Antes de confiar nos boatos que a sra. Mullet ouvira na aldeia, eu obteria os fatos diretamente da fonte, por assim dizer. Tudo o que eu precisava era de uma oportunidade para ir de bicicleta até a delegacia de polícia em Hinley. Eu apareceria por acaso, bem na hora do chá.


Quando passei de bicicleta pela igreja de São Tancredo, não pude deixar de me perguntar como Rupert e Nialla estariam se arranjando. Bem, pensei, enquanto freava e fazia meia-volta, eu não demoraria muito a descobrir.

Mas a porta do salão paroquial estava trancada. Dei-lhe uma boa chacoalhada e uma porção de batidas fortes, mas ninguém a abriu. Será que eles ainda estariam na fazenda Culverhouse?

Empurrei Gladys através do pátio da igreja até a margem do rio e a ergui para atravessar as alpondras. Embora estivesse coberto de vegetação em alguns pontos, e profundamente sulcado, o caminho de sirgagem me levou depressa ao Campo Jubileu.

Nialla estava sentada embaixo de uma árvore, fumando, com Dieter a seu lado. Ele se pôs de pé assim que me viu.

— Bem, bem — disse ela. — Vejam só o que o gato trouxe. Achei que você estaria na igreja.

Nialla esmagou furiosamente a ponta do cigarro contra o tronco de uma árvore.

— Imagino que nós também deveríamos estar — disse ela —, mas Rupert ainda não encontrou o caminho de volta.

Aquilo me pareceu um tanto estranho, já que presumivelmente Rupert não conhecia ninguém nas vizinhanças de Bishop’s Lacey. O quê, ou quem, poderia tê-lo segurado por tanto tempo?

— Talvez ele tenha saído para buscar alguma coisa da van — eu disse, notando que o capô da Austin agora estava fechado e travado.

— O mais provável é que ele tenha saído só para se aborrecer um pouco — disse Nialla. — Ele faz isso de vez em quando. Às vezes ele só quer ficar sozinho por algum tempo. Mas ele se foi há horas.

— Dieter acha que o viu seguindo naquela direção — acrescentou ela, apontando com um dedo por cima do ombro.

Voltei-me e encarei com interesse renovado o Bosque Gibbet.

— Flavia — disse Nialla. — Deixe pra lá.

Mas não era Rupert que eu queria ver.


Mantendo-me nas terras relvadas nos limites do campo, consegui evitar as plantações de linho enquanto me arrastava firmemente para cima. Não era uma escalada difícil demais para mim, mas para Rupert, com a perna em um aparelho de ferro, devia ter sido uma tortura.

O que teria levado aquele homem a escalar a Colina Gibbet até o alto? Teria ele alguma intenção de arrastar Meg para longe do mato cerrado e exigir que ela devolvesse o pó compacto de borboleta de Nialla? Ou estaria amuado, sentindo-se ameaçado pela bela aparência loira de Dieter?

Eu poderia pensar em mais uma dúzia de razões, porém nenhuma fazia muito sentido.

Acima de mim, o Bosque Gibbet se agarrava ao topo da Colina Gibbet como um solidéu verde. Quando me aproximei e entrei embaixo dos ramos daquela antiga floresta, foi como penetrar em uma pintura de Arthur Rackham. Ali, na obscuridade verde e turva, o ar estava azedo com o odor de decomposição: de fungos e bolor das folhas, de humo preto, de podridão escorregadia e de cascas carcomidas por besouros. Teias de aranha brilhavam suspensas como pequenas partículas de luz entre os tocos de árvores apodrecidas. Embaixo dos antigos carvalhos e árvores recobertas de liquens, campânulas despontavam das sombras profundas por entre samambaias, e ali, no outro lado da clareira, avistei as folhas serrilhadas da mercuriallis perenis venenosa que, quando mergulhada na água, produzia um lindo veneno azul-anil que eu uma vez transformara na brilhante cor vermelha de sangue arterial, simplesmente adicionando uma solução a dois por cento de ácido hidroclorídrico.

Pensei com prazer em como a amônia e os amidos liberados pelo profundo composto no solo da floresta proviam um perfeito banquete para os fungos carnívoros, que os convertiam em nitrogênio, que então armazenavam em seu protoplasma, onde serviria como alimento de bactérias. Parecia um mundo perfeito: um mundo em que a cooperação era um fato da vida.

Inspirei profundamente, sugando o odor penetrante e azedo para dentro dos pulmões e saboreando o cheiro químico de decomposição.

Mas aquele não era momento para reflexões prazerosas. O dia avançava depressa, e eu ainda tinha de encontrar meu caminho para o coração do Bosque Gibbet.

Quanto mais longe eu ia por entre as árvores, mais silencioso ele ficava. Agora, até mesmo as aves mostravam-se estranhamente quietas. Este bosque, Dafi me contara, fora outrora uma floresta real onde, muitos séculos atrás, reis da Inglaterra haviam caçado o javali selvagem. Depois, a peste negra levara a maioria dos habitantes da pequena aldeia que crescera embaixo de sua periferia.

Estremeci um pouco quando, alto nos galhos acima de mim, as folhas se agitaram caprichosamente, mas se aquilo foi pela rápida passagem dos fantasmagóricos caçadores reais ou dos espíritos conturbados das vítimas da peste (enterradas em algum lugar por perto?), eu não soube dizer.

Tropecei em uma elevação e joguei os braços para a frente, para me proteger. Um toco apodrecido de madeira coberta de musgo era tudo o que havia entre o humo e eu, e o agarrei instintivamente.

Quando recuperei o equilíbrio, vi que aquela madeira já tinha sido quadrada, não redonda. Não era nenhum galho ou tronco de árvore, mas uma viga cortada e corroída pelo tempo, que fora carcomida até virar algo parecido com um coral cinzento. Ou massa cerebral petrificada.

Minha mente reconheceu aquilo antes que eu o fizesse: só aos poucos me dei conta de que estava me agarrando desesperadamente aos restos apodrecidos do velho patíbulo.

Aquele era o lugar onde Robin Ingleby morrera.

A parte de trás dos meus braços se arrepiou, como se eles estivessem sendo acariciados por pingentes de gelo.

Larguei aquela coisa e dei um passo para trás.

A não ser pelo arcabouço e um conjunto de degraus quebrados, pouca coisa restara da estrutura. O tempo e o clima haviam desagregado tudo menos uma ou duas tábuas do piso, reduzindo a plataforma a uns poucos restos do esqueleto que se projetavam para fora dos espinheiros como os ossos da caixa torácica de um gigante.

Foi então que ouvi as vozes.

Eu possuo, como já disse, uma audição aguçada, e, enquanto estava ali embaixo das ruínas da forca, tive consciência de que havia alguém falando, embora o som viesse de uma certa distância.

Girando o corpo lentamente no lugar e colocando as mãos em concha atrás das orelhas como refletores improvisados, determinei depressa que as vozes vinham de algum lugar a minha esquerda e, com passos cautelosos, me arrastei em sua direção, movendo-me silenciosamente de árvore em árvore.

De repente o arvoredo começou a escassear, e precisei tomar um grande cuidado para me manter fora de vista. Espiando por trás do tronco de um freixo, me vi no limite de uma grande clareira que ficava bem no coração do Bosque Gibbet.

Ali, uma plantação tinha sido cultivada, e um homem de chapéu surrado e roupas de trabalho capinava laboriosamente entre fileiras de plantas bem espaçadas.

— Bem, eles estão por toda parte — dizia ele para alguém que eu ainda não podia ver. — Atrás de cada mourão de cerca... se escondendo embaixo de cada maldita meda de feno.

Quando ele tirou o chapéu para enxugar o rosto e o topo de cabeça com um lenço colorido, vi que quem falava era Gordon Ingleby.

Seus lábios, em um rosto envelhecido, tinham a surpreendente tonalidade carmesim do que o pai chamava de um “temperamento sanguíneo”, e enquanto eu olhava ele limpou o cuspe que saíra com suas palavras iradas.

— Ah! Os céus puseram espiões em cima de nós — disse a outra pessoa com uma voz dramática: uma voz que reconheci imediatamente como a de Rupert.

Ele estava reclinado na sombra embaixo de um arbusto, fumando um cigarro.

Meu coração quase parou de bater! Ele teria me avistado?

Melhor ficar quieta, pensei. Não mover nem um músculo. Se eu for pega, vou fingir que estava procurando Rupert e que me perdi no bosque, como a menina dos Cachinhos Dourados. Como há nelas algo que soa como verdade, as pessoas sempre se deixam enganar por desculpas de contos de fadas.

— O sr. Morton esteve por aqui de novo na semana passada, falando uma porção de besteiras para o Dieter. Bisbilhotando, mais provavelmente.

— Você é mais esperto do que todos eles, Gordon. Eles têm tijolos no lugar do cérebro.

— Pode ser que sim — retrucou Gordon — e pode ser que não. Mas como eu lhe contei, é o fim da linha. É onde Gordon desembarca.

— Mas, e quanto a mim, Gord? E quanto ao resto de nós? Vamos simplesmente ficar pendurados?

— Seu bastardo! — bradou Gordon, erguendo a enxada no ar como um machado de batalha e avançando dois passos ameaçadores. Ele ficou instantaneamente lívido.

Rupert pôs-se de pé desajeitadamente, estendendo um braço na defensiva à sua frente.

— Desculpe, Gord. Eu não quis dizer isso. Foi só uma expressão. Eu não pensei.

— Não, você não pensou, não é? Você nunca pensa. Você não sabe como é viver na minha pele dia e noite. Viver com uma mulher morta e o fantasma de uma criança “pendurada”!

Uma mulher morta? Poderia ele estar falando da sra. Ingleby?

Bem, seja como for, uma coisa parecia perfeitamente clara: aquela não era uma conversa entre dois homens que se encontraram pela primeira vez de manhã. Do jeito que soava, Gordon e Rupert já se conheciam havia muito, muito tempo, sem dúvida.

Eles ficaram ali parados por alguns momentos, encarando-se mutuamente, sem saber o que dizer.

— É melhor eu ir voltando — disse Rupert, afinal. — Nialla fica preocupada.— Ele se virou e caminhou até o outro lado da clareira, depois desapareceu no bosque.

Depois que ele se foi, Gordon enxugou o rosto de novo, e vi que suas mãos estavam tremendo quando puxou do bolso da camisa uma bolsa de tabaco e um pacote de papel de cigarro. Ele enrolou um cigarro tosco, deixando cair fragmentos de tabaco com a pressa, depois enfiou a mão no bolso da calça para pegar um isqueiro de latão e acendeu o cigarro, inalando profundamente a fumaça e exalando tão devagar que tive certeza de que ele devia estar sufocando.

Em um tempo surpreendentemente curto, ele terminou. Esmagando a ponta no chão com o salto da bota, pôs a enxada no ombro e foi embora.

Esperei cerca de dez minutos para ter certeza de que ele não voltaria, depois fui rapidamente até o lugar onde ele estivera. Da terra embaixo da marca de seu calcanhar, não tive dificuldade em recuperar os remanescentes empapados do cigarro. Arranquei um par de folhas de uma das plantas e, usando-as como uma luva térmica improvisada, recolhi a ponta, enrolei-a duas vezes em uma folha nova e enfiei a coisa no fundo do meu bolso. Rupert, também, deixara diversas baganas embaixo do arbusto onde estivera sentado. Estas eu igualmente recuperei e acrescentei às outras. Só então refiz meus passos através do bosque e voltei pela encosta da Colina Gibbet.


Nialla e Rupert estavam encarapitados em um par de estacas podres, deixando a água corrente refrescar seus pés descalços. Dieter não estava visível em lugar nenhum.

— Ah, vocês estão aí! — eu disse, alegremente. — Eu estava procurando-os por toda parte.

Tirei os sapatos, descalcei as meias e juntei-me a eles. O sol descambava no céu vespertino. Provavelmente já era tarde demais para ir de bicicleta a Hinley. Quando eu chegasse lá seriam mais de cinco horas, e o inspetor Hewitt teria encerrado o seu dia.

Minha curiosidade teria de esperar.

Para um homem que fora recentemente ameaçado com a lâmina de uma enxada afiada, Rupert estava com um bom humor notável. Pude ver seu pé encarquilhado se agitando na água como um peixinho pálido logo abaixo da superfície.

Ele se inclinou, mergulhou dois dedos no rio e, com um piparote, lançou alegremente algumas gotas de água na minha direção.

— É melhor você correr para casa, para uma refeição decente e uma boa noite de sono. Amanhã é o grande dia.

— Certíssimo! — eu disse, pondo-me de pé. — Não perderia isso por nada neste mundo. Eu simplesmente adoro espetáculos de marionetes.


DE ALGUM MODO, deu para sobreviver ao jantar, e a mesa foi tirada. Estávamos sentados em volta dela apenas aguardando que alguém pensasse em uma desculpa para irmos cada qual para o seu lado: o pai para os seus selos, Dafi para a biblioteca, Felinha para o seu espelho, tia Felicity para um dos remotos quartos de hóspedes, e eu para o laboratório.

— E como anda Londres hoje em dia, Lissy? — perguntou o pai.

Como menos de uma quinzena se passara desde que viajara para lá atrás de alguma exposição de selos, ele sabia perfeitamente como estava Londres. Aquelas viagens, no entanto, ele sempre tratava como operações militares estritamente confidenciais. O pai preferiria ser assado a deixar que tia Felicity soubesse que ele estivera na metrópole.

— Ela ainda tem todos os dentes — ele costumava nos dizer — e sabe como usá-los.

O que significava, disse Felinha, que ela queria tudo do seu jeito. Dafi disse que aquilo significava que ela era uma tirana empapada de sangue.

— Londres? — disse tia Felicity. — Londres é sempre a mesma: toda fuligem, pombos e o primeiro-ministro Clement Attlee. Apenas uma maldita escassez após a outra. Eles deveriam ter homens com redes para capturar aquelas crianças que a gente vê em Kensington e treiná-las para operar as usinas elétricas de Battersea e Bankside. Com um tipo de gente melhor nos comandos, a força poderia não falhar com tanta frequência.

Dafi, que por causa da companhia não era autorizada a ler durante o jantar, estava sentada à mesa bem na minha frente, deixando que seus olhos se movessem lenta e dolorosamente de um lado para outro, como se seu cérebro tivesse acabado de morrer, e os nervos ópticos e músculos estivessem em seus últimos espasmos. Eu não lhe concedi a satisfação de um sorriso.

— Não sei aonde vai parar este mundo — prosseguiu a tia Felicity. — Tremo só de pensar nas pessoas que encontramos hoje em dia; aquele homem no trem, por exemplo. Você o viu na plataforma, Flavia?

Sacudi a cabeça.

— Nem eu — continuou ela —, mas acredito que ele ficou para trás porque pensou que eu apitaria para chamar o guarda. Ficou enfiando a cabeça na cabine o tempo todo desde Londres, perguntando se já tínhamos chegado a Doddingsley. E era um indivíduo de aparência esquisita. Remendos de couro nos cotovelos e uma bandana em volta do pescoço, como um grosseiro dançarino apache de Paris. Isso não devia ser permitido. Por fim, tive de colocá-lo no seu lugar. Quando o trem parou completamente, e a tabuleta do lado de fora da janela dizia “Doddingsley”, eu disse a ele “Agora sim estamos em Doddingsley, não antes!”.

Agora parecia que o cérebro de Dafi não apenas morrera, mas tinha começado a coagular. Seu olho direito revirou para um canto, enquanto o outro parecia a ponto de explodir e saltar da cabeça.

Era um efeito no qual ela estava trabalhando havia anos: a capacidade de esbugalhar os olhos em duas direções diferentes ao mesmo tempo.

— Um toque da velha exoftalmia — explicara ela uma vez, e eu implorara que me ensinasse o truque. Pratiquei na frente do espelho até minha cabeça rachar, mas nunca consegui nada além de uma ligeira protuberância lateral.

— Deus age de modos misteriosos para Suas maravilhas realizar — disse ela quando relatei meu fracasso.

De fato. Só de pensar nas palavras de Dafi, me ocorreu uma ideia.

— Me dão licença? — perguntei, já empurrando a cadeira para trás. — Esqueci de dizer as minhas orações esta manhã. É melhor eu cuidar disso agora.

Os olhos de Dafi descruzaram, e o queixo dela caiu. Eu gostaria de pensar que foi por admiração.


Quando destranquei a porta e entrei no meu laboratório, o microscópio Leitz que outrora pertencera ao tio-avô Tar me lançou um brilho de latão de boas-vindas. Ali, perto da janela, eu seria capaz de ajustar seu espelho refletor para focalizar um raio tardio do sol através da platina para a lente do microscópio.

Recortei uma amostra em forma de losango de uma das folhas que trouxera daquela que agora eu considerava a Plantação Secreta do Bosque Gibbet e coloquei-a em uma lâmina de vidro sob a lente.

Enquanto manipulava o foco, com o instrumento regulado em uma magnificação de cem vezes, descobri quase instantaneamente o que estava procurando: os cistólitos farpados que se projetavam como espinhos da superfície da folha. Virei a folha ao contrário com uma pinça que eu surrupiara de um estojo de maquiagem de madrepérola de Felinha. Se estivesse certa, haveria um número ainda maior daqueles filamentos em forma de garras do lado de baixo; e eles estavam lá! Entrando e saindo de foco sob o focinho da lente. Fiquei lá sentada por alguns momentos, olhando para aqueles cabelos pétreos de carbonato de cálcio que, eu me lembrei, tinham sido descritos pela primeira vez por Hugh Algernon Weddell, o grande botânico e viajante.

Mais para me divertir do que por qualquer outra razão, coloquei a folha em um tubo de ensaio, no qual decantei algumas pitadas de ácido hidroclorídrico diluído e depois o arrolhei e dei uma sacudida vigorosa. Segurando contra a luz, pude ver as pequenas bolhas de dióxido de carbono se formando e subindo para a superfície quando o ácido reagiu com o carbonato de cálcio dos pequenos aguilhões.

O teste, no entanto, não era conclusivo, pois os cistólitos estavam às vezes presentes em certas urtigas, por exemplo. A fim de confirmar meus achados, eu precisaria ir um pouco além.

Eu era eternamente grata ao tio Tar, que, antes de morrer, em 1928, adquirira uma assinatura vitalícia da Extratos & Relatórios Químicos, a qual, talvez porque os editores nunca tivessem sido informados de sua morte, ainda chegava pontualmente todos os meses à mesa do vestíbulo em Buckshaw.

Montes desses atraentes exemplares, cada edição com uma capa azul no tom exato de um céu de meados de março, estavam agora empilhados em todos os cantos do meu laboratório, e foi entre eles (na verdade em uma das edições de 1941), que encontrei uma descrição do então recém-descoberto teste de Duquenois-Levine. Era a minha própria variação desse procedimento que eu estava prestes a realizar.

Primeiro precisaria de uma pequena quantidade de clorofórmio. Como eu havia usado a última garrafa disponível para uma fracassada exibição de fogos de artifício no gramado sul de Buckshaw em comemoração ao aniversário de Joseph Priestley em março, teria primeiro de manufaturar um novo suprimento.

Uma rápida incursão embaixo da escada (no armário de material de limpeza da sra. Mullet) resultou em uma lata de pó branqueador à base de cloro, e em sua despensa uma garrafa de puro extrato de baunilha.

Novamente segura no andar de cima, no laboratório, tranquei a porta e arregacei as mangas.

A lata de Bleachitol, na realidade, nada mais era que hipoclorito de cálcio. Será que se hipoclorito de cálcio tivesse outro nome, me perguntei, teria um cheiro tão doce? Aquecido com acetona a uma temperatura entre 200 e 260 graus centígrados, ou até ocorrer a reação de halofórmio, um clorofórmio bastante decente poderia depois ser extraído dos sais de acetato por simples destilação. Essa parte era, como costumam dizer, café-pequeno.

— Iuhuuu! — gritei, quando despejei os resultados em uma garrafa marrom e enfiei a rolha.

Em seguida, misturei meia colher de chá de extrato de baunilha com algumas gotas de acetaldeído (que, por ser volátil e ferver à temperatura ambiente, tio Tar ponderadamente armazenou embaixo de uma camada de argônio, em uma garrafa selada), depois virei a mistura para dentro de uma proveta limpa na qual eu já havia medido seis colheres de chá e meia de etanol, o velho e simples C2H5OH. Este, eu surrupiara do aparador do pai, onde ficara sem ser aberto por séculos depois de lhe ter sido trazido de presente por um colega filatelista que fora designado para a Rússia pelo Ministério das Relações Exteriores.

E agora o palco estava preparado.

Colocando uma amostra fresca de uma das folhas em um tubo de ensaio limpo, adicionei algumas gotas do meu preparado alcoólico-vanilínico (que pensei em chamar de reagente Duquenois-Levine-de-Luce) e, depois de aguardar um minuto, apenas uma pitadinha de ácido hidroclorídrico.

Novamente, como no meu teste anterior, pequenas bolhas subiram no tubo quando o dióxido de carbono foi formado, mas dessa vez o líquido no tubo de ensaio assumiu depressa uma tonalidade roxo-azulada.

Excitada, adicionei à mistura duas gotas do meu clorofórmio caseiro, o qual, não sendo solúvel em água, prontamente foi ao fundo.

Quando aquilo se estratificou em duas camadas distintas (o clorofórmio límpido no fundo e o roxo-azulado do reagente de Duquenois flutuando em cima dele), dei-lhe uma boa mexida com um bastão de vidro e, prendendo a respiração, aguardei que se precipitasse uma última vez.

Não demorou muito tempo. Agora a camada de clorofórmio assumira a cor de sua camada superior: o malva de uma equimose oculta.

Como eu já havia suspeitado qual seria o resultado, não me dei ao trabalho de gritar “Eureca”.

Não era pastinaca que Gordon Ingleby estava cultivando na sua clareira secreta: era cânhamo-da-índia!

Eu havia lido sobre aquilo em uma separata do ensaio de O’Shaughnessy Sobre O Preparo do Cânhamo-da-Índia, ou Gunjah; Seus Efeitos Sobre o Sistema Animal na Saúde, e Sua Utilidade no Tratamento do Tétano e Outras Doenças Convulsivas, um exemplar que eu encontrara escondido em uma das gavetas da escrivaninha do tio Tar.

Será que o tio Tar estava usando cânhamo-da-índia? Será que isso explicaria seu súbito e espetacular afastamento de Oxford quando jovem?

A gunjah, ou bhang, era conhecida havia muito tempo como substituta do ópio, e o próprio dr. Shaughnessy relatara ser um grande sucesso em seu uso para tratar um caso de convulsão infantil.

E o que mais era a paralisia infantil de Rupert, pensei, senão convulsões musculares que se prolongariam cruelmente o dia inteiro, todos os dias, até o fim de sua vida?

Testar as pontas dos cigarros que Gordon e Rupert tinham fumado foi quase um anticlímax. Os resultados foram o que eu sabia que seriam. Depois que lavei e guardei os objetos de vidro (argh! como eu detesto lavar!), escrevi no meu caderno:


Sexta-feira, 21 de julho de 1950, 21h50

Teste Duquenois-Levine de folhas e restos de

cigarros do Bosque Gibbet indica presença de

cânhamo-da-índia (Cannabis sativa). Gordon

Ingleby cultiva (e fuma) a substância. Ouvi

seu comentário de que era “o fim da linha”

para ele. O que ele quis dizer? Quem são

“o resto de nós” de que Rupert falou? Quem

é “a mulher morta”? Poderia ser a sra.

Ingleby? O que quer que esteja acontecendo

na Fazenda Culverhouse, Rupert Porson é

parte disso.


“E com isso...”, como aquele homem, Pepys, teria escrito, “para a cama.”


Mas não consegui dormir. Fiquei deitada um longo tempo, olhando para o teto, ouvindo as cortinas sussurrar mansamente uma para a outra na brisa noturna.

Em Buckshaw, o tempo não passa como em outros lugares. Em Buckshaw, o tempo parece ser controlado não por aquelas frenéticas, apressadas rodinhas dentadas no relógio do vestíbulo, que giram como hamsters em suas gaiolas fechadas, mas pelas grandes e solenes engrenagens que conseguem se arrastar dando uma única volta completa por ano.

Como eu poderia estar tão contente, me perguntei de súbito, quando alguém que eu conhecia pessoalmente estava se escondendo na torre escura de um pombal?

O que me fez pensar imediatamente, é claro, no Rei Lear. O pai nos levara para ver John Gielgud no papel-título em Stratford-upon-Avon, e, embora Gielgud estivesse maravilhoso, eram as palavras do pobre Tom, o mendigo de Bedlam na charneca tempestuosa (na verdade Edgar, disfarçado), que ainda soavam em meus ouvidos:

 

O filho Roland chegou à torre escura;

Sua palavra ainda era Fi, fo e fum!

Cheiro o sangue de um inglês comum!

 

— Shakespeare plagiou isso de João e o pé de feijão? — sussurrei ao ouvido de Dafi. — Ou o conto de fadas é que tinha tomado emprestadas as palavras de Shakespeare?

— Nenhum dos dois — sussurrou ela em resposta. — Ambos plagiaram Leve consigo para Saffron Walden, de Thomas Nashe, que, como foi representada em 1596, antecede aos dois.

Minha boa Dafi. Há momentos em que eu quase poderia perdoá-la por me odiar.

Bem, Rupert estará apresentando sua própria versão de João e o pé de feijão daqui a apenas poucas horas. Eu poderia até aprender alguma coisa com isso.

Depois de algum tempo, me levantei, me vesti e me esgueirei para fora.


Encontrei Dogger sentado em um banco que dava para o lago ornamental e para a folly.

Ele estava vestido como na noite anterior: terno escuro, sapatos bem engraxados e uma gravata que dizia muita coisa para os que estão por dentro.

A lua cheia subia no céu como um grande queijo prateado, e Dogger estava sentado muito reto, o rosto voltado para cima, como se estivesse se aquecendo aos seus raios, segurando um guarda-chuva preto acima da cabeça.

Me esgueirei silenciosamente para o banco a seu lado. Ele não olhou para mim, nem eu para ele, e ficamos sentados por algum tempo, como um par de solenes e vetustos astrônomos estudando a lua.

Depois de algum tempo, eu disse:

— Não está chovendo, Dogger.

Em algum lugar, durante a guerra, Dogger fora exposto a chuvas torrenciais e impiedosas; chuvas para as quais não havia abrigo nem escapatória. Ou, ao menos, foi o que a sra. Mullet me contou.

— Ele se sente muito reconfortado embaixo de seu guarda-chuva, querida — disse ela. — Mesmo quando os cães ofegam na poeira.

Lentamente, como um boneco mecânico, Dogger estendeu a mão para cima e soltou a trava no cabo do guarda-chuva, permitindo que a armação e o tecido à prova d’água se dobrassem como as asas de um morcego, até o seu antebraço ficar envolvido em preto.

— Você sabe alguma coisa sobre poliomielite? — perguntei afinal.

Sem desviar os olhos da lua, Dogger disse:

— Paralisia infantil. Doença de Heine-Medin. Paralisia matinal. Repouso absoluto. Pelo menos foi o que me disseram — acrescentou, olhando para mim pela primeira vez.

— Mais alguma coisa?

— Agonia — disse ele. — Agonia absoluta.

— Obrigada, Dogger. As rosas estão lindas este ano. Você trabalhou um bocado com elas.

— Obrigado por dizer isso, senhorita. As rosas são lindas todos os anos. Com Dogger ou sem Dogger.

— Boa noite — eu disse, me levantando do banco.

— Boa noite, srta. Flavia.

A meio caminho através do gramado, parei e olhei para trás. Dogger erguera de novo o seu guarda-chuva e estava sentado embaixo dele, com as costas retas como Mary Poppins, sorrindo para a lua de verão.


— POR FAVOR, NÃO SAIA PERAMBULANDO por aí hoje, Flavia — disse o pai depois do café da manhã. Eu o encontrara inesperadamente na escada.

— A sua tia Felicity quer examinar alguns papéis da família e pediu que você esteja com ela para ajudar a erguer as caixas.

— Por que Dafi não pode fazer isso? — perguntei. — Ela é a especialista em bibliotecas e coisas assim.

Isso não era inteiramente verdade, já que eu estava encarregada de uma magnificente biblioteca vitoriana de química, isso sem falar nas toneladas de papéis do tio Tar.

Eu esperava simplesmente não ter de mencionar o espetáculo de marionetes, que seria apenas dali a algumas horas. Mas o Dever superou a Diversão.

— Daphne e Ophelia foram para a aldeia despachar algumas cartas. Estão almoçando lá e depois vão a Fosters dar uma olhada no pônei de Sheila.

As covardes! Aquelas maquinadoras miseráveis!

— Mas eu prometi ao vigário — eu disse. — Ele está contando comigo. Eles estão tentando levantar dinheiro para alguma coisa... oh, nem sei o quê. Se eu não estiver na igreja às nove, Cynthia... quero dizer, a sra. Richardson, terá de vir me buscar em seu carro Oxford.

Como eu esperava, aquele golpe um tanto baixo realmente fez o pai vacilar.

Vi suas sobrancelhas se franzir enquanto ele sopesava as opções, que eram poucas: ceder graciosamente ou correr o risco de ficar cara a cara com o Naufrágio do Hesperus.

— Você não é confiável, Flavia — disse ele. — Não é nada confiável.

É claro que eu era! Era uma das coisas de que eu mais gostava em mim mesma. Não se espera que pessoas de onze anos sejam confiáveis. Nós já passamos da idade de ser bonequinhas: a idade em que as pessoas se inclinam por cima de nós e nos cutucam na barriguinha e fazem ruídos idiotas que soam como “cuti-cuti-cuti”; só de pensar nisso já sinto vontade de vomitar. No entanto, ainda não estamos na idade em que todo mundo sempre nos confunde com adultos. O fato é que somos invisíveis, exceto quando escolhemos não ser.

No momento, eu não era. Estava ligada no facho bravio do olhar de tigre do pai. Pisquei os olhos duas vezes: apenas o suficiente para não ser desrespeitosa.

Percebi o instante em que ele se abrandou. Vi em seus olhos.

— Ora, está bem — ele disse, benevolente mesmo na derrota. — Vá correndo. E transmita meus cumprimentos ao vigário.

Pintem-me com bolinhas! Eu estava livre! Simples assim!


Os pneus de Gladys cantavam alto sua canção de contentamento enquanto chispávamos pelo asfalto.

— Summer is icumen in — gorjeei para o mundo. — Lhude sing cuccu! 1

Uma vaca Jersey ergueu os olhos do seu pasto, e eu fiquei de pé sobre os pedais, fazendo-lhe uma breve mesura ao passar.

Parei do lado de fora do salão paroquial, bem quando Nialla e Rupert caminhavam através do capim alto, nos fundos do pátio da igreja.

— Dormiram bem? — gritei para eles, acenando.

— Como os mortos — respondeu Rupert.

O que descrevia exatamente a aparência de Nialla. Seu cabelo pendia em longas mechas sem lavar, e os círculos escuros em volta dos olhos vermelhos me lembraram de uma coisa na qual prefiro não pensar. Ou ela cavalgara com bruxas a noite inteira de campanário em campanário, ou ela e Rupert haviam tido uma tremenda briga.

O silêncio dela me contou que tinha sido Rupert.

— Bacon fresco... ovos frescos — prosseguiu Rupert, esmurrando o peito vigorosamente, como Tarzan. — Isso prepara um homem para o dia.

Sem nem dar uma olhada para mim, Nialla passou rapidamente e mergulhou no salão paroquial — para o banheiro das mulheres, imaginei.

Naturalmente, fui atrás dela.

Nialla estava de joelhos, gritando “Uééé!” para dentro do vaso de porcelana, chorando e vomitando ao mesmo tempo. Eu tranquei a porta.

— Você está esperando um bebê, não está? — perguntei.

Ela ergueu os olhos para mim, a boca escancarada, o rosto lívido.

— Como você soube? — ofegou ela.

Eu quis dizer “Elementar”, mas sabia que aquele não era o momento para petulâncias.

— Eu fiz um teste de lisossomos no lenço que você usou.

Nialla pôs-se em pé com dificuldade e me agarrou pelos ombros.

— Flavia, você não pode deixar transpirar nem uma palavra sobre isso! Nem uma palavra! Ninguém sabe, a não ser você.

— Nem Rupert? — perguntei. Eu mal podia acreditar.

— Especialmente Rupert — disse ela. — Ele vai me matar se souber. Prometa. Por favor, Flavia... prometa!

— Pela minha honra — eu disse, erguendo três dedos no cumprimento da organização Guia das Meninas. Embora eu tivesse sido expulsa dessa organização por insubordinação (entre outras coisas), senti que dificilmente seria necessário compartilhar os revoltantes detalhes com Nialla.

— Foi uma sorte incrível estarmos acampados no campo. Devem ter nos ouvido a quilômetros de distância, do jeito que nos pegamos violentamente. Foi por causa de mulher, claro. É sempre por causa de mulher, não é?

Aquilo ia além da minha especialidade, mas ainda assim tentei parecer atenta.

— Rupert nunca precisa de muito tempo para mirar num rabo de saia. Você viu: estávamos no Campo Jubileu havia menos de um minuto quando ele se meteu no meio do mato com aquela caipira, Sarah, ou qualquer que seja seu nome.

— Sally — eu disse.

Embora fosse uma ideia interessante, eu sabia que a verdade era que Rupert estivera fumando cânhamo-da-índia no Bosque Gibbet com Gordon Ingleby. Mas dificilmente eu podia contar isso a Nialla. Sally Straw não estava visível em lugar nenhum.

— Achei que você tivesse dito que ele tinha ido ver alguma coisa sobre a van.

— Oh, Flavia, você é tão...

Ela mordeu a língua na última hora.

— É claro que eu disse isso. Você não ia querer que eu lavasse nossa roupa suja na frente de um estranho.

Ela estava se referindo a mim ou a Dieter?

— Rupert sempre se lambuza de fumaça, tentando encobrir o cheiro das suas vagabundas. Posso sentir o cheiro nele. Mas fui longe demais — ela acrescentou tristemente. — Abri a van e joguei nele a primeira coisa que me caiu nas mãos. Não devia ter feito isso. Era a nova marionete de João: fazia semanas que ele estava trabalhando nela. A velha estava ficando meio desconjuntada, sabe, e parecia que se desmancharia no pior momento possível. Como eu — gemeu ela, e vomitou de novo.

Desejei poder ser útil, mas aquela era uma dessas situações em que um espectador não pode fazer nada para ajudar.

— Ele ficou acordado a noite inteira, tentando consertar aquela coisa.

Pelas marcas recentes no pescoço dela, vi que Rupert havia feito mais naquela noite do que consertar uma marionete.

— Ah, eu queria estar morta — gemeu ela.

Ouvimos uma batida na porta: uma sequência rápida de batidas, toc-toc-toc-toc.

— Quem está aí? — perguntou uma voz feminina, e meu coração se encolheu. Era Cynthia Richardson.

— Deve haver outras pessoas querendo usar o toalete — ela gritou. — Por favor, tenha mais consideração pelas necessidades dos outros.

— Já vai, sra. Richardson — eu gritei. — Sou eu, a Flavia.

Maldita mulher! Como eu poderia fingir que estava me sentindo mal?

Agarrei a toalha de algodão que estava pendurada na argola ao lado da pia e dei uma esfregada vigorosa no rosto. Senti o sangue subindo no momento em que fazia isso. Me descabelei, fiz correr um pouco de água da torneira, que esfreguei pela minha testa vermelha, e deixei que um fio de cuspe escorresse de um jeito horrível no canto da boca.

Então puxei a descarga e destranquei a porta.

Enquanto aguardava que Cynthia a abrisse, como eu esperava, vi um relance de mim mesma no espelho: eu era a imagem perfeita de uma vítima de malária cujo médico acabara de entrar para telefonar para o agente funerário.

Quando a maçaneta girou e a porta se moveu para dentro, dei dois passos vacilantes para o corredor, estufando as bochechas como se estivesse a ponto de vomitar. Cynthia se encolheu contra a parede.

— Sinto muito, sra. Richardson — eu disse, trêmula. — Acabei de passar mal. Deve ter sido alguma coisa que eu comi. Nialla foi muito gentil... Mas acho que com um pouco de ar fresco vou ficar bem.

E passei por ela cambaleando, com Nialla atrás de mim. Cynthia não deu nem uma olhadinha para ela.


— Você é assustadora — disse Nialla. — Realmente é. Sabia disso?

Estávamos sentadas em cima de uma lápide no pátio da igreja enquanto eu aguardava que o sol secasse meu rosto febril. Nialla pôs de lado o seu batom e vasculhou a bolsa à procura de um pente.

— Sim — eu disse sem rodeios. Era verdade, não adiantava negar.

— A-há! — disse uma voz. — Então, aqui está você!

Um homenzinho elegante de calça esporte, jaqueta e uma camisa de seda amarela vinha rapidamente em nossa direção. Seu pescoço estava envolvido por um lenço cor de malva, e um cachimbo apagado projetava-se de seus dentes. Ele dava passos cautelosos para um lado e para outro, tentando não pisar diretamente em algumas das sepulturas mais afundadas.

— Ah, meu Deus! — gemeu Nialla sem mover os lábios, e depois para ele: — Olá, Mutt. Ponto facultativo na casa dos macacos, é?

— Onde está Rupert? — perguntou ele. — Lá dentro?

— Que prazer em vê-la, Nialla — disse Nialla. — Como você está adorável hoje, Nialla. Esqueceu suas boas maneiras, Mutt?

Mutt, ou quem quer que fosse ele, girou nos calcanhares em cima da grama e saiu marchando até o salão paroquial, ainda prestando atenção onde pisava.

— Mutt Wilmott — Nialla me explicou. — O produtor de Rupert na BBC. Eles tiveram uma briga feia na semana passada, e Rupert virou as costas e saiu bem no meio dela. Deixou Mutt falando sozinho com a Titia... a Empresa, quero dizer. Mas como diabo ele nos encontrou? Rupert achou que estaríamos muito seguros aqui. “Rusticando no campo”, como ele disse.

— Ele desceu do trem em Doddingsley ontem de manhã — eu disse, dando um salto de dedução, mas sabendo que estava certa.

— É melhor eu entrar — suspirou Nialla. — Vai haver um espetáculo pirotécnico.

Mesmo antes de chegarmos à porta, ouvi a voz de Rupert se elevar furiosamente no salão reverberante.

— Tanto faz o que disse Tony. Ele que vá se sentar em cima de uma brocha, e, pensando melhor, você também, Mutt. Foi a última vez que vocês cagaram e andaram em cima de Rupert Porson. Vocês todos.

Quando entramos, Rupert estava a meio caminho de descer a pequena escada que levava ao palco. Mutt achava-se em pé no meio do salão, com as mãos na cintura. Ninguém pareceu notar nossa presença.

— Ora, pare com isso, Rupert. Tony tem todo o direito de lhe apontar quando você passou dos limites. E ouça o que eu digo, Rupert, dessa vez você passou dos limites, e por uma boa margem. Está tudo muito bem para você mexer num vespeiro e depois se esquivar das consequências, excursionando com o seu showzinho. É o que você sempre fez, não é? Mas dessa vez você pelo menos lhe deve a cortesia de ouvi-lo.

— Eu não devo ao Tony nem um assobio de padre.

— É aí que você se engana, meu velho. De quantas encrencas ele já livrou você?

Rupert não disse nada enquanto Mutt as contava nos dedos.

— Bem, vejamos: houve aquele pequeno incidente com o Marco. Depois houve aquele com Sandra Paisley, uma coisa desagradável. E então o caso com Sparkman e Blondel, que custou um saco de dinheiro para a Titia, custou mesmo. Isso para não falar do...

— Cale a boca, Mutt!

Mutt prosseguiu em seus cálculos:

— ... para não falar daquela garota em Beckenham... como era mesmo o nome dela... Lulu? Lulu, pelo amor de Deus!

— Cale a boca! Cale a boca! Cale a boca!

Rupert estava surtando. Ele desceu tempestuosamente os degraus com a sua perna dura, o aparelho retinindo de modo assustador. Dei uma olhada para Nialla, que de repente ficara pálida e paralisada como o retrato de uma Madona. Estava com a mão na boca.

— Entre no seu maldito Jaguar, homenzinho, e dirija diretamente para o inferno! — rosnou Rupert. — Deixe-me em paz!

Mutt não se intimidou. E embora eles estivessem agora nariz com nariz, ele não cedeu nem um centímetro. Em vez disso, catou um fiapo imaginário na manga de sua jaqueta e fingiu que o acompanhava flutuar até o chão.

— Não vá de carro, meu velho. Vá de trem. Você sabe tão bem quanto eu que a Titia está cortando despesas, pense no Festival da Inglaterra no ano que vem, e tudo mais.

Os olhos de Rupert se arregalaram quando ele viu Nialla.

— Quem lhe contou que estávamos aqui? — berrou ele, apontando. — Ela?

— Calma, calma — disse Mutt, a voz se elevando pela primeira vez. — Não comece a querer culpar Nialla. De fato, foi uma sra. Qualquer Coisa, bem aqui em Bishop’s Lacey. O menino dela viu sua van perto da igreja e correu para casa, para dizer à mamãe que prenderia a respiração até arrebentar se não tivesse as Marionetes de Porson na festa do seu aniversário. Mas quando ele conseguiu arrastá-la de volta, você já tinha ido embora. Ela fez um interurbano para a Titia, e a operadora a transferiu para a secretária de Tony. Ele me disse para vir e levá-lo de volta imediatamente. E aqui estou eu. Fim da história. Então, não queira pôr a culpa em Nialla.

— Você está muito à vontade com Nialla, não é? — irritou-se Rupert. — Se insinuando e...

Mutt pôs a palma da mão sobre o peito de Rupert.

— E já que estamos falando nisso, Rupert, é melhor eu lhe dizer que se você encostar um dedo que seja nela de novo, eu vou...

Rupert afastou brutalmente a mão de Mutt.

— Não me ameace, seu vermezinho nojento. Não faça isso se der valor a sua vida!

— Cavalheiros! Cavalheiros! O que é isso? Vocês precisam parar com isso imediatamente.

Era o vigário. Ele estava no vão da porta aberta, uma figura escura contra a luz do dia. Nialla passou por ele e fugiu. Eu fui depressa atrás dela.


— Cara senhora — disse o vigário, estendendo uma bandeja de coleta de latão entalhado. — Experimente um sanduíche de pepino e alface. Dizem que é um calmante extraordinário. Fui eu mesmo que fiz.

Ele mesmo fez? Será que uma guerra doméstica tinha sido declarada no presbitério?

Estávamos de novo do lado de fora, no pátio da igreja, muito perto do local onde eu encontrara Nialla pela primeira vez, chorando com o rosto voltado contra a lápide. Tinha sido havia apenas dois dias? Parecia uma eternidade.

— Não, obrigada, vigário — disse Nialla. — Já estou me sentindo eu mesma de novo, e tenho coisas a fazer.


O almoço foi uma verdadeira provação. Como as janelas do salão tinham sido cobertas por cortinas pretas para escurecer o ambiente para o espetáculo, nos sentamos em uma semiobscuridade, enquanto o vigário se alvoroçava com sanduíches e uma jarra de limonada que ele devia ter feito surgir do nada. Nialla e eu estávamos sentadas em uma ponta da primeira fila de cadeiras, com Mutt na outra ponta. Rupert desaparecera nos bastidores algum tempo antes.

— Logo teremos de abrir as portas — disse o vigário, afastando uma ponta da cortina para espiar. — O nosso público já começou a fazer fila, com os bolsos pesados de moedas para a esmola.

Ele consultou o relógio.

— Noventa minutos para subir o pano — ele avisou através das mãos em concha. — Noventa minutos.

— Flavia — disse Nialla —, seja boazinha, vá depressa aos bastidores e diga a Rupert para abaixar o volume da música quando eu começar a falar. Ele estragou tudo em Fringford, e eu não quero que isso aconteça de novo.

Olhei para ela com ar de interrogação.

— Por favor... é um favor que você me faz. Ainda preciso vestir minha roupa, e não estou com muita vontade de vê-lo neste momento.

Na verdade, eu também não estava com muita vontade de ver Rupert. Enquanto eu escalava os degraus para o palco, pensei em Sydney Carton subindo ao patíbulo para encontrar a Madame Guilhotina. Encontrei a abertura nos bastidores pretos pendurados dos dois lados do palco das marionetes e entrei em um outro mundo.

Havia pequenas manchas de luz por toda parte iluminando fileiras de interruptores e controles elétricos, com seus fios e cabos serpenteando em todas as direções. Atrás do palco, tudo descambava em trevas, e o brilho de pequenas lâmpadas, suave como era, tornava impossível enxergar além das sombras.

— Suba — disse uma voz na escuridão acima de mim. Era Rupert. — Há uma escada do outro lado. Cuidado onde pisa.

Tateei o caminho em volta da parte de trás do palco e encontrei os degraus com as mãos. Depois de escalar alguns, me vi em uma plataforma elevada de madeira que passava atrás e acima do palco das marionetes.

Um corrimão reforçado de tubos de metal servia de apoio à cintura de Rupert enquanto ele se inclinava para a frente para operar seus bonecos. Embora eles estivessem virados para o outro lado, e portanto eu não podia ver suas faces, muitos daqueles personagens articulados estavam pendurados em uma vara atrás de mim: uma velha, um homem e um menino, a julgar pelas roupas de camponeses.

De um lado, e ao alcance da mão, estava instalado um gravador de fita magnética, seus dois rolos carregados com uma fita marrom brilhante que, a julgar pela cor, achei que devia ser revestida de uma emulsão de óxido de ferro.

— Nialla pediu para você se lembrar de abaixar o volume da música quando ela começar a falar — sussurrei, como se estivesse contando um segredo.

— Tudo bem — disse ele —, não precisa cochichar. As cortinas absorvem o som. Ninguém pode nos ouvir aqui em cima.

Aquele não era um pensamento especialmente reconfortante. Se ele estivesse predisposto a isso, Rupert poderia pôr suas mãos poderosas em volta do meu pescoço e me estrangular em um silêncio voluptuoso. Ninguém lá na frente perceberia coisa alguma até que nada restasse de mim além de um cadáver flácido.

— Bem, é melhor eu voltar — disse eu. — Estou ajudando com os ingressos.

— Certo — disse Rupert —, mas dê uma olhada nisto antes. Não são muitas as crianças que têm a oportunidade de vir até os bastidores.

Enquanto falava, ele estendeu a mão e girou um grande botão, e as luzes foram se apagando no palco abaixo de nós. Quase perdi o equilíbrio quando o pequeno mundo pareceu se materializar do nada sob meus pés. Me vi subitamente olhando para baixo, como Deus, para campos de sonho com céu azul e colinas verdes pintadas. Aninhado em um vale, havia um chalé de telhado de palha com um banco no quintal e um estábulo decrépito.

Prendi a respiração.

— Você fez tudo isso?

Rupert sorriu e estendeu a mão para outro controle. Quando ele o acionou, a luz do dia se esmaeceu até a escuridão e as luzes subiram nas janelas do chalé.

Embora eu estivesse olhando para tudo aquilo de ponta-cabeça, por assim dizer, lá de cima, senti uma pontada; uma pontada estranha e inexplicável que eu nunca sentira antes.

Senti saudades de casa.

Agora, mais ainda do que antes, quando vira aquilo pela primeira vez, senti vontade de ser transportada para aquela pequena e tranquila paisagem, de subir pelo caminho, de tirar uma chave do bolso e abrir a porta do chalé, para me sentar diante da lareira, para me envolver com meus braços e ficar lá para todo o sempre.

Rupert também se transformara. Vi em seu rosto. Iluminado de baixo, as feições totalmente em paz, suas largas feições relaxadas em um sorriso gentil e benevolente.

Debruçado no cano do corrimão, ele estendeu a mão para baixo e puxou um capuz preto de algodão de cima de um objeto volumoso ao lado do palco.

— Conheça Galligantus, o gigante — disse. — Última oportunidade antes do merecido castigo dele.

Era a face de um monstro, as feições distorcidas em uma expressão de ira perpétua e salpicadas de furúnculos, o queixo coberto de pelos pretos e cinzentos, como tachinhas de carpete.

Soltei um gritinho e dei um passo para trás.

— É só papel-machê — disse Rupert. — Não se assuste, ele não é tão horrendo como parece. Pobre velho Galligantus... Na verdade gosto muito dele. Passamos muito tempo juntos aqui em cima, aguardando o fim do espetáculo.

— Ele é... maravilhoso — eu disse, engolindo em seco. — Mas não tem cordéis.

— Não, na verdade ele não é uma marionete. Não passa de cabeça e ombros. Está pendurado pelo lugar onde deveria ser a cintura, sustentado ereto fora de vista, e... eu garanto a você e não vou repetir: é um segredo profissional.

— Prometo não contar — eu disse.

— No fim da peça, quando João está derrubando o pé de feijão a machadadas, eu só preciso erguer esta barra; ele tem molas, você sabe, e...

Quando ele tocou uma ponta daquilo, uma barrinha de metal subiu voando como um semáforo de ferrovia, e Galligantus tombou para a frente, se esborrachando na frente do chalé, quase ocupando toda a largura do palco.

— Isso nunca deixa de arrancar um gritinho sufocado da plateia — disse Rupert. — Sempre tenho vontade de rir ao ouvir isso. Porém, preciso tomar cuidado para que João e sua pobre e velha mãezinha não fiquem no caminho. Não posso deixar que eles sejam esmagados por um gigante caindo.

Inclinando-se para baixo e agarrando Galligantus pelo cabelo, Rupert o puxou para cima e o travou de volta em posição.

O que surgiu borbulhando inexplicavelmente do fundo da minha memória naquele momento foi um sermão do vigário no começo do ano. Parte do seu texto, extraído do Gênese, era a frase “Naqueles dias, havia gigantes na terra”. No original hebraico, o vigário nos contou, a palavra para gigantes era nefilim, o que, disse ele, significava intimidadores cruéis ou tiranos violentos: não fisicamente grandes, mas sinistros. Não monstros, mas seres humanos repletos de malevolência.

— É melhor eu voltar — eu disse. — Obrigada por me mostrar Galligantus.


Nialla não estava visível em lugar nenhum, e eu não tinha tempo de procurar por ela.

— Ah, minha cara, minha cara — disse o vigário —, nem sei o que sugerir que você faça. Apenas faça-se útil de um modo geral, eu acho.

E foi o que eu fiz. Durante a hora seguinte, conferi os ingressos e encaminhei as pessoas (principalmente as crianças) a seus lugares. Olhei zangada para Bobby Broxton e lhe fiz sinal para que tirasse os pés de cima da cadeira na frente dele.

— Está reservada para mim — chiei ameaçadoramente.

Escalei o balcão da cozinha e encontrei a segunda chaleira, que de algum modo tinha sido enfiada bem atrás na prateleira de cima, e ajudei a sra. Delaney a colocar xícaras vazias e pires sobre uma bandeja de chá. Até subi correndo a rua principal para ir ao Correio trocar uma nota de dez libras por moedas.

— Se o vigário precisa de trocado — disse a srta. Cool, a administradora da agência —, por que ele não arromba aquelas caixas de coleta de papelão da escola dominical? Eu sei que o dinheiro é para as missões, mas ele sempre poderia enfiar notas bancárias lá dentro para substituir o que tirou. Evitaria que ele se aproveitasse de Sua Majestade para angariar centavos, não é mesmo? Mas, por outro lado, os vigários nem sempre têm um espírito tão prático quanto se poderia esperar, não é, querida?

Às duas horas, eu já estava completamente exausta.

Quando por fim me sentei no meu lugar na fileira da frente, bem no centro, a agitação ansiosa da plateia chegou ao clímax. Estávamos com a casa cheia.

Em algum lugar nos bastidores, o vigário apagou as luzes da plateia, e, por alguns momentos, ficamos na escuridão total.

Me recostei na minha cadeira, e a música começou.


1 Esta é uma antiga canção inglesa, que aqui está em inglês medieval. Significa, simplesmente, “o verão chegou e canta alto o cuco”. (N. do T.)


ERA UMA DESSAS COISINHAS DE MOZART: uma dessas melodias que fazem você pensar que já ouviu antes, mesmo que não tenha ouvido.

Eu podia imaginar os rolos do gravador de fita de Rupert girando nos bastidores, os sons da música sendo convocados, por magnetismo, do mundo subatômico do óxido de ferro. Como provavelmente haviam se passado cerca de duzentos anos desde que Mozart a ouvira pela primeira vez em sua cabeça, parecia de certo modo apropriado que os sons da orquestra sinfônica fossem armazenados em nada mais que partículas de ferrugem.

Quando as cortinas se abriram, fui pega de surpresa: em vez do chalé e das colinas idílicas que eu esperava, o palco estava todo preto. Rupert obviamente mascarara o cenário rural com um pano escuro.

Um foco de luz se acendeu lentamente, e bem no centro do palco havia uma espineta em miniatura, as teclas de marfim de seus dois teclados completamente brancas contra a escuridão circundante.

A música foi abaixando, e um silêncio expectante caiu sobre o público. Todos nos inclinamos para a frente, à espera...

Um leve movimento de um lado do palco nos chamou a atenção, e uma figura entrou marchando com confiança para a espineta. Era Mozart!

Vestido com seda verde, rendas no pescoço, meias brancas até os joelhos e sapatos com fivelas, parecia ter saído diretamente do século XVIII através de uma janela para dentro do nosso século. Sua peruca branca perfeitamente empoada emoldurava um rosto rosado e insolente, e ele pôs uma das mãos em pala sobre os olhos, perscrutando as trevas para ver quem tivera a audácia de dar uma risadinha.

Sacudindo a cabeça, foi até seu instrumento, tirou um fósforo do bolso e acendeu as velas: uma em cada ponta dos teclados da espineta.

Uma atuação extraordinária! O público irrompeu em aplausos. Cada um de nós sabia, eu acho, que estávamos testemunhando o trabalho de um mestre.

O pequeno Mozart sentou-se no banco regulável na frente do teclado, ergueu as mãos como se fosse começar... e então estalou ruidosamente as articulações dos dedos.

Uma explosão de gargalhadas subiu da plateia. Rupert devia ter gravado de perto o som de um quebra-nozes, pensei: soava como se o pequeno boneco tivesse esmagado todos os ossos das mãos.

E então ele começou a tocar, as mãos adejando com facilidade por cima das teclas como as lançadeiras em um tear. A música era a Marcha turca, uma melodia animada, forte, que me fez sorrir.

Não há necessidade de descrever tudo: do banco que desabou aos teclados gêmeos que abocanharam os dedos do boneco com os dentes de um tubarão, a coisa toda, do começo ao fim, nos fez rolar de tanto rir.

Quando por fim a pequena figura conseguiu, a despeito de tudo, chegar arduamente ao triunfante acorde final, a espineta recuou, inclinou-se cumprimentando o público e depois dobrou-se perfeitamente para dentro de uma maleta, que o boneco pegou. Ele então marchou para fora de cena sob uma tempestade de aplausos. Alguns de nós até aplaudiram de pé.

As luzes diminuíram de novo.

Houve uma pausa. Um silêncio.

Depois que o público se acalmou, sons de música, uma música diferente, chegaram flutuando aos nossos ouvidos.

Reconheci a melodia imediatamente. Era Manhã, da suíte Peer Gynt, de Edvard Grieg, e me pareceu ser a escolha perfeita.

— Bem-vindos ao País dos Contos de Fadas — disse uma voz feminina quando a música diminuiu, e um foco se acendeu para revelar a mais estranha e singular personagem.

Sentada à direita do palco (devia ter ficado em posição durante os momentos de escuridão, pensei), ela usava um rufo de renda elisabetana, um vestido preto de peregrina com um corpete de renda, sapatos pretos com fivelas quadradas de prata e um minúsculo par de óculos que se equilibravam precariamente na ponta do nariz. O cabelo era uma massa de cachos cinzentos se esparramando debaixo de um chapéu alto e pontudo.

— Meu nome é Mamãe Gansa.

Era Nialla!

Oohs e aahs subiram da plateia, e ela sentou-se, sorrindo pacientemente até toda a excitação serenar.

— Vocês querem que eu lhes conte uma história? — perguntou, com uma voz que não era a de Nialla, mas ao mesmo tempo não era a de ninguém mais.

— Sim! — gritaram todos, inclusive o vigário.

— Então, muito bem — disse a Mamãe Gansa. — Vou começar do início, e continuar contando até chegar ao fim. E então eu vou parar.

Dava para ouvir um alfinete caindo.

— Era uma vez — disse ela —, numa aldeia não muito distante...

Enquanto ela dizia essas palavras, as cortinas de veludo vermelho com suas borlas douradas se abriram lentamente para revelar o aconchegante chalé que eu vislumbrara atrás dos bastidores, mas que agora podia ver com muito mais detalhes: as janelas com vidros em forma de losângo, as malvas-rosa pintadas, a banqueta de ordenhar de três pernas.

— ... onde vivia uma pobre viúva com seu filho, que se chamava João.

Nisso, entrou em cena um menino de calça curta de couro, jaqueta bordada e colete, andando de um modo relaxado e assobiando desafinadamente uma música.

— Mãe! — ele gritou — Você está em casa? Eu quero jantar.

Quando ele se virou para olhar em volta, a mão protegendo os olhos do sol pintado, a plateia inteira inspirou fundo.

O rosto esculpido em madeira de João era uma face que todos nós reconhecemos: era como se Rupert, deliberadamente, tivesse usado como modelo para o rosto do boneco uma fotografia de Robin, o filho morto dos Ingleby. A semelhança era sinistra.

Como uma aragem nos bosques frios de novembro, uma onda de sussurros inquietos varreu o salão.

— Shhh! — fez alguém afinal. Acho que foi o vigário.

Me perguntei como ele devia estar se sentindo ao ser confrontado com o rosto de uma criança que ele sepultara no pátio da igreja.

— João era um menino muito preguiçoso — prosseguiu a Mamãe Gansa. E, como ele se recusava a trabalhar, não se passou muito tempo até que as magras economias de sua mãe estivessem completamente esgotadas. Não havia mais nada para comer em casa, e não restava nem mesmo uma insignificância para a comida.

Então apareceu a pobre viúva, vindo de trás do chalé com uma corda na mão e, na outra ponta da corda, uma vaca. Ambas eram pouco mais que pele e ossos, mas a vaca tinha a vantagem de ter um lindo par de enormes olhos castanhos.

— Vamos ter de vender a vaca para o açougueiro — disse a viúva.

E então os enormes olhos da vaca se voltaram para ela, depois para João e finalmente para o público. Me ajudem!, eles pareciam dizer.

— Aaahhh — disse todo mundo ao mesmo tempo, numa crescente manifestação de simpatia.

A viúva voltou as costas para a pobre criatura e foi embora, deixando o trabalho sujo para João fazer. Assim que ela se foi, um mascate apareceu no portão.

— 'Dia, senhor — disse ele para João. — Você parece um rapazinho esperto, do tipo que pode estar precisando de alguns feijões.

— Pode ser — disse Joãozinho.

— João se achava um negociante astuto — disse a Mamãe Gansa —, e antes que você pudesse dizer “Llanfairpwllgwyngyllgogerychwyrndrobwyllllantysiliogogogoch”, que é o nome de um lugar em Gales, ele já tinha trocado a vaca por um punhado de feijões.

A vaca ficou toda de pernas duras e cravou os calcanhares no chão, enquanto o mascate tentava arrastá-la para fora, e João ficou lá, olhando para o montinho de feijões na palma da sua mão.

Então, de repente, a mãe dele voltou.

— Onde está a vaca? — perguntou. — Seu parvo, imbecil!

E ela lhe deu um chute no traseiro.

Com isso, uma imensa gargalhada veio das crianças na plateia, e tenho de admitir que eu também dei uma risadinha. Estou na idade em que vejo esse tipo de coisa com duas cabeças, uma que ri dessas bobagens e outra que nunca vai além de um sorriso enfastiado e um tanto constrangido, como o da Mona Lisa.

Com aquele pontapé, João realmente saiu voando pelo ar, espalhando feijões por todos os lados.

Agora a plateia em peso rolava de rir.

— Você vai dormir no galinheiro — disse a viúva. — Se ficar com fome, pode ciscar milho.

E dizendo isso ela se foi.

— Ai de mim — disse João, e se esticou em cima do banco ao lado da porta do chalé.

A luz do sol desvaneceu-se muito rápido, e de repente era noite. Uma lua cheia brilhava acima das colinas envolventes. As luzes do chalé estavam acesas, a luz morna e alaranjada se esparramando pelo pátio. João estremeceu em seu sono, mudou de posição e começou a roncar.

— Mas vejam! — disse a Mamãe Gansa. — Alguma coisa está se mexendo no jardim.

Agora a música se tornara mística: o som de uma flauta em um bazar oriental.

Algo se mexia no jardim. E como que por mágica uma coisa que de início parecia um cordão verde, e depois uma corda verde, começou a se erguer serpenteando da terra, se torcendo e se contorcendo como uma naja na cesta de um faquir, até a ponta desaparecer de vista.

Enquanto aquilo se erguia para o céu, e a noite mudava rapidamente para dia, o pé de feijão crescia, cada vez mais depressa, até por fim ficar parecendo uma árvore verde-esmeralda, apequenando o chalé.

Novamente a música era Manhã.

João se espreguiçou, bocejou e rolou desajeitadamente para fora do banco. Com as mãos na cintura, ele se curvou para trás de um modo impossível, tentando relaxar as juntas enrijecidas. E então avistou o pé de feijão.

Recuou como se tivesse levado um soco, lutando para manter o equilíbrio, os pés cambaleando, os braços girando como moinhos de vento.

— Mãe! — gritou. — Mãe! Mãe! Mãe! Mãe!

A velha apareceu imediatamente, vassoura na mão, e João dançou como um louco em volta dela, apontando.

— Os feijões, como vocês veem — disse a Mamãe Gansa —, eram mágicos, e no meio da noite eles cresceram e se transformaram em um pé de feijão que ficou mais alto que as nuvens.

Bem, todo mundo conhece a história de João e o pé de feijão, portanto não é preciso que eu a conte aqui de novo. Na hora seguinte, a história prosseguiu como sempre, há centenas de anos: a escalada de João, o castelo nas nuvens, a mulher do gigante e como ela escondeu João no forno, a harpa mágica, os sacos de prata e ouro... tudo isso estava lá, trazido à vida de forma brilhante pela genialidade de Rupert.

Ele nos manteve presos à palma de sua mão do começo ao fim, como se fosse ele o gigante e todos nós fôssemos o João. Ele nos fez rir e nos fez chorar, e às vezes as duas coisas ao mesmo tempo. Eu nunca tinha visto nada parecido.

Minha cabeça estava trepidando de perguntas. Como Rupert podia operar as luzes, os efeitos sonoros, a música e os cenários do palco ao mesmo tempo que manipulava uma porção de marionetes, provendo cada qual das vozes certas? Como ele fizera o pé de feijão crescer? Como João e o gigante puderam sair perseguindo alegremente um ao outro sem que os cordéis se embaraçassem? Como o sol despontou? E a lua?

A Mamãe Gansa estava certa: os feijões eram mágicos, e nos hipnotizaram, a todos.

E agora se aproximava o final. João descia atabalhoadamente pelo pé de feijão, com sacos de ouro e prata na cintura. O gigante vinha não muito atrás.

— Pare! — trovejou a voz do gigante. — Pare, seu ladrão, pare!

Antes ainda de chegar ao chão, João já estava chamando sua mãe.

— Mamãe! Mamãe! Pegue o machado! — bradou e, arrancando-o das mãos dela, pulou para o chão e começou a golpear furiosamente o tronco do pé de feijão, que parecia se encolher, como se sentisse dor ao contato com a lâmina afiada.

A música atingiu um clímax, e houve um estranho instante em que o tempo pareceu congelar. E então o pé de feijão desabou, e um momento depois o gigante desmoronou para o chão.

Ele caiu no pátio na frente do chalé, o torso imenso fazendo o chalé parecer minúsculo, os olhos vidrados olhando sem vida por cima de nossas cabeças. O gigante estava morto como uma pedra. As crianças gritaram, e até alguns dos pais se puseram de pé.

Era, é claro, Galligantus, o monstro articulado que eu vira antes do espetáculo. Mas eu não tinha ideia de como sua queda e sua morte seriam vistas desse ângulo.

Meu coração batia forte no peito. Foi glorioso!

— E assim morreu Galligantus — disse a Mamãe Gansa —, o gigante cruel. Depois de algum tempo, a mulher dele se sentiu solitária no céu, e encontrou outro gigante para se casar. João e sua mãe, agora ricos além dos seus sonhos mais desvairados, viveram, como todas as pessoas de bem, felizes para sempre. E nós sabemos que todos vocês também, cada um de vocês.

João sacudiu o pó das mãos com displicência, como se matar um gigante fosse uma coisa corriqueira.

As cortinas vermelhas se fecharam lentamente, e, enquanto elas faziam isso, o inferno irrompeu no salão paroquial.

— É o Diabo! — gritou uma voz feminina no fundo do salão. — O Diabo agarrou o menininho e o encolheu! É o Diabo!

Me virei e vi alguém agitando os braços na porta aberta. Era Meg, a Louca. Ela apontava o dedo para o palco e então jogou as mãos para cima, cobrindo o rosto. Naquele momento, as luzes do salão se acenderam.

O vigário apareceu rapidamente a seu lado.

— Não, não! — gritou ela. — Não levem a velha Meg! — Deixem-na em paz!

De algum modo, ele conseguiu passar o braço em volta dos ombros dela e a levou gentilmente, mas com firmeza, para a cozinha do salão, onde por um ou dois minutos sua pobre voz entrecortada pôde ser ouvida gemendo: “O Diabo! O Diabo! O Diabo agarrou o pobre Robin!”.

Um silêncio caiu sobre o lugar. Os pais começaram a encaminhar suas crianças, todas elas agora caladas, para as saídas.

As mulheres da Sociedade Beneficente das Damas deram uma arrumadela a esmo e depois saíram apressadas, provavelmente para mexericar com as mãos sobre a boca, pensei.

Me vi sozinha no salão.

Nialla parecia ter sumido, embora eu não a tivesse visto sair. Como eu podia ouvir um suave murmúrio de vozes nos bastidores, Rupert presumivelmente ainda estava na ponte do seu palco de marionetes.

Foi então que pensei em pôr a física para trabalhar. Como eu disse, os projetistas vitorianos do salão fizeram de seu interior um perfeito refletor de som. As vastas extensões de lambris escuros envernizados do salão capturavam os sons mais sutis e os focalizavam de modo maravilhoso. Ficando de pé bem no centro do salão, descobri que, com minha audição aguçada, podia facilmente entender cada palavra. Uma das vozes que eu ouvira era a de Rupert.

— Mas que inferno! — ele dizia com um sonoro sussurro. — Mas que inferno, Nialla!

Nialla não disse nada, embora eu achasse ter ouvido um soluço.

— Bem, temos de dar um basta nisso. Não há dúvida.

Dar um basta no quê? Teria ela contado que estava grávida? Ou ele estava falando sobre sua discussão com Mutt Wilmott? Ou com Gordon Ingleby?

Antes que eu pudesse ouvir mais uma palavra, a porta da cozinha se abriu, e o vigário entrou no salão com Meg, a Louca, apoiada em seu braço, seguidos por Cynthia e duas damas da Sociedade Beneficente.

— Fora de questão — dizia Cynthia —, totalmente fora de questão. O lugar está simplesmente fedendo a emanações de tinta. Além disso, não temos...

— Infelizmente vamos ter de ir contra você dessa vez, minha querida. Esta pobre mulher precisa de algum lugar para descansar, e não poderíamos simplesmente expulsá-la para...

— Para uma choupana no meio do mato? — perguntou Cynthia com um intenso rubor subindo em suas faces.

— Flavia, minha querida — disse o vigário ao me avistar —, você se importaria de dar uma corrida na frente até o presbitério? A porta está aberta. Faça a gentileza de remover os livros que estão em cima do sofá no meu estúdio... pode colocá-los em qualquer lugar. Deveremos chegar lá em seguida.

Nialla apareceu de repente atrás das cortinas.

— Só um momento, vigário — disse ela. — Eu vou com vocês.

Vi que ela estava se segurando, mas com dificuldade.


O estúdio do presbitério dava a impressão de que Charles Kingsley acabara de pôr de lado a sua pena e sair da sala. As estantes, do chão ao teto, estavam atulhadas de ponta a ponta com volumes que, a julgar pelas encadernações solenes, só poderiam ser de interesse eclesiástico. Uma escrivaninha atravancada, transbordando, cobria a maior parte da única janela da sala, e um sofá de crina de cavalo preta, um verdadeiro Everest de livros empoeirados, estava encostado, num ângulo maluco, em um tapete turco esgarçado.

Eu mal acabara de pôr os livros no chão, Nialla e o vigário chegaram, conduzindo Meg solicitamente para o sofá. Ela parecia entorpecida, conseguindo pronunciar apenas alguns resmungos vagos, enquanto Nialla a ajudava a se reclinar e alisava suas roupas encardidas.

Um momento depois, a presença imponente do dr. Darby preencheu o vão da porta. Alguém devia ter subido às pressas a rua principal para ir buscá-lo em seu consultório.

— Hum — ele arriscou enquanto punha sua valise preta de médico em cima da mesa, abria o fecho e dava uma boa vasculhada lá dentro. Com um ruidoso farfalhar, tirou um saquinho de papel e extraiu lá de dentro uma pastilha de hortelã, que jogou na boca.

Resolvido o detalhe, inclinou-se por cima de Meg para dar uma olhada mais de perto nela.

— Hum — fez de novo, e foi procurar uma seringa na valise. Ele a encheu com alguma coisa tirada de um pequeno frasco de líquido transparente, arregaçou a manga de Meg e enfiou a agulha no braço dela.

Meg não proferiu nenhum som, mas olhou para ele com os olhos de um cavalo atingido por uma marreta. De um guarda-roupa alto no canto, como num passe de mágica, o vigário extraiu um travesseiro e uma manta de lã de cores brilhantes.

— Para os cochilos da tarde — sorriu ele, cobrindo-a com delicadeza, e Meg começou a roncar antes mesmo do último de nós sair silenciosamente da sala.

— Vigário — disse Nialla de repente —, sei que você vai achar isto muito feio da minha parte, mas preciso lhe pedir um grande favor.

— Pode pedir — disse o vigário, com uma olhadela preocupada para Cynthia, que andava de um lado para outro no canto oposto do salão.

— Eu ficaria eternamente grata se você me permitisse tomar um banho quente. Há tanto tempo não tomo um, que me sinto como uma criatura vivendo embaixo de uma pedra.

— Mas claro, querida — disse o vigário. — É lá em cima, no fim do corredor. Pegue sabonete e toalhas.

— E não ligue para o pequeno iate — ele acrescentou com um sorriso. É meu.

Enquanto Nialla subia a escada, um salto de borracha guinchou no assoalho encerado, e Cynthia se foi.

— Cynthia se ofereceu para levá-la de volta a Buckshaw — disse o vigário voltando-se para mim, e percebi imediatamente que ele estava mentindo. — Espero ver você de volta esta noite, com sua família.

— Sim, é claro — disse eu. — Todos estão ansiosos para ver João e o pé de feijão.


Com Gladys precariamente amarrada na capota, nos arrastamos muito devagar pelo caminho, na cansada e poeirenta Oxford. Cynthia, como toda mulher de vigário, tinha a tendência a exagerar no volante, esterçando de um lado para outro em uma série de curvas fechadas entre as sebes.

Sentada ao lado dela no banco da frente, tive uma boa oportunidade de examinar a oclusão defeituosa de seus dentes, de perto e de perfil. Mesmo com a boca fechada, ela exibia uma quantidade notável de dentes, e me vi seriamente repensando minha rebelião contra os aparelhos dentários.

— Tem sempre alguma coisa, não é mesmo? — ela disse de repente, o rosto ainda afogueado por causa da recente humilhação. — A gente está sempre sendo arrastada para fora de casa por causa de alguém mais necessitado. Não que eu me importe, é claro. Primeiro, foram os ciganos. Depois, os removidos de guerra. E, no ano passado, os ciganos vieram de novo. Denwyn foi atrás deles no Bosque Gibbet e convidou pessoalmente cada um deles para comparecer à Santa Eucaristia. Nem um único homem apareceu, é claro. Os ciganos são essencialmente selvagens ou, quem sabe, católicos romanos. Não é que eles não tenham alma; eles têm, claro. Mas a gente sempre sente que a alma deles é muito mais sombria que a nossa.

— Eu me pergunto como Nialla estará indo com seu banho — comentei alegremente, enquanto subíamos a avenida de castanheiras a caminho de Buckshaw.

Cynthia ficou olhando direto para a frente, agarrada ao volante.


— Bobagens! — declarou tia Felicity. — Devemos ir como uma família.

Estávamos na sala de estar, todos espalhados e o mais separados que era humanamente possível.

O pai resmungou alguma coisa sobre álbuns de selos, e vi que Dafi já estava prendendo a respiração numa tentativa de simular uma febre.

— Você e suas meninas precisam sair mais, Haviland. Estão todos pálidos como águas-vivas. É por minha conta. Vou chamar Clarence com seu carro assim que acabarmos de comer.

— Mas... — o pai conseguiu dizer.

— Eu não vou tolerar mais desculpas, Haviland.

Do lado de fora, Dogger estava arrancando as ervas daninhas no terraço. Tia Felicity bateu de leve na vidraça para chamar sua atenção.

— Sim, senhorita? — disse ele, entrando pela porta-janela com o chapéu de palha na mão.

— Telefone para Clarence e diga-lhe que precisamos de um táxi para sete pessoas às seis e meia.

— Às seis e meia, senhorita? — perguntou Dogger, franzindo o cenho.

— É claro — disse tia Felicity. — Ele terá de fazer duas viagens. Suponho que você e a sra. Mullet ficariam aborrecidos se fossem deixados de fora; os espetáculos de marionetes não são apenas para quem tem sangue azul, você sabe.

— Obrigado, senhorita — disse Dogger.

Tentei olhar para seus olhos, mas ele já se fora.


CLARENCE PAROU NA FRENTE DO PÓRTICO às vinte para as sete. Ele deu a volta no táxi para abrir a porta para tia Felicity, que insistira em sentar-se no banco da frente com ele a fim de, como ela disse, ficar de olho nos maus motoristas da estrada.

Ela vestira uma espécie de capa de ópera cômica por cima de um volumoso conjunto de seda vermelha que poderia ter sido surrupiado de um harém persa. Seu chapéu era um saco preto desmoronado, com uma pena de pavão ondulando atrás como a fumaça da chaminé do trem Flying Scotsman; nos pés havia um chinelo medieval amarelo-mostarda, com pontas compridas viradas para cima como um par de bolsas de gelo. O pai e Felinha desceram do outro lado do táxi.

— Agora vá buscar os outros, Clarence — comandou tia Felicity —, e não fique embromando.

Clarence ergueu um dedo indicador para a ponta de seu quepe e, com uma engrenada impertinente, foi embora.

Dentro do salão paroquial, descobrimos que toda a primeira fila de cadeiras tinha sido reservada para nós. Tia Felicity certamente não economizara na aquisição dos ingressos. Ela e o pai sentariam bem no centro, com Felinha e Dafi à esquerda. Eu ficaria à direita do pai, com Dogger e a sra. Mullet (quando chegassem) ao nosso lado.

Já estava tudo pronto. As luzes da plateia haviam sido atenuadas, e havia uma deliciosa expectativa no ar. Música incidental flutuava dos bastidores, e de quando em quando as cortinas de veludo vermelho davam uma tremida sedutora.

Toda a população de Bishop’s Lacey parecia estar presente. Mutt Wilmott, eu vi, estava em um assento encostado à parede perto do fundo. A srta. Cool, uma fileira atrás dele, ouvia Cynthia Richardson, que lhe dava toda a atenção, e atrás dela sentava-se a srta. Mountjoy, sobrinha do falecido dr. Twining, o velho mestre-escola do pai. À direita da srta. Mountjoy, vindos da Fazenda Culverhouse, estavam sentados lado a lado Dieter Schrantz e Sally Straw, a Menina da Terra. Dei-lhes um pequeno aceno, e os dois abriram um sorriso.

— Haroo, mon vieux! Flavia!

Era Maximilian Wight, nosso diminuto vizinho, que, depois de diversas excursões mundiais como concertista de piano, se estabelecera por fim em nossa aldeia para ensinar música. Felinha tinha sido uma de suas alunas, mas abrira mão das aulas quando Max começou a fazer perguntas indiscretas demais sobre seus “amantes”. Max acenou com uma luva branca, e acenei de volta.

Enquanto perscrutava as fileiras de rostos, meus olhos deram uma brecada em uma mulher de cabelo escuro que usava um conjunto de lã verde-acinzentado. Não era ninguém que eu tivesse visto antes e devia ser, pensei, uma estranha em Bishop’s Lacey. Talvez alguém visitando um parente.

O homem ao lado dela reparou no meu olhar e me deu um sorriso simpático: o inspetor Hewitt. Não fazia muito tempo, eu o ajudara a levar um assassino à justiça.

Num segundo, eu estava plantada na frente dele, movendo-me desajeitada de um pé para o outro antes de me dar conta de que provavelmente estava sendo inconveniente.

— Curioso encontrá-la aqui — disse o inspetor. Não foi um comentário especialmente original, mas disfarçava muito bem o que poderia ter sido um momento embaraçoso.

— Antigone — ele disse à mulher de cabelo escuro —, gostaria de apresentar-lhe Flavia de Luce.

Soube com certeza que ela diria: “Ah, sim, meu marido falou de você”, e diria isso com aquele sorrisinho malicioso que tanto revela sobre a conversa divertida que haveria depois.

— Estou encantada em conhecê-la — disse ela, estendendo a mão mais bonita do mundo e dando-me um bom aperto —, e em saber que você compartilha do meu amor por marionetes.

Se ela tivesse dito “Vá buscar”, eu teria ido.

— Adoro o seu nome — consegui dizer.

— É mesmo? Meu pai era grego, e minha mãe, italiana. Ela era professora de balé, e ele, um peixeiro, assim me criei dançando nas ruas de Billingsgate.

Com seu cabelo escuro-dourado e olhos verde-mar, ela era a imagem da Flora de Botticelli, cujas feições adornavam as costas de um espelho de mão que o pai um dia dera a Harriet.

Senti vontade de perguntar: “Em que ilha distante fica o seu santuário, para eu ir lá adorá-la?”, mas apenas continuei jogando o peso do corpo de um pé para o outro e murmurei:

— Foi um prazer conhecê-la, sra. Hewitt. Espero que você e o inspetor Hewitt apreciem o espetáculo.

Quando voltei ao meu lugar, o vigário marchou determinado para a frente do salão e se posicionou diante do palco. Sorriu, indulgente, aguardando Dafi, a sra. Mullet e Dogger voltarem a seus lugares.

— Senhoras e senhores, meninos e meninas, paroquianos de São Tancredo e de outras comunidades, obrigado pela presença de todos vocês. Nesta noite, sentimo-nos honrados em dar as boas-vindas ao renomado artista de marionetes, se ele me permite usar essa nomenclatura ilustre... Rupert Porson.

 

(Aplausos)

— Embora o sr. Porson, ou Rupert, se me permitem, seja mais conhecido hoje em dia por suas atuações na Televisão BBC com O Reino Mágico, que, com certeza, todos vocês sabem, é o mundo de Snoddy, o Esquilo...


(Aplausos)


— ... eu sei, de fonte segura, que ele viajou extensamente, exibindo sua arte manipulativa em todas as suas múltiplas formas e, em pelo menos uma ocasião, se apresentou perante uma das cabeças coroadas da Europa.


(Aplausos)

 

— Mas antes que João venda a vaca da sua pobre mãezinha por um punhado de feijões...

— Pssst! Não entregue a trama, vigário!

(Tully Stoker, o proprietário e senhorio da Treze Patos, foi saudado com grandes gargalhadas, inclusive a sua própria.)

— ... e enquanto o maestro prepara suas cordas encantadas, a Sociedade Beneficente das Damas de São Tancredo tem o prazer de apresentar, para o seu entretenimento musical, as senhoritas Puddock, Lavinia e Aurelia.

Oh, Senhor! Poupai-nos! Por favor, poupai-nos!

Tínhamos sido salvos de ter de ouvi-las durante a matinê unicamente porque sua Casa de Chá São Nicolau as mantivera ocupadas demais para comparecer.

As senhoritas Puddock tinham exclusividade absoluta nos eventos públicos do salão paroquial da igreja de São Tancredo. Não importava se fosse um chá oferecido pela Liga das Senhoras, um carteado da Guilda do Altar, uma Liquidação de Garagem da Sociedade Beneficente ou um show de flores da primavera do Conselho Paroquial, as senhoritas Puddock se apresentavam, no inverno ou no verão, chovesse ou fizesse sol.

A senhorita Lavinia sentava-se na frente do piano, vasculhava sua bolsa e pescava ali finalmente uma partitura esfarrapada: O último assalto de Napoleão.

Depois de uma espera interminável, durante a qual jogava o rosto para a frente até o nariz encostar na partitura, ela se endireitava, a coluna reta como um atiçador de lareira, erguia as mãos acima do teclado, deixava-as cair, dava uma segunda olhada estrábica para a partitura e então atacava, como um urso pardo agadanhando um salmão no jornal cinematográfico da Pathé.

Quando ela acabava, sua irmã, a senhorita Aurelia, tomava posição, as pontas dos dedos enluvadas de branco roçando displicentemente o piano e pipilando (desculpem, mas não existe outra palavra para o que ela fazia) O rio de Bendemeer.

Depois, o presidente anunciava que o Conselho Paroquial votara unanimemente para presentear as senhoritas Puddock com especiais: um prêmio por apreciação, como ele sempre colocava.

E elas saíam!

A senhorita Lavinia, com os olhos cravados na partitura, estava no meio de O último assalto de Napoleão, quando notei pela primeira vez que enquanto ela lia a partitura seus lábios se mexiam. Não pude deixar de me perguntar o que ela estava dizendo. A música não tinha letra; estaria dando nome aos acordes? Ou rezando?

Misericordiosamente, ela entrou naquilo em um galope um pouco mais rápido do que o usual, e logo a coisa terminou, ao menos de certa forma. Notei que os músculos do maxilar de Felinha se contraíam e que Max parecia estar mordendo um caramelo de aço inoxidável.

E agora era a vez da senhorita Aurelia. A senhorita Lavinia martelou os primeiros compassos de uma introdução antes que a irmã se juntasse a ela:

 

Há junto ao rio Bendemeer um caramanchão de rosas

E à sua volta o dia inteiro canta o rouxinol.

Nos meus tempos de infância era como um doce sonho.

(Os tempos de infância da senhorita Aurélia, olhando para ela, deviam ter sido durante o reinado de George III.)

Sentar entre as rosas e ouvir o canto dos passarinhos.

 

Quando ela acabou, houve alguns rudimentos de aplausos polidos; a senhorita Aurelia levantou-se e permaneceu com a cabeça inclinada por alguns momentos, verificando se havia alguma poeira no piano com os dedos e aguardando ser persuadida a um bis. Mas o público, sabendo bem que não devia encorajá-la, se acomodou rapidamente em seus lugares, e alguns de nós cruzaram os braços.

Quando as luzes da plateia se apagaram, me virei para dar uma última olhada no público. Um casal de retardatários acabava de se acomodar. Para meu horror, vi que eram Gordon e Grace Ingleby, ela em seu horrível traje preto de sempre, ele com um chapéu de feltro, pelo amor de Deus! E os dois não pareciam nada felizes por estar ali.

De início, senti a raiva subir e palpitar no meu peito. Por que ninguém os avisara? Por que ninguém se preocupara em mantê-los afastados? Por que eu não fizera isso?

De um jeito maluco, o que surgiu na minha cabeça foi algo que Dafi me disse uma vez: que é obrigação de um monarca constitucional avisar e aconselhar.

Se Sua Majestade Real, o Rei George VI, estivesse entre nós naquela noite, ele seria obrigado a chamá-los de lado e dizer algo sobre o boneco com a face de seu filho morto. Mas ele não estava.

Além disso, já era tarde demais. O salão estava na mais total escuridão. Ninguém além de mim parecia ter notado a presença dos Ingleby.

E então o espetáculo começou. Por causa das intermináveis senhoritas Puddock, imagino, Rupert decidira cortar a cena de Mozart e ir diretamente para a peça principal.

As cortinas de veludo vermelho se abriram, exatamente como haviam feito à tarde, revelando o chalé da viúva. O foco de luz se acendeu para iluminar Nialla em sua fantasia de Mamãe Gansa. Manhã, de Grieg, flutuava no ar, pintando na mente imagens assustadoras de florestas escuras e fiordes gelados.

— Era uma vez, numa aldeia não muito distante — começou Nialla —, onde vivia uma pobre viúva com seu filho, que se chamava João.

E João entra em cena: o João com a cara de Robin Ingleby.

Novamente, a inspiração audível e funda quando algumas pessoas da plateia reconheceram as feições do menino morto. Eu dificilmente me atreveria a me virar e olhar, mas, fingindo que minha saia ficara presa no mecanismo articulado da cadeira, consegui me torcer no lugar apenas o suficiente para lançar uma olhada furtiva na direção dos Ingleby. Os olhos de Grace estavam arregalados e olhando fixo, mas ela não gritou; parecia congelada no lugar. Gordon apertava sua mão, sem que ela notasse.

No palco, o boneco João gritou:

— Mãe, você está em casa? Eu quero jantar.

— João era um menino muito preguiçoso — disse a Mamãe Gansa. — E como ele se recusava a trabalhar, não se passou muito tempo até que as magras economias de sua mãe estivessem completamente esgotadas. Não havia mais nada para comer em casa, e não restava nem mesmo uma insignificância para a comida.

Quando os arquejos e murmúrios se abrandaram, o espetáculo prosseguiu. Rupert estava em boa forma: os movimentos das marionetes eram tão convincentes, suas vozes tão perfeitas, que a plateia logo cedeu ao encantamento, como o vigário sugerira que iria acontecer.

Iluminados pelas luzes coloridas do palco, as faces das pessoas à minha volta eram como as faces de uma pintura de Toulouse-Lautrec, vermelhos, acalorados e profundamente atentos aos pequenos atores de madeira. Enquanto tia Felicity mastigava, excitada, uma bala digestiva de hortelã, notei que até o pai tinha uma expressão meio divertida, porém, não consegui saber se era pelos bonecos ou pela irmã dele.

A cena da vaca, dos feijões e do chute nos fundilhos foi recebida com gargalhadas ainda mais ruidosas do que na apresentação da tarde.

As bocas (e até a de Dafi) se abriram quando o pé de feijão cresceu enquanto João dormia, e as pessoas começaram a se cutucar com os cotovelos, deleitadas. Quando João escalou o pé de feijão para dentro do reino do gigante, Rupert tinha Bishop’s Lacey inteira comendo em sua mão.

Como Mutt Wilmott estaria reagindo a todo esse sucesso?, me perguntei. Ali estava Rupert, obviamente em sua melhor forma em um espetáculo ao vivo (por assim dizer), sem nenhum aparato televisivo, por mais maravilhoso que fosse, entre ele e seu público. Quando me voltei para olhar, vi que Mutt se fora e que o vigário ocupara seu lugar.

E o mais estranho: Gordon Ingleby também não estava lá. Seu lugar achava-se desocupado, mas Grace ainda estava sentada imóvel, com seus olhos vagos fixos no palco, onde a mulher do gigante acabara de esconder João no grande forno de pedra.

— Fi! Fo! Fum! — rugiu o gigante ao entrar na cozinha. — Estou sentindo o sangue de um inglês comum!

— João pulou para fora do forno... — disse a Mamãe Gansa.

— Senhor! Senhor! — gritou a encantadora harpa-marionete, tangendo suas próprias cordas, agitada. Era a parte de que eu mais gostava.

— ... agarrou a harpa de ouro e saiu em disparada, com o gigante logo atrás!

Pé de feijão abaixo João desceu, as folhas verdes ondulando em volta dele. Quando finalmente a vegetação escasseou, o cenário já havia mudado para o chalé de sua mãe. Foi um efeito maravilhoso, e não fui capaz, por mais que tentasse, de descobrir como Rupert conseguira fazer aquilo. Teria de perguntar a ele.

— Mamãe! Mamãe! Pegue o machado! — gritou João, e a velha senhora veio manquilotando pelo jardim (ah, tão devagar!), com o machado nas mãos.

João atirou-se contra o pé de feijão com todas as suas forças, o machado golpeando veloz e furiosamente, o pé de feijão encolhendo de novo, e de novo, como que em agonia por causa da lâmina maldosamente reluzente.

E então, como fizera antes, o pé de feijão cedeu e desmoronou para o chão.

João parecia estar olhando para cima quando, com um ruído retumbante, o gigante despencou do céu e esborrachou-se no chão.

Por alguns momentos o monstro ficou se contraindo espasmodicamente de um modo horrível, um fio de sangue cor de rubi escorrendo do canto da boca, a cabeça pavorosa e os ombros enchendo o palco de fagulhas, enquanto fumaça e pequenas chamas erguiam-se em anéis inclementes do cabelo e do cavanhaque ardentes. Mas os olhos sem vida que olhavam sem ver para os meus não eram aqueles do gigante articulado Galligantus. Eram os olhos vidrados e moribundos de Rupert Porson.

E então todas as luzes se apagaram.


SUBITAMENTE MERGULHADO NAS TREVAS, o público deu uma inspirada funda e soltou um suspiro coletivo.

Na cozinha, alguém teve a presença de espírito de acender uma lanterna, e um momento depois trouxe-a para fora, como um fogo-fátuo dardejante, para a parte principal do salão paroquial.

Como o vigário foi perspicaz em tentar fechar as cortinas! Pelo menos era o que ele tentava fazer, quando foi interrompido por uma voz alta e autoritária:

— Não! Não! Afaste-se. Não toque em nada.

Era Dogger. Ele se pusera de pé e bloqueara o caminho do vigário, os braços totalmente estendidos e parecendo estar tão surpreso quanto todos nós com sua própria ousadia. Nialla, que se erguera bruscamente e dera um único passo em direção ao proscênio, paralisou-se de súbito no lugar.

Tudo isso aconteceu sob o facho semovente da lanterna, fazendo a cena parecer algum tipo de drama horripilante representado durante um ataque aéreo, iluminado por um holofote de busca.

Uma segunda voz veio da escuridão no fundo do salão: era do inspetor Hewitt.

— Fiquem todos parados, por favor, permaneçam onde estão. Não se movam enquanto eu não disser que podem se mover.

Ele foi rapidamente até a frente do auditório e desapareceu nos bastidores, enquanto alguém perto da porta tentava em vão acionar alguns interruptores, mas as lâmpadas incandescentes em suas arandelas de vidro fosco continuaram apagadas.

Houve alguns resmungos de protesto até que o policial Linnet, à paisana naquela noite, foi até a fila da frente com uma das mãos erguidas no ar pedindo atenção. Ele levara uma segunda lanterna, que dirigiu para o próprio rosto, o que lhe emprestou uma pavorosa aparência cadavérica.

— Por favor, façam o que o inspetor disse — recomendou ele ao público. — Agora ele está no comando aqui.

O dr. Darby, eu notei, já estava abrindo caminho pelo corredor lateral abarrotado, em direção ao palco.

Nialla, quando a vislumbrei, parecia estar enraizada no lugar; ela não tinha movido um músculo. Seu chapéu alto de Mamãe Gansa estava caído de lado, e, se a situação não fosse o que era, eu poderia ter rido muito de sua aparência.

Minha primeira reação, claro, foi ir até ela, mas fui detida pela mão do pai, firme em meu braço.

Quando o corpo de Rupert se estatelou no palco, tanto Dafi como Felinha puseram-se em pé de um salto. O pai ainda fazia sinais para elas se sentarem, mas as duas estavam excitadas demais para prestar alguma atenção a ele.

O inspetor reapareceu no vão da porta à esquerda do palco. Havia dois daqueles corredores, um de cada lado, cada qual conduzindo a uma saída e a uns poucos degraus até o palco. Era naquelas áreas fechadas que os coros de anjinhos risonhos costumavam ser postos em ordem para o desfile anual de Natal de São Tancredo.

— Policial Linnet, pode me emprestar a sua lanterna, por favor?

O policial Linnet entregou sua Eveready de cinco pilhas, que parecia daquele tipo que você vê sendo usado em filmes, nas buscas em pântanos brumosos. Ele provavelmente a levara para iluminar o caminho para casa pelas veredas depois do espetáculo, sem jamais ter pensado que poderia ser tão útil.

— Um minuto da atenção de todos, por favor — disse o inspetor Hewitt. — Estamos tentando fazer todo o possível para as luzes voltarem, mas pode demorar algum tempo até conseguirmos ligá-las de novo de forma definitiva. Poderá ser necessário, por uma questão de segurança, ligar e desligar a corrente várias vezes. Eu peço que todos voltem a seus lugares e que lá permaneçam, até que eu consiga lhes dar novas instruções. Não há nenhuma razão para se alarmarem, então, por favor, mantenham-se calmos.

Eu o ouvi dizer discretamente ao policial Linnet:

— Cubra o palco. Aquela faixa na frente do balcão vai servir. — Ele apontou para uma grande faixa de cânhamo que se estendia diante do balcão, acima da porta principal: “Sociedade Beneficente das Damas de São Tancredo”, estava escrito, com uma cruz de São Jorge em vermelho e branco. “Cem anos de serviços, 1850-1950.”

— E depois de fazer isso — acrescentou o inspetor —, telefone para Graves e Woolmer. Transmita-lhes minhas saudações e peça que venham o mais depressa possível.

— É a noite do críquete deles, senhor — disse o policial Linnet.

— Que seja. Nesse caso, transmita minhas saudações e também minhas desculpas. Estou certo de que o vigário permitirá que você use o telefone.

— Valha-me Deus! — disse o vigário, olhando em volta do salão, embaraçado. — Nós temos um telefone, é claro... para uso da Sociedade Beneficente e do Instituto das Mulheres, você sabe... mas infelizmente fomos forçados a mantê-lo trancado em um armário da cozinha... tantas pessoas fazendo interurbanos para amigos em Devon, ou até na Escócia.

— E a chave? — perguntou o inspetor Hewitt.

— Eu a entreguei a um cavalheiro de Londres logo antes do espetáculo. Ele disse que era da BBC, que precisava fazer uma chamada urgente... disse que me reembolsaria assim que a telefonista tocasse de volta informando a taxa. Que estranho, não o estou vendo aqui agora. — Ainda assim, há sempre o telefone do presbitério — acrescentou ele.

Meu primeiro impulso foi me oferecer para forçar o cadeado, mas antes que eu pudesse dizer uma palavra o inspetor Hewitt sacudiu a cabeça.

— Estou certo de que poderemos remover as dobradiças sem causar nenhum dano.

Sinalizando com um dedo, ele chamou George Carew, o carpinteiro da aldeia, que pulou do seu lugar como um projétil.

A não ser pelo fraco brilho ocasional da lanterna no palco, estávamos sentados no escuro pelo que parecia ser uma eternidade.

E então, de repente, as luzes voltaram, fazendo-nos piscar e esfregar os olhos e olhar em volta uns para os outros de um jeito ridículo.

E lá estava Rupert, a sua cara morta paralisada em um olhar de surpresa, ainda ocupando o centro do palco. Logo estariam cobrindo seu corpo com a bandeira, e me dei conta de que, se era para eu me lembrar da cena para alguma referência futura, teria de registrar uma série de instantâneos mentais. Não teria muito tempo para trabalhar.

Clic!

Os olhos: as pupilas estavam imensamente dilatadas, tanto que se eu tivesse podido chegar um pouco mais perto, teria visto a mim mesma refletida em suas superfícies convexas tão claramente como Jan van Eyck se vira refletido no espelho do quarto na sua pintura do dia do casório dos Arnolfini.

Mas não por muito tempo: as córneas já tinham começado a ficar enevoadas, e o branco dos olhos começava a perder o brilho.

Clic!

O corpo não se sacudia mais em espasmos. A pele adquirira uma coloração azulada. O canto da boca parecia ter parado de sangrar, e o pouco sangue ainda visível parecia estar ligeiramente mais escuro e mais grosso, muito embora as luzes âmbar e verdes da ribalta pudessem influenciar minha percepção das cores.

   Clic!

Na frente, logo abaixo da faixa capilar, havia uma descoloração escura do tamanho e da forma de uma moeda. Embora os fios de cabelo ainda ardessem lentamente, enchendo o salão de um odor acre que seria esperado sempre que fosse queimado um aminoácido rico em enxofre e queratina, aquilo não era o bastante para justificar a fumaça que se acumulava, ainda pairando pesadamente acima das luzes. Pude ver que as cortinas e o cenário ainda estavam totalmente intactos, portanto devia haver mais alguma coisa queimando nos bastidores. A julgar pelo cheiro de capim queimado, adivinhei que era linho — provavelmente um tecido.

    Clic!

Quando Rupert se estatelou, Nialla se pôs em pé de um salto e fez um movimento em direção à frente do palco, mas então ela parou, indecisa. Estranhamente ninguém, nem mesmo eu, foi até ela, que agora, depois de passados alguns minutos, caminhava lentamente em direção à cozinha, com as duas mãos cobrindo o rosto. Seria uma reação retardada?, eu me perguntei. Ou alguma outra coisa?

O policial Linnet foi a passos pesados até a frente do auditório, a faixa enrolada embaixo do braço e o grande canivete com o qual cortara os cordões ainda na mão. Ele e o vigário trabalharam rapidamente para pendurar o tecido entre duas araras, e ao fazer isso bloquearam a nossa visão do falecido.

Bem, eu estava pressupondo que Rupert estivesse morto. Embora o inspetor Hewitt tivesse com certeza conferido todos os sinais de vida quando foi para os bastidores pela primeira vez, eu não o ouvira chamar uma ambulância. Ninguém, até onde eu sabia, tentara uma ressuscitação. Ninguém, de fato, parecia ansioso em tocar no corpo. Nem mesmo o dr. Darby tinha saído às pressas para o salvamento.

Todo o caso acontecera, é claro, em muito menos tempo do que se leva para contá-lo: na verdade, não deve ter levado mais que cinco minutos.

Então, como o inspetor dissera que poderia acontecer, as luzes se apagaram de novo.

De início, houve uma sensação de termos mergulhado naquilo que Dafi descreve como “Escuridão do rio Styx”, e a sra. Mullet chama de “O feriado de um cego”. A sra. Mullet, aliás, estava sentada desde que o espetáculo começou, como uma figura de cera, com um meio sorriso no rosto. Eu só poderia concluir que ela ainda sorria como uma idiota para as trevas.

Era o tipo de trevas que parece, a princípio, paralisar todos os sentidos.

Mas então a gente percebe que as coisas não são exatamente tão negras como parecem. Pontos de luz, por exemplo, penetraram através das esfarrapadas cortinas usadas para cobrir as janelas desde antes da guerra, e, embora restasse pouca luz do dia do lado de fora, ela foi suficiente para criar uma leve impressão das grandes dimensões do salão.

De trás das cortinas, surgiu o som de passos prudentes, e a faixa, que fora estendida na frente do palco das marionetes, foi subitamente iluminada por trás pelo jato de luz de uma poderosa lanterna.

E agora começava o horrendo espetáculo de sombras. Via-se a silhueta do dr. Darby se abaixando e tocando o corpo, sem dúvida procurando por sinais de vida. Eu poderia ter lhe poupado o trabalho.

A sombra sacudiu a cabeça, e um grande suspiro ergueu-se do público. Me pareceu claro que, com Rupert declarado morto, o inspetor Hewitt agora quisesse que as coisas permanecessem intocadas até o sargento Woolmer chegar de Hinley com sua câmera fotográfica.

Nesse meio-tempo, tia Felicity ficou vasculhando a bolsa à procura de mais pastilhas de hortelã, e pude ouvi-la inalando e exalando pelo nariz. À minha esquerda, Dafi sussurrava para Felinha, mas como o pai, que se sentara entre nós, pigarreava a intervalos regulares, como sempre faz quando está nervoso ou aborrecido, não pude distinguir muito bem as palavras.

Depois do que pareceu outra eternidade, as luzes voltaram a se acender subitamente, e, outra vez, todos começamos a piscar.

A sra. Mullet estava tocando levemente os olhos com um lenço, os ombros tremendo, e me dei conta de que ela chorava silenciosamente. Dogger também notou. Ofereceu o braço, que ela aceitou sem erguer os olhos, e a levou para a cozinha. Ele voltou em menos de um minuto.

— Ela vai se sentir mais à vontade entre panelas e frigideiras — ele sussurrou para mim ao retomar seu lugar.

Um clarão intenso removeu todas as cores do salão por um instante, e eu e todo mundo ali nos voltamos para ver que o sargento-detetive Woolmer havia chegado. Ele montara sua avantajada câmera com tripé em cima do balcão e acabara de capturar todos nós na chapa. Quando o flash estourou uma segunda vez, me ocorreu que aquela segunda exposição não mostraria nada além de um mar de rostos brancos voltados para cima. O que talvez fosse precisamente o que ele queria.

— Por favor, posso pedir um momento da atenção de todos?

O inspetor Hewitt saíra de trás das cortinas pretas e estava de pé no centro do palco.

— Sinto muito ter de informar a vocês que houve um lamentável acidente e que o sr. Porson está morto.

Embora esse fato fosse evidente, sua confirmação fez com que uma onda de sons subisse da plateia: uma mistura de engasgos, gritos e sussurros excitados. O inspetor aguardou pacientemente até que ela se aquietasse.

— Infelizmente, terei de pedir a todos vocês que permaneçam em seus lugares um pouco mais, até que possamos anotar o nome e endereço de todos, bem como colher uma breve declaração de cada um. Esse processo levará algum tempo, e peço desculpas por isso. Depois que tiverem sido entrevistados, vocês estarão livres para partir, muito embora eu possa querer falar com vocês de novo em alguma ocasião futura. Obrigado pela atenção.

Ele fez um sinal para alguém atrás de mim, e vi que se tratava do sargento-detetive Graves. Me perguntei se o sargento se lembrava de mim. Eu o encontrara pela primeira vez em Buckshaw, durante a investigação da morte do velho colega de escola do pai, Horace Bonepenny. Mantive os olhos fixos em seu rosto quando ele foi para a frente do salão, e por fim fui recompensada com um levíssimo, porém distinto sorriso.

— Meninos de escola! — bufou tia Felicity. — Os recrutadores da polícia estão saqueando os berços da Inglaterra.

— Ele é muitíssimo experiente — sussurrei. — Já é um sargento-detetive.

— Baboseiras! — disse ela, e escavou a bolsa à procura de mais uma pastilha.

Já que o cadáver tinha sido ocultado da vista de todos, só me restava estudar as pessoas a minha volta.

Dieter, eu notei, olhava fixamente para Felinha. Embora estivesse sentado com Sally Straw, cujo rosto era uma petulante nuvem de tempestade, ele contemplava o perfil de minha irmã como se o cabelo dela fosse um altar de ouro martelado.

Dafi também notara. Quando viu a expressão intrigada em meu rosto, ela se inclinou na frente do pai e sussurrou:

— A expressão que você procura é “paixão reverencial”. — Então recostou-se e assumiu de novo a atitude de não falar comigo.

O pai não prestou nenhuma atenção em nós. Ele já se recolhera a seu próprio mundo: um mundo de tintas coloridas e perfurações-por-centímetro; um mundo de álbuns e goma-arábica; um mundo onde a nossa Graciosa Majestade, rei George VI, estava firmemente abrigada tanto no trono como nos selos postais da Grã-Bretanha; um mundo onde a tristeza e a realidade não tinham lugar.

Enfim as entrevistas começaram. Enquanto o inspetor Hewitt e o sargento Woolmer assumiam um lado do salão, o sargento Graves e o policial Linnet se encarregaram do outro.

Foi o velho, demorado e cansativo procedimento. O tempo, como dizem, pesava sobre nós ou, para ser mais precisa, sobre nossos traseiros. Até tia Felicity se remexia, incomodada em cima do seu mais-que-amplo acolchoamento posterior.

— Vocês podem se levantar e se espreguiçar — dissera o inspetor Hewitt a certa altura —, mas por favor não saiam de seus lugares.

Provavelmente não se passou mais de uma hora até que eles chegassem a nós, mas pareceu uma eternidade. O pai foi o primeiro a se dirigir até o canto onde fora instalada uma mesa simples de madeira com duas cadeiras. Não pude ouvir o que o inspetor lhe perguntou e nenhuma de suas respostas, que pareciam consistir apenas em sacudir a cabeça negativamente.

Não fazia tanto tempo que o inspetor Hewitt acusara o pai do assassinato de Horace Bonepenny, e embora o pai nunca tivesse dito isto em muitas palavras, ele ainda mantinha uma certa frieza em relação à polícia local. Ele voltou logo, e eu esperei pacientemente enquanto tia Felicity, depois Felinha e a seguir Dafi subiram para falar em voz baixa com o inspetor.

Quando cada uma voltou a seu lugar, tentei captar o olhar delas, para obter algum indício do que fora perguntado ou de como elas tinham respondido, mas não adiantou. Tanto Felinha quanto Dafi estavam com aquela cara bajuladora, santarrona que faziam depois de participar da Sagrada Comunhão, os olhos baixos e as mãos entrelaçadas na cintura em fingida humildade. O pai e tia Felicity também estavam inescrutáveis.

Já com Dogger foi outra história.

Embora tivesse aguentado bem o interrogatório do inspetor, notei que ele voltou a seu lugar como um homem andando numa corda esticada. Apareceu um tique no canto de um olho, e seu rosto tinha aquela aparência tensa, porém inexpressiva, que invariavelmente precede seus ataques. O que quer que tivesse acontecido com Dogger durante a guerra o deixara com uma incapacidade de ser confrontado de perto por qualquer tipo de autoridade.

Danem-se as consequências! Saí do meu lugar e me ajoelhei a seus pés. Apesar de ter dado uma olhada na minha direção, o inspetor Hewitt não fez nada para me impedir.

— Dogger — sussurrei —, você viu o que eu vi?

Enquanto eu deslizava para o assento ao lado dele, deixado vago pela sra. Mullet, ele ficou me olhando como se nunca tivesse me visto antes na vida, e então, como um pescador de pérolas lutando para retornar lentamente à superfície de alguma grande profundidade, ele retornou ao mundo real, balançando a cabeça em câmera lenta.

— Sim, srta. Flavia. — Infelizmente creio ter visto um homicídio.


À medida que se aproximava a minha vez de ir até a mesa, de repente me conscientizei dos batimentos do meu coração. Desejei ser um lama tibetano para poder controlar o disparo de suas válvulas.

Mas antes que eu pudesse pensar mais no assunto, o inspetor Hewitt me chamou com um gesto. Ele ficou remexendo uma pilha de papéis e formulários, aguardando até eu me sentar. Por um momento, me vi pensando de onde teriam surgido os formulários em branco. Woolmer e Graves deviam ter trazido, concluí. O inspetor certamente não estaria carregando uma pasta antes do espetáculo.

Me voltei para dar uma olhada na mulher dele, Antigone. Sim, lá estava ela, sentada calmamente em seu lugar entre os aldeões, radiante apesar da situação.

— Ela é muito bonita — sussurrei.

— Obrigado — disse ele sem erguer os olhos de seus papéis, mas pude ver pelo canto de sua boca que ele tinha gostado.

— Agora... nome e endereço?

Nome e endereço? O homem estava brincando do quê?

— Isso você já sabe — eu disse.

— É claro que eu sei. — Ele sorriu. — Mas não será oficial até você dizer.

— Flavia de Luce. Buckshaw — respondi um tanto friamente, e ele tomou nota.

— Obrigado — disse ele. — Agora, Flavia, a que horas você chegou esta noite?

— Seis e quarenta — eu disse —, em ponto. Com a minha família. De táxi. O táxi de Clarence Mundy.

— E você esteve no salão a noite inteira?

— É claro que sim. Eu fui falar com você, não está lembrado?

— Sim. Responda à pergunta, por favor.

— Certo.

Devo admitir que o inspetor estava me deixando bem mal-humorada. Eu esperava poder colaborar com ele: provê-lo de um relatório ricamente descrito, minuto a minuto, do horror que tivera lugar, quase no meu colo, naquela noite. Agora eu podia ver que seria tratada como apenas mais uma espectadora boquiaberta.

— Você viu ou falou com o sr. Porson antes do espetáculo?

O que ele queria dizer com isso? Eu tinha visto e falado com o sr. Porson em diversas ocasiões nos últimos três dias. Tinha ido de carro com o sr. Porson para a Fazenda Culverhouse e ouvira sua discussão com Gordon Ingleby no Bosque Gibbet; e isso não era tudo o que eu sabia sobre Rupert Porson. Nem de longe.

— Não — eu disse.

Era um jogo para dois.

— Entendo — disse ele. — Bem, obrigado. Isso é tudo.

Eu acabava de receber um xeque-mate.

— Você já pode ir — ele acrescentou, dando uma olhada no relógio. — Provavelmente já passa da sua hora de dormir.

A audácia do homem! Já passa da minha hora de dormir, realmente! Com quem ele achava que estava falando?

— Posso fazer uma pergunta?

— Pode — disse ele —, mas é possível que eu não possa respondê-la.

— Rupert, o sr. Porson, quero dizer, ele foi eletrocutado?

Ele olhou para mim com atenção, e vi que estava pensando cuidadosamente na resposta.

— Existe essa possibilidade. Boa noite, Flavia.

O homem estava me despachando. Rupert fritara como um linguado, e o inspetor sabia disso tão bem quanto eu.

Lâmpadas de flash ainda espoucavam atrás do palco de marionetes quando juntei-me novamente ao pai, na primeira fila. Felinha e Dafi não estavam visíveis em lugar nenhum.

— Mundy já as levou para casa — disse ele.

— Estarei pronta num instante — disse eu, seguindo para o banheiro. Ninguém, em lugar nenhum, em tempo algum na história, jamais impediu uma pessoa do sexo feminino de ir ao toalete.

No último instante, mudei de direção e me esgueirei para a cozinha, onde encontrei a sra. Mullet no comando. Ela tinha preparado uma enorme chaleira de chá e colocado xícaras fumegantes na frente de Nialla e do sargento Woolmer, que estavam sentados a uma pequena mesa.

Nialla me viu antes do sargento, e seus olhos brilharam, mas só por um instante, como os de um animal assustado. Ela acenou de leve com a cabeça para mim, de um jeito quase imperceptível, mas o significado era claro.

A comunicação sem fio das mulheres em ação. Esfreguei o nariz despreocupadamente, para que ela percebesse que a mensagem tinha sido recebida.

— Obrigado, srta. Gilfoyle — disse o sargento. — Você foi de grande ajuda.

Gilfoyle? Então era esse o nome de Nialla? Era a primeira vez que o ouvia.

O sargento Woolmer esvaziou sua xícara de um gole só, sem nenhum efeito maléfico.

— Um chá campeão, sra. Mullet — disse ele, fechando seu caderno. Ele juntou os papéis e, com um aceno gentil de cabeça na minha direção, voltou para o auditório.

O homem devia ter um estômago igual a uma caldeira de navio, pensei.

— Então, querida, como eu dizia — disse a sra. Mullet —, não adianta você voltar à Fazenda Culverhouse esta noite. Está chovendo canivetes já faz uma hora ou mais. O rio deve estar transbordando, não é seguro atravessá-lo. Além disso, ninguém espera que você vá dormir em uma tenda, em um campo encharcado, nessa situação, se entende o que quero dizer. Alf trouxe um guarda-chuva suficientemente grande para nós três, e estamos logo do outro lado do caminho. O quarto de Agnes lá em casa não é usado desde que ela saiu de casa para aprender taquigrafia Pitman vai fazer seis anos em 13 de novembro. Alf e eu o conservamos como uma espécie de santuário. Tem seu próprio fogareiro elétrico e um edredom de plumas de ganso. E nem diga que não, porque não vou ouvir.

Os olhos de Nialla ficaram subitamente marejados, e, juro pela minha vida, eu não soube dizer se era de tristeza ou de alegria.


Eu daria um guinéu para saber que palavras foram trocadas entre o pai e Dogger no banco de trás do táxi, mas a verdade é que adormeci. Com o aquecedor ligado no máximo para enfrentar a chuva gelada da noite e os limpadores de para-brisa fazendo seu tranquilo vaivém na escuridão, a indução ao sono foi irresistível. Nem mesmo uma coruja teria conseguido ficar acordada.

Quando o pai me acordou na porta de Buckshaw, subi cambaleando a escada e fui para a cama, cansada demais até para me despir.

Devo ter caído no sono de olhos abertos.


O SOL SE DERRAMAVA ESPLENDIDAMENTE através das minhas janelas, e os passarinhos nas castanheiras cantavam a plenos pulmões. O primeiro pensamento que me veio à cabeça foi o rosto de Rupert: os lábios ligeiramente separados, os dentes aparecendo de um modo obsceno.

Me virei de costas na cama e olhei fixamente para o teto. Sempre achei que uma tela em branco ajuda a esclarecer os pensamentos de um jeito maravilhoso; ajuda a colocá-los em foco.

Na morte, eu concluí, Rupert se parecia notavelmente com um cachorro morto no qual eu quase pisara certa vez em um campo além da Treze Patos, os olhos enevoados olhando fixamente, os colmilhos amarelados expostos em uma careta congelada. (Embora, no caso de Rupert, não houvesse moscas, e seus dentes estivessem na verdade bem apresentáveis.)

De algum modo, o cão me lembrou de alguma coisa; mas o quê?

Claro! Mutt Wilmott! A Treze Patos! Mutt Wilmott devia ter se hospedado na Treze Patos!

Se a sra. Mullet tiver dito a verdade, começara a chover logo depois do início do espetáculo da noite. Mutt estivera lá por volta de seis e quarenta, digamos, eu tinha visto com meus próprios olhos. Dificilmente ele teria partido para Londres debaixo de tamanho aguaceiro. Não, se ele planejara partir, teria feito isso antes do espetáculo. Parecia óbvio que ainda tinha negócios a acertar com Rupert.

Ergo: ele estava, nesse exato momento, comendo ovos com bacon na Treze Patos, a única hospedaria de Bishop’s Lacey.

Felizmente, eu já estava vestida.

Havia um silêncio de cripta na casa, quando desci a escadaria leste. A excitação da noite passada havia drenado a energia de todo mundo, por assim dizer, e estavam todos, imaginei, ainda roncando em seus respectivos quartos como um bando de vampiros convalescentes.

Enquanto eu me esgueirava pela porta da cozinha, contudo, subitamente me detive. Sobre o estrado de madeira ao lado da porta, enfiado entre os dois litros de leite que o entregador deixara à nossa porta de madrugada, havia um pacote.

Era de uma pustulenta cor roxa, com bordas que se projetavam em cima e embaixo. O celofane transparente em que aquilo estava embrulhado o protegera da chuva da noite. Na tampa, em letras douradas, estavam as palavras Chocolates da Madame — Seleção da Mais Alta Qualidade — 1 Kg da Escolha da Duquesa. Em volta dela, no sentido do comprimento, havia uma fita da cor de uma rosa desbotada. A etiqueta ainda estava presa, como no chapéu do Chapeleiro Maluco.

Eu já tinha visto aquela caixa. De fato, eu a tinha visto fazia apenas alguns dias, na vitrina infestada de varejeiras da confeitaria combinada com agência de correio da srta. Cool na rua principal, onde jazia mofando desde tempos imemoriais, talvez desde a guerra, ou ainda mais. E percebi imediatamente como ela tinha ido parar na porta dos fundos de Buckshaw: Ned Cropper.

Ned ganhava sete libras por semana fazendo biscates para Tully Stoker na Treze Patos e estava apaixonado, entre outras, pela minha irmã Ophelia. Embora ele tivesse acompanhado a filha de Tully, Mary, para assistir a João e o pé de feijão na noite anterior, isso não o impedira de deixar sua prova de amor da meia-noite na nossa soleira, como um gato afetuoso solta um camundongo morto aos pés do dono.

Os chocolates eram tão velhos, pensei, que era bem provável que estivessem a ponto de explodir com as incontáveis variedades de bolores interessantes, mas infelizmente não havia tempo para investigar. Voltei com relutância à cozinha e enfiei a caixa no compartimento superior da geladeira. Eu lidaria com Felinha mais tarde.


— Ned!

Enviei-lhe um sorriso e um aceno com os dedos generosamente separados, como a realeza é ensinada a fazer. Com as mangas arregaçadas e o cabelo cheio de brilhantina parecendo um monte de feno molhado, Ned estava bem no alto do telhado fortemente inclinado da Treze Patos, os calcanhares firmados contra uma chaminé, usando um pincel para espalhar piche quente generosamente sobre as telhas que pareciam estar lá desde que o rei Alfredo queimou os bolinhos.

— Desça daí! — gritei.

— Não posso, Flavia. Tem uma goteira na cozinha. Tully quer isso pronto antes que o inspetor apareça. Ele disse que estaria aqui bem cedinho e bem acordado. Tully diz que, de qualquer modo, está contando pelo menos com a parte do bem cedinho — acrescentou ele. — O que quer que isso signifique.

— Preciso falar com você — disse eu, baixando a voz para um sussurro alto de palco. — Não posso ficar berrando para o telhado.

— Você vai ter de subir. — Ele apontou para uma escada encostada na parede. — Olhe bem onde pisa.

A escada era tão velha quanto a estalagem, ou pelo menos era o que me parecia. Ela bamboleou e envergou-se enquanto eu subia, rangendo e gemendo de um jeito horrível. A escalada pareceu durar uma eternidade, e tentei não olhar para baixo.

— É sobre a noite passada, não é? — perguntou Ned quando cheguei mais perto do topo.

Dupla danação! Se eu era tão transparente que até alguém como Ned podia ver através de mim, seria melhor deixar aquilo para a polícia.

— Não — eu disse —, na verdade não é, Senhor Sabe-Tudo. Uma certa pessoa me pediu para lhe agradecer pelo adorável presente.

— É mesmo? — disse Ned, suas feições se expandindo em um clássico sorriso de idiota-da-aldeia. A Sociedade Folclórica o poria na frente de uma câmera de cinema antes que você pudesse se virar três vezes e cuspir contra o vento.

— Ela teria vindo pessoalmente, mas está aprisionada em sua torre pelo pai malvado, que a alimenta com varreduras e restos nojentos da mesa.

— Ah!— disse Ned. — Ela não me pareceu tão subalimentada ontem à noite.

Sua expressão se anuviou, como se tivesse acabado de se lembrar do que acontecera.

— Uma tristeza, aquele bonequeiro — disse. — Senti pena dele.

— Fico contente em saber disso, Ned. Ele não tinha muitos amigos no mundo, sabe. Seria simpático você expressar suas condolências ao sr. Wilmott. Alguém me disse que ele está hospedado aqui.

Era mentira, porém bem-intencionada.

— Está? Sei lá. Tudo o que sei neste momento é “Telhas! Telhas! Telhas e mais telhas!”. Até saírem cen-telhas! Não é engraçado? Ha-ha-ha!

Sacudi a cabeça e comecei a descer pela escada bamboleante.

— Olhe só você! — disse Ned. — Está coberta de piche.

— Como um telhado — disse eu, dando uma olhada nas minhas mãos imundas e no meu vestido. Ned ululava de tanto rir, e eu consegui forçar um sorriso patético.

Eu o daria de comer aos porcos alegremente.

— Isso não sai mais, sabe. Você ainda estará inteirinha borrada quando estiver velhinha.

Me perguntei onde Ned havia aprendido aquele tipo de folclore rústico. Provavelmente com Tully. Eu sabia, de fato, que Michael Faraday sintetizara tetracloroeteno nos anos 1820, aquecendo hexacloretano e extraindo o cloro por um tubo enquanto se decompunha. O solvente resultante removeria por completo o piche do tecido. Infelizmente, por mais que eu quisesse fazer isso, não tinha tempo para reproduzir o experimento de Faraday. Em vez disso, teria de me contentar com maionese, como recomendava o Vade-mécum do Mordomo e do Lacaio, com que eu topara em um dia chuvoso enquanto bisbilhotava na copa em Buckshaw.

— Talvez Mary saiba. Ela está por aqui?

Não me atrevi a entrar sem pedir licença e a fazer perguntas a Tully sobre um hóspede. Para ser perfeitamente honesta, eu tinha medo dele, muito embora seja difícil dizer por que com muita certeza.

— Mary? Ela foi levar a roupa suja para a lavanderia e depois, muito provavelmente, vai para a igreja.

Igreja! Me lambuzem com manteiga! Eu tinha esquecido da igreja. O pai ia ficar roxo de raiva!

— Obrigada, Ned — gritei, agarrando Gladys no bicicletário. — Depois eu vejo você!

— Não se eu vir você primeiro. — Ned riu e, como Papai Noel, voltou ao seu trabalho.


Como eu temia, o pai estava plantado junto à porta da frente, olhando furioso para o relógio quando cheguei derrapando.

— Desculpe! — eu disse. Ele nem se deu ao trabalho de perguntar nada.

Passei voando pela porta aberta e entrei no vestíbulo. Dafi estava sentada no meio da escada oeste com um livro aberto no colo. Felinha ainda não tinha descido.

Disparei pela escada leste acima até o meu quarto, enfiei meu vestido de domingo como uma artista transformista, esfreguei a cara com um pano e, em dois minutos pelo relógio, com exceção de um pouco de piche na ponta das tranças, eu estava pronta para as orações matinais.

Foi então que me lembrei dos chocolates. Era melhor recuperá-los antes que a sra. Mullet começasse a preparar seus abomináveis glacês de domingo. Se eu não fizesse isso, haveria um monte de perguntas insolentes para responder.

Desci pé ante pé a escada até a cozinha e espiei atrás de um canto. Alguma coisa repelente atingia o ponto de fervura na parte de trás do fogão, mas não havia ninguém à vista.

Retirei os chocolates da geladeira e já estava de volta lá em cima antes que você pudesse dizer “João e o pé de feijão”.

Quando abri a porta do laboratório, um lampejo de vidro chamou a atenção dos meus olhos; ele refletia um raio de sol caprichoso vindo da janela. Era um encantador dispositivo chamado Aparato de Kipp: uma das esplêndidas peças de vidro de laboratório vitorianas de Tar de Luce.

— Uma coisa bela é uma alegria para sempre — escrevera certa vez o poeta Keats — ou, pelo menos, foi o que Dafi me contou. Não poderia haver sombra de dúvida de que Keats escrevera o verso enquanto contemplava o Aparato de Kipp: um dispositivo usado para extrair o gás resultante de uma reação química.

Na forma, compunha-se essencialmente de duas bolas de vidro montadas uma em cima da outra, um tubo curto conectando as duas, com um tubo de vidro tamponado em forma de pescoço de ganso se projetando do globo superior e um tubo de respiro com uma válvula reguladora de vidro se projetando do inferior.

Meu plano tomou forma instantaneamente: um sinal seguro de inspiração divina. Mas eu só tinha alguns minutos para trabalhar, antes que o pai irrompesse para me arrastar escadaria abaixo.

Primeiro, tirei de uma gaveta uma das velhas navalhas do pai, que eu surrupiara para um experimento anterior. Cuidadosamente, deslizei a fita desbotada para fora da caixa de chocolates, virei-a de cabeça para baixo e fiz uma incisão cuidadosa e perfeitamente reta no celofane, acompanhando a linha onde estava a fita. Mais um corte de cada lado no fundo, e era tudo que eu precisava para o embrulho se abrir como uma ostra. Refazê-lo seria brincadeira de criança.

Isso feito, ergui cuidadosamente a tampa da caixa e espiei para dentro.

Perfeito! Os doces pareciam em perfeitas condições. Eu suspeitara que a idade poderia ter cobrado seu tributo, que ao abrir a caixa ela poderia revelar uma visão similar à que eu tive certa vez no pátio da igreja, quando o sr. Haskins, o sacristão, enquanto cavava uma nova sepultura, acidentalmente atingira outra, já ocupada.

Mas então me ocorreu que como os chocolates estavam hermeticamente selados (para não falar dos conservantes que poderiam ter sido adicionados), eles ainda podiam parecer frescos a olho nu. A sorte estava do meu lado.

Eu tinha escolhido meu método por causa de sua capacidade de transcorrer em temperaturas normais. Embora houvesse outros procedimentos que teriam resultado no mesmo produto, o que selecionei foi este: no fundo da esfera do Aparato de Kipp, medi uma quantidade de sulfeto de ferro. No bulbo superior, pinguei cuidadosamente ácido sulfúrico diluído, usando uma pipeta para me certificar de que o líquido entrava diretamente no recipiente-alvo.

Fiquei observando enquanto começava a reação no recipiente de baixo: uma adorável agitação que tem lugar sempre que algo contendo enxofre, inclusive o corpo humano, se decompõe. Quando achei que havia se completado, abri a válvula inferior e deixei o gás escapar para dentro de um frasco fechado com uma rolha de borracha.

A seguir vinha a parte de que eu mais gostava: peguei uma grande seringa revestida de latão de uma das gavetas da mesa do tio Tar (muitas vezes eu me perguntara se ele a usava para injetar em si mesmo uma solução a sete por cento de cocaína, como Sherlock Holmes), enfiei a agulha através da tampa de borracha, apertei o êmbolo e então puxei-a para cima de novo.

Eu agora tinha uma seringa carregada de gás de sulfeto de hidrogênio. Só faltava mais um passo.

Enfiando a agulha através da tampa de borracha de um tubo de ensaio, empurrei o êmbolo para baixo o mais forte que pude, com os dois polegares. Apenas catorze atmosferas seriam necessárias para precipitar o gás em líquido, e, como eu já sabia que aconteceria, funcionou na primeira vez.

Eu agora tinha um tubo de ensaio contendo sulfeto de hidrogênio perfeitamente puro em forma líquida. Tudo o que restava era puxar de volta o êmbolo e observar enquanto ele subia para dentro do vidro da seringa.

Com todo o cuidado, injetei em todos os chocolates uma ou duas gotas daquilo, tocando levemente o local da injeção com uma pipeta de vidro (previamente aquecida no bico de Bunsen) para amaciar o pequeno furo.

Eu realizara o procedimento de forma tão perfeita que apenas uma pequena aragem de ovo podre chegou a minhas narinas. Seguro dentro dos centros viscosos, o sulfeto de hidrogênio continuaria encapsulado, invisível, insuspeitado, até que Felinha...

— Flavia!

Era o pai, gritando do hall da frente.

— Já vou! — gritei. — Estarei aí em um instante!

Recoloquei a tampa da caixa e depois o invólucro de celofane, aplicando duas pinceladas rápidas de mucilagem no fundo para aderir à incisão quase invisível. E então recoloquei a fita.

Enquanto eu descia a escadaria curva com toda a calma, tentando desesperadamente parecer tranquila e recatada, encontrei a família reunida, esperando, aglomerada lá embaixo.

— Acho que isto é para você — disse eu, estendendo a caixa para Felinha. — Alguém deixou na porta.

Ela enrubesceu um pouco.

— E tenho uma confissão a fazer — acrescentei. Todos os olhos se voltaram para mim de repente: os do pai, os da tia Felicity, os de Dafi e até os de Dogger. — Me senti tentada a ficar com eles — disse eu, de olhos baixos —, mas hoje é domingo, e eu realmente estou me esforçando muito para ser uma pessoa melhor.

Com mãos ansiosas esticadas, Felinha mordeu a isca como um tubarão morde os pés de um nadador.


COM O PAI E TIA FELICITY À FRENTE, e Dogger na retaguarda usando um chapéu-coco preto, seguíamos separados, como sempre fazíamos, em fila indiana através dos campos, como patos indo para uma lagoa. A verde paisagem rural que nos envolvia parecia tão antiga e tão sossegada à luz da manhã quanto uma tela de Constable, e eu não teria ficado nem um pouco surpresa se descobrisse que nós na realidade não passávamos de figuras pequeninas ao fundo de uma de suas pinturas, como A carroça de feno ou Vale Dedham.

Era um dia perfeito. Prismas brilhantes de orvalho reluziam como diamantes na grama, muito embora eu soubesse que, à medida que o dia avançasse, eles seriam evaporados pelo sol.

Evaporados pelo sol! Não seria isso que o universo nos reservava? Chegaria o dia em que o sol explodiria como um balão vermelho, e todos na terra seriam reduzidos a carbono mais depressa que o flash de uma máquina fotográfica. Não era isso que dizia o Gênese? “Porquanto és pó e ao pó tornarás.” Isso era muito mais do que a velha e maçante teologia: era observação científica precisa! O carbono era o Grande Nivelador: o Anjo da Morte.

Diamantes nada mais são que carbono, mas carbono em uma estrutura molecular cristalina que o tornava o mais duro mineral conhecido na natureza. Era para essa direção que todos nós caminhávamos. Eu tinha certeza disso. Estávamos destinados a ser diamantes!

Como era excitante pensar que, muito depois de o mundo ter terminado, tudo o que restasse de nossos corpos seria transformado em uma deslumbrante nevasca de poeira de diamante, soprada rumo à eternidade sob a luz vermelha de um sol moribundo.

E para Rupert Porson esse processo já começara.

— Eu duvido muito, Haviland — dizia tia Felicity —, que eles sigam em frente com o serviço. Não me parece muito certo em vista do que aconteceu.

— A Igreja da Inglaterra, Lissy — replicou o pai —, como o tempo e as marés, não espera por ninguém. Além disso, o homem morreu no salão paroquial e não no recinto da igreja, por assim dizer.

— Pode ser — disse ela, dando uma fungada. — Ainda assim, vou ficar aborrecida se toda essa caminhada tiver sido à toa.

Mas o pai estava certo. Enquanto caminhávamos ao longo do muro de pedra que corria como um cinto apertado em volta do pátio atulhado da igreja, vi o capô do sedã Vauxhall azul do inspetor Hewitt aparecer discretamente no fim da rua. O inspetor mesmo não estava visível em lugar algum quando atravessamos o pórtico e entramos na igreja.

As preces matinais foram solenes como uma Grande Missa de Réquiem. Sei disso com certeza porque nós, os De Luce, somos católicos romanos. De fato, somos praticamente membros fundadores. Já vimos nosso quinhão de mesuras e reverências. Mas frequentamos com regularidade a igreja de São Tancredo, por causa de sua proximidade e porque o vigário é um dos grandes amigos do pai.

“Além disso”, como diz o pai, “é um dever que se impõe negociar com as firmas locais.”

Esta manhã, a igreja estava lotada até as vigas do telhado. Até o balcão embaixo da torre do sino transbordava de gente da aldeia que queria estar o mais perto possível, sem ser inconveniente, da cena do crime.

Nialla não estava em lugar nenhum. Percebi na hora. Nem a sra. Mullet nem Alf, o marido dela. Se eu conhecia a nossa sra. M, naquele exato momento ela devia estar bombardeando Nialla com salsichas e perguntas. Importunando e bisbilhotando, como diria Dafi.

Cynthia já estava de joelhos, na frente e no centro, rezando para quaisquer deuses que ela quisesse subornar antes do início do serviço. Ela era sempre a primeira a se ajoelhar e sempre a primeira a se pôr de pé em um salto. Eu às vezes pensava nela como a timoneira espiritual de São Tancredo.

Dessa vez, porque seria sobre alguém que eu conhecera pessoalmente, eu aguardava ansiosa pelo sermão. O vigário, eu esperava, pronunciaria alguma coisa inspirada no passamento de Rupert — de bom gosto e educativa. “No meio da vida estamos na morte”, era o meu palpite.

Mas quando por fim subiu ao púlpito, o vigário estava estranhamente contido, e não era apenas porque Cynthia corria um dedo indicador de luva branca pela estante de madeira onde estavam os hinários e o livro de rezas da Igreja anglicana. De fato, o vigário não fez nenhuma referência clara ao assunto até terminar o sermão.

— Em vista das trágicas circunstâncias da noite passada — disse ele em uma voz abafada e solene —, a polícia solicitou que o salão paroquial permaneça à sua disposição até que os trabalhos sejam encerrados. Por causa disso, o nosso costumeiro lanchinho, somente hoje, será servido no presbitério. Aqueles que desejarem estão cordialmente convidados para se juntar a nós depois do serviço. E agora, que Deus o Pai, Deus o Filho e Deus o Espírito Santo...

Simples assim! Sem pensamentos sobre “o estranho em nosso meio”, como ele havia dito quando Horace Bonepenny fora assassinado em Buckshaw. Sem reflexões sobre a imortalidade da alma... nada.

Para ser perfeitamente honesta, me senti mais do que um pouco frustrada.

Nunca é possível, pelo menos em São Tancredo, pular fora da igreja para a luz do sol como a rolha de uma garrafa. É preciso sempre parar à porta para apertar a mão do vigário e fazer algum comentário obrigatório sobre o sermão, o tempo e as colheitas.

O pai escolheu o sermão, e as duas, Dafi e Felinha, escolheram o tempo (as suínas!), com Dafi comentando a notável claridade do ar, e Felinha, a sua tepidez. Isso me deixou com poucas opções, e o vigário já estava segurando a minha mão.

— Como vai indo a Meg? — perguntei. Para dizer a verdade, eu já tinha esquecido tudo sobre Meg, a Louca, até aquele momento, e a pergunta simplesmente estalou na minha cabeça.

Teria o rosto do vigário se tornado ligeiramente pálido ou seria minha imaginação?

Ele olhou muito depressa primeiro para a esquerda, depois para a direita. Cynthia estava andando de um lado para o outro do lado de fora entre as sepulturas, já a meio caminho do presbitério.

— Infelizmente não posso contar — disse ele. — Entenda, ela estava...

— Vigário! Eu tenho um probleminha para discutir com você, você sabe!

Era Bunny Spirling. Bunny era um dos Spirling do Velho Salão Nautilus, que, como o pai observara certa vez, dera com os burros n’água por causa dos cavalos.

Como Bunny tinha um corpo parecido com a letra D maiúscula, ninguém conseguia passar por ele, e o vigário agora estava firmemente espremido entre a grande barriga de Bunny e o batente gótico da porta. Tia Felicity e Dogger, imagino, ainda estavam encurralados em algum lugar no vestíbulo, enfileirados como tripulantes de um submarino naufragado aguardando sua vez de se aproximarem da escotilha de escape.

Enquanto Bunny cuidava do seu probleminha (alguma coisa sobre o dízimo e o chocante mau estado do acolchoamento dos genuflexórios), vi minha oportunidade de escapar.

— Oh, Deus — comentei com o pai —, parece que o vigário vai se atrasar. Vou na frente até o presbitério para ver se posso ser útil com os copos e pratos.

Não existe um pai no mundo que pense em negar tal pedido a uma criança tão caridosa, e saí correndo como uma lebre.

— Bom dia! — gritei para Cynthia enquanto passava por ela voando.

Saltei por cima dos degraus e dei a volta correndo até o presbitério. A porta estava aberta, e ouvi vozes na cozinha, nos fundos da casa. O Instituto das Mulheres, concluí: muitas delas deviam ter se esgueirado mais cedo para fora, durante o serviço, para pôr a chaleira no fogo.

Fiquei parada no corredor mal iluminado, ouvindo. O tempo era curto, mas não seria bom ser pega bisbilhotando. Com uma última olhada para a extensão de linóleo marrom encerado, entrei no estúdio do vigário e fechei a porta atrás de mim.

Meg, é claro, já se fora havia muito, mas a manta com que o vigário a cobrira no dia anterior ainda jazia amarfanhada sobre o sofá de crina de cavalo, como se Meg a tivesse simplesmente jogado de lado, se levantado e saído da sala, deixando para trás (só para falar de um jeito mais delicado) um cheiro silvestre: um cheiro de folhas molhadas, terra escura e alguma coisa indicando uma higiene pessoal menos que perfeita.

Mas, antes que eu pudesse pôr a cabeça para trabalhar, a porta foi aberta bruscamente.

— O que você está fazendo aqui?

Nem é preciso dizer que era Cynthia. Ela fechou a porta matreiramente atrás de si.

— Ora, olá, sra. Richardson — eu disse. — Só entrei para ver se a Meg ainda estava aqui. Não que ela fosse ficar, é claro, mas, entenda, eu me preocupo com ela e...

Quando você não encontra palavras, use as mãos. Isso era uma evasiva que nunca me falhou no passado, e eu esperava que não falhasse agora.

Peguei a manta amarfanhada e comecei a dobrá-la. Enquanto eu fazia isso, alguma coisa caiu com um plop quase inaudível no tapete.

— Só pensei em dar uma arrumada e depois ver se poderiam me dar trabalho na cozinha. Droga! — eu disse, deixando uma ponta da manta escapar dos dedos. — Oh, desculpe, sra. Richardson. Parece que eu sou um tanto desajeitada. Nós somos tão mimadas em Buckshaw, sabe?

Desajeitadamente, estendi a manta no chão, me agachei na frente dela e comecei a dobrá-la de novo. Sob o disfarce dos seus quadrados coloridos de lã, e usando o corpo para bloquear a visão de Cynthia, corri os dedos pelo tapete.

Senti imediatamente: um objeto metálico, frio e chato. Usando o polegar, apertei-o com firmeza na palma da mão. Enquanto eu mantivesse as mãos em movimento, tudo daria certo. Era assim que funcionavam os truques de prestidigitação dos mágicos. Eu sempre poderia enfiar aquilo no bolso depois.

— Vamos, me dê isso — disse Cynthia.

Entrei em pânico! Ela conseguira me pegar, afinal.

Assim que ela entrou na sala, comecei a me agitar freneticamente, esperneando e jogando os cotovelos para cima como chuços.

— Oh! — disse eu. — Esta manta está me dando coceira no corpo inteiro. Eu tenho uma tremenda alergia a lã.

Comecei a me coçar furiosamente: nos braços, nas costas das mãos, nas panturrilhas... em qualquer lugar, desde que não deixasse as mãos parar.

Quando cheguei ao pescoço, enfiei a mão pela parte de cima do vestido e deixei cair o objeto que segurava. Senti que ele caía lá dentro e parava na cintura.

— Me dê isso — repetiu ela, arrancando a manta das minhas mãos.

Dei um suspiro de alívio quando percebi que ela não conseguira ver o que eu tinha pego. Era a manta que ela queria, e a entreguei alegremente, dando em mim mesma mais algumas coçadas de cachorro só por garantia.

— Vou ajudar na cozinha — eu disse, indo em direção à porta.

— Flavia — disse Cynthia, plantando-se na frente da porta e agarrando meu pulso em um único e rápido movimento.

Olhei para os seus olhos azuis pálidos e aguados, mas eles não vacilaram.

Naquele instante, porém, ouviram-se risadas do lado de fora, com a chegada dos primeiros paroquianos à igreja.

— Se existe uma coisa em que nós, as meninas De Luce, somos muito boas — eu disse, abrindo um sorriso na cara dela enquanto escapava para a porta —, é fazer chá!

Minha intenção de fazer chá era a mesma que me candidatar a burrico de mina de carvão.

Ainda assim, segui em linha reta corredor abaixo até a cozinha.

— Bom dia, sra. Roberts! Bom dia, srta. Roper! Vim só conferir se vocês têm xícaras e pires suficientes.

— Temos à vontade, obrigada, Flavia querida — disse a sra. Roberts. Ela fazia aquilo desde o princípio dos tempos.

— Mas você pode pôr os ovos na parte de baixo da geladeira quando sair — sugeriu a srta. Roper. — A mulher dos ovos deve tê-los deixado no balcão da cozinha ontem. Nada dura muito com esse tempo, pelo menos não como antigamente. E enquanto você faz isso, querida, pode encher a jarra de limonada. O sr. Sterling gosta de um bom copo de limonada depois da igreja. Ele é sempre muito generoso quando passamos a bandeja de coleta, e nós não queremos que ele nos ponha na sua lista negra, queremos?

Antes que elas pudessem inventar mais uma tarefa, escapei com ares de ocupada pela porta da cozinha. Mais tarde, quando elas tivessem um momento para isto (quando estivessem lavando os pratos, talvez), a sra. Roberts e a srta. Roper comentariam uma com a outra que boa menina eu era, e como era diferente das minhas irmãs.

Do lado de fora, no pátio da igreja, o pai ainda estava plantado no caminho de pedras, ouvindo pacientemente Bunny Spirling lhe contar, palavra por palavra, o que ele acabara de dizer ao vigário. O pai balançava a cabeça de vez em quando, provavelmente para impedir que seu pescoço adormecesse.

Saí do caminho para a grama, fingindo inspecionar a inscrição de uma lápide desgastada pelo tempo que se projetava para cima como o dente amarelado de uma gengiva verde (Hezekiah Huff 1672-1746, em Paz no Paraíso). Voltando as costas para os retardatários mexeriqueiros, extraí o objeto metálico que eu deixara cair na frente do meu vestido: era, como eu sabia que seria, o estojo esmaltado de pó compacto cor de laranja em forma de borboleta de Nialla. Estava aninhado na palma da minha mão, reluzindo suavemente à luz morna do sol. Meg devia ter deixado cair enquanto dormia no sofá do estúdio do vigário.

Eu o devolveria a Nialla mais tarde, pensei, enfiando-o no bolso. Ela ficaria feliz de tê-lo de volta.

Quando me reuni com a família, vi que Dafi estava encarapitada no muro de pedra na frente do pátio da igreja, com o nariz enfiado em A anatomia da melancolia, de Robert Burton, seu último grande entusiasmo. Como ela conseguira entrar e sair da igreja com um volume tão gordo, eu não podia nem começar a imaginar, até que cheguei suficientemente perto para ver a cruz de papel de alumínio belamente confeccionada que ela colara na capa preta. Oh, que trapaceira ela era! Muito bem, Dafi!

Felinha gargalhava embaixo de um carvalho, deixando o cabelo cair para a frente e encobrir o rosto, como ela faz quando quer parecer Veronica Lake. Desfrutando sua atenção e vestindo um terno rústico de lã, estava Dieter Schrantz, e me dei conta, não sem uma sensação meio melancólica, de que ele estava totalmente sob o domínio de Felinha, fascinado com cada palavra que ela pronunciava, como uma bola na ponta de um elástico, balançando a cabeça como um pica-pau demente e sorrindo como um idiota.

Eles nem repararam no meu olhar enojado.

Tia Felicity conversava com uma pessoa idosa, que usava um aparelho auditivo. Parecia, a julgar pela conversa delas, que eram velhas amigas.

— Mas não se deve arquear as costas e cuspir! — dizia a velha senhora, encurvando os dedos de unhas vermelhas em garra, com o que as duas gargalharam de modo obsceno.

Dogger, nesse meio-tempo, ficou pacientemente sentado em um banco embaixo de um teixo, de olhos fechados, com um leve sorriso nos lábios e o rosto virado para cima, para o sol de verão, parecendo ao mundo uma dessas esculturas modernas de bronze que chamam de Domingo.

Ninguém prestou a menor atenção em mim. Eu estava por minha conta.


As portas duplas no pórtico do salão paroquial estavam bloqueadas por uma corda, na qual se via pendurado um aviso: Cena do crime: não ultrapasse.

Eu não ultrapassei: dei a volta pelos fundos do edifício e entrei por uma das saídas.

Estava totalmente escuro lá dentro. No fim do corredor, eu sabia, havia uma porta que dava para o auditório. Alguns degraus à minha direita levavam ao palco.

Pude ouvir o ruído surdo de vozes masculinas e, por mais que forçasse os ouvidos, não consegui distinguir o que diziam. As cortinas de veludo preto que cercavam o palco deviam estar abafando as palavras.

Incapaz de extrair qualquer significado daquele murmúrio, e como não queria correr o risco de ser pega bisbilhotando, subi espalhafatosamente a escada.

— Olá! — gritei. — Alguém quer um chá?

O inspetor Hewitt estava plantado no meio de uma ilha de luz, conversando com os sargentos Woolmer e Graves. Ao me avistar, ele se calou imediatamente e veio marchando pelo palco, por trás do teatro de marionetes.

— Você não devia estar aqui. Não viu os avisos?

— Desculpe — eu disse sem responder à pergunta. — Entrei pelos fundos.

— Não há avisos nos fundos, sargento? — perguntou o inspetor a Graves.

— Desculpe, senhor — disse ele. — A culpa é toda minha.

— Bem — prosseguiu o inspetor —, já que estamos quase no fim, não é um desastre total. Mas lembre-se disso na próxima vez.

— Sim, senhor.

— Então — disse o inspetor voltando-se para mim —, o que você está fazendo por aqui? E não me venha com nenhuma conversa-fiada sobre chá.

Eu aprendera, por experiências passadas, que o melhor era ser franca com o inspetor, pelo menos respondendo a perguntas diretas. Sempre é possível ser útil, lembrei a mim mesma, sem confessar tudo.

— Eu estava tomando nota de alguns pontos.

Na verdade eu não tinha anotado nada, mas agora, pensando nisso, me dei conta de que era uma boa ideia. Cuidaria disso à noite.

— Tomando notas? Por que diabos você faria isso?

Como não consegui pensar em nada para dizer, eu não disse nada. Não poderia falar ao homem que Dogger achava que se tratava de um assassinato.

— Agora, infelizmente, vou ter de pedir a você que vá embora, Flavia.

Enquanto ele falava, olhei em volta desesperadamente, procurando alguma coisa (qualquer coisa!) em que me agarrar.

E de repente eu vi. Quase gritei de alegria. Meu coração disparou dentro de mim, e eu mal conseguia enxergar de tanto rir quando falei.

— Edgar Allan Poe! — eu disse alto. — A carta roubada.

O inspetor me encarou como se eu tivesse enlouquecido.

— Você conhece a história, inspetor? — perguntei. Dafi a lera em voz alta para nós na véspera do Natal.

— Todo mundo conhece, não é? — disse ele. — E agora, por favor, faça o favor de...

— Então você se lembra de onde a carta estava escondida: em cima da lareira, bem à vista, pendurada em uma fita azul suja.

— É claro — disse ele com um sorriso leve e indulgente.

Eu apontei para o corrimão de madeira do palco dos bonecos, que não estava mais de trinta centímetros acima de sua cabeça.

— A energia elétrica foi desligada? — perguntei.

— Nós não somos idiotas, Flavia.

— Então — eu disse, estendendo a mão para cima e quase encostando na coisa, —, talvez devamos dizer ao vigário que encontramos o prendedor de calça para bicicleta que ele perdeu.


NO COMEÇO FOI DIFÍCIL ENXERGÁ-LO. Metal preto sobre madeira pintada de preto, era quase invisível. Se não fosse pelo carbono salpicado, eu não teria reparado nele.

Preto sobre preto sobre preto. Eu estava orgulhosa de mim.

O prendedor de calça estava enfiado em um suporte de madeira, como se o suporte fosse um tornozelo. Embaixo dele corria uma extensão de cabo elétrico flexível, que se conectava com uma fileira de interruptores acima do palco para acionar as luzes coloridas da ribalta abaixo. Mesmo onde eu estava, vi o brilho do fio de cobre no lugar onde o isolamento do cabo fora removido.

— Meu bom Deus! — disse o inspetor. — O que a faz pensar que isso pertence ao vigário?

— Várias coisas — eu disse, contando-as nos dedos. — Em primeiro lugar, eu o ouvi dizer na quinta-feira à tarde que tinha perdido seu prendedor. Em segundo lugar, sei com certeza que o prendedor não estava aqui ontem à tarde antes do espetáculo. Rupert me deixou dar uma boa olhada aqui em volta um pouco antes da matinê. E, por último, o prendedor tem as iniciais do vigário gravadas. Olhe aqui: se você apertar os olhos um pouco e olhar aqui do lado, vai conseguir enxergá-las: D.R.: Denwyn Richardson. Cynthia as escreveu com uma agulha, porque ele está sempre perdendo as coisas.

— E você tem certeza absoluta de que o prendedor não estava aqui no sábado à tarde?

— Positivo. Eu estava me segurando exatamente aqui neste ponto do corrimão quando Rupert me levou para a ponte lá em cima, para me mostrar como Galligantus funcionava.

— Como foi que você disse? — A expressão do inspetor era de perplexidade.

— Galligantus. É o nome do gigante de João e o pé de feijão. Eu vou lhe mostrar. Algum problema em subirmos lá? — perguntei, apontando para a ponte.

— É extremamente irregular, mas vá em frente.

Subi pela escada até a passarela atrás do palco de marionetes, com o inspetor nos meus calcanhares.

Galligantus ainda estava firme em sua posição.

— No terceiro ato, quando João está desferindo machadadas no pé de feijão, Rupert puxa esta alavanca de ferro, que libera Galligantus. Ele é movido por uma mola, entende?

Houve um longo silêncio. Então o inspetor sacou seu caderninho e desatarraxou a tampa de sua esferográfica.

— Muito bem, Flavia — disse com um suspiro —, conte-me mais.

— Quando João derruba o pé de feijão, o gigante deveria despencar do céu. Mas ele não despencou, é claro... Em vez disso, foi Rupert quem despencou.

— Portanto, Rupert não poderia ter acionado a alavanca. É isso que você está querendo dizer?

— Exatamente! Se ele a tivesse acionado, Galligantus teria sido liberado. Mas ele não foi, é claro, porque o prendedor de calça do vigário estava enfiado na parte inferior da alavanca. Preto sobre preto. Rupert não deve ter reparado.

— Meu bom Deus! — exclamou o inspetor, dando-se conta do que eu estava dizendo. — Então não foi...

— Um trágico acidente? Não, inspetor. Eu não diria isso.

Ele deixou escapar um assobio baixo.

— Está vendo isto? Alguém cortou o isolamento deste cabo — eu prossegui —, deixando o fio nu, depois enfiou o prendedor de calça por cima para esconder. A outra ponta do prendedor está presa à parte de baixo da alavanca de Galligantus.

— Formando uma conexão elétrica — disse ele. — Um curto-circuito deliberado.

— Isso mesmo — eu disse. — Olhe, dá para ver o depósito de carbono onde a corrente formou um arco voltaico. Está vendo como a madeira embaixo está um pouco chamuscada?

O inspetor Hewitt inclinou-se para ver mais de perto, mas não disse nada.

— Me parece — acrescentei — que o prendedor de calça não poderia ter sido colocado ali até algum tempo depois da primeira apresentação. Se não fosse assim, Galligantus não poderia ter caído.

— Flavia — disse o inspetor —, você precisa me prometer que não vai discutir isso com mais ninguém. Nem uma palavra. Entendeu?

Olhei firme para ele por um momento, como se aquele mero pensamento fosse altamente ofensivo.

— Ele foi eletrocutado, não foi? — perguntei.

O inspetor assentiu.

— O dr. Darby acha muito provável. Teremos os resultados da autópsia ainda hoje, mais tarde.

Teremos os resultados da autópsia? O inspetor estaria me incluindo? Estaria contando comigo como parte da sua equipe? Eu precisava escolher as palavras com cuidado.

— Os meus lábios estão selados — eu disse. — Juro pela minha vida e...

— Obrigado, Flavia — disse ele com firmeza. — Uma simples promessa é o bastante. Agora vá embora e deixe-me continuar com isto.

Vá embora? Que audácia descomunal! Que rematado atrevimento!

Receio ter soltado um ruído pouco gentil ao sair.


Como eu suspeitava, Felinha ainda flertava com Dieter embaixo dos carvalhos.

O pai estava perto da porta da igreja, com a expressão perplexa de um homem que tinha corrido para ajudar alguém que inadvertidamente entrara na jaula de um tigre, mas que agora não conseguia se decidir muito bem sobre qual dos ocupantes da jaula precisava ser salvo do outro.

— Felinha — chamou ele afinal. — Não devemos deixar a sra. Mullet esperando.

Meu estômago se revoltou instantaneamente. Era domingo, dia em que éramos alimentados à força, como gansos de Estrasburgo, com algum dos experimentos culinários fracassados da sra. Mullet, tal como fígado de javali recheado, trazido inteiro à mesa, simulando um Falso Pão Doce de Denbighshire.

— Pai — disse Felinha pegando o touro à unha —, eu gostaria de lhe apresentar Dieter Schrantz.

O pai, é claro, como todo mundo em Bishop’s Lacey, tinha conhecimento de que havia prisioneiros alemães trabalhando nas vizinhanças. Mas até aquele momento ele nunca fora colocado na posição de ter de conversar com alguém a quem ele sempre se referia em casa, na sala de estar de Buckshaw, como O Inimigo.

Ele estendeu a mão.

— É um prazer conhecê-lo, senhor — disse Dieter, e vi que o pai se surpreendeu muito com o inglês perfeito de Dieter. Mas antes que ele pudesse responder, Felinha partiu para o segundo assalto.

— Convidei Dieter para o chá — disse —, e ele aceitou.

— Desde que o senhor concorde, é claro — acrescentou Dieter.

O pai pareceu desconcertado. Tirou os óculos do bolso do colete e começou a limpá-los com o lenço. Por sorte, tia Felicity chegou a tempo de intervir.

— É claro que ele concorda! — disse ela. — Haviland nunca foi homem de guardar rancores, não é, Havi?

Como se estivesse sonhando, o pai olhou em volta e comentou, para ninguém em particular:

— Interessante, este tempo.

Me aproveitei imediatamente de sua confusão momentânea.

— Vão andando sem mim — eu disse —, só quero dar um pulo lá dentro e me certificar de que Nialla esteja bem. Depois vou direto para casa.

E ninguém ergueu um dedo para me impedir.


O chalé da sra. Mullet se aninhava no fim da Alameda dos Sapateiros, um caminho estreito e poeirento que saía do sul da rua principal e terminava em uma escadaria. Era um lugarzinho aconchegante com malvas-rosa e um gato ruivo cochilando ao sol. Seu marido, Alf, estava sentado em um banco no pátio, esculpindo um apito de salgueiro.

— Bem, bem — disse ele quando me viu no portão —, a que devemos este tão prodigioso e imenso prazer?

— Bom dia, sr. Mullet — disse eu, assumindo sem esforço a minha melhor voz de educação refinada. — Espero que esteja passando bem.

— Razoavelmente... razoavelmente para os meus problemas de digestão — disse ele. — Às vezes sinto um chute, como o de um canguru. Ou então uma queimação como o incêndio de Roma.

— Lamento ouvir isso — disse eu, honesta em cada palavra. — Nós, os De Luce, não somos os únicos sujeitos às preparações culinárias da sra. Mullet.

— Pegue — disse Alf, estendendo-me o apito de madeira. — Dê uma soprada. Veja se consegue pegar um elfo.

Peguei o pedaço delgado de madeira e levei-o aos lábios.

— É melhor não — disse eu. — Não quero acordar Nialla.

— Ah! — fez ele. — Não tenha medo disso. Ela já se foi antes de o sol raiar.

— Ela foi embora?

Eu fiquei atônita. Como ela podia ter ido embora?

— Para onde? — perguntei.

— Só Deus sabe — disse ele, encolhendo os ombros. — De volta à Fazenda Culverhouse, talvez. Ou talvez não. É tudo o que sei. E agora dê uma apitada.

Soprei o apito, produzindo um lamento agudo, estridente, penetrante.

— Som de bruxos — disse eu, entregando-o de volta.

— Fique com ele — disse Alf. — Fiz para você. Achei que estaria por aqui em breve.

— Bacana! — disse eu, pois sabia que era isso que ele esperava de mim.


Enquanto caminhava de volta a Buckshaw para o almoço, pensei em como a minha vida se parecia com a daqueles fervilhantes clérigos das novelas de Anthony Trollope, que davam a impressão de passar os dias indo apressados da clausura para o presbitério e da aldeia para o palácio do bispo, como besouros mecânicos pretos se agitando de um lado para o outro em um labirinto verde. Eu mergulhara em O guardião durante dois dos nossos períodos de leitura compulsórios nas tardes de domingo, e algumas semanas depois complementei folheando trechos de As torres de Barchester.

Admito que, como não havia ninguém da minha faixa etária nos seus escritos, não me importei muito com Trollope. A maioria dos seus clérigos fossilizados, por exemplo, me fez ter vontade de vomitar as minhas salsichas. O personagem com o qual mais me identifiquei foi a sra. Proudie, a mulher tirana do bispo assustadiço que sabia o que queria e, na maioria das vezes, sabia como conseguir. Se a sra. Proudie entendesse de venenos, poderia ter se tornado meu personagem favorito da literatura.

Embora Trollope não tivesse mencionado isso, na minha cabeça não havia dúvida de que a sra. Proudie fora criada em um lar com duas irmãs mais velhas que a tratavam como lixo.

Por que Ophelia e Daphne me desprezavam tanto? Seria porque Harriet me odiava, como elas alegavam? Teria ela, sofrendo de depressão pós-parto, pulado para o nada de uma montanha no Tibete?

Resumindo, este era o problema: será que eu a tinha matado?

Será que o pai me responsabilizava por sua morte?

De algum modo, o dia perdera seu brilho enquanto eu me arrastava mal-humorada pelo caminho. Até mesmo o pensamento do assassinato de Rupert e suas consequências complicadas me animaram muito pouco.

Dei umas duas sopradas no apito de salgueiro, mas elas soaram como um filhote de cuco caído do ninho, chorando cheio de angústia pela mamãe. Enfiei aquilo no fundo do bolso e segui penosamente em frente.

Eu precisava de algum tempo a sós. Algum tempo para pensar.


Vista dos Portões Mulford, Buckshaw sempre teve um ar um tanto triste e abandonado, como se alguma essência vital estivesse faltando. Mas agora, enquanto eu caminhava entre as castanheiras, alguma coisa estava diferente. Vi imediatamente o que era. Várias pessoas em pé na curva de pedregulhos no pátio de acesso, e uma delas era o pai, apontando para o telhado. Comecei a correr, disparando através do gramado como uma velocista, o peito para fora, os punhos se alternando como pistões do meu lado.

Eu não precisava ter me preocupado. Quando me aproximei, vi que eram apenas tia Felicity e Dafi, as duas de um lado do pai, com Felinha do outro.

À direita dela estava Dieter. Eu não acreditava no que via!

Os olhos de Felinha faiscavam, seu cabelo luzia ao sol de verão e seu sorriso era deslumbrantemente perfeito. Com sua saia cinzenta, conjunto de suéter amarelo-canário e um colar de Harriet de pérolas cultivadas de uma única volta no pescoço, ela estava mais que vibrante... estava linda. Eu poderia tê-la estrangulado.

— Ruskin achava as goteiras quadradas abomináveis — dizia o pai —, mas ele estava sendo irônico, é claro. Mesmo o nosso melhor arenito inglês não é senão um pálido arremedo do mármore de textura fina que se encontra na Grécia.

— É verdade, senhor — concordou Dieter. — Porém, não era o seu Charles Dickens que achava que os gregos usavam mármore unicamente por causa do modo como ele aceitava pintura e cores? Ainda assim, o estilo e o material nada significam quando a goteira é colocada embaixo de um pórtico. É uma piada do arquiteto, não é?

O pai refletiu por um momento, esfregando as mãos atrás das costas enquanto olhava fixamente para a fachada da casa.

— Por Deus! — disse afinal. — Você pode ter descoberto alguma coisa.

— Ah, Flavia! — disse tia Felicity quando me avistou. — Pense no Diabo e ele aparece. Mais tarde eu gostaria de pintar, e você vai ser a minha assistente. O trabalho com os pincéis me apraz, mas eu simplesmente não suporto as bisnagas grudentas e os trapos sujos.

Dafi revirou os olhos e foi se afastando lentamente da sua velha tia louca, temendo, eu acho, ser posta para trabalhar também. Me abrandei o suficiente para fazer-lhe uma pergunta. Há momentos em que a curiosidade prevalece até sobre o orgulho.

— O que ele está fazendo aqui? — sussurrei ao ouvido dela, fazendo um ligeiro movimento de cabeça na direção de Dieter.

É claro que eu já sabia, mas aquela era uma rara oportunidade de conversar de irmã para irmã sem rancor.

— Tia Felicity insistiu. Disse que ele deveria nos acompanhar até em casa e ficar para o chá. Acho que ela está de olho nele — acrescentou com uma risadinha áspera.

Embora eu esteja bastante acostumada com os excessos de Dafi, devo admitir que fiquei chocada.

— Para a Felinha — explicou ela.

Claro! Não admira que o pai estivesse exercitando seu charme enferrujado! Uma filha a menos significaria a redução de um terço no número de bocas excedentes que ele tinha de alimentar. Não que Felinha comesse tanto assim, ela não comia, mas aliada à redução na dose de insolência cotidiana que ele teria, passá-la ardilosamente a Dieter bem que valeria o esforço.

E também, pensei, seria o fim das vastas despesas com a reprateação constante dos espelhos de Buckshaw. Felinha era um verdadeiro inferno para os espelhos.

— E o seu pai... — dizia o pai para Dieter.

Eu sabia! Ele já estava preparando o terreno!

— ... acredito que você disse algo sobre livros?

— Ele é um editor — disse Dieter. — É o Schrantz, de Schrantz e Markel. O senhor pode não ter ouvido falar deles, mas publicam em alemão edições de...

— É claro! A Luxus Ausgaben Schrantz und Markel. O Plínio deles, aquele com as pranchas de Dürer... é realmente notável.

— Vamos, Flavia — disse tia Felicity. — Você sabe como é cansativo pintar tijolos na sombra.


A distância, eu devia estar parecendo um galeão naufragando, com o cavalete de tia Felicity por cima do ombro, uma tela esticada embaixo de cada braço e uma caixa de tintas e pincéis em cada mão, vadeando descalça nas águas rasas do lago ornamental em direção à ilha na qual se situava a folly. Tia Felicity vinha logo atrás, carregando um banquinho de três pernas. Em seu conjunto de tweed, chapéu mole e guarda-pó, ela me lembrava as fotos que eu tinha visto na Country Life, de Winston Churchill espalhando suas tintas na tela em Chartwell. Só faltava o charuto.

— Há séculos eu queria reproduzir a fachada sul como era nos tempos do querido tio Tar — bradou ela, como se eu estivesse do outro lado do mundo.


— E agora, querida — disse tia Felicity depois que eu finalmente montei o equipamento de pintura a seu gosto —, chegou a hora de uma conversinha discreta. Aqui fora, pelo menos, ninguém nos ouvirá, a não ser as abelhas e os ratos-d’água.

Olhei para ela, atônita.

— Imagino que você pense que eu não sei nada sobre o tipo de vida que você leva.

Era o tipo de afirmação em relação à qual eu aprendera a ser excepcionalmente cautelosa: suas implicações eram imensas, e até ver em que direção os ventos conversacionais levavam, eu sabia que o melhor era ficar calada.

— Por outro lado — prosseguiu ela —, sei muito do que você deve sentir: a sua solidão, o seu isolamento, as suas irmãs mais velhas, o seu pai preocupado...

Eu estava a ponto de dizer que ela devia estar enganada, quando de repente percebi que a conversa poderia ser proveitosa para mim.

— Sim — eu disse, olhando ao longe por cima da água e piscando, como que para conter uma lágrima —, às vezes pode ser difícil.

— É exatamente o que sua mãe costumava dizer sobre a vida em Buckshaw. Lembro-me dela vindo para cá aos domingos, quando era uma menina, como eu antes dela.

Visualizar a tia Felicity como uma menina não era uma tarefa fácil.

— Oh, não fique tão chocada, Flavia. Na minha juventude, eu costumava correr livre por esta ilha como uma princesa indígena americana. “Mu-nu-tonowa” foi o nome que eu me dei. Surrupiava deliciosos pedacinhos de carne da despensa e fazia de conta que estava assando um cachorro em uma fogueira acesa com pauzinhos, e coisas assim.

“Mais tarde, apesar da nossa grande diferença de idade, Harriet e eu sempre fomos grandes companheiras. ‘As proscritas desprezadas’, era como nos intitulávamos. Vínhamos para cá, para esta ilha, conversar. Uma vez, quando estávamos sem nos ver fazia muito tempo, nos sentamos a noite inteira na folly, enroladas em cobertores, tagarelando até o sol nascer. O tio Tar mandou Pierrepoint, o mordomo, nos trazer biscoitos Plasmon e mocotó de pé-de-bezerro. Ele tinha nos visto das janelas do seu laboratório, entende, e...”

— E como era ela? — interrompi. — Harriet, quero dizer.

Tia Felicity deu uma pincelada escura em sua tela que, imaginei, supostamente representava o tronco de uma das castanheiras.

— Era exatamente como você — respondeu ela. — Como você bem sabe.

Engoli em seco. — Era mesmo?

— É claro que era! Como é possível que você não soubesse disso?

Eu poderia ter enchido os ouvidos dela com as histórias horríveis que Felinha e Dafi me contaram, mas preferi não fazer isso. Em boca fechada não entram moscas.

Dogger me dissera isso certa vez, quando lhe fiz uma pergunta um tanto pessoal sobre o pai. “Em boca fechada não entram moscas”, ele respondera, voltando aos seus potes de flores, e não tive coragem de perguntar quais de nós três éramos os mudos e quais eram as moscas.

Então murmurei alguma coisa pouco satisfatória, e agora me vi fazendo isso de novo.

— Céus, minha criança! Se você quer ver a sua mãe, não precisa fazer mais do que se olhar no espelho. Se você quer saber sobre o caráter dela, olhe para dentro de si mesma. Você é tão parecida com ela que me deixa nervosa.

Muito bem, então.

— O tio Tar costumava nos convidar para Buckshaw no verão — prosseguiu ela, sem perceber, ou preferindo ignorar, a minha cara vermelha.

“Ele tinha uma extraordinária teoria de que a presença de mulheres jovens na casa a mantinha unida segundo alguma obscura praxe química; alguma coisa sobre ligas e o insuspeitado gênero duplo da molécula de carbono. Louco como a Lebre de Março, Tar de Luce não passava de um velho cavalheiro, apesar de tudo. Harriet, é claro, era a sua favorita; talvez porque ela jamais se cansava de sentar-se em um banquinho alto naquele laboratório malcheiroso, tomando notas enquanto ele as ditava. ‘Minha fantástica assistente’, ele costumava chamá-la. Era uma piada entre os dois. Harriet me contou certa vez que ele se referiu a um experimento espetacular que não tinha dado certo e que poderia ter apagado Buckshaw do mapa... para não falar de Bishop’s Lacey e redondezas. Mas ela me fez jurar que ficaria calada. Nem sei por que estou contando isso a você.”

— Ele estava investigando a decomposição de primeira ordem do pentóxido de hidrogênio — eu disse. — Foi um trabalho que levou ao desenvolvimento da bomba atômica. Entre os papéis dele, havia algumas cartas do professor Arrhenius, de Estocolmo, que deixavam muito claro o que eles pretendiam.

— E sobrou você, por assim dizer, para carregar a tocha.

— Como?

— Para levar adiante o glorioso nome dos De Luce — disse ela —, aonde quer que isso a leve.

Era um pensamento interessante; nunca me ocorrera que o nome de alguém pudesse ser uma bússola.

— E onde poderia ser isso? — perguntei, um pouco maliciosa.

— Você precisa dar ouvidos a sua inspiração. Precisa deixar que a sua visão interior seja o seu guia.

— Eu tento — disse eu. Devo ter soado à tia Felicity como a idiota da aldeia.

— Eu sei que você tenta, querida. Já ouvi diversos relatos dos seus feitos. Por exemplo, houve aquela história horrível com Bunpenny, ou qualquer que seja o nome dele.

— Bonepenny — eu disse. — Horace. Ele morreu bem ali.

Apontei para o outro lado do lago, para o muro da horta da cozinha.

Apesar disso, tia Felicity seguiu em frente.

— Você nunca deve se curvar ao desagradável. Quero que se lembre disso. Embora possa não ser visível aos outros, a sua obrigação se tornará clara como uma linha branca pintada no meio da estrada. Você deve segui-la, Flavia.

— Mesmo se ela levar ao homicídio? — perguntei, subitamente atrevida.

Com o pincel estendido em toda a extensão do braço, ela pintou a sombra escura de uma árvore.

— Mesmo se levar ao homicídio.

Ficamos sentadas por alguns momentos em silêncio, tia Felicity dando suas pinceladas sem nenhum resultado particularmente empolgante, e então ela falou de novo:

— Se você não se lembrar de mais nada, lembre-se disto: a inspiração de fora do próprio ser é como o calor de um forno. Ele pode fazer pãezinhos de Bath aceitáveis. Mas a inspiração dele é como um vulcão: muda a face do mundo.

Tive vontade de jogar os braços em volta daquela velhota toda suja em sua fantasia de George Bernard Shaw e abraçá-la até espremer todo o suco para fora. Mas não fiz isso. Eu não podia.

Eu era uma De Luce.

— Obrigada, tia Felicity — disse eu, pondo-me de pé. — Você é uma fortaleza.


ESTÁVAMOS NA BIBLIOTECA TOMANDO CHÁ. A sra. Mullet tinha entrado e saído, deixando para trás uma vasta bandeja de bolo jenny lind e bolinhos de groselha. À minha pergunta sussurrada sobre Nialla, ela respondeu com um encolher de ombros e franziu a testa para me lembrar que estava de serviço.

Felinha estava ao piano. Não demorou mais de três minutos para Dieter perguntar polidamente quem de nós tocava, e Felinha respondera com seus enrubescimentos. Agora, depois de suficientemente lisonjeada e das súplicas, ela estava apenas começando o segundo movimento da sonata Patética, de Beethoven.

Era uma peça adorável, e, enquanto a música se desvanecia e subia de novo, como anseios do coração, me lembrei que era a música que Laurie Laurence tocara em Mulherzinhas, quando Jo, que rejeitou sua proposta, se afastou andando do lado de fora de sua janela, e me perguntei se Felinha a teria escolhido no subconsciente.

Sonhador, o pai dava batidinhas leves com o indicador na beirada de seu pires, o qual trazia belamente equilibrado nas mãos. Havia momentos em que, sem nenhuma razão aparente, eu sentia um enorme vagalhão de amor, ou pelo menos de respeito, por ele, e aquele foi um desses momentos.

No canto, Dafi estava enrodilhada como um gato em uma poltrona, ainda nas garras de A anatomia da melancolia, e tia Felicity sentava-se muito satisfeita perto da janela, fazendo alguma coisa intrincada com um par de agulhas e uma bola de lã amarelo-enxofre.

De repente notei que Dieter estava mordendo o canto do lábio e que havia um brilho no canto de seu olho. Ele estava quase em lágrimas, e tentando não demonstrar.

Que crueldade daquela bruxa Felinha, escolher uma coisa tão triste e tão evocativa: uma melodia de Beethoven que só poderia servir como um amargo lembrete para o nosso convidado alemão da terra natal que ele deixara para trás.

Mas naquele instante Felinha interrompeu-se bruscamente e ergueu-se do teclado em um salto.

— Oh! — ofegou ela. — Eu lamento tanto! Não tinha a intenção de...

E vi que, talvez pela primeira vez na vida, ela estava genuinamente aflita. Ela correu para o lado de Dieter e estendeu seu lenço. E, para o eterno crédito dele, Dieter o aceitou.

— Não. Sou eu que devo lamentar — disse ele, enxugando os olhos. — É só que...

— Dieter — eu senti minha boca despejar de repente —, conte-nos como você se tornou um prisioneiro de guerra. Eu estava simplesmente morrendo de vontade de perguntar. Eu gosto demais de história, você sabe.

Dava para ouvir um alfinete caindo na Antártida.

— Flavia! — o pai conseguiu dizer enfim, porém somente quando já era tarde demais para ter o efeito que ele pretendia.

Mas Dieter já sorria. Pareceu estar aliviado por ter superado o abatimento.

— Mas é claro! — disse ele. — Há cinco anos estou esperando que alguém me pergunte, mas nunca ninguém perguntou. Vocês ingleses são cavalheiros tão perfeitos, até mesmo as damas!

Tia Felicity lançou-lhe um olhar radiante de aprovação.

— Porém — acrescentou Dieter —, devo avisá-los de que é uma longa história. Vocês têm certeza de que querem ouvir?

Dafi fechou o livro e colocou-o de lado.

— Adoro longas histórias — disse ela. — De fato, quanto mais longas, melhor.

Dieter posicionou-se no tapete na frente da lareira, o cotovelo sobre o consolo. Quase dava para imaginá-lo em uma cabana de caça na Floresta Negra.

— Bem — disse ele —, acho que se poderia dizer com segurança que fui abatido na Inglaterra por causa das irmãs Brontë.

Abatido? Isso era uma novidade! Fiquei inquieta de curiosidade.

Os olhos de Dafi ficaram instantaneamente parecidos com maçanetas de porcelana, e até o pai se endireitou na cadeira.

— Meu bom Deus! — murmurou ele.

— Eu fui muito mimado quando menino — começou Dieter — e tenho de admitir isso. Fui o único filho de uma família abastada, criado por uma Kinderpflegerin, uma governanta de crianças pequenas.

“Meu pai, como eu já disse, era um editor, e minha mãe, uma arqueóloga. Embora eles me amassem muito, suponho, estavam ambos tão envolvidos em seu próprio mundo que tudo o que dizia respeito “ao menino” foi deixado para Drusilla. Esse era o nome da governanta, Drusilla.

“Drusilla era uma grande leitora de romances ingleses. Ela consumia livros como uma baleia come krill. Nunca era vista sem um livro nas mãos. De fato, ela me ensinou a ler enquanto eu ainda chupava o dedão.

“Drusilla havia lido todos os livros das irmãs Brontë, é claro: O morro dos ventos uivantes, Jane Eyre, Shirley, A moradora de Wildfell Hall. Ela os conhecia quase de cor. Eu estava meio apaixonado por ela, imagino, e achei que poderia fazer com que ela me amasse lendo seus livros favoritos em inglês, em voz alta.

“E foi assim que me tornei um anglófilo. Daquela época em diante, não havia nada que eu quisesse mais do que ler livros ingleses: Dickens, é claro, e Conan Doyle; Jane Austen e Thomas Hardy. Quando fiquei um pouco mais velho, Drusilla me deu de Natal assinaturas de O Anuário dos Meninos e Companheiros. Com doze anos, eu já era mais britânico do que um garoto de Brixton!

“Então veio o rádio. Com base em artigos da Companheiros e com a ajuda de um colega de escola que morava ao lado (seu nome era Wolfgang Zander), fui capaz de montar um receptor simples, de uma só válvula, com o qual podíamos sintonizar as transmissões da BBC.

“Éramos loucos por dispositivos elétricos, Wolfgang e eu. A primeira coisa que fizemos foi uma campainha de porta operada por bateria; a seguinte foi um telefone entre o meu quarto e o dele, com um fio esticado por cima dos telhados e através das árvores.

“Bem depois que nossas famílias estavam dormindo, o fio encapado de algodão no topo dos galhos rumorejava até altas horas com nossas especulações febris. Podíamos falar a noite inteira, sobre rádio, é claro, mas também sobre livros ingleses. Pois Wolfgang, entendam, também tinha sido atacado pelos vírus ingleses e, em especial, pelo Brontë.

“A imaginação adolescente é uma força poderosa, e imagino que nos víamos, Wolfgang e eu, como Cavaleiros da Távola Redonda que saíam cavalgando da nossa fortaleza teutônica para resgatar aquelas irmãs Brontë: aquelas três donzelas loiras e pálidas cujo próprio nome as identifica como filhas do deus do trovão, e que eram reféns de um monstro em sua fria torre de pedra no norte.

“Além disso — acrescentou ele —, havia alguma coisa naquelas jovens e desamparadas donzelas em climas sufocantes que fazia com que qualquer menino adolescente quisesse levá-las embora e se casar com elas.”

Ele fez uma pausa, aguardando o efeito de suas palavras, olhando com atenção cada um de nós, e, enquanto fazia isso, vi subitamente chocada que Dieter imaginava ter encontrado as suas Brontës em mim, Felinha e Dafi; e, em Buckshaw, a sua fria torre de pedra. Nós éramos as suas Charlotte, Emily e Anne!

E lá estávamos nós três sentadas, de boca escancarada como cães.

Minha cabeça girava quando Dieter prosseguiu.

— Mas cedo demais nós crescemos — disse ele com um suspiro. — Cedo demais assumimos as alegrias do mundo dos adultos, mas também seus problemas.

“Há sempre uma idade em que os meninos descobrem o voo, e ela veio muito cedo para mim. Meus pais me alistaram no NFSK, o Corpo Nacional-Socialista de Aviação, e quando eu tinha catorze anos me vi subitamente sozinho nos controles de um Schulgleiter, pairando como uma águia acima de Wasserkuppe, nas montanhas do Ródano, acima do Ródano hessiano.

“Do ar, aquelas montanhas, embora de uma geologia muito diferente, ostentam em alguns lugares uma semelhança surpreendente com as charnecas do norte de Yorkshire.”

— Como você sabe isso? — interrompeu Dafi.

— Daphne! — disse o pai. Sua expressão penetrante acrescentava as palavras “tenha modos”.

— Foi porque você bombardeou Sheffield?

Fez-se um silêncio chocado diante da pergunta dela. Como era atrevida! Nem mesmo eu teria questionado Dieter sobre suas atividades aéreas sobre a Inglaterra, embora, tenha de admitir, aquele mesmo pormenor me tivesse cruzado a mente havia apenas alguns minutos.

— Porque — acrescentou Dafi —, se você fez isso, você deve dizer.

— Eu ia chegar nisso — disse Dieter mansamente.

Ele prosseguiu sem piscar um olho.

— Quando a guerra começou e eu fui transferido para a Luftwaffe, sempre mantive as pequenas edições inglesas de Jane Eyre e O morro dos ventos uivantes cuidadosamente envolvidas em um xale de aviador de seda branca, no fundo da minha mochila, juntinho com Lord Byron e Shelley.

“Decidi que, quando a guerra acabasse, eu me matricularia em uma universidade, talvez até um Oxford, uma vez que já falava a língua, e ali cursaria literatura inglesa. No começo, poderia até trabalhar dobrado e aceitar um cargo no magistério em uma das grandes escolas públicas e terminaria meus dias como um honrado e respeitado professor, alguma coisa como o seu Mr. Chips.

“Adeus, Herr Schrantz, eu costumava dizer. Mas o Destino ainda não havia terminado comigo. Receberam uma ordem de que eu teria de ir imediatamente para a França.

“Meu pai, ao que parecia, tinha cruzado com um velho conhecido de Berlim: alguém bem posicionado no ministério e que poderia conseguir quase qualquer coisa que se desejasse. O pai queria um filho que voasse como combatente: alguém cujo nome saísse nas manchetes, e não alguém com o nariz enfiado em um livro. E ainda por cima em um livro inglês!

“Antes que eu pudesse protestar, me vi destacado para um grupo de reconhecimento, o Luftflotte III, baseado na França, perto de Lille. Nossa aeronave era um Messerschmitt Bf-110, uma máquina de dois motores apelidada de Zerstörer.”

— A Destruidora — disse Dafi, sombria. Havia momentos em que ela podia ser bastante mordaz.

— Sim — retrucou Dieter. — A Destruidora. Essas máquinas, no entanto, eram modificadas especificamente para missões de reconhecimento. Não transportavam bombas.

— Espionagem — disse Dafi. Suas bochechas estavam um pouco ruborizadas, mas não sei se de raiva ou de excitação.

— Sim, espionagem, se você prefere — concordou Dieter. — Na guerra, havia missões de reconhecimento de ambos os lados.

— Ele está certo, você sabe, Daphne — disse o pai.

— Como eu estava dizendo — prosseguiu Dieter, dando uma olhadela para Dafi —, o Zerstörer era uma máquina de dois motores com uma tripulação de dois: um piloto e um segundo membro, que poderia ser um operador de rádio, um navegador ou um artilheiro de retaguarda, dependendo da missão.

“No meu primeiro dia, quando eu me encaminhava para a barraca de instruções, um Oberfeldwebel, um sargento de voo, com botas de aviador, bateu os calcanhares e gritou: ‘Herr Hauptmann! Heathcliff!’. É claro que era o meu velho companheiro Wolfgang Zander.

“Olhei rapidamente em volta para ver se alguém o ouvira, já que uma tal familiaridade entre patentes não seria tolerada. Mas não havia mais ninguém ao alcance da nossa voz.

“Apertamos as mãos alegremente. ‘Sou o seu navegador, Wolfgang’, disse ele, rindo. ‘Não contaram isso a você? Entre todos os navegadores do país, o meu nome tinha de ser escolhido para ser transportado nas alturas para as guerras no seu dragão de lata!’

“Embora fosse maravilhoso vê-lo de novo, precisávamos ser discretos. Era uma situação complicada. Desenvolvemos todo um conjunto de estratagemas: um pouco como amantes vivendo um romance nos tempos da Regência.

“Íamos até a aeronave, apontávamos aqui e ali com os dedos e nos abaixávamos perto da fuselagem, como se estivéssemos discutindo a tensão dos cabos, mas a nossa conversa, naturalmente, era sobre pouca coisa além de novelas inglesas. Se alguém se aproximasse, mudávamos rápido de Hardy para Hitler.

“Foi durante uma dessas inspeções que nasceu o grande esquema. Não me lembro agora se foi Wolfgang ou se fui eu quem teve a ideia.

“Estávamos andando em volta da cauda de Kathi (Kathi era o nome sutilmente disfarçado, pintado no nariz da nossa aeronave), quando de repente um de nós, acho que pode ter sido Wolfgang... ou posso ter sido eu... disse: ‘Você acha que as urzes estão em flor agora em Haworth Moor?’

“Simples assim. Naqueles poucos instantes, a sorte, como disse Julio César, foi lançada.

“E então, como se estivesse ouvindo atrás da porta, o Destino interveio novamente. Dois dias depois nos deram um objetivo em South Yorkshire: um pátio de ferrovia e uma fábrica de bicicletas onde achavam que eram produzidos motores Rolls-Royce. Apenas fotografias. ‘Moleza’, como costumavam dizer os sujeitos da RAF. Uma oportunidade perfeita para entregar, em pessoa, o nosso presentinho.

“O voo através do Canal transcorreu sem incidentes e, para variar, não fomos rechaçados por Spitfires. O tempo estava lindo, e os motores de Kathi ronronavam como dois enormes gatos satisfeitos.

“Chegamos ao alvo a tempo, ou ‘em ponto’, como vocês dizem, e tiramos as nossas fotografias. Clic! Clic! Clic!, e terminamos. Missão cumprida! Os quinze minutos seguintes eram só nossos.

“O presbitério de Haworth estava agora a menos de dezesseis quilômetros a noroeste e, à nossa velocidade, que era de quinhentos quilômetros por hora, ficava a não mais de dois minutos.

“O problema era que estávamos voando alto demais. Embora tivéssemos descido até cinco mil metros a fim de tirar as fotografias, para a nossa missão pessoal precisaríamos perder rapidamente ainda mais altitude. Um Messerschmitt com cruzes negras nas asas mergulhando sobre uma tranquila aldeia inglesa dificilmente passaria despercebido.

“Empurrei a alavanca de comando para a frente, e fomos descendo em uma espiral gigante, os ouvidos estalando como rolhas de champanhe. Abaixo de nós, as urzes da charneca eram um mar de ondas roxas.

“A trezentos metros, comecei a me afastar e caí quase a um voo rasante. ‘Prepare-se!’, gritei para Wolfgang.

“Entramos pelo leste, e subitamente lá estava ela, no topo da sua colina: a aldeia de Haworth! Seguimos em frente, os motores roncando rasantes por cima dos campos, transpondo por pouco as chaminés da casa da fazenda.

“Quando nos aproximávamos sobrevoando a estrada de Haworth, tive o primeiro vislumbre da igreja no alto da íngreme rua principal; então, cem metros adiante, além do pátio da igreja, a forma familiar do presbitério de Brontë. Era exatamente como eu sempre a tinha imaginado: as pedras escuras e manchadas e as janelas vazias.

“‘Agora!’, gritei, e Wolfgang empurrou nosso presente para fora da portinhola aberta na carlinga e para dentro do turbilhão dos motores. Embora eu não pudesse ver, podia imaginar nossa grinalda formando um arco descendente pelo ar, tombando e virando seguidamente, sua fita roxa tremulando atrás dela enquanto caía. Mais tarde, alguém a recuperaria entre as antigas sepulturas perto da porta do presbitério e leria a mensagem, em letras douradas cor de tojo sobre seda cor de urze: ‘O Mundo Inteiro Te Ama — Descansa em Paz’.

“Era arriscado demais subir para uma altitude de cruzeiro. Tínhamos de ir para casa em voo rasante de ponto a ponto, mantendo-nos em campo aberto. É claro que queimaríamos mais combustível assim, mas nós dois éramos jovens e imprudentes e fizéramos o que tínhamos vindo fazer. Assim que fôssemos vistos, o Inferno, os Furações e os Spitfires estariam na nossa cola.

“Mas era um dia perfeito de agosto. Com um pouquinho de sorte e um vento de popa, eu dizia a Wolfgang, poderíamos até conseguir sobrevoar a casa de Thomas Hardy a caminho de casa, sem nenhum custo adicional para o Reich.

“Foi naquele preciso momento que a carlinga diante de mim se estilhaçou, explodindo em uma chuva de balas. Tínhamos sido atingidos!

“‘Spitfire!’, gritou Wolfgang. Mas era tarde demais. Uma sombra escura passou disparada por nós, depois inclinou-se de lado e voltou, os círculos em vermelho, branco e azul lampejando como olhos loucos ao sol de verão.

“‘Cuidado’, gritei. ‘Ele está voltando para um novo ataque!’

“Foi então que notei que o indicador de temperatura do nosso motor de bombordo estava grudado no topo. Havia um supera-quecimento. Olhei para o lado e, para meu horror, vi a fumaça preta e as chamas alaranjadas sendo expelidas pela cobertura do motor. Perfilei a hélice e desliguei o motor.

“A essa altura o Spitfire estava de novo atrás de nós. No que restara do meu espelho retrovisor, vi sua imagem fragmentada oscilando gentilmente de um lado para outro, no nosso vácuo. Estávamos na sua mira.

“Mas ele não disparou. Foi muito enervante.

“Vamos, pensei. Acabe logo com isso. Ele estava brincando de gato e rato conosco.

“Não sei quanto tempo aquilo durou. Você não consegue estimar o tempo quando está prestes a morrer.

“‘Por que ele não dispara?’, gritei para Wolfgang, mas não houve resposta. Preso pelo cinto, não pude me virar o bastante no meu assento para vê-lo.

“Mas mesmo só com um motor, Kathi foi facilmente capaz de se manter voando, e, pelo que me pareceu uma eternidade, aquele cão de caça britânico perseguiu a égua alemã através dos campos verdejantes. O para-brisa estilhaçado reduzira a zero a visibilidade adiante de nós, e eu tinha de manobrar bruscamente de um lado para o outro, a fim de ver o que estava à frente. Era uma situação imprevisível.

“E então o outro motor morreu. Puf! Simples assim! Eu só tinha segundos para tomar uma decisão. As árvores de uma colina coberta de mato passavam velozmente embaixo das asas. No limite do bosque havia um campo em declive. Era lá que eu teria de aterrissar. Sem as rodas, pensei. Melhor fazer um pouso de barriga e parar mais depressa.

“O ruído do choque foi muito mais alto do que eu poderia ter imaginado. A aeronave virou de um lado para o outro, como se a terra estivesse rasgando a sua barriga, chacoalhando e batendo, guinando, pinoteando... foi como ser jogado vivo em uma calha de moinho.

“E, então, o silêncio sinistro. Foi preciso um momento para nos darmos conta de que não estávamos mais em movimento. Desafivelei meu cinto, joguei para trás a coberta e pulei sobre a asa. Depois, corri de volta para ver como estava Wolfgang.

“‘Saia!’, gritei. ‘Depressa! Para fora!’

“Mas não houve resposta.

“Embaixo da coberta de vidro, em um mar de sangue, Wolfgang estava sentado com um sorriso alegre nos lábios. Seus olhos mortos olhavam para fora fixamente, quase calorosamente, para os campos ingleses verdejantes.

“Pulei de cima da asa e vomitei sobre o capim alto.

“Tínhamos aterrissado na extremidade do campo. Agora, no alto da encosta, dois homens, um grande, o outro baixo, haviam emergido do meio das árvores e desciam lenta e cautelosamente na minha direção. Um deles trazia uma espingarda de caça, e o outro, um forcado.

“Fiquei lá parado, sem me mexer. Quando eles se aproximaram, ergui uma das mãos, puxei lentamente minha pistola do coldre e a joguei longe, certificando-me de que eles estavam vendo o que eu fazia. Então ergui a outra mão.

“‘Você é alemão’”, gritou o mais alto quando eles se aproximaram.

“‘Sim’, gritei de volta, ‘mas sei falar inglês.’

“Ele pareceu um pouco surpreso.

“‘Talvez seja melhor você chamar a polícia’, sugeri, fazendo um movimento de cabeça na direção do Messerschmitt destruído. ‘Meu amigo está morto lá dentro.’

“O homem alto se aproximou cautelosamente da aeronave e espiou lá dentro. O outro manteve sua posição, olhando fixamente para mim como se eu tivesse chegado de outro planeta. Ele ergueu seu forcado, como se estivesse prestes a enfiá-lo no meu estômago.

“‘Deixe-o, Rupert’, disse o homem com a espingarda. ‘Ele apenas sofreu um acidente grave.’

“Antes que o outro homem pudesse responder, ouviu-se um estrugido agudo no céu, e o Spitfire passou em grande velocidade, subindo na extremidade do campo em uma acrobacia vitoriosa.

“Fiquei olhando, enquanto ele subia diretamente para o céu azul e a seguir disse:

“‘Ele alça voo e começa a rodear. Derrama o fio prateado de som.’

“Os dois homens olharam para mim como se eu tivesse entrado subitamente em estado de choque, e talvez fosse verdade. Só mais tarde fui violentamente atingido pela noção de que o pobre Wolfgang estava morto.

“‘George Meredith’, eu disse a eles. O voo da cotovia.


“Mais tarde, na delegacia de polícia da aldeia, o piloto do Spitfire me fez uma visita. Ele estava com um esquadrão baseado em Catterick e decolara com sua máquina para conferir os controles depois que os mecânicos fizeram alguns ajustes. Não tinha a menor intenção de entrar em uma escaramuça naquele dia, ele me contou, mas lá estávamos nós, Wolfgang e eu, de repente sob a mira das suas armas, acima de Haworth. O que mais ele poderia fazer?

“‘Que raio de desastre. Que azar, meu velho’, disse ele. ‘Sinto muitíssimo pelo seu amigo.’

“Tudo isso aconteceu há seis anos — disse Dieter com um suspiro. — O homem alto no campo com a espingarda, como eu saberia depois, era Gordon Ingleby. O outro, o homem com o forcado, como vocês talvez já tenham adivinhado, era Rupert Porson.”


RUPERT PORSON? MAS COMO ERA POSSÍVEL que o homem com o forcado fosse Rupert?

Minha cabeça girava como um pião de lata colorido.

O último lugar no mundo onde eu poderia esperar que a narrativa de Dieter terminasse era no Campo Jubileu da Fazenda Culverhouse. Mas uma coisa agora ficara perfeitamente clara: se Rupert estava na Fazenda Culverhouse há seis anos, durante a guerra, isso explicaria, pelos menos em parte, como a cara de madeira do seu boneco João fora esculpida à imagem de Robin Ingleby.

O pai deixou escapar um suspiro.

— Eu me lembro muito bem — disse ele. — A sua máquina foi derrubada no Campo Jubileu, logo abaixo do Bosque Gibbet.

Dieter assentiu.

— Eu fui mandado por um breve período para um campo de prisioneiros de guerra com trinta ou quarenta outros oficiais e soldados da Luftwaffe, onde os nossos dias eram passados cavando trincheiras e aparando sebes. Era um trabalho extenuante, mas pelo menos eu ainda estava na Inglaterra. A maioria dos pilotos alemães capturados era mandada para o exterior, para campos no Canadá, onde havia pouca esperança de fuga.

“Quando me ofereceram uma oportunidade de viver e trabalhar em uma fazenda, me agarrei a ela; embora não fosse compulsório, muitos de nós fizeram isso. Aqueles que não nos chamavam de traidores, entre outras coisas.

“Mas a guerra se aproximava do fim, sabíamos disso. Melhor começar a preparar o terreno para minha estrada pessoal rumo a Oxford, pensei, do que deixar meu futuro ao azar.

“Ninguém ficou mais surpreso do que eu ao descobrir que tinha sido designado para a fazenda dos Ingleby. Me divertia pensar que Gordon, que tão pouco tempo atrás me tinha na mira de uma espingarda, estava agora ajudando Grace a fritar meus arenques defumados na cozinha da casa da fazenda.”

— Isso foi há seis anos, você diz; em 1944? — eu perguntei.

— Foi — assentiu Dieter. — Em setembro.

Eu não pude evitar. Antes que conseguisse sufocar as palavras, me vi despejando:

— Então você devia estar na Fazenda Culverhouse quando encontraram Robin enforcado no Bosque Gibbet.

— Flavia! — disse o pai, pondo a xícara e o pires na mesa com um tinido. — Nós não vamos admitir intriguelhas sobre o sofrimento alheio.

A expressão de Dieter se tornou amarga de repente, e um fogo (poderia ser de raiva?) surgiu-lhe nos olhos.

— Fui eu — disse ele — que o encontrei.

Você o encontrou?, pensei. Impossível! A sra. Mullet deixou perfeitamente claro que foi Meg, a Louca, que descobriu o corpo de Robin.

Houve um silêncio notavelmente longo, e então Felinha pôs-se de pé em um salto para reabastecer a xícara de chá de Dieter.

— Você deve desculpar a minha irmãzinha — disse ela com uma risada tensa. — Ela tem uma fascinação um tanto doentia pela morte.

Ponto para você, Felinha, pensei. Muito embora ela tivesse acertado em cheio, não sabia nem a metade.

O resto da tarde foi um tanto maçante. O pai fez o que admito ter sido uma nobre tentativa de mudar a conversa para o tempo e a colheita de linho, enquanto Dafi, sentindo que pouca coisa mais merecia sua atenção, se enfiou de novo em seu livro.

Um a um, fomos saindo com as nossas desculpas: o pai para cuidar de seus selos, tia Felicity para dar uma cochilada antes do jantar, e Dafi para ir à biblioteca. Depois de algum tempo, cansei de ouvir Felinha tagarelando sem parar com Dieter sobre as diversas reuniões dançantes e excursões na região, e escapei para o laboratório.

Roí a parte de cima do lápis por um tempo e então escrevi:

 

Domingo, 23 de julho de 1950

Onde está todo mundo?

Essa é a pergunta fundamental.

 

Onde está Nialla? Depois de passar a noite no

chalé da sra. Mullet, ela simplesmente desaparece.

(Será que o inspetor Hewitt sabe que ela foi

embora?)

Onde está Meg, a Louca? Depois de irromper na

apresentação vespertina de João e o pé de feijão,

ela é levada para descansar no divã do vigário.

E então some.

Onde está Mutt Wilmott? Ele parece ter se

retirado furtivamente durante o espetáculo fatal.

O que Rupert fazia na Fazenda Culverhouse há

seis anos? Por quê, acima de tudo, Dieter alega

ter sido ele a achar o corpo de Robin Ingleby

enforcado no Bosque Gibbet? A sra. Mullet diz

que foi Meg, a Louca, e a sra. M raramente se

engana quando se trata de futricas da aldeia.

E no entanto, por que Dieter mentiria sobre uma

coisa dessas?

 

Por onde começar? Se isto fosse um experimento químico, o procedimento seria óbvio: eu começaria com os materiais que estivessem mais à mão.

A sra. Mullet! Com um pouco de sorte, ela ainda estaria andando de um lado para o outro na cozinha, antes de pilhar a despensa e levar seu butim diário para Alf. Corri para o alto da escada e espiei para baixo através dos balaústres. Ninguém no vestíbulo.

Desci escorregando pelo corrimão e disparei para a cozinha.

Dogger ergueu os olhos da mesa onde, com uma precisão cirúrgica, estava removendo a pele de um par de pepinos.

— Ela foi embora — disse, antes que eu perguntasse. — Uma boa meia hora atrás.

Ele é um demônio, esse Dogger! Não sei como ele faz isso.

— Ela disse alguma coisa antes de sair? Isto é, alguma coisa interessante?

Com Dogger na cozinha como plateia, a sra. M dificilmente teria resistido à tentação de ficar tagarelando sem parar sobre como recebeu Nialla (pobre criatura desamparada!), a aconchegou em uma cama confortável com uma bolsa de água quente e um copo de xerez diluído, e assim por diante, com um relatório completo sobre como ela dormiu, o que comeram no desjejum e o que ela tinha deixado no prato.

— Não. — Dogger pegou uma faca serrilhada de pão e aplicou a lâmina a um pão novo. — Apenas que o pernil está na estufa e a torta de maçã com creme azedo está na despensa.

Velhaco!

Bem, então nada restava a fazer, senão começar cedo de manhã. Eu poria o despertador para tocar ao nascer do sol, depois me poria a caminho para a Fazenda Culverhouse e o Bosque Gibbet, mais adiante. Era improvável que houvesse alguma pista depois de todos esses anos, mas Rupert e Nialla haviam acampado na parte de baixo do Campo Jubileu na noite da sexta-feira. Se meu plano fosse bem executado, eu poderia ir até lá e voltar antes que alguém em Buckshaw percebesse que eu tinha saído.

Dogger rasgou um quadrado perfeito de papel encerado e embrulhou os sanduíches de pepino com cantos de cama de hospital.

— Eu pensei em prepará-los esta noite — disse ele me entregando o pacote. — Sabia que você ia querer sair bem cedo amanhã.


Cortinas de cerração pendiam sobre os campos. O ar da manhã era úmido e gelado, e eu respirei fundo, tentando me manter completamente acordada, enchendo as narinas e depois os pulmões com o rico aroma de terra escura e grama encharcada.

Quando entrei de bicicleta no pátio da igreja de São Tancredo, vi que o Vauxhall do inspetor se fora, bem como, deduzi, o corpo de Rupert. Não que eles fossem deixá-lo no palco de marionetes de sábado à noite a segunda-feira de manhã, mas me dei conta de que o corpo não ficaria muito tempo no salão paroquial, de olhos saltados, deixando que um fio de saliva àquela altura virasse uma estalactite de cuspe...

Se eu achasse que ele estava lá, poderia ter sido tentada a entrar sem pedir licença, para dar mais uma olhada.

Atrás da igreja, tirei os sapatos e as meias e entrei empurrando Gladys através da água mais funda ao lado das alpondras submersas. A chuva de sábado à noite aumentara o volume da água, que corria agitada em volta dos raios e pneus, lavando a lama e a argila acumuladas em minha viagem a Bishop’s Lacey. Quando alcancei a outra margem, Gladys estava tão limpa quanto a carruagem pintada de uma dama.

Dei uma enxaguada final nos pés, sentei-me em um degrau de escada e calcei de novo os sapatos e as meias.

Ali, ao longo do rio, a visibilidade era ainda menor do que na estrada. Árvores e sebes assomavam como sombras pálidas, enquanto eu pedalava pela margem gramada no meio de uma névoa cinzenta e lanosa que empanava todos os sons e cores do mundo. A não ser pelo marulhar abafado da água, tudo era silêncio.

Na parte mais baixa do Campo Jubileu, estava estacionada a van de Rupert, abandonada embaixo dos salgueiros, as letras alegremente pintadas “Marionetes de Porson” destoando totalmente, tanto do lugar como das circunstâncias. Não havia sinal de vida.

Deitei Gladys com todo o cuidado na grama e fui pé ante pé até a van. Talvez Nialla tivesse voltado sorrateiramente e estivesse dormindo lá dentro, e eu não queria assustá-la. Mas a ausência de condensação no para-brisa me contou o que eu já tinha começado a sentir: que não havia ninguém respirando dentro da fria Austin.

Espiei através das janelas, mas não vi nada de anormal lá dentro. Dei a volta até a porta traseira e girei a maçaneta. Trancada.

Andei em círculos cada vez maiores pela grama, à procura de algum sinal de fogo, mas não havia nenhum. O local do acampamento estava como eu o havia deixado no sábado.

Quando cheguei ao fim do caminho, fui detida no meio do passo por uma corda atravessada na estrada, da qual pendia uma placa. Enfiei a cabeça por baixo para ler a mensagem.

 

Investigação Policial — Entrada Proibida Por Ordem da Força

Policial de Hinton

 

O inspetor Hewitt e seus detetives tinham estado ali. Mas ao pendurar sua placa, eles obviamente não pensaram que alguém pudesse chegar através do rio caudaloso. A despeito de sua promessa ao inspetor, o sargento Graves ainda não havia aprendido sua lição sobre pessoas entrando sorrateiramente pela porta dos fundos.

Muito bem, então. Já que, de um jeito ou de outro, não havia nada para ver ali, eu passaria ao meu próximo objetivo. Embora não pudesse enxergá-lo através da névoa, eu sabia que o Bosque Gibbet não ficava muito além do topo da Colina Gibbet. Devia estar tudo molhado e encharcado entre as árvores, mas eu estava querendo apostar que a polícia não estivera lá antes de mim.

Arrastei Gladys por baixo da barricada e a empurrei lentamente pela passagem acima, pois era íngreme demais para pedalar. A meio caminho do topo, enfiei-a embaixo de uma sebe de espinheiros e continuei minha escalada, cercada de todos os lados por vislumbres de linho azul.

Então, de repente, as árvores escuras do bosque assomaram para fora da névoa bem diante de mim. Eu fora dar lá sem me dar conta de como estava perto.

Uma placa de madeira, velha e desgastada, tinha sido pregada em uma árvore, ostentando as palavras em vermelho: NÃO ENTRE — OS INTRUSOS SERÃO...

O resto havia sido arrancado a tiros por caçadores ilegais.

Como eu já tinha previsto, tudo no bosque estava molhado. Estremeci na friagem úmida, juntei forças e vadeei para dentro da vegetação. Antes que eu tivesse dado meia dúzia de passos no meio das samambaias e brotos arborescentes, já estava completamente encharcada até os joelhos.

Alguma coisa estalou na vegetação rasteira. Fiquei paralisada quando uma forma escura precipitou-se com asas silenciosas através do meu caminho: uma coruja, talvez, confundindo a pesada névoa matinal com seu período de caça ao pôr do sol. Embora tivesse me assustado, sua presença era reconfortante: significava que ninguém mais estava no bosque comigo.

Fui em frente, tentando seguir as trilhas indistintas; qualquer uma delas, eu sabia, me levaria à clareira bem no centro do bosque.

Entre duas árvores muito velhas e nodosas, a passagem achava-se obstruída pelo que parecia ser uma cancela coberta de musgo, e sua madeira cinzenta estava deformada pela putrefação. Eu já me preparava para saltar por cima da barreira caindo aos pedaços quando me dei conta de que estava mais uma vez aos pés dos degraus da velha forca. Quantas almas condenadas haviam subido por aqueles mesmos degraus antes de ser desviadas para a plataforma acima? Engolindo em seco, ergui os olhos para os fragmentos da estrutura, que estava agora aberta para o céu.

Uma mão coriácea apertou meu pulso como um anel de ferro quente.

— O que você está tramando? O que pretende, bisbilhotando neste lugar?

Era Meg, a Louca.

Ela enfiou sua cara preta de fuligem tão perto da minha que pude ver os pelos amarelados na ponta de seu queixo. A Bruxa do Bos-que, pensei num momento de pânico, antes de recuperar o juízo.

— Oh, olá, Meg — eu disse, o mais calmamente que podia, tentando amansar meu coração latejante. — Estou contente por tê-la encontrado. Você me deu um susto e tanto.

Minha voz estava mais trêmula do que eu esperava.

— Os medos vivem no Bosque Gibbet — disse Meg, sombria. — Os medos vivem aqui, e em nenhum outro lugar.

— Exatamente — concordei, sem ter a mais pálida ideia do que ela estava falando. — Estou contente por você estar aqui comigo. Agora não vou mais ter medo.

— Não existe mais Diabo agora — disse Meg, esfregando as mãos. — O Diabo está morto, e já foi tarde.

Me lembrei de como ela ficara assustada na apresentação de João e o pé de feijão de Rupert. Para Meg, Rupert era o Diabo, que matara Robin Ingleby, o encolhera até virar um boneco de pau e o pusera no palco. Melhor abordar o assunto de um modo indireto.

— Deu para você descansar bem no presbitério, Meg? — perguntei.

Ela cuspiu no tronco de um carvalho como se estivesse cuspindo no olho de uma bruxa rival.

— Ela me pôs para fora — disse. — Tomou o bracelete da velha Meg e a pôs para fora, ela fez isso. “Imunda, imunda”, ela disse.

— A sra. Richardson? — perguntei. — A mulher do vigário? Ela pôs você para fora?

Meg abriu um sorriso horrendo e saiu correndo em meio às árvores, quase a galope. Eu a segui de perto, através da vegetação rasteira, das samambaias, dos troncos caídos e espinheiros escondidos. Cinco minutos depois, e sem fôlego, estávamos de volta ao lugar onde começáramos, ao pé da forca apodrecida.

— Veja ali — disse ela apontando. — Foi lá que ele o pegou.

— Pegou quem, Meg?

Ela queria dizer Robin Ingleby. Eu tinha certeza.

— O Diabo pegou Robin bem ali? — perguntei.

— Transformou ele em madeira, ele transformou — confidenciou ela, olhando por cima do ombro. — Madeira a madeira.

— Você realmente viu? O Diabo, quero dizer.

Isso era algo que não me ocorrera antes.

Haveria alguma possibilidade de Meg ter visto alguém no bosque com Robin? Afinal, ela morava em uma choça no meio das árvores, e parecia improvável que acontecesse muita coisa nos limites do Bosque Gibbet que escapasse a seu escrutínio.

— Meg viu — ela disse segura de si.

— Como ele era?

— Meg viu. A velha Meg vê muita coisa.

— Você pode desenhar? — perguntei, subitamente inspirada. Puxei do bolso meu caderno e entreguei a ela um toco de lápis. — Aqui — eu disse, virando para uma página em branco. — Desenhe o Diabo para mim. Desenhe o Diabo no Bosque Gibbet pegando o Robin.

Meg produziu um som que só posso descrever como uma risadinha de escárnio molhada. E então ela se agachou, alisou o caderno aberto contra o joelho e começou a desenhar.

Acho que eu estava esperando alguma coisa infantil: nada além de bonequinhos de círculo e linhas. Mas nos dedos encardidos de Meg o lápis ganhou vida. Na folha, apareceu a clareira do Bosque Gibbet: uma árvore aqui, outra ali; depois, a madeira podre da forca, instantaneamente reconhecível. Ela começara pelas margens e agora progredia para o centro da página.

De quando em quando ela desaprovava algo em seu trabalho, virava o lápis ao contrário e apagava uma linha. Ela era muito boa, tenho de admitir. Seu croqui provavelmente estava melhor do que eu mesma teria feito.

E então ela desenhou Robin.

Eu mal me atrevia a respirar enquanto olhava por cima do ombro dela. Pouco a pouco, o menino morto tomou forma diante dos meus olhos.

Ele pairava tranquilamente no ar, o pescoço inclinado para um lado, uma expressão de um ligeiro e surpreso contentamento no rosto, como se tivesse súbita e inesperadamente entrado em uma sala cheia de anjos. Apesar da luz tênue do bosque, seu cabelo impecavelmente repartido tinha reflexos saudáveis e, portanto, amedrontadores. Usava um suéter listrado e calça escura, enfiada com descuido dentro de um par de botas de borracha. Ele deve ter morrido depressa, pensei.

Só então ela desenhou o laço que lhe apertava o pescoço: uma coisa escura e trançada que pendia da forca para o espaço abaixo. Ela sombreou a corda com golpes irados do lápis.

Inspirei profundamente. Meg olhou para mim triunfante, buscando aprovação.

— E agora o Diabo — sussurrei. — Desenhe o Diabo, Meg.

Ela me olhou diretamente nos olhos, saboreando a atenção. Um sorriso astuto apareceu no canto de sua boca.

— Por favor, Meg... desenhe o Diabo.

Sem tirar os olhos de mim, ela lambeu um indicador e o polegar e buscou deliberadamente uma nova folha do caderno. Ela começou de novo e, enquanto desenhava, o Bosque Gibbet apareceu mais uma vez da ponta de seus dedos. Esse segundo croqui foi ficando mais escuro que o primeiro, enquanto Meg esfregava os traços do lápis, borrando-os para sugerir a meia-luz da clareira. Depois veio a forca, vista, dessa vez, de um ângulo ligeiramente diferente.

Que estranho, pensei, ela não começar pelo Diabo, como a maioria das pessoas se sentiria tentada a fazer. Mas só depois de preparar o palco com árvores e arbustos e se dar por satisfeita, ela começou a esboçar a figura que deveria ser o foco de sua criação.

Em um espaço aproximadamente oval deixado em branco na parte de cima da folha, uma figura esboçada começou a emergir: braços e ombros primeiro, seguidos por joelhos, pernas, mãos e pés.

Usava um casaco preto e estava sobre um pé só na clareira, como que flagrado no meio de uma dança frenética.

Sua calça estava pendurada pelo suspensório em um galho baixo.

Meg escondeu o papel com a mão esquerda enquanto desenhava as feições. Quando terminou, lançou o caderno para mim bruscamente, como se o papel estivesse contaminado.

Levei um momento para reconhecer o rosto: para reconhecer que a figura na clareira, o Diabo, era o vigário, Denwyn Richardson.

O vigário? Era ridículo demais para traduzir em palavras. Ou será que era possível?

Apenas há alguns minutos, Meg me dissera que o Diabo estava morto e agora desenhava o vigário como o Diabo.

O que se passaria em sua pobre mente confusa?

— Você tem mesmo certeza, Meg? — perguntei, tocando o caderno. — Este é o Diabo?

— Pssssst! — fez ela, levantando a cabeça e pondo os dedos nos meus lábios. — Vem vindo alguém!

Olhei ao redor da clareira, que, para meu sentido aguçado de audição, parecia completamente silenciosa. Quando olhei de volta, meu caderno e o lápis estavam aos meus pés e Meg desaparecera no meio das árvores. Eu sabia que não adiantaria muito chamá-la.

Fiquei lá imóvel por alguns instantes, ouvindo, esperando alguma coisa, embora não soubesse o quê.

As florestas, me lembrei, são um mundo em constante transformação. As sombras mudam de minuto em minuto, e de hora em hora a vegetação se movimenta com o sol. Insetos cavam túneis no solo, trazendo a terra para cima, empilhando-a de início em pequenas elevações, depois em elevações maiores. De mês em mês, as folhas crescem e caem, e, de ano em ano, as árvores. Dafi me disse uma vez que não é possível entrar no mesmo rio duas vezes, e a mesma coisa acontece com as florestas. Cinco invernos vieram e se foram desde que Robin Ingleby morrera ali, e agora nada restava para se ver.

Caminhei lentamente de volta, passando pela forca em desintegração e me embrenhando no mato. Em minutos, estava a céu aberto no topo do Campo Jubileu.

A menos de vinte metros de distância, quase invisível na névoa, um trator Ferguson cinza estava parado no campo, e alguém de guarda-pó verde e botas de borracha estava curvado sobre o motor. Deve ter sido o que Meg ouviu.

— Olá! — gritei. Anunciar-se cordialmente é sempre melhor do que invadir. (Embora eu tivesse inventado isso na hora, parecia ser uma boa regra geral.)

Quando a figura endireitou o corpo e se virou, me dei conta de que era Sally Straw, a garota do Exército Feminino da Terra.

— Olá — disse ela, limpando as mãos sujas de óleo com um trapo. — Você é Flavia de Luce, não é?

— Sim — eu disse, e estendi a mão. — E você é a Sal. Eu a vi no mercado. Sempre admirei suas sardas e o seu cabelo ruivo.

Para chegar ao máximo da eficácia, a bajulação fica sempre mais bem aplicada usando uma pá de pedreiro.

Ela me deu um sorriso largo e honesto e um aperto de mão que quase me esmigalhou os dedos.

— Você está certa em me chamar de Sal. É como todos os meus melhores amigos me chamam.

Ela me lembrou, de certo modo, Joyce Grenfell, a atriz: um pouco masculina no modo de se mover, mas de resto decididamente feminina.

— O meu Fergie quebrou — disse ela, apontando para o trator. Pode ser a bobina da ignição. Elas fazem isso às vezes, você sabe: ficam superaquecidas e a corrente não passa. Não há nada a fazer, senão esperar até a bendita coisa esfriar.

Como motores não são meu forte, assenti sabiamente e fiquei de boca fechada.

— O que você está fazendo aqui, tão longe?

— Só perambulando — disse eu. — Gosto de dar uma escapada de vez em quando. Dar uma caminhada, esse tipo de coisa.

— Sorte sua — disse ela. — Eu nunca escapo. Bem, quase nunca. Dieter me levou para dividir uma caneca de cerveja com ele na Treze Patos um par de vezes, mas então aconteceu uma discussão acalorada que Deus me livre. Os prisioneiros de guerra, você sabe, não podem fazer isso. Pelo menos não podiam durante a guerra. Dieter me contou que a sua irmã Ophelia o convidou para o chá ontem — acrescentou ela, com ar confidencial. Percebi na hora que ela estava jogando verde para colher maduro.

— Isso mesmo — eu disse, chutando com displicência um montinho de terra para longe e fazendo de conta que não estava nem remotamente interessada. Amiga ou não, se ela quisesse extrair mexericos de mim, eu teria de ser paga na mesma moeda.

— Vi você na apresentação de marionetes — eu disse. — Na igreja, no sábado à noite. Não foi mesmo incrível? Quero dizer, o sr. Porson?

— Foi horrível — disse ela.

— Você o conhecia?

Provavelmente não foi uma pergunta amável, e além do mais a disparei contra ela sem aviso: caída direto das nuvens.

A expressão de Sally se tornou imediatamente reservada, e ela hesitou por um instante um pouco longo demais antes de responder.

— Eu... eu o tenho visto aqui e ali — disse. A mentira era óbvia.

— Na televisão, quem sabe? — perguntei, talvez inocentemente demais. — O Reino Mágico? Snoddy, o Esquilo?

Assim que falei isso, me dei conta de que tinha ido longe demais.

— Certo — disse ela. — Aonde você quer chegar? Vamos, desembuche.

Ela plantou as mãos nos quadris e me fitou com um olhar determinado.

— Não sei o que você quer dizer — disse eu.

— Ora, deixe disso. Não me venha com essa. Todo mundo num raio de oitenta quilômetros por aqui sabe que Flavia de Luce não sai andando pelo bosque só para pegar uma corzinha no rosto.

Seria verdade? Oitenta quilômetros? A resposta dela me surpreendeu um bocado. Eu tinha imaginado uns cento e cinquenta.

— Gordon arrancaria o seu couro se a pegasse naquele bosque — disse ela, apontando para a placa.

Fiz a minha melhor cara de envergonhada, mas fiquei calada.

— Quanto você sabe sobre tudo isso? — perguntou Sally, fazendo um gesto largo e circular para abranger toda a fazenda. O que ela queria dizer estava claro.

Respirei fundo. Eu precisava confiar nela.

— Eu sei que Rupert vinha aqui para conseguir cannabis, e isso há um bocado de tempo. Sei que Gordon a cultiva em um pequeno pedaço de terra no Bosque Gibbet, não muito distante do lugar onde encontraram Robin enforcado.

— E você acha que Dieter e eu estamos de algum modo metidos em tudo isso?

— Não sei — respondi. — Espero que não.

— Eu também — disse Sally. — Eu também.


— RUPERT ERA UM SEDUTOR — disse Sally lentamente, como que relutando em pôr seus pensamentos em palavras —, mas você a essa altura provavelmente já descobriu isso.

Assenti com a cabeça, tomando cuidado para não interromper. Observando o inspetor Hewitt, eu aprendera que o silêncio é o melhor prepararativo para um eficaz bombeamento da conversação.

— Ele vinha à Fazenda Culverhouse, de tempos em tempos, há anos, desde bem antes da guerra. E Rupert não é o único, sabe. Gordon tem um pequeno exército de gente igual a ele. Fornece-lhes algo que os ajuda a suportar a dor.

— Bhang — eu disse. Não deu para segurar. — Gunjah... cânhamo-da-índia... cannabis.

Ela me olhou com os olhos contraídos e depois prosseguiu:

— Alguns, como Rupert, vêm porque tiveram paralisia infantil, ou pólio, como dizem agora; e outros, só Deus sabe.

“Entenda, Gordon considera-se uma espécie de herborista, sente-se uma pessoa que ajuda a acabar com sofrimentos quando os médicos não podem fazê-lo, ou não querem. Ele é muito discreto quanto a isso, mas por outro lado tem mesmo de ser, não é? Fora você, eu realmente acho que ninguém em Bishop’s Lacey jamais imaginou que os viajantes ocasionais que param na Fazenda Culverhouse fossem mais que pessoas perdidas ou talvez vendendo produtos agrícolas.

“Eu estou aqui há oito anos — prosseguiu Sally. — E nem se dê ao trabalho de perguntar: a resposta é não. Eu não estou entre os fumantes de Gordon.”

— Eu não esperava que você estivesse — disse eu, bajulando um pouco. Funcionou.

— Fui criada em um bom lar — continuou ela com mais entusiasmo. — Meus pais eram o que aqueles velhos romances em duas partes costumavam chamar de “pobres, porém honestos”. Minha mãe vivia indisposta o tempo todo, mas nunca nos contou o que havia de errado com ela. Nem meu pai sabia. Nesse meio-tempo, penei na escola, adquiri um pouco de conhecimento, e então veio a guerra.

“É claro que eu queria ajudar um pouco com as despesas médicas, assim, juntei-me ao Exército Feminino da Terra. Parece simples, não é? E foi mesmo. Não houve nada além disso. Eu era apenas uma garota de Kent que queria lutar contra Adolf Hitler e ver sua mãe bem outra vez.

“Eu fui alojada, junto com outras quarenta meninas, em um albergue do Exército da Terra, entre aqui e Hinley, e foi lá que pus os olhos pela primeira vez em Rupert. Atraente como o mel para uma abelha, aquele homem, não se iluda quanto a isso. Ele ficava perambulando de um lado para o outro na zona rural todos os verões, com seu pequeno espetáculo de marionetes. ‘Voltando às raízes’, era como ele chamava isso, e sempre que eu o via parecia estar com uma nova assistente. E era sempre do tipo um tanto vistoso, se entende o que quero dizer.

“Não muito tempo depois que eu vim trabalhar na Fazenda Culverhouse, Rupert apareceu para pegar um suprimento novo de material para fumar. Eu o reconheci na hora como o homenzinho coxo que estava sempre puxando conversa conosco no albergue ou no pub no fim de semana.

“Desde o começo, jurei que não me envolveria pessoalmente com ele; deixaria para as outras garotas trazê-lo um ou dois pontos para baixo. Mas então...

O olhar dela perdeu-se em um outro tempo.

Então Nialla tinha razão! Rupert tinha saído à procura de Sally no dia em que eles chegaram. As peças começavam a se encaixar.

Embora a névoa estivesse agora um pouco mais fina, ainda era bastante densa, envolvendo Sally e eu em um casulo nebuloso de silêncio estranhamente reconfortante. A não ser que tivesse cruzado conosco por acidente, ninguém saberia que estávamos ali em cima, no ponto mais alto do Campo Jubileu. Ninguém poderia ter nos ouvido por acaso, a não ser que tivesse subido toda a extensão do campo desde a parte mais baixa, ou descido arrastando-se sorrateiramente desde o bosque acima.

— Ah, Rupert era um feiticeiro, não se iluda quanto a isso — prosseguiu Sally. — Era capaz de enfeitiçar... não, não posso dizer isso na frente de gente educada, posso? Era capaz de enfeitiçar os pássaros e trazê-los para fora das árvores. Especialmente as fêmeas.

“Ele começava com Shakespeare, depois passava para coisas que ouvira em teatros de variedades. Se Romeu e Julieta não desse conta do recado, tentava suas recitações maliciosas.

“E ele escapava impune também, pelo menos na maior parte das vezes. Até tentar com a mulher de Gordon.”

Grace Ingleby? Deixei escapar um assobio involuntário.

— Isso deve ter sido há um bocado de tempo — eu disse. Sabia que soara insensível, mas não tive essa intenção.

— Anos atrás — disse Sally. — Antes de Robin morrer. Antes de ela ficar toda esquisita. Embora olhando para ela agora você possa não achar, ela era uma beldade.

— Ela parece muito triste — eu disse.

— Triste? Triste não é a palavra certa para isso, Flavia. Arrasada é mais adequado. Aquele menininho era todo o seu mundo, e no dia em que ele morreu o sol se apagou.

— Você já estava aqui então? — perguntei delicadamente. — Deve ter sido muito difícil para você.

Ela continuou como se não tivesse me ouvido.

— Gordon e Grace tinham contado a Robin mais de uma vez sobre a idílica lua de mel deles na praia, e aquilo era uma coisa que ele sempre quis fazer: a areia, as conchas, o baldinho, a pá, os castelos de areia, os sorvetes, as cabines móveis.

“Ele costumava sonhar com isso. ‘Sonhei que a maré tinha entrado em casa, Sally!’, ele me contou uma vez. ‘E eu fiquei balançando na água do mar como um balão cor-de-rosa!’ Pobre menininho.”

Ela enxugou uma lágrima com a manga áspera de seu guarda-pó.

— Deus! Por que estou contando tudo isso a você? Devo estar maluca.

— Tudo bem — eu disse. — Juro que não vou deixar escapar nem uma palavra. Sou muito boa em guardar as coisas para mim mesma.

Como prova de boa vontade, fiz toda a pantomima de “juro-pela-minha-vida” e “quero-me-ver-mortinha”, mas sem pronunciar as palavras.

Depois de uma olhadela rápida e estranhamente tímida para mim, Sally continuou sua história:

— De algum modo eles conseguiram economizar um pouco para o aniversário de Robin. Como a colheita estava muito próxima, Gordon não poderia se afastar, mas eles concordaram que Grace levaria Robin para a praia por alguns dias. Era a primeira vez em que os dois, mãe e filho, ficariam juntos em algum lugar sem Gordon, e a primeira vez que Grace tiraria férias desde que era menina.

“O tempo estava quente, mesmo para fim de agosto. Grace alugou uma cadeira de praia e comprou uma revista. Ficou olhando para Robin com seu baldinho, correndo na lama à beira da água. Ele estava perfeitamente seguro, ela sabia. Tinha-o advertido sobre o perigo das marés, e Robin era um menininho muito obediente.

“Ela caiu no sono e dormiu um tempão. Não havia se dado conta de como estava exausta até acordar e ver quanto o sol havia se movido. A maré descera, e Robin não estava em lugar nenhum ao alcance da vista. Teria desobedecido a suas advertências e fora arrastado para alto-mar? Com certeza alguém teria visto. Com certeza alguém a teria acordado.”

— Grace contou isso a você? — perguntei.

— Bom Deus, não! Tudo isso veio à tona no inquérito. Tiveram de arrancar dela aos pedacinhos, minúsculos e entrecortados. Seu estado de nervos era algo chocante.

“Ela desperdiçara tempo demais, contou, correndo pela praia para cima e para baixo, chamando o nome de Robin. Ela correu pela beira da água, esperando vislumbrar seu pequeno maiô vermelho, esperando ver seu rosto entre as crianças que chapinhavam perto da praia.

“E depois praia acima e praia abaixo de novo, implorando aos banhistas que contassem se tinham visto um menininho de cabelo loiro. Sem esperança, é claro. Deveria haver dúzias de crianças na praia correspondendo àquela descrição.

“E então, através dos olhos ofuscados pelo sol, ela viu: uma multidão reunida na sombra embaixo do passeio elevado. Ela irrompeu em lágrimas e começou a andar naquela direção, sabendo o que encontraria: Robin se afogara, e aquela aglomeração era de pessoas que haviam se juntado para olhar, boquiabertas, como idiotas. Ela já começava a odiá-las.

“Mas quando chegou mais perto, uma onda de risadas se ergueu, e ela forçou passagem até o centro da multidão, pouco se importando com o que pudessem pensar.

“Era uma apresentação com as tradicionais marionetes Punch e Judy. E ali, sentado na areia, com lágrimas de riso escorrendo pelo rosto, estava o seu Robin. Ela o agarrou e o abraçou, insegura de si mesma para dizer uma palavra que fosse. Afinal, fora culpa sua: ela adormecera, e Robin fora atraído para a barraca de Punch e Judy, como qualquer criança.

“Ela o carregou ao longo da praia e comprou-lhe um sorvete, depois outro. Então correu com ele de volta para a pequena barraca, para assistir à apresentação seguinte, e juntou-se a ele nas gargalhadas espalhafatosas, e gritou com ele ‘Não! Não’ quando Punch pegou o cassetete do policial para bater na cabeça de Judy.

“Eles riram com o resto da multidão quando Punch enganou Jack Ketch, o carrasco, levando-o a enfiar a própria cabeça no laço e...”

Eu assistia às tradicionais apresentações de Punch e Judy quase todos os anos na quermesse da igreja e estava completamente familiarizada com a trama.

— Eu não sei como ser enforcado — eu disse, citando as famosas palavras de Punch. — Você vai ter de me mostrar, depois eu faço sozinho.

— “Eu não sei como ser enforcado”— ecoou Sally. — “Você vai ter de me mostrar.” Foi o que Grace disse ao júri mais tarde, quando foi aberto um inquérito sobre a morte de Robin, e essas foram provavelmente suas últimas palavras sãs.

“Pior do que isso foi o fato de que ela pronunciou as palavras naquela voz horrível, estrangulada e grasnante que os titereiros usam para Punch: Eu não sei como ser enforcado. Você vai ter de me mostrar.

“Foi horripilante. O juiz pediu um copo d’água, e alguém no júri perdeu a compostura e riu. Grace desmoronou completamente. O médico insistiu para que ela fosse dispensada de novos interrogatórios.

“O resto do que aconteceu naquele dia horrível na praia, e depois na fazenda, tinha de ser juntado, pedaço por pedaço; cada um de nós sabia um pouco. Eu tinha visto Robin arrastando um pedaço de corda que encontrara no galpão de ferramentas. Mais tarde, Gordon o vira brincando de caubói no limite do Campo Jubileu. Foi Dieter quem o encontrou enforcado no Bosque Gibbet.

— Dieter? Eu pensei que tinha sido Meg, a Louca. — Escapou antes que eu pudesse me conter.

Sally desviou o olhar imediatamente, e me dei conta de que aquela fora uma das vezes em que em eu devia ter ficado de boca fechada e aguardado o que viria.

De repente, ela pareceu tomar uma decisão.

— Você precisa se lembrar — disse ela — de que tínhamos acabado de sair da guerra. Caso se tornasse conhecido em Bishop’s Lacey que o corpo de Robin fora encontrado enforcado no bosque por um prisioneiro de guerra alemão, bem... apenas pense nisso.

— Poderia ter sido algo como aquela cena de Frankenstein: aldeões furiosos com tochas, e coisa e tal.

— Exatamente — disse ela. — Além disso, a polícia acreditava que Meg realmente estivera lá antes de Dieter, mas que ela não tinha contado nada a ninguém.

— Como você sabe disso? — perguntei. — Quero dizer, sobre o que a polícia acreditava?

Sem perceber o que estava fazendo, Sally começou de repente a afofar o cabelo.

— Havia um certo policial jovem — disse ela —, cujo nome não me sinto livre para mencionar, que costumava me levar, à noite, para ver a lua surgir no céu acima da Colina Goodger.

— Entendi — disse eu, e tinha mesmo entendido. — Eles não queriam que Meg fosse chamada a depor no inquérito.

— Engraçado, não é? — disse ela. — Como é possível a lei ter um ponto sentimental e vulnerável como esse? Não, alguém a vira na aldeia quando Robin desapareceu, portanto ela não era realmente uma suspeita. Foi decidido que devido à sua... porque ela era... bem, para não entrar demais em pormenores, foi decidido que era melhor deixar Meg fora das coisas completamente, e assim foi feito.

— Portanto, foi Dieter quem, afinal, encontrou o corpo.

— Sim. Ele me contou naquela mesma noite. Ainda estava em estado de choque, mal falando coisa com coisa; contou tudo sobre como desceu correndo do Bosque Gibbet, gritando até ficar rouco... pulando cercas, escorregando na lama... disparando para dentro do pátio, olhando para as janelas vazias lá em cima. Eram como olhos mortos, ele ficava repetindo, como as janelas do presbitério das Brontë. Mas, como eu disse, o pobre Dieter estava em estado de choque. Ele não sabia o que dizia.

Senti um vago distúrbio no estômago, mas atribuí aquilo ao bolo Jenny Lind da sra. Mullet.

— E onde estava Rupert esse tempo todo?

— Estranho você perguntar. Parece que ninguém se lembra. Rupert ia e vinha, quase sempre à noite. À medida que o tempo passava, ele parecia estar cada vez mais viciado naquilo que Gordon lhe fornecia, e suas visitas foram ficando mais frequentes. Se ele não estava aqui quando Robin morreu, também não devia estar muito longe.

— Aposto que a polícia estava por toda parte.

— É claro que sim! No começo não sabiam se tinha sido um acidente ou se Robin fora assassinado.

— Assassinado? — O pensamento nunca me passara pela cabeça. — Quem diabos iria assassinar um menininho?

— Isso já tinha acontecido antes — respondeu Sally com tristeza. — Crianças sempre foram assassinadas sem nenhuma boa razão.

— E Robin?

— No fim, eles concluíram que não havia provas para sustentar aquela ideia. Além de Gordon, Dieter e eu (e Meg, a Louca, é claro), mais ninguém estivera no Bosque Gibbet. As pegadas de Robin, que levavam até o alto do Campo Jubileu e depois em volta do velho patíbulo, deixaram muito claro que ele fora para lá sozinho.

— E representou a cena da forca de Punch e Judy — eu disse. — Fazendo de conta primeiro que era Punch e, depois, o carrasco.

— Sim. Foi o que eles pensaram.

— Ainda assim — eu disse —, a polícia deve ter dado uma boa olhada em volta, dentro do bosque.

— Quase o arrancaram todo para fora — disse ela. — Fitas métricas, moldes de gesso, fotografias, saquinhos disso e daquilo.

— Não é estranho — disse eu — que eles não tenham encontrado a plantação de cannabis? É difícil acreditar que o inspetor Hewitt a tenha deixado passar despercebida.

— Deve ter sido antes da época dele — disse Sally. — Se não me falha a memória, era um certo inspetor Gully que estava encarregado da investigação.

A-há! Então foi esse quem decidiu ficar de boca fechada sobre a Meg. Apesar de sua falta de diligência, pelo menos o homem devia ter um coração rudimentar.

— E qual foi o resultado? — perguntei. — Do inquérito, quero dizer.

Eu sabia que poderia, mais tarde, consultar o arquivo do jornal na biblioteca, mas por ora queria ouvir a própria Sally contar. Afinal, ela também estivera lá.

— O legista disse ao júri que eles deveriam chegar a um de três veredictos: morte por assassinato, morte por homicídio acidental ou um veredicto aberto.

— E...?

— Eles decidiram pela morte por homicídio acidental, mas tiveram momentos infernais até chegarem a um acordo.

De repente me dei conta de que a neblina estava se erguendo, e Sally também. Embora uma ligeira névoa ainda pairasse sobre as árvores no bosque acima de nós, o rio e toda a extensão inclinada do Campo Jubileu se esparramavam abaixo de nós, como uma fotografia aérea colorida à mão, à luz fraca do sol.

Nós poderíamos ser claramente vistas da casa da fazenda.

Sem mais uma palavra, Sally escalou o trator até o assento e deu a partida. O motor pegou de primeira, rugiu um pouquinho, depois se estabilizou em um ronronar firme, tique-taqueando.

— Eu falei demais — ela me disse. — Não sei o que eu estava pensando. Trate de cumprir a sua promessa, Flavia. Vou cobrar de você.

Os olhos dela encontraram os meus em uma súplica.

— Eu poderia me meter em um monte de problemas, você sabe — disse ela.

Balancei a cabeça, mas na verdade não disse sim. Com um pouco de sorte, eu poderia forçar uma última pergunta:

— O que você acha que aconteceu com Robin e Rupert?

Jogando a cabeça para trás, Sally apertou os maxilares, engatou a marcha e arrancou através do campo, e torrões de lama preta voaram para cima dos pneus do trator antes de cair de volta no chão como aves abatidas.


RECUPEREI GLADYS EMBAIXO DA SEBE onde a deixara, tirei os sanduíches de pepino do bagageiro e me sentei em uma margem gramada para comer e pensar sobre o morto.

Puxei o caderno do bolso e abri no desenho de Meg: lá estava Robin pendurado pelo pescoço no madeirame encarquilhado do velho cadafalso. A expressão em seu rosto era a de uma criança dormindo tranquilamente, com um leve sorriso nos cantos dos lábios.

Alguma coisa na minha cabeça fez clic!, e eu soube que não podia mais adiar aquilo: teria de fazer uma visita à biblioteca da aldeia, ou pelo menos ao Barracão do Fosso, o anexo onde eram armazenadas as edições antigas de jornais.

O Barracão do Fosso era uma oficina de automóveis há muito extinta que ficava, cercada de mato, no Caminho das Vacas, uma vereda curta e bastante negligenciada que descia da rua principal de Bishop Lacey até o rio. A súbita lembrança de meu recente cativeiro naquele mausoléu bolorento me deu arrepios.

Parte de mim (a minha voz mais calma) dizia: “Desista. Não se intrometa. Vá para casa ficar com sua família”. Mas uma outra parte era mais insistente: “A biblioteca não vai abrir até quinta-feira”, ela parecia cochichar. “Ninguém vai vê-la.”

— Mas e a fechadura? — perguntei em voz alta. — O lugar fica trancado.

“Desde quando uma porta trancada a detém?”, replicou a voz.


O Barracão do Fosso, como eu já disse, era facilmente alcançado pela margem do rio. Atravessei de novo a água pelas alpondras atrás da igreja (nenhum sinal ainda de carros de polícia) e segui pela velha trilha de sirgagem, que me levou rapidamente, e com pouco risco de ser vista, até o Caminho das Vacas.

Não havia ninguém à vista quando tentei caminhar despreocupada até a entrada.

Dei uma sacudida na porta, mas, como eu esperava, ela estava trancada. Uma fechadura nova, de fato — uma da marca Yale —, havia sido recentemente instalada, e um aviso desenhado à mão estava afixado na janela: “Entrada estritamente proibida, salvo se acompanhado pela Bibliotecária”, dizia. Tanto o aviso como a fechadura, pensei, tinham provavelmente sido colocados ali por causa das minhas recentes travessuras.

Embora Dogger tivesse me proporcionado diversos cursos sobre a arte de forçar fechaduras, as complexidades da Yale requeriam ferramentas especiais que eu não tinha comigo.

As dobradiças da porta ficavam do lado de dentro, portanto não havia nenhuma possibilidade de remover os pinos. Mesmo que fosse possível, seria temerário tentar fazer uma coisa dessas totalmente à vista de qualquer um que passasse pela rua principal no fim do caminho.

Dei a volta até os fundos. No capim alto, bem abaixo de uma janela, havia um pedaço monstruoso de sucata enferrujada, que aparentemente tinha visto dias melhores quando era um motor em uma Daimler. Subi em cima da coisa e espiei para dentro através do vidro embaçado de poeira.

Os jornais estavam empilhados em suas prateleiras de madeira como sempre estiveram há séculos, e o interior tinha sido limpo do estrago causado por minha última visita.

Quando fiquei na ponta dos pés, escorreguei e quase fui arremessada de cabeça através da vidraça. Quando me agarrei ao peitoril para me firmar, alguma coisa se esfarelou embaixo dos meus dedos, e um rio de grãozinhos minúsculos começou a escorrer para o chão.

Madeira podre, pensei. Mas espere! Aguarde um minuto. Madeira podre não é cinzenta. Isto é massa de vidraceiro ressecada!

Pulei para baixo e em segundos estava de volta com uma chave de boca do conjunto de ferramentas de Gladys. Quando bati de leve nas bordas do vidro, pedaços duros de massa de vidraceiro em forma de cunha se soltaram com um esforço surpreendentemente pequeno. Foi fácil demais.

Depois de lascar a massa em toda a volta da vidraça, comprimi a boca contra o vidro e suguei com todas as minhas forças, para criar um vácuo. Então recuei lentamente a cabeça.

Sucesso! Quando a vidraça se soltou da moldura e se inclinou na minha direção, segurei o vidro pelas beiradas ásperas e o baixei cuidadosamente no chão. Em menos tempo do que leva para contar, eu já tinha me insinuado pela moldura e me deixado cair no piso lá dentro.

Embora os cacos de vidro de meu antigo resgate tivessem sido recolhidos, o lugar ainda me dava arrepios. Não perdi tempo para encontrar as edições de The Hinley Chronicle da última parte de 1945.

Embora as datas exatas de Robin não tivessem sido gravadas em sua sepultura, a história de Sally indicava que ele morrera algum tempo depois da colheita daquele ano. The Hinley Chronicle era, e ainda é, publicado semanalmente às sextas-feiras. Portanto, havia apenas umas duas dúzias cobrindo o período entre fim de junho e o fim do ano. Eu sabia, porém, que seria mais provável achar a história em uma edição mais antiga do que em uma posterior. E assim foi: sexta-feira, 7 de setembro de 1945.

 

Um inquérito será realizado hoje no Almoner’s Hall de Bishop’s Lacey sobre a morte de Robin Ingleby, aos cinco anos de idade, cujo corpo foi encontrado na segunda-feira no Bosque Gibbet, próximo àquela aldeia. O inspetor Josiah Gully, da força policial de Hinley, preferiu não comentar nada desta vez, porém urge fortemente qualquer pessoa do público que possa ter alguma informação sobre a morte da criança contatar as autoridades policiais imediatamente em Hinley 5272.

 

Logo abaixo, vinha impressa uma nota:

 

Informo aos clientes que a agência de Correio e confeitaria localizada na rua principal, Bishop’ Lacey, fechará hoje (sexta-feira, 7 do corrente) ao meio-dia. Ambos abrirão como de costume no sábado de manhã. O seu patrocínio é apreciado. Letitia Cool, Proprietária.

 

A srta. Cool era a agente de Correio e a fornecedora de doces da aldeia, e eu só conseguia pensar em uma razão para ela fechar a loja numa sexta-feira.

Fui ansiosamente para a semana seguinte: a edição de 14 de setembro.

 

Um inquérito convocado para investigar a morte de Robin Ingleby, de cinco anos de idade, da Fazenda Culverhouse, próxima a Bishop’s Lacey, foi encerrado na última sexta-feira, às 15h15, após quarenta minutos de debates. O juiz registrou um veredicto de morte por homicídio acidental e expressou suas condolências aos pais enlutados.

 

E era tudo. Parecia óbvio que a aldeia queria poupar os pais da aflição de ver impressos os detalhes horrendos.

Uma rápida olhada nos jornais restantes não revelou nada além de uma breve notícia do funeral, onde o caixão foi carregado por Gordon Ingleby, Bartram Tennison (o avô de Robin, que viera de Londres), Dieter Schrantz e Clarence Mundy, o dono do táxi. O nome de Rupert não foi mencionado.

Recoloquei os jornais em seu suporte e, sem nenhum dano à minha pessoa além de um joelho arranhado, me espremi de volta pela janela.

Diacho! Estava começando a chover. Uma nuvem de fundo escuro flutuou para a frente do sol, esfriando subitamente o ar.

Corri através do terreno gramado até o rio, onde gordas gotas de chuva já marcavam a superfície da água com pequenas crateras perfeitamente formadas. Desci com dificuldade a ribanceira e, com as mãos nuas, recolhi um punhado da argila grudenta que formava a margem.

E então voltei ao Barracão do Fosso, onde depositei o barro em um montinho no peitoril da janela. Tomando cuidado para não sujar a roupa, rolei punhados do material entre as palmas, fazendo uma família de serpentes cinzentas compridas e viscosas. Depois, escalando mais uma vez o motor enferrujado, peguei a vidraça pelas bordas e a ergui cautelosamente de volta à sua posição. Usando o indicador como uma espátula de vidraceiro improvisada, apertei a argila por toda a volta do vidro, formando algo que, pelo menos, ficou semelhante a uma vedação firme e robusta.

Quanto tempo ela iria durar, ninguém poderia dizer. Se a chuva não a dissolvesse e a levasse embora, poderia muito bem durar para sempre. Não que fosse preciso: na primeira oportunidade, pensei, iria substituí-la, surrupiando um pouco de massa de vidraceiro genuína e uma espátula apropriada em Buckshaw, onde Dogger estava sempre usando esse material para reforçar vidraças soltas na estufa decrépita.

“O Louco da Massa de Vidraceiro atacou outra vez!”, cochichariam os aldeões.

Depois de uma corrida até o rio para lavar a argila encrostada nas mãos, fiquei, salvo por estar totalmente encharcada, quase apresentável.

Recolhi Gladys da grama e, passeando de um jeito despreocupado, subi o Caminho das Vacas até a rua principal, como se nada tivesse acontecido.


A confeitaria da srta. Cool, que incorporava a agência de Correio da aldeia, era uma estreita relíquia georgiana, espremida entre um salão de chá e uma agência funerária a leste e uma peixaria a oeste. Suas vitrines cheias de moscas eram escassamente salpicadas de caixas de chocolate desbotadas, as tampas reproduzindo damas rechonchudas de meias listradas e plumas, que sorriam atrevidamente, sentadas meio de lado em desajeitados velocípedes de três rodas.

Foi lá que Ned havia comprado os chocolates que deixou à nossa porta. Eu tinha certeza disso, pois ali, do lado esquerdo, havia a marca escura e retangular do lugar onde a caixa repousara desde o tempo em que jardineiras puxadas por cavalos passavam trovejando pela rua principal.

Por um instante fugaz me perguntei se Felinha já teria provado a minha obra artesanal, mas afastei o pensamento na hora. Tais prazeres teriam de esperar.

A sineta em cima da porta tilintou para anunciar minha entrada, e a srta. Cool ergueu os olhos atrás do balcão do Correio.

— Flavia, querida! — disse ela. — Que surpresa agradável. Ora, mas você está toda molhada! Eu estava pensando em você não faz nem dez minutos, e aqui está você. Na verdade, era no seu pai que eu estava pensando, mas dá na mesma, não é? Tenho aqui uma tira de selos que pode interessá-lo: quatro Georges com uma perfuração extra bem no meio da cara dele. Não parece certo, parece? Totalmente desrespeitoso. A srta. Reynolds, lá da Glebe House, comprou-os na última sexta-feira e os devolveu no sábado. “Têm buracos demais!”, me disse ela. “Não vou admitir que minhas cartas para Hannah (é a sobrinha dela em Shropshire, querida) sejam confiscadas por violação da Lei Postal.”

Ela me entregou um envelope translúcido.

— Obrigada, srta. Cool. Tenho certeza de que o pai vai apreciar ter estes selos na sua coleção, e sei que ele gostaria que eu lhe agradecesse pela gentileza.

— Você é uma menina tão boa, Flavia — disse ela, enrubescendo. — Ele deve ter muito orgulho de você.

— Sim — disse eu —, ele tem. Muito.

Na verdade, aquele foi um pensamento que nunca me passou pela cabeça.

— Você realmente não deve ficar por aí desse jeito, toda molhada, querida. Vá até meu quartinho no fundo e tire suas roupas. Vou pendurá-las na cozinha para secar. Você encontrará uma manta nos pés da minha cama. Enrole-se nela, e vamos ter uma conversa gostosa e aconchegante.

Cinco minutos depois, estávamos de volta à loja, eu parecendo um índio americano pé-negro enrolado num cobertor, e a srta. Cool, com seus óculos pequeninos, lembrava em tudo o feitor de um entreposto comercial no Golfo de Hudson.

Ela já estava atravessando a loja na direção do pote alto de palitos de marroio-branco.

— Quantos você vai querer hoje, querida?

— Nenhum, obrigada, srta. Cool. Saí de casa com muita pressa de manhã, e não trouxe a minha bolsa.

— Pegue um assim mesmo — disse ela, estendendo o pote. — Acho que eu também vou pegar um. Palitos de marroio-branco devem ser compartilhados com amigos, você não acha?

Ela estava completamente enganada: os palitos de marroio-branco eram feitos para ser devorados em solitária gulodice, de preferência em um quarto trancado, mas não me arrisquei a dizer isso. Estava ocupada demais preparando minha armadilha.

Ficamos sentadas por alguns minutos em um silêncio amigável, chupando nossos doces. Uma luz cinzenta diluída infiltrava-se através da janela para o interior da loja, iluminando de dentro as fileiras de potes de vidro com doces, emprestando-lhes um brilho pálido e doentio. Devemos estar parecendo, pensei, sem tirar nem pôr, um par de alquimistas planejando nosso próximo ataque aos elementos.

— Robin Ingleby gostava de palitos de marroio-branco, srta. Cool?

— Ora, mas que pergunta mais estranha! O que a fez pensar nisso?

— Ah, não sei — eu disse com ar displicente, correndo o dedo pela borda de um mostruário de vidro. — Imagino que foi ao ver o rosto do pobre Robin naquele boneco no salão paroquial. Foi um choque e tanto. Não consigo mais tirá-lo da cabeça.

Isso era bem verdade.

— Oh, pobrezinha! — disse ela. — Estou certa de que ninguém de nós consegue, mas as pessoas não quiseram mencionar isso. Foi quase... como é mesmo a palavra? Obsceno. E aquele pobre homem! Que tragédia. Eu não consegui mais pregar o olho depois do que aconteceu. Por outro lado, suponho que aquilo tenha sido uma reviravolta e tanto para todos nós, não foi?

— Você estava no júri do inquérito de Robin, não estava?

Eu estava ficando muito boa nisso. Em um instante, ela ficou confusa.

— Ora... ora, sim, eu estava. Mas como diabos você sabe disso?

— Acho que o pai deve ter mencionado alguma vez. Ele sente um profundo respeito por você, srta. Cool. Mas com certeza você já sabe.

— Um respeito que é inteiramente mútuo, eu lhe asseguro — disse ela. — Sim, eu era um membro do júri. Por que você pergunta?

— Bem, para ser honesta, minha irmã Ophelia e eu tivemos uma discussão sobre isso. Ela disse que no começo pensaram que o Robin havia sido assassinado. Eu discordei. Foi um acidente, não foi?

— Não sei se estou autorizada a discutir isso, querida — disse ela. — Mas foi há tantos anos, não é? Acho que posso contar a você (de amiga para amiga, veja bem) que a polícia de fato considerou essa possibilidade. Mas não havia nada nela. Nem sombra de alguma prova. O menininho subiu para o bosque sozinho e se enforcou sozinho. Foi um acidente. Foi o nosso veredicto: morte por homicídio acidental, é o nome que eles dão.

— Mas como você soube que ele estava sozinho? Você deve ter sido tremendamente esperta para descobrir isso.

— Ora, por causa das pegadas, meu amor! Por causa das pegadas! Não havia outras em lugar nenhum por perto daquela velha forca. Ele subiu até o bosque sozinho.

Meu olhar se desviou para a janela da loja. O aguaceiro começara a diminuir.

— Estava chovendo? — perguntei numa súbita inspiração. — Antes de ele ser encontrado?

— De fato estava — respondeu ela. — Chovia torrencialmente.

— Ah — disse eu, evasiva. — Esteve aqui um sr. Mutt Wilmott para pegar a correspondência dele? Deve ter sido uma posta-restante.

Percebi na hora que eu tinha ido longe demais.

— Sinto muito, querida — disse a srta. Cool, com uma fungada quase imperceptível. — Mas não temos permissão para divulgar esse tipo de informação.

— Ele é um produtor da BBC — eu disse com minha melhor cara de ligeiramente arrasada. — Muito famoso, na verdade. Ele é — ou pelo menos era — o responsável pelo programa de televisão do pobre sr. Porson, O Reino Mágico. Eu esperava conseguir um autógrafo dele.

— Se ele aparecer, eu digo que você perguntou por ele — disse a srta. Cool, abrandando-se. — Não creio ter tido ainda o prazer de conhecer o cavalheiro.

— Oh, obrigada, srta. Cool! — balbuciei. — Eu simplesmente adoro acrescentar algumas personalidades da BBC à minha pequena coleção.

Às vezes eu me odiava. Mas não por muito tempo.

— Bem, parece que a chuva parou — eu disse. — Preciso mesmo ir andando. Acho que minhas roupas já devem estar secas o bastante para me levar para casa, e eu não gostaria que o pai ficasse preocupado. Ele já tem tanta coisa na cabeça hoje em dia.

Eu sabia muito bem que todo mundo em Bishop’s Lacey tinha conhecimento das dificuldades financeiras do pai. Contas pagas em atraso em uma aldeia eram como um foguete sinalizador no meio da noite. Eu bem que podia ganhar alguns pontos pela minha atitude.

— Que criança sensível você é, Flavia — disse ela. — Pegue mais um palito de marroio-branco.

Minutos depois, eu já estava vestida diante da porta. Do lado de fora, o sol saíra, e um perfeito arco-íris cruzava o céu.

— Obrigada pela adorável conversa, srta. Cool, e pelo marroio-branco. Da próxima vez será por minha conta, eu insisto.

— Vá para casa em segurança, querida — ela me disse. — Cuidado com as poças. E guarde-os embaixo do chapéu; os selos, quero dizer. Nós não deveríamos deixar os defeituosos circular.

Dei-lhe uma horrenda piscadela conspiratória e acenei com os dedos.

Ela não havia respondido à minha pergunta sobre se Robin gostava de palitos de marroio-branco, mas também aquilo não tinha muita importância, tinha?


DEI UMA BOA SACUDIDA EM GLADYS, e gotas de chuva saíram voando de sua estrutura como água de um cão encharcado. Eu estava prestes a ir para casa quando alguma coisa na vitrine da loja do agente funerário me chamou a atenção: na verdade, não mais que um ligeiro movimento.

Embora estivesse funcionando no mesmo lugar desde a morte de George III, a loja de Sowbell & Filhos erguia-se discreta e indiferente, como se estivesse esperando um ônibus. Na verdade, era um tanto inusitado ver alguém entrar ou sair daquele lugar.

Despreocupada, me aproximei um pouco mais, fingindo um grande interesse nos cartões fúnebres com margens pretas expostos na vitrine de vidro laminado. Embora nenhum dos mortos (Dennison Chatfield, Arthur Bronson-Willowes, Margaret Beatrice Peddle) fosse alguém que eu conhecesse, estudei atentamente os nomes, dedicando a cada um deles uma pesarosa sacudida de cabeça.

Movendo os olhos da esquerda para a direita, como se estivesse lendo as letras menores dos cartões, porém mudando o foco para o interior sombrio da loja, dava para ver alguém lá dentro agitando as mãos enquanto falava. Foram a camisa de seda amarela e a gravata cor de malva que me chamaram a atenção: era Mutt Wilmott!

Antes que o bom senso pudesse puxar o freio, eu já tinha irrompido para dentro da loja.

— Oh, olá, sr. Sowbell — eu disse. — Espero não estar interrompendo nada. Eu só queria dar uma parada para lhe informar que nosso pequeno experimento químico funcionou admiravelmente, afinal.

Admito que isso foi lustrar um pouquinho os fatos. A verdade é que num domingo eu o peguei de surpresa no pátio da igreja de São Tancredo, depois das orações matinais, para pedir sua opinião pessoal como especialista em conservantes, por assim dizer, sobre se era possível obter um fluido embalsamador confiável a um custo baixo colhendo, macerando, fervendo e destilando o ácido fórmico de um grande número de formigas ruivas (Formica rufa).

Ele alisou o queixo comprido, coçou a cabeça e ficou olhando para cima, para dentro das copas dos teixos, por um bom tempo antes de dizer que na verdade nunca havia pensado nisso.

“É algo que eu vou ter de pesquisar, srta. Flavia”, disse.

Mas eu sabia que ele jamais faria isso de verdade, e estava certa. Os artesãos mais velhos podem ficar terrivelmente taciturnos quando se trata de discutir os truques de seu ofício.

Ele estava de pé nas sombras perto de uma porta almofadada escura que levava a algum sem dúvida pavoroso quartinho dos fundos: um quartinho que eu daria um guinéu para conhecer.

— Flavia — ele saudou; algo cauteloso, pensei. — Infelizmente você terá de nos desculpar — disse. — Estamos no meio de um importante...

— Ora, ora — disse Mutt Wilmott —, se não é a ubíqua jovem protegida de Rupert, a senhorita...

— De Luce — eu disse.

— Sim, claro, De Luce. — Ele sorriu condescendente, como se soubesse o tempo todo; como se só estivesse me provocando.

Tenho de admitir que, como Rupert, o homem tinha uma voz profissional absolutamente maravilhosa: uma fluência melíflua de palavras que saíam como se ele tivesse um órgão de tubos de madeira no lugar da laringe. A BBC devia criar essas pessoas em alguma fazenda secreta.

— Como uma das jovens protegidas de Rupert, por assim dizer — prosseguiu Mutt —, você talvez se sinta confortada por saber que a Titia, como nós os íntimos chamamos a British Broadcasting Corporation, está planejando o tipo de funeral que uma de suas estrelas mais brilhantes merece. Não é exatamente a Abadia de Westminster, você entende, mas a segunda melhor opção. Assim que o sr. Sowbell aqui mandar os... hã... restos mortais para Londres, o luto público poderá começar: a câmara-ardente, os tributos florais, a enrubescida mãe de dez filhos de Weston-super-Mare se ajoelhando junto ao ataúde ao lado dos filhos afogados em lágrimas, e tudo isso com as câmeras de televisão assistindo. Ninguém menos que o diretor-geral em pessoa sugeriu que poderia ser um toque pungente pôr Snoddy, o Esquilo de guarda ao pé do caixão, montado em uma luva vazia.

— Ele está aqui? — perguntei, com um gesto na direção do quartinho dos fundos. — Rupert ainda está aqui?

— Ele está em boas mãos. — Mutt Wilmott assentiu, e o sr. Sowbell, com um sorriso forçado, fez uma humilde e pequena reverência de agradecimento.

Eu nunca na vida tive tanta vontade de fazer alguma coisa, como de perguntar se poderia dar uma olhada no cadáver, mas dessa vez meu cérebro normalmente ágil me falhou. Não consegui pensar em uma única razão plausível para dar uma espiada nos restos mortais de Rupert, como disse Mutt Wilmott; e também não consegui pensar em nenhuma razão implausível.

— Como Nialla está suportando tudo isso? — perguntei, dando um tresloucado tiro no escuro.

Mutt franziu o cenho.

— Nialla? Ela foi embora para algum lugar — disse ele. — Ao que parece, ninguém sabe para onde.

— Talvez ela tenha alugado um quarto na Treze Patos — sugeri. — Devia estar precisando de um banho quente.

Eu esperava que Mutt mordesse a isca, e ele mordeu.

— Ela não está na Treze Patos — retrucou. — Eu mesmo fiquei acampado ali quando cheguei.

Então! Como eu suspeitava, Mutt Wilmott estava a uma curta distância de São Tancredo antes, durante e talvez depois que Rupert foi assassinado.

— Bem — eu disse —, desculpe por incomodá-lo.

Eles continuaram a planejar, antes ainda de eu atravessar a porta.


Como acontece frequentemente no verão, o céu clareou depressa. As nuvens escuras se afastaram para o leste, e passarinhos cantavam exageradamente. Embora ainda fosse um tanto cedo, e a despeito do ar fresco e do sol tépido, me vi bocejando como um gato enquanto pedalava pelos caminhos rumo a Buckshaw. Talvez fosse porque eu acordara antes do amanhecer; talvez porque eu ficara acordada até tarde na noite anterior.

Seja qual for o caso, subitamente fiquei exausta demais. Dafi certa vez comentara que Samuel Pepys, o diarista, estava sempre deitando na cama, e o pai sempre falava dos poderes restauradores de um cochilo rápido. Dessa vez entendi como eles se sentiam.

Mas como entrar em casa sem ser vista? A sra. Mullet montava guarda na cozinha como um Leão Imperial guardando a tumba de um imperador chinês, mas, se eu usasse a porta da frente, correria o risco de cair numa emboscada de tia Felicity e ser designada para deveres indesejáveis pelo resto do dia.

A estrebaria era o único lugar onde alguém poderia facilmente entrar e sair sem ser visto ou perturbado.

Estacionei Gladys atrás de uma das maiores castanheiras que ladeavam a entrada e dei a volta sorrateiramente pelo lado da casa.

Uma porta no outro lado da estrebaria se abria para aquilo que outrora era chamado de pequeno paddock. Escalei a cerca, ergui a tranca de ferro fundido e entrei discretamente pela lateral da casa.

Embora meus olhos estivessem um pouco ofuscados pela luz de fora, ainda consegui distinguir a avultante forma escura do Rolls-Royce clássico de Harriet, um Phantom II, o radiador niquelado luzindo seu brilho empanado na penumbra. Apenas uma luz difusa e pálida conseguia achar seu caminho através das janelas pequenas e empoeiradas, e eu sabia que teria de olhar onde pisava.

Às vezes eu ia ali pensar. Subia a bordo daquele palácio sobre rodas e, em seu confortável interior, ficava sentada sobre o couro cor de creme, fazendo de conta que era Harriet, prestes a engatar a marcha e sair dirigindo rumo a uma vida melhor.

Segurei a maçaneta da porta e a girei silenciosamente. Se Dogger estivesse por perto, sei que seria alertado pelo mais leve ruído e iria correndo ver quem estava invadindo a estrebaria. Que Deus abençoe a boa nave Rolls-Royce e todos os que nela navegam, pensei, quando a pesada porta se abriu em silêncio total e me icei para o banco do motorista.

Inalei o aroma aveludado do carro, como Harriet devia ter feito antigamente, e me preparei para me enrodilhar como uma bola. Com um pouco de sorte, e a quase escuridão, eu estaria dormindo em menos de um minuto. Depois haveria tempo bastante para pensar em assassinatos.

Enquanto eu me espreguiçava voluptuosamente, meus dedos encostaram em alguma coisa: a pele de uma perna humana, pelo tato. Antes que eu pudesse soltar um berro, alguém pôs a mão com força na minha boca.

— Fique quieta! — chiou uma voz ao meu ouvido.

Meus olhos se reviraram como os de um cavalo num matadouro. Mesmo naquela luz fraca dava para ver o rosto da pessoa que me asfixiava.

Era Nialla.

Minha primeira reação foi arrancar um de seus dedos com uma mordida: eu tenho um tipo de fobia contra ser fisicamente contida, e havia ocasiões em que meus reflexos eram mais rápidos do que a razão.

— Não faça nenhum barulho! — sussurrou ela, dando-me uma pequena sacudida. — Eu preciso da sua ajuda.

Raios! Ela me dera a senha feminina: pronunciara aquelas palavras mágicas que remetiam, desde as mais remotas brumas do tempo, a uma aliança formada em algum pântano primordial. Eu estava sob seu domínio. Relaxei o corpo imediatamente e assenti com a cabeça. Ela tirou a mão.

— A polícia está me procurando? — perguntou ela.

— Eu... eu acho que não. Não sei — disse. — Não estou exatamente entre os confidentes deles.

Eu ainda estava um pouco magoada por ter sido agarrada e chacoalhada.

— Ora, pare com isso, Flavia — disse ela. — Não fique toda ofendida comigo. Eu preciso saber. Estão procurando por mim?

— Não vejo a polícia desde sábado à noite — disse eu —, logo depois que Rupert... Logo depois que Rupert foi...

Embora eu não tivesse medos no mundo, não consegui me forçar a dizer aquilo na cara de Nialla.

— Assassinado — disse ela, deixando-se cair de volta no banco. — Nem eu. Aquele inspetor simplesmente não parava de me fazer perguntas. Foi horrível.

— Assassinado? — Eu despejei a palavra como se o pensamento jamais tivesse me ocorrido. — O que a leva a pensar que Rupert foi assassinado?

— É o que todo mundo pensa: a polícia, e agora você. Você estava dizendo “logo depois que Rupert foi...”. Isso implica alguma coisa, não é? Assassinado... morto, que diferença faz? Você certamente não ia dizer “logo depois que Rupert morreu”, e não faça de conta que não foi isso. Eu não sou boba, Flavia, então, por favor, não continue me tratando como se eu fosse.

— Talvez tenha sido um acidente — eu disse, esquivando-me para organizar os pensamentos.

— A polícia teria passado metade da noite interrogando o público se achasse que foi um acidente?

Ela tinha razão.

— O que é pior — ela prosseguiu — é que eles pensam que fui eu que fiz isso.

— Dá para entender por quê — eu disse.

— O quê? De que lado você está, afinal? Eu disse que precisava de ajuda, e de repente você me acusa de assassinato!

— Eu não estou acusando você de assassinato. Só estou afirmando o óbvio.

— Que é...?

Ela estava ficando mais zangada a cada minuto.

— Que é — eu disse, respirando fundo — o fato de que você estava escondida, de que Rupert batia em você, de que havia outra mulher e de que você está grávida.

Naquelas águas, eu estava mergulhada bem fundo, mas ainda determinada a nadar como um cão jogado de cima de um atracadouro. Mesmo assim, o efeito de minhas palavras sobre Nialla foi realmente notável. Pensei por um instante que ela me esbofetearia.

— Isso é tão óbvio? — perguntou com os lábios tremendo.

— Para mim, é — retruquei. — Não posso falar por mais ninguém.

— Você acha que fui eu? Quem matou Rupert, quero dizer?

— Não sei — respondi. — Eu não devia ter considerado você capaz de uma coisa dessas, mas, por outro lado, não sou nenhum Spilsbury.

Embora Sir Bernard tivesse sido um especialista em apontar assassinos, inclusive aqueles dois grandes envenenadores, o dr. Crippen e o major Armstrong, ele, por estranho que pareça, havia tirado a própria vida envenenando-se com gás em seu laboratório. Ainda assim, pensei, se Spilsbury estivesse vivo, teria sido o primeiro a ressaltar que Nialla tivera os meios, o motivo e a oportunidade.

— Pare de tagarelar! — disse ela. — Você acha que fui eu quem assassinou Rupert?

— Foi? — eu disparei de volta.

— Não posso responder — disse ela. — Você não deve perguntar.

Eu não era inexperiente nesse tipo de disputa feminina: onze anos debaixo do mesmo teto com Felinha e Dafi me deixaram totalmente imune àquele tipo de evasivas e esquivas.

— Tudo bem — insisti —, mas se não foi você, então quem foi?

A essa altura, eu já tinha me acostumado à luz poeirenta da estrebaria e vi os olhos de Nialla se arregalar como luminosas luas gêmeas.

Houve um longo e muito desagradável silêncio.

— Se não foi você — eu disse afinal —, então por que estava se escondendo aqui?

— Eu não estou me escondendo! Eu precisava escapar. Já contei isso. A polícia, os Mullet...

— Entendo quanto aos Mullet — eu disse. — Eu preferiria passar uma manhã na cadeira do dentista a ficar ouvindo a sra. Mullet matraqueando por uma hora.

— Você não devia falar essas coisas — disse Nialla. — Eles foram, os dois, muito gentis, especialmente Alf. Ele é um velho cavalheiro encantador; me lembra meu avô. Mas eu precisava me esconder em algum lugar para pensar, para me recompor. Você não sabe como é ficar arrasada.

— Sim, eu sei — disse eu. — Mais do que você pode imaginar. Muitas vezes venho aqui eu mesma, quando preciso ficar sozinha.

— Devo ter sentido aquilo. Pensei em Buckshaw imediatamente. Ninguém jamais pensaria em me procurar aqui. O lugar não era na verdade tão difícil de achar.

— É melhor você voltar — eu disse —, antes que percebam que você foi embora. O inspetor não estava na igreja quando passei por lá. Acho que eles trabalharam até bem tarde. Como ele já a interrogou, não há razão para você não fazer um longo passeio pelo campo, não é?

— Não — disse ela, hesitante.

— Além disso — acrescentei, voltando à minha alegre personalidade —, ninguém além de mim sabe que você esteve aqui.

Nialla estendeu a mão para a bolsa lateral do Rolls-Royce e puxou de lá alguma coisa. Veio com um farfalhar de papel encerado. Quando ela a abriu no colo, não pude deixar de notar as dobras perfeitas no papel.

— Ninguém sabe — disse ela, me passando um sanduíche de pepino —, fora você, e mais uma outra pessoa. Vamos, coma isto. Você deve estar com fome.


— VAMOS, VAMOS! — resmungava Dogger com as mãos trêmulas como as últimas duas folhas do outono. Ele não me viu lá de pé, na soleira da estufa.

Com uma lâmina de seu canivete aberta quase em ângulo reto, ele tentava desajeitadamente afiá-la em uma pedra úmida. A lâmina deslizava de um jeito maluco de um lado para outro, produzindo ruídos rascantes horrorosos sobre a superfície preta.

Pobre Dogger. Aqueles episódios caíam em cima dele sem aviso, e quase qualquer coisa poderia detoná-los: uma palavra pronunciada, um cheiro ou um fragmento de melodia ao léu. Ele estava à mercê de sua memória arruinada.

Recuei lentamente até ficar atrás do muro do jardim. Então comecei a assobiar baixinho, aumentando o volume aos poucos. Soaria como se eu acabasse de atravessar o gramado em direção à horta da cozinha. A meio caminho da estufa, comecei a cantar; uma canção australiana para cantar em volta da fogueira que eu aprendera logo antes de ser excomungada da organização Guia das Meninas:

 

À margem da lagoa um alegre vagabundo,

Sob a sombra de um eucalipto encontrou abrigo.

E ele cantava esperando a chaleira ferver:

“Quem vai querer ser um bom mochileiro comigo?”

 

Entrei de ombros erguidos na estufa.

— Bom dia, companheiro! — eu disse com um cordial sorriso australiano.

— McCorquedale? É você? — chamou Dogger com a voz fraca e tênue como a brisa nas cordas de uma velha harpa. — Bennett está com você? Vocês recuperaram as suas línguas?

Sua cabeça estava inclinada para o lado, escutando, a munheca erguida para proteger os olhos, cegamente voltados para a luz ofuscante do vidro da estufa.

Me senti como se tivesse invadido um santuário, e a minha nuca formigava.

— Sou eu, Dogger, Flavia — consegui falar.

Suas sobrancelhas se juntaram em uma expressão de perplexidade.

— Flavia?

Meu nome saiu de sua garganta como o sussurro de um poço abandonado.

Vi que ele lutava para voltar do que quer que o havia tomado, a luz retornando a seus olhos muito cautelosamente das profundezas para a superfície, como peixinhos dourados em uma lagoa ornamental.

— Srta. Flavia?

— Desculpe — disse eu, tirando o canivete de suas mãos trêmulas. — Será que eu quebrei? Peguei emprestado ontem para cortar um pedaço de barbante e posso ter estragado o fio da lâmina. Se eu fiz isso, vou comprar um novo para você.

Isso era pura fantasia. Eu não tinha encostado a mão naquela coisa, mas aprendi que sob certas circunstâncias uma mentirinha inocente não só é permissível como pode ser um ato de perfeita benevolência. Tirei o canivete de suas mãos, abri-o completamente e comecei a esfregar a lâmina em círculos suaves sobre a superfície da pedra.

— Não, ela está ótima — eu disse. — Ufa! Eu estaria encrencada se tivesse estragado o seu melhor canivete, não estaria?

Fechei a lâmina e entreguei o canivete de volta. Dogger o pegou, os dedos agora muito mais seguros.

Virei ao contrário um balde vazio e me sentei nele enquanto compartilhávamos um silêncio.

— Foi bondade sua pensar em dar comida a Nialla — eu disse depois de algum tempo.

— Ela precisa de um amigo — disse ele. — Ela está...

— Grávida — despejei.

— Sim.

— Mas como você sabia? Com certeza ela não contou a você.

— Excesso de salivação — disse Dogger — e telangiectasia.

— Tel-o-quê?

— Telangiectasia — disse ele com uma voz mecânica, como se estivesse lendo em um livro invisível. — Aranhas vasculares na proximidade da boca, do nariz e do queixo. Incomum, mas não desconhecido no início da gravidez.

— Você me surpreende, Dogger — eu disse. — Como diabos você sabe essas coisas?

— Elas flutuam na minha cabeça — respondeu ele mansamente — como rolhas no mar. Eu li livros, acho. Tive um bocado de tempo nas minhas mãos.

— Ah! — disse eu. Aquilo tinha sido o máximo que eu já o ouvira dizer em séculos.

Mas o antigo cativeiro de Dogger não era um tópico aberto a discussões, e eu soube que era hora de mudar de assunto.

— Você acha que ela fez aquilo? — perguntei. — Quero dizer, que matou Rupert?

Dogger juntou as sobrancelhas, como se o pensamento lhe viesse com um esforço imenso.

— A polícia vai pensar isso — disse ele, assentindo lentamente. — Sim, é isso que a polícia vai pensar. Logo estará aqui.

Como se viu, ele estava certo.


— É um fato bem conhecido — trombeteou tia Felicity — que a peste negra foi trazida à Inglaterra pelos advogados. Shakespeare disse que devíamos ter enforcado uma porção deles, e, à luz da moderna reforma sanitária, sabemos agora que ele estava certo. Isso nunca vai dar certo, Haviland!

Ela enfiou um punhado de papéis em uma poeirenta caixa de chapéu e fechou a tampa.

— É uma perfeita ignomínia — ela acrescentou — a maneira como você deixa as coisas escapar; a não ser que aconteça alguma coisa, logo você não terá opção senão vender Buckshaw e ficar em um apartamento sem água quente em Battersea.

— Olá, todo mundo — disse eu, entrando despreocupada na biblioteca, fingindo pela segunda vez em menos de meia hora que estava por fora de tudo o que acontecia.

— Ah, Flavia — disse o pai. — Acho que a sra. Mullet está precisando de mais duas mãos na cozinha.

— É claro — disse eu, e aproveitei para perguntar: — E então, vou ter permissão para ir ao baile?

O pai pareceu ficar intrigado. A minha engenhosa resposta se perdeu totalmente para ele.

— Flavia! — disse tia Felicity. — Isso não é maneira de uma criança falar com seu pai. Eu deveria imaginar que você a essa altura já tinha superado essa atitude impertinente. Não sei como você deixa essas meninas se safar com isso, Haviland.

O pai foi até a janela e olhou para fora através do lago ornamental e na direção da folly. Ele se refugiava, como sempre fazia, deixando pelo menos os olhos escapar de uma situação desagradável.

De repente, ele se voltou para encará-la.

— Com os diabos, Lissy — disse com uma voz tão forte que acho que surpreendeu inclusive a ele. — Nem sempre as coisas são fáceis para elas. Não... nem sempre é fácil para elas.

Acho que minha boca se escancarou quando a dele se fechou.

Querido velho pai! Eu poderia tê-lo abraçado, e se um de nós dois fosse diferente de quem somos, acho que teria feito isso.

Tia Felicity voltou a remexer os papéis.

— Legados obrigatórios... bens pessoais — disse ela com uma fungada. — Aonde isso tudo vai parar?


— Flavia — disse Felinha assim que passei pela porta aberta da sala de estar —, um momento?

Ela soava suspeitosamente cortês. Estava tramando alguma.

Quando entrei, Dafi, que estava em pé perto da porta, fechou-a suavemente atrás de mim.

— Estávamos esperando você — disse Felinha. — Por favor, sente-se.

— Prefiro não — disse eu. As duas continuavam em pé, pondo-me em desvantagem caso houvesse necessidade de uma fuga súbita.

— Como queira — disse Felinha, sentando-se atrás de uma pequena mesa e colocando seus óculos. Dafi ficou em pé, com as costas contra a porta.

— Infelizmente tenho algumas notícias bem desagradáveis para você — disse Felinha, brincando com os óculos como um juiz no tribunal Old Bailey.

Eu não disse nada.

— Enquanto você vagabundeava pelos campos, tivemos uma reunião e decidimos que você vai ter de ir.

— Em suma, fizemos uma votação e expulsamos você da família — disse Dafi. — Por unanimidade.

— Unanimidade? — eu disse. — Isso não passa de mais uma das suas estúpidas...

— Dogger, naturalmente, apelou por leniência, mas foi indeferido pela tia Felicity, que tem um peso muito maior nesses assuntos. Ele queria que você fosse autorizada a ficar até o fim da semana, mas infelizmente não poderemos permitir. Ficou decidido que você estará fora daqui até o pôr do sol.

— Mas...

— O pai já deu instruções ao sr. Pringle, o advogado dele, para minutar um Acordo de Reversão, o que significa, é claro, que você será devolvida ao Lar das Mães Solteiras, que não terá alternativa senão aceitá-la de volta.

— Por causa do Acordo, entenda — disse Dafi. — Está no estatuto deles. Eles não podem dizer não. Não podem recusar.

Apertei os punhos quando senti as lágrimas começando a se formar nos meus olhos. Não adiantava aguardar pela justiça.

Empurrei Dafi bruscamente para longe da porta.

— Você já comeu aqueles chocolates? — perguntei a Felinha.

Ela ficou um pouco perplexa com a rispidez da minha voz.

— Bem, não... — ela disse.

— Melhor não — cuspi. — Eles podem estar envenenados.

Assim que as palavras saíram da minha boca, soube que tinha feito a coisa errada.

Maldição! Eu tinha me entregado. Todo aquele trabalho no laboratório desperdiçado!

Flavia, pensei, às vezes você não é mais brilhante do que um lagarto atingido por um raio.

Zangada comigo mesma por estar zangada, saí marchando da sala por princípios gerais, e ninguém tentou me impedir.


Respirei fundo, relaxei os ombros e abri a porta da cozinha.

— Flavia — chamou a sra. Mullet —, seja boazinha e me traga um copo de xerez da despensa. Eu fiquei estranha. Mas veja lá, não vá exagerar, senão eu vou ficar tontinha.

Ela estava toda esticada em uma cadeira perto da janela, os calcanhares nos ladrilhos, se abanando com uma frigideirinha.

Fiz o que me mandara, e ela engoliu a bebida num instante.

— O que foi, sra. M? — perguntei. — O que aconteceu?

— A polícia, queridinha. Eles me deixaram tonta, quando vieram buscar aquela moça do jeito que fizeram.

— Que moça? Você quer dizer Nialla?

Ela assentiu, taciturna, sacudindo o copo vazio. Eu o enchi de novo.

— Tão boazinha, ela é. Nunca fez mal a ninguém. Ela bateu aqui na porta da cozinha para me agradecer, e ao Alf, é claro, por termos lhe dado abrigo naquela noite. Disse que estava indo embora e não queria que achássemos que ela era uma ingrata, essas coisas. Nem bem as palavras saíram de sua boca e aquele inspetor como-é-que-chama...?

— Hewitt — eu disse.

— Hewitt. É ele. Ele mesmo. Apareceu na porta bem atrás dela. Viu ela atravessar vindo da cocheira, ele viu.

— E então?

— Ele perguntou se podia ter uma palavrinha do lado de fora. E tudo o que sei é que depois a pobre menina foi embora no carro com ele. Eu tive de correr em volta da casa para poder dar uma boa olhada. Aquilo me deixou exausta, se deixou!

Reabasteci seu copo.

— Eu não devia ter feito isso, queridinha — disse ela —, mas o meu pobre e velho coração já não está mais à altura de tamanho pandemônio.

— Você já está com uma aparência melhor, sra. M — eu disse. — Há mais alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?

— Eu estava para pôr aquelas coisas no forno — disse ela, apontando para uma bateria de assadeiras cheias de massa de pão em cima da mesa, e pondo-se pesadamente de pé.

— Abra a tampa do forno para mim... boa menina.

Grande parte da minha vida foi dedicada a segurar a porta do forno do fogão Aga enquanto a sra. M alimenta aquela bocarra escancarada com montes de comida para assar. Nem no Inferno do Paraíso perdido de Milton há algo que se compare com a minha labuta.

— Ficamos completamente sem doces, nós ficamos — disse ela. — Quando se trata de gulodices, aquele rapaz da srta. Ophelia parece ter um estômago sem fundo.

O rapaz da srta. Ophelia? Já tinha chegado a isso? Será que as minhas perambulações em volta da aldeia me fizeram perder alguma cena de galanteio sensacional?

— Dieter? — perguntei.

— Mesmo sendo um alemão — disse ela inclinando a cabeça —, ele é muito mais refinado do que aquele descarado que fica deixando os seus presentes de lixo no degrau da porta da cozinha.

Pobre Ned!, pensei. Até a sra. Mullet estava contra ele.

— Por acaso ouvi um pouco do que ele disse enquanto eu espanava o vestíbulo: sobre Heathcliff e tudo o mais. Me lembro de quando eu e minha amiga, a sra. Waller, pegamos o ônibus para Hinley para ir ver ele no cinema. O morro dos ventos uivantes, se chamava, e é um bom nome para aquilo! Aquele tal de Heathcliff, ora, ele mantinha a mulher escondida no sótão, como se ela fosse uma velha camareira! Não admira que ela ficasse maluca. Eu ficaria! E agora, então, do que você está rindo, senhorita?

— Da ideia — eu disse — de Dieter chapinhando na lama através do Campo Jubileu debaixo de chuva e raios, para levar embora a Bela Ophelia.

— Bem, ele pode fazer isso — disse ela. — Mas não sem o devido espalhafato de Sally Straw e, dizem alguns, da própria velha senhora.

— A velha senhora? Grace Ingleby? Certamente você não quer dizer Grace Ingleby?

De repente a sra. Mullet ficou vermelha como uma panela de beterrabas fervendo.

— Eu já falei demais — disse, perturbada. — É o xerez, veja bem. Alf sempre fala como o xerez derruba o guarda que devia estar vigiando a minha língua. Agora, então, nem mais uma palavra. Vá agora, queridinha. E lembre-se: eu não disse nada.

Bem!, eu pensei. Bem, bem, bem, bem, bem!


HÁ ALGUMA COISA QUE CLAREIA A MENTE quando estamos lidando com venenos. Quando a mais leve escorregadela da mão pode provar ser fatal, a atenção da pessoa é forçada a se focalizar como uma lente ustória em cima do experimento, e é então que as respostas para as perguntas semiformadas muitas vezes vêm fervilhando à mente de modo tão fácil quanto abelhas voltando para a colmeia.

Com uma boa quantidade de ácido sulfúrico já decantado para um frasco recém-lavado e ligeiramente aquecido, acrescentei com cuidado uma pelota de gel cristalino e fiquei olhando maravilhada enquanto aquilo se dissolvia devagar, palpitando e se contorcendo no banho ácido como um filhote de lula translúcido.

Eu tinha extraído aquilo, com água e álcool, das raízes de um jasmim-amarelo (Gelsemium sempervirens) que, para meu deleite, eu descobrira florescendo beatificamente no canto da estufa, as flores parecidas com pequenas trombetas esculpidas em manteiga fresca.

A planta é nativa das Américas, Dogger me contou, mas tinha sido trazida para as estufas inglesas por viajantes; aquele espécime em particular, pela minha mãe, Harriet.

Perguntei se podia ficar com ela para o meu laboratório e Dogger concordou prontamente.

A raiz continha um adorável alcaloide chamado gelsemina, que ficara de espreita sem ser detectado dentro da planta desde a Criação, até ser trazido à tona por um homem da Filadélfia com o charmoso nome de Wormley, o qual administrou o veneno amargo a um coelho, que deu um salto mortal completo para trás e morreu em vinte minutos.

A gelsemina era uma assassina cuja companhia eu apreciava muito.

E agora vinha a mágica!

Introduzi no líquido, na ponta de uma faca, uma pequena dose de K2Cr2O7, ou dicromato de potássio, cujos sais vermelhos, iluminados por um raio fortuito do sol vindo das esquadrias da janela, o tornaram no matiz vermelho-cereja pálido do sangue de uma vítima de monóxido de carbono.

Mas isso era só o começo! Havia mais por vir.

O brilho cereja já estava desbotando, e a solução assumia a impressionante cor violeta de uma velha equimose. Prendi a respiração e... sim!, aqui estava, a fase final do verde-amarelado.

A gelsemina é um dos camaleões da química, mudando de cor em delicioso abandono, e sem um vestígio sequer do seu matiz original.

As pessoas também são assim. Nialla, por exemplo.

Por outro lado, ela era prisioneira de um titereiro viajante; uma mulher jovem que, a não ser pelo bebê que agora trazia na barriga, praticamente não tinha família; uma mulher jovem deixada agora sem dinheiro e sem nenhum meio de sustento visível. Ainda assim, de um modo confuso que eu não entendia inteiramente, ela não tinha a minha completa simpatia.

Seria porque tinha fugido da cena do crime, por assim dizer, e se escondido na cocheira em Buckshaw? Eu podia entender sua vontade de ficar sozinha, mas ela tinha escolhido o que dificilmente se poderia chamar de o melhor momento.

Onde estaria ela agora?, me perguntei. O inspetor Hewitt a teria prendido e arrastado para uma cela em Hinley?

Escrevi Nialla em um pedaço de papel.

E então havia Mutt Wilmott: um personagem impressionante, que parecia ter saído diretamente de um filme de Orson Welles. Não querendo exagerar nas minúcias, foi Mutt chegar e Rupert morrer; Mutt desapareceu depois de discutir com Rupert, e a seguir foi visto fazendo arranjos para embarcar o corpo para Londres, para um funeral de gala.

Seria Mutt um assassino contratado pela BBC? Teria a briga de Rupert com o misterioso Tony pressionado demais a “Titia” e seu diretor-geral? Seria o fim torpe de Rupert em cima do palco de um teatro rústico de marionetes não mais que o desfecho de uma amarga disputa contratual?

E Grace Ingleby? Para ser honesta, a sombria mulherzinha me dava arrepios. Seu santuário para uma criança morta em um pombal abandonado era o bastante para assombrar qualquer um; e agora a sra. Mullet insinuava que a mulher do fazendeiro era mais do que apenas uma senhoria para Dieter.

E Dieter! Apesar de toda a sua aparência de deus nórdico e de sua paixão pela literatura inglesa, parecia que ele havia conspirado com seus captores para cultivar e fornecer cannabis para o que Sally Straw chamara de “um pequeno exército de gente igual a ele”. Quem eram eles?, me perguntei.

Rupert, claro, era o chefe e visitava a fazenda Ingleby com a regularidade de um bonde. Era um mulherengo, não havia dúvidas a respeito (Sally de novo). Com quem ele entrara em conflito? Quem queria tanto vê-lo morto a ponto de matá-lo?

Quanto a Sally, tanto Rupert como Dieter estavam interessados nela. Teria Rupert sido empurrado para a eternidade por um rival no amor?

Sally parecia ser uma figura central: vivia na fazenda Ingleby havia anos. Estava claro que tinha uma queda por Dieter, mas se suas paixões eram correspondidas, isso já era outra história. E havia Gordon Ingleby. Gordon, o santo coberto de linho que fazia pelos sofredores o que nenhum médico estava disposto a fazer; Gordon, o horticultor; Gordon, o pai da criança morta no bosque.

Isso para não falar em Meg, a Louca, que estava no Bosque Gibbet quando Robin morreu, ou pelo menos não muito tempo depois.

E Cynthia, a querida Cynthia Richardson, mulher do vigário, cuja única paixão era seu ódio ao pecado. O súbito aparecimento de uma dupla de titereiros promíscuos propondo-se a apresentar um espetáculo no salão paroquial de seu marido deve ter calcinado sua alma como o lago de fogo no Livro do Apocalipse.

A despeito de tudo isso, a alma de Cynthia não era uma incubadora de caridade cristã. O que foi mesmo que Meg disse quando perguntei sobre sua soneca no presbitério? Que Cynthia tomara o bracelete dela e a pusera para fora porque era suja. Sem dúvida estava se referindo ao estojo de pó compacto em forma de borboleta de Nialla, mas se fosse esse o caso, por que eu o encontrara enroscado na manta de lã do estúdio? Teria Cynthia pego o pó compacto de Meg e então, surpreendida no ato por um entre as dezenas de aldeões que circulam pelo presbitério, o escondera para poder usá-lo depois?

Parecia improvável: se existia um pecado do qual Cynthia Richardson não podia ser culpada, era o da vaidade. Só uma olhada para ela já bastava para saber que a maquiagem jamais poluíra aquela cara pálida de furão, que joias jamais penderam daquele pescoço mirrado nem deram vida àqueles pulsos de palito de fósforo. Para dizer de modo mais educado, a mulher era despojada como um pudim.

Apontei o lápis e acrescentei seis nomes a minha lista: Mutt Wilmott, Grace Ingleby, Dieter Schrantz, Sally Straw, Meg, a Louca (uma vez Dafi me contou que o sobrenome de Meg era Grosvenor, mas eu não acreditei)... e Cynthia Richardson.

Tracei uma linha e abaixo dela escrevi em letras maiúsculas — CASOS AMOROSOS: PESQUISAR.

Embora eu tivesse uma ideia superficial do que acontecia entre duas pessoas que estão tendo um caso, eu na verdade não conhecia os detalhes mecânicos precisos. Uma vez, quando o pai esteve fora por vários dias para uma exposição de selos em Glasgow, Dafi insistiu em ler Madame Bovary em voz alta para nós em todas as refeições, de manhã, ao meio-dia e à noite, incluindo o chá, e terminou no terceiro dia bem quando o pai cruzava a porta.

Na época quase morri de tédio, muito embora aquele tenha se tornado desde então um dos meus livros favoritos, por conter, como contém, aquela que deve ser a melhor e mais empolgante descrição da morte por arsênico de toda a literatura. Me deleitei em particular com o modo como Emma, a envenenada, “ergueu-se como um cadáver galvanizado”. Mas agora me dou conta de que estava tão fascinada com a empolgação do suicídio da pobre Madame Bovary que deixei de assimilar as minúcias de seus diversos casos. Tudo o que eu conseguia lembrar era que, sozinha com Rodolfo junto à lagoa dos lírios, cercada por lentilhas-d’água e rãs saltadoras, Emma Bovary, em lágrimas, escondendo o rosto, e com um longo arrepio, “entregou-se a ele”.

O que quer que signifique isso. Eu iria perguntar a Dogger.


— Dogger — eu disse quando finalmente o encontrei, arrancando as ervas daninhas na horta da cozinha com uma enxada de cabo longo —, você leu Madame Bovary?

Dogger fez uma pausa em seu trabalho e extraiu um lenço do bolso do peitilho do macacão. Deu uma enxugada geral no rosto antes de responder.

— Um romance francês, não é? — perguntou.

— Flaubert.

— Ah — disse Dogger, e enfiou o lenço de volta no bolso. — Aquele onde uma pessoa extremamente infeliz se envenena com arsênico.

— Arsênico de um pote azul! — eu deixei escapar, pulando de um pé para o outro de tanta excitação.

— Sim — disse Dogger —, de um pote azul. Azul, não devido a qualquer risco de decomposição ou oxidação do conteúdo, mas para...

— Para não ser confundido com um pote contendo uma substância inofensiva.

— Exatamente — disse Dogger.

— Emma Bovary engole aquilo por causa de vários casos infelizes — eu disse.

Dogger, deliberadamente, raspou um torrão de barro da sola do sapato com a enxada.

— Ela teve um caso com um homem chamado Rodolfo — acrescentei — e depois com outro chamado Leon. Não ao mesmo tempo, é claro.

— É claro — disse Dogger, e silenciou.

— Um caso implica o quê, exatamente? — perguntei, esperando que minha escolha de palavras subentendesse, mesmo que ligeiramente, que eu já sabia a resposta.

Pensei por um momento que poderia vencê-lo pelo cansaço, muito embora no fundo soubesse que tentar vencer Dogger pelo cansaço seria um esforço inútil.

— O que Flaubert quis dizer — perguntei afinal — quando disse que Madame Bovary se entregou a Rodolfo?

— Ele quis dizer — disse Dogger — que eles se tornaram os maiores amigos. Os maiores amigos mesmo.

— Ah — disse eu. — Bem como eu pensava.

— Dogger! Suba aqui imediatamente, antes que eu me cause uma grave lesão interna.

A voz de tia Felicity desceu trombeteando de uma janela de cima.

— Estou indo, srta. Felicity — ele gritou e depois disse, num aparte para mim: — A srta. Felicity precisa de ajuda com a sua bagagem.

— Sua bagagem? — perguntei. — Ela está indo embora?

Dogger assentiu evasivamente.

— Queijo! — eu exclamei. Era uma oração secreta de graças, cujo significado só Deus e eu conhecíamos.


Tia Felicity já tinha descido metade da escadaria oeste usando um conjunto de lona que sugeria a África e não as terras selvagens de Hampstead. O táxi de Clarence Mundy estava à porta, e Dogger ajudava Bert a içar a bordo a carga de tia Felicity.

— Vamos sentir saudades, tia Fê — disse Felinha.

Tia Fê? Parece que na minha ausência Felinha andou se insinuando para a irmã do pai, muito provavelmente, pensei, na esperança de herdar as joias da família De Luce: aquela medonha coleção de quinquilharias que meu avô De Luce (do lado do pai e de tia Felicity) havia empurrado para minha avó, que, ao receber cada peça, jogava-a displicentemente com o polegar e o indicador em uma caixa de papelão, como se fosse uma inofensiva cobra-capim, e nunca mais olhava para ela outra vez.

Felinha desperdiçara uma tarde inteira babando em cima daquele lixo na última vez em que fomos a Hampstead para um dos chás compulsórios de tia Felicity.

— É tão romântico! — ela murmurou quando tia Felicity, muito a contragosto, emprestou-lhe um pingente de vidro cor-de-rosa que não ficaria nada mal no úbere de uma vaca. — Vou usá-lo na festa de debutante de Rosalind Norton, e todos os olhos estarão voltados para esta sua criada. Pobre Rosalind, ela é tão terrivelmente ansiosa!

— Sinto muito que tenha dado nisso, Haviland — berrou tia Felicity do patamar —, mas você fez tudo errado. Nem todos os cavalos do rei e todos os homens do rei conseguiriam pôr suas contas em ordem outra vez. Eu ficaria, é claro, mais que feliz em salvá-lo de seus excessos, se não tivesse investido tão pesadamente em títulos da dívida pública. Nada resta a fazer agora senão vender esses selos postais ridículos.

O pai havia entrado tão silenciosamente no vestíbulo que eu não reparara nele até então. Estava em pé, uma das mãos segurando o braço de Dafi, de olhos baixos, como se estivesse estudando com toda a atenção os ladrilhos preto e branco sob seus pés.

— Obrigado por ter vindo, Felicity — disse ele mansamente, sem erguer os olhos. — Foi muito gentil de sua parte.

Tive vontade de esbofetear a cara da mulher!

Eu de fato cheguei a dar meio passo para a frente antes que uma mão firme caísse no meu ombro, detendo-me instantaneamente. Era Dogger.

— Vai precisar de mais alguma coisa, srta. Felicity? — perguntou ele.

— Não, obrigada, Dogger — disse ela remexendo a bolsa com dois dedos. Das suas profundezas, como uma cegonha puxando um peixe de uma lagoa, ela extraiu o que parecia ser um xelim e entregou a ele com um suspiro.

— Obrigado, senhorita — disse ele, embolsando o insulto com naturalidade (e sem olhar para ele), como se fosse algo que costumava fazer todos os dias.

E com isso tia Felicity se foi. Um momento depois, o pai tinha adentrado as sombras do grande vestíbulo, seguido de perto por Dafi e Felinha, e Dogger desaparecera sem uma palavra em seu pequeno corredor atrás da escada.

Foi como um daqueles momentos eletrizantes logo antes de cortina final baixar em uma peça no West End: aquele momento em que todas os personagens coadjuvantes desaparecem nos bastidores, deixando a heroína sozinha no centro do palco para dizer sua esplendorosa fala final a uma casa silenciosa que aguarda suas palavras com a respiração presa.

— Que inferno! — disse, e saí para respirar um pouco de ar fresco.


O problema conosco, os De Luce, concluí, é que estamos infestados de história, quase do mesmo jeito que outras pessoas se infestam de piolhos. Os De Luce estão em Buckshaw desde que o rei Harold deteve uma flecha com seu olho na Batalha de Hastings, e a maioria deles era infeliz de um jeito ou de outro bem complicado. Parece que nascemos com traços tanto de glória como de melancolia nas veias e nunca podemos ter certeza, em dado momento, de qual das duas está nos impelindo.

Por um lado, eu sabia que nunca seria como tia Felicity, mas, por outro, será que algum dia seria como Harriet? Oito anos depois de sua morte, Harriet ainda era tão parte de mim quanto as unhas dos dedos dos meus pés, muito embora esta provavelmente não fosse a melhor maneira de definir as coisas.

Eu li os livros que eram dela, pedalei em sua bicicleta, sentei-me em seu Rolls-Royce, e o pai uma vez, em um momento de distração, me chamou pelo nome dela. Até tia Felicity chegou a deixar de lado seu jeito de górgona por tempo suficiente para me contar como eu era parecida com Harriet.

Teria sido um elogio ou um aviso?

A maior parte do tempo eu me sentia uma impostora; uma criança que foi trocada ao nascer; uma substituta de cilício e cinzas daquela menina de ouro que foi arrebatada pelo Destino e arremessada pela encosta da montanha em direção a uma terra absurdamente distante. Todo mundo parece que seria muito mais feliz se Harriet fosse trazida de volta à vida, e eu, suprimida.

Esses pensamentos, e outros, turbilhonavam na minha cabeça como folhas de outono em uma correnteza enquanto eu seguia pelo caminho poeirento que daria na aldeia. Sem sequer notar, eu já tinha passado pelos grifos entalhados dos Portões Mulford, que marcavam a entrada para Buckshaw, e agora Bishop’s Lacey já estava à vista.

Enquanto eu me arrastava em frente, um pouco desalentada (tudo bem, eu admito, estava furiosa com tia Felicity por fazer Dogger de idiota!), enfiei a mão no bolso e meus dedos entraram em contato com um objeto metálico redondo: algo que não estava lá antes. Uma moeda.

— Epa! — eu disse. — O que é isto?

Puxei-a para fora e olhei para ela. Assim que vi a coisa, soube o que era e como tinha vindo parar no meu bolso. Virei a moeda ao contrário e dei uma bela de uma olhada no reverso.

Sim, não podia haver dúvida a respeito. Nenhuma dúvida.


VISTA DO OUTRO LADO DA RUA PRINCIPAL, a casa de chá São Nicolau era parecida com um cartão-postal da velha Inglaterra. Suas salas de cima, com as pequenas janelas em arco, foram a residência dos atuais avós do sr. Sowbell na época em que eles moravam acima da sua manufatura de esquifes e móveis.

As mesas, aparadores e cômodas, que já foram conhecidos pela ferocidade de seu negro lustroso e pelo brilho dos ornados botões e puxadores de gaveta de prata, caíram em desgraça e agora eram muitas vezes encontrados em leilões de espólio, emburrados e solitários na entrada de carros até serem arrematados no fim do dia por pouco mais que uma ou duas libras.

— Por trapaceiros inescrupulosos que usam a madeira para transformar cômodas compradas na Woolworth’s em antiguidades — Dafi me contara uma vez.

A loja do agente funerário, notei, agora tinha um relógio de papelão na vitrine, suspenso por um V invertido de cordão preto. O ponteiro dos minutos apontava para as doze horas, e não havia ponteiro de horas. O sr. Sowbell obviamente fora à Treze Patos para a sua caneca da tarde.

Atravessei a rua e, abrindo a porta do salão de chá, avancei para dentro. À minha direita havia uma escada íngreme de madeira, com uma pequena mão azul pintada apontando para cima: Salão de Chá no Andar Superior. Ao lado da escada, uma passagem estreita e mal iluminada desaparecia nas trevas da parte traseira do edifício. Na parede, mais uma prestativa mão pintada, esta em vermelho, marcada com Toaletes para Cavalheiros e Senhoras, apontava o caminho discretamente.

Eu sabia que o salão de chá e a agência funerária compartilhavam os banheiros. Felinha insistira em nos arrastar para lá, para o chá em uma tarde de outono, e eu ficara pasma ao ver três mulheres de vestido preto e véu preto tagarelando alegremente à porta do banheiro como se estivessem em um congresso de corvos dentuços, antes de reassumirem sua conduta austera e se esgueirarem de volta às dependências do sr. Sowbell. A porta através da qual elas desapareceram se abria diretamente para os recintos do agente funerário.

Eu estava certa! Um discreto “Sowbell & Filhos” em letras douradas acima do verniz escuro devia estar ali para lembrar aos enlutados que não deveriam cometer o erro de perambular para dentro do corredor do salão de chá depois de “ensaboar as mãos”, como disse a sra. Mullet.

A porta almofadada escura se abriu, girando sobre dobradiças silenciosas.

Me vi em um escuro salão vitoriano com papel de parede de padrões pretos e de um tom creme-amarelado. Nos três lados da sala havia cadeiras espigadas de madeira e uma pequena mesa redonda com cravos-de-amor artificiais. O lugar cheirava a poeira, com uma base química subjacente.

A parede do outro lado da sala estava nua, a não ser por uma escura reprodução do Angelus, de Millet, em que um homem e uma mulher, obviamente lavradores flamengos, estão de pé sozinhos em um campo ao ocaso. As enormes mãos de trabalhadora braçal da mulher estão entrelaçadas no peito em oração. O homem havia tirado o chapéu, que segurava, desconfortável, na frente dele. Colocara de lado seu forcado, cravando-o até a metade na terra fofa. Enquanto os corvos se congregavam acima deles como abutres, o casal permanecia de olhos baixos. Entre eles, meio vazia no chão, jazia uma cesta de vime.

Max Wight me contara uma vez que quando o original da pintura de Millet foi exposto na América, a venda de reproduções foi no mínimo morosa, até que alguém pensou em mudar o nome de O Angelus para Sepultando o bebê.

Era embaixo daquela reprodução, imaginei, que os esquifes deviam ficar normalmente estacionados. Uma vez que o lugar estava vazio, era óbvio que o corpo de Rupert, se é que ainda estava no local, devia estar em alguma outra sala.

À direita, havia uma partição em L. Tinha de haver outra porta atrás dela.

Dei uma espiada em volta por trás da meia parede e me vi olhando para uma sala quase gêmea da primeira. A única diferença que eu percebia era o papel de parede preto e creme-rosado, e a reprodução na parede oposta era Luz do mundo, de Holman Hunt, em que Jesus está à porta como Diógenes procurando um homem honesto, com uma lanterna de lata nas mãos.

Atrás da sua moldura escura, sobre cavaletes, havia um caixão.

Fui para lá muito devagar e na ponta dos pés, os ouvidos ligados ao menor dos sons.

Corri os dedos pela superfície altamente polida da madeira, do modo como alguém poderia acariciar a tampa de um piano antes de erguê-la para revelar as teclas. Pus os polegares embaixo da junta e senti que ela se erguia ligeiramente.

Eu estava com sorte! A tampa não estava aparafusada. Levantei-a e olhei para dentro.

Ali, como uma boneca em uma caixa, jazia Rupert. Quando vivo, sua personalidade o fizera parecer tão maior que eu esquecera o quanto ele era pequeno.

Se fiquei apavorada a ponto de enlouquecer? Creio que não. Desde o dia em que encontrei um corpo na horta da cozinha em Buckshaw, desenvolvi uma fascinação pela morte, com ênfase especial na química da putrefação.

De fato, eu já começara a fazer anotações para um trabalho definitivo, que eu chamaria de De Luce sobre a decomposição, no qual delinearia, passo a passo, o processo da degradação cadavérica humana.

Como era empolgante refletir sobre o fato de que, minutos após a morte, os órgãos do corpo, com a falta de oxigênio, começam a digerir a si próprios! Os níveis de amônia começam a subir, e, com a ajuda da ação bacteriana, o metano (mais conhecido como gás dos pântanos) é produzido, juntamente com sulfeto de hidrogênio, dióxido de carbono e mercaptan, um cativante álcool sulfúrico em cuja estrutura o enxofre toma o lugar do oxigênio, o que explica o cheiro pútrido.

Que curioso, pensei, que nós, humanos, tenhamos levado milhões de anos nos arrastando para fora dos pântanos e no entanto, minutos antes da morte, já estamos deslizando de volta para ele ladeira abaixo.

Meu agudo sentido de olfato me disse que o sr. Sowbell usara em Rupert um fluido embalsamador baseado em formalina (uma solução a dois por cento de formaldeído parecia ser o mais provável, com um ligeiro buquê de mais alguma coisa: clorofórmio, a julgar pelo cheiro). E pelo ligeiro matiz esverdeado na ponta do nariz de Rupert, eu podia dizer que o agente funerário fora mesquinho com os ingredientes. Só era possível esperar que o funeral de gala da BBC fosse um evento com caixão fechado.

Mas era melhor eu me apressar, pensei. O sr. Sowbell poderia entrar a qualquer momento.

As mãos pálidas de Rupert estavam cruzadas por cima de seu abdômen, com a mão direita por cima. Segurei seus dedos (era como erguer salsichas encadeadas da geladeira) e os puxei para cima.

Para meu espanto, a mão esquerda veio junto, e vi na hora que elas tinham sido engenhosamente costuradas. Torcendo as mãos frias e me curvando para ver melhor embaixo delas, vi o que estava procurando: um canal enegrecido que ia da base de seu polegar esquerdo até as pontas do primeiro e do segundo dedos.

Apesar dos esforços de embalsamamento do sr. Sowbell, Rupert ainda exalava um cheiro bastante chamuscado. E não podia haver dúvida quanto a isto: a queimadura na palma de sua mão esquerda tinha a largura exata da alavanca que operava o Galligantus.

Uma tábua do assoalho rangeu.

Quando fechei a tampa do caixão, a porta se abriu e o sr. Sowbell entrou na sala. Eu não o ouvira chegar.

Como eu ainda estava semiagachada, inspecionando os dedos queimados de Rupert, consegui me erguer lentamente até ficar de pé.

— Amém — eu disse, fazendo um extravagante sinal da cruz.

— Que diabo...? — disse o sr. Sowbell.

— Oh, olá, sr. Sowbell — eu disse com um tom apropriadamente contido. — Eu só entrei para apresentar meus respeitos. Não havia ninguém aqui, mas achei que uma oração silenciosa seria apropriada. O sr. Porson não tinha amigos em Bishop’s Lacey, o senhor sabe — acrescentei, puxando um lenço do bolso e enxugando uma lágrima imaginária. — Parecia tão lamentável, e achei que não faria mal nenhum se eu... Desculpe se...

— Vamos, vamos — disse ele. — A morte chega para todos nós, você sabe, velhos e jovens igualmente...

Estaria ele me ameaçando, ou a minha imaginação estava estimulada demais?

— E embora nós a esperemos — prosseguiu ele —, ela no fim sempre chega como um choque.

Certamente chegara para Rupert. Mas será que o homem estava brincando?

Claro que não, pois o seu rosto comprido conservava a polidez profissional.

— E agora, se me permite — disse ele. — Preciso prepará-lo para sua jornada final.

Jornada final? Onde ele tinha ido buscar esse tipo de conversa fiada? Será que havia um livro de frases feito para a área funerária?

Dei-lhe meu sorriso de menina-de-dez-anos-chegando-aos-onze e simulei uma saída desconcertada.


A sineta acima da porta da Casa de Chá São Nicolau soou alegremente quando entrei. O estabelecimento, uma bela escalada até o topo da escada, era propriedade de ninguém menos que a srta. Lavinia e a srta. Aurelia, as irmãs Puddock: aquelas mesmas duas relíquias que nos ofereceram o prelúdio musical para a espetacular morte de Rupert.

A srta. Lavinia, a um canto na extremidade da sala, parecia travar um combate mortal contra um grande samovar de prata. A despeito da simplicidade da tarefa, que era ferver a água, aquela geringonça digna de um cartum de Heath Robinson era uma espécie de lula bulbosa de tubos, válvulas e mostradores que cuspia água quente enquanto gorgolejava e chiava como um dragão acuado.

— Não teremos chá, infelizmente — disse por cima do ombro. Ela ainda não tinha visto quem entrara na loja.

— Algo que eu possa fazer para ajudar, srta. Puddock? — me ofereci alegremente.

Ela deixou escapar um gritinho quando sua mão passou sem querer por um jato de vapor quente e a xícara de porcelana que ela segurava se estilhaçou no chão, de onde voou em uma centena de pedaços pálidos.

— Oh, é a pequena De Luce — disse, dando meia-volta. — Meu Deus! Você me deu um susto e tanto. Eu não estava esperando ouvir sua voz.

Como eu podia ver que ela tinha queimado a mão, ignorei meus impulsos mais básicos.

— Algo que eu possa fazer para ajudar? — repeti.

— Oh, Deus — disse ela, perturbada além do normal. — Pedro sempre resolve se comportar mal quando Aurelia não está aqui. Ela é muito melhor com ele do que eu.

— Pedro? — perguntei.

— O samovar — disse ela, enxugando as mãos vermelhas e molhadas em uma toalha de chá. — Pedro, o Grande.

— Deixe-me... — disse eu.

Sem mais uma palavra, peguei uma tigela de fatias de limão em uma das mesas redondas e espremi uma por uma em uma jarra de água gelada. Então peguei um guardanapo branco e limpo, mergulhei ali até ficar empapado, torci e enrolei em volta da mão da srta. Puddock. Ela se encolheu quando a toquei e depois relaxou.

— Posso? — perguntei, removendo um broche de opala de sua lapela e usando-o para prender as pontas da atadura improvisada.

— Oh! Já estou me sentindo melhor — disse ela com um sorriso dorido. — Onde você aprendeu este truque?

— Quando estive no Guia das Meninas — menti.

A experiência me ensinou que uma resposta esperada é muitas vezes melhor do que a verdade. Na realidade, eu tinha pesquisado arduamente o remédio em um dos livros domésticos de referência da sra. Mullet, depois que um tubo de ensaio superaquecido tostara a maior parte da carne em volta de dois dedos meus.

— A srta. Cool sempre falou muito bem de você — disse ela. — Vou contar a ela que “acertou o alvo”, como aqueles simpáticos rapazes dos bombardeiros da RAF costumavam dizer.

Dei a ela o mais modesto dos meus sorrisos.

— Não foi nada, srta. Puddock: apenas foi uma grande sorte eu estar por aqui. Eu estava aqui ao lado, na casa do sr. Sowbell, sabe, dizendo uma ou duas preces junto ao caixão do sr. Porson. Acho que não há mal nenhum nisso, não é?

Me dei conta de que estava enfeitando demais as coisas, usando um esfregão no lugar de pincel, mas negócios são negócios.

— Ora, não, querida — disse ela. — Acho que o sr. Porson teria ficado sensibilizado.

Ela não sabia nem a metade das coisas!

— Foi tão triste. — Abaixei o tom de voz para um sussurro conspiratório e toquei o seu braço bom. — Mas preciso dizer, srta. Puddock, que apesar da tragédia da noite de sábado, minha família e eu apreciamos O último assalto de Napoleão e O rio de Bendemeer. O pai contou que não se ouve muito esse tipo de música hoje em dia.

— Ora, obrigada, querida — murmurou ela sem muito entusiasmo. — É muito gentil de sua parte dizer isso. É claro que, misericordiosamente, não vimos realmente o que aconteceu com o pobre sr. Porson, já que estávamos ocupadas na cozinha, por assim dizer. Ser proprietária do único salão de chá em Bishop’s Lacey implica algumas expectativas, infelizmente. Não que levemos a mal...

— Não, é claro que não — disse eu. — Mas com certeza deve haver uma porção de gente se oferecendo para ajudar.

Ela soltou um gritinho:

— Ajudar? A maioria das pessoas não conhece o significado dessa palavra. Não, Aurelia e eu fomos deixadas sozinhas na cozinha do começo ao fim. Servimos duzentas e sessenta e três xícaras de chá, mas, naturalmente, isso inclui as que servimos depois que a polícia assumiu o caso.

— E ninguém se ofereceu para ajudar? — perguntei, dando-lhe uma olhada incrédula.

— Ninguém. Como eu disse, Aurelia e eu ficamos sozinhas na cozinha o tempo todo. E eu fiquei completamente por minha conta quando Aurelia foi levar uma xícara de chá para o titereiro.

Minhas orelhas ficaram em pé como uma bandeira em um mastro.

— Ela foi levar uma xícara de chá para Rupert?

— Bem, ela tentou, querida, mas a porta estava trancada.

— A porta para o palco? Do outro lado da cozinha?

— Não, não... ela não quis usar aquela. Teria de passar roçando naquela Mamãe Gansa, aquela mulher que estava embaixo da luz do refletor, contando a história. Não, ela deu toda a volta com o chá por trás do salão e desceu pela outra porta.

— Aquela na passagem do outro lado?

— Bem, sim. É a única outra, não é, querida? Mas, como eu disse, ela estava trancada.

— Durante o espetáculo de marionetes?

— Ora, sim. Estranho, não é? O sr. Porson nos pediu, antes de começar, que lhe levássemos uma boa xícara de chá durante o espetáculo. “Apenas deixem em cima da mesinha atrás do palco”, disse ele. “Vou encontrá-la. O teatro de marionetes é um trabalho que deixa a gente seco, sabe”, e deu uma piscadela para nós. Então, por que diabos ele trancaria a porta?

Enquanto ela falava, já dava para sentir os fatos começando a se organizar na minha cabeça.

— Estas foram as palavras exatas de Aurelia quando ela deu toda a volta com a xícara de chá ainda nas mãos: “O que será que deu nele para trancar a porta?”.

— Talvez ele não tenha feito isso — eu disse com uma súbita inspiração. — Talvez outra pessoa tenha trancado. Quem tinha a chave, você sabe?

— Existem duas chaves para as portas do palco, querida. Ambas abrem as duas portas de cada lado do palco. O vigário guarda uma em seu chaveiro, e a duplicata fica em um prego no estúdio dele, no presbitério. Tudo isso por causa daquela vez em que ele foi a Brighton para o jogo de críquete entre os Curadores e os Sacristões, e levou Tom Stoddart. Tom é o serralheiro, você sabe, e depois que os dois se foram ninguém podia entrar ou sair do palco sem uma escada. Isso causou problemas com a produção do Rei Lear pelo Little Theater Group, eu vou lhe dizer!

— E não havia mais ninguém por perto?

— Ninguém, querida. Aurelia e eu estávamos na cozinha o tempo todo. Estávamos com a porta semicerrada, para que a luz da cozinha não atrapalhasse a escuridão no corredor.

— Não havia ninguém no corredor?

— Não, é claro que não. Teriam de passar pelo raio de luz que vinha da porta da cozinha, bem embaixo do nosso nariz, por assim dizer. Depois que pusemos a água para ferver, Aurelia e eu ficamos bem ali, junto à abertura da porta, para poder pelo menos ouvir o espetáculo de marionetes. “Fi! Fo! e Fum!” Ah, fico toda arrepiada só de pensar nisso agora.

Eu fiquei perfeitamente imóvel e prendi a respiração, sem mover um músculo. Fiquei de boca fechada e deixei o silêncio se prolongar.

— A não ser... — disse ela com o olhar vacilante. — Eu pensei...

— Sim?

— Eu pensei ter ouvido passos no vestíbulo. Dei uma olhada no relógio de parede e meus olhos estavam um pouco ofuscados pela luz acima do fogão. Olhei para fora e vi...

— Você se lembra da hora?

— Eram sete e vinte e cinco. Estávamos com o chá preparado para as oito horas, e essas grandes chaleiras elétricas demoram um bom tempo para ferver. Curioso você perguntar. Aquele simpático jovem policial, como é mesmo o nome dele? O rapazinho loiro com covinhas e um sorriso adorável.

— Sargento-detetive Graves — disse eu.

— Sim, é ele: sargento-detetive Graves. Engraçado, não é? Ele me fez a mesma pergunta, e eu lhe dei a mesma resposta que vou lhe dar agora.

— Qual é?

— Era a mulher do vigário, Cynthia Richardson.


CYNTHIA, A VINGADORA COM CARA DE ROEDOR! Eu devia saber! Cynthia, que aquinhoava boas obras na paróquia de São Tancredo com a mão de um Herodes. Eu podia vê-la assumindo pessoalmente a punição de Rupert, o notório mulherengo. O salão paroquial era parte do reino dela; a chave de reserva para as portas do palco ficava pendurada em um prego no estúdio de seu marido.

Como ela chegou a estar de posse do prendedor de calça perdido continua sendo meio misterioso, mas não poderia ele ter estado no presbitério o tempo todo?

Como o vigário mesmo admitiu, suas distrações estavam se tornando um problema. Por isso as iniciais gravadas. Talvez ele tivesse saído de casa sem o prendedor na última quinta-feira e retalhado a barra da calça porque não o estava usando.

Os detalhes não eram importantes. De uma coisa eu tinha certeza: havia mais coisas acontecendo no presbitério do que se imaginava, e o que quer que fosse (marido dançando nu no bosque, e assim por diante) parecia provável que Cynthia estivesse no âmago daquilo tudo.

— O que você está pensando, querida? — A voz da srta. Puddock interrompeu os meus pensamentos. — Você ficou tão quieta de repente!

Eu precisava de tempo para chegar ao fundo das coisas, e precisava dele agora. Era improvável que eu tivesse uma segunda oportunidade de sondar as profundezas do conhecimento da srta. Puddock sobre a aldeia.

— Eu... eu não estou me sentindo muito bem — eu disse, me agarrando à beirada de uma mesa, e arriei o corpo em uma das cadeiras com espaldar de arame. — Pode ter sido a visão da sua pobre mão escaldada, srta. Puddock. Uma reação retardada, talvez. Uma pitada de choque.

Suponho que deve ter havido ocasiões em que odiei a mim mesma por praticar esse tipo de fraude, mas não consegui pensar em nenhuma outra no momento. Se tinha sido o Destino, afinal, que me jogara no meio daquelas coisas, que o Destino então assumisse a culpa.

— Oh, pobrezinha! — disse a srta. Puddock. — Fique exatamente onde está, e eu vou buscar uma boa xícara de chá e um bolinho. Você gosta de bolinhos, não gosta?

— E-eu a-a-doro b-bolinhos — disse eu, lembrando-me de repente de que as vítimas de choque, sabidamente, sentem calafrios e tremores. Quando ela voltou com os bolinhos, meus dentes batiam como bolinhas de gude sacudidas em um pote.

Ela retirou um vaso de lírios-do-vale (Convallaria majalis) de uma das mesas, puxou fora a toalha de linho engomada e envolveu meus ombros com ela. Quando o cheiro adocicado das flores me chegou às narinas, lembrei-me com prazer de que a planta continha uma poção de bruxa de glicocídeos cardioativos, inclusive convalotoxina e glucoconvalosida, e que até a água em que essas flores ficaram mergulhadas era venenosa. Nossos antepassados a chamavam de lágrimas de Nossa Senhora, ou escada para o céu, e com razão!

— Você não deve pegar friagem — disse a srta. Puddock, maternalmente solícita, enquanto me servia uma xícara de chá do parrudo samovar.

— Pedro, o Grande, parece estar se comportando bem agora — observei, com um tremor calculado e um aceno de cabeça para a máquina reluzente.

— Ele às vezes fica muito indisciplinado — sorriu ela. — Imagino que seja porque é russo.

— Ele é mesmo russo? — perguntei, incentivando-a a falar.

— Das suas distintas cabeças — disse ela apontando para a águia negra de duas cabeças que funcionava como uma torneira de água quente — ao seu regiamente arredondado fundo. Foi manufaturado na oficina dos irmãos Martiniuk, os renomados prateiros de Odessa, e disseram que outrora foi usado para fazer chá para o czar Nicolau e as suas desafortunadas filhas. Quando a cidade foi ocupada pelos vermelhos depois da Revolução, o mais jovem dos Martiniuk, Vladimir, que tinha apenas dezesseis anos na época, o envolveu em uma pele de lobo, amarrou-o em um carrinho de mão e fugiu com ele a pé (a pé, imagine só!) para a Holanda, onde montou uma oficina em uma das alamedas calçadas com pedras de Amsterdã, e mudou seu nome para Van den Maarten.

— Pedro — disse ela, dando uma palmadinha leve mas carinhosa no samovar — era a sua única propriedade, fora o carrinho de mão, é claro. Ele planejou fazer fortuna produzindo incontáveis cópias e vendendo-as aos aristocratas holandeses, que diziam ser loucos pelo chá russo.

— E eram mesmo? — perguntei.

— Eu não sei — respondeu ela —, nem Vladimir ficou sabendo. Ele morreu de gripe na grande epidemia de 1918, deixando a oficina e tudo o que ela continha para a sua senhoria, Margriet van Rijn. Margriet casou-se com um roceiro de Bishop’s Lacey, Arthur Elkins, que havia combatido em Flandres e que a trouxe consigo de volta à Inglaterra não muito tempo depois do fim da Grande Guerra.

— Arthur morreu quando uma chaminé de fábrica desabou em cima dele em 1924, e Margriet morreu de choque quando lhe deram a notícia. Depois da morte dela, minha irmã e eu descobrimos que Margriet tinha deixado Pedro, o Grande, para nós, e não restava nada a fazer senão abrir a Casa de Chá São Nicolau. Foi há vinte e cinco anos e, como você pode ver, ainda estamos aqui.

“Ele é um velho samovar muito temperamental, sabe — prosseguiu ela, fazendo menção de acariciar sua superfície argêntea, mas pensando melhor nisso. — É claro que ele é uma tremenda de uma velha fraude. Oh, ele cospe água fervendo e faz queimar fusíveis de vez em quando, mas embaixo disso tudo ele tem um coração de ouro, ou pelo menos de prata.”

— Ele é bem imponente — eu disse.

— E você acha que ele não sabe? Bem, bem, aqui estou eu falando dele como se fosse de um gato. Quando Grace estava conosco, ela costumava chamá-lo de “O Tirano”. Imagine só! “O Tirano quer ser lustrado”, dizia ela, “O Tirano quer que os seus contatos elétricos sejam limpos”.

— Grace? — perguntei.

— Grace Tennyson, ou Ingleby, como se chama hoje.

— Grace Ingleby trabalhava aqui?

— Ah, sim! Até ela sair para se casar com Gordon, era a estrela das nossas garçonetes. Você não imaginaria isso olhando para ela, mas era forte como um touro. Não se vê isso com muita frequência numa coisinha tão pequena.

“E ela não ficava nem um pouquinho intimidada com Pedro e os seus humores. Por mais que ele cuspisse e soltasse fagulhas, Grace nunca teve medo de arregaçar as mangas e dar uma boa revisada em suas entranhas.”

— Parece que ela era muito engenhosa — eu disse.

— Ela era tudo isso — riu a srta. Puddock. — Tudo isso e muito mais. E não admira! Um dos nossos clientes uma vez nos disse (em segredo, é claro) que Grace tinha o QI mais alto que ele já tinha visto no “sexo frágil”, como ele exemplificou: que se o pessoal das Operações Especiais não a tivesse sequestrado para fazer um trabalho ultrassecreto, ela podia muito bem ter passado o resto da guerra instalando conjuntos sem fio em Spitfires.

— Trabalho ultrassecreto? — ofeguei. Pensar em Grace Ingleby fazendo qualquer coisa diferente do que se encolher em sua torre de pombal como uma donzela cativa esperando ser resgatada por Sir Lancelot era quase risível.

— É claro que ela jamais disse uma palavra a respeito. — A srta. Puddock abaixou o tom de voz, do mesmo modo que muitas vezes as pessoas fazem quando falam sobre a guerra. — Não é permitido, sabe. Mas também nós raramente a vemos hoje em dia. Desde aquela tragédia com seu menininho...

— Robin — disse eu.

— Sim. Desde então, ela se fechou. Infelizmente não é mais a mesma menina risonha que costumava pôr Pedro, o Grande, no seu lugar.

— Gordon também era membro das Operações Especiais? — perguntei.

— Gordon? — ela riu. — Meu bom Deus, não. Gordon nasceu lavrador, e lavrador há de morrer, como escreveu Shakespeare. Ou será que foi Harry Lauder ou George Formby, ou alguém assim? Minha memória ficou cheia de buracos de minhoca, e a sua, com o tempo, também vai ficar.

Não consegui pensar em alguma coisa para dizer e vi imediatamente que ela achava que tinha me ofendido.

— Mas vai demorar muitos anos ainda, querida. Não, tenho certeza absoluta de que sua memória ainda estará se fortalecendo quando o resto de nós estiver na sepultura e sendo pavimentado por cima para a construção do estacionamento dos palácios de boliche.

— Você viu a sra. Ingleby recentemente? — perguntei.

— Não desde sábado à noite no salão paroquial. Naturalmente, não tive oportunidade de conversar com ela, por causa do nosso pequeno número musical na minha cabeça. O restante da noite foi um pesadelo, não foi? A morte daquele pobre homem, e o boneco esculpido com a cara de Robin. Não sei o que Gordon pensou quando levou Grace para lá, ela estando tão frágil. Mas ele também não tinha como saber, tinha?

— Não — eu disse. — Imagino que não.


Quando parti para Buckshaw, a hora do almoço já havia passado fazia tempo. Felizmente a srta. Puddock embrulhara dois bolinhos amanteigados e insistira em enfiá-los no meu bolso. Mordisquei-os distraidamente enquanto pedalava pela estrada, perdida em pensamentos.

No fim da rua principal, a estrada fazia um ângulo suave para o sudoeste, contornando o perímetro sul do pátio da igreja de São Tancredo.

Se eu não tivesse dado uma olhada para a direita, poderia não ter visto a van Austin com “Marionetes de Porson” em letras douradas nas portas, estacionada ao lado do salão paroquial. Os pneus de Gladys derraparam na poeira quando apliquei os freios e guinei para dentro do pátio da igreja.

Quando parei, Nialla estava enfiando toda sorte de coisas no interior da van.

— Você conseguiu fazê-la funcionar! — gritei. Ela me deu o tipo de olhada que você poderia dar para um pouco de cocô de cachorro no seu mingau e continuou com seu trabalho.

— Sou eu, Flavia — disse eu. — Você já me esqueceu?

— Dê o fora, sua pequena traidora — disparou ela. — Deixe-me em paz.

Por um instante, pensei que eu estava de volta a Buckshaw, falando com Felinha. Era o tipo de rejeição que eu já vivera mil vezes, e à qual sobrevivera, pensei. Decidi fincar pé.

— Por quê? O que foi que eu fiz?

— Ora, pare com isso, Flavia. Você sabe tão bem quanto eu. Você disse à polícia que eu estava em Buckshaw. Eles acharam que eu estava me escondendo, ou fugindo, ou como queira chamar isso.

— Eu não fiz nada disso! — protestei. — Não ponho os olhos em um policial desde que a vi na cocheira.

— Mas você era a única que sabia que eu estava lá.

Como sempre acontecia quando eu estava zangada, minha cabeça fervilhava com uma clareza cristalina.

— Eu sabia que você estava lá, Dogger sabia que você estava lá, e também a sra. Mullet, só para citar três.

— Mal posso acreditar que Dogger me denunciaria.

— Nem a sra. Mullet — disse eu.

Bom Deus! Eu estava realmente defendendo a sra. M?

— Ela pode ser uma maldita fofoqueira, mas não é má — disse eu. — Ela nunca a trairia. O inspetor Hewitt veio a Buckshaw provavelmente para me fazer mais algumas perguntas sobre sábado à noite e por acaso viu você andando da cocheira para a cozinha. Não existe mais nada além disso. Tenho certeza.

Vi que Nialla estava pensando a respeito. Não havia nada que eu quisesse mais do que segurá-la pelos ombros e dar-lhe uma sacudida, porém tinha de manter em mente o fato de que suas emoções estavam sendo alimentadas por uma tempestade de hormônios: nuvens impetuosas de hidrogênio, nitrogênio, oxigênio, carbono e enxofre, combinando e recombinando nas danças eternas da vida.

Aquilo quase me fez perdoá-la.

— Aqui — eu disse, puxando dramaticamente o compacto de borboleta do meu bolso e estendendo-o para ela. — Acho que isto lhe pertence.

Abracei a mim mesma, esperando um vagalhão de gratidão e louvor. Mas não veio nada disso.

— Obrigada — disse Nialla, e enfiou aquilo no bolso.

Obrigada? Apenas obrigada? Que audácia! Eu mostraria a ela: fingiria que ela me ofendera; faria de conta que não me importava.

— Não pude deixar de notar — observei despreocupadamente — que você está carregando a van, o que quer dizer que Bert Archer a consertou e você está prestes a partir. Como o inspetor Hewitt não está por perto, imagino que isso significa que você está livre para ir.

— Livre? — repetiu ela, e cuspiu no chão. — Livre? O vigário me deu quatro libras, seis xelins e oito centavos, arrecadados no espetáculo. A conta de Bert Archer é de sete libras e dez. E é só porque o vigário intercedeu por mim que ele está disposto a me deixar dirigir até Overton para penhorar tudo o que eu puder. Se você chama isso de estar livre, então estou livre. É tudo muito bom para a pequena senhorita endinheirada, que mora em uma casa do tamanho do Palácio de Buckingham, fazer as suas deduções espertas. Então, pense o que quiser pensar, não me menospreze.

— Está bem — disse eu. — Não tive a intenção. Aqui, pegue isto, por favor.

Enfiei a mão no bolso de novo e puxei a moeda que tia Felicity empurrara para Dogger, achando que era um xelim. Dogger, por sua vez, a plantara no meu bolso, acreditando, talvez, que ela logo seria gasta em palitos de hortelã na loja da srta. Cool.

Entreguei-a a Nialla, que olhou para ela incrédula.

— Quatro pence! — disse ela. — Malditos quatro pence!

Suas lágrimas corriam livremente quando ela a atirou para longe, no meio das sepulturas.

— Sim, são apenas quatro pence — disse eu. Mas são quatro pence em dinheiro de Maundy. As moedas são produzidas pela Casa da Moeda Real, para ser distribuídas pelo Soberano...

— Maldito seja o Soberano! — gritou ela. — E maldita seja a Casa da Moeda Real!

— ... na quinta-feira de Maundy. Elas são muito raras. Se bem me lembro, Bert Archer é um colecionador de moedas, e acho que você vai descobrir que a moeda de quatro centavos de Maundy vai pagar de sobra pela sua van.

Com toda a dignidade honrosa que consegui reunir, segurei Gladys pelo guidão e empurrei-a para casa. Quando olhei para trás pelo canto da igreja, Nialla já estava de quatro, se arrastando na grama do pátio da igreja, e eu não soube dizer se as lágrimas que ela enxugava eram de raiva ou de felicidade.


— MUITO BEM, DOGGER — eu disse —, o jogo acabou.

Eu o encontrara na copa, engraxando os sapatos do pai.

As funções de Dogger em Buckshaw variavam na proporção direta das suas capacidades de momento, sua participação na nossa vida diária subindo e descendo, como aquelas bolas coloridas no termômetro de Galileu que flutuam em níveis diferentes em um tubo de vidro, dependendo da temperatura. O fato de ele estar cuidando dos sapatos era um bom sinal. Indicava claramente que havia sido promovido mais uma vez, de jardineiro para mordomo.

Ele ergueu os olhos do seu trabalho.

— Acabou? — perguntou ele.

— Lance a sua mente, por favor, de volta para sábado à noite no salão paroquial. Você está sentado ao meu lado assistindo a João e o pé de feijão, quando de repente acontece algo de errado nos bastidores. Rupert desaba estrepitosamente, morto, e minutos depois você está me dizendo recear ter visto um homicídio. Como você fez aquilo? Como sabia que não foi um acidente?

Essa pergunta vinha roendo meu subconsciente como um rato rói uma corda, mas, até aquele exato momento, eu ainda não tinha me dado conta plenamente disso.

Antes de responder, Dogger bafejou em cima de uma das botas wellington regimentais de cano curto do pai, dando na superfície preta e lustrosa como vidro uma afetuosa esfregadela final com a manga da camisa.

— As circunstâncias falavam contra essa possibilidade — disse ele. — O sr. Porson era um perfeccionista. Construía ele mesmo todo o seu equipamento. Um titereiro trabalha no escuro. Não há espaço para erros. Um fio elétrico desgastado seria uma coisa fora de questão.

— Não estava desgastado — disse eu. — Eu vi quando fui para os bastidores com o inspetor Hewitt. O isolamento foi raspado.

— Eu ficaria surpreso se não tivesse sido — disse ele.

— Congratulações por uma brilhante dedução — disse eu. — Embora essa não tenha me ocorrido.

E não me ocorrera mesmo, porque a mente feminina não funciona desse modo.

Vista de cima, a mente masculina deve se parecer bastante com os canais da Europa, com ideias sendo rebocadas ao longo de caminhos de sirgagem gastos pelo uso por cavalos de tiro de passo pesado. Nunca existe dúvida alguma de que elas, a despeito do vento e do clima, chegarão a seus destinos seguindo uma série simples de linhas conectadas.

Mas a mente feminina, mesmo considerando minha limitada experiência, mais parece um vasto e fervilhante pântano, porém um pântano que fica sabendo na hora toda vez que um estranho, mesmo a quilômetros de distância, mergulha um dedão do pé que seja em suas águas. As pessoas que se referem a esse fenômeno, a maioria das quais não sabe muito a respeito dele, chamam-no de “intuição feminina”.

Muito embora eu tivesse chegado quase à mesma conclusão que Dogger, mas por um caminho muito diferente.

Em primeiro lugar, embora fosse óbvio que Rupert tivesse sido assassinado pelo que fizera a uma mulher, acho que desde o momento de sua morte eu já sabia que não fora Nialla a sua assassina.

— No instante em que ele desmoronou em cima do palco — eu disse —, Nialla levantou-se de um pulo e se moveu na direção dele. Seu primeiro e automático impulso foi de socorrê-lo.

Dogger alisou o queixo e assentiu.

— Mas ela se forçou a parar — eu prossegui — assim que viu a fumaça e as fagulhas. Rapidamente, se deu conta de que tocar qualquer parte do corpo dele poderia significar morte instantânea. Para ela e seu bebê.

— Sim — disse Dogger. — Eu também notei isso.

— Portanto, Nialla não é a assassina.

— Acredito que você pode removê-la com segurança de sua lista — disse Dogger.


Foi só depois que eu já estava na estrada, na metade do caminho para a Fazenda Culverhouse, que percebi o quanto me sentia cansada. Tinha acordado antes de o sol nascer e desde então estava a pleno vapor. Mas o tempo era essencial: se eu não chegasse lá antes do inspetor Hewitt, não ficaria sabendo dos horripilantes detalhes até ler sobre eles no News of the World.

Dessa vez, não atravessei o rio por trás da igreja, mas decidi dar a volta pela estrada de Hinley e me aproximar da fazenda pelo lado oeste. Fazendo isso, eu teria a vantagem da altura para fazer o reconhecimento do terreno, além de ficar sob a proteção do Bosque Gibbet. Agora que o laço, por assim dizer, se apertava, não seria conveniente cair na emboscada de um assassino a sangue-frio.

A meio caminho da subida argilosa da Colina Gibbet, eu me sentia como se meu sangue fosse lama e meus sapatos fossem feitos de chumbo. Sob quaisquer outras circunstâncias, eu poderia ter me arrastado para dentro de alguma moita tranquila e tirado uma soneca, mas isso não podia acontecer. O tempo estava se esgotando, e, como o pai gostava de dizer: “Cansaço é desculpa de caipira”.

Enquanto eu ouvia o vento suspirar e sussurrar nas copas das árvores do Bosque Gibbet, me vi quase esperando que Meg, a Louca, pulasse para fora do mato e me distraísse da minha missão. Mas não aconteceu: além de um pica-pau dando suas leves marteladas como um sapateiro atarefado do outro lado do bosque, não havia outros sinais de vida.

Quando cheguei ao topo da colina, o Campo Jubileu descia para longe de mim em direção ao rio, como um lençol azul elétrico. Quando estourou a guerra, Gordon foi forçado a plantar linho, ou pelo menos foi o que a sra. Mullet me contou, por ordem do Governo de Sua Majestade, que precisava do material para a confecção de paraquedas. Mas a Batalha da Grã-Bretanha ocorrera anos atrás, e os paraquedas nem de longe eram requisitados na mesma quantidade.

Ainda assim, trabalhando sob o manto da necessidade de guerra, parecia que Gordon conseguira manter sua plantação secreta de cannabis habilmente enfiada entre as árvores do Bosque Gibbet, sua existência conhecida por não mais que um punhado de pessoas.

Qual delas, me perguntei, se é que foi uma delas, além de odiá-lo apaixonadamente o bastante para matar, possuía conhecimentos suficientes de eletricidade para eletrocutar Rupert Porson?

Um clarão atingiu meus olhos: um reflexo vindo do lado da estrada. Vi imediatamente que era um dos ornamentos de Meg, a Louca, feitos com sucatas recolhidas na beira da estrada, penduradas por um cordão em um espinheiro. Não era nada mais que um pedaço irregular de acabamento cromado, que se soltara do radiador de algum carro devido às más condições da estrada. Pendurado abaixo dele, e girando vagarosamente ao sol (foi o que me chamou a atenção), havia um pequeno disco sulcado prateado que, a julgar pelas manchas vermelhas, tinha sido outrora a tampa de uma lata de tinta de um quarto de litro.

Por estranho que pareça, aquilo me lembrou algo que eu vivenciara no ano passado, quando o pai levou Ophelia, Daphne e eu a Londres, para uma missa à meia-noite no Oratório de Brompton. Na elevação da hóstia, quando o padre segurou a bolacha branca (que alguns de nós acreditavam ser o Corpo de Cristo) acima da cabeça por um tempo exageradamente longo, ela, por apenas um instante, captou a luz das velas e dos reflexos coloridos do coro, luzindo com um sobrenatural resplendor iridescente que não era nem sólido nem vaporoso. Na época, me pareceu um sinal de que algo de momentoso estava para acontecer.

Agora, na orla do Bosque Gibbet, um dente bem lubrificado de alguma engrenagem mental se encaixou no lugar, com uma série de clics quase audíveis.

Igreja. Clic! Vigário. Clic! Círculo suspenso. Clic! Prendedor de calça. Clic! Tampa de tinta. Clic! Meg. Clic!

E vi tudo como que em uma visão ofuscante: o vigário estivera ali, na Fazenda Culverhouse, na última quinta-feira. Foi onde ele prendeu a calça na corrente da bicicleta e perdeu seu prendedor. Ele o estava usando, afinal! E foi ali, na poeira argilosa, que ele levou um tombo. As manchas brancas em seus trajes pretos de clérigo tinham vindo exatamente dessa estrada.

Meg, a Louca, a eterna pega, encontrara o prendedor, como encontrava todos os objetos metálicos e brilhantes caídos nas vizinhanças do Bosque Gibbet, o recolhera e o levara com ela para o presbitério.

— Ela me pôs para fora — disse ela. — Tomou o bracelete da velha Meg e a pôs para fora... “Imunda, imunda!”, ela disse.

As palavras de Meg ecoavam na minha memória. Ela estava falando da mulher do vigário.

Tinha sido Cynthia Richardson quem pegara dela o prendedor de calça (o “bracelete” de Meg) e a pusera para fora do presbitério.

Do presbitério, era só um pulinho até o salão paroquial, onde a coisa apareceu nos bastidores, como a arma do crime, no teatro de marionetes de Rupert.

É assim que deve ter acontecido. Eu estava certa disso, tão certa quanto meu nome é Flavia de Luce. E mal podia esperar para contar ao Inspetor Hewitt!

Abaixo de mim, ao longe, na praia distante de um mar de linho azul, um trator Ferguson cinzento se arrastava lentamente ao longo de um muro de pedra, rebocando uma plataforma atrás dele. Um lampejo de cabelo loiro à luz do sol me disse que o homem a pé, descarregando pedras para consertar o muro, devia ser Dieter, e não havia dúvida de que a pessoa de macacão ao volante do trator era Sally. Mesmo se eles estivessem prestando atenção (coisa que não estavam), a distância era grande demais para me avistarem esgueirando-me para baixo, rumo à casa da fazenda.

Enquanto eu avançava cautelosa através do pátio, o lugar parecia mergulhado em sombras: velhas pedras empilhadas sobre outras, com janelas inexpressivas (como dissera Sally) olhando cegamente para coisa nenhuma. Qual das vidraças vazias, me perguntei, tinha sido a do quarto de Robin? Qual das janelas vazias emoldurara seu rostinho solitário antes daquela impensável segunda-feira de setembro de 1945, quando sua breve vida terminara tão abruptamente na ponta de uma corda?

Dei uma batida simbólica na porta e aguardei por respeitosos trinta segundos. Depois disso, girei a maçaneta e entrei.

— Sra. Ingleby? — chamei. — Sr. Ingleby? Sou eu, Flavia. Vim ver se vocês têm alguns ovos extragrandes.

Não imaginei que haveria uma resposta, e estava certa. Gordon Ingleby trabalhava duro demais para estar flanando por perto da casa enquanto ainda havia um vestígio de luz do dia do lado de fora, e Grace... bem, Grace estava ou na sua torre-pombal ou perambulando pelas colinas. A inquisitiva sra. Mullet uma vez me perguntara se eu já tinha cruzado com ela durante minhas perambulações pelo condado.

“Ela é uma pessoa estranha, aquela Grace Ingleby”, dissera ela. “Minha amiga Edith (é a Edith Crowly, querida, que era Edith Fisher antes de se casar com Jack) estava indo para um compromisso com seu encarregado do coro em Nether Stowell. Ela tinha perdido o ônibus, entenda, e viu Grace saindo do mato na parte mais baixa da Biddy’s Lane, que passa por cima da colina para lugar nenhum.

“‘Grace!’, ela gritou. ‘Iu-hu, Grace Ingleby!’ Mas Grace resvalou por uns degraus por cima da cerca (foram exatamente essas as suas palavras, ‘Grace resvalou por uns degraus por cima da cerca’), e, quando ela mesma chegou lá, Grace tinha sumido. ‘Sumiu como um bafo de cachorro em dezembro’. Foi o que ela disse.”

Quando se tratava de mexericos da aldeia, a sra. M era infalível, como o Papa Pio IX.

Segui devagar pelo corredor, razoavelmente confiante de que estava sozinha na casa. No fim do corredor, ao lado de uma janela redonda, um relógio de pêndulo tiquetaqueava para si mesmo, o único som na silenciosa casa da fazenda.

Dei uma olhada rápida para cada ambiente: sala de estar, lavatórios, cozinha, copa...

Ao lado do relógio, dois degraus levavam a um pequeno patamar quadrado, e, espiando pelo canto, vi que uma escada estreita continuava subindo até o primeiro andar.

Enfiado embaixo dos degraus, havia um armário, cuja porta de tábuas encaixadas, estranhamente angulosa, era equipada com uma esplêndida maçaneta de cerâmica verde e branca que só podia ser Wedgwood. Eu daria uma boa vasculhada nele mais tarde.

Cada degrau emitia seu próprio e singular gemido de madeira enquanto eu subia: como uma série de velhas tampas de caixão sendo forçadas e abertas, pensei com um arrepio gostoso.

Firme, Flavinha, minha velha. Não tem sentido ficar apavorada.

No topo da escada havia um segundo pequeno patamar do qual, em ângulos retos, mais três degraus levavam ao corredor de cima.

Parecia óbvio que todos os aposentos superiores fossem quartos de dormir, e eu estava certa: uma olhada para dentro de cada um dos dois primeiros revelou cômodos frios e espartanos com uma cama de solteiro, um lavatório, um guarda-roupa e mais nada.

O quarto grande na frente da casa era de Gordon e Grace; nenhuma dúvida quanto a isso. A não ser por uma cômoda dupla e uma cama dupla com um acolchoado surrado, o quarto era tão frio e estéril quanto os demais.

Dei uma bisbilhotada rápida nas gavetas da cômoda: no lado dele, meias, roupa de baixo, um relógio de pulso sem pulseira e um gorduroso e muito manuseado baralho de cartas ostentando a insígnia dos Scots Greys; no dela, combinações, calcinhas, um pote de cápsulas para dormir aviadas sob receita (o meu velho amigo hidrato de cloral, eu notei: C2H3Cl3O2: um poderoso hipnótico que, quando misturado disfarçadamente ao álcool, era chamado pelos gângsteres americanos de Mickey Finn; na Inglaterra, era receitado para donas de casa extremamente nervosas por médicos do interior e chamado de “alguma coisa para ajudá-la a dormir”).

Não contive um sorriso rápido quando pensei naquela vez em que, usando nada mais que álcool, limpador de latrina e uma garrafa de branqueador à base de cloro, sintetizei uma boa quantidade da substância e dei, dentro de uma maçã preparada, para Phoebe Snow, uma porca premiada que pertencia ao nosso vizinho, Max Wight. Phoebe dormiu por cinco dias e dezessete horas até o efeito passar e, por algum tempo, “A Incrível Porca Adormecida” ficou sendo a oitava maravilha do mundo agrícola britânico. Mas ele a emprestou graciosamente para a quermesse de São Tancredo, onde Phoebe podia ser vista, por seis centavos de cada vez, roncando na traseira de um caminhão com os dizeres “A Bela Adormecida”. No fim, ela arrecadou quase cinco libras para o fundo para as sobrepelizes do coro.

Com um suspiro, voltei ao meu trabalho.

No fundo da gaveta de Grace, enfiada embaixo de um lenço de linho sujo, estava uma Bíblia bem manuseada. Abri a capa e li as palavras na folha de guarda: “Favor devolver à igreja paroquial de São Tancredo, Bishop’s Lacey”.

Quando eu a estava colocando de volta na gaveta, uma tira de papel caiu de dentro dela e desceu flutuando até o chão. Recolhi-a com as unhas, tomando muito cuidado para não deixar minhas digitais naquilo.

As palavras tinham sido escritas com tinta roxa: “Grace, por favor me procure se eu puder prover qualquer conforto a mais”. E estava assinado “Denwyn”.

Denwyn Richardson, o vigário. O qual Meg, a Louca, tinha visto dançando nu no vizinho Bosque Gibbet.

Pus a prova no bolso.

Tudo o que restava agora era o pequeno dormitório nos fundos da casa. O quarto de Robin. Tinha de ser. Atravessei o patamar silencioso e parei na frente da porta fechada. Só então comecei a sentir uma certa apreensão. E se Gordon ou Grace entrasse de repente, furioso, pela casa e subisse a escada? Como eu explicaria minha invasão de seus quartos?

Encostei um ouvido no revestimento escuro da porta e prestei atenção. Nenhum som.

Girei a maçaneta e entrei.

Como eu suspeitava, era o quarto de Robin, mas era o quarto de um menininho morto há cinco anos: uma cama pateticamente pequena, cobertores dobrados, um guarda-roupa vazio e linóleo no chão. Sem santuário, sem velas, sem retratos emoldurados do falecido montado em um cavalinho de balanço ou pendurado de ponta-cabeça pelos joelhos em uma macieira. Que amargo desapontamento!

Ele era tão despojado e simples quanto o Quarto em Arles, de Van Gogh, mas sem o seu calor; o quarto era tão impessoal quanto a lua de inverno.

Depois de uma rápida olhada em volta, não havia mais nada para ver, e eu saí, fechando a porta respeitosamente, quase com ternura.

Então ouvi passos embaixo.

O que fazer? As possibilidades passaram rápidas como raios pelo meu cérebro. Eu poderia galopar escada abaixo em lágrimas, fingindo ter me perdido e ficado desnorteada enquanto caminhava dormindo. Poderia alegar que estava sofrendo um colapso nervoso e não sabia onde me encontrava; que tinha visto, do pátio da fazenda, um rosto numa janela de cima, acenando para mim com um dedo comprido: que eu tinha pensado ser Grace Ingleby em perigo.

Por mais interessantes que fossem, todas essas tramas trariam consequências, e se existia uma coisa de que eu não precisava era introduzir complicações na minha vida. Não, pensei, vou me esgueirar pela escada abaixo e torcer como louca para não ser pega.

Mas a ideia morreu quase antes de nascer. No instante em que pus o pé sobre o degrau de cima, ele soltou um gemido apavorante.

Houve um agitar de asas perto do pé da escada, como se um grande pássaro estivesse preso na casa. Devagar, mas com toda a segurança, desci a escada. Já embaixo, espiei pelo canto, e meu sangue gelou.

Um raio intenso de sol iluminava o fim do corredor, e ali um menininho de botas de borracha e roupa de marinheiro desaparecia pela porta aberta.


EU TINHA CERTEZA.

Ele estava no armário embaixo da escada o tempo todo. Fiquei lá parada, completamente imóvel diante da porta aberta, defrontando-me com um dilema. O que fazer? Eu sabia com certeza que, assim que pusesse um pé para fora daquela casa de fazenda, seria provável que eu jamais voltasse a entrar. Seria melhor eu dar uma rápida olhada atrás da porta angulosa antes de sair em perseguição à aparição de roupa de marinheiro.

Dentro do armário escuro, um pedaço de cordel pendia de uma lâmpada nua. Dei uma puxada, e o espaço surgiu iluminado por uma luz fraca. Estava vazio.

Isto é, vazio a não ser por um par de botas de borracha de criança muito semelhante ao que eu acabara de ver nos pés da figura no vão da porta.

A principal diferença era que essas botas Dunlop estavam incrustadas de barro, ainda molhadas da chuva da manhã.

Ou da sepultura.

Quando passei correndo pela porta da frente aberta, vi de relance a roupa de marinheiro azul-marinho desaparecer atrás do galpão de implementos. Além daquelas paredes galvanizadas ferrugentas, eu sabia, havia um desconcertante aglomerado de anexos: um labirinto de galpões, cada um dos quais poderia facilmente conter uma dúzia de esconderijos.

Saí a passos largos, como um cão de caça farejando. Nem me passou pela cabeça sentir medo.

Mas então dei uma freada súbita. Atrás do galpão de implementos, uma ruela estreita levava à saída pela direita. Teria o fugitivo disparado por ela para me despistar? Avancei lentamente pela passagem estreita, tomando muito cuidado para não tocar nas paredes abandonadas de ambos os lados. Um só arranhão causado por uma daquelas pontas de lata rasgada, afiadas como navalhas, quase certamente daria em tétano, e eu acabaria imobilizada em uma ala de hospital, espumando pela boca e atormentada por espasmos de quebrar os ossos.

Como Dafi e Felinha ficariam felizes!

“Eu bem que avisei que ela acabaria mal”, diria Dafi ao pai. “Ela nunca devia ter sido autorizada a andar solta por aí.”

Assim, me arrastei lentamente como um caranguejo pela passagem estreita. Quando finalmente cheguei ao fim, vi meu caminho bloqueado à esquerda por uma pilha de surrados tambores de gasolina e, à direita, por um chiqueiro infestado de espinheiros.

Enquanto retornava pela Passagem da Morte, que parecia ainda mais estreita na jornada de volta, parei para escutar mas, além do distante cacarejar de galinhas e da minha respiração, não ouvi mais nada.

Segui pé ante pé, suavemente, entre os galpões dilapidados, muito atenta à minha visão periférica, consciente de que, a qualquer momento, alguma coisa poderia se lançar sobre mim vinda de alguma porta escura.

Só então reparei nos rastos no chão: pegadas pequeninas que só poderiam ter sido deixadas pelas solas de padrão quadriculado de uma bota infantil de borracha Dunlop.

Com todos os sentidos alerta, segui a trilha.

Ela me levou para além do galpão de implementos, para além da carcaça enferrujada de um velho trator que se inclinava para um lado de modo bizarro, sem uma das rodas de trás, parecendo uma coisa meio enterrada na areia — alguma máquina muito antiga trazida à praia pelo mar.

Mais uma pequena corrida para a esquerda, e me vi ao pé do pombal, que se erguia acima de mim como um castelo de conto de fadas, os tijolos desiguais manchados de um quase dourado pela luz do fim do dia.

Embora eu já tivesse estado ali, tinha chegado por um caminho diferente, e me arrastei bem devagar em volta da decrépita porta de madeira, com o cheiro penetrante de excrementos de pombos já começando a encher minhas narinas.

Talvez eu estivesse enganada, pensei por um momento: talvez o menino de roupa de marinheiro tivesse passado correndo pela torre e estava, a essa altura, bem longe, além dos campos. Mas as pegadas no solo provavam outra coisa: elas levavam diretamente à porta do pombal.

Alguma coisa roçou minha perna, e meu coração quase parou.

— Miau! — fez uma voz.

Era Tock, a mais eloquente das gatas Ingleby.

Pus um dedo nos lábios para silenciá-la, antes de me lembrar de que gatos são incapazes de ler a linguagem gestual. Mas talvez sejam, pois sem mais nenhum som ela se agachou bem perto do chão e se safou para dentro das sombras do interior do pombal.

Hesitante, eu a segui.

Lá dentro, o lugar era como eu me lembrava: uma miríade de luzes se infiltrando através das fendas da alvenaria antiga; o ar claustrofóbico, abafado, poeirento. Dessa vez, porém, não havia lamúrias de espíritos vindo da sala acima. O lugar estava tão silencioso quanto a cripta que fica além do castelo da própria Morte.

Pus um pé na estrutura e olhei para o alto, tentando ver onde ela desaparecia na penumbra acima da minha cabeça. A madeira velha soltou um grasnido agourento, e eu parei. Quem ou o que quer que estivesse acima de mim na semiobscuridade, agora sabia que estava encurralado.

— Olá! — gritei, mais para me encorajar. — Olá! Sou eu, Flavia. Tem alguém aí?

O único som que veio de cima foi o zumbido de abelhas em volta das janelas superiores do pombal, grotescamente amplificado pela estrutura oca da torre.

— Não tenha medo — gritei. — Estou subindo.

Aos poucos, um degrau de cada vez, comecei minha precária ascensão. Novamente me senti como João, dessa vez escalando o pé de feijão; me arrastando para cima, centímetro por centímetro, para enfrentar algum horror desconhecido. A madeira velha rangia de um modo horrível, e eu sabia que poderia desmoronar a qualquer momento, fazendo-me despencar para a morte certa nas pedras abaixo de um jeito muito semelhante ao do gigante, e de Rupert, se estatelando em cima do palco de marionetes.

A escalada parecia não ter fim. Parei para ouvir: ainda não havia som nenhum, fora o das abelhas.

Sempre para cima eu prossegui, pondo os pés cautelosamente de um degrau para o outro, agarrando-me às travessas com dedos que já começavam a ficar adormecidos.

Quando meus olhos finalmente ficaram no mesmo nível da abertura em arco, o interior da câmara superior entrou no meu campo de visão. Um vulto estava debruçado sobre o santuário de Robin Ingleby: o mesmo vulto que fugira da casa da fazenda.

De joelhos, as costas voltadas para mim, a pequena aparição vestia uma roupa de marinheiro branca e azul-marinho, com colarinho folgado e calça curta; as solas quadriculadas de suas botas de borracha estavam quase na minha cara. Eu poderia ter esticado a mão e tocado nelas.

Meus joelhos começaram a tremer violentamente, ameaçando ceder e me arremessar para baixo, no abismo pedregoso.

— Socorro — eu disse, as palavras surgindo de repente sem explicação, e de forma surpreendente, de alguma ancestral parte reptiliana do meu cérebro.

Uma mão se estendeu, dedos brancos seguraram os meus e com uma força surpreendente me içaram para a segurança. Um momento depois, me vi encolhida, segura, mas trêmula, frente a frente com o espectro.

Embora a roupa branca de marinheiro, com a jaqueta ostentando a coroa e a âncora, e as botas Dunlop sem dúvida pertencessem ao falecido Robin Ingleby, o rosto tenso e emaciado que me olhava por baixo do boné do HMS Hood era o de sua diminuta mãe, Grace.

— Você — eu disse, incapaz de me conter. — Foi você.

O rosto dela estava triste e repentinamente muito, muito velho. Era difícil acreditar que ainda restasse naquela mulher um átomo que fosse de Grace Tennyson, aquela garota alegre, expansiva, que uma vez subjugara as entranhas eletrificadas de Pedro, o Grande, o samovar de prata na Casa de Chá São Nicolau.

— Robin se foi — disse ela com uma tossida. — O Diabo o levou.

O Diabo o levou! Quase as mesmas palavras que Meg, a Louca, usara no Bosque Gibbet.

— E quem era o diabo, sra. Ingleby? Eu pensei por um instante que fosse Rupert, mas não era. Era você, não era?

— Rupert agora está morto — disse ela, tocando as têmporas com os dedos, como se estivesse atordoada.

— Sim — eu disse. — Rupert está morto. Era ele o homem de Punch e Judy na praia, não era? Você combinou se encontrar lá com ele, e Robin viu vocês dois juntos. Você ficou com medo de ele contar a Gordon.

Ela me lançou um sorriso meio precavido.

— Na praia? — disse com uma tossida e uma risadinha. — Não, não. Não na praia. Aqui... no pombal!

Fazia algum tempo eu já suspeitava que o único conjunto de pegadas, aquelas que foram encontradas cinco anos atrás levando ao Campo Jubileu e ao Bosque Gibbet, era de Grace Ingleby carregando o corpo de Robin nos braços. A fim de deixar apenas as pegadas dele, ela calçara as botas de borracha do filho. Eram, afinal, do mesmo tamanho das suas. Como que para provar isso, ela as estava usando hoje.

Cinco anos após sua morte, ainda estava vestindo as roupas de Robin, tentando desesperadamente conjurar seu filho de volta dos mortos. Ou se redimir do que havia feito.

— Você o carregou para o bosque e o pendurou em uma árvore. Mas Robin morreu aqui, não foi? Foi por isso que você fez aqui o pequeno santuário dele, e não no quarto de Robin.

Por mais trivial que parecesse aquela conversa com uma louca, eu sabia que se conseguisse chegar a Buckshaw em segurança, precisaria de um banho prolongado, quente e fumegante.

— Eu falei para ele ficar lá embaixo — disse ela um tanto petulante. — “Volte para casa, Robin”, eu gritei. “Você não pode subir aqui.” Mas ele não me ouviu. Os menininhos às vezes são assim. Desobedientes.

Ela tossiu de novo e sacudiu a cabeça com tristeza.

— “Eu sei fazer um truque com a corda!”, ele gritou de volta. Estivera brincando de caubói o dia inteiro com uma corda que achara em um galpão.

Bem como Sally havia dito. Grace devia estar contando a verdade.

— Ele subiu aqui antes que eu pudesse impedi-lo. Rupert ficou furioso. Agarrou Robin para lhe dar uma sacudida, mas seu aparelho ortopédico de ferro escorregou nos tijolos. Robin...

Agora, lágrimas silenciosas escorriam por seu rosto.

— Caiu — disse eu. Não havia necessidade de mais detalhes.

— Caiu — repetiu ela, e o modo como ela arrastou a palavra a fez ecoar nos tijolos, pairando de um jeito grotesco na câmara circular: um som que jamais esquecerei.

Com ele, veio uma ideia.

— Foi Rupert quem pensou na história de Punch e Judy? Que Robin estava representando a cena de Punch e o carrasco?

— Onde você ouviu isso? — perguntou ela, subitamente lúcida, sagaz. Pensei no sorriso de Meg, a Louca, no Bosque Gibbet; aquelas duas mulheres tinham muita coisa em comum.

— O seu depoimento ao júri no inquérito — respondi. — É de conhecimento público.

Não achei necessário acrescentar que tinha ouvido de Sally.

— Ele me obrigou a fazer isso — disse ela, enxugando os olhos com a manga da roupa de marinheiro, e pela primeira vez me dei conta de quanto ela se parecia com Robin. Uma vez percebida, a semelhança era assustadora.

— Rupert me disse que ninguém jamais ficaria sabendo. O pescoço de Robin tinha sido quebrado na queda, e se nós... se eu...

Um arrepio percorreu todo o seu corpo.

— Se eu não fizesse como ele ordenara, ele contaria a Gordon o que estava havendo entre nós. Eu seria punida. Gordon é rápido com os punhos, você sabe.

Assim como Rupert. Eu tinha visto as equimoses que ele deixara no braço de Nialla. Dois homens de temperamento exaltado que, em vez de resolverem as coisas brigando entre si, fizeram saco de pancada das respectivas mulheres.

— Não havia ninguém com quem você pudesse falar? O vigário, por exemplo?

Isso pareceu estimulá-la, e ela foi tomada por um prolongado acesso de tosse. Esperei até Grace Ingleby terminar.

— O vigário — disse ela, ofegante — é o único que tornou estes meus últimos cinco anos suportáveis.

— Ele sabia sobre Robin?

— Os lábios de um clérigo são selados — disse ela. — Ele nunca deixou escapar uma palavra. Tentou vir para a Fazenda Culverhouse uma vez por semana, só para me deixar falar. O homem é um santo. A mulher dele achava que ele estava...

— Apaixonado por você.

Ela assentiu, fechando os olhos com força, como se estivesse com dores excruciantes.

— Você está bem? — perguntei.

— Espere alguns minutos — disse ela —, e ficarei muito bem.

Seu corpo desmoronava diante dos meus olhos, inclinando-se na direção da abertura que dava para o poço.

Agarrei seu braço e, quando fiz isso, um frasco de vidro que ela apertava na mão fechada caiu no piso de tijolos e resvalou, tilintando, até o canto, o que fez um pombo subir estrepitosamente para a abertura. Arrastei Grace para o centro da câmara e lancei-me atrás do frasco, que fora parar em um montículo de guano ancestral.

O rótulo me contou tudo o que eu precisava saber: “Cianureto de cálcio”, estava escrito. “Veneno.”

Veneno de rato! A substância era de uso comum em fazendas, particularmente naquelas onde galinheiros atraíam a praga. Ainda havia um dos tabletes brancos no fundo. Tirei a tampa e cheirei. Nada.

Grace estava estatelada no chão, crispando-se, os membros se agitando.

Caí de joelhos e cheirei seus lábios. Odor de amêndoas amargas.

Os tabletes brancos de cianureto de cálcio, eu sabia, assim que encontrassem a umidade em sua boca, garganta e estômago, produziriam cianureto de hidrogênio, um gás tóxico que podia matar em cinco minutos.

Não havia tempo a perder. A vida dela estava em minhas mãos. Quase entrei em pânico ao pensar nisso, mas não entrei.

Dei uma olhada cuidadosa em volta, registrando cada detalhe. Além da vela, do santuário, da fotografia de Robin e de seu veleiro de brinquedo, não havia nada na câmara, a não ser entulho.

Bem, não exatamente nada. Em uma parede havia um antigo dispositivo para fornecer água às aves: um bulbo de vidro invertido com um tubo, cuja alimentação por gravidade mantinha uma tigela cheia para os pombos mergulharem os bicos. Pela transparência da água, parecia que Grace o enchera recentemente.

Um registro de vidro permitia que a alimentação por gravidade fosse fechada. Dei-lhe uma girada e com cuidado puxei a tigela cheia para fora das presilhas de mola.

Grace gemia horrivelmente no chão e parecia não estar mais consciente da minha presença.

Com passos cautelosos, fui até o lugar de onde o pombo tinha voado. Apalpando cuidadosamente a palha com a ponta dos dedos, logo me vi recompensada. Um ovo. Não, dois ovinhos!

Depois de colocá-los gentilmente ao lado da tigela, ergui o veleiro. Na parte de baixo de sua quilha de lata havia um peso de chumbo. Droga!

Cravei a coisa no espaço entre dois tijolos no peitoril da janela e puxei com toda a minha força, e então puxei de novo. Na terceira vez, o peso se soltou com um estalo.

Usando a afilada extremidade inferior da quilha como uma espátula improvisada, me inclinei para fora da abertura para a larga projeção que durante séculos servira de poleiro.

Abaixo de mim, o pátio da fazenda estava vazio. Não tinha sentido desperdiçar tempo gritando por socorro.

Fui passando a delgada quilha ao longo da projeção até conseguir juntar o que eu precisava e depois, com um dedo relutante, raspei aquilo para dentro da tigela de água.

Faltava uma última etapa.

Embora seu tamanho diminuto fizesse daquilo um trabalhinho delicado, quebrei os ovos, um de cada vez, do jeito que a sra. Mullet me ensinara: uma batidinha seca no meio e depois, usando as duas metades da casca como dois porta-ovos gêmeos, virando a gema de uma metade para a outra até que a última gota de clara tivesse escorrido para dentro da tigela de água que aguardava.

Pegando o frasco dos tabletes, usei-o como mão de almofariz: torcendo, moendo e mexendo até conseguir talvez meia xícara de chá de uma lama coagulada e acinzentada com o mais leve matiz de amarelo.

Para que nenhuma de nós a derrubasse (Grace agora agitava as pernas debilmente e estava com o rosto rosado por falta de oxigênio), eu me sentei no chão ao lado dela, de pernas cruzadas, e puxei sua cabeça para o meu colo, com o rosto para cima. Ela estava fraca demais para resistir.

Então, apertando o nariz dela entre o polegar e o indicador, puxei sua boca para abri-la, esperando que, nos seus espasmos, ela não me mordesse.

Ela fechou-a bruscamente. Aquilo não seria tão fácil como eu tinha pensado.

Apertei-lhe o nariz um pouco mais. Agora, se ela realmente quisesse respirar, teria de ser pela boca. Me odiei pelo que estava fazendo com ela.

Ela se debateu, os olhos saltados; e então a boca se abriu de repente e ela encheu os pulmões, depois fechou-se violentamente outra vez.

Tão lenta e gentilmente quanto eu era capaz, me inclinei e peguei a tigela cheia até a borda, aguardando o momento certo.

Ele chegou mais cedo do que eu esperava. Com uma arfada, a boca de Grace se abriu subitamente e, enquanto ela aspirava o ar de novo, despejei o conteúdo da tigela em sua boca, depois fechei-a com força com a mão embaixo de seu queixo. A tigela vazia caiu no chão estrepitosamente.

Mas Grace lutava comigo, dava para ver. Uma parte dela estava tão determinada a morrer que estava segurando a substância na boca, recusando-se a engolir.

Com o dedinho da mão direita, comecei a cutucar sua goela, como uma ave marinha cavando a areia.

Devíamos estar parecendo lutadores gregos: ela, com a cabeça firmemente travada no meu braço, eu, curvada por cima dela, tremendo com o mero esforço físico de tentar impedi-la de cuspir a mistura nauseante.

E então, um pouco antes de largar o corpo, eu a ouvi engolir. Ela não estava mais resistindo. Cuidadosamente, forcei a boca a se abrir. Com exceção de um leve e desagradável brilho de corpo estranho, ela estava vazia.

Corri até a janela, inclinando-me para fora o mais que podia sob a luz do sol.

Meu coração desfaleceu. O pátio da fazenda ainda estava vazio.

Então, de repente, ouvi um ruído de máquina se aproximando, e um momento depois o Fergie cinzento apareceu barulhento pelo caminho, com Sally sacolejando ao volante e Dieter com as pernas compridas penduradas para fora do reboque.

— Sally! Dieter! — gritei para eles.

No começo eles não sabiam de onde vinha a minha voz. Olhavam para todos os lados do pátio, perplexos.

— Aqui em cima — no pombal!

Enfiei a mão no bolso, pesquei o apito de salgueiro de Alf e soprei como um guarda ensandecido.

Afinal eles me avistaram. Sally acenou para mim.

— É Grace! — berrei. — Tomou veneno! Ligue para o dr. Darby, diga para ele vir agora!

Dieter já disparava para a casa da fazenda, correndo a toda, como ele devia ter feito outrora, quando corria para o seu Messerschmitt.

— E diga para ele verificar se tem nitrito de amila e tiossulfato de sódio em sua valise! — gritei, lutando contra um par de lágrimas impertinentes. — Ele vai precisar!


— EXCREMENTOS DE POMBO? — disse o inspetor Hewitt, quem sabe pela terceira vez. — Você está me dizendo que preparou um antídoto com excrementos de pombo?

Estávamos sentados no estúdio do vigário, avaliando um ao outro.

— Sim — eu disse. — Não tive escolha. O guano de pombo, quando deixado exposto à luz do sol, é extraordinariamente rico em NaNO3, que é nitrato de sódio. E essa é a razão por que tive de raspá-lo do poleiro de fora, em vez de usar o material mais antigo que estava na câmara. O nitrato de sódio é um antídoto para o envenenamento por cianureto. Usei as claras de ovos de pomba para produzir a suspensão. Espero que ela esteja bem.

— Ela está ótima — disse o inspetor —, muito embora estejamos buscando uma opinião sobre se devemos acusar você de praticar medicina sem licença.

Estudei seu rosto para ver se ele estava brincando, mas ele não parecia estar.

— Mas — protestei — o dr. Darby disse que ele mesmo não poderia ter feito melhor.

— O que não é grande coisa — disse o inspetor, desviando os olhos de mim e olhando através da janela.

Vi que o havia derrotado.

O inspetor Hewitt me parara no caminho de volta a Buckshaw e pedira para eu justificar minha presença na Fazenda Culverhouse.

Uma história fabricada às pressas sobre ir buscar ovos para a sra. Mullet, que queria fazer um pão de ló, aparentemente me tirara da enrascada. Pelo menos por enquanto.

O inspetor me assegurara que Grace Ingleby ainda estava viva; que ela tinha sido levada para o hospital em Hinley.

Ele não disse que meu antídoto salvara a vida dela. Imaginei que só o tempo diria.

O vigário, que cedera sua escrivaninha e sua cadeira para o inspetor Hewitt, estava plantado no canto como uma cegonha preta, esfregando os óculos com um lenço de linho.

Enquanto o sargento-detetive Woolmer se postava junto a uma das janelas, fingindo polir uma lente anastigmática da sua preciosa câmera, o sargento-detetive Graves ergueu os olhos de suas anotações por um tempo apenas suficiente para me dar um sorriso radiante. Eu gostaria de pensar que a quase imperceptível sacudida de cabeça que veio junto era um sinal de admiração.

E apesar de eles ainda não terem consciência um do outro, eu também gostaria de pensar que o sargento Graves um dia se casará com minha detestável irmã Ophelia e a levará embora para um chalé coberto de hera, distante de Buckshaw apenas o suficiente para eu poder aparecer lá sempre que me der vontade de um bom bate-papo sobre assassinatos.

Mas agora havia Dieter para levar em conta. A vida estava ficando tão complicada!

— Simplesmente comece do começo — disse o inspetor Hewitt, voltando de súbito do seu devaneio. — Quero me certificar de que não deixei passar nada.

Estaria eu detectando um tom de sarcasmo? Esperava que não, já que eu realmente gostava do homem, apesar de ele ser um pouco lento.

— A sra. Ingleby, Grace, estava tendo um caso com Rupert Porson. Rupert vinha sempre para a Fazenda Culverhouse há anos, porque... porque Gordon lhe fornecia maconha. Aliviava as dores da sua pólio, entenda.

Ele deve ter percebido minha hesitação.

— Não precisa se preocupar em traí-lo — ele disse. — O sr. Ingleby foi completamente franco conosco. O que quero é ouvir a sua versão.

— Rupert e Grace combinaram se encontrar na praia anos atrás — eu disse. — Robin os viu lá juntos. Ele topou com os dois por acaso, mais uma vez, no pombal. Quando Rupert tentou agarrá-lo, ou coisa assim, Robin desabou pelo poço central e quebrou o pescoço. Foi um acidente, mas ainda assim Robin estava morto. Rupert maquinou a ideia de forçar Grace a carregar o corpo dele, depois que escurecesse, para o Bosque Gibbet e pendurá-lo em uma árvore. Várias pessoas tinham visto Robin brincando com uma corda.

“Foi Rupert, também, quem inventou a história de que Robin estivera representando a cena entre Punch e Jack Ketch, que ele tinha visto no espetáculo de bonecos da praia. O conto de Punch e o carrasco é conhecido por todas as crianças da Inglaterra. Ninguém questionaria a história de que Robin se enforcara por acidente. Ela era simplesmente bizarra o bastante para ser verdadeira. Como titereiro conhecido que era, Rupert não podia permitir que seu nome ficasse associado, de qualquer modo, à morte de uma criança. Ele precisava desaparecer da cena da morte de Robin. Além de Grace, ninguém sabia que ele estivera na fazenda naquele dia.

“Por isso ele a ameaçou. Disse que se ela não fizesse como ele queria, daria com a língua nos dentes para Gordon... desculpe, quero dizer que ele informaria a Gordon que estava tendo um caso com a mulher dele. Grace perderia os dois, o filho e o marido. Ela já estava meio enlouquecida de tristeza e medo, portanto é provável que tenha sido bem fácil ele manipulá-la.

“Como ela é muito pequena, conseguiu calçar as botas de borracha de Robin para carregar seu corpo até o Bosque Gibbet. Ela é excepcionalmente forte para o seu tamanho. Descobri isso quando me içou para dentro da câmara do pombal. Depois de pendurar o corpo de Robin na árvore, ela calçou as botas nos pés dele e foi para casa dando a volta pelo caminho mais comprido, descalça.”

O inspetor Hewitt balançou a cabeça e rabiscou uma anotação com a sua microscópica caligrafia.

— Meg, a Louca, topou com o corpo lá pendurado e achou que fosse obra do Diabo. Eu já lhe entreguei a folha do meu caderno, portanto você viu o desenho que ela fez. Ela é muito boa, na verdade, não acha?

— Hum — disse o inspetor. Aquilo era um mau hábito que ele estava adquirindo por conviver demais com o dr. Darby.

— Por isso ela teve medo de tocá-lo, ou mesmo de contar a alguém. O corpo de Robin ficou pendurado no Bosque Gibbet até Dieter encontrá-lo.

“Sábado passado, no salão paroquial, quando Meg viu o rosto de Robin no João, o boneco, pensou que o Diabo tinha trazido o menino morto de volta à vida, o encolhido e posto ele para trabalhar no palco. O tempo, para Meg, é uma coisa muito confusa. Dá para ver isso no desenho: Robin pendurado na árvore é uma cena que ela viu há cinco anos. O vigário tirando a roupa no bosque é algo que ela viu na quinta-feira passada.”

O vigário ficou vermelho-beterraba e correu um dedo por dentro de seu colarinho eclesiástico.

— Sim, bem... você sabe...

— Ah, eu sabia que você tinha levado um tombo, vigário — eu disse. — Soube no instante em que o vi no cemitério, no dia em que encontrou Rupert e Nialla, está lembrado? A perna da sua calça estava rasgada, você estava coberto de manchas de poeira argilosa da estrada para a Fazenda Culverhouse e tinha perdido o prendedor de calça da sua bicicleta.

— É verdade — disse o vigário. — Minha calça ficou presa na bendita corrente e eu fui atirado para dentro da valeta.

— O que explica por que você entrou no meio das árvores no Bosque Gibbet para tirar as roupas e tentar limpá-las. Você estava com medo do que Cynthia diria... desculpe, a sra. Richardson. Você mesmo disse, no pátio da igreja. Alguma coisa sobre Cynthia comer o seu fígado.

O vigário continuou em silêncio, e não creio que jamais o tenha admirado tanto como naquele momento.

— Como você estava indo à Fazenda Culverhouse pelo menos uma vez por semana desde que Robin morreu, há cinco anos, Cynthia... quero dizer, a sra. Richardson, de algum modo, concluiu que havia mais nos seus encontros com Grace Ingleby do que podia parecer. Por isso você, de um tempo para cá, vem mantendo suas visitas em segredo.

— Eu realmente não me sinto livre para discutir isso — disse o vigário. — O uso do colarinho eclesiástico põe fim a qualquer tendência que se tenha para tagarelar. Mas devo acrescentar, em defesa dela, que Cynthia é muito leal. Sua vida nem sempre é muito fácil.

— Nem a de Grace Ingleby — observei.

— Não, nem a de Grace.

— De um jeito ou de outro — prossegui —, Meg vive em uma velha choça, em algum lugar nas profundezas do Bosque Gibbet. Ela não perde muita coisa do que acontece por ali.

Ou em qualquer outro lugar, tive vontade de acrescentar. Acabara de me ocorrer que, quase com certeza, foi Meg que Rupert e Nialla ouviram rondando perto da tenda deles no pátio da igreja.

— Ela o viu tirando a calça ao lado da velha forca, e no lugar exato em que vira Robin pendurado. Por isso ela o incluiu em seu desenho.

— Entendo — disse o vigário. — Ao menos, acho que entendo.

— Meg pegou seu prendedor de calça na estrada com a intenção de usá-lo em uma daquelas suas esculturas de coisas penduradas, mas o reconheceu como seu e...

— Tem as minhas iniciais — disse o vigário. — Cynthia as escreveu lá.

— Meg não sabe ler — disse eu —, mas é muito observadora. Veja os detalhes no desenho dela. Ela se lembrou até do pequeno distintivo da Igreja da Inglaterra de sua lapela.

— Céus — disse o vigário, dando a volta para espiar por cima do ombro do inspetor Hewitt. — Lembrou mesmo.

— Ela veio aqui no sábado à tarde para devolver o prendedor de calça e, enquanto o procurava, foi dar por acaso no salão da paróquia durante o espetáculo de Rupert. Quando viu Robin encolhido no palco, ela surtou. Você e Nialla a carregaram para o presbitério e a acomodaram no seu sofá, no estúdio. Foi quando o prendedor (e o pó compacto de Nialla) caiu do bolso dela. Achei o pó compacto no chão atrás do sofá no dia seguinte. Não achei o prendedor porque Grace Ingleby já o pegara no dia anterior.

— Espere — disse o inspetor. — Ninguém alegou ter visto a sra. Ingleby em lugar nenhum perto do presbitério nem do salão paroquial no sábado à tarde.

— Não mesmo — eu disse. — O que eles, sim, disseram foi que a moça dos ovos esteve lá.

Se o inspetor Hewitt fosse daquele tipo de homem cuja boca era sujeita a se abrir quando atônito, ele estaria boquiaberto como uma gárgula.

— Meu bom Deus — ele disse, serenamente. — Quem lhe contou isso?

— A sra. Roberts e a srta. Roper — disse eu. — Elas estavam na cozinha do presbitério ontem depois da igreja. Eu supus que você as tivesse interrogado.

— Acredito que fizemos isso — disse o inspetor Hewitt, erguendo uma sobrancelha para o sargento Graves, que folheou as páginas do seu caderno.

— Sim, senhor — disse o sargento Graves. — As duas deram depoimentos, mas nada foi dito sobre moça dos ovos.

— A moça dos ovos era Grace Ingleby, é claro — eu disse, solícita. — Ela desceu tarde da Fazenda Culverhouse naquele sábado, com ovos para o presbitério. Não havia mais ninguém por perto. Alguma coisa a fez ir até o estúdio do vigário. Talvez ela tenha ouvido Meg roncar, não sei. Mas achou o prendedor de calça no chão, pegou-o e o enfiou no bolso.

— Como você pode ter tanta certeza? — perguntou o inspetor Hewitt.

— Não posso ter certeza — disse eu. — O que posso ter certeza, porque ele me contou, é de que o vigário perdeu o seu prendedor de calça na última quinta-feira...

O vigário balançou a cabeça, concordando.

— ... na estrada, na Colina Gibbet... e que você e eu, inspetor, o encontramos no domingo de manhã, preso ao corrimão do teatro de marionetes. O resto é mera especulação.

O inspetor coçou o nariz, fez mais uma anotação e ergueu os olhos para mim como se tivesse sido enganado no troco.

— O que claramente nos leva de volta a Rupert Porson — disse.

— Sim — retruquei. — O que claramente nos leva de volta a Rupert Porson.

— A respeito de quem você estava prestes a nos esclarecer.

Ignorei sua crítica e continuei:

— Grace conhecia Rupert fazia muitos anos. Talvez desde antes de conhecer Gordon. Até onde eu sei, ela até pode ter viajado com ele por um tempo, como sua assistente.

Eu soube pela súbita expressão fechada do inspetor Hewitt que havia acertado a cabeça do prego. Bravo, Flavia!, pensei. Vai ganhar o prêmio de melhor aluna!

Havia momentos em que eu surpreendia até a mim mesma.

— E mesmo que não tenha viajado com ele — acrescentei —, ela certamente assistiu a alguns dos espetáculos que ele apresentou pelo interior. Ela deve ter prestado uma atenção especial à instalação elétrica. Como Rupert fabricava todo o seu equipamento de iluminação, acho difícil acreditar que ele não aproveitou a oportunidade para mostrar os detalhes a uma colega eletricista. Ele era muito vaidoso de seus talentos, você sabe.

“Eu imagino que Grace pegou as chaves no presbitério e foi diretamente ao salão paroquial através do pátio da igreja. A essa altura a apresentação da tarde já havia acabado; o público tinha ido embora, e Rupert também. Havia pouca chance de ela ser vista. Mesmo que tivesse sido avistada, ninguém prestaria a menor atenção nela, não é? Afinal, ela era apenas a moça dos ovos. Além disso, ela e o marido são paroquianos de São Tancredo, portanto ninguém olharia duas vezes.

“Ela entrou no salão e, usando o corredor à esquerda (e trancando a porta atrás dela), subiu os dois pequenos lances que levam ao palco.

“Ela subiu para a ponte do palco de marionetes e raspou o isolamento do fio, usando o prendedor de calça como uma espécie de desbastador. Então passou o prendedor por cima da estrutura de madeira do palco, tocando o fio elétrico exposto com uma ponta e a haste metálica que liberava Galligantus na outra. E é isso! Não houve nada além disso. Se você chegou a dar uma olhada de perto no prendedor de calça, provavelmente já descobriu uma pequena marca de abrasão do lado de dentro, no centro. E talvez ligeiros indícios de cobre.”

— Verdade! — deixou escapar o sargento Woolmer, e o inspetor Hewitt o fulminou com o olhar.

Diferentemente da maioria dos outros suspeitos (com exceção de Dieter, é claro, que construía aparelhos de rádio quando menino na Alemanha), Grace Ingleby tinha o treinamento requerido em eletricidade. Antes da guerra, antes de se casar com Gordon, ela trabalhava em uma indústria que instalava rádios em Spitfires. Me disseram que o QI dela é quase igual ao número de salmos.

— Maldição! — bradou o inspetor Hewitt, pondo-se em pé de um salto. — Desculpe, vigário. Mas por que não descobrimos essas coisas, sargento-detetive?

Ele olhou furioso de um de seus homens para o outro, incluindo os dois na sua exasperação.

— Com todo o respeito, senhor — arriscou o sargento Woolmer —, poderia ser porque nós não somos a srta. De Luce.

Foi uma coisa atrevida para se dizer, e temerária. Se o que vi no cinema era verdade, aquele foi o tipo de comentário que poderia transformar o sargento Woolmer em um remendador de estradas antes do pôr do sol.

Depois de um silêncio enervante, o inspetor disse:

— Você está certo, é claro, sargento. Não temos o mesmo acesso às casas e aos lares de Bishop’s Lacey, temos? É uma área onde poderíamos atuar melhor. Anote isso.

Não admira que seus subordinados o adorassem!

— Sim, senhor — disse o sargento Graves, rabiscando alguma coisa em seu caderno.

— Então — prossegui —, depois de preparar a armadilha, Grace saiu pela porta do corredor à direita do palco e trancou essa porta também, provavelmente para impedir qualquer pessoa de chegar aos bastidores e descobrir o que ela havia feito. Como eu disse, ela é uma mulher muito inteligente.

— Mas — disse o inspetor Hewitt — se ambas as portas estavam trancadas, como Porson subiu ao palco para a apresentação? Ele não poderia ter se trancado por dentro, já que não tinha a chave.

— Ele usou aquela pequena escada na frente do palco — disse eu. — Não é tão íngreme quanto as duas nos corredores laterais, e é só um lance. As escadas estreitas eram difíceis para Rupert, por causa do aparelho ortopédico, e ele pegava o caminho mais curto. Notei isso na última quinta-feira, quando ele verificava a acústica do salão.

— Uma teoria bem engenhosa — disse o inspetor Hewitt. — Mas ela não explica tudo. Como, por exemplo, o suposto assassino saberia que um pedaço de lata tão sem valor resultaria na morte de Porson?

— Porque Rupert sempre se apoiava em um corrimão feito de canos de ferro enquanto operava os bonecos. Com todo o equipamento de iluminação que estava instalado nos bastidores, o corrimão tinha de ser aterrado através da rede elétrica. No instante em que Rupert tocou na alavanca energizada de Galligantus, com a parte de baixo do corpo fortemente pressionada contra o corrimão como estava e a perna direita presa em um aparelho ortopédico, a corrente teria passado diretamente pelo seu braço acima e através...

— Do coração — disse o inspetor. — Sim, entendi.

— Igual a São Lourenço — eu disse —, que, como você sabe, foi executado sobre uma grelha.

— Obrigado, Flavia — disse o inspetor Hewitt. — Acho que você já se expressou muito convincentemente.

— Sim — disse eu, um tanto convencida. — Foi o que eu fiz. Então, isso é tudo?

O sargento Graves sorria por cima de seu caderno como Scrooge por cima dos livros de contabilidade.

O inspetor Hewitt franziu a testa com uma expressão que eu já tinha visto: uma expressão de curiosidade exasperada firmemente contida por anos de treinamento e um forte senso de dever.

— Acho que sim, a não ser, talvez, por um ou dois pormenores.

Dei-lhe aquele sorriso radiante, superior: com todos os dentes e lábios finos. Quase me odiei por fazer isso.

— Sim, inspetor?

Ele foi até a janela, as mãos entrelaçadas atrás das costas, como eu já o vira fazer antes em várias ocasiões. Por fim, se voltou:

— Talvez eu seja um pouco lento — disse.

Se ele estava esperando que eu o contradissesse, esperaria até as vacas voltarem para casa de pijama roxo.

— As suas observações sobre a morte de Rupert Porson foram muito elucidativas. Mas, por mais que eu tenha tentado, falhei redondamente em acompanhar seu raciocínio no caso da morte de Robin Ingleby.

— As botas, sim... talvez. É uma possibilidade, admito, mas está longe de ser uma certeza. Uma prova fraca, quando o caso for a julgamento. Isto é, se o caso for reaberto. Mas vamos precisar de muito mais do que um par de botas de criança, se quisermos prevalecer sobre Suas Excelências.

Seu tom era quase uma súplica. Eu já tinha decidido que havia certas observações que deveriam permanecer para sempre trancadas na minha cabeça: pepitas seletas de dedução que eu guardaria para o meu deleite particular. Afinal, o inspetor tinha muito mais recursos à sua disposição do que eu.

Mas então pensei em sua linda esposa, Antigone. O que ela pensaria de mim se descobrisse que eu criara obstáculos para ele? Uma coisa era certa: seria o fim de qualquer ideia que eu pudesse ter tido de tomar chá no jardim de sua casinha decorada com muito bom gosto.

— Muito bem — eu disse com relutância. — Há mais alguns pormenores. O primeiro é: quando Dieter voltou correndo para o pátio da fazenda, logo depois de descobrir o corpo de Robin pendurado no Bosque Gibbet, não havia ninguém nas janelas da casa. Ninguém estava aguardando a chegada dele, como era de se esperar. Com certeza, a mãe de uma criança desaparecida estaria frenética, aguardando por alguma novidade, por menor que fosse. Mas Grace Ingleby não estava vigiando as janelas. E por que não? A razão é simples: ela já sabia que Robin estava morto.

Em algum lugar atrás de mim, o vigário ofegou.

— Entendo — assentiu o inspetor Hewitt. — Uma teoria engenhosa... muito engenhosa. Mas, ainda assim, dificilmente o bastante para fundamentar um caso.

— Concordo — disse eu —, porém há mais.

Olhei de um para outro: o vigário, o inspetor Hewitt e o sargento Graves, seus rostos sôfregos projetados para a frente, atentos a cada palavra minha. Até o parrudo sargento Woolmer começou a polir mais devagar suas lentes intrincadas.

— O cabelo de Robin Ingleby sempre pareceu um monte de feno — disse eu. — Desgrenhado talvez seja a palavra certa. Pode-se ver nas suas fotos. No entanto, quando ele foi encontrado pendurado no madeiramento da velha forca, seu cabelo estava muito bem penteado, como se ele tivesse acabado de sair da cadeira do barbeiro. Meg capturou isso perfeitamente em seu desenho. Estão vendo?

Houve uma tomada de fôlego geral quando todos se amontoaram por cima da folha do meu caderno.

— Uma coisa que só uma mãe faria — eu disse. — Ela não resistiu. Grace Ingleby queria que seu filho estivesse apresentável quando fosse encontrado, pendurado pelo pescoço, morto no Bosque Gibbet.

— Meu bom Deus! — disse o inspetor Hewitt.


— MEU BOM DEUS! — Exclamou o pai. — Lá é a sede da BBC. Eles instalaram câmeras em Portland Place.

Ele se levantou da cadeira pela enésima vez e atravessou a sala de estar apressadamente para mexer nos botões da televisão.

— Por favor, fique quieto, Haviland — disse tia Felicity. — Se eles estivessem interessados no seu comentário, a BBC teria mandado alguém atrás de você.

Tia Felicity, que mal chegara em casa em Hampstead, voltara às pressas para Buckshaw assim que a ideia surgira em sua cabeça. Ela alugara o televisor para a ocasião (a um custo enorme, ela se apressou a enfatizar), e por causa disso agora desfrutava de poderes ditatoriais vastamente incrementados.

De manhã cedo no dia anterior, os trabalhadores haviam começado a erigir uma antena para a recepção em cima dos baluartes de Buckshaw.

— Ela precisa estar suficientemente alta para captar o sinal da nova torre de transmissão em Sutton Coldfield —, dissera tia Felicity, em uma voz que sugeria que a televisão era uma invenção dela. — Eu queria que todos nós fôssemos a Londres para as exéquias de Porson — continuou ela —, mas quando Lady Burwash deixou escapar que os Sitwell tinham mandado instalar uma televisão... Não, não, não proteste, Haviland. Ela é educativa. Estou fazendo isso pelo bem das meninas.

Vários trabalhadores musculosos usando macacões tinham arrastado o aparelho da traseira de uma camionete de mudança para dentro da sala de estar. E, agora, lá estava ele de tocaia, o seu único olho cinzento a olhar fixamente, como um ciclope tremeluzente, para todos nós, reunidos sob sua luminescência maligna.

Dafi e Felinha estavam juntas, aconchegadas em um sofá, fingindo enfado. O pai convidara o vigário e dissera a elas para tomar cuidado com a linguagem.

A sra. Mullet estava entronizada em uma confortável bergère, e Dogger, que preferia não se sentar na presença do pai, postou-se silenciosamente atrás dela.

— Me pergunto se eles têm televisores em Portland Place — disse Felinha ociosamente —, ou se, em vez disso, ficam olhando para fora pela janela.

Reconheci aquilo imediatamente como uma tentativa de provocar o pai, cujo desprezo pela televisão era legendário.

— A televisão não passa de um traste — ele respondia sempre que implorávamos pela instalação de um receptor. — Se Deus quisesse que imagens fossem mandadas pelo ar, Ele nunca teria nos dado o cinema... Ou a Galeria Nacional — ele acrescentava acidamente.

Mas nesse caso ele tinha sido voto vencido.

— Mas isto é história, Haviland — dissera tia Felicity com uma voz sonora. — Você teria negado às suas filhas a oportunidade de ver Henrique V se dirigir a seus homens no dia de São Crispim?

Ela assumira uma posição no meio da sala de estar.

 

Esta história o homem bom ensinará ao seu filho.

E a festa de Crispim e Crispiano jamais acontecerá,

Deste dia e até o fim do mundo,

Sem que nela sejamos lembrados;

Nós poucos, nós poucos felizes, nós um bando de irmãos...

 

— Bobagens! — disse o pai, mas tia Felicity, como Henrique V, foi em frente, impávida:

 

Pois aquele que hoje derrama seu sangue comigo

Será meu irmão; por mais vil que seja ele,

Este dia abrandará sua condição:

E os gentis homens na Inglaterra que ora dormem

Se acharão malditos por aqui não estarem,

E julgarão sua hombridade desprezível quando alguém falar

Que lutou conosco no dia de São Crispim.

 

— Tudo isso é ótimo, mas eles não tinham televisão em 1415 — disse o pai, mal-humorado e sem entender bem o que ela queria dizer.

Mas então, ontem, aconteceu uma coisa notável. Um dos técnicos, o que estava na sala de estar, atentamente de olho no receptor, começou a gritar instruções pela janela para um colega no gramado, que as transmitiu, com uma voz de sargento-instrutor, para o homem no telhado.

— Pare, Harry! Para trás... para trás... para trás. Não... você a perdeu. Volte para o outro lado...

Naquele exato momento, o pai tinha entrado na sala, planejando, acho eu, manifestar seu escárnio por toda aquela operação, quando seu olhar foi atraído por alguma coisa na tela salpicada de neve.

— Pare! — gritou ele, e sua ordem foi passada adiante em ecos cada vez mais distantes pelos técnicos, para fora da janela e para cima dos baluartes.

— Céus — disse ele. — É a Guiana Inglesa de 1856.

— Volte um pouco! — gritou, agitando as mãos para ilustrar.

Novamente a sua instrução foi transmitida para cima como baldes d’água em uma brigada de incêndio, e a imagem ficou um pouco mais clara.

— Bem como eu pensei — disse ele. — Eu a reconheceria em qualquer lugar. Está indo a leilão. Aumente o som.

Como que por obra do Destino, a BBC estava transmitindo naquele momento um programa sobre filatelia, e um momento depois o pai já tinha puxado uma cadeira, prendido seus óculos com armação de arame na ponta do nariz e se recusava a sair do lugar.

— Silêncio, Felicity! — latiu ele quando ela tentou intervir. — Isto é da maior importância.

E foi assim que o pai permitiu que a Besta-de-Um-Olho-Só se instalasse na sua sala de estar. Pelo menos por enquanto.

E agora, quando se aproximava o momento da inumação de Rupert (uma palavra que eu ouvira Dafi usar para impressionar a sra. Mullet), Dogger se esgueirou para o foyer para receber o vigário, que, apesar de não estar conduzindo o funeral, sentiu uma necessidade profissional de apertar a mão de cada um de nós ao entrar na sala.

— Meu Deus, meu Deus — disse ele. E pensar que o pobre homem expirou bem aqui, em Bishop’s Lacey.

Nem bem ele havia sentado no sofá, a campainha da porta tocou de novo, e alguns momentos depois Dogger retornou com um convidado inesperado.

— O sr. Dieter Schrantz — anunciou ele à porta, assumindo de novo com naturalidade seu papel de mordomo.

Felinha levantou-se em um salto e foi pairando através da sala receber Dieter, mãos estendidas, palmas para baixo, como uma sonâmbula.

Ela estava radiante, a megera!

Rezei para ela tropeçar no tapete.

— Puxe as cortinas, por favor, Dogger — disse o pai, e, quando Dogger obedeceu, a luz desapareceu da sala e nos deixou a todos sentados na penumbra.

Na campo de visão da pequena tela, como eu disse, entrou flutuando o pavimento molhado de Portland Place na frente da sede da BBC, enquanto a voz abafada e solene do locutor assumia a narrativa (poderia ter sido Richard Dimbleby ou talvez apenas alguém que soava como ele):

— E agora, de todos os recantos do reino, vêm as crianças. Foram trazidas aqui hoje por suas mães, e umas poucas, ouso dizer, pelos avós.

“Estão todos aqui em pé, em Portland Place, por horas debaixo de chuva, jovens e velhos, cada qual esperando pacientemente sua vez de dar um último e triste adeus ao homem que cativou seus corações; para prestar as últimas homenagens a Rupert Porson, o gênio que todos os dias, às quatro horas da tarde, os sequestrava de sua vida cotidiana e, como o Flautista de Hamelin, os levava para o seu Reino Mágico.”

Gênio? Bem, isso já era um pouco de exagero. Rupert era um apresentador brilhante; não havia dúvidas quanto a isso. Mas gênio? O homem era um patife, um mulherengo, um valentão, um bruto.

Mas será que isso o desqualificava como gênio? Acho que não. Cérebro e moral não têm nada a ver um com o outro. Eu, por exemplo: muitas vezes as pessoas me acham notavelmente brilhante, no entanto meu cérebro, com muita frequência, fica ocupado em engendrar jeitos novos e interessantes de levar meus inimigos a uma súbita, sufocante, convulsiva e agonizante morte.

Continuo firme na minha crença de que os venenos foram postos no mundo, em primeiro lugar, para ser descobertos e bem utilizados por aqueles que têm a inteligência, mas não necessariamente a força física para...

O veneno! Eu me esquecera completamente daqueles chocolates envenenados!

Será que Felinha os comera? Parecia improvável, pois, se tivesse comido, não estaria aqui sentada nessa calma enlouquecedora enquanto Dieter, como um criador de cavalos admirando sua potranca por cima da cerca de um paddock, contemplava apreciativamente as suas melhores características.

De qualquer modo, o sulfeto de hidrogênio que eu injetara nos chocolates não era suficiente para matar. Uma vez dentro do organismo, partindo-se do princípio que alguém seria suficientemente estúpido para engoli-lo, se oxidaria, transformando-se em sulfato de hidrogênio e, nessa forma, seria eventualmente eliminado na urina.

Seria assim tão criminoso o que eu tinha feito? O dimetilsulfeto era introduzido aos montes nos doces artificialmente aromatizados, e ninguém, até onde eu sabia, tinha sido enforcado por causa disso.

Quando meus olhos se acostumaram com a penumbra da sala de estar, consegui dar uma olhada rápida em volta, perscrutando os rostos iluminados pelo do televisor. A sra. Mullet? Não. Felinha não teria desperdiçado seus chocolates com a sra. Mullet. O pai e Dogger também estavam fora de questão, bem como o vigário.

Havia uma remota possibilidade de que tia Felicity os tivesse devorado, mas, se tivesse, o seu trombetear indignado teria feito até o elefante de Sabu disparar para as colinas.

Portanto, os chocolates ainda deviam estar no quarto de Felinha. Se ao menos eu pudesse sair sorrateiramente, despercebida na semiescuridão...

— Flavia — disse o pai com um aceno na direção da telinha —, eu sei como isto deve estar sendo particularmente difícil para você. Pode sair, se quiser.

Salvação! Aos chocolates envenenados!

Mas espere: se eu caísse fora agora, o que Dieter pensaria de mim? Quanto aos outros, eu não ligava a mínima... bem, talvez um pouco pelo vigário. Mas parecer fraca aos olhos de um homem que realmente fora abatido em chamas...

— Obrigada, pai — eu disse. — Acho que consigo aguentar.

Eu sabia que aquele era o tipo de reação orgulhosa que ele queria, e eu estava certa. Depois de fazer os ruídos paternais requeridos, ele se afundou novamente em sua poltrona com algo parecido com um suspiro.

Um ruído de batráquio veio das profundezas da poltrona no canto, e eu soube na hora que vinha de Dafi.

As câmeras de televisão estavam cortando para dentro do estúdio: um grande estúdio cheio até o teto de flores, e lá, entre elas, jazia Rupert, ou pelo menos o seu caixão: uma peça de mobiliário ornamentada que refletia as luzes da televisão e os enlutados próximos na sua superfície altamente polida, as alças folheadas de prata reluzindo na penumbra.

Agora outra câmera mostrava uma menininha se aproximando do esquife... hesitante... titubeante... forçada para a frente por uma série de empurrões dados pela mãe constrangida. A criança enxugou uma lágrima antes de depositar uma coroa de flores silvestres junto à barreira na frente do caixão.

A cena foi cortada para um close-up de uma mulher adulta chorando.

A seguir, um homem vestido de preto-funeral deu um passo à frente. Ele arrancou três rosas da parede de tributos florais e delicadamente presenteou com cada uma delas: a criança, a mãe e a mulher que chorava. Feito isso, puxou do bolso um grande lenço branco, virou de costas para a câmera e assoou o nariz com uma energia tomada de aflição.

Era Mutt Wilmott! Ele estava fazendo a direção de cena daquilo tudo! Exatamente como dissera que faria. Mutt Wilmott: aos olhos do mundo, um homem alquebrado.

Mesmo em um momento de luto nacional, Mutt estava a postos para providenciar os momentos memoráveis — as imagens inesquecíveis exigidas pela morte. Eu quase fiquei de pé para aplaudir. Eu sabia que as pessoas que testemunharam aquelas simples devoções, ao vivo ou pela televisão, seguiriam falando delas até estarem sentadas um dia sem dentes em um banco de madeira no jardim de um chalé, esperando seu coração parar de bater.

— Mutt Wilmott — prosseguiu a voz de Dimbleby —, produtor do Reino Mágico de Rupert Porson. Soubemos que ele ficou devastado com a notícia da morte do titereiro; que ele foi levado às pressas ao hospital para controlar seus batimentos cardíacos, mas que, a despeito disso e contra as ordens do médico, insistiu em estar aqui hoje para prestar tributo ao seu colega recentemente falecido... muito embora saibamos de boa fonte que uma ambulância está de prontidão, caso seja necessário.

Houve um corte para a imagem transmitida por uma câmera que até agora não tínhamos visto. Fazendo a tomada do alto, como que de cima de uma rotunda, a câmera desceu lentamente para o estúdio — como se aquilo estivesse sendo visto pelos olhos de um anjo vindo dos céus — e se aproximou cada vez mais do caixão até que, bem ao seu pé, se deteve sobre a figura notável de ninguém menos que Snoddy, o Esquilo.

Montado talvez em cima de um suporte de madeira, o boneco, com suas pequenas orelhas de couro, dentes salientes e uma cauda peluda em forma de ponto de interrogação, tinha sido arrumado com todo o cuidado para olhar com expressão triste para o caixão de seu mestre, as patinhas de esquilo reverentemente cruzadas em atitude humilde de oração.

Houve várias ocasiões, e esta era uma delas, em que, como se debaixo do súbito e cegante espoucar da câmera de um repórter fotográfico, eu enxergava tudo. A morte nada mais era que uma simples mascarada. E também, mais ainda, era a Vida! Ambas engenhosamente dirigidas por alguma coisa: algum Mutt Wilmott celestial dos bastidores.

Todos nós éramos marionetes postas em ação no palco por Deus, ou pelo Destino, ou pela Química, chamem como quiserem, e ali éramos movidos pelas mãos enluvadas e manipuladoras dos Rupert Porson e Mutt Wilmott deste mundo. Ou pelas Ophelia e Daphne de Luce.

Eu quis deixar escapar um oba!

Como eu quis que Nialla estivesse aqui para eu poder compartilhar minha descoberta com ela. Afinal, ninguém merecia mais. Mas àquela altura, até onde eu sabia, ela já conduzia a decrépita van Austin pelas ladeiras de alguma montanha galesa a caminho de alguma aldeia onde, com a ajuda de uma Mamãe Gansa improvisada às pressas, ela descarregaria seus caixotes de madeira e, mais tarde, à noite, ergueria as cortinas para os aldeões simplórios em algum distante Salão de São Davi, apresentando sua versão pessoal de João e o pé de feijão.

Depois que Rupert se foi, quem de nós, agora, seria Galligantus?, me perguntei. Quem de nós, agora, seria o monstro que desabaria inesperadamente dos céus para dentro da vida de outras pessoas?

— Homenagens comoventes continuam a se derramar desde a Cornualha até John O’Groats — dizia o locutor —, e do exterior. — Ele fez uma pausa e suspirou levemente, como se estivesse devastado por aquele momento.

“Aqui em Londres, apesar do aguaceiro, a fila continua a aumentar, estendendo-se até a igreja de Todas as Almas e além, para Langham Place. De cima das portas da BBC, as estátuas de Próspero e Ariel olham para as hordas de enlutados, observando, como se elas também compartilhassem do pesar comum.

“Imediatamente após as cerimônias de hoje na sede da BBC” — prosseguiu ele bravamente —, “o caixão de Rupert Porson será levado à estação de Waterloo e de lá seguirá para o local de sepultamento, no cemitério Brookwood, em Surrey.”

A essa altura, até Felinha podia ver que já bastava.

— Chega dessa choradeira inútil! — anunciou ela, atravessando a sala e desligando o interruptor. A imagem na televisão se retraiu até um minúsculo ponto de luz e desapareceu.

— Abra as cortinas, Dafi — ordenou ela, e Dafi pulou sob o seu comando. — Isso é tão cansativo, tudo isso. Um pouco de luz, para variar.

O que ela realmente queria, claro, era poder olhar melhor para Dieter. Vaidosa demais para usar seus óculos, Felinha provavelmente não vira nada do funeral de Rupert além de um borrão aguado. E não seria inútil ser admirada de perto por um pretendente ansioso quando se é incapaz de ver o arrebatamento do dito pretendente?

Não pude deixar de notar que o pai parecia ter deixado passar o modo como o nosso primeiro vislumbre da televisão fora abruptamente encerrado e que ele já se refugiava em seu mundo privado.

Dogger e a sra. Mullet cuidavam discretamente de suas obrigações, deixando apenas tia Felicity para protestar fracamente.

— Com efeito, Ophelia — ela bufou —, você é extremamente ingrata. Eu queria olhar mais de perto as alças do caixão. O filho da minha faxineira, Arnold, trabalha como decorador de cenários na BBC e os seus serviços são especialmente requisitados. Eles lhe dão um guinéu para descobrir alguns acessórios fotogênicos.

— Desculpe, tia Felicity — disse Felinha com ar distraído —, mas os funerais me dão um tremendo arrepio... mesmo na televisão. Simplesmente não suporto assisti-los.

Por um momento, um silêncio pairou no ar, indicando que tia Felicity não tinha sido tão facilmente apaziguada.

— Já sei — disse Felinha com vivacidade. — Deixem-me oferecer chocolate a todos.

E ela foi até a gaveta de uma mesinha auxiliar.

Visões de algum inferno vitoriano começaram a passar pela minha cabeça: cavernas, chamas, abismos ardentes, almas perdidas em fila, como os enlutados do lado de fora da sede da BBC; todos aguardando para ser lançados por um anjo vingador para dentro do fogo e do enxofre derretido.

O enxofre, afinal, era súlfur (símbolo químico S), com cujo dióxido eu recheara os chocolates. Uma vez mordidos, eles iriam... bem, dificilmente valeria a pena pensar nisso.

Felinha já ia em direção ao vigário, rasgando o celofane da caixa de chocolates ancestrais que Ned deixara na soleira da porta; a caixa que eu tão carinhosamente adulterara.

— Vigário? Tia Felicity? — ofereceu ela, removendo a tampa e estendendo a caixa. — Sirvam-se de um chocolate. Os nougats de amêndoas são especialmente interessantes.

Eu não podia deixar aquilo acontecer, mas o que fazer? Era óbvio que Felinha considerara o aviso prévio que eu deixara escapar como um blefe bobo.

Agora o vigário estendia a mão para pegar um bombom, seus dedos pairando acima dos chocolates como se estivessem sobre um tabuleiro Ouija, à espera de que algum espírito o direcionasse para o confeito mais saboroso.

— Eu tenho direito aos nougats de amêndoas! — gritei. — Você prometeu, Felinha!

Me atirei para a frente e arranquei o chocolate dos dedos do vigário, e no mesmo instante consegui tropeçar na beirada do tapete, as minhas mãos descontroladas arrebatando a caixa das mãos de Felinha.

— Sua besta! — gritou Felinha. — Sua bestinha nojenta!

Como nos velhos tempos.

Antes que ela pudesse se refazer do susto, eu já havia pisoteado a caixa e, como um moinho de vento, em uma tentativa desajeitada, porém lindamente coreografada, de recobrar o equilíbrio, esmagara toda aquela meleca grudenta em cima do tapete Axminster.

Dieter, eu notei, tinha um largo sorriso no rosto, como se tudo aquilo fosse uma grande diversão. Felinha também viu, e observei que ela estava dividida entre a atuação de duquesa e a vontade de me estapear na cara.

Enquanto isso, os vapores de sulfeto de hidrogênio, liberados depois de eu ter pisoteado os chocolates, começaram seu trabalho mortífero. A sala foi subitamente tomada pelo cheiro de ovos podres. E que fedentina! Fedia como se um dinossauro tivesse soltado um pum, e me lembro de por um instante ter me perguntado se a sala de estar voltaria um dia a ser o que era.

Tudo isso aconteceu em menos tempo do que leva para contar, e as minhas reflexões em fogo alto foram interrompidas pela voz do pai.

— Flavia — disse ele com aquela voz baixa e neutra que ele usa para expressar sua fúria —, vá para o seu quarto. Agora. — O seu dedo tremia quando ele apontou.

Não adiantava discutir. Com os ombros encurvados, como se eu estivesse caminhando sobre neve funda, me arrastei para a porta.

Com exceção do pai, todos na sala fingiram que nada tinha acontecido. Dieter ajeitava o colarinho, Felinha, empoleirada a seu lado no sofá, ajeitava a saia, e Dafi já estava pegando um desgastado exemplar de As minas do rei Salomão. Até tia Felicity lançava um olhar feroz para um fio solto na manga de seu casaco de tweed, e o vigário, que se afastara discretamente para além da porta-janela, olhava para fora fingindo interesse pelo lago ornamental e pela folly além dele.

A meio caminho para sair da sala, parei e voltei até onde estava meu pai. Eu quase me esquecera de uma coisa. Enfiei a mão no bolso, puxei o envelope com perfurações extras que a srta. Cool me dera e entreguei ao pai.

— É para você. Espero que goste — eu disse. Sem olhar, o pai pegou o envelope da minha mão, o seu dedo trêmulo ainda apontando. Atravessei a sala envergonhada.

Dei uma parada à porta e me voltei.

— Se alguém me procurar — eu disse —, estou lá em cima chorando, no fundo do meu armário.

 

 

                                                    Alan Bradley         

 

 

 

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