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O TIGRE ADORMECIDO / Rosamunde Pilcher
O TIGRE ADORMECIDO / Rosamunde Pilcher

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O TIGRE ADORMECIDO

 

O vestido de casamento era de um branco pérola com um toque rosado, como o interior de uma concha, e feito de uma seda fina e rígida. Quando Selina deu uns passos sobre o pavimento e depois se voltou, o vestido varreu a alcatifa vermelha, sem que a bainha saísse do mesmo sítio. Esta particularidade levou-a a sentir-se como que envolta numa embalagem de luxo.

Miss Stebbings disse então, com a sua voz senhoril, falando em voz alta:

- Oh, sim, não podia ter escolhido melhor. O vestido fica-lhe lindamente. E o que acha do comprimento?

- Não sei, o que é que pensa?

- Vamos levantá-la um pouco... Mrs. Bellows.

Mrs. Bellows saiu do canto onde estivera à espera de ser precisa e avançou. Miss Stebbings envergava um vestido de crepe com drapeados, mas Mrs. Bellows vestia um fato inteiro de nylon preto e uns sapatos que se pareciam suspeitosamente com chinelos de quarto. Tinha uma almofada de veludo com alfinetes presa ao pulso por um elástico e, baixando-se, começou a prender com alfinetes uma parte da bainha. Selina observava pelo espelho. Não estava certa de concordar com Miss Stebbings em que o vestido lhe ficava lindamente. Fazia-a parecer muito magra (certamente não perdera ainda mais peso) e o tom do tecido acentuava a sua palidez. O bâton desaparecera e as suas orelhas viam-se. Tentou agitar a cabeça para que o cabelo as cobrisse e só conseguiu deslocar a pequena coroa de cetim que Miss Stebbings colocara no alto da sua cabeça. Quando levantou a mão para a endireitar, ergueu a saia e Mrs. Bellows conteve a respiração, como se uma catástrofe terrível estivesse prestes a desencadear-se.

- Desculpe - disse Selina.

Miss Stebbings sorriu rapidamente para mostrar que não tinha importância e disse inquisitivamente:

- E quando será o feliz dia?

- Talvez daqui a um mês... creio.

- Não vai ser um grande casamento?

- Não.

- Claro que não. Dadas as circunstâncias...

- Eu, na verdade, não queria um vestido de casamento. Mas Rodney... Mr. Ackland... - Hesitou outra vez e acrescentou: O meu noivo... - Miss Stebbings sorriu com uma doçura de causar náuseas. - Ele pensa que devo ter um. Acha que a minha avó gostaria que eu me casasse de branco...

- Claro que gostaria. Ele tem razão. E eu penso que um casamento tranquilo, calmo, em que a noiva vai de branco, tem um encanto especial. Não tem damas de honor?

Selina abanou a cabeça.

- Encantador. Só os dois. Acabou, Mrs. Bellows? Que acha agora? Dê um passo ou dois. - Selina deu uns passos, obedientemente. - Assim está melhor. Não podemos deixá-la tropeçar.

Selina agitou-se ligeiramente dentro do vestido de tafetá sussurrante.

- Parece-me muito largo.

- Creio que está a ficar mais magra - disse Miss Stebbings, agarrando o tecido para o fazer ficar justo ao corpo.

- Talvez eu engorde outra vez antes do casamento.

- Duvido. É melhor fazer uma leve alteração para termos a certeza de que fica bem.

Mrs. Bellows levantou-se e pregou mais alguns alfinetes em volta da cintura. Selina voltou-se, deu mais uns passos e, finalmente, o fecho do vestido foi aberto e tiraram-lho pela cabeça. Depois, Mrs. Bellows levou-o para fora da sala.

- Quando é que estará pronto? - perguntou Selina, enfiando a camisola pela cabeça.

- Dentro de duas semanas - respondeu Miss Stebbings.

- Sempre se decide por esta pequena coroa?

- Sim. Acho que sim. É bastante simples.

- Entregar-lha-ei uns dias antes do casamento para que a possa levar ao seu cabeleireiro e combinar o penteado que há-de fazer. Ficaria muito bem se penteasse o cabelo ao alto, metido no meio da coroa...

Selina tinha uma obsessão a respeito das suas orelhas, que considerava grandes e feias, mas disse debilmente:

- Sim - e estendeu a mão para a saia.

- Trata dos sapatos, Miss Bruce?

- Sim. Vou comprar uns brancos. Muito obrigada, Miss Stebbings.

- Não tem que agradecer. - Miss Stebbings segurou no casaco do fato de saia e casaco de Selina e ajudou-a a vesti-lo. Reparou que Selina usava o colar de pérolas da avó, duas fieiras presas por um fecho com safiras e diamantes. Reparou também no anel de noivado, uma grande safira rodeada de pérolas e diamantes. Estava desejosa de fazer alguma observação a respeito dele, mas não queria mostrar-se inquisitiva nem vulgar. Em vez disso, manteve um silêncio senhoril, enquanto via Selina pegar nas luvas, afastando depois a cortina de brocado da sala de provas para ela sair.

- Adeus, Miss Bruce. Tive muito prazer em vê-la.

- Muito obrigada. Adeus, Miss Stebbings.

Selina desceu no elevador, passou por diversas secções e, finalmente, saiu pela porta giratória para a rua. Depois do interior excessivamente aquecido da loja, o dia de Março parecia-lhe fresco. Lá em cima o céu estava azul, salpicado por nuvens brancas que corriam. Quando Selina se aproximou da beira do passeio para chamar um táxi, o vento não só lhe agitou os cabelos, fazendo-lhos cair para a cara, como lhe atirou poeira para os olhos ao mesmo tempo que lhe levantava as saias.

- Para onde? - perguntou o motorista, um homem novo com um boné aos quadrados na cabeça. Tinha o aspecto de quem poderia dedicar-se a corridas de galgos nos seus tempos livres.

- Para o Bradley, se faz favor.

- Muito bem!

O táxi cheirava a desinfectante à mistura com o aroma de cigarros. Selina tirou um grão de poeira do olho e desceu o vidro da janela. Havia narcisos no parque e via-se uma rapariga montando um cavalo castanho. Todas as árvores estavam cobertas de verde, pois as folhas não tinham sido ainda revestidas pela fuligem e pela sujidade da cidade. Não era um dia para se estar em Londres. Estava bom para ir para o campo, para subir a encosta de um monte, ou descer até ao mar. As ruas e os pavimentos encontravam-se cheios com o tráfico da hora do almoço, homens de negócios e senhoras que andavam a fazer compras, dactilógrafas, beatniks e indianos, apaixonados de mãos entrelaçadas, rindo contra o vento. Uma mulher vendia violetas colocadas num carrinho de mão no passeio, e até mesmo o velhote que trazia às costas um cartaz de publicidade tinha um narciso preso na lapela do seu sobretudo amarrotado.

O táxi voltou para Bradley Street e parou em frente do hotel. O porteiro adiantou-se e abriu a porta do táxi para Selina sair. Conhecia-a, porque conhecera a avó dela, a velha Mrs. Bruce. Selina costumava almoçar no Bradley com a avó, desde criança. Agora, Mrs. Bruce já não era viva e Selina chegava sozinha, mas o porteiro ainda a conhecia e tratava-a pelo nome.

- bom dia, Miss Bruce.

- bom dia. - Selina abriu a mala para tirar trocos.

- Está um dia lindo.

- Terrivelmente ventoso. - Pagou ao motorista, agradeceu-lhe e voltou-se para a porta. - Mr. Ackland já chegou?

- Sim. Há cerca de cinco minutos.

- Que maçada! Estou atrasada!

- Não faz mal fazê-los esperar!

Abriu a porta para ela passar e Selina entrou no interior aquecido e luxuoso do hotel. Cheirava ali a fumo de charuto, a comida deliciosamente aromática, a flores e a perfumes. Pessoas elegantes estavam sentadas em grupos e Selina sentiu-se despenteada e mal arranjada. Preparava-se para se dirigir para os lavabos das senhoras, quando o homem que se encontrava sozinho, sentado perto do bar, se dirigiu para ela. Era alto e bem-parecido, com trinta e poucos anos, vestido com o uniforme dos homens de negócios, um fato cinzento-escuro, camisa com umas riscas muito leves, gravata discreta, regimental. O rosto apresentava feições correctas, sem rugas, as orelhas bem coladas aos lados da cabeça, o cabelo castanho, abundante e macio, chegando, na nuca, quase até ao colarinho impecável. Sobre o colete de bom corte tinha uma corrente de relógio de ouro, e o relógio e os botões de punho eram também de ouro. Parecia o que sempre fora: uma pessoa bem-educada, bem arranjada e ligeiramente pomposa.

- Selina.

Selina parou bruscamente a caminho da casa de banho das senhoras, voltou-se e viu-o.

- Oh, Rodney... Hesitou. Ele beijou-a e disse:

- Vens atrasada.

- Eu sei. Desculpa. Havia muito trânsito.

Os olhos dele, apesar de terem uma expressão afável, revelavam que ele a achava em desalinho. Selina estava prestes a dizer: «Preciso de ir pôr um pouco de pó-de-arroz», quando Rodney disse:

- Vai pôr um pouco de pó-de-arroz. - Selina achou isso enfurecedor. Hesitou uns instantes, pensando se devia explicar que ia justamente fazer isso quando ele a interrompera, mas pareceu-lhe que não valia a pena. Em vez disso, sorriu e Rodney sorriu também. Aparentemente de completo acordo, separaram-se momentaneamente.

Quando Selina voltou, com o cabelo castanho-claro bem penteado, com o rosto empoado, com o bâton posto de fresco, ele estava sentado num pequeno sofá de cetim, esperando por ela. Em frente dele, encontrava-se uma mesinha sobre a qual se via o martini e o pequeno copo de pálido xerez que ele pedia sempre para ela. Selina sentou-se ao lado dele. Rodney comentou:

- Querida, antes de falarmos sobre qualquer outra coisa, devo dizer-te que tenho a tarde ocupada. Um cliente vai falar comigo às duas horas e parece ser pessoa importante. Não te importas, pois não? Podemos mudar para amanhã.

O plano deles fora irem ao apartamento que Rodney alugara e no qual tencionavam começar a sua vida de casados. Fora pintado recentemente e, agora que as canalizações e a instalação eléctrica estavam completas, faltava-lhes apenas fazer as medições para escolherem as alcatifas e os cortinados, e decidirem ainda quais as cores que desejavam.

Selina disse-lhe que não se importava. O dia seguinte seria tão conveniente como aquele. Secretamente, sentia-se grata por ter ainda vinte e quatro horas antes de ser obrigada a decidir-se sobre a cor da alcatifa da sala e sobre os méritos alternativos do chintz e do veludo.

Rodney sorriu outra vez, satisfeito com a aquiescência dela. Pegou-lhe na mão, tocou no anel de maneira que a safira ficasse bem ao centro do dedo esguio e disse:

- E tu, que fizeste esta manhã?

Para uma pergunta tão directa, Selina teve uma resposta essencialmente romântica.

- Fui comprar o meu vestido de casamento.

- Querida! - Ele ficou encantado. - Onde foste? Ela disse-lhe.

- Se calhar, revela pouca imaginação, mas Miss Stebbings é encarregada daquela boutique e a minha avó ia lá sempre. Pensei que era melhor ir ter com alguém que já conhecesse. De outro modo, poderia fazer asneira e comprar algo pouco adequado.

- Por que havias de fazer isso?

- Sabes como sou indecisa nas lojas. Fazem com que eu compre qualquer coisa.

- Como é o vestido?

- Bem, é branco, de um tom creme-rosado. Não sou capaz de o descrever.

- Tem mangas compridas?

- Oh, sim.

- E é comprido ou curto?

Comprido ou curto? Selina voltou-se para olhar Rodney.

- Comprido ou curto? Mas é comprido, claro! Oh, Rodney, achas que devia ter comprado um curto? Nunca pensei em comprar um vestido de noiva curto. Nem sequer sabia que os havia.

- Não fiques tão preocupada, querida.

- Talvez devesse ter comprado um curto. Como vai ser um casamento muito simples, um vestido comprido parecerá ridículo, não?

- Podes alterá-lo.

- Não. Já está a ser modificado.

- Bem, então... - Rodney mostrou-se apaziguador -, nesse caso não tem importância.

- Não achas que Vou parecer uma tola?

- Claro que não.

- É realmente muito bonito.

- Tenho a certeza que sim. E agora tenho novidades para te dar. Falei com Mr. Arthurstone e ele concordou em levar-te ao altar.

- Oh!

Mr. Arthurstone era o sócio de Rodney, um solteirão idoso, muito conservador. Sofria de artrite nos joelhos e a ideia de subir a nave da igreja - apoiando Mr. Arthurstone em vez de se apoiar nele - era assustadora.

Rodney continuou, de sobrolho erguido:

- Querida, mostra-te um pouco mais satisfeita que isso.

- Oh, estou satisfeita. Ele foi muito amável em concordar. Mas, realmente, achas que é preciso que alguém me acompanhe ao altar? Não podemos apenas irmos os dois à igreja e casarmo-nos?

- Isso não ficaria bem.

- Mas eu mal conheço Mr. Arthurstone.

- Claro que o conheces. Ele tratou dos assuntos da tua avó durante anos.

- Mas isso não é o mesmo que conhecê-lo.

- Apenas tens de subir a nave da igreja com ele. Alguém tem de te acompanhar.

- Não vejo porquê.

- Querida, é assim que as coisas são. E não há mais ninguém que o faça. Sabes isso.

Claro que Selina sabia isso. Não tinha pai, nem avô, nem tio, nem irmão. Ninguém. Apenas Mr. Arthurstone. Suspirou profundamente.

- Claro que sim.

Rodney deu-lhe uma palmadinha na mão.

- Bonita menina! Agora tenho uma coisa para ti. Um presente.

- Um presente? - Selina ficou intrigada. Seria possível que Rodney tivesse sido também afectado pela alegria primaveril daquele dia de Março? Teria ele, ao dirigir-se para o Bradley, a fim de almoçar com ela, sido induzido a entrar nalguma boutique encantadora, para lhe comprar qualquer frivolidade inútil e trazendo romance ao seu dia? - Tens um presente para mim, Rodney? Onde está?

(No bolso dele? Os presentes caros são embrulhos pequenos.) Rodney levou a mão atrás das costas e tirou de lá um embrulho feito com papel de uma livraria e atado com um fio. Obviamente, era um livro.

- Toma - disse.

Selina tentou não deixar transparecer o seu desapontamento. Era um livro. Esperava que fosse engraçado.

- Oh, um livro!

Era pesado e a esperança que pudesse ser engraçado desapareceu. Seria um livro instrutivo, um livro que faria pensar, tratando inteligentemente dos vários problemas sociais actuais? Ou, talvez, quem sabe, um livro de viagens, com narrativas relacionadas com bizarros costumes de alguma tribo centro-africana? Rodney tinha a preocupação de desenvolver a mentalidade de Selina e aborrecia-o profundamente o facto dela mostrar uma tão decidida tendência para ler revistas, brochuras e histórias detectivescas.

Passava-se o mesmo noutros campos da cultura. Selina gostava de teatro, mas não podia suportar um teste de resistência de quatro horas a respeito de duas pessoas a viverem em contentores. Do mesmo modo, apreciava ballet, mas preferia que as bailarinas usassem vestidos de tule e dançassem música de Tchaikovsky. O seu gosto musical não incluía concertos de violino que, invariavelmente, a levavam a ter a sensação de haver mordido uma ameixa amarga.

- Sim - disse Rodney. - Já o li, mas achei-o tão interessante que resolvi comprar um exemplar para ti.

- És muito amável. - Sopesou o embrulho. - De que trata?

- É acerca de uma ilha do Mediterrâneo.

- Deve ser interessante.

- É uma espécie de autobiografia. O autor foi para lá viver há seis ou sete anos. Arranjou uma casa e envolveu-se muito com a gente local. Os comentários que faz sobre o modo de vida espanhol pareceram-me muito equilibrados, muito sãos. Vais gostar do livro, Selina.

- Sim, tenho a certeza de que gostarei - e colocou o embrulho ao lado dela, no sofá. - Muito obrigada por mo teres comprado, Rodney.

Depois do almoço despediram-se na rua, Rodney com o chapéu inclinado para a testa e Selina com o livro na mão e o cabelo a cair-lhe sobre a cara, por causa do vento.

- Que vais fazer esta tarde? - perguntou Rodney.

- Oh, não sei.

- Por que não ires ao Woollands e tentares tomar uma decisão a respeito das cortinas? Podias arranjar umas amostras e levá-las amanhã para o apartamento.

- Sim. - Parecia-lhe boa ideia. - Sim, pode ser. Rodney sorriu encorajadoramente. Selina sorriu também.

- Bem, então adeus - disse ele. Não a beijou na rua.

- Adeus, Rodney. Obrigada pelo almoço. E pelo presente

- lembrou-se de acrescentar.

Rodney fez um pequeno gesto com a mão, indicando que nem o almoço nem o livro tinham qualquer importância. Depois, com um último sorriso, voltou-se e afastou-se dela, servindo-se do guarda-chuva como bengala, caminhando rapidamente por entre a multidão. Ela ficou à espera, com uma leve esperança de que ele se voltasse para um aceno final, mas tal não aconteceu.

Selina, sozinha, suspirou. O dia estava mais quente do que nunca. Todas as nuvens tinham sido afastadas pelo vento e ela não podia suportar a ideia de se ir sentar numa loja abafada, a tentar escolher padrões para as cortinas da sala. Caminhou sem objectivo até Piccadilly, atravessou a avenida, com perigo para a sua vida, e voltou para o parque. As árvores estavam muito bonitas e a relva começava a ficar verde, perdendo o seu tom acastanhado do Inverno. Enquanto caminhava sobre a relva, chegava-lhe às narinas um cheiro fresco, como o de um relvado durante o Verão. Havia extensas áreas de açafrão amarelo e púrpura e cadeiras, aos pares, debaixo das árvores.

Selina foi sentar-se numa das cadeiras, recostou-se para trás com as pernas estendidas e a cara voltada para cima, para o sol. Daí a pouco, começou a sentir picadas na pele. Era do calor. Sentou-se, tirou o casaco do fato de saia e casaco e arregaçou as mangas da camisola, pensando: «Posso muito bem ir ao Woollands amanhã de manhã.»

Passou uma criança montada num triciclo, seguida pelo pai e por um cão pequeno. A criança trazia collants vermelhos e um vestido azul. Uma fita preta prendia-lhe os cabelos. O pai era bastante jovem, vestia uma camisola pólo e um casaco de tweed.

Quando a criança parou o triciclo e se baixou sobre a relva, para cheirar as flores, ele não tentou detê-la, mas ficou a olhar, segurando o triciclo para este não se afastar, sorrindo quando a filha se inclinou, mostrando as meias-calças vermelhas.

- Não têm cheiro - disse então a criança.

- Eu podia ter-te dito isso - respondeu o pai.

- Por que é que não têm cheiro?

- Não faço ideia.

- Julguei que todas as flores tinham cheiro.

- A maior parte delas tem. Agora vamos.

- Não as posso apanhar?

- Eu não o faria.

- Porquê?

- Os homens do parque não gostam disso.

- Porquê?

- É uma regra.

- Porquê?

- Bem, as outras pessoas também gostam de olhar para elas. Vem agora.

A menina aproximou-se do pai, montou outra vez no triciclo e pedalou ao longo do caminho, sempre seguida pelo pai.

Selina observou essa cena, com a sensação de se tratar de um misto de prazer e de melancolia. Durante toda a sua vida escutara as conversas e observara as cenas das outras famílias, outras crianças, outros pais. As atitudes delas umas com as outras causavam-lhe infindáveis especulações. Quando era criança e Agnes, a ama, a levava ao parque, ela mantivera-se sempre de parte, olhando as brincadeiras das outras, ansiosa por ser convidada para participar, mas demasiado tímida para pedir. Não a convidavam muitas vezes. As roupas dela eram sempre demasiado impecáveis, e a presença de Agnes, sentada a tricotar num banco próximo, infundia respeito. Se achava que havia perigo de Selina ir brincar com crianças que Mrs. Bruce teria considerado «impróprias», enrolava o seu novelo de lã, espetava-lhe as agulhas, e anunciava que eram horas de voltar a casa, em Queen's Gate. Ali, havia só mulheres - um pequeno mundo feminino governado por Mrs. Bruce. Agnes, que fora em tempos criada dela, Mrs. Hopkins, a cozinheira, e Selina, todas eram suas súbditas obedientes. Nenhum homem, a não ser Mr. Arthurstone, o advogado da avó, ou, em anos mais recentes, Rodney Ackland, representando Mr. Arthurstone, entrava naquela casa. Quando algum lá entrava - para consertar um cano, fazer qualquer pintura ou ler os contadores - Selina era invariavelmente encontrada em companhia dele, fazendo perguntas. Era casado? Tinha filhos? Como se chamavam os filhos? Onde iam passar as férias? Isso era uma das poucas coisas que faziam zangar Agnes.

- Que diria a sua avó se a visse a impedir o homem de trabalhar?

- Não estava a impedi-lo de trabalhar. - Em certas ocasiões, Selina era teimosa.

- Para que quer falar com ele?

Selina não podia responder porque não compreendia por que é que isso era importante. Mas ninguém lhe falava do pai. O nome dele nunca era mencionado. Selina nem sequer sabia como ele se chamava, pois Mrs. Bruce era a mãe da mãe e Selina ficara com o nome dela.

Certa vez, indignada por qualquer coisa, perguntara directamente:

- Quero saber onde está o meu pai. Por que não tenho um? Toda a gente o tem.

Tinham-lhe dito, friamente mas com afabilidade, que ele morrera.

Selina ia regularmente à escola dominical. Por isso perguntou:

- Quer dizer que ele foi para o céu?

Mrs. Bruce puxara por um nó teimoso na lã da tapeçaria que estava a bordar. Achava difícil de aceitar a ideia daquele homem se encontrar junto dos anjos, mas a sua disciplina religiosa era forte e seria errado desiludir a criança.

- Sim - respondeu.

- Que lhe aconteceu?

- Foi morto na guerra.

- Morto como? Como foi ele morto? - Não podia imaginar nada mais horrível do que ser atropelada por um autocarro.

- Não soubemos nunca, Selina. Na verdade, não podemos dizer-te. Agora... - Olhou para o relógio com um ar que indicava que a conversa estava acabada. - Vai dizer a Agnes que são horas de ires dar o teu passeio.

Agnes, quando interrogada, mostrava-se um pouco mais expansiva.

- Agnes, o meu pai morreu.

- Sim - disse Agnes. - Eu sei.

- Há quanto tempo morreu ele?

- Desde a guerra. Desde mil novecentos e quarenta e cinco.

- Ele alguma vez me viu?

- Não. Morreu antes da menina ter nascido. Aquilo era desencorajante.

- Alguma vez o viu, Agnes?

- Sim - respondeu Agnes com relutância. - Quando a sua mãe estava noiva dele.

- Como se chamava ele, Agnes?

- Isso não lhe posso dizer. Prometi à sua avó. Ela não quer que a menina o saiba.

- Bem, ele era simpático? Bem-parecido? De que cor era o cabelo dele? Que idade tinha? Gostava dele?

Agnes, que era também uma pessoa de princípios, respondeu à pergunta a que podia responder com sinceridade.

- Era muito bem-parecido. Agora, acho que já chega. Vá brincar, Selina. E não arraste os pés. Estraga as biqueiras dos seus sapatos novos.

- Gostava de ter um pai - disse Selina e, nessa tarde, passou meia hora ou mais a observar um pai e um filho que faziam navegar um iate de brincar no lago redondo, aproximando-se cada vez mais na esperança de ouvir a conversa deles.

Encontrou a fotografia quando tinha quinze anos. Era uma tarde de quarta-feira, húmida e deprimente. Não havia nada para fazer. Agnes tivera o seu dia de folga, Mrs. Hopkins estava sentada num banco a descansar as suas pernas que sofriam de artrite, mergulhada na leitura do People 's Friend. A avó jogava brídege com as amigas. Por detrás da porta fechada da sala ouviam-se vozes abafadas e chegava até Selina o aroma de cigarros caros. Não havia nada para fazer. Selina, agitada, andava de um lado para o outro. Entrou no quarto de hóspedes, foi até à janela, fez caretas para imitar os rostos de algumas estrelas de cinema no espelho triplo, e preparava-se para sair quando reparou nos livros que se encontravam no pequeno armário entre as duas camas. Ocorreu-lhe que poderia encontrar algum livro que ainda não tivesse lido e, com essa ideia, ajoelhou-se entre as camas e começou a passar um dedo pelas lombadas.

Parou em Rebecca. Era uma edição antiga, do tempo da guerra. Tirou-o para fora, abriu-o e uma fotografia caiu de entre as páginas. A fotografia de um homem. Selina pegou-lhe. Era um homem de uniforme. Possuía um cabelo muito escuro e uma covinha no queixo, sobrancelhas irregulares e uns olhos pretos, risonhos, apesar do seu rosto ter uma expressão solene. Era um soldado, fardado e bem abotoado, com uma Sam Browne reluzente ao ombro.

Selina começou a sentir uma suspeita maravilhosa. Algures, no rosto divertido, havia qualquer coisa que lhe fazia lembrar a cara dela. Levou a fotografia para o espelho e tentou encontrar parecenças no feitio do rosto, na maneira como o cabelo dela crescia, no queixo ligeiramente quadrado. Mas não havia grandes parecenças. Ele era bonito e ela era feia. As orelhas dele achavam-se coladas à cabeça e as dela afastadas, como asas de chávenas.

Voltou a fotografia. Nas costas estava escrito: «Querida Harriet, do G.», e duas cruzes para indicar beijos.

Harriet era o nome da mãe e Selina soube então que a fotografia era de seu pai.

Nunca contou a ninguém que tinha encontrado a fotografia. Meteu novamente o livro na prateleira e levou a fotografia para o seu quarto. Depois disso, levava-a para toda a parte, embrulhada em papel de estanho para a manter limpa e direita. Sentia agora que tinha finalmente uma raiz, embora ténue, mas isso ainda não preenchia as suas necessidades, e ela continuava a observar outras famílias e a ouvir as conversas de outras pessoas...

Uma voz de criança penetrou nos seus pensamentos. Selina estivera a pensar ao sol. Agora, desperta, tomava consciência do ruído infindável do tráfego de Piccadilly, das buzinas dos carros e da voz esganiçada de uma bebé sentada no seu carrinho. A outra pequenita, no triciclo, e o pai há muito que tinham desaparecido. Outros grupos haviam tomado o lugar deles e um casal de apaixonados encontrava-se entrelaçado num completo abandono, apenas a alguns metros do sítio onde Selina se encontrava.

O banco de madeira estava a tornar-se desconfortável. Selina mudou ligeiramente de posição e o embrulho que Rodney lhe dera escorregou-lhe do colo e foi cair na relva. Inclinando-se, ela apanhou-o e, sem propósito, sem pensar coisa alguma, começou a abri-lo. A capa do livro era de um branco brilhante e exibia letras vermelhas: «Fiesta at Cala Fuerte», de George Dyer.

Selina fez uma careta de desagrado. O livro parecia-lhe muito pesado. Folheou-o e depois fechou-o, como se já o tivesse lido, ficando com a contracapa voltada para si.

O rosto destacou-se de repente, como muitas vezes sucede com um nome lido numa coluna de jornal. Tratava-se de uma fotografia casual, colocada ali para preencher um espaço na contracapa. George Dyer. Usava uma camisa branca aberta no pescoço, e a sua pele, em contraste, era escura como couro. Tinha o rosto sulcado de rugas, que lhe rodeavam os olhos, lhe contornavam os lábios e o nariz, vincando-lhe a testa.

Contudo, era o mesmo rosto. Não mudara assim tanto. Continuava a ter a covinha no queixo, as orelhas coladas à cabeça, a expressão divertida nos olhos, como se ele e o fotógrafo partilhassem alguma brincadeira.

George Dyer. O autor. O homem vivia numa ilha no Mediterrâneo e escrevia a respeito dos seus habitantes com equilíbrio e clareza. Aquele era o nome dele. George Dyer. Selina pegou na mala, tirou de lá a fotografia do pai e, com mãos trémulas, segurou as duas fotografias uma ao lado da outra.

George Dyer. E ele publicara um livro. E estava vivo.

Meteu-se num táxi para Queerfs Gate, subiu as escadas a correr, entrou de rompante em casa e chamou por Agnes.

- Estou aqui, na cozinha - respondeu Agnes.

Estava a fazer chá. Quando Selina apareceu à porta da cozinha, Agnes, que deitava o chá no bule, ergueu a cabeça. Tratava-se de uma mulher baixa, de idade indefinida, e a sua expressão ligeiramente azeda devia ser uma defesa contra as tragédias da vida, pois ela tinha um coração bondoso e mal podia suportar ouvir falar de tragédias e tristezas que não podia aliviar. «Aqueles pobres argelinos», dissera ela, pondo o chapéu para ir comprar um postal de solidariedade, provavelmente demasiado caro para ela. Durante a campanha contra a fome, passara sete dias seguidos sem almoçar, sofrendo cruelmente com o cansaço resultante e com a indigestão provocada pela sua singular dieta.

O apartamento de Queen's Gate fora já vendido e quando Rodney e Selina casassem e se mudassem para a sua nova casa, Agnes iria com eles. Fora preciso algum tempo para a fazer concordar com isso. Certamente, argumentava ela, que Selina não quereria a velha Agnes debaixo dos seus pés... gostaria de começar as coisas à sua maneira. Selina conseguira convencê-la de que nada estava mais longe do seu pensamento. Bem, mas a sua ida poderia incomodar Mr. Ackland, declarara Agnes. Seria como ir viver com a sogra! Mas Rodney, impelido por Selina, tirou essa ideia da cabeça de Agnes. Depois, Agnes dissera que era velha de mais para se mudar. Por isso, os noivos levaram-na a ir ver a nova casa. Ela ficou encantada, como eles sabiam que ficaria, pela claridade e pelo conforto de tudo, desde a cozinha americana, cheia de sol, até à pequena salinha que lhe destinavam, voltada para o parque. Afinal, dissera Agnes para consigo, ela ia com eles para ajudar. Ia trabalhar. E com o tempo voltaria a ter crianças de quem cuidar, uma nova geração de bebés, uma ideia que renovava os seus latentes instintos maternais.

- Voltou cedo - disse então Agnes. - Julguei que ia fazer medições no apartamento. - Selina continuava à porta, com as faces rosadas por ter subido as escadas a correr, e com os olhos azuis brilhantes como vidro. Agnes franziu a testa. - Passa-se alguma coisa, menina?

Selina deu uns passos e pousou o livro sobre a mesa. Depois perguntou, fitando Agnes directamente nos olhos.

- Alguma vez viu este homem?

Alarmada, Agnes deixou que o seu olhar pousasse lentamente sobre o livro que se encontrava sobre a mesa. A reacção dela foi mais do que satisfatória. Soltou uma pequena exclamação, deixou cair a colher e, subitamente, sentou-se numa cadeira pintada de azul. Selina quase esperava vê-la levar a mão ao coração. Inclinou-se para a frente, por cima da mesa.

- Já o viu, Agnes?

- Oh! - exclamou Agnes. - Diz cada coisa! Selina mostrou-se implacável.

- Já o viu, não viu?

- Oh, Selina... Onde foi... Como soube... Quando é que... Era incapaz de formular uma simples pergunta, ou de concluir uma frase. Selina puxou uma cadeira para junto da mesa e sentou-se.

- É o meu pai, não é? - Agnes parecia que ia começar a chorar. - É esse o nome dele? George Dyer? Era esse o nome do meu pai?

Agnes controlou-se.

- Não - disse. - Não era. Selina ficou desiludida.

- Bem, então qual era?

- Era Gerry... Dawson.

- Gerry Dawson. G. D. As mesmas iniciais. Certamente é um pseudónimo. É óbvio. Trata-se de um pseudónimo.

- Mas, Selina... o seu pai foi morto.

- Quando?

- Logo depois do «Dia D». Depois da invasão da França.

- Como sabemos que foi morto? Alguma testemunha presenciou a morte dele? Morreu nos braços de alguém? Podemos ter a certeza de que morreu?

Agnes passou a língua pelos lábios.

- Foi dado como desaparecido. Presumivelmente morto. A esperança renasceu.

- Então, não sabemos.

- Esperámos três anos e então foi considerado morto. Avisaram a sua avó porque Harriet... bem, como sabe, ela morreu quando a menina nasceu.

- O meu pai não tinha família?

- Nenhuma, que nós soubéssemos. Essa era uma das objecções da sua avó. Dizia que ele não tinha antecedentes. Harriet encontrou-o numa festa; nunca lhe foi apresentado convenientemente, como a sua avó teria gostado.

- Por amor de Deus, Agnes, estávamos em guerra há cinco anos. A avó não tinha reparado nisso?

- Bem, talvez, mas ela era uma pessoa de princípios e deixava-se guiar por eles. Não há nada de errado nisso.

- Isso agora não interessa. A minha mãe apaixonou-se por ele.

- Perdidamente - disse Agnes.

- E casaram-se.

- Sem o consentimento de Mrs. Bruce.

- E ela perdoou a minha mãe?

- Oh, sim, ela nunca foi pessoa para guardar ressentimentos. E, de qualquer maneira, Harriet voltou para viver aqui. O seu pai foi enviado... para... bem, nesse tempo diziam que ia para algures em Inglaterra, mas foi enviado para França... No «Dia D», creio. Foi morto pouco depois. Nunca mais voltámos a vê-lo.

- Portanto, foram casados durante...

- Três semanas. - Agnes engoliu em seco para tirar o nó que sentia na garganta. - Mas tiveram uma lua-de-mel e estiveram juntos durante algum tempo.

- E a minha mãe ficou grávida - disse Selina. Agnes olhou-a num silêncio chocado. Ainda não esperava que Selina usasse tais palavras, nem mesmo que soubesse dessas coisas.

- Bem, sim. - O rosto na contracapa do livro atraiu-lhe a atenção e ela endireitou o livro, observando o sorriso malicioso nos olhos escuros. Eram castanhos. Gerry Dawson. Seria realmente Gerry Dawson? Parecia realmente ele, ou pelo menos como ele devia parecer se não tivesse sido morto quando era novo e bem-parecido.

As recordações vieram-lhe à memória e nem todas eram más. Ele dera a Harriet um viço e uma vitalidade que Agnes não imaginara que ela pudesse possuir. com Agnes, ele mostrara-se atencioso e simpático, metendo-lhe nas mãos uma nota de libra, de vez em quando, quando ninguém via. Nada de que Agnes se orgulhasse, mas, mesmo assim, fora divertido. Aligeirara o ambiente daquela casa quando a vida era singularmente tristonha. Um vento masculino soprando numa casa de mulheres. Só Mrs. Bruce se mantivera fechada ao seu encanto.

- É um gastador - anunciara ela. - Vê-se logo. Quem é ele? O que é ele? Se lhe tirarem o uniforme, fica apenas um rapaz atraente que anda à deriva. Não tem qualquer sentido das responsabilidades. Não pensa no futuro. Que espécie de vida poderá oferecer a Harriet?

Claro que, de certa maneira, ela tinha ciúmes. Gostava de ordenar as vidas das outras pessoas, de manter uma rédea curta sobre a maneira como as pessoas se comportavam, e sobre o dinheiro que gastavam. Quisera ser ela a escolher um marido para Harriet. Mas Gerry Dawson, apesar de todo o seu encanto, tinha uma personalidade e uma determinação que igualavam a dela, e ganhara a batalha.

Mais tarde, depois dele ter morrido, depois de Harriet, sem vontade de viver, morrer também, Mrs. Bruce dissera para Agnes:

- Vou mudar o nome da bebé de Dawson para Bruce. Já falei com Mr. Arthurstone a esse respeito. Parece-me ser a coisa óbvia a fazer.

Agnes não concordava. Mas nunca fora capaz de argumentar com Mrs. Bruce.

- Sim, minha senhora - dissera.

- E, Agnes, eu preferia que ela crescesse sem saber nada a respeito do pai. Isso não lhe pode fazer nenhum bem e até levá-la a sentir-se muito insegura. Confio que não me deixará ficar mal, Agnes. - Tinha a bebé nos joelhos e erguera os olhos. As duas mulheres olharam-se um momento sobre a cabeça macia da bebé. Depois de uma pequena pausa, Agnes dissera outra vez «Sim, minha senhora», sendo recompensada com um sorriso breve e frio. Mrs. Bruce ergueu então Selina e colocou-a nos braços de Agnes. - Sinto-me mais feliz agora - disse. - Obrigada, Agnes.

- Acha que é o meu pai, não acha? - perguntou Selina.

- Não tenho a certeza, Selina. Esta é a verdade.

- Por que motivo nunca me disse o nome dele?

- Prometi à sua avó que não o faria. Agora quebrei a minha promessa.

- Não podia fazer outra coisa.

- Como é que sabia qual era o aspecto dele? - lembrou-se então Agnes de perguntar.

- Encontrei uma fotografia, há anos. Nunca disse a ninguém.

- O que vai fazer agora... a esse respeito? - A voz de Agnes tremia só de pensar nisso.

- Podia encontrá-lo - disse Selina.

- Que bem lhe faria isso? Mesmo que ele seja o seu pai.

- Sei que é o meu pai. Sei. Tudo aponta para aí. Tudo o que me disse...

- Se assim é, então por que razão não voltou para Harriet depois da guerra?

- Como havemos de saber? Talvez tivesse sido ferido, perdesse a memória. Sucederam coisas dessas, sabe. - Agnes ficou silenciosa. - Talvez que a minha avó se tivesse mostrado tão horrível para ele...

- Não - disse Agnes. - Isso nunca teria feito qualquer diferença, pelo menos para Mr. Dawson.

- Ele havia de querer saber que tinha uma filha. Que me tinha a mim. E eu quero conhecê-lo. Quero saber como ele é, como fala, o que pensa e faz. Quero sentir que pertenço a alguém. Não sabe o que é, nunca pertencer realmente a ninguém.

Mas Agnes compreendeu, porque sempre conhecera a ânsia de Selina por ter uma verdadeira família. Hesitou e depois fez a única sugestão de que se lembrou.

- Por que não fala do assunto - disse - a Mr. Ackland?

O escritório do editor ficava no alto do edifício, no fim de uma viagem feita em elevadores trémulos, curtos lances de escadas, estreitas passagens e, finalmente, mais escadas. Ofegante e com a sensação de que ia sair no telhado, Selina encontrou-se em frente de uma porta onde se lia: «Mr. A. G. Rutland».

Bateu. Não obteve resposta. Ouviu apenas o ruído de uma máquina de escrever. Abriu a porta e espreitou para dentro. A rapariga que estava a escrever ergueu os olhos, parou por um segundo e indagou:

- Sim?

- Queria falar com Mr. Rutland.

- Tem uma entrevista marcada?

- Telefonei-lhe esta manhã. Sou Miss Bruce. Ele disse para eu vir às dez e trinta... - Olhou para o relógio na parede. Eram dez horas e vinte minutos. A dactilógrafa disse então:

- Ele está com uma pessoa. O melhor é sentar-se e esperar. A rapariga continuou a escrever. Selina entrou na sala, fechou

a porta e sentou-se numa cadeira dura. Do escritório vinha o ruído abafado de vozes masculinas. Passados uns vinte minutos, o murmúrio tornou-se mais animado, ouviu-se o som de uma cadeira a ser arrastada e vozes. A porta do escritório abriu-se e saiu de lá um homem que, ao vestir o sobretudo, deixou cair as folhas que tinha na mão.

- Oh, que falta de cuidado - disse o homem baixando-se para as apanhar. - Obrigado, Mr. Rutland. Obrigado por tudo...

- Não tem de quê. Volte quanto tiver ideias novas a respeito do desfecho.

- Sim, com certeza.

Despediram-se. O editor preparava-se para regressar ao seu escritório, mas Selina levantou-se e chamou-o. Ele voltou-se e olhou-a.

- Que deseja?

Era mais velho do que ela imaginara, muito calvo, com uns óculos que lhe pendiam para a ponta do nariz. O homem olhava por cima deles para ela, como um velho mestre-escola.

- Eu... eu creio ter uma entrevista marcada.

- Sim?

- Sim. Sou Selina Bruce e telefonei esta manhã.

- Estou muito ocupado...

- Não levará mais de cinco minutos.

- É escritora?

- Não... nada disso. Queria apenas que me ajudasse. Que respondesse a umas perguntas.

O homem suspirou:

- Muito bem.

Afastou-se para deixar Selina passar e entrar no seu escritório. Havia uma alcatifa vermelha e uma secretária cheia de coisas, prateleiras com livros e mais livros e manuscritos empilhados em mesas e cadeiras e até no chão.

O homem não se desculpou pela desarrumação do escritório. Obviamente não achava necessidade de o fazer... e na verdade ela não existia. Indicou uma cadeira a Selina e foi instalar-se atrás da sua secretária. Mesmo antes dele se instalar, Selina começou a explicar.

- Mr. Rutland, lamento realmente incomodá-lo e quero ocupar-lhe o menor tempo possível. Trata-se daquele livro que o senhor publicou, Fiesta at Cala Fuerte.

- Oh, sim. George Dyer.

- Sim. Sabe... sabe alguma coisa a respeito dele?

Esta pergunta teve como resposta um silêncio enervante e um olhar ainda mais enervante por cima dos óculos de Mr. Rutland.

- Porquê? - disse Mr. Rutland por fim. - A senhora

sabe?

- Sim. Pelo menos julgo saber. Ele era... um amigo da minha avó. Ela morreu há cerca de seis semanas e eu... bem, gostaria de poder avisá-lo.

- Posso enviar-lhe uma carta sua.

Selina respirou fundo e passou a atacar por outro flanco.

- Sabe muita coisa a respeito dele?

- Calculo que saiba tanto como a senhora. Presumo que leu o livro.

- Quer dizer que... que nunca o encontrou?

- Não - disse Mr. Rutland. - Nunca me encontrei com ele. Nunca o vi. Ele vive em Cala Fuerte, na ilha de San António. Creio que vive ali há seis ou sete anos.

- Ele nunca veio a Londres? Nem mesmo para a publicação do livro? - Mr. Rutland abanou a cabeça calva e a luz vinda da janela brilhou sobre ela. - Sabe... sabe se ele é casado?

- Na altura não era. Agora pode ser.

- E que idade tem?

- Não faço a mínima ideia. - Começou a mostrar-se um pouco impaciente. - Minha cara senhora, estou a perder o meu tempo.

- Bem sei. Desculpe. Pensei que me pudesse ajudar e que houvesse a possibilidade dele se encontrar agora em Londres e eu poder vê-lo.

- Não. Isso não sucede. - Mr. Rutland levantou-se, indicando que a entrevista estava acabada. Selina ergueu-se também enquanto ele se dirigia para a porta e a abria.

- Se quiser, terei muito gosto em enviar qualquer correspondência para Mr. Dyer.

- Muito obrigada. Lamento tê-lo feito perder tempo.

- Não tem importância. bom dia.

- Adeus.

Ao atravessar o escritório, onde a rapariga continuava a escrever à máquina, Selina mostrava-se tão desanimada que o editor teve pena dela e chamou-a:

- Miss Bruce. Selina voltou-se.

- Nós enviamos-lhe todas as cartas para o Clube Náutico em San António, mas a casa dele chama-se a Casa Barco, em Cala Fuerte. Poderá poupar tempo se lhe escrever directamente. E se o fizer, diga-lhe que estou à espera da sinopse do segundo livro. Já lhe escrevi uma dúzia de cartas, mas ele parece ter uma aversão total a responder.

Selina sorriu e o editor ficou admirado com a transformação que esse sorriso provocou no aspecto dela.

- Oh, muito obrigada. Fico-lhe muito agradecida.

- Não tem de quê - disse Mr. Rutland.

O apartamento vazio não era o sítio mais apropriado para uma conversa de tal importância, mas não havia outro.

Selina interrompeu as observações de Rodney sobre os méritos relativos das alcatifas lisas e com desenhos, e disse:

- Rodney, preciso de falar contigo.

Interrompido, ele olhou-a um pouco aborrecido. Pensara, durante todo o almoço e no percurso de táxi até ali, que ela não parecia a mesma. Quase não comera e parecera-lhe preocupada e vaga. Além disso, vestia uma blusa que não condizia com o fato de saia e casaco castanho-claro e tinha uma malha na meia do lado direito. Selina era normalmente tão composta e calma como um gato siamês, pelo que aquelas pequenas irregularidades preocupavam-no.

- Passa-se alguma coisa? - perguntou.

Selina tentou olhá-lo de frente, respirar fundo e ficar inteiramente calma, mas o coração martelava-lhe o peito e sentia uma sensação no estômago tão forte como se tivesse acabado de subir num elevador demasiado rápido, deixando as suas entranhas na cave.

- Não, não se passa nada, mas preciso de falar contigo. Rodney franziu a testa.

- Isso não pode esperar até logo? É a única oportunidade que temos de medir...

- Oh, Rodney, por favor ajuda-me e ouve.

Ele hesitou e depois, com uma expressão resignada, fechou o livro das amostras de alcatifas e enrolou o metro, que guardou no bolso.

- Bem! Sou todo ouvidos.

Selina passou a língua pelos lábios. O apartamento vazio enervava-a. As suas vozes faziam eco e não havia qualquer peça de mobiliário, nem sequer uma almofada onde pudesse mexer. Selina sentiu-se como se se encontrasse num palco vazio, sem ouvir nenhuma deixa, e tivesse esquecido o que tinha a dizer.

Respirou fundo e disse:

- É acerca do meu pai.

A expressão de Rodney mal se alterou. Era um bom advogado e gostava de um bom jogo de póquer. Sabia tudo a respeito de Gerry Dawson, pois Mrs. Bruce e Mr. Arthurstone há muito que tinham achado necessário mante-lo informado sobre esses factos. E sabia que Selina desconhecia tudo a respeito do pai. E não ignorava que não seria ele quem lho iria contar.

- Que há acerca do teu pai? - perguntou afavelmente.

- Bem... creio que ele está vivo.

Aliviado, Rodney tirou as mãos dos bolsos e soltou uma pequena gargalhada incrédula.

- Selina...

- Não, não digas que ele está morto. Ouve, um momento.

Lembras-te do livro que me ofereceste ontem? Fiesta aí Cala Fuerte. E sabes que na contracapa tem uma fotografia do autor, George Dyer? Rodney anuiu.

- Bem, o facto é que... ele parece-se exactamente com o meu pai.

Rodney digeriu isso e depois perguntou:

- Como sabes qual era o aspecto do teu pai?

- Sei, porque encontrei uma fotografia dele, há muito tempo, num livro. E penso que se trata da mesma pessoa.

- Queres dizer que George Dyer é... - parou mesmo a tempo.

- Gerry Dawson - concluiu Selina triunfalmente. Rodney começou a sentir-se como se lhe estivessem a puxar

um tapete debaixo dos pés.

- Como é que sabes o nome dele? Nunca to disseram.

- Agnes disse-mo ontem.

- Mas Agnes não devia...

- Oh, Rodney, tenta compreender! Não a podes censurar. Apanhei-a desprevenida. Pus o retraio de George Dyer à sua frente em cima da mesa e ela quase desmaiou.

- Selina, não sabes que o teu pai morreu?

- Mas, Rodney, não vês que ele foi dado como desaparecido? Desaparecido, presumivelmente morto. Pode ter sucedido muita coisa.

- Então, por que é que não voltou depois da guerra?

- Talvez estivesse doente. Talvez tivesse perdido a memória. Ou soubesse que a minha mãe tinha morrido.

- E que esteve a fazer durante todo este tempo?

- Não sei. Durante os últimos seis anos viveu em San António. - Lembrou-se que Rodney lhe iria perguntar como é que ela soubera isso, e acrescentou rapidamente: - Ele conta tudo isso no livro. - Isto porque não queria que Rodney soubesse que ela fora falar com Mr. Rutland.

- Tens a fotografia do teu pai contigo?

- A do livro não.

- Não me referia a essa, mas sim à outra. Selina hesitou.

- Sim. Tenho.

- Deixa-me vê-la.

- Depois... voltas a dar-ma?

Uma ligeira irritação apareceu na voz de Rodney.

- Minha querida... por quem me tomas?

Selina sentiu-se imediatamente envergonhada, pois sabia que Rodney não cometeria tal acção. Foi à carteira, tirou de lá a preciosa fotografia e entregou-a a Rodney. Este aproximou-se da janela para a ver à claridade e Selina acompanhou-o.

- Provavelmente não te recordas da fotografia do livro, mas eu iria jurar que se trata da mesma pessoa. Tudo é igual. A cova no queixo. E os olhos. E as orelhas.

- Que disse Agnes?

- Não se mostrou certa, mas tenho a certeza de que ela pensa que é o meu pai.

Rodney não respondeu. Olhando de rosto franzido para a cara morena e de expressão divertida da fotografia, sentiu-se invadido por uma série de ansiedades. A primeira era a possibilidade de perder Selina. Sendo um homem intrinsecamente honesto, Rodney sabia que não a amava, mas tornara-se, quase sem ele se aperceber disso, numa agradável parte da sua vida. O aspecto dela, com a sua pele clara, acetinada, o cabelo castanho-claro e os olhos cor de safira, era atraente, e, apesar dos interesses dela não serem tão esotéricos como os seus, a verdade é que ela mostrava uma encantadora disposição para aprender.

E, depois, havia a questão dos negócios dela. Desde a morte da avó, Selina tornara-se numa rapariga rica, um fruto maduro que poderia cair nas mãos de um homem pouco ajuizado. Nessa altura, Rodney e Mr. Arthurstone, em completo acordo, tratavam das acções e dos fundos que lhe pertenciam. Dentro de seis meses, Selina teria vinte e um anos e, a partir daí, a decisão final passaria a ser dela. Ele pensou no momento em que o controlo de todo aquele dinheiro lhe sairia das mãos. E isso causava-lhe calafrios. Olhou para baixo, por cima do ombro, e encontrou os olhos de Selina. Nunca conhecera nenhuma rapariga com o branco dos olhos tão azulado. Eram como anúncios de detergentes. Selina cheirava vagamente a limões frescos... a verbena. Rodney pareceu-lhe ouvir a voz de Mrs. Bruce e algumas das coisas amargas que ela tinha a dizer a respeito de Gerry Dawson. Sem recursos, era a expressão que melhor recordava. Recordou depois outros epítetos: irresponsável; não merecedor de confiança; sem dinheiro.

Segurou na fotografia por um canto e colocou-a na palma da mão esquerda. Por fim, disse, com uma pequena explosão de aborrecimento, por achar necessário censurar alguém pela situação em que se encontrava:

- Claro que quem tem a culpa disto tudo é a tua avó. Nunca devia ter-te mantido na ignorância de tudo o que se relacionava com o teu pai. Todo esse secretismo, o facto de nunca mencionar o nome dele... tudo isso foi um erro ridículo.

- Porquê? - perguntou Selina, interessada.

- Porque isso te fez criar uma obsessão a respeito dele! declarou Rodney. Selina ficou a olhá-lo, obviamente muito magoada, com a boca ligeiramente aberta como uma criança surpreendida. Rodney continuou implacavelmente.

- Tens uma obsessão a respeito de pais, famílias e vida familiar em geral. O facto de teres encontrado esta fotografia e de a teres guardado - sem ninguém saber - é um sintoma típico.

- Falas como se eu tivesse tido sarampo.

- Tento fazer-te compreender que tens um complexo a respeito do teu falecido pai.

- Talvez não tenha morrido - respondeu Selina. - E se tenho um complexo a respeito dele, acabaste de admitir que a culpa não é minha. E que mal tem um complexo? Não é como ter os olhos tortos. Não se vê.

- Selina, isto não tem graça.

- Eu também não acho engraçado.

Ela observava-o com os olhos brilhantes e Rodney notou que Selina o fazia com hostilidade. Estavam a discutir. Nunca tinham discutido e aquela não era certamente a altura de começar. Disse rapidamente:

- Desculpa, querida - e inclinou-se para lhe beijar os lábios, mas ela voltou a cara e ele tocou-lhe na face. - Não vês que estou apenas a pensar em ti? Não quero que metas na cabeça que esse homem é teu pai, que vás atrás dele até ao fim do mundo e que descubras depois que cometeste um erro estúpido.

- Mas, supondo - disse Selina -, supondo que ele seja meu pai, que está vivo e a viver em San António, a escrever livros, a velejar no seu pequeno iate e a arranjar amigos entre os habitantes da terra, gostarias que eu o conhecesse, ou não? Certamente gostarias de ter um sogro.

Era a última coisa que Rodney desejava. No entanto, disse carinhosamente:

- Não devemos pensar apenas em nós próprios. Devemos pensar também nele, em George Dyer - quer seja teu pai ou não.

- Não compreendo.

- Agora, passados tantos anos, ele tem uma vida boa. Uma vida que ele escolheu de livre vontade. Se quisesse ter uma família, mulher e filhos... e filhas... por esta altura já os teria arranjado...

- Queres dizer que não me quereria? Que não gostaria que eu fosse procurá-lo?

Rodney ficou chocado.

- Não estás a pensar em dar esse passo, pois não?

- É muito importante para mim. Podíamos ir de avião a San António.

- Nós?

- Quero que venhas comigo. Por favor.

- Isso está fora de questão. Além disso, como já te disse, tenho de ir a Boumemouth e estarei fora durante três ou quatro dias.

- Mrs. Westman não pode esperar?

- Claro que não pode esperar.

- É que eu quero que estejas comigo. Por favor, Rodney, ajuda-me.

Rodney percebeu mal a súplica dela. Pensou que ela dissera «ajuda-me» no seu sentido prático das coisas. Julgou que ela queria que ele comprasse o bilhete de avião, que a ajudasse na passagem pela alfândega, que a auxiliasse a chamar táxis e a arranjar carregadores. Ela nunca fizera qualquer viagem sozinha e Rodney confiava que não iria tentar fazê-la agora.

Ouviu o pedido dela com um ar encantador, sorriu e deu-lhe novamente uma palmadinha na mão.

- Para que é tanta pressa? Sê paciente. Sei que isto deve ser excitante para ti, pensares subitamente que o teu pai deve estar vivo. Percebo também que sempre houve um vazio na tua vida. Sempre esperei ser capaz de o preencher.

As palavras dele pareciam nobres.

- Não é isso, Rodney...

- Mas, compreende, Selina, nada sabemos a respeito de George Dyer. Não seria melhor fazermos umas investigações calmas a respeito dele antes de darmos algum passo que ainda havemos de lamentar? - Falava como se fizesse parte da realeza.

- Eu nasci depois dele ter sido dado como desaparecido. Ele nem sequer sabe que eu existo.

- Exactamente! - Rodney falou num tom mais incisivo. - Sabes, Selina, que há um velho provérbio muito verdadeiro: «Nunca se deve acordar um tigre adormecido».

- Não penso nele como um tigre. Penso apenas que pode ser que esteja vivo e que foi ele a pessoa que eu sempre desejei conhecer, mais do que qualquer outra, durante toda a minha vida.

Rodney vacilou entre mostrar-se ofendido ou zangado.

- Estás a falar como uma criança.

- É como uma moeda. Uma moeda tem dois lados, cara e coroa. Eu também tenho dois lados. Um lado Bruce e um lado Dawson. Selina Dawson. É esse o meu verdadeiro nome. Sorriu para Rodney e ele pensou, no meio do seu aborrecimento, que se tratava de um sorriso que ele nunca vira. -Amas Selina Dawson tanto como amas Selina Bruce? - Rodney estava ainda a segurar na fotografia do pai dela. Ela tirou-lha da mão e guardou-a na mala.

Rodney respondeu, embora com uma certa demora:

- Sim, claro que sim.

Selina fechou a mala e pousou-a no chão.

- Agora - disse, alisando a parte da frente da saia, como se estivesse prestes a começar a recitar -, não é altura de medirmos o soalho?

O aeroporto de Barcelona, à primeira claridade pálida da madrugada, achava-se cheio de grandes poças de água, devido ao temporal que perseguira o avião através dos Pirenéus. Sentia-se um vento fraco, soprando das montanhas. Os oficiais do aeroporto pareciam cheirar todos a alho, e, na sala de espera, os bancos e cadeiras estavam cheios de vultos humanos adormecidos, embrulhados em casacos e mantas, de expressão cansada, dadas as infindáveis horas de espera. Fora uma noite má. Os voos de Roma e de Palma haviam sido cancelados e os de Madrid encontravam-se atrasados.

Selina, ainda agoniada devido à viagem, passou pelas portas giratórias, pensando no que iria fazer a seguir. Tinha um bilhete directo para San António, mas precisava de outro talão de embarque. Num balcão, um funcionário de aspecto cansado pesava bagagens; por isso, ela foi colocar-se esperançadamente na frente dele. Quando ele ergueu os olhos, Selina perguntou:

- Fala inglês?

- Sí.

- Tenho um bilhete para San António. Inexpressivamente, o funcionário estendeu a mão para o

bilhete, tirou a folha descartável e deu-lhe o cartão de embarque, juntamente com o bilhete.

- Muito obrigada. A que horas parte o avião?

- Às sete e trinta.

- E a minha bagagem?

- Está marcada para ir directamente para San António.

- E a alfândega?

- Em San António.

- Compreendo. Muito obrigada. - Porém, os esforços de Selina para fazer com que o funcionário sorrisse, revelaram-se inúteis. O hornem passara uma noite difícil e não tinha disposição para se mostrar agradável.

Selina foi sentar-se. Doía-lhe o corpo de exaustão, mas estava demasiado nervosa para sentir sono. O avião saíra do aeroporto de Londres às duas horas da madrugada, e ela ficara sentada no escuro dizendo para si própria que devia preocupar-se apenas com uma coisa de cada vez. Barcelona, San António. Alfândegas, passaportes e outras coisas. Depois um táxi. Seria bastante fácil arranjar um táxi. Em seguida, Cala Fuerte, que não devia ser grande. Onde vive o inglês George Dyer?, perguntaria ela. E as pessoas indicar-lhe-iam onde ficava a Casa Barco e, então, ela encontrá-lo-ia.

O temporal abatera-se sobre o avião quando sobrevoavam os Pirenéus. O comandante fora avisado disso e as pessoas tinham sido acordadas e intimadas a apertarem os cintos de segurança. O aparelho oscilava e inclinava-se, ganhava altitude e continuava a oscilar e a inclinar-se. Alguns dos passageiros vomitaram. Selina, fechando os olhos, esforçou-se por não o fazer, mas os seus esforços quase que não resultaram.

Quando desceram para o aeroporto de Barcelona, os relâmpagos atacaram-nos, parecendo esvoaçar como bandeiras sobre as pontas das asas. Ao atravessarem as nuvens foram fustigados pela chuva e, no momento da aterragem, foram apanhados por ventos cruzados. A pista estava cheia de água onde se reflectiam as luzes. Quando as rodas tocaram no pavimento da pista levantaram grandes quantidades de água. Houve um murmúrio geral de alívio quando, finalmente, o avião parou e os motores se calaram.

Era estranho não ter ninguém à espera dela. Devia lá estar um motorista, com um grande carro aquecido. Ou Agnes, querendo cobri-la com uma manta. Devia estar ali alguém que fosse procurar a sua mala e tratar de todos os assuntos com as autoridades. Mas não havia quem quer que fosse. Encontrava-se em Espanha, em Barcelona, às seis horas da manhã de um dia de Março, e não existia ninguém que a pudesse ajudar.

Quando os ponteiros do relógio marcaram as sete horas, Selina dirigiu-se para o bar e pediu uma chávena de café, pagando-o com algumas pesetas que o atencioso funcionário do banco insistira para que ela levasse. O café não era muito bom, mas estava consoladoramente quente. Ela sentou-se a bebê-lo e a ver a sua imagem no espelho que se encontrava atrás do bar. Envergava um vestido de jersey castanho e um casaco da rnesma cor. Trazia na cabeça um lenço de seda que lhe escorregara para a nuca. Mrs. Bruce chamava-lhes roupas de viagem. Tinha ideias formadas a respeito de roupas apropriadas para viagem. O jersey é confortável e não se amarrota, e o casaco deve ser suficientemente amplo para vestir por cima de qualquer coisa, costumava ela dizer. Os sapatos deviam ser leves, mas suficientemente fortes para longas caminhadas por aeroportos varridos pelo vento, e a carteira grande e espaçosa. Automaticamente, Selina seguira esses conselhos, mas o facto de estar vestida como uma viajante não fazia com que o fosse. O seu aspecto era horrível e estava exausta. Tinha receio de voar e não era capaz de afastar a ideia de que o avião poderia cair ou que poderia perder o passaporte.

O avião para San António pareceu-lhe muito pequeno e tão pouco digno de confiança como um brinquedo. Oh, não, pensava Selina ao dirigir-se para o aparelho, enquanto o vento lhe soprava para o rosto o fumo do combustível e a água das poças lhe salpicava os sapatos. Os passageiros eram muito poucos e entravam no avião com ar lúgubre, como se partilhassem as suas convicções. Uma vez sentada e com o cinto apertado, a hospedeira deu a Selina um doce e ela começou a comê-lo como se fosse uma cura milagrosa para o pânico. Não era, mas o avião não caiu.

O mau tempo continuava, contudo, a fazer-se sentir e só divisaram San António quando estavam prestes a aterrar. Até então, viam apenas nuvens que pareciam pedaços de algodão cinzento a roçarem pelas janelas. Depois, apenas chuva... Então, inesperadamente, campos e telhados de casas, um moinho, alguns pinheiros e a terra cor de tijolo, tudo brilhava à chuva. O aeroporto acabara de ser construído e a pista convertera-se numa extensão de lama avermelhada.

Após terem aterrado, dois mecânicos conduziram uma escada para junto do avião. Usavam capas de oleado amarelas e estavam cheios de lama até aos joelhos. Dessa vez, ninguém parecia ansioso por deixar o avião. Quando o fizeram, as pessoas caminharam cautelosamente, escolhendo com a maior precaução o caminho por entre as poças.

San António cheirava a pinheiros. Pinheiros molhados, resinosos. A chuva, miraculosamente, parecia ter parado. Aquecera... Não havia vento. Também não se viam ali montanhas com os cimos cobertos de neve, mas apenas o mar calmo. Selina estava em San António. A viagem por ar terminara e ela ainda não morrera. Tirou o lenço da cabeça e deixou que o vento leve lhe agitasse os cabelos.

Havia uma fila de pessoas para passar na imigração. Viam-se por ali elementos da Guardiã Civil, como se esperassem um afluxo de criminosos. Usavam pistolas e não apenas como ornamentos. O funcionário da imigração trabalhava lentamente. Conversava com um colega. Parecia ser uma discussão que só era interrompida de vez em quando para ele examinar lentamente, página por página, um passaporte estrangeiro. Selina foi a terceira e teve de esperar dez minutos antes que ele carimbasse no seu passaporte a palavra «Entrada», devolvendo-lho outra vez.

Selina perguntou hesitantemente:

- A minha bagagem? - O homem não a compreendeu, ou não a quis compreender, mas fez-lhe sinal para se afastar. Selina guardou o passaporte na carteira e decidiu ir procurar a bagagem. Apesar de ser um aeroporto pequeno, San António tinha muito movimento naquela manhã. O avião vindo de Barcelona voltava para Espanha às nove e trinta e muita gente ia partir nele. Famílias inteiras, crianças que choravam, mães que lhes diziam em voz alta para se calarem, pais que discutiam com os carregadores, faziam bichas para os bilhetes e para os passes de embarque. Havia namorados de mãos dadas, à espera para se despedirem e atrapalhando o caminho a toda a gente. O barulho, no edifício de tectos altos, era ensurdecedor.

- com licença - ia dizendo Selina, tentando abrir caminho por entre a multidão. - com licença... desculpe... - Alguns dos seus companheiros de viagem encontravam-se já sob um letreiro que dizia «aduana», e ela esforçou-se por chegar junto deles. - Desculpe - tropeçou sobre um grande cesto e quase atirou ao chão um bebé gordo com um casaco de malha amarelo. - Por favor, desculpe.

As bagagens estavam já a chegar, trazidas pelos funcionários e colocadas sobre um balcão improvisado, examinadas, por vezes abertas e finalmente entregues.

A mala de Selina não apareceu. Era azul, com uma risca branca e facilmente identificável. Depois de esperar uma eternidade, Selina percebeu que não viria mais bagagem. Os passageiros haviam-se afastado um a um e Selina ficara sozinha.

O funcionário da alfândega, que até então conseguira ignorá-la com sucesso, levou as mãos às ancas e ergueu as sobrancelhas escuras para ela.

- A minha mala - disse Selina. - É...

- No hablo inglese.

- A minha mala... fala inglês? Um segundo homem adiantou-se.

- Ele diz que não.

- E o senhor, fala inglês?

O homem encolheu os ombros elaboradamente, sugerindo que, sob condições desesperadas, talvez conseguisse dizer uma palavra ou duas.

- A minha mala. A minha bagagem. - Decidiu, desesperada, falar em francês. - Mon bagage.

- Não estar aqui?

- Não.

- De onde vem?

- De Barcelona. E de Londres.

- Oh! - O homem soltou a exclamação como se ela lhe tivesse dado uma grande notícia. Voltou-se para os colegas e começaram então a falar rapidamente. Selina desejava desesperadamente perceber o que eles estavam a dizer. Então o homem que falava inglês encolheu os ombros e voltou-se novamente para Selina. - Vou saber - disse.

Desapareceu. Selina ficou à espera. O primeiro funcionário começou a palitar os dentes. Algures, uma criança chorava. Nesse momento, o altifalante, para aumentar ainda mais a confusão, começou a transmitir uma música geralmente associada às touradas. Passados dez minutos ou mais, o prestável funcionário apareceu com um dos comissários do avião. Este voltou-se para Selina e disse-lhe, sorrindo, como se estivesse a dar-lhe uma notícia encantadora:

- A sua mala está perdida!

- Perdida! - gemeu Selina, desesperada.

- Julgamos que se deve encontrar em Madrid.

- Em Madrid? Que foi fazer para Madrid?

- Infelizmente, em Barcelona, foi posta no carro errado... pensamos nós. Havia também um avião para Madrid. Achamos que a sua bagagem deve estar em Madrid.

- Mas estava endereçada para San António. Foi marcada em Londres.

Ao ouvir a palavra «Londres», o homem da alfândega emitiu um som de desespero. Selina teve vontade de lhe bater.

- Lamento - disse o comissário. - Vou enviar uma mensagem para Madrid, a fim de devolverem a mala para San António.

- Quanto tempo levará isso?

- Eu não dei a certeza de que está em Madrid - disse o comissário, não querendo comprometer-se. -Temos de descobrir.

- Bem, quanto tempo levará a descobrir?

- Não sei. Talvez três, quatro horas.

- Três ou quatro horas! - Se não estivesse tão zangada, Selina teria chorado. - Não posso ficar aqui à espera três ou quatro horas.

- Então talvez possa voltar amanhã para saber se a mala está aqui, vinda de Madrid.

- E não posso telefonar?

Aparentemente, aquilo era um gracejo. com sorrisos, disseram-lhe finalmente:

- Senorita, há poucos telefones.

- Então tenho de voltar aqui amanhã para saber se encontraram a minha mala?

- Ou no dia seguinte - disse o comissário, com o ar de um homem cheio de ideias brilhantes.

Selina fez uma súplica final.

- Mas tudo quanto tenho está nessa mala.

- Lamento.

Continuou a sorrir. Ela sentiu-se nesse momento como se estivesse a afogar-se. Olhou de um rosto para outro e apercebeu-se subitamente de que ninguém iria ajudá-la. Ninguém podia ajudá-la. Estava sozinha e precisava de se ajudar a si própria. Por fim, disse, numa voz ligeiramente trémula:

- Será possível arranjar um táxi?

- Mas com certeza. Lá fora. Há muitos táxis.

Havia, com efeito, quatro. Começando a sentir calor com o seu casaco- de viagem, Selina dirigiu-se para a paragem. Logo que ela apareceu, os motoristas começaram a apitar as suas buzinas, acenaram, chamaram «Senorita», saltaram dos carros, dirigindo-se para ela, cada um deles tentando levá-la para o seu veículo.

-- Algum de vocês fala inglês? - disse Selina em voz alta.

- oz, si, si.

-- Quero ir para Cala Fuerte.

-- Cala Fuerte, si.

- Conhecem Cala Fuerte?

- Si, si- disseram todos.

- Oh, ninguém sabe falar inglês...?

- Sim - disse uma voz. - Eu sei.

Era o motorista do quarto táxi. Enquanto os seus colegas tinham tentado atrair Selina, ele ficou à espera, acabando placidamente de fumar o seu charuto. Quando o acabou, deitou a ponta - fora, pisou-a e deu uns passos em frente. O seu aspecto não era | tranquilizador. Tratava-se de um homem enorme, muito alto e igualmente gordo. Usava uma camisa azul, aberta no pescoço, mostrando um peito coberto de pêlos pretos. Tinha as calças presas por um complicado cinto de cabedal e, caído para a nuca, l exibia um incongruente chapéu de palha, do género do que os turistas levam para casa quando regressam de férias. Usava Aquela hora matinal e num dia enevoado, óculos escuros, e tinha um bigodinho preto que sugeria as suas tendências donjuanescas. O aspecto dele era tão mau que Selina hesitou.

     - Eu falo inglês - disse com um forte sotaque americano. Trabalho numa base aérea americana em Espanha. Falo inglês. - Bem... - Certamente que qualquer dos outros três motoristas era preferível àquele rufião, inglês ou não!         O homem ignorou a hesitação dela.

- - Para onde quer ir?

- Para... Cala Fuerte. Mas estou certa... :       - Eu levo-a. São seiscentas pesetas.

- Bem... - Selina olhou esperançadamente para os outros motoristas, mas estes pareciam estar já desencorajados. Um deles voltara mesmo para o seu carro e limpava o vidro da frente com uma rodilha.

       Selina voltou-se para o homem grande com o chapéu de palha. Ele sorriu, com um sorriso que revelava um dente partido. Selina murmurou: - Está bem. Seiscentas pesetas.      - Onde está a sua bagagem? - Perdeu-se. Perdeu-se em Barcelona. - Isso é mau.

- Sim. Foi levada para um avião errado. Vão procurá-la e eu terei de vir buscá-la amanhã ou depois. Mas agora preciso de ir a Cala Fuerte e...

Algo na expressão do homem corpulento fez com que ela se interrompesse. O homem olhava fixamente para a carteira dela.

Selina seguiu o olhar dele e viu que, na verdade, algo de estranho sucedera. Apesar de duas das pegas estarem ainda presas no braço dela, a carteira encontrava-se aberta como uma boca. As pegas da frente haviam sido cortadas. E faltava-lhe a carteira com o dinheiro!

O motorista de táxi chamava-se Toni. Apresentou-se formalmente e depois serviu de intérprete durante a longa e aborrecida conversa com a Guardiã Civil.

Sim, a senorita fora roubada. Entre a multidão que se encontrava no aeroporto nessa manhã havia um ladrão com uma lâmina. Tinham-lhe roubado tudo. Tudo o que tinha.

«O passaporte?»

O passaporte não. Mas o dinheiro, as pesetas, o dinheiro inglês, os cheques e o bilhete de avião para regressar a Londres.

A Guardiã Civil, em concentração, examinou a carteira de Selina.

«A senorita não sentiu nada?»

Nada. A abrir caminho por entre a multidão, como havia de sentir alguma coisa?

A mala parecia ter sido cortada por uma lâmina.

Fora isso. Um ladrão com uma lâmina.

«Qual é o nome da senorita?»

Era Miss Selina Bruce, de Londres, viajando com passaporte inglês.

«E qual era o local de residência de Miss Bruce em San António?»

Era... Selina hesitou, mas os acontecimentos não admitiam hesitações. Casa Barco, Cala Fuerte.

«De que cor era a carteira que continha o dinheiro? Os cheques estavam assinados?»

Selina, cansada, ia respondendo às perguntas. O relógio atingiu as dez horas, dez e meia e mais. As piores apreensões de Selina haviam-se realizado. Perdera a carteira e perdera a mala. E ainda lhe faltava chegar a Cala Fuerte.

Por fim, o interrogatório acabou. O agente policial arrumou os seus papéis e levantou-se. Selina agradeceu-lhe e apertou-lhe a mão. O homem pareceu ficar surpreendido, mas, mesmo assim, não sorriu.

Selina e Toni atravessaram então o aeroporto agora vazio, passaram pelas portas de vidro e pararam, voltando-se um para o outro. Selina tinha o casaco no braço e começava a sentir-se desconfortavelmente abafada. Olhou para o motorista, esperando que fosse ele a fazer o primeiro gesto.

O homem tirou os óculos escuros.

- Continuo a ter de ir para Cala Fuerte - disse Selina.

- Mas não tem dinheiro.

- Há-de ser pago, prometo-lhe. Quando chegarmos a Cala Fuerte, o meu... pai... paga-lhe.

Toni franziu o sobrolho.

- O seu pai? Tem aqui o pai? Por que não disse isso antes?

- Não faria qualquer diferença. Não podíamos entrar em contacto com ele, pois não?

- O seu pai vive em Cala Fuerte?

- Sim. Numa casa chamada Casa Barco. Tenho a certeza de que ele estará lá e lhe pagará. - Toni olhava-a com desconfiança. - E não me pode deixar aqui. Não tenho dinheiro e nem sequer o bilhete para regressar a Londres.

O homem ficou a olhar para o ar durante um bocado e depois decidiu acender um cigarro. Parecia hesitante em resolver-se.

- Disse que me levava - insistiu Selina. - E farei com que lhe paguem, prometo.

O cigarro estava aceso. Ele soprou uma nuvem de fumo para o ar e os seus olhos pretos fitaram o rosto de Selina. Ela parecia ansiosa e estava pálida, mas era indubitavelmente uma pessoa de posses. A mala de mão estragada era de pele de crocodilo e os sapatos também. Tanto o lenço de seda como o casaco e o vestido eram artigos luxuosos. Em volta do pescoço, Selina trazia uma fina corrente de ouro e o relógio de pulso era do mesmo metal. A rapariga tinha sem dúvida dinheiro, embora não o tivesse com ela. Estava-se apenas em Março e ainda não havia muito movimento. Ele não queria perder seiscentas pesetas. E aquela rapariga, aquela inglesa, não parecia capaz de enganar fosse quem fosse.

Por fim, Toni decidiu-se.

- Está bem - declarou. - Vamos.

Tornado loquaz pela sua própria amabilidade, Toni começou a falar expansivamente.

- San António, até há uns cinco anos atrás, era uma ilha muito pobre. As comunicações com Espanha eram deficientes e resumiam-se apenas a um pequeno barco, e isto duas vezes por semana. Mas agora temos o aeroporto, por isso recebemos visitantes e, no Verão, vêm para aqui muitos turistas. As coisas estão a ficar OK.

Selina pensou que a primeira coisa que precisava de ser feita para ficar «OK» eram as estradas. Aquela por onde seguiam era de terra batida e estava cheia de buracos. O velho Oldsmobile, que era o táxi de Toni, oscilava e saltava sobre a sua faixa de rodagem como um barco no mar. Seguia ao longo de muros baixos de terra, vendo-se para além deles o terreno dividido em pequenas quintas. O solo apresentava-se pedregoso e pouco fértil e os edifícios pareciam cor de areia seca, desbotados pela força do sol. As mulheres que trabalhavam nos campos vestiam saias pretas até aos tornozelos e traziam lenços negros na cabeça. Os homens lavravam a terra com arados ou conduziam carroças de madeira, puxadas por mulas. Selina viu rebanhos de cabras e muitas galinhas. De quilómetro a quilómetro via-se um poço rodeado por uma nora puxada por um burro paciente, com os olhos vendados, que fazia lançar baldes de água sobre os canais de irrigação.

Selina reparou nisso e disse:

- Mas a noite passada choveu.

- Foram as primeiras chuvas durante meses. Nós temos sempre pouca água. Não há rios. Temos apenas fontes. O sol já está quente e a terra seca muito depressa.

- O nosso avião apanhou uma tempestade, nos Pirenéus.

- Há dias que há mau tempo no Mediterrâneo.

- É sempre assim em Março?

- Não, muitas vezes em Março está calor. - E, como para confirmar estas palavras, o Sol apareceu por entre as nuvens e começou a pintar tudo com a sua luz dourada. - Ali - continuou Toni - fica a cidade de San António. A catedral no cimo do monte é muito antiga, uma catedral fortificada.

- Fortificada?

- Contra os ataques. Dos Fenícios, dos piratas, dos Mouros. Os Mouros ocuparam San António durante séculos.

A cidade erguia-se como um friso sobre o mar. Um monte de casas brancas, encimado pelas torres e pelas espirais da catedral.

- Não passamos por San António?

- Não. Vamos na estrada para Cala Fuerte. - Passado um bocado, indagou: - Nunca esteve na ilha? E o seu pai vive lá?

Selina olhava as velas de um moinho de vento que se moviam lentamente.

- Não, nunca aqui estive.

- Vai gostar de Cala Fuerte. É uma povoação pequena, mas muito bonita. Muitos velejadores vão para lá.

- O meu pai é velejador - disse Selina sem pensar, mas as palavras agradaram-lhe, como se o facto de as pronunciar em voz alta as tornassem verdadeiras. O meu pai vive em Cala Fuerte. Numa casa chamada Casa Barco. Ele é um velejador.

As nuvens continuaram a afastar-se e, por fim, rolaram para o mar, onde ficaram, na orla do horizonte. A ilha estava banhada na claridade quente do Sol. Selina puxou as mangas do seu vestido dejersey, desceu o vidro da janela e deixou que o ar do mar lhe agitasse os cabelos. Passaram por pequenas aldeias e por vilas com construções de pedra, calmas e silenciosas. As portas das casas estavam abertas, com cortinas de fitas e, em frente das mesmas, viam-se senhoras de idade, sentadas em cadeiras de cozinha, ocupadas a fazer bordados e rendas enquanto tomavam conta dos netos.

Chegaram a Curamayor, uma vila sonolenta de casas de tom creme e ruas estreitas. Toni passou as costas da mão pela boca e anunciou que estava com sede.

Selina, sem saber bem o que se esperava dela, não disse nada.

- Uma cerveja vinha mesmo a calhar - disse Toni.

- Eu oferecia-lhe uma cerveja - respondeu Selina -, mas não tenho dinheiro nenhum.

- Eu Vou beber uma cerveja - declarou Toni. A rua estreita ia desembocar numa larga praça empedrada, com uma igreja alta, árvores e algumas lojas. O carro avançou devagar até ele ver um café que mereceu a sua aprovação. -- Este serve.

- Eu... eu espero por si.

- Também devia beber alguma coisa. Está calor e deve ter sede. Eu ofereço-lhe qualquer coisa para beber. - Ela começou a protestar, mas Toni disse apenas: - O seu pai paga-me.

Selina sentou-se ao sol numa pequena mesa de ferro. Atrás dela, dentro do bar, Toni falava com o proprietário. Um pequeno grupo de crianças, acabadas de sair da escola, aproximara-se.

Eram encantadoras, com bibes azuis e impecáveis meias brancas. Todas pareciam bonitas - as meninas com os cabelos pretos entrançados e com brincos de ouro nas orelhas, pele morena e perninhas bem feitas. Quando sorriam, mostravam os dentes brancos e pontiagudos.

Repararam que Selina as observava e começaram a rir. Duas das rapariguinhas, mais afoitas do que as outras, pararam em frente dela, com os olhos escuros brilhantes de satisfação. Selina estava desejosa de travar amizade com elas e, num impulso, abriu a carteira e tirou de lá uma lapiseira com sete centímetros de comprimento e com uma borla azul e amarela. Segurou-a, convidando uma das pequenitas a segurá-la. Ao princípio, todas se mostraram muito tímidas, mas depois uma delas, com tranças, hesitantemente, como se a lapiseira lhe pudesse morder, retirou-a da palma da mão de Selina. Uma outra, com um gesto encantador, pousara a mão sobre a de Selina, como se esperasse também um presente. A mão era gorducha e macia e tinha num dos dedos um pequeno anel de ouro.

Toni apareceu no meio da cortina de tiras, com a cerveja e um sumo de laranja para Selina, e as crianças assustaram-se e fugiram como pombos, correndo e levando a lapiseira com elas. Encantada, Selina viu-as afastarem-se enquanto Toni dizia:

- Os pequenitos... - com tanto orgulho e afeição na voz como se fossem filhos dele.

A viagem prosseguiu. As características tinham agora mudado completamente e a estrada seguia ao longo de uma cadeia de montanhas, enquanto na direcção do mar os campos desciam numa curva pouco acentuada ao encontro de um horizonte profundo e enevoado. Encontravam-se na estrada há perto de três horas quando Selina viu a cruz, no alto de uma montanha que se erguia acima deles, destacando-se contra o céu.

- O que é aquilo? - perguntou.

   - É a cruz de San Esteban.

- Apenas uma cruz? No alto de uma montanha?

- Não. Há ali um grande mosteiro. Uma ordem religiosa.

A aldeia de San Esteban ficava no sopé da montanha, à sombra do mosteiro. No cruzamento, mesmo no centro da vila, uma seta apontava, finalmente, para Cala Fuerte. Era a primeira vez que Selina via aquele nome. Toni voltou para a direita e a estrada estendeu-se diante deles, descendo o monte através de campos de cactos, olivais e bosques de aromáticos eucaliptos. Mais para a frente, a costa parecia densamente arborizada, mas, quando se aproximaram, Selina viu a brancura das casas, aqui e ali o cor-de-rosa, vermelho e azul das flores que enchiam os jardins.

- Isto é Cala Fuerte?

- Si.

- Não se parece com as outras aldeias.

- Não. É uma estância para turistas. Muitas pessoas têm vilas aqui, para virem passar o Verão. No tempo quente vêm de Madrid e de Barcelona.

- Compreendo.

Os pinheiros rodeavam-nos, com as suas sombras frescas e o cheiro a resina. Passaram pelo pátio de uma quinta, onde viram inúmeras galinhas e pintos, por uma casa ou duas, uma pequena adega e depois a estrada desembocou numa pequena praça, no meio da qual existia um solitário e enorme pinheiro. De um lado havia uma loja, com vegetais à porta e uma montra cheia de sapatos com sola de corda, películas para máquinas fotográficas, chapéus de palha e bilhetes postais. No lado oposto via-se uma casa de estilo mourisco, de uma brancura que ofuscava, cheia de dobras e ângulos de sombras, tendo na frente um terraço pavimentado, com mesas e cadeiras. Sobre a porta lia-se «Casa Fuerte Hotel».

Toni parou o táxi à sombra da árvore e desligou o motor. Reinava o maior silêncio.

- Cá estamos - disse. - Isto é Cala Fuerte.

Saíram do carro e sentiram a frescura benfazeja da brisa do mar. Viam-se por ali poucas pessoas. Uma mulher saiu da loja e começou a tirar batatas de um cesto e a colocá-las num saco de papel. Algumas crianças brincavam com um cão. Um casal de turistas, obviamente inglês, vestindo casacos de malha feitos à mão, encontrava-se sentado no terraço do hotel, escrevendo bilhetes postais. Ao erguerem os olhos, viram Selina, reconheceram-na como sua compatriota e desviaram rapidamente o olhar.

Entraram no hotel, com Toni à frente. Deparou-se-lhes um bar, fresco e muito limpo, caiado de branco, com tapetes sobre o pavimento de pedra e uma escada rústica de madeira que dava acesso ao andar superior. Uma rapariga morena, empunhando uma vassoura, varria placidamente o pó de um lado para o outro.

Olhando-os e sorrindo, a rapariga cumprimentou:

- Buenos dias.

- Donde está elpropietario?

- Momento -, disse a rapariga pondo a vassoura de lado e desaparecendo por uma porta existente por baixo da escada. A porta fechou-se atrás dela. Toni sentou-se num dos bancos altos do bar. Passado um momento, a porta abriu-se e apareceu um homem. Era baixo, bastante novo, barbudo, com uns olhos de rã amigável. Vestia uma camisa branca, calças escuras com um cinto, e sapatos de lona, azuis.

- Buenos dias - disse olhando para Toni e para Selina. Selina perguntou rapidamente:

- Fala inglês?

- Si, senorita.

- Desculpe incomodá-lo, mas procuro alguém. Mr. George

Dyer.

Sim? Conhece-o?

O homem sorriu e declarou:

- Claro que sim. Procura George? Ele sabe que veio à procura dele?

- Não. Devia saber?

- Disse-lhe que vinha?

- É uma surpresa - respondeu Selina, tentando fazer com que isso tivesse graça.

O homem parecia intrigado.

- De onde veio?

- De Londres. Hoje, do aeroporto de San António. Apontou para Toni que os ouvia com uma expressão sombria, como se não gostasse que o comando da situação lhe estivesse a sair das mãos. - Este motorista trouxe-me.

- Não vejo George desde ontem. Ele foi a San António.

- Mas nós viemos de lá.

- Provavelmente, estará agora em casa. Não sei. Não o vi regressar. - Sorriu. - Nunca se sabe se o carro dele aguenta a viagem.

Toni pigarreou e inclinou-se para a frente.

- Onde poderemos encontrá-lo?

O homem barbudo encolheu os ombros.

- Se estiver em Cala Fuerte, estará na Casa Barco.

- Como poderemos encontrar a Casa Barco? - O outro franziu a testa e Toni, apercebendo-se da desaprovação dele, apressou-se a explicar: - Precisamos de encontrar o senor Dyer para eu poder receber o dinheiro da viagem de táxi. A senorita não tem dinheiro...

Selina engoliu em seco.

- Sim, sim, infelizmente é verdade. Poderá indicar-nos onde fica a Casa Barco?

- É difícil de dizer. Nunca a encontrariam. Mas eu Vou arranjar alguém que os leve lá.

- Isso é muito amável da sua parte. Muito obrigada, Mr... não sei o seu nome.

- Rudolfo. Trate-me apenas por Rudolfo. Se esperar aqui, eu Vou ver o que posso arranjar.

Saiu pela cortina de fitas, atravessou a praça e entrou na loja do lado oposto. Toni deixou-se cair sobre o banco, demasiado pequeno para a sua corpulência, com uma disposição obviamente sombria. Selina começou a ficar nervosa. Tentando apaziguá-lo, disse:

- É aborrecido ter de estar à espera, quando foi tão amável...

- Não sabemos se o senor Dyer estará na Casa Barco. Ainda não o viram regressar de San António.

- Bem, se ele não estiver, poderemos esperar um pouco... Selina disse as palavras erradas. Toni protestou:

- Mas eu não posso esperar. Sou um trabalhador. O tempo para mim é dinheiro.

- Sim, é claro. Compreendo.

Toni emitiu um som que indicava que ela não poderia provavelmente compreender e quase lhe voltou as costas, como um rapazinho da escola amuado. Foi um alívio quando Rudolfo voltou. Havia falado à dona da mercearia que ficava em frente do hotel para que um rapazinho, que era filho dela, os acompanhasse. O rapaz ia de bicicleta levar uma encomenda a casa do senor Dyer. Se eles quisessem poderiam segui-lo.

- Sim, com certeza - disse Selina com uma jovialidade que estava longe de sentir -, e então o senhor receberá o dinheiro da viagem e poderá voltar imediatamente para San António.

Toni não pareceu convencido, mas desceu do banco do bar e seguiu Selina para fora. Um rapaz magro esperava-os junto do táxi, montado na sua bicicleta. O guiador da bicicleta transportava dois grandes cestos, do género utilizado por todos os camponeses espanhóis. Nos cestos viam-se embrulhos mal feitos de todos os tamanhos e feitios. Compridos pães, cebolas e o gargalo de uma garrafa de vinho saíam desses embrulhos.

- Este é Tomeu, o filho de Maria - disse Rudolfo. - Ele indica-lhes o caminho.

Como um batedor, Tomeu caminhava à frente, descendo a estrada branca que seguia ao longo da costa. A ilha estava cheia de pequenas enseadas de águas azuis e, por cima dos rochedos, viam-se pequenas vilas brancas, jardins cheios de flores, terraços e pranchas para saltos.

- Não me importava de viver aqui - comentou Selina, mas a disposição de Toni piorava de momento a momento e ele não respondeu. A estrada deixara de ser estrada, sendo agora apenas um atalho sinuoso que passava por entre os muros cobertos de crisântemos dos jardins das casas. Depois de uma pequena subida, começaram a descer em direcção a uma enseada maior do que as outras, onde um pequeno porto abrigava alguns barcos de pesca. Nas águas mais profundas encontravam-se ancorados iates bastante grandes.

O atalho passava pelas traseiras das casas. Tomeu, à frente deles, esperava. Quando viu o táxi aparecer, saiu da sua bicicleta, encostou-a a uma parede e começou a descarregar os cestos.

- Deve ser esta casa - disse Selina.

Não parecia grande. A parede das traseiras estava caiada de branco. Via-se apenas uma pequena janela e uma porta fechada, coberta pela sombra de um grande pinheiro escuro. Por detrás da casa, a estrada bifurcava-se para a esquerda e para a direita, ao longo das traseiras das outras casas. Aqui e ali, viam-se degraus estreitos que passavam por entre os edifícios, descendo para o mar. Havia em tudo aquilo um aspecto descontraído e agradável. Roupa estendida a secar nas cordas era agitada pela brisa do mar e viam-se também algumas redes de pesca. Dois gatos magros gozavam o calor do Sol enquanto faziam as suas abluções.

O táxi percorreu aos solavancos os últimos metros, e Toni queixava-se de que o seu carro não era feito para andar por semelhantes caminhos. Receava que a pintura ficasse riscada pelos arbustos espinhosos.

Selina mal o ouvia. Tomeu abrira a porta verde e desaparecera dentro de casa, com os seus pesados cestos. O táxi parou e Selina saiu.

- Vou dar a volta e depois volto para vir buscar o dinheiro

- disse Toni.

- Sim - respondeu Selina distraidamente, olhando para a porta aberta. - Faça isso.

O motorista acelerou tão depressa que ela teve de recuar até à berma para o carro não lhe passar sobre os pés: quando o táxi se afastou, ela atravessou o caminho e, passando por baixo do pinheiro, entrou cautelosamente na Casa Barco.

Julgara que se tratava de uma casa pequena, mas, em vez disso, encontrou-se numa grande sala de tectos altos. As portadas de madeira estavam todas fechadas e a casa achava-se bastante escura e fresca. Não havia cozinha, mas sim um balcão semelhante a um pequeno bar num recanto da sala. Selina foi encontrar Tomeu, de joelhos, a guardar as provisões no frigorífico.

Sorriu para Selina quando ela se inclinou sobre o balcão e perguntou:

- Senor Dyer? Ele abanou a cabeça.

- Não aqui.

Não aqui. Não estava ali. Selina sentiu o coração apertado. Ele não voltara de San António e ela teria de convencer Toni a ser paciente e a esperar pelo seu dinheiro, quando nenhum deles fazia qualquer ideia de quanto tempo teriam de esperar.

Tomeu disse qualquer coisa. Selina olhou-o, sem compreender. Para mostrar o que queria dizer, o rapaz saiu do recanto que formava a pequena cozinha e começou a abrir todas as portadas das janelas. Um jorro de luz invadiu então a casa, dando cor a tudo. A parede voltada a sul, que dava para o porto, era quase toda ela ocupada por uma enorme janela, mas havia umas portas que davam para o terraço, coberto por um toldo. O terraço tinha um muro baixo e, junto dele, viam-se alguns vasos e caixotes com gerânios. Para além do muro brilhava o resplandecente azul do mar.

A casa em si era dividida de uma maneira original. Não tinha paredes interiores, mas, de um dos lados, havia uma galena de madeira a que se podia chegar por meio de uma escada que mais parecia a escada de um navio. Por baixo dessa escada havia uma porta que dava para uma minúscula casa de banho. Um orifício aberto na parede, lá no alto, assegurava-lhe a luz e a ventilação necessárias. Havia ali um lavatório, uma sanita e um pequeno duche, além de uma prateleira com pasta de dentes, apetrechos para a barba e outras coisas. A prateleira fora colocada por baixo de um espelho e no chão havia ainda um alguidar redondo para a roupa suja.

O resto do espaço da casa limitava-se a uma sala de singular encanto, com as paredes caiadas de branco e com o pavimento de pedra coberto, aqui e ali, por tapetes de cores vivas. Num dos cantos da sala havia uma vasta lareira triangular, cheia de aromáticas cinzas de madeira, que pareciam apenas precisar de um sopro de ar para arderem de novo. A lareira ficava a cerca de meio metro do chão, a altura certa para um assento confortável, e prolongava-se ao longo da parede numa espécie de prateleira, onde se viam almofadas e mantas, pilhas de livros, um candeeiro, um pedaço de corda desenrolada, um monte de jornais e revistas e uma caixa com garrafas vazias.

Em frente da lareira, de costas para o terraço e para o mar, fora colocado um enorme sofá onde cabiam à vontade seis pessoas, O estofo era de linho azul desbotado e estava coberto com uma manta de riscas vermelhas e brancas. No lado oposto da sala, voltada para a luz, via-se uma secretária barata, com uma máquina de escrever, mais papel e uma caixa aberta que parecia conter cartas por abrir e uns binóculos. Uma folha de papel encontrava-se na máquina e Selina não resistiu a olhar para lá.

«O Novo Romance de George Dyer», leu. «A raposa manhosa saltou sobre qualquer coisa ou sobre um cão de caça.»

E, depois, uma fila de asteriscos e um ponto de exclamação.

Selina sorriu. Mr. Rutland bem podia esperar pelo livro!

Perto da porta havia um poço, com um gancho de ferro que segurava um balde, e uma prateleira onde se achava uma garrafa quase cheia de vinho e um cacto. Selina olhou para baixo e viu brilhar a água. Cheirou-a e pensou se seria boa para beber; mas a avó costumava dizer-lhe que, no estrangeiro, nunca devia beber água que não fosse engarrafada, a não ser fervida, e aquela não era altura de apanhar uma gastrenterite.

Por isso, Selina saiu de junto do poço e foi colocar-se no meio da sala, a olhar para a galeria. A tentação de ir investigar foi irresistível. Subiu a escada, indo então encontrar um vasto quarto de tecto inclinado com uma imensa cama esculpida (como a teriam levado para ali?) colocada mesmo por baixo da clarabóia. Havia pouco espaço para mais mobiliário, mas, não obstante, achavam-se duas arcas encostadas às paredes baixas, além de uma cortina que servia de guarda-fato. Como mesa de cabeceira, podia ver-se um caixote com prateleiras cheias de livros, um candeeiro e um rádio, além de um cronometro de navio.

Tomeu chamou do terraço:

- Seiíorita! - Selina desceu a escada para ir ter com ele. O rapaz encontrava-se sentado no muro, em companhia de um grande gato persa branco. Voltou-se para Selina, sorrindo, agarrando no gato como se lho quisesse oferecer.

-- Senor Dyer - disse, indicando o gato que miava pateticamente e que depois de grandes esforços se conseguiu libertar, indo estender-se sobre o muro, ao sol, com a maior dignidade, enrolando o rabo sobre as patas da frente.

- É muito grande - disse Selina. - Tomeu franziu a testa.

Grande - repetiu Selina indicando com os braços um gato

do tamanho de um tigre. - Grande.

Tomeu riu.

- Si. Muy grande.

- É o gato do senor Dyer?

- Si. Senor Dyer.

Selina foi ter com Tomeu, debruçando-se sobre o muro. Viu então um pequeno jardim rochoso, formando um triângulo, com umas oliveiras enfezadas. Reparou então que, como qualquer outra casa construída na encosta da colina, a Casa Barco fora adaptada ao declive e que o terraço era, com efeito, o telhado de uma casa de guardar barcos que dava para a água. Um lance de degraus levava ao nível inferior e aí, junto à água, dois homens conversavam, enquanto arranjavam peixe. As facas deles brilhavam ao sol, trabalhando com precisão. Os homens lavavam o peixe no mar, agitando a água calma, cor de jade. Tomeu inclinou-se para apanhar uma pedrinha, atirando-a na direcção dos dois homens. Estes voltaram-se, viram Tomeu e sorriram.

- Hombre, Tomeu!

Ele respondeu com umas palavras incompreensíveis para Selina, mas que fizeram rir os dois homens, que voltaram ao seu trabalho. Por baixo das mãos de Selina, o muro de pedra estava quente e a cal sujara a saia do vestido dela, como se fosse giz. Selina sentou-se no muro, de costas voltadas para o mar. Viu então a corda de estender a roupa, presa por dois ganchos, onde permanecia a roupa seca. Uma camisa azul, desbotada, uns calções de banho, calças brancas com remendos nos joelhos e um par de velhos sapatos de ténis, presos pelos atacadores. No terraço, distinguia-se também algum mobiliário, mas não do género do que se vê em revistas de decoração. O que ali se encontrava era uma velha cadeira de vime, uma outra de descanso, do tipo das que se desmancham quando uma pessoa se senta nelas, e uma mesa de madeira pintada, mas com a tinta a cair. Selina teria gostado de falar espanhol e de poder conversar com o amigável Tomeu. Queria fazer-lhe perguntas a respeito do senor Dyer. Que espécie de homem era ele? Qual dos iates era o dele? Quando é que Tomeu achava que ele regressaria de San António? Mas antes de poder tentar qualquer comunicação com ele, o ruído do carro de Toni que regressava fê-la deter. O carro parou e, daí a pouco, Toni entrava em casa, parecendo mais mal-disposto e aborrecido do que nunca. Selina teve de dizer para si própria que ele não a podia comer.

- O senor Dyer ainda não voltou - disse ela com firmeza.

Toni recebeu esta informação com um silêncio gelado. Depois, tirou um palito do bolso, palitou conscienciosamente um molar, limpou o palito às calças, voltou a guardá-lo no bolso e disse:

- Que diabo fazemos agora?

- Eu espero aqui. Ele não deve demorar muito. Rudolfo disse que ele não demoraria. O senhor pode esperar aqui ou deixar-me o seu nome e endereço em San António. De qualquer das maneiras, farei com que receba o seu dinheiro.

Inconscientemente, Selina falara com os modos da avó e, para sua própria surpresa, isso resultou. Toni resignou-se à situação. Passou a língua nos dentes durante um momento e depois anunciou:

- Eu também espero. Mas não aqui. No hotel. - No hotel havia conhaque e ele poderia dormir uma siesta no táxi, à sombra da árvore. Eram já duas e meia e ele não gostava de estar acordado àquela hora. - Quando o senor Dyer chegar, pode ir dizer-me.

Selina teve vontade de o abraçar, tal o alívio que sentiu, mas limitou-se a dizer:

- Muito bem. Farei isso. - Depois acrescentou, ao vê-lo tão resignado: - Lamento que isto tenha sucedido, mas tudo acabará por se arranjar.

O homem suspirou, encolhendo os ombros, e voltou para o carro. Ouviram-no partir em direcção ao hotel de Cala Fuerte. Selina teve tempo para pensar: «Pobre Rudolfo», e depois voltou-se para Tomeu.

- Eu fico aqui - disse-lhe. O rapaz franziu a testa.

- Usted aqui.

- Sim, aqui. - Apontou para o solo. Tomeu sorriu, mostrando compreender e foi buscar os cestos vazios.

- Adeus, Tomeu, e obrigada.

- Adiós, seilorita.

O rapaz foi-se embora e Selina ficou sozinha. Foi para o terraço e disse para si própria que estava à espera do pai, mas tal ainda lhe custava a crer. Pensava se ele adivinharia, sem que lho dissesse, quem ela era. E se ele não adivinhasse, pensava como havia de lho dizer.

O calor era muito. O sol batia sobre o terraço abrigado e Selina não se lembrava de ter tido tanto calor. As suas meias de nylon, os sapatos de cabedal e o vestido de malha tornaram-se insuportáveis. Deixara de ser um vestuário sensato, mas sim impróprio para aquele calor.

Mas a avó não suportava pernas sem meias, mesmo com vestidos de Verão, e as luvas, para ela, eram essenciais. Reconhece-se uma senhora pelas luvas. E não gosto de ver essas raparigas mal arranjadas que andam por aí sem chapéu.

Mas a avó morrera. Amada, chorada, mas morta. A voz dela calara-se, as citações dogmáticas não voltariam a ser proferidas e Selina achava-se entregue a si própria, para fazer o que quisesse, na casa do pai, num mundo muito distante do de Queen's Gate. Entrou em casa, tirou as meias e os sapatos e então, sentindo-se fresca e deliciosamente livre, foi procurar comida. Havia manteiga no frigorífico e Selina barrou uma fatia de pão, tirando também um tomate e uma garrafa de soda. Comeu esse piquenique no terraço, olhando para os barcos no porto. Depois começou a sentir-se sonolenta, mas não queria ser encontrada a dormir. Precisava de se sentar num sítio duro e desconfortável para permanecer acordada.

Finalmente, subiu a escada que dava para a galeria e sentou-se no último degrau. Passado um bocado, o grande gato branco apareceu e instalou-se, ronronando, nos seus joelhos.

Os ponteiros do relógio dela avançavam lentamente.

- Não sei por que tens de ir - disse Francês Dongen.

- Já te disse: preciso de dar de comer a Pearl.

- Pearl sabe tratar dela. Há bastante peixe morto em volta da casa para sustentar um exército de gatos. Fica mais uma noite, querido.

- Não é só por causa de Pearl; é também por causa do Eclipse.

- Mas ele aguentou-se no temporal...

- Não sei como se aguentou e o mau tempo vai voltar...

- Bem - disse Francês, estendendo a mão para outro cigarro. - Se é isso que sentes, é melhor ires.

A mãe dissera-lhe, há anos, que a melhor maneira de prender um homem era dar-lhe a impressão de ser livre. Isso passara-se quando era ainda uma rapariga e vivia em Cincinnati, no Ohio. Agora, não podia ter pretensões de prender George Dyer, pois ele ainda não lhe pertencia, mas ela tinha experiência naquele jogo fascinante de agarrar e largar, e estava preparada para levar nisso o tempo que fosse preciso.

Encontrava-se sentada no pequeno terraço da sua casa, no alto da velha cidade de San António. Apenas algumas centenas de metros a separavam da catedral que se erguia mais acima e, lá em baixo, podiam ver o labirinto de ruas empedradas, com as suas casas altas e estreitas e cordas de roupa a secar presas aos muros de antigas fortificações. Para além das muralhas ficava a parte nova da cidade, com ruas largas e praças orladas de árvores que iam ter ao porto. Aí viam-se escunas e iates brancos, de altos mastros, além do vapor que acabara de chegar da sua viagem semanal, vindo de Barcelona.

Há dois anos que vivia naquele local aprazível, desde que ali chegara num iate de uns ricos amigos americanos. Depois de passar seis semanas em companhia deles, Francês estava farta dessa companhia, pelo que, quando todos desembarcaram para assistirem a uma festa, ela não voltara. Após uma folia de três dias, Francês acordara numa cama estranha, vindo a saber depois que o iate partira sem ela.

Isso não a perturbou minimamente. Parecia ter arranjado já uma quantidade de novos amigos, era rica, casada e divorciada duas vezes. Nada tinha que a prendesse. San António agradava-lhe. Estava cheia de pintores, expatriados, escritores e beatniks, e Francês, que em tempos vivera durante vários meses em Greenwich Village com um artista sem sucesso, sentia-se ali como em casa. Pouco tempo depois, encontrara aquela casa e, quando as ocupações iniciais com a sua instalação terminaram, procurou alguma maneira de ocupar o seu tempo. Decidiu-se por uma galeria de arte. Num local onde havia muitos pintores residentes e muitos turistas de passagem, uma galeria de arte seria certamente um bom investimento. Comprou um mercado de peixe que já não era utilizado e transformou-o. Dirigia agora os negócios com uma habilidade que herdara não só do pai, como também dos seus dois ex-maridos.

Ainda não tinha quarenta anos, mas tudo nela desmentia a passagem dos anos. Alta, muito delgada, bronzeada como um rapaz, com a cabeça loura cheia de caracóis, usava geralmente roupas destinadas a adolescentes. Calças justas e camisas de homem. Os seus biquinis não eram mais do que dois lenços amarrados. Fumava constantemente e sabia que andava a beber de mais, mas a maior parte do tempo, e naquela manhã em particular, a vida era-lhe tão agradável como ela sempre desejara.

A festa da noite anterior, oferecida em honra de Olaf Svensen, que realizara a sua primeira exposição, fora um sucesso. Olaf era o homem mais sujo que ela já vira, mesmo pelos padrões de San António, com uma barba escrofulosa e unhas exageradamente sujas, mas as suas esculturas mereciam que as olhassem e faziam abrir os olhos de espanto às pessoas. Além disso, Francês tinha um certo prazer em chocar o público. George Dyer fora convidado para a festa - desde a publicação do seu livro tornara-se uma celebridade -, mas isso não significava que ele aparecesse. Francês animara-se quando o vira surgir por entre a multidão que enchia a sala cheia de fumo. Dyer dissera-lhe que fora a San António buscar uma peça para o barco e, depois de ouvir os comentários dele a respeito do trabalho de Olaf, Francês percebera que ele apenas fora à festa por causa das bebidas. Mas isso não lhe importava, tanto mais que ele permanecera com ela depois da festa. Conhecia-o há cerca de um ano. Na Primavera anterior, Francês fora a Cala Fuerte para apreciar o trabalho de um jovem pintor francês que ali vivia. Acabara por ir ter, inevitavelmente, ao bar de Rudolfo, oferecendo ao jovem artista vários martinis, mas, quando George Dyer aparecera, ela abandonara-o, acabando o pintor por ficar a dormir com a cabeça sobre a mesa. Pôde assim começar a conversar com George Dyer como desejava. Às seis horas da tarde estavam ainda a beber café, altura em que passaram de novo a beber brande.

George visitava geralmente San António uma vez por semana, a fim de ir buscar o seu correio ao Clube Náutico e deslocar-se ao banco, isto para além de comprar algumas peças novas para o seu barco. Nessas ocasiões, quase sempre procurava Francês, com o objectivo de irem jantar juntos ou deslocarem-se a uma qualquer festa que estivesse a ter lugar num dos bares do porto. Francês sentia-se intensamente atraída por ele - muito mais, e Francês sabia-o, do que ele por ela -, mas isso apenas servira para o tornar mais desejável. Francês sentia ciúmes dos outros interesses dele, de tudo o que o mantinha afastado dela. A escrita, o iate, mas sobretudo a vida que ele levava em Cala Fuerte. Gostava que ele precisasse dela, mas ele parecia não precisar de coisa alguma. Dyer não se mostrava impressionado com o seu dinheiro, mas gostava do seu sentido de humor masculino. Observando-o naquela altura, Francês pensava, com satisfação, que era o primeiro verdadeiro homem que conhecia há anos.

George preparava-se para partir, metendo num cesto as coisas que comprara. Só o facto de ver as mãos morenas dele realizarem aquela simples tarefa fez com que Francês sentisse um grande desejo físico. Disse, por não saber que dizer, mas esperando levá-lo a ficar um pouco mais:

- Não comeste nada.

- Como em casa.

Em casa. Desejava que fosse aquela a casa dele.

- Uma bebida?

Ele riu e olhou-a, visivelmente divertido:

- Lembra-te, patinha, que tenho de conduzir durante três horas.

- Uma bebida não te fará mal. - Ela também queria uma.

- Não, mas um camião pode fazer-me, se eu for demasiadamente sonolento.

O cesto estava cheio. Ele levantou-se e anunciou:

- Tenho de ir.

Francês levantou-se também, apagou o cigarro e foi ajudá-lo a transportar as coisas. George ergueu o caixote com a hélice e Francês levou o cesto, descendo as escadas que davam para o pátio murado, onde havia um limoeiro junto do poço. Abriu depois as portas que davam para a rua e saiu do pátio. Ali, na encosta quase a pique, estava estacionado o ridículo carro de George. Era um velho Morris Cowley, com rodas amarelas e uma capota que fazia lembrar um carrinho de criança. Carregaram o carro e George voltou-se para se despedir.

- Foi divertido - disse ele.

- Foi porque nós não planeámos nada, querido. Qual é a palavra? Espontaneidade. - Beijou-o na boca. Era tão alta que não teve de erguer a cabeça para o fazer, bastou-lhe inclinar-se para a frente e apanhá-lo desprevenido. Usava um bâton espesso, brilhante, que sabia bem e deixava mancha. Quando ela se afastou, ele limpou a boca com as costas da mão.

George entrou no carro.

- Adeus, querido.

- Adeus, Francês.

- Adeus.

Francês tirou a pedra que, na noite anterior, fora colocada mesmo junto de uma das rodas da frente do carro. Depois, George destravou-o e o carro começou a descer a encosta a uma velocidade aterrorizadora, passando pela rua estreita como se fosse um carro da montanha russa instalada na feira. Isto levou a que se dispersassem inúmeros gatos e galinhas, e até um agente da Guardiã Civil, de vigia junto do portão da antiga muralha, não resistiu a abanar a cabeça numa violenta desaprovação.

George seguiu o caminho para Cala Fuerte, passando pelas estradas poeirentas, pelos campos bem cultivados e pelos burros pacientes que puxavam a água nas noras. Chegou à estrada sinuosa que seguia ao longo das montanhas e a cruz de San Esteban ergueu-se acima dele. Olhou o céu à procura de sinais de mau tempo e pensou em Francês. Pensou em ir viver para San António com Francês, ao menos pela satisfação de poder escrever a Rutland, o seu editor, e dizer-lhe que fosse para o diabo, pois não iria escrever mais livros, passando a ser um vagabundo das praias, um chulo sustentado por uma americana rica.

Em San Esteban, a siesta terminara, as janelas encontravam-se abertas e viam-se alguns clientes nos cafés. Quando George passou, buzinando, os homens gritavam-lhe «Hombre!» e acenavam, porque todos o conheciam, pelo menos de vista, como o inglês louco, dono do pequeno carro de rodas amarelas, que andava pela ilha com um boné de marinheiro e que até escrevia livros.

Na altura em que chegou ao último troço de estrada que levava a Cala Fuerte, George teve um pequeno debate consigo mesmo para decidir se havia de ir ao bar do Rudolfo tomar uma bebida ou não. Por fim, para surpresa sua, decidiu não ir. Sem dúvida que iria encontrar amigos, demorar-se-ia mais do que queria, e beberia mais do que seria bom para si. Não confiava no tempo e Pearl devia estar com fome. Por isso, tocou amigavelmente a buzina ao passar pela praça e acenou para quem quer que se encontrasse sentado no terraço do hotel. Não viu Rudolfo, mas um ou dois clientes acenaram-lhe e, sentindo-se bem-disposto por voltar para casa, George começou a assobiar.

Estava ainda a assobiar quando entrou em casa. Selina, ainda sentada na escada, ouviu o carro aproximar-se, descer a encosta e parar em frente da residência com um ranger de travões velhos. Ficou imóvel com a gata branca, pesada, a dormir no seu colo. O motor do carro foi desligado e, nessa altura, ela ouviu assobiar. Uma porta abriu-se e fechou-se com estrondo. O assobio continuou, tornou-se mesmo mais forte. Por fim, a porta da Casa Barco foi aberta e um homem entrou.

Trazia um cesto numa das mãos, um caixote de cartão debaixo do braço e um rolo de jornais preso na boca. Fechou a porta com um pé, pousou o cesto no chão, tirou os jornais da boca e deixou-os cair no cesto. Depois, levou o caixote de cartão para cima da mesa onde tinha a máquina de escrever e colocou-o ali com todo o cuidado. Selina não lhe podia ver a cara porque esta ficava na sombra devido ao velho boné de marinheiro que ele usava na cabeça. Mas viu-o abrir a caixa, remexer entre os papéis e tirar de lá os binóculos. Em seguida, desapareceu no terraço. Selina permaneceu imóvel, sentada, mas a gata começou a acordar. Ela acariciou-a, em parte por nervosismo, em parte por não querer que ela se mexesse. Passados uns instantes, ele voltou a entrar em casa, colocou os binóculos dentro da caixa e tirou o boné. Tinha cabelo escuro, muito espesso, que começava a ficar com fios grisalhos. A camisa que usava era de um azul desbotado, como a de qualquer lavrador, e as calças de ganga que trazia pareciam coçadas. Calçava umas sapatilhas poeirentas. Sempre a assobiar, foi buscar o cesto e levou-o para a pequena cozinha, desaparecendo uma vez mais da vista de Selina. Esta ouviu-o abrir e fechar a porta do frigorífico. Depois percebeu o som de uma garrafa a ser aberta, o tilintar de um copo e o ruído do líquido a cair. Quando ele apareceu outra vez, trazia na mão o que pareceu a Selina um copo de soda. Voltou ao terraço e chamou:

- Pearl Pearley - A gata começou a espreguiçar-se. Pearley - Ele emitiu sons sedutores, que faziam lembrar beijos. A gata miou. Ele voltou a entrar em casa. - Pearl

Selina passou a língua pelos lábios, respirou fundo e disse:

- Está à procura da gata?

George Dyer ficou imóvel, olhou para cima e viu a rapariga sentada no alto das escadas. Tinha compridas pernas nuas e estava descalça. E Pearl, como uma grande almofada de pele branca, encontrava-se deitada nos joelhos dela.

George Dyer franziu ligeiramente a testa, tentando recordar-se.

- Já estava aí quando eu entrei? - perguntou.

- Sim.

- Não a vi.

- Não. Sei que não viu.

George disse para si mesmo que a voz dela era muito bem modulada, muito educada.

- A sua gata chama-se PearH

- Sim. Voltei para lhe dar de comer.

- Ela tem estado toda a tarde sentada no meu colo.

- Toda a tar... Há quanto tempo aqui está?

- Desde as duas e meia.

- Duas e meia? - George olhou para o relógio. - Mas já passa das cinco.

- Sim, eu sei.

Pearl levantou-se, espreguiçou-se, soltou outro mio queixoso e saltou com agilidade do colo de Selina, começando a descer as escadas. Ronronando, a gata esfregou-se nas pernas de George, mas dessa vez foi ignorada.

- Encontra-se aqui por alguma razão particular?

- Oh, sim. Vim vê-lo.

- Bem, não seria uma boa ideia descer daí?

Selina obedeceu. Levantou-se, obviamente muito tensa, e começou a descer os degraus um a um, tentando afastar os cabelos da cara.

Depois de Francês Dongen e de todas as outras mulheres bronzeadas de San António, ela parecia muito pálida, com o cabelo liso, castanho-claro, que lhe chegava aos ombros, e uma franja sobre os olhos. Os olhos dela eram azuis, mas tinha olheiras de cansaço. George pensou que aquela mulher era demasiado nova até para ser bonita.

- Eu nem sequer a conheço... pois não?

- Não, não. Não conhece. Espero que não se importe de eu ter invadido a sua casa.

- De maneira nenhuma.

- A porta não estava trancada.

- Não tem trancas.

Selina sorriu, pensando que talvez se tratasse de um gracejo, mas aparentemente não o era, pelo que deixou de sorrir e tentou pensar no que devia dizer a seguir. No seu subconsciente esperara que ele a reconhecesse, que lhe dissesse: «Quem é que você me faz lembrar?» ou «Mas é claro que a devo ter visto antes, em qualquer sítio.» Porém, como ele não fez qualquer destes comentários, ela achou o aspecto de George desconcertante, sem qualquer semelhança com o jovem oficial de olhar brilhante, daquele que fora o seu pai. Esperara que ele fosse muito moreno, mas não pensara que tivesse tantas rugas, nem os olhos tão injectados de sangue. O facto de ter a barba por fazer ocultava-lhe a covinha no queixo e aumentava o seu mau aspecto. Além disso, não parecia nada satisfeito por a ver.

Selina murmurou:

- Deve... deve estar a tentar descobrir por que motivo me encontro aqui.

- Sim, estou, mas com o tempo você irá, sem dúvida, dizer-me.

- Vim de avião de Londres... esta manhã, a noite passada. Não, esta manhã.

George Dyer teve uma horrível suspeita.

- Foi Rutland quem a enviou?

- Quem? Oh, Mr. Rutland, o editor. Não, não foi, mas ele disse que gostava que respondesse às cartas dele.

- Conhece-o?

- Sim. Fui falar com ele para me indicar como podia chegar até junto de si.

- Mas quem é você?

- Sou Selina Bruce.

- O meu nome é George Dyer, mas calculo que você saiba isso.

- Sim, sei...

Fez-se novamente silêncio. George, contra a sua vontade, começou a sentir-se intrigado.

- Não será uma admiradora? Não será a secretária da organização do clube dos fãs de George Dyer?

Selina abanou a cabeça.

- Não estará de visita a Cala Fuerte e terá lido o meu livro?

- Selina abanou a cabeça. - Isto é como o jogo das vinte perguntas, não é? É famosa? É uma actriz? Sabe cantar?

- Não é nada disso, mas eu precisava de o conhecer porque... - A coragem começou a faltar-lhe. - Porque - disse por fim -, porque tenho de lhe pedir que me empreste seiscentas pesetas.

George Dyer sentiu que a boca se lhe abria de espanto e pousou apressadamente o copo com a soda antes de o entornar.

- O que é que disse?

- Tem seiscentas pesetas que me possa emprestar? - perguntou Selina em voz alta e clara, como se falasse com um surdo.

- Seiscentas pesetas! - George riu, com um riso sem alegria. - Não tenho vinte pesetas, quanto mais seiscentas! Deve estar a brincar!

- Quem me dera estar! Preciso de seiscentas pesetas para pagar ao motorista do táxi.

George olhou à sua volta.

- Qual motorista de táxi?

- Tive de me meter num táxi desde o aeroporto até Cala Fuerte. Disse ao motorista que o táxi seria pago por si, visto eu não ter dinheiro nenhum. Roubaram-me a carteira no aeroporto, enquanto estava à espera de ver se encontravam a minha bagagem... Veja... - Foi buscar a mala de mão e mostrou-lhe as pegas cortadas. - A Guardiã Civil disse que devia ser um ladrão muito experimentado, porque eu nada senti e só me levaram a carteira com o dinheiro.

- Só a carteira? E que continha a carteira?

- Os meus cheques e algum dinheiro inglês, além de pesetas. E - acrescentou com o ar decidido de quem queria pôr tudo em pratos limpos - o meu bilhete de regresso a Londres.

- Estou a ver - disse George.

- E o motorista de táxi está agora à espera, no Cala Fuerte Hotel. À sua espera. Para lhe pagar.

- Quer dizer que veio de táxi desde o aeroporto até Cala Fuerte para me encontrar, a fim de eu lhe pagar o táxi. Isso é de loucura...

- Mas eu expliquei-lhe... sabe, a minha bagagem não apareceu.

- Quer dizer que perdeu também a sua bagagem?

- Eu não perdi a minha bagagem. Foram eles. A companhia aérea...

- São as viagens a jacto. Pequeno-almoço em Londres, almoço em Espanha, bagagem em Bombaim.

- Vinha para Barcelona, mas pensam que deve ter sido enviada para Madrid.

- Então - disse George com o ar de um mágico eficiente fazendo a reconstituição dum mistério -, a sua bagagem está em Madrid, a sua carteira foi roubada e você quer seiscentas pesetas para pagar ao motorista do táxi.

- Sim - respondeu Selina, encantada por ele ter finalmente compreendido a situação.

- E como é que disse que se chamava?

- Selina Bruce.

- Bem, Miss Bruce, embora me sinta encantado por a conhecer, e lamente a sua pouca sorte, continuo a não compreender o que é que isso tem a ver comigo.

- Creio que tem muito a ver consigo - disse Selina.

- Sim?

- Sim. Bem vê... creio que sou sua filha.

- Pensa...

A primeira reacção dele foi pensar que ela era doida. Tinha de ser. Era uma dessas lunáticas que insistem que são a Imperatriz Eugenia, ou qualquer outra alta personagem. A diferença era que aquela tinha a mania que era filha dele.

- Sim. Penso que é meu pai.

Ela não era louca. Mostrava-se inteiramente inocente e acreditava no que estava a dizer. George disse para si próprio que devia ser racional.

- O que é que a levou a ter essa ideia? - perguntou.

- Tenho uma fotografia do meu pai. Julguei que ele tinha morrido. Mas o rosto dele é igual ao seu.

- Pouca sorte para ele.

- Oh, não. Não é pouca sorte...

- Tem a fotografia?

- Sim. Está aqui... - Inclinou-se para pegar na mala de mão e ele tentou adivinhar que idade ela teria. Esforçou-se por recordar episódios da sua vida aventurosa, para ver se o que ela dizia teria alguma possibilidade de ser verdade. - Está aqui. Tenho-a trazido sempre comigo desde que a encontrei há cerca de cinco anos. Depois, quando vi a fotografia na capa do seu livro... - Estendeu-lhe a fotografia. Ele pegou-lhe, sem deixar de fitar Selina. Finalmente, perguntou:

- Que idade tem?

- Vinte.

George sentiu-se invadir pelo alívio. Para ocultar a expressão do seu rosto, olhou rapidamente para a fotografia que Selina lhe entregara. Não disse coisa alguma. E então, como Rodney fizera quando Selina lha mostrara, levou-a para a luz. Passado um bocado disse:

- Qual era o nome dele? Selina engoliu em seco.

- Gerry Dawson. As iniciais são as mesmas que as suas.

- Pode dizer-me alguma coisa a respeito dele?

- Pouco. Sempre me disseram que ele tinha morrido antes de eu nascer. A minha mãe chamava-se Harriet Bruce, e morreu logo depois de eu ter nascido. Em consequência, foi a minha avó quem me criou e por isso é que me chamo Selina Bruce.

- A sua avó. A mãe da sua mãe?

- Sim.

- E encontrou esta fotografia...?

- Há cinco anos. Num livro da minha mãe. E agora ofereceram-me Fiesta at Cala Fuerte, e eu vi a sua fotografia na contracapa e pareceu-me ser a mesma pessoa. O mesmo rosto. A mesma pessoa.

George Dyer não respondeu. Voltou para dentro da sala e devolveu a fotografia a Selina. Depois acendeu um cigarro, sacudiu o fósforo para o apagar e colocou-o no centro do cinzeiro, dizendo:

- Afirmou que lhe contaram que ele fora morto. O que quer dizer com isso?

- Foi o que me disseram. Mas eu sempre soube que a minha avó não gostava dele. Não tinha querido que ele casasse com a minha mãe. E quando vi a sua fotografia, pensei que talvez tivesse havido algum engano. Que ele afinal não tivesse sido morto. Pensei que fora ferido e que perdera a memória. Isso sucede, sabe.

- Mas não sucedeu ao seu pai. O seu pai morreu.

- Mas...

- Eu não sou seu pai - disse ele muito carinhosamente.

- Mas...

- Você tem vinte anos. Eu tenho trinta e sete. Provavelmente, pareço muito mais velho, mas a verdade é que tenho apenas trinta e sete. Nem sequer estive na guerra - pelo menos nessa.

- Mas as fotografias...

- Penso que Gerry Dawson poderá ter sido um primo meu em segundo grau. O facto de sermos parecidos é uma dessas partidas da hereditariedade. De facto, penso que não somos assim tão parecidos. A fotografia do seu pai e a minha foram tiradas com anos de diferença. E mesmo nos meus melhores tempos nunca fui tão bem-parecido como ele.

Selina olhou-o fixamente. Nunca vira um homem tão moreno e alguém precisava urgentemente de lhe pregar um botão na camisa que se achava toda aberta, mostrando o peito peludo. As mangas estavam enroladas até aos cotovelos, como se ele não pudesse incomodar-se a abotoá-las. Selina sentia-se estranha, como se não tivesse controlo sobre o que o seu corpo pudesse fazer. As pernas podiam dobrar-se debaixo dela, os olhos encherem-se de lágrimas ou ela poderia começar a bater-lhe, ao ouvi-lo dizer que não era seu pai, que era tudo verdade, já que Gerry Dawson morrera.

Ele continuava a falar como se estivesse a tentar ser bondoso.

- ... Lamento que tenha vindo de tão longe... não se sinta muito mal por isso... afinal, é um erro que poderia facilmente ser cometido...

Selina sentia um nó doloroso na garganta, e o rosto dele, muito perto do seu, começou a enevoar-se como se estivesse a mergulhar no fundo de um poço. Selina estivera com calor, mas, de repente, sentiu-se gelada. A pele arrepiou-se até à raiz dos cabelos.

- Sente-se bem? - perguntou George Dyer, parecendo estar a falar de muito longe.

E Selina compreendeu que para sua vergonha, afinal, não ia desmaiar, nem atacá-lo com raiva, mas simplesmente desfazer-se em lágrimas.

- Suponho que não tem um lenço? - perguntou Selina. Não tinha, mas foi buscar uma grande caixa de Kleenex e meteu-lha nas mãos. Ela tirou um e assoou o nariz, dizendo:

- Não creio que precise deles todos.

- Eu não estou tão certo disso.

- Desculpe. Eu não queria chorar.

- Estou certo que não.

Selina tirou outro lenço de papel e voltou a assoar-se.

- Esperei tanto tempo. E, de repente, ficou tão frio.

- Está mais frio. O Sol desapareceu. Ao que sei, aproxima-se outro temporal. Venha sentar-se aqui.

George Dyer agarrou-a por baixo do cotovelo e impeliu-a para o enorme sofá. Como ela continuasse a tremer, ele puxou a manta vermelha e branca para cima dos joelhos de Selina, ao mesmo tempo que dizia que lhe ia arranjar um brande. Selina disse que não gostava de brande, mas ele foi buscá-lo na mesma. Atrás do balcão da pequena cozinha, ela viu-o pegar numa garrafa e despejar um pouco de líquido para um copo.

Quando ele lhe levou a bebida, Selina disse:

- Do que eu realmente preciso é de qualquer coisa para comer.

- Primeiro, beba isto.

O copo era pequeno e grosso, e o brande forte. Selina estremeceu. Quando acabou de beber, ao voltar para a minúscula cozinha, viu George tocar com a ponta do pé nas cinzas da lareira e colocar nela uma nova acha. As cinzas ergueram-se e caíram sobre a madeira. Não tardou que Selina visse surgir uma pequena chama.

- Não precisa de fole... já estava a arder.

- Aqui sabem como acender uma lareira. O que quer comer?

- Qualquer coisa.

- Sopa. Pão com manteiga. Carne fria. Fruta.

- Tem alguma sopa?

- Uma lata... ;

- Não será muita maçada? <>

- Menos maçada do que vê-la a chorar.

- Eu não queria chorar - respondeu Selina, magoada. Depois da sopa estar a aquecer, George voltou para junto de

Selina e sentou-se na beira da prateleira que servia de assento, começando a falar.

- Onde é que vive? - perguntou, pegando num cigarro e acendendo-o com uma pequena acha da lareira.

- Em Londres.

- com a sua avó?

- A minha avó morreu.

- Vive sozinha?

- Não, vivo com Agnes.

- Quem é Agnes?

- A minha ama - respondeu Selina e imediatamente teve vontade de morder a língua. - Isto é... foi a minha ama.

- Não tem mais ninguém?

- Sim - disse Selina. - Rodney.

- Quem é Rodney?

Os olhos de Selina abriram-se muito.

- É o meu... o meu advogado.

- Alguém sabe que está aqui?

- Agnes sabe que eu vim.

- E o advogado...?

- Está fora. Em negócios.

- Então, não há ninguém que esteja preocupado consigo, sem saber onde está?

- Não.

- Bem. Isso já é qualquer coisa.

A sopa começou a ferver. George Dyer voltou à pequena cozinha, tirou do armário uma tigela e uma colher.

- Gosto da sua casa - disse Selina.

- Gosta?

- Sim. Dá-nos uma sensação agradável, como se tivesse aparecido sem nunca ter sido planeada. - Pensou no apartamento de Londres onde ela e Rodney iriam morar depois de casados. Pensou no tempo que tinham levado a escolher as alcatifas, os cortinados, a pensar na iluminação, nas almofadas, nos pequenos pormenores, como sejam os cestos de papéis, as caçarolas e os tachos na cozinha. Continuou: - Acho que é assim que uma casa deve ser. Deve evoluir, como as pessoas que nela vivem.

- George Dyer preparava um uísque com soda para ele e Selina prosseguiu: - É necessário ter algumas coisas, claro, um tecto por cima da cabeça, uma lareira, e... algum sítio para dormir.

George Dyer aproximou-se com a tigela de sopa numa das mãos e o copo com o uísque na outra. Selina pegou na tigela da sopa e perguntou:

- Como é que conseguiu levar a cama lá para cima?

- Aos bocados. Foi montada lá.

- É muito grande.

- Em Espanha, chama-se uma matrimoniale. Uma cama de casal.

Selina ficou ligeiramente embaraçada.

- Não era capaz de imaginar como a tinham levado para lá. Eu... não devia ter ido ver, mas queria observar tudo antes do senhor chegar.

- O que é que vai fazer agora?

Selina olhou para a sopa, mexendo-a. Era sopa de vegetais com massa de letras. Disse:

- Acho que é melhor voltar para casa.

- Sem bilhete e sem dinheiro?

- Se me emprestasse algum, podia voltar para San António com Toni, no táxi dele, e depois apanhar o próximo avião para Londres.

George respondeu:

- Estava a dizer-lhe a verdade quando afirmei que não tinha as seiscentas pesetas. Uma das razões que me levaram ontem a San António foi ver se levantava algum dinheiro, mas parece que houve atrasos no banco em Barcelona, e de momento estou limpo.

- Mas que Vou fazer a respeito do motorista do táxi? Preciso de lhe pagar.

- Talvez Rudolfo nos ajude.

- Isso será pedir muito.

- Ele está habituado.

- Não são só as seiscentas pesetas para o táxi. Terei de cornprar outro bilhete de avião.

- Sim, eu sei.

A sopa estava ainda demasiado quente para ser comida. Selina mexeu-a outra vez enquanto falava:

- Deve pensar que eu sou completamente tola. - Ele não negou isso e ela continuou: - Claro que eu devia ter escrito primeiro, mas não podia suportar a ideia de ser forçada a esperar por uma resposta. - George continuou calado e ela sentiu necessidade de se justificar. - Sim, seria de pensar que eu já estaria habituada a não ter pai, especialmente por não o ter conhecido. Mas a verdade é que eu nunca me habituei. Pensava constantemente nisso. Rodney diz que é uma obsessão.

- Não é mal nenhum ter uma obsessão.

- Mostrei a Agnes a fotografia na contracapa do seu livro e ela ficou surpreendida por causa da parecença com o meu pai. Isso foi o que me fez vir, realmente, porque Agnes conheceu bem o meu pai. E eu não pareceria tão estúpida se não me tivessem roubado a carteira. Até essa altura, fiz tudo muito bem. Apanhei os aviões certos e não foi por minha culpa que a bagagem foi enviada para Madrid.

- Nunca tinha viajado sozinha anteriormente? - Dyer parecia incrédulo.

- Oh, sim, montes de vezes. Mas só de comboio para ir e regressar da escola e coisas assim. - Algo na expressão dele a levou a ser inteiramente sincera. - E havia sempre alguém à minha espera... - Encolheu os ombros. - Sabe como é.

- Não. Não sei. Mas acredito em si. Selina começou a comer a sopa.

- O meu pai era realmente seu primo? Se fosse, então ainda somos parentes.

- Muito afastados.

- Sim. Alguma vez conheceu o meu pai?

- Não. Nunca o conheci. - Franziu ligeiramente a testa.

- Como disse que se chamava?

- Selina.

- Selina. Bem, se alguma vez tiver de provar que não é minha filha, ela aí está.

- Que quer dizer?

- Nunca afligiria nenhuma rapariga com um nome como esse.

- Qual o nome que lhe daria?

- Um homem raramente imagina ter filhas. Pensa apenas num filho. George Dyer Júnior, talvez. - Ergueu o copo ao seu mítico filho, acabou o uísque e pousou o copo. - Vá, coma a sopa para irmos procurar o motorista do táxi.

Enquanto ele punha a tigela e os copos no minúsculo lavalouças e dava de comer a Pearl, Selina lavava a cara e as mãos no lavatório da casa de banho, e calçava os sapatos e as meias. Depois de se pentear, Selina viu que George Dyer se encontrava novamente no terraço perscrutando o mar com os binóculos. Parou junto dele.

- Qual é o seu barco?

- É aquele.

- Que nome tem?

- Eclipse.

- Parece-me muito grande para ser manobrado só por uma pessoa.

- Geralmente, tenho quem me ajude. Quando ameaça temporal fico um pouco nervoso. O mar fica bravo e receio que a âncora se solte.

- Parece em segurança ali.

- Os rochedos encontram-se nas águas profundas e pode haver perigo.

Selina olhou para o céu.

- Vai haver outro temporal?

- Sim. O vento mudou. O boletim meteorológico anuncia mau tempo. - Baixou o binóculo e olhou para Selina. - Foram apanhados pelo temporal a noite passada?

- Sim. Apanhámo-lo em cheio sobre os Pirenéus. Não sei como pudemos aterrar em Barcelona.

- Não me importo de apanhar temporal no mar - disse George -, mas uma tempestade no ar assusta-me. Está pronta?

- Sim.

-- Vamos no carro.

Voltaram para casa e ele pousou os binóculos em cima da secretária. Selina pegou na mala de mão e disse um adeus silencioso à Casa Barco. Tinha pensado tantas coisas ao dirigir-se para ali e agora, passadas algumas horas, ia-se embora outra vez. Para sempre. Pegou no casaco. Ele perguntou:

- Para que é isso?

- É o meu casaco. Em Londres está frio.

- Pois. Esquecia-me. Eu levo-lho. - Atirou o casaco para cima do ombro e acrescentou: - Há uma vantagem em perder a sua bagagem. Pelo menos, viaja leve.

Saíram de casa e Selina ficou surpreendida com o aspecto do carro. Parecia ter sido pintado para o Carnaval. Selina teve vontade de lhe perguntar se fora ele próprio quem pintara as rodas de amarelo, mas não teve coragem para o fazer. Entraram no carro e George pousou o casaco sobre os joelhos de Selina. Depois ligou o motor, mexeu nas mudanças e fez com que o pequeno automóvel descrevesse uma série de voltas, avançando e recuando, tão surpreendentes que eram de pôr os cabelos em pé. Selina estava sempre à espera que lhes sucedesse um desastre. Em determinado momento, julgou que iam chocar com um muro. A seguir, as rodas traseiras quase ficaram no ar junto de um declive íngreme cheio de degraus. Selina fechou os olhos. Quando, por fim, começaram a subir o monte, chegou às narinas de Selina um cheiro terrível a gasolina, ao mesmo tempo que ouvia ruídos sinistros debaixo dos seus pés. Os assentos estavam esburacados e o chão do carro, que perdera o forro há anos, assemelhava-se ao fundo de um caixote do lixo. Para bem de George, Selina esperava que o iate dele estivesse em melhor estado.

Mas, apesar de tudo isso, Selina tinha uma sensação agradável ao atravessar Cala Fuerte no carro de George Dyer. Todas as Crianças gritavam e acenavam alegremente à passagem deles. As mulheres que conversavam às portas das casas sorriam-lhes e Cumprimentavam. E os homens, de regresso a casa, vindos do trabalho, paravam para os deixar passar, gritando gracejos em espanhol que Selina não compreendia, mas que George evidentemente entendia.

- Que dizem eles? - perguntou Selina.

- Querem saber onde arranjei a minha nova senorita.

- É tudo?

- Não é suficiente?

Chegaram à frente do Cala Fuerte Hotel e pararam tão subitamente que uma nuvem de pó branco se ergueu debaixo das rodas

A cobrir as mesas e as bebidas que os clientes, sentados no

terraço de Rudolfo, bebiam como os primeiros aperitivos da tarde.

Um inglês comentou: «Que atrevimento», mas George Dyer ignorou-o, saiu do carro sem se incomodar em abrir a porta e subiu os degraus do terraço, entrando no bar do hotel, seguido de Selina.

- Rudolfo! Rudolfo encontrava-se atrás do balcão. Disse em espanhol:

- Não é preciso gritar.

- Rudolfo, onde está o motorista do táxi?

Rudolfo não sorriu. Acabou de encher vários copos com bebidas e respondeu:

- O motorista do táxi foi-se embora.

- Foi-se embora? Não quis receber o dinheiro?

- Sim. Quis o dinheiro. Seiscentas pesetas.

- Quem lhe pagou?

- Fui eu - disse Rudolfo. - E quero falar consigo. Espere eu ter atendido os meus clientes.

Saiu de trás do bar, passou por eles sem dizer uma palavra e desapareceu para além da cortina de fitas em direcção ao terraço. Selina olhou para George.

- Ele está zangado?

- Calculo que esteja aborrecido com qualquer coisa.

- Onde está Toni?

- Foi-se embora. Rudolfo pagou-lhe.

Selina levou tempo a aperceber-se da gravidade da notícia.

- Mas se ele se foi embora... como hei-de voltar para San António?

- Só Deus sabe.

- Tem de me levar lá.

- Não volto hoje para San António e mesmo que lá fosse não tenho dinheiro para lhe comprar o bilhete de avião.

Selina mordeu os lábios.

- Rudolfo pareceu-me tão simpático quando aqui estive.

- Como todos nós, o carácter dele tem duas facetas. Rudolfo voltou, colocou o tabuleiro vazio sobre o balcão do bar e voltou-se para George.

Falou em espanhol, no que foi sensato, pois a linguagem que ele empregou não era própria para ser ouvida por uma jovem inglesa bem-educada. George defendeu-se com boa disposição. À medida que as vozes deles subiam de tom, Selina, não podendo ignorar que a discussão era por causa dela, ia dizendo: «Por favor, digam-me de que se trata», ou «Não podem falar em inglês para eu perceber?»; mas nenhum deles lhe prestava a menor atenção.

A discussão foi finalmente interrompida pela chegada de um gordo alemão que reclamava uma cerveja. Por isso, enquanto Rudolfo se dirigia para o balcão para o servir, Selina aproveitou a ocasião para puxar pela manga de George, perguntando:

- O que sucedeu? Diga-me o que sucedeu!

- Rudolfo está aborrecido porque você disse que esperava na Casa Barco e ele pensou que o motorista esperasse lá consigo Não gosta de motoristas desconhecidos sentados no bar dele à espera que lhes paguem, a embebedarem-se, e parece ter antipatizado particularmente com aquele.

- Oh!

- Sim, oh!

- E é tudo?

- Não. Claro que não é tudo. Por fim, para se ver livre do homem, Rudolfo pagou-lhe. E agora diz que lhe devo seiscentas pesetas e está desconfiado porque acha que eu não lhe Vou poder pagar.

- Mas eu pagar-lhe-ei... Prometo...

- A questão não é essa. Ele quer o dinheiro agora.

O gordo alemão, apercebendo-se do ambiente desagradável, levou a sua cerveja lá para fora. George e Rudolfo voltaram-se imediatamente um para o outro, mas Selina interpôs-se rapidamente.

- Por favor, por favor, Mr. Rudolfo. A culpa é toda minha e eu farei com que receba o seu dinheiro. Como sabe, roubaram-me tudo...

Rudolfo já ouvira aquilo.

- Disse que esperava na Casa Barco com o motorista.

- Eu não sabia que ele estaria aqui tanto tempo.

- E você - Rudolfo voltou-se para George outra vez -, onde estava você metido? Foi para San António, nunca mais voltava e nós não sabíamos onde estava...

- Que diabo tem você a ver com isso? Onde eu Vou e o que faço é comigo.

- Também é comigo quando sou eu que tenho de pagar as suas contas.

- Ninguém lhe pediu para pagar. E a conta não era minha, de qualquer maneira. E estragou tudo, porque agora a senorita não tem quem a leve de novo para San António.

- Então leve-a você.

Diabos me levem se a levo! - gritou George. E com essas palavras saiu do bar, desceu os degraus do terraço de uma só vez e entrou no carro. Selina correu atrás dele.

- E eu?

Ele voltou-se para ela.

- Ou fica aí ou vem comigo.

- Não quero ficar aqui.

- Então venha.

Não havia alternativa. Metade da aldeia e todos os clientes de Rudolfo observavam a cena. George inclinou-se para lhe abrir a porta e Selina entrou.

Nesse momento, como se obedecesse a um sinal celestial, rebentou o temporal.

Um relâmpago rasgou o céu, um trovão ribombou e uma súbita rajada de vento agitou os pinheiros. As toalhas de mesa, no terraço do Cala Fuerte Hotel, agitavam-se e erguiam-se tal como as velas mal presas de um barco, e um chapéu voou da rede que havia do lado de fora da loja de Maria. Foi pelo ar, como uma grande roda cor-de-rosa e amarela, sempre ao longo da rua principal. A poeira subia em espirais e logo atrás do vento a chuva. Esta caiu subitamente com pingos tão grossos que, em breve, as valetas ficaram completamente inundadas.

Toda a gente correu para dentro das casas. Assim o fizeram os clientes de Rudolfo, as mulheres que conversavam, as crianças que brincavam, os dois homens que trabalhavam na estrada. Havia a sensação generalizada de que iria ocorrer um desastre iminente, tal como se tivesse soado uma sereia de alarme a prevenir um ataque aéreo. Em poucos momentos, a rua ficou sem ninguém, exceptuando Selina e George, que se encontravam no pequeno carro.

Ela preparava-se para sair do carro, mas ele tinha posto o motor a trabalhar e impediu-a de sair.

- Não podemos abrigar-nos também? - perguntou Selina

- Para quê? com certeza não tem medo de um pouco de chuva

- Um pouco de chuva? - O perfil dele parecia talhado em pedra e ele não se dignou responder. - A capota não sobe?

O carro começou a andar tão subitamente como um foguetão a ser lançado.

- Há dez anos que não sobe - gritou George para se fazer ouvir acima do ruído do carro, da chuva e do vento. A água parecia já chegar às jantes do carro e Selina sentia os pés molhados. Pensou se devia começar a deitar a água fora para não se afundarem.

- Bem, de que serve uma capota, se não sobe?

- Oh, deixe de se lamentar.

- Não estou a lamentar-me, mas...

George acelerou e as palavras dela perderam-se numa exclamação abafada de susto. Desciam a estrada com uma velocidade incrível, descrevendo as curvas com os pneus a rangerem e atirando para os lados ondas de lama amarela. O mar estava cor de chumbo e até os encantadores jardins das vilas eram devastados pelo vento. O ar parecia estar cheio de detritos voadores folhas, bocados de palha e agulhas de pinheiro -, e quando, por fim, chegaram ao caminho que descia na direcção da Casa Barco, a água, apertada entre altos muros, tomara já as proporções de um riacho profundo, pelo que o avanço deles no carro de George se assemelhava à descida de um rápido.

Toda a massa de água, devido à força da gravidade, estava a ser arrastada para o lance de escadas que ia ter ao porto, mas boa parte dela invadira o velho armazém onde George guardava o carro e que parecia estar inundado.

Apesar disso, George entrou directamente para lá, parando apenas a alguns centímetros da parede do fundo. Desligou o motor, saltou do carro e disse para Selina:

- Venha ajudar-me a fechar as portas.

Selina sentia-se demasiado assustada para se rebelar. Saiu do automóvel, mergulhou os pés em meio palmo de água fria e suja, e foi ajudá-lo a fechar as portas. Finalmente, conseguiram fechá-las, encostando-se a elas com todas as suas forças, até que George conseguiu colocar a primitiva tranca. Feito isso, agarrou em Selina por um pulso e correu com ela para a Casa Barco, enquanto outro relâmpago rasgava o negrume do céu, logo seguido de um trovão, que se ouviu tão perto que Selina chegou a pensar que o telhado ia cair.

Mesmo dentro de casa, não pareciam estar seguros. George dirigiu-se para o terraço e começou a lutar para fechar as portadas de madeira. O vento era tão forte que ele teve de as puxar para as afastar das paredes da casa. Os vasos com flores tinham já caído, alguns sobre a beira do muro, outros para o terraço, onde se via uma confusão de plantas, terra e barro partido. Quando, por fim, George conseguiu fechar as portadas e as portas interiores, a casa pareceu escura e estranha. George tentou acender as luzes, mas a electricidade desaparecera. A chuva, caindo pela chaminé, apagara o lume e o poço gorgolejava, como se fosse transbordar a qualquer momento.

- Não corremos perigo? - perguntou Selina.

- Por que havemos de correr?

- Tenho medo da trovoada.

- Não lhe fará mal.

- Os relâmpagos podem fazer.

- Bem, então tenha medo dos relâmpagos.

- E tenho.

Selina achou que ele devia pedir-lhe desculpa, mas George limitou-se a tirar do bolso um maço de cigarros molhados. Colocou-os perto da lareira e foi procurar outros, acabando por encontrar um maço na cozinha. Pegou num e acendeu-o, preparando em seguida um uísque para si. Levou o copo para junto do poço, fez descer o balde e puxou-o para cima cheio até às bordas. com a destreza própria de uma longa prática, acabou de encher o copo sem entornar uma gota.

- Quer uma bebida? - perguntou.

- Não. Obrigada.

George bebeu um gole de uísque e ficou a olhá-la. Selina não percebia se ele se estava a rir ou não. Encontravam-se ambos tão molhados como se tivessem caído dentro de água. Selina descalçara os sapatos encharcados e achava-se de pé no meio de uma poça de água que se ia tornando cada vez maior, à medida que gotas pingavam da bainha do seu vestido. Tinha o cabelo colado à cara e ao pescoço. Estar molhado não parecia aborrecer George Dyer como a aborrecia a ela.

- Suponho que esteja habituado a estas coisas - disse Selina, tentando espremer a bainha do vestido. - E não havia sequer necessidade disto. Rudolfo poderia ter-nos dado abrigo...

Ele pousou o copo com um ruído surdo e atravessou a sala, subindo dois a dois os degraus que davam para a galeria.

- Tome - disse ele lá de cima atirando um pijama a Selina.

- E mais isto. - Seguiu-se um roupão turco. Ouviu-se o ruído de uma gaveta a ser aberta e fechada. - E isto. - Uma toalha. Ele estava de pé, com as mãos apoiadas no corrimão, a olhar para ela. - Sirva-se da casa de banho. Tire a roupa toda, esfregue-se e vista essas roupas.

Selina apanhou as coisas. Quando ia a abrir a porta da casa de banho, uma camisa encharcada foi atirada por cima do corrimão da galeria, logo seguida de um par de calças. Selina entrou rapidamente na casa de banho e fechou a porta à chave.

Quando saiu, seca e vestida com as roupas muito grandes para ela, com a cabeça embrulhada numa toalha turca, viu que se operara ali uma certa metamorfose.

O fogo brilhava alegremente na lareira e havia três ou quatro velas acesas, espetadas em gargalos de garrafas de vinho. O rádio transmitia música flamenca e George Dyer não só se secara e mudara de roupa, como fizera também a barba. Vestia agora uma camisola branca, de gola alta, umas calças de fazenda azul e sapatos de cabedal vermelhos. Estava sentado com as costas voltadas para o lume, lendo um dos jornais ingleses e parecendo tão descontraído como um cavalheiro inglês na sua casa de campo. Levantou os olhos do jornal quando ela apareceu.

- Oh, já está pronta.

- Que faço à minha roupa molhada?

- Deixe-a estar a um canto no chão da casa de banho. Juanita tratará disso amanhã.

- Quem é Juanita?

- A minha criada. É irmã de Maria. Sabe quem é Maria? É a dona da mercearia da aldeia.

- A mãe de Tomeu.

- Então, já conhece Tomeu.

- Foi Tomeu quem nos trouxe hoje aqui. Veio à nossa frente, de bicicleta, a indicar o caminho.

- Tomeu trouxe um frango no cesto das mercearias. Está agora no forno. Venha sentar-se aqui e tome uma bebida para se aquecer.

- Não quero uma bebida.

- Nunca bebe?

- A minha avó não aprovaria.

- A sua avó, perdoe-me a expressão, parece-me uma velha tola.

Selina sorriu.

- Não o era, realmente.

George ficou surpreendido pelo sorriso. Ainda a observá-la, perguntou:

- Em que parte de Londres vive?

- Queen's Gate.

- Queen's Gate. Muito elegante. Suponho que a sua ama a levava a dar passeios pelos jardins de Kensington?

- Sim.

- Tem irmãos ou irmãs?

- Não.

- E tios e tias?

- Ninguém.

- Não admira que precisasse tão desesperadamente de um pai.

- Não precisava desesperadamente. Apenas queria um. George agitou o seu copo, olhando para o líquido ambarino.

Depois disse:

- Sabe, ocorre-me que as pessoas que... amamos... continuam a viver até que alguém nos vem dizer que morreram.

- Disseram-me. Há muitos anos que me disseram que o meu pai tinha morrido - respondeu Selina.

- Bem sei. Mas hoje eu disse-lho pela segunda vez. E fui eu que o matei.

- A culpa não foi sua.

- Mas, de qualquer maneira, lamento. - Em seguida acrescentou, mais gentilmente: - Uma bebida fazia-lhe bem. Só para a aquecer.

Ela abanou a cabeça e George não insistiu, sentindo-se no entanto desconfortável. Estava habituado a estar com Francês, que aguentava bebida após bebida, apesar de ao fim do serão estar um pouco tonta e pronta a discutir por qualquer ninharia. E no dia seguinte tinha a cabeça clara e os olhos límpidos como sempre, apesar de se notar um ligeiro tremor nas mãos ao acender o décimo cigarro da manhã.

Mas aquela criança! Olhou-a. A pele dela era como marfim, macia, sem uma mancha. Enquanto ele a olhava, ela tirou a toalha da cabeça e começou a esfregar o cabelo para o secar, ficando Com as orelhas à mostra, umas orelhas vulneráveis junto de um pescoço de bebé.

- Que vamos fazer agora? - perguntou Selina.

- A respeito de quê?

- A respeito do dinheiro para pagar a Rudolfo e para eu voltar para Londres.

-- Não sei. Terei de pensar nisso.

- Podia telegrafar para o meu banco em Londres para eles me mandarem algum dinheiro.

- Sim, podia.

- Levará muito tempo?

- Três ou quatro dias.

- Não acha que eu poderia tentar arranjar um quarto no Cala Fuerte Hotel?

- Duvido que Rudolfo a receba.

- com efeito, não o censuro. Mesmo quando estava sóbrio, Toni metia medo. Embriagado deve ter sido verdadeiramente assustador.

- Duvido que ele tenha assustado Rudolfo.

- Bem. Onde Vou dormir?

- Onde há-de ser senão aqui? Na matrimoniale. Eu dormiria no Eclipse se não fosse este tempo. Mas não é a primeira vez que durmo no sofá.

- Se alguém tem de dormir no sofá, então durmo eu.

- Como queira. Para mim é o mesmo. Lamento que a Casa Barco não tenha mais comodidades, mas nada posso fazer. Nunca imaginei que viesse ter aqui comigo uma filha.

- Mas eu não sou sua filha.

- Então, digamos que é George Dyer Júnior.

Seis anos antes, quando George Dyer fora viver para Cala Fuerte, Juanita apresentara-se à porta e anunciara, com grande dignidade, que gostaria de trabalhar para ele. Era mulher de um modesto agricultor de San Esteban, tinha quatro filhos, que frequentavam a escola da aldeia, pelo que a pobreza nunca estava longe dela. Precisava de trabalhar, porque necessitava do dinheiro, mas nada havia na sua postura orgulhosa que revelasse isso. Era baixa, com um corpo atarracado e quadrado, próprio de uma mulher habituada a trabalhar no campo. Tinha olhos escuros, pernas curtas e um sorriso de grande encanto, desperdiçado apenas pelo facto de nunca lavar os dentes.

Levantava-se todos os dias às quatro e trinta da madrugada, fazia as tarefas diárias da sua própria casa, preparava a refeição para a família e via-os sair para o trabalho. Depois, percorria o caminho de San Esteban até Cala Fuerte para se apresentar na Casa Barco às sete e meia da manhã. Limpava a casa e cozinhava para George, lavava e passava a ferro, penteava a gata e tratava do jardim. Também não se importava de se meter no bote e ir até ao Eclipse lavar o convés.

Quando Fiesta at Cala Fuerte foi publicado, George deu-lhe um exemplar com uma dedicatória que dizia: «Para Juanita, de George Dyer com amor e respeito», e esse era talvez o objecto mais precioso que ela possuía, logo a seguir à sua cama de casamento, que lhe fora legada pela avó, bem assim como os lençóis de linho, pesados como cabedal, que ela própria bordara. Não falava inglês e não sabia ler em nenhuma língua, mas o livro encontrava-se em exposição em sua casa, como um ornamento, com uma capa de renda. Juanita nunca entrava em casa de George sem ele lhe abrir a porta. No código de Juanita, não fazer isso parecia ser uma quebra de etiqueta. Ela costumava sentar-se lá fora, no muro, com as mãos no colo e as pernas cruzadas à altura dos tornozelos, como a realeza, esperando que George lhe abrisse a porta para ela entrar. Ele dizia «Buenos dias, Juanita», e trocavam trivialidades a respeito do tempo. Ela perguntava-lhe então como o senor tinha dormido. Dyer nunca descobrira a razão para aquele estranho procedimento e não fazia perguntas. Talvez tivesse algo a ver com o facto dele não ser casado.

Na manhã depois do temporal, George acordou às sete horas. Acabara por dormir no sofá, porque não tivera coragem de ficar com a cama confortável para si. Tudo parecia muito sossegado. O vento caíra e, quando ele se levantou para abrir as janelas, a manhã estava calma e fresca como uma pérola, sem uma nuvem no céu. Havia no ar um cheiro a terra húmida, agradável, depois da chuva, embora as águas do porto estivessem escuras devido ao temporal e houvesse detritos que precisavam de ser tirados dali. Para começar, George apanhou o frágil mobiliário do terraço dos sítios para onde o vento o levara, limpou a água que se juntara sobre a mesa e voltou para dentro. Acendeu um cigarro e pensou em fazer uma chávena de chá. Todavia, não havia água na chaleira e ele não queria descer o balde para o poço com receio de acordar Selina.

Procurou as suas roupas, mas as calças de fazenda e a camisola que vestira na véspera eram impróprias para o trabalho do dia. Por isso, subiu as escadas para ir buscar roupa. Selina dormia ainda como uma criança, com o pijama enorme, na vasta cama. Movendo-se silenciosamente, George pegou nas primeiras calças e na primeira camisa que viu e desceu a escada outra vez. Tomou um duche (a água estava gelada depois do temporal), vestiu-se e foi abrir a porta a Juanita. Esta ainda não chegara, mas se viesse e encontrasse a porta aberta entraria e começaria a preparar o pequeno-almoço. Depois, dirigiu-se para o terraço, desceu os degraus escorregadios na direcção do pequeno cais, meteu-se no bote e começou a remar até ao Eclipse.

A embarcação parecia ter aguentado o temporal com a sua habitual calma. George verificou as cordas que o prendiam e subiu para bordo. Sendo previdente, tinha posto um oleado sobre a cabina, pelo que, e apesar desse oleado estar coberto de poças de água, aqui e ali, a cabina encontrava-se relativamente seca. Soltou uma porção de adriças e dirigiu-se para baixo, a fim de ver se as vigias não tinham deixado entrar água. Tranquilizado a esse respeito, voltou para cima, debruçou-se na amurada e acendeu um cigarro.

O dia ia ser muito quente. O vapor elevava-se já do convés molhado e do oleado, que ele estendera para secar. O ar estava tão claro que ele podia ver até uma grande distância, para além da cruz de San Esteban. O sossego era tal que um pescador que se encontrava no seu barco a conversar em voz baixa com um companheiro era ouvido por George. A água tinha uma ondulação quase imperceptível. O bote oscilava ligeiramente e o iate mexia-se com tal leveza que parecia respirar.

Apaziguado por aqueles sons e ambiente familiares, George sentiu-se descontrair. Pensou com calma no dia que tinha à sua frente e pôs uma certa ordem nos problemas que o preocupavam.

O primeiro era Rudolfo. Não se importava de ter discutido com ele; não fora a primeira vez e não seria a última, mas Rudolfo não era um homem rico, pelo que as seiscentas pesetas precisavam de lhe ser pagas, o mais rapidamente possível. George não podia arriscar-se até receber o dinheiro do banco. Esses atrasos já eram habituais e, por vezes, ele tivera de esperar um mês inteiro para o receber. Se, contudo, enviassem um telegrama para o banco de Selina, daí a três ou quatro dias poderiam ter o dinheiro. Rudolfo, sabendo isso, receberia de bom grado Selina no seu hotel e, desse modo, seriam respeitadas as convenções e salvas as aparências, o que era muito importante em Cala Fuerte.

Além disso, havia ainda a possibilidade de pedir o dinheiro a Francês. Esta emprestar-lhe-ia de bom grado as seiscentas pesetas e o dinheiro para o bilhete de regresso de Selina, se ele lhe pedisse. Mas com Francês o caso era outro. E se ele um dia decidisse ficar em dívida para com ela, não o faria por causa de Rudolfo, nem por uma rapariga que viera à procura do pai, mas apenas por si próprio, pois só ele poderia pagar tal dívida.

O movimento na Casa Barco atraiu a atenção de George e ele viu que Juanita se encontrava no terraço estendendo a manta vermelha e branca do sofá na corda da roupa, para apanhar ar. Tinha um vestido cor-de-rosa e um avental castanho. Entrou em casa e reapareceu daí a pouco com uma vassoura, começando a varrer o que restava dos vasos partidos durante a noite.

George pensou como havia de explicar a presença de Selina na sua cama. Tivera sempre o cuidado de não deixar que se desse uma circunstância como aquela e, no que dizia respeito a Juanita, não sabia como ela iria reagir. Não lhe agradava a ideia de lhe mentir, mas por outro lado também não queria perder Juanita - fosse por que razão fosse. Poderia contar-lhe a verdade, mas esta era tão complicada que não sabia se uma pessoa simples como Juanita estaria preparada para a entender. Ou poderia dizer que Selina era uma prima que ali se encontrava de visita e que tivera de passar a noite em casa dele por causa do temporal. Passado algum tempo, decidiu que essa seria a melhor história, e tinha, além disso, a vantagem de ser mais ou menos verdadeira. Atirou o cigarro pela borda fora, desceu para o bote e remou para a Casa Barco. Juanita estava na pequena cozinha a ferver a água para o café.

- Buenos dias, Juanita.

- Buenos dias, senor.

George decidiu atirar-se de cabeça.

- Acordou a senorita quando tirou a água do poço?

- Não, senor, ela ainda dorme como um bebé.

- Então, foi lá acima... vê-la?

- Sim, senor, fui ver se estava acordada. Mas, senor a voz dela tomou um tom de leve censura -, por que é que nunca me disse que tinha uma filha?

George apalpou atrás de si o braço do sofá e sentou-se nele.

- Nunca lhe disse? - murmurou estupidamente.

- Não. Nunca me falou da sua filha. E quando Maria, esta manhã, me contou que o senor tinha a sua filha na Casa Barco, eu não queria acreditar. Mas é verdade.

George engoliu em seco e disse com forçada calma:

- Maria contou-lhe. E quem contou a Maria?

- Foi To meu.

- Tomeu?

- Si, senor. O motorista do táxi que a trouxe esteve muitas horas no bar de Rudolfo e disse a Rosita, que lá trabalha, que tinha levado a filha do senor Dyer para a Casa Barco. Rosita contou a Tomeu quando foi à loja comprar detergente e Tomeu disse a Maria e a Maria disse-me a mim.

- E ao resto da aldeia - murmurou George em inglês amaldiçoando em silêncio Selina.

- Senor?

- Não é nada, Juanita.

- Não está contente por ter aqui a sua filha?

- Sim, com certeza.

- Não sabia que o senor tinha sido casado.

George ficou calado durante um momento e depois disse:

- A mãe dela morreu. Juanita ficou muito triste.

- Não sabia, senor. E quem tomou conta da senorita?

- A avó - disse George, pensando quanto tempo iria aguentar aquele interrogatório sem se denunciar. - Juanita... diga-me uma coisa... Rudolfo sabe que a senorita é minha filha?

- Não falei com Rudolfo, senor. - A chaleira ferveu e ela encheu o jarro de barro que George lhe ensinara ser para o café. O cheiro era delicioso, mas não o animou. Juanita pôs a tampa no jarro e disse: - Senor, ela é muito bonita.

- Bonita? - George parecia espantado, porque realmente o estava.

- Claro que é bonita. - Juanita levou o tabuleiro com o pequeno-almoço para o terraço. - O senor não precisa de estar a fingir comigo.

George tomou o seu pequeno-almoço. Uma laranja, uma ensamada doce e todo o café que Juanita acabara de fazer. Juanita andava pela casa, sem fazer ruído, limpando. Depois apareceu trazendo nas mãos um alguidar redondo com roupa suja.

- A senorita molhou-se muito ontem à noite e eu disse-lhe para deixar a roupa no chão da casa de banho - informou George.

- Sim. Encontrei-a lá.

Trate delas o mais depressa que puder, Juanita. Ela não tem mais nada para vestir.

- Si, senor.

Juanita dirigiu-se então para a dependência da casa onde lavava a roupa, esfregando lençóis, meias e camisas com a mesma imparcialidade, para o que ferveu água numa grande panela e utilizou uma barra de sabão tão grande e tão dura como um tijolo.

A primeira coisa a fazer era ir falar com Rudolfo. Ao atravessar a casa, George olhou para a galeria, mas não viu qualquer movimento, nem ouviu qualquer ruído. Amaldiçoou silenciosamente a sua visitante, mas deixou-a dormir. Para não ter a maçada de abrir as portas da garagem e pôr o carro em andamento, decidiu ir a pé para a aldeia.

Acabaria por arrepender-se disso. Antes de chegar ao Cala Fuerte Hotel, nada menos que sete pessoas o felicitaram por ter a filha na sua companhia. De cada vez que um encontro tinha lugar, George começava a andar mais depressa, como se tivesse de ir fazer qualquer coisa com grande urgência, dando a impressão de que, por mais que quisesse parar e falar nesse feliz estado de coisas, não tinha tempo para o fazer. Consequentemente, chegou ao bar de Rudolfo ofegante e encharcado em suor, sentindo-se como se tivesse sido apanhado numa armadilha. Permaneceu à entrada da porta, exausto, e disse:

- Rudolfo, estou autorizado a entrar?

Rudolfo encontrava-se atrás do balcão, a limpar copos. Quando viu George, as mãos ficaram paradas e um sorriso começou a espalhar-se-lhe pelo rosto. Pousou o copo que tinha na mão e saiu detrás do balcão como se quisesse abraçar George.

George olhou-o com desconfiança.

- Não me vai bater?

- Você é que devia bater-me a mim. Mas eu não sabia. Só soube esta manhã, por Rosita, que a se]norita é sua filha. Por que não mo disse a noite passada? Eu nem sequer sabia que você tinha uma filha. E tão bonita...!

- Rudolfo, houve um erro...

- E o erro foi meu. Que espécie de homem deve ter pensado que eu sou por me ter queixado de fazer um favor a um amigo e à sua filha...

- Mas...

Rudolfo ergueu uma mão.

- Não há mas. Seiscentas pesetas, bem... - encolheu os ombros. - Elas não crescem nas árvores, mas não Vou ficar arruinado por isso.

- Rudolfo...

- Meu amigo, se diz mais alguma coisa pensarei que não me perdoa. Vá, vamos tomar uma bebida, um conhaque...

Era impossível. Rudolfo recusava-se a ouvir a verdade e George não lha ia enfiar pela garganta abaixo. Disse debilmente:

- Prefiro beber um café.

Rudolfo gritou para dentro que lhe levassem o café e George sentou-se num dos bancos altos do bar e acendeu um cigarro. Quando Rudolfo voltou, disse-lhe:

- Vai receber o seu dinheiro. Podemos telegrafar para Londres...

- Será preciso ir a San António para enviar o telegrama.

- Está bem. Quanto tempo acha que demorará o dinheiro a vir? Rudolfo encolheu os ombros.

- Dois ou três dias. Talvez uma semana. Não tem importância. Posso esperar uma semana por seiscentas pesetas.

- Você é um bom homem, Rudolfo.

- Mas encolerizo-me. Encolerizo-me.

- Mas continua a ser um bom homem.

O café chegou, trazido por Rosita, a inconsciente origem de toda aquela complicação. George viu-a pousar as minúsculas chávenas e disse para si próprio que, pelos vistos, estava cada vez mais enterrado na mentira. E com o coração amargurado percebeu que não havia necessidade de pedir o segundo favor a Rudolfo. Se todos julgavam que Selina era sua filha, não havia razão para ela ir viver para o Cala Fuerte Hotel.

Foi Pearl que acordou Selina. Andara por fora toda a noite, estava cansada de caçar e precisava de um sítio macio para dormir. Entrou na Casa Barco pelo terraço, subiu com ligeireza os degraus que davam para a galeria e saltou, sem fazer ruído, para cima da cama. Selina abriu os olhos e viu junto de si o focinho branco de Pearl. Os olhos da gata eram de um verde-jade e as pupilas escuras brilhavam de contentamento. Aninhou o corpo macio na curva do corpo de Selina e dispôs-se a dormir.

Selina voltou-se e adormeceu outra vez.

Da segunda vez foi acordada mais rudemente.

- São horas de acordar. Já são onze horas. Vamos. - Estava a ser sacudida e, quando abriu os olhos, viu George Dyer sentado na beira da cama. - São horas de acordar - disse ele outra vez.

- Hummm? - A gata ainda ali estava, deliciosamente quente e pesada. George pareceu-lhe enorme. Tinha uma camisa de algodão azul e a expressão dele era sombria. O coração de Selina confrangeu-se. Nunca se sentia muito bem ao acordar.

- São horas de acordar.

- Que horas são?

- Já lhe disse. Quase onze. Preciso de falar consigo.

- Oh! - Ela sentou-se na cama e procurou as almofadas que tinham desaparecido. George inclinou-se para as apanhar do chão e colocou-as atrás dela.

- Agora ouça - disse -, fui falar com Rudolfo...

- Ele ainda está zangado?

- Não. Já não está. Rudolfo, e com efeito toda a aldeia, pensa que você é minha filha. Sabe por que é que eles pensam isso, não sabe? Porque o bêbado do motorista, maldito seja, lhes disse isso.

- Oh! - exclamou Selina.

- Sim, oh. Você disse ao motorista que eu era seu pai?

- Sim - admitiu ela.

- Mas porquê?

- Tive de o fazer para ele me trazer aqui. Disse-lhe: «O meu pai pagar-lhe-á o custo da viagem» e isso foi a única coisa que o persuadiu.

- Não tinha o direito de fazer isso. De envolver uma pessoa inocente...

- Você?

- Sim, eu. Agora estou metido nisto até às orelhas.

- Nunca pensei que ele dissesse a toda a aldeia.

- Não disse. Contou a Rosita, a rapariga que trabalha no bar de Rudolfo. E Rosita disse a Tomeu. Tomeu, por sua vez, contou à mãe. Maria é a estação emissora e transmissora oficial desta parte da ilha.

- Compreendo - respondeu Selina. - Mas não lhes podemos dizer a verdade?

- Agora não.

- Porquê?

- Porque as pessoas aqui... - escolheu as suas palavras cuidadosamente - têm padrões morais muito rígidos.

- Então, para que me deixou ficar aqui a noite passada? George estava desesperado.

- Por causa do temporal. Por causa da discussão com Rudolfo. Porque não havia alternativa.

- E disse-lhes que eu era sua filha?

- Não disse que não era.

.- Mas é novo de mais para ser meu pai. Descobrimos isso a noite passada.

- Mais ninguém sabe isso.

- Mas não é verdade que seja meu pai...

- Também não era quando você o disse ao motorista.

- Mas eu não sabia que não era verdade!

- Mas eu sei. É isso? Bem, lamento se estou a ofender os seus princípios, mas estas pessoas são minhas amigas e eu não quero desiludi-las. Não que elas tenham muitas ilusões a meu respeito, mas, pelo menos, não me consideram mentiroso. Selina continuava a mostrar-se perturbada, pelo que ele mudou de assunto: - Agora a respeito do dinheiro. Disse que podia telegrafar para o seu banco...

- Sim.

- Mas não de Cala Fuerte. É preciso ir a San António para enviar um telegrama. Ou podemos telegrafar directamente para o seu banco, ou, como me ocorreu quando vinha para casa, podemos telegrafar para o seu advogado...

- Oh, não - disse Selina com tal veemência que George ergueu as sobrancelhas, surpreendido.

- Porquê?

- Telegrafemos antes para o banco.

- Mas o seu advogado poderia fazer-nos chegar o dinheiro muito mais depressa.

- Não quero telegrafar a Rodney.

- Não gosta dele?

- Não é isso. É que... bem, ele achou que isto de vir procurar o meu pai era uma loucura.

- Parece-me que ele tinha razão.

- Não quero que ele saiba como foi um fiasco a minha vinda. Tente compreender.

- Claro que compreendo, mas se isso significasse o dinheiro chegar mais depressa... - O rosto de Selina permanecia com uma expressão obstinada e, de repente, George aborreceu-se e desistiu de tentar persuadi-la. - Bem, está bem. O dinheiro é seu, o tempo também é seu e a reputação é sua também. Selina ignorou isso.

- Quer ir hoje a San António?

- Sim, logo que você esteja vestida. Não tem fome?

- Nem por isso.

- E uma chávena de café?

- Há café feito?

- Eu Vou fazê-lo.

George ia a meio da escada quando Selina o chamou:

- Mr. Dyer?

George parou, só com a parte de cima do corpo visível.

- Não tenho nada para vestir.

- Vou falar com a Juanita.

Encontrou-a no terraço, passando a ferro, com o fio do ferro estendido através da janela.

- Juanita?

- Senor.

- As coisas da senorita estão prontas?

- Si, seno r.

Ela sorriu, encantada com a sua própria eficiência, e entregou-Lhe uma pilha de roupa cuidadosamente dobrada. George agradeceu-lhe, pegou na roupa e dirigiu-se de novo para dentro de casa ao encontro de Selina que vinha a descer a escada ainda de pijama, despenteada e com ar sonolento. Ele disse-lhe:

- Aqui tem! - e entregou-lhe o monte de roupa.

- Oh, maravilhoso!

- É apenas um dos serviços deste hotel.

- Foi tão rápido. Nunca pensei... - Selina calou-se. George franziu a testa. Selina tirou o vestido que se encontrava ao de cima. Ou o que restava dele. Juanita dera ao vestido de lã inglesa o mesmo tratamento que dava à outra roupa. Água quente, sabão duro e esfrega. Selina estendeu o vestido. Serviria quando muito a uma criança de seis anos, pequena. A única coisa que o tornava reconhecível era a etiqueta de seda da Fortnum and Mason, na parte de trás da gola.

Houve um momento de silêncio e George comentou:

- Um pequeno vestido castanho...

- Ela lavou-o! Para que o lavou ela? Não precisava de ser lavado. Estava apenas molhado...

- Se alguém tem a culpa, esse alguém sou eu. Disse a Juanita que o lavasse e, quando lhe digo uma coisa, ela fá-la. George começou a rir.

- Não me parece que seja motivo para rir. É muito bonito rir-se, mas que Vou eu vestir?

- O que se pode fazer além de rir?

- A mim apetecia-me chorar.

- Isso não serviria para nada.

- Não posso andar de pijama todo o dia.

- Porquê? Fica-lhe muito bem.

- Não posso ir a San António de pijama.

Ainda imensamente divertido, mas tentando mostrar-se sensato, George coçou a nuca.

- E se vestisse o seu casaco?

- Morria de calor com o meu casaco. Oh, por que hão-de suceder estas coisas horríveis?

Ele tentou acalmá-la. -- Veja...

- Não. Não vejo!

Era o exemplo típico da injustiça de se discutir com uma mulher, e George perdeu a paciência.

- Bem, então não olhe. Vá meter-se na cama e chore durante o resto do dia, mas antes disso venha ajudar-me a escrever o telegrama para o seu banco. Eu próprio o levarei a San António. Você poderá ficar aqui, amuada.

- Isso que diz é horrível e injusto...

- Está bem, Júnior, é horrível. Talvez eu diga coisas horríveis por ser uma pessoa horrível. Ainda bem que o descobriu a tempo. Agora venha sentar-se aqui e ponha esse cérebro de alfinete em acção para redigirmos o telegrama.

- Não tenho cérebro de alfinete - defendeu-se Selina.

- E mesmo que tivesse, você ainda não me conhece há tempo suficiente para o descobrir. Só estou a dizer que não posso andar todo o dia com a roupa interior...

- Olhe, estamos em Cala Fuerte, San António, e não em Queen's Gate. Pessoalmente, não me importo se anda vestida ou nua, mas gostava de receber esse dinheiro o mais depressa possível, e devolvê-la aos jardins de Kensington e para a sua ama.

George Dyer inclinava-se sobre a sua secretária, procurando uma folha de papel e um lápis para escrever. Depois ergueu os olhos com uma expressão imperscrutável.

- Se você fosse mais velha e mais experiente, julgo que já me teria esbofeteado.

Selina disse para si mesma que, se chorasse de raiva, ou por qualquer outra razão, nunca mais perdoaria a si própria. Respondeu numa voz que apenas tremia ligeiramente:

- Essa ideia nunca me passou pela cabeça.

- bom. Não deixe que passe. - Sentou-se e puxou a folha de papel para si. - Agora, diga-me o nome do seu banco...

Depois da calma frescura de Cala Fuerte, San António pareceu-lhe, nessa tarde, invulgarmente quente, poeirenta e cheia de gente. As ruas estavam apinhadas de trânsito. Carros e motos, carroças de madeira puxadas por burros e bicicletas. Os passeios estreitos estavam tão compactos que as pessoas transbordavam para as estradas e George descobriu que era impossível avançar sem tirar a mão da buzina.

Os Correios e o banco ficavam situados na praça principal da cidade, em lados opostos, ladeados por árvores frondosas e por fontes. George parou o seu carro à sombra, acendeu um cigarro e dirigiu-se primeiro para o seu banco para saber se por acaso o seu dinheiro já teria chegado de Barcelona. Se tivesse, tencionava rasgar o telegrama de Selina e ir ao aeroporto comprar-lhe o bilhete de regresso a Londres.

Mas o dinheiro ainda não chegara. O caixa sugeriu amavelmente que, se George quisesse esperar ali umas quatro ou cinco horas, ele tentaria entrar em contacto com Barcelona para saber o que se passava. George quis saber então para que teria de esperar essas quatro ou cinco horas, e foi-lhe respondido que o telefone estava avariado e não tinha ainda sido reparado.

Depois de viver seis anos na ilha, ele sentia-se ainda dividido entre o desespero e o divertimento em relação à atitude local no que se referia a questões de tempo. Limitou-se a dizer que não tinha importância e saiu do banco, atravessou a praça para subir as escadarias do edifício dos Correios e entrar nas salas pavimentadas a mármore.

Copiou o telegrama para um impresso e, em seguida, meteu-se numa bicha que avançava lentamente. Quando finalmente chegou ao postigo, estava a perder a paciência. O homem que o atendeu tinha uma cabeça calva, morena, e uma verruga no nariz. Levou muito tempo a ler a mensagem, a contar as palavras e a consultar manuais. Por fim, carimbou o telegrama e disse a George que tinha de pagar noventa e cinco pesetas. George pagou e perguntou:

- Quando chegará a Londres?

O homem olhou para o relógio. - Esta noite... talvez.

- Vai enviá-lo já?

O homem com a verruga no nariz não se dignou responder. Olhou por cima do ombro de George e pronunciou:

- Quem se segue?

Nada mais havia a fazer. George saiu, acendeu outro cigarro e pensou no que iria fazer a seguir. Resolveu então passar pelo Clube Náutico para recolher o correio; não valeria a pena levar o carro. Começou a andar.

A multidão fazia-o sentir claustrofobia. Deixou-se ir pelo meio das ruas, afastando-se de vez em quando para deixar passar o tráfego. Nas varandas das casas também havia gente. Enormes avós vestidas de negro sentavam-se com os seus bordados, gozando o sol primaveril. Montes de crianças, com os olhos brilhantes como o uvas pretas, espreitavam por entre as grades. Por cima de tudo, indisfarçável, pairava o odor de San António, um cheiro a esgotos e a peixe, a madeira de cedro, a cigarros Ideales, à mistura com os aromas do porto que sopravam do mar.

George chegou a um pequeno cruzamento e parou na beira do passeio, à espera de poder atravessar. Um inválido, num pequeno quiosque, vendia bilhetes de lotaria e a uma esquina havia uma loja cuja montra exibia vestidos de algodão, blusas bordadas, chapéus de praia, sapatos e fatos de banho.

George pensou em Selina. Disse a si próprio que estava ansioso por a meter no avião para se ver livre dela, mas que Selina não poderia viajar se não tivesse um vestido. Talvez lhe fosse comprar um vestido. Mas ao entrar na loja ocorreu-lhe outra ideia muito mais divertida.

- Buenos dias, senor - disse a mulher ruiva que o atendeu, erguendo-se do banco onde se encontrava sentada, atrás do balcão.

- Buenos dias - respondeu George, dizendo-lhe depois o que queria.

Cinco minutos depois, encontrava-se novamente na ma cheia de gente, levando na mão um pequeno embrulho feito com papel de riscas cor-de-rosa e brancas. Estava ainda a sorrir para si próprio quando a buzina de um carro soou atrás dele. George praguejou saltando para um lado para deixar passar um Citroen preto que parou junto dele.

- Olhem quem veio à cidade! - disse uma voz que ele bem conhecia.

Era Francês. Parecia surpreendida e satisfeita. Trazia óculos escuros e um chapéu de palha de homem descaído sobre o nariz. Vestia uma camisa de um cor-de-rosa pálido. Inclinou-se e disse para George:

- Entra que eu levo-te onde quiseres.

George sentou-se ao lado dela. O estofo de cabedal do assento estava tão quente que George se sentiu a arder, mas, mesmo antes dele fechar a porta, já Francês tinha recomeçado a avançar, lentamente, por entre a multidão.

- Não esperava voltar a ver-te tão cedo.

- Eu também não esperava vir aqui.

- Há quanto tempo chegaste?

- Talvez há meia hora. Tive de enviar um telegrama. Francês não fez qualquer comentário. Outro grupo de peões

impedia-lhes a passagem. Senhoras gordas, com vestidos de Verão e casacos de malha brancos, chapéus de palha novos e rostos queimados pelo sol. A buzina de Francês fez-se ouvir outra vez e as turistas desviaram os olhos dos postais que tinha acabado de comprar e amontoaram-se na beira do passeio apinhado.

- De onde diabo vieram eles? - perguntou George.

- De um cruzeiro. É o primeiro da temporada.

- Oh, Deus. Já começou? Francês encolheu os ombros.

- Temos de aceitar isso da melhor maneira. Pelo menos, trazem dinheiro para a cidade. - Olhou para o pequeno embrulho que George trazia. - O que é que compraste na loja de Teresa?

- Como sabes que é a loja de Teresa?

- Pelo papel cor-de-rosa e branco. Estou intrigada. George pensou durante uns momentos.

- São lenços - disse.

- Não sabia que usavas lenços. - Tinham chegado à rua principal da cidade, uma artéria onde o tráfego era controlado por um mal-disposto agente da Guardiã Civil. O Citroen avançava devagar. Francês perguntou:

- Onde queres ir?

- Pode ser que haja algum correio no Clube Náutico.

- Não o foste buscar ontem?

- Sim. Mas pode haver mais. Ela olhou-o de soslaio.

- Chegaste bem a casa?

- Sim.

- O barco está bem?

- Sim, está bem. Ontem à noite, deram pelo temporal?

- Não. Aqui não se sentiu.

- Tiveram sorte. Foi um forte temporal.

Esperaram que as luzes do trânsito mudassem do vermelho para o verde e Francês meteu por uma rua estreita para depois entrar noutra mais larga, junto do porto. Era a zona favorita de George em San António, cheia de pequenos bares e estaleiros, cheirando a alcatrão e a parafina. O porto estava repleto de embarcações. Escunas e iates da ilha, o vapor vindo de Barcelona, que se preparava para partir, e o navio que andava em cruzeiro, vindo de Bremen.

George reparou num iate desconhecido, que não se encontrava ali na véspera.

- Tem bandeira holandesa - disse.

- É um jovem chamado Van Trikker, que anda a fazer uma viagem de circum-navegação - respondeu Francês que estava sempre a par dessas coisas.

- Através do Mediterrâneo?

- Sim, por que não? É para isso que serve o canal do Suez. George sorriu. Francês inclinou-se para a frente, tirou um maço

de cigarros do porta-luvas e entregou-lho. Ele acendeu um para si próprio e outro para ela. Quando chegaram ao Clube Náutico, George saiu e Francês ficou à espera dele no carro. Quando George regressou metendo duas cartas no bolso, ela perguntou:

- E agora, para onde?

- Vou tomar qualquer coisa.

- Eu Vou contigo.

- Não devias estar a vender originais de Olaf Svensens aos turistas?

- Tenho uma jovem estudante a trabalhar para mim. Ela pode tratar disso. - Virou o carro com um gesto. - Prefiro tomar conta de ti.

Foram ao bar de Pedro, que ficava um pouco mais adiante, na estrada. Pedro colocara algumas mesas e cadeiras no passeio e eles sentaram-se à sombra de uma árvore. George pediu uma cerveja e um conhaque para Francês.

- Querido, de repente tornaste-te muito abstémio - comentou ela.

- Estou verdadeiramente com sede.

- Espero que isso não seja doloroso.

Francês passou-lhe a mão atrás das costas para lhe tirar as cartas que ele metera no bolso. Quando o fez, colocou-as sobre a mesa em frente dele e disse:

- Abre-as.

- Porquê?

- É que eu sou curiosa. Gosto de saber o que está escrito nas cartas, especialmente se são de outras pessoas. Não gosto de as deixar envelhecer graciosamente, como velhas senhoras bem alimentadas. Toma... - pegou numa faca que se encontrava em cima da mesa e abriu ela própria os envelopes -, agora só precisas de as tirar para fora e lê-las.

Fazendo-lhe a vontade, George começou a ler. A primeira era de uma revista de desportos náuticos dizendo-lhe que pagaria oito libras e dez xelins por um artigo que ele lhes enviara.

George entregou a carta a Francês e ela leu-a exclamando:

- Não te tinha dito? Boas notícias.

- É melhor que nada. - Pegou na segunda carta.

- Sobre o que era o artigo?

- Sobre lemes automáticos.

Ela bateu-lhe nas costas.

- És um rapazinho esperto.... De quem é essa? Era do seu editor, mas ele estava já a ler a carta e não ouviu a pergunta.

«George Dyer,

Clube Náutico, San António,

Baleares

Espanha.

Caro Mr. Dyer,

Escrevi-lhe nada menos que cinco cartas nos últimos quatro meses com a esperança de que pudesse enviar-me, pelo menos, uma sinopse de um segundo livro que se seguiria a Fiesta at Cala Fuerte. Não recebi resposta a qualquer delas. Todas essas cartas foram dirigidas ao Clube Náutico em San António, e receio já não ser essa a sua posta restante.

Como fiz notar, quando concordámos em publicar Fiesta at Cala Fuerte, um segundo livro é importante para manter o interesse do público em si como escritor. Cala Fuerte tem-se vendido bem e vai na terceira edição. Estamos em negociações para ser feita uma edição de bolso, mas precisamos de um segundo livro, em breve, para que as vendas não baixem.

Infelizmente, não nos encontrámos pessoalmente para tratar deste assunto, mas creio que tornei bem claro, quando concordei em publicar Fiesta at Cala Fuerte, que só o poderia fazer se o livro fosse o primeiro de uma série, e fiquei com a impressão de que você tinha entendido isto.

De qualquer maneira, ficarei grato por uma resposta a esta carta.

Sinceramente, Arthur Rutland»

George leu a carta duas vezes e deixou-a cair sobre a mesa. O criado tinha trazido as bebidas e a cerveja estava tão fria que enevoava o copo alto. Quando George o rodeou com as mãos, sentiu uma dor, como se estivesse a tocar em gelo.

- De quem é? - perguntou Francês.

- Lê.

- Não quero ler se preferires que o não faça.

- Oh, lê isso.

Ela leu enquanto ele bebia a sua cerveja. Quando chegou ao fim da página, ela exclamou:

- Mas que carta! De quem é?

- Do meu editor.

- Mas tu não assinaste um contrato para escrever outro livro, pois não?

- Os editores não gostam de um livro isolado, Francês. Preferem que haja continuidade.

- Ele ja te escreveu outras cartas?

- Sim, já. Há quatro ou cinco meses que me anda a escrever. Por isso é que desisti de abrir as minhas cartas.

- Tentaste escrever um segundo livro?

- Se tentei! Estou farto de tentar. Mas Vou escrever a respeito de quê? Só escrevi o primeiro porque pensei que o meu dinheiro estava a acabar e porque o Inverno foi longo e gelado. Nunca pensei que mo publicassem.

- Mas tu tens andado por tantos sítios, George. Aquele cruzeiro ao mar Egeu...

- Julgas que não tentei escrever acerca disso? Passei três semanas a amontoar palavras e, quando o fui ler, apercebi-me de que o que tinha escrito não valia nada. O assunto já foi tratado. Não há coisa alguma que não tenha já sido tratada.

Francês tirou uma fumaça do cigarro e depois apagou-o cuidadosamente, no cinzeiro. As suas mãos morenas eram tão grandes como as de um homem, com as unhas largas e pintadas de um vermelho vivo. Usava uma pulseira de ouro, larga, pelo que, quando ela mexia o braço, a pulseira batia no tampo de madeira da mesa. Pensativamente, disse:

- Afinal, que importância tem isso? Escreveste um livro de sucesso. Se não conseguires escrever o segundo, paciência.

Nesse momento, saía um barco da bacia do Clube Náutico. Ouvia-se o barulho da âncora a ser levantada enquanto a vela subia no mastro. Ficou flácida durante um momento e, depois do barco descrever uma curva, a vela içou-se enfunada pela brisa, à medida que o barco se afastava elegantemente inclinado.

- Não gosto de quebrar uma promessa - disse George.

- Oh, querido, falas como se fosse uma coisa pessoal.

- Não é?

- Não. É profissional.

- Serias capaz de quebrar uma promessa profissional sem uma explicação?

- Claro que não. Mas escrever não é o mesmo que vender acções ou fazer contas. É um trabalho criativo que não obedece às mesmas regras. Se te sentires bloqueado como escritor, nada podes fazer.

- Bloqueado como escritor? - repetiu George. - É assim que se diz?

Francês pousou a mão com a pesada pulseira no braço dele e disse:

- Por que não esqueces isso? Escreve a Mr... - olhou de relance para a assinatura da carta - Rutland, e diz-lhe: «Bem, OK, se é isso que pensa, não estou disposto a escrever mais livros.»

- Pensas realmente que eu devo fazer isso? E depois? Ela encolheu os ombros.

- Bem... - disse com voz arrastada - há outras diversões

- Tais como...?

- Dentro de duas semanas, estaremos na Páscoa - pegou na faca de que se servira para abrir as cartas e começou a fazer traços sobre a mesa. - Fui convidada para ir a Málaga, para a corrida de domingo de Páscoa. Tenho amigos americanos em Málaga. São grandes aficionados. É lá que se vêem os melhores toiros e os melhores toreros de Espanha. E há festas durante todo o dia e toda a noite.

- Isso parece o programa de uma agência de viagens.

- Querido, não te zangues comigo. Não fui eu que escrevi a carta. Eu apenas a li.

- Eu sei. Desculpa.

- Queres ir comigo a Málaga?

O criado aproximou-se. George chamou-o e pagou as bebidas, dando-lhe uma gorjeta. Quando o rapaz se afastou, George pegou no boné, no embrulho de riscas cor-de-rosa e brancas e nas duas cartas.

- Não respondeste à minha pergunta - disse Francês. George levantou-se, agarrando as costas da cadeira.

- Esqueces que eu nunca fui um aficionado. Ver sangue faz-me desmaiar.

Francês pediu, como uma criança:

- Quero que vás...

- Estragaria tudo.

Ela desviou o olhar, tentando não mostrar o seu desapontamento e perguntou:

- Para onde vais agora?

- Vou regressar a Calla Fuerte.

- Não podes ficar aqui?

- Não, tenho de ir.

- Não me digas que tens de ir outra vez dar de comer à gata.

- Tenho mais coisas a fazer do que dar de comer à gata. focou-lhe num ombro, num gesto de despedida. - Obrigado pela boleia.

Quando George fez a viagem de regresso a Cala Fuerte começou a escurecer. Depois do Sol desaparecer do céu, o ar tornou-se gelado. Ao crepúsculo, parou junto de uma quinta isolada e vestiu uma camisola que trazia no carro. Quando a sua cabeça emergiu da gola da camisola, George viu a mulher do lavrador que ia buscar água ao poço. Para além da porta aberta, a casa estava iluminada com uma luz amarelada e a silhueta da mulher destacava-se no limiar da porta. George exclamou «Buenas tardes», e ela aproximou-se um pouco para dois dedos de conversa, descansando a bilha sobre a anca. Perguntou-lhe então onde fora e para onde ia.

George tinha sede e a mulher deu-lhe água, após o que seguiu caminho, com os faróis já acesos, perscrutando a débil claridade do anoitecer. As primeiras estrelas começavam a surgir no céu quando George passou em San Esteban. As luzes brilhavam à sombra da montanha quando ele atingiu o último troço de estrada antes de chegar a Cala Fuerte. O vento que soprava do mar levava até ele o cheiro resinoso dos pinheiros.

Sempre que se aproximava de casa, George tinha uma sensação agradável e reconfortante. Sentiu-se, de súbito, mais bem-disposto e compreendeu como estivera deprimido e cansado durante todo o dia. Nada lhe correra bem. A carta de Mr. Rutland aumentara o peso que tinha na consciência e havia ainda o problema de «Miss Queen's Gate». Pensou em como ela teria passado o dia, e disse para si próprio que não se preocupava especialmente com isso. Contudo, esperava que ela já não estivesse amuada.

Pôs o carro na garagem, desligou o motor, olhou de relance para o relógio. Já passava das oito. Saiu do carro, atravessou o caminho e abriu a porta da Casa Barco, onde entrou. Parecia não se encontrar ninguém ali, embora a casa revelasse que alguém lhe dera certos cuidados. A lareira crepitava, as luzes achavam-se acesas e a mesinha baixa, situada em frente da lareira, estava posta com uma toalha azul e branca, que George não sabia que possuía, tendo por cima copos, garfos e facas. Havia também uma taça com flores silvestres e pairava no ar um cheiro delicioso a cozinhados. George tirou o boné e dirigiu-se para o terraço sem fazer ruído, graças aos seus sapatos de sola de corda, mas a verdade é que o terraço estava escuro e não havia sinais da sua hóspede. Foi debruçar-se no muro, mas não viu ninguém. O único som que se ouvia era o marulhar da água e os pequenos estalidos do bote, quando a corda que o prendia era esticada. Depois, de um dos cafés do porto, partiu o som plangente de uma guitarra e uma mulher começou a cantar, numa cantilena a dois tons, um dos legados mouriscos da ilha.

George franziu a testa, perplexo, e voltou para casa. A galeria encontrava-se mergulhada na escuridão, mas havia luz na pequena cozinha. George debruçou-se por cima do balcão e viu então Selina inclinada para o forno, concentrada sobre o conteúdo de uma caçarola.

Disse em voz muito alta:

- Boas noites.

Selina levantou a cabeça. Ele não a sobressaltara e percebeu que ela já sabia que ele ali estava. Achou isso desconcertante. Isso parecia dar-lhe uma espécie de vantagem.

- Olá! - disse Selina.

- Que está a fazer?

- A preparar o jantar.

- Cheira bem.

- Espero que esteja bom. Não sou grande coisa a cozinhar.

     - Que é isso?

     - Bifes com cebola, pimentos e outras coisas.

     - Julguei que não tínhamos comida em casa.

     - E não tínhamos. Mas fui à loja de Maria comprá-las.

- Sim? - George ficou impressionado. - Mas Maria não fala inglês.

- Não. Eu sei. Mas encontrei um dicionário na gaveta da sua secretária.

- E com que dinheiro fez as compras

- Tive de pôr na sua conta. Também comprei umas sapatilhas para mim. Custaram oito pesetas. Espero que não se importe.

- De maneira nenhuma.

Selina olhou para a caçarola com ar crítico.

- Acha que tem bom aspecto?

- Esplêndido.

- Pensei em assar a carne, mas não achei nenhuma gordura a não ser azeite e pensei que não ficaria bem.

Selina pegou numa toalha, pôs a tampa novamente na caçarola e meteu-a no forno. Depois de fechar a porta do forno, endireitou-se e eles olharam-se dos dois lados do balcão.

- Teve um bom dia?

com a sua chegada a casa, George esquecera a sua má disposição anterior.

- O quê...? - perguntou. - Sim, tive um dia bom

- acrescentou.

- Enviou o telegrama?

- Sim, sim, enviei.

Selina tinha sardas no nariz e, sob a luz, o seu cabelo macio brilhava com madeixas douradas.

- Quanto tempo disseram que levava?

- O que nós pensámos. Três ou quatro dias. - George cruzou os braços e perguntou: - E como é que preencheu o seu dia?

- Oh... - Ela parecia nervosa e, para ter alguma coisa que fazer com as mãos, começou a limpar o tampo do balcão com o pano, tal como uma empregada de bar diligente. - Bem, travei amizade com Juanita, lavei a cabeça e sentei-me no terraço, ao sol...

- Tem sardas!

- Sim, eu sei. É horroroso. Em seguida, fui à aldeia fazer as compras, o que levou imenso tempo, pois toda a gente queria falar comigo, apesar de eu não perceber uma palavra do que diziam. Depois voltei e descasquei alguns vegetais...

- E acendeu a lareira... - interrompeu George. - E arranjou as flores...

- Reparou! Amanhã estarão secas. São flores do campo; apanhei-as quando regressei da aldeia. - George não fez qualquer comentário e ela continuou, como se uma paragem na conversa a enervasse: - Comeu alguma coisa hoje?

- Não. Não almocei. Bebi uma cerveja eram quatro horas.

- Está com fome?

- Estou esfomeado.

- Só me falta fazer uma salada. Levo dez minutos.

- Está a sugerir que devo vestir smoking e pôr um laço?

- Não. Nada disso.

Ele sorriu e espreguiçou-se. i

- Vou combinar uma coisa consigo. Vou lavar a cara para tirar o pó das orelhas e você prepara-me uma bebida.

Ela olhou-o, hesitante.

- Que espécie de bebida?

- Um uísque com soda. E gelo.

- Não sei que porção de uísque devo deitar.

- Dois dedos. - George mostrou-lhe como medir. - Bem, pode ser três ou quatro dedos. - Percebe a ideia?

- Posso tentar.

   - Bonita menina. Faça isso.

George foi buscar uma camisa lavada e tomou um duche rápido e gelado. Estava a pentear-se quando se viu ao espelho e pensou precisava de se barbear.

     Endireitou-se e disse para si próprio que ainda precisava mais da bebida que pedira a Selina para lhe preparar,     O reflexo no espelho pareceu responder-lhe: Bem, se ela se Wncomodou a pôr a mesa e a apanhar flores, tu também te podes incomodar a fazer a barba.     Mas eu não lhe pedi que apanhasse as flores,     Também não lhe pediste que fizesse o jantar, mas vais comê-lo,     Oh, cala-te! - pensou George, estendendo a mão para a navalha de barba.

Barbeou-se convenientemente, acabando com o que restava de um frasco de after-shave, tão pouco usado que começava a [congelar no fundo do frasco.

Ah, muito bem, disse-lhe agora o seu reflexo, enquanto ele recuava para se admirar.

Satisfeito? perguntou George e o seu reflexo mostrou-lhe um [sorriso sarcástico.

O uísque encontrava-se à espera dele, sobre a mesa perto da lareira, mas Selina voltara para a cozinha e estava a deitar a salada na grande tigela de madeira. George pegou no rádio e foi sentar-se de costas voltadas para o lume, tentando encontrar alguma música que pudessem ouvir. Nessa altura, Selina comentou:

- Está a decorrer uma festa no porto. Ouve-se cantar.

- Bem sei.

- É uma melodia estranha.

- Pois é. É mourisca.

O rádio, depois de muitos ruídos e interferências, começou a transmitir uma suave música de guitarra. George pousou-o, pegou no copo e levou-o aos lábios.

- Espero que a sua bebida esteja boa - disse Selina. George experimentou-a. Talvez demasiado forte, mas respondeu:

- Perfeita.

- Espero que o jantar esteja igualmente perfeito. Devia ter trazido também pão fresco, mas como havia muito pão cá em casa, não o fiz.

- Juanita gosta muito de pão. Todos os dias come imenso pão com queijo de cabra e um copo de vino tinto. Não sei como se mantém acordada.

Selina pegou na taça da salada e colocou-a no meio da mesa. Vestia uma camisa de riscas verdes e azuis, de que George até então nunca gostara, e umas calças azul-escuras, justas e bem engomadas, com um cinto estreito de cabedal em volta da cintura. George esquecera completamente a zanga dessa manhã. O assunto ridículo varrera-se-lhe da memória, mas, já que agora o seu subconsciente lho lembrava, ele não teve dúvidas em reconhecer o cinto como sendo um dos seus. Por isso, quando ela se ia afastar na direcção da pequena cozinha, agarrou-a por uma das extremidades do cinto e perguntou-lhe:

- Onde arranjou essas calças?

Selina, presa como um cãozinho agarrado pela cauda, respondeu:

- São suas.

O tom casual dela não era convincente.

- São minhas?

E eram. Tratava-se das suas melhores calças azul-escuras. George pousou o copo e voltou para ela o olhar de frente.

- Mas servem-lhe. - Selina mal o olhou. - Que é que fez às minhas melhores calças?

- Bem... - Os olhos dela abriram-se muito. - Quando saiu esta manhã, eu não tinha mais nada que fazer senão arrumar as coisas. Reparei então que as suas calças estavam muito sujas. Tinham nódoas, de molho, ou coisa assim, num dos lados da perna. E levei-as a Juanita. Ela lavou-as e encolheram.

Depois desta atrevida explicação, Selina mostrou-se ligeiramente embaraçada. George respondeu:

- Isso é uma grande mentira e você sabe-o bem. Essas calças tinham voltado da lavandaria há pouco tempo. Desde que cheguei aqui hoje, percebi que você estava comprometida, embaraçada. E eu a julgar que era por me ter preparado um bom jantar. Mas não foi, pois não?

Selina respondeu, lamentosamente:

- Mas eu não tinha nada que vestir.

- Por isso, vingou-se tirando-me as minhas melhores calças!

- Não foi vingança.

- Só porque não conseguiu aceitar um gracejo.

- Também não me parece estar a aceitar este muito bem.

- Isto é diferente.

- Como diferente?

George olhou-a, irritado, mas percebeu que a sua raiva inicial estava a desaparecer e que começava a achar graça à situação. Além disso, havia um brilho no olhar de Selina que revelava uma faceta insuspeita do carácter dela. Disse então:

- Nunca pensei que você tivesse coragem de se defender assim.

- Por isso é que está zangado?

- Não, claro que não. Gosto de ver que é corajosa. E de qualquer maneira - acrescentou, pensando que também lhe ia pregar uma partida -, tenho uma coisa para lhe oferecer.

- Tem?

- Tenho.

George foi buscar o pequeno embrulho que deixara junto do boné.

- Comprei-lhe um presente em San António. Espero que goste dele.

Selina olhou o embrulho com ar duvidoso.

- Não pode ser uma coisa para vestir...

- Abra-o e veja - disse George pegando no copo outra vez.

Selina obedeceu, desatando meticulosamente todos os nós do fio. Finalmente, o papel abriu-se e ela pegou nas duas partes do minúsculo biquini que ele lhe comprara.

Muito sério, George comentou:

- Esta manhã parecia tão preocupada por não ter nada para vestir, que eu resolvi comprar-lhe isto. Espero que a cor lhe agrade...

Selina ficou sem saber que dizer. O biquini parecia-lhe sugestivo e, ao mesmo tempo, chocante. O facto de lhe ser oferecido por George Dyer tornava a situação demasiado embaraçosa para que ela pudesse dizer alguma coisa. Certamente, ele não imaginava que ela o fosse usar.

Corada, sem olhar para George, Selina conseguiu dizer:

- Obrigada.

George começou a rir. Selina olhou-o, de testa franzida e ele perguntou, muito gentilmente: '

- Nunca ninguém brincou consigo? Selina sentiu-se tola. Abanou a cabeça.

- Nem sequer a ama? - George fez uma voz ridícula e, de repente, a situação deixou de ser embaraçosa para passar a ser engraçada.

- Oh, não fale da minha ama - respondeu Selina, mas o ar divertido dele era tão contagioso como o sarampo, que ele disse:

- Não deixe de sorrir. Devia estar sempre a sorrir. Você é realmente muito bonita quando sorri.

As sete e meia da manhã seguinte, George Dyer abriu a porta a Juanita. Encontrou-a, como de costume, sentada no muro com as mãos no colo e um cesto aos pés. O cesto estava coberto por uma toalha branca muito limpa, e Juanita sorriu com satisfação ao pegar-lhe e entrar em casa.

- Que leva nesse cesto, Juanita? - perguntou George.

- É um presente para a senorita. Algumas laranjas da árvoíe de Pepe, o marido de Maria.

- Foi Maria quem as mandou?

- Si, senor.

- Foi muito amável.

- A senorita está ainda a dormir?

- Creio que sim. Não fui ver.

Enquanto Juanita tirava água do poço para fazer o café George abriu as janelas, deixando entrar em casa a claridade da manhã. Depois foi para o terraço e sentiu o pavimento de pedra fresco debaixo dos seus pés. O Eclipse balouçava-se suavemente sobre as águas tranquilas. George decidiu que talvez fosse um bom dia para levar para lá a nova hélice. Nada mais tinha a fazer. O dia estendia-se na sua frente, abençoadamente livre de tarefas, para ele fazer o que lhe apetecesse. Olhou para o céu. Havia algumas nuvens para o interior, para além de San Esteban, mas a chuva caía sempre em torno dos altos cumes das montanhas, e sobre o mar o céu estava limpo e sem nuvens.

O ruído do balde ao descer para o poço acordara Selina. Foi logo ter com George, vestindo a camisa que trazia na noite anterior e, aparentemente, pouco mais roupa. As suas pernas longas e esbeltas já não estavam brancas, mas sim ligeiramente bronzeadas, da cor de um ovo fresco. Selina prendera o cabelo num engenhoso carrapito de onde caíam algumas madeixas. Foi pôrse ao lado de George, inclinada sobre o muro do terraço, pelo que este pôde ver o fio de ouro que ela usava ao pescoço, o qual, sem dúvida, teria alguma cruz ou medalha dos tempos da infância. George sempre sentira aversão pela palavra «inocência» associada a bebés gordos e rosados, ou a bilhetes postais onde se viam animaizinhos de estimação. Mas agora, sem querer, essa palavra ocorria-lhe ao olhar para esta rapariga que se encontrava a seu lado. De facto, os seus modos eram tão límpidos e inimitáveis como o toque de um sino.

Selina observava Pearl que fazia as suas abluções matinais deitada ao sol. De vez em quando, um peixe saltava na água pouco profunda e Pearl parava de se lavar e ficava imóvel e direita como um candeeiro de iluminação, para logo a seguir voltar à sua tarefa.

- No dia em que Tomeu nos trouxe até aqui, encontravam-se ali dois pescadores e Tomeu esteve a conversar com eles disse Selina.

- Um deles era Rafael, primo de Tomeu. Tem o barco dele junto do meu.

   - Será que as pessoas da aldeia se sentem parentes umas

das outras?

   - Mais ou menos. Juanita trouxe-lhe um presente.

Ela voltou-se para o olhar, com as madeixas de cabelo a fugirem-lhe do carrapito como borlas.

- Trouxe? O que é?

- Vá ver.

- Eu já lhe dei os bons dias, mas ela não me falou em nenhum presente.

- É porque não fala inglês. Vá lá, que ela está ansiosa por lho dar.

Selina desapareceu dentro de casa. George ouviu uma estranha troca de palavras e, daí a pouco, Selina reaparecia com o cesto nas mãos, já sem a toalha que o cobria anteriormente.

- Laranjas.

- Las naranjas - disse George.

- É assim que se diz? Julguei que ela me dizia que foram enviadas por Maria.

- É o marido da Maria quem as cultiva.

- Foram muito amáveis, não foram?

- Terá de lhe ir agradecer.

- Não posso fazer nada sem aprender a falar espanhol. Quanto tempo levou a aprender?

George encolheu os ombros. - Quatro meses. Depois de aqui viver. Antes disso, não sabia dizer uma palavra.

- Mas sabia francês.

- Oh, sim, e um pouco de italiano. O italiano é uma grande ajuda.

- Sou forçada a aprender algumas palavras.

- Tenho uma gramática que lhe posso emprestar. Pode aprender alguns verbos...

- Sei que buenos dias é bom dia.

- E buenas tardes é boas tardes. E buenas noches é boa noite.

- E si. Sei que sim é si...

- E não é no, que é a palavra mais importante para uma rapariga aprender.

- Até eu, com o meu cérebro de alfinete, me lembro disso.

- Oh, não estou assim tão certo disso.

Juanita apareceu com o tabuleiro do pequeno-almoço e começou a pôr as chávenas, pratos e outras coisas em cima da mesa. George falou-lhe, dizendo-lhe que a senorita ficara muito feliz com o presente de Maria e que, mais tarde, iria sem dúvida à aldeia agradecer pessoalmente a Maria. Juanita sorriu mais largamente que nunca, abanou a cabeça e levou o tabuleiro para a cozinha. Selina pegou numa ensamada e perguntou:

- Que é isto? George elucidou-a:

- São bolos feitos todas as manhãs pelo padeiro de San Esteban. Juanita compra-os todos os dias, ao vir para aqui, para eu os comer ao pequeno-almoço.

- Ensamadas. - Selina deu uma dentada num dos bolos macios, cobertos de açúcar. - Juanita trabalha para mais alguém ou apenas para si? - perguntou.

- Trabalha para o marido e para os filhos. Nos campos e em casa. Nunca fez outra coisa na vida senão trabalhar. Trabalhar, casar, ir à igreja e ter filhos.

- Parece muito contente, não parece? Sempre a sorrir.

- Tem as pernas muito curtas. Já reparou?

- Mas ter as pernas curtas nada tem a ver com estar contente.

- Não, mas faz dela uma das poucas mulheres do mundo capaz de esfregar o chão sem se ajoelhar.

Depois de acabado o pequeno-almoço e antes que fizesse muito calor, George e Selina foram a pé até à aldeia para fazerem compras. Selina vestiu as calças de George, encolhidas, e calçou as sapatilhas que comprara na véspera a Maria. George levava os cestos e, enquanto caminhavam, ensinou Selina a dizer «Muchas gradas para las naranjas.»

Entraram na loja de Maria pela porta da frente, onde se encontravam empilhados chapéus de palha, óleo para proteger do sol, rolos de películas e toalhas de praia. De seguida, passaram para a sala das traseiras, alta e escura. Ali, naquela sala fresca, viam-se inúmeros barris de vinho, caixotes com frutos perfumados, vegetais e pães tão compridos como um braço. Maria, Pepe, o marido dela, e Tomeu, estavam bastante atarefados a atender os clientes que, naquela altura, eram muitos; mas, quando George e Selina entraram na loja, todos pararam de falar e os olharam. George tocou com o cotovelo no de Selina e esta apressou-se a dizer: «Maria, muchas gradas para las naranjas», e houve muitos sorrisos de bocas desdentadas e muitas palmadinhas nas costas, como se ela tivesse feito algo de imensamente inteligente.

Foram cheios três cestos com mercearias, garrafas de vinho, pão e fruta, que ficaram prontos para Tomeu os ir entregar na Casa Barco, servindo-se da sua bicicleta. George aceitou o copo de brande que Pepe lhe ofereceu e, depois, ele e Selina dirigiram-se para o Cala Fuerte Hotel para visitarem Rudolfo. Sentaram-se no bar e Rudolfo deu-lhes café. Disseram-lhe também que já fora enviado um telegrama para Inglaterra por causa do dinheiro e que, dentro de dias, já lhe poderiam pagar. Como resposta, Rudolfo limitou-se a rir e a dizer que não se importava de esperar. George bebeu outro brande, despediram-se e voltaram para casa.

De regresso à Casa Barco, George foi buscar a gramática espanhola que o ajudara a aprender aquela língua e deu-a a Selina.

- Vou começar imediatamente.

- Bem, antes disso eu Vou até ao Eclipse. Quer vir também?

- Vai velejar com ele?

- Se Vou levá-lo a velejar? Não estamos em Frinton, sabe?

- Fez uma voz cómica, imitando o sotaque cockney: - Uma volta pela ilha, meia coroa.

- Pensei que fosse dar uma volta no barco - respondeu apenas Selina.

- Bem, não vou. Mas preciso de levar para lá a nova hélice e posso fazê-lo hoje. Você pode nadar, se quiser, mas aviso-a de que a água estará gelada.

- Posso levar a gramática comigo?

- Traga tudo o que quiser. Até podemos levar um piquenique.

- Um piquenique!

- Juanita pode meter alguma coisa para comer dentro de um cesto, tenho a certeza. Não será exactamente um cesto Fortnum e Mason...

- Oh, peça-lhe para fazer isso. Assim não teremos de voltar para almoçar.

Meia hora mais tarde metiam-se no bote. Selina ia sentada à proa, com a caixa contendo a hélice entre os joelhos. Levava a gramática, um dicionário e uma toalha para o caso de querer tomar banho. O cesto do piquenique ia aos pés de George que remava. Quando se afastaram do pequeno cais, viram Juanita debruçada no terraço a acenar-lhes com um pano do pó e Pearl, quase à beira da água, miando lamentavelmente por querer ir também.

- Por que não a levamos? - quis saber Selina.

- Ela detestaria estar no barco. Demasiada água traumatiza-a. Selina levava uma mão mergulhada na água segurando um longo limo verde.

- É como relva, não é? Ou como uma floresta ao vento. A água estava muito fria. Selina retirou a mão e voltou-se para olhar para a Casa Barco, fascinada por a ver sob aquele ângulo ainda novo para ela. - Tem um feitio muito diferente do das outras casas.

- É uma casa barco.

- Era uma casa para guardar barcos quando veio viver para aqui?

George parou de remar.

- Como secretária do clube dos fãs de George Dyer, parece ter lido o meu livro com muito pouca atenção. Ou não o leu?

- Sim. Li-o, mas estava apenas a procurar coisas a seu respeito, porque pensei que fosse meu pai. Mas, é claro, que não havia realmente nada acerca de si. Era tudo sobre a aldeia, o porto, os barcos e coisas assim.

George começou a remar outra vez.

- A primeira vez que vi Cala Fuerte foi do mar. Tinha vindo de Marselha, no Eclipse, sozinho, sem tripulação, e tive uma imensa dificuldade em descobrir este lugar. Ancorei aqui, a pouca distância do sítio onde o Eclipse se encontra agora.

- Pensou então que iria ficar aqui, arranjar aqui a sua casa para viver?

- Não sei em que pensei. Estava demasiado cansado para pensar. Mas lembro-me como era bom o cheiro dos pinheiros no começo da manhã.

Aproximaram-se do casco do Eclipse. George levantou-se, agarrou-se ao corrimão da escada e, segurando a amarra, subiu para o convés da proa, voltando-se depois para ajudar Selina a descarregar as coisas. Ela passou-lhe a toalha, o livro e o cesto do piquenique, subindo logo a seguir. George voltou então ao bote para içar a pesada caixa com a hélice.

A cobertura de oleado estava ainda a cobrir o telhado da cabina como George a deixara, mas agora encontrava-se completamente seca. Selina desceu para a cabina e colocou o cesto do piquenique sobre um dos assentos, olhando à sua volta com a confusa admiração de uma pessoa que nunca na sua vida se havia encontrado num barco tão pequeno.

- Parece-me terrivelmente pequeno - disse.

- O que é que esperava? O Queen Mary? - George colocou a caixa com a hélice no chão da cabina e empurrou-a para a meter debaixo de um dos assentos de ardósia.

- Não, claro que não. George levantou-se.

- Venha, vou-lhe mostrar o barco.

Desceram uns degraus e foram ter à minúscula cozinha, na qual havia também um espaço reservado à mesa de navegação, com gavetas por baixo onde cabiam as cartas. Mais adiante ficava o camarote, com dois beliches de cada lado de uma mesa dobrável. Selina quis saber se era ali que George dormia e, quando ele lhe disse que sim, Selina fez notar que devia ter dificuldade em caber nos beliches. De facto, enquanto ele devia medir cerca de um metro e oitenta, os beliches só teriam, quando muito, um metro e quarenta de comprimento. com um ar de conspirador, George mostrou-lhe então que a extremidade dos beliches se podia estender.

- Oh, estou a ver. Dorme com os pés metidos num buraco.

- Isso mesmo. E é bastante confortável.

Havia muitos livros, mantidos na sua posição nas prateleiras por traves. Reparou que as almofadas das camas eram azuis e vermelhas e apercebeu-se também da existência de uma lanterna de parafina que oscilava suspensa da balanceira. Viu algumas fotografias do Eclipse a navegar e passou por um armário cuja porta aberta deixava ver várias capas de oleado amarelas. George continuou passando pela coluna branca do mastro e Selina seguiu-o até a um pequeno recinto triangular onde havia um lavatório e os dispositivos da âncora e das velas.

- Parece-me tudo tão pequeno. Não posso imaginar como será viver num sítio tão apertado - disse Selina.

- Uma pessoa habitua-se. E quando estou sozinho vivo na cabina. Está tudo à mão. Posso sempre comer qualquer coisa quando estou a tratar de manobrar o barco. Vá, vamos para o convés.

Selina foi à frente, enquanto George se demorava a abrir as escotilhas. Selina pegou no cesto do piquenique e colocou-o junto de si, ao sol. Havia nele uma garrafa estreita que parecia quente. Quando Selina disse isso a George, este pegou num pedaço de corda, amarrou-a em torno do gargalo da garrafa e meteu-a na água. Depois desapareceu e voltou daí a pouco trazendo consigo o colchão de espuma de borracha de um dos beliches.

- Para que é isso?

- Pensei que você quisesse tomar um banho de sol - disse George estendendo o colchão.

- E você que vai fazer? Vai colocar a hélice?

- Não. Vou esperar até ter alguém para me ajudar, ou para o fazer por mim. - George desapareceu outra vez da vista de Selina e esta resolveu deitar-se em cima do colchão. Abriu a gramática e leu: «Os substantivos podem ser masculinos ou femininos. Devem sempre aprender-se com o artigo definido.»

O calor aumentava. Selina deixou cair a cabeça sobre o livro aberto e fechou os olhos. Ouvia a água a bater suavemente contra o casco do pequeno iate, cheirava bem, a pinheiros, e o calor do Sol era reconfortante. Selina estendeu os braços para deixar que o sol a acariciasse. A certa altura, o resto do mundo desapareceu para ela. A realidade estava ali, naquele momento, no iate branco ancorado na enseada azul, com George Dyer a andar lá em baixo, a abrir e a fechar gavetas e armários, praguejando ocasionalmente quando deixava cair qualquer coisa.

Mais tarde, Selina abriu os olhos e murmurou:

- George...

- Hummm...? - Ele estava sentado na cabina, nu da cintura para cima, fumando um cigarro e enrolando uma corda.

- Já sei qual o masculino e o feminino.

- Bem, isso é um bom começo.

- Pensei em ir nadar um bocado.

- Então vá.

Selina sentou-se, afastando o cabelo da cara.

- Acha que a água estará terrivelmente fria?

- Depois da de Frinton, não poderá parecer-lhe terrivelmente fria.

- Como sabe que eu costumava ir para Frinton?

- É o instinto que mo diz. Imagino-a a passar ali os seus verões com a ama. Roxa de frio e a tremer.

- Tem razão, é claro. E a praia é de pedras. Eu usava sempre uma enorme camisola por cima do fato de banho. Agnes também detestava lá estar. Só Deus sabe por que nos mandavam para lá.

Selina levantou-se e começou a desabotoar a sua camisa.

- A água é muito profunda. Sabe nadar? - perguntou George.

- Claro que sei nadar.

- Vou manter o arpão a jeito para o caso de aparecer um tubarão comedor de homens.

- Que engraçado! - Ela tirou a camisa e Dyer pôde ver que ela usava o biquini que ele lhe oferecera.

- Valha-me Deus! - exclamou ele, porque lhe oferecera aquilo por brincadeira e não esperara que ela tivesse a coragem de o vestir. A verdade é que se sentia como se ela é que lhe tivesse pregado uma partida.

Mais uma vez, a palavra «inocente» lhe ocorreu e ele pensou em Francês, com o seu corpo bronzeado e minúsculos biquinis que nela só podiam parecer vulgares.

George não ficou a saber se Selina ouvira a sua exclamação de espanto, pois nesse momento ela mergulhou. Então, ele ficou a vê-la nadar. Fazia-o sem espalhafato, com elegância e com o seu cabelo claro estendido na água, atrás dela, como uma nova e bela espécie de alga marinha.

Quando, finalmente, Selina voltou para o barco, a tremer de frio, ele atirou-lhe uma toalha e foi buscar qualquer coisa para ela comer; uma sanduiche com um bocado de queijo de cabra de Juanita. Quando George voltou, Selina encontrava-se sentada em cima do colchão, a esfregar o cabelo com a toalha. Fazia-lhe lembrar Pearl. Entregou-lhe o pão e ela recordou:

- Em Frinton comia sempre um bolo de gengibre. Agnes dizia que eram dentadas trémulas.

- Logo vi.

- Não deve dizer mal dela. Nem sequer a conhece.

- Peço desculpa.

- Acho que havia de gostar dela. Possivelmente, veria que tem muito em comum com ela. Mostra-se sempre muito zangada, mas isso não significa coisa alguma. Cão que ladra não morde.

- Muito obrigado.

- Isto é um cumprimento. Eu gosto muito de Agnes.

- Talvez se eu aprender a tricotar, você também venha a gostar de mim.

- Há mais pão? Ainda tenho fome.

Ele foi lá abaixo outra vez e, quando voltou, Selina estava mais uma vez deitada de barriga para baixo, com a gramática aberta. Dizia:

- Yo. Eu. Tu. Tu (familiar). Usted. Você (cortês).

- Não é usted, é usteth... - George pronunciou a palavra com subtil sotaque espanhol.

- Usteth... - Selina pegou no pão e começou a comê-lo distraidamente. - É engraçado - disse -, apesar de você já saber muita coisa a meu respeito, tive que lho dizer, naturalmente, porque pensei que fosse meu pai, mas o que é certo é que eu nada sei acerca de si.

George não respondeu e Selina voltou-se para o olhar. Ele estava de pé, a pouca distância dela, mas tinha a cara voltada para outro lado; observava um dos barcos de pesca que saía do porto, cortando as águas azul-esverdeadas, e ela apenas o podia ver de perfil. George nem sequer se virou quando ela falou, mas, passado um bocado, disse:

- Não, creio que não sabe.

- E eu tenho razão, não tenho? Fiesta at Cala Fuerte não é um livro a seu respeito. Você mal entra no livro.

O barco de pesca avançou para águas mais profundas e George perguntou:

- Que está tão ansiosa por saber?

- Nada. - Selina estava a desejar não ter tocado no assunto.

- Nada em particular. - Voltou um canto da página da gramática, mas depois alisou-a outra vez porque lhe tinham ensinado que era um mau costume. - Suponho que estou apenas a ser inquisitiva. Rodney, o meu advogado - como já lhe contei - foi quem me deu o livro. E quando lhe disse que julgava que você era meu pai e que queria procurá-lo, ele respondeu que eu devia deixar descansar .

- Parece-me que Rodney disse uma coisa muito imaginativa. - O barco de pesca passou por eles e dirigiu-se para águas mais profundas, com os motores a trabalharem mais depressa, a caminho do mar alto. George voltou-se para ela. - O tigre era eu?

- Não era isso. Ele receava apenas que eu fosse arranjar uma porção de complicações.

- Não seguiu o conselho dele.

- Não. Sei que não o fiz.

- Que é que está a tentar dizer?

- Apenas que sou naturalmente curiosa, creio. Desculpe.

- Nada tenho a esconder.

- Gosto de saber coisas a respeito das pessoas. Sobre as famílias, os pais.

- O meu pai foi morto em 1940.

- O seu pai foi morto também?

- O destroyer onde ele ia foi torpedeado por um submarino no Atlântico.

- Ele estava na Marinha? - George disse que sim com a cabeça. - Que idade tinha você?

- Doze anos.

- Tinha algum irmão ou irmã?

- Não.

- Que lhe sucedeu então?

- Bem... vejamos... fiquei na escola, depois cumpri o serviço militar. Por fim, decidi ficar no Exército e fazer uma comissão.

- Não preferiu a Marinha, como o seu pai?

- Não. Achei que o Exército seria mais divertido.

- E foi?

- Em parte. Nem sempre. Depois, o meu tio George sugeriu que, como ele não tinha filhos, seria boa ideia que eu fosse trabalhar para o negócio da família.

- Que negócio era?

- Fábricas de têxteis no West Riding de Yorkshire.

- E foi?

- Sim. Pareceu-me ser o meu dever.

- Mas não queria ir.

- Não. Não queria.

- Que sucedeu então? George pareceu vago.

- Bem, nada. Estive em Bradderford durante cinco anos, que era o que fora combinado, depois vendi a minha parte no negócio e saí.

- O seu tio George não se importou?

- Não ficou lá muito satisfeito.

- E que fez você depois?

- Comprei o Eclipse e, após vários anos de vagabundagem, vim para aqui e vivi feliz para sempre.

- E depois escreveu o seu livro.

- Sim, é claro, escrevi o meu livro.

- E isso foi a coisa mais importante de todas.

- Porquê tão importante?

- Porque é criativo. É algo que vem de dentro de si. Ser capaz de escrever é um dom. Eu não sou capaz de escrever coisa alguma.

- Eu também não sou capaz de escrever coisa alguma disse George -, e por isso é que Mr. Rutland me enviou essa mensagem por seu intermédio.

- Não vai escrever outro livro?

- Creia que o faria se pudesse. Comecei, mas o que escrevi era tão maçador que rasguei tudo e fiz uma fogueira. Fiquei desencorajado, para dizer o menos possível. Prometi ao editor que lhe apresentaria um esboço, mesmo só uma ideia para um segundo livro, dentro de um ano, mas é claro que não o fiz. Disseram-me que estou a sofrer de um bloqueio de escritor que, se quer saber, é a pior espécie de obstrução mental.

- Sobre que assunto era o segundo livro?

- Sobre uma viagem que fiz ao mar Egeu, antes de vir viver para aqui.

- O que é que correu mal?

- Estava uma coisa monótona, maçadora. A viagem foi óptima, mas a descrição que eu comecei a fazer dela era tão excitante como o de um passeio de autocarro através de Leeds, num domingo de chuva. De resto, é um assunto já muito explorado.

- Isso não tem importância. Certamente terá de encontrar uma perspectiva original, ou uma nova abordagem. Não é assim que funciona?

- Bem, é claro que sim. - Sorriu-lhe. - Você não é tão verde como parece.

- Você diz coisas agradáveis de uma maneira horrível.

- Eu sei. Sou torcido e tortuoso. E agora esses pronomes pessoais?

Selina olhou novamente para o livro.

- Usted. Você. El. Ele. Ella...

- Um duplo «l» pronuncia-se como se tivesse um «y» atrás. Elya...

- Elya... - repetiu Selina, olhando-o outra vez. - Nunca se casou?

George não respondeu imediatamente, mas o rosto dele ficou tenso como se, de repente, lhe tivessem acendido uma luz na frente dos olhos. Depois respondeu bastante calmamente:

- Nunca casei, mas estive para casar uma vez. - Selina ficou à espera e, talvez encorajado pelo silêncio dela, George continuou. - Foi enquanto estive em Bradderford. Os pais dela eram de Bradderford, muito ricos, muito simpáticos, pessoas que tinham subido na vida à custa de si próprias. O sal da terra, realmente. O pai tinha um Bentley, a mãe conduzia um Jaguar e Jenny montava a cavalo. Por outro lado, iam passar férias a St. Moritz para esquiar e para Formentor, durante o Verão. Assistiam também aos Festivais de Música de Leeds, já que achavam que era isso que se esperava deles.

- Não sei se está a ser amável ou cruel.

- Eu também não sei.

- Mas por que motivo é que ela rompeu o noivado?

- Não foi ela. Fui eu. Duas semanas antes do maior casamento a que Bradderford já teria assistido. Durante meses, não me pude aproximar de Jenny, pois só se tratava de damas de honor e de enxoval, de presentes de casamento e do banquete. Oh, Deus, os presentes de casamento! E começou a erguer-se um alto muro entre nós, tão alto que eu não podia aproximar-me dela. E quando eu percebi que ela não se importava com o muro, que nem sequer sabia que ele ali estava... bem, nunca tive muito respeito por mim próprio, mas o que tinha queria conservá-lo.

- Disse-lhe que não ia casar com ela?

- Sim. Fui a casa dela. Disse a Jenny e depois aos pais dela. E tudo teve lugar numa sala repleta de caixotes e de caixas cheias de candelabros de prata, saladeiras, serviços de chá, torradeiras. Foi uma coisa terrível. Horrorosa. - Estremeceu ligeiramente ao lembrar-se do sucedido. - Senti-me como um assassino.

Selina pensou no apartamento novo, nas alcatifas e no chintz, no ritual do vestido branco e no casamento na igreja, indo até ao altar pelo braço de Mr. Arthurstone. O pânico que subitamente a assaltou atingiu o terror próprio de um pesadelo. De se sentir perdida e de saber que estava perdida. De não ignorar que havia dado o passo errado e que para a frente nada mais existia a não ser desastre, precipícios e receios de todos os géneros. Apetecia-lhe levantar-se, saltar e fugir de tudo o que alguma vez se comprometera a fazer.

- Foi... foi nessa altura que saiu de Bradderford?

- Não se mostre tão horrorizada. Não, não foi. Ainda me faltavam dois anos. Passei-os ali sendo personna non grata para todas as mamãs e posto de lado por todo o género de pessoas. De certa maneira, foi bastante interessante ficar a saber quem eram os meus verdadeiros amigos... -Avançou e foi apoiar-se na amurada. - Mas nada disto serve para que você aprenda a falar um castelhano impecável. Veja se consegue dizer o presente do indicativo de hablar. Selina começou:

- Hablo. Eu falo. Usted habla. Você fala. Você estava apaixonado por ela?

George olhou-a de soslaio, mas ela não notou a mínima zanga nos seus olhos escuros, apenas dor. Depois, ele pousou a mão morena sobre a página da gramática e disse gentilmente:

- Sem olhar. Não deve fazer batota.

O Citroen entrou em Cala Fuerte à hora mais quente do dia. O Sol brilhava num céu azul sem nuvens, as sombras eram escuras e a poeira e as casas muito brancas. Não se via ninguém nas ruas; as portadas de madeira estavam fechadas, mas quando Francês parou em frente do Cala Fuerte Hotel e desligou o motor do potente carro fez-se um grande silêncio, quebrado apenas pelo murmurar dos pinheiros que se agitavam, levemente impelidos por uma brisa misteriosa, imperceptível.

Francês saiu do carro, subiu os degraus e passou pela cortina de fitas para entrar no bar de Rudolfo. Depois da claridade do Sol, levou um bocado a deixar que os seus olhos se habituassem à penumbra. De qualquer forma, Rudolfo encontrava-se ali, dormitando numa das cadeiras de vime, e acordou, quando ela se aproximou dele, sonolento e surpreendido.

- Olá, amigo - disse Francês. Ele esfregou os olhos.

- Francesca! Que está a fazer aqui?

- Resolvi vir até cá. Pode dar-me uma bebida? Ele foi para trás do bar.

- Que deseja?

- Tem cerveja gelada? - Francês sentou-se num dos bancos altos e puxou de um cigarro, acendendo-o com a caixa de fósforos que Rudolfo lhe passou. Rudolfo abriu uma garrafa de cerveja e deitou-a cuidadosamente no copo, dizendo:

- Não é boa altura do dia para conduzir um carro descapotável.

- Isso não me incomoda.

- Está muito calor para esta época do ano.

- Este é o dia mais quente que já tivemos. San António parece uma caixa de sardinhas; é um alívio vir para o campo.

- Por isso é que está aqui?

- Não completamente. Vim para ver George. - Rudolfo respondeu a isto com um característico encolher de ombros e um trejeito nos lábios que parecia querer insinuar qualquer coisa. Francês franziu a testa e perguntou: - Ele não se encontra aqui?

- Mas claro que está aqui! - Havia um brilho malicioso nos olhos de Rudolfo. - Sabia que ele tinha uma visita na Casa Barco?

- Uma visita?

- A filha.

- Filha? - Depois de soltar uma exclamação de assombro, Francês soltou uma gargalhada. - Está doido?

- Não estou doido. A filha dele está cá.

- Mas... mas George nunca foi casado.

- Disso não sei - respondeu Rudolfo.

- Que idade tem ela, pode dizer-me? Ele encolheu os ombros outra vez.

- Uns dezassete anos...?

- Mas isso é impossível... Rudolfo começou a ficar aborrecido.

- Francesca, já lhe disse que ela está cá.

- Vi George en San António ontem e ele nada me disse.

- Nem lhe deu qualquer ideia?

- Não. Não deu.

Mas aquilo não era rigorosamente verdadeiro, porque na véspera todas as acções dele lhe tinham parecido suspeitas. A necessidade súbita de enviar um telegrama, quando ainda no dia anterior estivera em San António, a compra feita na loja de Teresa, a mais feminina das lojas, e a sua observação final a respeito de ter de alimentar mais do que a gata quando voltasse a Cala Fuerte. Durante toda a noite ela estivera a pensar nessas três pistas, convencida de que indicariam qualquer coisa que ela devia saber. Nessa manhã, sentindo-se incapaz de permanecer mais tempo na ignorância do que se estava a passar, decidira ir a Cala Fuerte para ver se descobria o que havia. Mas também era verdade que as ruas congestionadas de San António tinham começado a contender-lhe com os nervos. Depois, ainda, a ideia das enseadas azuis e do ar puro de Cala Fuerte era realmente convidativa.

E agora aquilo. Era a filha dele, dizia Rudolfo. George tinha uma filha. Apagou o cigarro e reparou que a mão lhe tremia. Perguntou então, com o ar mais calmo e casual que conseguiu arranjar:

- Como se chama ela?

- A senorita? Selina.

- Selina. - Francês repetiu a palavra como se ela lhe deixasse mau gosto na boca. Acabou de beber a cerveja e, pousando o copo, declarou: - É melhor eu ir ver com os meus próprios olhos.

- Faça isso.

Ela saiu do banco alto, pegou na mala e dirigiu-se para a porta. Mas, ao chegar junto da cortina, parou e voltou-se. Rudolfo observava-a com um brilho malicioso nos seus olhos de rã.

- Rudolfo, se eu quisesse passar aqui a noite... teria um quarto para mim?

- Claro que sim, Francesca. Terei um preparado para si.

Francês conduziu o seu carro, envolto numa nuvem de pó, até à Casa Barco. Aí, arrumou o carro na única sombra que encontrou e atravessou o caminho para se dirigir para a casa. Abriu a porta verde e perguntou:

- Está alguém? - Como não obtivesse resposta, entrou.

A casa estava vazia. Cheirava bem a cinzas de madeira e a fruta e estava fresca, pois o ar entrava a jorros pelas janelas abertas. Deixou cair a mala sobre uma cadeira e olhou à sua volta, procurando sinais de uma visitante feminina, mas não descobriu nenhuns. Ouviu um débil ruído vindo da galeria, mas quando olhou, sobressaltada, viu que era apenas a ridícula gata de George que saltava da cama e começava a descer as escadas para receber a visita. Francês não gostava de gatos, especialmente daquela gata, e deu a Pearl um pequeno empurrão com o pé, mas a dignidade de Pearl não foi molestada. Sem se dignar olhar para trás, seguiu o seu caminho, de cauda erguida, na direcção do terraço. Passado um momento, Francês seguiu-a, levando na mão os binóculos de George. O Eclipse encontrava-se ancorado, imóvel. Francês ergueu os binóculos. O iate e os seus ocupantes surgiram diante da sua vista. George encontrava-se sentado numa das cadeiras, com o seu velho boné puxado para a nuca e um livro caído sobre o peito. A rapariga estava estendida sobre um colchão. Francês viu umas compridas pernas e uma quantidade de cabelo castanho-claro. Vestia uma camisa que parecia ser de George, mas Francês não conseguiu ver-lhe a cara. A pequena cena era de calmo companheirismo e Francês tinha a testa franzida ao baixar os binóculos. Foi colocá-los novamente sobre a mesa e, em seguida, dispôs-se a beber um copo da água pura e fresca do poço de George. Levou o copo para o terraço, puxou a cadeira que lhe pareceu ter um aspecto menos letal e sentou-se à sombra do toldo, preparando-se para esperar.

- Está acordada? - perguntou George.

- Sim.

- Creio que é melhor prepararmo-nos para nos irmos embora. Já estamos ao sol há longas horas.

Selina sentou-se e espreguiçou-se.

- Adormeci.

- Eu sei.

- Foi do delicioso vinho.

- Sim. Deve ter sido.

Remaram para a praia. O bote parecia suspenso como uma nuvem sobre a água tranquilamente azul, com a sua sombra avançando sobre as algas por debaixo deles. O mundo estava parado, quente e calmo, e parecia serem eles as únicas pessoas a habitá-lo. Selina sentia a pele a arder e esticada, como se fosse a pele de um fruto demasiado maduro prestes a abrir, mas essa sensação não era desagradável, apenas parte daquele esplêndido dia. Puxou o cesto vazio para junto dos seus joelhos e exclamou:

- Foi um óptimo piquenique. O melhor que eu já tive e esperou que George se saísse com algum gracejo a respeito de Frinton, mas, para sua surpresa e satisfação, ele nada disse, limitando-se a sorrir, como se também ele tivesse gostado.

George parou o bote junto do molhe, saltou para terra e prendeu a pequena embarcação com duas laçadas da corda.

Selina passou-lhe o cesto e saltou também para o cais. O pavimento queimava-lhe as solas dos pés descalços. Subiram os degraus que davam acesso à casa, com George à frente, de modo que Selina, atrás dele, pôde ouvir a voz de Francês Dongen antes de

a ver.

- Olhem quem aqui está!

Durante uma fracção de segundo, George pareceu ficar petrificado. Mas depois, como se não fosse nada, entrou no terraço.

- Olá, Francês - disse.

Selina seguiu-o mais lentamente. Francês achava-se estendida na velha cadeira de repouso, com os pés em cima da mesa. Vestia uma camisa de quadrados azuis e brancos, amarrada debaixo do peito de modo a deixar ver o estômago de um bronzeado escuro, e umas calças brancas, muito justas. Tinha descalçado os sapatos, e os pés dela, cruzados sobre a beira da mesa, além de escuros, estavam cheios de pó e apresentavam-se com as unhas pintadas de um vermelho vivo. Não fez qualquer esforço para se levantar ou sentar, deixando-se ficar estendida, indolente, com as mãos no chão, olhando George por baixo do seu curto cabelo louro.

- Não é uma surpresa agradável? - Olhou por cima do ombro dele e viu Selina. - Olá!

Selina sorriu debilmente.

- Olá.

George pousou o cesto.

- Que estás a fazer aqui?

- Bem, San António está impossível de calor e de gente e eu pensei em dar a mim mesma uns dias de férias.

- Vais ficar aqui?

- Rudolfo arranja-me um quarto.

- Falaste com Rudolfo?

- Sim, fui tomar uma bebida com ele antes de vir para aqui.

- Francês olhou-o com uma expressão maliciosa, porque percebeu que ele queria saber o que Rudolfo lhe teria dito.

George sentou-se na beira da mesa.

- Rudolfo disse-te que Selina estava aqui comigo?

- Sim, claro que disse. - Sorriu para Selina. - Sabe que nunca tive uma tão grande surpresa na minha vida? George, ainda não nos apresentaste.

- Desculpem. Selina, apresento-lhe Mrs. Dongen...

- Francês - disse Francês rapidamente.

- Francês, apresento-te Selina Bruce.

Selina avançou com a mão estendida, para a cumprimentar, mas Francês ignorou esse gesto hesitante.

- Está aqui de visita?

- Sim, estou...

- George, nunca me disseste que tinhas uma filha.

- Ela não é minha filha - respondeu George. Francês, com o rosto inexpressivo, pareceu aceitar isso.

Depois tirou os pés de cima da mesa e sentou-se.

- Estás a querer dizer-me que...

- Espere um momento, Selina... - Ela virou-se para o olhar e George notou que ela estava confusa, embaraçada e até mesmo um pouco magoada. Disse: - Não se importa que eu fale a sós com Francês por uns momentos?

- Não, não, claro que não. - Tentou sorrir, mostrar que não dava nenhuma importância ao facto e pousou rapidamente a toalha e o livro que levava, como para poder sair dali mais depressa.

- São só cinco minutos...

- Vou para o bote. Está fresco ali.

- Sim, faça isso.

Selina afastou-se rapidamente, descendo os degraus e desaparecendo da vista deles. Pearl, que estivera deitada no muro do terraço, levantou-se, espreguiçou-se e deu um salto ágil para a seguir. George voltou-se para Francês e repetiu:

- Ela não é minha filha.

- Bem, então quem diabo é ela?

- Chegou aqui, vinda de Londres, à minha procura, porque pensava que eu era pai dela.

- O que é que a fez pensar isso?

- A fotografia na contracapa do meu livro.

- Pareces-te com o pai dela?

- Sim. Pareço. com efeito, ele era meu primo afastado, mas morreu. Morreu há muitos anos. Foi morto na guerra.

- com certeza que ela não imaginava que ele ressuscitaria?

- Creio que se uma pessoa deseja ardentemente uma qualquer coisa, consegue acreditar em que aconteça um milagre.

- Rudolfo disse-me que ela é tua filha.

- Sim, eu sei. Correu o boato pela aldeia e para bem dela pareceu-me mais simpático não o negar. Ela já se encontra aqui há dois dias.

- A viver aqui? Contigo? Não deves estar bom da cabeça.

- Teve de ficar. A companhia de aviação perdeu a bagagem dela e o bilhete de regresso foi-lhe roubado no aeroporto.

- Por que é que não me falaste dela ontem?

- Porque me pareceu que não era nada da tua conta. A frase saiu mais grosseira do que ele desejava, por isso acrescentou: - Desculpa, mas é mesmo assim.

- O que é que os teus amigos de Cala Fuerte dirão quando souberem que ela não é tua filha? Quando perceberem que lhes mentiste?

- Explicar-lhes-ei depois dela se ter ido embora.

- E quando poderá ser?

- Quando recebermos dinheiro de Londres. Já devemos a Rudolfo seiscentas pesetas, e temos de comprar outro bilhete de avião. O meu dinheiro não veio de Barcelona...

- Queres dizer que se trata apenas de uma questão de dinheiro! - George fitou-a, admirado. - Só por isso é que ela está aqui? É só por causa do dinheiro que ela ainda não se foi embora?

- É uma razão tão boa como outra qualquer.

- Mas, que diabo, por que não foste ter comigo?   . George abriu a boca para lhe dizer porquê, mas fechou-a

outra vez. Francês mostrava-se incrédula.

     - Ela quer ficar aqui? Tu queres que ela fique?

- Não, claro que não. Ela está ansiosa por regressar e eu ansioso por me ver livre dela. Mas, entretanto, a situação é bastante inofensiva.

- Inofensiva? Isso é a coisa mais ingénua que já te ouvi dizer. Esta situação parece-me tão inofensiva como um barril de

; dinamite.

George não respondeu, mas deixou-se ficar sentado, de ombros curvados, com as mãos a apertarem com tal força a beira da mesa, que os nós dos dedos tornaram-se brancos. Francês pousou as mãos dela sobre as dele, carinhosamente, e ele não tentou tirar as suas. Ela prosseguiu:

- Agora confiaste em mim, por isso deixa-me ajudar. Há hoje, às sete horas, um avião de San António para Barcelona. Aí, há uma ligação para Londres e ela poderá lá chegar à meia-noite. Eu dar-lhe-ei o suficiente para a viagem e para voltar para onde vive. - George continuou calado e Francês continuou:

- Querido, não é altura para hesitações. Eu tenho razão e tu sabe-lo. Ela não pode permanecer mais tempo aqui.

Selina estava sentada na extremidade do molhe, de costas voltadas para a casa, com os pés dentro de água. George desceu os degraus do terraço, depois o declive, até que pisou as tábuas do pequeno molhe, que rangeram, mas nem assim ela virou a cabeça. George chamou-a pelo nome mas ela não respondeu. Depois aproximou-se dela.

- Ouça, quero falar consigo.

Ela inclinou-se sobre a água e o seu cabelo dividiu-se na nuca e caiu-lhe para os dois lados da cara.

- Selina, tente compreender.

- Ainda não disse nada.

- Pode voltar para Londres esta noite. Há um avião às sete; deve estar em casa à meia-noite, ou o mais tardar à uma da manhã. Francês diz que paga o seu bilhete...

- Quer que eu vá?

- Não se trata do que eu quero, ou do que você quer. Temos de fazer o que está certo e o que seja melhor para si. Suponho que nunca a devia ter deixado ficar aqui, mas as circunstâncias obrigaram-me a isso. Encaremos os factos; Cala Fuerte não é um sítio apropriado para uma pessoa como você, e a pobre Agnes deve estar ansiosa sem saber o que se está a passar. Penso, realmente, que você deve ir.

Selina tirou as suas compridas pernas da água e pôs os joelhos junto do queixo, abraçando-os como se estivesse a tentar prender-se, impedir-se de cair para qualquer um dos lados.

- Não estou a mandá-la embora. A decisão tem de ser sua...

- A sua amiga é muito amável.

- Ela quer ajudar.

- Se Vou voltar para Londres hoje - disse Selina -, não tenho muito tempo.

- Eu levo-a a San António.

- Não! - Ela surpreendeu-o com a sua veemência, voltando-se para o olhar pela primeira vez. - Não, não quero que me leve. Certamente haverá outra pessoa que me possa levar! Rudolfo ou um táxi ou qualquer coisa. Deve haver alguém...

Ele tentou não mostrar que ficara magoado.

- Bem, com certeza, mas...

- Não quero que me leve.

- Está bem. Isso não interessa.

- E em Londres telefonarei para Agnes do aeroporto. Ela estará em casa; posso meter-me num táxi e ela estará à minha espera.

Era como se ja se tivesse ido embora, pelo que parecia estarem ambos sozinhos. Ela estava só no avião, só em Londres, com frio, porque faria muito frio em Londres, e isto depois do calor de San António, tentando telefonar a Agnes de uma cabina pública. E seria depois da meia-noite, e Agnes estaria a dormir, mas acordaria lentamente. O telefone tocaria na casa vazia. Agnes levantar-se-ia, vestiria o roupão e iria acendendo as luzes à sua passagem até chegar ao telefone. E, depois disso, iria encher uma botija com água quente, abrir uma cama e aquecer leite. Mas, para além disto, George nada podia ver.

- Que vai fazer? Quando regressar a Londres? Quando tudo isto estiver terminado e esquecido? - perguntou.

- Não sei.

- Não tinha planos?

Passado um bocado, Selina abanou a cabeça. - Faça alguns - disse ele gentilmente. - Bons.

Foi decidido que Pepe, o marido de Maria, fosse contactado para saber se estaria disposto a levar Selina ao aeroporto. Pepe não fazia serviço de táxi, mas, em certas ocasiões, limpava o seu velho carro, sempre sujo de palha, de estrume de galinhas e de outros detritos - os quais, geralmente, se encrostavam nele profundamente - ela acabava por transportar alguém, mas sempre com relutância. George, conduzindo o carro de Francês, foi falar com Pepe e perguntar-lhe se estaria disposto ou não a levar Selina. Esta ficou sozinha com Pearl e Francês na Casa Barco a preparar as suas coisas.

Não levou muito tempo. Tomou um duche e vestiu as calças de George que Juanita encolhera tão amorosamente, a camisa às riscas e as sapatilhas que comprara na loja de Maria. O seu vestido dejersey servia agora de pano de pó a Juanita. E o biquini era tão pequeno que cabia, sem dificuldade, no fundo da mala de mão. E era tudo. Selina penteou-se e colocou o casaco sobre uma cadeira. Depois, com uma certa aversão, porque não lhe apetecia falar, dirigiu-se para o terraço onde Francês se encontrava novamente estendida na cadeira. Tinha os olhos fechados, mas quando ouviu Selina aproximar-se, abriu-os e virou a cabeça para a ver sentada no muro do terraço, na sua frente.

- Tudo pronto? - perguntou.

- Sim.

- Não levou muito tempo.

- Não tenho roupa nenhuma. A minha mala foi enviada para Madrid, por engano.

- Estão sempre a acontecer enganos desses. - Sentou-se e estendeu a mão para os cigarros. - Fuma?

- Não. Obrigada. Francês acendeu um.

- Espero que não pense que eu estou a interferir, afastando-a de um lugar como este.

- Não. De qualquer forma, tinha de me ir embora. Quanto mais depressa chegar a casa melhor.

- Vive em Londres?

- Sim. - Selina forçou-se a dizer: - Em Queen's Gate.

- Muito simpático. Gostou da sua visita a San António?

- Sim. Foi muito interessante.

- Pensou que George era seu pai.

- Pensei que pudesse ser. Mas enganei-me.

- Leu o livro dele?

- Ainda não o li bem. Mas lerei quando for para casa. Terei muito tempo para o fazer. - Depois acrescentou: - Tem sido um grande sucesso.

- Oh, sim - respondeu Francês, como se quisesse pôr o assunto de parte.

- Não o achou bom?

- Sim, é bom. É fresco e original. - Aspirou longamente o cigarro e deitou a cinza para o chão do terraço. - Mas não escreverá outro.

Selina franziu a testa.

- O que a faz dizer isso?

- Pensar que ele não é suficientemente disciplinado para escrever um segundo livro.

- Disseram-lhe que ele sofre de um bloqueio que o impede de exercer a sua actividade de escritor.

Francês riu.

- Olhe, querida, fui eu que lhe disse isso.

- Se não acha que ele é capaz de escrever um segundo livro por que motivo lhe fez notar que sofria de bloqueio de escritor?

- Porque ele estava deprimido e eu tentava animá-lo. George não precisa de escrever. Tem dinheiro e o duro labor de escrever não merece um tal esforço.

- Mas ele tem de escrever outro livro.

- Porquê?

- Porque concordou em fazê-lo. Porque o editor está à espera dele. Para seu próprio bem.

- Isso não passam de tretas.

- Não quer que ele continue a escrever?

- Ouça, querida, o que eu quero ou não quero não interessa. Estou apenas a dar uma opinião. Ouça, eu dirijo uma galeria de arte e lido constantemente com esses temperamentos, com artistas, com as suas esquisitas disposições. Creio que George não é um artista criativo.

- Mas se ele não escrever, que fará?

- O que fazia antes de escrever Fiesta at Cala Fuerte. Nada. Em San António é fácil não fazer nada, dizer manãna a tudo. - Sorriu. - Não fique tão chocada. George e eu temos o dobro da sua idade e, aos quarenta, algumas das suas ilusões e dos seus sonhos perdem muito da sua idealidade. A vida não precisa de ser tão real e tão honesta como aos dezoito... ou seja qual for a sua idade...

- Eu tenho vinte anos - disse Selina. A voz dela ficou subitamente fria e Francês sentiu-se satisfeita porque achou que a tinha aborrecido. Continuou estendida, observando Selina. Deixara de sentir medo porque Selina se ia embora; dentro de meia hora estaria a caminho do aeroporto de Londres. Voltaria para a sua vida, em Queen's Gate, que Francês se regozijava por desconhecer totalmente.

O som do Citroen que regressava perturbou o silêncio embaraçado que se estabelecera entre as duas, logo seguido pelo som menos sofisticado do velho carro de Pepe. Selina levantou-se.

- O táxi já chegou.

- Óptimo! - Francês apagou o cigarro no chão. - Vou dar-lhe o dinheiro.

Selina sentiu grande relutância em aceitar o dinheiro. Mas a verdade é que Francês estava a colocar-lho na palma da mão e não tinha hipótese de recusá-lo. George voltou e aproximou-se delas. Ele também parecia sentir-se desconfortável com tudo aquilo. Limitou-se a fazer notar que Selina iria precisar de libras em Londres e Francês apressou-se a assinar um dos seus cheques American Express e entregá-lo a Selina.

- Pode descontá-lo no aeroporto.

- É muito amável.

- Oh, tenho muito gosto. Não tem importância.

- Eu.... eu farei com que este dinheiro lhe seja devolvido...

- com certeza.

- Onde está a sua mala? - perguntou George.

- Lá dentro.

George foi buscá-la, mas antes ainda tirou o dinheiro das mãos de Selina e guardou-o na bolsa interior da mala de mão.

- Não o perca outra vez - disse. - Eu não o poderia suportar. - George dissera a frase como um gracejo, como se não pudesse tolerar a ideia de ficar mais uma vez com a rapariga. Rapidamente, para fazer esquecer o que acabara de dizer, acrescentou: - Tem o seu passaporte? - Ela disse que sim. - Tem a certeza?

- Sim, claro.

- Talvez seja melhor ir andando. Não há muito tempo a perder...

Ela estava a ser empurrada, com gentileza, mas também com firmeza, dali para fora. Nunca mais voltaria. Atrás dela, encontrava-se Francês Dongen, mesmo junto da porta aberta do terraço.

Vagarosamente, Selina seguiu George para dentro de casa. Ele pegou no casaco dela e afastou-se, como que para a deixar passar. Depois disse, gentilmente:

- Pepe está à sua espera... Selina engoliu em seco.

- Estou com muita sede. Acha que tenho tempo para beber qualquer coisa...?

- Claro que sim. - George dirigiu-se para o poço, mas Selina disse:

- Não, prefiro uma soda, é mais refrescante. Não se incomode. Eu Vou buscar uma ao frigorífico. É um momento.

Eles ficaram à espera, enquanto ela foi buscar a soda. Inclinou-se para abrir o frigorífico, a fim de retirar de lá a garrafa embaciada. Por momentos, ficou invisível e, quando se levantou, segurando a garrafa, deitou de imediato e com determinação o seu conteúdo para dentro de um copo. Bebeu-o tão rapidamente que George comentou que Selina acabaria por explodir.

- Não explodirei. - Pousou o copo vazio e, subitamente, sorriu como se aquele copo de soda tivesse resolvido todos os seus problemas. - Estava deliciosa.

Saíram para fora, para o sol onde Pepe os esperava. Pepe pegou no casaco de Selina e colocou-o sobre o banco de trás, que tão apressadamente limpara. Selina despediu-se de Francês e agradeceu-lhe a sua ajuda. Depois voltou-se para George. Não lhe estendeu a mão e ele não foi capaz de a beijar. Despediram-se sem se tocarem e George teve a sensação de que se sentia despedaçado.

Selina entrou no carro, direita, comovente e terrivelmente vulnerável, e Pepe sentou-se ao lado dela. George deu-lhe instruções no último minuto, ameaçando-o das piores coisas se algo corresse mal. Pepe compreendeu e sorriu, mostrando a falta de dentes, ao mesmo tempo que ligava o motor do velho carro.

O automóvel começou a subir o monte e, em breve, desapareceu da vista deles, mas George ficou muito tempo ali parado, depois do carro sair da sua visão. Permaneceu ali até o ruído do motor deixar de se ouvir.

Nessa noite houve uma grande festa no Cala Fuerte Hotel. Não fora planeada, mas evoluiu, como acontece com as melhores festas, crescendo e expandindo-se até incluir pessoas de uma dúzia de nacionalidades, e muitas bebidas. Toda a gente estava muito alegre. A dada altura, uma rapariga gorda resolveu dançar em cima de uma mesa, mas acabou por cair nos braços do namorado e ficou ali a dormir durante o resto da noite. Um dos homens começou a tocar guitarra e uma francesa dançou um flamenco, coisa que George achou ser o espectáculo mais divertido que já vira. Cerca da uma hora da manhã, contudo, George anunciou que ia para casa. Houve protestos de todos os lados, afirmações de que ele era um desmancha-prazeres, que era a vez dele pagar as bebidas, mas George permaneceu obstinado. É que sabia que tinha de se ir embora antes de deixar de rir e começar a chorar. Não há nada pior do que um bêbado sentimental.

Levantou-se da mesa, empurrando ruidosamente a cadeira.

- Eu também Vou - disse Francês.

- Disseste que ficavas aqui.

- Vou levar-te a casa. Que necessidade tens de ir a pé com um carro à porta?

George desistiu de discutir, porque era mais simples e requeria menos esforço do que fazer uma cena. Lá fora, a noite estava quente e estrelada. O Citroen encontrava-se estacionado no meio da praça. Enquanto se dirigiam para o carro, Francês meteu as chaves na mão de George, dizendo:

- Guia tu.

Ela era perfeitamente capaz de conduzir, mas, de vez em quando, gostava de se mostrar vulnerável e feminina. Por isso, George aceitou as chaves e sentou-se ao volante.

Ocorreu-lhe então que, enquanto o seu pequeno e ridículo carro de rodas amarelas não passava de um meio de andar pela ilha, o Citroen de Francês, rápido e potente, constituía, de certo modo, uma ampliação sexy da personalidade dela. Francês sentou-se ao lado dele com o pescoço escuro erguido para olhar as estrelas. O colo dela emergia assim do profundo decote em V da sua blusa. George percebeu que ela esperava ser beijada, mas acendeu um cigarro antes de ligar o motor. Então ela perguntou:

- Por que não me beijas?

- Não te devo beijar; não sei onde estiveste - respondeu George.

- Por que é que hás-de transformar tudo numa brincadeira?

- É o meu mecanismo de defesa britânico. Francês olhou para o relógio à luz do luar.

- É uma hora. Ela já deve estar em Londres, não achas?

- Deve estar.

- Queen's Gate. Não é realmente o nosso meio, pois não?

- George começou a assobiar baixinho uma melodia que durante toda a noite não lhe saíra da cabeça. - Não estás preocupado com ela, pois não?

- Não. Não estou preocupado. Mas, em todo o caso, eu é que devia tê-la levado ao aeroporto e não a ter deixado ir com Pepe naquela máquina de costura com rodas a que ele chama carro.

- Ela não queria que tu a levasses. Se teimasses, gritaria contigo e tu ficarias embaraçado.

George não respondeu a isso e ela riu.

- És como um urso teimoso que não morde.

- Estou demasiado embriagado para morder.

- Vamos para casa.

George conduziu, sempre a assobiar a mesma melodia, até chegarem à Casa Barco. George desligou o motor e saiu do carro. Francês fez o mesmo. Como se tivesse sido assim combinado, ela entrou com ele. A casa estava escura e fresca. George acendeu as luzes e foi, automaticamente, preparar uma bebida. É que George não ignorava que, sem uma bebida, acabaria por morrer ou, pelo menos, adormeceria a chorar, coisa que não queria fazer à vista de Francês.

Ela atirou-se para cima do sofá, como se estivesse em casa, com os pés em cima de um dos braços e a cabeça apoiada numa das almofadas azuis. George preparou duas bebidas, deixou cair o saca-rolhas e entornou o gelo.

- Estás há imenso tempo a assobiar a mesma melodia. Não sabes outra? - perguntou ela.

- Nem sequer sei o que é.

- Bem, pára com isso.

George sentia a cabeça a latejar e não conseguia encontrar um pano para limpar o gelo que se derretia. Pegou nas bebidas, levou-as para onde Francês estava e entregou-lhe a dela. Em seguida, sentou-se de costas voltadas para a lareira apagada.

Francês nunca deixou de o observar e, por fim, disse, imperturbável:

- Sabes, querido, que estás furioso comigo?

- Estou?

- Claro que sim.

- Porquê?

- Porque eu me livrei da tua pequena amiguinha. E porque, no fundo do teu coração, sabes que devias tê-lo feito tu mesmo há muito tempo.

- Não podia comprar um bilhete de avião sem dinheiro.

- Essa, se não te importas que o diga, é a desculpa mais fraca que um homem já deu a si mesmo.

George olhou para a sua bebida.

- Talvez seja.

A melodia continuava a soar-lhe aos ouvidos. Passado um bocado, Francês comentou:

- Quando saíste para ires falar com Pepe e essa pequena se foi arranjar, aproveitei para examinar a tua secretária. Não pareces estar a ser muito produtivo.

- Não estou. Não escrevi uma palavra.

- Respondeste ao caro Mr. Rutland?

- Não, também não fiz isso. Mas - acrescentou com uma leve malícia - consultei um especialista que me disse que eu sofro de um bloqueio de escritor.

- Bem - respondeu Francês com uma certa satisfação -, isso pelo menos já se aproxima mais daquilo que és normalmente. E se tiras as luvas de pelica, eu posso tirá-las também. Sabes, querido, não acredito que alguma vez chegues a escrever esse segundo livro.

- O que te dá tanta certeza disso?

- Tu mesmo. A maneira como és. Escrever é um trabalho duro e tu és um desses clássicos expatriados ingleses que são capazes de se manterem sem nada fazer (e com mais classe) do que qualquer outra raça no mundo. - George ouviu as palavras dela com um brilho divertido no olhar e Francês sentou-se, encorajada por não ter perdido a habilidade de o fazer rir. - George, se não queres ir a Málaga, se não gostas de touradas, então eu também não quero ir. Mas por que não havemos de ir viajar juntos? Podíamos ir no Eclipse até à Sardenha, ou até à Austrália, ou andar de camelo no deserto de Gobi...

- com as malas na corcova da frente.

- Lá estás tu a gracejar com tudo outra vez. Falo a sério. Somos livres e temos todo o tempo do mundo. Por que é que te hás-de amarrar a uma máquina de escrever? Achas que há algum assunto sobre o qual possas escrever bem?

- Não sei, Francês.

Ela deixou-se cair de novo sobre as almofadas. Acabara de beber a sua bebida e deixara o copo no chão, junto do sofá. Estava estendida, sedutora, elegante, assustadoramente familiar.

- Amo-te. Deves saber isso - disse ela.

Parecia não haver razão para não fazer amor com ela. George pousou o copo e foi sentar-se ao lado dela. Tomou-a nos braços e beijou-a como se quisesse afogar-se. Ela soltava pequenos murmúrios de prazer e metia-lhe as mãos pelos cabelos. Ele tirou a boca da dela e roçou o seu rosto pelo queixo e pescoço de Francês que sentiu a rijeza da barba dele na sua pele. Francês mergulhou a cara no peito dele e os seus braços fortes apertaram-no como um torno.

- Amas-me? - perguntou ela, mas ele não lhe pôde responder. - Gostas de mim? Desejas-me?

Ele tirou-lhe os braços do pescoço e endireitou-se, segurando-Lhe os braços como se estivessem a lutar.

Francês começou a rir. A força dela e o seu humor eram duas coisas que ele sempre apreciara nela.

- Creio que estás completamente embriagado.

George levantou-se e foi buscar os cigarros. Francês sentou-se no sofá e passou as mãos pelo cabelo. - Preciso de me arranjar antes de voltar para o hotel de Rudolfo. Ele é antiquado a respeito de muitas coisas. Importas-te que eu vá ao teu quarto?

- Vai lá - respondeu George, acendendo as luzes de cima. Francês subiu os degraus a correr, com os saltos das sandálias

a baterem na madeira. Cantarolava a canção que atormentara George toda a noite, mas continuava a não dizer as palavras. Então, de repente, como se alguém tivesse desligado um rádio, ela calou-se. O silêncio súbito teve em George o mesmo efeito que teria um grito. Imobilizou-se e ficou de ouvido à escuta como um cão desconfiado.

Francês apareceu outra vez na escada, com uma expressão no rosto que ele não conseguiu compreender. Disse estupidamente:

- Que se passa? Não encontraste um pente?

- Não sei - respondeu Francês. - Não procurei. Só olhei para a cama...

- Para a cama? - George cada vez comprendia menos. Seria uma brincadeira dela? Mais um exemplo do seu sentido

de humor?

Compreendeu então, horrorizado, que ela estava verdadeiramente furiosa. Por baixo do cuidadoso controlo da sua voz, havia o tremor de uma explosão incipiente.

- Francês, não sei de que estás a falar.

- Da rapariga. Da tua filha. Selina ou como queiras chamar-lhe. Sabes onde ela está? Não é em San António, nem em Londres. Nem sequer no aeroporto de San António. Está ali em cima no teu quarto, na tua cama... - Apontou um dedo trémulo e acusador e o seu controlo, como uma borracha demasiado esticada, partiu-se subitamente. - Na tua cama!

- Não acredito.

- Bem, então vai ver. Vai lá acima e vê. George não se mexeu.

- Não sei o que se passa aqui, George, mas não gastei uma quantidade considerável de pesetas para encontrar essa pequena vadia outra vez na tua cama...

- Ela não é uma vadia.

- ... e se queres dar-me alguma explicação, terá de ser convincente, porque eu não Vou acreditar outra vez nessa história de ter perdido a bagagem e de pensar que tu eras o papá dela...

- É verdade.

- Verdade? Ouve lá, meu patife, quem é que julgas que estás a enganar? - Ela começara a gritar e isso era uma coisa que ele não suportava.

- Eu não sabia que ela ia voltar...

- Pois bem. Põe-a fora agora...

- Não farei tal coisa...

- Muito bem. - Francês inclinou-se para pegar na sua mala. - Se queres continuar a ter cá em casa essa pequena vadia, aldrabona, eu não tenho nada com isso...

- Cala-te!

- ... mas não me envolvas nesse esquema complicado para proteger as vossas reputações, porque, na minha opinião, elas não merecem ser protegidas. - Francês dirigiu-se para a porta, abriu-a de par em par, voltando-se para dizer mais qualquer coisa, mas o efeito que ela desejava ficou ligeiramente comprometido com a entrada de Pearl, erecta e digna. Tinha estado lá fora à espera que alguém abrisse a porta para entrar, e, quando Francês fizera exactamente isso, ela entrara com um miado de apreço e de agradecimento.

- É melhor ires-te embora - disse George o mais calmamente que pôde.

Francês respondeu:

- Não te incomodes; já fui! - e parou apenas o tempo suficiente para dar um pontapé em Pearl. Depois saiu e atirou com a porta com tanta força que toda a casa estremeceu.

Daí a momentos, o silêncio da noite foi quebrado pelo ruído do motor do Citroen, que partiu com um arranque brutal, ruído esse que se prolongou quando o automóvel começou a subir o monte com uma velocidade tal que fez George arrepiar-se.

Inclinou-se para pegar em Pearl Os sentimentos dela tinham sido ofendidos mas, como o pontapé não causara mais danos, George colocou-a gentilmente sobre a almofada preferida e no sofá. Um ligeiro movimento lá em cima levou a que George erguesse a cabeça. Selina encontrava-se ali, com as mãos apoiadas no corrimão da galeria, olhando-o. Vestia uma camisa de noite branca com umas fitas azuis em volta do pescoço e perguntou ansiosamente:

- Pearl está bem?

- Sim, está bem. Que está a fazer aqui?

- Estava na cama. A dormir.

- Agora não está a dormir. Vista qualquer coisa e venha para baixo.

Um momento depois, Selina descia, descalça e atando as fitas de um ridículo roupão branco que condizia com a camisa de noite. George franziu a testa e perguntou:

- Onde foi buscar isso? Selina aproximou-se dele.

- A minha mala chegou. Veio de Madrid. - Selina sorriu, como se ele devesse ficar satisfeito, pelo que George teve de recorrer ao sarcasmo.

- Então chegou a ir ao aeroporto?

- Oh, sim.

- E que sucedeu desta vez? O voo foi cancelado? Não havia lugar no avião? Ou Pepe teve um furo?

- Nenhuma dessas coisas. - Os olhos dela estavam tão abertos que o azul se encontrava inteiramente orlado de branco.

- Perdi o meu passaporte.

- O quê? - George percebeu, contrariado, que soltara um grito de incredulidade.

- Sim, foi uma coisa extraordinária. Sei que me perguntou se eu tinha o passaporte antes de eu sair. Bem, nessa altura estava na minha mala e eu não me lembro de a ter aberto depois disso, mas, quando cheguei ao aeroporto e estava a comprar o bilhete, abri a mala e vi que o passaporte havia desaparecido.

Selina olhou-o para avaliar a reacção dele ao ouvir aquelas informações. George recostou-se para trás no sofá e manteve uma calma monumental.

- Compreendo. E que fez então?

- Bem, participei à Guardiã Civil, claro.

- E que disse a Guardiã Civil?

- Oh, mostraram-se muito delicados e compreensivos. Então achei que o melhor era voltar para aqui e esperar que eles o encontrassem.

- Eles quem?

- A Guardiã Civil.

Fez-se silêncio, enquanto os dois se observavam.

- Selina.

- Sim?

- Sabe o que a Guardiã Civil faz às pessoas que perdem o passaporte? Metem-nas na prisão, internam-nas como prisioneiros políticos. Deixam-nas apodrecer nos calabouços até os passaportes serem encontrados.

- Bem, não me fizeram isso a mim.

- Está a mentir, não está? Onde é que meteu o passaporte?

- Não sei. Perdi-o.

- Ouça, Júnior, em Espanha não se pode brincar com os passaportes.

- Eu não estou a brincar.

- Contou a Pepe a respeito do passaporte?

- Não falo espanhol. Como havia de lhe contar?

- Mas convenceu-o a trazê-la de novo para aqui?

Ela pareceu ficar desconcertada pelo que se limitou a dizer corajosamente:

- Sim.

- Quando chegou?

- Por volta das onze horas.

- Acordou quando entrámos? - Ela disse que sim com a cabeça. - Então ouviu a nossa conversa?

- Bem, tentei meter a cabeça debaixo dos cobertores, mas Mrs. Dongen tem uma voz que se faz ouvir muito bem. Lamento que ela não goste de mim. - Não havia qualquer comentário a fazer a isso e Selina prosseguiu num tom de voz que daria crédito à sua avó: - Vai casar com ela?

- Sabe uma coisa? Você põe-me doente.

- Ela é casada?

- Já não é.

- Que sucedeu ao marido dela?

- Não sei... como hei-de saber? Talvez tenha morrido.

- Ela matou-o?

As mãos dele pareceram subitamente ter vida própria. Apeteciam-lhe agarrar Selina e sacudi-la, esbofeteá-la para lhe tirar aquela expressão astuta do rosto. George meteu as mãos nos bolsos, para dominar esses instintos primitivos, mas Selina parecia não reparar no turbilhão que estava a desencadear dentro dele.

- Suponho que foi muito aborrecido para ela encontrar-me aqui, mas ela não quis ficar e ouvir uma explicação. Limitou-se a dar um pontapé na pobre Pearl. Seria mais justo se mo desse a mim. - Olhou George directamente nos olhos e este ficou admirado com a ousadia de Selina. - Ela deve conhecê-lo muito bem, para lhe falar como lhe falou ainda agora. Queria que você fizesse amor com ela.

- Está a abusar, Selina.

- E ela parece pensar que você nunca será capaz de escrever outro livro.

- Pode não estar enganada acerca disso.

- Nem sequer vai tentar? George disse lentamente:

- Meta-se na sua vida. - Mas nem isso a deteve.

- Parece-me a mim que você está com receio de falhar mesmo antes de começar. Mrs. Dongen tinha razão, você foi moldado no molde clássico desses expatriados ingleses que não servem para nada - Selina fez uma espantosa imitação da voz arrastada de Francês - e creio que seria uma pena destruir essa imagem. E, afinal de contas, que importância tem isso? Você não precisa de escrever para ganhar a vida. E quanto a Mr. Rutland, que importância tem quebrar uma promessa? Pode faltar à sua palavra tão facilmente como faltou à sua promessa quando estava para casar.

Antes dele poder pensar, ou dominar-se, a mão direita de George saiu da prisão do bolso e esbofeteou Selina. O som da bofetada lembrava o de um rebentamento de um saco de papel. O silêncio que se seguiu foi doloroso. Selina olhou-o, incrédula, mas curiosamente sem revelar ressentimento, enquanto George esfregava a mão contra a perna. Lembrou-se que não chegara a encontrar os cigarros. Procurou-os e tirou um para o acender ficando horrorizado ao ver como as suas mãos tremiam. Quando por fim se voltou, percebeu, com horror, que ela se continha para não chorar. A ideia das lágrimas e das subsequentes recriminações e desculpas, esmagava-o quase mais do que ele podia suportar. Além disso, era tarde de mais para pedir desculpa. Então, disse impacientemente:

- Vá, vá lá para cima! - e, quando ela se voltou, num redemoinho de pernas nuas e de seda branca, para fugir para a cama dela, ele disse-lhe ainda: - E não bata com a porta! -, mas o gracejo não teve graça, nem provocou qualquer efeito.

Era tarde quando ele acordou. Soube-o pelo ângulo dos raios do Sol, pelas sombras da água reflectidas no tecto e pelo ruído suave que Juanita fazia ao varrer o terraço. Sentindo-se instintivamente tenso pela ressaca que sabia se iria abater sobre si, George olhou para o relógio. Viu então que eram dez e meia. Há anos que não dormia até tão tarde.

Mexeu cuidadosamente a cabeça de um lado para o outro, esperando pela primeira punhalada da sua bem merecida agonia. Nada sucedeu. Forçando a sua sorte, tentou rolar os olhos, mas a sensação não era de modo algum dolorosa. Afastou para o lado a manta vermelha e branca e sentou-se cautelosamente. Era um milagre. Sentia-se bastante normal; melhor do que normal, vivo, desperto e cheio de energia.

Depois pegou nas suas roupas, foi tomar um duche e fazer a barba. Enquanto escanhoava a barba, a melodia da noite anterior veio-lhe à memória outra vez, mas agora com palavras.

Foi então que compreendeu - agora demasiado tarde a razão por que Francês se mostrara tão irritada por ele a assobiar.

Habituei-me ao rosto dela. Ela quase que faz o dia começar.

Bem, perguntou ele à sua imagem que se reflectia no espelho, é verdade ou não que estás a ficar calejado? Mas, quando acabou de se vestir, foi buscar o seu velho gira-discos, tirou o pó do disco de Frank Sinatra e pô-lo a tocar.

Juanita acabara de lavar o terraço e agora, ouvindo a música, pousou o balde e a escova e aproximou-se, deixando no pavimento de azulejo as marcas dos seus pés descalços.

- Senor - disse.

- Buenos dias, Juanita.

- O senor dormiu bem?

- Talvez demasiado bem.

Habituei-me à melodia

Que ela assobia à noite e ao meio-dia.

- Onde está a senorita?

- Foi até ao barco do senor, para nadar.

- Como chegou até lá?

- Levou o barco pequeno.

George ergueu as sobrancelhas, surpreendido.

- Bem, bom para ela. Há café, Juanita?

- Vou fazê-lo.

Juanita foi tirar um balde de água e George compreendeu que se sentia suficientemente bem para lhe apetecer um cigarro. Encontrou um, acendeu-o e perguntou cautelosamente:

- Juanita?

- Si, senor.

- Ficou uma americana no Cala Fuerte Hotel esta noite...

- No, senor. Ele franziu a testa.

- Como não?

Juanita estava na cozinha a pôr a chaleira ao lume.

- Ela não ficou, senor. Voltou para San António a noite passada. Não ficou no quarto no hotel. Rosita disse aTomeu, Tomeu disse a Maria e Maria...

- Eu sei. Maria contou-lhe a si. - Mas as notícias de Juanita deram-lhe uma espécie de alívio, embora a ideia de que Francês conduzira o potente carro durante a noite lhe causasse calafrios. Rezou para que nada lhe tivesse acontecido, que não tivesse havido qualquer acidente e para que ela não estivesse, nessa altura, caída nalgum barranco, debaixo do carro.

com o ar de um homem perseguido pelos sarilhos por todos os lados, George coçou a nuca e saiu para o terraço à procura da sua outra dor de cabeça. Pegou nos binóculos e focou-os sobre o Eclipse, mas, apesar de ver o bote balouçar calmamente sobre a água, junto do iate, não conseguiu descortinar sinais de Selina.

O dia estava bonito. Tão claro como o anterior, mas mais fresco, e o mar tinha uma ligeira ondulação. Pequenas ondas batiam alegremente no pequeno molhe, por baixo dele. George sentiu-se descontraído e satisfeito sob todos os aspectos. O céu estava azul, o mar também, o Eclipse balouçava serenamente preso nas suas amarras, o terraço apresentava-se branco, os gerânios vermelhos, tudo, enfim, lhe era deliciosamente familiar. Naquela manhã, magicamente fresca, Pearl encontrava-se sentada na beira do molhe comendo uns restos de peixe que encontrara, enquanto Juanita fazia café. George não se recordava de se ter sentido tão esperançoso e optimista. Era como se vivesse há anos na obscuridade que precede uma tempestade e agora essa tempestade tivesse passado, a pressão desaparecido e pudesse, por fim, respirar livremente.

Disse para si próprio que devia estar submerso num poço de remorsos, mas o seu bem-estar físico era demasiado para ensombrar a sua consciência. Durante todo esse tempo, George estivera debruçado sobre o muro do terraço, com as mãos apoiadas nele. Quando se endireitou viu que as mãos tinham ficado sujas de cal. A sua reacção automática foi limpá-las às calças, mas a sua atenção foi atraída pelas marcas das impressões digitais, realçadas pela cal branca e tão delicadamente desenhadas, como se se tratasse de um mapa microscópico. Um verdadeiro mapa de si próprio, único, não apenas pela vida que levara, como também por tudo aquilo que fazia agora. Eram realmente singulares.

George não se sentia especialmente orgulhoso de si próprio. Tinha, no decorrer dos anos, magoado e ofendido demasiadas pessoas. Na noite anterior, atingira o clímax disso tudo, pelo que nem sequer queria pensar em tais coisas. Mas nada disso podia afastar a sua actual sensação exaltante de identidade.

Habituei-me ao rosto dela.

O disco acabou e ele foi para dentro para o tirar. Quando fechou a tampa do gira-discos, chamou:

- Juanita.

Ela estava a deitar café no jarro.

- Senor?

- Juanita, sabia que Pepe, o marido de Maria, tinha levado a senorita ao aeroporto, ontem à tarde?

- Si, senor - respondeu ela sem olhar para ele.

- Ele disse-lhe que tinha trazido a senorita outra vez?

- Si, senor. Toda a aldeia o sabe.

Era inevitável. George suspirou, mas persistiu no seu interrogatório.

- E Pepe disse que a senorita tinha perdido o passaporte?

- Ele não sabe se se perdeu. Sabe apenas que ela não o tinha.

- Mas ela falou com a Guardiã Civil no aeroporto?

- Não sei, senor. - Juanita deitou água a ferver por cima do café.

- Juanita... - Como ela não se voltou, George pôs-lhe uma mão no braço e ela virou a cabeça para ele. George viu então, com assombro, que ela se estava a rir, que os olhos escuros dela brilhavam, divertidos. - Juanita... a senorita não é minha filha...

- No, senor - disse Juanita em voz baixa.

- Não me diga que já sabia.

- Senor - ela encolheu os ombros -, Pepe achou que ela não agia como uma filha.

- Como é que ela se portou?

- Ela estava muito infeliz, senor.

- Juanita, ela não é minha filha, mas sim minha prima.

- Si, senor.

- Pode dizer isso a Maria? E diga a Maria que conte a Tomeu, que Tomeu conte a Rosita e que Rosita diga a Rudolfo...

- Começaram ambos a rir. - Eu não disse uma mentira, Juanita. Mas também não disse a verdade.

- O senor não precisa de se preocupar. Se ela é filha ou sobrinha... - Juanita encolheu os ombros como se a questão fosse demasiado trivial para ser considerada. - Mas para Cala Fuerte, o senor é um amigo. Nada mais interessa.

Tal eloquência era estranha a Juanita e George sentiu-se tão comovido que teve vontade de a beijar, mas sabia que isso embaraçaria ambos enormemente, pelo que limitou-se a dizer que estava com fome. Abriu a caixa do pão donde tirou uma fatia que comeu com manteiga e com doce de alperce.

Como de costume, a caixa do pão achava-se cheia, mas, por baixo do pão fresco, havia pão mais antigo. George disse então, com ar de censura:

- Juanita, isto não se deve fazer. O pão que está por baixo já tem bolor. - E, para provar o que dizia, voltou a caixa do pão de pernas para o ar, fazendo cair todo o pão. Quando a última crosta caiu, soltou-se a folha de papel branco, com a qual Juanita forrara a caixa e, finalmente, uma capa azul-escura.

Esta ficou caída no chão, entre ambos. Em seguida, entreolharam-se interrogativamente, cada um deles imaginando que fora o outro o responsável por aquilo.

- O que é isto?

George pegou-lhe e examinou-o.

- É um passaporte. Um passaporte inglês.

- Mas a quem pertence?

- À sehorita, creio.

A ideia era começar, não no princípio da viagem, mas no meio

- na semana em que o Eclipse entrara no porto de Délos. E depois voltaria ao princípio para mostrar, numa série de episódios, como a viagem tomara forma e como fora inicialmente planeada. O papel deslizava na máquina com suavidade e a máquina funcionava como um motor bem oleado. Selina estava ainda a nadar e Juanita lavava energicamente os lençóis de George, esfregando-os com a sua barra de sabão duro, enquanto cantava uma canção local de amor, de modo que, quando bateram à porta, ele não ouviu.

Fora uma pancada muito discreta e dificilmente audível acima do ruído da máquina de escrever. Passado um bocado, a porta foi empurrada. Esse movimento atraiu a atenção de George, que olhou para lá, com as mãos suspensas sobre as teclas.

O homem que se encontrava ali era novo, alto e muito bem-parecido. Vestia um fato completo, um fato normal de homem de negócios, camisa branca com um colarinho impecável e com gravata. Apesar de tudo isso, conseguia ter um aspecto fresco ao dizer:

Desculpe incomodá-lo, mas bati e ninguém me ouviu.

Esta é a Casa Barco?

- Sim, é.

Então o senhor deve ser George Dyer.

- Sim, sou - levantou-se.

O meu nome é Rodney Ackland. - Obviamente, sentia que a conversa não devia prosseguir sem uma apresentação formal. Atravessou a sala para ir apertar a mão a George. – Como está? George pensou: Um aperto de mão firme. Esperto. Maneira de olhar directa. Pessoa de confiança. Depois, como algo que não merecia consideração: Um maçador.

Creio que Selina Bruce se encontra aqui?

Sim,   está   cá.   - Rodney   olhou   à   sua   volta, interrogativamente. - Está a nadar.

Compreendo. Bem, nesse caso, creio que devo dar-lhe uma explicação. Sou o advogado de Selina. - George não fez qualquer comentário. - E receio que, indirectamente, tenha sido eu o culpado de Selina fazer esta viagem a San António. Fui eu que lhe ofereci o seu livro. Ela viu a sua fotografia e ficou convencida de que o senhor era o pai dela. Falou-me a respeito disso; disse-me que queria vir conhecê-lo e pediu-me para eu a acompanhar, mas, infelizmente, fui forçado a fazer uma viagem de negócios para visitar uma cliente muito importante, em Boumemouth. Quando regressei a Londres, Selina tinha partido.

Nessa altura, já se encontrava fora há três ou quatro dias. Por isso, é claro, meti-me no primeiro avião para San António, e...

bem, creio que a devo levar para casa. - Olharam-se e Rodney concluiu: - É claro que não é pai dela.

Não. Não sou. O pai dela morreu.

- No entanto, existe uma certa semelhança. Até eu a consigo notar.

- Gerry Dawson era meu primo afastado.

- Que coincidência extraordinária!

- Sim - disse George. - Extraordinária!

Pela primeira vez, Rodney pareceu um pouco perturbado.

- Mr. Dyer, não faço ideia das circunstâncias desta... pouco convencional visita de Selina, nem sequer daquilo que ela lhe contou a tal respeito. Mas Selina teve sempre um grande desejo... uma obsessão, realmente, no que respeita ao pai. Foi criada pela avó e a infância dela foi diferente, para não dizer mais...

- Sim, ela disse-me.

- Nesse caso, como conhece os factos, creio que estamos do mesmo lado.

- Sim, espero que sim. - Sorriu e acrescentou: - Só por curiosidade, gostava de saber qual teria sido a sua reacção se eu fosse realmente o pai de Selina?

- Bem... - apanhado momentaneamente sem palavras, Rodney murmurou: - Bem... eu... humm... - e depois decidiu gracejar e disse com ar brincalhão: - Bem, suponho que lhe teria pedido a sua permissão...

- A minha permissão?

- Sim, um pouco tarde, é claro, porque já estamos noivos. Casamos no próximo mês.

- Como? - exclamou George, sentindo-se totalmente perturbado.

- Já estamos noivos. com certeza sabia disso?

- Não. Não sabia.

- Quer dizer que Selina não lhe disse? Ela é uma rapariga extraordinária.

- Por que diabo é que ela me havia de contar? Eu não tenho nada a ver com o facto dela estar noiva ou não.

- Não, como era uma coisa importante, devia ser a primeira coisa que ela tinha obrigação de lhe dizer.

Imbecil emproado, pensou George. Mas Rodney continuou:

- Isso não tem importância agora. Mas uma vez que está a par da situação, pode compreender que eu devo levá-la de volta para Londres o mais depressa possível.

- Sim, com certeza.

Rodney passou por ele e saiu para o terraço.

- Que esplêndida vista! Disse que Selina estava a nadar? Não a vejo.

George aproximou-se dele.

- Não, ela deve estar para além do iate. Eu Vou chamá-la...

- Depois lembrou-se de que não podia fazê-lo porque ela levara o bote. Em seguida, pensou que podia ir no barco de Rafael, primo de Tomeu. - Olhe, quer esperar aqui? Sente-se. Ponha-se à vontade. Eu não demoro.

- Não quer que eu vá consigo? - Rodney não se mostrava muito entusiasmado e George disse:

- Não. Eu vou. O barco está cheio de escamas de peixe e estraga-lhe o fato.

- Bem, se não se importa... - e diante dos olhos de George, Rodney puxou uma cadeira e sentou-se graciosamente nela, ao sol, sendo a imagem viva do inglês bem-educado em viagem pelo estrangeiro.

George puxou o barco de Rafael para a água, transpirando fortemente devido ao esforço. Era uma embarcação comprida e pesada, e só tinha um remo, o que o tornava difícil de manobrar. Isso enfureceu George porque Rodney Ackland, com o seu rosto macio, a sua voz suave, e o seu impecável fato cinzento-escuro, o observava do terraço da Casa Barco. George avançou com uma certa dificuldade, suando e praguejando e, por fim, chegou junto do Eclipse. Contudo, quando chamou por Selina, não obteve resposta.

Com alguma dificuldade fez passar o pouco manejável barco para o outro lado do Eclipse. Viu então imediatamente Selina, empoleirada como uma sereia num dos rochedos da margem. Ela subira pelos degraus que iam ter às pequenas vivendas que ali se situavam e tinha os braços em volta dos joelhos, bem como o cabelo molhado colado ao pescoço, tal como a pele de uma foca. O barco de Rafael passou junto da viga de bombordo do Eclipse. George meteu o pesado remo dentro da embarcação, levantou-se e pôs as mãos em concha sobre a boca para a chamar outra vez.

- Selina! - O nome dela saiu-lhe do lábios como se se tratasse de um grito furioso. Ela olhou imediatamente para o sítio onde ele estava. - Venha. Preciso de falar consigo.

Após um breve segundo de hesitação, ela levantou-se, desceu os degraus brancos, meteu-se na água e nadou na direcção do barco. Quando lá chegou, e dado que a amurada era demasiado alta para ela se elevar, George teve de lhe pegar por debaixo dos braços e iça-la para bordo, molhada e a pingar como um peixe acabado de pescar. Sentaram-se nos dois bancos, em frente um do outro.

- Desculpe - disse ela. - Precisa do bote?

George pensou que qualquer outra mulher teria exigido, antes de dizer uma palavra, que ele lhe pedisse desculpa pelo seu comportamento na noite anterior. Mas Selina não era uma mulher qualquer.

- Espero que não se importe de eu o ter trazido...

- Não. Claro que não.

- Estava a dormir quando eu desci. Tive de abrir a porta a Juanita. - George via-a falar, sem ouvir o que ela dizia, tentando reconciliar-se com o facto dilacerante dela ir casar com Rodney Ackland, de estar noiva dele e de nunca lho ter dito.

- ... e a sua amiga está bem? Não estava demasiado zangada, espero.

- A minha amiga? Oh, Francês! Não sei se ela está zangada ou não. Ela foi para San António a noite passada. De qualquer modo, a culpa não foi sua. Ela há-de acalmar e tudo será esquecido.

- Eu não devia ter voltado para a Casa Barco. Vejo-o agora. Mas...

George não podia aguentar mais.

- Selina.

Ela franziu a testa.

- Passa-se alguma coisa?

- Ouça, está uma pessoa à sua espera na Casa Barco. Veio para a levar para Londres. Rodney Ackland.

Ela pareceu ficar petrificada. Os lábios murmuraram «Rodney», mas não se ouviu qualquer som.

- Veio de Londres a noite passada. Voltou de Boumemouth e soube que você viera para San António sozinha; por isso meteu-se no primeiro avião. Eu já lhe disse que não sou seu pai e devo acrescentar que ele não pareceu ficar particularmente surpreendido. Mas quer falar consigo.

A brisa estava fresca e Selina estremeceu. George viu o fio de ouro que desaparecia no alto do pequeno biquini que lhe comprara, e naquele mesmo momento percebeu que não era uma cruz que ela trazia. Estendeu a mão e puxou pelo fio e o anel com diamantes e uma safira brilhou diante dos seus olhos, cintilando.

- Selina, por que nunca me disse?

Os olhos dela, naquele momento, pareciam tão azuis como a safira que ele fazia oscilar debaixo do queixo dela.

- Não sei.

- Está noiva de Rodney? - Ela disse que sim com a cabeça.

- Vai casar com ele no próximo mês? - Ela respondeu afirmativamente e, outra vez, com um aceno mudo. - Mas por que precisa de ser tudo tão secreto?

- Não é secreto. Eu contei a Rodney que julgava que George Dyer era meu pai. Pedi-lhe para vir comigo ao seu encontro. Mas ele não pôde. Tinha negócios a tratar em Boumemouth e nunca pensou que eu viesse sozinha. Ele disse-me que se você fosse meu pai ficaria embaraçado pelo meu súbito aparecimento. E se não fosse seria uma perda de tempo. Não pareceu entender como era uma coisa importante para mim; ter raízes e uma família e pertencer realmente a alguém.

- Conhece-o há muito tempo?

- Desde criança. A firma dele sempre tratou dos negócios da minha avó. Ela gostava muito 'dele e eu sei que esperava que eu casasse com ele.

- E agora vai fazê-lo.

- Sim. Geralmente, eu acabava sempre por fazer o que ela queria.

Os olhos escuros de George tomaram subitamente uma expressão condoída e Selina não podia suportar que ele tivesse pena dela.

- Vamos sair de Queen's Gate. Descobrimos um andar encantador num quarteirão novo. Gostava que o pudesse ver. É cheio de sol e tem uma vista maravilhosa. Agnes vai viver connosco. Até já comprei o meu vestido de casamento. É branco, muito comprido e com cauda.

- Mas usa o seu anel de noivado escondido. Não o põe no dedo.

- Pensei que você fosse meu pai. Queria encontrar-me consigo, pela primeira vez, apenas como eu própria. Sem pertencer a qualquer outra pessoa e sem ter outra maneira de viver.

- Está apaixonada por ele?

- Fiz-lhe essa pergunta a si ontem, e não me respondeu.

- Isso era diferente. Estávamos a falar do meu passado e agora trata-se do seu futuro.

- Sim, eu sei. É o que torna a questão tão importante.

George ficou calado. Selina ergueu os braços e desapertou o fecho do fio. O anel soltou-se e ela apanhou-o e meteu-o no dedo. Depois apertou o fecho outra vez. Todos esses gestos foram calmos e feitos com determinação. Depois disse:

- Não devo fazer Rodney esperar.

- Claro que não. Leve o bote e eu segui-la-ei nesta grande barcaça de Rafael. Mas não se vá embora sem se despedir.

- Nunca faria isso. Sabe que eu nunca faria tal coisa.

Passado um bocado, Rodney começara a sentir muito calor para esperar ali no terraço. Podia ter tirado o casaco, mas trazia suspensórios e parecia-lhe quase indecente ficar ali sentado com os suspensórios à vista, por isso levantou-se da cadeira e foi para dentro de casa. Andava de um lado para o outro, observando o seu aspecto tão pouco convencional, quando Selina entrou silenciosamente e, sem que ele se apercebesse da sua chegada, parou à entrada da sala e chamou pelo nome dele.

Rodney parou bruscamente e voltou-se. Viu-a à porta e olhou-a com incredulidade. Não podia acreditar que, em tão curto espaço de tempo, uma pessoa pudesse ter mudado tanto. Sempre a considerara uma pessoa de aspecto monótono, com a sua pele clara e cabelo castanho-claro, apenas realçado pelos seus brilhantes olhos azuis de gata siamesa. Mas agora Selina estava muito bronzeada e o cabelo, ainda molhado, apresentava madeixas louras devido ao sol. Usava um biquini que, aos olhos de Rodney, parecia quase de muito mau gosto. E enquanto Selina ali estava, a olhá-lo, uma grande gata branca que havia estado deitada ao sol, no terraço, veio roçar-se afectuosamente pelas pernas dela.

Pairava no ar um estranho embaraço.

-= Olá, Rodney. Que surpresa! - Selina procurou falar com uma certa animação, mas a última sílaba foi tristemente baixa.

- Sim - respondeu Rodney -, pensei que seria. – Era difícil acreditar que ele tivesse passado toda a noite no avião, vestido com as mesmas roupas, e caminhado desde a aldeia, pela estrada pedregosa e poeirenta, até à Casa Barco. Na verdade, os sapatos dele encontravam-se empoeirados, mas, quanto ao resto, mostrava-se tão impecável como se estivesse em casa. Aproximou-se de Selina para lhe dar um beijo; com as mãos nos ombros dela afastou-a ligeiramente para olhar com ar desaprovador para o biquini que ela trazia. - O que é isto que estás a usar? Ela encolheu os ombros.

- É apenas o que tenho para nadar.

Na corda da roupa estava um velho casaco turco de George e Selina foi buscá-lo e vestiu-o. O casaco estava áspero do sal e do sol e cheirava a George. Ela apertou-o contra o corpo e, de uma maneira inexplicável, isso confortou-a e reforçou a sua coragem.

- Foste má por te teres vindo embora sem me dizeres. Tenho andado doente de preocupação - começou Rodney.

- Sabia que tu estavas em Boumemouth.

- Telefonei para tua casa logo que cheguei e Agnes disse-me onde tu estavas. - E acrescentou: - Claro que vim imediatamente, no primeiro avião que arranjei.

- Foi muito simpático da tua parte, Rodney.

- O que é que pensas a respeito de regressares a casa?

- Já me teria ido embora se não me tivessem roubado o dinheiro todo no aeroporto, o que me impossibilitou de comprar o bilhete de volta.

- Podias ter-me dito. Eu ter-te-ia enviado imediatamente dinheiro.

- Não... não quis incomodar-te. E... - acrescentou com sinceridade - pensei que tu me ias dizer «Eu bem te disse». Porque tu tinhas razão e eu estava enganada. George Dyer não era... não é meu pai...

- Não. Já tinha percebido isso.

- Mas compreendes que eu precisava de descobrir? - Era um pedido de simpatia, mas Rodney não a compreendeu.

- Continuo a pensar que teria sido melhor se me tivesses deixado ser eu a descobrir isso.

- Mas eu pedi-te que viesses comigo. Eu quis que tu viesses, mas tu não quiseste.

- Não é não quis. Não pude. Tu sabes isso.

- Podias ter feito esperar essa tal senhora qualquer coisa.

- Selina! - Rodney ficou profundamente chocado e percebeu então, pela primeira vez, que a mudança que se operara nela era mais que física, mais profunda e subtil.

Selina respirou fundo.

- De qualquer modo - continuou -, não lamento o que fiz, apesar de George não ser meu pai. Se queres saber, voltaria a fazer exactamente o mesmo.

Era um convite para uma disputa, mas antes de Rodney poder pensar numa resposta, George Dyer subiu os degraus que davam acesso ao terraço e apareceu junto deles. Levantou Pearl e, com ela nos braços, meteu-se jovialmente na conversa.

- Bem, isto não é agradável? Reencontrarem-se os dois. E se bebêssemos qualquer coisa para nos refrescarmos?

- Não quero tomar nada, obrigado - respondeu Rodney com ar zangado.

- Um cigarro, então?

- Não, agora não. - Pigarreou. - Tenho estado a dizer a Selina que acho uma boa ideia voltarmos para Londres o mais depressa possível. O meu táxi está à espera no Cala Fuerte Hotel; podemos ir directamente para o aeroporto.

- Boa organização - disse George.

Rodney olhou-o de relance para ver se George se estava a rir dele, mas aqueles olhos escuros mostravam-se muito solenes.

Sem se sentir completamente tranquilizado, voltou-se novamente para Selina:

- Não é melhor fazeres a mala? Onde tens ficado? Houve um longo silêncio. Rodney olhou para Selina. Esta olhou para George e depois novamente para Rodney. George, com ar despreocupado, acariciava Pearl.

- Aqui - respondeu Selina.

Rodney pareceu empalidecer visivelmente.

- Aqui?

- Sim. Aqui. Na Casa Barco.

- Tens dormido aqui?

- Não havia mais nenhum sítio para onde ir...

Ela estremeceu ligeiramente e George percebeu que estava nervosa. Rodney, no entanto, pareceu não se aperceber disso, pois quando falou fê-lo com voz gélida.

- Não achas isso um pouco inconveniente? Repentinamente, George pousou Pearl sobre uma cadeira e meteu-se na conversa.

- Não o creio. Não nos esqueçamos que, afinal, Selina é minha prima.

- Não esqueçamos que muito afastada. Além disso, a questão não é essa.

- Então qual é?

- Bem, Selina apareceu aqui, sem ser convidada, sem se fazer anunciar, uma estranha completa, e você deixou-a ficar a viver nesta casa, praticamente, tanto quanto posso ver, a dormirem no mesmo quarto. Percebo que não tenha de se preocupar com a sua reputação, mas por causa de Selina podia certamente ter arranjado outra solução.

- Talvez não tenhamos querido - disse George. Rodney perdeu a paciência. - Desculpe, Mr. Dyer, mas obviamente não falamos a mesma língua. Acho a sua atitude insuportável.

- Lamento.

- Tem sempre tão pouca consideração pelas regras de comportamento decentes e normais?

- Sim, sempre. E essas regras não são as minhas.

Por um momento, Rodney teve a ideia de lhe dar um murro, mas depois decidiu que, como George era desprezível, devia ser ignorado. Voltou-se para Selina.

- Selina... - Ela pareceu visivelmente sobressaltada. Lamento isto, mas dou-te o benefício de acreditar que a culpa não foi tua. Estou preparado para esquecer isto tudo, mas temos de nos certificar de que nem um rumor do que aqui se passou chegará a Londres.

Selina olhava-o com ar grave. O rosto dele era liso e bem barbeado. Não tinha qualquer ruga e era impossível imaginá-lo a envelhecer, com um aspecto experiente e agradável. Seria o mesmo quando tivesse oitenta anos, tão impessoal e impecável como uma camisa acabada de engomar.

- Porquê, Rodney? - perguntou.

- Não... não gostaria que Mr. Arthurstone soubesse disto. A resposta era tão ridícula que lhe deu vontade de rir. Mr.

Arthurstone, com os seus joelhos artríticos, que a ia acompanhar ao altar... que tinha aquilo a ver com Mr. Arthurstone?

- E agora... - Rodney olhou para o seu relógio -, não temos mais tempo a perder. Veste alguma coisa para nos irmos embora.

George estava a acender um cigarro quando Rodney disse isso. Apagou o fósforo, tirou o cigarro da boca e comentou:

- Ela não pode ir para Londres consigo. Perdeu o passaporte.

- O quê?

- Perdeu o passaporte. Sucedeu ontem, uma coisa extraordinária.

- É verdade, Selina?

- Oh, eu... bem, sim... George fê-la ficar em silêncio.

- Claro que é verdade. Meu caro Mr. Ackland, não faz ideia de como são as coisas aqui. Eram capazes de lhe roubar o ouro dos dentes, se lhe pudessem deitar a mão.

- Mas o teu passaporte, Selina. Apercebes-te da gravidade disso?

- Bem... eu... - gaguejou Selina.

- Informaste o cônsul britânico?

- Não - respondeu George, metendo-se uma vez mais no assunto. - Mas disse à Guardiã Civil no aeroporto e eles mostraram-se muito compreensivos.

- Só me espanta que não a tenham metido na prisão.

- Eu também fiquei admirado, mas é maravilhoso o que um lindo sorriso pode fazer, mesmo em Espanha.

- Mas que passos havemos de dar?

- Bem, se mo pergunta, sugiro-lhe que se meta no táxi e vá para Londres, deixando Selina aqui comigo... Não - deteve os protestos furiosos de Rodney. - Penso na verdade que é o melhor plano. O senhor poderá, provavelmente, mexer os cordelinhos por seu lado e entre os dois conseguiremos mantê-la fora da prisão. E não se preocupe demasiado com as convenções, meu velho. Afinal, eu sou provavelmente o parente mais próximo de Selina, e estou perfeitamente preparado para me responsabilizar por ela...

- Responsabilizar-se? Você? - Fez um apelo final a Selina.

- Certamente não queres ficar aqui? - Rodney quase explodiu ao pensar nisso.

- Bem... -A hesitação dela foi suficiente para o convencer.

- Tu espantas-me! O teu egoísmo surpreende-me! Pareces não compreender que não se trata apenas do teu bom nome. Eu tenho também uma certa reputação a manter e considero a tua atitude incrível! Nem quero pensar no que Mr. Arthurstone diria!

- Mas poderás explicar a Mr. Arthurstone, Rodney. Tenho a certeza de que serás capaz de explicar. E penso que... enquanto lhe explicares, é melhor dizeres-lhe que, afinal, não terá de me levar ao altar. Tenho muita pena, mas estou certa que, de certo modo, é um alívio para ti. Certamente, não quererias continuar comprometido comigo depois de tudo o que aconteceu. E aqui tens o teu anel...

Entregou-lho sobre a palma da mão, a safira de um azul profundo e os diamantes com que ele julgara prendê-la toda a vida. Rodney desejou fazer o grande gesto de pegar no anel e de o atirar para a água, por cima do muro do terraço, mas custara-lhe muito dinheiro, por isso engoliu o seu orgulho e guardou-o.

- Lamento, Rodney.

Rodney achou que a atitude mais digna era manter um silêncio viril; por isso, voltou-se e encaminhou-se para a porta, mas quando ali chegou já George lá estava para lha abrir.

- Foi uma pena a sua visita ter sido improdutiva. Deve vir a Cala Fuerte mais tarde, quando houver mais distracções. Tenho a certeza de que gostará de fazer esqui aquático, de pescar com arpão e de pesca submarina. Foi muito amável em ter vindo.

- Não pense, Mr. Dyer, que eu e os meus sócios vamos deixar que as coisas fiquem assim.

- Não imagino isso nem por um momento. Certamente, Mr. Arthurstone terá algumas ideias brilhantes e eu virei a receber uma carta bem dura. com certeza não quer que eu o leve à aldeia?

- Não. Prefiro andar.

- Bem, chacun à son gôut. Gostei muito de o conhecer. Adeus.

Mas Rodney não respondeu, afastando-se em silêncio pela encosta do monte. George fechou lentamente a porta.

Voltou-se. Selina estava ainda parada no meio da sala, onde Rodney a deixara. Parecia esperar outra cena violenta, mas George limitou-se a dizer calmamente:

- Você devia mandar examinar a cabeça, se pensava em casar com um homem como aquele. Ia passar metade do seu tempo a mudar de roupa para jantar e a outra metade a procurar palavras difíceis no dicionário. E quem é Mr. Arthurstone, afinal?

- É o sócio mais velho da firma de Rodney. É muito idoso e sofre de artrite nos joelhos.

- E era ele que a ia acompanhar ao altar?

- Não havia mais ninguém. Era uma estranha confissão.

- Está a falar de Mr. Arthurstone ou de Rodney? - perguntou George.

- De ambos, suponho.

- Talvez - disse George gentilmente -, se você sofresse de uma obsessão a respeito da figura paternal.

- Sim. Talvez sim.

- E agora?

- Já não.

Selina estremeceu outra vez e ele sorriu.

- Sabe, Selina, nunca julguei que fosse possível ficar a saber tanta coisa a respeito de outra pessoa num espaço de tempo tão ridiculamente curto. Por exemplo, sei quando você mente, o que, infelizmente, faz com frequência. Os seus olhos tornam-se tão grandes que o azul fica todo rodeado de branco. Parecem ilhas. E quando você tenta não rir de qualquer coisa ultrajante que eu diga, os cantos da sua boca vão para baixo e aparece uma covinha nas faces. E, quando está nervosa, estremece. Está nervosa agora.

- Não estou nervosa. Estou com frio por ter andado a nadar.

- Então vá vestir qualquer coisa.

Mas primeiro preciso de lhe dizer uma coisa. Isso pode esperar. Vá vestir-se primeiro.

George foi para o terraço esperar por ela. Acendeu um cigarro. O sol quente batia-lhe nos ombros e queimava-o por cima da camisa de algodão azul. Rodney Ackland saíra dali, da Casa Barco, e também da vida de Selina. Tal como Jenny desaparecera da sua para sempre. O seu fantasma fora afastado pelo simples acto de ter contado a Selina esse infeliz episódio. Jenny e Rodney pertenciam ao passado, e o presente apresentava-se bom e alegre, e o futuro esperançoso e tão cheio de agradáveis surpresas como um embrulho de Natal.

Lá em baixo, no jardim, Juanita estendia lençóis, cantando alegremente. Parecia não se ter apercebido do drama que acabara de se desenrolar enquanto ela lavava a roupa. George sentiu-se invadido por uma onda de afeição por ela. Ele sabia bem que as suas boas intenções nem sempre se realizavam, mas prometeu a si próprio, quando acabasse o segundo livro que iria escrever, oferecer a Juanita, além de um exemplar do livro, qualquer coisa que ela não pudesse comprar, como um vestido de seda, uma jóia, ou um bom fogão a gás.

Os passos de Selina fizeram com que ele se voltasse. Ela trazia um vestido de linho cor de pêssego, sem mangas, e sandálias com uns pequenos saltos que a tornavam quase da altura dele. George ficou admirado por levar tanto tempo a perceber como ela era bonita.

- É a primeira vez que a vejo vestida adequadamente. Ainda bem que recuperou a sua bagagem.

Selina respirou fundo e disse:

- George, preciso de falar consigo.

- A respeito de quê?

- Do meu passaporte.

- O que se passa com o seu passaporte?

- Bem... não está perdido.

George franziu a testa e mostrou grande surpresa.

- Não?

- Não. Ontem... antes de partir com Pepe... escondi-o.

- Selina. - George parecia profundamente chocado. Por que motivo fez uma coisa dessas?

- Sei que o não devia ter feito, mas eu não queria ir. Não podia suportar a ideia de o deixar com Mrs. Dongen. Sabia que ela tudo faria para que você não escrevesse um segundo livro. Desejava que fosse com ela para a Austrália, para o deserto de Gobi ou para outro sítio qualquer. Por isso, quando fui à cozinha buscar a garrafa de soda ao frigorífico... - engoliu em seco ...escondi o passaporte na caixa do pão.

- Que lembrança extraordinária!

- Sim, bem sei. Mas estava apenas a pensar em si, e o que estou a tentar dizer é que agora não há razão para eu não voltar para Londres com Rodney. Não casarei com ele, é claro. Vejo agora como fui estúpida ao pensar que podia casar com ele. Mas não posso ficar aqui indefinidamente. - A voz dela começou a esmorecer. George não a estava a ajudar nada. - Compreende, não é verdade?

- com certeza que sim. - George arvorou uma expressão de quem só desejava que as coisas se explicassem. - Devemos fazer o que é justo.

- Sim... sim... foi isso que eu pensei.

- Bem... - George olhou para o relógio. - Se quer ir com Rodney é melhor ir preparar a mala. A não ser assim, quando chegar ao Cala Fuerte Hotel já ele se foi embora...

E perante o olhar incrédulo de Selina, George levantou-se, sacudiu as calças com as mãos e dirigiu-se para a máquina de escrever. Começou então a dactilografar como se se tratasse de salvar a vida.

Não era exactamente a reacção que Selina esperara. Aguardou ainda uns momentos, mas, como George continuasse a escrever, ela pestanejou, para afastar as lágrimas que lhe queimavam os olhos, e dirigiu-se para a cozinha. Tirou então todo o pão da caixa, um por um, colocando-os em cima do balcão, até que, finalmente, chegou à folha de papel branco debaixo da qual escondera o passaporte.

O passaporte não se encontrava ali. Lágrimas, desapontamento, tudo desapareceu sob o pânico que a invadiu. O passaporte tinha realmente desaparecido.

- George! - Ele escrevia tão depressa que não a ouvia. George... o meu passaporte desapareceu!

Ele parou de escrever e ergueu as sobrancelhas:

- Outra vez?

- Não está aqui! Deixei-o debaixo do papel e não está cá. Desapareceu!

- Valha-nos Deus! - exclamou George.

- Que poderá ter acontecido? - A voz dela transformou-se num gemido. - Juanita tê-lo-ia encontrado? Ou limpou a caixa e queimou-o? Ou alguém o roubou? Oh, que me irá suceder?

- Nem quero imaginar...

- Quem me dera nunca o ter posto aqui!

- Atirou areia ao ar e caiu-lhe nos olhos - disse George num tom sentencioso, voltando a sentar-se para escrever.

Essa atitude deixou Selina desconfiada e ela franziu o sobrolho. A calma dele parecia demasiada. E havia nos olhos escuros de George um brilho de que ela se habituara a desconfiar. Teria ele encontrado o passaporte? Tê-lo-ia escondido sem lhe dizer? Deixando a caixa do pão vazia, Selina começou a percorrer a sala, procurando qualquer pista, levantando as almofadas, erguendo as revistas, como se estivesse a jogar às prendas.

Acabou por chegar junto de George. O bolso traseiro das velhas calças de ganga manchadas de sal, que ele usava, parecia muito duro, como se tivesse lá dentro algo de rígido e quadrado... George continuava a escrever a toda a velocidade, mas, quando Selina levou a mão ao bolso dele, a mão de George apressou-se a afastá-la.

O pânico terminara. Selina riu, aliviada, feliz, apaixonada. Pôs-lhe os braços em volta do pescoço num abraço que quase o estrangulou e exclamou:

- Encontrou-o! Encontrou-o, ficou com ele e nada me disse, seu bruto!

- Quer que lho devolva?

- Não, a não ser que queira que eu volte para Londres com Rodney.

- Não quero - respondeu George.

Selina beijou-o, esfregando o seu rosto macio contra o dele, que não estava liso e a cheirar a after-shave, mas sim enrugado e queimado pelo sol, com um aspecto tão usado e familiar como uma das camisas de algodão que ele usava. - Eu também não quero ir - disse ela. - George escrevera uma página inteira. Selina encostou o queixo à cabeça dele e quis saber: - O que é que está a escrever?

- Uma sinopse.

- Para o novo livro? Trata de quê?

- Do cruzeiro ao mar Egeu.

- Como é que se vai chamar?

- Não faço a menor ideia, mas Vou dedicá-lo a si.

- Vai ser bom?

- Espero que sim. Mas, com efeito, já tenho uma ideia para um terceiro livro. Esse vai ser de ficção.... - George agarrou na mão de Selina e fê-la sentar-se na beira da secretária, mesmo na sua frente. - Pensei em escrever sobre um homem que vivia muito sossegado num lugar tranquilo, sem fazer mal a ninguém, quando lhe apareceu uma rapariga vadia. Essa rapariga tem uma obsessão a respeito dele, não o larga. Afasta todos os amigos dele, gasta-lhe o dinheiro, leva-o a beber. Ele torna-se um marginal...

- E que sucede no fim?

- Ele casa com ela, claro. Ela leva-o a isso. Ele não consegue escapar. É trágico.

- Não me parece trágico.

- Bem, devia parecer.

- George, estará, por acaso, a pedir-me que case consigo?

- Suponho que à minha maneira tortuosa, complicada, estou. Lamento o que se passou a noite passada. E amo-a.

- Sei que sim. - Selina inclinou-se para lhe beijar a boca.

- Sinto-me feliz por isso. - Beijou-o outra vez e ele afastou a máquina de escrever e levantou-se para a tomar nos braços. Mais tarde, Selina disse:

- Temos de dizer a Agnes.

- Ela não virá para aqui tentar afastar-nos?

- Claro que não. Ela vai gostar de si.

- Teremos de lhe enviar um telegrama. De San António. Hoje à tarde, para lá chegar antes de Rodney falar com ela. E enquanto estivermos na cidade, iremos apresentar os nossos cumprimentos ao padre inglês para sabermos quanto tempo demorará. E pediremos a Rudolfo para ser meu padrinho...

- Eu desejo ter Juanita como minha dama-de-honor. Juanita. Tinham-se esquecido de Juanita. Ainda a rirem, de

mãos dadas, foram à procura dela. Por fim, inclinaram-se sobre o muro do terraço para a chamarem. Mas Juanita não era assim tão simplória como às vezes parecia. Os seus instintos camponeses raramente a deixavam ficar mal e ela vinha já a sair do jardim, muito direita e sorridente, com os braços estendidos como se os quisesse abraçar a ambos.

 

                                                                                Rosamunde Pilcher  

 

                      

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