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O TESOURO DOS CZARES - P.2 / Heinz Konsalik
O TESOURO DOS CZARES - P.2 / Heinz Konsalik

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O TESOURO DOS CZARES

Segunda Parte

 

Que agitação! Os criados corriam por todos os lados, lavando, limpando, encerando e esfregando. As criadas tinham dores nas costas e os criados bolhas nas mãos. O porteiro da Corte gritava com todos. Era um dos raros servidores que não tinham sido sacrificados aquando das reformas que se haviam seguido à subida ao trono do rei, em 1713. Nas cozinhas, depenavam-se faisões e galinhas, coziam-se legumes, areavam-se bandejas de prata, verificavam-se a baixela e os talheres.

A mais enervada era a própria Sofia Doroteia, a rainha da Prússia. Não parava de correr entre as cozinhas, a sala de recepção, os quartos dos hóspedes e o gabinete do rei, onde acabou por se sentar num dos cadeirões, esgotada.

— Que calma! — suspirou ela, ofegante. — A sua tranquilidade mata-me! Tenho de me ocupar de tudo... e você, que faz? Limita-se a ficar à janela a ver os exercícios da guarda!

— E bem preciso é! Os granadeiros do Segundo Batalhão marcham como patos-marrecos! Não respeitam o alinhamento. As calças deles fazem pregas! Vai ouvir, esse comandante! Grande porco! vou mandá-lo para o diabo! Para os confins da Prússia Oriental. Aí, poderá plantar legumes e ensinar as galinhas.

Frederico Guilherme afastou-se da janela, encolerizado. Apesar dos seus vinte e oito anos, era já gordo e pesado, com um rosto redondo, braços fortes e pernas sólidas. Nessa altura, o rosto estava congestionado, os olhos brilhantes e cheios de uma feroz determinação.

Quando o pai dele, Frederico I, morrera, num sábado, 25 de Fevereiro de 1713, e ele, Frederico Guilherme, príncipe herdeiro, lhe sucedera, toda a Europa se apercebera das mudanças que se iam dar na Prússia. A corte de Inglaterra já se queixara do tom autoritário que o príncipe herdeiro utilizava para se dirigir aos diplomatas, e, em França, era com inquietação que se voltavam para Berlim, pois sabiam que a política do futuro rei seria radicalmente diferente da de seu pai. Frederico I fora um monarca jovial que apreciava, como os franceses, o luxo faustoso, a bebida e as mulheres, enquanto o seu filho iria fazer soprar outro vento sobre a Prússia: ele valorizava o exército, as finanças, a família e uma vida simples. O plenipotenciário francês exprimiu-se assim:

«O novo rei preocupa-se apenas com comandar. Para atingir os seus objectivos, emprega a violência sem escrúpulos e com um espírito partidário. O seu objectivo parece ser o de reorganizar o exército. Quer mudar os oficiais e todos os servidores. Dá provas de um militarismo absoluto.»

O primeiro discurso que Frederico Guilherme dirigiu aos seus ministros, após a subida ao trono, mostrava claramente o que os esperava. Lintelo, o plenipotenciário holandês, presente nessa ocasião, escreveu no seu relatório:

«O rei dirigiu-se a todos nós e declarou com grande insistência: ’Meu pai apreciava os palácios sumptuosos, as jóias, a prata, o ouro, a ostentação... Permitam-me ter também o meu próprio prazer, que consiste em dispor de boas tropas e em grande número.’

«É certo que temos um monarca determinado a governar de uma nova maneira. Não consulta nem os ministros, nem os administradores. Sabe apenas dar ordens imperativas e não tolera qualquer contradição. Podemos esperar muitas surpresas por parte do novo rei da Prússia.»

O embaixador holandês avaliara bem a situação: Frederico Guilherme pôs primeiro ordem na sua própria casa. A sua primeira divisa era ser ele o modelo. Começou por suprimir a corte que engolia milhões: deixou de haver festas reais, excepto para as visitas oficiais dos príncipes estrangeiros ou casamentos familiares. Reduziu o número de servidores, alistando os pajens nos cadetes, e os criados no exército. As tarefas para a cozinha e a cave foram reduzidas ao mínimo, o que representava uma economia anual de quatrocentos mil táleres, que serviram para os fardamentos do exército. Mas isso não bastava, e os vencimentos dos ministros, dos servidores, dos generais e de todos os outros oficiais foram diminuídos. E esse «excedente» continuou a aumentar os cofres do exército. Foi com terror a estupefacção que Frederico Guilherme descobriu, depois da morte do pai, um cofre secreto cheio de moedas de ouro e de prata, no valor de dois milhões e meio de táleres. Começou então a avaliar a fortuna que herdara e os prováveis rendimentos. Em seguida, chamou para o castelo o seu amigo, o príncipe Leopold von Anhalt-Dessau, doze anos mais velho do que ele, que viria a ser conhecido por «o velho Dessau».

— Príncipe — disse-lhe Frederico Guilherme após o exame das contas —, sou mais rico do que pensava... Possuo táleres suficientes para aumentar o nosso exército com mais sessenta mil homens.

E o príncipe Anhalt-Dessau respondeu:

— É uma sólida herança. Ajudá-lo-ei, Majestade, a fazer da Prússia uma potência militar invencível.

Foi assim que nasceu o rei-sargento. Só pensava em fazer economias. Frederico Guilherme impôs a Sofia Doroteia, descontente, deixar como estava o castelo da cidade de Berlim, concebido pelo célebre Andreas Schluter e construído pelo arquitecto real Eosander. Essa residência austera abrigara todos os reis. Despedido por Frederico Guilherme, Eosander dirigiu-se para a Suécia, e o grande Schluter partiu para São Petersburgo em 1713, não regressando mais. A fundição do mestre Johann Jakobi, onde Schluter mandara fundir a sua célebre estátua equestre do príncipe eleitor Frederico Guilherme, avô do novo rei, teve de se reconverter, e, em vez de monumentos, fundia agora canhões.

Quando ficaram sozinhos no meio das salas espartanas, quase nuas, Sofia Doroteia, a quem Frederico Guilherme chamava afectuosamente Fiekchen, bateu com os punhos fechados nos braços da cadeira. Era uma bela mulher orgulhosa, mas também fria e dominadora que não receava o seu real esposo, sobretudo desde que lhe dera, em 1712, um filho, o príncipe herdeiro Frederico.

Estava furiosa e nada preocupada com a cólera do rei por causa da 2.º Batalhão que marchava mal.

— Quer ouvir-me, finalmente? — exclamou ela. — Toda a gente parece ter perdido a razão.

— Quem não a tem não se arrisca a perdê-la. Porquê toda essa excitação?

Ficou de pé diante dela e o seu olhar suavizou-se, como sempre que contemplava a mulher, consciente da felicidade que sentia com ela.

— Porquê? — repetiu ela, exaltada. — Agora que o czar nos honra com a sua visita...

— Que sabes tu das intenções dele, Fiekchen? Julgas que ele vem aqui para comer um gordo capão, fumar um bom cachimbo e beber uma bela cerveja? O que ele quer é fazer-me tomar parte na guerra contra os países nórdicos. Contra Carlos Doze, da Suécia. Portanto, tanto lhe faz comer uma sopa de couve ou um faisão, dormir numa cama de madeira ou sobre damasco macio. Quem quer obter alguma coisa da minha parte deve dobrar-se à minha maneira de ser.

— A Prússia vai ser ridicularizada. Amanhã, o mundo inteiro terá os olhos postos em nós.

— com este exército — retorquiu o rei estendendo os braços para a janela —, não quero saber o que os outros soberanos pensam de mim! Eles preferem ocupar-se com as suas amantes. Um dia olharão a Prússia com espanto e habituar-se-ão a temê-la. Uma mesa grandiosa para o czar! Preciso de fazer economias. Esqueceste o nosso casamento? O meu pai quis mostrar ao mundo que homem era e o dinheiro que possuía, para igualar Versalhes. — Andava de um lado para o outro na sala, com as mãos atrás das costas. — Casámo-nos a quatro de Novembro de mil setecentos e seis, Fiekchen. O meu pai deixou valsar os táleres até ao Natal, fazendo dançar e dando de comer e de beber a toda essa gente vestida de seda. Bailados, óperas, concertos, comédias, bailes de máscaras, fogo-de-artifício. Nada faltou. E não esqueci — tomei nota dos números — o que os camponeses de todas as províncias tiveram de «oferecer» às nossas cozinhas: Sete mil e seiscentas galinhas, mil cento e dois perus, mil patos, seiscentos e trinta gansos e seiscentas e quarenta vitelas. E foi tudo devorado! Eu, Fiekchen, não sangro o Estado... Eu sou o primeiro servidor do reino. Mesmo com a chegada do czar da Rússia. O paraíso eterno está diante de Deus, mas, quanto ao resto, sou eu que decido.

Embora fosse de opinião diferente, Sofia Doroteia preferiu calar-se e não irritar o rei nesse dia. Ele acabava de recordar a sua divisa favorita. A segunda era: «Considero o ser humano como a maior riqueza.»

Quanto à terceira, resumia todo o objectivo da sua vida: «Estabilizo a soberania e consolido a coroa como um rochedo de bronze.» Dificilmente se podia discutir com ele e não se podia estar em desacordo, pois, para Frederico Guilherme, só ele mesmo tinha sempre razão. No seu célebre discurso quando subira ao trono, dissera aos seus ministros:

«Àqueles de entre vós que pensam em novas cabalas, reservo-lhes um castigo que os surpreenderá. Queiram notar que não preciso nem de conselhos, nem de raciocínios, mas sim de obediência!»

— Nem sequer há um programa das festas! — observou prudentemente Sofia. — Os ministros estão desesperados, os generais esperam as suas ordens, um conselheiro já chorou, pois será ele que será considerado culpado depois se...

— Que chore. É da maneira que mijará menos... Sofia Doroteia endireitou-se na cadeira.

— Que maneiras! No entanto, é preciso apresentar alguma coisa ao czar! Tem de haver um programa!

— O urso de Petersburgo verá o suficiente. Hei-de arranjar qualquer coisa.

— Sim. Exercícios, paradas dos granadeiros, dos fuzileiros, da cavalaria e da artilharia. A sua guarda vai exibir-se como uma manada de touros.

— Fiekchen, não te ocupes dos meus Langen Kerls.

O rei parou diante da rainha e espreguiçou-se. Não suportava que tocassem nos seus granadeiros da Guarda. Varria todas as críticas com um gesto ou então encolerizava-se de tal maneira que ninguém se atrevia a abordar o assunto.

Um dia, por ocasião de uma reunião no seu célebre pavilhão de Potsdam, um pavilhão octogonal com uma alta torre pontiaguda, que ele mandara construir numa ilha do Faulen See1 um pouco por causa do nome que achava engraçado, declarara perante uma assembleia de homens, composta por amigos e generais (era rigorosamente proibida a entrada a mulheres), dirigindo-se ao seu ministro das Finanças para o Exército, o general von Grumbkow:

«Mantenho os meus Langen Kerls do meu próprio bolso, pois nada me pode dar mais prazer do que um bom exército.»

— O czar terá bastante que ver. Dêmos-lhe qualquer

 

1 Lago Preguiçoso. (N da T.)

 

coisa para mastigar e para beber, apresentemos-lhe os nossos filhos, desculpemo-nos por não rivalizarmos com Versalhes, onde um bando de idiotas perfumados fornece amantes à corte... Quanto ao resto eu me encarregarei.

Ouviu-se uma pequena pancada na porta e depois esta abriu-se bruscamente e a princesa Wilhelmine irrompeu pelo gabinete do rei. Trazia pela mão o príncipe herdeiro Frederico, de quatro anos de idade. Ele resistia debilmente, fazendo força nas suas pequenas pernas e tentando em vão escapar às mãos da irmã mais velha. Mas Wilhelmine, de sete anos, era a mais forte. O irmão era um belo rapaz de membros delicados, com olhos vivos e límpidos e uma boca meiga, que fazia com que seu pai dissesse:

«Precisa de fumar cachimbo connosco, faremos dele um homem! O príncipe herdeiro da Prússia deve ser um campeão!»

— Que espectáculo indigno! — ralhou Frederico Guilherme com voz grossa. — O príncipe herdeiro a deixar-se arrastar por uma donzela. Porque não te defendes?

— É a minha irmã, papá.

— QUEM sou eu? — ralhou o rei com voz tonitruante.

— Perdão... meu pai.

O pequeno libertou-se, finalmente, da mão de Wilhelmine e correu para a mãe que se encontrava sentada num cadeirão.

— Ele tem medo! — exclamou a princesa.

— Cala-te! — gritou o rei. — Um príncipe herdeiro não tem que ter medo.

— Ele receia o czar, pai.

— Fritz?

— Pai?

O pequeno, muito encostado à mãe, reunia toda a sua coragem para enfrentar o rosto severo do pai.

— Tu só deves temer Deus... mais ninguém. Um czar não é um deus, embora os russos procedam como se o fosse.

— Contam-se coisas feias sobre ele, meu pai. Por isso, é que Fritz tem medo! — declarou corajosamente a pequena princesa. — Essas histórias são verdadeiras?

— Quais, por exemplo?

— Diz-se que o czar come com os dedos... que suja tudo com os molhos, que limpa a boca com as costas da mão. Quando come galinhas ou faisões, deita os ossos para trás, depois de os ter roído, e, quando esses ossos caem em cima de alguém, essa pessoa deve inclinar-se e dizer: «Czar majestoso, agradeço-vos esta condecoração.» Conta-se também que ele entornou creme gelado no decote de uma dama e que meteu na boca da princesa Troubetzkoi frutos em compota, fazendo-a quase engasgar-se...

Sofia Doroteia aplaudiu. O rei fez sinal à pequena princesa para se aproximar. Ela avançou obedientemente.

— Quem conta tais histórias?

— Não sei, meu pai. Ouvi homens a falarem.

— Escutaste às portas?

— Sim, meu pai.

Frederico Guilherme pegou rapidamente no seu bastão de madeira de faia, que trazia sempre consigo, e brandiu-o no ar.

— A minha filha escuta conversas de desconhecidos. Uma princesa da Prússia! E, além disso, acredita em tudo aquilo que ouve. Mereces apanhar?

— Sim, meu pai.

— Se o czar estiver amanhã sentado à nossa mesa... nós não daremos por coisa alguma. Ele é um soberano e pode fazer o que quiser.

Sofia Doroteia enlaçara o príncipe herdeiro e puxou a princesa para si com a outra mão.

O rei pousou o bastão em cima da mesa.

— O czar é um bom soldado... por isso, tem o direito de arrotar à mesa!

A equipagem de Pedro I chegou a Berlim no dia seguinte de manhã.

Como de costume, ele viajava apenas com uma pequena escolta... à frente dez cavaleiros envergando o uniforme verde do Regimento Preobrajenski; depois, numa carruagem simples, mas robusta, o czar e o seu séquito, seguidos por algumas carruagens com criados, pajens, o seu mouro favorito Abraham Petrovitch Hannibal, e o anão Levon Ouskov.

Um coche fechava o cortejo, o da amante imperial do momento, a bonita Natália lemilianovna Gasenkova, uma mulher de olhar brilhante e caloroso, cujo marido fora nomeado por Pedro I administrador da armaria da Fortaleza Pedro e Paulo. Uma equipagem realmente modesta para um czar considerado como um dos homens mais poderosos do mundo.

Frederico Guilherme acolheu o seu convidado à entrada do castelo, como convinha a um pai de família. Fazia pouco caso de um acolhimento faustoso, com guarda de honra, fanfarras e trombetas, bandeiras, reverências de ministros e uma multidão de criados e de cortesãos. O rei encontrava-se sozinho na entrada, tendo apenas atrás de si o seu amigo, o barão von Pollnitz. Este, vestido com simplicidade, apoiava-se sobre a sua bengala. Usava uma peruca castanha com um caracol colado a cada têmpora.

O cocheiro russo fez parar o coche, mesmo diante da entrada e conteve os cavalos para evitar sacudir o czar. Seis meses antes, não conseguira controlar os cavalos demasiado nervosos, e, em consequência, o coche dera verdadeiros saltos antes de se deter, pelo que o czar fora atirado para fora. O cocheiro fora tão duramente chicoteado que tivera de permanecer três meses na cama antes de poder voltar a ocupar o seu lugar.

Logo que o coche se imobilizou, dois lacaios precipitaram-se para abrir a porta e puseram-se em sentido. O czar desceu então do coche.

Pedro I teve de se inclinar consideravelmente, pois a porta era demasiado baixa para ele; porém, não mandava construir coches à sua medida, por preocupação de economia e também por não considerar vergonha um chefe inclinar-se; até mesmo o czar devia fazê-lo, pelo menos diante de Deus.

Frederico Guilherme envolveu num só olhar aquele que chegava a sua casa e alegrou-se com isso.

Pedro I media bem dois metros. Era um homem sólido e imponente, um verdadeiro colosso como Frederico Guilherme gostaria de ter nos seus Langen Kerls. O rosto do czar era bronzeado, por cima da boca sensual tinha um pequeno bigode e os seus olhos autoritários observavam tudo. Os seus cabelos castanhos, encaracolados, estavam cortados curtos, certamente por causa da sua viagem e das visitas reais, pois raramente os mandava cortar, já que as perucas o aborreciam. — E o rei da Prússia experimentou um sentimento fraterno ao descobrir que ele se apoiava numa sólida bengala espanhola, semelhante ao bastão com o qual Frederico Guilherme governava a sua Prússia natal.

Depois do czar, o príncipe Netiaiev e o general Odoievski desceram também. Em seguida, saíram da carruagem seguinte o anão Levon e Hannibal, o mouro dedicado ao monarca.

«Cada um tem os seus gostos», pensou o rei da Prússia dando dois passos para ir ao encontro de Pedro I. «Ele tem os seus mouros e os seus anões, eu tenho os Langen Kerls e o rei da França reina sobre uma armada de amantes.»

— Bem-vindo a Berlim! — exclamou Frederico Guilherme, estendendo-lhe a mão.

Falou com o seu habitual torn rude e autoritário, como se tivesse dito: eis Berlim! Tenha cuidado!

Pedro apertou a mão estendida... Um aperto de mão forte como um torno, que Frederico Guilherme suportou cerrando os dentes para não deixar escapar um grito de dor. «É verdade que ele é forte como um touro», pensou. «Tem as mãos duras e calosas de trabalhar. O meu pai não gostava dele. Achava-o demasiado rude, demasiado ordinário. Um czar com modos de jornaleiro.»

— Fez boa viagem? — perguntou o rei acompanhando o czar para o interior do castelo.

No vestíbulo, as damas de honor fizeram a reverência. Sofia Doroteia inclinou-se, ladeada à esquerda pelo príncipe herdeiro e à direita pela princesa Wilhelmine. Estavam todos com trajes de gala de seda com bordados, contrariamente ao rei que preferira vestir uma sobrecasaca e calças com polainas. O czar encontrava-se também sobriamente vestido: um traje cortado num tecido grosseiro já muito usado: uma sobrecasaca verde-escura com bandas azuis desbotadas e grandes botões de cobre. Trazia um chapéu sem qualquer fita e uns sapatos com os saltos gastos. Em Versalhes tê-lo-iam expulso do castelo, ou até mesmo aprisionado um indivíduo assim vestido.

— Têm belas estradas na Prússia — observou Pedro I, saudando as damas com uma inclinação da cabeça.

Avaliou com um olhar conhecedor a jovem condessa Von Donnersmarck, piscou-lhe despreocupadamente um olho e depois dirigiu-se para a rainha com grandes passadas, balouçando os braços. O príncipe herdeiro Frederico olhou medrosamente para o gigante, contemplou a verruga que ele tinha na face direita, reparou no tremor nervoso no rosto do czar e agarrou-se mais à mãe.

— Que alegria vê-la tão resplandecente! — exclamou Pedro com a sua voz grossa.

E sem hesitar atraiu para si a cabeça da rainha, estupefacta e assustada, para lhe depor dois beijos na testa. O rei, que se encontrava atrás dele, saboreou jovialmente o susto da mulher.

«O czar é mesmo assim», pensou. «Sem complicações. Comporta-se como um lenhador da Sibéria. Pedro Alexandrovitch, nós poderíamos compreender-nos e sermos amigos se tu não estivesses sempre em guerra e pudesses afastar-te da tua horda de putas. Tens contudo uma boa esposa, Catarina, que quase todos os anos fica grávida. Que queres mais?»

Pedro largara a cabeça da rainha e esperava agora a continuação do protocolo. Mas não houve mais nada. Depois do licenciamento, em 1713, do marechal e grande administrador da corte, do grande mestre-de-cerimónias e de outros cortesãos, o rei organizava sozinho, com os seus oficiais, as festividades para os seus visitantes. Restava apenas o chefe cozinheiro da corte para comandar a sua brigada, que de resto era pequena. Aquilo que a família real comia poderia ser preparado por uma camponesa.

— A viagem foi longa — disse Frederico Guilherme. — Foi fatigante? Deseja repousar? vou acompanhá-lo aos seus aposentos. O seu pessoal está igualmente muito bem instalado. Ou quer beber antes uma caneca de cerveja?

— Boa ideia! — replicou Pedro I, esfregando as mãos. — E fumemos também. Trouxe os meus cachimbos de porcelana holandeses. — Voltou-se, fazendo um sinal enérgico, e o mouro Hannibal aproximou-se imediatamente com um pequeno cofre nas mãos. — Vamos.

Encontraram-se então sozinhos no gabinete do rei, de paredes brancas, parcamente mobilado, sem tapetes nem cortinados. Mandaram sair Hannibal. O anão Levon, que não foi autorizado a entrar, acocorou-se em frente da porta. Parecia um grande sapo vestido.

Pedro olhou o que o rodeava e aprovou várias vezes com um sinal de cabeça.

— É como eu. Para quê o luxo? Claro que o Kremlin de Moscovo é sumptuoso, os palácios de Petersburgo ultrapassam mesmo Versalhes, os castelos da minha residência de Verão, Tsarskoie Selo, foram construídos pelos melhores arquitectos do mundo. Foram decorados pelos pintores, escultores e ourives dos mais prestigiosos. É o que se espera de um czar... Mas eu, meu amigo, prefiro viver numa cabana de madeira rústica, e não no meio dos damascos, sedas e púrpuras.

Aproximou-se da mesa sobre a qual Hannibal colocara o cofre, deu a volta à chave, abriu-o e deixou Frederico Guilherme olhar lá para dentro. Encontravam-se ali cachimbos em porcelana de todas as formas e tamanhos, direitos ou curvos, que repousavam sobre veludo verde. Dos lados viam-se recipientes com tabaco e pedacinhos de madeira para acender.

— Vivo em salas pequenas, durmo numa cama dura e rodeio-me também de móveis rústicos.

Escolheu um cachimbo para si, tirou outro e ofereceu-o ao rei.

— Tome este. É o melhor. Refresca o fumo e assim a garganta não arde.

— Saberei apreciá-lo — respondeu Frederico Guilherme com ar jovial, pegando corajosamente no cachimbo, cuja extremidade, visivelmente mal limpa, tinha uma cor castanha-escura. — Que vamos beber?

— O que quiser, rei da Prússia.

— Que tal uma cerveja amarga?

— A sério? — disse Pedro com uma careta.

Um tremor violento deformou o seu rosto, a cabeça oscilou para a direita e para a esquerda, o seu imenso corpo contorceu-se ligeiramente, os olhos abriram-se muito. O ataque foi leve. Era de fazer morrer de medo, mas o rei estava ao corrente daqueles espasmos que sacudiam o corpo de Pedro desde a infância e contra os quais não havia qualquer remédio.

O czar levou a mão a um dos bolsos, extraiu de lá uma caixinha de âmbar donde tirou duas pitadas de um pó que engoliu penosamente.

— É a única coisa que me alivia — disse ele, fechando a caixa. — Foi preparado por um xamã. É um pó feito à base de estômago e de asas de pega. Todos os médicos são uns ignorantes. Se encontrasse um que me libertasse das convulsões, ele tornar-se-ia o homem mais rico do mundo! E se bebêssemos tokai!

O rei dirigiu-se para a porta, abriu-a bruscamente, quase tropeçou no anão Levon e gritou para os seus criados:

— Tokail

Depois voltou a fechar violentamente a porta e voltou para junto de Pedro. Apontou para a bengala de Pedro e bateu no chão com a dele.

— A sua bengala interessa-me — disse Frederico Guilherme. — É um belo exemplar.

— Sem ela, eu não estaria completo. — Pedro balouçou a bengala. Um sopro de ar e um assobio chegou aos ouvidos do rei. — É uma sólida cana da índia. E o castão é de marfim. Eu próprio o esculpi. Chamo a esta bengala a minha «Doubina». O homem é um ser singular. Precisa de ser corrigido para não se tornar estúpido e preguiçoso! Viu Hannibal, o meu mouro? Gosto muito dele. Tinha onze anos quando chegou a minha casa. Tolstoi, o meu embaixador, comprou-o em Constantinopla e ofereceu-mo. Mandei-o baptizar e educar. Aprendeu igualmente a profissão de torneiro, dorme na minha oficina e acompanha-me por toda a parte... uma vez por semana, espanco-o com a minha Doubina. Não sem que ele tenha feito coisa alguma... Espanco-o por amor. Para ele é uma distinção. — Tirou mais uma pitada de pó e examinou as pedras esculpidas. — A pedra de sol — disse pensativamente. — O ouro do mar Báltico...

— O ouro da Prússia, czar Pedro — rectificou o rei num tom que não admitia réplica.

Uma discussão teria sido absurda.

— Quando da minha última visita a este castelo, o seu pai mostrou-me uma sala toda em âmbar.

— No terceiro andar, uma sala que faz esquina. A nossa Sala de Âmbar. — Frederico Guilherme abanou a cabeça. — Tinha sempre dinheiro para tais extravagâncias. Os escultores de pedra de âmbar trabalharam nessa sala durante onze anos. Foi preciso dinheiro durante onze anos para esse luxo que não faz qualquer falta. O meu pai mandou-a instalar neste castelo em mil setecentos e doze.

— E foi nesse ano que eu a vi. Ia a caminho para ir ver as minhas tropas na Pomerânia.

— Recordo-me muito bem. Houve uma grande festa. A amante de meu pai, a condessa Coíbe von Wartenberg, uma ruiva de olhos verdes (eu chamava-lhe apenas «a grande puta»), também vos agradou. O decote dela era tão profundo que se podia ver o seu monte de vénus, não é verdade? Antes do meu pai a casar com esse imbecil do Wartenberg, ela era uma rapariga da burguesia, uma tal Kathi Rickers. Sabe o que ela fez? Foi ter comigo, passeou na minha frente mostrando-me os seios e as nádegas e propôs-me dormir comigo. E eu só tinha nessa altura catorze anos.

O czar começou a rir ruidosamente, e bateu com a sua Doubina sobre a mesa, dobrado em dois.

— Catorze anos e fugiu diante de uma mulher sensual? caro Frederico Guilherme, com essa idade eu já não

era capaz de contar as minhas amantes! Damas da corte, criadas, camponesas, mulheres de ministros, princesas e tratadoras de vacas... nenhuma me resistia. Além disso, eram todas exigentes. Perdeu muita coisa, meu caro primo.

— Sou feliz com a minha Fiekchen — protestou o rei, mudando de assunto. — A Sala de Âmbar agradou-lhe?

— É uma obra de arte única. Uma sala inteira em lágrimas de sol, como dizem os eslavos. Existirá algo de mais belo? Nunca vi nada de comparável.

— Quer visitá-la de novo, Pedro?

— Continua aqui?

— Nunca lá entramos. Eu não gosto de lá ir. Quando a vejo, irrito-me com a prodigalidade do meu pai.

O rei meteu a bengala debaixo do braço, dirigiu-se pesadamente para a porta, abriu-a com violência e fez sinal aos criados que ali se encontravam.

— Venham aqui! — gritou. Mas, quando eles se aproximaram, pegou na bengala e começou a bater-lhes. — Onde está o tokafi— gritou com uma voz retumbante. — Aqui, canalhas! Mais perto. Querem que eu corra atrás de vocês com a minha bengala? Basta erguerem um braço e eu não falharei!

O anão Levon rebolou como uma bola e olhou para o czar com a sua Doubina. Iria ele bater-lhe também? Dois soberanos com bengalas... Anunciava-se uma nova existência.

— Vamos ver a Sala de Âmbar, Pedro — propôs Frederico Guilherme. — Deu ainda uma pancada num lacaio que gritava. — Abri-lhe a passagem. Subamos ao terceiro andar.

Os gritos e as pancadas do rei tinham esvaziado a escada. Subiram sozinhos até à sala. Frederico Guilherme abriu a porta e o czar encontrou-se na sala maravilhosa.

O sol entrava pelas duas janelas, uma que dava para o jardim e outra para o pátio do castelo. Pedro I ficou imóvel, ofuscado pelo âmbar cintilante que irradiava todos os tons de amarelo, um brilho de sol captado e refractado pelos mosaicos e esculturas, as rosetas e as folhas de acanto, as cabeças esculpidas e as oito máscaras mortuárias. Passeou o seu olhar ao longo de cada lambrim. O czar vivia com simplicidade, mas era um grande amante de arte, sobretudo quando se tratava de fazer a sua querida cidade de Petersburgo a mais bela do mundo ocidental. Dois anos antes, em 1714 — admirara nessa altura, pela primeira vez, a Sala de Âmbar —, fundara a Academia das Artes de Petersburgo e elaborara um decreto ordenando que se reunissem todas as obras de arte e objectos preciosos para aí se guardarem. Levaram então para ali todos os inúmeros tesouros do Ermitage.

— Que maravilha — murmurou Pedro como se estivesse numa igreja. — Frederico Guilherme, invejo-o por causa deste tesouro.

— Agrada-lhe, Pedro?

— Se estivesse sozinho, ajoelhava para beijar as paredes.

— Temos ainda muitos assuntos a discutir. Frederico Guilherme, tal como Pedro, não era homem

para se embaraçar com subtilezas diplomáticas; pelo contrário, ia direito ao fim. Cruzou as mãos atrás das costas e foi observando com atenção o czar que andava de um lado para o outro, de um painel a outro. Eram doze ao todo, alinhados numa extensão de catorze metros. O czar inclinava-se, contemplava as esculturas de âmbar, acariciava ternamente, com as pontas dos dedos, os mosaicos e os ornatos, abanando a cabeça com admiração.

— Pedro, preciso da Pomerânia Ocidental. Ela pertence à Prússia e não à Suécia. Que diz de uma aliança entre a Prússia e a Rússia?

— É o que eu desejo há muitos anos. — Pedro endireitou-se e voltou-se para o rei. — O seu pai não me deu ouvidos em mil setecentos e doze, quando eu o quis persuadir a fazermos um pacto. «Não quero disparar, quero dançar», disse-me ele rindo na minha cara.

— E conduziu a Prússia à beira do descalabro. Pedro, estou empenhado em construir novos tempos. Um exército forte, invencível, ordem e disciplina, gosto pelo trabalho e amor pela pátria, obediência até à morte... O homem deve ser educado, senão fica um carneiro. O futuro exige força.

— Uma aliança entre a Prússia e a Rússia aprofundará a nossa amizade.

O czar desenhou com a sua Doublna um mapa grosseiro na poeira que cobria o soalho. O pavimento só era limpo uma vez por semana e não duas vezes por dia, como as outras salas. Quem, a falar verdade, entrava na Sala de Âmbar no terceiro andar?

— Aqui fica a Rússia Ocidental, a Prússia Oriental, a Polónia, a Pomerânia, o Brandeburgo e a Prússia. — Pedro tocou num sítio do mapa e abanou a cabeça várias vezes. — E aqui está a Pomerânia Ocidental, Frederico Guilherme. Não me interessa. Deve realmente pertencer à Prússia. Temos apenas de vencer os suecos e expulsá-los. Os dois juntos poderemos fazê-lo.

— Agradeço-lhe, Pedro.

Por um instante, o rei pensou em Sofia Doroteia a quem contara exactamente o contrário. Mas afastou essa ideia. As mulheres — a política! O dever delas era terem filhos e satisfazerem os maridos. Aos homens é que competia dirigirem os povos. «Homens como Pedro e eu. Homens como deve ser!»

— Leve a Sala de Âmbar consigo!

— É uma brincadeira de mau gosto, Frederico Guilherme!

— De modo algum. Ofereço-lha.

— Não posso aceitar tal coisa.

O czar parecia perturbado — um espectáculo raro que poucos tinham visto. Ele era sempre o primeiro, o melhor, o mais inteligente e o mais valente, capaz de tudo, um homem ao qual era impossível resistir.

— Não, não posso aceitar uma obra de arte que não tem equivalente.

— A Pomerânia Ocidental tem muito mais valor e importância para mim. — O rei bateu com a bengala nos botões das polainas. — vou mandá-la desmontar e enviá-la via Memel para a fronteira. Aí os seus homens poderão encarregar-se dela.

— Ainda não posso acreditar, meu amigo.

Pedro dirigiu-se para Frederico Guilherme para o abraçar, mas o rei, que se lembrava da força do czar, comparável à de um urso, não tinha vontade de ficar com algumas costelas partidas. Fez, portanto, cair a sua bengala e baixou-se para a apanhar, o que lhe permitiu escapar com elegância ao abraço doloroso, e só se endireitou quando se dissipou o acesso de terno reconhecimento de Pedro.

— Vamos para a mesa! — propôs o rei fazendo oscilar a sua bengala. — O tokai não chegou a aparecer. vou ensinar esses canalhas a correrem como doninhas!

— Qual é a ementa? — informou-se o czar.

— Não faço ideia. Isso são assuntos que dizem respeito à rainha. A minha Fiekchen tem bom gosto.

— Contento-me com pouco. Uma sopa de couve, um caldo de sêmola, um assado frio com pepinos de conserva e limões, um pouco de legumes, e nada de doces à sobremesa, isso faz-me mal à digestão, apenas fruta e queijo de Limbourg.

— Não temos aqui nada disso — exclamou Frederico Guilherme, rindo. — Devia ter passado o comando ao meu chefe cozinheiro. Como nós somos parecidos, Pedro. Eu prefiro uma boa caneca de cerveja ao champanhe francês. E sento-me com tanto prazer num tamborete como numa almofada. O meu traseiro não quer saber disso.

O czar seguiu o rei até à porta onde ele ficou um instante a contemplar as paredes com reflexos de ouro da Sala de Âmbar.

— É realmente para mim? — perguntou como um rapazinho satisfeito com um presente que o tivesse surpreendido.

— Pode fazer dela o que quiser.

— É incrível! Nunca o esquecerei, Frederico Guilherme.

— Não se esqueça da Pomerânia Ocidental... cem vezes mais preciosa para mim do que a Sala de Âmbar.

Desceram as escadas até ao vestíbulo onde os convidados esperavam. O rei puxou pela manga do czar.

— Lá estão os vampiros — disse ele. — Veja essas caras grotescas que esperam. Regalam-se antecipadamente. Ah! Quem é aquela mulher?

O olhar de Frederico Guilherme fixou-se numa dama que se encontrava perto do príncipe Netiaiev, com uma grande peruca encaracolada e cujo decote vertiginoso fazia realçar uns seios magníficos, moldados por um vestido de seda cintilante. Apontou-a com o dedo e todos os olhares se voltaram para a beldade. O czar começou a rir. O seu bigode tremia.

— É Natália lemilianovna, a minha amante nesta viagem. Sei o que pensa, meu irmão, mas não é só o estômago que enlanguesce, não é só o espírito que procura uma conversa estimulante. O coração também tem as suas exigências. Na cama, Natália é uma verdadeira loba das estepes.

— O meu pai ter-se-ia neste momento comportado como um bobo. — O rei desceu pesadamente os últimos degraus. — Eu TOLERO Natália à minha mesa porque ela faz parte do seu séquito, czar Pedro.

O banquete podia começar.

Foi um festim que não se esqueceu tão cedo no castelo de Berlim.

O czar estava sentado ao lado da rainha Sofia Doroteia, com a sua amante Natália à sua esquerda e o rei devia tomar lugar ao lado dela. Mas Frederico Guilherme modificou imediatamente essas disposições: sentou-se na cadeira ao lado de Fiekchen e ordenou ao conde Von Bullow que se instalasse ao lado «das bolas brancas» como chamava ao decote de Gasenkova, sem querer saber se essa mudança agradaria a Pedro. Ali era ele o senhor e a casa do rei da Prússia era decente. Não tinha prostitutas, nem favoritos, nem bajuladores. O príncipe herdeiro fora instalado sobre uma montanha de almofadas, ao lado de Fiekchen, para que pudesse admirar a mesa decorada. Os lacaios encontravam-se alinhados ao longo das paredes e uma orquestra de instrumentos de cordas tocava em surdina música de Haendel, Scarlati e Schutz. Petersburgo informara a corte que o czar apreciava as refeições oficiais com música.

Pedro I comia muito, podia mesmo dizer-se que excessivamente. Como receavam, não sabia servir-se do guardanapo de tecido adamascado muito fino. Utilizava desajeitadamente o garfo e a faca, espalhava os molhos e lambia os dedos. Quando salpicou a sobrecasaca com o molho do assado, longe de se mostrar embaraçado, limpou-o com um dedo e lambeu-o.

— Está delicioso, minha senhora — disse ele a Sofia Doroteia. — O faisão é tenro como o peito de uma jovem. Morde-se e sentimo-nos felizes.

Falou tão alto que toda a gente à mesa ouviu o que ele disse e até mesmo a princesa Wilhelmine o compreendeu, baixando a cabeça e escondendo um sorriso. Estava sentada demasiado longe do pai, pois se assim não fosse este ter-lhe-ia dado uma bastonada por baixo da mesa. Mas o rei ficou furioso com a observação do czar, concebível num círculo de homens, mas não diante das damas. Como Frederico Guilherme não tinha o hábito de reprimir a sua cólera, mas sim de a deixar explodir, procurou alguém sobre quem a descarregar. O seu olhar caiu sobre um lacaio que se encontrava mesmo em frente dele, junto da parede, encarregado de servir o general Odoievski, cujo copo de vinho se encontrava vazio. O motivo era suficiente para punir o lacaio desatento.

Ao sentar-se à mesa, o czar reparara já que havia duas pistolas colocadas ao lado do prato do rei e teve vontade de lhe perguntar se receava um atentado. Agora, estupefacto, o czar viu o rei levantar-se, pegar numa das pistolas, erguê-la e apontá-la para o lacaio que ficou pálido e a tremer. — O tolo nem sequer vê um copo vazio. Está a dormir em pé.

O tiro partiu, mas em vez de uma bala saiu do cano um sal grosso que atingiu o pobre lacaio em pleno rosto, abrindo-lhe assim pequenos orifícios na pele. O homem voltou-se, saiu da sala a correr e começou a chorar depois de fechar a porta.

O czar deitou um olhar divertido aos convivas. Os seus compatriotas estavam petrificados, enquanto a nobreza prussiana se mantinha imperturbável. Quando Frederico Guilherme voltou a sentar-se e pousou a arma ao lado do prato, os convivas recomeçaram a comer. «Eles conhecem a música», disse para consigo Pedro. «Trata-se de um capricho como outro qualquer.»

O príncipe Netiaiev e o general Odoievski entreolharam-se. O czar aprendera algo de novo. Ele aprendia por toda a parte novas coisas. Abatia árvores, serrava vigas, esculpia marfim, forjava ferraduras e até arrancava dentes. Quando regressasse a Petersburgo começaria a disparar pistolas carregadas com sal grosso. E teria grande alegria em ver saltar os lacaios e os pajens. Que Deus proteja a Rússia... A pistola poderia um dia conter balas em vez de sal grosso.

Depois da sobremesa, o rei levantou-se da mesa. As damas fizeram uma grande reverência diante do czar e retiraram-se, os homens ficaram para seguirem o rei para a sala de fumo, onde os esperava aguardente, cerveja e vinho húngaro. Só Natália lemilianovna, a amante do czar, se deixou ficar sentada, a um sinal de Pedro. Todos os olhares dos homens assestavam sobre o seu decote vertiginoso. Frederico Guilherme estendeu o seu lábio inferior. Era impossível dizer ao czar que uma puta estava deslocada naquele círculo masculino. Aquilo não se fazia na corte da Prússia. — Foi impressionante o seu tiro de sal — disse Pedro a Frederico Guilherme, rindo. Entretanto, enlaçou a cintura fina e espartilhada da amante, dando-lhe palmadas nas nádegas, sem complexos. — Foi uma demonstração do seu poder sobre as pessoas. Da sua força soberana. Eu também tenho um hábito notório. Repare, meu querido amigo...

Tirou de cima da mesa um prato de prata e começou a enrolá-lo sem esforço, como se se tratasse de um pedaço de papel. Gasenkova aplaudiu. Um pouco estarrecido, o rei olhou para o prato deteriorado e logo a seguir o czar entregou-lho enrolado como se fosse um ceptro.

— Uma pequena recordação — disse, rindo. — compreende agora por que a minha pequena Natália tem de estar sempre junto de mim. Se assim não fosse, que havia de fazer da minha força?

«Um verdadeiro camponês siberiano», pensou Frederico Guilherme. «Ao lado dele, eu sou um bom pai de família. Ele é mais rude que eu. Fiekchen também notou isso. É tranquilizante.»

— E a altura dos cachimbos e dos licores! — ordenou Frederico Guilherme muito alegre. Dois criados abriram as portas do salão. — Saboreemos tudo com tempo, meus senhores... Em seguida, passaremos revista às tropas.

O 1.º Batalhão do 1.º Regimento da Guarda, os Langen Kerls, chegara ao jardim onde o rei e o seu convidado, o czar da Rússia, esperavam. Tinham-se treinado durante semanas para essa parada. Os oficiais e os ajudantes corrigiam os soldados com bastonadas de cada vez que eles não respeitavam o alinhamento, ou que marchavam com o passo trocado, ou, ainda, quando em marcha, voltavam a cabeça com pouca energia, no momento de prestarem continência. As manobras assemelhavam-se então a uma brincadeira de crianças armadas com espingardas de madeira. O comandante da Guarda, o coronel Von Rammstein, inspeccionava as tropas todos os dias e assistia aos exercícios durante uma hora. Tudo caminhava bem, mas ele nunca ficava satisfeito. Um comandante nunca deve mostrar que está contente, pois assim os soldados tornam-se indolentes e preguiçosos. Seguro dessa opinião pessoal, Von Rammstein caía sobre os ajudantes que, por sua vez, gritavam como loucos com os granadeiros e os chibatavam.

O 1.º Batalhão encontrava-se, portanto, à espera no extenso campo de exercícios. Essa demonstração da arte militar prussiana era tão importante que o reformador do exército fora nomeado marechal-de-campo em 1713, pelo rei Frederico I, o que o elevara ao mais alto grau na sociedade prussiana. Na véspera da chegada do czar a Berlim, mandara desfilar o Batalhão da Guarda e ele próprio passara revista.

— Não se trata apenas de reputação! — confiou nessa ocasião o velho Dessau ao coronel Von Rammstein. — Devemos dar a impressão de sermos invencíveis. E somos, de facto. Basta querê-lo. Todos são capazes de cumprir o seu dever... mas o que é determinante é gostar de o fazer.

— É verdade, meu marechal — respondeu o coronel Von Rammstein, prometendo a si próprio inculcar essa nova divisa aos seus oficiais.

Leopold von Anhalt-Dessau trouxera muitas inovações. O treino extremamente severo, de todos conhecido, era da sua exclusiva responsabilidade.

— Tudo o que diz respeito ao exército deve estar ligado — afirmava ele. — A expressão do comando, a marcha a passo, o ritmo das paradas e o calibre das espingardas. No decorrer do exercício, os membros dos soldados devem funcionar uniformemente, como peças de uma máquina, e o treino deve prosseguir até que cada soldado se compenetre que é parte de um todo.

Assim foi colocada a primeira pedra de um exército composto por simples receptores de ordens perfeitamente treinados. Um soldado não deve pensar, mas sim obedecer. Deve alimentar o Moloch da guerra.

Em 1698, Dessau fizera uma descoberta importante. Para carregar as espingardas pela frente — pela boca — com pólvora e balas de chumbo, utilizavam-se varas de madeira que muitas vezes se quebravam por ocasião dos combates. Isso tornava as forças um pouco inoperantes. Dessau teve uma ideia tão simples como genial: inventou a vara de ferro, inquebrável, o que diminuía o tempo necessário para carregar a arma e aumentava o poder de fogo.

— Disparar bem, carregar depressa, dar provas de bravura e de audácia, deve ser a norma dos soldados — dizia Dessau.

E foi isso que inculcaram nos homens, dia após dia, com força, gritos e pancadas.

O velho Dessau mandou repetir uma última vez o exercício, e depois, com um gesto benevolente para o coronel von Rammstein, disse:

— Isto vai causar boa impressão. Estou contente e o rei também o ficará.

Apresentaram-lhe um homem, o sargento-ajudante Hans Hoppel, um sólido rapagão com bigode, nascido na Prússía Oriental, temido por todos os recrutas que lhe caíam nas mãos, dotado de uma goela e uns pulmões tais que os gritos que daí resultavam eram únicos no género. Era um graduado que ia sempre à frente dos seus homens, que nunca se cansava e que gritava aos mais molengões:

— Aquilo que eu posso fazer também vocês podem, seus porcos! Basta quererem!

Era a lei do velho Dessau.

— Então vais fazer uma demonstração especial com doze granadeiros escolhidos? — perguntou Dessau a Hans Hoppel que se encontrava na sua frente em sentido. — Queres mostrar um combate corpo a corpo?

— São as ordens! — replicou Hoppel. — Ataque e aniquilamento do adversário por todos os meios.

— Cuidado, sargento! — recomendou Dessau que ergueu a mão num gesto de aviso. — Não devemos revelar todas as nossas tácticas ao czar. Ele pode copiá-las. É preciso mostrar apenas alguns exercícios: o assalto, os golpes, a faca. É o bastante. Para ser invencível é preciso ter armas secretas. Boa sorte, sargento...

Era uma honra sem precedentes. O prestígio de Hans Hoppel aumentava proporcionalmente com o medo que inspirava.

O aparecimento do general Johann von Schweinitz, inspector do exército, anunciou a chegada do rei e do czar. Uma onda de nervosismo percorreu por breves momentos as fileiras do 1.° Batalhão... mas os Langen Kerls — nenhum deles media menos de um metro e oitenta — acabaram por se imobilizar como estátuas inertes, ainda mais altos com os seus capacetes pontiagudos, como gigantes assustadores.

Depois o rei chegou, acompanhado por um colosso com dois metros de altura — os granadeiros que ousaram olhá-lo furtivamente nem queriam acreditar —, com um andar oscilante de marinheiro, um soberano sem peruca nem traje de seda, vestido com simplicidade e cujos olhos os trespassavam até ao coração.

Pedro parou diante da primeira linha de colunas, forma como se lhe apresentava o 1.º Batalhão e olhou para Frederico Guilherme. Dois passos atrás dele, a escolta parou: o velho Dessau, o general de corpo de exército Von Grumbkow, o general Von Schweinitz, o general Von Renckendorff, o barão Von Pollnitz, o príncipe Netiaiev, o general Odoievski e o anão Levon Ouskov que devia sentir-se como um insecto minúsculo no meio de tal grupo.

— As minhas felicitações — cumprimentou o czar. — Nunca vi tropa semelhante. Fala-se dela em todos os países, mas é fantástico vê-la com os nossos próprios olhos. Quanto mede o mais baixo?

— Um metro e noventa, Majestade — informou o general Von Schweinitz.

— Uma boa estatura! Eu também podia pertencer à sua tropa, Frederico Guilherme.

— Seria imediatamente sargento! — gracejou o rei, apontando com a sua bengala para o grupo de homens imóveis. — Passemos revista à primeira linha, caro amigo.

Os soberanos dirigiram-se para os soldados da frente e o coronel Von Rammstein em pessoa comandou com voz clara e penetrante:

— Sentido! Apresentar... armas!

Um sobressalto agitou a fila de gigantes. As espingardas voltearam no ar e encontraram-se direitas como velas na mão esquerda, diante do peito. Um estalido sonoro, um único, encheu o espaço e viram-se alinhar à mesma altura as mãos, as coronhas e os canos das espingardas, as pontas dos capacetes e as extremidades das botas. O velho Dessau abanou a cabeça, atrás do rei, com ar satisfeito. O czar estava assombrado! Perfeição prussiana.

O coronel Von Rammstein apresentou as tropas, espetou no solo, em frente do czar, o seu comprido sabre de oficial e fez a sua saudação. Os oficiais mantinham-se à testa das suas companhias, com os sabres dispostos da mesma maneira e ergueram os capacetes com a mão esquerda, pondo assim a descoberto as suas perucas brancas.

Frederico Guilherme passou orgulhosamente revista às tropas, esquecendo completamente o seu convidado que o acompanhava. Aquilo era para ele o cúmulo da felicidade: percorrer as fileiras dos seus Langen Kerls, olhar cada um deles nos olhos e fazer-lhes sentir:

«Sou vosso pai e amo-os a todos, seus canalhas!»

O rei pareceu despertar no fim da revista. Os seus olhos brilhavam ao olhar o czar. Depois bateu no solo com a bengala.

— No combate são tão temíveis como parecem! — exclamou orgulhosamente. — Vão-nos demonstrar que é impossível resistir-lhes. E todo o meu exército recebe o mesmo treino.

Enquanto decorriam os exercícios de combate no jardim, dois homens observavam-nos numa das janelas da Sala de Âmbar, no terceiro andar. Um deles envergava uma simples sobrecasaca azul e o outro vestia o uniforme de intendente da Corte.

— Tem a certeza? — perguntou o civil olhando para o czar, instalado num vasto cadeirão, que seguia atentamente os movimentos dos doze granadeiros, comandados pelo sargento Hoppel, simulando um ataque a posições inimigas.

— De fonte segura, Wachter. Foi a própria rainha que o disse à mulher do general Von Knobelsdorff: o rei ofereceu a Sala de Âmbar ao czar. Eu estava a um metro de distância e ouvi tudo.

— Mas o rei não pode dar a Sala de Âmbar de presente — balbuciou Wachter com voz trémula.

— Porquê? Ela pertence-lhe.

— Um presente para a Rússia? A Sala fica perdida para sempre para a Prússia? Não tem o direito de o fazer!

— Um rei pode fazer o que quiser... Quem se atreveria a impedi-lo? — O oficial da Corte, Karl Urban, agarrou no braço esquerdo de Wachter. — Pareceu-me necessário informá-lo imediatamente... para que fique preparado para o ouvir da boca do rei.

— É um verdadeiro amigo, Urban. — Wachter olhou de novo para o czar que aplaudia os granadeiros de Hoppel que mostravam como decapitar o adversário. — Falarei ao rei.

— Quer ficar inválido por causa das pancadas dele, Wachter? O rei não poderá tirar ao czar um presente que já lhe ofereceu! Não diga coisa alguma, Wachter. Considere isso como a vontade de Deus. O rei encarregá-lo-á de outra tarefa. Há bastantes administradores no castelo. Peço-lhe que se submeta...

Wachter abanou várias vezes a cabeça, como se ela se tivesse tornado demasiado pesada. Deu uma palmada no ombro de Karl Urban, passeou o seu olhar pela Sala deslumbrante, à luz do sol, saindo depois de cabeça baixa.

O czar partira há muito, conquistado para a causa prussiana e impressionado pelo seu exército que foi elogiar para Paris. Certo dia, um lacaio apresentou-se no domicílio de Friedrith Theodor Wachter e transmitiu-lhe uma ordem de Frederico Guilherme:

«Que venha ver-me imediatamente.»

Wachter olhou pela janela. Era já noite. A família jantara, como de costume, muito simplesmente. Era, com efeito, a hora à qual o rei se debruçava sobre os seus dossiers, avaliava as despesas militares, lia os relatórios das diferentes câmaras de contas e fazia anotações. Esse trabalhador incansável ocupava-se de tudo: das receitas do comércio, do desbravamento de terras pantanosas, do uniforme dos seus soldados e do bom viver dos casais. Muitas vezes se interpusera com a sua bengala entre casais que lutavam entre si, ao ouvir os seus gritos enquanto passeava nas ruas de Berlim.

— Quando?

— Imediatamente. Foi o que ele ordenou.

Wachter envergou a sua sobrecasaca azul, enquanto a sua mulher, Adèle, lhe entregava a peruca castanha. No fundo da sala, Julius, o filho de ambos, com dez anos, lia um livro escolar, à luz de um candelabro com seis velas.

— Que poderá o rei querer a estas horas? — perguntou Adèle Wachter, inquieta. — Esse adulador, Urban, ter-te-á traído, indo contar o que tu disseste? No melhor dos casos, arriscas-te a seres espancado. E, no pior, podes ir parar à prisão ou seres obrigado a alistares-te no exército.

— Veremos, Delchen.

Beijou a mulher nos olhos, abotoou a sua túnica e seguiu o lacaio até ao gabinete do rei.

Quando introduziram Wachter na sala, Frederico Guilherme trabalhava, debruçado sobre longas listas. Wachter inclinou-se profundamente e ficou à espera, junto da porta. O rei ergueu a cabeça e olhou-o.

— Aproxima-te — disse com voz calma. O tom era autoritário, mas sem sombra de cólera. — Vem

perto. Estarás com medo?

— Não, Majestade.

— É uma resposta sensata. Não deves temer o rei da Prússia, mas sim amá-lo. Mesmo quando me sirvo da minha bengala é para teu bem. Sabes que ofereci a Sala de Âmbar ao czar? Informaram-te disso?

— Sim, Majestade.

— Então, Wachter?

— Estou triste, Majestade!

— Não sabes o que se passa. Não percebes nada de política. De qualquer maneira, não compreendes. Mas és tu que te ocupas da Sala de Âmbar, não és? Apresentaste-me dois relatórios.

— Três, Majestade.

— Imbecil! Não tens que me dar lições! — A expressão de Frederico Guilherme ensombrou-se. — Há quanto tempo ocupas essas funções?

— Desde mil setecentos e sete, Majestade. Os trabalhos preliminares estavam terminados e foram os escultores de âmbar Ernst Schacht e Gottfried Tourov, de Dantzig, que se encarregaram de continuar a obra. Foi então que Sua Majestade Frederico Primeiro me nomeou guarda da Sala de Âmbar para toda a vida. — Wachter calou-se, acrescentando depois em voz mais baixa: — Isso foi há doze anos.

— Julgarás tu, meu canalha, que eu não sei contar? — resmungou o rei dando um murro na mesa. — E agora a Sala de Âmbar vai-se embora. Vai para Petersburgo. Que significa «para toda a vida» Wachter? A tua existência depende da Sala?

— Quase, Majestade. Se a Sala partir para a Rússia, ficarei com o coração dilacerado.

Frederico Guilherme olhou-o demoradamente em silêncio. «Ele está a pensar no que vai fazer de mim», pensou Wachter. «As pancadas, a prisão, o alistamento à força no exército, ou o exílio puro e simples... A minha existência já não vale grande coisa.»

Mas Wachter sentiu-se como que fulminado por um raio quando o rei prosseguiu:

— És um fiel servidor do rei e da Coroa. Tens-me dado total satisfação. Talvez julgues que me vou separar da Sala de Âmbar como de um verme solitário... — Nada compreendes da política. Trata-se da grandeza da Prússia. Não quero que me chamem, como ao meu pai, rei NA Prússia, mas sim rei DA Prússia... E para isso falta-me a Pomerânia Ocidental, ocupada pelos suecos. Esses territórios pertencem à Prússia! Podes compreender isto, Wachter?

— Sim, Majestade. A aliança com o czar da Rússia...

— Já chega de conversas! — interrompeu o rei erguendo uma mão num gesto enérgico. — Que te importa tudo isto? Tu vives para a Sala de Âmbar... e é o que continuarás a fazer, Wachter. Vais seguir a Sala de Âmbar até Petersburgo e permanecer lá até à morte. Tens um filho?

— Sim, Majestade — murmurou Wachter em voz baixa, pois sentia a garganta apertada.

«Ir para Petersburgo» pensou, «com a Sala de Âmbar... vou ficar lá... Acalma-te coração, suporta o golpe... Devemos deixar Berlim e ir viver para Petersburgo, a Versalhes do Oriente!»

— Julius tem dez anos, Majestade.

— E a tua mulher?

— Trinta e três.

— Só tens um filho? Contudo, és um homem forte e a tua mulher é ainda muito nova. Não me desiludas. Faz outros filhos à tua mulher, rapaz. Um é pouco, pode morrer. Tenho uma missão para ti, porque, no fundo, amo a memória do meu pai. Wachter, ergue a mão para prestares juramento diante de Deus...

O rei ergueu-se da sua cadeira e ergueu também três dedos para o tecto. O momento era tão solene que Wachter sentiu os joelhos perderem as forças e a sua mão erguida tremeu.

— Jura diante de Deus — começou o rei, como se fosse um pregador numa igreja — nunca abandonares a Sala de Âmbar e cuidares dela como se fosse a menina dos teus olhos, protegê-la contra todos os perigos e fazeres com que haja sempre um descendente teu a encarregar-se dessa missão, de geração em geração, através dos séculos e até ao fim do mundo.

— Juro, Majestade.

Wachter inclinou a cabeça e baixou a mão. Chorava, visivelmente comovido.

— Os homens não choram! — exclamou o rei, irritado, dando-lhe uma palmada nas costas. — Isso é bom para as mulheres, mesmo que me digas que choras de felicidade.

— É verdade, Majestade.

— Então desaparece depressa antes que eu pegue na minha bengala. Amanhã, irás receber cem táleres. Não quero que entres em Petersburgo como um pobretanas, mas sim como um familiar do rei da Prússia. Representarás o nosso país. Compreendes? E pobre de ti se os teus descendentes desobedecerem às minhas ordens. A minha maldição aniquilá-los-á, mesmo que seja daqui a cem ou duzentos anos. A partir de hoje, terá de haver sempre um Wachter a velar pela Sala de Âmbar. E agora vai-te embora. Já falei demasiado contigo.

— Posso fazer uma pergunta, Majestade?

— Qual?

— Quando será a Sala de Âmbar desmontada e transportada para Petersburgo?

— Antes do fim deste ano, Wachter. O mais tardar, em Janeiro. Portanto, não percas tempo... Não me obrigues a corrigir-te.

Wachter fez uma grande reverência, limpando as lágrimas, e saiu do gabinete de trabalho do rei. Satisfeito, Frederico Guilherme aproximou-se da sua secretária, sentou-se num tamborete rústico de madeira e escolheu um cachimbo.

Foi preciso mais tempo do que o previsto para desmontar os pesados lambrins esculpidos, os ornamentos, as estatuetas, as cabeças e os mosaicos. Esse trabalho só podia ser realizado por especialistas e não os havia em Berlim. Wachter mandou-os vir de Dantzig e de Kõnigsberg. Por vezes, teve de enfrentar a cólera do rei, que achava tudo muito caro, as deslocações, os alojamentos, os salários, afirmando que, se tivesse sabido, teria feito ir a Sala pelos ares com umas boas cargas de pólvora. E quando Wachter ousou responder-lhe: «Os presentes de grande valor são assim, Majestade», a bengala caiu sobre ele. Mas Wachter não sentiu qualquer dor, contente por ter dito ao rei o que pensava.

Também por três vezes, o rei subiu ao terceiro andar para observar com um olhar crítico o trabalho dos especialistas de Kõnigsberg. Foi preciso meio dia para retirar os frisos murais sem os danificar, pois estes assentavam sobre madeira de má qualidade, que se encontrava húmida e se esboroava. Aquilo que era retirado das paredes, com toda a prudência, era em seguida colocado sobre pranchas de madeira, embebidas em óleo, destinadas a resistir durante séculos, se — como explicou Wachter — a Sala continuasse a ser bem tratada.

— Os Wachter acompanham-na para isso! — exclamou Frederico Guilherme. — Que o diabo leve um Wachter que esqueça o seu dever! Mesmo que seja daqui a quinhentos anos! Quando vais acabar o trabalho, malandro?

— Não sei, Majestade. Não será certamente até ao fim do ano.

— E a tua mulher está grávida, ao menos?

— Adèle não sabe... é ainda muito cedo.

— Mas tens dormido com ela?

— Como Vossa Majestade ordenou.

— Então continua a ocupar-te da Sala de Âmbar e a fazer filhos. Preciso de provas e não de promessas vãs...

Três dias antes do Natal, Adèle Wachter teve a certeza de que esperava um filho. A parteira, depois de a ter examinado, confirmara-o. Friedrich Theodor Wachter correu a informar o rei.

— Agora, só te resta esperar que seja um rapazinho — disse o rei com benevolência. — Se for uma rapariga, deverás perseverar, Wachter. Precisas de pelo menos dois rapazes de reserva. Não abrandes os teus esforços.

— Isso não é realmente difícil.

— Era o que eu queria dizer! — exclamou o rei, começando a rir. — Um homem digno desse nome tem a resistência de um lobo no Inverno.

Adèle Wachter não se mostrava tão encantada. Não por a ideia de vir a ser mãe várias vezes lhe desagradar. Em Berlim, teria cumprido alegremente a tarefa que o rei lhe exigia... mas em Petersburgo? Entre os russos? Esses selvagens, como lhes chamavam, que comiam cebolas cruas e se bufavam à mesa? Que no Inverno dormiam sobre os tijolos da plataforma do forno e copulavam em frente dos filhos? «Aliochka, volta-te para a parede, a mamã precisa de abrir as pernas...» Oh, Senhor, seria aí que ela iria ter de viver para o futuro? Seria necessário?

Mas Wachter falara-lhe do seu juramento eterno e acabara por concluir com firmeza:

— Sim, Delchen, é preciso. Existem seres humanos em toda a parte da Terra, quer sejam brancos ou negros, quer tenham os olhos oblíquos ou os narizes chatos... E se nós soubermos permanecer humanos, por toda a parte nos receberão como irmãos e irmãs... Petersburgo... a mais bela cidade depois de Paris. Será a nossa pátria e a de todos os nossos descendentes, enquanto a Sala de Âmbar lá estiver. Acredita que podemos ter sorte. Tu própria aprenderás a apreciar os russos, e, de qualquer modo, vais passar os sete anos mais próximos a ter filhos...

No Natal, o rei mandou generosamente dar mais duzentos táleres aos Wachter. Uma fortuna inconcebível para um homem modesto que só conhecia sopa de couve, legumes estufados, um pedaço de carne ao domingo e, pelas festas, um ganso ou um galo. Duzentos táleres para Petersburgo, para as roupas, o calçado, a instalação da cozinha e das camas. «Deus do Céu, como nos abençoaste!»

Era agora mais fácil avaliar como se tornava complexa a desmontagem da Sala de Âmbar e ter uma visão de conjunto. Wachter comprometeu-se a preparar para a embalagem, prevista para 20 de Janeiro de 1717, as peças mais preciosas. Caixotes gigantescos encontravam-se já prontos na carpintaria real. Tinham amontoado serradura e penas de ganso para acondicionarem sem danos aquele tesouro insubstituível.

— Até aqui, correu tudo bem — disse o rei a Wachter. — Fizeste um bom trabalho. Agora, deves ocupar-te também do transporte. Se sei que foram destroços que chegaram a Petersburgo, meto-me na próxima diligência, vou lá e espanco-te até à morte.

— Eu não sou responsável pelo transporte, Majestade.

— És, Wachter! Precisas de uma ordem escrita? Tê-la-ás. Toda a gente deverá obedecer-te. As guarnições por onde o transporte transitar deverão dar-te toda a ajuda necessária. Estás satisfeito, maroto?

— Muito contente, Majestade.

— vou escrever ao czar, que se encontra actualmente na Holanda, para lhe dizer que deverás chegar a Memel em fins de Janeiro e que a Sala será então oficialmente entregue à Rússia. Achas bem?

— Sim, Majestade.

Wachter, que desde há semanas estudava os mapas para encontrar o melhor caminho para Memel, acrescentou pesando cada palavra:

— Preciso de um navio.

— Tu és louco? Para quê?

— O caminho mais rápido e mais seguro até Memel é por via marítima. Ao longo da costa. Deixamos de ter problemas com as estradas muito frequentadas, florestas intransponíveis, pontes bloqueadas, rodas partidas, tempestades de neve, frio e outras dificuldades diversas. Os russos encarregar-se-ão de determinar o trajecto a partir de Memel.

Frederico Guilherme lançou um olhar furioso a Wachter.

— Queres que te dê um barco? Wachter, tu vais arruinar o teu rei! As estradas prussianas são conhecidas pela sua qualidade. O próprio czar as elogiou. Mas para ti não servem, não é?

— Trata-se apenas da segurança da Sala de Âmbar.

Majestade, respondo por ela com a minha cabeça e. não quero perdê-la.

— Compreendo, Wachter. Deixa-me reflectir sobre o que devemos fazer.

A 17 de Janeiro de 1717, o czar Pedro I escreveu de Amesterdão, uma carta à sua esposa Catarina:

Katinka, minha querida, além de todas as notícias que te dei, quero que saibas que tive uma grande alegria em Berlim. O rei da Prússia ofereceu-me a Sala de Âmbar. É um tesouro único no mundo. Quero mandá-la instalar em Petersburgo, no nosso palácio de Inverno, à beira do Neva. Vai agradar-te. É de uma beleza espantosa...

E enviou para Petersburgo a seguinte ordem:

Um destacamento especial, comandado pelo grande marechal da corte, deverá dirigir-se a Memel em fins de Janeiro, para receber um comboio enviado pelo rei da Prússia, colocado sob as ordens de um tal Friederich Theodor Wachter, de Berlim. O destacamento deverá fazer chegar esse carregamento à minha cidade sem quaisquer danos. Ficará no palácio de Inverno até à minha chegada de Amesterdão. Deverá ser guardado dia e noite...

Foi uma corrida contra-relógio. A Sala de Âmbar encontrava-se quase completamente desmontada. As estatuetas e os mosaicos estavam fixos e colados em suportes de madeira, e os caixotes, igualmente prontos, permaneciam na carpintaria. O facto é que os porões do navio que devia partir de Stettin para Memel, achavam-se já desocupados, e portanto em condições de receber a preciosa carga. Precisamente na mesma altura, surgiu o Inverno, com o seu cortejo de tempestades de neve e de gelo.

Wachter disse então ao rei:

— Majestade, com este tempo, hesito em dar o sinal de partida para Stettin.

— É altura de veres como o homem é pequeno perante a Natureza. Tens de esperar por condições mais favoráveis — respondeu inteligentemente o rei. — Como está a tua perna?

Wachter encolheu os ombros. Aquando de uma visita à carpintaria real, escorregara no solo gelado e com a queda partira a perna esquerda. O médico militar da Guarda, temido até pelos próprios Langen Kerls, colocara-lhe duas talas e ligara-lhe a perna. Wachter andava, portanto, a coxear apoiado numa muleta, fazendo de vez em quando uma careta de dor. O médico prevenira-o de que ele se arriscava a ficar para sempre a coxear, pois a fractura fora grave. O osso poderia soldar um pouco de lado e encurtar-lhe assim a perna esquerda.

— É suportável, Majestade — respondeu Wachter.

— Alegra-te por não teres ficado só com uma perna, como muitos dos meus soldados. E isso não prejudica a Sala de Âmbar. Quanto aos filhos, não são feitos com as pernas! Continua a ser um homem digno desse nome.

Por essa altura, Adèle Wachter fizera já muitas compras. Restavam-lhe ainda setenta táleres, apesar das malas estarem cheias. O pequeno Julius estudava os mapas, observava as gravuras em cobre com descrições alusivas a Petersburgo e à Rússia, batendo-se por vezes com os seus camaradas por estes lhe chamarem «o russo». Adèle tinha muitas vezes dores no coração e vomitava. Aquela segunda gravidez estava a ser difícil. Comia muitas maçãs e cerejas em calda. A parteira, muito sabedora, observara-a várias vezes e avisara-a:

— Vai ser uma menina. Pode ter a certeza disso, senhora Wachter.

Chegou o mês de Abril.

O ventre de Adèle arredondara-se e o seu estado era agora bem visível. Wachter conseguia andar sem muletas, mas coxeava. No entanto, sentira um grande alívio ao ouvir o médico dizer-lhe:

— Você tem os ossos sólidos e um bom esqueleto. Curou-se mais depressa do que eu esperava.

Numa bela manhã de Primavera, os carros atravessaram o pátio do castelo da cidade de Berlim. Tinham enchido dezoito caixotes com serradura, mantas, e penas, no meio das quais se encontravam os lambrins de âmbar, os ornamentos, os mosaicos e as estatuetas — o carregamento mais precioso alguma vez transportado. Seguiam duas carroças com o mobiliário dos Wachter. Numa delas, ia a senhora Wachter, com o pequeno Julius e o seu cão Morítz, que fazia parte da família há seis anos e que partia também para Petersburgo. O animal, uma vaga mistura de lulu, de rafeiro e de cão de caça, tinha uns olhos vivos e verdadeiramente azuis e um pêlo de manchas castanhas e brancas. Distinguira-se especialmente ao morder a perna direita do sargento-ajudante Hans Hoppel durante um exercício. Conseguiram evitar por pouco que Hoppel o cortasse ao meio com o seu sabre.

Wachter apresentou-se pela última vez ao seu rei, de novo com as lágrimas nos olhos, apesar dos esforços que fazia para as ocultar.

— Wachter, tu choramingas de mais — observou o rei. — Hei-de voltar a encontrá-los a todos no Céu... os meus Langen Kerls e tu! Boa sorte! Tenta ser um fiel servidor do czar, vela pela Sala de Âmbar como juraste, e não esqueças que Deus te protege.

Então, deu uma leve pancada com a sua bengala no ombro de Wachter, num gesto de amizade, que Wachter sentiu como se fosse um abraço.

— Que Deus proteja Vossa Majestade! — balbuciou. Em seguida, fez uma profunda reverência e saiu do gabinete de trabalho do rei.

Uma hora depois, a coluna reunida no pátio do palácio estava prestes a partir. O sol primaveril irradiava uma suave luz dourada. Os relinchos dos cento e oito cavalos — seis potentes animais atrelados a cada carro, bem alimentados e treinados a puxarem canhões — soavam como um adeus. Os quatro cavalos das duas carroças relinchavam também, sujeitos pelos arreios. Friedrich Theodor Wachter, montado num cavalo malhado, percorreu mais uma vez a coluna e, erguendo a mão deu o sinal de partida.

Frederico Guilherme, apoiado na bengala à janela do seu gabinete, viu os carros afastarem-se. «Ficarei com a Pomerânia Ocidental?», pensou. «Farei da Prússia o Estado mais poderoso da Europa? Será que o presente valeu a pena? Boa viagem, Wachter. Tenta chegar são e salvo a Petersburgo. O teu rei pensará em ti.»

 

 

O Inverno era rigoroso nesse começo do ano de 1717. Na Rússia, a neve gelada cobria os campos, as cabanas e as estradas. As carruagens ficavam nos alpendres e os trenós, puxados por potros atrelados em arreios com guizos, fendiam a neve estaladiça e cuidadosamente calcada. Os grandes transportavam mercadorias e os pequenos serviam para a deslocação das pessoas.

Na Prússia, pelo contrário, a Primavera começara já, embora tardiamente nesse ano. O solo com o degelo agarrava-se fortemente às rodas dos carros e no trajecto de Berlim a Kolberg, onde os esperava um navio para os levar a Memel, foi preciso apelar mais de uma vez aos camponeses para que os ajudassem a desatolarem-se.

O tenente Johann von Stapenhorst dirigia as operações com ordens bruscas e pancadas dadas com uma comprida vara de nogueira, tal como o rei fazia. O precioso carregamento era enquadrado por um destacamento de couraceiros à frente, outro atrás e outro ainda de cada lado. Frederico Guilherme quisera que fossem acompanhados por aquele grupo de Cavalaria pesada, de armaduras cintilantes, que Wachter achara inúteis.

— Tu julgas que as pessoas são todas boas! — dissera-lhe o rei. — Os canalhas não faltam e até as pessoas honestas são capazes de se transformar em gatunos quando o saque vale a pena. Tem cuidado, Wachter. Há ralé por toda a parte.

O destacamento de couraceiros esperava, portanto, no exterior do castelo e juntou-se ao comboio a meio do caminho. Agora, encontravam-se todos reunidos, os cento e oito cavalos dos carros que transportavam a Sala, a montada malhada de Wachter, os seis da diligência e os trinta dos couraceiros, num total de cento e quarenta e cinco animais. Iam partir para leste. O tenente Johann von Stapenhorst parecia ignorar tudo a respeito do que devia vigiar, pois, logo que cumprimentou Wachter, perguntou-lhe:

— Que vai levar para Kolberg? E um carregamento de valor?

Wachter limitou-se a responder:

— Tem de fazer a pergunta ao rei, meu tenente. Nada posso dizer-lhe.

A viagem até Kolberg decorreu sem incidentes, se se exceptuar o pânico que causava em cada guarnição onde passava a noite. Dar de comer a cento e quarenta e cinco cavalos, sessenta e seis homens, uma mulher, uma criança e um cão fazia suspirar profundamente todos os comandantes. Porém logo que Wachter apresentava a ordem real, forneciam-lhes tudo o que era preciso. As dificuldades desapareciam como por encanto, excepto quando se tratava de Moritz, esse horrível cão branco e castanho de olhos azuis. Quando o cozinheiro de uma das guarnições lhe atirou um osso meio podre e a cheirar mal, Moritz, cheirou-o, ergueu a cabeça olhando o cozinheiro, saltou-lhe para cima e mordeu-lhe a coxa esquerda. Foi impossível fazê-lo largar a sua presa; nem os gritos, nem as pancadas, nem os safanões o conseguiram.

— vou matar este animal feroz! — gritava o cozinheiro. — vou buscar a minha faca para te trespassar!

— Você deu-lhe um osso estragado! — observou Wachter. — Ele ficou zangado.

— Talvez seja preciso dar-lhe um frango assado! — vociferou o cozinheiro.

— Boa ideia. Nesse caso, ele ter-lhe-ia lambido a mão. O meu Moritz porta-se como um ser humano.

Estas palavras foram conhecidas por toda a guarnição. Quando, à noite, os oficiais se reuniram, o comandante, um coronel, interrogou o tenente Von Stapenhorst:

— Quem é esse Wachter?

— Um familiar do rei. Pelo menos, é o que se supõe. Tem plenos poderes. O cavalo dele veio das cavalariças reais. É uma pessoa misteriosa.

— Será que agora o rei se rodeia de loucos?

— Meu coronel, ensinaram-nos a não fazer perguntas e a obedecer.

— É verdade, tenente. Aquilo que diz é justo. Pergunto a mim próprio para onde vamos: ele pensa e toda a gente deve pensar como ele.

Perante as expressões embaraçadas dos oficiais, o coronel rejeitou com um gesto o que acabava de dizer.

— Veremos. Agradeçamos a Deus a sua clemência: Ele não nos deixa adivinhar o futuro.

Quase sempre, davam a Adèle um quarto da caserna — o do palafreneiro, obrigado a tirar de lá as suas coisas por uma noite — onde ela se deixava cair sobre a cama, pálida e exausta. Cada paragem se tornava mais cansativa e, por vezes, deixava-se ficar estendida sobre a cama, com os olhos fechados e as mãos sobre o ventre proeminente. Nessas alturas, Wachter sentava-se junto dela e acariciava-a, pois nada mais podia fazer para a consolar.

— Em breve, tudo isto estará acabado, Delchen. Em Kolberg, entraremos no barco e aí poderás descansar. Sei muito bem como os solavancos da carruagem te atormentam. Tem paciência, Delchen.

— A criança dá-me pontapés como se me quisesse rebentar a barriga. com Julius não era assim. — Agarrou-lhe a cabeça e encostou-a ao ventre dela. — Ouves, Fritz? Ele defende-se... não quer morrer dentro de mim...

— Não vai morrer, Delchen. Certamente que não. Virá ao mundo em Petersburgo... Só deves pensar nisso...

A cerca de meio caminho de Kolberg, Wachter modificou os seus horários. Intercalou mais pausas, a fim de deixar Adèle descansar sobre um saco de palha, numa das carroças que transportavam os caixotes, enquanto Julius, com quase onze anos, corria através dos campos, explorando as planícies e as margens dos riachos à procura de ervas frescas que Wachter colocava sobre o ventre de Adèle, depois de as deixar macerar na água... Isso acalmava-a e tranquilizava-a; conseguia assim diminuir as suas dores lancinantes e dava-lhe forças.

Chegaram finalmente a Kolberg, uma pequena cidade costeira nas margens do Báltico. Fizeram uma última paragem numa caserna e o tenente Von Stapenhorst enviou um correio a Berlim para anunciar a feliz chegada a Kolberg.

No dia seguinte, Wachter, acompanhado por Adèle e Julius, dirigiu-se para o porto, a fim de visitar a embarcação que os levaria a Memel.

O navio não era grande. Uma pequena corveta com um mastro, sem peças de artilharia, mas com vastas acomodações no casco avantajado, com superestruturas que acomodavam as cabinas do comandante, dos passageiros e da tripulação. O pavilhão prussiano flutuava na popa.

Wachter, Adèle e Julius atravessaram a ponte para subirem a bordo, enquanto Moritz, preso na diligência, uivava e ladrava furiosamente, pondo a descoberto os seus caninos afiados.

Assim que entraram no navio sentiram-no oscilar, apesar da ausência de vento.

Pela primeira vez, sentiam o solo oscilar debaixo dos pés, uma sensação desagradável que provocava um sentimento de insegurança.

Agora, Wachter compreendia melhor o andar balouçado dos marinheiros em terra, que caminhavam com as pernas afastadas — como o czar, que gostava particularmente de navios, do mar e do quebrar das ondas.

O comandante da corveta — a Wilhelmine II — avançou para eles com passos pesados, olhando para o ventre de Adèle antes de estender a mão a Wachter.

— Vem do comboio real? — perguntou.

— Sou o responsável por ele, comandante.

— Sejam bem-vindos a bordo. — Apertou a mão a Wachter. — Quando carregamos?

— Amanhã. São dezoito caixotes e as bagagens. Mostre-me o porão. É preciso não estragar coisa alguma. Tenho de fazer um relatório ao rei. No caso de qualquer coisa correr mal, espere ser chamado a Berlim. O rei tem o hábito de dar correctivos com a sua bengala e as prisões são húmidas, sombrias e cheias de bichos.

— Tudo será feito segundo as suas ordens. Prenderemos os caixotes com cordas grossas. — O comandante fez um gesto com a mão. — Mas não podemos dar ordens ao mar. Em Abril, há o risco de haver temporais... devemos então entregar-nos nas mãos do Todo-Poderoso.

Dirigiram-se para a cabina do comandante, onde beberam chá muito quente e rum, comeram biscoitos e pãezinhos. O comandante contou histórias de temporais e de navios-fantasmas a uma Adèle que se sentia doente e a um Julius de faces coradas de excitação, até que, por fim, Wachter interveio:

— Basta de histórias de marinheiros, comandante... e se fizéssemos uma visita aprofundada ao navio?

Era um barco antigo, mas ainda sólido. A madeira era forte, as junturas estavam bem estanques e os porões que se encontravam a meio do navio tinham espaço suficiente e ganchos apropriados para protegerem os caixotes de qualquer balanço eventualmente mais forte.

— Haverá outras mercadorias a bordo?

— Não. Foram ordens do rei... — O rosto do comandante contorceu-se como se tivesse dores. — Conhece um certo conde Von Bullow?

— Sim. É o conselheiro financeiro do rei.

— Um safado, aqui entre nós. Escreveu-me uma carta perguntando-me: «Quanto pede por um frete de Kolberg a Memel, por ordem do rei?» Disse para comigo: «Oh, por ordem do rei!» e avancei um preço honesto, inferior à tarifa habitual. E que me respondeu Von Bullow? «Está louco? Sua Majestade ordenou...» e anunciou-me um montante em táleres, que apenas cobre metade das minhas despesas. «Que será melhor?», disse para comigo. «Afundar o navio ou aceitar a proposta do rei?» Concordei. Por isso, não podem esperar comer bons assados ou gordos capões. Haverá couves, caldo de sêmola, peixe seco e pão. Quando à tripulação, não se admirem se eles os olharem com mau modo. Os homens, nesta viagem, vão receber apenas um terço do seu soldo habitual. Não posso suportar os prejuízos sozinho. É esta a situação.

No dia seguinte de manhã, a coluna com os dezoito carros e as três diligências chegou ao cais em frente do local onde se encontrava a Wilhelmine II. O tenente Von Stapenhorst deixaria ali apenas dez couraceiros. A sua missão, que ele nunca apreciara, terminara. Considerava-se um soldado e não um guarda de um transporte.

O carregamento dos enormes caixotes tornou-se difícil. Conseguiam tirá-los dos carros e colocá-los no cais sem dificuldades, mas levá-los para bordo parecia quase impossível. Nunca tinham feito um frete daquela importância e gabarito. Mesmo rodeando os caixotes com correntes e erguendo-os por meio de roldanas, havia poucas probabilidades de chegarem intactos a bordo.

Apesar de tudo, centímetro a centímetro, os caixotes contendo a Sala de Âmbar foram postos no porão. Foi necessário um dia inteiro. E quando finalmente Wachter abanou a cabeça, com ar satisfeito, o comandante exclamou, aliviado:

— Agora merecemos beber um copito. Não é verdade, Wachter?

— Porque não?

Beberam generosamente e, depois, adormeceram. Às seis horas da manhã, içaram as velas. Foi dada ordem para erguer a ponte de embarque e soltar as amarras. Wachter não voltou a ver Stapenhorst e despediu-se apenas dos cocheiros, aliviados por se verem finalmente livres da preciosa carga.

— Boa sorte em Petersburgo — disse o chefe dos cocheiros, apertando a mão a Wachter. — Digo-lhe francamente que não invejo a existência que o espera...

De pé sobre a ponte do navio, junto da amurada, Wachter viu os carros e as diligências afastarem-se do porto. Fez-lhes sinal uma última vez, consciente de que, logo que o navio partisse, seria um adeus para sempre. Nunca mais voltaria a ver a Prússia.

Adèle, Julius e Moritz encontravam-se junto dele quando as velas subiram, inchadas pelo vento, e o navio deslizou suavemente para fora do porto em direcção ao mar alto. O balanço acentuou-se, as ondas erguiam e afundavam o navio de tal maneira que, para manterem o equilíbrio, tinham de se agarrar à amurada e afastar as pernas. Julius soltava gritos de alegria e acenava para a cidade que desaparecia ao longe. Moritz ladrava, agitando a cauda. Corria de um lado para o outro, não se sabia bem se de excitação, se por causa do balanço do barco. Adèle sentia dores no coração e o balouçar do barco causava-lhe náuseas. Mal acabaram de sair do porto, sentiu vontade de vomitar. O mar, no entanto, estava calmo. Wachter acompanhou-a à cabina, ajudou-a a deitar-se e colocou um balde ao lado dela. Depois de lhe pôr um lenço húmido na testa, Wachter saiu do camarote e subiu novamente à ponte. O comandante, que se encontrava junto do timoneiro, dirigiu-se-lhe:

— A sua mulher já se sente enjoada?

— É por causa da criança.

— E o senhor nada sente?

— Não. O mar está calmo.

— Quando chegarmos mais a norte, podemos apanhar vento em certos sítios.

com efeito, no terceiro dia, uma tempestade abateu-se sobre eles. O navio dançava sobre a crista das vagas, agitado como um balão em todos os sentidos, ondas enormes caíam sobre o convés e a água espumosa varria tudo o que não estivesse cuidadosamente amarrado. As velas haviam sido recolhidas e só uma pequena vela triangular flutuava ao vento. Os marinheiros agarravam-se aos cordames presos por grossas argolas. Quando se soltavam, dirigiam-se para as suas cabinas com a sensação de terem os ossos partidos. Pegavam então uma garrafa de rum e bebiam, para que o álcool lhes desse novas forças. Quando passaram pelo Kurisches Haff, o frio tornou-se mais intenso. O vento de leste, vindo da Rússia, fustigava-os implacavelmente.

— O país para onde se dirigem é muito inóspito — observou o comandante no último dia de viagem.

Estavam sentados à mesa e comiam uma sopa de feijão, pão escuro, pasta de fígado e pepinos marinados. Adèle, corajosa como sempre, encontrava-se com eles, com o estômago vazio, enjoada, e cada prato lhe dava vontade de vomitar.

— Nenhum país pode ser mais terrível que um navio — conseguiu ela dizer entre duas náuseas. — Não voltarei a entrar num navio, juro.

Memel surgiu então à vista. Era uma bela cidade, orgulhosa das suas torres e das suas igrejas. O porto encontrava-se cheio de barcos e carros carregados com mercadorias ocupavam o cais. A Wilhelmine II acostou orgulhosamente, como convinha a um navio fretado pelo rei da Prússia.

Um destacamento de cavalaria, comandado por um sargento-ajudante, esperava-os no cais, recebendo-os ao som de trombetas. Saudavam os familiares do rei vindos de Berlim. Pouco importava quem fossem.

Uma hora mais tarde, Wachter encontrou-se com o comandante prussiano da fortaleza de Memel. Tratava-se do general Charles de Brion, que recebeu Wachter com desdém.

— Até que enfim que chegaram! — exclamou pouco amavelmente o general. — Há muito que a escolta especial do czar regressou a Petersburgo. vou enviar imediatamente um correio à fronteira. Que ordens tem para me apresentar?

Wachter mostrou-lhe a carta do rei, que o general de Brion leu atentamente, antes de olhar Wachter com um ar admirado.

— Tem plenos poderes? — observou num tom ligeiramente mais amigável. — Que deverei pôr à sua disposição? De que necessita?

— Carros e homens, o mais rapidamente possível.

— Tê-los-á.

Foram precisos dois dias para descarregar os caixotes e colocá-los nos carros. Haviam chegado a Memel, que os lituanos chamavam de Klaipeda, a 30 de Abril de 1717 e, a 2 de Maio, Wachter encontrava-se já a cavalo, enquanto Adèle, Julius e Moritz subiam para uma diligência. A coluna esperava por ordem para avançar. Aparentemente, os caixotes estavam intactos, mas não se sabia se o temporal danificara o seu conteúdo. Só em Petersburgo iriam verificar o que se passara.

— Partamos então para a Rússia! — disse Wachter ao chefe da escolta. — A fronteira já não fica longe. Como são as estradas?

— Como quer que sejam? — replicou o sargento encolhendo os ombros. — Quanto mais avançamos para leste, mais elas se tornam impraticáveis. E depois, a imensa Rússia está como aquando da criação do mundo.

— Conseguiremos passar — disse Wachter endireitando-se na sela. — Se o czar pode viajar, nós também podemos.

Colocou-se à testa da coluna, ergueu a mão e deu o sinal de partida em direcção à Rússia imensa e desconhecida.

A sua nova pátria.

«Que Deus esteja connosco!»

A 3 de Maio, o general Charles de Brion dirigiu o seu relatório ao rei da Prússia:

Informo muito humildemente Vossa Real Majestade que a Sala de Âmbar chegou aqui intacta (tanto quanto pude julgar) anteontem e que a enviei rapidamente para a fronteira, prevendo três paragens, tendo para cada uma delas cento e oito cavalos disponíveis...

Por outras palavras, a Sala de Âmbar era enviada para a Rússia em dezoito pesados carros, cada um puxado por seis cavalos e carregando apenas um caixote.

O caminho em direcção à fronteira incluía estradas em muito mau estado, cheias de covas, que faziam saltar os carros e magoar as costas. Adèle mantinha-se estóica. Só depois da segunda paragem é que, debilmente, disse a Wachter:

— A criança não vai suportar esta viagem, Fritz. Nascerá cedo de mais e morrerá.

A terceira paragem, na fronteira, era um posto fortificado ocupado por numerosos granadeiros, comandados por um coronel. Sem se deter, Wachter mandou a coluna prosseguir viagem até ao posto fronteiriço, onde as trombetas anunciaram a sua chegada. A delegação russa esperava-os do outro lado da barreira. Integravam-na duzentos cossacos, comandados pelo capitão Grigori Semionovitch, e nove diligências para o escudeiro da corte, o príncipe Semião Borisovitch Netiaiev, que Wachter já conhecia desde a visita do czar a Berlim.

E foram novos trabalhos para transportar os caixotes para os carros russos. Havia carroças com grandes rodas, mas também trenós, não só por causa da neve que ainda cobria o percurso até Petersburgo, mas também porque, em caso de degelo, os trenós deslizavam melhor sobre a lama e as turfeiras, enquanto as rodas dos carros se atolavam nos caminhos enlameados.

O príncipe Netiaiev saudou Wachter e Adèle como enviados prussianos. Falava alemão com um forte sotaque, mas podia-se compreender.

— Em nome de Sua Majestade, dou-vos as boas-vindas à Rússia. A Sala está intacta?

— Assim o espero — respondeu Wachter. — Só poderemos ter a certeza quando se abrirem os caixotes.

— A partir de agora, sou eu que tomo a responsabilidade do comboio — anunciou o príncipe.

— O meu rei ordenou-me que levasse a Sala de Âmbar até Petersburgo, príncipe Netiaiev.

Wachter mostrou-lhe a carta assinada por Federico Guilherme, mas Netiaiev afastou-a com a mão.

— O seu rei pode dar-lhe ordens... mas você agora encontra-se na Rússia. Aqui, só a palavra do czar conta. Pode guardar a sua carta. Não vai precisar mais dela. Tente habituar-se à ideia antes que o knout o faça entender.

Wachter dirigiu-se, sem dizer uma palavra, para o grande trenó no qual Adèle se encontrava já, deitada em cima de um monte de peles, enquanto Julius lhe refrescava a testa com um lenço húmido. Moritz fazia-se respeitar pelos russos... De cada vez que um indiscreto olhava para o interior do trenó, ele precipitava-se com a boca aberta e um ar feroz. Isso era o bastante para fazer fugir os curiosos...

— Que se passa, Fritz? — perguntou Adèle em voz baixa. — Tens um ar infeliz.

— Sou menos que nada... Foi o que me demonstraram. Resta-me apenas sentar-me junto de ti no trenó. O príncipe Netiaiev toma a responsabilidade do comboio. Tratam-me como um mero mujique.

— Podemos ainda voltar para trás, Fritz. Só alguns metros nos separam da Prússia. — Agarrou-lhe bruscamente na mão e levou-a à boca. — Fritz, retrocedamos caminho. É a última oportunidade.

— E a Sala de Âmbar?

— Está na Rússia. Tu és livre...

— Não do juramento que fiz perante o rei. Jurei por todos os meus descendentes...

— Queres então sacrificar a tua vida pela Sala de Âmbar?

— Sim.

— E a minha vida? E a dos meus filhos?

— Nós pertencemos todos à Sala de Âmbar, hoje, amanhã e enquanto o mundo existir, disse o rei. Jurei-o, Delchen. E mesmo que deva limpar as paredes da Sala com a língua... fá-lo-ei, pois pertenço-lhe inteiramente.

Wachter encontrava-se pela primeira vez em frente do czar, tão perto que podia ver a verruga na sua face esquerda e, enquanto o czar falava, eram visíveis o estremecimento brusco do seu rosto, as mudanças de expressão dos seus olhos, o nervosismo dos seus dedos e os movimentos respiratórios do poderoso tórax daquele corpo imenso e transbordante de vitalidade. Pedro I estava ligeiramente pálido. Uma forte gripe retivera-o na cama, agravado por dores nos rins e na vesícula. Fora fazer uma cura a Pyrmont, mas não se encontrava ainda completamente bem. E preocupava-se igualmente com seu filho, Alexis Petrovitch, que fugira para a Áustria, para Viena, onde se encontrava escondido, aterrorizado com a autoridade paterna. Alexis! Quando pensava nele, o czar sentia-se acabrunhado pela tristeza ou, então, uma cólera terrível apoderava-se dele, provocando-lhe sempre violentos ataques. O filho, Alexis, era fraco, bêbado e devasso. Só entrara no quarto da esposa, a princesa Sofia Carlota von Wolfenbuttel, na medida em que era obrigado a arranjar um herdeiro para o trono. Mas divertia-se com as amantes, sobretudo mulheres de condição inferior, que se sentiam felizes por se submeter ao filho do czar, magrizela e romanesco. Quando Sofia Carlota morrera, após nove dias de dores, a 22 de Outubro de 1715, quando dava à luz o príncipe herdeiro Pedro Alexeievitch, Alexis perdeu toda a contenção. Arruinou a saúde a beber e mereceu cada vez menos subir ao trono. Respondia às cartas do pai com uma submissão servil, mas quando o czar o intimou a pôr um fim aos seus deboches, tendo em conta a sua dignidade de futuro czar, fugiu para Viena. Daí, chegavam regularmente más notícias. Falava-se de uma conspiração e mesmo do assassínio do czar, declaradamente desejado por seu filho. Alexis vivia com uma rapariga, Afrosinia, uma camponesa vigorosa, quase feia, mas de tal modo sensual que o filho do czar não podia conceber a existência sem ela.

Tudo isso se revelava na expressão do czar. E Wachter sentiu medo ao olhá-lo.

— Li a carta do teu rei — disse Pedro I com uma voz espantosamente amável. — Não só me ofereceu a Sala de Âmbar como tu para a vigiares! com a tua mulher e filhos. Deves ocupar-te da Sala de Âmbar até morreres e depois de ti os teus herdeiros, de geração em geração... Pois bem, os desejos do rei da Prússia devem ser realizados. Ficarás aqui. Serás alojado gratuitamente no edifício do pessoal, receberás um bom salário, terás um carro com dois cavalos, um trenó e o título de Guarda Imperial. Ficas satisfeito assim?

— Muito satisfeito, Majestade — respondeu Wachter inclinando-se profundamente. — Desde que a generosidade de Vossa Majestade perdure.

— Isso só depende de ti. Desde que veles pela Sala de Âmbar, não há motivo para te fazer experimentar a minha bengala. Chamas-te Theodor Wachter?

— Sim, Majestade.

— Tu e os teus descendentes irão, daqui em diante, viver na Rússia. Deves, portanto, usar um nome russo. Faço-te russo e, a partir de agora, chamar-te-ás Fiador Fiodorovitch Watchterovski. Como se chama a tua mulher?

— Adèle, Majestade.

— Adèle Ivanovna. E o teu filho?

— Julius.

— Usará o nome de Julian Fiodorovitch. Dá-me a mão e jura-me seres um bom russo.

Wachter estendeu-lhe hesitantemente a mão. Não se atrevia a contestar. Não podia dizer que era prussiano e assim continuaria. Olhou para a bengala do czar, a temível Doubina que se encontrava a um canto; não tinha nenhuma vontade de a sentir nas costas ou na cabeça. Estremeceu violentamente quando o czar lhe apertou a mão com tanta força que julgou ter ficado com todos os dedos partidos. O czar observou o rosto de Wachter e pareceu ficar satisfeito com o autodomínio que este revelava.

— Jura-me fidelidade absoluta, Fiodor Fiodorovitch.

— Juro pela minha vida, Majestade.

— Podes vir ver-me sempre que seja necessário. A quem te queira impedir basta dizeres: «O czar ordenou-o.» Terás sempre livre acesso.

A entrevista parecia terminada. Mas Wachter, consciente de que o momento lhe era favorável e de que o czar se mostrava benevolente, permaneceu na sala.

— Majestade, posso fazer uma pergunta? — perguntou prudentemente.

Pedro I olhou-o, surpreendido.

— Que queres tu perguntar-me?

— Onde ficará instalada a Sala de Âmbar?

— Aqui, no meu palácio de Inverno. Uma das salas vai ser desocupada para esse efeito. Preciso de conhecer as dimensões, a altura...

— E eu, Majestade, irei precisar de especialistas habituados a trabalhar o âmbar, capazes de reparar pequenos estragos, de unir os painéis. E preciso também de artesãos, sobretudo de carpinteiros, por causa do suporte de madeira.

— Terás tudo o que queres — respondeu o czar com um grande sorriso. — Basta-te pedir ao mordomo.

Satisfeito, Wachter deixou o czar e voltou a passos lentos para o edifício do pessoal onde lhe haviam já sido atribuídas quatro salas. A Rússia era agora a sua nova pátria.

A primeira impressão que recebeu do palácio de Inverno foi decepcionante. Era um edifício de madeira de dois andares, com duas salas, uma para a corte, outra para o pessoal. Tratava-se de um edifício sem luxo e cuja fachada não se distinguia das outras casas existentes ao longo da margem sul do Neva, a não ser pela coroa da Marinha Imperial esculpida por cima da porta de entrada. Todas as outras residências da margem do Neva eram, pelo contrário, verdadeiros palácios... A do almirante Apracine, a do ministro da Justiça lagoujinski, a vila do vice-almirante Cruys... Mas todos esses edifícios eram simples cabanas ao lado do palácio que o príncipe Menchikov mandara construir depois da vitória de Poltava, contra os suecos. Pedro oferecera ao seu favorito a maior ilha do delta do Neva, a ilha Vassilevski, e à beira do rio construiu-se um palácio de três andares, segundo os planos do arquitecto alemão Friedrich Schadel. Tratava-se de um edifício em pedra com um telhado de placas de ferro pintadas de um vermelho brilhante, e uma sala imensa, de tal maneira grande que todas as grandes festas e bailes de Petersburgo aí tinham lugar. O palácio de Menchikov iria ser, até à morte de Pedro, a maior casa particular da cidade que se ia embelezando continuamente.

Pedro só utilizava o ambiente faustoso para as recepções. O seu palácio de Inverno não se prestava para isso... A fim de não estragar a simetria da estrada que seguia ao longo do rio, mandara construir um edifício no mesmo estilo, tendo em cada andar vastas salas de tectos altos, o que não agradava ao czar. Aquele gigante só se sentia à vontade em salas baixas, como as que conhecera na Holanda, quando fora operário nos estaleiros navais. Mandou por isso instalar, nas salas que habitava, um tecto duplo, mais baixo. Por vezes, no espaço entre os dois tectos ocultavam-se espiões que ouviam as conversas que certos visitantes entabulavam, enquanto esperavam por uma audiência com o czar. Pedro I ficava a saber muitas verdades sobre opiniões que não ousavam exprimir em frente dele.

A Sala de Âmbar no palácio de Inverno? Numa casa de madeira que se arriscava a arder como lenha seca?

Enquanto caminhava, Wachter coçava a cabeça pensativamente. Foi encontrar Adèle ocupada a abrir sacos e caixas, ajudada por três criadas designadas pelo próprio mordomo. A notícia de que o alemão recém-chegado se encontrava nas boas graças do czar espalhara-se por entre os cortesãos como um rasto de pólvora. Os lisonjeadores começaram a entrar em acção, com inveja.

— Que cidade! — exclamou Wachter deixando-se cair sobre um divã da sala.

Tinham-lhes dado salas mobiladas, com móveis preciosos como Adèle vira em Berlim nas casas das damas da corte, diante das quais ela se inclinara. De agora em diante, iria viver no meio desse pequeno luxo. com o coração a bater, andara de um lado para o outro, acariciando os móveis estofados de damasco, de Gobelins e de seda. Belos tapetes cobriam o soalho e alguns ícones decoravam as paredes, assim como um quadro que representava Cristo a abençoar. A cozinha tinha tudo o que era necessário a uma dona de casa, desde o cântaro da água até à concha.

— Que casa! — exclamou Adèle, muito alegre.

— Onde está Julius?

— No jardim a brincar com o Moritz. — Girou sobre si mesma, quase tão graciosa como uma adolescente, apesar da barriga. — Tudo é tão vasto, tão alto...

— Como este país, Delchen. Uma terra sem fim sob um céu infinito. Petersburgo poderá vir a ser mais bela que Paris se o czar continuar a embelezá-la. Estão previstos grandes jardins, parques, largas avenidas e catedrais erguidas à glória de Deus como o mundo ainda não conhece! Nunca lamentaremos ter deixado Berlim.

— Deus queira que assim seja, Fritz. — Sentou-se perto do marido e abraçou-o. — Sabes como me chamam?

— Sim. Adèle Ivanovna. — Começou a rir ao ver o ar surpreendido da mulher, beijou-a entre os olhos e disse-lhe alegremente: — Sim, é o que tu és. A minha bela, a minha única Adelouchka... Como isto soa bem! Adelouchka... Adelinka... Adlouchka!

— Vejo que te estás a tornar um verdadeiro russo, Fritz.

— Não. Só na aparência. No nosso coração, nós, os Wachter, seremos sempre prussianos.

Dois dias mais tarde, os caixotes que continham a Sala de Âmbar encontravam-se guardados nas cavalariças e Wachter fez-se anunciar ao intendente da corte.

Era um certo conde Vladimir Viktorovitch Koubassov, indivíduo totalmente diferente do príncipe Netiaiev que, na fronteira, tirara a Wachter a responsabilidade pelo comboio. O percurso de Memel a Petersburgo, na neve e na lama, fora difícil. Três cavalos tinham ficado pelo caminho e quatro trenós e duas carroças haviam-se partido, uma vez que Netiaiev impunha um ritmo infernal. Foi com receio que Wachter descobriu, pela primeira vez nessa ocasião, que, na Rússia, a vida de um servo ou de qualquer pessoa de categoria inferior não valia mais do que a de um animal. Quando os trenós se afundavam na neve, ou as rodas ou os patins se atolavam nas passagens particularmente difíceis, os chicotes abatiam-se sobre os cavalos que relinchavam de dor, mas também sobre as costas, as cabeças e os ombros dos cocheiros e dos seus ajudantes. Muitos voltavam para os seus lugares ensanguentados, sem ousarem emitir qualquer som. Wachter desconfiava que Netiaiev era capaz de mandar empalar ou chicotear até à morte quem ousasse protestar.

Koubassov recebeu Wachter como um amigo... A benevolência do czar para com ele dava-lhe um prestígio considerável. Menchikov começara por ser palafreneiro. Agora, era um príncipe cheio de títulos e com uma fortuna inestimável, governador geral de Petersburgo e um amigo tão íntimo do czar que era quase tão temido como o próprio soberano. Quem sabia o que viria a ser um dia aquele alemão? A corte e o país inteiro tinham muitos generais, administradores das finanças, arquitectos, médicos, astrónomos e físicos vindos de países de língua alemã.

— Sim, onde iremos instalar a Sala de Âmbar? — inquirira Koubassov quando Wachter lhe fizera a pergunta. — Quais são as dimensões?

— Precisamos de uma altura de quatro metros e setenta e cinco centímetros, e quatorze metros de superfície. A sala tem doze painéis de oitenta centímetros a um metro e meio de largura, tal como os suportes. A isso, é ainda preciso juntar duas portas e os remates até ao tecto.

Koubassov pareceu ficar atordoado com aqueles números.

— O czar está ao corrente disso? — perguntou, com ar preocupado.

— Viu a Sala em Berlim e ficou entusiasmado.

— Que fazer? Não existe nenhuma sala com essas proporções em todo o palácio. Precisamos primeiro de a arranjar, deitando paredes abaixo e elevando os tectos.

— É preciso fazê-lo imediatamente, pois o czar deseja...

O conde Koubassov não deixou Wachter terminar a frase. Se se tratava de um desejo do czar, isso equivalia a uma ordem. Uma casa imperial não incluía apenas os móveis, mas também numerosas orelhas prontas para tudo ouvirem. E Koubassov estava ao corrente dos plenos poderes de Wachter, mesmo antes de o ter encontrado.

— Vejamos o que posso propor. Onde deverá ser instalada a Sala de Âmbar?

— Perto dos aposentos do czar.

Koubassov suspirou ao pensar nos graves problemas que ia ter de resolver, e depois foi conduzindo Wachter pelo palácio. Wachter encontrou duas salas apropriadas para receberem o presente do rei da Prússia. Ficavam no primeiro andar e tinham duas grandes janelas que davam para o Neva. A luz entrava a jorros e o âmbar podia brilhar ao sol e revelar toda a sua beleza. As paredes pareciam fáceis de deitar abaixo e os tectos falsos podiam suprimir-se facilmente.

— É esta! — disse Wachter voltando-se para todos os lados, a fim de examinar tudo atentamente. — É aqui que a vamos instalar.

— Mesmo ao lado dos aposentos da czarina? — disse Koubassov abanando a cabeça. O ruído das obras...

— Serão apenas algumas semanas... A czarina suportará o barulho por amor à beleza.

Os trabalhos começaram no dia seguinte. Koubassov falara com a czarina Catarina. Esta fora ver as duas salas escolhidas por Wachter, observara-o demoradamente quando ele lhe fizera uma profunda reverência, recebendo-o depois nos aposentos dela.

Era uma mulher maciça, de peito generoso, com uma boca sensual e um pequeno nariz arrebitado. Tinha as faces vermelhas e o corpo pesado pelas sucessivas gravidezes.

Fora durante o cerco de Marienburgo, então nas mãos dos suecos, que o general Cheremetiev a vira pela primeira vez... era criada em casa de um pastor saxónico que se pusera em fuga, um certo Gluck, e o general quisera continuar a viagem com ela até Moscovo. Ela não conhecia sequer o seu próprio nome, pois nunca soubera quem era o pai.

— Quem sou eu? — respondera a Cheremetiev quando ele lhe perguntara como se chamava. — Às vezes, chamo-me Katerina Vassilevska, outras vezes Katerina Troubatchov. Que importa? Trato da casa, da cozinha, sirvo à mesa, lavo e passo a roupa, ocupo-me do jardim e da cavalariça.

— E as noites, passa-las com todos os homens que te aparecem — dissera o general.

— Nada disso. Foi mesmo por essa razão que fugi de Marienburgo. Os soldados suecos percorrem a cidade e violam todas as raparigas. — Ela olhara o general com ar suplicante e acrescentara: — Peço-lhe, senhor, continuemos até Moscovo. Quero ir para lá tratar da casa do meu pastor.

Mas, em vez de irem para Moscovo, foram para Petersburgo. O general Cheremetiev ficara com ela para que lhe tratasse das camisas. E Katerina Vassilevska — optara finalmente por esse nome —, filha de um servo desconhecido e de uma criada de estalagem lituana, ficara em casado general. Fora lá que o poderoso Menchikov a vira quando ali fora de visita. Ela encontrava-se no alto de um escadote e preparava-se para limpar uma janela. Menchikov, como conhecedor, reparara imediatamente na sua bonita silhueta, nos seus pés e nos seus tornozelos, na cintura e nos seios cheios e leitosos. Ela olhara-o, rindo com insolência, enquanto ele a observava. Cheremetiev, sempre preocupado em agradar ao grande Menchikov, oferecera-lhe Catarina. Ela fora então passar as camisas do príncipe e amarrotar-lhe os lençóis. Não se podia imaginar uma presa de guerra mais bela, mais apetitosa e mais impudente do que ela.

O czar viu-a em casa do príncipe Menchikov. Levou-lhe a criada sem nada dizer e, quando Menchikov a reclamou ao fim de duas semanas, o czar informou-o de que Catarina tinha ainda tantas camisas a remendar e a passar que ficaria com ela.

Hoje, era a poderosa Catarina, casada com Pedro I, e talvez a única pessoa a ousar enfrentá-lo, pois tinha discernimento e sabia dar conselhos judiciosos. Ela própria tricotava grossas meias de lã para o marido e nunca lhe pedia nada de extraordinário. Contentava-se em viver modestamente com ele nas cabanas de madeira. Era ela que cozinhava e lhe arranjava as roupas de marinheiro e ia com ele para o mar em Petersburgo. Mesmo depois de se tornar czarina, continuara sempre a ser simples. Mas existia uma outra Catarina, a que envergava vestidos de seda bordados com pérolas e pedras preciosas, sempre rodeada por uma corte de princesas, condessas e cortesãs deslumbrantes que assegurava o brilho de todas as festas. Diga-se que, no decorrer das sumptuosas recepções no palácio de Menchikov, quando os fogos-de-artifício — que Pedro adorava — explodiam nos jardins, o príncipe inclinava então a cabeça diante da sua antiga criada e, sem hesitar, reconhecia-a como sua soberana.

Catarina apareceu a Wachter com um vestido modesto, como usava sempre quando Pedro e ela não tinham obrigações oficiais. Assemelhava-se a uma mulher do povo, ligeiramente gorda, mas os seus olhos vivos observavam tudo.

— Queres transformar esta sala para instalares aqui a Sala de Âmbar? O czar falou-me disso. Como é ela?

— Não posso explicar, Majestade. E preciso vê-la. As palavras são insuficientes.

— É então assim tão bela?

— É um sol reflectido por milhares de pedras douradas.

— Então podes instalá-la aqui — disse Catarina acompanhando as palavras de um gesto de aprovação. — Acerca de beleza, podes sempre vir a qualquer momento falar comigo.

Ao fim de quinze dias, uma vez deitada abaixo a parede, quando faltava apenas tirar os tectos falsos e cobrir as paredes com madeira, o czar apareceu. Envergava umas calças de trabalho sujas por cima de uma camisa vulgar azul-escura. Envolvia-o um avental de cabedal, também sujo. Tinha nas suas grandes mãos uma plaina, goivas, limas e uma serra. Trazia ainda três martelos presos ao avental, assim como uma pequena régua graduada e um fio de prumo.

— Que bando de preguiçosos trabalha aqui? — resmungou com a sua voz forte. — vou mostrar-lhes o que pode fazer um carpinteiro. Vão à Holanda aprender o vosso ofício. Fiodor Fiodorovitch?

— Aqui estou, Majestade — disse Wachter aproximando-se do czar.

— Tu é que és o contramestre. Diz-me o que tenho a fazer! — Colocou as ferramentas no chão e esfregou as mãos. — Não fiques embaraçado por me dares trabalho. Voltei a ser Pedro, o carpinteiro. Deus é testemunha como isso me agrada!

O czar participou nos trabalhos durante duas semanas, três horas por dia. E era melhor carpinteiro do que os marceneiros recrutados entre os melhores de Petersburgo. No entanto, a sua querida Doubina — a bengala tão temida com um castão em marfim esculpido por ele próprio — também lhe servia de ferramenta e caía frequentemente sobre as costas dos outros artesãos. E isto quando Pedro descobria um prego torcido, uma tábua mal colocada ou junções mal feitas.

— Na Holanda, seriam todos afogados como gatos acabados de nascer! — gritava ele. — São idiotas como vocês que aspiram a edificar a minha cidade? Já estou a ver que se vai desmoronar! Vocês vão acabar todos enforcados, empalados, desmembrados pela roda ou chicoteados até morrerem!

Foi um trabalho árduo, mas doze dias mais tarde as duas salas estavam reunidas numa só com as dimensões exactas que eram requeridas. Os grandes caixotes foram abertos para de lá se tirarem com precaução os painéis, as estátuas, os frisos, os baixos-relevos e os ornamentos. Verificou-se que nada se quebrara e que o difícil percurso de Berlim a Petersburgo se fizera sem estragos.

— Atenção! — não parava de repetir Wachter enquanto transportavam os preciosos lambrins da cavalariça para a sala. — Atenção! Não procedam como idiotas...

— Também me incluis nisso? — gracejou Pedro I. com uma força colossal, ele transportava sozinho, sobre

os ombros, um enorme pedestal que normalmente teria de ser transportado por três homens.

— Majestade — protestou Wachter —, trata-se dos outros, claro.

— Diz-me apenas se eu trabalho bem ou mal — quis saber o czar, continuando a avançar a grandes passadas com o pedestal. — Se não me disseres a verdade, tens direito ao chicote.

Nessa noite, Wachter entrou em casa exausto. Um cheiro agradável a chucrute e a presunto fumado partia da cozinha. Adèle estava sentada, com os olhos fechados, perto do fogão de faiança, com as costas apoiadas a uma viga. Moritz, habitualmente desinquieto, gemia baixinho junto dela.

— Adlouchka, que se passa?

As últimas semanas tinham bastado para que Wachter

Aprendesse a dizer frases inteiras em russo. Aprendera sobretudo a praguejar, ao ouvir os artesãos falarem entre si. Enlaçou Adèle, acariciou-a e sentiu-a inerte entre os seus braços.

— Foi demasiado, Fritz — murmurou ela com uma voz que mal se ouvia. — O mar, os trenós... — Pousou as mãos sobre o ventre inchado e olhou para Wachter com ar suplicante. — A criança... deixei de a sentir... Não se mexe... Tenho medo.

Ao ver o estado da mulher, Wachter inquietou-se também.

— vou chamar o médico — disse, tentando tranquilizar a mulher. — Deita-te, Delchen. Fica sossegada. Não é com certeza nada de grave.

O segundo médico da corte, um certo Benjamin van Rhijn, de Amesterdão, que Pedro I levara para a Rússia quando da sua última viagem em 1716, quis primeiro que Wachter se dirigisse a um médico vulgar, mas depois de saber que o czar concedera muitos privilégios àquele alemão, mostrou-se mais complacente.

Quando voltou a casa, Wachter foi encontrar Adèle na cama, com febre, a testa a arder, a língua inchada e meia inconsciente. Julius estava sentado junto dela, com os olhos franzidos de medo e rezava em silêncio.

— Mamã... — balbuciou vendo o pai e o médico entrarem bruscamente na sala. — Mamã...

Como Adèle receara, a criança morrera no seu ventre e o vírus cadavérico circulava já nas veias dela. O doutor Van Rhijn sentou-se na beira da cama e olhou para Wachter.

— Neste caso, só Deus pode ajudar-nos — disse, com ar acabrunhado.

— Deus não está aqui, mas o doutor está. Faça qualquer coisa! Salve-a! Para que serve ter estudos para ficar assim a lamentar-se? Salve-a...

O doutor Rhijn concordou com um baixar de cabeça.

— Preciso de toalhas — explicou. — Muita água a ferver, bacias e baldes. Não sei se resultará.

Durante três horas, trabalharam em conjunto sobre o corpo de Adèle e lutaram contra a morte. Até Julius ajudou com coragem, trazendo recipientes com água, levando lençóis ensanguentados e despejando os vasos já cheios, enquanto chorava e não tirava os olhos do rosto da mãe como que para afastar a morte. O que o doutor Van Rhijn estava a fazer era verdadeiramente assustador, mas tratava-se do último recurso. Tirou a criança morta de dentro do corpo de Adèle, pedaço a pedaço, com a ajuda de grandes pinças. Era uma menina, como predissera a parteira. Em seguida, aspirou o líquido amniótico infectado, fez uma sangria a Adèle, que se encontrava inconsciente, e friccionou-a com toalhas frias e rugosas. Depois, misturou vários pós e líquidos e encheu um frasco preto.

— Tem de beber cinquenta gotas deste líquido cinco vezes por dia, com água — disse, sentando-se numa cadeira, extenuado.

Olhou de novo para a esposa de Wachter, que continuava sem sentidos. O rosto da mulher não tinha cor, as faces e as órbitas estavam encovadas. O ventre encontrava-se coberto por toalhas embebidas em água fria e um forte cheiro a álcool flutuava no quarto. Por fim, o doutor Van Rhijn friccionara o corpo de Adèle com vodca.

— Nada mais posso fazer — disse ele a Wachter com ar cansado. — Agora só podemos contar com a misericórdia divina.

— Não tem esperanças?

— Como hei-de saber? — perguntou o médico, limpando a cara. — É a primeira vez que tento uma tal operação.

No dia seguinte, começou-se a fixar os primeiros lambrins da Sala de Âmbar sobre o novo suporte. O czar encontrava-se ali com o seu fato de trabalho, feliz por dar a sua contribuição e completamente maravilhado com aquele prodígio de pedra de âmbar que se encontrava na sua frente. Era o único a estar de bom humor. Os carpinteiros e os cortadores de pedra de âmbar receavam a cólera dele e olhavam para a bengala encostada a um canto. Wachter, com os olhos avermelhados, andava por toda a parte com passos pesados, olhando de vez em quando para fora, com ar ausente.

— Que tens tu? — perguntou o czar. — Estás doente? Porque tens esses olhos de coelho albino, esse pescoço encolhido?...

— A minha mulher está muito doente, Majestade. Perdeu a criança.

— Bem sei. Terá outra.

— O bebé morreu no útero e envenenou-lhe o sangue. O médico tirou a criança...

— Que médico? — perguntou bruscamente o czar.

— O segundo no título. O doutor Van Rhijn.

— Ele que venha à minha presença! — gritou Pedro I, louco de raiva. — Que venha aqui imediatamente!

Abriu violentamente a porta e gritou para o corredor onde se encontravam alguns lacaios:

— Vão chamar o segundo médico! Que venha aqui à Sala de Âmbar!

Dez minutos mais tarde, o doutor Van Rhijn encontrava-se diante da porta.

Vestira o seu avental de cabedal, pois julgara que o czar se ferira a trabalhar. Mas compreendeu imediatamente o seu erro ao ver Pedro I correr para ele como um gigante enlouquecido.

— Que fizeste? — vociferou o czar. — Operaste sem me dizer? Não sabes que todos os hospitais da cidade obedecem à ordem de me informarem de qualquer operação excepcional e de esperarem pela minha chegada para que eu possa assistir? Não sabes que eu trouxe da Holanda os melhores instrumentos médicos? Maldito canalha!

— Majestade! — respondeu Van Rhijn baixando a cabeça. De boa vontade teria caído de joelhos em frente do czar, mas isso só serviria para o irritar mais, pois Pedro detestava os que se arrastavam e imploravam perdão. — Era demasiado urgente...

— Nada é mais urgente do que avisarem-me! Fizeste uma operação sem me chamares! Na minha própria casa. Sabes o que mereces?

— Majestade...

— Vinte chicotadas! Apresenta-te ao executor. Ou preferes que seja eu próprio a castigar-te? Fora. E vem mostrar-me as costas ensanguentadas...

Como se estivesse partido, Van Rhijn cambaleou em direcção à porta e, uma vez lá fora, apoiou-se à parede e começou a chorar. Um pajem aproximou-se dele. Nos corredores tinham ouvido perfeitamente os gritos do czar.

— Não chore, doutor — disse o pajem, cheio de compaixão. — Que são vinte chicotadas? É suportável. Venha, vou conduzi-lo à sala dos castigos. Será menos duro do que se fosse o próprio czar a chicoteá-lo.

Um silêncio inquietante ficou a pairar na Sala de Âmbar. Pedro estava à janela. O seu rosto começou a tremer e um espasmo nervoso deformou as suas feições, transformando-as numa máscara grotesca. Sem saber onde ia buscar a coragem, Wachter aproximou-se do czar e murmurou:

— Por que motivo deve o médico ser castigado? Talvez tenha salvo a vida da minha mulher...

Sempre voltado para a janela, sem se dignar olhá-lo, o czar respondeu:

— Fica tranquilo, Fiodor Fiodorovitch! Tu não estás ainda há tempo suficiente na Rússia. Deves saber que só uma coisa é que conta: o que diz o czar! É de maneira diferente com o teu rei?

— Não, Majestade.

— Então, domina-te e não contraries o czar.

Pouco depois, Pedro I e Wachter chegaram ao edifício do pessoal e o czar dirigiu-se directamente para o quarto de Adèle. Esta estava deitada, com uma cor acinzentada na pele, mas recuperara os sentidos, encontrando-se, no entanto, demasiado fraca para poder falar. Ao reconhecer o czar, que se inclinava sobre ela, os seus lábios começaram a tremer. Julius, do lado oposto da cama, fitou o czar apertando nas duas mãos a toalha molhada que acabava de tirar de cima da barriga da mãe, a fim de a mudar.

— Tu sobreviverás — disse-lhe Pedro I com solicitude. — Conheço bem os moribundos... Tu não estás moribunda. É preciso apenas que tenhas coragem e uma fé sólida.

Adèle mexeu a cabeça devagarinho... num gesto de aquiescência. O czar endireitou-se e deitou um olhar a Julius.

— E o teu filho, Fiodor Fiodorovitch?

— Sim, Majestade. O meu único filho até agora. A Sala de Âmbar acaba de me tirar o segundo.

— É um bom rapaz. Que quer ele vir a ser mais tarde?

— O meu sucessor. Ocupar-se-á da Sala de Âmbar.

— Será digno disso, Wachterovski.

O czar procurou nos bolsos das suas calças de carpinteiro, mas só encontrou pregos e agrafes. Que fariam ali copeques ou rublos?

— Receberás dez rublos da minha parte — disse Pedro I. — O teu pai há-de trazer-tos amanhã. Como te chamas?

— Julius — murmurou o rapaz.

— Julian Fiodorovitch. Naturalmente, esqueceste-te. Dez rublos. Que vais fazer com eles?

— Comprar um livro sobre a ciência dos médicos.

— Uma resposta inteligente! — disse o czar voltando-se para Wachter e dando-lhe uma palmada num ombro. Wachter teve a impressão de ficar com a omoplata partida. — Podes sentir-te orgulhoso do teu filho. Fica junto da tua mulher. Passaremos sem ti para fixar o lambrim à parede.

— É preciso colocá-lo sobre o suporte.

— Construí todo o género de navios. Não me achas capaz de colocar um lambrim?

O czar fez um sinal com a cabeça a Adèle, olhou para o rapaz com benevolência e saiu do apartamento. Só quando a porta exterior se fechou é que Julius ousou mexer-se. Olhou à sua volta, abanando a cabeça.

— Onde está o Moritz?

— Debaixo da cama — respondeu Wachter com um sorriso. — Ele também tem medo do czar.

— Eu não receio o czar! — protestou Julius. — É um homem colérico, mas olhou-me como um amigo. — Ergueu as toalhas e fitou o pai com ar radiante. — Papá, é preciso mudá-las.

Adèle sobreviveu. Um verdadeiro milagre... ou talvez a arte do doutor Van Rhijn? Levantou-se pela primeira vez ao fim de cinco dias e, apoiando-se em Julius, deu uma volta ao quarto, vacilando. Depois voltou a deitar-se, tremendo de fraqueza. Porém, recuperara já as cores e comia, engolindo muito lentamente, um caldo de carne revigorante enriquecido com massa, que o cozinheiro imperial lhe mandara levar.

O czar encontrava-se presente quando Adèle se levantou e repreendeu-a quando ela quis fazer-lhe uma grande reverência, desequilibrando-se e tendo de se agarrar ao filho.

— Renuncia a essa loucura, Adèle Ivanovna. Esquece que eu sou o czar... Tens na tua frente o carpinteiro Pedro Alexeievitch. Estamos na Primavera e lá fora as árvores começam a florir, os gansos selvagens regressaram, as cegonhas aparecem timidamente e o mar cintila como se fosse de prata. Quando tiveres recuperado as forças, mando-te uma carruagem e tu darás uma volta pela região para te fortificares ao sol. — Hesitou antes de acrescentar: — Recompensei o médico de Amesterdão. Fiz dele meu médico pessoal. Estás contente?

— Majestade... — disse Adèle agarrando-se com força ao filho. — Como agradecer...?

— Esquecendo o que se passou e, daqui a algum tempo, desejando outra criança. És uma bela mulher corajosa...

Uma semana mais tarde, com efeito — a montagem da Sala de Âmbar encontrava-se quase terminada —, uma carruagem imperial parou diante da porta com um cocheiro uniformizado e dois lacaios em pé, atrás. Uma saída digna de uma princesa. Petersburgo na Primavera. Um conto de fadas que se realizava.

Encantada com tanta beleza, Adèle chorava de alegria ao admirar, da margem oposta do Neva, a cidade que cintilava ao sol, as torres e os telhados, os palácios e as casas, os canais e as largas avenidas. Abraçou Julius dizendo: — Meu filho, esta é verdadeiramente a nossa pátria. Não o esqueças nunca!

O czar inaugurou sozinho a Sala de Âmbar já restaurada. Dessa vez, os seus bobos e os seus anões não estiveram presentes, como nas outras festas em que cantavam, declamavam e troçavam dos convidados. Havia mais de sessenta bobos na corte, dos quais o czar gostava e acarinhava como animais domésticos, mas que, sob a direcção de Levon Ouskov, não se entregavam apenas a brincadeiras inofensivas para divertimento dos convidados. Serviam, sobretudo, de observadores e de espiões, capazes de reconhecer as fraquezas, as faltas, as mentiras e os roubos dos dignitários da corte, para depois as contarem como histórias engraçadas, enquanto o czar observava as reacções das pessoas visadas. Mas desta vez, na Sala de Âmbar, ele ficou só e silencioso, sentado numa cadeira esculpida e coberta de ouro fino, com o olhar perdido ao longe, parecendo meditar na sua vida... A guerra contra a Suécia eternizava-se, o número de mortos já ultrapassava os trezentos mil. Os supliciados, decapitados, partidos na roda, empalados, estropiados e torturados de todas as maneiras eram aos milhares. Pedro pensou também nos seus favoritos bajuladores e nas amantes lascivas. Depois, lembrou-se que o seu filho e herdeiro, Alexis, se refugiara na Áustria para viver em deboche e deixar-se manipular, chegando mesmo a entrar numa conspiração contra seu próprio pai. O czar pensava talvez também nos bons tempos que passara na Holanda e em França, onde tivera numerosas aventuras que lhe tinham provocado uma doença venérea que continuava a manifestar-se, apesar dos cuidados ministrados pelos seus médicos, o doutor Blumentrost, um alemão, e o doutor Paulson, um inglês. Provavelmente, também lhe vinham à memória as orgias sem conta que organizava com uma horda de prostitutas, levando a que o doutor Blumentrost lhe dissesse um dia:

— Majestade, tenha cuidado consigo. Renuncie às suas orgias.

E Pedro respondera-lhe, gritando:

— Não passas de um burro! São todos uns burros!

À terceira recomendação, espancara de tal maneira Blumentrost e Paulson com a sua Doubina que eles resolveram nada mais lhe dizer, contentando-se em observar, com inquietação, o progresso dos diferentes males do czar: pernas pesadas, dores renais, pedras na vesícula, espasmos cada vez mais frequentes e fases de energia colossal intercaladas com outras de total apatia.

No decorrer dessa meditação solitária na nova Sala de Âmbar, o czar teve um pensamento para Catarina, sua esposa, a antiga criada e agora o pólo de paz da sua vida. Apesar das suas amantes perpétuas, era ela a mulher que ele amava e a quem coroara imperatriz, aquela que lhe era fiel e de quem ele nunca duvidava nem por um instante. Junto dela, podia voltar a ser um ser humano e não apenas o czar. Que vida tinha sido a sua, e que existência o esperava?

Abanava a cabeça de tempos a tempos e deixava o seu olhar deslizar sobre os mosaicos, as estátuas, as esculturas, as máscaras e todos os ornatos: era um universo maravilhoso, cintilante, com tons que iam desde o ouro pálido ao castanho forte. Sentia a sua inquietação apaziguar-se e compreendia que aquela sala poderia dar-lhe intimidade. Iluminado por milhares de raios deslumbrantes, ele podia revelar-se a si mesmo e enfrentar-se honestamente.

— Compreendes? — disse ele para Wachter. — É a MINHA sala. Ninguém aqui pode entrar sem eu dar ordem.

— Nem sequer a czarina, Majestade? — perguntou Wachter, surpreendido.

— Ela pode... mas não o fará. Apenas eu e tu. Se um estranho entrar aqui sem licença, enviá-lo-ei para a Sibéria, para viver com os lobos.

O czar aproximou-se da janela e contemplou o Neva, os canais e as ilhas, a cidade magnífica — obra sua — que ele fizera sair de um solo pantanoso, e murmurou:

— Estou rodeado de bajuladores, de hipócritas, de intriguistas, de ladrões, de assassinos e de ambiciosos. É horroroso.

— E se Vossa Majestade os expulsasse a todos?

— E depois? Os que os iriam substituir não valeriam mais. É uma hidra... quando se corta a cabeça crescem outras duas! Terei ao menos amigos? Menchikov? Chafirov? Dolgorouki? Troubetzkoi? Romodanovski? Poderei ter confiança neles? Todos eles seriam capazes de me trair se isso lhes fosse útil. Tu, Fiodor Fiodorovitch, ser-me-ás sempre fiel.

— Sim, Majestade. Cortai-me a cabeça à menor desconfiança.

— Tu és um bom homem e tens uma boa família. O teu filho é como eu gostaria de ter um. Mas o destino deu-me um bêbado e um devasso traidor. Wachterosvski, quero que sejas o meu amigo certo. Sei que nada esperas de mim: nem cargos, nem principados, nem palácios, nem exércitos, nem mulheres... Estás aqui apenas pela Sala de Âmbar. E quero que estejas também por mim. Quero poder falar contigo e confiar-te aquilo que mais nenhuns ouvidos têm o direito de ouvir. Aqui, nesta sala. Será o meu confessionário. Mas ai de ti se revelares uma só palavra seja a quem for, mesmo à tua mulher.

— Enterrarei as palavras de Vossa Majestade no fundo da minha alma. Irão comigo para o túmulo.

O czar baixou a cabeça num gesto de aprovação, passou um braço à volta do pescoço de Wachter e beijou-o nas duas faces. Em seguida, deixou a Sala de Âmbar. Wachter ouviu-o gritar com os cortesãos no corredor. Petersburgo tinha agora dois czares: Pedro, o Grande, o senhor todo-poderoso da Europa, e Pedro Alexeievitch Romanov, o colosso cada vez mais vulnerável, e que fazia justiça a si mesmo, sozinho na Sala de Âmbar. Uma contradição que o mundo nunca conheceria!

Decorreu um ano. Adèle ficou novamente grávida. Julius, ensinado pelo professor alemão Georg Thorfeld, de Hanôver, lia com entusiasmo livros de medicina e acompanhava sempre o doutor Van Rhijn nas suas visitas aos doentes.

A vida teria continuado pacífica e tranquila se, a 21 de Janeiro de 1718, o filho do czar, Alexis, não tivesse regressado à Rússia. Uma artimanha de Pedro fizera-o renunciar à sua segurança. O czar prometeu-lhe perdão e clemência se ele se decidisse a ser de futuro um bom príncipe herdeiro, e garantiu-lhe mesmo que poderia casar com a sua amante Afrosinia. Os fiéis de Alexis, os condes Tolstoi, Roumiantsev e Vesselovski, acautelaram-no, mas a ideia de ver a sua adorada tornar-se czarina dissipou todas as suas dúvidas. Deixou Afrosinia em Veneza e alegrou-se com a ideia de ir beijar o pai que se mostrava tão bom para ele. Mas logo que atravessou a fronteira russa, percebeu o que o esperava. Um destacamento de cossacos cercou-o a ele e ao seu séquito e todos foram levados para Tver, perto de Moscovo, onde Alexis soube que o pai lhe queria falar.

Antes de partir para Moscovo, o czar fechou-se sozinho durante uma hora na Sala de Âmbar. Mandou então entrar Wachter, pôs-lhe um braço pelos ombros e disse-lhe com voz baixa:

— Espera-me um duro caminho. O mundo inteiro vai considerar-me um monstro, mas a sobrevivência da Rússia a isso me obriga. Só eu sou o responsável pelo meu povo!

O primeiro processo contra Alexis e os seus amigos teve lugar a 3 de Fevereiro de 1718, na grande sala de audiências do Kremlin, em Moscovo, na presença dos mais altos dignitários. Num breve preâmbulo, o czar prometeu ao filho perdoar-lhe se ele denunciasse os traidores e os conspiradores. Se o não fizesse — e disse-o claramente —, seria torturado até à morte.

Alexis, o fraco, o bêbado, o jogador, o devasso, o traidor, lançou-se aos pés do pai a chorar e começou a enumerar nomes... Era uma longa lista que incluía grandes senhores, desde a meia-irmã de Pedro, Marfa Alexeievna, até ao príncipe Vassili Dolgorouki e igualmente o príncipe Yuri Troubetzkoi, o príncipe da Sibéria, e até mesmo a mãe, a ex-czarina Evdokia. Um inquérito seguiu-se a outro e as masmorras encheram-se de detidos, que confessaram, depois de sujeitos a horríveis torturas, as suas relações com Alexis. Isso parecia bastar ao czar e, a 22 de Março, foram pronunciadas as sentenças.

Pedro I assistiu às execuções a 26 de Maio de 1718 na Praça Vermelha, em frente das muralhas do Kremlin. Trezentos mil espectadores presenciaram esse horrível espectáculo... Decapitações, enforcamentos, suplícios na roda, empalamentos. Houve também quem fosse chicoteado até à morte e queimado com ferro em brasa. Um massacre que fez estremecer o resto do mundo.

Logo a seguir às execuções, Pedro I voltou a Petersburgo. Levava o filho com ele. Ia sentado no trenó, perto do pai, submisso, reconhecido por não ter sido submetido à tortura como os seus amigos e a sua própria mãe, que o czar mandara chicotear antes de a enviar para um convento longínquo.

— Sucedeu! — gemeu o czar dois dias após o seu regresso de Moscovo. Sentado na Sala de Âmbar, tentava voltar a encontrar a sua calma interior no meio da pedra de sol. — Fiodor Fiodorovitch, isto foi apenas um começo. Recordas-te do que te tenho dito? Terei amigos? O meu próprio filho merece a forca! Mas terei o direito de agir? Se o enterrar num mosteiro isolado... novos traidores irão libertá-lo com a populaça. O meu país nunca mais terá paz. Senhor, que devo fazer?

A 15 de Abril de 1718, a amante de Alexis, Afrosinia, chegou a Petersburgo. Alexis ardia de impaciência por a apertar nos seus braços, mas, em vez de a mandar conduzir para junto dele, o czar ordenou que ela fosse levada para uma cela da fortaleza Pedro e Paulo. As bagagens foram minuciosamente revistadas, acabando por ser encontradas, cosidas no interior de um saco com roupa, duas cartas que Alexis escrevera de Nápoles: uma para o Senado russo e outra para os arcebispos da Igreja ortodoxa. Essas cartas provavam, sem ambiguidade, que Alexis só esperava pela queda de seu pai para se fazer coroar.

Pedro leu as duas missivas com o rosto petrificado. Dirigiu-se para a Sala de Âmbar onde se fechou, lendo incessantemente as linhas escritas pelo seu filho, e depois, impotente, apoiou a cabeça contra um dos lambrins, como se o âmbar com vários milhões de anos pudesse aconselhá-lo. A 14 de Junho de 1718, o czar abriu o processo contra seu filho com um ofício religioso na grande sala do Senado. Cento e vinte e sete dignitários compunham o tribunal secular. O tribunal eclesiástico era composto por três metropolitas, cinco arcebispos, quatro arquimandritas e grande número de outros notáveis da Igreja. O czar dirigia a acusação e devia interrogar o príncipe herdeiro.

— Devem tratar o príncipe como qualquer dos meus súbditos! — declarou o czar.

Toda a assistência ficou gelada de horror, pois isso significava a tortura! A tortura para o filho do czar!

O primeiro interrogatório teve lugar a 19 de Junho. Acompanhado pelo seu favorito, o príncipe Menchikov, o czar dirigiu-se numa carruagem para a fortaleza Pedro e Paulo e encaminhou-se para a câmara de torturas preparada especialmente para Alexis. Encostou-se à parede e deu ele próprio o sinal para os carcereiros trazerem o acusado. Este, com o dorso nu, pálido e alto, começou a chorar quando viu os instrumentos de tortura. Quatro carrascos apoderaram-se imediatamente dele e suspenderam-no pelos braços ao polé, ficando com os pés acima do solo. Em seguida, o ajudante do carrasco entrou por sua vez, segurando na mão o terrível chicote de pele de vaca, cozido em leite em vez de ser curtido, capaz de cortar a carne como se fosse metal. Então, o ajudante olhou para o czar, o qual fez um gesto de assentimento com a cabeça.

Desde a primeira chicotada, que cortou profundamente a pele das costas, Alexis soltou gritos terríveis. À segunda pancada, o seu corpo contorceu-se e à terceira a carne começou a ficar dilacerada.

Um sinal... o interrogatório começou. Alexis, incapaz de falar, sacudia a cabeça a cada pergunta. O imperador da Áustria oferecera-lhe tropas? O exército deveria amotinar-se em Meckenburgo? Queria ele marchar à frente desse exército até Petersburgo e depor o czar? Quanto dinheiro recebera da Áustria?

Alexis não falava.

Vinte e cinco chicotadas laceraram-lhe as costas até aos ossos, o sangue corria a jorros, e o czar continuava a responder com voz surda ao olhar interrogador do carrasco:

— Continua!

Alexis confessava tudo, gritava a sua culpa, soluçava durante as pausas, suplicava que fosse perdoado e soltava de novo gritos dolorosos quando outra pancada o atingia.

Após vinte e cinco chicotadas, o médico aproximou-se do czar e recomendou que o interrogatório fosse suspenso. O homem supliciado já não era capaz de pensar.

— Ele não diz tudo! Continua a mentir! — vociferava o czar. — Carrasco, continua o teu trabalho...

Mais quinze chicotadas estalaram sobre as costas dilaceradas de Alexis. Os ferimentos profundos formavam já uma massa de carne pendente, quando, à quadragésima chicotada, Alexis gritou o que o czar esperava:

— Sim! Sim! Sim! Desejei a morte do meu pai!

O czar desencostou-se da parede e saiu da sala. Soltaram o príncipe, que ficou caído no chão, e levaram-no. O médico seguiu-o para lhe tratar das feridas. Sabia que aquele interrogatório não seria o último.

Na noite de 20 de Junho, Wachter viu, da janela do seu quarto, luz na Sala de Âmbar. Vestiu-se imediatamente e correu para o palácio de Inverno, onde os guardas o deixaram passar sem fazer perguntas. Todos conheciam as suas prerrogativas.

Mais uma vez, o czar encontrava-se sentado no seu cadeirão, com as mãos cruzadas, inclinado para trás, fixando as máscaras mortuárias do guerreiro agonizante, provavelmente esculpidas por Schlúter. Um rosto desfigurado pelo sofrimento, com a boca toda aberta. O último segundo antes da eternidade.

— Que queres tu? — gritou o czar. — Fora!

— Vi luz, Majestade. O meu dever é de...

— Dever! Há deveres que nos fazem desejar morrer. — O czar fechou os olhos e voltou a cabeça para Wachter. Depois abriu-os bruscamente, com uma expressão de intenso sofrimento. — Que farias se o teu filho desejasse a tua morte?

— Não sei, Majestade. Ficaria triste.

— Mas o desejo de matar subsistirá! Ele arranjará outros cúmplices e o meu perdão será recompensado com a morte. Meu amigo, o czar não pode escolher. Tem de condenar. Conforme a lei e perante Deus. Sai daqui. Deixa-me só! Não quero ver ninguém por agora. Nem sequer a ti.

Wachter saiu sem fazer barulho, instalou-se num tamborete a um canto do corredor e esperou. Compreendia a tortura que afligia o czar. O mundo inteiro tinha os olhos fixos no processo do príncipe herdeiro.

Wachter ficou quase uma hora sentado no banco em frente da porta da Sala de Âmbar, como um cão a guardar o dono. Quando Pedro I se decidiu a sair, parou diante dele. Tinha os olhos vermelhos de chorar e um traço de resignação marcava o contorno da sua boca.

— Continuas aqui! — exclamou com voz aborrecida, alterada pelo desgosto e acabrunhada.

— Enquanto alguém estiver na Sala de Âmbar eu estou aqui, Majestade.

— Mas eu ordenei-te que te fosses embora!

— Então, Majestade, devo lembrar-me do meu juramento de nunca abandonar a Sala de Âmbar.

— És um homem singular, Fiodor Fiodorovitch. Não tens medo do czar! És o único por entre esta má raça que me rodeia. Só vejo cães choramingas e bajuladores miseráveis. «Paizinho», dizem-me eles, enquanto pensam: «Quando morrerá ele?» «Porque se curará sempre de todas as suas doenças?» «Porque está sempre de pé, cada vez mais vigoroso?» O meu filho também pensa o mesmo, Wachterovski! Deseja a morte do pai! Teria dado dinheiro ao Imperador da Áustria se este lhe tivesse dado um exército para me aniquilar! O meu próprio filho é um crápula, um traidor, um assassino, um destruidor da Rússia. Ó meu filho, o bêbado, o debochado, o lacaio da sua puta mongol Afrosinia, o zé-ninguém com a sua corte de aduladores... Queria ser czar da Rússia! Que seria do meu país, próspero e trabalhador? Fiodor Fiodorovitch, como julgarias um tal filho?

— com clemência, Majestade. Enviá-lo-ia para um mosteiro isolado para expiar as suas faltas. Fá-lo-ia cair no esquecimento.

— Pensas como a czarina. — Pedro apoiou-se à parede, com o olhar perdido ao longe. — Piedade! Tiveram piedade a meu respeito? Não sei ainda o que irei decidir. Volta para junto da tua mulher, Wachterovski. Eu vou fazer o mesmo. E não penses que o teu czar é um demónio...

A 24 de Junho de 1718, numa noite quente, o tribunal dos cento e vinte e sete dignitários de todo o império, reunido pela última vez, ouviu as confissões de Alexis e leu as linhas que ele escrevera com a sua própria mão já quando se encontrava reduzido a um farrapo, depois das piores torturas, e que terminavam com estas palavras: «Teria posto tudo em acção para chegar aos meus fins...» Por outras palavras: a morte do czar.

Depois de breves deliberações, durante as quais o czar fitou os juizes com um olhar mau, a sentença esperada foi pronunciada por unanimidade, sem qualquer circunstância atenuante. Ninguém ousara opor-se à vontade silenciosa do soberano. Os termos foram os seguintes:

24 de Junho de 1718. Nós, abaixo-assinados, ministros, senadores, funcionários, oficiais e civis, reunidos na sala do Senado de Sampetersburgo, após madura reflexão e à luz da nossa fé cristã, em virtude dos mandamentos do Antigo Testamento e do Novo Testamento, das Santas Escrituras, das regras dos Pais da Igreja, do direito dos imperadores gregos e romanos e de outros mestres cristãos, e ainda em virtude do direito russo, decidimos, por unanimidade e sem discussão, que o czar Alexis merece a morte por rebelião contra o seu senhor e pai, como filho e súbdito de Sua Majestade...

com o coração cheio de aflição e lágrimas nos olhos — foi o que se contou mais tarde —, fora preciso condenar o filho do czar por uma conspiração única no mundo, um duplo parricídio, simultaneamente contra o pai do seu país e o seu próprio pai. Ao ouvir a sentença, Alexis perdeu os sentidos e tiveram de o levar.

O czar deixou passar quase dois dias antes de assinar a sentença. Fechou-se de novo na Sala de Âmbar, deambulou de um lado para outro, apoiando a testa escaldante contra o âmbar frio, rezando e martelando o seu vasto peito. A morte dada pelo carrasco ou o perdão com uma vida de monge na Sibéria, isto é, o esquecimento perpétuo? «Que sou eu antes de tudo: czar da Rússia ou pai de um filho devasso? Qual é o meu dever para com a pátria, Deus e o resto do mundo? Quem irá ajudar-me, a mim, o czar todo-poderoso, totalmente só e a chorar?»

Na noite de 26 de Junho, Wachter estava de novo à espera do czar em frente da Sala de Âmbar. Tendo visto luz na Sala, correra para o palácio, cheio de sombrios pressentimentos. Batera à porta. Não obtivera qualquer resposta, nem uma só palavra. Ouvia apenas os passos pesados do czar que andava de um lado para o outro e, de tempos a tempos, uma espécie de martelar surdo que Wachter não conseguia identificar.

Às quatro da manhã, a porta abriu-se e o czar saiu com o rosto terrivelmente pálido e descomposto, a boca trémula e o olhar alucinado. Fora acometido por convulsões, as quais deixavam sempre sinais terríveis.

— Aqui estás tu! — suspirou Pedro com voz cansada. — Nunca conseguirei então ver-me livre de ti?

— Só se me mandar decapitar, Majestade.

— Talvez isso aconteça um dia — respondeu o czar encostado à parede. — Que fazes aqui? Bem sei... viste luz. Mas agora sabes que sou eu quem aqui está! Podes ir!

— É a inquietação, Majestade.

— Por quem? Por mim ou pelo príncipe Alexis?

— Pelos dois, Majestade.

— Se continuas a falar, ainda ficas sem cabeça antes do anoitecer. Vai-te embora!

— vou, Majestade — respondeu Wachter com um profundo suspiro. — Toda a gente está ao corrente da sentença pronunciada contra o príncipe Alexis. O mundo inteiro tem os olhos voltados para Petersburgo. Que vai decidir o czar?

— O czar está sozinho — lamentou-se Pedro fechando os punhos. — Estou só com Deus e com a minha consciência! Só com o meu dever! Não tenho ninguém para me aconselhar! Para ousar dizer-me uma só palavra que seja! Sou o ser mais isolado deste planeta... encontro-me face a uma decisão que é preciso tomar e que nunca ninguém teve de assumir. Eis como está o czar, Wachterovski. Um homem nu numa tempestade de neve siberiana.

— Não há então ninguém que lhe estenda uma pele?

— Não!

— Poderei fazê-lo eu, Majestade?

— Não. Não te metas nisto, Fiodor Fiodorovitch. Essa compaixão podia ser-te fatal. Todos esses vermes que me rodeiam me repugnam! Que dia! Nunca o esquecerei e o mundo também não.

A 26 de Junho de 1718, às oito horas da manhã, o czar chegou à fortaleza Pedro e Paulo acompanhado pelo príncip Menchikov, pelo príncipe Dolgorouki, pelo almirante Apraxine, pelo chanceler Golovine, pelo vice-chanceler Chafirov e pelo general Boutourline — todos eles haviam assinado a sentença —, além de alguns outros. Saíram rapidamente das suas carruagens, atravessaram os corredores sombrios da cidadela Troubetzkoi, enquanto fechavam todas as portas à passagem deles. Pouco depois — foi o que contaram os artesãos ocupados em construir uma nova torre nas proximidades —, ouviram gritos horríveis de dor partirem das janelas gradeadas. Esses gritos só podiam ser de Alexis. Mas cessaram rapidamente pelo que um silêncio opressivo voltou a pairar sobre o local.

Às onze horas, as portas voltaram a abrir-se e o czar, seguido pela sua comitiva, subiu para a carruagem, sem que se notasse nele qualquer sinal de emoção, de tristeza, de irritação ou de confusão. Tinha o seu ar habitual... um colosso indomável, vestido com simplicidade, com um olhar de aço e um caminhar oscilante.

Quando regressou ao palácio de Inverno, almoçou com grande apetite, engolindo copo após copo de kvas e dois copos de licor de anis. A refeição nada tinha de especial. Consistia numa sopa de couves, um assado frio com pepinos de conserva e cogumelos, pirojki de couve1 e, para terminar, queijo de Limbourg, o seu preferido, cujo tamanho ele verificava todos os dias, anotando as suas dimensões cuidadosamente, pois desconfiava que o seu cozinheiro Velten também o provasse às escondidas. Nesse dia, bebeu até dois copos de tokai. Em seguida, beijou os olhos da czarina e retirou-se para o seu gabinete de trabalho. Permaneceu ali toda a tarde, transmitiu ordens a propósito das festividades previstas para o dia seguinte, dia do aniversário da gloriosa vitória de Poltava, escolheu o Te Deutn, discutiu alegremente alguns assuntos políticos e subiu então à Sala de Âmbar. Até aí, ninguém lhe perguntara coisa alguma, nem sequer Catarina, que o observara em silêncio.

Wachter encontrava-se na Sala e limpava uma cabeça esculpida, munido de um pano de camurça húmida.

— Sai daqui! — resmungou o czar. — E não te atrevas a incomodar-me. Não quero ver ninguém. Nem sequer Deus...

Wachter inclinou-se profundamente e saiu da Sala de Âmbar com ar preocupado.

Às seis da tarde, o comandante da fortaleza e o médico anunciaram a morte de Alexis Petrovitch. Teria sucumbido a um ataque. Pouco depois da partida de seu pai, ele teria perdido os sentidos e não voltara a recuperá-los. Um estremecimento de horror agitou Petersburgo e depois toda a Rússia e a Europa inteira. Quem acreditaria verdadeiramente naquela versão? Que se teria passado entre as oito

 

1 Pequenos pastéis recheados com couve. (N. da T.)

 

horas da manhã e as seis da tarde na cidadela Troubetzkoi? Os que sabiam calavam-se, guardando o horror no fundo de si mesmos. Mas, em breve, os boatos espalharam-se, impossíveis de verificar.

O plenipotenciário da Holanda, Jacob de By, enviou um relatório, segundo o qual o carrasco abrira as veias ao príncipe herdeiro na presença do czar.

Uma criada alemã, Anna Kramer, contou que teriam cortado a garganta a Alexis, por ordem do czar e em frente dele. Depois, uma mulher originária de Narva, teria sido chamada à pressa para coser a cabeça cortada antes de exporem o corpo num caixão aberto. Um lenço largo ocultaria o ferimento.

Circulou também o rumor de que Alexis teria sido asfixiado com almofadas por quatro oficiais da Guarda. Um deles, Roumiantsev, teria confessado isso antes de morrer. Mas quem ia acreditar?

Foram emitidas outras hipóteses. Alexis teria sido estrangulado? Envenenado? Seu pai tê-lo-ia chicoteado até morrer? Como explicar os gritos de dor depois da chegada do czar e da sua comitiva?

O filho do czar estaria ainda vivo quando o czar partira às onze horas da manhã?

Quem ousaria perguntá-lo para se arriscar a ser enforcado? O filho do czar estava morto — era essa a única certeza. Tudo o resto não passava de suposições apaixonadas que nunca se confirmaram.

Nessa noite, 26 de Junho de 1718, Pedro I permaneceu sozinho na sua Sala de Âmbar, e Wachter, que se mantinha de guarda, afastou todos aqueles que queriam falar ao czar. Até Menchikov e o vice-chanceler Chafirov ele impediu de baterem à porta e de chamarem o soberano. E Menchikov ameaçou-o:

— Não te esqueças que podes morrer também, imbecil! Antes de se irem embora, entregaram um pergaminho a

Wachter e Chafirov explicou:

— Entrega isto ao czar. Ele sabe o que é. Tem de o assinar. É urgente.

Wachter permaneceu sentado em frente da porta até de manhã. Adèle levou-lhe um cesto com fruta, um pastel frio e uma caneca de cerveja, além do cachimbo com tabaco.

— Precisas de comer alguma coisa — murmurou ela. — E tem cuidado. Ele matou o filho com as suas próprias mãos?

— Não sei.

— É o que se conta em toda a cidade. Dizem que o chicoteou até à morte e que o decapitou!

— Dízem-se muitas coisas. Vai-te embora agora e deixa-me só com o czar. É um homem solitário. Mas ninguém o sabe.

O dia começava já a raiar quando a porta se abriu; o czar apareceu, com o rosto contorcido pela dor, agitado por tremores nervosos. A boca deformada escorria saliva. Um novo ataque vitimara Pedro, tão forte que ele julgara chegado o seu último momento. Primeiro o filho, depois ele... Deus castigava a Rússia.

— Fiodor — gemeu ele, reconhecendo Wachter. — Fiodor, ajuda-me... estou a morrer... estou a morrer... Deus abandonou-me... A minha pobre Rússia...

Apoiou-se no ombro de Wachter, carregando sobre ele todo o seu peso. Wachter endireitou-se, com as pernas afastadas, para segurar o colosso. Teve a sensação de que todos os seus ossos se iam partir, mas conseguiu finalmente encostar o czar à parede apoiando-o sempre contra si.

— Vai viver, Majestade — murmurou, ofegante.

— Porquê? Porquê sobreviver?

— Vossa Majestade tem ainda muitos projectos para fazer da Rússia a maior potência do mundo.

— E se eu já não for capaz disso, Fiodor Fiodorovitch?

— Podeis fazê-lo, Majestade. Sois um rochedo... nem mesmo a morte do príncipe vos quebrará.

A pressão sobre o ombro de Wachter diminuiu, o czar endireitou-se, o ataque ia-se esbatendo. com o rosto a escorrer suor, a boca ainda torcida, as mãos trémulas, voltou a cambalear para a Sala de Âmbar, apoiando-se na parede, até ao cadeirão esculpido. Deixou-se cair sobre ele com um profundo suspiro e estendeu as pernas.

— Que sabes sobre a morte do meu filho? — perguntou Pedro I.

— Nada... Apenas que está morto.

— E nada me perguntas?

— Gostaria de, como vós, continuar a viver, Majestade. — Tirou o pergaminho do bolso e estendeu-o ao czar — O príncipe Menchikov e o vice-chancelar Chafírov entregaram-mo. Falta apenas a assinatura de Vossa Majestade.

— Menchikov? Chafírov? Eles estiveram aqui?

— Sim. Mandei-os embora. Sabia que Vossa Majestade desejava estar só.

— Fizeste bem. Fico-te reconhecido.

O czar desenrolou o manuscrito com o texto cuidadosamente redigido. O ataque deixara de se fazer sentir, os tremores haviam cessado. Calmamente, como de costume, ele leu o texto franzindo a testa, com os lábios ligeiramente repuxados. Depois olhou para Wachter.

— Sei que és inteligente. Ouve o que quero dar a saber ao mundo inteiro:

Quando a sentença contra o Nosso Filho foi pronunciada, Nós hesitámos, como pai, entre a piedade legítima e a preocupação de preservar o Império. Nesta situação tão grave e tão dolorosa, Nós não tínhamos força para tomar uma decisão. Mas o Senhor Todo-Poderoso quis livrar-nos das Nossas dúvidas, proteger a Nossa casa e o Nosso país e poupou-lhe a vergonha. Ontem, a vinte e seis de Junho, tirou a vida ao príncipe Alexis. Este sucumbiu a uma grave doença que se manifestou quando da leitura da sua condenação à morte e da enumeração dos seus crimes contra Nós e o Estado. Teve primeiro uma espécie de crise de apoplexia. Depois recuperou, confessou-se, recebeu os últimos sacramentos e pediu-Nos que o visitássemos, o que fizemos em companhia dos Nossos ministros e conselheiros, esquecendo todo o mal que ele fizera. Ele confessou sinceramente o seu crime, chorou muito e obteve o perdão que nós lhe devíamos como pai e soberano. Morreu a vinte e seis de Junho por volta das seis da tarde como um bom cristão...

— Está bem assim, Fiodor Fiodorovitch?

— Está bem redigido, Majestade. Mas ninguém acreditará.

O czar ergueu bruscamente a cabeça, com os olhos faiscantes.

— Porquê? É a verdade!

— Se é a verdade, ninguém quererá aceitá-la. Parece demasiado simples.

— Escrevi... «tirou a vida». Escrevi «uma espécie de crise de apoplexia»... E estive com ele até cerca das onze da manhã. Onde estão as mentiras?

— Vossa Majestade descarregou tudo sobre Deus Todo-Poderoso. Ele libertou-vos de tomar uma decisão. Majestade, parece que vos refugiais atrás de Deus.

O czar, assombrado, fitou Wachter como se ele lhe tivesse batido. Era a primeira vez que lhe falavam assim. Ninguém jamais o acusara de mentir e aqueles que haviam criticado o czar haviam sido chicoteados até à morte, decapitados ou sujeitos ao suplício da roda. O czar tinha sempre razão. E o que ele fazia era porque Deus assim o queria.

— É o que o povo pensa?

— Receio que sim, Majestade.

— E dizes-me isso na cara? Wachterovski, não tens então medo de ser empalado?

— A minha sorte depende inteiramente de Vossa Majestade. Podeis condenar-me... Mas prometi dizer sempre a verdade a Vossa Majestade.

O czar deixou cair o pergaminho e contemplou as paredes de âmbar iluminadas pela chama vacilante das velas. A boca começou a tremer, mas sem espasmos. O czar contentou-se em murmurar com voz surda:

— Estás a querer dizer-me que vão comparar-me a Ivan Quarto? Aquele a quem chamam o Terrível? Ele matou o filho dele, Ivan, com a sua bengala de ferro. Foi em mil quinhentos e oitenta e um... Vão dizer agora que em mil setecentos e dezoito o czar Pedro se tornou o Terrível!

— Chamar-lhe-ão sempre Pedro, o Grande.

— E se eu tivesse realmente morto o meu filho? — gritou o czar.

— Sereis sempre Pedro, o Grande. Guiastes a antiga Rússia para novos tempos. Ireis torná-la ainda mais poderosa. .. Quem continuará a falar de Alexis Petrovitch? O caminho dos povos para a luz foi sempre sangrento. O modo como o filho do czar morreu... só diz respeito ao Czar. Só Vossa Majestade poderá carregar esse peso na alma e na consciência. Ninguém poderá ajudar-vos. Só Deus conhece o vosso coração.

— Tu és um filósofo... um filósofo popular... Tens sorte em eu gostar de ti! O que acabaste de dizer merecia mil vezes a morte... Mas poderia fazer-te conde...

— Que faria eu com terras, Majestade? — replicou Wachter erguendo as duas mãos. — Concedei-me a felicidade e a honra de poder estar junto da Sala de Âmbar e velar por ela. Que faria eu de um título de conde sem a Sala de Âmbar? Existem muitos boiardes, condes e príncipes na Rússia, mas só há uma Sala de Âmbar!

— Então dou-te mil rublos... e a minha confiança.

— Agradeço a Vossa Majestade — murmurou Wachter, inclinando-se. — É mais importante do que ser príncipe ou metropolita.

— Então, ao trabalho! — exclamou o czar erguendo-se a toda a sua gigantesca estatura, poderoso como um urso. — Hoje celebramos a vitória de Poltava. com tiros de canhão, repicar de sinos, um Te Deum, um desfile naval, música e dança. E o fogo-de-artifício mais grandioso do mundo.

— Devemos pôr de luto?

— Não! Porquê? — replicou o czar com uma expressão desaprovadora. — O príncipe Alexis morreu culpado!

Deixou Wachter parado, passou em frente dele e afastou-se com passos ameaçadores. Pouco depois, ouviram-no gritar na escada, insultando os lacaios e expulsando os cortesãos que o esperavam.

E a festa teve lugar como Pedro desejava. Os festejos realizaram-se na grande sala do jardim de Inverno, na presença de todo o corpo diplomático. A czarina, pensativa, pouco falou, enquanto Pedro, de muito bom humor, gracejava constantemente. O secretário do czar, Menchikov, escreveu no seu diário: «Depois da refeição, descemos para os jardins de Sua Majestade, onde as conversas prosseguiram agradavelmente.»

Os foguetes e as rodas de fogo rebentavam no céu nocturno, ainda límpido, sob chuvas de estrelas e feixes de luz. Cascatas de fogo jorravam do céu, estrondeando por entre os clarões. Foi o maior fogo-de-artifício jamais oferecido por Pedro...

No mesmo momento, em Troubetzkoi, lavavam o cadáver de Alexis Petrovitch, vestiam-no e metiam-no num caixão forrado de veludo preto.

Um padre vigiava estas operações e rezava a pedir perdão, enquanto os foguetes rebentavam e toda a cidade de Sampetersburgo ria e dançava.

— O horizonte aclarou-se! — exclamou o czar esvaziando o seu copo. E todos o aclamaram.

Ninguém ousava mostrar tristeza. Só Wachter, sentado a um canto da sala com Adèle e Julius, observou com ar acabrunhado:

— Sinto frio quando vejo aquilo de que as pessoas são capazes...

Depois fechou os olhos. Já não suportava ver o fogo-de-artifício. Ouvi-lo bastava-lhe amplamente.

Como Wachter previra, os anos seguintes viram a Rússia tornar-se uma potência mundial e nunca mais ninguém falou de Alexis Petrovitch. As reformas de Pedro, aplicadas com mão de ferro, modificaram o mapa do mundo. Catarina foi oficialmente coroada czarina, foram criados liceus e universidades, o exército tornou-se uma força temível e a política europeia já não se fazia sem a intervenção da Rússia. Os suecos tinham sido vencidos, a Turquia e os sultanatos acabaram por fazer a paz com Pedro e Sampetersburgo era então já uma das mais belas cidades da Europa. Os «ursos selvagens» — como costumavam chamar aos russos — converteram-se em aliados e, apesar do povo continuar oprimido pelos impostos e pelo chicote, a vida era totalmente diferente da dos séculos passados. Uma nova vida abria-se para o futuro.

Pedro I era agora o Grande não só devido aos seus dois metros de altura, mas também por causa das suas qualidades de soberano e de homem de Estado. No auge do seu poder, adoeceu. Um gigante abalado, obrigado a estar de cama frequentemente, a fazer curas termais, torcido pelas convulsões, capaz de comer e beber em excesso, para em seguida viver como um camponês, mudando de amante como quem muda de camisa, mas amando apenas a mulher, a sua Catarina. Esta dera-lhe doze filhos, seis rapazes e seis raparigas, das quais apenas Isabel sobrevivera — além de Anna, a filha mais velha, casada com o alemão Karl Friedrich von Holstein-Gottorp.

Visto de longe, era um czar ideal. Mas a Rússia sonhava-se com outro soberano, benevolente e paternal, que não tivesse aberto o caminho para a glória com as forcas, as rodas, as varas e as cabeças cortadas. Mas conheceria a Rússia alguma vez um tal monarca? Cada um dos senhores daquele grande império fora odiado pelo povo, por milhões de camponeses e de servos de artesãos e de comerciantes. com Pedro I, tiveram por fim uma espécie de personalidade carismática, a quem chamaram «Paizinho» porque fizera nascer uma nova Rússia.

Friedrich Theodor Wachter e sua mulher Adèle tiveram ainda mais três filhos durante esses anos: dois deles morreram pouco depois de terem nascido, e o terceiro, uma rapariga, afogou-se no Neva, num dia quente do Verão de 1723, pois ninguém acudiu aos seus gritos de aflição. Saltar para o Neva? Que ideia! Pobre daquele que nadasse naquelas águas. Restava-lhes apenas Julius, o filho mais velho. O czar dizia muitas vezes ao seu confidente secreto:

— Fiodor Fiodorovitch, vela bem pelo teu filho! Pensa na sucessão. É um rapaz inteligente, não é? Só dizem bem dele.

— Quer ser médico.

— Nem pensar nisso! Ele pertence à Sala de Âmbar!

— Já lho disse. Mas ele tem outros projectos, Majestade.

— Um médico. — Pedro agitou a mão num gesto de negação. — Sabes o que penso dos médicos? São todos uns papagaios, a papaguearem em latim, pedantes ignorantes, curandeiros. Sabes quantos tenho à minha volta? Alemães, ingleses, franceses, russos, holandeses, austríacos e até mesmo um persa! Mas serão eles capazes de me ajudar? Será que aliviam as minhas dores? Já não falo sequer em curarem-me! Só me custam dinheiro. Milhares de rublos! E tudo isso para andarem à minha volta a olharem-me com os olhos muito abertos, dando cada um opinião diferente sobre a minha doença! Cada um receita a sua poção. Na realidade, não percebem nada. Wachterovski, o teu filho não será médico!

Nesse ano de 1725, depois de uma alegre festa de passagem de ano, em que o czar seguira a tradição dos cânticos de Natal cantados com os amigos, indo de uma casa a outra com o chapéu na mão para receber os rublos generosamente distribuídos, Julius Wachter fez dezanove anos. Apaixonara-se pela filha do camareiro Kondratine Mikhaillovitch Kourakine, a bonita Sofia Kondratinovna, e estudava às escondidas anatomia, cirurgia e prática de medicina com o médico pessoal do czar, o doutor Blumentrost. Paralelamente, o pai ensinava-o a cuidar da Sala de Âmbar.

— Pai — perguntou um dia Julius —, por que motivo um médico não pode ocupar-se também de uma sala? Há tempo suficiente.

— E porque é que um guarda não pode ser médico? — replicou o pai. — Porque uma pessoa não pode verdadeiramente responsabilizar-se a não ser por uma coisa de cada vez... a medicina ou o âmbar! Fazer as duas coisas significa que só se pode consagrar a metade de cada uma delas. E metade, meu filho, não chega para a Sala de Âmbar. A festa de Ano Novo terminou com um grandioso fogo-de-artifício, tão apreciado pelo czar. Na Epifania, o monarca dirigiu-se para o Neva gelado para a consagração da água... mas já não era o czar capaz de torcer um prato de prata ou de accionar o martelo da forja, ou ainda de sair para o mar Báltico, a bordo de um pequeno barco rápido, e vociferar contra a tempestade quando ela se abatia sobre a sua embarcação. Os que ali estavam viram aparecer um homem doente, que não queria ouvir falar de doenças, que resistia a tudo o que o agredia e que, perseguido por sombrios pressentimentos, passava a maior parte dos dias em festas, bebendo baldes de vodca e aguardente e enchendo-se de carne de urso, de cervo, de touro e de lebre. Por ocasião do torneio de bebidas que ele organizara — o equivalente ao Tabakkollegium1 prussiano de Frederico Guilherme —, mandou trazer (após a eleição do papa dos bebedores) lobos, raposas, gatos e ratos e obrigou toda a gente a comer.,, depois de ser ele o primeiro a fazê-lo. A realidade tornou-se evidente quando ele caiu à cama a 16 de Janeiro, para não mais se levantar.

O doutor Blumentrost há muito que diagnosticara o seu mal, sem poder verdadeiramente aliviá-lo. A doença começou por uma infecção urinária, que se manifestara pela primeira vez no Verão de 1722, aquando da campanha militar da Pérsia, com um calor mortal. Quatro médicos explicaram os cálculos e a vontade de urinar por uma inflamação da uretra, seguida de múltiplas blenorragias que o czar contraíra aquando das suas inúmeras relações com um sem-número de amantes, desde a camponesa à dama da corte. Durante o Verão de 1724, as dores ao nível da bexiga deitaram literalmente abaixo o czar. Gritava entre duas convulsões, mal conseguindo pensar, totalmente dominado pelo sofrimento.

Blumentrost, esmagado pela sua responsabilidade de médico pessoal do czar, tão impotente como o seu colega Van Rhijn, chamou a Petersburgo o doutor Horn, um cirurgião inglês, que auscultou minuciosamente o doente.

 

1 Clube de Fumadores. (N. da T.)

 

— É impossível fugir a isto — suspirou Horn olhando o doente com compaixão. — É preciso pôr uma sonda para permitir à bexiga esvaziar-se. A prioridade, por agora, é fazer sair a urina.

A operação foi uma tortura horrível. O doutor Horn não conseguiu introduzir a sonda até à bexiga. Teve de tentar várias vezes para, finalmente, obter apenas um pouco de sangue e de pus. Quando de uma nova tentativa, conseguiu dilatar suficientemente o orifício para tirar um copo cheio de urina. Um pobre copo...

O czar recusara-se a ser anestesiado e agarrava-se com cada uma das mãos a Van Rhijn e a Dupont, mas, apesar de todos os esforços para suportar a dor, ela ultrapassava os limites do suportável. Por momentos, o czar gritou desesperadamente, sempre agarrado aos dois médicos. Quando, finalmente, uma grande pedra acabou por sair, Van Rhijn perdeu os sentidos. É que o czar quase lhe partira o braço com o seu punho de ferro.

Nesse dia, 16 de Janeiro de 1725, o czar jazia no seu leito, esmagado pela dor, contorcia-se em todos os sentidos, mordia os punhos, tremia de frio apesar das peles de lobo e de urso que o cobriam. Praguejava, amaldiçoava os médicos e os cortesãos e até mesmo a sua Katrerinouchka adorada, a sua «amiga do coração» como ele lhe chamava carinhosamente. Mas nada mais podia aquecê-lo. Nem sequer uma quente oriental, que propuseram meter na cama do czar, ideia que os médicos rejeitaram como absurda.

Era a primeira vez que o doutor Blumentrost se declarava vencido perante a doença. A antiga infecção manifestara-se de novo. A isso, juntava-se um novo cálculo, um princípio de uremia, perturbações circulatórias e sobretudo, a inflamação da bexiga, tão grave que Blumentrost temia uma gangrena.

Partiram correios a toda a pressa para Berlim, para contactarem o doutor Stahl, para Leiden na Holanda, com uma carta dirigida ao doutor Boerhaave, na qual Blumentrost pedia, em desespero de causa, ajuda e conselho.

Demasiado tarde. O czar suportou nova tortura, quando a 23 de Janeiro, Horn, por conselho do doutor Lazarotti, um italiano, picou a bexiga para a esvaziar. Campredon, o plenipotenciário francês, testemunha da operação, pois queria recomendar alguns médicos seus compatriotas, escreveu no seu diário: «Retiraram-lhe quatro litros de urina. Um cheiro nauseabundo. Estava misturada com farrapos de carne.»

Seria o fim?

Não. Aliviado, o czar engoliu algumas colheres de caldo de aveia, dormiu uma hora e acordou disposto a trocar algumas palavras com o duque Von Holstein:

— Quando eu estiver restabelecido, iremos os dois a Riga — disse com voz fraca.

E, dirigindo-se a Catarina, que permanecia à sua cabeceira dia e noite, (dormia num cadeirão, limpava-lhe a testa, segurava-o quando ele era agitado por convulsões e muitas vezes desmaiara durante as operações) disse-lhe:

— Katinka, minha alma, meu paraíso... não chores. A minha hora ainda não chegou. Repara como me sinto novamente bem...

Todos os que se encontravam no quarto do doente se assustaram. Pedro I endireitou-se, agarrou-se a Van Rhijn e saiu da cama. com a sua imensa estatura, ergueu-se sobre as duas pernas, semelhantes a dois pilares, ainda maiores devido à retenção das águas e arriscou-se a dar alguns passos. O seu baixo-ventre ardia-lhe, mas nem um músculo do seu rosto estremecia.

— Quero ir à Sala de Âmbar...

— Impossível, Majestade... — bradaram os médicos, empalidecendo.

Catarina agarrava-o pela camisa de noite. As princesas Anna e Isabel soluçavam. Menchikov, sempre presente, sempre à espreita do mínimo sinal, como uma raposa perseguida, à espera de uma nova degradação, barrou-lhe o caminho.

— É uma loucura. Volte para a cama, Pedro Alexandrovitch...

— Quem é aqui o czar? — retorquiu Pedro bruscamente, recuperando a voz. — Quem? Sou ainda eu! Ainda estou vivo! E viverei mais tempo do que todos vocês desejam!

Quis avançar, mas teria caído sem a intervenção de Van Rhijn e de Blumentrost. O czar baixou a cabeça.

— Tragam-me o guarda da Sala de Âmbar — disse ele, esgotado. — Vão buscá-lo e deixem-me só com ele. Só. Não quero aqui mais ninguém. Nem os médicos, nem a ti, Menchikov, grande tratante. Nem Catarina. Quero ficar a sós com ele.

A ordem do czar voou de boca em boca, de lacaio em lacaio até à Sala de Âmbar.

— Tem de se apresentar nos aposentos do Czar! — Anunciou um criado a Wachter que nesse momento polia os painéis. — Imediatamente!

Quando Wachter entrou no quarto do czar, observado por todos os olhares como se fosse uma ave rara, pois poucos conheciam aquele homem tranquilo, perdido algures no palácio de Inverno, saíram todos do quarto. Catarina foi a última, lançando um demorado olhar sobre o estranho confidente do marido.

O czar esperou que a porta se fechasse, e fez um sinal depois a Wachter para se aproximar da cama. Estava sentado, com as mãos a agarrarem nas mantas, a respiração ofegante. Os sofrimentos pareciam consumi-lo completamente.

— Aqui estamos — murmurou com voz insegura. — Fiodor Fiodorovitch, temos de dizer adeus. Conheço o meu estado, mas iludo-os a todos. Bem vejo os olhares ávidos deles: quem irá ser o novo czar? Quem irá herdar o meu império? Quem permanecerá favorito? Quem será perseguido? Quem irá enriquecer? Quem irá explorar o povo? São uns vermes, não passam de vermes! Wachterovski, que vai ser da Rússia depois de mim? Podes responder-me? É o meu único tormento, o meu receio, não a morte. Em quem poderei confiar? Em Menchikov? É o mais corrompido. Tolstoi? Um lambe-botas! Apraxine? Só pensa na sua carreira. Golovine? É um lobo que me lambe a mão. Eu não devia morrer. Devia viver eternamente por causa do meu país... Mas, mais cedo ou mais tarde, Deus chama-nos a Si. É demasiado depressa para mim. E o arrependimento de nada serve. — Enterrou os dedos na roupa da cama e o seu rosto pareceu decompor-se. — Diz-me mais uma vez a verdade, Fiodor Fiodorovitch. Achas que vou morrer?

— Sim Majestade. É o que diz também o meu filho Julius.

— Ele tornou-se médico sem eu saber?

— Não, Majestade. Ele gosta de estudar. Aprende com o doutor Van Rhijn, servindo-lhe de assistente. Perdoe-lhe, Majestade.

O czar aquiesceu com um sinal da cabeça. Um acesso de dor tornou-o mudo durante uns momentos. Depois, com uma voz surda que era quase um estertor, ele murmurou:

— Nunca mais voltarei a ver a Sala de Âmbar. A minha querida sala, o meu confessionário, onde podia falar com o coração aberto. Nunca mais! Wachterovski? Ousarás cometer um acto monstruoso para satisfazeres um desejo do teu czar? Não to ordeno... desejo-o. Aceitarás danificar a Sala de Âmbar.

— Não... não sei... — hesitou Wachter.

A ideia de danificar a Sala de Âmbar era-lhe inconcebível.

— Quero ter um pedacinho dela. Só um bocadinho. Parte qualquer coisa para mim... uma grinalda, uma pequena cabeça, uma folha, uma flor... qualquer coisa. Quero tê-la sobre o peito quando morrer... apenas um bocadinho da minha sala... Um raio da pedra de sol.

— O vosso desejo será realizado, Majestade — prometeu Wachter, com a garganta seca. — No quarto painel, há uma pequena cabeça de anjo. vou tirá-la.

— Um anjo! — O czar deixou-se cair para trás. Wachter precipitou-se para o agarrar, ajudou-o a deitar-se e puxou-lhe a roupa para cima. — Um pequeno anjo vai voar comigo para a eternidade, Fiodor Fiodorovitch. Ninguém o saberá, nem sequer Menchikov, Apraxine, Boutourline, Tolstoi, Chafirov e todos os outros palhaços... Tu és verdadeiramente meu amigo. Que Deus te abençoe a ti e à tua família...

Wachter inclinou-se sobre o czar, beijou-lhe as mãos e reconheceu a morte no fundo dos seus olhos cinzento-esverdeados.

Quando abriu a porta, Catarina e Menchikov precipitaram-se para o quarto. Em seguida, os médicos. Ninguém dirigiu a palavra a Wachter, que os observou em silêncio, de pé à porta.

«A multidão lança-se sobre a sua presa», pensou. «As aves de rapina aparecem. A agonia do czar nunca mais acaba. Ele morre lentamente e para eles já viveu de mais. Pobre czar, tens razão em gritar: ”Que vai ser da Rússia?”»

Saiu, subiu até à Sala de Âmbar, tirou da sua caixa de ferramentas um pequeno martelo, um cinzel estreito como uma pinça e uma faca sólida. Contemplou a pequena cabeça de anjo embutida no quarto painel e começou a tirá-la com precaução.

O czar não recebeu o anjo. Nessa mesma noite, gritou de novo, confessou-se, estendeu os braços para Catarina e gemeu:

— Como me sinto mal! Mal! É como se tivesse uma casa em cima do peito. Tira-ma, Katerinouchka, tira-a de cima do meu peito.

Sofreu ainda durante três dias. Nenhum médico conseguia aliviá-lo. A única certeza era que a gangrena invadira a bexiga, o baixo-ventre estava cheio de pus, o esfíncter da bexiga estava duro como uma pedra e não deixava passar uma só gota de urina. O czar apodrecia por dentro, enquanto continuava a falar, e mesmo a ditar em momentos de lucidez, a exprimir perdões e arrependimentos. Recebeu várias vezes a extrema-unção.

Que vai ser da Rússia?

A 26 de Janeiro — todas as igrejas de Petersburgo estavam abertas e as pessoas, aos milhares, rezavam pelo czar, os sinos tocavam e imploravam a ajuda de Deus —, as convulsões quase fizeram o czar cair da cama. A czarina e sua filha, Anna, seguravam-no. Toda a corte se reuniu no palácio, ministros, senadores e altos dignitários, para saberem a notícia da morte. Menchikov, Tolstoi e Boutourline encontravam-se numa sala vizinha e discutiam friamente a sucessão de Pedro I. Não se falava de Pedro, filho de Alexis, o filho do czar executado, embora fosse ele o primeiro na sucessão ao trono. Preferiam que Catarina, a viúva do czar, lhe sucedesse. com ela, tinham a certeza de continuarem a ser os favoritos na corte.

Na noite de 27 de Janeiro, a respiração do czar começou a tornar-se difícil e transformou-se em estertor. A saliva corria-lhe da boca e, sob a touca de dormir verde, o rosto contorcia-se. Todo o seu corpo tremia, mas ele aguentava-se — o czar, o colosso, o urso. A sua vontade resistia e ele lutava ferozmente contra o inimigo invencível. O seu confessor, Feofan Prokopovitch, batia na cruz e implorava:

— Que Deus te perdoe todos os teus pecados, por causa de tudo o que fizeste pelo teu povo.

E Catarina rezava, chorando, enquanto Menchikov, Boutourline e Apraxine elaboravam a declaração da entronização da czarina Catarina I.

A 28 de Janeiro de 1725, Pedro I endireitou-se de repente, soltou um profundo gemido e caiu para trás, sobre as almofadas. O seu rosto, contorcido pela dor, distendeu-se.

O czar estava morto... eram seis horas da manhã.

Catarina caiu de joelhos, ergueu as mãos num gesto de oferenda e gritou com uma voz tão forte que o céu deve têla ouvido:

— Ó Senhor, suplico-te, abre o teu paraíso para receberes esta grande alma junto de ti!

Não se tratava apenas do fim do czar, mas também o fim de uma época.

Menchikov saiu da sala para anunciar a morte do imortal aos que esperavam.

Passou em frente de Wachter que, há três dias, esperava em frente da porta que o czar tivesse forças para o chamar A pequena cabeça de anjo repousava sobre uma almofada de veludo que ele transportava como se se tratasse da coroa da Rússia.

O czar morreu. Viva a czarina Catarina I.

«Meu Deus, que vai ser da Rússia depois de mim?»

 

 

Nesse dia 10 de Janeiro do Inverno de 1945, o céu cinzento estava ensombrado pelo nevoeiro. A neve deixara de cair e o vento de leste, glacial e cortante, acalmara-se, transformando a Prússia Oriental, Kõnigsberg e o Frische Haff numa paisagem estranha, petrificada sob o gelo. Os primeiros êxodos de refugiados partiam pelas estradas nacionais para um futuro incerto na direcção do Oeste, para Elbing, Allenstein, Ortelsbourg e Dantzig, no meio de colunas militares que voltavam da frente ou para lá se dirigiam. Partir, partir dali fosse para onde fosse, procurar abrigo, sobreviver ao aniquilamento. Tinham amontoado as coisas mais vitais em carroças ou carrinhos de mão: lençóis e mantas, caçarolas e louça, cadeiras e mesas, o relógio do avô ou um tapete, sacos com couves e batatas, um velho fogão, roupas, sapatos, lenha, carvão, enfim, tudo o que era indispensável ou tudo aquilo que mais estimavam. E no meio dos sacos e das caixas, dos móveis e das bugigangas, as pessoas amontoavam-se, enroladas em xailes, com lenços na cabeça para se protegerem do frio, com os olhos encovados, cheias de fome e angustiadas. Mulheres e crianças, velhos e bebés. Os que não tinham cavalos iam a pé, atrelavam-se eles próprios às carroças ou empurravam os seus últimos haveres pelas estradas cobertas de neve, em carrinhos de bebé. Eram milhares a sofrerem esse martírio nas estradas cheias de escombros, vencidos pelo medo. Uma coluna sombria e interminável.

Os russos encontravam-se na fronteira da Prússia Oriental, ainda na expectativa do grande dia em que a ofensiva de Inverno esmagaria as frentes alemãs. Vindos de todos os lados, os exércitos americano, inglês, francês e russo aproximavam-se da Alemanha, transformada num caldeirão gigantesco ou num saco que se encolhia de dia para dia. Goebbels proclamara a guerra total. Todos os homens, a partir dos cinquenta anos, que não trabalhassem nas fábricas de armamento, foram mobilizados para a Volkssturm, uma tropa miserável destinada a formar uma muralha humana contra o ataque das divisões inimigas, dotada de um armamento irrisório, encorajada por palavras que não enganavam ninguém: o fim está a chegar, é preciso defender o Reich, a guerra invade a Alemanha. A maior parte das cidades desmoronava-se sob os ataques aéreos e os bombardeamentos aterrorizadores. As pessoas escondiam-se nas caves e no meio dos escombros, nas casas em ruínas ou nos bunkers. E contudo... para os refugiados da Prússia Oriental esse Ocidente esmagado sob as bombas representava a última oportunidade.

No quartel-general do Fúhrer, Hitler, como sempre sucedia quando se fazia o ponto da situação, encontrava-se debruçado sobre o grande mapa estendido sobre a mesa e estudava a evolução da frente que ali fora assinalada. O marechal-de-campo Keitel, os generais de corpo de exército Jodl e Guderian apresentaram os seus relatórios. Depois do atentado falhado do conde Von Stauffenberg, a 20 de Julho de 1944, Hitler, cada vez mais atingido por crises de nervos, tornara-se muito pouco acessível e parecia cada vez mais à beira do suicídio à medida que a frente se aproximava. Ouviu Guderian expor-lhe a situação.

Esta parecia desesperada. A ofensiva das Ardenas, conduzida pelo marechal-de-campo Von Rundstedt, fora detida, na Hungria os russos avançavam, tal como sucedia com os britânicos no centro de Itália; desde 10 de Outubro de

1944, depois da tomada de Riga pelo exército soviético, o conjunto do Grupo de Exércitos do Norte estava cercado. Na fronteira da Prússia Oriental, três linhas de invasão russas, dispostas em círculo, mantinham-se prestes a atacar. As esquadrilhas de bombardeiros inglesas e americanas voavam quase sem obstáculos por cima do Reich e destruíam sistematicamente cidades, pontes, caminhos de ferro e fábricas. As vítimas contavam-se às centenas de milhares.

Hitler calava-se. Em que pensaria ele nesse instante? Nos refugiados no meio da tempestade de neve, na impossibilidade de deter as tropas aliadas, no sacrifício absurdo de milhares de soldados? Não fugira ele próprio? Tivera de abandonar o seu quartel-general preferido, o «Covil do Lobo», perto de Rastenbourg na Prússia Oriental, depois de ter sido directamente ameaçado pelo Exército Vermelho. Instalara-se em Ziegenberg, perto de Frankfurt, e ouvia as sirenas tocar quando os bombardeiros inimigos dilaceravam a Alemanha e as cidades eram incendiadas. Em que pensava ele?

Guderian depressa o soube.

No fim da reunião, este tirou da sua pasta uma lista e fitou Hitler com um ar muito grave.

— Meu Fuhrer — começou com voz firme —, para se compreender a situação que temos pela frente, é preciso comparar os números dos relatórios das forças. Tenho aqui as últimas conclusões...

— Os números não me interessam! — interrompeu Hitler, deitando um olhar a Guderian.

— Meu Fuhrer, devemos decidir sobre que frente empenhar as nossas reservas. A ofensiva das Ardenas custou-nos muito cara em homens e em material. As munições esgotam-se, numerosos carros estão parados por falta de carburante, o abastecimento não é feito devido aos ataques aéreos. Devíamos reflectir seriamente.

— Devíamos? — interrompeu-o Hitler com uma voz mais aguda, mais histérica. — Devíamos, quem? Você, Guderian?

Guderian prosseguiu calmamente:

— Segundo os últimos relatórios, é um erro retirar as tropas da frente leste e lançá-las na frente ocidental.

— Um erro? — A voz de Hitler tornou-se mais ameaçadora. — Está a censurar-me? Keitel, ouviu isto?

Foi então que rebentou a crise de loucura furiosa que todos temiam e contra a qual não existia nenhum remédio.

— Não precisa de me dar lições, Guderian! — vociferou Hitler. — Há cinco anos que estou em campanha à frente das tropas alemãs e sei mais do que esses senhores do estado-maior! Sou melhor instrutor que você!

O antigo soldado de primeira classe ralhou e os generais baixaram a cabeça. Só Guderian não se deixou intimidar. Esperou que Hitler recuperasse o fôlego antes de ler o seu papel, sem se deixar perturbar:

— «Mensagem da Abwehr — Serviço dos Exércitos Estrangeiros Leste. Soube-se que os russos preparavam uma grande ofensiva para meados de Janeiro com três eixos principais de penetração: a Prússia Oriental, o Vístula e a Ucrânia, por consequência no conjunto da frente do nosso Grupo de Exércitos do Centro e do nosso Grupo de Exércitos A. A superioridade russa sobre as nossas tropas é, neste momento, de onze vezes para a infantaria, sete vezes para os blindados, vinte vezes para a artilharia...» — Guderian fez uma pequena pausa, aliviado por poder exprimir-se — «E a superioridade da aviação soviética é bem conhecida de todos.»

Era um pontapé dado ao marechal Goering que, no entanto, não se encontrava naquela reunião.

— A situação, meu Fuhrer, é, portanto, a seguinte: na frente leste, nos mil e duzentos quilómetros que se estendem do mar Báltico ao lago Balaton, na Hungria, dispomos de cento e quarenta e cinco divisões, grupos de combate e brigadas. A isso temos de juntar dezasseis unidades rápidas, doze divisões de blindados com trezentos e dezoito carros, seiscentos e dezasseis canhões e setecentos e trinta e nove PAK. No território do Grupo de Exércitos A, o general Harpe informa que tem de manter a sua linha da frente de setecentos quilómetros com apenas cento e trinta e sete infantes por quilómetro. O Exército Vermelho, por seu lado, dispõe de mil e quinhentos soldados para cobrir a mesma extensão. A reserva do general Harpe inclui apenas quatro divisões de carros, uma divisão de infantaria blindada e um grupo táctico equivalente à força de uma brigada blindada, que é o que resta da Décima Divisão Blindada.

Guderian observou Hitler em silêncio. O rosto do Fuhrer estava impassível, como uma máscara petrificada. Apoiando-se sobre as duas mãos, fixava o mapa que se encontrava na frente dele, como se nada tivesse ouvido e os seus pensamentos o tivessem levado para muito longe dali. Permanecia imóvel e silencioso. Guderian desferiu o último golpe.

— Meu Fuhrer, a Abwehr permite-se, portanto, comunicar que, face às nossas fracas unidades, no lado da frente oeste soviética, existem cinquenta e cinco exércitos prontos a intervir, seis exércitos de blindados, trinta e cinco corpos de carros, num total de seis milhões e duzentos e oitenta e nove mil soldados! Seis milhões, meu Fuhrer! Essas unidades soviéticas dispõem de cento e quinze mil peças de artilharia, quinze mil blindados e carretas de canhões automotoras, cento e cinquenta e oito mil e cento e cinquenta camiões. Os lança-foguetes Katioucha, os famosos «órgãos de Estaline», não estão aí incluídos...

O nome de Estaline pareceu arrancar Hitler ao seu torpor. Deitou a cabeça para trás, levou as mãos ao peito e fechou os punhos.

— Números! Números! — gritou. — Só números! O soldado alemão vale dez vezes mais do que o russo! Nós temos os nossos Tigres os nossos Panther e os nossos Kónigstiger, temos a nova pistola-metralhadora quarenta e quatro, a melhor metralhadora do mundo, a MG quarenta e dois, as nossas espingardas-metralhadoras e a coragem heróica dos nossos soldados que sabem dever defender a sua pátria, as suas mulheres e os seus filhos, as suas mães e pais, assim como o Reich! De que valem os números ao lado disto? De resto, onde foi buscar esses números, Guderian?

— Ao Serviço dos Exércitos Estrangeiros Leste da Abwehr, meu Fúhrer. Foi o general Gehlen que se encarregou de os reunir!

— Gehlen! Gehlen! Sempre esse derrotista! Esse malabarista de utopias! vou dizer-lhe o que penso desses números: são o maior bluff desde Gengiscão! Como podem contar tais asneiras? E acreditar nelas? E Gehlen acredita! Eu não acredito, Guderian. Eu não! Mas diga o que deduz daí!

— Que é preciso evacuar a Courlande1 e quebrar o cerco em redor do Grupo de Exércitos do Norte, concentrar os nossos esforços na região de Litzmannstadt e de Hohensalza, reforçar a frente leste da Prússia Oriental, deslocando unidades da Noruega e da frente oeste, e fechar a frente entre Radom e Kielce. Uma grande ofensiva soviética pretende apertar numa tenaz toda a Prússia Oriental, a Polónia e a Pomerânia.

— É o que diz Gehlen? — perguntou Hitler.

— É o que mostra a situação, meu Fúhrer!

— Não! Não! Não!

Hitler bateu com o pé. Um tremor violento sacudiu o rosto dele e o seu olhar era assustador, mas os generais estavam habituados a isso. Apenas Keitel olhava Guderian com um ar furioso.

— Nenhum de vocês conhece a verdade! A frente leste resiste! É a oeste que temos necessidade de uma barreira! A oeste! Nem um soldado será retirado daí. Serei eu o único a avaliar correctamente a situação?

 

1 Do letónio Kurseme região da Letónia a oeste do golfo de Riga.

 

— Às suas ordens, meu Fúhrer! — contentou-se em dizer Guderian.

Guardou os seus dossiers na pasta de cabedal, fez a saudação hitleriana e saiu da sala. Era o único general do exército que ousara dizer a verdade a Hitler.

O relatório da Wehrmacht nesse dia 10 de Janeiro de

1945 foi redigido em termos lacónicos:

«Não há combates importantes a assinalar na frente leste.»

Era esta a situação quando Jana Petrovna deixou o hospital municipal para ir visitar Michael Wachter. Disse à vigilante Wilhelmi que ia voltar a ver o novo filme de Veit-Harlan com o incomparável Horst Gaspar no papel de Gneisenau e a vedeta Heinrich George.

Wachter vivia agora numa cave da ala norte do castelo de Kõnigsberg, perto da Estalagem Blutgericht1, situada nas caves do castelo e célebre em toda a Europa. O negociante de vinhos David Schindelmeisser alugara-as e transformara-as. Outrora, essas caves tinham servido de prisão, de tribunal, de salas de tortura, e de local de execução dos Cavaleiros da Ordem. Schindelmeisser fizera dali uma estalagem apreciada pela aristocracia latifundiária da Prússia Oriental. Os fidalgos provincianos iam ali comer habitualmente, assim como muitos viajantes dos mais variados países. Todos sentiam um arrepio de horror ao recordarem que outrora os supliciados haviam gritado ali quando lhes arrancavam os membros nos aparelhos de tortura. O Gauleiter Koch também gostava de ir comer à Blutgericht para saborear um vinho tinto encorpado, enquanto ia fazendo as suas observações habituais.

Quanto ao castelo de Kõnigsberg... já não existia.

Tudo começara na Primavera de 1944 com um incêndio que tivera início no segundo andar. Koch inaugurara ali, com o marechal-de-campo Von Kúchler, uma exposição de propaganda anti-soviética. Tratava-se de meter na cabeça dos alemães a imagem do sub-homem eslavo. Mas, apesar da vigilância exercida dia e noite pelos soldados, e de um controlo permanente no interior do palácio, antinazis des conhecidos

 

1 Tribunal Criminal (N. do E.)

 

conseguiram pegar fogo à exposição pouco depois dela ter sido inaugurada.

Koch, louco de raiva, mandou imediatamente para a frente a sentinela que se encontrava de guarda. Depois, convocou para o seu gabinete o doutor Findling, Michael Wachter e o comandante da cidade.

— Isto é inaudito! — gritou Koch. — Mesmo debaixo dos meus olhos, num castelo guardado, os terroristas atrevem-se a atacar! Mas isto vai mudar, garanto-lhes! Aqui sou eu quem manda!

O comandante da cidade, acabrunhado, saiu do gabinete de Koch depois de ter ouvido injúrias durante uma hora. O doutor Findling e Wachter ficaram e esperaram que o Gauleiter acalmasse a sua cólera com uns bons copos de conhaque.

O fogo, localizado no segundo andar, não danificara a colecção de quadros nem a Sala de Âmbar, situada no andar de cima. Quando Koch, logo a seguir ao incêndio ser extinto, a visitou em companhia de Wachter e de Findling, viu apenas uma camada de cinza branca que ficara depositada sobre os painéis. Wachter, presente na sala no momento do incêndio, tossia ainda por causa do fumo.

— Isto é fácil de limpar, Gauleiter — disse ele, limpando os mosaicos com a manga. — Tivemos sorte.

— com efeito.

O doutor Findling acalmara já o Gauleiter Koch, enquanto se dirigiam para ali, mas só agora é que ele começava a sentir-se verdadeiramente aliviado.

— Não devemos nunca contar com a sorte. Não sei quem disse isto, mas tinha razão: a sorte é uma puta.

— Isso podia ter sido dito por mim! — exclamou Koch, rindo. — Mas que quer dizer com isso, doutor Findling?

— Depois de uma guerra ofensiva, a Alemanha é agora obrigada a defender-se...

— Findling, não julgue que eu vou ficar eternamente surdo — replicou Koch. — Numa guerra há altos e baixos... até à vitória final. Lembre-se de Frederico, o Grande. Após a derrota de Kunersdorf, a Prússia parecia acabada. E que se passou depois? Leuthen! E a Prússia brilhou mais do que nunca! E porquê? Porque Frederico nunca renunciou! Passa-se o mesmo com o Fúhrer... ele também nunca renuncia. Os reveses apenas o estimulam e um dia teremos a nossa Leuthen: venceremos!

— Mas pode dar-se o caso, Gauleiter, de os ataques aéreos para oeste se estenderem até à Prússia Oriental — disse prudentemente Findling.

— Que venham! Expulsá-los-emos do céu!

— Mas poderão mesmo assim lançar bombas. E se uma só atingir o castelo, esta ala, o terceiro andar...

Koch olhou atentamente Findling. Compreendeu imediatamente o que poderia acontecer: o inconcebível. Até Wachter ficou petrificado e sentiu a garganta apertada.

— A Sala de Âmbar — murmurou Koch.

— E todos os quadros.

— Insubstituíveis.

— Se não os salvarmos, Gauleiter.

— Que propõe, Findling?

— Desejaria desmontar a Sala de Âmbar, metê-la novamente em caixotes e guardá-la na cave mais segura da ala sul. Após a vitória final — Findling fez uma pausa significativa —, poder-se-á facilmente reconstituir, se não for transportada para Linz, para o museu do Fúhrer.

— Permanecerá aqui! — decretou Koch apontando para o solo com as duas mãos. — Aqui, em Kõnigsberg. O lugar dela é aqui. Farei o impossível por obter o acordo do Fúhrer e de Bormann. — Olhou à sua volta, girou sobre si mesmo com os olhos brilhantes de orgulho. — Então, Findling, é preciso desmontá-la?

— Sim. Agora, todos os painéis são facilmente amovíveis. Assim como as grinaldas e os pedestais. Em Puchkine, o trabalho foi muito mais difícil. Rastrelli tinha-os fixado solidamente às paredes.

Koch voltou-se para Wachter, apontando para ele com o indicador.

— E você, Wachter? Que pensa disto? Visto ser quase um pedaço de âmbar você mesmo... Deixar-se-ia encerrar numa cave?

— Para sobreviver... quando quiser, Gauleiter.

— Então, assim se faça, doutor Findling. Tem o meu acordo para pôr a Sala de Âmbar em local seguro, ou pelo menos onde calcule que ela fique em segurança.

Foi uma decisão sensata.

Soltaram a toda a pressa os magníficos painéis, esculturas, pedestais, estatuetas, máscaras, mosaicos, frisos e cabeças de anjos e meteram tudo em vinte e cinco caixotes.

Wachter estava encarregado de velar para que nenhum dano fosse feito, mas Findling passava também várias horas por dia na Sala, a fim de vigiar esse tesouro. E, numa dessas ocasiões, disse:

— As degradações feitas pelas nossas tropas à Sala, em Puchkine, foram todas reparadas, Michael.

com o decorrer dos meses, habituara-se a tratar Wachter pelo seu nome próprio, para lhe provar a grande estima que sentia por ele e para lhe mostrar como o amor comum que tinham pela Sala de Âmbar os aproximava.

— Sabe como ficámos furiosos por esses, digamo-lo francamente entre nós, vandalismos cometidos por soldados alemães. É de nos fazer corar de vergonha. Mas há uma coisa que me tem feito impressão e de que nunca lhe falei: falta uma pequena cabeça de anjo no quarto painel. Lembra-se, Michael? E quando examino fotografias antigas com uma lupa, essa falta é sempre visível. Ninguém tentou esculpir outra cabeça de anjo e colocá-la ali. Você também não, Michael. Nem o seu pai. Tem alguma explicação para isso?

— Nunca foi substituída, doutor. E quando vi que o senhor mandou esculpir uma, não disse coisa alguma, mas fiquei como que paralisado.

— Michael? Que se passa? — exclamou Findling olhando Wachter, atónito. — Está muito pálido.

— Esse pequeno orifício no quarto painel é para nós uma relíquia. Para nós, os Wachter, apenas para nós. O meu antepassado, Friedrich Theodor Wachter, o primeiro guarda da Sala de Âmbar, soltou essa cabeça de anjo para a colocar no caixão do czar Pedro, o Grande. Foi a vinte e oito de Janeiro de mil setecentos e vinte e cinco, em Sampetersburgo. Foi um dos últimos desejos do czar: um pedaço da Sala de Âmbar para ele levar consigo para a eternidade. Morreu antes que o meu antepassado pudesse entregar-lhe a cabeça do anjo. Dois dias depois do enterro, a cabeça de anjo foi enterrada nas margens do Neva, no local de onde o czar preferia contemplar a sua cidade magnífica.

Wachter baixou a cabeça e o doutor Findling sentiu-se também perturbado.

Permaneceram um bom bocado silenciosos até Findling acabar por dizer:

— Michael, ninguém sabia disso. Prometo-lhe que quando instalarmos de novo a Sala de Âmbar, tirarei a cabeça de anjo que mandei reproduzir. A «marca do czar», chamemos-lhe assim, ficará onde está.

— Obrigado — murmurou Wachter limpando os olhos com as duas mãos. — Obrigado, doutor Findling. O senhor é dos raros a compreender.

Foi apenas na noite de 29 para 30 de Agosto de 1944 que Aperceberam como fora necessário salvaguardar a Sala de Âmbar.

Esquadrilhas de bombardeiros anglo-americanos surgiram por cima de Kõnigsberg. Começou um bombardeamento devastador. A cidade incendiou-se, enquanto a artilharia antiaérea e os caças disparavam em vão contra essa massa compacta de aviões. Do céu nocturno, caía morte e destruição. Bombas explosivas, minas aéreas, bombas incendiárias e de fósforo alimentavam um inferno incandescente.

Na manhã de 30 de Agosto de 1944, a velha Kõnigsberg já não existia.

O castelo dos Cavaleiros da Ordem fora completamente arrasado numa só noite. Restavam dele apenas paredes fumegantes, destroços, torres caídas, edifícios desmoronados... O castelo de Kõnigsberg não era mais do que um amontoado de ruínas carbonizadas.

O relatório da Wehrmacht assinalava:

30-8-1944 — A aviação britânica, violando o território sueco, bombardeou novamente Stettin e Kõnigsberg. No decorrer desses ataques, as forças de defesa aérea abateram 82 bombardeiros quadrimotores...

Era tudo. Algumas frases banais sobre o esmagamento de uma cidade, o sofrimento de milhares de vítimas, a morte de mulheres, crianças e velhos, corpos esventrados e pessoas asfixiadas nas caves, que morriam lamentavelmente, carbonizadas ou com os pulmões rebentados.

O Gauleiter Koch saiu a rastejar do seu bunker e fez-se conduzir imediatamente à ala sul do castelo, completamente destruída. Procurou Findling e Wachter e encontrou-os no pátio do castelo, rodeados de soldados e de polacos submetidos ao trabalho obrigatório.

— A Sala de Âmbar! — gritou Koch saindo do seu automóvel. — Que sucedeu à Sala de Âmbar? Findling, diga-me a verdade!

A cidade continuava em chamas, as casas desmoronavam-se, tropas de salvamento percorriam os escombros à procura de sobreviventes. Os hospitais, as escolas e os ginásios estavam cheios de feridos e de moribundos. Médicos, maqueiros, enfermeiros e voluntários trabalhavam sem descanso e lutavam para salvar cada vida...

— Está intacta — respondeu Findling com a cara negra de fuligem. — As caves aguentaram.

— O mérito é seu, Findling. Nunca o esquecerei. Agradeço-lhe — disse, estendendo-lhe as duas mãos.

— A Sala de Âmbar faz parte da minha alma, Gauleiter.

Findling voltou-se para Wachter. Alguns polacos estavam justamente a içar o primeiro caixote para o pátio do castelo, acossados pelos gritos de Wachter:

— Atenção! Mais para cima! Mais à esquerda, idiotas! À esquerda...

— Que se passa? — perguntou Koch, inquieto, elevando a voz.

— Estou a mandar transportar os caixotes para a ala Norte, Gauleiter. Ficarão em segurança. As abóbadas são sólidas. As caves perto da Blutgericht são as mais seguras de todo o castelo. Os obuses e as bombas não podem atingi-las. Não há qualquer risco de incêndio.

— Faça como lhe parecer melhor, Findling. — Koch deitou um olhar para o primeiro caixote colocado no pátio cheio de escombros. — Confio-lhe um dos maiores tesouros do mundo. Depois da vitória final, hei-de apresentá-lo ao Fúhrer... Ele ficar-lhe-á muito reconhecido.

Koch despediu-se, entrou no carro e dirigiu-se para o centro da cidade em chamas. Enviou ao quartel-general do Fiihrer o seguinte comunicado: «Para resumir, peço que informem o Fiihrer e o Reichsleiter Bormann que a Sala de Âmbar foi salva.»

com lógica, depois da transferência da Sala de Âmbar para as caves da ala norte, Wachter instalou-se numa cave um pouco mais longe. Os seus antigos alojamentos tinham sido destruídos até à subcave. Não encontrou nada intacto a não ser um pequeno ícone, um tríptico em metal martelado que Pedro I oferecera em 1720 ao seu amigo e confidente, Friedrich Theodor Wachter. Desde então, de geração em geração, esse ícone fora conservado sobre um suporte de madeira onde estivera antes um crucifixo. Julius Wachter, médico e guardião da Sala de Âmbar nos reinados das três czarinas Anna, Isabel e Catarina II, mandara gravar no tríptico: «Possa a Providência iluminar-nos e proteger-nos enquanto os dias e as noites se sucederem nesta Terra. Petersburgo, 20 de Maio de 1766, no reinado benevolente da Grande Catarina.»

A Providência continuava ali.. Wachter descobriu o ícone sob os destroços do seu armário, protegido pelo que restava de um fato, como se uma mão divina o tivesse escondido debaixo do tecido.

A cave para onde Wachter se mudou estava ao abrigo das bombas, mas era fria. As paredes espessas cheiravam à humidade que ali se impregnara nos séculos passados Wachter levou para lá três fogões, uma grande cama com um edredão de penas, uma mesa, quatro cadeiras, um toucador, um armário, um espelho e um fogão a carvão para cozinhar. Foram precisos quatro dias para abrir um orifício na parede, a fim de fazer passar o cano do fogão. Levou também roupa de cama, louça, tachos, um tapete, um candeeiro de tecto e dois candeeiros de mesa. Era tudo quanto pudera obter do centro de abastecimento e isso devido a uma carta do Gauleiter que ele apresentou: «... dar a Michael Wachter todo o auxílio necessário...»

Que alegria quando os trabalhadores polacos lhe levaram num pequeno carro um sofá verdadeiro, coberto de pelúcia verde, com braços de madeira esculpida, igual aos que se encontravam aos milhares nos lares alemães. Tratava-se de um presente de Bruno Wellenschlag, encarregado de repartir mobiliário pelos cidadãos sinistrados. com o sofá, Wellenschlag enviou-lhe dois quadros para embelezar a sala. Um deles continha uma famosa fotografia de Hitler de uniforme e impermeável, com a gola levantada, o olhar firme olhando para a distância, voltado para o futuro. O outro era uma reprodução do quadro de Menzel, O Concerto para Flautas de Sanssouci.

Wachter não sabia onde colocar Hitler. Na parede? Tê-lo-ia permanentemente diante dos seus olhos, dia e noite. A sala não teria privacidade.

Pendurou o quadro de Menzel por cima do sofá. Quanto ao Fúhrer, pendurou-o na porta, no exterior. Quando o doutor Findling lhe fez a sua primeira visita, disse-lhe num tom sarcástico:

— Então, é aqui o quartel-general do Fúhrer?

— Assim tenho a alegria de o ver pelas costas. Mas todos julgarão que decidi segui-lo. Cada um pode pensar o que quiser — respondeu Wachter.

A 10 de Janeiro de 1945, Jana Petrovna foi visitar o seu «paizinho».

Sentia-se feliz e cheia de alegria quando entrou na cave e saltou ao pescoço de Wachter para o beijar. Passara o dia no hospital, a escrever listas, relatórios e a preencher formulários, acompanhando também a vigilante Frieda Wilhelmi na sua ronda pelos serviços. Tornara-se perita em dactilografia, escrevia depressa e sem olhar para os dedos e a máquina crepitava como uma metralhadora. Quanto a Frieda, a montanha de carne com rosto humano, habituara-se ao seu papel maternal e gostava de Jana como se fosse sua filha. Derramava sobre ela todo o amor que nunca pudera dar. Fizera com que o doutor Philip fosse transferido para Elbing, porque, uma vez, ele perseguira Jana numa arrecadação e rasgara-lhe a roupa. A direcção do hospital não tivera outra alternativa quando Frieda ameaçara demitir-se e ir para Berlim com a «sua filha». Isso ocorrera em 1943 e, desde então, nunca mais ninguém achara insólita a presença de Jana Petrovna. Até mesmo o chefe do pessoal se abstinha de qualquer comentário... Jana era a única enfermeira sem documentação. No fundo, era um nada, um fantasma na lista dos assalariados.

Desde 1943 que Jana tinha uma amiga, Sylvie Aarenlund, uma sueca. Estudava História de Arte em Uppsala, sobretudo a arte asiática, e, em 1943, fora para Kònigsberg como cidadã de um país neutro para continuar os seus estudos na universidade como aluna em regime livre.

Jana e Sylvie tinham-se encontrado pela primeira vez no castelo, na galeria de pintura e, em seguida, na Sala de Âmbar, que Findling abrira a todos os visitantes. Jana reparou que aquela rapariga loura não dava a volta à Sala como os outros visitantes, mas que observava os diferentes mosaicos com toda a atenção, chegando mesmo a sentar-se numa das cadeiras. Wachterx que guiava um grupo, contando-lhe a história da Sala de Âmbar, não prestou atenção à rapariga. Admirou-se apenas por ver que Jana, que o fora visitar nessa tarde, falava com a desconhecida.

— A Sala interessa-a? — perguntou Jana.

E Sylvie respondeu-lhe num alemão impecável:

— Atrai-me. Compreenda o que quero dizer: esta obra de arte não me fascina apenas, a palavra é demasiado fraca para exprimir o que sinto. Ela... penetra-me até ao coração.

— A mim também. Por vezes, sinto-me atordoada com tanta beleza.

— Você é enfermeira, pelo que vejo.

— Sim, trabalho aqui no hospital.

— Veio do Báltico? O seu alemão é rude.

— Nasci na Mazúria. — A velha mentira que a protegia. — Numa pequena aldeia perto de Lyck.

Assim começou a amizade entre elas. Sentiram desde logo simpatia uma pela outra, combinaram encontrar-se para irem juntas ao cinema e um dia, como uma rapariga sensata, Jana apresentou a sua nova amiga a Frieda Wilhelmi.

— É uma rapariga simpática — declarou Frieda nessa noite, à hora do jantar, que habitualmente tomavam juntas, comendo o que lhes levavam da cantina dos médicos. — Fico contente por teres uma amiga e que não tenhas que sair sozinha. O que não quer dizer que andem por aí as duas a fazerem perder a cabeça aos homens. Continuarei a olhar por ti, minha filha.

Foram belas aquelas semanas. No Verão, tomavam banho no Báltico, alugavam um barco à vela e navegavam no Kurisches Haff. Sylvie revelou-se uma boa marinheira, capaz de dirigir a embarcação sem problemas. No Inverno, patinavam no Haff gelado ou, então, saboreavam um sucedâneo de vinho quente nas margens do Pregel. Depois, partilhavam as suas sanduíches. As de Sylvie eram sempre mais bem guarnecidas, pois ela recebia encomendas da Suécia... Eram como duas irmãs e não tinham segredos uma para a outra.

Tudo mudou no Verão de 1944.

Nessa noite, Jana, que tinha a chave do pequeno apartamento de Sylvie nos arredores de Kònigsberg, chegou lá sem avisar. Frieda dera-lhe a noite livre no último momento. Jana fora de eléctrico e metera a chave na fechadura sem fazer ruído para surpreender Sylvie. Encontrara-a de forma imprevista na sala.

Jana imobilizou-se à entrada da porta, como que petrificada. Sylvie estava sentada numa poltrona, debruçada sobre uma pequena caixa pousada sobre os seus joelhos, onde se viam alguns botões e um comutador. Tinha auscultadores nos ouvidos. Parecia muito ocupada a ouvir qualquer coisa, depois mudou de comprimento de onda e carregou numa alavanca com um dedo. Aquilo fazia um leve ruído... curto, longo, longo, curto... e, algures, alguém transcrevia os sinais.

— Boa noite, Sylvie — disse Jana em voz alta. Sylvie sobressaltou-se, com um ar assustado, cortou o contacto, levou a mão a um lado do corpo e ergueu-a rapidamente. Os seus dedos empunhavam um revólver que ela apontava ao peito de Jana.

— Jana, Jana... meu Deus... não devias ter feito isso — murmurou com voz surda. — Jana... agora... agora tenho de te matar. Porque não bateste?

— Queria fazer-te uma surpresa.

Jana fixava a pistola. O cano estava mesmo à altura do seu coração.

— Conseguiste surpreender-me. E... tenho de te abater... É preciso...

— Tens um emissor-receptor, Sylvie...

— Sim.

— Transmite informações...

— Sim.

— És uma espia...

— É assim que me chamam... Luto contra a tua Alemanha, contra o fascismo, contra a guerra, contra o vosso satânico Hitler... Luto pela liberdade e pela paz...

— E também não te chamas Sylvie Aarenlund...

— Sim. É o meu nome verdadeiro. Mas que importa? — Continuava com a arma apontada ao peito de Jana, com o dedo no gatilho. Bastava apertá-lo minimamente e Jana morreria. — Somos um pequeno grupo de antifascistas. Informo-os sobre o que vejo aqui e eles comunicam-me o que ouvem a partir da Rússia. O nosso grupo está em ligação permanente com a NKVD em Leninegrado. — Respirou fundo, ergueu mais a pistola e apontou. — Agora sabes tudo, Jana... TENHO de disparar... Compreende... sou OBRIGADA.

— Disparas sobre uma amiga, Sylvie.

— PRECISO de o fazer! — gritou Sylvie, desesperada. — Nada posso fazer. Não tenho o direito de partilhar este segredo!

— Mas com uma aliada... também não o podes fazer? — Jana entrou na sala e reparou que a arma seguia todos os seus movimentos. — Não me olhes com um ar tão céptico, Sylvie. Tu tinhas o teu segredo e eu tenho o meu! Os dois são sinónimos de morte! Eu não sou enfermeira da Cruz Vermelha.

— E só agora dizes isso. — Sylvie ergueu a pistola à altura dos olhos quando Jana passou as mãos pelos cabelos. Tinha tirado a touca e atirara-a ao chão. — Não será assim que irás salvar a tua vida.

— Não nasci em Lyck, mas sim em Leninegrado. Sou russa e o meu verdadeiro nome é Jana Petrovna Rogovskaia.

Sylvie baixou a sua arma muito lentamente.

— Como... como pensas prová-lo? — murmurou com dificuldade.

— Compreendes o russo?

— Sim.

— Fiz de propósito para me deixar apanhar pelas tropas alemãs vestida de enfermeira da Cruz Vermelha, perto de Puchkine — explicou em russo. — Ninguém me fez perguntas. Todos me julgaram alemã. O traje de enfermeira bastou. Faço parte daqueles que velam pela Sala de Âmbar... O responsável, Michael Wachter, é o meu futuro sogro. O filho dele, Nikolai, combate em Leninegrado contra os alemães. Chama-se Nikolai Mikhailovitch Wachterovski. No princípio do cerco, trabalhava no Ermitage. Ignoro se ainda vive, se sobreviveu aos novecentos dias de fome e de morte, novecentos dias de Inferno até à libertação de Leninegrado pelo Exército Vermelho. Não tenho qualquer notícia dele. Como poderia ter, de resto? Aqui levo uma vida diferente, como tu... Acreditas-me?

— Sim — Sylvie baixou a pistola. — Acredito. Meu Deus. Teria disparado sobre ti, seria obrigada a fazê-lo.... a matar a minha melhor, a minha única amiga.

— Compreendo, Sylvie.

— Que tempos impiedosos os que vivemos!

Deixou cair o aparelho em cima da cadeira, levantou-se e abraçou Jana, beijando-a três vezes nas faces à moda russa. E, subitamente, começou a soluçar, liberta da tensão nervosa, prestes a quebrar ao perceber que teria realmente morto Jana.

A partir desse dia, nada mais as pôde separar. Por vezes, Jana encontrava-se junto de Sylvie quando ela entrava em comunicação com o seu grupo, indicando o número de tropas que deixavam Kõnigsberg ou que ali chegavam. Em Leninegrado, estavam bem informados sobre todos os movimentos de tropas dos exércitos alemães, sobre o seu equipamento, a sua artilharia e blindados, sobre os comboios que transportavam os abastecimentos e as munições. Jana ajudava, contando o que os soldados que se encontravam no hospital diziam acerca da Frente, da falta de munições e de combustível, dos rumores que circulavam e que encerravam sempre uma parte de verdade. A partir dessas pequenas informações, tiradas de todos os lados, reconstituíam em Moscovo toda a situação alemã. Era um quadro quase completo... A lenta mas inevitável agonia do grande Reich alemão. A derrota de Hitler. O fim do domínio nazi. Sabia-se mais em Moscovo do que entre a maioria da população alemã. Quem é que tinha, na Alemanha, uma ideia do que era verdade?

Alguns dias mais tarde, Wachter veio a saber por sua vez tudo aquilo que dizia respeito a Sylvie. Recebeu a notícia com prudência, sondou a jovem loura e participou uma vez na troca de comunicações com a Suécia, lendo as mensagens antes destas serem queimadas por Sylvie.

— Diz-lhes — pediu uma noite Wachter a Sylvie — que a Sala de Âmbar está intacta e que se encontra guardada. Devem transmitir esta mensagem para Leninegrado, para o Conservador do Museu Ermitage. E tenho também um grande favor a pedir-te — começou a falar em russo —, um pedido de um pai. Pergunta-lhes se viram o meu rapaz, se sabem se está vivo, se foi morto ou se morreu de fome. Se se bateu na frente ou se morreu nas estradas como centenas de milhares de outros em Leninegrado. Se ainda vive... onde se encontra? Sylvie, podes perguntar isso? Aliviarás o coração de um pai dos seus tormentos. Jana receia também por Nikolai. Peço-te que lhes faças essas perguntas...

Sylvie prometeu fazê-lo, mas em Leninegrado guardaram silêncio. Passaram-se semanas, meses e ela encolhia sempre os ombros de cada vez que Jana lhe perguntava. Foi uma espera desmoralizadora até ao dia em que Wachter declarou:

— Eles não o encontram. É uma maneira de responder. Minha filha, sejamos corajosos. Deixemos de mentir a nós mesmos. Nikolai faz parte dos milhares de desconhecidos que enterraram em Leninegrado. Morreu como um herói. Estejamos orgulhosos dele.

Acendeu uma pequena vela redonda colocada num castiçal de metal, a Hindenburglicht1 como lhe chamavam os

 

1 Luz de Hindemburgo. (N. da T.)

 

alemães, colocou-a diante do ícone do seu antepassado e rezou com Jana pela salvação da alma de Nikolai. Todos os dias substituía a vela sem nunca deixar apagar a chama vacilante. E a primeira vaga de refugiados chegou à Prússia Oriental; arrastavam-se aos milhares pelas estradas geladas na direcção do Ocidente, com carros, carroças de duas rodas, carrinhos de bebé carregados, trenós e toda a espécie de viaturas. Morriam de frio à beira das estradas, principalmente as crianças de tenra idade e os velhos. Foi então que Wachter arranjou, no centro de reabastecimento dos sinistrados, três caixas com velas, porque Bruno Wellenschlag as racionava: só dava vinte velas por semana para cada família.

Três caixas... Iam chegar até ao fim da guerra. Ela fazia-se sentir ali, nas fronteiras da Prússia Oriental, assim como a oeste, desde a Hungria ao mar do Norte. Uma tenaz gigantesca que esmagava a Alemanha. Agora já não era uma guerra que Hitler ameaçava fazer, mas sim um crime contra o seu próprio povo. Milhões de vezes repetido.

O Gauleiter Koch recebeu os principais responsáveis dos estados-maiores, todos os comandantes-chefes das múltiplas organizações, os comandantes das tropas em Kõnigsberg e nos arredores, e convocou igualmente o doutor Findling e mesmo Wachter para comparecerem no local da Gauleitung.

De pé, em frente de uma enorme bandeira com a cruz gamada, metido no seu uniforme feito por medida, com calças largas, com as pernas afastadas e a cabeça inclinada pra trás, fez aos seus fiéis um discurso à glória do Fúhrer e, por fim, gritou:

— Kõnigsberg permanecerá alemã! Nós não deixaremos a Prússia Oriental! O nosso dever é combater até ao fim. Viva o nosso Fúhrer Adolf Hitler! Sieg heil!

As pessoas presentes ergueram o braço direito e gritaram em uníssono:

— Sieg heil! Sieg heil! Sieg heil!

Wachter também os imitou, dizendo para consigo: «Perdoem-me todos, não me condenem mais tarde, faço isto pela Sala de Âmbar. A vitória está a chegar. Está à nossa porta e cria alento.»

Os novos slogans choveram de todos os lados sobre a população: nas ruas de Kõnigsberg, em todas as paredes livres, nos escombros, nos painéis publicitários e nas cabinas dos camiões pesados, e em todos os jornais. Eram palavras que diziam mais do que todos os relatórios da Wehrmacht, que todos os artigos de Goebbels no jornal Das Reich e que todos os comentários na rádio. Elas revelavam o naufrágio que as altas esferas persistiam em negar.

O Fúhrer espera o teu sacrifício para a Wehrmacht e a Volkssturm.

Para que o soldado da Volkssturm, o teu orgulho, possa mostrar-se devidamente uniformizado

Esvazia os teus armários e os teus cofres, E traz-nos os teus bens!

Em marcha para a guerra santa para salvar a pátria alemã e o nosso futuro.

Eis a nossa vontade inquebrantável!

Não seremos nunca os escravos do capitalismo anglo-americano.

Nunca os trabalhos forçados na Sibéria!

Hitler, tu assim o ordenaste... nós seguir-TE-emos!

As pessoas passavam diante dessas frases a correr, sem prestar atenção. O receio de morrer deformava-lhes os rostos. Teriam ainda possibilidade de se salvarem? Que fariam os russos quando entrassem em Kónigsberg? Abateriam toda a gente como afirmava a propaganda? Até Findling fazia a si próprio essa pergunta. Desde o dia 3 de Janeiro, vivia sozinho numa das caves da Blutgericht. Graças às suas relações, conseguira que a mulher partisse de barco para Dantzig, e à despedida dissera-lhe:

— Marta, não chores. Irei ter contigo mais tarde. De Dantzig, parte para Berlim e espera-me lá. E se em Berlim as coisas ficarem perigosas, vai para Hanôver, para casa da tua prima Luiza. Voltaremos a encontrar-nos. Partirei daqui quando souber o que vai suceder à Sala de Âmbar.

— A Sala de Âmbar! Sempre a Sala de Âmbar! Essa maldita Sala de Âmbar! — Agarrou-se a ele a chorar, enquanto o seu corpo tremia todo e ela lhe apertava a cabeça com as duas mãos. — Vem comigo, Wilhelm, vem, suplico-te. Queres sacrificar a tua vida por causa dessa maldita sala?

— Não é um sacrifício, Marta. Trata-se simplesmente de cumprir o meu dever.

— Morrer por causa de umas paredes cobertas de âmbar? Mas é uma loucura, Wilhelm! Vocês roubaram a Sala de Âmbar aos russos. Eles que a recuperem.

— Não podes compreender, Marta.

Findling acompanhara-a até ao navio e, quando ela atravessou a prancha de embarque para subir a bordo, disse-lhe adeus com a mão. Era um antigo vapor que outrora fazia alegres excursões ao longo da costa do Báltico. Parava durante três dias para os viajantes tomarem banho em Usedom, em Heringsdorf ou em Mistroy, magníficas estâncias balneares. Isso passava-se nos tempos em que a alegria dava energias... Agora, o vapor estava pintado de cinzento e assemelhava-se a um cruzador auxiliar.

— Voltaremos a ver-nos, querida — murmurou Findling ao vê-la chorar junto da amurada, mais frágil e mais pequena do que nunca. — Boa viagem, meu tesouro... ficarás em segurança.

Findling nunca chegou a saber que, dois dias mais tarde, um submarino soviético afundou o navio cinzento, atingindo-o com dois torpedos, a norte de Rugenwalde. Não houve nenhum sobrevivente.

Nesse dia, 10 de Janeiro de 1945, Jana Petrovna soltava gritos de alegria, ria e chorava ao mesmo tempo, agarrada ao pescoço de Wachter, fazendo-o girar sobre si mesmo, enquanto repetia com voz alterada:

— Ele está vivo! Ele está vivo! Paizinho, Nikolai está vivo. Deu notícias! Envia-nos saudades! Continua em Leninegrado, no Ermitage. Está vivo... Está vivo!

E, depois, perdeu os sentidos. Wachter levou-a até ao velho sofá e estendeu-a ali.

— Nikolai está vivo. Está bem. Meu Deus, oh, meu Deus, como agradecer-Te? Caio de joelhos diante de Ti, Senhor Todo Poderoso. Como nos ajudaste...

Ajoelhou-se em frente do velho ícone e da pequena chama vacilante da Hindenburglicht, pôs as mãos em prece e rezou, aliviado e feliz. Sentia as lágrimas correrem-lhe pelas faces e o coração quase a rebentar de alegria.

«Nikolai, o meu filho querido, está vivo.

«Senhor, como Te agradeço!»

Ordem do dia do marechal Tcherniakhovski, comandante da Terceira Frente Bielorrussa, a 12 de Janeiro de 1945:

Percorremos dois mil quilómetros e vimos o aniquilamento de tudo o que edificámos em vinte anos. Estamos agora diante da gruta de onde os fascistas nos atacaram de surpresa. Começámos por parar, depois de termos limpo a gruta. Não tivemos piedade de ninguém — assim como eles a não tiveram por nós. É inútil pedir piedade aos soldados soviéticos. A sede de vingança e o ódio devoram-nos. O país dos fascistas deve tornar-se um deserto, tal como eles fizeram com o nosso. Os inimigos devem morrer como morreram os nossos soldados.

Apelo do escritor soviético Ilya Ehrenburg, distribuído como folheto aos soldados russos:

Matem! Matem! Os alemães não estão inocentes de coisa alguma, nem dos vivos nem dos que ainda não nasceram! Sigam as directivas do camarada Estaline e esmaguem a besta fascista no seu covil. Quebrem a soberba racista das mulheres germânicas! Tomem-nas como presas legítimas!

O Gauleiter Koch convocou novamente os seus íntimos, como lhes chamava, para a Gaileitung. Segurava um papel nas mãos trémulas e, quando começou a falar, a sua voz vibrava de excitação.

— O general Gehlen, da Abwehr, acaba de nos transmitir um apelo feito por esse porco judeu Ilya Ehrenburg. Todas as unidades da Wehrmacht vão ser informadas. O Fúhrer deu ordens para que toda a gente ficasse ao corrente dessas garatujas repugnantes, para que se apercebam do que nos espera se não resistirmos heroicamente a esse dilúvio vermelho assassino.

Koch leu o apelo de Ehrenburg num tom grandiloquente e teatral. Passou em silêncio a ordem do dia do marechal Tcherniakhovski. No fim da sua declamação, atirou o papel ao chão e pisou-o raivosamente. Sem reparar nos rostos petrificados que se encontravam na sua frente, nem em Wachter que tinha juntado as mãos. O Kreisleiter1 Wagner ajustou nervosamente o seu cinturão. Bruno Wellenschlag engoliu várias vezes a saliva, como se tivesse a garganta apertada. — Ouviram! — gritou Koch com o rosto congestionado. — É um apelo ao crime! Ordem para violarem as

 

1 Administrador da comarca. (N. do E.)

 

nossas mulheres! As bestas bolchevistas estão à solta! Um porco de um judeu quer assassinar-nos! Soldados, não se trata já de lutar para defender o país. Devemos salvar as nossas mulheres e os nossos filhos! Combateremos até ao último. Sieg heill

Quando todos começaram a sair da sala com a enorme bandeira da cruz gamada, Koch fez zinal a Findling e a Wachter para ficarem. Quando se viram sós, Koch deixou cair a sua máscara de combatente dedicado ao Fúhrer e ao povo. Aproximou-se com uma expressão crispada, acariciando o seu bigode.

— Esperamos de um dia para o outro a grande ofensiva soviética — disse. — Não tardará. Todos confiamos nos nossos valorosos soldados, a superioridade do inimigo nunca nos assustou. Nem em mil oitocentos e setenta, nem na Primeira Guerra Mundial, nem agora. Apesar de tudo... Findling, pode pôr-se imediatamente a minha Sala de Âmbar em lugar seguro?

Disse efectivamente a «minha» Sala de Âmbar. Findling olhou-o demoradamente. Não queria crer no que ouvira.

— Claro que será possível. Depende do local. Para um transporte mais distante, teria de ter uma outra embalagem, mais resistente.

— Tenho pensado nisso. — Koch começou a andar diante de Findling, três passos para a frente, três passos para trás. — Falei também com o Gauleiter Mutschmann, em Dresden. Ele acha que a Suíça saxónica não é bastante segura. Só talvez na Turíngia, ou nas minas de sal próximo de Gõttingen, na mina de Grasleben, ou na de Merkers, haja mais segurança. As galerias subterrâneas de sal nas províncias orientais podem igualmente convir... Em torno do Dachstein, na Áustria, existem grutas cuja entrada se poderia fazer saltar depois de estarem guardados os tesouros. Ninguém saberia onde se encontrava a Sala de Âmbar... além de alguns iniciados. Vocês, Findling e Wachter, eu e, naturalmente, o Fúhrer, assim como o Reichsleiter Bormann. E ainda alguns outros relacionados com o transporte. Que acham?

— Acha que os russos vão apoderar-se de Kõnigsberg? — perguntou Findling.

— Não faça perguntas tão estúpidas, meu velho! — vociferou Koch com os olhos brilhantes de cólera. — O que eu penso não tem importância. A única coisa que importa é a salvação desses bens insubstituíveis. Quero salvá-los de um perigo possível... possível, está a entender? Tenciono fazer sair a Sala de Âmbar de Kónigsberg, a colecção de ícones, os quadros russos, a biblioteca do czar Pedro e todas as pratas, tudo aquilo que foi trazido de Puchkine. Quero transportar tudo para um local seguro no Terceiro Reich! De quanto tempo precisam para terem tudo pronto para o transporte?

— Apenas alguns dias, Gauleiter. — Findling pigarreou. — Devemos fazê-lo sem saber a opinião do Fuhrer?

— com certeza que não. Evidentemente que perguntarei ao Fuhrer o que ele pensa. Determinaremos então o local exacto. Mas é necessário que comecem a trabalhar desde já — acrescentou, olhando com insistência para Findling e Wachter.

No entanto, foi o Exército Vermelho que chegou primeiro.

A 12 de Janeiro, antes do nascer do Sol, viram desencadear-se a maior ofensiva alguma vez efectuada numa guerra. Contrariamente a todas as expectativas, as vagas de homens e de material entraram não pela frente da Prússia Oriental, mas mais a sul, na testa da ponte de Baranov, no Vístula. A Primeira Frente Ucraniana, dirigida pelo marechal Koniev, compunha-se de sete exércitos. Atacou as posições alemãs em número inferior, após uma violenta barragem de artilharia feita por centenas de «órgãos de Estaline». Sessenta divisões de infantaria e oito corpos de blindados estenderam-se para oeste e submergiram as linhas de defesa do 4.º Exército alemão de blindados, como uma avalancha. O comandante desse exército, o general Graeser, assim o previra. O seu comunicado para o Quartel-General do Fuhrer foi breve: «Os exércitos soviéticos acabam de conseguir abrir uma brecha profunda nas nossas linhas.»

No mesmo momento, em torno da Prússia Oriental, eclodiu como uma trovoada inacreditável um fogo de artilharia que durou várias horas. Tropas de choque soviéticas, cujos efectivos eram os de um batalhão, atacaram as linhas alemãs. Contudo, não se tratava ainda do furacão devastador: era apenas um aviso, um cartão-de-visita; estamos a chegar.

Comunicado do alto comando da Wehrmacht do dia 13-01-45:

A ofensiva de Inverno dos bolchevistas, há muito esperada, teve início na frente do Vístula. Após uma primeira barragem de artilharia, excepcionalmente forte, o inimigo conseguiu atravessar aquele curso de água, à viva força, e consolidar uma testa de ponte na região de Baranov com numerosas divisões de atiradores e unidades de blindados. Travaram-se combates encarniçados. Outros ataques ao sul do Vístula e na parte norte da testa-de-ponte de Baranov foram repelidos.

Na zona fronteiriça da Prússia Oriental, sector de Rominter, o inimigo esmagou as nossas posições sob um pesado fogo de artilharia. Numerosos ataques de batalhões soviéticos foram repelidos...

Que palavras tão fracas para falarem de morte e de naufrágio!

Mal se tinham refeito do choque causado pelas palavras do general Gehlen e que Hitler qualificara como o maior bluff desde Gengiscão, na manhã de 13 de Janeiro viram os russos avançar. A Prússia Oriental foi submersa a partir da região de Pillkalen. A Terceira Frente Bielorussa, sob o comando do marechal Tcherniakhovski, abateu-se sobre as linhas alemãs com seis exércitos, dois corpos de blindados de reserva e uma tempestade de bombardeamentos de artilharia. O seu objectivo era manifesto: desmantelar o 3.º Exército de Blindados alemão e conquistar o Kurisches Haff. A fim de isolar Kónigsberg a norte.

No mesmo dia, a barragem das duas testas de ponte de Narev cedeu: a Segunda Frente Bielorrussa, comandada pelo marechal Rokossovski, disseminou-se através de todo o país. Seis exércitos, dois corpos de blindados, um corpo de engenharia e o famoso 3.º Corpo de Cavalaria da Guarda esmagaram as posições do 2.º Exército alemão, comandado pelo general de corpo de exército Walter Weiss. O grande objectivo de Rokossovski era Elbing. Se a penetração tivesse êxito, a Prússia Oriental ficaria isolada.

Depois, foi o golpe seguinte. No domingo, 14 de Janeiro, chegou o chefe militar mais genial da Rússia: o marechal Zhukov, com a sua primeira Frente Bielorrussa composta por cinco exércitos perfeitamente equipados, entre os quais o 1.º Exército polaco, que tomou de assalto as posições do 9.º Exército alemão. Foi então que começou a maior ofensiva do exército russo, a partir das testas-de-ponte de Magnuszev e de Pulawy sobre o Vístula: a penetração para oeste e noroeste, o aniquilamento do Grupo de Exércitos A, a reconquista da Polónia e a entrada em solo alemão. O objectivo dos exércitos russos era marcharem sobre Berlim.

A frente do 9.º Exército alemão foi submergida. As divisões soviéticas estenderam-se para ocidente.

O «maior bluff desde Gengiscão» teve por efeito curvar um pouco mais as costas de Hitler, intensificar o tremor das suas mãos e reforçar o aspecto lívido e descomposto do seu rosto. O general de corpo de exército Guderian nem sequer se sentiu jubiloso... «O maior Fuhrer de todos os tempos» apenas lhe inspirava compaixão.

A sorte da Alemanha estava em causa. Mais de seis milhões de soldados russos atacavam. Em Kõnigsberg faziam-se febrilmente as malas. A evacuação total da população, dessa vez oficialmente, havia começado. Chegara a hora da marinha de guerra. O comandante-chefe da marinha a leste, o almirante Kummetz, embarcou os refugiados, sem querer saber do Gauleiter Koch, que até então denunciara cada partida para ocidente como uma traição para com o Fuhrer. Mandou dirigirem-se a Kõnigsberg todos os navios mercantes, os vapores e todo o género de embarcações aptas para navegarem. Navios de todos os tamanhos, mesmo os paquetes utilizados como hotéis flutuantes, partiram dos portos de Pillau, Dantzig, Gdingen e Kolberg para salvarem a vaga de sinistrados, que se contavam às centenas de milhares. Vinte e quatro navios-patrulhas e trezentos e cinquenta embarcações militares, mais pequenas, sob o comando do vice-almirante Boutov, formavam uma escolta para os navios de socorro que se enchiam sem cessar. As pessoas que não encontravam lugar a bordo iam por estrada... formando filas intermináveis de gente e de carros que avançavam em pleno Inverno glacial, obrigadas a acampar ao ar livre, sem alimentos suficientes, perseguidos pelos bombardeamentos de artilharia dos soviéticos, ceifados pelos aviões que passavam sobre eles em voo rasante. Procuravam refúgio em fossos, fugindo aos carros que avançavam para Kõnigsberg com peças de artilharia, ou aos longos comboios de infantaria.

O Gauleiter Koch mal tivera tempo para se preocupar com a «sua» Sala de Âmbar. A evacuação da Prússia Oriental a perda do seu comissariado na Ucrânia, o rápido avanço do Exército Vermelho, as perdas em homens e em carros, nada parecia preocupá-lo. Continuava a enviar para as frentes as reservas sempre novas que iam buscar ao fundo do país, e estava sobretudo preocupado com os preparativos para a sua própria fuga.

— Para onde ir, Gauleiter? — perguntou Findling. — Para onde poderemos ainda dirigir-nos? Se os russos continuam a avançar, em breve não haverá estradas para oeste!

— O quartel-general do Fuhrer mudou-se! Encontra-se agora instalado em Berlim! Não consigo falar nem com o Fuhrer nem com Bormann. Se não conseguirmos contactá-los, levaremos os tesouros, mesmo sem autorização do Fuhrer. Iremos primeiro para a Turíngia.

Koch modificou o seu plano nesse mesmo dia. Não iriam para a Turíngia, disse ele ao telefone a Findling, mas sim para o Saxe, para Wechselburg, perto de Rochlitz e da cidadela de Kreibstein. O Gauleiter Mutschmann arranjara ali trezentos metros quadrados de caves bem arejadas e ao abrigo das bombas. — Como vão os trabalhos?

— Vão bem, Gauleiter. Esta noite terminaremos. Fizemos novos caixotes mais fortes. Trabalharam neles dez homens sob a direcção do carpinteiro Mann e do serralheiro Weiss. Um excelente trabalho. Não se pode imaginar caixotes mais robustos. Os painéis, as cabeças, as grinaldas, os cantos e os pedestais foram todos embrulhados em grossos edredões, por causa dos solavancos. Os caixotes encontram-se agora no pátio do castelo. Esta noite faremos a embalagem dos quadros, dos ícones e da biblioteca do czar Pedro. Estaremos prontos para partir amanhã. Se não houver outro ataque aéreo.

— A unidade de transporte também está preparada para seguir — Findling ouviu Koch dominar o seu nervosismo —, mas não consigo contactar o Fuhrer nem Bormann. Não receie coisa alguma, Findling. Estou constantemente a receber notícias da frente. Refreamos o avanço dos russos em direcção a Kõnigsberg.

— O que torna ainda mais difícil para nós a evacuação da Sala de Âmbar.

Wachter retirara já tudo dos seus aposentos, até mesmo a cama. Era evidente para si que acompanharia o transporte, pouco lhe importava para onde fosse. Findling pertencia, há oito dias, à Volkssturm e usava um velho uniforme, mas não tinha arma, conforme a anedota que circulava: «O que é a Volkssturm? Uma unidade com três homens, dos quais um usa o capacete, o segundo o cinturão e o terceiro o lança-chamas.» Provavelmente, iria ficar em Kõnigsberg como o Gauleiter Koch. Até ao último homem... Wachter não queria levar grande coisa consigo: dois fatos, roupa interior, sapatos, camisas, apenas o absolutamente necessário. Levava também o seu ícone num estojo de veludo. Passou as últimas noites deitado em cima da cama, vestido, para estar sempre a postos para a partida.

As enfermarias dos hospitais de Kõnigsberg transbordavam agora de feridos. As narrativas dos soldados com respeito à Frente de batalha concordavam com as informações que Sylvie recebia diariamente da Suécia pela rádio, mas que não apareciam em nenhum relatório da Wehrmacht: as tropas do marechal Tcherniakhovski faziam recuar as linhas alemãs e cercavam-nas. O 3.° Exército de Blindados alemão, que enfrentava seis exércitos soviéticos mais bem armados e perfeitamente operacionais, estava a ser desmantelado em muitos pontos. Tinham já perdido Gumbinnen, Interburg estava a ser afogada num dilúvio de granadas e de bombas, Goldap e Lotzen tinham caído, Kraupischken fora ocupada. Rokossovski, que partira do Sul, estava prestes a apoderar-se de Nikolaiken e de Ortelsburg. Centenas de blindados pesados T34 e T42 aproximavam-se inexoravelmente de Allenstein e de Wartenburg. O anel em torno de Kõnigsberg fechava-se... apenas a via marítima se encontrava ainda livre e também uma pequena junção na direcção de Dantzig, via Heiligenbeil, Braunsberg e Elbing. Apenas uma linha de caminho de ferro e algumas estradas... cheias de comboios de refugiados e de unidades da Wehrmacht, expostos aos tiros dos aviões que voavam a baixa altitude, dos obuses de grande alcance e de uma chuva de granadas.

Os blindados pesados alemães — os Tigre e os Kónigstiger —, que teriam podido resistir ao assalto do Exército Vermelho, dispersaram-se em alguns dias, sem defesa, e acabaram até por se enterrar para formarem pequenas fortalezas. O carburante esgotara-se, os abastecimentos passavam com dificuldade, contavam-se os obuses. Bizarramente, os comboios de abastecimentos desapareciam no nada com munições e gasolina. O oficial de Administração Militar que superintendia a logística do 2.º Exército, o qual tinha por missão conter o ataque principal dos seis exércitos de Rokossovski, o coronel Wirsing, recebeu informações pelo telefone que um comboio transportando cisternas cheias do precioso combustível atravessava uma estação. O comboio aproximava-se do 2.º Exército que combatia com desespero, passando por Deutsch-Eylau. Mas, bruscamente, o comboio desapareceu, como se tivesse sido escamoteado por uma mão sobrenatural. O coronel telefonou para todas as estações, mas não obteve qualquer resposta. Elsbeth Langenbach, professora numa escola alemã de Unieck, fora «esquecida» aquando da fuga desordenada dos dirigentes nazis. Percorrera então quarenta quilómetros a cavalo pelo meio das colunas blindadas soviéticas e acabara por se juntar ao 2.º Exército. Encontrava-se no Estado-Maior e ouvia o coronel Wirsing tentar desesperadamente encontrar o comboio com o combustível, dizendo-lhe então com ar resignado:

— Esse comboio nunca existiu. É um comboio fantasma. Para que iriam servir agora os nossos carros?

Tudo podia acontecer durante o descalabro da frente leste.

Em Kõnigsberg, enquanto as palavras de ordem nas paredes das casas exortavam a população a «aguentar», constituía-se em segredo, na noite de 21 para 22 de Janeiro, um «comboio especial para o Gauleiter» destinado a transportá-lo para lugar seguro, a ele e aos membros importantes do Partido que tinham afluído de toda a Prússia Oriental para Kõnigsberg. Esse comboio seguiria pela única linha de caminho de ferro em direcção a Elbing e depois a Dantzig. O «combatente supremo» preparara a sua fuga.

Finalmente, a 22 de Janeiro, Koch obteve uma comunicação telefónica com a chancelaria do Partido em Berlim. Era impossível contactar Hitler no seu novo quartel-general. Bormann, que acabava de regressar de Berchtesgaden, onde visitara as instalações subterrâneas, mostrou-se tão distante e rude com Koch como habitualmente.

— É claro que o Fuhrer dá autorização para salvar tesouros insubstituíveis! — exclamou num tom cortante. — Por que motivo não fez há muito o necessário para isso? Desde mil novecentos e quarenta e quatro que todas as obras de arte que se encontravam nos territórios ameaçados foram transferidas. O senhor mesmo organizou isso. Por que motivo a Sala de Âmbar e os tesouros de Tsarskoie Selo se encontram ainda em Kónigsberg? É imperdoável, Gauleiter! «Verdadeiramente encantador», pensou Koch. «Uma descompostura injustificada.»

— Por duas razões, Reichsleiter — retorquiu, furioso. — Primeiro, para não assustar a população e em segundo lugar porque ainda acredito na vitória final do Fíihrer!

Bormann ficou um instante silencioso, talvez admirado com as palavras de Koch. Nada se podia responder àquilo.

— Trate imediatamente do transporte — continuou Bormann — Por Elbing, Dantzig, Stettin, Berlim, Weimar até Reinhardsbrunn. Aí, no castelo, encarregar-se-ão de guardar a Sala de Âmbar. A título provisório. No local, indicar-lhe-ão o sítio definitivo.

— Transmitir-me-á a ordem do Fuhrer para ir a Reinhardsbrunn, Herr Reichsleiter?

— Sim.

Bormann desligou brutalmente. Koch limpou a cara. Reinhardsbrunn não lhe agradava mesmo nada. Nunca vira o castelo, mas sabia que muitos SS, nomeadamente Himmler, aí tinham escondido muitos tesouros. A ideia de lá ter a «sua» Sala de Âmbar não lhe agradava. Também não gostava do que dissera Bormann, que o castelo de Reinhardsbrunn seria apenas um local de armazenamento provisório. «Porque não a Turíngia», perguntou a si mesmo, furioso. Ou Góttingen? Ou, ainda, nas galerias das minas de sal, que chegavam a atingir seiscentos metros de profundidade? Um sítio ideal para esconder os tesouros. Tapariam os acessos e ninguém faria ideia do que se encontraria debaixo da terra, além das poucas pessoas que estivessem dentro do segredo. Ao abrigo das bombas, conservada a boa temperatura, a Sala poderia ficar ali séculos, embora naquele caso fossem precisos apenas alguns anos. A nova arma a propósito da qual se murmurava, a bomba atómica, que uma equipa secreta de cientistas elaborava sem cessar, sob a direcção de Werner von Braun (o criador das bombas VI e V2 que caíam todos os dias sobre Londres), faria desaparecer todos os inimigos do planeta e daria a vitória à Alemanha.

Na noite de 22 de Janeiro de 1945, as divisões soviéticas tinham atacado Wehlau e encontravam-se agora apenas a quarenta quilómetros de Kônigsberg. Koch telefonou ao doutor Findling, demasiadamente inquieto para conseguir dormir.

— Temos a autorização! — disse. — As tropas encarregadas do transporte dirigem-se para sua casa. O chefe do comboio, um tal capitão Leyser, tem o plano do percurso exacto. As viaturas deverão ter deixado a cidade pela madrugada.

— Estou pronto, Gauleiter.

— Como? — A voz de Koch mostrou espanto. — Ainda preciso de si aqui. Os caixotes poderão partir sem si. A chancelaria do Partido assegurou-me que terão prioridade em toda a parte e que chegarão a bom porto. Agora nada mais pode fazer pela Sala de Âmbar...

Findling engoliu em seco. Sabia que não lhe restava qualquer saída. Vestia o uniforme da Volkssturm, prestara juramento a Hitler e estava sujeito à fórmula «até ao último».

— E Wachter?

— Findling, não é altura de fazer perguntas estúpidas. Que tem Wachter a ver com o transporte?

— Continuar a vigiar, como sempre desde há duzentos e vinte e seis anos!

— Talvez ele queira ir também para o fundo de uma mina de sal com seiscentos metros de profundidade? — ironizou Koch. — Após duzentos e vinte e seis anos, a família Wachter tem o direito de descansar. De resto, ele não é demasiado velho para empunhar uma espingarda e puxar o gatilho. Ficará na cidadela de Kônigsberg, tal como você. Sabe bem o que nos espera, depois das palavras de Ilya Ehrenburg. Queira informar Wachter.

Uma hora depois dessa conversa, que Findling nunca esqueceria, chegaram vinte camiões ao pátio do castelo. Findling mal podia acreditar no que os seus olhos viam: as cabinas e os tectos das viaturas tinham pintados uma grande cruz vermelha, como se se tratassse de um comboio com alimentos ou com feridos.

Essa impressão era reforçada pelas braçadeiras que todos os condutores traziam nas mangas esquerdas. Apenas o capitão Leyser, que viajava num Kubelwagen, não a tinha.

— É a maior impostura que já vi! — exclamou Wachter, consternado. — Se isto se sabe, mais nenhuma ambulância ou comboio sanitário estarão em segurança.

— Por amor de Deus, Wachter, cale-se! — interveio Findling dando-lhe uma cotovelada. — Pense só numa coisa: a Sala de Âmbar encontra-se nos camiões! Foi para a salvar que camuflaram os camiões, pondo-lhe a cruz vermelha. É a única coisa que importa. Eu prefiro não saber o que se faz sob a protecção da Cruz Vermelha. Meu Deus, esqueça a moral na situação em que nos encontramos. — Findling viu os camiões aproximarem-se. — Amanhã tudo estará acabado. Seremos então homens da Volkssturm.

— Eu não, doutor.

— Wachter, que tenciona fazer?

— Ficar com a Sala de Âmbar, claro.

— É insensato. Sabe o que isso significa? Deserção. Cobardia diante do inimigo! Será condenado à morte por um tribunal marcial e enforcado ou fuzilado!

— Eu não.

— Por que motivo fariam uma excepção para si? Como quer sair de Kõnigsberg? Não tem guia de marcha. O capitão Leyser não quererá levá-lo às escondidas. Hoje em dia, chegam a enforcar soldados com a Cruz de Ferro.

— Eu cá me arranjarei, doutor.

Wachter respirou fundo. Estava preocupado com Jana. Esta tornara-se indispensável à vigilante Frieda Wilhelmi. O número de feridos trazidos por comboios ou ambulâncias ultrapassara há muito a capacidade dos hospitais e das enfermarias de urgência improvisadas nas escolas e nos ginásios, assim como nas numerosas ramificações da fortaleza de Kõnigsberg. O antigo bastião transbordava, os médicos e as enfermeiras eram escassos para o trabalho. Professores e assistentes sociais foram requisitadas para lavar os feridos, dar-lhes de beber e de comer e fechar os olhos aos que morriam. À cabeceira dos moribundos, elas faziam frequentemente a vez de mães, mulheres ou noivas.

— Quando partiremos? — perguntara um dia Jana.

— Partir? — Frieda olhara-a, siderada. — Quando nos derem ordem para isso.

— E se for demasiado tarde?

— Ficarei aqui até ao último ferido!

— Os russos vão tomar Kõnigsberg...

— E então? Os meus feridos podem fugir? Eu pertenço-lhes. Eles têm necessidade de mim.

— Os russos vão violá-la... Lembre-se do apelo de Ehrenburg.

— Violar-me? — Frieda, a montanha de carne, soltou uma curta gargalhada. — Seriam precisos pelo menos quatro colossos siberianos...

— Podem matá-la simplesmente.

— Minha filha! Quem havia de pensar que também tu serias contaminada pela propaganda! Quer junto dos alemães, quer com os russos, posso ser útil em toda a parte. Nós, médicos e enfermeiras, não conhecemos nem amigos nem inimigos. Para nós, há apenas feridos e doentes, pessoas em dificuldades. Não o esqueças, minha filha!

A última visita que Jana fez a Sylvie foi uma tortura. Esta enviava sem parar as suas observações para a Suécia, e daí transmitiam-nas para o bureau central em Leninegrado. Falava das dezenas de milhares de refugiados que esperavam um lugar num navio ou num comboio, dos trabalhadores estrangeiros que faziam trabalhos forçados para erguer novas linhas de defesa, da construção de barragens antiaéreas em betão, da avalancha dos últimos reservistas que tentavam organizar as suas posições de modo a que o inimigo, ao aproximar-se de Kõnigsberg, se visse confrontado com uma poderosa defensiva concentrada e em profundidade... Esses relatórios revelavam aos dirigentes soviéticos que o desespero era capaz de mobilizar forças insuspeitas e que correria ainda muito sangue antes de tomarem Kõnigsberg. Mas, em Leninegrado, tinham conhecido tudo isso. Novecentos dias de cerco pelas tropas alemãs, um inferno sem paralelo para os que morriam de fome, até à libertação da cidade, em Janeiro de 1944, pelo 42.º Exército soviético.

Porém, para Kõnigsberg, não havia qualquer hipótese de libertação... A derrota era inevitável.

— Vim despedir-me — dissera Jana.

Estava sentada em frente de Sylvie, que acabava de desligar o seu transmissor.

— Despedires-te? Como? — Sylvie olhou Jana com ar incrédulo, abanando a cabeça. — Que queres dizer?

— vou deixar Kõnigsberg.

— Tu és doida? Para onde queres ir?

— Não sei. Ainda não sei...

— Jana, isso é uma loucura! Tu vais ficar aqui comigo.

Vais deitar fora o teu uniforme nazi e apresentares-te ao comandante soviético. Dar-te-ão outra roupa e voltarás a ser o que és: russa. E, depois da vitória, voltarás a ver o teu Nikolai...

— Não posso deixar o paizinho sozinho, Sylvie.

— Mikhail Igorovítch será recebido de braços abertos. Será um herói.

— Sem a Sala de Âmbar? Que vale a vida do paizinho sem ela... Ele ficará junto da Sala. Segui-la-á. Não podem separá-los. E eu devo ficar junto dele, Sylvie. Ele vela pela Sala de Âmbar e eu por ele. É o meu dever!

— O teu dever! O teu dever! Trata-se de sobrevivência! Queres morrer em qualquer sítio como enfermeira alemã? Jana, dentro de alguns dias poderás reencontrar a tua nacionalidade!

— Sem a Sala de Âmbar e sem o paizinho!

— Tu és louca, louca, louca! — explodiu Sylvie, pondo-se de pé. — A Sala de Âmbar é mais importante do que tudo?

— Para nós, sim.

— Devia dar-te um duche de água fria para te tornares razoável. Que pensas fazer se os nazis enterrarem a Sala de Âmbar em qualquer parte?

— Irei com ela... Saberei onde está escondida... Depois da guerra, poderei fazer com que ela regresse a Puchkine, ao Palácio de Catarina. É o meu único dever.

— E é por isso que pões a tua vida em jogo?

— Sim. Os nossos soldados morrem na frente lutando pela pátria. Eu também me bato, mas num outro campo.

— O soldado secreto Jana Petrovna! Isso é estranhamente heróico! Então... porque vieste aqui?

— Para te dizer adeus, Sylvie. — Jana cruzou as mãos sobre o peito. Tinha o coração pesado. — Espero que voltemos a ver-nos.

— Onde?

— Em Leninegrado ou na Suécia. Em Uppsala ou noutro sítio qualquer. Que vais fazer depois da guerra?

— Não sei ainda. Continuar os meus estudos, ou casar e ter filhos. Uma pequena casa de férias junto do lago Scharen... Como imaginar o nosso futuro? Não será complicado encontrar-te: bastará localizar a Sala de Âmbar.

— Se Deus quiser, Sylvie.

— Acreditas em Deus? — perguntou Sylvie, espantada. — Tu, uma comunista? Um antigo membro do Komsomol?1

— Sim. Tenho fé. Acontece-me mesmo rezar.

— Tu és difícil de compreender.

Quando Jana se levantou, Sylvie abraçou-a. Beijaram-se como duas irmãs. Depois, Jana soltou-se dos braços da amiga e correu para a porta do apartamento, como se alguém a perseguisse. Voltariam alguma vez a ver-se?

Trazido pelo vento, o troar dos canhões pairava sobre a cidade. Uma tempestade mortífera e destruidora.

Os vinte camiões marcados com a cruz vermelha foram carregados. Os caixotes contendo a Sala do Âmbar tinham um sinal vermelho. Os outros encerravam as pratas, os quadros dos antigos mestres russos e europeus, entre os quais um Rubens e um Canaletto. Tinham acondicionado à parte uma tapeçaria de Gobelins, datada de 1580, proveniente dos Países Baixos, uma obra imensa com 4,25 por 3,50 metros. Esse caixote tinha uma inscrição a preto: «M-D-VOSS», e no interior de um triângulo a letra B. Era uma tapeçaria «reservada para o Fíihrer». M-D-VOSS era a abreviatura que designava o conservador do Museu de Linz, um certo Voss, que vivia em Dresden, e o B, no meio do triângulo, podia significar Berlim, Berchtesgaden ou Bormann.

Tudo isso tinha de momento pouca importância. O transporte nas viaturas da Cruz Vermelha era considerado como sendo a «Colecção do Gauleiter Koch».

O doutor Findling tentou ainda falar com Koch. Eram cinco da manhã, ouviam-se nitidamente os tiros de artilharia na frente de Wehlau. Mas Koch não se encontrava em parte alguma. com surpresa geral, pusera o seu comboio especial à disposição dos refugiados que esperavam em massas compactas no porto e na estação de caminho de ferro. Como puderam, os militares e os membros do partido canalizaram a multidão, que a certo momento tomou literalmente de assalto o comboio. A ordem «primeiro as mulheres e as crianças» perdera qualquer significado. É que

 

1 Associação juvenil estatal soviética, fundada em 1918, que agrupava jovens entre os 14 e os 28 anos, educados segundo o espírito do PCUS para lutar contra a penetração cultural do Ocidente e contra os intelectuais dissidentes. (N. do E.)

 

para arranjar um lugar era preciso empurrar, pisar e lutar. No porto, a situação era análoga. A corrida para os poucos navios que ainda ali se encontravam tornava-se uma questão de vida ou de morte. O torno em redor da Prússia Oriental apertava-se de hora a hora, os exércitos soviéticos de Tcherniakhovski e de Rokossovski avançavam inexoravelmente.

Findling só conseguiu apanhar do outro lado da linha Bruno Wellenschlag, cuja voz parecia quebrada pelo medo.

— Sim, doutor, sim! Fuja! — gritou Wellenschlag ao telefone. — Os russos estão a chegar a Elbing e vão fazer-nos em pedaços. Será então demasiado tarde para nós! Pode ser que ainda possa fugir! É preciso mudar de comboio em Berlim. Daí tomará outro para Reinhardsbrunn. O Gauleiter Koch tratou de tudo com o Gauleiter Sauckel da Turíngia, do castelo de Reinhardsbrunn. O comboio de camiões continuará o percurso até a uma mina de sal. Reinhardsbrunn irá, provavelmente, ser o novo quartel-general do Fuhrer, com o nome de «Wolfsturm»1. Parta depressa, meu velho!

Desligou. O capitão Leyser, que se encontrava ao lado de Findling e ouvira tudo, tinha um ar consternado.

— Isto não se parece nada com uma vitória final — ironizou. — A caminho! Fica aqui?

— Assim é preciso.

— Nestas condições, apenas lhe posso desejar que sobreviva.

Apertaram as mãos antes de se dirigirem para o pátio do castelo destruído.

Junto dos camiões e dos condutores com a braçadeira da Cruz Vermelha, estava Wachter, acompanhado por uma jovem enfermeira. Esta trazia uma caixa de primeiros-socorros ao ombro. Findling sentiu um choque que conseguiu ocultar.

— Michael, que faz aqui? Dentro de alguns minutos pode ser condenado à morte!

O capitão Leyser olhou-o com ar surpreendido e dirigiu-se para eles. Conhecia Wachter por ter carregado os camiões com ele, mas a enfermeira da Cruz Vermelha era-lhe desconhecida.

 

1 Torre do Lobo. (N. do E.)

 

— Que desejam? — perguntou simplesmente.

— Estou pronto — respondeu Wachter.

— Para quê?

— Para acompanhar o Sonderkommando, meu capitão.

— O senhor? Não estou ao corrente disso — retorquiu Leyser visivelmente espantado. — O seu nome não figura na lista do transporte.

— Venho a pedido expresso do Gauleiter. Para o representar, de certo modo. Eis as minhas ordens, meu capitão.

Wachter estendeu a Leyser a carta que Koch redigira para ele depois do ataque aéreo sobre Konigsberg:

...dar a Michael Wachter toda a ajuda necessária. Ele está habilitado a tomar em seu nome todas as medidas necessárias relativas aos tesouros do castelo de Kônigsberg...

O capitão Leyser devolveu a carta a Wachter. Findling olhava também para Wachter, pensando: «Que ousadia! O que é que está a querer fazer? Essa carta já não tem qualquer valor.»

— Isto não é uma ordem para uma missão, senhor Wachter — observou vivamente Leyser.

— Os caixotes encerram os maiores tesouros da Europa, meu capitão. A missão de que o Gauleiter me encarregou consiste em acompanhar para toda a parte esses caixotes e nunca os perder de vista. Se eu não puder cumprir a minha missão, isso trará consequências desagradáveis. Leu que estou habilitado a tomar todas as medidas necessárias.

— Mas sem uma ordem de missão... — repetiu Leyser, continuando a hesitar.

— Agora é demasiado tarde para cumprir tal formalidade — disse Findling no meio da conversa, olhando rapidamente para Wachter. — O senhor ouviu o que me disseram ao telefone: o comboio deve partir imediatamente.

— Está bem. Subam. — Voltou-se para Jana e olhou-a de alto abaixo como faziam todos os -homens. — E você?

— Devo acompanhá-los como enfermeira de ambulâncias — respondeu Jana com ar seguro. — O Gauleiter acha que um comboio sanitário precisa de uma enfermeira, pelo menos por causa das aparências. Recebi ordem para acompanhar o comboio.

— Naturalmente também sem uma ordem escrita.

— Sim, capitão. Tenho-a.

Tirou um impresso do bolso da capa. «Ordem de missão da enfermeira Jana Rogovski para o Sonderkommando do Gauleiter Koch. Kõnigsberg, 21 de Janeiro de 1945. Assinado: Doutor Pankratz, capitão-médico.»

— Está bem. — Leyser devolveu o papel a Jana diante de Findling, assombrado. — Quer viajar no meu Kúbelwagen, enfermeira Jana?

— Se a isso me autorizar, capitão.

— Será um prazer — replicou Leyser, recuando dois passos e oferecendo-lhe o braço direito. — Ao volante! — gritou para os condutores que se encontravam junto das viaturas. — Intervalo de trinta metros! Coluna, a caminho!

O doutor Findling e Wachter trocaram um último aperto de mão.

— Michael, você é um tipo corajoso! Boa sorte.

— Boa sorte para si também, doutor. Até à vista.

— Acredita nisso?

— Quero acreditar. Que Deus o proteja, doutor. Encontraram-se bruscamente nos braços um do outro e

abraçaram-se.

O primeiro camião estava já a partir. Jana e o capitão Leyser dirigiram-se para o Kubelwagen, onde já se encontrava o cabo Hasselmann.

— Resta-me ainda uma grande esperança — murmurou Findling. — Koch quer-me no seu Estado-Maior. E como ele fará tudo para sobreviver... eu sobreviverei com ele... É a minha única oportunidade...

Wachter largou Findling, correu até à viatura número nove, cujo motorista, Josef Selch, ele já conhecia, e subiu para a cabina. Findling acenou-lhe, mas sem se demorar... Deu meia volta, baixou a cabeça e voltou para a sua cave perto da Blutgericht.

A coluna avançou na manhã gelada com um barulho de ferros e atravessou a cidade em ruínas até à única estrada ainda praticável para oeste: Heiligenbeil, Braunsberg, Elbing... e, em seguida, em direcção a Berlim.

Quando Frieda Wilhelmi chegou ao seu gabinete, de manhã, admirou-se por não encontrar Jana já sentada à sua máquina de escrever, como habitualmente desde há quatro anos. «Deve ter acordado tarde», pensou. «Tem trabalhado tanto nestas últimas semanas e tem-se deitado tão tarde todas as noites que não admira que esteja cansada. O corpo também precisa de repouso.»

Mas, às nove horas, Jana ainda não chegara. Frieda viu as horas, abanou a cabeça e ligou para o quarto de Jana. Ninguém atendeu. Inquieta, preocupada com a «filha», Frieda seguiu ao longo do corredor até ao quarto de Jana, bateu e abriu bruscamente a porta. «Pobre dela se estiver com um homem na cama! Pouco me importa quem, mesmo que seja o chefe, corro com ele à bofetada. Quanto a Jana, também receberá a sua admoestação. Não lhe posso perdoar.»

Mas a cama estava intacta.

Frieda Wilhelmi ficou parada à porta, com o coração subitamente pesado: «Ficou toda a noite fora com um homem. Não, não foi isso. Dormiu em casa da amiga Sylvie porque perdeu o último eléctrico. Como Sylvie não tem telefone, não pôde avisar-me. Mas deve estar a chegar. vou ralhar com ela, é preciso que o faça, mas depois dou-lhe um chocolate.»

Quando ia voltar-se para sair, viu um sobrescrito em cima da almofada. Frieda Wilhelmi fechou os olhos e respirou fundo. «Não», pensou, «não é possível, não pode ser. Jana não é capaz de me fazer isto! Esta carta não é para mim. Não, não vou buscá-la. Não!»

No entanto, foi o que ela fez. Sentou-se à beira da cama, rasgou o sobrescrito e viu logo que a primeira frase indiciava a maior tragédia da sua vida.

Frieda, minha querida «mãe».

Todas as cartas de abandono começam assim: «quando ler esta carta estarei...» Não, connosco as coisas passam-se de outra maneira. Eu não a abandonei. Afastei-me apenas de si por um breve período, e sei que voltaremos a ver-nos. Em melhores tempos, quando por fim voltar a paz e formos livres como os pássaros no espaço e como as nuvens no céu.

Mãe, perdoe-me, mas tinha que fazer isto. Não o faço por cobardia nem por medo, acredite. Teria ficado junto de si se não tivesse um outro dever a cumprir, mas não lhe posso ainda dizer do que se trata. Quando voltarmos a encontrar-nos, sei que me compreenderá. Tenho tanto que lhe agradecer, não apenas por me ter ensinado a manejar seringas, agulhas e cânulas, a fazer pensos e a tratar feridas, a consolar os moribundos e a encontrar palavras de conforto para os que ficam. Quantas vezes escrevi cartas aos pais e às mães, às mulheres e aos filhos, dizendo que «ele adormeceu docemente e sem sofrer», enquanto ele tinha gritado e se tinha agarrado a mim como à vida. Mentimos por compaixão, porque o julgamos necessário.

Mãe, não quero dizer-lhe mentiras, a si, a quem tanto devo, sobretudo o seu amor maternal, no qual eu podia refugiar-me nos momentos de medo e de desgosto. Junto de si, sentia-me em casa, em segurança. Edificou à minha volta uma cidadela e ficar-lhe-ei eternamente grata por isso. Há-de vir o dia em que poderei agradecer-lhe como desejo e chamar-lhe «mãe».

Frieda, eu não nasci em Lyck, na Prússia Oriental. Sou uma russa de Leninegrado e chamo-me Jana Petrovna Rogovskaia. Infiltrei-me como falsa enfermeira da Cruz Vermelha na Frente alemã a fim de cumprir uma missão. Mas juro que não sou uma espia e que nada tenho a ver com problemas militares. Não traí ninguém. Peço-lhe que me acredite. Não lhe posso dizer mais de momento. Que Deus a proteja, Frieda, minha «mãe». Que Deus nos conceda a graça de voltarmos a ver-nos. Tome cuidado consigo. Dizer-lhe para ter coragem seria supérfluo: sei que nunca se desencoraja!

Espero que não fique desiludida comigo. Para onde eu for, tê-la-ei sempre no meu coração. Receba um beijo e um abraço da sua Jana Petrovna.

  1. S. — Roubei do seu gabinete uma ordem de missão em branco, assinada pelo Doutor Pankratz e preenchi-a. Perdoe-me, mas esse «passaporte» permitir-me-á sobreviver.

Frieda Wilhelmi leu lentamente a carta até ao fim, palavra a palavra, como para a decorar. Depois rasgou-a, levou-a para o seu quarto e meteu-a no fogão. Viu-a arder, espalhou as cinzas com a tenaz e fechou violentamente a porta do forno.

«Jana Petrovna, minha filha, que Deus te proteja também.»

A estrada e a linha de caminho de ferro estavam ainda livres nessa manhã de 22 de Janeiro de 1945. O 48.º Exército soviético, o 65.° e o 2.° Exército de Blindados estendiam-se até à costa, passando por Osterode e Deutsch-Eylau. A artilharia pesada bombardeava já as estradas e as vias férreas, os aviões em voo rasante atacavam as intermináveis colunas de refugiados e os comboios militares. O último comboio para ocidente partiu de Kõnigsberg na madrugada de 22 de Janeiro... depois, a estrada para a liberdade foi cortada.

A notícia da chegada iminente dos russos provocou um pânico inimaginável. O arsenal de Ponart, o centro de reabastecimento mais importante do exército, foi incendiado pelo seu próprio chefe. Todo o pessoal da Lufthansa do aeroporto de Devau, perto de Kõnigsberg, fugiu de avião para ocidente. Quando as tropas ocuparam o local, encontraram os armários blindados abertos e cheios de documentos secretos.

O Gauleiter Koch espumava de raiva. Foram pronunciadas condenações à morte imediatamente executadas. Como a fuga por terra era impossível, os refugiados que ainda se encontravam na cidade lançaram-se em massa sobre os últimos navios que se encontravam no cais. Estes saíram lentamente do porto, demasiado carregados, com o casco profundamente metido na água, acompanhados por pequenos navios guarda-costas incapazes de repelir ataques de submarinos soviéticos. As pessoas só queriam partir, fugir de Kõnigsberg, fugir aos russos que, dizia-se, não davam quartel. Eram pouco numerosos os que deixavam que a sua sorte se aproximasse da das populações soviéticas aquando do avanço das tropas alemãs. Foram centenas de milhares as vítimas mortas de fome, perseguidas, deportadas, executadas, isoladas no interior de Leninegrado durante os novecentos dias de cerco... e muitas mais as pessoas mortas de fome, cujos cadáveres jaziam nas ruas e que eram levadas para os cemitérios em trenós, tábuas ou cartões, ou que eram atiradas para cima de viaturas. Centenas de milhares de inocentes. Como esquecer?

O comboio de camiões da Cruz Vermelha, os vinte camiões que transportavam a Sala de Âmbar e os tesouros do Gauleiter avançavam dificilmente pelo meio da multidão de refugiados em direcção a Elbing. O capitão Leyser estudava o mapa e abanava a cabeça.

— Se continuarmos com esta velocidade nunca mais atingiremos Berlim. O êxodo bloqueará a estrada de Elbing e Dantzig e até Stolp, Koslin e Stettin! Precisamos de nos afastar dos grandes eixos e tentar seguir por estradas mais estreitas, via Elbing, Marienburg, Graudenz, Bromberg, Schneidemuhl, Landsberg. Se os russos não forem mais rápidos.

— Olhou para Jana que ia sentada junto dele no Kiibelwagen. — Que diz?

— Não sei. Não conheço a estrada. A única certeza é de que os russos avançam depressa.

Seguiram durante três dias e três noites sem parar, nem sequer para comer. Quando, por fim, atravessaram a cidade de Graudenz, em plena evacuação, soltaram um suspiro de alívio. A partir dali, a estrada para Berlim estava ainda livre, o 2.º Exército alemão constituía um tampão atacado por cinco exércitos soviéticos. Mas essa estrada estava já debaixo do fogo da artilharia do 65.º Exército russo, e o 47.º Exército do marechal Zhukov avançava em direcção de Thorn-Bromberg, enquanto, no mesmo momento, provenientes do Sul de Varsóvia, marchavam cinco exércitos na zona Lodz-Posen-Bromberg.

Nesse dia 25 de Janeiro, a artilharia russa disparava já sobre o porto de Kõnigsberg e sobre a cidade. Era forçoso continuar a fugir, mas tinham escapado ao cerco. O capitão Leyser fez uma curta paragem e explicou a situação.

— Manobrámos bem, rapazes — declarou ele. — A estrada para Bromberg, Schneidemuhl e Landsberg encontra-se ainda livre. Se nos apressarmos, iremos à frente dos soviéticos, sempre na retaguarda do Nono Exército, que está a recuar. Chegaremos a Berlim! Haverá, sem dúvida, ataques aéreos, mas nem bombas nem obuses. A caminho!

De repente, ouviram um silvo no ar, sombras aladas, o crepitar de metralhadoras pesadas e o martelar dos canhões de bordo... Os aviões surgiram de todos os lados, três ou quatro vezes e desapareceram no céu.

Nove vezes o comboio foi atacado assim — sem tiros. As cruzes vermelhas sobre os tejadilhos dos camiões protegiam-nos. Os aviões de caça soviéticos sobrevoavam-nos silvando, voltavam, alguns mesmo chegavam a balouçar-se como para os saudar e afastavam-se para irem atacar aterros, fábricas, vias férreas, comboios militares e tropas em marcha.

— Se eles soubessem o que nós transportamos — gracejou Selch. Wachter, sentado ao lado dele, metera a cabeça entre os ombros a cada sobrevoo. — Não tenha medo, meu velho. Eles não vão atacar viaturas da Cruz Vermelha. Os russos não fazem isso.

No dia seguinte, 26 de Janeiro, os russos chegaram à periferia de Graudenz e atacaram as novas posições alemãs do 2.º Exército. O capitão soube-o por oficiais da reserva de infantaria que encontraram na estrada. Um dos oficiais perguntou, apontando para a coluna:

— São feridos?

E Leyser respondeu:

— Material sanitário e instalações.

O oficial apontou na direcção da frente:

— É ali que se encontram os feridos, camarada. Vocês vão em sentido inverso.

— E é ali que eles vão chegar — replicou Leyser indicando o ocidente. — Vamos instalar novos hospitais de campanha. Quanto tempo julga que a frente vai aguentar?

— Até ao dia um de Fevereiro, tudo o que aqui se encontra será russo — retorquiu o oficial. — Fariam melhor em levar os vossos hospitais para Berlim... pois em breve terão necessidade deles lá.

— Isto parece estar mau.

— Mau? Sim, merda de merda! — O oficial fez uma curta continência, levando a mão à pala do boné, sem fazer a saudação hitleriana. — Boa viagem, camaradas.

Isto deu-se na estrada de Bromberg e Scheidemuhl.

A coluna deteve-se na clareira de uma pequena floresta, e o cabo Hasselmann, que conduzia o Kubelwagen, preparou uma sopa de ervilhas, misturando dez sacos de concentrado com água, que pôs a ferver sobre uma fogueira de lenha molhada com gasolina. Melhorou a sopa deitando lá para dentro pedacinhos de pão.

Estavam todos sentados em semicírculo, os quarenta condutores, Wachter, Jana e o capitão Leyser quando os sinistros ruídos e silvos dos aviões se fizeram de novo ouvir por cima das árvores.

— Aviões de caça à esquerda — gritou Selch.

Deitou-se de barriga para baixo na neve e os outros dispersaram, correndo para a floresta, para se abrigarem por entre as árvores e os arbustos. O capitão Leyser arrastou Jana consigo, gritando-lhe:

— Baixe a cabeça! Depressa... rasteje até à primeira árvore.

Só Wachter ficou sentado, petrificado, com os olhos fixos nos três aviões de caça que sobrevoavam a floresta a uma velocidade louca e que voltavam para trás depois de descreverem um largo círculo.

— Abrigue-se, grande lesma — gritou Selch para Wachter. — Não estamos nos camiões!

Era demasiado tarde. As metralhadoras pesadas cuspiram fogo a partir da parte da frente dos caças e traçaram um rasto de balas pela clareira até à orla das árvores. O caldeirão da sopa foi atingido e explodiu. Vários utensílios de cozinha voaram pelos ares, perfurados, assim como alguns capacetes de ferro. Wachter deu um salto a fim de se juntar aos outros. Nessa altura, foi atingido no ombro esquerdo. Cambaleou, caiu para a frente, na neve, e rastejou para a floresta onde três condutores o puxaram para o colocarem num local mais abrigado. Depois de descreverem novo círculo, os aviões atacaram pela segunda vez.

Wachter, deitado de barriga para baixo, não sentia qualquer dor. Um tremor agitava-lhe o corpo e sentia uma humidade pegajosa na pele. «É sangue», pensou, «sangue. Fui atingido, estou ferido no ombro esquerdo. Senti como que uma martelada, mas não tenho dores, tenho apenas a impressão de estar paralisado. Não posso levantar o braço. Todo o meu corpo treme, como se estivesse nu em cima do gelo.»

Não conseguia impedir que os seus dentes batessem. Voltou-se de costas, fixou o cume da árvore sob a qual se encontrava e admirou-se por ver os seus contornos tão pouco nítidos. A neve já não lhe parecia tão branca, mas sim azulada. Depois, de repente, viu o rosto de Jana debruçado sobre ele. Os seus grandes olhos cheios de inquietação, a sua bonita boca.

— Tens dores, paizinho? — perguntou ela. — Fica tranquilo. Não te mexas.

Em seguida, ouviu de novo o crepitar das metralhadoras, e o impacte das balas nas árvores e no solo. Ouviu o cabo Hasselmann gritar:

— Porcos! Grandes porcos! Não podiam arranjar outro alvo que não fosse a minha marmita!

Depois novamente Jana, que dizia palavras que ele não compreendia, mas que ele interrompeu, murmurando:

— Minha filhinha, estou bem. Não tenho dores. Podia ser pior...

Reconheceu então a voz de Leyser:

— Reunir! A brincadeira acabou. Vejam isto! Nenhum camião foi atingido. Um trabalho de artista!

E, em seguida, a voz de Jana:

— É preciso levá-lo. Eu só posso dar-lhe primeiros-socorros... Até à próxima cidade...

E outra vez a voz de Leyser:

— É Schneidemuhl...

Sentiu então que o levantavam, que o transportavam e que o estendiam sobre a parte de trás de um dos camiões. Alguém sugeriu:

— Cortem-lhe o uniforme...

Subitamente, sentiu frio no ombro. Jana disse qualquer coisa. Wachter abriu os olhos, mas viu tudo escuro à sua volta. Foi então que uma dor o atravessou da cabeça aos pés. Soltou um grito, viu mil estrelas em frente dos olhos, e mergulhou no vácuo, onde não havia sensações, nem pensamentos.

A certa altura, recuperou os sentidos, ouviu ruídos, sentiu tecido debaixo dos seus dedos, mas continuou rodeado de escuridão. Em seguida, mergulhou novamente no esquecimento. Quando voltou a abrir os olhos e recuperou subitamente a memória, reparou que não estava deitado na neve na orla da floresta, ou estendido no camião, mas sim numa cama, e que o branco que o envolvia não era uma camada de neve, mas sim um lençol.

Jana também se encontrava ali. Via de novo o rosto dela flutuar por cima do seu. Ela sorria-lhe e ele tentou sorrir também. Levantou a cabeça e viu com espanto que Jana já não tinha o seu traje de enfermeira, mas sim uma camisa verde, uma saia da mesma cor e botas. Em seguida, ouviu falar numa língua que ele conhecia, mas que não era dali. Uma voz de mulher falou em russo e um homem respondeu-lhe na mesma língua:

— Sestra, tem pena de mim, dá-me mais uma injecção. Ainda tenho tantas dores na barriga...

De que se tratava? Que se estaria a passar?

— Sim, minha filha — disse com dificuldade como se tivesse a língua colada. — Onde... onde estamos nós?

— Em Schneidemuhl, paizinho. Dormiste três dias. Operaram-te e está tudo bem. Não vais ficar com o braço rígido. A omoplata vai reconstituir-se. Rodearam-na com uma rede em fio de prata e assim o osso soldará. Segundo disse o doutor Trofim Igorovitch Fedorenkov, tiveste muita sorte. É um cirurgião maravilhoso.

— Fedorenkov... — Wachter tentou de novo erguer ligeiramente a cabeça: — Jana, minha filha. A febre faz-me delirar. Onde estou?

— No hospital número três do Segundo Exército de Blindados da Guarda soviético. Schneidemuhl está em poder dos russos há dois dias. Paizinho, estamos de novo entre os nossos irmãos e irmãs.

Wachter deixou-se cair sobre a almofada. Sentia uma dor apertar-lhe o coração.

— E a Sala de Âmbar? — murmurou numa voz mal audível.

— Espero que se encontre agora em Berlim.

— Sem... sem nós?

— Paizinho... a tua vida corria perigo.

— Devias ter ficado com a Sala de Âmbar, Jana.

— Paizinho, tu eras mais importante para mim.

— A Sala de Âmbar... não voltaremos a vê-la, Jana... traímos... depois de duzentos e vinte e seis anos, um Wachter traiu... Porque não me deixaste morrer? — Começou a soluçar e as lágrimas correram-lhe pelas faces até aos cantos dos lábios, onde Jana as limpava com uma gaze. — Como poderemos enfrentar o olhar de Nikolai?

— A guerra vai acabar em breve, paizinho. — Jana, debruçada sobre Wachter, secava-lhe a cara. — Iremos então à procura dela e havemos de a encontrar. Conhecemos o trajecto. Berlim, depois o castelo de Reinhardsbrunn na Turíngia e, a partir daí, uma mina de sal. Talvez sejamos nós os únicos a sabê-lo, depois da guerra. Havemos de encontrar a Sala de Âmbar, paizinho... e um dia ela estará de novo no palácio de Catarina. Nikolai ocupar-se-á dela e tu brincarás com os teus netos e contar-lhes-ás como foste metralhado pelos aviões, mostrar-lhes-ás as cicatrizes e eles dirão: «O nosso avô é um herói nacional.» E terão orgulho de ti.

— Mas tenho vergonha — murmurou Wachter voltando a cabeça. — Nós prestámos juramento...

— O Gauleiter Koch não jurou também combater «até ao último»? Fugiu a vinte e oito de Janeiro com todos os que o rodeavam até Neutiel, perto de Pillau. Espera agora num quartel-general subterrâneo a oportunidade para fugir para ocidente.

Jana apertou o rosto de Wachter entre as suas mãos e fê-lo voltar-se para ela.

— Paizinho, falei com o general de divisão Bogdanov, comandante do Segundo Exército de Blindados da Guarda. Contei-lhe tudo e citei o general Sinoviev como testemunha. Ele telefonou-lhe e depois disse-me:

«A Sala de Âmbar», disse Lenine, «é um santuário da nação! Confiem em mim. Ajudá-los-ei o melhor que puder...»

— Palavras! Palavras! Só palavras — exclamou Wachter apertando as mãos de Jana. — Devíamos ter ficado junto da Sala. Onde iremos procurá-la?

— Podemos seguir o rasto dela, paizinho.

— Que rasto? Não temos coisa alguma, Janachka. Devias ter-me amarrado a um caixote!

— Nesse caso terias morrido!

— Era a única razão para abandonar a Sala de Âmbar, Jana. A morte!

— Pára de te lamentares, paizinho. Fica tranquilo, recupera as tuas forças. Iremos a Berlim com os nossos soldados. A vitória está próxima. A guarda avançada do nosso Quinto Exército de Blindados está em frente de Zehden, apenas a sessenta quilómetros de Berlim. Recuperaremos a Sala de Âmbar, prometo! Mas primeiro tens de recuperar as forças... Foi para isso que fiquei junto de ti.

Wachter disse que sim com a cabeça, debilmente, e adormeceu, esgotado pela longa conversa e enfraquecido pelas hemorragias que sofrera.

Sonhou que entrava na Sala de Âmbar restaurada em todo o seu esplendor e resplandecente ao sol. A luz entrava a jorros pelas janelas e fazia brilhar as esculturas e as paredes em todos os tons de ouro. Quis aproximar-se do painel de onde fora tirada a pequena cabeça de anjo, para ser dada ao czar Pedro I, para lá depor humildemente um beijo, quando uma mão o puxou brutalmente para trás e uma voz rude lhe disse em inglês:

— No entryl

Era proibido entrar? Ele, Wachter, não tinha o direito de entrar na Sala de Âmbar? Ejiavam-lhe essa ordem em inglês? E subitamente a Sala de Âmbar desagregou-se diante dos seus olhos, pulverizou-se e ficou apenas uma parede negra, demolida, cheia de fendas e de buracos, pelos quais passava um temporal que lhe arrancou o chapéu da cabeça.

Acordou com um grande grito. Jana correu para junto dele, ajeitou-lhe a almofada e acariciou-lhe o rosto.

— Acalma-te... acalma-te — disse ela.

— Minha filha, minha Janachka — gritou Wachter afastando-lhe as mãos. — Deixa-me. Deixa-me partir! Eu vi a Sala de Âmbar... Jana, a Sala já não existe.

Depois perdeu os sentidos e parecia que entrava em agonia...

Perto do fim de Janeiro de 1945, uma coluna SS, formada por quatro carros todo-o-terreno, chegou a Nussdorf, uma pequena localidade à beira do lago Atter e parou em frente da Câmara. Um espesso nevoeiro pairava sobre o lago, o maior da Áustria, muito apreciado pelos veraneantes devido à sua magnífica situação entre planícies e rochedos. As nuvens cinzentas elevavam-se ao longo da muralha abrupta formada pelas «montanhas do Inferno», do outro lado da margem. As estradas estavam geladas e mesmo as viaturas das SS tinham dificuldade em avançar ao longo do lago. O comandante do pequeno grupo, envolto num comprido capote forrado de pele, saltou do carro e entrou no edifício da Câmara.

O secretário do presidente da Câmara viu chegarem os carros das SS através do vidro da janela e afastou-se da cortina com uma expressão desdenhosa.

— Ei-lo — disse. — Ei-lo em todo o seu esplendor.

— Cale-se! — replicou o presidente da Câmara. — Prefiro ver os SS pelas costas.

O presidente, Karl Wiesinger, também proprietário da Brauenwirt1 em Nussdorf, era um bom patriota. Todos os dias seguia os movimentos das tropas alemãs e inimigas num mapa, segundo os comunicados da Wehrmacht, e espantava-se muitas vezes por constatar que esses comunicados camuflavam habilmente importantes perdas de territórios. Falava-se de recuos estratégicos, de rectificações de frentes e de mudanças de terrenos. No mapa, isso assemelhava-se a outra coisa... Tornava-se óbvio que os exércitos aliados se aproximavam cada vez mais e avançavam no interior do Reich. Um avanço rápido e implacável. Mas era sobretudo a Frente Sul que interessava Wiesinger, desde a Hungria à Baviera. A guerra chegava directamente a Nus sdorf, apesar de ser pouco provável ver

 

1 Cervejaria (N. do S.)

 

um dia o lago Atter tornar-se precisamente o principal objectivo do combate. O vento trazia de Munique o troar dos bombardeamentos e, quando o tempo estava claro, via-se no céu o reflexo avermelhado dos incêndios. Não eram os russos, mas sim os americanos que iam chegar, e as pessoas tinham a certeza de que eles eram humanos. Só os negros inspiravam receios, pois eles eram certamente autênticos animais selvagens sob o efeito do álcool. Era o que se dizia... Ninguém sabia mais nada. Quem vira alguma vez um negro, em Nussdorf? Talvez no circo, quando este erguia a sua grande tenda em St. Gilgen, Vócklabruk, Wels ou Salzburgo.

A porta abriu-se violentamente sem que tivessem batido e o SS entrou na sala. Apoiado a um armário, Wiesinger esperou pelo desenrolar dos acontecimentos.

— Heil Hitlerl — exclamou o chefe SS erguendo o braço.

Wiesinger também levantou o braço, mas sem nada dizer.

— Quem é o presidente da Câmara?

— Sou eu.

— Ah! — O SS observou o homem que se encontrava na sua frente e foi direito ao assunto. — Nós somos um Sonderkommando do chefe das SS em ligação com o Auswãrtiges Amt.

«Vêm do Ministério dos Negócios Estrangeiros», pensou Wiesinger. Depois perguntou delicadamente:

— Que desejam?

O chefe SS tirou de um estojo de cabedal que trazia preso ao cinturão um plano detalhado do lago Atter e dos seus arredores e estendeu-o sobre a secretária em frente de Wiesinger. Alguns locais estavam rodeados de um anel vermelho. Alguns desses círculos tinham por baixo um traço espesso. Do seu lugar, Wiesinger não podia ver se Nussdorf tinha também um círculo a rodeá-la. «Se for esse o caso», disse para consigo, «será igualmente riscado, mas que poderá significar o círculo?»

— Têm aqui grutas? — perguntou o SS com um olhar inquisidor para Wiesinger.

— Grutas? — Wiesinger limpou rapidamente a cara e aproximou-se um passo. — Que espécie de grutas?

— Caves profundas, espaçosas, ao abrigo das bombas e com um arejamento natural...

— Um arejamento natural... Não. Não temos. Que grutas desse género poderia haver em Nussdorf?

— Nos arredores. Nas montanhas! Trezentos metros quadrados seriam suficientes.

— Não temos nada desse género.

O chefe SS protestou com um abanar de cabeça enérgico. O secretário da Câmara olhou disfarçadamente para Wiesinger como se lhe quisesse dizer para ser prudente, não fosse o outro desconfiar que ele não os queria ali.

— No entanto, o que não falta por aqui são grutas! — O SS inclinou-se novamente sobre o mapa. — Há-as por toda a parte! Minas de sal, grutas de estalactites...

— São húmidas — observou delicadamente Wiesinger. — São arejadas, é certo, mas...

— Está bem.

Wiesinger constatou com satisfação que o SS riscava o círculo vermelho por baixo de Nussdorf. «E agora», pensou, «que irá ele fazer?»

— Conhece essas grutas?

— Um pouco. — Wiesinger fez um gesto amplo com a mão. — Na região de Dachstein, existem muitas, e também certamente do outro lado, nas montanhas do Inferno; as minas de sal situam-se na região de Salzburgo. Para que procuram uma gruta?

— Não tem importância.

— Querem armazenar alguma coisa? Existe um entreposto em Alt-Aussee.

O SS ergueu bruscamente a cabeça.

— Que sabe a respeito de Alt-Aussee? — disse num tom ameaçador que Wiesinger percebeu imediatamente.

— Devo ter ouvido falar em qualquer parte...

— Então é melhor esquecer tudo o que lhe disseram, senhor presidente da Câmara. — O SS dobrou o mapa e guardou-o no estojo. — Nas montanhas do Inferno, diz o senhor? Obrigado. Como estão as estradas por lá?

— As estradas? — repetiu Wiesinger contendo um sorriso. — Nesta época do ano? Desejo-lhe sorte.

O comandante SS avançou o lábio inferior, lançou um olhar oblíquo ao secretário, pôs-se em sentido e gritou Heil Hitler ants de sair do gabinete. Wiesinger e o secretário ficaram a espreitar por detrás da cortina, vendo a coluna SS afastar-se.

— Eles querem esconder qualquer coisa — disse Karl, o secretário. — É, sem dúvida, algo relacionado com a Álpenfestung1. Esperam que o combate final tenha lugar aqui. Que merda!

— Esperemos — respondeu Wiesinger olhando para a estrada coberta de neve. — As coisas alteram-se de um dia para o outro...

A 3 de Maio de 1945, unidades da Wehrmacht e soldados SS de uma divisão húngara esperavam o avanço dos americanos instalados em Zell, uma localidade ligada a Nussdorf. O 3.º e o 7.º Exércitos americanos penetraram na Áustria por Rosenheim, Salzburgo, Braunau e Linz. Não encontraram resistência digna desse nome. A Alpenfestung era uma lenda.

A 6 de Maio de 1945, ao meio-dia e meia, viram-se aparecer em Nussdorf as primeiras colunas de blindados do 3.º Exército americano. Às tropas alemãs entrincheiradas em Zell, renderam-se sem combate.

A bonita povoação situada à beira do lago Atter respirou de alívio. A guerra estava acabada. A aldeia não fora destruída e os negros eram até simpáticos. Ofereciam biscoitos, gomas de frutos e chocolates às crianças.

Era um belo dia de Maio. O lago cintilava ao sol. Alguns barcos tinham saído para a pesca e apanhavam salmões e outros peixes. Nos jardins floriam primaveras, tulipas e amores-perfeitos. Os sinos da igreja tocavam.

Não era ainda a paz, mas ela pairava já sobre Nussdorf.

A 8 de Maio de 1945, à meia-noite, foi declarado o fim da guerra.

Envergando um casaco de oficial americano, botas militares alemãs e um fato demasiado largo, Michael Wachter encontrava-se, a 10 de Maio, em frente das torres com ameias do castelo de Reinhardsbrunn. Jana Petrovna estava sentada num jipe junto dele, ao lado de um soldado americano que mascava uma pastilha elástica. Jana trazia um vestido de algodão e cobria os ombros com um xaile por causa do vento durante o percurso. Tinha os cabelos pretos presos por uma fita vermelha.

Wachter olhou para o castelo, depois voltou-se e dirigiu-se

 

1 Fortaleza dos Alpes. (N. da T.)

 

para o jipe. Desistiu de entrar no castelo. O comandante americano já lhe dissera que não existiam vinte caixotes grandes no castelo quando o tinham ocupado. Havia ali uma grande quantidade de material e objectos diversos, mas vinte caixotes... não!

— A procura acaba aqui! — disse, com um suspiro. O seu ombro esquerdo achava-se ligeiramente mais baixo, sobretudo quando ele andava. — Ninguém sabe coisa alguma. A Sala de Âmbar desapareceu.

— Havemos de a encontrar, paizinho. — Jana debruçou-se por cima do jipe e acariciou-lhe a cara. Falaram russo e o soldado americano, ao volante da viatura, cuspiu a pastilha elástica por cima do pára-brisas. Tinham ganho a guerra juntos, mas não gostavam uns dos outros. — Seguiremos a pista como lobos.

— Existem centenas delas, minha filha.

— E uma delas há-de ser a boa. Espere que Nikolai se junte a nós. A Sala de Âmbar há-de voltar para Puchkine.

Wachter acenou com a cabeça.

— Eu bem quero acreditar nisso, Janachka. — Subiu para o jipe e sentou-se atrás, no banco de metal. — Pela primeira vez, tenho dificuldade em acreditar.

O carro pôs-se em andamento e desceu a estrada do castelo.

Wachter baixou a cabeça, levantou a gola do casaco e fechou os olhos. Tinha o coração cheio de melancolia.

«Senhor, Tu que vês tudo e sabes tudo, diz-me onde se encontra a minha Sala de Âmbar?»

 

 

Os fossos da mina de potassa Kaiseroda II/III, perto da pequena cidade de Merkers, na Turíngia, estavam cercados pelos carros americanos. A DCA rodeava a mina, a Polícia Militar americana bloqueava todas as estradas que se dirigiam para Merkers, dois helicópteros sobrevoavam o local e um batalhão de infantaria, em formação de parada, ocupava a praça em frente do edifício administrativo da mina. Jipes e camiões pesados, impressionantes, com equipamento adequado, tinham chegado em grande número. Nas galerias, guardadas por sentinelas armadas de metralhadoras prontas a disparar, erguiam-se três gruas de média potência.

Estava-se a 12 de Abril de 1945. O 3.º Exército americano, comandado pelo general Patton, entrara na Turíngia com uma velocidade assombrosa. No preciso momento em que as primeiras colunas de blindados e de carros com lagartas atravessaram Merkers, com um ruído de ferros, um capitão chegava à Câmara e declarava destituídos e provisoriamente detidos o presidente da Câmara e todo o pessoal administrativo. Entre as outras viaturas que chegavam, vinha um jipe que transportava o capitão Fred Silverman e o tenente Bob Mulligan. Também eles pararam diante da Câmara e pediram para ver o presidente, que lhes pareceu receoso quando lhe dirigiram a palavra num alemão impecável — mas quem não tremeria depois de acabar de ser detido? Silverman, que nascera em Frankfurt-am-Main com o nome de Friedrich Silberman, fugira para Nova Iorque, via Londres, em Fevereiro de 1933, com os seus velhos pais e uma simples mala. O capitão fez uma breve continência e perguntou apenas:

— Como se vai para a mina de potassa Kaiseroda?

O presidente da Câmara explicou-lhe, empalidecendo ligeiramente. Silverman reparou nisso, fez um sinal a Mulligan e sentou-se numa das cadeiras do presidente da Câmara destituído.

— Vejo pela sua expressão que sabe aquilo por que me interesso. É inútil fingir que não está ao corrente de coisa alguma! — declarou num tom agressivo. — Antes de nós próprios nos ocuparmos do caso, responda a algumas perguntas. Para começar, saiba que pertencemos à OSS, isto é, Office of Strategic Service. Isto nada lhe diz?

— Não. Nunca ouvi falar — disse o presidente da Câmara abanando a cabeça.

— Trata-se dos serviços secretos americanos. Deve tomar nota. Ainda terá que ouvir falar muito deles. Desde mil novecentos e quarenta e quatro que o Grupo de Intervenção para os Bens Artísticos e Culturais do Reich — nós chamamos-lhe ORION — conhece exactamente os locais onde foram guardados tesouros alemães, graças aos relatórios dos nossos agentes secretos e outras fontes, das mais diversas. O meu colega Mulligan e eu próprio somos historiadores peritos em arte e sabemos tão bem como o senhor a importância que tem Merkers.

Silverman fez uma pausa para dar a palavra a Mulligan. Este último foi direito ao assunto.

— Que contém a mina de potassa? — perguntou brutalmente.

— Não sei, senhor oficial.

— Quando foram feitas as entregas?

— Houve muitas. Desde mil novecentos e quarenta e quatro. Mas só começaram verdadeiramente a partir de Janeiro do ano seguinte. Sem parar. Grandes camiões vindos de Weimar e de Gotha. Todas as formações militares vieram: a Wehrmacht, a Luftwaffe, as SS... Chegou mesmo a dizer-se que o Fúhrer pensava em instalar o seu novo quartel-general no castelo de Reinhardsbrunn.

— Estamos ao corrente disso — declarou Mulligan com um gesto de impaciência. — Continue.

— O último transporte chegou à mina de sal a dez de Abril. Eram camiões marcados com o símbolo da Cruz Vermelha. com a bandeira suíça. Mas, para além de suíços ou civis, havia SS... Oficiais superiores, mesmo. Sim, foi o último transporte. Eu não estava ao corrente e, de resto, nada me perguntaram. Tiraram dos camiões vinte caixotes de madeira, grossos, com uma camada de verniz protector. Nos caixotes podia ler-se: «Companhia das Águas de Kõnigsberg». Sim, esses caixotes estavam marcados com um ponto vermelho visível. Nada mais sei.

Mulligan e Silverman trocaram um breve olhar.

— Os caixotes vinham do castelo de Reinhardsbrunn?

— É possível. Eu nada sei. Os camiões vieram duas vezes. A nove e a dez de Abril.

— Por consequência, antes de ontem... — Silverman recomeçara a interrogar. — E a seguir?

— Os blindados chegaram então e eles foram-se embora. Desapareceram todos na noite.

— Sem nada levarem das galerias?

— Impossível. Não tiveram tempo.

— Então está tudo lá dentro? Fizeram explodir os acessos?

— Não. Isto é, não sei. Há dois dias que não saio. Sabe, estavam aqui SS, e os prisioneiros dos campos de concentração é que transportavam os caixotes e tudo o resto.

— E os SS levaram os prisioneiros com eles? — perguntou Silverman com uma expressão crispada.

— Sim — reconheceu o presidente da Câmara, de cabeça baixa. — Nós nada podíamos fazer, senhor oficial.

Silverman e Mulligan levantaram-se bruscamente.

— Vamos para a mina, Bob — propôs Silverman com voz alterada. — Aqui só há inocentes. Entretanto, as pessoas foram sendo levadas para o inferno de Buchenwald e de Dachau. Até crianças, Bob! Mas todos os alemães estão inocentes. Eles apenas gritaram: «Fuhrer, nós seguimos-te!», como no futebol...

Saíram do edifício da Câmara, saltaram para o jipe e dirigiram-se a toda a velocidade na direcção da mina de potassa.

Eram cinco da tarde e a mina Kaiseroda tinha-se transformado numa espécie de fortaleza. Daí a poucos minutos, chegariam os homens dos quais o mundo inteiro falava: os generais americanos Bradley, Patton e Eisenhower.

A pequena localidade de Merkers, na Turíngia, estava prestes a tornar-se célebre.

Larry Brooks, que crescera num bairro pobre de Brooklyn, era filho de um lavador de cadáveres numa grande empresa de pompas fúnebres, e de uma empregada de lavabos que trabalhava das seis da tarde às duas da manhã na cave de um hotel modesto. Larry, o mais novo da família, optara pela única solução que se oferecia a alguém na sua situação: alistara-se no exército. Este tornou-se o seu lar e os seus camaradas foram a família. Tinha sempre uma cama, boas refeições, dinheiro suficiente para cigarros, uísque e uma visita hebdomadária a um bordel. O exército fornecia-lhe mesmo todo o vestuário, desde as peúgas às cuecas. Era uma vida magnífica, apesar dos gritos constantes, da obrigação de se pôr em sentido e de ter de suportar instrutores sádicos que os obrigavam a meter a cabeça em buracos na areia ou na lama. «Não se pode ganhar a vida sem penar, dizia para consigo Larry. Mas em comparação com o que o seu velho fazia, lavar mortos, fazer-lhes a barba, vesti-los e maquilhá-los para os tornar parecidos com os cadáveres embalsamados dos filmes de Hollywood — curiosamente o trabalho de Al Brooks agradava às famílias — podia, pois, dizer-se que o trabalho dele na tropa era limpo e positivo. Quando foi promovido ao posto de sargento e pôde, por sua vez, comandar, o exército tornou-se verdadeiramente a sua pátria. A guerra contra os Germans, aos quais chamavam Krauts1 (porque, na América, a chucrute com perna de porco era a identidade da Alemanha), obrigara-o a participar na invasão da Itália, na marcha sobre Monte Cassino, e a ter depois de ser transferido para o 3.º Exército do lendário general Patton, e, portanto, a tomar parte na invasão da Alemanha... fora para Larry um trabalho duro e sangrento, mas apenas um trabalho, nada mais. O que importava para ele não era defender a liberdade dos Estados Unidos, mas sim dar cabo desses malditos Krauts e desembaraçarem-se do homenzinho do bigode, Hitler. Para transportar as quantidades incríveis de material que os Estados Unidos enviavam para a Europa, Larry conduzia um camião pesado de três eixos e já transportara tudo o que se podia imaginar: obuses, vacas, caixas de ferramentas e caixões de madeira.

Foi no Batalhão de Transportes do 3.º Exército que travou conhecimento com Joe Williams.

 

1 Couves (N do E)

 

Williams era muito diferente de Larry. Dois anos mais velho, nascera seguramente no seio de uma boa família (mostrara fotografias de uma imponente vivenda branca, no meio de um grande parque, e outras de um Cadillac e de um cavalo de corridas), pois tinha um pai simpático e corpulento, uma mãe alta e tipicamente americana, além de uma irmã que teria feito carreira em Hollywood se se apresentasse aos produtores de cinema. Mas ela não precisava disso. O dinheiro parecia não ter qualquer importância em casa dos Williams.

Joe, filho único e, portanto, herdeiro dessa fortuna colossal que o velho Williams conseguira com o algodão e os amendoins, tivera de deixar prematuramente Whitesands, a propriedade à beira-mar. Não para estudar, mas para fazer uma viagem de dois anos à volta do mundo! Motivo: a dez milhas de Whitesands, fora encontrado no mar o cadáver de uma rapariga grávida, da qual se sabia apenas que havia sido vista frequentemente em companhia de Joe. Oh, não, Joe nunca fora considerado suspeito. O pai dele apoiava um partido, financiava a campanha eleitoral do procurador que desejava ardentemente ser governador, fundara um jardim de infância, patrocinava uma equipa de futebol e mandara construir uma bela igreja. A desconhecida fora enterrada, o dossier encerrado, mas, por conselho amigável do procurador, o velho Williams enviou precipitadamente o seu Joe para a Europa.

Durante esses dois anos, sucederam-se acontecimentos curiosos. Um joalheiro de Londres foi atacado e estropiado por ter sido baleado. Em Roma, um banqueiro esvaiu-se em sangue ao lado do seu cofre vazio. Em Berlim, encontraram, em Grunnewalde, um homem com a garganta cortada, um crime que permaneceu misterioso até especialistas da Kriminalzentrale descobrirem que o morto estava ligado ao tráfego de cocaína. Em Budapeste, uma criada de quarto do Hotel Metropol foi encontrar a cantora Ilona Varanady morta e nua em cima da cama. Tinha as mãos cruzadas e um grande ramo de flores colocado entre os seus seios opulentos, mas a garganta fora igualmente cortada. A chegada a Whitesands de bilhetes-postais de Joe provenientes de Londres, Berlim, Roma e Budapeste era, é claro, pura coincidência.

Joe nunca contava como fora parar ao exército. Mas a verdade é que ascendera ao posto de sargento-chefe e comandava o primeiro grupo da coluna de camiões ao qual Larry também pertencia. Joe era um bom chefe, não gostava de passar o seu tempo a gritar. Tratava-se de um bom camarada, apreciado por todos. Apenas, de tempos a tempos, conduzia-se de uma maneira estranha. Nas noites de lua nova, passeava sozinho com ar sombrio, mal respondendo às perguntas que lhe faziam, muito pálido. Numa dessas noites, Larry viu-o por acaso sair da capoeira de um camponês com quatro galinhas na mão. Em seguida, agarrou-as pelas patas e cortou-lhes as cabeças com uma faca afiada.

Larry guardou para si aquilo que vira. A guerra tornara-os amigos e queria que as coisas continuassem assim. Depois da guerra acabar, tudo seria diferente. Larry voltaria a Nova Iorque e Joe iria algures para sul, nadar na sua praia privativa. Depois de trocarem algumas cartas, a amizade, como sempre, esbater-se-ia...

Nesse dia 12 de Abril de 1945, de pé diante dos seus camiões, eles esperavam Eisenhower e os seus generais. Joe Williams, bem informado, como habitualmente, confiara a Larry:

— Ali em baixo parece que descobriram uma maravilha. Ouvi dizer que há milhões escondidos nas galerias de sal.

— Milhões de mortos? — perguntou ingenuamente Larry.

— Milhões de dólares, idiota.

Quando Joe dizia idiota, estava a ser gentil.

— Lá em baixo? Como?

— Ninguém sabe ainda nada de preciso. Em todo o caso, os nossos peritos de arte procuram por toda a parte, como se fossem drogados com falta de droga. Qual o motivo por que achas que Eisenhower vem a este buraco, se não houvesse nada de sensacional? Larry, meu velho, pensa nas minas que já visitámos! Quadros, tapetes, pratas, livros, porcelanas, gobelins, ícones, estátuas... tesouros de todas as épocas e de todos os países, da China, do Egipto, da Rússia, da Mesopotâmia, da Pérsia... museus inteiros! Mas aqui deve tratar-se do nec plus ultra. Se Eisenhower vem aqui pessoalmente...

— E então? — retorquiu Larry Brooks encolhendo os ombros. — Vão tirar tudo daqui e carregar.

— E levar tudo para os Estados Unidos, Larry!

— É claro. Nós ganhámos a guerra. Isto não vai durar muito mais tempo.

— NÓS ganhámos. Não estás bom da cabeça! NÓS! Por consequência, tu e eu.

— Pode ser...

— Vamos lá, Larry, reflecte um pouco! — Williams estava encostado ao radiador, ao lado de Brooks. — Que é que nós vamos ver de todos estes milhões — milhares de milhões — de dólares que vão ser mandados para toda a parte? Nada! Absolutamente nada. Vai tudo direitinho para as grandes algibeiras de Washington. Saque de guerra! Mas, Larry, nós também somos vencedores e que nos restará? Alguns Chesterfield esmagados? É isso que devemos levar à mamã? Demos o corpo ao manifesto... para nada?

— Não te estou a entender, Joe — protestou Brooks abanando a cabeça. — Onde queres chegar? Tencionas abrir um museu particular no vosso castelo à beira-mar? E queres roubar quadros para isso?

— Guardá-los, Larry. Para sempre.

— Joe, não estás bom da cabeça. Como queres levar os camiões para os Estados Unidos?

— É apenas uma questão de organização. Se essas obras de arte atravessarem o mar, terá de haver também um lugar para nós. Um cantinho num grande navio... Larry, dentro de alguns anos estarás sentado à sombra de um guarda-sol na Florida, com uma doce Dolly a teu lado, terás uma suite no melhor hotel e dinheiro para tudo.

— Tu já podes ter tudo isso, Joe.

— Mas tu não, Larry. Bastam alguns quadros para teres uma vida nova... serás outro homem... e só terás recuperado aquilo que te pertence por teres vencido os Krauts. Pensa bem.

— E como vamos fazer isso, Joe?

— Esperemos até saber o que eles descobriram lá em baixo. E depois brincaremos aos pintainhos e debicaremos alguns grãos de ouro.

— E depois?

— Depois se verá. — Joe Williams começou a rir e deu uma palmada no ombro de Larry. — Até Deus precisou de seis dias para criar o mundo.

A chegada de Patton, Bradley e Eisenhower a Merkers deu lugar a uma pequena cerimónia militar. Os Exércitos alemães estavam derrotados e só continuavam a resistir ao Norte, em volta de Berlim e no Ruhr. Em Torgau, tinham apertado a mão aos generais soviéticos e americanos. O exército alemão estava derrotado e a capitulação de todas as unidades da Wehrmacht era apenas uma questão de dias. Restavam ainda mais de trezentos mil refugiados do Leste que era preciso conduzir para lugar seguro, e Goebbels, num dos seus últimos discursos, ameaçava o país que parecia querer ficar deserto: «... Mas, se nos retiramos, a terra começa a tremer...!»

Era suficientemente claro que Eisenhower não chegava a Merkers apenas como um simples chefe militar, mas sim como vencedor.

Mas não houve nem parada, nem desfile. Patton, Bradley e Eisenhower dirigiram-se imediatamente para o edifício administrativo da mina.

Fred Silverman e Bob Mulligan esperavam-nos no gabinete da direcção. O director da mina, Eberhard Moschik, e alguns outros colegas, levantaram-se à chegada dos generais. O acesso às instalações fora imediatamente interdito aos responsáveis alemães. Tinham sido conduzidos, guardados à vista, como criminosos de guerra, até aos escritórios cuidadosamente guardados pela Polícia Militar americana, a famosa PM. Merkers tornara-se um assunto para os serviços secretos. Silverman começara por recuperar as listas de armazenamento da mina, onde fora anotado, com uma meticulosidade bem prussiana, cada objecto ali guardado.

Ao ler essa lista, Silverman foi tomado de vertigens, apesar de ser um historiador de arte.

— Meu Deus! — confiara ele a Mulligan. — Isto não é possível! É uma fonte de riquezas... Ao lado disto, o túmulo de Tutankhamon é insignificante!

Silverman fez uma curta continência e apresentou-se. Mulligan fez o mesmo. Não eram desconhecidos para o general Patton, por terem já intervido em três outras operações de procura de esconderijos nazis. Haviam descoberto tesouros de valor incalculável provenientes de museus alemães. Presas excepcionais para os serviços secretos.

— Meu general — começou por dizer Silverman —, proponho que desçamos imediatamente à mina. O que aqui encontrámos é indescritível. Há que ver primeiro, antes de examinarmos as listas. Já anunciei que se tratava de uma descoberta única.

— Começam a interessar-me — respondeu Eisenhower que envergava um capacete e um casaco leve e que observava tudo quanto o rodeava. Patton e Bradley, que ostentavam quatro estrelas nos capacetes, fizeram gestos de aprovação.

— Mister Platov vai conduzi-los — prosseguiu Silverman. Indicou um homem robusto, de estatura mediana, que

se encontrava entre os directores da mina. Como todos os alemães já haviam sido provisoriamente detidos e nada sabiam do seu futuro, ele mantinha-se prudente e inquieto.

— Avante! — ordenou Silverman em alemão. Johannes Platov, o inspector da mina, deu dois passos

em frente. Eisenhower lançou-lhe um rápido olhar antes de se voltar.

— Faz parte dos criminosos de guerra? — perguntou.

— No, sir — respondeu Silverman com um leve sorriso. — Nesse caso eu não lhe teria chamado «Mister»...

Vinte minutos mais tarde, os generais, Silverman, Mulligan, quatro outros oficiais e três soldados da PM entraram na mina dentro de um vagão. A quatrocentos e cinquenta metros de profundidade, abandonaram o vagão e, depois de terem atravessado um túnel especialmente arranjado, entraram nas jazidas. Johannes Platov passou à frente e fez sinais com a sua tocha. Os três soldados da PM e dois tenentes, que empunhavam lanternas, seguiram-no e dispersaram-se. Iluminavam a passagem, mas seguiam calados, em sinal de veneração.

— Okay! — exclamou Silverman. — Façam favor de passar.

Os generais avançaram. Diante deles, abria-se uma sala imensa, como a abóbada de uma catedral. As paredes tinham reflexos de cristal, o solo era liso, de rocha, parcialmente coberto por tábuas.

Mais de dois terços deste espaço estava cheio de caixotes, de caixas de cartão, de sacos, de contentores e de embalagens ali fabricadas.

Silverman e os seus ajudantes tinham aberto alguns desses caixotes, cujo conteúdo se encontrava agora em exposição em frente deles, como numa vitrina.

Baixelas russas antigas, estátuas egípcias, quadros em grandes molduras douradas e esculpidas, iluminuras de igreja, notas de banco, moedas e lingotes de ouro, máscaras incas incrustadas com marfim, uma montanha de jóias com diamantes cintilantes, uma colecção de vidros antigos, uma tapeçaria de Gobelins flamenga desenrolada... À luz das lanternas, dir-se-ia uma cena de Ali Babá e os Quarenta Ladrões depois da famosa frase «Abre-te Sésamo», como se tivessem a seus pés toda a riqueza do mundo.

Eisenhower parou, perplexo perante todos aqueles tesouros. Atrás dele, Patton e Bradley olhavam para tudo, mudos de espanto.

— Jesus — murmurou Eisenhower.

Depois, deu um passo em frente e colocou-se sobre os carris da pequena via férrea que atravessava a mina até ao fim. Centenas de sacos acumulavam-se em frente dele, cada um com uma etiqueta presa a um fio, indicando com precisão o conteúdo. Os caixotes, alinhados, estavam do lado esquerdo.

— Meu Deus, é incrível. Capitão, tudo isto são tesouros?

— Yes, sir. — Silverman começou a ler as listas que tinha na mão, enquanto Mulligan o iluminava com a lanterna erguida. — vou dar-lhe alguns exemplos. Nesta galeria, a quatrocentos e cinquenta metros de profundidade, encontram-se armazenados, conforme a lista oficial que temos ainda de verificar — e apontou para as filas de sacos —, os tesouros seguintes, que representam quase todos os bens do Reich:

«Notas de banco alemãs no valor de cento e oitenta e sete milhões de dólares, cento e dez mil libras esterlinas inglesas, quatro milhões de coroas norueguesas, oitenta e nove mil francos franceses, e — deitou um olhar a Eisenhower — duzentos e trinta e oito milhões de dólares de ouro puro!

«Do outro lado, vêem mais de três mil caixotes contendo obras de arte inestimáveis provenientes de quinze museus de Berlim, Weimar, Reinhardsbrunn, Kõnigsberg e outros. Nalgumas salas anexas, encontram-se ainda outros caixotes cheios de ícones russos, de custódias insubstituíveis, três estátuas de faraós, pergaminhos de mosteiros e toda uma biblioteca de livros adornados com placas de prata incrustadas com marfim.

Silverman fez uma pausa antes de prosseguir:

— Todos nós conhecemos o célebre quadro de Rembrandt O Homem do Capacete de Ouro, assim como Os Quatro Apóstolos, de Albrecht Dúrer. E qual de nós não viu já, em milhões de reproduções, o busto de Nefertiti? Estão aqui, sir. — Silverman fez um gesto amplo que abarcava tudo. — É aqui que está tudo guardado!

— Jesus — repetiu Eisenhower, desta vez visivelmente comovido. — É um dia histórico. Capitão, queria ver de mais perto.

Johannes Platov e Silverman guiaram Eisenhower, Patton e Bradley através da enorme sala e de algumas salas vizinhas. Admiraram os quadros, conhecidos apenas através de livros de arte, voltando-os um por um, sabendo que cada um daqueles caixotes continha milhões de dólares; acocoraram-se em frente de malas cheias de custódias e admiraram à luz das lanternas os ícones da célebre escola de Novgorod. Mal falavam e, quando diziam alguma palavra, faziam-no em voz baixa como se estivessem numa igreja. A arte tornava-os mudos.

Silverman parou diante de uma pilha de vinte caixotes envernizados, com grandes fechaduras em ferro, cujos cantos estragados revelavam transportes repetidos. A sua voz enérgica tornou-se então mais suave e quase solene.

— Os caixotes trazem a menção «Companhia das Águas de Kõnigsberg» e todos eles têm, como se pode ver, um ponto vermelho — explicou ele. — Ficámos surpreendidos por ver figurar arquivos na lista. Tratar-se-ia de um código para segredos de Estado? Ou serão dossiers das SS ou do Ministério dos Negócios Estrangeiros? Ou documentos da chancelaria do partido de Hitler? Todas as obras de arte enumeradas em detalhe e, de repente, aparecem vinte caixotes com documentos administrativos? Isso acirrou-me a curiosidade e, por isso, mandei abrir um caixote. Só um, Sir. Não ousei tocar nos outros. Eis o que apareceu no meio de almofadas, de mantas e de edredões.

Ajudado por Mulligan e dois militares da PM, tirou uma das pesadas tampas e fez sinal para que iluminassem com as lanternas. Um lambrim de âmbar cintilou em todos os tons de ouro, desde o amarelo mais claro ao castanho-escuro; depois, mosaicos e esculturas, grinaldas e rosetas, assim como um espelho veneziano com uma moldura de âmbar magnificamente esculpida.

— A Sala de Âmbar do czar Pedro, o Grande, do palácio de Catarina de Tsarskoie Selo, a actual Puchkine, a obra de Rastrelli, o arquitecto italiano da czarina Isabel. — Silverman conteve a respiração antes de prosseguir: — Sir, encontra-se diante de uma das mais belas obras de arte do mundo. Lenine considerava-a como um santuário nacional... um santuário do povo russo.

— Quantos dólares? — perguntou Patton, prosaico, enquanto Eisenhower se mantinha calado.

— Tem um valor incalculável, sir. Quem poderia avaliar o preço da Virgem da Capela Sistina?

— E um tesouro destes cai-nos nas mãos — murmurou Eisenhower. — Mulligan e os dois soldados voltaram a colocar a tampa no caixote. — Não se pode deixar isto mais tempo aqui. É preciso pô-lo imediatamente, mas imediatamente, em segurança. Capitão, todos estes tesouros devem ser transportados para Frankfurt o mais depressa possível. Irão para o Deutsche Reichsbank. Os tesouros que esse banco encerra puderam ser conservados. Os quadros, estátuas e outros objectos de arte irão para o Central Collecting Point de Wiesbaden e aí permanecerão até que se delibere o que fazer deles. Patton!

— Siri — respondeu o general Patton erguendo a cabeça.

— Fica encarregado da segurança do transporte. Sob a mais alta vigilância. Poderão ocorrer actos de sabotagem.

— Não sucederá coisa alguma, sir — afirmou Patton com um largo sorriso. — Actuaremos como se se tratasse de transferir ouro americano para o Fort Knox.

Após a partida dos generais, Joe Williams e Larry Brooks encontraram-se na cantina do Batalhão de Transportes, sentados em frente um do outro, a beberem café e a comerem bolo de chocolate, enquanto fumavam um Lucky Strike. Joe voltou a falar do seu ponto de vista de que os soldados também eram vencedores e que mereciam a sua parte. Estabeleceu mesmo paralelos, o velhaco.

— Pensa em Alexandre, o Grande, Larry. Quando ele conquistou a Pérsia, deu cidades aos soldados dele e estes puderam ficar com o que quiseram. Até com mulheres... Bons tempos esses, meu velho! — Inclinou-se por cima da mesa e murmurou: — Ouvi dizer que iremos transportar os tesouros nos próximos dias... Alguns quilos a menos passarão despercebidos. Deixa que Joe se encarregue disso.

Depois da visita de Eisenhower, a mina foi aberta aos oficiais e aos graduados. Os visitantes, descontraídos e despreocupados, mexiam em tudo, nos caixotes, nos sacos e nas caixas, examinavam ícones e quadros, baixelas de prata e esculturas, peças de museus asiáticos e tesouros egípcios, arrancavam tábuas e desatavam sacos. Ninguém falou disso, nem houve qualquer inquérito, mas quando, a 14 de Abril, por ordem do general Patton, carregaram o primeiro comboio com os tesouros da mina Kaiseroda II/III de Merkers, descobriram numerosos caixotes partidos e constataram o desaparecimento de objectos de arte insubstituíveis. Passou-se o mesmo com outra formidável descoberta da mina de Grasleben, conquistada pelos americanos, os quais deram parte da sua descoberta aos ingleses a 1 de Julho de 1945. Segundo um relatório britânico altamente secreto, os inquiridores do CIC1 tinham, no início da ocupação, aberto vários caixotes numa das galerias exploradas, deixando-os meio vazios. Em Grasleben, dos seis mil e oitocentos caixotes, perto de metade já não se encontrava fechada...

O primeiro comboio deixou Merkers em direcção a Frankfurt, a 14 de Abril. Patton cumpriu a sua promessa: nunca se vira uma protecção semelhante para um transporte. Os vinte e nove camiões pesados eram guardados por cinco batalhões de infantaria, dez DCA móveis e duas secções de engenharia. Três aviões de vigilância sobrevoavam a coluna, e dois bombardeiros Mustang mantinham-se prontos a intervir em caso de ataque do Werwolf, os partidários alemães tão temidos pelos americanos.

As três últimas viaturas eram conduzidas por Larry, Joe e um soldado de cor que tinha, como muitos negros, o nome bíblico de Noah. Era uma viagem maçadora através do país alemão devastado, dos campos, das florestas e das aldeias. Passavam também por cidades com as suas bandeiras brancas nas janelas e bichas intermináveis de pessoas para se abastecerem. As crianças mendigavam chocolate, correndo ao lado dos camiões e, à noite, as raparigas alemãs rondavam a coluna, sobretudo quando das paragens perto das cidades, oferecendo-se em troca de manteiga, açúcar, farinha, frango assado ou um maço de cigarros. E, apesar da palavra de ordem de Eisenhower ser «No fraternization»2, como resistir às Frãulein alemãs? Mary, June e Anny estavam a milhares de quilómetros de distância...

 

1 Counter Intelligence Corps: serviço de contra-espionagem. (N. da T.)

2 Nenhuma fraternização. (N. do E.)

 

Larry e Joe sentiam-se contentes. Debaixo do seu banco, e nas caixas de peças soltas dos lados, Larry escondia sete ícones, quatro soberbos candelabros russos antigos de prata maciça e um quadro assinado por van Dyck, tirado da moldura e enrolado. Joe, por sua vez, transportava dois trípticos — ícones de altar —, duas máscaras assírias de pedra, um quadro de Caravaggio, outro de Ticiano, um pequeno cofre cheio de jóias egípcias em ouro e o célebre disco em espiral com o deus do Sol dos Incas, oferecido por Alexandre von Humboldt ao Museu de Etnologia de Berlim. Noah, que conduzia o terceiro camião, nada tinha debaixo do assento ou nas caixas. Não lhe interessava saber o que transportava... O que contava para ele era uma Frãulein alemã, uma branca wonderful1 que custava apenas um maço de cigarros Chesterfield, ou duzentos gramas de manteiga e meio frango.

Foi então, aquando da paragem para pernoitarem nos arredores de Alsfeld, que se deu um facto incompreensível, inexplicável e incrível: o desaparecimento, na manhã seguinte, de três camiões dos vinte e nove tão severamente guardados. As tropas espalharam-se imediatamente pela região para a passarem a pente fino, e anunciaram pelo telefone, ao 3.º Exército, esse acontecimento espantoso. O general Patton ficou furioso, deu ordens para se guardar rigoroso segredo, de modo que Eisenhower só o viesse a saber muito mais tarde... As três viaturas foram impossíveis de encontrar, como se se tivessem volatizado com os seus condutores: Larry Brooks, Joe Williams e Noah Rawlings.

— Os nossos melhores condutores! — exclamou o responsável pelo transporte, um coronel. — Que se terá passado?

O comboio de camiões permaneceu dois dias naquele local, e a busca prosseguiu. Helicópteros sobrevoaram a região a baixa altitude, os jipes revistaram o campo como formigas... sem encontrarem qualquer rasto... No segundo dia, descobriram o cadáver de Noah Rawlings num pequeno bosque ao sul de Alsfeld. Estava de tronco nu, tinha um buraco no meio da testa, e sobre o seu busto, negro e brilhante, fora gravada uma grande cruz gamada.

Para os americanos era claro: o Werwolf apoderara-se

 

1 Maravilhosa (N. do E.)

 

dos três camiões. Como pudera operar sem ruído e passar em frente das sentinelas, continuava a ser um mistério. com esses partidários era de esperar tudo — tinham a prova disso. O que sucedera a Joe e a Larry era um enigma. Teriam sido raptados? Tê-los-iam morto como a Noah, mas deixando-os mais escondidos? Interromperam as buscas e encarregaram o comandante americano da cidade de Alsfeld de as continuar. O comboio prosseguiu o seu caminho para Frankfurt.

Fred Silverman soltou um grito de angústia, como se o seu coração parasse bruscamente de bater, ficando depois mortalmente pálido, quando recebeu a notícia no seu escritório em Merkers.

— A Sala de Âmbar — balbuciou, fitando Julligan com os olhos muito abertos. — Bob, a Sala de Âmbar a nesses três camiões. Vinte caixotes! E catorze impressionistas franceses! — Depois pôs-se a gritar, cheio de sofrimento: — A Sala de Âmbar desapareceu!

Nessa noite, Silverman bebeu tanto que julgaram chegada a sua última hora. Bebeu uísque após uísque até que ficou inconsciente e o transportaram para o hospital militar.

A partir desse momento, não se interessou mais por aquilo que os comboios transportavam de Merkers para Frankfurt entre 14 e 17 de Abril. Também não procurou descobrir outros esconderijos nazis... Daí em diante, consagrou-se apenas a uma única missão: procurar a Sala de Âmbar — até ao fim da sua vida.

O seu destino iria confundir-se daí em diante com o da Sala.

Pararam numa pequena estrada ao sul de Alsfeld, à beira do rio Antrift, para verificarem rapidamente o que fazia Noah no terceiro camião e, sobretudo, o que ele pensava. Ele nada dissera à partida... O sargento-chefe dera-lhe uma ordem... Mas depois, mesmo um espírito simples como Noah devia pensar que alguma coisa não estava certa. Quando Joe e Larry se aproximaram, viram que Noah, atrás do volante, mastigava pensativamente uma pastilha elástica.

— Está tudo okay? — perguntou Joe. Noah abanou a cabeça.

— Não...

— O que é que está mal?

— Joe, o que estamos a fazer não é bom.

— O nosso menino de coro desperta! — disse Williams, rindo.

Esperou que Noah saltasse do camião. Era um grande negro atlético, com enormes braços que teriam podido fazer dele um campeão no mundo do boxe, se ele não temesse receber pancadas na cara. Quando era criança, alguns rapazes brancos tinham-lhe atirado uma pedra à cabeça e isso valera-lhe quatro semanas no hospital. Desde então, não suportava que lhe tocassem, e por mais que os treinadores e managers lhe prometessem ganhar milhões de dólares com os seus punhos e a sua força de touro, ele nada queria ouvir.

— Não sei o que estão a combinar — prosseguiu Noah com prudência. — Meteram-me nisto e agora estou comprometido nesta história... por consequência, tenho direito a um terço do bolo. Pouco importa quanto.

— O nosso rapaz negro sabe contar — gracejou Williams rindo de novo, mas com um tomameaçador. — Escuta, meu rapaz. Somos um Sonderkommando. O «comando especial de Joe Williams». Estás a perceber?

— No.

— Nem é necessário, afinal. Para nós, negrinho, a guerra acabou. Desaparecemos e vamos esconder-nos durante um certo tempo para reaparecermos em qualquer sítio, quando toda a gente nos tiver esquecido.

— Depois da guerra, quero voltar para casa! — disse Noah.

— Está bem. Voltaremos a falar disso. — Williams deu uma cotovelada a Brooks, olhando-o de soslaio. Mas este pareceu não compreender e limitou-se a erguer o sobrolho. — Chegarás a casa da tua mamã antes de nós...

— A minha mãe já morreu.

— Era apenas uma maneira de falar.

— E que vamos fazer aos camiões?

— Tenho a minha ideia a esse respeito — replicou Joe com um grande sorriso. — De resto, tenho muitas ideias que me ocorrem neste momento. Vamos continuar.

Noah ergueu a sua grande mão e fitou Williams com insistência.

— Um terço, Joe. Garantido.

— Receberás a tua parte, negrinho — respondeu Williams dando-lhe uma pancadinha na mão. — Podes contar com isso.

Seguiram o caminho durante toda a noite, tomando muitas precauções, percorrendo apenas pequenas estradas bem secas que não deixavam marcas. Começou a chover durante uma hora, como se a Natureza os quisesse ajudar a desaparecer sem deixar rastos. De madrugada, chegaram ao parque natural de Vogelsberg, fizeram um desvio por um caminho florestal e pararam no sopé do monte Taufstein que se eleva a setecentos e setenta e dois metros. Uma densa floresta rodeava-os.

Durante todo o dia seguinte, escalaram o Taufstein à procura de um esconderijo.

— Perto de uma montanha existem sempre grutas! — dissera Joe. — Podemos esconder lá os vinte caixotes...

Helicópteros e um avião de reconhecimento sobrevoavam a região sem cessar. Além disso, mais ninguém os incomodou.

— Procuram-nos — disse Larry em dado momento. Estenderam-se ao comprido debaixo das árvores e ficaram colados ao solo até que os helicópteros se afastassem.

— Vão procurar-nos durante meses ou mesmo anos, Larry.

Williams sentou-se e acendeu um cigarro com o capacete na mão. Estava seguro de que qualquer Kraut que visse um capacete americano fugiria a toda a velocidade. Estavam ainda em guerra e as tropas americanas eram inimigas. Podia-se ainda disparar sobre tudo o que parecesse suspeito. A paz nos países conquistados era incerta, enquanto a Wehrmacht não assinasse a capitulação. O Grupo de Exércitos B, comandado pelo marechal-de-campo Model, infiltrara-se entre o Reno, o Ruhr e o Lippe e conquistara o Ruhr. A 14 de Abril, o 9.º e o 1.º Exércitos americanos lançaram-se sobre as tropas alemãs e Model suicidou-se. No mesmo momento, os russos marchavam sobre Berlim. As últimas divisões alemãs reuniam-se no Norte da Alemanha, privadas de tudo, de munições, de víveres e de cuidados. Mas a ordem suprema tão esperada, para o fim dos combates, não chegara ainda. Joe Williams tinha razão. Um capacete americano ainda podia assustar os Krauts.

Foi justamente Noah quem descobriu uma gruta.

Espessos arbustos dissimulavam a entrada suficientemente alta para empurrar para lá os caixotes. Um primeiro corredor estreito conduzia à gruta em si, de solo acidentado, com as paredes cheias de fendas. Era um espaço húmido, escorregadio, mas bastante grande.

— O âmbar não enferruja — disse Joe depois de ter inspeccionado o local. — E os caixotes estão protegidos contra a humidade. Não tenham dúvidas, rapazes, que podem esperar aqui até que o mundo mude. Vamos, ao trabalho.

com enormes dificuldades, aproximaram os camiões e começaram então um trabalho de forçados, a arrastar e a erguer, centímetro a centímetro, todo o carregamento. Tinham abatido até três pequenas árvores para utilizar os troncos como rodas. Noah empregou então toda a sua força prodigiosa. Atrelou-se às cordas como um boi e içou os caixotes até à entrada da caverna, sobre o caminho em rampa. Larry e Joe empurravam por trás, ofegantes e a gemer, vendo luzes diante dos olhos. Acabaram o trabalho ao fim da tarde.

— E agora? — perguntou Noah, de tronco nu, coberto de suor. Estava sentado no estribo do camião e comia carne enlatada com uma colher. — Os caixotes estão arrumados. Que vamos fazer?

— Já pensei nisso — respondeu Williams, engolindo uma golada de uísque pela garrafa. — Iremos agora bloquear a entrada da gruta.

— com quê? — admirou-se Larry.

— Joe pensa em tudo, meu rapaz. Trouxe uma carga de explosivos. Chegará. Basta bloquear a entrada. Cada coisa a seu tempo.

Joe sabia o que fazia. Quando a carga explodiu, a deflagração foi demasiado fraca para ser ouvida ao longe. Apreciou o resultado com Larry e os dois apertaram as mãos com satisfação.

— Perfeito! — exclamou Larry. — Mais ninguém poderá descobrir o mínimo rasto.

— E agora passemos à etapa seguinte — propôs Joe Williams com voz satisfeita. — Vamos dar uma pequena volta com dois camiões.

Noah não fez mais perguntas quando ouviu Williams declarar querer inspeccionar a região com dois camiões para encontrar um esconderijo para as viaturas pesadas. Partiram na direcção de Alsfeld por caminhos isolados. Depois, Williams parou bruscamente na orla de um bosque entre o Antrift e Schwalm.

— Aqui — disse ele a Larry sentado a seu lado. Noah parou o camião atrás do deles.

— Para quê? — admirou-se Larry.

— Para transpor o primeiro passo para o futuro, rapaz. — A voz de Joe mudou subitamente. Tornou-se fria e metálica. — Desces, pegas na tua pistola e fazes um lindo buraco na testa de Noah.

— Não, Joe! — exclamou Larry com um sobressalto, encolhendo-se como um gato prestes a saltar. — Não podes exigir isso! Não o farei. És completamente doido, Joe!

Williams lançou a Brooks um olhar glacial.

— Tu é que és doido, Larry! Estás prestes a tornar-te milionário. Só te falta subir mais alguns degraus da escada e chegas ao cimo! Tu, o rapaz saído de um pardieiro.

— Não o farei à custa de um crime! — indignou-se Larry. — Porque não o fazes tu mesmo?

— Quero ter a certeza de que não me trairás, que não me matarás pelas costas — respondeu Joe com uma frieza que gelou o sangue de Brooks.

— Mas eu sou teu amigo, Joe.

— As amizades são precárias quando há milhões de dólares em jogo. Se enviares Noah para o seu paraíso, saberei que me serás sempre fiel.

— Isso posso jurar-te, Joe.

— Então pegas na pistola e vais ter com Noah...

— Joe...

— Sim ou não? Os juramentos esquecem-se. Mas um assassino não esquece nunca! Nós agora somos marginais, Larry, fora da lei... Obedecemos a outras regras. Estamos os dois prestes a construir uma nova vida.

Brooks lançou um último olhar desesperado a Williams, desceu do camião e dirigiu-se para a parte de trás. Noah saíra também do seu camião e olhava-o. Tinha o casaco por cima dos ombros, o seu largo dorso estava nu e transpirado. Ao aproximar-se dele, Larry sentia os seus passos tornarem-se hesitantes. A mão direita continuava pousada no cinturão, perto do coldre da pistola.

Larry sentiu o coração apertado ao ver o rosto negro e brilhante de Noah sorrir-lhe. «Faz qualquer coisa», pensou ele, «faz-me uma pergunta, ataca-me, obriga a tua carola a funcionar. Noah, não fiques aí parado a sorrir, apercebe-te do que se passa...» Mas como é que aquele bom e corajoso Noah havia de perceber que lhe restava apenas um minuto de vida?

— É aqui que deixamos os camiões? — Perguntou Noah candidamente. — E vamos ter que percorrer o mesmo caminho a pé? É estúpido. Sinto as pernas meio paralisadas...

— Não vamos regressar a pé — respondeu Larry em voz baixa. Sentia sobre a nuca o olhar de Joe que o fitava da janela. — Isto é terrível, Noah, e absurdo...

Bruscamente, tirou a pistola do coldre, fitou a testa de Noah, ergueu a arma à altura dos olhos e disparou imediatamente. Como era um excelente atirador, fez um pequeno orifício mesmo no meio da testa. Noah, embora tivesse morte imediata, caiu para trás com uma expressão de criança admirada. Apenas um leve fio de sangue corria do ferimento.

Williams saltou então do camião e correu para Larry. Deu-lhe uma palmada no ombro. Em seguida, debruçou-se sem uma palavra sobre o morto, tirou da cintura um punhal e traçou com ele uma cruz gamada no dorso musculoso e coberto de suor. Ao endireitar-se, viu Larry apontar-lhe a pistola.

— Deixa-te de asneiras, Larry — disse com voz ameaçadora. — Sozinho vales zero. Só comigo é que poderás vir a ter uma vila em Miami. Somos uma equipa, trata de meteres isso na cabeça! Vá, sobe para o camião de Noah. Eu vou à frente.

— Porque cortaste o peito de Noah...

Larry meteu a pistola no coldre. Joe teve um suspiro de alívio. Larry era uma alma sensível e isso não era bom.

— Se o encontrarem, todos pensarão que foi o Werwolf que o matou. E que nos mataram e nos enterraram. Riscar-nos-ão da lista. É preciso fazer funcionar a carola, Larry.

— És um gangster, Joe — murmurou Larry. — Sim, um gangster. Sei-o agora. E os milhões do teu pai... é dinheiro sujo. De resto, chamas-te verdadeiramente Williams?

Joe não se irritou com aquelas palavras. Deu-se mesmo ao trabalho de responder:

— Passou a ser o nosso nome, okayl O meu papá era um bom homem de quem nunca ninguém suspeitou, que não foi preso, nem acusado. Como havia de ser de outro modo? Por intermédio de uma organização discreta, arranjava bonitas raparigas que vendia para bordéis da América do Sul. Nunca para os Estados Unidos. Inglesas, suecas, finlandesas, esplêndidas bonecas da Coreia, das Filipinas, de Hong Kong, de Singapura e de Macau, belezas morenas da Samoa, do Taiti, das ilhas Fiji e das ilhas Cook... Elas vendiam-se como bolos de chocolate fresco. Aos cinquenta anos, o meu pai reformou-se e tornou-se conhecido como benfeitor até no Senado, em Washington. — Williams sorriu largamente para Brooks. — É, portanto, um negócio respeitável, Larry. Há quem venda máquinas ou laranjas... outros vendem outras coisas...

— E tu és um assassino sem escrúpulos!

— De momento, o assassino és tu. Vá, sobe! Vamos deixar o camião de Noah num sítio onde o encontrem.

Seguiram pelo campo, abandonaram a viatura de Noah atrás de uma granja em ruínas, isolada no meio dos campos, e regressaram então a Taufstein.

Dois meses mais tarde, em Junho, quando a guerra já tinha terminado havia seis semanas, os habitantes de Kronberg, no Taunus, informaram as autoridades que dois camiões do exército americano estavam parados há três semanas num atalho da floresta. Coisa curiosa. Não tinham condutores. Um jipe e quatro soldados da PM dirigiram-se para o local da descoberta, inspeccionaram os camiões e constataram com surpresa que os depósitos de combustível estavam meio cheios. Levaram-nos até ao quartel-general de Frankfurt. Graças aos números, puderam verificar que esses camiões tinham feito parte de um comboio de transporte do 3.º Exército, dados como desaparecidos a 16 de Abril. Observação mencionada: ataque provável do Werwolf. O caso fora relacionado com a descoberta do corpo de Noah Rawlings, morto com uma bala na testa, e mais tarde com a do seu camião.

O assunto foi arquivado e o dossier guardado com uma nota à margem: Joe Williams e Larry Brooks tinham efectivamente desaparecido, mas, dada a situação, não estavam com certeza vivos. O oficial do 3.º Exército encarregado do dossier declarou-os mortos e informou os respectivos pais.

Os pais de Larry choraram, embora não vissem o filho há anos. O velho Williams mandou erguer uma grande esteia de mármore à memória do filho no cemitério de Whitesands e procedeu à sua inauguração com honras militares e salvas. O facto de ser pai de um herói aumentou ainda mais a consideração de que gozava. Só Mrs. Williams, que durante toda a vida julgara que o marido fazia realmente negócio com algodão e com amendoins, e a quem o filho apenas causara preocupações, disse corajosamente:

— Quem sabe a que corresponde isto? Joe era muito diferente de nós...

Nessa altura, Larry e Joe viviam tranquilamente em Frankfurt, munidos de passaportes falsos que haviam comprado. Na Moselstrasse, restauraram uma casa meio destruída que transformaram num cabaré de striptease, com um bar e quartos nos três andares. Era um bordel de luxo, um dos primeiros depois do fim da guerra, e, portanto, uma mina de ouro. Eram sobretudo os soldados que aí formavam bicha, pois os alemães não tinham meios para isso. Uma entrada valia meio quilo de café, que custava quinhentos marcos em 1947. Os alemães preferiram comprar manteiga, toucinho, carne ou café. Mas os dólares que os soldados metiam entre os seios das raparigas representavam dinheiro sólido.

Em fins de 1947, o correio com os Estados Unidos recomeçou a funcionar. Após uma vaga de desmazificação, começaram a ter consideração para com os Krauts vencidos, enquanto que os antigos aliados — os russos — eram tratados com desprezo. Uma grave contrariedade, que levou Churchill a dizer: «Enganámo-nos no alvo.» A 10 de Novembro, exactamente, Joe Williams enviou um bilhete lacónico ao pai:

«Querido papá, o teu Joe está vivo. Em breve saberás mais. Espera sem fazeres perguntas. O teu Johnny.»

A carta caiu em Whitesands como uma bomba, mas fizeram o possível por não se precipitar. O velho Williams absteve-se de falar no caso. Mrs. Williams ia rezar todos os dias à igreja que tinham mandado construir e a esteia de mármore permaneceu enfeitada com flores. Por outro lado, o velho, sem levar em conta as recomendações do filho, pôs em acção um exército de detectives particulares e de agentes, apelou para as suas relações e empreendeu pesquisas sem precedentes.

Inutilmente. Joe, que conhecia bem o pai, não enviara a carta de Frankfurt, mas sim de Hamburgo, onde se deslocara especialmente. Enviara-a da estação. Hamburgo era um território ocupado pelos ingleses... O inquérito do velho Williams revelou-se inútil.

Larry não quis dar notícias. Seu pai, o lavador de cadáveres, morreu com um cancro na laringe, e a mãe de Larry não resistiu a um ataque cardíaco no início de 1947. Desde a notícia da morte do filho que começara a enfraquecer a olhos vistos, apagando-se pouco a pouco como uma vela. A morte do marido acabou com ela.

Até então, a gruta oculta no Vogelsberg não fora ainda descoberta. A entrada fora-se fechando no decorrer dos dois anos que se passaram, a caverna encontrava-se num sítio onde praticamente não passava ninguém, e para os Serviços de Águas e Florestas, as árvores enfezadas, como não tinham qualquer interesse, não mereciam ser abatidas.

O bordel em Frankfurt continuava a ser um sucesso. Brooks e Williams estavam contentes. Não tinham pressa e o tempo jogava a favor deles. A Sala de Âmbar caiu no esquecimento. Havia problemas mais importantes a resolver: a construção da Europa.

Ninguém lhes tiraria a Sala de Âmbar.

Muitas coisas haviam mudado desde aquele dia do ano de 1945 em que Michael Wachter e Jana Petrovna pararam à entrada de Reinhardsbrunn, e partiram depois, resignados, num jipe que lhes fora emprestado pelo comandante local. A última pista fora-lhes fornecida pela velha cozinheira, segundo a qual tinham sido guardados vinte caixotes nas caves do castelo, no princípio de 1945. Dizia-se que esses caixotes eram provenientes de Kõnigsberg, a crer na inscrição que ostentavam: «Companhia das Águas de Kõnigsberg». Dizia-se também que esses caixotes nada tinham a ver com a administração actual e que continham a famosa «Sala de Âmbar». Wachter soube também que os caixotes tinham sido transportados para as numerosas ramificações do bunker do novo quartel-general do Fúhrer, o Wolfsturm, ou para Saalfeld, onde Koch tencionara instalar o seu novo quartel-general, depois da fuga de Kõnigsberg... por um lado, na medida em que desejava permanecer próximo do seu Fúhrer, e, por outro, a fim de não deixar a «sua» Sala de Âmbar. Os planos de Hitler e de Koch foram alterados pelo rápido avanço dos americanos e dos russos. As instalações nunca foram utilizadas. Mas os vinte caixotes, afirmava a cozinheira, continuavam arrecadados nos subterrâneos. Em seguida, chegaram dois grandes camiões, dizia ela, marcados com a cruz vermelha e com a bandeira. Os caixotes foram colocados ali e os camiões partiram. Ninguém sabia para onde. O mais curioso era o facto desses camiões serem conduzidos por oficiais SS. Oficiais superiores explicou a cozinheira, que teria ouvido um soldado, em sentido, gritar: «Sim, Standartenfuhrer.»

Wachter e Jana tinham partido imediatamente para Saalfeld, mas os caixotes nunca lá tinham chegado. O seu rasto evaporou-se como uma gota de água no deserto.

— Está metida num canto — afirmara Wachter ao comandante local de Friedrichroda, de quem dependia o castelo de Reinhardsbrunn. — Poria as minhas mãos no fogo. Esconderam-na em qualquer parte.

O comandante, um tenente-coronel do 3.º Exército americano, desviou o olhar de Wachter e de Jana e olhou para a parede onde se encontrava suspenso o retrato do novo presidente americano, Harry S. Truman. Jana, que seguia atentamente o olhar dele e parecia ler-lhe no rosto, disse bruscamente:

— Eles sabem mais do que dizem. Mas o quê, exactamente?

Falaram em alemão e, apesar dos doze anos decorridos entre a partida e o regresso do tenente-coronel, notava-se ainda a sua pronúncia estrangeira.

— Não tenho mais nada a dizer-lhes...

— É possível... mas sabe mais coisas.

Wachter procurou no bolso do casaco. O fato ficava-lhe muito largo. Tirou da algibeira um papel redigido em quatro línguas: alemão, inglês, francês e russo. A carta pedia a todas as forças de ocupação para ajudarem por todos os meios Mikhail Wachterovski na busca da Sala de Âmbar. Seguia-se uma descrição da mesma, e a indicação de que os nazis a tinham roubado de Puchkine. O tenente-coronel nem sequer se dignou pegar na carta.

— Bem sei, bem sei — murmurou ele. — Já ma mostraram duas vezes. — Hesitou antes de acrescentar: — Dirija-se à OSS, junto do Estado-Maior do 3.º Exército. Perguntem pelo capitão Fred Silverman. Mas jurem-me que não dirão quem lhes deu a indicação.

— Prometo-lhe — respondeu Wachter apertando-lhe a mão. — E que sabe esse Silverman?

— Precisam de lho perguntar pessoalmente. Boa sorte.

— Bem precisamos dela — suspirou Wachter.

A sua voz soava como um pedido de socorro. Passou o braço esquerdo — que ainda lhe doía ao fazer certos movimentos — pelos ombros de Jana Petrovna e saiu.

No dia seguinte de manhã saíram de Friedrichroda num velho Adler posto à disposição deles, e cujo porta-bagagens tinha ainda marcas de balas de metralhadora.

Levaram muito tempo a encontrar o capitão Silverman.

Como nenhum comandante americano queria dizer-lhes onde ficava o quartel-general do 3.ºExército, apesar da carta que mostravam por toda a parte, dirigiram-se a Nuremberga, ao bureau dos serviços secretos. Deram-lhes um quarto na cidade quase completamente destruída, permitiram-lhes ir comer à cantina, e assim ficaram à espera. Por quatro vezes, Jana teve de repelir os avanços de soldados indiscretos. Um soldado negro tentou mesmo subir pela janela e arrombar a porta, mas sem êxito, pois Jana há semanas que trazia consigo um cano de chumbo, preso à cintura com um fio que passava por um orifício que ela mandara abrir no cano.

Já se servira dele várias vezes, como aconteceu dessa vez com o soldado perdido de amores que apanhou uma pancada na cabeça depois de ter arrombado a porta, e que caiu no chão sem uma palavra, ficando aí até à chegada de dois oficiais da PM.

— Desejo falar ao comandante da companhia — exclamou Wachter, furioso. — É a quarta vez que somos importunados. É esta a famosa liberdade americana?

Os soldados da PM não compreendiam o alemão. Contentaram-se em olhar Jana com um sorriso equívoco.

— Fica calmo, paizinho — disse ela em russo. — Para que serve zangares-te? com estes tempos difíceis, que podemos nós alterar? Bem vês que sou capaz de me defender.

Esperaram quinze dias em Nuremberga. Duas semanas perdidas, pensava Wachter. Percorreram as ruas devastadas, vendo mulheres e crianças procurarem algo entre os escombros e fazerem cair tijolos para se certificarem se podiam ou não voltar a ser utilizados.

Exploravam as caves, erguiam os muros e tiravam os escombros das ruas obstruídas. Grandes filas de pessoas aglomeravam-se nos centros de reabastecimento e nos postos de água, que iam buscar com baldes. As administrações alemãs tinham retomado as suas actividades sob controlo americano, e esforçavam-se por organizar o caos. A guerra terminara a 9 de Maio. Deixara de haver amigos e inimigos, mas apenas vencedores e vencidos. Por quase toda a parte, fazia-se mercado negro. Na estação, na praça, perto da cidadela e junto das velhas muralhas e das torres da cidade. Na terceira semana, por fim, um oficial foi ter com Wachter e Jana, e disse-lhes num alemão mais ou menos compreensível:

— Telefone... aqui e lá. Agora tudo bem. Capitão Silverman na Áustria. Em Salzburgo, okay!

Cumprimentou-os e saiu da sala.

— Em Salzburgo — disse Wachter, sentando-se. — Jana, devíamos lá ir. Silverman é talvez o único que nos pode ajudar.

— Mas a Sala de Âmbar não se encontra lá, paizinho.

— Que sabemos nós? Os americanos descobriram em Alt-Ausse um imenso armazém subterrâneo cheio de tesouros. Trata-se, sem dúvida, de um armazém pessoal de Hittler, segundo me disseram. Ainda não o observaram todo. Talvez os vinte caixotes de Kõnigsberg se encontrem lá, Jana. Devemos agarrar-nos à mais pequena esperança.

Partiram para Salzburgo no Adler crivado de balas, para virem a saber, no Quartel-general do 15.º Corpo de Exército, que o capitão Silverman se instalara, com o seu serviço do OSS, no castelo de Klessheim. No dia seguinte de manhã, encontraram-se, finalmente, diante de Silverman, mostraram-lhe a ordem de missão e esperaram pela reacção dele.

Silverman pousou sobre a secretária a carta escrita em quatro línguas, cheia de carimbos, e ergueu os olhos para Jana e Wachter. «Eis os russos», pensou ele. «É certo que, do ponto de vista histórico, a Sala pertence aos russos. Os alemães também diziam que era deles. E agora pode pertencer aos Estados Unidos, visto que a encontrámos. Juridicamente, isso não tem qualquer valor. Mas, em tempo de guerra, qual é o direito que vale? Pouco importa a quem pertence a Sala de Âmbar, afinal, visto ter desaparecido. Já não há problemas. Até ela ser encontrada.»

— Fala alemão? — perguntou.

— Sim — respondeu Wachter. — Sou alemão.

— Na carta diz Wachterosvski: russo.

— Estava e continuo a estar ao serviço dos russos. Há quase duzentos e trinta anos.

— Está bem conservado. Não aparenta a idade que tem.

A velha graça estúpida. Wachter sorriu levemente.

— Espero que os meus descendentes possam velar pela Sala de Âmbar mais duzentos e trinta anos.

— Se ela aparecer...

— É esse o motivo da nossa visita, capitão Silverman. Silverman ergueu as duas mãos como se Wachter o tivesse ameaçado com uma arma.

— Peço-lhe que me acredite, quando lhe digo que não a tenho nos bolsos — disse com amargura.

— Mas viu-a, capitão.

— Quem lhe disse?

— Recolhemos informações. Estaríamos aqui se assim não fosse?

Silverman baixou os braços e olhou para Jana, que continuou:

— Seguimos o rasto dos vinte caixotes desde Kónigsberg. Passámos por Berlim, Weimar, Friedrichroda e pelo castelo de Reinhardsbrunn. A partir daí, a Sala de Âmbar foi metida em camiões pretensamente da Cruz Vermelha e matrícula suíça.

— É verdade — confirmou Silverman caindo na armadilha. — E quando revistámos a mina de potassa de Merkers, encontrei esses caixotes.

Era a primeira vez que Jana e Wachter ouviam citar o nome de Merkers. Até àquela data, tinham-se limitado a ouvir apenas meras alusões. Uma vez, em Saalfeld, um oficial americano dissera-lhes:

— Aqui, na Turíngia, amontoaram tesouros que valem milhões.

Mas não dissera em que sítio.

Merkers? onde ficava Merkers? Uma mina de potassa.

Nem Wachter nem Jana revelaram a emoção que se apoderou deles. Olharam Silverman com um sorriso de entendimento e um sinal de cabeça aprovador. O capitão olhava fixamente pela janela. O sol quente, primaveril, envolvia o parque do castelo de Klessheim, as alamedas, os pequenos bosques, os canteiros e as estátuas de pedra. Um verdadeiro dia de paz sob um vasto céu azul.

— Então sabe onde está a Sala de Âmbar? — arriscou-se a dizer Wachter.

— Claro que sim.

— Onde?

— Volatizou-se. — Ao pensar nisso, a voz de Silverman começou a tremer de cólera. — Desapareceu simplesmente.

— Não é possível! — protestou Jana com voz forte. — Vinte caixotes! Alguns camiões carregados!

— Três camiões militares, para ser mais preciso. Por ordem de Eisenhower, transportámos por duas vezes para Frankfurt todos os tesouros descobertos na galeria da mina de Kaiseroda. A quatro e a dezassete de Abril. Transportes feitos sob a mais alta vigilância. Apesar de tudo, os três camiões contendo a Sala de Âmbar desapareceram por altura do primeiro transporte, a dezasseis de Abril. Foram encontrados mais tarde, assim como um dos condutores, Noah Rawlings. Morto. com uma cruz gamada gravada no peito com uma faca. Deduzimos que foi o Werwolf que roubou os camiões. Mas continuamos a não perceber como conseguiram fazê-lo sem ruído.

— E os outros condutores? — perguntou Wachter.

— Nunca apareceram. Talvez os venhamos a descobrir um dia enterrados na floresta. — Silverman voltou-se novamente para eles. — Vocês procuram a Sala de Âmbar a pedido do Governo soviético. Eu encarreguei-me a mim próprio dessa missão. A minha carta a pedir a demissão da OSS encontra-se já em Washington. Ali tomam-me aparentemente por um louco...

— Nós também somos loucos — disse Wachter sarcasticamente. — Mas há uma pergunta que eu gostaria de fazer. Será possível que a Sala de Âmbar tenha sido escondida para ser levada discretamente para os Estados Unidos?

— Por que meios? E quem? Mister Wachter, está a acusar oficiais americanos de terem roubado obras de arte?

— Foi uma ideia absurda, capitão — apressou-se a rectificar Wachter. — Ouvi dizer que numa mina, perto de Grasleben, tinham descoberto seis mil caixotes cheios de tesouros e que metade deles tinham sido abertos antes dos ingleses conquistarem a cidade. Tratava-se de americanos... O CIC ligado ao Quinquagésimo Exército americano.

— Não estou ao corrente disso — respondeu Silverman aborrecido. — Trata-se apenas de uma campanha de calúnias!

— Não seria possível dar-se isso em Merkers?

— Não. Eu estive lá e vigiei. Vinte caixotes daquele tamanho não podiam ter desaparecido sem ninguém dar por isso.

— Devíamos retomar as nossas pesquisas em Merkers.

— Então devemos despachar-nos — disse Silverman, empurrando a sua cadeira para trás. A expressão dos seus lábios demonstrava como tudo aquilo lhe parecia inútil. — Depois dos acordos feitos, relativamente à partilha da Alemanha em zonas de ocupação, o General Eisenhower ordenou que se evacuasse o Saxe e a Turíngia para os deixar aos soviéticos.

— O quê? — exclamou Wachter sobressaltando-se, não de medo mas de alegria. — Os nossos soldados vêm então para a Turíngia?

— Mas julguei que era alemão! — disse Silverman, admirado.

— Então Merkers é russo? — exclamou Jana.

— Não. Vai ser ocupado pelos russos. O que é diferente. Nós ficamos com a Baviera que, no entanto, continua a ser alemã. Quem sabe como vai evoluir a situação? Quem sabe como tudo isso irá evoluir nos próximos anos?

— Se Merkers estiver sob ocupação russa, poderemos lá trabalhar livremente — prosseguiu Wachter, fechando os olhos por instantes. A Alemanha, que ele só conhecia pelo mapa, já não existia. Tinha sido aniquilada e dividida. As tropas soviéticas marchavam nas ruas de Berlim, na pátria dos seus antepassados. — Alegro-me com isso, pois as autoridades soviéticas vão dar-nos apoio na nossa procura da Sala de Âmbar.

— Os americanos também o farão — disse Silverman quase irritado. — Mas nem as autoridades americanas nem as soviéticas são mágicos, capazes de fazer reaparecer a Sala de Âmbar. — Fez oscilar novamente a cadeira para a frente. — com efeito, que querem procurar em Merkers? Já não há lá nada... A mina foi esvaziada. Os três camiões desapareceram em Alsfeld, no Hesse.

— Em Alsfeld... — repetiu Wachter perturbado.

Tratava-se de uma pista inteiramente nova. Nunca se falara em Hesse. As hipóteses apontavam até então para Gõttingen, Westsachsen ou Mecklenburg, se a Sala de Âmbar tivesse sido levada para as proximidades de Berlim, ou então para o sul, na direcção da Áustria. Mas o Hesse nunca fora mencionado.

— Há, portanto, uma pista...

— Se querem chamar-lhe isso, sim. Estão a ser realizadas pesquisas há semanas.

— Os caixotes poderiam ter sido transportados de Alsfeld para mais longe, para o sul ou noroeste?

— Todas as hipóteses são permitidas. — Silverman fez um gesto amplo. — O mundo é vasto... mas seria capaz de jurar que a Sala de Âmbar se encontra ainda na Alemanha.

— Então, havemos de a encontrar — afirmou Wachter, cheio de segurança. — Capitão Silverman, está preparado para unirmos os nossos esforços?

— Ia propor-lhe isso mesmo — respondeu Silverman, levantando-se da cadeira. — No que me diz respeito, só posso começar as pesquisas depois de obter a minha demissão da OSS e de o Exército prescindir dos meus serviços. Tenho de esperar a resposta de Washington. — Mostrou pela janela o parque do castelo de Klessheim. — Querem instalar-se aqui e ficar à minha espera? Há espaço suficiente no castelo. Não é magnífico? A vista sobre Salzburgo, até ao Veste, o panorama das montanhas, e os lagos de Salzkammergut mesmo à nossa porta. Sabem que sou judeu alemão?

— Desconfiei disso, meu capitão.

— Tive saudades deste país durante doze anos, pensando na Alemanha, esta terra terrível! Catorze membros da minha família pereceram em Buchenwalde, Flossenburg e Mathausen, abatidos, torturados até à morte, asfixiados nas câmaras de gás, sacrificados às experiências médicas. E, apesar de tudo, eu tinha saudades do país. Pode compreender isto?

— Sim, Janachka e eu próprio também temos saudades de Puchkine... mas só queremos voltar para lá com a Sala de Âmbar.

— Talvez eu fique definitivamente na Áustria. Poderia ficar como historiador de arte, justamente aqui, em Salzburgo, onde cada pedra nos fala de arte pura. — Silverman abanou a cabeça com um ligeiro sorriso. — Projectos... A maior guerra de todos os tempos acaba de terminar e nós estamos já a fazer projectos. Como se apresenta o futuro, Mr. Wachter?

— Eu tenho apenas um objectivo: a Sala de Âmbar.

— E se isso o obrigar a viajar constantemente?

— Nesse caso, será porque é necessário — respondeu Wachter, num tom quase solene. — É porque se trata da vontade de Deus.

A aceitação da demissão do capitão Silverman fazia-se esperar. Não era assim tão simples deixar os serviços secretos, sobretudo quando se sabia ser Fred Silverman, e o seu grupo de intervenção ORION, especialista em arte e nos tesouros culturais espalhados através de todo o território do Reich. Ele dirigia, de resto, uma secção especial, as T-Forces, que não se contentavam em procurar os tesouros ocultos, os diplomas das blibliotecas ou dos arquivos. De facto, eles deviam arrolar e interpretar profundamente os relatórios secretos que se relacionavam com o paradeiro dos criminosos de guerra, escondidos sob um nome falso. Como poderia um homem como Silverman renunciar a uma tal missão?

O capitão Silverman foi chamado a Washington. Partiu para a América a 3 de Agosto. Aparentemente, era para apresentar um relatório, mas ele sabia bem que o esperava um interrogatório.

Wachter e Jana ficaram no castelo apenas até Julho. Partiram com o velho Adler em direcção à fronteira que separava as zonas americana e soviética, pela auto-estrada Munique-Berlim, tão apreciada por Hitler. Mostraram os seus papéis no posto americano estabelecido a norte da cidade de Hof. Um tenente lançou um olhar descontraído às fotografias, olhou para os viajantes e deixou-os passar.

Do lado soviético, começaram por os receber com desconfiança, sobretudo quando Jana disse em russo: «bom dia, camaradas!» Conduziram-nos então para um aquartelamento onde um jovem tenente ouvia com recolhimento uma ária da ópera. Eugênio Oneguine. Ergueu rapidamente os olhos, indicou a parede para junto da qual a sentinela empurrou Jana e Wachter, e eles ficaram ali parados até a música acabar. O tenente baixou então o aparelho, de má vontade. A obra seguinte era a abertura da Ruslan e Luidmila.

— De onde vêm? Para onde vão? — perguntou secamente.

— De Salzburgo para Berlim, camarada tenente — respondeu Wachter em russo.

— Porquê?

— Por causa disto. Leia.

Wachter abriu a carta escrita em quatro línguas e colocou-a sobre a secretária do oficial. O efeito foi espantoso. Ele observou rapidamente os numerosos carimbos que figuravam no papel, apagou o rádio, olhou Jana e Wachter com surpresa e inclinou-se sobre o papel. A magia dos carimbos resultava. Para um russo, pelo menos, funcionava de forma impressionante. Um só carimbo poderia ser proveniente de um órgão administrativo, pelo que, quantos mais se exibissem, maior importância teria a pessoa que os apresentasse.

— Sejam bem-vindos, camaradas — disse o tenente depois de ter lido a carta. — Podem circular livremente por toda a parte. Procuram a Sala de Âmbar? Ouvi falar dela, no jornal do Exército, onde diziam que os fascistas a tinham roubado! E o que é que eles não roubaram, esses porcos, não é verdade? Será que iremos agora recuperar tudo?

— Quem o pode saber? — Wachter pegou na carta e guardou-a novamente no bolso. — Podemos continuar?

— Podem ir para onde quiserem, camaradas. — O tenente riu como um garoto. — Daqui até à Sibéria.

— Talvez mais tarde — replicou Wachter sem rir. — Para já, ficaremos contentes se conseguirmos ir de Berlim a Leninegrado na nossa velha carripana.

— Querem ir para Leninegrado, camaradas? Têm um longo caminho a percorrer!

— Chegámos até aqui vindos de Leninegrado. Por isso, faremos também a viagem de regresso. Para sermos mais precisos, é para Puchkine que queremos ir.

— Então boa viagem, camaradas. — O tenente estendeu-lhes a mão e observou as roupas deles. Tinha imaginado que um emissário importante se apresentaria de outra maneira. — Quem os alimenta?

— Você, por exemplo, camarada Tenente — gracejou Jana. — Precisamos de gasolina, óleo para o motor, pão, manteiga, doce, salsichas, carne enlatada, pepinos em conserva, cebolas...

— E também esturjão fumado e caviar do mar de Azov...

— Porque não, camarada?

— vou dar-lhes uma requisição — disse o tenente contendo-se para não rir. — Podem apresentá-la ao comandante da cidade de Saalfeld. Ele fornecer-vos-á senhas de abastecimento que vos permitirão comprar produtos em qualquer sítio, ou comerem num hotel ou restaurante, se encontrarem algum aberto.

— Seria mais prático irmos de um acampamento do Exército Vermelho para outro.

— Podem experimentar, camaradas — respondeu o tenente, perplexo. — Não lhes faltou nada do lado americano, pois não? Eles têm dez vezes mais que comer do que nós, seus aliados. — Encolheu os ombros com ar resignado. — Mas terão sempre uma kacha ou kapousta1. Mais vale perderem rapidamente esses maus hábitos, camaradas. O gosto pelo luxo adquire-se depressa.

Jana e Wachter viajaram durante dois dias, dormiram em casernas ou em campos militares do Exército Vermelho, comeram com os oficiais e falaram da Sala de Âmbar. Em Berlim, a administração soviética central deu-lhes outras roupas mais adequadas às medidas deles. Um dia, na messe de oficiais de Karlshorst, Wachter contou o que se passara em Puchkine, falou do Palácio de Catarina e da Sala de Âmbar, o que lhe valeu um carro novo, um Horch verdadeiramente luxuoso, com matrícula da União Soviética. Puseram ainda mais uns carimbos na sua carta, que tinha agora os nomes de outros generais e de um marechal russo. E foi assim que eles continuaram o seu caminho para Puchkine.

Voltaram a passar por Kõnigsberg, quase totalmente deserta e destruída, com o porto bombardeado cheio de destroços, o castelo incendiado com as muralhas destruídas. Wachter desceu à cave da Blutgericht onde sobrevivera com a Sala de Âmbar a todas as destruições. O retrato de Hitler

 

1 Couve. (N. da T.)

 

continuava na porta, mas tinham-lhe rasgado a cara, e em baixo, ao nível do sexo, a fotografia fora cortada. Na cave havia ainda a mesa, as cadeiras e a cama de campanha; faltava apenas o colchão e a roupa da cama. Tinham também levado as louças e os talheres, assim como o fogão. Fizera frio em Kõnigsberg de Janeiro a Abril de 1945. Parecia impossível, mas o capitão Leyser partira dali com os caixotes apenas há seis meses.

Jana Petrovna dirigiu-se ao hospital, que pouco fora atingido. Um velho estava sentado no gabinete do guarda. Enfermeiras desconhecidas, alemãs e soviéticas, andavam nos corredores. Jana encontrou novos médicos que a olharam com ar interrogador. Dirigiu-se então ao gabinete de Frieda. Nada mudara. Havia a mesma grande secretária, a mesa com a máquina de escrever, os velhos armários e o oleado gasto no chão. Mas Frieda não se encontrava ali. No seu lugar, na cadeira feita especialmente para Frieda, estava agora uma outra vigilante. Uma rapariga magra, pálida, com rosto de ratinha, escrevia à máquina.

— Que deseja? — perguntou a vigilante a Jana que observava tudo.

— Nada.

— Nada?

A rapariga que escrevia à máquina ergueu a cabeça com um ar embaraçado.

— Onde está a vigilante Frieda Wilhelmi?

— Não faço ideia. Conheço-a apenas pelas assinaturas nos dossiers. Quando para aqui vim, ela já cá não estava. Não tenho qualquer ideia do seu destino.

— Quando chegou aqui?

— A quinze de Abril... seis dias após a capitulação de Kõnigsberg.

— E o doutor Pankratz?

— Morreu a dois de Abril, durante um bombardeamento.

— Não há qualquer sinal de Frieda?

— Nenhum. Não sei coisa alguma. Mas quem é você?

— O meu lugar era ali — disse Jana indicando a cadeira onde a rapariga estava sentada — ... depois fui transferida.

— Estou desolada — respondeu a vigilante com um ligeiro encolher de ombros. — Muita gente em Kõnigsberg desapareceu sem deixar rasto. Outros foram enterrados anonimamente. É preciso dizer que os russos disparavam quase incessantemente sobre a cidade. Quem era apanhado na rua... era mais um morto desconhecido. Foi um inferno.

— Obrigada — disse Jana com a garganta seca e inchada, fazendo um gesto de despedida com a cabeça. — Graças a Deus que está tudo acabado.

Saiu do gabinete de Frieda, apoiou-se à parede do corredor e começou a chorar. Ninguém parou para a interrogar. Em Kónigsberg, havia sempre uma razão para chorar... pois a cidade já não existia.

A 3 de Agosto, no próprio dia em que o capitão Silverman partiu para Washington, Wachter e Jana chegaram a Puchkine... A cidade estendia-se na frente deles, a larga alameda do Palácio de Catarina, orlada de grandes árvores. Uma fachada destruída, tectos abatidos, paredes rachadas.

— Meu Deus! — murmurou Wachter juntando as mãos. — Meu Deus!

Para vigiar o Palácio de Catarina, tinham instalado um comando do Exército Vermelho nalgumas das salas de recepção mais ou menos danificadas. Anunciaram então que quem fosse apanhado a tirar qualquer coisa seria considerado um ladrão e imediatamente fuzilado, pois temia-se que pudessem roubar pequenos objectos valiosos de entre os que haviam sido salvos. com efeito, havia ali colheres de prata cinzelada, peças de porcelana chinesa, vasos assírios, cigarreiras de ouro, palmatórias marteladas à mão, tudo pequenos objectos fáceis de ocultar num bolso ou dentro do boné.

Depois da destruição do castelo e da retirada das tropas alemãs de Puchkine, a 15 de Janeiro de 1944, tinham sido requisitadas mulheres da cidade para começarem a remover os escombros. Brigadas antiminas do Exército Vermelho percorreram o castelo e os jardins para detectarem granadas não rebentadas, bombas escondidas e cargas explosivas, enquanto uma comissão de peritos em arte inspeccionava os palácios da antiga Tsarskoie Selo. Chegaram à conclusão de que os alemães haviam roubado tudo, metódica e completamente. Aquilo que não fora previamente posto em segurança em Leninegrado, desaparecera ou fora destruído... Os objectos de arte susceptíveis de serem restaurados eram muito pouco numerosos.

Mas, nesse momento, não havia tempo para isso. Não mais que em 1945, o ano da vitória. O que importava agora era reconstruir as cidades e as aldeias destruídas, relançar a agricultura e a indústria, elaborar o balanço da morte e da destruição, arranjar milhares de milhões de rublos e fazer prosperar o país devastado. A arte podia esperar... Quando se tem fome, não se pode apreciar um quadro de Rafael. Tratava-se, antes de mais, de construir habitações; uma vez voltada a paz, teriam muito tempo para se ocupar com os castelos.

O Palácio de Catarina fora suficientemente limpo para se poder circular no seu interior. Algumas salas tinham até sido arranjadas com móveis dispersos. Um grande número de mulheres ocupava-se da limpeza, procurando dar às salas o seu antigo esplendor e para que os frios do Inverno não provocassem mais estragos. Um intendente velava sobre todos os trabalhos e fazia a escolha daquilo que era retirado das ruínas, a fim de ser reutilizado na renovação.

Wachter e Jana Petrovna, perturbados, ficaram longos momentos sentados no Horch, em frente da fachada destruída.

A guerra fizera da Europa um campo de ruínas. Séculos de cultura haviam sido pulverizados sob o dilúvio de bombas e de granadas, ou tinham ardido, mas seria que isso poderia servir de consolação para Michael Wachter? Tratava-se do SEU Palácio de Catarina, da SUA Sala de Âmbar. Durante quase duzentos e trinta anos, vivera sempre ali um Wachter, desde o nascimento até à morte. Os czares e as czarinas tinham-se sucedido e morrido ao som dos sinos, acompanhados pelos cânticos dos padres e dos monges, ou haviam sido assassinados. Rasputine, o monge-prodígio, organizara em Tsarskoie Selo as suas orgias e chegara a sentar-se na Sala de Âmbar, à cabeceira do filho do czar, hemofílico, para deter as hemorragias do pequeno Alexis, tocando-lhe com as mãos. Trotsky percorrera o castelo. Lenine emocionara-se ao ver a Sala de Âmbar e declarara tratar-se do santuário da pátria russa. Estaline estivera sentado numa cadeira no meio da Sala e, o que não era seu hábito, ouvira pacientemente Wachter contar-lhe inúmeras histórias, sobretudo as que se relacionavam com as orgias de Catarina II. A imperatriz fechava-se frequentemente ali com o seu amante do momento, especialmente excitada pelo brilho da «pedra de sol», entregando-se ao deboche. Um Wachter encontrara-se sempre ali como confidente, e Rasputine traçara o sinal da cruz sobre Piotr Ludwigovitch Wachterovski que, desde então, nunca mais estivera doente. Este fora tranquilamente chamado à presença de Deus, enquanto dormia, com cento e um anos de idade.

Seria que para Wachter não havia o direito de ter lágrimas nos olhos ao ver o SEU castelo em ruínas?

Ficaram, portanto, sentados em silêncio no automóvel. Jana Petrovna passara um braço pelos ombros de Wachter, deixando que ele se acalmasse. Viram um comandante soviético aparecer entre as colunas da entrada e dirigir-se para eles. Tinha o boné puxado para a nuca, o casaco e o colarinho da camisa abertos. Ali, os controlos eram raros e se aparecia um oficial superior eram avisados com tempo. Fazia muito calor, como sempre em Leninegrado, e aquele mês de Agosto de 1945 estava a ser especialmente quente.

O comandante examinou o grande carro Horch, observou o número da matrícula militar soviética, mas viu apenas dois civis dentro do carro, uma mulher muito interessante e um homem de idade madura. Puxou um pouco o boné para a testa, para assumir um ar mais oficial, e depois aproximou-se da janela aberta.

— Querem saber alguma coisa, camaradas? — perguntou, olhando para Jana com um prazer evidente.

Wachter aquiesceu com a cabeça, abriu a porta e saiu do carro. Jana fez o mesmo do outro lado. Wachter respirou fundo e expirou para se libertar da emoção que se apoderara dele.

— Eu conhecia o palácio dantes — explicou. — Posso entrar para o ver?

— Já o conhecia, camarada? Então vai ter vontade de chorar.

— Já chorei, camarada comandante.

— Descobri isso ao chegar aqui. Numerosas são as pessoas que visitam o palácio recordando-se de como ele era antes e que choram. Que querem ver? Não se pode visitar tudo... Há partes do castelo que se encontram fechadas porque correm o risco de abater. Restam poucas coisas. A maior parte das obras de arte encontra-se ainda em Leninegrado e só serão trazidas para aqui quando o castelo for reconstruído, segundo dizem.

— Eu sei. — Wachter olhou na direcção do sector do castelo que ele conhecia melhor que ninguém. — Queria ver a Sala de Âmbar.

— Não se encontra aqui, camarada. Foi roubada pelos fascistas! Era uma bela sala!

— Não havia nada que se lhe comparasse. Era uma verdadeira maravilha. O céu, o sol, toda a beleza do mundo, o mar cintilante como aquele de onde veio o mármore. Havia visitantes, camarada comandante, que perante as suas paredes, juntavam as mãos e rezavam. — Wachter respirou fundo. — Eu queria vê-la, a Sala de Âmbar... mesmo com as paredes nuas...

— Basta-lhe pedir ao guarda.

Wachter sobressaltou-se como se o tivessem picado. Jana acusou também o golpe, compreendendo o choque sentido por Wachter. Dirigiu-se para ele e abraçou-o para o consolar.

— Um guarda? Há aqui um novo guarda?

— Empregado pelo Bureau Central da Administração dos Castelos. — O comandante observou de novo a perturbação dos visitantes e acrescentou para os tranquilizar, fazendo um sinal com a mão. — É um bom homem, e acessível, camaradas. Não lhes recusará visitarem a Sala. O castelo tem estado a ser limpo e ele coordena bem as equipas de limpeza e de carpinteiros. Se não fosse ele — continuou o comandante com uma careta —, estaríamos tal como há um ano.

— Vamos, filha.

Wachter olhou de novo para as janelas da antiga Sala de Âmbar. Tinham vidros novos e os caixilhos haviam sido também substituídos. O sol entrava lá a jorros. Wachter ficou encantado com ISSO. A O novo guarda parecia também gostar muito da Sala de Âmbar, da qual se ocupara prioritariamente. E quando penetraram no vestíbulo imponente do castelo, deixando o comandante para trás, Wachter propôs:

Não revelaremos ao novo guarda quem somos, Janachka. Não, deixemo-lo falar, ele terá de nos explicar o que é a Sala de Âmbar, e quando ele tiver terminado eu dir-lhe-ei: camarada, enganou-se e esqueceu isto e aquilo. Antes, havia aqui um certo Michael Wachter que a conhecia melhor... Vamos passar um bom bocado.

— E depois dir-lhe-ás quem és, pazinho?

— Não, Janinka. Iremos primeiro a Leninegrado procurar quem tenha conhecido Nikolai. Talvez nos possam indicar onde se encontra o túmulo dele, para lhe podermos levar flores.

— Continuas a pensar que ele morreu?

— As últimas notícias que tivemos datam de há sete meses. Foram os amigos de Sylvie que nos transmitiram essas notícias de Leninegrado. Seriam verdadeiras? Por que motivo não teremos sabido mais nada desde então? O meu destino é ser o derradeiro Wachter.

Ergueu os olhos para a larga escadaria que acabara de ser arranjada e que conduzia à Sala de Âmbar. Era preciso agora dizer adeus a duzentos e trinta anos de leais serviços. Respirou fundo para tornar a voz mais firme.

— O novo guarda viverá nos nossos alojamentos? Poderei pedir-lhe que no-los mostre?

— Pedir-lhe-emos, pazinho. Mas terás então de dizer quem és. Se assim não for, em que poderão interessar a um estranho os alojamentos do guarda?

— Tens razão, Janachka, como de costume. É preciso pensar bem na pergunta.

Subiram lentamente as escadas, pisando os degraus um a um, como se quisessem aproveitar totalmente aqueles momentos, ou dizerem adeus àquele lugar. Depois pararam em frente da porta principal da Sala de Âmbar, cuja ausência o doutor Findling notara em 1941 e que fora posteriormente desmantelada. Em seu lugar, estava agora uma simples porta de madeira, com um trinco e sem fechadura. Que havia de resto para roubar numa sala vazia, de paredes nuas?

Visivelmente emocionado, Wachter fez girar a maçaneta, abriu a porta e entrou na sala. Jana deixou-o avançar sozinho e só foi ter com ele daí a um minuto, de tendo-se no limiar e contendo a respiração.

Wachter estava parado no meio da sala, com as mãos atrás das costas, como se se achasse naquele local há séculos, sozinho ou com um grupo de visitantes. Permanecia ali como se os mosaicos de âmbar das paredes continuassem a cintilar com todo o seu brilho, assim como os painéis e os pedestais, as grinaldas e as cabeças esculpidas, os anjos e as máscaras, os espelhos venezianos e os quadros emoldurados.

A marchetaria do precioso pavimento, composto pelas madeiras mais diversas e com embutidos em nácar, um dos mais belos soalhos do mundo, mantinha-se quase completamente intacto, exceptuando alguns sítios onde abatera um pouco. O novo guarda polvilhara o soalho com serradura limpa. Wachter afastou levemente a serradura no lugar onde estava e sentiu-se feliz por pisar novamente aquele pavimento. Os frescos do tecto também existiam ainda. Podia ver-se que tinham sido limpos e cuidadosamente lavados. Faltavam apenas os painéis, os vinte caixotes desaparecidos com a maravilha em pedra de âmbar. Por isso, ele, Michael Wachter, teria podido estar ali de novo em russo ou em alemão:

«Caros camaradas, minhas senhoras e meus senhores, não verão em parte alguma o que estão a admirar aqui: a Sala de Âmbar... ela capta o ouro do próprio sol.»

Não, nunca mais o diria. A Sala de Âmbar desaparecera e um novo guarda ocupava o lugar dele, herança dos Wachter. Estava tudo acabado, o passado, a História. Wachter percebeu nesse instante que era velho. Um homem do passado.

Restava-lhe apenas uma única razão para viver: procurar a Sala de Âmbar.

Girou lentamente sobre si mesmo, fechou os olhos e evocou os painéis, tal como tinham existido durante duzentos e trinta anos. Distinguiu mesmo o pequeno orifício que o seu antepassado, Fiodor Fiodorovitch — o primeiro Wachter que velara pela Sala de Âmbar — deixara ao tirar da parede a cabeça de anjo que o czar Pedro, o Grande, desejara levar consigo para a eternidade.

Este espectáculo fez com que Jana contivesse a respiração. Não ouviu que alguém subia a escada, não viu a porta ao lado dela abrir-se e outra pessoa entrar na Sala. Mas, em seguida, ela sentiu-se como que dilacerada por uma explosão. Teve de se apoiar à parede para não cair e deixou de sentir as batidas do seu coração.

Perto dela, à porta, soara um grito. Um grito tão selvagem, tão dilacerante, que ela sentiu o sangue gelar-lhe nas veias.

— Pai! Pai! Oh meu Deus... Pai!

Wachter imobilizou-se, petrificado, e cambaleou. O vulto que ficara parado à porta correu para ele, agarrou-o, apertou-o nos braços e escondeu a cabeça no peito do velho, murmurando:

— Pai! Pai!

A estas palavras respondeu a exclamação trémula do velho:

— Nikolai! Kolka! Meu filho... meu querido filho... Depois, Wachter perdeu as forças, ficando preso apenas

pelos braços do filho, e começou a chorar. Deixou-se então escorregar, ficou de joelhos no chão, pôs as mãos e ergueu-as para o céu. As lágrimas inundavam-lhe o rosto, corriam-lhe pelos lábios trémulos, enquanto ele queria murmurar qualquer coisa como «Obrigado, obrigado, meu Deus». E olhava para o filho, para aquele rosto amadurecido com uma curta barba, mas ainda com os cabelos louros e encaracolados da mãe e os olhos azuis. Era o filho, o filho que não estava no fundo de um túmulo, a quem ele podia ver, tocar, sentir a sua respiração. Estavam agora os dois ajoelhados lado a lado, sobre a serradura, abraçados. Beijavam-se, ébrios de felicidade, e não encontravam mais nada para dizer que não fosse «meu filho» e «meu pai».

Continuavam na mesma posição, quando Nikolai conseguiu perguntar com voz trémula:

— Paizinho, que sucedeu a Jana? Sabe alguma coisa sobre a Janachka...

Wachter percebeu então que Jana se encontrava atrás do batente da porta aberta. Levantou um braço e estendeu-o sem falar por cima do ombro de Nikolai. Nesse instante preciso, Jana afastou-se da parede e gritou por sua vez com voz límpida e trémula.

— Nikolai, meu amor, meu coração, meu paraíso! Depois correu para ele, com os braços abertos e deixou-se cair sobre o peito dele, que, entretanto, correra também para ela.

— É, finalmente, a paz — disse Wachter, conseguindo por fim falar. Acariciava as cabeças de Jana e de Nikolai, admirando-se por o coração dele não ter simplesmente explodido. — Eis-nos de novo reunidos.

— Vamos beber uma garrafinha — propôs Nikolai enlaçando Jana e o pai. — Imaginem que encontrei vinte garrafas na cave. Vais ficar contente, paizinho. A mesa e as cadeiras continuam no mesmo sítio, assim como o teu querido sofá. com efeito, está tudo como dantes, se não olharmos para fora pela janela.

Pela segunda vez, Wachter apoiou a cabeça no ombro do filho.

— Tu és... és tu o novo guarda? — perguntou por fim.

— com certeza, paizinho. É o lugar de um Wachter! Voltei imediatamente após a libertação de Puchkine. Comecei a limpar os escombros e procurei-os por toda a parte. Só me souberam dizer que tinham desaparecido. Mas eu conservei sempre a esperança...

— Meu corajoso filho... — balbuciou Wachter mordendo os lábios, para não deixar escapar um novo soluço. Depois acrescentou como que para se acusar a si mesmo: — Perdi a Sala de Âmbar. Estive junto dela até ao ataque aéreo. Separaram-me dela sem eu o saber.

— Ele foi atingido num ombro, Kolka. Levei o paizinho para um hospital. Se não o tivesse feito, teria morrido. — Jana Petrovna olhava para Nikolai como se estivesse à espera do julgamento dele. — Fiz mal, Nikolai? Devia ter ficado com a Sala? A vida do paizinho era então mais importante para mim. A culpa foi minha.

— Fizeste bem, Janachka.

— E estas paredes continuam nuas! — gemeu Wachter fazendo um gesto amplo. — Mas há uma pista... sim, meu filho, há uma pista...

— Vamos procurar, pai. E encontraremos a Sala de Âmbar. Vamos, vamos agora beber o vinho. Tenho a garganta seca de chorar.

com os braços por cima dos ombros de Jana e de Wachter, Nikolai dirigiu-se para a ala reservada ao guarda entrando no alojamento. Estava tudo como dantes, com o sofá e o pequeno tamborete onde Wachter repousava as pernas fatigadas quando regressava das visitas ao castelo.

— Finalmente, em casa — disse ele tirando o casaco. Depois sentou-se no sofá, estendeu as pernas e pousou-as sobre o banco. — Meus filhos, estou em casa. Se tivesse o meu cachimbo...

— Também aqui está — disse Nikolai, rindo e tirando do armário o velho cachimbo curvo que entregou a Wachter. — Só o tabaco é que é menos bom.

Um entardecer de Verão, em Puchkine... O sol mergulhou no parque como um grande balão vermelho.

Os mais belos projectos dependem das circunstâncias. Não se pode tirar uma rede cheia de peixes de um mar onde os não haja, nem atrair uma mulher que se ame para os nossos braços se ela não quiser, nem construir uma casa sem terreno para a colocar. Assim, também não se pode procurar uma Sala de Âmbar por montes e vales, através de toda a Alemanha, se as instâncias oficiais tiverem algo de mais urgente a fazer.

Uma comissão especial para a recuperação dos tesouros roubados acabara de ser criada em Moscovo, e um serviço anexo foi instalado em Leninegrado. Reuniram uma montanha de documentos, mas isso era irrisório se comparado com a reconstrução do país destruído. Os alemães tinham, com efeito, sido vencidos. Conheciam agora a fome e tentavam limpar os destroços das suas cidades em ruínas. Todavia, as administrações tinham retomado as suas actividades e uma formidável vontade de viver atravessava a Alemanha. Foram mesmo fundados partidos democráticos. Viram-se surgir nomes como os de Adenauer, Schumacher, Hundhammer e Heuss. A Alemanha aniquilada fervilhava novamente de vida... enquanto um dos vencedores — a Rússia — não podia curar tão depressa as terríveis feridas da guerra. As perdas em material e em homens, mais de doze milhões de mortos, eram demasiado elevadas. Depois, de repente, os russos encontravam-se isolados, pois os aliados da véspera tinham-se tornado inimigos políticos de hoje. Os dois sistemas de sociedade — o socialismo e o capitalismo — enfrentavam-se novamente. Aliados no combate contra Hitler e a Alemanha, sim... mas nada de coabitar com o comunismo. A cortina fechou-se entre o Leste e o Oeste, a Cortina de Ferro. A Rússia devastada encontrava-se sozinha.

Michael Wachter, Nikolai e Jana partiram para Leninegrado onde foram recebidos como heróis. A hora era de abraços aos conservadores de museus, aos conselheiros municipais e aos funcionários do partido. Wachter teve mesmo direito a aparecer na imprensa durante um dia, e uma menção com uma fotografia e a citação: «Nunca deixarei de procurar a Sala de Âmbar!» Mas o nome de Wachter e a sua glória de vinte e quatro horas dissiparam-se tão depressa como o vento afasta a poeira.

O núcleo de Leninegrado da comissão especial de Moscovo ouviu o relatório de Wachter, estabeleceu um dossier pormenorizado e assinalou sobre o mapa da Alemanha o caminho provável da Sala de Âmbar: de Kónigsberg a Berlim, de Berlim ao castelo de Reinhardsbrunn, do castelo à mina Kaiseroda II/III, perto de Merkers, na Turíngia. De Merkers, provavelmente, para Frankfurt, ocorrendo o desaparecimento nos arredores de Alsfeld. O nome de Fred Silverman foi sublinhado a vermelho, como sendo a principal testemunha.

— Tudo isto é muito interessante, camarada Wachterovski — declarou o presidente da comissão especial depois de longas discussões e muitas notas.

Este historiador de arte — de seu nome Pavel Leonidovitch — tinha sempre fome e os seus globos oculares amarelados indicavam o mau estado da visícula biliar e do fígado. Quando pronunciava uma frase com mais de dez palavras, começava a tossir.

— Vamos fazer pesquisas. Mas, de momento...

— Vê dificuldades, camarada Agaiev? — perguntou Wachter, espantado.

— Assim é, meu caro Mikhail Igorovitch. Ganhámos a guerra juntos, mas a amizade entre os aliados parece ter desaparecido com o último tiro.

A voz denotava imensa amargura. A certa altura, começou a tossir seriamente.

— Devia contactar o capitão Silverman — lembrou Nikolai.

Agaiev olhou-o com uma expressão atormentada.

— Impossível. Estou a dizer-lhes que não existe amizade com os americanos. Uma ajuda da parte deles? Como é utópico, camarada! A participação americana na procura da Sala de Âmbar? Era mais fácil desviar o Lena para a Mongólia! Se o tesouro se encontrasse nas mãos do exército americano eles não tinham uma palavra, uma só sílaba. Quem renunciaria a uma tal maravilha?

— Esse tesouro pertence ao povo russo há duzentos e trinta anos, camarada Agaiev! — disse Jana.

— Mesmo que tivesse pertencido aos citas oitocentos anos antes de Cristo, agora são os americanos que o têm! — Agaiev olhou para Wachter e bateu com a mão no volumoso relatório. — Se tudo o que conta é verdade, Mikhail Igorovitch...

— É verificável, Pavel Leonidovitch.

— Justamente, não o é! — Agaiev apontou para um armário com livros e papéis que se encontrava atrás dele e tossiu mais. — Há apenas rastos dos tesouros. Uma montanha de suposições. Uma minúscula colina de certezas. Mas nós nem sequer nos aproximaremos desse montículo... ele encontra-se a ocidente!

— A Turíngia e o Saxe ficam na zona ocupada pelos soviéticos — replicou Nikolai batendo com o indicador no mapa da Alemanha. — E aí poderemos fazer pesquisas.

— Meu caro camarada! — Agaiev apoiou a testa na mão. — Isso significa’revistar centenas de localidades, castelos, depósitos e minas, abrir caves tapadas, cavar galerias com dinamite, abrir passagens subterrâneas, ouvir milhares de pessoas, fazer saltar paredes de bunkers de vários metros de espessura... Não temos actualmente nem tempo, nem meios.

— Não há tempo para a Sala de Âmbar! — exclamou Wachter, olhando para Agaiev assombrado. — com certeza ouvi mal.

— Camaradas, vocês não pensam senão na Sala de Âmbar — declarou Agaiev fora de si. — Pensem que ganhámos a guerra apenas há quatro meses e que estamos numa situação precária. Os alemães, que morrem de fome, têm mais de comer do que os nossos concidadãos. Entre nós, uma couve vale ouro, podemos expor um carvalho como uma estátua grega e um ravioli parece-nos opulento como uma refeição de boiardes. — Depois dessa frase, teve um violento ataque de tosse. — Onde poderemos arranjar tempo para nos preocuparmos com uma Sala de Âmbar, caros camaradas?

Não fazia sentido continuar a discutir com Agaiev. Os Wachter e Jana Petrovna compreenderam isso. Apertaram a mão ao camarada presidente da comissão e saíram. Vendo bem, não se podia negar o que ele afirmara. Viam-se por toda a parte grandes filas de homens, mulheres e crianças para comprar qualquer coisa numa loja, fosse o que fosse. com um pouco de sorte, podia-se comprar o que se queria e depois usá-la, comê-la ou trocá-la. A única coisa que interessava era que houvesse qualquer coisa.

Num belo dia do fim do Verão, ao passearem ao longo do Neva, pararam em frente do palácio de Inverno e do Ermitage, voltando depois até à Praça dos Dezembristas, onde se sentaram na base do monumento.

— Devíamos prosseguir as nossas pesquisas sozinhos, meus queridos — disse Wachter, depois de ter reflectido longamente, em silêncio. — Janachka e eu. Tu, Nikolai, ficarias em Puchkine.

— De maneira nenhuma. Nós ficamos os três juntos. Uma só pergunta, paizinho. Quem vai pagar? Não se trata de uma excursão.

— Eu sei — resmungou Wachter. — Pode durar meses.

— E se depararmos com muros por toda a parte, poderá até levar anos! — acrescentou Jana, realista. — Primeiro, precisamos de encontrar Silverman. Mas onde? Ele é a chave de todas as pesquisas. Sabe mais sobre o assunto do que todas as outras pessoas.

— Ele aparecerá. Solicitou a sua demissão. Prometeu dar notícias o mais brevemente possível.

— Para onde as poderá enviar?

— Dei-lhe o endereço de Puchkine. Do palácio de Catarina.

— E acreditas que iremos receber uma carta dele?

— Porque não? Mais cedo ou mais tarde, sim... visto que agora estamos em paz.

— Não, paizinho — contestou Nikolai, esfregando a ponta dos sapatos no asfalto. — Agora, já não se dispara sobre os alemães, é tudo. É a altura das zombarias, das calúnias, da política envenenada, e o mundo encontra-se dividido em dois. Continua-se a sorrir azedamente e forma-se ainda um quarteto de vencedores, para não complicar completamente a História. Mas esperemos para ver o que se irá passar dentro de dois, três ou dez anos. E para nós será ainda pior. Nós somos alemães na Rússia. Vivemos aqui como russos, falamos e pensamos em russo, mas somos alemães.

— Foi o que jurou o nosso antepassado Friedrich Theodor Wachter ao rei da Prússia...

— Os americanos vão controlar a carta que Silverman nos enviar e depois esta será censurada pelas autoridades soviéticas antes de chegar às nossas mãos... se chegar.

— Não! — protestou Wachter —, nunca censuraram uma carta que me tivesse sido dirigida. — Recebi todo o meu correio.

— Antes da guerra, paizinho — explicou Nikolai levantando-se e ajudando Jana a pôr-se também de pé. — Mas agora? A guerra transformou as pessoas, modificou-as em profundidade. Nada voltará a ser como dantes. O mundo tem um novo rosto.

Parecia ser essa a situação. O ano acabou... O camarada Agaiev e a sua comissão especial mantinham-se silenciosos. Wachter enviou várias cartas, sem nunca receber resposta. Quando o telefone funcionou novamente, telefonou três vezes. Respondeu-lhe uma voz de mulher grave e impertinente, dizendo: «Ele está em Moscovo!», ou então «Ele está em Kiev!», ou ainda «Ele não está! Que lhe interessa saber onde ele se encontra, camarada?»

Após esta última resposta insolente e grosseira, Wachter não voltou a telefonar. Escreveu uma longa carta à Comissão Central em Moscovo, mas também daí recebeu unicamente o silêncio como resposta. Apenas teve notícias da Administração dos Museus. Tendo em conta os seus méritos e o bom trabalho realizado durante décadas, fora decidido conceder-lhe uma pensão de cem rublos por mês, alojamento gratuito no Palácio de Catarina e a condecoração de «Trabalhador emérito do povo». O soviete da cidade de Puchkine enviar-lhe-ia a medalha. Nikolai Mikhailovitch Wachterovski ficaria sendo o guarda.

— Cem rublos é suficiente — disse Wachter depois de ter lido a carta. — com o alojamento gratuito, é possível viver. Mas é muito pouco para procurarmos a Sala de Âmbar à nossa custa.

Em Abril de 1946, Nikolai e Jana casaram-se na capela do Palácio de Catarina, segundo os ritos da Igreja Ortodoxa. Muito classicamente, embora Jana fosse uma boa comunista, mas o seu amor por Kolka era mais forte do que a sua ideologia. Mantiveram-se de pé diante de um sacerdote com os hábitos de cerimónia, enquanto um coro de seis homens cantava. Wachter segurava a coroa matrimonial por cima da cabeça de Jana, enquanto o sacerdote procedia à bênção nupcial, e pensava: «Tive sempre o desejo de que esta cerimónia se realizasse na Sala de Âmbar. Johann Friedrich Wachter, guarda da Sala no reinado do czar Alexandre II casou-se lá com a sua Sofia, sucedendo o mesmo com o meu avô e a minha avó. Que Deus os abençoe, meus filhos... É um belo dia, mas também triste. Velamos por quatro paredes nuas e ninguém ouve os nossos apelos.» E baixou a cabeça.

O relatório que o capitão Fred Silverman apresentou ao quartel-general do OSS foi estudado com muita atenção, assim como o pedido de demissão que o acompanhava... O pedido foi posto de lado e arrumado no seu dossier pessoal. Ao fim de seis semanas, o general Allan Walker mandou-o chamar ao seu gabinete, apertou-lhe a mão, indicou-lhe um cadeirão de cabedal, e sentou-se noutro, cruzando as pernas.

— Então, quer criar-nos dificuldades, Fred? — disse, sem rodeios.

— Não é a expressão adequada, sir — respondeu Silverman, endireitando-se na cadeira. — Julgo ter cumprido o meu dever, mas pretendo agora voltar à vida civil.

— Pode fazê-lo igualmente no quadro dos nossos serviços, por exemplo como conselheiro numa das nossas embaixadas. Isso vai mexer as coisas a leste. Andamos ainda todos à roda, procedendo como se os acordos de lalta fossem obrigatórios, mas todos sabemos que tudo se vai passar de outra maneira. Posso propor a sua candidatura para a Embaixada da Hungria, Fred. Mais tarde, ganharia a sorte grande: a embaixada americana em Moscovo! Isso não o tenta?

— Não, sir.

— As raparigas de Budapeste... Qualquer outro apanharia o primeiro avião amanhã.

— Eu não sou qualquer outro, sir. Sou eu. Não peço nada de especial, apenas a minha libertação.

— Você é um oficial, Fred. Capitão... A sua promoção ao posto de comandante encontra-se em cima da minha secretária.

— Obrigado, sir.

— Os Estados Unidos estão numa posição delicada. Ganhámos a guerra como aliados da Rússia, mas não gostamos dos russos. Nada mesmo! Vamos assistir a grandes perturbações e a grandes mudanças essenciais na política mundial. A Alemanha de Hitler desapareceu... tudo se joga agora entre Washington e Moscovo! Você é um bom elemento, Fred, e ainda temos necessidade de si. Um oficial americano não abandona o comando quando a pátria reclama os seus serviços. — O general Walker observou Silverman com os seus olhos cinzentos. — A América é realmente o seu país de adopção, não é verdade?

As costas de Silverman endireitaram-se ainda mais.

— Não compreendo a pergunta, sir.

— Você é um judeu alemão, Fred?

— Sou cidadão americano desde mil novecentos e trinta e quatro, sir.

— No passaporte. Mas no fundo do coração?

— Combati contra a Alemanha.

— Contra a Alemanha nazi... que já não existe.

— Quase toda a minha família foi exterminada nos campos de concentração.

— Isso é o passado, Fred, terrível, inesquecível, irreparável... mas como vê você o futuro? — Walker inclinou-se ligeiramente para Silverman. — Falemos como dois bons amigos. Que tenciona fazer quando tiver deixado o OSS e for um civil livre?

— Voltar para a Alemanha.

— É então isso. Como Friedrich Silbermann. — Walker enterrou-se mais no seu cadeirão de cabedal. — Segundo o seu dossier, quer continuar a procurar intensivamente a Sala de Âmbar desaparecida.

— Não só, sir. Quero encontrar o maior número possível de objectos de arte e entregá-los aos seus legítimos proprietários.

— São sobretudo os russos.

— Aparentemente, sir. Conheço muitos sítios onde os nazis esconderam tesouros e quero encontrar o trajecto que esses objectos seguiram após a ocupação da Alemanha.

— Tudo quanto sabe, aprendeu-o por pertencer ao OSS e agora quer utilizar esses conhecimentos CONTRA os Estados Unidos! — A voz de Walker subira de tom. — Não acha isso sórdido, Fred? Um pouco pérfido? Uma punhalada pelas costas?

— Quer dizer que tudo o que os exércitos americanos transportaram pertence agora aos Estados Unidos?

— Isso não nos compete a nós decidir, nem a mim, nem a si. Isso é da competência de outras instâncias. A sua missão consistia em descobrir os locais de armazenamento, revistá-los e conduzir lá os seus superiores, assinalando o que foi descoberto na sua lista. Cumpriu o seu dever com sucesso. Eisenhower, Patton e Bradley apertaram-lhe a mão e felicitaram-no, não é verdade?

— Sim, em Merkers, uma cidade de Turíngia. Descobrimos lá o maior tesouro de toda a guerra. Mas onde se encontra ele agora?

— Em que é que isso lhe diz respeito, Fred?

— São quadros de Rubens, de Caravaggio, de Ticiano, de Ucello, de Masaccio, O Homem do Capacete de Ouro, de Rembrandt, e o busto de Nefertiti... Onde estão?

— E o seu coração de alemão começa a palpitar, Friedrich Silbermann, não é verdade?

Quando Silverman quis responder qualquer coisa, Walker ergueu a mão num gesto de negação.

— Queria então que eu o libertasse para se tornar nosso adversário?

— Não sir. Desejo apenas...

— Não farei nada disso, Fred. vou promovê-lo a comandante, prendê-lo ao seu juramento de oficial americano e pronto! Vamos enviá-lo como adido para a Embaixada da Nova Zelândia. Aí não se arriscará a provocar um desastre, e poderá estudar a cultura dos maoris.

— Sir...

— É a minha última palavra, COMANDANTE Silverman! — Walker pôs-se de pé. Silverman teve de fazer o mesmo e pôs-se em sentido. — Apresente-se no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Lá estão ao corrente. A sua transferência para Wellington, na Nova Zelândia, far-se-á a partir da próxima semana. Boa sorte, Fred... e tente tornar-se um especialista ao nível mundial no que se refere à cultura maori.

Walker despediu-se com um sinal da cabeça. Silverman apenas podia bater em retirada, dizendo para consigo: «Não me deixarei tratar desta maneira! Não encobrirei um desvio de obras de arte. Deve haver uma solução e eu hei-de encontrá-la!»

No dia seguinte, escreveu uma carta a Michael Wachter, para o Palácio de Catarina, em Puchkine, perto de Leninegrado, URSS.

A carta nunca chegou ao seu destino.

Em 1956, Michael Wachter festejou os seus setenta anos.

Que festa em Puchkine e no Palácio de Catarina! Mikhail Igorovitch, «o fantasma do castelo de Tsarskoie Selo» como alguns jornalistas lhe chamaram, apareceu de novo nos jornais. Descreveram a sua vida e a dos antepassados, com fotografias onde se via o presidente da Câmara de Leninegrado a colocar-lhe um colar de flores ao pescoço, como faziam nas ilhas do Pacífico, prendendo-lhe uma medalha no casaco. Agaiev, cujo rosto se tornara quase completamente amarelo, pronunciou um pequeno discurso de louvor, que terminou, tossindo, com a frase seguinte:

— Para ele, a fidelidade não era apenas um critério, mas um apoio onde ele ia buscar forças, apesar de não ter realizado o seu grande projecto de voltar a trazer a Sala de Âmbar para Puchkine.

Wachter considerou essa frase como uma insolência. Nikolai e Jana tiveram muita dificuldade em persuadi-lo que renunciasse a dizer na resposta: «O camarada Agaiev faz benzem lamentar. Se a sua administração desse para a Sala de Âmbar os rublos que desperdiça em funcionários inúteis, talvez nos pudéssemos encontrar há muito diante dessa obra de arte.»

Assim, Wachter absteve-se de qualquer comentário, deixou que o festejassem e o abraçassem, apertou numerosas mãos e voltou então a Puchkine onde o esperava um grande jantar.

No decorrer dos últimos onze anos de paz, tinham-se passado mais ou menos coisas, conforme o ponto de vista adoptado pelo povo ao qual se pertencia. Na cidade, continuava a haver filas infindáveis em frente das lojas. Os kolkhozes1 e os sovkhozes2 cumpriam os seus planos sem que o nível de vida aumentasse por isso, o que deixava muitas pessoas perplexas. Mas quem tinha rublos suficientes, podia comprar secretamente carne, ovos, gordura, champanhe e vinho da Crimeia, assim como conhaque e, é claro, vodca, a bebida por excelência. Obtinha-se também farinha, sêmola, trigo, cebolas, pepinos em conserva ou cogumelos marinados, além de frutos secos ou em compota...

Camaradas, que mais desejar além de comer bem, beber bem e dormir ao lado de um corpo quente de mulher?

 

1 Nome dado às diversas formas de empresas cooperativistas na agricultura soviética (N do E)

2 Propriedades rurais estatais da URSS, de grande extensão, com culturas experimentais, que forneciam as sementes e o gado aos Kolkhozes (N do E)

 

Temos necessidade do luxo dos capitalistas? Da moda e dos perfumes franceses? Do golfe inglês? Ou dos bifes americanos de Hollywood? Dos Mercedes alemães ou de férias em Maiorca? Ergam os vossos copos, queridos amigos — dentro de dez anos será ainda melhor. Poderemos oferecer ao mundo o que há de mais precioso: o tempo. O tempo, camaradas, não é o que nos faz falta...

Nikolai tivera a ideia de colocar a mesa do festim na Sala de Âmbar. Cobriram as paredes nuas com estofos amarelos e os frescos do tecto brilhavam à luz das numerosas lâmpadas que iluminavam também o pavimento precioso. O paizinho Mikhail encontrava-se sentado ao lado dos seus netos, Peter e Janina, o filho e a filha de Jana, com nove e sete anos de idade. Jana era agora uma bela mulher de trinta e três anos, muito admirada, sempre esbelta, mas com formas arredondadas. Quando ela se ria e inclinava a cabeça para trás, esticando-se, Nikolai, o seu marido, e isto é preciso que se diga francamente, causava inveja a todos os outros homens.

Nessa noite, Wachter teve uma grande surpresa quando, depois da refeição, uma mulher alta e morena, dos seus trinta anos, se aproximou dele e se apresentou com o nome de Vassilissa Ivanovna Jablonskaia.

— Trago-lhe um belo presente de Moscovo — dise ela com a sua voz de contralto. — Eu!

— Que classe! — gracejou Wachter erguendo o seu copo. — Seja bem-vinda, Vassilissa Ivanovna... Mas eu faço hoje setenta anos. Que pensa poder fazer por mim?

— Realizar o sonho da sua vida. — Fez um pequeno gesto antes de acrescentar alegremente: — Devo informá-lo da parte da Comissão Central de Moscovo que as pesquisas relativas à Sala de Âmbar vão recomeçar. Eu sou a directora da Comissão Especial. Vamos trabalhar em conjunto, Mikhail Igorovitch.

O velho Wachter pôs-se a dançar como um bávaro, deu meia volta sobre si mesmo e atirou o seu copo contra a parede.

Todos os convidados começaram a rir, pensando: «Então, avô, o vodca sobe-te depressa à cabeça?» E muitos copos foram partir-se ao lado do dele.

No fim de contas, Fred Silverman fora parar não a Moscovo, mas a Pequim, sempre longe de tudo. O general Walker, na reforma há três anos, começara realmente por o enviar para a Nova Zelândia, para um lugar que o punha completamente afastado. Regulavam-se pela regra de ouro, a qual diz que o tempo apaga tudo e que, ao fim de vinte ou trinta anos, poucas recordações persistem e poucas pistas se podem seguir. É que a maior parte das testemunhas morreram entretanto. Silverman foi, por conseguinte, transferido para o o outro lado do mundo e, por clemência, deixaram-no em seguida mudar-se para Pequim, uma experiência grandiosa para um historiador de arte da sua competência. Uma maneira de tirar da sua vida a recordação dos tesouros que os nazis tinham escondido nas minas de sal alemãs e austríacas.

De qualquer modo, o público teve direito a poucas informações sobre esse assunto que se queria esquecido. Apenas uma vez, transpirou algo, quando o antigo chefe do Central Collecting Point de Wiesbaden, Mr. Walter Fermer, observou amargamente: «Não podíamos conceber que nós, os americanos, nos preparássemos para fazer exactamente o mesmo que Hitler. Tratava-se, para nós, de ’pôr sob a nossa protecção’ quadros pertencentes a um outro país. Essa decisão tinha como singularidade atenuar as lacunas das colecções americanas.»

As galerias particulares também aproveitaram, assim como os amadores de arte ou simplesmente os especuladores. Durante a ocupação americana, obras de arte mundialmente conhecidas, provenientes dos museus de Berlim, desapareceram, principalmente as que se encontravam na mina de sal de Grasleben. E os serviços secretos começaram por confiscar quase todas as listas pormenorizados, que em seguida se evaporaram. Só muito mais tarde foi possível saber-se quais eram algumas das obras desaparecidas. Assim aconteceu com o Tesouro de Príamo, a jóia por excelência do departamento egípcio, bem como com 80 esculturas de pedra das colecções indianas e, pelo menos com tudo aquilo que a seguir se menciona: 50 caixotes com várias esculturas, 34 caixotes com objectos de arte asiática — todas elas insubstituíveis —, 330 vasos da Antiguidade e com um imenso conjunto de quadros célebres (tais como o de Menzel, Concerto para Flautas em Sanssouci, ou o tão admirado Rapaz de Naxos, encarnação da beleza e da harmonia gregas).

Todos estes tesouros e ainda muitos outros não haviam sido levados pelos russos, tendo-se evaporado a ocidente.

Nos anos do pós-guerra, deram-se também eventos curiosos. Os empregados e os conservadores dos museus de Berlim, que sobreviveram ao fim do Reich de Hitler e que procuravam os objectos de arte desaparecidos por altura dos últimos transportes de Berlim para Grasleben e Merkers, a 6 e 7 de Abril de 1945, começaram a morrer misteriosamente.

O chefe do departamento de antiguidades foi hospitalizado devido a uma apendicite benigna. Operado, recuperou sem problemas e sentia-se bem restabelecido, mas, no dia em que devia sair do hospital, morreu subitamente. Diagnóstico rápido: cancro nos intestinos.

Quatro dias mais tarde, o chefe do departamento de esculturas, o que fora mais danificado, engoliu uma dose mortal de cianeto, depois de ter feito a lista dos objectos de arte desaparecidos. Esta nunca foi encontrada.

O conservador do Museu de Etnologia foi encontrado morto com uma bala à sua mesa de trabalho. Falou-se em suicídio, assim como relativamente à morte com o cianeto. Mas porquê? Nenhum deles parecia ter a mínima razão para se suicidar.

No Verão de 1945, o restaurador de quadros da Galeria Nacional morreu por sua vez, depois de ter feito, a 7 de Abril, um inventário detalhado dos quadros.

E o homem que se apercebera desses factos enigmáticos não se encontrava disposto a falar mais deles. Os amigos faziam correr o rumor de que ele receava pela sua vida.

E o tempo, os anos, estenderam um véu de esquecimento sobre todas as hipóteses e verdades.

Na longínqua Pequim, Silverman recolhera essa volumosa massa de informações. Tinha agora quarenta e quatro anos, e como conselheiro da embaixada podia esperar uma velhice agradável. Há dez anos que não falava da Sala de Âmbar, considerada como perdida desde que fora deixada na mina de Merkers. Esqueceram completamente o desaparecimento dos três camiões com os vinte caixotes e a morte do pobre Noah Rawlings, esse soldado ímpar do Exército americano. Um incidente infeliz como milhares de outros durante a guerra. Para quê grandes discursos? Os antigos relatórios de Silverman foram relegados para os cofres-fortes do OSS e tornaram-se, daí em diante, inacessíveis. Tinham sido destruídas tantas coisas. Quantas cidades não eram ainda ruínas fumegantes? Quem iria excitar-se por causa de uma sala em pedra de âmbar? Podia-se passar sem ela. Depois de uma guerra perdida, apenas contava o milagre económico alemão! Era preciso formar um bloco contra o Leste!

Silverman adaptou-se à nova maneira de pensar, pelo menos aparentemente. A Sala de Âmbar deixara de alimentar as conversas, e depois da partida do general Walker, para o seu sucessor no OSS, Silverman nada significava; não conhecia nada da história íntima dos diplomatas no Extremo Oriente.

Silverman, por seu lado, viu nessa mudança uma grande oportunidade. Começou por enviar para Washington um certificado médico do clínico da embaixada. O doutor Humbert Seykonone, meio japonês, conversava muitas vezes com Silverman. Este, quando já tinha bastante confiança com ele, falou-lhe da Sala de Âmbar. Seykonone, japonês de coração, recordava-se dos roubos feitos pelas tropas americanas nas ilhas japonesas ocupadas, nos templos, nos cemitérios e nos santuários.

Apertou, portanto, a mão a Silverman, dizendo-lhe:

— vou dizer que está doente, Fred. Apoiarei o seu pedido de demissão e explicarei também ao embaixador que um homem como você merece repousar e aproveitar os últimos anos da sua vida na Florida ou na Califórnia.

— Nesse caso, Humbert, vai ser preciso inventar uma doença muito pérfida — objectou Silverman com ar pensativo. — Se resultar.

— Tentemos.

Seykonone encontrou uma doença difícil de verificar e suficientemente grave para justificar a reforma de Silverman. O certificado afirmava que Silverman sofria de uma nefrosclerose benigna, uma afecção renal dos pequenos vasos. Isso devia bastar.

com efeito, Silverman foi convocado para ir a Washington, ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Ali, foi recebido por um funcionário muito afável que lhe apertou a mão sem deixar ver a compaixão por causa da doença.

— Caro Silverman, examinámos atentamente o seu pedido de demissão. Como se sente?

— Muito cansado. E tenho náuseas terríveis. Sem falar na obstrução renal. Às vezes, tenho a impressão de que me vou partir ao meio.

Silverman decorara bem as recomendações de Seykonone.

— Mais vale estar de boa saúde — disse tolamente o funcionário. — Compreendemos bem a sua situação. Estará pronto a deixar o seu lugar dentro de quatro semanas?

— Seria um grande alívio para mim. Gostaria de me retirar para Monterey e dedicar-me ao golfe.

— Andar ao ar livre far-lhe-á bem — aquiesceu o funcionário. Tentou reconfortá-lo, mas Silverman rejubilava interiormente e imaginava o que o outro estaria a pensar: «Pobre diabo. Quer jogar golfe sem saber que em breve irá morrer.» — Vamos preparar tudo, Mister Silverman.

Três semanas mais tarde, Silverman recebeu no seu hotel a notícia de que se encontrava liberto do serviço diplomático e dos serviços secretos, com todas as honras. Recebeu um belo título, um aperto de mão de um secretário de Estado, a confirmação de uma reforma confortável... Deixou assim de ser um funcionário americano, um antigo comandante dos serviços secretos do OSS, um «caso especial» como quando trabalhara sob as ordens do general Walker. Tinha liberdade de acção, podia instalar-se em qualquer parte do mundo, e, também, jogar golfe em Monterey, a sul de São Francisco.

De Washington, telefonou para Pequim, para o doutor Seykonone.

— Humbert, estou-lhe muito agradecido. Há nove horas que sou apenas Fred Silverman, o reformado.

— Os meus parabéns, Fred — respondeu Seykonone. — E agora, que vai fazer?

— Vender o rancho do meu pai, reunir todo o dinheiro e dirigir-me para a Alemanha. Mas quero ainda fazer-lhe uma pergunta, apenas para me tranquilizar: não sofro realmente de nefrosclerose?

— Você tem uns rins de rapaz, Fred. Se dependesse deles, podia viver cem anos. Boa sorte na fria Alemanha.

— Obrigado, Humbert. Talvez venha mesmo a utilizar esses cem anos. — E desligou.

«Foi a minha última conversa telefónica com um funcionário americano», pensou. «Agora, vai ser preciso arranjar dinheiro, comprar um bilhete para Frankfurt e tornar-me outro homem. Um judeu alemão volta à Alemanha para procurar uma Sala de Âmbar russa. Regressa para um país que exterminou toda a sua família. Um pouco absurdo... mas necessário.

«Sou o único a saber mais do que os outros.»

Os negócios com o bordel, a casa de passe e o espectáculo pornográfico caminhavam às mil maravilhas. Larry Brooks e Joe Williams reinavam secretamente como senhores e controlavam, à americana, todo o tráfico de prostituição.

Após a reforma monetária de 1948, os alemães tinham de novo dinheiro suficiente para passarem uma hora ou duas com as «hospedeiras», mas o negócio derivava sobretudo da abertura de outros cabarés pornográficos com espectáculos eróticos, sem tabus, nos quais cada espectador pudesse participar. E quando clubes privados, onde se praticava a mudança de pares e grupos de quatro, começaram a surgir de todos os lados, Larry e Joe enriqueceram ainda mais. Os que abriam um bordel sem a sua «autorização», recebiam a visita de Larry e, quase sempre, o caso estava solucionado ao fim de dez minutos. Conforme o funcionamento da Mafia de Nova Iorque, de Chicago, de Nova Orleães e de outras cidades, os contratos de tutela eram assinados e os pagamentos faziam-se mensalmente. Alguns intrépidos que recusavam não levavam mais de seis meses a irem ter com Larry e Joe, a assinar e a pagar... Nem toda a gente podia renovar regularmente o equipamento ou ir tratar-se por ter levado uma facada.

Entretanto, Larry cometeu um erro que pôs todo esse belo tráfego em perigo.

Em 1955, um agente imobiliário propôs-lhe a compra de uma vila no Taunus, um edifício branco com ares de castelo com a sua cavalariça própria, um lago, florestas cheias de caça e uma quinta para alugar. Uma propriedade de sonho que — como dizia Larry a si próprio — lhe convinha muito, pondo de lado o facto de que o preço de onze milhões de marcos ultrapassava as suas possibilidades. Mas ele sabia o que tinha a fazer e, em oito dias, reuniu essa quantia. A casa senhorial no Taunus podia ser comprada.

Uma noite, em casa de Joe Williams, Larry passou por um mau momento. Carla, a amante de Joe, não estava em casa e Joe parecia diferente. Fora ele próprio quem abrira a porta, em vez do mordomo, e conduzira Larry para a sala sem dizer uma palavra. Foi só depois de estar instalado no bar, no grande salão, e após ter servido um uísque duplo a Larry, que Joe se pôs na frente dele, cruzou os braços sobre o peito e ergueu o queixo.

— Leste o jornal? — começou por dizer.

— Qual? — perguntou Larry, com um nó no estômago.

— O Frankfurter Allgemeine.

— Sim.

— Conta-se lá que três objectos de arte de grande valor, desaparecidos até aqui, apareceram num antiquário. Dizem também que, quando a polícia quis intervir, já eles tinham sido vendidos para a América, para um coleccionador desconhecido. Tratava-se de um ícone da escola de Novgorod, de uma custódia de mil quinhentos e dezoito e de um quadro de Tiepolo. — A voz de Joe, embora calma, era particularmente ameaçadora. — Tanto quanto me lembro, esses objectos de arte pertenceram a um certo Larry Brooks.

— Joe, posso explicar-te...

— Creio que farás bem em fazê-lo.

— Posso comprar uma casa de sonho. com um lago, uma cavalariça para cavalos de corrida, florestas... no Taunus. E tem também uma grande quinta.

— Quanto custa? — perguntou secamente Williams.

— Onze milhões de marcos.

— És doido, Larry. Perdeste a cabeça...

— Faltavam-me só nove mil marcos! Uma miséria! Se não a comprasse, era um árabe que ficava com ela. Então eu...

— Foste ao cofre buscar umas bugigangas.

— Sim, Joe.

— E não pensaste em me falar.

— Não. Ter-me-ias dado essa quantia?

— Em caso algum.

— Estás a ver?

Larry esvaziou o segundo copo. Havia qualquer coisa no olhar de Joe que lhe metia medo.

— Estou a ver e a ler. Se esse antiquário se resolve a falar...

— Não o fará, Joe...

— Toda a gente tem as suas fraquezas... Pensa, por exemplo, no teu caso, Larry! Se o tipo abre a boca... que se passa a seguir? Abre-se uma pista e os cães de caça irão segui-la. Os historiadores de arte, os conservadores de museus, a polícia, os serviços secretos, o CIC... toda a matilha contra nós.

— Não disse o meu nome. Nunca chegarão até nós, Joe.

— A palavra «nunca» não existe na vida, Larry. Se eles vierem a saber que o Werwolf não tem nada a ver com o nosso desaparecimento, irão interrogar-nos a respeito dos vinte caixotes! E tudo isto de nada terá servido! Onze anos a jogar às escondidas... inúteis. Levam-nos para os Estados Unidos e tratam-nos da saúde até dizermos onde se encontra a Sala de Âmbar! E tudo isto porque Larry Brooks quer viver como um príncipe. Num castelo...

— Não sucederá nada, Joe. Acredita-me. Nada! — gritou Larry, quase suplicante. — A pista vai perder-se na areia.

— Não conto com isso — disse Joe, afastando-se do bar e começando a andar de um lado para o outro.

Larry seguia-o com o olhar e observava cada um dos seus movimentos. De súbito, Joe parou diante dele, sem nada dizer.

Larry sobressaltou-se.

— Lembras-te de Noah? — perguntou Joe.

— Lembro-me com custo — respondeu de imediato Larry, fazendo uma careta.

— Tens de voltar a fazer a mesma coisa.

— Não, Joe, não! — exclamou Larry recuando bruscamente. — Não sou um assassino, bem sabes. Levei anos a esquecer a expressão de Noah antes de cair.

— É a nossa única protecção, Larry. Pegas na pistola alemã e rectificas a tua asneira. E não compras o castelo!

— Joe, eu não sou idiota e também não sou o teu urso de circo! Faço o que quero!

Williams fez um gesto, como para varrer aquela fraca tentativa de revolta.

— É preciso pôr as coisas em ordem, Larry — repetiu ele com uma voz glacial. — E eu encarrego-me de fazer chegar a Sala de Âmbar aos Estados Unidos...

— Podes mandá-la para lá, Joe? Por que meio?

— A partir de Génova, de barco.

— E como é que levas os vinte caixotes para Génova?

— Aplicando dinheiro onde é preciso.

— É uma loucura tentar corromper um alfandegário alemão!

— Mas não o comandante de um avião de carga americano Atlas. No porto de Génova, isso é moeda corrente.

— E lá, Joe?

— Larry, tu és tarado. É evidente que os caixotes não vão chegar a Nova Iorque, Boston ou Baltimore. Desembarcarão no México e atravessarão depois a fronteira. Também aí serão úteis os dólares. — Joe encostou-se novamente ao bar. — Mas agora é a tua vez de agires, Larry. O teu antiquário deve adormecer.

— Não posso fazer isso, Joe! — gritou Larry com voz histérica. — Não tenho nervos tão sólidos como os teus.

— Infelizmente, Larry. Mas o destino reuniu-nos. Fizemos o maior golpe de todos os tempos e dependemos um do outro... Anima-te, rapaz. Tens apenas trinta e cinco anos... restam-te certamente quarenta anos para viver, Larry. Quarenta anos!

Nessa noite, Larry Brooks embriagou-se de tal maneira que teve de ficar na vivenda de Joe. Nem sequer deu por este o meter na cama.

Dois dias mais tarde, os jornais de Frankfurt publicaram a seguinte notícia:

Herr Sch., antiquário, foi encontrado morto em sua casa a noite passada. Segundo a polícia, não há quaisquer indícios sobre os autores do crime. Nada foi roubado, o que afasta a hipótese de crime para roubar. Segundo a primeira autópsia, o assassino utilizou uma velha pistola da Wehrmacht, uma 08. Os círculos autorizados revelaram que julgam que o assassinato do antiquário se encontra relacionado com as obras de arte recentemente descobertas por ele e depois vendidas, pois aquelas tinham desaparecido desde o fim da guerra. Uma secção especial da Polícia Criminal empreendeu pesquisas que vão principalmente nessa direcção. Os peritos pensam que as obras de arte possam ser provenientes do Palácio de Catarina, em Puchkine-Leninegrado, pilhado em 1941 por tropas alemãs e Sonderkommandos. Entre essas obras de arte, encontrava-se a famosa Sala de Âmbar, que continua sem aparecer.

— E pronto! — exclamou Williams depois de ter lido o jornal e de o ter atirado à cabeça de Larry, que se encolhia no sofá, com uma expressão de sofrimento e as lágrimas nos olhos. — Voltam a falar da Sala de Âmbar! E uma merda, Larry! Temos de tirar os vinte caixotes da gruta e levá-los para Génova! E porquê? Porque Larry Brooks, o tipo saído dos bairros da lata, queria viver como um príncipe! Numa casa senhorial! com cavalos de corrida! Lago particular! Não fiques para aí a choramingar!

— Matei um homem, Joe! — lamentou-se Larry, com a cabeça escondida entre as mãos. — Pela segunda vez! Estou completamente acabado.

— Até depois de amanhã... depois, isso passa-te.

— Não creio, Joe.

— Mas creio eu... A Sala de Âmbar tem cada vez mais valor. Custou já duas vidas humanas.

Ao ouvir estas palavras cínicas e aterrorizadoras, Larry sentiu-se gelado de horror.

Numa cinzenta manhã de Novembro, que tornava a cidade de Génova ainda mais feia, o que ela já era de qualquer maneira, sobretudo o porto, o Lukretia, um barco a motor, deixou o cais. Navegava sob o pavilhão libanês, tinha um comandante grego e na sua tripulação havia homens de todas as nacionalidades. Transportava máquinas agrícolas para o México, grandes caixotes novos entre os quais não se notavam os vinte velhos que tinham sido levados de noite para bordo. O comandante recebera cinquenta mil dólares. com tal quantia, Joe sabia que não fariam perguntas, pelo que se mostrava generoso.

Alguns dias antes, Joe fora a Colónia a fim de despistar as investigações que, eventualmente, estivessem a ser feitas, e pedira uma ligação com pré-aviso, para os Estados Unidos, Whitesands. Foi o velho mordomo que atendeu, e Joe, disfarçando a voz, disse-lhe que se tratava de uma chamada importante para o dono da casa. Quando ouviu a voz do pai, exclamou:

— Sou eu, papá!

— Quem fala? — perguntou o velho Williams muito tenso.

— Joe, papá.

— Isso não é possível. O meu filho morreu na Alemanha nos últimos dias da guerra. Tem uma esteia em Whitesands.

— Papá, sabes bem que estou vivo. Como foi combinado, não dei notícias durante vários anos. Pensei em ti quando fizeste os setenta e cinco anos, mas não era ainda a altura de reaparecer.

— Que quer? — perguntou o velho Williams bastante rudemente. — Onde se esconde?

— Na Alemanha, papá. Como está a mamã?

— A minha mulher morreu há sete meses.

— A mamã... morreu? — Joe engoliu a saliva várias vezes. — De que morreu?

— Em que é que isso lhe interessa? Está a fazer-me perder tempo? Não o conheço!

— Papá! Era minha mãe...

— O filho dela morreu há onze anos, seu mentiroso! — gritou o velho Williams. — Já não tinha filho! Morreu contente por o filho ter morrido como um herói... e não como um gangster!

— És TU que me dizes isso, papá? Precisamente TU? Tiveste sorte toda a vida, eis a verdade! Se assim não fosse, tinhas ido parar à cadeira eléctrica! E eu que queria voltar para casa!

— Contenta-te em estares onde estás! — A voz do velho Williams era implacável. — Poderia suceder um acidente no caminho para Whitesands.

— Papá! Serias capaz de fazer uma coisa dessas?

— O meu filho Joe morreu na guerra! Ficamos assim!

O velho Williams desligou. Joe ficou um longo momento a olhar para o auscultador antes de desligar por sua vez e pagando em seguida o telefonema.

«Bem, assim não existo», pensou. «A Sala de Âmbar pode estar em qualquer sítio, não preciso de Whitesands para isso. Bye bye, Dad1 foi a nossa última conversa.»

O transporte dos vinte caixotes que era preciso tirar da gruta de Taufstein não apresentou qualquer dificuldade. Larry Brooks alugou uma pequena escavadora a uma empresa de construção civil, conduziu-a até à caverna e, em seis horas, abriram a entrada. Joe alugara um camião e um

 

1 Bye bye, Dad: Adeusinho, pai.

 

armazém nos arredores de AIsfeld, para onde transportaram a Sala de Âmbar, fazendo várias viagens. Depois, deixou que decorressem duas semanas. Voltaram a fechar a gruta com gravetos, deixando assim à Inspecção das Águas e Florestas o problema de encontrarem uma explicação pouco plausível para tal facto.

As coisas complicaram-se com o comandante do Atlas, na base aérea americana de Frankfurt. Joe Williams colocou vinte mil dólares sobre a secretária, mas o capitão Hugh Fortner permaneceu inflexível.

— Joe, não quero aldrabices.

— Não é aldrabice. Trata-se de uma herança minha.

— Então, por que motivo queres que a leve à socapa?

— Por causa dos direitos alfandegários. — Joe bateu com as notas na secretária. — Isto também é dinheiro livre de impostos. E tens entrada livre no meu bordel, onde poderás escolher as mais bonitas raparigas. Para sempre.

Fortner reflectiu. Fora muitas vezes ao bar de Joe e à sua casa de passe. Conheciam-se bem. Joe tinha, com efeito, as mais bonitas raparigas de Frankfurt, e vinte mil dólares limpos eram qualquer coisa. Uma vez por semana, pilotava o Atlas até Génova, para ir buscar abastecimentos ao porto e fazer entregas num navio americano. Os transportes militares americanos tinham passagem livre, ninguém os controlava, as sentinelas do porto conheciam-nos, e os vinte caixotes não representavam na realidade qualquer problema.

— Não se trata de um negócio escuro? — insistiu Fortner.

— Afianço-to, Hugh. Preciso simplesmente de levar esses caixotes, nada mais.

— Está bem. vou então ajudar-te. vou mandar-te um camião.

— Dois, Hugh. Os caixotes são grandes.

— Okay. Quando?

— Um dia antes de partires. Estarão em AIsfeld.

Daí em diante, tudo correu sem incidentes, como previsto. Dois enormes camiões da US Air Force foram buscar os caixotes e levaram-nos para a base aérea, onde foram carregados a bordo do Atlas de Fortner, com a designação de «mercadorias a transportar» — o que, de resto, não era mentira. A inscrição «Companhia das Aguas de Kõnigsberg» fora coberta. No dia em que Fortner descolou para Génova, Larry e Joe partiram também para a Itália.

Tinham contratado provisoriamente um manager para tomar conta dos negócios deles, um jugoslavo familiarizado com o meio de Frankfurt. Joe dissera-lhe claramente:

— Vamos estar ausentes pelo menos seis meses. E agora presta bem atenção ao que te digo, meu rapaz. Se as contas não estiverem certas, se julgas poder enganar-nos, se alguma coisa correr mal por tua causa, a tua mamã pode mandar-te uma coroa, está bem?

— Mensagem recebida — respondeu o jugoslavo, fazendo um sinal com a cabeça. — Não vou abusar da tua confiança.

— Dizem todos o mesmo. É melhor não fazeres asneiras, meu velho.

O Lukretia entrava agora nas águas salobras do porto de Génova e devia aparelhar no dia seguinte. Tinham repartido habilmente os caixotes com a Sala de Âmbar por entre os outros com maquinaria agrícola. Os caixotes com a Sala mudavam de nome pela terceira vez. Traziam agora a menção «motores e peças soltas». Vinte e cinco mil dólares encontravam-se já no bolso do comandante grego, que deveria receber ainda a mesma quantia depois de descarregar a mercadoria no México.

— O grande golpe resultou em cheio! — exultou Joe Williams, nessa noite. Disse-o a Larry Brooks como prelúdio do discurso que lhe fez a seguir. — A Sala de Âmbar saiu da Alemanha. Agora, ninguém a poderá encontrar, mesmo que a procurem durante cem anos. Não há mais pistas. — Olhou para Larry com ar satisfeito. — Se não tivesses um coração tão sensível, Larry...

No dia seguinte, um dia frio e chuvoso de Novembro, o Lukretia deixou Génova e dirigiu-se para o Mediterrâneo.

Nessa mesma tarde, Joe Williams partiu de Génova de avião para Roma, continuando depois para o México.

Só três dias mais tarde é que uma vedeta do porto descobriu qualquer coisa a flutuar na água. Aproximou-se e um marinheiro içou-a para bordo. Era um homem com um orifício na testa. Tratava-se de um desconhecido. Um crime que nunca seria esclarecido. Larry Brooks foi assim enterrado anonimamente em Génova.

O terceiro morto da Sala de Âmbar.

 

 

Tudo se passara como o general Walker previra anos antes. Ao regressar à Alemanha, o comandante americano Fred Silverman voltara a ser Friedrich Silbermann, o judeu emigrado que esperava chegar a uma Alemanha mais acolhedora e exorcizada. Levava consigo dólares suficientes para levar uma vida sem problemas durante anos. No entanto, solicitou, apoiado numa carta de recomendação, um lugar de historiador de arte na Universidade de Wurtzburg. Após longas deliberações, o Senado da universidade acolheu-o como mestre de conferências na Alma Mater.

Tinha poucos alunos e muito tempo livre para se entregar às pesquisas sobre a Sala de Âmbar. Eram já decorridos catorze anos desde o desaparecimento dos três camiões na estrada para Frankfurt, e todos os peritos estavam convictos de que a Sala de Âmbar se volatizara para sempre. Todas as pistas seguidas até então pelos amadores de arte, conservadores dos museus, comissões oficiais e até pelos serviços secretos de diferentes países, nomeadamente os americanos e os russos, não tinham levado a coisa alguma. Embatiam incessantemente num muro de ignorância e todos diziam: «Ninguém sabe se os caixotes continham realmente a Sala de Âmbar. A única certeza é que chegaram em Janeiro de 1943 e que foram retirados em Abril.»

Havia relatórios de trinta e quatro lugares diferentes: minas, castelos, fortalezas, bunkers subterrâneos, grutas e mesmo conventos, mas tratava-se apenas de uma etapa intermédia nos caminhos complicados seguidos pelos caixotes, pelo que a sua importância era impossível de avaliar.

Nem a própria Suíça foi poupada às pesquisas, tendo o seu Governo protestado vigorosamente. Fizeram-se pesquisas intensivas na Áustria, após a descoberta, em Alt-Aussee, de um dos maiores stocks nazis de objectos de arte roubados. Não era tão espectacular como o existente em Grasleben ou em Merkers, mas supunha-se que havia ainda, justamente na Áustria, numerosos tesouros «reservados ao Fúhrer»... destinados ao maior tesouro do mundo em Linz, na margem do Danúbio. O sonho devastador de Hitler.

Silbermann admirava-se muitas vezes com a fantasia dos investigadores e a sua euforia quando julgavam encontrar uma pista. O que ele sabia, não lhe servia de coisa alguma, antes pelo contrário, tornava-o ainda mais suspeito.

Uma visita ao quartel-general de Frankfurt devia tê-lo alertado.

O bureau central de registo das obras de arte das Forças Armadas americanas fora dissolvido há muito tempo. Nos diferentes serviços que Silbermann visitou, olharam-no fixamente, com um ar espantado. Os oficiais não se recordavam de coisa alguma e tomavam um ar vago. Finalmente, Silbermann foi deter-se onde nunca pensara ir parar, ao CIC.

Os antigos colegas reservaram-lhe um acolhimento cordial, mas contentaram-se em responder com uma ignorância verdadeiramente ingénua às suas perguntas. Praticamente, nunca tinham ouvido falar da Sala de Âmbar, a não ser na imprensa. Ao consultar nos arquivos as listas das obras de arte descobertas, foi preciso constatar que haviam desaparecido páginas inteiras dos dossiers, e um coronel do CIC chegou mesmo a dizer a Silbermann:

— Caro amigo, porque há-de ocupar-se dessas coisas? Isso só lhe acarretará aborrecimentos. No que me diz respeito, podem enviar a Sala de Âmbar para a Lua. Não chorava por isso...

Ao fim de seis semanas de pesquisas nos dossiers dos serviços secretos, Silbermann descobriu a cópia da lista de Merkers. Que sorte! Tinha, por fim, a prova de que a Sala de Âmbar fora guardada na mina Kaiseroda II/III.

Mas, depois de examinar essa lista, Silbermann deixou cair os documentos e esfregou os olhos. «Não é possível», disse para consigo, estupefacto. «Esta é a minha lista. Eu próprio a assinei. Não posso crer.»

A lista estava completa, mas tinha um defeito: não incluía os vinte caixotes que continham a Sala de Âmbar. As linhas tinham sido apagadas e logo substituídas com outras enumerações.

— Tem a certeza? — perguntou-lhe o coronel quando Silbermann lhe mostrou a falsificação. — Sabe que está a suspeitar do CIC? O senhor, um comandante americano, um diplomata? Tem uma prova da sua acusação?

— Os originais, sir.

— Estas são as listas de origem. Não há outras.

— Há a minha lista!

— Esta é a sua. Tem a sua assinatura.

— O documento foi falsificado!

— É uma afirmação monstruosa, Mister Silbermann. Terá de apresentar a prova!

— Fá-lo-ei, sir. Tenho uma testemunha digna de fé. O presidente Eisenhower! Em mil novecentos e quarenta e cinco, ele encontrava-se na mina de Merkers com o general Patton e o general Bradley. Falei-lhe da Sala de Âmbar e fiz abrir um caixote. Ele viu-a e ficou emocionado.

— Quer citar o presidente como testemunha? — perguntou o coronel, completamente petrificado. — Leva a insolência ao ponto de citar o presidente dos Estados Unidos como testemunha de um pretenso roubo de objectos de arte? Mister Silbermann, começo a sentir vergonha em pensar que uma pessoa como o senhor foi oficial americano. Do OSS, ainda por cima.

— A verdade não depende das pessoas ou dos postos que elas ocupam, sir.

— A verdade é que o senhor faz afirmações caluniosas! — explodiu o coronel, congestionado. — A verdade é que o senhor nunca foi americano e continuou sempre a ser um judeu alemão. E a última verdade é que os homens como você me repugnam!

Silbermann não ficou admirado com a reacção do CIC. Os tesouros que, depois de 1945, tinham sido «encontrados e entregues ao proprietário legítimo», representavam apenas uma parte ínfima das obras de arte desviadas pelos nazis. Continuava o mistério sobre os locais de possível armazenamento e a isso respondiam habitualmente com um encolher de ombros e com a frase lacónica: «Ah, isso foi durante a guerra! Desapareceu tanta coisa...»

Quatro semanas mais tarde, um motociclista descobriu à beira de uma estrada, entre Munique e o lago Ammer, o corpo ensanguentado de um homem. Alertou a polícia e uma ambulância transportou o ferido grave ao hospital mais próximo. Quando o despiram, verificaram que recebera seis facadas no baixo ventre. A polícia encarregou-se imediatamente do caso, mas o ferido não se encontrava ainda em estado de depor. Sobreviveu por milagre e, quatro dias depois de ter entrado no hospital, declarou:

— Chamo-me Friedrich Silbermann. Sou ainda cidadão americano e resido em Wurtzburg. Feri-me a mim próprio. Queria-me suicidar. É tudo quanto posso... e desejo exprimir.

Que teria podido dizer Silbermann? Que lhe tinham enfiado um saco na cabeça no corredor do seu prédio e que o tinham levado para um automóvel? E que, ao cabo de algumas horas, o carro parara algures, sendo ele puxado para fora, e a seguir encostado a uma árvore? Então, alguém lhe dissera:

«Hoje trata-se apenas de um aviso, mas que te sirva de lição. Sabes porque te ameaçamos, Fred Silverman.»

Depois tinham-lhe dado seis facadas, ele escorregara para o solo e, após lhe tirarem o saco da cabeça, os homens meteram-se no automóvel, que de imediato se pôs em andamento com os faróis apagados. Ele não conseguira distinguir nem o número da matrícula, nem sequer a cor da viatura.

«São profissionais», pensara Silbermann antes de perder os sentidos.

Deveria falar? Fariam um processo que iria apodrecer no fundo de um armário. Mais um acidente misterioso. E inexplicável.

Silbermann permaneceu quatro semanas no hospital. Ao sair, quando subia para o táxi que chamara, sentiu na nuca que o observavam. Conhecia bem aquela sensação. Mas não reparou em nenhum carro que fosse a segui-lo.

Tratava-se realmente de profissionais.

Veio a descobrir-se que Vassilissa Ivanovna Jablonskaia mantinha, não só as melhores relações com Moscovo e Leninegrado, como também recebera plenos poderes do Ministério da Cultura e até do KGB, o que lhe permitia pedir um apoio total a um qualquer bureau soviético, civil ou militar.

Isso tornou-se evidente aquando das diversas deslocações que empreendeu com Michael Wachter. Houve primeiro uma viva discussão porque Nikolai não queria que o pai, agora com setenta anos, partisse em viagem, e Jana Petrovna perguntava seriamente a si própria se não deveria acompanhá-lo. Os filhos eram já suficientemente autónomos para os deixar com um professor de Puchkine que se encontrava reformado. Pé ter tinha nove anos e Janina sete, e ambos, além de alardearem a beleza da mãe, mostravam ser crianças sensatas e razoáveis. Jablonskaia exprimiu em voz alta aquilo que o avô Michael dissera já em voz baixa, cheio de orgulho:

— Peter e Janina teriam podido outrora servir de modelo a Rafael e a Tiepolo.

Nikolai e Jana queriam, portanto, acompanhar o velho Wachter e falaram com ele três dias antes da partida. Começaram por lhe dizer:

— Paizinho, está tudo em ordem. Nikolai encontra-se de férias, as crianças ficarão no castelo com Arkadi Trofimovitch, o velho professor. Está tudo bem.

— Nada está bem! — objectou Wachter, furioso. — Acham bem que uma mãe deixe os filhos e que um guarda abandone o seu posto? Isso é que está bem?

— Devo guardar uma sala vazia, pai? — respondeu Nikolai. — Se a Sala aqui estivesse, eu não me iria embora. Bem o sabes! Mas é impossível ires sozinho à procura dela.

— Vassilissa Ivanovna acompanha-me.

— E achas que chega? E se tu adoeces, se partes uma perna, se te acontece qualquer coisa? Janaka é agora uma boa enfermeira. Não esqueças, paizinho, que já és velho.

— O que é que sou? — disse Wachter, irritado, pois não suportava a menor alusão à sua idade.

Não se sentia velho. Não tinha a menor fraqueza nos ossos e nos músculos. O seu coração era sólido como há quarenta anos, não tinha as veias obstruídas e reflectia facilmente. Só o seu ombro esquerdo ficara ligeiramente defeituoso quando os aviadores — por sinal soviéticos — o alvejaram. Fora isso que lhe fizera perder de vista a Sala de Âmbar, o que ainda mais o irritava. Mas não era um velho com o qual fosse preciso ocuparem-se como se fosse uma criança, isso não.

— Vocês consideram-me um velho inválido! — gritou. — Por quem me tomam? Acham que preciso de uma enfermeira pessoal? De um filho para me levar aos ombros?

— Não é disso que se trata, paizinho — interveio Jana, tentando acalmá-lo. — Quatro pessoas vêem melhor do que duas...

— Cada um no seu lugar — teimou Wachter, inflexível. — vou partir com Vassilissa Ivanovna...

Quando seguiram para Leninegrado, onde os esperava um avião para Berlim Leste, Jana ficou com os filhos no Palácio de Catarina, mas Nikolai insistiu em acompanhar o pai.

— Um Wachter pertence à Sala de Âmbar. Serei eu um Wachter? Sem dúvida. Onde está a Sala de Âmbar? Desapareceu. Quem tem o dever de a procurar? Um Wachter. Repito: sou ou não um Wachter? Que podes responder a isto, paizinho?

— És tão teimoso como eu — acabou por admitir Wachter, batendo no peito do filho com tanta força que este cambaleou ligeiramente. — Está bem. Chega de discutir. Estou contente por Janinka ficar em casa. Todos sabemos as dificuldades que nos esperam. Poderá até ser perigoso. Há quem saiba onde se encontra a Sala de Âmbar e não hesitará em fazer-nos mal.

— É por isso... que é melhor que eu te acompanhe — disse Nikolai.

Ficaram apenas três dias em Berlim. Foram recebidos pelo comandante soviético da cidade na Casa de Acolhimento do Exército Russo, em Karlshorst, onde estudaram os planos detalhados elaborados em Moscovo, nos quais Jablonskaia trabalhara durante anos. Havia três pistas principais: Grasleben, Merkers, e a Áustria, com Alt-Aussee, Dachstein e Hollengebirge... Mas muita erva crescera durante onze anos sobre os campos e as recordações.

— Procuremos do lado da Turíngia — sugeriu Wachter após ter examinado a fundo os mapas, os locais, os relatórios e as hipóteses. — Merkers... foi lá que as coisas se passaram. Na mina de Kaiseroda. Se ao menos se soubesse onde vive o capitão Silverman! Ele viu a Sala, segundo disse. Foi ele que organizou o transporte para Frankfurt. E foi aí que três camiões, com os vinte caixotes, foram supostamente atacados e roubados pelo Werwolf. Vinte caixotes! Podiam, com efeito, corresponder à Sala de Âmbar! É também a opinião de Silverman... Meus caros, devemos começar por procurar em Merkers. Uma vez mais! Para quê ir para a Áustria? Ou para Grasleben? São apenas pistas falsas.

Meteram-se no comboio de Berlim para Weimar e aí puderam ver o poder do passaporte de Vassilissa Ivanovna. O comandante soviético deu-lhes imediatamente um carro, não uma viatura militar de cor acastanhada, mas um automóvel civil, discreto, cuja verdadeira natureza só era conhecida pelos funcionários das bombas de gasolina, pois os Wachter e Jablonskaia tinham direito a gasolina gratuita ao apresentarem os seus atestados soviéticos.

Merkers sofrera poucas mudanças. A mina de sal estava a funcionar apenas a metade das suas possibilidades. Eberhard Moschik, o director, morrera dois anos antes e Johannes Platov, o inspector que em 1945 guiara Eisenhower, Patton e Bradley através da imensa galeria subterrânea e lhes mostrara os tesouros, já não se recordava de coisa alguma. Dois anos antes, fora atropelado por um carro desconhecido, ao sair do restaurante Grunen Baum, onde ia habitualmente. O choque atirara-o ao ar. Sobrevivera, mas a fractura do crânio deixara-o inválido e amnésico.

A nova direcção da mina mostrou-se muito cooperante. Um contramestre conduziu a «comissão», como dissera Jablonskaia, ao apresentar-se a si e aos seus companheiros, a quatrocentos e cinquenta metros de profundidade, para lhe mostrar vastas e insuspeitadas galerias onde haviam sido armazenados, em 1945, os preciosos tesouros dos museus de Berlim, quase toda a riqueza do Reich, bem como a Sala de Âmbar. Um vazio desolador estendia-se na frente deles. Restavam apenas os carris da via estreita que atravessava toda a mina.

— Foi então aqui! — murmurou Wachter parado no mesmo sítio onde estivera Eisenhower, entusiasmado com tanta beleza.

— É o que se supõe — disse o contramestre encolhendo os ombros. — Eu tinha na altura quinze anos. O meu pai contou-me que a Wehrmacht e as SS trouxeram vagãos cheios de caixotes, de caixas e de sacos para a mina. Mas nenhum de nós, juro-o, sabia do que se tratava. Ignorávamos que o novo quartel-general de Hitler ia ser construído nas proximidades e que o Gauleiter Koch tinha intenção de se esconder em Saalfeld. Claro que notámos o facto de se fazerem muitas construções subterrâneas...

— Poderia dar-se o caso de vinte caixotes serem escondidos nos bunkers e nos corredores do quartel-general de Hitler?

— Era possível. Havia lá bastante espaço. Uma cidade fortificada debaixo da terra.

— Tenho aqui os planos — disse Jablonskaia batendo na mala que trazia ao ombro. — De qualquer maneira, quero lá ir.

Falava russo. Nikolai ia traduzindo, mas o jovem guarda abanou a cabeça.

— É inútil darem-se a esse trabalho — objectou. — Está tudo vazio. Se na altura ali esteve alguma coisa, foi levada pelos americanos. — Fez um gesto amplo que abarcou tudo. — Aqui também nada deixaram a não ser caixotes abertos^ caixas partidas e sacos rasgados, sem nada.

— E a única pista séria que nos resta — disse Wachter quando voltaram à superfície e se encontraram na cantina em frente de uma cerveja, na companhia do director da mina e do contramestre. — Os vinte caixotes provenientes de Kõnigsberg partiram daqui para oeste com um comboio americano. Ê os três camiões com o seu carregamento desapareceram sem deixar rasto e só foram encontrados, vazios, muito mais tarde.

— com um condutor morto. Um negro — explicou o director. — Se bem me lembro, um condutor foi abatido, dois outros desapareceram e o carregamento foi roubado... Os americanos puseram pelo menos metade de um exército à procura deles. Carros, infantaria, helicópteros e peças de artilharia. — Encarou Wachter que olhava para o seu copo de cerveja. — Pensa que a Sala de Âmbar estava nesses vinte caixotes?

— Estava, sim! — exclamou Wachter, apertando o copo. — Como poderei falar com o capitão Silverman? Deve ser possível encontrá-lo.

— Não na América — disse Jablonskaia folheando os seus dossiers. — Tentámos tudo em Moscovo... Sem resultado. O embaixador americano também praticamente nada nos adiantou. As cartas que lhe são endereçadas vêm devolvidas. Escrever para o OSS é inútil, porque não se sabe se as cartas lá chegam. Não sabemos até se nos encontramos na lista de pessoas sob alta vigilância. Rodeiam esse Silverman com um muro de silêncio.

— Isso prova que ele sabe mais do que toda a gente — concluiu Nikolai olhando para o pai. — Devíamos fazer um anúncio. No New York Times, o maior jornal americano.

— E se ele vive na Califórnia ou no Alasca... só por acaso é que leria esse jornal.

— Já ganhámos algumas batalhas graças ao acaso — observou Jablonskaia. — O conselho de Nikolai é judicioso. Um anúncio de «Procura-se» no New York Times. É o que devemos experimentar.

— E que morada daremos? — perguntou Wachter esvaziando o seu copo.

— Puchkine? Não chegará lá nenhuma carta. Berlim Leste? A minha intuição diz-me que não é favorável. Escolhamos uma morada a ocidente.

— Talvez em Frankfurt — sugeriu Nikolai, vendo o pai abanar a cabeça com ar pensativo. — Silverman era oficial no OSS de Frankfurt. Se ler o anúncio com um endereço local, poderá adivinhar quem o procura.

Mas, antes ainda de fazerem esse anúncio, dirigiram-se a todas as localidades indicadas nos planos de Jablonskaia, onde poderiam ter visto a Sala de Âmbar, mais exactamente vinte caixotes transportados pela Wehrmacht, as SS e mesmo a Luftwaffe. Visitaram trinta e cinco castelos, galerias, subterrâneos e conventos, minas e grutas, desceram a caves e a corredores cavados na rocha, falaram com presidentes de Câmaras, funcionários, abades, curas e criados... Por todo o lado afirmavam ter visto os grandes caixotes que tinham sido levados em meados de Abril. Transportados por viaturas alemãs para um destino desconhecido.

— As informações são exactas — disse Jablonskaia, novamente sentada diante da pilha de dossiers.

Haviam alugado um apartamento em Frankfurt e aproveitaram para visitar Grasleben e outros locais de descobertas na região de Góttingen. Contrariamente às da Turíngia e do Saxe, as autoridades da Alemanha Ocidental mostraram-se muito reticentes e até agressivas, sobretudo quando Vassilissa Ivanovna apresentou os seus papéis que lhe davam plenos poderes do lado soviético.

— Já chega — disseram-lhes um dia num conselho municipal. — Os russos querem espiar tudo! Procuram obras de arte roubadas! Que ousadia! E eles, que levaram? Metade da Prússia Oriental! Konisgsberg chama-se agora Kaliningrad! Devíamos dizer-lhes que fossem para o diabo! Tinham decorrido mais de seis meses. Havia centenas de pistas, mas nenhuma era boa.

— Se reunirmos todas as informações — disse Jablonskaia — a Sala de Âmbar parece estar em catorze sítios diferentes. Mas onde se encontrará realmente?

— Só Silverman o poderá saber — respondeu Michael Wachter, afastando as listas colocadas na sua frente. — O anúncio no New York Times é o único meio que nos resta de o encontrarmos.

Pouco antes do Natal, o seguinte anúncio apareceu no maior diário americano:

Pedimos a Mr. Fred Silverman, antigo capitão do exército americano na Alemanha, em 1945, acantonado na região de Merkers, para dar sinal de vida. Seria bom voltarmos a ver-nos, Fred. Dê notícias para o endereço seguinte...

Não mencionaram nenhum nome, apenas a rua, o número e o andar. O anúncio era caro, mas foi a embaixada soviética de Roland Seck-am-Rhein que pagou a factura.

— Agora, só nos resta esperar — suspirou Nikolai.

O Natal aproximava-se. com o coração pesado, pensava que nesse ano não cantaria as canções de Natal com os filhos debaixo do pinheiro enfeitado e que perderia também a festa russa do Died Maroze1. Pensou com tristeza em Jana Petrovna, com a qual só pudera falar duas vezes ao telefone no decorrer dos seis últimos meses. As cartas dela pareciam tão alegres e no entanto, estavam cheias de uma nostalgia oculta. E perguntava a si próprio, com inquietação: «Para quê tudo isto? Nunca encontraremos a Sala de Âmbar!»

Foi então que o velho Wachter lhe deu coragem, dizendo:

— A Sala ainda existe! Não foi destruída! — afirmou com convicção. — Está escondida em qualquer sítio e resta-nos a esperança de encontrar uma boa pista que nos conduza até ao sítio certo. É preciso apenas continuar a falar dela, não abrandar os nossos esforços, interpelar as

 

1 Literalmente. «Pai Gelo», que na Rússia faz as vezes de Pai Natal (N da T)

 

pessoas, abrir os olhos... Sim, meus caros... falar com as pessoas, não com as autoridades. Nada temos a esperar dos serviços oficiais, pois para eles somos apenas russos comunistas maçadores, inquisidores, insolentes, aos quais se recusa qualquer informação e a quem impedem o acesso aos arquivos e aos vestígios do passado. Estamos sós, completamente sós... Podemos contar apenas com o acaso e com a ajuda da população. Não devemos parar e temos de continuar a gritar através de todo o país: Que sabem da Sala de Âmbar? Que viram em mil novecentos e quarenta e cinco, ou hoje? Que ouviram dizer? Digam-nos. Todas as informações contam.

Chegou o Natal. Vassilissa Ivanova e os Wachter festejaram no seu apartamento enfeitado com um pequeno pinheiro, tendo como ementa um ganso assado, vinho tinto, bolinhos, um bolo de Natal e pão de especiarias. Para Jablonskaia, era o primeiro Natal alemão. Fora educada como boa comunista, sem festa de Natal, em casa, pois os membros do Komsomol não davam importância às festas cristãs. Diziam que o nascimento de Lenine era mais importante do que o de Jesus. Que trouxera Ele? Apenas perturbações no seio dos povos e um capitalismo selvagem. Enquanto Lenine criara um Estado, uma nova Rússia, o país dos sovietes, uma sociedade inteiramente nova, uma lança do socialismo num mundo apodrecido pelo capitalismo.

Jablonskaia, sentada em frente do pequeno pinheiro enfeitado com velas, ouvia na rádio as canções de Natal alemãs e sentia um pouco a emoção que se apoderava de todos no silêncio e no recolhimento dessa festa. Nikolai escrevera uma longa carta a Jana, enviara a Pé ter uma grua telecomandada e a Janina uma boneca que falava, abria e fechava os olhos. Esperava que os presentes chegassem ao seu destino. Uma encomenda enviada de Frankfurt para Leninegrado passava por tantas mãos...

No dia seguinte, Vassilissa, Nikolai e Michael Wachter saíram juntos para se distraírem num restaurante onde o maítre d’hôtel usava fraque e cumprimentava cada cliente inclinando-se. Estava frio nessa noite, a neve derretida gelara e era preciso avançar prudentemente, agarrando-se uns aos outros.

— Se não me cheirasse tão bem a comida, deixava-me estar sentado no meu cadeirão! — comentou Wachter. — Dêmos o braço, meus caros... O gelo não me mete medo. Recordem-se do Inverno em Puchkine. Foi lá que crescemos...

Não se adiantou mais nas suas considerações. Uma detonação ecoou na obscuridade, talvez perto deles, a partir da entrada de uma casa, ou de uma janela, ou mesmo do canto da rua. Nesse momento, Nikolai escorregou por acaso, mas esse movimento salvou-lhe a vida. A bala passou-lhe por cima da cabeça com um silvo, bateu na parede, fez ricochete, passou em frente dos olhos do velho Wachter e foi perder-se na rua.

O velho teve também o bom reflexo de se deixar cair e, como estavam agarrados uns aos outros, caíram todos com ele. E quando a segunda bala passou com um silvo, estavam já estendidos no solo. Se estivessem de pé, um teria sido atingido no ventre.

Ficaram deitados no chão gelado durante um bom minuto. Depois, o venho Wachter ergueu a cabeça, olhou para todos os lados como um lobo perseguido, pôs-se de joelhos e apalpou com a mão direita as costas de Nikolai e de Vassilissa.

— Estamos na boa pista — disse ele, em russo. — Se querem matar-nos é porque estamos muito perto da Sala de Âmbar. — Endireitou-se, apoiando-se na parede do prédio, esperando que Jablonskaia e Nikolai fizessem o mesmo. — Que maravilhoso Natal, meus caros! Oferecem-nos a Sala de Âmbar... basta ir buscá-la ao sítio certo. Acabaremos por a encontrar à força de perseverança, de coragem e com a ajuda de Deus.

Os vinte caixotes carregados a bordo do Lukretia com as máquinas agrícolas tinham chegado ao seu destino em bom estado. O comandante grego acostara primeiro em Agiaba, um pequeno porto insignificante no golfo da Califórnia, um ninho de mosquitos e de parasitas no meio dos pântanos. Joe Williams não teve qualquer dificuldade em falar com o alcaide da aldeia, para o incitar, com cinco mil dólares, a enviar dois barcos de fundo chato até ao Lukretia. Este lançara âncora em frente da costa, permitindo o transporte dos vinte caixotes para terra. Joe encontrava-se no México há três semanas. Depois, metera-se no avião para Chihuahua e daí partira para Navojoa, onde o esperava o radiotelegrama do Lukretia. O comandante grego desembarcou também em Agiaba com o segundo barco. Estendeu a mão a Williams. Este pagou-lhe sem regatear.

— É um cavalheiro, Mister — observou o comandante. — Poderia ter-me dito para me pôr a andar sem me pagar mais nada.

— E que teria você feito então?

— Teria ido ao posto de polícia mais próximo.

— É por isso que lhe estou a pagar — respondeu Joe com uma voz subitamente fria e dura. — Mesmo que não lhe tivesse pago não me poderia trair. — Mostrou o solo arenoso. — Nesse caso, ficaria aqui estendido com um buraco na testa.

— Eu bem dizia que você era um cavalheiro — retorquiu o comandante, metendo as notas no bolso. Depois, levou a mão ao boné num gesto de despedida. — Espero não voltar a vê-lo.

— Pode estar certo disso, comandante, boa viagem.

— Tente ser feliz com os seus caixotes. Afinal, o que é que eles contêm?

— Raios de sol aprisionados...

— Ah! — exclamou o comandante, sorrindo.

Bateu então na testa e ordenou que o conduzissem de novo para o Lukretia. «Mais um doido», pensou. «O dinheiro deve realmente amolecer o cérebro destes americanos.»

Alegrou-se ao sentir o maço de notas no fundo dos bolsos e sentiu-se satisfeito por ter encontrado aquele louco.

Joe Williams aprendera, ao contrário dos seus concidadãos, a fazer as coisas com tempo. Não era febril, nem mesmo nos negócios, e a corrida à concorrência não o interessava. Mandou então transportar os vinte caixotes de Agiaba para Ciudad Juarez, mesmo na fronteira do Novo México, em frente de El Paso. Alugou um armazém, guardou lá o seu carregamento, fechou a porta e dirigiu-se a El Paso a fim de comer uma boa refeição, ir para um hotel e arranjar uma rapariga de compridos cabelos castanhos, celebrando assim a chegada dos caixotes. A Sala de Âmbar estava na América. Nunca mais ninguém a encontraria. Não existia qualquer pista. Até mesmo a do capitão Silverman se deteria em Alsfeld, quando do ataque do Werwolf que matara três soldados, entre os quais o pobre Noah Rawlings, o único a ser descoberto... Além disso, isso passara-se há onze anos. Quem sabia o que teria sucedido ao capitão Silverman?

De El Paso, telefonou mais uma vez para Whitesands, para falar com o pai.

— Papá — começou por dizer —, sei que estou morto para ti. bom, aceito isso. Seria absurdo aparecer agora em Whitesands depois de aí ter um monumento fúnebre. Eles têm necessidade do seu herói e tu do teu. Mas quero fazer-te uma pergunta: quem vai herdar a tua fortuna de gangsterl

— Criei uma fundação a favor dos Cancerosos. Tudo irá para lá tudo!

— E muito generoso da tua parte, papá. Eles nunca te esquecerão. Terás até direito a um monumento. Whitesands vai talvez transformar-se em Williamsburgh. Fazes o possível por alcançar a imortalidade. De maneira diferente de Al Capone. Ele entrou na lenda como o maior gangster... Tu entrarás como o maior benfeitor. É genial, papá... eles nunca te apanharam!

— Que quer? — interrompeu o velho Williams sentindo repugnância como se estivesse a pisar um rato.

— Quero que ponhas dez milhões de dólares numa conta para a minha velhice.

— Trabalhe — replicou o velho.

— À tua maneira? Não estás a falar a sério, pois não? Que são dez milhões de dólares para ti? Calculei um dia, num momento de tranquilidade, quanto terias ganho em quarenta anos de tráfego de brancas. Só com isso... sem falar no resto. Papá, esse «negócio» encheu-te de ouro até aos ossos.

— Para onde quer que os envie? — perguntou impacientemente o velho Williams.

— Como?

— Os dez milhões de dólares, crápula!

— Hei-de mandar-te dizer. Obrigado, papá.

— Quando?

— Para te mostrar que herdei o teu grande estilo, quero que mós deixes apenas quando morreres. Uma instrução no teu testamento.

— E se eu me esquecer?

— Seria a primeira vez que o grande Williams não cumpriria a sua palavra. Mas suponhamos que se dava esse caso. Whitesands desapareceria em fumo e a fundação para o cancro seria roubada todos os meses até que os dez milhões de dólares fossem parar a um certo cofre. Só assim teria paz.

— És nojento! — exclamou o velho Williams, desgostoso.

— Sou teu filho. — Joe começou novamente a rir. — Devias orgulhar-te de mim.

Desligou antes que o pai o cobrisse de insultos ainda mais grosseiros.

Pouco antes do Natal, Joe Williams voltou a meter-se no avião para Frankfurt. Instalado em primeira classe, onde serviam champanhe, Williams estendeu as pernas, ergueu o seu copo para a hospedeira loura com um piscar de olhos, bebeu um gole e desdobrou o New York Times que lhe tinham levado com a bebida. Era um jornal volumoso, como sempre, e se se quisesse lê-lo a fundo, a sua leitura poderia demorar dias inteiros. Joe começou pela política e depois pelo desporto. Ao folhear as páginas de anúncios, observou um deles, enquadrado, que leu superficialmente, até que o espanto lhe fez franzir os sobrolhos.

Não lera o nome de Silverman? Era absurdo — mas o seu cérebro registara-o. Voltou imediatamente atrás, encontrou o anúncio e leu-o de lábios franzidos.

Capitão Fred Silverman. Era ele. Não podia ser outro. E alguém o procurava... em Frankfurt, justamente em Frankfurt. Parecia ser uma questão importante, pois tinham publicado um anúncio enquadrado no New York Times.

Joe arrancou a página do jornal, dobrou-a e guardou-a no bolso. Começou então a reflectir. Não era sem uma razão que procuravam Fred Silverman. Não se tratava simplesmente de lhe apertar a mão e o cumprimentar, dizendo-lhe: «Que prazer em vê-lo! Vamos conversar!» Não! Quem procurava Silverman tinha um motivo sério para o fazer, não havia dúvida. E o que é que dava importância a Fred Silverman? As pesquisas da Sala de Âmbar desaparecida.

Joe Williams sentiu-se muito inquieto. De repente, a viagem parecia-lhe que nunca mais acabava. Do aeroporto, dirigiu-se imediatamente para o bordel da Moselstrasse. Apareceu de repente em frente do manager jugoslavo, que ficou completamente assombrado.

— Hélio boy — disse Williams amigavelmente. — Manda tirar as minhas malas do táxi e depois mostra-me a contabilidade.

— Mister Brooks também veio? — perguntou o jugoslavo.

— Não. Larry ficou nos Estados Unidos. Conheceu uma rapariga que lhe fez perder a cabeça e só pensa em deixar-se depenar.

Subiu ao seu apartamento, de onde podia controlar todos os quartos com câmaras e microfones ocultos. Tirou então de uma gaveta um plano da cidade e procurou a rua indicada no anúncio. Ficava nas proximidades do Jardim Zoológico, uma rua tranquila com prédios do princípio do século, um sítio agradável para residir.

No dia seguinte, Joe dirigiu-se discretamente ao local, num Volkswagen. Parou em frente do imóvel indicado para o observar e teve a sorte de ver Vassilissa Ivanovna sair, com uma carta na mão, que foi meter numa caixa de correio três ruas adiante. Pôs o carro em andamento, ultrapassou-a, chegou à caixa antes dela e fingiu estar ali para meter uma missiva. Depois, quando sentiu a mulher atrás de si, voltou-se bruscamente, chocou com ela, tomou um ar consternado e inclinou-se:

— Perdão! — exclamou. — Não a vi! Que desajeitado fui! Não a magoei?

— Não há nada partido — respondeu Vassilissa num alemão incipiente que se compunha apenas de algumas palavras. — Não faz mal — disse sorrindo com benevolência.

Joe ficou junto da caixa do correio depois da partida de Vassilissa. «Uma russa», pensou. «Sim, é uma russa. E com certeza que não está sozinha! Que é que os russos querem do capitão Silverman? É inútil fazer a pergunta trinta e seis vezes porque a resposta é evidente. Os russos procuram a Sala de Âmbar. Sabem que Silverman foi o último a vê-la. Têm uma pista e agora vão segui-la como lobos. Os russos podem chegar até mim. Atenção, Joe! Então, estes onze anos não serviram de nada? Mas tenho agora a vantagem de saber quem eles são, enquanto eles nada sabem de mim. Tenho essa vantagem. Posso esmagá-los.»

Joe vigiou o prédio durante mais dois dias. Viu também Michael Wachter e Nikolai... sozinhos os dois e com a mulher. «São apenas três», verificou Joe, tranquilizado. «Três contra mim, que lhes sou desconhecido! Não chega a ser um problema. Basta disparar três vezes, sem me verem.»

No dia a seguir ao Natal, voltou à rua calma, perto do Jardim Zoológico, à procura de uma ocasião. Levava consigo a antiga pistola com a qual Larry matara o antiquário... Se encontrassem nos corpos dos três russos balas disparadas pela mesma arma, a polícia deduziria que existia uma organização nazi que, por qualquer razão, liquidava todos aqueles que estavam relacionados com os tesouros roubados... O mistério mais total... Um verdadeiro pesadelo para qualquer funcionário da polícia!

Joe tivera sorte. Vira sair os três. Escondido por entre os arbustos de um jardim, do outro lado da rua, apontou cuidadosamente, certo de acertar no alvo. Depois sucedeu que, no preciso momento em que ia carregar no gatilho, o visado escorregou. A bala foi acertar na parede e as três pessoas ficaram estendidas no solo antes que o segundo tiro pudesse atingi-las. Joe Williams viu-se então obrigado a afastar-se rapidamente, pois as luzes da porta de entrada do prédio tinham-se acendido.

«São profissionais» pensou Joe, sentando-se ao volante. «Bem treinados. Não se deixam intimidar. Uma 08 não é suficientemente rápida para eles. Preciso de trazer uma metralhadora e transformá-los em passadores. Tenho de tratar disso entre o Natal e o Ano Novo. Caso contrário, posso ficar em maus lençóis.»

Pôs o carro em andamento e avançou lentamente — o pavimento estava coberto de gelo — até ao fim da pequena rua calma, tendo ainda tempo de ver os três entrarem rapidamente no prédio.

«Teria Silverman lido o anúncio e iria apresentar-se?», perguntava Joe Williams a si mesmo ao regressar para o bairro junto da estação. Viria ele a Frankfurt para se encontrar com os russos? Seria a melhor coisa que poderia suceder. Bastaria então ocupar-se dele e deixaria os russos irem-se embora. Só havia um perigo para ele: Fred Silverman.

E havia de o liquidar, tinha a certeza.

Quando chegaram a casa, Vassilissa, Nikolai e Michael tiraram os seus pesados casacos e sentaram-se na sala.

O samovar1 de cobre cintilava sobre uma mesinha redonda. Vassilissa Ivanovna comprara-o para lhes dar conforto, e a embaixada soviética, que pagava todas as despesas, exigindo as facturas, não o considerara uma compra inútil. Um verdadeiro russo devia ter sempre um samovar e um tabuleiro de xadrez em casa.

— Eles agora encontraram-nos — disse Wachter estendendo as duas mãos para pegar na chávena de chá escaldante, a fim de beber prudentemente um pequeno gole. — Eu tinha a certeza de que estávamos na boa pista. Querem matar-nos porque nos estamos a aproximar demasiado.

— E onde conduz a pista? — perguntou Jablonskaia, mergulhando uma colher num boião de mel para adoçar o chá.

— Acabaremos também por o descobrir. Como são estúpidos! Vão fazer com que os encontremos.

— Devias voltar para Puchkine, pai — disse Nikolai.

— Agora? Justamente agora? Nem penses nisso, meu filho! — protestou Wachter engolindo outro gole de chá. — Ah! Confessa que tens medo...

— Sim, pai, por ti. Se te matam...

— E se for a TI que eles abatem? Eu devia ter mais receio. Tu tens mulher e dois filhos... TU é que devias voltar para casa. Eu sou um velho. Sim, sou eu mesmo que o digo. Já vivi a minha vida. Que tenho a perder? Se isso servir para encontrar a Sala de Âmbar... que disparem sobre mim e que tu possas persegui-los e obrigá-los a dizer onde a escondem. Quero que a Sala de Âmbar volte para o Palácio de Catarina para que o mundo inteiro se incline perante tanta beleza. Valia a pena morrer por isso, não achas, meu filho? Para um lobo, o melhor que há é uma pista sangrenta...

— Acaba com esses discursos! — disse Nikolai, zangando-se e batendo com o punho sobre a mesa. — Vais meter-te no avião para Leninegrado!

— Não!

— Não sejas tão teimoso, paizinho!

 

1 Espécie de chaleira russa, constituída por uma vasilha em forma de urna, que se compõe de um recipiente circular, munido de uma ou várias torneiras na parte inferior, na qual se põe a água, e de um tubo cilíndrico onde se colocam brasas acesas que a fazem ferver. (N. do E.)

 

— Não me porão de lado!

— Mas queres forçosamente ser um mártir da Sala de Âmbar?

— Estás a ouvir, Vassilissa? Um filho a insultar o pai desta maneira! A levantar a voz contra ele! Que devo fazer? Ficar triste ou bater-lhe? Ele quer afastar-se justamente agora no momento em que podemos estar quase a apanhar a Sala! É agora que ele tem medo... ao atingirmos o objectivo... Olha para os olhos dele! Parece um boi no meio de um temporal! Nikolai Mikhailovitch, não quero ouvir nem mais uma palavra a esse respeito. Vassilissa, que dizes?

— Digo que devias dar ouvidos a Nikolai.

— Meter-me no avião para Leninegrado?

— Sim... logo que possível.

Wachter contemplou demoradamente o filho e a sensata Jablonskaia, abanou tristemente a cabeça, levantou-se e saiu da sala. No quarto, sentou-se na cama, pegou no velho ícone, pousou o tríptico desdobrado sobre os joelhos e passou o indicador sobre a silhueta de Cristo a abençoar.

— Senhor, não me abandones — murmurou. — Estou perto de realizar o desejo da minha vida. Permite-me que o realize.

Foi verdadeiramente por acaso que Friedrich Silbermann, depois de sair do hospital, pôde ler o New York Times do dia em que apareceu o anúncio. Voltara para sua casa, em Wurtzburg, havia apenas uma hora, quando bateram à porta e apareceram um comandante e um capitão do Exército americano na frente dele.

— Entrem! — disse Silbermann dando-lhes passagem.

Compreendeu imediatamente que aqueles homens pertenciam aos Serviços Secretos. Tinha lá estado demasiado tempo para não perceber logo quem se encontrava na sua frente.

O comandante e o capitão entraram no apartamento sem se apresentarem e, mesmo que o tivessem feito, teriam indicado falsas identidades.

— Estou satisfeito por os ver aqui — disse amavelmente Silbermann. — Um uísque. Não? É Bourbon verdadeiro, meus senhores. Não? Façam favor de se sentarem. Deixem-me adivinhar por que motivo se encontram aqui: querem desculpar-se pelo nosso anterior encontro, não? Só ignoro de quem se tratou exactamente. Foi o OSS ou o CIC? Durante as últimas semanas não deixei de pensar porque me teriam dado apenas facadas? Porque não um tiro entre os olhos ou um punhal no coração? No meu tempo, fazíamos um trabalho mais limpo.

— Não sei de que está a falar, Fred — respondeu o comandante, impassível. As palavras de Silbermann pareceram não ter qualquer efeito sobre ele. — Ouvimos falar dessa agressão contra si e estamos aqui porque continuamos a considerá-lo um dos nossos. Queremos ajudá-lo.

— A ajuda do OSS é comovente. Como é que me querem ajudar?

— Primeiro, dando-lhe um conselho: volte aos Estados Unidos.

— Sou professor em Wurtzburg e sinto-me muito bem.

— Para quê girar sempre à volta do mesmo assunto, Fred? — interveio o capitão, um homem novo, de aspecto enérgico, inclinando-se para a frente na cadeira. — Sabemos perfeitamente o que fez aqui na Alemanha.

— Claro que sim. É, de resto, o vosso trabalho.

— Isso é necessário?

— É. Ou sabem onde se encontra a Sala de Âmbar?

— Não se trata dessa maldita sala, Fred — retorquiu impacientemente o comandante. — O Governo quer, finalmente, ver acabados os boatos segundo os quais as nossas tropas terão roubado obras de arte em mil noventos e quarenta e cinco. O assunto aparece continuamente na imprensa alemã e internacional. Estamos mais mal colocados aí do que os russos! Mais tarde, poderá ler tudo o que contam sobre os tesouros nazis que supostamente nós levámos! — O comandante atirou um exemplar do New York Times para cima da mesa, inclinou-se, pegou no copo que Silbermann enchera e bebeu-o. — Se você se mete também no caso dessa Sala de Âmbar, os falatórios nunca mais acabarão.

— Não haverá rumores... vou procurar discretamente.

— Imaginemos que consegue descobrir a Sala de Âmbar.

— Seria o triunfo da minha vida.

— E depois? Soprará as trombetas para que as muralhas de Jericó caiam como outrora? Mas agora trata-se de Washington! Fred, nós estudámos os relatórios por si apresentados em mil novecentos e quarenta e cinco, segundo os quais os caixotes desapareceram ao mesmo tempo que três camiões. Somos, portanto, nós os responsáveis.

— Afirmativo. Na época, senti isso como uma derrota pessoal, que agora quero apagar da minha vida. O que poderá haver de mais compreensível?

— Está certo, Fred... mas desde então os tempos mudaram e a política alterou-se profundamente. O Leste é o mau, e nós devemos ser limpos, muito limpos. Essa mancha relativa ao roubo de obras de arte deve desaparecer, Fred. Não a agrave... é o que lhe pedimos. — O comandante encostou-se novamente para trás. — Fred, você é professor conferencista em Wurtzburg. Não se sente tentado por um lugar em Princeton?

— Não. De resto, já não me chamo Fred Silverman, mas sim Friedrich Silbermann. vou voltar a ser cidadão alemão. Exterminaram toda a minha família nos campos de concentração, eu tive tempo de fugir... Agora voltei porque, apesar de tudo, tinha saudades do país. Deixem-me tranquilo, meus senhores... deixem de me perseguir. Nós, os judeus alemães, já somos suficientemente perseguidos... Deixem-me em paz. Pensem que voltei, finalmente, ao meu país.

Nada mais havia a dizer. O comandante e o capitão levantaram-se, puseram os chapéus e saíram depois de aconselharem amavelmente:

— Pense bem, Fred.

Silbermann voltou para a sala, serviu-se de outro uísque, abriu o jornal e começou a ler o artigo sobre o roubo dos objectos de arte pelos americanos. Ao folhear as páginas, viu de relance o anúncio enquadrado, hesitou, pois julgou ler o seu nome, voltou atrás e leu o texto.

«É de mim que se trata», pensou com uma sensação de receio e de espanto. «Será um informador, ou tratar-se-á de uma armadilha? Tenho de tomar uma decisão. Ou ir lá ou esquecer o anúncio.»

Chegou a Frankfurt nessa mesma noite pelo expresso Munique-Colónia. Meteu-se num táxi para o Frankfurter Hof e arranjou um quarto. O vestíbulo estava enfeitado com um pinheiro e numerosos ramos de azevinho e só nessa altura Silbermann compreendeu que, no dia seguinte, seria a noite de Natal, uma festa que marcara todos os anos

da sua infância. Havia sempre bolos de mel e doces, toda a casa cheirava a pão de especiarias e a baunilha, e havia maná, o pão das festas judaicas. Nunca o apreciara, mas sempre o comera corajosamente para ter também direito aos brioches e aos bolos de chocolate.

«Corajoso», pensou. «Serei corajoso agora? Estarei prestes a pôr a minha vida em perigo para tentar encontrar a Sala de Âmbar? Para onde me poderá levar este anúncio? Como podem ter suposto que eu lesse este anúncio nos Estados Unidos? Quem me conhece em Frankfurt?»

Festejou o Natal sozinho num dos restaurantes do hotel. No dia seguinte, fez-se conduzir de táxi para a rua tranquila ao lado do Jardim Zoológico indicada no anúncio e, de passagem, observou o prédio onde era esperado. «Quem será que me quer falar?», disse para consigo. «Quem?»

O táxi passou por um Volkswagen, mas nem Silbermann nem Joe Williams prestaram atenção um ao outro.

«Esperemos», disse Silbermann para consigo. «Comecemos por estudar o local. Não pensam certamente que uma velha raposa dos serviços secretos se vai deixar cair facilmente numa armadilha. Temos muito tempo...»

Tomou a decisão de entrar no prédio depois do Ano Novo, a 3 de Janeiro de 1957, com um Smith & Wesson à cintura. Depois, durante três dias, exercitou-se no seu quarto a fazer tiro rápido. De pé, diante do espelho, gritava «Hop!» e arrancava a arma do cinto.

— Nunca serás um Gary Cooper! — disse certa vez, rindo para a sua imagem. — E o velho Wayne faz melhor. Mas para Frankfurt isto deve chegar. Basta apenas um segundo de avanço...

Entre o Natal e o Ano Novo, voltou a vigiar o local. Tinha alugado um carro e cruzou-se várias vezes com um Volkswagen sem dar por isso.

— Que brincadeira esta — lamentava-se Joe Williams durante todo esse tempo. — Ele virá ou não? Terá lido o anúncio? Quanto tempo demorará? Semanas? Malditos russos, voltem depressa para Moscovo.

A 3 de Janeiro, como pensara, Silbermann correu o risco de parar diante do edifício e de descer do carro. Joe sentiu como que uma pancada no coração. Estava estacionado num canto da rua e espreitava para o prédio com um binóculo.

Ele! O capitão Fred Silverman. O único que nunca acreditou num ataque do Werwolf e que pressentiu que a Sala de Âmbar não estava perdida para sempre.

Joe sentia o perigo quase fisicamente.

Viu Silverman entrar no edifício e compreendeu que, se hesitasse, seria como uma espécie de suicídio.

Afastou os dedos, apertou o volante, e sentiu-se gelado dos pés à cabeça, como se aquela noite fosse de lua nova.

Ao ouvir tocar a campainha, Nikolai foi abrir a porta. Empunhava uma pistola russa, uma Makarov de nove milímetros. Jablonskaia encostara-se à parede do corredor que dava para a sala, com o dedo no gatilho de um Stechkin, mais pequeno, mas mais rápido, com vinte balas. De qualquer maneira, Silbermann não tinha vantagem nem de um segundo...

— Sim? — perguntou Nikolai vendo um desconhecido. — Que deseja?

Falou em alemão e Silbermann respondeu-lhe na mest ma língua.

— Convidaram-me a vir aqui — explicou, olhando a Makarov. — O texto do anúncio parecia cordial... a recepção parece-me mais hostil.

— É o capitão Fred Silverman?

— Comandante. E hoje apenas Friedrich Silbermann.

— Entre. — Nikolai baixou a arma para deixar entrar Silbermann no vestíbulo. Fechou rapidamente a porta. — Está armado?

— Sim. E você também.

Nikolai estendeu-lhe a mão esquerda.

— Dê-ma...

— Não. Porquê? Que razão teria eu para disparar? Você estaria sempre em vantagem.

— É verdade — admitiu Nikolai mostrando a porta que dava para a sala. — Entre.

Silbermann aquiesceu com um baixar de cabeça, avançou para a sala, entrou e viu pelo canto do olho Vassilissa com o seu Stechkin. Quando entrou, um homem levantou-se bruscamente do seu cadeirão.

— Silverman! É realmente o senhor! — respondeu o homem idoso estendendo-lhe a mão. — Ainda me reconhece? Mil novecentos e quarenta e cinco... Salzburgo, o castelo de Klessheim...

— Wachter! Sim, é Wachter, o homem da Sala de Âmbar!

Dirigiram-se um para o outro, abraçaram-se e olharam-se com os braços estendidos.

— O senhor pouco mudou, Mister Silverman — observou Wachter.

— O senhor também não, senhor Wachter. Estamos apenas um pouco mais velhos, com rugas e cabelos brancos. Mas estamos ainda vigorosos, não é?

Foi uma noite maravilhosa. Beberam vinho do Reno, Vassilissa preparou pelmeni1 que serviu com cebolas fritas e pepinos à russa.

Silbermann contou as suas actividades diplomáticas na Nova Zelândia e na China, Wachter falou com orgulho dos netos, Peter e Janina, e das numerosas honras que recebera ao cumprir os seus setenta anos. Isso sucedeu até ao momento em que Jablonskaia colocou uma garrafa de vodca em cima da mesa e declarou:

— Basta de falar do passado. Falemos do presente e do futuro. Mr. Silverman, que se passou outrora com a Sala de Âmbar? Esteve realmente na mina de Sal de Merkers?

— Sim. Eu vi-a com os meus próprios olhos e mostrei um painel ao general Eisenhower! Um erro era impossível. Não se tratava de outra coisa.

— Vamos então fazer a reconstituição de tudo — propôs Jablonskaia indo buscar uma folha de papel. — Um mosaico compõe-se de numerosos pedacinhos. Procuremo-los juntos...

Silbermann ficou em casa deles até às duas da manhã, enquanto Joe Williams o esperava pacientemente no fim da rua.

Viu Silbermann sair em companhia do russo mais idoso que lhe batia amigavelmente no ombro. Mas não ouviu o que Wachter dizia:

— Daqui em diante, Friedrich, vamos unir os nossos esforços. Estou persuadido de que a Sala de Âmbar se encontra agora na América. Se seguirmos o rasto dela, havemos de a encontrar. Não se podem fazer desaparecer vinte grandes caixotes sem deixar rasto... Seja prudente, Friedrich.

 

’ Espécie de ravwhs russos. (N. da T.)

 

Os tiros disparados sobre nós provam que estamos na pista dos ladrões.

Silbermann subiu para o carro, depois de fazer um gesto de concordância e partiu. Seria por causa do vinho ou por ir verdadeiramente distraído, o que é certo é que duas ruas mais adiante, no momento em que ia entrar na rua principal, colidiu com um Volkswagen. Não foi um grande choque nem houve estragos, apenas o metal um pouco riscado, pois a velocidade era pequena, ao fazer a curva.

Silbermann saiu do carro e o condutor do Volkswagen saltou da sua viatura como um touro furioso e correu para ele, gritando:

— É cego? Eu vinha da direita! Não sabe o que anda a fazer? Anda à caça às putas?

Antes de poder compreender ou poder responder-lhe, Silbermann recebeu um uppercut em pleno queixo que o pôs KO. Caiu imediatamente e o condutor do Volkswagen arrastou-o até ao seu carro, deitando-o desmaiado sobre o banco de trás e partindo rapidamente.

Saiu da cidade e rolou em direcção a Kronberg, no maciço de Taunus. Parou logo que chegou à floresta, amarrou Silbermann com cordas de nylon impossíveis de desatar e depois seguiu o seu caminho. Quando ouviu o prisioneiro amarrado mexer-se atrás de si, fez um sinal com a mão e disse alegremente:

— Hélio, sir. Como está? Peço desculpa, capitão, mas foi necessária esta pequena artimanha. Os raptos só se praticam nos Estados Unidos.

— Quem é você? — perguntou calmamente Silbermann. — Brooks ou Williams?

— Joe Williams, sir. É espantoso. Ainda sabe os nossos nomes?

— Claro que sei, assim como sei que duas vezes um são dois! A história com o Werwolffoi uma boa ideia, sobretudo nessa época... mas nunca acreditei nela. Não deviam ter morto Noah Rawlings.

— Ele era demasiado perigoso. Gostava muito das brancas e das louras e na cama ter-se-ia gabado dos seus feitos. Um risco grande de mais para nós, sir.

— Então tem a Sala de Âmbar? — perguntou sem rodeios Silbermann.

E da mesma maneira directa, sem hesitar, Joe respondeu:

— Sim, senhor. vou conduzi-lo para lá.

Joe ouviu Silbermann retesar as cordas, mas nada havia a fazer contra as amarras de nylon. «Agora não sabe para onde vamos», pensou Joe friamente. «Deve ter uma sensação na barriga como se estivesse com diarreia. Assim é a vida. Será sempre assim: há vencedores e vencidos. O senhor é um tipo duro. Toda a gente o sabe... Saiba perder com elegância, capitão.»

— Sejam quais forem as suas intenções — prosseguiu Silbermann, sempre tranquilamente — , de nada servem. Falei com os de Leninegrado e eles estão ao corrente de tudo.

— Eles sabem tão pouco como o senhor, capitão Silverman. — Você é o único que me conhece... Para todos os outros, o desaparecimento da Sala de Âmbar será um enigma. Para a encontrarem, terão de passar por mim. Mas quem o sabe? Para todos os efeitos estou morto, mudei de nome, só podem identificar-me conhecendo-me a cara. E só uma pessoa se lembra dela. O senhor! Peço-lhe que compreenda que tenho de me proteger. No homem, o instinto de conservação é tão grande como a sexualidade. Domina o ser humano, sir. Devia ter ficado nos Estados Unidos, em vez de andar a perseguir um fantasma. Pois é isso que eu sou e que tenciono continuar a ser.

— Você é louco, Joe, completamente louco. Que vai fazer com a Sala de Âmbar? Nunca poderá vender um tal tesouro. E ela não tem qualquer valor aos bocados! Joe, diga-me onde se encontra a Sala de Âmbar e eu esquecer-me-ei de si. Dou-lhe a minha palavra. Que diz?

— Isso é absurdo, sir. Nunca tive a intenção de vender a Sala de Âmbar. Tenho dinheiro suficiente. Milhões de dólares herdados do meu querido papá gangster. E agora é inútil falarmos mais. Já não o ouço.

A 7 de Janeiro, esquiadores descobriram um cadáver nu e gelado nas ruínas de um castelo, no Taunus. O corpo encontrava-se trespassado por facadas e, ao lado dele, foi descoberto um comprido punhal e um bisturi. O morto perdera todo o seu sangue... que formara um charco gelado em torno dele. O mais terrível era o ferimento ao meio do corpo: o morto fora esventrado. O assassino parecia ter sido tomado de loucura.

Não havia documentos, mas foram achadas as roupas...

Ao ver uma fotografia publicada em todos os jornais, Wachter reconheceu imediatamente a vítima.

— É o fim — gemeu. — Sentia-se um velho quebrado e trémulo. — Nunca mais voltaremos a ver a Sala de Âmbar. Que importa quem a roubou... é mais forte e mais rápido do que nós. Já não há percurso que nos leve até ela. E perdendo Silbermann não nos resta qualquer esperança.

Telefonaram à polícia, dirigiram-se ao Instituto Médico Legal para identificarem o cadáver. Vassilissa levou uma rosa vermelha com um longo caule que colocou sobre o peito nu de Silbermann. Wachter acariciou as suas mãos geladas e Nikolai amparou o pai quando este começou a chorar.

Assistiram ao enterro e ficaram depois recolhidos com dois polícias em frente do túmulo fechado. Pagaram as despesas com os dólares encontrados no apartamento de Wurtzburg e que tinham entregue à polícia. Cento e sessenta e três mil dólares, uma quantia enorme.

— Que vão fazer com tanto dinheiro? — informou-se Wachter.

— Iremos procurar herdeiros eventuais nos Estados Unidos.

— E se não os houver? Não seria acertado pôr esses cento e sessenta e três mil dólares na conta do Fundo de Socorro aos Judeus alemães? — perguntou Nikolai.

— Isso não é possível — replicou o funcionário, surpreendido. — Não há testamento. O dinheiro fica para o Estado.

— E é assim que um Estado herda do último sobrevivente de uma família que exterminou completamente.

— Creio que se engana! — objectou o polícia num tom aborrecido. — O senhor não pode compreender... é russo!

— Vamo-nos embora — disse Wachter dando o braço ao filho e saindo.

Uma vez no exterior — estava um dia de Inverno frio e ensolarado, com um céu azul-claro, tal como acontecia em Leninegrado — declarou com voz firme:

— Voltemos a Puchkine, meu rapaz. Nada mais temos a procurar aqui. A Sala de Âmbar está perdida... para sempre... e acha-se também encharcada em sangue. Deus não foi clemente para connosco... e não sei porquê.

Mas Deus concedeu-lhe, no entanto, a graça de viver até aos noventa e quatro anos.

Num dia de Junho de 1980, Nikolai e seu filho foram encontrar o velho sentado como sempre na Sala de Âmbar, na cadeira que ocupara como guarda durante sessenta e quatro anos. Tinha a cabeça apoiada contra a parede nua, o olhar voltado para o céu — o fresco do tecto com as suas cenas alegóricas —, e tinha os olhos muito abertos, mas já não respirava.

Nikolai, que completara já os sessenta e dois anos, e Péter, um belo homem de trinta e três, levaram-no da Sala de Âmbar sentado na cadeira e transportaram-no até ao apartamento. Quando o estenderam sobre o velho sofá de que ele tanto gostava, Jana Petrovna murmurou:

— Como ele tem um ar feliz. Sonhou com a Sala de Âmbar e levou-a com ele para a eternidade. Estás contente agora, não é verdade, paizinho? Tiveste tempo de saber que queriam reconstituí-la. A Sala de Âmbar viverá, a tua Sala de Âmbar... e um Wachter tomará conta dela, teu filho Nikolai ou o teu neto Peter. Paizinho, repousa no céu.

— Era a mais bela oração fúnebre que ele podia receber — observou Nikolai passando um braço pelos ombros de Jana Petrovna.

— Nós não devíamos chorar... mas, pelo contrário, admirá-lo. O que é a fidelidade, o que é o amor, eis o que devíamos perguntar sempre. E nós podíamos responder então: olhem para Mikhail Igorovitch, para o retrato dele na parede, olhem para os olhos dele e saberão o que significam o amor e a fidelidade.

Tomaram todos lugar em redor do morto. Nikolai, Jana, Peter e Janina. Jana acendeu uma vela que colocou à cabeceira do velho. A noite caiu, iluminada apenas pela luz vacilante da vela, e foi cheios de gratidão que eles recordaram os anos passados dessa bela vida fogosa, combativa e plena.

 

 

— O louco continua a brincar com os seus barquinhos — disse David Hoven, o comandante dos bombeiros de Whitesands, à mulher, Lornie, ao voltar da pesca, colocando três peixes em cima da mesa da cozinha. E incrível: está de pé com água até à barriga, com um fato de mergulhador e por cima tem uma espécie de uniforme com cordões e ornamentos como se estivesse a representar num desses filmes históricos feitos em Hollywood. «Eh,» disse-lhe eu, «que se passa aí?» E ele respondeu-me : «Se vencer os Suecos desta vez e aniquilar a esquadra deles, reinarei sobre o mar Báltico!» Que havia eu de responder a isso? Ele está cada vez mais louco. E quando eu lhe disse: «Ron, sai da água, ela está ainda muito fria. Ficas com o cu gelado!» ele fez-me um sinal com a mão, como um general e respondeu orgulhosamente: «Como ousas falar assim? Não sabes quem é Pedro Alexeievitch?»

— Os delírios do velho não se compreendem — retorquiu Lornie examinando os peixes. — Darão duas refeições... um prato no forno e uma sopa de peixe. Devias perguntar ao reverendo. Ele conhece-o melhor. Em todo o caso, é qualquer coisa russa.

— O que é que Ron tem a ver com a Rússia?

— Os doidos vivem sempre noutros planetas. Li isso em qualquer parte. Por mim, desde que ele não seja perigoso, pode julgar-se no Taiti a dançar a ula-ula na praia...

Ron aparecera em Whitesands vinte e cinco anos antes. Era então um homem sólido e alegre, com um pequeno bigode e cabelos encaracolados. Fora exactamente no mesmo

dia em que o velho Williams morrera no seu branco castelo à beira-mar. O velho Williams, amado e venerado por todos. As pessoas ainda se recordavam desse dia. Todos os sinos das igrejas tinham começado a tocar, na Câmara a bandeira americana encontrava-se a meia haste e as pessoas rezavam nas três igrejas. A população local sentira mais tristeza do que se o presidente dos Estados Unidos tivesse morrido. É preciso dizer que o presidente estava longe, em Washington, enquanto Williams vivera ali e fora um benfeitor como Whitesands nunca conhecera outro. Fundara um jardim de infância e oferecera dois novos carros aos bombeiros, fora mentor das equipas de futebol e de basebol, mandara construir um estádio com piscina e, de seis em seis meses, os habitantes de Whitesands, à custa dele, faziam exames de despistagem do cancro no hospital local. Existiria o equivalente noutro sítio? A morte de Williams fora um dia de luto para Whitesands.

Ron Calling seguira o cortejo fúnebre. Parara como os outros diante do túmulo e lançara um ramo de flores sobre o pesado caixão de carvalho. Os habitantes de Whitesands acharam esse gesto muito louvável, pois, afinal, Mr. Calling só se encontrava ali há quatro dias e nunca conhecera o bom velho Williams.

Depois abriram o testamento. Toda a população ficou assombrada e teriam aplaudido se as circunstâncias se prestassem a isso. Williams legara toda a sua fortuna à pesquisa com vista à cura do cancro, porque, declarava ele, seu filho Joe deixara este mundo. Murmurava-se qualquer coisa como trezentos milhões de dólares... Uma delegação do Instituto de Pesquisas beneficiado dirigira-se então em peregrinação ao túmulo do doador com uma enorme coroa de flores que colocou junto do monumento que Williams mandara erguer à memória do filho, caído no campo de honra.

Ron Calling encontrava-se também presente nessa ocasião, o que lhe valeu a afeição de todos. Quando o Instituto de Pesquisas começou a converter a herança em dólares, isto é, a vender o castelo, o terreno e uma grande cabana à beira-mar, toda a gente achou bem que Ron Calling comprasse esse terreno com a cabana.

Trezentos mil dólares foi a quantia que ele colocou sobre a mesa. As pessoas começaram por se admirar, porque até então Calling vivera muito modestamente numa pensão e, como contou o proprietário, contentava-se quase sempre com hamburgers ou salsichas com molho picante de caril. Depois esqueceram-se disso e foi com prazer que viram Calling arranjar a casinhota.

Calling mandou então rodeá-la de pedras e colocar janelas enormes na fachada voltada para o mar. Mandou, igualmente, erguer um muro em torno do terreno e, para acabar, viram chegar alguns camiões de mudanças carregados de divãs e de armários, de tapetes e sofás, assim como com vinte grandes caixotes que deviam conter um mobiliário completo.

Em seguida, três operários de Nova Orleães trabalharam sem descanso durante três meses na casa de Ron Calling. Moravam em casa dele, eles próprios cozinhavam, não se metiam nunca com as raparigas da terra, e só o proprietário do supermercado contou confidencialmente que eles compravam os melhores produtos, e os mais caros, que lhes iam levar ao domicílio: vinho francês, caviar russo, esturjão fumado, champanhe, bifes enormes e bolos de chocolate. Ninguém sabia o que eles faziam dentro de casa. Tinham chegado um belo dia de Nova Orleães, ao que diziam, e, ao fim de três meses, acabaram por desaparecer da mesma maneira. Havia muitos mistérios por detrás dos altos muros. Por exemplo, a construção do novo terraço. Quem poderia pensar que havia três cadáveres ocultos sob a camada de cimento? Quem poderia desconfiar de Ron Calling, esse homem simpático que dava sempre amavelmente os bons-dias, que colocava todos os meses um ramo junto do monumento a Joe Williams, guardando um minuto de silêncio meditativo. O ladrilhador que mais tarde levara as lajes de mármore afirmara que Mr. Calling apenas o deixara ir até ao jardim coberto e também que toda a ala esquerda da casa, que tinha aparentemente dez metros de comprido, fora dotada com três enormes janelas, que permaneciam sempre fechadas por grossas portadas interiores.

Depois, a calma instalou-se em volta do novo habitante de Whitesands. Viam-no frequentemente sentado na praia. Nunca aparecia nos restaurantes ou nos bares. Nem sequer as mulheres pareciam interessá-lo, pois nunca ninguém vira alguma em casa dele, embora ele fosse um belo homem, robusto e simpático, e muitas mulheres poderem desejar dormir com ele. De resto, ele parecia ter dinheiro suficiente para permitir a si próprio, na força da idade, viver inactivo. Nadava e corria na praia, descansava em vez de se preocupar em ganhar dólares.

Onde se vê que há dinheiro, a promessa da felicidade eterna nunca anda longe. O reverendo John Killroad, da Igreja dos Filhos de Deus, apresentou-se, portanto, em casa de Ron Calling quando viu que as obras tinham chegado ao fim. O conjunto era realmente um pouco excêntrico, pois, por cima da ala esquerda da casa, Calling mandara construir um pequeno campanário com uma abóbada dourada no cimo, no qual havia uma cruz com um dos braços em diagonal, tal como nas igrejas ortodoxas. O reverendo Killroad ficou admirado e, não percebendo muito bem o que aquilo significava, pediu uma audiência.

Ron Calling não o recebeu em casa, mas sim no terraço de mármore. Se Killroad desconfiasse que estava sentado e a beber um sumo de laranja com vodca por cima de três cadáveres presos no betão, atiraria com o copo e fugiria a toda a pressa. Mas, pelo contrário, alegrou-se com a maneira hospitaleira como o novo habitante de Whitesands o recebia, ofereceu-lhe uma brochura onde se contava a história da Igreja, e aproveitou para dizer a Calling que o altar era um pouco primitivo. Confidenciou então ao dono da casa que Mr. Williams prometera oferecer-lhe um e que só a morte o impedira de realizar essa obra generosa.

— Mister Williams queria oferecer-lhe um novo altar? — perguntou Calling, interessado.

— É verdade. Mas agora que legou tudo à pesquisa para o cancro, não restou dinheiro nenhum. O altar devia ser inaugurado no próximo ano. Já havia um esboço.

— Para a próxima vez, traga-me esses planos — disse Calling, tomando um ar despreocupado. — Isso interessa-me.

— Você possui um campanário em forma de abóbada — prosseguiu o reverendo Killroad arrotando discretamente, uma vez que engolira depressa de mais. — Isso tem um significado?

— Sim. Gosto da Rússia.

— Então conhece a Rússia, Mister Calling?

— Muito bem, reverendo — respondeu Calling, encostando-se de novo na sua cadeira de repouso. — E a Rússia também gosta de mim. A batalha de Poltava fez nascer um império invencível.

— Na verdade?

O reverendo Killroad limpou os olhos olhando Calling através dos dedos afastados. «Que quererá ele dizer?», perguntou a si mesmo. «A batalha de Poltava? Nós, os americanos, não combatemos na Rússia durante a última guerra.» Ou seria que Calling estivera integrado numa «secção especial»? Nunca ouvira falar em tal.

— A Rússia deve ser muito bonita.

— Magnífica. De Inverno... os passeios de esqui através das florestas... No Verão, velejar olhando a minha cidade de Petersburgo... É uma coisa inexprimível. E eu fiz surgir a minha cidade do nada, de um pântano inútil e doentio, naquela metrópole que viria a ser mais bela que Paris. Uma jóia por entre as outras capitais do mundo.

— Se ao menos não houvesse bolchevistas... — suspirou prudentemente o reverendo Killroad.

Calling começava a parecer-lhe um pouco inquietante. Ron ergueu a cabeça e fitou o reverendo.

— Não conheço bolchevistas — disse, admirado. — O que é isso?

— Então não se interessa nada pela política?

— Como pode dizer uma coisa dessas? — exclamou Calling, zangado e erguendo-se de um salto. — A Suécia deve ser vencida e quero ter a Polónia!

— Um grande projecto, Mister Calling... — murmurou Killroad embaraçado. — Levantou-se por sua vez. — Quando poderei voltar com os meus planos?

— Quando quiser. Dar-me-á muito prazer.

Calling acompanhou Killroad até à porta de entrada metida no muro que rodeava a casa, e apertou-lhe a mão com tanta força que o reverendo a sacudiu em seguida para se certificar de que ela não estava partida. Depois, disse-lhe adeus antes de desaparecer nas colinas.

De regresso a casa, Killroad precipitou-se para um dicionário, procurou Poltava e leu: «Cidade da Ucrânia. Durante as Guerras Nórdicas, Pedro, o Grande, obteve em

1709 uma vitória decisiva sobre o rei da Suécia, Carlos XII.»

Killroad deixou cair o livro e serviu-se de um uísque triplo. «Ele é doido», pensou. «Meu Deus, é esquizofrénico! Julga-se o czar Pedro, o Grande: a minha Rússia, a minha Petersburgo, quero a Polónia, fiz a minha cidade surgir de um pântano, a jóia do mundo... Jesus, ele é LOUCO. Preciso de me apressar. Espero que o altar esteja no seu lugar antes que ele perca completamente a cabeça.»

O reverendo Killroad não falou a ninguém dos seus receios, mesmo mais tarde, quando o altar já se encontrava na igreja e toda a gente o admirava. De tempos a tempos, ia visitar Ron Calling, falava com ele de Alexis, o príncipe renegado, e da camponesa prostituta e também da czarina Catarina. Killroad fartava-se de rir quando Calling falava dos seus anões e dos seus aleijados, sem pernas, que tinham por obrigação dizer gracejos e fazer palhaçadas durante os jantares de festa.

com o correr do tempo, Whitesands acabou por se habituar ao seu habitante singular. Um mecenas generoso, não tanto como Williams, cuja fortuna não tinha limites, mas, mesmo assim, muito generoso. Quando Ron Calling ofereceu cinquenta mil dólares para a construção de um campo de golfe, toda a gente o elogiou. De facto era bizarro, mas revelava compaixão pelos seus semelhantes. Isso é que contava. A extravagância é um assunto pessoal desde que não prejudique os outros, e Mr. Calling não prejudicava ninguém.

Depois, havia uns dez anos, ele começara a ir para o mar brincar com os seus grandes barcos de madeira. Quando o mar estava calmo, andava com água até à barriga, envergando um fato de mergulhador que mal se via, já que vestia por cima uma farda de almirante russo. Desencadeava depois batalhas navais, durante as quais queimava mesmo alguns barcos, fazendo-lhes a continência, com a mão na testa, enquanto eles se afundavam.

«Um pobre homem rico», diziam os habitantes de Whitesands com compaixão. «De ano para ano, vai ficando cada vez mais louco. Mas quem pode ajudá-lo? Ele, de resto, não deixa ninguém entrar lá em casa. Nem sequer chama um médico. Só Killroad tem o direito de o ir ver e ele guarda silêncio, como o exige o seu dever de padre... Um dia ainda acabará por encontrá-lo morto, sentado no terraço ou num canto qualquer. Mas vai sempre pôr flores junto do monumento a Joe Williams.»

Todos os dias, geralmente por volta do meio-dia, Joe Williams levantava os pesados estores das três altas janelas da ala esquerda da sua casa, por cima da qual cintilava ao sol o campanário em forma de abóbada. Abria as janelas, deixava entrar o ar e a luz na sala, depois dirigia-se para um cadeirão esculpido e dourado, com estofo de veludo vermelho e ali se sentava. Envergando o uniforme de general da guarda do czar, apoiando-se numa bengala com castão de marfim esculpido, ele olhava orgulhosamente tudo o que o rodeava.

Milhares de pequenos sóis cintilavam nas paredes de âmbar. As grinaldas chamejavam, as molduras e os frisos devolviam a luz refractada, as cabeças de anjos, os guerreiros e as raparigas enfeitadas com flores pareciam animar-se na alternância de sombra e luz. O brilho de ouro da «pedra de sol» era tão prodigioso, e o jogo de cores dos mosaicos de pedra de âmbar tão luminoso, que Joe Williams era obrigado, por momentos, a baixar as pálpebras para não ficar cego.

Todos os dias, havia mais de vinte anos, ele ficava assim quase duas horas todas as manhãs no meio da Sala de Âmbar, com a bengala presa entre os joelhos e com os cotovelos apoiados sobre os braços da cadeira. Voltava então o olhar para o mar que vinha morrer sobre a praia de areia fina.

«Minha Petersburgo!» com o seu mar cheio de navios orgulhosos, cujas velas se erguiam para o céu, como se participassem no júbilo que percorria a terra russa, graças ao vento da liberdade que soprava sobre o país.. Isto impelia-o a refugiar-se na calma divina da Sala de Âmbar, sempre que o seu coração o afligia para além do admissível, ou os seus pensamentos o acabrunhavam. «O meu império, o meu mundo que eu próprio criei.» Esse momento era tão grandioso que Joe Williams fechava sempre os olhos, com as mãos apertadas contra o peito, com a sensação de sufocar de felicidade.

Após uma hora de silêncio, começava a falar. Por vezes, levantava-se, caminhava ao longo das paredes de âmbar cintilantes, parava diante dos espelhos emoldurados e olhava-se. Depois erguia a mão para acariciar uma cabeça, para seguir uma roseta ou uma grinalda com os dedos. Parecia dirigir-se ao seu povo russo ou, até mesmo, ao mundo inteiro.

— Tenho o dever — declarou ele um dia, erguendo os olhos para a cabeça de um guerreiro na agonia —, tenho o dever de viver para o meu povo se isso lhe puder ser útil. Não dormirei enquanto houver uma frota sueca e eu não for senhor do Báltico. Formei uma grande armada, a mais poderosa do mundo. Até mesmo os prussianos lhe são inferiores... mas preciso de fazer mais pela minha frota. É preciso construir, construir, construir... e devo pensar na Sibéria. Que se conhece dela? Quantas terras há ainda desconhecidas? Bons espíritos, ajudem-me a realizar a minha obra.

Ao fim de duas horas, fechava as janelas, baixava os estores, aferrolhava a porta. Em seguida, punha a chave ao pescoço, envergava o uniforme de general, calçava as grandes botas de borracha e ia até à praia, onde ancorava a sua frota numa pequena enseada. Os barcos eram de madeira, tal como no tempo de Pedro, o Grande. com todas as velas desfraldadas, as quais mediam cerca de um metro e cinquenta de comprimento e outro tanto de altura, não tinha dúvidas de que possuía uma orgulhosa armada capaz de conquistar o Báltico aos Suecos. Depois impelia os navios para a água, e dirigia-os com um grande pau, fazendo-os navegar em linha, numa larga frente de ataque e em posição de combate.

Quanto mais envelhecia, mais estranho se tornava. David Hoven, o comandante dos bombeiros, que tinha muito tempo livre — pois há já catorze anos que não havia um incêndio em Whitesands —, já que o seu ofício de serralheiro também não o ocupava muito, ia frequentemente pescar à linha num molhe de madeira. Observava então Ron com os seus barcos de madeira e contava à mulher, Lorrie, tudo aquilo que via o velho fazer.

— Ontem, queimou um barco. O idiota começou por atirar uma tocha acesa e como o barco se incendiou de imediato, pôs-se a saltar, arrancou os cabelos e em seguida perfilou-se em continência para saudar o barquinho que se afundou. — Hoven inspirou profundamente. — Depois, foi para a beira da água e começou a vociferar contra o Sol. Não ouvi o que ele disse, mas se ouvisses a voz dele... Parecia que estava a bater em metal! Aqueles ataques nunca duram muito, mas ele está completamente louco. Seria uma pena termos de o levar para o asilo.

O reverendo Killroad também se sentia consternado pelo declínio do doador. Aquando da sua última visita ao terraço, Calling dissera-lhe:

— Não avanço mais! Não avanço mais! A frota sueca evita-me. Não haverá batalha. Como hei-de conseguir uma vitória sem adversário?

— É um grande problema, com efeito — concordara o reverendo. — Nunca deu nada uma pessoa bater-se contra sombras.

— Sombras? Exactamente, John. Sombras. Por toda a parte sombras. O mundo torna-se cada vez mais sombrio... Sombras... Quem vai expulsar as sombras?

Nessa altura, Killroad despedira-se apressadamente, dirigira-se a casa do doutor Simson, um psiquiatra, e perguntara-lhe como é que se via quando um louco precisa de ser internado. Simson, que o contacto diário com os doentes mentais tornara cínico, olhara com atenção para Killroad e perguntara-lhe:

— É homem ou mulher?

— Homem.

— Que idade tem?

— Uns sessenta e sete anos, creio eu.

— Não é velho... Está a tornar-se senil?

— Não.

— Anda a correr com um machado na mão a querer massacrar toda a gente?

— Não. Pelo contrário, é o homem mais gentil que conheço. Um sonhador incapaz de fazer mal a uma mosca.

— Então, é débil? — concluiu Simson abanando a cabeça. — Nós todos o somos, mais ou menos, reverendo. Simplesmente não prestamos atenção a isso. Desde que o homem esteja em condições de tratar de si próprio e não faça mal a ninguém, não vejo razão para o meter num asilo. Isso seria acabar com ele. Está satisfeito?

— Não, doutor.

Killroad saiu do gabinete do médico a pensar que, com o decorrer do tempo, os especialistas de doenças nervosas acabarão por se parecer com os seus doentes. Ron Calling estava gravemente doente. Killroad tinha a certeza disso, mas ninguém podia ajudá-lo. Cada um dispõe como entende do seu corpo e do seu espírito.

Foi a 10 de Outubro de 1987 que foi lançado o alerta em todos os emissores de rádio: um furacão com ventos da ordem dos 200 quilómetros aproximava-se da costa. Em Whitesands, esperava-se também a sua passagem. As pessoas pregaram tábuas em frente das montras das lojas, deixaram os carros nas garagens e puseram em lugar abrigado tudo quanto era possível... nada mais se podia fazer a não ser fugir. No entanto, os habitantes da terra não o fizeram e prepararam-se para o pior.

Às onze da manhã, a tempestade tinha atingido a costa. Um uivo encheu o ar, o céu adquiriu um tom plúmbeo, as palmeiras dobraram-se e os primeiros telhados dos alpendres, de zinco, foram pelos ares. A areia fina e branca voava como uma imensa nuvem branca por cima das casas e das colinas, cobrindo nomeadamente a casa de Ron Calling, a qual ficou no centro da tempestade.

Meia hora mais tarde, o mar agitou-se. Vagas da altura de casas abateram-se sobre a costa com um estrondo terrível, submergindo e destruindo tudo à sua passagem. Um turbilhão único, um uivo sinistro, um ruído estridente, o estrondo das vagas colossais. Simultaneamente estendeu-se entre a terra e o céu uma cortina de areia, de terra e de arbustos arrancados.

Joe Williams encontrava-se sentado no seu cadeirão na Sala de Âmbar. Erguera os estores, mas as janelas permaneciam fechadas. Apoiado na sua bengala, olhava com pavor o inferno que se avistava dali, a cortina de areia, as vagas enormes, as palmeiras e outras árvores dobradas até ao solo ou arrancadas pelas raízes, o grande plátano que um gigante parecia ter torcido pelo meio, e também as telhas que voavam pelos ares como se tivessem sido lançadas do alto do muro que rodeava a casa.

Por volta da uma hora, Joe Williams levantou-se da sua cadeira, foi até à janela do meio apoiado na bengala do czar e olhou para a pequena enseada onde se encontrava ancorada a «esquadra russa». As vagas enormes tinham-na devastado totalmente. Restava apenas um pedaço da costa que mudava de forma sob o embate de cada vaga e que o mar continuava a devorar.

— Os meus navios... — balbuciou Joe. — A minha frota... a minha bela frota... Já não tenho barcos...

Recuou de um salto, correu para fora da sala, abriu a porta da casa e imediatamente foi apanhado pelo furacão, que se abateu sobre ele como um punho fechado, projectando-o contra a parede e fazendo-o girar sobre si mesmo. O boné voou-lhe e o fato flutuou à sua volta como se ele fosse um pássaro fantasmagórico. Joe agarrou-se solidamente a uma palmeira meio desenraizada e, em seguida, de cabeça baixa, lançou-se na tempestade. De cabeça descoberta, com a camisa aberta, as calças rasgadas, chegou até à praia e aproximou-se de uma barra de ferro solidamente enterrada no solo. Agarrou-se a ela. Amarrara ali um barco a remos dez anos antes. Este apodrecera há muito. com as mãos a segurarem a barra de ferro, Joe olhou a praia com um olhar desvairado. Já não havia barcos, nem velas, nem o pavilhão russo... apenas o mar violento e ululante que devorava tudo.

— Os meus navios! — gritou Joe Williams.

Atirou a cabeça para trás, ergueu o punho para o céu cinzento-escuro e da sua boca aberta saiu um grito que se misturou com o tumulto do temporal, um uivo claro e estridente de fazer dilacerar o coração.

— A minha frota! Os Suecos triunfam! A minha Rússia... aniquilei-te. Eu, o czar! Chegou agora o momento...

Largou a vara de ferro e o vento impeliu-o para casa e depois, tal como se fosse um pedaço de madeira, foi atirado contra a parede. Agarrou-se a ela com todas as suas forças, conseguindo assim chegar à porta. Sangrava de qualquer sítio... não sabia de onde, não sentia coisa alguma. Ao cambalear pela casa, não via que deixava atrás de si um rasto de sangue. Desceu à cave, subiu as escadas com uma caixa de madeira aos ombros e foi colocá-la no meio da Sala de Âmbar. Um estrondo ensurdecedor fê-lo estremecer. Ouviu estalar por cima de si, como um gemido de mil gargantas. Subitamente, a mão do gigante, a mesma que torcera o plátano, apoderou-se do campanário em forma de cúpula, arrancou-o, ergueu-o no ar com uma palha, e atirou-o para longe. A pesada cruz caiu sobre o muro, provocando uma grande brecha:

— Destruição! — gritou Joe Williams. — O seu olhar alucinado fitava as paredes de âmbar, os espelhos e os quadros. — É preciso demolir tudo! Não quero deixar nada atrás de mim! Não me rendo aos Suecos... não me rendo...

Arrancou a tampa da caixa e atirou-a para longe. Dentro da caixa havia paus pintados de amarelo colocados uns sobre os outros. Num compartimento separado, envolto num papel untado, encontrava-se um rolo de fio; ao lado achava-se um dínamo, em forma de caixa (destinado à produção de corrente eléctrica, para efeitos de deflagração de cargas explosivas), onde sobressaía uma chave vermelha de rotação rápida.

com os dedos trémulos, Joe dispôs os paus de dinamite ao longo das paredes, contornando a Sala de Âmbar, desenrolou o fio eléctrico e estendeu-o pelas outras salas, colocando também aí os paus amarelados. Depois de ter posto dinamite em toda a parte, ligou os dois fios eléctricos, por forma a que ficasse assegurado o circuito para o momento em que resolvesse accionar o sistema.

Lá fora, o furacão sacudia violentamente as janelas e as portas, e martelava como se fosse um punho de aço as paredes exteriores da Sala de Âmbar. O mar engolia cada vez mais terra e fustigava já o muro. Muito calmamente, com um sorriso que reflectia uma felicidade celeste, Joe instalou-se no cadeirão no meio da Sala de Âmbar, colocou o dínamo sobre os joelhos e com os olhos voltados para a cabeça do guerreiro na agonia, em pedra de âmbar, e com o mesmo sorriso inefável, accionou com toda a força a chave vermelha.

A onda de choque ultrapassou em potência a violência do furacão. Em Whitesands, algumas montras voaram em estilhaços, e o reverendo Killroad viu, da sua igreja, a bola de fogo, a nuvem da explosão rapidamente rasgada pela tempestade, e depois o muro de chamas de onde jorraram faíscas que chegaram ao céu.

Correu para o telefone, chamou David Hoven — por sorte as comunicações não estavam cortadas, pois as linhas eram subterrâneas, graças ao bom velho Williams —, e gritou:

— Sucedeu qualquer coisa em casa de Ron! Está tudo a arder! Parece-me que houve uma explosão. Um grande incêndio.

— Não posso sair! — retorquiu Hoven.

— Tens de ir, David. Precisas de o ajudar. Representas os bombeiros...

— O furacão vai atirar com os carros pelos ares como se fossem brinquedos. Não percorrerei dez metros! com este temporal é impossível... O pobre Ron...

— Pobre! Pobre! Isso não lhe serve para nada. Devemos ajudá-lo, David...

Tal como dissera Hoven, foi impossível. O primeiro carro dos bombeiros foi projectado contra a parede, mesmo antes de sair da garagem. Hoven não permitiu que o segundo se arriscasse. Mandou-o regressar à garagem e olhou fixamente os seus homens com os seus uniformes de bombeiros.

— Meus amigos, Ron Calling deixou de existir — disse resignadamente. — Rezemos por ele. É tudo quanto podemos fazer.

Durante todo o dia e toda a noite, o temporal continuou a fustigar Whitesands e a casa à beira da água continuou a arder. No segundo dia, as viaturas dos bombeiros conseguiram, finalmente, aproximar-se do muro exterior. O vento diminuíra de força, mas ateava constantemente o incêndio. Uma imensa fornalha rodeava o edifício, de modo que os bombeiros não puderam chegar junto da casa. Os muros acabaram por se desmoronar numa chuva de faúlhas. A casa já não existia. As chamas nada tinham deixado, nem sequer a forma ou a ideia de casa. Restavam apenas ruínas enegrecidas.

No quarto dia, Hoven e os seus homens conseguiram por fim dominar o incêndio, e puderam avançar pelo meio dos escombros. Não valia a pena procurar Ron Calling, nem mesmo os seus restos mortais.

— Ficou reduzido a pó! — disse Hoven, em voz baixa. O reverendo Killroad, de pé a seu lado, abençoou as ruínas, entre as quais deviam encontrar-se as cinzas de Ron.

— Nunca vi um incêndio semelhante. O que é que o velho terá feito aqui? Nem sequer uma fábrica de dinamite se evapora desta maneira... — Abanou a cabeça, suspirou e saiu dos escombros. Ninguém lhe desejava que acabasse assim. Era um bom homem. Afinal, não podia ser responsabilizado pelas suas divagações tardias. Reverendo, vamos erguer-lhe uma cruz no cemitério. Em recordação de Ron Calling, nosso amigo. Ele bem o mereceu.

— Sim — aprovou Killroad num tom solene. — Ele bem merece estar junto de Deus.

Alguns dias mais tarde, uma escavadora dirigiu-se para o local, carregou os escombros para grandes camiões que, em seguida, os foram lançar num buraco que o mar cavara e que era preciso encher.

Hoje em dia, e talvez ainda durante centenas de anos, os historiadores de arte, as comissões especiais, os serviços secretos e os amadores de arte continuam a procurar a Sala de Âmbar. Nas galerias, nas minas, nos corredores subterrâneos e nas caves.

A Sala de Âmbar já não existe. As paredes de pedra de âmbar deixaram de cintilar, e só o Sol que a fazia brilhar sabe onde ela se encontra.

Mas o Sol guarda silêncio.

Pois tem por missão criar a vida e não falar da morte.

 

                                                                                Heinz Konsalik  

 

                      

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