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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O TEMPLO DA DEUSA / Pearl S. BUCK
O TEMPLO DA DEUSA / Pearl S. BUCK

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Um poeta inspirado apaixona-se completamente e seu verdadeiro amor é para ele a personificação da Musa. Em muitos casos, a força da total paixão cedo passa, se a mulher não se preocupa em preservar toda a glória que lhe vem do conhecimento de sua beleza e a força que ela exerce sobre o seu poeta apaixonado. Ela cresce envolvida por essa glória, descuidando-a e terminará, de um modo ou de outro, como uma dona de casa ou uma vagabunda; ele, desiludido, volta-se para Apoio que, de qualquer forma, pode provê-lo com um meio de vida e inteligente passatempo, e sai da circulação antes da meia idade. Mas, a real, a perpetuamente obssessiva Musa do Poeta, faz uma distinção entre a Deusa, como revelada na suprema força, glória, sabedoria e amor de mulher e a mulher em particular, na qual a Deusa pode permanecer por um mês, um ano, sete anos ou para sempre. A Deusa Permanece!

 


 


PARTE 1

Ela estivera lendo durante um longo tempo e com luz fraca.
Finalmente, fechou o livro e recostou-se na sua poltrona.
Através da vidraça da casa, onde vivia sozinha, contemplou a montanha. O sol desaparecia lá no alto e seus últimos raios projetavam-se sobre o pico nevado e difundiam-se em tonalidades rosa vermelho. Abaixo ao pico pontos coloridos moviam-se; eram os últimos esquiadores deslizando e descendo os lisos e brancos flancos, até se perderem nas sombras da escura floresta na base da montanha. Logo estariam na hospedaria diante da grande lareira, secando seus úmidos vestuários ao calor, tomando drinques e jactando-se de suas proezas, depois iriam para os aposentos, banhar-se e trocar de roupa para uma noite informal. Eles jantariam lautamente e sentar-se-iam novamente diante da lareira, cantariam, falariam de esqui até que, já meio dormindo, iriam para seus leitos. Pela manhã levantar-se-iam para repetir o dia anterior. E ela, em sua casa, sozinha, devia agora preparar o seu próprio jantar,
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uma pequena costeleta de carneiro, uma salada, alguma fruta e depois de uma hora, mais ou menos, de música, iria para a cama no amplo dormitório que era metade estúdio. Mas antes, ela acenderia a lareira. Espreguiçou-se porém, olhando o branco pico incandescer-se, esvaindo-se em prata, depois em cinza e que se perderia finalmente dentro da noite, no céu, a menos que, pela graça do luar aparecesse novamente como uma visão de beleza. Esta noite a lua estava atrasada. Levantou-se, puxou as cortinas atrás dos vidros. Acendeu as achas de lenha na vasta lareira de pedra. "Grande, grande" Arnold havia dito quando ela desenhara o projeto da casa.
- Como irá erguer as achas? - ele lhe havia perguntado.
- Você as erguerá - respondera, risonha e marota. Ele não rira. - Poderei não estar aqui sempre - dissera.
Esse foi o primeiro aviso. Olhando para trás, recordando, ela compreendeu que ele sabia que estava condenado à morte, que veio dez meses mais tarde, uma morte cruel, dolorosa, aliviada apenas por pesados sedativos e final inconsciência. Todavia, ele não falou de morte durante seis meses e então, disse-lhe que esperava que ela se casasse novamente. Ele estava demasiado velho para continuar suportando-o através de todos aqueles anos de casamento. Ela havia negado isso prontamente.
- Jovens não me interessam - respondera-lhe rapidamente e com irritação, até que ele se foi.
Sim, ela havia insistido sobre a lareira e isso era verdade, aquelas achas eram muito pesadas. Quando Sam, o eletricista, um vermonter (1) e vizinho, não vinha aos domingos, fazia fogo de gravetos que ela podia apanhar.

N.T. i - Natural de Vermont - no Original

Mas, todas as outras manhãs, ele vinha acender o fogo, que ela exigia no verão e no inverno, porque o enorme salão sem a lareira, poderia, à noite, transformar-se numa caverna primitiva, e ela tornarse um animal perdido em suas sombras. Seu dia terminava com a extinção do fogo, mas ela acendia outro em seu quarto. Sempre adormecia antes da última chama extinguir-se.
Levantou-se para preparar o jantar, subitamente faminta, pois havia esquecido de comer ao meio-dia, absorvida em seu livro. Como fazia habitualmente, antes de sentar-se à mesa, ligou música estereofônica. Quando soube que Arnold morreria antes de terminar o ano, já mandou preparar a casa para morar sozinha.
- Estantes de livros ao longo destas paredes ao norte, por favor, Sam - ela havia ordenado. - Precisarei de muitos livros.
Ele resmungara arfante: - Por que quer tantos livros? Só vem aqui algumas vezes por ano.
Era verdade. Quando Arnold vivia eles vinham a Vermont por um mês, no verão e quando as crianças ainda eram pequenas, vinham para o Natal e para esquiar. Ela abandonara seus esquis quando Arnold caíra doente, não querendo abandoná-lo. Não voltara a esquiar, não ainda. Talvez nunca voltasse. No entanto, ela poderia viver na imensa casa velha em Filadélfia, onde havia nascido, filha única e onde ela e Arnold tinham vivido desde que seus pais morreram.
Sam fizera as estantes aqui na casa, em Vermont, atendendo a seu pedido, e ela as havia enchido com livros que sempre quisera ler, e que nunca tivera tempo enquanto Arnold vivera. E música, é claro; ela revivia em sua vida, agora solitária, não apenas a música dos grandes, mas seu próprio talento musical, adormecido
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após anos de atividades diárias como dona de casa, mãe e como esposa de Arnold. Abrira o piano depois que ele morrera e o deixara sempre aberto, um convite para praticar e alegrar-se, e descobriu no vale um exilado alemão, professor de música para dar-lhe lições novamente. Estava ávida, também, por idiomas, muitos idiomas. Queria aprender várias línguas e assim havia começado mais uma vez a estudar francês. "Primeiro francês" dissera a si mesma, pois sua avó fora francesa. Depois espanhol e italiano e talvez, alemão. Além disso, entre as muitas ocupações que preenchiam sua vida solitária, ela poderia escolher uma como profissão, embora Arnold lhe houvesse deixado muito dinheiro. Apreciava roupas e jóias, não por elas mesmas, mas como parte da mulher e qual seria sua profissão?
A amplitude da música aumentava e elevava-se até as altas vigas.
- Você jamais conseguirá que essas vigas ergam o telhado - Arnold lhe dissera.
Eram cedros cortados da floresta que rodeava a casa em três lados. Ela havia ordenado que fossem descascados e expostos ao tempo, ao sol, à neve e à chuva até envelhecerem num tom cinzento prateado.
- Farei com que ergam - ela insistira e assim fizera. Sam e um mestre de obras, juntamente fabricaram uma possante alavanca, com cordas e guindaste.
A casa, ela própria projetara e nela não havia quarto nenhum para crianças. Casara-se cedo e cedo tivera seus filhos e havia sido uma boa mãe. Tinha visto seus filhos crescerem e tornarem-se adolescentes, um filho e uma filha e então, um tanto cedo demais casaram-se. Agora pensava neles como amigos, à parte de si mesma, homem e mulher com seus próprios interesses. Vivia separada deles precisando descobrir se sua vida tinha significado mais do que casamento e maternidade. Havia
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exercido ambas as funções de um certo modo reservado, mas havia tempo para tudo, e o tempo havia chegado para algo mais.
A despeito da música, no meio do "andante" ela ouviu uma forte batida na porta. Voltou-se e através do vidro da porta, viu a figura de um homem em traje de esqui.
- Você não devia ficar tão sozinha - seus filhos haviam dito. Toda a região está mudando. Agora que a montanha está sendo franqueada, toda sorte de pessoas...
Ela deixou o balcão, que precisava tanto como de uma cozinha, no entanto, Arnold tinha profetizado que cedo ela estaria cansada de tudo, menos de um balcão.
Você quererá voltar aos seus criados e à casa grande - ele lhe dissera.
Mas ela estava contente de se sentir livre, ao menos por enquanto, da presença opressiva dos criados, e o que ela queria comer era facilmente preparado no balcão, em um canto do imenso salão. Ela olhou então através da porta de vidro. A luz da lâmpada sobre a mesa do jantar iluminou a face do homem, uma face jovem, de olhos negros brilhantes, feições marcantes. Abriu a porta.
- Entre - disse.
Ele sacudiu a neve de suas botas e deixou seus esquis e bastões contra o muro de pedra, fora da casa. Depois, entrou.
Ele hesitou, sorriu, estendeu a mão.
- Sou Jared Barnow - disse. E não sou atrevido, apenas desesperado.
- Sim?
- Digo-lhe que você tem o único aposento vazio no povoado e eu não tenho nenhum lugar para descansar minha cabeça! Não tinha nenhuma idéia de que a região fosse tão povoada. Sou sozinho e pensei que
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não me seria difícil encontrar um lugar para um homem solitário.
Seu sotaque era bom, ele era educado, mas...
- Isso poderá ser muito inconveniente, eu receio - ela disse francamente.
Ele ficou parado olhando-a, esperando, seus olhos escuros, inteligentes inquirindo.
- Eu nunca recebo estranhos em minha casa - ela falou. E então, sob um impulso de solidão ela entrou. - Deixe suas coisas e venha comer qualquer coisa, ao menos.
- Obrigado.
Ele tirou sua jaqueta e um grosso sueter e ela viu que era esbelto, bem acima da estatura média, mas de elegante, sólida aparência movendo-se rápido, seus cabelos louros sobre os olhos escuros.
- Quererá lavar-se antes - ela disse - aquele é o quarto de meu marido e o seu banheiro... era, digo. Ele está... não vive.
Ele foi para lá sem replicar e ela pôs mais duas costeletas no forno e arrumou outro lugar à mesa.
Eu não tenho muitos feridos - ela estava dizendo uma hora mais tarde.
Se havia reparado que ela havia trocado para um vestido de lã vermelho, sem mangas, mas longo até o tornozelo e fechado até o pescoço, não deu sinal nenhum. Estava comendo com concentrado entusiasmo.
- Você foi estudante.
Ele ergueu os olhos.
- Como soube?
Ela sorriu. - Não parece uma pessoa deprimida, mas come depressa, termina de comer antes que os outros. Isso quer dizer rapazes.
- Posso ser do Exército.
- Acho que não. Tenho um filho e sei.
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Ele riu. - Tem razão. Estudante. Universidade. Terminei quando estava com vinte anos.
Estava acostumada com jovens taciturnos, mas ele não era tão taciturno quanto absorto. Um jovem ingênuo, ela supôs, com um objetivo. Possuía mãos finas, observou, bem cuidadas sem serem frágeis, mãos masculinas, os dedos fortes, as palmas grandes. Parecia jovem demais para ser seu filho... não que ela quisesse mais filhos!
- O que você faz? - perguntou-lhe.
Ele empurrou de lado seu prato vazio. - Para viver ou por passatempo?
- Ambos.
- Tenho sorte - ele disse - O que desejo fazer para viver é também passatempo.
- E o que é?
- Suponho que não saiba nada sobre eletrônica.
- Conheço a palavra. Meu pai foi um físico. Ele animou-se subitamente. - Não! Como era o nome dele?
-Mansfield. Raymond Mansfield.
- Não o...
- Sim.
- Eu digo! - deixou cair seu guardanapo. - Sorte incrível! Bato numa casa e encontro a filha de Raymond Mansfield!
- Mas é demasiado jovem para tê-lo conhecido.
- Estudei seus livros. Deus, quisera que ele vivesse! Ele saberia o que desejo fazer.
- O que?
Fitou-a ousada e arrojadamente. - Como posso saber que poderá me compreender?
- Eu poderei.
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- Bem, sou engenheiro, uma espécie de super engenheiro, suponho. Mas eu... meu verdadeiro trabalho é inventar. Tenho coisas que inventei.
- Que espécie de coisas?
- Bem... - fitou-a e interrompeu-se bruscamente, - Elas não lhe interessam. Não podem interessar a mulher nenhuma.
- Eu posso ser diferente.
- Sim, suponho.
Ele ergueu-se, foi até a lareira e ficou parado olhando as chamas.
Ela pediu-lhe: - Importa-se de colocar uma acha? A caixa de lenha está naquele canto.
- Isto é uma caixa de lenha? Pensei que fosse um armário, algo assim.
- Está rindo de mim. Bem, permito-lhe. Tenho a mania de grandeza.
Ele foi buscar a acha, escolhendo a maior e mais pesada e atirou-a ao fogo. Uma fonte de faisca ergueu-se. - Você não é tão grande. Quem toca piano?
- Eu toco.
- Eu também.
Sentou-se e sem esforço tocou uma parte de uma Sonata de Beethoven. A meio caminho entre a mesa e a pia, com as mãos cheias de pratos, ela o ouvia e estava surpresa. Um músico, um autêntico, tocando como não ouvia tocar desde que seu pai morrera. Tocando com precisão, elegância e seriedade! Ninguém realmente compreendia música a menos que fosse um cientista, seu pai havia dito, e não somente um cientista! De nenhum modo! Somente os verdadeiros, os teóricos, cuja linguagem era matemática. Ela não compreendeu matemática até que ele lhe explicou que era a linguagem da comunicação. - E comunicação - ele dissera - contém o principal significado da vida.
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Ela largou os pratos com cuidado e foi para a poltrona nas pontas dos pés. Ele tocou até a última parte antes do final. Então, parou bruscamente e voltou-se para ela. Não toco o final. Não é autêntico. Beethoven nunca soube como terminar a grande música e ele apenas a interrompeu ou cessou com um inesperado acorde. Tinha de terminá-la de algum modo.
Ela riu. - Você é um blasfemo, mas tem razão. Isso é o que muitas vezes pensei mas não ousei dizer.
Ele percorreu o aposento, inquieto, e foi até a janela. A face da lua cheia estava brilhando sobre o horizonte.
- Vive aqui o ano inteiro trancada?
- Não... só desde que meu marido morreu.
- Sozinha?
- Sim.
- Sem filhos?
- Ambos casaram e estão vivendo suas próprias vidas... graças a Deus!
- Não gosta de crianças?
- Adoro-as, mas qualquer mulher que se preze, gosta de ver seus filhos donos de si mesmos. Então ela sabe que fez um bom trabalho.
- Você não parece... maternal. Ela desconversou. - Sua mãe é viva?
- Não, nem meu pai. Não me lembro deles. De fato, nunca os conheci. Ele parou no piano e repetiu alguns trechos da Sonata, depois interrompeu-se de novo e foi até a lareira, onde ficou contemplando as altas chamas crepitantes dentro da chaminé. - Eu cresci com um tio, um velho solteirão, que sempre parecia surpreso de ver-me em sua casa, apesar de eu estar lá há tanto tempo.
- O que ele é?
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- Aposentado... desde que me recordo. Afável e confuso... escreve livros sobre a poesia clássica francesa, que ninguém publica, mas isso não o preocupa. Tem sido muito bom para mim, especialmente porque não tem idéia sobre o que me ocupo. Minha mãe era sua irmã.
Ele murmurou isso abstratamente, como se pensasse estar falando sobre alguém mais.
- Você é casado? - ela perguntou.
- Não, mas penso nisso... agora e sempre.
- Já escolheu a moça?
- Bem, ela escolheu-me, poderia dizer.
Ela riu de novo. Vivendo só, rir era o que desejava. - É assim que se faz atualmente?
- Uma boa coisa - ela disse, sem sorrir. - Duvido que tivesse tempo para eu mesmo escolher. Minha espécie de trabalho absorve a mente.
- E o coração...
Ele olhou para o seu relógio. - Diga, importa-se se eu for para a cama? Levantei-me muito cedo e como tenho de sair cedo para a montanha... se isso não a aborrecer. Posso preparar meu desjejum. Devo colocar outra acha?
- Não - ela respondeu. - E eu me levanto cedo também.
Separaram-se então, com um aceno e um sorriso e depois de limpar a mesa e lavar os pratos, ela sentou-se ao piano e tocou suavemente, enquanto o fogo morria na cinza.
Depois, mais tarde, quando terminou seu ritual de banho e de escovar seus longos cabelos, já deitada na enorme cama, em seu próprio quarto, o fogo crepitando sobre o coração de pedra, completando o fim de mais um dia, ela tirou o telefone do gancho e discou sete números; aguardou até escutar a amável e velha voz.
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- É você, minha querida? - a voz indagou.
- Sou eu - ela disse.
- Estive esperando por você... uma longa noite, esperando.
- Você está só?
- Sim, Henry saiu para um recado na vila. Estive relendo meu ensaio sobre mito na mente coletiva. A fronteira entre mito e realidade é muito delicada. Mito é o sonho, a esperança, a fé, a visão de possibilidade que cresce naturalmente dentro de planejamento, e assim, possibilidade está muito próxima, sem dúvida, da realidade. Pode, deveras, a qualquer momento, tornar-se realidade e essa é a sua inefável magia, seu atraente encanto. Não a aborreço, meu amor? Sou companhia só para mim mesmo, receio, porém, você nunca saberá o que representa para mim atualmente... Rei Davi e sua Betsabá... Duvido que falassem, você entende! Imagino só o que foi o ardor do jovem corpo dela contra o dele... não precisavam falar. Dispensavam isso, eu digo..
Ele interrompeu-se em meio a uma risada e ela riu com ele.
- Está rindo de mim? - ele indagou - Eu não me importo querida criança... contanto que a faça rir.
- Não estou rindo de você - ela respondeu. - Estou pensando em como serei alegre quando for mais velha. Também poderei dizer tudo que gosto. Tomou seu remédio hoje?
- Oh, sim... Henry cuidou disso.
- Onde você está agora?
- Se quer saber, sua mulher curiosa, estou justamente saindo do banho, embrulhado numa grande toalha, pingando água no chão.
- Oh, Edwin - ela protestou. - Você é incorrigível! Sim, você é! Conversando comigo enquanto apanha
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um resfriado! Ponha seu pijama imediatamente e vá para a cama! Está usando o de flanela?
- Sim, querida. Henry guardou os de verão. Ele os guardou no primeiro dia de outubro, como de costume e então, o calor, verão indiano, você sabe... mas ele não quis saber de trazê-los de volta, assim terei de tostar até a neve cair. Mas, você sabe tudo isso. Espero que tenha esquecido que amanhã é o meu aniversário.
- Esqueci quantos anos tem, se foi o que quis dizer.
- Setenta e seis, meu querido amor e ainda sinto uma agitação em minhas partes centrais, quando ouço sua voz.
- Edwin!
- Você me condena?
- Boa noite, boa noite... e eu repito... você é incorrigível!
- Deus a abençoe, querida. Quando virá me ver?
- Breve... muito breve.
Ela colocou o fone no lugar novamente e recostou-se em suas almofadas, sorrindo. Como poderia explicar a alguém o conforto de saber que ela era o incentivo de um velho filósofo de bondoso coração? Isso porque ela havia sentido muito quando Arnold morrera. Tinha deixado de ser completa com alguém, quer dizer, é claro, que sexualmente ela o era, completa com qualquer homem. Ainda que Edwin Steadley não agitasse nenhuma parte central dela, permitia que ele a amasse, embora de que fosse composto o amor em tal idade, ela não soubesse. Talvez isso fosse apenas uma fórmula, palavras com as quais ele havia se acostumado tanto em trinta anos de feliz matrimônio com Eloise sua esposa, falecida há vinte e quatro anos, que as palavras haviam se tornado um hábito. Quão longo tempo poderia ser contado em termos de sua própria vida, porque quando
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Eloise morrera, ela era uma jovem de dezoito anos, teimando com sua mãe para deixá-la cortar seus longos cabelos. Pensava em Edwin como num homem velho desde então, embora, na realidade ele estivesse no apogeu de sua carreira, como filósofo famoso e ela fosse sua aluna no colégio.
Elegante e viril, pensava dele, a despeito de sua idade, e cheio de um encanto que ela não associara com filosofia até conhecê-lo. Quanto disso fora contribuição de Eloise, seria difícil imaginar, mas um grande negócio indubitavelmente, porque ela havia sido positiva e ardente, e furioso no amor com ele, desenvolvendo, sem dúvida, todo o seu elemento sexual. Pensava nisso porque Arnold tinha-a desenvolvido do mesmo modo, trazendo-a para fora de sua timidez virginal, para a sua completa feminilidade, tanto que, desde que ele morrera, ela sentira as correntes de sua sensualidade paradas e protestando. Sim, a original, delicada posse. Ela queria ainda ser desejada e não desejar. O fogo estava morrendo em seu quarto e ela adormeceu.
Jared Barnow saira e tão rapidamente o tempo havia passado, que ela não pode acreditar quando o relógio bateu nove horas da manhã. Eles haviam conversado à mesa do desjejum, até que de repente, o relógio no canto tinha dado a hora e ele se pôs de pé.
- Meu Deus, eu vim para esquiar! Você me fez esquecer! Deixe, eu a ajudarei com os pratos.
- Não, não...
- Mas, é claro...
Por fim ela o persuadiu e o tinha visto sair; então lembrou-se e o chamou. - Volte se não achar nada próximo para escalar!
- Obrigado - ele respondera.
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Olhou-o descendo a colina para a estrada do vale a qual, numa volta o conduziria acima, a área de esquiar na montanha fronteira à sua janela. Quando o perdeu de vista na sombria floresta, ela voltou ao salão. Estava estranhamente vazio, um aposento demasiado amplo, como Arnold sempre lhe dizia.
- É um salão para perder-se nele - ele disse, uma noite quando as chamas espalhavam sombras nos cantos distantes e inesperadamente, agora que o sol estava brilhando através das janelas, ela sentiu-se perdida.
Terminou os pratos e depois foi ao quarto que tinha sido de Arnold, mas que era agora de seu hóspede. O leito estava arrumado, e tudo em ordem. Então, ele havia planejado voltar? De outra forma, teria deixado o leito desfeito, ou ao fazer a cama teria deixado os lençóis de lado. Por que continuava pensando nele? Resolveu telefonar para Edwin, e contar-lhe sobre o hóspede e assim, tranqüilizar-se, talvez. O muito que aprendera sobre o viver sozinha, era que poderia confundir-se sobre algo e aborrecer-se com isso, mesmo não tendo feito nada de mais.
- Não obstante, eu não deveria usar Edwin unicamente para tranqüilizar-me - murmurou e foi até o telefone, apanhou o receptor e discou. "Dez horas?" Ele devia estar em seu gabinete, escrevendo suas memórias, a história de uma longa e marcante vida, passada entre famosos homens de letras e estudos. Escutou a voz dele, no fone, em seu ouvido: - Sim, quem
- Sou eu.
- Oh, minha querida! Como é maravilhoso ouvi-la no início do dia.
- Eu não devia interromper seu trabalho mas, precisava ouvir a sua voz. A casa parece vazia.
- Isso me faz feliz, você precisa de mim.
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"Não, isto não é próprio de mim!, ela pensou - Usá-lo porque perdi alguém. E além do mais, isto é impossível, que eu tenha perdido alguém que só encontrei ontem e esse alguém, um homem jovem o bastante para ser meu filho. Isso é apenas porque não consigo acostumar-me a viver só... não ainda."
- Quando virá me ver? - a voz indagou ao telefone.
Isso havia sido combinado há muito tempo, sem palavras, que, quando se encontrassem ela é quem deveria ir até ele. Os riscos da viagem eram demasiados para ele agora, mas por outro lado, o fato era a sua própria propensão de manter sua casa ciumentamente para si mesma. Mesmo seus filhos não eram bem-vindos atualmente, preferindo acomodá-los na vizinha casa de hóspedes. Esta casa era sua, inviolável, desde que Arnold se. fora! Houve tempos, os quais ela não queria reconhecer, que mesmo ele, algumas vezes havia sido um intruso. Mas não se conhecera a si mesma, senão quando ficou só.
Antes de sua viuvez, havia sido filha e irmã, esposa e mãe, dividindo-se esforçadamente, ainda que de bom grado, porque havia desfrutado cada parentesco e entesourado suas memórias. Agora estava vivendo consigo mesma e para si mesma, como se, no entanto, fosse uma estranha, descobrindo novos gostos e diferenças, novas habilidades. Livros, por exemplo... ela pensara em livros como diversão e passatempo. Agora, sabia que eram comunicação entre as mentes, a sua própria e a dos outros, vivendo e morrendo. Tal comunicação era fonte de aprendizado e ela possuía uma sede de aprender, revivendo depois de anos de trabalho de vida matrimonial.
- Eu tenho um hóspede - ela lhe disse então.
- Quem é ele?
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Ela ouviu o eco do ciúme na voz de Edwin e ficou surpresa.
- Está com ciúme?
- Claro que estou!
- Mas isso é absurdo.
- Não, apenas natural. Estou apaixonado por você.
- Isso é tolice.
- Não, somente realidade. Deixe-me dizer-lhe uma espantosa verdade sobre o ser humano. Você é muito moça para saber, mas eu sei. A capacidade de amor é o segredo da vida. Tanto quanto alguém pode amar, realmente amar outro ser humano, a morte espera à distância. É somente quando a capacidade de amar deixa de existir, é que a morte vem cedo. Eu lhe agradeço, minha querida, por deixar-me amá-la. Isso mantém a morte longe de minha porta.
Ela ouviu como sempre ouvia, aceitando e crendo. Ele ainda era o mestre e ela a aluna. - Você exagera a meu respeito - ela respondeu. - Isso é muito gentil.
- Bem... - ele continuou - quem é seu hóspede?
Ela contou-lhe resumidamente, quase indiferente, terminando com estas palavras: - E provavelmente ele não vai voltar. O fim da semana termina hoje, ele achará outro lugar para ficar.
- Assim espero - ele replicou. - Não gosto de você sozinha na casa com um estranho. Ninguém sabe, atualmente... e você é uma mulher bonita.
Arnold não era de elogiar o que via e ela nunca estivera certa de sua própria beleza. Ele havia sido ciumento, sim, mas sem motivo, e, visto que ele era possessivo ocorreu-lhe então, que talvez ela sempre tivesse sido bonita e ele não ousara dizer-lhe.
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- Isso é apenas o que você pensa, Edwin - ela respondeu. - mas ainda gosto de ouvir isso, sendo no íntimo de meu coração uma mulher vaidosa.
- Não deve pensar assim de si mesma. Eu sempre a achei bonita. Lembro-me da primeira vez que a vi. Foi num dia de setembro, e sua cabeça de um vermelho dourado escuro, estava brilhando entre as cabeças castanhas, negras e louras dos homens. Eu a observei então, sem nenhum pensamento em mente, de que um dia você se tornaria minha vida. Eu vi seus olhos, claros, inteligentes. Essa é a minha aluna prêmio, pensei... como você o foi. E comecei a planejar, como poderia mantê-la em meu departamento, mas falhei porque aquele velhaco Arnold Chardman, desposou-a demasiado cedo! Quase chorei no dia em que veio me contar, lembra-se?
Ela lembrava. Era verdade que havia se casado muito jovem, mas estava tão contente que nem havia reparado nos olhos do professor, apenas no seu silêncio.
- Não vai me desejar felicidade? - havia perguntado.
Lembra-se da longa pausa antes de ele responder.
- Desejo que seja feliz. Acharia a sua felicidade em muitos caminhos. Mas agora está certa de que ela está no casamento. Bem, talvez esteja. Mas tempo virá em que ela estará em algo mais.
- Contanto que não esteja em ninguém mais - ela dissera alegremente.
Não limite a felicidade - ele lhe respondeu sério.
- Podemos encontrá-la onde a buscamos.
Não tornaram a encontrar-se durante anos, e ela o esqueceu. Então, um dia, logo depois de Arnold haver morrido, entre as muitas cartas de condolências, ela achou a dele. Escreveu-lhe como se se houvessem separado apenas no dia anterior.
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- Lembra-se - ele escrevera - lembra-se do que lhe disse sobre felicidade? Uma felicidade passou, mantenha-se preparada para a próxima seja ela qual for. Se não a vê no horizonte, então deve buscá-la onde está. Enquanto viver poderá encontrar a felicidade, se a procurar ou criar para si mesma. Talvez a busca em si, seja felicidade.
Tinha sido uma longa carta, falando de si mesmo e do futuro, de vida e não de morte. Sim, ele também tinha conhecido a morte, ele a fez lembrar, porque Eloise, sua esposa, havia morrido há muitos anos passados. Atualmente ele vivia sozinho, em sua casa no campo, que fora sua casa de verão, e estava escrevendo livros.
Ela respondera com uma triste e breve carta, simplesmente dizendo-lhe que tinham sido as mais confortadoras palavras que havia recebido, "mas que não havia felicidade no horizonte" - e finalizara - "não descubro nenhuma centelha criativa em mim".
Depois ele lhe enviara um telegrama convidando-a a visitá-lo e ela fora só para encontrá-lo dentro de uma casa cheia de muitos filhos e netos, visitantes temporários, entre os quais ela sentou-se como uma hóspede vagamente bem-vinda, mas de nenhuma importância. Foi ele quem a fez importante, escolhendo-a para sua dama de companhia, para permanecer ao seu lado, qando os outros saíram para passear juntos. Sozinhos na vasta, ampla casa da família, ele falara e ela o ouvira. Estava escrevendo um livro sobre imortalidade e falou-lhe do que escrevia. Ouvira-o com profundo interesse porque Arnold não acreditava na vida além da morte. No meio da sua angústia, quando ele estava morrendo, ela admirou sua firme coragem.
- Estou bem perto do fim - ele dissera - E isto é o fim, minha querida. Permanecerá apenas minha
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gratidão... por você. Por sua infinita dedicação... meu obrigado!
Aquelas foram as suas últimas palavras coerentes, porque ele fora vencido pela dor e na inconsciência da agonia, morrera algumas horas mais tarde. Na sua primeira noite, sozinha no casarão em Filadélfia, que era atualmente sua apenas, havia ponderado sobre as palavras dele. Era verdade, podia ser verdade, que nada dele permanecera, exceto o corpo sepultado no cemitério da igreja onde seus ancestrais repousavam? Estava confusa, de uma certa forma, entre tais pensamentos, incapaz de chegar a uma conclusão, igualmente desejosa de crer que ele estava certo, e também compelida a temer que estivesse. Ela não tinha nenhuma prova de imortalidade, mas ele não havia tido nenhuma prova contra isso também. Nessa disposição mental, ela sentia-se inclinada e realmente desejosa de ouvir o que Edwin tinha para dizer-lhe.
Ele fez isso como um relatório, um dia, em sua primeira visita. Sentaram-se no terraço, contemplando a montanha distante e o mordomo trouxera-lhes chá com fatias de bolo, e colocando a bandeja sobre a mesa entre os dois, retirara-se novamente. A sós, ela ousou discordar dele. Debruçada sobre sua xícara de chá ela sacudiu a cabeça.
- Você discorda? - ele perguntou-lhe surpreso.
- Até os animais conhecem seu fim e o temem. - Ela havia replicado. - Veja como loucamente eles tentam escapar da morte. Podem não ser capazes de raciocinar ou pensar, mas lutam contra a morte. Já viu um coelho preso nas mandíbulas de um cão? Até o último fôlego ele luta contra a morte. Um peixe puxado fora d'água lutará para viver. Animais temem a morte e se a temem, a conhecem.
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Ele a ouvira surpreso e satisfeito. - ótimo pensamento! - respondera. - Mas não confunda instinto com consciência.
Ela refletiu sobre isso e depois indagou - Qual é a diferença entre o animal e o ser humano?
- Consciência de si mesmo. O ser humano confirma-se a si mesmo porque conhece seu próprio ser. Os animais, não. Eles não separam a si mesmos do nada.
Tinham se tornado estranhamente íntimos mesmo naquela primeira visita e com o passar do tempo, crescera entre eles mútua dependência de um sobre o outro, porém, ela reconhecia que, o que sentia por ele não era amor, apenas amizade. Da parte dele isso era francamente amor, amor de um homem velho, cuja natureza não era muito clara para ela. Fosse o que fosse, o amor era carinhoso e ela aderiu por sua persistência. Ele era mais sábio do que ela e isto também era bom. Nunca apoiara-se em alguém, porque Arnold, cedo compreendera, nunca seria capaz de conhecê-la completamente. Eles foram compatíveis mas ela era a inteligente. A voz de Edwin tornou a chamá-la: - Ainda está aí, Edith?
- Sim, oh, sim - respondeu-lhe prontamente.
- Então não estava me ouvindo.
- Não muito - ela confessou.
- Estava sonhando?
- Apenas pensando... sobre nós dois.
- Ah, então eu a perdôo. E obrigado! Não é bom para mim sentir ciúme, você sabe... em nenhuma idade...
- Não precisa. Agora volte ao seu trabalho, querido.
Desligou o telefone e voltou a olhar o dia. Um brilhante e ensolarado dia, os brancos declives enfeitados
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com movimentadas figuras, e ela perdendo esse divertimento. Uma multidão de pequenas tarefas esperando, uma terrina de prata para ser polida e enchida com frutas, a viagem até o armazém da vila que ela adiaria, assim poderia sentar-se à janela e observar de novo o lado da montanha, imaginando qual daqueles coloridos pontinhos voadores poderia ser Jared Barnow. Nunca havia conhecido alguém chamado Jared e o estranho nome aumentava sua atração. Algo novo, alguém novo tinha entrado em sua casa a noite passada.
...Quando o sol se escondeu e sombras desceram sobre a montanha, permanecendo apenas o pico rosa vermelho contra o céu, ela preocupou-se com o jantar. Para dois? Ou somente para si mesma? Não queria arrumar a mesa até que soubesse. Entretanto, preparou bastante comida... duas tenras costeletas, a maior para ele. Então ouviu seus passos ecoando lá fora na neve e ele abriu a porta sem bater.
- Voltei - ele disse.
- Eu o estava esperando.
Caminhou para ele enquanto falava e para sua surpresa e de algum modo para seu horror, sentiu um impulso de abraçá-lo. Conteve-se. Como poderiam absurdas solidões subjugá-la? Devia manter-se em guarda. Uma nova experiência esse impulso, porque até então estivera em guarda somente contra outros, e seu próprio tédio... Frieza, Arnold algumas vezes chamara a isso, quando se zangava com ela, até agora tinha sido sua arma. Em seu próprio íntimo sabia que não era fria, indiferente, talvez, dentro de um vazio que nunca havia repartido com ninguém, um vazio interior.
- Voltei, como vê - ele repetiu.
- Não teve a sorte de encontrar um quarto?
- Não tentei - disse-lhe desamarrando as botas.
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- Alegro-me - ela respondeu. - Isso me faz sentir uma parte da vida na montanha.
- Nunca esquiou?
- Oh, sim! Adorava isso quando era jovem.
- Nunca é tarde, você sabe.
- Temo que seja.
- Absurdo! Você aparenta... uns vinte e cinco, creia!
Ela riu. - Acrescente dez e depois mais sete. Tenho quarenta e dois.
- Não!
- Sim!
- Nunca volte a mencionar isso! - ele ordenou-lhe. Levantou-se e encaminhou-se para a porta do quarto de hóspede. - Só vou me lavar um pouco... pentear meu cabelo...
- Está tudo pronto - ela disse. Ele parou - Você me esperava?
- Esperava.
Trocaram um olhar; ele entrou no quarto e fechou a porta. Ela parou indecisa. Deveria pôr o seu vestido justo de lã verde escuro? Mas se o vestisse, ele suspeitaria de alguma absurda coqueteria? Decidiu não pôr e alegrou-se, porque meia hora mais tarde, ele sentou-se e começou a comer com uma auto-segurança e num silêncio que era quase ingratidão, ela pensou. Ele era apenas jovem, concluiu, observando-o... jovem e realmente faminto. Seria um absurdo vestir seu vestido vermelho, longo, ou o preto bordado em prata, unicamente por esse guloso rapaz.
- Quanto tempo vai ficar na montanha?... perguntou por fim para quebrar o silêncio. Não, estava preparada para a partida dele, seu orgulho ferido, lembrando o louco impulso ao qual resistira.
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Devo voltar amanhã.. respondeu-lhe... Tenho um trabalho no laboratório. Bem, é mais do que isso. É uma oportunidade... uma chance, ao menos para inventar, descobrir.. fazer algo por minha própria conta, talvez.. Brinstead Eletronics.
- Uma ótima firma.. ela disse.
- Conhece-a?
- Meu pai foi uma espécie de consultor.
- Quisera tê-lo conhecido!
- Ele morreu antes que você tivesse idade bastante para conhecê-lo.
Ás palavras aguilhoaram seu coração com uma repentina mágoa de si mesma. Quando ele nascera, ela já havia saído da infância, era uma garota que discutia com sua paciente mãe, sobre saias longas ou curtas e que defendia seu direito de chegar em casa depois da meia-noite, quando saía com Arnold.
- Todo o mundo o conhecia.. ele estava dizendo.
- Suponho que sim
Porque era difícil falar. Sentiu-se deprimida e afastada, quase hostil contra ele só porque era tão jovem. Ainda na noite passada a conversação entre eles, tinha fluido fácil e com compreensão. Ergueu a cabeça involuntariamente e compreendeu que fizera isso apenas porque ele a estava fitando com seus olhos muito escuro sob suas sobrancelhas. Quando seus olhos se encontraram ele disse bruscamente: - Eu gosto de você. Não apenas por ser bonita. Estou acostumado com isso. A garota com a qual eu namoro é muito bonita. Mas você tem algo...
Interrompeu-se e ela riu de si mesma.
- Idade.. isso é tudo!
Ele não replicou com zombaria. Ao contrário, falou quase com irritação: - Queria que não falasse de idade! Envergonho-me de ser... tão jovem. Sempre
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fui muito jovem para o que quis fazer... Muito jovem para ir ao colégio, muito jovem para um emprego. Eu fugi quando tinha quinze anos, só para passar o tempo até ficar mais velho. Terminei o colégio muito jovem. Sempre fiz todas as coisas muito jovem.
- Por onde andou?
- Eu viajei... vadiei, melhor dizendo... pelo mundo por dois anos.
- Então agora você tem...
- Vinte e quatro anos.
Ela conteve-se novamente. - Conte-me sobre sua garota.
Ele franziu as sobrancelhas e virou a cabeça em direção à janela. Sobre a borda da montanha uma delicada lua nova surgira suspendendo-se um enfeite no céu.
- Ela não é minha garota exatamente... respondeu-lhe ainda irritado.
- Porque não?
Ele empurrou o prato de lado, levantou-se e foi até a janela. Ali ele ficou olhando a sombria montanha e a lua suspensa.
- Estou numa estranha situação... ele disse.
- Sim?... a voz dela era um incentivo.
- Sou muito jovem para o que desejo fazer, mas também sou muito velho para... para garotas.
Um momento de silêncio ergueu-se entre eles, como a delicada, a inquieta lua nova brilhando entre as nuvens que erguia-se agora acima da montanha.
- Eu não entendo agora o que quer dizer... ela disse finalmente, com sua voz suave.
- Eu não entendo também... respondeu-lhe abruptamente; voltou à mesa e sentou-se.... Mais café, por favor. A propósito, qual é o seu nome? Seu primeiro nome...
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- Edith.
Edith - ele repetiu. - Edith? Jamais conheci alguém com esse nome. Minha mãe tinha um nome bobo... Ariadne. Contudo é um tanto doce. Como eu disse, não me lembro dela, mas meu tio disse que era uma pessoa meiga.
- Que aconteceu com eles?... ela perguntou com a mesma voz gentil.
- Morreram num acidente de carro, quando eu tinha dois anos. Ainda pareço lembrar-me de alguém como minha mãe, alguém suave, linda... mas provavelmente, não me recordo verdadeiramente... é só um sonho, talvez, ou mesmo pura imaginação.
- E não houve ninguém para tomar o lugar dela?
- Não. Meu tio nunca se casou. Eu não lhe contei? Eu acho que ele tem uma amante escondida por aí em algum lugar. Nunca discutimos tais assuntos.
- Ninguém jamais ocupou o lugar de sua mãe?
- Nunca procurei ninguém. Mães são insubstituíveis, não são?
- Sim... ela respondeu com firmeza e depois de um momento... Mas e a garota? Ela é mais jovem do que você, realmente?
- Não muitos anos... mas de outro modo - Ele encolheu os ombros ligeiramente... Também ela é muito viva, inteligente, tudo isso. Mas sou muito velho para ela. Sou muito velho para mim mesmo. Sou um fardo até para mim mesmo.
- Ela riu. - Oh, deixe disso!
Ele não replicou com risada. - Sim, eu sou isso. Estou interessado em muitas coisas, não em pessoas. Tenho muito a fazer! Não tenho tempo para... para casamento e coisas assim, e é isso que as garotas querem.
- Ela está apaixonada por você?
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- Ela diz que sim.
- E você?
- Eu? Quando estou com ela, sou bastante normal para sentir-me excitado, você sabe! Mas o meu velho "eu" sabe melhor. "Você se entediará dela!" Isso é o que ele me diz... Sou um louco?
- Não. Apenas sábio.
- Eu poderia agir com menos sabedoria.
- Não diga isso. Isso lhe serve como um instrumento para a realização.
- De que?
- De tudo isso que você quer realizar.
- Penetrar os segredos do universo!
Ele inclinou-se para a frente, cotovelos sobre a mesa, seus olhos brilhando nos dela, e ela sentiu-se confortada, até alegre, por uma vaga razão que não desejou compreender.
- Devo ir amanhã cedo... ele disse abruptamente, e dessa maneira foi para o piano e começou a tocar.
Neve caindo sobre neve, no silêncio e no frio. Isso começou quando ele deixou a casa no domingo seguinte, o céu cinzento e a montanha no meio das nuvens, na névoa. O inverno caíra sobre a costa oriental. Em Filadélfia também estava nevando, seu rádio havia anunciado.
- Odeio deixar esta casa aquecida... ele disse. Parou na porta, embrulhado em seu grosso casaco de pele, o capuz jogado para trás.
- Está deixando seus esquis no porão. Isso quer dizer que você voltará... ela disse.
- Sim, mas quero dizer esta manhã.
- Esta manhã... ela repetiu.
Ela não poderia dizer-lhe o que estava pensando, o que sempre pensava quando a neve estava caindo.
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Arnold jazia debaixo da neve! Claro, estava acostumada agora, se ela jamais se acostumasse, isto é, e porque deveria ser o inverno? Na primavera podia contemplar seu túmulo sem agonia e no outono as leves folhas caindo dos bordos de uma árvore perto de seu túmulo no cemitério da cidade, quase alegremente. Mas no inverno? A consciência de sua morte desolador a e total viera com a primeira nevada e ela estava sozinha nesta casa. Tinha parado junto à janela aberta e batido com o punho de sua mão direita, cerrado, lágrimas correndo pelas faces. - Oh, Arnold, você jaz sozinho sob a neve!
Algo daquela desolação caiu sobre ela agora. A casa estivera cheia hoje, da presença dele, jovem e estranha, ainda que não fosse tão estranho para ela, nunca houvesse sido ou pudesse ser. Algo os identificava, algo mais do que a música, mas, o que? Ele estivera muito alegre nessa manhã, quase pensou que estivesse alegre por partir, até o momento em que, parou, alto, acima dela e ela viu uma expressão em seus olhos, alarmante e inacreditável.
- Sim, eu gosto de você... ele disse e tão de repente, como se pensasse ter feito uma descoberta, que ela riu.
- Agradável ouvir... respondeu alegre. - E, é claro, você voltará. A única pergunta é, quando?
- Eu a deixarei saber.
Parou fitando-a e depois, bruscamente, voltou-se e deixou-a, fechando a porta firmemente às suas costas. Ela hesitou por um instante, olhando a porta fechada. A casa estava silenciosa sobre ela, e vazia.
- Os crepúsculos são sempre belos quando você está aqui... Edwin disse.
Ela estava sentada junto à mesinha redonda no vão da janela da casa dele, na ampla e quadrada sala
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de estar. À distância, montanhas, enfileiradas, erguiam seus agudos picos contra o resplandescente céu do oeste.
Era o seu lugar habitual, quando estava nesse velho casarão, ao anoitecer e raramente perdia um pôr de sol quando o céu estava claro. Hoje, o segundo dia de sua visita, estava muito claro. Ela havia passado horas com o "seu velho filósofo como ele chamava a si próprio, até há uma hora atrás, quando lhe sobreviera uma de suas crises de cansaço e ele subira para dormir. Agora acordou e veio ao seu encontro.
- O pôr do sol é sempre belo depois da neve... replicou.
Sentiu as mãos dele em seus ombros e tocando de leve em seus cabelos.
- O indizível conforto que me dá, tê-la em minha casa... ele murmurou.
- Sempre me sinto feliz aqui... respondeu emocionada, fitando o céu.
As cores estavam mudando agora, a violência do carmezin e dourado passando para o rosa e amarelo suave.
- Não se mova... ele pediu, porque ela estava se levantando... Tenho algo para lhe perguntar.
- Sim, Edwin?
Ele estava atrás dela e desse modo fora de sua vista, com as mãos ainda em seus ombros. Em silêncio, ela voltou a cabeça e viu uma incomum ternura iluminando-lhe o rosto enquanto a olhava dentro dos olhos.
- É algo difícil?... perguntou sorrindo.
- Surpreendente, se assim considerar. Mas não... você compreenderá. Penso que assim. A seu próprio modo você é uma artista e uma artista honesta.
- Talvez seja melhor preparar-me.
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Saiu de detrás dela e foi sentar-se diante da pequena mesa. Sua cabeça, o cabelo branco cortado, o bigode branco, a bonita e saudável pele e brilhantes olhos azuis, faziam dele um belo retrato contra o pálido céu.
- Como pode ter essa aparência?... ela exclamou.
- Que aparência?... ele indagou.
- Não deveria dizer-lhe. Você já é bastante vaidoso.
- Quer dizer... Sou amável? Para você, quero dizer.
- É claro. Sabe disso. Todas as vezes que me pergunta digo-lhe que é.
- Ah, mas tenho que perguntar... ele exclamou.
- E assim, eu tenho coragem de confessar!
Estavam gracejando à margem da verdade novamente e do outro lado, eles nunca se arriscavam. Ou talvez ela não estivesse pronta para a verdade e, talvez nunca estivesse. O que sentia por ele era uma emoção totalmente diferente do espontâneo amor que havia dado a Arnold. Mas aquele amor havia terminado, detido pela morte e, inesperadamente, por um tempo não houve ninguém para amar. Durante os longos meses, quando sabia que ele devia morrer, tinha querido saber sobre o amor. Continuaria existindo depois que o bem amado morresse? Poderia ser uma força tão poderosa para continuar nutrindo-se apenas na memória? Ela sabia agora que isso não podia ser. O hábito do amor tornara-se uma necessidade de amar e permanecia viva em seu ser, como um rio represado. Agora, estava transbordando de novo, não loucamente, nem inevitavelmente, mas tentadora e gentilmente, em direção ao homem que estava sentado a sua frente; de costas para o pôr do sol ele começou a falar no seu modo pensativo e filosófico, seus olhos azuis, penetrantes, fitando-a.
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- A necessidade de amar e ser amado, permanece até puxarmos a nossa última respiração, e da necessidade vem a força. Está em você, está em mim. Como pode ser isso? poderá perguntar. Porque, minha criança, minha querida e minha única, o amor sustenta o espírito e o espírito sustenta a vida. Se o amor é mútuo, então os dois interessados podem ter vida longa. Ainda mesmo que ele seja desigual, o que ama é sustentado. É bom ser amado, mas ser capaz de amar é possuir a força da vida. Eu a amo. Por isso sou forte. Quão afortunado sou por ter alguém a quem possa amar! Porque sou cansativo, minha querida! Não é toda mulher que se apaixona... ao menos por mim.
Sentiu um constrangimento inteiramente novo para ela, porque naquele instante havia algo novo nele. O que quer que isso fosse, a luz do céu do outro lado, ou a luz brilhando de seu interior, ele estava naquele momento transfigurado, sua face anos mais jovem, seus olhos brilhantes, um delicado rubor em suas faces. Inclinou-se para ela, impulsivamente.
- Pentençamo-nos sem reservas! Eu a quero totalmente! Quero dar-me inteiramente!
- Que quer dizer, Edwin? - perguntou.
- Ela estava impressionada pela expressão dos olhos dele, por suas mãos aprisionando as dela com inesperada força.
- Posso ir ao seu quarto esta noite? - ele perguntou repentinamente, como se pudesse derrubar uma barreira com um sopro.
A pergunta ergueu-se entre eles, inacreditável, embora uma realidade. Ele havia falado. Não podia haver dúvida que ele havia falado e a pergunta exigia uma resposta. Sentia-se coagida por sua imutável contemplação. No silêncio dela, ele falou de novo, desta vez suavemente, como a uma criança.
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- Nós habitamos estes corpos, minha querida. Eles são o nosso único meio de transmitir. Nós falamos, é claro, mas palavras são apenas palavras. Beijamos, sim, mas um beijo é apenas um toque de lábios. Aí está o corpo inteiro através do qual a sagrada mensagem pode ser trocada. E porque nutrimos o corpo com alimento, bebida, sono e exercício, senão para a transmissão do amor?
Quando ela hesitou, trespassada por repentina timidez, ele riu, mas suavemente.
- Não tenha medo, minha criança! Tenho sido completamente impotente nesses dez anos. Eu desejo apenas permanecer quieto, ao seu lado, nas sombras da noite, e saber que finalmente somos um, nunca tornaremos a nos separar, não importa quão distantes estivermos.
Ela sentiu-se capaz de falar finalmente. Ouviu a si mesma dizer palavras tão inacreditáveis como as que ele havia dito. Todavia, ela as disse.
- Por que não? Por que não?
...Separaram se como sempre, antes do habitual e tardio jantar. Na presença de Henry, o mordomo, disseram boa-noite formalmente, tão completamente como de hábito, que meio espantada pensava se não havia imaginado a cena do pôr do sol. E sabia que não, porque com animação, ansiedade, agora em seu quarto, ela procurou entre suas roupas até achar uma camisola de renda bordada. Ela usava roupas simples durante o dia, a simplicidade delas tornaram-se sua clássica face, mas, secretamente, à noite, desde que ficara só, comprava e usava, depois que Arnold morrera, aquelas frágeis e esquisitas roupas, às quais ele tinha aversão. Pijamas vestiam-na melhor, ele havia dito, e assim ela os havia usado até ele morrer. Então, e quem poderia realmente compreender isto, no dia seguinte ao funeral,
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ela foi à mais fina loja da cidade e comprou uma dúzia de camisolas enfeitadas de rendas, fitas e seda, e completamente só, enfeitou-se à noite para dormir.
Desta forma, enfeitava-se agora, depois de seu perfumado banho e parada diante do espelho, escovou seu longo e lindo cabelo, trançou-o como de costume e subiu para o alto e antigo leito, como se nada fosse acontecer e, ficou ali, o coração batendo, numa expectativa alarmante, que era também relutância agradável. Deveria dormir? - Poderia ela dormir? Debatendo isso caiu numa leve sonolência e sem perceber adormeceu. Acordou com a voz dele. Estava inclinado sobre ela, um pequeno candelabro na mão.
- Eu bati, você sabe, querida, mas não houve resposta. Então, entrei esperando ver sua beleza adormecida como fiz nestes últimos cinco minutos. Agora sei o que o sono faz em seu rosto lindo. Você estava quase sorrindo.
Ele colocou o candelabro sobre a mesinha de cabeceira, deitou-se ao lado dela como se isso já fosse um hábito, e, escorregando seu braço direito por sob sua cabeça, puxou-a para o seu ombro.
- Agora estamos confortáveis, não estamos? E estamos como devíamos estar, homem e mulher, deitados lado a lado em mútua confiança. Não devo pedir-lhe que se case comigo, meu amor. Não poderia ser bom para você. Sou muito velho.
- E se eu lhe pedisse? - ela indagou. Conforto, doçura e profundo transbordamento em seu sangue.
- Ah, essa poderia ser uma pergunta - ele replicou.
Mas não, ela pensou, nunca lhe pediria isso. Casamento? Não desejava. Casamento poderia fazê-la pensar em Arnold. Queria desfrutar sua amizade com Edwin inteiramente livre de lembranças!
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Inesperadamente, ele atirou para trás as cobertas e sentou-se para admirá-la.
- Que é essa adorável coisa que você está usando, essa roupa finíssima, essa prateada teia de aranha?
Ela permaneceu sorrindo na alegria do seu prazer. - Você gosta?
- Muitíssimo, mas...
Ele interrompeu-se e ela sentiu suas mãos desatando destramente o laço de seus ombros e de seus seios, sua cintura e coxas, até a última peça de roupa que a cobria cair num suave amontoado aos seus pés.
- Abençoados sejam nossos corpos, porque são instrumentos do amor - ele murmurou.
Ela não respondeu, preferindo permitir-lhe dirigir como quisesse, vigiando apenas por causa do seu próprio tédio. Mas não houve tédio. Nada ela havia jamais conhecido, havia-a preparado para a graça, delicadeza e firmeza do seu toque. A filosofia do amor! A frase brotou em sua mente. Isto era mais do que físico, fosse o que fosse. Depois, ele tirou o "robe" que usava e deitou-se ao lado dela novamente.
- Agora conheceremos um ao outro - ele disse. - Nunca mais poderemos ser estranhos um ao outro, depois desta hora.
Ali, dentro da noite, caíram um nos braços do outro apaixonada e tranqüilamente. A lua erguia-se alto e brilhava através da janela aberta e ela viu o corpo dele, belo mesmo na idade, os ombros retos, o peito liso, as pernas esguias e fortes. Ele havia proporcionado a seu corpo um cuidado respeitoso e fora recompensado mesmo agora. E quantas mulheres haviam amado esse corpo? Impossível que a tão poderosa beleza da mente e do corpo não houvessem se unido muitas vezes no ato do amor! Mas não sentia nenhum ciúme. Esta era a sua hora e a sua noite. E isto era verdade, que conhecendo
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-se como se conheceram, nunca mais poderiam estar separados novamente.
- Sim - ela disse, alto e claramente.
- Sim, o que, minha doçura?
- Sim, eu o amo.
Ele deu um profundo suspiro e atraiu-a para si. - Obrigado, Deus - ele disse. - Quem eu não vejo, agradeço. Uma vez mais, antes do fim, amo e sou amado. Que mais posso pedir?
Com isso ele caiu num sono suave. Mas ela permaneceu acordada, quieta em seus braços, acordada e pensando na estranheza de estar deitada nos braços de Edwin, nesse quarto, na casa dele. Mas não estava ao menos arrependida. O que ele havia dito era verdade, isso era certo, mas estranho. E de repente, esqueceu onde estava e começou a pensar em Jared Barnow. Ele nunca mais voltaria? E porque deveria voltar e de fato, ela agora não se importava que ele voltasse ou não. À luz do luar, o perfil de Edwin parecia de mármore branco, puro e perfeito. Ela sentiu um novo respeito pela beleza desse corpo e esplendor dessa mente. Era uma honra ser escolhida para o amor por esse homem, esse famoso homem, visitado, mesmo atualmente, por grandes homens e mulheres de todas as partes do mundo. E, se o seu tranqüilo amor pudesse adicionar um dia à vida dele, palavras ao seu pensamento, força ao seu estado de espírito, não seria isso também uma espécie de alegria?
...Ela voltou para sua casa na montanha no dia seguinte e esperou pelo fim de semana. A neve caiu e continuou caindo dia e noite até no lado norte da casa, amontoou-se quase até as calhas. Sam, trazendo barrotes, fez um túnel para caminho até a porta dos fundos.
- Como podem as pessoas vir para o fim de semana mesmo para esquiar? - ela indagou.
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Ele sorriu. - Virão porque as estradas serão abertas. O povo daqui sabe que a neve é o seu pão e manteiga.
Convencida, ela esperou pelo fim da semana. Então, ele voltou. Jared Barnow - ela falou o nome dele para si mesma e estava chocada. Como podia pensar nele depois do acontecido com Edwin? Esquadrinhou seu coração, sua mente, para descobrir lembranças, não tanto de culpa como de tédio. Mas não havia nenhuma. Seria possível que ela buscasse além disso consumação da mesma espécie? De que espécie? E o que tinha Edwin a ver com Jared? E porque perguntas, especialmente quando ela não desejava nenhuma resposta? Deixasse a vida levá-la para onde quisesse! Sentiu-se flutuante, passiva, esperando por quem, pelo que, ela não sabia, não queria saber.
- Eu não a vejo aqui, nesta casa, você sabe - Jared disse.
Ele chegara na sexta-feira à noite, exatamente como se pensasse que ela o esperava, o que ela fez e não fez, desejando que ele voltasse e novamente que não voltasse.
- Você terá de ser cuidadosa no primeiro ano suponho - Amélia havia dito. Amélia, sua velha amiga de infância, cuja casa em Filadélfia era vizinha à sua e que ainda continuava lá, solteira, vivendo só, num casarão que herdara por serviços. Isso foi menos de uma semana após a morte de Arnold, e ela não se sentia capaz nem mesmo de falar alto o nome dele, mas Amélia não tinha tato e dizia o que queria e em qualquer tempo. Estavam no living superior, onde ela e Amélia tinham desembrulhado presentes, guardado discos, separado roupas e se reunido por um momento antes do
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seu casamento e onde tornaram a encontrar-se após a morte de Arnold.
- Que quer dizer, Amélia? - ela perguntou. Amélia encolheu os ombros. - Não estou falando por experiência própria, é claro, mas ouvi mamãe dizer que depois da morte de papai - eu tinha só três anos - ela sentia-se muito só e que estava tentada a desposar qualquer homem que a pedisse. Mas, depois que esse ano passou, ela sabia que não queria casar-se afinal.
- Eu não quero me casar de novo, também - ela havia murmurado. Mesmo procurando Amélia para distrair-se, nunca seria capaz de confidenciar-lhe tudo, principalmente por ser Amélia um tanto inculta e muito dura e nunca ter se apaixonado, até o ponto que ela sabia. Porém, a crueza das observações dela, tinham ficado em sua lembrança e ela as recordava agora enquanto replicava a Jared.
- Como queria ver-me? - perguntou.
- Numa grande e bela casa em algum lugar - ele respondeu prontamente, como se houvesse pensado nisso. - Vejo-a com criados para servi-la. Odeio que esteja aqui sozinha. Não quero que faça meu desjejum. Eu faço minha própria cama porque não posso suportar imaginá-la fazendo isso. Somente quando você está no piano, ou sentada naquele lugar junto à lareira, sino que realmente a estou vendo.
Ela sentiu-se comovida com a sua veemência. - Obrigada - disse - E não sabe o quanto me ajudou. Sei que devo voltar à mansão mas não tenho coragem. Vim embora após a morte de meu marido e tenho sentido medo de voltar sozinha...
Ele interrompeu. - Irei com você. O que quero dizer é... Irei vê-la imediatamente e passarei um fim
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de semana, ao menos de quando em quando, se me permitir.
- Oh, é claro! - ela exclamou. - Estou muito sensibilizada e você não deve por nenhuma razão pensar que isso seja necessário. Sentir-me-ei perfeitamente bem uma vez que esteja lá - em um ou dois dias. Tenho amigos próximos. Meu marido e eu crescemos naquela vizinhança. De fato, discutimos se viveríamos na casa de sua família ou na minha. Mas minha casa ficou vazia. Meu pai morreu cedo depois do casamento, e minha mãe, mais cedo ainda. Eu era apenas uma criança e tudo deixaram para mim, e realmente, afeiçoei-me a casa.
Ela falou de um fôlego, tentando explicar tudo de uma vez e não sabendo exatamente o que estava querendo explicar. Ele a ouviu enlevado até ela interromper-se.
- Perfeito - ele disse. - É onde eu quero vê-la, numa casa que seja seu ambiente. Esta? Seu braço estendeu-se para o rústico aposento. - Não!
E então, como se houvesse encerrado uma discussão, dirigiu-se inesperadamente ao piano e começou a tocar a ressonante Polonaise de Chopin a seu modo, e ela afundando no macio sofá diante da lareira, ouvia-o extasiada com a nova interpretação da familiar música. Para realçá-la, ele eliminava cada sugestão do patético dentro da música, criando, em troca, uma triunfante afirmação de vida.
- E o que pensaria Chopin disso? - ela perguntou, quando ele terminou tão inesperadamente como havia iniciado e, levantando-se, foi para à sua frente, seus interrogativos olhos sobre o rosto dela.
- Faço minha própria música - replicou, não afastando o olhar.
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E ela permaneceu sorrindo, meio tímida, meio temerosa. Não o conhecia. Ele ainda era um estranho. O maior perigo, porém, era a sua poderosa atração que não tinha nenhuma base no conhecimento. Ela queria perguntar-lhe no que estava pensando, mas não ousava. Ele falou, então, sem ela perguntar.
- Quero que venha esquiar comigo amanhã. Sua resposta foi quase instantânea.
- Não será possível.
- Por que não?
- Bem, por um motivo, não tenho esquis.
- Podemos alugá-los.
- Não tenho esquiado há anos.
- Isso é uma desculpa... e essa é provavelmente a última boa nevada do ano.
- Não é boa. Sam me disse que as escarpas estão cobertas de gelo. O calor do sol derrete-o durante o dia e congela durante a noite.
- Poderá nevar esta noite. Há nuvens no topo da montanha.
- E uma lua brilhando!
- Vamos terminar esta discussão pela manhã.
- A resposta será a mesma.
- Não, se a neve cair durante a noite... não, não fale. Não vou deixá-la!
Ele colocou a mão sobre a sua boca e manteve-a ali, até que sufocando o riso, ela retirou.
- Deus, que boca macia você tem! - ele exclamou encantado.
- Eu teria mordido sua mão se ela não fosse tão dura - ela retorquiu. - E não quero esquiar.
- Pare aí - ele gritou - ou farei isso de novo. Não aceito nenhuma resposta.
- Eu não lhe direi nenhum sim, de qualquer forma - ela retrucou.
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- Por esta noite, então, deixe que seja nem sim, nem não.
Ela ergueu-se, meio temerosa. Ele a olhou fixamente, pensando, mas em que? Ela afastou-se, ele sacudiu a cabeça.
- Não acredito nisso - disse.
- O que? - ela perguntou.
- Sua idade.
- Deve acreditar.
Ele sacudiu a cabeça de novo e então, inesperadamente, procurou a mão dela, segurou-a, virou para cima e beijou-lhe a palma.
- Nunca acreditarei nisso.
Ela parou, sem resistir, atônita, o beijo em sua mão fora uma inesperada dádiva. Delicadamente, ele soltou-lhe a mão.
- Boa-noite - disse bruscamente, encaminhando-se da sala para a porta do seu quarto. Ali, ele parou.
- Rezarei para nevar - disse e fechou a porta.
...Durante a noite a neve caiu. Ela acordou depois de algumas horas de sono intranqüilo, deixou o leito, e abriu um lado da cortina cor de rosa da porta envidraçada, olhou a montanha. A luz do abajur, na cabeceira, refletia sobre a cortina suaves partículas brancas caindo densamente. O terraço, lá fora, Já estava coberto. Ela jamais seria capaz de resistir a determinação dele agora e já ansiosa, voltou ao leito e adormeceu.
- Minhas orações sempre são ouvidas - ele afirmou pela manhã à mesa do desjejum.
- Mas ainda não tenho roupas de esquiar - ela disse.
- É muito engraçado! Nós as compraremos na loja de esqui, e vamos embora. Vamos, apresse-se, não
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demore com o café, por favor! O sol está se erguendo rápido. Umas boas seis polegadas de neve, acho...
- Você é realmente, um tanto dominador!
- É meu natural - ele concordou alegremente. Levantou-se enquanto falava, apanhando pratos, começou a lavá-los e enxugá-los; guardou-os enquanto ela o olhava surpresa, terminando o seu café.
- Você é muito esperto - ela disse.
- Tenho acampado no mundo inteiro. No ano passado estive no Himalaia.
- Fazendo o que?
- Estudando raios cósmicos. Já ouviu falar de um sujeito chamado Tesla?
- Oh, claro! Ele quis eletrificar o globo, não quis, e prover uma eterna fonte de energia elétrica.
- Deus, você tem cultura!
- Sou filha de meu pai. Ele acreditava que Nikola Tesla era infinitamente maior, como cientista, do que Edson o foi. De fato, ele escreveu artigos sobre Tesla, apresentou-o a milionários benfeitores algumas vezes.
- Falaremos sobre Tesla à noite, adiante da lareira. Agora, a montanha nos espera.
Ele a empurrou com força, estava impaciente e inexorável, e em meia hora estavam na loja de esqui, ele escolhendo espertamente e recusando argumentos contra a última moda em roupas de esquiar, roupas das quais ela nem ouvira falar nos anos que haviam passado desde que ensinara os filhos a esquiar.
- Pele impermeável - ele exigiu. - É para um belo tempo como o de hoje. Você se sentirá como se não tivesse nada em cima. Se ajustará em você como sua própria pele.
Ele a examinou atentamente quando ela saiu do vestiário, na roupa impermeável que a cobria do pescoço ao tornozelo. Ajustou o tecido em sua cintura.
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- Pode escolher um número menor - ele disse. - Tem a cintura de uma garota.
Mandou-a de volta e ela vestiu outra roupa e veio para fora novamente para o exame.
- Perfeito! - ele declarou. - Agora vamos às roupas mais quentes. Não se usam mais muito compridas atualmente. Você escorrega numa espécie de espaço na roupa excedente... E os esquis... são modernos também, - plásticos e fibra de vidro, ótimos para qualquer espécie de neve, congelada, natural, pó artificial. Botas, por favor, jovem - isto para a confusa funcionária. - Couro por fora, espuma por dentro e fivelas únicas, acho, em minha opinião, que botas perfeitas ainda estão para ser feitas. Talvez eu pense em algo um dia.
Ela estava pronta finalmente e eles subiram para os seus assentos no bondinho.
A neve havia cessado, mas o céu estava cinza chumbo novamente e pronto para deixá-la cair, mas não talvez até o anoitecer. Durante o dia inteiro, eles esquiaram, e ela sentia-se puerilmente orgulhosa de ainda possuir sua antiga perícia. Ele a elogiava mas também a criticava.
- Sua coordenação não está perfeita. Olhe, tem de fazer três coisas de uma só vez, vê? Firme os bastões, balanceie o peso e inicie com o pé direito. Assim. Mas mantenha seus esquis sobre a neve... muito levemente.
Ele ilustrava com uma série de rápidas voltas e ela via que era soberbo no esqui, como o era ao piano. Continuou a ensiná-la o dia todo, e ela esforçava-se em aperfeiçoar-se, seu ótimo corpo correspondendo às novas ordens.
- Seu cruzamento - ele estava dizendo - está um pouco desastrado. Não se preocupe com seus ombros. É com os quadris que deve preocupar-se. Mantendo,
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no declive, os quadris para trás e tudo o mais... corpo, ombros, tudo... estará apta para o cruzamento.
Ela praticou de novo e de novo, até o pôr do sol e não se apercebeu de sua exaustão e quando isso aconteceu, foi ele quem notou primeiro. - Eu a cansei demais e odeio-me por ser um perfeccionista! Você esquia lindamente e o que fiz foi insistir sobre os toques finais.
Ela protestou. Mas sou uma perfeccionista, também e adoro isso.
Ele colocou seu braço nos ombros dela. - ótima companhia! Vamos para casa jantarem frente à crepitante lareira.
Foi o que fizeram, ele assou as costeletas diante do fogo crepitante ela misturou a salada na grande tijela de Burma.
Comeram em silêncio e depois ele ligou música estereofônica e a ouviram em silêncio, mas, o sono sobreveio.
- Devo ir para a cama - ela murmurou, seus olhos meio fechados.
- Eu também - ele confessou.
Ergueram-se, pararam hesitantes e por um momento, sonolenta, ela pensou, imaginou, que ele inclinava-se para beijá-la. No entanto, ele endireitou-se e afastou-se.
- Boa-noite, doce amiga - ele disse.
Não respondeu e realmente, não poderia, porque toda sua força era necessária para seu próprio controle. Ela não quis, não quis incentivar o beijo, porque, a que fim isso poderia levar, não poderia prever e não ousava perguntar.
- Boa-noite - ela falou e tropeçou, ainda meio dormindo, ao dirigir-se à porta de seu próprio quarto.
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No meio da noite, ela acordou com o tamborilar da chuva sobre o telhado. Isso era o fim do inverno e do esqui. Amanhã, ele iria embora e ela ficaria sozinha de novo. Ficar sozinha agora, parecia-lhe intolerável. Queria sair dali e voltar ao lar em Filadélfia.
...Ainda estava chovendo pela manhã, quando ela levantou-se para o desjejum. Jared já o havia preparado, mesa arrumada, suco de laranja esperando, presunto tostado e uma omelete mexida na caçarola.
- Os esquis são cruéis - ele queixou-se - mas foi melhor assim, talvez. Devo voltar ao laboratório. Eu ia roubar outro dia, lutar com minha consciência, mas agora não há necessidade. Você está cansada?
- Um pouco... não, não cansada, só os músculos doloridos.
- Tanto melhor, não podemos ser tentados.
Comeram novamente, quase em silêncio e ela desejava saber, com uma ponta de ressentimento, se ele estava em guarda. Afinal, ela não o havia beijado. Ao contrário! Mas ambos, estavam formais nessa cinzenta manhã.
- Vai se demorar aqui? - ele perguntou quando terminou o desjejum e preparava-se para partir.
- Não, partirei talvez amanhã - ela respondeu. Então, o ressentimento ainda vivo, acrescentou: - Provavelmente pararei no caminho para passar uns dias com um velho amigo, Edwin Steadley.
Ele ouviu indiferente. - Bem, adeus - ele disse. Depois acrescentou um tanto sem graça, ela achou: - É claro, nós nos encontraremos de novo.
- Por que não? - ela respondeu.
No curso dos acontecimentos humanos - Edwin disse - eu não poderei viver muito mais. Não venho de
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ascendentes de longa vida. E ascendência parece contar em matéria de vida e morte. Já vivi muito mais do que meus pais puderam viver. Minha mãe morreu com sessenta e quatro anos, sobreviveu a meu pai três anos. Ele era cinco anos mais novo do que ela. Suas relações foram estranhas, de um certo modo, ele foi como um filho.
- Eu não apreciaria essa espécie de relação - ela disse com firmeza.
- Ah - ele disse - isso é porque tem esta espécie de velho amante. Eu quase poderia ser seu avô. Mas a verdade é, minha querida, que os jovens não sabem como amar a uma mulher. Um jovem pensa primeiro em obter a mulher para si mesmo, isto é, possuí-la. Na minha idade, um homem sabe que isto é impossível e assim, ele renuncia a si mesmo pelo puro amor da mulher, sem pensar nele mesmo. Ele contempla-a com prazer, como eu a contemplo. Ele dá-lhe alegria a tal ponto, enquanto ela aceita seu toque, cujo toque agora, é perícia, mas em tudo isso ele pensa somente nela. Minha querida, a luz da lua, que, por sua mágica celestial brilha neste momento sobre o seu leito, seu belo corpo parece uma estátua de ouro resplandescente. Que felizardo homem eu sou, por ser admitido no seu quarto particular!
- Não posso compreender como isso aconteceu - ela disse sorrindo para ele, os belos cabelos soltos espalhados sobre as almofadas.
- Eu tive a coragem de lhe pedir - ele replicou.
- Você pediu muito confiantemente - ela disse rindo. - Não posso discernir nenhuma falta de coragem em você. Mas como é que eu tive a coragem de aceitar, e como é que isso não parece estranho e certamente, nem errado, que você esteja aqui? Eu nunca tive um amante antes. No entanto, por que não?
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- A necessidade de tudo dar e tudo aceitar - ele disse.
- E por que não estou ao menos envergonhada? ela perguntou com genuína curiosidade.
- Somos um - ele replicou. - Nossas mentes uniram-se primeiro e então, tornou-se necessário que a unidade se completasse.
- E isso irá continuar?
- Até que eu sinta a morte se aproximar. Quando esse momento chegar, eu a farei saber. Não tente deter-me ou confortar-me. Devo preparar-me para a solitária passagem. Precisarei de toda a minha força para isso. Portanto...
Ele fez uma tão longa pausa que, movida pela ternura, ela encolheu-se em seus braços.
- Você tem medo? - perguntou.
Mas ele não aceitaria piedade, nem mesmo uma tenra piedade. Ele ergueu-se e inclinou-se sobre ela, acariciando-lhe os longos cabelos em sua fronte e olhando para o fundo de seus olhos. Sobre o criado-mudo a chama do candelabro era agitada pela leve brisa que vinha da janela aberta, e assim, luz e sombra brincavam sobre o rosto dela.
- Não tenho medo - ele disse. - Mas tenho algo a dizer-lhe e quero dizer isso agora, enquanto estou capaz de dizer a plena verdade do que sinto. Quem sabe como será quando se aproximar o fim? Poderei ficar atordoado com a dor. Poderei ficar inconsciente. A morte poderá vir sobre mim num segundo e não me dar tempo. Diga-me, meu amor, você tem paz agora? Neste momento? Estamos completamente sós em minha velha casa. Mandei a governante para casa, um aniversário em família, e Henry saiu para umas curtas férias. Ninguém está debaixo deste teto, exceto nós. Podemos
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nunca mais estar tão completamente a sós. Posso dizer o que quero que saiba e recorde enquanto viver.
- Diga-me - ela respondeu.
Ele deitou-se ao seu lado então, e não a tocou, apenas pegou sua mão esquerda e prendeu-a entre as suas sobre seu peito. Movida por inexplicável impulso, ela havia retirado suas alianças enquanto se banhava e agora, acariciando-lhe a mão, ele notou que estava sem os anéis.
- Precisa colocar seus anéis, meu amor - ele disse levando a mão dela aos lábios.
- Não sei por que fiz isso - ela disse um tanto francamente.
- Por instinto - ele respondeu.
- De culpa?
- De honra, mas totalmente desnecessário. O amor nunca é culpado. Ele vem a nós e é sempre bem-vindo, seja qual for a fonte, a qualquer tempo. Um amor não apaga o outro. Cada amor é sempre maior.
- Mas, eu poderia ter aceitado o seu amor... como aceitei... se... - ela interrompeu-se e ele levou a pergunta para a resposta.
- Se Eloise, minha esposa, e Arnold, seu marido, vivessem? Eu teria me expressado diferentemente e você teria aceito diferentemente. Nós não estaríamos deitados aqui, ao claro luar. Isso não teria sido necessário como o é agora, para mim ao menos, e penso que para você, ou você não me teria aceitado. Assim, é, eu, porque sinto a morte se aproximar, você, porque a morte está em sua casa; nós sentimos a necessidade do contato carnal antes que venha a separação final, que virá, minha querida! Portanto, deixe-me dizer-lhe o que quero dizer.
- Diga-me.
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Ele respirou fundo, fechou os olhos e começou a falar, a mão dela ainda presa nas suas, sobre seu peito.
- Quero dizer-lhe o quanto a amo. Quero dizer-lhe agora, enquanto estou completamente vivo, enquanto meu cérebro está lúcido enquanto meu coração pulsa, enquanto as palavras estão sobre a minha língua. Eu a amo! Sempre a amei! Amei-a antes de conhecê-la, antes de nos encontrarmos. Eu a amei porque sabia a espécie de mulher que iria amar sempre, que deveria amar sempre, e quando a vi, sabia que era você. Oh, claro, amo seu corpo porque é seu e porque me agrada. Mas eu amo seu corpo porque seu espírito reside aí, porque sua incomparável inteligência está morando em sua linda cabeça, porque sua alma está unida ao seu coração. Não posso imaginar seu corpo separado de sua alma. Mas por outro lado, não posso imaginá-la sem alma. Você está inteira em todo o seu ser. Eu amo a menor parte de você... seus longos cabelos soltos, suas mãos e seus pés, seus adoráveis seios, sua cintura, suas coxas, o modo como você anda e mantém sua cabeça. Eu amo sua voz, o brilho em seus olhos... Tem você alguma idéia de como sua alma fala através de seus olhos? Não, não responda! Tenho mais para dizer-lhe. Se você não me deixasse amá-la... Já observou que nunca pergunto se me ama? Eu sentia medo de descer sozinho ao túmulo. Assim é, meu amor, por você me sustentar. Não temo nada. Marcho para o desconhecido com passo firme, porque ouço em meu coração meu amor por você. O amor é a tocha que ilumina o meu caminho. Oh, morte, onde está o teu aguilhão? Oh, túmulo, onde está a tua vitória?
A voz dele ecoava na noite. Pôs a mão dela em seus lábios e ali a manteve. Mas, delicadamente, ela a retirou e erguendo-se, com as palmas de suas mãos, segurou-lhe a cabeça e beijou-o nos lábios.
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- Sinto-me honrada - ela disse. - Enquanto eu viver, me sentirei honrada. Nunca esquecerei... nunca nunca!
...Estava em casa de novo. Tinham se separado, ela e Edwin, com nova tranqüilidade. Tudo que tinham sido, seria, de algum modo, eterno. Toda a impaciência se fora. A profunda união que existira entre eles, mantinha-se pela continuidade de suas cartas.
- Eu lhe escreverei sempre que quiser - ele dissera no último momento - mas não sinta que deve me responder. Isso me fará bem, declarar meus pensamentos, cristalizá-los, realizá-los em minhas cartas. Eu os sinto permanentes e imediatamente, dou-os a você. Se alguma coisa me acontecer, de qualquer manhã eu não acordar, terá a alma de um homem com você, para sempre. Poderá fazer o que quiser comigo.
Com estas palavras ele iniciou uma série de cartas que chegavam quase que diariamente. Sem preocupar-se em respondê-las, ela as recebia, absorvia-se nelas e quando sentia necessidade de comunicação, escrevia-lhe a qualquer hora, do dia ou da noite, sobre o que, no momento, ocupava seus pensamentos, relacionados com os dele ou não. Ele escrevia.
"Estou assombrado, quanto mais medito sobre a morte, mais me apoio numa nova confiança na continuidade da vida além. Isso pode ser simples ansiedade, talvez não. Ou pode ser que, inspirado pelo amor como estou... graças a você, minha querida, eu creio que o fim, a morte é irracional, portanto, moralmente errada, portanto, impossível. Afirmo a impossibilidade por uma nova fé na imortalidade. Não é por mim que faço a afirmação. É por você, a quem amo com perfeição, que insisto, é moralmente errado que a criação da perfeição finde em mero pó. De certo modo, o
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verdadeiro ser não pode ser, por conseguinte, dependente de uma temporária manifestação chamada invólucro humano, composto de água e de um punhado de químicas. A capacidade de amar, deve certamente, ter uma significação, deve conter uma promessa. Sem amor é fácil crer que a morte é o fim, mas com ele... é impossível! O próprio querer crer sugere continuidade."
A isto ela respondera:
"É primavera aqui. As velhas copas das árvores que me viram criança, já estão velhas como a eternidade, estão vestidas de um verde suave. Minha casa está cheia das primeiras rosas. O jardineiro especializou-se, sem dúvida, em algumas flores e rosas são algumas delas. No meio de todo este colorido glorioso, sua carta é como música, ou talvez melhor, uma voz trazendo nas palavras a promessa de imortal primavera. Quanto a mim, ando ociosa, simplesmente desfrutando, não pensando demais, muito preguiçosa até para visitar amigos. Eles me visitam. Eu os tolero afeiçoadamente, mas sem entusiasmo. Estou feliz comigo mesma."
Isso não era inteiramente verdade, ela sabia, mesmo ao selar a carta e enviá-la. No meio de sua metódica vida diária, estava cônscia de um secreto desassossego, uma dúvida que não esclarecera. O ar continuava frio. Nenhum vento, nenhuma tempestade perturbando o ar dourado. Nunca a casa lhe havia parecido tão confortável, as terras ao redor, os gramados de rápido crescimento, uniformes, aparados. O pequeno bosque controlado, nas árvores, as folhas brotando. Todavia, no meio de tudo isto, com o qual estava acostumada, ela continuava esperando algo mais, e mais ainda, estava consciente da espera.
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Ela havia recebido uma breve carta de Jared Barnow, agradecendo-lhe por deixá-lo ficar em sua casa em Vermont. Não lhe respondeu. Por que deveria, aliás? Uma casual hospitalidade, uma casual carta de agradecimento, um convite casualmente feito, uma meia promessa de aceitação, tudo, mas nada mais restara então do que um delgado elo. Devia conhecer-se a si mesma. A solidão era inevitável e não seria curada por alguém que meramente havia passado. Devia manter-se ocupada, primeiro com a casa. Ela era agora a sua solidão. Poderia ser mudada, melhorada, reconstruída. Afinal, uma casa pode mudar como mudam as gerações, tornar-se o ambiente para uma nova personalidade.
Uma nova personalidade? Ela própria - não outra! Poderia ser uma pessoa diferente agora, alguém que nunca havia conhecido, menos tímida, menos solitária, mais preocupada com seus interesses, com sua inteligência - em resumo, com seu crescimento. Arnold a seu modo, havia sido um abrigo. Ao abrigo da idade dele, de seus sucessos, como advogado famoso, não havia sentido nenhum estímulo, exceto para ser o que ele queria que ela fosse, sua esposa e mãe de inteligentes, razoáveis e obedientes filhos, e uma encantadora anfitriã, uma figura convencionalmente correta na convencional e correta sociedade da velha e conservadora cidade. Não sentira nenhum grande desejo de ser nada mais do que isso, porque Arnold não a tinha impedido. Ela não tinha conhecimento de desejo frustrado e de um modo geral, havia desfrutado de sua condição de ser. Sabia que Arnold, a seu modo, a amara mais do que ela a ele, mas o amara, contudo, sem sentimentalismo, e supunha que seu relacionamento era comum a pessoas em idênticas circunstâncias de vida.
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Agora, de qualquer maneira, ocorreu-lhe que poderia ser uma pessoa completamente diferente e uma excitante curiosidade invadiu-a. Imagine se ela se tornasse alguém completamente nova? Imagine se ela começasse fazendo o que ela quisesse fazer? Dizendo o que quisesse dizer, indo onde quisesse ir? Ela não podia, entretanto, definir tais aspirações porque estava acostumada a ser o que era. Imagine, ela falando consigo mesma, estudando seus próprios desejos conforme surgissem, mas imediatamente seriam aceitos? Ocorreu-lhe que estivera, de fato, recalcada, ainda que inconscientemente. A casa por exemplo. Se ela não podia pensar o que quisesse, poderia começar rejeitando o que ela não queria.
Andando pensativamente pelos imensos cômodos, olhando para um ou outro objeto, isso acudiu-lhe lentamente, que ela não queria nenhum deles. Não tinha sido inteiramente sua a idéia de uma casa para si mesma. Os avós e os pais a haviam construido e enchido com móveis e objetos de sua própria época, valiosos, pesados, imutáveis. Ela a venderia... não, poderia doá-la, enchê-la de órfãos, com velhos e velhas, pessoas desamparadas para quem ela poderia ser um abrigo como havia sido o seu.
Como abandonaria alguém, o seu próprio abrigo? E onde construiria outro novamente? E o que deveria construir, o que poderia construir, quando nem sabia o que ela era? Ou queria ser? Para Edwin, era a mulher que ele amava e amando-a prolongava sua vida. Para Jared Barnow, ela era nada, talvez apenas uma amizade. De repente, ela lembrou-se de sua decisão. Poderia fazer o que quisesse - era o que havia decidido. Mas devia fazer isso rapidamente, antes que a decisão sucumbisse dentro dos velhos recursos de defesa. Tinha de fazer isso agora. Atravessou rapidamente
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três salas e na sombria e velha biblioteca sentou-se à escrivaninha de seu pai e redigiu uma breve carta.
Caro Jared Barnow
Não gosto mais de minha casa. Estou cansada dela. Quero vendê-la a um jovem. Mas como? Aqui está uma chance para a invenção, não está?
Ela procurou e achou seu endereço. Poderia levála ao correio quando fosse lanchar com Amélia Darwent, sua vizinha. Mas na caixa do correio, segurando a carta na mão, mudou de pensar. Que iria ele dizer? Pôs a carta na bolsa e fechou-a depressa.
- Mas por que construir outra casa? - Amélia perguntou.
Estavam lanchando, as duas, na sala de jantar oval. Amélia apenas uma criança, continuou morando no velho casarão, num grande terreno de esquina na Main Line, no meio de vinte acres de terra, que era o que havia sobrado de três mil, doados a seus antepassados, nos dias de William Pen, como recompensa por favores agora esquecidos. Ela sentara-se magra e ereta, seu cabelo tornando-se prateado, em seu lugar habitual, no outro lado da mesa redonda. Rose, a governanta irlandesa, a dessecada e velha Rose, servia-as.
- Porque desejo livrar-me de velharias - Edith respondeu.
- Não pode livrar-se de uma herança - Amélia continuou. Provou sua leve sopa e olhou para Rose com reprovação. - Não está quente!
- Porque madame não veio quando eu chamei - Rose disse truculentamente.
- Oh, bem...
Amélia ergueu sua xícara e tomou a sopa como se fosse café.
- Que tem mais? - ela indagou.
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- Pombo assado, como pediu, madame.
- Ponha na mesa - Amélia ordenou. - Sirva a salada e deixe-nos.
- Sim, madame.
A sós com Amélia, ela expôs-lhe o plano da casa num lugar ainda não muito definido em sua mente.
- Conheci um jovem...
- Ah - Amélia disse triunfante. - Imagino? Você parece dez anos mais jovem. Não há nada tão completamente revitalizante para uma mulher como um homem moço, é o que digo.
- Amélia, você é repulsiva - disse severamente.
- Minha querida, quando não fomos honestas uma com a outra? Você está extraordinariamente linda e está desde que voltou de Vermont.
- Amélia, quer parar?
- Não finja então, Edie.
As duas mulheres olharam uma para a outra por sobre a delicada floreira de prata cheia de pequenas rosas de estufa, cor de rosa. Os olhos negros de Amélia estavam sorrindo e Edith desviou seus olhos azuis.
- Não sei por que a tolero, Amélia Darwent.
- Porque sabe que não conto nunca a ninguém o que você me conta, Edith Chardman.
- Não há nada para contar - Edith respondeu. Estendeu a mão para tocar uma rosa. - Não comprendo porque suas rosas são sempre melhores do que as minhas.
- Pó de osso - Amélia disse. - Mas o que tem o rapaz a ver com a casa?
- Nada - Edith respondeu. Serviu-se de pombo.
- Nada - Amélia repetiu.
- Exceto que pedi a ele sugestões - ela emendou. - Mas isso não é nada.
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- Então não vamos falar dele - Amélia retorquiu. Vamos falar de você. Minha querida, como poderá distrair a si mesma?
- Construindo a casa, é claro.
- Mas, onde?
- Em algum lugar... na praia.
Ela imaginava enquanto falava. Não havia pensado na casa na praia, mas no momento em que pronunciou as palavras, sabia, é claro, que isso era o que vinha desejando há anos. Havia mesmo falado disso a Arnold, uma vez, há muito tempo atrás, mas ele havia rejeitado a idéia.
"A rebentação ecoa a noite inteira. Não poderemos dormir."
"Você poderá não dormir", ela retorquira, eu serei embalada."
"Você pode dormir em qualquer lugar" - ele dissera, com um dos seus forçados sorrisos, nada gentil mas mordaz. Ele era sempre o homem superior, uma atitude que ela atribuía à combinação dos elementos inglês e alemão de seus antepassados, datando do casamento de um jovem fidalgo inglês, seu bisavô, com uma jovem alemã. O meio ambiente tinha encorajado aquele hereditário gesto. Ele não havia nem mesmo se impressionado muito com seu Phi Beta Kappa, obtido em seu quarto ano em Radcliffe. Levaria muito tempo para ela se recobrar da pressão do ambiente de seu casamento.
Como se houvesse adivinhado seus pensamentos, Amélia falou: - Sabe, Edith, estou muito curiosa sobre você.
- Por que? - ela perguntou.
- Arnold foi muito intransigente. - Amélia temperava com entusiasmo a sua salada. - Eu devia cuidar de você, amizade, é claro, porque gosto muito de você, veja só como remoçou. Porque não resta dúvida que
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remoçou, minha querida, com esse encantador aspecto que você tem. Há jovens que atualmente preferem mulheres acima dos quarenta. Oh, sim, há... não fique tão surpresa.
- Pareço surpresa? - ela indagou.
- Chocada, talvez - Amélia disse.
Por um instante, ela pensou que contaria a Amélia, essa velha amiga, sobre o seu surpreendente, inesperado e novo relacionamento com Edwin. Imediatamente decidiu-se pelo contrário. Ela nunca havia sido dada a confidências e além disso, tinha certeza de que Amélia não seria capaz de compreender a qualidade do relacionamento. Amélia poderia rir ou fazer grosseiros comentários sobre velhos voluptuosos, comentários que realmente poderiam aplicar-se, indubitavelmente, a muitos homens velhos, mas não a um homem tão inteligente, tão culto, tão sábio como Edwin Steadley. Para Amélia, amor era sexo, não importava como os outros chamassem a isso. Em lugar da confidência, ela replicou com sutil evasiva.
- Não estou ciente de nenhuma grande mudança em mim. - Uma monstruosa mentira, ela reconheceu, assim que acabou de falar, porque isso continuava inacreditável, que ela havia aceitado Edwin, tinha-o realmente permitido em seu leito, afirmando, desse modo, com esse simples ato, independência dos anos passados, durante os quais, não havia conhecido intimamente nenhum homem, exceto seu marido. E isso não era para ser revelado a ninguém, nem a si própria, porque, a intimidade com Edwin, imediatamente completada e não encerrada, não era nenhuma infidelidade a Arnold, vivo ou morto.
"Cada experiência de amor", Edwin havia dito uma noite na penumbra, "tem vida própria. Cada uma nada tem a ver com a que aconteceu antes ou irá acontecer
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de novo. Amar é viver e isso segue seus diferentes caminhos, num mundo sem fim, transformado em energia vital."
"Duvido que eu possa amar alguém mais" - ela havia replicado na penumbra. Naquele momento, ela havia amado profundamente o encantador homem velho. Nunca havia conhecido uma inteligência como a dele, cristalina em pureza. Essa era a sua encantadora qualidade. Mesmo quando ele a mantinha contra si, a qualidade não mudava. Ela havia amado Arnold, também, mas ele era dividido, um, o homem inteligente, ainda sem nenhuma iniciativa, então, um decisivo, calculista, autoconfiante homem a quem ela admirava e no qual confiava; o outro um calado, apaixonado e possessivo homem que aparecia, regularmente e sem preâmbulos, no quarto dela para satisfazer sua primeira necessidade. Não podia imaginar-se conversando dentro da noite com Arnold sobre vida e morte e que relação poderia ser possível entre as duas. Arnold falaria disso para garantir que a morte era o fim total.
- Vejo uma mudança em você agora - Amélia declarou, afundando seus dedos numa tijela veneziana de vidro, para os dedos.
- Diga-me, o que você vê?
Assim encorajada, Amélia acendeu um fino cigarro e prosseguiu.
- Bem, você está menos retraída, mais inconsciente de si mesma, até no seu modo de andar.
- Acho que sempre estive inconscientemente cônscia de ser a esposa de Arnold.
- Ele a censurava demais - o tom de Amélia revelava que não apreciava Arnold.
- Não realmente. Ele sempre foi brando comigo.
Amélia riu.
- Tão brando como o ferro?
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- Talvez eu precisasse de ferro - ela replicou suavemente. Concluiu consigo mesma que não gostava de Amélia tanto quanto havia pensado, ou talvez fosse porque agora, vivendo sozinha e sem Arnold, para voltar-se para o apoio masculino, Amélia lhe parecesse agressiva e dominadora.
Ela não devia, pensava, enquanto Amélia a conduzia para a sala de visitas, cair no erro de, irrefletidamente, comprometer-se com amigas e seus sempre vulgares interesses por si mesmas e pelas outras. Ela devia procurar um trabalho intelectual, devia descobrir uma atividade individual, sozinha e por si mesma. Pareceu-lhe nesse momento, que a nova casa, construida inteiramente para si mesma, daria a imediata resposta para a questão.
Mas que trabalho intelectual, que atividade mental? Ela permaneceu na casa de Amélia por outra meia hora, somente pela sua habitual delicadeza, amabilidade pessoal, que Arnold tanto havia admirado e, é claro, amado. "Minha querida", ele havia dito mais de uma vez, "isso é agradável, viver com uma mulher calada e também, lindamente serena."
Ocorreu-lhe que ela poderia esquecer tais observações quando tivesse tempo para isso. Justamente agora as cartas de Edwin estavam chegando quase que diariamente, tomando seu lugar. As cartas de Arnold, em seus raros momentos de separação, não haviam sido, afinal, como as de Edwin.
- Devo ir, Amélia - ela disse.
- O que pode fazê-la agora ter tanta pressa de ir embora?
Ela deu a Amélia um daqueles distantes sorrisos enquanto se levantava. - Há sempre uma coisa ou outra - ela respondeu vagamente e retirou-se.
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...A nova casa agora tomou posse dela. Alegrava-se de não ter enviado a carta para Jared, porque se assim tivesse feito já estaria repartindo a casa, de algum modo. Em vez disso, tirara a carta da bolsa quando voltava do lanche em casa de Amélia e a rasgara. A casa não existia senão na sua imaginação e já estava vivendo nela. Na manhã seguinte, sentada à escrivaninha, na biblioteca, ela nem mesmo estava impaciente pela correspondência. Quando o mordomo a trouxe numa bandeja de prata, ela viu logo em cima, um grande envelope sobrescritado com a surpreendentemente firme caligrafia de Edwin, mas não o abriu imediatamente, como de hábito. Em vez disso, terminou o telhado da nova casa, agora tomando forma em um esboço desenhado numa larga folha de papel. Depois, ela abriu a carta.
"Minha querida, como se eu não estivesse distante, ocorreu-me agora que a morte tem ao menos uma importante finalidade. Não há nenhum progresso humano sem a morte. A vida não pára nunca e assim, inevitavelmente, ela marcha da juventude à velhice. Mas a velhice torna-se mais sábia, mais prudente e portanto, a vida deve começar repetidamente na mocidade, se nela está a continuidade. Porque a mocidade não sabe o bastante para ser prudente, e por isso busca o impossível... e o alcança, de geração a geração. Você vê, estou buscando desculpas para morrer! Admito isso! Quando você não está aqui me sinto morrer. Eu devo morrer! É tempo! Mas agarro-me a você, minha querida. Prolongo-me através do amor. E assim, devido a prévia reflexão, compreendo que devo morrer, a fim de que minha vida, seja completa e total. Somente quando eu terminar tão bem como comecei a minha individualidade, estará definida. Quando digo "EU", falo como ser humano. Não, estou errado. Desde que você abriu a
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porta de seu quarto para mim, estou separado de todos os outros contrassensos comuns. O tempo tornou-se a minha mais preciosa conveniência. Você deve viver o bastante para vê-la novamente, é o que eu digo ao meu corpo toda a noite quando me deito para dormir. Ainda é necessário que eu viva, embora a morte espere impaciente."
Ela leu a carta atentamente e até o fim, depois dobrou suas páginas, colocou-as no envelope e guardou-o dentro de um cofre secreto e fechou-o com a combinação. Seus criados eram tão curiosos como quaisquer outros e desde que Arnold morrera, ela estava assim, falando sozinha, não queria que fosse lida a carta que estava no envelope e na qual estava escrito o nome de um homem. Isto feito, apanhou seu lápis de desenhar. Como Edwin havia escrito, era necessário viver, e para ela, também era necessário. E desde que era necessário, o que seria mais lógico do que ter a espécie de casa que queria, para nela viver?
Compreendeu que nunca tivera essa casa. A enorme estrutura que a cercava, com seus vinte e dois salões espalhados por toda parte, era apenas a casa na qual havia nascido, e na qual, ela e Arnold tinham vivido com seus dois filhos.
A casa em Vermont não tinha sido construida para ela somente. Não, ela queria uma casa onde não houvesse lugar para ninguém, exceto para si mesma, sozinha. Ela podia ir até Edwin e iria quando e se o quisesse, mas ele não poderia nunca vir até ela, e assim não havia nenhuma necessidade de preparar um lugar para ele. Ela entrara na vida dele casualmente e entraria novamente. Como seus filhos tinham casas próprias, nas quais ela poderia ir ou não, conforme quisesse, eles não precisavam de um lugar em sua casa. Seria mesmo necessário um quarto de hóspede? Seu pensamento voltou
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àquela noite de inverno quando Jared Barnow bateu à sua porta. E se ele aparecesse de novo? Mas se nunca mais voltasse, um quarto de hóspede para ele seria um desperdício. Ou, de outra forma, haveria sempre este casarão, com seus belos quartos vazios, e ela simplesmente voltaria aqui para recebê-lo. Decidiu-se. Não teria um quarto de hóspede. A casa seria inteiramente sua. Em lugar de um quarto de hóspede, teria um jardim nos fundos.
...Isso aconteceu, talvez, uma semana mais tarde; o telefone tocou logo depois de meia-noite. Trabalhara, sozinha, desde as oito horas, depois do jantar, desenhando com meticulosos detalhes os aposentos de sua casa. Apenas porque desejava viver só na casa, isto não queria dizer que teria somente alguns quartos, nada disso.
Ela queria seus aposentos separados por paredes e espaços, a biblioteca da sala de música e queria especialmente uma sala de estar, cujas janelas semicirculares, rodeassem o mar. Não podia imaginar como decoraria esse aposento, mas quando chegasse o tempo, saberia, é claro, teria o habitual quarto de dormir, a sala de refeições e de serviço, mas a de jantar deveria ter saída para os jardins e o seu quarto de dormir seria aberto para as estrelas.
Em meio a esse total devaneio, ela ouviu o calado telefone tocando, insistentemente. Sua filha, ela supôs, que casara pouco antes da morte de Arnold e que tinha por hábito telefonar-lhe tarde da noite, na suposição de que sua mãe levava uma agitada vida social, quando de fato, vivia quase como uma reclusa, alegando não ter se recobrado da morte do marido.
Assim preparada para ouvir a voz alta e clara de Millicent, estava desprevenida para ouvir aquela outra
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voz, um impetuoso barítono, que instantaneamente, reconheceu como sendo a de Jared Barnow.
- É terrivelmente tarde. Peço desculpas, mas meu pequeno avião enguiçou. Algo errado no controle... e isso aconteceu nesta cidade, que tem sido sempre para mim um caminho para o aeroporto; na realidade, o lugar onde você vive. Eu poderia tomar um quarto num hotel. Por outro lado...
Ele interrompeu-se em expectativa e ela rapidamente preencheu a pausa.
- Oh, claro, venha aqui. Já jantou?
- Sim, em outra cidade. Devo estar em Nova York amanhã, mas não quero ir embora e abandonar meu aviãozinho, não até saber o que está errado. Não gosto de mecânicos desconhecidos.
- Venha então. Poderá tomar um carro e o motorista deve conhecer o caminho. Você tem o endereço?
- Pensou que eu poderia esquecê-lo? Estarei aí. Não estava deitada?
- Estou aqui, respeitavelmente vestida e em minha biblioteca.
Ele riu e desligou.
Ela quedou-se pensativa por momentos. O dia tinha se tornado frio dentro do decepcionante e precoce verão, e ela ouvia pancadas da chuva contra os vidros da porta, no terraço leste. O fogo estava apagado como de costume, na grande lareira; ergueu-se e riscou um fósforo. Não, resolveu, não trocaria de vestido. Havia escolhido esse para si mesma, de seda verde, tecido suave e simples em seu corte. Parte de sua nova independência era escolher roupas para si. Arnold jamais havia gostado de verde, sua cor favorita, a cor da vida, da primavera e juventude de espírito e o maçã verde desse vestido era um dos tons que ela mais apreciava, entre os vários tons de verde. E depois para provar sua nova
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displicência, numa manifestação de independência, ela voltou à escrivaninha, onde o esboço da casa estava tomando forma, e começou a trabalhar como se ele não houvesse telefonado.
...Ela estava bastante concentrada, a despeito de uma secreta excitação que reprimia, tanto que, menos de uma hora depois, quando ele apareceu à porta da biblioteca, onde havia sido introduzido por sua prévia ordem, ela havia esquecido o intervalo de tempo.
- Como é bom vê-la! ele exclamou estendendo as mãos para as dela.
- Obrigada por pensar em mim quando seu avião parou - ela disse, cônscia de que ele segurava suas mãos firmemente, cônscia de seus negros olhos, fitando-a, apaixonados, cônscia de seu sorriso francamente alegre. Ele estava mais alto, mais jovem, mais sofisticado do que o recordava. Estava vivamente consciente de seu braço sobre seus ombros, enquanto caminhavam para as poltronas junto à lareira, e ela esquivou-se delicadamente de sua mão e estava chocada por descobrir-se confusa sobre como proceder, simplesmente confusa com o seu toque. Como sou estúpida, pensou, como se um simples gesto tivesse realmente algum significado. Sentou-se à frente dele, incapaz de pensar no que dizer e não dizendo nada, mas sorrindo-lhe e, nisso, ele começou a falar.
- Devo dizer que este é um cenário diferente e muito apropriado para você. Aprecio estes velhos casarões. Não são vistos com freqüência. Não é muito solitário para você aqui?
Ela sacudiu a cabeça. - Tenho muito o que fazer.
- O que, por exemplo?
Ela não estava preparada, todavia, para falar-lhe da nova casa e respondeu-lhe risonha: - Oh, música,
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amigos, livros, ou apenas... reorganizando-me para uma vida nova.
- Nenhuma razão especial e coisas assim?
- Algumas obras de caridade pelas quais meu marido se interessava, e as quais não me interessam.
- Não consigo imaginá-la como uma dama caridosa.
Ela desviou a conversação de sua própria pessoa, o que foi muito fácil, porque ele ficou contemplando as chamas como se por momentos, a esquecesse e ela não queria ser esquecida.
- Diga-me, que está fazendo agora? Apenas me recordo de um esquiador.
Ele voltou-se para ela. - Eu? Bem, vim aqui para ver um homem que não mora muito longe... um cientista... um amigo engenheiro, que sonha combinar estudos para focalizá-los nos problemas médicos. Especialmente, cirurgiões, estão extraordinariamente atrasados em métodos tecnológicos. Eles continuam usando instrumentos antiquados... Você nem acreditaria. bem, a idéia da modernização médica, especialmente cirúrgica, instrumentos fabricados por novos técnicos de engenharia, fascina-me. Sou um bocado idealista, audacioso. Dá-me satisfação imaginar que uma invenção minha poderá salvar uma vida, em vez de apenas aumentar o ouro nos cofres de um multimilionário... ou explodir alguém do outro lado do mundo.
Ela não estava preparada para este repentino mergulho dentro de seu pensamento e não queria pretender compreender sobre o que ele estava falando. Sua própria defesa contra essa nova e total, porém, opressiva consciência de sua presença física, seria compreender sua mente, sua rápida transição, brilhante, talvez fantástica inteligência, como vagamente ela suspeitava. Percebeu então, que estava começando a conhecer
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fracamente o homem real, não o jovem esquiador que chegara da neve e entrara em sua casa nas montanhas de Vermont. Ele estava olhando o aposento agora, inquieto, como se procurasse algo, e de repente, agitou-se.
- Tem algo que eu possa beber... algo bem quente? Apanhei um resfriado nas regiões montanhosas. Estupidamente esqueci de trazer uma jaqueta extra.
- Oh, claro! ela exclamou e tocou um botão. - Não creio que Weston esteja lá em cima, ainda.
Seu velho mordomo atendeu ao chamado e ela falou-lhe com a habitual delicadeza, mas de modo distante.
- Weston, o Sr. Barnow apanhou um resfriado. Pode trazer-lhe algo quente?
- Certamente, madame - o homem respondeu.
- E Weston, suponho que o quarto verde esteja preparado para hóspedes?
- Sempre, madame.
- Prepare o leito para o Sr. Barnow, sim?
- Certamente, madame. O Sr. Barnow estará aqui para o desjejum?
- Sim... e talvez por mais tempo.
- Muito bem. Obrigado, madame. - Ele fez sua habitual inclinação e retirou-se.
- Este é o seu ambiente - Jared disse.
- Ah, você me conhece.
- Não. Mas conhecerei com o tempo. Há tempo.
- Há tempo? Você é jovem e muito ocupado. E eu tenho... meus próprios sonhos.
- Devo estar neles.
Ele fez a declaração ousadamente, tão confiante de sua adesão, que no íntimo ela sentiu-se arrazada, quase desgostosa, mesmo sentindo-se novamente consciente
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de sua beleza física. Reagiu contra isso também abruptamente.
- Diga-me, o que quis dizer há pouco, quando falou de combinar estudos?
Ele estava recostado em sua cômoda poltrona, as mãos cruzadas atrás da cabeça, os olhos fechados. Então, ergueu-se bruscamente e abriu os olhos.
- Que sabe de engenharia médica? - ele perguntou.
- Nada, ela respondeu prontamente. - Deve ser algo novo desde o tempo de meu pai.
- Relativamente novo - ele concordou.
- Por favor, seja simples.
Ele riu. - Simplesmente, é isto: os homens da medicina têm estado e estão extraordinariamente atrasados nos novos métodos de matemática, física e engenharia. Ainda estão trabalhando com sistemas antigos, sem muitas pesquisas, o que é importante, se querem obter sucesso. Os verdadeiros instrumentos dos quais eles dependem para a exatidão de diagnósticos e curas são muitas vezes tão antigos quanto obsoletos. Cientistas médicos estão se tornando cônscios disso e algumas universidades estão criando departamento de ensino biomédico. Mas isto é ser "nem peixe, nem ave", espécie de coisa ainda remota em minha opinião, apenas produzindo homens para trabalhos que não existirão depois de alguns anos. Eu tenho uma aproximação diferente para tal atividade inter-disciplinar, e é sobre isso que quero falar com esse amigo. Ele é um pioneiro nesse campo. Gostaria que seu pai fosse vivo. Ele seria o único. Eu o procuraria primeiro.
- Ele gostaria de você - ela disse.
- E eu trabalharia a seus pés! Não há nenhuma inteligência viva atualmente, igual a dele. Por que os grandes morrem cedo?
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- Tentando salvar o mundo - ela replicou. - Ele estava a caminho do Japão, para ajudar os japoneses a reconstruírem o ciclotron que nós destruimos durante a guerra mundial.
- Eu sei. Li sobre isso.
Bateram na porta e Weston apareceu com uma grande taça com um líquido fumegante.
- Ponche, senhor - ele disse com a sua velha e alta voz.
- Obrigado - Jared respondeu, e tomando a taça sorveu o ponche. - Ah, isto vai direto aos meus ossos.
- Sim, senhor. Boa-noite, senhor. Boa-noite, madame. Tudo está em ordem.
- Obrigada, Weston e boa-noite.
A porta fechou-se atrás dele e eles ficaram calados. Jared bebericando seu ponche, pensamento distante, ela podia ver, e não tentou chamá-lo de novo. Permaneceu calada, fitando-o, enquanto ele olhava o fogo, bebendo até a taça ficar vazia. Então, largou-a e voltou-se para ela desculpando-se.
- Perdoe-me. Não sou um bom hóspede esta noite. Quando tenho um problema em minha mente...
Ela o interrompeu. - Mas eu compreendo. Não gostaria que se sentisse como se tivesse de me entreter. Eu pensava comigo mesmo.
- Em que?
Impossível dizer a verdade. - Em você! - Ela sentiu-se envergonhada por tão ousada franqueza. Falara suavemente e erguera-se da poltrona.
- Estava pensando que deve ir para a cama e dormir para curar seu resfriado. Seu quarto é na primeira porta à direita, no alto da escada. Se precisar de alguma coisa durante a noite, aperte o botão do telefone que diz W. Está ligado ao quarto de Weston.
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- Que palácio! ele disse. Pusera-se de pé quando ela se erguera e agora estava parado, alto, acima dela, olhando-a e sorrindo, e ela fitando-o, sem saber o que viria. Isso foi ele quem decidiu, abrupta e francamente.
- Importa-se se eu a beijar?
Ela sacudiu a cabeça, mas estava muda, desamparada em sua absurda timidez. Um beijo era sem sentido, um beijo era nada atualmente, um beijo podia ser nada mais do que uma gentileza casual a uma anfitriã. Ah, mas isso exigia duas pessoas. Uma para dar, outra para receber! Ela sentiu seus lábios em sua face direita; suavemente, muito suavemente ele segurou a cabeça dela com as palmas de suas mãos, e ela sentiu os lábios dele nos seus, um rápido toque de calor.
- Boa-noite - ele disse. A que horas é o desjejum?
- Quando quiser - respondeu despreocupadamente, como se não houvesse existido esse beijo que permanecia em seus lábios como brasa viva.
- Quando faz seu desjejum? - Ele encaminhou-se para a porta.
- Às nove horas.
- Deus do céu, que dorminhoca! Ele quis ser engraçado e ela riu.
- Boa-noite - Ela chamou-o quando subia as escadas. - Durma bem naquele quarto. Foi meu quando eu era menina.
Ela ficou acordada muitas horas naquela noite, e quando acordou eram quase dez horas da manhã seguinte. Seu primeiro pensamento foi para ele e ligou para a cozinha. Weston atendeu.
- Serviu o desjejum ao Sr. Barnow - ela perguntou.
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- Sim, Madame, às oito horas em ponto e ele partiu imediatamente, pedindo-lhe desculpas. Escreveulhe um bilhete. Coloquei-o na mesa do desjejum para a senhora.
Ela levantou-se, censurando-se. Como podia ter dormido até a última hora de sua presença? Tomou um chuveiro rápido, vestiu-se e ao tomar seu lugar à mesa na ensolarada sala de refeições, encontrou o bilhete.
"Sinto muito partir dessa forma indelicada, mas recebi um telefonema à meia-noite, do homem a quem vim procurar. Vou encontrá-lo às nove horas em seu laboratório. Tenho pouco tempo para fazer isso. Meu avião estará pronto ao meio-dia. Deverei estar voando de volta para você num desses dias. Aqui tem o número do meu telefone... e meu obrigado. Maravilhoso revê-la! Jared."
Ela estudou sua caligrafia. Era grande, firme e de traços grossos.
...Verão arrastando-se dentro do solstício do verão. Ou era apenas ela quem assim se movia indolentemente? Nesse primeiro verão, depois que Arnold morrera, ele havia morrido no outono do ano passado, ela sentia-se entregue a uma lassidão que era em grande parte, um vazio. No entanto, parecia-lhe que nunca havia desfrutado tão ricamente a atmosfera apaixonada, a cintilante claridade do sol, a glória luxuriante das flores e folhagens. Como não havia completado ainda o ano de tradicional luto por seu marido, tinha recusado aceitar todos os convites que não quis aceitar e aceitou somente aqueles que não podia recusar. Uma ou duas vezes por semana, foi jantar ou lanchar com alguns velhos amigos, seus ou de Arnold, e nos outros dias ela limpava a casa dos últimos pertences pessoais do marido, suas roupas, seus cachimbos, seus papéis.
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Quando isto terminou, voltou à sua música novamente e seriamente, assim passava várias horas por dia ao piano, e outras horas, passava lendo.
Estava começando a compreender que Arnold tinha absorvido sua vida, não de propósito, mas muito natural e sempre amavelmente, ou talvez ela houvess sido demasiado dócil permitindo a si mesma ser assim dominada.
De qualquer forma, ela descobriu um número de pequenos desejos a serem concretizados, certas roupas, certas cores que sempre quisera usar e pelas quais Arnold havia expressado desagrado, certos arranjos dos móveis que ele não havia aprovado; ele era, por princípio, contrário a mudanças, mesmo certos alimentos, pelos quais ela se sentira atraída, e ele declarara indigestos. Cada liberdade que agora obtinha, fazia com que avançasse mais até que não mais se angustiava a examinar tudo que decidia fazer como havia feito instintivamente e por muito tempo, nos primeiros meses após a morte do marido.
- Você mudou - seu filho lhe disse, em uma de suas raras e inesperadas visitas. Ele morava em Washington, com sua jovem esposa e seu único filho; era oficial executivo num departamento do Estado dirigindo o serviço do exterior. Ela nunca se acostumara totalmente com sua aparente e repentina transição, de um prosaico rapazinho para um prosaico homem. Tinha sido um bom rapazinho e era agora um bom moço, emotivo também, ela sentiu, naquele momento, quando seus honestos olhos azuis a fitaram carinhosamente. Ele havia se emancipado, como disse um dia, no começo de julho, a caminho de Nova York, onde ele conheceu um rapaz de vinte e um anos dignitário de um país estrangeiro.
- Em que mudei? - ela perguntou brincalhona.
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- Você parece descansada... e interessada novamente.
- Em que, Tony?
- Como posso saber? Na vida, suponho.
- Estou aprendendo a viver só, isso é tudo. Ele inclinou-se, beijando-lhe a face em despedida e consultando seu relógio. - Agora não precisa ficar só. Fay, eu, e o nenê, sempre podemos vir passar alguns dias. Pena que Millicent more tão longe! Ela rebateu a sugestão.
- Oh, não! Obrigada, querido. Devo aprender a viver minha própria vida.
- Bem, avise-nos...
Tony foi embora e ela recaiu na indolência. Vagueava pelo terraço, no qual a sala de visitas se abria e estirava-se sobre uma grande poltrona. Indolente, sim, mas de uma indolência produtiva, dizia a si mesma, irradiando vida e sentindo-a... sentindo-a como não constatara sentir desde a adolescência. O sol quente sobre sua pele, agitando seu sangue, e ainda, infundindo-lhe um delicioso langor. E porque, perguntava a si mesma, continuava sonhando com a outra casa, uma casa dela própria, quando aqui ela era a herdeira há tanto tempo? De onde se encontrava podia ver e apreciar as paisagens do limpo e cortado gramado, do cuidado pequeno bosque, e as vastas e velhas árvores, culminando à distância num tranqüilo lago, uma fonte, a estátua de mármore de uma mulher grega, colocada por seu avô, quando as terras e a casa eram sua herança.
A lembrança de Jared, que nunca a deixava, rapidamente transformou-se em agudo desejo do qual ela sentiu-se meio envergonhada. Não havia ele chegado tão de repente, não havia ele partido tão abruptamente, não havia ele tornado a obsessão de seu próprio sonho, um sonho que obviamente não tinha nada a ver com
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ela, não a havia ele visitado, carinhosamente? Com que intenção ela não podia imaginar, então não tinha ele se demorado aqui, ficado ao lado dela na outra poltrona, tão confortável como nessa na qual ela se encontrava, queimada pelo sol e como uma lânguida beleza? Ela era uma mulher muito experiente para não compreender o perigo no qual estava se envolvendo, e mais do que perigo, porque era também absurdo. Não podia permitir apaixonar-se por um homem anos mais moço do que ela. Anos? Décadas...
- Madame, o telefone, por favor. Particular. - Weston disse à porta.
Ela levantou-se imediatamente. Oh, claro, era Edwin.
- Meu amor - sua velha e amável voz disse ao ouvido dela. - Descobri que é impossível viver mais tempo sem vê-la. Está completamente presa a outros ou posso sugerir-lhe uma pequena visita? Se fosse possível, quanto me alegraria ir ao seu encontro! As pernas podiam fazer isso, mas meu coração, uma velha válvula, anuncia perigo. Não quero tornar-me de repente, um inválido em sua casa, ainda que para mim, isso poderia ter agradáveis aspectos.
Ela não estava muito preparada para tão repentina proposta.
Havia outra presença agora em sua casa. Mas por outro lado, não poderia ser isto uma proteção contra a invasora presença, um sinal de maturidade e dignidade, se ela fosse visitar Edwin por uns dias?
- Deixe-me pensar sobre isto - ela disse. - Se eu puder arrumar as coisas...
Ele a interrompeu com ansiedade. - Não há nada para pensar agora, senão em você mesma, há?, possivelmente, um pouco em mim? O velho coração continua
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pulsando, mas isso me lembra que não será para sempre.
Ela riu. - Que vergonha! Fazendo chantagem!
- Oh, claro, tudo é permitido no amor...
- Telefonarei esta noite.
- Não dormirei enquanto não telefonar.
Depois desligaram, e ela ficou sozinha de novo, contudo, não só, porque compreendeu nesse instante, que nunca poderia estar só novamente com uma nova presença em seus pensamentos. Ainda que se esforçasse por pensar em outros lugares, outras pessoas, nas atividades de sua vida diária, em seus gostos, os quais eram muitos, em seus deveres e preocupações acumulados através dos anos de residência na mesma cidade, na mesma casa, a nova presença de Jared permanecia. À beira do pânico, ela sentiu a necessidade de escape, e que melhor do que correr para Edwin e devotar-se a ele e expulsar o outro?
Sem esperar a noite cair sobre sua decisão, correu ao telefone e chamou-o. - Edwin, eu arrumei tudo. Chegarei amanhã. Me apressarei e chegarei a tempo de jantar com você.
- Bendito seja o amanhã, querida... e bendita seja você por responder ao meu apelo.
A voz dele soava clara, com alegria, e tornou-a esperançosa.
Sentia-se mais satisfeita em confortar alguém que necessitava dela do que ficar acalentando sua própria necessidade. E porque e de que estava necessitada? Na realidade, o que era isso, brutalmente falando, senão uma incipiente e perigosa paixão, a conseqüência, com toda a certeza de sua vida solitária? Porque ela estava ainda confusa para reassumir sua antiga vida de lanches e jantares, iguais compromissos, incerta sem dúvida, de em algum tempo reassumi-los, e nesta incerteza,
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inclinada a novos interesses como ser procurada e compreendida; mas, seguramente, não pela pessoa de um jovem intruso, uma amizade casual que, se continuasse ou deixasse de continuar, poderia ameaçar toda a estrutura de sua razoável e respeitável vida. Ela devia escapar, por isso e, com o espírito de quem procura escape, ela deixou a casa cedo, no dia seguinte, depois de uma agitada noite de insônia e seguiu seu caminho no meio da manhã.
Fora uma feliz idéia guiar ela mesma o pequeno conversível, a atenção impedia-lhe os pensamentos dos quais estava fugindo. Velocidade e movimento, o vento soprando para trás seus cabelos, porque ela havia erguido a capota do carro, davam-lhe a ilusão de uma fuga real. Alguns dias com Edwin poderiam acalmála, trazê-la de volta à realidade. Ela poderia encontrar abrigo na segurança do seu amor e amá-lo, como de fato o havia amado, muito, mas tranqüilamente e com o respeito devido à sua idade e grande fama. Sentir-se honrada por seu amor e não entusiasmar-se por ele... no entanto, talvez, ela houvesse cometido um erro em permitir-lhe que entrasse em seu quarto? Sim, isso fora um erro. Esta noite ela lhe diria assim:
- Edwin, meu querido - ela começaria - Passamos da idade, você e eu, quando necessitamos da manifestação física do amor. Se os outros souberem disso, poderão interpretar erradamente. Isso poderá mesmo ser chocante para eles. Vamos, portanto, sentir-nos contentes com uma boa conversa, sentados lado a lado, querido Edwin.
Aqui ela faria uma pausa, aqui, ela poderia segurar a mão dele nas suas e apertá-la.
Na realidade, depois de ter chegado bem a tempo para o jantar, na penumbra da sala iluminada apenas por velas em antigos candelabros de prata, e depois da
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sua encantadora acolhida, ela percebeu seu olhar vago e um tanto patético em sua solidão. Ela desistiu de dizer qualquer coisa que pudesse arrefecer-lhe a alegria de sua vinda. Desistiu disso aliás, até depois do jantar e então, desistiu de novo, porque ele quis falar-lhe a respeito do livro que estava escrevendo sobre a possibilidade e a impossibilidade da imortalidade. Ele segurou seu braço quando levantaram da mesa e dirigiram-se para a sala de visitas, onde a lareira acesa aquecia contra o frio do anoitecer nas montanhas. Sentaram-se lado a lado no grande sofá em frente à lareira, e ele começou imediatamente, mantendo a mão esquerda em seu braço, cobrindo-a com sua mão direita.
Uma pessoa não pode testar seus próprios pensamentos, você sabe, querida, e eu não estou totalmente certo da validade da filosofia. Eu estou desbastando isto para fora do meu velho cérebro. É muito cedo, após o jantar, para pensar em assuntos tão sérios?
- Não, se está pensando neles - ela respondeu sorrindo.
Ele ficou calado por um longo momento, talvez juntando esses pensamentos, talvez para mudar o humor brincalhão que haviam mantido no jantar para a sua usual pesquisa filosófica. Então, ele recomeçou.
- Você tem uma real e profunda influência sobre mim, Edith, e por conseguinte, sobre meu pensamento. Eu tenho reescrito vários capítulos em minha filosofia, os quais eu pensava que fossem permanentes. Você tem me trazido uma nova urgência de meditar na morte, sua finalidade, seu significado. Eu quero provar que a morte não é o fim. Quero assegurar a mim mesmo, que EU continuo porque VOCÊ continua. Quanto aos outros, que continuem se o desejarem. Esta é a minha imortalidade a qual devo provar e a mim mesmo primeiro. Portanto, medito na morte novamente. É ela um
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fim ou um começo? Mas o que é este meu eu o qual pode considerar a morte como se ela fosse uma manifestação separada dele? Ah, é a separação que é tão significativa!
- Contemplo a morte como se eu fosse continuar depois da sua chegada, exatamente como eu a contemplo antes. Todavia, sobreviverei desde que possa contemplar a mim mesmo depois tão bem quanto antes. Isto é plausível, minha querida? Seja franca... eu exijo a verdade! Não deixe minha nova ansiedade viver além do túmulo conduzindo-me a uma falsa trilha!
A magia de sua bela e ressonante voz, ainda forte despertou seu interesse. Ela era uma estranha para filosofar com o seu senso de falar, e não obstante, havia estudado filosofia no colégio, havia lido bastante desde que soube que a filosofia moderna tinha mudado muito, que estava velha... Josiah Royce, por exemplo, cujos livros tinham sido suas provas em seu quarto ano em Radcliffe.
- Ao menos a morte é uma interrupção - ela sugeriu.
- Certo - ele disse sinceramente. Mas apenas uma interrupção. O próprio eu meditando, compreende que isso é uma fase temporária que o conduzirá a sua nova atividade. Disso eu não preciso falar, porque seguramente, em qualquer atividade você e eu encontraremos um ao outro. Esse é o momento da morte que eu devo analisar, se tal análise é possível. É esse momento apenas uma fração de tempo ou é... uma eternidade?
Sua voz caiu para um inesperado murmúrio sobre essa terrível palavra.
Ela refletiu profundamente pensativa. - Suponho - disse por fim, muito hesitante, porque embora ela houvesse pensado muito sobre a morte de Arnold, ainda
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sentia-se humilde diante desse viril velho filósofo. - Suponho que uma aproximação pode ser o limite da definição da morte por eliminar o corpo que sabemos ser nada. Por exemplo, sabemos que o corpo retorna ao pó e não mais existe em seus atuais componentes.
- Exatamente! - ele exclamou triunfante. - Portanto, deixem-nos destruir o corpo. Ele é usado e posto de lado para sempre. Mas o que é deixado, o eu... podemos ir mais longe e dizer que ao menos a idéia de sua continuidade é a realidade? Ou por outro lado, quanto de realidade contém a mera idéia disso? Veja a energia atômica, libertada como divisão entre elementos atômicos. Existiu primeiro como uma idéia, não foi? Ela existia, mas há quanto e quanto tempo? E se a idéia era certa, então isso foi real até esse ponto. E se tivesse sido errada... e idéias podem ser incorretas e portanto erradas e irreais... isso poderia ter existido em resumo ou não, afinal. Isso ainda pode não ser, porque tudo que tem existido em si mesmo e para sempre, tem uma idéia. Em outras palavras, novamente, o princípio de uma realidade está contido numa idéia.
- Nascem de uma idéia? ela sugeriu.
Ele repudiou isso. - Não, a idéia é a primeira realidade.
- A possibilidade da realidade - ela emendou.
- Ah, apanhei-a! - ele gritou em triunfo. - Então a possibilidade é em si mesma a realidade, não é?
Ela refletiu e respondeu: - Mas possibilidade não é continuação.
- Não, mas continuação não é inteiramente legada, tanto quanto há a possibilidade de continuação.
Ela riu. - Então como cair fora desta confusão? Ele não riu ou mesmo sorriu. Em vez disso, tornou-se profundamente sério. Largando sua mão, a qual todo
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esse tempo ele tinha continuado a segurar, pareceu esquecer a sua presença.
As intuições - ele murmurou. - Se perpetuidade é a realidade do espaço, da energia, dos átomos, eles mesmos, deve isso ser negado a nós, que conhecemos o nosso ser? Eu rejeito o absurdo!
Ela escutava, dominada, presa e segura na brilhante efusão de palavras e lógica e assim continuou por horas.
Quando afinal o relógio bateu meia-noite, ele interrompeu-se repentinamente. - Deus do céu, como fui longe! E sua angélica paciência! Vamos para a cama, meu amor.
E em seu deslumbramento, completamente esqueceu que havia planejado de outra forma e deixou-se levar.
...Dentro da noite sentiu-se abraçada e, acordando, encontrou-o a seu lado. À luz da lua, viu seu rosto sobre ela, impressionante em sua marcante beleza. O tempo revelava o contorno de uma perfeita estrutura óssea, os olhos ardentes brilhantes, eram azul aço por baixo das prateadas sobrancelhas. Ele tinha uma boca delicada, nem pequena, nem grande, os lábios delicadamente desenhados, e de repente, ela sentiu-os sobre os seus, apaixonadamente ternos.
- Estive olhando meu amor dormir - ele murmurou - tão linda no sono, minha querida!
- Você não dormiu? - ela perguntou.
- Não. Eu quero saber que você está aqui... cada momento eu quero saber. Você me dá a certeza. Eu poderei sobreviver. Eu sei, porque eu vivo. Há essa substância na vida, a qual não pode render-se à morte. Platão estava convencido disso há muito tempo atrás. Eu tenho o direito de viver, minha bem amada. Seria uma grande injustiça, também um irracional desperdício se
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eu tivesse que morrer... eu ou qualquer outro que reclame vida. Sobrevivência existirá porque deve existir. Essa é a grande moral imperativa.
Abraçada, beijada e encorajada, ela sentiu o amor por ele elevar-se como sobre asas. Adorou-o com um senso de veneração. Seu espírito, ousado e bravo, o ardor de sua natureza, o brilho de sua mente avançando além do conhecimento, assombrava-a e dava-lhe proteção. Se havia alguém em quem podia confiar, era ele. Atraiu-o para si, pela primeira vez tomava a iniciativa, e beijou-o com entusiasmo na boca, sentindo ao mesmo tempo prazer e pena... prazer porque o amava de um modo como não havia conhecido antes, com um puro prazer, e pena, porque ela devia viver nesse seu corpo, anos além dele. Mas agora, nesse fugaz momento, fugaz porque isso não podia ser repartido além da dimensão dos anos, ela sentiu de todo um outro amor. Ela havia amado Arnold, mas sem adoração. Sem dúvida, ele poderia ter se envergonhado da adoração, protestando contra isso, rejeitando isso porque o faria sentir-se constrangido. Mas Edwin tinha a grandeza da simplicidade.
- Eu o amo - ela lhe disse. - Você falou de realidade. Bem, esta é a realidade. Eu o amo. Verdade, amo-o de um modo que não compreendo, mas amo.
Ele recebeu essa declaração com muita calma. - Então, nos encontraremos além do túmulo, a força do amor... Amá-la, é muito fácil, minha querida, mas você, amar-me, isso me dá certeza. O amor avança através de tudo que é falso, de tudo que é efêmero. O amor encontra a realidade, o amor cria o desejo de viver para sempre, e o desejo é a promessa da imortalidade. Ele que é o próprio amor, Platão diz, nasceu do único Imortal. Oh, minha querida, obrigado!
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Ele soltou-a, ela caiu para trás, sobre o travesseiro, respirando profundamente, com um suspiro de paz e adormeceu instantaneamente.
Ela voltou para casa na manhã seguinte e algumas semanas passaram, três ou quatro, mesmo cinco, possivelmente, porque ela raramente marcava os dias. Foram semanas tranqüilas, vagamente feliz, vagamente, porque ela não fêz nenhum esforço. Amélia fora à Europa por três meses e ela não tinha nenhuma notícia de Jared. Sentia-se quase agradecida por seu silêncio, porque dava-lhe tempo para viver consigo mesma, sozinha, analisar a si própria, descobrir suas necessidades, se as tivesse, suas esperanças, se esperança fosse necessária. Amigos telefonavam-lhe, dizendo como a achavam bem disposta e o quanto se alegravam por verem que ela estava se recobrando sensivelmente da morte de Arnold. Ela sorria, ouvia, calava. O que ela estava começando a compreender, era que o novo eu estava aparecendo interiormente. Com o passamento de Arnold, a vida tinha passado, sua vida anterior, infância e adolescência, a jovem mulher, a esposa. Todas as coisas agora se fariam novas, quando ou como, ela não sabia, mas o motivo estava em si mesma, o motivo e a fonte. Ela devia esperar que o novo eu se revelasse.
Enquanto isso, ela trabalhava nos planos para a sua casa. Todas as manhãs após seu demorado desjejum, trabalhava, planejando cada detalhe, cada cor, cada divisão. Era uma ótima matemática e usava uma régua de calcular com perícia. Ela seria seu próprio arquiteto e logo sairia à procura de um terreno. Depois encontraria um mestre de obras. E esta velha casa na qual ainda morava, o que faria dela? Vendê-la-ia? Com ela estaria vendendo toda uma vida de memórias.
Essa decisão, também, devia esperar. Ela não estava muito certa ainda do seu próprio destino. Ela refletia
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muitas vezes e longamente sobre seu novo eu, e essas reflexões a separavam do passado. Mais do que uma casa devia ser planejado. Uma mulher deve viver na nova casa. Desejaria ela viver só?
Ela estava na biblioteca uma manhã, assim meditando enquanto dava uma olhada na correspondência. Ainda nenhuma notícia de Jared, mas, ele nunca lhe escrevera. Se quisesse comunicar-se o faria por telegrama ou telefone. Ali estava no entanto, uma carta de Edwin. Ela não estava muito certa da caligrafia sobre o envelope. Era esparramada e incerta, não como sua surpreendentemente firme e marcante caligrafia. Mas era dele, como constatou, quando a abriu, algumas linhas dispersas, sem muito sentido.
"Minha querida a mudança chegou! Estou acabado. "Te moriture salviamus". Isto é, eu quem estou morrendo... eu só. Eu morro, como tenho vivido, crendo que poderemos encontrar-nos de novo..."
Isso era tudo. Nenhuma explicação, nenhuma descrição, simplesmente ele estava morrendo. Ela ergueu-se, mas o telefone tocou, de repente, e agudamente, interrompendo-a. Pegou o receptor e ouviu uma voz masculina.
- Senhora Chardman?
- Sou eu.
- Aqui é Stephen Steadley. A senhora é amiga de meu pai. Ele pediu-me para avisá-la. Ele está morrendo. É questão de alguns dias, talvez algumas horas.
- Abri a carta dele há apenas alguns minutos e receei...
- Tudo está sendo feito. É o seu coração, é claro. Estamos todos aqui, meus irmãos, minha irmã e eu... os médicos.
- Ele está consciente?
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Muitíssimo. Muito interessado no processo da morte, a despeito das... dificuldades.
- Dor?
Sim, mas ele recusou sedativos. Quer saber, ele disse...
Sua voz interrompeu-se e ela o apreciou por isso,.
Você sabe, temos sido muito íntimos... amigos... -
ele disse.
- Ele a adora. Estamos todos muito agradecidos por você ter quebrado sua profunda solidão. Nenhum de nós poderia fazer isso.
- Ele quebrou a minha também.
Isso foi tudo o que ela pôde dizer. Ela não pôde fazer perguntas. Devo ir? Não pôde perguntar isso nem a si mesma. Ela o viu sobre o leito, seu belo corpo morrendo, debatendo-se na morte.
- Adeus - ela disse baixinho.
- Adeus? - o filho dele repetiu surpreso. - Oh sim, bem... Eu o farei saber imediatamente.
Imediatamente, Edwin morrerá, ela pensou, mas não disse nada, sua voz embargada com as lágrimas. Ela desligou e sentou-se com a cabeça entre as mãos, os cotovelos sobre a escrivaninha. Ela sabia, é claro, sempre soubera, que esse momento deveria chegar. Mas agora chegara e ela devia estar preparada para ouvir que ele não existia mais. Deveria ir vê-lo? Como poderia decidir? Não tornaria a sua presença mais dolorosa para ele a agonia da separação? Melhor deixá-lo com seus filhos, melhor deixá-lo escapulir para o desconhecido com seus filhos junto de seu leito.
Ela ergueu-se indecisa, e achando a casa e os jardins intoleráveis, entrou em seu pequeno conversível, o qual sempre guiava, deixando o carro maior para seu chofer, e sozinha, ela tomou o caminho do mar. O litoral de Jersey estava incrivelmente congestionado e ela
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seguiu para o norte, em direção a Southampton. Em algum lugar além de Red Hills, ela poderia, talvez, achar um solitário rochedo perto do mar e lá imaginar um local onde poderia ter sua casa isolada. À meia-noite voltaria. Sim, mas por que a pressa? A morte não esperaria e ela sabia que não podia ir até Edwin para vê-lo morrer.
...Ao por do sol, ela achou o local pelo qual procurava. Entre dois povoados, encontrou um rochedo e sobre o rochedo, um vazio. Seguramente, isso pertencia ao dono de alguma grande propriedade, mas ela o convenceria a vendê-lo. Pertencia a alguém, porque num lado do rochedo, quase oculta, encurvadas árvores retorcidas pelo vento do mar, ela descobriu uma estreita escada que levava a uma pequena praia branca, entre as rochas. Os degraus não eram muito usados porque estavam cobertos de folhas mortas e de musgo, mas poderiam ser usados, embora ela resistisse à idéia de usálos então, porque estava só e se escorregasse, não haveria ninguém para descobrir seu corpo e as sombras estavam caindo depressa; os dias estavam se tornando curtos. Ela precisava voltar.
...Antes de meia-noite ela chegou em casa e Weston esperava-a.
- O telefone, madame. Deve ligar, por favor, para este número. E deixou-me preocupado, madame, se me permite dizer, andando sozinha assim numa noite escura e sem lua.
- Obrigada, Weston - disse, dirigindo-se ao telefone.
Ele inclinou-se e saiu e ela discou e esperou. Num instante a mesma voz atendeu, a mesma que ela ouvira pela manhã.
- Sra. Chardman?
- Sim, sou eu.
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Estive aguardando. Meu pai morreu às seis horas. Seus últimos momentos foram muito dolorosos. Mas uma estranha mudança aconteceu. Todas as marcas da dor desapareceram. Uma beleza tranqüila...
A voz interrompeu-se.
Ele era muito belo - ela disse, baixinho.
A voz começou corajosamente. - Sim, muito mais belo do que qualquer de seus filhos. O funeral será na quinta. A senhora virá?
- Não - ela respondeu prontamente. - Não quero recordá-lo morto. Para mim, ele vive... para sempre.
- Obrigado - ele falou.
Silenciou e então, ela desligou. Essa etapa de sua vida, esse estranho interlúdio, o qual ela nunca poderia revelar à ninguém e que não revelaria nunca, também estava encerrada. Ela sentou-se por uns minutos evocando lembranças. De qualquer modo não sentia nenhuma desolação. Para sempre seria grata a Edwin pelo que lhe dera. Dentro do vazio de sua solidão, ele havia derramado amor, amor generoso e sem egoísmo, nada pedindo em troca exceto suas ocasionais visitas. Alegrava-se por ter sido esse amor útil a ele, também por ter-lhe inspirado a busca filosófica, a qual de outro modo não poderia ter empreendido. Ela lhe tinha dado conforto.
Ela abriu o cofre onde guardava suas cartas, e escolhendo ao acaso, apanhou uma que havia recebido justamente na última semana.
"Para mim na hora da morte... talvez antes nos encontraremos de novo minha querida, ainda que Deus proiba... isso será necessário para definir o problema da morte que antes eu espero poder solucioná-lo. Estarão os que morrerão antes de mim conscientes de alguma coisa? Por esta resposta devo esperar. Sim, eu
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ouso esperar, senão porque estarei sentindo nestes dias, uma curiosa pressa de morrer, tornando-se quase boas vindas à morte, como se eu desejasse libertar-me deste meu corpo, o qual cumpriu seu extremo propósito, minha bem amada, em nosso amor? Sem amor eu teria acreditado que a morte é o fim, com amor minha esperança tornou-se muito mais do que fé. Tornou-se crença."
Ela deixou cair a carta de suas mãos. Ergueu sua cabeça e escutou. A casa estava silenciosa à sua volta, mas no silêncio, ela pareceu ouvir música, distante, indefinida.
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PARTE2

- Suponho que isso tenha começado na Ásia - Jared Barnow disse - ou melhor dizendo, no sul do Vietnã, naquela estúpida guerrinha, centralizada ali.
Ele tinha simplesmente chegado num anoitecer, no começo do outono, quando ela pensava que o havia completamente esquecido, absorvida em sua nova casa. Havia escolhido o local, vinte acres num rochedo e tinha mesmo cercado o terreno para sua casa, entre um grupo de cedros retorcidos pelo vento.
Chegara em casa com um certo contentamento, quase alegria... porque o que lhe daria alegria nessa fase de sua vida? E o encontrara à sua espera ao crepúsculo no terraço.
Estava andando prá lá e prá cá, impaciente.
- Ninguém sabia onde você estava - ele queixou-se. - É muito descuido de sua parte. Suponha que algo lhe aconteça? Tudo pode acontecer hoje em dia. Onde eu iria procurá-la?
Ela sorriu, nada respondendo. - Voltarei num instante.
Meia-hora depois, ela o olhava do outro lado da mesa de jantar. Acima da floreira de prata com rosas
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de estufa, as velas tremeluziam e Weston fechou as janelas francesas que abriam para o terraço e deixou a sala.
- Você nunca me contou sobre essa parte de sua vida - ela disse.
- Não. - Ele comeu em silêncio por um momento, que ela não interrompeu. Depois, ele falou de novo.
- Duvido que lhe conte. Há partes de uma vida que devem ser encerradas completamente, exceto quando interferem com o presente. Eu lhe contaria...
Mas ele não lhe contou e ela não insistiu, falando-lhe, em vez disso, dos pequenos e atuais acontecimentos em sua própria vida, uma nova sonata que havia começado, suas lições de piano com um célebre professor. Depois, foram para a biblioteca para o café.
- Vamos à biblioteca - ele disse. - Salas de visitas me aborrecem, de algum modo.
E quando a porta se fechou e eles ficaram sozinhos, de novo ele começou.
- Isto é muito necessário contar-lhe, talvez me dê uma direção. Houve um bombardeio em Saigon. O alvo do inimigo nunca era correto e uma das bombas caiu numa vila bem do outro lado da cidade onde estávamos estacionados. Não foi um ataque severo, nem muito longo, mas a bomba caiu sobre um bando de crianças que estavam procurando no chão alguns chocolates que um dos nossos homens havia atirado. Estavam rindo e brincando quando... - ele fechou seus olhos e mordeu os lábios e depois continuou - o homem que jogou os doces voou aos pedaços. Muitas das crianças não tiveram a mesma sorte. Ficaram somente feridas. Nós pegamos as que ainda viviam e as levamos ao improvisado hospital que tínhamos na aldeia. Não havia médicos suficientes ou enfermeiras. Nunca havia.
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Suas mãos tremiam enquanto ele tentava acender um cigarro e ele ergueu-se. - Lá não era comum acontecer tudo aquilo. Mas, naquele dia, fiquei perto da improvisada mesa de operações, tentando ajudar um cirurgião que removia pedaços de metal do cérebro de uma criança. Eu fiquei horrorizado... e furioso... por ver as ferramentas que ele estava usando: ferramentas de carpinteiro, num cérebro! O menino morreu. Alegreime por isso.
- Que poderia ser a vida para ele? Mas de algum modo, todo o meu ódio diante do que havia acontecido... estava acontecendo... centralizou-se naquele rústico instrumento. Afinal, aquilo poderia ser improvisado! Assim... se você pode imaginar... além da fúria, a dedicação havia nascido. Acho que posso chamar a isso de dedicação. E uma direção, uma concentração, a concretização do propósito em meu campo, o qual tem sempre sido a ciência, mas uma ciência prática. Não sou simplesmente um teorista. Gosto de ver a teoria posta em prática. Meu pai era um engenheiro. Herdei-lhe o instinto.
Ele ergueu-se abruptamente de sua poltrona e caminhou até a Janela fechada e parou, de costas para ela, como se estivesse olhando o jardim, agora fracamente destacando-se ao luar, e continuou falando.
- E não foi apenas uma criança! Milhares! Mesmo o Vietcong não usou Napalm? Nós usamos. Mas não fomos deliberadamente, pessoalmente cruéis como alguns dos nossos próprios aliados vietnamitas o foram. Eu vi um oficial vietnamita... havia uma mulher numa aldeia, cheia de terror, com duas crianças agarradas a ela e outra em seus braços... mataram as crianças, uma após outra e depois deram-lhe um tiro na barriga. Por que? Ele era um dos nossos aliados... um deles. Mas na verdade não se trata de um caso ou
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de milhares. As crianças nunca poderão correr o bastante. Bombas, balas, minas, pontas de bambus envenenadas, granadas, napalm, todas as palavras. Não apenas as crianças, qualquer pessoa, mas tudo pareceu centralizar-se naquele menininho, cujo cérebro eu vi como aquele infame instrumento... abriu. Eu estava perto de ser licenciado. Terminei meu tempo. Uma semana mais tarde, estava a caminho do lar. Mas eu nunca esqueci.
Ela escutou em silêncio como ele se revelava a si mesmo. Revelara-se e todavia, a revelação afastava-o infinitamente para longe dela. Ela passara sua vida em uma tal segurança, paz, e alheamento do mundo que ele conhecia, que a morte de Edwin e mesmo a de Arnold, tornavam-se agora meros incidentes inevitáveis e pouco lamentáveis. Como poderia ela confortar esse jovem e magoado homem? Ela sentiu uma onda de desamparo, enfraquecendo nessa força. Ela não soube o que dizer e assim não disse nada, sentindo o maior desamparo. Então inesperadamente ele pareceu não precisar de nenhum conforto. Voltou-se resolutamente e ergueu os ombros.
- Por que tive de lhe contar tudo isso? Nunca mencionei isso antes. Voltei ao lar, fui trabalhar. Quem diria que tudo isso era inteiramente sem sentido? Sirva-me outra xícara de café, sim?
Estendeu sua xícara, ela a encheu e ele sentou-se de novo.
- Então - ela disse, a cafeteira de prata sobre a bandeja - no que está trabalhando agora, especificamente?
Jared sorriu agradecido, sobre a borda da xícara e largando-a vazia, começou com seu habitual entusiasmo.
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- Não estou pronto ainda para especialidades. Basicamente, sou um físico. Esse é o meu treino. Eu teria prosseguido nesse campo remoto de vidas humanas, suponho, e vadiando além disso e avançando dentro da física nuclear, se não tivesse sido atirado dentro do Vietnã... do qual eu nunca teria me livrado então, emocionalmente, ao menos. Mas perdi meu interesse no espaço e se vou aplicar minha Física, preciso de estudo, estudo bio-médico.
Ele ficou sério, ausente assim que parou. Esquecèra-a, ela percebeu meio enciumada, ponderando em algum secreto recesso de sua mente, se deveria chamá-lo por meio de um truque feminino, uma exclamação proferida suavemente e ele veria que tinha obtido muito mais do que a sua compreensão. Assim teria agido se não fosse a filha de Raymond Mansfield, o eminente cientista, que havia vivido tão completamente como um cientista, que ela sozinha com ele, nessa casa depois da prematura morte de sua mãe, tinha aprendido não apenas a compreender sua gíria científica, mas uma atual compreensão de seu trabalho com raios cósmicos, ao menos até o ponto de ser capaz de ajudá-lo com sua instrumentação de medir e testar. A exatidão exigida por tais investigações científicas tinha gerado exatidão em seu ser, expressada em honestidade levada algumas vezes, ao extremo.
Essa honestidade preveniu-a então, contra um truque feminino e ela simplesmente disse, muito tranqüilamente: - Eu compreendo. É claro, eu não tenho acompanhado o desenvolvimento da engenharia, mas lembro-me da impaciência de meu pai com seus próprios e imperfeitos instrumentos, quando media raios cósmicos sobre picos de montanhas e em cavernas. Ele costumava falar comigo mesmo porque aquele que idealizou
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a ferramenta, não seguia um curso de engenharia comum!
Jared riu. - Exato. Bem, universidades hoje em dia estão planejando cursos de estudo bio-médico e eu poderia simplesmente ter...
Interrompeu-se.
Ela esperou e então, perguntou com voz tranqüila, quase indiferente. - E como exatamente, você define estudo bio-médico?
Ele fitou-a surpreso e depois refletindo: - Bem, isso é uma espécie de coisa interdisciplinar, como deverei dizer-lhe... multidisciplinar, para ser mais exato. Por exemplo, se eu me desenvolver em instrumentação nuclear... sobre a qual devo me decidir... devo ter estudo eletrônico para fabricar meus instrumentos. Mas desde que eu queira trabalhar no campo médico, devo prosseguir com biologia.
- Isso o faz um engenheiro físico-biológico?
- Exatamente.
Ele fitou-a com inesperada interrogação no olhar:
- Estranha conversa, não? Entre um homem moço e uma mulher bonita.
- Isto me recorda as conversas com meu pai, quando eu era jovem.
- Você ainda não parece mais do que uma jovem - ele respondeu.
Ela sentiu que ele a fitava e erguendo seus olhos viu, surpresa, que ele a contemplava como se a estivesse vendo pela primeira vez. Habituada como estava à inesperada admiração nos olhares dos homens, sentiu-se de repente, absurdamente constrangida. Muitas vezes lhe tinham dito que era uma mulher bonita, embora ela não se considerasse, sendo tão alta, pensou, e propensa a ser magra e talvez demasiado honesta, e de forma alguma parecia voluptuosa ou qualquer coisa
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assim. Assim pensara de algum modo, modestamente, quando era a esposa de Arnold; contudo aqui estava o "olhar" de novo, como chamava isso para si mesma, um olhar desagradável até agora, quando para sua própria surpresa, ele tornou-se não de todo desagradável. Ela encontrou seus olhos negros, não atrevidos, mas com uma espécie de defesa.
- Acho que é porque sou tão magra - ela disse, com voz baixa, quase sem fôlego.
- Você é exatamente certa - ele replicou firmemente. - Aprecio que seja alta e magra. Gosto assim.
Ela riu, para fugir a essa declaração. - Que acha que devo dizer agora?
- O que você sentir - respondeu prontamente.
- Bem, então, estou encantada, acho que surpresa.
- Vamos... não creio que esteja surpresa. Fitou-a, desafiando-a e ela sentiu suas faces enrubescerem. Estava quase para alegar sua idade como defesa própria porém não o fez, descobrindo em si mesma uma relutância até para pensar na diferença de suas idades. O que importava isso se realmente não importava? Eles eram dois seres humanos que acidentalmente haviam nascido separados por uma geração. Assim havia sido com ela e Edwin, apenas essa foi a diferença. Não teria sido, desde que ele fosse o homem?
- No que está pensando? Jared perguntou de repente.
Ela riu constrangida. - Tem uma pessoa o direito de perguntar isso a outra?
- Quer dizer que não pode me contar?
- Quero dizer que não quero contar-lhe! Trocaram um meio sorriso, olhares desafiadores e então, ela ergueu-se.
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- Obrigada por me ter falado sobre a criança. Não poderei esquecer. Isso explicou muita coisa. Importa-se se eu lhe disser boa-noite? Estou um pouco cansada esta noite.
...A salvo em seu próprio quarto e cozinha, ela sentou-se diante da penteadeira e contemplou-se no espelho oval de moldura dourada ali pendurado. O que via era diferente, ou assim imaginava; a mulher ali refletida, sem ser exatamente ela, nessa manhã, quando escovava seus cabelos, depois do banho. Essa mulher, refletida consigo mesma agora, decidiu, estava apaixonada... uma palavra ridícula. Como se fosse muito ingênua para apaixonar-se, somente porque um moço parecia inclinado a apaixonar-se por uma mulher mais velha, que acontecia ser ela! Mais velha era mesmo, e tinha toda a sofisticação, acreditava, que uma mulher na sua idade devia ter.
Seus conhecimentos, senão amizades, eram muitos e ela estava muito acostumada a uniões entre homens e mulheres atualmente, velhos e jovens. Por exemplo, que houve entre ela e Edwin? Poderia ela ter explicado alguma vez a Arnold, esse relacionamento? Talvez a vida fosse uma série de experiências que não poderiam ser explicadas mesmo a si própria. E isto era certo, que ela agora parecia anos mais jovem do que era, como não havia sido antes da morte de Arnold, ou sem dúvida, antes da morte de Edwin. Só, havia de fato recuperado sua natural juventude, o efeito talvez da completa liberdade, na qual não era necessário dividir nada, nem seu tempo, seus pensamentos, com ninguém mais.
- E eu, agora, não devo perder minha preciosa liberdade por ninguém - ela disse à mulher no espelho. Sorriu e a outra devolveu-lhe o sorriso. Sim, pensou, tirando os grampos do cabelo, dissera boa-noite a Jared
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exatamente no momento certo. Ele possuía um poderoso magnetismo animal, o qual ela era demasiado inteligente para não reconhecer. Por baixo do tédio de sua apreciação, da repressão de sua educação, ela era fortemente sensual, quanto não sabia... não sabia, mas sem dúvida, queria saber. Tal conhecimento poderia ser muito prejudicial, conseqüências muito sérias poderiam resultar da experiência. Ela não temia o julgamento das outras pessoas, porque nos dias atuais de liberdade e indulgência, tais julgamentos não constituiam mais do que um pequeno passatempo, mas ela temia as conseqüências em si mesma. Conhecendo a intensidade de seus sentimentos, sabia também que se permitisse a si mesma considerar uma... amizade, assim dizendo, ela poderia não ser capaz de controlá-la. Então outra vez, sua nova liberdade estaria perdida.
Edith começou vigorosamente a escovar seus cabelos e eles caíram sobre sua face como um fino véu.
- Você exerce um estranho efeito sobre mim - declarou Jared à mesa do desjejum.
- Sim? - Suas sobrancelhas ergueram-se. Ela estava muito segura de si nessa manhã, após uma noite de sono profundo, com a mente descansada depois da decisão.
- Um efeito criativo - ele continuou. - Em vez de perturbar-se como reconheço que tenho sido perturbado por uma atraente mulher, você, odeio usar a palavra, me inspira, é tão batido isso, mas é o que importa para mim. Você desperta minhas idéias, agitando-as interiormente. Não conheci uma mulher antes, que despertasse cada lado de mim... mentalmente, emocionalmente... e agora, fisicamente também.
Ele falou com simplicidade e sem constrangimento, como o teria feito se houvesse explicado uma nova
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teoria. Ela ouviu, seus olhos nos dele, e respondeu simplesmente:
- É maravilhoso ouvir isso.
Ele esperou, ambos fitando-se. - Bem? - ele disse após um momento.
Edith sorriu. - Bem, o que?
- Isso é tudo?
- Que mais pode haver?
- Muito mais, tanto quanto você o desejar.
O silêncio caiu, um portentoso silêncio, expandindo-se numa imensa possibilidade. Ele olhava-a resoluto... desafiando-a talvez? Uma palavra, um sinal de consentimento, eles poderiam ser atirados dentro de um momento irrecuperável, em suas conseqüências. Ela estava consciente da disposição dele, suas mãos estavam esperando ali sobre a borda da mesa, todo o seu ser esperando e pronto. Ela desistiu involuntariamente do desafio.
- Vamos falar de outra coisa - ela disse. Jared ficou calado e voltou-se para os ovos com presunto, até que ela quebrou o continuado silêncio com voz casual. - Precisa ir trabalhar hoje ou tem tempo para um passeio a cavalo?
- Sabe montar?
- Tenho que aprender de novo. Costumava fazê-lo muito bem quando jovem, mas meu marido não apreciava isso.
- Ele não apreciava você. - Sua voz estava acusando, mal humorada.
- A seu modo, apreciou - muitíssimo - ela insistiu.
- Então ele não compreendeu.
Ela riu. - Oh, vamos, isso é muito vulgar... maridos não compreendem esposas e esposas não compreendem
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maridos! Você não me contou sobre a moça que deseja desposá-lo. Ela se interessa pelo seu trabalho?
- Ela não poderia entender se eu lhe falasse sobre ele.
- Você me faz lembrar meu filho, Tony. Ele desposou uma moça encantadora, mas estúpida. E ele é tão inteligente! Eu sugeri que talvez ela fosse um pouco burra... apenas não usei a palavra... quando ele contou-me que desejava desposá-la, e ele replicou que não queria encontrar uma detestável e inteligente mulher quando chegasse em casa à noite.
Ela riu mais uma vez, mas Jared não. Ele fitava-a seriamente, o ovo frito equilibrado sobre seu garfo. - Ele é um estúpido louco, eu diria!
- Oh, não! Tony não é louco. Apenas tem muito da mãe dele! Eu me sinto muito orgulhosa... um único filho não seria parecido com sua mãe? Isto é um sucesso para uma mãe hoje em dia.
Ele comeu o ovo, refletindo. - Gostaria que você não falasse sobre maridos e esposas, filhos e mães - ele disse mal humorado.
- Apenas sobre você e a moça - ela disse.
- Nem mesmo sobre ela. Está bem, vamos galopar, agora. Eu tenho um compromisso esta tarde. Ele ergueu-se e empurrou a cadeira, enquanto falava.
...Galopar, ela pensava arrependida, não tinha sido uma boa idéia afinal. Ele cavalgava soberbamente, sua esguia, erecta e elegante figura, as rédeas frouxas em suas mãos e todavia, controlado. Depois havia o tempo, um morno e brilhante dia, a luz do sol filtrando-se através das árvores em ambos os lados da pista, as cores do outono sobre as colinas ao longe, no horizonte. Ela sabia que ficava bem em trajes de montaria e em seu pensamento, foi severa consigo mesma de novo. Teria sido movida por um impulso de coqueteria, o

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qual ela não havia reconhecido nessa manhã à mesa do café? Não, ela sentia-se simplesmente feliz, uma luminosa manhã, uma confortável, mesmo bonita casa, uma agradável companhia. E certamente não havia nenhum perigo em admirar essa companhia, jovem e elegante, oh, muito jovem e muito elegante!
- Por que está rindo para mim? - ele perguntou.
- Pensamento secreto - ela respondeu. - Vamos, vamos galopar!
Ela tocou com o chicote o flanco de seu cavalo e seguiu o caminho descendo o atalho e internando-se no vale. E seguindo em frente, sob um céu sem nuvens, ela pensou na casa sobre o rochedo, não existente e todavia, tão real em sua imaginação, como se ela estivesse lá. Deveria contar a Jared sobre aquela casa? Renderse ao impulso de revelar-se a ele? Não! A decisão surgiu rápida através do impulso. Ela não devia revelar-se... não ainda. Descansou seu cavalo num meio galope e olhou seu relógio de pulso.
- É meio-dia... você tem um compromisso.
- Por que tentou escapar-me? - ele gritou.
- Eu? - Evitando seu olhar, tocou com o chicote no cavalo e disparou de novo a todo o galope.
...Está tentando escapar-me, você sabe - ele disse uma hora mais tarde. Declinara o almoço, alegando não ter tempo e agora estava de saída. Haviam parado na porta e ele olhava para seu rosto erguido.
Ela sustentou seu olhar, francamente. - Não tento escapar-lhe... isso é apenas porque eu...
Interrompeu-se, e ele esperou.
- Chegará atrasado - disse Edith.
- Chegarei atrasado - ele concordou e esperou
- Não sei como responder-lhe - ela disse por fim.
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- Ah, assim é melhor. Da próxima vez descobriremos porque não pode me responder.
Ele parou e beijou-lhe a boca, tão rapidamente, tão inesperadamente, que ela não soube retroceder ou voltar a cabeça para evitá-lo. Então, ele foi embora.
...Ele deixou um resultado atrás de si. Ela sentiu sua ausência, tão fortemente, que isso transformou-se numa presença. O silêncio na casa, a sua voz firme e positiva não há muito ouvida, sua inquietação, movendo-se na cadeira, levantando-se para olhar pela janela, para tocar piano por cinco minutos, ir até a estante e apanhar um livro e dar uma olhada nele enquanto falava e depois colocá-lo de volta no lugar, sem falar disso enquanto falava de algo mais... uma infinita inquietação da mente invadindo o corpo, seu total domínio, brilhante, impondo sua personalidade por toda parte da casa, tudo isto, de repente não mais, era somente uma afirmação de si mesmo.
Ela sentou-se quando ele saiu, seus lábios latejando com o beijo; então abruptamente, ergueu-se, recusando-se a reconhecer a onda de desejo físico em seu corpo. Ela reconhecia seu significado! Não havia tido nenhuma grande excitação pessoal em sua vida com Arnold, mas tinha sido sexualmente satisfeita. Ele não havia sido desagradável para ela, e sua intimidade havia tido a maturidade de um homem que compreendia do que uma esposa precisa. Ele tinha sido atencioso e apreciável, e ela tinha sido o mesmo para ele, assim acreditava.
Certamente, não havia pensado numa ligação amorosa extra-conjugal como tantas mulheres faziam hoje em dia, não unicamente por princípios de moral, mas porque não precisava disso. Agora enfrentava o fato que destruía a sua, de algum modo plácida, vida com Arnold e talvez mesmo a excitação do toque de Edwin.
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Seu próprio desejo, que de há muito despertado e habitualmente satisfeito estava agora fazendo exigências sobre ela.
Não havia nenhuma razão para vergonha ou mesmo constrangimento uma situação severa bastante comum, ela refletiu, quando uma esposa perde seu marido ou uma mulher o seu amante. Ela precisava simplesmente enfrentar a vida como era agora e fazer suas escolhas. Ela havia escolhido viver só e explorar sua liberdade. Portanto, devia desviar sua mente, sua imaginação, para longe de Jared como homem. Devia encarar isso francamente como era, pensar nele como um ser humano, um amigo, nada mais. Assim admoestava a si mesma. Não pensar mais de como ele se parece, ela decidiu firmemente, em vez disso pensar na sua inteligência, seus interesses, sua carreira, todos os aspectos de sua forte personalidade. Não havia nenhuma razão para que ela não devesse desfrutar isso, livremente, em vez de permitir que uma emoção agarrasse o controle de si mesma.
Devo preparar-me para ser sua amiga, pensou, e lembrando a admiração dele por seu pai retrocedeu até aqueles dias, quando ela era a filha de seu pai, a única pessoa em sua casa que compreendia sobre o que ele dizia quando falava de seu trabalho com raios cósmicos, a única pessoa que queria compreender. Tinha querido compreender porque o amava e sabia disso, vitorioso cientista que era e famoso em todo o mundo, ele vivia solitário em sua própria casa.
- Sua mãe é uma boa e querida mulher - ele costumava dizer - e eu tenho sido uma pobre espécie de marido para ela, minha mente sempre está em algum lugar distante, mesmo quando ela fala comigo. Não é de se admirar que ela perca a paciência. Não a censuro nem um pouco.
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Sua resposta para isso fora o silêncio, e abraçou-o. Depois, finalmente, uma infinita paciência com Arnold quando ele queria falar com ela, contudo seu trabalho como advogado era monotonamente fastidioso, ela achava, assim, sentia impaciência, e muitas vezes, tinha apenas de lembrar-se de seu solitário pai, e sim, sua impaciência, sua solitária mãe, enchendo seus dias com os trabalhos da casa, e sua própria e impaciente morte. Sim, seu pai fora um solitário como somente os cientistas podem ser, trabalhando como trabalham e coagidos pelos imensos problemas do Universo.
Ocorreu-lhe então que Jared, também, devia ser um solitário, embora fosse jovem, mas muito mais brilhante do que seus amigos e vivendo só também, com um velho tio. Ela podia facilmente aliviar essa solidão e sem pensar nisso como um romance, que sem dúvida seria a última experiência que ela procuraria. Uma vez durante seu casamento, ela havia sido fortemente atraída por um elegante homem de sua própria idade, fora um tempo difícil, ela odiava lembrar disso, porque a atração havia sido puramente física, e sentia-se agradecida por isso, porque se houvesse sido capaz de sentir respeito pelo homem, não teria resistido. Resistira, mas sempre se lembraria da espantosa força de seus próprios impulsos, compelindo-a a entregar-se até que o impulso da resistência transformou-se em verdadeiro sofrimento, tão intolerável que ela havia suplicado a Arnold para levá-la à Europa, naquele verão. Se ele percebera porque havia sido tão insistente, ela nunca soube e não queria saber, mesmo agora. Arnold ouviu seu pedido e não lhe perguntou porque chorava enquanto falava, nem ela poderia ter-lhe contado porque.
- Oh, claro, minha querida - ele respondera. - Poderei eu mesmo desfrutar de umas férias. Veja sóvocê está num estado de nervos... tenho observado
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ultimamente. Você trabalha demais... muitas obras de caridade e outras coisas, e as crianças estão numa idade difícil. Eu não gosto nada do modo como Millicent responde quando você fala com ela.
Millicent! Filha deles, agora uma complacente esposa e mãe, teria ela sabido porque sua mãe estava tão impaciente e distraída naqueles dias? Teria ela visto juntos, sua mãe e o exageradamente elegante homem com seus olhos azuis e cabelos escuros grisalhos nas têmporas... a magra agressiva, precoce, linda adolescente Millicent, apaixonada por seu pai e ciumenta de sua mãe...
Ela afastou tais lembranças e pensou em Jared em outros termos. Ela poderia aprender a conhecer sua mente, seu pensamento, e de um certo modo aliviar sua solidão e seu próprio vazio.
...Mas você está com uma ótima aparência! sua filha Millicent exclamou.
- Não devia estar? - perguntou-lhe. Millicent não parecia tão bem, pensou. A jovem mulher havia engordado e seu cabelo escuro como os do pai, não parecia escovado nem lavado, e ela usava um vestido azul escuro que precisava ajustar.
- Mas você rejuvenesceu - Millicent insistiu tão acusadoramente, que sua mãe riu.
- E isso é pecado?
Estavam no living superior, onde Millicent a encontrara há menos de quinze minutos. Mas era costume da filha deixar passar meses sem notícias e então, chegar sem aviso.
- Não - Millicent disse relutante. - Não exatamente, acrescentou! Deu uma olhada nos papéis sobre a escrivaninha, onde sua mãe estava sentada, debruçou-se e curvou o pescoço. - Que está desenhando?
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- Planos para uma casa imaginária.
Casa... foi por isso que eu vim - Millicent exclamou. Tom quer passar uma semana em Vermont caçando e eu pensei em ir na frente com as crianças. Você pode nos emprestar a casa?
Oh, claro. Movida por um repentino e inexplicável impulso, ela continuou. - Na verdade, eu vou lhe dar a casa, se você a quiser.
- Por que? - Millicent perguntou bruscamente. Ela hesitou. - Não sei, exatamente... exceto que lá é demasiado solitário para mim.
- Posso compreender isso - disse Millicent. Não há ninguém no mundo que possa tomar o lugar de papai.
- Não. Nem eu poderia desejar isso de outro modo.
- Oh, claro que não.
Trocaram olhares, sorriram um pouco tristes. Millicent estava quase curiosa. Depois sua filha ergueu-se, aproximando-se, parou e beiJou-lhe a face. - Eu não posso ficar, mamãe.
- Precisa de um vestido novo - Edith disse gentilmente.
- Preciso? Oh, eu não posso comprar um! Tom está pensando em um novo emprego. Teremos de mudar para São Francisco, acho.
- Oh, tão longe?
- Muito longe, mas que posso fazer?
- Ir com ele, é claro.. • que mais? Mas quando?
- Esse é o problema. Tom disse para não contár-lhe até estar acertado. Mas escorregou.
- Guardarei segredo. E o que é a distância hoje em dia? Ou o tempo?
- Verdade! Bem, adeus, mamãe! Oh, claro, eu a verei antes de irmos, se formos!
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Apertaram as mãos e ela segurou a mão de sua filha.
- E se isso acontecer, quando será?
- Pensamos que no fim do mês, a tempo de passar o Natal na nova residência.
Millicent partiu, e ela ficou sozinha de novo. Natal? Isto significava então, que a casa estaria vazia. A esposa de Tony queria estar com seus filhos em sua própria casa no Natal. A morte de Arnold trouxera uma mudança atrás da outra em sua vida. Esta velha casa permanecia como era mas tudo nela havia mudado. Havia sido realmente a casa dele, então! Pelo menos sem ele, todos os seus costumes e hábitos não tinham significado. Se ela continuasse morando aqui, viveria numa crescente melancolia, que finalmente poderia sufocá-la. Edith pegou o telefone da mesa.
- É o escritório da Imobiliária Wilton Real? Sim? Posso falar com o gerente, Roberto Wilton? Alguns minutos? Esperarei...
Esperou, até que uma voz profunda ressoou em seu ouvido.
- Sim, Sra. Chardman? Em que lhe posso servir? Deseja vender a casa? Poderei obter uma ótima venda para a senhora se...
- Não ainda, obrigada! Ao contrário, quero comprar!
- Não diga! Vai mudar-se?
- Há um pedaço de terra que eu quero adquirir. Talvez eu construa uma casa, só para mim mesma. Perto do mar...
- Entendido, perfeitamente entendido... um terreno perto do mar. Parece-me recordar que a senhora sempre desejou... mas acho que o Sr. Chardman não queria... ainda e sempre, não há nenhuma razão para que não deva ter o que quer agora.
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- Nenhuma - concordou.
Onde é o terreno?
Em North Jersey, perto de um povoado mas não dentro dele. Uma parte de uma grande propriedade, acho, sobre um rochedo, rodeada por matas. A pouca distância de algumas daquelas velhas mansões
Ela forneceu-lhe direções exatas e ouviu-o respirando pesadamente, enquanto tomava notas.
- Qual é o preço ao seu alcance, Sra. Chadman?
- Eu apenas... quero isso - ela disse.
Ele riu. - Então, acho que o terá! Por que não?
- Por que não? ela disse, de novo.
...Enevoados flocos de um prematuro inverno estavam caindo através do ar da manhã. O céu estava cinzento, um novembro cinzento, aquela manhã, quando ela abriu a pesada porta da frente. Até a porta parecia mais pesada do que de costume, e ela, mais de uma vez, havia se queixado a Arnold sobre aquela porta suspensa por imensas dobradiças de metal.
Weston, agora mantinha a porta aberta por um momento.
- Alegra-me, madame, que tenha resolvido não ir guiando a senhora mesma. Está parecendo um inverno verdadeiro... tão parado e tudo o mais.
- Por favor, diga a Agnes para não mexer nos papéis em minha escrivaninha lá em cima, quando for tirar o pó.
- Sim, madame.
- Pararei em algum lugar para lanchar, mas devo voltar para o jantar.
- Sozinha, madame?
- Ela hesitou. - Acho que pedirei a Srta. Darwent para jantar comigo esta noite.
Foi até o telefone no hall e discou. - Amélia? Sim, aqui é Edith. Tenho um negócio hoje em Jersey, mas
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voltarei à hora do jantar. Quer vir jantar comigo? Oito horas... isso me dá muito tempo. Ótimo...
Desligou e voltou-se para Weston, paciente, esperando:
- Ela virá e ela gosta de lagosta fresca, lembra-se?
- Sim, madame.
Ela saiu, e a pesada porta fechou-se às suas costas. A estrada fazia um círculo e da janela do carro, através dos flocos de neve, ela viu por um instante a formidável casa de pedra cinzenta, erguida como um castelo alemão, no meio de altas plantas verde escuro. De certo modo, ela deve fugir desse castelo, mas qual o caminho para a fuga, ela não sabe. E por que colocou sua fé numa casa? A terra agora era sua, de qualquer modo, o terreno, o local, a paisagem sobre o mar, o rochedo, o pequeno semicircular caminho para a praia. Wilton havia se encarregado disso completamente. A propriedade estava nas mãos de herdeiros, e eles estavam ansiosos para vendê-la; sabendo disso, ela havia oferecido o triplo pela área do que planejara antes. Agora possuía sessenta acres mais do que precisava, mas eles davam-lhe abrigo e uma ampla visão. Ela deixaria crescer tudo selvagemente. Lá não haveria nenhum jardim arrumado, nada cortado ou aparado.
A manhã prosseguia silenciosa. O motorista guiava rápido e tranqüilamente. Arnold o havia treinado para uma velocidade controlada mas ela havia aumentado essa velocidade até o máximo nos últimos meses, e sem sinal de protesto ou surpresa, ele aceitara a mudança como se compreendesse porque ela queria agora que guiasse mais rápido. O que ele pensava ela não sabia, um homem calado, ainda moço em seus termos, pelo menos... talvez quarenta? Não sabia nada sobre ele e nunca ocorreu-lhe perguntar. Agora, porém, fechados
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na neve, ela sentiu o silêncio opressivo e quebrou-o.
William, você é casado... filhos e tudo o mais?
Não, madame. Eu moro com minha velha mãe.
- Velha? Quantos anos?
Sessenta e três, madame.
- Em Filadélfia?
- No momento, madame. Morávamos em North Jersey. Minha mãe era governante em uma daquelas velhas mansões. É por isso que sei para onde vamos agora. Eu cresci nessas regiões.
- Oh! E você conheceu os Medhursts?
- Sim, madame. Foi onde minha mãe trabalhou.
- Que estranho! Eu comprei uma das terras dos Medhursts.
- Eu soube, madame.
Ela caiu num silêncio, surpresa. Nada em sua vida podia ser realmente privado, pensou, porque Arnold tinha sido muito conhecido nos círculos financeiros. Mas por que deveria se preocupar? Ela mesma era filha de um homem famoso, a viúva de um homem rico. Ela não precisava de segredos e não teria nenhum, decidiu com firmeza. Não ter nenhum segredo era ser verdadeiramente livre. E assim nessa forma de liberdade, ela chegou até o seu destino, onde encontrou Wilton esperando em seu carro. Ele dirigiu-se para ela imediatamente.
- Trouxe os papéis necessários para a senhora assinar, Sra. Chardman. Acho que está tudo em ordem, desde que a senhora esteja satisfeita.
- Deixe-me apenas olhar a minha paisagem e ver se isto é tudo do que eu me lembro.
A neve havia momentaneamente cessado e ela caminhou até a borda do rochedo e olhou o profundo mar cinzento.
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Não havia nenhum vento para levar as ondas espumantes mais longe, abaixo dela a ressaca quebrava pesadamente contra as rochas que circundavam a praia. O motorista veio para o lado dela também.
- Eu costumava descer correndo esses degraus, madame, quando era menino, ao amanhecer antes de a família ir embora. todos exceto o Sr. Robert... Bob eles o chamavam. Não era muito mais velho do que eu. Havia ótimos caranguejos naquela praia quando a maré baixava.
- Os degraus não parecem muito seguros agora - ela observou.
- Não, madame. Mas eu poderia pô-los em ordem muito facilmente. Sou hábil nesse trabalho.
- Talvez eu peça para você fazer isso para mim.
- Sim, madame.
Ele afastou-se quando ela se calou e continuou olhando o mar. Se ela construísse mesmo a casa, esta terra seria sua então. A casa podia não ser nunca, mas ela permaneceria firme em sua própria terra. A neve estava começando a cair de novo. Ela sentiu os flocos frios contra sua face, como o toque de frios dedos e voltou-se para Wilton.
- Estou pronta para assinar os papéis - ela disse.
- Tudo o que vai ser feito naquela casa você é quem vai construir? - Amélia indagou à mesa do jantar.
Havia estado absorvida com a lagosta e até agora, não tinha feito nenhuma pergunta. Aliás, não havia tido tempo porque Edith chegara atrasada. A neve havia se transformado numa silenciosa tempestade, e assim, quando Weston abriu-lhe a pesada porta foi para informá-la que a Srta. Darwent já havia chegado e estava esperando na biblioteca, a sala de visitas era muito
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fria para ela, uma vez que o vento do norte tinha começado a soprar naquele lado da casa.
Diga-lhe que descerei em cinco minutos... só vou me trocar... e o jantar pode ser servido imediatamente.
Sim, madame - ele hesitou e depois continuou
eu avisei o chofer quanto à hora que a senhora devia voltar, madame.
Ela parou ao pé da escada para sorrir, lembrando o ciúme hostil entre esses dois empregados. - Não foi culpa dele. A neve já estava alta.
- Muito bem, madame.
Em poucos minutos ela e Amélia estavam à mesa na sala de jantar onde o fogo brilhava na lareira de mármore. Amélia tinha tomado sua leve sopa rapidamente e estava agora ocupada com a lagosta assada e manteiga derretida, o guardanapo enrolado em sua gola.
- Isso ainda está apenas em minha mente - Edith replicou.
- Você nunca irá encontrar uma casa tão confortável como esta - Amélia disse. Ela estava quebrando uma enorme garra com um par de pinças e isso resultou inesperadamente num ruidoso estampido.
- Ela terá uma espécie de conforto diferente - Edith disse e depois, sorrindo para sua velha amiga, continuou: - Se eu tivesse algo para contar-lhe, eu lhe contaria, Amélia. A verdade é que estou num curioso estado mental, não realmente confusa, mas buscando. Eu ainda não me encontrei, ainda não sei o que eu quero, ou onde isso pode ser encontrado. Eu só estou... desfrutando a vida de um modo excêntrico, talvez não enfrentando nada realmente... não sei.
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Amélia largou garras e pinças. - Você está ociosa, é isso. Precisa fazer alguma coisa. Por que não procura obras de caridade ou algo assim?
- Eu não quero nem preciso trabalhar - Edith respondeu. - Tenho minha música... e livros. Eu não tenho lido e...
- E o que? - Amélia indagou quando ela parou.
- E amigos. Foi por isso que eu lhe pedi para vir aqui esta noite. Não a tenho visto...
Amélia interrompeu-a. - Quem é esse amigo pernalonga que tem estado aqui várias vezes?
- É alguém que aconteceu de eu conhecer no último inverno em Vermont. Ele é um admirador de meu pai...
- Não seu?
- Oh, pelo amor de Deus, Amélia!
- Bem, você está madura para isso. Eu sei... eu observei minhas amigas quando ficaram viúvas depois de terem tido maridos devotados do tipo de Arnold, especialmente viúvas bonitas.
- Por favor, Amélia!
- Oh, muito bem, Edith! Não me conte nada se não quer contar.
- Amélia, não há nada para contar.
- Então, por que, de repente, me convidou para jantar?
- Porque eu estava solitária. Eu temia voltar a este velho e escuro casarão. E... e...
- Tenha cuidado - Amélia disse. Você está ficando de mau humor à-toa. Quero um pouco mais de espargos, Weston.
...Então, por que não vem comigo? - Jared perguntou.
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Sua voz chegou clara e forte pelo telefone. Isto foi numa bonita e agradável manhã a véspera do Natal e ela estivera se perguntando como passaria o feriado. Millicent e sua família tinham mudado para São Francisco há uma semana, haviam se comunicado por telefone. As crianças estavam encantadas com as praças, as praias, os parques.
- E você? - Edith perguntara.
- Vou ter uma empregada - Millicent gritou - e é claro estou encantada. Tom tem um ótimo ordenado.
- Então, se ele está com tudo, isso é bom - ela respondeu.
Com isto, ela não havia esquecido sua filha exatamente, mas estava tranqüila sobre ela e poderia esquecê-la embora a amasse muito, como habitualmente esquecia Tony, porque realmente não estava precisando de mais nada, e assim, estava livre nessa manhã para demorar com o desjejum, responder ao telefone quando tocasse e ouvir a clara voz de Jared em seu ouvido. Ela olhava pelas amplas janelas francesas, enquanto isso. O céu estava sem nuvens, azul, as últimas folhas estavam caindo do grande carvalho no terraço, a leste. Ela havia terminado o café, e estava decidindo o que fazer com o dia, algo vigoroso, pensara, porque estava se sentindo extraordinariamente bem, e desperta, impaciente por exercício físico, talvez um galope sozinha ao longo da margem das matas.
- Mas quando? - ela perguntou, incerta.
- Eu a apanharei esta tarde e desceremos de carro até a costa oriental. Tenha pena de mim. Meu velho tio está em Virgin Islands... ele odeia o frio. E eu não posso pensar em mais ninguém. Eu prefiro passar o Natal com você.
- Você não quer ir a Vermont?
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- Não. Quero levá-la a lugares desconhecidos onde nenhum de nós esteve jamais. Vamos perambular.
Ela pensou um momento. Por dentro do vidro da ampla janela, uma atrasada abelha zumbia freneticamente, perdida de seus companheiros, e ela divertia-se olhando-a.
- Há uma abelha zumbindo na janela. Se eu a deixar sair, ela ficará gelada?
- Não - ele disse. Ela achará o caminho de casa.
- Então, espere um minuto.
Ela abriu a vidraça e tocou a abelha para fora com seu lenço. A abelha saiu, voando instantaneamente, mas o doce ar frio invadiu o aposento e ela deixou-o soprar sobre sua face. O frio agudo aguilhoou sua carne e agitou seu sangue; ela não havia notado como estava próximo o ar nesta velha casa, um cheiro agradável de livros encadernados de couro, e de muitos tapetes orientais e de flores de estufa. Uma ânsia de impetuoso desejo de ar puro e um novo vigor invadiu-a e ela fechou a janela.
- Estarei pronta - ela falou ao telefone.
- ótimo... às duas e meia.
...A estrada seguia dentro e fora ao longo da costa. Durante milhas o mar ficou escondido, a estrada invadindo a floresta e depois inesperadamente, emergia de novo na curva de uma enseada ou de uma praia. O sol descia devagar inclinando-se para o ocidente no céu e eles pararam ao crepúsculo, numa hospedaria, uma velha mansão, com seus pilares ao átrio alcançando o telhado. Jared saltou à entrada.
- Estaremos muito sossegados - ele disse.
- Sim - Edith respondeu.
Nenhum deles sentia vontade de falar, isso se via. Ele guiara o pequeno conversível concentrado em seus
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pensamentos e ela não os havia interrompido. Algumas vezes, ele notava a paisagem.
- Aqueles rochedos lá embaixo perto do mar - disse.
Como se tivessem sido atirados lá por um gigante - ela replicou.
O ar tinha sido dourado com a luz do sol através da tarde, tornando-se ao crepúsculo, rosa e carmezim.
O anoitecer estrelado, uma luta crescente pendurada sobre as árvores e uma calma benéfica invadiram-na... e a ele também, e Edith sentiu uma tranqüilidade que estava na própria comunicação entre os dois. Ela sentia-se feliz na sua presença, agora compreendia, mais feliz do que havia sido há muito tempo, mais feliz, talvez, do que jamais havia sido. Certamente, com nenhum outro ela sentira esta convicção de vida e esse bem-estar, essa facilidade de presença com outro ser humano. Ela voltou-se para ele impulsivamente e encontrou-o, fitando-a, seus olhos escuros indagando:
- Devemos parar aqui? Jantar e depois andarmos até a praia?
- Sim - ela disse. - No ar... que cheiro é esse? Pinheiros, acho, é muito tarde no ano para flores, penso que ainda está calor neste clima.
- Pinheiros aquecem-se ao sol do dia - ele disse. Devemos ficar aqui esta noite? Nesta época a hospedaria está quase vazia, eu acho que... todos passam o Natal em casa, mas eu e você faremos nosso próprio Natal.
- Vamos ficar aqui - ela disse.
Jared deu-lhe um olhar apaixonado e profundo e num segundo ela compreendeu seu significado. Não haveria nenhum problema, certamente não haveria sobre os quartos, quartos separados. Sobressaltou-se ao descobrir em si mesma a resposta, oculta em seu próprio
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ser, um relutante desejo de esquecer sua idade e suas reservas. Não era mais a esposa de homem algum. Estava livre para ser o que desejasse e fazer o que quisesse. Não era necessário recusar-se... a ele... ou a qualquer coisa que lhe agradasse. Cumprira todos os seus deveres para com os outros.
- Então vou reservar nossos quartos - ele disse.
Deixou-a no carro e entrou no escritório da hospedaria e ela ficou só e uma doce embriaguez invadiu-a. Reconhecia sem jamais haver sentido antes, uma poderosa atração por esse homem, atração mental primeiro, mas tão completa que fluia através do seu corpo numa corrente de desejo. Edith tentou deter-se, controlar-se, analisar tudo isso. Procurando lembrar-se. Perguntando-se o que realmente queria... nada de complicações, dizia a si mesma, nada de loucas complicações nem de emoção. Acima de tudo, nada de apaixonar-se nessa época de sua vida.
Ele voltou logo, muito alegre, muito tranqüilo.
- Consegui quartos de comunicação - disse. - Se quiser alguma coisa poderá chamar-me.
...Ela acordou durante a noite como de costume após dormir cinco horas. Era seu hábito... cinco horas de sono profundo sem sonhos e então, acordou totalmente, sua mente clara e lúcida. O luar fluia através da janela aberta e o ar estava agradavelmente frio. Ela empurrou as cobertas dos ombros e respirou profundamente. Havia um cheiro de mar e o impetuoso som da distante ressaca. Isso é o que ela ia querer em sua casa no rochedo quando lá dormisse sozinha. Mas agora, não estava só. Isto é, Jared estava do outro lado da porta fechada, não à chave, apenas fechada. Ela ficou de repente vivamente cônscia de que a porta não estava fechada à chave, apenas fechada.
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- Não há nem telefone de comunicação entre os quartos numa velha hospedaria como esta - Jared dissera. Não trancarei a porta no caso... de qualquer coisa.
Ela não havia respondido. Em vez disso, ficara parada no meio do enorme quarto com a sua grande cama de casal.
- Odeio ter de lhe dizer boa-noite - Jared dissera.
- O jantar estava delicioso - ela respondeu. - Eu não sabia como estava faminta.
- Oh, eu sou sempre um animal faminto. - Ele torceu sua bela boca num sorriso meio forçado enquanto falava.
- Você devia recolher esse seu grande esqueleto - Edith falou.
Ele não respondeu. Em lugar disso, depois de olhála fixamente um instante, abraçou-a e beijou-a apaixonadamente nos lábios.
- Boa-noite para você, querida. Abriu a porta entre os quartos, e fechou-a com firmeza.
...Agora, deitada na grande cama, ela pensava no beijo. Ele simplesmente o havia dado, tomado, sem pedir e sem comentar. Ela sentiu de novo o calor jovem de seus lábios contra os seus ao evocar o momento. Mas não estaria sendo ridícula? O que significava um beijo atualmente? Mulheres beijavam homens e homens beijavam mulheres sem nenhum outro sentimento além de uma alegre amizade. Ah, mas ela não! Ela nunca dera beijos assim tão facilmente nem os recebera. Mesmo com Arnold eles pareciam ser... desnecessários. Quanto a Edwin, seus beijos tinham sido aqueles de um menino... ou um velho, um homem velho, ternos, porém, puros; mas o que tinha sido esse beijo, esse beijo que ela ainda sentia sobre os lábios? Então censurou-se novamente. A verdade é que ninguém a havia beijado
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ultimamente e que ela não beijara ninguém. Esse beijo permanecia em sua lembrança agora simplesmente porque era desusado.
Mas nesse momento como se recusasse sua autodecepção, seu corpo reagiu, desafiando-a.
Edith sentiu-se inesperadamente apoderada de uma onda de desejo físico tal como não conhecia há anos. Não, tinha que ser honesta consigo mesma. Ela jamais conhecera tal desejo, talvez porque sempre tivera antes disso, os meios de satisfação. Agora uma porta estava entre eles e apenas fechada, não à chave. Imagine o impossível, imagine se ela se levantasse deste estranho leito, vestisse o seu negligé de seda cor de rosa... que está ali na cadeira... e imagine se ela abrisse a porta, delicadamente, do outro quarto, e lá entrasse, ainda que fosse apenas para ficar parada olhando-o dormir. E se ele acordasse e a visse parada ali?
Não, não podia fazer isso. Talvez, se pudesse ter certeza de que não acordaria... Mas como poderia ter certeza? E imagine os olhos dele abrindo-se, como poderia saber o que veria neles? Ela não o conhecia bastante bem. Não podia arriscar-se a uma possível rejeição. Era tão orgulhosa. Oh, claro, havia mulheres que punham de lado o orgulho, mulheres para as quais só a reação física importava, custasse o que custasse, mas conhecia-se a si própria. Não poderia fugir de si mesma, envergonhada. Ela poderia sentir-se envergonhada depois disso, e então, quem a valeria? Só tinha a si mesma.
Edith dominou severamente o desejo, recusando mover-se, levantar-se, caminhar pelo quarto, recusando a viva imaginação de que poderia abrir a porta e vê-lo deitado lá, mesmo dormindo. Proibiu-se tudo isso, até que o último estremecimento de seu corpo acalmou e ela adormeceu.
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Pela manhã, quando acordou, a lembrança da noite permanecia viva com ela, não obstante. Ela continuava lembrando e escutando. Jared já estava de pé. Através da fina madeira da porta, ela podia ouvi-lo movimentando-se e ficou ouvindo por um momento, e então, deixou a cama, tomou banho e vestiu-se, pondo outro vestido e não o que usara no dia anterior, com sua jaqueta de marta. Queria parecer bonita hoje, realmente bonita, e certa de que havia mudado aos olhos dele, algumas vezes parecendo quase singela; preocupou-se com todos os detalhes. Ah, mas não havia se preocupado até agora! Infelizmente, Amélia tinha razão. Embora ela não tivesse nenhum amante, todavia a possibilidade de amar dava-lhe uma nova vitalidade provinda do coração animado por um sangue agitado. Voltava a viver novamente. A experiência da noite, mudara-o a seus olhos e sabia agora que poderia amá-lo. Não confessava a si própria, mas no íntimo de seu coração, já o amava. Ela era muito sofisticada para isso. Não o conhecia o bastante e poderia não conhecê-lo nunca, pela conclusão e a complexidade do verdadeiro significado do amor, uma palavra que ela nunca se permitira usar como diariamente ouvia usarem, irrefletidamente, referindo-se a uma multiplicidade de objetos e pessoas, expressando mera ternura ou exagerada simpatia.
Não, ela reconhecia o significado do desejo da noite passada, uma ansiedade em sua solidão por uma companhia muito fácil e simplesmente expressada através de uma experiência física compartilhada. Sentia-se grata a si mesma por se ter reprimido. Nada poderia ser mais prejudicial para ela do que uma tal experiência, prematuramente expressada, pois mais tarde a amizade deles poderia terminar abruptamente.
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A amizade deles... o que era isto? Perguntava-se e sua única resposta era outra pergunta. Que poderia ser a amizade deles, aceitando como deviam aceitar a diferença de suas idades?
Continuava se crucificando! Todavia, ela não havia sido mais jovem mesmo que alguns dos filhos de Edwin? Ah, mas ele era um homem respeitável, um filósofo, fantasiando o amor como uma filosofia, a própria sombra dela, como um branco fantasma na noite. Ela o amara por sua beleza, mas seu amor não tinha sido impelido pelo desejo. Deu-lhe amor alegremente porque ele merecia todas as suas dádivas e por nenhuma outra razão exceto por ele ser merecedor. Ela não sentia agora nenhum arrependimento por qualquer coisa.
Arnold, é claro, nunca a compreendera, nem quisera, ela achava; poderia Jared, se ele soubesse? A verdade é que ela mesma não se compreendia. Provavelmente, sua natureza humana não menos egoista do que a de outras pessoas, precisava do conforto da adoração de Edwin. Talvez que tudo isso fosse uma inútil necessidade, exatamente como durante anos aceitara o delicado amor de Arnold, como seu marido, em troca do que podia dar-lhe de seu próprio amor, como sua esposa, que fora, contudo, como ela bem o sabia, muito menor do que esse.
Isso ocorreu-lhe mais tarde, quando sentou-se em frente de Jared à mesa do desjejum: de que ela corria o sério perigo de amá-lo como nunca antes amara alguém. O sol da manhã brilhava sobre ele, ela preferia sentar-se de costas para a janela e assim, ela via tudo mais claramente, seus francos olhos escuros, o traço firme de suas sobrancelhas, seu nariz reto e a sua bela e desenhada boca, todos os detalhes de uma completa e desnecessária beleza. Jared estava entusiasmado com a alegre manhã, pronto para rir, faminto para alimentar-se
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e ansioso por prazer... e inocente, Edith pensou, tocantemente inocente, pelo menos, até o ponto em que lhe dizia respeito. Sentiu-se intimamente estremecida com esta convicção.
Diga-me, por que não está com sua bonita namorada?
Jared comia ovos fritos atentamente.
Ela é bonita - disse - mas há um obstáculo...
um pai enorme e barulhento. Ele divorciou-se e casou de novo. Eu não ligaria para o seu barulho, se fosse ocasionalmente um pouco mais do que isso, mas não, é... só barulho... barulho... barulho.
- Vamos - ela disse rindo. - Defina esse barulho.
- Bem, ele é um indivíduo comunicativo, tapinhas nas costas, "como vai, Jared, bobalhão?"
- Como pôde ela ter tal pai?
- Ela mesma não é assim, afinal.
- Não? Como é ela?
- Um tanto alta, mas não muito. Calada. Penso que ela é teimosa, ou talvez apenas pertinaz. Ou, às vezes, não seja calada, a não ser quando está comigo, e pensa que é assim que eu gosto que ela seja.
- Por que não a encoraja a ser ela mesma?
- Bem, você vê, como eu disse, não sei o que é isso. Eu nunca lhe disse que amo suas mãos?
- Não. O que o fez pensar nelas neste instante?
- Porque as estou olhando... por isso. São mãos que falam.
Edith olhou para suas mãos sem anéis. - Que quer dizer com isso?
- Elas me contam o que você é.
Ela resistiu ao impulso de perguntar-lhe o que era. Em vez disso, apertou a "coroa de espinhos" em sua cabeça.
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- Se você lê mãos tão bem, porque não pode dizer como é sua garota?
- Oh, as mãos dela! - ele riu suavemente e depois tornou-se repentinamente sério. - Gostaria que não a chamasse de minha garota. Ela é... bem, não é isso, afinal.
- Mas...
- Eu não sei. É um problema.
- Ela é?
- Não, sou eu. Talvez não deva me casar. Estou demasiado absorvido por esse trabalho que escolhi. Mesmo agora, sentado aqui à sua frente, nesta gloriosa manhã, com todo um dia glorioso diante de nós, estou pensando em algo que venho tentando fazer... criar, é isso. Uma mão artificial, um grande invento acima de tudo que temos até agora. Talvez eu estivesse olhando para suas mãos sem saber exatamente porque. Um homem como eu... estou sempre em meu trabalho. Está em mim, inventar, planejar, veja a mão, por exemplo...
Ele estendeu a própria mão direita grande e bem feita.
- A pior coisa para alguém que perdeu a mão, é a sensação de ter perdido a força. A mão não é apenas um instrumento, é um órgão sensível. É o olho de um cego, é a língua dos que não podem falar. Estou trabalhando em uma mão artificial que é tão articulada que quase pode sentir. Cirurgiões dizem aos amputados que mãos artificiais podem trabalhar para eles, mas não podem sentir. Bem, estou tentando fazer uma que pode sentir... ao menos sentir as formas e talvez mesmo texturas. Ela terá dedos sensitivos em vez de um gancho ou uma garra. Imagine tocar numa mulher com um gancho ou uma garra... ou mesmo nunca mais poder sentir a face de uma mulher!
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- Você é um artista. Mas afinal, todos os cientistas são artistas, meu pai costumava dizer. Você pensa como um artista a todo instante, e posso observar que o que quer criar é uma obra de arte.
Ele largou a faca e o garfo e acenou para o garçon.
Mais café, por favor, e traga a conta. E você é muito intuitiva, Edith! Quero ver algo que eu possa enxergar só pela metade, como um músico quando começa a compor uma sinfonia. Ele não tem qualquer idéia de como fará isso, mas ele segue em frente ao acaso, inventando e assim, ele vai. Assim sou eu. É somente o artista no ser humano que o torna criador. Sem isso, ele não é mais do que um técnico. Deus, mas tem graça eu falar disso a você? Espero que não se importe de eu chamá-la de Edith? É um nome bonito e assenta-lhe perfeitamente.
- Se gosta dele, use-o - ela respondeu.
- Eu sou Jared, é claro.
- Sim, obrigada.
- Eu devia ter pensado nisso antes, mas temos nos aproximado mesmo sem nomes. Muitas vezes gostaria de saber porque estou tão próximo de você... nunca senti isso antes, não, com ninguém. Mas no instante em que a vi... lembra-se daquela noite de inverno? Você abriu a porta de sua casa de Vermont, para mim e eu estremeci porque senti que havia encontrado alguém a quem vinha procurando, embora não tivesse consciência de estar procurando alguém. Naquele momento, eu soube disso de algum modo... eu não sabia como e continuo não sabendo. que a minha vida poderá estar ligada à sua, enquanto vivermos.
Ela ouviu essas palavras temerosa e exultante. Porque ele as pronunciara seriamente, com sua voz grave, seus olhos fitando-a resolutos, e ela o ouviu com seriedade. Não foi o leviano discurso de um moço divertido
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a uma mulher mais velha. Ele não era essa espécie de moço. Displicente e caprichoso como podia ser às vezes, ele estava profundamente sério como já havia percebido, analisando algumas vezes sentimentos pela verdadeira magnitude de seus talentos. Ela não havia jamais conhecido um ser humano tão talentoso. Ela própria era bastante inteligente para reconhecer o resultado desse opressivo talento. Um pouco da sua solidão através dos anos, ela havia suspeitado, vierapor ter reconhecido que nenhum de seus filhos tinha herdado os talentos de seu pai. Acostumada que fora à sua especial afeição através de sua infância e juventude, Edith algumas vezes sentia-se meio culpada, pois isso tinha feito Arnold e os filhos que dele tivera, perderem no confronto. Por essa culpa, ela tentara redimir-se por uma meticulosa atenção ao que considerava dever. Agora não havia nenhuma necessidade de pensar em dever e com esta agradável e nova amizade, recuperava também um pouco da alegria de sua juventude. Conceitos, idéias, palavras que ela nunca havia usado, exceto com seu pai, fluiam agora do fundo de sua memória esperando para serem expressados quando necessários.
Através da longa e ensolarada manhã, tais pensamentos iam e vinham em sua mente, mas Edith não falou deles. De fato, surgiam como as milhas rapidamente, mas nenhum dos dois falava. Ele guiava bem, mas estava longe em algum espaço distante de si mesmo, e ela, compreendendo tal abstração, porque seu pai habitualmente caía no mesmo alheamento, seguia silenciosa e em tranqüila felicidade. A paisagem estava serena e sem neve, as colinas ao redor e os sombrios vales estavam ainda tingidos de verde, as pessoas eram amáveis e sossegadas. Não havia mesmo o menor sinal de Natal. Tão quieto estava o dia que a quietude invadia
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o próprio ser, até ela querer saber se havia sido um sonho a sua paixão da noite passada.
...Eu não compreendo a natureza do amor - Jared disse.
Estava um lindo dia de Natal, como nunca ela havia visto.
Pararam ao meio-dia, próximo a um pequeno povoado, uma simples vila cujo nome não sabia e tiveram o seu jantar de Natal num restaurante, que era o único aberto. O proprietário era um velho sem família, contou-lhes mas se quisesse, estaria em seu próprio lar.
- Enterrei minha esposa há dez anos - ele disse, alegremente.
Quando o jantar terminou, foram passear pela praia e Jared, fora do habitual expansivo e brincalhão, tornou-se de repente, sério e declarou que não compreendia a natureza do amor. Edith apoiou-se contra o velho e retorcido tronco de um pinheiro morto e esperou pela próxima comunicação. Ele parou ao lado dela, olhando o mar, ao longe. O dia estava quieto e o mar também, embora as primeiras ondas da próxima maré se quebrassem na branca praia. Ele continuou.
- O que realmente quero dizer, é que não compreendo meu próprio estado mental.
Edith esperou, estava aprendendo que se ele era bastante expansivo quando falava de seu trabalho, não o era quando falava de si mesmo, não porque fosse tímido, ela notara, mas porque não estava acostumado a pensar em si mesmo.
- Por exemplo - ele continuou - quando estou com você, estou no mais estranho contentamento. Não posso chamar a isto senão de contentamento. Sinto que estou de algum modo em meu elemento. Você não exige nada de mim. Compreende, quero dizer, como é incomum
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isso de uma mulher nada exigir de um homem? Eu não a agrado.
Ela riu. - Eu o acho encantador como é.
Ele não retribuiu o sorriso, em vez disso, continuou a falar no mesmo tom meio musical. - Eu nunca me senti assim diante de mulher alguma. Tenho a impressão de estar em casa, não há necessidade de segredos entre nós.
- Você tem segredos?
- É claro! Um homem da minha idade com nenhum segredo? Impossível... Eu tenho bancado o maluco tanto quanto qualquer homem. Meu tio... abençoadas suas reticências... nunca pôde dar-me nenhum exemplo e eu errei comigo mesmo, sempre demasiado velho para mim, sempre à frente da minha própria idade. Ainda assim, não compreendo a natureza do amor.
Voltou-se para fitá-la. - Entende, não sou nenhum ingênuo. Sou precoce em tudo. Uma mulher iniciou-me quando eu tinha treze anos... Bem, deixei-me iniciar!
- Não me fale nisso - ela replicou prontamente.
- Eu queria contar-lhe - ele insistiu. - Eu estava na escola primária e um dos professores tinha uma ardente esposa. Ele era uma espécie de sujeito estúpido e ela era impulsiva, com tudo isso e com temperamento. Ela... bem, isso foi uma violação, eu acho, exceto que eu estava apaixonado e era crescido demais para a minha idade... e uma vez que o momento decisivo chegou, eu não pude parar. Eis aí a questão, se um homem deixa isso ir longe, simplesmente não pode parar e fisicamente eu era um homem. Isso aconteceu na casa dela, também numa tarde chuvosa. Eu tinha ido perguntar ao meu professor sobre um problema de física. Eu estava bem adiantado nos estudos e assim era uma espécie de favorito dele. Eu sei, agora, é claro, que ele tinha inclinação para o homossexualismo, o que a explicava,
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creio. Mas depois de ela ter me iniciado no caminho do sexo, simplesmente tornei-me obcecado por isso Não pensava em mais nada senão em sexo. Você está chocada?
Não - ela respondeu suavemente - apenas terrivelmente penalizada por esse menino.
Ele não respondeu mas continuou sua história, quase friamente, Edith pensou. - Não importa quantas experiências eu tive ou com quem. Todas terminavam do mesmo modo... numa espécie de nojo da mulher e de mim mesmo. Eu não podia compreender porque... fosse ela quem fosse... era sempre irresistivelmente, mas inevitavelmente, e então, tudo terminava. Deixava de vê-la. Acho que no meu subconsciente, sabia que não havia nisso nenhuma verdadeira amizade... apenas uma cega exigência do corpo, sem sentido, tão distante como participação passageira, como comer quando se está faminto. De qualquer modo, lentamente, cresci ultrapassando a fase sem sentido. Simplesmente parei. Vi que estava destruindo algo em mim mesmo. Estava destruindo a capacidade de comunicar-me sobre qualquer outro campo além do sexo. Bastava eu gostar de uma garota... ou mulher... e isso podia acontecer instantaneamente, pensava nela fisicamente. O que me deixa mais confuso, é que eu penso em você do mesmo modo, exceto que isto é inteiramente diferente com você... isto está completamente claro de repente.
Edith não falou, não podia falar, tão confusa estava com seus próprios sentimentos, uma mistura de alívio e aguda mágoa. O momento passou, e ela percebeu que a insistente e insensata mágoa permanecia. Sim, estava magoada, em sua vaidade de mulher, censurava-se asperamente e manteve um resoluto silêncio. Por alguma coisa, ela se revelaria a ele.
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- Em vez disso - Jared continuou - estou consciente, em sua presença, da maravilhosa liberdade de ser eu mesmo, para pensar meus próprios pensamentos, planejar meu trabalho, refletir sobre o futuro... em resumo, para viver e mais livremente mesmo do que, quando eu estou só, porque você amplia a minha liberdade por ser justamente a pessoa que é, em lugar de fazer exigências, limitando a liberdade como as outras mulheres fazem. Estou desesperadamente apaixonado por você, creio, mas não como estive antes. Por isso, eu digo que não compreendo a natureza do amor. Apenas sei que a amo... de um modo que é inteiramente novo para mim. Não creio que possa amar a mais alguém.
Ele voltou-se para ela inesperadamente e colocando as mãos em seus ombros, olhou-a nos olhos. - O que diz de tudo isso?
Edith sacudiu a cabeça. Que poderia dizer? Algo banal talvez.
"Tenho idade para ser sua mãe, você sabe." Não, ela não poderia. Seu coração recusava as palavras. Não se sentia como mãe diante dele. Não tinha nenhum desejo, nenhuma vontade de ser mãe para ele e não queria usar a mentira para encobrir a verdade, que ela o amava apaixonadamente.
- Então? - ele insistiu.
- Não compreendo nossa amizade, também - ela disse por fim.
Jared desviou o olhar mas não se afastou. Em vez disso, passou o braço sobre seus ombros e assim ficaram lado a lado, olhando o mar, até ela sentir-se capaz de resistir, sem nenhuma ansiedade a pressão do corpo dele contra o seu. Afastou-se dele.
- Vamos continuar andando, podemos? - ela perguntou.
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- Para onde?
Para qualquer lugar - ela disse.
E assim - Jared estava dizendo - quero inventar um instrumento que um cirurgião plástico possa usar criando dois dedos fora da armação para substituir a mão perdida. Sei como fazer isso, e com treinamento, o amputado estará capacitado mesmo para sentir com esses dedos. Esse foi sempre o meu objetivo, restaurar o sentido do tato. Mas ainda é o cérebro que me interessa mais. Ninguém realmente compreende a estrutura do cérebro humano. Há nele uma fonte de sensibilidade alojada... sensibilidade e emoção e pensamentos, é claro. Estou estudando a biologia do cérebro, dissecando um cérebro atualmente, em meu laboratório, por isso, posso inventar certos instrumentos.... a, eis aí tanto o que fazer! O estetoscópio comum, por exemplo, precisa de radical aperfeiçoamento. Quero estudar isso também em profundidade a despeito de seu uso e geral aceitação. Tenho uma idéia, uma total reavaliação se continuarem a aparecer novos modelos. Não há nenhum estudo básico de acústica deles há anos. Deve haver algo errado ou falho nisso, ou não haveria uma tal evidência de necessidade de aperfeiçoamento. Deve haver um caminho perfeito de som, por exemplo, do peito do paciente ao ouvido do que escuta, excluindo desse modo todos os demais ruidos. As três diferentes formas de ondas... mas por que devo aborrecê-la com tudo isso? Entende o que eu quero dizer... quando estou com você, minha mente discorre a seu próprio modo, apenas com uma energia criativa maior do que a normal, como se sua presença produzisse condições de gerar ondas. Por que não? Há uma evidência fisiológica dessa espécie de coisa. Nós não compreendemos nem a metade do efeito elétrico de uma personalidade sobre a outra.
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Edith ouvia esse monólogo e na pausa replicava com perfeita compreensão. - Inteiramente possível, é claro... é provável. Adoro o modo como sua mente indaga aqui e ali e por toda a parte, como um animal curioso, totalmente separado do resto de você. Algumas vezes, é claro, você terá de combinar os ensinos do artista tão bem quanto os do cientista, ambos os quais você é, e depois terá de escolher onde concentrar sua direção. Oh, sim, você é um artista. Eu tenho visto o que você desenha nesses pedaços de papéis, quando está imaginando uma de suas invenções.
Isso era realmente certo. No quarto da casa de Vermont, ela havia achado pedaços de papéis, sobre a escrivaninha, onde ele havia desenhado esboços de animais, de rostos humanos... um desses o seu próprio... e intrincados desenhos geométricos.
No quarto de hóspedes na velha mansão de Filadélfia, ela havia encontrado outros desses desenhos e cuidadosamente, guardara-os todos.
- Não que eu deprecie invenções - ela continuou - mas invenções nunca são permanentes. Alguém mais sempre pensa num aperfeiçoamento, e a invenção na qual um homem gastou, talvez, sua vida, é ultrapassada. Mas a arte é eterna, sem idade, completa em si mesma.
Ele expandiu sua admiração: - Deus, como explicou isso com precisão! Totalmente certo, é claro, e eu não esquecerei. Mas sabe o que você fez? De repente, o que eu pensava ser o meu trabalho, você transformou numa vocação. Terei de reconsiderar.
Seu belo rosto ficou sério, sua boca tornou-se dura.
Ele murmurava para si mesmo sons incompreensíveis. Edith percebeu que fora esquecida e sentiu-se contente.
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Nessa noite, a caminho de casa e parando na mesma hospedaria, ele a tomou nos braços antes de partirem e apertando-a contra si, beijou-a afastou-se para fitá-la intensamente nos olhos, depois beijou-a de novo e de novo, antes de deixá-la ir e voltando-se, dirigiu-se ao seu quarto. Ela fechou a porta entre eles, dando-lhe um último sorriso como só ela podia dar, mas ele abriu-a novamente, impelindo a cabeça e os ombros através da porta.
- Esse sorriso... - ele começou bruscamente e parou.
Edith já estava parada diante do espelho, tirando os grampos dos cabelos e olhava-o por sobre os ombros.
- Eu sorri? - perguntou.
- Sorriu... a maldita Mona Lisa deu essa espécie de sorriso também - ele retorquiu, e fechou a porta sem o menor comentário.
Parada, imóvel, diante do espelho, viu-se ali refletida, não risonha mas muito séria, sua face ruborizada, seus olhos muito brilhantes. O momento havia chegado, o momento da decisão. Se ela abrisse a porta e simplesmente entrasse no quarto dele, sem uma palavra, o momento seria deles, a mágoa seria curada, sua própria exigência satisfeita. Porque, na verdade, quão pouco ele a compreendia! Ela lhe faria uma grande exigência, a última exigência. "Com meu corpo, eu te adoro!" Temeria ela uma recusa? Nada disso... nada disso! Sozinha com ele numa região desconhecida, numa quase vazia hospedaria, a noite encobrindo tudo, ele não poderia resistir-lhe. Ele não era virgem, havia falado tão livremente de si, apenas intensificara o desejo dela. Ela não iria violar um menino. Estaria oferecendo seu amor a um homem. Porque até agora ela havia rejeitado completamente a palavra paixão. Ela o amava. Insensata e incrivelmente, embora relutante, estava
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agora irreparavelmente apaixonada... não com a fútil emoção de uma garota, mas com a intensidade e a força de uma mulher.
Ela deu dois passos em direção à porta e parou. Depois resolutamente, voltou ao espelho e continuou a tirar os grampos de seus cabelos, até que eles caíram sobre seus ombros, uma massa brilhante, fora da qual sua face aparecia, pálida e de uma impressionante beleza.
...- Eu tenho um osso para roer com você, de fato, vários ossos.
Assim ele começou no dia seguinte logo cedo quando se encontraram face a face à mesa do desjejum, na quase vazia sala de refeições da hospedaria.
Edith estava consciente de uma profunda fraqueza nessa manhã, porque não havia dormido bem. Sonhos confusos, sempre terminando em frustração, uma perdida estrada, ela caminhando sozinha, a qual terminava de repente, sem razão, um rio no qual ela nadava, incapaz de alcançar a margem, uma criança chorando a quem ela procurava e não podia achar... dessa espécie de sonho ela acordara essa manhã, apática e sem sua habitual energia.
- Primeiro, uma exceção aos que dizem que as invenções da ciência ultrapassam a si mesmas. Matemática nunca! Toda a matemática, se corretamente feita, é verdadeira. Novas descobertas podem exigir novas equações, mas a matemática permanece certa, se correta. Há algo eterno nela. Quem foi que... alguém... disse que a matemática é a música do pensamento lógico e é claro, música é a matemática da arte.
Ele sentou-se como se fosse continuar, e ela ergueu as mãos em risonho protesto.
- Espere... espere! É muito cedo, de manhã...
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O que ele tinha estado a pensar durante a noite, enquanto ela se debatia em seus sonhos fúteis?
Desculpe-me - ele disse, penitenciando-se. -
Mas você tem me estragado, bem sabe. Acostumei-me a produzir simplesmente começando onde estou, quando estou com você. Eu não pude dormir a noite passada por algum motivo. Estive quase para acordá-la, mas isso poderia ter sido muito egoísmo meu, eu sou muito egoista, Deus sabe, assim, continuei pensando sobre o que você me disse e tentando justificar-me na minha escolha de trabalho, raciocinando sobre o relacionamento entre a ciência e a arte... que nesta manhã parece-me que a arte significa em si mesma, beleza e a ciência significa realidade. Talvez não possamos enfrentar a dura realidade sem ver a beleza também. Precisamos de ambas, da ciência e da arte.
- Na mesma pessoa? - ela perguntou.
- Se essa pessoa for bastante grande - ele disse com firmeza. Mas, você quer ovos fritos esta manhã?
- Sim, por favor.
...O dueto verbal continuou mais tarde durante o dia, num improvisado dar e tomar que ela estava começando a apreciar profundamente. Esse escape dentro e fora entre o efêmero incidente de todo dia e as verdades eternas, eram algo que ela não havia conhecido antes. Ela escutara seu pai e Edwin, respeitando suas idades e sabedoria, mas guardando seus pensamentos e argumentos para si mesma. Então e de novo, durante sua vida como estudante e depois como esposa, ela havia conhecido homens brilhantes à mesa do jantar, e nas festas e tinha mesmo se deixado absorver durante um tempo depois disso por seu domínio brilhante, mas não havia conhecido um homem, um moço, ousado como Jared era, em seu instintivo reconhecimento dela, como uma mulher, mas sua igual, embora às vezes, superior
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a ele, a qual em vez de uma provocação, ele parecia considerar um prazer. Tal aceitação era nova para ela.
A manhã passou em amável conversação entre longas pausas de silêncio no qual ele caía e ela contemplava as diferentes paisagens. Foi ao meio-dia, depois de um incomum e longo silêncio, que ele inesperadamente, falou e o dueto recomeçou.
- Não compreendo o processo criativo, tanto na arte como na ciência. Conheço o processo, claro... há muito tempo, horas ou dias ou semanas, quando eu simplesmente vegetava num pântano de confusão. Minha mente era igual a de um animal furioso trancado numa jaula, abrindo caminho e procurando uma porta. Então, de repente, a porta estava lá. Mas não estava lá durante todo o tempo. Ela apareceu sem causa ou razão e eu estou inspirado.
- Por que você esteve procurando - ela disse. - Você tem criado sua própria inspiração por causa de sua própria exigência... suponho, sobre seu subconsciente. Isto é onde a mente vai procurar suas origens. Isto é o reservatório que cada um de nós tem, talvez o único. Isto é o que torna a arte grande... o artista extrair do reservatório. De outro modo, como compreender a arte abstrata? Ela é um sucesso quando verdadeiramente expressa o que está no subconsciente, o qual é comum a todos nós.
- Como pode saber tanto? - Jared perguntou. Ela ainda recusava-se permitir a si mesma falar de sua idade. Chamava isso vaidade, mas havia aspectos nos quais ela era de fato vaidosa. Desculpou-se.
- Tive pais inteligentes.
- É incrível, mas eu não quero saber nada sobre seu marido... ou seus filhos.
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- Eles não o compreenderiam - ela disse suavemente.
Então eu não tenho de compreendê-los, tenho?
- Não.
Sua resposta foi positiva. Ela nunca tentaria explicar o inexplicável fato de sua amizade com ele. Não devia a ninguém tal explicação. Era só, era livre.
- Eu tenho ouvido um estranho comentário sobre vocè - Amélia disse no dia seguinte.
Amélia viera para uma das suas inesperadas visitas, pela manhã, quando habitualmente voltava do cabelereiro no centro da cidade.
- Tem ouvido de fato? - ela murmurou aparentando indiferença.
Edith havia voltado para casa, uma noite após o Natal e Jared a deixara imediatamente, assim que a viu em segurança dentro de casa.
- O melhor, o mais feliz Natal que jamais tive - ele dissera.
Tomara-a nos braços quando se despedira dela como era agora seu hábito, tanto que de fato, ela gostaria de saber se isso significava-lhe alguma coisa. Certamente significava demais para ela, para sua paz.
- Voltarei a Nova York ao anoitecer - ele disse na porta.
Fechou a porta atrás dele e sentiu o vazio da casa sobre si, um arcabouço sem vida. Alegrou-se vendo Weston aparecer no fim do hall, obviamente acordado.
- Se me avisasse que ia chegar, madame - ele murmurou reprovadoramente, pegando suas malas.
- Nem eu mesma sabia.
Sozinha em seu quarto, Edith não tinha ido diretamente para a cama. Em vez disso, acendeu a lareira, sempre estava pronta, sentou-se em sua cadeira preguiçosa,
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revivendo os dias passados e enfrentando a si mesma. Terei de chegar a uma espécie de conclusão, pensou. Não posso continuar como estou. É muito difícil. Devo separar-me dele ou... não pôde terminar. Milhares de lembranças dele fluíam sobre ela, as várias expressões de seu rosto distinto, seus olhos escuros ora cismadores, ora inquiridores, sua boca, sua voz, o jeito como seu cabelo caía atrás do pescoço, suas mãos firmes e fortes. Ela foi para a cama perturbada pelo desejo e acordou nessa manhã, intranqüila para enfrentar Amélia.
- Eu tenho, deveras - Amélia disse com carinhosa ironia. E não apenas ouvido! Recebi uma carta de Millicent da Califórnia. Ela havia recebido uma carta de Tony. Gostaria de ler essa carta? Eu a tenho em minha bolsa.
- Não, obrigada. Se Millicent quiser que eu saiba o que ela pensa, terá de escrever-me.
Amélia fechou a carteirinha que havia aberto.
- Ela me pede para descobrir o que está acontecendo, mas causar problemas ou preocupar você, não quer. Mas você me conhece, Edith. Não gosto de rodeios... jamais os uso, especialmente com você.
- Então o que respondeu a Millicent?
- Eu disse a ela que o que você faz é da sua própria conta, mas se o comentário for verdadeiro, eu acho que você não foi apenas felizarda, mas tremendamente esperta e toda mulher com a sua idade, vai invejá-la. Afinal, a Rainha Vitória está morta e nós temos que sepultar os Puritanos, e por que só os jovens devem ter todas as alegrias atualmente?
Estavam sentadas no alpendre envidraçado, a luz do sol fluindo pelas janelas orientais. O jardineiro tinha enchido o local com viçosas rosas para o Natal e
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no meio do calor, da luz e da cor era impossível o alpendre ficar mais enfeitado.
Obrigada, Amélia.
Edith encontrou o olhar da amiga fixando-a inquisitivo, com determinação. Não, não contaria a Amélia sobre Jared.
Isso é tudo? - Amélia perguntou-lhe.
- É tudo.
- Então, não há nenhuma verdade no comentário?
- Não há nada para comentar.
- Viva isso a seu próprio modo, minha querida.
- Eu pretendo - ela respondeu, acompanhando a amiga até a porta.
...Refletidamente, durante a semana ela retornou à sua vida habitual. Consultou três juntas, de cada uma das quais ela era membro, consultou seu advogado sobre o rendimento dos impostos dos negócios relacionados com o testamento de Arnold, comprou um casaco de pele de foca e um pequeno chapéu combinando, abriu seus atrasados presentes de Natal e escreveu notas de agradecimento. A família continuou de modo habitual, cercando-a de atenção e conforto, e ela dormiu bem à noite, adiando a decisão. Afinal, disse a si mesma, não tinha sido intimada a tomar uma decisão. Isso era possível, talvez, e porque não, simplesmente continuando como estava, recebendo bem a Jared quando ele viesse visitá-la, aceitando sua singular amizade como uma amizade e nada mais.
Nesse estado de espírito dois dias antes do Ano Novo, Edith deu ordens após o café da manhã.
- Weston, o Sr. Barnow virá passar os próximos dias aqui.
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- Muito bem, madame. Ele estará aqui para o jantar?
- Sim. Por favor, diga ao cozinheiro para começar com ostras frescas. Ele é louco por isso.
- Sim, madame.
Edith foi à estufa que ficava em frente à sala de jantar e cortou flores para arrumar o quarto de hóspedes. Quando terminou, parou, olhando em volta e imaginando-o ali, adormecido no grande e antigo leito, ou lendo na sala de estar do quarto. Ela estava num estado de alma tranqüilo e até esse momento, pensava nele com mais ternura do que desejo. Todavia, sabia que o desejo esperava. Ela compreendia também a solidão dele, não somente por ele não ter família, mas pela imensa, profunda solidão de uma mente superior, habitando em regiões distantes, muito distantes, além da imaginação de outros companheiros comuns.
Ela havia observado a solidão de seu pai, tinha de fato, conhecido um pouco dessa solidão em si mesma. Muitas mulheres liam os livros que ela lia, ou pensavam pensamentos iguais aos seus. Sim, estava muito certa aceitando essa amizade. Eles eram duas pessoas que se entendiam a despeito da diferença de idades. Talvez essa diferença fosse verdadeiramente a sua proteção; e sendo assim, não deixaria nunca isso ser esquecido! Nesse estado de espírito, libertou-se de tudo, exceto de sua alegria, certamente ingênua, por sua volta.
...- Você se importa se eu levar alguém comigo amanhã?
A voz dele ressoava ao telefone naquela noite, parecendo ecoar através da sua silenciosa sala de estar. Presumindo que estaria acordada até tarde na noite seguinte para ver o velho ano passar, ela havia jantado
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só e em seguida subira para ler uma hora mais ou menos e depois ir dormir.
- Quem você vai trazer? - perguntou.
É aquela garota, ela pensou e sentiu a agonia de um ridículo ciúme.
- Meu tio, Edmond Hartley. Ele veio para casa inesperadamente esta manhã, com um estranho pressentimento de que esta pode ser sua última véspera de Ano Novo, imagine, ele tem só sessenta e sete, mas eu não gostaria de deixá-lo sozinho. Sou tudo o que ele tem, você sabe.
- Oh, claro, traga-o!
Ela falou alegremente, mas estava gelada. Um estranho, talvez mundano sábio e perspicaz, alguém contra quem ela devia protegerse? Foi para a cama perturbada com o que poderia ser apenas uma invasão do seu retiro, no qual sua amizade com Jared tinha sido conduzida tão longe. Teve um sono agitado, através da noite e acordou tarde, na manhã seguinte e ordenou que trouxessem o café no quarto. Não se apressou para comer e era meio-dia quando se vestiu, escolhendo um vestido que particularmente apreciava, de lã azul claro. Lá fora a neve estava caindo cinzenta e crescendo como pôde ver das janelas, um cinzento escuro nas árvores, os troncos sem folhas, escuros e úmidos. Assim maior a razão para fazer frio na casa e quando ela subiu, acendeu o abajur e atirou um fósforo nas achas na lareira da biblioteca.
Às três, Jared dissera e pontualmente às três, ela viu o seu pequeno carro fazendo a curva no espaço aberto entre os pilares de pedra no portão de entrada de carros. Ela ficou esperando na biblioteca, lendo distraidamente e surpreendeu-se quando Jared pessoalmente fez entrar seu tio. Ela ficou surpresa porque ele, Jared não a havia preparado para esse encantador e
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afável homem, alto e esbelto, com seus cabelos brancos prateados brilhando sobre uma face morena, barba branca aparada, e brilhantes olhos azuis. Ele caminhou para a frente com as mãos estendidas; Edith levantou-se e sentiu suas próprias mãos apertadas num caloroso aperto.
- Ah, Sra. Chardman - ele exclamou - esta é uma imposição, uma intrusão, mas meu sobrinho insistiu que eu devia vir com ele ou terminaria comigo, alterando seus planos, o que eu não devia ter consentido ou permitido. De todo o modo, eu estava curioso a seu respeito.
Ela refez-se o suficiente para libertar suas mãos delicadamente.
- Agora estou curiosa sobre o senhor - disse. - Mas estou certa de que desejam ir aos seus quartos antes, pois a viagem foi longa. Jared, Weston acomodará seu tio, vizinho a você. Dividirão a sala de estar.
Assim, ela os dispensou por um momento, com um sorriso e olhando para Jared, foi esperá-los embaixo. Três horas era uma hora imprópria, ela decidiu deixar para si mesma, um espaço equidistante entre o lanche e o jantar, e as horas de espera tornaram-se, de repente, um peso. Três em vez de duas, e ela não podia dedicar-se a ambos, Jared ou o tio! Mas agora Jared vinha sozinho e parou para encostar sua face contra o cabelo dela.
- Vou deixar-lhe meu tio - ele disse. - Tenho uma entrevista com um engenheiro. Vamos discutir algo em que estou trabalhando. Ele é uma espécie de sujeito entendido e abriu buracos em meus sonhos.
- Não o deixe desencorajá-lo, disse Edith, segurando sua mão e olhando-o enquanto falava. - Não estou certa de gostar de pessoas que abrem buracos em sonhos.
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- Isso poderá ser bom para mim, estarei de volta para os coquetéis.
Com isto, ele colocou a mão dela em seus lábios e saiu, deixando-a esperando e meio temerosa.
De fato - Edmond Hartley dizia alguns minutos mais tarde. - Eu estava curioso sobre a senhora. Não me atreveria a chegar até a senhora desse modo.
Ele havia sentado ao lado dela diante da lareira e continuou: - Tem tido o mais extraordinário efeito sobre meu sobrinho, Sra. Chardman, um... um efeito de maturidade, suponho que este seja o melhor modo de expressar isso. De um jovem desorganizado que não sabia o que escolher entre, ao menos, meia dúzia de possibilidades para o seu trabalho... e asseguro-lhe que ele poderia ter um sucesso brilhante em qualquer delas... ele decidiu-se pela mais interessante combinação de todas elas, e trata-se de algo sobre o qual não tenho realmente ouvido falar muito, mas que parece ser extremamente útil, ciência e engenharia, essa espécie de coisa da qual, eu confesso, não entendo nada, mas que acho que poderá ser muito útil. Ele é muito parecido com a mãe, minha irmã Ariadne e muitas vezes, tão completamente diferente dela, que me confunde geralmente e não sabendo o que fazer, deixo-o entregue aos seus próprios projetos; conseqüentemente, temo não ter sido de grande valia para ele. Mas a senhora parece compreendê-lo tão maravilhosamente bem, que senti que devia conhecê-la, se não apenas para agradecê-la, esperando ganhar um pouco da sua sabedoria.
Ele falou tudo isso numa voz melíflua, rica em ênfase, suas mãos bonitas ativas nos gestos, e seus olhos azuis brilhando, olhos extraordinariamente jovens,
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ela pensou, e todavia, esta combinação conduziu a uma frieza que ela não pôde imediatamente analisar.
- Eu gostaria de saber mais sobre os pais de Jared - disse Edith irreverentemente.
- Posso ver porque Jared diz que sempre pode falar com a senhora. Não sou essa espécie de bom ouvinte, de fato, como ele sabe muito bem, habitualmente não sei do que ele está falando. Minhas próprias preocupações são a nova poesia francesa e louças e cristais ingleses, antigos.
- Eu não sei nada sobre nenhum deles - ela disse. - E se tenho feito algo por Jared, não é nada em comparação ao que ele tem feito por mim. Ele deu-me novo interesse pela vida, do qual eu estava seriamente precisada. Sua juventude, seu entusiasmo, energia, os seus extraordinários dons, são... bem, muito desnorteantes e certamente excitantes.
Ele curvou-se para a frente em sua cadeira, suas mãos segurando os joelhos. - Minha querida senhora, posso perguntar-lhe? Sou o único parente dele, vivo, a senhora sabe. Acaso vocês são... amantes?
Ela hesitou diante de tão repentina acareação. Depois usou o mesquinho punhal que Jared tinha tão ingenuamente mergulhado em seu coração há alguns dias passados.
- Ele não pensa em mim desse modo - ela respondeu prontamente.
Ele recostou-se em sua cadeira e as mãos relaxaram.
- Ah, estou quase lamentando ouvi-la dizer isso. Ele é tão solitário.
Ela desejou saber, olhando o belo rosto vivaz, se estava desagradando esse homem. - Ele me contou algo sobre uma garota.
- Sim, há uma no futuro... muito distante futuro. Ele não está realmente preparado para o casamento,
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temo. É devotado ao trabalho como sabe, e todas essas idéias flutuam na mente dele... eu duvido que ele esteja preparado para assumir relacionamento. Receio isso, porque vi Ariadne consumir-se pela mesma espécie de... esquecimento, devo eu dizer? Barnow o pai de Jared, era um, bem, talvez se possa dizer que ele foi um gênio desorganizado. Ele era altamente talentoso, um desses homens brilhantes de quem no colégio, tudo se espera, mas que, quando entram no mundo prático, todos os seus talentos desintegram-se. Ariadne era louca por ele. Ambos eram loucos um pelo outro, essa é a verdade. Ela era uma linda debutante. Nossa família era... oh, isso não importa agora, mas ela podia ter desposado qualquer um e escolheu Barnow. O casamento estava condenado... uma linda moça, mas mimada... oh, sim, quem podia evitar de mimá-la? Filha única... éramos só nós dois e nossos pais eram, bem, não importa, mas eles estavam desapontados com o jovem Barnow como genro. Suponho que o divórcio estava a caminho, mas a morte chegou primeiro. Barnow estava a caminho de um novo e excitante emprego em alguma parte do Oeste, e Ariadne ia com ele. Foram de carro e provavelmente, brigando. De qualquer forma, estavam cruzando os Rochedos, num desses impressionantes desfiladeiros, a senhora sabe, ainda gelado no princípio da primavera, e o carro deles foi sobre o rochedo.
- Que horrível - a voz dela era um sopro.
- Horrível - ele concordou. - E eu pensei em processar alguém, porque lá não havia nenhuma barricada, a senhora sabe. Mas explicaram-me que lá não haveria segurança mesmo com alguma, naquelas alturas, onde nenhuma barricada poderia ser presa nas rochas, pois as pessoas poderiam confiar nisso e guiar a toda velocidade; assim não havendo lá nenhuma barricada,
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elas compreenderiam e seriam mais cuidadosas. Mas ser cuidadosa era uma coisa que Ariadne nunca foi, nem Barnow. De qualquer modo, Jared ficou comigo como seu único descendente, porque meus pais tinham morrido há pouco tempo de causas naturais. Primeiro, meu pai, de algo no cérebro e depois, minha mãe, de pura obstinação, creio, porque ela não quis viver e eu nunca me perdoei por isso. Eu a adorava e odiava meu poderoso e dominador pai, que, é claro, odiava-me em troca e esbanjava seu amor com Ariadne. Mas por que estou lhe contando tudo isto sobre a mais confusa e confundida família que jamais existiu? Oh, sim, é para explicar Jared. Assim como vê, eu o deixei simplesmente crescer a seu próprio modo, porque não sabia nada de como criar uma criança.
- Nunca se casou?
- Não tenho tido tanta sorte - ele disse abruptamente.
Ela sentiu a profunda frieza desse homem, todavia, não talvez uma frieza comum, tanto quanto uma absoluta restrição, auto-imposta de algum modo que ela não podia ainda compreender. Algo estava oculto nesse homem, ele era cauteloso a despeito de sua franqueza.
- Uma trágica história - Edith disse - e alegra-me que a tenha contado. Isso irá me ajudar a compreender melhor Jared.
Ela tocou um sino próximo e Weston veio à porta.
- Ponha uma acha na lareira - ordenou - e traga-nos coquetéis dentro de meia hora.
Ela compreendia agora porque Jared era impulsivo e procurava vida por toda parte. Ele tinha sido preparado para nada, compreendendo o vazio fora do qual ele havia nascido. Seu coração enviou-lhe uma nova onda de amor e compreensão.
Ela encarou a ascética figura a seu lado.
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- Diga-me alguma coisa sobre poesia francesa - pediu.
Eu não sei - disse Jared.
Ela estava sozinha com ele, enquanto o relógio se aproximava da meia-noite e o ano velho estava próximo de seu fim. Há uma hora trás, seu tio pusera-se de pé.
- Eu nunca vejo o fim de um ano velho - ele lhes disse. - Na minha idade, isso é apenas triste. Se me permitirem, quero agradecer-lhe pela agradável noite e despedir-me.
Ele inclinou-se para ela e sorriu para Jared. - Boa-noite... e doces sonhos.
- Eu não sei - Jared agora repetia - ele quis vir. Queria conhecê-la. Disse que eu estava mudado e que queria saber porque. Perguntei-lhe como eu estava mudado e ele disse que algo estava se cristalizando em mim, qualquer coisa assim. Ele vive uma vida espantosamente controlada.
- Controlada por quem? - Edith perguntou.
- Por ele mesmo. Eu estava errado sobre uma amante. Ele nunca amou uma mulher.
- Ele lhe disse isso?
- Sim... quando contei sobre você.
- O que lhe contou sobre mim?
- Que estou desesperançoso mas apaixonado por você. E ele disse que me invejava porque ele nunca esteve apaixonado por uma mulher. E de repente, eu o compreendi completamente. Ele é tão estupidamente... bom. Não quer aceitar amor em nenhuma outra expressão, senão na mais elevada. Assim ele não aceita o amor, afinal. Tem vivido tão sozinho com seus livros e suas pinturas. Mesmo os amigos ele mantém a distância. Mesmo eu.
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Edith permitiu que a completa tragédia disso penetrasse sua mente até seu coração parecer doer fisicamente. - E você aprova essa rejeição de amor, só por que ele não é ortodoxo?
- Sim, aprovo - ele disse simplesmente - agora que eu sei o que é amor.
Olharam-se nos olhos firmemente.
- E que é o amor? ela perguntou.
- Estou descobrindo. Quando souber, eu lhe direi. Os minutos haviam voado enquanto eles falavam e de repente, o carrilhão a um canto, bateu as doze. Eles esperaram em silêncio e Jared procurou as mãos de Edith segurando-as. Na décima segunda badalada, ele inclinou-se e beijou-lhe os lábios.
- É o Ano Novo - disse. - Um novo ano e nele tudo pode acontecer.
...Mas durante a noite ela acordou e recordou tudo que Jared havia dito sobre seu tio. Em toda sua vida, apenas Edwin havia falado sobre o amor e sendo um filósofo, fizera até do amor uma filosofia. Pensando nele, ela podia imaginá-lo declarando a seu modo, gentilmente dogmático, que o amor tem muitas formas de se manifestar e nenhuma delas devia ser sumariamente rejeitada. Assim, recordando-o, ela descobriu-se comparando os dois velhos homens. Edwin tão livre a seu modo, interiormente, as ilimitadas fronteiras de sua organizada liberdade e Edmond tão controlado interiormente, sua auto-restrição.
Cada qual à sua maneira, proclamando o supremo significado do amor, um aceitando e usufruindo-o, o outro, recusando-o e abstendo-se. A definida diferença da natureza dos dois homens, um aceitando e usufruindo a despeito da idade e enfermidade, o outro desconfiado, ocultando-se no meio de palavras, significando... o que? E Jared, como seria ele? Poderia o amor
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ampliá-lo ou confiná-lo? Na verdade, o que seria o amor para ele? Nenhuma pergunta podia ser respondida ainda. Ela não sabia os limites do amor. Tinha conhecido o amor. Ela declarava tal conhecimento, ao menos por sua presença nela. A pergunta agora era o que poderia fazer com ele... ou mais claramente, o que ele faria com ela.
Permaneceu no silêncio da noite e das sombras até que oprimida, acendeu o abajur e viu flocos de neve amontoando-se sobre o peitoril de uma janela aberta e caindo suavemente sobre o tapete azul do assoalho. Levantando-se, fechou a janela e varreu a neve para a pá de apanhar brasas e dali para as apagadas achas cinzentas onde o fogo havia morrido.
Estava para voltar para a cama, tremendo de frio, quando ouviu passos indo para o hall. Ela escutou, surpresa, e depois vestindo seu quimono de veludo azul, abriu a porta. Edmond Hartley estava no alto da escada e ia descê-la, completamente vestido, quando a viu.
- Estou sem sono - ele disse - e ia à procura de um livro que vi na biblioteca hoje.
- Devo ir ajudá-lo? - Edith perguntou.
- Minha cara senhora, é muito gentil.
- Num minuto - ela disse e voltou para o espelho para escovar o cabelo e prendê-lo atrás, passar pó no rosto, colorir os lábios.
Vaidade, disse para si, mas vaidosa ela era, até quando estava só. Deixando o quarto, encontrou-o à espera no alto da escada, sem o menor sinal de ter notado que o azul de seu quimono, combinava com o azul de seus olhos, ou que ela estava, de fato, muito bonita. Com um ar de quase tolerante paciência, ele permitiu-lhe precedê-lo, descendo as escadas e entraram na biblioteca, onde habilmente, ele fez os moribundos carvões na lareira acenderem-se de novo,
enquanto
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ela ia acendendo uma lâmpada, depois outra, até o imenso salão iluminar-se e os livros nas prateleiras, a grande floreira sobre a imensa mesa e os tapetes orientais, vermelho vivo, sobre o assoalho brilhante.
- Por que está sem sono? - ela perguntou, sentando-se diante da lareira.
Ele procurava um livro na estante agora, de costas para ela.
- Não sou bom dorminhoco, afinal - respondeu distraído - e numa casa estranha... ah, aqui está o livro que estava procurando, uma rara edição de Mallarmé.
- Pertenceu a meu pai - ela disse.
- Mas ele era um cientista... Edith interrompeu-o.
- Ele era tudo.
- Ah, como Jared.
Ele sentou-se na confortável poltrona ao lado dela e abriu o livro. Depois, sem olhar para ela, continuou: - Eu fui a pior pessoa possível para criar um inteligente e brilhante rapaz. Não ousei permitir-me amá-lo... controlava-me para não amá-lo demais... um amor prejudicial.
- Pode o amor ser prejudicial? - Edith perguntou.
Ele lançou-lhe um estranho olhar de lado e fechou o livro.
- Ah, sim, deveras, pode. Aprendi isso muito cedo. Posso dizer que fui... levado a isso quando era muito jovem... por um velho homem.
Seus lábios pareciam secos de repente, e ele passou a língua sobre eles. - Nunca pensei que pudesse jamais dizer isso a alguém. Mas quero que... que... saiba porque nunca permiti a Jared... vir para junto de mim.
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Ele ergueu os olhos e neles ela pôde ver um desesperado apelo de compreensão.
Eu compreendo... - ela disse gentilmente -
eu compreendo. E acho muito nobre de sua parte... usar tal restrição, controle e reverência pelo verdadeiro amor. Eu o respeito muito.
- Obrigado - ele disse. - Obrigado. Eu... eu não sei se jamais falei disso antes. Mas eu nunca desejei fazer nada... ou parecer fazer... que pudesse distorcer... o significado do amor para Jared. Foi melhor, eu acho, deixá-lo crescer sem nenhuma demonstração de amor que verdadeiramente sinto por ele, do que moldar-lhe uma falsa imagem do amor. A imagem do amor que é tão facilmente distorcida... confundida... pervertida de algum modo, nunca poderá novamente aparecer como é, a única razão de viver, o único refúgio, a única fonte de energia e crescimento espiritual. A verdadeira força do amor... a maior força do amor na vida... fazer amor produz, quando ele é distorcido ou pervertido, ou mesmo confundido, o maior sofrimento na vida.
Ele falou tão sinceramente, tão profundamente, que ela viu nele um novo homem de profundo e dolorido sentimento e permaneceu calada.
- Ensine-o, minha cara - ele pediu - ensine-o o que é amor. Somente uma mulher pode fazer isso... uma mulher como você.
- Tentarei - ela respondeu.
- Quero que venha a Nova York e veja como a mão está funcionando - Jared disse ao telefone.
Ela estava sentada à sua escrivaninha na biblioteca, uma delicada manhã de primavera, os rododendros do outro lado da janela já estavam mostrando sombras cor de rosa e ela podia ver. As flores ao longe no relvado,
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estavam em sua floração final, dourada, seu profundo brilho cintilando contra as sombras do canteiro de folhagens.
- E por que devo ir a Nova York? - ela perguntou. - Você sabe que não gosto dessa cidade.
- Eu sei, mas é realmente maravilhoso ver como a mão está funcionando, tão bem que o homem irá para casa brevemente. Além do mais, isto lhe dará uma razão para conhecer meu povo.
Edith sabia agora, é claro, que quando ele disse "meu povo", quis dizer as pessoas que precisavam dos instrumentos que ele havia projetado para tomar o lugar de mãos e pés, olhos, corações e rins, que eles poderiam perder ou tinham perdido. Ela o havia visto muito pouco nesses meses, desde que ele e o tio tinham passado o Ano Novo com ela, mas seus longos telefonemas, feitos habitualmente à meia-noite e suas atrasadas, curtas e dramáticas cartas o mantinham junto dela. E ela? Parecia que ela não fazia nada, exceto tocar o grande piano na sala de música, atender algumas reuniões de comitês, jantares e concertos, e esperar até ele telefonar ou escrever. Não podia por mais tempo esconder de si mesma, o fato de que ele absorvera totalmente sua vida íntima e pensamento de tal forma, que qualquer coisa que ela fizesse não tinha real importância, comparando com a necessidade de estar ali na casa quando ele telefonava. Jared tinha de achá-la ali, sempre pronta para todas as suas necessidades! Quando ele lhe escrevia, enviava imediatamente a resposta, e nessa comunicação, subitamente distante e íntima, começaram a usar carinho, que mantinha acesa a chama que sentiam um na presença do outro. Sobre a página, em tinta negra, mesmo as palavras "minha caríssima", permaneciam geladas.
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Será terça-feira - ele estava dizendo - pode fazer isso amanhã? Depois iremos jantar juntos... talvez dançar em algum lugar? Nunca fizemos isso. Estranho, nunca pensei nisso. Há sempre tanto sobre o que falar quando estou com você. Então às três? Eu me encontrarei com você no Centro de Reabilitação... você tem o endereço.
- Amanhã, às três - prometeu.
E que absurdo, ela pensou, cinco minutos depois de terminar o telefonema, ela já estava pensando no que iria vestir! Decidiu-se por um vestido cinza suave com um casaco combinando, muito fino e encantadoramente justo e amoldando sua beleza, com chapéu, sapatos e bolsa do mesmo tom prateado e sobre o cinza, uma folha verde maçã, de jade, jóia que Arnold tinha comprado para ela em Hong Kong em sua última viagem ao redor do mundo. Assim ataviada, deixou a casa no dia seguinte, depois do lanche, o diligente motorista num novo uniforme preto. Embora estivesse acostumada às delícias de sua vida, sentia hoje uma rara felicidade, como se fosse jovem de novo, como se estivesse indo ao encontro do amante que nunca tivera. Ela afastou de sua mente todos os pequenos aborrecimentos de sua vida e continuou nesse estado de espírito de total felicidade.
Durante horas estaria com Jared, a quem ela agora sabia, amava como nunca havia amado ninguém antes, tanto que sentia-se mudada e glorificada pelo amor. O que ela podia fazer, como podia esconder dele a verdade? Mas por que afinal, devia a verdade ser escondida?
- Lindo, não é? - Jared perguntou orgulhosamente.
Estavam num enorme salão retangular, pobre de decoração, mas iluminado com o sol da tarde infiltrando-se
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através das janelas sem cortinas. Em redor das paredes, estavam estreitos leitos de hospital, cada um deles ocupado por homens com variadas amputações. Não havia nenhum homem perfeito entre eles, ela observou assim que acenou para ele. Apenas Jared era perfeito, cruelmente perfeito e nisso estava o crédito daqueles pálidos homens deitados ou sentados, que estavam sem nenhum ódio em suas faces abatidas.
O que Jared chamara de "lindo" era de fato o mais horrível objeto que ela jamais vira, um instrumento com dois dedos sobre o braço de metal recoberto com borracha da cor da carne humana.
- Deixe-me ver como isso funciona - ela pediu.
- Mostre-lhe - Jared ordenou.
O homem, muito moço, em quem o instrumento estava ajustado em algum lugar, debaixo de sua camisa, obedeceu. Os dois dedos moveram-se, separadamente e juntos, como o polegar e o indicador.
- Agora, pegue a mão dela - Jared disse a ele. Edith controlou o rápido desejo de não estender a mão e em vez disso, deixou sua mão ser apanhada delicadamente por dois dedos de borracha.
- Pode sentir a mão dela, quão suave e macia é? Jared perguntou ansioso.
- Claro que posso sentir - o homem disse e deu uma piscadela maliciosa.
Edith riu imediatamente e todos os homens no salão estavam rindo e então, ela não se importou afinal com o toque dos dedos de borracha, o indicador forte na palma de sua mão.
- É o bastante - Jared disse. - Não precisa levar ao extremo mesmo uma coisa boa.
Ele estava rindo também, enquanto falava, mas ela pôde observar que sentia-se orgulhoso.
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- Você tem todo o direito de se orgulhar - disse Edith gentilmente, retirando sua mão.
Obrigado... estou mesmo feliz - ele replicou.
Este amigo... perdeu seu braço direito em Danang, não foi, Bill?
Danang sim, senhor. Eu segurei o que parecia um cacho de bananas e de repente, elas explodiram... bang!
Jared deu uma palmadinha em seu ombro esquerdo.
- Bem, o que fizemos juntos irá ajudar muitos outros homens também. Apenas lembre-se disso, está bem?
- Claro, lembrarei - o homem respondeu.
Eles se retiraram então, ela e Jared, deixando os feridos e no corredor, ela suspirou, esquecendo por um momento tudo, exceto o rosto abatido e o corpo magro do homem com a mão.
- Ele é lamentavelmente jovem, Jared.
- Não tem ainda vinte e um anos - ele concordou - e eu não conheço maior alegria do que ver aquela mão substituta funcionando.
Absorvidos na alegria, esqueceram um do outro.
- Quanto, realmente, ele pode sentir? - ela perguntou - e quanto sua imaginação pode suprir?
- Bem, querida - Jared disse com um sorriso forçado - ouso dizer que ele tocará muitas mãos macias na realidade e a memória ajudará a imaginação, tenho certeza... e a visão, é claro. A mão dele "olhará" macio, entende? Mas um pouco disto é real... a pressão do flexível material contra a carne morna. Ah, sim, uma boa parte disso é real o bastante para transmitir prazer, de qualquer forma.
Que desperdício, ela pensou, a palavra carinhosa que ele parecia usar constantemente, que tantas vezes
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tinha usado descuidadamente, agora não tinha sentido! Não tinha sentido? Mas ele nunca a usara antes. Ela conteve o repentino palpitar de seu coração e falou suavemente:
- Espero que ele encontre um dia e muito breve uma garota, que seja capaz de saber que a mão que você fez para ele pode sentir. Então, ela poderá achá-la bonita, também.
- Espero que sim - ele disse gravemente.
Ele parou numa porta e tirou uma chave de seu bolso e colocou-a na fechadura. - Este é o meu laboratório. Lembra-se que eu lhe disse que queria trabalhar no estetoscópio? Bem, estou fazendo isso.
Ele abriu a porta e entraram. Era um agradável e imenso salão, repleto de máquinas de delicadas espécies e num dos cantos, debaixo da janela, estava uma grande mesa de trabalho. Sobre ela estava uma completa peça de maquinaria.
- Eu não entendo nada disso - ela disse.
- Isto é um método de testar estetoscópios - ele explicou. - Muito importante, você sabe, é um estetoscópio observar seguramente e informar inteligivelmente. Não deve ter o que ouve distorcido por nenhuma espécie de som oscilante, por exemplo. Para este eu imaginei um microfone monitor, esta coisa aqui... mas então o ouvido que escuta deve escutar corretamente também. Eu inventei este ouvido artificial... não parece muito com um verdadeiro, parece? Mas ele ouve... isto é, com um sistema como este.. - quanto realmente, pode ouvir o ouvido? A que distância? Quanto claramente? Mas eu confrontei igualmente este ouvido artificial com um outro, feito de material diferente, e é claro, tudo teve que ser confrontado de novo e de novo. Eu uso registros do peito humano... o coração, respiração e assim por diante...
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Ela ouvia, adquirindo conhecimento bastante acerca do que ele estava falando, mas enquanto seu cérebro compreendia, uma outra e mais sutil parte de seu ser estava tensamente cônscia de sua proximidade física. Suas mãos movendo-se sobre os instrumentos, enquanto ele demonstrava como funcionavam, sua voz música para seus ouvidos, seu perfil recortado contra as paredes cinzentas, seu todo dinâmico ser absorvido no que estava dizendo. Uma onda de alegria inundou seu ser. Ela sentiu-se viva como nunca havia se sentido em sua vida, nem em sua mocidade. Eles estavam juntos e com horas brilhantes à frente.
...Horas mais tarde, ela estava nos braços dele. Estavam dançando num famoso restaurante, o qual não estaria lotado até perto da meia-noite. Tinham chegado cedo, mas a orquestra já estava tocando uma valsa lenta.
- Estou contente - ela disse - não posso dançar danças modernas. Não posso dançar sozinha.
- E quem quer dançar sozinho?
O gerente proprietário aproximou-se e cumprimentou Jared pelo nome.
- Ele é amigo de meu tio - Jared explicou.
- Aprecio seu tio - Edith disse.
Conversa fútil, mas esta noite, ela devia falar apenas futilmente. Eles estavam muito perto da margem de algo desconhecido, a um passo adiante de cada um deles, que ela não sabia se desejava dar, ou mesmo se poderia parar se isso começasse.
- Por que me diz que aprecia meu tio? - Jared perguntou enquanto tomavam seus lugares.
- Não sei, apenas lembrei-me dele. Talvez eu sinta pena dele.
- Ele é muito feliz - Jared falou.
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Ele estava impaciente, ela percebeu, e não lhe disse que lembrara-se de seu tio, porque lamentava-o por ser incapaz de sentir essa alegria como eles.
- Vamos dançar - Jared disse ansioso.
Ele levantou-se e conduziu-a à pista de danças. Passara muito tempo desde que ela havia dançado, porque Arnold não apreciava e desde a morte dele, ela não tinha saído. Agora, magnificamente conduzida por Jared, ela correspondia com todo seu velho entusiasmo estimulado pelo prazer do novo amor.
- Você dança maravilhosamente - ele disse.
Jared encostou sua face suavemente contra seu cabelo e ela ansiava por ele enquanto continha as palavras de amor, que esperavam impacientes para serem ditas. À volta deles, alguns pares começaram a juntar-se, mas na luz suave ela não reconhecia ninguém e não era reconhecida, exceto pelo homem que falou passando com uma jovem loura em seus braços.
- Lindo par você tem aí, Jared.
- Obrigado, Tim - ele disse friamente e levou-a dali. Espero que não faça os homens mais velhos invejarem-me - ele resmungou com falso desgosto.
Ela riu. - Mas ele estava com uma jovem muito bonita.
- Quem quer apenas uma garota bonita? Além do mais, eu não a vi. Eu só vejo você.
O encanto da noite continuava. Sentaram-se num novo lugar à mesa, e ficaram calados exceto por umas poucas palavras, e de novo, ele levantou-se convidando-a e Juntos voltaram a comunicação da dança, ele apertando-a contra si, ela ansiando por sua aproximação. Perigoso, disse para si mesma, perigoso mas inefavelmente doce. Nenhuma palavra pronunciada, deixar a comunicação ser apenas este lânguido prazer de estar perto e juntos, reunidos pelo ritmo da música
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e do movimento. Ela sentiu medo de si mesma e dele. Uma sabedoria interior restringiu-se. O encanto devia ser quebrado agora, antes que fosse muito tarde, agora, antes que fosse vencida pelo próprio desejo e se deixasse levar por uma solicitação quando sozinha com ele e não pudesse continuar controlando seu próprio desejo. Era quase meia-noite e o salão começou a ficar lotado.
- Tenho de ir - ela disse quando a dança terminou e a orquestra retirou-se para um curto intervalo.
Ele afastou-se dela relutante, ainda segurando-lhe a mão.
- Por que você deve?
- Que mais? É claro que tenho de ir para casa. Ele ficou calado, muito calado. Pagou a conta e levou-a até o carro dela, esperando à porta. Estava silencioso, seu rosto tão sério, enquanto olhava para ela no escuro da rua, que ela queria saber se inadvertidamente o havia magoado. Seus olhos estavam tristes, ou assim ela imaginou, enquanto ele ali se demorava depois de ela estar sentada no carro.
- Boa-noite. Tive uma noite maravilhosa e feliz.
- Tem certeza? Não foi egoísmo meu prendê-la inteiramente para mim?
- Isso foi o que eu quis - ela replicou.
Seus olhos se encontraram numa longa e resoluta troca de comunicação. Cedo ou tarde, disse para si mesma, isso deveria ser dito em palavras.
- Ela acordou na manhã seguinte num estado de espírito de decisão. O dia em Nova York tinha sido uma dupla revelação. Ela viu Jared, o homem no trabalho, ela viu a si mesma, uma mulher apaixonada. Que tinham esses dois a ver um com o outro, se tinham alguma coisa? Certamente algo, ela argumentou consigo.
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Certamente o amor tinha um sentido, um propósito, mas para ela... que? Mesmo antes de deixar a cama, mesmo quando havia acabado de acordar, os pássaros, na hera aderida às paredes lá fora, junto às janelas abertas do seu quarto, a haviam animado com seus gorjeios alegres, e ela achou-se enfrentando as perguntas ocultas em sua mente. Permaneceu deitada alguns minutos, de olhos fechados. Ela devia parar, devia refletir sobre o que ia fazer consigo mesma..• e com Jared.
O tempo de prantear por Arnold, mesmo por Edwin, terminara. Outra primavera tinha chegado, outro amor, uma nova vida estava para começar. Mas como seria essa vida? Isso estava na sua força interior decidir, todavia, tal era sua obsessão por Jared, que isso podia não ser sua força interior se ela o encontrasse de novo, enfraquecida pela decisão. Ela estava apavorada compreendendo suas próprias fraquezas. Não sou capaz de nada, pensou em chocante desânimo. Sou totalmente capaz de seduzi-lo. Isso é o que eu temo fazer! Se ficarmos sozinhos novamente, em algum lugar, numa noite, mesmo aqui nesta casa, eu posso fazer isso. E ele não resistirá. Ele passou o ponto de resistência. Está começando a pensar em mim desse modo. Ela estava consciente de sua dupla personalidade neste pensamento. Uma delas, deliciando-se com a possibilidade da conquista, oh, sim, é claro, a conquista habilmente conduzida, de modo que pareceria ser ele o agressor e ela a submissa; a outra personalidade? Nesse momento, ela aparecia vagamente, flutuando como um fantasma. O sol da manhã brilhava muito quente dentro do luxuoso quarto, o leito macio, seu corpo demasiado vivo com um saudável desejo. Ela podia apenas lembrar a noite passada, quando unida a ele, moviam-se como um, através dos lentos passos de dança.
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Por um momento, ela submeteu-se ao desejo, depois incapaz de enfrentar sua solidão, atirou para trás as cobertas e saltou da cama.
Esse ritual diário, a maciez do corpo! Ela parou diante do espelho e enrolou seu longo e solto cabelo sobre a cabeça e prendeu-o, pronta para seu banho da manhã. Depois inclinou-se para a frente e examinou sua imagem. Ainda era bonita pela manhã, mas poderia ele vê-la também assim? Sem pintura, ela ainda tinha cor, seus lábios vermelho suave, um leve corado em suas faces, olhos azuis sob suas claras e marcadas sobrancelhas. Possuía lindos olhos, as pessoas sempre os notavam, e vendo-se, parecia estar vendo outra mulher, de algum modo despertada para a vida, mudada a frieza exterior, a angústia se foi, uma trêmula e indagadora mulher, tímida, confusa, talvez, ou não o bastante ousada. Assim estava ela, enfrentando-se e sentia medo de novo. Fugiu de sua imagem e apressou-se para retornar à rotina do banho, do vestir-se, do desjejum servido como de costume numa pequena mesa, só para ela, a um canto da janela da sala de refeições e Weston esperando-a num profundo silêncio, enquanto ela bebia suco de laranja e comia como de costume, ovos quentes e presunto, e uma fatia de pão puro sem manteiga.
- A cozinheira quer saber se deseja pão doce para o lanche, madame - Weston perguntou quando ela levantou-se.
- ótimo - ela murmurou displicente, e foi para a sua escrivaninha na biblioteca, e tirou da gaveta os planos para a casa perto do mar, a casa que poderia construir um dia, ou não. Como podia saber? Tudo dependia da mulher que iria viver nela, sozinha ou não.
Passou a manhã sobre os planos, terminando-os, até os últimos detalhes das portas e das janelas. Depois,
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como o dia continuasse bom, ela ordenou que lhe servisse o lanche no terraço e ali, à sombra de altas folhagens que a escondiam até mesmo dos penetrantes olhos de Amélia, sua vizinha, sentou-se em tranqüila reflexão, enquanto comia; parou para atirar um pedaço de pão a um esquilo que a contemplava com seus agudos olhos negros. Quando terminou a fatia de melão como sobremesa, ergueu-se e tendo refletido, deu suas ordens.
- Weston, por favor, diga ao motorista que traga o carro em meia hora. Vou a Red Hills, em Jersey.
- Sim, madame. - Ele respondeu.
...Junto ao mar o ar ainda estava frio. Ela deixou o carro na estrada e caminhava entre as dunas para o alto do rochedo onde a cinzenta rocha começava. Ali, ela sentou-se sobre o velho tronco de um retorcido pinheiro que uma tempestade tinha de uma só vez arrancado e abandonado. O mar movia-se em suaves ondas, quebrando-se na margem branca debaixo de um céu azul. O mar estava azul sobre verde profundo ali na praia, mas caindo para o púrpura no horizonte. Agora ali estava ela, só e saboreava sua solidão, sondando sua profundidade, sua insondável profundidade. Por que esse era o mal de amar um homem como agora ela sabia que amava. O amor faz aquele que ama, solitário sem o bem amado, uma eterna solidão que nada pode remediar até o bem amado estar perto novamente. Ela esquivou-se de qualquer outra presença. Quanto tempo havia passado desde que ela não via seus velhos amigos? Mesmo Amélia não via há semanas. Havia recusado todos os convites, tinha atendido ao telefone com impaciência, tinha se enclausurado com sua própria obsessão de amor. Mas a noite passada fora obrigada a compreender. Não podia continuar como estava.
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Todavia, o que faria ela agora para efetuar uma mudança? Uma pergunta sem resposta.
Ela suspirou e ergueu-se. De repente, quis descer dessa altura. Esse era um lugar tão solitário, situado entre o céu e o mar. Ela queria descer os raquíticos degraus e descansar na branca areia da praia lá embaixo. Espiando sobre a borda do rochedo, ela viu uma pequena caverna na saliência da rocha.
A maré baixara e a areia estava seca e morna, aquecida pelo sol. Lá ela poderia esconder-se, lá ela poderia isolar-se. Olhou para o carro na estrada. O chofer adormecera atrás da direção, seu boné escorregara de sua cabeça e sua boca estava entreaberta. Mesmo ele não veria onde ela estava indo.
Desceu os degraus, agarrando-se ao inseguro gradil, e caminhou sobre a macia e branca areia. A caverna ficava a alguns metros acima da praia e ela foi para lá, um local ao abrigo do vento. Tirou o casaco transformando-o em almofada, deitou-se sobre a areia aquecida pelo sol. A saliência da rocha apenas fazia sombra suficiente para proteger-lhe a cabeça e os ombros, mas o mar estava frio, tanto que o calor do sol em seu corpo era agradável. Suspirou e relaxou, sentiu-se tranqüilizada e escondida. Uma hora de repouso seria ótimo para ela. Dormira mal a noite passada, acordando várias vezes. Antes que ela percebesse, caiu num sono profundo, acalmada pelo marulhar das ondas.
...E de repente acordou ouvindo seu nome chamado de novo e de novo.
Edith! Edith! Edith!
Ela abriu os olhos devagar e olhou para o alto do rochedo e não podia imaginar onde estava.
- Edith! Edith!
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Sentou-se e sacudiu a areia dos cabelos. Seus pés estavam molhados, estavam na água. E era a voz de Jared chamando-a.
Ele descia correndo os degraus.
- A maré voltou, sua tola querida! Eu não pude vê-la até que se moveu. Oh, como pôde você? Como pôde vir aqui completamente só? Onde está seu carro?
Ele estava enrolando suas calças e se preparando para ir até ela.
- Tire os sapatos e as meias - ordenou.
A água ia apenas até seus joelhos, mas alguns minutos mais... sorte estar um dia calmo! Mas a maré estava subindo e a caverna poderia encher-se...
Edith tirava suas meias agora e sapatos na mão, começou a caminhar através da água em direção a Jared. Ele a encontrou antes de ela ter alcançado a metade do caminho, e enlaçando-a, conduziu-a para os degraus.
- Suba você o mais rápido possível... ele comandou. - Não, eu esperarei até você alcançar o topo. Esses degraus não suportariam o peso de duas pessoas e não me importo de escalar o rochedo.
Ele esperou, a maré aumentando, crescendo sobre ele, até que ela chegou ao topo e parou sobre terra firme. Então, ele galgou os degraus, meias e sapatos na mão e enfrentou-a. Estava pálido e furioso.
- Podia ter ficado presa lá! - ele gritou.
- Eu posso nadar - ela respondeu suavemente sentando-se sobre a rocha, e começou a calçar as meias enquanto ele a olhava ainda furioso.
- Eu fui à sua casa. Weston me disse onde você estava. Onde está esse seu maldito chofer?
- Está provavelmente querendo descobrir onde estou e já deve estar me dando por perdida ou coisa assim.
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- Você tem pernas e pés muito bonitos - ele disse inesperadamente, como se não a houvesse escutado.
já ouvi isso antes - ela disse. Depois, vestida, ajeitou o cabelo. - Perdi meu chapéu.
Que é um chapéu? - ele resmungou.
- Nada, diante das circunstâncias, especialmente como isso aconteceu. A maré levou-o embora.
Foram interrompidos pela volta do carro dela e com ele, um carro da polícia.
- Ela voltou - o motorista gritou para os policiais. Os dois carros pararam e o oficial saltou e dirigiu-se a eles.
- Desculpe - ela disse com o seu melhor sorriso.
- Fui uma estúpida e adormeci na praia. Meu amigo, o Sr. Barnow, foi até lá e salvou-me.
- Antes que se afogasse - Jared acrescentou.
- Antes que eu me afogasse - ela repetiu.
O oficial voltou-se para o motorista. - Você devia ter olhado do rochedo.
- ...Eu nunca podia pensar - disse o chofer.
Jared perdeu a paciência subitamente. - Enquanto vocês dois decidem sobre o que deviam ter feito, eu levarei a Sra. Chardman para casa em meu carro. Vamos embora, Sra. Chardman.
Ela ergueu-se sentindo uma estranha paz e seguiu-o. Foram embora juntos.
- Por que não pergunta a razão da minha vinda? - Jared perguntou.
Tinham mantido um longo silêncio durante o jantar, um silêncio que ela não desejava quebrar. Aliás, ela não tinha nada para dizer. O calor do sol, agora no poente, o ar suave fluindo através da janela aberta, o ar do mar perfumado e úmido, a felicidade de estar
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com ele, qualquer que fosse a razão, produzia-lhe um profundo contentamento.
- Por que veio? - perguntou, quase preguiçosamente.
- Não sei... eu tinha... eu não podia fazer mais nada... propriamente é isso. Você me perturba. Não posso trabalhar... desde a noite passada. Não faço nada, só penso em você, como você é, o som da sua voz, seu modo de andar. Você dança melhor do que qualquer pessoa que eu tenha jamais conhecido... mais graciosamente. Não posso dizer-lhe... isto é uma espécie de rendição, de concessão. Não posso esquecer isso. Nunca senti isso antes. Você não vai dizer nada?
- Que posso dizer? Exceto que estou feliz, maravilhosamente feliz. Eu... acho que nunca me senti tão feliz antes em minha vida... não deste modo. - A vez dela tornou-se um murmúrio.
- De que modo? - ele insistiu.
- Se eu soubesse, diria.
Ficaram silenciosos de novo depois disso. Com o carro, as milhas voavam. O que ele estava pensando, ela não sabia, seu belo perfil austero e marcante, os olhos mirando a estrada. Mas ela não sabia também, o que ela mesma estava pensando. Talvez isso não fosse mesmo pensamento, apenas sentimento.
Foi muito depois do por do sol, das sombras caírem, quando finalmente, ele parou em frente à casa dela. Weston passando perto da porta, abriu-a quando ouviu o carro.
- Eu não sabia o que fazer para o jantar, madame. Não recebi suas ordens.
- Já jantamos - ela disse e o Sr. Barnow vai ficar esta noite... ao menos, suponho?
Ela voltou-se para Jared e ele acenou com a cabeça.
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- Se você quiser...
É claro.
Ela voltou-se para Weston. - Pode nos trazer café e licor na biblioteca. Eu só vou subir e trocar-me.
Ela foi para cima exultante e temerosa. O que tivesse de acontecer aconteceria. Ela não podia impedir o inevitável, se ela não sabia o que era. Ela se renderia. Fosse o que fosse, que ele lhe oferecesse, ela aceitaria, fosse qual fosse o preço, ela pagaria. Então, dominada por um impulso que não compreendia, não fez nenhum esforço por parecer mais jovem do que era. Enrolou o cabelo descuidadamente sobre a cabeça, não pôs nenhuma pintura no rosto, o sol e o ar do mar tinham queimado sua linda pele e ela deixou-a assim. Escolheu um velho vestido verde deixando-o deslizar sobre sua cabeça e não parou para se olhar no espelho. Essa era ela, essa mulher agitada, queimada de sol, com o cabelo despenteado e com os pés nus enfiados em sandálias prateadas. Ela estava com quarenta e três anos e o deixaria vê-la como tal. Se ele retrocedesse então esse era o seu destino. Mas se ele não retrocedesse? Ela recusou a possibilidade. Por que planejar o que ela não podia saber? Ela teve um perverso instinto que não durou mais que um momento, quando desejou que ele a rejeitasse e assim, partisse dela a necessidade da decisão. Edith hesitou junto à porta, depois abriu-a e desceu as escadas.
Jared esperava-a na biblioteca; à porta, ela havia hesitado de novo desejando e temendo. Depois abriu a porta delicadamente e somente um pouco, mas ele estava vigilante. Jared atravessou rapidamente o aposento, fechou a porta e parando, tomou-a nos braços e beijou-a impetuosamente de novo e de novo.
- Quando penso no que podia ter acontecido - ele murmurou.
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Edith permaneceu em seus braços, abandonando-se, aceitando, todo seu corpo respondendo. Depois de um momento, afastou-se. - Eu não queria morrer, ísso é claro.
- Nem morrerá, se eu puder impedir isso.
Caminharam de mãos dadas em direção ao sofá, diante do qual Weston tinha colocado uma pequena mesa com os licores e o café. Edith serviu, suas mãos tremendo ligeiramente, como observou.
- Você está tremendo - ele disse.
- Acho que isto é algo como um choque.
- Eu certamente estou abalado. - Ele não provou nem café, nem licor. Em vez disso, começou abruptamente a falar.
- Eu devo dizer-lhe... Estou completamente confuso. Estou enfrentando uma situação inteiramente nova, estou preso a você. Não sou mais um homem livre. Nunca me senti preso em minha vida antes. Nunca fui dominado. Mas agora estou sendo. Nem mesmo tenho certeza se gosto disso. O que faz um homem quando é dominado por uma mulher? Eu apenas sei que a desposaria esta noite... se pudesse!
Edith ouvia, os olhos fixos nele. Ele não estava pensando nela e ela compreendeu isso. Estava pensando em si mesmo, preso na teia do desejo, magoando-a porque estava começando a saber quão profundamente a amava. Ele a queria fisicamente e estava horrorizado consigo mesmo. Sim, se ela estendesse a mão, se o tocasse, poderia tê-lo; se o acariciasse, se descansasse a mão na curva do seu braço, ela poderia tê-lo.
Mas Edith manteve seus olhos resolutamente baixos, recusou seu próprio desejo e por razões que não compreendeu, exceto que nada tinham a ver com ela, somente com ele, e começou quase incoerentemente a
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falar, não obstante não compreender, queria que ele a conhecesse.
-. Ontem foi uma espécie de dia maravilhoso. Jared! Eu o vi como nunca o tinha visto. E eu pensava conhecê-lo! Realmente, estarmos juntos foi um ótimo negócio, não? E todavia, compreendi isso ontem, e vê-lo com aquele homem aleijado, mostrou-me o que você realmente é... um cientista, sim, e muito mais, um homem brilhante mas compassivo, forte mas gentil. Eu o amo... é claro que eu o amo... como posso evitar isso? Mas foi somente ontem que fiquei sabendo que o amo. E o amarei sempre. Estou agradecida por isso. Uma vez, há muito tempo... ou parece que foi realmente há muito tempo... um querido velho, ele era verdadeiramente um grande homem, também me amou. Ele concedeu-me uma grande honra. Disse-me que seu amor por mim o mantinha vivo... não apenas vivendo, mas vivo, tanto que seu cérebro pôde permanecer claro e ele pôde executar seu trabalho. Isso, ele me ensinou, era o grande serviço do amor... que ele dá vida tanto ao que ama quanto ao que é amado. Nunca esquecerei o que ele me ensinou... sobre o amor.
Edith calou-se por um momento. Depois, suavemente, repetiu o que havia dito. - Amar mantém-me não apenas vivendo, mas viva.
Ele ergueu-se e caminhou até a alta janela e ficou olhando pensativamente os sombreados jardins. A lua nova erguia-se sobre as pontiagudas folhagens ao longe.
Ela continuou como se falasse consigo mesma.
- Tenho idade bastante para saber que seu afeto por mim é... um milagre. Não compreendo isso... posso apenas aceitar e ser agradecida. Isso faz a minha própria vida bela. Faz-me sentir útil a você de qualquer modo que eu possa. Quero fluir minha vida na sua, de modo que você será tudo que sonha ser...
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fará tudo que sonha fazer... que você poderia ser ou fazer sem mim, é claro, mas talvez, meu carinho, como eu lhe dou, poderá trazer-lhe mais confiança em si mesmo do que se estivesse sozinho... quero dizer, sem mim neste momento de sua vida, por que é claro, haverá muitos outros, muitas pessoas, certamente uma acima de todas...
Ela interrompeu-se temendo chorar. Em vez disso sorriu para ele. Ergueu o pequeno copo de "Beneditino", sorveu um gole e largou-o novamente. As palavras haviam jorrado francamente, de que fonte de seu ser, ela não sabia, nem sabia porque tinha pensado em Edwin. Mas ela, era ela mesma novamente, sua própria pessoa e isso também, devia esperar para compreender, e estar contente por esperar.
Jared encaminhou-se para ela lentamente, parando no meio do caminho para olhar a estante de livros, examinar uma tela na parede. Depois voltou para o lado dela.
- Diga-me - ele falou - por que ontem foi tão importante?
- Porque vi o homem que você será. E nada farei para deter esse homem.
...Quando ficou sozinha de novo, quando estava em cima, em seu próprio quarto, sentiu-se confusa e todavia, calma. Não sabia como as palavras tinham sido ditas, mas elas tinham vindo de uma parte oculta de seu ser. Entretanto, agora, recordando os momentos, ela compreendeu que por um rápido instante, como se numa visão, que havia visto de lado a lado o homem, ele tinha sido ontem apenas o homem seguro, compenetrado, conhecendo seu trabalho e executando-o bem e encontrando contentamento nisso, e o homem que ele tinha sido hoje, desnorteado, perturbado, oprimido, por
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descobrir que a amava. Esses dois homens, ambos eram ele, tinham lhe arrancado as palavras que ela não sabia que estavam dentro dela, no entanto, estavam esperando para serem ditas e pronunciadas, haviam determinado a decisão que ela não sabia tomar. Entre os dois, devia escolher e havia escolhido.
Haviam se separado quase imediatamente, conscientes da mútua exaustão, e não obstante, à porta do quarto, ele a tomara nos braços novamente e beijado, um beijo que ela retribuira; isso fora feito gentilmente, ambos dando e recebendo e ela sabia que naquela noite não queria abrir nenhuma porta entre eles, nem ele queria. O que agora tinha de fazer era determinar qual seria o seu lugar na vida dele. Porque ela o amaria sempre. Isso ela sabia. Portanto, sabendo qual seria o objetivo do supremo amor? Que podia ser senão a realização do ser amado?
Ela dormiu bem naquela noite, sua tensão interior libertada, acordou descobrindo-se calma e descansada. Permaneceu deitada um tempo, olhando os raios do sol da manhã caindo sobre o assoalho através das janelas abertas para o céu oriental. Não tinha nenhum senso de pressa, a impaciência tinha-a deixado e quando finalmente, levantou preparou-se para o dia, instintivamente não se surpreendeu que Weston estivesse parado aos pés da escada.
- O Sr. Barnow partiu muito cedo esta manhã, madame. Deixou-lhe um bilhete.
- Espero que lhe tenha servido o desjejum - disse ela com uma serenidade que a surpreendeu.
- Ele quis apenas café.
Edith seguiu, mas não diretamente para a sala de refeições, parando no terraço e respirando profundamente o ar da manhã. As árvores estavam floridas e sua fragrância tinha atraído as abelhas. Há muito tempo,
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quando ela era criança, seu pai mandara colocar colmeias no fundo do jardim, na teoria de que mel era o doce mais saudável para crianças e então, plantara diversas mudas, agora transformadas nesses gigantes, com seus enrugados troncos negros carregados de ramos pesados com brancas flores. Independente da delicada lembrança, Edith havia mantido as colmeias e cada outono, o jardineiro removia as caixas de puro e branco mel, ainda com o perfume das flores.
Ela parou por uns minutos, olhando para baixo a alameda de árvores, no fim da qual estava a piscina e nela a estátua de mármore branco da mulher parada sobre a rocha.
O cenário era-lhe tão familiar que raramente o olhava, mas estava hoje tão recentemente belo como se ela houvesse estado fora, em algum lugar distante e apenas agora houvesse voltado ao lar novamente. Paz invadia-a, uma paz interior que a capacitava a contemplar o que a cercava, sim, e mesmo sua vida, com uma nova apreciação. Ela fizera sua escolha e fora a escolha certa e estava em paz consigo mesma.
Sozinha, tomando café e olhando pelas janelas ao sul, ela viu as parreiras carregadas de folhas, o jardineiro lá com uma escada e estava podando as videiras para que a força das vinhas pudesse produzir muitos frutos. Sozinha, ela assombrou-se de não estar só. Muitas vezes havia se sentido inquieta sem Jared. Quando ele não estava com ela, aguardava pelo telefone, pelo abrir da porta, o som de sua voz. Seu hábito de aparecer sem avisá-la, estava se tornando exasperador, mas excitante e mantinha-a tensa. No entanto, ela nunca pedira: "Avise-me" porque apreciava sua repentina necessidade dela e seu impulso de ir imediatamente encontrá-la. Quando uma dificuldade surgia em seu laboratório, um problema técnico, ou um desentendimento
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com seu superior, seu recurso era ir até ela e falar até que falando, ele achasse a solução, sua própria solução para tudo, porque o que pudesse dizer-lhe, parecia-lhe sem importância. Sua mente lúcida podia prover suas próprias soluções. E tudo isso enquanto ela estava segurando em sua mão o envelope que ele havia deixado com Weston para entregar-lhe. Rasgou-o, abrindo-o e tirou a única página que ele continha.
Caríssima,
Desde agora pelo que você é para mim. Não importa quem mais venha... ou vá... isto numa palavra é o que você é, e sempre será para mim. Nenhuma mudança é possível. Porque você disse o que disse ontem, porque você fez o que fez, eu não pergunto, porque fosse qual fosse a razão isso estava certo, eu sei.
Sou seu para sempre, Jared.
Ela dobrou a folha e colocou-a de novo no envelope. Quando entrou em sua sala de estar fechou-o em sua escrivaninha para guardá-la e lê-la de novo e de novo. Seu amor fora estabelecido no único modo que podia ser estabelecido. Ela nunca precisaria novamente esperar ou aguardar por sua chegada. Ela compreendeu porque ele a havia deixado hoje e sabia que ele sempre desejaria voltar. Ela tornara isto possível para que ele pudesse retornar ao seu trabalho. Ela havia lhe dado sua liberdade mesmo de amar, e assim, ele a amaria para sempre. Assim meditando e sorrindo para si mesma, comeu seu desjejum e pensou nele com paz. Apenas nele pensou durante todo o dia. Com nenhum plano para o futuro, ela pensou nele e sentiu-se viva, forte e bem.
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...No começo de maio, quando os cornisos estavam floridos - a estação nesse ano estava começando um tanto tarde - ela recebeu um chamado telefônico de uma jovem. Soube imediatamente que era uma jovem, porque a voz que chegou cantante pelo fio, era fresca, a mais jovem voz que ela jamais tinha ouvido e sabia que não a tinha ouvido antes.
- Sra. Chardman? - a voz indagou.
- Sou eu - ela replicou.
- Oh, bem, não sei como começar, mas sou June Blaine. A senhora não me conhece, mas eu conheço Jared Barnow. Sou amiga dele... algo assim!
Sim?
- Sim! Quero muito falar com a senhora.
- Sobre ele?
- Sim.
- Ele sabe?
- Eu disse a ele que ia lhe telefonar hoje.
- Sim?
- Ele disse que a senhora compreenderia seu ponto de vista e assim tudo isso poderia estar perfeitamente certo. Ele diz que a senhora é a única pessoa que realmente o conhece. Isso é o que ele pensa! Mas eu o conheço também!
Edith permaneceu calada por uns segundos quando a voz parou de falar. Depois disse suavemente. - Muito bem, quando?
- Esta tarde? - a voz indagou.
- Às quatro horas - ela respondeu.
- Oh, obrigada!
O telefone desligou, a voz se foi. Ela pensou um momento e depois ligou para o laboratório. Às onze da manhã Jared estava lá. Sua voz atendeu quase que imediatamente.
- Jared Barnow.
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- Sou eu - ela disse - Uma moça acaba de me telefonar. Ela quer me ver. Esta tarde.
É June - ele respondeu prontamente - Estivemos jogando tênis a semana passada na casa dela e ela quis saber se podia vê-la. Eu disse, por que não? Não a leve muito a sério, querida. Ela quer casar comigo e não tem nenhuma chance. Estou muito preocupado!
Ela riu. - Volte ao seu trabalho, então. A propósito, estive lendo um fascinante artigo sobre implantes de borracha sintética para substituir juntas de mãos humanas artríticas ou destruidas.
- Eu vi isso. Grande! Implantes moldados. Maravilhoso!
- Bem, não quero prendê-lo.
- Telefonarei esta noite.
Ele telefonava-lhe todas as noites agora, à meianoite, quando terminava seu dia. Se a acordava, como algumas vezes o fez, ela nunca o deixava saber. Se lhe telefonava, era porque precisava dela.
- Telefone - disse e desligou o aparelho.
...Edith não estava inquieta enquanto esperava pelas quatro horas, mas estava num silêncio de pedra. Tentou não se preocupar. Em vez disso, permaneceu numa cadeira preguiçosa no terraço, dominando-se, os olhos fechados, o corpo imóvel. Nuvens deslizavam sobre o céu azul, grandes ondas brancas e ela sentia o frio das sombras quando elas passavam, e depois entre elas, estava o calor do sol. Um leve vento frio encapelava-se sobre as árvores e passava deixando uma quietude total atrás de si. Algumas vezes, quase adormecida, mas nunca totalmente. Quando Weston perguntou onde queria lanchar, disse - Traga o lanche aqui, por favor. E quando ele o trouxe, deixou-o pela metade.
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Uma ou duas vezes, talvez mais, levantou-se e andou sobre o gramado. O abundante crescimento da recente primavera ocultava-a de todo o mundo, mesmo de Amélia, a quem não via há semanas. Mas ela sempre voltava à cadeira preguiçosa e ali permanecia esperando, enquanto o sol levantando para o Zênite, passando, movia-se para o oeste.
Então, pontualmente às quatro horas, ela ouviu o som de um carro chegando do outro lado da casa e a campainha tocando e soube que tinha esperado o dia inteiro por esse momento. Não se moveu, mas permaneceu esperando, os olhos ainda fechados, para ouvir o som dos passos, os de Weston, suaves arrastados e o clip, clip dos saltos da moça.
- A Srta. Blaine chegou, madame - Weston disse. Edith abriu os olhos. Ali estava a moça, parada, alta e delicada criatura, num vestido branco muito curto, uma moça com olhos verdes e cabelos escuros soltos, brilhantes, caindo sobre seus ombros, uma moça com uma boa, meiga aparência, mas com uma boca obstinada, sem sorriso. Ela andou com seu curto vestido branco e estendendo a mão direita, falou com uma delicada mas agradável e quase suave voz.
- Por favor, não se levante, Sra. Chardman.
- Eu não ia levantar-me, June, é o seu nome? Estou preguiçosa hoje.
- Sim, sou June. Por óbvias razões, nasci em Junho. Completarei vinte e um anos no próximo mês.
- Puxe uma cadeira e sente-se, June.
- Obrigada.
Sentou-se, de costas para o jardim, fitando a encantadora mulher na cadeira preguiçosa.
- A senhora é mais jovem do que eu pensava, Sra. Chardman.
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- Oh, não... sou tão velha como pensa que sou.
Jared nunca lhe disse a minha idade?
Não. Sempre fala da senhora como se tivesse a idade dele.
Isso é gentileza de Jared.
Uma pausa, os olhos da moça estavam em seu rosto, ela podia sentir a contemplação, embora continuasse olhando para baixo a ampla paisagem dos jardins. Depois fez um esforço e encontrou os observadores olhos.
- Fale-me de você, June... por que quis ver-me, qualquer coisa que queira, diga-me.
A voz da moça era casual, refletida, clara. - Irei direta ao assunto. Quis conhecer a espécie de mulher que Jared aprecia. Quis saber se a senhora era de algum modo, igual a mim. Ou devo dizer... uma espécie de recondicioná-lo a outra mulher... como eu.
Edith riu. - É isso que pensa que pode fazer, June?
- Tentarei, se precisar!
- Em outras palavras, você está determinada a... desposá-lo?
- Se eu puder.
- Pensa que pode?
- Sim.
A voz da moça estava muito calma, muito firme.
- Então não há mais nada para dizer, há, June?
- Sim, porque eu quero que ele me ame antes.
- E você acha que ele pode ser ensinado a amá-la?
- Eu o ensinarei, tão cedo eu saiba como. Foi por isso que vim procurá-la. A senhora fez isso. Ele a ama. Mas é claro, ele não a desposará. A senhora é muito velha. Mesmo ele terá que desposar alguém. Eu quero ser esse alguém. É por isso que estou aqui.
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Edith sentia-se assombrada, divertida, magoada e mesmo de algum modo, furiosa. Um instinto de autodefesa e perversidade compelia-a a desafiar a moça, a dizer-lhe displiscentemente com uma risada, se ela pudesse rir, que ela mesma poderia desposar Jared. Este tinha sido seu pensamento!
- Jared disse que sou muito velha para casar com ele?
- Ele nunca fala de casamento comigo. Não creio que ele pense em casar-se com alguém. Serei a primeira.
June disse isso com uma confiança que novamente Edith quis rir mas não pôde. E é claro, a moça estava certa. Ela era muito velha para casar-se com Jared. Atualmente as mulheres algumas vezes, casavam com homens muito mais moços do que elas, mas havia algo repulsivo na idéia. Amor... mas não casamento! Qualquer pessoa podia deixar de amar um determinado ser humano, e isso podia não ter nada a ver com casamento. Edwin ensinara-lhe isso.
- Por favor, ensine-me - a moça disse.
- Você ama Jared? - Edith perguntou.
- É claro. Por que mais eu me preocuparia com ele?
- O que é o seu amor por ele?
- Tudo! - exclamou a moça.
- Defina tudo, por favor!
- Bem... apenas tudo. O modo de ele andar, o modo de ele falar, olhar... isso é apenas uma espécie de magia.
- Isso não é tudo. É apenas o lado exterior dele.
- Oh, isso é bastante para mim.
- Ah, mas isso é bastante para ele?
A moça olhou-a obstinadamente, seus olhos verdes resolutos. - Isso é o bastante para começar.
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Edith devolveu o olhar à moça. - Talvez seja - Depois de um momento. - Como posso saber porque Jared me ama? Por que não lhe pergunta? Certamente, não é por causa do modo como ando... ou falo... ou mesmo por uma espécie de magia... que eu não tenho, estou certa. Não posso ajudá-la, June. Não sei como.
Ela queria de repente livrar-se da moça. Estava furiosa com ela. O absurdo de tal visita, a insolência da intrusão. Gente jovem atualmente pensa apenas em si mesma. Sim, ela era muito velha, muito velha para Jared, muito velha para essa moça.
Edith ergueu-se e caminhou em direção à porta.
- Receio não poder ajudá-la, minha cara. Realmente não sei do que você está falando. Você e Jared devem esclarecer seu próprio relacionamento. Agora entre e tome uma xícara de chá comigo. Ou prefere algo para beber?
...Estava anoitecendo quando a moça se foi. Horas tinham passado e as deixara passar, tinha ajudado as horas a passarem, porque havia relutantemente começado a gostar da moça. Não havia nada de novo em sua história, porque ela a contara sem ser interrogada. Pais divorciados, ela era apenas uma criança, perto de diplomar-se num colégio para moças.
- Devo ser justa para com meus pais, Sra. Chardman, mas eu moro na casa de meu pai, porque minha mãe casou-se de novo e eu não gosto de meu padrasto. Ele é mais jovem do que minha mãe e algumas vezes... bem, não gosto de estar onde ele está, porque não quero que minha mãe seja magoada... não por mim, e certamente nem por ele, porque ela está tremendamente apaixonada. Isso é lamentável, não é?
Onde você conheceu Jared? - Edith perguntou à moça.
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- Quando fomos esquiar há três anos passados. Eu adoro esquiar. Habitualmente eu passo o Natal esquiando. Agora nós jogamos tênis. Foi tão surpreendente descobrir isso, ele mora em Nova York ou em Scarsdale, a senhora sabe. Ele vai a nossa casa aos sábados algumas vezes, a menos que ele telefone que quer trabalhar. Meu pai e ele são ótimos amigos. Meu pai diz que ele é o mais brilhante moço que já conheceu.
- Que faz seu pai?
- Ele é banqueiro em Nova York. Possui um apartamento lá e eu posso ficar com ele se quiser, mas nós mantemos nossa casa em Scarsdale porque gostamos de tênis, de piscina e tudo isso.
- Ele não se casou novamente?
- Oh, sim... com uma moça não muito mais velha do que... bem, Louise tem vinte e seis anos.
- Eles são felizes?
- Oh, sim. Louise é tão linda que alegro-me que não tenha conhecido Jared antes de casar-se com meu pai. Mas todos esses casamentos ensinaram-me muito, Sra. Chardman. Não quero nunca ser divorciada. Quero casar com alguém que amarei para sempre... como Jared.
- Você deve também ser alguém a quem ele possa amar sempre.
- Oh, sim - a moça concordou. - Foi por isso que vim procurá-la. Ele diz que a amará para sempre.
...- Sua namoradinha passou a tarde comigo - ela disse a Jared nessa noite, à meia-noite.
- Não tenho nenhuma namoradinha - ele retorquiu.
- Bem, uma mocinha, então.
- Acho que você quer dizer June Blaine.
- Sim.
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- Bem, ela é aquela da qual lhe falei uma vez.
Isso foi terminado há um par de anos e agora está encerrado!
- Ela não pensa assim.
- Ela é forte... isso eu admito. Mas todas as moças são fortes atualmente.
- E você não aprecia isso?
- Não tenho tempo para pensar nisso. Que vai fazer neste fim de semana?
Ela hesitou, procurando uma desculpa, mesmo uma delicada mentira.
- Tenho um compromisso com uma velha amizade.
- Homem?
- Não... mulher. - Ela podia convidar Amélia e elas poderiam ir ao teatro de verão.
Bem... - Ele estava relutando para desistir do fim de semana.
- Talvez June - ela sugeriu.
Ele a interrompeu imediatamente. - Olhe aqui... você não vai discutir!
- É claro que não, isso é apenas lealdade para alguém igual.
- Eu sou seu igual.
- Sei disso, querido, mas...
- Nada de mas!
- Muito bem. Podemos dizer boa-noite neste momento de acordo?
- Não sei. Você parece diferente, como se o acordo fosse apenas superficial.
- Ah, não Jared! Isso é muito sério. Eu estou para você... sempre e sempre. Não há nenhum acordo mais sério do que esse.
Ela pôde ouvi-lo respirar profundamente.
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- Isso era o que eu queria ouvir. Agora posso dizer-lhe boa-noite. Boa-noite, caríssima.
Como um éco, a voz dele voltou para ela...
- Caríssima!
Ouvi dizer que Edmond Hartley esteve em sua casa - Amélia disse.
Elas estavam sentadas no meio do teatro, num pavilhão em excursão num subúrbio da cidade. Amélia tinha escolhido o divertimento, a reprise de um velho musical.
- Como você soube? - Edith perguntou.
- Oh, nosso sistema de intercomunicação. Seu motorista para o meu, depois minha criada de quarto, que traz meu desjejum quando estou muito preguiçosa para me levantar.
- Edmond Hartley lhe interessa?
- Uma vez interessou - há muito tempo... até eu descobrir que não estava interessada nele. Nenhuma mulher está. Mas ele é encantador a despeito disso e rico!
- Ele continua encantador.
- E não se casou?
- Não.
Isso foi no intervalo. Amélia tinha declarado que era absurdo descer as escadas e tornar a subi-las no meio da multidão. Além do mais, lá não havia nenhum lugar para ir. Ela começou mais uma vez.
- Você sabe, Ediih, eu algumas vezes gostaria de saber se casar com um homem desses, na nossa idade, de qualquer modo não poderia ser muito agradável. Sempre queremos ter companhia, alguém com quem viajar, um amigo sempre presente... e sem exigências!
- Eu não poderia suportar isso - Edith disse veemente.
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- Por que não?
Eu quereria tudo do casamento... ou nada!
Amélia deu uma risada estridente. - Você está confessando, Edith, está confessando!
- Não tenho nada a confessar, exceto um profundo respeito pelo amor.
- Bem, eu vim para me divertir - disse Amélia.
O público estava se movimentando pelos corredores de novo e havia um movimento sobre o palco. Mas a conversação ficava em fundo.
Uma carta escrita em maciço papel creme com nome estampado e endereço anunciando que o remetente era Edmond Hartley, perguntando-lhe se podia telefonar para ela, para "apresentar-lhe meus respeitos" na próxima terça-feira, no seu caminho para Washington, para julgar alguns desenhos de murais que seriam expostos num museu lá. Ela quis responder-lhe que tinha compromisso, mas pensou em Amélia.
- E uma velha amiga minha - ela incluiu no post scriptum" de sua própria carta de resposta - estará aqui para cumprimentá-lo. Creio que ela o conhece há muito tempo. Venha.
Ele chegou atrasado na terça-feira à tarde, numa pequena limusine Daimler, guiada por um velho motorista inglês. Ela viu quando ele chegou e parou para dar ordens ao homem, e depois caminhou em seu elástico e um tanto afetado modo para a porta. Weston abriu-a e anunciou-o na sala de música. Edith ergueu-se do piano, onde estava praticando um estudo de Chopin e estendeu-lhe as mãos que ele segurou com seus gelados e secos dedos.
- Como soa bonita a música! Esse é meu "étude" favorito. Gostaria de ouvi-lo todo.
Os olhos dele estavam brilhantemente azuis como sempre, sobre sua branca barba aparada e elegante
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bigode. Um homem encantador, ela pensou, em seu correto e delicado modo, e Edith sentiu uma suave afeição por ele, combinada com um real respeito. Uma complicada personalidade essa! Mas debaixo das complexidades, o resultado de uma grande experiência, aqui estava uma pessoa honrada que tinha feito um acordo rigoroso consigo mesma.
- Minha querida - ele disse - estou empoeirado da viagem. Deixe que me enfeite para seus lindos olhos.
- Depois teremos coquetéis no terraço - ela disse. E minha velha amiga Amélia Darwent, virá reunir-se a nós. Lembra-se dela? Ela, aliás, lembra-se muito bem do senhor.
Edmond Hartley olhava vazio. - Não me lembro...
- Ah, bem, ela fará com que o senhor se recorde. Agora suba... o mesmo quarto e sala de estar.
Ele retirou-se e Edith voltou ao "étude", o número três. Começara-o após a morte de Arnold, quando começou a aprender o significado da tristeza, e não apenas a tristeza da morte, mas a profunda tristeza que o que tinha sido não era tudo que poderia ter sido, se houvesse existido mais compreensão e portanto, maior comunicação entre ela e Arnold. Ambos tinham feito o melhor que puderam juntos. Se ela pudesse ter compreendido, teria havido uma profunda felicidade, ele também. Disso ela estava certa, porque tinha algumas vezes sentido seu olhar sobre ela, erguendo a cabeça, e vira tristeza em seus olhos, e silenciosamente, respeitara essa tristeza, compreendendo em sua própria reserva, a inexorável distância entre eles. Nem ela nem Arnold tinham quebrado essa reserva, mas o conhecimento e aceitação foram dolorosos.
No dia do enterro de Arnold, ela voltara para sua casa sozinha, porque desejava estar só e rejeitara o
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carinhoso oferecimento de seus filhos para a acompanharem.
- Não, meus queridos - dissera-lhes - Vão para suas casas, para seus filhos. Fiquem com eles e eu me sentirei feliz. Aliás, estou muito bem. Tomarei um comprimido para dormir esta noite. Estou muito cansada.
E em casa, sozinha, tinha começado o étude".
Ele era dividido em três partes, a primeira, a manifestação da tristeza, uma pergunta como porque a tristeza deve existir. Na segunda, a pergunta é levantada num protesto e impetuosa exigência. Encerrando a terceira parte, a pergunta ficou sem resposta, a exigência acalmou-se e o tema era exprimido de novo e finalmente, é tempo para a aceitação do inexorável.
Quando o último acorde morreu sob suas mãos, ela ouviu a voz de Amélia.
- Se eu tivesse coração, ele se quebraria quando você toca isso.
Edith voltou-se. Amélia estava sentada numa poltrona cor de ouro, parecendo muito viva num vestido de coquetel de cetim prateado.
- Quando chegou? - ela perguntou.
- Há dez minutos. Não deixei Weston me anunciar. Eu não a ouvia tocar há muito tempo... há meses. Você tocou melhor do que nunca, Edith. Estou furiosa com meus pais, porque eles não me obrigaram a estudar.
- Como me lembro disso - ela disse sorrindo. - Você os odiava porque a obrigaram a praticar durante dois anos.
Eles não deviam ter ouvido a minha reclamação - Amélia insistiu. - Eles deviam bater-me. Assim sendo, eu os culpo por minha falta de habilidade agora para confortar a mim mesma com música. Eles deviam ter sido mais duros.
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- Eles queriam que sua filha única os amasse.
- Um modo estúpido de obter amor! Eles deviam saber que o único modo de ser amado é ser mais forte do que a pessoa que você ama.
- Eu nunca a ouvi falar de amor, Amélia.
- Isso não quer dizer que eu não tenha idéias sobre o assunto!
Elas foram interrompidas pela chegada de Edmond Hartley. Ele havia trocado seu terno por um marron de tweed e usava abotoaduras e alfinete de gravata de jade. Amélia estendeu-lhe a mão.
- Bem, Edmond - ela disse, examinando-o. - Você está mais elegante do que nunca.
Ele retribuiu-lhe o olhar e ela retirou a mão.
- Agora lembro-me de você - ele disse. Você é a moça que sempre me derrotava no tênis!
Ele voltou-se. - Esta jovem mulher, Sr a. Chardman, tinha o mais infernal jogo de esquerda. E ela era um azougue sobre os pés. Eu era ágil, ou assim pensava, mas ela era veloz como... como uma... jovem gazela e eu simplesmente não podia vencê-la. Nunca pude saber se em minha mente, eu a amava ou a odiava!
Amélia riu deliciada. - Você nunca fez sua mente funcionar - ela declarou.
- Nunca - ele concordou.
Olharam um para o outro, comparando-se no tempo. Como tinha o tempo lidado com eles e com qual fora mais generoso? Uma velha atração renascia. Por pouco ele tinha se casado, pois uma vez, quase desposara Amélia Darwent. Cada um lembrava-se agora.
...Nessa noite, quando Jared telefonou, ela lhe disse meio brincalhona: - Jared, seu tio está revivendo uma velha atração. Numa palavra, o amor é muito forte. Mas ele e Amélia já se conheciam. Haviam esquecido
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mas agora lembraram-se de novo. Saíram juntos depois do jantar, e eu o ouvi perguntar a Amélia se ele podia lhe telefonar amanhã.
Jared explodiu numa risada. - Isso é o mais longe que irá, abençoado seja ele!
Para sua própria surpresa, de repente, aborreceu-se com ele.
- Não ria, Jared! Ele é um homem trágico... é um bom homem.
- Oh, claro, ele é bom, mas...
- Nada de mas! Ele fez um acordo consigo mesmo, e conhecendo a si mesmo, recusou o melhor que a vida pode dar.
- Isso é...
- Amor, é claro. Como você é jovem - ela disse quase orgulhosamente e seu coração de repente, começou a doer.
- Não a compreendo - disse ele bruscamente.
- Não é preciso também - Edith respondeu.
...Deliberadamente, durante os dias que se seguiram, ela dedicou-se a Edmond Hartley e Amélia. Parecendo não ver nada, ela via tudo. Compreendia Amélia tão bem e tão carinhosamente. Amélia tinha sido franca e nunca fora mais franca do que agora. Ela atravessava o gramado e aparecia fora de hora, sempre elegantemente vestida para as horas do dia, parecendo bonita em sua elegância, de algum modo severa, seu rebelde cabelo grisalho modernamente cortado, as saias curtas o bastante para revelar pernas bem feitas. Preto e branco ela usava, branco para os dias quentes de verão e diáfanos e longos vestidos pretos para o anoitecer. Seu modo brusco, seu falar pausado, combinados com sua quase ostensiva atenção para com Edmond, obviamente comovia-o e agradava-o.
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Havia passado muito tempo desde que uma mulher tinha lhe dado atenção. Ele havia cessado de esquivar-se e estar sozinho com ela e começou a sugerir passeios entre as árvores. Amélia aceitava cada convite imediatamente e tornou-se quase usual que antes da hora do coquetel, Edith visse as duas altas figuras, Edmond um palmo ou dois mais alto, passeando de braços dados, pelos gramados.
Edith estava preparada, portanto, para o que Amélia francamente anunciou num anoitecer em julho.
- Edith, acabo de pedir a Edmond Hartley para casar-se comigo.
- Amélia você fez isso realmente? - ela exclamou. - E o que ele disse?
Amélia deu uma curta gargalhada. - Ele não podia realmente recusar, não podia ele, sem ser indelicado, assim ele disse considerar uma honra e aceitou.
Elas estavam em cima, na sala de estar, para onde Amélia a havia seguido. Edith estava deitada na "chaise-longue", descansando por meia hora antes de vestir-se para o jantar.
- Amélia, acho que você sabe...
Amélia terminou a frase impacientemente. - Que ele não está interessado em sexo com uma mulher? Sim, eu sei... eu sempre soube. Por que acha que nunca me casei? Eu era louca por ele quando éramos jovens. Ele foi o homem mais lindo do mundo. Então, ele me contou, sim, Edith, contou já disse! Eu sempre o admirei por isso. Ele é tão... decente. Ele compreendia a si mesmo, ele guardava-se. Nunca abandonou a si mesmo... bem, você sabe! Ele estava simplesmente vivendo sem sexo. Isso foi tão admirável nele. Não foi admirável? Sim, e assim tenho sido também. Você irá pensar que isso é estúpido e fora de moda. Mas simplesmente não haveria outro amor para
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mim, também, o sexo sem amor já não faz... bem, não me atrai.
- É claro, por um momento, fiquei calada, mesmo constrangida, saudável como eu era. Não nos vimos um ao outro durante muito tempo. Mas lentamente, durante anos, cheguei a ver que sexo não é tudo o que importa entre pessoas e lentamente o sexo foi sendo afastado. O que resta agora, é amor. Foi o que eu disse para ele. - Edmond, eu o amo. Você, sua pessoa. Quero viver na mesma casa com você, estar perto de você, isso é tudo. Ele respondeu como já lhe contei, que "isso seria uma honra."
Ela pensava conhecer bastante Amélia mas agora percebia que não a havia conhecido. Assim, durante muitos anos ela estivera errada, mas agora, compreendia sua amiga e com compreensão, sentiu um verdadeiro amor como por uma irmã.
- Respeito-os a ambos - ela disse suavemente. - Quando se casarão?
- Assim que possamos arrumar os papéis. Depois, Edmond mudará para minha casa. Já discutimos tudo. Ele pode ter a ala este para si. Lá haverá muito espaço para expor todas as suas pinturas. Edith, não posso dizer-lhe como me sinto feliz. Alegro-me porque tive a coragem de enfrentar a verdade que sempre conhecemos, que nós devemos passar nossas vidas juntos. Ele é tão... digno. Ele nunca me pediria. Por isso, pus de lado a falsa modéstia e tudo o mais, e eu o pedi.
- Então, alegro-me também.
Amélia tinha aberto a porta e descoberto uma câmara secreta.
- Quero que você se case - ela disse a Jared. Edith havia refletido constantemente sobre a coragem de Amélia e diante disso tinha obtido força.
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Inconscientemente, ele dirigiu mais rápido. Isso foi um domingo à tarde, no solstício de verão e ele tinha aparecido de repente, sem aviso para levá-la a jantar numa hospedaria no campo. Edith estivera só e desperdiçado os fins de semana, porque Amélia há três dias passados, avisara que ela e Edmond estavam de partida para a Europa, depois de uma rápida e informal cerimônia de casamento. Não, ela não queria dizer nem mesmo à sua querida amiga Edith Chardman para onde iriam, nem exatamente quando, mas se comunicariam com ela após o seu regresso. No dia seguinte, a mansão de Amélia estava fechada, exceto para o zelador.
Edith sentia falta de Amélia mais do que julgava possível, porque o último élo de sua infância se fora e nenhuma outra tomaria o seu lugar. Mesmo pensar em seu filho e filha não diminuia sua solidão. Eles tinham suas próprias vidas e estavam separados pela geração e sofisticação. Estavam na fase de ter filhos e estabelecer suas próprias estruturas familiares, enquanto que ela... em que fase estava? O tempo e o espaço cercando-a como um solitário viajante num deserto está cercado pela areia e pelo céu. Edith sentia-se tão desamparada realmente em sua interior solidão que, quase havia chorado quando Jared telefonou propondo essa jornada ao anoitecer.
- Quero que você se case - repetiu quando ele não respondeu.
Em vez de falar, ele brecou abruptamente à sombra de uma velha árvore. Era aquele momento no verão, quando o crescimento está terminando, e a natureza contempla a anual morte do inverno. O ar estava lânguido e os pássaros silenciosos.
- Agora vamos esclarecer isto. Jamais poderei amar alguém como amo você.
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- Aceito isso - ela disse - mas ainda digo que quero que você se case.
- Quer casar comigo, Edith?
- Não - ela respondeu gentilmente.
- Por que não?
Fácil demais dizer que ela era muito velha, que quando ele estivesse no auge, ela seria uma mulher muito velha; simplesmente ela não respondeu. Entre eles havia a comunicação de um amor que nada tinha a ver com o acidente de seus nascimentos. Eram dois seres humanos que reconheciam sua completa identificação, sua total confiança, os quais eram os complementos do amor. Mesmo assim, tinha a responsabilidade da qual estava se tornando consciente, a princípio confusamente mas agora, dia a dia, mais claramente. Nada devia impedir a realização de Jared, seu total desenvolvimento como homem, rico em talentos e capaz de enriquecer, mental e espiritualmente. Contudo, ele era um homem, uma criatura humana, com humanas necessidades. Essas necessidades ela não podia preencher totalmente. E elas não estavam ainda preenchidas, poderia um último desenvolvimento acontecer? Ela acreditava que não. Não poderia viver com ele como uma esposa dedicada. Não poderia dar-lhe filhos. Aliás, ela não tinha nenhum desejo de tê-los. E no entanto, os tivera, poderia também ter dado o que agora dava a ele tão alegremente, em companheirismo? Duvidou que pudesse; ele não era uma simples criatura. A aparência de seu ser era totalmente radiante e ela compreendia a totalidade.
- Sei que não posso casar-me com você, Jared - ela disse.
- Tem medo do que as pessoas irão dizer?
- Não tenho medo - ela respondeu.
- Então por que?
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- Sei que não devo.
- Por que? Por que?
- Não sei, mas não devo para o seu próprio bem.
Ele calou-se depois disso, e ela silenciou, esperando. Então ele, pôs o carro em movimento e dirigiu-o até chegarem à hospedaria no campo, em outro tempo um velho moinho. A grande e escura roda d'água ainda girava lentamente, gotejando a clara água do riacho como vinha fazendo há um século ou mais. A madeira estava coberta com musgo verde e úmido, e sobre a sombra de um enorme e velho sicômoro, a água corria suavemente sobre as pedras no seu caminho para o rio.
Eles pararam lado a lado, olhando a roda girar. De repente, ele agarrou a mão dela e puxou-a para a curva de seu braço.
- Vamos em frente. Estou faminto.
Entraram no salão de refeições e no seu modo imperioso, ele escolheu a mesa para a qual a copeira os conduziu.
- Aquela mesa junto à janela - ordenou. Sentaram-se, ele escolheu os coquetéis e a entrada, enquanto ela esperava, não se preocupando com o que iria comer e beber tanto quanto estava preocupada com ele. É claro, ela o amava. Sim, estava apaixonada. Não ela não poderia nunca separar-se dele. Um depois do outro, esses fatos anunciaram em seu íntimo, mas nada fez, nem de menos nem de mais para mudar sua decisão.
Ele apoiou-se sobre os cotovelos e fitou-a, seus olhos escuros, penetrantes.
- Agora, então, vamos esclarecer isso. Por que insiste sobre meu casamento com alguém?
- Não alguém - ela emendou - mas June Blaine. Gosto dela. Ela é honesta. Quer se casar com você.
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- Sei disso, mas...
- Nada de mas! Oh, claro, a decisão final é sua, mas eu quero que saiba que... eu aprovo.
Ele encarou-a, confuso. - Não a compreendo.
Edith sorriu e ficou calada.
Ele continuou. - Você sabe... você e eu...
Edith interrompeuo. - Eu sei.
Seus olhos tão diretos em sua contemplação, mantinham-na prisioneira. Ela não podia desviar o olhar.
- Poderei eu jamais compreendê-la? - ele perguntou.
- Talvez isso não seja... necessário - a voz dela tremia.
- No entanto, eu gostaria - insistiu.
- Não é.•. necessário - ela repetiu, a voz num murmúrio.
- Agora você está se escondendo em algum lugar.
Edith sacudiu a cabeça.
- Só estou sendo... eu mesma.
- Não gosto de mistério!
- Não há mistério, Jared, talvez intuição. Eu o conheço tão bem... melhor do que a mim mesma, acho! Vejo claramente o que você é e o que você será! Você será um dos grandes homens de sua geração... mesmo de todas as gerações. Nada deve seguir errado. Você deve ter... tudo. E June será parte desse tudo. E digo-lhe, eu gosto dela! Não se encontra honestidade nas mulheres muito freqüentemente hoje em dia. Isso é como achar brilhantes entre seixos. Você não pode passar por isso. Não deve. Tome-o em sua mão, examine-o, teste-o, e se for verdadeiro, guarde-o. Isso é tudo que eu peço... não, eu não peço, sugiro.
- Não quero mesmo falar sobre isso - ele disse enervado. - Aqui estão nossos coquetéis. Eu brindo a você!
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E ele ergueu seu copo.
...Horas depois, acordada em seu leito, voltou-se para o telefone sobre a mesa ao lado e apanhando o receptor, discou para June, esperando que ela também estivesse acordada e ouviu sua voz, rápida e firme.
- Alô?
- June, sou eu, Edith Chardman.
- Sim, Sra. Chardman?
- Quero dizer-lhe que vou sair por umas semanas... talvez meses.
- Há alguma coisa que deseje que eu faça? - A voz de June soava surpreendida.
- Apenas o que seu coração disser, enquanto eu estiver ausente.
Ela esperou. June seria bastante perspicaz, bastante viva, bastante compreensiva, para saber o que ela estava querendo dizer?
Um momento de silêncio e a voz da moça chegou, calma e controlada.
- Obrigada, Sra. Chardman.
- Boa noite, minha querida - ela disse e desligou o telefone.
...Pela manhã, ela acordou tarde, descansada depois de profundo sono. Conseguira dormir e imediatamente depois de ter telefonado para June, como se houvesse cumprido um dever, um propósito e tendo-o cumprido, tranqüilizara-se na paz. Agora o sol estava se aproximando do Zênite; levantou-se e foi à janela como sempre fazia de manhã, para Julgar o dia, nesse caso, um dia de agosto perfeitamente claro, um céu azul sem nuvens sobre as árvores. Era um dia para fortalecer sua alma com a sua beleza e ela estava fortalecida. Havia dito a June que ia viajar, mas onde poderia ir? Até o momento, em que pronunciara aquelas
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palavras, não tinha nenhuma intenção de sair. No entanto, aquelas palavras tinham saído de seus lábios com convicção, como se fossem o fruto de meditação e resolução. Onde iria? Parada, indecisa, diante da janela aberta, a brisa da manhã agitando os laços de sua camisola, e erguendo seu cabelo solto, ela de repente, lembrou-se da casa de Edwin nas montanhas, a duzentas milhas de distância.
Talvez ela estivesse vazia, talvez seus filhos estivessem lá, talvez nada, mas ao menos ela poderia ir e ver. Ninguém poderia achá-la lá, e ela jamais havia contado a Jared desse amor, aliás a ninguém. Então, ela poderia ir e na presença da memória de Edwin, poderia encontrar-se de novo, não como havia sido, porque o amor a havia mudado, o amor por Jared, mas como ela era agora e seria até o fim de sua vida. Porque não poderia haver jamais outro amor. Agora ela sabia tudo, cada amor era diferente do outro, cada significado, cada esclarecimento e avaliação e cada carinho. Isto não havia terminado. Seu amor por Jared continuaria porque ela não desejava detê-lo. Deixá-lo-ia crescer, uma fonte de conforto e de inspiração para ela, como o seu havia sido para Edwin, mas com uma maior responsabilidade. Ela devia assumir essa responsabilidade, isso seria fazer agora do amor, uma fonte de conforto e inspiração para Jared.
A tocha do amor devia ser conduzida de um coração para outro, de uma geração para outra, porque sem amor a vida não tem significado e o espírito morre. Sim, esse seria o seu dever e a sua alegria, derramar seu amor na vida de Jared e vê-lo crescer. Isso não fora um caso de amor. Isso era o amor.
...A grande mansão estava silenciosa à luz dourada do entardecer. A pesada porta estava fechada.
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Ali, onde Edwin ficava esperando para recebê-la, com seus braços estendidos para abraçá-la, não estava ninguém. As flores estavam abandonadas, os primeiros crisântemos e as últimas rosas floriam em brilhante confusão. Um pássaro chamava, seu solitário clamor quebrava a tranqüilidade. Ela ergueu a pesada aldrava de bronze e deixou-a cair e ouviu o eco dentro no hall. Ela esperou. Certamente, alguém devia estar ali, um caseiro, um zelador, uma governanta? A casa ficava isolada, a cinco milhas do próximo povoado, uma solitária estrada conduzia ao portão. Com uma fortuna em livros e telas, os móveis de toda uma geração rica em possessões, ela não podia estar desabitada aqui nesta colina, rodeada por florestas e além das florestas, montanhas. Cinco picos estavam claros contra o céu no entardecer, dois deles já cobertos por prematura geada.
Então, longe, dentro da casa, ela ouviu passos, depois o áspero arranhar de uma peça de metal, ou talvez uma grande chave... não podia lembrar-se. A porta abriu-se um pouco, e ela viu o rosto enrugado de Henry Haynes, o criado de Edwin.
- Oh, Sra. Chardman! - sua voz grave não tinha mudado. - Que deseja?
- Você pode hospedar-me por uma semana... duas... ou três?
- Oh, então...
Ele abriu a porta completamente.
- Entre. Não há ninguém aqui além de minha esposa e eu. Casei-me com a cozinheira. Não sei se a senhora se recorda dela. O Dr. Steadley colocou-a em seu testamento e isso justamente pareceu facilitar... mas entre, Sra. Chardman. A família esteve aqui no verão mas já se foram todos e nós estávamos nos preparando para o inverno.
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Conduzia-a enquanto falava. Ela parou no imenso hall e olhou à sua volta. Tudo estava igual, os móveis polidos, o assoalho limpo! Havia mesmo uma floreira com crisântemos dourados na mesa do hall, uma grande floreira "Satsuma", da qual ela se lembrava, porque Edwin a tinha comprado no Japão. No entanto, como a casa estava vazia!
Ela parou hesitante. Poderia ela suportar a sua ausência aqui nesta casa? A solidão era muito intensa. Sentiu-se solitária como nunca havia se sentido antes, nem mesmo quando Arnold morrera e a deixara sozinha em sua própria casa. Edwin significara muito mais para ela do que havia imaginado. Poderia a ausência dele agora oprimi-la, torná-la medrosa?
- Tudo está como quando ele estava aqui. - Henry estava dizendo - os quartos arrumados, as lareiras preparadas... tudo. Eu mesmo tirei para fora suas coisas de inverno ontem e as arejei. Minha esposa diz: "Henry, ele não sabe", mas eu sei, eu disse a ela, eu sei. Devo arrumar-lhe o mesmo quarto, Sra. Chardman?
- Sim, o mesmo.
Seguiu-o subindo as escadas e do hall para a lembrada porta. Ele a abriu e ela entrou.
- Está exatamente como estava - ela disse.
- E sempre estará. - Henry disse - Ele quer isto assim. "Henry", ele disse, "mantenha-o como sempre esteve. Não sei se poderei voltar, mas conserve-o como se eu pudesse." Por isso eu o mantenho, livros espalhados, tudo.
- Talvez ele saiba - ela murmurou.
Agora que estava ali, sentiu-se cansada. Tirou o chapéu e olhou seu rosto no espelho, branco e cansado.
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- A senhora terá o seu jantar o mais cedo possível - Henry disse. - Avisarei minha esposa. Será ótimo ter alguma coisa para fazer.
- Obrigada, Henry - ela disse.
Quando ele se retirou, ela abriu suas duas malas e colocou as coisas dentro das gavetas.
Mas eu não precisarei ficar, ela pensou. Posso ir embora a qualquer momento, qualquer dia, se não puder suportar isto. Apenas, para onde iria?
Sentou-se diante da pequena escrivaninha perto da janela oeste. O sol estava descendo, ele parecia nesse momento, descansar sobre o pico rochoso da mais alta montanha e ela ficou olhando-o desaparecer até que o último raio dourado se foi. Depois acendeu todas as lâmpadas no quarto e jogou um fósforo nas achas da lareira, e tendo feito isso, sentiu-se de alguma forma em casa, ainda que continuasse só.
...A primeira prematura nevada estava vindo, apesar de as últimas folhas brilhantes ainda estarem nas copas das árvores quando ela abriu as cortinas de seu quarto uma manhã e viu grandes e suaves flocos de neve descendo junto à janela. Henry tinha acendido o aquecedor interno.
Ela puxou a cortina e fechou-a, e uma luz branca encheu o aposento. Acendeu a lareira, as achas já estavam empilhadas ali, e lentamente, prazeirosamente, banhou-se e vestiu-se; desceu para o desjejum. Na sala Henry havia acendido a lareira e colocado uma pequena mesa ao lado dela.
- Está frio esta manhã - ele disse.
- Está uma beleza - Edith retrucou.
- O Dr. Steadley sempre gostou da neve.
- Eu sei.
- É estranho como ele ainda parece estar na casa.
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- Você sente isso também? - ela perguntou.
- Às vezes, quase ouço a voz dele - Henry respondeu.
- Se você crê que ele está aqui, então nessa condição ele está - ela replicou.
Edith estava cônscia de uma estranha confiança no que falava. Se alguma presença podia ser sentida, certamente a de Edwin era uma. Mas ela era uma cética. O que tinha sido nada mais era. Ele deixara a casa, essa habitação atrás dele e fora embora. Ela estava singularmente só, refletia, mais do que se ela nunca houvesse vivido com ele aqui. Nem o queria de volta. Tinha vindo aqui para aprender como viver só e sentiu sua solidão no seu coração e na sua carne. Estava só, só, tão encerrada em seu solitário ser que nem mesmo notou que Henry tinha deixado o aposento.
...Os solitários dias passavam, um após outro, numa cinzenta procissão. Desde que ninguém sabia onde ela estava, lá não havia nenhum chamado telefônico. Ela gastava suas horas de insônia na imensa biblioteca, estudando livros que nunca tinha lido antes, livros de história e filosofia asiática. Edwin percorrera muito essa parte do mundo e agora ela começava a compreender o quanto a Ásia tinha moldado seu caráter. A natural liberdade, a facilidade com a qual ele havia conciliado a física com a filosofia, era asiática. O corpo era apenas a manifestação do espírito, traduzindo-se em termos de carne e sangue, palpitar e pulsação do coração e aspirações do espírito. A necessidade do amor físico era apenas a materialização do espírito ansiando por comunicação. Não havia nenhuma diferença importante entre carne e espírito, simplesmente uma diferença no modo de expressão.
Jared não tinha progredido tanto, todavia. Na verdade, nem ela. Carne era carne. Quando ela pensava
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em Jared na carne, ela pensava no seu corpo. Seu espírito estava separado. Ela podia e pensou em seu espírito, mas isso era algo nele mesmo. Espiritualmente, ele era um criador. Mesmo agora, é claro, ele era apenas um principiante. Ele estava criando ferramentas, mecanismos para satisfazer sua compulsão criativa. Ele tinha que fazer algo com suas mãos, algo que ele pudesse ver e usar, um nobre instinto, mas sobre um primeiro plano. Sua criatividade era motivada por compaixão, um respeitável instinto, mas não forte o bastante em seu íntimo para atingir a realização de sua capacidade como um criador. Em dias passados, o criador sempre achava sua realização uma arte, mas agora os maiores artistas eram cientistas. A ciência tornou-se tão excitante, tão nova, tão completamente insuperável que desafiou toda a mente criativa. Ela não tinha a menor dúvida de que se ele não fosse impedido, Jared se tornaria um grande cientista.
Se ele não fosse impedido! Mas ninguém poderia impedi-lo, exceto ela, ela mesma. De algum modo, ele havia entrado em sua vida quando ela necessitava de adoração e ele a havia adorado. O que faz uma mulher com a adoração de um homem? Poderá destruí-la com o seu próprio egoísmo... ou poderá usá-la para o seu desenvolvimento e crescimento.
Eu nunca o deixarei saber, ela pensou.
Mas saber, o que?
Ela não devia nunca deixá-lo saber que ela era simplesmente mulher. Nunca deveria rebaixar-se às diárias necessidades, se desejava conservá-lo. Não, mesmo que isso fosse egoísmo. Não devia haver nenhuma questão fora de harmonia. Ela devia sobrepor-se a si mesma. Devia concordar inteiramente em renunciar a ele enquanto o amava... justamente porque o amava,
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porque o amor, se verdadeiro, busca apenas a realização do ser amado e isto no mais alto plano.
Lentamente, dia após dia, ela progredia ofuscada para uma nova definição do amor, eliminando cada traço de egoísmo a fim de poder achar a mais pura satisfação. Lentamente, rejeitou até a solidão e não sentiu-se mais só, mas absorvida na sua busca porque a substância do amor está na sua essência. E durante toda essa busca ela não escreveu nem telefonou a Jared. Ela precisava estar só a fim de sobreviver à solidão. Quando ela não estivesse mais ansiosamente só, poderia encontrá-lo de novo, ou ele poderia encontrá-la.
Assim os dias passavam na silenciosa casa. Os dias passavam nos quais ela não falava com ninguém, exceto para responder à saudação de Henry, ou a ocasionais perguntas da esposa dele.
- Está tudo em ordem, Sra. Chardman?
- Sim, obrigada, Margaret.
- Gostaria de comer alguma coisa especial?
- Não, obrigada, o que você fizer... está tudo ótimo.
Os dias transformaram-se em semanas. A neve caía pesadamente agora e tornou-se permanente. O inverno crescia. Ela queria saber se devia voltar à sua própria casa, e não o soube. Edwin tinha desaparecido e ela vivia inteiramente na presença de Jared. Ele não estava muito longe do moço por quem ela havia se apaixonado. Lentamente, ela começou a vê-lo como o homem que seria um dia. Jared, o realizado, Jared, o criador, senhor de si mesmo, imaginativo, delicado, sem compromisso em sua criatividade. Ele se tornaria um dos maiores grandes homens de seu tempo, seus atos de criação de arte seriam muito mais que meras invenções. Como poderia ela conhecer suas grandezas?
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Quando o artista e o cientista se conciliassem nele ele seria esse grande homem.
- Agora eu a encontrei - disse Jared.
Ele anunciou-se ao chegar. Edith estava ao piano naquela manhã quando a campainha da porta tocou. Ela parou para ouvir, esperando por Henry ou Margaret para abrir a porta mas ninguém apareceu. Então, ela mesma abriu a porta e Jared estava ali na chuva. Três dias de chuva tinham lavado a última nevada.
- Esteve procurando por mim? - ela perguntou.
- Por toda a parte. Ninguém pôde me dizer onde você estava.
- Porque eu não disse a ninguém.
- Você quis se esconder de mim!
- Entre e saia da chuva.
Ela mantinha a porta aberta, ele sacudiu-se, entrou e tirou sua capa de chuva e o chapéu. Naquele momento, Henry apareceu, surpreso com o hóspede e apanhando ambos, chapéu e capa, olhou-os com olhos perscrutadores.
- Sim, Henry. O Sr. Barnow ficará aqui... por esta noite, Jared?
- Se você quiser, mas amanhã eu a levarei para casa.
Ela não respondeu a isso, mas conduziu-o à sala de estar. Ao abrir a porta, o vento tinha espalhado as páginas da música, e ele parando, apanhou-as e colocou-as na prateleira do piano. Depois sentou-se e olhoua direto nos olhos.
- Vou fazer o que você me disse para fazer - ele disse. - Vou casar com June Blaine.
Ela ouviu e fez que não ouviu. Em vez disso, ouvia o impacto de um repentino aguaceiro com ventania,
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que batia contra as janelas francesas, e ecoava sobre as pedras do terraço.
Não iremos embora amanhã - Edith murmurou.
Ele a fitava. - Você está bem, Edith?
Quando ela não respondeu, ele foi para junto dela e tomou seu rosto entre suas mãos. - Eu perguntei se você está bem. Edith?
- Ela olhou-o nos olhos. - Sim - respondeu lentamente.
Ele deixou-a então mas ficou parado, olhando-a.
- Você tem estado muito só, isso é que está errado. Ela afastou-o gentilmente. - Oh, não, estou muito feliz vivendo só. Aprendi como.
- Eu continuo apaixonado por você - ele disse com amargura.
- Não diga isso! - ela gritou.
- Mas eu quero dizer isso - ele insistiu. - Não há esperança, eu sei... mas é verdade, isso é tudo!
- Isso não é justo com June - ela disse.
- Ela sabe - disse Jared obstinado. - Eu não poderia desposá-la de outra forma. Entre você e eu, eu disse a ela, tudo deve ser o mesmo... para sempre.
Ele voltou-se, afastando-se dela; caminhou até a janela e ficou olhando para fora a tempestade. - Espero não estar tentando substituí-la por você!
Isso não podia ser suportado mais tempo. Edith resolveu não suportar. Num esforço mudou a atitude, demasiado tensa, demasiado acusadora com emoção.
- Impossível! - ela declarou - Nós somos duas mulheres inteiramente diferentes!
Em seu coração ela concordou. "Ela tem o seu lugar... mas eu tenho o meu!"
Mas não pronunciou as palavras em voz alta.
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A mudança de atitude continuava. Henry entrou nesse momento para anunciar o lanche e saber sobre o serviço de alimentação e drinques; o apetite de Jared era excelente, ela demonstrou discreto interesse em seus planos.
- Vocês se casarão logo, Jared?
- Depois que ela se diplomar no colégio em junho
- Ela é tão jovem! Sorte sua!
- Eu não a via há tempos.
- Ela é uma coisinha sensível.
- Eu não a desposaria de outra forma. Deixei bem claro para ela que tenho meu trabalho e que ele vem primeiro... sempre virá. Essa é a pena por desposar um dedicado cientista.
- Vai continuar nesse trabalho de reabilitação?
- Não. Não realmente. Vejo agora que isso é um lado do trabalho, um passatempo. Sempre trabalharei nisso ocasionalmente. Mas esse não é o meu trabalho verdadeiro.
Ele franziu as sombrancelhas e ela esperou. Ele começou de novo. - Eu não sei o que meu trabalho é. Remendar ossos quebrados... sim, é claro, mas não é isso. Algo em matemática. Eu amo a ordem, a elegância da matemática. Mas mesmo isso é um simples instrumento, um meio. Eu quero descobrir...
- O que? - ela o pressionou quando parou. Seus olhos estavam brilhantes. - Você vai rir...
mas essa é a única palavra que encaixa. Eu quero descobrir... o universo.
- Obrigada, Deus! - ela disse suavemente contendo a respiração.
Ele franziu as sobrancelhas de novo. - Por que agradece a Deus?
- Porque você pertence ao seu laboratório, Jared.
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Ela falou com tal decisão que ele largou a faca e o garfo.
- Como você sabe?
- Eu o conheço - ela disse. - Sei que você é um artista e um artista está sempre buscando revelação. Você não é somente um técnico. Você é um criador.
Seus olhos se encontraram, agora resolutos, os dele surpresos, os dela confiantes.
- Você sabe! - ele murmurou.
- É claro - ela disse suave. - E também o amo.
.•• Era verão de novo. Ela estava numa pequena igreja, esperando entre alguns estranhos para a marcha nupcial começar. Era o dia do casamento de Jared. Ela havia voltado para casa em março, as neves do inverno haviam derretido exceto sobre as montanhas. Ele não tinha se demorado muito, um dia e uma noite, mas ela não estava só quando ele partiu. Sabia o seu lugar agora na vida dele e seu dever era amá-lo como somente ela o poderia. Compreendia que a maior realização em sua própria vida, a maior sabedoria ela poderia aprender, a maior ela poderia encontrar em si mesma. Quanto mais completa se tornasse, sim, até a mais perfeita, a melhor, seu amor poderia ser-lhe útil. Ela devia ser para sempre a deusa permanente. E isso poderia apenas ser realizado se ela descobrisse seu próprio caminho para essa realização, separada de Jared. Mas qual era o caminho? Agora que tinha os anos pela frente, como encaminhá-lo para essa realização? Ela era a filha de seu pai na mente e no espírito e de sua mãe tinha herdado a carne. Ela devia, assim que o casamento terminasse, retirar-se e viver consigo mesma, sozinha.
Não havia tido tempo até agora, realmente nenhum tempo; a morte de Arnold; Edwin, seu amor e
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morte; Jared e o seu amor e o dela, isso estava apenas começando agora, esse caminho estava claro diante dela. Não havia tido nenhum tempo. Agora haveria, um tempo infinito, até o fim de sua vida. Ela não precisava apressar-se. Agora sabia que também devia procurar calma e firmemente, por sua própria realização, porque ela não estava completa, ela não podia ter lugar na realização de Jared.
O organista estava começando a tocar a introdução da música para casamento, música suave, de modo reverente e delicado. Perto dela as pessoas esperavam, suas faces meio risonhas como se recordassem cada uma, sua própria lembrança. A igreja era antiga, muito simples, quase uma igreja de campo. Aqui, June tinha sido batizada e pelo mesmo ministro, então jovem, que realizava a cerimônia. Ele entrou usando seus paramentos. A sua frente, caminhavam dois meninos, coristas, que carregavam velas acesas. Quando chegaram ao altar, os meninos acenderam as velas de ambos os lados, e tomaram seus lugares. A música suave aumentou. A porta ao lado da sacristia abriu-se e Jared entrou com seu padrinho, alguém que ela não havia conhecido, um amigo cientista, ele lhe dissera, um brilhante moço, trabalhando na ciência do espaço.
- Ele vive e respira um novo plano de existência - Jared dissera. - Ele faz o resto de nós parecer um bando de terráqueos num velho chapéu.
Ela lembrou-se dessas palavras, mas seus olhos estavam sobre Jared. Ele olhava distraído para a frente, quase distante. Como ela conhecia esse olhar, quantas vezes sua mãe tinha se queixado de seu pai.
- Raymond, você ouviu uma palavra do que eu disse?
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Às vezes, meio risonha, sua mãe dizia dele: - Eu não creio que ele tenha sequer ouvido a cerimônia do nosso casamento!
Ah, June devia aprender a compreender a divina abstração, da ausência cósmica! Uma vez, ela havia perguntado a uma jovem esposa, cujo jovem marido tinha viajado no espaço:
- Ele voltou o mesmo?
- Não o mesmo - a esposa respondera. - Nunca mais foi o mesmo.
Ah, mas June devia estar orgulhosa, não triste! E então, ainda pensando em June, a marcha nupcial elevou-se alegremente através do ar. O público levantou-se para olhar a bonita procissão, uma menininha num curto vestido cor de rosa caminhava pelo corredor, espalhando pétalas de rosas, atrás dela um delicado menino carregando uma almofada branca de cetim com as alianças, June caminhava ao lado de seu pai, sua mão com luva branca no braço dele, um homem alto, ainda bonito, um famoso homem do mundo, um grande homem em seu meio. Mas nenhum podia ser maior do que Jared. Essa era a sua vida.
Então, quase imediatamente estava terminada; a cerimônia chegou ao final.
- Não quero nenhum exagero - Jared tinha dito firmemente.
Não houve nenhum exagero. Os breves votos foram pronunciados, ele veio pelo corredor, cabeça erguida, e June agarrada ao braço dele, sorrindo bravamente. Um dardo de compaixão espetou seu coração. A jovem esposa! Poderia não ser fácil ser a esposa de Jared. Ela devia pensar, também, em June, porque June infeliz poderia ser um fardo que Jared não devia carregar.
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E todavia, ela disse a si mesma, nunca deveria interferir.
Riü por dentro de si mesma. Somente uma deusa poderia realizar tudo o que estava exigindo de si. Essa então, seria a sua primeira tarefa, fazer-se uma deusa, a primeira tarefa e a mais difícil. Ela devia manter-se afastada se queria realizar a monumental tarefa, a qual em si mesma devia ser perfeita.
Alguém, um jovem, um porteiro, veio para escoltá-la pelo corredor e ela caminhou para a porta e saiu da igreja para o seu carro que a estava esperando. Uma hora de solitária viagem e ela não estava só, uma hora de solitária viagem e ela estaria em casa novamente, e somente quando ela atravessou a porta lembrou-se que havia uma recepção em algum lugar, em algum lugar da casa de June, um bolo de casamento para ser cortado, de tudo havia esquecido, tão absorta em seu próprio mundo, como Jared no dele, mas agora tinha seus próprios sonhos.
Não eram para serem realizados nesta casa, nem em nenhuma outra na qual ela houvesse vivido! O conhecimento veio com a repentina convicção. Devia construir ela mesma a sua própria casa, no lugar que ela havia escolhido, tão às cegas, um lugar perto do mar. Os planos estavam onde os havia guardado há meses passados, numa gaveta em sua escrivaninha. Guardara-os, não sabendo se poderia em algum tempo terminá-los. Agora sabia.
Edith tirou o chapéu e atirou-o numa poltrona. Foi à biblioteca, e abriu a gaveta. Os planos estavam lá, como os deixara. Sentou-se e os estudou. Podia ver a casa como se já estivesse construída, solitária sobre o rochedo, de frente para o mar. A idéia em si era concreta.
Como Edwin dissera, a verdadeira idéia da imortalidade torna-se realidade. Agora a idéia da casa, de Jared, de si mesma, eram realidades.
Ela ouviu uma tosse na porta. Olhou e viu Weston esperando.
- Se me permite, madame, virá alguém aqui para jantar?
- Somente eu... eu mesma - ela disse.

 

 

                                                                  Pearl S. Buck

 

 

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