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O TESOURO / Morris West
O TESOURO / Morris West

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O TESOURO

 

A carta foi entregue no meu quarto ao meio-dia e um quarto do dia trinta de Junho, quarta-feira. Estava endereçada ao Sr. Renn Lundigan, Departamento de História, Universidade de Sidney, Sidney, Austrália.

Tinha um sinete barroco na parte de trás do envelope, e um endereço em espanhol no canto inferior esquerdo. O carimbo postal estava ligeiramente torto, e o texto claro e nítido.

Lembro-me de todas estas coisas tão claramente porque olhei para o envelope, muito, muito tempo, antes que ousasse abri-lo.

Finalmente, peguei numa faca de papel, cortei o envelope cuidadosamente, tirei a folha dobrada e sentei-me, acendi um cigarro e comecei a ler.

O homem que escrevera a carta era o arquivista-chefe da Cidade de Acapulco, México.

Ele falou-me com um floreado latino do interesse que a minha pesquisa tinha despertado no seu departamento. Falou-me da sua ânsia em estabelecer um elo definitivo entre os navegadores espanhóis e o novo continente, Terra Australis Incognita. Disse-me como estava grato por cooperar com um cavalheiro tão erudito num fragmento tão importante da investigação histórica.

Contou-me que, em Outubro de 1732, o Dona Lúcia deixara Acapulco com vinte arcas de ouro cunhado para as colónias de Sua Majestade Católica nas Ilhas Filipinas.

Que o Dona Lúcia nunca chegara a Manila e se presumia ter soçobrado numa tempestade ou caído vítima de piratas nos mares da China.

Que a moeda de ouro, da qual eu tinha enviado tão excelente esboço, era de cunhagem contemporânea ao Dona Lúcia, e podia, de facto, ter sido parte da sua carga.

Disse-me...

Mas o resto era cortesia e eu já não estava interessado.

Estava a pensar numa pequena ilha ao largo de Queensland, uma das centenas de ilhas e ilhotas de coral enfileiradas como ovelhas de jade e esmeralda ao longo da linha de coral da Grande Barreira de Recife.

Uma ilha de dois chifres, rumava para o mar num lado, com uma meia-lua estreita de praia branca no outro. Uma ilha onde os turistas de Inverno nunca vinham, porque o levantamento topográfico do Governo de Queensland dizia não haver água lá, e nenhum canal por entre os recifes e nenhum abrigo para barcos de pesca ou pequenos iates.

Mas eu sabia haver um canal. Jeanette e eu tínhamos feito passar à vontade uma embarcação de nove metros através do recife e ancorámo-la sem um arranhão no seu forro de cobre.

Acampámos vários dias sob o pandano (1) e encontrámos uma fonte no sopé do chifre norte. Tínhamos caminhado sob o recife e ido pescar com arpão na maré alta, e um dia Jeanette trouxe à superfície uma corrente de ouro, deformada, incrustada com coral.

Então, antes de a nossa lua de mel ter feito um mês, Jeanette havia morrido de meningite e eu estava só - recém-licenciado, com uma moeda amolgada e um sonho de uma rapariga dourada ao sol numa praia branca. E o sonho de um tesouro num navio espanhol sob o caótico entrelaçar dos ramos de coral.

A memória de Jeanette desapareceu lentamente, deu lugar gradualmente a uma dor melancólica no meu coração, que eclodia ocasionalmente numa dor selvagem e me levava a noites loucas de bebida e a tentar a sorte com os rapazes do bacará (2) e os cabeças-duras à volta das mesas de póquer, e os valentões que rondavam as corridas nas manhãs enevoadas, tentando roubar os premiados do sábado.

A memória de Jeanette desvaneceu-se, mas sempre que abria a gaveta da minha secretária, a velha moeda, polida com o manejamento diário, parecia brilhar como o fogo. A minha

 

Nota 1: Planta do género Pandanus, com folhas dispostas em espiral, semelhantes às do ananás. (N. da T.)

Nota 2: Jogo de Cartas. (N. da T.)

 

O TESOURO miúda desaparecera para sempre da minha vida, mas o meu barco do tesouro estava lá. Tinha de lá estar - madeira apodrecida, os convés inclinados sob o coral e o sargaço, enquanto os cardumes de peixes arco-íris nadavam à volta das arcas do tesouro no porão.

Tinha de estar lá. Eu era um historiador. Poderia provar que tinha de lá estar. Ao menos, precisava de provar que deveria lá estar.

Foi o velho Anson que me deu a pista - George Baron Anson, ainda não um almirante da Frota, ainda não ministro da Marinha, passando meses sem fim entre as Ladrão (1) e as Carolinas, esperando os galeões que vinham todos os anos de Acapulco para Manila. George Anson que, literalmente, amarrava o seu casco vazante, para que pudesse esperar mês após mês, enquanto os crustáceos cresciam no seu enorme navio, os seus barris de água se rachavam e os seus homens morriam de escorbuto sob o sol tropical.

O velho espanhol viria farejando desde Acapulco, cheirando as trocas a nordeste que o guiariam para oeste ao longo da cintura equatorial, até que fosse altura de guinar para norte novamente, passando as Ladrão para Manila... mas Outubro seria tarde para ele. O Verão estaria a descer rumo a Capricórnio (2), e se ele navegasse demasiado para sul os furacões poderiam apanhá-lo. E se os furacões o apanhassem - eles fá-lo-iam girar mais para sul, para lá das Bismarcks e das Salomão, e para oeste na direcção da Grande Barreira. Já deveria ter substituído o mastro principal, talvez já a inclinar-se e a deixar entrar água, em nenhuma condição de passar através das ilhas e dos recifes. E se o tempo não melhorasse, um dia, uma noite talvez, as garras de coral rasgá-lo-iam e ele iria a pique - no recife exterior de uma ilha com chifres gémeos.

 

Nota 1: Ilhas de Ladrão, antigo nome das ilhas Marianas. (N. da T.)

Nota 2: Trópico de Capricórnio. (N. da T.)

 

Poderia ter acontecido dessa maneira. Tinha de ter acontecido dessa maneira. De outra forma de onde veio o meu dobrão, aquele melancólico olho dourado que escarnecia de mim desde o fundo da minha gaveta?

Houve um bater na minha porta e a pequena loira do escritório entrou com um tabuleiro de metal apinhado de envelopes de pagamento.

Ela sorriu e pestanejou, desviando o tabuleiro para que eu pudesse ver o que a sua blusa fazia pela sua figura, e disse uma pequena piada quando me entregou o envelope.

- Não gaste tudo de uma vez, Sr. Lundigan.

Eu sorri e, depois de lhe agradecer, retribuí a piada.

- Deixe-me levá-la a sair uma noite e eu gasto algum consigo.

Ela riu como sempre fazia, levantou o peito um pouco mais, pegou no seu tabuleiro e saiu, balançando as ancas.

Eu rasguei o topo do envelope e entornei o seu conteúdo sobre o meu mata-borrão. Duas de cinco, oito de uma e algumas moedas variadas, o salário semanal - fora impostos - de um conferencista novato em História.

Tire-se a pensão de uma semana, o dinheiro para os cigarros, o dinheiro do eléctrico e a libra que pedira emprestada a Jenkis, na terça, e sobrava o suficiente para uma aposta no Manny's. Mas não o suficiente, nem por sombras, para comprar uma ilha e equipamento de mergulho (1), provisões, mão-de-obra e todas as outras coisas que um homem precisa quando começa a procurar tesouros afundados, e depois tenta trazê-los à superfície quando os encontra.

 

1 Aqualung no original. Aparelhagem respiratória portátil do mergulhador, com cilindros de ar comprimido, que este suporta nas costas, libertando ar directamente para uma máscara ou respirador bocal. (N. da T.)

 

Ainda assim, era uma aposta. E na semana passada eu tinha visto um tipo transformar uma de cinco em quinhentos e depois em mil e depois em dois mil. Depois de Manny o mandar para casa num carro alugado, com um dos seus brutamontes como salvo-conduto. Talvez eu próprio o pudesse fazer.

Nem precisaria de dois mil. Mil seria suficiente. Quinhentos para a ilha. O governo de Queensland vende-a barata quando não há água, nem canal, nem ancoradouro. Duzentos para um barco - nenhum cruzador com camarotes custaria esse preço. Cem para um equipamento de mergulho novo. Isso deixaria duzentos para imprevistos e muitos haveriam de acontecer... mas podia fazê-lo... isto se ganhasse mil libras no Manny's.

Dobrei a carta do arquivista-chefe de Acapulco e pu-la no bolso. Tirei a peça de ouro da gaveta e enfiei-a rapidamente na algibeira para dar sorte. Contei oito libras, dez xelins, e fechei-os num envelope. Pelo menos comeria, dormiria com um tecto sobre a cabeça, apanharia o eléctrico para o emprego e fumaria vinte cigarros por dia... se não ganhasse mil libras no Manny's.

Um leitor de história principiante não tem telefone particular, por isso tive de atravessar o corredor e remexer nos bolsos à procura de pennies antes que pudesse fazer uma chamada.

Uma voz lacónica disse:

- Aqui é o Charlie.

- Aqui é o comandante. Onde está?

- No mesmo local da semana passada. Está uma bela noite.

- Obrigado.

Desliguei. A noite estava esplêndida. A Polícia fora subornada e Manny não teria uma rusga esta noite. Teria a minha hipótese de ganhar mil libras.

Deviam conhecer o Manny Mannix. É cá um rapaz. Irlandês de Brooklyn pelo lado do pai. Italiano de Brooklyn pelo lado da mãe. Manny era um sargento de munições no Exército dos Estados Unidos, que travou uma guerra majestosa a partir de King's Cross, e, quando a guerra terminou, decidiu ficar em Sidney.

Sydney, segundo Manny, era Nova Iorque em miniatura, e Manny estava pronto e ansioso para o fazer. Ele tratava da distribuição do contrabando, do negócio ilegal do álcool, do mercado negro dos carros usados e do negócio da imigração, e quando os lucros começaram a cair, Manny abandonou-os, com um saldo bancário que lhe permitiu comprar um bloco de apartamentos, uma quota de um clube nocturno e uma série variada de miúdas que ele ostentava pelo efeito decorativo. Manny nunca foi o tipo de homem que deixa o amor interferir nos negócios. Manny também comprou uma pequena parte da Brigada de Vícios - o suficiente para lhe garantir um telefonema antes que os carros saíssem para a rua.

Para Manny isso era mais que suficiente... a vida era demasiado doce para ser estragada com uma condenação. Manny vestia bem, comia bem e guiava um Cadillac tão longo quanto a frente de uma casa, mas não interessava o que ele vestia ou onde ele jantava. Carregava sempre o fedor da cidade, o cheiro de mulheres gastas e o vapor do dinheiro sujo.

Vocês deviam conhecer o Manny Mannix.

Ele chama-me comandante porque num momento imprudente disse-lhe que dirigira um lugre perto das Trobriands nos últimos dias da guerra. Ele sacode-me a mão, bate-me no ombro e oferece-me uma bebida que nunca recuso. Enquanto bebemos, Manny fala. Sobre Manny, sobre dinheiro e Manny, sobre raparigas e Manny e os planos de Manny para o futuro de Manny. E enquanto fala ele sorri, mas nunca com os olhos, que voam dos fanfarrões junto à porta para os pequenos grupos tensos à volta das mesas, e para os criados que se movem de um lado para outro com tabuleiros de bebidas levantados à altura do ombro.

Vocês deviam conhecer o Manny.

Odiá-lo-iam tanto quanto eu; mas talvez não se odiassem a vós mesmos tanto quanto eu, porque eu bebo o seu álcool e ouço a sua conversa fiada e rio com as suas piadas, porque quero conservar o privilégio de perder o meu dinheiro no seu casino e de ter o Manny a bater-me tolerantemente no ombro e a dizer-me que terei mais sorte da próxima vez.

Se ganhasse esta noite não haveria uma próxima vez. Eu descontaria as minhas fichas e partiria; e voltaria para uma ilha verde e uma praia branca, e um tesouro dourado, onde o recife caía em águas profundas.

Então, às nove horas da noite de quarta-feira, dia trinta de Junho, chamei um táxi e passei pelo ancoradouro das lanchas em Bay Rose até um discreto crescente perto de Vaucluse. Na curva do crescente existia um alto muro de pedra, interrompido por portões de ferro ornamentados.

Os portões estavam fechados, mas havia um botão de campainha num dos pilares, e quando o pressionei um homem saiu da casa do porteiro. Disse-lhe que estava uma noite esplêndida. Ele não argumentou mas abriu o pequeno portão lateral e deixou-me entrar.

Subi o caminho coberto de gravilha até à casa. As cortinas estavam corridas e os postigos fechados, mas a porta da frente estava aberta e vi homens e mulheres, que poderiam ter sido convidados para uma festa, e um empregado de casaco branco cruzando o vestíbulo atapetado.

Acenei para o Polé de olhos tristes que guardava a porta, entreguei-lhe o meu sobretudo e subi as escadas para a sala grande com o bar de vidro negro e as grandes janelas que mostrariam as luzes do porto, se estivessem abertas - mas nunca estavam.

Para dirigir um negócio como o de Manny é preciso excluir a lua e as estrelas, e o vento que entra proveniente das águas extensas. É preciso correr os cortinados e fechar lá fora o chilreio dos grilos e o sedoso embate das águas na maré baixa. É preciso ter música e risos e o barulho da roleta e o som das fichas colocadas e retiradas da baeta. É preciso ter bebidas fortes e ar viciado, e a ilusão gasta de amizade e convívio.

Para gerir um negócio como o Manny's, calça-se sapatos brilhantes e calças negras com vincos aguçados como uma faca e um fato cinzento-prata com uma gravata carmim e um cravo vermelho na lapela. Tira-se o cotovelo do bar quando o nosso convidado entra, atira-se uma piscadela à modelo que ornamenta o banco do canto, e diz-se:

- Cmo 'tá, comandante! Há muito tempo que não o vejo.

- Cmo 'tá, Manny! Há muito tempo que não vejo dinheiro. Disse eu, sorrindo, e Manny riu e engasgou-se no fumo do seu charuto. Tomou-me pelo cotovelo e guiou-me para o banco junto à modelo. Bateu no bar e chamou o empregado.

- Arranja uma para o comandante, Frank. Gim-rosa (1). Comandante, gostaria que conhecesse uma amiga minha, a menina June Dolan. June, este é o comandante Lundigan. Toma conta dele, querida. Tu sabes como são estes marinheiros.

 

Nota 1: Pink Gin no original. Gim aromatizado com bitter. (N. da T.)

 

Manny engasgou-se e sorriu, e a modelo lançou-me um curto sorriso profissional e um longo olhar profissional que puseram o meu metro e oitenta em contraste com as perspectivas de seis números de Manny. E eu fiquei ali à espera. Que era o que Manny sabia que eu faria.

De outro modo ele nunca me teria apresentado.

Manny disse:

- Sente-se com sorte esta noite, comandante?

Encolhi os ombros, abri as mãos e fiz uma careta pesarosa.

É um pequeno número. Eu faço-o muito bem. Jeanette costumava dizer-me que fazia parte do meu encanto infantil. Agora, sentia-me um pouco envergonhado. Era tão parecido com o sorriso da modelo lânguida de Manny.

- Não mais que o costume, Manny. Mas fazia-me jeito, se ela corresse.

- Acho que nos fazia a todos - disse Manny. - Olhe cá, comandante, que acha disto?

Ele fechou a mão à volta dos dedos inertes da modelo e levantou-lhe o braço para mostrar uma pesada pulseira de onde pendiam moedas.

- Comprei-lha hoje. É o aniversário da queridinha e pensei: isso é para o meu bebé. Então, entrei na ourivesaria a dançar e comprei-a. Custou-me um maço de notas. Mas suponho que ela merece. Que é que acha, comandante?

- Penso que se ajusta à personalidade da senhora.

- Vê, tem lugar para mais moedas. Por isso, digo-lhe, se for uma boa menina e me trouxer sorte, eu encho-lha, elo por elo.

- Estou com sede, Manny - disse a modelo.

A sua voz era monótona e aborrecida.

Manny franziu o sobrolho, bateu no balcão, e o empregado deslizou para voltar a encher o copo da senhora. As moedas tilintaram sombriamente quando ela desviou a mão de Manny, e começou a remexer na sua mala de mão. Foi então que tive uma ideia parva.

Tirei a peça de ouro do meu bolso, rodopiei-a no ar e coloquei-a em cima do balcão.

- Falando de moedas, Manny, já alguma vez viu uma destas?

Os olhos vigilantes de Manny começaram a pestanejar. Pegou na moeda, examinou-a, e riscou-a com o seu anel de diamante.

- É ouro?

- Ouro puro. Guardo-a como amuleto.

Voltei a enfiar a moeda no bolso e observei com alguma satisfação o brilho nos olhos de Manny.

- Que tipo de moeda é, comandante?

- Espanhola. Século XVIII. Está envolta numa história.

- Gostaria de a ouvir um dia.

Este era o encorajamento pelo qual esperava. Manny cheirou ouro. Manny talvez estivesse preparado para desembolsar algum dinheiro para agarrar ouro. Disse, tão casual quanto consegui:

- De facto, Manny, quero-lhe fazer uma proposta em relação a essa peça de ouro. Proposta que talvez lhe interesse.

Os olhos de Manny ficaram instantaneamente baços. A sua voz tomou o tom monótono e desinteressado do bufarinheiro.

- Bem, você conhece-me, comandante. Sempre interessado em qualquer proposta, desde que seja lucrativa e segura. Gostaria de falar nisso agora?

Abanei a cabeça.

- Mais tarde, Manny.

Mais tarde poderia ter mil libras, e, então, não teria de discutir proposta alguma com Manny. Não teria de dizer uma só palavra a Manny. Nunca mais.

- Mais tarde então, comandante - disse Manny, voltando novamente para o bar e para a modelo ornamental de seios redondos, voz monótona e olhos profissionais e sagazes. Uma hora e sete minutos mais tarde estava de volta ao bar, arruinado e estafado.

 

- Uma bebida, comandante? - perguntou Manny.

Recusei, extenuado.

- Lamento, Manny, não tenho dinheiro. Estou liso.

Manny deu um estalido com a língua e fez pequenos gestos reconfortantes.

- É uma pena, comandante, é uma pena. Vai e vem. Parece-me que a casa deve uma bebida ao vencido. Sente-se.

- Não, obrigado, Manny. É uma ideia simpática, mas vou andando.

Caminhei na direcção da porta, mas Manny seguiu-me. Nunca o vira tão relutante em despachar o convidado perdedor.

- Comandante?

- Sim, Manny?

- Você disse qualquer coisa acerca de uma proposta. Gostaria de falar sobre isso no meu escritório?

Afinal sempre o fisgara. O meu coração batia e a minha boca estava seca. Tive de cerrar os punhos para parar o tremor dos meus dedos; mas tentei fazer que a minha resposta soasse indiferente.

- Como quiser. Não há pressa.

- Por aqui, comandante - disse Manny, guiando-me através de uma porta guarnecida de cabedal para um imenso tapete amarelo-torrado sob um lustre de vidro Murano.

Os cortinados eram amarelo-torrado com cordões dourados. Havia uma secretária embutida de tartaruga e madre-pérola com uma cadeira de espaldar italiana em nogueira. Havia um fabuloso canapé em brocado dourado em frente de uma lareira em estilo Adam (1). As bebidas foram retiradas de

 

Nota 1: Adam no original. Estilo decorativo arquitectónico e para mobília criado pelos irmãos escoceses Robert e James Adam. (N. da T.)

 

um armário oculto por portas almofadadas em tom pastel. As fadas da Cross tinham-no tornado orgulhoso. Tudo era genuíno, tudo era dispendioso, e o efeito final era tão fiel à sua personalidade quanto o salão de entrada na Casa de Todas as Nações... e tão deprimente.

Manny olhou-me de soslaio enquanto servia as bebidas.

- Gosta, comandante?

Dei um estalido com a língua e disse:

- Deve ter-lhe custado uma fortuna, Manny.

O que Manny tomou por um elogio e, sorrindo, respondeu:

- Até a mim me assusta. Ainda assim, trabalho aqui, por isso parece-me que posso ao menos estar confortável. Além disso, impressiona os clientes.

- Não pensei que os clientes entrassem aqui, Manny.

Pisquei o olho e sorri-lhe por cima do copo, um sorriso do estilo “irmãos-na-luxúria”, que faz um homem como Manny encher o peito e esquecer que tem de comprar aquilo que outros homens têm por amor.

Manny lançou-me uma piscadela em resposta e ergueu o copo.

- Às miúdas... Deus as abençoe!

Bebemos. Então, Manny fez-me sinal na direcção do canapé, permanecendo em pé, encostado à lareira em estilo Adam, repousando os seus cotovelos na prateleira de mármore. Reconheci o gambito. É difícil ficar sentado e vender alguma coisa a um homem que está de pé. Vocês deviam tentar um dia. Decidi pôr-me o mais à vontade possível. Recostei-me contra o brocado dourado, cruzei as pernas e tentei descontrair-me, enquanto esperava que Manny desse início à discussão.

Os olhos de Manny estavam novamente baços, toldados como os de um pássaro, fazendo que não luzissem ou brilhassem. Quando falou a sua voz era suave, quase uma carícia.

- Que género de actividade é a sua, comandante?

- Isso interessa?

Manny cortou a ponta de um charuto caro e demorou a acendê-lo. Quando estava a puxar bem soprou uma nuvem de fumo e moveu o charuto na direcção da porta.

- Ali fora nas mesas... não, não interessa. Um homem paga o que bebe. Se perde, paga o que deve. Se ganha não faz estardalhaço. É tudo o que eu quero saber.

“Você é um homem assim, comandante. Gosto de o ter aqui. Mas isto é diferente. Isto é negócio. Nos negócios tem de se trabalhar em conjunto. Por isso, tenho de saber.

Ele tornou a pôr o charuto na boca, puxou o fumo e esperou. Lancei-lhe um sorriso mostrando os dentes - um sorriso simpático e amigável, sem nenhuma malícia. Disse:

- Só por curiosidade, Manny. Que género de actividade pensa você que é a minha?

Manny soprou mais fumo, enrugou os lábios, e respondeu:

- Muitas vezes tentei perceber, comandante. Você não é militar, embora tenha aspecto de militar. Acho que um tipo da Marinha nunca o perde. Joga com cautela, e quando se lhe acabam as fichas desiste. Podia ser o representante de alguma empresa, ainda que não tenha aspecto de vendedor. Médico, dentista, talvez. Como lhe disse. Nunca fui capaz de perceber exactamente.

- Sou um historiador.

O charuto quase lhe caiu da boca.

- Um quê?

- Um historiador. Ensino História na Universidade de Sidney.

Manny estava perplexo. Notava-se por detrás do véu que lhe cobria os olhos. Tinha conquistado terreno. Se o conseguisse manter, talvez tivesse uma hipótese. Manny levou algum tempo para se recompor, antes de disparar a sua próxima pergunta.

- Quanto é que isso dá?

- Mil e cem por ano... duzentos com aulas extras.

- Ninharias! - disse Manny, sucintamente.

- Para um tipo com miolos não passam de ninharias.

- É por isso que estou interessado em fazer negócio. Manny abanou a cabeça.

- Para negociar você precisa de capital. Quanto é que tem? Levantei-me e voltei a rodopiar a moeda debaixo do seu nariz.

- Eu tenho isto.

- Quanto é que vale?

- Pelo ouro, umas seis libras, australianas. Como antiguidade, cerca de trinta. Fui avaliá-la.

- Com tudo isso, talvez conseguisse começar pelo negócio das pipocas, comandante. Mas isso não serve para Manny Mannix.

Este era o momento crítico. Se agora dissesse alguma coisa errada estava perdido, e o meu barco do tesouro também. Não disse nada, sorri. Levei o meu copo até ao armário e servi-me de outra bebida. Isto fez que Manny ficasse perplexo mais uma vez; perplexo e interessado. Trouxe a minha bebida de volta à lareira e brindei com ele. Então disse:

- É o problema de tipos como você, Manny. Pensam que sabem tudo. E ninguém lhe pode ensinar tudo.

Manny ruborizou-se mas conservou a calma.

- Então, você devia dizer-me alguma coisa, comandante. Tenho tudo o que quero... e está tudo pago. Com massa de sobra no banco. O que pode você dizer-me que eu já não saiba.

- De onde veio esta moeda, por exemplo.

- Bem, diga. De onde veio?

- De um galeão espanhol que deixou Acapulco com destino a Manila, em Outubro de 1732, e se perdeu com toda a tripulação.

Manny acalmou-se e sorriu cepticamente.

- Histórias de tesouros, hem? A mais conhecida e velha isca para pacóvios. Também tem um mapa? Talvez um velho mapa de piratas? Arranjam-se por cinco dólares em qualquer lugar das Caraíbas. Os nativos fazem-nos para vender aos turistas, juntamente com as cabeças encolhidas.

Abanei a cabeça.

- Não tenho qualquer mapa do tesouro.

- Bem, vá lá, que é que tem?

Tirei a carta do bolso e mostrei-lha. Ele leu-a penosamente, procurando os factos nas entrelinhas das frases refinadas e do inglês erudito. Então, olhou para mim e bateu na carta com o polegar.

- Isto é genuíno?

- É. Ninguém forja um documento desses. Custa apenas um telegrama verificar a sua autenticidade.

Manny concordou. Isso ele era capaz de compreender.

- Sim... sim. Acho que está bem. Mas não diz o suficiente. Havia um navio-tesouro. Esta moeda poderia ter vindo dele. Não diz que veio de facto.

- É aí que eu entro. Sou um historiador, como lhe disse. O meu trabalho é recolher, pesar e determinar o valor da prova histórica. Recolhi informações suficientes para demonstrar que o galeão perdido podia ter naufragado perto do local onde encontrei esta moeda.

- E onde é que a encontrou?

Agora tinha-o na mão. Já não abanava o charuto. O véu desaparecera dos seus olhos e li ganância e interesse calculista de comerciante, comparando custos a receitas, para determinar a percentagem de lucro. Podia agora manejá-lo com maior firmeza, como a um peixe cansado depois de uma corrida. Disse-lhe bruscamente.

- O local é segredo meu. Só eu sei onde é. Eu mesmo encontrei lá esta moeda. Não estou pronto para o revelar até que tenhamos assinado um acordo legal.

- Quanto é que quer?

- Para uma quota igual, mil libras, e todas as despesas pagas.

Estava feito. As fichas estavam na mesa. Não havia mais nada a fazer ou a dizer. A próxima jogada era da competência de Manny Mannix.

Mas Manny não estava pronto a licitar. Queria saber mais pormenores.

- Suponhamos que realmente encontramos este navio, onde você diz que deveria estar. Que quantidade desta mercadoria poderíamos estar à espera de encontrar?

- A carta fala em vinte arcas de ouro. Não posso adivinhar o seu valor... vinte mil, trinta... mais ou menos isso. Pode ser muito mais, claro.

- Pois pode. Pode também acontecer que esse lugar tenha sido varrido e não consigamos nada.

- Pois pode - concordei. - Mas não foi. Eu sei. A minha mulher e eu trouxemos a moeda para a superfície.

Manny lançou-me um olhar inquisitivo.

- Você não me disse que era casado.

- A minha mulher morreu no dia em que comemorámos um mês de casados.

Manny fez um som gutural e disse:

- É uma pena. - Então, lançou-me a próxima questão. - Você disse que quer mil para si e todas as despesas pagas. Que tipo de despesas tinha em mente, comandante?

- Duas mil libras, mais ou menos. É possível fazê-lo por menos, mas estaria a trabalhar da maneira mais difícil.

- Que tipo de artigos necessitaria?

Manny estava obviamente interessado. Tínhamos progredido tão claramente do regateio especulativo para o pensamento prático, que me esqueci de ser cauteloso.

Dei-lhe a resposta, clara e simples.

- Quinhentas para comprar a ilha. Isso dar-nos-ia direitos sobre a terra e sobre o mar e uma maneira de contornar a legislação sobre a descoberta de tesouros. Depois uns cruzados com camarotes, equipamento de mergulho e provisões, e talvez um mergulhador profissional para os níveis mais profundos. Eu poderia dar-lhe uma lista de artigos quando estivéssemos de acordo.

Tinha cavado a minha própria sepultura e caminhava alegremente para dentro dela; mas não o sabia na altura. Só o soube muito mais tarde. Naquele momento nem sequer sabia por que é que Manny estava a sorrir. Quando ele se voltou para servir a nossa terceira bebida pensei que se preparava para selar o nosso acordo. O que provou que eu não conhecia Manny. E provou que eu correspondia à ideia que Manny fazia de mim: um historiador ingénuo, que não conseguia perceber as lições elementares da História, isto é, a vaidade dos desejos humanos, a inconstância das mulheres e o facto que nenhum pacóvio teve, alguma vez, um golpe de sorte, porque não o merece.

Manny voltou com as bebidas. Erguemos os nossos copos e sorrimos um para outro. Então, Manny, verdadeiramente gentil, respondeu:

- Lamento, comandante... nada feito.

Foi tão definitivo quanto um murro na boca.

E Manny sorria, sorria e sorria.

Eu não estava a sorrir. Senti-me doente, cansado e humilhado, e queria ir para casa. Então, Manny avançou para o soco derradeiro.

- Olhe, comandante. Só para lhe mostrar que não há ressentimentos eu compro-lhe a moeda a preço do mercado... trinta libras. Ficava bem na pulseira da queridinha.

Então ri-me. Sabe Deus porquê, mas ri. Fiz a moeda girar e apanhei-a, dizendo a Manny:

- Dê-me uma noite de graça no bar e tem negócio.

Manny olhou-me com frio desprezo. Dirigiu-se então à secretária embutida de tartaruga e madre-pérola e retirou trinta libras num maço de notas novas. Envolveu-as num elástico e depositou-as na palma da minha mão estendida. Disse:

- Se for esperto, comandante, deixará as mesas em paz, e ficará só pelo bar. As bebidas são por conta da casa como você queria.

- Obrigado, Manny - disse eu. - Obrigado e boa noite.

- Boa noite - disse Manny. - Boa noite, pacóvio.

Lembro-me de caminhar até ao bar e pedir um uísque duplo.

Depois disso nada.

Às nove horas da manhã seguinte o reitor encontrou-me a ressonar nos arbustos, junto à sua janela da frente.

Às quatro horas da tarde desse mesmo dia, a faculdade aceitou a minha demissão, e deu-me o salário de um mês, em vez de aviso prévio. O que me deixou com uma ressaca horrível, sem emprego, sem perspectivas e com pouco mais de cem libras em dinheiro. Por que é que Manny foi bom para mim? Quando me despachou, sem cerimónia, para o meio da rua, juntou às suas trinta libras, que guardei no bolso interior do meu casaco, um breve recado: “Paciência, comandante. Foi um belo jogo.”

Manny é assim. Um tipo simpático, com sentido de humor.

 

Na sexta-feira de manhã fui cobrar uma dívida.

Apanhei o comboio para Camden, uma pequena e elegante cidade construída com a riqueza da mais antiga nobreza senhorial do mais jovem país do mundo. Os pastos verdes estendem-se até à soleira da porta, e a auto-estrada de alcatrão negro serpenteia através de hectares e mais hectares de pastagens ricas, salpicadas pela sombra de grandes eucaliptos brancos e de salgueiros que guarnecem os ribeiros nas quintas. As casas, de um cinzento-suave, foram construídas bem no interior das propriedades, em locais recatados. As famílias suas proprietárias remontam à Primeira Armada e aos dias grosseiros e barulhentos de uma colónia penal.

Esta é uma terra de criação de gado leiteiro, de gado bovino, saudável, de criadores de cavalos, terra onde uma seca nunca acontece, e onde os riachos nunca secam, e as raízes se enterram fundo e onde eu, um homem desenraizado da cidade, não tinha lugar.

Em Camden apanhei um táxi e segui oito quilómetros pela auto-estrada até um portão em forma de pérgola, ornamentado com malha de arame, sobre o qual foi colocada uma tabuleta assinalando o Rancho McAndrew. A casa fica distante do portão, e o motorista do táxi ficou perplexo quando, depois de lhe pagar, lhe pedi para voltar dentro de uma hora.

Ele não poderia saber que o propósito da minha viagem me deixava com vergonha de mim mesmo, e que precisava de andar por entre os eucaliptos em flor para me preparar para o meu encontro com Alistair McAndrew.

A estrada subia suavemente durante alguns metros e depois descia em direcção à casa principal, um edifício baixo e amplo, abrigado por arbustos e rodeado por anexos brancos e cercas, onde estavam os cavalos da casa.

À esquerda ficava um extenso prado onde pastavam alguns dos reprodutores de McAndrew. À direita surgia um pequeno picadeiro, onde um grupo de homens observava um jovem potro a ser domado para montaria.

McAndrew estava com eles, um celta negro e entroncado de camisa caqui e calças de montar. Apoiava-se na cerca com a atitude calma do homem do campo, mas os seus olhos agitados não perdiam pormenor algum do exercício, e, de tempos a tempos, bradava uma instrução serena ao vaqueiro na sela.

Voltou-se ao som dos meus passos, hesitou um momento, e só então caminhou na minha direcção com um sorriso largo e uma mão estendida.

- Lundigan! Ora, raios me partam! Homem, é bom ver-te! Sorri tolamente e sacudi a sua mão, cumprimentando-o.

- Olá, Mac.

- Que fazes por aqui?

- Bem, eu... eu queria ver-te, Mac. Isto é, se tiveres tempo. A minha voz, ou os meus olhos traíram-me nesse instante, porque ele olhou-me com estranha preocupação e disse:

- Claro, homem. Todo o tempo do mundo. Dá-me licença um minuto para falar com os rapazes.

Observei-o enquanto se afastava para instruir os homens que estavam à volta do picadeiro. Ele caminhava com segurança, falava com autoridade, um homem em casa e à vontade com os seus homens, e os seus cavalos, e os seus hectares salpicados de sombras. Lembrei-me do dia em que o arrastava ao longo de uma praia nos Trobriands, um esqueleto amarelo, encolhido, último sobrevivente de um pelotão que os japoneses dizimaram dois dias depois de atracarem. Tremendo com malária, inchado pela desinteria, conseguiu chegar ao ponto de encontro, e nós tínhamo-lo resgatado debaixo de fogo, no pequeno bosque de palmeiras... e agora eu vinha reclamar o pagamento.

McAndrew voltou, e caminhámos juntos em direcção à casa.

- Já lá vai muito tempo, Renn.

- Onze anos... doze. Sim... muito tempo, Mac.

- A minha mulher foi passar o dia à cidade. Ela gostaria de te conhecer. Vais ficar, é claro. Tenho muito para te mostrar.

Abanei a cabeça.

- Lamento, Mac. Tenho de partir dentro de uma hora.

Ele estava confuso e algo magoado. Voltou a insistir.

- Mas tu não podes aparecer e desaparecer assim. Claro que tens de ficar.

- Talvez seja melhor saberes primeiro por que é que estou aqui.

Era uma resposta murmurada e deselegante para dar a um homem que não se via há doze anos; e, mesmo assim, que mais havia para dizer? Senti-me embaraçado, grosseiro. Estava arrependido de ter vindo.

Agarrou o meu braço e guiou-me gentilmente através da varanda para a sala de estar, um soalho extenso e polido com tapetes esplêndidos, bons quadros, e cadeiras de cabedal rodeando uma enorme lareira de pedra. - Fica à vontade, Renn. Vou preparar uma bebida.

- Aceito, obrigado.

A poltrona era funda e confortável, mas eu não conseguia relaxar. Os músculos da minha cara estavam rígidos, a minha boca estava seca. As minhas mãos estavam quietas e eu pressionei-as fortemente contra os braços da poltrona para que os meus dedos parassem de tremer. McAndrew trouxe as bebidas, entregou-me a minha e depois sentou-se, de frente para mim, do outro lado da lareira.

- À tua saúde, Renn. E a encontros felizes?

- À tua saúde, Mac.

O uísque desceu, suavemente, tal como deve ser o bom uísque, e depois caiu no meu estômago como uma pedra de carvão em brasa. McAndrew observou-me com sóbria preocupação.

- Renn, estás doente?

- Doente? - tentei rir, mas da minha garganta ecoou um som seco de tosse. - Não. Doente, não. Pelo menos não da maneira que um médico o veria.

- Um amigo talvez o visse de maneira diferente.

A sua delicadeza, a sua perplexidade, a sua amabilidade sincera, deixou-me zangado comigo mesmo. Com algum esforço levantei-me da minha cadeira e fiquei junto à lareira olhando na sua direcção. As palavras pareciam esforçar-se para sair, irritando a minha garganta enquanto o faziam.

- Olha, estou longe de ser um grande amigo. Não vim aqui hoje pelo prazer de te ver. Eu... eu vim porque preciso de mil libras e tu és o único homem, de quem me consegui lembrar, que me pode emprestá-las.

McAndrew não se mostrou surpreendido. Olhou fixamente para o interior do seu copo e disse:

- Então, estou contente que tenhas vindo ter comigo, Renn. Mil libras é muito pouco para pedir a um homem a quem salvámos a vida. Eu passo-te um cheque dessa quantia. Agora, acalma-te e saboreia a tua bebida.

Foi tão simples, tão brando e despreocupado, que me tirou o fôlego. E ainda assim não tive a delicadeza de aceitar, e acabar com aquilo. Continuei a falar, arrogantemente, tolamente:

- Mas eu não o quero assim.

- Então, como é que o queres?

- Quero dizer-te primeiro por que é que preciso do dinheiro.

- Isso não é necessário.

- Mesmo assim. Eu quero dizer-te.

E disse-lhe. Falei-lhe de Jeanette e de mim, e da nossa ilha ao sol. Falei-lhe na velha moeda e do velho navio, do qual eu acreditava ser a moeda proveniente. Falei-lhe de Manny Mannix e da minha última loucura nas mesas do Manny's, e da minha saída degradante da universidade. Descarreguei tudo numa orgia de autoflagelação, e, quando terminei, senti-me subitamente vazio e cansado.

McAndrew não disse uma palavra. Levantou-se, tornou a encher o meu copo, e entregou-mo.

- Bebe isso, homem. Vai fazer-te sentir melhor. Eu sorri amargamente.

- Essa é uma grande mentira. Já tentei. Não resulta. McAndrew sorriu e bateu com uma mão amiga no meu ombro.

- Tens bebido com a companhia errada, é tudo. Se tivesses algum juízo vinhas ter comigo em primeiro lugar...

Bebemos. Pousei o copo cuidadosamente e, de igual modo, expliquei-lhe.

- Mac, é verdade que quero dinheiro. Quero-o mais do que consigo dizer; por mais razões do que consigo explicar, mas não quero o teu dinheiro.

- Então, chama-lhe um empréstimo; a ser pago quando achares o teu navio do tesouro.

- Não, Mac. Um empréstimo também não. Quero que seja o meu dinheiro. Se eu encontrar aquilo que procuro, também quero que seja meu... Não sei se te consigo fazer perceber isto. Mas eu quero algo como o que tu aqui tens... a tua terra, os teus cavalos, a tua própria vida. É isso que eu quero para o meu navio do tesouro. Um lugar meu, a minha própria vida.

- Serias feliz sem teres um lugar só teu e uma vida própria?

- Não sei. Mas se não posso ter a Jeanette, eu quero as outras coisas. As coisas que esperava partilhar com ela. Consegues perceber?

- Sim, consigo. Mas não sei o que queres dizer com isso do dinheiro.

- Então, eu digo-te. Chama-me louco, se quiseres. Mas é assim que eu quero. Tu crias cavalos de corrida. Formas vencedores. Quando tiveres um bom a surgir, a um bom preço, quero que me digas. Quero que me dês a mesma oportunidade que dás dos teus empregados, de apostar o meu dinheiro nele. Apenas cem libras. Não vai prejudicar o mercado... e se ganhar receberei a quantia que preciso, e ter-me-ei vingado dos corretores de apostas. É tudo o que quero.

McAndrew fitou-me, espantado.

- Renn, tu és doido. Cada corrida é uma caixa de surpresas. Cada cavalo é um risco. O melhor cavalo do mundo pode perder. E se isso acontecer?

- Então, vou para Queensland cortar cana-de-açúcar ou arranjar um emprego como cozinheiro de tosquiadores. Tudo o que peço é uma oportunidade. Mac, a mesma oportunidade que dás aos teus empregados. Um bom cavalo tentando ganhar.

- Mas se ele perder, tu perdes tudo.

- Perco cem libras. Isso não é tudo.

- É tudo o que tens. Se eu te emprestasse podias ter o dinheiro sem riscos, sem obrigações.

- Só que dessa maneira perco a única coisa que ainda tenho... independência.

Passou um longo, longo minuto enquanto McAndrew considerava a proposta. Claro que lhe era repugnante.

De acordo com qualquer regra eu estava a fazer papel de parvo. Também estava a retirar a um homem gentil e bom a sua oportunidade de pagar uma dívida com generosidade. Se soubesse então o que sei agora, teria agarrado no cheque e beijado a mão que mo oferecia. Mas eu era um historiador mal-humorado que se recusava a aprender as lições da história. Por isso deixei McAndrew completar a resposta. Fê-lo calmamente, sem limitações.

- Tudo bem, Renn. Se me deixasses dar-te o dinheiro, ou até mesmo emprestar-to, far-me-ias muito feliz. Não deixas. Penso que percebo porquê. Black Bowman corre na terceira corrida em Randwick, amanhã. Vai abrir com dozes e sair por volta dos três. Por isso aposta o teu dinheiro cedo. Nós pensamos que ele vai ganhar. Se não ganhar, não será culpa nossa. Desejo-te sorte.

Estendi a minha mão. Ele segurou-a. E antes que a libertasse, disse-me:

- Tiveste uma travessia tempestuosa, Renn. Ainda não acabou. Mas há um porto seguro na casa de McAndrew. Lembra-te disso.

- Lembrar-me-ei. Estou mais grato do que consigo mostrar. Mas estou a navegar a minha própria rota, se não chegar a bom porto ninguém terá culpa se não eu.

Despedimo-nos e desci o longo caminho até à auto-estrada, ao longo de um pasto onde um garanhão negro ergueu as patas dianteiras e se lançou num galope. Por um efémero momento pensei que fosse Black Bowman. Mas então lembrei-me que Black Bowman já estaria na sua cocheira, descansando para a terceira corrida em Randwick.

Cheguei ao hipódromo a meio da segunda corrida. A multidão rugia à medida que o favorito ficava para trás, ultrapassado por um cavalo do campo considerado com poucas possibilidades de vencer. O recinto onde se faziam as apostas estava deserto, como eu sabia que estaria, e eu tomei a minha posição perto da cerca do apeadeiro, onde os grandes homens dispunham as probabilidades para muito dinheiro e onde uma aposta de cem libras não fazia o mercado levar um tombo.

É uma situação melindrosa quando a coudelaria está preparada para um ataque.

Existem milhares de libras para apostar antes que as probabilidades caiam para três ou menos, e cada corretor está avisado para acabar com as apostas, antes que as apostas acabem com ele. Existem uma dúzia de corretores comissionados, cada um com o dinheiro de uma coudelaria no seu bolso. Estão ocupados a adicionar os riscos, e os apostadores observam com olhos pequenos e brilhantes as caras familiares destes homens, que fazem tudo para favorecer as apostas dos donos e treinadores dos animais, bem como dos grandes grupos económicos. Tinha de levar de vencida tanto os corretores como os comissionados. Tinha de fazer a minha aposta assim que as probabilidades fossem apresentadas. Por isso, tomei lugar perto de Bernie Armstrong, o maior corretor de apostas na pista, e esperei.

Ouviu-se um gemido à medida que o cavalo mais fraco avançou até à meta, vários metros à frente. Dois minutos mais tarde abriram as apostas para a terceira corrida.

Nas pistas australianas as probabilidades são expostas nos quadros de todos os corretores, e as mudanças são feitas em cilindros numerados tal como os marcadores num salão de bilhar. Bernie Armstrong marcou doze para um contra Black Bowman. A quatro metros e meio um colega oferecia catorze. Eu calculei o tempo que levaria a conseguir passar entre a multidão e agarrar as probabilidades mais altas. Não compensava o risco. Os corretores comissionados estariam a distribuir o seu dinheiro e as probabilidades podiam cair em trinta segundos. Voltei-me para Bernie, exibi um maço de notas de cinco libras e fiz a minha aposta.

- Mil e duzentas para cem, Black Bowman...

Bernie lançou-me um olhar rápido. O seu funcionário agarrou o meu dinheiro, contou-o rapidamente e meteu-o no seu saco; acenou a Bernie, que registou um bilhete e empurrou-o na minha direcção.

- Negócio feito. Mil e duzentas para cem.

Depois rodou o cilindro no seu placar e as probabilidades desceram para dez. Lancei o olhar para o outro placar. Oito! Tinha tido sorte. O dinheiro da coudelaria estava a entrar agora... e antes que a cancela se abrisse, Black Bowman seria oferecido por uma ninharia.

Pus o bilhete na minha carteira e caminhei até à tribuna de honra à procura de um lugar. A minha boca estava seca e o meu estômago enrolado com a excitação. Precisava desesperadamente de uma bebida; mas o pensamento do bar, com o seu clamor de vozes e o cheiro de álcool derramado, pôs-me doente. Molhei os lábios para os humedecer e limpei suor das mãos, então, subi os degraus perto da cabina da rádio na bancada principal.

Estava um dia limpo, mas não estava calor ao sol. As mulheres de vestidos de algodão pareciam tocadas pela monotonia do Outono. Os canteiros estavam sem cor e a multidão mais esparsa que o costume. Mas a pista estava firme e o ar tranquilo, e isso era suficiente para mim.

Vi os encarregados guiarem os cavalos para o picadeiro. Observei os pequenos homens em sedas brilhantes transportando as suas selas para as balanças. Vi o púrpura e dourado da coudelaria de McAndrew e o meu coração bateu um pouco mais depressa. McAndrew tinha Minsky a montar para ele, e se Deus tivesse feito um cavalo para ganhar a prova da milha e meia, teria escolhido Minsky para o montar.

Estavam agora a colocar as selas. Minsky, McAndrew e o treinador de McAndrew falavam entre si. Tinham a atitude calma de homens que sabem da sua profissão, que sabem que fizeram tudo o que podia ser feito, e que a partir deste momento tudo depende do cavalo e do jockey e de Deus Todo-o-Poderoso.

O treinador ajudou Minsky a subir para a sela. Ele testou a cilha e apertou as correias. Depois Minsky inclinou-se e McAndrew esticou-se e deram as mãos ao longo do dorso lustroso e agitado de Black Bowman. Era um estranho, breve e íntimo ritual no qual eu não tinha lugar. Black Bowman carregava o meu dinheiro e o meu futuro, mas eu não tinha qualquer dever para com ele ou ele para comigo. Se ele ganhasse seria porque o McAndrew o tinha criado e os homens do McAndrew o tinham treinado, e pelo anão que usava as cores de McAndrew agachado sobre o seu dorso. Eu era um especulador e um especulador é um parasita no couro de um cavalo nobre.

Agora, o funcionário da corrida estava a conduzi-los para a pista. O seu cavalo de tronco compacto fazia um contraste ridículo com as linhas puras e nervosas dos puro-sangue.

Minsky levava Bowman a passo lento e o garanhão negro marchava tão delicadamente quanto uma bailarina. Ele assustou-se e ladeou quando um grande baio passou por ele num galope de aquecimento, mas Minsky acalmou-o e encurtou um pouco as rédeas. Um bom homem o Minsky, um velho e sábio cavaleiro. Eu estava contente que o meu dinheiro estivesse a correr com ele.

Calhou o número dez a Black Bowman na cancela. Era uma boa posição a meio do campo. Não podiam encostá-lo contra a cerca ou empurrá-lo nas curvas, e se Minsky conseguisse que ele fizesse uma boa partida, ele podia correr livremente pela pista até eles chegarem às últimas cinco voltas, que punham à prova os músculos e o coração de um cavalo e a habilidade do seu jockey.

O ar estava repleto de ruídos metálicos e o comentador bradava as posições e tentava transmitir à sua audiência invisível a pequena confusão nas cancelas. Eu não conseguia perceber o relato, mas com os binóculos vi Black Bowman quieto enquanto o juiz de partida movimentava as últimas três montarias para a linha. Um estava dentro e os outros dois estavam a afastar-se. Os jockeys fizeram-nos dar a volta e ficar de frente outra vez. Eles avançaram. As cancelas ergueram-se. A multidão rugiu. Eles estavam a correr...

Vi o cintilar da púrpura e dourado enquanto Minsky o conduzia numa boa partida. Depois perdi-o na amálgama de cavalos que se fixaram atrás dos contadores de voltas durante a primeira meia milha.

Um ruão capado e um cinzento grande iam à frente. Alguns cavalos que partiram mal ficaram para trás e corriam só pelo exercício. Mas o vencedor encontrava-se algures no pequeno grupo no meio do campo, e ninguém podia começar a adivinhar qual deles seria, até o grupo diminuir por volta dos três quartos de milha, e os rapazes montavam para ganhar, bem colocados na sua postura.

O ruão afastou-se ao passar da milha e na sétima volta o cinzento ia à frente, mas a atrasar-se. Quando atingiram a quinta, o grupo estava dividido em dois e eu vi Minsky; e Black Bowman galopava confortavelmente na cauda dos primeiros oito cavalos. Na meia milha ainda eram oito, mas dois estavam a ficar para trás, e Black Bowman continuava na cauda da primeira meia dúzia. Minsky estava a fazer uma corrida sossegada até que eles deram a curva para a recta. Então, o meu coração caiu. O favorito avançou para junto do cercado. Mais três cavaleiros avançavam lado a lado, e Black Bowman estava um corpo atrás do quarto. Tentei fixar-me nele mas o cavalo da frente bloqueava-me a vista. Vi o cavaleiro favorito usar o seu chicote. Vi os três primeiros cavalos alargar as passadas à medida que os cavaleiros se inclinavam para a frente nos seus grilhões. Se Bowman não avançasse agora estava acabado e eu também.

Então eu vi. E a multidão viu. E nós saltámos dos lugares e rugimos. Minsky tinha levado Black Bowman para o lado de fora. Estavam quatro corpos atrás do líder. Mas Minsky estava fora da sela, estava preso pelos seus joelhos magros ao dorso de Black Bowman. A sua cabeça estava baixa por detrás do da sua montaria, ele estava a dar-lhe rédea, tanta quanto ele quisesse e o grande garanhão estava a avançar. Três corpos... dois... depois ficou ao lado do líder. Então Minsky bateu com o chicote no seu flanco tão levemente que nos questionámos se ele o teria sentido, e Bowman saltou para a frente para ganhar por corpo e meio.

Esperei para ver os números aparecer. Esperei até o peso correcto ter sido assinalado. Bati no bolso para me assegurar que o bilhete da aposta estava a salvo. Depois saí do hipódromo e apanhei um táxi para casa. Estava mil e duzentas libras mais rico. Admirei-me por me sentir tão pouco excitado por isso.

Na segunda de manhã fui fazer as contas ao Clube Tatter-salls. Bernie Armstrong pagou, como sempre fazia, com um sorriso e um convite a fazer mais negócios com ele.

Estava a contar as notas novas e estaladiças e metendo-as numa mala quando Manny Mannix me bateu no ombro.

- Parece que teve um bom dia, comandante.

Assenti levemente e disse:

- Sim, bastante bom.

- Mais de um milhar nesse maço - disse Manny. Arrumei as últimas notas na mala e fechei o trinco.

- Tem razão, Manny. Mais de um milhar.

Manny sorriu sagazmente.

- Então, agora você tem a sua parada, hem, comandante?

- É como diz, Manny, tenho a minha parada.

Então ele sorriu como quem demonstra um sincero - sem ressentimentos - e estendeu a mão.

- Acho que você merecia, comandante. Desejo-lhe sorte.

Eu ignorei a sua mão e olhei-o bem fundo nos olhos.

- Você é um sacana, Manny - disse eu suavemente. Depois enfiei a mala debaixo do braço e saí do clube. Este foi o meu segundo erro. Chamem sacana a um homem e ele dá-vos um murro no nariz. Mas um homem como Manny quer-vos mostrar quão sacana é que ele pode ser.

 

O meu dinheiro estava guardado no banco. O meu lugar estava reservado no avião. Estava uma carta no correio para o Departamento de Administração Territorial do Governo de Queensland comunicando-lhes a minha chegada para negociar a compra ou arrendamento de uma ilha no interior do recife. O meu equipamento estava pronto e a minha renda paga. Apanhei um ferry até Lane Love para falar com Nino Ferrari.

Nino é um genovês; um magro e duro homem moreno, com pés-de-galinha nos cantos dos olhos. Nino tinha sido um homem-rã na Marinha de Mussolini, e enquanto tal enviou alguns milhares de embarcações aliadas para o fundo do Mediterrâneo.

Agora emigrante, dirigia uma pequena fábrica de equipamentos de mergulho para a Marinha, para os amantes da pesca submarina e para os rapazes enfeitiçados pelo azul do oceano. O seu trabalho é de confiança. O seu conhecimento de mergulho em águas profundas é enciclopédico.

Disse o que queria - equipamento de mergulho e botijas.

Ele questionou-me gravemente.

- Isto é para recreio, Signor Lundigan, ou negócios?

- Há alguma diferença, Nino?

- Si, si... Uma enorme diferença.

- Porquê?

Nino encolheu os ombros e abriu as mãos em desaprovação.

- Porquê? Eu digo-lhe porquê. Compra esta coisa para recreio, encontra um buraco simpático e interessante numa rocha a vinte pés de profundidade, e talvez brinque durante horas sem nenhum perigo de maior. Faz umas férias ao sol e desce para olhar para o coral, e pescar com arpão talvez... e é só. Tem cuidado com os tubarões, segue algumas regras simples, e nenhum mal lhe pode acontecer. Mas para negócios...

Não terminou. Esperei um momento, então incitei-o gentilmente.

- Para negócios, Nino?

- Para negócios, meu amigo, você precisa de treino.

- Não tenho tempo.

- Então, provavelmente, matar-se-á, muito em breve.

Isso fez-me descer à terra. Nino não estava a brincar. Nino era um profissional. Nino não tinha nada a perder dizendo-me a verdade. Perguntei a mim mesmo se teria alguma coisa a perder dizendo-lhe a verdade. Os seus olhos frios e sinceros responderam-me que não. Por isso disse-lhe.

- Estou à procura de um navio, Nino.

Para Nino isto era um lugar-comum. Ele assentiu sobriamente.

- Salvamento?

- Tesouro.

A face trigueira de Nino descontraiu-se num sorriso.

- Sabe onde está este navio?

- Sei onde deveria estar. Tenho de o encontrar primeiro.

- Onde espera encontrá-lo?

Contei-lhe. Contei-lhe o que eu acreditava ter acontecido ao Dona Lúcia. Tracei o mapa da sua viagem. Mostrei-lhe como eu via o seu fim... afundando no exterior do recife da ilha Twin Horns.

Nino ouviu cuidadosamente, acenando em aprovação da minha lógica histórica. Quando havia terminado ele pegou num lápis e num bloco de desenho e começou a interrogar-me.

- Primeiro você diz-me que tipo de ilha é esta. É uma ilha de coral?

- Não. É uma ilha de terra firme. Um monte de minério de ferro e terra com penhascos de um lado e uma tira de praia do outro. O recife de coral cresceu à sua volta.

- À volta de toda ela?

- Isso é o que os mapas mostram. Mas existe um canal. Eu descobri-o há muitos anos.

Nino desenhou a ilha rapidamente num bloco. Mostrava a elevação... uma pequena montanha erguendo-se acima do nível da água. Mostrava um longo banco de areia ladeado com coral áspero. E do outro lado do coral um banco mais pequeno, depois um precipício para águas profundas. Então, empurrou o desenho na minha direcção.

- Alguma coisa semelhante?

- Muito.

- Óptimo.

Pegou no lápis outra vez e começou a fazer um desenho que crescia à medida que ele falava.

- Existem duas coisas que podem ter acontecido ao seu navio. A primeira: ele avança na direcção do recife com bom tempo. Embate. Afunda. Assenta aqui... escorregando pelo banco de areia para águas profundas... Muito profundas... Tão profundas que diria que é aqui?

- Não sei. Essa é a primeira coisa que tenho de descobrir. Nino assentiu.

- Também é a coisa mais perigosa. Mas lá voltaremos se não foi muito profundo e o navio não tiver já sido destruído pelo coral. Então, talvez tenha uma chance. Mas... se aconteceu a segunda coisa... se ele se afundou numa tempestade... terá sido destruído pelas ondas. Nesse caso, digo-lhe já que nem tem uma hipótese num milhão. A sua madeira terá sido desfeita, as arcas do tesouro também, talvez... mas mesmo que isso não tenha acontecido, elas terão descido até ao fundo, e duzentos anos de crescimento de coral tê-las-ão devorado... e você nunca as encontrará. Nem no dia do Juízo Final.

Nino levantou a cabeça do desenho. Os seus olhos francos examinavam a minha cara. Perguntei-lhe bruscamente.

- Se estivesse no meu lugar, Nino, que faria?

Ele sorriu e abanou a cabeça.

- Se estivesse no seu lugar, com a experiência que agora tenho, esqueceria tudo acerca do navio do tesouro e guardava o meu dinheiro. Mas... se fosse você, como você é agora, com um sonho no seu coração e algumas libras no seu bolso... eu iria procurá-lo.

Sorri. A tensão entre nós acalmou. Pusemo-nos a falar dos aspectos práticos.

- Primeiro - disse Nino, resumidamente -, vai comprar uma carta naval topográfica. Vai reparar na profundidade da água neste banco. Se não ultrapassar as vinte braças... então, você tem uma hipótese. Um homem pode treinar-se para estar confortável a essa profundidade, desde que observe os horários de descompressão. Abaixo disso... não. Depois, fica a zona de euforia, onde os homens ficam embriagados com o nitrogénio nos seus corpos... onde qualquer movimento é um perigo, até para os experientes. Você percebe o suficiente do assunto para saber a que me refiro.

Acenei em concordância. Eu conhecia os horrores, quando o nitrogénio no estado livre explode como champanhe nas articulações e vértebras e o mergulhador descuidado ou desafortunado sofre contorções fantásticas. Tinha lido sobre a estranha e mortal euforia que atacava os homens na zona azul, que os leva a falar com os peixes, a arrancar as máscaras, a dançar estranhas sarabandas enquanto a morte aguarda de sorriso largo na penumbra subaquática.

Nino voltou ao seu interrogatório.

- Você sabe que não pode fazer isto sozinho?

- Eu não vou sozinho. Terei um... amigo a meu lado.

- Um mergulhador de baixa profundidade?

- Não... um mergulhador de grande profundidade. Um velho marinheiro dos lugres. Vive na ilha de Gilbert. Trabalhou com os japoneses. Está habituado a águas profundas.

- Então... - Nino fez uma careta. - Ele mergulha consigo. Mas não será capaz de trabalhar consigo.

- É assim que eu quero, Nino. Trabalharei sozinho. Ele encolheu os ombros.

- A vida é sua. Eu simplesmente lhe falo nos riscos.

- Quero conhecê-los.

- Então, repito que precisará de treino.

- Posso treinar-me a mim mesmo?

- Sim... Dar-lhe-ei um conjunto de regras e exercícios. Você praticá-los-á diariamente, rigidamente, aumentando os mergulhos a cada dia, observando os níveis de descompressão. Em nenhuma ocasião se deve desviar dos exercícios ou das instruções. Estamos entendidos? A sua vida dependerá disso. Este é um mundo novo no qual está a entrar. Deve fazer amizade com ele, ou morre.

Sabia que era um louco em não aceitar a oferta de Nino. Um curso de mergulho antes de partir para a minha ilha. Mas os diabos negros estavam atrás de mim, instigando-me. Apostava tudo e mais ainda, antes que o sonho acabasse e o sabor amargo da desilusão se instalasse na minha vida. Nino compreendia, penso mas não podia aprovar a minha loucura.

Mostrou-me o equipamento, ensinou-me como preservar o seu mecanismo simples. Colocou-mo e levou-me numa série de pequenos mergulhos-teste na pequena lagoa das rochas, junto da sua oficina.

Depois vestiu-se novamente, enquanto estávamos sentados a beber um copo de chianti na sua oficina, Nino fez uma lista dos artigos que teria de me fornecer: o fato de mergulho, óculos de protecção com vidro inquebrável, um cinto com pesos, barbatanas, botijas de ar comprimido...

- Mãe de Deus! - praguejou Nino, calmamente. - Sou um parvo. Tinha-me esquecido.

- De quê, Nino?

- Esta sua ilha. É longe do continente?

- Cinquenta milhas, mais ou menos. Porquê?

- Há alguma cidade por perto?

- Sim, mas assim que comprar as minhas provisões e sair de lá, não quero lá voltar. É uma cidade pequena. Visitantes são uma raridade. Os turistas são tema de conversa entre os locais. Isso pode ser mau. Mas porquê tanto barulho?

- Por causa disto. - Nino bateu numa botija de ar comprimido em metal. - Usa duas destas. Tem ar suficiente para hora e meia debaixo de água. Mas têm de ser recarregadas, e isso requer um compressor de três níveis, que é um equipamento pesado. Provavelmente, nem sequer existe uma máquina dessas nessa sua cidade.

Era a minha vez de praguejar. Praguejei... adequadamente.

- Qual é a alternativa?

- Não há alternativa. Eu vou vender-lhe vinte garrafas, o que é quase tudo o que tenho. Tem de as transportar para a sua ilha. Isso dar-lhe-á o bastante para quinze horas dentro de água. Depois disso, tem de as enviar para Brisbane, para serem recarregadas.

Vinte garrafas de água a sete libras cada faziam cento e quarenta libras - mais o transporte de avião. Quando deixasse a loja de Nino estaria duzentos e oitenta libras mais pobre, e tudo o que teria seriam quinze horas para encontrar o meu navio do tesouro. Por outro lado, se não o encontrasse em quinze horas nunca o encontraria.

Não havia nada a fazer a não ser pagar, dando graças, e esperar que o meu dinheiro se transformasse em amarelo de ouro, cunhado com a cabeça de Sua Majestade Católica de Espanha.

Fechámos negócio. Falámos de aspectos técnicos. Então, quando o vinho acabou e eu me levantei para sair, Nino Ferrari pousou a mão no meu ombro. Havia mais que uma insinuação irónica no seu sorriso; mas se a ironia era dirigida a mim ou a ele mesmo, não consegui perceber.

- Signor Lundigan - disse. - Vou-lhe dizer uma coisa. Quando mergulhava no Mediterrâneo, ao princípio, podia-se entrar em qualquer bar e encontrar um homem, meia dúzia de homens, que sabiam de um tesouro num navio à espera de voltar à superfície. Em toda a minha vida nunca conheci um que trouxesse mais que alguns fragmentos de cerâmica, ou um pedaço de mármore, ou uma estatueta de bronze. E ainda assim você sabe, e eu sei, que os tesouros da Grécia, Roma e Bizâncio repousam na placa continental. E se me pergunta por que é que eu lhe digo isto, é para lhe dizer que vá, vá, mergulhe pelo seu navio. Encontre-o, se puder. E mesmo se falhar, terá feito o que o seu coração lhe pede... e isso é algo mais valioso que todo o ouro do rei de Espanha.

Nino Ferrari é um genovês. Génova é uma cidade agradável, ilustre, aventureira, com a estátua de Cristóvão Colombo na praça central. O velho visionário de feições marcadas ter-se-ia orgulhado de Nino Ferrari. Eu sei que Nino Ferrari fez-me sentir, por um breve momento, orgulhoso de mim mesmo.

O funcionário do Departamento de Administração Territorial era prestável e cortês, e estava totalmente convencido de que eu era um lunático. Ele chamou a atenção para o facto de o Governo de Queensland não estar disposto a alienar mais ilhas costeiras, mas teria todo o prazer em arrendar a minha ilha por dez, vinte ou noventa e nove anos, se eu realmente a quisesse por tanto tempo. Tornou claro que ninguém, no seu perfeito juízo, quereria um lugar como aquele por mais de dez minutos. Não havia água nem canal algum através do recife. Quando lhe disse que tanto havia água como um canal ele cacarejou dubiamente e pediu-me que enviasse ambas as informações ao topógrafo-chefe, isto é, se ainda quisesse ser um locatário da Coroa.

Eu queria. Ainda quis mais quando descobri que o arrendamento me custaria apenas vinte libras por ano e que eu podia assegurar a minha base de operações sem despender muito dinheiro, conseguido com tanta dificuldade.

O contrato foi redigido, autenticado, carimbado e guardado com o arquivista-geral. E Renn Lundigan, Esq. (1), tornou-se um locatário do Governo de Sua Majestade, com direitos a propriedade livre e tranquila de uma ilha verde com uma praia branca e um recife de coral, a cinquenta milhas da costa de Queensland.

 

Nota 1: Esq. no original. Esquire, título de cortesia que se acrescenta a um nome quando não precedido de Mr., Dr., etc. (N. Da T.)

 

Toda a transacção foi simples, tão obviamente trivial, que eu realmente me esqueci de um factor importante. Assinar, carimbar e entregar um documento é um acto legal, tão irrefutável quanto o cunhar de uma moeda, e bastante mais público. Mas, de tudo isto, eu não tinha qualquer ideia enquanto introduzia as cópias no meu bolso, juntamente com as notas de consignação de Nino Ferrari, e caminhei para a luz nua do sol, em direcção ao gabinete de fretes da companhia aérea.

O meu equipamento estava à minha espera, empacotado em três caixotes de madeira. Imediatamente dei conta do problema de os levar para a minha ilha. Seriam levados por avião costa acima, de comboio até à pequena cidade em frente da ilha e depois seguiriam de lancha. Mas isto não me satisfazia minimamente. Existia o risco de atraso e de estragos. Existia ainda um risco maior. O dos boatos e interesse, nada bem-vindo, quando provisões tão numerosas fossem expedidas para uma ilha, onde nem sequer os turistas podiam ser levados para os seus piqueniques e banhos, na redondeza da barreira do Recife.

Cautelosamente, discuti o problema com o funcionário dos fretes.

Disse-me que havia um hidroavião que, duas vezes por semana, servia os turistas das ilhas da Passagem Whitsunday. Os meus caixotes podiam ser colocados numa delas. Podia ir buscá-los com a minha lancha. Ele presumiu que eu tinha uma lancha. Eu esperava vir a ter uma lancha. Mas primeiro tinha de encontrar uma e comprá-la por bom preço. Paguei o frete, assinei os papéis do seguro e aceitei a sua garantia pessoal que os meus caixotes estariam prontos para serem recolhidos em qualquer altura, depois de quinta-feira, desde que o tempo estivesse bom e o motor do velho Catalina não caísse.

Depois comprei um bilhete de avião para o dia seguinte à tarde, e dirigi-me ao Hotel Lennon's para tomar uma bebida.

Julho é a época turística em Brisbane. O sol desloca-se para Norte, de Capricórnio para Câncer. As chuvas acabaram, o céu está azul e o ar tem uma frescura que vale uma fortuna para os especuladores e taberneiros, bem como para os encarregados de pensões e proprietários de apartamentos mobilados de Southport a Caloundra.

Os ricos de Melbourne e Sidney vão para o norte. Os playboys pavoneiam os seus maços de notas e as playgirls ostentam os seus encantos. Os semanários sociais enviam os seus espiões; e os fotógrafos têm um dia cheio com os manequins. Não se consegue um quarto para o amor; ainda que se consiga um por dinheiro - muito dinheiro. As ilhas turísticas estão cheias, e as fotografias transformavam-se em páginas coloridas e suplementos especiais na Riviera do Pacífico Sul e no Waikiki setentrional.

Os homens de negócios, sagazes e calmos, em fatos tropicais sorriam por cima das suas bebidas no Bar Lennon's e juntavam mais mil ao preço de trezentos metros de dunas na cintura-dos-pacóvios.

Eu era um estranho no meio deles. Seriam amáveis comigo como o são sempre para com os sulistas; mas continuaria a ser um forasteiro.

Mudei-me do bar para o salão, e brinquei com uma caneca de cerveja enquanto observava os turistas preparando uma visita às ilhas do recife, a norte, ou ao desfile de biquinis a sul.

Invejei-lhes a liberdade e as suas pequenas ou enormes opulências. É verdade, não possuíam nenhuma ilha. É verdade, não tinham nem a esperança, nem o pensamento em arcas cheias de ouro por entre os ramos de coral. Mas também não tinham demónios a espreitar-lhes por cima dos ombros; nenhum diabinho instigador empurrando-os para solitárias rotas marítimas, para portos desolados sob a lua indiferente. Não tinham qualquer compulsão para mergulhar em águas profundas, a ter por companhia monstruosidades coloridas nas florestas submersas. Invejava-os, mas a inveja é um vício perigoso e a autocomiseração é ainda mais perigosa. Tinha arriscado de mais e perdido de mais, e ganho a minha aposta dolorosamente de mais, para me entregar outra vez.

Tinha acabado de me convencer a terminar a minha bebida e ir a um teatro, quando a vi.

Um empregado em camisa de seda branca com uma faixa vermelha indicava-lhe uma mesa sob as palmeiras. Estava a dar-lhe o tratamento reservado a hóspedes conhecidos e mais afortunados. Ele acrescentava alguma coisa de si mesmo, porque ele era jovem e ela era linda, e demasiado cuidadosa para mostrar que a beleza estava a rebentar pelas costuras.

Ele inclinou-se junto dela enquanto puxava a cadeira. Ela sorriu-lhe por cima do ombro nu e fez o seu pedido com o gesto estudado de manequim. Quando ergueu a mão, ouvi o matraquear das suas pulseiras e vi o brilho melancólico da minha moeda espanhola.

Era a miúda do Manny, a modelo com os olhos sagazes e a boca triste, a rapariga que me tinha visto arruinado nas mesas e atirado para a rua, quando eu estava demasiado bêbado para me importar.

Senti uma mão fria apertar-me o coração. Se esta mulher estava aqui, Manny também devia estar; e Manny era um abutre sempre à espera da matança.

Então acendi um cigarro e disse a mim mesmo que era um parvo. A miúda estava aqui sozinha. Já não era a miúda do Manny. Tinha-lhe pago e mandado embora como as outras tinham sido pagas e mandadas embora, e ela tinha vindo para o norte, para a costa do ouro, investir os seus ganhos num novo homem com uma conta bancária promissora.

O criado trouxe-lhe a bebida. Ela pagou-a. Esse era um bom sinal. Raparigas como esta nunca pagam as suas bebidas se tiverem mais alguém que as pague por elas. Vi as moedas a brilhar quando ela ergueu o copo para beber, constrangidamente, como um animal treinado. Então, tive uma repentina ideia absurda. Recuperei a minha confiança e bom humor como uma droga.

Apaguei o cigarro e caminhei na direcção do canto tranquilo sob as palmeiras. Ela viu-me aproximar durante os últimos dez passos, mas os seus olhos estavam vazios e os seus lábios não demonstravam qualquer tipo de boas-vindas.

Inclinei-me sobre a mesa, lancei-lhe o meu sorriso pesaroso, e disse:

- Lembra-se de mim?

- Lembro.

A sua voz mudou tão pouco quanto a sua cara. Ainda era monótona, aborrecida, desagradável.

- Importa-se que me sente?

- Não.

- Obrigado.

Sentei-me. Ela terminou a bebida e empurrou o copo na minha direcção. O gesto era um insulto claro.

- Pode-me pagar outra se quiser.

- Quer dizer se puder?

- Oh, eu sei que pode. Manny disse-me que você estava cheio dele.

Novamente, os pequenos dedos gelados encrespados à volta do meu coração, mas consegui sorrir e as palavras saíram monótonas o bastante.

- Confie no Manny. Ele é um rapaz esperto.

- Ele não gosta muito de si, comandante.

- O sentimento é mútuo.

Ela soprou uma nuvem de fumo que me acertou em cheio na cara, rematando lapidarmente:

- Já somos três, comandante.

- Que quer dizer?

- Eu também não gosto do Manny.

- Pensei que ele estivesse aqui consigo.

- Não. Manny tem outros interesses. O actual é uma morena.

Eu disse que lamentava ouvir isso. Estava quase a dizer que os homens que tratavam as mulheres da maneira que Manny as tratava não eram homens, não eram nada. Ela interrompeu a minha pequena filípica com um gesto infantil.

- Poupe-me, comandante. Você não gosta de mim. Eu não gosto de si. Não façamos bonitos discursos. Sabe que Manny me deu a sua moeda?

Ela estendeu o pulso para que a moeda dançasse provocantemente debaixo do meu nariz.

- Sim. Ele disse-me que lha daria.

Pela primeira vez, ela sorriu. Humedeceu os lábios com uma pequena língua mordaz. Os seus olhos brilhavam com um divertimento malicioso.

- Gostaria de a ter de volta?

- Sim.

- Quanto é que me paga?

- Trinta libras. Foi o que o Manny me deu por ela.

- Dê-me cinquenta, comandante, e pode ficar com o resto da tralha também.

Tirei a carteira, contei dez notas de cinco libras e depositei-as na mesa sem uma palavra. Ela abriu o fecho da pulseira a atirou-a na minha direcção, depois apanhou as notas e enfiou-as na sua mala.

- Obrigada - disse ela monotonamente. - Já só tinha uma. Agora pode pagar-me uma bebida.

Tirei uma nota de dez xelins e pu-la cuidadosamente debaixo do cinzeiro. Depois pus-me de pé.

- Lamento. Vou sair da cidade. Terá mais sorte com o grupo de turistas. Eles estão a divertir-se. Eu estou a trabalhar.

Soou a ordinário e era ordinário. O próprio Manny não o teria dito de maneira mais porca. Tentei encontrar elegância suficiente e as palavras para uma desculpa.

- Eu lamento. Não devia ter dito isso.

Ela encolheu os ombros e agarrou no estojo de maquilhagem.

- Já estou habituada. Há uma coisa, comandante...

- Sim?

- Você pagou a mais pela pulseira. Para compensar a diferença vou dizer-lhe uma coisa.

- Então...?

- Manny disse-me que você tem uma coisa que ele quer.

- É assim que o Manny vive; a querer o que os outros têm.

- Desta vez, ele jura que vai conseguir tê-la.

- Primeiro, ele tem de me encontrar, e para o conseguir vai ter de procurar muito. E mesmo que ele me encontre...

Eu estava a afastar-me enquanto falava, mas ela fez-me parar.

- Quando ele o encontrar, comandante... quando ele o encontrar, vai matá-lo.

 

O avião atingiu os oito mil pés e pela janela de estibordo eu podia ver a sombra voando como um pássaro através do tapete verde do sertão.

A leste ficava o mar e o recife e as ilhas cor de jade. A ocidente, muito para além da nossa vista, ficavam as planícies secas e douradas da região do gado. Por debaixo de nós ficava a cintura litoral luxuriante, onde as monções banhavam as colinas mais baixas e enchiam os pântanos, onde as íbis (1) se reuniam e as brolgas (2) faziam o seu misterioso bailado no lodo.

 

Nota 1:Espécie de ave que habita lagos e pântanos de climas quentes. (N. da T.)

Nota 2: Espécie de garça. (N. da T.)

 

Ali estavam os campos de cana-de-açúcar e as plantações de ananás e os bosques de mamão e a extensão de mangueiras (3). Aqui estavam as pastagens verdejantes das manadas leiteiras. Aqui estavam os magros homens de fala mansa do norte; os apanhadores de cana, os operários da fiação, os negociantes de gado que caminhavam indolentemente com um conjunto de homens criados numa sela. Aqui está o povo, triste, perdido, cujo sangue tem vestígios de sangue da China e do Japão e das Ilhas Gilbert e das Molucas.

Aqui as casas eram construídas sobre estacas para que o vento pudesse soprar em toda a sua volta depois dos dias quentes e indolentes. Aqui estava o excesso de buganvílias estalando as colunas das varandas e galvanizando telhados. Aqui os homens eram ricos porque tinham tempo livre. Aqui os homens eram mesmo pobres se não conseguissem encontrar um amigo entre as pessoas generosas da própria Terra da Rainha (4). Aqui havia trabalho para qualquer homem que lhe quisesse

 

Nota 3: Arvore de manga. (N. da T.)

Nota 4: Queen's Land no original. Jogo de palavras com o nome da região, Queensland. (N. da T.)

 

deitar as mãos. E se não se interessasse por nada a não ser morder um fio de erva nos degraus da varanda, então, ele talvez fizesse isso, sem se preocupar com nenhum de vós.

Para mim, Renn Lundigan, voando alto entre um céu azul e uma terra verde, veio uma calma curiosa, uma sensação de libertação, como se um cordão umbilical tivesse sido cortado e eu tivesse nascido livre para um novo mundo, afastado do perigo, vazio de memória, para além da dor do desejo e da dor da perda.

Eu seguia para Bowen - uma pequena cidade portuária onde a luxúria tropical cobre as cicatrizes deixadas pelos ciclones e outras tempestades repentinas. Devo viajar novamente para sul a partir de Bowen, recuando cinquenta quilómetros. À primeira vista, isto pode parecer uma loucura, uma vez que o avião me teria deixado no meu destino sem a fadiga de três horas no velho caminho-de-ferro. Mas isto não me satisfazia minimamente.

A minha cidade era mais pequena que Bowen. Um estranho chegado de avião ou é um turista ou um caixeiro viajante. Como tal, ele é objecto de cordeal mas intenso interesse. Cada movimento seu é assunto de conversa entre os frequentadores do bar ou os desocupados nas varandas em frente das lojas.

Chegue de comboio, empoeirado, amarrotado, irritável, e eles estão preparados para o aceitar como você bem entender - inspector de mercadorias, corretor de apostas, pescador ou o funcionário de uma das fábricas de açúcar. Se pagar as suas contas, e não falar alto de mais ou gastar de mais, e mostrar algum conhecimento do cenário local, eles deixá-lo-ão fazer o que bem entender e esquecerão as perguntas que lhe queriam fazer, porque está quente de mais para se lembrarem.

O meu conhecimento do cenário local era deplorável e inadequado, mas contava com Johnny Akimoto. Filho de um pescador de pérolas e de uma mulher de Gilbert. O sangue da mãe era mais forte, e à excepção de uma curiosa cor acinzentada e alguma permeabilidade oriental em torno dos olhos e das maçãs do rosto, Johnny passaria por um ilhéu de raça. Desde os tempos do comércio de escravos, quando os homens da ilha foram obrigados a trabalhar nos campos de cana-de-açúcar, estas curiosas misturas raciais podiam ser encontradas ao longo de toda a costa de Queensland.

O próprio Johnny tinha trabalhado nos lugres de marisco. Tinha velejado com os pescadores de pérolas e mergulhado nos leitos profundos. Mas quando veio a guerra não havia mais trabalho para um mergulhador livre, Johnny tornou-se um homem com um trabalho esquisito. Ele tinha sido empregado dos americanos, estivador numa ilha de turistas, maquinista num barco de pesca, motorista de camião para um empreiteiro local. Toda a gente conhecia o Johnny. Toda a gente gostava dele, e quando Jeanette e eu corremos para terra, fugindo de um ciclone, foi Johnny quem coseu as nossas velas, reparou o revestimento do casco e o pintou, e nos recitou sábios discursos sobre o tempo no mar alto na estação má.

Fora Johnny que me ajudara a traçar a rota dos galeões de Acapulco. Quando lhe falara da nossa tímida esperança de encontrar o Dona Lúcia, prometeu que um dia mergulharia comigo em torno do recife da ilha Twin Horns. Um homem calmo e sábio, Johnny Akimoto. Um homem gentil e leal. Um homem solitário e perdido no meio das pessoas simpáticas da costa.

Pensei em Johnny enquanto o avião seguia para norte. Tirei uma soneca e sonhei com Manny Mannix e com a rapariga que me voltou a vender a minha moeda por cinquenta libras. Acordei e vi a hospedeira sobre o meu ombro, pedindo-me para apertar o cinto de segurança. O avião descreveu bruscamente uma curva sobre uma extensão de água azul. Fechei os olhos e quando os voltei a abrir vi uma biruta (1) inchada e um amontoado de barracões com telhados de ferro. Estávamos a chegar a terra.

 

Nota 1: Cilindro ou cone de lona esvoaçando no topo de um mastro para mostrar a direcção do vento num aeroporto. (N. da T.)

 

Sufocámos de calor numa sala de espera empoeirada enquanto eles descarregavam a nossa bagagem. A tarde ia a meio e a brisa marítima não sopraria se não dali a uma hora. Meti conversa com um tipo atarracado num fato de alpaca. Disse-me que era um gerente bancário reformado. Disse-me que ia juntar-se à mulher e à filha numa ilha de luxo ao largo

de Bowen. Disse-me quanto lhe iria custar. Disse-me que se iria divertir muito pouco. Disse-me como o calor lhe provocava borbulhas e o frio lhe provocava bronquite. Falou-me na sua incapacidade para o golfe e a sua ambição de produzir dálias premiadas. Falou-me...

- Sr. Renn Lundigan?

O funcionário do aeroporto estava junto a mim.

- Sim, sou eu.

- Telegrama para si. Chegou mesmo antes da aterragem.

Entregou-me um envelope amarelado com uma borda vermelha.

Estava franqueada com “Urgente”. Abri o envelope e desdobrei a folha dactilografada. O lugar de origem era Brisbane. A hora de envio era uma hora depois do meio-dia. A mensagem era breve e cordial com um aperto de mão..

BOA PESCARIA, COMANDANTE STOP ATÉ MAIS VER STOP

E estava assinado Manny Mannix.

Amachuquei o papel e empurrei-o para dentro do meu bolso. O gerente bancário atarracado olhou-me, curioso. Ele queria continuar a sua história. Eu virei-me e deixei-o a falar sozinho. Senti-me subitamente nauseado, mais do que alguma vez tinha estado desde que a Jeanette me fora tirada. Eu queria muito falar com Johnny Akimoto.

A viagem de comboio foi um lento tormento. Estava com calor, empoeirado, incomodado com as moscas e fastidiado até à insanidade por um par de rapazes pequenos que choramingavam continuamente por doces e bebidas, enquanto a sua mãe ralhava, em vão, para se calarem.

Parámos em todas as estações enquanto o maquinista trocava notícias com os seus colegas. Mudámos para uma linha auxiliar e esperámos três quartos de hora para que o comboio de ligação ao norte passasse. Os verdes campos, que pareciam tão desejáveis do ar, estavam agora a um passo de cair na penúria, o que combinava com a minha própria depressão. O povo simpático do norte era tagarela e enfadonho. As suas crianças eram uns monstros. Os seus meios de transporte eram um horror primitivo. As suas saudações eram uma intromissão na minha privacidade. As suas ofertas de jornais e fruta e limonada eram um atrevimento insuportável. Por volta do fim da viagem, eles tinham-me registado como um grosseirão intratável. Olhando para trás, descubro que concordo com eles.

O telegrama de Manny tinha-me afectado profundamente. A primeira fúria cega passou rapidamente e então o medo tomou conta de mim. Não acreditava, por um só instante, que a ameaça de Manny me matar fosse algo mais que fanfarronice para impressionar uma mulher. Mas o medo permanecia - o medo de perder algo que ainda não possuía, mas que tinha lutado e planeado e arriscado para alcançar.

Mais que isso, eu sabia o poder que repousava nas mãos de Manny.

O poder do dinheiro. Poder para comprar um homem aqui e alguma informação ali. Poder de planear as suas jogadas como num jogo de xadrez; pôr-me em xeque aqui, passar-me a perna ali, para combater cada jogada minha com outra mais sagaz, mais rápida e mais eficaz. Pensei nos três caixotes de equipamento nas instalações da companhia de aviação em Brisbane e perguntei-me se ele poderia fazer alguma coisa para os desviar.

Lembrei-me que Manny podia pagar um voo fretado, e até podia estar agora à minha espera no hotel. Perguntei-me o que faria se ele lá estivesse.

Mas não estava. Eu era o único hóspede. Podia ter o melhor quarto com a cama de ferro, e o grande mosquiteiro, e o jarro e a bacia rachados. Podia utilizar livremente a única casa de banho e andar quarenta e cinco metros até à retrete no pátio. Podia beber sozinho no bar. Podia levantar-me às sete e meia e tomar o pequeno-almoço sozinho às oito. Podia aceitar o convite asmático do meu anfitrião e juntar-me aos operários da fiação, e aos pescadores, contando histórias obscenas no bar. Eram bons rapazes. Ter-me-iam feito sentir muito bem-vindo. Mas eu não queria nada disso. Queria um duche, uma bebida e uma refeição. Depois queria ver Johnny Akimoto.

Encontrei-o onde o tinha visto pela primeira vez. Numa pequena cabana de madeira com o mato atrás e as dunas de areia à frente. Os caminhos de coral eram varridos todos os dias. Havia uma trilha de buganvílias, e uma árvore de hibisco, e uma bordadura de perfumadas gardénias, e um alto jasmim vermelho, cujos ramos nus cresciam como os símbolos de algum antigo culto fálico.

Um candeeiro de petróleo pendurado num prego na ombreira da porta e Johnny estava sentado numa caixa, entrançando ganchos numa rede de arrasto. Ele usava uma flor de hibisco no seu cabelo frisado, e a única roupa era um par de calções de algodão.

Olhou rapidamente quando ouviu os meus passos, e a sua face iluminou-se num sorriso de surpresa e boas-vindas.

Veio ter comigo, mão estendida.

- P'trão Ren.

- Isso mesmo, Johnny. P'trão Ren.

Era o velho nome dos tempos felizes. Levou-me quase às lágrimas. Johnny sacudiu-me a mão, bateu-me nas costas e fez-me sentar noutra caixa, que ele arrastou das sombras para o pequeno círculo de luz.

- Que o traz por cá, p'trão Ren? Vai ficar muito tempo? Como vão as coisas? Está bem? Parece cansado, mas isso é da viagem, hem?

As perguntas saíam aos trambolhões no rigoroso inglês de Johnny, e durante todo o tempo ele olhava para a minha cara, procurando como uma mãe ansiosa a verdade acerca de uma criança.

Eu disse-lhe a verdade.

- Vim vê-lo, Johnny.

- A mim? Isso é simpático, p'trão Ren. Pensei muitas vezes em si... e na menina.

- A menina está morta, Johnny.

- Oh, não. Quando? - Os seus olhos meigos estavam cheios de compaixão.

- Há muito tempo, Johnny. Há muito tempo, triste tempo.

- Não tem outra mulher?

- Não.

- E voltou para ver o Johnny Akimoto. Isso é bom, p'trão Ren. Eu agora tenho um barco. Um bom barco. Vamos até ao recife, hem? Vem pescar comigo, hem? Fazemos uma viagem juntos até à ilha Thursday... ou talvez a Moresby.

- Sim... Faremos uma viagem, Johnny... mas não a Thursday... até à minha ilha...

- A sua ilha? - Ele olhou-me temporariamente perplexo, então lançou-me um alegre sorriso. - Oh, sim, já me lembro. A ilha do navio do tesouro, hem? Disse que é a sua ilha?

- Arrendei-a, Johnny. É minha. Nós vamos mergulhar à procura do Dona Lúcia. Quero que venha comigo.

Johnny ficou em silêncio. Voltou as palmas das mãos para cima e parecia estudar as linhas e rugas da pele. Então, passado algum tempo, tirou um cigarro do bolso e deu-me um a mim. Acendemo-los. Fumámos por alguns momentos, escutando a lengalenga da água e a voz penetrante do vento.

Então, Johnny falou, calmamente, profissionalmente.

- Para fazer uma coisa como essa, p'trão Ren, precisa de um barco.

- Tenho dinheiro para comprar um, Johnny.

- Precisa de um mergulhador e de equipamento.

- Temos equipamento. Utilizamos fatos de mergulho.

- Já mergulhou antes, p'trão Ren?

- Um pouco. Um mergulho de treino ou dois... não mais.

- Então, tem muito que aprender antes de se tornar um mergulhador eficaz.

- Quero que você me ensine, Johnny. Também tenho uma lista de exercícios do homem que fez os equipamentos de mergulho. Ele diz que me posso treinar a mim mesmo para trabalhar a vinte braças.

- Vinte braças! - Johnny estava chocado. - Demasiado profundo p'trão Ren... demasiado profundo para mergulhadores...

- Pode ser feito, Johnny. Não é um mergulho livre. Um homem pode respirar lá em baixo.

Johnny abanou a cabeça.

- Isto é novo para mim. Não me soa bem.

- Vem comigo, Johnny? Ajuda-me a comprar um barco, a arranjar provisões e...

- Não há necessidade de comprar um barco - disse Johnny, tranquilamente. - Usamos o meu. É um tipo de lugre. Velho quando o comprei, mas eu consertei-o e agora ele leva-o a qualquer lado. O motor é novo. Faz oito, dez nós, se quiser.

- Tudo certo, então, eu alugo o barco. Pago-lhe um salário. Você vem para a ilha e trabalha comigo. É assim que quer?

Johnny assentiu sobriamente.

- É assim p'trão Ren. Fácil, rápido, sem problemas. Tente comprar um barco por estas bandas. Vendem-lhe um mau barco por um bom preço. Ou um bom barco que não pode comprar. Aqui é o Recife, p'trão Ren. Um homem que não toma conta de um barco encontra o teredo a comê-lo. Então, tenta vendê-lo a alguém que não conheça o teredo... percebe?

Eu percebi. Eu conhecia o teredo, o pequeno molusco que perfura a madeira nas latitudes mais quentes, comendo um barco como as formigas brancas comem uma casa. Só há um remédio: revestir o barco com cobre até à linha de água ou pintá-lo uma e outra vez com tinta de bronze, até que ele tenha uma película impermeável ao verme do mar. Os barqueiros da costa de Queensland são como os ladrões de cavalos de Kerry...

Além disso, ocorreu-me outra coisa. O barco do Johnny era um lugre, uma embarcação difícil e lenta se se tentasse levá-lo demasiado junto ao barlavento, mas ainda assim um barco de alto mar, seguro e confortável nas mudanças de vento. Se encontrássemos as arcas do tesouro do Dona Lúcia, toda a descoberta seria considerada “tesouro-achado”, propriedade da Coroa, e eu estava à mercê da Coroa para qualquer pagamento que pudesse ser feito em jeito de recompensa. Mas com o lugre do Johnny, com o seu conhecimento das ilhas, podíamos levantar âncora em direcção ao norte até encontrarmos um chinês que pagasse muito por ouro cunhado, ou um intermediário que precisasse de pagar o contrabando de armas. É um negócio florescente nas Celebes e nos estreitos da China, e em troca do ouro podemos ditar o nosso próprio preço, e em que moeda. Não disse ao Johnny a minha ideia. Ele podia não aprovar. Além disso, teríamos bastante tempo. Falaria com ele mais tarde.

Johnny fumava tranquilamente, pesando a próxima pergunta. O seu rosto estava na sombra os seus olhos fixos nos meus.

- P'trão Ren, você está com medo de alguma coisa. Do quê?

- Já lá chego, Johnny. É uma longa história.

- Se vamos trabalhar juntos, p'trão Ren, eu devia saber a história.

Contei-lhe. Contei-lhe do Manny Mannix e da rapariga no Hotel Lennon's. Contei-lhe do telegrama. Contei-lhe como temia Manny Mannix e o poder do dinheiro nas suas mãos.

Johnny soprou alguns anéis de fumo e observou-os a desaparecerem nos remoinhos formados pelo vento.

- Devíamos sair daqui rapidamente - disse.

- Estou pronto quando você estiver, Johnny.

- Primeiro, necessitamos de provisões.

- Quando as pode arranjar?

- Amanhã. Provisões e uma maleta de remédios. Acidentes acontecem no recife e na água.

- Faço-lhe uma lista esta noite. Há uma farmácia na cidade?

Johnny assentiu.

- Há uma farmácia. Melhor ainda, você compra os remédios. Eu trato das provisões. Se começasse você a comprar, as pessoas iam fazer perguntas.

- Quando podemos partir, Johnny?

- Depois de amanhã... ao raiar do dia.

- Antes não?

- Não - disse Johnny, firmemente. - Do que nos serve isso? Temos de preparar o barco. Temos de ir à ilha turística buscar o seu equipamento. Depois, temos de navegar o lugre através de uma passagem estreita do recife. Isso é trabalho para fazer de dia. É tolice arriscar o barco por nenhum proveito.

- E se Manny chega antes de estarmos prontos para partir?

- Por que deveria?

- Bastante simples, Johnny. A única coisa que Manny não sabe é para onde vou. Sabe que existe uma ilha. Não sabe o nome, nem a localização.

- Não se iluda, p'trão Ren - disse Johnny, gravemente. - Não se tente convencer do que não é verdade. Comprou a ilha, não foi? Como comprei esta cabana e este pedaço de chão.

- Arrendei-a.

- É o mesmo. Assinou papéis. Os papéis estão guardados no gabinete do Governo em Brisbane. Qualquer um pode entrar, pagar dois xelins e seis penny e descobrir tudo o que quiser sobre a transacção. Percebe?

Não podia deixar de perceber. Era demasiado simples, certeiro e mortal. Eu era um historiador. Podia traçar o declínio de impérios e a queda de heróis, mas tinha-me esquecido de uma das mais simples legalidades da vida moderna.

Manny Mannix não necessitava de fazer nada. Só tinha de esperar e então avançar para a matança. E tudo o que lhe iria custar eram dois xelins e seis penny.

Ri-me. Não pude conter-me. Ri histericamente até às lágrimas, quando os pássaros aninhados no arbusto por detrás da cabana começaram a chilrear com súbito pavor.

Johnny Akimoto levantou-se e observou-me com séria preocupação. O riso transformou-se num ataque de tosse. Pedi-lhe algo estupidamente, outro cigarro. Ele deu-mo, acendeu-o, e então disse:

- Sente-se melhor agora, p'trão Ren?

- Eu estou bem, Johnny.

- Óptimo. Amanhã compro as provisões, você trata da maleta dos remédios. Encontro-o aqui às três horas da tarde. Levamos as coisas para bordo e colocamo-las em ordem antes do anoitecer. Dormimos a bordo, e levantamos âncora ao raiar do dia.

Tirei a carteira e entreguei-lhe cinquenta libras.

- Isso é suficiente para as provisões?

- Chega e sobra, p'trão Ren.

- O resto do dinheiro está no banco, Johnny. Faço contas consigo amanhã ou mais tarde, quando quiser.

- Fazemos contas quando terminarmos o trabalho, p'trão Ren.

Johnny lançou-me o seu raro sorriso brilhante e bateu-me no ombro.

- E se não terminarmos, Johnny?

- Então, fazemos como eu disse. Vamos até Thursday, até à Nova Guiné, e talvez até façamos algum negócio, hem? Vá para casa, p'trão Ren, vá para casa e durma. As coisas sempre têm melhor aspecto pela manhã, à luz do sol.

- Boa noite, Johnny.

- Boa noite, p'trão Ren.

Caminhei de volta ao hotel sob um céu cheio de estrelas. Bebi no bar com os operários da fiação. Não me lembro de ir para a cama. Não me lembro de nada até o sol grosseiro me acordar às dez da manhã.

 

Arrastei-me penosamente para fora da cama e fui até à casa de banho lavar o sono dos meus olhos, e o fedor do álcool da minha pele. Vesti-me lentamente, resignado ao facto de ser tarde de mais para o pequeno-almoço. Fiz a mala, paguei o que devia e recusei a oferta de uma bebida por conta da casa em troca de uma chávena de chá na cozinha. Depois, deixando a minha mala no bar, para ser resgatada mais tarde, caminhei até ao pequeno edifício de madeira, onde ficava o único banco da cidade.

O gerente era um homem alto e corado, com uma fresca camisa de linho e calções engomados. Quando apresentei a minha nota de crédito saudou-me como se eu fosse um milionário, e convidou-me para o seu gabinete para mais uma chávena de chá. O seu procedimento esfriou consideravelmente, e lançou-me um olhar de soslaio, quando lhe disse que queria depositar a minha nota de crédito por precaução, e que se eu não voltasse dentro de três meses a quantia total do crédito devia ser transferida para a conta pessoal de Johnny Akimoto. Ele retirou alguns papéis da gaveta da sua secretária e colocou-os à sua frente.

Então começou a interrogar-me.

- Existe alguma razão para você não estar de volta dentro de três meses, Sr. Lundigan?

- Nenhuma de que me consiga lembrar neste momento, mas o melhor é estar preparado, não acha?

- Claro, mas porquê, Sr. Lundigan?

- Acidentes acontecem, não é assim?

- É verdade, mas... - Ele apercebeu-se de que estava à beira da indiscrição. Parou a meio e lançou-me o seu sorriso estudado e profissional. - Naturalmente, o banco cumprirá qualquer ordem sua. Só tem de assinar os papéis e... Bem, é só isso. Eu estava apenas curioso.

Este tipo de pergunta-resposta podia prolongar-se indefinidamente. Decidi que não havia mal nenhum em contar-lhe ao menos metade da história. Contei-lha.

- Arrendei uma ilha ao largo da costa. Sou um naturalista. Estou a conduzir um estudo sobre a vida marinha a profundidades de quinze e vinte braças. Sou um mergulhador. Isso acarreta necessariamente certos riscos. Aluguei o barco de Johnny Akimoto e estou a pagar-lhe adicionalmente um salário semanal. Se alguma coisa me acontecer, quero que ele possa reclamar o pagamento e ficar com qualquer que seja o excesso, como bónus.

O gerente do banco acalmou-se novamente. Podia estar a lidar com uma excentricidade, mas ao menos eu não era o lunático por que ele me tomara ao princípio.

O chá chegou nesse momento, e ele voltou à conversa banal. Eu suportei-o durante algum tempo com razoável cortesia, porque tinha uma questão a colocar-lhe.

- Diga-me... sabe alguma coisa sobre direitos das águas.

- Direitos das águas?

As suas sobrancelhas levantaram-se outra vez.

- Sim, direitos das águas. Que direitos, se é que existem, tem o proprietário de uma ilha sobre as águas circundantes.

Ele pensou por algum tempo e então disse:

- Não é uma questão que apareça normalmente. Na lei, como sabe, o direito territorial do proprietário estende-se até à marca da maré baixa, na prática, presume-se que se estendem até às orlas interiores do recife que circunda a ilha. Pode, possivelmente, ter uma acção judicial contra a violação de propriedade alheia, mas penso que seria algo demorado e dispendioso. Em qualquer caso, é muito pouco provável que o problema se levante, não é?

- Sim, suponho que é, mas uma pessoa gosta de ter a certeza destas coisas.

- Receio que seja impossível ter a certeza neste caso, Sr. Lundigan - disse, abrindo as mãos num gesto de alegre descrédito. - Há muita água e muitas ilhas no recife. De qualquer maneira, a sua ilha está fora da rota turística. Se tornar claro que quer privacidade, não penso que seja muito incomodado.

Não lhe pude contar sobre Manny Mannix, por isso, não fazia qualquer sentido em insistir no assunto. Assenti, sorri e fiz um comentário fátuo sobre o aspecto estranho de muitos estudiosos; então, ele entregou-me os papéis para assinar.

Terminámos o nosso chá, apertámos as mãos e voltei a atravessar a rua. A meio caminho da descida, no outro lado da rua, estava uma pequena loja, com uma única fachada, com letras douradas na montra, e uma jarra de vidro cheia de água colorida por detrás do vidro empoeirado.

Caminhei na sua direcção e apresentei-me ao proprietário. Ele era jovem. O que era auspicioso para mim. Ele era tagarela o que era um aborrecimento, mas aceitou a minha história com maior prontidão que o gerente do banco, e estava mais que preparado para prescindir de prescrições e assinaturas médicas. Pedi-lhe comprimidos de atebrin, penicilina e sulfanilamida. Comprei iodo, ligaduras e aspirinas, e um pequeno bisturi, e introduzi tudo numa caixinha de madeira, providenciada pelo jovem farmacêutico tagarela.

Mas não iria escapar com tanta facilidade. O tempo não conta no norte, e espera-se do cliente mais vulgar, a sua própria contribuição para o gambito de conversação da comunidade.

Escutei com ligeiro interesse um sermão sobre as picadas da mosca-varejeira, dos ouriços do mar e do terrível peixe-pedra (1). Ouvi sem grande preocupação, que outra naturalista tinha passado pela cidade há apenas duas semanas - uma rapariga, desta vez, bastante jovem, muito atraente, de acordo com o jovem farmacêutico, que, recém-saído da universidade, estava a achar as raparigas locais muito pouco interessantes.

Finalmente, escapei, colocando a minha caixinha de madeira debaixo do braço, apenas para descobrir que tinha ainda algumas horas para passar, antes do encontro com Johnny Akimoto, na sua cabana atrás das dunas de areia.

Um súbito pânico tomou conta de mim, estando eu em pé sobre o pavimento de alcatrão rachado e efervescente com o calor, a observar a cidade vulnerável desvanescendo-se aos

 

Nota 1: Stone-fish no original. Peixe tropical com glândulas dorsais venenosas, de onde saem espinhos. A sua picada pode levar à morte. (N. da T.)

 

poucos de cada lado do término da rua principal. A orgia do verde, as cores cruas da buganvília e da poisétia pareciam cercar-me por todos os lados, oprimir-me, com a sua força avassaladora. O aviso de Johnny Akimoto voltou à minha mente, aliado à advertência de Nino Ferrari sobre os perigos de um mergulhador inexperiente. Fiquei assustado e amaldiçoei a minha própria imprudência em embarcar, com tão pouca preparação, num projecto que assustava até os profissionais.

O pensamento de Manny Mannix também me perturbava. Perguntei-me o que ele faria em seguida, onde o encontraria, o que aconteceria quando ficássemos cara a cara. Então, vi que estava em frente dos Correios.

Num impulso atravessei a rua, apresentei-me ao balcão e registei uma chamada interurbana para Nino Ferrari. O funcionário murcho olhou para mim como se eu tivesse pedido a Torre Eiffel, depois escrevinhou o número num pedaço de papel e disse-me para aguardar junto à cabina telefónica, no lado de fora.

Eu aguardei, aguardei uma hora inteira, e quando o Nino finalmente apareceu na linha a sua voz soava desmaiada e distante, como se tivesse sido filtrada através de linho molhado. Ele disse:

- Aqui é Ferrari. Quem fala?

- Aqui é o Lundigan, Nino. Renn Lundigan.

- Tão rápido? As suas coisas não chegaram?

- As coisas estão bem, Nino. Vêm hoje de Brisbane.

- Então, porquê o telefonema?

- Porque estou com medo, Nino.

Pensei que o tinha ouvido gargalhar, mas não podia ter a certeza.

- Do que tem medo, meu amigo?

- Acho que estou doido, Nino!

Desta vez ele riu mesmo: uma gargalhada do fundo da alma que veio crepitando em fantásticas distorções pelos mil quilómetros de cabo.

- Eu sei que está doido. Não havia necessidade de gastar um bom dinheiro para me dizer isso. Posso fazer alguma coisa por si?

- Sim, Nino, pode. Estou à espera de sarilhos.

- Sarilhos? Que tipo de sarilhos?

Tinha de ser cuidadoso agora. Não há privacidade numa cabina telefónica numa cidade do interior de Queensland.

- Eu já lhe disse, Nino, que há uma pessoa que não gosta de mim.

- Sim, disse-me. Aconteceu alguma coisa?

- Ainda não, mas queria perguntar-lhe se no caso de haver problemas você me viria dar uma ajuda.

Houve uma longa pausa. Por um momento pensei que a ligação tinha caído. Então, a voz de Nino crepitou outra vez no fio.

- Que tipo de ajuda quer? Para mergulhar?

- E talvez para outras coisas também. Ainda não sei. Não posso prever o que pode acontecer. Estou só a jogar pelo seguro, é só.

Houve outra pausa. Eu sabia no que Nino pensava. Ele era um recém-chegado a este país. Outrora fora um inimigo. Metendo-se em sarilhos podia prejudicar as suas hipóteses de se naturalizar. Eu sabia disso, mas estava demasiado assustado para me preocupar. Então, Nino falou.

- Tudo bem, meu amigo, se quiser mande-me chamar. Eu vou no primeiro avião. Você paga as despesas?

- Pago as despesas, Nino... obrigado. Nino riu.

- Eu ainda lhe fico mais grato se você não se meter em sarilhos e me deixar gerir o meu negócio.

- Vou tentar, Nino, mas não posso prometer. Mando-lhe o resto da história pelo correio, hoje. Adeus por agora e mais uma vez obrigado.

- Adeus, meu amigo - disse Nino -, e fique longe dos problemas enquanto puder.

A linha ficou morta. Eu pousei o auscultador, voltei a entrar nos Correios, comprei um envelope de correio aéreo e escrevi um bilhete a Nino Ferrari.

Quando o meti na caixa do correio senti-me menos só e menos assustado. Éramos três agora. Três homens, um bom barco e uma ilha simpática. Manny Mannix podia fazer o que quisesse. Peguei na caixinha dos remédios e desci o trilho para as dunas, onde me encontraria com Johnny Akimoto.

O barco de Johnny repousava ao largo, baloiçando na ondulação oleosa. Estava aparelhado, com uma pintura nova, e o seu revestimento de metal brilhava sob os cuidados das mãos de Johnny. As suas velas eram velhas mas cuidadosamente remendadas. Um barco bem acabado, navegado por um bom artífice. Tinha um porão a meia-nau e camarote à popa. O convés foi esfregado até brilhar, e os móveis acondicionados com a cuidadosa precisão de marinheiro.

Foram precisas três viagens no bote para levar as provisões para bordo, e quando as tínhamos guardado e fechado a escotilha, Johnny ocupou-se com o pequeno fogão a lenha na cozinha.

Sentei-me na tarimba e falei com ele enquanto ele trabalhava.

- É um bom barco, Johnny. Gosto dele.

Ele lançou-me um sorriso largo por cima do ombro.

- Um bom barco é como uma boa mulher. Se tomarmos conta dele, ele toma conta de nós. Viu o seu nome, Wahine. Na linguagem dos ilhéus isso significa “mulher”. Esta é a única mulher que eu tenho.

Eu retribuí-lhe o sorriso.

- Já somos dois, Johnny.

Ele concordou e voltou para o seu fogão, falando, enquanto trabalhava.

- Às vezes é assim, existe uma mulher que é tudo para nós, e quando ela parte é como se não houvesse mais nenhuma.

- Você é um homem muito sábio, Johnny - disse eu calmamente.

Vi o encolher dos seus ombros negros.

- Nós somos o povo perdido, p'trão Ren. Mas não somos nem crianças nem loucos!

- Alguma vez teve uma mulher sua, Johnny?

Ele abanou a cabeça.

- Onde é que nesta região iria encontrar uma mulher da minha raça? Onde é que encontraria uma vida como a que tenho aqui, se deixasse este lugar? É melhor assim, penso eu.

Houve um breve silêncio depois disso, enquanto eu fumava o meu cigarro e Johnny aquecia uma lata de guisado, e cortava grossas fatias de pão que barrava de manteiga e pousava num prato de esmalte.

Quando a refeição estava pronta, ele pousou-a na mesa da cabina e nós sentámo-nos a comer. Senti novamente a curiosa sensação de separação e liberdade que me tinha atingido no voo para norte. Este homem era meu amigo, o meu irmão na aventura. O pequeno mundo confinado ao convés, era o único mundo real, o resto era tudo ilusão e fantasia.

Quando acabámos de comer, lavámos os pratos e subimos ao convés. Sentados na tampa da escotilha observámos o Sol a pôr-se numa glória carmim e, então, pareceu que num salto as estrelas surgiram, baixas, num céu púrpura. O vento soprava da costa e ouvimos o bater da água enquanto o Wahine subia e descia ao ritmo das ondulação.

Johnny Akimoto voltou-se para mim.

- Uma coisa que deve compreender, p'trão Ren.

- O quê, Johnny?

- Este barco. É meu, como se fosse a minha mulher. Eu entendo-o, ele entende-me. Abordo, quem manda sou eu. Na ilha é ao contrário. É a sua ilha. Diz você o que deve ser feito, eu faço-o. Ambos entendemos isso.

- Entendemos, Johnny.

- Então, não há mais nada a dizer entre nós.

- Só uma coisa, Johnny.

- O quê?

- Hoje, antes de embarcarmos, telefonei a um amigo meu em Sidney. Se houver sarilhos e ele vem juntar-se a nós.

- Este seu amigo, que tipo de homem é?

- É italiano, Johnny, um mergulhador. Era homem-rã na Marinha italiana durante a guerra.

- Parece um bom homem. Prometeu vir?

- Sim.

- É sempre bom ter amigos numa altura destas. Vamos descer. Quero mostrar-lhe uma coisa.

Atirámos os nossos cigarros para a água e voltámos à cabina. Johnny Akimoto abriu um armário por debaixo da tarimba e tirou duas espingardas. Eram armas militares, modelo 303, mas estavam oleadas de fresco e os ferrolhos deslizavam suave e precisamente. Johnny olhou para mim e sorriu.

- Já as tenho há muito tempo. Nunca as utilizei, excepto em coelhos e pequenos cangurus. Se houver problemas não os vamos encarar desarmados.

- E quanto à munição?

Ele voltou a sorrir.

- Duzentos cartuchos. Fica na sua conta.

Voltou a colocar as espingardas no armário e fechou a porta.

- Agora penso que devíamos dormir. Seguimos ao raiar do sol.

Despi-me e atirei-me para a tarimba, tapando-me com um único lençol. Ouvi Johnny subir ao convés para acender as luzes. Vi-o descer e ligar o candeeiro no tecto da cabina. Depois adormeci e não sonhei absolutamente nada.

Acordámos para mais uma manhã de calma monotonia. Eu mergulhei borda fora para me refrescar, enquanto Johnny ficou no convés com a espingarda no caso de haver tubarões. Quando subi a bordo pela corrente da âncora foi a vez de Johnny.

Depois ligámos o motor, içámos a âncora e partimos rumo a oriente, virando depois para sul na direcção do canal Whit-sunday e das ilhas animadas para onde os turistas vêm.

Johnny estava ao leme, de pé muito direito e orgulhoso - orgulhoso do barco que era a sua mulher, orgulhoso de si mesmo e do conhecimento profundo que dele tinha. Comemos ao sol, observando o declive verde e dourado da costa a passar a um quarto de braça a estibordo, e as pequenas manchas que cresciam à nossa frente até se tornarem ilhas verdes com uma renda branca de espuma à sua volta.

Era um pequeno percurso de três horas a velocidade de cruzeiro. Admitindo outra hora pela carga, Johnny propôs que almoçássemos antes de partir para a nossa própria ilha, Twin Horns. Era uma questão de cortesia, explicou. Os turistas eram uma coisa. Vinham, gastavam o seu dinheiro, divertiam-se e partiam, deixando pouco mais que uma memória do

riso durante o dia e dos sussurros sob as palmeiras durante a noite.

Mas com os ilhéus era uma questão diferente. Havia a bebida a ser tomada em conjunto, as notícias a serem trocadas, as pequenas novidades locais, que eles próprios faziam, e nas quais os turistas errantes não tomavam nem interesse nem parte. Favores deviam ser feitos: a reparação de um gerador, uma falha no sistema de refrigeração, um bilhete para ser levado a uma pensão numa ilha vizinha... Nós tínhamos de tratar dos nossos assuntos, certamente, mas não nos excluiríamos da pequena família da qual fazíamos agora parte.

Eu supliquei cautela, lembrando que um dia, mais tarde ou mais cedo, Manny Mannix viria farejando como um caçador, na pista de Renn Lundigan. Para Johnny Akimoto a minha lógica era ilógica.

- Estas são boas pessoas - disse. - Faça-se um deles e eles estarão consigo quando os problemas vierem. Nunca sabe como ou quando pode precisar deles.

Não tive outra escolha se não concordar com ele. Perguntei-me o que faria sem este bravo e forte homem das ilhas a meu lado. Nas suas veias corria um sangue diferente do meu, mas ainda assim não era para mim um estranho. Ficava no leme como um deus antigo, os seus músculos agarrando-se ao movimento do leme, a sua pele brilhando como seda ao sol.

Estávamos a meio caminho quando Johnny me entregou o leme enquanto ele subiu ao porão de vante e pôs-se a assobiar, como os velhos capitães dos veleiros.

Nós não precisávamos de vento. O motor a diesel trabalhava suavemente e empurrava-nos pela água calma, a oito nós estáveis. Mas Johnny queria vento. Johnny queria içar velas e mostrar-me como se portava a sua mulher, quando o vento delicado lhe insuflava as lonas e a fazia deitar de lado. Mas a calmaria persistiu e eu estava satisfeito por isso. Não havia nada a fazer no leme e eu podia render-me à suave magia do sol e da água, e ao silêncio de homens que se entendem sem necessitarem de palavras.

Eram onze da manhã quando ancorámos - uma pequena ilha de coral com um longo e baixo edifício no centro, e pequenas cabanas brancas escondidas entre as palmeiras. A praia de coral terminava abruptamente num fundão de seis braças e nós desligámos os motores e deixámos o Wahine ser arrastado pela corrente para concluir ancoragem.

Os turistas apareceram como um só corpo ao nosso encontro - raparigas bronzeadas em coloridos fatos de banho, rapazes bronzeados abraçados às raparigas, os residentes na ilha em túnicas de algodão estampado ou calções caqui, imediatamente atrás, como pastores do rebanho de turistas.

Alguns banhistas nadaram até nós e tentaram trepar pelo cabo da âncora, mas Johnny Akimoto não permitiu a sua subida ao convés. O barco era seu e ninguém podia vir a bordo a não ser como seu convidado. Saltámos para o bote e remámos na direcção da praia onde Johnny retribuiu as saudações familiares com cortesia, e me apresentou como o seu amigo, Sr. Lundigan, que tinha comprado uma quinta ali perto e tinha vindo buscar o seu equipamento. Os ilhéus saudaram-me calorosamente mas fizeram poucas perguntas, satisfeitos em me aceitar com o mesmo apreço que Johnny me tinha dado.

Disseram-me que os meus caixotes tinham chegado em segurança. Voltei a relaxar e a apreciar a cerveja gelada, a salada tropical e a hospitalidade dócil destes habitantes do interior do recife.

Quando lhe disse o nome da minha ilha, eles riram. Quando os surpreendi com a notícia de um canal e o abastecimento de água, eles assentiram sabiamente e concluíram que o Governo nunca sabia tudo. Ainda que fingisse que sabia. Quando mencionei através de cautelosas generalidades a exploração submarina, eles ficaram franca e embaraçosamente interessados. Os habitantes das ilhas têm um orgulho singelo e comovente da região maravilhosa que os circunda. Cada um tem a sua conta de pequenas descobertas, ou a sua pequena reserva de peças de colecção – caurins (1), corais exóticos, conchas da baía, destroços e carga alijada de naufrágios esquecidos.

Mais uma vez repetiram a história do farmacêutico, da estudante que tinha passado por ali, percorrendo pequenas

 

Nota 1: Pequenos moluscos do oceano Índico, a sua concha é utilizada como moeda entre algumas populações africanas e asiáticas. (N. da T.)

 

distâncias entre ilhas, num esquife aberto com um lento motor à popa. Lamentei dizer-lhes que nunca a tinha encontrado. E estava feliz ao pensar secretamente que nunca a encontraria.

Então, misericordiosamente, a refeição tinha terminado. Nós não tínhamos nenhuma incumbência a realizar. Tínhamos apenas que içar os caixotes para bordo do Wahine, levantar âncora e seguir para nordeste, para a ilha Twin Horns. Passei por todas as cerimónias de despedida com um sorriso, ultrapassei algumas conversas banais com os turistas que vieram para nos dizer adeus... e depois estávamos livres outra vez, com uma brisa refrescante para alegrar o coração de Johnny Akimoto, e uma bujarrona enfunada que nos deu mais dois nós que o monótono e trepidante motor a diesel.

Johnny guiava o Wahine para o vento como um amante. Mantinha-o na rota como um mestre. Ele estava de pé junto ao leme, as pernas fortes afastadas contra a barrela, cabeça atirada para trás, olhos brilhantes e dentes brancos, mostrando-se num sorriso largo de triunfo. Ele gritou-me:

- É lindo o meu Wahine, hem, p'trão Ren?

- É lindo, Johnny. Quanto tempo ainda para avistarmos a ilha?

- Hora e meia. Talvez duas.

- Bom trabalho, Johnny. Isso dá-nos luz do dia para descarregar e montar acampamento.

Ele assentiu, ainda sorrindo, e rodou levemente o leme para seguir a ligeira mudança do vento. Então, começou a cantar, uma apaixonada e monótona canção das ilhas, na língua do seu povo. As palavras eram um mistério para mim, mas a melodia tinha agarrado o meu coração, e estava contente por ele e triste com ele, e muito grato que Johnny Akimoto me tivesse feito seu amigo.

Eram três da tarde quando avistámos a ilha. Fiquei de pé no porão, seguro ao espartilho, e observei-a crescer de um ponto cinzento a uma mancha verde, e depois para um ilha com dois picos e um crescente de praia. Em breve poderia traçar os contornos das rochas e distinguir os troncos afastados das grandes pisonias. Lá estava a linha de rebentação no recife exterior e as várias tonalidades do verde da água calma da lagoa. Observei-a crescer mais e mais, preenchendo o horizonte, e senti-me como um soldado, regressando da guerra a casa do seu pai. Voltei-me e gritei a Johnny:

- Conhece o canal, Johnny?

Ele levantou a mão em sinal de confirmação e gritou de volta:

- Conheço, p'trão Ren!

- Vai levá-lo com o motor ligado? É rápido e estreito. Ele abanou a cabeça. Os seus olhos brilhavam.

- Eu navego-o p'trão Ren... Eu navego-o.

E foi o que ele fez. Com cada pedaço de lona que ele podia aguentar. A cem jardas do recife ele deu-lhe a volta num pequeno ziguezague. Alinhou-o com o pico ocidental e o único carvalho, e colocou-o para o recife como um cavalo para uma barreira. Senti-o saltar quando bateu na primeira vaga, então, Johnny guiou-o como um cavalo de corrida através das águas agitadas, enquanto eu observava de boca aberta, e esperava que as árvores de coral lhe arrancassem o fundo e o despedaçassem até à sobrequilha.

Um minuto mais tarde tinha terminado, deslizávamos livremente através de água límpida, com a praia branca em frente e o medo e a incerteza, e Manny Mannix a mil milhas de distância.

Gritei, aplaudi e dancei no convés com grande felicidade, enquanto Johnny preparava o Wahine para ancoragem.

Lançámos âncora, guardámos as lonas e estávamos mesmo a prepararmo-nos para levar o bote a terra pela primeira vez, quando vi algo que matou a minha felicidade de um só golpe, e pôs-me a amaldiçoar obscenamente numa fúria gelada...

À frente da praia, onde surgiam as primeiras árvores, estava montada uma pequena tenda - e em frente dela, acima da linha da maré, um pequeno esquife a motor.

 

- Calma, p'trão Ren... tenha calma.

Johnny Akimoto estava junto a mim, a sua voz suave admoestando-me gentilmente, levando-me da loucura à raiva, e da raiva ao bom senso.

- E só a rapariga, p'trão Ren. Você sabe... aquela de quem nos falaram na pensão.

- Eu sei! Eu sei! - gritei-lhe. - A raio da naturalistazinha com o seu barquinho e a sua colecção de lesmas do mar. Por que raio é que ela tinha de ter vindo para aqui? Não sabe que esta ilha é minha?

- Não, p'trão Ren, ela não sabe - disse Johnny calmamente.

- Raios a partam se não vai saber muito em breve. Vamos lá, Johnny, arranja o bote. Eu tiro-a da praia em vinte minutos.

- Não pode fazer isso, p'trão Ren.

Havia qualquer coisa na voz de Johnny que me fez parar. Ele pousou a mão no meu braço num gesto de impedimento.

- Por que é que não posso? Ela não tem de ficar aqui, pois não?

- Tem sim. Pelo menos por esta noite. Olhe, p'trão Ren! Ele apontou para trás, para o canal que acabáramos de atravessar.

- Está a ver? A maré está a subir agora. No canal isso equivale a cinco, seis nós. Com um barco como aquele, e um motor de brinquedo daqueles, como é que ela conseguiria passar? E, se conseguisse, não atingiria a ilha mais próxima se não daqui a três horas. Por essa altura, já está escuro e é perigoso.

Eu não tinha resposta para isso. Fiquei a olhar, mal-humorado, através da água para a praia, e perguntei-me vagamente por que razão não tinha a rapariga aparecido. Ela tinha de nos ter visto aproximar.

Johnny falou novamente.

- P’trão Ren?

- Sim?

- Dentro de alguns minutos nós vamos a terra. Encontramos esta rapariga. Dizemos-lhe quem somos. Dizemo-lhes que tem de partir o mais depressa possível. Mas fazemo-lo gentilmente.

- Porquê?

- Porque ela é jovem. Porque ela ficará um pouco assustada. Porque é mais fácil ser amável que ser rude. Porque seria mau que ela espalhasse a história que você é um homem desagradável, que não entende os costumes do recife... E porque somos ambos cavalheiros, p'trão Ren.

Olhei para ele. Os seus olhos doces e sábios rogavam-me que não o desapontasse. Engoli a minha fúria e lancei-lhe um sorriso torto de desculpas.

- Tudo bem, Johnny. Raios o partam! Vamos ser amáveis para a pequena sabichona. Mas digo-lhe, amanhã, vai-se embora, ou eu não me chamo Renn Lundigan.

O seu rosto iluminou-se num sorriso largo de aprovação. Bateu-me no ombro e caminhou até à popa para orçar o bote para o primeiro carregamento de provisões.

Estávamos quase a chegar à praia quando dei voz ao pensamento que me afligira nos últimos dez minutos.

- Tem piada, Johnny, a tenda está lá... o barco em terra... a rapariga onde está?

- Talvez do outro lado, nas lagoas entre as rochas.

- É uma maluca se lá estiver com a maré a subir. Existe uma parede escarpada por ali. Se não tem cuidado vai passar a noite na saliência de um rochedo.

- Talvez esteja a dormir.

- Talvez.

Johnny sorriu ao meu mau humor e inclinou-se para os remos outra vez. Nada mais foi dito até termos varado o bote em terra, e subirmos para a tenda. As lonas da entrada estavam abertas e as espias frouxas. Um trabalho mal feito. Ela teria sorte se não lhe caísse em cima na primeira rajada de vento. Eu chamei-a.

- Oi, aí! Alguém em casa?

A minha voz foi arremessada de volta pelo cume circular, mas da tenda não houve qualquer resposta. Estava dois passos à frente do Johnny quando a alcançámos; por isso, eu fui o primeiro a vê-la.

A primeira vista pensei que estava morta. O seu cabelo negro era liso e estava emaranhado sobre as bochechas e têmporas. O rosto tinha a cor do marfim antigo. A sua blusa de algodão estava rasgada, expondo os seus pequenos seios redondos. Uma mão roçava debilmente o chão arenoso, a outra repousava frouxa sobre o ventre. Ela vestia uns calções desbotados. Uma perna precipitava-se na cama. A outra baloiçava do outro lado. Estava inchada e negra do joelho ao peito do pé.

Depois vi que estava viva. A sua respiração era insípida, forçada. Senti-lhe o pulso. Estava espaçado e vacilante. Haviam gotas e fios de transpiração no seu rosto, no pescoço e no peito. Ela parecia uma boneca de trapos sem vida, largada na hora do recreio.

Olhei para Johnny Akimoto. Ele não disse nada, mas dobrou-se e examinou a perna inchada. Flectiu a articulação do tornozelo para que a planta do pé se virasse para cima. A rapariga sacudiu-se num espasmo repentino de dor mas não acordou. Johnny acenou-me para ir ver. Então traçou com o seu dedo a pequena linha de furos estendendo-se dos dedos ao calcanhar. Sete. Ele abanou a cabeça gravemente e disse, peixe-pedra.

O peixe-pedra é o peixe mais feio do mundo. O seu corpo castanho-acinzentado é uma massa de altos, do tipo das verrugas. Está coberto com muco viscoso e fétido. A sua boca é um semicírculo rachado, abrindo-se para cima, e por dentro é verde-pálido. Sobre a curva da sua espinha existem trinta espinhos. A sua picada pode matar um homem ou incapacitá-lo com dores agonizantes durante semanas. Não existe qualquer antídoto conhecido para o seu veneno. Os nativos do norte dançam a dança do peixe-pedra nas suas cerimónias de iniciação para que os jovens índios possam saber o perigo que espreita nas fendas do recife de coral.

Interroguei Johnny Akimoto.

- Ela vai morrer, Johnny?

- Acho que não, p'trão Ren. Está muito doente. Tem febre, sabe. Está a dormir porque está estafada, por isso e pela dor. Mas não vai morrer, penso eu, a não ser que o veneno penetre mais na perna.

- Temos de levá-la a um médico, Johnny.

Johnny encolheu os ombros.

- Já tenho visto o que os médicos fazem neste tipo de situação. Eles sabem tanto quanto nós sobre o veneno do peixe-pedra.

- Mas, raios partam tudo, Johnny, ela não pode aqui ficar! Nós não podemos tomar conta dela.

- Por que não? Temos a caixa dos remédios. Temos sulfa (1) e outros medicamentos. Nós sabemos o que fazer. Além disso, se a levarmos para o continente perdemos dois dias. Um dia lá... um dia de volta.

 

Nota 1: Sulfamida. (N. da T.)

 

Um tipo esperto, o Johnny. Um homem sagaz e reservado das velhas ilhas. Ele sabia melhor que eu próprio, o que me faria ceder à sua vontade. Resignei-me à situação.

- Tudo bem, Johnny, seja como quiser. Volte ao Wahine e traga a caixa dos remédios, e um par de lençóis lavados, já que lá vai.

- Sim, p'trão Ren - disse Johnny.

Ele lançou-me um pequeno sorriso irónico e saiu rapidamente da tenda.

Depois de ter saído, instalei a rapariga mais confortavelmente no colchão e olhei à volta. Havia uma pequena mesa desdobrável carregada com frascos tapados de espécimes marítimas. Haviam garrafas de acetona e formol. Havia bisturis e pinças e tesouras e um bom microscópio. Havia uma cadeira de lona e um balde e uma bacia retráctil de lona. Havia uma mochila com roupas e toalhas e um estojo de maquilhagem. À primeira vista, a rapariga era uma autêntica estudante que conhecia a sua missão e trabalhava para ela.

Contra isto estava o facto de ela ter andado pelo recife descalça... uma loucura intolerável que quase a matava, e podia muito bem destruir os meus planos de encontrar o navio do tesouro.

Coloquei-a mais confortavelmente no colchão estreito, depois agarrei no balde e caminhei até à fonte por baixo do pandano. Se tivesse chegado à ilha como esperava ter chegado, talvez tivesse ido a correr e a cantar. Agora eu estava inundado pelo sabor monótono do desapontamento. Enchi o balde com água doce, fria, e enquanto caminhava de volta vi Johnny Akimoto.

Ele acenou-me e eu acenei em resposta, mas apesar do gesto amigável eu estava irritado com Johnny Akimoto. Muito bonito da parte dele ser brando e racional sobre a situação. Esta era a minha ilha, como o Wahine era o barco dele. Esta era... Quando vi como era ridículo, vi o que a ganância de uma criatura mal humorada pode fazer a um historiador. Comecei a rir, e quando alcancei a tenda estava razoavelmente bem humorado outra vez.

Deitei água na bacia de lona. Revistei a mochila à procura de roupa lavada. Encontrei uma toalha limpa. Depois, voltando-me novamente para a rapariga, comecei a banhá-la. Despi-lhe a roupa húmida e lavei-lhe o suor do rosto com uma esponja.

Ela gemeu e abriu os olhos à medida que a água fria a inundava. Mas a sua expressão era vazia e murmurava inteligivelmente, depois caiu debilmente na almofada ensopada.

A doença nunca é bonita. Os préstimos de um corpo doente provoca pena mas não desejo. A rapariga, aninhada nos meus braços, era linda, não havia qualquer dúvida sobre isso; mas a febre e o choque, e as dores violentas provocadas pelo veneno tinham desfigurado a sua beleza, deixando-a como uma imagem de cera, sem pulso ou paixão, quase sem vida.

Tinha acabado de a vestir com as roupas limpas quando Johnny Akimoto voltou. Ele acenou em aprovação, depois colocou a caixa dos remédios na mesa e tirou o bisturi, que ele esterilizou cuidadosamente na chama de um isqueiro. Havia uma delicadeza e precisão nos seus movimentos que me levou a perguntar que instrução e oportunidades podiam ter dado a este calmo e profundo homem, cuja raça o tinha condenado ao isolamento entre os seus irmãos brancos.

- Deixe-a recostar-se - disse Johnny. - Quero que me ajude.

Ajoelhámo-nos aos pés da cama e coloquei o pé da rapariga nas minhas mãos, inclinando-o e segurando-o firmemente, enquanto Johnny fazia uma incisão profunda ao longo da linha das marcas dos espinhos. A rapariga gemeu e contorceu-se, enquanto um grande jorro de uma substância fétida esguichou da carne inchada. Johnny drenou a ferida, lavou-a, cobriu-a generosamente com sulfa, enquanto tirou uma seringa e injectou uma medida precisa de penicilina no braço da rapariga.

- Onde é que aprendeu tudo isto, Johnny? - Não consegui afastar a surpresa da voz.

- No Exército, p'trão Ren - disse Johnny, calmamente. - Eu era enfermeiro no hospital de campanha de Salamava.

Ele retirou a ampola e pousou-a cuidadosamente no seu recipiente.

- Esterilizaremos estas coisas mais tarde, quando tivermos água fervida.

Concordei humildemente.

- Sim, Johnny.

A rapariga estava a gemer agora, lutando pelo seu lento regresso à consciência. Eu levantei-a e segurei-a nos meus braços enquanto Johnny retirava a roupa à cama e a fazia outra vez com um dos nossos colchões de palha e um conjunto de lençóis lavados. Depois deitámo-la outra vez, puxámos o lençol sobre ela e observámos um pouco até que os gemidos acalmaram e ela voltou a dormir, respirando mais regular e profundamente. Então deixámo-la. Tínhamos o nosso próprio trabalho a fazer.

Armámos a nossa tenda a alguns passos da fonte. Estava longe do vento e protegida do calor pelo verde de uma antiga pisonia. Cavámos um escoadouro à sua volta para levar a água, se viesse chuva. Com pedras construímos um forno contra uma parede de rocha. Desenrolámos sacos-cama nas camas desdobráveis já abertas e dispusemos os nossos poucos pertences pessoais fora do alcance das formigas e aranhas.

Enchemos o nosso grande cantil de lona e pendurámo-lo, pingando, no poste da tenda para refrescar. Suspendemos um pano alcatroado entre quatro troncos de árvore, e empilhámos os nossos caixotes de equipamento por debaixo dele, cavando um escoadouro à sua volta como tínhamos feito com a tenda. Só os loucos é que gostam de desarrumação. O segredo do funcionamento de um acampamento é mantê-lo arrumado, limpo e seco.

Agora, pelo menos, estávamos em casa. Johnny Akimoto acendeu uma fogueira enquanto eu enchi uma cafeteira com água da fonte e a coloquei a ferver. Acendemos cigarros e sentámo-nos para fumar, enquanto a madeira seca crepitava e estalava, e as pequenas chamas se elevavam à volta da superfície escurecida da cafeteira.

Foi um momento tranquilo, um bom momento. Não fora a rapariga estar doente e teria sido um momento perfeito. Virei-me para Johnny Akimoto.

- Agora, Johnny, quero que me diga.

- O quê, p'trão Ren?

- Sobre amanhã, Johnny.

- Amanhã? - disse Johnny calmamente. - Amanhã começaremos a trabalhar.

- Mas a rapariga, Johnny. Então e a rapariga?

- A rapariga está doente, p'trão Ren. Não se poderá mexer durante dias.

- Mas poderá falar, não é, Johnny? Ela ficará curiosa, não é, Johnny? Todas as mulheres ficam, Johnny. Que lhe diremos quando fizer perguntas?

- Dizemos-lhe a verdade, p'trão Ren. Dizemos-lhe que está a aprender a mergulhar e a usar equipamento de respiração subaquática. É isso que vai estar a fazer, não é?

- Sim, suponho que é. Mas estarei a fazer mais que a treinar.

Johnny atirou a beata do seu cigarro para as chamas.

- Se for esperto, p'trão Ren, não fará mais que isso. Vai descobrir a partir do momento em que puser a máscara, e mergulhar para águas profundas, que é como uma criança a aprender a dar os seus primeiros passos. Vai ficar inseguro. Vai ficar com medo. Vai ficar rodeado de monstros. Vai ter de aprender a viver e a movimentar-se entre eles, como se fosse um deles. Vai ter de aprender a controlar o seu próprio corpo nos mais simples exercícios de submersão e emersão; e também a movimentar-se de um lado para o outro. Digo-lhe já que nenhum, momento que dedicar a isto será desperdiçado. Vai precisar de toda a sua coragem e toda a sua perícia quando mergulhar à procura do navio do tesouro.

Por mais que tentasse não conseguia abalar o raciocínio deste ilhéu de voz calma. Podia desafiá-lo; mas isso poderia significar a minha própria destruição e o fim de todos os meus desejos. Encolhi os ombros numa forçada resignação.

- Tudo bem, Johnny. Nós praticamos, praticamos uns dias... uma semana, talvez. Por essa altura a rapariga já anda de um lado para o outro. Ela está aborrecida. Quer companhia. Está curiosa sobre o que se passa. Ela é uma cientista, lembra-se, Johnny? Não vai aceitar as histórias de fadas que contámos aos outros.

- Então - disse Johnny simplesmente -, ponho as suas coisas no Wahine e levo o seu barco a reboque para o continente.

Estava vencido e sabia disso, mas estava irritável e recusei-me a deixar o assunto morrer tão facilmente.

- Ela está doente, Johnny. Ainda temos de a alimentar e tratar dela.

- Também temos de nos alimentar, logo isso não é nada. Quanto a tratar, é uma questão de mudar o penso, de manhã e à noite. Ela pode tomar os remédios sozinha. Pomo-la confortável e depois deixamo-la até à hora da refeição.

A água borbulhava na cafeteira. Eu levantei-me para fazer o chá, mas Johnny Akimoto colocou uma mão no meu ombro e puxou-me para baixo outra vez. Os seus olhos estavam calmos. A sua voz estava firme.

- P'trão Ren, há uma coisa que tem de ser dita. Eu vou dizê-la e depois talvez você me diga para pegar no meu barco e na rapariga e deixar a ilha. Se não, então eu fico e nunca mais falamos no assunto. Eu sei o que quer fazer. E conheço os seus motivos. É bom um homem querer uma coisa até ao limite das suas forças. Mas também pode ser mau. Quando mergulhava para os capitães das pérolas havia aqueles que nós odiávamos e temíamos. Eles iam até um novo leito nas águas profundas.

Encontravam boas pérolas, o suficiente para pagar aos mergulhadores, à tripulação e as despesas do barco, e ainda sobrava um bom lucro para o capitão, mas eles não ficavam satisfeitos. Mandavam os rapazes descer uma e outra vez, cada vez mais fundo, até os seus tímpanos rebentarem, e o sangue jorrar das suas bocas e narinas, e as convulsões os emaranharem de tal maneira que nunca mais podiam trabalhar. É uma coisa má, p'trão Ren, quando um homem está tão sedento de dinheiro que não pode dispensar nem consideração nem piedade por mais ninguém no mundo... Agora está dito. Se quiser, eu parto de manhã.

A cafeteira deitou por fora, mas nenhum de nós se mexeu. Eu tentei falar, mas as palavras tardavam em aparecer. A vergonha asfixiou-as na minha garganta. Johnny Akimoto estava sentado em silêncio, um homem gentil esperando sem arrependimento que eu o aceitasse ou o rejeitasse.

Então, misericordiosamente, as palavras apareceram. Voltei-me para ele e estendi a minha mão.

- Peço desculpa, Johnny. Gostaria que ficasse.

Ele agarrou a minha mão, o seu rosto escuro soltou um sorriso de puro deleite.

- Eu fico, p'trão Ren. É melhor fazer o chá agora. A rapariga vai acordar em breve e vai estar com fome.

Juntos preparámos uma refeição simples e quando estava pronta carregámo-la juntos até à tenda da rapariga.

Ela estava febril outra vez. O seu rosto estava corado. Estava encharcada em suor e contorcia-se e gemia, e puxava o lençol à medida que a sua temperatura aumentava e as dores a atormentavam. Ela tremeu violentamente e puxou o lençol até ao pescoço para se aquecer.

Limpei-a com a esponja outra vez, e segurei-a, enquanto Johnny a obrigava a beber um pouco de água que empurrasse um par de comprimidos. E depois deitámo-la na almofada e cozinhámos a nossa própria refeição, enquanto as sombras se alongavam lá fora, e as primeiras rajadas de vento levantavam pequenos furacões na areia.

- Ela está pior do que eu pensava - disse Johnny. - Se a febre não baixar esta noite...

Ele deixou o resto por dizer.

- Um de nós devia ficar com ela esta noite, Johnny.

Ele assentiu. Estava satisfeito por eu ter dito isso.

- Devíamos levá-la para a nossa tenda, p'trão Ren. Ela pode usar a minha cama. Então, talvez você possa dormir um pouco. Se ela precisar de si, você está lá.

Eu olhei para ele, curiosamente. Não conseguia ler o que tinha em mente. Interroguei-o.

- Mas... e você, Johnny? Não há necessidade de se ir embora. Podemos ambos...

- Não, p'trão Ren. Eu vou dormir aqui.

- Não sei onde quer chegar.

Johnny sorriu com doce ironia.

- Ela é jovem, p'trão Ren - disse. - Ela é jovem e está doente e só. Se ela acordasse esta noite e visse um homem negro inclinando-se sobre ela, então sentiria medo.

O pai de Johnny Akimoto era um japonês no exílio. A sua mãe era uma mulher negra das Ilhas Gjlbert. O próprio Johnny era uma das pessoas perdidas que viveriam sem amor e sem um filho para os suceder. Mas de todos os homens que alguma vez conheci, Johnny Akimoto era o mais homem.

Embrulhámos a rapariga nos lençóis e carregámo-la para a tenda grande. Deixando Johnny a instalá-la, voltei a buscar a caixa dos remédios. Conforme me dobrei para a apanhar, reparei numa pequena carteira de couro entalada, entre duas garrafas, na mesa desdobrável. Abria-a.

Tinha algumas notas, alguns selos postais e uma carta de crédito do Commercial Banking Company. Estava endossada à Menina Patricia Mitchell. Agora pelo menos sabíamos o seu nome e que era solteira. Dobrei o papel e coloquei-o de volta na carteira. O resto, ela própria podia dizer-nos quando recuperasse, se recuperasse.

Johnny parecia ter as suas dúvidas quanto a isso, e eu nem queria pensar no que poderia acontecer se ela morresse enquanto estivesse nas nossas mãos: investigações policiais, um inquérito do médico legista, histórias nos jornais, boatos ao longo da costa. O segredo do Dona Lúcia e o ouro do rei de Espanha deixaria de ser segredo.

O Sol punha-se quando deixei a tenda: uma bola dourada rolando para fora do horizonte deste mundo, para um mar de amarelo e carmim ocre e púrpura real. Ficar quieto a vê-lo desaparecer para lá da extremidade da Criação. Vi a breve glória do resplendor crepuscular. Vi as cores desvanescerem-se da superfície do oceano, e a delicada cor do pêssego ser varrida do céu pelos rápidos dedos da noite. Então, voltei-me lentamente e caminhei para a tenda.

A rapariga continuava presa pela febre, e Johnny Akimoto estava à espera para me desejar as boas-noites.

 

Despi-me até ficar só em calções e estendi-me na cama de armar. Mas não consegui dormir. Os meus nervos estavam à flor da pele, e não conseguia afastar da mente os murmúrios da rapariga doente no outro lado da tenda, ou o bater monótono do mar e o leve chilrear dos pássaros inquietos na ár-vore-de-fogo (1), lá fora.

Levantei-me, acendi o candeeiro a petróleo, procurei na minha mala os apontamentos que Nino Ferrari me tinha dado e comecei a estudá-los. Eram simples, ásperos, precisos; uma explicação elementar dos princípios do mergulho com botijas de oxigénio. Falavam da relação da pressão com a profundidade; da acumulação de nitrogénio livre na corrente sanguínea; da dinâmica da movimentação em águas profundas; variações de temperatura e sintomas de narcose; e o domínio perfeito das trompas de Eustáquio (2).

 

Nota 1: Espécie de árvores com flores de vermelho ou amarelo-vivo. (N. da T.)

Nota 2: Canal que vai da faringe à cavidade do ouvido médio. (N. da T.)

 

Li-os, linha por linha, mas não me impressionaram. Eu era um homem perseguido por visões. Visões de jardins de coral, e peixes monstruosos das cores do arco-íris, e um navio imaginário engrinaldado com algas, em cujos porões repousam arcas de ouro guardadas por terrores antigos.

Ouvi a rapariga tremer e gemer à medida que a febre a agitava novamente. Levantei-me e segurei o candeeiro alto para olhar para ela. Fiquei chocado e assustado. Os seus lábios estavam azuis. Haviam grandes olheiras à volta dos seus olhos, que fixavam cegamente a luz amarela. Coloquei o candeeiro no chão enquanto banhava o seu rosto, pescoço e mãos. Forcei dois comprimidos por entre os seus lábios e fi-los engolir com água, que salpicou a cama à medida que eu segurava o copo junto à sua boca, que tremia. Depois tornei a deitá-la, e, puxando um caixote para junto da cama, sentei-me à espera.

Eram três da manhã quando a febre cedeu. Fortes espasmos sacudiram-na e contorceram-na, e os seus gemidos elevaram-se a um som borbulhante. Então, subitamente, ela pareceu desfalecer. Suor fétido irrompeu do seu corpo e desceu do seu rosto para as covas do pescoço e peito. Ela pareceu ter dificuldade em respirar e depois ficou muito quieta. A sua respiração tornou-se novamente regular; e, quando levei um copo de água aos seus lábios, ela abriu os olhos e disse debilmente:

- Eu não o conheço.

Lancei-lhe um sorriso aberto e disse:

- Vai conhecer em breve. Chamo-me Renn Lundigan. Você é Pat Mitchell. Vi o seu nome na sua carteira.

Isso confundiu-a. Fechou os olhos e virou a cabeça lentamente de um lado para o outro da almofada. Quando voltou a olhar para mim, pude ver que ela estava assustada.

- Estive doente, não foi?

- Muito doente. Pisou um peixe-pedra. Tem sorte em estar viva.

A memória estava a voltar, lentamente. Ela debateu-se para se sentar. Eu empurrei-a gentilmente para a almofada.

- Fique deitada. Há muito tempo. Se for com calma, há-de lembrar-se.

Ela suspirou impacientemente como uma criança.

- Não me lembro deste local. Onde estou?

- Está na minha ilha. Esta é a minha tenda.

- Trouxe-me para aqui?

- Para a tenda, sim. Para a ilha, não. Já cá estava quando eu cheguei. Precisa de tratamento, por isso nós trouxemo-la para aqui, para passar a noite.

- Quem é, nós?

- Johnny Akimoto e eu próprio. Johnny é um amigo meu.

- Oh.

Subitamente, ela pareceu desfalecer. O corpo esgotado recusava-se a funcionar. Ela fechou os olhos, de tal forma que pensei que tinha adormecido. Então, ela abriu-os outra vez.

- Por favor... pode dar-me de beber? Tenho sede. Levei o copo aos seus lábios, levantando a sua cabeça enquanto ele bebia avidamente, engasgando-se no último gole. Então eu baixei-a na almofada e ela agradeceu-me, como uma pequena menina de escola.

- Soube-me bem. Muito obrigada.

Voltei-me para me desfazer do copo e, então, quando olhei para ela outra vez, estava a dormir.

Tapei-a com as cobertas e fechei as abas da tenda para impedir o vento de entrar. Atirei-me para a cama, completamente exausto, mas já não deprimido. Era como se tivéssemos travado uma batalha juntos, e ganho. Alguns minutos depois, também estava a dormir.

Johnny Akimoto trouxe-nos o pequeno-almoço: truta dos corais, acabada de apanhar e grelhada na brasa, pão grosso com manteiga, chá adoçado com leite condensado. Ele sorriu amplamente quando viu a rapariga acordada e com um sorriso ansioso e perplexo, no rosto cansado. Eu fiz as apresentações.

- Pat Mitchell, este é Johnny Akimoto, o meu bom amigo. Johnny esta é a Pat.

- Devo agradecer a ambos. Eu., eu não pareço lembrar-me de muita coisa.

- Estávamos preocupados consigo, menina Pat - disse Johnny. - Esta manhã pensei que poderia estar morta. Olhei e vi ambos a dormir. Pensei que talvez gostasse de peixe fresco para o pequeno-almoço.

Ele pousou o prato de esmalte ao lado da cama e observou ansiosamente enquanto ela se apoiava num cotovelo e começava a provar.

- Gosta, menina Pat?

Ela era grande. Tinha uns dois quilos.

Os seus olhos brilharam quando ela lhe sorriu e disse calmamente:

- Está muito bom, obrigada, Johnny.

Comemos juntos, falando pouco. O peixe estava agradável e o sol da manhã aqueceu-nos através da lona cinzenta da tenda. Vi as cores fluírem lentamente no rosto da rapariga enquanto ela beliscava a comida e bebia o chá quente.

Ela levantou a cabeça e olhou para mim. A pergunta parecia preocupá-la. Levou algum tempo a formulá-la.

- Disse que foi um peixe-pedra.

- Exactamente. Não se lembra?

- Não muito bem. Estava a caminhar no recife...

- Uma parvoíce caminhar no recife descalça. Ela ficou imediatamente zangada.

- Eu não estava descalça. Não sou parva. Estava de sandálias. Tinha uma pedra numa delas. Parei para a tirar. Desequilibrei-me e escorreguei para uma lagoa. O meu pé descalço deve ter pisado o peixe-pedra.

Johnny e eu sorrimos pela sua breve e fraca fúria. Ela corou e continuou.

- Não me lembro como é que regressei. A dor era assustadora. Eu parecia paralisada. Caí várias vezes. Lembro-me de me ter questionado se seria apanhada pela maré. Depois disso... nada. Quanto tempo estive eu doente?

- Não sabemos. Só chegámos ontem à noite. Estava inconsciente quando a encontrámos.

De súbito, assolou-a um pensamento. Cuidadosamente, ela levantou o lençol e olhou para a sua perna ferida.

- Você fez-me este curativo?

- Foi o Johnny. Teve de o abrir. Não poderá andar durante algum tempo.

- Não... Suponho que não. - E voltou a perguntar cuidadosamente. - Estas... Estas roupas não são as roupas que eu tinha vestidas no recife.

Virei-me e procurei desajeitadamente um cigarro; mas Johnny Akimoto respondeu-lhe com um enorme sorriso.

- Estava muito doente, menina Pat. O p'trão Ren teve de lhe mudar as roupas e lavá-la.

O seu rosto ficou vermelho-vivo; então, levantou corajosamente o queixo e disse:

- Têm sido amáveis e gentis para comigo. Estou muito grata.

- Mais chá, menina Pat? - disse Johnny, o cavalheiro cortês.

- Obrigada, Johnny. Pareço estar completamente seca.

Johnny levou a caneca de esmalte e foi até à fogueira para a encher outra vez. Ela voltou-se para mim:

- Disse-me ontem à noite que esta era a sua ilha.

- Exactamente.

- Não sabia disso. Não quis invadir nada.

- Não o fez. - Tropecei nas palavras pouco convicto. - Quando estiver bem outra vez, Johnny pode levá-la de volta ao continente.

- Não há necessidade disso. Eu tenho o meu próprio barco. Eu não quero arranjar-lhe problemas.

Foi um momento embaraçoso. A cortesia podia trair-me para uma situação que queria evitar. A rapariga tinha estado doente. Ela estava a manejar um interlúdio embaraçoso com algum encanto e mais dignidade que eu conseguia reunir. Mas o facto mantinha-se: queria-a fora da ilha o mais rápido possível.

Então, Johnny voltou com o chá e uma sugestão, que me deu. tempo para pensar.

- Tem estado doente, menina Pat. Ainda está, embora a febre tenha desaparecido. Deve descansar tanto quanto puder. Se quiser, nós transportamo-la até à praia. Podemos fazer-lhe uma sombra com o toldo da tenda, e você pode observar-nos enquanto trabalhamos.

A sua face iluminou-se.

- Gostaria muito. Podia dormir. Podia rever algumas notas. E como diz, podia vê-los trabalhar. Que tipo de trabalho é?

- Aqui, o p'trão Ren quer aprender a mergulhar. Eu vim aqui para o ensinar.

Ela riu-se disso, fortemente, alegremente.

- Isso não é trabalho, é diversão!

- Da maneira que o Johnny ensina é trabalho duro.

O meu ar fingido de aventureiro não a enganou por um só momento. Ela lançou-me um longo olhar fixo e disse calmamente:

- Esta é a sua ilha, Sr. Lundigan. O que quer que decida fazer aqui é problema seu. Eu prometo-lhe cuidar da minha vida, e partir assim que possa viajar.

Johnny Akimoto engasgou-se convulsivamente, disse atabalhoadamente alguma coisa sobre uma espinha, e saiu rapidamente da tenda. A menina Patrícia Mitchell lançou-me um olhar de soslaio e recostou-se na sua almofada.

- Renn Lundigan, hem? Você era uma verdadeira lenda no seu tempo. Nunca pensei conhecê-lo pessoalmente.

- Não sei de que diabo está você a falar...

- Isso é bastante natural. Demitiram-no, não foi? Morto de bêbado, debaixo da janela do reitor, às nove da manhã.

Eu fiquei de boca aberta a olhar para ela, sem fala. O sorriso morreu nos seus lábios, e ela pousou a sua pequena mão fria e húmida na minha.

- Estou a provocá-lo e isso não é cordial, depois de tudo o que fez por mim. Também sou de Sidney, sabe. Sou uma conferencista de História Natural na universidade. Um mundo pequeno este, não é?

Decididamente, um mundo pequeno. Demasiado e abominavelmente pequeno, quando o passado de um homem o persegue até à última ilha, no último recife antes do vasto oceano. Fiquei irado rapidamente, e derramei uma enchente de palavras amargas.

- Tudo bem... então, você conhece-me. Mas eu não a conheço. Não a quero aqui, mas está doente e não posso fazer nada. Compreenda isto: enquanto aqui estiver, nós trataremos de si. Alimentá-la-emos, cuidaremos de si, e faremos que se sinta o mais confortável possível. Mas assim que possa andar, quero-a fora daqui. Até lá, não me fale do passado. Está morto, acabado, terminado. Não me fale de amigos. Não tenho nenhum. E quando partir, deixe-me em paz. Esqueça que alguma vez me viu.

Virei-lhe as costas e saí da tenda. Pensei tê-la ouvido chorar, mas não voltei atrás. Ela era o passado e eu não queria nada com ela. O passado estava morto e esquecido. Era uma ilusão, claro. Uma absurda, louca ilusão. Mas eu era louco o suficiente para a acalentar.

Johnny levou-me até uma lagoa nas rochas da franja interior do recife. Ele remou calmamente através da água oleosa, e quando olhei para trás, pude ver o pequeno abrigo na areia onde Pat Mitchell repousava na sua cama, olhando para o mar. Fora Johnny a prepará-lo para ela, Johnny que a tinha transportado e a tinha instalado confortável, e colocado o cantil ao seu alcance, e mudado o curativo da sua ferida, e deixado os comprimidos junto dela.

Johnny... sempre Johnny... De Johnny era a força, e minha a fraqueza. De Johnny a calma sabedoria; minha a loucura da frustração e da fuga. Ele estava sóbrio e dominado à medida que remava, e se havia pena nos seus olhos, eu não podia vê-la.

Ancorámos o esquife a uma cabeça-negra, um daqueles tocos protuberantes de coral morto que se encontram no topo de um pescoço atarracado. Tirei as minhas sandálias e coloquei um par de barbatanas que Nino Ferrari me tinha dado. Não eram o modelo ortodoxo com meia sola e uma presilha para o calcanhar. Eram feitas de uma sola inteira e tinham uma alça para o calcanhar, para que o mergulhador pudesse caminhar no chão de coral sem correr o risco de ser picado pelo peixe-pedra ou pelos espinhos do ouriço-do-mar.

Apertei o grande cinto de lona, com um lastro de três quilos e meio de pedaços de chumbo e com a longa faca de aço temperado numa bainha de couro enrugado. Agora, estava pronto para mergulhar.

As duas botijas de ar comprimido foram fixadas a uma armação de uma liga de metais leve, e encaixavam nas minhas costas como uma mochila nas costas de um alpinista, com um arranjo de braçadeiras de lona lançadas sobre os ombros e apertadas por debaixo do peito. Dois tubos de borracha guarnecidos com uma tira de pano de algodão resistente seguiam das botijas até ao disco de metal polido do regulador, o órgão principal deste pulmão mecânico. Outro tubo do mesmo material terminava numa pequena peça bocal, com um orifício numa extremidade de borracha, para ser apertada entre os dentes do mergulhador.

Johnny Akimoto ajudou-me a colocar o equipamento nas minhas costas, não se esquecendo da protecção para a coluna vertebral, enquanto as correias eram apertadas e testadas.

Agora estava pronto para a máscara. Mergulhei-a no mar para molhar a borracha e lavei o perspex (1) para que não embaciasse debaixo de água. Depois introduzi-o pela cabeça, moldei a borracha ao meu rosto e tentei respirar para testar se estava à prova de água. Depois ajustei a correia à parte de trás do meu crânio e subi a máscara para a testa.

 

Nota 1: Acrílico termoplástico transparente, inquebrável, muito mais leve que o vidro. (N. da T.)

 

Johnny Akimoto observava-me com esmerado interesse.

- Pronto agora, p'trão Ren.

- Pronto, Johnny.

- Dê uma espreitadela primeiro, antes de descer.

Sentei-me num banco de remador e olhei para a água límpida. A profundidade das lagoas de coral varia entre alguns centímetros e seis ou sete metros. Esta em que me preparava para mergulhar não tinha mais que mil e duzentos metros de comprimento por quinhentos de largura. A sua profundidade não ultrapassava os quatro metros. Todavia, como todos os outros, o recife era um microcosmo perfeito da colorida e abundante vida do mar de coral.

Delicadas algas verdes, vermelhas e douradas moviam-se gentilmente como se por um vento submarino. Corais alfazema-púrpura espalhavam-se como flores num jardim de Verão. Anémonas vermelhas e brancas estendiam os seus tentáculos como arco-íris repousando, como frescos primitivos, nas paredes rochosas. Cardumes de pequenos peixes malhados lançavam-se por entre a folhagem. Uma estrela-do-mar azul repousava imóvel no fundo arenoso e um caranguejo eremita tentou fugir do búzio pintalgado que era a sua casa. Era um mundo de cores tumultuosas e vida abundante e eu senti uma súbita excitação ao pensar que em breve me livraria dele. Levantei o olhar para Johnny.

- Pronto, Johnny.

Ele sorriu e assentiu. Deslizei a máscara sobre os meus olhos e narinas, moldei-a mais uma vez à minha pele, coloquei o bocal entre os dentes, testei o ar, e desci sobre a popa para a lagoa. O cinto de lastro levou-me ao fundo instantaneamente. Submergi a uma profundidade de dois metros e fiquei suspenso num mundo líquido.

A minha primeira sensação foi a de completo pânico.

Estava rodeado de monstros. Aumentados pela máscara e pela água, as algas dançantes eram florestas primitivas. As anémonas eram bocas abertas. Os corais eram árvores numa floresta anterior ao dilúvio. Os cardumes de peixe eram exércitos de outro planeta. O caranguejo eremita era uma enorme e horrível deformidade. Perdi o fôlego e enjoei, e arranquei a máscara e empurrei-a violentamente para a superfície para encontrar Johnny Akimoto a rir.

Ele deu-me a mão e puxou-me até eu estar seguro ao barco, e eu fiquei ali pendurado, arfando e tossindo.

- Que aconteceu, p'trão Ren? - perguntou Johnny Akimoto, exibindo os seus dentes brancos brilhando num sorriso amplo.

- Fiquei com medo. Foi isso que aconteceu. É tudo diferente quando se está lá em baixo.

Johnny assentiu.

- É sempre assim, p'trão Ren, na primeira vez. Agora olhe outra vez.

Olhei para a lagoa. Não haviam monstros. Era o mesmo pequeno mundo de rara beleza liliputiana que vira da primeira vez.

- Desça outra vez, p'trão Ren - disse Johnny. - Vá com calma desta vez. Respire lenta e calmamente. Nade um pouco. Mergulhe ao fundo. Olhe bem para as coisas que o assustaram da primeira vez.

Eu acenei em concordância, deslizei a máscara sobre a cabeça novamente, enfiei o bocal e deixei-me escorregar de volta à lagoa.

Durante um longo momento fiquei suspenso sob a superfície, forçando-me a concentrar no simples acto involuntário de respirar. Passado algum tempo recuperei o ritmo. O ar fluía livremente das botijas. As bolhas do regulador subiam à superfície num veio estável, com um suave palpitante silvo, que combinava com o ritmo da minha respiração.

Recuperei a coragem. Esperneei calmamente com as barbatanas e encontrei-me a flutuar calmamente na direcção da parede de coral.

Então, parei de repente. Um novo terror me confrontava.

Mãos nuas, grandes como os ramos de uma árvore, lançavam-se na minha direcção para me agarrarem. De uma reentrância sombria entre as algas dançantes, uma enorme boca abriu-se para me devorar, e um par de olhos grandes como ostras inspeccionou-me com serena malevolência. Por um momento fiquei petrificado. Pensei fazer como fizera antes, tirar a máscara e lançar-me para a superfície. Então, a razão voltou e o autocontrolo também. As mãos pareciam corais em formas de chifre de veado. Os olhos e a boca pertenciam a uma pequena truta do coral, que se voltou e meneou para longe com um esplêndido brilho escarlate, quando eu movi a mão para lhe tocar.

Dei às pernas com mais força agora. Dei por mim a deslocar-me com uma facilidade fabulosa. Os corais e as algas deslizavam por mim com surpreendente velocidade. O esforço para respirar com o aumento da pressão já não era aparente. Fui dominado pela ilusão de que era um pássaro suspenso entre a terra e o céu, que os meus braços eram asas estendidas, e que o elemento à minha volta era ar ao invés de água. Esvaziei os meus pulmões e vi o fluxo das bolhas de ar seguirem em direcção à superfície, enquanto mergulhava numa trajectória acelerada. Senti uma súbita pressão nos meus ouvidos, uma dor aguda nas cavidades nasais. Engoli como se faz num avião em aterragem. As minhas mãos cravaram-se no fundo arenoso.

Com uma série de movimentos que me fizeram pensar, irrelevantemente, num acrobata no trapézio principal fiquei de pé. Não havia peso no meu corpo, nenhuma sugestão do esforço nos movimentos líquidos dos meus membros. Quando caminhei foi como se flutuasse. Quando flutuei era como se caminhasse. A felicidade tomou conta de mim. Uma enorme boa disposição impregnou-me. Caminhei para as paredes de coral e tentei alcançar os ramos para os tocar, cautelosamente, ao princípio, depois com maior confiança, como se fossem árvores na minha própria terra. Toquei nas anémonas com o meu dedo e vi os pequenos tentáculos contraírem-se com medo. Fiquei suspenso, imóvel, enquanto os peixes listrados nadavam à volta do meu corpo e fugiam para longe, aterrorizados ao menor movimento.

Não sei quanto tempo fiquei ali, saboreando a minha cidadania num mundo novo. Então, de súbito, estava com frio. Baixei o olhar para o meu corpo. Estava arrepiado. A pele dos meus dedos estava branca e enrugada. Era altura de partir. Com uma agitação de mãos e barbatanas lancei-me para a superfície, e icei-me para o bote. Johnny disse-me que tinha estado debaixo de água vinte e cinco minutos.

Tirei o meu equipamento e sentei-me silenciosamente durante algum tempo, sentindo o calor fluir do âmago do meu corpo, para se encontrar com o calor do sol na minha pele nua. Johnny interrogou-me propositadamente.

- Não achou difícil desta vez, p'trão Ren.

- Mesmo nada difícil, Johnny. Assim que o medo inicial me deixou, foi fácil... brincadeira de criança.

- A primeira parte é sempre fácil - disse Johnny, sabiamente. - A lagoa é rasa e fechada. Não há trabalho a fazer. Nenhum perigo de que se consiga lembrar, por isso diverte-se. Mas ouça... - ele inclinou-se para a frente e passou o seu dedo ao longo dos sulcos das minhas mãos enrugadas - ...este é o primeiro perigo: o frio. Pensa que não está a trabalhar, porque se move facilmente. Mas o seu corpo está sempre a trabalhar. Queima-se a si mesmo para se manter quente. E quando for para águas profundas... ainda é mais frio... subitamente frio, como se tivesse atravessado uma cerca do Verão para o Inverno. É por isso que um homem não pode permanecer submerso em águas profundas durante muito tempo. Para um mergulhador livre como eu, não é muito mau. Eu fico lá só por um período curto, até os meus pulmões conterem os últimos sopros, mas você respira lá em baixo, e o frio toma conta de si, fá-lo ficar cansado sem que você saiba.

Eu assenti, lembrando que Nino Ferrari me havia dito o mesmo por outras palavras, recordando o seu conselho para usar um blusão de lã para trabalho subaquático.

- Devíamos ir agora - disse Johnny. - Para uma primeira vez, já fez o suficiente. Esta tarde tentaremos outra vez. Quando não está a mergulhar, você deve comer bem e exercitar-se. Quando viermos trabalhar você vai ver que a sua força se extingue depressa.

Desengatámos o bote da cabeça-negra. A maré estava a baixar rapidamente e numa hora a lagoa seria uma extensão de areia nua, onde as poças permaneciam guardiões da multidão de vidas que se reproduziam nos seus braços de coral.

À medida que Johnny remava de volta à costa, os meus olhos estavam fixos na praia onde Pat Mitchell repousava sob a lona da tenda. Perguntei a mim mesmo o que lhe iria dizer. Questionei-me sobre as palavras que fariam a ponte sobre o vazio que eu próprio havia construído entre nós. A minha decisão não sofrera alterações. Queria que ela se fosse embora. Mas ainda estaríamos juntos por vários dias; e uma ilha tropical pode ser um paraíso, mas também pode ser um inferno, se as pessoas não conseguirem viver em harmonia.

Johnny Akimoto empurrou o pequeno bote para a frente com um poderoso golpe; depois meteu lá dentro os seus remos e disse:

- A menina Pat lamenta o que disse, p'trão Ren. Ela quer dizer-lho mas não sabe como.

- Nem eu, Johnny, o problema é esse - Johnny sorriu gentilmente.

- Uma boa rapariga, aquela; o que promete cumpre. Quando chegar a altura ela partirá, e deixá-lo-á em paz. Ela disse-lhe isso, e disse-mo também.

Lancei-lhe um sorriso largo. Não conseguia discutir com Johnny.

- Muito bem, Johnny. Eu falo com ela. Arranja alguma coisa para comer e deixa-me sozinho com ela. Eu hei-de encontrar alguma coisa para dizer, só Deus sabe o quê!

Ele meteu outra vez os remos na água, e não voltou a falar. Quando chegámos à praia, havia paz entre nós.

 

O sol do meio-dia resplandecia na cobertura de lona; por isso transportámos Pat Mitchell para a tenda grande à sombra das árvores. Deixando Johnny a instalá-la, eu saí para me mudar para roupas secas, e para preparar o meu gambito de abertura.

Quando regressei ela estava sozinha, sentada na cama com um pequeno estojo de maquilhagem na mão. Olhei para ela e vi que era linda. As suas bochechas já não estavam amarelas com a doença, mas tingidas com castanho do sol, e iluminadas por dentro com o fogo crescente da saúde. O seu cabelo já não estava caído mas penteado suave e brilhante, afastado do rosto para que se pudesse ver as elegantes maçãs do rosto e queixo firme, orgulhosamente erguido. Os seus olhos eram escuros mas velados pela timidez. As suas mãos estavam imóveis e controladas na colcha.

Era toda mulher, redonda e perfeita como aquelas estatuetas de raparigas douradas saídas de tempos antigos. A cama estalou quando eu me sentei aos seus pés. Tirei um cigarro e ofereci-lhe um, mas ela recusou. Acendi-o, fumei por uns momentos para me acalmar, então comecei a falar.

- Menina Mitchell... Pat...

- Não, Sr. Lundigan, deixe-me ser eu a dizê-lo.

Ela inclinou-se e falou sinceramente, cuidadosamente, como se tivesse medo de esquecer as falas que tinha ensaiado, como se as falas uma vez ditas não conseguissem transmitir o seu significado.

- O que eu lhe disse esta manhã foi imperdoável. Era desnecessário e cruel, e não sei porque o disse. Ou antes, sei. Foi porque... porque me viu sem roupa, e não tinha nenhum direito e... bem... é isso e eu lamento e partirei quando quiser e nunca ninguém saberá que estive aqui... ninguém.

Depois ela recostou-se às almofadas como se exausta. Ela olhou para mim como se com medo do que eu poderia dizer. Tentei sorrir, mas não foi um esforço muito bem sucedido. O sorriso é um sinal de confiança. Eu estava longe de estar confiante. Disse-lhe então:

- Também lamento. Esta é a primeira vez que volto a esta ilha desde... desde que a minha mulher e eu estivemos aqui juntos. Não posso explicar como me senti. Foi como... como um regresso a casa. Não consegui suportar a ideia de mais ninguém...

- Intrometendo-se.

- Sim, devo dizê-lo, intrometendo-se. Mas não foi culpa sua. Não poderia saber que a ilha era minha. Estava doente. Você... Oh, para o diabo com isso! Eu fui o raio de um grosseirão. Lamento. Agora, podemos falar de outra coisa?

Ela estava a sorrir agora, a ferida estava sarada. Pediu-me um cigarro. Dei-lho, acendi-o, e a nossa conversa levou-nos para longe dos velhos terrenos perigosos.

Contei-lhe como ouvira falar dela no continente. Falei-lhe no jovem farmacêutico que tinha perdido o seu coração por ela. Disse-lhe como ela impressionara os ilhéus - uma rapariga solitária saltando entre as ilhas num pequeno barco. Ela riu disso.

- Impressionados? Eles pensaram que eu era doida.

- Eu também penso. Esse não é um barco adequado a águas profundas.

Ela encolheu os ombros.

- Não há problema se se tiver cuidado e se esperar pelo bom tempo. Eu tenho tido sorte na maior parte das vezes.

- A maior parte das vezes?

Ela assentiu.

- Tive o meu pior momento quando cheguei aqui. O vento estava forte e o mar estava picado. Eu não estava particularmente preocupada. Estava perto de terra. Então, não consegui encontrar um canal.

- Que fez?

- Andei para baixo e para cima no recife até que o encontrei.

- Perigoso.

- Sim, muito. Não havia mais nada a fazer. Mesmo quando cheguei à passagem estreita foi como tentar montar um cavalo selvagem, mas consegui passar sem problemas.

Olhei para a pequena mão firme no lençol. A sua boca também era firme e sorridente. Uma rapariga com coração e coragem. Dei por mim a começar a gostar dela. Pensei que isso podia ser perigoso, também. Fiz-lhe mais algumas perguntas.

- É uma naturalista. Esse é um trabalho estranho para uma mulher, não é?

O seu queixo empertigou-se.

- Não vejo porquê. Eu gosto. Sou boa nisso. Paga razoavelmente bem, e ainda tenho tempo livre para fazer as coisas de que gosto.

- Como isto?

- Exactamente.

- Em que é que está a trabalhar agora?

- Numa tese de doutoramento. A ecologia de Haliotis asinina - peixe-carneiro para si, Renn Lundigan.

Ela atirara-me para a minha caixa e fechara a tampa com uma pancada. Não pude deixar de me divertir. Então, foi a minha vez de ser interrogado.

- Então e você, Renn? Que é que faz agora?

- Johnny disse-lhe. Aprendo a mergulhar.

- Por diversão?

- Por diversão. Alguma coisa contra?

- Não. Parece-me umas férias fascinantes, mas o que é que vai fazer depois, Renn? Quero dizer, como profissão. Não pode vagabundear aqui toda a vida.

Precisava de ter em atenção aquela pergunta. Esta não era nenhuma rapariga brincalhona que pudesse ser despedida com conversas ilusórias. Eu encolhi os ombros e fiz a minha boquinha pesarosa, e disse:

- Bem, não posso voltar a ensinar. Nenhuma universidade me quereria. Mas não sou um mau historiador e há suficiente material à volta deste recife para fazer um livro ou dois. Sabe - movi as mãos num vago gesto que abarcava tudo -, os primeiros navegadores, os piratas, os dias das pérolas... nada disso foi alguma vez adequadamente documentado.

Os seus olhos iluminaram-se, ela inclinou-se para a frente com ávido interesse profissional.

- Isso é bom, Renn. É mesmo muito bom. Esta é a Costa Barbaria da Austrália, sabe. Há todo o tipo de material aqui... pirataria, violência, romance... tudo. Se eu conseguisse escrever, era o que eu faria. Olhe, vou mostrar-lhe uma coisa.

Ela abriu o fecho do seu estojo de maquilhagem, atirou a tampa para trás, ergueu um pequeno tabuleiro e tirou um pequeno objecto redondo que depositou na palma da minha mão. Por um longo momento, fiquei a olhar para ela, não ousando levantar os olhos.

Era uma réplica exacta da velha moeda espanhola que Jeanette e eu tínhamos encontrado no recife. Senti o sangue fugir do meu rosto. Os meus lábios estavam secos. A minha língua estava grande de mais para a minha boca. Fechei os olhos e vi os meus sonhos desmoronarem-se como um castelo de cartas. Abri-os novamente. A moeda olhava para mim desde a minha palma, um olho dourado, sem pestanejar. Olhei para Pat Mitchell. Perguntei-lhe suavemente:

- Onde arranjou isto?

A sua explicação foi ávida e sincera.

- Aqui, Renn. No recife. Foi no segundo dia. Estava a explorar uma lagoa na rocha quando vi o que parecia ser um pedaço de coral morto, plano e redondo. Não sei porque o apanhei, excepto talvez por a sua forma ser algo invulgar. Quando o fiz, vi que havia metal por baixo. Trouxe-a para a tenda, limpei-a e... esse é o resultado.

- Entendo.

- Mas você não parece entender, Renn. - Ela estava perplexa perante a minha súbita mudança de atitude. - Confirma as teorias de que os antigos navegadores espanhóis passaram por aqui e que alguns deles naufragaram nas ilhas do recife. Você é um historiador, Renn, decerto sabe a importância disto?

Eu via muito bem. Não podia deixar de o fazer. Vi que esta rapariga voltaria ao continente e contaria a sua historiazinha e pavonearia a sua moeda antiga até que algum jornalista esperto a visse e fizesse uma nota de rodapé disso, e então estaria tudo perdido. O raio de todos os veraneantes na costa desceriam na minha ilha à procura de tesouros enterrados, a não ser...

Devo ter dito a palavra em voz alta, porque Pat Mitchell pousou a sua mão na minha e interrogou-me com perplexa ansiedade.

- A não ser o quê, Renn?

Fui apanhado entre a espada e a parede. Impingir-lhe uma história traria o mundo para a minha porta. Dizer-lhe a verdade faria dela uma sócia indesejável no meu empreendimento, um juiz das minhas fortunas e do meu destino.

Involuntariamente, fechei os dedos na moeda. Senti a sua borda morder-me a palma. Então pensei em Johnny Akimoto e no que ele me tinha dito. “Esta é boa; aquilo que promete cumpre.” Se eu confiava no Johnny, devia confiar em Pat Mitchell também. Os meus dedos relaxaram. Olhei para ela outra vez. Os seus olhos mostravam preocupação. Ela disse calmamente:

- Disse alguma coisa errada, Renn?

Abanei a cabeça.

- Não, nada errado. Quero mostrar-lhe uma coisa.

Fui até à minha cama, puxei a minha mala e tirei a pulseira que tinha comprado à rapariga no Hotel Lennon's. Então, pousei-a na mão de Pat Mitchell.

- Aí tem uma companheira para a sua moeda de ouro.

Os seus olhos esbugalharam-se. Ele segurou as duas moedas juntas, examinando-as com atenção. Quando voltou a falar a sua voz era um pequeno sopro de espanto.

- Isto é seu, Renn?

- Sim.

- Onde a arranjou?

- A minha mulher e eu encontrámo-la no recife, há vários anos. Provavelmente, no mesmo lugar onde você encontrou a sua.

- O que... que significa isto?

As palavras saíram lenta e deliberadamente, como moedas caindo numa lagoa.

- Significa, minha cara, que o navio do tesouro Dona Lúcia, saído de Acapulco, com destino às Filipinas, naufragou nesta ilha em 1732. E Johnny Akimoto e eu viemos aqui à sua procura.

Houve um longo, longo silêncio. As duas moedas repousavam sem serem notadas no lençol branco entre nós. Nenhum de nós olhou para elas. Olhávamos um para o outro. Então, Pat Mitchell falou, verdadeiramente calma.

- Obrigada por me contar, Renn. Deu-me uma grande honra. Não tem nada a recear de mim. Quando estiver melhor, partirei como prometi. Deixo a minha moeda consigo. Ninguém nunca saberá.

Eu não disse nada.

Assim, que havia a ser dito? Senti-me cansado e esgotado. Os meus olhos doíam. Enterrei o rosto nas minhas mãos e pressionei as palmas fortemente contra as pálpebras... no velho gesto familiar do estudante exausto trabalhando à noite. Pat Mitchell alcançou-me, afastou as minhas mãos e levantou o meu rosto na sua direcção.

- É assim tão importante para si, Renn?

- É tudo, penso eu.

- O navio naufragou há duzentos anos, Renn. Pode nunca encontrá-lo.

- Eu sei disso.

- E então?

- Não quero pensar nisso.

- Um dia - disse ela suavemente -, pode ter que pensar nisso. Espero, para seu bem, que não fique muito infeliz.

Ela encostou-se às almofadas e fechou os olhos. Parecia muito pequena, muito cansada e muito, muito desejável.

Eu passei as pontas dos dedos pela sua bochecha e deixei-a.

Johnny Akimoto estava inclinado sobre a fogueira, colocando madeira encontrada na praia. Endireitou-se quando me viu. Os seus olhos calmos estavam cheios de perguntas. Eu disse-lhe bruscamente.

- Ela sabe, Johnny.

Ele olhou para mim, espantado.

- Sabe o quê, p'trão Ren?

- Porque estamos aqui, sobre o navio do tesouro, tudo.

- Contou-lhe?

- Tive de o fazer, Johnny. Ela encontrou isto no recife.

Rodopiei a moeda no ar, apanhei-a e coloquei-a em cheio na sua palma. Ele olhou para ela durante muito tempo sem falar.

- Tive de lhe contar, não vê, Johnny? Se não o fizesse...

- Eu compreendo p'trão Ren. Compreendo muito bem.

- Fiz bem, Johnny?

- Acho que fez, p'trão Ren - disse Johnny Akimoto. - Agora somos três.

Agora que não havia segredos era mais fácil. Cada manhã, Johnny e eu transportávamos Pat para a praia e púnhamo-la confortável debaixo do toldo. Ela estava a ficar mais forte agora, e a área infectada estava a retroceder da barriga da perna na direcção do tornozelo. Em breve, ela poderia saltitar, mas, de momento, não tinha alternativa se não ficar deitada na cama sob a lona a ler ou dormitar, ou escrever as suas notas, ou observar a pequena forma baloiçante do bote, onde Johnny e eu estávamos a mergulhar.

Agora, trabalhávamos na franja do recife - a pequena e estreita prateleira onde a âncora atingia a areia às dez braças. Ainda não tínhamos começado a procurar o Dona Lúcia. Eu ainda estava a treinar, adaptando corpo e mente a novas condições de profundidade e pressão. Estava a aprender a arte da descompressão, subindo lentamente à superfície três ou quatro metros de cada vez, descansando depois de cada subida para prevenir a acumulação de nitrogénio no sangue. Ao princípio, eu agarrava-me ao cabo da âncora, medindo a minha subida como se num pau marcado. No fantástico mundo subaquático parecia de início um elo com a realidade, e nos meus primeiros contactos com a estranheza e horror das águas profundas agarrava-me a ela desesperadamente, enquanto lutava para recuperar o autocontrolo.

Fiz novos conhecimentos, também. Conhecimentos que se podiam tornar inimigos, mas que, de momento, pareciam contentes em me ver como um fenómeno curioso no seu território incontestado; a longa e magra, cavalinha espanhola com a sua boca predadora de dentes cerrados; a grande garoupa, enorme e inchada; o imperador escarlate; o grande snapper (1) cujos flancos são listrados como setas largas; e de vez em quando um tubarão de passagem.

 

Nota 1: Snapper no original. Peixe comestível encontrado nas águas australianas. (N. da T.)

 

Ao princípio fiquei aterrorizado. Depois aprendi a ficar quieto, suspenso na água azul, enquanto os peixes olhavam para mim friamente e depois se espantavam quando eu expirava uma corrente de bolhas, ou batia as mãos à maneira de uma criança.

Johnny disse pouco até me ver ganhar confiança, e só então falou-me calmamente, logicamente, sobre o perigo.

- Há sempre perigo, p'trão Ren. Nunca se esqueça disso. Não sabemos como pensa um peixe, por isso não podemos dizer o que ele fará. Um cão, sim, um cavalo, sim. Eles pertencem ao nosso mundo. Vivem connosco há milhões de anos. Mas um peixe... quem sabe? Um dia um tubarão pode vir ter consigo. Terá pouco aviso. Ele nadará na sua direcção. Parará. Fará círculos. Então irá embora, talvez. E no momento seguinte lançar-se-á sobre si como uma bala.

Eu sorri amargamente.

- E então, Johnny?

Ele encolheu os ombros.

- Você está no mundo dos peixes. Deve lutar com um peixe nadando, rodopiando e fugindo, tentando assustá-lo.

- E se não o conseguir assustar?

- Tem uma faca. Tem de tentar golpeá-lo na barriga. Não há outra maneira.

Era sempre a mesma lição, conquistar o medo pela compreensão. Conquistar o perigo pela coragem e senso comum. No mundo subaquático um homem não tem quaisquer outras armas.

Por vezes, o próprio Johnny descia comigo. Eu via-o, nadando a cerca de cento e cinquenta metros, usando apenas uma máscara e uns calções remendados, e um cinto com uma faca comprida numa bainha de cabedal. Eu ficava de costas a observá-lo. Via o seu corpo escuro dar uma reviravolta como um canivete, e então endurecer num longo mergulho cortante que o levava dezasseis ou dezoito metros ao fundo, em alguns segundos. Então, via como a pressão da água comprimia a sua barriga e os seus pulmões, e a sua caixa toráxica até eu pensar que os ossos deviam estalar sob a enorme tensão, mas ainda nadava comigo um pouco e sorria por detrás dos seus óculos, e erguia a mão num gesto cómico antes de se lançar para cima na direcção do sol.

Estava orgulhoso da minha recém-descoberta habilidade, mas o Johnny era bem melhor que eu. Podia respirar. Eu levava ar em garrafas nas minhas costas para me manter confortável durante uma hora ou mais, mas Johnny não tinha nada a não ser dois pulmões cheios, a sua própria força, habilidade e serena coragem. Então, quando as lições terminavam, remávamos de volta à praia, fazendo um pequeno balanço dos meus progressos. E quando as sombras se alongavam, nós sentávamo-nos junto à fogueira e comíamos a refeição que Johnny tinha cozinhado, enquanto Pat Mitchell repousava no colchão e juntava a sua voz baixa e sábia ao calmo fluxo da nossa conversa.

Uma noite, no crepúsculo quente, ela deu voz a um pensamento que me tinha perturbado por longo tempo.

- Acerca do seu navio do tesouro, Renn...

- Que é que tem, Pat?

- Tenho pensado muito nisso nestes últimos dias. Naufragou no exterior do recife, não foi?

Eu assenti.

- Penso que sim. Penso que deve ter sido assim. Quando estava fora da ilha costumava acreditar que houvesse uma possibilidade que tivesse sido atirado contra o próprio recife e se tivesse partido. Agora que cá estou, não tenho tanta certeza.

Então Johnny Akimoto falou.

- Penso que foi no exterior, p'trão Ren. Tenho a certeza de que foi no exterior.

- Que o faz ter tanta certeza, Johnny? - perguntou Pat.

- Eu digo-lhe, menina Pat. Este espanhol é um navio maior que o meu Wahine, não é?

- Muito maior, Johnny - disse eu. - Duzentas toneladas... trezentas, talvez.

- Pois... Agora olhe para o Wahine. Ele é um barco pequeno e, no entanto, para navegar precisa de um metro e meio de água. É preciso um grande mar para levantar um barco daqueles e atirá-lo para o meio do recife. É mais provável que o seu espanhol tenha navegado direito ao recife exterior, batido aí, talvez, até que a água e o vento o içaram e ele afundou no recife.

- Está tudo bem, Johnny - disse eu. - Mas como explica as moedas na lagoa nas rochas?

- Era aí que eu queria chegar, Renn. - A voz de Pat estava ansiosa e cheia de convicção. - Não foi o navio. Foram os homens.

- Os homens?

- Sim. Pense no que acontece num naufrágio. Estão fora de controlo em águas desconhecidas. Sabem que há terra mas não têm qualquer ideia se é habitada ou não. É o instinto natural dos homens em perigo agarrarem-se a qualquer coisa que possuam. O navio bate. Sabem que vai afundar. Os barcos são inúteis no recife. Eles saltam e tentam nadar para a ilha. Que levaria um homem com ele quando saltasse?

A voz de Johnny Akimoto saiu da escuridão.

- Posso dizer-lhe, menina Pat. A sua faca e a sua bolsa de dinheiro.

E aí estava. Uma hipótese simples, certamente. Um raciocínio lógico que aumentou o meu respeito por esta pequena rapariga trigueira com o queixo orgulhoso e os olhos escuros e brilhantes. Mas haviam outras coisas que queria saber.

- Se foi assim que aconteceu, alguns deles devem ter chegado a terra. Estive por toda a ilha e nunca vi quaisquer traços deles.

- Não, p'trão Ren - disse Johnny. - Se o navio se partiu numa noite de tempestade, nenhum deles sobreviveu. As ondas tê-los-iam enrolado sobre o recife e partido aos bocados. Depois disso, haveria o sangue e os tubarões. Está a ver?

- Sim, Johnny. Estou a ver. Também vejo outra coisa. Se a sua teoria e da Pat estiver correcta, então, temos meia hipótese de encontrar o Dona Lúcia no banco exterior.

- Isso se ele não se partiu, mas afundou imediatamente.

- Essa é a outra metade.

De momento nada mais foi dito. Era uma teoria a trabalhar. Teríamos de a testar. E para o fazer, Johnny Akimoto e eu teríamos de mergulhar centenas de vezes no exterior do recife, a vinte metros de profundidade, talvez mais ainda, porque o rochedo era estreito em alguns lugares e o Dona Lúcia podia ter deslizado, e rolado para fora da borda escorregadia, para as profundezas do oceano. E se assim fosse, teria de descer sozinho, porque o limite de Johnny em mergulho era vinte metros acima do meu.

Johnny Akimoto levantou-se e começou a empilhar mais sarça na fogueira. Eu fui à tenda e trouxe um cobertor para os ombros de Pat. Quando nos sentámos novamente, ela fez um pequeno anúncio.

- Eu caminhei hoje.

- O quê?

- Caminhei. Foi doloroso ao princípio, mas depois de ter coxeado durante algum tempo não foi mau de todo.

A voz profunda de Johnny repreendeu-a.

- Não deveria ter feito isso, menina Pat. Não se pode dar ao luxo de correr riscos.

- Não foi realmente um risco, Johnny. O inchaço desapareceu, a maior parte dele. Se todos os dias andar um pouco, não me fará mal...

Eu percebi o velho tom na sua voz, e olhei na sua direcção; mas os seus olhos estavam na sombra e apenas vi o seu queixo levantado em desafio.

- Por isso, agora, você pode mandar-me embora quando quiser.

 

Um galho explodiu numa chuva de faíscas. Novas chamas saltaram entre a madeira. As andorinhas-do-mar, na gigante pisonia, chilreavam estridentemente e então fez-se silêncio. Ouviu-se o barulho distante da rebentação, o calmo sussurro do vento, o estalar de ramos e o pequeno rostilhar de folhas e ervas da praia.

Entre as três pessoas à volta da fogueira houve um grande silêncio. Então, Pat Mitchell falou novamente. A sua voz estava calma e controlada.

- Leva-me de volta, Johnny?

A voz de Johnny respondeu-lhe das sombras.

- Isso é o p'trão Ren que decide, menina Pat. Eu trabalho para ele. Esta ilha é dele.

E aí estava elegantemente depositada no meu colo. Uma decisão que eu tinha de tomar numa altura em que não desejava, nem tinha necessidade de tomar. Abrupta e irracionalmente, estava zangado. Perguntei bruscamente;

- Quer voltar?

- Não.

Levantei-me. Atirei o meu cigarro para longe irritadamente. Ouvi as palavras caírem e não reconheci a minha própria voz.

- Então se pode andar, c'um raio, também pode trabalhar. Pode cozinhar as refeições e manter o acampamento limpo. Pode marcar o recife onde eu o quero marcado. Pode ficar no barco enquanto o Johnny e eu descemos juntos. E pelo amor de Deus, todo-poderoso, fique de boca fechada e não se meta no nosso caminho.

Com um tal discurso deixei-os e desci à praia com a embaraçosa convicção de ter feito figura de parvo.

A Lua estava a levantar-se, um grande disco frio num céu púrpura. A sua sombra repousava sobre a água numa larga lâmina de prata ondulada.

O Wahine repousava no meio dela, ancorado, com mastros nus, como um navio fantasma.

Ao longe, na orla do recife, podia ver a espuma branca da zona de rebentação. Podia ver a água agitada com o canal cortado pelo coral. Eu sabia, quase exactamente, a posição das lagoas de rocha onde Pat Mitchell tinha encontrado a sua moeda, e onde Jeanette e eu encontráramos a nossa.

Jeanette... Apercebi-me, chocado, que não pensava nela há muito tempo. Quando tentei lembrar-me do seu rosto, não consegui. Havia um rosto novo ali, gravado nos blocos de notas da memória, um pequeno, trigueiro, lindo rosto cigano, coroado com cabelo negro. Eu sabia que acabara de cometer uma loucura singular. Eu sabia que não conseguiria recordar. Olhei outra vez na direcção da água negra para lá do recife. Disse a mim mesmo que o tempo de preparação acabara. Amanhã começaríamos a trabalhar.

Amanhã, Johnny e eu marcaríamos uma linha na orla exterior do recife, iríamos procurar, passo a passo, no fundo do mar, um navio que tinha morrido havia mais de dois séculos. E se não o encontrássemos teria de concentrar a minha fraca coragem e saltar para o azul oceânico das profundezas mais distantes.

Eu desceria para um continente de gigantes, entre as mantas que voam como grandes morcegos através do azul crepuscular, entre os tubarões assassinos e as garoupas gigantes. Eu desceria quase à loucura, onde os detritos da vida dos níveis superiores se escoavam para alimentar as outras vidas, sem nome, primitivas, no lodo do fundo do oceano.

Eu estava subitamente com frio e com medo.

Os passos de Johnny Akimoto na areia fizeram-me assustar como um animal.

- A menina Pat diz para lhe agradecer, p'trão Ren.

- Sou um louco, Johnny... um raio de um louco!

- Não, p'trão Ren - disse Johnny, calmamente -, nenhum homem é um louco quando faz o que o seu coração lhe diz para fazer.

- Não é uma questão do meu coração, Johnny. É uma questão de... de tempo... e conveniência. Começamos a trabalhar amanhã.

- Sim, p'trão Ren.

Levantei o braço e apontei, desenhando um arco amplo sobre o sector do recife onde as moedas tinham sido encontradas.

- Vai ser ali, Johnny. Trinta, quarenta metros para a direita do canal e daí para a cabeça-negra.

- Isso é muita água, p'trão Ren:

- É por isso que começamos a trabalhar amanhã.

- A menina Pat diz para usar o barco dela, p'trão Ren. É maior que o nosso bote e mais fácil de manobrar na água exterior.

- Ela é esperta, não é, Johnny? - disse eu, com amarga admiração.

- Não, p'trão Ren, ela não é esperta. Ela quer mostrar-nos que está grata por a deixar ficar.

Eu encolhi os ombros.

- Talvez, mas sabe o que quer, não sabe?

- Sim, p'trão Ren. Ela sabe o que quer.

- E que é que ela quer, Johnny?

- Por que não lhe pergunta o p'trão? Boa noite, p'trão Ren.

Ele lançou-me um amplo sorriso e deixou-me.

Eu subi lentamente a praia na direcção da tenda grande. Escovei os dentes e lavei o rosto no balde de água. Banhei as brasas quentes e observei o fogo morrer em pequenas nuvens de cinzas fumarentas e vapor assobiante. Afrouxei um pouco as espias por causa da humidade da noite. Depois tirei a minha camisa e os meus sapatos e entrei na tenda.

Deitei-me na cama, puxei o lençol sobre mim, acendi um cigarro e recostei-me, observando o brilho hipnótico da escuridão.

Do outro lado da tenda veio uma voz baixa e incerta.

- Renn?

- Sim?

- Obrigada.

- Não há necessidade de me agradecer. Fiz o que queria fazer.

- Obrigada também por isso.

Eu disse numa voz monótona:

- Quer um cigarro?

- Sim, por favor, Renn.

Atirei o lençol para trás, atravessei a tenda e dei-lhe um cigarro. Depois acendi-lho. Na breve chama do fósforo o seu rosto parecia um antigo camafeu, intemporalmente lindo. Fiquei a olhar para ela enquanto a chama se extinguia e chamuscava os meus dedos. Então, eu deitei-o para o chão e atirei-lhe areia para cima com o pé. Disse bruscamente:

- Amanhã é melhor voltar para a sua tenda.

- Sim, Renn.

- Boa noite.

- Boa noite, Renn.

Voltei para a cama. Coloquei um cobertor por cima, porque estava com frio. Não dormi durante muito, muito tempo.

De manhã, ao pequeno-almoço, fizemos os nossos planos. A maré estava cheia, por isso a nossa procura nas lagoas das rochas, por mais relíquias do antigo naufrágio, teria de esperar até mais tarde. Havia uma calma monótona, por isso conseguiríamos manobrar o barco perto do recife e movermo-nos gradualmente para fora dos baixios. Os meus exercícios de treino já tinham esgotado um terço das nossas garrafas de ar. Teríamos de conservar o resto, não apenas para a procura mas para as operações de salvamento se encontrássemos o Dona Lúcia. Isto preocupava-me. O trabalho subaquático é demorado. Tínhamos uma grande área a cobrir, e se fosse preciso descer a águas profundas, levaríamos mais tempo. Então, Pat Mitchell fez uma sugestão.

Aumentaríamos o peso do cabo da âncora do barco de trabalho com barras de chumbo do lastro do Wahine. Prendê-la-íamos a dois metros de atingir o fundo. Eu desceria e agarrar-me-ia a ele, com o motor a meia velocidade. Eles arrastar-me-iam em linhas contínuas ao longo da área em estudo. Depois de descançar calmamente algumas horas, poderíamos fazer a nossa primeira investigação das águas rasas. Uma linha de pesca atada ao meu cinto estaria segura na extremidade superior por Johnny Akimoto, e se as linhas se emaranhassem ou se quisesse parar para examinar uma determinada área, ou se houvesse uma ameaça de perigo, eu poderia puxar a linha e sinalizar. Era simples, poupava tempo e era económico. Pat Mitchell ficou infantilmente grata quando nós concordámos com ela.

Deixando Pat a cambalear por ali, a limpar os pratos e a arrumar o acampamento, Johnny e eu levámos o barco de trabalho até ao Wahine. Johnny enfiou as barras de chumbo num saco de pesadas redes de pesca e atou-o no topo com uma corda resistente. Tirámos novas garrafas de ar dos caixotes - três conjuntos - o suficiente para quatro horas de trabalho. Com um pouco mais para segurança. Depois o Johnny tirou uma das espingardas do armário da cabina e enfiou algumas balas no bolso dos seus calções.

- Só para segurança, p'trão Ren - sorriu ele.

Então tirou um longo bastão de madeira polida com um arpão rendilhado no topo.

- Para que é isso, Johnny?

- Pesca com arpão.

- Para mim?

Os seus dentes mostraram-se num sorriso brilhante.

- Para mim, p'trão Ren. No caso de se meter em sarilhos e eu tenha de descer atrás de si.

Era uma dura advertência que estávamos comprometidos, não num desporto de férias, mas numa perigosa empresa, com riqueza ou morte no seu fim.

Carregámos o equipamento no barco de trabalho e Johnny, meticulosamente como sempre, oleou o motor, limpou-o, preparou-o e encheu o pequeno tanque com gasolina. Então, regressámos à praia.

Pat Mitchell estava à nossa espera. Tinha feito o almoço e tinha-o empacotado numa caixa de madeira com um bule de chá frio. O meu equipamento e as barbatanas estava pronto na areia. Ela sorriu alegremente quando eu reconheci a sua antecipação.

O desejo agitou-me quando a vi ali de pé - pequena, trigueira e perfeita, arrapazada numa camisa axadrezada, aberta no pescoço, e calções de algodão, um boné de lona baloiçava comicamente sobre a sua fronte.

Carregámos o barco, empurrámo-lo, ligámos o motor e avançámos pela água cristalina até à entrada do canal. Então, reparei em duas coisas que me deviam ter escapado quando eu e o Johnny carregávamos o equipamento. Haviam bóias de vidro, revestidas com rede de pesca, cada uma com um pequeno peso de chumbo pendurado no lado inferior.

- Bóias de marcação - disse Johnny. - Utilizamo-las para as covas de lagosta. Agora, usamo-las para marcar onde começamos e onde acabamos. Cruzamos entre elas, trabalhando cada vez mais longe. Quando tivermos acabado, recolhemo-las outra vez.

Navegámos calmamente pelo canal e cruzámos ao longo do recife, deixando cair as marcas, uma em cada extremidade da área de exploração. Então, parámos o motor e içámos o cabo da âncora com o seu saco de lastro.

Agora, era altura de partir. O meu estômago estava com cãibras provocadas pelo medo súbito. Suor apareceu sobre o meu lábio superior. Limpei-o com as costas da mão. Johnny Akimoto lançou-me um olhar rápido, mas não disse nada. Ele e Pat ajudaram-me a colocar o equipamento de mergulho e estava agudamente consciente das mãos dela, como seda contra a minha pele. Alcancei o bule e tomei grandes goles de chá frio. As cãibras no meu estômago acalmaram.

- Dois puxões na linha, Johnny, e eu estou pronto para partir. Três, se quiser parar. Quatro e você salta borda fora rápido, estou com problemas. Entendido?

- Tudo bem, p'trão Ren - disse Johnny, mostrando-me um polegar para cima, sinal de boa sorte.

- Boa caçada, Renn - disse Pat Mitchell, e inclinou-se para a frente, beijando-me em cheio nos lábios.

Deslizei a máscara sobre os olhos e narinas, testei-a e coloquei-a confortavelmente. Cerrei os dentes à volta da extremidade do bocal e saltei borda fora.

O peso do cinto e do equipamento fez-me descer uns quantos metros, até que eu podia ver o fundo plano do barco de trabalho, e as hastes da pequena hélice, e por debaixo deles, estendendo-se para a escuridão, o rasto peludo do cabo da âncora.

Dobrei-me e desci num mergulho, seguindo o ângulo do cabo. Senti a dor familiar nas cavidades nasais e o alívio no quando engoli, e as trompas de Eustáquio se desimpediram. Um cardume de peixes arlequim fugiu para longe do meu trajecto, com os seus corpos tipo tubo brilhante, azuis e dourados, as suas caras feias sorrindo como um palhaço de circo. O recife ficava à minha esquerda, a cerca de noventa metros. As suas cores estavam suavizadas pela distância subaquática, e as algas dançantes, e os ramos de coral e as cavernas sombrias davam-lhe um aspecto de uma floresta num flanco de uma montanha. Uma pequena raia deslizou por baixo do meu peito. A longa cauda farpada era afiada como uma seta, e ela deslocava-se com pequenos movimentos ondulantes das suas asas.

Nas sombras do recife vi o incessante ir e vir de outros peixes, pequenos e grandes, e na distância azul à minha direita vi um cardume de cavalinhas passeando preguiçosamente, salpicadas pelos raios de sol filtrados através da água límpida. Então, atingi o fundo.

Havia areia por baixo dos meus pés - areia e pequenos nódulos e pequenos pilares de coral - mas não os conseguia ver.

Caminhava através de algas dançantes, verdes e vermelhas, e amarelas e castanho-escuras. Algumas delas roçaram-me com o toque suave da seda molhada. Outras irritaram a minha pele como mãos rudes e calejadas.

A rede do lastro, no fim do cabo da âncora, estava suspensa. Distante do fundo pouco mais de um metro. Olhei para cima e vi a forma do barco, uma sombra pontiaguda contra a superfície.

Tinha agarrado o cabo da âncora e estava quase a fazer sinal a Johnny para ligar o motor, quando vi o tubarão.

Não estava a mais de seis metros, um grande tubarão azul, com o dobro do tamanho de um homem. Podia ver o peixe rémora agarrado no lado inferior da sua barriga e nas margens superiores das suas barbatanas dorsais. À frente do seu nariz três peixes-pilotos listrados estavam imóveis como o seu mestre.

Ele estava a observar-me. A sua grande barbatana da cauda oscilava mas ele não se mexia. Eu expirei uma corrente de bolhas mas ele recusou-se a se deixar assustar por esses truques infantis. Agarrei-me ao cabo e saltei e acenei com os meus braços, fazendo palhaçadas para ele.

Ainda assim, ele estava ali. Saltei na sua direcção. Ele foi-se embora, depois rodopiou na minha direcção com um longo movimento preguiçoso, que o trouxe um passo ou dois mais perto.

Segurei mais firmemente o cabo da âncora e tentei racionalizar a minha situação todo o tempo, mantendo um olhar cauteloso, já que, se atacasse, viria com a velocidade de um comboio expresso. Tinha duas hipóteses.

Podia dar quatro puxões no fio e Johnny Akimoto viria disparado com a sua faca e o longo arpão. Então, o tubarão poderia atacá-lo também. E se ele o fizesse haveria sangue na água e outros tubarões poderiam aparecer, alimentando-se como canibais da carne do seu semelhante ferido. Então, mesmo que eu escapasse, não se poderia voltar a trabalhar o resto do dia. Isto obviamente era um último recurso. Tentei a segunda alternativa.

Dei dois puxões na linha e segundos mais tarde ouvi um súbito ruído, ampliado pela água, à medida que o motor arrancou e a hélice rodopiou.

Isso foi o fim do Johnny Shark. Ele deu meia volta com a sua grande barbatana da cauda e fugiu para as sombras tão rapidamente, que até os peixe-piloto ficaram surpreendidos.

Senti o cabo da âncora mexer e no minuto seguinte estava a ser arrastado atrás dele, deitado sobre a barriga, tão confortavelmente como numa cama de penas, enquanto perscrutava a escuridão à minha frente e os penhascos de coral à esquerda, e os raios de sol nas águas profundas à direita.

O fundo coberto de algas, por debaixo de mim, erguia-se e caía como uma paisagem campestre. Existiam pequenas montanhas redondas e pequenas depressões. Haviam pequenas escarpas feitas de coral em crescimento, mas não havia nada que indicasse a presença de um naufrágio. Muitas coisas podem acontecer a um navio afundado em águas de coral. Se se afundar num recife submerso os corais irão devorá-lo, crescendo sobre ele como a salva cresce sobre os templos perdidos dos incas. Se cair num fundo arenoso, a areia irá cobri-lo, talvez, mas ainda se conseguem ver os mausoléus das antigas sepulturas. Pode ser que os truques da maré e da corrente o deixem completamente exposto, ou parte, enquanto o metal esburacado e comido pela acção galvânica e pelas larvas do mar perfurem a sua madeira, e as algas o cubram com ramos e plumas, e os peixes nadem através dos buracos vazios das suas feridas. Mas sempre, até ao final dos tempos, haverá um sinal, uma marca, uma cicatriz no fundo do mar.

Eu procurava esse sinal agora.

O cabo afrouxou por um momento, depois puxou-me, descrevendo um arco amplo. O barco tinha alcançado a primeira bóia de marcação e dirigia-se para o lado do mar, para a nossa segunda travessia da área de exploração. Depois de percorrer cerca de vinte e sete metros, virámos outra vez e seguimos para trás na direcção de onde viéramos. Olhei para baixo, para o prado marítimo por baixo de mim, e vi com curiosa excitação que caía rapidamente cerca de três metros para a esquerda.

O local a inspeccionar era mais estreito do que tínhamos pensado, e se o Dona Lúcia estava aqui, tínhamos de encontrá-lo em breve ou nunca. Sem aviso, uma sombra negra bloqueou o fluxo de luz solar vindo da superfície. Olhei para cima surpreendido. Uma enorme manta batia as asas preguiçosamente sobre a minha cabeça. Observei fascinado enquanto todas as suas toneladas de peso estavam suspensas sobre mim, e depois seguiu o seu caminho com o mesmo movimento calmo que um pássaro usa num voo. Observei-a a partir, deitando-me de costas contra o trajecto do barco. Durante cerca de dez segundos segui-a, depois rodopiei e perscrutei a escuridão à minha frente.

Então, com o choque assombroso de uma monstruosa revelação, eu vi-o dezoito metros à minha frente.

Uma grande massa grosseira erguia-se do fundo do mar para a escuridão subaquática. Algas dançantes cobriam-no. Areia e flores de coral circundavam-no como degraus de um altar. Cardumes de peixes, pequenos e grandes, entravam e saíam das cavidades formadas pelas plantas marinhas. Um lado dele era um ombro redondo, o outro uma ladeira Íngreme suavizada pelos contornos oscilantes das algas. Ao fundo da inclinação, um pequeno pilar troncudo era visível, guarnecido com o crescimento das algas. A medida que a linha de reboque me levou mais perto, sabia que não tinha cometido qualquer erro. O ombro arredondado era a popa alta de um navio espanhol. A ladeira era o seu convés inclinado. O pilar era o seu mastro destruído.

Eu tinha encontrado o Dona Lúcia.

 

Agarrei a linha de pesca com a mão que tinha livre e puxei-a - uma, duas e outra vez. Ouvi o motor parar e, olhando para cima, vi as últimas lufadas da hélice. O curso do barco de trabalho transportou-me para a frente e sobre o convés inclinado do Dona Lúcia. Larguei a linha e, expirando, mergulhei.

Aterrei, gentilmente como uma folha, entre as viscosas algas. Mas quando procurei onde me segurar, a vegetação coralínea e as conchas cortaram-me as palmas das mãos. Tirei a faca do cinto e, trabalhando com uma espécie de energia frenética, raspei uma pequena área de algas, de coral e cachos de moluscos para revelar a madeira esponjosa do convés.

Um alvoroço de peixes assustados passou por mim, ignorado, enquanto tentava penetrar ao longo da borda da inclinação. Parei para raspar dois séculos de vegetação da madeira partida do corrimão. A meio caminho do topo da inclinação estava um buraco quadrado marginado por algas castanhas. Olhei para o interior, mas recuei com um receio súbito da escuridão, e rasguei a pele das minhas mãos na crosta de coral da borda. Não tinha contado encontrar o nosso navio tão rapidamente. Tinha-me esquecido de trazer a lanterna. Mas agora que sabíamos onde ele estava, haveria muito tempo para ver tudo o que ele nos tinha para mostrar.

No topo da inclinação ficava uma plataforma oblíqua alta, e sobre ela outra, menor e mais estreita. No cimo estava uma pequena estrutura que provavelmente se mostraria como o ornamento final do alto tombadilho de popa espanhol.

Foi um momento triunfante. Mas eu precisava que alguém partilhasse o triunfo comigo. Puxei quatro vezes a linha e, antes de contar cinco segundos, Johnny Akimoto fendia a água como um anjo vingador, com o arpão na sua mão.

Dancei para ele no antigo convés. Apontei e acenei com as mãos gestos apalhaçados, murmurando impotentemente contra a mordaça que era o bocal.

Quando ele viu a razão da minha loucura, Johnny bateu as mãos por cima da sua cabeça e abriu os lábios num sorriso. Depois nadou para junto de mim, bateu-me no ombro e vi os seus olhos abertos de espanto por detrás das órbitas. Depois ele subiu, fazendo-me sinal para o seguir.

Eu subi mais lentamente, por fases, lembrando, mesmo a tempo, as lições que tinha tido, sabendo que, mesmo um navio do tesouro é pouco pagamento para as agonias incapacitantes das convulsões.

Pat e Johnny içaram-me para bordo e no minuto seguinte estávamos a gritar e dando pancadinhas nas costas uns dos outros e rindo como idiotas, e Pat estava a beijar-me e eu estava a beijá-la, com o barco a baloiçar perigosamente por baixo de nós.

Foi Johnny que nos chamou de volta à razão.

- Antes que nos afastemos, devíamos fazer uma marcação, para que encontremos este local facilmente outra vez.

- Está muito certo, Johnny. Há muito trabalho a fazer agora, sem ter de perscrutar todo o recife sempre que queremos descer.

Fizemos uma triangulação simples, alinhando um dos vértices com um pandano alto, e o outro com uma rocha saliente que Pat chamou Cabeça de Cabra. Testámos o nosso método, navegando à volta, descrevendo uma ampla curva e depois tentando colocar-mo-nos no local do mergulho. Então, mais para monumento do que qualquer tipo de marcação fiável, içámos uma das bóias de vidro e depositámo-la no local de repouso do Dona Lúcia.

Eu queria ir outra vez, antes do almoço, mas Johnny Akimoto abanou a cabeça.

- Não, p'trão Ren. Hoje mais, não.

Protestei vigorosamente.

- Para o diabo com isso, Johnny! Ainda temos toda a tarde.

- Johnny tem razão, sabe, Renn - disse Pat Mitchell, calmamente. - Fez em meio dia o que estava realmente preparado para gastar dias e semanas a fazer. Além disso, que mais pode fazer hoje lá em baixo?

- Quero dar uma espreitadela ao porão.

- Não tem luz, p'trão Ren - disse Johnny suavemente. - Além disso, posso dizer-lhe o que está naquele porão agora.

- Arcas do tesouro, Johnny? - sorri para ele.

- Não - disse Johnny lentamente -, nenhuma arca do tesouro.

- Então o quê?

- Água, p'trão Ren. Água, peixes e areia... toneladas e toneladas de areia.

O choque quedou-me silencioso. O meu triunfo estava destruído, como uma bolha picada.

- É verdade, Renn. - Pat Mitchell colocou uma mão solidária no meu joelho. - É isso que acontece com todos os naufrágios, não é? A areia amontoa-se, à volta e dentro deles. Esperava isso, não é?

Eu abanei a cabeça taciturnamente.

- Devia, mas não esperava. Estava tão determinado em encontrar o amaldiçoado barco que não pensei no que aconteceria quando o encontrasse. Bem... que fazemos agora?

- Almoçamos - disse Pat, prontamente.

Da sua caixa de madeira ela tirou grossas sandes de carne e damper (1), bolachas polvilhadas com manteiga e queijo, e quatro tabletes de chocolate de leite. Ela deitou chá do bule nas canecas de esmalte e, enquanto comíamos, baloiçando na rebentação, falámos.

 

1 Damper, no original. Bolo sem fermento cozido nas brasas. (N. da T.)

 

- Ptrão Ren - disse Johnny, deliberadamente -, hoje encontrámos o nosso navio. Essa é a primeira coisa e a maior. O que vimos lá em baixo, você e eu, mostra-nos que o nariz dele está enterrado no banco de areia. Algo menos que metade dele está visível. Pergunto-lhe isto. Sabe destas coisas. Ele transportava ouro. Onde o transportaria?

- O meu palpite, Johnny, é a popa, na cabina do capitão, debaixo do tombadilho de popa. Quando regressarmos a terra faço-lhe um desenho... mostro-lhe como era um navio deste tipo.

- Nesse caso, então - disse Johnny -, a nossa primeira hipótese é que o tesouro ainda esteja na popa do navio, debaixo das primeiras camadas de areia.

- Exactamente.

- Se estiver em qualquer outro lugar, nunca poderemos alcançá-lo, excepto talvez, com um navio de salvamento, que poderia bombear a areia. Mesmo assim - ele encolheu os ombros e estendeu a mão - ...estas coisas nem sempre são bem sucedidas. Sabe disso.

Pat Mitchell tinha estado a ouvir cuidadosamente. Os seus inteligentes olhos negros estavam alerta e inquiridores.

- Tem alguma coisa em mente, Johnny. Que é?

- É isto, menina Pat - disse Johnny. - Aqui o p'trão Ren e eu próprio sabemos pouco sobre estas coisas. Eu sou inútil porque sou apenas um mergulhador. Aprendi a trabalhar nu nos viveiros de marisco, mas não consigo ficar lá em baixo o tempo suficiente para ser de algum proveito. Aqui o p'trão Ren, aprendeu a mergulhar e explorar. Sei pouco mais que isso.

Era tudo mais que verdade. Eu não tinha resposta para a lógica implacável do ilhéu.

Pat Mitchell interrogou-o outra vez.

- Que é que sugere, Johnny?

- Aqui o p'trão Ren tem um amigo... o homem que lhe fez estas coisas.

Pat olhou para mim. Eu assenti.

- É verdade... Nino Ferrari. Ele era um homem-rã da Marinha italiana durante a guerra.

- Então, vê - Johnny continuou, ansiosamente, com a sua explicação. - Este homem é um profissional. Percebe de salvamentos. Conhece as ferramentas de que precisamos e como utilizá-las. Eu digo que precisamos dele agora.

Outra vez o Johnny. Johnny o homem perdido, o homem estrangeiro, com um cérebro de primeira, funcionando por detrás da sua fronte negra e brilhante.

Eu sorri-lhe e bati-lhe no ombro.

- Muito bem, Johnny, é isso mesmo. Vamos fazer um piquenique. Leva-nos até Bowen, amanhã de manhã.

Telefono a Nino Ferrari em Sidney, e digo-lhe para vir para cá o mais rápido que puder, com todo o equipamento a que ele conseguir deitar a mão.

Enquanto lá estivermos, enviamos as garrafas de ar vazias para Brisbane, para serem recarregadas. Que é que diz, capitão?

O rosto negro de Johnny iluminou-se.

- Eu digo que sim, p'trão Ren. Levamos a menina Pat?

- Levamos a menina Pat.

- Óptimo. Então, eu mostro-lhe o meu Wahine e como ele navega, hem?

Dali em diante foi uma refeição descontraída. E quando terminámos, atirámos os restos borda fora para alimentar os peixes e lavámos as nossas canecas na água e armazenámos o nosso equipamento e içámos o cabo do lastro.

Então vimos o avião.

Era um antigo Drangon Rapide, como os políticos utilizam nos meios rurais, e os criadores de gado do interior fretam, quando as estradas estão inundadas na estação das chuvas. Veio do ocidente, da direcção de Bowen. Voava baixo e podíamos ouvir o seu matraquear como o de um antigo cortador de palha. À medida que se aproximava da ilha, o piloto inclinou lateralmente e fez uma ampla curva, à volta do flanco do penhasco, e depois de volta na nossa direcção ao longo da orla do recife. Ele estava a planar e vimos o seu rosto, e o rosto do seu único passageiro, indistintos por detrás da janela da cabina. Então, passou por nós, inclinando lateralmente outra vez, para outra volta sobre a ilha. Desta vez ele sobrevoou a praia e voltou para outra espreitadela ao recife e a nós mesmos. Depois disso, ele guinou para longe e rumou de volta ao continente.

Olhámos uns para os outros.

- Aquele - disse Pat com um sorriso -, devia ser um turista com dinheiro.

- Aquele - disse eu taciturnamente -...podia ser Manny Mannix.

A boca de Johnny estava fechada numa linha apertada. Não disse nada.

- Quem é Manny Mannix, Renn?

- Digo-lhe depois - disse eu rapidamente. - Vá lá, Johnny, vamos para casa.

Johnny girou a roda de leme, o motor gaguejou, começando a trabalhar. Demos a volta e rumámos a casa, através da água preguiçosa.

Nessa noite, pela primeira vez em anos, fiquei de mão dada ao luar com uma rapariga. Sentámo-nos numa pequena cavidade coberta de erva, protegidos do vento, e encostámos as nossas costas contra uma ladeira de turfa abundante. À nossa volta, as raízes emaranhadas do pandano faziam uma gelosia para a privacidade. Muito acima de nós as suas largas folhas laminadas faziam um tinido murmurado quando o tempo as movia. Sobre nós uma flor branca de gengibre espalhava o seu perfume forte, e um conjunto de orquídeas selvagens pendia de uma plataforma rochosa. O mar era uma voz sussurrante e um fino laço de prata para lá da extremidade do nosso retiro.

Estávamos constrangidos de início. Falámos banalmente para esconder os nossos pensamentos e contámos algumas piadas, e rimos como estranhos que se tivessem conhecido numa festa. Então, à medida que a noite lânguida nos relaxava e as vozes do mar cantavam, fomo-nos aproximando um do outro e falámos mais calmamente de coisas que repousavam perto do coração. Contei-lhe do meu breve, lindo amor por Jeanette... como tinha chegado à ilha... da razão por que a tinha deixado... de todos os anos agitados e estéreis entre a minha partida e a minha volta.

Falei-lhe das coisas que temia e das coisas que esperava. Falei-lhe do estranho e fértil mundo subaquático. Falei-lhe da minha pequena odisseia na procura do Dona Lúcia e da aventura dessa manhã com o tubarão. A sua mão apertou a minha e senti-a arrepiar-se um pouco, como se alguém tivesse caminhado sobre a sua sepultura.

Então, mudando a sua posição, ela acocorou-se à minha frente e olhou para mim honestamente.

- Renn, quero dizer-lhe uma coisa.

- O quê?

- Está mesmo interessado em dinheiro?

Parecia gelo quebradiço. Tentei “patinar” para longe.

- Não está toda a gente interessada em dinheiro?

- Toda a gente precisa de dinheiro, Renn. A maior parte das pessoas gostaria de ter mais do que tem. Mas nem toda a gente faz disso um passatempo para toda a vida.

Não podia discutir com isso. Não podia se não admirar o exame perspicaz da minha pequena dama trigueira.

- É importante para si se eu estou ou não interessado em dinheiro?

- Sim, Renn, muito. - Ela estava séria agora, quase suplicante. - Eu sei o que quer fazer. Sei o que pensa: se conseguir encontrar o tesouro vai comprar a liberdade de uma vida que odeia. Pode ser... eu duvido.

- Então?

- Eu penso que vai pôr grilhões à volta das suas mãos, e correntes à volta do seu coração.

A sua voz estava tão amarga, havia tanta dor nos seus olhos, que fiquei chocado. Puxei-a para o meu lado. Tentei animá-la.

- Então, então, querida. Que é isso? Um sermão sobre os sete pecados mortais.

Ela assomou para mim.

- Sim! Se olhar para isso dessa maneira. Olhe para isso da minha maneira, e não é de todo um sermão. É... é uma coisa que eu odeio e receio.

- O quê? Dinheiro? Aquilo que nos faz trabalhar cinquenta semanas por ano?

- Não, Renn. O dinheiro não. Mas a cobiça dele. O horrível, distorcido desejo. O medo e o ódio que vi nos seus olhos esta manhã quando olhou para cima, para aquele avião, e pensou em Manny Mannix.

A lâmina estava fora da bainha agora. Senti-a cravar dolorosamente o meu coração. Não senti prazer no sentimento. Disse abruptamente:

- Cobiça? Ódio? Medo? Que raio sabe você dessas coisas?

- Mesmo muito, Renn - disse ela simplesmente. - Vivi com elas vinte anos. O meu pai é um homem muito rico, e nunca teve um momento de felicidade na vida.

Não havia nada a dizer quanto a isso. A minha irritação morreu. Eu disse gentilmente:

- Isso é tudo?

Ela encarou-me, olhos brilhantes, o queixo levantado orgulhosamente.

- Não, Renn, não é tudo. Pela primeira vez na minha vida conheci um homem que posso respeitar e admirar... até amar, se ele me deixar. Quero que ele lute, estique a sua força por um prémio. Mas se ele o perder, gostaria de vê-lo sorrir, para que ainda pudesse ter orgulho nele. Está dito, Renn. Vamos?

- O raio é que vamos!

Tomei-a nos meus braços e apertei-a contra mim. Beijei-a e os seus lábios estavam prontos. Ela agarrou-me, e o seu corpo deu um salto, e os seus braços trigueiros eram vigorosos.

O mar estava subitamente silencioso. As estrelas estavam apagadas. E se a Lua caiu sobre a orla do caos, nós não a vimos.

Na manhã seguinte, Johnny levou-nos até Bowen no Wahine. Um vento fraco soprava de terra e Johnny guiava o Wahine, com habilidade e um orgulho inocente, nele próprio e no seu barco. Foi extremamente fácil navegar num mar calmo sob um céu limpo. Mas quando chegámos a Bowen, a cidade transpirava ao calor do meio-dia, e o pó levantava-se em pequenas nuvens ao redor dos nossos pés, enquanto caminhávamos do cais para a rua principal.

Johnny dava grandes passadas na direcção da garagem, baloiçando um par de latas de óleo, para comprar gasóleo. Pat tinha as suas compras a fazer, e deixou-me para caminhar até aos Correios, e telefonar a Nino Ferrari em Sidney.

O serviço telefónico estava melhor esta manhã, e vinte minutos depois de eu ter registado a minha chamada, estava a falar, cautelosamente, com Nino Ferrari.

- Nino, aqui é Renn Lundigan.

- Sarilhos, Renn? Tão cedo?

A voz de Nino crepitou através do cabo, mas percebi a tensão nela.

- Não, Nino. Nada de sarilhos, ainda. Isso virá mais tarde, possivelmente. Não quero falar de mais. Você faz as perguntas, eu respondo-lhe. Encontrámo-lo, Nino.

 

Manny enfiou o charuto na boca e soprou uma nuvem de fumo em cheio no meu rosto. Então, voltou a tirá-lo. Os seus lábios sorriam, mas os seus olhos frios mediram-me com o seu familiar olhar velado do pirata. Ainda estava encostado à porta da cabina telefónica vazia. Ele estava relaxado e alerta como um gato.

- Então encontrou-o, hem, comandante? - disse ele suavemente.

- Eu digo-lhe, Manny...

Ele acenou o seu cigarro.

- Poupe-me, comandante. Poupe-me. Isto é negócio. Encontrou-o. Vi-o ontem a trabalhar no exterior do recife. Estava mesmo a telefonar a um amigo para lhe trazer algum equipamento de Sidney. Confere?

- Confere, Manny - disse eu calmamente. - Confira outra coisa, também. Se tentar avançar neste negócio... eu mato-o.

- Loucura! - disse Manny Mannix. - Por que é que não abre os olhos, comandante. Podíamos fazer uma partilha?

- Não, Manny.

Manny encolheu os ombros indiferentemente e expirou outra nuvem de fumo.

- Tudo bem! Eu compro a sua parte. Dois mil. Dinheiro à vista. Mais as suas despesas até à data. É pegar ou largar. Se não, avanço e expulso-o. Então, comandante?

Pelo canto do olho, vi Johnny Akimoto galgar os passos em frente dos Correios. Ouviu-o pousar as latas de óleo com um estrondo. Acenei-lhe e ele veio colocar-se ao meu lado.

- Olhe para este homem, Johnny - disse gentilmente. - Olhe para ele e lembre-se da sua cara. Pode possivelmente encontrá-lo outra vez. O nome dele é Manny Mannix.

Havia um ódio mortal nos olhos escuros de Johnny. À

medida que ele se elevava acima de Manny Mannix baixava o olhar para ele, como se fosse um animal nocivo. Quando falou, a sua voz era como seda:

- Fique fora disto, Sr. Mannix. Fique fora disto!

Manny mexeu um pouco o seu pé e atirou o seu charuto para o passeio.

- De volta à cozinha, negrinho - disse ele calmamente, e pôs uma mão no peito de Johnny para o atirar para longe.

Johnny apanhou-lhe o pulso com uma mão e apertou-o, fazendo os olhos de Manny esbugalharem-se, a sua boca abrir-se e grandes gotas de suor apareceram nas suas bochechas pálidas. - Ainda não matei nenhum homem - disse Johnny meticulosamente -, mas penso que é muito possível que tenha de o matar, Sr. Mannix.

A sua mão relaxou e a de Manny caiu ao seu lado sem vigor. Então deixámo-lo. Johnny pegou nas suas latas de gasóleo e caminhámos rua abaixo para encontrar Pat Mitchell. Os nossos pensamentos estavam escritos nos nossos rostos e ela interrogou-nos com preocupação imediata.

- Renn! Johnny! Que aconteceu?

Contámos-lhe.

- Mas que pode ele fazer?

- Pode fazer muitas coisas, querida. Não temos direitos de água. Também não temos direitos de salvamento, porque não fizemos nenhum registo. Ele pode fazer exactamente o que ameaça fazer... avançar e expulsar-nos.

- Pela força?

- Sim.

- Mas você não está a fazer nada de errado. Não pode pedir protecção à Polícia?

- Do quê? Manny não fez nada de errado... ainda. Só faríamos figura de loucos. Mais que isso, podíamos dar por nós num enredo que pode levar anos a desenredar... As leis de salvamento e de descobertas de tesouros há séculos que dão muito dinheiro aos advogados. Percebe?

- Sim, Renn, percebo.

Havia tristeza na sua voz que me fez lembrar a nossa conversa na noite anterior. Voltei-me para Johnny.

- Alguma ideia, Johnny?

- Nenhuma, p'trão Ren. Apenas isto. O seu amigo chega esta noite com o seu equipamento. Encontramo-nos com ele. Levamo-lo de volta à ilha e começamos a trabalhar.

- E depois?

- Esperamos para ver, p'trão Ren... Esperamos para ver.

Medo e depressão repousou sobre nós como o calor repousa sobre a indolente cidade tropical. Caminhámos lentamente para o cais, desamarrámos o bote e remámos para o Wahine, sonolentamente ancorado.

Johnny estendeu um toldo sobre a escotilha da proa e nós deitámo-nos por baixo dele, bebendo cerveja gelada, comendo sandes, conversando, fumando, dormitando, à medida que a tarde se consumia na escuridão da noite. O objecto dos nossos pensamentos era sempre o mesmo - Manny Mannix.

- Não compreendo como nos encontrou tão facilmente - disse Pat.

- Muito simples, menina Pat - disse Johnny. - Ele soube em Sidney que o p'trão Ren ganhou o dinheiro suficiente para começar à sua procura. Sabe que é uma ilha. Até aqui ele não sabia onde ficava. Mas as companhias aéreas dizem-lhe quando um passageiro chamado Lundigan parte para Brisbane. O departamento de terrenos em Brisbane cobra uma taxa de dois xelins e seis penny e diz-lhe que Renn Lundigan arrendou uma ilha a tantos graus de latitude e longitude. O resto é uma questão de senso comum. Ele sabe que o p'trão Ren tem de ter um barco. Ele sabe que o barco pode ancorar num dos portos mais próximos da ilha. Vem a Bowen porque há um aeródromo e ele pode fretar um avião e começar sua investigação. Foi apenas falta de sorte que ele tenha vindo aos Correios ao mesmo tempo que o p'trão Ren fazia o seu telefonema.

- Pondo as coisas assim, é fácil, não é?

- Demasiado fácil - resmunguei. - Demasiado fácil para o raio de um especulador esperto como Manny.

- Estou a tentar pensar, p'trão Ren, no que ele fará a seguir!

- Também eu, Johnny. Existem dúzias de coisas que ele pode fazer. Mas o que ele vai fazer é outra coisa qualquer, outra vez. Manny conhece demasiadas pessoas... pode comprar demasiadas pessoas. Ele não precisa de apostar até que tenha embaralhado as cartas como quer.

- Então, só nos resta esperar - suspirou Pat.

- Esperamos - disse Johnny.

- O raio é que esperamos! - disse, asperamente. - Johnny consegue atravessar o canal à noite?

Johnny lançou-me um olhar penetrante, pensou um momento e depois assentiu.

- Sim, p'trão Ren, consigo. A Lua aparece mais tarde esta noite.

- Óptimo. Então, nós apanhamos o Nino Ferrari no aeroporto, voltamos para bordo e levantamos âncora imediatamente. Começamos a trabalhar logo de manhã. Até Manny Mannix não consegue trabalhar tão depressa.

O avião aterrou às dez e vinte. Nino Ferrari saiu - um pequeno homem compacto, animado num fato fresco e numa camisa aberta. Apanhámos a sua bagagem - uma pequena mala e três caixotes de madeira. Atirámos os caixotes para o suporte superior de um táxi antigo, que nos transportou para o cais, a uma velocidade vertiginosa sobre as estradas esburacadas e íngremes.

Pela meia-noite estávamos no mar alto, com Johnny ao leme e o resto de nós baloiçando as nossas pernas na cabina ao lado dele, enquanto discutíamos a situação.

Os olhos negros de Pat brilhavam de aprovação à explicação clara e profissional de Nino.

- Primeiro, deve perceber que não haverá qualquer milagre. Mesmo um vaso de salvamento com pesado equipamento de bombear não conseguiria tanto.

- Nós compreendemos isso, Nino.

- Óptimo. A nossa melhor hipótese é que as arcas do tesouro estejam na popa exposta do navio, suficientemente perto da superfície da areia para nós as desenterrarmos com as nossas mãos.

Isto era desapontante. Disse-o. Nino respondeu mordazmente.

- Pensou que viria para cá com uma pequena caixa de truques que fariam desaparecer cem toneladas de areia quando pressionasse um botão. Não. Isso é o sonho de um rapazinho de escola. Isto é o que eu trouxe. Garrafas de ar extras, porque temos de trabalhar longas horas, dois de cada vez, debaixo de água. Lanternas eléctricas com baterias de reserva. Minas-lapa e detonadores.

- Minas-lapa? - Os olhos de Pat esbugalharam-se.

- Isso eu já explico. Primeiro, vai dizer-me, Renn, há alguma corrente lá em baixo perto do navio?

- Sim, há. Corre na direcção do recife e perpendicularmente à posição do navio.

- Forte?

- Moderada.

- Ebbene... Agora vou dizer-lhe. O seu amigo, o Johnny aqui, vai compreender melhor que você o que tento explicar.

Johnny voltou a cabeça e reconheceu o elogio com um amplo sorriso. Iriam trabalhar bem juntos estes dois. Nino Ferrari continuou...

- Vai lembrar-se de que quando viu este navio pela primeira vez reparou que a areia estava amontoada à sua volta. Não entrou no porão porque a água estava demasiado escura. Mas quando entrar, com as lanternas, verá que a areia também está amontoada lá dentro... mas está em contínuo movimento. Compreende isso?

Eu assenti.

- Agora é assim que trabalhamos. Primeiro, exploramos a área que está coberta de areia. Se não encontrarmos nada, descemos ao porão. Cavamos lá... por todo ele...

- Com as nossas mãos?

- Com as nossas mãos. Estamos submersos, percebe. Levantamos demasiada areia, flutua à nossa volta e obscurece a nossa visão. Melhor então trabalhar calmamente.

- E se não encontrarmos nada no porão, Nino, que fazemos?

- Então - disse Nino -, utilizamos as minas. São pequenas, porque estamos a lidar com um velho navio de madeira e não queremos destruí-lo completamente. Fixamos as minas, uma de cada lado do casco, e detonamo-las com um detonador temporal. Elas farão buracos no casco lateralmente, e a corrente removerá, pelo menos, parte da areia no interior. Percebe?

Não era difícil perceber. As frases mordazes de Nino demonstravam segurança e experiência. A nossa coragem, tristemente diminuída depois do nosso encontro com Manny Mannix, cresceu novamente à nossa dimensão, mas Nino ainda não terminara.

- Quero que compreenda isto perfeitamente. Esta é a última etapa da operação. Se, depois das minas, descermos e não encontrarmos nada, nós mesmos não podemos fazer mais. Se quiser continuar, tem de pensar numa expedição de salvamento com equipamento pesado. Digo-lhe isto porque não deve ter falsas esperanças. Elas são dispendiosas e perigosas.

Disse-lhe que compreendíamos. Disse-lhe que, no que diz respeito a operações de mergulho, trabalharíamos segundo as suas ordens. Depois falei-lhe de Manny Mannix.

Os olhos escuros de Nino responderam com fogo e riu com desdém.

- Já vi isto antes. Há o cheiro de ouro e todos os abutres vêm voando como se para um cadáver. Às vezes, há mesmo cadáveres. Por isso trouxe isto.

Levou a mão ao bolso e tirou uma pequena beretta azul que brilhava sombriamente à luz das estrelas. Suspirou.

- Espero nunca ter de a usar. Vim para este país para encontrar paz. Mas onde o ouro está, nunca há paz.

Sabia que Pat estava a olhar para mim do outro lado da cabina, mas não ousei encarar os seus olhos. Passava da meia-noite e tínhamos uma corrida de três horas pela frente. Começaríamos a trabalhar de manhã cedo, pelo que teríamos de aproveitar todos os minutos que pudéssemos passar a dormir. Tirei o leme ao Johnny e enviei os três para baixo, para descansarem. Quando visse a ilha acordaria Johnny e ele faria a perigosa passagem através do recife.

Antes de ir, Pat pôs os seus braços à volta do meu pescoço e beijou-me.

- Boa noite, marinheiro.

- Boa noite, querida.

Depois fiquei sozinho. Ouvi o breve murmúrio das suas vozes à medida que os meus amigos e a minha amante se preparavam para dormir. Vi a luz da cabina extinguir-se, e apercebi-me, pela porta aberta, do pequeno brilho vermelho do cigarro de Nino. Depois, também isso se apagou, e a noite era toda minha: a maravilha do vento e das estrelas, e as velas brancas enfunadas.

Pela manhã, Nino Ferrari tomou o comando da nossa pequena companhia. Acocorou-se na areia em frente da tenda grande, o sol brilhando no seu pequeno corpo musculado. Ele deu ordens simples e bruscamente.

- Primeiro, temos de mergulhar do Wahine. O barco de trabalho é demasiado pequeno.

Olhei para Johnny no lado oposto. Ele acenou em concordância.

- Por mim tudo bem, p'trão Ren. Eu navego-o onde o p'trão quiser.

- Guardamos - continuou Nino - todas as nossas provisões a bordo, fatos de mergulho, botijas de oxigénio, lanternas... tudo. Guardamos alimentos para um dia e água a bordo, e a arca dos remédios, no caso de haver acidentes.

- Eu trato dessa parte - disse Pat.

Nino assentiu brevemente e continuou.

- Estamos a trabalhar a vinte metros. Isso não é muito mau. Trabalharemos meia hora de cada vez, depois subimos e descansamos duas horas, antes de descermos outra vez.

Isto pareceu uma dispendiosa perda de tempo. Objectei. Nino respondeu-me sem rancor.

- Se estivéssemos a trabalhar em águas mais profundas, teria dito apenas quinze minutos de trabalho e três horas de descanso.

- Mas porquê?

- Porque até aqui só tem estado a mergulhar. Não tem estado a trabalhar. Quando se trabalha debaixo de água, o esforço causa uma maior e mais rápida descarga de nitrogénio na corrente sanguínea. O perigo das convulsões é por isso maior. Deste modo, diminuímos o risco e fadiga.

- Faremos como diz, é claro. Só queria saber. Mas não poderíamos poupar tempo se nós descêssemos individualmente e trabalhássemos assim? Um homem descansando, o outro trabalhando?

Os olhos brilhantes de Nino piscaram ironicamente.

- Se você fosse um mergulhador experiente diria que sim, absolutamente. Mas não é. É melhor que trabalhemos juntos... melhor e mais seguro.

Eu sorri resignado. Depois fiz outra pergunta.

- Como medimos o tempo?

- Eu tenho um relógio - disse Nino -, um relógio que os produtores dizem trabalhar debaixo de água. Mas quando se está ocupado é fácil, e perigoso, esquecer o tempo. Por isso, aqui o Johnny vai disparar um tiro para a água como sinal. O barulho quando a bala atingir a água será muito nítido lá em baixo. Quando o ouvirmos, subimos.

- Que acontece se encontrarem alguma coisa lá em baixo? - perguntou Pat.

- Para coisas pequenas há um cesto de peixe com lastro, que Johnny atira numa linha cada vez que descermos. Para coisas grandes como - Nino sorriu amplamente - ...como uma arca do tesouro, colocamos um cabo por debaixo dela e içamo-la para bordo... Agora se não há mais perguntas, devíamos levar o equipamento para bordo e começar a trabalhar.

- Tenho uma pergunta simples - disse Pat. - Não tem nada a ver com mergulho. Onde dorme o Nino?

Foi Johnny Akimoto que respondeu a essa - algo demasiado rapidamente, pensei eu, embora não conseguisse imaginar porquê.

- Nino dorme na tenda grande com o p'trão Ren. Eu vou dormir a bordo do Wahine.

E foi assim. Uma pergunta simples, uma resposta simples, sem pensamentos negros por detrás dela. Não conseguia dizer a mim mesmo por que me preocupava!

Quarenta minutos mais tarde o Wahine estava ancorado no exterior do recife, com o Dona Lúcia cento e oitenta metros por baixo da sua quilha.

Nino Ferrari e eu sentámo-nos na cobertura da escotilha bebendo chá forte e açucarado, enquanto Johnny entrançava uma pega de corda num cesto de peixe, e Pat acocorada à maneira nativa, ao meu lado, ouvindo as últimas instruções de Nino.

- Quando entrarmos pela escotilha tem de ter muito cuidado. Fora da luz, não vai conseguir ver muita coisa. Mas lembre-se, vão haver vigas cobertas com coral e moluscos e pequenas saliências de todos os tipos. Colida com eles e pode cortar os seus tubos de respiração.

Tinha-me ocorrido o mesmo pensamento. Não era uma perspectiva feliz. Pat tremeu com excitação ao imaginar os horrores inomináveis do mundo que nunca vira. Ela voltou-se para Nino:

- E as outras coisas, Nino? Os tubarões e... e...

Nino riu.

- E os monstros que eles lhe mostram nos filmes? Há monstros nas profundezas, sim, mas eles não vivem normalmente nos porões dos navios. Existem peixes que são perigosos para os mergulhadores, como existem os que são perigosos para eles em terra. Mas a maior parte dos peixes são tão desconfiados em relação ao mergulhador, como este é em relação a eles. Quanto ao resto - ele apenas fez o sinal da cruz... - “A mão de Deus alcança até as grandes águas”.

- “Aqueles que trabalham em grandes águas, vêem as obras do Senhor e as suas maravilhas nas profundezas.”

A citação veio simples e surpreendentemente da rapariga ao meu lado.

- “Eles clamam ao Senhor na sua angústia e Ele livra-os do seu sofrimento.”

Nino completou a citação em italiano puro, então sorriu e pôs-se de pé.

- É altura de descer, meu amigo. Colocar o equipamento.

Afivelámos o nosso equipamento e fomos borda fora, equilibrando-nos numa corda cunhada. Desta vez, tinha uma larga lanterna plana revestida por borracha com um grande espelho preso no meu cinto. Nadámos à volta do cabo da âncora e seguimo-lo para a escuridão azul. Nino estava atrás de mim enquanto descíamos, e eu olhei para trás para o ver dar-me um sinal de aprovação. Então atingimos o fundo, dois homens-peixe de pé num prado baloiçante, cujas algas eram agitadas por um vento mudo. Os destroços do Dona Lúcia estavam noventa metros, mesmo à nossa frente.

Nadei para Nino e flutuei ao seu lado. Toquei-lhe no ombro e apontei ansiosamente. Ele sorriu por detrás da sua máscara e mostrou-me um polegar-para-cima. Depois vimos o cesto deslizando na nossa direcção, através da escuridão, e nós afastámo-nos.

Guiei Nino para o convés inclinado, coberto de vegetação, e mostrei-lhe o buraco negro com a sua franja de algas. Ele acendeu a lanterna na direcção da escuridão, e no feixe de luz vi o baloiçar de algas vermelhas, os braços nus de pequenos ramos de coral, e um desfile de pequenos peixes brilhantes que nadavam lentamente para longe da luz, para a escuridão circundante.

Nino desligou a lanterna e fez-me sinal para subir. No topo da inclinação, debaixo da primeira plataforma esquinada, havia um anteparo, interrompido por uma porta que não era agora mais que um estreito buraco negro marginado com algas. Nino fez a lanterna brilhar outra vez, desligou-a depois de um breve escrutínio e continuou. Se a abertura levava a um camarote ou à escada de tombadilho, não conseguíamos dizer - ainda.

O anteparo na primeira plataforma era semelhantemente interrompido. Mas a abertura desta vez levava obviamente a um camarote. Possivelmente, ao do capitão. Esta seria a nossa primeira área de exploração, depois de termos completado a investigação na popa. A próxima área de convés era estreita e circundada por extensas áreas esculpidas, e coroada por alguma espécie de remates de entalhe. Gostaria de ter raspado as algas, os crustáceos e o coral para o examinar mais atentamente, mas o nosso tempo e suprimento de ar e nossa força eram limitados. Não podíamos dispendê-los em bugigangas de antiquário.

Então, Nino assumiu o controlo. Acenando-me para o seguir, ele voltou-se e desceu para o convés do camarote, e esperou por mim à porta da estreita entrada negra.

Foi um momento estranho. Tinha subjugado, através da prática, os meus medos do mundo crepuscular debaixo de água... subjugado mas não destruído. Agora, eles galopavam de volta em tamanho grande com outros medos adicionais - medo da escuridão, medo de monstros desconhecidos que podiam ocultar-se onde a luz não brilha. O meu corpo voltou a arrepiar-se. Então, Nino sorriu por detrás da sua máscara, e passou a sua mão no meu ombro, num gesto de tranquilização. Ligou a lanterna.

Não haviam monstros. Havia apenas peixes. Peixes e algas, e água, e para lá deles uma nova escuridão que a minha própria lanterna ajudaria a dissipar. Liguei-a e segui Nino através das algas engrinaldadas para o interior do camarote.

Pelo canto do olho vi um par de grandes olhos redondos a olhar para mim, e uma boca redonda de lábios grossos que se babava continuamente. Rodopiei e apontei a luz.

Era uma grande garoupa azul. Ela meneou a cauda e nadou para as sombras. Nino voltou-se e acenou-me para ficar a seu lado. Ficámos ambos de pé, no chão arenoso irregular e apontámos as nossas lanternas para a parede de vegetação à nossa frente.

Para mim, o novato, era uma visão desoladora. Existiam projecções que poderiam ter sido vigas. Havia um recanto que poderia ter sido uma alcova de tarimba. Havia uma massa sem forma, à altura da cintura, que poderia ter sido uma mesa de camarote. Mais além, nada... nada a não ser os contornos mutáveis de algas e vegetação, e o flutuar de pequenos peixes dentro e fora das suas raízes.

Voltámos as luzes para cima. Algas suspensas roçaram os nossos rostos. Ergui a mão e senti o débil contorno de uma viga por debaixo da vegetação viscosa. Apontei a luz na sua direcção e vi uma grande incrustação que parecia vagamente um candeeiro de tecto. Golpeei-o com a minha faca. Soltou-se e caiu lentamente e sem peso no chão arenoso.

Nino fez um gesto impaciente que dizia - deixe isso - e ajoelhou-se na areia coberta por algas.

Eu fiz o mesmo. Vi-o raspar com a sua faca por entre as algas e a areia, e os tocos de coral. Ele estava a testar a profundidade das incrustações sobre a madeira. Quarenta e cinco centímetros abaixo ele atingiu a madeira, mole e empapada.

Nino levantou-se e fez um gesto de negação. Nenhuma arca do tesouro se pode esconder em quarenta e cinco centímetros de areia. Nino mudou-se então para o canto mais afastado do camarote, onde a inclinação do chão tinha provocado o empilhamento de areia em montes mais altos.

Um profissional engenhoso, o Nino. Ele sabia da sua profissão.

Ajoelhou-se outra vez e começou a raspar a areia com a faca e as mãos, sondando cuidadosamente primeiro com os dedos. Eu escolhi um local a um metro de distância dele e comecei a trabalhar da mesma maneira.

Não estava a escavar à mais de três minutos quando a minha mão bateu em algo que era inquestionavelmente madeira. Movimentei a lanterna, mas não consegui ver nada.

De repente, o entusiasmo apoderou-se de mim e comecei a escavar freneticamente, como um cão à procura de um osso. Num instante, Nino estava junto a mim, movendo o seu dedo num gesto de reprovação, mostrando-me por mímica que esta era uma maneira perigosa de trabalhar. Então, ajoelhou-se e começou a escavar comigo. A areia levantou-se em espirais e redemoinhos sobre nós. Mas, depois de um trabalho interminável, conseguimos limpar o suficiente para identificar o meu achado.

Era uma incrustação de bronze de um canto de uma velha arca do mar.

Nesse preciso momento ouvimos um barulho que parecia o partir de um ramo de árvore. Era o tiro de aviso. Altura de voltar à superfície.

Olhei para Nino. Apontei para a caixa. Gesticulei, implorando-lhe que permanecesse lá em baixo um pouco mais. Ele abanou a cabeça. Os seus olhos estavam sombrios por detrás da máscara.

- Para cima! - sinalizou.

Lentamente, de forma terrivelmente lenta, subimos gradualmente na direcção do Wahine, enquanto a areia baixava, mais uma vez, à volta da arca do Dona Lúcia.

 

Nino e eu esticámo-nos em colchões sob o toldo de lona a meia-nau. Pat serviu-nos cerveja fria e cigarros, enquanto Johnny, cantando na cozinha, preparava a refeição dos paxás - filetes de imperador vermelho, apanhado enquanto nós estávamos no fundo do mar, bolinhos feitos de carne enlatada cortada e batatas fritas, pêssegos de conserva e natas de pacote, acabadas de sair do frigorífico. Temos de comer bem, descansar bem. Era o que Nino ordenara, era o que se fazia.

E, enquanto repousávamos ali na sombra quente, embalados pelo balançar do mar, Nino leu-me a lição número dois.

- Você é um raio de um doido, Renn! Depois de tudo o que lhe disse sobre como trabalhar debaixo de água, você escarafunchou e raspou como uma criança procurando um brinquedo perdido. Trabalha-se lentamente, homem... lentamente. Guarda-se o ar e a força, e mantém-se o veneno do nitrogénio o mais baixo possível. Pense que está a fazer amor aqui com a sua miúda - piscou um olho malicioso a Pat, que corou e se retirou para a cozinha. - ... Gentilmente, gentilmente. Alcança o mesmo fim ao mesmo tempo. E tudo é mais agradável.

- Tudo bem, Nino. Um a zero a seu favor. Mas por que diabo não podíamos ter ficado lá em baixo mais um pouco. Teríamos aquela caixa limpa em dez minutos.

Nino apoiou-se no cotovelo e apontou-me um dedo acusador. Os seus olhos faiscaram. A sua raiva era teatral.

- Então! O jovem galo quer cacarejar a sua própria canção, hem? Deixe-me dizer-lhe uma coisa, espertalhão. Sabe quanto tempo nos vai levar para descobrir aquela caixa? Quinze, vinte minutos. Sabe o que aconteceria se tivéssemos lá ficado? Teríamos precisado de outros vinte minutos para subir, outra hora para descansar. E ainda assim sem caixa. Porquê? Porque não havia nenhum guincho preparado para a içar.

Quando descermos, desta vez, o gancho segue-nos; e se tivermos sorte, se tivermos sorte, repito, podemos trazer a caixa para cima a tempo.

- E se não o fizermos?

- Então, deixamo-la - replicou Nino.

- Pensa que os peixes a vão comer? Pensa que uma sereia a vai meter debaixo do braço e levá-la embora?

Ele bateu com a sua mão livre na testa num gesto de desdém e desespero, e rolou de volta à sua almofada. Pat e Johnny sorriram ao observarem da cabina o pequeno drama triunfante.

Depois, o jantar foi servido e, enquanto comíamos, Pat pôs a questão directamente a Nino Ferrari.

- Esta caixa que encontraram... Há alguma hipótese de ser uma arca de tesouro?

Nino encolheu os ombros eloquentemente.

- Quem sabe, signorina? Talvez sim... talvez não. Na minha experiência destas coisas, é, geralmente, não. É melhor não criar grandes esperanças. Pelo aspecto daquele camarote lá em baixo, diria que não iremos encontrar grande coisa. Se fôssemos escarafunchar nos detritos, podíamos encontrar coisas pequenas... uma chávena, uma faca, um prato de peltre. Mas seriam difíceis de distinguir por debaixo da vegetação, e não valeriam o esforço. - Sorriu cativantemente. - Lamento desapontá-la, signorina, mas este negócio de caça ao tesouro é uma grande desilusão. Conheci um homem que fez uma fortuna quando salvou um carregamento de chapas de plástico. Conheci outro que encontrou um navio do tesouro - um verdadeiro - e perdeu toda a sua fortuna porque não conseguia bombear o lodo tão depressa quanto o mar o conseguia espalhar.

Johnny Akimoto acenou a sua aprovação. Este pequeno genovês, de tez negra, era um homem que lhe agradava profundamente. O mar tinha-os criado e ambos eram experientes nas maneiras antigas. Então, o rosto de Johnny entristeceu-se com súbita lembrança. Hesitou um momento, e então falou:

- P'trão Ren, a menina Pat pensou que não lhes devia

dizer isto enquanto estivessem a trabalhar. Agora, penso que lhes devo dizer.

- Manda vir, Johnny.

- Enquanto estavam a trabalhar lá em baixo, o avião voltou.

- O mesmo avião?

- O mesmo avião. A mesma manobra. A volta da ilha duas, três vezes. Depois de volta a casa.

- Raios e coriscos!

Saltei do meu colchão. Nino Ferrari puxou-me para baixo outra vez.

- Se quer descer esta tarde, fica onde está. O que aconteceu de novo? Sabe que este tipo Manny vai espiar o seu trabalho. Não tem sentido estragar o trabalho porque está irritado com o espião.

Relutantemente, deitei-me outra vez. Estava a ferver de raiva. As palavras seguintes de Johnny foram o eco do meu pensamento.

- Penso que desta vez é mais sério que da última.

- Porquê, Johnny?

Era a voz de Pat, questionando, veementemente.

- Porque, menina Pat, desta vez ele vê o Wahine como o viu no barco de trabalho. Sabe que começámos a trabalhar nos destroços. Sabe que, o que quer que planeie fazer, tem de ser feito rapidamente.

Voltei-me para Nino.

- Johnny está certo, sabe? Manny não pode adiar muito mais. Temos de nos apressar.

Nino meneou uma mão eloquente.

- Podemos trabalhar mais depressa do que estamos a fazer agora? Podemos fazer mais do que planeámos fazer? Não. Então, porquê estragar a sua própria digestão e a minha? Hoje trabalhamos no camarote. Amanhã trabalhamos no porão. Continuamos a trabalhar até que este tal Manny decida aparecer.

- Claro, claro! E que fazemos quando ele aparecer?

- Penso que, se usarmos os nossos cérebros ao invés dos nossos traseiros, lhe damos a surpresa da vida dele.

Nino gargalhou, fechou os olhos e nem mais uma palavra lhe consegui arrancar até chegar o momento de descermos outra vez.

Verificámos a pressão nas nossas garrafas de ar e testámos os reguladores, e enquanto Pat nos ajudava a equipar, Johnny atava a rede de lastro no fim do longo cabo do estropo. Este desceria connosco. Transportaríamos a extremidade do cabo para o navio e atiraríamos o saco de lastro para o interior do camarote. Depois, quando deixássemos a descoberto o baú, Johnny içá-lo-ia para a superfície enquanto nós estivéssemos a fazer a descompressão. Antes de colocar a minha máscara, Pat beijou-me nos lábios e disse:

- Boa sorte, Renn. E tente não ficar muito desapontado.

- Não vou ficar. Há um tesouro à superfície, mesmo que não haja nenhum lá em baixo.

Depois segui Nino Ferrari borda fora e senti o choque da água na minha pele, quente depois de duas horas escaldantes no convés. O saco de lastro seguiu-nos, e nós transportámo-lo enquanto nadávamos sobre o agora familiar convés, e até à porta do camarote.

A escuridão não escondia qualquer horror para mim agora. Os olhos fixos dos peixes, os rápidos movimentos secretos nas sombras, estavam todos esquecidos quando me ajoelhei com Nino no chão áspero e comecei calmamente, compassadamente, a raspar a areia da arca. Nino observou-me sagazmente e mostrou a sua satisfação quando viu que aprendera a minha lição.

Tente enterrar uma lata de querosene no jardim da sua cozinha. Ficará surpreendido com o tamanho do buraco que terá de cavar. Tente livrar-se da mesma lata seis meses depois, e descobrirá que terá duplicado o trabalho que tem em mãos. Ataque a tarefa num fim-de-semana, e a lama dar-lhe-á pelos joelhos em dez minutos. Imagine dois homens a tentarem a mesma tarefa a cento e oitenta metros de profundidade, afastando com as mãos nuas duzentos anos de areia acumulada e algas rasteiras, e plantas de coral. Compreenderão que Nino não tinha exagerado o tamanho do trabalho.

Trabalhava no lado inferior da arca, Nino no superior. Ainda não retirara uma mão-cheia de areia quando outra corria para o buraco para tomar o seu lugar. A água à nossa volta estava cheia de partículas à deriva que velavam as nossas máscaras e exasperavam a nossa paciência. Estávamos a trabalhar há talvez quinze minutos quando Nino bateu no meu ombro e me fez sinal para olhar para o seu lado da arca.

Olhei e o meu coração caiu. A tampa da arca tinha sido arrombada, provavelmente, na noite do naufrágio, e o interior estava cheio de areia.

As tiras de bronze que a confinavam estavam corroídas e partidas, os cravos de metal, ainda na madeira esponjosa, estavam cobertos com alvéolos de coral e pequenos moluscos. As nossas mãos ficaram arranhadas quando as enfiámos na caixa, peneirando a areia líquida por qualquer traço de ouro, jóias ou ornamentos.

A minha mão fechou-se à volta de alguma coisa dura, mas quando a trouxe ao de cima provou ser um fecho corroído, provavelmente bronze ou pechisbeque. Nino trouxe uma faca ferrugenta partida. Também esta de metal comum. Quando encontrámos outra fivela, maior que a primeira, ele fez uma careta por detrás da sua máscara e sinalizou-me para parar. A sua mímica disse-me apenas aquilo que eu já sabia.

A caixa era um baú muito vulgar. Não tinha guardado nada mais importante do que o fato de terra do seu dono, os seus sapatos de fivela e a sua faca. Os vorazes organismos marítimos tinham comido tudo, à excepção da faca e as fivelas do seu chapéu e sapatos.

Por um momento fiquei a olhar para o nosso miserável achado. Depois, Nino fez-me sinal para ajudar e nós puxámos e içámos o resto da arca da areia, e despejámos o seu conteúdo por entre as algas. Não encontrámos nada mais que uma pega de metal picado com um pedaço de porcelana ainda fixo numa extremidade.

Depois ouvimos o ruído da bala na água. Atirámos a arca para a vegetação.

Agarrando nas poucas relíquias infantis, retomámos o nosso subir hesitante à superfície.

- Cansado, Renn?

Pat e eu estávamos sentados na porta da escotilha da proa, enquanto Johnny nos guiava para casa através do canal que dava acesso à lagoa, e Nino, calmo como um gato, dormia numa das tarimbas. Pat e eu estávamos de mão dada. A sua cabeça trigueira repousava no meu ombro.

- Sim, querida, estou cansado, Nino tinha razão. É um trabalho esgotante.

- Está desapontado, Renn?

- Sim. É louco e infantil e não quero nenhuma compaixão. Sou novo no negócio. Tenho de aprender a ser paciente. É tudo.

- Nino diz que começam a trabalhar no porão amanhã.

- Exactamente.

- Vai ser difícil?

- Não mais que no camarote. Só que é muito maior e a areia é dez vezes mais alta.

- Não parece muito promissor, pois não?

- Não. É uma questão de sorte. É tudo.

Ela hesitou um momento, depois continuou:

- Renn, tenho estado a pensar.

- Em quê?

- Nas moedas no recife. Pensa ser possível que alguns membros da tripulação tenham atingido a ilha?

- E levado as arcas do tesouro com eles?

- Sim.

- Querida - disse eu pacientemente -, já falámos sobre tudo isso antes. Ouviu o que Johnny disse sobre isso. Eu digo-lhe, estive por toda a ilha. Não há um único traço de isso ter acontecido.

- Não há nenhuma caverna?

- Nem uma. Existem alguns buracos de rocha e saliências no lado do penhasco. Mas ou são demasiado rasos ou muito altos na rocha. Existe uma espécie de fenda no pico oriental. Jeanette e eu espreitámos para dentro dela uma vez, mas era tão húmido, bolorento e cheirava tanto a cabra que não entrámos. À parte disso, nada... absolutamente nada.

Ela suspirou e fez uma boquinha triste.

- Bem, lá se vai a minha linda teoria. Parece que está nas suas mãos e nas do Nino, não é?

- Sim, está nas nossas mãos.

Johnny estava a abrandar e nós preparámo-nos para a ancoragem. Levantei-me e caminhei à proa para segurar no gancho. Pat seguiu-me.

- Renn?

- Sim?

- Johnny está preocupado com uma coisa.

- Disse o que era?

- Não, mas quer falar consigo esta noite, Renn... depois do jantar. A sós.

Atirei a âncora borda fora e o cabo desceu, arrastando-se atrás dela. Depois esticou. O Wahine parou de deslizar e a sua popa rodou para a corrente. O primeiro dia de trabalho havia terminado. Estávamos em casa novamente.

O jantar acabara. As estrelas estavam baixas num céu suave. Nino agachou-se ao pé da fogueira, colocando cuidadosamente fita isolante numa das junções do seu equipamento de mergulho, e cantarolando alegremente para si mesmo. Pat foi até à tenda para escrever a tese que faria da minha rapariga trigueira, incongruentemente, uma doutora da Ciência. Vi a sua sombra lançada pelo candeeiro contra a lona brilhante da tenda. Johnny estava de volta ao Wahine para dormir. Caminhei com ele até à praia.

Quando os outros já não nos podiam ouvir, Johnny disse-me:

- P'trão Ren, estou assustado.

- Com o quê, Johnny?

- Alguma coisa vai acontecer com este Manny Mannix.

- Sabemos disso, Johnny. Sempre soubemos.

- Sim, p'trão Ren, mas... - Tropeçou e procurou as palavras que iriam emoldurar o pensamento e tornariam a sua urgência clara para mim. - Como posso explicá-lo, p'trão Ren? É como nos velhos tempos nos leitos de ostras. A história espalhava-se que este ou aquele tinha encontrado um local novo e trabalhava nele em segredo. Quando ele entrava num bar, os outros olhavam-no silenciosamente, com olhos gananciosos. Mediam a sua força, a sua coragem e a lealdade da sua tripulação. Se ele fosse forte e os seus homens o respeitassem, eles bajulavam-no, sorriam-lhe e ofereciam-lhe bebidas e tentavam arrancar-lhe o segredo. Mas se fosse fraco, ou cobarde, ou odiado, então, eles resmungavam e murmuravam. Alguém começava uma luta. Uma garrafa era atirada, as facas de concha apareciam, e eles lutavam como animais... Este Manny é um animal, p'trão Ren. É assim que ele vai lutar.

Assenti gravemente. Johnny tinha razão. Manny Mannix era um animal com uma coragem animal. Mas Manny era um homem de negócios, e onde o dinheiro estivesse envolvido, Manny não arriscaria. Se avançasse realmente, seria em força. E se se passeasse pelas zonas portuárias do norte, com dinheiro no bolso, e encontrasse muitos indivíduos duros que não têm grandes preocupações em como o ganhar!? Johnny olhou-me, perturbado.

- Concorda comigo, p'trão Ren?

- Concordo consigo, Johnny.

- Que vai fazer, p'trão Ren?

- Que quer que faça, Johnny?

Ele considerou a questão muito tempo antes de responder.

- Por mim e por si, e por este mergulhador, o Nino, diria para ficarmos e lutar mas... Mas há a rapariga.

Eu percebi o problema. Havia a rapariga. Se houvesse violência, ela seria apanhada no meio dela. Estaria ali quando os animais começassem a despedaçar-se e a dilacerar-se uns aos outros. E depois disso...? Não era uma coisa que devesse acontecer a nenhuma rapariga; e esta era a rapariga por quem me apaixonara. Só havia uma resposta.

- Tudo bem, Johnny. Enviamo-la de volta pela manhã. Se o tempo estiver calmo, ela pode levar o barco de trabalho. Não precisa de ir para o continente. Existem duas ou três ilhas onde ela pode ancorar e esperar até estar tudo terminado.

Johnny Akimoto endireitou-se. Foi como se um grande peso lhe tivesse sido tirado dos ombros. Sorriu e apertou-me a mão.

- Acredite-me, p'trão Ren, é o melhor. Sei que não quer que ela vá embora. Mas quando ela for, você poderá lutar com as mãos livres... Boa noite, p'trão Ren!

- Boa noite, Johnny!

Observei-o a empurrar o bote, entrar leve sobre a popa e remar para o Wahine com longos movimentos calmos. Voltei-me e subi a praia até à tenda de Pat.

Ela levantou-se quando entrei. Beijámo-nos e abraçámo-nos por um momento, então, sentei-a de novo na cadeira e empoleirei-me num caixote ao seu lado. Disse num tom monótono:

- Querida, vou mandá-la embora amanhã. Vai haver problemas. Vai levar o barco de trabalho e vai para South Esk, ou para a ilha Ladybird, e fica lá até a irmos buscar.

Ela olhou para mim um longo momento sem falar; tinha lágrimas nos seus olhos e o seu lábio tremeu; depois dominou-se e perguntou-me, bastante calma:

- Quer que eu vá, Renn?

- Não. Não quero que vá. Penso que deve ir.

- E Johnny.

- Johnny pensa o mesmo.

Ela desviou o rosto e limpou os olhos com um pequeno lenço. Quando voltou a encarar-me, a sua boca estava firme e o seu queixo orgulhosamente erguido. A sua voz tinha um tom que nunca escutara.

- Vai lutar, não vai, Renn?

- Sim.

- Pelo navio do tesouro?

- Em parte... sim. Mas não apenas por isso. - Lentamente, dolorosamente, tentei mostrar-lhe o pensamento que vinha crescendo na minha mente, nos últimos dias. - Sei agora que talvez nunca encontremos a carga do Dona Lúcia. Ainda existe uma hipótese, claro. Existe uma hipótese ainda maior, de estar enterrado tão fundo sob a areia, que nunca chegaríamos a ela, nem daqui a um milhão de anos. Nesse caso, a luta seria uma loucura monstruosa e dispendiosa. Mas não vê? Não é só isso. É tudo o resto. É isto, esta vida, os meus amigos, a minha ilha. Pela primeira vez na minha vida, sou um homem livre com a minha própria terra debaixo dos pés. Vou lutar por isso, querida. Penso que, possivelmente, vou matar por isso.

- E pela sua própria mulher, Renn? - As palavras saíram num sussurro. - Sou a sua mulher, não sou?

- É a minha mulher, Pat. De hoje até ao Juízo Final.

Fiquei de pé. Alcancei-a para a puxar para mim, mas ela empurrou-me gentilmente.

- Então, fico consigo. É o meu homem, e não pode mandar-me embora.

Tentei argumentar, mas ela fechou-me a boca com beijos. Tentei ameaçá-la, mas ela riu-se na minha cara. Tentei seduzi-la a submeter-se, mas ela repudiou-me, relutantemente.

- Vá para a cama, Renn. Amanhã é dia de trabalho. Quando acabar, teremos todo o tempo do mundo... até ao Juízo Final, como você diz.

Fui tosquiado como Sansão. Beijei-a novamente e voltei para a minha tenda.

Nino Ferrari continuava agachado ao pé da fogueira, remendando o mecanismo delicado dos reguladores. Levantou o olhar quando me ouviu e lançou-me um sorriso torto.

- Tem ali uma rapariga às direitas! Fará uma boa mulher de mergulhador. Um homem das águas profundas precisa de muito sono.

Resmunguei irritadamente e agachei-me ao seu lado. Ele atirou-me um cigarro.

- Algum problema, meu amigo?

- Sim. Vamos ter uma batalha entre mãos. Johnny pensa que sim. Eu penso que sim.

Nino levantou a sua cabeça e assobiou silenciosamente.

- Bem! Vai ser assim, hem? Já vi estas coisas antes, com os pescadores de esponjas no mar Egeu. Podem ser feias. Quando o vinho corre e as longas facas aparecem. - Ele lançou o seu polegar sobre o ombro num gesto significativo. - E a rapariga?

Encolhi os ombros.

- Queria que partisse, ela recusou-se. A não ser que a expulse à força, não há nada que possa fazer sobre isso.

Nino apertou a última rosca no regulador e guardou-o cuidadosamente num pano limpo para afastar a areia, depois colocou todo o equipamento de volta no estojo e fechou a tampa.

- A primeira regra para um mergulhador - disse ele, irrelevantemente - é limpar o regulador depois de cada mergulho. Se este falhar, em águas profundas, é um homem morto!

Houve um silêncio entre nós. Ouvi o gorjear e o crepitar de insectos no arbusto atrás de nós. Observei o voo a pique de um morcego. Depois voltei-me novamente para Nino:

- Lá fora, hoje de manhã, você disse que tinha alguma coisa que poderíamos usar contra Manny Mannix quando ele aparecer. Que é?

Os seus olhos negros lançaram-me um longo olhar de soslaio. Então, ele inclinou a cabeça e pareceu estudar as costas das mãos. Quando falou, a sua voz estava equilibrada, sem ênfase.

- Meu amigo, não se põe a faca nas mãos de uma criança, nem uma pistola carregada no punho de um homem zangado. Aprendi esta máxima num tempo triste, um tempo de violência e destruição sangrenta. Se for necessário usá-lo outra vez, fá-lo-ei. Mesmo sendo meu amigo, direi o que deve ser feito e como, e assumo a responsabilidade pelas consequências. Lamento, mas isto é algo que sinto profundamente no meu coração.

E com isso, tinha de me contentar. Sorri, levantei-me, bati-lhe no ombro e fui para a cama. Sonhei com o tempo da guerra, com corpos mortos rolando nas ondas e um homem obrigado a esconder-se numa trincheira, por causa das rajadas de metralhadora vindas das palmeiras.

O homem na trincheira era eu próprio. O homem por de trás da metralhadora era Manny Mannix.

 

Às sete horas da manhã seguinte lançámos âncora na zona de mergulho. Planeámos fazer três mergulhos por dia e, considerando os períodos de descanso e o tempo da descompressão, cada mergulho custar-nos-ia três horas de luz solar. Queria fazer quatro descidas, mas Nino foi inflexível. O ganho seria uma ilusão, disse ele. Depois de dois ou três dias, o esforço viria ao de cima e começaríamos a sentir os efeitos de longas imersões: a narcose de nitrogénio.

Hoje iríamos fazer a nossa primeira exploração do porão. Equipámo-nos rapidamente e senti a tensão da expectativa enquanto saltava borda fora, atrás de Nino, observando a corrente das suas bolhas de ar subindo e passando pelo meu rosto.

Uma vez mais nadámos sobre a vegetação baloiçante no convés até que chegámos ao buraco, com a sua franja de viscosos corais afiados. Nino fez-me sinal para esperar. Vi-o mergulhar obliquamente, seguindo o cone de luz da sua própria lanterna. Reparei no cuidado que ele tomou para evitar que os seus tubos de ar colidissem contra as bordas irregulares. Depois apontou a lanterna para trás e mergulhei na sua direcção, ao longo do feixe de luz.

O espaço em que nos encontrámos tinha, talvez, três vezes a largura do camarote que visitáramos no dia anterior. A areia formava uma rampa e a madeira, com a sua cobertura de algas, inclinava-se na direcção dos fundos do compartimento. O feixe da minha lanterna iluminou uma colónia de lagostas agarrando-se ao tecto de madeira. Disse a mim mesmo que levaria uma para o Wahine para o almoço. Senti alguma coisa roçar nas minhas omoplatas. Virei-me rapidamente e apontei a lanterna para uma enorme lula. Vi o seu bico negro de papagaio e os seus olhos de feiticeiro, depois os seus tentáculos enrijeceram-se e lançou-se para cima, deitando um jacto de tinta, como uma imagem fantasma atrás de si.

Nino fez-me sinal para ir para o seu lado; juntos fizemos o circuito do porão, ficando de pé onde o tecto o permitia, nadando de costas ou de bruços, onde o espaço estreitava entre a areia e a madeira.

As nossas mãos tacteantes traçavam os contornos de antigas vigas do convés, por debaixo da vegetação viscosa. Marcámo-las cuidadosamente. Serviriam como guias quando fosse altura de dividir a área em secções das nossas investigações diárias. Quando tínhamos feito o reconhecimento do local nadámos para trás e para a frente, de um lado para o outro, apalpando com as nossas mãos, por entre a vegetação, a areia e o coral, à procura de qualquer coisa que pudesse assemelhar-se a uma arca. Era um trabalho superficial, desagradável, mas tínhamos de fazê-lo. Mais tarde, começaríamos a tarefa árdua de revolver centenas de metros cúbicos de areia e algas, com as nossas mãos e facas.

Depois de atravessarmos toda a área, Nino fez-me sinal para parar. Durante alguns minutos ficámos suspensos, fazendo caretas um ao outro e um louco acenar de mímica com as mãos. Então, Nino fez-me sinal para apontar a minha lanterna ao longo de uma parede do porão. Fi-lo. Ele nadou para o canto, mediu com os braços abertos a sua largura, então nadou desse ponto até à outra extremidade do porão. O feixe da minha lanterna seguiu-o. Percebi a sua intenção. Estava a marcar uma faixa estreita de areia para a nossa primeira exploração.

Nadou para mim e, lado a lado, começámos a trabalhar. Escarafunchámos, raspámos e sondámos, empurrando-nos para trás com as nossas mãos, enquanto os nossos corpos estavam suspensos como os dos peixes.

Trabalhávamos apenas há alguns minutos quando ouvimos o familiar impacte de uma bala na superfície da água. Parámos. Olhei para Nino. Nino olhou para mim. Não tínhamos estado lá em baixo mais de quinze minutos. Então, ouvimos um segundo impacte e, logo a seguir, um terceiro.

Alguma coisa estava mal no Wahine. Nino gesticulou para mim. Nadámos para fora do porão e subimos à superfície, tão depressa quanto podíamos.

Johnny e Pat içaram-nos a bordo, e enquanto ficávamos a pingar no convés, Johnny apontou para ocidente.

- Ele vem aí, p'trão Ren - disse ele calmamente.

Era um lugre como o Wahine, mas maior, mais largo no vau. O seu casco era negro. Os mastros estavam nus. Avançava com os motores, rápido, a uns doze nós. Estaria junto de nós dentro de vinte minutos.

Johnny Akimoto entregou-me os binóculos. Concentrei-me e vi que o espaço do seu convés estava atolado de máquinas cobertas com lonas. Vi outros volumes à frente da escotilha principal. Vi homens em tronco nu movendo-se no convés. Vi uma figura num fato branco, encostado contra a amurada frontal - Manny Mannix.

Entreguei os binóculos a Nino. Ele investigou o lugre durante alguns momentos, depois baixou-os.

- Equipamento de mergulho - disse ele laconicamente. - Bombas e um guincho. Muitas outras coisas.

Voltei-me para Johnny Akimoto.

- Conhece-o, Johnny?

- Sim. É um barco de ostras, p'trão Ren. Motores gémeos a diesel. A matrícula diz que está registado na Ilha Thursday.

Esperto Manny. Esperto, esperto Manny. Nunca esquece uma cara, nunca negligencia um contacto. Manny tinha fretado um barco assim quando foi para o norte, com uma licença legal para comprar excedentes de guerra nas ilhas. Manny tinha-o feito regressar sob um falso pretexto, carregado com equipamento que tinha saqueado em alguma espelunca esquecida, numa das centenas de baías solitárias. Um simples telegrama faria o mesmo barco, e o mesmo rude capitão, e a mesma tripulação de arruaceiros desceram a correr o recife para o apanhar em Bowen. E se afinal fosse um negócio sujo, uma parte para o capitão e um bónus para os rapazes, garantiria a Manny silêncio e segurança.

- Que quer fazer p'trão Ren? - perguntou Johnny.

- Esperar por ele, Johnny. Apenas sentar e esperar. Guarde o equipamento, Nino. Pat, vá lá abaixo e faça-nos alguma coisa para comer. Se vamos ter sarilhos, gostaria de comer primeiro.

Ela lançou-me um sorriso pálido e avançou para a popa. Nino recolheu o equipamento de mergulho e começou a secá-lo cuidadosamente. Johnny Akimoto ficou a observar a forma negra do lugre, à medida que ele corria na nossa direcção através da água calma.

À medida que ele se aproximou, podia ver os algarismos brancos na sua popa. Podia ver os rostos barbudos e os corpos bronzeados da sua tripulação. Podia ver Manny Mannix balançando o seu charuto enquanto falava. Continuava perplexo pelas formas curiosas sobre a lona na zona frontal. Apontei-os para Johnny. Também não significavam nada para ele. Ele dobrou-se, apanhou a espingarda da porta da escotilha, retirou o cartucho gasto, colocou outro cartucho na fenda e comprimiu o ferrolho. Depois fez deslizar a cavilha de segurança e pousou a espingarda cuidadosamente nos embornais, longe da vista.

Então, Pat e Nino apareceram no convés com canecas de chá e um prato com sandes de carne. Sentámo-nos na escotilha e comemos juntos, observando o grande lugre cada vez mais perto. O sol quente brilhava sobre nós através do toldo de lona. O Wahine baloiçava gentilmente na água calma. Podíamos ser uma excursão de pesca, num cruzeiro de recreio, se não fosse a tensão que sentíamos, e o ameaçador casco negro com a sua tripulação mesclada.

Tínhamos praticamente acabado a nossa refeição quando eles nos atingiram. Duzentos e setenta metros a estibordo, eles desligaram os motores. A velocidade trouxe-os à frente da nossa proa. O homem do leme rodou a vau e vimos a âncora descer com o estrondo do impacte. Então, ficámos borda com borda, com não mais de nove metros de água entre nós.

A tripulação alinhou na amurada, rindo e gritando. Assobiaram e gritaram obscenidades quando viram que havia uma mulher entre nós. Eram, talvez, uma dúzia - negros, brancos e mulatos. Alguns eram jovens e outros não eram assim tão velhos. Alguns tinham barba - outros usavam uns descuidados pêlos hirsutos. Mas todos estavam bronzeados e eram rudes e perigosos - veteranos de cidades miseráveis à margem da lei.

No meio deles estava Manny Mannix, incongruente no seu fato branco e na sua gravata berrante. O seu panamá pendia na parte de trás da sua cabeça. O charuto inevitável estava enfiado no canto da boca. Ele tirou-o para me gritar:

- Como está, comandante! Que bom tempo temos tido!

Eu não disse nada. Senti Pat paralisar ao meu lado.

- Gostaria de ir a bordo, comandante. Conversa de negócios. Particular.

- Fique no seu próprio convés, Manny.

Manny acenou uma mão tolerante. Gritou em resposta:

- Só queria ser amigável. O mercado continua aberto, se estiver interessado.

- Não estou interessado, Manny.

- Eu divido consigo, comandante... metade para cada um. Olhe, tenho o equipamento e os homens para trabalharem.

Ele fez um amplo gesto que abarcou todo o barco e a sua tripulação maltrapilha.

- Se não lhe agradar este acordo, ainda compro a sua parte nas mesmas condições.

- A resposta é não, Manny. Se o quer, tem de o agarrar.

- São águas livres, comandante. Mostre-me uma concessão de salvamento e eu deixo-o.

- Não há concessão, Manny. Chegámos cá primeiro, é tudo.

Os homens alinhados no convés lançaram um grande urro de riso. Vi a mão de Johnny descer para a espingarda pousada nos embornais. Parei-o antes que lhe tocasse.

Manny Mannix gritou-me outra vez:

- Tenho testemunhas, comandante. Testemunhas que dirão que lhe fiz uma proposta justa por uma coisa que nem sequer é sua. Agora, vou avançar.

Eu dobrei-me, apanhei a espingarda e mostrei-lha.

- Eu disse-lhe que teria de lutar, Manny.

Houve outro urro de riso. Manny rodopiou e gritou uma ordem a um marinheiro à parte na proa do barco.

Num instante, a lona foi arremessada para trás. A minha confusão estava solucionada. As formas volumosas eram cargas de profundidade, saqueadas numa qualquer espelunca. Por detrás delas estava uma pequena metralhadora montada num tripé. Estava carregada e o nosso homem tinha o dedo no gatilho.

- Ainda quer uma luta, comandante? - gritou Manny.

A tripulação rugiu com a sua piada. Então, o seu rosto escureceu e a sua voz tomou um novo tom venenoso.

- Vou avançar, comandante... a partir de agora. Pegue no seu barco e leve-o de volta ao interior do recife, e fique lá. Se meter nem que seja as orelhas cá fora, antes de terminarmos, acabamos consigo. E para evitar que você e o seu italianozeco pensem em qualquer truque de homens-rã... como trabalhar no fundo enquanto os meus rapazes estão a descansar... lembre-se daquelas. - E apontou para as sinistras latas pousadas no convés. - Nós fazemos uma corridinha e deixamo-las cair em cima de vocês enquanto passamos.

E aí estava uma Sequência Real. E Manny estava com ela. A última mão. E nós não podíamos fazer nada a não ser vê-lo enfiar as fichas no bolso e ir para casa. Pela segunda vez, estava arruinado e estafado num jogo com Manny Mannix.

Mas não iria dar a Manny a satisfação de me ouvir dizê-lo. Pelo canto da boca falei a Nino e a Johnny.

- Nino, ice a âncora. Johnny, ligue os motores, vamos para casa. Nada de pressas. Devagar e com calma. Pat e eu ficamos aqui.

Eles não fizeram perguntas. Moveram-se serenamente, quase languidamente para os seus postos, enquanto Manny e os seus lacaios observavam o gambito com silenciosa perplexidade, e o homem por detrás da metralhadora estava tenso e preparado.

Nino içou a âncora. Ouvi o arranque dos motores do Wahine e a agitação na popa, à medida que as engrenagens se moviam e a hélice começou a rodar. Então, misericordiosamente, estávamos a mover-nos. Pat e eu continuávamos encostados à amurada, e eu ainda segurava a espingarda debaixo do braço com a cavilha de segurança retirada. Manny não queria uma guerra de tiros - ainda - mas se a começasse, queria que ele fosse a primeira vítima.

Os vigias na amurada estavam silenciosos enquantos nós saíamos dali, ainda bordo com bordo, e Johnny virou o leme e dirigiu-se para oriente, ao longo do recife, para a entrada do canal. O homem por detrás da metralhadora fê-la girar para nos seguir. Então, subitamente, um grande rugido de riso despontou. Soava a uma monstruosa obscenidade através da límpida água iluminada pelo sol.

Nino, Pat e eu caminhámos para a popa para nos juntarmos a Johnny Akimoto na cabina.

- Foi a coisa mais horrível e brutal que alguma vez vi. - A voz de Pat estava baixa e controlada, mas os seus olhos escuros estavam negros de raiva. - Foi tão a sangue-frio e... e violento.

Resmunguei, infeliz:

- Não mais do que eu esperava. A metralhadora e as cargas de profundidade foram a única surpresa. Mas, conhecendo Manny, também devia estar preparado para isso.

- Penso - disse Nino Ferrari com calma judicial - que não gosto muito deste tal Manny. Penso que é um filho da puta! Chamou-me italianozeco, mas o meu povo era feito de cavalheiros civilizados quando ele ainda era um pensamento porco na cabeça do seu bisavô. Pensarei nele muito seriamente.

Johnny Akimoto não disse nada. Permaneceu distante no leme - uma figura negra e solitária, guiando o Wahine para casa, com uma espécie de cautela patética. Alguma coisa acontecera a este homem gentil. Foi como se ele e o barco que ele tanto amava tivessem sofrido uma profanação pela mera presença do lugre negro, e da sua tripulação maltrapilha. Os seus olhos sábios estavam cheios de raiva gelada. A pele das maçãs do rosto e da linha do queixo estava tensa.

Nem mais uma palavra foi dita até passarmos o canal e lançarmos âncora na água plácida da lagoa.

Então, fizemos um conselho de guerra. Iríamos transferir as provisões e o equipamento de mergulho para o acampamento na praia. Mudaríamos a tenda de Pat para mais perto da nossa. Manteríamos as actividades do lugre negro vigiadas vinte e quatro horas por dia. Encalharíamos o barco de trabalho e o bote à vista do acampamento, e dormiríamos todos em terra. Neste ponto, Johnny Akimoto discordou:

- Não, p'trão Ren. Você e os seus amigos ficam em terra. Eu fico com o Wahine.

- Não sei se isso é sensato", Johnny. Penso que estamos mais seguros juntos. Nenhum mal pode acontecer ao Wahine. Eles ver-nos-ão descarregar as provisões. Se decidirem avançar sobre a ilha, o que eu duvido, deixá-lo-ão em paz e virão para o acampamento.

Johnny abanou a cabeça. Disse numa voz calma:

- Não. Esta ilha é a sua ilha, p'trão Ren. O Wahine é o meu barco. Cada um de nós guardará o que é seu. Eu ficarei com uma espingarda e metade da munição. O p'trão Ren levará a outra espingarda para o acampamento. Nino tem a sua pistola, por isso, a divisão é justa. Acredite-me, é melhor assim.

Nino Ferrari acenou em concordância quando olhei para ele.

- Johnny tem razão, meu amigo. Deixe que ele faça como quer. Um de nós pode vir cá vê-lo todos os dias para lhe fazer companhia e lhe trazer água fresca. Além disso, o Wahine é a nossa corda salva-vidas. Ele deve ser mantido em segurança e pronto para partir, no caso de precisarmos dele.

Então, estava acordado. Foram precisas quatro viagens no bote para levar todo o equipamento para terra, e do lugre negro no exterior do recife, Manny Mannix observou-nos através da longa tarde. Quando a noite chegou, Nino, Pat e eu sentámo-nos à volta da fogueira e vimos as luzes de âncora do Wahine erguerem-se e caírem na água, e, mais ao longe, o brilho amarelo que fluía das cabinas das escotilhas do grande lugre.

Na sua desprendida voz profissional, Nino Ferrari discutiu a situação.

- O que aconteceu esta manhã foi uma coisa lamentável; mas não nos vale de nada praguejar e suar, e ficar zangado com isso. No fim de contas, até pode ser um mal que veio por bem.

- O diabo é que pode! - explodi de raiva. - O Manny tomou posse. Manny tem o equipamento. Manny tem o tempo e o dinheiro. Se fizermos um só movimento, ele pode rebentar-nos a cabeça. Só temos de nos sentar aqui, e...

Uma pequena mão firme pousou no meu braço, e a voz calma de Pat interrompeu-me.

- Deixe Nino terminar, Renn.

Nino riu e piscou-me o olho.

- Eu disse-lhe, arranjou uma boa mulher, meu amigo. Não lhe disse antes, mas quando vi aquele porão esta manhã, o meu coração caiu-me aos pés. Já vi estas coisas antes, compreende, e posso dizer-lhe agora que mais de três quartos daquele porão está enterrado na areia. Você viu o ângulo do convés. Se pensar nisso, vai aperceber-se de que quando a sua proa desceu, também deslizou para a frente. Por isso, se as arcas lá estiverem, estão muito provavelmente enterradas profundamente na areia. Existem anormalidades, claro, e acidentes, mas é assim que eu leio a história.

- Leia-a como quiser, Nino, o facto é que Manny tem mergulhadores com fatos e bombas. Pode trabalhar mais tempo que nós. Pode aspirar a areia. Pode ficar ali até o conseguir.

Nino riu e abanou a cabeça.

- Vocês, amadores! Ele tem uma bomba, claro. Mas que tipo de bomba se pode manobrar de uma pequena lata velha daquelas? Quanto tempo levará para movimentar mil toneladas de areia? Você fala de tempo. É claro que ele tem tempo, mas tempo é dinheiro. Ele tem de pagar os salários da tripulação e do capitão e dos mergulhadores. Tem o frete do barco. Vai trabalhar algum tempo e, se não encontrar as arcas do tesouro, faz as malas e vai para casa. Porquê? Porque é um homem de negócios. Porque há sempre um limite para a quantidade de dinheiro que ele pode gastar. Então, quando ele partir, nós avançamos. Ele facilitou o nosso trabalho, está a ver?

A lógica de Nino era inabalável. Não tinha resposta para o seu argumento. Estava zangado. Ele estava frio como um juiz. Pat acenou, aprovando o seu raciocínio calmo. Senti-me envergonhado da minha fúria impotente.

Então, vimos um foco ligado a bordo do lugre. O seu raio fez uma grande piscina de luz na água.

No exterior do recife. Ouvimos a algazarra de um guincho e o batimento constante e distante de uma bomba. Vimos uma forma monstruosa descer sobre a borda do barco para a piscina iluminada.

Manny era um homem de negócios. Ele sabia que tempo é dinheiro. Ia trabalhar vinte e quatro horas por dia.

 

Acordávamos cada manhã com o constante ruído das bombas. Víamos o lugre negro ancorado calmamente sobre os destroços do Dona Lúcia. Víamos o movimento indolente dos homens sobre o convés apinhado. Víamos Johnny Akimoto empoleirado na proa do Wahine, lançando uma linha borda fora para pescar o seu pequeno-almoço.

Descíamos a correr para a praia para lavar o sono dos nossos corpos; e, então, enquanto Pat fazia o pequeno-almoço, Nino e eu limpávamos o acampamento e escarafunchávamos na vegetação rasteira pelo nosso fornecimento diário de lenha. Depois, um de nós pegava no barco de trabalho e levava-o para passar a manhã com Johnny a bordo do Wahine. A sua raiva havia desaparecido; conseguia sorrir outra vez, e movia-se confortavelmente no convés do Wahine como um proprietário no seu jardim. Mas havia nele desconfiança e cautela, a atitude de um homem à espera do inevitável, no meio de uma breve paz ilusória.

Deus, porque não havia mais nada para fazer, eu levava Pat em pequenas excursões de inspecção do meu reino fortificado, que era a ilha. Ensinei-lhe os nomes das árvores - casuarina, tournefotia, magnólia, ameixoeira indígena. Mostrei-lhe os grandes pinheiros redondos, cujas sementes tinham sido transportadas pelos pássaros do continente. Mostrei-lhe onde as andorinhas-do-mar repousavam sob as suaves folhas das pisonias.

Apanhámos orquídeas selvagens nas saliências rochosas. Sentámo-nos para refrescar debaixo das copas caídas dos fetos arbóreos. Observámos as formigas da árvore verde costurando folha com folha, usando as suas babas como uma máquina de costura viva, da qual saía o longo fio sedoso que unia os seus estábulos, cercados, e galerias de delicada teia sedosa, onde os pálidos insectos repousavam prisioneiros como gado doméstico, até chegar a altura de serem mortos e comidos.

Sentámo-nos, fascinados pela aranha pescadora que se pendura na sua teia e pesca traças nervosas com uma gota de cola húmida presa por baixo do seu corpo.

Tentámos, e falhámos fazer amizade com as magras e miseráveis cabras, protegidas por uma velha lei contra as necessidades de marinheiros naufragados. As suas pegadas estavam por todo o lado no bosque e nós seguimo-las até à depressão entre os dois picos gémeos, e olhámos para baixo para os penhascos castanhos, com a água branca batendo nos seus flancos. Empoleirados isoladamente, como filhos da aurora, entre o mar e o sol, Pat e eu observámos a glória de ilhas verdes enfileiradas nos cordões partidos do recife. Observámos o azul transformar-se em verde e amarelo, onde as águas profundas acabavam, e as águas rasas começavam. Vimos a luz inclinar-se sobre os corpos dos porcos-do-mar, erguendo-se sobre as águas, e as cabeças escumadas em forma de seta do peixe voador, e a pequena forma escura de uma velha tartaruga, que talvez tivesse visto o naufrágio do Dona Lúcia.

Trepámos os cumes gémeos e eu apontei para a estreita fenda nas rochas, que era a única semelhança a uma caverna na ilha. Mas retirámo-nos rapidamente, incomodados pelo forte cheiro animal. Uma cabra barbuda pôs a cabeça de fora e sorriu-nos.

Depois íamos para o acampamento para encontrar Nino, deitado na areia, bronzeando o seu corpo escuro e sorrindo-nos como o próprio senhor das cabras.

Nino era uma constante surpresa para mim. O tempo nada significava para ele. O seu magro corpo musculado era dotado de uma graça felina. Movia-se como um gato e tinha a capacidade do gato para o imediato relaxamento e repouso. Recusava-se a gastar as suas energias em especulação ou actividade sem nenhum proveito. No entanto, a sua mente era limpa e afiada como a ponta de uma faca.

- Estou a contar os dias, meu amigo - dizia ele. - Mas também os estou a gozar. Digo a mim mesmo que, numa semana... dez dias... duas semanas no máximo, eles se cansarão e partirão. Até lá, estou a divertir-me. Não tenho umas férias destas há anos.

Fui tomado por um estranho sentimento de culpa quando me apercebi que estava a pensar o mesmo. Fechado no pequeno círculo do recife, impedido de qualquer oportunidade de acção, tinha-me resignado à calma dos dias passados a jogar loto e à paz pastoral do meu amor por Pat Mitchell. Dissemos a nós mesmos que este tipo de vida podíamos gozar para sempre. Construiríamos uma casa na ilha. Compraríamos um barco como o Wahine. Veríamos as nossas crianças ficarem bronzeadas e robustas ao sol. Tecemos uma tapeçaria de sonhos de amantes, pintada com as cores do pôr do Sol e do mar.

Então, um dia, alguma coisa aconteceu a bordo do lugre negro. Estava a observá-lo através dos binóculos quando vi uma súbita agitação no convés. Ouvi um grito distante sobre o bater das bombas. Vi o grupo que jogava às cartas na escotilha da popa separar-se e correr para a proa. Vi o corpo negro de um dos homens subir da cabina e tentar saltar borda fora. Vi-o ser apanhado, agarrado e arrastado para a frente e atirado, de barriga para baixo, para a porta da escotilha.

Vi-o ser espancado, duramente, enquanto a tripulação estava à volta a sorrir e Manny Mannix tirou o charuto da boca e riu, riu.

Entreguei os binóculos a Nino Ferrari. Ele olhou para a cena por um momento, e depois passou-os a Pat. Ela voltou a entregar-mos, sem uma palavra, então afastou-se e vomitou na areia.

O espancamento continuou, constantemente, metodicamente, monstruosamente, até que o rapaz negro parou de lutar e ficou deitado, ensanguentado, e partido na porta da escotilha.

Então, vi uma coisa horrível.

Manny Mannix fez um gesto abrupto com o seu charuto. Houve um momento de hesitação e então quatro homens avançaram, pegaram no homem pelos braços e pernas, e lançaram-no borda fora. Durante talvez um minuto flutuou, uma massa escura na água tranquila, arrastado lentamente para longe do lugre pela corrente.

Subitamente, vi a negra barbatana dorsal de um tubarão.

Depois outra e outra. Houve uma agitação e um salpicar de água à medida que os carniceiros lutavam pela sua refeição, depois... nada. Mas pensei ter visto uma mancha negra estendendo-se com as ondas. Baixei os binóculos.

Nino Ferrari cuspiu na areia.

- Agora - disse ele serenamente -, penso que é altura de fazermos alguma coisa.

Nessa noite remei até ao Wahine e trouxe Johnny Akimoto a terra para uma discussão. Também ele vira o terrível drama, e os seus olhos ardiam de fúria.

Nós os quatro sentámo-nos à volta da fogueira e observámos Nino Ferrari inclinar-se para a frente, alisar a areia com a palma da sua mão, e começar a desenhar um mapa...

- Aqui - disse ele - é a ilha, com a praia em frente e os penhascos atrás. Aqui é a lagoa. Aqui é a linha do recife. Aqui, ele gira e afasta-se. Aqui fica o acampamento. Aqui está o Wahine. E ali - ele fez uma cruz na areia com o seu dedo - ...ali é o lugre e o navio.

Endireitou-se, acendeu um cigarro, inspirou profundamente e expirou o fumo pela boca e narinas. Depois falou. A sua voz era baixa e equilibrada, mas cheia de profundo sentimento.

- Antes de acrescentar mais alguma coisa, quero dizer isto. A vida de um homem é uma coisa preciosa. Vale mais que todo o ouro do Dona Lúcia, mais que toda a riqueza do mundo. Vi muitos homens morrer, alguns deles por causa de coisas que fiz. Vi alguns homens espancados e assassinados, como aquele que foi morto hoje. Nisso nunca tomei parte. Mas quanto mais velho fico, mais sei que a morte de cada homem é a morte de parte de mim mesmo, porque a minha vida é partilhar da deles. Digo-lhes isto para que compreendam que o que eu proponho não é uma coisa sem importância, não é uma coisa feita pelo ganho, mas pela justiça.

Ele parou. Fumou por um momento silenciosamente. Os seus olhos estavam velados. O resto de nós observava-o, tensos, expectantes. Então ele continuou:

- Vou explodir o lugre.

As palavras caíram no silêncio como pedras num lago. Johnny Akimoto expirou, emitindo um som semelhante ao do silvo de um bico de gás. Senti Pat enrijecer. As suas mãos agarraram o meu braço. Ela estava a tremer violentamente. Nino Ferrari continuou a falar calmamente:

- A mina-lapa é uma arma muito simples. Muito segura para o homem que a utiliza. É fixa através de sucção à parte inferior do casco. Tem um detonador retardado que está preparado para dar ao atacante uma margem de segurança para escapar. Trouxe quatro delas comigo para usar no Dona Lúcia. Agora, vou usá-las contra o lugre.

Ele inclinou-se para a frente e começou outra vez a desenhar na areia, enquanto olhávamos em muda fascinação.

- Aqui - ele apontou para um ponto onde o recife chegara perto da ilha sob a sombra do pico ocidental - ...aqui é onde começa a corrente. Segue pelo recife e corre ao longo da sua orla, na direcção do local onde os nossos amigos estão a trabalhar. Quando a maré está cheia faz três, quatro nós. Um homem podia entrar na água aqui e nadar com a corrente. Não levaria mais de meia hora a alcançar o navio. Chegaria lá pelo lado oposto ao qual os mergulhadores estão a trabalhar. Fixaria as minas e nadaria, ainda com a corrente, na direcção do canal. Uma vez lá chegado, nadaria de volta ao Wahine. Toda a operação levaria uma hora e meia... não mais.

Endireitou-se e olhou para nós. Os seus olhos escuros exploraram os nossos rostos. Foi Johnny Akimoto que falou primeiro.

- Penso que é uma boa ideia, p'trão Ren. Se Nino quiser, eu vou com ele.

Nino abanou a cabeça.

- Não, Johnny. Este percurso tem de ser feito debaixo de água: eu vou sozinho.

Agora era a minha vez.

- Se você for realmente, Nino, eu vou consigo.

Nino olhou para mim. Lançou um olhar rápido, de aviso a Pat, que continuava agarrada ao meu braço, pálida e abalada. Então, disse lentamente:

- Deve compreender, meu amigo, que numa coisa destas há sempre um certo risco... e os detonadores de tempo, compreende, e as cargas de profundidade que ainda estão depositadas no convés.

- É a minha festa, Nino - disse. - Se você for, vou consigo.

Então, a voz aguda e alta de Pat Mitchell interrompeu a nossa discussão.

- Nenhum de vocês vai. Esta manhã, nós vimos um homicídio a ser cometido. Isso é um assunto para a Polícia. Levamos o Wahine, ou eu levo o barco de trabalho, e vamos direitos a Bowen relatar o que aconteceu aqui.

Foi Johnny Akimoto que lhe respondeu, gravemente, sombriamente, como um pai, dizendo uma verdade dolorosa a uma criança.

- Não, menina Pat. No momento que tentássemos sair do canal, eles disparariam a metralhadora em nós. Além disso - hesitou, e então continuou -, o que foi feito esta manhã, foi feito em plena luz do dia, à vista de todos. Eles sabem que nós vimos, e não estão assustados. Porque penso, eu sei, que quando estiverem prontos, eles pensam matar-nos também.

Para Nino e para mim o raciocínio era claro, mas Pat protestou violentamente.

- Não poderiam, Johnny. Não se atreveriam. Não podiam esperar sair-se bem com uma coisa dessas.

- Por que não, menina Pat? Sabe onde estamos. Estamos a três horas de barco do continente. Ali ao fundo é o grande oceano. Eu digo-lhe como eles o fariam. Eles matar-nos-iam primeiro e dariam os nossos cadáveres aos tubarões. Depois, eles destruiriam qualquer traço do acampamento. Carregariam as provisões no Wahine, rebocá-lo-iam para as águas profundas e deixá-lo-iam à deriva. Então, um dia, talvez, ele daria à costa e os jornais chamar-lhe-iam mais um mistério do mar. Seria muito simples.

Com esta revelação inflexível, Pat foi golpeada pelo horror. Enterrou o rosto nas mãos e soluçou. Coloquei o meu braço sobre os seus ombros e puxei-a para mim, para a confortar. Disse gentilmente:

- Lamento, querida, mas Johnny tem razão. A única solução é a de Nino. É a vida deles ou a nossa.

- Eu penso - disse Nino calmamente - que talvez a senhora devesse ir para a cama. Estes assuntos não são agradáveis.

- Não! - a palavra estalou como um chicote. Ela levantou o seu rosto devastado, ainda coberto de lágrimas, e desafiou-nos.

- Não serei mandada embora como... como uma criada. A minha vida está tão envolvida quanto a vossa. Ficarei a ouvir o que têm a dizer.

Se alguma vez amei a mulher escura, amei-a naquele momento. Estava orgulhoso dela, e grato por ela, e humilhado pela sua coragem. Inclinei-me e beijei-a, enquanto Nino mostrava os dentes num sorriso, e Johnny Akimoto sorriu com o seu sábio sorriso brando de aprovação. Então, dedicámo-nos ao nosso plano.

- É importante - disse Nino Ferrari - que não haja lua. Vimos que todas as noites eles mantêm um vigia no convés. Os homens das bombas estão ocupados, mas este sujeito anda pelo convés com uma arma. Estaremos debaixo de água, mas ainda há as bolhas. Se o mar estiver calmo, elas são inconfundíveis.

Johnny Akimoto fez um cálculo rápido.

- Amanhã à noite a Lua não se levanta antes das onze horas. A maré está cheia por volta das oito. Isso dá-lhes três horas para trabalhar.

Nino assentiu e continuou bruscamente.

- Óptimo! Mas ainda é importante que aproveitemos ao máximo o tempo. Voltou-se para mim. - Há um lugar onde possamos entrar na água sem ter de flutuar através dos recifes? Vamos carregar explosivos, lembre-se.

Pensei por um momento, e depois lembrei-me. Mesmo por detrás do pico ocidental havia um local onde as rochas caíam em águas profundas, e onde o mar entrava como uma longa língua, numa profunda fenda na parte lateral da ilha. O recife estava partido neste ponto, e se tivéssemos a força suficiente para lutar cento e oitenta metros contra a rebentação, atingiríamos a corrente que nos transportaria na direcção do lugre. Apontei-o a Nino no mapa. Ele interrogou-me meticulosamente. Depois ficou satisfeito.

- Pronto! A próxima coisa é planear os nossos movimentos para que amanhã pareça um dia normal. Eles observam-nos do lugre, lembrem-se. Por isso, eles sabem que Johnny fica a bordo do Wahine e eu tomo banhos de sol na praia, e você e a jovem senhora passeiam pela ilha. Amanhã, devemos fazer exactamente a mesma coisa. Johnny fica no barco, um de nós visita-o. Desta vez, é melhor que seja eu. Posso preparar as minas na cabina. Vocês dois fazem o vosso passeiozinho, mas amanhã será até ao local onde nós devemos entrar na água. Então, você pode levar-nos lá, rapidamente, assim que estivermos prontos para partir.

Estava cheio de admiração pelo pequeno genovês. Ele planeava a sua pequena campanha como um grande general. O homem de pedra no pedestal da sua cidade natal teria sorrido em aprovação. Havia um ponto que me preocupava. Expu-lo a Nino.

- Se Johnny fica no Wahine, isso significa que Pat fica aqui sozinha. Eu não gosto disso.

- Nem eu - disse Nino -, mas penso que é necessário. Não nos podemos dar ao luxo de fazer qualquer mudança na nossa rotina. Ela acenderá a fogueira e fará a refeição, como o faz todos os dias. Pode terminar de comer e ir para a cama, se quiser. Ficará com a espingarda e a minha pistola, mas não me parece que vá precisar delas. No lugre, eles trabalham toda a noite; além disso, não arriscariam atravessar o canal na escuridão.

Pat assentiu e lançou-me um sorriso corajoso.

- Está tudo bem, Renn. Está mesmo. Estou habituada, lembra-se? Estava sozinha na ilha antes de o conhecer.

Submeti-me, é claro. Tinha de o fazer. Mas disse a mim mesmo que se sobrevivesse à noite seguinte, nunca mais a deixaria sozinha. Nino continuou, explicando paciente e detalhadamente as fases finais da operação.

- Assim que escurecer nós deixamos o acampamento. A signorina terá sandes e chá quente preparado para nós. Levamo-los para o lugar onde entraremos na água e comemos lá. É melhor, percebe, que não vejam demasiado movimento no acampamento depois de escurecer. Quando entrarmos na água lembre-se que temos um grande percurso à nossa frente e que devemos guardar as nossas forças para a viagem de regresso. Não se apresse, não bata os pés. Contente-se em manter-se no rumo certo, e deixe a corrente fazer o resto. Então, quando chegarmos ao navio, fique debaixo da popa, para que as bolhas se dissipem fora da vista do vigia. Vamos fixar quatro minas... duas a meia-nau, as outras à proa e à popa. Eu próprio farei isso. Vai flutuar ao meu lado e entregar-me as duas que vai transportar. E depois disso...

Ele encolheu os ombros e abriu as mãos num gesto de cómica resignação. Pela minha parte, estava menos bem humorado. Depois disso viria a corrida de oitocentos metros até ao canal, antes de as minas detonarem e as cargas de profundidade explodirem, e as ondas-de-choque assassinas golpearem os nossos corpos cansados. Depois disso, a corrida de oitocentos metros no canal turbulento e o percurso final para o Wahine. A maior parte de nós não ousaria vir à superfície por causa da metralhadora na proa do lugre negro.

- Agora - disse Nino abruptamente -, vamos para a cama. E você, jovem senhora - ele apontou um dedo ossudo a Pat e sorriu -, você vai para a cama primeiro. Beije o seu homem e diga-lhe que o ama. Depois vá para a cama. O mar é um assunto cansativo e amanhã ele terá de nadar pela sua vida.

Ela riu e beijou-me, e agarrou-me por um breve momento. Depois caminhou para a sua tenda, uma pequenina figura corajosa, ombros direitos, cabeça erguida.

Quando ela já não nos podia ouvir, Nino voltou-se para mim. Ele não sorria agora. Estava absolutamente sério. Disse bruscamente:

- Fi-lo parecer o mais simples que podia para a senhora. Mas não é simples. Vamos nadar em águas turbulentas até ao limite do suprimento de ar. Por volta da meia-noite de amanhã, podemos ambos estar mortos. Compreenda isso.

- Eu compreendo, Nino.

Ele voltou-se para Johnny Akimoto. Falou lapidarmente, energicamente, como um general dando as últimas ordens de batalha ao seu pessoal.

- Johnny, esta é uma operação que depende do tempo. Se não for assim fracassa, e nós somos homens mortos. Deveremos regressar pelas dez horas. Esse é o limite extremo da capacidade das botijas de oxigénio. Dê-nos até às onze. Se não estivermos a bordo, então, você saberá que estamos mortos. Johnny acenou gravemente em concordância. Nino continuou:

- O que não saberá é se conseguimos fixar as minas ou não! Pega no bote e rema até à costa, o mais silenciosamente possível, agarra na rapariga e trá-la para o Wahine. Então, liga os motores e segue em frente através do canal, a toda a velocidade. Ganhará algum avanço, porque eles terão de tirar os homens do fundo do mar e isso leva tempo. Depois disso, eles irão atrás de si a correr. Compreende?

- Compreendo muito bem - disse Johnny.

Eu também compreendi. Na sua voz seca, quebradiça e profissional, Nino tinha estado a discutir os pormenores do nosso funeral.

 

Johnny ia voltar ao Wahine. Acompanhei-o até à praia e fiquei com ele na areia húmida, sob as brilhantes estrelas frias. Cada um de nós sabia que este podia ser o nosso último encontro.

- Tome conta da minha miúda! - disse eu.

- Com a minha vida, p'trão Ren - respondeu Johnny Akimoto.

Contei-lhe sobre o dinheiro no banco. Disse-lhe que se alguma coisa me acontecesse, o dinheiro lhe seria entregue. Ele abanou a cabeça.

- Não, p'trão Ren. A mim não. Tem a sua própria “Wahine” para tomar conta.

- Ela não precisa dele, Johnny. Não o aceitaria de qualquer maneira. Eu quero que você fique com ele.

- Obrigado, p'trão Ren - disse Johnny.

É preciso ser um grande cavalheiro para aceitar um presente graciosamente. Johnny Akimoto era um enorme cavalheiro. Agradeci-lhe - suficientemente banal, sabe Deus - por tudo o que tinha feito por mim. Tentei, através de frases vacilantes e desajeitadas, transmitir tudo o que sentia por ele: respeito, admiração, o género de amor que cresce entre homens que beberam juntos o vinho do triunfo e saborearam as borras rançosas e amargas da derrota.

Ele ouviu-me, com embaraço. Então, com extrema simplicidade, disse uma coisa estranha e linda que recordarei até ao fim da minha vida.

- Onde quer que esteja, p'trão Ren, o meu coração estará consigo. Onde quer que eu esteja, o seu coração estará comigo. Boa noite... meu irmão.

Então ele agarrou a minha mão e pressionou-a contra o seu peito nu, largou-a e partiu. Ouvi o matraquear das forquetas e o agitar dos remos enquanto ele remava de regresso ao Wahine. Deus fez poucos homens como Johnny Akimoto. Muitas vezes me tenho perguntado se os terá feito a todos negros.

O dia seguinte começou como todos os outros.

Nadámos antes do pequeno-almoço. Andámos de um lado para o outro do acampamento. E quando as nossas tarefas terminaram, Nino tomou o barco de trabalho e levou-o até ao Wahine. Transportou com ele uma pequena caixa de madeira onde estavam as minas-lapa e os detonadores, embrulhados em algodão. Pat e eu fomos passear, de mãos dadas, para explorar as pistas que levavam ao nosso local de partida. Toda a ilha estava coberta, de ponta a ponta, com pegadas de cabra, mas precisávamos de um caminho que pudéssemos seguir sem dificuldade na escuridão, e que estivesse encoberto da praia e do vigia no lugre negro.

Encontrámo-lo, sem dificuldade. Calculámos que Nino e eu podíamos atravessá-lo confortavelmente em quinze minutos. Descemos ao local de partida e estudámo-lo cuidadosamente, tomando nota das saliências e cavidades rochosas, e dos troncos que estariam escondidos pela maré cheia. Depois retrocedemos, verificando as marcações no terreno que nos guiariam na escuridão - um ramo torcido, uma rocha saliente, uma moita de fetos arbóreos, o desabrochar perfumado de uma solitária flor de gengibre.

Então, completa a nossa missão de reconhecimento, atravessámos o bosque para o pequeno vale coberto de erva, e os lírios caindo da rocha. A sombra era-nos aprazível, e a frescura agradável. As palavras que trocámos foram simples, íntimas, lamentáveis. Éramos um homem e uma mulher que se amavam mutuamente e que sabiam que as próximas doze horas podiam ver o fim de todo o amor, e a morte de todo o desejo. No entanto, éramos como os velhos, velhos amantes transformados em mármore na praça do mercado cujas mãos se colaram, cujos olhos sempre olham os do outro, mas cujos lábios só não se beijam por um quase-nada, e cujos corpos anseiam eternamente por êxtases que nunca virão.

Nino Ferrari estava certo - o amor é uma luxúria dispendiosa quando um homem tem de nadar pela própria vida.

Virámos as costas ao nosso paraíso enganoso, e saímos do pequeno bosque para a luz do sol.

Nino estava no seu local habitual na praia. Desta vez, não estava a tomar banhos de sol. Estava sentado, encostado a um pequeno monte de areia, inspeccionando o lugre negro com os binóculos. Quando chegámos junto dele grunhiu uma saudação, disse-nos com um gesto curto para nos sentarmos ao seu lado, e continuou o seu escrutínio do barco. Então, entregou-me os binóculos. Estava a franzir o sobrolho.

- Diga-me o que acha daquilo, meu amigo?

Era uma cena curiosa e surpreendente. Um dos mergulhadores estava sentado no meio de um pequeno círculo de espectadores com um objecto, quadrado e escuro aos seus pés, mas o seu fato de borracha brilhava e pingava água. Ele tinha, evidentemente, acabado de subir. Estava a apontar para o objecto escuro e gesticulava atabalhoadamente como se explicando onde e como o tinha encontrado.

A tripulação estava agrupada à sua volta num círculo incompleto. Manny Mannix estava de frente para o mergulhador. Não conseguia ver o seu rosto, mas vi o floreado do charuto. Sabia que ele estava a interrogar o mergulhador rigorosamente.

- Bem, meu amigo, que se passa, que lhe parece?

Baixei os binóculos e voltei-me para Nino.

- Não sei exactamente. À primeira vista, o mergulhador trouxe alguma coisa do navio e eles estão à sua volta a discutir o assunto.

- Sabe o que é que eles trouxeram à superfície?

- Não. É um objecto escuro e quadrado... é tudo o que sei. Sempre que tentei focar melhor algum parvo se mexia e eu não conseguia ver.

- Eu vi-o - disse Nino sobriamente. - É a nossa caixa. A que encontrámos no camarote.

Rebentei de riso. A imagem de Manny Mannix, frustrado e enfurecido sobre aquela caixa vazia, apodrecida pelo mar, foi de mais para mim. Atirei a minha cabeça para trás e rugi.

- Estou contente por achar piada, meu amigo.

A voz gelada de Nino foi como água atirada à minha cara.

Parei de rir e olhei para ele. Depois olhei para Pat. O seu rosto estava tão perturbado quanto o de Nino.

- Não entendo - disse. - Lamento ser tão idiota, mas não entendo. Talvez tenha um sentido de humor peculiar, mas acho que tem piada... muita piada, mesmo.

- Não - disse Nino sobriamente, mordazmente. - Não tem piada. Não tem mesmo piada nenhuma. É um desastre para todos nós. Eles encontraram a nossa caixa. Estão a trabalhar há muitos dias, com mergulhadores e equipamento de bombagem. Não encontraram nada a não ser aquela caixa, partida. Agora estão a dizer a si mesmos que talvez nós tenhamos encontrado o tesouro, e o tenhamos transportado para terra. Estão a dizer que foi por isso que não lutámos, e nos deixámos expulsar da área de mergulho, sem dizer um único palavrão. Em breve, muito breve, virão para nos buscar.

Estava horrorizado. A simplicidade inflexível da situação, o súbito naufrágio de todos os nossos planos cuidadosos, deixaram-me por um momento sem poder de pensamento ou resposta. Olhei na direcção do Wahine e vi que Johnny Akimoto estava de pé, à proa, fazendo sombra sobre os olhos com a mão, observando os homens no convés do lugre. Perguntei-me se os seus pensamentos eram os mesmos que os nossos.

Ergui os binóculos outra vez. Vi o círculo de homens partir-se. Vi-os movimentarem-se pelo convés com a pressa disciplinada daqueles que se voltam para uma tarefa urgente mas familiar. Vi os operadores das bombas despirem o mergulhador do seu fato pesado. Vi o homem do gancho enrolando o seu cabo, colocando-o rapidamente no tambor, e atirando a cobertura de lona sobre ele. Entreguei os binóculos a Nino.

- Tem razão, Nino. Eles estão a preparar-se para agir.

- Então - disse Nino sumariamente -, é altura de agirmos também.

Apontei para o Wahine.

- E quanto ao Johnny?

- Johnny sabe o que é que se passa tão bem quanto nós. Não o podemos ajudar, ele não nos pode ajudar. Se quiser juntar-se a nós, tem tempo para o fazer, mas não me parece que abandone o Wahine.

- Nino tem razão, Renn - disse Pat calmamente.

- Mas eles matam-no!

- Eu penso - disse Nino secamente -, que tentarão matar-nos a todos. Johnny tem a espingarda e a munição. Tem a mesma hipótese que nós... um pouco melhor, penso eu, a não ser que o tentem abordar, o que duvido que façam.

Fez-se um momento de silêncio. Observámo-los a levantar a âncora. Ouvimo-los ligar os motores. Vimos a agitação sob a popa do lugre. Depois estavam em movimento.

- Venham - disse Nino bruscamente. - De volta ao acampamento. Há trabalho a fazer.

Voltámo-nos e subimos a correr para o acampamento. Chegámos ofegantes, mas Nino não tolerou qualquer atraso. A sua voz crepitou num disparo de ordens.

- Temos vinte minutos, talvez meia hora. Não mais. Eles nunca atravessaram o canal. Fá-lo-ão com cuidado. Irão ao Wahine. Depois disso virão ter connosco. Mais tarde ou mais cedo temos de parar e lutar. Há algum lugar onde o possamos fazer?

Tentei organizar os meus pensamentos. Eram como carneiros, espalhados pelo medo numa estrada do interior. Foi Pat que respondeu por mim. A sua voz estava calma e controlada.

- O pico ocidental. A fenda na rocha. É bastante profunda. Está entre a depressão principal e o flanco que se despenha no mar. Só existe uma maneira de a alcançar. Têm de subir pelo trilho das cabras. Com uma espingarda, podemos segurá-los durante bastante tempo.

Nino sorriu amargamente.

- Não lhe disse que tinha arranjado uma boa mulher? Agora, ouça, e ouça com atenção. Leve um cantil e comida. Leve a espingarda e as munições. Leve a faca do seu cinto de mergulho no caso... no caso de a munição acabar, ou de ter de lutar silenciosamente nos arbustos, depois, vocês os dois sobem até à fenda na rocha. Está claro?

- Muito claro, mas e você? Não vem connosco?

- Não, mas o que eu vou fazer também vos diz respeito, por isso devem compreender claramente o que lhes estou a dizer. Eles não podem trazer o lugre a terra. Por isso, irão enviar um grupo num bote. Estarão armados. Irão inspeccionar o acampamento primeiro. Depois irão explorar a ilha, à vossa procura.

Acenei em concordância. Nino continuou energicamente:

- Quando partir com a signorina, eu pego no equipamento de mergulho, na pistola e em duas minas-lapa, que é tudo o que posso transportar, atravesso o pequeno bosque e procuro um lugar onde me possa esconder nas rochas, e entrar na água sem ser visto. Então, quando puder, entro na água e nado até ao lugre e fixo as minas. Vou prepará-las para detonarem em três horas, depois nado até ao Wahine e flutuo sobre o seu flanco escondido, até ter uma oportunidade para subir a bordo. Essa é a minha função. Aquela é a vossa.

Ele fez uma pausa e limpou o suor do rosto com as costas da sua mão. Pat e eu observámo-lo silenciosamente, cheios de admiração por este homem com uma coragem de ferro e um cérebro como uma calculadora. Continuou:

- Sobem para a fenda na rocha sob o pico ocidental. Em breve, numa hora, hora e meia, eles alcançam-vos. Têm de os deter com disparos da espingarda para que eles não possam sair dos arbustos. Então, não consigo pensar como, têm de sair do buraco na rocha, descer para o bosque, e depois para a praia. Nadam até ao Wahine. Se Deus quiser, estarei à vossa espera. Navegamo-lo pelo canal antes da explosão. Está claro, agora?

Estava claro como água. A nossa pequena força seria dividida - Johnny no Wahine, Nino mantendo a sua vigília atrás das rochas, Pat e eu escondidos no nosso buraco na colina, esperando uma oportunidade para escapar pelo pequeno bosque como animais perseguidos, e descermos até à água. Não havia nada a adicionar, nada a subtrair, o cálculo estava feito. Era altura de partir. Estendi a minha mão, Nino agarrou-a.

- Boa sorte, Nino!

- Boa sorte, meu amigo... e para a jovem senhora!

Pat tomou o seu rosto magro nas suas mãos e beijou-o.

- Obrigada, Nino. Deus o proteja!

Coloquei os binóculos à volta do pescoço e prendi uma pequena lanterna ao cinto. Pegámos na espingarda, na munição, no cantil e num pequeno embrulho de comida e caminhámos para o bosque. Nino ficou um momento a olhar para a água, depois virou-se e entrou na tenda.

A meio caminho da colina parámos para olhar para trás. Um intervalo nas árvores deu-nos uma visão clara da lagoa e do recife exterior.

O lugre negro estava a sair do canal agora. Vimo-lo dar alguns solavancos nas águas turbulentas, depois deslizar em frente para a calmaria. Eles desligaram os motores e ele moveu-se lentamente na direcção do local onde o Wahine permanecia ancorado. Estava a três amarras de distância quando desceram a âncora. Praguejei suavemente. Os rapazes sabiam o que faziam. Estavam atracados bem na perpendicular do canal. O Wahine não podia sair sem um amplo desvio ao longo do qual a metralhadora podia varrer a tiro, cada centímetro do seu convés. Vimos o bote descer e meia dúzia de homens a treparem para dentro dele. Eram quatro nos remos e um à popa, com uma espingarda nos joelhos. Havia outro à proa.

Olhámos para o Wahine. Johnny Akimoto estava a meia-nau, ligeiramente afastado da amurada, segurando a espingarda calmamente por baixo da anca. Os remadores faziam o barco avançar com longos golpes calmos sobre a água intermédia, até estarem quase sobre a popa do Wahine. Então remataram à ré e pararam-no, baloiçando um pouco contra as ondas. Johnny Akimoto não se mexeu.

Voltei a olhar para o lugre negro. Manny Mannix e o resto da tripulação alinhavam no convés. Estava um homem atrás da metralhadora na proa. Ele estava acocorado e a fazer pontaria sobre o convés do Wahine.

Quando foquei os binóculos novamente no Wahine, vi que Johnny continuava na mesma posição, enquanto o tipo na proa do barco a remos falava e acenava com as mãos. Ele queria subir a bordo. Johnny abanou a cabeça. O tipo falou de novo, os seus gestos eram abruptos, como os de um boneco zangado. Vi Johnny erguer a espingarda lentamente, muito lentamente. Captei o movimento da sua mão enquanto ele empurrava o ferrolho e tirava a cavilha de segurança.

Então, uma rajada da metralhadora ceifou-o.

 

As aves marinhas esvoaçaram em completo horror das rochas e dos recifes. Os ecos dos disparos ressoaram, estilhaçando-se ao longo do vale, entre os picos. Num momento suspenso de choque e terror, vimos o corpo de Johnny Akimoto voar para trás, cair, contorcendo-se e rodopiando contra a porta da escotilha, e só então ficou quieto.

Pat enterrou o rosto nas mãos. O seu corpo foi golpeado por profundos soluços de horror. Os ecos morreram. As aves marinhas acalmaram-se outra vez; e o silêncio da morte estava suspenso no ar, entre a ilha e o mar.

Então, o meu estômago deu um nó e vomitei nas folhas mortas. Quando levantei de novo o olhar vi que os homens do bote corriam pelo barco como ratos - mergulhando pela escada de tombadilho, arrancando as portas da escotilha, profanando cada canto do barco que tinha sido a mulher de Johnny Akimoto. Então, a raiva surgiu em mim, uma profunda agonia arrancou-me a alma, que me pôs a dizer atabalhoadamente obscenidades, e a saltar e gritar como um louco para os homens que tinham morto o meu irmão. Depois, a raiva morreu numa desolação vazia e nós virámo-nos, escalando a colina lentamente ao longo da depressão para a fenda escura nas rochas.

Um cheiro podre a animais pairava pesadamente à entrada. Quando apontei a lanterna para o interior, uma cabra idosa baliu e saltou para o exterior por entre os nossos pés. O seu pêlo era longo e emaranhado, e cheirava horrivelmente. O chão no interior da caverna era fundo e inclinado. Apontei a lanterna para a parede do fundo e vi que estava interrompida por outra fenda, mais estreita, para além da qual ficava a escuridão. Quando ergui o feixe para o tecto, uma pequena colónia de morcegos agitou-se e guinchou, e entrou quase em pânico. Acalmaram-se quando apontei a luz para as paredes circundantes.

Pat tremeu e colocou-se junto a mim. A luz da lanterna mostrou uma pequena saliência nas paredes rochosas. Raspei a sujidade com a sola do meu sapato e pousei a comida, o cantil e as munições. Voltei-me para Pat e disse:

- Quando o tiroteio começar, querida, é aqui que vais ficar. De cabeça baixa e resguardada pela rocha. Não poderás ajudar-me muito, quando eles começarem a disparar para a caverna, e as balas começarem a golpear as paredes, mas, pelo menos, serás capaz de me passar as munições.

Ela assentiu, como se não conseguisse ter confiança para falar. Peguei na sua mão e levei-a para a luz. Nos arbustos perto da caverna, encontrámos duas grandes pedras cobertas com musgo. Transportámo-las para a entrada para que fizessem de ameias de uma pequena fortificação que me desse alguma protecção quando o tiroteio começasse, e me deixasse uma razoável vista do trilho em baixo.

Inspeccionámos o bosque de ambos os lados da fenda, tomando nota, com desesperada precisão, de cada arbusto e rocha e tronco caído que nos pudesse proteger quando fizéssemos a nossa corrida desesperada para a praia. Quando vi quão escarpada era o trilho de cabras em frente da fenda, agarrei-me à pequena consolação de que um homem, aproximando-se dela, tinha de caminhar direito a mim.

Então, feita a exploração, preparada a nossa pequena fortaleza, tanto quanto podia contra o cerco que se aproximava, ficámos juntos em frente do buraco negro na rocha, e baixámos os olhos para o acampamento, para a praia e para o mar.

Os ratos já tinham deixado o Wahine. Tinham farejado e corrido e sondado, e depois saltado borda fora, com os seus desejos insatisfeitos. A figura escura e encolhida continuava deitada na porta da escotilha, e o Wahine baloiçava na água como uma mulher embalando a sua dor solitária.

Agora, eles vinham para terra - desta vez dois botes cheios -, quatro homens por barco, com Manny Mannix sentado na popa da embarcação a liderar. A luz do sol cintilava nas suas costas suadas à medida que eles se dobravam para os remos. Vi então os seus lábios moverem-se enquanto falavam e riam, embora não conseguisse ouvir um único som. Estavam armados - dois com espingardas automáticas, o resto com pistolas. Remaram com rapidez para a costa e deixaram os botes bem acima, na praia. Depois separaram-se e avançaram pela ladeira, na direcção do acampamento, com Manny Mannix na retaguarda, como tipo cauteloso que era.

O ruído dos seus gritos foi trazido debilmente, enquanto os observávamos escarafunchando o acampamento, voltando caixotes e caixas, arrancando-lhes as tampas, pontapean-do-os com furioso desapontamento. Então, quando não encontraram nada, pararam. Reuniram-se desanimadamente à volta de Manny enquanto ele discursava. Podíamos adivinhar o que lhes dizia. O tesouro tem de estar algures na ilha. Se nos encontrassem, também encontrá-lo-iam. Vimo-lo apontar para cima, para o pico, fazendo um movimento amplo com o seu braço na direcção das ladeiras superiores. Vimo-lo dobrar-se e traçar linhas na areia, enquanto os outros inclinavam as suas cabeças para olhar para ele. Depois endireitou-se. Os homens puseram-se em fila numa longa linha, na franja da vegetação da areia. Manny tomou o seu lugar no centro da linha. Vi-o levar a mão ao peito do seu casaco branco e retirá-la, segurando uma pistola negra de canos longos. Depois acenou e gritou alguma coisa que não consegui ouvir, e toda a fila se moveu para a frente, na direcção do bosque. Vinham atrás de nós. Era altura de nos retirarmos para a nossa fortaleza nas rochas.

Quando estávamos lá dentro, fiz Pat deitar-se sobre o estômago no chão, de maneira que a sua cabeça ficasse protegida pela saliência da rocha. Estava preocupado com o que podia acontecer quando Manny e os seus rapazes começassem a disparar para a abertura da caverna. As balas zumbiriam como abelhas furiosas, fazendo ricochete entre as paredes. Ocorreu-me uma ideia súbita.

Entreguei-lhe a lanterna, avisando-a para esconder a luz com a sua mão, e mandei-a explorar a abertura estreita na parede dos fundos. Ela começou a protestar. Silenciei-a com um gesto. Ouvi-a mover-se cuidadosamente para a escuridão. Vi o pequeno brilho avermelhado da lanterna através dos seus dedos. Então, ela chamou suavemente:

- É bastante largo, Renn. Não consigo ver tudo. Mas há uma parede bastante grande à esquerda da entrada. O chão também é limpo.

- Óptimo! Deite-se atrás dela. Desligue a lanterna. E não saia de lá, aconteça o que acontecer. Se alguma coisa me acontecer, fique aí. Pode ser que pensem que estou sozinho e a deixem.

Ouvi-a dar um pequeno grito e dei meia volta para a confortar. Então muito perto, ouvi as vozes e os passos de homens desajeitados através do bosque.

Chamei suavemente, avisando-a. Ela não respondeu.

Tomei um enorme golo do cantil, puxei as munições para perto da minha mão, e estatelei-me na posição de disparo entre as duas rochas.

Puxei o ferrolho da espingarda, e depois empurrei-o, enfiando um cartucho na culatra. Depois enfiei o cano entre as pedras, o suficiente para me dar uma vista da aproximação, empurrei a coronha fortemente contra o meu ombro e espreitei para o trilho inclinado.

Era por ali que eles viriam. Não havia outro caminho. Podiam avançar pico abaixo, podiam subir ao longo do flanco da montanha; mas, no fim, tinham de aparecer no trilho das cabras e eu vê-los-ia.

Tentei pensar qual seria a sua táctica, como a pensaria o próprio Manny. Disse a mim mesmo que colocaria dois homens com espingardas automáticas nos arbustos, em ambos os lados do trilho. Estes dois começariam a fazer fogo cruzado para a caverna, varrendo-me com tiros, encurralando-me, enquanto os outros rastejariam ao longo do bosque para me atacar à queima-roupa. Um homem, com uma espingarda vulgar, não podia sobreviver muito tempo a uma manobra como aquela. Tomei alguma coragem ao lembrar-me que Manny tinha lutado a sua guerra a partir de King's Cross, e podia muito bem ter esquecido o que lhe tinham ensinado enquanto recruta.

O meu corpo estava apertado; os meus braços doíam. Os meus cotovelos estavam feridos pelo chão áspero. O suor corria-me pelo rosto, o pequeno nódulo da mira oscilava e tremia.

Mudei-me e pus-me mais confortável à medida que o ruído se aproximava.

Eles já não avançavam em formação. As vozes estavam dispersas. Tropeçaram e praguejaram, e gritaram uns com os outros, quando perderam o contacto entre os troncos das árvores e os arbustos espessos, e as vinhas trepadeiras. Imaginei-os, suando e furiosos, a carne rasgada por silvas e galhos, atormentados por moscas e mosquitos zumbidores, e sorri amargamente para mim mesmo.

Então, pareceram juntar-se. Os passos convergiram num local perto do sopé do trilho. A gritaria cessou. Houve um balbuciar de vozes, depois um murmúrio, sobre o qual ouvi uma única voz sombria, crepitando numa enxurrada de palavras inteligíveis. Depois os murmúrios começaram outra vez - mal humorados, protestando.

Três segundos depois, Manny Mannix apareceu no trilho. O seu fato de pato branco estava amarrotado e manchado. Ele tinha perdido o seu chapéu. O seu rosto estava coberto de suor e encardido. Parecia zangado e infeliz. A sua boca estava a mexer; ouvi o som nasal, rosnado da sua voz, mas não conseguia distinguir as palavras. Ele balançou a pistola perigosamente e apontou primeiro para o chão, e depois olhou directamente para a entrada da caverna.

Então, eu atingi-o entre os olhos.

O impacte atirou-o para trás ao longo do trilho, rodopiando. Ele encolheu-se e ficou quieto.

Ouvi o eco do disparo ecoar pelo cume. Ouvi o tumulto súbito das aves marinhas. Retirei o cartucho usado e enfiei outro cano acima. “Agora”, pensei, “eles viriam.”

Mas não vieram. Separaram-se e fugiram. Ouvi uma voz gritar:

- Manny está morto!

Depois toda a lamentável tripulação fugiu, tropeçando e mergulhando, e gritando ladeira abaixo. Então, estava de pé na entrada da caverna disparando ao acaso para o bosque. Ouvi um grito de dor e o estrondo de um corpo a cair e gritei e disparei outra vez, rindo loucamente enquanto ouvia o profundo lamento das balas através das árvores...

Perguntei-me irrelevantemente, o que teria acontecido a Nino Ferrari.

Depois, Pat estava ao meu lado e ficámos a observar a louca debandada atravessar a orla do bosque, e tropeçar embriagado para os barcos varados. Atirei a espingarda quente para o chão e encostei-me à parede rochosa, soluçando e com vómitos, e tremendo como se estivesse com febre.

Quando o espasmo passou, Pat entregou-me o cantil e eu bebi, engasgando-me a princípio, depois bebendo o líquido fresco e insípido como se tivesse um fogo na barriga. Então, deborquei-o e entornei a água sobre o meu rosto, e pescoço, e peito como se lavasse a imundície de um pesadelo que se agarrara a mim, mesmo depois de acordar. Então, também ela perdeu o controlo, e soluçou, e agarrou-me, o seu rosto no meu peito, beijou-me, agarrando-me, chorando e rindo ao mesmo tempo, pressionando o meu corpo contra o dela como se para se assegurar que eu ainda estava vivo e inteiro... não morto como Manny, um destroço sangrento no trilho das cabras, com as moscas zumbindo à volta do seu rosto devastado.

Então, ela tomou-me pela mão, e guiou-me para o interior da caverna.

Estava demasiado exausto para a interrogar, demasiado esgotado para me surpreender com pequenos mistérios. Humildemente, deixei-me guiar sobre o chão imundo da primeira câmara para a abertura escura na parede. Pat ligou a lanterna.

Vi uma larga câmara abobadada, três vezes maior que a primeira, com um chão arenoso e paredes de minério de ferro, sobre as quais a água corria lentamente sobre uma cobertura de vegetação fungiforme.

Ela baloiçou o feixe da lanterna até repousar no canto mais afastado. Disse suavemente:

- Olhe, Renn!

Saltei para trás com horror momentâneo. Esticados no chão arenoso estavam os ossos esbranquiçados de um esqueleto. A dois passos de distância estava outro, de barriga para baixo... os seus dedos descarnados cravavam a areia. Os seus joelhos estavam dobrados por baixo das suas costelas numa atitude fetal.

A mão de Pat estava a tremer. A luz da lanterna balançava no estranho entrelaçar de ossos nus. Tirei-lha e agarrei-a firmemente. Aproximámo-nos.

O primeiro esqueleto estava deitado de costas. Os ossos estavam levemente deslocados pelo fossar das cabras que o tinham despido de qualquer traço de roupa, que não tinha apodrecido e desintegrado com o passar dos séculos. Perto dos seus dedos estava uma antiga pistola. O seu punho de madeira estava bolorento e carcomido, e o metal estava enferrujado para além de qualquer recuperação.

À volta do dedo mindinho do esqueleto estava um anel de ouro no qual um grande rubi cabochão brilhava monotonamente sob o pó de séculos. Mas isto não era tudo.

Através da caniçada nua das costelas, um longo punhal fino tinha sido introduzido, de maneira que a sua lâmina ferrugenta continuava enfiada profundamente na areia. O aço estava picado e corroído, mas o cabo estava encrostado com jóias que brilhavam sob a luz da lanterna.

- Ele foi assassinado - disse Pat calmamente. Assenti e voltei a lanterna para o outro esqueleto. Os dedos estavam profundamente enterrados na areia, para onde eles se tinham arrastado no seu último esforço para sobreviver. O que restava do crânio também estava enterrado, mas a nuca estava exposta - um suave osso esferoidal amarelo, perfurado por um largo buraco redondo.

- Ele apunhalou o outro sujeito - disse eu. - Depois foi atingido quando se voltou.

- Sim. Mas há mais um pormenor, Renn. Olhe!

Apontei a lanterna e inclinei-me mais para a areia. Claramente visível através das costelas esbranquiçadas do esqueleto, agarrado contra o seu esterno, tal como ele as deve ter agarrado na última e breve agonia, estava uma pilha de moedas de ouro.

Tínhamos encontrado o tesouro do Dona Lúcia.

Pat agarrou o meu braço. Estava a tremer violentamente, mas esforçou-se a falar.

- Eles escaparam, Renn. Não vê? Escaparam do naufrágio em que todos os seus companheiros morreram. Lutaram para chegar à costa com estes vestígios de uma fortuna... o punhal adornado com jóias e uma mala de moedas de ouro. - A sua voz elevou-se ao primeiro indício de histeria. - Eles tiveram sorte. Tinha-lhes sido concedida misericórdia. Mas não lhe deram valor. Tudo o que valorizaram foi...

- Pronto, querida! Pronto! - Coloquei o braço sobre os seus ombros para a confortar. - Foi há muito, muito tempo. Acabou tudo há duzentos anos.

Ela libertou-se com um empurrão, e martelou o meu peito com os seus pequenos punhos. Gritava, angustiada.

- Não acabou! Nunca acaba! Acontece sempre. Homens lutando e matando-se uns aos outros por isto... este refugo amarelo que até as cabras rejeitam. Aconteceu hoje, Renn. Aconteceu consigo e comigo, e com Nino, e com Johnny Akimoto.

Então, foi como se ela tivesse sido esbofeteada na cara. A luz desenfreada extinguiu-se nos seus olhos. A sua boca tombou frouxamente. Ela fixou-me num sofrimento vazio.

- Johnny está morto, Renn... Johnny Akimoto está morto...

Ela desmaiou e apanhei-a nos meus braços, e carreguei-a para o sol como a uma criança doente.

 

Deitei-a numa cama de folhas à sombra de uma grande pisonia. Arranquei a minha camisa e dobrei-a por baixo da sua cabeça. Banhei o seu rosto e forcei-a a beber um pouco de água. Passados alguns momentos ela abriu os olhos, e olhou para mim, confusa; então, a sua cabeça caiu frouxamente para um lado e ela deslizou para um sono profundo de completa exaustão.

Fiquei a olhar para ela durante algum tempo, tocado por um desejo exausto por este pequeno corpo perfeito, e com pena e amor e gratidão pelo inteligente espírito corajoso que ele encobria. Deixei-a a dormir e dei alguns passos para a abertura da caverna.

Em breve teríamos um longo caminho; um longo percurso a nado à nossa frente, e a minha cansada rapariga não estava ainda em condições de o enfrentar. Olhei para a lagoa e vi que os botes estavam paralelos ao lugre negro e que a sua tripulação subia a bordo pela vigia do convés. O Wahine continuava atracado. O corpo de Johnny continuava, sem assistência, deitado no convés escaldante. Não havia sinal de Nino Ferrari.

Sentei-me numa laje de rocha castanha, acendi um cigarro e ponderei a situação.

O pequeno exército de maltrapilhos, chefiado por Manny, tinha-se separado e fugido ao primeiro tiro; mas não havia qualquer garantia de que eles não se arrependeriam da sua cobardia e voltassem, melhor liderados, para nos procurar, e ao tesouro. Mesmo assim, não podíamos deixar a ilha até que viessem outra vez a terra. Teríamos que nadar à superfície até ao Wahine, mesmo por baixo da metralhadora.

Por outro lado, se eles demorassem muito, as minas-lapa detonariam e as cargas de profundidade explodiriam quando o lugre afundasse. O Wahine estava fundeado tão perto dele que não poderia escapar sem ficar danificado, ou até mesmo totalmente destruído. Sem tripulação, ele podia facilmente ser arrastado do lugar onde estava ancorado, e atirado contra o recife pelas primeiras ondas da explosão.

Se isso acontecesse, estaríamos em pior situação que antes - tanto assassinos como as vítimas presas numa ilha da barreira. Senti um arrepio no sol quente. A perspectiva era grotesca mas muito possível. Três horas, dissera Nino. Três horas a partir do momento de fixação das minas-lapa ao casco do lugre negro. Pensei que não mais que hora e meia havia passado desde que Pat e eu tínhamos deixado a praia e caminhado para a colina. Descontando o tempo para o percurso a nado de Nino, pensei que não faltariam mais que duas horas para a explosão.

Inspeccionei a água verde da lagoa em busca de algum sinal da sombra de Nino, na luz solar refractada. Não havia qualquer sombra. Não havia qualquer bruxulear ou ondulação que pudesse mostrar onde ele estava.

Olhei para o lugre. A tripulação estava amontoada num grupo que gritava e gesticulava, a meia-nau. Estavam a discutir uma nova incursão pelo tesouro, ou uma rápida corrida recife acima para águas seguras, antes que a notícia das mortes atingisse o continente. Existiam cem ilhas entre Macassar e Bandoeng, onde um homem com um barco e uma tripulação voluntariosa podia fazer o seu próprio preço por um pequeno e “honesto” contrabando de armas.

Reparei que os botes continuavam amarrados paralelamente, com os remos no interior, as suas popas balançando e batendo contra a madeira. Pensei que se eles não tivessem os botes a bordo dentro de vinte minutos, isso significaria que tencionavam ficar e procurar-nos. Se os içassem para bordo e os amarrassem com firmeza partiriam muito em breve. Se não tivessem partido em duas horas, o lugre explodiria dentro do recife e haveria um genocídio sangrento na areia branca da minha ilha.

Decidi que deixaria Pat dormir mais algum tempo; depois desceríamos à praia e esperaríamos. Se o lugre partisse, muito bem. Se ele ficasse, esperaríamos pela explosão, e só então pegaríamos no barco de trabalho e iríamos direitos ao continente.

Apercebi-me, assustado, que não tinha quaisquer meios de avisar Nino Ferrari. Mesmo se, meio submerso por debaixo da popa do Wahine, ele tivesse visto a louca corrida para bordo, e o que poderia ter significado.

Então, ocorreu-me uma ideia. Descontando mais vinte minutos para Pat descansar o suficiente para a caminhada. Descontando meia hora para o caminho. Ainda sobraria uma hora antes das minas explodirem. Tempo suficiente para eu colocar o meu próprio equipamento de mergulho, e nadar através da lagoa até ao Wahine. Havia o problema de entrar na água sem ser visto do lugre. Mas Nino tinha-o feito, eu também o podia fazer.

Agora que a decisão estava tomada, senti-me subitamente exausto, e vagamente melindrado pela nova exigência de esforço e de força. Olhei para Pat. Continuava a dormir. A sua respiração era profunda e regular, e a cor fluía lentamente de regresso sobre a pele de marfim. Um pequeno insecto pousou no seu rosto; ela agitou-se, desconfortável, e afastou-o com um gesto instintivo, mas não acordou.

No momento em que me sentei, indolente e cansado, a ver a minha mulher a dormir, e toda a maravilha verde da ilha estendida sobre mim, e a vastidão azul do oceano, tomei consciência de uma sensação nova e estranha. Um sentimento de truncamento e de perda, porque o meu amigo estava morto e porque os últimos traços de inocência tinham sido arrancados quando vi o mal cru do mundo, e quando matei o homem que, acima de tudo, me encorporava. Não senti culpa, apenas desgosto e desilusão. Mas senti algo mais, também um sentimento de posse e de permanência, como se o homem sem terra estivesse agora livre da sua própria posse, como se o historiador cego, tivesse aberto os olhos, ao menos para ver a louca maravilha do mundo e para saber que eu também fazia parte da sua turbulenta história.

Um homem é inteiramente adulto quando tiver aprendido esta verdade: não há misericórdia no mundo, à excepção da misericórdia do Todo-O-Poderoso. Não existe nem paz nem permanência, nem posse segura, até que um homem se escarrancha no seu pequeno lugar, e desafia todos os que aparecerem para o expulsarem dali.

Levantei-me, deitei fora o meu cigarro e voltei a entrar na caverna. Peguei no cantil vazio, abri a tampa de lona e carreguei-o para a grande câmara abobadada. Virei o esqueleto amontoado, fiquei surpreendido ao descobrir que era tão leve, e enfiei as moedas embaciadas no cantil. Encheram-no quase até ao cimo. Depois, coloquei a mão no punho encrustado de jóias do punhal, arranquei-o da areia, e coloquei-o em cima das moedas.

As moedas não me queimaram. O punhal não cortou a minha mão.

Homens tinham morrido por causa deles. Eu tinha lutado, e sobrevivido, para os apreciar. Eram meus, para usar ou deitar fora, a meu bel-prazer.

Endireitei-me e fiquei por um momento a olhar para baixo, para as miseráveis relíquias esbranquiçadas na areia. Não tinham nada para me dizer, nem eu a elas. Um abismo de dois séculos repousava entre nós, e as suas vozes tinham sido arrastadas há muito pelos ventos do deserto do tempo.

Desliguei a lanterna, peguei no cantil, e saí da caverna.

Acordei Pat e ajudei-a a pôr-se de pé. Ela lançou-me um pequeno sorriso pálido e disse:

- Lamento, Renn. Não foi muito amável da minha parte, pois não?

Beijei-a e abracei-a por um momento. Então, disse-lhe o que íamos fazer. Entreguei-lhe os binóculos e mostrei-lhe o convés do lugre, onde os homens histéricos estavam agora silenciosos, acocorados num pequeno círculo à volta do capitão, discutindo a próxima manobra. Os botes continuavam na água, balançando. Ela devolveu-me os binóculos.

- Renn?

- Sim, querida?

- Pensa que Nino ainda está vivo?

- Claro. Não conseguimos vê-lo porque provavelmente continua na água. Deve estar sob a popa do Wahine, economizando o resto do seu ar para o percurso de regresso. Nino já fez este tipo de coisa antes, lembre-se.

Ela assentiu e disse suavemente:

- Renn, gostava que isto acabasse.

- Vai acabar, querida - disse-lhe gravemente. - Vai estar tudo acabado antes do pôr do Sol.

Enfiei o resto das munições no meu bolso, dei a Pat a pequena porção de comida, depois peguei na espingarda e dobrei-me para o cantil que continha o remanescente do tesouro do Dona Lúcia. Quando Pat o viu, olhou para mim com estranheza, mas não disse nada. Respondi-lhe à sua pergunta sem palavras.

- Sim, querida, vou levá-lo. Vou levá-lo porque lutei por ele e ganhámo-lo. Vou levá-lo porque há dívidas a pagar, e uma casa, e uma vida a ser construída por nós.

Ela arrepiou-se um pouco e disse:

- Estão manchadas de sangue, Renn.

- Sim, estão manchadas de sangue, querida. Também há sangue na ilha. Há sangue no convés do Wahine. Há sangue em cada hectare e em cada soleira de porta onde os homens apareceram, primeiro em paz, e quando lutaram contra aqueles que apareceram, com violência, para destruir a sua paz. Compreende?

- Dê-me algum tempo, Renn - rogou ela suavemente. - Dê-me tempo e algum amor. Então, compreenderei.

Descemos o trilho das cabras até ao corpo de Manny Mannix, apodrecendo ao sol. Passámos por cima dele, sem ao menos um olhar de soslaio, virámos para baixo, por entre as árvores.

Quando alcançámos a última franja do bosque, antes do acampamento, saltámos para o chão e desviámos as folhas, olhando através da água, na direcção do lugre negro. Um dos botes já estava a bordo. Dois homens estavam a amarrá-lo no convés. O outro estava a ser içado.

Estavam de partida.

Durante longos minutos, ficámos ali deitados, mal ousando ter esperança.

Então, vimos a âncora a ser içada e ouvimos o ligar dos motores. Lentamente, o lugre negro dirigiu-se para o canal. Levantámo-nos e caminhámos para o acampamento.

Nino Ferrari estava deitado na areia quente, fumando um cigarro.

- Pensei que viriam - disse suavemente.

A sublime desfaçatez do homem, tirou-me o fôlego.

- Que raio...

Ele acenou uma magra mão trigueira.

- Fiz um tempo melhor do que esperava. Fixei as cargas; depois nadei até ao Wahine para respirar. Ouvi um tiro, depois vi-os correr como gado na praia, adivinhei o que tinha acontecido.

- Eu matei Manny Mannix.

- Eu sei. Esperei que eles remassem até ao lugre. Então, enquanto eles estavam ocupados a explicar que heróis tinham sido, nadei de regresso à costa. Estava cansado. Precisava de descansar.

Então, mostrei-lhe o cantil com as moedas de ouro e o punhal.

Ele assobiou suavemente.

- Onde?

- Na caverna, por detrás da fenda. Pat encontrou-os... com dois esqueletos. Mataram-se um ao outro.

- É sempre assim, no fim - disse Nino, indiferentemente.

Então, vi que os seus olhos não sorriam. O seu rosto estava cinzento. Parecia cansado e envelhecido. Na mesma voz indiferente respondeu-me à pergunta que não ousei colocar.

- Muito em breve.

Levantei-me da areia e descemos os três até à beira da água.

A maré estava a encher rapidamente, e o lugre negro balançava através do canal. Os homens no convés olhavam para trás na direcção da ilha e apontavam. Pensei que talvez tencionassem trabalhar no navio outra vez, ou que, tendo-nos visto, mudariam de rumo quando tivessem saído do canal e regressariam para atacar.

Mas não o fizeram. O lugre saiu das águas turbulentas para o amplo oceano. O homem do leme segurou-o firmemente, rumando ao sul, até que estava livre da corrente do recife, e voltou-o para oriente, quando o sol-poente lançava as longas sombras dos seus mastros sobre a água.

Então aconteceu.

Ouvimos o estrondo surdo de uma explosão, depois outro. Grandes jorros de água foram atirados para o ar. O lugre pareceu erguer-se das águas até vermos a linha da sua quilha. Depois voltou a cair, inclinando-se quando atingiu a água. Vimos os corpos dos homens serem projectados como bonecos para o ar, caindo no mar efervescente. Então, ele rodou completamente. Os seus mastros submergiram, as suas escotilhas foram encobertas e vimos os buracos enormes que tinham sido abertos na sua madeira. As águas encerraram-se sobre ele agitando, borbulhando e revolvendo-se, enquanto os corpos da tripulação foram arremessados como rolhas, e pedaços dos escombros atirados como fichas no redemoinho.

Vimos as águas acalmarem-se lentamente, e grandes ondas a separarem-se, e virem a correr na direcção do recife. Alguns dos homens agarravam-se a pedaços dos destroços, outros flutuavam na água baloiçante como se estivessem mortos. Dois ou três avançavam com lamentável lentidão para a ilha.

- Ainda não acabou - disse Nino Ferrari.

Segundos passaram - longos, implacáveis segundos, enquanto nós os três ficámos num silêncio de horror, à beira da água. Depois, uma após outra, as cargas de profundidade explodiram... quatro delas.

De novo, houve o saltar e jorrar de água e o cuspir de corpos, como esguichos de uma fonte, de volta para o mar. Areia, peixes e algas foram vomitadas para o alto, pelo leito do oceano. A água espirrou e borbulhou como piscinas de lava vulcânica.

Agora não havia qualquer nadador, apenas impotentes formas baloiçantes num refugo de água agitada. Durante horas, assim pareceu - ainda que não pudessem ter passado mais que alguns minutos - ficámos como estátuas, olhando para o último e horripilante acto de uma tragédia antiga e sangrenta.

Então, o borbulhar e a ondulação aquietaram-se, e as longas ondas alargaram-se. O sol, dirigindo-se para ocidente, salpicou a água límpida de dourado e carmim. Vimos as barbatanas negras dos tubarões convergindo para a matança.

Pat Mitchell e eu voltámos as costas e subimos lentamente a praia na direcção da tenda.

Quando olhei para trás, vi que Nino Ferrari continuava parado, uma figura magra, sem piedade, à beira da água. As suas costas estavam direitas. A sua cabeça levantada. Fazia sombra sobre os olhos com a sua mão, e olhava fixamente a água vermelho-sangue.

A sua longa sombra distorcida repousava ao seu lado... como um cadafalso na areia.

 

                                                                                            Morris West  

 

                      

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