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O TESTAMENTO - P.2 / John Grisham
O TESTAMENTO - P.2 / John Grisham

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O TESTAMENTO

Segunda Parte

 

Flowe, Zadel e Theishen, os três psiquiatras que haviam examinado Troy Phelan apenas algumas semanas antes e apresentado uma opinião clínica unânime, tanto em vídeo como posteriormente por meio de longos depoimentos ajuramentados, em que atestavam que ele estivera de posse de todas as suas faculdades mentais, foram sumariamente despedidos. Não só foram despedidos, como também foram repreendidos pelos advogados dos herdeiros Phelan, que lhes disseram que eles não estavam bons da cabeça, e que estavam mesmo completamente «pírulas».

Contrataram-se os serviços de outros psiquiatras. Hark pagou os serviços do primeiro ao preço de trezentos dólares à hora. Descobrira o seu nome numa revista especializada em julgamentos, nos anúncios classificados que abrangiam analistas de radiografias, até aos que se dedicavam à reconstituição de acidentes de viação. O doutor Sabo era um homem que desistira da prática clínica, mas que actualmente se encontrava disponível para vender o seu testemunho. Um rápido olhar ao comportamento do senhor Phelan e ele aventurou-se a dar uma opinião preliminar, de acordo com a qual o homem carecera claramente de capacidades testamentárias. O acto de saltar de uma varanda abaixo não se coadunava com uma mente lúcida e clara. Para além de que o facto de ter deixado uma herança de onze mil milhões de dólares a uma desconhecida comprovava, sem margem para dúvidas, que se tratava de uma pessoa profundamente perturbada.

Sabo saboreava a ideia de trabalhar no caso Phelan. A probabilidade de poder refutar a opinião clínica dos três primeiros psiquiatras era um desafio estimulante. A publicidade que rodeava o caso também era um factor deveras atractivo - nunca lhe passara pelas mãos um caso célebre. Para não mencionar que os honorários que ia receber chegariam para custear uma viagem ao Oriente.

Todos os advogados dos Phelan se esforçavam afincadamente em arrasar o testemunho dos doutores Flowe, Zadel e Theishen.

A única maneira de os desacreditar era encontrar novos peritos que perfilhassem opiniões contraditórias à que fora inicialmente adiantada.

O montante chorudo que os advogados viessem a receber à hora compensariam quaisquer contingências. Contudo, os Phelan não estavam em condições financeiras que lhes permitissem satisfazer os honorários mensais, muito substanciais, que estavam prestes a ter de custear, em virtude do que os seus advogados acederam, graciosamente, a simplificar a questão estabelecendo percentagens. As quantias que estas atingiriam eram colossais, se bem que nenhuma firma estivesse na disposição de divulgar em quanto é que a sua fatia se cifrava. Hark pretendia quarenta por cento, mas Rex censurou-o pela ganância que manifestava. Finalmente, concordaram em ficar-se pelos vinte e cinco por cento. Grit conseguiu esmifrar essa percentagem a Mary Ross Phelan Jackman.

O vencedor incontestável era Wally Bright, o lutador de ruas, que insistiu numa combinação equitativa com Libbigail e Spike. Receberia cinquenta por cento do montante que lhes coubesse.

Na competição renhida que teve lugar antes de darem entrada em tribunal dos respectivos processos, nem um único dos herdeiros Phelan se interrogou se estariam a proceder da melhor maneira. Confiavam nos seus advogados, e além do mais todos os outros contestavam a validade do testamento. Nenhum deles se poderia dar ao luxo de ficar de fora. Havia muita coisa em jogo.

Porque Hark era dos advogados dos Phelan o que mais fazia ouvir a sua voz, despertou a atenção de Snead, o antigo moço de recados de Troy Phelan, que tantos anos estivera ao serviço deste. No rescaldo do suicídio ninguém reparara em Snead. Fora esquecido na debandada que se seguiu à audiência no tribunal. Tinha perdido o seu emprego. Quando se procedeu à leitura do testamento, Snead também estivera presente na sala de tribunal, disfarçado por detrás de uns óculos de sol e de um chapéu, não tendo sido reconhecido por ninguém. Abandonou o tribunal lavado em lágrimas.

Odiava os filhos de Troy Phelan porque este também nutrira ódio pelos próprios filhos. Ao longo dos anos, Snead fora obrigado a fazer toda a espécie de coisas desagradáveis, a fim de proteger o patrão das suas famílias. Tratara de arranjar abortos, para além de ter subornado polícias sempre que os rapazes eram apanhados na posse de estupefacientes. Tivera de mentir às mulheres legítimas para proteger as amantes, e quando estas, por seu turno, se tornaram esposas, o pobre Snead também fora forçado a mentir-lhes com a finalidade de proteger as namoradas.

Como compensação pelos seus bons ofícios, as ex-mulheres e respectivos rebentos haviam-no apelidado de maricas.

E, como recompensa de uma carreira de fiel dedicação, o senhor Phelan não lhe deixara nada em testamento. Nem um cêntimo. Fora bem remunerado ao longo dos anos de trabalho, o que lhe permitira aplicar algum dinheiro em fundos mútuos, embora os dividendos não fossem suficientes para sobreviver. Sacrificara tudo ao seu emprego e ao seu patrão. Fora privado de uma vida normal porque o senhor Phelan esperava que ele estivesse ao seu serviço durante vinte e quatro horas por dia. Formar família tinha sido um assunto inteiramente fora de questão. Não tinha quaisquer amigos verdadeiros dignos de menção.

O senhor Phelan fora o seu único amigo e confidente, a única pessoa em quem Snead pudera ter confiança.

Com o passar dos anos, tinham existido inúmeras promessas feitas pelo velho, em que este garantira a Snead que ficaria bem na vida. Tinha a certeza de que fora contemplado num dos outros testamentos. Vira o documento com os seus próprios olhos. Aquando da morte do senhor Phelan, ele herdaria um milhão de dólares. Nessa altura, Troy tinha uma fortuna cuja liquidez se cifrava em três mil milhões de dólares; Snead recordava-se de ter pensado na altura o quão pequena lhe parecera a quantia de um milhão. À medida que o velho ia enriquecendo cada vez mais, Snead imaginava que a sua doação testamentária aumentaria com a elaboração de cada testamento.

Ocasionalmente, fizera algumas perguntas relativas ao assunto, inquirições subtis, como que feitas ao acaso no momento mais adequado, pensava ele. No entanto, o senhor Phelan praguejara, invectivando-o e ameaçando que não o contemplaria no seu testamento.

- És tão mau como os meus filhos - dissera ele então, arrasando o pobre Snead.

Sem se saber como, ele descera de um milhão para zero dólares, o que provocava em Snead um grande azedume. Seria obrigado ajuntar-se aos inimigos, simplesmente porque não tinha outra opção.

Descobriu o endereço do novo escritório de Hark Gettys & Associados, perto do Largo Dupont. A recepcionista explicou-lhe que o doutor Gettys estava muito ocupado.

- Também eu - ripostara Snead com grosseria. Porque mantivera tanta intimidade com Troy Phelan, passara a maior parte da sua vida envolvido com advogados. Eram gente que estava sempre extremamente ocupada.

- Entregue-lhe isto - disse Snead entregando um sobrescrito à recepcionista. - O assunto é de grande urgência. Vou esperar sentado ali durante dez minutos, e se ele não me receber até lá tenciono seguir pela rua abaixo até encontrar o próximo escritório de advogados.

Snead sentou-se e ficou a olhar fixamente para o chão. Era revestido por uma alcatifa barata. A recepcionista hesitou por um momento, mas acabou por desaparecer depois de transpor uma porta. O sobrescrito continha uma pequena missiva escrita à mão onde se lia: «Trabalhei para Troy Phelan durante trinta anos. Estou ao corrente de tudo. Malcolm Snead.»

Hark dirigiu-se à recepção numa fracção de segundo trazendo a mensagem e esboçando um sorriso idiota, como se a sua pretensa cordialidade pudesse impressionar Snead. Percorreram um extenso corredor, praticamente em passo de corrida até chegarem a um gabinete espaçoso, acompanhados da recepcionista que vinha logo atrás deles. Não, Snead não queria tomar café, chá, água ou uma cola. Hark fechou a porta com estrondo, trancando-a.

O gabinete ainda tinha o cheiro a tinta fresca. A mesa de trabalho e a estante eram novas, o tipo de madeiras não se coadunava. Ao longo das paredes viam-se caixas de arquivo umas em cima das outras, e toda a espécie de tralha empilhada. Snead levou o seu tempo a examinar todos os pormenores.

- Acabou de se mudar para este escritório? - perguntou.

- Há umas duas semanas - confirmou Hark.

Snead detestou o gabinete, sentindo-se bastante inseguro em relação ao próprio advogado. Este usava um fato de uma fazenda ordinária que, pelo aspecto, deveria ter sido muito mais barato do que o que ele próprio usava.

- Trinta anos, não é verdade? - comentou Hark que ainda segurava na missiva que Snead lhe escrevera.

- Exactamente.

- Estava junto dele quando saltou da varanda?

- Não. Ele saltou sozinho.

Uma risada que soava a falso, após o que o sorriso voltou a estampar-se-lhe nos lábios.

- O que quero dizer é se estava na mesma sala - elucidou Hark.

- Estava. Foi por um triz que não consegui apanhá-lo.

- Deve ter sido terrível.

- De facto foi. Continua a ser.

- Viu-o assinar o testamento? Estou a referir-me ao último. -Vi.

- E também o viu assinar o raio desse papel?

Snead encontrava-se perfeitamente preparado para mentir. A verdade não tinha qualquer significado, uma vez que o velho não se coibira de lhe mentir. O que é que teria a perder?

- Vi uma data de coisas - acrescentou. - E sei muito mais. Esta visita só tem como objectivo o dinheiro, mais nada. O senhor Phelan prometeu que eu seria contemplado no seu testamento. Fez muitas promessas e acabou por não cumprir nenhuma delas.

- Por conseguinte, você está metido nos mesmos apuros em que o meu cliente se encontra - retorquiu Hark.

- Espero bem que não. Só sinto desprezo pelo seu cliente e pelos seus estuporados filhos. Quero que isto fique bem claro logo de início.

- Parece-me que está bem de ver.

- Ninguém era mais íntimo de Troy Phelan do que eu. Presenciei e ouvi coisas que mais ninguém poderá atestar com veracidade.

- Isso significa que deseja ser testemunha?

- Eu sou testemunha, uma autoridade no assunto. Devo acrescentar que muito dispendiosa.

O olhar dos dois prendeu-se por uma fracção de segundos. A mensagem havia sido entregue e recebida.

- A lei estipula que os leigos não podem emitir opiniões quanto ao grau de capacidade mental de alguém que elabore um testamento, no entanto, isso não o impedirá de depor em tribunal sobre actos específicos e acções que comprovem uma mente malsã.

- Estou a par de tudo isso - replicou Snead com rudeza.

- Ele estava louco?

- O facto de ele ter estado doido ou não, é coisa que me é indiferente. Tanto posso optar por uma hipótese como pela outra.

Hark viu-se forçado a parar para ponderar aquelas palavras. Coçou a face fitando a parede à sua frente.

Snead decidiu dar-lhe uma pequena ajuda.

- Vou explicar-lhe a forma como vejo este assunto. O seu rapaz foi lixado, juntamente com o irmão e as irmãs. Cada um recebeu cinco milhões de dólares quando fizeram vinte e um anos, e sabemos bem qual o caminho que deram a esse dinheiro. Dado que todos estão atolados em dívidas, a única alternativa que lhes resta é impugnar a validade do testamento. No entanto, não existe júri nenhum a quem eles possam inspirar compaixão. São uma cambada de falhados gananciosos. Será uma causa muito difícil de ganhar. Mas você e os outros especialistas em jurisprudência criarão uma confusão enorme sob a forma de um processo judicial que, rapidamente, fará as parangonas dos pasquins porque estão em jogo onze mil milhões de dólares. Uma vez que o seu caso não tem grande consistência, você tem a esperança de vir a conseguir um acordo, à margem do tribunal, antes que o processo vá a julgamento.

- Você é rápido na percepção das coisas.

- Não. Mas tive a oportunidade de observar o senhor Phelan ao longo de trinta anos. Seja como for, o montante desse hipotético acordo dependerá muito de mim. Se as minhas recordações forem claras e pormenorizadas, então, talvez o meu velho patrão tenha carecido de capacidades testamentárias quando escreveu o testamento em questão.

- Isso significa que a memória que tem das coisas é variável.

-A minha memória tem o grau de clareza que eu quiser. Não há ninguém que a possa pôr em questão.

- O que é que você pretende?

- Dinheiro - respondeu Snead.

- Quanto - perguntou Gettys.

- Cinco milhões.

- Isso é muito dinheiro.

- Não é nada. Estou disposto a recebê-lo venha ele de onde vier.

- Como é que, supostamente, eu conseguirei arranjar cinco milhões de dólares para si?

- Não sei. Não sou advogado. Calculo que você e os seus compinchas de profissão serão capazes de maquinar um plano pouco recomendável.

Fez-se uma longa pausa enquanto Hark começava a maquinar mentalmente. Apetecia-lhe fazer muitas perguntas, mas desconfiava que não conseguiria obter muitas respostas. Pelo menos de momento.

- Sabe de mais alguma testemunha? - perguntou.

- Só uma. Chama-se Nicolette. Foi a última secretária que o senhor Phelan contratou.

- Até que ponto é que ela está ao corrente da situação?

- Depende. Ela pode ser comprada - respondeu Snead.

- Isso quer dizer que já falou com ela.

- Falo todos os dias. Agimos em consonância.

- Quanto é que lhe caberá?

- Os cinco milhões chegarão para a compensar.

- Um bom negócio. Mais alguém?

- Ninguém que possa ser relevante para o caso. Hark cerrou os olhos massajando as frontes.

- Não tenho objecções a levantar quanto aos cinco milhões que pretende - disse o advogado apertando o nariz. - Só não sei de que maneira é que poderei fazê-los chegar às suas mãos.

- Tenho a certeza que há-de pensar em qualquer coisa.

- Dê-me algum tempo, de acordo? Preciso de reflectir sobre este assunto.

- Não tenho pressa. Dou-lhe uma semana. Na hipótese de você não estar pelos ajustes, dirigir-me-ei à outra parte interessada.

- Não existe outra parte interessada.

- Não esteja tão seguro disso.

- Sabe alguma coisa acerca de Rachel Lane?

- Eu estou a par de tudo - retorquiu Snead, após o que saiu do gabinete do advogado.

 

Os primeiros raios de sol do amanhecer não trouxeram quaisquer surpresas. O bote encontrava-se amarrado a uma árvore na margem de um pequeno rio que se parecia com todos os outros que já tinham visto. Uma vez mais, as nuvens eram densas; a luz do dia surgia lentamente.

O pequeno-almoço consistiu numa pequena embalagem de biscoitos, a última das rações que Welly embalara para os dois. Nate comeu devagar perguntando a si mesmo, cada vez que trincava um biscoito, quando é que voltaria a comer.

A corrente era forte, o que lhes permitiu segui-la à deriva enquanto o Sol se elevava no firmamento. O único som que se ouvia era o marulhar das águas. Poupavam combustível, adiando o momento em que Jevy seria forçado a tentar ligar o motor.

A corrente arrastava-os para a área inundada, o ponto de confluência de três afluentes; por um momento ficaram imobilizados em águas mansas.

- Calculo que estejamos perdidos, não é verdade? - perguntou Nate.

- Sei exactamente onde é que estamos.

- Onde?

- Estamos no Pantanal. E todos os rios confluem para o Paraguai.

- Mais cedo ou mais tarde.

- Sim, mais cedo ou mais tarde - Jevy removeu a protecção do motor secando a humidade que se acumulara no carburador. Afinou a válvula reguladora, verificou o nível do óleo e em seguida experimentou ligar o motor. À quinta tentativa o motor pegou, engasgou-se e foi-se abaixo.

«Estou destinado a morrer aqui», disse Nate para consigo. «Acabarei por morrer afogado, de fome, ou serei comido, mas será aqui, na vastidão deste pântano, que exalarei o meu último suspiro.»

Para grande surpresa dos dois homens, ouviram um grito. A voz era aguda, como se pertencesse a uma rapariguinha. O ruído do motor atraíra a atenção de outro ser humano.

A voz vinha da vegetação rasa de um brejo ao longo da margem de um afluente, que desaguava naquele local. Jevy gritou e alguns segundos mais tarde voltou a ouvir-se a mesma voz.

Entre o mato, avistaram um garoto que não deveria ter mais de quinze anos e que vinha numa canoa exígua, escavada à mão num tronco de árvore. Com um remo, também de fabrico caseiro, atravessava a água com uma velocidade e uma facilidade deveras espantosas.

- Bom-dia - saudou com um sorriso rasgado. O rosto pequeno tinha uma pele escura e feições rectilíneas e era, muito provavelmente, o mais belo que Nate via de há muitos anos a esta parte. Lançou uma corda que uniu as duas embarcações.

Iniciou-se uma longa troca de palavras que, ao fim de algum tempo, fez com que Nate se sentisse agitado.

- O que é que ele está a dizer? - perguntou a Jevy num tom desabrido.

- É norte-americano - disse Jevy ao garoto, que fitava Nate.

- Diz que estamos a uma grande distância do rio Cabixa - explicou Jevy.

- Eu próprio poderia ter-lhe dito isso.

- Também disse que o rio Paraguai fica à distância de um dia para oriente.

- Numa canoa grande, certo?

- Não, de avião.

- Muito engraçado. Quanto tempo é que levaremos para chegar lá?

- Quatro horas, talvez menos.

Na opinião de Nate seriam cinco, talvez mesmo seis horas. E isso partindo do princípio de que pudessem contar com um motor que funcionasse em boas condições. Caso fossem obrigados a remar, necessitariam de uma semana.

A conversa em português foi retomada sem grandes pressas. A canoa estava vazia, com a excepção de um rolo de linha de pesca enrolada à volta de uma lata e um boião com lama, que Nate presumia que conteria minhocas para isco. Mas o que é que ele sabia de pesca? Coçou as mordidelas de mosquito.

Há um ano, fora esquiar com os filhos numa estância em Utah. A bebida do dia era um cocktail com tequilla que, como era seu hábito, bebeu à farta até adormecer num estado comatoso. A ressaca prolongara-se por dois dias.

A conversa adquiriu um estilo floreado e, de súbito, os dois brasileiros começaram a apontar. Enquanto falava, Jevy olhava para Nate.

- O que é que se passa? - perguntou este.

- Os índios não se encontram muito longe daqui.

- A que distância é que estão?

- Uma hora, talvez duas.

- O rapaz pode levar-nos até lá?

- Eu conheço o caminho - afirmou Jevy.

- Tenho a certeza que sim. Mas sentir-me-ia melhor se ele viesse connosco.

Aquilo era uma ligeira afronta ao orgulho de Jevy, mas dadas as circunstâncias em que se encontravam, não podia opor-se.

- É possível que ele queira algum dinheiro.

- Isso não é obstáculo. - Se o garoto soubesse. O espólio Phelan a uma das cabeceiras da mesa, e o pequeno pantaneiro magricela na outra. Nate sorriu perante aquela imagem que lhe ocorrera à mente. E que tal uma frota de canoas com canas de pesca modernas e sondas de profundidade? «Só tens de dizer o que queres, meu filho, e poderás ter tudo o que desejares.»

- Dez reais - adiantou Jevy depois de uma breve negociação.

- Óptimo. - Por cerca de dez dólares seriam conduzidos até junto de Rachel Lane.

Estabeleceram um plano de acção. Jevy inclinou o motor fora de borda de forma a que o propulsor ficasse fora de água; começaram a remar. Seguiram atrás do rapaz, que ia na sua canoa, durante vinte minutos, até entrarem num pequeno afluente com bancos de areia e correntes com rápidos. Nate retirou o seu remo de dentro de água, recuperou a respiração e limpou o suor que lhe cobria o rosto. Sentia o coração a pulsar aceleradamente e os músculos doridos. As nuvens mostravam-se menos densas, deixando-se atravessar pelos raios solares.

Jevy começou a trabalhar no motor do bote. Felizmente pegou, mantendo-se em funcionamento; continuaram a seguir o rapaz, cuja canoa lhes levava avanço, o que não era difícil com aquele motor fora de borda que se engasgava constantemente.

Era quase uma da tarde quando chegaram a terras mais elevadas. Gradualmente, as águas da inundação começavam a desaparecer, dando lugar à vegetação cerrada e aos maciços de arvoredo que flanqueavam as margens dos rios. O jovem mostrava uma expressão taciturna, e, estranhamente, revelava apreensão quanto à posição do Sol.

- É ali, mais em cima - explicou o rapaz a Jevy. - Ao dobrar daquela curva do rio. - Dava a impressão de sentir receio de ir mais longe.

- Fico-me por aqui - disse o rapaz. - Preciso de voltar para casa. Nate entregou-lhe o dinheiro que fora combinado, agradecendo-lhe.

O rapaz tomou o caminho de retorno ajudado pela corrente, desaparecendo rapidamente. Os dois homens continuaram a avançar, malgrado o motor que funcionava a meio gás, engasgando-se e falhando constantemente, mas que apesar disso lá ia cumprindo a sua missão, ainda que parcialmente.

O rio entrava por uma floresta onde os ramos das árvores pendiam para a superfície das águas, tão baixos que se entrelaçavam formando uma espécie de túnel que bloqueava a entrada da luminosidade. Estava escuro e o barulho incerto do motor ressoava vindo das margens. Nate sentia uma desconfiança soturna que lhe dizia que estavam a ser observados. Poderia dizer que quase tinha a sensação de que se encontravam sob mira. Preparou-se para a iminência de um ataque de dardos mortíferos, soprados através de zagaias por selvagens que usariam pinturas de guerra, treinados para matar qualquer pessoa de pele branca.

A despeito daqueles maus presságios, começaram por avistar crianças franzinas e morenas, com um ar feliz, que chapinhavam à beira de água. O túnel acabava perto do povoado.

As mães dos garotos também se banhavam, tão completamente nuas como os filhos, absolutamente alheadas da sua nudez. De início, retrocederam para a margem quando deram pela presença do bote. Jevy desligou o motor, começando a falar e a sorrir enquanto eram impelidos pela corrente do rio. Uma rapariga mais velha fugiu na direcção do povoado.

- Sabem falar português? - perguntou Jevy dirigindo-se ao grupo formado por quatro mulheres e sete crianças. Estas limitaram-se a fitá-los. Os garotos mais pequenos esconderam-se por detrás das mães. As mulheres eram de estatura baixa e tinham corpos bem constituídos, com seios pequenos.

- São amistosos? - perguntou Nate.

- Os homens é que nos dirão.

Ao cabo de alguns minutos, os homens começaram a surgir; vieram num grupo de três; também eram baixos e encorpados, com corpos bem musculados. Felizmente, tinham as partes privadas cobertas com pequenas bolsas de couro.

O mais velho afirmava falar a língua de Jevy, mas ainda que com toda a boa vontade, tínhamos que admitir que o seu português era bastante rudimentar. Nate permaneceu na embarcação onde as coisas lhe pareciam ser mais seguras, enquanto Jevy estava encostado ao tronco de uma árvore próximo da margem, esforçando-se por se fazer compreender. Os índios amontoaram-se em seu redor; era trinta centímetros mais alto do que os nativos.

Depois de alguns minutos de palavras repetidas e gestos com as mãos, Nate não se conteve.

- Tradução, por favor.

Os índios ficaram a olhar para ele.

- É um norte-americano - explicou Jevy, o que deu origem a outra conversa.

- E quanto à mulher? - perguntou Nate.

- Ainda não chegámos a esse assunto. Continuo a tentar convencê-los a que não o queimem em vida.

- Tente com mais empenho.

Começaram a chegar mais índios. À distância de pouco menos de um metro, avistavam-se as suas palhotas, perto do perímetro da floresta. Rio acima, viam-se meia-dúzia de canoas amarradas à margem. As crianças manifestavam o aborrecimento que sentiam. Lentamente, foram-se afastando das mães caminhando até ao bote para o inspeccionarem mais de perto. Também se sentiam intrigados com aquele homem de pele branca. Nate sorriu e piscou o olho; ao fim de pouco tempo foi brindado com um sorriso. Se Welly não tivesse sido tão unhas-de-fome com os biscoitos, Nate teria partilhado alguns com as crianças.

Entretanto, a conversa entre Jevy e os nativos continuava a desenrolar-se. O interlocutor índio, periodicamente, virava a palma das mãos para cima como se ilustrasse um ponto, e, inevitavelmente, as suas palavras causavam grande apreensão a Nate. A sua linguagem era composta por uma série de grunhidos primitivos acompanhados de distorções faciais, manifestações que eram articuladas com o menos movimento de lábios que lhes era possível.

- O que é que ele diz? - perguntou Nate numa voz rosnada.

- Não sei - replicou Jevy.

Entretanto, um dos garotinhos colocou a mão na extremidade do bote, examinando Nate com umas pupilas negras tão grandes como moedas.

- Hello - disse o garoto numa voz muito suave. Nate ficou ciente de que se encontravam no local certo. Ninguém ouviu o garoto além de Nate.

-Hello - retribuiu Nate em voz baixa, inclinando-se mais para a frente.

- Good-bye - continuou a criança em inglês, sem arredar pé. Rachel ensinara-lhe pelo menos duas palavras em inglês.

- Como é que te chamas? - perguntou Nate numa voz segredada.

- Hello - repetiu o rapazinho.

Debaixo da árvore, a tradução conhecia os mesmos progressos. Os índios mantinham uma conversa animada enquanto as mulheres não diziam uma só palavra.

- E a mulher? - insistiu Nate.

- Já perguntei. Não me deram resposta - replicou Jevy.

- O que é que isso significa?

- Não tenho a certeza. Penso que ela está aqui, mas eles mostram-se relutantes por qualquer razão que desconheço.

- Por que motivo é que haveriam de mostrar relutância?

Jevy franziu o sobrolho desviando o olhar. Como é que Nate esperava que ele tivesse uma resposta para justificar aquela atitude?

Trocaram mais algumas palavras com os índios e, pouco depois, estes afastaram-se em massa - os homens em primeiro lugar, a seguir as mulheres e por último as crianças. Marchavam em fila indiana em direcção ao povoado, desaparecendo do ângulo de visão dos dois homens.

- Disseste alguma coisa que os irritasse?

- Não. Eles querem ter uma reunião qualquer.

- Achas que ela está aqui? - perguntou Nate.

- Parece-me que sim. - Jevy retomou o seu lugar dentro do bote, preparando-se para uma pequena sesta. Era quase uma hora da tarde, fosse qual fosse o fuso horário que os regia. A hora do almoço terminou sem sequer uma bolacha de água e sal meio ensopada.

A caminhada começou por volta das quinze horas. Ambos foram conduzidos por um pequeno grupo de homens jovens, afastando-se do rio e começando a percorrer um trilho de terra batida que levava ao povoado, através de palhotas onde toda a gente permanecia imobilizada, observando tudo com muita atenção; começaram a afastar-se do povoado, percorrendo outro caminho floresta adentro.

«Trata-se da caminhada da morte», pensou Nate. «Estão a levar-nos para a selva, onde executarão um ritual sangrento qualquer que remonta à Idade da Pedra.» Seguia atrás de Jevy, que caminhava num andar gingão cheio de confiança.

- Para onde diabo é que estamos a ir? - perguntou Nate numa voz sibilada, como se fosse um prisioneiro de guerra receoso de ofender os seus carcereiros.

- Acalme-se - retorquiu Jevy.

O arvoredo abria-se numa clareira, e, uma vez mais, encontravam-se próximo do rio. Subitamente, o chefe do cortejo deteve-se e apontou. À beira de água estava uma anaconda estendida ao Sol. Tinha a pele negra malhada de amarelo na região inferior do corpo. No seu ponto mais largo, a barrigueira tinha um diâmetro de pelo menos trinta centímetros.

- Qual será o comprimento dela? - perguntou Nate.

- Deve medir uns seis ou sete metros. Finalmente, tem a oportunidade de ver uma anaconda de perto - disse Jevy.

Os joelhos de Nate estiveram quase a ir-se abaixo; sentia a boca ressequida. Tinha dito várias piadas acerca das anacondas. Contudo, a visão de uma em carne e osso, comprida e maciça, era verdadeiramente espantosa.

- Alguns índios idolatram as serpentes - adiantou Jevy.

Nesse caso, o que é que os missionários andariam a fazer por aquelas paragens?, pensou Nate. Teria de interrogar Rachel sobre aquela prática idólatra.

Os mosquitos davam a impressão de que só o incomodavam a ele. Os nativos eram imunes. Por seu lado, Jevy nunca os enxotava. Nate batia na sua própria pele, coçando-se até deitar sangue. Deixara o repelente de insectos no bote, juntamente com a tenda, o machete e tudo o mais que constituía os seus pertences de momento, haveres que, sem dúvida alguma, seriam objecto de uma análise minuciosa por parte das crianças.

A caminhada revelou ser uma aventura durante os primeiros trinta minutos, após o que o calor e os insectos tornaram as coisas bastante mais monótonas.

- Ainda temos de andar por muito mais tempo? - perguntou Nate, apesar de, em boa verdade, não esperar qualquer resposta com um mínimo de precisão.

Jevy disse qualquer coisa ao homem que apontara para a anaconda que lhe replicou algo.

- Já não falta muito - indicou Jevy. Atravessaram outro trilho ao que se seguiu um outro mais largo. Naquela área não se via a presença de quaisquer outros seres humanos além deles. Ao fim de pouco tempo avistaram a primeira palhota, chegando-lhes às narinas o cheiro a fumo.

Quando já se encontravam a pouco menos de duzentos metros, o chefe apontou para uma zona à sombra, perto da margem do rio. Nate e Jevy foram conduzidos até um banco corrido feito de canas ocas, presas por ráfia, onde foram deixados sob a vigilância de dois guardas enquanto os outros anunciavam a sua chegada ao povoado.

Com o passar do tempo, os dois vigilantes começaram a mostrar-se entediados, decidindo passar pelas brasas. Sentaram-se com as costas encostadas ao tronco de uma árvore e ao fim de pouco tempo dormiam a sono solto.

- Calculo que poderíamos escapar-nos daqui para fora - sugeriu Nate.

- E para onde é que iríamos?

- Tens fome?

- Mais ou menos. E tu?

- Não, estou cheio - respondeu Nate com ironia. - Comi sete bolachas fininhas há nove horas. Não me deixes esquecer de dar uns tabefes ao Welly da próxima vez que o vir.

- Só espero que ele esteja bem - redarguiu Jevy.

- Por que é que não haveria de estar? A esta hora está a balançar-se na minha rede espreguiçadeira, a beber café acabado de fazer, em segurança, seco e de barriga cheia.

Certamente que os índios não os teriam levado tão longe se Rachel não se encontrasse por perto. Enquanto Nate descansava sentado no banco, olhando fixamente para o telhado das palhotas à distância, ia formulando um sem número de perguntas sobre ela. Sentia curiosidade quanto à sua aparência física - supostamente, a mãe fora uma mulher de grande beleza. Que tipo de vestuário é que ela usaria? Os ipicas que ela evangelizava andavam nus. Qual fora a última vez que estivera num lugar civilizado? Seria ele o primeiro norte-americano a visitar aquele povoado?

Como é que ela reagiria à sua presença? E com respeito ao dinheiro?

Enquanto o tempo se arrastava interminavelmente, Nate sentia-se cada vez mais ansioso perante a perspectiva de se encontrar com ela.

Os dois guardas continuavam adormecidos quando se sentiram movimentos vindos do povoado. Jevy atirou um seixo aos dois índios, emitindo um assobio ensurdecido. De um salto, puseram-se de pé, reassumindo as suas posições.

As ervas ao longo do trilho davam-lhes pelos joelhos. À distância, Nate e Jevy avistaram uma patrulha que se encaminhava na direcção deles através da vereda. Rachel acompanhava os homens; finalmente, decidira ir ao encontro dos dois. No meio daqueles peitos escuros via-se uma blusa de um amarelo-esmaecido, assim como um rosto de tez mais clara protegida por um chapéu de palha. À distância de pouco menos de cem metros, Nate conseguia distingui-la entre os nativos.

- Encontrámos a nossa rapariga - disse ele.

- Sim, estou em crer que encontrámos.

O cortejo levava o seu tempo. Três homens jovens tomavam a dianteira do grupo, que era fechado por outros três. Ela era ligeiramente mais alta do que os índios, caminhando com uma postura de elegância que nela parecia ser natural. Poder-se-ia imaginá-la durante um passeio por entre canteiros de flores. Não mostrava a mínima pressa.

Nate mantinha-se atento a cada um dos seus passos. Tinha uma figura muito esbelta e uns ombros com uma estrutura óssea larga. Começou a olhar na direcção dos dois homens à medida que se ia aproximando.

Nate e Jevy levantaram-se do banco preparando-se para o encontro com Rachel.

Os índios detiveram a sua marcha na extremidade da sombra, embora ela continuasse a caminhar. Tirou o chapéu da cabeça. Os seus cabelos eram castanhos e meio grisalhos, com um corte bastante curto. Parou a menos de um metro de Nate e Jevy.

-Boa tarde, senhor-disse em português dirigindo-se a Jevy, após o que olhou para Nate. Tinha uns olhos de um azul-escuro que se aproximava do indigo. No seu rosto não se via uma única ruga nem traços de maquilhagem. Tinha quarenta anos, envelhecendo sem grandes alterações fisionómicas, com a radiância suave de alguém que não sentia os efeitos de uma vida tensa.

- Boas-tardes - acrescentou em português.

Não se ofereceu para trocar apertos de mão nem sequer indicou o seu nome. O gesto seguinte cabia aos dois.

- Chamo-me Nate O'Riley. Sou um advogado de Washington.

- E você? - perguntou ela a Jevy.

- O meu nome é Jevy Cardoso e venho de Corumbá. Sou o guia dele. Rachel olhou os dois homens de alto a baixo esboçando um pequeno

sorriso. No que lhe dizia respeito, aquele momento não lhe era desagradável. Desfrutava do encontro.

- O que é que vos trouxe até aqui? - perguntou. Expressava-se no inglês que se falava pela maior parte dos Estados Unidos, sem traços de qualquer sotaque, quer da Louisiana quer de Montana, era o inglês neutro e preciso, sem a mínima inflexão, que se falava em Sacramento ou em Saint Louis.

- Ouvimos dizer que a pesca por aqui era boa - retorquiu Nate, bem-humorado.

- As piadas dele não têm graça nenhuma - atalhou Jevy num tom de quem tentava desculpar alguém, ao ver que ela não oferecia resposta.

- Peço desculpa. Procuro Rachel Lane. Tenho razões para acreditar que ela e você são a mesma pessoa - acrescentou Nate.

Ela sopesou aquelas palavras sem alterar a expressão do seu rosto.

- E o que é que o leva a querer encontrar Rachel Lane?

- Porque sou um advogado e a minha firma tem um assunto jurídico muito importante a tratar com Rachel Lane.

- Que espécie de questão jurídica?

- Só posso partilhar essa informação com ela e mais ninguém.

- Lamento muito ter de o informar de que não sou Rachel Lane. Jevy suspirou e Nate deixou descair os ombros numa postura abatida.

Ela observava todos os movimentos dos dois homens, todas as reacções, todos os tiques.

- Têm fome? - perguntou-lhes.

Ambos acenaram que sim. Chamou os índios a quem deu algumas instruções.

- Jevy - disse ela -, vá com estes homens até ao povoado. Eles dar-lhe-ão comida, assim como a quantidade suficiente para o doutor O'Riley.

Sentaram-se no banco, à sombra que ia escurecendo com o passar do tempo, observando silenciosamente os índios que acompanhavam Jevy até à aldeia. Este voltou-se uma vez para trás, com o intuito de se certificar de que Nate estava bem.

 

Afastada dos índios, ela não parecia ser tão alta. Era evidente que evitara comer o que quer que fosse que as mulheres índias comiam e que as fazia corpulentas. As suas pernas eram compridas e esbeltas. Calçava sandálias de couro, o que, até certo ponto, não se enquadrava numa cultura onde todos andavam descalços. Onde é que as teria arranjado? E onde é que teria desencantado a blusa amarela de mangas curtas, bem como os calções de caqui? Oh, eram tantas as perguntas que ele lhe queria colocar.

As roupas que ela usava eram simples e usadas. Na hipótese de não ser Rachel Lane, certamente que saberia qual o paradeiro desta.

Os joelhos de ambos quase se tocavam.

- Rachel Lane deixou de existir há muitos anos - disse ela olhando abstractamente para o povoado à distância. - Mantive o nome Rachel mas deixei de usar Lane. O assunto que o trouxe aqui deve ser sério, de outra maneira a sua presença não se justificaria. - Falava num timbre de voz suave espaçando bem as palavras; não omitia uma única sílaba, ponderando-as cuidadosamente.

- Troy Phelan morreu. Matou-se há três semanas.

Rachel baixou ligeiramente a cabeça e fechou os olhos, dando a impressão de que rezava. Foi uma oração breve, seguida de uma longa pausa. O silêncio não a incomodava.

- Chegou a conhecê-lo? - perguntou ela por fim.

- Vi-o apenas uma vez. A nossa firma tem muitos advogados; pessoalmente, nunca tratei de nenhum assunto que dissesse respeito a Troy Phelan. Não posso dizer que o conhecia.

- Tão-pouco eu. Ele era o meu pai terreno e passei muitas horas a orar por ele, mas para mim foi sempre um estranho.

- Quando é que o viu pela última vez? - As palavras de Nate também eram ditas lentamente com serenidade. Rachel irradiava uma sensação de placidez.

- Há já muitos anos. Antes de ter ido para a faculdade... Até que ponto é que está inteirado da minha vida?

- Não sei muita coisa. Você não é uma pessoa cuja passagem pela vida deixe adivinhar muita coisa.

- Nesse caso, como é que conseguiu encontrar-me?

- Troy auxiliou-me. Ainda tentou descobrir o seu paradeiro antes de morrer, mas foi incapaz. Contudo, ele sabia que você era uma das missionárias da Tribos Universais e que se tinha radicado nesta região do globo. O resto dependeu muito de mim.

- Como é que ele terá conseguido essa informação? - perguntou Rachel como se falasse consigo mesma.

- Não se esqueça que ele era podre de rico.

- E é por isso que você está aqui.

- Sim, foi esse o motivo que me fez vir ao Brasil. Temos alguns assuntos a tratar.

- Troy deve ter-me deixado alguma coisa no seu testamento.

- Pode pôr a questão nesses termos - confirmou Nate.

- Não quero falar de negócios. Só desejo conversar de trivialidades. Sabe com que frequência é que ouço falar inglês?

- Imagino que só muito raramente.

- Uma vez por ano vou a Corumbá abastecer-me de provisões. Nessa altura telefono para os escritórios da missão e falo inglês durante dez minutos. É uma experiência invariavelmente assustadora.

- Porquê?

- Sinto-me nervosa. As minhas mãos tremem quando agarro no telefone. Conheço as pessoas com quem falo, mas tenho receio de utilizar as palavras menos adequadas. Às vezes até chego a gaguejar. Apenas dez minutos por ano.

-Você tem a oportunidade de desempenhar uma missão de grande mérito.

- Sou uma pessoa bastante nervosa.

- Descontraia-se. Eu não sou mau fulano.

- Mas o certo é que conseguiu encontrar-me. Há uma hora, estava eu a examinar um doente quando os rapazes me foram dizer que um norte-americano acabara de chegar ao povoado. Corri para a minha palhota e comecei a rezar. A oração inculcou-me novas forças.

- Eu vim em paz para com toda a humanidade.

- Você dá a impressão de ser uma pessoa de bem. «Se soubesses...», pensou Nate para consigo.

- Obrigado pelas suas palavras... você disse qualquer coisa acerca de ter ido ver um doente.

- Sim - confirmou Rachel.

- Pensei que vivia aqui na qualidade de missionária.

- E de facto assim é. Mas também sou formada em medicina.

E a especialidade de Nate era instaurar processos a médicos por negligência. Mas aquela não era a altura nem o lugar mais apropriados para que a negligência médica fosse debatida.

- Isso não consta das informações que coligi - acrescentou Nate.

- Depois de ter saído do colégio mudei de nome, antes de ter entrado para a faculdade e de frequentar o seminário. Provavelmente é aí que as pistas acabam.

- Precisamente. O que é que a levou a mudar de nome?

- É um assunto bastante complicado, ou, no mínimo, era-o nessa altura. Agora já não me parece que fosse assim tão importante.

Começou a soprar uma brisa vinda do rio. Eram quase quinze horas. O manto de nuvens que cobria a floresta era escuro e estacionário. Rachel apercebeu-se de que Nate lançava um olhar de relance ao relógio de pulso.

- Os rapazes vão trazer a sua tenda para aqui. É um bom local para dormir esta noite.

- Obrigado, calculo que sim. Ficaremos em segurança, não é verdade?

- Sim. Deus protegê-lo-á. Não se esqueça de dizer as suas orações.

Naquele momento, Nate tencionava rezar que nem um padre. A proximidade do rio causava-lhe uma preocupação acrescida. Nate podia fechar os olhos e visualizar a anaconda, que tinha visto à pouco, a deslizar em movimentos coleantes até ao interior da sua tenda.

- O senhor costuma rezar, não é verdade senhor O'Riley?

- Por favor, trate-me por Nate. Sim, costumo rezar.

- É de ascendência irlandesa? - perguntou Rachel.

- Eu sou uma espécie de rafeiro. Mais alemão do que qualquer outra coisa. O meu pai tinha antepassados irlandeses. O historial da minha família nunca me interessou por aí além.

- Qual é a religião que perfilhou?

- A igreja episcopal. - Católica, luterana ou episcopal era-lhe indiferente. Desde o seu segundo casamento que Nate nunca mais pusera o pé no interior de uma igreja.

A sua vida espiritual era um assunto que preferia evitar. A teologia não era o seu ponto forte, além de que não desejava discuti-la com uma missionária. Rachel fez uma pausa e, como era seu hábito, Nate mudou o rumo da conversa.

- Estes índios são pacíficos? - perguntou.

- Na sua maioria, são. Os Ipicas não são índios guerreiros, embora não confiem nas pessoas de raça branca.

- E isso também se aplica a si?

- Há onze anos que vivo aqui. Já fui aceite pelos nativos.

- Quanto tempo é que essa aceitação demorou?

- Eu tive muita sorte porque houve um casal de missionários que esteve nesta aldeia antes de eu chegar. Já tinham aprendido a língua e traduzido o Novo Testamento. Além do mais, tenho a vantagem de exercer medicina. Comecei a fazer amigos com bastante rapidez quando ajudei as mulheres no trabalho de parto.

- Fiquei com a impressão de que você fala bem português.

- Falo fluentemente. Também sei falar espanhol, o dialecto dos Ipicas e o dos Machiguenga.

- O que é isso?

- Os Machiguenga são nativos que vivem nas montanhas peruanas. Vivi nessa região durante seis anos. Precisamente quando comecei a falar com à-vontade nesse dialecto, eles decidiram evacuar-me.

- Porquê? - perguntou Nate, intrigado.

- Por causa dos guerrilheiros.

Como se as serpentes, os crocodilos e as doenças, sem esquecer as inundações, não fossem mal que bastasse.

- Nessa altura raptaram dois missionários numa aldeia não muito afastada do local onde eu vivia. Mas Deus salvou-os. Foram libertados quatro anos mais tarde sem terem sofrido quaisquer danos físicos.

- E por aqui também há guerrilheiros?

- Não. Estamos no Brasil. As pessoas são gente pacífica. Existem alguns traficantes de estupefacientes, mas ninguém costuma vir ao interior do Pantanal, é uma região muito remota.

- O que faz com que me ocorra um pormenor bastante interessante. A que distância é que fica o rio Paraguai?

- Nesta época do ano, a mais ou menos oito horas.

- Horas brasileiras?

- Estou a ver que já aprendeu que o tempo aqui corre mais devagar - retorquiu Rachel com um sorriso. - De oito a dez horas, horas norte-americanas.

- De canoa?

- O nosso meio de locomoção é esse. Em tempos tive um barco a motor. Mas começou a ficar velho e acabou por ser impossível continuar a utilizá-lo.

- Quanto tempo é que a viagem demora num barco a motor?

- Cinco horas, mais coisa menos coisa. Estamos na estação das cheias e é fácil as pessoas perderem-se.

- Já aprendi isso à minha custa.

- Os rios confluem entre si. Quando se for embora, vai necessitar de levar consigo um dos pescadores. Ser-lhe-á praticamente impossível encontrar o rio Paraguai sem a ajuda de um guia.

- E você costuma ir a Corumbá uma vez por ano?

- Sim, mas faço a viagem na estação seca, em Agosto. Nessa altura o tempo é mais fresco e não há tantos mosquitos.

- Vai sempre sozinha?

- Não, vou com Lako, o meu amigo índio que me acompanha sempre até ao Paraguai. De canoa levamos cerca de seis horas quando as águas do rio estão baixas. Quando chego à margem, espero que passe um barco e apanho boleia até Corumbá. Fico uns dias na cidade, a tratar do que tenho a tratar, e depois regresso numa embarcação que navegue pelo rio.

Nate pensou que se tinha cruzado com muito poucos barcos no rio Paraguai.

- Uma embarcação qualquer?

- Habitualmente é um barco de transporte de gado. Os comandantes não se importam de levar passageiros.

«Ela viaja de canoa porque o barco era velho e já não servia para nada. Pede boleia ao comandante dos barcos de transporte de gado para ir até Corumbá, o seu único contacto com a civilização. De que forma é que o dinheiro a transformaria?», perguntou Nate a si mesmo. Aquela questão parecia-lhe impossível de responder.

Tencionava contar-lhe tudo no dia seguinte, quando o dia ainda estivesse fresco, depois de ter descansado e comido, com muitas horas pela frente para os dois poderem tratar dos assuntos pendentes. Na linha limítrofe do povoado surgiram algumas figuras - uns homens que caminhavam na direcção de Nate e Rachel.

- Aqui estão eles - disse ela. - Comemos antes de escurecer e depois vamos dormir.

- Imagino que não há nada que se possa fazer depois do jantar.

- Nada que possamos discutir hoje - acrescentou Rachel pressurosamente, o que teve uma certa graça.

Jevy apareceu com um grupo de índios; um destes entregou a Rachel um pequeno cesto rectangular. Por seu turno, ela entregou-o a Nate, que tirou do interior um pão.

- Este pão é de farinha de mandioca - explicou Rachel. - É o nosso alimento principal.

E, evidentemente, o único alimento de que dispunham, pelo menos para aquela refeição. Nate começara a comer o seu segundo pão quando se lhes juntaram alguns nativos do primeiro povoado. Tinham ido ao bote buscar a tenda, o mosquiteiro, os cobertores e a água engarrafada.

- Vamos pernoitar aqui - disse Nate a Jevy.

- Quem disse?

- É o melhor local - interveio Rachel. - Por mim, oferecer-vos-ia um lugar na aldeia, mas a visita de homens brancos tem de ser previamente aprovada pelo chefe da tribo.

- Isso aplica-se a mim - adiantou Nate.

- Sim - confirmou ela.

- E não a ele? - perguntou Nate acenando na direcção de Jevy.

- Ele foi buscar comida e não para pedir autorização para pernoitar na aldeia. As regras são muito complicadas por aqui.

Aquilo deixou Nate abismado - nativos primitivos que ainda tinham de descobrir a utilização de roupas, mas que se regiam por um sistema de regras deveras complicado.

- Gostaria de poder partir amanhã por volta do meio-dia - acrescentou Nate dirigindo-se a Rachel.

- A sua partida também depende do chefe da tribo.

- Está a dizer-me que não nos podemos ir embora quando muito bem nos apetecer?

- Partirão quando ele disser que se podem ir embora. Não se preocupe com isso.

- Você e o chefe da tribo mantêm relações amistosas?

- Damo-nos bem.

Rachel disse aos índios que regressassem ao povoado. O Sol desaparecera por detrás do cume das montanhas. Começavam a ser envolvidos pelas sombras da floresta.

Por alguns minutos, Rachel observou Nate e Jevy que se esforçavam por montar a tenda. Dentro do saco, parecia bastante pequena e quando a prenderam aos postes que a suportavam não ficou muito maior. Nate não tinha a certeza de que houvesse espaço suficiente para Jevy, quanto mais para os dois. Depois de montada dava-lhe pela altura da cintura, alargando-se acentuadamente para os lados; infelizmente, era pequena de mais para dois homens adultos.

- Vou-me embora - informou Rachel. -Ficarão muito bem aqui.

- Promete? - perguntou Nate com sinceridade.

- Se preferir, posso pedir a dois rapazes que fiquem de guarda.

- Não há necessidade - atalhou Jevy.

- A que horas é que costumam despertar na aldeia? - perguntou Nate.

- Uma hora antes do nascer do Sol.

- Estou seguro que a essa hora já estaremos acordados - retorquiu Nate lançando um olhar fugaz à tenda. - Podemos encontrar-nos logo de manhãzinha? Temos muitos assuntos a tratar.

- De acordo. Ao amanhecer enviarei alguém com alguma comida. Depois do pequeno-almoço podemos conversar.

- Isso seria esplêndido - concordou Nate.

- Não se esqueça de rezar as suas orações, doutor O'Riley.

- Esteja descansada que não me esqueço.

Rachel afastou-se por entre as trevas deixando de ser vista pouco depois. Durante algum tempo, Nate avistou os contornos da sua silhueta percorrendo o trilho sinuoso. O povoado perdera-se na escuridão da noite.

Ficaram sentados no banco corrido durante algumas horas, esperando que o ar refrescasse, receando o momento em que seriam forçados a entrar na tenda acanhada, onde dormiriam costas contra costas; os dois homens sentiam o corpo transpirado, de onde emanava um odor pouco agradável. Todavia, não lhes restava outra alternativa. A tenda, de um tecido quase translúcido, protegê-los-ia pelo menos das picadas dos mosquitos e outros insectos. Também manteria do lado de fora tudo o que rastejasse.

Deram um passeio pelo povoado. Jevy começou a contar a Nate lendas dos índios em que todas terminavam com a morte de alguém.

- Chegou a dizer-lhe alguma coisa sobre o dinheiro? - perguntou finalmente.

-Não. Tenciono contar-lhe amanhã.

- Agora que já a encontrou, o que é que ela pensará da herança?

- Não faço a mais pequena ideia - admitiu Nate. - É óbvio que se sente feliz entre os índios. Parece-me uma crueldade perturbar a existência que leva aqui.

- Sendo assim, ofereça-me esse dinheiro. Garanto-lhe que não perturbará a minha vida.

Cingindo-se à hierarquia social, Nate foi o primeiro a gatinhar para dentro da tenda. Passara a noite anterior a olhar para o firmamento deitado no fundo do bote, pelo que a fadiga cedo se apoderou de si.

Quando Nate já ressonava, tentando não fazer barulho, Jevy abriu o fecho de correr da entrada da tenda, virando-se desassossegadamente até encontrar uma posição mais confortável. O seu companheiro de viagem estava como que morto para a vida.

 

Depois de nove horas de sono, os Ipicas levantaram-se antes da alvorada, iniciando as actividades de um novo dia. As mulheres fizeram pequenas fogueiras onde cozinhariam do lado de fora das palhotas, após o que se afastaram em direcção ao rio acompanhadas das crianças, a fim de irem buscar água e tomar banho. De uma maneira geral, esperavam pela primeira luz do amanhecer para começarem a percorrer os trilhos de terra batida. Era prudente que vissem tudo o que estivesse diante deles.

Em português, a cobra venenosa era conhecida pelo nome de urutu. Os índios chamavam-na bima. Era vulgar encontrá-las nas passagens de água da região meridional do Brasil; frequentemente, a sua mordidela era fatal. O nome da garota era Ayesh, tinha sete anos e viera para este mundo com a ajuda de uma missionária branca. Na altura, Ayesh caminhava à frente da mãe, em vez de se manter atrás dela como era costume; sentiu a bima que se contorcia debaixo do seu pé descalço.

Abocanhou-a abaixo do tornozelo e a garota gritou. Quando o pai chegou junto da filha, ela encontrava-se em estado de choque e o pé direito tinha o dobro do tamanho normal. Um rapaz de quinze anos, o corredor mais veloz da tribo, foi imediatamente enviado para chamar Rachel.

Havia quatro pequenos povoados de índios ipica ao longo das margens de dois rios que confluíam perto do local onde Nate e Jevy tinham ancorado. A distância que mediava a confluência e a última palhota dos ipica não era superior a oito quilómetros. As aldeias eram compostas por pequenas tribos autónomas distintas entre si, embora todos os nativos fossem ipicas que falavam o mesmo dialecto, tendo as mesmas origens e costumes. Socializavam e casavam entre si.

Ayesh vivia no terceiro povoado para cá da confluência. Rachel encontrava-se no segundo, o maior. Quando o corredor chegou, ela lia a Santa Escritura na pequena palhota onde vivia há onze anos. Rapidamente, inspeccionou a sua provisão de medicamentos e encheu a pequena maleta de médico.

Naquela zona do Pantanal viviam quatro espécies de cobras venenosas, e em diversas ocasiões Rachel pudera sempre recorrer aos antídotos apropriados. Mas isso não aconteceu desta vez. O corredor índio disse-lhe que a cobra era uma bima. O antídoto era fabricado por uma empresa farmacêutica brasileira, apesar de ela não ter conseguido encontrar o medicamento aquando da última viagem que fizera a Corumbá. As farmácias da cidade tinham menos de metade dos fármacos de que necessitava habitualmente.

Apertou os atacadores das botas de couro e saiu com a sua maleta. Lako e dois outros rapazes da sua aldeia juntaram-se-lhe ao longo do caminho que percorreram entre o mato alto e os maciços cerrados de arvoredo. De acordo com as estatísticas de Rachel, no conjunto dos quatro povoados viviam oitenta e seis mulheres adultas, oitenta e um homens adultos e setenta e duas crianças, um total de duzentos e trinta e nove índios ipica. Quando começou a trabalhar com aqueles nativos, havia onze anos, o número de nativos cifrara-se em duzentos e oitenta. De tantos em tantos anos, a malária levava os mais fracos. Em 1991, um surto de cólera que grassara numa das aldeias tinha morto vinte nativos. Se Rachel não tivesse insistido que se impusesse uma quarentena, a maior parte dos ipicas teriam sido dizimados.

Com a diligência de uma verdadeira antropóloga, Rachel mantinha registos de todos os nascimentos, mortes, casamentos, árvores genealógicas, doenças e respectivos tratamentos. Na maioria das vezes, sabia quem é que mantinha uma relação extra-conjugal e com que parceiro. Conhecia o nome de todos os habitantes de cada um dos povoados. Baptizara os progenitores da pequena Ayesh no mesmo rio onde costumavam banhar-se.

A garota era franzina e pequena; muito provavelmente viria a morrer pela falta do antídoto que neutralizaria o veneno. Era um medicamento que se encontrava à venda em qualquer parte dos Estados Unidos, assim como nas cidades mais populosas do Brasil, e que não era exageradamente dispendioso. O pequeno orçamento que ela tinha da organização Tribos Universais cobriria aquela verba. Apenas três injecções ministradas num período de seis horas, e aquela morte poderia ser evitada. Sem o medicamento, a garota seria acometida de vómitos violentos, ao que se seguiriam febres muito elevadas, um estado de coma e, finalmente, a morte.

Tinham passado três anos desde a última vez que os Ipicas haviam testemunhado uma morte devido à mordidela de uma cobra venenosa. E, pela primeira vez em dois anos, Rachel não possuía o antídoto.

Os progenitores de Ayesh eram cristãos, recém-convertidos, empenhados em aprender uma nova religião. Cerca de um terço dos índios ipica tinham-se convertido ao cristianismo. Graças ao trabalho de Rachel e dos seus predecessores, metade deles sabia ler e escrever.

Enquanto caminhava num passo apressado atrás dos dois rapazes, rezava. Apesar de comer pouco, todos os dias percorria vários quilómetros. Os nativos admiravam a sua capacidade de resistência e perseverança.

Jevy lavava-se no rio quando Nate abriu o fecho de correr do mosquiteiro, saindo da tenda com alguma dificuldade. Ainda tinha hematomas provocados pelo acidente aéreo. As noites que passara a dormir no barco e no chão não haviam contribuído para aliviar o corpo dorido. Distendeu as costas e os braços, sentindo dores por todo o corpo; o peso de cada um dos seus quarenta e oito anos de idade estava bem presente. Avistava Jevy mergulhado até à cintura numa água que parecia muito mais límpida do que nas outras zonas do Pantanal.

«Estou perdido», sussurrou Nate para si próprio. «Tenho fome. Não tenho papel higiénico.» Um pouco a medo, tocou nos dedos dos pés enquanto inventariava os seus pensamentos pouco animadores.

Que diabo, aquilo era uma aventura! Estava-se na época do ano em que todos os advogados entravam no novo ano firmemente empenhados na decisão de facturarem mais horas de trabalho, ganhar causas importantes, cortarem nas despesas administrativas e, em suma, dispostos a levarem mais dinheiro para casa. Havia anos que ele se batia pelos mesmos objectivos, contudo agora tinha a sensação de que tudo isso era um disparate.

Com um pouco de sorte, naquela noite dormiria na sua rede espreguiçadeira, depois de se balouçar ao sabor da brisa bebendo um café. Se a memória não o atraiçoava, Nate nunca antes sentira saudades de comer feijão-preto com arroz branco.

Jevy regressou à tenda na mesma altura em que uma patrulha de índios chegava do povoado. O chefe da tribo queria falar com eles.

- Ele quer que lhe dêem pão - disse Jevy enquanto se afastavam referindo-se a Nate.

- O pão é uma ideia excelente. Pergunte-lhes se também têm toucinho fumado e ovos.

- Eles têm o hábito de comer muita carne de macaco.

Jevy não dava a impressão de estar na brincadeira. Quando chegaram ao limite da aldeia, depararam com um grupo de crianças que esperavam com a finalidade de observarem os estrangeiros bem de perto. Nate brindou-as com um sorriso de timidez. Em toda a sua vida nunca tivera tanta consciência da sua pele branca, para não acrescentar que pretendia que gostassem de si. Algumas mães nuas fitavam-no da primeira palhota com uma expressão aparvalhada. Quando ele e Jevy chegaram à ampla clareira comum, todos interromperam as suas tarefas olhando-os com fixidez.

Havia pequenas fogueiras que continuavam a arder fora das palhotas; o pequeno-almoço já fora tomado. O fumo mantinha-se suspenso acima dos telhados das palhotas, como se fosse um manto de nevoeiro, tornando o ar húmido ainda mais opressivo e pegajoso. Passavam poucos minutos das sete e já se sentia um calor abrasador.

Quem planeara aquela aldeia fizera um trabalho excelente. Cada uma das habitações era perfeitamente quadrada, com um telhado de colmo num declive acentuado que caía quase até ao solo. Alguns eram maiores do que os outros, embora a concepção se mantivesse inalterável. As palhotas estavam dispostas de forma oval em redor de uma ampla clareira, todas de frente para esta - o largo da aldeia. No centro da clareira haviam sido erigidas quatro habitações espaçosas - duas circulares e duas rectangulares - todas com telhados de palha com várias camadas.

Eram aguardados pelo chefe da tribo. A habitação deste era a maior palhota da aldeia, como seria de esperar. O chefe era o índio mais corpulento de todos os nativos. Ainda era um homem novo, não se lhe vendo rugas profundas que lhe sulcassem a testa, possuindo uma barriga avantajada, característica dos homens mais velhos que as exibiam com um orgulho indisfarçável. Mantinha-se de pé enquanto lançava um olhar a Nate que teria horrorizado John Wayne. Um guerreiro mais idoso fazia de intérprete. Passados poucos minutos, Jevy e Nate foram convidados a sentar-se à volta de uma fogueira, onde a mulher do chefe da tribo, completamente nua, preparava o pequeno-almoço.

Sempre que ela se inclinava para a frente, os seus seios oscilavam de um lado para o outro; o pobre Nate estava absolutamente incapaz de afastar o olhar, ainda que fosse por um único segundo, como que mesmerizado. Não havia nada de especialmente sensual naquela mulher nua e nos seus seios. O que lhe prendia o olhar era o facto de ela poder mostrar-se tão desnudada, mantendo-se absolutamente alheada dessa nudez.

Onde é que ele teria deixado a sua máquina fotográfica? Se não lhes levasse uma prova, os tipos do escritório jamais acreditariam no que

lhes contasse.

A mulher ofereceu a Nate um prato de madeira cheio do que parecia ser uma porção de batatas cozidas. Lançou um olhar de revés a Jevy que lhe respondeu com um breve acenar de cabeça, como se soubesse tudo o que havia a saber sobre culinária índia. O chefe da tribo foi o último a ser servido e quando começou a comer com os dedos Nate seguiu-lhe o exemplo. Saboreou um produto híbrido que era uma mistura de nabo e batata de casca vermelha, com um sabor pouco definido.

Jevy falava ao mesmo tempo que comia, conversa que dava prazer ao chefe tribal. Ao cabo de algumas frases, Jevy traduzia em inglês para que Nate pudesse acompanhar o diálogo.

Aquele povoado nunca sofria o efeito das cheias. Há mais de vinte anos que se tinham instalado naquela região. O solo era bom para a agricultura. Preferiam não andar de terra em terra, mas por vezes o solo forçava-os a isso. O seu pai também fora chefe da tribo. O chefe tribal, de acordo com o que ele dizia, era o homem mais sábio, inteligente e justo de entre todos, estando-lhe interdito que se envolvesse em relações extra-conjugais. A maior parte dos outros ipicas fazia-o, mas nunca o chefe da tribo.

Nate desconfiava que havia muito pouca coisa com que um homem pudesse ocupar o seu tempo por ali, além de se divertir um pouco com as práticas amorosas.

O chefe nunca vira o rio Paraguai. Preferia a caça à pesca, o que o levava a passar mais tempo na floresta do que nos cursos fluviais. Aprendera os rudimentos da língua portuguesa que o pai lhe ensinara, juntamente com os missionários brancos.

Nate comia e ouvia prestando atenção a tudo o que se passava na aldeia, à espera de ver alguns sinais da presença de Rachel.

O chefe tribal explicou-lhe que ela não estava ali, fora chamada ao outro povoado para tratar de uma criança que tinha sido mordida por uma cobra venenosa. Não sabia com exactidão quando é que ela regressaria.

«Mas que maravilha!», pensou Nate com ironia.

- Ele quer que esta noite durmamos aqui, na aldeia - traduziu Jevy. Entretanto, a mulher do chefe voltava a encher os pratos.

- Eu não sabia que ficávamos aqui mais um dia - replicou Nate.

- Ele diz que sim, que ficamos.

- Diz-lhe que vou pensar no assunto.

- Diz-lhe tu.

Nate amaldiçoou-se por não ter trazido o telefone-satélite. Com certeza absoluta que, naquele momento, Josh estaria a andar desassossegadamente de um lado para o outro no seu gabinete, de tão preocupado que se sentiria. Há quase uma semana que não comunicavam um com o outro.

Jevy disse qualquer coisa vagamente bem-humorada que quando traduzida era hilariante. O chefe começou a rir a bandeiras despregadas e pouco depois todos os presentes faziam coro com ele, incluindo Nate que se ria de si próprio por se estar a rir, a exemplo dos índios.

Ambos declinaram um convite para irem caçar. Uma patrulha de homens jovens escoltou-os de regresso ao primeiro povoado, até ao bote. Jevy queria limpar as velas de ignição, uma vez mais, e tentar afinar o carburador. Nate não tinha nada com que ocupar o seu tempo.

 

O advogado Valdir atendeu o telefonema matutino do doutor Stafford. As cortesias da praxe levaram apenas uns escassos segundos.

- Há vários dias que não tenho notícias de Nate O'Riley - disse Stafford.

- Mas ele levou um desses telefones - retorquiu Valdir na defensiva, como se sentisse que tinha a obrigação de proteger o doutor O'Riley.

- Sim, de facto levou. É isso que me preocupa. Tem a possibilidade de me telefonar a qualquer altura onde quer que se encontre.

- E pode utilizar o telefone se as condições atmosféricas não forem

boas?

- Não. Suponho que não.

- Temos tido muitos temporais severos por estas paragens. Ao fim e ao cabo, estamos na estação das cheias.

- Já teve notícias do guia que contratou?

- Não. Eles partiram juntos. Este guia é muito capaz. O barco também é bom. Tenho a certeza de que estão bem.

- Nesse caso, por que razão é que ele não me telefona?

- Não lhe sei responder. Mas todos os dias temos tido muitas nuvens. Talvez seja por isso que ele não consegue usar o telefone.

Combinaram que Valdir telefonaria a Josh no momento em que tivesse alguma notícia de Nate. Valdir aproximou-se da janela do seu gabinete, olhando para as ruas cheias de movimento de Corumbá. Um pouco mais abaixo, ao fundo da colina, via-se o rio Paraguai. Havia inúmeras histórias de pessoas que tinham navegado por aquele rio até ao Pantanal para nunca mais regressarem. Fazia parte da lenda e do fascínio.

O próprio pai de Jevy navegara pelos rios durante trinta anos e o seu corpo nunca fora encontrado.

Welly descobriu o escritório de advocacia uma hora mais tarde. Nunca se encontrara com o doutor Valdir, mas soubera através de Jevy que era o advogado quem custeava localmente a expedição.

- É um assunto importante - disse ele à secretária. - Muito urgente. No seu gabinete, Valdir ouviu a troca de palavras e saiu para a recepção.

- Quem é você? - perguntou num tom de exigência.

- O meu nome é Welly. Jevy contratou-me como marujo no Santa Loura.

- O Santa Loura.

- Sim - confirmou Welly.

- E o Jevy, onde é que está?

- Continua no Pantanal.

- Onde é que o barco ficou?

- Naufragou - respondeu Welly sucintamente.

Valdir apercebeu-se de que o rapaz estava cansado e assustado.

- Sente-se - convidou enquanto a secretária se apressava a ir buscar um copo de água. - Conte-me tudo o que se passou.

Welly encrespou as mãos no braço da cadeira começando a falar com rapidez.

- Eles foram pelo rio no bote à procura dos índios, estou a referir-me a Jevy e ao doutor O'Riley.

- Quando? - perguntou Valdir.

- Não sei ao certo. Há alguns dias. Ficou combinado que eu ficaria a bordo do Santa Loura. Mas houve uma tempestade, o maior temporal que vi até hoje. A meio da noite, as amarras do barco soltaram-se com a força do vento, o que fez com que capotasse. Eu fui arremessado para a água e mais tarde fui salvo por uma embarcação de transporte de gado.

- Quando é que você chegou?

- Há meia hora.

Entretanto, a secretária voltou com o copo de água. Welly agradeceu-lhe e pediu-lhe um café. Valdir, encostado à mesa onde ela trabalhava, observava o pobre rapaz. Estava sujo e cheirava a excrementos de vaca.

- Portanto o barco naufragou, não é verdade? - constatou Valdir.

- Sim. Tenho muita pena. Não pude fazer nada para evitar que se perdesse. Nunca tinha visto um temporal daqueles.

- E durante essa tempestade, onde é que o Jevy estava?

- Algures no rio Cabixa. Receio que lhe tenha acontecido alguma coisa.

Valdir dirigiu-se para o seu gabinete, entrou, fechou a porta e aproximou-se da janela. O doutor Stafford encontrava-se a uma distância de quase cinco mil quilómetros. Jevy tinha possibilidades de ter sobrevivido numa pequena embarcação. Não fazia sentido começar a tirar conclusões precipitadas.

Decidiu que não telefonaria nos dias mais próximos. Daria algum tempo a Jevy que, certamente, regressaria a Corumbá dentro em pouco.

 

O índio mantinha-se de pé no bote, tendo-se agarrado ao ombro de Nate para não perder o equilíbrio. O motor não dava mostras de ter melhorado o seu rendimento. Continuava a falhar e a engasgar-se, e ainda que o pusessem a funcionar a todo o gás o rendimento ficava-se por metade da capacidade que mostrara quando deixaram o Santa Loura.

Passaram pelo primeiro povoado, onde o curso do rio era tão sinuoso que quase chegava ao ponto de formar círculos. Um pouco mais à frente bifurcava e o índio apontou. Vinte minutos mais tarde, a tenda onde passaram a noite começou a avistar-se da pequena embarcação. Acostaram no sítio onde Jevy tomara banho às primeiras horas do dia. Desmontaram o acampamento e transportaram tudo o que haviam trazido para a aldeia, onde o chefe da tribo queria que se alojassem. Rachel ainda não voltara.

Porque ela não fazia parte da tribo, a sua palhota situava-se num local afastado das outras, dispostas de forma oval. Ficava a uma distância de cerca de trinta metros, mais perto do perímetro da floresta, completamente isolada. À primeira vista, parecia ser mais pequena do que as outras. Quando Jevy quis saber a razão daquelas diferenças, o índio que fora designado para os acompanhar explicou que era por ela não ter família. Os três - Nate, Jevy e o índio que lhes coubera como escolta - passaram duas horas debaixo de uma árvore entre a aldeia e a floresta, mantendo-se atentos às tarefas rotineiras do dia a dia enquanto esperavam que Rachel chegasse.

O casal de missionários que vivera no povoado antes de Rachel, os Cooper, tinham ensinado português ao índio. Também sabia algumas palavras de inglês que, a intervalos regulares, tentava experimentar com Nate. Os Cooper haviam sido os primeiros brancos que qualquer dos ipicas vira. A senhora Cooper tinha morrido de malária e o senhor Cooper regressou ao local de onde viera.

Os homens caçavam e pescavam - explicou o nativo aos convidados, enquanto os mais jovens, com toda a certeza, já se tinham escapado sorrateiramente da aldeia para se encontrarem com as namoradas. Às mulheres cabiam as tarefas mais duras - cozinhar, cozer o pão, limpar e vigiar as crianças. No entanto, o trabalho era feito a um ritmo vagaroso. Partindo do princípio de que o tempo passava mais lentamente a sul do equador, no que dizia respeito aos índios ipica, o conceito das horas era inexistente.

As portas das palhotas permaneciam abertas e as crianças corriam de uma para a outra. As rapariguinhas sentavam-se à sombra entrançando os cabelos, enquanto as suas mães trabalhavam junto das fogueiras.

A limpeza era uma obsessão. O chão de terra batida das áreas comuns era varrido constantemente com vassouras de palha. O exterior das palhotas mantinha-se bem limpo e arrumado.

As mulheres e as crianças banhavam-se na água do rio três vezes ao dia; os homens banhavam-se duas vezes e nunca ao mesmo tempo que as mulheres. Toda a gente andava nua, mas existiam determinadas coisas que se faziam em privado.

Ao fim da tarde, os homens reuniam-se à entrada da palhota que lhes fora reservada, a maior das duas rectangulares no centro da clareira. Durante algum tempo ocupavam-se com os seus cabelos - que cortavam e arranjavam - e em seguida começavam a lutar entre si. Aquelas pelejas amigáveis tinham lugar entre dois nativos que se colocavam frente a frente; o objectivo era fazer com que o adversário ficasse caído por terra. Era uma luta agressiva, embora obedecesse a regras rígidas, e quando terminava havia uma grande profusão de sorrisos. O chefe da tribo arbitrava qualquer disputa que eventualmente pudesse surgir. Da porta das suas palhotas, as mulheres assistiam às lutas masculinas manifestando pouco interesse, como se se esperasse que fossem espectadoras. Os garotos imitavam os pais.

Por seu turno, Nate sentava-se num tronco de árvore, visualizando um drama de outra etapa da sua vida, perguntando-se, o que não fazia pela primeira vez, onde é que estava.

 

Eram poucos os índios, dos que se encontravam em redor de Nate, que sabiam que a garota se chamava Ayesh. Era apenas uma criança que vivia numa outra aldeia. Não obstante esse desconhecimento, todos sabiam que havia uma rapariga que fora mordida. Falaram sobre o assunto ao longo de todo o dia, enquanto tomavam a precaução de manter os seus próprios filhos por perto.

Durante o jantar chegou a notícia de que a garotinha morrera. A má nova foi dada ao chefe da tribo por um mensageiro que chegou a correr, e num espaço de poucos minutos a notícia espalhou-se por todas as palhotas. As mães juntaram os filhos mais pequenos, não lhes permitindo que se afastassem para longe.

Recomeçaram a comer até verem o movimento de pessoas no trilho principal. Rachel regressava com Lako e os outros homens que a tinham acompanhado durante todo o dia. Quando entrou no povoado, todos pararam de comer, interrompendo as conversas; todos se levantaram prendendo os olhos nela. Enquanto ia passando pelas palhotas os indígenas baixavam a cabeça. Rachel sorriu a uns quantos, dirigindo palavras murmuradas a outros e detendo-se durante o tempo necessário para dizer qualquer coisa ao chefe, após o que se dirigiu para a sua palhota seguida por Lako, que coxeava mais do que o costume.

Rachel passou perto da árvore onde Nate, Jevy e o seu índio haviam passado a maior parte da tarde, mas não deu pela presença deles. Não estava a olhar. Sentia-se cansada e sofria, parecendo ansiosa por chegar a casa.

- E agora o que é que fazemos? - perguntou Nate a Jevy que passou a pergunta traduzindo-a em português.

- Esperamos - foi a resposta que lhe foi dada.

- Como se eu esperasse outra resposta.

Quando o Sol já se punha para lá das montanhas, Lako aproximou-se deles. Jevy e o índio foram comer alguns restos do jantar. Nate seguiu o rapaz pelo trilho que ia dar à habitação de Rachel. Estava à porta a secar a cara com uma toalha de rosto. Tinha o cabelo molhado e mudara de roupa.

- Boa-noite, doutor O'Riley - saudou na mesma voz baixa e vagarosa que não traía qualquer emoção.

- Olá, Rachel. Por favor, trate-me por Nate.

- Sente-se ali, Nate - indicou Rachel apontando para um cepo pouco alto e extraordinariamente parecido com aquele em que Nate se mantivera sentado ao longo das últimas seis horas. Fora colocado em frente da palhota, próximo de um círculo de pedras onde ela costumava fazer a sua fogueira. Sentou-se, embora ainda sentisse o traseiro dorido por ter estado sentado durante tanto tempo.

- Lamento muito o que aconteceu à menina - disse Nate.

- Está junto do Senhor.

- Mas os pobres pais não estão.

- Não. Estão a passar por um grande desgosto. É uma situação muito triste.

Rachel sentou-se à entrada da palhota com os braços à volta dos joelhos e o olhar perdido à distância. O jovem índio mantinha-se vigilante debaixo de uma árvore não muito longe; no meio das sombras, era difícil vê-lo.

- Convidá-lo-ia a entrar na minha casa - começou Rachel a dizer -, mas isso não seria apropriado.

- Por mim, isso não tem importância nenhuma.

- Só as pessoas casadas é que podem estar a sós dentro das palhotas a esta hora do dia. É um costume dos nativos.

- Em Roma, faz como os romanos.

- Roma fica muito longe.

- Tudo fica muito longe daqui.

- Sim, de facto assim é. Tem fome?

- E você? - perguntou Nate.

- Não. Mas habitualmente eu como muito pouco.

- Estou bem. Precisamos de conversar.

- Peço-lhe desculpa pelo que sucedeu hoje. Tenho a certeza que compreende.

- Claro que sim.

- Se lhe apetecer, posso oferecer-lhe um pouco de mandioca e algum sumo.

- Não, de verdade que não me apetece. Estou bem.

- Hoje o que é que fez?

- Falámos com o chefe da tribo, tomámos o pequeno-almoço com ele, fomos a pé até à primeira aldeia e estivemos a trabalhar no motor do bote, em seguida montámos a tenda por detrás da palhota do chefe, e ficámos à sua espera.

- O chefe gostou de si?

- Evidentemente. Quer que fiquemos.

- Que opinião é que tem da minha gente?

- Andam todos nus.

- Sempre andaram - confirmou Rachel.

- De quanto tempo é que precisou para se habituar a esta nudez?

- Não sei bem. Talvez uns dois anos. Gradualmente, vamo-nos acostumando, como a tudo o mais. Durante três anos senti muitas saudades da minha terra natal, e ainda existem ocasiões em que gostaria de me sentar ao volante de um automóvel, comer uma pizza e poder ver um bom filme. Mas acabamos por nos adaptar.

- É-me extremamente difícil conceber uma coisa dessas.

- É uma questão de vocação. Perfilhei a fé cristã quando tinha catorze anos, e foi então que soube que Deus queria que eu viesse a ser uma missionária. Na altura não sabia exactamente onde, mas pus toda a minha fén'Ele.

- Não há dúvida que Ele escolheu um diabo de uma terra...

- Gosto muito de ouvir o seu inglês, mas por favor não pragueje.

- Peço desculpa. Acha que podemos falar de Troy Phelan? - As sombras da noite aproximavam-se com rapidez. Entre Rachel e Nate havia uma distância de cerca de três metros; ainda conseguiam ver-se um ao outro, mas dentro em pouco seriam separados pela escuridão.

- Faça como lhe aprouver - retorquiu ela com uma expressão resignada que também era fruto do cansaço.

- Troy foi casado com três mulheres que lhe deram três filhos, tanto quanto sabemos, além de você que, como é evidente, foi uma surpresa para toda a gente. Ele não gostava dos outros seis, embora, ao que tudo indica, tivesse dedicado bastante afecto a si. Em herança, deixou-lhes praticamente nada, apenas o suficiente para saldar as dívidas que todos têm. O resto dos bens foi integralmente deixado a Rachel Lane, nascida de uma relação extramatrimonial, a 2 de Novembro de 1954, no Hospital Católico de Nova Orleães, de uma mulher chamada Evelyn Cunningham, já falecida. Essa Rachel seria você.

As palavras caíam pesadamente no ar opressivo devido à humidade; não se ouviam quaisquer outros sons. A silhueta de Rachel absorvia-os e, como era seu costume, ela ponderou bem as suas palavras antes de falar.

- Troy não gostava de mim. Não nos vimos durante vinte anos.

- Esse aspecto não é importante. Ele deixou-lhe toda a sua fortuna. Ninguém teve oportunidade para lhe perguntar por que razão é que decidiu saltar da varanda abaixo, depois de ter assinado o último testamento. Trouxe uma cópia para si.

- Não quero vê-la.

- Também tenho outros documentos que gostava que assinasse, talvez amanhã, bem cedo, assim que houver luz. Feito isso, poderei pôr-me a caminho.

- Que espécie de documentos?

- Papelada oficial, tudo em seu benefício.

- Você não está preocupado com o meu bem-estar. - Aquelas palavras de Rachel foram muito mais rápidas e desabridas.

Nate sentiu-se melindrado com a admoestação.

- Isso não é verdade - replicou numa voz pouco convincente.

- Claro que é. Você não sabe o que é que eu quero, ou do que necessito, ou do que gosto, ou do que não gosto. Você não me conhece, Nate, portanto, como é que pode saber aquilo que me beneficiará ou não?

- De acordo, tem toda a razão. Admito que não a conheço, tal como você não me conhece. Estou aqui em representação do espólio que o seu pai lhe deixou. Para mim, continua a ser muito difícil acreditar que efectivamente estou sentado aqui, na escuridão, do lado de fora de uma palhota, num povoado de índios primitivos, perdido num pântano com um território do tamanho do Colorado, num país do terceiro mundo que nunca tinha visitado, enquanto converso com uma missionária encantadora que, por acaso, é a mulher mais rica do mundo. Sim, tem razão, não sei o que é que será melhor para si. Apesar de tudo, é da maior importância que você leia estes documentos, após o que deverá assiná-los.

- Não tenciono assinar coisa nenhuma.

- Ora, vamos lá, deixe-se disso.

- Não tenho o mínimo interesse nos seus papéis.

- Ainda nem sequer os viu.

- Nesse caso, diga-me de que é que tratam - atalhou Rachel.

- São meras formalidades. A minha firma tem de proceder à homologação da herança que o seu pai deixou. Todos os herdeiros que foram mencionados no testamento têm a obrigação de informar o tribunal, em pessoa ou por escrito, de que tomaram oficialmente conhecimento dos trâmites jurídicos, tendo-lhes sido dada a oportunidade de participar. É uma exigência que a lei determina.

- E se me recusar?

- Para lhe falar com franqueza, essa é uma hipótese que nem sequer me passou pela cabeça. É um processo tão rotineiro que ninguém se recusa a cooperar.

- Por conseguinte, tenho de me submeter ao tribunal de...?

- Da Virgínia. O tribunal de homologações desse estado tem jurisdição sobre si, embora se encontre ausente do país.

- Não sei bem se essa ideia me agrada.

- Óptimo; sendo assim, salte para dentro do barco e partamos a caminho de Washington.

- Não estou disposta a sair daqui - replicou Rachel. A estas palavras seguiu-se um silêncio prolongado, interlúdio que se tornou ainda mais silencioso devido à escuridão que os envolvia. O rapaz índio continuava completamente imobilizado debaixo da copa da árvore. Os outros nativos instalavam-se nas suas palhotas sem fazerem qualquer ruído, à excepção do choro ocasional de uma criança.

- Vou buscar um pouco de sumo para bebermos - disse Rachel num murmúrio que quase não se ouviu, entrando na palhota. Nate levantou-se distendendo o corpo dorido, ao mesmo tempo que enxotava os mosquitos. Deixara o repelente de insectos na tenda.

Nate deu por um pequeno ponto de luz que bruxuleava no interior da palhota. Rachel trazia uma pequena tigela de barro com uma chama no centro.

- São folhas daquela árvore que está ali - explicou enquanto se sentava no chão à entrada da palhota. - Costumamos queimá-las porque mantêm os mosquitos afastados. Sente-se aqui, mais perto das folhas.

Nate acatou o que Rachel lhe disse. Pouco depois, ela voltou a sair trazendo duas malgas cheias de um líquido que ele não conseguia ver.

- É de macajubeira, assemelha-se ao sumo de laranja. - Os dois sentavam-se no chão, os corpos quase se tocavam, com as costas encostadas à palhota e a malga onde ardiam as folhas perto dos pés.

- Fale em voz baixa - advertiu Rachel. - Os índios estão a tentar adormecer; a escuridão e o silêncio são bons condutores de vozes. Além de que eles se sentem muito curiosos a nosso respeito.

- Não são capazes de compreender o que dizemos.

- É verdade, mas mesmo assim pôr-se-ão à escuta.

Havia vários dias que o corpo de Nate não sabia o que era um sabonete; inesperadamente, sentiu-se preocupado com a sua higiene pessoal. Bebeu uns quantos goles de sumo.

- Você tem família? - perguntou Rachel.

- Já tive um par delas. Dois casamentos. Dois divórcios e quatro filhos. Actualmente vivo sozinho.

- É tão fácil que as pessoas se divorciem, não acha?

Nate bebeu um gole muito pequeno da bebida morna. Até à data conseguira evitar as diarreias violentas, indisposição que frequentemente afligia tantos estrangeiros. Com certeza que aquela bebida um tanto turva seria inofensiva.

Dois norte-americanos sozinhos no meio da selva. Ambos tinham tantos assuntos de que conversar, por que motivo é que não podiam evitar o tema do divórcio?

- Na realidade, é um processo bastante doloroso.

- Mas isso não impede que continuemos com a nossa vida. Casamo-nos e depois divorciamo-nos. Encontramos outra pessoa e voltamos a casar e divorciamo-nos de novo. Uma vez mais, encontramos outra pessoa.

- Nós?! - exclamou Nate.

- Só estou a usar o pronome. Gente civilizada, educada. Pessoas complicadas. Os índios nunca se divorciam.

- Também nunca conheceram a minha primeira mulher.

- Ela era assim tão desagradável?

Nate respirou fundo e bebeu outro gole de sumo. «Tens de ser indulgente com ela», disse a si próprio. «Está desesperada por conversar com alguém da sua raça.»

- Peço desculpa - disse Rachel. - A minha intenção não é intrometer-me. Esse assunto não interessa.

- Ela não era má pessoa, pelo menos nos primeiros anos de casamento. Eu trabalhava muito e bebia ainda mais. Quando não estava no escritório, poderia ser encontrado num bar qualquer. Ela começou a ressentir-se com essa minha atitude, a pouco e pouco foi-se tornando má e por último perversa. As coisas entraram num círculo vicioso de onde não havia saída, o que nos levou a odiarmo-nos.

Num ápice, a pequena confissão chegou ao fim, tendo bastado tanto para um como para o outro. O seu descalabro matrimonial parecia-lhe tão descabido e irrelevante naquela situação.

- E você, Rachel, nunca se casou?

- Não - respondeu ela bebendo outro gole de sumo. Era canhota e quando levava a malga aos lábios tocava em Nate com o cotovelo.

- Não sei se sabe, mas Paulo nunca se casou.

- Paulo, quem?

- O apóstolo Paulo.

- Ah, esse Paulo.

- Costuma ler a Bíblia?

- Não - respondeu Nate.

- Quando andava na faculdade, houve uma ocasião em que pensei que estava apaixonada. Desejava casar com ele, mas o Senhor afastou-me.

- Porquê?

- Porque o Senhor queria que eu viesse para aqui. O rapaz por quem eu me tinha apaixonado era um bom cristão, mas fisicamente não era um homem forte. Jamais teria sobrevivido ao trabalho de campo dos missionários.

- Durante quanto mais tempo é que está a pensar viver aqui?

- Não faço tenções de me ir embora.

- Isso quer dizer que os índios é que lhe farão o funeral?

- Suponho que sim. Isso não é um assunto com que me preocupe por aí além.

- Existem muitos missionários da Tribos Universais que optem por permanecer nos locais onde desempenham a sua missão até morrerem?

- Não. A maior parte aposenta-se e regressa às suas terras de origem. Mas esses têm famílias que se encarregarão de lhes fazer o funeral.

- Se você decidisse regressar ao seu país, constataria que a partir de agora teria muitos familiares e amigos. Tornar-se-ia numa personagem bastante famosa.

- Uma boa razão para que eu me deixe ficar onde estou. Para mim, esta é a minha terra. Não quero esse dinheiro.

- Não seja disparatada.

- Não sou disparatada. No que me diz respeito, o dinheiro não tem qualquer significado. O que me parece que devia ser por demais evidente.

- Nem sequer sabe a quanto ascende a sua herança.

- Não perguntei. Hoje cumpri a minha missão durante todo o dia sem pensar no dinheiro uma só vez. E amanhã farei o mesmo, assim como nos dias que se seguirem.

- Estamos a falar de onze mil milhões de dólares, mais coisa menos coisa.

- Está à espera que eu me sinta impressionada?

- Teve o condão de despertar a minha atenção.

- Mas você sente adoração pelo dinheiro, Nate. Faz parte de uma cultura onde tudo é aferido em termos monetários. É uma religião.

- Verdade. Mas o sexo também é muito importante.

- De acordo, dinheiro e sexo. E que mais?

- A fama. Toda a gente pretende vir a ser uma celebridade.

- É uma cultura muito triste. As pessoas vivem num autêntico frenesi. Passam o tempo a trabalhar para ganharem o dinheiro com que poderão comprar coisas que impressionem os outros. Toda a gente é avaliada em função das suas posses materiais.

- Estarei eu incluído nessa categoria?

- Acha que sim?

- Suponho que sim - admitiu Nate.

- Isso quer dizer que você vive sem Deus. Pressinto que é uma pessoa muito solitária, Nate. Nem sequer conhece a palavra de Deus.

Nate agitou-se pensando num argumento com que se pudesse defender rapidamente, mas a verdade deixou-o desconcertado. Não dispunha de quaisquer armas ou argumentos, nem tão-pouco fundamento nenhum a que pudesse recorrer.

- Acredito na existência de Deus - retorquiu com sinceridade mas com pouca convicção.

- É fácil fazer essa afirmação - retorquiu Rachel na sua voz habitual, suave e lenta. -Não duvido de si. Contudo, dizê-lo é uma coisa, mas viver de acordo com as nossas crenças é outra questão.

- Aquele rapaz coxo, que está ali, debaixo da árvore, é o Lako. Tem dezassete anos e é franzino para a idade que tem, está constantemente adoentado. A mãe disse-me que o seu nascimento foi prematuro. Lako é sempre o primeiro a ficar contagiado por qualquer doença que nos bata à porta. Duvido muito que viva até aos trinta anos de idade. Mas essa adversidade não afecta Lako. Adoptou a fé cristã há vários anos, é a pessoa com o espírito mais encantador de todos os que vivem nesta aldeia. Passa todo o dia a falar com Deus; de facto, provavelmente, neste preciso momento estará a rezar. Não tem preocupações nenhumas, nem medos. Caso tenha um problema, dirige-se logo a Deus deixando com Ele seja o que for que o perturbe.

Nate ficou a olhar para a escuridão, fitando o local debaixo da árvore onde Lako estaria a orar, mas não viu nada.

- Aquele pequeno índio não tem nada neste mundo a que possa chamar de seu - continuou Rachel -, mas está a acumular grandes riquezas no céu. Sabe que quando morrer passará toda a eternidade no paraíso celeste junto do seu Criador. Lako é um rapaz muito rico.

- E com respeito a Troy Phelan?

- Duvido muito que Troy acreditasse em Cristo quando morreu. O que, a confirmar-se, fará com que neste momento esteja a arder nas profundas do inferno.

- Você não acredita no que está a dizer.

- O inferno é um lugar muito real, Nate. Leia a Bíblia. Sem a mínima hesitação, Troy daria os seus onze mil milhões de dólares por um copo de água fresca.

Nate estava bem ciente de que não se encontrava preparado para debater questões teológicas com uma missionária. Durante algum tempo manteve-se em silêncio; ela compreendeu a razão daquele mutismo. Passaram alguns minutos até que a última criança do povoado adormecesse. A noite estava de um negrume imperscrutável, serena, sem Lua ou estrelas; a única luz era a pequena chama amarelada que irradiava perto dos pés de Nate e Rachel. Num gesto cheio de suavidade, ela tocou-lhe. Bateu-lhe três vezes no braço.

- Peço desculpa - disse ela. - Nunca lhe devia ter dito que era um homem solitário. Como é que eu posso saber uma coisa dessas?

- Não tem importância - tranquilizou-a Nate.

Rachel manteve os dedos ligeiramente apoiados no braço dele, como se estivesse desesperada por tocar em qualquer coisa.

- Você é boa pessoa, não é verdade, Nate?

- Não, realmente não sou boa pessoa. Faço muitas coisas que são condenáveis. Sou um homem fraco, de uma fragilidade enorme, e não desejo falar sobre este assunto. Não vim aqui com o objectivo de encontrar Deus. Já foi suficientemente difícil descobrir o seu paradeiro, Rachel. A lei exige que eu lhe entregue estes documentos.

- Não tenciono assinar os papéis e não quero o dinheiro.

- Deixe-se disso...

- Por favor, não me peça isso. A minha decisão é final. Não falemos mais desse dinheiro.

- Mas o dinheiro é a única razão que me trouxe até aqui.

Rachel afastou os dedos, embora, de uma forma inexplicável, tivesse ficado uns quantos centímetros mais próxima dele, de maneira que os joelhos de ambos quase se tocavam.

- Lamento muito que tenha vindo ao Brasil. Fez uma viagem em vão. Outra pausa no diálogo. Nate necessitava de se aliviar, mas pensar que

seria forçado a caminhar, ainda que só um metro em qualquer direcção, era uma ideia aterradora.

Lako disse qualquer coisa, sobressaltando Nate. Estava a uma distância de menos de três metros, continuando oculto pela escuridão.

- Ele precisa de ir à tenda - disse Rachel pondo-se de pé. - Vá atrás dele.

Nate ergueu-se do chão começando a levantar-se com movimentos lentos, sentindo as articulações a estalar enquanto os músculos se distendiam com alguma relutância.

- Gostaria de poder partir amanhã - disse ele.

- Óptimo. Falarei com o chefe da tribo.

- Parece-lhe que ele possa levantar algum obstáculo?

- Provavelmente não.

- Vou precisar de trinta minutos do seu tempo para que, no mínimo dos mínimos, possamos rever os papéis e mostrar-lhe uma cópia do testamento.

- Falaremos desse assunto mais tarde. Boa-noite.

Enquanto percorriam o pequeno trilho até à aldeia, Nate ia praticamente colado a Lako.

- Aqui - disse Jevy num sussurro que ecoava na escuridão. Sem que Nate compreendesse bem como, ele conseguira arranjar duas redes espreguiçadeiras que suspendera dos postes do pequeno alpendre da palhota reservada aos homens. Nate perguntou-lhe como é que as conseguira. Jevy prometeu-lhe que lhe explicaria na manhã seguinte.

Lako sumiu-se por entre as trevas da noite.

 

  1. Parr Wycliff presidia na sua sala de tribunal, ouvindo a leitura monótona das petições que sumariavam os actos de processos judiciais. Munido da cassete de vídeo, Josh aguardava no gabinete atravancado do juiz, onde andava de um lado para o outro numa manifestação de impaciência, agarrando no telemóvel embora os seus pensamentos estivessem num outro hemisfério. Continuava sem notícias de Nate.

As garantias que Valdir não se cansava de lhe repetir pareciam-lhe bem ensaiadas - o Pantanal é uma região muito vasta, o guia era muito competente, o barco grande e seguro, os índios costumavam mudar-se de um lado para o outro, os índios não desejavam ser encontrados, estava tudo a correr pelo melhor. Assim que tivesse notícias de Nate ligar-lhe-ia imediatamente.

Josh tinha considerado a ideia de organizar uma expedição de salvamento. Todavia, considerava que chegar a Corumbá, por si só, já era um desafio de peso; penetrar no interior do Pantanal, com a missão de procurar um advogado desaparecido, parecia-lhe ser uma tarefa impossível de concretizar. Mesmo assim, nada o impedia de ir a Corumbá, onde esperaria com Valdir até receberem notícias.

Andava a trabalhar doze horas por dia, seis dias por semana, e o caso Phelan estava à beira de explodir. Josh mal tinha tempo para almoçar, quanto mais para pensar numa viagem ao Brasil.

Tentou ligar para Valdir através do telefone celular, mas a linha estava interrompida.

Pouco depois, Wycliff entrou no gabinete, apresentando as suas desculpas enquanto despia a toga. Desejava impressionar um advogado que gozava de tanta influência como Stafford, falando-lhe da importância dos sumários relativos aos actos de processos.

Não havia mais ninguém no gabinete, apenas os dois. Viram a primeira parte da cassete de vídeo sem fazer qualquer comentário.

Começava com o velho Troy sentado na sua cadeira de rodas, enquanto Josh ajustava o microfone à frente dele, e os três psiquiatras com as suas páginas cheias de perguntas. O exame mental tinha a duração de vinte e um minutos, após o que os médicos chegaram unanimemente à conclusão de que o senhor Phelan sabia exactamente o que estava a fazer. Wycliff foi incapaz de conter um sorriso. Os psiquiatras saíram da sala. A câmara de filmar, directamente em frente de Troy Phelan, continuava ligada. Este endireitou o testamento holografado assinando-o quatro minutos depois de ter sido submetido ao exame que aferira as suas capacidades mentais.

- É aqui que ele salta da varanda - disse Josh.

A câmara não foi deslocada. Continuava a filmar Troy quando este se afastou da mesa num movimento rápido, levantando-se logo de seguida. Desapareceu do ecrã enquanto Josh, Snead e Tip Durban o observavam, e, por uma fracção de segundos, ficaram incrédulos sem acreditarem no que os seus olhos viam, após o que desataram a correr atrás do velho. As cenas eram bastante dramáticas.

Decorreram cinco minutos e meio durante os quais a máquina de filmar não registou nada, além de cadeiras vazias e vozes. O pobre Snead senta-se no lugar que fora ocupado por Troy. Estava visivelmente abalado e à beira das lágrimas, embora tivesse conseguido reunir a coragem suficiente para relatar em frente da câmara o que acabara de testemunhar. Josh e Tip Durban seguiram-lhe o exemplo.

Trinta e nove minutos de filme em vídeo.

- Como é que eles vão deslindar tudo isto? - perguntou Wycliff terminado o filme. Era uma pergunta que não tinha resposta. Dois dos herdeiros - Rex e Libbigail -já haviam dado entrada de petições contestando a validade do testamento. Os seus advogados - Hark Gettys e Wally Bright, respectivamente, tinham conseguido atrair bastante as atenções, na sequência do que eram muito fotografados e entrevistados pela imprensa.

Os outros herdeiros não tardariam muito a seguir aquele exemplo. Josh já falara com a maior parte dos advogados dos herdeiros; a corrida aos tribunais já se iniciara.

- Todos os psiquiatras desacreditados deste país querem participar nisto - disse Josh. - Há-de surgir um monte de opiniões jurídicas.

- Sente-se preocupado por causa do suicídio? - perguntou o juiz.

- Claro que sim. Mas ele planeou tudo com tamanho cuidado, até mesmo a sua morte. Sabia com toda a precisão como e quando é que desejava morrer.

- E quanto ao outro testamento? O que era composto de muitas folhas e que ele assinou primeiro.

- Ele nunca chegou a assiná-lo.

- Mas eu vi-o assinar. Ficou gravado em vídeo.

- Não, o senhor Phelan limitou-se a rabiscar o nome de Rato Mickey. Entretanto, Wycliff tomava apontamentos num bloco de apontamentos

de papel amarelo com linhas; a sua mão parou a meio de uma frase.

- Rato Mickey?! -repetiu ele.

- A nossa situação é esta, senhor juiz. De 1982 a 1996, elaborei onze testamentos a pedido do senhor Phelan. Alguns eram volumosos e outros nem por isso; neles dispunha-se da sua fortuna de mais maneiras do que aquelas que a sua mente possa conceber. A lei estipula que com a elaboração de cada novo testamento, o que o precedeu tem de ser destruído. De acordo com isso, eu costumava levar o testamento mais recente ao seu escritório, onde passávamos duas horas a analisar pormenorizadamente todas as cláusulas, após o que ele o assinava. Eu guardava os testamentos no meu gabinete, tendo sempre o cuidado de lhe levar o último sempre que o anterior era substituído. Depois de ele ter assinado a nova versão, nós, o senhor Phelan e eu próprio, destruíamos o que o antecedera na máquina de retalhar papéis que ele tinha junto da sua mesa de trabalho. Era um ritual que lhe agradava imensamente. Ficaria feliz durante alguns meses até que um dos filhos fizesse algo que o enfurecesse e, acto contínuo, recomeçava a falar em alterar o testamento.

- Na hipótese de os herdeiros conseguirem provar que ele não se encontrava de posse de capacidades mentais suficientes na altura em que elaborou esse último testamento escrito à mão, isso significa que não existe nenhum outro. Todos os que o precederam foram destruídos.

- O que, a vir ser provado, significa que ele morreu sem deixar qualquer testamento - acrescentou Wycliff.

- Sim, tal como certamente saberá, ao abrigo das leis em vigor na Virgínia, o espólio será equitativamente dividido entre os filhos.

- Sete herdeiros. Onze mil milhões de dólares.

- Sete de que nós tenhamos conhecimento. Onze mil milhões é um número bastante exacto. Se estivesse no lugar deles, não tentaria impugnar o testamento? - perguntou Josh.

Tudo o que Wycliff mais almejava era exactamente uma bela contestação, bastante prolongada, que pusesse em questão a validade do testamento. E sabia que os advogados, incluindo Josh Stafford, ficariam ainda mais ricos graças a essa disputajudicial.

Contudo, a batalha necessitava de dois opositores e até à data só se apresentara um. Teria de aparecer alguém que se batesse pela validade do último testamento do senhor Phelan.

- Teve alguma notícia de Rachel Lane? - perguntou Wycliff.

- Ainda não, mas continuamos a tentar encontrá-la.

- Por onde é que ela anda?

- Pensamos que trabalha como missionária algures na América do Sul. Mas ainda não conseguimos descobrir-lhe o rasto. Já enviámos pessoas que andam à procura dela nessa região. - Josh apercebeu-se de que utilizara a palavra «pessoas» de uma maneira pouco definida.

Wycliff examinava o tecto, profundamente embrenhado nos seus pensamentos.

- Por que razão é que ele terá deixado onze mil milhões de dólares a uma filha ilegítima, que ainda por cima é missionária?

- Não sou capaz de responder a essa pergunta, senhor juiz. Ele conseguiu surpreender-me tantas vezes que, até certo ponto, fiquei imunizado.

- É um comportamento que nos leva a pensar um pouco na possibilidade da loucura, não lhe parece?

- Sou forçado a admitir que, no mínimo, é estranho.

- Sabia alguma coisa sobre essa filha ilegítima?

- Não - retorquiu Josh.

- Acha que poderão existir outros herdeiros?

- Tudo é possível.

- Pensa que ele não estava bom do juízo?

- Não acredito. Era estranho, excêntrico, caprichoso e perverso até ao extremo. Mas é inquestionável que sabia bem o que estava a fazer.

- Descubra o paradeiro dessa rapariga, Josh.

- É o que estamos a tentar fazer.

 

Na reunião participaram apenas Rachel e o chefe da tribo. Do local onde Nate estava sentado, no alpendre acima da sua rede espreguiçadeira, via o rosto dos dois e conseguia ouvir as suas vozes. O chefe mostrava-se incomodado com qualquer coisa que via nas nuvens. Dizia o que tinha a dizer e depois escutava o que Rachel lhe replicava, e em seguida, num movimento lento, erguia o olhar para o céu como se antecipasse uma morte que caísse do firmamento. Na óptica de Nate, o chefe da tribo não só ouvia Rachel com atenção, como também procurava os seus conselhos.

Em redor dos dois, a refeição da manhã chegava ao fim enquanto os índios ipica se preparavam para um novo dia. Os caçadores reuniam-se em pequenos grupos na palhota reservada aos homens, aguçando a ponta das suas setas e ajustando as cordas dos arcos. Por seu lado, os pescadores estendiam as suas redes e linhas de pesca. As mulheres mais jovens meteram mão à obra, iniciando a interminável tarefa de manterem limpa a área adjacente às suas palhotas, varrendo todos os detritos. As suas mães encaminhavam-se para as hortas e campos de cultivo próximos da floresta.

- Ele pensa que vai cair um temporal - explicou Rachel depois de a reunião ter terminado. - Diz que você pode partir mas que não permitirá que nenhum guia da aldeia vá consigo. É demasiado perigoso.

- Achas que nos podemos safar sem um guia? - perguntou Nate a Jevy.

- Sim - respondeu este.

Nate replicou-lhe com um olhar que transmitia inúmeros pensamentos.

- Não seria uma atitude sensata - interveio Rachel. - Os rios comunicam entre si. É fácil que qualquer pessoa se perca. Até mesmo os ipicas já perderam pescadores durante a estação das chuvas.

- Quando é que lhe parece que a tempestade amaine? - perguntou Nate.

- Vamos ter de esperar para ver.

Nate respirou fundo deixando descair os ombros num gesto de desânimo. Sentia-se fatigado e tinha o corpo dorido cheio de picadas de mosquitos; também tinha fome e estava farto da sua pequena aventura, preocupado por saber que Josh estaria numa grande aflição sem notícias suas. Até ao momento, a sua missão redundara em fracasso. Não tinha saudades de casa pela simples razão de não haver nada a que desejasse regressar. Mas queria ver Corumbá uma vez mais, com os seus pequenos cafés acolhedores, hotéis de ambiente agradável e as ruas onde a vida seguiam a um ritmo indolente. Desejava outra oportunidade de estar a sós consigo próprio, desintoxicado e sóbrio sem receio de beber até a morte o levar.

- Lamento muito - acrescentou Rachel.

- Tenho mesmo de regressar. Há pessoas no escritório que esperam notícias minhas. Esta pequena expedição já se prolongou por mais tempo do que seria de esperar.

Ela ouvia o que ele dizia, mas a verdade é que as suas palavras não lhe interessavam. Umas quantas pessoas preocupadas num escritório de advogados em D. C. era coisa que não a afligia por aí além.

- Podemos conversar? - perguntou Nate.

- Tenho de ir ao povoado mais próximo para assistir ao funeral da pequenita. Por que não vem comigo? Teremos muito tempo para conversar.

Lako tomava a dianteira caminhando com o pé direito deformado metido para dentro, o que fazia com que o corpo se inclinasse para a esquerda sempre que dava um passo, para logo a seguir se contorcer para a direita. Olhar para ele inspirava dó. Rachel caminhava atrás do rapaz índio com Nate, que a seguia de perto, transportando um saco de pano que ela trouxera. Jevy mantinha-se bastante atrás deles, uma precaução para não ouvir qualquer conversa que não lhe dissesse respeito.

Depois de terem deixado para trás as palhotas, passaram por pequenas parcelas quadradas de terras de cultivo, presentemente abandonadas ao mato rasteiro.

- Os ipicas cultivam os seus alimentos em pequenas hortas que arroteiam na selva - explicou Rachel. Nate seguia logo atrás dela tentando acompanhar o seu passo. Rachel dava passadas longas com as suas pernas vigorosas. Uma caminhada de três quilómetros por entre a floresta, para ela, era uma brincadeira de crianças. - As colheitas esgotam o solo e depois de alguns anos a terra deixa de produzira. Abandonam as parcelas de que a natureza se apodera, vendo-se forçados a penetrar mais no interior da selva. Com o decorrer do tempo, o solo volta a normalizar-se e entretanto ninguém ficou prejudicado. Na perspectiva dos nativos, a terra é tudo. É a sua própria vida. A maior parte das terras foi-lhes retirada pelas pessoas ditas civilizadas.

- Aí está uma coisa que me soa familiar - retorquiu Nate.

- Sim, soa. Nós dizimamos estes povos com doenças e derramamento de sangue, para depois os privarmos das suas terras. Em seguida, instalamos os índios em reservas e não compreendemos por que motivo é que não se sentem felizes com essa mudança.

Rachel saudou duas mulheres nuas de figura miudinha que amanhavam a terra perto do trilho.

- Às mulheres cabe o trabalho mais árduo - comentou Nate.

- Sim, mas o trabalho é fácil quando comparado com dar à luz.

- Por mim, acho que prefiro vê-las a trabalhar.

O ar tinha um elevado teor de humidade, mas livre do fumo que pairava incessantemente sobre a aldeia. Quando entraram na floresta, Nate já transpirava.

- Conte-me alguma coisa a seu respeito, Nate - disse ela por cima do ombro. - Onde é que nasceu?

- Isso é capaz de levar algum tempo.

- Limite-se aos pontos mais altos da sua vida.

- Existem mais dos que estive em baixo.

- Vá lá, Nate. Você é que queria conversar; pois bem, conversemos. Ainda temos caminhada para mais meia hora.

- Nasci em Baltimore e era o mais velho de dois filhos, os meus pais divorciaram-se quando eu tinha quinze anos, fiz a primeira fase do ensino secundário na Saint Paul, os últimos três anos estudei em Hopkins, ao que se seguiu a faculdade de direito na Universidade Georgetown, depois da licenciatura fui para D. C.

- Teve uma infância feliz?

- Suponho que sim. Fiz muito desporto. O meu pai trabalhou na Cervejeira Nacional durante trinta anos, pelo que nunca me faltaram bilhetes para os jogos dos Colts e dos Orioles. Baltimore é uma grande cidade. Também vamos falar sobre a sua meninice?

- Se quiser - anuiu Rachel. - Não foi muito feliz.

«Que grande surpresa!», pensou Nate para consigo. «Esta pobre mulher nunca teve uma oportunidade de vir a sentir felicidade.»

- Durante a sua adolescência soube que queria formar-se em Direito?

- Claro que não. Nenhum miúdo no seu perfeito juízo quer vir a ser advogado. O que eu desejava era jogar nos Colts ou nos Orioles, ou mesmo em ambas as equipas.

- Costumava frequentar a igreja?

- Com certeza. No Natal e na Páscoa.

O trilho tinha praticamente desaparecido, forçando-os a atravessar por entre a vegetação agreste. Nate caminhava sem despregar o olhar das suas botas.

- Essa cobra que matou a rapariga, de que espécie é? - perguntou quando deixou de poder ver as botas.

- Os índios chamam-na bima, mas não se preocupe.

- Por que é que acha que não devo preocupar-me?

- Porque teve o cuidado de calçar botas. Estamos a falar de uma cobra pequena que morde abaixo do tornozelo.

- Mas pode haver uma grande que me morda.

- Acalme-se.

- E Lako que caminha todo despreocupado? Ele nunca usa qualquer tipo de calçado.

- Sim, mas ele vê tudo.

- Presumo que essa bima é bastante mortífera.

- Pode ser, mas existe um antídoto. Pude dispor desse medicamento em ocasiões anteriores, se o tivesse tido ontem a garotinha não teria morrido.

- Isso significa que se possuísse muito dinheiro poderia comprar toda a espécie de antídotos. Teria meios para armazenar qualquer quantidade de medicamentos de que necessitasse. Também poderia comprar um bom barco com motor fora de borda que a levasse a Corumbá e trouxesse de volta à aldeia. Disporia de dinheiro mais que suficiente para mandar construir uma clínica, uma igreja e uma escola, espalhando a palavra de Deus por todas as regiões do Pantanal.

Rachel deteve-se abruptamente e voltou-se para trás. Ambos ficaram frente a frente.

- Não fiz nada para merecer esse dinheiro e não conheci o homem que o ganhou. Por favor, não volte a mencionar esse assunto. - As suas palavras eram firmes, a sua fisionomia não deixava adivinhar o mais pequeno sinal de frustração.

- Desfaça-se dele. Ofereça-o a obras de caridade.

- Não me pertence para o poder dar a quem quer que seja.

- Estará destinado a ser dilapidado. Vários milhões de dólares irão parar às mãos dos advogados, e o que restar será partilhado entre os seus meios-irmãos. E, acredite em mim, você não iria desejar que isso acontecesse. Não faz a mais pequena noção da infelicidade e sofrimento que essa gente causará, caso venha a herdar essa fortuna. Aquilo que não esbanjarem passará para os filhos, e assim o dinheiro dos Phelan contaminará a próxima geração.

Rachel agarrou no pulso de Nate, apertando-o.

- Isso não me interessa. Tenciono rezar por eles - disse ela numa voz tão baixa que quase não se ouvia.

Ditas aquelas palavras, voltou-se e recomeçou a caminhar. Lako já se encontrava bastante mais à frente. Jevy mal se avistava atrás dos dois. Em silêncio, percorreram um campo próximo de um riacho entrando numa zona de arvoredo cerrado, com árvores de grande porte. A folhagem e os ramos entrelaçavam-se uns nos outros, formando um dossel de sombra. De súbito, o ar ficou mais fresco.

- Descansemos um pouco - sugeriu Rachel. As águas do riacho atravessavam a floresta, correndo num leito serpenteante de pedras azuladas e alaranjadas. Ela ajoelhou-se junto da água e refrescou a cara.

- Pode beber desta água - informou Rachel. - Vem directamente das montanhas.

Nate agachou-se junto dela e meteu a mão dentro de água. Estava fresca e era límpida.

- Este é o meu lugar preferido - disse ela. - Venho até aqui quase todos os dias para tomar banho, rezar e meditar.

- É difícil acreditar que estejamos em pleno Pantanal. O ar é muito mais fresco.

- Estamos no perímetro. As montanhas da Bolívia não ficam muito distantes. O Pantanal começa algures perto daqui, estendendo-se para oriente quase até ao infinito.

- Eu sei, nós sobrevoámo-lo, tentando encontrá-la.

- Oh, a sério?

- Sim, foi um voo curto, mas proporcionou-me uma boa panorâmica do Pantanal.

- E não conseguiu encontrar-me?

- Não. Voámos em direcção a uma tempestade e fomos obrigados a fazer uma aterragem de emergência. Tive sorte, consegui safar-me dessa. Nunca mais voltarei a aproximar-me de um avião pequeno.

- Por aqui não existe nenhum lugar onde pudesse aterrar. Descalçaram as meias e as botas, metendo os pés dentro da água do

riacho. Sentaram-se em pedras ouvindo o correr da água cristalina. Estavam sozinhos; não se via sinal da presença de Lako ou de Jevy.

- Quando eu era garota, vivíamos numa pequena cidade do estado de Montana, onde o meu pai, refiro-me ao meu pai adoptivo, era pastor de uma igreja. Não muito longe da linha limítrofe da cidade havia um pequeno ribeiro, mais ou menos do tamanho deste riacho. Também havia um lugar, debaixo de umas árvores altas, semelhantes a estas, para onde eu costumava ir; metia os pés dentro de água e deixava-me ficar durante horas esquecidas.

- Escondia-se de alguma coisa?

- Às vezes - admitiu Rachel.

- E agora, também anda escondida?

- Não - respondeu ela.

- Penso que sim.

- Não. Está enganado. Sinto uma paz absoluta, Nate. Há muitos anos que rendi a minha vontade a Cristo, e vou para onde Ele me conduz. Você pensa que eu sinto a solidão... mas está enganado. Ele está comigo em todos os momentos da minha vida. Deus conhece os meus pensamentos, as minhas necessidades, e Ele afasta de mim todos os medos e preocupações. Vivo neste mundo numa paz perfeita e completa.

- Nunca tinha ouvido isso em nenhuma outra ocasião.

- Ontem à noite você disse que era fraco e de uma fragilidade enorme. O que é que quis dizer com isso?

Durante as sessões de terapia, Sérgio dissera-lhe que as confissões eram boas para a alma. Uma vez que ela desejava saber, Nate daria o seu melhor para tentar chocá-la com a verdade nua e crua.

- Sou um alcoólico - confiou ele quase como se sentisse orgulho daquele vício, tal como lhe haviam ensinado a admitir durante os períodos de desintoxicação. - Ao longo dos últimos dez anos caí no fundo do abismo em quatro ocasiões; saí de um centro de desintoxicação expressamente para poder efectuar esta viagem. Não posso dizer com segurança que nunca mais voltarei a beber. Deixei o vício da cocaína por três vezes e estou em crer, embora não tenha uma certeza absoluta, que jamais voltarei a sentir dependência desse estupefaciente. Há quatro meses dei entrada de um pedido de falência pessoal durante a última estadia na clínica. Actualmente pende sobre mim uma indiciação por fuga aos impostos, pelo que me vejo perante a possibilidade de ir parar à cadeia; as hipóteses são de cinquenta por cento, além de poder vir a ser expulso da Ordem dos Advogados, o que me impedirá de continuar a praticar advocacia. Já está a par dos meus dois divórcios. As minhas duas ex-mulheres não gostam de mim e conseguiram envenenar os meus filhos, voltando-os contra mim. Não há dúvida que, sem a ajuda de ninguém, consegui destruir a minha vida.

Às primeiras impressões, Nate não sentia o mínimo alívio nem satisfação por ter posto a sua alma a nu.

Rachel ouvia aquelas confissões com uma expressão inalterável.

- Mais alguma coisa? - perguntou ela.

- Oh, sim. Também tentei matar-me pelo menos em duas ocasiões - duas vezes que eu me lembre. Uma vez em Agosto passado, o que me levou a outro período de desintoxicação. A outra foi há alguns dias, em Corumbá. Parece-me que foi na noite de Natal.

- Em Corumbá?

- Sim, no quarto do hotel onde fiquei alojado. Bebi vodka de má qualidade que quase me levou à morte.

- Pobre homem.

- De acordo, estou doente. Sofro de uma doença. Facto que admiti inúmeras vezes perante muitos terapeutas.

- Alguma vez confessou essa fraqueza a Deus?

- Tenho a certeza de que Ele sabe.

- Também estou segura de que Ele sabe - retorquiu Rachel. - Mas Ele não o ajudará a menos que você Lhe peça. Ele é omnipotente, mas você tem de ir até Deus através das orações, imbuído do espírito de perdão.

- O que é que acontecerá então?

- Os seus pecados ser-lhe-ão perdoados. O seu passado será apagado. Os seus vícios serão banidos do seu corpo. O Senhor perdoará todas as suas transgressões e você transformar-se-á num novo crente em Cristo.

- E quanto ao IRS?

- Isso não desaparecerá, mas você passará a ter força suficiente para resolver esse assunto. Por meio da oração, você poderá ultrapassar qualquer adversidade.

Nate já tinha ouvido sermões noutras alturas. Havia-se rendido aos Poderes Superiores tantas vezes que quase seria capaz de ser ele próprio a fazer sermões. Fora aconselhado por homens da igreja, por terapeutas, gurus e psiquiatras de todos os tipos e feitios. Uma vez, durante um período de três anos em que se mantivera sóbrio, chegara ao ponto de trabalhar como conselheiro para os Alcoólicos Anónimos - ensinando a tabela de doze alíneas que ajudava a recuperação de outros alcoólicos - na cave de uma igreja antiga em Alexandria. Mas pouco depois tivera uma recaída desastrosa.

Por que não haveria ela de tentar salvá-lo de si próprio? A vocação da sua vida não era converter os que andavam tresmalhados?

- Não sei rezar - disse Nate por fim.

Rachel tomou-lhe a mão, apertando-a com firmeza.

- Feche os olhos, Nate. Repita depois de mim: Querido Deus, perdoai os meus pecados e ajudai-me a perdoar aqueles que pecaram contra mim. - Nate tartamudeou as palavras e apertou-lhe a mão ainda com mais força. Aquilo parecia-lhe vagamente parecido com o Pai-Nosso. - Dai-me força para não cair no pecado da tentação, livrai-me dos vícios e ajudai-me nos julgamentos que terei pela frente. -Nate continuou a falar entredentes, continuando a repetir as palavras de Rachel, se bem que aquele pequeno ritual fosse confuso. A oração assomava com facilidade aos lábios de Rachel, uma vez que ela costumava rezar tantas vezes. Para Nate era um rito estranho.

- Amen - disse ela. Abriram os olhos mas continuaram de mãos dadas. Ouviam o som da água que corria suavemente por cima das pedras. Nate sentiu uma sensação peculiar, como se as suas atribulações lhe tivessem começado a pesar menos; sentia os ombros mais leves e os pensamentos mais claros, a sua alma dava a impressão de estar mais aliviada. Todavia, Nate carregava tanta coisa adversa que não tinha a certeza de quais os fardos que haviam sido afastados e os que permaneciam.

Continuava a temer o mundo verdadeiro. Era muito fácil ser corajoso no interior desértico do Pantanal, onde as tentações eram escassas, mas sabia o que é que o esperava no seu país natal.

- Os seus pecados foram perdoados, Nate - acrescentou Rachel.

- Quais? São tantos.

- Todos - replicou Rachel.

- Isso é fácil de mais. Deixei atrás de mim muita destruição.

- Esta noite voltaremos a rezar.

- Serão precisas mais orações para mim do que para a maior parte das pessoas.

- Confie em mim, Nate. E tenha confiança em Deus. Ele já viu gente pior do que você.

- Confio em si. Deus é que me preocupa.

Rachel apertou-lhe a mão ainda com mais força; durante longos momentos ambos ficaram a olhar para a água que borbulhava em redor.

- Temos de retomar o nosso caminho - disse Rachel finalmente. - Mas nenhum dos dois se mexeu.

- Tenho estado a pensar neste funeral, o da garotinha - adiantou Nate.

- Em quê concretamente?

- Teremos oportunidade de ver o corpo dela?

- Suponho que sim. É difícil que nos passe despercebido.

- Sendo assim prefiro não ir. O Jevy e eu vamos voltar à aldeia, onde ficamos à sua espera.

- Tem a certeza, Nate? Podíamos conversar durante várias horas.

- Não quero ver o corpo de uma criança morta.

- Muito bem. Eu compreendo a sua atitude.

Nate ajudou-a a levantar-se, apesar de ela não necessitar de qualquer auxílio. Ficaram de mãos dadas até Rachel começar a calçar-se. Como de costume, Lako materializou-se vindo não se sabia bem de onde, e pouco depois retomaram a caminhada desaparecendo por entre o arvoredo cerrado.

Encontrou Jevy a dormir à sombra de uma árvore. Com cuidado, começaram a percorrer o trilho, mantendo-se atentos às serpentes em cada passo que davam, regressando ao povoado numa passada lenta.

 

O chefe da tribo não era um meteorologista muito eficiente. O temporal nunca chegou a desencadear-se. Durante o dia choveu por duas vezes, enquanto Nate e Jevy se esforçavam por combater o tédio, dormindo uma sesta nas redes espreguiçadeiras que lhes haviam emprestado. As chuvadas foram breves e depois de cada queda de chuva o Sol regressava para cozer o solo humedecido, fazendo aumentar o grau de humidade. Até mesmo à sombra, fazendo somente os movimentos indispensáveis, os dois homens sufocavam com o calor escaldante.

Sempre que havia alguma actividade, ambos observavam atentamente os índios, mas o trabalho e as brincadeiras esmoreceram e interromperam-se por força do calor. Sempre que o Sol se fazia sentir em toda a sua radiância, os ipicas recolhiam-se no interior das suas palhotas ou sentavam-se à sombra das árvores por detrás destas. Durante as chuvadas de pouca duração, as crianças brincavam sob a chuva. Quando o Sol ficava oculto pelas nuvens, as mulheres aventuravam-se a retomar as suas tarefas, dirigindo-se para o rio.

Ao cabo de uma semana passada no Pantanal, Nate sentia-se entorpecido pela apatia do ritmo indolente com que a vida decorria. Cada dia parecia ser uma cópia exacta do anterior. Ali, nada mudara ao longo dos séculos.

Rachel regressou a meio da tarde. Acompanhada de Lako, dirigiu-se imediatamente ao chefe da tribo, a fim de lhe relatar os acontecimentos ocorridos na outra aldeia. Depois falou com Nate e Jevy. Sentia-se exausta e queria passar pelo sono antes de tratarem dos assuntos pendentes.

«Que diferença é que faz mais uma hora sem nada que se possa fazer?», raciocinava Nate. Ficou a vê-la afastar-se. Rachel era esbelta e resistente e, muito provavelmente, ainda lhe restava fôlego para correr maratonas.

- Para onde é que estás a olhar? - perguntou Jevy fazendo uma careta risonha.

- Para nada.

- Que idade é que ela tem?

- Quarenta e dois - respondeu Nate.

- Já foi casada?

- Não - respondeu Nate.

- Acha que ela se deitou alguma vez com um homem?

- Por que é que não lhe fazes essa pergunta?

- E tu, perguntaste?

- É assunto que não me interessa minimamente.

Uma vez mais, os dois adormeceram, dormiam porque não havia nada que pudessem fazer naquele povoado. Dentro de duas horas recomeçariam as lutas entre os nativos, seguir-se-ia o jantar e depois a escuridão. Nate sonhou com o Santa Loura, uma embarcação modesta na melhor das hipóteses, mas com o passar do tempo o barco ia adquirindo contornos mais requintados. Nos seus sonhos, transformava-se rapidamente num iate de linhas aerodinâmicas.

Quando os índios começaram a reunir-se para arranjarem o cabelo em preparação para os jogos de luta, Nate e Jevy tentaram afastar-se furtivamente. Um dos nativos mais robustos gritou-lhes e, com uns dentes de uma brancura cintilante, fez o que pareceu ser um convite para que ambos participassem nas lutas. Nate escapuliu-se ainda mais depressa. Subitamente surgiu-lhe à mente a visão da sua pessoa a ser arremessada por toda a aldeia, por um pequeno guerreiro atarracado, com os genitais a oscilarem em todas as direcções. Jevy também não desejava participar naquelas brincadeiras. Foram salvos por Rachel.

Ela e Nate afastaram-se das palhotas encaminhando-se em direcção ao rio, para o mesmo local onde estava o banco estreito debaixo das árvores. Sentaram-se perto um do outro, com os joelhos que se tocavam uma vez mais.

- Foi muito sensato da sua parte não ter partido - disse ela. A sua voz soava a cansaço. A sesta não conseguira recuperar-lhe as forças.

- Porquê?

- Todas as aldeias têm uma espécie de médico. Chamam-lhe shalyun, é ele quem prepara as mezinhas com ervas e raízes. Também invoca os espíritos que ajudam a resolver toda a espécie de problemas.

- Ah, o velho curandeiro.

- Algo parecido com isso. É mais semelhante a um feiticeiro. Na memória colectiva dos índios existem muitos espíritos e, supostamente, os shalyun orientam as idas e vindas destes. Seja como for, estes feiticeiros são os meus inimigos naturais. Eu sou uma ameaça às suas crenças.

Estão constantemente ao ataque. Perseguem os que acreditam no cristianismo. Passam a vida a atormentar os recém-convertidos. Querem que eu me vá embora e por isso estão sempre a exercer pressão sobre os chefes tribais, insistindo para que eles corram comigo da aldeia. É um conflito diário. No último povoado, situado mais abaixo, junto ao rio, fundei uma pequena escola onde ensinava a ler e a escrever. Destinava-se principalmente aos crentes, embora estivesse aberta a toda a gente que a quisesse frequentar. Há um ano sofremos um surto de malária que matou três pessoas. O shalyun local convenceu o chefe dessa tribo de que a doença tinha sido um castigo que se abateu sobre o povoado por causa da minha escola. Continua encerrada.

Nate limitava-se a ouvir. A coragem de Rachel, já de si admirável, atingia uma estatura ainda mais elevada. O calor, aliado ao ritmo remansoso da vida naquelas aldeias, levara-o a acreditar que tudo era paz entre os ipicas. Nenhum visitante suspeitaria de que uma guerra latente enraivecia aquelas almas.

- Os pais de Ayesh, a garota que morreu, são cristãos muito convictos da sua nova fé religiosa. O shalyun da aldeia espalhou o rumor de que poderia salvar a vida da menina, mas os pais não o chamaram. Como é evidente, eles desejavam que eu a curasse. Desde tempos imemoriais que os nativos têm de viver com as cobras bima, situação que deu origem a algumas mezinhas caseiras que o feiticeiro prepara. Nunca vi uma só que tivesse o efeito desejado. Ontem, depois de a garota ter morrido e de eu ter saído da aldeia, o shalyun invocou uns espíritos celebrando um ritual no centro do povoado. Culpou-me da morte da menina, assim como culpou Deus.

As palavras fluíam dos lábios de Rachel com mais velocidade do que habitualmente, como se ela pretendesse despachar-se para não perder a oportunidade de utilizar a língua inglesa uma vez mais.

-Hoje, durante o funeral, o feiticeiro e uns quantos arruaceiros começaram a entoar cânticos e a dançar por perto. Os pobres pais sentiram-se assolados pela humilhação e sofrimento. Não consegui terminar o serviço religioso. - Faltou-lhe a voz, ainda que quase imperceptivelmente; Rachel mordeu o lábio.

- Está tudo bem. Isso já lá vai - disse Nate afagando-lhe o braço como que a tentar acalmá-la.

Chorar era uma emoção que ela não podia mostrar defronte dos índios. Tinha de ser forte e estóica, cheia de fé e de coragem, fossem quais fossem as circunstâncias. Contudo, junto de Nate podia dar-se ao luxo de chorar, ele compreenderia. Pelo menos esperava que isso acontecesse.

Rachel limpou os olhos e pouco a pouco recuperou o domínio das suas emoções.

- Peço-lhe desculpa - disse ela.

- Está tudo bem - repetiu Nate mostrando-se ansioso por poder confortá-la. As lágrimas de qualquer mulher faziam ruir a sua fachada de frieza, quer fosse num bar ou sentado junto de um rio.

Pouco depois, ouviu-se um rebuliço que vinha do povoado. O jogo de lutas tinha começado. À mente de Nate ocorreu um breve pensamento acerca de Jevy. Com certeza que ele não teria sucumbido à tentação de alinhar nos folguedos dos rapazes.

- Acho que chegou a hora de se ir embora - acrescentou Rachel, abruptamente quebrando o silêncio. Com as emoções sob controlo, a sua voz readquirira o timbre normal.

- O quê?

- Você sabe. Dentro de muito pouco tempo.

- É verdade que estou ansioso por partir, mas a que é que se deve essa pressa tão repentina? Daqui a três horas já será escuro.

- Tenho razões para me sentir preocupada.

- Sou todo ouvidos.

- Estou em crer que hoje detectei um caso de malária na outra aldeia. Os mosquitos são os portadores da doença, que se dissemina com rapidez.

Nate começou a coçar-se sentindo-se pronto para se meter imediatamente no bote, até que se recordou das pílulas.

- Estou a salvo. Ando a tomar uns comprimidos de cloro-qualquer-coisa.

- Cloroquinino?

- É isso mesmo.

- Quando é que começou?

- Dois dias antes de sair dos Estados Unidos.

- Onde é que guardou esses comprimidos?

- Deixei-os a bordo do barco grande.

Rachel abanou a cabeça mostrando uma expressão de censura.

- É suposto que os tome antes, durante e depois da viagem. - O seu tom de voz tinha a autoridade de um médico, como se a morte pudesse estar iminente.

- E quanto a Jevy? - perguntou ela. - Ele tem andado a tomar os comprimidos?

- Ele esteve no exército. Tenho a certeza de que não há problema nenhum com ele.

- Não estou disposta a discutir consigo, Nate. Já falei com o chefe da tribo. Ele enviou dois pescadores esta manhã, antes do nascer do Sol.

As águas das cheias são traiçoeiras durante as primeiras duas horas de navegação, após o que o percurso se torna mais familiar. Ele providenciará três guias, que seguirão em duas canoas, e eu enviarei Lako para servir de intérprete. Depois de chegarem ao rio Xeco, o trajecto é sempre a direito até ao rio Paraguai.

- Que distância é que temos de percorrer?

- O Xeco fica a uma distância de aproximadamente quatro horas. O rio Paraguai a seis. Não esqueçamos que navegará com a corrente a seu favor.

- Seja como for. Você dá-me a impressão de já ter tudo planeado.

- Acredite em mim, Nate. Eu própria já tive malária duas vezes; é uma doença que não vai querer contrair. Durante o segundo ataque estive às portas da morte.

Nunca tinha ocorrido a Nate que ela pudesse morrer. O património Phelan já se encontrava num estado suficientemente caótico, com Rachel escondida na selva e recusando-se a assinar os documentos. Caso ela viesse a morrer, seriam necessários vários anos para que o assunto se resolvesse.

Para não mencionar que Nate sentia uma admiração enorme por ela. Rachel era tudo o que ele não conseguia ser - forte e corajosa, bem fundamentada na sua fé, feliz na sua simplicidade, segura do seu lugar no mundo e no além.

- Não morra, Rachel - disse Nate.

- A morte não é uma coisa que me atemorize. Para um cristão, a morte é uma recompensa. Mas peço-lhe que reze por mim, Nate.

- Prometo-lhe que a partir de agora passarei a rezar mais vezes.

- Você é um homem bom. Tem um coração generoso e uma boa mente. Só precisa de um pouco de ajuda.

- Eu sei. Não sou uma pessoa muito forte.

Metera os papéis dentro de um sobrescrito que guardara na algibeira de onde os tirou.

- Podemos ao menos discutir estes documentos?

- Sim, mas somente a título de um favor que lhe faço pessoalmente. Na minha maneira de pensar, já que você veio até aqui, o mínimo que posso fazer é concordar em travarmos essa pequena conversa de carácter jurídico.

- Obrigado. - Entregou-lhe a primeira folha, uma cópia do testamento de Troy que se resumia a uma única página. Rachel fez uma leitura vagarosa, esforçando-se por compreender algumas partes da escrita à mão.

- Este testamento é válido aos olhos da lei? - perguntou ela depois de ter terminado.

- Até ver, sim.

- Mas é tão primitivo.

- Os testamentos escritos à mão são válidos. Lamento, mas é o que a lei diz.

Voltou a ler o documento. Nate reparou nas sombras que surgiam no enfileiramento das árvores. Começara a recear a escuridão, tanto em terra como na água. Sentia-se ansioso por partir.

- Troy não se interessou pela sorte dos outros filhos, não lhe parece? - comentou ela com uma expressão um tudo nada divertida.

- No lugar dele, você teria sentido o mesmo. Mas, por outro lado, tenho sérias dúvidas de que ele tenha sido um bom pai.

- Recordo-me do dia em que a minha mãe adoptiva me falou dele. Tinha eu dezassete anos. Foi no fim do Verão. O meu pai adoptivo tinha acabado de falecer de doença cancerígena, e a vida parecia-me bastante sombria. Não sei como, Troy tinha acabado por descobrir o meu paradeiro e não parava de insistir com ela para que lhe permitisse visitar-me. Ela contou-me a verdade acerca dos meus pais biológicos, o que para mim não teve o mínimo significado. Essas pessoas não me interessavam em nada. Nunca os conhecera e não sentia o mínimo desejo de me encontrar com eles. Mais tarde vim a descobrir que a minha mãe de nascimento se tinha matado. O que é que você pensa de uma coisa destas, Nate? Tanto a minha mãe como o meu pai biológicos cometeram suicídio. Existirá alguma coisa nos meus genes?

- Não, você é uma pessoa muito mais forte do que eles foram.

- Eu daria as boas-vindas à morte.

- Não diga uma coisa dessas. Quando é que conheceu Troy?

- Entretanto passou um ano. Ele e a minha mãe adoptiva começaram a falar ao telefone com regularidade. Ela acabou por se convencer de que os motivos dele eram bons, e um belo dia ele apareceu em nossa casa. Tomámos chá e comemos bolo, após o que ele se foi embora. Começou a enviar dinheiro para o colégio. Também começou a exercer pressão para que eu aceitasse um emprego numa das suas empresas. Passou a comportar-se como um pai e eu comecei a não gostar dele. Pouco depois, a minha mãe adoptiva morreu e o mundo abateu-se em meu redor. Mudei de nome e fui para a Faculdade de Medicina. Rezei por Troy ao longo dos anos, da mesma maneira que rezo por todas as pessoas perdidas que conheço. Pensei que ele se tinha esquecido da minha existência.

- Evidentemente que não - retrucou Nate. Houve um mosquito preto que aterrou na sua coxa, ao qual ele deu uma palmada com a força suficiente para rachar lenha. Caso fosse portador de malária, não teria possibilidades de a disseminar por outras pessoas. Na pele da perna começou a aparecer a impressão a vermelho do contorno de uma mão.

Em seguida, Nate entregou a Rachel os termos de legitimação e de renúncia. Ela começou a lê-los com toda a atenção.

- Não tenciono assinar nada - insistiu ela. - Não quero este dinheiro.

- Só lhe peço que fique com estes documentos. Reflicta sobre eles e

reze.

- Está a divertir-se à minha custa?

- Não, mas acontece que não sei o que fazer a seguir.

- Não o posso ajudar nisso. Mas vou pedir-lhe um favor.

- Com certeza. Seja o que for.

- Não diga a ninguém onde é que eu vivo. Imploro-lhe, Nate, que aceda ao meu pedido. Por favor, proteja a minha privacidade.

- Prometo-lhe. No entanto, você tem de encarar a situação com realismo.

- O que é que pretende dizer com isso?

- Esta história é irresistível. Caso venha a decidir aceitar a herança, passará a ser, plausivelmente, a mulher mais rica do mundo. Na hipótese de renunciar ao espólio, a história passará a ser ainda mais dramática.

- Quem é que poderá interessar-se por isso?

- Abençoado seja o seu coração. Aqui, você está protegida dos meios de comunicação social. Actualmente transmitem-se notícias ao longo de vinte e quatro horas por dia, vinte e quatro horas de cobertura noticiosa, sem parar, que abrange tudo o que possa imaginar. Hora após hora de programas dedicados exclusivamente aos noticiários, revistas de informação, debates com pessoas importantes, notícias de última hora. É tudo uma treta. Nenhuma história é demasiado insignificante para que não valha a pena ir à sua origem, imprimindo-se-lhe foros de sensacionalismo.

- Mas como é que eles poderiam encontrar-me?

- Aí está uma boa pergunta. Nós tivemos sorte porque Troy conseguiu descobrir o seu rasto. E, tanto quanto sabemos, ele não partilhou essa informação com mais ninguém.

- Isso quer dizer que estou a salvo? Você está obrigado pelo segredo da confidencialidade. O que também acontece em relação aos outros advogados da sua firma.

- Isso é uma realidade.

- Além de que quando aqui chegou andava perdido...

- Muito perdido.

- Tem de me proteger, Nate. Este é o meu lar. Esta é a minha gente. Não quero ser obrigada a fugir de novo.

MISSIONÁRIA HUMILDE NA SELVA DIZ NÃO A UMA FORTUNA DE ONZE MIL MILHÕES DE DÓLARES

Que parangona extraordinária que aquilo faria. Os abutres invadiriam o Pantanal a bordo de helicópteros e de aparelhos anfíbios para conseguirem as suas reportagens. Nate sentiu pena de Rachel.

- Farei tudo o que estiver ao meu alcance - prometeu ele.

- Posso contar com a sua palavra?

- Sim. Prometo.

O cortejo de despedida era encabeçado pelo próprio chefe da tribo, seguido pela mulher, atrás da qual vinha uma dezena de homens que precediam Jevy seguido por, pelo menos, mais dez nativos. Todos caminhavam acompanhando o traçado sinuoso do trilho que os levaria ao rio.

- Chegou a hora de partir - disse Rachel.

- Calculo que sim. Você tem a certeza de que não há perigo em navegarmos durante a noite?

- Tenho. O chefe vai enviar dois dos seus melhores pescadores. Deus protegê-lo-á. Não se esqueça de rezar as suas orações.

- Assim farei.

- Todos os dias rezarei por si, Nate. Você é uma pessoa boa com um coração generoso. Merece ser salvo.

- Obrigado. Quer casar-se comigo?

- Não posso.

- Com certeza que pode. Eu tomo conta do dinheiro e você toma conta dos índios. Arranjamos uma palhota maior e deitamos fora todas as nossas roupas.

Ambos desataram a rir-se; quando o chefe da tribo se aproximou, ambos continuavam a sorrir. Nate levantou-se para dizer adeus, olá ou qualquer coisa nesses moldes, e durante um segundo perdeu o sentido da visão. Um ataque de tonturas subiu-lhe do tórax à cabeça. Recompôs-se, clareou a visão e olhou de esguelha para Rachel para ver se ela se teria apercebido.

Não tinha dado por nada. Sentia dores nas pálpebras. As articulações dos cotovelos latejavam.

Ouviu-se uma fanfarra de grunhidos emitidos pelos ipicas que acompanhavam toda a gente a caminho do rio. A comida foi colocada dentro do bote de Jevy e nas duas canoas estreitas onde navegariam os guias e Lako. Nate agradeceu a Rachel que, por seu turno, agradeceu ao chefe da tribo, e depois de concluídas as despedidas adequadas à ocasião, chegara a hora da partida. Com a água a dar-lhe pelos tornozelos, Nate abraçou-a com ternura, dando-lhe palmadinhas nas costas.

- Muito obrigado - disse ele.

- Obrigado por quê?

- Oh, não sei. Obrigado por ter dado origem a uma fortuna em honorários jurídicos.

- Eu gosto de si, Nate - retorquiu ela com um sorriso -, mas não podia sentir-me menos interessada no dinheiro e nos advogados.

- Também gosto muito de si.

- Por favor, não volte ao Pantanal.

- Não se preocupe.

Estavam todos à espera. Os pescadores já se haviam feito ao rio. Jevy empunhava o seu remo mostrando-se ansioso por partir.

- Podíamos passar a lua-de-mel em Corumbá - disse Nate dando um passo na direcção do barco.

- Adeus, Nate. Diga à sua gente que não chegou a encontrar-me.

- Assim farei. Até à vista. - Afastou-se entrando no bote onde se deixou cair sentindo a cabeça a andar à roda pela segunda vez. Enquanto se afastavam da margem, Nate acenou com a mão a Rachel e aos índios, mas as figuras deles estavam desfocadas formando uma mancha homogénea.

Arrastadas pela corrente, as canoas deslizavam cortando as águas, impulsionadas pelos remos dos nativos que mantinham as embarcações primitivas numa fila perfeita. Não desperdiçavam esforços nem tempo. Não tinham pressa. O motor começou a funcionar à terceira tentativa e ao fim de pouco tempo, os dois homens alcançaram as canoas. Quando Jevy reduziu o débito de combustível na válvula reguladora, o motor engasgou-se mas não se foi abaixo. Quando chegaram ao primeiro nó do rio, Nate olhou por cima do ombro. Rachel e os índios não se tinham mexido.

Nate transpirava abundantemente. Apesar de as nuvens encobrirem o Sol e de soprar uma brisa agradável que sentia nas faces, apercebeu-se de que suava. As pernas e os braços estavam molhados. Esfregou o pescoço e as frontes olhando para a humidade que lhe cobria os dedos.

- Oh, merda. Estou doente - praguejou Nate em vez de rezar, tal como tinha prometido.

A febre era baixa mas dentro em pouco subiria rapidamente. A brisa ligeira fazia com que sentisse frio. Aninhou-se no seu lugar procurando qualquer coisa com que se pudesse agasalhar.

- Nate, estás a sentir-te bem? - perguntou Jevy, a quem o mal-estar dele não passara despercebido.

Respondeu que não com um abanar de cabeça; sentia dores agudas nos olhos e na coluna vertebral. Limpou o muco que lhe escorria das narinas.

Depois de terem contornado duas curvas do rio, as árvores começaram a ser mais esparsas e as terras mais baixas. O leito do rio alargava-se, confluindo para uma bacia de águas cheias, em cujo centro se viam três árvores semiapodrecidas. Nate sabia que não haviam passado por aquelas árvores quando fizeram o caminho inverso. Navegavam por uma rota diferente. Sem a ajuda das correntes, as canoas abrandaram um pouco de velocidade, embora continuassem a cortar as águas a uma velocidade espantosa. Os guias não se detiveram a examinar a bacia. Sabiam com toda a exactidão para onde se dirigiam.

- Jevy, parece-me que estou com malária - disse Nate. A sua voz estava enrouquecida; começara a sentir a garganta irritada.

- Como é que sabes? - Jevy reduziu a potência do motor por breves instantes.

- A Rachel avisou-me. Ontem detectou um caso na outra aldeia. Foi por isso que partimos tão apressadamente.

- Tens febre?

- Tenho e estou com dificuldades de visão.

Jevy parou o motor do bote, começando a gritar aos índios que já estavam quase fora de vista. Afastou os bidões vazios de combustível e o que restava dos mantimentos, desenrolando a tenda em movimentos rápidos.

- Vais sentir muitos arrepios de frio - explicou ele enquanto continuava a preparar uma cama improvisada. Ao deslocar-se de um lado para o outro, fazia com que o barco oscilasse.

- Já alguma vez tiveste malária? - perguntou Nate.

- Não. Mas a maior parte dos meus amigos morreu dessa doença.

- O quê?!

- Foi só uma piada de mau gosto. É uma doença que não mata muita gente, mas isso não impede que venhas a sentir-te muito doente.

Mexendo-se com todos os cuidados e mantendo a cabeça tão imóvel quanto lhe era possível, Nate arrastou-se por detrás do assento, colocando-se no centro da embarcação. A sua almofada era um saco-cama. Jevy cobriu-o com as extremidades do tecido leve da tenda, prendendo-as com dois bidões vazios de combustível.

Os índios tinham-se aproximado, curiosos por saber o que tinha acontecido. Lako perguntou, exprimindo-se em português. Nate compreendeu a palavra malária dita por Jevy, a qual provocou resmungos no dialecto ipica. Pouco depois retomavam o seu caminho.

O bote dava a impressão de navegar mais depressa. Talvez isso se devesse ao facto de Nate estar deitado no fundo, sentindo o cortar das águas. Qualquer ramo ou tronco à deriva que escapasse à atenção de Jevy, fazia com que Nate se agitasse, apesar de não se mostrar incomodado. Sentia a cabeça a doer e a latejar, como se estivesse com uma ressaca como jamais experimentara. Os músculos e as articulações doíam-lhe tanto que não era capaz de se mover. E cada vez sentia mais frio. Os arrepios já tinham começado.

Ouviu um ribombar ensurdecido à distância. Nate pensou que talvez fossem trovões. «Que maravilha!», pensou. «É precisamente aquilo de que necessitamos neste momento.»

As chuvas mantiveram-se afastadas. O rio desviou-se uma vez para ocidente, e Jevy avistou os últimos raios alaranjados e amarelados do pôr do Sol. A partir dali, o curso do rio retomava a rota para oriente, aproximando-se da escuridão que se abatia sobre o Pantanal. Por duas vezes, os ipicas detiveram-se para decidirem qual o afluente por que deveriam seguir. Jevy mantinha o bote a uma distância de cerca de trinta metros das canoas, mas à medida que a noite caía, aproximava-se cada vez mais. Não conseguia ver o rosto de Nate oculto pela tenda, mas sabia que o seu amigo sofria. Na verdade, Jevy conhecera em tempos um homem que morrera de malária.

Duas horas depois de terem iniciado a viagem, os guias conduziram-nos a uma série de cursos de água estreitos e ermos com lagoas de águas mansas, e quando chegaram a um rio mais largo as canoas abrandaram de velocidade por uns momentos. Os índios precisavam de descansar. Lako gritou a Jevy explicando-lhe que ali estariam em segurança, já tinham deixado para trás o trecho mais difícil do percurso e o resto deveria fazer-se sem obstáculos de maior. O rio Xeco ficava a cerca de duas horas de viagem e seguia directamente para o rio Paraguai.

- Conseguiremos fazer o resto da viagem sozinhos? - perguntou Jevy. A resposta foi negativa. Ainda se deparariam com outras confluências de rios com que teriam de se haver, mas os índios conheciam um lugar ao longo do Xeco que não estaria inundado. Era ali que poderiam dormir.

- Como é que está o americano? - perguntou Lako.

- Não está muito bem - respondeu Jevy.

O americano ouviu as vozes, apercebendo-se de que o barco se imobilizara. A febre invadiu-o da ponta dos dedos dos pés até à raiz dos cabelos. Sentia a pele e as roupas encharcadas, e o alumínio em que estava deitado também estava molhado. Tinha os olhos inchados e fechados, a boca tão ressequida que lhe doía abri-la. Nate ouviu Jevy perguntar-lhe qualquer coisa em inglês, mas sentiu-se incapaz de lhe responder. Atravessava períodos de inconsciência.

Envoltas em escuridão, as canoas deslocavam-se mais devagar. Jevy seguia atrás delas, mais de perto, e por vezes servia-se da lanterna para ajudar os guias a examinarem os afluentes e as bifurcações do rio. Com a válvula reguladora a meio gás, o motor fora de borda trabalhava de forma irregular, parecendo que gemia constantemente. Pararam apenas uma vez para poderem comer um pão e beber um pouco de sumo, e também para se aliviarem. Prenderam as três embarcações entre si, deixando-as à deriva durante dez minutos.

Lako não escondia a preocupação que sentia por causa do norte-americano.

- O que é que hei-de dizer à missionária a respeito dele? - perguntou a Jevy.

- Diz-lhe que ele tem malária.

Os relâmpagos que se viam à distância obrigaram-nos a terminar o jantar e o pequeno descanso que tão rápidos haviam sido. Os ipicas recomeçaram a remar com maior velocidade do que antes. Há várias horas que não avistavam terra firme. Não havia lugar nenhum onde pudessem ancorar esperando que o temporal amainasse.

Finalmente, o motor acabou por desistir. Jevy recorreu ao último bidão cheio de combustível, tentando pô-lo a funcionar de novo. Se o mantivesse a meio gás teria gasolina suficiente para mais ou menos seis horas, o tempo suficiente para chegarem ao rio Paraguai. Chegados aí, encontrariam tráfego fluvial, casas e, em qualquer ponto, o Santa Loura. Conhecia o lugar exacto onde o Xeco desaguava no Paraguai. Continuando a navegar pelo rio abaixo, deveriam encontrar Welly ao nascer do Sol.

Os relâmpagos não estavam muito distantes, embora não os tivessem apanhado. Cada um dos clarões de luz fazia com que os guias remassem com mais velocidade. Mas os índios começaram a mostrar sinais de cansaço. A determinada altura, Lako agarrou-se a um dos lados do bote, enquanto o ipica na outra canoa se apoiava ao outro; Jevy ergueu a lanterna acima da cabeça e as três embarcações prosseguiram como se fossem uma barcaça.

As árvores e o matagal começaram a ser mais cerrados; o curso do rio alargava-se mais. Avistaram terra firme nas duas margens. Os índios recomeçaram a conversar entre si e quando entraram no rio Xeco deixaram de remar. Sentiam-se exaustos e prontos para parar. Jevy pensou que já passavam três horas da hora a que costumavam deitar-se. Encontraram o ponto de paragem e desembarcaram.

Lako explicou que era o assistente da missionária há muitos anos. Já vira inúmeros casos de malária; ele próprio sofrera dessa doença em três ocasiões. Aliviou a cabeça e o peito de Nate, afastando a tenda para lhe apalpar a testa. Disse a Jevy que ele tinha febre muito alta.

- Não podes fazer nada - disse Lako dando o seu diagnóstico por concluído. - A febre baixará, mas haverá outro ataque febril dentro de quarenta e oito horas. No entanto, sentia-se perturbado pelos olhos inchados, um sintoma que nunca tinha visto em outros casos de malária.

O guia mais velho começou a falar com Lako, apontando para o rio de águas escuras. A tradução que este fez a Jevy dizia que ele devia manter-se no centro, ignorando os pequenos afluentes, especialmente os da esquerda, e dentro de duas horas chegaria ao rio Paraguai. Jevy desfez-se em agradecimentos e afastou-se da margem.

A febre não abrandou. Uma hora mais tarde, Jevy verificou o estado de Nate, constatando que continuava a arder em febre. Mantinha-se todo enrolado numa posição fetal, mergulhado numa semi-inconsciência enquanto falava incoerentemente. Jevy obrigou-o a beber umas gotas de água, despejando o resto por cima do rosto do doente.

O rio Xeco era largo e fácil de navegar. Passaram por uma casa, a primeira que viam num mês, ou pelo menos assim parecia a Jevy. Como se fosse um farol que orientasse um barco à deriva, a Lua apareceu entre as nuvens, iluminando as águas diante do bote.

- Consegues ouvir-me, Nate? - perguntou Jevy num tom de voz que não era suficientemente elevado para se fazer ouvir. - O nosso destino está a mudar.

Seguiu a Lua até ao rio Paraguai.

 

O barco era uma chalana, uma caixa de sapatos flutuante, com um comprimento de pouco mais de dez metros, de fundo chato, que era utilizado no transporte de mercadorias através do Pantanal. Jevy pilotara dúzias de embarcações como aquela. Viu a luz que surgia por detrás de uma curva do rio, e quando começou a ouvir o barulho do motor a gasóleo soube identificar imediatamente o tipo de embarcação.

Jevy também conhecia o comandante que dormia no seu beliche quando o marinheiro parou a chalana. Eram quase três horas da madrugada. Jevy amarrou o bote à proa e subiu a bordo. Deram-lhe duas bananas que ele comeu ao mesmo tempo que lhes apresentava um breve sumário da sua situação. O marujo levou-lhe um café bem adoçado. Rumavam para o norte, em direcção a Porto índio, com destino à base do exército nessa localidade, onde negociariam com o pessoal militar. Podiam dispensar-lhes quase vinte litros de combustível. Jevy prometeu-lhes que lhes pagaria a gasolina quando regressasse a Corumbá, com o que o comandante da chalana concordou. Era hábito ajudarem-se mutuamente quando navegavam pelo rio. Ofereceram-lhe mais café, acompanhado de algumas bolachas de baunilha. Foi então que Jevy perguntou se sabiam alguma coisa do Santa Loura e de Welly.

- Deixámo-lo na foz do Cabixa - acrescentou -, ficou ancorado no sítio onde havia o antigo molhe - explicou Jevy.

- Não o vimos lá - disse o comandante abanando a cabeça, gesto que foi secundado pelo marujo. Conheciam bem o Santa Loura e sabiam que não o tinham visto. Caso tivessem, a embarcação não lhes teria passado despercebida.

- Tem de estar onde a deixámos - insistiu Jevy.

- Não está. Ontem, ao meio-dia, passámos pelo Cabixa. Não vimos vestígios do Santa Loura.

Talvez Welly tivesse levado o barco alguns quilómetros rio adentro, com o fito de os procurar. Era forçoso que se tivesse sentido extremamente preocupado.

Jevy tencionava perdoar-lhe por ter deslocado o Santa Loura, mas não sem que antes o repreendesse.

Tinha a certeza de que a embarcação estaria algures no rio Cabixa. Bebeu mais um pouco de café relatando-lhes a situação de Nate a sofrer de malária. Corriam alguns rumores recentes por Corumbá sobre surtos dessa doença que se disseminara por todas as regiões do Pantanal. Ao longo de toda a sua vida, Jevy ouvira rumores semelhantes àqueles.

Ajudaram-no a encher o depósito de combustível do bote com gasolina de um bidão a bordo da chalana. Regra geral, o tráfego fluvial durante a estação das cheias fazia-se três vezes mais rapidamente rio abaixo do que a montante. Um bote equipado com um bom motor tinha obrigação de chegar ao Cabixa em quatro horas, ao pequeno posto comercial em dez e até Corumbá levaria dezoito horas. O Santa Loura, se, e quando o encontrassem, levaria mais tempo a fazer esses percursos, mas pelo menos poderiam contar com redes espreguiçadeiras e comida.

O plano de Jevy era manter-se ancorado para poderem descansar um pouco a bordo do Santa Loura. Queria meter Nate na cama, e ele próprio utilizaria o telefone-satélite, ligando para Valdir que se encontrava em Corumbá. Por seu turno, este encontraria um bom médico que saberia o que fazer logo que regressassem à cidade.

O comandante da chalana ofereceu-lhe outra caixa de bolachas baunilha e um copo de cartão cheio de café. Jevy prometeu que se encontraria com eles em Corumbá na semana seguinte. Agradeceu-lhes e desamarrou o bote. Nate estava vivo, embora não se mexesse. A febre não dava sinais de querer baixar.

O café teve o efeito de acelerar o ritmo cardíaco de Jevy, ajudando-o a manter-se desperto. Tentou afinar a válvula reguladora do motor, aumentando o débito de combustível até que o motor começou a funcionar, engasgando-se, para logo a seguir se ir abaixo. À medida que a madrugada dava lugar ao nascer do dia, instalava-se sobre a superfície do rio um manto cerrado de neblina.

Chegou à foz do Cabixa uma hora depois do nascer do Sol. O Santa Loura não se encontrava onde o deixara. Jevy acostou ao antigo molhe, após o que foi procurar o proprietário da única casa que havia nas proximidades. Encontrou-o no estábulo a mugir uma vaca. Recordava-se de Jevy, começando logo a relatar-lhe a história do temporal que provocara o naufrágio do barco. A pior tempestade que alguma vez tinha visto. Desencadeara-se a meio da noite, pelo que ele não viu muita coisa. As rajadas de vento haviam sido tão violentas que ele, a sua mulher e filho, tinham procurado protecção debaixo da cama.

- Onde é que ele se afundou? - perguntou Jevy.

- Não sei.

- E o rapaz, sabe o que é que lhe aconteceu?

- O Welly? Não sei nada dele.

- Não falou com mais ninguém? Haverá alguém que o tenha visto? De acordo com o que o homem dizia, não havia ninguém que o tivesse

visto. Além do mais, ele não tinha falado com nenhum habitante do rio desde que Welly desaparecera durante o temporal. Lamentava muito tudo o que tinha sucedido e, pelo sim pelo não, disse que na sua opinião o mais certo era Welly ter morrido.

Nate ainda não sofrera esse destino. Entretanto, a febre abrandara consideravelmente, e quando acordou disse que tinha frio e sede. Com a ajuda dos dedos conseguiu abrir os olhos, avistando somente água em seu redor, o matagal que cobria a margem e a pequena quinta.

- Jevy - chamou numa voz enfraquecida devido à garganta inflamada. Sentou-se tentando manter os olhos abertos durante alguns minutos. Via tudo desfocado. Jevy não lhe deu resposta. Nate sentia que não existia parte nenhuma do seu corpo que não estivesse dorida - os músculos, as articulações, o sangue que fluía através do seu cérebro. Tinha uma sensação de calor no pescoço e no peito, coçando até fazer ferida. Sentiu-se nauseado com o seu próprio odor.

O agricultor e a mulher acompanharam Jevy até ao bote. Não tinham nem sequer uma gota de gasolina, o que irritou o visitante.

- Como é que te sentes, Nate? - perguntou Jevy logo que entrou na embarcação.

- Estou a morrer - respondeu articulando as palavras com grande dificuldade.

Jevy apalpou-lhe a testa e, num gesto suave, tocou na pele irritada.

- A febre desceu.

- Onde é que estamos?

- Estamos no rio Cabixa. Não encontrei Welly. O barco naufragou durante a tempestade.

- A sorte continua a bater-nos à porta - retorquiu Nate com ironia, fazendo um esgar de sofrimento devido às dores agudas que sentia na cabeça. - O que é feito do Welly?

- Não sei. - Achas que estás capaz de aguentar a viagem até Corumbá?

- Se a escolha fosse minha, preferia morrer.

- Deita-te e tenta descansar, Nate.

Começaram a afastar-se da margem, deixando para trás o agricultor e a mulher que ficaram a vê-los partir, com os pés mergulhados na lama até aos tornozelos, acenando num gesto de despedida que foi ignorado.

Nate sentou-se durante algum tempo. O vento contra as faces provocava-lhe uma sensação agradável. Mas passado pouco tempo, voltou a sentir frio. O peito estremeceu-lhe, percorrido por um calafrio que o obrigou a deitar-se, com movimentos cautelosos, debaixo da tenda. Tentou rezar uma oração por Welly, mas só conseguiu concentrar os seus pensamentos uma fracção de segundos. Muito simplesmente, não queria acreditar que fora acometido de malária.

 

Hark planeara o pequeno-almoço reforçado com todos os pormenores. Teria lugar numa sala de jantar privada do Hotel Hay-Adams. Seriam servidas ostras e ovos, caviar e salmão, champanhe simples e misturado com sumo de laranja. Por volta das onze horas, já todos se encontravam presentes, usando indumentárias informais; começaram logo a emborcar champanhe com sumo de laranja.

Hark assegurara-lhes que aquela reunião informal era de uma importância vital. Teria de se revestir de toda a confidencialidade. Descobrira a única testemunha que lhes permitiria ganhar a causa em tribunal.

Os únicos advogados convidados eram os dos filhos de Troy Phelan. As ex-mulheres ainda não haviam contestado a validade do testamento, mostrando-se pouco entusiasmadas em se envolverem no assunto. A sua posição, na perspectiva da lei, era pouco consistente. O juiz Wycliff fizera saber a um dos advogados das mulheres, com carácter confidencial, que não veria favoravelmente a instauração de qualquer processo frívolo por parte destas.

Frívolos ou não, os seis filhos Phelan não tinham perdido tempo a impugnar o testamento. Os seis tinham acorrido apressadamente à peleja, todos com a mesma alegação básica - Troy Phelan carecera de capacidades mentais aquando da assinatura do último testamento.

Naquela reunião só poderiam estar presentes dois advogados, de preferência apenas um, se fosse possível, por herdeiro. Hark não se fizera acompanhar de nenhum colega, estando ali como representante de Rex. Wally Bright também viera sozinho, defendendo os interesses de Libbigail. Yancy era o único advogado que Ramble conhecia. Grit representava Mary Ross. A doutora Langhorne, a antiga professora de Direito, encontrava-se presente na qualidade de advogada de Geena e Cody. Por seu lado, Troy Júnior contratara e despedira sucessivamente os serviços de três firmas desde a morte do pai. Os advogados mais recentes que contratara pertenciam a uma firma onde trabalhavam quatrocentos causídicos. Os seus nomes eram Hemba e Hamilton, tendo-se apresentado àquela confederação de advocacia pouco coesa.

Hark fechou a porta antes de se dirigir ao grupo. Apresentou uma pequena biografia de Malcolm Snead, um homem com quem se reunira quase todos os dias nos últimos tempos.

- Ele trabalhou para o senhor Phelan durante trinta anos - acrescentou com uma expressão solene. - É possível que o tenha ajudado a escrever o último testamento. Talvez esteja preparado para dizer que o velho estava completamente doido nessa altura.

Os demais advogados mostraram-se surpreendidos com aquela notícia. Antes de retomar a palavra, Hark observou por um momento as suas expressões de felicidade.

- Ou talvez ele esteja preparado para dizer que não teve conhecimento do testamento escrito à mão, e que o senhor Phelan estava perfeitamente racional e lúcido no dia em que faleceu - acrescentou Hark.

- Quanto é que ele quer? - perguntou logo Wally Bright sem meias palavras.

- Cinco milhões de dólares. Dez por cento imediatamente e o resto aquando do acordo financeiro.

O montante que Snead exigia não desconcertou os advogados. O dinheiro que estava em jogo era muito. De facto, a ganância do homem parecia-lhes bastante moderada.

- É claro que os nossos clientes não dispõem dessa quantia - continuou Hark. - Por conseguinte, se quisermos comprar este testemunho, o assunto dependerá de nós. Por mais ou menos oitenta e cinco mil dólares por herdeiro podemos assinar um contrato com o senhor Snead. Estou convencido de que ele nos proporcionará um testemunho que nos permitirá ganhar a causa, ou que venha a forçar um acordo fora do tribunal.

A amplitude de riqueza representada naquele salão era vasta. A conta bancária do escritório de Wally Bright encontrava-se a descoberto. Tinha impostos em atraso. Todavia, no outro extremo do espectro, o escritório de advogados onde Hemba e Hamilton trabalhavam tinha sócios que auferiam mais de um milhão de dólares anualmente.

- Está a sugerir-nos que paguemos a uma testemunha que mentirá em tribunal? - perguntou Hamilton.

- Nós não sabemos se ele está a mentir - respondeu Hark. Era capaz de antecipar todas as perguntas. - Ninguém sabe. Ele encontrava-se a sós com o senhor Phelan. Não existem testemunhas. A verdade será aquilo que o senhor Snead quiser que venha a ser.

- Tudo isso me parece duvidoso - argumentou Hemba.

- Tem alguma ideia melhor? - perguntou Grit num grunhido. Já ia no quarto copo de champanhe com sumo de laranja.

Hemba e Hamilton eram advogados de uma firma importante, pouco habituados à escumalha das ruas. Não que eles ou os do seu jaez estivessem isentos de virem a ser corrompidos, mas os seus clientes eram empresas com muito capital, que se serviam de grupos de interesses na efectivação dos seus subornos jurídicos, o que lhes permitia obter avultados contratos governamentais e sonegar dinheiro em contas bancárias na Suíça, cujos beneficiários eram déspotas de países estrangeiros, tudo isto com a ajuda dos seus advogados de confiança. Mas porque eram advogados associados a uma firma de destaque, olhavam com desdém para o tipo de comportamento que Hark lhes sugeria, em que os princípios de ética eram de somenos importância, conduta essa que merecia a aprovação de Grit, Bright e dos outros espalhafatosos.

- Não sei se o nosso cliente estará de acordo com a sua sugestão - adiantou Hamilton.

- O seu cliente será o primeiro a agarrá-la com unhas e dentes - retorquiu Hark. Aquela situação tinha o seu quê de bom humor; atribuir qualquer espécie de ética a TJ Phelan. -Nós conhecêmo-lo melhor do que vocês dois. A questão que aqui se coloca é se a vossa firma está disposta a agir em conformidade com a minha sugestão.

- Está a sugerir que nós, os advogados, adiantemos os quinhentos mil dólares iniciais? - Perguntou Hemba sem ocultar o desprezo que aquilo lhe merecia.

- Exactamente - confirmou Hark.

- Nesse caso, vejo-me forçado a dizer-lhe que a nossa firma nunca daria consentimento a um esquema nesses moldes.

- Uma vez que é essa a vossa posição, informo-o de que a vossa firma está prestes a ser substituída - interveio Grit. - Não se esqueça de que vocês são a quarta firma contratada no espaço de um mês.

De facto, Troy Júnior já ameaçara despedi-los. Os dois advogados optaram por se remeter ao silêncio, escutando atentamente o que ainda estava para ser dito.

Hark retomou a palavra.

- Para se evitar o constrangimento de se pedir a cada um de nós que adiante o pagamento inicial, já contactei um banco disposto a conceder-nos um empréstimo no valor de quinhentos mil dólares, pelo período de um ano. Tudo o que precisamos é de seis assinaturas na papelada do empréstimo. Eu já assinei.

- Por mim, estou disposto a assinar o diabo do papel - atalhou Bright numa explosão de masculinidade. Não manifestava o mínimo receio porque não tinha nada a perder.

- Deixem-me ver se sou capaz de compreender isto como deve ser - interveio Yancy. - Nós pagamos adiantadamente a Snead e só depois é que ele começa a falar. Não é verdade?

- Precisamente.

- Não vos parece que devíamos ouvir primeiro a versão que ele tem para apresentar?

- A versão dele precisa de ser trabalhada. É aí que está a beleza desta transacção. Depois de lhe termos pago, ele passa a ser nosso. Teremos a oportunidade de moldar o seu testemunho, estruturando-o de forma a que se adeque às nossas necessidades. É preciso não nos esquecermos de que não existem outras testemunhas, talvez com a excepção de uma secretária.

- Quanto é que ela custa? - perguntou Grit.

- Ela é de borla. Está incluída no acordo com Snead.

Quantas vezes, ao longo de uma carreira profissional, é que se teria a oportunidade de vir a cobrar uma percentagem da décima maior fortuna do país? Os advogados fizeram os cálculos matemáticos. Um pouco de risco agora para se obter uma mina de ouro mais tarde.

- Vou recomendar à minha firma que aceite esta proposta - disse a doutora Langhorne, surpreendendo todos os presentes. - Mas este assunto tem de ser mantido no segredo dos deuses.

- No segredo dos deuses - repetiu Yancy. - Todos nós corremos o risco de vir a ser expulsos da Ordem dos Advogados, provavelmente indiciados. O suborno que paga o perjúrio é considerado crime.

- Vocês não estão a compreender - apontou Grit. - Nunca poderá existir crime de perjúrio, uma vez que a verdade é definida por Snead, e apenas por Snead. Se ele afirmar que ajudou a escrever o testamento, dizendo ao mesmo tempo que o velho estava maluco, quem é que neste universo poderá pôr isso em causa? Trata-se de uma jogada brilhante. Por mim, estou pronto a assinar.

- Já somos quatro - disse Hark.

- Eu também estou disposto a assinar - adiantou Yancy. Hamilton e Hemba continuavam a mostrar-se bastante reservados.

- Temos de discutir o assunto com os colegas da nossa firma - disse o primeiro.

- Teremos nós de vos recordar, rapazes, que todo este assunto é confidencial? - perguntou Bright. A situação tinha a sua comicidade; era o arruaceiro de rua, que se formara na escola nocturna, que admoestava os peritos em jurisprudência, recordando-lhes os princípios da ética.

- Não - redarguiu Hemba. - Não é necessário recordar-nos.

Hark telefonaria a Rex para o pôr ao corrente daquele acordo, o qual, por seu turno, ligaria ao irmão, TJ, informando-o de que os seus dois novos advogados estavam a empatar a negociata. Dentro de quarenta e oito horas, Hemba e Hamilton teriam passado à história.

- Têm de se despachar - advertiu Hark. - O senhor Snead afirma que está falido, consequentemente, não terá o mínimo pejo em negociar com a outra parte interessada.

- Já que esse assunto foi mencionado - interveio Langhorne -, sabemos mais alguma coisa sobre a identidade da outra parte? Todos nós estamos a contestar o testamento. Alguém terá de ser o requerente. Onde é que está Rachel Lane?

- É evidente que ela está escondida - redarguiu Hark. - Josh assegurou-me que sabia onde é que ela se encontra, afirmando que estão em contacto com ela e que a aconselharão a contratar advogados que protejam os seus interesses.

- Por onze mil milhões de dólares, espero bem que sim - acrescentou Grit.

Durante uns momentos, todos reflectiram nos onze mil milhões; cada um dividia esse montante pelas várias grandezas do digito seis, aplicando as suas percentagens ao resultado. Os cinco milhões que pagariam a Snead eram uma soma bastante razoável.

 

Ao princípio da tarde, Jevy e Nate navegavam com dificuldade a caminho do posto comercial. O motor fora de borda falhava excessivamente, além de terem pouca gasolina. Fernando, o dono do estabelecimento, estava estendido numa rede no alpendre, tentando fugir ao Sol escaldante. Era um homem de idade, um homem experiente, endurecido pelo rio, que conhecera o pai de Jevy.

Os dois homens ajudaram Nate a sair do bote. Uma vez mais, ardia em febre. Sentia as pernas fracas e entorpecidas; os três caminhavam com todo o cuidado e muito devagar, percorrendo o molhe estreito e subindo os degraus do alpendre. Depois de terem deitado o doente na rede espreguiçadeira, Jevy fez uma rápida descrição dos acontecimentos da semana anterior. Não havia nada que se passasse no rio que escapasse à atenção de Fernando.

- O Santa Loura afundou-se - disse ele. - Houve uma grande tempestade.

- Por acaso, viu o Welly? - perguntou Jevy.

- Vi, sim. Foi tirado do rio pela tripulação de um barco de transporte de gado. Pararam aqui. Ele contou-me a história toda. Tenho a certeza de que neste momento já está em Corumbá.

Jevy sentiu-se aliviado ao saber que Welly continuava vivo. No entanto, a perda da embarcação era uma notícia trágica. O Santa Loura eram um dos melhores barcos que navegavam pelo Pantanal. Tinha naufragado numa altura em que o responsável era Jevy.

Enquanto conversavam, Fernando examinava Nate. Este mal conseguia ouvir as palavras dos dois homens. Era seguro que não lhes apreendia o sentido. Não que isso lhe interessasse.

- Isto não é malária - declarou Fernando tocando na erupção cutânea no pescoço de Nate. Jevy aproximou-se da espreguiçadeira olhando para o amigo. Tinha o cabelo baço e molhado e as pálpebras continuavam cerradas e inchadas.

- Então, o que é?

- A malária não provoca uma irritação como esta. A dengue sim.

- A febre de dengue?

- Sim. Os sintomas são muito parecidos com os da malária... febre e arrepios de frio, articulações e músculos doridos, o que é causado pelos mosquitos. Mas a erupção indica que se trata da febre de dengue.

- O meu pai teve essa febre uma ocasião. Ficou muito doente.

- É necessário levá-lo para Corumbá o mais depressa possível.

- Pode emprestar-me o seu motor?

O barco de Fernando encontrava-se guardado por baixo da construção periclitante. O motor fora de borda estava tão ferrugento como o de Jevy, mas tinha uma potência superior em cinco cavalos. Os dois homens andavam apressadamente de um lado para o outro, trocando os motores e enchendo depósitos de combustível, e depois de ter passado uma hora deitado na rede, o pobre Nate, comatoso, foi levado de novo pelo molhe e deitado no fundo do barco, debaixo da tenda. Estava demasiado doente para se aperceber do que se passava à sua volta.

Eram quase duas e meia da tarde. Corumbá ficava a nove ou dez horas de caminho. Jevy deixou o número de telefone de Valdir com Fernando. Em ocasiões raras, o rio Paraguai era navegado por um barco com rádio a bordo. Se por acaso Fernando encontrasse um com esse tipo de equipamento, Jevy queria que ele entrasse em contacto com Valdir, pondo-o ao corrente da situação.

Começou a afastar-se com toda a rapidez, sentindo-se bastante orgulhoso por, uma vez mais, navegar numa embarcação que cortava as águas a grande velocidade. Na sua esteira ia deixando as águas que pareciam fervilhar.

A febre de dengue podia ser uma doença fatal. O seu pai estivera às portas da morte durante uma semana, com dores de cabeça que quase o cegavam e febres elevadíssimas.

Sentira tantas dores nos olhos que a mãe tivera de manter o marido num quarto às escuras durante vários dias. Havia sido um homem endurecido pelo rio, acostumado a toda a espécie de ferimentos e dores, e quando Jevy o ouvira a gemer como se fosse uma criança apercebeu-se de que o pai estava a morrer. Dia sim dia não era visitado pelo médico, até que finalmente a febre começou a abrandar.

Jevy via os pés de Nate que pareciam espreitar por debaixo da tenda, nada mais. Esperava fervorosamente que ele não morresse.

 

Nate acordou uma vez, mas não conseguia ver. Voltou a despertar e só avistou escuridão. Tentou dizer qualquer coisa a Jevy acerca de água, apenas um pouco e talvez um pequeno naco de pão. Mas a sua voz não se fazia ouvir. Falar exigia esforço e movimento, principalmente quando se tentava gritar acima do barulho de um motor. Sentia que as articulações estavam todas repuxadas num nó apertado. Tinha a sensação de estar soldado ao fundo de alumínio da embarcação.

Rachel encontrava-se deitada ao seu lado debaixo da tenda fedorenta, com os joelhos flectidos e unidos que tocavam nos dele, na mesma posição em que haviam estado sentados no chão à entrada da palhota dela, e mais tarde no banco corrido debaixo da árvore perto do rio. Um pequeno contacto cauteloso por parte de uma mulher esfaimada pelo toque inocente da carne de outrem. Havia onze anos que vivia entre os índios ipica, cuja nudez mantinha uma distância permanente entre eles e as pessoas civilizadas. Até um simples abraço era uma questão complicada. Onde é que se agarra? Onde é que se dá uma palmada amigável? Por quanto tempo é que o enlace deverá perdurar? Com certeza absoluta que ela nunca tocara em nenhum dos nativos do sexo masculino.

Nate desejava beijá-la, ainda que fosse só na face, porque era evidente que ela passara vários anos privada dessa demonstração de afecto. «Quando é que te deram o último beijo, Rachel?», queria ele perguntar-lhe. «Já estiveste apaixonada. Até que ponto é que essa relação foi carnal?»

Todavia, Nate guardava aquelas perguntas para si próprio; estas foram substituídas por um diálogo acerca de pessoas desconhecidas de ambos. Ela tivera uma professora de piano, cujo hálito era tão mau que amarelara as teclas do instrumento. Ele tivera um treinador de lacrosse(1) paralisado da cintura para baixo,

 

*1. Jogo semelhante ao hóquei. (N. da T.)

 

porque quebrara a espinha precisamente durante um jogo de lacrosse. Uma rapariga que pertencia à igreja de Rachel tinha engravidado e o pai condenara-a do alto do púlpito. A rapariga suicidou-se uma semana mais tarde.

Nate esfregou-lhe os joelhos, o que pareceu agradar a Rachel. Mas ele recusava-se a ir mais longe. Aquele tipo de comportamento com uma missionária não era compensador.

Ela encontrava-se ali para impedir que ele morresse. A própria Rachel tivera de lutar por duas vezes contra a malária. As febres surgiam e desapareciam, os arrepios eram sentidos como se fossem gelo na barriga, desaparecendo pouco depois. Os ataques de náusea surgiam em vagas. E então não se sente nada durante várias horas. Num gesto de ternura, ela tocou-lhe no braço, prometendo-lhe que não iria morrer. «Ela diz isto a toda a gente», pensou Nate. A morte seria bem-vinda.

Os toques entre os corpos pararam. Abriu os olhos e estendeu o braço para Rachel, mas ela tinha desaparecido.

Jevy ouviu duas vezes os delírios de Nate. Em cada uma dessas vezes parou o barco, afastando a tenda do corpo do doente. Obrigava-o a beber um pouco de água, vertendo suavemente alguma entre os cabelos suados.

- Já estamos quase a chegar - dizia ele vezes sem conta. - Estamos quase lá.

As primeiras luzes de Corumbá trouxeram lágrimas aos seus olhos. Jevy vira-as muitas vezes quando regressava das incursões pelo norte do Pantanal, mas nunca estas haviam sido tão bem-vindas. Bruxuleavam sobre a colina à distância. Começou a contá-las até que formaram uma amálgama indestrinçável.

Eram quase onze da noite quando saltou para a água pouco profunda, começando a arrastar o bote para cima do pavimento de cimento quebrado. O ancoradouro estava deserto. Correu colina acima até encontrar uma cabina telefónica.

Já de pijama vestido, Valdir via televisão enquanto fumava o último cigarro do dia, ignorando a mulher que não parava de rezingar, quando o telefone começou a tocar. Atendeu sem se levantar, para logo se erguer de um salto.

- O que é que se passa? - perguntou ela ao ver que o marido corria para o quarto.

- O Jevy está de volta - respondeu ele por cima do ombro.

- Quem é esse Jevy?

- Vou ao rio - explicou Valdir quando passou por ela já a caminho da porta da rua. O que para ela foi completamente indiferente.

Conduzindo através da cidade, telefonou a um médico que era seu amigo, que acabara de se deitar, conseguindo persuadi-lo a encontrarem-se no hospital.

Jevy não parava, de um lado para o outro na doca. O norte-americano estava sentado numa pedra, mantendo a cabeça apoiada em cima dos joelhos. Sem proferirem palavra, os dois homens instalaram Nate, precavendo-se de todos os cuidados, no assento de trás do automóvel, após o que arrancaram, levantando a gravilha do pavimento, fazendo-a voar atrás de si.

Valdir tinha tantas perguntas a fazer que não sabia por onde é que haveria de começar. As palavras de recriminação poderiam esperar.

- Quando é que ele adoeceu? - perguntou em português.

Jevy ia sentado ao seu lado a esfregar os olhos, num esforço para se manter acordado. A última vez que dormira fora na aldeia dos índios.

- Não sei ao certo - respondeu. - Os dias misturam-se uns com os outros. É febre de dengue. A erupção cutânea aparece ao fim do quarto ou quinto dia; acho que ele já está assim há dois dias. Não sei bem.

Seguiam a grande velocidade em direcção à baixa da cidade, ignorando os semáforos e outros sinais de trânsito que encontravam pelo caminho. As esplanadas dos cafés estavam prestes a fechar. O trânsito era reduzido.

- Conseguiram encontrar a mulher?

- Conseguimos.

- Onde - perguntou Valdir.

- Vive próximo das montanhas. Estou em crer que vive na Bolívia, à distância de um dia de Porto índio.

- O local onde ela está vinha indicado no mapa?

- Não - respondeu Jevy.

- Então como é que foram capazes de a encontrar?

Nenhum brasileiro admitiria alguma vez que se perdera, muito em especial um guia com tanta experiência como Jevy. Isso seria uma ofensa ao seu amor-próprio, podendo até vir a prejudicar o seu negócio.

- Estávamos numa região inundada onde os mapas não servem para nada. Encontrei um pescador que nos ajudou. E o Welly, como é que está?

- Está óptimo. O barco afundou-se. - Valdir estava muito mais preocupado com a embarcação do que com o tripulante.

- Nunca vi um temporal como aquele. Tivemos de aguentar três tempestades.

- O que é que a mulher disse?

- Não sei. Nunca cheguei a ter nenhuma conversa com ela.

- Ela mostrou-se surpreendida quando vos viu?

- Pelo que me foi dado ver, não. Mostrou-se bastante serena. Acho que gostou do nosso amigo que está ali atrás.

- Como é que correu o encontro dos dois?

- Tem de lhe perguntar.

Nate sentava-se numa posição aninhada no assento traseiro, sem ouvir nada à sua volta. E, a fazer fé em Jevy, este não sabia nada; não valia a pena pressionar o assunto. Os dois advogados teriam oportunidade de falar mais tarde, logo que Nate estivesse em condições.

Quando chegaram ao hospital já havia uma cadeira de rodas junto do lancil do passeio. Instalaram Nate na cadeira, seguindo atrás do auxiliar de enfermagem pelo passeio. O ar estava quente e pegajoso, continuava a sentir-se imenso calor. Nos degraus da fachada, viam-se uns doze paramédicos de ambos os sexos, todos de uniforme branco, que conversavam em voz baixa enquanto fumavam um cigarro. O hospital não tinha ar condicionado.

O médico amigo de Valdir mostrava uma atitude um tanto brusca, ainda que profissional. A papelada de admissão teria de esperar até à manhã seguinte para ser preenchida. Empurraram a cadeira onde Nate ia sentado através do átrio deserto, percorrendo uma série de corredores até chegarem a uma pequena sala de consulta, onde uma enfermeira sonolenta começou a tratar do doente. Jevy e Valdir mantinham-se afastados a um canto, observando o médico e a enfermeira que já tinham começado a despir o doente até este ficar completamente nu. A enfermeira lavou-o com álcool servindo-se de panos brancos. O médico examinou a erupção cutânea que começava no queixo, alastrando até à região da cintura. Tinha o corpo coberto por mordidelas de mosquito, muitas das quais tinha coçado até ficarem em carne viva. Mediram-lhe a temperatura, a pressão arterial e a pulsação.

- Tem todos os sintomas de febre de dengue - constatou o médico dez minutos depois. Em seguida, começou a explicar uma série de pormenores à enfermeira, que mal o ouvia, porque nada daquilo era novidade para ela. Começou a lavar o cabelo de Nate.

Este tartamudeou algo que não tinha nada a ver com qualquer dos presentes. Os olhos continuavam inchados e com as pálpebras cerradas; há uma semana que não se barbeava. O seu aspecto físico ter-se-ia enquadrado bem junto de uma sarjeta à entrada de um bar.

- A febre subiu bastante - disse o médico. - Ele está delirante. Vamos começar por uma solução intravenosa com antibióticos e analgésicos, além de muita água e talvez um pouco de comida mais tarde.

A enfermeira aplicou uma ligadura espessa de gaze sobre os olhos de Nate, prendendo-a com adesivo de orelha a orelha. Procurou uma veia, onde começou a ministrar a solução intravenosa. De uma gaveta, tirou uma bata amarela que lhe vestiu.

O médico voltou a verificar a temperatura.

- Dentro em pouco deverá começar a baixar - disse ele à enfermeira.

- Se isso não acontecer, telefone-me para casa. - De relance, olhou para o relógio de pulso.

- Obrigado - agradeceu Valdir.

- Logo de manhã, passo por cá para ver qual a evolução do estado dele

- acrescentou o médico saindo da sala de consulta.

Jevy vivia nos subúrbios da cidade, onde as casas eram pequenas e as ruas não eram alcatroadas. Enquanto Valdir o levava a casa, adormeceu por duas vezes.

 

Mrs. Stafford tinha ido a Londres para comprar antiguidades. O telefone tocou uma dúzia de vezes antes que Josh atendesse. O mostrador digital indicava as horas; duas horas e vinte minutos da madrugada.

- Fala Valdir - anunciou uma voz.

- Oh, sim, Valdir. - Josh passou os dedos pelos cabelos e pestanejou.

- Espero bem que o motivo que o levou a telefonar-me a esta hora seja importante.

- O seu rapaz regressou à cidade.

- Graças a Deus.

- No entanto, tenho de lhe dizer que ele está muito doente.

- O quê?! O que é que se passa com ele?

- Tem febre de dengue, uma doença parecida com malária. Transmite-se através dos mosquitos. É bastante comum por estas paragens.

- Eu estava convencido de que ele tinha sido vacinado contra tudo - retorquiu Josh, que se sentara na cama, passando os dedos pelos cabelos.

- Não há vacina contra a febre de dengue.

- Mas ele não vai morrer, pois não?

- Não, de maneira nenhuma. Está internado no hospital. Um dos meus melhores amigos é médico e é ele quem está a tratar de Nate. Garantiu-me que o seu rapaz recuperará a saúde.

- Quando é que posso falar com ele?

- Talvez amanhã. Neste momento, ele está com febres altas e perdeu a consciência.

- Ele encontrou a mulher?

- Encontrou - confirmou Valdir.

«Lindo menino!», pensou Josh. Suspirou de alívio sentando-se na beira da cama. «Portanto, ela está mesmo nessa região.» - Dê-me o número do quarto onde ele está internado.

- Bem... aqui os quartos de hospital não têm telefone.

- Ele está num quarto particular, não é verdade? Vamos lá a ver, Valdir, sabe bem que o dinheiro não constitui problema. Diga-me que ele está a ser bem tratado.

- Nate está em boas mãos. mas os hospitais aqui são um pouco diferentes daqueles a que está habituado.

- Acha que eu devia ir até aí?

- Se quiser, embora não seja necessário. Não poderá mudar o hospital. Além de que ele está a ser tratado por um bom médico.

- Durante quanto tempo é que Nate terá de ficar hospitalizado? - perguntou Josh.

- Apenas por uns dias. Amanhã de manhã já saberemos mais alguma coisa.

- Telefone-me logo de manhã, Valdir. Não se esqueça. Tenho de falar com ele logo que seja possível.

- De acordo; telefono-lhe logo de manhã.

Josh foi até à cozinha para beber um copo de água gelada. Depois foi para a sala de estar onde, inquieto, começou a andar de um lado para o outro. Às três da manhã desistiu; fez uma cafeteira de café bem forte e foi para o escritório da cave.

 

Porque era um norte-americano cheio de dinheiro, ninguém se poupou a despesas. Administraram a Nate os melhores medicamentos que havia na farmácia do hospital. A febre baixou um pouco e os suores pararam. As dores desapareceram sob o efeito dos melhores fármacos produzidos pela indústria farmacêutica dos Estados Unidos. Duas horas depois de ter chegado ao hospital, quando foi levado numa maca por uma enfermeira e uma auxiliar de enfermagem para o quarto que lhe fora destinado, Nate já ressonava profundamente.

Naquela noite teria de partilhar o quarto, ou melhor dizendo, a enfermaria, com outros cinco doentes. Misericordiosamente, tinha os olhos vendados e estava em estado de semicoma. Não podia ver as feridas abertas, nem os arrepios incontroláveis, do homem de idade deitado perto de si, assim como a criatura inane e encarquilhada do lado oposto da sala. Não se encontrava em condições de sentir o cheiro dos dejectos humanos.

 

Apesar de não possuir nenhuns bens em seu nome, e de ter estado sempre nas lonas durante a maior parte da sua vida adulta, Rex Phelan tinha um talento inato para os números. Fora uma das pouquíssimas coisas que herdara do pai. Dos herdeiros Phelan, ele era o único que possuía tanto aptidão como perseverança para ler as seis petições que contestavam a validade do testamento de Troy Phelan. Depois de ter concluído a leitura, chegou à conclusão de que as seis firmas de advocacia, basicamente, duplicavam o trabalho que cada uma efectuava. Na realidade, algum do paleio jurídico parecia ter sido inspirado na última petição apresentada em tribunal, ou na que se lhe seguiu.

Seis escritórios de advogados empenhados na mesma luta, em que cada um pretendia cobrar um preço exorbitante da fatia que caberia ao respectivo cliente. Chegara a hora de se estabelecer um pouco de harmonia familiar. Decidiu começar pelo seu irmão TJ, o alvo mais fácil, uma vez que os seus advogados estavam com pruridos de natureza ética.

Os dois irmãos concordaram encontrar-se em segredo; as respectivas mulheres odiavam-se, pelo que as discórdias poderiam ser evitadas se, muito simplesmente, as duas mulheres não tivessem conhecimento daquele encontro. Rex disse a Troy Júnior, numa conversa telefónica, que chegara a altura de enterrarem o machado de guerra. Os interesses económicos assim o exigiam.

Combinaram encontrar-se ao pequeno-almoço numa casa de panquecas nos subúrbios, e, alguns minutos depois de terem comido waffles, de permeio com uma conversa sobre râguebi, as arestas haviam sido limadas. Rex foi direito ao assunto relatando a história de Snead.

- Isto é tremendo - disse ele manifestando grande euforia. - Literalmente, é um aspecto que tanto nos permitirá ganhar o caso como perdê-lo. - Começou a pôr o irmão ao corrente da situação, mantendo-o na expectativa até chegar à promissória que os advogados pretendiam assinar, todos, à excepção dos que representavam Troy Júnior.

- Os teus advogados estão a lixar a negociata - continuou Rex, sombriamente, lançando um olhar feroz em todas as direcções, como se os espiões estivessem por detrás do balcão de onde saíam os ovos estrelados e as fatias de presunto fumado.

- O filho da puta quer cinco milhões? - retorquiu Troy Júnior sem poder acreditar que Snead fizesse uma exigência daquelas.

- Para nós é um grande negócio. Vê bem, ele está disposto a dizer que era a única pessoa que estava com o nosso pai quando ele escreveu o testamento. Temos de lhe prometer seja o que for para que as coisas nos corram de feição. De início, ele pretende apenas meio milhão de dólares. Mais tarde, poderemos deixá-lo a ver navios quanto ao resto do dinheiro.

Aquela alternativa agradava sobremaneira a Troy Júnior. Além de que mudar de firma de advogados era algo com que já estava bastante familiarizado. Na sua opinião, e com alguma candura, teria de admitir que a firma de Hemba e Hamilton era intimidante. Quatrocentos advogados. Átrios em pedra-mármore. Obras de arte nas paredes. Teria de haver alguém a pagar o bom gosto daqueles advogados.

- Já leste as seis petições? - perguntou Rex, desviando o rumo da conversa.

Troy Júnior espetou um morango da compota e abanou a cabeça num gesto negativo. Nem sequer se dera ao trabalho de ler a que dera entrada em tribunal em seu nome. Hemba e Hamilton tinham-na discutido com ele, mas limitara-se a assinar o documento; era composto por muitas folhas e na altura Biff estava à sua espera dentro do carro.

- Pois bem, eu li todas, devagar e com muita atenção; cheguei à conclusão de que dizem todas o mesmo - continuou Rex. - Temos cinco escritórios de advogados que fazem o mesmo trabalho, isto é, impugnam o mesmo testamento. É um absurdo.

- Tenho andado a pensar nisso - redarguiu Troy Júnior prestimosamente.

- Além de que os seis esperam vir a enriquecer quando chegarmos a um acordo. Quanto é que os teus rapazes te cobram?

- Quais são os honorários de Hark Gettys? - contrapôs TJ.

- Vinte e cinco por cento - respondeu Rex.

- Os meus querem trinta por cento. Ficámo-nos pelos vinte por cento. - No ar pairou uma breve centelha de orgulho, já que Troy Júnior tinha negociado mais vantajosamente do que Rex.

- Analisemos um pouco os números - prosseguiu Rex. - Hipoteticamente, digamos que decidimos contratar Snead; pressupondo que ele diz aquilo que mais nos convém, contratamos os nossos psiquiatras, a confusão começa a instalar-se, e o titular do espólio quer negociar um acordo. Partamos ainda do pressuposto de que cada herdeiro receberá, não sei bem, à volta de vinte milhões. Isso perfaz quarenta a esta mesa. Cinco milhões revertem a favor de Hark. Quatro vão para os teus rapazes. E temos um total de nove milhões, o que significa que receberemos trinta e um.

- Por mim, estou pronto a aceitar.

- Também eu - secundou Rex. - Mas no caso de eliminarmos de cena os teus rapazes, situação em que uniríamos esforços, isso significa que Hark dividiria os seus honorários por dois. Não temos necessidade de tantos advogados, TJ. O trabalho de qualquer deles é uma réplica dos outros; estão todos à espera de poderem lançar as garras ao nosso dinheiro.

- Eu detesto Hark Gettys - rematou Troy Júnior.

- Óptimo. Deixa que seja eu a tratar com ele. Não te estou a pedir que sejam amigos.

- Por que motivo é que não despedimos Hark e ficamos com os meus fulanos?

- Porque foi Hark quem descobriu Snead. Porque Hark encontrou o banco que fará o empréstimo que servirá para comprar Snead. Porque Hark está disposto a assinar os papéis do empréstimo, enquanto os teus rapazes nos vêm com pruridos de ética. Este negócio não cheira a rosas, TJ. Mas o certo é que Hark compreende bem todos os meandros do assunto.

- A impressão que eu tenho dele é que não passa de um sacana, além de ser um vigarista.

- Sim! Mas acontece que é o nosso vigarista. Se unirmos forças, a fatia dele desce de vinte e cinco para vinte por cento. Se conseguirmos convencer Mary Ross a entrar no nosso acordo, então ele descerá para dezassete ponto cinco. Com Libbigail, a percentagem de Hark será de quinze por cento.

- Nunca conseguiremos convencer Libbigail - contrapôs TJ.

- Existe sempre uma possibilidade. Se três de nós estivermos de acordo, é muito possível que ela nos dê ouvidos - insistiu Rex.

- E quanto ao rufião com quem ela está casada? - Na verdade, Troy Júnior fez aquela pergunta com a maior das sinceridades. Falava com o irmão que era casado com uma stripper.

- Trataremos de todos, um de cada vez. Primeiro, nós dois temos de nos pôr de acordo e depois vamos falar com Mary Ross. O advogado dela é esse fulano... o Grit, um homem que não me impressiona muito pela sua inteligência.

- Não faz sentido começarmos a discutir - retorquiu Troy Júnior com uma expressão de tristeza.

- O assunto acabará por nos custar o raio de uma fortuna. Chegou a altura de declararmos tréguas.

- A mãe há-de sentir-se orgulhosa de nós.

 

As terras altas que marginavam o rio Xeco eram utilizadas pelos índios há várias décadas. Serviam de acampamento aos pescadores que por vezes pernoitavam ali, para além de serem um ponto de paragem para o tráfego fluvial. Rachel e Lako, acompanhados de um outro homem da tribo, de nome Ten, tinham-se abrigado por baixo de um telheiro de palha, aguardando que a tempestade amainasse. O telheiro deixava passar a água da chuva e o vento soprava de lado, açoitando-lhes o rosto. Junto dos pés, estava a canoa em que tinham viajado, arrastada para fora do Xeco depois de uma luta renhida contra o temporal durante uma hora de horror. As roupas de Rachel estavam encharcadas, mas do mal o menos, a água da chuva era morna. Os índios não usavam roupa nenhuma, com a excepção de um cordão em volta da cintura que prendia um pedaço de couro que lhes protegia os órgãos genitais.

Em tempos, Rachel possuíra um barco de madeira equipado com um motor já bastante antigo. Pertencera aos Cooper, os missionários que a haviam precedido. Quando tinha gasolina, deslocava-se pelos rios entre os quatro povoados dos ipicas. Também lhe permitia ir a Corumbá, uma viagem muito longa de dois dias, que se transformava em quatro na viagem de regresso.

Esse motor acabara por desistir de trabalhar, não tendo havido dinheiro para que ela pudesse comprar outro. Todos os anos, quando submetia o seu modesto orçamento à apreciação da organização Tribos Universais, quase implorava que lhe dessem os meios para adquirir um motor novo fora de borda, ou pelo menos um em segunda mão que estivesse em condições minimamente razoáveis. Descobrira um em Corumbá pelo preço de trezentos dólares. Todavia, por todo o mundo, os orçamentos da missão eram muito restritos. As verbas que lhe cabiam destinavam-se inteiramente à compra de medicamentos e literatura bíblica. «Continue a orar», diziam-lhe os seus dirigentes. «Talvez no próximo ano já haja verba.»

Rachel aceitava aquela situação sem levantar quaisquer objecções. Se o Senhor desejasse que ela tivesse um novo motor fora de borda, então ele acabaria por lhe ir parar às mãos. As questões que se prendiam com os «ses» e «quandos» eram deixadas a Deus. Não lhe cabia preocupar-se com esses pormenores.

Sem poder dispor de uma embarcação, Rachel deslocava-se a pé entre as aldeias, quase sempre na companhia de Lako, que coxeava a seu lado. Todos os anos, no mês de Agosto, convencia o chefe da tribo a emprestar-lhe uma canoa e um guia para a jornada até ao rio Paraguai. Quando chegava ao rio, esperava pela passagem de um barco de transporte de gado ou por uma chalana que a levasse para sul. Dois anos antes, Rachel fora forçada a esperar durante três dias, dormindo nos estábulos de uma pequena fazenda na margem do rio. No espaço de três dias, passou de estranha a amiga, e depois a missionária, quando o agricultor e a mulher se converteram ao cristianismo, na sequência dos seus ensinamentos religiosos e orações.

Amanhã alojar-se-ia em casa deles enquanto aguardaria uma embarcação que a levasse a Corumbá.

O vento ululava através do telheiro. Rachel agarrou na mão de Lako e ambos começaram a rezar, não pela sua segurança, mas pela saúde do amigo de ambos, Nate.

 

O pequeno-almoço foi servido ao doutor Stafford na sua mesa de trabalho - flocos de cereais e fruta. Recusava-se a sair do escritório e, quando declarou que se manteria ali durante todo o dia, as suas duas secretárias apressaram-se a alterar a data de, nada menos, do que seis reuniões agendadas para aquele dia. Às dez horas comeu um pãozinho, sentado à sua mesa de trabalho. Telefonou para o escritório de Valdir, de onde lhe disseram que o advogado se tinha ausentado para assistir a uma reunião algures no outro extremo da cidade. Valdir tinha um telefone celular. Por que razão é que ainda não teria ligado a Josh?

Entretanto, um dos estagiários entregou-lhe um sumário de duas páginas sobre a febre de dengue, informações que obtivera através da Internet. O mesmo estagiário disse-lhe que a sua presença era necessária no tribunal, perguntando ao doutor Stafford se desejava que fizesse mais alguma pesquisa de natureza médica. O doutor Stafford não se deu conta de como a situação era caricata.

Enquanto comia o seu pão, Josh lia o resumo. Fora todo escrito em maiúsculas, com um espaço duplo entre linhas e margens de dois centímetros e meio, ocupando cerca de página e meia. Um memorando com o timbre da firma Stafford que rezava: «A febre de dengue é uma infecção de natureza viral comum em todas as regiões tropicais de todo o mundo. É disseminada por um mosquito conhecido pelo nome de Aedes, que prefere morder durante o dia. O primeiro sintoma é o cansaço, seguido rapidamente por graves dores de cabeça por detrás dos olhos, uma febre moderada que, ao fim de pouco tempo, se transforma num estado febril intenso, acompanhado de suores frios, náuseas e vómitos. À medida que a febre sobe, os músculos da barriga das pernas e das costas começam a doer. Esta febre também é conhecida pela designação de «febre que quebra ossos» devido às dores violentas que afectam a massa muscular e as articulações. Depois de todos os outros sintomas se terem manifestado, começa a surgir uma erupção cutânea. É possível que a febre desapareça durante mais ou menos um dia, mas habitualmente volta a sentir-se com uma intensidade redobrada. Depois de aproximadamente uma semana, a infecção é debelada e o perigo desaparece. Não existe qualquer vacina ou tratamento. É necessário um mês de repouso e muitos líquidos para que o doente se restabeleça.

«Isto nos casos mais benignos. A febre de dengue pode progredir até à fase de febre de dengue hemorrágica, ou síndroma de choque dengue, estados clínicos que por vezes podem ser fatais, especialmente no caso de crianças.»

Depois desta leitura, Josh estava preparado para enviar o avião a jacto do falecido senhor Phelan rumo a Corumbá, com a finalidade de trazer Nate de regresso aos Estados Unidos. A bordo seguiriam um médico e uma enfermeira, assim como qualquer equipamento clínico que pudesse vir a ser necessário.

- É o doutor Valdir - anunciou entretanto uma secretária através do intercomunicador. Josh não aceitava quaisquer outros telefonemas.

O brasileiro estava no hospital.

- Acabei de visitar o doutor O' Riley - informou ele numa voz lenta, articulando as palavras com clareza. - Ele está bem, embora não esteja muito consciente.

- Consegue falar? - perguntou Josh.

- Não. De momento, não. Estão a ser-lhe ministrados medicamentos para lhe aliviar as dores.

- Ele está a ser tratado por um bom médico?

- O melhor. Um médico que é meu amigo. Neste preciso momento, encontra-se junto de Nate.

- Pergunte-lhe quando é que o doutor O'Riley estará em condições de poder viajar para os Estados Unidos. Enviarei para Corumbá um jacto particular e um médico.

Josh começou a ouvir um diálogo em plano de fundo.

- Isso não será possível nos tempos mais próximos - informou Valdir. - Quando tiver alta do hospital, ele vai precisar de se manter em repouso.

- Quando é que ele sairá do hospital? Outra conversa de fundo.

- Neste momento não lhe posso dizer com exactidão.

Josh abanou a cabeça e deitou o que restava do seu pão ázimo para o cesto do lixo.

- Por acaso já conseguiu falar com o doutor O'Riley? - perguntou Josh a Valdir numa voz que era mais um rosnado do que outra coisa.

- Não. Acho que ele continua a dormir.

- Ouça o que lhe digo, doutor Valdir, é da maior importância que eu fale com ele logo que possível, de acordo?

- Estou a compreender. Mas tem de ser paciente.

- Eu não sou um homem paciente - retrucou Josh.

- Compreendo a sua posição, mas tem de tentar ser paciente.

- Telefone-me hoje à tarde.

Josh desligou o telefone batendo com o auscultador no descanso, após o que começou a andar de um lado para o outro. Enviar Nate ao Pantanal, onde depararia com todos os perigos inerentes aos trópicos, fora uma decisão insensata, tendo em conta que era um homem frágil e instável. A conveniência fora o motivo impulsionador. Enviá-lo para longe durante mais ou menos duas semanas, mantendo-o ocupado noutra parte do globo enquanto a firma tentava resolver a encrenca em que ele se metera. Na firma de Josh existiam quatro sócios de segundo plano além de Nate, os quais haviam sido criteriosamente seleccionados por Josh, tendo este assumido o papel de mentor junto deles, cujas opiniões levava em consideração em alguns assuntos que se prendiam com a gestão da firma. Tip era um deles, sendo a única voz que se erguia em defesa de Nate. Os outros três queriam que ele se desvinculasse da firma de advocacia.

A secretária de Nate fora destacada para trabalhar com outro advogado. Ultimamente, o gabinete de Nate fora ocupado por um associado em ascensão, dizendo-se que ali encontrara o seu nicho.

Na hipótese de a febre de dengue não acabar com o pobre Nate, as autoridades fiscais estariam à sua espera.

 

O recipiente que continha a solução intravenosa esvaziou-se lentamente a meio do dia, apesar de ninguém se ter dado ao incómodo de o verificar. Várias horas mais tarde, Nate despertou. Sentia a cabeça leve e em paz, sem febre nenhuma. Tinha o corpo rígido, mas não transpirava. Apercebeu-se da gaze pesada que lhe cobria os olhos, apalpando o adesivo que a prendia e, depois de alguma reflexão, decidiu dar uma olhadela ao que se passava em seu redor. Constatou que recebia a solução intravenosa através do braço esquerdo, e com a mão direita começou a retirar o adesivo que mantinha a gaze no seu lugar. Apercebia-se do som de vozes de pessoas na sala contígua e de passos sobre um chão duro. Ao fundo do corredor também deu conta do movimento de pessoas. Mais próximo, ouviu alguém que gemia numa voz baixa e constante de onde transparecia sofrimento.

Com lentidão, continuou a retirar o adesivo dos cabelos e da pele, amaldiçoando a pessoa que o colara com tanto afinco. Afastou a compressa de gaze para o lado; ficou suspensa da orelha esquerda. A primeira imagem que viu foi de tinta a lascar, uma tonalidade indefinida de um amarelo-esmaecido na parede acima da sua linha de visão. As luzes estavam apagadas, os raios solares filtravam-se através de uma janela. A pintura do tecto também apresentava fissuras, fendas largas e negras encobertas por teias de aranha e poeira. Do centro do tecto estava suspensa uma ventoinha pouco estável, que oscilava no seu movimento rotativo.

A atenção de Nate foi despertada por dois pés fora do lençol, dois pés velhos e cobertos de cicatrizes, onde se viam camadas de ferimentos e calosidades que se estendiam da ponta dos dedos às solas; quando soergueu ligeiramente a cabeça, Nate constatou que pertenciam a um homem pequeno e encarquilhado, cuja cama quase tocava na sua. Dava a impressão de estar morto.

Os gemidos vinham da parede perto da janela. O pobre do fulano era tão pequeno e engelhado como o outro. Permanecia sentado a meio da cama, com o corpo dobrado e enlaçando com os braços as pernas flectidas, formando uma bola enquanto sofria da sua enfermidade mergulhado numa espécie de transe.

O cheiro que pairava na enfermaria era de urina cediça, excrementos humanos e substâncias anti-sépticas com um odor intenso. Ao fundo do corredor ouviam-se os risos das enfermeiras. Todas as paredes tinham a pintura a lascar. Além da cama de Nate havia mais cinco; todas tinham rodízios, tendo sido colocadas ao acaso, sem um mínimo esforço de imprimir um pouco de ordem à enfermaria.

O seu terceiro companheiro de enfermaria encontrava-se deitado perto da porta. Estava nu, à excepção de uma fralda para incontinentes. Tinha o corpo coberto por chagas em carne viva. Também dava a impressão de já ter morrido; Nate esperava sinceramente que fosse esse o caso. Para bem do próprio doente.

Não havia quaisquer botões que pudesse premir, nenhum cordão de emergência ou intercomunicador, nenhuma maneira de pedir ajuda, salvo começar a gritar, o que poderia despertar os mortos. Era possível que aquelas criaturas inanimadas se erguessem desejando visitá-lo.

Nate desejava desatar a fugir dali, rodar os pés para fora da cama, colocá-los no chão, arrancar o tubo intravenoso do braço e correr para a liberdade.

Preferia arriscar-se nas ruas. Com certeza que lá fora não existiriam tantas doenças como dentro daquele hospital. Qualquer lugar seria preferível àquela enfermaria de leprosos.

Contudo, sentia os pés como se fossem tijolos. Nate reuniu todas as forças para os erguer, um de cada vez, mas pouco se elevaram.

Deixou cair a cabeça sobre a almofada, fechou os olhos e pensou em chorar. «Estou num hospital de um país do terceiro mundo», repetiu vezes sem conta, falando consigo próprio. «Saí de Walnut Hill, um hospital cuja diária custava mil dólares, com botões para tudo e mais alguma coisa, chão alcatifado, duche e terapeutas prontos a acorrerem sempre que os chamava.»

O homem com o corpo coberto de chagas gemeu e Nate deixou-se cair ainda mais em cima do colchão. Então, com cuidados extremos, agarrou na ligadura de gaze e voltou a colocá-la sobre os olhos, prendendo-a com a fita adesiva, tal como estivera anteriormente, só que desta feita fixou-a melhor.

 

Snead chegou à reunião munido de um contrato elaborado por si, que preparara sem a ajuda de qualquer advogado. Hark começou a lê-lo, sendo forçado a admitir que não estava nada mal redigido. Tinha o título de Contrato de Serviços de Testemunha Especializada. Os peritos costumavam dar opiniões. Snead abordaria, essencialmente, factos concretos; não obstante, Hark não estava interessado no que o contrato dizia. Assinou-o, entregando a Snead um cheque visado no valor de meio milhão de dólares. Com gestos delicados, Snead aceitou o cheque, examinando todas as palavras nele inscritas, após o que o dobrou, guardando-o no bolso do casaco.

- Agora, por onde é que começamos? - perguntou com um sorriso.

Havia tantos assuntos que teriam de ser abordados. Os outros advogados dos Phelan haviam manifestado a sua vontade de estarem presentes. Hark só tinha tempo para uma introdução.

- Em termos gerais - começou a dizer -, quero que me descreva o estado de espírito do velho na manhã em que morreu.

Snead contorceu-se, mostrando-se agitado enquanto franzia o cenho, como se estivesse mergulhado em pensamentos. Efectivamente, ele desejava dizer o que fosse mais adequado. Sentia-se como se estivesse a arriscar quatro milhões e quinhentos mil dólares.

- Estava completamente fora de si - começou a dizer; as palavras pareciam ter ficado suspensas no ar enquanto ele esperava por um sinal de aprovação.

- E isso era invulgar? - perguntou Hark com um acenar de satisfação. Pensou que até ali estava tudo a correr pelo melhor.

- Não. Nos últimos dias de vida era muito raro ele estar lúcido.

- Quanto tempo é que passava junto dele?

- Excepto alguns intervalos, vinte e quatro horas por dia.

- Onde é que dormia?

- O meu quarto ficava ao fundo do corredor, mas ele tinha uma campainha para me chamar. Eu estava de serviço durante todo o dia e toda a noite. Por vezes, ele levantava-se a meio da noite para beber um sumo ou tomar um comprimido. Limitava-se a premir o botão para me chamar, e eu ia buscar o que quer que ele pretendesse.

- Além de si, vivia mais alguém com ele?

- Ninguém.

- Com quem mais é que ele passava o seu tempo?

- Talvez com a jovem Nicolette, a secretária. Ele tinha um fraquinho por ela.

- Ele teve relações sexuais com ela?

- Isso pode contribuir favoravelmente para o nosso caso? - perguntou Snead.

- Sim - confirmou Hark.

- Sendo assim, eles coisavam que nem coelhos.

Hark não conseguiu evitar um sorriso. A alegação de que Troy Phelan perseguia a sua secretária não espantaria ninguém.

Não fora necessário muito tempo para que os dois homens começassem a cantar pela mesma pauta.

- Ouça, senhor Snead, vou dizer-lhe do que é que precisamos. Necessitamos dos sofismas, das pequenas aberrações, dos lapsos, em que ficava absorto, das coisas estranhas que fazia e dizia, enfim, de tudo o que, no seu conjunto convença qualquer pessoa de que ele não estava bom do juízo. Você tem muito tempo. Sente-se e comece a escrever. Reúna as peças todas. Tenha uma pequena conversa com a Nicolette, certifique-se de que eles mantinham relações sexuais, ouça o que ela tem para lhe dizer.

- Ela dirá tudo o que quisermos ouvir.

- Esplêndido. Nesse caso, ensaie e assegure-se de que não existem discrepâncias que os outros advogados possam descobrir. As vossas versões têm de condizer.

- Não há ninguém que as possa contradizer.

- Ninguém? Nenhum motorista de limusina ou uma criada, uma ex-amante ou talvez uma outra secretária?

- Ele teve tudo isso, sem dúvida. Mas o certo é que ninguém vivia no décimo quarto andar além do próprio senhor Phelan e eu. Ele era um homem que vivia numa extrema solidão. Era bastante amalucado.

- Sendo assim, como é que ele foi capaz de se mostrar tão racional na presença dos três psiquiatras?

Snead meditou naquela pergunta por alguns instantes. O seu poder de ficção estava a traí-lo.

- Qual é que seria o seu palpite? - perguntou Snead.

- O meu palpite diz-me que o senhor Phelan se encontrava bem consciente de que esse exame mental seria difícil, uma vez que tinha consciência de que o seu estado mental começara a deteriorar-se, o que o levou a pedir-lhe que lhe preparasse listas com perguntas que previa seriam feitas pelos psiquiatras; assim, você e o senhor Phelan passaram essa manhã a rever questões tão simples como a data, que ele esquecia constantemente, o nome dos filhos, nomes esses que tinha, virtualmente, esquecido, que colégios é que frequentaram, com quem é que estavam casados, etc, em seguida abordaram questões relativas ao seu estado de saúde. Imagino que depois de você o ter ajudado a meter na cabeça esses aspectos básicos, terá passado pelo menos duas horas a estimular-lhe a memória com referência aos seus bens, à estrutura do Grupo Phelan, às empresas que possuía, às aquisições que efectuara, ao preço de encerramento de determinadas acções cotadas na bolsa. Cada vez com maior assiduidade, ele confiava em si para se manter a par da actualidade financeira, pelo que para si esses assuntos não eram uma matéria difícil. Foi um aborrecimento para o velho, mas você estava firmemente determinado a mantê-lo lúcido, antes de o ter levado na cadeira de rodas para a sala onde seria examinado. O que acabei de dizer parece-lhe familiar?

Aquilo agradava imensamente a Snead. Sentia-se maravilhado perante o dom que o advogado tinha para engendrar mentiras, o que fazia numa questão de segundos.

- Sim, sim, é isso mesmo! Foi assim que o senhor Phelan conseguiu

ludibriar os psiquiatras.

- Nesse caso, trabalhe mais essa história, senhor Snead. Quanto mais trabalhar as suas histórias, mais hipóteses terá de vir a ser uma boa testemunha. Os advogados da outra parte atirar-se-ão a si como gato a bofe. Atacarão a credibilidade do seu testemunho, apelidando-o de mentiroso; tem de estar bem preparado. Passe tudo a papel, dessa forma terá sempre um registo escrito das versões que apresentar.

- Gosto dessa ideia - retorquiu Snead.

- Datas, horas, lugares, incidentes, aberrações. Tudo o que lhe possa ocorrer, senhor Snead. O mesmo em relação a Nicolette. Obrigue-a a escrever tudo.

- Ela não sabe escrever muito bem.

- Ajude-a. Tudo dependerá de si, senhor Snead. Se quer receber o resto do dinheiro tem de o merecer.

- De quanto tempo é que disponho?

- Nós, eu próprio e os outros advogados, gostaríamos de filmá-lo com uma câmara de vídeo dentro de poucos dias. Ouviremos as suas histórias, preparando-o, fazendo-lhe várias perguntas para podermos verificar como é que se comporta. Tenho a certeza de que haveremos de querer alterar alguns aspectos. Tencionamos prepará-lo a pouco e pouco, e talvez façamos várias gravações em vídeo. Quando estiver tudo na perfeição, isso significará que você está pronto para apresentar o seu depoimento.

Snead saiu apressadamente do escritório. Queria depositar o dinheiro no banco e comprar um automóvel novo. A Nicolette também precisava de um carro novo.

 

O auxiliar de enfermagem do turno da noite, ao fazer a ronda aos doentes, reparou no recipiente vazio. As instruções escritas à mão no reverso indicavam que os fluidos não podiam ser interrompidos. Levou o saco ao dispensário, onde uma estudante de enfermagem, que trabalhava a tempo parcial, misturou as substâncias químicas, devolvendo o recipiente ao auxiliar de enfermagem. Corriam rumores pelo hospital sobre o doente norte-americano em que se dizia que ele era muito rico.

Durante o sono, Nate foi revigorado com medicamentos de que o seu organismo não necessitava.

Quando Jevy o visitou antes do pequeno-almoço, Nate estava semi-acordado, continuando com os olhos cobertos visto preferir manter-se na escuridão.

- O Welly veio visitar-te - disse Jevy num murmúrio.

A enfermeira de serviço ajudou Jevy a empurrar a cama para fora da enfermaria, levando-a pelo corredor até um pequeno pátio onde o Sol brilhava. A enfermeira accionou uma manivela para que a cabeceira da cama ficasse numa posição reclinada. Removeu os adesivos e a ligadura de gaze; Nate nem pestanejou. Vagarosamente, começou a abrir os olhos, tentando focar a visão.

- O inchaço diminuiu - disse Jevy, que se encontrava apenas a alguns centímetros do doente.

- Olá, Nate - saudou Welly. Colocara-se do outro lado da cama. A enfermeira deixou-os sozinhos.

- Olá, Welly - disse Nate numa voz pastosa, profunda e arrastada. Sentia-se zonzo, mas feliz. A sensação de estar drogado era-lhe familiar.

- A febre também desapareceu - acrescentou Jevy depois de lhe ter tocado na testa. Os dois brasileiros trocaram sorrisos, aliviados por não terem morto o americano durante a incursão por terras do Pantanal.

- O que é que aconteceu? - perguntou Nate dirigindo-se a Welly, fazendo um esforço para imprimir coerência às suas palavras, para não dar a impressão de que estava embriagado. Jevy traduziu a pergunta em português. Imediatamente Welly se mostrou muito animado, iniciando uma longa narrativa em que descrevia o temporal e o naufrágio do Santa Loura. De trinta em trinta segundos, Jevy interrompia-o para poder fazer a tradução do que ele acabara de dizer. Nate ouvia, tentando manter os olhos abertos, mas passava por breves períodos de inconsciência.

Valdir encontrou-os no pátio. Saudou Nate calorosamente, sentindo grande satisfação por ver o doente sentado na cama, com uma aparência muito melhor. Sacou de um telemóvel que tinha no bolso.

- Tem de falar com o doutor Stafford - disse ele enquanto marcava os números. - Ele está ansioso por saber qual o seu estado de saúde.

- Não tenha a certeza de que... - Nate interrompeu-se sentindo a cabeça a andar à roda.

- Tome, endireite-se, fale com o doutor Stafford - insistiu Valdir passando-lhe o telefone para a mão e ajeitando a almofada. Nate agarrou no telemóvel.

- Está lá - disse ele.

- Nate! - ouviu do outro lado da linha. - És tu?!

- Josh.

- Nate, diz-me que não vais morrer. Por favor, diz-me que não.

- Não tenho a certeza - redarguiu Nate.

Com gestos suaves, Valdir empurrou o telefone, colocando-o mais perto da cabeça de Nate, ajudando-o a segurá-lo.

- Fale mais alto - sussurrou.

Jevy e Welly retrocederam alguns passos.

- Nate, conseguiste encontrar Rachel Lane? - gritou Josh junto do bocal do aparelho.

Nate tentou organizar as ideias. Franziu o sobrolho esforçando-se para se concentrar.

- Não - respondeu pouco depois.

- O quê?

- O nome dela não é Rachel Lane.

- Que raio de nome é que ela tem?

Nate reflectiu por uns instantes, mas foi vencido pela fadiga. Deixou o corpo descair um pouco, continuando a esforçar-se por se recordar do nome. Talvez ela nunca tivesse chegado a dizer-lhe o apelido.

- Não sei - tartamudeou por entre uns lábios que mal se mexiam. Valdir chegou o telemóvel ainda mais perto do ouvido do doente.

- Nate, fala comigo! Encontraste a mulher que nos interessa?

- Sim, encontrei. Por aqui está tudo a correr bem, Josh. Acalma-te.

- E a respeito da mulher?

- É encantadora.

Josh hesitou por breves instantes, mas a verdade é que não podia perder tempo.

- É muito agradável ouvir isso, Nate. Ela assinou os documentos?

- Não sou capaz de me recordar do nome dela.

- Assinou os papéis ou não?

Fez-se uma pausa que pareceu interminável. O queixo de Nate descaiu-lhe para o peito, dando a impressão de que dormitava.

Valdir tocou-lhe no braço tentando mover-lhe a cabeça juntamente com o telefone celular.

- Eu gostei dela, verdadeiramente - balbuciou Nate de chofre. - Muitíssimo.

- Não estás pedrado, pois não, Nate? Eles deram-te analgésicos, não é verdade?

- Isso mesmo - confirmou Nate.

- Ouve uma coisa, Nate. Quando tiveres as ideias mais claras telefona-me, de acordo?

- Não tenho nenhum telefone.

- Serve-te do de Valdir. Por favor, Nate, não te esqueças de me telefonar. O interpelado acenou com a cabeça e fechou os olhos.

- Pedi-lhe que casasse comigo - acrescentou Nate ao telefone antes de o queixo lhe pender pela última vez.

Valdir agarrou no telemóvel dirigindo-se para um canto do pátio. Diligenciou por descrever o estado clínico de Nate.

- Parece-lhe que há necessidade de eu me deslocar até aí? - gritou Josh pela terceira ou quarta vez.

- Isso não é necessário. Por favor, seja paciente.

- Estou farto de o ouvir dizer-me para ter paciência.

- Eu compreendo como é que se sente.

- Ponha-o bom, Valdir.

- Ele está óptimo.

- Não, não está. Telefone-me mais tarde.

 

Tip Durban foi dar com Josh de pé junto da janela do seu gabinete, fitando o amontoado de edifícios que constituíam a paisagem defronte de si. Tip fechou a porta e sentou-se.

- O que é que ele disse? - perguntou.

Josh continuava a olhar fixamente através da janela.

- Disse que a encontrou e que ela é encantadora, tendo-lhe pedido que casasse com ele. - Da sua voz não transparecia qualquer indício de bom humor.

Mesmo assim Tip achou que a situação era bastante divertida. Sempre que se tratava de mulheres, Nate não era muito esquisito, especialmente entre divórcios.

- Como é que ele está de saúde?

- Não sente dores porque o atulharam de analgésicos, está semi-consciente. Valdir disse que já não tem febre e que está com muito melhor aspecto.

- Isso quer dizer que não vai morrer?

- Ao que tudo indica, assim é. Tip começou a rir-se à socapa.

- O nosso rapaz é assim mesmo. Nate nunca conheceu um rabo-de-saias de que não gostasse.

Quando Josh se voltou para Tip exibia uma expressão bem-humorada.

- Isto é uma verdadeira maravilha! - comentou. - Nate está falido. Ela só tem quarenta e dois anos e, muito provavelmente, há muitos anos que não põe a vista em cima de um homem de raça branca.

- Ainda que ela fosse feia como o pecado, Nate não se importaria com isso. Acontece que ela é a mulher mais rica em todo o mundo.

- Agora que penso melhor sobre o assunto, isso não me deixa muito surpreendido. Eu estava convencido de que lhe estava a fazer um favor, enviando-o nessa aventura. Jamais me passou pela cabeça que ele tentasse seduzir uma missionária.

- Achas que ele se pôs nela? - perguntou Tip.

- Quem é que poderá saber o que os dois fizeram na selva...

- Duvido muito - retrucou Tip depois de ter reflectido melhor no assunto. - Conhecemos Nate, mas não a conhecemos. São precisos dois.

Josh sentou-se na extremidade da sua mesa de trabalho, bem-humorado, sorrindo com os olhos postos no soalho.

- Tens razão. Não posso ter a certeza de que ela se tenha sentido atraída por Nate. Ele tem muito que se lhe diga.

- Ela assinou os papéis?

- Não chegámos a abordar essa questão. Estou seguro de que assinou, caso contrário ele não se teria vindo embora.

- Quando é que ele tenciona regressar? - perguntou Tip.

- Logo que esteja em condições de poder viajar.

- Não estejas tão seguro disso. Por onze mil milhões de dólares, eu próprio era capaz de me deixar ficar por lá durante mais algum tempo.

 

O médico encontrou o seu paciente a ressonar à sombra, no pátio; permanecia sentado em cima da cama, com a boca aberta e com a gaze que fora removida pendendo-lhe de uma das frontes. Perto dele, o amigo do rio fazia uma sesta no chão. Examinou o recipiente do fluido intravenoso e interrompeu o fluxo. Tocou na testa de Nate, constatando que ele não tinha febre.

- Senhor O'Riley - chamou em voz alta batendo ao de leve no ombro do doente. Jevy levantou-se de um salto. O médico não sabia falar inglês.

Este queria que Nate voltasse para a enfermaria, mas quando este desejo foi traduzido por Jevy, o paciente não recebeu o pedido com muito agrado. Nate implorou a Jevy que, por seu turno, suplicou ao médico. Jevy tinha visto os outros doentes, as chagas abertas e as sezões que afligiam os homens moribundos não muito longe dali, mesmo ao fundo do corredor, prometendo ao médico que permaneceria ali, sentado à sombra, junto do amigo até ao anoitecer. O médico acabou por ceder. Na realidade, não se interessava de uma maneira ou de outra.

Do outro lado do pequeno pátio havia uma enfermaria separada, pouco espaçosa, com barras grossas fixas no cimento do pavimento. De vez em quando aparecia um doente que ficava a olhar para o pátio através das grades. Não podiam escapar-se. Ao fim da manhã, surgiu um paciente que gritava, sentindo-se ofendido com a presença de Nate e de Jevy no outro extremo. Tinha uma pele escura coberta de malhas, com uns cabelos avermelhados e desalinhados; tinha uma expressão que não escondia a loucura de que sofria.

Enclavinhou os dedos em redor de duas grades, colocando o rosto entre elas e começou a berrar. A sua voz era esganiçada, ecoando por todo o pátio e estendendo-se aos corredores.

- O que é que ele está a bramar? - perguntou Nate. Os gritos do lunático sobressaltaram-no, ajudando-o a aclarar as ideias.

- Não consigo compreender uma só palavra. Ele não regula bem da cabeça.

- Eles internaram-me no mesmo hospital em que estão os doidos?

- Sim. Lamento muito. A cidade é pequena.

A berraria intensificou-se ainda mais. Pouco depois, surgiu uma enfermeira do lado de fora das grades, onde estava a salvo, que gritou ao homem ordenando-lhe que se calasse. Ele respondeu-lhe com uma linguagem que fez com que ela se pusesse em debandada. Em seguida, o louco voltou a concentrar-se em Jevy e Nate. Apertou tanto as grades que o nó dos dedos ficaram esbranquiçados, começando a saltar enquanto continuava a gritar.

- Pobre tipo - comentou Nate.

Os berros deram lugar a uma sucessão de lamúrias; alguns minutos depois daquela algazarra ter começado, apareceu um enfermeiro por detrás do doente que tentou afastá-lo das barras. Mas o homem não queria ir, o que deu origem a uma pequena escaramuça. Dado que tinha testemunhas, o enfermeiro mostrava-se firme mas cauteloso. No entanto, as mãos do paciente pareciam estar coladas à volta das barras, sendo quase impossível remover-lhe os dedos. Os lamentos transformaram-se em guinchos; o enfermeiro começou a puxar o homem pelas costas.

Finalmente, o enfermeiro desistiu, desaparecendo dali. O louco baixou as calças começando a urinar através das grades, rindo-se estrondosamente ao mesmo tempo que orientava o jacto de urina na direcção de Nate e de Jevy, embora estes se encontrassem fora do seu alcance. Enquanto as mãos estavam fora das grades, o homem foi atacado por detrás pelo enfermeiro que surgiu inesperadamente, firmando-se com toda a força nos braços, no pescoço e na cabeça do doente, arrastando-o dali para fora. Uma vez fora de vista, os gritos cessaram de imediato.

- Jevy, tens de me levar daqui para fora - disse Nate depois daquele drama diário ter chegado ao fim, dando lugar, uma vez mais, à quietude no pátio.

- O que é que queres dizer com isso?

- Leva-me daqui. Estou a sentir-me muito bem. Já não tenho febre e sinto que estou a recuperar as forças. Vamos embora.

- Não podes sair do hospital até que o médico te dê alta. Além de que ainda tens isso - acrescentou apontando para o tubo intravenoso no braço esquerdo de Nate.

- Isto não é nada - retorquiu Nate enquanto retirava rapidamente a agulha do braço, arrancando o tubo por onde recebia a solução intravenosa. - Descobre algumas roupas que eu possa vestir, Jevy. Vou dar alta a mim mesmo.

- Tu não conheces a força da febre de dengue. O meu pai teve essa doença.

- Já passou, sinto que sim.

- Não, ainda não estás totalmente curado. A febre ainda há-de voltar e dessa vez será pior do que antes. Muito pior.

- Não acredito nisso. Leva-me para um hotel, Jevy, por favor. Ficarei muito bem instalado num hotel. Pago-te para que fiques comigo e, caso eu venha a ter febre de novo, poderás dar-me comprimidos. Por favor, Jevy.

Este mantinha-se aos pés da cama. Olhou em redor como se houvesse alguém que pudesse compreender a conversa que travavam em inglês.

- Não sei... - redarguiu, hesitante. Feitas as contas, aquela ideia não lhe parecia ser má de todo.

- Pago-te duzentos dólares para me arranjares umas roupas e para me levares a um hotel. Dou-te cinquenta dólares por dia para me vigiares até estar completamente restabelecido - acrescentou Nate.

- Isto não tem nada a ver com dinheiro, Nate. Eu sou teu amigo.

- Também sou teu amigo, Jevy. E os amigos costumam ajudar-se uns aos outros. Não posso voltar àquela enfermaria. Tu viste aquela pobre gente tão doente nas outras camas. Estão todos a apodrecer, todos a morrer deitados no meio do mijo. Só cheira a dejectos humanos. O pessoal de enfermagem não se interessa com o bem-estar dos doentes. Os médicos não examinam os acamados. O asilo dos doidos é ali. Por favor, Jevy, leva-me daqui para fora. Estou pronto a pagar-te bom dinheiro.

- O teu dinheiro afundou-se juntamente com o Santa Loura - retorquiu Jevy.

Nate sentiu-se enregelar ao ouvir aquela observação. O Santa Loura nem sequer lhe passara pelo pensamento, e tudo o que lhe pertencia - roupas, dinheiro, passaporte e a pasta com todas as engenhocas electrónicas e os documentos que Josh lhe entregara. Desde que deixara Rachel que tinha tido muito poucos momentos de lucidez, resumindo-se estes a uns escassos intervalos em que pensara com coerência acerca de viver e morrer. Durante esse período, não lhe haviam ocorrido à mente coisas tangíveis ou pertences.

- Tenho meios de poder arranjar bastante dinheiro, Jevy. Posso transferi-lo de uma conta nos Estados Unidos. Por favor, não me negues o teu auxílio.

Jevy sabia que a febre de dengue só muito raramente é que era uma doença fatal. O ataque de que Nate fora acometido parecia estar dominado, embora fosse mais do que certo que a febre voltaria a acometê-lo. Ninguém podia censurá-lo por desejar fugir daquele hospital.

- De acordo - acedeu Jevy por fim voltando a olhar à sua volta. Não avistou ninguém por perto. - Não me vou demorar muito, apenas alguns minutos.

Nate fechou os olhos ponderando sobre a falta do passaporte. Para além de que não tinha dinheiro, nem um cêntimo. Também perdera todas as suas roupas, até mesmo a escova de dentes. Não tinha o telefone-satélite, o telemóvel, nem sequer cartões-de-visita. Para já não mencionar que as coisas no seu país natal não estavam muito melhor. Das ruínas da falência pessoal, poderia esperar poder continuar a manter o automóvel que adquirira em sistema de leasing, as roupas e o mobiliário modesto, assim como o dinheiro reservado a saldar o que devia ao fisco. Nada mais. O pequeno apartamento que arrendara em Georgetown fora perdido enquanto estivera na clínica de desintoxicação. Quando regressasse aos Estados Unidos não teria lugar nenhum onde se pudesse instalar. Por assim dizer, não tinha quaisquer familiares. Os seus dois filhos mais velhos mantinham-se à distância, sem se preocuparem com o que pudesse acontecer ao pai. Por seu lado, os outros dois, que frequentavam a primeira fase do ensino secundário, filhos do segundo casamento, haviam sido levados pela mãe para bastante longe. Há seis meses que não os via, mal tendo pensado neles durante a quadra natalícia.

Aquando do seu quadragésimo aniversário, Nate ganhara um julgamento em que o réu fora condenado a pagar dez milhões de dólares pelo crime de negligência, um médico que falhara no diagnóstico de uma doença cancerígena. Tinha sido a causa mais importante de toda a sua carreira; decorridos dois anos, depois de o réu ter recorrido da sentença, a firma recebera mais de quatro milhões de dólares em honorários. Nesse mesmo ano, o bónus que Nate recebeu cifrou-se em um milhão e meio de dólares. Durante alguns meses vestiu a pele de um milionário, chegando mesmo a comprar uma casa nova. Comprou casacos de pele, diamantes, carros e viagens, fez alguns investimentos pouco avisados. Foi nessa altura que começou a sair com uma antiga colega de universidade que adorava cocaína, e a muralha começou a abrir fendas. Nessa altura, Nate teve uma recaída desastrosa que lhe valeu dois meses de internamento, em que esteve fechado a sete-chaves. A mulher do segundo casamento abandonou-o levando o dinheiro consigo, apesar de ter voltado por um curto período de tempo, sem o dinheiro.

Por uns tempos, fora milionário, mas naquele momento imaginava qual seria o seu aspecto físico visto do topo do telheiro que cobria o pátio - doente, sozinho, falido, tendo sido indiciado pelo tribunal, receoso de voltar ao seu país de origem, e aterrorizado pelas tentações que voltaria a encontrar quando regressasse.

Os esforços que empreendera para encontrar Rachel tinham mantido a sua mente ocupada. Aquela busca empolgara-o. Mas agora que tinha chegado ao fim, sentindo uma vez mais que estava de rastos, pensou em Sérgio, nos programas de desintoxicação, nos seus vícios e em todos os problemas que o aguardavam. As trevas pairavam de novo acima da sua cabeça.

Não podia passar o resto da vida a navegar em chalanas de um extremo ao outro do rio Paraguai, acompanhado de Jevy e Welly, mantendo-se afastado da bebida, das drogas e das mulheres, esquecido dos seus problemas com a lei. Era forçoso que regressasse. Uma vez mais, tinha de tocar ao som da batuta do maestro.

Um grito penetrante despertou Nate dos seus devaneios. O gritador de cabelos ruivos estava de volta.

Jevy fez rolar a cama por baixo de uma varanda, após o que começou a percorrer um corredor, dirigindo-se para a entrada principal do hospital. Parou junto do anuário onde os empregados da limpeza guardavam as suas coisas, ajudando o paciente a levantar-se da cama. Nate estava fraco e com tremuras, se bem que estivesse firmemente resolvido a escapar dali para fora. Pelo lado de dentro da porta do armário, com gestos bruscos, despiu a bata do hospital e vestiu um par de calções largueirões de jogar futebol, uma camisola de algodão de manga curta e calçou as sandálias de borracha de enfiar o dedo, na cabeça pôs um boné de ganga com pala e um par de óculos de Sol de plástico. Embora tivesse semelhanças, não se sentia minimamente brasileiro. Jevy gastara pouco dinheiro na aquisição do seu novo vestuário. Nate estava a ajustar o boné quando desmaiou.

Jevy ouviu-o tombar contra a porta do anuário que abriu rapidamente, deparando com Nate, que tinha caído desamparado, em cima de um amontoado de baldes e esfregonas que faziam uma barulheira enorme. Agarrou-o por debaixo dos braços e arrastou-o de volta à cama. Colocou-o sobre o colchão, cobrindo Nate com um lençol.

- O que é que aconteceu? - perguntou este abrindo os olhos.

- Perdeste os sentidos - replicou Jevy. A cama deslocava-se; Jevy seguia atrás dele. Passaram por duas enfermeiras que pareceram não ter reparado nos dois homens.

- Esta ideia não é muito boa - disse Jevy.

- Continua a andar.

Pararam perto do átrio, Nate arrastou-se para fora da cama, sentiu mais tonturas e começou a caminhar. Jevy colocou um braço pesado sobre os ombros do amigo, agarrando-o pelos bíceps para que ele não perdesse o equilíbrio.

- Vai com calma - repetia Jevy. - Devagar se vai ao longe.

Os funcionários que tratavam das admissões hospitalares nem olharam para eles, o mesmo acontecendo em relação aos doentes que tentavam ser admitidos. Dos enfermeiros e auxiliares de enfermagem, que fumavam nos degraus da entrada principal, receberam um olhar de relance. O Sol estonteou Nate, que se firmou mais em Jevy. Atravessaram a rua, dirigindo-se ao local onde Jevy estacionara o seu maciço Ford.

Quando chegaram ao primeiro cruzamento, foi por um triz que escaparam à morte.

- Importas-te de conduzir mais devagar, por favor - pediu Nate com alguma brusquidão. Estava todo transpirado e sentia o estômago às voltas.

- Desculpa - retorquiu Jevy; a camioneta abrandou acentuadamente de velocidade.

Servindo-se do seu encanto, ao que aliou a promessa de um pagamento nos dias mais próximos, Jevy conseguiu persuadir uma jovem recepcionista do hotel Palace a alugar-lhes um quarto duplo.

- O meu amigo está doente - segredou-lhe ele acenando na direcção de Nate, que se encontrava inquestionavelmente enfermo. Jevy não queria que aquela bonita rapariga ficasse com a impressão errada. Ao fim e ao cabo, nenhum deles trazia bagagem.

Assim que chegaram ao quarto, Nate deixou-se cair em cima da cama. A pequena escapadela tinha-lhe esgotado as forças, deixando-o exausto. Jevy sintonizou um canal televisivo que transmitia um jogo de futebol em diferido, mas cinco minutos depois já estava farto de ver o jogo. Saiu do quarto com o fito de continuar a namoriscar a recepcionista.

Nate tentou por duas vezes contactar uma telefonista do serviço telefónico internacional. Tinha uma vaga recordação de ter ouvido a voz de Josh ao telefone, o que lhe dizia que essa conversa deveria ter continuidade. À segunda tentativa ficou com os ouvidos cheios de português. Quando tentou fazer-se entender em inglês, pensou ter apreendido as palavras «cartão telefónico». Desligou e adormeceu.

O médico ligou para Valdir. Este descobriu a camioneta de caixa aberta de Jevy estacionada no lado de fora da rua onde se situava o hotel Palace, deparando com o próprio Jevy dentro da piscina, bebendo uma cerveja. Valdir agachou-se à beira da piscina.

- Onde é que está o doutor O'Riley? - perguntou ele sem tentar ocultar a irritação que sentia.

- Lá em cima, deitado no quarto - respondeu Jevy bebendo outro gole de cerveja.

- Por que motivo é que ele veio para aqui?

- Porque quis deixar o hospital. É capaz de o censurar?

A única vez que Valdir fora submetido a uma intervenção cirúrgica, esta tivera lugar em Campo Grande, cidade que ficava a quatro horas de distância. Ninguém que tivesse dinheiro estaria na disposição de se sujeitar a um internamento no hospital de Corumbá.

- Como é que ele se sente?

- Acho que está óptimo.

- Fique de olho nele - disse o advogado.

- Eu já não trabalho para si, doutor Valdir.

- Sim, mas ainda temos a questão do barco..

- Não posso trazê-lo à superfície do rio. Não fui eu quem o afundou. O naufrágio foi provocado por um temporal. Dadas as circunstâncias, o que é que pretende que eu faça?

- Quero que vigie o doutor O'Riley.

- Ele precisa de dinheiro. Pode pedir que lhe seja feita uma transferência bancária?

- Suponho que sim.

- E também precisa de um novo passaporte. Perdeu tudo quando o barco se afundou.

- Não o perca de vista. Tratarei de todos os pormenores.

O estado febril regressou de mansinho noite adentro, aquecendo-lhe as faces enquanto dormia, instalando-se calmamente enquanto se preparava para a devastação prestes a desencadear-se. O seu cartão-de-visita foi apresentado sob a forma de uma correnteza de gotas ínfimas de suor perfeitamente alinhada acima das sobrancelhas, ao que se seguiu a transpiração nos cabelos desalinhados sobre a almofada, alcançando o ponto de ebulição enquanto continuava adormecido, fervilhando, preparando-se para a erupção. Enviou tremores e pequenas vagas de arrepios que percorreram todo o corpo de Nate, mas ele sentia-se extremamente fatigado, além de que o seu organismo continuava a conter os resíduos de muitas substâncias químicas, o que lhe permitiu continuar adormecido. A pressão por detrás dos olhos começou a acumular-se, de modo a que quando ele os abriu só lhe apeteceu desatar a gritar. Todos os fluidos da sua boca tinham sido drenados para aí.

Finalmente, Nate começou a gemer. Sentiu o impacte violento de um martelo pneumático entre as frontes. Quando abriu as pálpebras, a morte estava à sua espera. Encontrava-se deitado num charco de suor, sentia as faces em chama e os cotovelos e joelhos dobrados pelas dores.

- Jevy... - chamou num sussurro. - Jevy!

Jevy ligou o interruptor do candeeiro da mesa-de-cabeceira entre as duas camas e Nate recomeçou a gemer ainda mais alto.

- Desliga essa luz! - disse ele.

Jevy correu imediatamente para a casa de banho, onde ligou uma fonte de luz mais indirecta. Preparando-se para aquela situação adversa, tomara a precaução de comprar água engarrafada, gelo, aspirinas e analgésicos de venda livre nas farmácias, assim como um termómetro. Estava convencido de estar preparado para o que desse e viesse.

Decorreu uma hora em que Jevy contou todos os minutos. A febre subiu para trinta e nove graus centígrados; os arrepios vinham em vagas de tamanha violência que agitavam a cama que batia contra o soalho. Quando Nate não tremia, Jevy enfiava-lhe comprimidos pela boca dentro que o doente engolia com a ajuda de uns goles de água. Humedecia-lhe as faces com toalhas molhadas. Nate sofria em silêncio e, corajosamente, rilhava os dentes, de forma a que as dores fossem silenciosas. Estava firmemente decidido a sofrer aquelas febres no luxo relativo daquele pequeno quarto de hotel. De cada vez que sentia vontade de gritar, recordava-se do estuque rachado e dos cheiros do hospital.

Às quatro da madrugada, a febre subiu para cerca de trinta e nove e meio e Nate começou a perder a consciência. Os joelhos estavam tão flectidos que quase lhe tocavam no queixo. Mantinha os braços apertados à volta da barriga das pernas. Imprimia grande firmeza ao corpo. Mas pouco depois sentia um arrepio de frio que o distendia, enquanto o corpo era percorrido por um estremecimento.

A leitura que o termómetro indicava chegara aos quarenta e um graus centígrados, o que levou Jevy a aperceber-se de que, a qualquer momento, o seu amigo entraria em estado de choque. Finalmente, entrou em pânico não por causa da febre elevada, mas depois de ter visto o suor a gotejar dos lençóis da cama caindo no chão. O amigo já sofrera o suficiente. No hospital teria de haver uma medicação mais adequada.

Descobriu um empregado de limpeza do hotel a dormir no terceiro andar; unindo esforços, os dois homens conseguiram arrastar Nate até ao elevador, atravessaram o átrio deserto àquela hora e dirigiram-se para a camioneta. Às seis da manhã telefonou a Valdir que ainda dormia.

Depois de este ter dado largas a uma série de imprecações dirigidas a Jevy, concordou em chamar o médico.

 

O tratamento foi prescrito via telefone pelo médico que estava deitado. Mandou que enchessem o recipiente da solução intravenosa com uma grande quantidade de coisas boas, que espetassem a agulha no braço de Nate e que tentassem encontrar-lhe um quarto melhor do que a enfermaria. Os quartos particulares estavam todos ocupados, pelo que o pessoal de enfermagem se limitou a deixá-lo ficar no corredor da enfermaria dos homens, próximo de uma mesa atravancada de papéis a que chamavam o posto das enfermeiras. Do mal o menos, seria impossível que ignorassem a sua presença. Pediram a Jevy que saísse do hospital. Não havia nada que pudesse fazer ali, para além de esperar o desenrolar do estado clínico do doente.

A determinada altura, durante a azáfama das actividades matinais, um enfermeiro munido de uma tesoura aproximou-se de Nate. Começou a cortar os calções desportivos e a camisola de manga curta de algodão vermelho que adquirira recentemente, substituindo esse vestuário por uma bata amarela do hospital. Durante esse processo, Nate permaneceu todo nu durante cinco longos minutos, à vista de todos os que passavam pelo corredor. Ninguém reparou nele. O que para Nate era completamente indiferente. Os lençóis da cama foram mudados porque estavam encharcados em suor. Os trapos que haviam sido os calções e a camisola foram deitados para o lixo e, pela segunda vez, Nate O'Riley ficou sem roupas que fossem suas.

Sempre que estremecia de mais ou gemia num tom demasiado elevado, o médico, a enfermeira ou o auxiliar de enfermagem mais próximos aumentavam um pouco mais o fluxo da solução intravenosa. Em contrapartida, quando ressonava demasiado alto, aparecia alguém que reduzia o fluxo.

Uma morte por doença cancerígena abriu uma vaga. A cama de Nate foi levada para a enfermaria mais próxima, onde foi colocado entre um trabalhador que perdera um pé num acidente de trabalho e um homem que estava prestes a morrer por deficiência renal. O médico examinou-o duas vezes nesse dia. A febre oscilava entre os quarenta e os quarenta e dois graus centígrados. Ao fim da tarde, Valdir passou de fugida pelo hospital, mas Nate estava a dormir, pelo que não puderam conversar. Relatou os acontecimentos do dia ao doutor Stafford, que não se mostrou nada agradado.

- O médico diz que isto é normal - disse Valdir falando através do telefone celular no corredor do hospital. - O doutor O'Riley está a caminho da recuperação.

- Não permita que ele morra, Valdir - grunhiu Josh do outro lado da linha, nos Estados Unidos.

Estava a tratar da transferência bancária. Também pusera alguém a tratar de arranjar um novo passaporte.

Uma vez mais, o saco que continha a solução intravenosa ficou vazio sem que ninguém tivesse reparado. As horas foram passando e, gradualmente, a medicação deixou de fazer efeito. A meio da noite, escura como breu, não havia qualquer movimento nas outras três camas, quando por fim Nate conseguiu afastar as teias de aranha provenientes do seu estado de semi-consciência, mostrando alguns sinais de vida. Mal conseguia distinguir os contornos dos seus companheiros de enfermaria. A porta estava aberta, deixando entrar um pouco da luz que vinha do fundo do corredor. Não se ouviam quaisquer vozes nem o ruído abafado de passos.

Tocou na bata que usava - ensopada em suor - compreendendo que por baixo dela se encontrava, uma vez mais, todo nu. Esfregou os olhos inchados, tentando endireitar as pernas entorpecidas. Sentia a testa muito quente. Tinha sede e não era capaz de se recordar da última refeição que comera. Tentou não se mexer, com receio de despertar os que dormiam perto de si. Com certeza que dentro em pouco haveria um enfermeiro, ou enfermeira, que fosse àquela enfermaria.

Os lençóis estavam completamente molhados e, por conseguinte, quando voltou a sentir arrepios de frio, não tinha maneira de se manter aquecido. Todo o seu corpo estremecia e vibrava enquanto esfregava os braços e as pernas, com os dentes a baterem descontroladamente uns contra os outros. Depois de os arrepios terem passado, Nate tentou adormecer, conseguindo passar pelas brasas a intervalos durante o resto da noite, mas quando a escuridão da noite estava mais cerrada a febre subiu de novo. As frontes latejavam-lhe tanto que Nate começou a chorar. Enrolou a almofada à volta da cabeça apertando-a com tanta força quanta conseguiu reunir.

Na escuridão que reinava na enfermaria, entrou uma silhueta que foi de cama em cama, até que acabou por deter os seus passos junto do leito de Nate.

Ficou a observá-lo a debater-se, com o corpo violentamente agitado debaixo do lençol, soltando gemidos enfraquecidos que eram abafados pela almofada. Tocou-lhe suavemente num braço.

- Nate - segredou.

Em circunstâncias normais, ele ter-se-ia sobressaltado. Todavia, as alucinações tinham-se tornado num sintoma normal. Baixou a almofada até ao peito, tentando focar a figura.

- É a Rachel - disse ela num sussurro.

- Rachel...? - murmurou Nate sentindo dificuldade em respirar. Tentou sentar-se e depois experimentou abrir os olhos com a ajuda dos dedos. - Rachel?

- Estou aqui, Nate. Foi Deus que me enviou para o proteger.

Estendeu a mão na direcção do rosto dela, que a tomou nas suas. Beijou-lhe a palma. - Não vai morrer, Nate - acrescentou Rachel. - Deus tem outros planos para si.

Nate estava incapaz de dizer fosse o que fosse. Lentamente, os seus olhos ajustaram-se à escuridão, começando a distinguir os contornos da sua silhueta.

- É você - disse ele sem poder acreditar. Ou seria apenas outro dos seus sonhos?

Voltou a reclinar-se para trás, repousando a cabeça na almofada e relaxando o corpo, quando os músculos se descontraíram e as articulações começaram a soltar-se. Cerrou as pálpebras, mas não largou a mão de Rachel. As dores agudas que sentia por detrás dos olhos abrandaram. O calor abandonou-lhe as faces e a testa. As febres elevadas tinham minado todas as suas forças e Nate voltou a mergulhar num estado de semi-inconsciência, tendo-se apoderado de si um sono pesado que não era induzido pelas substâncias químicas, mas pela exaustão.

Começou a sonhar com anjos -jovens donzelas vestidas de branco que flutuavam entre as nuvens que pairavam acima da sua cabeça, que estavam ali com a missão de o proteger, entoando hinos em vozes segredadas que ele nunca ouvira, mas que ainda assim lhe pareciam familiares.

Deixou o hospital às doze horas do dia seguinte, munido das ordens que o seu médico lhe dera, acompanhado por Jevy e Valdir. Não havia vestígios de febre, nem tão-pouco qualquer erupção cutânea; Nate sentia-se dorido apenas nas articulações e músculos. Insistiu em que lhe dessem alta, com o que o médico concordou pressurosamente. Este sentia-se muito feliz por se ver livre daquele paciente.

A primeira paragem foi num restaurante onde comeu uma tigela cheia de arroz e um prato a transbordar de batatas cozidas. Evitou comer bifes e costeletas. Jevy não lhe seguiu o exemplo. Ambos continuavam com fome depois da aventura em que se tinham metido. Valdir bebia um café em pequenos goles, enquanto fumava os seus cigarros e observava os dois homens a comer.

No hospital, ninguém tinha dado pela entrada ou saída de Rachel. Nate confiara aquele segredo a Jevy, indagara da sua veracidade junto das enfermeiras e demais pessoal hospitalar. Depois do almoço, Jevy deixou-os e começou a percorrer a pé a baixa da cidade, à procura de Rachel. Foi até à margem do rio para falar com a tripulação que chegara no último barco de transporte de gado. Ela não viajara com eles. Os pescadores também não a tinham visto. Às primeiras impressões, ninguém tinha dado conta da chegada de uma mulher branca vinda do Pantanal.

Sozinho, no escritório de Valdir, Nate ligou o número de telefone do escritório de advogados Stafford, um número que teve algumas dificuldades em recordar. Foram chamar Josh que na altura se encontrava numa reunião.

- Fala comigo, Nate - disse ele. - Como é que te sentes?

- Já não tenho febre - respondeu Nate, balouçando-se no cadeirão de Valdir. - Sinto-me lindamente. Estou um pouco dorido e cansado, mas além disso estou bem.

- Pela tua voz pareces estar de boa saúde. Quero que regresses imediatamente.

- Dá-me mais uns dois dias.

- Vou enviar um avião a jacto até aí, Nate. Descolará ainda esta noite.

- Não. Não faças isso, Josh. Não é boa ideia. Regressarei aos Estados Unidos quando me apetecer.

- De acordo, Nate. Fala-me da mulher, Nate.

- Conseguimos encontrá-la. Ela é de facto a filha ilegítima de Troy Phelan e não mostra o mínimo interesse no dinheiro que herdou.

- Sendo assim, como é que conseguiste convencê-la a aceitá-lo?

- Josh, ninguém é capaz de convencer esta mulher a fazer seja o que for. Tentei e não cheguei a parte alguma, portanto, decidi parar.

- Deixa-te disso, Nate. Ninguém despreza uma quantia tão avultada de dinheiro como aquela de que estamos a falar. Com certeza que foste capaz de lhe incutir um pouco de bom senso.

- Nem de perto nem de longe, Josh. Ela é a pessoa mais feliz que alguma vez conheci, inteiramente contente com a perspectiva de passar o resto da sua vida a trabalhar entre a sua gente. É onde Deus quer que ela esteja.

- Mas apesar disso, ela assinou os papéis, não é verdade?

- Nem por sombras - replicou Nate.

Fez-se uma pausa muito demorada enquanto Josh absorvia o que acabara de ouvir.

- Deves estar a brincar - disse ele passado algum tempo, mal se ouvindo do outro lado da linha, no Brasil.

- Não. Tenho muita pena, chefe. Esforcei-me o mais que me foi possível para a convencer a, no mínimo dos mínimos, assinar os documentos, mas ela não cedeu nem um milímetro. Nunca há-de vir a assiná-los.

- Ela chegou a ler o testamento? - perguntou Josh.

- Leu, sim.

- E tu disseste-lhe que se tratava de onze mil milhões de dólares?

- Exactamente. Ela vive sozinha numa palhota com um telhado de colmo, sem água canalizada nem electricidade, come uma alimentação simples e usa roupas modestas, não dispõe de telefone ou de máquinas de fax, sem se mostrar nada incomodada com a falta das coisas de que eventualmente poderia necessitar. Vive na Idade da Pedra, Josh, precisamente onde deseja estar; esse dinheiro só traria alterações a esse modo de viver.

- É uma atitude incompreensível.

- Quando estive no povoado pensei a mesma coisa.

- É uma pessoa inteligente?

- É formada em medicina, Josh, para além de ter uma licenciatura de um seminário; fala cinco línguas.

- Com que então é médica?

- Sim, mas não tivemos oportunidade de abordar o assunto das litigações com origem na prática de medicina.

- Tu disseste que ela era encantadora.

- Ah disse? - retorquiu Nate, intrigado.

- Há uns dois dias, quando falámos ao telefone. Acho que estavas pedrado.

- Estava e ela é de facto encantadora.

- Portanto, gostas dela?

- Ficámos amigos. - Não servia de nada informar Josh de que ela estava em Corumbá. Nate albergava a esperança de conseguir encontrar Rachel com rapidez, e, enquanto ela estivesse no mundo civilizado, tentaria discutir o assunto da herança de Troy Phelan.

- Foi uma aventura e pêras - continuou Nate. - Para dizer o mínimo.

- Passei noites sem conseguir dormir preocupado por tua causa.

- Acalma-te. Continuo inteiro.

- Já transferi cinco mil dólares. É Valdir quem os tem.

- Obrigado, chefe - agradeceu Nate.

- Telefona-me amanhã.

Valdir convidou-o para jantar mas ele declinou o convite. Recebeu o dinheiro e saiu, dirigindo-se a pé para o hotel, sentindo-se de novo em liberdade ao percorrer as ruas de Corumbá. A primeira paragem que fez foi numa loja de vestuário, onde comprou roupa interior, calções de safari, algumas camisolas de algodão todas brancas e de manga curta, e um par de botas próprias para longas caminhadas. Depois de ter transportado todo o seu novo guarda-roupa ao longo de quatro quarteirões, até chegar ao hotel Palace, Nate sentiu-se exausto. Dormiu duas horas sem acordar.

Jevy não encontrou qualquer indício da presença de Rachel. Perscrutava minuciosamente a multidão que se deslocava pelas ruas movimentadas da cidade. Falou com as pessoas do rio que tão bem conhecia, sem que ninguém lhe pudesse dar qualquer informação da chegada da missionária. Percorreu o átrio de todos os hotéis da baixa, aproveitando a oportunidade para namoriscar com as recepcionistas. Ninguém tinha visto uma norte-americana de quarenta e dois anos que viajasse sozinha.

À medida que a tarde chegava ao fim, Jevy começava a duvidar da história que o amigo lhe confidenciara. A febre de dengue fazia com que as pessoas vissem coisas, que ouvissem vozes, fazendo com que se acreditasse em fantasmas, especialmente quando a noite já ia avançada. Malgrado aquelas dúvidas, não interrompeu as suas buscas.

Depois de ter despertado da sua sesta e de ter comido outra refeição, Nate também começou a percorrer as ruas sem destino certo. Caminhava numa passada lenta, acautelando o seu bem-estar, tendo o cuidado de tentar andar só pela sombra, constantemente acompanhado de uma garrafa de água. Descansou no cimo de uma pequena colina sobranceira ao rio, admirando a grandiosidade do Pantanal que se estendia à sua frente numa extensão de centenas de quilómetros.

A fadiga não lhe dava tréguas e, num passo incerto, regressou ao hotel, onde descansaria mais um pouco. Voltou a adormecer, tendo despertado com Jevy que batia à porta do quarto. Tinham combinado encontrar-se às sete horas para o jantar. Já passava das oito da noite e quando Jevy entrou no quarto começou imediatamente a procurar garrafas vazias. Não encontrou nenhuma.

Comeram galinha assada na esplanada de um café, ao ar livre. A noite era animada pelo som de música e pelas pessoas que passeavam a pé. Os casais com crianças compravam sorvetes, regressando tranquilamente a suas casas.

Os adolescentes deslocavam-se em grupo sem que, aparentemente, tivessem um destino predeterminado. Os bares estavam à cunha com pessoas nos passeios que chegavam às ruas. As mulheres e os homens jovens iam de um bar para o seguinte. A noite estava quente e as ruas eram seguras; ninguém se mostrava preocupado com a possibilidade de vir a ser roubado ou alvejado.

A uma mesa próxima, sentava-se um homem que bebia Brahma gelada directamente de uma garrafa de vidro castanho; Nate mantinha-se atento a todos os goles que o homem bebia.

Depois da sobremesa, Nate e Jevy despediram-se um do outro, combinando encontrar-se de manhã bem cedo para outro dia passado à procura de Rachel. Nate tomou uma direcção e Jevy a oposta. Sentia-se descansado e farto de camas.

A dois quarteirões do rio, as ruas estavam mais silenciosas. As lojas haviam encerrado; as casas mantinham-se às escuras; o movimento do trânsito era menos intenso. Diante de si, avistou as luzes de uma pequena capela. «É ali», disse ele quase em voz alta, «que a encontrarei.»

A porta da frente mantinha-se toda aberta para trás, o que permitia que Nate visse da rua várias filas de bancos corridos de madeira, o púlpito vazio, um mural que representava Cristo na cruz, e as costas de uma mão-cheia de crentes que se inclinavam para a frente, rezando e meditando. A música que vinha do órgão era uma suave melodia harmoniosa que o atraía ao interior da capela. Parou à entrada, contando cinco pessoas espalhadas pelos bancos; não viu duas que se sentavam uma ao pé da outra, tão-pouco avistou alguém que tivesse a mais pequena semelhança com Rachel. Abaixo do mural, o banco do organista estava desocupado. A música era transmitida através de um altifalante.

Nate podia esperar. Dispunha de todo o tempo que quisesse; era possível que ela ainda aparecesse. Num passo arrastado, encaminhou-se para a fila de bancos mais recuados, onde se sentou sozinho. Começou a olhar atentamente para a reprodução da crucificação. Os pregos que haviam perfurado as Suas mãos, a espada ao Seu lado, a agonia que transparecia da Sua face. Teriam eles realmente matado Cristo daquela maneira tão horrenda? A determinada altura da sua miserável vida secular, Nate tinha lido ou ouvido falar das histórias básicas que narravam a existência de Cristo: a imaculada concepção, daí a origem do Natal; o caminhar sobre as águas; talvez mais um ou dois milagres; teria Ele sido engolido pela baleia, ou teria sido outra personagem qualquer? E então, a traição de Judas; o julgamento perante Pilatos; a crucificação, daí a Páscoa, e, finalmente, a ascensão aos céus.

Sim, Nate possuía aqueles conhecimentos básicos. Talvez tivesse sido a sua mãe que lhe falara da vida de Jesus. Nenhuma das duas mulheres com quem casara tinha o hábito de ir à igreja, embora a número dois fosse católica, pelo que em anos alternados assistiam à Missa do Galo à meia-noite. Entraram mais três pessoas vindas da rua. Entretanto, uma porta lateral deu entrada a um homem jovem com uma viola que se dirigiu para o púlpito. Eram exactamente vinte e uma horas e trinta minutos. Dedilhou alguns acordes e começou a cantar; o seu rosto iluminava-se ao entoar as palavras de fé e devoção. Num banco mais à frente, houve uma mulher baixinha que começou a bater palmas ao ritmo da melodia, fazendo coro com o jovem.

Talvez aquela música atraísse Rachel. Era forçoso que ela sentisse um desejo enorme de orar numa igreja a sério, com chão de madeira e vitrais nas paredes, na companhia de gente toda vestida que lia Bíblias escritas numa linguagem actualizada. Com certeza que ela deveria visitar as igrejas sempre que vinha a Corumbá.

Depois de terminar a canção, o jovem iniciou a leitura das Escrituras, começando a ensinar religião. A maneira como se expressava em português era a mais articulada e lenta que Nate ouvia desde que iniciara a sua pequena aventura. Sentia-se mesmerizado por aqueles sons arrastados e suaves, proferidos numa cadência feita de serenidade. Apesar de não compreender uma única palavra, tentava repetir as frases. Pouco depois os seus pensamentos começaram a divagar.

O seu corpo purgara-se de febres e substâncias químicas. Estava bem alimentado, mantinha-se alerta e sentia-se descansado. Voltava a ser a mesma pessoa de antes da doença e isso, subitamente, causou-lhe uma sensação deprimente. O presente estava de volta, de mão dada com o futuro. Os fardos que deixara com Rachel tinham ido, uma vez mais, ao seu encontro; encontraram-no no interior daquela capela. Nate necessitava que ela se sentasse junto de si, que lhe tomasse a mão e que o ajudasse a rezar.

Odiava as suas fraquezas. Começou a enumerá-las, uma a uma, sentindo-se entristecido com a extensão daquela lista. Os demónios aguardavam que regressasse a casa - os bons amigos e os maus amigos, os lugares que costumava frequentar e os hábitos antigos, as pressões que já não tinha capacidade para suportar. A vida não poderia ser vivida com pessoas do género de Sérgio, ao preço de mil dólares por dia. A vida tão-pouco podia ser vivida na liberdade das ruas.

O jovem começara a rezar, mantendo os olhos fortemente cerrados e com os braços erguidos ao alto, agitando-os suavemente. Nate também fechou as pálpebras invocando o nome de Deus. O Senhor esperava.

Com as duas mãos, Nate agarrou-se às costas do banco defronte de si. Repetiu a lista, enumerando entredentes numa voz sussurrada todas as fraquezas, falhas, aflições e os males que o assolavam perfidamente. Confessou todas as suas lacunas. Num reconhecimento longo e glorioso do fracasso da sua vida, pôs a sua alma a nu perante Deus. Não ocultou nada. Afastou dos seus ombros o número suficiente de fardos para esmagarem três homens, e, quando finalmente terminou a sua confissão, tinha os olhos marejados de lágrimas.

- Peço perdão - murmurou ele ao Senhor. - Por favor, ajuda-me.

Com a mesma celeridade com que a febre abandonara o seu corpo, sentiu aquela bagagem incómoda a abandonar-lhe a alma. Com o toque sereno de uma mão, o seu passado tinha sido limpo. Soltou um profundo suspiro de alívio, embora sentisse a pulsação acelerada.

Voltou a ouvir o som da viola. Abriu os olhos e limpou as faces. Em vez de ver o homem jovem junto do púlpito, Nate avistou o rosto de Cristo, que mostrava uma expressão de agonia e sofrimento morrendo crucificado. A morrer por si na cruz.

Ouviu-se uma voz que chamava por Nate, uma voz que vinha do íntimo, uma voz que o guiava pela nave abaixo. Mas o convite era confuso. Sentia muitas emoções em conflito. De súbito, sentiu os olhos secos.

«Por que motivo é que estarei a chorar no interior abafado de uma pequena capela, ouvindo uma canção numa língua que não compreendo, numa cidade a que jamais voltarei?» As perguntas surgiam-lhe à mente em catadupas; as respostas eram evasivas.

Era extraordinário que Deus lhe perdoasse um número surpreendente de iniquidades, fazendo com que Nate sentisse, sem margem para dúvidas, que os fardos que carregava se tinham aligeirado. Embora fosse um passo bastante mais difícil esperar-se que ele se tornasse num crente.

Enquanto ouvia a música, começou a sentir-se desconcertado. Deus não poderia estar a chamá-lo a Si. Ao fim e ao cabo, ele era Nate O'Riley - um bêbedo, um viciado, um apaixonado por mulheres, um pai ausente, uma desgraça de marido, um advogado ganancioso, um homem que se furtava ao pagamento dos seus impostos. Aquela triste lista parecia não ter fim.

Nate sentia-se entontecido. A música acabou e o jovem preparou-se para entoar outra canção. Num passo apressado, Nate abandonou a capela. Ao dobrar uma esquina, lançou um rápido olhar por cima do ombro, não só na esperança de avistar Rachel, mas também para se certificar de que Deus não tinha enviado ninguém em sua perseguição.

Necessitava de alguém com quem pudesse desabafar. Sabia que ela se encontrava em Corumbá e desejou ardentemente conseguir encontrá-la.

 

O despachante é uma personagem integrante da vida no Brasil. Nenhum negócio, actividade bancária, firma de advocacia, gaipo médico, ou qualquer pessoa endinheirada poderia operar sem os serviços de um despachante. Ele é o facilitador por excelência. Num país onde a burocracia parece ter tentáculos, para além de ser extremamente antiquada, o despachante é o fulano que conhece todos os funcionários públicos da cidade, os que trabalham nos tribunais, os burocratas, os agentes alfandegários. É conhecedor do sistema, sabendo como é que se deve lubrificá-lo. No Brasil não se consegue obter nenhum papel ou documento oficial sem que se permaneça numa fila formada por muita gente, e o despachante é o fulano que se coloca nessa fila em nosso lugar. Por uma pequena quantia, ele está disposto a esperar durante oito horas para renovar a inspecção periódica do nosso automóvel, após o que afixa a vinheta no vidro do pára-brisas, enquanto a pessoa que o incumbiu dessa tarefa trabalha num escritório qualquer. Votará por nós, irá ao banco, embalará coisas, irá ao correio - a lista das tarefas é interminável.

Nenhum obstáculo de natureza burocrática é demasiado intimidante para este homem.

As firmas de despachantes exibem os seus nomes em placas, à semelhança do que fazem os médicos ou os advogados. Constam das páginas amarelas. Trata-se de uma função que não requer nenhuma especialização formal. Tudo aquilo de que a pessoa em questão necessita é de muita conversa, paciência e bastante descaramento.

O despachante cujos serviços Valdir utilizava em Corumbá conhecia um outro sediado em São Paulo, um homem de influência com contactos em esferas elevadas e, pelo montante de dois mil dólares, arranjaria um novo passaporte.

Jevy passou as manhãs seguintes junto do rio, ajudando um amigo que reparava a sua chalana. Observava tudo com muita atenção, sem perder pitada de todos os mexericos. Não ouviu uma só palavra a respeito da mulher. Ao meio-dia de sexta-feira estava firmemente convicto de que ela não tinha estado recentemente em Corumbá, pelo menos durante as duas últimas semanas. Jevy conhecia todos os pescadores, os pilotos das embarcações fluviais e os membros de todas as tripulações. E todos eles, sem excepção, adoravam conversar. Caso uma norte-americana, que vivesse entre os índios, chegasse de repente à cidade, eles teriam conhecimento dessa presença.

Nate prosseguiu com as suas buscas até ao fim da semana. Percorria as ruas, olhava atentamente as pessoas com quem se cruzava, inspeccionava o átrio de todos os hotéis e as esplanadas nos passeios dos cafés, observando todos os rostos, sem contudo avistar ninguém que se assemelhasse, ainda que remotamente, a Rachel.

Ao fim de um desses dias, passou pelo escritório de Valdir, onde foi buscar o seu novo passaporte. Despediram-se como se fossem amigos de longa data, fazendo promessas de que voltariam a encontrar-se dentro em pouco. Ambos sabiam de antemão que esse encontro nunca viria a concretizar-se. Às duas da tarde, Jevy conduziu-o ao aeroporto. Ficaram sentados na sala de embarque durante meia hora, observando os passageiros que desembarcavam de um único avião, após o que começou a ser preparado para uma nova viagem. Jevy desejava passar algum tempo nos Estados Unidos, necessitando que Nate o ajudasse aquando dessa estadia.

- Vou precisar de arranjar um emprego - disse ele. Nate ouvia-o com toda a simpatia, sem saber ao certo se ele próprio poderia contar com um emprego quando regressasse.

- Hei-de ver o que é que posso fazer - prometeu a Jevy. Conversaram acerca do Colorado e da região oeste, falaram de lugares

onde Nate nunca estivera. Jevy sentia-se apaixonado pelas regiões montanhosas, e depois de ter passado duas semanas no Pantanal, Nate compreendia bem essa paixão. Quando chegou a hora da partida, trocaram um abraço caloroso de despedida. Nate caminhou através do pavimento a escaldar até ao avião, levando todo o seu guarda-roupa num pequeno saco maleável.

O aparelho com um motor de turbina a hélice tinha capacidade para vinte passageiros, tendo feito duas escalas antes de aterrar em Campo Grande. Nesse aeroporto, os passageiros foram transferidos para um avião a jacto com destino a São Paulo. A senhora que ocupou o lugar ao seu lado pediu uma cerveja quando o carrinho das bebidas passou por eles.

Nate examinava a lata que se encontrava a menos de vinte e cinco centímetros de si. «Nunca mais», disse a si próprio. Fechou os olhos e pediu a Deus que lhe desse forças para resistir. Pediu que lhe trouxessem um café.

O voo com destino ao Aeroporto de Dulles descolou à meia-noite. Chegaria a D. C. às nove horas do dia seguinte. Procurar Rachel fizera com que Nate se tivesse ausentado dos Estados Unidos durante quase três semanas.

Não tinha a certeza do lugar onde deixara o carro estacionado. Não tinha casa onde pudesse viver, para além de não possuir os meios que lhe permitiriam arranjar uma habitação. Todavia, não se sentia preocupado. Josh haveria de tratar de todos esses pormenores.

Atravessando as nuvens, o avião desceu a uma altitude de quase três mil metros. Nate estava acordado e bebia um café, sentindo-se apavorado ao pensar nas ruas da sua cidade. As ruas eram brancas e frias. O solo encontrava-se coberto por um espesso manto de neve. Durante alguns minutos, enquanto se acercavam de Dulles, a paisagem era de uma beleza rara, mas foi então que Nate se recordou do quanto odiava o Inverno. Usava um par de calças de um tecido fino, não calçara meias mas uns ténis baratos, vestia uma camisola polo de marca falsificada, pela qual pagara seis dólares no aeroporto de São Paulo. Não usava casaco.

Naquela noite, pernoitaria num lugar qualquer, provavelmente num hotel, sem ninguém que vigiasse os seus movimentos em D. C, pela primeira vez, desde o dia quatro de Agosto, na noite em que, num passo cambaleante entrara no quarto de um motel situado nos subúrbios. Acontecera durante a mais degradante das recaídas, longa e patética. Esforçara-se ao máximo para se esquecer desse episódio.

Mas esse fora o Nate de outros tempos, agora era outro homem. Tinha quarenta e oito anos de idade, a treze meses dos cinquenta, pronto para encetar uma vida diferente. Deus dera-lhe forças, reforçando a sua capacidade de determinação. Talvez lhe restassem trinta anos. Não os passaria a agarrar garrafas vazias. Tão-pouco seriam passados a fugir.

Os veículos limpa-neves andavam numa grande azáfama enquanto o avião rolava lentamente em direcção ao terminal. O piso das pistas de aterragem estava molhado devido aos flocos de neve que continuavam a cair. Quando Nate desembarcou, entrando no túnel de passagem dos passageiros, sentiu o impacto do Inverno e pensou nas ruas húmidas e quentes de Corumbá. Josh aguardava junto da passadeira de bagagem e, como seria de esperar, trouxera um sobretudo suplementar.

- Estás com um aspecto horrível. - Foram as suas primeiras palavras.

- Obrigado. - Nate agarrou no agasalho vestindo-o de imediato.

- Estás magro que nem um palito.

- Se quiseres perder uns sete quilos, só tens de encontrar o mosquito certo.

Juntaram-se à multidão que se dirigia para as saídas, corpos que se tocavam aos encontrões, um empurrão ali, uma cotovelada aqui, pessoas que se amontoavam ainda mais para poderem caber através das portas. «Bem-vindo a casa», disse Nate a si próprio.

- Viajas com pouca bagagem - comentou Josh apontando para o saco maleável.

- Trago comigo tudo o que possuo neste mundo.

Sem meias e luvas, Nate sentia-se gelar no lancil do passeio quando Josh chegou depois de ter ido buscar o automóvel. A queda de neve abatera-se durante a noite, tendo adquirido proporções de tempestade. Os mantos de neve que embatiam nos edifícios caíam no solo, atingindo uma altura de mais de cinquenta centímetros.

- Ontem estavam cerca de trinta e cinco graus em Corumbá - comentou Nate quando já se afastavam do aeroporto.

- Não me digas que tens saudades do calor.

- Tenho. De repente sinto essa falta.

- Olha uma coisa... aGayleestáem Londres. Pensei que talvez pudesses ficar uns dias em nossa casa. - Na casa de Josh poderiam dormir à vontade quinze pessoas.

- Com certeza, agradeço-te muito. Onde é que guardaste o meu carro?

- Na minha garagem.

Claro que estaria. Era um Jaguar que Nate comprara em sistema de leasing e quase poderia afirmar que estaria nas melhores condições mecânicas, lavado e polido; os pagamentos mensais também teriam sido escrupulosamente efectuados.

- Obrigado, Josh.

- Guardei o teu mobiliário num pequeno armazém. A roupa e os artigos de primeira necessidade estão no carro dentro de malas.

- Obrigado. - Nate não se sentia minimamente surpreendido.

- Como é que te sentes?

- Estou óptimo.

- Ouve o que te digo, Nate. Li um pouco acerca da febre de dengue. É preciso um mês para que a recuperação física seja total. Não me escondas nada.

Um mês. Era a estocada de abertura na luta que se travaria pelo futuro de Nate na firma de advocacia. «Tira outro mês, meu velho. Talvez ainda

estejas demasiado doente para poderes começar a trabalhar.» Nate podia escrever o argumento.

Contudo, não haveria lugar a luta nenhuma.

- Sinto-me um pouco fraco, mais nada. Tenho andado a dormir muito e a beber muitos líquidos.

- Que género de líquidos?

- Por que é que não vais direito ao assunto?

- É o que faço sempre.

- Estou desintoxicado, Josh. Acalma-te. Nada de recaídas.

Josh ouvira aquelas palavras em inúmeras ocasiões. Aquela troca de palavras fora um pouco mais ríspida do que fora desejo dos dois homens; continuaram a rolar estrada fora mantendo-se em silêncio por algum tempo. O movimento de trânsito era reduzido.

As águas do rio Potomac tinham congelado parcialmente, vendo-se grandes placas de gelo que flutuavam à superfície em direcção a George-town. Quando chegaram à ponte Chain, devido ao movimento do trânsito,

tiveram de parar.

- Não tenho a intenção de voltar a trabalhar no escritório, Josh - anunciou Nate como se fosse a coisa mais normal do mundo. - Esses dias

acabaram.

Josh não manifestou qualquer reacção visível. Poderia ter-se sentido desiludido, porque um amigo de há muito, um excelente litigante, estava prestes a desistir da sua carreira. Por outro lado, também poderia ter-se sentido deliciado em virtude de uma enorme dor de cabeça abandonar a firma sem provocar quaisquer problemas. Havia ainda a possibilidade de ter sentido indiferença, uma vez que, provavelmente, a saída de Nate seria inevitável. Fosse de que maneira fosse, a questão da fuga aos impostos, em última análise, faria com que fosse expulso da Ordem dos Advogados.

- Porquê? - limitou-se Josh a perguntar.

- Por variadas razões, Josh. Digamos simplesmente que me sinto

cansado.

- A maior parte dos litigantes está acabado depois de vinte anos a

exercer advocacia.

- É o que me consta.

Já chegava de conversa de aposentação. Nate já tomara uma decisão e Josh não se sentia inclinado a fazê-lo mudar de ideias. Faltavam duas semanas para o último jogo da Super BowP(1) e os Redskins não se haviam qualificado para a final.

 

*1. Campeonato anual da Liga Nacional de Futebol - futebol americano, jogo com as mesmas técnicas do râguebi. (N. da T.)

 

Ambos agarraram no tema do desporto, a exemplo do que os homens costumavam fazer sempre que tinham de manter uma conversa em que se debatiam matérias mais importantes.

Até mesmo debaixo de uma espessa camada de neve, aos olhos de Nate as ruas continuavam a ter um aspecto maléfico.

Os Stafford eram proprietários de uma espaçosa vivenda em Wesley Heights, na zona nordeste de D. C. Também possuíam uma casa de campo em Chesapeake e outra no Maine. Os quatro filhos já eram adultos, vivendo cada um em seu lado. Mrs. Stafford preferia viajar enquanto o marido preferia trabalhar.

Nate foi ao porta-bagagens do seu automóvel, de onde trouxe algumas peças de roupa mais quentes, após o que desfrutou de um duche bem quente nos alojamentos destinados aos convidados. No Brasil a pressão da água era menor. A água do chuveiro da casa de banho do quarto do hotel nunca saía quente. Os sabonetes eram mais pequenos. Começou a estabelecer comparações com tudo o que o rodeava. Sorriu ao pensar no chuveiro a bordo do Santa Loura, uma corrente acima da sanita que, quando puxada, debitava água do rio mais ou menos morna. Era mais resistente do que pensara; a aventura em que se metera tinha-lhe ensinado isso mesmo.

Nate barbeou-se e lavou os dentes, pondo em prática os seus hábitos com alguma morosidade. Em muitos aspectos, era bastante agradável estar de regresso ao seu país natal.

O escritório que Josh tinha na cave era mais espaçoso do que o seu gabinete na baixa da cidade, embora estivesse tão atravancado como este. Encontraram-se aí para tomar café. Chegara a hora de pôr Josh ao corrente do desfecho do assunto que o levara ao Brasil. Nate começou pelos esforços malfadados que havia empreendido para encontrar Rachel por via aérea, a aterragem de emergência com a consequente colisão contra o solo, a vaca morta, os três garotinhos, o Natal tristonho passado no Pantanal. Com muitos pormenores, narrou o episódio em que montou a cavalo, passando ao encontro no pântano com um crocodilo curioso. Em seguida, descreveu o salvamento por helicóptero. Não aludiu à noite de bebedeira na véspera de Natal; não teria a mínima finalidade, para além de que se sentia extremamente envergonhado dessa fraqueza. Fez a descrição de Jevy, de Welly, do Santa Loura e da viagem para norte. Falou de si e de Jevy, de quando se tinham perdido no bote, e de se sentir aterrorizado mas demasiado atarefado para se deixar consumir pelo medo. Agora, na segurança da civilização, Nate pensou que aquelas peripécias tinham sido aterradoras.

Josh mostrava grande perplexidade ao ouvir a narrativa daquela aventura. Sentia vontade de pedir desculpa a Nate por o ter enviado para uma região tão traiçoeira, embora, ao que tudo indicava, tivesse sido uma incursão deveras empolgante. À medida que a narrativa continuava, o número de crocodilos ia aumentando. A anaconda solitária, que tomava banhos de Sol próximo do rio, foi acrescida de outra que nadara perto do bote dos dois homens.

Nate também descreveu os índios, aludindo à sua nudez e à comida sensaborona, à existência remansosa, falando do chefe da tribo que se recusara a deixá-los partir.

E de Rachel. Chegado a esse ponto da narrativa, Josh agarrou no seu bloco de apontamentos de papel amarelo, começando a tomar notas. Nate descreveu-a com muita minúcia, desde a voz suave e bem articulada até às sandálias e às botas que calçava para grandes caminhadas pelo mato. A palhota onde vivia e a maleta de medicamentos, Lako e a maneira como este coxeava, descrevendo também a forma como os nativos a olhavam quando passava por eles. Também contou a história da garotinha que morrera devido à mordidela de uma cobra. Contou a Josh o pouco que ela lhe dera a conhecer da sua vida.

Com a precisão de um veterano das salas de tribunal, Nate abrangeu tudo o que dizia respeito a Rachel, do que se inteirara durante a sua visita. Utilizou com muita exactidão as palavras de que ela se servira, quando abordou o assunto do dinheiro e dos documentos. Recordou-se do comentário que ela fizera, tendo classificado o testamento escrito à mão por Troy Phelan como primitivo.

Nate contou ainda o pouco de que se recordava do dia em que tinham partido do Pantanal. Desdramatizou o horror da febre de dengue. Conseguira sobreviver, facto que, por si só, o deixava bastante desconcertado. Entretanto, surgiu uma criada que lhes serviu sopa e chá quente para o almoço.

- Este é o ponto da situação - disse Josh depois de ter comido umas quantas colheres de sopa. - Caso ela renuncie aos direitos da herança que Troy lhe legou, isso significa que o dinheiro continuará a fazer parte da totalidade do património que ele deixou. No entanto, se o testamento for considerado nulo, qualquer que seja o motivo, então teremos que este é

inexistente.

- Como é que a validade do testamento pode vir a ser impugnada? Foram contratados psiquiatras que falaram com ele minutos antes de ter saltado da varanda.

- Agora já há mais psiquiatras, bem remunerados e com opiniões divergentes das anteriores. A situação vai ficar muito confusa.

Todos os testamentos anteriores foram destruídos na máquina de retalhar papel. Na hipótese de um dia se vir a descobrir que ele morreu sem deixar um testamento válido, então os sete filhos de Troy partilharão equitativamente a globalidade dos seus bens. Uma vez que Rachel recusa a parte que lhe caberia em herança, essa quota-parte seria dividida pelos outros seis.

- Esses idiotas receberão mil milhões de dólares cada.

- Qualquer coisa como isso - confirmou Josh.

- Quais é que são as probabilidades de o testamento vir a ser dado como nulo?

- Não são boas. Por mim, prefiro ter o nosso caso ao deles, no entanto, as coisas podem vir a sofrer alterações.

Nate começou a percorrer a cave, mordiscando uma bolacha de água e sal, sopesando os assuntos em questão.

- Por que motivo é que se deverá contestar a validade do testamento, se Rachel recusa aceitar o espólio?

- Existem três razões - atalhou Josh rapidamente. Como era seu hábito, já analisara todas as facetas da situação à luz de todas as perspectivas possíveis. Havia um plano mestre que seria revelado a Nate com todos os pormenores. - Primeiro, e da maior importância, o meu cliente elaborou um testamento cuja validade não pode ser impugnada. Legou os seus bens em conformidade com os seus últimos desejos. Eu, na qualidade de seu advogado, não tenho outra opção além de me bater para salvaguardar a integridade do testamento. Em segundo lugar, conheço bem os sentimentos que o senhor Phelan nutria pelos filhos. Sentia-se absolutamente horrorizado em face da probabilidade de eles, fosse de que maneira fosse, virem a apropriar-se do seu dinheiro. Partilho os sentimentos dele quanto a esses herdeiros, e sinto-me estremecer só de pensar no que aconteceria se cada um deles herdasse mil milhões de dólares. Em terceiro lugar, existe sempre a probabilidade de Rachel vir a mudar de ideias.

- No teu lugar, não contaria muito com essa hipótese.

- Ouve, Nate; ao fim e ao cabo, ela é humana. Ficou com os documentos. Vai esperar alguns dias e depois há-de começar a pensar neles. Talvez nunca lhe tenha entrado na mente qualquer pensamento de riqueza. Não obstante, a determinada altura ela terá forçosamente de pensar em todas as coisas boas que poderia concretizar com esse dinheiro. Explicaste-lhe qual a finalidade dos fideicomissos e das fundações de beneficência?

- Eu próprio mal conheço os princípios básicos desses organismos, Josh. Já te esqueceste de que fui litigante?

- Vamos lutar para proteger as últimas vontades do senhor Phelan, Nate. O problema é que o lugar à mesa mais importante continua por ocupar. Rachel precisa de ser representada por alguém.

- Não, não precisa. O assunto é-lhe completamente indiferente.

- O processo de litigação não poderá avançar sem que ela contrate os serviços de um advogado.

Nate nunca estaria à altura do grão-mestre dos estrategas. Vindo de algures, o buraco negro abriu-se e ele já começara a cair nele.

- Deves estar a brincar - retorquiu Nate cerrando os olhos.

- Não. E não podemos adiar este assunto por mais tempo. Troy já morreu há um mês. O juiz Wycliff anda desesperado por saber do paradeiro de Rachel Lane. Foram instaurados seis processos que impugnam a validade do testamento, e eles estão a ser sujeitos a uma enorme pressão. Todos os pormenores são noticiados na imprensa. Caso façamos a mais pequena alusão ao facto de Rachel estar decidida a recusar esta herança, acabaremos por perder o domínio da situação. Os herdeiros Phelan e os respectivos advogados entrarão em paranóia. O juiz, bruscamente, perderá qualquer interesse em defender a validade do último testamento de Troy.

- Por conseguinte, eu é que serei o advogado dela?

- Não existe outra maneira de se poder resolver esta situação, Nate. Se insistires em querer desistir da tua carreira, muito bem, mas tens de aceitar a defesa deste último caso. Só tens de te sentar à mesa e salvaguardar os interesses de Rachel Lane. Nós encarregamo-nos do trabalho mais difícil.

- Mas existe um conflito de interesses. Acontece que eu ainda sou sócio da firma.

- Trata-se de um conflito de somenos importância - adiantou Josh -, uma vez que os nossos interesses são coincidentes. Nós, os representantes do património de Rachel, partilhamos o mesmo objectivo na salvaguarda do testamento. Sentamo-nos à mesma mesa. E, tecnicamente, poderemos argumentar que abandonaste a firma em Agosto passado.

- Existe muita verdade no que acabaste de dizer.

Ambos reconheceram aquela triste verdade. Josh bebia pequenos goles do seu chá com os olhos presos em Nate.

- Mais cedo ou mais tarde, vamos ter de ir falar com Wycliff para lhe dar a saber que encontrámos Rachel, dizendo-lhe que ela não tem intenções de se apresentar neste momento, mas que não está bem certa daquilo que pretende fazer, embora queira que tu protejas os seus interesses.

- Isso significa que teremos de mentir ao juiz.

- Trata-se apenas de uma pequena mentira, Nate; mais tarde ele ainda nos há-de agradecer. Está ansioso por dar andamento aos processos, o que lhe é impossível de concretizar até ter notícias de Rachel. No caso de seres o advogado dela, então, a guerra poderá começar. Eu encarrego-me de mentir.

- Portanto, passo a representar um escritório com somente um advogado que trabalha na sua última causa.

- Precisamente - anuiu Stafford.

- Vou sair da cidade, Josh. Não quero ficar aqui - Nate disse isto e depois riu-se. - Onde é que poderia ficar?

- Para onde é que tencionas ir?

- Não sei. Ainda não tive oportunidade de pensar nesse assunto.

- Tenho uma ideia - adiantou Josh.

- Tenho a certeza que sim.

- Vai para a minha casa na baía de Chesapeake. Durante os meses de Inverno não costumamos ir para lá. Fica em Saint Michaels, a duas horas da cidade. Sempre que a tua presença for necessária, metes-te no automóvel e vens até cá, podes ficar em minha casa. Uma vez mais, Nate, nós faremos todo o trabalho.

Nate pôs-se a analisar uma estante durante algum tempo. Vinte e quatro horas antes, estivera a comer uma sanduíche sentado num banco de um parque em Corumbá, observando os passantes enquanto esperava que Rachel aparecesse. Prometera a si mesmo que jamais voltaria a entrar, voluntariamente, na sala de um tribunal.

Todavia, foi forçado a admitir, ainda que a contragosto, que aquele plano tinha os seus méritos. Era inquestionável que não poderia imaginar um cliente melhor. O caso jamais seria apresentado em tribunal. Levando em consideração o montante em dinheiro que se encontrava em jogo, pelo menos poderia auferir honorários suficientes que lhe permitissem subsistir durante alguns meses.

Josh acabou de comer a sopa, passando ao ponto seguinte da sua lista.

- Proponho que passes a receber dez mil dólares mensais em honorários.

- Essa quantia é muito generosa da tua parte, Josh.

- Acho que haveremos de conseguir que sejam pagos pelo espólio do velho. Uma vez que não existirão despesas de administração, poderás endireitar a tua vida.

- Até... - disse Nate sem terminar a frase.

- Até que saldemos as contas com o IRS.

- O juiz já disse mais alguma coisa?

- De vez em quando telefono-lhe. Almoçámos na semana passada.

- Isso quer dizer que ele está do nosso lado?

- Conhecemo-nos há muito tempo. Podes esquecer a cadeia, Nate. O governo ficará satisfeito com uma multa choruda e com uma sentença de suspensão por cinco anos em que não poderás exercer advocacia.

- Por mim, podem expulsar-me da Ordem dos Advogados para sempre.

- Ainda não. Precisamos de ti em mais um caso.

- Quanto tempo é que o governo esperará?

- Um ano. O teu assunto não é prioritário.

- Obrigado, Josh. - Nate começava a sentir-se cansado. O voo que durara toda a noite, a violência da vida na selva e o confronto mental com Josh faziam sentir os seus efeitos. Só desejava uma cama macia e quente num quarto às escuras.

 

Às seis horas da manhã de domingo, Nate saía de um segundo duche bem quente, o terceiro que tomava no espaço de vinte e quatro horas, começando a fazer planos para uma partida apressada. Uma noite passada na cidade e já se sentia ansioso por sair dali. A vivenda na margem da baía chamava por si. Há vinte e seis anos fizera de D. C. a sua casa, mas uma vez tomada a decisão de se ir embora, estava desejoso de partir.

Sem endereço certo, era fácil abandonar a cidade. Encontrou Josh na cave, sentado à sua mesa de trabalho, a falar ao telefone com um cliente da Tailândia. Enquanto Nate ouvia a conversa daquele lado da linha, sobre depósitos de gás natural, sentia-se bastante feliz por estar prestes a desistir da prática da advocacia. Josh era doze anos mais velho do que ele e era um homem muito rico; a noção que tinha de divertimento era estar sentado à sua secretária, num domingo, às seis da manhã. «Que Deus não permita que isso me aconteça», disse Nate a si mesmo, embora soubesse que tal não lhe aconteceria. Se voltasse a trabalhar no escritório, regressaria ao mesmo frenesi. Quatro períodos de desintoxicação significavam que um quinto estaria ao virar da esquina. Não tinha uma força de vontade tão grande como a de Josh. Dentro de dez anos estaria morto.

O facto de sair da cidade revestia-se de um certo elemento de empolgamento. Processar médicos era uma actividade nefasta, que dispensava de bom grado. Também não sentiria a falta de ocupar uma posição de relevo nos escritórios de advogados de nomeada. Tivera a sua carreira, os seus triunfos. O êxito profissional não lhe trouxera nada, além de uma vida desgraçada; não era capaz de lhe fazer frente. O sucesso atirara-o para a sarjeta.

Agora que o horror da cadeia tinha desaparecido, podia começar a desfrutar de uma vida nova.

Partiu com um porta-bagagem cheio de roupa, deixando o resto numa caixa de cartão na garagem de Josh. A neve parara de cair, apesar de os limpa-neves continuarem a remover a que ainda ficara no solo. O piso das ruas estava escorregadio; depois de ter percorrido alguns quarteirões, ocorreu-lhe que não se sentava ao volante de um automóvel há cinco meses. Não havia trânsito, o que lhe permitiu percorrer a Wisconsin a uma velocidade moderada, em direcção à Chevy Chase, após o que seguiu para Beltway, onde o gelo e a neve haviam sido removidos.

Sozinho, dentro do seu belo carro, voltou a sentir-se de novo como um verdadeiro norte-americano. Pensou em Jevy ao volante da sua espaventosa e perigosa camioneta de caixa aberta Ford, perguntando a si mesmo quanto tempo é que o brasileiro se aguentaria em Beltway. Também pensou em Welly, um rapaz tão pobre que a família nem sequer tinha carro. Decidiu que escreveria algumas cartas nos dias mais próximos, endereçando uma delas aos camaradas que deixara em Corumbá.

O telefone despertou-lhe a atenção. Agarrou nele; aparentemente, funcionava em boas condições. Claro que Josh se assegurava de que as contas fossem pagas. Telefonou para casa de Sérgio, com quem conversou durante vinte minutos. Foi repreendido por não ter ligado mais cedo. Sérgio tinha-se sentido preocupado. Nate explicou a situação dos telefones no Pantanal. Acrescentou que as coisas tinham tomado um rumo diferente, que existiam alguns factores desconhecidos, mas que a sua aventura ainda não terminara: Tencionava abandonar a sua profissão e evitar ir parar a uma cadeia.

Sérgio não fez nenhuma pergunta quanto ao seu estado de sobriedade. A julgar pela maneira como Nate falava, não lhe restavam dúvidas de que estava limpo de bebidas, sentindo-se mais forte. Deu a Sérgio o número de telefone da casa de campo, após o que prometeram que haveriam de almoçar juntos dentro em pouco.

Em seguida ligou para o filho mais velho, que vivia em Northwestern, em Evanston, deixando uma mensagem no atendedor de chamadas. Onde é que um estudante universitário de vinte e três anos poderia estar às sete horas de uma manhã de domingo'? Certamente que não assistiria a uma das primeiras missas dominicais. Nate não queria saber. O que quer que o filho estivesse a fazer, nunca estragaria tanto a sua vida como o pai fizera. A filha tinha vinte e um anos e ora estudava ora não estudava na Universidade de Pitt. A última conversa que os dois tinham tido abordara o tema das propinas, no dia anterior àquele em que Nate se instalara no quarto de um motel, acompanhado de uma garrafa de rum e de um saco cheio de comprimidos.

Não conseguiu encontrar o número de telefone da filha.

A mãe dos dois filhos casara-se por duas vezes desde que ela e Nate se haviam divorciado. Era uma pessoa desagradável a quem ele telefonava somente quando era absolutamente indispensável. Esperaria dois dias antes de lhe ligar para lhe pedir o número de telefone da filha.

Estava decidido a fazer a dolorosa viagem à região oeste, no Oregon, para, pelo menos, poder visitar os filhos mais novos. A mãe destes também havia voltado a contrair matrimónio, e, notavelmente, com outro advogado, apesar de ser evidente que este levava uma vida livre de vícios. Pedir-lhes-ia que lhe perdoassem, tentando estabelecer os princípios frágeis de um relacionamento paternal. Não tinha bem a certeza de como é que poderia realizar esse desejo, mas prometeu a si mesmo que tentaria.

Chegado a Anápolis, Nate parou num café onde tomou o pequeno-almoço. Ouviu a previsão meteorológica da boca de um grupo de ruidosos clientes habituais sentados a uma mesa compartimentada; sem prestar muita atenção ao jornal, começou a folhear o Post. Não leu nada que lhe despertasse interesse, quer nas parangonas quer nas notícias de última hora. As notícias eram sempre as mesmas: problemas no Médio Oriente e desacatos na Irlanda do Norte; escândalos no Congresso; os mercados financeiros ora estavam em alta ora em baixa; um derramamento de petróleo; um outro medicamento para combater a SIDA; guerrilheiros que chacinavam camponeses na América Latina; tumultos na Rússia.

As roupas estavam-lhe largas e para engordar um pouco pediu três ovos estrelados com bacon e pãezinhos. Entretanto, aos seus ouvidos chegou um consenso, ainda que pouco sólido, vindo da mesa do lado, segundo o qual estava prestes a nevar mais.

Atravessou a Chasepeake através da ponte da baía. As auto-estradas na costa oriental não haviam sido bem limpas de neve. O Jaguar patinou por duas vezes, o que levou Nate a abrandar a velocidade a que seguia. O automóvel tinha um ano e não era capaz de se recordar da data em que o sistema de leasing caducaria. A sua secretária é que tratara da papelada. Ele limitara-se a escolher a cor. Decidiu empandeirá-lo assim que lhe surgisse uma oportunidade, substituindo-o por um jipe de tracção às quatro rodas que compraria em segunda mão. Em tempos parecera-lhe importante que um advogado conduzisse um carro de marca. Presentemente, não tinha qualquer utilidade para um veículo daqueles.

Quando chegou a Easton, virou para a Estadual 33, via cujo piso alcatroado se encontrava coberto com cerca de cinco centímetros de neve solta. Nate seguia pelo traçado deixado por outras viaturas, e ao fim de pouco tempo começou a passar por pequenas localidades adormecidas, onde se viam cais cheios de barcos à vela. As margens da baía de Chasepeake

estavam cobertas por um espesso lençol de neve; as águas eram de um azul profundo.

Saint Michaels tinha uma população de treze mil habitantes. Ao longo de alguns blocos, a Estrada 33 transformava-se na rua principal, atravessando o centro da povoação. De ambos os lados havia toda uma variedade de estabelecimentos, edifícios antigos lado a lado, todos bem preservados e prontos para a fotografia de postal.

Durante toda a sua vida, Nate ouvira falar de Saint Michaels. Tinha um museu de marinha, um festival de ostras e um porto com muito movimento, dúzias de casas graciosamente antiquadas que ofereciam alojamento, em cujo preço estava incluído o quarto e o pequeno-almoço, e que atraíam os citadinos por ocasião de fins-de-semana prolongados. Passou pela estação dos correios e por uma pequena igreja, onde o prior removia a neve acumulada nos degraus com uma pá.

A vivenda situava-se na Rua Green, a dois blocos da principal, com a fachada virada a norte e de onde se desfrutava uma panorâmica do cais. Fora construída no estilo vitoriano, com duas empenas gémeas; o extenso alpendre da frente estendia-se em redor das paredes laterais. Estava pintada de um azul-acinzentado com caixilharia em branco e amarelo; a casa tinha amontoados de neve que chegavam quase até à porta da frente. O relvado desse lado era pequeno e o caminho particular de acesso à garagem estava coberto por uma altura de mais de meio metro de neve. Nate estacionou junto do lancil do passeio e com alguma dificuldade conseguiu chegar ao alpendre. Logo que entrou, ligou as luzes encaminhando-se para as traseiras. Num armário junto da porta de trás descobriu uma pá de plástico.

Passou uma hora maravilhosa a limpar o alpendre, removendo a neve do caminho de acesso e do passeio, até chegar ao carro.

Sem grande surpresa, constatou que o interior fora ricamente decorado com móveis de estilo; estava tudo limpo e bem arrumado. Josh dissera-lhe que contratara uma mulher a dias que ia à casa todas as quartas-feiras para limpar o pó, tratando do que fosse necessário. Mrs. Stafford costumava passar duas semanas na casa de campo durante a Primavera e uma no Outono. Durante os últimos dezoito meses, pernoitara três vezes naquela casa. Tinha quatro quartos de cama e quatro casas de banho. Aquilo é que era um pequeno chalé.

Mas não havia café em parte alguma, o que representava a primeira emergência do dia. Nate fechou as portas à chave e dirigiu-se para o centro da povoação. Os passeios estavam limpos da neve que se tinha derretido. De acordo com o termómetro na vitrina do barbeiro, a temperatura era pouco mais de zero graus centígrados. Todos os estabelecimentos estavam encerrados.

Nate examinava as montras enquanto rolava a pouca velocidade. Mais à frente, começou a ouvir-se o badalar do sino da igreja.

A fazer fé no boletim que o sacristão de idade entregou a Nate, o pároco era o padre Phil Lancaster, um homem baixinho mas rijo que usava uns óculos com armação de osso e lentes espessas, com uns cabelos anelados e ruivos misturados com fios grisalhos. Tanto se lhe poderia dar trinta e cinco anos de idade como cinquenta. O rebanho de crentes que se reunira para a missa das onze horas era esparso e de idade avançada; o tempo de invernia certamente que manteria os fiéis arredios da igreja. No interior do pequeno santuário, Nate contou vinte e uma pessoas, número em que se incluíam Phil e o organista. Viu muitas cabeças grisalhas.

Era uma igreja bonita com um tecto abobadado, bancos e soalho de madeira escura, e nas paredes viam-se quatro vitrais. Quando o sacristão solitário se sentou no último banco, Phil ergueu-se com a sua sotaina negra e deu as boas-vindas a todos os que tinham ido à igreja da Trindade, onde toda a gente se sentia como se em suas casas. O seu timbre de voz era alto e nasalado, não necessitando de microfone. Na sua oração, agradeceu a Deus pela neve e pelo Inverno, pelas estações do ano que eram enviadas para que não nos esquecêssemos de que Ele dominava tudo e todos.

Com alguma dificuldade, os crentes entoaram os cânticos e as orações. Quando o padre Phil ia a meio do seu sermão reparou em Nate, o único visitante sentado na penúltima fila de bancos. Trocaram sorrisos e, por um breve momento assustador, Nate receou que o padre estivesse prestes a apresentá-lo à pequena congregação.

O sermão religioso versava o tema do entusiasmo, uma escolha estranha dada a idade média dos seus fiéis. Nate esforçava-se por prestar atenção, mas os seus pensamentos começaram a divagar. Regressaram à pequena capela em Corumbá, com as portas da frente todas abertas para trás, os vitrais ao alto, o calor que entrava no interior, o Cristo em agonia crucificado na cruz, o jovem que tocara viola.

Munindo-se de todas as precauções para não ofender Phil, Nate mantinha o olhar fixo no globo de luz mortiça preso na parede por detrás e acima do púlpito. Em face da espessura das lentes dos óculos do padre, deduziu que ele não se aperceberia do seu desinteresse.

Sentado na pequena igreja aquecida, finalmente a salvo das incertezas da sua grande aventura, a salvo das febres e dos temporais, a salvo dos perigos de D. C, a salvo dos seus vícios, a salvo da extinção espiritual, compreendeu que pela primeira vez, desde que tinha memória, se entrava em paz consigo mesmo.

Não existia nada que lhe pudesse incutir receio. Deus empurrava-o para uma direcção qualquer. Não tinha a certeza para onde, mas também não sentia medo. «Sê paciente», aconselhou a si próprio.

Foi então que disse uma oração murmurada. Agradeceu a Deus por ter poupado a sua vida e também rezou por Rachel, porque sabia que ela orava por ele.

A serenidade que aqueles momentos lhe proporcionaram fez com que lhe aflorasse um sorriso aos lábios. Quando o serviço religioso terminou, abriu os olhos e viu que Phil lhe sorria.

Depois da bênção, os crentes desfilaram à frente de Phil perto da porta principal, elogiando o sermão e mencionando pequenas notícias relativas às actividades religiosas. A fila formada pelas pessoas deslocava-se com lentidão; era um ritual.

- Como é que a sua tia tem passado? - perguntou Phil a um dos membros do seu rebanho, após o que escutou atentamente a descrição da última aflição por que a tia em questão passara. - Como é que vai essa anca? - perguntou a outro. - Como é que achou a Alemanha? - Distribuía apertos de mão e inclinava-se para a frente para não perder uma única palavra. Sabia o que é que ia na mente dos seus paroquianos.

Nate aguardava pacientemente fechando a fila. Não tinha pressa. Não tinha mais nada para fazer.

- Bem-vindo - disse o padre Phil enquanto apertava a mão de Nate, agarrando-o pelo braço. - Bem-vindo à igreja da Trindade. - Apertava a mão de Nate com tal força que este se interrogou se seria o primeiro visitante nos últimos anos.

- O meu nome é Nate O'Riley - apresentou-se ele, acrescentando: - Venho de Washington - como se aquelas palavras ajudassem a defini-lo.

- É um prazer ter a sua companhia nesta manhã - continuou Phil, com os seus olhos ampliados que pareciam dançar por detrás das lentes dos óculos. Fazendo-se uma análise mais de perto, as rugas revelavam que ele teria pelo menos cinquenta anos. A sua cabeça tinha mais anéis grisalhos do que ruivos.

- Vou ficar alojado na casa dos Stafford durante alguns dias - informou Nate.

- Sim, sim, uma casa encantadora. Quando é que chegou?

- Esta manhã.

- Veio sozinho?

- Sim - confirmou Nate.

- Nesse caso, tem de almoçar connosco.

Aquela hospitalidade um tanto agressiva fez com que Nate se risse.

- Bem... obrigado, mas...

- Não, insisto - interrompeu Phil desfazendo-se em sorrisos. - Sempre que neva, a minha mulher faz ensopado de borrego. Neste momento já está ao lume. Durante os meses de Inverno recebemos tão poucos visitantes. Por favor, a residência paroquial é mesmo por detrás da igreja.

Nate encontrava-se nas mãos de um homem que já havia partilhado a sua mesa de domingo com centenas de pessoas.

- Na verdade, eu só estou aqui de passagem, e eu...

- O prazer será todo nosso - insistiu Phil que já agarrara no braço de Nate começando a levá-lo em direcção ao púlpito. - Em Washington, qual é a sua profissão?

- Sou advogado - replicou Nate. Uma resposta mais minuciosa seria algo complicado.

- O que é que o trouxe até aqui?

- É uma história muito comprida.

- Oh, que maravilha! Laura e eu adoramos ouvir histórias. Vamos fazer um almoço prolongado e contar histórias. Vamos passar uns momentos magníficos. - O entusiasmo do padre era irresistível. O pobre pastor estava esfaimado por novos tópicos de conversa. E por que não?, pensava Nate. Na casa de Josh não havia comida. E, aparentemente, todas as lojas estavam fechadas.

Passaram pelo púlpito, transpondo uma porta que dava acesso às traseiras da igreja. Laura estava a apagar as luzes.

- Este é o senhor O'Riley, de Washington - disse Phil à mulher em voz alta. - Ele aceitou o nosso convite para almoçar.

Laura sorriu apertando a mão de Nate. Tinha cabelos curtos e grisalhos, parecendo, no mínimo, ser dez anos mais velha do que o marido. Se um convidado inesperado à sua mesa a deixou surpreendida, não o demonstrou. Nate ficou com a impressão de que aquela era uma situação que se repetia bastante amiúde.

- Por favor, trate-me por Nate - pediu ele.

- Pois que seja Nate - anunciou Phil, despindo a sotaina.

O presbitério era contíguo aos terrenos da igreja, de frente para uma rua lateral. Num passo cauteloso, percorreram o pavimento coberto de neve.

- Como é que achaste o meu sermão? - perguntou o pároco à mulher quando subiam os degraus do alpendre.

- Foi excelente, meu querido - respondeu ela sem o mínimo traço de entusiasmo. Nate ouvia e sorria, certo de que ao longo de vários anos, todos os domingos, Phil tinha feito a mesma pergunta, no mesmo lugar e à mesma hora, tendo recebido a mesma resposta.

Qualquer hesitação que Nate pudesse sentir quanto a ficar para o almoço, dissipou-se assim que entrou em casa. O aroma pesado e rico do ensopado de borrego atravessava a sala de estar. Phil espevitou o carvão, que ardia com chamas alaranjadas na lareira, enquanto Laura acabava de preparar a refeição.

Na sala de jantar estreita, entre a cozinha e a sala de estar, a mesa fora posta para quatro pessoas. Nate sentiu-se satisfeito por ter aceitado o convite para almoçar, não que lhe tivesse restado a alternativa de poder recusá-lo.

- Temos todo o prazer em recebê-lo - disse Phil quando ocupavam os seus lugares à mesa. - Tive um palpite de que talvez hoje tivéssemos convidados.

- Este lugar destina-se a quem? - perguntou Nate acenando na direcção do lugar vazio.

- Aos domingos pomos sempre a mesa para quatro pessoas - adiantou Laura deixando que a explicação se ficasse por aí. Deram as mãos enquanto Phil agradecia de novo a Deus pela neve e pelas estações, assim como pela comida.

- E não deixeis que nos esqueçamos do que os outros querem e do que têm necessidade - concluiu o pastor. Aquelas palavras despertaram algo na recordação de Nate. Já as ouvira há muitos, muitos anos.

Ao mesmo tempo que a comida era passada entre os comensais, estes travavam uma conversa trivial cujo tema eram os acontecimentos da manhã. As pessoas que tinham assistido ao serviço religioso das onze horas tinham uma média de idades de quarenta anos. Na realidade, a neve mantivera muita gente afastada da igreja. Para não falar do surto de gripe que grassava pela península. Nate elogiou o casal pela beleza simples do santuário. Há seis anos que viviam em Saint Michaels.

- Você tem um belo bronzeado para Janeiro - comentou Phil pouco depois de terem começado a comer. - Não ficou com essa cor em Washington, pois não?

- Não. Acabei de regressar do Brasil. - O casal parou de comer inclinando-se mais para a frente. A aventura desenrolava-se de novo. Nate levou à boca uma grande colherada de ensopado, que, por sinal, estava delicioso, com um molho espesso, após o que começou a contar a história da viagem.

- Por favor, continue a comer - dizia Laura mais ou menos de cinco em cinco minutos. Nate comia uma garfada, mastigava lentamente e prosseguia. Referiu-se a Rachel como sendo unicamente «a filha de um cliente». As tempestades adquiriram contornos de maior violência, as serpentes passaram a ser mais compridas, o barco mais pequeno e os índios menos amigáveis. Os olhos de Phil dançavam de espanto enquanto Nate passava de um capítulo ao seguinte.

Era a segunda vez que Nate narrava aquela história desde que regressara. Para além de alguns pequenos exageros aqui e ali, cingiu-se bastante à veracidade dos factos. Mesmo ele se sentia abismado. Era uma história extraordinária de contar, propiciando aos seus anfitriões uma versão enriquecida e alongada dos episódios que vivera. Sempre que tinha oportunidade, o casal fazia perguntas.

Depois de Laura ter levantado os pratos do almoço serviu bolinhos de chocolate para a sobremesa. Nate e Jevy tinham acabado de chegar ao primeiro povoado dos ipicas.

- Ela ficou surpreendida quando o viu? - perguntou Phil depois de Nate ter descrito a cena em que o grupo de nativos conduzira a mulher para fora da aldeia, a fim de ir ao encontro dos dois homens.

- Para dizer a verdade, nem por isso - retorquiu Nate. - Ela parecia saber que estávamos prestes a chegar.

Nate fez o seu melhor para descrever os índios e a cultura da Idade da Pedra em que viviam, mas faltavam-lhe as palavras adequadas que reproduzissem fielmente as imagens reais. Comeu dois bolos, esvaziando o prato com grandes trincadelas durante os breves intervalos da narrativa.

Afastaram os pratos da sua frente para tomarem o café. No que dizia respeito a Phil e a Laura, os almoços de domingo tinham mais a ver com a conversa do que com a comida. Nate perguntava a si mesmo quem teria sido o último conviva a ter a sorte de ser convidado para um almoço com histórias.

Era difícil a Nate desdramatizar os horrores da febre de dengue de que sofrera, mas, animadamente, fez uma tentativa. Uns dois dias no hospital, alguns medicamentos e recuperara a saúde. Quando terminou a narrativa começaram as perguntas. Phil queria saber tudo acerca da missionária - a sua denominação religiosa, grau de fé, e a espécie de trabalho que desenvolvera junto dos nativos. A irmã de Laura tinha vivido na China, onde trabalhara no hospital de uma igreja, durante quinze anos, o que deu origem a mais histórias.

Eram quase três da tarde quando Nate se encaminhou para a porta. Os seus anfitriões teriam permanecido sentados à mesa com todo o prazer, ou ido para a sala de estar, onde continuariam a conversar até ao cair da noite, mas Nate sentia necessidade de dar um passeio. Agradeceu-lhes pela hospitalidade que lhe haviam dispensado, e quando os deixou a acenar no alpendre sentia-se como se os conhecesse há muitos anos.

O percurso até Saint Michaels levou uma hora. As ruas eram estreitas e flanqueadas por casas que já tinham cem anos. Nada destoava naquela atmosfera; não se viam cães vadios, lotes sem construções ou edifícios abandonados. Até mesmo a neve estava alinhada - fora cuidadosamente acumulada de forma a que os passeios e as ruas ficassem limpos, para não ofender qualquer vizinho. Nate parou junto do molhe, ficando a admirar os barcos à vela. Nunca tinha pisado o convés de um barco daquele tipo.

Decidiu que não partiria de Saint Michaels até que fosse forçado a fazê-lo. Viveria na vivenda, onde tencionava permanecer até que Josh, com toda a cortesia, o pusesse na rua. Pouparia o dinheiro que ganhasse e, quando o assunto da herança Phelan fosse concluído, haveria de arranjar uma maneira de poder continuar por ali.

Próximo do porto, por mero acaso, descobriu uma pequena mercearia que estava prestes a fechar. Comprou café, sopa enlatada, bolachas de água e sal e papas de aveia para o pequeno-almoço. Perto do balcão estavam expostas diversas marcas de cerveja. Sorriu ao ver as garrafas, sentindo-se feliz por ter conseguido deixar esses dias para trás.

 

Grit fez com que o despedissem via fax e por correio electrónico, a primeira vez que aquilo acontecia no seu escritório. Foi Mary Ross quem o despediu sumariamente, às primeiras horas da manhã, depois de ter passado um fim-de-semana com os irmãos num ambiente de tensão constante.

Grit não acatou a decisão com elegância. Respondeu-lhe com outro fax apresentando-lhe uma conta pelos seus serviços até à data - cento e quarenta e oito horas, a seiscentos dólares a hora, o que perfazia a quantia de oitenta e oito mil e oitocentos dólares. Estes honorários seriam aplicados contra a percentagem que lhe caberia aquando do acordo relativo à herança, ou a qualquer outro desfecho favorável. Grit não queria os seiscentos dólares à hora. Grit pretendia uma fatia do bolo, uma porção avultada da quota-parte da sua cliente, os vinte e cinco por cento que negociara. Grit queria receber milhões; sentado no seu gabinete trancado, olhando em transe para a máquina de fax. Era-lhe impossível acreditar que a sua fortuna tivesse desaparecido assim sem mais nem menos. Acreditava realmente que, ao cabo de alguns meses de árduas litigações, o espólio Phelan seria dividido entre os filhos. Podiam atirar-se vinte milhões a cada um dos seis, e ficar-se a observá-los a atacarem-nos que nem cachorros esfomeados, e a fortuna Phelan continuaria virtualmente intacta. Para a sua cliente, vinte milhões de dólares tinham o mesmo valor que cinco milhões para ele, e Grit, bem no seu íntimo, seria forçado a confessar que já pensara em várias maneiras de gastar esse dinheiro.

Ligou para o escritório de Hark com a intenção de o amaldiçoar, mas foi informado de que o doutor Gettys estava demasiado ocupado naquele momento para poder atendê-lo.

Actualmente, o doutor Gettys representava três dos quatro herdeiros da primeira família. A sua percentagem descera de vinte e cinco para vinte, e mais recentemente para dezassete ponto cinco. Apesar dessa redução, o total combinado dos três herdeiros seria bastante mais compensatório.

O doutor Gettys entrou na sua sala de reuniões poucos minutos depois das dez, saudando o remanescente dos advogados da família Phelan, ali reunidos para uma reunião da maior importância.

- Tenho uma informação que desejo dar-vos - começou ele com uma expressão radiante. - O doutor Grit deixou de estar envolvido neste caso. A sua ex-cliente, Mary Ross Phelan Jackman, pediu-me que passasse a representá-la, e, ao cabo de muitas reflexões, concordei em aceitá-la como minha cliente.

As suas palavras caíram como pequenas bombas em redor da mesa de reuniões. Yancy afagou as barbas desgrenhadas, interrogando-se quanto ao método de coerção que fora utilizado para arrancar a mulher dos tentáculos de Grit. No entanto, sentia-se relativamente seguro. A mãe de Ramble já tinha recorrido a todos os meios, possíveis e imaginários, para tentar convencer o miúdo a contratar os serviços de outro advogado. Mas o rapaz odiava a mãe.

A doutora Langhorne mostrou-se surpreendida, especialmente porque Hark tinha acabado de acrescentar Troy Phelan à sua lista de clientes. Mas depois daquele breve choque, também ela se sentiu segura. A sua cliente, Geena Phelan Strong, detestava os meios-irmãos e meias-irmãs mais velhos. Certamente que não recorreria aos serviços dos advogados deles. Ainda assim, teria de combinar um jantar para cimentar melhor o seu poder. Depois de terminada a reunião, telefonaria a Geena e a Cody. Poderiam jantar no Promenade, perto do Capitólio, e talvez chegasse mesmo a ver de fugida o vice-presidente de um subcomité influente.

A nuca de Wally Bright ficou vermelha quando ouviu aquela novidade. Hark atacava os clientes de surpresa, andava à babugem. Da primeira família, somente Libbigail é que não mudara de advogado, e Wally Bright não hesitaria em matar Hark se ele tentasse roubar-lha.

- Mantenha-se afastado da minha cliente, está a ouvir? - advertiu ele em voz alta num tom de agressividade; todos os presentes se imobilizaram de estupefacção.

- Acalme-se.

- Uma porra é que me acalmo. Como é que nós podemos acalmar-nos quando você anda a roubar clientes?

- Eu não roubei Mrs. Jackman. Foi ela que me telefonou. E não eu quem lhe ligou.

- Nós conhecemos bem o jogo que você anda a fazer, Hark. Não somos estúpidos. - Wally disse isto enquanto olhava para os outros advogados, seus colegas. Com certeza que não se consideravam estúpidos, mas não estavam muito seguros quanto ao grau de estupidez de Wally.

A verdade é que nenhum deles confiava nos outros. Colocando a questão em termos simples, o dinheiro em jogo era excessivo, pelo que nenhum poderia partir do princípio de que o advogado sentado ao seu lado não puxaria de uma faca.

Fizeram entrar Snead, o que alterou o foco da discussão. Hark apresentou-o ao grupo. Pobre Snead, que parecia um homem em frente de um pelotão de tiro. Sentou-se à cabeceira da mesa, com duas câmaras de vídeo assestadas na sua direcção.

- Isto é apenas um ensaio - garantiu-lhe Hark.-Não esteja nervoso. - Os demais advogados sacaram de blocos de apontamentos de papel amarelo cheios de perguntas, aproximando-se um pouco mais de Snead.

Hark colocou-se atrás dele, dando-lhe uma palmadinha encorajadora no ombro antes de retomar a palavra.

- Vamos lá a ver, senhor Snead, quando prestar o seu depoimento, os advogados da outra parte terão autorização para o interrogarem em primeiro lugar. Por conseguinte, durante a próxima hora, teremos mais coisa menos coisa a mesma situação, o senhor tem de assumir que nós somos o inimigo. De acordo?

Sem dúvida alguma que Snead não estava muito pelos ajustes, contudo aceitara o dinheiro daqueles advogados. Tinha de entrar no jogo deles.

Hark agarrou no seu bloco de apontamentos e começou a fazer-lhe perguntas sobre assuntos simples, como por exemplo a data do seu nascimento, passado, família, escola, temas simples que não eram obstáculo para Snead e que tinham a finalidade de o acalmar. Em seguida, abordou os primeiros anos em que trabalhara para o senhor Phelan, abrangendo um milhar de perguntas que, à primeira vista, pareciam ser absolutamente irrelevantes.

Depois de um intervalo para que pudessem ir à casa de banho, a doutora Langhome tomou a palavra, começando a interrogar Snead impiedosamente acerca das famílias Phelan, das mulheres, dos filhos, dos divórcios e das amantes. Snead pensou que aquilo era uma lavagem de roupa suja absolutamente desnecessária, mas os advogados davam a impressão de estar a gostar do que ouviam.

- Conhecia a existência de Rachel Lane? - perguntou Langhorne. Snead ponderou por breves instantes antes de responder.

- Ainda não pensei nesse assunto. - Por outras palavras, «ajudem-me a dar uma resposta». - Qual seria a sua opinião? - perguntou ao doutor Gettys.

- Eu arriscar-me-ia a dizer que você estava a par de tudo o que dizia respeito ao senhor Phelan, muito em especial, sobre as suas mulheres e filhos - respondeu Hark com rapidez, dando seguimento àquela ficção. - Nada escapava à sua atenção. O velho confidenciava-lhe tudo, incluindo a existência de uma filha ilegítima. Ela tinha uns dez ou onze anos quando você começou a trabalhar para o senhor Phelan. Ao longo dos anos, ele tentou estabelecer contacto com a filha, mas esta não queria nada com ele. Imagino que essa atitude o magoasse profundamente, tanto mais que era um homem que costumava obter tudo o que desejava, e quando Rachel o rejeitou a dor transformou-se em cólera. Atrevo-me a dizer que ela passou a desagradar-lhe a partir desse momento. Consequentemente, a hipótese de ele lhe ter deixado toda a sua fortuna seria um acto de pura insanidade mental.

Uma vez mais, Snead sentiu-se maravilhado perante a habilidade de Hark para inventar enredos com tamanha rapidez. Os outros advogados também se mostraram impressionados.

- O que é que acham desta versão? - perguntou-lhes Hark.

Os interpelados acenaram unanimemente num gesto de aprovação.

- É preferível que o ponhamos a par de todo o passado de Rachel Lane - sugeriu Bright.

De seguida, Snead repetiu para as câmaras de filmar a mesma história que Hark acabara de congeminar, e ao fazê-lo demonstrou uma habilidade bastante razoável para expandir o tema. Quando terminou, os advogados não foram capazes de ocultar a satisfação que sentiam. Aquele verme estaria disposto a dizer fosse o que fosse. E não havia ninguém que pudesse contradizê-lo.

Sempre que faziam uma pergunta a Snead que ele não soubesse como responder da melhor maneira, respondia dizendo:

- Bem, ainda não pensei sobre isso. - Era então que os advogados se prontificavam a ajudá-lo. Hark, que parecia antecipar todas as fraquezas de Snead, habitualmente tinha um enredo rápido à mão de semear. No entanto, amiúde, os outros advogados também participavam com os seus pequenos esquemas, todos ansiosos por revelarem as suas habilidades para a mentira.

Fase após fase, a história ia sendo engendrada, cada vez mais refinada, cuidadosamente estruturada, de molde a que se pudesse garantir que o senhor Phelan não estivera no seu juízo perfeito, na manhã em que rabiscara o seu último testamento. Snead era instruído pelos causídicos, provando ser bastante fácil de influenciar. De facto, era tão influenciável que os advogados começaram a sentir-se preocupados com a possibilidade de ele poder vir a dizer demasiado. A sua credibilidade não poderia ser atacada. No seu testemunho não podia existir a mais pequena lacuna.

Ao longo de três horas arquitectaram a história que ele contaria, para durante as duas horas seguintes tentarem desacreditá-lo com um contra-interrogatório impiedoso.

Não lhe permitiram que almoçasse. Desdenharam dele chamando-lhe mentiroso. A certa altura, Langhorne pusera-o à beira das lágrimas. Quando ficou exausto e prestes a entrar em colapso, mandaram-no para casa acompanhado de um grande número de cassetes vídeo, com instruções para que as estudasse exaustivamente.

Disseram a Snead que ainda não estava preparado para testemunhar. As suas histórias não resistiriam a um interrogatório cerrado. O pobre homem dirigiu-se para casa ao volante do seu novo Range Rover, cansado e atordoado, mas também firmemente decidido a praticar as suas mentiras até que os advogados aprovassem a sua mestria.

 

O juiz Wycliff sentia prazer nas pequenas refeições que comia no seu gabinete. Como era habitual, Josh comprou sanduíches numa charcutaria grega, próxima do Largo Dupont. Desembrulhou-as juntamente com os pacotes de chá gelado e os pickles, colocando tudo sobre a pequena mesa de canto. Ambos começaram a comer; inicialmente falaram do quanto andavam atarefados, até que sem grandes demoras abordaram o assunto do espólio Phelan. Devia ter havido qualquer coisa de novo, caso contrário Josh não teria telefonado ao juiz.

- Descobrimos o paradeiro de Rachel Lane - começou ele por dizer.

- Esplêndido! Onde? - A expressão de alívio que se espelhou no rosto de Wycliff era indisfarçável.

- Ela obrigou-nos a prometer que não divulgaríamos essa informação. Pelo menos de momento.

- Ela encontra-se no país? - O juiz esqueceu-se momentaneamente da sua sandes de carnes frias.

- Não. Vive numa região muito recôndita, algures no mundo, e bastante contente por viver aí.

- Como é que conseguiu encontrá-la?

- O advogado que a representa foi quem a encontrou.

- Quem é o advogado dela?

- Um fulano que trabalhou na minha firma. Chama-se Nate O'Riley, um antigo sócio. Deixou-nos em Agosto passado.

Wycliff semicerrou os olhos, avaliando aquela informação.

- Mas que coincidência extraordinária. Ela contratar os serviços de um antigo sócio do escritório de advogados que o pai utilizava.

- Não existe coincidência nenhuma - atalhou Josh. - Como advogado que representa o espólio, eu fui forçado a encontrá-la. Incumbi Nate O'Riley dessa missão. Ele descobriu onde é que ela vivia e, consequentemente, Rachel Lane contratou-o. Na realidade, é até muito simples.

- Quando é que ela tenciona aparecer?

- Duvido muito que o faça pessoalmente.

- E quanto aos documentos de notificação e de renúncia.

- Hão-de chegar. Ela é uma mulher muito determinada, e, para lhe ser franco, não tenho a certeza de quais são os seus planos.

- Josh, temos um testamento cuja validade está a ser impugnada. A guerra já começou. Este assunto não pode ser adiado por mais tempo. É forçoso que este tribunal tenha jurisdição sobre ela.

- Juiz, ela nomeou um representante jurídico. Os seus interesses serão acautelados. Sendo assim, estamos prontos a ir à luta. Iniciemos o processo e vejamos o que é que os outros interessados têm a dizer.

- Existe alguma possibilidade de eu falar com ela?

- É impossível.

- Deixe-se disso, Josh.

- Juro-lhe. Veja uma coisa, ela é missionária numa região extremamente remota, num outro hemisfério. Não posso adiantar-lhe mais nada.

- Quero falar com o doutor O'Riley.

- Quando? - perguntou Josh.

Wycliff aproximou-se da sua mesa de trabalho agarrando na agenda que lhe ficava mais próxima. Tinha tantos compromissos. A sua vida era regida pelo sumário dos actos de processos, por um calendário de julgamentos e pelas datas de apresentação de moções. Por sua vez, a secretária mantinha uma agenda das demais actividades do seu gabinete.

- O que é que lhe parece a próxima quarta-feira?

- Óptimo. Durante a hora de almoço? Só nós três, uma reunião informal.

- Com certeza.

 

O advogado O'Riley planeara ler e escrever durante toda a manhã. No entanto, os seus planos foram alterados por um telefonema do pároco.

- Está muito ocupado? - perguntou o padre Phil com a sua voz forte que ressoava através do telefone.

- Bom... não, na verdade, não - respondeu Nate. Estava sentado num sofá fundo de couro, coberto por uma manta de retalhos, junto da lareira, bebendo café enquanto lia Mark Twain.

- Tem a certeza?

- Claro que tenho a certeza.

- Pois bem; estou na igreja a trabalhar na cave, a fazer umas remodelações, e preciso de ajuda. Pensei que talvez se sentisse aborrecido, bem vê, em Saint Michaels não há muita coisa que se possa fazer, pelo menos durante o Inverno. A previsão meteorológica diz que hoje voltará a nevar.

O ensopado de borrego ocorreu imediatamente ao pensamento de Josh. No dia anterior tinha sobrado uma grande porção.

- Estarei aí dentro de dez minutos.

A cave situava-se directamente abaixo do santuário, Nate ouviu o barulho de marteladas enquanto descia cautelosamente os degraus pouco firmes. Era um espaço aberto comprido e largo, com um tecto baixo. Era patente que o processo de remodelação já tivera início há muito tempo, sem que o fim estivesse à vista. O plano geral parecia ser uma série de pequenas divisões junto das paredes que davam para o exterior, deixando um espaço aberto no centro. Nate deparou com Phil no meio de dois cavaletes de carpinteiro, com uma fita métrica na mão e serradura nos ombros. Usava uma camisa axadrezada de flanela, calçava botas, e teria muito facilmente passado por carpinteiro.

- Obrigado por ter vindo - agradeceu o padre com um sorriso rasgado.

- Não tem de quê. De facto, estava aborrecido - retorquiu Nate.

- Estou a fazer algumas divisórias de madeira - explicou ele abrangendo com um gesto da mão o trabalho que fizera até então. - Com duas pessoas a trabalhar é mais fácil. O senhor Fuqua costumava ajudar-me, mas agora já tem oitenta anos e as costas já lhe pregam partidas.

- O que é que está a construir?

- Seis salas de aula para estudos bíblicos. A parte do centro será um local de reunião dos paroquianos. Comecei este projecto há dois anos. O nosso orçamento não nos permite muita coisa em termos de novos projectos, portanto decidi meter mãos à obra. Este tipo de trabalho mantém-me em forma.

Há vários anos que o padre Phil não se encontrava em forma.

- Diga-me o que é que devo fazer - redarguiu Nate. - E não se esqueça de que sou advogado.

- O que significa que não costuma fazer muito trabalho manual, pois não?

- Não - confirmou Nate.

Cada um agarrou na extremidade de uma placa de madeira prensada, esforçando-se por arrastá-la através do chão até à sala de aula em que o pároco andava a trabalhar. A placa media cerca de um metro e vinte por quase dois metros, e quando começaram a erguê-la Nate constatou que realmente era trabalho para duas pessoas. Phil grunhia, franzia o sobrolho e mordia a língua.

- Agora segure-a aí, não a deixe deslocar-se - instruiu o pároco quando a placa se encaixou no resto da estrutura. Nate pressionou a placa contra os dois pilares verticais com cerca de sessenta centímetros por metro e vinte, enquanto Phil, com toda a rapidez, a pregava no seu lugar com os pregos necessários.

Depois de bem segura, martelou mais seis pregos nos pilares verticais, ficando a admirar a sua obra. Em seguida, sacou de uma fita métrica e começou a medir o espaço adjacente em aberto.

- Onde é que aprendeu a arte de carpinteiro? - perguntou Nate observando-o com grande interesse.

- Corre-me no sangue. José era carpinteiro.

- Quem é ele?

- O pai de Jesus.

- Oh, está a referir-se a esse José.

- Costuma ler a Bíblia, Nate?

- Nem por isso.

- Mas devia - disse Phil.

- Gostaria de começar.

- Se quiser, posso ajudá-lo.

- Obrigado.

Phil rabiscou as dimensões na placa de madeira prensada que haviam acabado de instalar. Mediu cuidadosamente, voltando a medir. Ao fim de pouco tempo, Nate compreendeu por que motivo é que aquele projecto levava tanto tempo. Phil não estava com pressa nenhuma, acreditando firmemente num rigoroso regime de intervalos para tomar café.

Decorrida uma hora, subiram as escadas até ao piso principal, dirigindo-se para o gabinete do pároco, onde a temperatura era cerca de quatro graus mais elevada do que na cave. Phil deixara uma cafeteira de café forte no bico de um pequeno fogão. Encheu duas chávenas, começando a examinar as fileiras de livros nas prateleiras.

- Aqui está um guia maravilhoso de devoções diárias, um dos meus preferidos - disse ele retirando um dos livros com gestos cuidadosos, limpando-o como se estivesse coberto de pó, após o que o entregou a Nate. Era um volume encadernado que tinha a sobrecapa intacta. Phil era muito cuidadoso com os seus livros. Seleccionou um outro que também deu a Nate. - Este contém estudos da Bíblia para as pessoas que têm sempre muitos afazeres. É muito bom.

- O que é que o leva a pensar que eu sou uma pessoa muito ocupada?

- Você é um advogado de Washington, não é verdade?

- Tecnicamente, sim, mas esses tempos estão prestes a chegar ao fim. Phil uniu a ponta dos dedos olhando para Nate com uma expressão que

só os eclesiásticos é que conseguem mostrar. Os seus olhos diziam: «Continua. Conta-me mais. Estou aqui para te ajudar.»

Sentindo-se encorajado, Nate partilhou alguns dos seus problemas, passados e presentes, dando ênfase ao apuro em que estava metido por fuga aos impostos, assim como a expulsão iminente da Ordem dos Advogados. Evitaria a cadeia, mas ser-lhe-ia exigido que pagasse uma multa e não tinha meios financeiros para a satisfazer.

A despeito de todas as dificuldades, não se sentia infeliz ao pensar no futuro. Na realidade, sentia um alívio enorme por estar prestes a abandonar a sua profissão.

- O que é que está a pensar fazer? - perguntou Phil.

- Não faço a mais pequena ideia.

- Confia em Deus?

- Sim, acho que sim.

- Então, não tem nada a temer. Ele mostrar-lhe-á o caminho.

Conversaram durante o tempo suficiente para que a manhã se prolongasse até à hora do almoço, altura em que caminharam até à porta contígua e, uma vez mais, se deliciaram com o ensopado de borrego. Laura juntou-se-lhes mais tarde. Trabalhava como educadora de infância, dispondo apenas de meia hora para almoçar.

Por volta das duas da tarde regressaram à cave, onde, com alguma relutância, retomaram o trabalho. Ao constatar o ritmo que Phil imprimia às suas tarefas, Nate ficou convencido de que aquele projecto jamais seria concluído durante a sua vida. Era possível que José tivesse sido um carpinteiro de grande mestria, mas o lugar do padre Phil era no púlpito. Todos os espaços abertos na parede tinham de ser medidos mais de uma vez, ponderados, analisados de vários ângulos, após o que voltavam a ser medidos. A placa de madeira prensada que se destinava ao espaço vazio foi submetida ao mesmo procedimento. Por fim, ao cabo de muitos apontamentos tomados a lápis, os suficientes para confundir um arquitecto, Phil, com grande trepidação, muniu-se da moto-serra e começou a serrar a placa de madeira prensada. Depois de cortada, levaram-na para o espaço aberto, prenderam-na e fixaram-na com pregos. O ajustamento era sempre perfeito, e de cada vez que isso acontecia, Phil mostrava-se genuinamente aliviado.

Duas das salas de aula, à primeira vista, estavam prontas para serem pintadas. Mais ao fim da tarde, Nate decidiu que na manhã seguinte assumiria as funções de pintor.

 

Dois dias passados a executar tarefas agradáveis na cave gelada da igreja da Trindade não produziram muitos resultados. Não obstante, consumiu-se uma grande quantidade de café, e finalmente os restos do ensopado de borrego foram todos comidos, e algumas placas de madeira prensada e pinceladas de tinta foram aplicadas no lugar certo, ao mesmo tempo que tinha início uma nova amizade.

Na terça-feira à noite, Nate tirava pedaços de tinta das unhas quando o telefone começou a tocar. Era Josh que o chamava ao mundo real.

- O juiz Wycliff quer falar contigo amanhã-disse ele. - Tentei ligar-te mais cedo.

- O que é que ele quer? - perguntou Nate numa voz que tentava não trair o receio que sentia.

- Tenho a certeza de que te quererá fazer algumas perguntas sobre a tua nova cliente.

- Estou demasiado ocupado, Josh. Meti-me numa empreitada de remodelação, bem vês, pinturas, instalação de placas de isolamento, coisas desse género.

- Oh, a sério?!

- Sim. Estou a ajudar a remodelar a cave da igreja. O tempo é da maior importância.

- Não te conhecia esses talentos.

- Tenho mesmo de ir, Josh?

- Acho que sim, meu velho. Concordaste em aceitar este caso. Isto para não dizer que já informei o juiz. A tua presença é necessária, meu rapaz.

- Quando e onde?

- Encontramo-nos no meu escritório às onze horas. Vamos no mesmo automóvel.

- Não quero ir ao escritório, Josh. Só me traz más recordações. Encontramo-nos no tribunal.

- De acordo. Está lá ao meio-dia. No gabinete de Wycliff.

Nate acrescentou outro tronco de madeira ao fogo que ardia na lareira, ficando a olhar para os flocos de neve que esvoaçavam pelo alpendre. Podia vestir um fato e andar com uma pasta por onde quer que fosse. Poderia mostrar o aspecto e falar de maneira supostamente apropriada a um advogado. Podia dizer «Meritíssimo» e «Com licença do tribunal», além de também ser capaz de apresentar as suas objecções e submeter as testemunhas a interrogatórios implacáveis. Tinha capacidade para fazer todas essas coisas que milhões de outros faziam, mas deixara de se considerar um advogado. Graças a Deus que aqueles dias tinham passado à história.

Poderia voltar a fazê-lo, mas somente uma vez mais. Nate tentou convencer-se de que procedia dessa maneira para bem da sua cliente, Rachel, embora soubesse que isso lhe seria indiferente.

Ainda não lhe escrevera, embora tivesse planeado essa carta em diversas ocasiões. A que Nate enviara a Jevy levara três horas a redigir, um grande esforço para página e meia.

Depois de três dias passados na neve, sentia saudades das ruas húmidas de Corumbá, com o seu movimento indolente de gente a passear, as esplanadas dos cafés, um ritmo de vida que parecia dizer que tudo poderia esperar até ao dia seguinte. À medida que os minutos iam passando, a neve caía com mais intensidade. Nate pensou que talvez estivesse prestes a desencadear-se outro nevão, o que encerraria todas as estradas, impossibilitando-o de fazer a viagem até Washington.

 

Mais sandes da charcutaria grega, mais pickles e chá. Josh preparou a mesa enquanto esperavam que o juiz Wycliff chegasse.

- Aqui tens o processo do tribunal - disse ele entregando a Nate uma volumosa pasta de lombada vermelha. - E aqui estão as tuas alegações - acrescentou entregando-lhe outra pasta de cartolina amarela. - Precisas de ler isto e assinar o mais depressa possível.

- A herança já deu entrada das alegações? - perguntou Nate.

- Amanhã. As alegações de Rachel Lane estão aí, já se encontram preparadas, aguardando apenas a tua assinatura.

- Há qualquer coisa neste assunto que não bate certo, Josh. Estou a submeter alegações contra a impugnação de um testamento em representação de uma cliente que não tem conhecimento do assunto.

- Envia-lhe uma cópia.

- Para onde?

- Para o único endereço que se lhe conhece, o das Missões Tribos Universais, em Houston, no estado do Texas. Está tudo no ficheiro.

Numa manifestação de frustração perante os preparativos de Josh, Nate abanou a cabeça. Sentia-se como se fosse um peão num jogo de xadrez. A Alegação do Requerente, Rachel Lane, era composta por quatro folhas onde se negava, quer na generalidade quer na especialidade, as alegações apresentadas nas seis petições que impugnavam a validade do testamento. Nate leu-as todas enquanto Josh falava ao telemóvel.

Depois de equacionadas todas as alegações inflamadas, e de destrinçada a terminologia jurídica, o caso apresentava-se com bastante simplicidade: Saberia Troy Phelan o que é que estava a fazer quando escreveu o seu último testamento? Nate tinha a certeza de que o julgamento seria um autêntico circo, com os advogados a colocarem os psiquiatras, de toda a espécie e tipo, no banco das testemunhas. Empregados, ex-empregados, antigas namoradas, pessoal da limpeza, criadas, motoristas, pilotos, guarda-costas, médicos e prostitutas; qualquer pessoa que houvesse passado cinco minutos com o velho seria chamada a tribunal para testemunhar.

Nate sentia que não tinha estômago para aquilo. À medida que ia lendo o processo, este ia-se tornando cada vez mais pesado. Encheria uma sala quando a guerra, finalmente, fosse dada por terminada.

Ao meio dia e meia, o juiz Wycliff fez a sua entrada habitual de pessoa muito atarefada, desculpando-se por ter tanto que fazer enquanto despia a toga apressadamente.

- Você é o Nate O'Riley - disse ele estendendo a mão.

- Sim, senhor juiz, tenho muito prazer em conhecê-lo.

Um pouco a custo, Josh desenvencilhou-se do telefone celular. Ficando apertados, sentaram-se em redor da pequena mesa e começaram a comer.

- Josh disse-me que você conseguiu encontrar a mulher mais rica do mundo - acrescentou Wycliff ao mesmo tempo que engolia apressadamente a sua comida.

- Sim, consegui. Foi há cerca de duas semanas.

- E não me pode dizer onde é que ela vive?

- Ela implorou-me que não dissesse. O que eu lhe prometi.

- Estará ela disposta a vir ao tribunal numa data a indicar posteriormente?

- Ela não será obrigada a isso - explicou Josh. Como seria de esperar, ele precavera-se com um resumo que tinha em arquivo, um memorando em papel do escritório de advogados Stafford, onde era abordada a questão da presença de Rachel aquando do julgamento. - Uma vez que ela não sabe nada a respeito das capacidades mentais do senhor Phelan, nunca poderá vir a ser uma testemunha quanto a essa matéria.

- Mas ela é uma das partes interessadas - argumentou Wycliff.

- Sim, de facto é. Mas a sua presença pode ser dispensada. Nada nos impede de defender os seus interesses sem que ela esteja presente.

- Dispensada por quem?

- Por Vossa Excelência.

- Tenciono apresentar uma moção na altura mais adequada - interveio Nate -, pedindo ao tribunal que permita que o julgamento seja realizado na ausência de Rachel Lane.

Do outro lado da mesa, Josh sorriu-lhe. «Assim é que é, meu rapaz.»

- Calculo que poderemos abordar esse assunto numa fase posterior - redarguiu Wycliff. - Estou mais preocupado com a leitura pública do processo. Acho que é desnecessário dizer que a parte que contesta a validade do testamento está bastante ansiosa para que este assunto tenha um seguimento imediato.

- Amanhã mesmo, como representante do património, darei entrada das nossas alegações - disse Josh. - Estamos preparados para o confronto.

- E quanto à requerente?

- Ainda estou a trabalhar na sua alegação - respondeu Nate com uma expressão sombria, como se andasse há vários dias a trabalhar naquele assunto. - Mas posso apresentá-la amanhã.

- Está preparado para proceder à leitura pública do testamento?

- Sim, meritíssimo.

- Para quando é que podemos esperar os documentos de notificação e renúncia de direitos da sua cliente?

- Não lhe posso indicar uma data exacta.

- Tecnicamente não terei autoridade jurídica sobre a sua cliente até receber esses documentos - argumentou Wycliff.

- Sim, compreendo isso. Tenho a certeza de que nos chegarão às mãos dentro em pouco. O serviço postal de que ela dispõe é bastante moroso.

Josh sorriu ao seu protegido.

- Mas você realmente encontrou-a, mostrou-lhe uma cópia do testamento, explicou-lhe o significado da notificação e da renúncia de direitos, e concordou em representá-la?

- Sim, meritíssimo - respondeu Nate, mas somente porque a isso era obrigado.

- Importa-se de dizer isso mesmo num depoimento ajuramentado para que conste do processo?

- Isso é um pedido um tudo nada invulgar, não lhe parece? - perguntou Josh.

- Talvez seja, mas uma vez que vamos começar a revelar as especificidades do processo sem que haja prova de notificação ou renúncia de direitos por parte da herdeira, quero que fique registado no processo que ela foi contactada e que tem conhecimento daquilo que estamos a fazer.

- Boa ideia, juiz - concordou Josh, como se, para começar, a ideia tivesse sido sua. -Nate assinará o depoimento.

O visado acenou trincando um grande naco da sua sanduíche, na esperança que lhe permitissem acabar de comer sem o obrigarem a dizer mais mentiras.

- Ela mantinha uma relação estreita com Troy Phelan? - perguntou Wycliff.

Nate mastigou durante tanto tempo quanto lhe foi possível antes de responder.

- O que estamos a dizer não vai ficar registado, não é verdade?

- Claro. Isto não passa de uma troca de palavras informal.

Sim, e esse tipo de conversa era o que podia vir a ganhar ou a perder processos judiciais.

- Não me parece que fossem muito chegados. Há vários anos que ela não via o pai.

- Como é que ela reagiu quando leu o testamento?

O tom de voz de Wycliff era realmente o de quem trocava mexericos, e Nate apercebeu-se de que o juiz queria inteirar-se de todos os pormenores.

- Para dizer o mínimo, tenho de admitir que ela se mostrou surpreendida - respondeu Nate com alguma secura.

- Aposto que sim. Perguntou-lhe quanto é que iria herdar?

- Sim, acabou por perguntar. Na minha opinião, acho que se sentiu avassalada, tal como qualquer pessoa no seu lugar.

- Ela é casada? - continuou o juiz.

- Não - respondeu Nate.

Josh compreendeu que as perguntas acerca de Rachel poderiam prolongar-se por mais algum tempo. Além de que eram perigosas. Wycliff não poderia tomar conhecimento, pelo menos de momento, de que Rachel não tinha qualquer interesse em aceitar o legado. Caso ele continuasse a espiolhar, e se Nate se cingisse à verdade, alguma coisa acabaria por ceder.

- Sabe, juiz - atalhou Josh mudando o rumo da conversa como quem não quer a coisa -, este caso não é complicado. A revelação pública dos termos do testamento não levará uma eternidade. Os outros estão ansiosos. Nós estamos ansiosos. Existe um monte de dinheiro à espera e toda a gente lhe quer deitar a mão.

Por que razão é que não havemos de acelerar a exposição dos factos e marcar uma data para o julgamento?

Apressar um caso litigioso, que se prendia com uma homologação, era coisa de que nunca se ouvira falar. Os advogados que normalmente se encarregavam de casos de heranças eram pagos à hora. Qual o motivo de tanta pressa?

- Essa é uma sugestão interessante - comentou Wycliff. - O que é que tem em mente?

- Que tenhamos uma reunião assim que seja viável, onde se procederá à leitura pública do testamento. Reuniremos todos os advogados ao mesmo tempo, pedindo a cada um que apresente uma lista de documentos e testemunhas em perspectiva, com vista a uma possível decisão judicial. Dar-se-ia um prazo de trinta dias para que fossem apresentados todos os depoimentos e, se for caso disso, marcar-se-ia o julgamento para daqui a noventa dias.

- Sendo assim, tudo se processaria com uma rapidez excessiva - contrapôs Wycliff.

- Procedemos constantemente desta maneira no tribunal federal. Acredite que funciona. Os advogados que representam a outra parte aproveitarão a oportunidade imediatamente, porque os seus clientes estão todos falidos.

- E quanto a si, doutor O'Riley? A sua cliente também está ansiosa por receber o dinheiro?

- No lugar dela, não estaria, senhor doutor juiz? - perguntou Nate. Os três desataram a rir-se.

 

Quando Grit, finalmente, conseguiu entrar em comunicação telefónica com Hark através da linha destinada aos casos litigiosos, as suas primeiras palavras foram:

- Estou a pensar em ir falar com o juiz.

- Muito bom-dia para si também, Grit - replicou Hark depois de ter carregado no botão de gravação do seu aparelho.

- Sou bem capaz de contar ao juiz toda a verdade, que Snead vendeu o seu testemunho por cinco milhões de dólares, e que nada do que ele disser corresponderá à verdade.

Hark riu-se num tom de voz apenas suficientemente elevado para Grit poder ouvi-lo.

- Você não pode fazer isso, Grit.

- Claro que posso.

- Você não está a mostrar muita inteligência, pois não? Ouça o que lhe digo, Grit. Em primeiro lugar, assinou o impresso do empréstimo, tal como nós fizemos, o que o implica em qualquer acção menos correcta que possa vir a alegar. Em segundo lugar, e muito importante, tem conhecimento da existência de Snead pela simples razão de ter estado envolvido no caso como representante de Mary Ross. Ora acontece que a relação advogado-cliente é confidencial. Caso venha a divulgar qualquer informação de que tenha tomado conhecimento na qualidade de advogado, isso significa que estará a quebrar essa confidencialidade. Se fizer alguma estupidez, ela apresentará queixa junto da Ordem dos Advogados, e eu, pessoalmente, certificar-me-ei de que venha a ser expulso da Ordem. Ficará impossibilitado de exercer advocacia, Grit. Compreendeu o que lhe disse?

- Você é escumalha, Gettys. Roubou-me a minha cliente.

- Se a sua cliente estivesse satisfeita com os seus serviços, o que é que a teria levado a procurar outro advogado?

- Ainda não acabei consigo.

- Não faça nenhum disparate.

Grit desligou o telefone batendo com o auscultador no descanso. Hark saboreou o momento, após o que retomou o seu trabalho.

 

Nate seguiu sozinho no seu automóvel até ao centro da cidade, atravessando o rio Potomac, passando pelo monumento em homenagem a Lincoln e deslocando-se tranquilamente por entre o trânsito sem grandes pressas. Os flocos de neve embatiam no pára-brisas, embora os nevões mais cerrados ainda não se tivessem materializado. Chegado à Avenida Pensilvânia, quando parou junto de um semáforo com a luz vermelha, viu o edifício através do espelho retrovisor, intercalado entre mais uns doze, onde passara a maior parte dos últimos vinte e três anos. A janela do seu gabinete era no sexto andar. Mal conseguia distingui-la.

Na Rua M, seguindo para Georgetown, começou a avistar os locais que costumara frequentar - os velhos bares e espeluncas onde tinha passado horas longas e sombrias, na companhia de pessoas de quem já não conseguia recordar-se. No entanto, ainda era capaz de se recordar do nome dos empregados dos bares. Todos os pubs tinham uma história. Nos dias em que bebia, qualquer dia mais difícil no escritório ou na sala de um tribunal teria de ser impreterivelmente suavizado por algumas horas passadas a tomar bebidas alcoólicas. Não era capaz de ir para casa sem esse paliativo. Dobrou a esquina da Wisconsin, avistando um bar onde numa ocasião se metera numa rixa com um universitário, um rapaz mais bêbedo do que ele próprio. Uma das colegas do rapaz, uma rapariga espalhafatosa, fora o pomo da discórdia. O empregado por detrás do balcão do bar mandou-os para a rua, dizendo-lhes que resolvessem a disputa à força dos punhos.

Na manhã seguinte, Nate fora forçado a ir para o tribunal com um adesivo no rosto.

Também reparou num pequeno café onde comprara cocaína suficiente para ter estado quase a matar-se. A brigada anti-estupefacientes tinha passado uma busca ao estabelecimento quando ele se submetia a uma cura de desintoxicação. Dois dos seus compinchas, corretores da bolsa, tinham ido parar à cadeia.

Nate passara os seus dias de orgias gloriosas naquelas ruas, enquanto as ex-mulheres esperavam que fosse para casa, e os filhos cresciam sem a presença do pai. Sentia-se envergonhado pela infelicidade que lhes causara. Quando saía de Georgetown jurou a si mesmo que nunca mais voltaria ali.

Quando chegou à casa de cidade dos Stafford, carregou o automóvel com mais roupas e artigos de higiene, partindo imediatamente a grande velocidade.

Na algibeira tinha um cheque no valor de dez mil dólares, o primeiro mês de honorários. O IRS queria receber sessenta mil dólares em impostos atrasados que não haviam sido pagos. A multa, no mínimo, seria do mesmo montante. Devia à segunda ex-mulher aproximadamente trinta mil dólares, correspondentes à falta de pagamento das pensões alimentares dos filhos; os compromissos financeiros mensais haviam-se acumulado enquanto ele recuperara com a ajuda de Sérgio.

O facto de ter declarado falência pessoal não o desobrigava daquelas dívidas. Admitiu que, em boa verdade, o seu futuro financeiro se apresentava bastante sombrio. Os filhos mais novos custavam-lhe três mil dólares mensais, cada um, em pensão alimentar. Os dois mais velhos ficavam-lhe quase tão caros em propinas universitárias e alojamento. Poderia viver do dinheiro que o espólio Phelan lhe pagaria durante alguns meses, mas a julgar pela forma como Josh e Wycliff tinham falado, deduzia que a decisão judicial seria apresentada mais cedo do que inicialmente se pensara. Logo que esse assunto fosse encerrado de uma vez por todas, Nate teria de se apresentar a um juiz federal, perante quem se daria como culpado por evasão fiscal, entregando a licença que lhe permitia praticar advocacia.

O padre Phil começara a ensinar-lhe a não se preocupar com o futuro. Deus costumava tomar conta dos Seus.

Uma vez mais, Nate interrogou-se se Deus não estaria a receber mais do que aquilo que poderia ter desejado.

Em virtude de ser incapaz de escrever em qualquer papel além das folhas dos blocos de apontamentos de papel amarelo com linhas bem espaçadas e margens folgadas, Nate agarrou num e tentou iniciar uma carta endereçada a Rachel.

Tinha a morada da Tribos Universais, em Houston. Tencionava assinalar o sobrescrito que endereçaria a Rachel Lane com «Pessoal e Confidencial», apensando-lhe uma pequena missiva de explicação: «A Entregar à Interessada».

Haveria de haver alguém na organização da Tribos Universais que saberia quem ela era e onde se encontrava. Talvez existisse alguém que soubesse que Troy Phelan era o seu pai biológico. Era possível que essa pessoa tivesse juntado dois mais dois, pelo que presentemente saberia que Rachel era a herdeira dessa fortuna.

Nate também supunha que Rachel entraria em contacto com a organização Tribos Universais, no caso de ainda não o ter feito. Estivera em Corumbá na altura em que o visitara no hospital. Parecia-lhe ser razoável acreditar que tivesse telefonado para Houston, informando alguém da visita que ele lhe fizera.

Rachel também mencionara o orçamento anual que a Tribos Universais lhe concedia. Tinha de existir um método de correspondência postal. Na hipótese de a sua carta ir parar às mãos certas nos escritórios em Houston, haveria a possibilidade de vir a ser remetida para o lugar apropriado em Corumbá.

Começou por escrever a data, ao que acrescentou «Querida Rachel».

Passou uma hora a olhar para o fogo que ardia na lareira, tentando pensar nas palavras que lhe pareciam ser as mais inteligentes. Finalmente, recomeçou a redacção da carta com um parágrafo sobre a neve. Teria ela saudades da neve da sua meninice? O tempo seria o mesmo em Montana? Do lado de fora da janela, acumulara-se no solo cerca de trinta centímetros.

Sentiu-se compelido a confessar que estava a agir como seu advogado; assim que entrou no ritmo da terminologia jurídica, o texto da carta fluiu-lhe com facilidade. Explicou-lhe por palavras tão simples quanto lhe foi possível, todos os trâmites relativos ao processo judicial.

Escreveu-lhe sobre o padre Phil, a igreja e a cave. Começara a estudar a Bíblia e estava a gostar. Rezava por ela.

Quando terminou, a missiva era composta por três páginas, o que fez com que Nate se sentisse bastante orgulhoso de si próprio. Leu-a por duas vezes, tendo concluído que merecia ser enviada. Se, não sabia bem como, ela encontrasse o caminho da palhota de Rachel, Nate sabia que ela a leria inúmeras vezes, sem sequer lhe dedicar o mais pequeno pensamento quanto a qualquer falha de estilo na sua escrita.

Sentia-se desejoso de poder vê-la de novo.

 

Uma das razões para a falta de progressos nas obras da cave da igreja, devia-se à propensão que o padre Phil tinha para dormir até tarde. Laura dizia que saía de casa todas as manhãs, durante os dias de semana, às oito horas para ir trabalhar no jardim infantil, e, em mais de metade desses dias, o pároco ficava aninhado debaixo dos cobertores. Era uma ave noctívaga, alegava ele em sua defesa, adorando ver os filmes antigos a preto e branco que a televisão transmitia depois da meia-noite.

Por conseguinte, quando ele telefonou às sete e trinta da manhã de sexta-feira, Nate ficou surpreendido.

- Já leu o Post? - perguntou ele.

- Não costumo ler os jornais - replicou Nate. Perdera esse hábito durante o último período de desintoxicação. Em contrapartida, Phil costumava ler cinco jornais diários. Os artigos que a imprensa publicava constituíam uma boa fonte de material para os seus sermões.

- Talvez deva ler - acrescentou o pároco.

- Porquê?

- Porque publicaram uma história a seu respeito.

Nate calçou as botas e percorreu dois quarteirões até um café na rua principal. Na primeira página de um jornal local vinha publicado um bom artigo que abordava a procura da herdeira perdida de Troy Phelan. O processo por meio do qual ela, fazendo-se representar pelo seu advogado, o doutor Nate O'Riley, disputava as alegações dos que contestavam a validade do último testamento do seu falecido pai, dera entrada no dia anterior, já bastante tarde, no tribunal de círculo do condado de Fairfax. Uma vez que não havia muito que se pudesse dizer sobre Rachel, a história concentrava-se no seu advogado. De acordo com o seu depoimento ajuramentado, que também fora apresentado em tribunal, ele descobrira o paradeiro de Rachel Lane, tendo-lhe mostrado uma cópia do testamento escrito à mão, discutindo com ela os vários aspectos de natureza jurídica, após o que fora nomeado, não se sabia bem como, seu advogado. O artigo não dava qualquer indicação exacta quanto ao actual local da residência de Rachel Lane.

O doutor O'Riley fora, em tempos, sócio do escritório de advogados Stafford; era um advogado proeminente especializado em litigações; abandonara a firma em Agosto passado. Em Outubro apresentara um processo de falência pessoal; fora indiciado em Novembro e havia uma acusação final, ainda pendente, em que era acusado de evasão fiscal. O IRS afirmava que ele lhes devia sessenta mil dólares de impostos em atraso. Certificando-se de que cobria tudo o que dizia respeito à vida do advogado, o repórter acrescentava que ele se divorciara por duas vezes, o que não tinha o mínimo interesse para o caso. Para completar a humilhação, o artigo era acompanhado de uma fotografia que não o beneficiava em nada, uma em que Nate tinha um copo na mão, tendo sido fotografado num bar em D. C. por ocasião de um evento qualquer, que tivera lugar há muitos anos. Examinou a imagem granulada que reproduzia a sua pessoa, com os olhos brilhantes, as faces avermelhadas pelo álcool, um sorriso apatetado como se estivesse na companhia de pessoas de quem gostava. Era deveras constrangedor, mas tinha de levar em consideração que aquilo pertencia a outra vida.

Como é evidente, nenhuma história estaria completa sem uma rápida narrativa das estatísticas escabrosas da vida e morte de Troy Phelan - três mulheres, sete filhos, pelo menos os que se lhe conheciam, bens no valor de mais ou menos onze mil milhões de dólares, sem esquecer o seu último voo da varanda de um décimo quarto andar.

O doutor O'Riley não pudera ser contactado para qualquer comentário. Por seu lado, o doutor Stafford não tinha nada a acrescentar. Os advogados dos outros herdeiros da família Phelan já haviam dito tanta coisa que, evidentemente, nenhum repórter lhes pedira que fizessem mais comentários.

Nate dobrou o jornal e regressou à casa de campo de Josh. Eram oito horas e trinta minutos. Ainda tinha hora e meia antes que os trabalhos de remodelação começassem na cave da igreja.

Os sabujos agora já conheciam o seu nome, mas farejarem-lhe o rasto seria uma tarefa mais difícil. Josh arranjara as coisas de forma a que a sua correspondência transitasse através de uma caixa postal em D. C. Tinha um novo número de telefone que correspondia a um escritório em nome de Nathan F. O'Riley, Advogado. Os telefonemas eram atendidos por uma secretária no escritório de Josh que tomava nota das mensagens.

Em Saint Michaels, só o pároco e a mulher é que conheciam a sua identidade. Corria que Nate era um advogado endinheirado de Baltimore que andava a escrever um livro.

Manter-se escondido era um vício. Talvez fosse por essa razão que Rachel adoptara esse estilo de vida.

Todos os advogados dos Phelan, os quais, no seu todo, se sentiram electrificados com a notícia, receberam cópias das alegações de Rachel Lane. Provava-se que ela estava viva e disposta a fazer-lhes frente, se bem que a sua escolha de advogado fosse um tanto ou quanto intrigante. A reputação de que O'Riley gozava era importante - um litigante eficiente, com rasgos de brilhantismo, mas que era incapaz de suportar as pressões da sua profissão. Contudo, os advogados da família Phelan desconfiavam que quem mandava dos bastidores era Josh Stafford, opinião que também era partilhada pelo juiz Wycliff. Fora ele quem dera a mão a O'Riley depois de um período de desintoxicação, de que ele saíra limpo de substâncias nocivas, e encarregara-o daquela causa, indicando-lhe a direcção da sala de tribunal.

Os advogados dos Phelan reuniram-se na sexta-feira de manhã no escritório da doutora Langhorne, um edifício de linhas modernas entre muitos dos que se situavam na Avenida Pensilvânia, no bairro empresarial. A sua firma almejava alcançar o topo - com apenas quarenta advogados não tinha dimensão suficiente para atrair os clientes mais importantes do mundo empresarial, o que não obstava a que a administração fosse ambiciosa. A decoração era ostensiva, com traços de pretensões mais elevadas, os tiques de um bando de advogados desesperados por entrarem nas altas esferas da advocacia.

Haviam combinado reunir-se uma vez por semana, todas as sextas-feiras às oito da manhã, reuniões essas que não deveriam ultrapassar duas horas, e cuja finalidade era discutirem os aspectos litigiosos da herança Phelan, na sequência do que arquitectavam planos de acção. A ideia partira de Langhorne. Apercebera-se de que teria de desempenhar o papel de mediadora, enquanto os rapazes se mantinham ocupados a pavonearem-se entre discórdias mesquinhas. Para não mencionar que havia muito dinheiro que poderia vir a ser perdido num julgamento onde os requerentes, todos num dos lados da sala, se apunhalavam pelas costas.

Pelo menos na sua opinião, parecia-lhe que as investidas haviam chegado ao fim. Os seus clientes, Geena e Cody, mantinham-se inabaláveis. Ao que tudo indicava, Yancy conseguia manter as rédeas de Ramble bem esticadas. Por seu lado, Wally Bright vivia praticamente com Libbigail e Spike.

Hark representava os outros três - Troy Júnior, Rex e Mary Ross -, parecendo dar-se por satisfeito com o que lhe coubera em sorte. A poeira começara a assentar em redor dos herdeiros. Os relacionamentos eram cada vez mais familiares. As questões em jogo haviam sido definidas. Os advogados compreendiam que a única opção era trabalhar em equipa, caso contrário corriam o risco de vir a perder a causa.

A questão número um era Snead. Tinham passado horas consecutivas a ver os vídeos dos seus primeiros esforços como testemunha; todos haviam preparado apontamentos minuciosos para aperfeiçoar o desempenho do homem. Os enredos que engendravam eram vergonhosos. Yancy, em épocas passadas, aspirara a vir a ser argumentista, chegando ao ponto de elaborar um guião de cinquenta páginas destinado a Snead, em que as alegações despudoradas eram suficientes para fazer com que o pobre Troy Phelan parecesse ter sido completamente desarranjado do juízo.

A número dois era Nicolette, a secretária. Dentro de alguns dias tencionavam submetê-la impiedosamente à prova do vídeo, sendo necessário que ela dissesse determinadas coisas. Bright saiu-se com a ideia de que talvez o velho tivesse sido acometido por uma trombose, enquanto tinha relações sexuais com ela horas antes de se submeter ao exame levado a cabo pelos três psiquiatras, o que poderia ser testemunhado em tribunal tanto por Nicolette como por Snead. Uma trombose traduzir-se-ia numa diminuição das suas capacidades mentais. Uma ideia que não era descabida de todo e que, de uma maneira geral, foi bem aceite por todos, tendo dado origem a uma discussão alongada sobre a autópsia. O pobre do homem, estatelado no piso de tijoleira, tendo sofrido um trauma terrível no crânio, tal como seria de esperar. Poderia a autópsia revelar a existência de uma trombose?

A questão número três prendia-se com os peritos contratados pelos advogados. O psiquiatra de Grit abandonara apressadamente o caso juntamente com este, pelo que haviam ficado reduzidos a quatro, um por cada firma. Durante um julgamento, quatro não seria um número difícil de gerir, de facto, quatro poderiam ser persuasivos, muito em especial se todos chegassem às mesmas conclusões, ainda que por vias diversas. Todos concordaram em que também deveriam ensaiar os testemunhos dos seus psiquiatras, submetendo-os a um interrogatório cerrado, em que tentariam abalar os seus testemunhos exercendo sobre eles em elevado grau de pressão.

A número quatro tinha a ver com outras testemunhas. Era forçoso que encontrassem outras pessoas que tivessem mantido contactos com o velho, durante os últimos dias que antecederam a sua morte. Snead poderia ajudá-los nesse assunto.

A última alínea a ser debatida era a presença de Rachel Lane e do seu advogado.

- Não existe nada no processo que tenha sido assinado por essa mulher - disse Hark. - É como se fosse uma renúncia de direitos. Ninguém sabe onde vive, à excepção do advogado que a representa, e esse não diz nada quanto a esse assunto. Foi preciso um mês para que descobrissem o seu paradeiro. Ela ainda não assinou nada. Tecnicamente, o tribunal não tem jurisdição sobre ela. Na minha opinião, é por demais evidente que esta mulher sente relutância em se dar a conhecer.

- O que também acontece com algumas das pessoas que ganham a sorte grande - interveio Bright. - Querem manter o assunto em segredo, para que todos os vadios da vizinhança não comecem a bater às suas portas.

- E se ela não quiser aceitar o dinheiro? - sugeriu Hark, uma pergunta que deixou todos os presentes estupefactos.

- Isso é um autêntico disparate - contrapôs Bright, impelido pelo seu instinto com as palavras a morrerem-lhe na boca, ao considerar a probabilidade do impossível.

Enquanto abanavam a cabeça, numa manifestação de incredulidade, Hark insistiu no assunto.

- Trata-se apenas de um pensamento, mas acho que devíamos levá-lo em linha de conta. Ao abrigo da lei em vigor na Virgínia, qualquer pessoa poderá renunciar a uma doação testamentária. Nesse caso, a herança continuará a fazer parte do património, sujeita às provisões dos demais bens. Na hipótese de este testamento vir a ser dado como nulo, e não existirem outros testamentos, isso significa que os sete filhos de Troy Phelan partilharão em partes iguais o espólio no seu todo. Admitindo que Rachel Lane renunciaria a todos os bens, os nossos clientes acabariam por partilhá-los entre si.

Os cálculos estonteantes começaram a desfilar pelo pensamento dos advogados. Onze mil milhões de dólares, menos o que seria deduzido em imposto sucessório, a dividir por seis. A este número aplicar-se-ia a percentagem acordada, e estariam perante a probabilidade de uma riqueza considerável. Os honorários de sete dígitos transformaram-se em honorários compostos por oito dígitos.

- Essa probabilidade parece-me um tudo nada forçada - argumentou Langhorne numa voz lenta enquanto o seu cérebro continuava num frenesi, elaborando os cálculos matemáticos.

- Não estou assim tão seguro de que seja - redarguiu Hark. Era óbvio que ele sabia mais do que os outros. Uma renúncia de direitos é um documento muito simples de executar.

Esperar-se-á que nós acreditemos que o doutor O'Riley viajou até ao Brasil, encontrou Rachel Lane, pô-la ao corrente do que aconteceu a Troy Phelan, fez com que ela o contratasse, mas não conseguiu obter uma simples assinatura num documento, pouco extenso, que daria ao tribunal o poder de jurisdição? Há qualquer coisa aqui que não bate certo.

- Brasil? - interrogou Yancy, o primeiro a reagir.

- Sim. Ele acabou de regressar do Brasil.

- Como é que teve conhecimento dessa viagem?

Com movimentos lentos, Hark pegou numa pasta de cartolina de onde retirou alguns papéis.

- Tenho um investigador que é muito bom - informou ele. Na sala fez-se silêncio. - Ontem, depois de ter recebido as alegações de Rachel Lane e o depoimento ajuramentado do doutor O'Riley, tal como vocês receberam, telefonei para esse investigador. Em três horas apenas, inteirou-se do seguinte: No dia vinte e dois de Dezembro, Nate O'Riley partiu do Aeroporto de Dulles a bordo do voo directo 882 da Varig com destino a São Paulo. Quando chegou a essa cidade, seguiu num outro voo da Varig, o 146, para Campo Grande, onde apanhou o voo doméstico da Air Pantanal até uma pequena cidade do interior, Corumbá, onde chegou no dia vinte e três. Ele permaneceu nessa região durante quase três semanas, após o que regressou ao Aeroporto de Dulles.

- Talvez tenha ido de férias - alvitrou Bright entredentes. Estava tão abismado como os outros.

- É possível, mas duvido muito. O doutor O'Riley passou o último Outono numa clínica de desintoxicação, o que não aconteceu pela primeira vez. Estava na clínica quando Troy saltou para a morte. Teve alta no último instante, no mesmo dia em que partiu para o Brasil. A viagem tinha um único objectivo: descobrir Rachel Lane.

- Como é que está a par de tudo isso? - perguntou Yancy sem se conseguir conter.

-Na realidade, estas informações não são muito difíceis de obter. Especialmente, os pormenores relativos aos voos. Qualquer detective particular é capaz de as obter.

- Como é que soube que ele estava internado numa clínica de desintoxicação?

- Espiões - replicou Hark sem adiantar mais nada.

Fez-se um grande silêncio dando-lhes tempo para digerirem aquela resposta. Sentiam-se todos imbuídos de um sentimento ambivalente: desprezo e admiração por Hark. Dava a impressão de estar sempre de posse de informações que desconheciam, e contudo, naquela altura ele estava do seu lado. Formavam uma equipa.

- Estamos perante a situação de saber quem é que levará a melhor - continuou Hark. - Vamos insistir para que o processo seja tornado público o mais depressa possível. Vamos atacar a validade do testamento como se a nossa vida dependesse disso. Não vamos dizer nada quanto ao facto de o tribunal não ter jurisdição sobre Rachel Lane. Caso ela não compareça pessoalmente, ou por documento que protele a aceitação dos seus direitos, então teremos uma indicação excelente de que não deseja tomar posse da herança.

- Jamais acreditarei numa coisa dessas - disse Bright.

- O que se deve ao facto de você ser um advogado.

- E você, o que é que é?

- O mesmo, com a diferença que não sou tão ganancioso. Quer acredite quer não, Wally, existem pessoas neste mundo que não são motivadas pelo dinheiro.

- São em número de vinte - interveio Yancy. - E são todos meus clientes.

Ouviram-se algumas risadas tímidas que desanuviaram a tensão.

Antes de darem a reunião por encerrada, uma vez mais os advogados forçaram-se em concordar que tudo o que havia sido dito era confidencial. Embora todos acatassem essa decisão, nenhum confiava inteiramento nos outros. As notícias respeitantes ao Brasil eram particularmente melindrosas.

 

O sobrescrito era castanho e ligeiramente maior do que o tamanho normalizado. Além da indicação do destinatário em Houston, a organização Tribos Universais, estava escrito em letras de imprensa a negro: Para Rachel Lane, Missionária na América do Sul, Pessoal e Confidencial.

Foi recebido pelo funcionário que distribuía a correspondência, que o examinou durante alguns momentos antes de o fazer seguir para o andar de cima, onde seria entregue a um dos seus superiores hierárquicos. O sobrescrito continuou a sua jornada ao longo da manhã até que foi parar, ainda por abrir, à secretária de Neva Colher, a coordenadora da Missões da América do Sul. Ficou sem respiração, não querendo acreditar no que via - ninguém sabia que Rachel Lane era uma das missionárias da Tribos Universais. Isto é, ninguém além dela própria.

Era evidente que quem fizera transitar o sobrescrito não estabelecera a ligação entre o nome do destinatário e o nome que aparecera nas notícias mais recentes. Era uma manhã de segunda-feira, dia em que os escritórios não estavam muito activos.

Neva trancou a porta do seu gabinete. No interior do sobrescrito havia uma carta endereçada a «Quem Conheça a Interessada», acompanhada de um outro sobrescrito mais pequeno devidamente fechado. Começou a ler as palavras em voz alta, estupefacta, ao constatar que havia alguém que conhecia, ainda que parcialmente, a identidade de Rachel Lane.

«Para Quem Conheça a Interessada,

Em anexo, envio uma carta endereçada a Rachel Lane, uma das vossas missionárias que trabalha no Brasil. Agradeço que lhe seja enviada por abrir.

Conheci Rachel há mais ou menos duas semanas. Encontrei-a no Pantanal, a viver entre os índios ipicas, onde, tal como é do vosso conhecimento, ela vive há onze anos. O objectivo da minha visita foi tratar de uma questão de natureza jurídica que se encontra pendente.

Para vossa informação, acrescento que ela está bem. Prometi a Rachel que não daria a conhecer a ninguém, quaisquer que fossem as circunstâncias, o local onde vive. Ela não deseja ser perturbada com mais qualquer assunto de carácter jurídico, e eu concordei em respeitar o seu desejo.

Ela precisa de dinheiro para comprar um barco novo a motor, e também tem necessidade de fundos adicionais que lhe permitam adquirir medicamentos. Será com todo o prazer que enviarei um cheque a favor da vossa organização que cubra estas despesas; só têm de me informar dos pormenores para que possa fazer esta doação.

Tenciono voltar a escrever a Rachel, apesar de não fazer a mais pequena ideia da maneira como a correspondência chega às suas mãos. Será possível que me façam o favor de me escreverem algumas linhas, dizendo-me se esta carta foi recebida e se a missiva que enviei a Rachel chegou às suas mãos? Com os meus agradecimentos.»

 

Era assinada por Nate O'Riley. No rodapé da carta estava indicado um número de telefone em Saint Michaels, Maryland, assim como o endereço de um escritório de advogados em Washington.

Manter correspondência com Rachel era bastante fácil. Duas vezes por ano, nos dias um de Março e Agosto, a Tribos Universais enviava encomendas para os correios de Corumbá. Nestas incluíam-se fornecimentos de medicamentos, literatura da religião cristã, e qualquer outra coisa de que ela pudesse necessitar ou desejar. A estação dos correios concordara em guardar as encomendas de Agosto durante trinta dias, e, caso não fossem levantadas, seriam devolvidas ao remetente em Houston. O que nunca acontecera. Em Agosto de todos os anos, Rachel fazia a sua caminhada anual até Corumbá, ocasião que aproveitava para telefonar para a organização, praticando o seu inglês durante dez minutos. Recebia as suas encomendas e voltava para junto dos ipicas. Em Março, depois da estação das chuvas, as encomendas eram enviadas rio acima, transportadas por uma chalana, sendo entregues numa das fazendas próximas da foz do rio Xeco. Mais cedo ou mais tarde, Lako acabava por ir buscá-las. Os embrulhos enviados em Março eram sempre mais pequenos do que os que eram remetidos em Agosto.

Ao longo de onze anos, Rachel nunca recebera uma carta que lhe fosse endereçada pessoalmente, pelo menos através da organização Tribos Universais.

Neva copiou para um bloco de apontamentos o número de telefone e a morada, após o que escondeu a carta dentro de uma gaveta.

Enviá-la-ia dentro de mais ou menos um mês, juntamente com as encomendas que seguiam sempre em Março.

 

Trabalharam durante quase duas horas, cortando placas com cerca de sessenta centímetros por metro e vinte, que se destinavam à sala de aula seguinte. O chão estava coberto de serradura. O som da serra com que cortavam a madeira continuava a ecoar nos ouvidos dos dois homens. Estava na hora de tomarem um café. Sentaram-se no chão com as costas contra a parede, perto de um aquecedor portátil. Encheram as chávenas com um café com leite forte contido numa garrafa termos.

- Ontem perdeu um sermão excelente - disse Phil com um esgar sorridente.

- Onde?

- O que é que quer dizer com isso, onde? Aqui, é claro.

- Qual foi o tema?

- O adultério.

- A favor ou contra?

- Contra, como sempre.

- Não me parece que esse assunto seja um grande problema entre os seus paroquianos.

- Costumo fazer este sermão uma vez por ano.

- Sempre o mesmo sermão?

- Sim, mas sempre actualizado.

- Quando é que foi a última vez que um membro da sua congregação teve um problema de adultério?

- Há uns dois anos. Um dos membros mais jovens da nossa paróquia convenceu-se de que o marido tinha outra mulher em Baltimore. Ele tinha de viajar até lá uma vez por semana por causa dos seus negócios, tendo ela reparado que quando ele regressava a casa era um homem diferente. Tinha mais energia, mais entusiasmo pela vida. Esse estado de espírito mantinha-se durante uns dois ou três dias, após o que ele assumia a sua personalidade habitual, mostrando-se carrancudo. Ela convenceu-se de que ele se tinha apaixonado.

- Deixe-se de rodeios.

- Ele ia consultar um quiroprático.

Phil riu-se estrondosamente através do nariz, emitindo um som cacarejante que era contagiante e que, habitualmente, era mais divertido do que o final de qualquer piada. Quando o ataque de bom humor passou, beberam o café simultaneamente.

- Na sua outra vida, Nate, alguma vez teve problemas com o adultério? - perguntou Phil.

- Nunca, de maneira alguma. Não se tratava de um problema, mas sim de uma maneira de viver. Eu andava atrás de tudo o que caminhasse. Qualquer mulher, mais ou menos atraente, não significava mais do que uma «rapidinha» potencial. Eu era casado, mas nunca pensei que estivesse a cometer adultério. Não era um pecado; era um mero jogo. Phil, eu era um cachorrinho doente.

- Não devia ter-lhe feito essa pergunta.

- Não, pelo contrário, a confissão faz bem à alma. Sinto vergonha da pessoa que costumava ser. Das mulheres, das bebidas, das drogas, dos bares, das rixas, dos divórcios, dos filhos que negligenciei... a minha vida estava num autêntico caos. Quem me dera poder voltar a esses dias para alterar a minha atitude. Mas é importante que agora não me esqueça o ponto até onde avancei.

- Ainda lhe restam muitos anos bons, Nate.

- Só espero que sim. A questão é que não tenho a certeza do que fazer daqui para a frente.

- Seja paciente. Deus mostrar-lhe-á o caminho.

- Claro que sim, à velocidade a que avançamos, tudo me diz que posso vir a ter uma carreira bastante prolongada por aqui.

Phil sorriu mas não desatou a rir com o seu riso casquinado.

- Continue a estudar a Bíblia, Nate, e reze. Deus precisa de pessoas como você.

- Suponho que sim.

- Confie em mim. Levei dez anos até encontrar a vontade de Deus. Durante algum tempo corri sem rumo certo, mas depois parei e escutei. A pouco e pouco, Ele indicou-me o caminho da religião.

- Nessa altura, que idade tinha?

- Tinha trinta e seis anos quando entrei no seminário.

- Era o mais velho?

- Não. Não é invulgar ver pessoas na casa dos quarenta que frequentam o seminário. Está sempre a acontecer.

- Quantos anos é que são necessários?

- Quatro anos.

- É pior do que a Faculdade de Direito.

- Não foi mau, mesmo nada. De facto, foi bastante agradável.

- Não posso dizer o mesmo em relação à Faculdade de Direito.

Continuaram a trabalhar por mais uma hora até à hora do almoço. Finalmente, a neve começara a derreter-se na sua totalidade, e havia um restaurante onde Phil gostava de ir, um pouco mais à frente, em Tilgham, cuja especialidade era caranguejos. Nate sentia-se ansioso por poder pagar-lhe um almoço.

- Tem um belo carro - comentou o pároco enquanto colocava o cinto de segurança. A serradura que tinha nos ombros espalhou-se pela superfície do assento de pele do Jaguar, cujo interior não tinha um grão de poeira. O que para Nate era completamente indiferente.

- É um carro de advogado; claro que o comprei em leasing, uma vez que não tinha dinheiro para o comprar a pronto. Pago oitocentos dólares por mês.

- Lamento muito.

- Adoraria ver-me livre dele e comprar um pequeno jipe ou qualquer coisa do género.

A Estrada 33 estreitava-se na linha limítrofe da pequena cidade; pouco depois rolavam pela via sinuosa que acompanhava a baía.

Estava deitado na cama, embora não estivesse a dormir, quando a campainha do telefone tocou. Eram apenas vinte e duas horas, mas o seu organismo continuava habituado à rotina de Walnut Hill, a despeito da viagem que fizera ao hemisfério sul. Por vezes, ainda sentia alguma fadiga residual que lhe ficara da febre de dengue.

Era difícil acreditar que durante grande parte da sua vida profissional tinha trabalhado até às nove e dez da noite, jantando num bar qualquer onde ficaria a beber até à uma da madrugada. Sentiu-se deprimido só de pensar nesse modo de vida.

Dado ser raro que o telefone tocasse, atendeu imediatamente com o pressentimento de que aquele telefonema não lhe traria boas notícias.

- Gostaria de falar com o doutor Nate O'Riley, por favor - disse uma voz feminina.

- Fala Nate O'Riley.

- Boa-noite, senhor doutor. O meu nome é Neva Colher; recebi uma carta sua endereçada à nossa amiga no Brasil.

A coberta da cama foi arremessada para o chão enquanto Nate dava um salto para fora da cama.

- Sim! Recebeu a minha carta?

- Recebemos. Li-a esta manhã e vou remeter a Rachel a missiva que lhe enviou.

- Magnífico! Como é que ela costuma receber a correspondência?

- Ao longo do ano, em datas previamente combinadas, envio-a para Corumbá.

- Agradeço-lhe essa informação. Gostaria de lhe escrever outra vez.

- Isso não constitui problema nenhum, mas por favor não ponha o nome dela nos sobrescritos.

Foi então que ocorreu a Nate que seriam vinte e uma horas em Houston. Estava a ligar-lhe de casa, o que lhe pareceu um tanto estranho. A voz não deixava de ser simpática, ainda que desse a sensação de estar a apalpar o terreno.

- Há algum problema? - perguntou Nate.

-Não, excepto que aqui ninguém tem conhecimento da verdadeira identidade de Rachel. Isto é, ninguém além de mim. Agora que o senhor está envolvido, existem duas pessoas no mundo que sabem onde é que ela vive e quem é.

- Ela obrigou-me a jurar-lhe que nunca divulgaria esse segredo.

- Foi-lhe difícil encontrá-la?

- Pode-se dizer que sim. No seu lugar, não me preocuparia com a possibilidade de mais alguém descobrir o seu paradeiro.

- Mas como é que conseguiu?

- Através do pai. Tem conhecimento de Troy Phelan?

- Tenho. Comecei a recortar os jornais.

-Antes de ter deixado este mundo, ele descobriu-lhe o rasto até ao Pantanal. Não faço a mínima ideia de como é que ele conseguiu essa proeza.

- Tinha os meios necessários.

- De facto tinha. De uma maneira geral, sabíamos onde é que ela se encontrava e fui até lá, contratei um guia, perdemo-nos mas acabámos por encontrá-la. Conhece-a bem?

- Não estou bem certa se haverá alguém que conheça bem a Rachel. Ela telefona todos os anos de Corumbá para Augusta, a fim de falar comigo. Há cinco anos tentou gozar uma licença, altura em que almocei com ela uma vez. Mas não, não posso dizer que a conheça muito bem.

- Recentemente, teve notícias dela?

- Não - respondeu Neva Collier.

Rachel estivera em Corumbá há duas semanas. Nate tinha a certeza disso porque ela fora ao hospital. Tinha falado com ele, tocara-lhe e depois desvanecera-se juntamente com as febres. Mas não ligara para os escritórios da missão? Que estranho.

- Ela está bem - continuou Nate. - Muito à vontade com a sua gente.

- O que é que o levou a querer encontrá-la?

- Alguém tinha de o fazer. Compreende o que o pai fez?

- Estou a tentar entender.

- Alguém tinha de notificar Rachel, o que só poderia ser feito por um advogado. Por um mero acaso, eu era o único advogado da firma que não tinha mais nada que fazer na altura.

- E agora representa-a, não é verdade?

- Tem andado a prestar atenção?

- É muito possível que o nosso interesse não seja passageiro. Ela é uma de nós e encontra-se, por assim dizer, fora do nosso alcance.

- A sua afirmação peca por defeito.

- O que é que ela tenciona fazer com respeito à herança que o pai lhe deixou?

Nate esfregou os olhos fazendo uma pausa deliberada com o objectivo de protelar a continuação do diálogo. A senhora simpática do outro lado da linha estava a adiantar-se de mais. Nate duvidava que ela se apercebesse disso.

- Não quero ser grosseiro, Ms. Collier, mas não posso discutir consigo os assuntos de que Rachel e eu conversámos sobre a questão da herança que o pai lhe deixou.

- Claro que não. Não foi minha intenção intrometer-me. Mas acontece que não sei bem o que é que a Tribos Universais deve fazer nesta fase.

- Nada. A vossa organização não tem de se envolver, a menos que Rachel vos peça que intervenham.

- Estou a ver. Por conseguinte, devo limitar-me a acompanhar os acontecimentos através dos jornais.

- Tenho a certeza de que o processo será muito bem documentado.

- O senhor aludiu a algumas coisas de que ela tem necessidade no Pantanal.

Nate contou-lhe a história da garotinha que morrera devido à falta de um antídoto.

- Em Corumbá não consegue encontrar os medicamentos de que carece. Adoraria poder enviar-lhe tudo aquilo de que ela precisa.

- Obrigada. Pode remeter o dinheiro à minha atenção para a organização Tribos Universais, e eu certificar-me-ei de que ela receba as provisões. Temos quatro mil missionários como Rachel espalhados por todo o mundo; os nossos orçamentos não chegam para acudir a todas as necessidades.

- As outras são tão extraordinárias como Rachel?

- São. Foram escolhidas por Deus.

Combinaram em manter-se em contacto. Nate enviar-lhe-ia todas as cartas que lhe apetecesse escrever. Neva remetê-las-ia para Corumbá. Se qualquer um deles recebesse notícias de Rachel, deveria telefonar ao outro.

De volta à cama, Nate reproduziu a gravação que fizera da conversa. As coisas que ficaram por dizer eram espantosas. Rachel acabara de receber através dele a notícia de que o pai morrera, tendo-lhe legado uma das maiores fortunas do mundo. Depois, chegara furtivamente a Corumbá porque Lako lhe dissera que Nate se encontrava gravemente doente. Em seguida partira, sem telefonar a ninguém da organização Tribos Universais para discutir o assunto do dinheiro.

Quando a deixara na margem do rio, estava convencido de que ela não tinha o mínimo interesse no dinheiro. Agora estava ainda mais convencido disso.

 

O «Grande Prémio» dos depoimentos teve início na segunda-feira, no dia dezassete de Fevereiro, numa sala espartana do tribunal do condado de Fairfax. Era uma sala para testemunhas, mas o juiz Wycliff conseguira puxar alguns cordelinhos, tendo-a reservado para as duas últimas semanas do mês. Estavam agendadas, pelo menos, quinze pessoas que apresentariam o seu testemunho; os advogados eram incapazes de se pôr de acordo quanto aos lugares e horas. Wycliff tivera de intervir. Os depoimentos seriam dados de uma maneira organizada, um após outro, hora após hora, dia após dia, até que o último fosse ouvido. Era raro que houvesse uma maratona judicial como aquela, mas havia que levar em linha de conta a raridade do que se encontrava em jogo. Os advogados haviam demonstrado uma capacidade deveras espantosa para disponibilizarem as suas agendas, de forma a poderem estar presentes aquando da fase da leitura pública do processo Phelan. Alguns julgamentos tiveram de ser adiados; outros depoimentos tinham sido cancelados; prazos importantes foram prorrogados; a leitura de outros processos fora entregue a colegas de profissão; marcações de férias foram alegremente adiadas até ao Verão. Os associados foram incumbidos de causas de menor relevância. Nada era tão importante como as complicações do caso Phelan.

Para Nate, a perspectiva de passar uma quinzena numa sala de tribunal apinhada de advogados, com testemunhas que seriam impiedosamente interrogadas, era um tormento que se assemelhava bastante ao inferno.

Uma vez que a sua cliente não queria o dinheiro, por que razão é que ele se haveria de preocupar com quem o viesse a herdar?

No entanto, a sua atitude alterou-se quando conheceu os herdeiros Phelan. O primeiro chamado a depor foi o senhor Troy Phelan Júnior. O oficial de diligências fê-lo jurar que só diria a verdade, mas com o seu olhar dissimulado e faces avermelhadas, ao cabo de poucos segundos de se ter sentado à cabeceira da mesa, perdeu toda e qualquer credibilidade que pudesse ter merecido até então. Assestada ao seu rosto, na cabeceira oposta, estava uma câmara de vídeo.

O pessoal de Josh preparara centenas de perguntas com que Nate devia massacrar a testemunha. As investigações, e demais trabalho jurídico, haviam ficado a cargo de meia-dúzia dos seus associados, pessoas que Nate nunca viria a conhecer. Todavia, poderia, de improviso, atacar aquela sessão judicial sem a mínima preparação. Não passava de um mero depoimento, que ele se encarregaria de refutar com a maior das facilidades; Nate passara por situações similares em mil ocasiões.

Apresentou-se a Troy Júnior que o brindou com um pequeno sorriso de nervosismo, assemelhando-se bastante com o condenado que olha para o seu carrasco. «Isto não vai doer, pois não?», parecia perguntar.

- Neste momento, encontra-se sob a influência de quaisquer substâncias ilegais, medicamentos prescritos por um médico ou álcool? - começou Nate a perguntar com uma expressão cordial, o que suscitou inquietação nos advogados dos Phelan sentados no outro extremo da mesa. Apenas Hark o compreendeu. Ao longo da sua carreira, já ouvira quase tantos depoimentos como Nate O'Riley.

O sorriso sumiu-se dos lábios de Troy Júnior.

-Não, não estou - ripostou ele. Sentia a cabeça a latejar sob os efeitos de uma ressaca, se bem que naquela altura estivesse sóbrio.

- E compreende que acabou de jurar que só diria a verdade?

- Sim.

- Sabe qual o significado da palavra perjúrio?

- Claro que sei.

- Qual é o seu advogado? - perguntou Nate fazendo um gesto com a mão na direcção dos que estavam sentados no lado oposto.

- Hark Gettys.

A arrogância que o doutor O'Riley patenteava voltou a inflamar os outros advogados, sentimento que desta feita também foi partilhado por Hark. Nate nem se dera ao incómodo de se inteirar da identidade de cada advogado, tão-pouco se informara de qual o cliente que cada um deles representava. O desdém que sentia por todo o grupo era-lhes ofensivo.

Durante os primeiros dois minutos, Nate instigara o espírito grosseiro que continuaria a persistir ao longo do dia. Não restava qualquer dúvida de que não tinha a mínima confiança em Troy Júnior, pensando que o fulano talvez estivesse sob o efeito da bebida. Era um truque muito antigo.

- Com quantas mulheres é que já foi casado?

- E você, quantas é que teve? - ripostou Júnior devolvendo-lhe a pergunta, após o que olhou para o seu advogado procurando um sinal de aprovação.

Nate não perdeu a serenidade. Quem é que poderia saber o que os advogados da família Phelan teriam andado a dizer nas suas costas? Mas isso não lhe interessava.

- Permita-me que lhe explique uma coisa, senhor Phelan - continuou Nate sem mostrar o mais pequeno indício de irritação. - Vou abordar este assunto muito devagar, portanto ouça-me com toda a atenção. Eu é que sou o advogado, o senhor é a testemunha. Até aqui, estou a fazer-me entender?

Num gesto lento, Troy Júnior acenou com a cabeça.

- O senhor não faz perguntas, limita-se a dar respostas. Compreende o que lhe estou a dizer?

A testemunha acenou de novo.

- O senhor não faz perguntas e eu não dou respostas. Está a perceber?

- Sim, sim.

- Ora vamos lá ver, não me parece que tenha dificuldades em dar-me respostas se prestar atenção às perguntas. Estamos entendidos?

Júnior acenou outra vez.

- Continua confuso sobre alguma coisa?

- Não, não.

- Esplêndido. Caso venha a sentir-se confuso de novo, por favor, sinta-se à vontade para consultar o seu advogado. Estou a fazer-me entender?

- Eu compreendo.

- Magnífico. Tentemos mais uma vez. Com quantas mulheres é que foi casado?

- Com duas.

Uma hora mais tarde deram o assunto dos casamentos por terminado, assim como o dos filhos e dos divórcios. Júnior suava profusamente perguntando a si mesmo por mais quanto tempo é que o seu depoimento se arrastaria. Os advogados dos Phelan olhavam com uma expressão abstracta para alguns papéis, interrogando-se sobre a mesmíssima coisa. Contudo, Nate ainda nem sequer consultara nenhuma das páginas dos papéis que lhe haviam preparado. Era capaz de descascar a pele de qualquer testemunha fitando-a simplesmente nos olhos, fazendo-lhes uma pergunta que levaria à seguinte. Para ele, não existia nenhum pormenor que fosse demasiado insignificante para merecer ser investigado. «Que liceu é que a sua primeira mulher frequentou, faculdade e primeiro emprego? Foi o primeiro casamento dela? Dê-nos o historial dos seus empregos. Agora falemos do divórcio.

Quanto é que ficou estabelecido que pagaria em pensão alimentar ao seu filho? Satisfez sempre esses pagamentos?»

Em grande parte, o testemunho não tinha a menor utilidade para o caso em questão, não se destinando a obter informações, mas a irritar a testemunha, advertindo-o implicitamente de que tinha podres no seu passado que poderiam vir a ser revelados. Fora ele quem instaurara o processo. Consequentemente, teria de sofrer aquele interrogatório.

O historial dos empregos levou-os até quase à hora do almoço. Troy Júnior atrapalhou-se muito quando Nate o massacrou com perguntas sobre os vários empregos que tivera nas empresas do pai. Existiam dúzias de testemunhas que poderiam ser chamadas a depor, as quais refutariam a versão que ele apresentava, afirmando o seu elevado grau de eficiência profissional. À medida que nomeava cada um dos empregos, Nate perguntava-lhe o nome de todos os seus colegas de trabalho e dos supervisores. A cilada fora armada. Hark deu-se conta da sua aproximação, o que o levou a pedir que a audiência fosse suspensa. Saiu para o átrio com o seu cliente, onde lhe fez sermão dizendo-lhe que tinha de se cingir à verdade.

A sessão da tarde foi brutal. Nate fez perguntas à testemunha sobre o legado de cinco milhões de dólares que recebera por ocasião do seu vigésimo primeiro aniversário, altura em que todo o painel de advogados dos Phelan pareceu ficar hirto de espectativa.

- Isso já aconteceu há muito tempo - replicou Troy Júnior com uma expressão de resignação. Decorridas quatro horas com Nate O'Riley, sabia antecipadamente que a volta seguinte seria dolorosa.

- Ora bem, tentemos avivar-lhe a memória - prosseguiu Nate com um sorriso nos lábios. Não mostrava quaisquer sinais de fadiga. Na verdade, passara por situações idênticas tantas vezes que chegava a mostrar alguma ânsia de aprofundar todo e qualquer pormenor.

A sua actuação era soberba. Odiava ser obrigado a estar ali a atormentar pessoas que esperava sinceramente jamais voltar a ver. Quantas mais perguntas Nate fazia, mais determinado se sentia a iniciar uma nova carreira profissional.

- Como é que o dinheiro lhe foi oferecido? - perguntou.

- Inicialmente foi depositado numa conta bancária.

- E tinha acesso a essa conta, certo?

- Sim, tinha - confirmou Júnior.

- Havia mais alguém que fosse titular dessa mesma conta?

- Não. Só eu.

- Como é que retirou esse dinheiro da conta?

- Passei cheques.

Não restavam dúvidas de que os passara. A sua primeira aquisição fora um Maseratti azul-escuro, novinho em folha. Falaram sobre o diabo do automóvel durante quinze minutos.

Depois de ter ficado de posse daquele dinheiro, Troy Júnior nunca mais voltara a frequentar qualquer das faculdades por onde passara, não que qualquer delas se mostrasse ansiosa pelo seu regresso às aulas. Limitara-se a passar a vida em festas, embora esta informação não tivesse sido dada sob a forma de uma confissão. Nate massacrou-o acerca dos empregos que tivera desde os vinte e um anos até aos trinta, e pacientemente conseguiu deslindar factos suficientes para revelar que Troy Júnior nunca trabalhou durante esse período de nove anos. Jogava golfe e râguebi, trocava de carros com o maior dos gostos, passou um ano nas Bahamas e outro em Vail; tinha vivido maritalmente com um número extraordinário de mulheres, antes de acabar por casar com a número dois quando tinha vinte e nove anos, permitindo-se uma vida em grande estilo até que o dinheiro se acabou.

Foi então que o filho pródigo se arrastou até à presença do pai, pedindo-lhe que lhe desse emprego.

Com o decorrer da tarde, Nate começou a visualizar o descalabro que aquela testemunha semearia para si própria e para aqueles que o rodeavam, caso conseguisse deitar as suas mãos gananciosas à fortuna de Troy Phelan. Com esse dinheiro, era inquestionável que ele acabaria por se matar.

Às dezasseis horas, Troy Júnior pediu para ser dispensado o resto do dia. Nate recusou. Durante o intervalo que se seguiu, o juiz Wycliff, no seu gabinete ao fundo do corredor, recebeu uma mensagem. Enquanto aguardavam, Nate olhou pela primeira vez para as perguntas que Josh lhe preparara.

A mensagem com a resposta que veio do gabinete do juiz instruía a continuação dos trabalhos.

Uma semana depois do suicídio de Troy Phelan, Josh contratara uma firma de investigações, incumbindo-os da missão de investigarem todos os herdeiros da família Phelan. Essas investigações cingiram-se mais aos aspectos de natureza económica do que aos pessoais. Nate fez uma súmula dos pontos mais relevantes enquanto a testemunha fumava um cigarro no corredor.

- Que tipo de carro é que conduz actualmente? - perguntou Nate quando Troy retomou o seu depoimento. O interrogatório tomara outra direcção.

-Um Porsche.

- Quando é que o comprou?

- Já o tenho há algum tempo.

- Tente responder com precisão à pergunta que lhe fiz. Quando é que o comprou?

- Há uns dois meses.

- Antes ou depois da morte do seu pai?

- Não tenho a certeza. Acho que foi antes. Nate ergueu uma folha de papel.

- Em que dia é que o seu pai faleceu?

- Deixe-me pensar. Sei que foi numa segunda-feira, hum... parece-me que foi no dia nove de Dezembro.

- Comprou esse Porsche antes ou depois do dia 9 de Dezembro?

- Tal como já lhe disse, acho que foi antes.

-Não, uma vez mais está enganado. No dia 10 de Dezembro, uma terça-feira, foi à Irving Motors, em Arlington, onde adquiriu um Porsche Carrera turbo 911, preto, pelo preço de noventa mil dólares, mais coisa menos coisa, certo?-Nate fez a pergunta enquanto lia uma folha de papel.

Troy Júnior mostrou-se agitado, voltando a demonstrar que se sentia nervoso. Olhou para Hark que encolheu os ombros, como se lhe dissesse: «Responda à pergunta. Ele tem os papéis com essa informação.»

- Sim, comprei.

- Nesse dia, comprou mais alguns automóveis?

- Sim - confirmou Troy Júnior.

- Quantos?

- Ao todo, dois.

- Dois Porsches?

- Sim - confirmou TJ.

- Num total de quase cento e oitenta mil dólares?

- Um valor que rondará esse montante.

- Como é que os pagou?

- Ainda não paguei.

- Isso significa que esses carros foram uma oferta que a Irving Motors lhe fez?

- Não foi precisamente isso. Comprei-os a crédito.

- E o senhor tinha condições para que lhe concedessem esse crédito?

- Tinha, pelo menos na Irving Motors.

- Eles já lhe pediram que liquidasse essa dívida?

- Sim, pode-se dizer que sim. Nate pegou em mais alguns papéis.

- De facto, eles instauraram-lhe um processo para reaverem os automóveis ou para receberem o dinheiro em dívida, não é verdade?

- Sim, é.

- Hoje transportou-se nesse Porsche para vir prestar o seu depoimento?

- Sim. Está estacionado no parque de estacionamento.

- Vamos lá a ver se sou capaz de compreender uma coisa. No dia 10 de Dezembro, no dia a seguir à morte do seu pai, o senhor foi à Irving Motors onde adquiriu dois carros de preço elevado, servindo-se de uma espécie qualquer de crédito, e agora, dois meses mais tarde, ainda não pagou um cêntimo sequer dessa dívida e foi processado. Correcto?

A testemunha assentiu com um acenar de cabeça.

- Esse não é o único processo que lhe foi instaurado, não é verdade?

- Não - aquiesceu Troy Júnior sentindo-se derrotado. Nate quase sentiu pena dele.

Fora processado por uma companhia de aluguer de mobiliário por falta de pagamento. Devia à American Express mais de quinze mil dólares pelo cartão de crédito. Uma semana depois da leitura do testamento do pai fora processado por um banco. Júnior convencera essa instituição bancária a conceder-lhe um empréstimo de vinte e cinco mil dólares, tendo como fiador apenas o nome de família. Nate tinha cópias de todos esses processos litigiosos, que esmiuçou até ao último pormenor.

Às dezassete horas desencadeou-se outra disputa, em consequência da qual o juiz Wycliff recebeu outra mensagem. Este apareceu então pessoalmente na sala, inquirindo sobre o andamento do processo.

- Quando é que lhe parece que poderá dispensar esta testemunha? - perguntou a Nate.

- O fim ainda não está à vista - replicou Nate fitando Júnior, que entrara num estado de transe, rezando em silêncio por uma bebida.

- Sendo assim, prossiga até às dezoito horas - instruiu Wycliff.

- Podemos retomar a audiência amanhã às oito horas? - perguntou Nate como se falasse de uma ida à praia.

- Oito e meia - estabeleceu o juiz, abandonando a sala.

Durante a última hora de interrogatório, Nate bombardeou Júnior com perguntas aleatórias que abordavam toda uma diversidade de assuntos. A testemunha não fazia a mais pequena ideia de qual o objectivo do seu interrogador; Júnior encontrava-se nas mãos de um mestre. Assim que se concentravam num tópico e Troy começava a sentir-se à vontade, Nate mudava logo o rumo das perguntas, atingindo-o com algo novo.

Que quantia em dinheiro é que tinha dispendido desde o dia 9 de Dezembro até ao dia 27, o dia em que se procedera à leitura do testamento? O que é que comprara à mulher como prenda de Natal, e como é que havia pago esses presentes? O que é que tinha comprado aos filhos?

De volta ao assunto dos cinco milhões de dólares, investira algum dinheiro em acções ou títulos de investimento? Quanto é que Biff ganhara no ano anterior? Por que motivo é que a tutela dos filhos desta fora atribuída ao ex-marido? Quantos advogados é que contratara e dispensara desde a morte do pai? E assim por diante.

Precisamente às dezoito horas, Hark pôs-se de pé, anunciando que o depoimento fora suspenso. Dez minutos mais tarde, Troy Júnior encontrava-se num bar no átrio de um hotel, a cerca de três quilómetros de distância.

Nessa noite, Nate dormiu no quarto das visitas da casa dos Stafford. Mrs. Stafford estava algures dentro de casa, mas ele não chegou a cruzar-se com ela. Josh tinha ido a Nova Iorque numa viagem de negócios.

O segundo dia de interrogatórios teve início à hora indicada. O elenco era composto pelas mesmas personagens, apesar de os advogados terem optado por se vestirem de uma maneira mais informal. Júnior usava uma camisola de algodão encarnado.

Nate reconheceu as feições de um bêbedo - olhos avermelhados rodeados pela pele inchada, o nariz e as bochechas rosadas, as gotículas de suor acima dos sobrolhos. Aquele rosto fora o seu durante muitos anos. Tratar uma ressaca fizera parte integrante da higiene matinal, tal como o chuveiro e o fio dental: «Toma uns comprimidos, bebe muita água e café forte. Se te vais comportar de maneira estúpida, há que ser duro.»

- Compreende que continua sob juramento, senhor Phelan? - começou Nate por perguntar.

- Compreendo.

- Neste momento, está sob a influência de quaisquer substâncias ilegais ou de bebidas alcoólicas?

- Não, senhor doutor, não estou.

- Óptimo. Regressemos ao dia nove de Dezembro último, o dia em que o seu pai faleceu. Onde é que se encontrava quando ele foi examinado por três psiquiatras?

- Estava no interior do edifício, numa sala de reuniões juntamente com a minha família.

- E teve oportunidade de verificar esse exame do princípio ao fim, certo?

- Assim foi.

- Haviam sido colocados dois monitores a cores na sala, não é verdade? Cada um tinha um ecrã com mais ou menos vinte e cinco centímetros de largura, correcto?

- Se assim o diz. Não lhes medi a largura.

- Mas não há dúvida nenhuma de que conseguia vê-los, ou não?

- Sim - confirmou Júnior.

- O seu ângulo de visão não estava obstruído?

- De facto tinha uma visão sem qualquer obstáculo.

- E tinha uma razão precisa para querer observar o seu pai de perto?

- Tinha, sim.

- Teve alguma dificuldade em ouvir o que ele dizia?.

- Não.

Os advogados sabiam onde é que Nate pretendia chegar. Na perspectiva destes, tratava-se de um aspecto menos positivo do caso, mas que apesar disso não poderia ser evitado. Cada um dos seis herdeiros teria de percorrer aquela via-sacra.

- Por conseguinte, observou e ouviu tudo o que se passou durante todo esse exame mental?

- Assim foi.

- Não lhe escapou coisa alguma?

- Não me escapou nada - confirmou Troy Júnior.

- Desses três psiquiatras, o doutor Zadel foi contratado pela sua família, não é verdade?

- É verdade.

- Quem é que o contactou?

- Os advogados da família.

- Confiava nos seus advogados ao ponto de lhes permitir que contratassem os serviços de um psiquiatra?

- Sim, confiava.

Ao longo dos dez minutos seguintes, Nate interrogou-o para que lhe dissesse com exactidão quais os motivos por que haviam seleccionado o doutor Zadel, para que este procedesse a um exame tão crucial e, durante o processo, Nate obteve aquilo que desejava. Zadel fora contratado porque possuía credenciais excelentes, tendo sido vivamente recomendado, além de ser um psiquiatra com muita experiência.

- Ficou satisfeito da forma como ele conduziu esse exame mental? - perguntou Nate.

- Suponho que sim - admitiu Troy Júnior.

- Houve alguma coisa na conduta profissional do doutor Zadel que lhe tenha desagradado?

- Que me recorde, não houve.

A caminhada até à beira do penhasco prosseguiu com Troy Júnior a reconhecer que se sentira satisfeito com a avaliação psiquiátrica, satisfeito com Zadel, satisfeito com as conclusões a que os três médicos tinham chegado, tendo abandonado o prédio sem a mais pequena dúvida de que o pai se encontrava bem consciente do que fazia.

- Depois desse exame, qual foi a primeira vez que pôs em questão as faculdades mentais do seu pai?

- Quando ele saltou da varanda abaixo.

- No dia 9 de Dezembro?

- Exactamente.

- Portanto, começou a sentir dúvidas imediatamente?

- Sim - admitiu Troy Júnior.

- O que é que o doutor Zadel lhe disse quando manifestou essas dúvidas.

- Não falei com o doutor Zadel.

- Não falou?!

- Não - confirmou TJ.

- Desde o dia 9 de Dezembro até ao dia 27 do mesmo mês, data em que o testamento foi lido em tribunal, quantas vezes é que falou com o doutor Zadel?

- Não me lembro do número de vezes.

- Chegou a encontrar-se com ele?

- Não.

- Telefonou para o consultório desse médico?

- Não.

- Por acaso, já o viu desde o dia 9 de Dezembro?

- Não.

Tendo-o encaminhado até à beira, chegara a altura de lhe dar um empurrão.

- O que é que o levou a dispensar os serviços do doutor Zadel? Em certa medida, Júnior fora preparado para aquela pergunta.

- Vai ter de fazer essa pergunta ao meu advogado - respondeu ele na esperança de que Nate se afastasse de si ainda que por pouco tempo.

- Eu não estou a interrogar o seu advogado, senhor Phelan. Estou a perguntar-lhe, a si, por que motivo é que dispensou os serviços do doutor Zadel?

- Terá de perguntar aos meus advogados. Faz parte da nossa estratégiajurídica.

- Os advogados discutiram esse assunto consigo antes de o senhor ter dispensado os serviços do doutor Zadel?

- Não tenho a certeza. Digo-lhe com toda a sinceridade que não me recordo.

- Sente-se satisfeito pelo doutor Zadel já não trabalhar para si?

- Claro que estou.

- Porquê? - perguntou Nate.

- Porque ele estava enganado. Ouça uma coisa, o meu pai era um mestre a ludibriar os outros, facto que é inegável. Enganou toda a gente durante esse exame, da mesma maneira que procedeu ao longo de toda a sua vida, e em seguida saltou da varanda abaixo. Enganou Zadel e os outros psiquiatras. Eles acreditaram na encenação dele. É óbvio que ele se tinha passado dos carretos.

- Por ter saltado da varanda abaixo?

- Sim, porque saltou, porque legou todo o seu dinheiro a uma herdeira qualquer desconhecida de todos nós, porque não fez nenhum esforço para encontrar uma forma de a sua fortuna não ser sujeita a impostos sucessórios, por que havia já algum tempo que estava doido varrido. Para começar, por que é que pensa que tomámos a iniciativa de proceder a esse exame mental? Se ele não estivesse tarado, teríamos nós sentido a necessidade de contratar três psiquiatras, para que estes o examinassem antes de ele assinar o testamento'?

- Todavia, os três psiquiatras afirmaram que ele estava de plena posse das suas capacidades mentais - argumentou Nate.

- Sim e estavam redondamente enganados. Ele saltou da varanda abaixo. As pessoas com juízo não andam por aí a atirar-se das janelas.

- E na hipótese de o seu pai ter assinado o testamento composto por muitas páginas, e não o que escreveu posteriormente à mão, e tivesse saltado tal como fez? Diria que ele estava louco?

- Se isso tivesse acontecido, agora não estaríamos aqui.

Foi a única ocasião durante aquela experiência penosa, que se arrastava há dois dias, em que Troy Júnior se bateu por um empate. Nate sabia quando é que deveria avançar, para mais tarde regressar ao mesmo assunto.

- Passemos ao assunto dos hotéis Rooster Inns - anunciou ele, e os ombros de Troy Júnior descaíram cerca de sete centímetros. Tratava-se de mais uma das suas aventuras empresariais que redundara em falência, nada mais nada menos. Todavia, Nate tinha de tomar conhecimento de todas as minúcias, por mais ínfimas que fossem. Uma falência levara a outra. Todos os fracassos empresariais suscitavam questões relativas a outros negócios malfadados à nascença.

A vida de Júnior era uma história triste. Se bem que fosse difícil sentir alguma simpatia pelo homem, Nate apercebeu-se de que o pobre sujeito nunca tinha podido contar com o apoio de um pai. Ansiara por merecer a aprovação de Troy Phelan, sem nunca o conseguir. Josh confiara-lhe que Troy Sénior se sentia extremamente deliciado sempre que os empreendimentos dos filhos fracassavam.

Às dezassete horas e trinta minutos do segundo dia de depoimento, o advogado dispensou a testemunha. Rex seria o próximo. Durante todo o dia, mantivera-se à espera no corredor, sentindo-se deveras agitado por o seu testemunho ter sido adiado de novo.

Entretanto, Josh regressara da Nova Iorque. Nate juntou-se-lhe para um jantar mais cedo do que o costume.

 

Rex Phelan passara a maior parte do dia anterior no corredor a falar através do telefone celular, enquanto o irmão era massacrado pelo interrogatório implacável de Nate O'Riley. Rex já estivera presente em julgamentos suficientes para saber que os processos litigiosos se traduziam em compassos de espera: esperar pelos advogados, pelos juízes, pelas testemunhas, pelos peritos, aguardar que fossem marcadas datas de julgamento, esperar em tribunais onde se recorria de sentenças, esperar nos corredores pela nossa vez de prestar testemunho. Quando ergueu a mão direita, jurando que só diria a verdade, já sentia um desprezo enorme por Nate.

Tanto Hark como Troy Júnior o tinham avisado quanto ao que o esperava. Aquele advogado era capaz de se introduzir sob a pele de uma pessoa, provocando uma infecção como se fosse um furúnculo.

Uma vez mais, Nate começou pelas perguntas mais inflamatórias e ao cabo de dez minutos, por toda a sala, começara a reinar um ambiente de tensão. Durante três anos, Rex fora alvo de uma investigação por parte do FBI. Havia um banco que declarara bancarrota em 1990; Rex tinha sido o director, para além de investidor maioritário. Os depositantes perderam o seu dinheiro. Os credores ficaram sem os seus empréstimos. Há vários anos que aquele processo litigioso se arrastava, sem que se avistasse um fim próximo. O presidente do banco encontrava-se na cadeia, e as pessoas mais próximas do epicentro do litígio pensavam que Rex seria o próximo a ser encarcerado. Havia roupa suja em quantidade suficiente para que Nate prosseguisse por várias horas.

Para se divertir um pouco, advertia Rex continuamente de que este se encontrava sob juramento. Também existiam boas hipóteses de o FBI vir a tomar conhecimento daquele depoimento.

Já a tarde ia a meio quando Nate desviou o rumo da conversa para os bares onde se praticava strip tease. Rex era proprietário de seis desses estabelecimentos - todos em nome da mulher - situados na área de Fort Lauderdale. Comprara-os a um homem que acabou por ser abatido durante um tiroteio. Como tema de conversa, eram assuntos absolutamente irresistíveis. Nate abordou os bares um a um - Lady Luck, Clube Lolita, Clube Tiffany, etc. - fazendo-lhe uma centena de perguntas. Perguntou-lhe acerca das raparigas, das strippers, de onde é que eram oriundas, quanto é que ganhavam, se consumiam estupefacientes, que drogas é que usavam, se apalpavam os clientes, e assim sucessivamente. Fez pergunta após pergunta sobre os aspectos económicos do tráfico de carne humana.

- A sua actual mulher não trabalhava num desses clubes? - perguntou Nate depois de três horas em que reproduziu, com toda a minúcia, o retrato do negócio mais perverso que existia em todo o mundo.

A resposta era afirmativa, mas Rex mostrava-se incapaz de a articular. A garganta e o pescoço ficaram avermelhados e por breves instantes deu a impressão de estar prestes a investir por cima da mesa.

- Ela trabalhava como contabilista - respondeu ele por fim com os músculos das mandíbulas contraídos.

- Ela alguma vez chegou a dançar em cima das mesas?

Fez-se outra pausa enquanto Rex apertava o rebordo da mesa com todas as suas forças.

- Claro que não - replicou. Era uma mentira, o que todos os presentes na sala sabiam.

Nate começou a folhear alguns papéis procurando a verdade. Todos o examinavam com expressões cautelosas, como se esperassem que a qualquer momento ele sacasse de uma fotografia de Amber, em que ela usasse fio dental como cuecas e calçasse sapatos de saltos aberrantemente altos.

Às dezoito horas, a sessão foi suspensa de novo, com a promessa de mais para o dia seguinte. Depois de a câmara de vídeo ter sido desligada, na altura em que a estenógrafa do tribunal estava ocupada a guardar o seu equipamento, Rex deteve-se à porta.

-Não quero ouvir mais perguntas acerca da minha mulher, de acordo? - disse ele apontando um dedo a Nate.

-Mas isso é impossível, Rex. Todos os seus bens estão em nome dela. - Nate acenou-lhe com alguns papéis, como se estivesse de posse de todos os registos do casal. Hark empurrou pressurosamente o seu cliente através da porta.

Nate deixou-se ficar sentado durante uma hora, examinando os seus apontamentos, desejando poder estar em Saint Michaels sentado no alpendre da casa de campo de Josh com vista para a baía. Precisava de telefonar aPhil.

«Este será o teu último caso», não se cansava de repetir a si mesmo. «E estás a defendê-lo em nome de Rachel.»

Às doze horas do segundo dia, os advogados dos Phelan discutiam abertamente se o depoimento de Rex teria a duração de três ou quatro dias. Haviam-lhe sido feitas penhoras, tendo-lhe sido instaurados processos no valor de sete milhões de dólares, e contudo os credores não podiam executá-las porque todos os bens se encontravam em nome da mulher de Rex, Amber, a antiga stripper. Nate agarrou na documentação correspondente a cada um desses julgamentos, colocando-os em cima da mesa, examinando-os de todos os ângulos e direcções concebíveis, após o que voltou a colocá-los dentro da respectiva pasta de cartolina, onde permaneceriam, ou talvez não. O tédio começara a enervar toda a gente, à excepção de Nate, o qual, sem se saber bem como, continuava a mostrar um comportamento bastante empenhado enquanto prosseguia inflexivelmente.

Para a sessão da tarde, seleccionou o tópico do salto de Troy Phelan e os eventos que conduziram a essa situação. Seguiu a mesma linha de perguntas que adoptara em relação a Troy Júnior, tornando-se por demais evidente que Hark preparara Rex para aquele estilo de interrogatório. As respostas que ele deu às perguntas sobre o doutor Zadel haviam sido bem ensaiadas, embora fossem adequadas. Rex cingiu-se à afirmação do seu grupo - muito simplesmente, os três psiquiatras tinham-se enganado porque Troy Phelan saltara da varanda três minutos mais tarde.

Cobriu-se mais algum território familiar quando Nate abordou impiedosamente o assunto desolador dos empregos que ele tivera nas empresas do Grupo Phelan. Em seguida, passaram duas horas penosas a gastar os cinco milhões de dólares que Rex recebera como legado, aquando do seu vigésimo primeiro aniversário.

Às dezassete horas e trinta minutos, abruptamente, Nate anunciou que dava o seu interrogatório por concluído, saindo da sala.

Em quatro dias tinham-se ouvido o depoimento de duas testemunhas. Dois homens postos a nu defronte das câmaras de vídeo, uma visão que não era nada bonita de se ver. Os advogados da família Phelan dirigiram-se para os respectivos automóveis, afastando-se do tribunal. Talvez o pior já estivesse para trás. Ou talvez não.

Os seus clientes tinham sido crianças mimadas ao longo de toda a sua infância, ignoradas pelos progenitores, lançados ao mundo munidos de contas bancárias com montantes avultados, numa idade em que estavam mal preparados para gerirem o seu dinheiro, esperando-se que eles viessem a prosperar. Tinham feito más escolhas, mas, em última análise, todas as culpas deveriam ser assacadas a Troy Phelan. Aquele era o juízo de valores que todos os advogados dos Phelan faziam.

Libbigail foi conduzida à sala ao princípio da manhã de sexta-feira, ocupando o lugar de honra. O seu penteado tinha um estilo semelhante ao de um corte de cabelo quase à escovinha, com os lados rapados até ao couro cabeludo e com a altura de cerca de dois centímetros no topo da cabeça. Do pescoço e dos pulsos pendiam-lhe peças de bijutaria ordinária; quando ergueu a mão para ser ajuramentada, ouviu-se um chocalhar à altura do cotovelo.

Fitou Nate com uma expressão de horror. Os irmãos tinham-lhe contado o pior.

Mas era sexta-feira, e Nate desejava sair da cidade tanto ou mais do que desejava comer quando sentia fome. Sorriu a Libbigail começando por lhe fazer perguntas relativamente fáceis sobre os seus antecedentes. Acerca dos filhos, empregos e casamentos. Durante trinta minutos foi tudo muito agradável. Em seguida, começou a esmiuçar o seu passado.

- Por quantas vezes é que se submeteu a períodos de desintoxicação devido ao abuso de álcool e de estupefacientes?-perguntou ele a certa altura.

A pergunta chocou-a, pelo que ele fez uma confissão inesperada.

- Eu próprio já estive internado em três ocasiões pelo mesmo motivo. Portanto, não tem razão para se sentir envergonhada. - A candura que ele mostrou deixou-a desarmada.

- Na verdade, não sou capaz de me recordar - retorquiu Libbigail. - Mas há seis anos que não uso nada que possa ser considerado nocivo.

- Magnífico - disse Nate. De um viciado para outro. - Ainda bem por si.

A partir daquele ponto, começaram a conversar sobre as coisas como se estivessem a sós na sala. Nate tinha forçosamente de se intrometer em assuntos que deveriam ser pessoais, pedindo desculpa por ser obrigado a proceder daquela maneira intrusiva. Também lhe fez perguntas sobre os cinco milhões de dólares, e, com alguma dose de bom humor, ela contou-lhe fábulas de drogas boas e de homens maus. Ao contrário dos irmãos, Libbigail conseguira encontrar estabilidade na sua vida. O nome dele era Spike, o ex-motoqueiro que também se submetera a um período de desintoxicação, saindo manso que nem um cordeiro. Ambos viviam numa pequena casa nos subúrbios de Baltimore.

- O que é que faria se herdasse um sexto dos bens do seu pai? - perguntou-lhe Nate.

- Compraria montes de coisas - respondeu ela. - O mesmo que você. O mesmo que qualquer outra pessoa. Mas desta vez seria mais esperta com o destino que daria ao dinheiro. Mesmo muito esperta.

- Qual é a primeira coisa que compraria?

- A maior Harley que existisse no mundo para a oferecer a Spike. Em seguida, comprava uma casa mais bonita, embora nunca uma mansão. - Os seus olhos dançavam enquanto dispendia o dinheiro na sua imaginação.

O depoimento de Libbigail durou menos de duas horas. Foi seguida de Mary Ross Phelan Jackman, a irmã e, a exemplo desta, olhou para Nate como se ele tivesse garras. Dos cinco herdeiros em idade adulta da família Phelan, Mary Ross era a única que continuava casada com o primeiro marido, apesar de ele ter tido um casamento anterior. Era ortopedista. Ela vestia-se com bom gosto e usava jóias elegantes.

As primeiras perguntas revelaram a experiência estudantil prolongada que era comum aos seis, sem que no entanto tivessem existido prisões, vícios ou expulsões. Agarrara no dinheiro que o pai lhe legara para viver na Toscânia durante três anos, ao que se seguiu Nice durante outros dois. Com vinte e oito anos contraíra matrimónio com o médico, que tinha duas filhas de um casamento anterior; actualmente, uma tinha sete anos e a outra cinco. Não ficou bem claro quanto é que ainda restaria dos cinco milhões de dólares. O médico é que geria os investimentos financeiros, o que levou Nate a concluir que deveriam estar praticamente falidos. Endinheirados, mas profundamente endividados. As investigações que Josh fizera, com referência ao passado de Mary Ross, davam conta da existência de uma casa muito espaçosa, com automóveis importados que se amontoavam no caminho de acesso à garagem, um apartamento na Flórida e uma estimativa dos rendimentos do médico que se cifravam em setecentos e cinquenta mil dólares anuais. Pagava ao banco vinte mil dólares por mês, a sua quota-parte do que restava dos prejuízos de uma sociedade que fracassara, quando tentaram montar um negócio de lavagem automática de viaturas na região setentrional da Virgínia.

O médico também possuía um apartamento onde mantinha uma amante. Era muito raro que Mary Ross e o marido fossem vistos juntos em público. Nate optou por não aprofundar aqueles assuntos do foro pessoal. Subitamente, ficou cheio de pressa, se bem que tivesse o cuidado de não o demonstrar.

Depois do intervalo para o almoço, Ramble entrou na sala com uma postura relaxada, acompanhado do seu advogado, Yancy, que seguia à sua frente apontando atarantado, enquanto o apaparicava sem saber que mais é que lhe havia de fazer; era óbvio que se sentia aterrorizado agora que se esperava que o seu cliente conduzisse uma conversa inteligente. O cabelo do miúdo estava pintado de um vermelho fulgurante, cor que condizia mais ou menos com as borbulhas da cara. Não havia uma única região no seu rosto que não estivesse mutilada - tinha as feições cobertas de protuberâncias, marcas e cicatrizes. A gola do casaco de cabedal estava virada para cima, ao estilo de James Dean, de maneira a tocar nos brincos, que oscilavam suspensos das orelhas.

Depois de algumas perguntas, ficou amplamente demonstrado que o rapaz era tão estúpido quanto aparentava à primeira vista. Dado que ainda não tinha tido a oportunidade de desperdiçar o dinheiro que lhe caberia em legado, Nate deixou-o em paz. Ficou comprovado que só muito raramente é que ia à escola, vivendo sozinho na cave e sem nunca ter tido um emprego que fosse remunerado; gostava de tocar viola, planeando vir a ser uma estrela a sério de música rock dentro de muito pouco tempo. A nova banda que formara chamava-se, adequadamente, Os Macacos Demoníacos, mas ainda não tinha a certeza se gravariam sob aquele nome. Ramble não praticava qualquer actividade desportiva, nunca vira o interior de uma igreja, falava com a mãe o menos possível, preferindo ver o canal televisivo da MTV sempre que estava acordado e não tocava a sua música.

Nate pensava que seriam necessários mil milhões de dólares em terapia psicológica para endireitar aquele pobre miúdo. Em menos de uma hora deu o interrogatório por terminado.

Geena foi a última testemunha da semana. Quatro dias depois da morte do pai, ela e Cody, o marido, haviam assinado um contrato para a compra de uma casa no valor de três milhões e oitocentos mil dólares. Quando Nate a atacou com esta informação, logo depois de ela ter jurado dizer a verdade, Geena começou a gaguejar, exprimindo-se incoerentemente ao mesmo tempo que olhava para a sua advogada, a doutora Langhorne, que se mostrava igualmente surpreendida. A sua cliente não lhe mencionara a existência daquele contrato.

- Como é que planeava pagar essa casa? - perguntou Nate.

A resposta era por demais evidente, embora ela fosse incapaz de a confessar.

- Nós temos dinheiro - respondeu na defensiva, o que abriu a porta por que Nate irrompeu sem mais demoras.

- Passemos ao assunto do seu dinheiro - acrescentou ele com um sorriso. - Tem trinta anos de idade. Há nove anos recebeu cinco milhões de dólares, não é verdade?

- Recebi, sim.

- Quanto é que lhe resta desse montante?

Geena debateu-se com a resposta durante muito tempo. A resposta não era assim tão simples quanto isso. Cody ganhara muito dinheiro. Haviam investido algum e gasto muito, pelo que os recursos financeiros de ambos eram uma amálgama, o que impedia que se pudesse olhar para qualquer balanço, concluindo-se que possuíam a quantia «X», o remanescente desses cinco milhões. Nate ia-lhe dando corda com que ela se enforcava a pouco e pouco.

- Neste momento, quanto é que a senhora e o seu marido têm depositado nas vossas contas bancárias? - perguntou ele.

- Para lhe responder, teria de verificar.

- Por favor, dê-me apenas um cálculo. Dê-me só uma estimativa.

- Sessenta mil dólares.

- Quantas propriedades é que possuem?

- Somente a casa onde vivemos.

- Qual é o valor dessa propriedade?

- Para lhe poder dar uma resposta, teria de mandar avaliá-la.

- Só quero um cálculo. Uma verba aproximada.

- Trezentos mil dólares.

- E qual é o valor da hipoteca?

- De, aproximadamente, duzentos mil dólares.

- Qual é o valor aproximado da vossa carteira de investimentos? Geena rabiscou alguns números cerrando os olhos.

- Mais ou menos no valor de duzentos mil dólares.

- Tem mais alguns bens que valha a pena mencionar?

- Na realidade, não.

Nate fez os seus próprios cálculos.

- Temos pois que, em nove anos, os cinco milhões de dólares que o seu pai lhe legou ficaram reduzidos a algo na ordem dos trezentos a quatrocentos mil dólares. Estarei correcto?

- Certamente que está enganado. Quer dizer, parece ser um número

tão baixo.

- Sendo assim, diga-nos outra vez como é que planeava pagar essa

nova casa?

- Com o dinheiro que Cody ganha no seu trabalho.

- E quanto à herança do seu falecido pai? Alguma vez pensou nisso?

- Talvez um pouco.

- Neste momento foi processada pela imobiliária que lhe vendeu a

casa, não é verdade?

- Sim e nós também lhes movemos um processo judicial. Há muitos

assuntos em questão.

Ela mostrava-se matreira e desonesta, de uma verbosidade falsa e rápida, dizendo apenas meias verdades. Nate pensou que ela poderia ser o membro da família Phelan mais perigoso com quem falara até então.

Começaram a analisar as aventuras empresariais de Cody, tendo-se revelado rapidamente qual o destino que o dinheiro levara. Ele perdera um milhão de dólares especulando em minas de cobre, em 1992. Também investira meio milhão na empresa Snow-Packed Chicken, dinheiro que veio a perder na totalidade. Houvera ainda o negócio de uma estufa para a criação de minhocas, na Geórgia, que lhes levara seiscentos mil dólares; o fracasso deveu-se a uma vaga de calor que lhes cozinhou os vermes destinados a isco de pesca.

Agiam como se fossem dois garotos irresponsáveis, levando uma vida rodeados de um luxo que era custeado pelo dinheiro dos outros, sonhando com a grande oportunidade das suas vidas.

Próximo do fim do depoimento de Geena, em que Nate continuava a dar-lhe toda a corda que ela desejasse, testemunhou, com uma expressão imperturbável, que o seu envolvimento na impugnação da validade do testamento não tinha nada a ver com o dinheiro em jogo. Afirmou que amara profundamente o pai, amor que ele lhe retribuíra, e se ele tivesse estado de posse de todas as suas faculdades mentais teria olhado pelos interesses dos filhos quando fez o último testamento. O facto de ter legado a herança a uma completa estranha era uma prova irrefutável da doença mental de que sofrera. Geena encontrava-se ali com o objectivo de defender a reputação do pai.

Era uma pequena dissertação bem orquestrada que não conseguiu convencer ninguém. Nate deixou que o assunto passasse em branco. Já eram cinco da tarde e estava cansado de lutar contra aquela gente.

Quando saiu da cidade, tentou furar pelo trânsito congestionado que mal se deslocava através da Estrada Interestadual 95, rumo a Baltimore, os seus pensamentos concentravam-se nos herdeiros da família Phelan. Nate imiscuíra-se nas suas vidas privadas, ao ponto de essa intrusão ser constrangedora. Sentia simpatia por eles devida à forma como haviam sido educados, pelos valores que nunca lhes tinham sido ensinados, pelas suas vidas ocas que giravam à volta de nada, além do dinheiro.

Todavia, Nate estava convencido de que Troy Phelan sabia exactamente aquilo que estava a fazer quando rabiscou o seu último testamento. Uma quantidade tão grande de dinheiro nas mãos dos filhos provocaria uma situação caótica, sem mitigação possível, e uma desolação indescritível. Optara por deixar toda a sua fortuna a Rachel que não tinha o mínimo interesse nessa herança. Excluíra os outros, cujas vidas eram consumidas pelo dinheiro.

Nate estava determinado a salvaguardar a validade do último testamento de Troy Phelan. Mas também se sentia bastante consciente de que a partilha final do espólio, em última análise, seria determinada por alguém no hemisfério norte.

Já era tarde quando chegou a Saint Michaels; ao passar pela igreja da Trindade sentiu vontade de parar, entrar e ajoelhar-se para rezar, pedindo a Deus que lhe perdoasse por todos os pecados que cometera ao longo da semana. A confissão e um banho quente eram necessários depois de cinco dias de depoimentos.

 

Na qualidade de profissional que trabalhava numa grande cidade, sentindo-se permanentemente arrasado, Nate nunca fora apresentado ao ritual de se manter sentado. Por outro lado, Phil era um praticante muito experimentado dessa actividade. Sempre que um dos seus paroquianos adoecia, esperava-se dele que visitasse a família com quem se sentaria demoradamente. No caso de haver uma morte, sentava-se com a viúva. Se por acaso um vizinho passasse por sua casa, independentemente do adiantado da hora, ele e Laura sentar-se-iam com o visitante conversando com ele. Por vezes praticavam aquela arte a sós, no alpendre, no balouço, sozinhos. Havia dois cavalheiros de idade, membros da congregação de Phil, que esperavam que ele passasse uma vez por semana por suas casas, onde não fazia nada além de permanecer sentado durante uma hora, enquanto eles dormitavam ao calor da lareira. As conversas eram agradáveis, mas não eram um factor que fosse exigido. Era perfeitamente adequado que se limitasse a permanecer sentado desfrutando da quietude.

Contudo, Nate apanhou-lhe o jeito com bastante rapidez. Sentava-se com Phil no alpendre da casa de campo dos Stafford; os dois homens usavam camisolas grossas de lã e luvas e bebiam cacau bem quente, que Nate preparava no microndas. Olhavam fixamente para a baía à sua frente, para o porto e para as águas encapeladas mais à distância. A conversa tinha lugar a intervalos irregulares, embora o silêncio fosse predominante. Phil sabia que o amigo tivera uma má semana. Naquela altura, Nate já o pusera ao corrente da maior parte dos pormenores da confusão que se gerara em torno do assunto Phelan. A relação que os dois homens mantinham era de confidencialidade.

- Estou a planear fazer uma viagem por estrada - anunciou Nate tranquilamente. - Quer vir comigo?

- Onde? - perguntou Phil.

- Preciso de ver os meus filhos. Tenho dois ainda pequenos, o Austin e a Angela, que vivem em Salem, no Oregon. Provavelmente irei lá em primeiro lugar. O meu filho mais velho estuda na Universidade de Northwestern, em Evanston, e tenho uma filha em Pittsburgh. Será uma pequena viagem bastante agradável.

- Quanto tempo está a pensar em levar?

- Não tenho pressa. Umas duas semanas. Tenciono guiar durante todo o percurso.

- Quando foi a última vez que os viu?

- Há mais de um ano que não vejo a Kaitlin e o Daniel, os dois do meu primeiro casamento. Em Julho do ano passado levei os mais novos a um jogo com os Orioles. Embebedei-me e não me recordo da viagem de regresso a Arlington.

- Sente saudades deles?

- Claro, calculo que sim. Verdade seja dita que nunca passei muito tempo com nenhum deles. Conheço-os tão pouco.

- Você tinha de trabalhar muito.

- Trabalhava muito e ainda bebia mais. Nunca parava em casa. Nas raras ocasiões em que podia ir a qualquer lado, ia até Las Vegas, ou jogava golfe, ou fazia pesca submarina nas Bahamas. Nunca levei os garotos comigo.

- Isso é uma realidade que não pode alterar.

- Não, de facto não posso. Por que é que não vem comigo? Teríamos muitas horas em que poderíamos conversar.

- Obrigado, mas neste momento não me posso ir embora. Finalmente, estou a fazer progressos na cave. Detestaria interromper o trabalho a meio.

O único filho de Phil tinha vinte e tal anos e reprovara nos exames da faculdade; em seguida saíra de casa rumo à Costa Leste. Inadvertidamente, Laura disse que não faziam a mais pequena ideia do local onde vivia. Há mais de um ano que não telefonava aos pais.

- Espera que essa viagem seja um êxito? - perguntou Phil.

- Não sei bem o que esperar. Quero abraçar os meus filhos e pedir-lhes desculpa por ter sido tão mau pai, mas não estou certo de como é que isso os ajudará em alguma coisa nesta fase das suas vidas.

- No seu lugar, não faria isso. Eles têm consciência de que você foi um mau pai. Flagelar-se a si próprio não trará proveito a ninguém. Mas é importante que vá ao encontro dos seus filhos, que dê o primeiro passo no cimentar de um novo relacionamento.

- Eu falhei tanto em tudo o que diz respeito aos meus filhos.

- Não pode continuar a supliciar-se a si mesmo, Nate. É-lhe permitido pôr o passado para trás das costas. Deus certamente que já o fez. Paulo assassinou os cristãos antes de se converter ao cristianismo, e contudo não se flagelou pelos seus actos passados. Tudo acaba por ser perdoado. Mostre aos seus filhos a pessoa em que se transformou.

Avistaram um pequeno barco de pesca que se afastava do porto, dirigindo-se para as águas abertas da baía. Era o único ponto na panorâmica em frente dos dois homens; examinavam a pequena embarcação com toda a concentração. Nate pensava em Jevy e Welly que naquele preciso momento estariam no rio, navegando numa chalana carregada de toda a espécie de produtos e géneros, equipada com um motor a gasóleo que funcionaria regularmente, levando-os para o interior do Pantanal. Jevy iria ao leme, enquanto Welly dedilharia a sua viola. Todo o mundo estava em paz.

Mais tarde, bastante depois de Phil ter regressado a casa, Nate aninhou-se junto da lareira começando a escrever outra carta a Rachel. Era a terceira. Datou-a com data de sábado, vinte e dois de Fevereiro. «Querida Rachel», começou por escrever. «Passei uma semana muito desagradável com os seus meios-irmãos e meias-irmãs.»

Escreveu-lhe sobre eles, começando por Troy Júnior e terminando três páginas à frente com Ramble. Foi sincero quanto aos defeitos que lhes achou, aludindo aos danos que infligiriam a si próprios, e aos outros, caso o dinheiro lhes fosse parar às mãos. Também mostrou simpatia.

Ia enviar um cheque endossado à Missões Tribos Universais, no valor de cinco mil dólares, para que ela pudesse comprar um barco, um motor e medicamentos. Havia muito mais, caso ela necessitasse. Os juros da fortuna de Rachel rendiam cerca de dois milhões de dólares diários, informou Nate, o que lhe permitiria fazer inúmeras coisas boas com esse dinheiro.

 

Hark Gettys e os seus conspiradores de jurisprudência tinham cometido uma grande asneira quando dispensaram os serviços dos doutores Flowe, Zadel e Theishen. Os advogados não haviam hesitado em admoestar os psiquiatras, ofendendo-os e causando prejuízos irreparáveis.

A nova fornada de psiquiatras gozavam do benefício do testemunho de Snead, recentemente maquinado, com base no qual poderiam formular as suas opiniões clínicas. O que não acontecera com Flowe, Zadel e Theishen. Quando Nate os chamou a depor na segunda-feira seguiu a mesma linha de interrogatório com os três. Começou pelo doutor Zadel, a quem mostrou o filme em vídeo do exame médico a que o senhor Phelan se submetera. Perguntou-lhe se tinha alguma razão para alterar a sua opinião médica.

Zadel, como seria de esperar, respondeu que não. O vídeo fora feito antes do suicídio. O depoimento ajuramentado, composto por oito páginas, fora preparado escassas horas depois por insistência de Hark e dos outros advogados dos Phelan. Nate pediu a Zadel que lesse esse depoimento ajuramentado em voz alta, para que o estenógrafo do tribunal fizesse um registo.

- Tem alguma razão que o leve a querer alterar qualquer das opiniões que constam do depoimento ajuramentado? - perguntou Nate.

- Não, não tenho - respondeu Zadel, fitando Hark.

- Estamos a vinte e quatro de Fevereiro, mais de dois meses desde o dia em que procedeu a um exame mental na pessoa do senhor Phelan. Continua a manter a opinião de que ele se encontrava de posse de todas as suas faculdades mentais, estando pois em condições para executar um testamento válido?

- Confirmo essa opinião - replicou Zadel, sorrindo a Hark.

Flowe e Theishen também sorriam; ambos se sentiam genuinamente felizes por poderem apertar com os advogados que os haviam contratado, para pouco depois dispensarem os seus serviços. Nate mostrou o vídeo a cada um dos três advogados, fazendo-lhes as mesmas perguntas. Os três leram em voz alta o respectivo depoimento ajuramentado para que constasse das actas. A sessão foi suspensa às quatro horas da tarde de segunda-feira.

Pontualmente, às oito horas e trinta minutos, na terça-feira de manhã, Snead foi conduzido à sala onde lhe indicaram que se sentasse no lugar de honra. Usava um fato escuro e um lacinho no colarinho da camisa, vestuário que lhe imprimia uma aura de inteligência de que não era merecedor. Os advogados tinham seleccionado cuidadosamente o seu guarda-roupa. Havia várias semanas que moldavam e programavam a mente de Snead, ao ponto do pobre homem duvidar se seria capaz de proferir uma palavra espontânea ou sincera. A entoação de todas as sílabas tinha de ser a mais adequada. Era forçoso que projectasse uma atitude de segurança, ao mesmo tempo que teria de evitar o mais pequeno indício de arrogância. Ele e apenas ele é que servia de parâmetro à realidade, sendo crucial que as suas histórias fossem absolutamente credíveis.

Há muitos anos que Josh conhecia Snead. Fora um empregado de que o senhor Phelan falava com frequência, dizendo que tinha de o despedir. Dos onze testamentos que Josh elaborara a pedido de Troy Phelan, somente num deles é que o nome de Malcolm Snead fora mencionado. Uma doação no valor de um milhão de dólares feita em seu nome, legado esse que alguns meses mais tarde fora revogado por um novo testamento. O senhor Phelan eliminara o nome de Snead precisamente porque este lhe perguntara quanto é que poderia esperar vir a receber.

Snead mostrara-se demasiado preocupado com o dinheiro, o que não agradou ao seu patrão. O facto de o nome dele constar da lista de testemunhas dos requerentes só podia significar uma coisa: dinheiro. Era pago para testemunhar, e Josh sabia. Duas semanas de algumas investigações simples revelaram a existência de um novo Range Rover, um apartamento recentemente arrendado, num edifício onde as rendas começavam em mil e oitocentos dólares por mês, e uma viagem a Roma em primeira classe.

Snead sentou-se de frente para a câmara de vídeo, deixando adivinhar um certo mal-estar. Tinha a impressão de ter permanecido sob a mira de uma câmara durante um ano. Passara o dia todo de sábado e metade do domingo no escritório de Hark, onde, uma vez mais, fora massacrado com perguntas. Durante várias horas consecutivas vira-se em vídeo. Escrevera dúzias de páginas com histórias fictícias, cujo tema eram os últimos dias de vida de Troy Phelan. Ensaiara o seu testemunho com a bimba da Nicolette.

Snead sentia-se preparado. Os advogados tinham previsto as perguntas acerca de dinheiro. Caso lhe perguntassem se era remunerado pelo seu testemunho, Snead fora instruído no sentido de mentir. Era muito simples. Não havia maneira de poder evitar aquilo. Snead tinha de mentir no respeitante a meio milhão de dólares que já tinha na sua mão, também seria forçado a mentir sobre a promessa de outros quatro milhões e meio quando se chegasse a um acordo, ou a outro desfecho que lhe fosse favorável. Tinha de mentir quanto à existência de um contrato celebrado entre ele e os advogados. Uma vez que estava prestes a mentir sobre o senhor Phelan, não via por que motivo não haveria de mentir também a respeito do dinheiro.

- Senhor Snead, quanto é que lhe pagaram para oferecer o seu depoimento neste caso? - perguntou Nate em voz alta depois de se ter apresentado.

Os advogados de Snead tinham previsto que a pergunta seria: «Está a ser pago?» e não: «Quanto?». A resposta que Snead ensaiara era um veemente: «Não, claro que não estou a ser pago!» Todavia, para a pergunta que ainda pairava na sala, ele não tinha uma resposta pronta. A hesitação apoderou-se dele. Parecia sentir falta de ar ao olhar para Hark com uma expressão frenética; a espinha do advogado ficara hirta, o seu olhar imobilizou-se como se fosse um veado assustado.

Snead fora advertido de que o doutor O'Riley fizera devidamente o seu trabalho de casa, dando a impressão de saber tudo antes mesmo de fazer as perguntas. Nos longos e dolorosos segundos que se seguiram, o doutor O'Riley fitou-o mostrando-lhe o sobrolho franzido, inclinando a cabeça de lado enquanto passava uma vista de olhos por alguns papéis.

- Vamos lá, senhor Snead, eu sei que está a ser pago. A questão é, quanto?

Snead fez estalar os nós dos dedos com a força suficiente para que pudesse quebrá-los. Os vincos da sua testa ficaram cobertos de gotas de suor.

- Bem, eu... hum... não estou a...

- Deixe-se disso, senhor Snead. No mês passado comprou ou não comprou um novo Range Rover?

- Bem, sim, de facto...

- E também alugou um apartamento de dois quartos em Palm Court, certo?

- Sim, aluguei.

- E regressou há pouco tempo de uma viagem de duas semanas a Roma, não é verdade?

- Sim, é.

O homem sabia tudo! Os advogados dos Phelan pareciam ter encolhido nos seus assentos, cada um mais agachado do que o outro, como se esquivassem as cabeças de forma a que o ricochetear das balas não os atingissem.

- Portanto, quanto é que lhe estão a pagar? - insistiu Nate, encolerizado. - Não se esqueça de que se encontra sob juramento!

- Quinhentos mil dólares - soltou Snead da boca para fora. Nate ficou a olhar para ele como que mesmerizado, sem acreditar no que ouvia, deixando descair o queixo com lentidão. Até mesmo o estenógrafo do tribunal ficou imobilizado.

Dois dos advogados da família Phelan conseguiram respirar um pouco, ligeiramente. Apesar de todo o horror de que aquele momento se revestia, sem dúvida que poderia ter sido bastante pior. E se Snead tivesse entrado em pânico, confessando a existência do acordo de cinco milhões de dólares?

Mas aquilo era uma consolação muito fraca. De momento, o facto de se ter ficado a saber que eles tinham pago meio milhão de dólares a uma testemunha, poderia ter efeitos catastróficos para a causa dos advogados.

Nate começou a remexer nuns papéis como se procurasse um determinado documento. As palavras continuavam a ecoar através dos ouvidos de todos os que se encontravam na sala.

- Assume que já recebeu esse dinheiro, não é verdade? - perguntou Nate.

- Sim - limitou-se Snead a responder sem ter a certeza se se esperava que ele mentisse ou que se cingisse à verdade.

- Meio milhão de dólares, e mais quanto para depois? - perguntou Nate de súbito, impelido por um palpite.

- Nada - replicou Snead ansioso por começar a mentir. Era uma negativa casual, podendo até merecer alguma credibilidade. Os outros dois advogados dos Phelan recomeçaram finalmente a respirar.

- Tem a certeza do que está a dizer? - inquiriu Nate. Estava a apalpar o terreno. Caso lhe desse na veneta, poderia ter perguntado a Snead se já fora condenado pelo crime de profanação de sepulturas.

Tratava-se de um jogo em que as paradas eram muito altas, e Snead manteve-se firme.

- Claro que tenho a certeza - respondeu ele com o grau suficiente de indignação para lhe imprimir alguma plausibilidade.

- Quem é que lhe pagou esse dinheiro?

- Os advogados dos herdeiros Phelan.

- Quem é que assinou o cheque?

- Foi emitido por um banco, visado.

- Foi o senhor quem insistiu em que eles lhe pagassem para testemunhar?

- Calculo que se possa pôr as coisas nesses termos - admitiu Snead.

- Foi o senhor quem foi ter com eles, ou foram eles que tomaram a iniciativa de falar consigo?

- Eu é que fui falar com os advogados.

- O que é que o levou a isso?

Até que enfim, parecia que estavam a entrar em terrenos que lhe eram familiares. Sentiu-se um relaxar generalizado no lado da mesa dos Phelan. Os advogados começaram a rabiscar alguns apontamentos.

Por debaixo da mesa, Snead cruzou as pernas, exibindo um franzir de cenho que pretendia denotar inteligência perante a câmara de filmar.

- Porque eu estava junto do senhor Phelan antes de ele morrer, o que me permitiu saber que o pobre homem não estava bom do juízo.

- Há quanto tempo é que ele tinha perdido o juízo?

- Ao longo de todo o dia.

- Quando ele acordou nesse dia já tinha enlouquecido?

- Quando lhe servi o pequeno-almoço, ele já não sabia o meu nome.

- Por que nome é que ele o chamou?

- Por nenhum, limitou-se a resmungar-me.

Nate apoiou-se sobre os cotovelos, ignorando a papelada que o rodeava. Aquela era uma verdadeira contenda com que ele estava a sentir bastante prazer. Sabia de antemão qual o rumo que desejava tomar, mas o mesmo não acontecia com o pobre Snead.

- Viu-o despenhar-se da varanda?

- Vi, sim.

- E a queda?

- Também - confirmou Snead.

- E o embate contra o chão?

- Sim, também vi.

- Encontrava-se próximo dele quando os três psiquiatras o examinaram?

- Sim - confirmou Snead.

- E isso aconteceu por volta das duas e meia da tarde?

- Tanto quanto me recordo, sim.

- E ele tinha estado doido durante todo esse dia?

- Receio bem que sim.

- Durante quantos anos é que trabalhou para o senhor Phelan?

- Trinta anos.

- Tinha conhecimento de tudo o que se passava na sua vida?

- Tanto quanto qualquer pessoa pode saber acerca de outra.

- Portanto, conhecia o advogado dele, o doutor Stafford?

- Sim, cruzei-me com ele em diversas ocasiões.

- O senhor Phelan tinha confiança no doutor Stafford?

- Suponho que sim.

- Pensei que o senhor estava a par de tudo - retrucou Nate mordaz.

- Tenho a certeza de que ele confiava no doutor Stafford.

- O doutor Stafford estava sentado junto dele no dia do exame mental?

- Estava - confirmou Snead.

- Na sua opinião, qual era o estado mental do senhor Phelan durante esse exame?

- Ele mostrou-se desequilibrado, sem saber ao certo onde é que se encontrava e o que é que estava a fazer ali.

- Tem a certeza absoluta disso? - perguntou Nate.

- Tenho.

- A quem é que disse isso?

- Não me cabia mencionar esse assunto.

- E por que não?

- Teria sido despedido. Parte das minhas funções era calar a boca. A isto chama-se discrição.

- Sabia que o senhor Phelan se preparava para assinar um testamento onde dispunha de toda a sua vasta fortuna. No entanto, não estava de posse das suas faculdades mentais, mas mesmo assim o senhor não disse nada ao seu advogado, um homem em quem ele tinha confiança?

- Não era a mim que competia tomar essa atitude.

- Porque o senhor Phelan tê-lo-ia despedido?

- Imediatamente.

- Partindo do princípio de que isso é verdade, e depois de ele ter saltado? Falou com alguém sobre esse assunto?

- Com ninguém.

- E por que não?

Snead respirou fundo e voltou a traçar as pernas. Pensou que se estava a aguentar muito bem.

- Era um assunto particular - replicou Snead com solenidade. - Eu considerava que o meu relacionamento com o senhor Phelan era confidencial.

- Isto é, até agora. Até lhe terem oferecido meio milhão de dólares, não é verdade?

Snead não conseguiu pensar numa resposta rápida, além de que Nate não lhe dava muitas oportunidades.

- O senhor não só está a vender o seu testemunho, mas também a trair a relação confidencial que mantinha com o senhor Phelan, não é verdade, senhor Snead?

- Estou a tentar desfazer uma injustiça.

- Tanta nobreza da sua parte. Se eles não lhe estivessem a pagar, teria tomado a mesma atitude?

Snead conseguiu emitir um «sim» pouco convincente que fez com que Nate desatasse a rir às gargalhadas. Riu-se alto e bom som durante muito tempo enquanto examinava o rosto solene, e parcialmente oculto, dos advogados dos Phelan. Riu-se quase na cara de Snead. Levantou-se e contornou a cabeceira do seu lado da mesa continuando a rir-se consigo mesmo.

- Mas que audiência! - comentou Nate antes de retomar o seu lugar à mesa.

Lançou um olhar de relance a alguns apontamentos antes de continuar.

- O senhor Phelan morreu no dia 9 de Dezembro. A leitura do seu testamento foi realizada no dia 27 do mesmo mês. Durante o espaço de tempo que mediou essas duas datas, confiou a alguém que ele se encontrava fora do seu juízo quando assinou o testamento?

- Não - replicou Snead.

- Claro que não; esperou até depois da leitura do testamento, e então, ao aperceber-se de que o seu nome não constava, decidiu ir falar com os advogados com o fito de chegar a um acordo com eles, não é verdade, senhor Snead?

- Não - respondeu a testemunha, mas Nate ignorou-o.

- O senhor Phelan estava mentalmente doente?

- Não sou perito nesse campo.

- O senhor há pouco disse que ele estava fora do seu juízo. Acha que se tratava de uma condição permanente?

- Tinha fases, ia e vinha.

- Há quanto tempo é que ia e vinha?

- Há vários anos.

- Concretamente, quantos anos? - insistiu Nate.

- Talvez uns dez. Isto é só uma ideia generalizada.

- Durante os últimos catorze anos da sua vida, o senhor Phelan executou onze testamentos; num desses, ele legava-lhe um milhão de dólares. Nessa altura ocorreu-lhe dizer a alguém que ele estava mentalmente desequilibrado?

- Não era a mim que competia abordar um assunto dessa natureza.

- Que seja do seu conhecimento, ele consultou algum psiquiatra?

- Tanto quanto me é dado saber, não.

- Alguma vez lhe sugeriu que devia procurar ajuda terapêutica?

- Estaria a exceder as minhas funções se fizesse uma sugestão dessa natureza.

- Hipoteticamente, se por acaso o encontrasse caído no chão com um ataque de convulsões, teria sugerido a alguém que ele talvez estivesse necessitado de auxílio?

- Claro que teria agido dessa forma.

- Caso o encontrasse a tossir expelindo sangue, teria informado alguém?

- Sim - admitiu Snead.

Nate preparara uma súmula com cerca de cinco centímetros de espessura onde estavam listados todos os bens do falecido senhor Phelan. Folheou uma página ao acaso, perguntando a Snead se sabia alguma coisa acerca das perfurações Xion. A testemunha esforçou-se ao máximo para espevitar a memória, mas a sua mente fora tão sobrecarregada com novos dados que esta lhe falhou. E sobre as comunicações Delstar? Uma vez mais, Snead fez um esgar sorridente, mas não conseguiu estabelecer ligação alguma entre o nome e os seus conhecimentos.

A quinta empresa que Nate mencionou despertou qualquer coisa nas suas recordações. Todo orgulhoso, Snead informou o advogado de que estava ao corrente dessa empresa. Há algum tempo que o senhor Phelan a tinha adquirido. Nate tinha perguntas a fazer relativas às vendas, produtos, aplicações financeiras e lucros, abordando também uma lista interminável de estatísticas financeiras. Snead não deu nenhuma resposta que estivesse certa.

- Até que ponto é que o senhor se encontrava ao corrente das aplicações financeiras do senhor Phelan? - perguntou Nate repetidamente.

Em seguida começou a fazer-lhe perguntas sobre a estrutura do Grupo Phelan. Snead memorizara os aspectos básicos, contudo, quanto aos pormenores mais pequenos, os seus conhecimentos resumiam-se a quase nada. Não foi capaz de nomear nenhum gestor de uma escala intermédia. Nem sequer sabia o nome dos contabilistas da empresa.

Nate continuou a massacrá-lo sem lhe dar tréguas, concentrando-se nos pontos que lhe eram desconhecidos. Mais para o fim da tarde, altura em que Snead já começara a mostrar-se cansado e atordoado, Nate, a meio de um milhão de perguntas cujo tema eram as questões financeiras, fez-lhe uma pergunta inesperada.

- Assinou algum contrato com os advogados quando aceitou a quantia de meio milhão de dólares?

Um simples «não» teria sido suficiente, mas Snead foi apanhado de surpresa. Hesitou, olhou para Hark e depois para Nate, que folheava os seus documentos como se estivesse de posse de uma cópia desse contrato. Snead não tinha dito uma única mentira durante as últimas duas horas, consequentemente, não reagiu com a rapidez necessária.

- Hum... claro que não - respondeu a gaguejar, não conseguindo convencer ninguém.

Nate apercebeu-se da mentira permitindo que o assunto morresse. Existiam outras maneiras de obter uma cópia do contrato.

 

Os advogados dos Phelan encontraram-se num bar semiobscuro, a fim de lamberem as suas feridas. O desempenho desolador de Snead parecia-lhes ser ainda mais catastrófico depois de duas rodadas de bebidas fortes. Poderia ser um pouco mais trabalhado com vista ao julgamento, mas o facto de ele ter recebido tanto dinheiro havia manchado para sempre o seu testemunho.

Como é que O'Riley se teria inteirado daquele assunto? Ele mostrava-se de tal maneira seguro de que Snead fora pago.

- Foi o Grit - alvitrou Hark. «Grit», repetiram todos em pensamento. Com certeza que Grit não se teria passado para o outro lado.

- É o resultado de lhe terem roubado a cliente - disse Wally Bright depois de um longo silêncio.

- Cale a boca - ripostou a doutora Langhorne.

Hark sentia-se demasiado cansado para oferecer luta. Acabou a bebida que tinha à frente mandando vir outra. Na confusão de todos os depoimentos, os outros advogados dos herdeiros Phelan tinham-se esquecido completamente da existência de Rachel. Continuava a não haver qualquer registo da sua pessoa no processo judicial.

 

O depoimento de Nicolette, a secretária, teve a duração de oito minutos. Indicou o seu nome e endereço, ao que se seguiu um breve historial relativo aos seus empregos, enquanto os advogados dos Phelan, no outro extremo da mesa, se instalavam nas suas cadeiras aguardando os pormenores das indiscrições de natureza sexual da testemunha com o senhor Phelan. Tinha vinte e três anos de idade e poucas qualificações académicas, para além de um corpo de linhas esbeltas, uns belos seios e umas feições bonitas emolduradas por uns cabelos louros. Mal conseguiam esperar para a ouvir falar de sexo durante algumas horas.

- Alguma vez manteve relações sexuais com o senhor Phelan? - perguntou Nate indo direito ao assunto.

Ela tentou mostrar-se constrangida com aquela pergunta melindrosa, mas acabou por responder afirmativamente.

- Em quantas ocasiões?

- Não as contei.

- Durante quanto tempo?

- Geralmente, dez minutos.

- Não é isso que quero saber; estou a referir-me ao período de tempo. A partir de que mês até que data?

- Oh, eu só trabalhei para ele durante cinco meses.

- Aproximadamente, vinte semanas. Mais ou menos quantas vezes por semana é que tinha relações sexuais com o senhor Phelan?

- Calculo que duas vezes por semana.

- O que significa mais ou menos quarenta vezes.

- Imagino que sim. Dá a impressão de ser muito, não acha?

- Para mim, não, não acho. Quando se entregava a essas práticas sexuais, o senhor Phelan costumava despir a roupa?

- Claro. Ambos nos despíamos.

- Por conseguinte, ele ficava completamente nu?

- Sim - confirmou Nicolette.

- Ele tinha algumas marcas de nascença no corpo?

Quando as testemunhas engendram mentiras, é frequente que lhes escapem os aspectos mais óbvios. O que também acontece com os seus advogados. Ficam tão obcecados com as suas histórias fictícias que lhes passam despercebidos um facto ou dois. Hark e os seus correlegionários tinham acesso às informações que diziam respeito às ex-mulheres de Troy Phelan - Lillian, Janie e Tira - e qualquer destas lhes poderia ter dito que Troy possuíra duas marcas de nascença redondas de um vermelho-púrpura, cada uma do tamanho de um dólar de prata, mesmo ao cimo da perna direita, perto da anca, precisamente abaixo da cintura.

- Que eu me lembre, não - replicou Nicolette.

Aquela resposta surpreendeu Nate, mas por outro lado não. Ter-lhe-ia sido bastante fácil acreditar que Phelan andava metido com a secretária, uma coisa que ele fazia há décadas. No entanto, poderia ter acreditado com a mesma facilidade que Nicolette mentia.

- Portanto, não lhe viu quaisquer marcas visíveis? - voltou Nate a perguntar.

- Nenhuma.

Os advogados dos Phelan sentiram-se invadidos por um sentimento de medo. Seria possível que outra das suas testemunhas principais estivesse prestes a desmoronar-se, mesmo em frente dos seus olhos?

- Não tenho mais perguntas a colocar-lhe - disse Nate, saindo da sala para voltar a encher a sua chávena com café.

Nicolette fitou os advogados. Estes olhavam com fixidez para a superfície da mesa, interrogando-se onde é que essas marcas de nascença se situariam.

Depois de Nicolette ter saído, Nate fez deslizar uma cópia do relatório da autópsia através do tampo da mesa, aproximando o documento dos seus adversários que não escondiam a estupefacção que sentiam. Não proferiu uma só palavra; não era necessário. Ali estava o velho Troy em cima de uma laje de pedra, um corpo nu com a carne definhada e contundida, com as marcas de nascença que pareciam olhar para eles.

Passaram o resto de quarta-feira, e todo o dia de quinta-feira, a interrogar os quatro psiquiatras recentemente contratados, cujo testemunho tinha como objectivo pôr em causa o parecer médico dos três primeiros colegas, afirmando que eles, efectivamente, não sabiam o que é que andavam a fazer.

Os seus testemunhos eram repetitivos e fáceis de adivinhar - as pessoas de posse das suas faculdades mentais não costumavam saltar de varandas abaixo.

Como grupo, eram menos distintos do que Flowe, Zadel e Theishen. Dois dos quatro já se tinham aposentado, auferindo ocasionalmente alguns honorários aqui e ali como testemunhas profissionais. Um deles ensinava numa faculdade comunitária sobrelotada. Enquanto outro ganhava a vida, com algumas dificuldades, num pequeno consultório dos subúrbios.

Todavia, não eram pagos para impressionar ninguém; ao invés, o objectivo da sua presença era simplesmente agitar as águas. Troy Phelan fora conhecido por se comportar de maneira errática e excêntrica. Havia quatro peritos em psiquiatria que afirmavam que ele não estivera de posse de todas as suas faculdades mentais para poder executar um testamento. Por outro lado, havia três que afirmavam o contrário. Era necessário que se rodeasse o assunto de alguma densidade, mantendo-o emaranhado, na esperança de que os que defendiam a validade do testamento acabassem, um dia, por ficar fartos, concordando em que se chegasse a um acordo extra-judicial. Caso contrário, a última palavra caberia a um júri composto por leigos, que teriam de deslindar os meandros da linguagem médica até que as opiniões divergentes fizessem um mínimo de sentido.

Os novos peritos em psiquiatria eram generosamente remunerados a fim de não abdicarem das suas convicções, pelo que Nate nem sequer tentou alterá-las. Já levara ao banco das testemunhas um número suficiente de médicos para saber que não devia contradizê-los em assuntos de medicina. Em vez disso, optou por se concentrar nas suas credenciais e experiência clínica. Obrigou-os a verem o filme em vídeo e a criticarem os três primeiros psiquiatras.

Quando a sessão foi suspensa na quinta-feira à tarde, já haviam sido ouvidos quinze depoimentos. Entretanto, fora programada outra rodada para o fim de Março. Wycliff planeara o julgamento para meados de Julho. As mesmas testemunhas voltariam a depor, mas dessa feita fá-lo-iam perante um tribunal aberto ao público que os observaria, e na presença de um júri que sopesaria cada palavra.

Nate abandonou a cidade. Dirigiu-se para a região oeste através da Virgínia, após o que se dirigiu para sul através do vale Shenandoah. Sentia a mente entorpecida ao fim de nove dias em que sondara implacavelmente, até ao pormenor, a vida íntima de desconhecidos. A certa altura pouco definida da sua vida, por força do seu trabalho e vícios, perdera todo o sentido de decência e pudor. Aprendera a mentir, a ser dissimulado, a enganar, a ocultar, a assediar e a atacar testemunhas inocentes sem mostrar o mais pequeno resquício de sentimentos de culpa.

Mas na tranquilidade do interior do seu automóvel, ao abrigo da escuridão da noite, Nate sentia-se envergonhado da sua atitude. Teve compaixão dos filhos de Troy Phelan. Lamentou a sorte de Snead, um homenzinho com uma vida triste que se limitava a tentar sobreviver. Desejou não ter atacado os novos psiquiatras com tanto vigor.

O sentimento de vergonha regressara à sua mente e Nate sentia-se feliz com isso. Sentia-se orgulhoso de si próprio por ser capaz de ter vergonha. Ao fim e ao cabo, isso significava que voltara a ser humano.

À meia-noite parou num motel barato perto de Knoxville. Nevava intensamente no Midwest, nos estados do Kansas e Iowa. Deitado na cama enquanto consultava um atlas, traçou um percurso através do sudoeste.

Dormiu a segunda noite em Shawnee, em Oklahoma; na terceira pernoitou em Kingman, Arizona; a quarta em Redding, Califórnia.

Os filhos do segundo casamento eram Austin e Angela, com, respectivamente, doze e onze anos, e frequentavam o sétimo e sexto anos de escolaridade. A última vez que estivera com eles tinha sido em Julho passado, três semanas antes da última recaída, altura em que os levara a ver um jogo dos Orioles. Aquela saída, que tão agradável fora, posteriormente transformou-se numa cena medonha. Nate bebera seis cervejas durante o jogo - os garotos tinham-nas contado porque a mãe lhes dissera que o fizessem -, tendo conduzido durante as duas horas de Baltimore a Arlington sob a influência do álcool.

Nessa altura, os filhos estavam prestes a mudar-se para Oregon com a mãe, Christi, e com o segundo marido desta, Theo. A ida àquele jogo seria a última vez que Nate teria oportunidade de estar com os filhos nos tempos mais próximos, e, em vez de se despedir deles numa atmosfera agradável, tinha-se embriagado. Discutiu com a ex-mulher no caminho de acesso à garagem com as crianças como espectadoras, mas para eles aquela cena não tinha nada de invulgar. Theo ameaçara-o com o cabo de uma vassoura. Mais tarde, Nate despertou dentro do carro que estacionara num lugar reservado a deficientes, no parque de estacionamento de um McDonald's, com uma embalagem de seis cervejas vazias no assento traseiro.

Quando se tinham conhecido, catorze anos antes, Christi era directora de um colégio particular em Potomac. Na altura, ela fizera parte de um júri. Nate era um dos advogados. Ela usava uma saia preta curta no segundo dia do julgamento, e a litigação, praticamente, ficou interrompida. O primeiro encontro que ambos combinaram teve lugar uma semana mais tarde.

Durante três anos, Nate manteve-se afastado de todas as substâncias nocivas, o tempo suficiente para se casarem e terem dois filhos. Quando a barragem começou a abrir fissuras, Christi sentiu-se assustada desejando fugir. Pouco depois, a situação explodiu e ela agarrou nos filhos e abandonou a casa, mantendo-se afastada durante um ano. O casamento durou dez caóticos anos.

Actualmente, Christi trabalhava num colégio em Salem; por seu turno, Theo era sócio de uma pequena firma de advocacia nessa cidade. Nate acreditara sempre que fora ele quem levara a família a abandonar Washington. Não lhes podia assacar quaisquer culpas por terem fugido para a outra costa do país.

Quando chegou às proximidades de Medford, a quatro horas de distância, ligou para o colégio servindo-se do telefone do automóvel, tendo ficado em espera durante cinco minutos, período de tempo utilizado, tinha a certeza, para ela trancar a porta e serenar as ideias.

- Estou - disse Christi, finalmente.

- Christi, sou eu, Nate - retorquiu ele sentindo-se como um idiota por ter de identificar a sua voz perante uma mulher com quem vivera durante dez anos.

- Onde é que estás? - perguntou ela como se estivesse perante a iminência de um ataque que a visaria.

- Próximo de Medford.

- No Oregon?

- Sim, gostaria de ver os garotos.

- De acordo; quando?

- Esta noite, amanhã, não estou com muita pressa. Há já alguns dias que estou em viagem, só a ver a paisagem. Não tenho um itinerário definido.

- Sim, com certeza, Nate. Tenho a certeza de que poderemos combinar qualquer coisa. Mas bem vês, os garotos andam muito atarefados com a escola, o bailado, os treinos de futebol, etc.

- Como é que eles estão?

- Estão muito bem. Obrigada por perguntares.

- E tu? Como é que a vida te tem tratado?

- Estou óptima. Adoramos viver no Oregon.

- Eu também estou bem. Obrigado por teres perguntado - acrescentou Nate com ironia. - Estou desintoxicado e sóbrio, Christi, de verdade. Finalmente, consegui libertar-me das drogas e da bebida de uma vez por todas. Tudo indica que dentro em pouco abandonarei o exercício da advocacia, mas sinto-me realmente muito bem.

- Isso é esplêndido, Nate. - Ela já ouvira as mesmas afirmações em ocasiões anteriores. As suas palavras eram medidas. Planeava com a antecipação de duas frases.

Combinaram jantar na noite seguinte, o que permitiria a Christi o tempo suficiente para preparar os filhos, arrumar a casa; um compasso de espera que também daria a Theo o tempo necessário para decidir qual o papel que desempenharia naquela reunião. Tempo suficiente para se ensaiarem e planearem saídas airosas.

- Não tenciono atrapalhar o dia-a-dia de ninguém - prometeu Nate antes de desligar.

Theo optou por trabalhar até tarde, não estando presente na reunião. Nate abraçou Angela demoradamente. Austin ficou-se por um aperto de mão. Nate prometera a si mesmo que não se manifestaria efusivamente sobre o quanto tinham crescido desde a última vez em que os vira. Christi recolheu-se no seu quarto enquanto o pai reatava a relação com os filhos.

Tão-pouco tencionava desfazer-se em desculpas acerca de atitudes que não poderia apagar da vida dos três. Sentaram-se no chão da sala de estar, conversando sobre bailado, escola e futebol. Salem era uma cidade bonita, muito mais pequena do que D. C, e os garotos tinham-se adaptado sem problemas de maior, tendo feito muitos amigos e frequentando uma boa escola, onde os professores eram simpáticos.

O jantar foi spaghetti com salada, e prolongou-se por uma hora. Nate contou as peripécias por que passara nas selvas brasileiras, levando o imaginário dos filhos na sua viagem em que procurara uma cliente cujo paradeiro se desconhecia. Era evidente que Christi não lera os jornais que relatavam as notícias da herança Phelan. Não estava ao corrente de nada que se relacionasse com aquele assunto.

Às sete em ponto, Nate disse que tinha de se ir embora. Os garotos ainda precisavam de fazer os trabalhos de casa, além de que a escola começava cedo.

- Amanhã tenho um jogo de futebol, pai - disse Austin, fazendo com que o coração de Nate quase parasse de bater. Não se recordava da última vez em que os filhos o tinham tratado por pai.

- É na escola - adiantou Angela. - Queres assistir?

A pequena ex-família partilhou um momento em que pairou um certo mal-estar, em que se limitaram a olhar uns para os outros. Nate não sabia o que dizer.

- Eu vou assistir ao jogo - interveio Christi, dissipando a estranheza daquele momento. - Podemos aproveitar para conversar.

- Claro que estarei presente - disse Nate. Antes de sair, os filhos abraçaram-no. Afastando-se no seu automóvel, Nate desconfiava que Christi queria vê-lo durante dois dias consecutivos para poder examinar os seus olhos. Ela estava bem familiarizada com os sinais.

Nate permaneceu em Salem durante três dias. Assistiu ao jogo de futebol sentindo um orgulho extraordinário no filho. Foi convidado de novo para jantar, mas concordou em aceitar com a condição de Theo se lhes reunir durante a refeição. Também almoçou com Angela e com as amigas da filha no refeitório da escola.

Decorridos três dias, chegara a altura de partir. Os garotos precisavam de retomar a rotina do seu dia a dia, sem as complicações que Nate levava à sua vida. Por seu lado, Christi já estava saturada de fingir que nunca tinha acontecido nada entre os dois. Além de que Nate tinha começado a apegar-se demasiado aos filhos. Prometeu-lhes telefonar e contactá-los através do correio electrónico, insistindo em que voltariam a ver-se dentro em pouco.

Partiu de Salem com o coração destroçado. Até que ponto é que um homem poderia descer para ter deixado uma família maravilhosa como aquela? Não se recordava de quase nada que se relacionasse com a infância dos filhos - não lhe ocorria cena alguma das peças teatrais escolares, das máscaras que tinham usado no Dia das Bruxas, das manhãs dos dias de Natal, das idas ao centro comercial da área onde viveram. Agora eram praticamente adultos e estavam a ser criados por outro homem.

Dirigiu-se para oriente, acompanhando o fluir do trânsito.

 

Enquanto Nate percorria um pouco ao acaso o território de Montana, com o pensamento concentrado em Rachel, Hark Gettys tinha dado entrada em tribunal de uma acção para que fosse negado provimento às alegações que a herdeira apresentara contra a contestação do testamento. As suas razões eram claras e evidentes, substanciando o seu ataque com uma súmula composta por vinte páginas em que trabalhara durante um mês. Estava-se a sete de Março, quase três meses depois da morte do senhor Phelan, embora ainda não tivessem decorrido dois meses desde que Nate aceitara o caso, aproximadamente três semanas desde que o processo fora tornado público, quatro meses antes de o caso ser submetido a tribunal e este continuava sem ter jurisdição sobre Rachel Lane. Não fossem as alegações apresentadas pelo seu advogado, continuaria a não haver o mínimo vestígio da sua presença. Nenhum dos documentos oficiais que haviam dado entrada no tribunal tinham a sua assinatura.

Hark referia-se a ela designando-a por «parte fantasma». Ele e os outros advogados que representavam os requerentes tinham instaurado um processo litigioso contra uma sombra. A mulher era candidata a herdar onze mil milhões de dólares. O mínimo que poderia ter feito era assinar o documento de renúncia de direitos em conformidade com a lei. Uma vez que se dera ao incómodo de contratar os serviços de um advogado, certamente que também poderia submeter-se à jurisdição do tribunal.

A passagem do tempo beneficiava enormemente os herdeiros, se bem que para estes fosse difícil mostrarem-se pacientes enquanto sonhavam com tamanha riqueza. Cada semana que decorria sem notícias de Rachel era mais uma prova de que ela não tinha qualquer interesse nos trâmites judiciais daquele processo. Durante as reuniões que se realizavam às sextas-feiras de manhã, os advogados dos Phelan reviam a leitura pública do testamento, falando dos respectivos clientes e engendrando a estratégia que seguiriam. No entanto, passavam a maior parte do seu tempo a especular sobre o motivo por que Rachel ainda não se tinha apresentado oficialmente. Sentiam-se fascinados com a possibilidade ridícula de que talvez ela não quisesse herdar o dinheiro. Era uma hipótese perfeitamente absurda, e contudo, fosse de que maneira fosse, tratava-se de um assunto que, inevitavelmente, era abordado todas as manhãs de sexta-feira.

Entretanto, as semanas davam lugar aos meses. A vencedora do número da lotaria não reivindicava o prémio que lhe coubera.

Existia ainda outra razão bastante relevante para que fosse exercida pressão sobre os que se batiam pela legitimação do testamento de Troy Phelan. Dava pelo nome de Snead. Hark, Yancy, Bright e Langhorne haviam assistido impotentes ao depoimento da sua testemunha principal até o terem memorizado; no entanto, não se sentiam confiantes quanto à capacidade que o homem teria para influenciar os jurados. Nate O'Riley pusera-o a ridículo, o que acontecera no decurso de uma mera acareação. Imagine-se quão afiadas estariam as lâminas das adagas por ocasião do julgamento do caso, perante um júri composto, na sua maioria, por pessoas da classe média que se esforçavam por pagar as suas contas todos os meses. Ficariam a saber que Snead metera ao bolso meio milhão de dólares para testemunhar a sua versão da história. Seria extremamente difícil convencer os jurados.

O problema de Snead saltava à vista. Mentia, e os mentirosos acabavam, eventualmente, por ser apanhados em tribunal. Depois de ter tido tantos deslizes ao longo do seu depoimento, os advogados sentiam-se verdadeiramente aterrorizados com a perspectiva de o apresentarem perante um júri. Mais uma ou duas mentiras que fossem do conhecimento público, e o caso deles iria por água abaixo sem apelo nem agravo.

Por outro lado, as marcas de nascença haviam feito com que Nicolette fosse inútil como testemunha.

Os seus próprios clientes não eram pessoas que fossem particularmente merecedoras de simpatia. Com a excepção de Ramble, o mais assustador de todos, cada um recebera cinco milhões de dólares, quantia que se destinara a ajudá-los a singrar na vida. Nenhum dos jurados ganharia esse montante ao longo de toda a sua vida. Os filhos de Troy Phelan poderiam queixar-se de tudo o que quisessem quanto ao terem sido criados sem a presença de um pai, mas acontecia que metade dos jurados teria tido progenitores divorciados.

A batalha dos psiquiatras também seria um osso duro de roer, para além de ser um segmento do julgamento que os preocupava acima de tudo o mais. Nate O'Riley desfizera o testemunho de muitos médicos em salas de tribunal durante mais de vinte anos. Os quatro substitutos que tinham contratado não seriam capazes de resistir aos brutais contra-interrogatórios de Nate.

A fim de evitarem um julgamento, seriam forçados a chegar a um acordo extra-judicial. Para que esse acordo fosse viável, era necessário encontrarem uma lacuna. A aparente falta de interesse por parte de Rachel Lane seria mais do que suficiente, sendo inquestionavelmente a melhor jogada que poderiam fazer.

Josh revia, com um sentimento de admiração, a moção apresentada onde se pedia que fosse negado provimento ao processo. Adorava todas as manobras jurídicas, os estratagemas que se arquitectavam para frustrar os planos dos adversários, as tácticas utilizadas, e sempre que alguém, até mesmo um oponente, fazia as coisas como deve ser, em silêncio, não se coibia de o aplaudir. Toda a táctica de Hark era perfeita - o sentido de oportunidade, a exposição de motivos e a forma soberba como argumentava na súmula do processo.

Os requerentes tinham um caso pouco consistente, mas os seus problemas, quando comparados com os de Nate, eram de somenos importância. Nate não fora contratado por um cliente. Ele e Josh haviam conseguido manter aquele pormenor em segredo de há dois meses a esta parte, todavia, a artimanha estava prestes a passar à história.

 

Daniel, o filho mais velho de Nate, insistiu em encontrar-se com o pai num pub. Já era noite quando este encontrou o bar situado a dois quarteirões do complexo universitário, numa rua ladeada por clubes e bares. A música, os anúncios com luzes intermitentes que publicitavam várias marcas de cerveja e os universitários de ambos os sexos que gritavam pelas ruas - tudo aquilo lhe era sobejamente familiar. Era Georgetown alguns meses atrás, mas Nate já não se sentia atraído por aquele ambiente. Há apenas um ano ele teria retribuído os gritos de euforia daqueles jovens, acompanhando-os de um bar ao seguinte, acreditando na sua imaginação que continuava a ser um jovem de vinte anos capaz de se aguentar durante toda a noite.

Daniel aguardava-o numa mesa compartimentada pouco espaçosa; estava acompanhado por uma rapariga. Ambos fumavam. Cada um tinha à sua frente uma garrafa de vidro castanho com gargalo esguio. Pai e filho trocaram um aperto de mão, dado que qualquer manifestação mais afectuosa teria feito com que o filho se sentisse pouco à vontade.

- Esta é a Stef- disse Daniel apresentando a rapariga. - É modelo - acrescentou, pressuroso, tentando provar ao seu velho que andava atrás de uma mulher de elevado calibre.

Por qualquer razão, Nate tivera esperanças de que poderia passar algumas horas a sós com o filho. Mas esse seu desejo não seria concretizado.

A primeira coisa em que reparou no aspecto de Stef foi o facto de ela usar um baton acinzentado, que fora aplicado em camadas generosas sobre os lábios cheios que pareciam fazer beicinho, lábios que mal se distenderam quando ela o brindou com o sorriso vago da praxe. Saltava à vista que ela era suficientemente macilenta e incaracterística para poder ser modelo. Tinha uns braços tão escanzelados que mais se assemelhavam a cabos de vassoura.

Embora Nate não as pudesse ver, estava certo de que as pernas ossudas da rapariga dariam a impressão de lhe chegar aos sovacos, e de certeza absoluta que teria pelo menos duas tatuagens gravadas na pele em redor dos tornozelos.

Ela desagradou-lhe de imediato, e ficou com a sensação de que o sentimento era mútuo. Não era capaz de imaginar o que é que Daniel lhe teria dito.

O filho concluíra o ensino liceal no Colégio Grinnell há um ano, após o que passara o Verão na índia. Há treze meses que Nate não o via. Não estivera presente na cerimónia de fim do curso(1), nem tão-pouco enviara um cartão ou um presente, não se dera ao incómodo de lhe telefonar para o felicitar. Naquela mesa já se instalara um ambiente de tensão maior do que seria desejável, sem que a manequim expelisse constantemente baforadas de fumo, enquanto fitava Nate com um olhar completamente abstracto.

- Queres beber uma cerveja? - perguntou Daniel quando viu um empregado de mesa por perto. Era uma pergunta cruel, uma pequena ferroada profunda que se destinava a infligir sofrimento.

- Não, só quero água - respondeu Nate.

- Continuas a manter-te sóbrio, hem? - continuou Daniel depois de ter feito o pedido em voz alta ao empregado de mesa.

- Sempre - replicou Nate com um sorriso, tentando esquivar-se às ferroadas do filho.

- Tiveste alguma recaída desde o Verão passado?

- Não. Falemos de outra coisa qualquer.

- Dan disse-me que se submeteu a uma cura de desintoxicação - interveio Stef, expelindo o fumo do cigarro através das narinas. Nate sentiu-se surpreendido ao constatar que ela era capaz de iniciar e terminar uma frase. As suas palavras eram arrastadas e a voz tão oca quanto as órbitas oculares.

- De facto, é verdade, por várias vezes. Que mais é que ele lhe contou?

- Eu também já passei por uma clínica de desintoxicação - acrescentou ela. - Mas só numa ocasião. - Dava a impressão de sentir grande orgulho naquela façanha, em simultâneo com uma manifestação de tristeza pela sua falta de experiência naquelas andanças. As duas garrafas de cerveja diante dela estavam vazias.

 

*1. Ao contrário do que é uso no nosso país, nos Estados Unidos a conclusão do ensino secundário é uma ocasião muito importante em que os diplomas são entregues numa cerimónia pública. (N. da T.)

 

- Muito agradável - comentou Nate, passando a ignorar a presença da rapariga. Era incapaz de fingir que simpatizara com ela, além de que dali a um mês ou dois ela já teria arranjado outro apaixonado, também a sério.

- Como é que vão os estudos? - perguntou Nate a Daniel.

- Quais estudos?

- Estou a referir-me à faculdade.

- Desisti de estudar. - As suas palavras eram desabridas e tensas. Por detrás da sua maneira de falar, a tensão era visível.

Nate pressentiu que a sua pessoa influenciara aquele abandono dos estudos; só não sabia exactamente como e porquê. Entretanto, chegou a água que pedira.

- Vocês já jantaram? - perguntou.

Stef evitava comer e Daniel não tinha fome. Por seu turno, Nate sentia-se esfomeado mas não lhe apetecia comer sozinho. Com o olhar, percorreu o pub. Algures, num outro canto, alguém fumava marijuana. Aquele bar era uma pequena espelunca barulhenta, o género de lugar que Nate tanto apreciara numa vida não muito distanciada.

Daniel acendeu outro cigarro, um Camel sem filtro, os piores paivantes cancerígenos que existiam no mercado, expelindo uma nuvem de fumo espesso na direcção do candeeiro suspenso acima da mesa. Mostrava-se irritado e tenso.

A rapariga encontrava-se ali por dois motivos. Para impedir que fossem trocadas palavras agrestes e talvez mesmo uma discórdia. Nate desconfiava que o filho, possivelmente, estaria sem dinheiro, situação que o levava a querer descarregar em cima do pai, acusando-o de falta de apoio, ao mesmo tempo que receava agir desse modo porque o velho se encontrava num estado de fragilidade, para não mencionar que tinha tendência para se ir abaixo entrando num poço sem fundo. Stef serviria de moderadora, apaziguando a cólera de Daniel, bem como a sua linguagem.

A segunda razão era para abreviar aquele encontro tanto quanto fosse possível.

Nate precisou apenas de quinze minutos para chegar àquelas conclusões.

- Como é que a tua mãe tem passado? - perguntou ao filho.

- Está óptima - respondeu Daniel esforçando-se por esboçar um sorriso. - Estive com ela no Natal passado. Tu estavas fora.

- Estive no Brasil - explicou Nate.

Perto dos três, passou uma universitária que usava umas calças de ganga coladas ao corpo. Stef inspeccionou-a de alto a baixo; finalmente, a expressão do seu olhar deixava adivinhar alguma vivacidade.

A rapariga conseguia ser mais escanzelada do que Stef. Como é que um aspecto esquelético conseguira estar tão em moda?

- O que é que se passa no Brasil? - perguntou Daniel.

- Uma cliente. - Nate já estava farto das histórias da sua aventura.

- A mãe disse-me que tens um problema qualquer com o I.R.S.

- Tenho a certeza de que isso dá grande satisfação à tua mãe.

- Imagino que sim. Ela não me pareceu muito incomodada com o teu problema. Vais parar à cadeia?

- Não. Achas que podemos mudar de conversa?

- Com certeza, pai. Mas não há mais nada de que possamos falar, nada além do passado, e por aí não podemos enveredar.

Stef, a mediadora, revirou os olhos na direcção de Daniel, como se lhe dissesse: «Já chega!»

- Por que razão é que desististe de estudar? - perguntou Nate, ansioso por arrumar aquele assunto de uma vez por todas.

- Por vários motivos. Começou a ser aborrecido.

- Ele ficou sem dinheiro - interveio Stef dando uma ajuda. Lançou a Nate o seu melhor olhar abstracto.

- Isso é verdade? - inquiriu Nate.

- É uma das razões - confirmou Daniel.

O primeiro instinto de Nate foi sacar do livro de cheques resolvendo de imediato os problemas do rapaz. Era o que sempre fizera. Para ele, ser pai traduzira-se sistematicamente numa longa ida às compras. Caso não se possa estar presente, a solução é enviar dinheiro. Mas a diferença era que Daniel já tinha vinte e três anos, já frequentara a faculdade, e saía com as iguais da Miss Bulimia ali presente, tendo chegado a altura de se afundar ou nadar pelos seus próprios meios.

Além de que o livro de cheques já não era o que fora em tempos passados.

- Deves trabalhar durante algum tempo; só te fará é bem - disse Nate. - O trabalho fará com que dês mais valor aos estudos.

Stef discordava. Tinha dois amigos que haviam desistido de estudar e que passaram a andar ao deus-dará. Enquanto ela continuava com aquela conversa fiada, Daniel recolheu-se mais no seu canto da mesa compartimentada. Esvaziou a sua terceira garrafa de cerveja. Nate podia pregar-lhe toda a espécie de sermões alusivos aos malefícios do álcool, mas sabia que tudo o que dissesse sobre esse assunto soaria a falso.

Depois de quatro cervejas, Stef já estava embriagada e Nate não tinha mais nada a acrescentar. Escreveu num guardanapo de papel o número de telefone em Saint Michaels, entregando-o a Daniel.

- Durante os dois meses mais próximos poderás contactar-me através deste telefone. Se precisares de alguma coisa liga-me.

- Até à vista, pai - retorquiu Daniel.

- Tem cuidado contigo.

Nate saiu para o ar gelado, dirigindo-se para o lago Michigan.

Dois dias mais tarde chegou a Pittsburgh, onde teria a terceira e última reunião que acabou por não se realizar. Tinha falado por duas vezes com Kaitlin, a filha fruto do casamento número um, e o que combinaram ficara bastante claro. Ela deveria encontrar-se com o pai às sete e meia, para jantarem, em frente do restaurante no átrio do hotel onde ele ficaria alojado. O apartamento dela ficava apenas a 20 minutos de distância. Às oito e meia entrou em contacto com ele, dando-lhe a notícia de que uma amiga estivera envolvida num acidente de viação que a levara ao hospital, onde a situação não agourava nada de bom.

Nate sugeriu que combinassem almoçar no dia seguinte. Kaitlin disse-lhe que isso não seria possível porque a amiga sofrera uma contusão na cabeça e estava ligada a um sistema de reanimação; tencionava permanecer junto dela até que o seu estado clínico estabilizasse. Vendo que a filha fazia uma retirada estratégica, Nate perguntou-lhe a morada do hospital. De início, ela disse que não sabia, depois não tinha a certeza, e em seguida, após ter reflectido melhor, aquela visita não era boa ideia porque não podia abandonar a cabeceira da cama da doente.

Nate comeu no quarto, sentado a uma pequena mesa junto da janela de onde desfrutava de uma vista que abrangia a baixa da cidade. Depenicava a comida pensando em todas as razões mais plausíveis que pudessem levar a filha a não querer encontrar-se com ele. Uma argola nas narinas? Uma tatuagem na testa? Teria ela passado a fazer parte de uma seita religiosa, tendo rapado a cabeça? Seria possível que ela tivesse engordado cinquenta quilos ou perdido vinte e cinco? Estaria ela grávida?

Tentou deitar as culpas para cima da filha, de molde a que não fosse forçado a encarar a evidência. Ter-lhe-ia ela assim tanto ódio?

Na solidão do seu quarto de hotel, numa cidade onde não conhecia ninguém, era fácil entregar-se a sentimentos de auto-comiseração, sofrendo uma vez mais pelos erros que cometera no passado.

Agarrou no telefone tentando fazer algo que lhe ocupasse os pensamentos. Ligou para o padre Phil perguntando-lhe como é que iam as coisas por Saint Michaels. Phil estivera adoentado com gripe e, dado que a cave da igreja era muito fria, Laura não lhe permitia que continuasse com os trabalhos de remodelação. «Que maravilha!», pensou Nate. Malgrado existirem muitas incertezas no seu caminho, a única constante, pelo menos num futuro mais próximo, seria a perspectiva de um trabalho regular na cave da igreja da Trindade.

Em seguida telefonou a Sérgio, com quem manteria a conversa semanal que servia para o encorajar no bom caminho. Os demónios estavam todos bem presos pela rédea que tinha nas mãos, e Nate sentia-se surpreendentemente senhor da situação. O quarto do hotel tinha um pequeno bar no frigorífico, mas ele ainda não se aproximara dele.

O telefonema seguinte foi para Salem; manteve uma conversa muito agradável com Angela e Austin. Era estranho como as crianças mais novas queriam conversar com o pai, enquanto os mais velhos não tinham nada a dizer.

Por fim, telefonou a Josh, que na altura se encontrava no escritório da cave de sua casa, a pensar nas complicações do caso Phelan.

- Tens de regressar, Nate - disse ele. - Tenho um plano.

 

Nate não foi convidado para a primeira volta das negociações de paz. Existiam duas razões que justificavam a sua ausência. Em primeiro lugar, era Josh quem organizara a cimeira, consequentemente, encontrava-se no seu território. Até à data, Nate conseguira evitar ir ao escritório onde trabalhara, desejando que aquele estado de coisas se mantivesse. Em segundo lugar, os advogados da família Phelan consideravam que Josh e Nate eram aliados, o que tinha toda a razão de ser. Josh pretendia desempenhar o papel do fazedor da paz, o intermediário. Para obter a confiança da parte contrária, tinha forçosamente de ignorar a outra, ainda que por pouco tempo. O seu plano consistia em reunir-se com Hark e demais advogados antes de falar com Nate, e, se necessário, durante alguns dias, andar de um lado para o outro até que conseguissem chegar a um acordo que satisfizesse ambas as partes.

Ao cabo de uma sessão prolongada de amena conversa sobre trivialidades, Josh pediu que lhe prestassem atenção. Havia muitos assuntos que teriam de abordar. Os advogados dos Phelan estavam ansiosos por começar.

Qualquer acordo pode ser alcançado no espaço de alguns segundos, durante a suspensão de uma audiência que tenha lugar durante um julgamento acalorado: sempre que uma testemunha se mostra hesitante, ou quando um administrador que ocupou o cargo recentemente deseja recomeçar tudo de novo, libertando-se de um processo litigioso que se pode vir a arrastar por muito tempo. Por outro lado, qualquer acordo pode levar meses até se concretizar, enquanto o processo judicial se aproxima lentamente da data do julgamento. No seu todo, os advogados dos Phelan sonhavam com uma «rapidinha» e a reunião no gabinete de Josh era um primeiro passo. Acreditavam verdadeiramente que estavam prestes a transformar-se em milionários.

Josh começou por lhes dar a conhecer, diplomaticamente, a sua opinião, de acordo com o que a causa deles carecia de consistência.

Não tivera conhecimento prévio dos planos do seu cliente em elaborar um testamento holografado, o que acabara por criar uma situação caótica, não obstante, o testamento era válido. Tinha passado duas horas com o senhor Phelan, no dia anterior ao da sua morte, tendo revisto os últimos pormenores do testamento mais recente; Josh estava preparado para testemunhar que ele sabia exactamente o que estava a fazer. Também atestaria, caso fosse necessário, que quando se encontraram Snead não estivera em parte alguma por perto.

Os três psiquiatras que tinham submetido o senhor Phelan a um exame mental foram cuidadosamente escolhidos pelos filhos, ex-mulheres e advogados da família Phelan, possuindo um palmarés profissional absolutamente inatacável. Por seu lado, os que haviam sido contratados recentemente eram pouco fiáveis. As suas credenciais não eram as melhores. Na opinião de Josh, o confronto entre os especialistas em psiquiatria seria ganho pelo primeiro grupo.

Wally Bright envergava o seu melhor fato, que não era grande coisa. Absorveu aquelas palavras de crítica com as mandíbulas cerradas, mantendo o lábio inferior entre os dentes para evitar dizer qualquer coisa estúpida, enquanto tomava apontamentos inúteis num bloco de papel amarelo com linhas, porque era o que todos os outros faziam. Não estava na sua natureza permanecer tranquilamente sentado aceitando menosprezos daquele jaez, ainda que proferidos por um advogado de renome como Josh Stafford. No mês anterior, Fevereiro, o seu pequeno escritório apresentara um lucro de vinte e seis mil dólares em honorários, tendo sido gastos os quatro mil habituais em despesas de administração. Wally não levara nada para casa. É claro que a maior parte do seu tempo havia sido dedicado ao assunto Phelan.

Josh patinava sobre gelo fino quando resumiu o testemunho apresentado pelos clientes destes advogados.

- Tive oportunidade de ver os vídeos desses depoimentos - disse ele com tristeza. - Muito francamente, com a excepção de Mary Ross, estou em crer que darão umas testemunhas terríveis aquando do julgamento.

Os advogados dos visados aceitaram aquela conclusão sem se mostrarem desconcertados. Aquilo era uma reunião para se tentar chegar a um acordo amigável e não uma audiência em tribunal.

Josh não se alongou muito no tocante aos herdeiros. Quanto menos fosse dito, melhor. Os seus advogados estavam bem cientes de que eles seriam massacrados perante qualquer júri.

- O que nos leva ao assunto de Snead - continuou Josh. - Também vi o vídeo do testemunho que ele apresentou, e, muito francamente, se o consideram uma testemunha apta a apresentar-se num julgamento estão a cometer um erro crasso.

De facto, na minha opinião, os senhores encontram-se no limiar de um caso de negligência profissional.

Bright, Hark, Langhorne e Yancy chegaram-se mais aos seus blocos de apontamentos. Entre eles, Snead era uma palavra obscena. Já tinham discutido quem era o culpado de um desastre de tais proporções. Perderam horas de sono preocupados por causa do homem. Tinham desembolsado meio milhão de dólares e, como testemunha, ele não valia absolutamente

nada.

- Conheço Snead há quase vinte anos - prosseguiu Josh, passando os quinze minutos seguintes a traçar eficazmente o perfil do homem, classificando-o como sendo um mordomo de fracos talentos, um pateta em quem nem sempre se podia confiar, um empregado a que o senhor Phelan aludira com frequência, manifestando o seu desejo de o despedir. Os advogados acreditaram em todas aquelas palavras.

O resultado foi o testemunho de Snead passar à história. Josh fez a proeza de, em sentido figurado, esventrar a testemunha principal sem sequer ser obrigado a mencionar o facto de ele ter sido subornado com quinhentos mil dólares, a fim de contar a versão que mais convinha aos advogados.

Nicolette teve o mesmo destino quanto ao seu depoimento. Ela mentia, tal como o seu compincha Snead.

Não tinham conseguido encontrar outras testemunhas. Havia alguns empregados que se sentiam agravados, mas estes não queriam ter nada a ver com o julgamento. Em qualquer dos casos, o seu testemunho estaria inquinado. Existiam ainda dois rivais do mundo empresarial que tinham sido cilindrados ao tentarem competir com Troy Phelan. No entanto, estes dois adversários não sabiam nada quanto às capacidades mentais do falecido.

Josh concluiu dizendo que o caso deles não tinha grandes hipóteses. Contudo, todos os casos eram arriscados quando em presença de um júri.

Também falou de Rachel Lane como se a conhecesse há muitos anos. Não disse nada de muito específico, mas generalizou o suficiente para transmitir a impressão de que a conhecia bastante bem. Nas suas palavras, ela era uma senhora encantadora que levava uma existência extremamente simples, num outro país, não sendo do género de pessoa que compreendesse processos litigiosos. Fugia de toda e qualquer controvérsia. Sentia desprezo por qualquer confrontação. E tinha mantido um relacionamento muito mais estreito com o pai do que qualquer pessoa poderia imaginar.

Hark desejava perguntar a Josh se a conhecia pessoalmente. Alguma vez vira Rachel? Teria ouvido alguma menção ao seu nome antes de ter lido o testamento? Mas aquele não era o lugar nem a altura mais propícia para debater esses pontos discordantes. O dinheiro estava prestes a ser colocado sobre a mesa e a percentagem de Hark seria de dezassete ponto cinco.

A doutora Langhorne mandara proceder a uma investigação na cidade de Corumbá, continuando a perguntar a si mesma o que é que uma mulher de quarenta e dois anos, norte-americana, poderia estar a fazer num lugar como aquele. Ela e Hark, nas costas de Bright e Yancy, pela calada, tinham-se aliado, confiando um no outro. Já haviam falado demoradamente sobre a possibilidade de, de uma maneira dissimulada, darem a conhecer o paradeiro de Rachel Lane a determinados repórteres. Não lhes restava a mínima dúvida de que a imprensa haveria de a encontrar nessa região, em Corumbá. Obrigá-la a ter de se dar a conhecer, e durante esse processo, o mundo tomaria conhecimento daquilo que planeava fazer com o dinheiro que herdara. Se, tal como sonhavam e estavam esperançados, ela renunciasse à herança, isso significaria que os seus clientes poderiam fazer pressão para virem a receber a totalidade do espólio.

Seria um risco que correriam, pelo que continuavam a avaliar os prós e os contras.

- O que é que Rachel Lane tenciona fazer com todo o dinheiro que está em jogo? - perguntou Yancy.

- Não estou bem certo - respondeu Josh, como se ele e Rachel discutissem aquele assunto todos os dias. - Muito provavelmente, ficará com algum para si própria, entregando a maior parte a obras de beneficência. Na minha opinião, foi por este motivo que o senhor Phelan fez o que fez. Calculou que se os vossos clientes viessem a herdar o dinheiro, este não duraria mais de noventa dias. Ao legar a sua fortuna a Rachel, sabia que esta acabaria por acabar por beneficiar os que mais dela necessitam.

Fez-se uma longa pausa na conversa depois de Josh ter terminado com aquela conclusão. Lentamente, os sonhos começaram a desmoronar-se. Era evidente que Rachel Lane existia e não tinha intenções de renunciar ao dinheiro que lhe coubera em herança.

- Por que é que ela não se deu a conhecer até agora? - perguntou Hark finalmente.

-Bem... para se poder responder a essa pergunta é necessário conhecê-la. Para ela, os bens materiais não têm o menor significado. Não estava à espera de ser contemplada no testamento do pai. Mas então, inesperadamente, descobre que herdou milhares de milhões de dólares. Ainda está numa espécie de estado de choque.

Outra longa pausa enquanto os advogados dos Phelan garatujavam nos seus blocos de apontamentos.

- Estamos dispostos a levar este processo litigioso até ao supremo tribunal, caso venha a ser necessário - adiantou Langhorne. - Ela compreende que este assunto poderá arrastar-se vários anos?

- Ela já se apercebeu disso - replicou Josh. - Essa é uma das razões por que gostaria de considerar as possibilidades de um acordo extra-judicial.

Agora tinham começado a fazer progressos.

- Por onde é que começamos? - perguntou Wally Bright sem estar com rodeios.

Era uma questão que se revestia de alguma dificuldade. Numa das cabeceiras da mesa encontrava-se um filão de ouro no valor de onze mil milhões de dólares, mais coisa menos coisa. O imposto sucessório cifrar-se-ia em mais de metade, deixando em jogo cinco mil milhões. Na outra cabeceira estavam os herdeiros da família Phelan, todos falidos, à excepção de Ramble. Quem é que lançaria para a mesa o primeiro montante? De quanto é que seria? Dez milhões por herdeiro? Ou cem?

- Comecemos pelo testamento - sugeriu Josh, que já planeara a sua estratégia. - Partindo do princípio de que a sua validade será legitimada, contém uma linguagem clara, impedindo que seja feita qualquer doação a favor dos herdeiros que tentarem impugná-lo. Cláusula que se aplica aos vossos clientes. Por conseguinte, os senhores, logo à partida, começam na estaca zero. Em seguida, está estipulado no testamento que cada um dos vossos clientes herdará uma quantia em dinheiro igual ao valor das suas dívidas à data da morte do senhor Phelan. - Josh ergueu outra folha de papel examinando-a durante uma fracção de segundos. - De acordo com o que me foi dado saber até agora, Ramble Phelan não contraiu quaisquer dívidas, pelo menos até ao momento. Geena Phelan Strong incorreu em dívidas no valor de mais ou menos quatrocentos e vinte mil dólares até ao dia nove de Dezembro. Libbigail e Spike tinham dívidas de aproximadamente oitenta mil dólares à mesma data. Mary Ross e o seu marido médico contraíram dívidas no valor de novecentos mil dólares. Troy Júnior descartou-se da maior parte das suas numa ou outra declaração de falência, embora continue a dever cento e trinta mil dólares. Rex, tal como todos sabemos, é o merecedor do prémio. Ele e a sua adorável esposa, Amber, em nove de Dezembro estavam endividados num total de sete milhões e seiscentos mil dólares. Algum problema relativamente aos números que acabei de vos apresentar?

Não. Os números estavam correctos. Era o número seguinte que os preocupava.

- Nate O'Riley tem-se mantido em contacto com a sua cliente. Para que este assunto fique arrumado de uma vez por todas, ela está disposta a oferecer a cada um dos seis herdeiros a quantia de dez milhões de dólares.

Os advogados nunca tinham feito cálculos e escrito com tamanha rapidez. Hark representava três dos clientes; dezassete ponto cinco por cento proporcionar-lhe-ia honorários no valor de cinco milhões e duzentos e cinquenta mil dólares. Geena e Cody tinham concordado com uma percentagem de vinte por cento, fatia que se destinaria a Langhorne, o que permitiria que a sua pequena firma viesse a auferir dois milhões de dólares. A situação era a mesma no respeitante a Yancy, embora dependendo da aprovação do tribunal, uma vez que Ramble ainda não atingira a maioridade. E Wally Bright, um advogado de pacotilha que mal conseguia ganhar a vida publicitando divórcios rápidos nas paragens de autocarros, receberia metade dos dez milhões, como consequência do contrato irracional que Libbigail e Spike haviam celebrado com ele.

Wally foi o primeiro a reagir.

- Não existe a mínima hipótese de a minha cliente entrar num acordo por menos de cinquenta milhões - conseguiu ele dizer com algum descaramento, apesar de sentir o coração parado e o esófago fortemente obstruído.

Num gesto de aprovação, os outros acenaram com a cabeça. Franziram o cenho tentando aparentar uma expressão desdenhosa perante a quantia irrisória que lhes era proposta, quando, na realidade, em pensamento já tinham começado a gastar os honorários que aufeririam num futuro próximo.

Wally Bright nem sequer era capaz de escrever correctamente o número cinquenta milhões de dólares, não sabendo colocar os zeros nas casas certas. No entanto, foi capaz de lançar aquele número para a mesa como se fosse um grande apostador de Las Vegas.

Antes do início da reunião, tinham acordado que, se a questão do dinheiro fosse abordada, não concordariam com um número inferior a cinquenta milhões de dólares por herdeiro. Na altura, aquela exigência não lhes parecera nada de transcendente. Agora, a perspectiva dos dez milhões sobre a mesa parecia-lhes ser extraordinariamente atraente.

- Estamos a falar de uma quantia que se cifra em um por cento da herança - adiantou Hark.

- Podem ver o assunto sob essa óptica - retrucou Josh. - De facto, existem muitas maneiras de se encarar a questão. Mas eu prefiro começar da estaca zero, que é exactamente a situação em que os senhores se encontram neste momento, optando por trabalhar numa direcção progressiva, ao invés de considerar a globalidade do espólio, trabalhando do topo para baixo.

Mas Josh também desejava ganhar a confiança dos seus colegas de profissão. Durante algum tempo atiraram números de um lado para o outro, antes de Josh retomar o seu raciocínio.

-Não, pessoalmente, se eu representasse qualquer dos herdeiros, não me ficaria pelos dez milhões.

Os seus oponentes imobilizaram-se de imediato, escutando atentamente o que ele dizia.

- Ela não é uma mulher gananciosa. Acredito que Nate O'Riley será capaz de a convencer a chegar a um acordo em que oferecerá vinte milhões de dólares a cada um dos herdeiros.

Os honorários tinham-se duplicado-mais de dez milhões só paraHark. Quatro milhões para Langhorne e Yancy. O pobre Wally, que presentemente se ficara pelos dez, de repente teve um ataque de diarreia pedindo licença para abandonar a reunião.

 

Nate sentia-se feliz, entretido a pintar ombreiras de portas quando o seu telemóvel começou a tocar. Josh obrigava-o a manter o maldito aparelho à mão.

- Se for para mim tome nota do número - disse o padre Phil. Media uma junção complicada onde seria instalada a próxima placa de madeira prensada.

Era Josh.

- As coisas não poderiam ter corrido melhor - anunciou ele. - Parei quando chegámos aos vinte milhões; eles queriam cinquenta.

- Cinquenta? - retorquiu Nate, perplexo.

- Sim, mas eles já começaram a gastar o dinheiro. Aposto que pelo menos dois deles, neste momento, estão no concessionário da Mercedes.

- Quem é que achas que vai gastar o dinheiro mais depressa? Os advogados ou os clientes?

- Por mim, aposto nos advogados. Acabei de falar com o juiz Wycliff agora mesmo. A reunião ficou marcada para quarta-feira às três da tarde, no gabinete dele. Devemos poder finalizar o assunto nessa altura.

- Mal posso esperar - retorquiu Nate recolhendo a parte inferior do telefone articulável. Estava na hora de fazerem um intervalo para tomar um café. Sentaram-se no chão com as costas encostadas a uma parede, bebendo o café com leite bem quente.

-Eles queriam cinquenta milhões de dólares? - perguntou Phil. Tivera oportunidade de se inteirar de todos os pormenores do caso. Sozinhos na cave, eram poucos os segredos que os dois homens não haviam partilhado enquanto trabalhavam. As conversas eram mais importantes do que o avanço do trabalho.

Phil era um membro do clero. Nate era advogado. Tudo o que dissessem entre si encontrava-se protegido no âmbito de um qualquer princípio de ética relativo à confidencialidade a que a profissão de ambos os obrigava.

- É um bom ponto de partida - disse Nate. - Mas o certo é que se contentarão com bastante menos.

- Espera que sejam capazes de chegar a um acordo?

- Claro que sim. Na próxima quarta-feira teremos uma reunião com o juiz. Certamente que ele exercerá mais pressão. Nessa altura, tanto os advogados como os respectivos clientes já terão começado a contar o dinheiro.

- Quando é que está a pensar em partir?

- Calculo que na sexta-feira. Quer vir comigo?

- Não me posso dar a esse luxo - respondeu Phil.

- Claro que pode. A minha cliente é quem pagará a conta. Pode ir comigo como meu conselheiro espiritual durante a viagem. O dinheiro não constitui qualquer obstáculo.

- Não seria correcto.

- Deixe-se disso, Phil. Poderei mostrar-lhe o Pantanal. Terá oportunidade de conhecer os meus amigos Jevy e Welly. Faremos uma viagem de barco.

- Ainda não conseguiu fazer com que essa perspectiva seja suficientemente interessante no que me diz respeito.

- Não é uma viagem perigosa. No Pantanal existem algumas actividades dedicadas aos turistas. É uma vasta região ecologicamente protegida. A sério, Phil, se estiver interessado posso proporcionar-lhe essa viagem.

- Não tenho passaporte - argumentou Phil enquanto bebia pequenos goles do seu café. - Já para não dizer que ainda tenho muito trabalho a fazer por aqui.

Nate planeava estar ausente durante uma semana e, sem saber bem porquê, gostaria que quando regressasse a cave estivesse nas mesmas condições em que a deixava.

- Estou à espera que Mrs. Sinclair morra a qualquer instante - acrescentou Phil numa voz tranquila. Nesta altura não posso ir para fora.

A igreja aguardava que Mrs. Sinclair falecesse há pelo menos um mês. Até uma simples viagem a Baltimore deixava Phil receoso. Nate sabia que ele jamais viajaria para fora do país.

- Portanto, vai encontrar-se de novo com ela - acrescentou Phil.

- Sim, vou.

- Sente-se entusiasmado com a perspectiva desse encontro?

- Não sei. Sinto-me ansioso por poder vê-la de novo, mas não tenho a certeza de que ela me queira ver. Rachel sente-se muito feliz e não quer ter nada a ver com o nosso mundo. Ressentir-se-á com todos os problemas de ordem jurídica.

- Sendo assim, o que é que o leva a proceder dessa maneira?

- Porque não há nada a perder. Se ela rejeitar o dinheiro outra vez, ficaremos na situação em que presentemente nos encontramos. Os outros interessados ficarão com tudo.

- O que será um desastre - comentou Phil.

- Sim. Seria difícil encontrar um grupo de pessoas com menor capacidade para gerir dinheiro a sério do que os herdeiros Phelan. Se entrarem de posse dessa fortuna acabarão por se aniquilar.

- Não pode explicar isso mesmo a Rachel?

- Já tentei. Ela não mostrou o mínimo interesse em ouvir falar deste assunto.

- Por conseguinte, ela nunca virá a mudar de ideias?

- Não. Jamais - confirmou Nate.

- Isso quer dizer que a viagem até lá será uma perda de tempo?

- Receio que sim. Mas pelo menos terei a consolação de ter tentado.

 

Com a excepção de Ramble, todos os herdeiros da família Phelan insistiram em permanecer na sala do tribunal, ou nas imediações, durante a reunião. Todos eles tinham telemóveis, a exemplo do que acontecia com cada um dos advogados dentro do gabinete de Wycliff.

Tanto os advogados como os clientes tinham perdido muitas horas de sono por causa daquele assunto.

Com que frequência é que qualquer pessoa adquiria o estatuto de milionário de um momento para o outro? No que dizia respeito aos herdeiros Phelan, podia-se dizer que pelo menos duas vezes; mas desta feita haviam prometido a si mesmos que agiriam com muito mais sensatez. Não voltariam a ter outra oportunidade.

Percorriam os corredores do tribunal, esperando. Fumavam do lado de fora das portas principais do tribunal. Mantinham-se aquecidos no interior dos seus carros, no parque de estacionamento, sem esconderem a agitação que os invadia. Olhavam constantemente para os relógios de pulso, tentavam concentrar-se na leitura dos jornais, conversando nervosamente e sem nexo quando se cruzavam.

Nate e Josh sentavam-se num dos extremos da sala. Como seria de esperar, Josh envergava um fato escuro que devia ter custado bom dinheiro. Nate usava uma camisa de algodão com manchas de tinta branca no colarinho. Não usava gravata. O seu vestuário era complementado por umas calças de ganga e botas de montanhismo.

Wycliff dirigiu-se em primeiro lugar aos advogados dos Phelan sentados no outro lado da sala. Informou-os de que não se sentia inclinado a ignorar as alegações apresentadas por Rachel Lane, pelo menos de momento. Havia muita coisa em jogo para que ela pudesse ser eliminada sumariamente do processo judicial. O doutor O'Riley estava a fazer um excelente trabalho representando os interesses da herdeira; consequentemente, o processo judicial prosseguiria de acordo com os trâmites normais.

O objectivo daquela reunião era o debate de um possível acordo entre as partes, algo por que todos os juízes almejavam para cada um dos casos submetidos à sua apreciação. Wycliff continuava a sentir-se fascinado perante a perspectiva de um julgamento alongado que se revestisse de grande celeuma, embora lhe fosse impossível admiti-lo. O seu dever era forçar uma conclusão, encorajando e persuadindo as partes a chegarem a um entendimento.

No entanto, a persuasão e o encorajamento não seriam necessários. Sua Excelência examinara todas as petições e documentos subjacentes, tendo visto os vídeos de todos os depoimentos do princípio ao fim. À medida que se inteirava minuciosamente das provas, avaliava a situação, oferecendo as conclusões solenes a que chegara a Hark, Bright, Langhorne e Yancy, de acordo com as quais, na sua douta opinião, eles não tinham um caso que fosse muito viável em tribunal.

Os advogados aceitaram bem o que o juiz lhes dizia. Para eles, o que ouviam não constituía grande surpresa. O dinheiro fora colocado em cima da mesa e eles só desejavam deitar-lhe a mão. «Chame-nos tudo o que lhe apetecer», diziam a si mesmos, «vamos mas é a despachar-nos para recebermos o dinheiro».

Por outro lado, Wycliff dizia que nunca se poderia prever as conclusões a que um júri chegaria. O juiz falava como se tivesse de sortear jurados todas as semanas, o que não era o caso. E os advogados estavam bem cientes disso.

Dois dias antes da reunião que teria lugar na segunda-feira, com vista a um acordo inicial, pediu a Josh que lhe recapitulasse os assuntos que seriam debatidos.

- Quero saber exactamente em que ponto é que nos encontramos - dissera Wycliff.

Josh foi breve. A questão fundamental era simples. Cada um dos herdeiros pretendia cinquenta milhões de dólares. Rachel, a única beneficiária, propunha que recebessem vinte milhões cada unicamente com o intuito de se chegar a um acordo amigável, sem nunca admitir que a outra parte pudesse ter um caso suficientemente sólido para ser apresentado em tribunal.

- Entre esses números existe uma diferença substancial - comentou

Wycliff.

Embora Nate se sentisse entediado, tentou mostrar-se alerta. Ao fim e ao cabo, estavam a meio de umas negociações extraordinariamente importantes, no sentido de se chegar a um acordo, que envolvia uma das maiores fortunas do mundo deixada por um homem que se guindara ao topo exclusivamente graças ao seu esforço. Josh repreendera-o pelo desleixo do seu vestuário. Foi aspecto a que não ligou. Mantinha-se interessado a observar atentamente a expressão fisionómica dos advogados sentados no outro lado da sala. Formavam um bando bastante irritante que não se mostrava ansioso ou preocupado, mas sim animado e desesperado por saber quanto é que caberia a cada um. Os seus olhares eram rápidos e penetrantes; o movimento das suas mãos era impulsivo.

Como seria divertido se Nate se levantasse abruptamente, anunciasse que Rachel não estava disposta a oferecer um único cêntimo para que se chegasse a um acordo e saísse intempestivamente da sala. Durante alguns segundos, os advogados permaneceriam sentados em estado de choque e depois iriam em sua perseguição como se fossem cães raivosos.

Quando Josh acabou de falar, Hark tomou a palavra em representação do grupo de advogados. Tomara uns quantos apontamentos, o que lhe permitira trabalhar cuidadosamente as suas observações. Conseguiu atrair a atenção de todos os presentes ao admitir que o desenrolar do processo instaurado não seguira o curso mais desejável. Os seus clientes não eram boas testemunhas. Por outro lado, as opiniões clínicas dos psiquiatras recentemente contratados não eram tão sólidas como as dos três primeiros. Não se podia confiar no depoimento de Snead. Admitiu todas estas lacunas com uma sinceridade que era admirável.

Em vez de se pôr com teorias de carácter jurídico, Hark concentrou-se nas pessoas. Falou sobre os seus clientes e os dos seus colegas, dos filhos de Troy Phelan, admitindo que numa primeira análise não formavam um grupo de pessoas muito simpáticas. Argumentou que depois de se raspar a camada da superfície, ficando-se a conhecê-los da mesma maneira que os advogados os conheciam, compreendia-se que, muito simplesmente, as hipóteses de virem a ganhar a causa em tribunal eram nulas. Durante a sua meninice haviam sido mimados, criados num ambiente privilegiado de riqueza por amas que nunca ficavam por muito tempo, inteiramente ignorados pelo pai, que, ou estava constantemente na Ásia a comprar novas fábricas ou vivia com a secretária mais recente no andar que mantinha no prédio dos escritórios. Hark não tinha a intenção de menosprezar os mortos, mas o senhor Phelan fora o que todos sabiam. Por seu lado, as mães dos filhos eram uma colecção de mulheres um tanto estranhas, no entanto, elas também tinham suportado uma vida com Troy que fora um verdadeiro inferno.

As crianças da família Phelan nunca tiveram a oportunidade de crescer num ambiente familiar normal. Ninguém lhes ensinara as lições que a maior parte das crianças aprendem junto dos progenitores. O pai fora um homem de negócios de grande proeminência, cuja aprovação desejavam ardentemente sem nunca a terem obtido. As mães mantinham-se ocupadas nos seus clubes e a cultivar a arte de fazer compras. Na concepção do pai, proporcionar aos filhos um começo de vida adequado traduzira-se em oferecer a cada um cinco milhões de dólares, quando ele ou ela atingiu os vinte e um anos. Uma medida que sob certos aspectos pecava por tardia, enquanto noutros surgia numa fase bastante prematura da vida dos filhos. O dinheiro não podia proporcionar a sabedoria, a orientação e o carinho de que tinham carecido ao longo da sua infância. Tudo isto provara, sem qualquer ambiguidade, que não se encontravam preparados para gerir as responsabilidades inerentes a uma riqueza recentemente adquirida.

Essas doações tiveram resultados desastrosos, e contudo também lhes haviam proporcionado uma certa medida de maturidade. Agora, que podiam beneficiar da passagem dos anos, os filhos da família Phelan podiam olhar para os erros que cometeram no passado. Sentiam-se envergonhados pela forma insensata como geriram o seu dinheiro. Todos os presentes poderiam imaginar-se a despertar num belo dia, como se fosse o filho pródigo, à semelhança do que acontecera a Rex quanto tinha trinta e dois anos - divorciado, falido e em frente de um juiz que estava prestes a sentenciá-lo a uma pena de cadeia por não ter pago a pensão alimentar dos filhos. Também não era difícil a ninguém imaginar-se sentado na cela de uma prisão durante onze dias enquanto o irmão, que também estava falido e divorciado, tentava convencer a mãe a que lhe pagasse a fiança. Rex dissera que tinha passado esse período atrás das grades de uma prisão, a tentar recordar-se do que fizera com o dinheiro.

A vida fora difícil para os filhos da família Phelan. Muitas das vicissitudes por que tinham passado foram provocadas por eles próprios, embora muitas das adversidades tivessem sido inevitáveis por causa da conduta dopai.

A acção final de negligência paternal era aquele último testamento escrito à mão. Jamais seriam capazes de compreender o rancor do homem que os havia rejeitado durante toda a sua infância e admoestado quando adultos, culminando com a sua anulação como herdeiros.

- Eles fazem parte da família Phelan - acrescentou Hark, concluindo a sua dissertação -, são a carne e o sangue de Troy Phelan, para o melhor e para o pior, o que certamente lhes confere o direito a uma porção justa da herança do pai.

Quando acabou, Hark sentou-se; o silêncio abatera-se sobre a sala. Aquele tinha sido um pedido feito bem do fundo do coração, que fez com que Nate e Josh, e até mesmo Wycliff, se sentissem comovidos. Jamais surtiria efeito diante de um júri, uma vez que Hark nunca poderia admitir em tribunal à porta aberta que a causa dos seus clientes carecia de solidez. Mas naquelas circunstâncias, e momento, a pequena prelecção foi perfeita.

Supostamente, era Nate quem controlava o dinheiro, pelo menos era essa a cartada que jogava naquele jogo. Poderia ter regateado e feito pressão, iludir e esquivar-se durante uma hora, conseguindo com que mais alguns milhões continuassem a fazer parte do património Phelan. Todavia, pura e simplesmente, não estava com disposição para agir dessa maneira. Se Hark era capaz de mostrar honestidade, pois bem, também ele. Fosse como fosse, tudo aquilo não passava de um estratagema.

- Qual é o mínimo que os seus clientes estão dispostos a aceitar? - perguntou a Hark; o olhar dos dois prendeu-se qual ecrã de radar a detectar um sinal.

- Não tenho a certeza que tenhamos um número mínimo. Estou em crer que cinquenta milhões de dólares por herdeiro é um montante razoável. Eu sei que parece ser muito, e de facto é, mas temos de levar em consideração o valor global da herança. Depois de deduzido o imposto sucessório estamos a falar apenas em cinco por cento da totalidade do dinheiro.

- Cinco por cento não é coisa por aí além - admitiu Nate, deixando que as palavras pairassem entre os dois. Hark examinava-o atentamente, embora os seus colegas não o fizessem. Estavam dobrados sobre os seus blocos de apontamentos, preparados para fazerem os cálculos percentuais sobre o último número que fora avançado.

- Na realidade não é - secundou Hark.

- A minha cliente concordará com cinquenta milhões - acrescentou Nate. Naquele preciso momento, o mais provável seria a sua cliente estar a ensinar cânticos da Bíblia a crianças pequenas, sentada à sombra de uma árvore junto ao rio.

Wally Bright acabara de auferir honorários no valor de vinte e cinco milhões de dólares, e o seu primeiro impulso foi desatar a correr pela sala para beijar os pés de Nate. Em vez disso, exibiu um franzir de cenho a que tentou imprimir inteligência tomando apontamentos minuciosos, apontamentos esses que mais tarde não seria capaz de decifrar.

Como é evidente, Josh sabia que aquele seria o desfecho do caso; os seus contabilistas já tinham executado os cálculos matemáticos, ao contrário de Wycliff. Acabara de se chegar a um acordo, não se realizaria julgamento algum. Só lhe restava mostrar-se satisfeito com o desenrolar da situação.

- Muito bem - disse o juiz -, quer isto dizer que temos um acordo entre as partes?

Por nenhuma outra razão para além do hábito, os advogados dos Phelan amontoaram-se em redor de Hark pela última vez, tentando trocar algumas palavras murmuradas, mas estas falharam-lhes.

- Temos acordo - anunciou Hark que passara a ser vinte e seis milhões de dólares mais rico.

Por mero acaso, Josh trouxera um rascunho do acordo a que finalmente se chegara. Começaram a preencher as linhas em branco quando, subitamente, os advogados dos herdeiros Phelan se recordaram dos seus clientes. Pediram licença para se ausentar e correram para o corredor, onde começaram a surgir telefones celulares de todas as algibeiras. Troy Júnior e Rex esperavam junto de uma máquina de refrigerantes no primeiro andar do tribunal. Geena e Cody liam os jornais numa sala de tribunal vazia. Libbigail e Spike estavam sentados na cabina da sua velha camioneta de caixa aberta estacionada na rua; um pouco mais abaixo, Mary Ross esperava dentro do seu Cadillac no parque de estacionamento. Ramble refugiara-se na cave de sua casa, com a porta trancada e com os auscultadores do gravador portátil na cabeça, divagando num outro mundo.

O acordo não seria válido até que fosse aprovado e assinado por Rachel Lane. Os advogados dos Phelan desejavam que o conteúdo permanecesse estritamente confidencial. Wycliff concordou em selar o processo de posse do tribunal. Ao cabo de uma hora, o acordo fora finalmente concluído. Foi assinado por cada um dos herdeiros Phelan e pelos respectivos advogados. Também foi assinado por Nate.

Só faltava uma assinatura. Nate informou os demais de que necessitaria de alguns dias para a obter.

Se eles sonhassem com a verdade, pensou enquanto abandonava o edifício do tribunal.

Na sexta-feira à tarde, Nate e o pároco partiram de Saint Michaels no automóvel do advogado adquirido em leasing. O pároco sentou-se ao volante para se habituar a conduzir a viatura. Nate passava pelas brasas no assento do passageiro da frente. Quando atravessavam a ponte sobre a baía despertou, começando a ler a Phil, que queria ser posto ao corrente de todos os pormenores do desfecho do caso, o acordo final.

 

O avião Corrente do Golfo IV ào Grupo Phelan encontrava-se a postos no Aeroporto Baltimore-Washington. As linhas do aparelho eram aerodinâmicas reflectindo a luz do Sol; era suficientemente espaçoso para transportar vinte pessoas para qualquer parte do mundo. Phil desejava poder vê-lo mais de perto, pelo que pediram aos pilotos que lhes fizesse uma visita guiada. Não havia problema nenhum: tudo o que o doutor O'Riley desejasse.

A cabina de passageiros era toda em madeira e couro, com sofás, divãs e mesa de reuniões, além de vários ecrãs de televisão. Nate ter-se-ia sentido satisfeito em viajar como                                   qualquer pessoa normal, mas Josh insistira.

Pouco depois, ficou a ver Phil que se afastava, após o que voltou a entrar a bordo do avião. Dentro de nove horas aterraria em Corumbá.

O contrato que estabelecia o destino do espólio era intencionalmente breve; fora redigido com tão poucas palavras e com frases essas tão curtas e simples quanto os que elaboravam tal tipo de documentos, quase impossíveis, conseguiam inventar. Josh obrigara-os a reescrevê-lo por diversas vezes. Na hipótese de Rachel Lane estar minimamente predisposta a assiná-lo, seria imperativo que compreendesse com toda a clareza o significado de todas as palavras. Nate estaria presente para esclarecer qualquer dúvida, embora ele soubesse de antemão que ela tinha pouca paciência para aquele tipo de assuntos.

Os bens que herdaria ao abrigo do testamento do pai, no qual eram expressas as últimas vontades deste, seriam aplicados num fideicomisso, que teria o nome de Fundação Rachel, uma vez que não se tinha conseguido arranjar um nome mais criativo. O capital permaneceria intacto por um período de dez anos, podendo-se dispor apenas dos juros e dividendos que se fossem vencendo, canalizando-os para obras de beneficência. Decorridos esses dez anos, cinco por cento do capital, acrescidos dos dividendos e juros, poderiam começar a ser dispendidos anualmente, de acordo com o discernimento dos fiduciários. Os desembolsos anuais viriam a ser aplicados em toda uma variedade de obras de caridade, com uma ênfase particular no trabalho missionário da organização Missões Universais. No entanto, a linguagem do contrato era tão indefinida que os fiduciários poderiam utilizar o dinheiro em quase toda a espécie de causas de carácter benemérito. A fiduciária principal era Neva Colher, das Tribos Universais, detendo ela a autoridade de nomear até doze fiduciários que a coadjuvassem no seu trabalho. Os fiduciários seriam autónomos, gerindo-se a si próprios, tendo de prestar contas somente a Rachel, caso ela o desejasse.

Na hipótese de ela o querer, nunca teria de ver ou tocar no dinheiro. O fideicomisso seria estabelecido com a assistência de advogados designados pela Missões Tribos Universais.

Era uma solução extremamente simples.

Tudo o que era necessário limitava-se a uma única assinatura rápida, o nome de Rachel Lane ou qualquer que fosse o apelido dela. Uma simples assinatura no documento que estabelecia a fundação, outra no acordo celebrado com os herdeiros Phelan, e o assunto da herança Phelan seria encerrado atempadamente sem fogo-de-artifício. Nate poderia dar seguimento à sua existência, enfrentando os seus problemas, acarretar com as consequências e começar a reconstruir a sua vida. Sentia-se ansioso por poder começar.

Na hipótese de Rachel se recusar a assinar os documentos do fideicomisso e do acordo com os herdeiros, então Nate precisaria de obter a sua assinatura num documento de renúncia de direitos hereditários. Poderia não aceitar o legado, mas seria obrigada a notificar o tribunal da sua decisão.

Uma renúncia de direitos faria com que o testamento de Troy não cumprisse qualquer finalidade. Continuaria a ser válido, embora fosse impossível pô-lo em prática. Os bens seriam herdados por ninguém, pelo que o efeito seria o mesmo que se ele tivesse morrido sem ter deixado testamento. Caberia à lei dividir o espólio em seis partes, uma para cada um dos demais herdeiros Phelan.

Como é que ela reagiria? Queria acreditar que Rachel se sentiria maravilhada por poder vê-lo de novo, todavia, Nate não estava muito convencido disso. Recordava-se dela a acenar com a mão enquanto o barco em que ele seguia se afastava da margem, exactamente antes de ser acometido da febre de dengue. Nesse momento, Rachel estivera entre a sua gente, acenando-lhe com a mão, despedindo-se dele para sempre. Ela não desejava ser incomodada com as coisas que faziam parte deste mundo.

Valdir aguardava a chegada de Nate no aeroporto de Corumbá quando o Corrente do Golfo começou a efectuar as manobras de aterragem, dirigindo-se para o pequeno terminal. Era uma da manhã; o aeroporto estava deserto, vendo-se apenas uma mão-cheia de pequenos aviões no extremo mais afastado da pista de aterragem. Nate lançou-lhes um olhar fugidio, perguntando-se se o de Milton teria sido trazido do Pantanal.

Saudaram-se como se fossem velhos amigos. Valdir sentiu-se impressionado com o aspecto saudável que Nate apresentava. Da última vez que se tinham visto, ele mal se tinha nas pernas sob o efeito da febre de dengue e parecia um esqueleto.

Afastaram-se do aeroporto no Fiat de Valdir com os vidros das janelas abertos, deixando entrar o calor opressivo que Nate sentia nas faces. Os pilotos seguiriam num táxi. Nas ruas empoeiradas não se via vivalma. Ninguém as percorria. Chegados à baixa da cidade, pararam em frente ao hotel Palace. Valdir entregou uma chave a Nate.

- Quarto 212 - disse ele. - Encontramo-nos às seis.

Nate dormiu quatro horas e já esperava no passeio quando o Sol da manhã começou a espreitar por entre os edifícios. O firmamento estava límpido, foi uma das primeiras coisas em que Nate reparou. A estação das chuvas acabara há um mês. O ar mais fresco não tardaria a instalar-se, apesar de, em Corumbá, a temperatura durante o dia só muito raramente descer abaixo dos 25 graus centígrados.

No saco a tiracolo, Nate guardara os documentos, uma câmara fotográfica, um novo telefone-satélite, um outro telemóvel, um bip, quase um litro do repelente de insectos mais forte conhecido na química moderna, uma pequena prenda para Rachel e duas mudas de roupa. Tanto os membros superiores como os inferiores estavam completamente cobertos; usava umas calças espessas de caqui que lhe protegiam as pernas e mangas compridas que lhe tapavam os braços.

Era possível que sentisse algum desconforto e suasse um pouco, mas nenhum insecto conseguiria penetrar na sua armadura.

Pontualmente às seis horas, Valdir chegou ao hotel; os dois seguiram velozmente para o aeroporto. Com alguma morosidade, a cidade despertava para um novo dia.

Valdir tinha alugado um helicóptero a uma empresa de Campo Grande por mil dólares à hora. Tinha capacidade para transportar quatro passageiros e era manobrado por dois pilotos, tendo um raio de acção de quase quinhentos quilómetros.

Valdir e os pilotos já tinham estudado os mapas que Jevy traçara do rio Xeco e dos afluentes. Dada a ausência de cheias, era muito mais fácil navegar pelo Pantanal, quer por via fluvial quer aérea. Os rios mantinham-se dentro dos limites das suas margens. As bacias não transbordavam dos leitos. As fazendas encontravam-se acima do nível de água, o que permitia identificá-las através dos mapas de navegação aérea.

Nate arrumou o seu saco dentro do helicóptero, esforçando-se por não pensar no último voo que fizera, em que sobrevoara as regiões do Pantanal. A lei das probabilidades estava a seu favor. Não havia a mínima hipótese de se despenhar em dois voos consecutivos.

Valdir preferiu ficar em terra, próximo de um telefone. Não gostava de voar, especialmente de helicóptero, e muito em particular se tinha de sobrevoar o Pantanal. Quando descolaram, o céu estava calmo e sem uma única nuvem. Nate prendera o cinto de segurança e as correias que lhe prendiam os ombros; também usava um capacete de protecção. Começaram a afastar-se de Corumbá, seguindo o curso do rio Paraguai. Os pescadores por quem passavam acenavam-lhes. Os garotos dentro do rio, com água até aos joelhos, imobilizavam-se e olhavam para cima. Sobrevoaram uma chalana carregada de bananas que navegava para o Norte, seguindo na mesma direcção que o avião tomara. Avistaram uma outra chalana de aspecto pouco estável que rumava para o Sul.

Nate adaptou-se às oscilações e vibrações do aparelho. Através dos auscultadores ouvia os pilotos que tagarelavam em português. acorreu-lhe à mente a viagem do Santa Loura e a ressaca que sentira na última vez que saíra de COrumbá com destino ao Norte.

Subiram a uma altitude de cerca de seiscentos metros, que manteriam a partir dali. Ao fim de trinta minutos de voo, Nate avistou o pequeno posto comercial de Fernando, situado à beira do rio.

Ficou espantado com a diferença que se verificava no Pantanal de uma estação do ano para outra.

Continuava a existir uma enorme diversidade de terras pantanosas, bacias e rios cujos cursos sinuosos se estendiam erraticamente em todas as direcções, mas naquela altura do ano era muito mais verdejante depois de o nível das águas ter baixado.

Mantiveram-se numa rota acima do Paraguai. O firmamento continuava límpido e azul sob o olhar atento de Nate. Recordou-se da colisão contra o solo a bordo do avião de Milton na véspera de Natal. Em poucos instantes, o temporal desencadeara-se violentamente acima das montanhas.

Descendo a cerca de trezentos metros num voo circular, os pilotos começaram a apontar como se houvessem chegado ao seu destino. Nate ouviu a palavra Xeco avistando um afluente que confluía para o Paraguai. É claro que ele não tinha a mais pequena recordação do rio Xeco. Durante o seu primeiro encontro com esse curso de água, estivera aninhado debaixo de uma tenda estendida no fundo de um pequeno barco, desejando morrer. Seguiram para ocidente, afastando-se do rio principal, acompanhando o curso serpenteante do Xeco, em direcção às montanhas da Bolívia. Os pilotos começaram a prestar mais atenção ao que se encontrava abaixo do helicóptero. Procuravam uma chalana azul e amarela.

No solo, Jevy começou a ouvir o barulho monocórdico e ensurdecido dos rotores do aparelho. Apressou-se a lançar um sinal luminoso cor de laranja. Welly seguiu-lhe o exemplo. Os clarões eram intensos, deixando no seu rasto uma coluna de fumo azul e prateado. Decorridos alguns minutos, os dois homens no solo avistaram o helicóptero. O aparelho começou a descrever círculos a uma velocidade reduzida.

Jevy e Welly tinham usado machetes para desbravarem uma clareira numa zona de mato cerrado, a cerca de cinquenta metros da margem do rio. No mês anterior aquela zona estivera submersa. O aparelho começou a oscilar de um lado para o outro preparando-se lentamente para a pista de aterragem.

Depois das pás dos rotores se terem imobilizado, Nate saltou para o solo abraçando os seus velhos camaradas de aventura. Há mais de dois meses que não os via, e o facto de ter regressado àquele local constituia uma surpresa partilhada pelos três.

O tempo era precioso. Nate receava as tempestades, a escuridão, as cheias e os mosquitos, desejando prosseguir viagem tão rapidamente quanto lhe fosse possível. Encaminharam-se para a chalana ancorada no rio. Junto da embarcação encontrava-se um bote comprido e novo, que dava a impressão de aguardar a sua primeira viagem. Estava provido de um motor fora de borda novinho em folha, tudo cortesia do património Phelan. Nate e Jevy entraram imediatamente a bordo do bote, despedindo-se de Welly e dos pilotos e começando a navegar a grande velocidade.

Os povoados situavam-se a cerca de duas horas de distância, explicou Jevy aos gritos para se fazer ouvir acima do barulho do motor. Ele e Welly tinham chegado na tarde anterior a bordo da chalana. O curso do rio estreitara-se demasiado para que a embarcação pudesse continuar, o que os levara a acostar próximo de solo plano onde o helicóptero poderia pousar. Em seguida tinham-se aventurado no bote, tendo acabado por chegar próximo do primeiro povoado. Jevy reconhecera o local mas fizera meia volta antes que os índios dessem conta da sua presença.

Duas horas de viagem, talvez três. Nate só esperava que não se transformassem em cinco. Recusava-se terminantemente, fossem quais fossem as circunstâncias, a dormir no chão, ou numa tenda, ou mesmo numa rede espreguiçadeira. Não exporia nenhuma região da sua pele aos perigos que espreitavam na selva. Os horrores que sofrera por causa da febre de dengue encontravam-se bem vivos na sua memória.

Caso não conseguissem encontrar Rachel, Nate regressaria a Corumbá no helicóptero, onde jantaria agradavelmente na companhia de Valdir e onde depois dormiria numa cama como deve ser, tentando encontrá-la de novo no dia seguinte. O espólio seria mais do que suficiente para comprar o diabo do helicóptero, se fosse caso disso.

Mas Jevy mostrava-se confiante, o que não era nada invulgar. Continuavam a cortar as águas com a proa que ressaltava acima da superfície do rio, enquanto o motor potente imprimia velocidade ao bote. Que agradável que era poder-se contar com um motor fora de borda que funcionava eficientemente e sem quaisquer falhas. Eram invencíveis.

Uma vez mais, Nate sentiu-se fascinado pela grandiosidade do Pantanal; os crocodilos que se deslocavam em águas baixas, zurzindo as suas caudas, enquanto passavam velozmente por eles, os pássaros que descreviam os seus voos a pique até próximo da superfície das águas, a desolação magnífica de toda aquela região. Já tinham entrado demasiado no interior para avistarem as fazendas. Procuravam um povo que vivia ali há vários séculos.

Há apenas vinte e quatro horas, Nate estivera sentado no alpendre de uma vivenda, coberto por uma manta de retalhos, a beber café enquanto observava os barcos que percorriam a baía, esperando que o padre Phil lhe telefonasse para o informar que ia a caminho da cave. Precisou de uma hora a bordo da embarcação para tomar consciência do local onde se encontrava de novo.

O rio não lhe parecia familiar. A última vez que tinham estado com os ipicas andavam perdidos, assustados, encharcados e esfaimados, confiantes nas indicações que lhes haviam sido dadas por um jovem pescador. As águas tinham subido e os marcos de referência estavam completamente submersos.

Nate observava o céu como se esperasse que dele começassem a cair bombas.

Pouco depois avistou uma curva do curso do rio que lhe pareceu vagamente familiar, talvez já estivessem perto. Será que ela o saudaria com um sorriso, um abraço, desejando sentar-se à sombra e ter uma conversa banal em inglês? Existiria alguma probabilidade de ela ter sentido a sua falta, ou sequer pensado nele? Teria ela recebido as cartas? Março já ia a meio, época do ano em que as encomendas chegavam. Nesta altura, Rachel já teria o seu barco novo e os medicamentos de que necessitava?

Ou pelo contrário, fugiria quando o visse? Procuraria refúgio junto do chefe da tribo, pedindo-lhe que a protegesse e que afugentasse o norte--americano pela última vez? Teria Nate alguma oportunidade de se encontrar com ela?

Tencionava mostrar-se firme, muito mais do que na última vez em que a vira. Não era culpa sua que Troy Phelan tivesse deixado um testamento em termos tão ridículos, tão-pouco estava ao alcance dela alterar o facto de ser filha ilegítima. Também não estava na sua mão alterar as coisas, e pedir-lhe um pouco de cooperação não era nada de mais. Das duas uma: ou concordava com a constituição da fundação ou renunciava aos direitos da herança. Nate recusava-se a partir sem ter conseguido a assinatura dela.

Rachel podia voltar costas ao mundo, mas jamais deixaria de ser filha de Troy Phelan. Esse facto, por si só, exigia uma certa medida de cooperação. Nate ensaiava em voz alta os argumentos de que se valeria. Jevy não conseguia ouvi-lo.

Falar-lhe-ia dos meios-irmãos e das meias-irmãs. Pintar-lhe-ia um quadro pavoroso, descrevendo-lhe o que aconteceria se eles tomassem posse da totalidade da fortuna. Enumerar-lhe-ia as boas causas para que ela poderia contribuir, caso se dispusesse a assinar os termos que estabeleciam a fundação. Ensaiou várias vezes estes argumentos.

O arvoredo em ambas as margens passou a ser mais cerrado, com as copas das árvores inclinadas sobre o rio, aflorando à superfície. Nate reconheceu o túnel.

- Ali, mais acima - disse Jevy apontando em frente e para a direita, indicando o ponto onde tinham visto, pela primeira vez, as crianças a nadar no rio. Reduziu a velocidade do motor; passaram devagar pelo primeiro povoado sem terem avistado um único nativo. Deixaram de ver as palhotas num ponto onde o rio bifurcava e os cursos de água se tornavam menos caudalosos.

O território era familiar. Navegavam por um curso sinuoso que os levava mais para o interior da floresta, contornando os nós do rio que quase formavam círculos; ocasionalmente, avistavam as montanhas através das clareiras. Chegados à segunda aldeia, detiveram-se próximo da árvore de grande porte onde tinham dormido na primeira noite, em Janeiro passado.

Desceram para terra no mesmo sítio onde Rachel ficara de pé, acenando-lhes num gesto de despedida, no momento em que a febre de dengue fazia a sua entrada. O banco corrido continuava no mesmo lugar com as canas de bambu de que era feito fortemente apertadas.

Nate perscrutava o povoado enquanto Jevy amarrava o bote. Avistou um jovem índio que corria pelo trilho na direcção dos dois homens. O ruído do motor fora de borda fora ouvido.

O nativo não sabia falar português, se bem que através de grunhidos e gestos com as mãos conseguisse transmitir-lhes a mensagem de que deveriam permanecer naquele local, junto do rio, até que recebessem novas instruções. Se o índio os reconheceu, não deu qualquer indicação disso. Dava a impressão de estar atemorizado.

Assim, voltaram a sentar-se no mesmo banco à espera não sabiam bem de quê. Eram quase onze horas. Os dois homens tinham muito de que falar. Jevy continuara a trabalhar nos rios, pilotando as chalanas carregadas de mercadorias e equipamentos que se destinavam às populações do Pantanal. Ocasionalmente, pilotava barcos de turistas, tarefa que era muito melhor remunerada.

Falaram da última visita de Nate, da forma como tinham partido do Pantanal com o motor fora de borda que Fernando lhes emprestara, os horrores do hospital e os esforços empreendidos para encontrar Rachel em Corumbá.

- Deixa que te diga uma coisa-disse Jevy. - Falei com muita gente que costuma andar pelo rio, e posso garantir-te que essa senhora não esteve na cidade nessa altura. Ela nunca esteve no hospital. Sonhaste, meu amigo.

Nate não estava com disposição de o contradizer. Ele próprio já não tinha a certeza.

O proprietário do Santa Loura tinha andado a difamar Jevy por toda a cidade. A embarcação naufragara quando ele era o responsável, mas toda a gente sabia que o barco se afundara por causa do temporal. Fosse como fosse, o homem era um idiota chapado.

Tal como Nate já esperava, a conversa tomou o rumo do futuro de Jevy nos Estados Unidos. Já pedira um visto, no entanto precisava de alguém que se responsabilizasse por ele, bem como de um emprego nesse país. Nate pôs-se com rodeios e meias palavras, contornando o assunto de reunir a coragem suficiente para lhe dizer que ele próprio, dentro em pouco, também seria forçado a procurar emprego.

- Vou ver o que é que poderei fazer - disse Nate.

Jevy tinha um primo que vivia no Colorado que também andava à procura de emprego.

Surgiu um mosquito que começou a voar à volta da mão de Nate. O seu primeiro impulso foi esmagá-lo com uma palmada violenta, mas optou por se manter atento ao insecto que aferia a eficácia do seu super-repelente de insectos. Quando se cansou de inspeccionar o seu alvo, de súbito, fez um voo a pique na direcção das costas da mão direita. Mas mais ou menos a cinco centímetros do seu objectivo parou inesperadamente, afastou-se e desapareceu à distância. Nate sorriu. Tinha as orelhas, pescoço e rosto cobertos de uma substância oleosa.

De uma maneira geral, o segundo ataque de febre de dengue provoca crises hemorrágicas. É bastante mais grave do que o primeiro, sendo frequentemente fatal. Nate O'Riley recusava-se a ser vítima dessa doença.

Continuavam a conversar sentados de frente para o povoado; Nate prestava atenção a tudo em seu redor. Esperava ver Rachel a caminhar elegantemente na sua passada larga por entre as palhotas, percorrendo o trilho para saudá-los. Certamente que naquela altura já saberia que o homem branco estava de volta.

Mas saberia ela que o visitante era Nate? E se o ipica não os tivesse reconhecido, e Rachel se sentisse aterrorizada por poder haver mais alguém que tivesse encontrado a aldeia onde vivia?

Foi então que avistaram o chefe da tribo que caminhava lentamente na direcção dos dois homens. Trazia uma longa lança ritual e era seguido por um ipica que Nate reconheceu. Pararam no extremo do trilho, a uns bons quinze metros do banco. Nenhum deles sorria; de facto, o chefe da tribo afivelara uma expressão particularmente desagradável.

- O que é que querem? - perguntou ele em português.

- Diz-lhe que pretendemos falar com a missionária - disse Nate a Jevy que traduziu a resposta.

- Porquê? - foi a réplica sucinta.

Jevy começou a explicar que o norte-americano viajara de muito longe para chegar ali, dizendo-lhe que era muito importante que encontrasse a mulher.

- Porquê? - perguntou o chefe uma vez mais.

Porque tinham assuntos que precisavam de ser discutidos pelos dois, coisas importantes que nem Jevy nem o chefe poderiam compreender.

Eram da maior importância, caso contrário o norte-americano não estaria ali.

Nate recordava-se do chefe da tribo como sendo um homem de carácter esfusiante, sempre com um sorriso rápido, com a gargalhada fácil e um temperamento que se alterava de um momento para o outro. Naquele momento, a sua fisionomia não traía muito em termos de expressão. À distância de cerca de quinze metros os seus olhos reflectiam dureza. Em tempos insistira com os dois homens para que se sentassem junto da sua fogueira, partilhando o seu pequeno-almoço com eles. Agora mantinha-se tão distanciado quanto lhe era possível. Havia algo de errado. Qualquer coisa tinha mudado.

Disse-lhes que esperassem, começando a afastar-se no seu passo lento, de retorno ao povoado. Decorreu meia hora. Naquela altura com certeza que Rachel já fora informada da identidade dos dois homens, o chefe tê-la-ia informado. E, contudo, ela não foi ao encontro deles.

Passou uma nuvem que obscureceu o Sol e Nate pôs-se a observá-la atentamente. Era formada por uma massa leve e branca, não sendo minimamente assustadora; não obstante, sentiu-se receoso. Se ouvisse alguns sinais de trovoada à distância, estaria pronto a sair dali no mesmo instante. Sentados no bote, comeram algumas bolachas de água e sal com queijo. Entretanto, o chefe da tribo chamou-os com um assobio, interrompendo a merenda a meio. Viera da aldeia e estava sozinho. Os três encontraram-se a meio do caminho; Nate e Jevy seguiram-no durante aproximadamente trinta metros, após o que mudaram de direcção encaminhando-se para trás das palhotas através de um outro trilho. Nate avistava a clareira comum da aldeia. Estava deserta, não se via um único ipica que deambulasse por ali. As crianças não brincavam. As raparigas não varriam a suj idade em redor das suas habitações. As mulheres não cozinhavam nem limpavam. Não se ouvia um único som. O único movimento era o do fumo que se evolava das fogueiras da aldeia.

Foi então que começou a ver rostos nas aberturas que serviam de janela, pequenas cabeças que espreitavam pelas entradas das palhotas. Estavam a ser observados. O chefe da tribo tomava a precaução de os manter afastados das palhotas, como se os dois homens fossem portadores de doenças contagiosas. Começaram a percorrer outro caminho que atravessava a floresta num breve trecho. Quando entraram numa clareira ficaram do lado oposto à palhota de Rachel.

Não viram qualquer indício da sua presença. O chefe conduziu-os passando pela porta da frente e contornando a pequena habitação, e, ao lado desta, abaixo de um maciço de árvores frondosas, avistaram as sepulturas.

 

As duas cruzes brancas, semelhantes entre si, eram feitas de madeira cuidadosamente serrada e polida pelos índios, dois pedaços cruzados por ráfia. Eram pequenas, com uma altura inferior a trinta centímetros, a extremidade fora enterrada na terra recentemente revolvida, à cabeceira das duas campas. Não tinham inscrição nenhuma, nada que indicassem quem é que tinha falecido, ou quando.

Debaixo das árvores estava escuro. Nate colocou o saco no chão entre as duas sepulturas. O chefe da tribo começou a falar rapidamente em voz baixa.

- A mulher foi enterrada na da esquerda. O corpo de Lako está na da direita. Morreram no mesmo dia, há cerca de duas semanas - traduziu Jevy. O chefe acrescentou mais qualquer coisa. - Desde que nos fomos embora, houve um surto de malária que matou dez pessoas - acrescentou Jevy.

O chefe da tribo fez uma narrativa alongada sem interrupções, não dando tempo a Jevy para traduzir as suas palavras. Nate ouvia o que ele dizia e era como se não ouvisse nada. Olhava para a elevação de terra à sua esquerda, um amontoado de terra escura que formava um pequeno rectângulo perfeito, cuidadosamente ladeado por ramos sem folhas com a largura de pouco mais de dez centímetros. Rachel Lane fora sepultada naquela campa, a pessoa mais corajosa que lhe fora dado conhecer, porque não sentira o mínimo receio da morte. Para ela, a morte teria sido bem-vinda. Descansava em paz; finalmente, a sua alma encontrava-se junto do Senhor, enquanto o seu corpo jazia para todo o sempre entre as pessoas que ela tanto amara.

E Lako jazia junto dela, com o seu corpo terreno curado de todas as enfermidades e deficiências físicas.

O sentimento de choque desapareceu com a mesma rapidez com que se fizera sentir. A morte de Rachel era trágica, mas por outro lado não o era. Não fora uma esposa e mãe jovem que tivesse deixado uma família. Não tinha um círculo vasto de amigos que se apressassem a lamentar a sua morte prematura. Somente uma mão-cheia de indígenas da terra que adoptara é que teriam conhecimento da sua morte. Ela fora o elemento de estranheza entre os nativos que a haviam sepultado.

Nate conhecia-a o suficiente para saber que ela não teria desejado que alguém sofresse com a sua morte. Não aprovaria lágrimas de desgosto e ele não tinha nenhumas para chorar por ela. Durante alguns momentos fitou a sepultura sem querer acreditar no que via, mas a realidade começou a instalar-se na sua mente. Não se tratava de uma velha amiga com quem tivesse partilhado muitos momentos. Mal a conhecera. Os motivos que o tinham impelido a descobrir o paradeiro de Rachel deviam-se exclusivamente ao seu egoísmo. Invadira a privacidade da missionária que lhe pedira para não regressar ali.

Apesar de todos aqueles raciocínios, Nate sentia o coração desfeito. Desde que abandonara o Pantanal que não passara um dia em que não pensasse nela. Sonhara com ela, tinha sentido o toque da sua mão; recordava-se da sabedoria de Rachel. Fora ela quem o ensinara a rezar, incutindo-lhe um sentimento de esperança. Tinha sido a primeira pessoa em várias décadas que vira nele algo de bom.

Nate nunca conhecera uma pessoa como Rachel Lane, e sentia uma saudade tremenda.

O chefe da tribo mantinha-se em silêncio.

- Ele disse que não podíamos ficar aqui muito tempo - disse Jevy.

- E por que não? - perguntou Nate sem despregar o olhar da campa de Rachel.

- Os espíritos disseram que fomos os culpados pelo surto de malária. Ocorreu quando viemos cá da primeira vez. Os nativos não estão satisfeitos com a nossa visita.

- Diz-lhe que os espíritos dele são uma cambada de palhaços.

- Ele tem qualquer coisa que te quer mostrar.

Com movimentos vagarosos, Nate ergueu-se, colocando-se de frente para o chefe. Atravessaram a entrada da palhota onde Rachel vivera, dobrando os joelhos para poderem entrar. O chão era de terra batida. No interior havia duas divisões. A da frente tinha umas mobílias demasiado primitivas para se poder acreditar que existissem; uma cadeira feita de canas de bambu atadas com ráfia. Um sofá com cepos a fazer de pernas e palha como estofo. A divisão das traseiras era o quarto e a cozinha. Rachel dormira numa rede espreguiçadeira, à semelhança dos índios. Debaixo desta havia uma pequena mesa, em cima da qual fora colocada uma caixa de plástico que contivera medicamentos. O chefe apontou para a caixa e começou a falar.

- Dentro da caixa estão algumas coisas para ti - traduziu Jevy para inglês.

- Paramim?!

- Sim. Ela sabia que estava a morrer. Pediu ao chefe da tribo que vigiasse a palhota. Se chegasse um norte-americano, ele devia mostrar-lhe a caixa.

Nate receava tocar-lhe. O chefe pegou na caixa, entregando-lha. Nate saiu do quarto e sentou-se no sofá improvisado. O chefe da tribo e Jevy saíram da palhota.

Ela não tinha chegado a receber as cartas que ele lhe enviara, pelo menos não estavam dentro da caixa. Havia um cartão de identidade brasileiro, documento que era exigido a todos os que não eram índios naquele território. Encontrou três cartas endereçadas pela Tribos Universais. Nate não as leu porque no fundo da caixa viu o testamento que ela deixara.

Estava dentro de um sobrescrito branco de tamanho normalizado, e tinha algumas palavras em brasileiro que indicavam o nome da remetente. Rachel escrevera numa letra de imprensa impecável as palavras: O Último Testamento de Rachel Lane Porter.

Nate olhava para o sobrescrito como se não acreditasse no que via. As mãos tremiam-lhe ao abri-lo com todo o cuidado. No interior havia duas folhas agrafadas e dobradas de papel de carta branco. Na primeira folha, em letras garrafais a toda a largura do topo, ela escrevera, novamente em letra de imprensa, Último Testamento de Rachel Lane Porter.

Dizia o seguinte:

«Eu, Rachel Lane Porter, filha de Deus, residente no Seu mundo, cidadã dos Estados Unidos da América, de posse de todas as minhas faculdades mentais, declaro pelo presente documento que este é o meu último testamento.

 

  1. Não tenho testamentos anteriores que devam ser anulados. Este é o meu primeiro e último. Todas as palavras foram escritas pelo meu punho. Este testamento é inteiramente holografado.
  2. Tenho em meu poder uma cópia do último testamento do meu pai, Troy Phelan, com data de 9 de Dezembro de 1996, por meio do qual ele me legou a totalidade dos seus bens. Estou a tentar imprimir a este testamento os mesmos moldes que ele utilizou no seu.
  3. Não rejeito nem declino o espólio que ele achou por bem deixar-me. Tão-pouco desejo vir a receber os bens que me foram legados. Qualquer que seja o valor da doação, desejo que seja aplicado num fidei-comisso.
  4. Os rendimentos provenientes desse fideicomisso devem ser utilizados da seguinte maneira: a) a continuação do trabalho efectuado pelos missionários da organização Tribos Universais espalhados por todo o mundo, b) espalhar a palavra do Evangelho de Cristo, c) proteger os direitos dos povos indígenas do Brasil e demais países da América do Sul, d) alimentar os que passam fome, curar os doentes, providenciar abrigo aos que não têm casa e salvar as crianças.
  5. Nomeio o meu amigo Nate O'Riley como administrador do fideicomisso, conferindo-lhe plenos poderes na administração do mesmo. Também o nomeio como testamenteiro deste testamento.

Assinado aos seis de Janeiro de 1977, em Corumbá, Brasil. Rachel Lane Porter.»

 

Nate releu aquele testamento várias vezes. A segunda folha fora dactilografada em português. De momento, a tradução teria de aguardar.

Examinou a terra entre os pés. O ar era opressivo sem que corresse uma aragem. O mundo estava mergulhado num silêncio absoluto; não se ouvia um só som que viesse do povoado. Os ipicas continuavam escondidos do homem branco e das pestes de que era portador.

A terra seria varrida para que o solo se mantivesse liso e limpo? O que é que acontece quando chove e os telhados de palha deixam passar a água? A terra formaria poças, transformando-se em lama? Na parede que Nate tinha defronte de si haviam sido colocadas umas prateleiras toscas que estavam cheias de livros - livros de religião, ensaios sobre teologia e várias Bíblias. As prateleiras estavam ligeiramente desniveladas, com um declive de dois a quatro centímetros para a direita.

Aquele fora o lar de Rachel durante os últimos onze anos da sua vida.

Nate voltou a reler o testamento. O dia seis de Janeiro fora aquele em que ele abandonara o hospital de Corumbá. Ela não tinha sido um sonho. Tocara-lhe e dissera-lhe que ele não morreria. Em seguida escrevera o testamento.

A palha roçagava debaixo de si sempre que se movia. Sentia-se numa espécie de transe quando Jevy espreitou pela entrada.

- O chefe quer que deixemos a aldeia - informou ele.

- Lê isto - retorquiu Nate entregando-lhe as duas folhas de papel, colocando a segunda em cima da outra. Jevy avançou até ao sítio onde havia mais luz que entrava através da porta, começando a ler com lentidão.

- Estão aqui declarações de duas pessoas - disse ele pouco depois. - A primeira é um advogado, que afirma que Rachel Lane Porter assinou o testamento no seu escritório, em Corumbá. Na altura, estava mentalmente sã, tendo perfeita consciência do que estava a fazer. A assinatura dele foi oficialmente autenticada por um... como é que se diz...

- Um notário - adiantou Nate.

- Sim, um notário. A segunda pessoa, que assinou ao fundo da página é a secretária do advogado, que, ao que tudo indica, afirma a mesma coisa que o advogado disse. A assinatura dela também está autenticada pelo notário. O que é que isto significa?

- Mais tarde explico-te.

Saíram para a luz do Sol. O chefe da tribo mantinha os braços cruzados defronte do peito - a sua paciência estava quase a esgotar-se. Nate retirou a máquina fotográfica que guardara dentro do saco, começando a fotografar a palhota e as duas campas. Pediu a Jevy que segurasse na máquina enquanto se agachava junto da campa de Rachel. Manteve-se na mesma posição para que Jevy tirasse as fotografias. O chefe da tribo não concordou em ser retratado junto de Nate. Mantinha-se tão distante dele quanto lhe era possível. Começou a resmungar, manifestação que levou Jevy a recear que o homem estivesse prestes a explodir.

Chegaram ao trilho, dirigindo-se para a floresta e, uma vez mais, o chefe teve o cuidado de os manter afastados da aldeia. Quando o arvoredo começou a ser mais cerrado, Nate parou, voltando-se para lançar um último olhar à palhota que fora de Rachel. Sentia vontade de a levar consigo, arranjar maneira de a erguer do solo transportando-a para os Estados Unidos, preservá-la como se fosse um monumento, de maneira a que milhões de pessoas, cujas vidas seriam tocadas por ela, tivessem um lugar que pudessem visitar para expressar a sua gratidão. Nate sentia o mesmo em relação à sepultura. Rachel merecia um santuário em sua memória.

Essa seria a última coisa que ela teria desejado. Nate deixara de avistar Jevy e o chefe, o que o levou a estugar o passo para os alcançar.

Conseguiram chegar ao rio sem terem infectado nenhum dos indígenas. O chefe da tribo resmungou qualquer coisa a Jevy quando entraram no barco.

- Ele diz que não quer que voltemos à aldeia - informou Jevy.

- Diz-lhe que não tem razões para se preocupar com essa possibilidade. Jevy não traduziu aquelas palavras, pondo o motor em funcionamento e começando a afastar-se da margem do rio.

O chefe já iniciara o caminho de regresso ao povoado. Nate perguntava-se se ele sentiria falta de Rachel. Ela vivera junto daquele povo ao longo de onze anos. Dera a impressão de ter exercido grande influência junto dele, embora não tivesse conseguido a proeza de o converter ao cristianismo. Lamentaria ele o seu falecimento ou, pelo contrário, sentiria alívio por os seus deuses e espíritos terem passado a reinar em plena liberdade? O que é que sucederia aos ipicas que se tinham convertido ao cristianismo, agora que Rachel desaparecera?

Recordou-se dos shalyuns, os curandeiros das tribos índias que atormentavam Rachel. Certamente que celebrariam a sua morte ao mesmo tempo que assediariam os que ela conseguira converter. Ela batera-se por uma boa causa e agora descansava em paz.

Jevy desligou o motor, começando a conduzir o bote com a ajuda de um remo. A corrente era fraca e as águas mansas. Com muita cautela, Nate montou o telefone-satélite em cima do banco. O firmamento estava limpo, o que permitia um sinal forte; ao cabo de dois minutos estabelecera ligação com a secretária de Josh, que foi a correr chamar o seu chefe.

- Diz-me que ela assinou o raio do documento, Nate. - Foram as primeiras palavras que ele disse. Gritava ao telefone do outro lado da linha.

- Não precisas de gritar, Josh. Eu ouço-te na perfeição.

- Desculpa. Diz-me só que ela assinou os papéis.

- Ela assinou um fideicomisso, mas não foi o nosso. Ela morreu, Josh.

- Não! - exclamou Josh, estupefacto.

- Sim. Morreu há já duas semanas. De malária. Deixou um testamento holografado, tal e qual o pai fez.

- Tem-lo em teu poder?

- Sim. Está seguro. A fortuna toda será aplicada num fideicomisso. Eu serei o fiduciário e administrador.

- E é válido?

- Estou em crer que sim. Foi inteiramente escrito pelo seu punho, assinado, datado e testemunhado por um advogado de Corumbá e pela secretária

deste.

- A mim parece-me que é válido.

- E agora o que é que vai acontecer? - perguntou Nate. Visualizava Josh por detrás da sua mesa de trabalho, com os olhos fechados enquanto se concentrava, uma mão no auscultador do telefone e os dedos da outra a passarem pelos cabelos. Quase conseguia ouvi-lo a arquitectar um plano de acção através do telefone.

- Não vai acontecer nada. O testamento de Troy Phelan é válido. As suas últimas vontades serão cumpridas.

- Mas ela morreu.

- O espólio que ele deixou será transferido para a herança a que ela teria direito. É uma situação que se verifica com frequência em acidentes de viação quando um dos cônjuges morre num dia e o outro vem a falecer no dia seguinte. Os legados passam de espólio para espólio.

- E em relação aos outros herdeiros?

- O acordo continua em vigor. Eles receberão o seu dinheiro, ou o que restar depois de os advogados retirarem as suas fatias. Presentemente, os herdeiros são as pessoas mais felizes à face da Terra, com a possível excepção dos seus advogados. Não existe nenhuma lacuna que possam atacar. Temos dois testamentos que são válidos. Parece-me que acabaste de te transformar num fiduciário para o resto da tua carreira profissional.

- E passarei a exercer plenos poderes - acrescentou Nate.

- Ficas com muito mais do que isso. Lê-me esse testamento.

Nate retirou o documento do fundo do seu saco a tiracolo começando a lê-lo vagarosamente, palavra a palavra.

- Não demores a regressar - disse Josh.

Jevy também absorvia todas as palavras, apesar de dar a impressão que examinava o rio. Depois de Nate ter desligado e guardado o telefone, Jevy começou a fazer perguntas.

- Herdaste o dinheiro?

- Não. O dinheiro será aplicado num fideicomisso.

- O que é um fideicomisso?

- Pensa nisso como se fosse uma grande conta bancária. O dinheiro fica no banco, protegido enquanto rende juros. O fiduciário é quem decide onde é que os juros serão aplicados.

Jevy continuava a não estar muito esclarecido. Tinha muitas perguntas que gostaria de fazer; Nate apercebeu-se da confusão que lhe ia na cabeça. No entanto, aquela não era a melhor altura para uma lição de iniciação da lei testamentária anglo-saxónica, heranças e fideicomissos.

- Vamos embora - disse Nate.

O motor recomeçou a funcionar; o bote cortava velozmente as águas do rio, rugindo ao contornar os nós, deixando um manto de espuma.

Chegaram à chalana ao fim da tarde. Welly pescava. Os pilotos do helicóptero jogavam às cartas na popa do barco. Nate voltou a telefonar a Josh para lhe dizer que mandasse regressar o avião a jacto que se encontrava no aeroporto de Corumbá. Não necessitaria dele. Tencionava levar o seu tempo a regressar aos Estados Unidos.

Josh levantou algumas objecções, uma vez que não lhe restava mais nada que pudesse fazer. A confusão do espólio Phelan fora resolvida. Na verdade, não havia necessidade para pressas.

Josh disse aos pilotos que contactassem Valdir quando regressassem à cidade, após o que dispensou os seus serviços.

A tripulação da chalana admirava as manobras do helicóptero que desapareceu no firmamento como se fosse um insecto, após o que levantaram âncora. Jevy estava ao leme. Welly sentava-se no convés à proa da embarcação, mantendo os pés suspensos a alguns centímetros da superfície da água. Nate deitou-se num dos beliches tentando passar pelas brasas. Mas o motor a gasóleo situava-se num compartimento contíguo. O barulho regular impedia-o de conciliar o sono.

A embarcação tinha um terço do tamanho do Santa loura, até os beliches eram mais pequenos. Nate deitara-se de lado, observando as margens do rio por que iam passando ao longo do percurso.

Fosse de que maneira fosse, Rachel concluíra que ele largara o vício do álcool de uma vez por todas, apercebera-se de que quaisquer outros vícios pertenciam ao passado, que os demónios que haviam controlado a sua vida tinham sido encarcerados para todo o sempre. Rachel vira algo de bom no seu íntimo. De uma maneira qualquer, ela dera-se conta de que ele tentava encontrar-se. Fora ela quem descobrira qual seria o seu destino. Deus dissera-lhe.

Jevy despertou-o depois de ter escurecido.

- Temos Lua - disse ele. Ambos se sentaram na proa da embarcação. Welly estava ao leme logo atrás dos dois, navegando à luz da lua-cheia acompanhando o curso sinuoso do rio Xeco que acabaria por confluir no Paraguai.

- O barco é lento - comentou Jevy. - Vamos levar dois dias para chegar a Corumbá.

Nate sorriu-lhe. No que lhe dizia respeito, a viagem poderia levar um mês.

 

                                                                                John Grisham  

 

                      

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