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Bauche era apenas um homem ao volante do automóvel, na noite de chuva gelada, atravessando para começar o formigueiro luminoso de Paris, depois as ruas dos subúrbios, e por fim entrando na auto-estrada, onde passavam outros carros entre dois feixes de água, e virou nos postes de sinalização, sem os ler, antes de se internar naquela floresta imensa, com os pinheiros em abóbada por cima da sua cabeça. Ele era o centro exaltado, doloroso, do mundo, e cada gota de água varrida pelo limpa-pára-brisas era um astro, a chuva oblonga que os faróis pareciam devorar era feita de milhões de estrelas, e os outros faróis, havia pouco ainda, na estrada principal, esses olhos glaucos que saíam do nada e nele se voltavam a precipitar num rugido, eram, como ele próprio, meteoros prosseguindo do infinito fora a sua corrida ofegante. Vira, no escuro, paredes, pequenos rectângulos luminosos, candeeiros suspensos e pessoas sentadas por baixo dos candeeiros; e tinha a impressão de tudo de súbito compreender, como sucede em sonhos ou quando se tem febre. Os coelhos tinham cruzado a estrada à sua frente e também isso ele compreendera, tudo se somava a tudo, tudo se misturava a tudo intimamente, e o ruído das rodas na terra molhada, o rugido ritmado do motor, o movimento implacável do limpa-pára-brisas que estremecia um instante antes de cada nova corrida. Mesmo o seu pulso, que ele ouvia, que tinha a certeza de ouvir como um som estranho, ocupava o seu lugar na sinfonia que o arrastava no seu crescendo vertiginoso.
.....
Abriam-se dois caminhos num cruzamento onde um poste de sinalização pálido estendia os seus braços. Mas, ao longo dos trilhos, eram sempre as mesmas árvores de troncos apertados uns contra os outros, com a escuridão entre eles, duas paredes de árvores e de noite no feixe luminoso, uma pista escorregadia que ele atravessava chapinhando nas poças sucessivas, e depois o crepitar da chuva, essas lágrimas que escorriam ziguezagueando pelos vidros.
Não sentiu o cheiro da borracha queimada e, de repente, como a sinfonia ia sem dúvida atingir um paroxismo insuportável, deteve-se por completo e em seu lugar ficou apenas a escuridão e o silêncio.
O motor parara de funcionar. Os faróis tinham-se apagado. Até o fraco clarão amigo do quadro de bordo se extinguira e o automóvel permanecia imóvel, inútil e desajeitado, inclinado na berma, junto a um talude.
Tudo o que restava de vivo no mundo era a chuva banal e monótona na capota da carroçaria.
Teve frio, deu-se conta de que estava com as mãos entorpecidas, procurou, tacteando, o sobretudo e não o encontrou, lembrando-se então de que se esquecera dele. Da algibeira tirou um cigarro e humedeceu com a ponta da língua os lábios secos. Não tinha fósforos. E não lhe passou logo pelo espírito que o acendedor eléctrico não podia estar a funcionar.
Durante um momento prolongado, ficou imóvel e vazio; a seguir, enterrou mais o chapéu na cabeça, levantou a gola do casaco e, com o cigarro por acender colado aos lábios, abriu a porta do carro, estendeu as pernas na escuridão e assentou os pés, após uma hesitação que sugeria repulsa, na lama do caminho.
Guiando-se por uma luz que de quando em quando avistava entre as árvores, não tardara a descobrir um prado inclinado numa encosta, uma quinta, sem dúvida, no fundo do vale. Mas continuara o seu caminho, agora ladeado pela floresta apenas de um dos lados, e deparara-se-lhe uma vasta clareira, casas baixas, chaminés fumegantes nos telhados, algumas janelas iluminadas, a sombra atarracada de uma igreja estranhamente encimada por um campanário tão esguio como ele se não lembrava de ter visto outro.
À sua frente, um novo poste de sinalização; uma vez mais, palavras escritas, mas estava demasiado escuro para ser capaz de as ler, demasiado escuro também para poder ver as horas no relógio. A meio de uma praça via-se uma casa com três janelas iluminadas, deixando ver, por trás dos vidros de duas delas, artigos de mercearia e reclames transparentes numa porta envidraçada.
Empurrou a porta. Uma campainha, pendurada acima do batente, fez-se ouvir. Logo depois, um gato veio esfregar-se-lhe nas pernas e ele ia perdendo o equilíbrio porque havia um degrau a descer. Uma única lâmpada, poeirenta, brilhava no tecto atravessado por traves negras e, de início -de tal modo a atmosfera se imobilizara à sua volta -, julgou que não houvesse ali ninguém.
Mas, no instante seguinte, descobria o rosto de uma mulher velha por trás dos grandes frascos de bombons que enchiam o balcão. A mulher velha olhava-o sem dizer palavra e depois olhava para o fundo da sala, onde havia quatro homens sentados em cadeiras de palha em torno de uma mesa cheia de copos e garrafas.
Os homens observavam-no. Dois cães de caça aninhados por baixo da mesa observavam-no também. Três dos homens envergavam casacos de caçador e perneiras de couro. O quarto, o mais velho e mais forte, tinha um avental azul por cima da camisa branca e das calças.
Por cima da lareira, onde alguns toros se iam consumindo, um despertador fazia ouvir o seu rápido tique-taque e os ponteiros marcavam nove e meia.
O homem não escolheu as primeiras palavras que articulou e que não lhe pareceram estranhas. Para as dizer, aproximara-se do balcão, com a mão estendida.
-Tem fósforos?
A velha não se mexeu e foi o homem de avental que se levantou, introduzindo-se atrás do balcão com o ar de quem queria colocar a mulher sob a protecção do seu corpo robusto.
-São fósforos o que você quer?
Ele disse que sim. Exibiu até um sorriso tímido, atirando fora o cigarro por acender que, entretanto, a chuva encharcara e tirando o maço da algibeira.
Sentiu a necessidade de acrescentar, como se se desculpasse:.,;
-O isqueiro do automóvel também deixou de funcionar.
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Deve ter sido algum curto-circuito.
O homem do avental, depois de uma olhadela endereçada aos seus companheiros, poisara em cima do balcão uma grande caixa desses fósforos com enxofre que se utilizam ainda no campo e que produzem uma primeira chamazinha azul.
-Acho que o melhor era beber alguma coisa também... Preciso de aquecer.
Tinha os dedos molhados tão entorpecidos que mal conseguia riscar o fósforo.
Ninguém lhe respondeu. Estavam à espera e sem lhe tirar os olhos de cima.
-Tem rum?
-Não. Só aguardente.
-Então, queria um copo.
Desta vez foi de esguelha que o taberneiro olhou os outros homens, dizendo à mulher:
-Vai. Vai sentar-te.
Ela trazia um xale de lã preta que cingiu mais aos ombros, ocupando depois o seu lugar numa cadeira de verga, do lado direito da lareira.
O marido tirou de uma prateleira um copo sem pé e uma garrafa que tinha na rolha uma espécie de longo bico de estanho.
O álcool, incolor como água, exalava um cheiro intenso; Bauche emborcou-o de um trago só, quase sufocou com o gole, mas arranjou ainda maneira de sorrir aos outros, como se os quisesse conquistar:
-Estou muito longe de Paris?
Os homens olhavam-se como se dissessem para consigo próprios que o instinto não os enganara.
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-Então, não sabe onde está?
-Tive uma avaria, a duzentos ou trezentos metros da aldeia.
Na floresta?
Um dos bebedores com perneiras de couro, e que tinha na cabeça um boné de guarda de caça, tossiu de modo intencional.
-Sim, na floresta.
-E não sabe o nome deste lugar?
-Estava escuro de mais para conseguir ler o poste.
-Não reconheceu a igreja? Não é desta região?
-Venho de Paris.
-Provavelmente, enganou-se na estrada, não?
-Talvez... Acho que sim.-'
-Para onde é que queria ir?
-Não sei. Para qualquer lado, tanto faz.
A qualidade do silêncio mudou bruscamente e um dos homens, enchendo o copo, perguntou lá do fundo:
-E o que é que tenciona fazer a estas horas?
Pelo caminho, Bauche preparara a resposta, mas sentia que as palavras que imaginara já não serviam.
-Suponho que não deve haver mecânico de automóveis na aldeia...
-Só a quinze quilómetros daqui.
-E não posso telefonar?
-Sim, se o telefone funcionar. Mas ninguém se dará ao trabalho de vir cá.
Bauche apontou para o seu copo com um gesto maquinal e o patrão serviu-o com a garrafa de bico de estanho. Voltou a beber tudo de um só trago e disse, depois,
pensativo:
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-Tenho de telefonar. Mas, primeiro, preciso de saber onde estou.
-Em Ingrannes.
-Em que região?
-Que floresta é que acha que atravessou?
-Não sei.
Houve um riso vindo, desta feita, da mesa do fundo e os três homens acotovelaram-se, cúmplices.
-A floresta de Orléans, nem mais nem menos! Está mais ou menos a meio caminho entre Pithiviers e Orléans, e a vila mais próxima é Vitry-aux-Loges.
Bauche via os frascos de bombons, latas de sardinhas e produtos de limpeza. A um canto havia um barril de petróleo com uma bomba por cima.
-Vou telefonar.
-Se é para o mecânico, o melhor é poupar o dinheiro da chamada. Tem a garagem fechada e não atende à noite.
Ele sentiu vontade de beber mais um copo, só mais um, que acabou por pedir timidamente, como se tivesse necessidade de amansar os outros; bebeu o copo em dois ou três goles e sorriu ao patrão:
-É boa.
Depois, em vez de poisar o copo no balcão coberto de um oleado castanho, estendeu-o de novo.
-Mais um?
-Está bem.
Pensando que era a ausência de sobretudo o que espantava os outros, explicou:
-Esqueci-me do casacão em Paris.
Era absurdo. Estava a meter os pés pelas mãos. Sentia calor de mais. Toda a metade do seu corpo que estivera
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exposta ao lume da lareira estava escaldante.
-Dá-me licença de telefonar?
Esperara que houvesse uma cabina, mas o velho telefone de parede encontrava-se atrás das suas costas, entre a lei, emoldurada, relativa ao consumo de bebidas e o anúncio de uma marca de cerveja.
-Ande com a manivela. Talvez tenha sorte e lhe respondam.
O gato estava ao colo da velha e um dos cães, que viera poisar o focinho no joelho dela, olhava o gato, farejando-o ruidosamente.
A manivela, ao girar, produzia um ruído esquisito que o fazia pensar em recordações longínquas. O auscultador era liso e gorduroso, muito pesado. Bauche acabou por ouvir uma voz, deformada como nos primeiros tempos do telefone, dizendo-lhe:
-Vitry. Escuto.
-Está lá? Mademoiselle... queria falar para Paris, por favor... Não sei o número, mas não deve ser difícil dar com ele. Queria falar para a Polícia Judiciária...
Estava de costas voltadas para os outros e não se atrevia a pensar nas reacções deles, sobretudo nas que em breve não poderiam deixar de ter. Por enquanto, não reparara ainda nas três espingardas encostadas a um canto da parede, nem nas cartucheiras poisadas numa das cadeiras da sala.
Ouviu alguns barulhos estranhos na linha e depois a voz respondeu-lhe:
-A linha está avariada.
; -E acha que a avaria vai ser por muito tempo?
-Deve ter caído uma árvore que partiu os fios. Antes
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de amanhã de manhã não está arranjada, com certeza. Com medo de que a menina desligasse, Bauche disse então muito depressa:
-Então ligue-me para o posto da polícia.
Foi ao pronunciar a palavrapolícia que se deu conta de que os quatro copos de aguardente tinham produzido o seu efeito -talvez por ter apanhado frio e por não ter jantado. Em todo o caso, sentia a língua entaramelada.
-Que posto da polícia? O de Vitry?
-Sim, como quiser.
-Um momento. Vou ligar.
Passou-se muito tempo. Ele ouviu-a falar com outras pessoas, mas sem ouvir as vozes destas; havia várias conversas, como que sobrepostas, e as pálpebras começavam-lhe a arder, o seu corpo, a pouco e pouco, punha-se a oscilar, e Bauche sabia o que tudo isso queria dizer, julgava ouvir uma voz familiar interrogando-o secamente:
-Estiveste a beber?
Perguntava-se agora porque bebera. Sentia ainda vontade de continuar a fazê-lo. Nas suas costas, toda a gente estava calada, ninguém se mexia, ouvia-se apenas o tiquetaque do relógio de parede e a respiração do cão, escandindo o silêncio.
-Está? Pode falar! O posto da polícia está a responder!
Bauche não ouvira nada e sentia-se como que apanhado em falta.
-Sim? É do posto da polícia?
-Sim. Daqui fala o cabo Rochain.
-Desculpe-me incomodá-lo, cabo. Estou aqui em...
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Viu-se obrigado a voltar-se para trás e a olhar a sala, porque não conseguia lembrar-se do nome do lugarejo...
-Aqui, em... Um momento...
-Ingrannes! -soprou-lhe o patrão. -Diga-lhe que está no café do Durieu. Ele sabe onde é.
Bauche repetiu docilmente:
-Em Ingrannes. Na loja de Durieu.
-Quem está ao telefone?
-O senhor não me conhece e eu queria que me viesse aqui buscar.
-Buscar quem? Não ouço! Não estou a perceber nada!
As sílabas, atravessando o espaço, ganhavam uma sonoridade que as deformava, como acontece em certas grutas.
-Buscar-me, a mim, Albert Bauche. Quero ser preso. Acabo de matar um homem em Paris. Não estou a querer escapar-me. Nunca pensei nisso. Antes pelo contrário.
-Um momento, por favor.
Bauche ouviu ao longe o eco de uma conversa.
-Ouve lá o que este me está a dizer. Parece que matou um tipo e quer entregar-se.
-Está lá? Importa-se de me repetir o que acabou de dizer ao cabo?
Ele repetiu, como se estivesse na escola, escolhendo as palavras. Alguém se mexera atrás dele e ele não se atrevia a virar-se para ver o que se passava.
-E como é que foi ter a Ingrannes?
-De automóvel.
-Num automóvel roubado?
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-Não, no meu.
-Tencionava passar a fronteira?
-Não. Vinha a andar. Tudo o que sentia era necessidade de andar.
A primeira voz, a do cabo Rochain, soprava ao ouvido do colega:
-Pergunta-lhe se está armado.
-Está armado?
-Eu...
Viu-se obrigado a reflectir para tentar lembrar-se do que fizera com o revólver.
-Não.
-Tem a certeza de não estar armado?
-Dou-lhe a minha palavra de honra.
-Bem. Fique então aí. Mas porque é que não pode vir você até cá com o seu carro?
-Porque tive uma avaria.
-Vou telefonar para Orléans a pedir instruções. Não saia daí. Espere lá! Durieu não está na loja?
-Sim, se é ele o patrão, está aqui.
-Então passe-lhe o telefone.= Bauche virou só meio corpo, mas tanto bastou para
ver o guarda de caça, sentado na borda da mesa, com a espingarda nos joelhos e o cano apontado para ele.
-Há alguém do posto da polícia que quer falar consigo, monsieur Durieu.
Sucedeu então algo de inesperado, algo que afectou profundamente Bauche. Estendia o auscultador de ebonite na direcção do patrão e o homem de avental hesitava em se aproximar do telefone. De início, Bauche equivocou-se quanto à atitude do dono da loja e julgou que este
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tinha medo, repetindo com o mesmo vago sorriso que tivera já por duas vezes e que não era o seu sorriso habitual:
-Ouviu o que eu disse. Não estou armado. Quero entregar-me.
Mas não era de medo que se tratava e, quando se deu conta disso, Bauche sentiu-se surpreendido. O que lia nos olhos do camponês era um sentimento que ainda não conhecia, de cuja existência nunca suspeitara.
Não era horror. Também não era repulsa.
Era pior.
Virou-se para os outros, procurou ver-lhes os olhos, com o auscultador sempre na mão e a voz do polícia a falar no vazio.
Compreendeu ou, antes, sentiu que havia de súbito entre ele e os outros uma barreira invisível, um vazio que nem ele nem eles eram capazes de atravessar.
-Não quer falar com ele?
Então, um pouco à maneira do que teria feito um homem contaminado pela peste, poisou o auscultador na mesinha do telefone e afastou-se dois passos, tendo o cuidado de não se aproximar da porta, de não esboçar o menor gesto equívoco, não fossem os outros disparar.
Após uma hesitação, o dono do estabelecimento pegou no auscultador entre dois dedos.
-Está? Daqui fala Louis.
Não se ouvia o que o cabo dizia do outro lado do fio, mas sentia-se vibrar a placa do aparelho.
-Sim... Sim... Fernand está aqui, sim... E mais dois... Sim... O que é?... Não sei. Talvez à volta de
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trinta anos... Sim... Quatro aguardentes... Não sei... Não me parece...
Bauche, que não despegara os olhos do patrão, verificava que o homem estava pálido. Dir-se-ia que se sentia doente.
-O melhor que tens a fazer é ires lá para cima e deitares-te -disse para a mulher, com uma voz afectuosa, depois de desligar.
Ela fez-lhe sinal para que se baixasse e segredou-lhe ao ouvido. Ele respondeu-lhe baixinho também, insistiu e ela lá acabou por se levantar, com o gato nos braços, dirigindo-se para uma porta por trás da qual havia umas escadas. O marido seguiu-a; quando voltou, continuava tão pálido como antes. Hesitou, quase pegou na garrafa de onde havia pouco servira a aguardente e acabou por encher um copo de vinho.
Sentia-se que não estava com disposição para beber, que alguma coisa o oprimia. Ficou por um instante de pé, atrás do balcão, mas não devia sentir-se à vontade nesse lugar, porque foi ter com os seus companheiros ao fundo da sala.
Bauche ficou também de pé, a olhá-los, sem se mexer. Estavam a falar dele. O guarda perguntara quase em voz alta:,
-O que é que o François disse?
Depois, tinham começado a sussurrar. Vendo que um dos cães se aproximava do desconhecido, o dono chamou-o e fê-lo deitar-se aos seus pés.
Bauche gostaria de sentar-se. Não tinha nenhuma cadeira ao seu alcance e receava assustar os outros se se mexesse. Gostaria também de beber mais alguma coisa. Ou de comer. De repente, imaginava que tinha fome ao
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ver as latas de sardinhas que tornavam a sua vontade de comer quase lancinante.
Percebia que não devia pedir-lhes nada. Que devia acima de tudo evitar pedir-lhes fosse o que fosse! Isso iria fazê-los sentirem-se revoltados: vê-lo levar à boca alguma coisa que comer; era como se bruscamente ele tivesse deixado de ser um homem. Uma outra vontade, igualmente natural, mas ainda mais impossível de satisfazer, atormentou-o durante os quarenta minutos que teve de esperar ali, fitando a cadeira que não estava a mais de dois metros e na qual teria repousado com tão grande alívio.
Os cães foram os primeiros a ouvir, arrebitando as orelhas. Depois, o ruído de um motor tornou-se perceptível, e foi aumentando até que os travões rangeram, uma porta bateu e dois polícias fardados apareceram à entrada fazendo tilintar a campainha, enquanto a humidade e o frio da noite penetravam na sala aquecida.
-O senhor é que é o homem do telefonema?
Depois, tudo se passou como num número de prestidigitação, dando a ideia de que a cena fora pacientemente ensaiada. Bauche sentiu as mãos de um dos polícias deslizarem-lhe ao longo do corpo, sem dúvida certificando-se de que ele estava desarmado. O outro, de pé à sua frente, apontava-lhe para os pulsos:
-Mostra as mãos!
No espaço de um relâmpago, as algemas fecharam-se. Não houvera por assim dizer transição. Primeiro, tinham-no tratado por senhor.
-O senhor é que é o homem do telefonema? Depois, o tratamento brutal, que nada tinha de familiar.
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-Mostra as mãos!
Os três homens voltaram a pôr as espingardas no canto da sala e sentia-se que um pouco da vida quotidiana voltava a instalar-se.
-Os teus documentos?
-No bolso de dentro do meu casaco.
Bauche parecia querer desculpar-se por as algemas o impedirem de ser ele próprio a tirar os papéis da algibeira.
O cabo sentou-se para examinar o conteúdo da carteira; pôs os óculos. Quando deu com o bilhete de identidade, e depois de o virar e revirar entre os dedos, encaminhou-se para o telefone e accionou a manivela.
-Orléans, por favor. Prioridade. Fala o cabo Rochain.
Disse um número, com os óculos a fazerem-lhe parecer maiores os olhos.
-Está lá? Brigada móvel de Orléans? Daqui fala o cabo Rochain, de Vitry-aux-Loges... Tudo resolvido. Vou ler o nome e a morada dele... Sim... Tenho aqui o bilhete de identidade na mão e parece-me que está como deve ser... Podem tomar nota? Albert Bauche... B de Bernard... A de aeroplano... U de Ursule... C... Sim... H de Henri... E de Ernest... Não... Casado... 67 bis, Quai d' Auteuil, em Paris...
Bauche, que teria gostado muito de acender um cigarro, não se atrevia a pedir que o ajudassem a tirar o maço da algibeira. O segundo polícia estava entretido a falar em voz baixa com o dono da loja e com os outros homens, tendo aceitado um copo de vinho.
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-Um momento. Vou perguntar-lhe. O cabo virou-se para Bauche.
-Quem é que mataste? Onde? Quando?>
-Ele chamava-se Serge Nicolas... Foi há muito pouco tempo... Deviam ser seis e meia... Não, deve ter sido mais perto das seis...
-Onde?
-No apartamento dele, na Rue Daru... Perto da Étoile...
-Está, sim? Aqui têm as informações que ele me deu...
Repetiu o nome, a morada; ficou de novo a ouvir o que lhe diziam do outro lado; depois perguntou:
-Com que é que o mataste?
-Um revólver. O cabo repetiurevólver e ficou à escuta.
-Houve testemunhas?
-Não. Falou, em seguida, para o aparelho:
-Não houve testemunhas. O jogo continuava, sempre igual.
-Ele morreu?
-Acho que sim... Sim... Morreu com toda a certeza...
-Sim! Ele acha que sim. Diz que o outro morreu tem a certeza. O quê?... Bom! Então, vamos começar por ver o carro? Entendido. Não sei. Em todo o caso, mais de uma hora, principalmente se o carro estiver numa das estradas da floresta.
O cabo perguntou a Bauche:
-O carro está numa estrada da floresta?
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-Está.
Comunicou esse ponto ao seu interlocutor invisível e desligou; feito isso, tirou lentamente, gravemente, os óculos e deixou no mesmo instante de ter ar de funcionário para se parecer com um dos camponeses da localidade.
-Sabes ao certo onde é que o carro ficou?
-Acho que sim.
-E és capaz de nos indicar o caminho?
-É a estrada que vem da esquerda e que vai dar perto da igreja. A avaria foi ao pé de uma quinta que fica ao fundo de um prado inclinado.
-É o prado de Charasseau -disse o guarda.
O patrão estendia um copo de vinho que o cabo se decidiu a aceitar e a beber de um trago.
-Marchar!
Bauche continuara a não declarar que tinha fome, que estava com sede. Fizeram-no sair à frente, com os dois homens de farda atrás, enquanto os outros, depois de a porta se fechar de novo, voltavam para os seus lugares em torno da mesa. Talvez a velha não tivesse chegado a deitar-se e descesse agora, com o gato nos braços, sentando-se outra vez no cadeirão de verga.
Enquanto se encaminhava para o carro que os esperava lá fora, Bauche também não se atreveu a falar da outra necessidade que o afligia.
Empurraram-no para o banco de trás. Os dois polícias sentaram-se no da frente. Continuava a chover, mas agora era uma chuva diferente. A obscuridade também ja não era a mesma -nem as árvores que os faróis faziam sair da noite em fileiras apertadas.
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-Ele fica à nossa espera?
-Fica. Está de serviço esta noite. Deve estar a contactar com Paris.
Quando o abandonara, Bauche não tivera a impressão de deixar o carro tão inclinado na berma. O automóvel não parecia agora, à margem do caminho, mais do que uma carcaça inútil, bizarra. O cabo saíra e aproximava-se, à luz dos faróis, com uma circunspecção ridícula,] anotando lentamente o número de matrícula antes de abrir o carro.
-Dá-me licença, só um instante? -perguntou Bauche ao polícia que ficara com ele.
-Licença de quê?
-Uma necessidade...! Julgara que se tratava apenas do número um, como
costumava dizer em criança. Mas, chegado à beira da estrada, debaixo da chuva, com o polícia a dois passos e cujas baforadas de cachimbo ele aspirava sem querer,! viu-se obrigado a acrescentar, humilhado:?
-Desculpe... Não terminara ainda quando voltou o cabo Rochain,
que o olhou da cabeça aos pés como se olha para um animal, ocupando depois o seu lugar ao volante.
Bauche estava transido de frio. As ervas altas tinham" -lhe encharcado as calças e ele sentia-se sujo. Repetiu:
-Desculpe.
O segundo polícia bateu com a porta do carro depois de ele entrar e sentou-se ao lado do seu colega, que fazia uma manobra difícil, saindo da estrada e quase roçando as árvores, para contornar o automóvel abandonado. "%
Os dois homens do banco da frente iam a fumar.
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Tinham ombros magros e as fardas cheiravam a lã molhada, enquanto o hálito tresandava a vinho.
-Passas por Vitry?
-Não. Vou cortar já no canal. Porquê?
-Por nada. Se fosses por lá, eu deixava recado à minha mulher, de fugida...
E o polícia concluiu:
-Bom, não tem importância.
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Não era dele que falavam, não se preocupavam com saber se ele os ouvia. Dir-se-ia que já não pertencia ao número dos homens, agora que, com os seus círculos de aço à volta dos punhos, o tinham lançado de qualquer maneira para o fundo do carro de onde os bancos da frente o impediam de sair.
Nem uma só vez, ao longo do trajecto de Ingrannes até Orléans, aludiram à presença dele. Iam os dois a fumar, um cigarros, o outro um grande cachimbo de cheiro acre, e debitavam frases, cada um por seu turno, sem pressa, sem responderem imediatamente um ao outro, falando de pessoas que designavam pelo nome próprio, como cunhadas que se visitam aos domingos à tarde.
-O que é que ele respondeu?
-Disse-lhe assim mesmo que, se ele não conhecesse o Arthur tão bem como conhecia, aquilo podia ter acabado mal e que o melhor que Jeanne podia fazer agora era calar-se.
-E o velho?
-O mais engraçado é que esse não tugiu nem mugiu. Aquilo calou-lhe a boca, estás a perceber?
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Os personagens sobrepunham-se, as histórias desfiavam-se preguiçosamente e seria preciso dispor de alguma chave para saber de que estavam os dois a falar; por fim, as palavras passaram a chegar aos ouvidos de Bauche sem lhe evocarem qualquer imagem, como palavras de uma língua estrangeira.
-Falaste disso ao chefe?
-Hei-de falar se o juiz achar que tem de ser.
-A propósito do chefe, o barbas sempre te disse o que lhe aconteceu na feira?
Diziam todas estas coisas com satisfação e importância, sublinhando por vezes certa frase com um riso de troça cheio de astúcia.
Bauche já não sentia vontade de os ouvir, aquilo fazia-lhe mal. Talvez mais intensamente ainda do que antes! na loja do taberneiro, tinha a impressão de que o expulsavam do mundo. Depois, quando a estrada a pouco e pouco se transformou numa rua, onde se viam ainda velhos carris de eléctrico entre as pedras molhadas da calçada e alguns candeeiros espaçados, houve o autocarro que passou mesmo] junto a eles. Os rostos, nas janelas iluminadas, eram como figuras de um quadro. Numa das molduras, Bauche viu uma mulher ainda jovem, de face pálida por baixo de um chapéu azul, com um bebé adormecido apertado] ao peito e que franziu as sobrancelhas ao ver os dois polícias, debruçando-se, com a testa colada ao vidro, e tentando distinguir o que haveria no fundo do carro.
Mais adiante, o cinema despertou-lhe a imaginação. Um quadrado de luzes cruas, inesperadas, na obscuridade de uma rua, e pessoas que saíam em rebanho,
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arrastando os pés, levantando as golas dos sobretudos, abrindo os guarda-chuvas. Num cartaz colorido, uma mulher arregaçava a saia à altura das coxas.
Passaram numa rua deserta, depois noutra onde ressoavam os passos de um único transeunte, um homem que voltava para casa, viraram uma vez mais e o automóvel deteve-se à frente de um edifício desagradável, do qual apenas duas ou três janelas estavam iluminadas. Fizeram-no sair do carro, atravessar o passeio; e só uma vez o cabo o empurrou um pouco, como que por inadvertência.
-Sobe!
Porque trocavam os dois aquele olhar, fazendo-o passar à frente de ambos? A escada estava cheia de pó e mal iluminada. O cheiro era o cheiro característico de um edifício público. No primeiro andar, o cabo Rochain impeliu diante de si uma porta com o ar de quem está quase como em sua casa, atravessou um escritório deserto, bateu a uma segunda porta por baixo da qual se via luz. Não lhe gritaram que entrasse, mas, passado um momento, a porta abriu-se e a primeira coisa em que Bauche reparou foi numa mulher de lábios pintados, com o peito cingido num corpete de seda, a fumar um cigarro e parecida com a mulher do cartaz. Havia também um homem, o homem que acabava de abrir a porta, já de alguma idade, baço, ar pouco asseado, cansado como é costume nas pessoas habituadas a trabalhar de noite. Bauche e os seus guardas entraram num gabinete que parecia exactamente o escritório de uma pequena empresa banal, não excessivamente próspera, com uma velha máquina de escrever a um canto e cheio de fumo à volta
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do candeeiro. A mulher não se ia embora. À primeira ] vista, notara as algemas, sem surpresa, e examinara Bauche de alto a baixo, com um leve sorriso, soprando na sua direcção o fumo do cigarro.
O inspector tinha-o também examinado, não era essa a sua impressão. Desinteressara-se com certeza dele propositadamente, afectando o ar de quem está habituado a tudo e já com nada se espanta.
O calor da sala após o frio do exterior fazia com que o sangue afluísse à cabeça do preso e, de repente, ele teve a impressão de tresandar a álcool, de ter os olhos demasiado brilhantes, como se estivesse bêbado.
-Chegue aqui um instante. Não era a ele que se dirigiam assim, mas ao cabo.
O inspector arrastava-o para a primeira sala, a sala que não estava iluminada, e, após uma hesitação, o outro polícia seguia-os. De começo, não fecharam a porta e falaram a meia-voz. Um deles devia ter a mão no fecho porque o batente movia-se, aproximando-se cada vez mais da ombreira, até que, por fim, a porta se fechou por completo. A mulher estava sentada, com as pernas traçadas, ela olhava para Bauche com um interesse divertido, continuando a soprar com ostentação o fumo do seu cigarro.
-Queres um? Ele sentiu-se tão surpreendido, tão emocionado, que
não se atreveu a dizer que sim. A mulher tinha um casaco de gola de pele, aberto, por cima de um corpete de] seda que a ponta dos seios parecia querer trespassar. Cheirava a pó de arroz, a perfumes intensos. Cheirava também a carne de prazer, a fêmea vulgar e forte, e a voz tinha um tom rouco.
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-Calculo que isso quer dizer que sim. Nestas alturas, tem-se sempre vontade de fumar um cigarro. Até me admira que não te tenham dado um. É costume. É verdade que são polícias de esquadra...
Tirou um cigarro da mala, acendeu-o no seu e, erguendo-se com um suspiro, como se o gesto exigisse um grande esforço, foi enfiá-lo entre os lábios de Bauche. Havia dois semicírculos cor de púrpura no papel do cigarro, com um sabor açucarado.
-O que é que fizeste? Aposto que andaste a mexer na caixa do teu banco?
Bauche não lhe queria mal por ela o confundir com um empregado. Se não respondeu imediatamente foi porque tinha medo de a ver comportar-se como os outros.
-Se calhar roubaste algum automóvel?
A mulher mudara de sítio e, com as coxas encostadas ao tampo da secretária, olhava-o com uma espécie de simpatia condescendente.
Seguindo-lhe o olhar, Bauche viu as próprias calças enlameadas, os sapatos recobertos de argila.
-Foi na floresta -disse ele, como se respondesse a uma pergunta.
-Estavas a tentar pirar-te?;
-Não.
Dava-se conta de que fitava os seios da mulher com alguma insistência. Era mais forte do que ele e fazia-o corar. Os seios eram tão volumosos como os de Anais, provavelmente com a mesma consistência, e a sua interlocutora devia ter as mesmas coxas amplas e carnudas, provavelmente os mesmos gestos obscenos também.
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Para acabar com a história, Bauche disse:
-Matei um homem. Ela ficou imóvel por um instante e exclamou:
-Ah! Depois deixou de olhar para ele. Esperou mais um
longo momento antes de mudar de atitude, voltou-se para esmagar a ponta do cigarro no cinzeiro que estava em cima do tampo da secretária e finalmente pôs-se a andar de um lado para o outro nos seus saltos muito altos, evitando virar-se para ele. Por duas ou três vezes, ao chegar junto à porta, hesitou e talvez tivesse acabado por se impacientar e chamar alguém se o fecho não tivesse girado. O batente entreabriu-se e ouviram-se vozes de pessoas que se despediam, os passos dos polícias dirigindo-se para as escadas.
-Ainda aí estás, tu! -disse o inspector, que parecia preocupado. -Vou já dar-te os teus papéis. Mas lembra-te do que te disse.
-Não tenha medo!O inspector sentou-se à sua mesa, escreveu algumas
linhas numa folha de papel timbrado, procurou entre vários carimbos de borracha e aplicou um deles junto a sua assinatura. Havia alguma coisa entre aqueles dois -pelo menos era muito provável que sim. Sentia-se que o homem tinha vontade de a acompanhar até à sala vizinha e que também ela contava com isso, porque sorria de uma maneira estranha seguindo o que o outro fazia gesto a gesto.
O inspector estendeu-lhe a folha, pegou num cartão de identidade que estava em cima da secretária.
-E agora?
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-Agora podes ir-te embora.
-E é tudo?
-É tudo.
Para os dois, as palavras tinham igualmente um sentido particular que ambos compreendiam.
Fechada a porta, o inspector pegou num lápis, afiou-lhe o bico, virou-se finalmente para Bauche e fitou-o por um bom momento com uma espécie de cólera fria no fundo dos olhos.
Não devia ter mais de cinquenta anos, mas estava mal arranjado, tinha um ar doente e isso fazia-o parecer mais velho.
-Então, lá acabaste por ter vontade de te entregares?
-Nunca tive a intenção de fugir.
-Não tinhas a intenção de fugir, mas tiveste uma avaria no carro na floresta de Orléans!
Não era assim que as coisas deviam ter-se passado, e Bauche sentia-se tão desorientado como um actor que se visse de súbito no meio de uma peça diferente da que estava a representar. Tinha a testa a arder. As orelhas estavam escarlates. Fazia um esforço, na esperança de, mesmo assim, conseguir explicar o que tinha para explicar.
-Senta-te. Estás bêbado?
O inspector dera-se certamente conta de que Bauche vacilava ligeiramente nas pernas, como havia pouco lhe acontecera já na taberna de Ingrannes.
-Não.
-Compreendes o que te estou a dizer? "-Sim. Acho que sim.
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-E amanhã não vais afirmar que te arrancaram confissão sob tortura?
-Não. Prometo que não. O inspector, pelo seu lado, parecia também pouco à
vontade, como se alguma coisa não batesse certo.
-Quantas pancadas lhe deste?
-Não sei.
-Estou a falar das pancadas com o atiçador.
-Não as contei. Continuava a vê-lo mexer-se...
-Confessas que os olhos dele ainda mexiam enquanto lhe davas com o atiçador?
-Sim. Ele estava a olhar para mim.
-Falou?
-Não podia ter falado.
-Porquê?
-Porque a bala lhe tinha arrancado uma parte do maxilar e a parte de baixo da cara dele era só um buraco Foi por isso que...
-Foi por causa disso que lhe deste vinte e dois golpes com o atiçador?
-Era uma coisa horrível de se ver. Não queria que ele sofresse.
-E para evitar que ele sofresse atiraste-te a ele dessa maneira?
-O revólver encravou depois do primeiro tiro. Acho que deve ter sido isso. Ou talvez só tivesse uma bala. Não era meu. Estava na mesinha de cabeceira quando cheguei.
-E depois?
-Depois, o quê?
-Depois das pancadas com o atiçador?
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-Tive medo de que ele não estivesse bem morto.
-E pegaste numa estatueta de bronze para lhe rebentares com o crânio?
-Lamento muito.
-Como?
-Estou a dizer que me desculpe, lamento muito. Não o podia deixar vivo daquela maneira. Apesar de tudo, era tarde demais.
-Em resumo, querias ter a certeza de que ele estava bem morto.
-Queria que ele parasse de se mexer e de olhar para mim. A minha ideia era ir logo a seguir entregar-me à polícia.
-A tua ideia quando? A tua ideia já antes?
-Sim.
-Antes de chegares a casa dele? É isso que estás a dizer? Admites que já te decidiras a matá-lo?
-Não foi bem assim. Deixe-me ver se sou capaz de lhe explicar...
-Um momento.
Estava muito calor na sala e o inspector tirou o casaco, instalou-se em mangas de camisa diante da máquina de escrever, introduziu uma folha de químico entre duas folhas de papel.
-Vamos voltar ao princípio. Responde só ao que eu te perguntar e não fales depressa de mais. Temos tempo.
-Sim.
O inspector escrevia devagar, servindo-se apenas de dois dedos, e, no final de cada linha, havia um breve tilintar, seguido pelo estalido do rolo da máquina.
O homem repetia, quase pela mesma ordem que antes
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quase palavra por palavra, as perguntas que já fizera; e escrevia-as antes de ouvir a resposta que Bauche tentava reconstituir com exactidão.
-Portanto, querias ter a certeza de que ele estava] mesmo morto.
-Sim.
-Disseste há bocadinho:Queria que ele parasse de se mexer. E acrescentaste que a tua ideia era ir logo a seguir à polícia entregares-te.
-Exactamente.
-Perguntei-te se essa ideia já te tinha vindo antes.
-Já.
-Antes de quê? Silêncio.
-Antes de o matares?
-Sem dúvida.
-Então, sabias que ias matá-lo?
-Sabia que isso havia de acontecer.
-Mesmo antes de teres visto o revólver na mesinha de cabeceira? Mesmo antes de teres entrado no quarto?
-Se não fosse naquela altura, teria acabado por ser noutro dia.
-Com que revólver? Com o dele?
-Talvez. Ou então teria comprado outro. O taque-taque da máquina de escrever ressoava-lhe na cabeça e o olhar de Bauche seguia maquinalmente o movimento do rolo, a dança dos dedos no teclado.
Fez uma tentativa para retomar a sua narração pelo começo.
-Não é assim que...
-Um momento, por favor. Vou ler a tua última frase.
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Vê lá se foi mesmo isto que disseste:Talvez tivesse comprado outro. Bom! E agora responde à minha pergunta: desde quando tinhas vontade de o matar?
-Não sei.
-Oito dias? Um mês? Seis meses?
-Há vários meses.
-Via-lo todos os dias no escritório?
-Quase todos os dias.
-Almoçavas e jantavas com ele?
-Muitas vezes, sim.
-E nunca o ameaçaste?
-Não.
-Nunca lhe disseste nada que o pudesse fazer pensar que tinhas vontade de o matar?
-Nunca. Bauche tentou uma vez mais sair do túnel onde tinha a
impressão de que se esforçavam por encerrá-lo.
-Queria que conseguisse compreender...
-Já lá vamos. Primeiro, responde às minhas perguntas. Tens dívidas?
A palavra chocou-o. A ideia chocou-o. Aquilo não era para ali chamado.
-Responde.
-Sim. É claro. Tenho dívidas.
-Muitas?
-Isso depende do que se entenda por muitas.
-O que é que ganhas com a morte de Serge Nicolas?
-Mas não ganho nada! Como é que hei-de ganhar seja o que for se vou para a prisão?
-Imagina que não se sabia que o tinhas matado?
-Mas eu já tinha decidido que me ia entregar!
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-O que é que ganhavas?
-Nunca pensei nisso. Depende. :
-Depende de quê? ,
-Dos papéis.
-Dos papéis que vocês assinaram os dois?
-Sim. Mas, de qualquer modo, eu não queria dinheiro.
-O que é que querias então?
-Já não sei. Há bocadinho, acho que era capaz de lhe dizer. Sim. Acho que era capaz. Parecia-me coisa fácil. Mas, primeiro, houve a circunstância de ele não ter morrido imediatamente e de eu me ver obrigado, depois de o revólver deixar de funcionar, a bater-lhe com o atiçador.
-Vinte e dois golpes de atiçador pelo corpo todo e uma pancada com a estatueta de bronze no crânio!
-É possível. Já lhe expliquei porquê. O certo é que isso me transtornou. Não previa que as coisas se fossen passar assim. A minha ideia era telefonar do apartamento dele para chamar a polícia e ficar à espera de que me viessem prender. Como não aguentava vê-lo naquele estado, desci. Esqueci-me lá do sobretudo.
-Ninguém no prédio ouviu o tiro?
-Penso que não. Havia um cocktail-party no apartamento ao lado e lembro-me de que estava música a tocar, i Nas escadas, encontrei uma rapariga e afastei-me para a deixar passar. Quando cheguei ao passeio cá em baixo] vi o meu carro mesmo diante da porta. Não tinha pensado nisso. Já nem sequer me lembrava de ter um automóvel. Senti vontade de apanhar ar até ficar mais calmo, antes de ir à polícia. Tinha anoitecido. Subi a Avenida
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de Wagram e tencionava meter pelos Campos Elísios. mas, ao contornar a Étoile, enganei-me na avenida. Havia muito movimento de carros. Estava a chover. Dei por mim nas margens do Sena e atravessei uma ponte.
-Um momento. Não consigo acompanhar-te.Subi a Avenida de Wagram e tencionava... E depois?
Bauche repetiu tudo docilmente.
-Foi então que deixaste de ter vontade de te entregares?
-Estou a dizer-lhe que sempre pensei entregar-me. Não sou capaz de lhe explicar. Veja, as coisas não se passaram como está a pensar.
-Paraste para beber?
-Não. Isso não me passou pela cabeça.
-Não sentiste vontade de engolir qualquer coisa forte para te recompores?
-Não. Continuava com o carro. Via as luzes. Depois, virei num cruzamento sem dar por isso e vi-me no meio do campo, primeiro, e a seguir, na floresta. Pareceu-me tudo muito pouco tempo.
-Tinhas enchido o depósito da gasolina?
-Espere... Sim, tinha-o enchido esta manhã, antes de sair da garagem.
-Com a ideia de que ias precisar da gasolina para a tua fuga?
-Mas eu não queria fugir. A prova é que telefonei logo a seguir para o posto da polícia.
-Depois de teres perguntado se não haveria um mecânico nas redondezas.
-Porque preferia voltar a Paris pelos meus próprios meios.
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-Porquê? Não queria arriscar-se a irritar o inspector confessar-lhe a verdadeira razão. Antes de mais, tinha medo que lhe batessem. Depois, tinha a impressão de que as pessoas de Paris o tratariam de outra maneira, com mais inteligência do que os polícias da aldeia ou da província
Houve um silêncio e o inspector levantou-se para ir buscar os cigarros à secretária. Acendeu um e não lhe perguntou se também queria. Junto do maço de cigarros estava uma tablette de chocolate já encetada, facto quí lembrou a Bauche a sua fome e o fez pensar que talvez fosse o estômago vazio o que o estava a fazer vacilar. Ter-se-ia sentido melhor se abrissem a janela e deixassem entrar um pouco de ar fresco, mas não estava em situação de pedir favores.
Olhava para o chão, desencorajado, infeliz. O inspector estava a bater à máquina uma pergunta que ele tentava adivinhar e que o outro só leu no fim.-Porque é que o mataste? Então, Bauche ergueu os olhos e fitou o seu interlocutor com uma expressão de impotência.
-Recusas-te a responder?
-Não recuso.
-Tinhas uma razão para o matares?
-Com certeza que tinha.
-Que razão? Antes, Bauche sabia. Teria sido uma brincadeira para
ele responder àquilo, e a resposta teria sido uma espécie de requisitório convincente, declamado em tom de desafio. Pensara muitas vezes no que diriadepois, quando! de súbito, lhe acontecia, no escritório, na rua, na cama
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murmurar entre dentes:
-Vou matá-lo!
Nessas alturas, tinha um discurso perfeitamente a postos, um discurso que preparara a pouco e pouco, comprazendo-se em fazer-lhe acrescentos e retoques.
-Matei-o porque...
Não! Não era assim. Também não imaginara a taberna de Ingrannes com aqueles homens de quem ele não deixara de ser um semelhante, nem os dois guardas que pareciam conduzi-lo como a um animal para o matadouro, nem por fim o polícia de ar pouco saudável, que não conseguira, apesar da idade que tinha, mais do que o posto de inspector e que sentira, há bocadinho ainda, vontade de ir acariciar os rins de uma mulher fácil na sala ao lado.
Não previra a máquina de escrever, nem estas perguntas que não tinham para ele o menor sentido, mas que deviam ser temíveis na sua confusão deliberada, como peões que um jogador de xadrez move negligentemente no tabuleiro e acabam por configurar uma ratoeira.
Quando estava no carro, no seu carro, que conduzia sem se perguntar por onde, tudo era ainda claro, de uma claridade nova, espantosa, e se o tivessem interrogado nessa altura...
Mas não! Nessa altura, ninguém compreenderia a sua linguagem. Mesmo para ele, não passava já de uma recordação incoerente, atravessada por feixes de luz ofuscante, jorrando da escuridão para se desfazerem em gotas de chuva.
-Volto a fazer a mesma pergunta noutros termos. Porque é que fixaste há meses o projecto de matar Serge Nicolas?
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Bauche abriu a boca, voltando imediatamente a fechá-la. Também àquilo não era capaz de responder.
-Não respondes?
-Não.
-Diz-me então como é que há pouco tempo, ou sejaontem, porque já passa da meia-noite, te decidiste de repente a matá-lo. Se bem te estou a entender, antes tu não sabias quando é que isso se passaria, mas previas que um dia acabaria por acontecer. Ainda não tinhas tomado a tua decisão ontem, quando chegaste à Rue Daru, uma vez que não estavas armado e que ignoravas que o revólver de Serge Nicolas estaria em cima da mesinha de cabeceira. É exacto?
-É exacto.
-Portanto, foi a descoberta do revólver que te decidiu a agires imediatamente em vez de continuares à espera
-Não.
-Então, foi o quê?
-Não sei.
-Um momento. Talvez eu comece agora a perceber melhor as coisas. Não estarás por acaso a tentar passar por louco?
-Não sou louco.
-Estavas perfeitamente lúcido no momento em que disparaste?
-Estava.
-Davas-te conta de que ias matar um homem e que isso constitui um crime?
-Sim.
-Já não percebo nada outra vez. É tudo o que tens para me dizer?
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-Respondo o melhor que posso às suas perguntas. Se quiser, podemos continuar.-Mas não respondes à pergunta principal. Bauche repetiu, como já fizera anteriormente, com o mesmo ar de rapaz bem educado:
-Desculpe, lamento muito.
E acrescentou em voz baixa, desviando os olhos:
-Tenho muita fome.
Não se enganara acerca das reacções das pessoas, uma vez que aquele homem, apesar de dever estar habituado a situações como a sua, o fitou franzindo os sobrolhos, como que surpreendido, quase indignado de ver um ser como Bauche presa de uma necessidade tão natural.
-Então tens fome!
-Sim.
O inspector levantou-se, nervoso, passeou de um lado para o outro do gabinete e avistou depois a tablette de chocolate já encetada. Atirou-lha de longe, para os joelhos. Durante pelo menos dez minutos, sentado diante da sua secretária de trabalho, releu as páginas que escrevera, assinalando certas passagens com um risco de lápis e comparando essas passagens com notas que tomara antes, sem dúvida por ocasião dos seus contactos telefónicos com Paris.
-Poderei beber um pouquinho de água? -perguntou Bauche quando o inspector acabou.
O polícia foi buscá-la ao corredor, onde havia uma torneira, e, por causa das algemas a que não se habituara ainda, Bauche entornou nas calças metade do copo.
-Obrigado. Sinto-me envergonhado por lhe estar a dar tanto trabalho.
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O inspector virou-lhe as costas, encolhendo os ombros, e voltou a sentar-se diante da máquina de escrever. Parecia ter desistido. Conduzia agora, com um tom de voz neutro, um interrogatório puramente formal.
-Chamas-te Albert Bauche e, se as minhas informações são correctas, tens vinte e sete anos de idade.
-Sim, monsieur. Paris já realizara o seu inquérito e, pela primeira vez
Bauche disse para consigo que já deviam ter interrogado Fernande.
-Onde é que nasceste?
-Em Montpellier.
-O que é que o teu pai fazia?
-Era chefe de armazém numa drogaria grossista Depois, foi ferido na guerra e voltou sem um braço...
Aquilo não tinha interesse para o inspector.
-Ainda é vivo?
-Morreu há sete anos.
-E a tua mãe?
-Ainda é viva.
-Vive em Paris?
-Em Grau-du-Roi, no Gard. Foi aí que morá-mos quase sempre.
-Irmãos? Irmãs?
-Uma irmã, casada, que vive em Marselha.
-E tu também és casado?
-Há quatro anos.
-Casaste em Paris?
-Sim. Vim para Paris pouco depois da morte do meu pai.
-O que é que fazias antes de trabalhares com Sergi Nicolas?
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-Escrevia para os jornais. Desenrascava-me.
A campainha do telefone interrompeu-os, e o inspector trocou a máquina de escrever pelo seu lugar à secretária.
-Está lá? Sim... É o próprio... Sim, ele está aqui, está... Não, não sei como lhe hei-de dizer... Fiz o que me pediu... Não... Praticamente já acabei... Estava agora a pedir-lhe dados de identificação... Talvez o melhor seja, se tiver um momento, deixar-me ler-lhe o processo verbal do interrogatório...
Puxou as folhas para junto de si.
-Está a ouvir-me?... Cá está... Escrevi isto directamente à máquina e vai ser preciso passar tudo a limpo...
PERGUNTA -Estás bêbado?
RESPOSTA -Não.
PERGUNTA -Compreendes o que te estou a dizer?
RESPOSTA -Sim. Acho que sim.
Daí para a frente, o inspector contentou-se com ler, em vez das palavraspergunta eresposta, as letras P e R.
A leitura avançava, desfiada pela voz monótona como um demorado rosário, fazendo lembrar um pouco as frases que, havia pouco, os dois guardas trocavam no automóvel, e Bauche reconhecia as palavras de fugida, mas mal lhes entendia o sentido.
Estava tão desencorajado que isso já não o afectava, sentindo-se tentado a deixá-los fazer o que quisessem, a desistir de lhes responder, a desistir até do esforço que era ter de os ouvir.
-Foi tudo o que até agora pude obter dele. O tipo está calmo; parece que bebeu quatro aguardentes na
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taberna de Ingrannes, mas não tem ar de quem está bêbado. Enquanto o cabo que o trouxe lhe revistava o carro, na floresta, pediu para fazer as suas necessidades. Há um instante, comunicou-me que tinha fome e comeu um chocolate. É tudo. Como? Perdão, ignorava que ela estivesse no seu gabinete. Não falámos disso. Se quiser, eu pergunto-lhe. Não desligue.
E virou-se para Bauche:
-Desde quando é que a tua mulher era amante de Serge Nicolas?
-Não sei.
-Não sabias que ela era amante dele?
-Não foi isso que eu disse. Não sei desde quando. O inspector falou de novo para o bocal do aparelho
-Está lá, chefe?... Sim. Estava ao corrente do caso. Como?... Um segundo...
De novo, dirigindo-se a Bauche:
-Quando é que soubeste?
-Há muito tempo.
-Há vários meses?
-Sim.
-Há mais de um ano?
-Sim. Penso que sim.
-Estava ao corrente do caso há mais de um ano, chefe. A pergunta não pareceu interessá-lo... É possível... Julgo que terei tempo... Mas tenho de arranjar alguém para ficar a tomar conta disto... Dá-me licença? É só um momento.
Saiu rapidamente da sala e Bauche teve a surpresa de o ouvir descer as escadas a correr. Deixavam-no ali sozinho, com um telefone ligado, sem vigilância, como se
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tivessem a certeza de que ele não tentaria fugir. E a verdade é que nem sequer a tentação de se levantar da cadeira o assaltou. Fitava o receptor telefónico, do qual vinha um murmúrio de vozes distantes. O inspector estava já de regresso.
-Está lá? Lá em baixo só está Mazerel, que acaba de voltar ao serviço. Talvez seja melhor ir ele com o tipo, porque não está suficientemente a par das coisas para eu lhe entregar o serviço todo da noite... Entendido, chefe... Eu vou dizer-lhe. Ele entrega-lhe o rascunho do meu relatório, de que tirei cópia, e mais tarde eu mando-lhe pelo correio a versão final, amanhã de manhã.
Chegou ao patamar e gritou lá para baixo:
-Mazerel! Sobe, meu rapaz...
Ficaram os dois a falar durante cinco minutos na sala ao lado, e Bauche, para quem o pedaço de chocolate fora pouco, continuava com fome.
-Entra, para eu te dar o meu relatório.
Era um jovem que não devia ter ainda vinte e cinco anos, e trazia vestido um impermeável como o que Bauche usara durante os seus primeiros tempos de Paris, no tempo em que ainda não tinha posses que lhe permitissem adquirir um sobretudo. Lançou uma olhadela ao preso e pareceu espantado ao ver que ele tinha mais ou menos a sua idade.
-Ele não traz sobretudo?
-Entregaram-mo assim. Parece que se esqueceu dele no local do crime. Não me lembrei de perguntar ao comissário se era verdade.
-É verdade -afirmou Bauche, a quem não fora
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dirigida a palavra, como se quisesse persuadir o jovem polícia da sua boa-fé. E acrescentou:
-O meu chapéu está na cadeira, junto à porta. Enfiaram-lho na cabeça de qualquer maneira.
-Percebeste bem, rapaz?
-Percebi tudo perfeitamente. Não tenha medo. Não havia carro cá fora. Nem sequer se tinham dado
ao trabalho de chamar um táxi que os levasse à estação do caminho de ferro. As ruas estavam desertas, caía umas chuva miúda, os cafés estavam fechados.
Antes de sair do escritório, Mazerel fizera um gesto que se parecia tanto com os que se viam no cinema que Bauche se divertira ao vê-lo. Abrira com uma chave uma das duas algemas e, com toda a naturalidade, voltara a fechá-la à volta do seu próprio pulso, tendo os dois ficado, assim, presos um ao outro.
Por causa disso, no passeio, houvera um desacerto momentâneo. Como não andavam com o mesmo passo,] verificavam-se alguns encontrões, até que, ao fim de algum tempo, acertaram o andar um pelo outro, observando-se pelo canto do olho.
-Um cigarro? -ofereceu o jovem guarda ao dobrar de uma esquina.
E Bauche teve de levantar o braço para permitir a Mazerel levantar também o dele e acender dois cigarros.
Via-se um par, no passeio fronteiro, que se dirigia igualmente para a estação, visível já ao fundo da rua.
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O resto da noite passou-se quase todo num semi-sono doloroso, atravessado por algumas imagens nítidas que, por contraste, e justamente devido à sua exagerada nitidez, se tornavam também irreais. Por exemplo, a máquina de doces da estação, em Orléans. O bufete estava fechado. O restaurante também. Algumas pessoas vagueavam pela sala de espera, entre as quais se via o par que aparecera no passeio do outro lado, ao longo da rua principal. Bauche já não se preocupava com saber se estariam a olhar para ele ou se notariam que estava algemado. Embora o inspector e ele próprio estivessem presos um ao outro, ele era evidentemente o preso e ninguém se enganaria a esse respeito: a ausência de sobretudo, a gola do casaco levantada, as calças sujas e os sapatos enlameados eram outros tantos indícios reveladores.
Os viajantes, parecia-lhe, mantinham-se à distância e assumiam um ar desprendido, indiferente, como diante de um cão feroz que dá satisfação ver amarrado a uma corrente sólida e tranquilizadora.
A sua única preocupação, cada vez mais obsidiante,
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era a da fome que não só se lhe instalara no peito mas '. cuja ideia deitara também ferro no seu cérebro; e quando viu, a um canto da sala de espera, junto a um cartaz que representava a praia de Royan, uma máquina verde carregada de guloseimas, esse aparelho tornou-se para ele o centro do mundo
-Estou a pensar se aquela máquina funcionará ou não -conseguiu dizer por fim num tom desprendido, por respeito humano.
E Mazerel, indiferente, procurando com os olhos o chefe de estação com quem precisava de falar, comentara:
-Nunca funcionam.
-Importa-se muito que eu experimente? e Com a mão livre, tirou algumas moedas do bolso. Mas
não eram aquelas que a máquina aceitava. Paciente, o inspector trocou-lhas com dinheiro do seu próprio bolso.
Houve uma cena completa junto à máquina, que, de início, se recusava realmente a fornecer fosse que doce fosse. Em todo o caso, estava cheia. Viam-se as caixinhas, em pilhas de cores variadas, por trás dos vidros estreitos, e o inspector interessou-se pelo jogo. experimentou, por seu turno, uma moeda, primeiro com jeito, como que por astúcia, depois com força, esmurrando e sacudindo a máquina, até que, ao ver sair na gavetinha um chocolate pequeno num invólucro castanho, se mostrou tão contente como o seu preso; ambos se puseram então a carregar nos diversos botões, experimentando cada cor e cada paladar.
No final, Bauche chupou os doces conscienciosa) mente. Tinha mais de doze na algibeira.
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--Não quer um?
-Não, obrigado.
Não era por desprezo nem por repulsa que o inspector recusava. Era simplesmente por não gostar de doces. Bauche compreendeu-o.
Acabaram por descobrir o chefe de estação, ou o subchefe, na plataforma do cais e o comboio chegou quase logo a seguir. O chefe de estação foi explicar o caso ao responsável pelo comboio. O rápido vinha da fronteira Espanhola, já sujo, com carruagens-cama de janelas fechadas, passageiros que dormiam à luz azulada das lâmpadas fracas e tendiam a considerar-se em sua casa, resmungando quando a porta se entreabria. Na terceira classe havia outros viajantes que dormitavam, aos caídos, sobre as malas que impediam a passagem. Acabaram por lhes arranjar um compartimento vazio, de primeira classe, marcado com um letreiro deReservado. Mazerel fechou a porta, tirou a sua algema e voltou a prendê-la ao pulso de Bauche.
-Calculo que tenha vontade de dormir, não?
-Não sei bem. Devo ter, claro.
O inspector deixou-lhe um banco inteiro por conta e instalou-se num canto, desembaraçando-se do impermeável e tirando da algibeira uma brochura policopiada da qual mergulhou até Paris. Era um curso elementar de direito Criminal que tinha de estudar para um exame. Bauche dormia. Em todo o caso, aconteceu-lhe por diversas vezes perder a consciência e, quando abria os olhos, o olhar caía-lhe na brochura e nas pernas cruzadas do seu carcereiro. Comera todos os doces, cujos diferentes sabores se harmonizavam mal e o enjoavam. Mas talvez
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sentisse agora ainda mais fome. Já não sabia. Estava! extremamente fatigado, como não se lembrava de alguma vez ter estado na sua vida, e contudo acontecera' -lhe com frequência passar uma noite, ou mesmo duas, sem dormir. Durante um dos sonos, sonhou com a taberna, voltou a vê-la, muito maior em comprimento, tendo apenas, no primeiro plano, enorme, o patrão com o seu avental, enquanto os outros, ao fundo, se tornavam minúsculos em virtude da perspectiva. Passava-se alguma coisa com o telefone, algo penoso. Era uma questão de honra e ele esforçava-se por fazer o taberneiro compreender que, apesar de tudo, era um homem honesto.
Com os olhos fechados, ouviu as pessoas que iam e vinham no corredor, empurrando as bagagens para a saída a fim de descerem mais depressa quando chegassem. Aquilo significava que estavam a aproximar-se de Paris e foi então que, por causa do sonho, se lembrou da única coisa afinal importante do que decidira dizer.
Era um homem de bem, e Serge Nicolas, cujo verdadeiro nome era Schopkin, não passava de um crápula. Bem entendido, são sempre os crápulas que levam a melhor e nunca as pessoas de bem. A prova é que, se ontem tivesse cometido a imprudência de acusar Serge Nicolas, ninguém teria querido ouvi-lo. Na melhor das hipóteses troçariam dele. Na pior, Nicolas levá-lo-ia a tribunal por difamação e, provavelmente, ganharia o processo, agora a verdade estava do seu lado. Ele havia de mostrá-lo. Começara já a provar que assim era matando-o. Porque não se mata um homem sem motivo e ele não tinha o menor interesse pessoal naquela morte. Interesse
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nenhum. A não ser o de fazer justiça, pagando a sua própria liberdade como preço, e ninguém age desse modo quando não tem razão.
Algumas horas antes, era luminoso. Agora era-o de novo, embora um pouco menos, de forma um tanto mais vaga, o que se devia por certo à sua fadiga.
Pouco importava. Era no tribunal que contava falar como planeara. Não pensara que o tribunal não seria logo a seguir, que teria de passar por um longo período intermédio, por uma espécie de purgatório no qual seria entregue a gente como o taberneiro de Ingrannes, os dois guardas e o inspector de Orléans.
Em Paris já seria melhor. Sobretudo a partir do momento em que conseguisse falar com um juiz. Talvez este inspector que o acompanhava tivesse percebido alguma coisa, não teria? Não o tratara por tu, oferecera-lhe um cigarro. Não manifestava repugnância ao tocá-lo, apesar de terem os dois os pulsos ligados pelas mesmas algemas,
Infelizmente, Bauche não o interessava. Não lhe dera a menor oportunidade de dizer uma palavra e mergulhara no seu curso de Direito Criminal.
-Estamos a chegar.
O homem voltava a vestir o seu impermeável e a brincadeirazinha das algemas recomeçava. Aqui não estava a chover, mas havia nevoeiro e eles seguiram a multidão ao longo do cais. Mazerel apanhou um táxi.
-Quai des Orfèvres.
Bauche, que não reconhecera a gare de Austerlitz, esforçara-se apenas por tentar apurar se o bufete estaria ainda aberto.
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-Acha que seria possível arranjar-se alguma coisa para eu comer?
O inspector falou com o motorista, que fez um desvio ] pelo bairro do Boulevard Saint-Michel, acabando pordescobrir um barzinho ainda com luz. Mazerel passou algum dinheiro ao homem do táxi. Depois, ficaram à espêra e, quando regressou, o motorista tirou do bolso quatro ovos cozidos e um pãozinho.
-Era tudo o que havia.
Aquilo não devia ser verdadeira fome, porque, logo que levou o primeiro ovo à boca, Bauche sentiu um soluço. Mas, depois de ter insistido tanto e para não se dar ares de esquisito, forçou-se a acabar o ovo, comeu logo a seguir um segundo e teria devorado também os outros dois se o táxi, entretanto, não tivesse parado no Quai des Orfèvres. ! As escadas, os corredores estavam desertos. O moço de recados não estava no seu posto na antecâmara. O inspector, que se sentia em terreno pouco familiar, mas que não queria parecer impressionado, abriu duas ou três portas ao acaso e acabou por descobrir alguém num gabinete.
-O comissário Mauduit?
-Saiu, há cerca de uma hora, depois de ter despachado a mulher. Deixou-me as devidas instruções. É você que vem de Orléans?
Tratava-se de um subalterno qualquer que, para o seu trabalho nocturno, tirara o colarinho e a gravata.
-Ele não tentou armar em esperto? Vou entregar-lhe os papéis. Penso que terá um relatório para me deixar, não?
Se tivessem perguntado à queima-roupa a Bauche
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onde se encontrava, este talvez fosse incapaz de responder logo, de tanto sono que tinha. Os ovos cozidos tinham-lhe feito sede. Viu Mazerel ir-se embora com alguma apreensão, porque aquele inspector era pelo menos neutro, ao passo que o novo comparsa o olhava com um ar rancoroso.
-Anda cá. Por aqui! Depois, reconsiderando:
-Os atacadores! A gravata!
-Tenho de os tirar?
-Parece que sim. Esvazia os bolsos. Põe isso tudo em cima da mesa. -O homem esperava com mau humor. -Agora, atrás de mim, patife!
Ao chegar ao fim de um corredor, mandou o preso passar uma porta e, sem o prevenir, fechou-lha nas costas. Foi em vão que Bauche procurou, tacteando, um interruptor eléctrico. Tudo o que conseguiu descobrir foi uma cama de campanha onde primeiro tropeçou e depois resolveu estender-se. Então pôs-se a chorar, teve a impressão de não ter dormido e levantou-se de um pulo, aterrado, quando o abanaram pelos ombros.
Era dia. Um postigo, muito alto, fora do seu alcance, iluminava a divisão, de paredes cobertas de riscos e desenhos, onde ele se encontrava e que tinha por único mobiliário a cama de campanha.
Não era o homem que o fechara que estava agora à sua frente, mas um baixote gordo, um tanto vesgo e com mau hálito.
-Então foste tu que fizeste aquela matança! Bauche estava cansado de mais para protestar. Mais
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cansado ainda que na véspera, de corpo arrasado, boca
pastosa, uma dor lancinante na base do crânio.
-Que selvagem, que perfeito selvagem!
Qualquer pessoa compreenderia, sem dúvida, que a
acusação era ridícula, que, se se encarniçara contra a sua
vítima como realmente fizera, fora justamente por não
aguentar vê-la sofrer.
Em criança, não tinha ainda dez anos, acontecera a
mesma coisa com um gato. Bauche não estava sozinho.
Eram três miúdos a atirar pedras a um gato tinhoso e sem
dono, no qual a mãe o proibira de tocar.
Ora uma pedra maior ou mais bem atirada atingira o animal na cabeça de tal maneira que lhe arrancara literalmente um olho, ficando este pendurado, todo do lado de fora, como um enorme botão solto. Apesar de estar como estava, o gato tentava ainda fugir. Os dois companheiros de Bauche, impressionados, afastaram-se. Ele ficara sozinho, continuando a perseguir o animal e atirar-lhe pedras, sem parar, numa espécie de frenesim, na esperança de acabar com ele, e voltara para casa, quase doente, quando o gato conseguira escapar-se-lhe, enfiando-se por um respiradouro. Nunca mais vira o animal nem voltara a ouvir falar dele. Mas, passados dois anos, continuava a fazer um desvio a fim de evitar a casa do respiradouro por onde o gato se metera e de onde ele receava vê-lo reaparecer um dia.!
-Não precisas de ir à latrina?
Disse que não. Não voltara ainda por completo à vida.
-Então, vem comigo.
O longo corredor mostrava-se agora animado, com
portas que se abriam e fechavam, grupos que discutiam,
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pessoas que esperavam ou andavam de um lado para o outro, matando o tempo. Bauche contara com uma autorização para se lavar, talvez para se barbear e pentear, mas ninguém parecia dar-se conta do estado em que ele se encontrava.
O homem que o conduzia bateu a uma porta e anunciou:
-Aqui está ele, senhor comissário.
E Bauche deu consigo num novo gabinete, mais confortável, mais administrativo do que o de Orléans, com uma grande janela dando para o Sena. O tempo estava pardacento. Devia fazer frio lá fora, esse frio húmido que se agarra aos pés e entorpece as pontas dos dedos. O comissário estava de pé junto à janela e fumava um cigarro a olhar para ele.
Não devia ter mais de quarenta anos e vestia-se com uma elegância confortável; fazia pensar num médico, num advogado ou talvez num chefe de gabinete.
-Sente-se. Não o tratava por tu, este, mas a sua voz não tinha
sombra de cordialidade. Na secretária, um jornal da manhã desdobrado e em cuja primeira página se via uma fotografia que Bauche reconheceu. Uma fotografia sua, tirada havia um ano, em Deauville, em frente do Bar du Soleil, na companhia de Fernande e de Serge Nicolas. Fernande estava em fato de banho.
-Daqui a nada iremos até à Rue Daru, onde estará também o representante do Ministério Público. Li o processo verbal do interrogatório de Orléans. Se tiver alguma coisa a acrescentar, agradeço-lhe que o faça.
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-Sim, gostaria de dizer ainda alguma coisa, senhor
comissário.
-Bem! -disse o outro, que parecia não estar à espera daquilo, mostrando-se até como que ligeiramente
surpreendido.
Abriu uma porta, do outro lado da qual havia várias pessoas a conversar, e chamou:
-Neveu! Importa-se de chegar aqui e de trazer o seu, bloco?i
Um homem novo, muito louro, sentou-se numa das cadeiras com o bloco de estenografia nos joelhos e um lápis muito bem afiado na mão.
-Estou a ouvi-lo. Por duas vezes Bauche abriu a boca para a voltar a
fechar, não achando nada para dizer e não sabendo por
que ponta começar. Esteve quase a declarar:
-Sou um homem de bem. Mas compreendia que, se agora tivesse a desgraça de pronunciar uma frase do género, considerá-lo-iam um profanador.
-E então? Assim, sem descobrir mais nada, fez uma pergunta: '
-Já falou com a minha mulher, não é verdade? O que é que ela lhe disse?
-Será acareado com ela em devido tempo.Perdão? A palavra acareação confundia-o, pois que era de Fernande que se tratava, e Bauche acrescentou uma frase idiota de que se arrependeu no mesmo instante.
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-Ela está zangada comigo?
-Fará o favor de tomar nota de que é você quem levanta o problema. Deve ter tido tempo para reflectir desde ontem à noite. Quando é que Nicolas o ameaçou de lhe cortar os subsídios?
-Não estou a perceber o que me diz. Ele nunca me ameaçou.
-E também não lhe deu nunca a entender que você lhe estava a custar demasiado caro?
-Eu?
Mas, no preciso momento em que se preparava para protestar com veemência, virou a cabeça. Acabava de pensar na famosa frase, na frase tabu, que se esforçara por esquecer. Fora três meses antes. Estava um sol magnífico. Fazia calor. Bauche voltava do escritório antes da hora prevista e, ao atravessar a antecâmara dos Campos Elísios, dirigindo-se não para o seu gabinete mas para o de Serge, Annette, a secretária, anunciara-lhe:
-Monsieur Nicolas não está para ninguém. Encontra-se em reunião.
-Com quem?
-Com monsieur Ozil.
Aborrecia-o sempre um bocado ver os dois homens fecharem-se a sós daquela maneira, mas, encolhendo os ombros, abriu na mesma a porta à sua frente. O gabinete de Serge Nicolas, tal como o seu, era antecedido por um corredor que servia de entrada, passava-se depois uma segunda porta. Ora, por acaso, essa porta não estava fechada. Não o tinham ouvido entrar. E, no local onde estavam, não podiam vê-lo. Era um pouco depois da hora do almoço e o cheiro dos charutos que os dois homens estavam a fumar chegava-lhe às narinas.
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Não tivera realmente a intenção de se esconder para ouvir a conversa, mas compreendeu prontamente que era dele que estavam a falar.
Ozil, com o seu mau francês, dizia:
-Tudo isso está muito bem. Mas se ele se desse conta do papel que é obrigado a desempenhar?
Então foi a altura de Serge Nicolas responder, com a sua voz quente, à qual um leve sotaque conferia um carácter quase voluptuoso:
-Vamos, meu caro amigo! Bem sabe que não há qualquer perigo. Bauche é um imbecil pretensioso e fazemos tudo o que quisermos de gente assim. Pode contar comigo!
Bauche não revelara a sua presença, não ousara ficar ali mais tempo, saíra na ponta dos pés.
Era tudo. Proibira-se, em seguida, de pensar na frase que ouvira a Nicolas. E ela ficara enterrada, como um espinho, no mais recôndito da sua carne, enquanto Bauche aplicara toda a sua vontade à tentativa de a esquecer.
Continuara a ser o mesmo, tanto em relação a Nicolas como em relação a Ozil, com o qual, de resto, se dava pouco. Fernande também não suspeitara de nada. E Fernande, aliás, alguma vez se preocupara com o que ele pudesse pensar?
Durante três meses, Bauche desempenhara o seu papel de administrador da sociedade, elegante, impecável, almoçando e jantando nos restaurantes melhores, passando três ou quatro noites por semana em clubes nocturnos, muitas vezes na companhia de vedetas. Serge Nicolas dirigia-se-lhe sempre no mesmo tom i
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com uma maneira de pronunciarmeu caro que era seu exclusivo:
-Meu caro amigo! Ele tratava-o por Serge.
Porque é que, na véspera, o inspector de Orléans insistira tanto numa pergunta que lhe parecia secundária, no momento em que Bauche confessava o seu crime? Durante boa parte do interrogatório -a fase mais minuciosa, mais inquietante -andara à volta da mesma palavra:
-Quando?
Quando decidira ele matar Nicolas? E que respondera ele a essa pergunta? Semanas? Não. Dissera meses. E o outro chegara a perguntar-lhe quantos meses?
Ora, mais tarde, ao ouvir a conversa pelo telefone do inspector com Paris, Bauche julgara perceber que aquele género de perguntas haviam sido estipuladas pelo comissário.
Não era possível. Só podia ser uma coincidência.
Matara Serge, no dia anterior, às seis horas, e era incrível que eles já soubessem mais do que ele próprio acerca do assunto.
Existia, com efeito, uma explicação que lhe vinha à ideia, mas tratava-se de uma construção muito forçada. Annette, a secretária, teria podido, depois da reunião Ozil-Nicolas, contar a este último, sem atribuir importância de maior à sua comunicação:
-Foi ele que teimou em entrar. Eu preveni-o.
-Quem?
--Monsieur Bauche.
Ele entrou no meu gabinete?
Há um quarto de hora. Não o viu?
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Nicolas teria naturalmente ficado inquieto. E poderia ter falado a Fernande.
-Tens a certeza de que o teu marido não mudou desde há alguns dias?
-Não dei por nada. Porquê?
-É que ele deve ter surpreendido uma conversa que eu tive com Ozil, e em que disse que ele não passava de um imbecil pretensioso.
Bauche via-a a rir, com o riso que lhe enchia a garganta e lhe inchava os seios. Com que prazer ela não teria repetido aquelas palavras!
-Imbecil pretensioso? Foi isso que disseste? Oh, meu querido!
Mas não. Precisava de se sacudir, de pensar friamente e não como se sonhasse. Aquilo não se passara assim. Fernande falara de outra coisa ao comissário, de algo que lhe inspirava um desprezo frio por Bauche. Como é que ele acabara de dizer, com o ar de quem deixa as palavras escaparem-se-lhe negligentemente?
-Ele não tentou dar-lhe a entender que você lhe estava a custar demasiado caro?
Bauche olhava para o comissário, mostrando-se aturdido, inconsciente do tempo que ia passando, da estranheza do seu silêncio. E então o comissário falou:
-Quando um homem aceita determinada situação que é, pelo menos, humilhante, em vista de um benefício imediato, não pode esperar que o tratem depois com paninhos quentes. Sabe, monsieur Bauche (sublinhava o monsieur como até esse momento sublinhara a terceira pessoa, que, na boca dele, era o contrário de uma forma de tratamento respeitosa), sabe, monsieur Bauche, que
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desde há cerca de seis semanas a sua mulher deixou de ser amante de Serge Nicolas?
Era maquiavélico, e Bauche apercebia-se de que eles tinham todas as aparências a seu favor. O comissário estava de boa-fé. Toda a gente pensaria o mesmo que ele estava a pensar.
E, sem dúvida, por barbear, por pentear, sem gravata, com os sapatos sem atacadores, ele devia ter justamente o ar do miserável por quem o tomavam.
-Não me respondeu.
-Sim, eu sabia que havia alguma coisa entre eles.
-O que é que disse?
-Estou a exprimir-me mal, peço-lhe que me desculpe. Sabia que, desde há algum tempo, as coisas já não eram como antes.
-Tinham discutido?
-Penso que não. Mas Serge apaixonara-se.
-Por conseguinte, desejava pôr fim à ligação que tinha com a sua mulher?
Bauche acrescentou ainda, embora sem esperança de ser compreendido: Não era uma ligação.
-Não vai dizer-me que ele não era amante dela? >-Era-o, de facto, em certo sentido da palavra.
-Em que sentido?
-Ia para a cama com ela.
-Você estava a par disso? ! -Sim. Estava.
-E não fez nada para os impedir de continuarem?
-De que serviria fazer fosse o que fosse? Ela ia para a cama com toda a gente.
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-Gosta da sua mulher, monsieur Bauche?
Bauche ergueu lentamente a cabeça, porque precisava de que lhe vissem o rosto. Pouco lhe importava parecer ridículo. Era indispensável que se apercebessem bem da sua sinceridade.
-Sim, senhor comissário -disse ele martelando as
sílabas.
-Ainda gostava dela no momento em que matou o
seu rival?
-Não era meu rival.
-Eu sei. Você dava a sua autorização e até tirava
lucro da história.
-Não, senhor comissário. Fui nomeado administrador da CIF há dois anos e, nessa altura, Serge Nicolas não conhecia a minha mulher.
-Tem a certeza?
-A certeza absoluta.
-Foi ela que lhe disse?-"
-Fui eu quem os apresentou um ao outro, uma tarde, enquanto tomávamos um aperitivo num grande café dos Campos Elísios.
-E sabia o que se ia passar?
-Sabia que era provável que acontecesse, como aconteceu noutros casos. Podia perfeitamente ter sido com o barman, com o porteiro ou com a polícia de giro da esquina. Fernande não é responsável.
Bauche teve certa esperança neste momento, porque leu uma hesitação nos olhos do comissário, que se dirigiu à mesa de trabalho, abriu um dossier, folheou-o e procurou determinada passagem que leu baixinho.
-Você diz que foi há dois anos?
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-Faz exactamente dois anos em Dezembro. Foi poucos dias antes do Natal.
-A sua mulher afirma, pelo contrário, que nessa altura já conhecia há seis meses Serge Nicolas e que se encontrava mais ou menos regularmente com ele, primeiro num hotel da Rue de Berry, e mais tarde no apartamento da Rue Daru.
Bauche permaneceu calmo, desta feita, demasiado calmo, e inquiriu num tom de voz neutro:
-Ela disse isso?
-Sim. E assinou o depoimento.
-Acrescentou que eu também sabia?
-É, pelo menos, o que decorre da declaração que prestou. Vou ler-lhe a passagem em causa.
-Sabia (é a sua mulher que fala) que Albert nunca havia de fazer nada de jeito e estava farta daquilo, principalmente porque quando se sentia desencorajado era a mim que ele culpava pelos seus fracassos. É um rapaz terrivelmente orgulhoso, susceptível, que acha que tudo lhe é devido e se indigna a todo o momento contra o destino.
PERGUNTA -Foi nessa altura, se bem a entendo, que você o pôs em contacto com Serge Nicolas, que era já seu amante?
RESPOSTA -Exactamente.
PERGUNTA -Serge Nicolas arranjou para ele um ugar muito bem pago na sua empresa de filmes?
RESPOSTA -Precisava de uma pessoa como ele.
PERGUNTA -O que é que quer dizer com isso?
RESPOSTA -Precisava de um nome, de preferência nome francês. Por certas razões que não me dizem
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respeito, ele não podia tratar dos negócios em seu próprio nome.PERGUNTA -As razões eram falências repetidas e cheques sem cobertura. Continue.-RESPOSTA -É tudo. O meu marido conseguiu o que queria e deixou-nos em paz.
O comissário olhou para ele com curiosidade.
-Desmente as afirmações da sua mulher?
-Ignorava que ela já o conhecesse.
-Em que circunstâncias conheceu você Serge Nicolas?
Não seria melhor desistir imediatamente de uma partida de antemão perdida, deixando-os dizer o que quisessem? Tudo estava contra ele, até mesmo esse primeiro encontro com Serge Nicolas. Bauche escrevera um artigo recheado de considerações de ordem geral sobre o cinema, artigo de que se orgulhava e que conseguira publicar num semanário importante. Nessa altura viviam ainda no andar mobilado da Rue Bergère, onde não tinham telefone. Um dia, quando passou pelo jornal para receber o pagamento do artigo, entregaram-lhe um bilhete com um endereço dos Campos Elísios e o nome de monsieur Nicolas.
-Deve ser alguma coisa importante. Ele já ligou para aqui três vezes a saber se lhe tínhamos dado o recado.
Bauche telefonara e Serge Nicolas marcara-lhe um encontro num bar da Rue de Presbourg. Se contasse a história ao comissário, este perguntar-lhe-ia sem dúvida:-Como é que se reconheceram?
A verdade é que fora Serge Nicolas quem viera ao seu
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encontro, sedutor, desenvolto, tecendo os mais entusiásticos elogios ao artigo dele.
-Estou bem informado a seu respeito. Sabe, meu caro, que as pessoas o estimam muito e têm por si a maior consideração? (Serge Nicolas tinha um jeito próprio de articular, como se os sublinhasse, os adjectivos e os advérbios.) Toda a gente, ou quase toda a gente, me repetiu que você não estava no lugar que devia ser o seu, que o meu amigo não se sabe fazer valer e que lhe tem faltado oportunidade de mostrar aquilo de que é capaz. Depois acrescentara, erguendo o copo à altura dos olhos:-É essa oportunidade que eu lhe quero dar. Quantos whiskies tinham bebido nessa tarde? A hora do jantar tinha passado sem que nenhum deles pensasse em comer, e Bauche, triunfante, inchado, irrompera, quase a chorar de alegria, no andar da Rue Bergère, onde não encontrou ninguém. Fernande só apareceu passada uma hora. Sem dúvida, como ele adivinhava agora, ficara à espera do fim da sua entrevista com Serge num bar próximo ou em casa dele.
No entanto, dissera com a maior naturalidade depois de o ouvir:
-Tens de mo apresentar. É pena que seja um russo. Desconfio dos russos.
-Você não está a adiantar grande coisa! -observou o comissário. -Se fiz questão de esclarecer desde já estes pontos, foi para lhe evitar o trabalho e o ridículo de apresentar o seu acto como um crime passional, pois que talvez fosse essa a sua intenção.
-Nunca pensei sequer nisso.
-Nesse caso, não vejo qual possa ser a sua defesa.
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Bauche caíra tão baixo que sentiu a necessidade de dizer alguma coisa, de modo a reabilitar-se aos seus próprios olhos, embora correndo o risco de que se rissem dele ou se indignassem ao ouvi-lo.
Disse o que sempre se prometera dizer, mas num tom diferente do que previra e num estado de espírito muito diferente.
-Matei Serge Nicolas, senhor comissário, porque sou um homem de bem.
Não se riram dele. O comissário, uma vez mais, registou o dado, olhou-o com os olhos semicerrados, ao mesmo tempo surpreendidos e inquiridores, encolheu os ombros e foi buscar o chapéu e o sobretudo.
-Vemos isso daqui a nada. Agora temos de ir, estão à nossa espera.
Tinham acabado por dar-lhe uma chávena de café quase quente e um pãozinho com manteiga; mas ninguém se preocupara com a sua toilette. E contudo, viam-no bem. Sem dúvida era propositadamente que o deixavam assim, para que ele tivesse deveras o ar de um assassino, talvez para que as reacções da multidão o intimidassem.
O comissário e um outro polícia à paisana iam a seu lado no fundo do automóvel, e Bauche tinha de novo as algemas que lhe tinham tirado no início do interrogatório. Passaram pelos Campos Elísios e o comissário, ao mesmo tempo que ele, ergueu a cabeça para olhar o grande prédio onde ficavam os escritórios da CIF.
Depois, quase no mesmo instante, chegaram à Rue Daru, onde havia um ajuntamento de cerca de cinquenta pessoas à porta de casa, carros parados e fotógrafos que
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se precipitaram na direcção deles com os seus flashes.
Aquilo fazia-lhe doer os olhos. Deixavam os fotógrafos fazer o seu trabalho. Bauche via apenas roupas escuras, rostos; estava outra vez com frio nas mãos e nos pés e ouvia vozes ameaçadoras ou indignadas; havia também punhos fechados, mulheres que tentavam romper a barreira formada pelos guardas.
No momento em que transpunha o limiar, apanhou uma pedrada junto da orelha e levou maquinalmente a mão ao pescoço, o que lhe valeu, talvez por o seu gesto ter sido mal interpretado, uma vaga de invectivas.
Subiu os dois andares que subira e descera na véspera e lembrou-se do lugar onde se encostara à parede para deixar passar a rapariga. Lembrava-se também de, nessa altura, ter levado a mão ao chapéu, bem educado como sempre.
Estaria essa rapariga no meio da multidão daquela manhã? Tê-lo-ia reconhecido?
Havia muita gente à frente e atrás dele, no patamar e, por fim, no vestíbulo do apartamento, que, à luz pálida da manhã, parecia menos luxuoso, menos requintado do que parecera a Bauche sob o efeito da iluminação artificial. Reparou que havia dedadas numa tapeçaria e que o debrum de uma cortina estava destingido pelo sol.
Quase toda a gente fumava. Tinham-se formado grupos de pessoas que discutiam umas com as outras, mas todos os presentes, quando souberam que ele ali estava, se viraram para ele com a mesma curiosidade, e o que mais o impressionou foi o silêncio que se instalou de um momento para o outro.
Quase poderia dizer-se que foi esse silêncio que um
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fotógrafo apanhou no clarão da sua lâmpada de magnésio, de tal modo a imobilidade dos circunstantes era eloquente.
Estavam presentes o substituto do procurador, o escrivão, dois ou três outros funcionários do Ministério Público, o médico legista, especialistas dos serviços de identificação da Polícia Judiciária e alguns guardas, incluindo o comissário da esquadra do bairro; devia haver também alguns jornalistas, porque tinham deixado entrar um fotógrafo. A maior parte, dada a estação do ano, envergava grandes casacões escuros. Quase todos conservavam os chapéus na cabeça e alguns, o guarda-chuva na mão.(.
Era no salão, no estúdio, como dizia Serge, que se tinham reunido -uma sala recheada de livros e de fotografias, sobretudo fotografias de mulheres e de artistas, onde o que havia de mais impressionante era um desmesurado divã recoberto de pele de leopardo.
A cozinha, à direita, não era utilizada -excepto para preparar os cocktails -, porque Serge nunca comia em casa e fazia o café da manhã numa chaleira eléctrica que ficava ao lado da cama.
Quanto ao quarto de dormir, cuja porta se encontrava entreaberta, ocupava agora os técnicos dos serviços de
identificação.
O corpo ainda lá estaria? Bauche não podia sabê-lo. Logicamente, se não lhe tivessem mexido, ele veria pelo menos os pés descalços, porque, depois do tiro, Serge conseguira sair da cama ou, mais exactamente, sentar-se na beira da cama, local de onde caíra para o soalho.
O comissário reunira-se, junto a uma das janelas, ao
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juiz de instrução e ao substituto do procurador, e lá estavam os três a falar dele, lançando-lhe breves olhadelas, enquanto os outros retomavam as suas ocupações ou a sua espera e as pessoas que na rua queriam vê-lo sair batiam com os pés nas pedras do passeio.
Dos três homens que discutiam era o juiz o que examinava Bauche com mais atenção, como se quisesse avaliá-lo bem antes de tomar posse dele. Tratava-se de um homem com cerca de cinquenta anos, ruivo e de bigode, bem vestido, mas não em excesso, de aspecto sério, consciencioso.
De tempos a tempos, colocava uma pergunta ao comissário e via-se que era um homem que dava importância aos mínimos pormenores, sem se contentar com o mais ou menos.
-Se quiser! -parecia estar o comissário a dizer-lhe à guisa de conclusão.
E, aproximando-se do preso, que um inspector não deixara por um instante sequer de vigiar.
-Faça o favor de vir por aqui, monsieur Bauche.
Tinham mandado os homens dos serviços de identificação sair do quarto, para onde eram quatro apenas a encaminhar-se agora: o substituto do procurador, o juiz, o comissário e o assassino.
Quando se aproximavam da porta, houve um momento de hesitação:
Entre primeiro, monsieur Bauche.
Ele entrou, deu dois ou três passos para dar passagem aos outros, olhou no chão o lugar que fora ocupado pelo corpo, cujos contornos tinham sido, entretanto, desenhados a giz no soalho.
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Não estava impressionado. Sentia-se, porém, bastante acabrunhado e, sobretudo, a morrer de fadiga.
Virou-se para os seus acompanhantes como se lhes perguntasse o que queriam mais, e deu com o olhar do juiz fito nele, julgando detectar nesses olhos um sentimento de decepção.
Era pena. Não estava a fazer de propósito. Adivinhava que esperavam qualquer reacção da sua parte, mas Bauche era incapaz de representar essa comédia
Os seus olhos diziam ao juiz de boa vontade, que com certeza não o compreendeu:
-Desculpe. Lamento muito.
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davam-lhe tempo para olhar em redor e continuavam a observá-lo em silêncio, com uma atenção crescente, como se tivesse fatalmente que se passar alguma coisa e o momento se fosse aproximando. Quase só para lhes dar prazer, Bauche entregou-se, sem se mover, a uma espécie de inventário da divisão, fitando longamente a silhueta desenhada a giz no soalho, a seguir o atiçador que se encontrava apenas a alguns centímetros e, por fim, mais para os lados da porta, a estatueta de bronze que representava uma mulher nua e com o cabelo solto.
Que esperariam ainda dele? Deitou uma olhadela à cama, na qual ninguém parecia ter tocado. Os travesseiros estavam ainda uns por cima dos outros, comprimidos pelas costas de Serge Nicolas, que se encontrava a ler quando Bauche, na véspera, chegara. Quando se endireitara na cama e depois, ao cair por terra, arrastara consigo uma ponta do lençol, bem como um dos lados da coberta de seda amarela agora no chão, exibindo uma grande mancha castanha e que parecia ainda viscosa, com alguns salpicos à volta, e impressões digitais que se diriam tiradas com sangue.
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Foi aquilo que o fez empalidecer. Nunca fora capaz de ver sangue, nem mesmo sangue de animais, e o que via causou-lhe de súbito uma vaga vontade de vomitar. Era isso o que queriam dele? Vê-lo sentir-se mal ali no meio ] da sala?
-Gostaria que nos dissesse exactamente, pela ordem em que se verificaram os acontecimentos, o que se passou aqui.
Era o juiz que estava a falar, com extrema simplicidade, e Bauche tinha a impressão de que, pela primeira vez desde a véspera à noite, se dirigiam a ele como a um
ser humano.
-A partir de que altura? -perguntou.
-A que horas cá chegou? Ele procurou maquinalmente com os olhos o relógio
de parede, que vira no dia anterior ao chegar. É claro que os ponteiros já não marcavam a mesma hora, mas apesar de tudo era uma maneira de refrescar a memória.
-Eram dez para as seis. Ou já passava um bocadinho. Ainda não eram cinco para as seis.
-Tinha marcado encontro com ele? Costumava vir muitas vezes a este apartamento?
Bauche notara que o escrivão, tendo entrado no quarto pouco antes, estava a tomar apontamentos.
-Raramente. Foi até há muito pouco tempo que aqui pus os pés pela primeira vez. Serge Nicolas passava a maior parte do tempo fora de casa e a sua vida privada era bastante secreta.
-E contudo, já cá tinha vindo?
-Foi há dois meses.
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-Com a sua mulher?
-Com a minha mulher e um grupo de outras pessoas. Tínhamos estado a festejar no Maxim's a primeira sessão de filmagens de uma fita e, já noite adiantada, Serge trouxe-nos a todos cá a casa para um último copo.
-Então já conhecia a disposição da casa?
-Nessa noite não entrei no quarto de dormir.
-E voltou cá depois disso?
-Até ontem, não. Serge estava com anginas. Era uma coisa que lhe acontecia de tempos a tempos. Até costumava dizer que era o seu ponto fraco.
Bauche pareceu querer indicar-lhes, na mesinha de cabeceira, um cinzeiro a transbordar de pontas de cigarro esmagadas.
-Fumava entre cinquenta e sessenta cigarros por dia, sem contar com um charuto a seguir às refeições.
Sentia-se contente por poder falar, uma vez que isso o libertava da tentação de olhar as manchas de sangue. Esforçava-se por ser preciso, tão completo quanto possível, como se estivesse na prova oral de um exame.
-Ontem de manhã, ele telefonou para o escritório a avisar que estava doente e que ficaria de cama. Pediu-me que lhe mandasse um argumento em que estamos agora a trabalhar e eu enviei-lho por Annette, a secretária, por volta das onze horas.
-E depois?
-Liguei para ele às três horas da tarde para saber como estava e ele pediu-me, caso não tivesse nada de especial para fazer, que lhe levasse o correio da tarde e fosse falar com ele depois de sair do escritório.
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Bauche procurou alguma coisa com os olhos e indicou ] aos outros alguns envelopes que apareciam por entre as pregas da coberta. Também o argumento se via ainda em < cima da cama.
-Quem lhe abriu a porta?
-Ninguém. Limitei-me a fazer girar a maçaneta. A porta não estava fechada à chave. Ele tinha uma mulher-a-dias, mas só trabalhava da parte da manhã.
O juiz, que interrogara sem dúvida essa mulher, fez um leve sinal de aquiescência, como se estivesse a encorajar um aluno.
-Ele estava a dormir quando o senhor entrou?
-Não. Estava sentado na cama.,
-O candeeiro estava aceso?
-É claro que sim, porque já escurecera havia uma
hora ou mais.
Bauche olhou para o candeeiro apagado e depois, interrogativo, fitou o juiz e o comissário.
-Como é possível que, então, tenhamos dado com a luz apagada? -inquiriu este último.
-Porque eu desliguei o interruptor antes de sair.
--Porquê?
-Não sei. Acho que foi uma coisa que fiz maquinalmente.
-Ele já estava morto?
-Evidentemente que sim. Depois, reparou que as cortinas das janelas estavam
abertas..
-As cortinas estavam fechadas -observou.
-É exacto. Quer dizer que se certificou disso? Era verdade. Antes de se apoderar do revólver,
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deitara uma vista de olhos às janelas para ter a certeza de que não o veriam da casa da frente.
-Portanto, entrou e despiu o sobretudo.
-Não o tirei logo. Tinha vindo de carro e não estava molhado. Primeiro, entreguei o correio a Serge, e foi enquanto ele lhe dava uma olhadela preliminar que me desembaracei do sobretudo, porque estava muito calor aqui dentro.
-Contava demorar-se muito?
-Provavelmente uma meia hora. Previa que ele me oferecesse um copo. Ele estava sempre a oferecer copos. Quando encontrava um amigo na rua, a primeira coisa que fazia era levá-lo para um bar.
-Bebia muito?
-Sim, muito. Por assim dizer, bebia de manhã à noite. Apesar disso, nunca o vi bêbado.
-O que é que o impressionou quando entrou neste mesmo quarto ontem à tarde?
Bauche julgou que lhe estavam a armar uma ratoeira mais subtil do que as de Orléans e do Quai des Orfèvres. Mas não era possível. Isso não o podiam eles ter adivinhado, a menos que tivessem já estado a revistar o apartamento dele. E, mesmo nesse caso, teriam dado pela semelhança? Não pensariam antes numa coincidência?
Houvera, com efeito, um pormenor que o impressionara logo à entrada, mas não fora o revólver, ao contrário do que os outros deviam estar a pensar. Serge Nicolas costumava trazer consigo um revólver e exibia-o com frequência. Por isso não surpreendera Bauche o facto de Ver a arma poisada na mesinha de cabeceira.
O que o espantara fora o pijama de Nicolas, um
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pijama de seda preta, fechado na gola e com o feitio de uma blusa russa. Dois meses antes, no dia em que faziam anos de casados, Fernande oferecera-lhe três pijamas exactamente como aquele e que deviam ter vindo da mesma loja, uma vez que Bauche nunca vira outros do mesmo género. Sentira-se surpreendido com aquela prenda, tanto mais que não costumava usar coisas tão excêntricas, preferindo, pelo contrário, afectar a correcção severa dos Ingleses.
-Uma loucura! -dissera-lhe ela. -Foi uma ideia que me passou pela cabeça. Tenho a certeza de que te
fica muito bem.
Só na véspera, ao ver Serge metido na cama, ele compreendera tudo, mas não o podia declarar agora aos seus acompanhantes, sob pena de os ver interpretar de novo mal o seu pensamento.
Não fora por causa do pijama que Bauche matara. Também não fora por ciúme. Não pensara especialmente em Fernande a não ser com leve amargura e apenas por
um instante.
Na véspera nem sequer se lembrara -coisa que só agora lhe vinha à memória -de que Fernande insistira com ele para que vestisse um dos pijamas na noite do aniversário de casados, mostrando-se ainda mais impetuosa do que de costume.(
Não, essa descoberta não passara de mais um pormenor. Nicolas, na sua cama, não tinha aspecto de estar doente. Arranjara maneira de se barbear e tinha as mãos tão bem tratadas como sempre. Quando Annette, de manhã, regressara ao escritório, depois de lhe ter levado o
argumento, Bauche compreendera pelo humor jovial da
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rapariga que o outro estivera a fazer amor com ela.
Talvez Fernande ou uma nova mulher tivessem estado a seguir com ele? Mas não. Fernande já não devia visitá-lo. Ela não lhe contara nada, mas havia já várias semanas que se mostrava nervosa, esquisita, alterando completamente os seus horários, mudando a maneira de se pentear e de falar e até os seus gostos em matéria de comida.
-Peguntei-lhe o que é que o impressionou ao entrar no quarto...
-Bem sei. E pensa que terá sido o revólver?
-E não foi?
-Talvez. Mas não logo.
-Em que momento, então? Depois de ter despido o sobretudo?
-Sim. Nessa altura já estava sentado.
-Onde?
-Naquela poltrona.
A poltrona estava agora de pernas para o ar, no tapete. Bauche não se lembrava de a ter derrubado.
-Por favor, ponha-a no lugar onde a encontrou e sente-se.
Ele resignou-se a obedecer, embora a poltrona estivesse na véspera junto da cama, o que o obrigava agora a ficar com as manchas de sangue mesmo diante dos olhos.
-Agora, faça o mesmo que ontem.
-Ele estava a ver o correio.'
-Sem lhe dirigir a palavra?
-Estava a assobiar qualquer coisa. Era uma mania dele, assobiar.
-E você?,
-Eu não estava a fazer nada. Fiquei à espera de que
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ele acabasse e pus-me a olhar para ele.
-Isso durou muito tempo?
-Três ou quatro minutos.
-Foi então que começaram a vossa conversa?
-Não tivemos conversa nenhuma. Eu estava com calor. Sentia-me entalado na poltrona. Não gosto do contacto da seda no corpo. Levantei-me e avancei em direcção à cama para apanhar um envelope que caíra. Olhem, ainda ali está, na mesa de cabeceira, no sítio onde o deixei!
-Continue.
-Ao pôr o envelope ali, a minha mão tocou na arma e eu agarrei-a, sopesei-a, como se faz maquinalmente quando se pega num revólver.
-Já decidira matar Nicolas?
-Acho que sim.
-Em que altura?
-Já o disse na noite passada, ao inspector de Orléans. Há várias semanas.
-Você falou em vários meses.
-Talvez.
-Mas não sabia que as coisas aconteceriam nesta altura?'-Não.
Fiquei com a arma na mão e, quase logo a seguir, apontei o cano na direcção de Serge. Ele levantou
a cabeça e disse:
-Cuidado, meu caro! Esse revólver está carregado!
-Ponha o revólver na mão. Repita os gestos que fez ontem.
Era incómodo, aquilo, e, sobretudo, ridículo. Bauche tinha vergonha de entrar naquele jogo, ainda por cima
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diante de pessoas tão importantes e que o olhavam com tamanha gravidade.-Foi assim. Eu estava aqui. Disparei quase à queima-roupa -Não receou que os vizinhos ouvissem a detonação? -Nem sequer pensei nisso.
O comissário dirigiu-se em voz baixa ao juiz, e este voltou a interrogá-lo: -Não deu por que havia uma festa, um cocktail, no apartamento do lado com música a tocar?
-Não. Ou melhor, lembro-me agora de que, enquanto estava na poltrona, ouvi a música e que isso me impacientou. Estavam a tocar uma lenga-lenga que não me agrada.
-Porquê?.
-Porque não.
-Não contou que o ruído da recepção no apartamento ao lado impedisse que o tiro fosse ouvido?
-Não.
O comissário indicou, por meio de um sinal, que estava satisfeito, e o juiz prosseguiu:
-Portanto, você disparou. E depois?
-Em vez de cair, como eu esperava que acontecesse, Nicolas endireitou-se na cama e eu vi as pernas despidas dele que saíam do meio da roupa.
-Desculpe. Você disse: pernas despidas...-Ele nunca usava calças de pijama.
-Como é que sabe disso?
-Porque foi ele quem no-lo confiou, uma vez, durante um jantar, quando estávamos a falar das diferentes maneiras de dormir.
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Fernande, durante esse jantar, começara a rir com um riso que ele infelizmente conhecia excessivamente
bem.
-Dir-se-ia por causa do sangue que ele ficara sem metade do rosto, mas, apesar disso, eu via-o a tentar levantar-se como se quisesse avançar sobre mim. Puxei de novo o gatilho, sem resultado. Ele continuava a olhar para mim. Não era capaz de aguentar aquele olhar.
-Não lhe passou pela cabeça fugir? Não foi o medo de que ele o denunciasse que o fez ficar?
-Não. Não foi nada disso. Têm de perceber. Eu não podia deixá-lo naquele estado. Então, olhei à minha volta e vi o atiçador.
-O lume estava aceso?
-Sim, estava. Viam-se ainda, à direita e à esquerda das cinzas, uma
pá de cobre, tenazes e uma vassourinha de barbas verdes. O atiçador ficara no meio da sala.
-Pegue lá naquilo. Bauche obedeceu.
-Continue.
Tentou lembrar-se do lugar onde se encontrava na véspera.
-Foi assim. Bati-lhe.
-Na altura em que ele estava ainda sentado na borda da cama?
-Acho que sim. Pelo menos a primeira pancada.
-E atacou-o com o atiçador porque tencionava acabar com ele?
-Sim. Mas os olhos dele continuavam a mexer. Por duas vezes julguei que tudo tinha acabado e, das duas
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vezes, quando eu me encaminhava já para a porta, vi-o agitar-se.
-Por isso, voltou para trás?
-Da última vez, peguei na estátua de bronze, que sempre era mais pesada, e visei-lhe o crânio, aplicando todas as minhas forças. Não estava capaz de continuar com aquilo nem por mais meio minuto. Ouvi uma espécie de estalido e compreendi que finalmente tinha acabado.
Depois, virou-se para eles como um palhaço que conclui o seu número no meio da pista do circo. Que lhe faltaria dizer? Ah, é verdade! O candeeiro. Eles faziam questão de saber tudo.
-Estava para sair, já ao lado da porta, quando descobri que não tinha vontade de deixar a luz acesa.
-E como é que fez para a apagar? O corpo dele não se atravessava no caminho?
Era uma coisa que se via com facilidade, uma vez que os contornos do corpo de Serge Nicolas estavam desenhados a giz no soalho.
-Saltei-lhe por cima. Já tinha enfiado o chapéu. Não pensei mais no sobretudo porque ando quase sempre de automóvel e ando muitas vezes sem ele, mesmo quando o tempo está frio.
O escrivão friccionou discretamente o pulso fatigado. Os outros permaneciam silenciosos e solenes. O juiz de instrução abriu a porta e foi o primeiro a sair, seguido pelo representante do procurador, e os dois tiveram oportunidade de trocar algumas palavras antes de o comissário de polícia os alcançar. O médico legista já se fora embora, bem como os funcionários dos serviços de identificação, de maneira que
O apartamento parecia quase vazio.
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-Posso levar o meu casaco? -perguntou Bauche ao polícia que continuava ao lado dele.
O homem foi transmitir a pergunta ao comissário, que
encolheu os ombros.
-Acho que deve querer dizer que sim. Pegue lá no sobretudo. Tinham-lhe tirado as algemas antes de o fazerem entrar no quarto. Agora voltavam a pôr-lhas. Era como um jogo, uma brincadeira bastante infantil, afinal de contas, uma vez que ele não sentia a menor vontade de fugir e menos ainda de atacar fosse quem fosse.
Que estavam os outros três a fazer a um canto, perto da janela? Falavam a meia-voz. O juiz de instrução tinha o aspecto de um homem seguro de que a razão está do seu lado e que se obstina calmamente; o comissário parecia alguém que insiste em defender cortêsmente a sua ideia, sem se atrever, porém, a insistir muito apesar de
ser essa a sua vontade.
-Uma vez que insiste, de acordo. Mandarei que lho
levem daqui a bocadinho.
Era de Bauche, claro, que se tratava. Se bem percebia, o juiz desejava ocupar-se dele imediatamente, ao passo que o comissário teria preferido continuar com ele ao seu dispor ainda durante mais algum tempo, o que talvez lhe permitisse entregar ao magistrado um dossier encerrado,
-Deseja ver também a mulher dele?
-Mandarei chamá-la.
-Disse-lhe que passasse na P. J. por volta das onze horas.
-Então, peça-lhe que vá ao meu gabinete. Talvez o juiz não gostasse da gente da polícia? Talvez,
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por uma razão ou por outra, estivesse pessoalmente interessado neste caso? A única coisa que Bauche podia fazer era esperar, e obteve do seu guarda um pouco de água, que lhe foi servida num dos copos que vira havia dois meses quando estivera naquela casa, acompanhado por um numeroso grupo de pessoas.
Os outros continuaram a conversar durante mais alguns instantes, de modo agora menos tenso; depois, o juiz acendeu um charuto, apertou a mão dos companheiros e afastou-se sem voltar a olhar para ele, seguido pelo escrivão.
Os jornalistas e os fotógrafos estavam à espera na antecâmara. Foi o comissário quem se lhes dirigiu e, a seguir, deixou entrar os fotógrafos no salão, entregando-lhes Bauche por cinco longos minutos.
-Não lhe pode pedir que pegue outra vez na estátua, comissário?
Felizmente, o comissário contentou-se com encolher os ombros. Mesmo assim, não deixaram de o fotografar com a mulher nua poisada numa prateleira ao lado dele. Nesse momento, Bauche sentiu as pálpebras pesadas de lágrimas, mas ninguém mais deu por isso, uma vez que ele se assoou instantaneamente e conseguiu assim enxugar furtivamente os olhos.
-Acho que me constipei -comentou ele, com um sorriso vago.
Esse sorriso, esse esgar de um homem que tenta desculpar-se por estar com um aspecto lamentável, foi captado por um dos fotógrafos, que soltou um resfolegar de satisfação.
Temos de terminar a sessão, messieurs.
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Parecia uma saída da escola. Toda a gente falava em voz alta ao descer as escadas, onde Bauche se viu confundido com o grupo dos jornalistas. Assim, os curiosos que tinham ficado à espera para o verem sair só deram por ele quando estava já a dois passos do automóvel. As pessoas ficaram com a impressão de que o comissário o tinha literalmente escamoteado. Bauche ouviu somente alguns gritos, viu apenas um punhado de garotos que corriam atrás do automóvel como o teriam feito atrás do cortejo de um baptizado, para receberem alguns tostões.
Nem uma só vez, ao longo do trajecto, o comissário lhe dirigiu a palavra. Não lhe aconteceu sequer olhá-lo. Parecia ter-se desinteressado dele e, quando o carro se deteve no pátio do Quai des Orfèvres, não longe de uma carrinha celular, saiu sem dizer nada e subiu as escadas quatro a quatro, abandonando-o nas mãos do guarda encarregado dele.
Este fê-lo subir dois andares, atravessar vários corredores, e, durante mais de uma hora, enquanto o guarda ficava pacientemente à espera, entregaram-no aos cuidados dos funcionários da secção de antropometria. Primeiro, puseram-no completamente nu e foi examinado por um médico, numa sala onde dez outros homens nus esperavam a sua vez, trocando gracejos sobre os seus órgãos genitais.
Depois, vestindo-se de novo, foi medido, fotografado de frente e de perfil, até que, por fim, lhe tiraram as impressões digitais.
Durante todo este tempo, ninguém se interessou pessoalmente por ele. Só um dos empregados disse, medindo-o da cabeça aos pés:
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-É este o tipo dos vinte e dois golpes de atiçador? Como naquele momento estava nu, Bauche sentiu-se
incomodado pelo olhar que o homem passeava ao longo de toda a sua pele, a qual nunca fora tão pálida.
Quando, sempre com o guarda ao lado, chegou ao fim do corredor do Palácio da Justiça, onde havia pessoas à espera nos bancos, reconheceu Fernande, também ela à espera, sentada, sozinha, junto a uma das portas. Ela viu-o chegar. Não ergueu os olhos para ele. Trazia o casaco comprido bege com gola de raposa e tinha os olhos imóveis na mala, poisada nos joelhos.
Pareceu-lhe fatigada, mostrando debaixo dos olhos um vinco cujo aspecto não agradou a Bauche.
Mal teve tempo, porém, de a fitar. O guarda estava a bater à porta e, logo a seguir, fê-lo entrar no gabinete do juiz.
-Faça o favor de lhe tirar as algemas e deixe-nos a sós.
Mas não estavam sós, porque o escrivão encontrava-se sentado a uma mesinha, ocupado a passar a limpo os seus apontamentos.
-Sente-se, monsieur Bauche. Suponho que deve estar fatigado. Comeu alguma coisa esta manhã?
-Deram-me uma chávena de café e um pãozinho.
-Vou mandar que lhe sirvam o almoço dentro de momentos. Não lhe devolveram a sua gravata e os seus atacadores?
Dirigiu-se à porta e falou com o polícia que esperava lá fora e se afastou. "-Agora, antes de mais nada, queria saber quem é
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que escolheu para advogado. Sem dúvida, não ignora que o advogado tem o direito de estar ao seu lado durante os interrogatórios.
-Ainda não pensei nisso.
-É mais que tempo de pensar! Suponho que se dá conta da gravidade das acusações contra si. É a sua cabeça que está em jogo, não é assim?
-Bem sei. Mas disse aquilo com moleza, como se se tratasse de
outra pessoa. Ouvia os barulhos do corredor e, quando reconheceu os passos do guarda, sentiu-se extremamente feliz com a ideia de que lhe iam ser devolvidos os atacadores dos sapatos e a gravata. Só por recuperar aquelas coisas, parecia-lhe que voltava a ser um pouco mais
ser humano.
-Falei durante alguns minutos com a sua mulher antes de você chegar. Pedi-lhe que esperasse. Se quiser, posso mandá-la entrar, mas previno-o de que não poderá falar com ela a não ser na minha presença.
-O que é que ela disse? O juiz hesitou, incomodado.
-Contava que ela o apoiasse?
-Não sei. Agora mesmo, quando passei por ela, nem
sequer olhou para mim.
-Talvez fosse pedir de mais querer que ela aprovasse o seu gesto?
-É evidente.
-Ela está também muito abalada. Passou uma parte da noite a responder às perguntas da polícia, depois assistiu à busca que fizeram no seu apartamento.
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-E não tentou fazer nenhuma asneira?
-Que tipo de asneira?
-Não tentou suicidar-se? Já fez duas tentativas.
-Por razões graves?
-Não. Por nada. Ou melhor, sem que nada se tivesse passado. Acima de tudo, é preciso impedi-la de beber.
-Esta manhã não me deu a impressão de uma mulher que tivesse bebido.
-Tanto melhor. Gostaria muito de vê-la, sim. Ficou sentado, sem se virar para a porta que o juiz
abria depois de ter dito meia dúzia de palavras ao escrivão, que passara para a sala ao lado. Bauche ouviu os saltos altos ferindo o soalho, o frufru de um vestido. Viu o juiz voltar a sentar-se e olhar um pouco para o lado esquerdo dele, acima do nível da sua cabeça, fitando sem dúvida o rosto de Fernande, que se encontrava de pé.
-Pode sentar-se, madame.
-Caso seja necessário, sento-me.
Para o fazer, tinha de passar junto do marido e de atravessar o seu campo de visão. Afastou-se dele tanto quanto possível, como se sentisse repugnância, evitando cuidadosamente olhá-lo.
-Repito que isto não é um interrogatório nem uma acareação oficial. Podem falar como melhor entenderem.
-Não tenho nada a dizer-lhe -declarou Fernande. Ele sabe perfeitamente o que é que eu penso.
Tirou ostensivamente o pó de arroz da mala e começou a arranjar-se, servindo-se de um espelhinho de bolso. Os gestos dela pareciam febris, sacudidos.
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-Ouve, Fernande -murmurou Bauche ao cabo de um tempo de silêncio. -Não te peço nem que me perdoes nem que me ajudes. Sei que não podes compreender e que te enganas no que pensas. Ninguém pode compreender.
A mulher mostrava-lhe agora o perfil, fixando os olhos num canto da sala, e tamborilava com os dedos nos joelhos.
-Só quero que faças os possíveis por não beber, por estar calma. Bem sabes o que quero dizer.
Ela virou-se para o juiz, como se o quisesse fazer apre ciar bem a sua paciência.
-É tudo? -perguntou-lhe ela. Mas foi Bauche quem respondeu:
-É tudo. Então, Fernande levantou-se; encaminhou-se na
direcção da porta. Na altura em que passou pelo marido, não pôde conter-se e esbofeteou-o com todas as forças, uma bofetada em cada face, grunhindo por entre dentes:
-Maldito patife!
Depois, os passos dela foram mais rápidos. Só parou no corredor, onde ele a ouviu dizer ao juiz:
-Desculpe. Não pude conter-me. Quando penso que vivi cinco anos com ele!
-Não se esqueça de que desejo voltar a vê-la aqui às quatro horas.
-Cá estarei, não tenha medo. A porta fechou-se de novo e o juiz retomou o seu lugar, depois de ter anunciado ao escrivão que podia entrar outra vez. Reacendeu lentamente o charuto.
Está a ver -disse por fim.
-Já deve começar a
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compreender porque é que o aconselhei a escolher bem o seu advogado. Sem dúvida tem algum advogado amigo, não é verdade?
Era verdade. Tinha três ou quatro amigos advogados, mas todos eles tinham ido mais ou menos para a cama com Fernande.
E que é que um advogado faria que ele próprio não pudesse fazer?
-Se quiser, posso mostrar-lhe uma lista dos membros da Ordem. No caso de haver problemas de dinheiro, recordo-lhe que tem direito, como toda a gente, à assistência judiciária. Gostaria que tivesse o seu defensor ao seu lado já esta tarde, quando eu o interrogar oficialmente.
-Talvez maitreQ Houard? disse Bauche num tom de convicção.
Sentiu vontade de reconsiderar, mas disse para consigo que era tarde de mais, que isso poderia ser ofensivo para Houard. Este era um homem de meia-idade que conhecera o pai de Bauche, uma vez que passava a maior parte das férias em Grau-du-Roi. Aos olhos de Bauche ele não era um advogado mas um homem forte e jovial para quem ele devia continuar a ser uma criança.
Fora por isso mesmo e por Houard lhe fazer lembrar o pai que Bauche lamentava agora ter citado esse nome.
-Quer que eu tente entrar em contacto com ele até hoje à tarde?
-Agradecia-lhe muito.
Título dado aos advogados em francês (N. T.).
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-Ele vai pedir com certeza um exame psiquiátrico. Seja como for, eu, pelo meu lado, requerê-lo-ei e é provável que tenha de se submeter a ele amanhã de manhã.
Mas com certeza! Faria tudo o que quisessem. Porque falara de Houard? Juntamente com o nome do advogado, chegara até ele uma baforada de Grau-du-Roi. Depois, começara a pensar na mãe -coisa que desde a véspera não lhe acontecera ainda. A mãe àquelas horas já devia saber de tudo, talvez viesse já a caminho, de comboio. Havia também a irmã e o cunhado, de quem não gostava. Havia a imagem do pequeno porto ao sol e, no momento em que precisava tanto de pensar noutra coisa, ei-lo que revia Anais, também ao sol, com a pele a escaldar de sol. Anais de saia muito arregaçada, com os joelhos levantados, algures na praia ou na erva seca da talude.
Era, tal como a frase que Nicolas dissera a monsieur Ozil, um tema tabu, que ele se esforçava por esquecer.
E por maioria de razão, coisa para esquecer, sim, aqui e agora! Ainda por cima depois das duas bofetadas de Fernande!
-Estou muito cansado, senhor doutor juiz.
-Não me vai ser possível permitir-lhe que repouse à vontade nos próximos dias, mas agora terá um instante de pausa e vão trazer-lhe o almoço dentro de poucos minutos.
Bauche não sabia ainda que era a última vez que via aquele guarda, com o seu ar patudo de cão forte e bomComeçara já, ao passar de um sítio para outro, a estender espontaneamente os pulsos para que lhe colocassem
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as algemas. Tornara-se uma rotina.
Os corredores estavam quase desertos. Neles havia somente um homem ainda bastante novo, sem gravata nem atacadores nos sapatos, entre dois polícias, também ele algemado, com uma ponta de cigarro apagada nos lábios, e que o saudou de passagem, sem saber quem ele era, simplesmente por Bauche ser um preso como ele.
-Viva, amigo.
E acrescentara com uma risadinha seca:
-Vamos dar conta deles!
Mal Bauche acabou de comer o que lhe tinham trazido, deixou-se cair no catre de madeira coberto por uma espécie de enxerga pouco espessa, mergulhando o rosto nos braços cruzados. Tinham-no levado para uma cela do rés-do-chão, que dava para um dos pátios do Palácio da Justiça. Aquilo, sim, já parecia uma prisão, com barras de ferro na janela, apesar de esta quase não passar de uma fresta estreitíssima. O guarda fora-se embora sem se despedir dele, e Bauche estava agora sob a vigilância de pessoas que não conhecia e que ouvia a falarem no corredor.
Apercebia-se, enquanto tentava mergulhar no sono, de que isso não tinha importância. Lá fora o tempo estava sombrio, e a cela era mais sombria ainda; apesar disso, desde que falara de Houard, sentia que transportava dentro de si como que imagens de sol, das quais Procurava ferozmente desembaraçar-se.
Tentava pensar em Fernande e, no mesmo momento, Percebia que eram as feições de Anais que lhe enchiam a retina, que era o cheiro dela que as suas narinas pareçam aspirar.
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E havia gente que tentava compreender! Mas porquê, meu Deus, porquê? Como poderiam ter esperança de vir a compreender fosse o que fosse?
Matara Serge Nicolas. Confessara que o fizera. Contar a-lhes tudo o que tinham querido saber, sem nada omitir. Fingira brandir de novo o atiçador e a estátua de bronze. Representara a comediazinha que reclamavam da sua pessoa.
E agora não poderiam deixá-lo em paz e sossego? Pagaria pelos seus actos. Nunca estivera nas suas intenções fazer batota. Mas eles, em contrapartida, não tinham o direito de o incomodar com as suas perguntas constantes. Antes de lhes cair nas mãos, Bauche sabia. Sentia-se seguro de si. Nem sequer fora um polícia, mas o taberneiro de Ingrannes, quem começara a tarefa, olhando-o como se de um momento para o outro ele tivesse deixado de ser uma criatura humana.
Teria, pelo facto de ter assassinado Serge, deixado de ser semelhante deles?
Porque era isso, mais ou menos, o que se passava; Bauche compreendera-o; continuava a ver que assim era. Bastava observar os olhos deles. Nem todos o fitavam da mesma maneira, era certo, mas, para todos eles, ele deixara, evidentemente, de ser um homem como os
outros.
Até mesmo o juiz! O juiz era o mais consciencioso;
Devia ser casado, pai de família, ter amigos, viver num meio constituído por pessoas inteligentes e cultas. Vinha para o gabinete todas as manhãs e passava o dia a interrogar malfeitores e criminosos.
Não aprendera então que os criminosos não são "e
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uma espécie diferente dos outros seres humanos, que andaram pelas ruas como as outras pessoas, beberam café e comeram croissants? Não aprendera que os criminosos têm mulher e amigos e que fizeram, afinal de contas, o que lhes foi possível para, como toda a gente, tratarem da sua vida?
No fundo, o juiz não olhava para ele como juiz -é verdade que Bauche nunca se dera com juízes -, mas sobretudo, e fora isso que o impressionara, como um médico que se interroga sobre o que não irá bem no seu paciente.<
Por causa dos outros, passadas apenas algumas horas, porque não tinham decorrido ainda uma noite e um dia desde que tudo acontecera, Bauche também já não sabia, começava a duvidar de si próprio, a ver-se como um ser anormal e a colocar-se questões em que nunca antes pensara.
Não devia fazê-lo. Também não devia pensar em Anais, nem perguntar-se -enquanto estava estendido na enxerga desgastada pelo contacto de centenas de corpos como o seu -porque é que a imagem de Anais tomava continuamente o lugar da de Fernande. .
Não terá toda a gente recordações assim que voltam nos momentos menos previsíveis, sobretudo quando se está fatigado ou se tem febre?
Bauche não queria envergonhar-se de Anais. Só fora Para a cama com ela uma vez, uma única vez, numa altura em que devia ter uns dezassete anos, mas, desde os dez ou doze anos, vira-a muitas vezes fazer amor com outros.
Em Grau-du-Roi, para os garotos, aquilo era uma brincadeira.
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-Olha! Lá vai a Anais ter com um apaixonado ao
fundo da praia.
Era quase sempre verdade. Quando não o era à partida, ela encontrava um pretendente pelo caminho. Se não encontrasse, deitava-se ao sol, cheia de carnes, doirada, muito arregaçada, tendo bem em evidência o grande triângulo negro do baixo ventre, e um homem acabava sempre por passar por lá.
Ela teria talvez dezassete anos quando Bauche tinha doze e parecia já uma mulher feita, que começara a vida havia muito. Alguns dos camaradas mais velhos de Bauche tinham tentado a sua sorte com ela. Durante anos, Bauche sentira desejo de fazer o mesmo sem se atrever, sobretudo a partir da altura em que, à noitinha, vira o pai voltar, com um ar pouco à vontade, de um local onde ele sabia que Anais se encontrava.
Os homens, na sua maioria, não se gabavam do que faziam com ela. Os veraneantes seguiam-na de longe, fingindo que se ocupavam com outros assuntos, e depois regressavam, procedendo a grandes desvios.
Ao longo de toda a sua infância, em suma, Bauche tivera fome de Anais, das suas grandes coxas, do seu ventre acolhedor, dos seus lábios carnudos e sempre entreabertos.
Só fora ter com ela uma vez, atrás de um barco abandonado na areia da praia.
E, cinco anos mais tarde, em Paris, casara com Fernande.
O que é que queriam dele ainda? Estavam a sacudi-lo
por um dos ombros. Diziam-lhe:
-Está cá o seu advogado, que quer falar consigo.'
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Como um sonâmbulo, continuava absorvido em Anais, e eis que já a silhueta de Houard se recortava na porta, sem o sorriso habitual. Houard que, também ele, com toda a certeza, se deitara com ela, mas que deixara de pensar no caso, que a esquecera talvez, que tentava manter uma atitude de circunstância e que acabara por dizer, ao poisar na cadeira a pasta cheia de papelada:
-E então, meu filho?
Depois, dera-se conta de que não era aquele o tom apropriado, chegara-se mais à mesa e, aborrecido, ficara a ver Bauche arranjar-se um pouco, enquanto suspirava.
-Quem me havia de dizer que ainda te encontrava um dia numa situação destas...
O tom ainda não era aquele. O advogado impacientava-se consigo próprio e, por fim, erguendo aos céus os braços demasiado curtos, exclamou:
-Mas, com mil demónios, o que é que te deu?
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-Fala mais baixo, filho. O juiz Bazin não é homem para se valer desses meios, mas nesta casa há de tudo e gente de toda a espécie.
Estavam frente a frente havia um bom quarto de hora -Houard, sentado na única cadeira que ali havia, tomando de tempos a tempos algumas notas nos papéis que dispusera diante de si; Bauche, sentado na beira do catre, com os cotovelos apoiados nos joelhos, o queixo enterrado nas mãos.
A tarde ainda não ia adiantada, mas o dia estava tão escuro que, em certos momentos, a lâmpada do tecto se acendia. Apesar disso, aquilo continuava a parecer uma cave. O mundo exterior parecia ter-se tornado muito distante. Chegava a ser estranho pensar que, dentro em breve, o advogado sairia da cela, andaria pelas ruas, acotovelar-se-ia com os outros transeuntes.
-Se bem entendi, foi ele que entrou em contacto contigo para te oferecer um lugar?
-Foi o que eu julguei. Julguei que fora isso que acontecera até à manhã de hoje. Mas, segundo me disse o comissário, ele já conhecia Fernande.
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A atitude desta última parecia irritar Houard, que se contentava com franzir as sobrancelhas sempre que o nome dela aparecia, deixando o problema para depois.
-Não te preocupes por agora com isso. Continua. Tinhas trabalho nessa altura? De que é que vivias? Há quanto tempo estavas em Paris? O teu pai já tinha morrido, suponho eu... não?
O advogado bem podia passar todos os anos as suas férias em Grau; era impossível exigir-lhe que se recordasse daquelas datas.
-Já tinha morrido, sim. Foi no Inverno, mas o senhor só o soube nas férias seguintes. Ninguém estava à espera daquilo. Ele tinha ido à pesca, no seu barco, como era costume. Quando voltou, parecia de mau humor, e, mais tarde, quando a minha mãe o chamou para vir jantar, ficou espantada de o ver na cama. Tinha-se deitado sem dizer nada. Recusou-se a deixá-la chamar o médico. Nesse dia, eu tinha ido a Montpellier. Só voltei por volta das onze da noite e encontrei lá em casa o Dr. Loubet. Antes do romper do dia, tudo acabara.
-O que é que ele tinha?
-Não sei. Os médicos nem sempre dizem a verdade à família. Ao que parece, ele estava já doente havia meses sem que nós o soubéssemos, e tratava-se às escondidas.
No fundo, fora nesse momento, no instante em que regressara de Montpellier, que tudo começara para Bauche. Tentou fazê-lo ver a Houard, que conhecia a região, que por lá vivia uma parte do ano, em calções ou calças de ganga, pescando ou passando os dias na esplanada de Justin a olhar para o cais do porto e a beber pastis, dormindo duas ou três horas de sesta todas as tardes, com
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as janelas corridas, antes da partida de bolas.
-Sabe como era a vida lá na terra.
Dali, aquilo parecia irreal. Havia já sete anos que Bauche estava em Paris e, desde então, a sua existência anterior parecia-lhe irreal.
Moravam numa grande casa, que o avô Garcin, o pai da mãe dele, construíra por suas mãos, porque fora mestre pedreiro durante cerca de cinquenta anos -uma casa como um pedreiro constrói para si próprio e na qual parecia ter-se esforçado por introduzir uma ilustração de todos os seus conhecimentos da arte. A casa era cor-de-rosa, com janelas de diferentes modelos, peças de cerâmica e pedras esculpidas engastadas em diversos sítios, e havia no corredor um mosaico feito de todas as amostras de mármore que o velho Garcin juntara ao longo da sua vida, de modo que parecia um desses quadros que certos coleccionadores fazem pacientemente com selos de correio.
Garcin trabalhara durante vinte anos na casa. Começara na altura em que tinha ainda a sua empresa em Montpellier, vindo apenas passar os domingos a Grau. Nunca mais deixara de trabalhar nela. Continuava, sem dúvida, a arranjá-la, uma vez que ainda não morrera, e viam-se constantemente andaimes no pátio ou encostados às paredes, enquanto ele acrescentava uma varanda, umas escadas exteriores, uma fonte.
Tinha uma espessa cabeleira branca, boas cores, e a mulher, tão robusta como ele, tinha os mesmos cabelos e a mesma tez, como se, à força de viverem juntos, tivessem acabado por se parecer um com o outro.
Os dois deviam igualmente ter lido os jornais, bem como toda a gente de Grau-du-Roi.
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-O meu pai era o melhor homem da terra...
-Claro, filho, e nunca comi melhor sopa de peixe do que em casa dele.
Porque é que Bauche insistia, como se buscasse desesperadamente uma confirmação?
-Era um homem de bem, não era?
-Caramba! Ainda duvidas?ii Bauche não duvidava. Nunca duvidara. Mas, nos últimos tempos, surgira-lhe no espírito uma interrogação, que nunca se lhe pusera enquanto ainda vivia na terra.
Quando voltara da guerra, o pai tinha quarenta e dois anos. Não fora ainda amputado, mas um estilhaço de obus ficara-lhe no ombro e causava-lhe dores. Viveram apenas algumas semanas em Montpellier, onde até então haviam habitado, e, sem falar sequer de retomar o seu lugar na drogaria, o pai instalara-se em Grau, na casa,cujas obras estavam ainda por concluir.
O seu humor alterara-se e havia períodos de vários dias durante os quais não falava com ninguém. Depois, Albert, que ainda não fizera os nove anos, ouvira discutir a amputação.
Passado um mês, o pai saíra do hospital com uma das mangas vazia e nunca mais se voltara a pôr o problema de ele retomar o trabalho. Talvez não lhe fosse possível regressar ao seu antigo lugar na drogaria. Mas não existiriam outros empregos que lhe servissem, apesar de ter ficado sem um braço?
Não se falava dessas coisas. Albert sabia que recebiam uma pensão, que um homem influente tratara do caso, um homem que, de vez em quando, aparecia para ver o pai, fechando-se então os dois numa sala a discutir. Mais
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tarde, vira o pai desfilar à cabeça dos cortejos de Antigos Combatentes, onde ele fazia um figurão com a manga vazia. Fora nomeado presidente da liga.
Não eram ricos, mas dir-se-ia que não tinham falta de dinheiro na vida de todos os dias. Dois ou três anos depois, os Garcin tinham ido viver com eles lá para casa e aquilo parecia um pouco, entre verdadeiras paredes, a existência livre e despreocupada dos ciganos que todos os anos eram vistos enchendo as estradas que conduzem às Saintes-Maries.
O velho Garcin trabalhava na construção da sua própria casa, sempre com o cachimbo na boca, e o pai de Albert, depois de se levantar, ia de pantufas, por vezes mesmo durante o Inverno, envergando apenas um casacão por cima do pijama, dar uma volta pelo porto e beber um copo de vinho branco no Justin. Noutras ocasiões, partia para a pesca no seu barquinho listado de verde e, do paredão, viam-no, lançada a âncora, imóvel por baixo do guarda-sol.
Era quase sempre ele quem, depois de regressar a casa, cozinhava. Trazia amigos, pescadores, pessoas de passagem. No Verão preparavam a sopa de peixe num fogão que Garcin construíra no meio do pátio.
Por assim dizer, tinham sol do princípio ao fim do ano. Quase não precisavam de acender as luzes. Mais crescido, Albert começara a frequentar o liceu em Nimes, mas dirigia-se para lá de manhã, de autocarro, e regressava à noite, e assim continuava a fazer parte da casa, já então achando Nímes uma cidade escura e inospitaleira.
Acabara por concluir os seus estudos secundários, não Sem alguma dificuldade. Não sabia o que tencionava fazer.
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Talvez por causa de um jornalista que estivera ali de férias dois Verões seguidos, dissera, sem acreditar muito no que dizia:
-Vou escrever para os jornais. No dia da morte do pai, andara pelas ruas de Montpellier à procura de um emprego. No dia seguinte, era informado de que não ficavam com dinheiro para nada, e foram os Garcin que tiveram de pagar o funeral e comprar para ele as roupas do luto. Para além da casa, os avós também quase nada tinham de seu. Quanto à pensão, mal chegava para as encomendas, agora que fora reduzida a uma parte, destinada à mãe e à irmã, que, nessa altura, ainda não casara.
Ele poderia ter arranjado um lugar num escritório, em Montpellier ou em Nímes. Os antigos patrões do pai propuseram-lhe um emprego na drogaria.
Mas Bauche decidira, de um dia para o outro, tentar a sua sorte em Paris.
-Lá não havia futuro para mim -explicava ele ao advogado.
-O que me interessa é saber exactamente o que fizeste, porque podes ter a certeza de que tudo há-de ser chamado à baila. Suponho que terás começado por apertar o cinto, não?
-A minha mãe tinha-medado algum dinheiro. Escrevia artigos que comecei a levar a todos os jornais. Tinha uma lista completa.
-E eles recusaram-tos todos?
-Sim. Diziam-me que voltasse noutra altura. Comia só uma vez por dia. Estive com pessoas que conhecia dos Verões de Grau-du-Roi e que...
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-Bem sei.
Bauche mordeu os lábios. Esquecera-se desse pormenor. Batera realmente à porta de maitre Houard, entre outras, e talvez lhe devesse ainda pequenas quantias que ele lhe emprestara nessa fase e que Bauche nunca se preocupara em devolver-lhe.
-Trabalhei por alguns meses num negócio pouco sério que acabou por falir ao fim de pouco tempo. Mandávamos milhares de circulares para toda a França, para os endereços que copiávamos do BottinQ). Os escritórios ficavam num prédio junto à Porte Saint-Martin e foi aí que conheci Fernande.
-Ela também lá trabalhava?
-Sim. Copiávamos os dois as moradas e preenchíamos os envelopes.
-Que idade tinha ela?
-Mais ou menos a mesma que eu.
-E era de Paris?
-De Reims. Tinha saído de casa porque os pais lhe faziam a vida impossível.
-Casaram logo a seguir?
-Não.
-Mas dormiam um com o outro?
Bauche disse que sim. Era mais fácil, mais rápido. Mas tratava-se apenas de uma pequena parte da verdade. De resto, as palavras não podiam deixar de dar uma imagem falsa da sua vida passada. Paris era sombrio, viscoso, com milhares de silhuetas que se agitavam sem razão,
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correndo sabe Deus para onde. O hotel onde ele morava, não longe do emprego, numa rua paralela aos boulevards, tinha um cheiro intenso, que fazia pensar em coisas sujas, e estava cheio de ruídos equívocos.
Durante meses, a sua maior preocupação não fora comer, mas ter no bolso os poucos francos necessários para pagar a uma dessas raparigas que se viam pelos passeios. O desejo era, por vezes, tão lancinante que o fazia chorar. Certa noite, oferecera a uma delas, à falta de dinheiro, o relógio de pulso que fora do pai, e a rapariga deve ter pensado que se tratava do produto de um roubo.
Estava só, experimentando o sentimento amargo de uma injustiça cometida contra a sua pessoa, voluntariamente, maldosamente. Acontecia-lhe ficar por muito tempo com o nariz colado às montras, os punhos fechados dentro das algibeiras do impermeável, que não o resguardava do frio. Vendera, junto do Crédito Municipal, numa lojeca ignóbil da Rue des Blancs-Manteaux, tudo o que tinha e podia vender, incluindo o seu fato de luto, e passava o tempo à espera de um vale; escrevia a pedir dinheiro ora à mãe, ora à tia-avó, suplicando-lhes que não dissessem nada a ninguém e inventando de cada vez uma história diferente.
Eram só os dois, Fernande e ele, a trabalhar para Horwitz. Horwitz era um húngaro, ele próprio chegado a Paris havia somente alguns anos e cujo francês era difícil de entender. Os escritórios, instalados no que fora uma casa de habitação, compunham-se de três salas estreitas e baixas, onde era preciso manter a luz acesa o dia inteiro, porque ficavam numa cave; além das três salas, havia
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ainda, ao fundo do corredor, uma cozinha com um fogão comido pela ferrugem.
Fernande fora contratada antes dele e, como ele, por meio de um anúncio de jornal. Logo no primeiro dia, Bauche vira-a fechar-se à chave com Horwitz, um homem pequeno e forte, de quarenta anos e completamente calvo, cheirando a sebo. Aquilo repugnara-lhe, porque Fernande tinha ar de ser uma rapariga decente. Mal se maquilhava, com muito pouco pó de arroz e apenas uma sombra de rouge, e a sua roupa de pronto-a-vestir assentava-lhe pior ou melhor sem que ela parecesse dar importância a isso.
Logo da primeira vez, ela observara-o furtivamente durante o tempo todo e, ao longo de mais de uma semana, Bauche dera-lhe muito pouca atenção. Sabia a que horas, de manhã, ela ia ter com Horwitz, e a porta que separava as duas divisões não era tão espessa que o impedisse de ouvir o que se passava do outro lado. Dir-se-ia que ela fazia de propósito, falando suficientemente alto para ter a certeza de que ele a escutaria. Por vezes gritava certos termos que faziam Bauche corar. Depois, quando saía, fitava-o, com os olhos brilhantes e uma atitude de desafio. Noutras alturas, passava-lhe junto da cadeira e roçava-se nele com insistência.
Não era momento de pensar nisso e, de resto, tais coisas não diziam respeito a mais ninguém. O que é que Houard lhe perguntara? Se Fernande começara por ser sua amante, antes de casarem? Sim. Mais tarde, quando Horwitz desaparecera sem deixar endereço para onde pudesse ser contactado e ambos deram com o escritório abandonado e vazio -Horwitz
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levara até mesmo as listas de que eles costumavam servir-se -, tinham decidido partilhar, por razões de economia, o mesmo quarto. Só um ano depois tinham casado.
-Bem vê, monsieur Houard, não se trata de um crime passional. É o que me tenho esforçado por fazer com que eles entendam.
-Mas isso é uma desgraça para ti, meu rapaz!
-Como já lhe disse, matei Serge Nicolas porque não podia fazer outra coisa. Eu andava aos caídos quando o conheci, é verdade, mas, nessa altura, o pior já tinha passado e eu começava a conseguir compor as coisas. Os meus artigos apareciam quase todos as semanas nos jornais, especialmente nos semanários de cinema. Mais tarde ou mais cedo, teria conseguido uma crónica regular. Falava-se já disso. Tinham-mo prometido. Nós não tínhamos dinheiro, Fernande e eu, mas já não estávamos propriamente na miséria.
-Vais ter de me dar uma lista dos jornais em que colaboravas. Isso é muito importante.
-Depois dou-lha, sim. O único erro que cometi foi o de não desconfiar, o que é ainda mais estranho depois da minha experiência com Horwitz. Quando, na tarde em que nos encontrámos pela primeira vez, no Fouquefs, Nicolas me falou de emprego, disse-me que eu seria encarregado de ler os argumentos que lhe eram mandados às dúzias, dando-lhe depois a minha opinião. Era uma espécie de lugar de direcção artística, para o qual eu me sentia suficientemente preparado.
-E depois?
-Ele ainda não tinha alugado os escritórios dos Campos
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Elísios. Marcava-me sempre encontro em bares e eu nem sequer sabia onde ele morava. A sociedade não tinha ainda sido constituída. Estava-se a tratar dos papéis.
-Porque é que não me procuraste para eu te aconselhar antes de os assinares?
-Porque não achei que fosse necessário. Ele não me apresentou logo a Ozil. Limitava-se a dizer que havia muito dinheiro em jogo, repetia que a maior parte dos filmes não valiam nada, que os produtores não tinham iniciativa bastante e qu'e, à força de quererem fazer produtos comerciais, estavam a matar o cinema. Tinha trabalhado naUfa antes do acesso de Hitler ao Poder e, mais tarde, em Viena. Apresentou-me algumas vedetas com que se dava o melhor possível. Na companhia de um decorador, visitámos juntos os escritórios que ele pretendia alugar.
-E foi nessa altura que te anunciou que o arrendamento deveria ser feito em teu nome.
-Sim, por essa altura, mais dia menos dia. Explicou-me que, na sua qualidade de estrangeiro, não queria que o nome dele aparecesse e que, no fundo, se tratava apenas de uma questão de confiança entre nós dois. Uma vez que era ele que entrava com os capitais, eu não arriscava nada. Na véspera, levou-me ao alfaiate dele e parece-me que ainda estou a ouvi-lo dizer:?v
-Meu caro, em Paris, só existem duas espécies de pessoas: as que são vestidas pelos grandes alfaiates e as outras. O que lhe tem faltado até hoje é um alfaiate. Quando sair das mãos do meu, sentir-se-á um homem
-Perante quem foram assinados os contratos?
-Foram assinados na presença do advogado dele, um
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estrangeiro também, que não está inscrito em Paris e que morava num hotel da Avenida Friedland.
-És tu o administrador responsável da CIF?
-Sim, sou eu.
-Recebeste um determinado número de acções?
-Recebi em teoria, mas, por meio de uma contra-escritura confidencial, cedi-as a Nicolas. O mesmo se passa com os meus honorários, que, no papel, são astronómicos, mas cujo montante é corrigido por um contrato assinado depois e que anula o anterior
-Apesar de tudo isso, levaste dois anos até descobrires que eras um testa-de-ferro?
-E provavelmente teria demorado mais tempo ainda a desconfiar, se não tivesse surpreendido uma conversa entre Nicolas e Ozil.
-Quem é Ozil? Onde mora?
-No Grand Hotel. Só me encontrei com ele várias semanas depois da nossa instalação. Serge apresentou-mo como um amigo, um homem muito rico, influente, com interesses na maior parte dos países da Europa e na América.
-Que idade tem ele?-À volta de quarenta anos. Parece um levantino. É muito gordo, mole, e anda sempre extremamente bem arranjado, a tal ponto que parece maquilhado como uma mulher. Passa parte do tempo metido em banhos turcos. Todos os objectos que tira dos bolsos, a cigarreira, o isqueiro, o canivete, o porta-chaves, são de ouro. Nunca o vi a não ser a sorrir, com um sorriso de Buda, e afecta sempre a maior delicadeza.
Notei que telefonava muitas vezes e que, quando
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vinha aos Campos Elísios, Serge se fechava com ele no seu gabinete, mandando dizer que não estava para ninguém.
-Notei também que Serge nunca decidia nada imediatamente, guardando sempre a resposta para o dia seguinte.
-Vamos dormir sobre o assunto, meu caro! -dizia
ele, sorrindo.
-Em resumo, na tua opinião, era Ozil a figura principal?
-Estou convencido disso.
-Que disseram eles a teu respeito?
-Ozil inquietou-se com o que poderia acontecer se eu descobrisse tudo, mas Nicolas respondeu-lhe que não havia perigo de eu descobrir fosse o que fosse, por ser uma pessoa demasiado simplória.
-É tudo?
-É tudo.
-E como é que queres que eu extraia disso uma defesa?
Confuso e perplexo, Houard fitava Bauche com uma surpresa contristada.
-Queres explicar-me porque é que, se as coisas se passaram realmente como acabas de mas contar, foi Nicolas que mataste e não Ozil? Em resumo, aquilo de que os acusas é de se terem servido de ti, enganando-te, e de te terem nomeado administrador de uma empresa fraudulenta a fim de lançarem sobre ti todas as responsabilidades em caso de acidente.
Reduzido a tais palavras, o caso parecia sem dúvida ridículo.
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-Antes do mais, teremos de provar que o negócio é fraudulento.
-Isso é fácil.
-Como?
-á já a história do filme que ardeu e que estava seguro numa quantia enorme. Era um filme muito mau. Mais tarde, compreendi porque é que o Nicolas parecia não se preocupar nem com os actores nem com a realização. Fizera à volta do filme uma publicidade desproporcionada, como só ele sabia fazer, de modo a obter contratos com os distribuidores. Sabe como são estas coisas, não sabe?
-Enfim, mais ou menos. Continua.
-Se o filme tivesse chegado a ser exibido seria uma catástrofe e a CIF teria de fechar as portas. Ora, o negativo ardeu num incêndio, e o inquérito da companhia ainda não foi encerrado. Não têm provas. Hesitam. Um dos inspectores deles, que parece muito bem informado sobre questões de cinema, falou comigo umas dez vezes, procurando-me no meu gabinete. Foi cortês, mas insistente, e colocou-me algumas perguntas embaraçosas. Também ele quis saber como é que eu me tornara administrador, o que fazia antes, chegando até a falar como que por acaso da minha mulher.
-Isso foi quando?
-A última visita data de há dez dias. Disse-me que voltaria a aparecer.
-E o que é que Nicolas dizia?
-Dizia que o caso não tinha a menor importância e que o homem tinha de ganhar a vida cumprindo as suas obrigações profissionais.
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-É tudo?
-Tudo, o quê?
-Tudo o que tens contra ele, para além da história com a tua mulher? Bem vês, meu rapaz, isso continua a não explicar porque é que não foi Ozil que mataste, uma vez que tu próprio reconheces que era ele, mais do que provavelmente, o chefe supremo.
-Foi Nicolas quem transtornou toda a minha vida.
-Levou-te ao alfaiate dele, deu-te dinheiro, convidou-te para os melhores restaurantes e boites. Foi por isso que começaste a querer-lhe tanto mal que o mataste na cama a sangue-frio? Porque esse ponto, repara, tem igualmente a sua importância. Deixa-me falar. Conheço os tribunais, sei como reagem os jurados e o que os impressiona. Se o tivesse morto num bar, por exemplo, no decurso de uma orgia bem regada de champanhe, o caso seria completamente diferente. Mas não! Foste a casa dele. Ele estava lá à tua espera, confiante. Confessaste que ele sabia que tu lá ias, que te deixou a porta aberta. Além disso, sabias que ele estava doente.
-Isso não o impediu de fazer amor com a secretária.
-Mesmo que o pudesses provar, o que me parece difícil, isso nada mudaria quanto ao resto. Era um direito dele, desse homem. Eras tu que não tinhas o direito de o matar na cama, com o revólver dele, ainda por cima!
-Se o não tivesse feito, ia na mesma para a prisão, e Passava por vigarista e por patife.
-Isso também não está provado. E se o provares, responder-te-ão que tinhas juízes a quem te podias dirigir.
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Vê se compreendes bem que faz parte do meu papel dizer-te todas estas coisas. Até aqui, tanto quanto sei pelo que me contaste, reagiste como um garoto durante os interrogatórios. Se me tivesses mandado chamar mais cedo, eu ter-te-ia impedido de dizer tanta asneira. Mataste Nicolas porque estavas com ciúmes.
-Não é verdade!
-Com ciúmes não só por causa de Fernande, mas ciúmes dele. Acabas de o demonstrar pela maneira como falaste do que se passou entre ele e a secretária. É tua amante, ela?-Não.
-E nunca houve nada entre vocês?
-Não.
-Nunca a desejaste? Bauche continuou a dizer que não, mas baixando,
desta feita, a cabeça, e o advogado, tirando um grande relógio da algibeira, suspirou:
-A estas horas, a tua mulher deve estar com o juiz Bazin. Deus sabe o que lhe estará agora a contar, se estiver com o mesmo humor que mostrou esta manhã. Só iremos sabendo de tudo isso pouco a pouco, à medida que o juiz se for servindo do testemunho dela contra nós. O que é que lhe fizeste, à Fernande, para ela te detestar tanto? Ela ainda gostava de Nicolas?
-Talvez, à sua maneira.
-E de ti, não gostava?
-Precisava de mim.
-Porquê? Para ser Madame Bauche? Por causa do teu dinheiro?
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-É claro que não. Mas, seja como for, precisava de mim. Repare, monsieur Houard, ela é muito infeliz.
-Tenho sobretudo a impressão de que ela é a tua infelicidade.
-Não tem culpa. Não lhe levo a mal por isso.
-Então, era só a Nicolas que querias mal?
Por vezes, dir-se-ia que o advogado estava prestes a zangar-se. Não como nos zangamos com um adulto, com um ser razoável, mas como nos zangamos, contra vontade, com um garoto teimoso.
-Tenho de a ver e de falar com ela directamente.
-Isso não servirá de nada.
-Servirá pelo menos para descobrir o que tem ela lá dentro (!) .
Nem se dava conta da pesada ironia das suas palavras.
-Bom, vamos lá ver, viveste com ela durante cinco anos?
-Sim.
-E desses cinco anos, quatro casado com ela?
-Sim.
-Quantos Nicolas houve na vossa vida durante esse tempo todo?
Bauche fez de conta que não notara estevossa.
-Não os contei.
-Estavas de acordo com a situação?
-Fiz tudo o que pude.
-O que é que te impedia de te divorciares? És católico?
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-Não. Mas não podia passar sem ela.
-E agora? Vais ter que passar mesmo sem ela, ou não será assim?
Houard arrependeu-se acto contínuo da sua exaltação, da frase cruel que acabava de pronunciar, vendo Bauche fitá-lo com olhos aterrados. Era capaz de jurar que ele ainda não pensara nesse aspecto do problema, que não via senão as paredes nuas que o rodeavam e o postigo de ferro na porta.
...passar sem ela! -repetiu ele.
-Não te faças tolo, está bem? Tenta ser um homem. Vai sendo tempo.
Mas Bauche já não o escutava, já não ouvia senão as sílabas que caíam uma a uma, e sem sentido. Depois de, um silêncio, murmurou:
-Talvez nos chamem.
-Chamar-nos? Onde?
-Lá em cima. Junto do juiz. Não disse que ela lá devia estar?
-Quando nos disserem para subirmos, é mais que provável que ela já lá não esteja. E nessa altura terás de responder de uma vez por todas à pergunta que eu te fiz.
-Que pergunta?
-Porque é que mataste Serge Nicolas?.
-Já lhe disse.
-Se achas que sim, mais vale que te consideres a partir de agora condenado à morte. Ouve, filho. Há trinta anos que estou inscrito na Ordem. Não sou uma estrela-Não defendi causas célebres e o meu retrato não aparece muitas vezes nos jornais. Mas, apesar de tudo, tive de defender um certo número de miúdos como tu, que
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tinham feito as suas asneiras. A diferença é que não lhes conhecia o pai e não levava os casos tão a peito. Tens mãe, avós, uma irmã. Não estou a tentar comover-te. Tens-te sobretudo a ti próprio. Que idade tens?
-Vinte e seis anos.
-Bom! Vamos deixar de lado tudo o que contaste até agora a estes senhores, estás a perceber? Quando alguém acaba de passar pelo que tu passaste desde ontem à noite não fica necessariamente senhor do seu bom senso. E isso encarrego-me eu de explicar. Por uma razão ou por outra, esforçaste-te por manter a tua mulher fora desta história. Gostas dela, bom! Não será a primeira vez que ouço falar assim. Isso não a impede de ser uma puta, coisa que toda a gente sabe. Talvez passes por um simplório se confessares que mataste por ciúme e eu chego a perguntar-me se não é isso o que te está a tolher.
Bauche sacudiu negativamente a cabeça.
-É-me indiferente passar seja pelo que for aos olhos dos outros -murmurou, quase sem mexer os lábios.
-Nesse caso, deixa-te passar por um palerma e deixa-me a mim salvar-te a cabeça.
-Direi a verdade.
-Que verdade? Aquela que repisaste diante de mim? A tua história do homem de bem que, de repente, se apercebe de que foi enganado? Em primeiro lugar, um homem de bem não passa o tempo a repetir que é sério e tu tens sempre a boca cheia de palavras desse género. O que é que o comissário te disse? Que perdeste a cabeça por Nicolas se ter desinteressado da tua mulher e se Mostrar menos generoso.
-Isso não é verdade!
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-Então, meu rapaz, diz-me lá de uma vez por todas o que é que é verdade. Porque isto às vezes chega a parecer uma brincadeira. Só te esqueces de uma coisa: é que ontem à noite, a esta hora, havia um homem novo, perfeitamente vivo e feliz, a tratar de uma inflamação da garganta na cama e a ler um argumento de cinema. Foste tu, sim ou não, que se dirigiu a casa dele para o abater com um tiro na cabeça, e depois, não contente
com isso...
-Basta, por favor! Julguei que tinha vindo para ajudar a defender-me.
A cólera do advogado desapareceu bruscamente e ele
assumiu um ar tristonho.
-É isso mesmo que eu estou a tentar fazer, imbecil! Não é minha a culpa se a tua obstinação me faz perder
a cabeça. Estou errado. Provavelmente, estamos errados os dois, e é possível que a última palavra pertença, afinal, aos médicos, amanhã.
-Acha que eu estou louco?
-Começo a ter essa esperança. Seria o meio mais seguro de te safar e...
O advogado ouviu então os passos do guarda no corredor, levantou-se, recolheu a sua papelada.
-Vamos! É a nossa vez.
Depois, muito baixinho, enquanto a chave girava na
fechadura:<
-Por favor, não continues a responder como até aqui tens feito. Se não és capaz de falar de outra maneira, fica calado, sejam quais forem as conclusões que eles possam tirar.
Bauche ficou, com efeito, calado, ou, mais exactamente,
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respondeu apenas, quase o tempo todo, com um sim ou um não, sem se preocupar com as contradições que isso implicava. Não agia desse modo para seguir os conselhos de Houard. Nem uma vez durante o interrogatório, que durou cerca de duas horas, porque voltaram a ler-lhe as suas respostas às perguntas de Orléans e do Quai des Orfèvres, nem uma vez virou o olhar para o advogado, mas este estava satisfeito e Bauche quase tinha vontade de sorrir ao ver que a satisfação de Houard se devia a um engano.
É que ele desistira simplesmente do jogo. Pelo menos na medida em que lhes dizia respeito. Deixara de se interessar pelo que se passava. Já não lhe parecia ser o actor principal e distraía-se, ocupava-se de pormenores insignificantes, como, por exemplo, a caneta do escrivão, cuja marca tentava adivinhar, e durante muito tempo ficou à espera, com uma impaciência infantil, de que uma longa cinza branca acabasse por cair do charuto do juiz.
Sentia calor. A própria luz era quente. As suas mãos estavam livres das algemas e Bauche dava por si a acariciar voluptuosamente os pulsos doridos. Houard passara-lhe uma caixinha de pastilhas de hortelã-pimenta que ele ia chupando devagar, como se estivesse numa sala de cinema.
Não valia a pena discutir com eles. De resto, tinham em parte razão -dera-se disso conta havia pouco, quando o advogado lhe falara cheio de veemência. Para dizer a verdade, começara a suspeitar disso mais cedo, desde a véspera. Não logo a seguir a ter matado. No automóvel estava ainda sob o efeito da sua exaltação. Não pensava que tinha vingado a sua honra, por
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que deixara já essas ideias para trás das costas, mas a maneira como via o seu gesto continuava a ser dramática.
As suas dúvidas, ainda vagas, confusas, tinham começado na taberna de Ingrannes. Depois, em Orléans, e provavelmente por causa da rapariga dos seios grandes, sentira-se ainda menos seguro de si.
Tinha de recomeçar tudo, eis o que ele acabava de decidir, como se rasgasse a folha de um caderno. Faria esse trabalho sozinho, na sua cela. Era uma tarefa longa e difícil. Mas, fosse como fosse, prepararia a história e conseguiria revelar essa verdade que toda a gente reclamava dele, como se lhe pedisse contas.
Na chaminé do fogão havia um relógio de mármore preto. De início, pensara que não funcionasse, uma vez que esse género de relógios quase nunca funciona (havia um assim, na sala de jantar de Grau-du-Roi, um relógio que por vezes alguém se entretinha a reparar e que voltava a parar ao cabo de dez minutos) mas, passado um pedaço, notou que o ponteiro avançara perto de um quarto de hora.
Às cinco e meia, começara a sentir o sangue subir-lhe à cabeça, a impacientar-se quase, como se tivesse pressa de chegar à hora exacta em que, na véspera, matara Nicolas. Lembrava-se, minuto a minuto, do que tinha feito, das palavras que dissera, ao sair, a Annette. E, a propósito de Annette, mentira quando afirmara nunca a ter desejado. Fora por isso que baixara a cabeça. Desejara-a algumas vezes e, sobretudo, quando sabia que Nicolas acabava de a possuir, como tinha sido o caso na véspera.
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Tentara tomá-la, uma vez, no seu gabinete, enquanto lhe ditava algumas cartas sem dar atenção ao que fazia. Estava um dia quase tão quente como os de Grau-du-Roi. Annette saíra havia menos de uma hora do gabinete de Serge, onde Bauche sabia de certeza certa o que se passara. Mas, perante a tentativa dele, ela afastara-se calmamente e dissera-lhe sorrindo com frieza:
-Não me diga que é desses, monsieur Bauche!
Ele não percebera bem. Annette não era amante de Nicolas, no sentido habitual do termo; estava, aliás, noiva de um rapaz que trabalhava na rádio, dois andares mais abaixo, e que todos os dias a esperava à saída do emprego. Aceitava que Nicolas a possuísse assim, de passagem, num canto do gabinete ou no braço de uma poltrona, mas chocava-a a ideia de fazer com ele a mesma coisa.
-Se bem entendo, não se arrependeu nem por um momento do seu acto?
-Não, monsieur.
O advogado devia estar a tentar fazer-lhe sinal, mas isso não o interessava.
-Continua a sentir o mesmo agora?
Provavelmente por Bauche ter os olhos presos ao relógio, o juiz virou um pouco a cabeça, viu que eram seis menos um quarto, estabeleceu a ligação com os acontecimentos da véspera.
-Penso que sim, senhor doutor juiz.
-Por outras palavras, se nada se tivesse passado ontem, se tivesse saído hoje do seu escritório, a estas horas, para ir à Rue Daru, enfim, se as mesmas oportunidades
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voltassem a apresentar-se, teria agido da mesma maneira?
-Não sei.
-Porque é que já não tem a certeza?
Certeza? A palavra impressionara-o com a sua consonância. Durante alguns segundos procurou acertar com o que queria dizer.;
-Também não sei.
-Não teria sido, por acaso, a reacção da sua mulher que o impressionou?
-Não. O juiz e o advogado trocavam olhares e Houard começava a reconquistar a esperança.;
-A atitude dela não o afectou?
-Já estava à espera. Apesar de tudo, não esperara pelas bofetadas. Mas
nunca esperara que Fernande lhe caísse nos braços. Isso ficaria para mais tarde. A seguir, voltaria a odiá-lo. Com ela, era sempre assim. Era fatal. Não valia a pena estar a explicar-lhes.
-Onde estava ontem a estas horas? O relógio marcava pouco mais de seis menos dez. "
-Se este relógio está certo, devia estar a subir as escadas da casa da Rue Daru.
-Não gostava de ser ainda o homem livre que nesse momento era?
Bauche reflectiu. Estavam à espera da resposta deleComo um mestre-escola preocupado com o seu aluno diante do inspector do departamento, Houard tossiu; Bauche deu-se conta disso, mas desprezou o aviso.
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-Prefiro que tenha acontecido assim -disse ele. Ouviu um suspiro. Depois, o advogado levantou-se e
falou baixo ao ouvido do juiz. Este escutou, observando Bauche, e acabou por sacudir a cabeça com o ar de quem diz:
-Quem sabe se você não terá razão?
Em seguida, preencheu um formulário administrativo que passou ao escrivão.
-Isto é para entregar amanhã, de manhã cedo, na Enfermaria Especial -acrescentou, dirigindo-se para o armário onde guardava a roupa. -Dê a assinar o processo verbal.
Bauche tinha a impressão de ter fechado uma porta, sentia-se contente com isso e tinha pressa de gozar a sua solidão.
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Soube, a partir do primeiro olhar que trocaram, que com aquele homem seria diferente. Eram uns dez quando ele entrara e reconhecera-o imediatamente como o mais importante dos dez, embora houvesse dois ou três da mesma idade.
Não parecia cuidar da aparência. Lembrava até certo ponto o inspector de Orléans, vestuário desleixado, toilette pouco cuidada, indiferente ao seu corpo e ao seu aspecto. Tinha os dentes amarelos e, por cima dos lábios, uma mancha castanha pouco convidativa, resultado provável de fumar os seus cigarros até mesmo ao fim.
Só que havia também os olhos, e bastara-lhe virá-los para Bauche para que este compreendesse. Eram uns olhos como os que se vêem nos quadros, nas figuras de monges da Idade Média, ao mesmo tempo implacáveis e doces. Viriam a ser inimigos? Bauche tentaria resistir ou usar de astúcia? Ainda não decidira nada, mas sabia que um homem acabara de tomar de certo modo posse dele.
O resto dependeria de ele se debater ou não se debater, de dizer a verdade ou de, pelo contrário, tentar fazer batota.
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Fosse como fosse, a partida decisiva começara.
Já desde a véspera à tardinha, Bauche era um verdadeiro preso. Não dormira no Quai des Orfèvres mas na Santé, onde ficava a sua cela e onde o tinham posto ao corrente das regras, como no liceu se fazia a um novo aluno.
De manhã, fizera a cama, limpara o quarto. Depois, tinham-no vindo buscar para o instalarem, na companhia de outros homens que ele apenas pudera entrever, numa carrinha celular.
Estava de novo no Palácio da Justiça. Não suspeitara de que os respectivos edifícios constituíam um autêntico universo. Acontecera-lhe, outrora, entrar por curiosidade nas dependências de um tribunal de polícia correccional, e um advogado convidara-o para almoçar no bufete da cave. Na véspera conhecera as instalações da Polícia Judiciária, depois a secção de antropometria e, por fim, a zona ocupada pelos juízes de instrução.
Esta manhã não estava em nenhum desses domínios. Antes de o introduzirem na sala tinham-lhe tirado as algemas e o guarda fardado que o acompanhava ficara, numa atitude de respeito, cá fora.
Aquilo parecia-se vagamente com uma sala de aula. Havia um estrado, com uma mesa em vez da secretária escolar, duas cadeiras, um quadro preto, uma tela enrolada que deviam desdobrar para proceder a projecções luminosas.
Estava uma dezena de homens á espera dele, conversando uns com os outros e, em seguida, tomando lugar na sala, como se fossem assistir a um curso ou a uma conferência, e os mais jovens de entre eles eram com
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certeza estudantes. Dois outros dos presentes, pelo menos, tinham a mesma idade que o professor: à volta de cinquenta anos. Bauche teria tido desculpa se se enganasse, tanto mais que eram esses dois homens os que assumiam um ar mais importante.
-Sente-se, monsieur Bauche.
Ele sabia o seu nome. Bauche ignorava o dele e, durante toda a sessão, esperou que alguém o pronunciasse. Infelizmente, os outros tratavam-no por professor.
-Antes de mais nada, quero que se descontraia, que faça por sentir-se à vontade.
Havia uma coisa que o perturbava: a luz forte de uma lâmpada que o atingia em pleno rosto, deixando, em contrapartida, quase toda a sala na penumbra. Sob os restantes aspectos, aquilo era bastante agradável. Gozava, aqui, de um sentimento de segurança, sabendo que não falaria a menos que desejasse realmente fazê-lo. E talvez o desejasse de facto. Dependia. Não tinha pressa de tomar uma decisão.
-Sabe porque é que está aqui connosco?
-Sim, professor -respondeu ele com uma voz clara, que o fez sentir-se satisfeito.
Pensava que era hábil da sua parte dar-lhe oprofessor, mostrando-lhe que compreendia, que estavam os dois a par das regras do jogo.
-E não quer explicá-lo a estes senhores?
-Estou aqui a fim de me ser aplicado um teste destinado a avaliar do meu estado mental.
Bauche estava muito mais lúcido do que estivera Perante o juiz, o comissário ou mesmo o inspector de Orléans.
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-Qual é a sua opinião pessoal acerca desse ponto?
-Tenho a convicção de estar são de espírito.
-Importa-se de nos falar do seu pai? O seu pai ainda é vivo?
-Não. Morreu há sete anos.
-Morreu de quê?
-O médico de Grau-du-Roi falou de urémia. O meu pai era inválido de guerra. Foi amputado de um braço em 1918.
-E, para além disso, teve outras doenças graves?
-Nunca.
-E a sua mãe?
-Foi operada a um cancro do seio há três anos, mas antes disso nunca tinha estado doente. Os pais dela ainda estão vivos e vivem com ela.
-Tem irmãos? Irmãs?
-Uma irmã. Com a excepção da tosse convulsa, què eu saiba, nunca teve outras doenças.
-Tem filhos, ela?
-Dois. Ambos saudáveis. No fundo, Bauche dava-se conta de que nada daquilo
interessava o professor, que se tratava de simples rotina, mas servia para os dois estabelecerem um primeiro contacto. .,
-E o senhor que doenças teve em criança?
-Tive sarampo antes de ir para a escola; depois, por volta dos onze anos, tive também papeira.
-Serviço militar? Bauche corou e respondeu que o não fizera.
-Por que motivo ficou livre?
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-Debilidade cardíaca. Já não sei ao certo que outro nome lhe deram.
-O seu pai já tinha morrido?
-Tinha morrido muito pouco tempo antes de eu comparecer na inspecção.
-Conhecia o médico que o viu?
-Sim. A minha mãe tinha ido falar com ele.
-Porquê?
-Para lhe pedir que me livrasse. Explicou-lhe que eu era o único sustento da família.
-E o senhor era realmente o sustento da sua família? Quero eu dizer: ajudava com dinheiro a sua mãe?
Bauche não hesitou mais do que um segundo, compreendendo que se diminuiria mentindo.
-Não. Pelo contrário.
-Estava ao corrente dessa diligência dela? Achou bem que ela a fizesse?
-Na altura sim. Fui eu que lhe pedi que fosse falar com o médico. Tínhamos a certeza de que o maire nos apoiaria também. Era um grande amigo do meu pai, que o tinha ajudado na eleição.
-E depois?
-De princípio, senti-me satisfeito, porque ficar livre permitia-me vir imediatamente para Paris. Depois, espantei-me por ter sido tão fácil.
-Tinha ficado inquieto?
-Sim. Perguntei a mim mesmo se não seria realmente doente do coração.
-Consultou outros médicos?
-Na altura, não. Não tinha dinheiro.
-E mais tarde?
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-á cerca de três anos, sim. Consultei quatro médicos, que me observaram a fundo e me afirmaram que o meu coração era perfeitamente normal.
O professor teve o ar de quem encerra um capítulo; olhou para os outros, vendo se eles queriam fazer alguma pergunta; acendeu outro cigarro, depois de apagar a beata com a sola.
-Fale-nos da sua infância.;
-Nasci em Montpellier. O meu pai era chefe de armazém de uma drogaria por grosso.
-A sua irmã é mais nova do que o senhor?
-Dois anos mais nova, sim.
-Que género de vida faziam os seus pais em Montpellier?
-Primeiro, sei que'vivemos num apartamento, mas não me lembro de nada, porque o deixámos a seguir ao nascimento da minha irmã para nos instalarmos numa casinha dos arredores. Fui mandado para a escola comunal. Isso já foi durante a guerra. Havia muitos soldados a gozar licença ou convalescentes.
-Isso impressionava-o muito?
-Os soldados? Não. Acho que não. O meu pai também era soldado. Eu vivia com a minha mãe e com a minha irmã, e íamos muitas vezes a casa dos meus avós, e, mais raramente, a casa de um irmão da minha mãe que trabalhava numa fábrica.
-Que ideia fazia do seu pai? -A que ainda hoje faço. Era um homem de bemToda a gente gostava dele. Em Grau, era uma figura quase mais importante do que o maire. Por altura das eleições, os candidatos começavam sempre por visitar a
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nossa casa, porque o meu pai dispunha dos votos de todos os antigos combatentes.
O professor devia ter diante dos olhos os processos verbais dos interrogatórios, porque de vez em quando olhava para os papéis e era ele quem explicava aos outros, como se quisesse ganhar tempo:
-Os Bauche instalaram-se em Grau-du-Roi, em casa dos avós, quase logo a seguir ao armistício. O pai foi ferido durante os últimos dias da guerra e amputado do braço esquerdo na sequência de complicações que só surgiriam algumas semanas mais tarde.
O professor fumava sem interrupções o seu cigarro, que Bauche via diminuir com uma rapidez surpreendente.
-Que se passou em Grau-du-Roi?
-Fui para a escola.
-E era bom aluno?
-Em Montpellier, era sempre um dos dois primeiros. Em Grau, tornei-me um aluno médio. Depois, no liceu, era dos últimos e tive de repetir o último ano.
Achava natural contar-lhes tudo aquilo. Sabia de que ponto de vista aquelas coisas os interessavam, tinha a impressão de compreender o porquê de cada pergunta e decidira-se a colaborar.
-Tem alguma ideia acerca das razões dessa mudança?
-Talvez. Foi uma coisa que também me impressionou. Em Montpellier, pensava que tinha de trabalhar, que toda a gente tinha de trabalhar, sobretudo as pessoas Pobres e sérias; e a minha mãe estava sempre a repetir que nós éramos pobres e sérios. Via as pessoas que moravam na nossa rua saírem de manhã cedo para os Seus escritórios.
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-E em Grau?
-Os pescadores iam à pesca, evidentemente, mas eu não considerava isso como um trabalho, tanto mais que eles voltavam às oito da manhã e passavam o resto do dia a vaguear pelo molhe, a arranjar as redes e a dormir. O meu avô veio morar connosco, e era por prazer, não porque precisasse disso, que passava o tempo a pôr qualquer coisa mais na casa. Chegava a ser ridículo.
-E o seu pai?
-O meu pai era inválido.
O professor, pelo seu lado, compreendera que, apesar de tudo, ele teria podido continuar a trabalhar.
-Tinha amigos?
-Todos os miúdos de Grau eram meus amigos. Companheiros nunca me faltaram, era só escolher.
-Se bem o entendo, a sua família era muito popular na terra.
-Sim. No Verão, as pessoas que vinham de férias, quase todas, num momento ou noutro, eram recebidas lá em casa. O meu pai fazia-lhes sopa de peixe. Apesar de ter um braço a menos, era o melhor no jogo das bolas e estavam sempre a vir buscá-lo para uma partida.
-Nunca lhe passou, nessa altura, pela cabeça que lhe seria possível ter uma existência diferente?
-Não sentia vontade de mudar.
-A sua mãe era severa consigo?
-Não se atreveria. O meu pai não teria deixadoAcontecia-lhe dar-me um berro ou um par de bofetadas, mas, cinco minutos depois, já estava arrependida.
Com que idade se tornou púbere?
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-Com doze anos.
-asturbava-se?
-Sim.
-uitas vezes?
-Isso era por fases. Havia fases em que sim. Depois, ficava muito tempo sem voltar a fazê-lo.
-Com que idade teve pela primeira vez relações com uma mulher?
-Com quinze anos.
-Onde é que isso se passou?
-Numa casa de passe de Montpellier, onde eu fora já com essa intenção. Não me atrevia a ir a Nímes, porque tinha medo de ser visto por alguém do liceu.
-E antes não tinha tido nenhuma experiência com raparigas?
Desta vez, Bauche hesitou longamente. Estivera a pensar por muito tempo, na véspera à noite, antes de adormecer. Coisa curiosa, a presença dos estudantes e dos outros dois na sala não o incomodava -pelo contrário. Se estivesse a sós com o professor, teria sido muito mais difícil.
O que é que ele arriscava? Sentia-se suficientemente seguro de si para dizer apenas o que quisesse dizer e para se deter assim que o decidisse. De resto, estava persuadido de que o professor adivinhara alguma coisa. O pai, por vezes, olhava-o do mesmo modo, sem nada dizer, e isso significava invariavelmente que já sabia. Com a mãe, que, pelo contrário, lhe fazia pergunta atrás de pergunta e recorria à mentira para saber a verdade, Bauche Podia, em contrapartida, fazer batota a seu gosto.
-Aconteceu-me muitas vezes ver uma mulher a fazer
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amor -disse ele, erguendo a cabeça para que vissem bem que estava a ser sincero e que se sentia à vontade.
-Sempre a mesma?
-Sim.
-A sua mãe?
-Não. Era a filha de um pescador que costumava jogar com o meu pai, um tipo de origem italiana. Uma das irmãs era criada no hotel durante o Verão. Quanto à mulher de que estava a falar, trabalhava a dias, ou melhor, à hora, em casa deste e daquele, conforme calhava.
Deixavam-no prosseguir sem o interromperem e, agora que começara, sentia-se de novo presa da sua preocupação de minúcia e exactidão.}
-Ainda muito novo, já tinha ouvido falar dela, porque os miúdos da escola conheciam-na. Tinha entre dez e onze anos, mais perto dos onze, porque, se bem me lembro, estava no último ano, quando, um dia, fui com os outros. Ela chamava-se Anais. Deitava-se com os homens todos. Diziam que nela aquilo era uma espécie de doença. Nunca trazia calcinhas por baixo da saia, era uma coisa que toda a gente sabia, e, quando lhe perguntavam a razão disso, respondia sempre:
-O tipo muda de opinião tantas vezes antes de eu poder despir-me"!
Não era bonita, mas também não era feia. O pior que havia nela era um grande nariz achatado de negra, mas tinha os olhos pretos e brilhantes, e a boca grossa estava sempre a rir."
Dir-se-ia que ignorava por completo o que fosse ter vergonha.
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Bauche não tinha vontade de parar. Só a Fernande se atrevera a falar de Anais, e errara ao fazê-lo, porque um dia a mulher dissera-lhe:-Bem vês que sempre gostaste que fosse assim! Tinha de escolher bem as palavras, para não sugerir uma ideia errada aos que o ouviam.
-avia dois sítios que eram, por assim dizer, os cantos de Anais. Primeiro, o fim da praia, do lado das dunas, na orla das primeiras vinhas. Víamo-la andar ao longo da água, e quase sempre vestindo uma saia vermelha; andava sempre sozinha, porque os homens, embora se dispusessem de boa vontade a fazer amor com ela, preferiam não ser vistos na sua companhia. O outro sítio ficava perto do canal, não muito longe de uma casa, entre dois altos de terra. Foi aí que a vi pela primeira vez, com um pescador de dezoito anos, irmão de um dos meus companheiros de escola.
-E ela sabia que a estava a ver?
-Escondíamo-nos. Mas muitas vezes, quando eles já estavam lançados, levantávamo-nos aos gritos. Alguns dos homens ficavam furiosos. Outros continuavam. Outros ainda tentavam afastar-nos à pedrada.
-Impressionava-o vê-los a fazerem aquilo?
-Na altura, não. Pelo menos, não me dava conta. Entre nós, rapazes, ríamo-nos e dávamos cotoveladas uns aos outros. Mas, quando voltava para casa, apanhava-me a pensar no ventre e nas coxas dela.
-Só no ventre e nas coxas?
-Sim. Acho que sim. Ainda hoje vejo esse ventre e essas coxas ao sol, porque estava quase sempre sol. Tinha amigos de catorze anos que me diziam que já tinham
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estado com ela e eu não acreditava. Mais tarde, soube que era verdade.
-E tinha vontade de experimentar também?
-Sim. Mas não me atrevia.
-Porquê?
-Não sei ao certo. Sentia-me incomodado. Tinha medo de a ver rebentar numa gargalhada.
-Uma pergunta. Mais tarde, já homem, continuou a ter medo de que as mulheres se rissem de si?
-Acho que sim. Muitas vezes. Quase sempre.
-E contudo, sabia que Anais não fazia troça daqueles que iam ter com ela?
Aquilo obrigava-o a reflectir.
-Com alguma paciência, suponho que teria podido ir ter com ela sem ser visto pelos seus companheiros, não é verdade?>
-Tentei. No último momento, não tive coragem de me mostrar.
-E o facto de a ter visto com outros homens causava-lhe repulsa?
Bauche respondeu muito depressa:
-Não! Pelo contrário! O professor não tugira nem mugira, mas Bauche teve a
sensação de que acabara de se trair.
-Quando a via de regresso -continuou, sem poder parar o que começara -sentia-me mais excitado do que quando a via ir... Parecia-me...
-Parecia-lhe o quê?
-Não sou capaz de explicar. É uma coisa vagaAquilo tinha qualquer coisa de misterioso.
-Nunca se deitou com ela?
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-Sim, uma vez, muito depois.
Esteve quase a não falar do pai, mas, justamente porque o professor o olhava da mesma maneira, não quis enganá-lo. Havia pouco ainda, decidira que o faria se isso se tornasse indispensável, e acerca de pontos importantes, mas não de pormenores daqueles. Aliás, Bauche começava a ficar ansioso, interrogando-se sobre as reacções do professor, sobre o seu diagnóstico.
-O que me fez esperar por tanto tempo foi o facto de um dia ter visto o meu pai voltar do esconderijo junto ao canal e fazer um ar incomodado por me encontrar no caminho. Nunca tive a certeza absoluta. Estou, no entanto, convencido de que também ele, pelo menos dessa vez, fora ter com Anais.
-Ficou zangado com o seu pai?
-Não. Porquê?
-Mas, em todo o caso, isso travou-o...
-Tive medo de que ela dissesse alguma coisa.
-Que ela o comparasse com o seu pai?
-Não sei, acho que não, mas a coisa parecia-me ainda mais difícil do que antes.
-Mas continuava a ter vontade de ir ter com ela?
-Sim.
-Era nela que estava a pensar quando foi pela primeira vez à casa de passe de Montpellier, não era?
-Sim. No ventre e nas coxas dela. Depois, sempre que ia a uma casa de passe, procurava uma mulher que tivesse mais ou menos a mesma conformação. A encarregada metia-se até comigo por causa disso.
-Que idade tinha quando fez amor com Anais?
-Cerca de dezassete anos. Aconteceu por acaso. Eu
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não sabia que a ia encontrar atrás do barco, na praia sem ninguém; os barcos, que se viam no mar, estavam longe de mais para nos incomodarem. Aproximei-me dela e possuí-a no mesmo instante, sem dizer uma palavra. >
-Com maldade?
-Como é que sabe?
-Sentia vontade de lhe fazer mal?.,,
-Sim. Tinha vontade de lhe bater. Mordi-a numa orelha e isso fê-la rir-se. Parecia surpreendida. Não ria abertamente, como eu sempre a vira rir. Depois, quando me encontrava no cais ou na rua, continuava a olhar-me com espanto. Foi por causa disso que não voltei a procurá-la e talvez também por ter medo de ser contagiado por ela..,.,.
-Isso nunca lhe aconteceu?
-Só uma vez. Ia interromper-se, mas o olhar do professor arrancou-lhe
o resto da confissão, que Bauche pronunciou numa voz mais neutra:
-Com a minha mulher.
Os seus auditores, todos eles, pareceram não prestar atenção a esse fragmento de frase, que a Bauche se afigurava de uma importância capital. Havia um, alto e magro, com óculos de lentes grossas, que não se dava ao trabalho de levantar os olhos e escrevia furiosamente num caderno. Outros contentavam-se com tomar um apontamento de quando em quando. Um dos mais velhos, com as pernas e os braços cruzados, a cadeira inclinada para trás, olhava-o com um sorriso vago; dir-se-ia que estava no teatro.
Para além do professor, talvez fosse com esse que Bauche
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se preocupava mais, porque ele próprio tinha um pouco a impressão de estar no teatro, de ter que representar o seu papel, e sentia por vezes receio de frustrar as expectativas dos seus espectadores. Ficou desorientado quando um dos ouvintes mais jovens se levantou e saiu sem dizer nada, na ponta dos pés, como quem abandona um espectáculo aborrecido. Provavelmente, estavam à espera dele noutro lado qualquer. Mas não era menos verdade por isso que as dez pessoas que ali estavam a ouvi-lo podiam, lembrar-se a qualquer momento de encolher os membros, dizendo:
-Já chega!
Já teriam tido outros casos como o seu? Não teriam meios que lhes permitissem controlar o seu grau de sinceridade?
Bauche também não queria ter o ar de quem tenta parecer interessante a todo o custo. Se as coisas dependessem só dele, teria deixado agora de lado Anais e passado aos anos de Paris. Os outros ainda iam julgar que ele estava a comprazer-se naquilo como se não tivesse havido senão Anais na sua vida.
-Diga-me uma coisa, monsieur Bauche, quando sentiu vontade de lhe bater, conforme acaba de nos contar, sentia-se senhor de si?
-Bem, não me dei logo conta de que estava a mordê-la.
-Portanto, poderia ter-lhe feito alguma coisa mais? Em resumo, era tudo uma questão de mais ou de menos?
-Não percebo bem o que o professor me está a querer dizer...
-Suponhamos que, em vez de lhe morder, o senhor
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lhe atirava as mãos ao pescoço. O seu movimento impulsivo poderia tê-lo levado a estrangulá-la?
-Com certeza que não. -Explique-me lá porque é que tem tanta certeza?
-Porque... É difícil de explicar. Não era assim que me apetecia fazer-lhe mal. Acho que só lhe mordi a orelha por a ter ao alcance da boca. Não estava a pensar na orelha dela.
-Que acha então que teria sido capaz de lhe fazer, por exemplo?
-Ferir-lhe a carne.
-Que carne em especial?
-O ventre.
-Porquê? Para se vingar?
-De quê?
-Dos outros homens que tinha visto possuí-la.
Bauche não respondeu. Não porque não quisesse responder, mas porque a pergunta era tão inesperada que o deixava perplexo.
-Acho que não. Ela fazia aquilo com toda a gente!
-E o senhor não teria vontade de o fazer também com todas as mulheres?
-Sim. Mais ou menos.
-Quando lhe acontecia ver um homem e uma mulher saírem de certos hotéis não se sentia com ciúmes? -,
-Sim. Riu levemente.
-Suponho que todos os homens são assim, não é verdade?
Porque é que não lhe respondiam? Acabaria ele de lhes fornecer, sem dar por isso, uma indicação importante?
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Não seria uma pessoa normal? Ou, pelo contrário, estaria apenas a debitar banalidades que cansavam toda a gente?
De repente, sentiu-se inquieto, começou a agitar-se na cadeira e a tentar decifrar os rostos mergulhados na penumbra. O professor continuava a fumar cigarro atrás de cigarro, esmagando as beatas minúsculas no soalho. As pontas de cigarro formavam já um círculo à volta dele, como na sala de espera de uma estação de caminho de ferro.
-Beijou Anais ao possuí-la?
-Não me passou sequer pela cabeça -replicou Bauche, chocado.
-Não sentia por ela nenhum afecto, nenhuma ternura? Não sentia o desejo de se comportar com ela como, por exemplo, o seu pai com a sua mãe?
-Nunca.
-Também não sentia necessidade de falar com ela?
-Não, de falar com ela, não; sentia era desejo de brincar com ela.
-De brincar com o corpo dela?
-Sim. E de a ouvir rir. Apetecia-me que entrássemos, nus, os dois, no mar. Isso foi uma ideia que me atravessou muitas vezes o espírito.
-Em resumo, considerava-a como um animal?
-Não me preocupava com o que ela pensava. Só que, veja se compreende, eu não estava sempre a pensar nela. Digo isto porque, por esta conversa, pode parecer que mais nada contava para mim.
O professor sorriu. Os estudantes sorriram.
-Evidentemente, também arranjava tempo para
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comer, beber e dormir -ironizou o psiquiatra. -Até arranjou tempo para acabar o liceu!
Esta brincadeira descontraiu Bauche, que, na altura, teve a impressão de que estava a rir com eles.
-Sim. Fiz questão de dizer-lhe tudo, mas penso que não se trata de um ponto excessivamente importante. Aconteceu-me estar meses inteiros sem pensar nela uma única vez. Em Paris, quase a esquecera já. Foi sobretudo durante a noite passada, ignoro porquê, que a imagem dela me voltou ao pensamento. Talvez porque estava uma mulher ligeiramente parecida com ela no gabinete do inspector de Orléans...
-Porque é que isso o inquietou?;;; -Eu disse que me tinha inquietado?
-Ficou a pensar muito tempo no assunto e depois a tentar perceber.
-Tentar perceber o quê?
-Perceber-se a si próprio.
-Nesse caso, ainda não consegui! -disse Bauche a brincar, por seu turno. -E se tivesse de me inquietar com tudo o que me têm dito desde há vinte e quatro horas, acho que enlouqueceria a valer.
O tom tornara-se demasiado ligeiro, e o professor deve ter compreendido que não tiraria mais nada dele, que Bauche era agora como uma criança que excitaram de mais e que só continua o jogo por uma espécie de desafio.
-Está fatigado?
-Nem por isso, embora pouco tenha dormido nas duas últimas noites.
Quando o psiquiatra tirou o relógio do bolso, os estudantes
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perceberam que ele iria dar a sessão por encerrada, pelo menos no que dizia respeito a Bauche, e vários cadernos se fecharam ao mesmo tempo.
-Voltarei a vê-lo, provavelmente amanhã. Daqui até lá, um dos meus assistentes vai examiná-lo e recolher os dados necessários. Se tiver coragem para tanto, o exame poderá ser feito agora mesmo, porque parece-me que o juiz de instrução só conta consigo da parte da tarde.
-Estou pronto.
O assistente era o homem que, recostado na cadeira, tinha o ar de quem estava no teatro. Era bastante corpulento, sanguíneo, com um pequeno bigode castanho e a condecoração da Legião de Honra na botoeira do fato azul-marinho.
Havia três homens à espera na antecâmara, três desses indivíduos de rosto patibular que são apanhados nas rusgas e que Bauche vira, completamente nus, trocando gracejos obscenos, por altura do exame médico da véspera.
Iriam interrogá-los como o tinham interrogado a ele? Os homens olhavam-no com curiosidade, tentando ler na cara o que os esperava, e Bauche assumiu uma atitude de indiferença.
-Por aqui...
Tinham mudado de atmosfera e penetrado no espaço branco de uma clínica cheia de instrumentos brilhantes e de aparelhos complicados. O assistente tirou o casaco, envergou uma bata branca e pôs um estetoscópio nos ouvidos. Tinha o ar de um pacóvio gordo e entorpecido, realizando a sua tarefa de todos os dias.
-Dispa-se.
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Aquilo durou cerca de uma hora. O médico não lhe dizia nada, a não ser:
-Deite-se... Para cima... Levante-se... Respire... Não se mexa agora... Levante o braço direito... Dê cá o pulso esquerdo...
Depois, limitava-se a ir anotando os resultados do exame, a rotular as provetas, mas era impossível compreender o que ele escrevia, porque eram só letras e algarismos sem significado aparente.
Quando o entregaram de novo ao guarda, quando atravessaram o pátio que ele já conhecia e que voltou a descobrir com certo prazer, estava sol, e Bauche levantou os olhos para contemplar um pedaço de céu azul-claro.
Sentiu-se também contente por lhe darem a mesma cela da véspera. Compreendia que não o faziam voltar à prisão porque precisavam dele à tarde, no gabinete do juiz de instrução. Começava a habituar-se. Já não se achava de todo um caloiro.
Não estava muito preocupado com a sessão realizada da parte da manhã e, no conjunto, tinha a impressão de que se comportara como devia ser.
Mal começara a comer a sua tigela, quando o guarda abriu a porta, anunciando:
-Está aqui o seu advogado.
Houard vinha com um ar aborrecido. Não lhe apertou a mão e não lhe falou do exame da manhã.>
-A tua mãe veio cá -comunicou-lhe.
-Já a convocaram?'"
-Não. Chegou ontem à noite e andou à tua procura por todo o lado. Neste momento, está à espera no corredor
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diante da porta do juiz de instrução, que vai recebê-la. Foi ela que insistiu em falar com ele. Não sei se conseguirá uma licença de visita para hoje. É improvável. A menos que Bazin a deixe estar no gabinete na altura em que lá formos outra vez os dois.
-Já falou com a minha mãe?
-Sim. Já.
-Como está ela?
Houard só pôde responder, encolhendo os ombros:
-Como é que querias que estivesse?
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-Bauche reconheceu a voz da mãe através da porta, o advogado bateu, e ele viu-se diante dela, perturbado, sem saber que atitude tomar. A mãe estava sentada junto à janela, diante do juiz, e via-se que estivera a chorar: tinha ainda na mão um lenço amarrotado.
Compreendeu sem saber porquê que a mãe se lhe tornara estranha, que talvez sempre tivesse sido uma estranha, e, ao ver que ela não se punha de pé, que não lhe estendia os braços e o fitava com uma espécie de terror -de resto, não de todo sincero, pensou ele para consigo -, sorriu-lhe vagamente, murmurando: -Peço-te perdão, mamã.
Dizia aquilo como se quisesse tranquilizá-la. Lia no rosto dela uma expressão semelhante à que vira no do taberneiro de Ingrannes, e mais adivinhou do que propriamente ouviu as palavras que a mãe balbuciou: -Meu Deus! Meu Deus! Que mal Vos fiz eu? Sabiam que nada tinham a dizer um ao outro, que a cena seria inutilmente penosa, e Bauche lamentou que tivesse de ser naquela altura, justamente quando ele começava a conseguir uma certa dose de serenidade.
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-A sua mãe fez questão em vê-lo -dizia o juiz. -E eu não quis que ela tivesse de esperar pelo dia de visita.
A mãe, pelo seu lado, abanava a cabeça, fitando-o, consternada, como se ele se tivesse transformado num monstro, como se o crime que cometera tivesse ficado inscrito em toda a sua pessoa.
-Como é que pudeste fazer uma coisa assim? Educado como foste, só com bons exemplos...
-Não te atormentes, mamã. É mais simples do que tu podes pensar.
-Está a ouvir, senhor doutor juiz? O que é que eu lhe dizia ainda há um momento? Ele não se dá conta. Tenho a certeza, peço-vos que acreditem, de que ele antes não era assim. Era um fraco. Era bom de mais. Fazia-se dele tudo o que se quisesse. Foi aquela mulher que o arrastou. Eu bem te preveni, Albert, de que ela não era rapariga para ti!
Bauche tinha a impressão de estar a assistir a uma comédia sórdida, destinada a comover o juiz, mas, por uma espécie de piedade, aceitou entrar no jogo.
-Sim, mamã.;
-Não chorei que nem uma Madalena quando me foste anunciar que querias casar com ela? Lembra-te bem! Foste ver-me de propósito. Estavas magro, febril. E quando me recusei a dar o meu consentimento, respondeste-me que já eras maior e que preferias matar-te a renunciar à rapariga.
-É verdade.
Aquilo entristecia-o. Olhava para o relógio por cima
do fogão, perguntando-se quanto tempo iria aquilo
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durar. Nunca sentira um grande amor pela mãe, mas agora descobria a que ponto se afastara, entretanto, dela. As coisas seriam idênticas se ali estivesse o pai?
Não ousava perguntá-lo a si próprio. Precisava de acreditar que não, que teria sido inteiramente diferente, mas, no seu íntimo, duvidava.
Se o tivesse confessado ao juiz, ao advogado, não os ouviria a ambos exclamar que ele era um monstro?
-Pedi-lhe, senhor doutor juiz, pedi-lhe mais de vinte vezes que voltasse para a terra. Ofereceram-lhe os melhores lugares, tanto em Montpellier como em Nimes, porque toda a gente gostava do pai dele e lhe tinha respeito. Soube, desde o começo, desde as primeiras cartas que recebi de Paris, cartas que eram sempre para pedir dinheiro, que ele estava a ir por mau caminho, e, quando casou com aquela rapariga contra a minha vontade, quase às escondidas, numa mairie destes lados, sem passar sequer pela igreja, avisei-o de que a história havia de acabar mal. Disse-te ou não te disse, Albert?
-Disseste, sim, mamã.
-O teu pobre avô e a tua pobre avó, que nunca na vida fizeram mal a ninguém, estão doentes com o desgosto. Saí de Grau-du-Roi como uma ladra, sem ter coragem de olhar para as pessoas. Françoise, uma rapariga nossa vizinha, que nunca casou sempre à espera dele, veio tentar consolar-me, logo que ouviu o nome dele na rádio. Recomendou-me que te dissesse que ficava a rezar Por ti, Albert.
-Obrigado.
-Está a ver como ele é, senhor doutor juiz? Fala-me
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com tanta frieza! Como se eu fosse uma estranha! Digo e repito que, desde que encontrou aquela mulher, nunca mais foi o mesmo.
-Não seja tão severa, madame Bauche -interveio Houard. Pense na situação em que ele se encontra!
O juiz parecia pouco à vontade.
-E a nossa situação, monsieur Houard? O senhor conheceu o meu marido. Ia a nossa casa. Sabe como por lá vivemos. Acha que, depois de uma coisa destas, teremos cara para pôr os pés na rua? Eu já andava doente. Nunca me recompus de todo da minha operação, e sinto que este último golpe me há-de matar. Uma vez que é o senhor que vai defendê-lo, tem de me prometer que dirá a verdade, que ele foi um rapaz sério enquanto viveu connosco, mas que caiu, depois, nas mãos de uma intriguista, de uma doida, que acabou por o fazer tão doido como ela. Olhe para ele. Nem sequer ouve o que eu digo. Está cheio de pressa de me ver sair daqui. Tenho a certeza de que os médicos vão reconhecer que ele está louco e tratar dele.
O olhar do juiz cruzou-se com o de Bauche, e o magistrado sentiu-se apiedado; levantou-se.
-Peço desculpa, madame, por ter de pôr fim a esta entrevista. Tenho de fazer algumas perguntas ao seu filho, e vai-se fazendo tarde. Tomei nota do endereço do seu hotel. Em breve a chamarei outra vez. Já lhe entreguei a autorização para a visita de domingo, não entreguei?
Madame Bauche certificou-se de que a guardara na mala e levantou-se também.
-Promete-me, monsieur Houard?
-Prometo-lhe que farei o possível, madame. Pelo meu
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lado, gostaria de pedir-lhe, com licença do senhor doutor juiz, o favor de evitar responder aos jornalistas que vão tentar fazê-la falar de tudo e mais alguma coisa.
-Sim. Já esta manhã começaram a correr atrás de mim.
-Fique o mais possível no quarto. Mande-lhes dizer que está de cama.
Ela virou-se para o juiz, que parecia aprovar as palavras de Houard. Não sabia como despedir-se. Todos estavam agora de pé. Madame Bauche tinha de passar diante do filho, que ficara de cabeça baixa. Fungou várias vezes como se fosse deitar-se a chorar, hesitou em encostar o rosto ao ombro de Albert, depois acabou por fazê-lo por um instante, sem o chegar a beijar, dizendo entre dois soluços nervosos:
-Bem sei que a culpa não é tua, deixa lá. Ele repetiu:
-Perdão, mamã.
Naquele momento, apesar de tudo, teria gostado de a apertar contra si, porque tinha piedade, piedade dela e dele próprio, mas sobretudo dela, que não havia nunca de compreender. Não a olhou enquanto saía; ouviu fechar-se a porta e sentiu-se aliviado.
O juiz entendeu que era necessária uma pausa, um silêncio, porque fingiu ler algumas folhas dactilografadas que tinha em cima da secretária, cortou a ponta de um charuto e acendeu-o. A um canto da mesa havia jornais acabados de sair e nos quais Bauche decifrava o seu nome, lendo-o de pernas para o ar e sentindo curiosidade em saber o que ali diriam dele.
-Faça o favor de entrar, monsieur Germain.
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O magistrado fora chamar o escrivão à sala vizinha, virando-se depois para o advogado.
-Se não vir inconveniente, maitre, hoje limitar-me-ei a algumas perguntas relativas ao inquérito em curso.
O juiz estava visivelmente intrigado com a calma de Bauche, com a sua ausência de nervosismo, com a naturalidade da sua atitude.
-Em primeiro lugar, monsieur Bauche, tenho de lhe perguntar como é que tencionava pagar as suas dívidas. Vejo que, apesar do salário bastante confortável que recebia na CIF, vivia muito acima das suas posses. Deixe-me acabar. De um dia para o outro, depois de ter conhecido Serge Nicolas, deixou o seu andar da Rue Bergère, trocando-o por um apartamento no Quai d'Auteuil, que mobilou com peças compradas a crédito a um decorador bastante caro. Ao fim de dois anos, ainda não pagou metade do montante das letras assinadas por si e invariavelmente protestadas.
Limito-me a lembrar de passagem que as festas que o senhor oferecia pelo menos uma vez por mês no seu apartamento implicavam despesas cujo montante bastaria para sustentar uma casa normal. Talvez me explique que era a sua profissão que o obrigava a isso...
Comprou um automóvel que também ainda não acabou de pagar. O cobrador tem andado atrás de si nos últimos meses. Vejo aqui que deve dinheiro no alfaiate, no talho, na loja de vinhos e até à sua empregada, que desde há um ano não recebe a soma devida e a quem o senhor se tem contentado com pagar de tempos a tempos pequenas quantias.
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Suponho que confirmará o que eu estou a dizer?
-Sim, senhor doutor juiz.
-O que não dispensa uma verificação, evidentemente! -interrompeu o advogado. -Peço-lhe que tenha em conta que o meu cliente vivia no meio do cinema, que é um meio bastante especial, onde, a julgar pelo que se diz, essa maneira de encarar as coisas é extremamente comum.
-Voltaremos a falar deste ponto, mais tarde. Vejo que quase todos os fins de mês o seu cliente pagava as contas mais pesadas com cheques que não tinham cobertura no momento em que eram assinados. Fiava-se no facto de os passar cruzados; na circunstância de o depósito demorar cerca de três dias; depois, levava o dinheiro ao banco no último minuto.
-Isso não é um delito, senão pelo menos uma quinta parte da cidade de Paris estaria na cadeia.
-Volto à minha pergunta, e quero que seja o seu cliente a responder-lhe. Pergunto-lhe, monsieur Bauche, com que é que contava pagar as suas dívidas, cujo montante, longe de diminuir, se tornava maior de dia para dia.
-Não sei, senhor doutor juiz. Tentava não pensar no assunto. A verdade é que não achava que tivesse grande importância.
Era verdade. Era verdade que tentava pensar naquilo o menos possível, esforçando-se por viver no presente.
-Mas, mais cedo ou mais tarde, havia de chegar fatalmente um dia em que o senhor se veria encurralado, encostado à parede. Tenho aqui algumas cartas, que o senhor escreveu aos seus fornecedores, falando-lhes repetidamente de ingressos consideráveis que receberia no
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mês seguinte. Alude várias vezes a um negócio em vias de conclusão que lhe permitiria livrar-se de uma só vez de todas as suas dívidas. De que negócio se tratava?
-Não havia negócio nenhum. Eu tinha de arranjar maneira de os fazer ter paciência.
-E como é que resolveria o caso no dia em que eles acabassem por perder a paciência?
Bauche calou-se por um longo momento, hesitou e respondeu por fim com perfeito conhecimento de causa:
-Nicolas e Ozil não podiam deixar de me valer.
-Porquê?
-Porque eu era administrador da empresa deles e isso prejudicá-los-ia.
-Não seria antes por o senhor saber coisas de mais?
-Não, senhor doutor juiz. Até há muitíssimo pouco tempo, eu nem sequer suspeitava das manobras deles. Estava convencido de que a empresa era séria. Estava até convencido de que precisavam realmente de mim.
-Pelos seus méritos?
-Sim. Não fui eu que os procurei a pedir trabalho. Não contava subir tão depressa e, quando Serge Nicolas me quis conhecer, estava resignado a viver com dificuldades ainda por mais alguns anos. Foi ele que me levou ao seu alfaiate e me fez mudar de vida. Foi ele que me levou aos grandes restaurantes que eu até então só conhecia de nome e me ensinou a gastar em gorjetas o que antes gastava em duas refeições por dia, para mim e para Fernande. Foi ele ainda que me iniciou no seu cinismo sorridente.
-Meu caro, em Paris só há duas espécies de pessoas:Eu pertencia à segunda categoria e ele introduziu-me na
primeira.
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-Em suma, adoptou-o como modelo. Ele impressionava-o muito, monsieur Bauche?
-De início, sim, impressionou-me.
-Só de início? Quer tentar definir aquilo que o impressionava nele?
-Parecia brincar com a vida. Era um malabarista. Tudo lhe saía bem. Toda a gente gostava dele, toda a gente o admirava. A prova é que hoje todos o choram. Ninguém, tenho a certeza, se preocupa com o facto de ele ser um escroque, nem sequer o senhor doutor juiz. As mulheres sabiam que ele se ria delas, que as possuía de passagem, com um sorriso de condescendência, quando não de desprezo, e, apesar disso, andavam todas atrás dele.
-E contudo, o senhor admite que não só desde há algumas semanas, quer dizer, não só a partir do momento em que descobriu as irregularidades dele, mas desde há muito mais tempo, quase desde o início da vossa associação, contava com ele para lhe pagar as dívidas em caso de necessidade?
-Isso não era assim tão claro para mim.
-Faço questão de sublinhar esta resposta -interveio uma vez mais Houard, cheio de vontade de ser útil. -E também o facto de o meu cliente responder às perguntas com uma franqueza que nem eu me atreveria a aconselhar-lhe e que é digna de registo...
-Tomarei nota disso, maitre. Lamento ter de voltar agora a um assunto mais delicado, mas sou obrigado a fazê-lo. Quer ter a bondade de me dizer, monsieur Bauche, quem pagou o relógio de pulso Cartier que está na caixa de jóias da sua mulher?
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-Foi ele.
-Serge Nicolas?
Bauche disse que sim, com um aceno de cabeça. Tornara-se mais pálido e tinha a maçã de Adão saliente, de súbito móvel, como se tentasse inutilmente engolir a própria saliva.
-E o casaco de lontra? Novo sinal de cabeça.
-Suponho que foi Nicolas também quem lhe ofereceu a si os pijamas de seda negra, comprados no camiseiro dele.
-Não, foi a minha mulher. Eu, na altura, não sabia de nada.
-Mas descobriu-o mais tarde? Quando?
-Quando estive em casa dele.;
-Quer dizer anteontem? Maitre Houard agitou-se. O juiz contentou-se com traçar uma cruz a vermelho na margem de uma das suas notas.
-Como é que explica as prendas que a sua mulher recebia?
-Sabe-o já muito bem.
-O que estou a perguntar é como é que o senhor explica que as aceitasse, sabendo de onde vinham e porquê.
-Faço-lhe notar que não era eu que as aceitava.
-Mas não parecia ficar incomodado por aí além. Veja, monsieur Bauche, a polícia está a trabalhar depressa. Há poucas peças de valor no guarda-roupa ou no guarda-jóias da sua mulher que não lhe tenham sido oferecidas por homens. Quer que lhe leia a lista com os nomes dos doadores? Bem! Compreendo. Poupá-lo-ei a isso. Mas confesse
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que a sua atitude pode parecer pelo menos surpreendente.
-Opor-me não teria mudado coisa nenhuma -suspirou Bauche.
E, quando ele estava à espera de tudo menos disso, o juiz levantou-se.
-É tudo, por hoje.
Bauche, olhando para os jornais, hesitou.
-Suponho que estou proibido de os ler...
-Uma vez que não o pus incomunicável, é porque não vejo inconveniente em que os leia. Até o autorizo a levar esses, mas não tenho a certeza de que o seu advogado o aconselhe a fazê-lo.
E virando-se para Houard:
--Amanhã, à mesma hora, maitre. O seu cliente terá de ir uma segunda vez à Enfermaria Especial.
Não cumprimentou Bauche à despedida, arranjando maneira de estar de costas, virado para o armário, no momento da saída deste.
-Fazes questão de levar estes jornais?
Vendo bem, não era assim muito importante. Ler os jornais seria uma provação do mesmo género que fora a entrevista com a mãe. Se insistiu em levá-los, foi para se mostrar forte.
-Volto a ver-te amanhã, à mesma hora, quando saíres das mãos dos médicos. É neles que tenho esperança.
Lá fora, a noite caíra. Tinham voltado a pôr-lhe as algemas. Quando desceram ao pátio, o guarda deixou-o puxar algumas fumaças de um cigarro. Via-se a luz vermelha da carrinha celular. À volta dela, vários vultos de homens algemados como ele esperavam que a lotação
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estivesse completa. Era uma trégua não regulamentar que lhes davam antes de os fecharem lá dentro. E, pelo portão aberto, os homens podiam ver, para lá da abóbada da entrada, o parapeito de pedra do cais, o tronco negro de uma árvore, candeeiros ao longe, do outro lado do rio, por vezes um táxi, mais raramente peões que estugavam o passo debaixo da chuva fria da tarde e cujas vozes se ouviam por um momento.
Bauche voltou a encontrar a sua cela, o seu guarda, a pequena lâmpada muito lá em cima, rodeada por uma rede de protecção, e começou logo a tentar ler, àquela luz fraca. O título, em grandes caracteres, dizia:
Bauche acusa a CIF
Depois, em letras mais pequenas:
O assassino assume o papel de justiceiro,
mas nega o crime passional.
Havia perto de uma coluna de texto na primeira página e mais duas na quinta. Imediatamente, conforme previra, mas com maior intensidade do que pudera imaginar, foi como o encontro com a mãe. Mergulhava num mundo estranho pelo qual só com a maior dificuldade se poderia interessar. Dir-se-ia que faziam de propósito, dando às palavras um sentido diferente, criando de ponta a ponta uma verdade que nada tinha de comum com a dele.
Tanto quanto podia ajuizar, fora o comissário que falara com os jornalistas, porque Bauche reconhecia algumas frases do seu interrogatório na Polícia Judiciária. Era o mesmo comissário quem continuava a dirigir o inquérito, tudo o que o juiz dissera havia pouco, o jornal comprovava. Os
meios do cinema estão profundamente consternados.
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com o crime da Rue Daru e, nos meios autorizados, sublinha-se que Albert Bauche, o assassino de Serge Nicolas, era um recém-chegado que estava longe de ter a confiança e a estima dos seus confrades.
Jornalista de segundo plano até há dois anos, não trabalhava regularmente para qualquer publicação e não passava de uma dessas silhuetas apagadas que rondam as salas de redacção na esperança de conseguirem vender ao desbarato as suas prosas.
Aquilo era mau, pérfido. Era também estúpido: porquê ao desbarato?
Serão necessários mais alguns dias de trabalho, no inquérito a que os peritos de contabilidade actualmente se entregam, para saber qual o grau de veracidade das acusações proferidas pelo assassino contra a CIF, mas, seja como for, trata-se de uma empresa de pequena envergadura que...
Aos outros, era concedido o benefício da dúvida. Os jornais tinham o cuidado de não publicar o nome dos actores e realizadores que tinham ido à CIF pedir trabalho e participado em alegres ceias com Serge Nicolas e com ele próprio.
Logo a seguir, outro tema e outro subtítulo:Bauche será capaz de invocar o ciúme?Trata-se ainda de segredo de justiça, e o juiz Bazin continua mudo sobre este ponto, como sobre todos os outros: nada transpira do que se passa no seu gabinete. Mas em certos meios animados do Tout-Paris há quem afirme que a mulher do assassino era, desde há vários anos, amante de Serge Nicolas.Se o número dos amantes dela não fosse tão elevado,
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poder-se-ia falar de ménage à trois, porque Albert Bauche aceitava filosoficamente uma situação que não parecia incomodá-lo e da qual extraía os seus ganhos.
Serão de ter em conta os boatos segundo os quais, desde há várias semanas, as coisas deixaram de correr bem no trio -boatos que insistem também na intenção que Serge Nicolas teria de casar com uma starlette encantadora, que recentemente teve a sua auspiciosa estreia?
Caso estes boatos se confirmem, resta saber o que se terá passado na Rue Daru entre os dois homens e que palavras terão eles trocado.
Uma fotografia da mãe de Bauche, ao descer do comboio, tinha como legenda:
A mãe do assassino desembarca em Paris.
E em subtítulo:
O meu filho foi embruxado por aquela mulher!
A mãe do assassino, que só tivemos ocasião de ver por um momento na confusão da gare e cuja perturbação é compreensível, consentiu, apesar de tudo, em afirmar aos nossos leitores:
-O meu filho era um fraco e o meu pobre marido cometeu o erro de o estragar. Caiu nas mãos daquela mulher, que fez dele tudo o que quis. Enlouqueceu, tenho a certeza. Se estivesse no seu juízo perfeito, nunca teria feito semelhante coisa.
O juiz tinha razão. Melhor seria não ler aquilo. O que lhe chegava assim do exterior, por intermédio do jornal, era uma caricatura desesperante de si próprio e dos outros. Bauche sentia agora pressa de voltar à paz da Enfermaria Especial, com os olhos do professor fitos nele, e
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os lápis dos estudantes correndo as páginas dos seus cadernos.
Pôs de lado o jornal, depois voltou a pegar-lhe; apelando para a sua vontade, amarrotou-o e atirou-o para um canto.
A mãe abandonara-o e só cuidara de afirmar que era uma mulher de bem e que a responsabilidade recaía sobre terceiros. Houard, Bauche pressentia-o, defendia-o sem convicção, por dever, porque fora amigo de seu pai. O juiz tentava compreender, mas estava demasiado distante, numa outra esfera, e hoje fora visível que se deixara impressionar no mau sentido pelo relatório do comissário.
Só o professor, com as suas roupas descuidadas, o olhava não ainda como se o compreendesse, mas como se, enfim, um contacto fosse possível. Porque é que Bauche tivera a impressão de que se tratava de um homem solteiro, que devia comer algures, sozinho, sentado à mesa de uma cervejaria? Não o imaginava enquadrado por uma família, nem a jogar bridge com amigos -menos ainda em cerimónias oficiais. Talvez também ele procurasse às escondidas as raparigas de certas casas ou abordasse as que andam nos passeios. Quem sabe? Talvez o professor tivesse tido também uma Anais?
Pelo menos sabia que essas coisas existem e que tal não significa fatalmente que se seja louco ou perverso.
Mas sabê-lo-ia de facto? Não estaria Bauche, uma vez mais, enganado, e não pensaria o alienista, pelo contrário, que ele era louco? Não se costuma dizer que os psiquiatras tendem a classificar todos os que entram em contacto com eles como anormais?
Aquilo fazia-lhe, de súbito, medo; esquecia-se de
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prestar atenção aos passos do guarda e surpreendia-se por estarem já a trazer-lhe a sua refeição. Por causa da mãe, por causa do jornal, tudo o que dissera de manhã lhe parecia agora cheio de perigos.
Mostrara francamente o seu jogo, de boa-fé, persuadido de que haviam de compreendê-lo, e receava que cada uma das suas palavras fosse interpretada num sentido distorcido.
Tentava preparar-se para o dia seguinte. Era de primeira necessidade que conseguisse dar-lhes uma ideia correcta acerca da sua pessoa.
Se falara de Grau-du-Roi com tamanha complacência, era porque a sua vida, em última análise, se compunha apenas de duas partes, em violento contraste uma com a outra.
Teria o professor compreendido isso?
Grau-du-Roi era, antes de mais nada, o sol. Todas as suas recordações dessa terra estavam inundadas de sol. Mas era também uma espécie de inocência. Aí estava a palavra que não podia esquecer-se de lhes dizer. Era a casa complicada e enternecedora que parecia uma construção infantil, com o avô que tinha um ar de Pai Natal ou de anão da Branca de Neve; com o pai a tratar da sopa de peixe no pátio e a jogar às bolas todas as tardes diante da estação dos correios; era um universo em que ; não havia problemas de dinheiro e em que os pescadores, enquanto consertavam as redes, pareciam posar [ para a fotografia de um postal ilustrado.
Quando, no Verão, vinha gente de fora, de Lyon ou de Paris, pessoas importantes e sérias nas cidades onde moravam habitualmente, eis que se punham logo em
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calção como garotos, divertindo-se a disfarçar-se de pescadores.
Já Nímes e o liceu eram, para ele, um mundo obscuro, não muito real, onde Bauche passava apenas algumas horas por dia, sem que isso tivesse consequências de maior.
Não, ainda não era bem aquilo -dava-se conta disso -, mas o professor compreenderia e ajudá-lo-ia a exprimir melhor o seu pensamento.
Vivia-se à margem das regras, era o que era! Não havia regras. E era justamente para escaparem às regras que pessoas como Houard todos os anos iam lá passar férias, soltando um suspiro de alívio no instante da chegada.
O pai, que não trabalhava, que, com quarenta anos, vivia já da sua pensão, estava igualmente à margem das regras, e era essa a razão por que toda a gente o procurava, por que toda a gente gostava tanto dele.
Anais também estava à margem das regras.
Era mais difícil de explicar. Havia pouco, a mãe falara-lhe de Françoise, a vizinha da qual, no segundo anterior, ele mal se lembrava, embora tivesse passado com ela toda uma parte da sua infância. Era a filha do chefe dos correios. Ainda muito novinha, costumava proclamar:
-Quando formos grandes, casamos.
E algumas vezes acrescentava, com um olhar mais duro:
-Promete-mo.
Era uma rapariga bastante bonita. Era o que todos diziam. Toda a gente sabia que estava à espera de casar
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com ele. Mas teria ela realmente um ventre, coxas?
Bauche nunca imaginara a possibilidade de lhe levantar o vestido e de lhe penetrar a carne. Françoise pensava por certo num belo casamento, na mairie primeiro, depois na igreja; a seguir, seria a viagem de núpcias e, no regresso, a casa impecável, arranjada a preceito.
Anais, não. Anais era um ventre. Ele desejara um ventre, o ventre dela, desejara-o durante anos, porque era naquele ventre que todos os homens se afundavam.
Ninguém compreenderia que ele fosse viver com Anais. Tê-lo-iam até reprovado se ele, um belo dia, anunciasse que ia ter com ela à praia ou ao buraco perto do canal.
Os outros, que também a procuravam, os outros, incluindo o seu pai, não seriam movidos pela mesma necessidade? Porque se envergonhavam, se era a mesma imagem que os fascinava?
Também ele tivera vergonha. Por causa dos outros, sem dúvida. Não podia esquecer-se de o explicar no dia seguinte, porque, se não tivesse sentido vergonha, teria provavelmente ficado em Grau. Viveria num barracão como os pescadores viviam; teria um barco como eles, e teria Anais. Bastar-lhe-ia contratá-la como mulher-a-dias.
Se tivesse podido agir desse modo, a simples ideia de partir para Paris ter-lhe-ia alguma vez passado pela cabeça?
-O teu pai morreu, meu filho. Agora és tu o chefe da família. Tens de assumir as tuas responsabilidades, de escolher um ofício.
Tinham-lhe dito e repetido aquilo no dia do enterro,
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num tom compenetrado, e, à noitinha, todos os que lhe tinham falado assim estavam já bêbados; alguns deles cantavam no cais, antes de voltarem para casa.
-Vou explicar-lhe, senhor professor...
-Vou explicar-lhe...
Bauche estava finalmente na sua cadeira, com os olhos expostos à luz que já não o incomodava tanto, e causava-lhe prazer verificar que estavam presentes mais dois estudantes do que no dia anterior, um deles chinês. Não tinha a certeza de que ali estivessem por causa dele, mas era provável e encorajador.
-Reflecti no que lhe disse ontem de manhã. Tenho quase a certeza de que, se não tivesse tido vergonha, nunca teria saído de Grau-du-Roi; teria lá ficado a viver com Anais.
-Vergonha de quê?
O professor estava interessado, era visível. Bauche tinha de aproveitar.
-De não fazer as coisas como os outros.
-Não quererá tentar definir como é que, na sua opinião, fazem os outros?
-Obedecem às regras, ou, melhor, fingem obedecer-lhes, porque a verdade é que todos fazem batota. O meu pai era o que se costuma chamar um homem de bem, já lhe disse, e apesar disso teve outras histórias além da de Anais. As visitas de monsieur Ozil a Serge Nicolas fizeram-me voltar certas coisas à memória.
-Quando é que pensou nisso?
-á algumas semanas. A ideia inquietou-me. Mon
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sieur Ozil visitava Nicolas como se fosse um amigo dele, mas a verdade é que era ele o grande chefe. Ora, em Montpellier, existe também uma espécie de monsieur Ozil. Gordo como ele, sempre muito bem arranjado, tal e qual como ele. É um fabricante de aperitivos, e muito rico. Sem dúvida o homem mais rico que alguma vez entrou lá em nossa casa. Acontece que, no Midi, toda a gente sabe que monsieur Baroucant, é assim que ele se chama, nunca quis ser deputado nem senador, preferindo que para esses lugares sejam eleitos homens da sua confiança, porque precisa deles na Assembleia. Já deve estar a ver onde eu quero chegar. Monsieur Baroucant visitava-nos em Grau. Saía do seu grande automóvel conduzido por um motorista particular e mostrava-se na esplanada do Justin, acompanhado pelo meu pai, a quem dava cordiais pancadinhas nas costas. Depois, fechavam-se os dois no salão, que, a não ser nessas ocasiões, quase nunca era utilizado.
Impressionou-me, quando voltei a pensar nisto, o facto de vivermos mais à larga nas semanas que se seguiam a estas visitas; uma vez compraram-me até um fato novo sem que eu o tivesse pedido.
-E o que é que conclui daí?
-Que o meu pai fazia batota. É tudo. Ao passo que seria tão simples...
O que é que seria tão simples? A coisa parecêra-lhe mais clara na véspera, deitado na cela. Havia no que dizia agora algumas partes que lhe chegavam do momento em que conduzia o seu automóvel, depois da sua visita a Rue Daru, atravessando estrelas de chuva, a caminho da taberna de Ingrannes.
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-E veio para Paris com a intenção de fazer batota?
-Não pensei nas coisas desse modo. Queria ser alguma coisa, alguém. Queria andar bem vestido, ter um automóvel e frequentar lugares elegantes onde pudesse tirar negligentemente notas gradas das algibeiras.
-Porquê?
-Porque tinha de ser ou uma coisa ou outra.
-Isso ou Grau-du-Roi com Anais?
-ais ou menos. Bem entendido, quando digo Anais, não é necessariamente dela que se trata.
-É um símbolo, claro.
-Se quiser. Comecei então a outra parte da minha vida, a parte negra.
-Porquê negra?
-Porque é negra que a vejo. Bem sei que também há Verões em Paris e, em cada ano, mais dias de sol do que dias de chuva. Mas nem por isso as minhas recordações, todas as minhas recordações, são menos negras. E sempre em lugares sombrios que penso, em coisas molhadas ou pouco limpas. Quando me apeei do comboio pela primeira vez, num dia de Inverno às cinco horas da manhã, estava tão desesperado que quase voltei atrás sem sequer sair da estação.
-E tem a certeza de que não ganhou o gosto das coisas de cá?
-O gosto de quê? De Paris?
-Disso a que o chama o negro, o escuro, as coisas pouco limpas, a multidão anónima e os hotéis duvidosos, os jantares só de uma salsicha embrulhada num papel gorduroso, as raparigas fáceis e baratas...
Bauche fitou-o intensamente por um instante e, contra
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vontade, não pôde impedir que um sorriso malicioso lhe iluminasse os lábios. Um pouco incomodado por causa disso, perguntou:
-Como é que adivinhou?
-Em resumo, viveu mais de cinco anos nessa escuridão.
-Mais ou menos, sim. Achava-me infeliz, prometia a mim próprio desforrar-me um dia.
-De quê?
Será que alguém o compreenderia se o ouvisse dizer:
-Das regras!
Não havia outra palavra de que pudesse servir-se. Assim, contentou-se com um gesto vago, que aparentava englobar o universo inteiro. Sabia o que queria dizer. Não passava de um pobre desgraçado, na rua, num dos quadradinhos estreitos da grande cidade, e por cima dele, à volta dele, existia uma máquina enorme a oprimi-lo.
Eram as regras. Os que as seguiam ou fingiam seguir acabavam por ser recompensados, com a condição de saberem pôr-se em evidência. Os outros tinham de continuar a formigar na obscuridade até se deixarem apanhar na ratoeira.
Bauche sentia vontade de falar na ratoeira. Fora apanhado, era justamente isso o que lhe acontecera. Mas tratava-se de uma coisa ainda mais difícil de explicar do que as outras. E era perigoso. O professor não era como os outros -de acordo. Mas seria capaz de ir tão longe? E depois, havia também os estudantes, o assistente instalado como se estivesse no teatro, o outro espectador de alguma idade já e que provavelmente insistiria em que ele fosse declarado louco.
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Já fora longe de mais. Pareceu-lhe prudente voltar atrás, empregar palavras menos comprometedoras. Tanto pior se, por outro lado, não fossem também tão exactas.
--O que estou a tentar dizer, senhor professor, com tanta dificuldade, pelo que peço desculpa, é que, na realidade, fui menos infeliz durante esses anos negros, como lhes chamei, do que durante os últimos dois anos, iluminados artificialmente, os anos do néon.
Morava num belo apartamento limpo e cheio de luz, bem mobilado, dando para o Sena, no Quai d'Auteuil. Pois bem, muitas vezes tive saudades do nosso quarto mobilado da Rue Bergère, onde tínhamos de fazer tudo na mesma divisão e onde as cortinas das janelas não eram lavadas havia dez ou quinze anos.
Por vezes, ao domingo de manhã, o único dia em que ficava em casa porque não tinha mais lado nenhum aonde ir, olhava, do outro lado do rio, o bairro de Javel, pobre e ranhoso, com partes de casa mobiladas onde cinco ou seis pessoas compartilham um único quarto, e sentia inveja dessa gente.
Não será pela mesma razão que os ricos procuram as tascas, os bailes populares da Rue de Lappe e doutros sítios?
O professor sorriu de novo. O chinês sorriu ainda mais abertamente do que os outros e apressou-se a rabiscar um apontamento.
-Continue.
-Gostava que me fizesse mais perguntas, porque já não sei bem onde estou...
Estava desconfiado, preferia ver o que se seguiria.
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Ainda não tinham falado do crime, como acontecia quando Bauche estava com o juiz ou com o comissário. O professor não aludira a isso uma única vez, e ele julgava sinceramente que não se tratava de uma armadilha. Para o professor, como para ele, a morte de Serge Nicolas, o tiro de revólver e aquilo a que os outros chamavam os vinte e dois golpes com o atiçador não passavam de aspectos acessórios. O que contava era o caminho seguido pela consciência de Albert Bauche.
Coisa curiosa e que o enchia de satisfação, o professor insistia no aspecto sexual do problema, ao passo que um homem como Bazin só falava do assunto com certo mal-estar e Houard parecia aborrecido sempre que esse tema vinha à baila. Bauche surpreendera-se muitas vezes por causa do sentimento de vergonha das pessoas perante a sexualidade, pela sua mania de não abordarem esse domínio a não ser num tom brejeiro, quando a verdade é que o comportamento sexual de um homem ou de uma mulher se reveste da maior importância.
Ali, sabiam-no. A primeira pergunta que lhe colocavam era até tão extraordinária que Bauche se perguntava
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se o professor não sofreria das mesmas perturbações que ele.
-Para além das prostitutas e da sua mulher, aconteceu-lhe alguma vez ter relações com outras pessoas?
--Duas vezes. Não. Três. Exactamente três.
-E a coisa passou-se de modo satisfatório?
-Não.
-Diga-me porquê.
-A primeira vez foi em Grau, no Verão que antecedeu a morte do meu pai. Entre os veraneantes havia uma mulher nova, de Limoges, casada com um industrial de calçado, que vinha ter com ela à praia aos sábados, ficando até à segunda-feira seguinte. Levei-a várias vezes a passear no barco do meu pai.
-Ela era do tipo físico que o atraía?
-Era bastante forte, sim, com as coxas bem cheias. Andava de calções. Eu sabia que a divertia. Ela tinha alugado o primeiro andar de uma casa junto à praia e aconteceu-me ir lá buscá-la ou conduzi-la até lá no regresso. De dia, o filho andava sempre com ela. À noite, confiava-o ao cuidado da senhoria. Uma vez, ao levá-la a casa, beijei-a várias vezes pelo caminho, e íamos os doisl apertados um contra o outro. Ela convidou-me para entrar por um momento. O filho estava a dormir num outro quarto.
Puxou a coberta da cama e, quando começou a despir-se, compreendi que esperava que eu fizesse a mesma coisa. Deitámo-nos juntos e, pouco depois, vi que estava impotente...
-Que idade tinha ela?
-Vinte e quatro ou vinte e cinco anos.
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-Tem alguma ideia acerca do que motivou o seu problema na altura?
-Não. Talvez tivesse medo de não me mostrar à altura. O marido dela era um belo homem, muito mais forte do que eu e tinha trinta anos.
-Tinha medo que ela se risse de si?
-Tinha medo, sem uma razão precisa. Enervei-me. Cheguei mesmo a chorar. Ela pôs-se a rir nervosamente e, por fim, tentou consolar-me.
-Aconteceu o mesmo das duas outras vezes?
-Não exactamente. Da segunda vez, foi em Paris. Tinha conhecido uma rapariga num café onde estava a comer um croissant. Ela tinha ar de ser operária. Levei-a ao cinema, onde ela me deixou acariciá-la, e, nesse momento, senti um desejo intenso de a possuir. Depois, consegui levá-la sem grande problema até ao meu quarto de hotel. Sentia-me um tanto inquieto ao subir as escadas. Não quis que ela se despisse. Comecei a tomá-la e, então, ela colou a boca contra a minha, apertando-me convulsivamente, e eu perdi a força. A rapariga ficou ofendida. Foi-se embora sem me dirigir mais a palavra.
-E a terceira vez?
-Foi mais recentemente. Passou-se na CIF, com a dactilógrafa que lá trabalhava antes de Annette. Desejava-a muito. Um dia fi-la ficar intencionalmente no escritório para além do horário normal. Era uma bela rapariga, bem apessoada, coquette, sempre com vestidos de seda. Fez-me a vontade mas com o sorriso de quem toma um aperitivo, com um olhar divertido, risonho, que me pareceu irónico, e, uma vez mais, fui incapaz de levar aquilo até ao fim.
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-Despediu-a?
-Esperei algumas semanas.
-Nunca teve o mesmo percalço com uma prostituta?
-Nunca.
-Assim, quando conheceu a sua mulher, nunca tinha feito amor a não ser com prostitutas e com Anais?
-Isso mesmo, senhor professor.
-Disse-me ontem que, durante a primeira semana, se sentia bastante enojado ao vê-la ir ter todas as manhãs com o patrão.
-Porque ela parecia uma rapariga séria e Horwitz não era nada atraente. Era mesmo um tipo sujo.
-E ela tentava conquistá-lo a si, sem resultado?
-Mostrava-me frio.
-Diga-me, monsieur Bauche, não seria em parte por causa das suas experiências infelizes? Não teria medo de que lhe acontecesse a mesma coisa com ela?
-Nesse momento, não. Mais tarde, talvez.
-Explique-se.
-O que lhe vou contar passou-se num sábado de manhã, na altura em que, como acontecia todos os sábados, Horwitz fora ao banco. Ficava sempre por lá bastante tempo. Apareceu alguém por causa de um pagamento. Era um electricista que tinha feito alguns pequenos consertos na semana anterior, e havia dinheiro de parte para lhe pagar, guardado no cofrezinho reservado para esse tipo de gastos. O cofrezinho estava numa das gavetas da secretária de Horwitz. O electricista era um homem com cerca de trinta e cinco anos, alto e magro, e trazia, se bem me lembro, um sobretudo muito justo. Na minha opinião, não era o género de tipo que se mostra atrevido com as mulheres.
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Achei estranho que, em vez de ir buscar o dinheiro à sala do lado, Fernande o tivesse mandado entrar para o gabinete de Horwitz, mas ainda hoje vejo a porta que tinham fechado apenas em parte, o bastante para me impedir de ver a secretária.
Mal tinham acabado de entrar, quando os ouvi a segredar e a rir. Depois, houve silêncios, ruídos de roupa que se puxa e finalmente outros ruídos mais fortes, de objectos que se afastam sobre um móvel. Por fim, a dúvida deixou de ser possível, porque Fernande gemia abertamente.
Quando o electricista saiu, muito vermelho, abotoando o casacão, deixou a porta bem aberta e eu vi Fernande, que continuava estirada na secretária, com as pernas afastadas, mesmo à minha frente. Ria com um riso estranho e eu percebi que ela ficara ali e assim propositadamente.
-Bauche -chamou-me ela. -Não quer lá ver que o pobre tipo se esqueceu de levar o dinheiro?
Ficou ainda um momento à espera, levantando a cabeça para me observar; depois pôs-se de pé e vestiu-se à minha frente.
-Isto não parece interessá-lo muito -comentou ela. -Eu se pudesse passava o dia todo a fazer isto.
-Não se passou nada entre os dois nesse dia?
-E nos dias seguintes também não. Mas começámos a conversar. Mais exactamente, era ela que, sem parar de preencher os envelopes, falava, levando sempre a conversa para o mesmo terreno. Agora que tinha começado, não parava mais. Dizia-me que não podia ver um
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homem sem pensar no sexo dele e que, a partir desse instante, estava perdida. Explicava-me até muito precisamente o que sentia, o que se passava dentro dela.
Principiara aos treze anos, com um homem que, segundo me afirmava, se punha todas as tardes à espera à porta da escola dela, andando atrás das raparigas. Fernande costumava voltar na companhia das vizinhas, mas, certa tarde, arranjara maneira de as deixar a pretexto de um recado para a mãe, e, quando teve a certeza de que o homem a seguia, deteve-se junto de uns terrenos vagos.
Ao que parece, o homem sentiu-se perplexo. Não passava de um exibicionista, e não tinha a intenção de ir mais longe. Mal ela o tocou, ele foi-se embora, e ela ficou ofendida.
Mais tarde, o tipo voltou e, tornando-se mais atrevido, continuou, apesar de tudo, a evitar desflorá-la.
-Não se lembrou de que ela podia estar a inventar?
-Algumas vezes tive essa impressão. Ela contava-me quase todos os dias novas histórias do mesmo género. Na quinta-feira seguinte, depois de ter falado muito tempo, levantou-se e, sem aguentar mais, veio especar-se diante de mim, com a saia arregaçada, dizendo-me:
-Pelo menos, se não consegues fazer mais nada, mexe-me!
Foi assim que tudo aconteceu.
-E dessa vez não houve problema?
-Não. Muito pelo contrário... -respondeu Bauche, baixando os olhos.
Acrescentou ao cabo de um momento:
-Era diferente de tudo o que eu até então experimentara. Mais tarde, era eu quem lhe pedia, para me
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excitar, que me contasse novas histórias. Quando ela saía do gabinete de Horwitz, queria que me contasse tudo, com todos os pormenores, e ela fazia-o. Não me passava pela cabeça casar com ela nem fazê-la minha amante. Pensava que tudo aquilo era apenas uma história sem consequências. Ela contava-me aventuras que lhe sucediam quase todas as noites, e tudo acabava sempre da mesma maneira, num canto qualquer. Por diversas vezes estivemos à beira de ser surpreendidos, mas isso era-lhe indiferente.
-Beijava-a?
-Não. Ela também não tentava beijar-me.
-E não sentia vontade de lhe fazer mal, como lhe aconteceu com Anais?
-Não me parece. Era diferente. Com Anais, era tudo à luz do sol, e ela tinha uma pele quente e doirada. Com Fernande, tudo acontecia sempre a uma luz duvidosa. As coxas dela eram pálidas e húmidas. O que eu sentia era vontade de a sujar, acho eu. Agradava-me que ela fosse como era e que se degradasse com este e aquele. É provável que a desprezasse. Não sei. Mas, ao mesmo tempo, desprezava-me a mim próprio. Tinha a impressão de me sujar tanto como ela. Não sei se está a compreender...
-Penso que sim. Deixou de desejar outras mulheres?
-Quando calhava encontrar uma rapariga bonita, vingava-me mais tarde com Fernande. Ela sabia disso, fazia-me perguntas:
-Então, diz-me lá: como era ela?Depois, Horwitz desapareceu sem deixar rasto, e nós vimo-nos de repente no meio da rua, sem nada. Perguntei
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-lhe o que tencionava fazer. No fundo, Fernande tinha medo da miséria e eu convenci-me, por estranho que pareça, de que a prostituição a apavorava ainda mais.
-Não paguei a renda do mês passado -confiou-me ela. -Estava a contar com o dinheiro deste mês.
-Vão pôr-te na rua?
Repare que eu nunca soube onde ela morava. Ela tinha ido duas ou três vezes ao meu quarto, mas não passara a noite comigo. Perguntei a mim próprio se não me andaria a mentir em tudo e se, na realidade, não moraria ainda em casa dos pais.
-Em todo o caso, enquanto tentas arranjar outro emprego, podes dormir em minha casa -propus-lhe eu.
Estava tudo cheio de gelo nessa manhã. Nós estávamos diante da montra de uma relojoaria do Boulevard Bonne-Nouvelle. Parece-me que ainda nos vejo. Fernande tinha a cara azulada de frio.
-É uma ideia -respondeu-me ela com simplicidade. -Mas eu nem sempre sou muito divertida, sabes?
Foi ter comigo uma hora mais tarde, trazendo as suas coisas numa mala. O meu senhorio bateu-me à porta, protestando contra aquilo, e, para o calar, tive de lhe prometer um suplemento mensal. Havia um lavatório com água corrente, mas a casa de banho ficava no andar de baixo.
Nessa noite, quando a quis ter, ela negou-se-me. Como insisti, ela começou por se zangar, para minha grande surpresa, e, depois, rompeu a chorar. Durante muito tempo, não consegui arrancar-lhe uma palavra.
-Não compreendes que sinto repugnância por mim.
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não vês? -explodiu por fim. -Talvez imagines que faço isto tudo cheia de satisfação e que não deixava de o fazer se fosse capaz?
Ficou a falar comigo quase toda a noite, sempre no mesmo tom, como uma miúda pequena, e acabou por adormecer nos meus braços.
Bauche não se atrevia a levantar a cabeça, porque sabia que expressão devia ter no rosto e receava deparar com um sorriso, com um encolher de ombros. O professor esperou um momento antes de voltar a falar, e não se ouvia sequer o arranhar dos lápis nos cadernos de apontamentos.
-Ela voltou a arranjar trabalho?
-Começámos os dois a procurar qualquer coisa. Foi ela a primeira a conseguir empregar-se, numa tipografia da Rue du Coisssant, e eu costumava ir esperá-la à saída. Naturalmente, havia homens por lá e eu tinha ciúmes deles, porque não os conhecia e tudo aquilo escapava ao meu conhecimento.
-Até aí nunca tinha sentido ciúmes?
-Pelo menos não me dava conta disso. Entretanto, consegui publicar um artigo num semanário que pagava mal e, algum tempo depois, arranjei um emprego, mas temporário, só durante o período eleitoral, numa associação política. Consegui lá meter também Fernande. Sentia-me mal quando não a tinha perto de mim e, sobretudo, quando não era capaz de imaginar ao certo o que ela estaria a fazer.
Ela não se atrapalhava com a minha presença. Suponho que os homens sentiam o desejo dela. Fernande não era coquette, ao contrário da maioria das mulheres, nem
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provocante. Algumas vezes, tudo se passava sem uma única palavra. Os homens percebiam que podia ser, que seria uma coisa sem consequências, e aproveitavam.
-Isso fazia-o sofrer?
-Não posso dizer que, a princípio, me fizesse sofrer. É complicado. Eu estava no período negro, como já lhe contei. Passávamos o tempo todo a tentar arranjar algum dinheiro. Vivíamos ao deus-dará. Muitas vezes não sabíamos como conseguiríamos jantar. Nessa altura, começámos a trabalhar para a tal associação política e alugámos a casa da Rue Bergère, não longe do teatro. Todas as noites víamos as prostitutas tentando pescar clientes no passeio, diante da nossa porta. Fernande virava-se para elas e olhava-as com curiosidade.
-Achas que elas ainda sentirão alguma coisa?
Vivemos assim cerca de um ano. O Verão foi a fase mais difícil. As eleições tinham passado e parecia impossível arranjarmos trabalho durante as férias.
Um sábado, à noite, Fernande não apareceu em casa e só voltou na segunda-feira de manhã; vinha queimada do sol. Eu não lhe dirigi a palavra. Não queria revelar-lhe o efeito que a sua ausência tivera sobre mim.
-Houve um tipo que me levou até Dieppe de carro -disse-me ela, sem reticências. -Comi duas vezes lagosta e fizemos amor, à noite, na praia.
-Foi então que pensou em casar com ela?
-Essa ideia foi-se instalado lentamente em mim, sem que eu desse por isso. A ausência dela causava-me uma espécie de dor física. E depois, a partir de certa altura, quando me contava certas coisas, quando tinha as suas crises de desespero, gritava-me:
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-Protege-me, querido! Suplico-te, protege-me! Bem sei que não sou nenhuma prenda para ti, mas odeio-os tanto! Não vês? Sem ti ainda era pior. Não havia de passar muito tempo até me apanharem da valeta ou me pescarem do Sena.
-Ela tentou suicidar-se?
-Pelo menos duas vezes. Para falar só dos casos em que me assustei a valer. A primeira vez foi antes do nosso casamento. Apesar de tudo, nessa altura, tínhamos algum dinheiro em perspectiva. Eu conseguira vender vários artigos, um deles a um jornal importante, que trouxera o meu nome na primeira página. Certa tarde, por volta das seis horas, voltei para casa e descobri-a na cama, inerte, com algumas flores à volta do corpo, como uma morta, e, em cima do édredon, um bilhete que dizia:
"Esquece-me. Eu não valia a pena. Gostava muito de ti."
Parecia já não respirar e, desvairado, gritei por socorro. Uma vizinha deu logo com o tubo de Veronal vazio na mesinha de cabeceira e, sem esperar pelo médico, meteu os dedos na boca dela, virando-lhe a cabeça para baixo. Tem graça. Era uma parteira e explicaram-me que fazia principalmente abortos.
Quando o médico chegou, já não foi preciso levar Fernande para o hospital e eu fiquei sozinho a olhar por ela. De manhã, começou a falar, com a mesma voz da primeira noite em que eu a vira chorar.
Não era a sua voz habitual. Era uma voz que só eu conhecia, como só eu conheço o seu olhar nesses
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momentos, a expressão amedrontada do seu rosto.
-Mais valia teres-me deixado ir, Albert. Voltaste cedo demais.
-Não lhe ocorreu a suspeita de que ela pudesse, pelo contrário, ter calculado o tempo e a dose de Veronal, sabendo que seria socorrida antes que fosse tarde?
-Pensei nisso, sim. Às vezes, ainda tenho essa suspeita.
-Que razão lhe apresentou ela para o que tinha feito?
-Estava doente. Tinha-me informado disso. Um médico tinha-lho dito nesse mesmo dia.
Bauche acrescentou depois, simplesmente:
-Tratámo-nos os dois.
-E durante esse período ela manteve-se mais calma?
-Mais ou menos. Mas, pelo menos duas vezes, soube que estivera com homens sem mo contar.
-E ainda estava em período de os poder contagiar?
-Sim. Pelo Natal, eu fui a Grau-du-Roi.
-Para pedir à sua mãe que o autorizasse a casar?
-Não sabia que era isso que ia fazer quando saí de Paris. Foi quando me vi longe de Fernande que decidi impedi-la de me deixar, custasse o que custasse.
-Ela tinha-o ameaçado?
-Não. Mas era uma coisa que podia acontecer. A minha mãe, sem a conhecer, recusou-se a aprovar o meu casamento. Então, pedi a Fernande que lá fosse ter comigo no Dia de Ano Novo. Ela foi e eu fui buscá-la á estação de caminho de ferro. Depois, apanhámos os dois a camioneta. Supliquei-lhe que tivesse juízo em Grau e que fosse atenciosa para com a minha mãe, uma vez que
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decidira casar com ela, quer os outros aprovassem quer não.
-Como é que ela reagiu?
-Agradeceu-me e portou-se da melhor maneira. A minha mãe recebeu-a com frieza. Passámos um dia penoso e, por fim, partimos os dois. Casámo-nos em Fevereiro. Continuávamos com grandes dificuldades, mas já não era o mesmo género de miséria, e sempre podíamos ir às cervejarias, ao teatro, vestir uma roupa quase impecável.
-Continuava a querer curá-la, não é verdade? Porque, se não me engano, sempre a considerou uma doente.
-Sim, senhor professor. Até ao dia em que a apresentei a Serge Nicolas.
-E o que é que mudou nessa altura?
-Com os outros, a questão era puramente sexual e, na maior parte dos casos, ela não tinha duas vezes relações com o mesmo homem. Penso que estou talvez a dar-lhe uma ideia falsa da nossa vida, contando apenas os momentos de maior importância. Havia períodos de duas semanas e mais, durante os quais ela só tinha olhos para mim. Depois, voltava a perder a cabeça por uns dias.
-Ela continuava a contar-lhe tudo?
-Suponho que sim. Invariavelmente, ao fim de algum tempo, tinha uma crise de desespero e eu ficava de novo com ela só para mim. A crise nem sempre se desencadeava da mesma maneira, mas eu sabia que, por exemplo, se a deixasse tomar três aperitivos, ela se entregaria ao primeiro que aparecesse. Via-se-lhe nos olhos, no
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frémito das narinas. Eu sentia a crise a aproximar-se. Tentava levá-la para casa, mas quase sempre em vão. Ela não hesitava em fazer-me cenas diante de outras pessoas, começava a falar alto, no meio de um café ou de um bar.
-Deixa-me! Não vês que sou uma cadela com cio? És tu quem me vai dar aquilo de que preciso? Algum homem será capaz de mo dar sozinho?
Muitas vezes voltei sozinho para casa, deixando-a num lugar público qualquer. Acontecia-me ficar à espera, num canto mais sombrio do passeio, e ir atrás dela, que, na companhia de um desconhecido, se dirigia para o hotel mais próximo. Eu ficava à porta. Ela sabia-o e procurava-me com o olhar à saída. Ria-se com o seu riso especial e, depois, na cama, sem conseguir adormecer, lutando contra a tentação, acabava quase fatalmente por possuí-la.
Acha que se trata de um vício? Estarei doente? Não serei como as outras pessoas?
O professor, sem lhe responder, olhava-o, encorajando-o.
-Mas disse que com Serge Nicolas foi diferente?
-Talvez não tenha sido directamente por causa dele mas por termos mudado de maneira de viver. De um dia para o outro, Fernande viu-se bem vestida, elegante, e verdadeiramente apetecível, com todos os homens de olhos postos nela. Fora Serge quem nos trouxera tudo aquilo, quem nos abrira as portas dos restaurantes e dos bares da moda. Acompanhou-a, ajudando-a a escolher as primeiras novas toilettes, e olhava-a com uma atitude protectora e indulgente, um pouco como se ela fosse sua pupila.
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Serge devia saber como a Fernande era. É impossível que não soubesse.
Mas não conhecia os seus momentos de depressão e de vergonha. Esses, só eu os conhecia. Sou ainda o único a conhecê-los. No entanto, ele estava convencido de ter compreendido o verdadeiro carácter de Fernande e isso divertia-o.
Chegou mesmo, como eu vim a perceber através de certos pormenores, a passá-la a amigos, talvez até a monsieur Ozil. E devia dizer-lhes:
-É um fenómeno. Experimente!
Era o tipo de homem que faz coisas dessas, não sei se me entende. Não acreditava em nada, considerava que tinha todos os direitos, que tudo lhe era devido. Brincava. Divertia-se. Para ele, Fernande não passava de um brinquedo divertido.
-É do tempo de Serge Nicolas que data a segunda tentativa de suicídio da sua mulher?
-Sim, é. Acerca disso só sei o que ela me contou. E há lacunas. Certo domingo, ele levou-a de automóvel para a casa de campo que um dos seus amigos tem no vale de Chevreuse. Eram quatro ou cinco, só homens, que às vezes se punham a falar russo uns com os outros. Beberam champanhe. Obrigaram-na a beber também e não tardaram muito a pô-la nua.
Possuíram-na todos; isso, ela confessou-mo. A seguir passou-se qualquer coisa de que ela não me quis falar e que a desembriagou. Fugiu, sozinha, ao volante do automóvel de Nicolas, e regressou a Paris, nua, tapada apenas com um sobretudo de homem que apanhara ao acaso do cabide.
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Nunca a vi assim. Sem me dizer uma palavra, sem olhar para mim, foi fechar-se na casa de banho e, quando acabei por conseguir forçar a porta, dei com ela a tentar cortar os pulsos com uma das minhas lâminas de barba.
No dia seguinte, Nicolas mandou-lhe uma enorme cesta de flores, juntamente com uma carta que não li, e, alguns dias mais tarde, Fernande propôs-lhe, por sua iniciativa, que jantassem os dois.
-E o senhor deduziu daí que ela gostava dele?
-Gostava daquele modo de vida.
-Nicolas tinha outras amantes?
-Várias outras. Fernande sabia-o. Também ela tinha outros amantes. Dada a nossa nova maneira de viver, eu via-a mais raramente. Ela telefonava-me a dizer que voltava tarde ou que não voltava. Marcávamos encontros em bares ou restaurantes. Ela estava quase sempre rodeada de homens que eu não conhecia. As coisas já não eram como antes. O mal-estar era menos surdo. Já não parecia tanto uma doença. Estou, sem dúvida, a explicar-me mal...
-Pelo contrário.
Bauche apreciou o cumprimento, embora estivesse tão embrenhado na sua exposição que quase se esquecia do lugar onde se encontrava.
-Não sentia um ciúme particular em relação a Nicolas; era isso que queria que soubesse e foi nisso que os outros não acreditaram. Tinha a certeza de que essa história, mais tarde ou mais cedo, acabaria; ele havia de secansar. Fernande não estava apaixonada por ele, disso tenho a certeza. Jurou-me que nunca chorara diante dele. Era como um amigo que a levava a sair e com quem
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lhe acontecia fazer amor, mas não necessariamente de todas as vezes que se viam.
-E o senhor sentia-se infeliz, monsieur Bauche?
-Estava à espera de alguma coisa que não sabia o que era, nem o sei ainda. Era preciso que alguma coisa acontecesse, porque a situação não podia prolongar-se indefinidamente.
-Mas o que é que não podia prolongar-se?
-Tudo! Como o juiz me lembrou ontem, gastávamos mais do que eu ganhava e eu estava cheio de dívidas. Nunca me sentia à vontade. Representava um papel e não me sentia no meu lugar. Não conseguia habituar-me àquela vida, não conseguia acreditar que era aquilo a realidade, e esforçava-me por fazer como os outros: bebia cocktails para me animar, ria alto, falava como quem está seguro do dia de amanhã. Por vezes, na cama, Fernande e eu apertávamo-nos um contra o outro e sentíamos medo.
Ela dizia-me no escuro:
-Perdoa-me, Albert. Estraguei a tua vida.
-Mas não estragaste nada.
-Sabes que assim não estamos a ir a parte nenhuma. Comigo, era fatal que as coisas fossem assim. Mas contigo é diferente. Se não me tivesses encontrado...
Tudo passava com a luz do dia, com o telefone, o automóvel, os encontros, os aperitivos.
-E que se passou então, quando Nicolas pareceu ter renunciado à sua mulher?
-Ela mudou de personagem. Foi nessa altura que compeendi que toda a sua maneira de ser, desde havia dois anos, lhe era inspirada por Nicolas. Começou a
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vestir-se de outra maneira, a andar penteada de outra maneira. Em vez da boa disposição que costumava manifestar, pôs-se a brincar às mulheres fatais.
-Não a levava a sério?
-Não. Sabia que era uma coisa passageira. Conhecia-a melhor do que qualquer outra pessoa deste mundo.
-Ficou à espera?
-Continuei à espera, sim.
-Nunca sentia vontade de a voltar a ver tal como ela era no tempo de Nicolas? Não fez nada no sentido de a levar a reatar a ligação com ele?
-Não, senhor doutor juiz. Mordeu os lábios e sorriu com timidez.
-Desculpe... senhor professor.
-A sua mulher comparou-o alguma vez com Nicolas?
-Não estávamos no mesmo plano. Ela admirava-o, sem dúvida; achava-o extremamente sedutor. Um homem, enfim.
Estas últimas palavras surpreenderam-no, e Bauche tentou explicar melhor, prosseguindo:
-Quero eu dizer que era um homem maduro, o que se chama um homem realizado. Tinha mais quinze anos do que eu. Fernande, a mim, considerava-me um bocadinho como uma criança e, às vezes, falava-me como se eu fosse irmão dela.
-Ela gostava de fazer amor consigo?
-Talvez não da mesma maneira que com os outros. Isso, compreendi-o principalmente quando passámos a morar no Quai d'Auteuil e a ver mais pessoas. Eu era o confidente dela. Podia dizer-me tudo. Comigo, nunca
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parava de falar. Tinha necessidade de me contar em pormenor tudo o que fazia, e eu tinha de a sossegar. Ou, noutras alturas, como já lhe disse, desfazia-se em lágrimas e abraçava-se a mim. Em resumo, Nicolas, no que a nós os dois se refere, não passou de um acidente, e não foi por causa dela que eu acabei por matá-lo.
Era a primeira vez que aquela palavra era ali pronunciada, e Bauche parecia espantado com isso.
-Não sei o que se teria passado se não o tivéssemos conhecido.
É provável que nunca tivéssemos feito a vida que fizemos nos últimos dois anos. Eu acabaria por conseguir uma crónica regular num jornal. Não seríamos ricos, mas teríamos vivido num meio mais interessante...
Em lugar disso, Nicolas fez-me pensar...
Que se estava a passar com ele? Não lhe tinham perguntado nada daquilo e era ele que começava, irresistivelmente, a querer explicar o seu crime. Tinha ficado com rancor ao inspector de Orléans e, mais tarde, ao comissário da Polícia Judiciária por lhe estarem sempre a repetir a mesma pergunta:
-Porquê?
Aqui, ninguém lhe perguntava tal coisa. O professor nunca falara sequer de Serge Nicolas como de um morto. Era o próprio Bauche que se precipitava, de cabeça baixa, em explicações confusas.
Vendo-o por fim calar-se, o professor continuava agora, em vez dele, mas sem assumir um tom acusador nem indignado:
-Fê-lo pensar que a sua carreira estava garantida e que o senhor ia alcançar a posição que merecia?
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Bauche aquiesceu, acenando com a cabeça.
-Mas nunca chegou a acreditar realmente nele. Não se sentiu em segurança no Quai d'Auteuil, nem nos escritórios dos Campos Elísios. Não conseguia descobrir o seu lugar nesse mundo, a que ontem chamou o mundo do néon.
-É verdade.
-Recusava-se a pensar nisso, mas tinha o pressentimento de uma catástrofe e era por isso que olhava para as ruas pobres de Javel, onde, pelo menos era essa a sua impressão, poderia sentir-se em segurança. Foi forçado a emproar-se, a demonstrar a sua própria importância. Estava tão pouco à vontade, tão desarmado diante das outras pessoas como diante da mulher de Limoges.
Bauche ouvia com atenção, de sobrolho carregado, pronto para corrigir qualquer erro.
-Também não se sentia à vontade na Rue Bergère nem nos outros sítios onde morou antes.
-Acha?
-Admitiu que aspirava a vingar-se um dia. Vingar-se de quê? Do seu medo. Do sentimento de humilhação que o diminuía aos seus próprios olhos e de que tentava esquecer-se na companhia das prostitutas.
-É natural, não é? Sou um homem normal, ou não serei? Não estou louco, pois não?
-Já com Anais se vingava. Bauche disse em voz muito baixa:
-Gostava tanto de ser alguém como deve ser! <; E subitamente, com veemência.
-Se compreendeu tudo isso, deverá compreender também todo o mal que Nicolas me fez. Esforçava-me
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por ter confiança em mim, trabalhava o melhor que podia e sabia, persuadido de que um dia havia de conseguir, de que era capaz, de que escolhera o caminho certo. A fase mais negra já passara. Eu começava a viver. Ele fazia-me pensar isso, no início. E ele sabia que nada daquilo era verdade, que estava apenas a servir-se de mim. Apanhara-me na rua. Fui eu como poderia ter sido outro qualquer, só ontem o soube, porque andava já a ir para a cama com Fernande, e assim era mais prático, ou então ele sentia vontade de lhe agradar a ela.
Deixou-me acreditar, construir uma vida na base da nova confiança que me tinha dado.
De acordo com as suas necessidades, fazia-me seguir cada vez mais para diante e, de um momento para o outro, eu acabaria por despertar, transformado ao mesmo tempo num homem desonesto e num imbecil.
Foi ele que o disse. Disse-o a monsieur Ozil, quando este lhe perguntou o que aconteceria se eu viesse a descobrir as manigâncias deles.
-Bauche? Ora adeus! Não há o menor perigo! Não passa de um imbecil pretensioso!
-As pessoas como ele nunca descobrem nada, nunca reagem.
Um pretensioso imbecil!Tanto pior para ele.
Pouco nos importa que vá para a prisão ou rebente!
Foi por isso, senhor professor, que decidi matá-lo.
Soube que o mataria desde o momento em que o ouvi
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dizer aquilo. Já não me restava outra escolha. Não tinha nada a que me agarrar, não me tinha sequer a mim.
Porque, veja bem, e desta vez vou dizer-lhe tudo, mesmo o que nunca consegui pensar claramente, porque é verdade!
Bauche não se dava conta de que estava a chorar enquanto os olhava fixamente e, quando um soluço lhe arranhou a garganta e depois explodiu, rouco, incongruente, tentou fugir, esbarrou contra uma parede, à qual acabou por encostar os dois braços, escondendo a cara.
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Sentia-se vazio, com uma grande fadiga no corpo todo, como a seguir a uma operação. Estava também um pouco abatido, mas não era desagradável.
De começo, ficara contente ao redescobrir-se sozinho na sua cela, e era uma sorte darem-lhe sempre a mesma, embora ali, no Palácio da Justiça, ele estivesse somente de passagem. Estendera-se ao comprido, de costas, olhando através do postigo. Teria feito o mesmo na véspera e na antevéspera? Não se recordava. Não tinha importância.
Não estava arrependido de ter falado tanto. Quando atravessara a antecâmara, já não havia ninguém à espera. Teria o professor previsto que a sessão seria longa, reservando-lhe a manhã inteira?
Mal os deixara, dera-se conta de que tinham ficado numerosos pontos por explicar. Era muito mais complicado do que eles deviam imaginar depois da sessão daquela manhã, e Bauche começava a sentir um pouco de medo de lhes ter causado uma impressão falsa.
Na verdade, seriam precisas sessões e sessões se se quisesse chegar ao fundo do problema. Talvez agora o
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ajudasse, depois de desbravado o terreno, discutir o seu caso a sós com o professor. Não era esquisito o facto de ele ignorar ainda como o outro se chamava? Ninguém pronunciara o nome do professor diante dele. Não podia esquecer-se de perguntar a Houard. De resto, este viria trazer-lhe os jornais da manhã e o nome do psiquiatra devia lá aparecer.
Contrariou-o pensar que o seu advogado viria já incomodá-lo. Que tinham, afinal, a dizer um ao outro? Nada havia de comum entre eles. O modo como Houard olhava era ridículo. Não devia ser muito inteligente. Era um homem sério, que não se desembaraçara ainda das ideias feitas.
Menos ainda se desembaraçara delas o juiz de instrução. Este último nem sequer tinha o direito de se libertar dessas ideias, porque a sua profissão consistia em defender as ideias comuns -tal como acontecia com o comissário e com o inspector de Orléans.
Era a primeira vez que dava por semelhante verdade e ela quase lhe fez medo. Em breve Houard o conduziria de novo até lá, até junto de Bazin, onde tudo seria como na véspera e como na antevéspera. Para que serviria continuar, se uns e outros não falavam a mesma linguagem?
Ora, quando aquilo com o juiz terminasse, dentro de semanas ou meses, viriam as audiências, onde o seu caso seria discutido mais ou menos no mesmo tom em que dele falavam agora nos jornais.
Era inútil. Sentia-se antecipadamente farto. Ele bem poderia falar, bem poderia tentar -recusar-se-iam a compreendê-lo e voltariam sempre à carga com os seus estúpidos raciocínios.
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Antes, não considerara esse aspecto da situação. Não previra, não imaginara que, de repente, se poderia levantar um muro entre um homem e os outros homens.
Admirava-o Houard estar atrasado. Tinham-lhe trazido já a refeição. O guarda nunca falava com ele, mas Bauche teve a impressão de que ele estava a olhá-lo de maneira diferente, hoje.
-Não sabe do meu advogado?
Comeu tudo o que lhe tinham trazido, lentamente, juntando as migalhas de pão. Aproveitava a sua solidão, desejava vê-la prolongar-se, registava na sua memória os pontos a que devia voltar, e outros acerca dos quais tinha certas perguntas a fazer.
Uma vez, quando acabava de comer -e era a primeira vez desde que fora à Rue Daru -, tornara a ver o rosto de Serge Nicolas, não como o vira no quarto, mas sorridente, sedutor, a beber um whisky num bar. Isso não durara muito tempo. Pensou logo a seguir noutra coisa, mas o facto, apesar de tudo, inquietara-o um bocadinho.
Não lhe tinham devolvido o relógio. Não sabia, por isso, que horas eram. O guarda continuava a vir de tempos a tempos deitar uma olhadela pelo postigo.
Em resumo, enganara-se. Não reflectira bem. Quisera ser demasiado sério, e Houard, à sua maneira, tinha razão. Só dele dependia não voltar lá acima, não discutir de novo com o juiz e não comparecer nas audiências.
Não fora ele que se obstinara em repetir que não era louco, que não perdera a cabeça nem por um segundo, que agira a sangue-frio, com todo o conhecimento de causa?
Os outros -excepto talvez o comissário -estavam
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prontos a considerá-lo como irresponsável. Tinha até a impressão de que o juiz tentara várias vezes ajudá-lo, tendo ficado um pouco decepcionado por ele não corresponder ao seu gesto.
Eram coerentes consigo próprios. Iam ter com Anais às escondidas, recusavam-se a admitir que aquilo fazia parte da natureza humana, chamavam-lhe um pecado, ou uma fraqueza, e, depois, esforçavam-se por esquecer.
Para eles, também matar não fazia parte da natureza humana. Por conseguinte, era uma obra de caridade não os obrigar a pensar que lhes podia acontecer, também a eles, um dia, atirarem-se com golpes de atiçador e de estatueta a um homem ferido.
Bastava-lhe declarar que era louco, ou somente que já não sabia o que tinha feito, que perdera momentaneamente a razão, obedecendo a um impulso incontrolável. Não era mais complicado do que isso. Os outros ficariam aliviados.
Quem sabe? Talvez começasse a arrepender-se de não ter agido desse modo. Não por causa deles. Não por ter medo. Não tinha vontade de recomeçar a sua vida negra, nem a sua vida de néon, nem sequer a sua vida de Grau-du-Roi. Fizessem dele o que entendessem, era-lhe indiferente.
O que lhe faltava era poder discutir com um homem como o professor. Ora seria isso o mais verosímil se se tivesse conduzido de outra maneira. Tê-lo-iam metido num asilo. Devia ser também o professor que se ocupava dos pacientes do seu género, dos casos mais graves. Devia vê-los quase todos os dias, interessar-se por eles, porque não era homem que pensasse apenas em ganhar a vida.
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Bauche tinha a convicção de que os dois se teriam tornado amigos. Lera-o nos olhos dele. Não era simpatia propriamente dita. O professor não era sentimental. Estava muito acima da piedade. Devia ter sentido que existiam entre eles pontos de contacto e a sua curiosidade despertara.
Na realidade, ao deixá-lo hoje, esquecera-se de lhe falar da próxima entrevista. Na véspera, dissera que o voltaria a ver no dia seguinte. Ora, hoje de manhã, não lhe tinha dito nada. Tinham ficado todos atrás dele, silenciosos, na sala.
Quereria aquilo dizer que tudo acabara já? De repente, sentiu-se tomado de pânico. Experimentava o sentimento de ser vítima de uma injustiça. Ainda não lhe tinham concedido a sua oportunidade. Mal tivera tempo de aflorar os pontos essenciais.
Não tinham o direito de o julgar por tão pouco. Era uma ideia que o punha febril. Bauche queria ter ocasião de mudar de atitude se assim o decidisse e estava quase a decidi-lo. Não sabia ainda como faria. Não ia pôr-se evidentemente a debitar extravagâncias, mas tinha a certeza de que conseguiria alcançar os seus fins. Faria as coisas habilmente, de modo a que o professor compreendesse onde ele queria chegar, sem que os outros dessem por isso.
E assim acabaria com os imbecis e os malvados.
Já não tinha vontade de ler o jornal, nem de responder ao juiz; o simples facto de pensar neste último bastava para o gelar, quando de início lhe parecera simpático.
Havia uma verdade que ele não dissera, que não
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ousara confessar nessa manhã e que confiaria ao professor quando o visse a sós: é que nunca se considerara inteiramente um homem. Do ponto de vista sexual. Mesmo com Fernande, no fundo, sentira sempre um certo mal-estar.
Isso nada explicava, mas podia interessar a um homem como o professor, que saberia exactamente do que se tratava. Uma prostituta a quem ele se atrevera a pôr o problema, respondera-lhe encolhendo os ombros:
-Não te atrapalhes, deixa lá! Há muitos assim como tu. Ainda estás dentro da média razoável.
É certo que ela acrescentara:
-Se visses o que é preciso fazer aos velhos! E mesmo a muitos novos!
Estava decidido! Não queria ouvir falar mais dos outros. Seria louco. Tanto pior para eles! Tinham sido eles a dar-lhe vontade de fazer batota. Em suma, agiam um tanto à maneira de Serge Nicolas. Ordenavam-lhe que dissesse a verdade, toda a verdade, mas, para se sentirem de espírito tranquilo, precisavam de que ele mentisse.
Mentiria. Iria também mentir a Houard? Era curioso que o advogado ainda não tivesse aparecido. Talvez estivesse a tratar da sua defesa. Contudo, Bauche devia comparecer perante uma instância correccional qualquer. Naquela tarde, parecia que ninguém se ocupava dele. Também não tinha notícias do juiz, que anunciara na véspera que o veria. O tempo passava, monótono. E Bauche começava a achá-lo comprido.
Quis perguntar as horas ao guarda quando este abriu o postigo, mas, assim que fez menção de se levantar, ele voltou a fechá-lo. Não se afastou logo, porque, nesse
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caso, Bauche ter-lhe-ia ouvido os passos. Ficara atrás da porta, a espiá-lo.
Que poderiam eles fazer? O comissário da Polícia Judiciária continuava o seu inquérito, mas nada havia a descobrir desse lado, para além das histórias de dinheiro, de facturas e contratos.
A lâmpada do tecto acendeu-se, indicando que já era tarde, porque o dia não estava nevoento e de manhã havia um sol quase tão brilhante como o da véspera.
Iriam tomá-lo à letra, sem lhe permitirem emendar as suas declarações? Era injusto. Bauche estava a ficar deveras enervado. Pela primeira vez, sentia-se encurralado, com a impressão de que se tramava uma conspiração contra a sua pessoa.
Fora ele que escolhera Houard para seu advogado de defesa. Seria ele a pagar-lhe, ou, pelo menos, assim se pressupunha. O advogado já devia ter vindo há muito tempo. Era o mais elementar dos seus deveres.
Bauche diria de chofre ao juiz:
-Estive a representar uma comédia.
Não seria até certo ponto verdade? Só que num outro sentido, evidentemente. Não era tão sério como pretendera. Certa vez, quando Fernande sentira vontade de comprar uma mala mais cara, ele dissera-lhe sem pensar, com toda a naturalidade:
-Porque é que não a pedes a Serge?
Vamos lá! Ia recomeçar tudo. Demoraria bastante. Havia material para várias semanas. Mas na sala do juiz, não. Aí, não acrescentaria nem uma palavra mais. Ou diria apenas, para encerrar o assunto:
-Desculpe. Estava louco.
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Depois, explicar-se-ia com o professor. Para isso, era indispensável voltar a vê-lo. Houard devia estar ao corrente e poderia tranquilizá-lo. Se ao menos aparecesse! Fechado como estava na sua cela, Bauche nem sequer saberia de nada se rebentasse uma guerra! E que aconteceria se o Palácio da Justiça se incendiasse?
Ia contar até cem, não, até mil, não muito depressa -e a seguir bateria na porta da cela. Diria que se estava a sentir doente e teriam de chamar alguém.
-Um... Dois... Três... Mil era muito. Quinhentos!
-... Onze... Doze... Treze...
Em que dia estavam? Não conseguia lembrar-se. O tempo em que se preocupava com as datas parecia-lhe terrivelmente distante.
Também não tinha vontade de voltar a ver a mãe, nem Fernande sequer. Em parte, era verdade que era por causa dela que ali estava.
Fechava os olhos.
-Trinta e três... Trinta e quatro...
Contaria só até duzentos. Diria ao guarda que tinha uma declaração importante a fazer; era melhor do que falar de doença. Havia um outro meio, talvez arriscado. Vira, num filme, um louco que tirava todas as penas do colchão e as lançava no ar às mãos cheias, como punhados de neve. Havia um enxergão na cela, com certeza recheado de crina, que faria o mesmo efeito. Mas quem sabe se não seria um género especial de loucura? Precisava de ser muito prudente nesse campo, caso contrário o professor dar-se-ia imediatamente conta de que estava a fazer batota. Ficaria desgostoso e deixaria de se interessar por ele.
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-Oitenta e dois... Oitenta e três...
Passos. Vinham ter com ele. Paravam diante da porta, e esta abria-se. Era Houard, arrepiado pelo ar frio lá de fora. Devia estar a gear. Passava-se alguma coisa, tinha a certeza, porque o advogado não tinha a sua expressão habitual. Mostrava-se embaraçado como alguém que tem de anunciar uma notícia desagradável, e isso fazia-o falar com excessiva desenvoltura, com uma voz que soava a falso.
-Peço-te desculpa pelo atraso, meu filho. Estive muito ocupado.
-Por minha causa?
-Por tua causa e por causa dos meus outros casos. Apesar de tudo, ainda tenho alguns clientes. Estás com um ar fatigado.
-Mas não estou cansado.
-A propósito, a tua mulher procurou-me ontem à noite. No fundo, é muito infeliz.
-Tinha bebido?
-Não sei. Suponho que não. Não dei por nada. Lamenta o que te fez.
-O que me fez, quando?
-Anteontem, no gabinete de monsieur Bazin. Não sabe para onde há-de ir. Os jornalistas não a deixam em paz. Não se atreve a aparecer em sítio nenhum. Pede-te desculpa.
-Desculpa de quê?
-De tudo. Disse-me que nunca se tinha dado conta de como gostavas dela, que não te compreendia. Gosta muito de ti.
Houard não estava a dizer tudo, tinha medo de deixar escapar algumas palavras que não queria proferir.
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-Como é que correram as coisas esta manhã?
-Muito bem -respondeu Bauche. -Falou com o professor?
-Ainda não me encontrei com ele pessoalmente. Ele avistou-se com o juiz Bazin e com o substituto. A verdade é que hoje não há interrogatório.
Bauche perguntou, desconfiado:
-Porquê?
-O juiz tem outro caso entre mãos, e tem de se ocupar dele esta tarde, porque o Ministério Público pronuncia-se amanhã.
-Porque é que não me confessa a verdade?
-Bom! Pois bem, eu já previra isto e devo dizer-te que estou encantado, que era o que de melhor nos podia acontecer, contanto que não te armes em imbecil. Vais ficar sob observação durante algum tempo. O que é que tens?
Bauche empalidecera. Os lábios ficaram-lhe completamente sem cor. O olhar, fixo. Estava de pé, imóvel, como que petrificado, no meio da cela.
-Repito-te que se trata apenas de ficares sob observação. Nada de definitivo. O professor Méchouard...
Méchouard! Finalmente, descobria-lhe o nome, mas num momento em que se tornara incapaz de experimentar qualquer prazer com isso.
-O professor Méchouard é um homem escrupuloso e faz questão de te ter ao seu cuidado no serviço dele, durante algum tempo.
-Está a mentir, não está?
-Porque é que eu havia de te mentir? Tinha-te deixado prever isto desde o início. Confesso-te até que fiz tudo o que pude para encaminhar as coisas neste sentido.
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É!
-O senhor não podia fazer nada.
-Que queres dizer com isso?
-Não foi por causa do que possa ter dito ou feito que o professor tomou esta decisão. Bem sabe que ele não precisa de voltar a ver-me. Confesse! Ele sabe.
-Que queres tu que ele saiba?
Bauche disse muito baixinho, com um calafrio que lhe partiu da nuca e lhe desceu lentamente ao longo da coluna vertebral:
-Que eu sou louco.
Houard fez um sinal quase imperceptível com a mão, e o postigo, que até aí estivera entreaberto, voltou a fechar-se; a porta abriu-se e entraram dois homens, que não eram polícias nem carcereiros, e levaram Bauche até à ambulância estacionada no pátio, antes de ele ter tempo de mergulhar na crise que receavam.
Com os olhos esbugalhados por uma angústia de dois dias e duas noites, seguia a entrada do professor, que via pela primeira vez de bata branca, e quase se lhe lançou aos pés, como quem implora a Deus.
-Não sou mesmo louco, pois não? Não sou louco, no sentido que eles dizem?
Então, o professor, tocando-lhe no ombro como se tivesse o dom de curar as chagas com a imposição das mãos, sorriu, abanando a cabeça.
Bauche tinha longos anos à sua frente para se explicar.
Georges Simenon
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