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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O TIO SYLVESTER / Georgette Heyer
O TIO SYLVESTER / Georgette Heyer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O rico e arrogante Sylvester, duque de Salford, está pensando em se casar, naturalmente um matrimônio de conveniência, que lhe assegure uma esposa capaz de cuidar do sobrinho órfão e da mãe viúva. Uma das seis possíveis candidatas, a jovem Phoebe Marlow, cumpre seus exigentes requisitos. Quando a inquieta moça, cuja principal virtude parece ser a inteligência, foge rapidamente ao saber de sua chegada, o duque fica intrigado...

 

 

 


 

 

 


Capítulo 1

Sylvester estava junto à janela da sala de jantar, com as mãos apoiadas no peitoril, contemplando uma vista esplêndida. Sempre que estava na mansão de Chance não
se cansava de ver o lago ornamental, a ondulada extensão de grama que no verão mantinha ocupadíssimos os jardineiros e onde se erguia um cedro, e para além do jardim,
os ramos das árvores que delimitavam o bosque de Chance que brilhavam sob o sol invernal. Para Sylvester elas ainda conservavam seu atrativo, ainda que agora o que
atraía era a observação de sua espessura e não mais um território onde cada arbusto escondia um dragão e que imaginários cavalheiros trotavam pelas veredas. Sylvester
e Harry, seu irmão gêmeo, tinham-se fartado de matar esses dragões e de aplicar fortes surras nesses cavalheiros. Já não sobrara nenhum, e fazia quase quatro anos
que Harry tinha morrido; mas seguia tendo faisões que tentavam a Sylvester, pois uma sucessão de geadas azaradas tinha endurecido a terra, o privando de dois dias
de caça, e o forte vento do norte teria dissuadido inclusive ao caçador mais entusiasta de sair com sua arma. Ainda fazia muito frio, mas o vento tinha deixado de
soprar e o sol brilhava, e Sylvester lamentava ter decidido consagrar esse dia aos negócios, em lugar das jornadas inclementes que o tinham precedido. Podia mudar
de planos, é claro, e ordenar a seu mordomo que dissesse às diversas pessoas que o esperavam que atendê-las-ia no dia seguinte. Seu administrador e seu contador
tinham-se deslocado desde Londres para despachar com ele, mas Sylvester não achava que protestassem se não os recebesse nesse dia. Eram seus empregados, e não tinham
mais que a obrigação de se ocupar dos interesses de Sylvester; e aceitariam uma mudança de planos como o capricho próprio de um amo nobre e endinheirado.

Mas Sylvester nem era caprichoso nem tinha intenção de sucumbir a essa tentação. Os caprichos dos amos afetavam aos serventes, e para dirigir vastas propriedades
precisava-se de um bom serviço. Sylvester acabava de fazer vinte e oito anos, mas tinha recebido uma enorme herança aos dezenove, e pese ter cometido algumas loucuras
e excessos, nunca tinha jogado com seu legado nem tinha evitado a menor de suas responsabilidades. Tinha nascido numa situação muito privilegiada, o tinham educado
para não desprestigiar uma longa linhagem de distintos antepassados, e da mesma forma que não questionava seu direito de exigir obediência às pessoas cujos nomes
estavam escritos em sua assombrosa árvore genealógica, também não questionava o caráter inevitável dos deveres que lhe correspondiam. Se tivessem-lhe perguntado
se desfrutava do prestígio que lhe conferia seu título, teria respondido que nunca pensava nisso; mas sem dúvida ter-lhe-ia desagradado muito que de repente lhe
tivessem arrebatado.

No entanto, como é lógico, ninguém lhe ia formular semelhante pergunta. Em geral consideravam-no um jovem especialmente afortunado, com linhagem, dinheiro e elegância.
No dia de seu batismo não aconteceu nada para diminuir sua sorte como uma deficiência ou um lábio leporino. Ainda que de estatura média, era bem proporcionado; de
largas costas e pernas bem torneadas, o rosto era bastante agradável para que o epíteto “gracioso”, que com frequência lhe outorgavam, não fosse do todo ridículo.
Em qualquer outro varão de menos renome, a singularidade de uns olhos ligeiramente inclinados e coroados por umas obliquas sobrancelhas negras teria podido considerar-se
uma imperfeição, mas tratando-se do duque de Salford todo mundo opinava que lhe conferiam distinção; e os que tinham admirado sua mãe em seus bons tempos recordavam
que ela também possuía essas sobrancelhas finas e exageradamente separadas dos olhos. Era como se lhes tivessem desenhado as sobrancelhas com um pincel, traçando
uma linha que partia do meio dos olhos e ascendia reta até as têmporas. Na duquesa, essa peculiaridade resultava atraente. Em Sylvester, não tanto, pois quando se
enfadava e franzia o cenho, a inclinação das sobrancelhas se acentuava e lhe dava verdadeiro ar de sátiro.

Estava a ponto de afastar-se da janela quando atraiu sua atenção uma pequena figura que escapulia. Um menino com uma cabeleira de cabelos dourados saiu de um terraço
e se pôs a correr pela grama para o bosque de Chance; levava calças de nanquim, e por baixo do casaco de lã que o menino tinha posto apressadamente, assomavam as
pontas de uma camisa azul.

Sylvester riu e abriu a janela. Seu primeiro impulso foi desejar sucesso a Edmund em sua aventura, mas recuou pensando melhor. Ainda que Edmund não tivesse parado
se o quem o chamasse fosse sua babá ou seu professor particular, se deteria se o seu tio o chamasse, e como parecia ter conseguido escapar daquelas pessoas, teria
sido pouco desportivo interrompê-lo quando estava a ponto de cumprir seu objetivo. Se o fizesse perder tempo sob a janela, expô-lo-ia ao grave perigo de que o capturassem,
o que, refletiu Sylvester, conduziria a uma dessas cenas que lhe eram tão tediosas. Seu sobrinho pediria permissão para ir ao bosque, e tanto se ele deixasse ou
não, ver-se-ia obrigado a suportar os reproches de sua cunhada, a viúva de seu irmão. Acusá-lo-ia de tratar o pobre Edmund com uma severidade brutal ou com um desapiedado
desinteresse por seu bem-estar, pois lady Henry Rayne jamais perdoaria a Sylvester por ter convencido a seu irmão (como ela afirmava com obstinação) para que deixasse
Edmund sob a única custodia de seu tio. De nada servia que lhe recordassem que Harry tinha redigido o testamento na ocasião de seu casamento, unicamente com o objetivo
de garantir que, em caso de lhe acontecer alguma desgraça, o que ninguém considerava mais improvável que o próprio Harry, os filhos frutos do casamento gozariam
da proteção do chefe da casa de Rayne. Por muito estúpida que

Sylvester a considerasse, lady Henry afirmava não ser tão ingênua para pensar que o advogado de Sylvester teria se atrevido a inserir uma cláusula tão ofensiva salvo
por ordem expressa. Sylvester, ferido pela morte de Harry, não pôde resistir à provocação e tinha replicado com amargura: “Se achas que desejava que me empurrassem
esse moleque, és ainda mais ingênua do que supunha.”

Mais tarde lamentaria essas palavras precipitadas, pois, ainda que se tenha retratado de imediato, sua cunhada nunca lhe permitiu esquecê-las; naquele momento, quando
a custódia de Edmund se tinha convertido num assunto de vital importância, constituíam a pedra angular dos argumentos de lady Henry. “Nunca o quiseste — recordas?
Tu mesmo o disseste.”

Essa afirmação era verdadeira, em parte; ainda que não tivesse esquecido que era filho de seu irmão Harry, Sylvester se tinha interessado muito pouco por aquela
criança de dois anos, e não lhe tinha prestado mais atenção da que cabia esperar de um jovem de sua idade. No entanto, à medida que Edmund foi crescendo, Sylvester
começou a frequentá-lo com frequência, já que o principal objetivo do menino, sempre que seu fabuloso tio encontrava-se em Chance, era não se separar nem um minuto
dele. Para Edmund seu tio possuía as qualidades das quais careciam por completo a senhorita Button, a babá (que também o tinha sido de seu pai e de seu tio), e sua
mãe. Sylvester não se sentia inclinado a acariciá-lo nem beijá-lo; era indiferente aos rasgões que trazia na roupa; quando falava com Edmund o fazia com moderação
e concisão; e ainda que em ocasiões, quando não estava de um humor propício, o tirava de cima em tom peremptório, às vezes o erguia no cavalo e iam juntos a passear
pelo bosque. A esses atributos juntavam-se uma peculiaridade menos agradável mas também mágica: Sylvester conseguia que o menino obedecesse suas ordens no mesmo
instante e interrompia seus ataques com assombrosa facilidade.

Sylvester pensava que Lianthe e a senhorita Button estavam mimando Edmund, mas embora não vacilasse em fazer ver aquele astuto diabrete quanto era desaconselhável
que empregasse com seu tio as táticas que tão bom resultado davam com ambas as mulheres, raramente interferia em sua educação. Não via em Edmund nenhum defeito que
não pudesse se corrigir quanto fosse um pouco maior; e quando o menino completou seis anos, Sylvester já sentia um sincero afeto por ele, e não só por se tratar
do filho de seu irmão.

Edmund tinha desaparecido de sua vista. Sylvester voltou a fechar a janela e considerou que deveria procurar para a criança um mestre mais alegre que o reverendo
Loftus Leyburn, o idoso e enfermiço clérigo que era, ademais, seu capelão, ou melhor dito, o de sua mãe, a duquesa. Quando Lianthe suplicou ao senhor Loftus que
desse as primeiras lições a Edmund, a Sylvester pareceu uma decisão pouco acertada, mas não um assunto de suficiente transcendência para provocar a sua cunhada tentando
alterar seus planos. Ultimamente, Lianthe queixava-se de que Edmund visitava muito os estábulos, onde estava aprendendo uma linguagem muito vulgar. Que Lianthe esperava?
perguntava-se Sylvester.

Afastou-se da janela quando a porta se abriu e entrou seu mordomo, seguido de um jovem lacaio que se dispôs a retirar os restos de um copioso café da manhã.

— Receberei ao senhor Ossett e a Pewsey a meio dia, Reeth — disse Sylvester —. Chale e Brough podem trazer-me seus livros à mesma hora. Agora vou ver à duquesa.
Poderia enviar uma mensagem a Trent, advertindo-lhe que talvez... — Interrompeu-se e olhou pela janela —. Não, deixe. As quatro já não terá luz.

— É uma lástima que sua excelência tenha que ficar encerrado despachando num dia tão magnífico — comentou Reeth.

— Sim, é uma lástima, mas inevitável.

Sylvester advertiu que tinha deixado cair o lenço e o lacaio se apressou a recolhê-lo do solo. Disse “Obrigado”, pegou-o e acompanhou suas palavras com uma fugaz
sorriso. Seu sorriso era particularmente encantador e sempre lhe assegurava, por mais rigorosas que fossem suas exigências, os resignados esforços de seus serventes.
Era plenamente consciente disso, bem como do valor de um elogio pronunciado no momento adequado, e considerava muito estúpido omitir um gesto que a ele custava tão
pouco e que proporcionava resultados tão desejáveis.

Saiu da sala de jantar e dirigiu-se a sala de visita, e quase poderia dizer-se que entrou em outro século, pois essa parte central do enorme edifício era a única
que se manteve da estrutura original. A sala conservava umas sólidas vigas, as paredes emboçadas e o chão de pisos irregulares, fazia um estranho mas harmonioso
contraste com a discreta elegância das partes mais modernas do edifício. A sublime escada de estilo Tudor, que conduzia desde a sala de visitas até uma galeria,
se achava ladeada por duas figuras com armadura completa; as paredes estavam enfeitadas com coleções de armas antigas; os cristais das janelas tinham motivos heráldicos,
e sob uma enorme grade tinha um monte de cinzas quentes sobre as quais ardiam vários troncos. Diante do fogo uma spaniel branca e marrom encontrava-se em atitude
expectante. Ao ouvir os passos de Sylvester, a cadela levantou a cabeça e começou a mover a cauda; mas quando o duque entrou na sala, deixou de a agitar, e ainda
que cruzasse a sala para saudá-lo e o olhasse com adoração quando ele parou para acariciá-la, nem brincou nem ladrou de alegria. Estava tão familiarizada com o vestuário
de seu amo como um criado de quarto, e sabia muito bem que as calças ajustadas e as botas com borlas significavam que no máximo podia esperar que Sylvester lhe permitisse
deitar a seus pés na biblioteca.

Os aposentos da duquesa compreendiam, além de seu dormitório e do quarto de vestir que ocupava sua criada, uma antecâmara pela qual se chegava a uma ampla e ensolarada
sala, conhecida como o Salão da Duquesa. Ela raramente saía dali, pois fazia muitos anos sofria uma doença artrítica que nenhum dos eminentes doutores que a tinham
visitado, nem nenhum dos tratamentos a que se tinha submetido, tinham conseguido curar. Ainda podia, com a intervenção de suas ajudantes, se arrastar desde o dormitório
até o salão, mas uma vez que a sentavam em sua cadeira não podia se levantar sem ajuda. Ninguém sabia que grau de dor suportava, porque nunca se queixava nem exigia
mostras de compaixão. “Muito bem”, respondia quando lhe perguntavam como se encontrava, e se alguém deplorava a monotonia de sua existência, ria e assegurava que
carecia de sentido demonstrar compaixão por ela e que era melhor a sentir pelos que se viam obrigados a atendê-la. Graças a seu filho, que a fazia participante das
fofocas que circulavam por Londres; a seu neto, que a distraía com suas travessuras; a seu nora, que comentava com ela as últimas modas; a sua paciente prima, que
fazia crochê a seu lado; a seu devota criada, que a mimava, e a seu velho amigo o senhor Leyburn, que lia em sua companhia, se considerava mais digna de inveja que
de lástima. Ainda que só falasse de seus poemas com seus mais chegados, a duquesa era escritora. O senhor Blackwell tinha publicado dois volumes de poesia que tinham
sido muito elogiados pelos membros da boa sociedade; e apesar de que, como é lógico, os tivesse publicado anonimamente, o segredo de sua autoria não demorou em filtrar-se,
e fez que as pessoas se interessassem muito por esses livros.

Quando Sylvester entrou na sala, a duquesa estava escrevendo na mesa que o carpinteiro da propriedade tinha fabricado astutamente para que encaixasse com os braços
do cadeirão com orelhas. Em quanto percebeu a presença de Sylvester, deixou a pena e recebeu-o com um sorriso mais encantador ainda que o dele, porque era bem mais
doce.

— Que alegria! — exclamou —. Mas que irritante para ti, querido, ter que ficar em casa no primeiro dia propício para a caça depois de uma semana inteira de mau tempo.

— Um aborrecimento, não é verdade? — replicou ele enquanto se inclinava para beijá-la na face.

A duquesa apoiou uma mão no ombro de seu filho, e ele ficou quieto um instante, esquadrinhando o rosto de sua mãe. Ao que parece satisfez-lhe o que viu, porque dirigiu
o olhar para o delicado enfeite de renda que decorava o grisalho cabelo da duquesa, e disse:

— É nova essa touca, mãe? Assenta-lhe muito bem.

— Confessa que Anna te aconselhou que prestasse atenção em minha touca — disse ela, risonha.

— Em absoluto. Talvez aches que preciso que tua criada me diga quando estás mais bela que nunca?

— Que atencioso és, Sylvester! Com essa galanteria deves causar estragos entre as mulheres.

— Estragos? não, mãe. Estás escrevendo um novo poema?

— Não; só se trata de uma carta. Por que não afastas um pouco a mesa, querido, e aproximas essa cadeira? Assim poderemos conversar um momento.

Sylvester não pôde satisfazê-la porque nesse momento entrou apressadamente, procedente do dormitório contiguo, a senhorita Augusta Penistone, que lhe suplicou com
certa incoerência que não se molestasse, porque essa tarefa correspondia a ela. A seguir apartou a mesa para um lado da sala, e em lugar de tratar de passar desapercebida,
como Sylvester teria gostado, ficou ali, lhe sorrindo com gesto amável. Era uma mulher de traços angulosos, bastante tola, tão bondosa como singela, e servia à duquesa,
sua prima, na qualidade de dama de companhia. De bondade inesgotável, por desgraça não era muito inteligente, de maneira que sempre conseguia irritar a Sylvester
ao lhe formular perguntas cuja resposta era evidente, ou ao comentar obviedades. Em geral, ele levava bem, pois os modos de Sylvester eram inatacáveis. No entanto,
quando depois de declarar que via que não tinha saído para caçar, a senhorita Penistone recordou que não saía para caçar após uma severa geada e, rindo de sua própria
observação, acrescentou: “Bom, isso que disse é uma tolice, não é verdade?”, ele não pôde evitar responder, ainda que com impecável cortesia: “Sim, não é verdade?”

A duquesa interveio então no diálogo, animando sua prima a sair já que ainda brilhava o sol; e esta afirmou que ficaria encantada de fazê-lo se Sylvester quisesse
fazer companhia por um momento a sua mãe, o que não tinha nenhuma dúvida, e de recordar à duquesa que Anna viria caso tocasse a campainha, se dirigiu para a porta,
que Sylvester mantinha aberta. Antes de sair da sala, parou e disse-lhe que o ia deixar sozinho com sua mãe para que pudessem falar.

— Porque certamente queres falar sozinho com ela, não é verdade? — acrescentou.

— Sim, assim é. Mas como o adivinhaste, tia? Não posso entender! — retrucou ele.

— Oh! — exclamou a senhorita Penistone alegremente —. Após tantos anos, o estranho seria que não conhecesse teus gostos e costumes! Bom, parto. Não te molestes em
me abrir a porta. Não deves me tratar como se fosse uma desconhecida. A cada vez lhe repito isso, não é verdade? Mas tu te mostras sempre tão atencioso!

Sylvester saudou-a com uma inclinação da cabeça e fechou a porta depois dela.

— Não merecias esse elogio, Sylvester — disse a duquesa —. Querido, por que lhe falaste assim? Não foi bom.

— Que mulher tão tediosa! — exclamou ele com impaciência —. Não entendo como toleras a companhia de uma pessoa tão cansativa. Deve te encher de tédio.

— Não é muito inteligente, isso é verdade — admitiu a duquesa —. Mas, como compreenderás, não posso mandá-la embora.

— Queres que o faça por ti?

A duquesa se sobressaltou, mas deduzindo que seu filho tinha falado movido por uma exasperação impulsiva, se limitou a dizer:

— Que disparate! Sabes perfeitamente que tu também não o podes fazer.

Sylvester arqueou as sobrancelhas.

— Claro que posso, mãe. Quem ia me impedir?

— Não podes falar sério! — exclamou ela, ainda risonha.

— Pois claro que sim, mãe! Seja sincera comigo. Não queres que a despeça?

— Bom, reconheço que às vezes sim — admitiu ela, atribulada —. Mas não voltes ao insinuar, faz favor. Ao menos tenho a decência de envergonhar-me de mim mesma. —
Ao observar que seu filho fazia cara de surpresa, acrescentou com seriedade —: É normal que te tire do sério, como a mim também, que diga tolices e que não tenha
a delicadeza de sair da sala quando vens me visitar, mas te garanto que me considero afortunada de tê-la comigo. Tem em conta que não é muito divertido estar atada
a uma inválida, e no entanto sua paciência é inesgotável, e tudo o que lhe peço o faz de muito bom grado, e com tanta alegria que às vezes penso que gosta de estar
sempre a minha inteira disposição.

— Bom, isso espero!

— Olha, Sylvester...

— Querida mãe, essa mulher vive a teu cargo desde que tenho uso de razão e sempre te mostraste muito generosa com ela. A mesada que recebe supera em muito o salário
que ter-lhe-ias pago a uma desconhecida parar te fazer companhia, não é assim?

— Falas como se te incomodasse.

— Se ela o merecesse, não me incomodaria mais do que pagar o salário de meu criado de quarto. Remunero muito bem a meus serventes, mas não mantenho a nenhum que
não valha o salário.

A duquesa olhou a seu filho com certa preocupação.

— Não é o mesmo, mas não vamos discutir por esse assunto — limitou-se a dizer —. Pensa que me entristeceria muito perder Augusta. A verdade é que não sei o que faria
sem ela.

— Se isso é verdade, mãe, não precisa que acrescentes mais nada. Achas que não pagar-lhe-ia o dobro ou o triplo do que pagas a Augusta a qualquer um que quisesse
estar contigo? — Viu que ela lhe estendia uma mão e se acercou no instante —. Sabes que eu não faria nada que te desagradasse. Não te aflijas, mãe.

Ela lhe apertou a mão.

— Já o sei. Não me faças caso. Unicamente surpreendeu-me um pouco ouvi-lo falar com tanta dureza. Mas ninguém tem menos motivos que eu para se queixar de tua dureza,
querido.

— Bobagens! — disse ele, sorridente —. Fique com tua cansativa prima, querida mãe, mas permita-me lamentar que não tenhas ninguém que te possa distrair melhor e
compartilhar mais interesses contigo.

— Bom, existe Lianthe — recorda-se dela? Não pode se dizer que compartilhemos muitos interesses, mas nos damos muito bem.

— Alegra-me ouvi-lo. Ainda que comece a pensar que não vais desfrutar do duvidoso consolo de sua companhia durante muito tempo.

— Querido, se vais propor-me que contrate a uma segunda dama de companhia, te suplico que não gastes tua energia.

— Não, não pensava fazê-lo. — Interrompeu-se e depois acrescentou com certa frieza —: Estou pensando em casar-me, mãe.

Essa afirmação pegou a duquesa tão desprevenida que só conseguiu a olhar seu filho de cima a baixo. Sylvester tinha fama de mulherengo, mas sua mãe quase tinha abandonado
por completo a esperança de que se casasse. Tinha motivos para pensar que seu filho mantinha mais de uma amante (e se sua irmã não estivesse errada, algumas lhe
tinham custado muito dinheiro), e ultimamente parecia preferir esse tipo de vida a uma existência mais ordenada.

— Que notícia tão inesperada, filho! — exclamou, recobrando-se de sua estupefação.

— Não foi uma decisão tão repentina como acreditas, mãe. Faz tempo que queria falar contigo deste assunto.

— Deus meu! E eu sem suspeitar nada! Senta a meu lado, por favor, e conta-me tudo.

Ele a olhou com ternura e perguntou:

— Gostarias que me casasse, mamãe?

— Claro que sim!

— Então, não preciso falar mais nada.

A duquesa riu.

— Que coisa tão absurda acaba de dizer! Muito bem! Agora que já tens minha aprovação, me conta tudo.

— Não há muito que contar— disse Sylvester contemplando o fogo com o cenho franzido —. Suponho que já sabes que a ideia de contrair casamento não me atraía demasiado.
Ainda não conheci nenhuma mulher à quem deseje me atar por toda a vida. Harry sim encontrou-a, e se precisasse de uma razão para convencer-me de que...

— Não fales assim, querido! — interrompeu-o a duquesa —. Recorda que Harry foi feliz em seu casamento. Ademais, acho que ainda que os sentimentos de Lianthe não
fossem muito profundos, sentia um afeto sincero por teu irmão.

— Sim, um afeto tão sincero que passado um ano de sua morte consumia-se por entrar num salão de baile, e quatro anos mais tarde está a planejar se casar com um janota.
É inadmissível, mãe.

— Muito bem, querido, mas agora estamos falando de teu casamento, e não do de Harry, não é assim?

— Sim, tens razão. Veja, faz mais ou menos um ano compreendi que devia me casar.

Não tanto por ter um herdeiro, que já o tenho, mas...

— Sylvester, espero que não metas essa ideia na cabeça a Edmund.

— Como se a ele se importasse! — respondeu rindo —. Sua única ambição é ser cocheiro dos correios, ou o era até que Keighley lhe deixou usar a corneta. Agora já
não sabe se quer ser cocheiro ou guarda de correios. Temo que não o impressione muito se inteirar de que algum dia terá que ocupar meu lugar.

— Sim, agora talvez não lhe impressione muito, mas mais tarde... — replicou a duquesa sorrindo.

— Bom, essa é uma das razões, mãe. Se quero casar-me, acho que deveria fazê-lo antes que Edmund seja grande o bastante para se sentir ofendido. Assim faz alguns
meses comecei a olhar ao redor.

— Que estranho és! Agora dirás que redigiste uma lista das virtudes que deveria ter tua esposa.

— Mais ou menos — admitiu ele —. Podes rir-lhe de mim, mas concordarás comigo em que certas virtudes são indispensáveis. A mulher com que me case deve ser de boa
família, por exemplo. Não digo que tenha de ser necessariamente um excelente partido, mas sim uma jovem de certa categoria.

— Ah, sim, nisso estou de acordo. E o que mais?

— Bom, a um ano teria dito que tinha que ser também formosa — contestou ele com ar pensativo. E a duquesa pensou: Não é nenhuma beldade? Mas agora considero mais
importante que seja inteligente. Não acho que pudesse suportar a uma mulher de poucas luzes. Ademais, não quero amarrar-me a outra idiota.

— Agradeço-te muito — replicou ela, muito divertida —. Inteligente, mas não necessariamente formosa. Muito bem! Continua.

— Bem, sim exijo algum grau de beleza. Ao menos deve ter um rosto agradável e uma elegância comparável à tua, mãe.

— Não tente despistar-me, adulador. Encontraste entre as debutantes alguma dotada com todas essas qualidades?

— A primeira vista, suponho que uma dúzia, mas depois de uma análise mais detalhada, só cinco.

— Cinco?

— Bom, só cinco com as quais talvez suportasse passar uma grande parte de minha vida. Vejamos, uma é lady Jane Saxby, atraente e bondosa. Outra a filha de Barningham,
uma jovem muito vivaz. A senhorita Bellerby é muito formosa, e um tanto reservada, o que não me desagrada. Lady Mary Torrington... oh, e um diamante bruto! E por
último a senhorita Orton: não é muito bela, mas sim graciosa, e de uns modos muito corretos. — Fez uma pausa, com o olhar fixo nos troncos que ardiam na lareira.
A duquesa esperava, impaciente. Por fim ele levantou a cabeça e lhe sorriu —. E então, mãe? — disse com tom afável —. A qual delas preferes?

Capítulo 2

— Brincas comigo, querido? — perguntou a duquesa depois de um instante de surpresa —. Não podes me pedir seriamente que a eleja por ti!

— Não, não te peço exatamente que o faças. O que gostaria é que me aconselhasses. Tu não conheces a todas essas jovens, mas sim a suas famílias, e se tivesses alguma
clara preferência...

— Mas Sylvester, não preferes a nenhuma na verdade?

— Não. Esse é o problema. A cada vez que penso que uma me convém mais que as outras, a analiso e em seguida me dou conta de que possui algum defeito que me desagrada.
O riso de lady Jane, por exemplo; ou essa infernal harpa da senhorita Orton. Já sabes que não gosto de música, e me ver obrigado a suportar a alguém que passa no
dia tocando a harpa em minha própria casa... Não, acho que não poderia tolerar, não te parece— Em quanto a lady Mary...

— Obrigado, já ouvi bastante para poder te aconselhar! — interrompeu-o sua mãe —. Não proponhas casamento a nenhuma delas. Não estás apaixonado!

— Apaixonado? Não, claro que não. Talvez é imprescindível...

— É claro, filho meu. Não deves pedir a uma mulher se não podes lhe oferecer também teu amor.

— És demasiado romântica, mãe — disse Sylvester sorrindo.

— Ah, sim? Tu, ao contrário, careces por completo de romantismo.

— Bom, não procuro romantismo no casamento.

— Só o procuras em tuas amantes?

— Surpreendes-me, mãe! — Sorriu —. Isso é farinha de outro saco. E também não chamá-lo-ia romantismo... Ainda que talvez sim tivesse-o em minha primeira aventura.
No entanto, acho que nem sequer quando era um jovem inexperiente e me apaixonei pela ave do paraíso mais deslumbrante sonhava com uma paixão duradoura. Suponho que
sou demasiado volúvel, e por isso...

— De jeito nenhum! O que passa é que ainda não tiveste a sorte de conhecer a mulher capaz de acordar em ti uma paixão que perdure.

— Tens razão, não a encontrei. Dado que levo quase dez anos procurando, e podemos convir que tive ocasião de observar a todas as debutantes que aparecem anualmente
na temporada de Londres, e que não achas que seja demasiado volúvel, devemos deduzir que sou demasiado exigente. Se tenho de ser-lhe sincero, mãe, és a única mulher
que conheço que não me causa um profundo aborrecimento.

A duquesa franziu ligeiramente a fronte. Seu filho tinha falado num tom jocoso, mas ainda assim não gostou do que tinha ouvido.

— Dizes que tiveste ocasião de observar a todas, Sylvester?

— Sim, isso creio. Parece-me que examinei a todas as candidatas.

— E dedicaste-lhes teus galanteios a muitas delas, se é verdadeiro o que se comenta.

— Isso foi contado por minha tia Louise, claro — conjeturou Sylvester —. Tua irmã é uma fofoqueira incorrigível, querida mãe. Bom, se de vez em quando mostrei alguma
preferência, ao menos ninguém pode me acusar de ter dedicado minhas atenções de maneira tão exclusiva para alentar falsas esperanças no coração de nenhuma jovem.

A expressão risonha tinha-se esfumado do semblante da duquesa. De repente, a imagem que tinha de seu adorado filho se via borrada; e o desassossego impedia-a de
pensar com clareza no que devia lhe dizer. Enquanto ela titubeava, os interromperam. Abriu-se a porta e ouviu-se uma bonita e queixosa voz: “Posso entrar, mãe —
“Então apareceu uma formosa jovem ataviada com um abrigo de veludo azul e um chapéu cuja aba emoldurava um rosto de formosura deslumbrante. Uns brilhantes cabelos
dourados caíam em cascata junto às suaves faces; os grandes olhos azuis estavam protegidos por umas delicadas sobrancelhas; o nariz era pequeno e reto, e os lábios,
muito vermelhos, traçavam uma deliciosa curva.

— Bom dia, querida. Claro que podes passar — respondeu a duquesa.

A mulher tinha visto já o seu cunhado e, quando entrou na sala, disse com um tom menos cordial:

— Oh! Não sabia que Sylvester estava contigo, mãe. Rogo que me perdoes, mas só vim te perguntar se tinhas visto Edmund.

— Não o vi toda a manhã — respondeu a duquesa —. Não está com o senhor Leyburn—

— Não, e isso me incomoda enormemente porque quero levá-lo para visitar os Arkholme. Já sabes que faz dias que pretendo ir a sua casa, e agora, quando brilha uma
formosa manhã pela primeira vez já faz uma eternidade, ninguém sabe me dizer onde está meu filho.

— Talvez tenha ido aos estábulos, o pirralho.

— Não, ainda que eu também tivesse pensado, porque desde que Sylvester começou a animá-lo a visitar os estábulos...

— Todos os meninos o fazem, querida, e sem necessidade de que ninguém os anime — retrucou a duquesa —. Meus filhos faziam-no, é claro; eram uns jogadores incorrigíveis.
Diga-me, mandaste-lhe fazer esse abrigo com as mostras de veludo que nos enviaram no mês passado— Que bom ficou!

A tentativa de distração da duquesa foi em vão.

— Sim, mas imagine, mãe — exclamou Lianthe —. Também mandei fazer com ele um traje para Edmund, para que o pusesse quando saísse comigo. Um traje muito singelo,
mas

do mesmo estilo da roupa vermelha que usa o menino do quadro de Reynolds. Não sei onde o vi, mas em seguida pensei quão bem que estaria Edmund com uma roupa parecida
mas em azul.

— Não me digas! — murmurou Sylvester.

— Que disseste? — perguntou Lianthe, receosa.

— Nada.

— Certamente que era algum comentário irônico. Como é lógico, nunca pensei que pudesses achá-lo bonito.

— Equivocas-lhe. Juntos comporíeis uma imagem tão bela que cortaria a respiração de qualquer um. Supondo, é claro, que conseguisses convencer a Edmund para que se
comportasse corretamente. Envolvendo-o em seus braços com essa expressão tão enternecedora... não, impossível! Essa expressão só a tem quando está tramando algo.
Bom...

— Queres fazer o favor de calar-lhe, Sylvester? — disse a duquesa contendo o riso —. Não lhe faças caso, querida. Só pretende incomodar-lhe.

— Sim, já o sei, mãe — replicou Lianthe, ruborizada —. E também sei que é ele quem anima o pobre Edmund a desobedecer-me.

— Deus meu! De que mais me vais acusar? — exclamou Sylvester.

— É a verdade! — insistiu sua cunhada —. E isso demonstra o pouco que o queres. Se importasse-lhe algo, não incitá-lo-ias a correr que não sei quais perigos.

— Quais?

— Poderia acontecer-lhe qualquer coisa! Neste mesmo instante poderia estar no fundo do lago.

— Não está perto do lago. Se tanto interessa, direi que faz pouco o vi se dirigir ao bosque.

— E imagino que não fizeste nada para o impedir.

— Não. A última vez que intervi nas diversões ilícitas de Edmund passastes três dias me chamando de “monstro cruel”.

— Nunca te chamei nada parecido. Só disse que... Ademais, de qualquer modo Edmund poderia mudar de ideia e dirigir-se ao lago.

— Tranquiliza-te, não irá ao lago. Ao menos enquanto souber que eu me acho na casa.

— Imaginava-o! — saltou ela com ansiedade —. Seria melhor que não vá à casa dos Arkholme, e se não estivessem atrelados os cavalos, já não iria. Mas não descansarei
tranquila nem um momento me perguntando se meu pobre filho órfão se encontra a salvo ou no fundo do lago.

— Se não aparecer na hora da ceia, farei dragar o lago — prometeu Sylvester; a seguir dirigiu-se para a porta e abriu-a —. Enquanto isso, por muito descuidado que
seja com meu sobrinho, não o sou com meus cavalos, e te rogo que se mandaste atrelar os cavalos não os faças esperar muito, com este tempo.

Essas palavras indignaram tanto a Lianthe, que saiu muito irada da sala.

— Muito edificante! — observou Sylvester —. Esta abnegada mãe, a pesar de a achar que seu filho órfão jaz no fundo do lago, vai-se em visita.

— Meu querido meu, Lianthe sabe muito bem que Edmund não está no fundo do lago. Mas vocês têm que discutir toda vez que se veem— Permita-me dizer-lhe que és tão
injusto com ela como o ela é contigo.

— Suponho que sim — reconheceu Sylvester encolhendo-se de ombros —. Se alguma vez tivesse dado sinais verdadeiros da tão anunciada devoção que sente por Edmund,
suportá-la-ia com mais paciência, mas não é assim. Quando o menino aceita se submeter às caricias de sua mãe, ela se compraz em pensar que o adora, mas quando se
mostra revoltoso, é cômico ver como rapidamente ela fica com dor de cabeça e tem que chamar a senhorita Button para que a livre de seu incômodo. Nem sequer acercou-se
quando teve sarampo, e quando o menino teve aquela dor de dentes, aproveitou a ocasião para o levar a Londres, ainda que depois preferisse que apodrecesse o dente
do moleque a passar pelo transe de o obrigar a se submeter a uma extração...

— Já sabia que acabaríamos falando disso! — interrompeu-o a duquesa alçando ambas mãos —. Permite-me dizer-lhe, meu filho, que é necessário muita firmeza para arrastar
a uma criança ao consultório do dentista. Eu nunca tive suficiente, e a senhorita Button se via obrigada a realizar essa horrível tarefa com vocês, meus filhos;
e também tê-lo-ia feito com Edmund, se não estivesse estado doente nesse momento.

— Não precisa que me recordes, mãe — retrucou ele rindo —, porque fui eu que se ocupou dessa horrível tarefa.

— Sim, tens razão. Pobre Edmund! Caíste sobre ele no parque, o colocou em teu carro e o levaste à câmara de torturas com a maior crueldade. Garanto-lhe que chorava
pensando nele.

— Também terias chorado se tivesses visto a cara desse moleque. Suponho que a néscia criada que o tinha a seu cargo te disse que “me abati sobre ele”. Pois bem,
o única coisa que fiz foi o levar de imediato a Tilton's, e o que se precisava não era resolução, senão firmeza. Não, mãe, não me peças que reconheça que Lianthe
adora a seu filho, porque me revolta o estômago. O que gostaria de saber é quem foi o néscio que lhe disse quão encantadora estava com seu filho em braços. E também
gostaria não ter sido tão tonto para me deixar convencer que encarregasse Lawrence a retratá-la nessa pose tão comovedora.

— Fizeste-o para comprazer a Harry — recordou-lhe a duquesa com doçura —. Sempre me alegrei de que o quadro estivesse terminado a tempo para que teu irmão o visse.

Sylvester acercou-se à janela e ficou ali de pé contemplando a paisagem.

— Perdoa-me, mãe — disse passados uns minutos —. Não devia dizer isso.

— Não, claro que não, querido filho. Espero que tentes ser menos duro com Lianthe, porque deveríamos compadecermos dela. Já sei que não gostaste que começasse a
frequentar de novo os salões, acompanhada de sua mãe, ao final do primeiro ano de luto. A mim também não me agradou, mas como podíamos exigir a uma criatura tão
adorável que ficasse aqui, murchando— Não fez nada de mau tirando o luto. — Titubeou um momento, e depois acrescentou —: Não se pode recriminar que agora queira
voltar a se casar, Sylvester.

— Não lhe tenho recriminado nada.

— Sei-o, mas está tornando as coisas muito difíceis, meu querido. Talvez não sinta grande devoção por Edmund, mas lhe arrebatar o menino...

— Se isso chegar a ocorrer, seria por sua causa, não minha. Lianthe pode viver aqui todo o tempo que deseje, e se preferir pode se instalar com Edmund na moradia
independente que herdou de seu esposo. A única coisa que disse sempre é que o filho de Harry deve se educar em Chance, e com a minha supervisão. Se Lianthe voltar
a casar-se, pode vir visitar Edmund sempre que queira. Sabe que até poderia levá-lo para passar curtas temporadas com ela. Mas se há algo que jamais permitirei é
que cresça sob os auspíicios de Nugent Fotherby. Pelo amor de Deus, mãe, como podes me crer capaz de trair a confiança de meu querido irmão?

— Ah, não, não! Mas sir Nugent é tão detestável? Conhecia um pouco a seu pai (era tão afável que concordava com todos), ainda que ache que não cheguei a conhecer
a seu filho.

— Não perdeste nada. É um senhor com ares de grandeza, com três quartas partes de idiotice e a outra... Bah, não importa! Seria um péssimo tutor se abandonasse Edmund
para que fosse educado com Lianthe e ele. Sabes o me disse Harry, mãe? Foram quase suas últimas palavras: “Cuidarás de meu filho, Dook.” — Interrompeu-se, pois a
voz falhou ao pronunciar a última palavra. Depois de uma pausa, acrescentou com certa dificuldade —: Já sabes que ele me chamava assim, mãe. Não era uma pergunta,
nem um rogo. Estava seguro de que eu cuidaria de seu filho, e não me disse para me recordar, mas porque essa ideia o reconfortava, e ele sempre me dizia o que pensava.
— Viu que sua mãe tinha coberto os olhos com uma mão, e foi rapidamente para o seu lado; tomou-lhe a outra mão e levou-lha à face —. Perdoa-me, mas quero que me
entendas, mãe!

— Entendo-lhe, Sylvester, mas como pretendes que o menino fique aqui, quando a idosa senhorita Button é a única que o pode vigiar, e quando tem um professor demasiado
jovem? Se eu não estivesse inválida...

Seu filho, que a conhecia muito bem, não tentou responder a sua mãe, mas disse com serenidade:

— Sim, também o pensei, e essa é uma das razões pelas que quero me casar. Estou convencido de que Lianthe cedo se resignaria à ideia de se separar de Edmund se pudesse
deixá-lo a cargo de sua tia. Então ninguém poderia acusá-la de crueldade, não acreditas? Importa-lhe muito o que as pessoas possam pensar dela, e tenho de reconhecer
que, após se apresentar ante a sociedade como uma abnegada mãe, compreendo que não possa abandonar Edmund ao seu malvado tio. Mas se me casasse, as pessoas pensariam
que minha esposa tinha conseguido abrandar meu caráter.

— Sylvester! Lianthe nunca disse que eras malvado.

— Talvez não tenha empregado esse termo — retrucou Sylvester sorrindo —, mas contou a todo mundo o pouco que me preocupo com Edmund e o cruel que me mostro com ele.
Talvez não tenham acreditado em tudo, mas tenho motivos para supor que inclusive um homem tão sensato como Elvaston acha que trato ao menino com severidade exagerada.

— Pois se lord Elvaston conhece tão pouco a sua filha que acredita em todas as mentiras que conta, terei que pôr em dúvida sua sensatez — disse a duquesa com aspereza
—. Mas não sigamos falando de Lianthe, te rogo.

— Tens razão, mãe. Prefiro falar de meus assuntos. Diga-me, com que classe de mulher gostarias que me casasse?

— Em teu estado atual, não gostaria que te casasses com nenhum tipo de mulher. E quando sair desse estado, com o tipo de mulher que tu prefiras, é claro.

— Não me ajudas nada! — protestou Sylvester —. Achava que as mães faziam planos de casamento para seus filhos.

— E sofriam graves desenganos por isso. Parece-me que o único casamento que planejei para ti foi com uma menina de três anos quando só tinhas oito.

— Bom! Isso já está melhor! — exclamou ele, otimista —. Quem era? Conheço-a?

— Não a mencionaste, mas suponho que ao menos a terá visto, porque se apresentou na sociedade neste ano. Sua avó escreveu-me para dizer-me e estive a ponto de pedir-lhe...
— interrompeu-se, envergonhada, e retificou: que te transmitisse uma mensagem de minha parte, mas não o fiz porque não achava que se recordasse. É a neta de lady
Ingham.

— Como? A neta de minha respeitada madrinha? Uma das filhas de Ingham? Oh, não! Lamento-o muitíssimo, mas... não!

— Não, não! Refiro-me à filha de lord Marlow! — retrucou sua mãe rindo —. Casou-se com Verena Ingham, uma pessoa encantadora. Éramos muito amigas.

— Ah, muito melhor! E a que se deve não conhecer à cativante lady Marlow? — Deteve-se, com o cenho franzido, e acrescentou —: Mas sim conheço-a! Bom, não recordo
ter falado com ela, mas tenho de te dizer, mãe, que ainda que fosse muito formosa em sua juventude...

— Não, por Deus! Essa odiosa mulher é a segunda esposa de Marlow. Verena morreu quando sua filha não tinha nem duas semanas.

— Que desgraça. Fala-me dela.

— Não acho que possa te contar grande coisa — disse sua mãe, perguntando-se se Sylvester só procurava distraí-la das lembranças que ele mesmo tinha evocado —. Nem
era formosa nem tinha grande talento nem sequer estava muito na moda, temo. Frustrou todas as tentativas que fizeram para a converter numa jovenzinha sedutora, e
só estava elegante com seu traje de montar. Comportava-se de um modo insensato, e ninguém lhe importava nem um pouco. Nem sequer lady Cork! Apresentamo-nos na sociedade
no mesmo ano e éramos amigas íntimas; mas enquanto eu tive a sorte de conhecer a teu pai, e de me apaixonar por ele no mesmo instante, se me permite dizer, ela recusou
uma oferta atrás da outra que lhe fizeram (montões de propostas, porque nunca lhe faltaram pretendentes), e declarou que preferia os cavalos a qualquer um dos homens
que tinha conhecido. A pobre lady Ingham estava desesperada. E no final casou-se com Marlow, nada menos. Acho que gostou dele por sua habilidade no manejo dos cavalos,
porque estou segura de que carecia de qualquer outra virtude. Temo que não seja uma história muito emocionante. Por que te interessa?

— Bom, queria saber que classe de mulher era. A Marlow sim conheço-o, e suponho que suas filhas devem de ser insuportáveis. Mas a filha de tua amiga Verena poderia
ser a esposa ideal para mim, não acreditas? Seguramente encontrá-la-ia de teu agrado, o qual me importa muito; e ainda que não tenho intenção de carregar uma esposa
mal educada nem desobediente, suponho que essa jovem levará suficiente sangue dos Marlow nas veias para compensar o caráter excêntrico que possa ter herdado de sua
mãe. A excentricidade pode ser muito divertida, mas está fora de lugar numa esposa, ao menos na minha!

— Que tolices dizes, meu filho. Se achasse que fala sério, eu me preocuparia muito.

— Pois claro que falo sério! Pensava que também irias te alegrar. Há algo mais romântico que me casar com a mulher com a qual me comprometeram quando ela ainda dormia
em seu berço?

A duquesa sorriu, mas no fundo não parecia divertida. Sylvester esquadrinhou seu rosto e em um doce tom que só empregava com ela disse:

— Que passa, mãe? Diga-me!

— Sylvester, nomeaste cinco jovens que talvez poderiam te convir, e agora estás a falar de uma jovem de cuja existência não tinhas notícia nem a dez minutos. Como
se a única coisa que tivesses que fazer fosse te decidir por uma elas! Meu filho, não te ocorreu pensar que poderiam te recusar?

Sylvester distendeu o rosto.

— Só isso? Não, mãe, não me recusarão.

— Tão seguro estás, Sylvester?

— É claro que sim, mãe. Bom, da senhorita Marlow, não, porque seu afeto pode estar já comprometido.

— E também porque poderias não lhe agradar — sugeriu a duquesa.

— Não lhe agradar? Por que não iria lhe agradar? — perguntou ele, surpreendido.

— Não o sei, mas essas coisas acontecem.

— Se referes a que poderia não se apaixonar de mim, suponho que tens razão, ainda que supondo que se não ama a outro homem não vejo nenhum motivo para que não acabasse
me amando ou, ao menos, para que não lhe agradasse um pouco. Acreditas-me tão torpe para não saber me mostrar agradável quando me interessa? Surpreende-me que tenhas
essa ideia de mim, mãe!

— Não — disse ela —. No entanto, ignorava que tivesses tanta habilidade para cativar nada menos que a cinco mulheres formosas e de boa família até o ponto de que
aceitassem tua proposta de casamento.

— Tu mesma reconheces, mãe: causo estragos entre as mulheres — retrucou Sylvester sem poder conter-se.

Sua mãe sorriu, porque nunca podia resistir ao sedutor olhar de seu filho, mas negou com a cabeça e disse:

— Deveria ter vergonha, Sylvester. Falas como um dândi!

— Não digas isso — replicou ele rindo —. Se tiver de ser sincero, confessar-lhe-ei que não são cinco, mas uma dúzia de jovens com classe e distinção que estariam
dispostas a aceitar minha proposta. Não estou mau do tudo, ainda que sem dúvida terei defeitos, como qualquer um. No entanto, os meus são mais agradáveis: mal são
perceptíveis pela rica cobertura que os cobre.

— Aceitarias por esposa quem se casasse contigo por tuas posses? — perguntou a duquesa arqueando as sobrancelhas.

— Parece-me que não me importaria muito, desde que nos déssemos bem. Uma esposa assim não faria muitas cenas e isso representa uma grande vantagem, porque não acho
que aguentasse mais de um ano com uma mulher que passasse o dia protestando.

— As cenas, meu filho, só se dão entre casais por causa do amor — retrucou ela secamente.

— Quem o vai saber melhor do que eu? — disse ele esboçando um cálido sorriso —. Mas onde encontrarei a uma mulher que esteja a tua altura, querida mãe— Mostre-me,
e prometo-lhe que me apaixonarei loucamente por ela. Com uma mulher assim, certamente não teria que temer mal entendidos.

— Não digas mais absurdos, Sylvester!

— O que proponho não é tão absurdo como acreditas! Sério, mãe, ainda que conheça alguns casais que prosperaram por amor, vi muitos que fracassaram. Oh! Já sei que
alguns desses esposos e essas esposas que conheço olhar-me-iam surpreendidos ao me ouvir afirmar que não os considero casais felizes. Talvez eles se divirtam com
as cenas de ciúmes, os ataques de raiva, as brigas e os estúpidos mal entendidos, mas te asseguro que os acho odiosos. A distinta mulher que se casar comigo porque
a ilusão de se converter em duquesa muito lhe convém, provavelmente cumprirá seu papel de forma admirável. — Olhou com os olhos entreabertos a sua mãe e acrescentou
—: Ou preferirias que tirasse a minha jaqueta e saísse por aí com um humilde disfarce, como o príncipe de um conto de fadas? Olha, a verdade é que nunca tive muito
boa opinião desse príncipe. Parece-me um tipo estúpido, pois como pretende, disfarçado de mendigo, se acercar a uma mulher distinta que jamais aceitaria se casar
com ele?

— Tens razão! — concedeu a duquesa.

Como Sylvester sempre estava muito atento a sua mãe, nesse momento se deu conta de que de repente parecia cansada, assim se apressou a dizer:

— Cansei-a com minhas tolices! Por que me deixas falar até que te doía cabeça? Queres que vá procurar a Anna?

— Não, não. Garanto-lhe que não me dói — disse sua mãe com um terno sorriso.

— Gostaria de acreditar! — disse ele se inclinando para beijá-la na face —. Deixar-lhe-ei descansar antes que Augusta volte a te importunar. Não permitas que te
pressione!

Sylvester partiu, enquanto sua mãe ficava perdida em suas reflexões até que voltou a senhorita Penistone.

— Estás sozinha, querida Elizabeth? — exclamou sua prima —. Se soubesse... Sempre acho que Sylvester ficará contigo para sempre, mas no final me vejo obrigada a
entrar. Estou segura de que repeti até a saciedade que nunca conheci a um filho tão atento. Nem com tanta consideração! Teu filho não tem comparação!

— Ah, sim! — admitiu a duquesa —. É muito carinhoso comigo, e infinitamente bondoso.

A duquesa parecia um pouco abatida, o que era incomum nela. A senhorita Penistone, no tom alentador que a senhorita Button costumava empregar para distrair Edmund
quando se enfadava, disse:

— Hoje estava especialmente atraente, não é verdade? Que figura tão excelente e de porte tão distinto. Que nervosismo provocará quando por fim decidir se casar!

A senhorita Penistone riu afavelmente, mas a duquesa não pareceu se divertir com o comentário. Ainda que não dissesse nada, a senhorita Penistone viu que a duquesa
apertava e soltava várias vezes os braços do cadeirão, e se deu conta no mesmo instante de que sem dúvida devia temer que um troféu como seu filho Sylvester caísse
em mãos de alguma criatura malvada e pouco merecedora de suas atenções.

— E não temas que se case sem ter em conta tua opinião — acrescentou a senhorita Penistone alegremente, mas sem deixar de perscrutar o rosto da duquesa —. Se teu
filho não fosse tão sensato terias motivos para te preocupar, pois são muitas as jovens que lhe vão atrás. Essa ideia ocorreu-me uma vez (que absurdo!) e mencionei-o
a Louisa, quando veio no verão. “Ele não!”, disse-me. Já sabes como ela é brusca. “Sylvester sabe muito bem o quanto vale.” E isso me tranquilizou, como podes supor.

Esse argumento não parecia ter exercido o mesmo efeito benéfico na mente da duquesa, porque tampou os olhos com uma mão. A senhorita Penistone compreendeu então
o que ocorria: a pobre Elizabeth tinha voltado a passar uma noite ruim.

Capítulo 3

Sylvester não voltou a mencionar seus planos matrimoniais; e como quando a ia visitar sempre a encontrava animada, também não suspeitou que a duquesa estivesse preocupada
com ele. Se o tivesse notado, teria pensado que o único motivo era que não gostava da ideia de que se casasse, e não ter-lhe-ia custado muito descartar esse projeto.
Se sua mãe lhe tivesse confessado que o que mais temia e preocupava era que seu filho se tivesse tornado arrogante, ele teria achado que aquela conversa tinha provocado
essa ideia na duquesa, o que ter-lhe-ia afligido tanto que faria tudo que pudesse para dissuadi-la. Sylvester não se considerava arrogante: conhecia várias pessoas
a quem podia se aplicar esse epíteto, e as achava insuportáveis. Existiam poucos homens mais mimados e cortejados que ele; não tinha muitas anfitriãs que não lhe
tivessem perdoado esses deslizes que muitas vezes cometem os homens distintos. No entanto, nenhuma anfitriã teria jamais motivo para se queixar da cortesia de Sylvester;
e ninguém, por insignificante que fosse, que lhe tivesse feito o menor serviço que fosse, ou que simplesmente tivesse tocado o chapéu para o saudar, teria razões
para pensar que Sylvester o desprezava. Reservar a cortesia apenas para as pessoas importantes era uma mostra de má educação, desonroso para si mesmo e tão desprezível
quanto alardear grandeza ou insultar a um criado o chamando de torpe. Sylvester, que nunca chegava muito tarde às festas, participava nas danças folclóricas, não
partia meia hora depois de sua chegada, respondia a todos os convites, não ficava olhando de cima a baixo a um arrendatário seu sem o reconhecer nem deixava de trocar
umas palavras com cada um de seus convidados quando celebrava recepções em Chance, achava que uma acusação de arrogância lançada contra ele não era mais que uma
calunia, seguramente proferida por algum adulador a quem tinha decepcionado, ou por algum impertinente novo rico cujas pretensões se tinha visto obrigado a rebaixar.

Todo isso sabia a duquesa, e a desconcertava. Teria gostado de consultar alguém a quem os interesses de seu filho importassem tanto como a ela, e que o conhecesse
melhor que ela (pois a duquesa só via Sylvester em suas residências) como se comportava em sociedade. Só tinha uma pessoa que poderia responder as estas perguntas;
mas, ainda que a duquesa sentisse respeito e afeto por lord William Rayne, o tio de Sylvester, que durante dois anos tinha sido também seu tutor, não precisou refletir
muito para se convencer de que qualquer tentativa de fazê-lo partícipe de suas vagas apreensões só faria com que ele achasse que a duquesa era vítima das típicas
obsessões de uma inválida. Lord William era uma personagem antiquada, muito sincero e bondoso, mas também muito cerimonioso. Exercia certa influência sobre Sylvester,
por quem sentia profundo carinho e de quem estava muito orgulhoso, e suas opiniões tinham muito peso para seu sobrinho. Ainda assim, desgraçadamente, era mais provável
que lord Rayne pronunciasse uma de suas lacônicas reprovações pelo que ele considerava uma falha por parte de seu sobrinho ao recordar sua elevada situação, do que
pelo fato de que Sylvester manifestasse ares de superioridade.

Lord Rayne passou o Natal em Chance, e em lugar de tranquilizar à duquesa, a deprimiu ainda mais, pese que não fosse essa sua intenção. Não deixou de elogiar a Sylvester:
assegurou à duquesa que o garoto não o tinha decepcionado em absoluto e que seus modos eram de uma correção invejável.

— É muito afável e cortês, mas sabe manter as distâncias — disse —. Sabe perfeitamente como deve se comportar, querida irmã. Disse-me que está considerando a ideia
de se casar, e me parece muito bom. Já era hora de que pensasse em ter filhos. E apesar de que me dá a impressão de que está agindo como deveria, lhe dei algumas
indicações. Na realidade não acho que as precise, mas desagradar-me-ia que cometesse algum erro por não ter recebido um conselho a tempo. No entanto, graças a Deus
sua mente não alberga estúpidas ideias românticas.

A imutável tradição da casa dos Rayne estabelecia que no Natal se reunissem no lar do chefe de família tantos membros tanto quanto fosse possível. Como esta era
muito numerosa, e como a maioria dos que se reuniam em Chance ficavam ali um mês inteiro, Sylvester não dispunha de muito tempo livre e via sua mãe menos do que
teria gostado. Era um excelente anfitrião e contava com a magnífica colaboração de sua cunhada; Lianthe, que ficava encantava em receber, desfrutava representando
o papel de suplente da duquesa, e seu rosto se iluminava tão logo o primeiro visitante transpunha a soleira. Essa satisfação só se viu empanada pela negativa de
Sylvester de convidar sir Nugent Fotherby para a festa. Lianthe argumentava que se podia convidar seus pais não via motivo para não convidar também a seu futuro
esposo, mas sua tentativa de persistir nessa queixa foi interrompida pela intervenção de seus pais. Lord Elvaston, que não via com bons olhos a sir Nugent, lhe informou
que se tivesse encontrado seu noivo em Chance teria partido no mesmo instante de volta à sua casa, e lady Elvaston, a pesar de estar mais disposta a tolerar a sir
Nugent por sua imensa riqueza, lhe assegurou que ela estava iludida se esperava ganhar Sylvester lhe dando a oportunidade de examinar de perto aquele amável dândi.

Sylvester partiu de Chance em fins de janeiro, um dia após a partida de seu último convidado. Dirigia-se a Blandford Park, onde enviou os seus caçadores pela rota
mais direta, desde Leicestershire; no entanto, ele foi primeiro a Londres, um desvio que não surpreendeu, pois disse a sua mãe que devia resolver uns assuntos na
cidade. Dado que era a caça, e não o casamento, o motivo pelo qual Sylvester tinha ido a Blandford Park, a duquesa se despediu dele sem nenhum temor imediato de
que propusesse casamento a alguma das cinco debutantes que lhe tinha mencionado. Nenhuma dessas jovens ia estar em Blandford Park, e também não era provável que
se achasse em Londres no final de janeiro. A duquesa achou que seu filho teria poucas oportunidades de cometer a imprudência que estava fantasiando até o início
da temporada. No entanto, Sylvester não tinha revelado a sua mãe qual era o principal assunto que devia atender na cidade: visitar a sua madrinha.

Lady Ingham vivia em Green Street, numa casa abarrotada de móveis e ornamentos que ela tinha feito questão de se levar de Ingham House depois do casamento de seu
filho. A viúva fazia questão de afirmar que cada móvel pelo qual sentia especial carinho era propriedade sua; e como nem Ingham nem sua bondosa esposa podiam enfrentá-la,
lady Ingham levou várias relíquias da família, prometendo, legá-las ao seu legítimo proprietário. Também levou o mordomo, que estava envelhecendo e fazia questão
de aferrar-se a costumes que lord Ingham considerava obsoletos, e por isso não se lamentou. O idoso realizava suas tarefas com lentidão e parcimônia, e tentava impedir
que a viúva celebrasse mais reuniões do que pequenas soirées ou partidas de cartas. Felizmente, ela não tinha intenção de dar grandes jantares, nem cafés da manhã,
e se excusava alegando sua avançada idade e sua doença. Na realidade só tinha sessenta e cinco anos, e fora certa tendência à gota, ninguém sabia com certeza que
doença era essa que a afligia. A viúva caminhava com ajuda de uma bengala de ébano, e quando devia fazer algum esforço físico a ameaçavam as palpitações e tinha
que mandar procurar a sir Henry Halford, que conhecia tão bem sua constituição que qualquer um podia estar seguro que lhe recomendaria que fizesse exatamente o que
convinha a lady Ingham.

Quando Sylvester entrou no abarrotado salão, lady Ingham o recebeu com um trejeito de desagrado, ainda que na realidade se alegrava de o receber; e depois de dizer-lhe
com mordacidade que quase não recordava de seu rosto, se acalmou o suficiente para lhe estender uma mão e deixar que ele a beijasse. Aplacada pela elegância com
que Sylvester realizou esse gesto de cortesia, lhe indicou uma cadeira do outro lado da lareira e perguntou como se encontrava sua mãe.

— Quando a deixei, estava muito bem. Mas diga-me, madrinha, como se encontra você?

Lady Ingham começou a explicar-lhe. O recital durou uns vinte minutos, e ainda teria podido se prolongar se a mulher não tivesse recordado de repente de algo que
queria saber.

— Bah, mas não tem importância! — exclamou interrompendo o relato de seus numerosos males —. Que é isso que me contaram da viúva de teu irmão? Corre o rumor de que
vai se casar com um menino bonito. Conheci a seu pai, um tipo muito arrumado, ainda que tivesse fama de pessoa bondosa. Ouvi dizer que o filho é um dândi. Suponho
que tenha um bom patrimônio, não? O velho Fotherby deve ter deixado uma fortuna considerável.

— Sim, eu o creio. É muito rico — respondeu Sylvester.

— Ah, sim? Hum... — Era evidente que a mulher estava impressionada; depois de refletir um momento, acrescentou —: E a ela está com pressa de se casar, não? Que vai
ser do garoto?

— Ficará em Chance, é claro.

— Como? Vais sobrecarregar a tua pobre mãe com ele? — perguntou lady Ingham olhando-o fixamente.

— Não, é claro que não. — Sylvester levantou o monóculo que tinha na mão, e se pôs a dar voltadas com o indicador e o polegar, observando o reflexo do fogo da lareira
em sua lente —. Também eu estou pensando em me casar, madrinha.

— Ótimo, já era hora — replicou ela com certa irritação —. Com a filha de Torrington, suponho.

— Bom, talvez possa ser ela, se estivesse seguro de que ia se sentir satisfeita em Chance. Veja, madrinha, meu propósito é escolher uma esposa que seja do agrado
de minha mãe.

Talvez lady Ingham pensasse que essa era uma estranha eleição para o casamento, mas não o disse.

— Estás apaixonado? — perguntou.

— Não, em absoluto — respondeu Sylvester —. Já veem que dilema me encontro! Agradecer-lhe-ia enormemente que me aconselhasse.

Lady Ingham guardou silêncio durante um minuto, mas Sylvester sabia que estava alerta, assim aguardou paciente, jogando com o monóculo.

— Sirva-se de um copo de vinho — disse de repente lady Ingham —. E sirva-me outro a mim, ainda que saiba que depois arrepender-me-ei.

Sylvester levantou-se e dirigiu-se para uma mesinha onde Horwich tinha depositado uma bandeja de prata. Quando voltou junto à lareira, estendeu um copo de xerez
à viúva e disse num tom jovial: — Se fosse uma fada madrinha, não teria mais que agitar sua varinha mágica e fazer aparecer a noiva perfeita para mim.

Voltou a tomar assento enquanto começava a falar de outro tema, quando sua madrinha o interrompeu:

— Talvez não possa agitar uma varinha mágica, mas acho que poderei te encontrar uma noiva adequada. — Deixou o copo e prosseguiu —: O que tu procuras, Sylvester,
é uma jovem de boa família, bem educada, com bons modos e um caráter afável. Se teu tio William não fosse um louco, teria arranjado essa aliança faz muitos anos,
e posso te assegurar que estarias muito satisfeito. Verás, não quis imiscuir-me, ainda que admito que às vezes tenho estado tentada a fazê-lo, quando me inteirei
de que ias por aí cortejando a inúmeras mulheres. No entanto, agora que me pedes conselho, e acho que se o que procuras é uma esposa consciente de seus deveres e
a quem tua mãe possa achar totalmente aceitável, nada poderia ser melhor que propor casamento à minha neta. Não me refiro a nenhuma das Ingham, mas a Phoebe, a filha
de minha Verena.

A Sylvester irritaram-lhe profundamente essas palavras. Sua madrinha não estava agindo como ele tinha previsto. O tom despreocupado com que lhe tinha proposto o
assunto não deveria a ter instado a pô-lo contra a parede, mas que lhe apresentasse sua neta, talvez no início da temporada, para que ele a valorizasse. O modo como
a viúva tinha abordado o assunto demonstrava uma falta de diplomacia que o ofendeu e o alarmou; pois ainda que a perspectiva de casar-se com a filha da amiga íntima
de sua mãe tivesse se apoderado de sua mente, essa convicção não era tão profunda para não a eliminar se descobrisse que a senhorita Marlow não cumpria os requisitos
que ele considerava indispensáveis. Sylvester via na franqueza de lady Ingham uma tentativa de obrigá-lo a fazer o que convinha a ela, e nada poderia ter contrariado
mais a um jovem que tinha sido o único dono de si mesmo desde os dezenove anos, além do dono de um considerável número de pessoas.

— Ah, sim? Conheço a sua neta, madrinha? — perguntou com frieza —. Parece-me que não.

— Não o sei. Apresentou-se em sociedade na temporada passada; deveria tê-lo feito no ano anterior, mas contraiu a escarlatina, e teve que o atrasar. Fará vinte anos
em outubro; como vês, não te estou a propor a uma colegial. Com respeito as demais, imagino que deves ter encontrado com ela várias vezes, porque a levaram a todas
as festas da boa sociedade. Eu me encarreguei disso! Se tivesse deixado nas mãos da mulher com quem Marlow se casou em segundas núpcias, a pobre menina só teria
ido visitar museus, e aos concertos de música antiga, porque isso é o que Constance Marlow acha que significa se divertir na cidade. Marlow casou-se com ela quando
Phoebe não era mais que uma criança, o que foi um grave engano. E não é que não reconheça que essa mulher cumpriu seu dever no que se refere à menina; recebeu uma
boa educação, disso não há dúvida. — Olhou Sylvester e, ao perceber a expressão irônica de seu rosto, acrescentou com tom desafiante —: Eu não podia me ocupar da
menina. A minha idade, e com minha delicada saúde, isso ficava descartado.

Sylvester guardou silêncio, mas continuou pondo cara de sátiro. Como lady Ingham não tinha feito nenhuma tentativa durante a temporada passada de lhe apresentar
a sua neta, deduziu que a senhorita Marlow devia de ser uma rapariga feia e carente de atrativo. Tentou recordar se tinha visto alguma jovem com lady Marlow nas
poucas ocasiões em que tinha se encontrado com aquela intimidante mulher. Se tinha-a visto, não recordava.

— Phoebe não é o que tu consideras uma beldade — prosseguiu a viúva, como se tivesse lido o pensamento de seu afilhado —. Não pode se comparar com sua madrasta,
mas em minha opinião não é uma rapariga comum. Se o que te atrai são as raparigas delicadas de rosto angelical, não gostarás. Mas se ao contrário, o que procuras
são qualidades e inteligência, minha neta não decepcionará. E quanto a sua fortuna, não herdará muito de Marlow, mas receberá o dote de sua mãe, além do que eu lhe
deixar. — Ficou calada por um instante e depois acrescentou —: Estou convencida de que a tua mãe satisfará essa união, e não vou negar que a mim também. Desejo ver
casada a filha de Verena. Não é uma grande herdeira, mas sua fortuna não será insignificante; e pelo que diz respeito a sua linhagem, Marlow é um tolo, mas seu sangue
não é de todo mau; e os Ingham podem apontar tão alto como queiram quando se trata de se casar. No entanto, se não te compraz esta união com minha neta, te rogo
que não hesites em me dizer.

Isso aborreceu ainda mais a Sylvester. Ao que parece, a viúva estava tentando envolvê-lo para que se comprometesse. Tratava-se de uma tática absurda: lady Ingham
deveria ter sabido que não era a primeira vez que entendiam uma armadilha a Sylvester. Levantou-se sorrindo com aparente serenidade e, enquanto beijava a mão de
sua madrinha, disse:

— Suponho, querida madrinha, que não preciso lhe assegurar que no que diz respeito a sua idoneidade, não poderia pôr nenhuma objeção a essa união. Portanto, me limitarei
a dizer que espero ter o prazer de conhecer a senhorita Marlow... esta temporada, talvez? Sim, isso seria estupendo.

Partiu sem revelar seus sentimentos a sua madrinha, mas muito mal humorado, e sua raiva não diminuiu quando se deu conta de que lhe tinha dado muitas facilidades.
Lady Ingham não tinha feito mais que lhe propor o que ele tinha pensado antes de a ir visitar, mas a prontidão com que ela tinha se aproveitado da ocasião era quase
tão ofensiva como sua tentativa de abrigá-lo a agir. Ademais tratava-se de uma atitude estúpida, porque não lhe fazia desejar mais do que apagar a senhorita Marlow
de sua lista de candidatas, e propor casamento sem tardança a alguma das outras cinco. Por desgraça, Sylvester não podia dar uma proveitosa lição à viúva, pois essa
conduta teria sido de todo inapropriada. Sua madrinha o teria considerado um insulto deliberado, e como isso era algo que Sylvester não podia se permitir, se limitou
a encolher de ombros e a resignar-se. Já não podia agir até que tivesse conhecido à senhorita Marlow.

Esqueceu-se do assunto, mas na semana seguinte teve que o abordar de novo quando, ao chegar a Blandford Park, descobriu que lord Marlow era um dos convidados.

Essa circunstância não era suspeita por si mesma. Marlow e o duque de Beaufort eram velhos amigos; e dado que Austerby, a casa ancestral de Marlow, estava situada
numa região sem interesse ao sul de Calne, visitava com frequência Badminton durante a temporada de caça. O duque também organizava caçadas em Heythrop, mas essa
região ficava mais longe de Austerby, e por isso Marlow não ia ali com frequência. Sylvester tinha achado que a presença de Marlow em Blandford Park era uma coincidência
até ter se dado conta em seguida de que Marlow tinha ido deliberadamente.

Lord Marlow era simpático e de natural bondoso, mas nunca tinha ultrapassado a estrita cortesia em seu trato com Sylvester, que era mais de vinte e cinco anos mais
jovem que ele. Nessa ocasião, no entanto, seu propósito era mostrar-se muito cordial com ele, e ninguém o teria superado em afabilidade. Sylvester compreendeu que
lady Ingham não tinha perdido tempo, e se o encontro tivesse tido lugar em outra ocasião que não fosse uma caçada, teria recusado as mostras de afeto de lord Marlow
com a fria formalidade que adotava sempre que considerava oportuno. Mas lord Marlow que se movia com jovialidade pelos palcos de Londres e aquele que agora montava
um de seus esplêndidos cavalos de caça eram duas pessoas muito diferentes. Ao primeiro podia desprezar; o outro contava com o respeito de todos os caçadores da região.
Não tinha rival nem saltando as valas negras de Leicestershire nem os muros de pedra de Cotswold, e nem sequer lord Alvanley o superava em intrepidez. Investia as
rendas de uma fortuna que jamais foi muito elevada em seus excelentes cavalos de caça, dos quais nunca se contavam menos de catorze em suas cocheiras; e todos os
jovens que pretendiam aperfeiçoar sua destreza ansiavam que lord Marlow acreditasse oportuno lhes dar algum conselho ou lhes dirigir alguma palavra elogiosa. Sylvester
sabia muito bem por que de repente se tinha convertido no objeto dos favores de lord Marlow, mas não podia se mostrar indiferente ante seus sinceros louvores, nem
deixar de agradecer as recomendações que o ajudavam a saltar os muros de pedra. Uma coisa conduziu à outra, e antes de que terminasse a semana Sylvester tinha aceitado
um convite para passar uns dias em Austerby. Em geral, todo mundo considerava lord Marlow estúpido, mas não o era tanto para permitir que se notasse outra intenção
que a de mostrar a Sylvester que amizades convinha cultivar numa região de trapaceiros; e de passagem, se interessasse, vender-lhe um prometedor cavalo de cinco
anos que para Marlow pesava demasiado. Esta visita teria lugar sem demasiadas cerimônias; partiriam juntos de Blandford Park e o duque de Salford ficaria uns dias
em Austerby. Lord Marlow não mencionou a sua filha; e nessas circunstâncias, Sylvester deixou-se convencer. E na verdade é que não estava do todo insatisfeito: graças
à inesperada diplomacia com que seu anfitrião tinha abordado o assunto, o duque poderia observar a senhorita Marlow sem se comprometer em absoluto, e definitivamente
isso lhe convinha mais que uma festa formal em Londres à que o teriam convidado com o expresso propósito de conhecer a jovem.

Capítulo 4

A sala de aula de Austerby era presidida por uma mulher de aspecto severo, ossuda, sempre ataviada com vestidos de cores sóbrias, abotoados até o pescoço e sem franjas.
Levava o cabelo, de uma cor de areia, recolhido sob uma coifa; de peles curtida, os olhos eram de um azul claro, e o nariz, o traço mais chamativo de seu rosto,
tão proeminente que intimidava. Sua voz era áspera e grave, e isso acentuava ainda mais seu aspecto de um dragão.

No entanto, as aparências às vezes enganam. Apesar do imponente aspecto da senhorita Sibylla Battery batia um coração terno e afetuoso. Talvez a exceção de Eliza,
a terceira e mais mimada das filhas de lady Marlow, todas suas pupilas a adoravam; e Phoebe, Susan, Mary e inclusive a pequena Kitty confessavam-lhe seus desejos
e suas penas, e protegiam-na com lealdade para que não a culpassem por seus deslizes.

O lógico teria sido que a senhorita Phoebe Marlow, que tinha dezenove anos e que já se tinha apresentada na sociedade aos dezoito, se tivesse emancipado da aula;
mas como temia a sua madrasta, pela qual não sentia nenhum carinho, e como lady Marlow também não professava nenhuma simpatia a Phoebe, esta se alegrava de poder
estudar italiano com a senhorita Battery, pois com esse pretexto podia passar na sala de aula o tempo livre que não passava nas cocheiras. Que assistisse a aula
comprazia também à lady Marlow, já que, pese que se tenha esforçado muito para educar a sua enteada com vistas à convertê-la numa refinada jovem, nem os açoites
que Phoebe recebeu, nem as horas que passou de castigo, tinham conseguido purgá-la do que lady Marlow chamava seus ordinários costumes. Phoebe cavalgava a grande
velocidade pelo campo, no lombo de seu próprio corcel ou em um dos enormes cavalos de caça de seu pai; fazia rasgões na roupa; se acotovelava com os criados das
cocheiras; costurava pessimamente; e tinha, na opinião de sua madrasta, um trato demasiado familiar com o senhor Thomas Orde, seu amigo desde a infância e filho
do esquire, o proprietário das terras do distrito. Se tivesse podido impor seus métodos, lady Marlow teria posto fim de imediato a qualquer exercício equestre que
não fosse um tranquilo passeio; mas lord Marlow fazia caso omisso de todas as queixas que sua esposa lhe expunha a respeito daquele espinhoso assunto. Geralmente,
ele era mais dócil que sua esposa, mas os cavalos constituíam sua paixão, e lady Marlow tinha aprendido a muito tempo atrás que toda tentativa de interferir em qualquer
assunto relacionado com os estábulos se achava condenado ao fracasso. Como muitos homens débeis, lord Marlow podia chegar a ser muito obstinado. Orgulhava-se da
habilidade de Phoebe no manejo dos cavalos, gostava de levá-la o com ele para caçar, e ainda que tivesse querido, não teria podido afastá-la das cocheiras, que em
teoria ela dirigia durante as frequentes ausências de seu pai e, na prática, o tempo todo.

Quando lady Ingham requereu sua presença em Londres, lord Marlow, um homem indolente, partiu de Austerby resmungando. Regressou dois dias mais tarde de excelente
humor e falando muito bem da sua sogra, o que era muito incomum. Ele nunca achou que conseguiria para Phoebe o vantajoso enlace que ao que parecia tinha conseguido
lady Ingham, porque sua filha não tinha tido muito sucesso durante a temporada de Londres. Lady Marlow tinha ensinado à menina a comportar-se com decoro, mas lord
Marlow, ainda que não o dissesse, achava que sua esposa se tinha excedido. Um pouco mais de vivacidade, característica que a Phoebe não faltava, era necessária para
compensar as desvantagens de um corpo delgado e vigoroso, uma cútis escura e umas feições onde só se destacavam os olhos, de cor cinza clara, nos quais às vezes
surgiam um brilho travesso, mas que na maior parte do tempo expressavam uma contida apreensão.

Como mulher cristã que era, lady Marlow não invejava Phoebe por sua surpreendente boa sorte, pese não acreditá-la merecedora dela. De maneira que decidiu encarregar-se
de que Phoebe não fizesse nada que pudesse afugentar um pretendente tão idôneo como o duque de Salford durante sua estadia em Austerby.

— Porque posso-lhe assegurar — disse a seu marido— que ainda que a Salford tenha ocorrido a estranha ideia de propor casamento à filha da amiga de sua mãe, jamais
se casaria com uma mulher que não soubesse se comportar com correção. Por minha parte, estou convencida de que a pesar deste casamento ter sido proposto por lady
Ingham. Phoebe ainda terá que demonstrar seu valor ante ele. Conheceu-a em Londres na primavera passada (sim, encontrou com ela no baile de lady Sefton), mas duvido
muito que a reconhecesse.

— Não acreditas, querida? — aventurou-se a sugerir milord —, que seria mais prudente não informar a Phoebe do motivo pelo qual Salford vem nos visitar, desde que
aconteça, o que ainda não se confirmou?

Não, sua esposa não acreditava em absoluto, a não ser que milord quisesse que sua filha decepcionasse o duque ao aparecer salpicada de barro de cima a baixo e fazendo
algum de seus pouco decorosos comentários, ou lhe oferecendo uma imagem muito desconcertante de sua pessoa ao prodigalizar as familiaridades de que também era objeto
o jovem Orde.

Lord Marlow não queria que sucedesse algo semelhante, e ainda que não visse nenhum perigo na relação de sua filha com o jovem Orde e sabia que se tratavam como irmão
e irmã, compreendia que Salford, que dava muita importância as boas maneiras, pudesse mal interpretá-la. Estava de acordo que tinha que limitar as visitas de Tom
a Austerby, bem como as de Phoebe à mansão dos Orde, e se absteve de expressar o temor de que sua abnegada esposa ofendesse ao esquire ou a sua esposa. A lord Marlow
desagradava-lhe estar em más relações com seus vizinhos; ademais, o esquire era o chefe de caçada de seu distrito, e ainda que lord Marlow quase sempre caçasse em
outros condados rurais, por nada do mundo queria se indispor com ele. No entanto, lady Marlow disse com tom autoritário:

— Deixa que me encarregue disso, o que, em geral, ela sempre o fazia.

Concordaram em não informar a Phoebe até que seu pai tivesse a certeza de que o duque visitaria Austerby; mas quando o segundo criado das cocheiras de milord chegou
de Blandford Park com uma carta de lord Marlow para milady, na qual anunciava que regressaria no final dessa semana acompanhado de Salford, lady Marlow fez chamar
Phoebe imediatamente ao seu quarto de vestir.

Phoebe atendeu ao chamado com temor considerável, mas quando entrou no quarto, sua madrasta a recebeu se não com cordialidade, ao menos sem a sombria expressão que
ainda conseguia fazer que o coração da jovem se acelerasse. Lady Marlow pediu-lhe que fechasse a porta e que se sentasse. Então observou que uma das rendas do vestido
de Phoebe se tinha descosido, e a fez consertá-la, dando-lhe um sermão sobre os perigos do desalinho e expressando seus desejos de que não tivesse ocasião, no futuro
imediato, de ruborizar-se por causa de sua enteada.

— Não, mãe — disse Phoebe, perguntando-se por que o futuro imediato tinha ganhado de repente tanta importância.

— Chamei-a — continuou milady— para informar-lhe de uma notícia muito gratificante. Não tenho nenhum escrúpulo em afirmar que a sorte que tiveste é muito maior que
a que mereces, e espero que demonstres que és digna dela. — Fez uma pausa, mas Phoebe limitou-se a olhá-la com gesto de desconcerto —. Imagino — prosseguiu lady
Marlow— que estejas te perguntado porque teu pai viajou a Londres nesta época do ano.

Phoebe, que não tinha parado nem um momento para pensar nessa questão, estava assombrada. Lady Marlow não costumava fomentar nas meninas o vício da curiosidade,
e se Phoebe tivesse pensando em indagar-lhe a respeito da visita de seu pai à cidade, sem dúvida alguma teria recebido uma reprimenda.

— Já vejo que te surpreende que mencione este assunto — disse milady ao observar a expressão de sua enteada —. Faço-o porque teu pai suportou a fadiga de viajar
a Londres por ti. Deverias estar-lhe muito agradecida, e estou segura de que assim será quando te comunique que teu pai se dispõe a marcar um muito vantajoso casamento
para ti.

Phoebe era consciente de que quando não recebeu nem uma única proposta de casamento respeitável durante a temporada de Londres tinha desapontado as expectativas
que sua família tinha depositado nela, assim a notícia a surpreendeu mais que nunca.

— Inacreditável! — exclamou Phoebe com sua habitual espontaneidade —. Mas se não... Bom, ninguém se insinuou, exceto o velho senhor Hardwick, e o fez só porque conhecia
a minha mãe.

Então se amedrontou e corou ante a gélida mirada de lady Marlow.

— Ninguém se insinuou? — repetiu sua madrasta em tom ameaçador —. Suponho que não preciso te perguntar onde aprendeste semelhante vulgaridade, mas talvez possas
me dizer como te atreveste a pronunciá-la diante de mim.

— Rogo-lhe que me perdoes, mãe — balbuciou Phoebe.

— Essa linguagem talvez seja apropriada para o jovem Orde — disse milady com mordacidade —, mas nenhuma mulher com uma mínima pretensão de refinamento deveria empregá-la.
— E não quero nem imaginar o que poderia ocorrer se te expressasses desse modo diante do duque de Salford!

— Do duque de Salford, mãe? — Phoebe olhou-a piscando —. Mas como me ia expressar assim adiante dele? Não há risco de que isso aconteça, estou segura, porque mal
o conheço. Não creio — acrescentou, pensativa— que ele sequer se lembre de mim.

— Te equivocas. Virá visitar-nos na semana que vem e suponho que adivinhas com que intenções.

— Pois não, não tenho a menor ideia de quais podem ser suas intenções — respondeu Phoebe, desconcertada.

— Vem a propor-lhe casamento. — E rogo-lhe, Phoebe, que não me olhes dessa forma e com a boca aberta!

— A mim? — balbuciou Phoebe —. O duque de Salford?

Satisfeita ante a incredulidade de sua enteada, lady Marlow esboçou um sorriso.

— Não me estranha que te surpreenda, pois confesso que é bem mais do que eu esperava para ti. Confio em que expressarás tua gratidão a teu pai pela consideração
que teve ao conseguir uma união tão esplêndida.

— É incrível! — E ademais, não quero me casar com o duque de Salford!

Logo que pronunciou essas palavras, a jovem lamentou seu atrevimento, e por um momento permaneceu calada e trêmula, sem se atrever a levantar a vista para o severo
rosto de seu madrasta. Um incômodo silêncio sucedeu a sua precipitada afirmação, que lady Marlow rompeu por fim lhe perguntando se tinha ouvido bem. Como considerou
que era uma pergunta retórica, Phoebe não se incomodou em responder e permaneceu com a cabeça abaixada.

— Consegue-se um casamento de inigualável nível, um casamento que te converterá na inveja de inúmeras jovens casadouras, todas elas bem mais belas do que tu chegarás
jamais a ser, e tens o desplante de me dizer que o recusas! É claro, Phoebe...

— Mas mãe, é que estou convencida de que se trata de um erro! Só falei com o duque uma vez na vida, e foi no baile dos Sefton, quando ele me tirou para dançar. O
duque se aborreceu muitíssimo e, quando três dias depois voltei a vê-lo no Almack's, nem sequer me saudou.

— Faz o favor de não dizer disparates! — repreendeu-a milady —. Tua situação te converte numa esposa apropriada para um homem de categoria, por muito incompetente
que eu te considere para uma boa posição. E estou convencida de que o duque não ignora que te educamos de acordo aos princípios mais elevados.

— É que há outras jovens ta... tão bem educadas como eu e mu... bem mais formosas! — argumentou Phoebe apertando os dedos.

— Sei-o, mas pelo visto sua excelência considera que as excede em alguma coisa — replicou lady Marlow com veemência —. Não sou quem deve julgar se se equivoca ou
não, ainda que me inclino a pensar que... Em fim, prefiro não me pronunciar a esse respeito. Tua mãe era amiga íntima da mãe do duque, e essa é a razão pela qual
te elegeu. Digo-te para que não fiques convencida, querida Phoebe. Asseguro-lhe que nada há mais impróprio numa jovem.

— Convencida? Como me vou tornar convencida? Dizes que me propõe casamento porque sua mãe conhecia à minha? Jamais tinha ouvido nada tão... tão monstruoso. — Mas
se mal me conhece e nunca fez nada para acordar meu interesse por ele!

— Precisamente por isso decidiu nos visitar — explicou lady Marlow no tom paciente de quem dirige-se a um idiota —. Quer conhecer-te melhor, e confio em que não
sejas tão insensata nem tão desobediente para te comportar de um modo que possa lhe fazer reconsiderar seu oferecimento.

Interrompeu-se e analisou o rosto de Phoebe; o que viu nele a fez mudar de tática. A jovem, ainda que em geral fosse dócil, mostrava em ocasiões certa disposição
à rebeldia. Lady Marlow não duvidava de sua capacidade para lhe impor obediência, mas sabia que se Phoebe metia na cabeça uma de suas absurdas ideias, era muito
capaz de recusar o duque antes de que tivesse tempo para a colocar em um estado de adequada submissão. Assim começou a assinalar as vantagens dessa união, e chegou
a afirmar inclusive que Phoebe gostaria de ser a dona e senhora de sua própria casa. Quando não obteve outra resposta além de um olhar de perplexidade, não perdeu
tempo e se pôs a descrever, com ênfase e fluidez, o penoso quadro da outra alternativa caso não se convertesse na duquesa de Salford. Como essa perspectiva incluía
uma vida de intermináveis misérias em Austerby (pois não era lógico esperar que lord Marlow, que tinha outras quatro filhas para casar, gastasse nem um penny a mais
com sua ingrata primogênita); as censuras de suas irmãs, cuja ascensão social ela parecia não se importar; e outras muitas penalidades, a maioria delas não menos
terríveis pelo fato de não terem sido mencionadas, teria bastado para fazer recobrar a razão a qualquer rapariga menos recalcitrante que Phoebe. E efetivamente,
a jovem estava muito pálida e assustada, assim que lady Marlow lhe ordenou que fosse refletir.

Phoebe voltou correndo a sala de aula. Ali não só achou Susan, como também duas de suas outras irmãs: Mary, de treze anos, e a angelical Eliza. Susan, observando
que Phoebe se tinha inteirado de alguma notícia importante, enviou Eliza no mesmo instante ao quarto das crianças, e como a jovem, ofendida, mostrasse sinais de
obstinação, acabou tirando-a da sala com maus modos, lhe aconselhando que fosse contar tudo a sua mãe, mas também que tivesse muito cuidado a noite ao se deitar
na cama. Essa sinistra advertência desarmou Eliza, que ainda guardava na memória a horrível lembrança da lesma que encontrou entre seus lençóis uma noite, de maneira
que foi se reunir com as mais jovens da família no quarto das crianças, se limitando, antes de sair, a insultar Susan, através da porta, afirmando que era a maior
besta da natureza. Por desgraça, a senhorita Battery apareceu no corredor nesse momento e ordenou-lhe que se retirasse ao seu quarto por empregar uma linguagem imprópria
de uma jovem distinta. Em tom queixoso, Eliza lamentou-se de que Phoebe e Sukey eram muito más e não queriam compartilhar com ela seus segredos, mas isso só lhe
serviu para receber outra reprimenda por acrescentar o pecado da curiosidade. A senhorita Battery, inexorável, acompanhou-a a seu dormitório antes de regressar a
sala de aula, a qual chegou no preciso instante em que Mary, uma menina humilde e obediente, recolhia seus livros e perguntava a sua irmã se também tinha que sair.

— Só se Phoebe quiser que te vás — respondeu Susan— Porque tu não vais contar fofocas a nossa mãe.

— Não, não! — disse Phoebe —. Não quero que te vás, Mary. Ademais, não é nenhum segredo. — Ao abrir-se a porta, voltou-se rapidamente e exclamou —: Oh, Sibby, já
sabes? Mamãe já te contou?

— Não — respondeu a senhorita Battery —. Mas não pude evitar ouvir que teu pai lhe dizia algo. Não me pareceu correto comentar, mas quando me inteirei de que te
tinham chamado ao quarto de vestir, deduzi de que se tratava. Pediram tua mão a teu pai.

— Não! — exclamou Susan —. É verdade, Phoebe?

— Sim. Bom, isso creio... Ai, não o sei, mas a mãe acha que a vão pedir, se me comportar adequadamente.

— Que emocionante! — declarou Susan juntando ambas mãos —. Quem é ele? Como pudeste ser tão cruel e guardar o segredo até agora? Conheceste-o em Londres? Está apaixonado
por ti com loucura?

— Não — respondeu Phoebe, curta e claramente.

Esse curto monossílabo pôs fim à exaltação de Susan. A senhorita Battery, agoniada, olhou fixamente a Phoebe; Mary aventurou dizer com timidez que as pessoas distintas
não se apaixonavam.

— Isso é o que diz nossa mãe, mas sei que não é verdadeiro — retrucou Susan com desdém —. Não é verdade, senhorita Battery?

— Eu não posso opinar — respondeu a professora —. Nem tu também não. Na tua idade não deverias pensar nesses assuntos.

— Bah, tenho quase dezesseis anos, e asseguro-vos que penso em procurar marido tão logo possa. Não sejas tão afetada, Phoebe, e diga-nos de quem se trata.

— Não sou afetada! — defendeu-se Phoebe, indignada —. O que estou é desesperada. — É o duque de Salford!

— Que? — exclamou Susan —. — Phoebe, sua sem vergonha — Estás me enganando! Como vais ser duquesa?

Ante a gargalhada de Susan, Phoebe não se ofendeu nem um pouco; ao contrário, Mary afirmou categoricamente:

— Acho que Phoebe seria uma duquesa magnífica.

Isso fez rir também a Phoebe, mas a senhorita Battery assentiu com a cabeça e disse:

— Pois claro que sim!

— Como podes dizer isso? — objetou Phoebe —. Não sou elegante, nunca sei de que falar com desconhecidos, nem...

— E ele? É elegante? — interrompeu-a Susan, curiosa.

— Acredito que sim! Bom, não o sei, mas suponho que sim. Sempre anda bem vestido, assiste a todas as festas da boa sociedade e passeia pelo parque com um par de
esplêndidos tordilhos. Não estranharia que todos os anos gastasse cem libras em sabão para suas cocheiras.

— Ah, pois então deverias considerá-lo um bom partido — observou Susan —. Mas como é? É jovem? Bonito?

— Não sei que idade terá. Suponho que não seja muito velho. Com respeito a seu físico, dizem que é bonito, mas eu não o acho muito atraente. De fato... — De repente
interrompeu-se ao observar na inocente e inquiridora mirada de Mary, e concluiu sua descrição de Sylvester dizendo unicamente que devia pesar oitenta quilos.

— O pai pesava oitenta quilos quando era jovem — assegurou esperançosa Mary, que tinha muito boa memória —. Ouvi-o dizê-lo uma vez, e também que esse é o melhor
peso para caçar em terreno agreste. Sabes se o duque caça em terreno agreste, Phoebe?

Susan interveio nesse momento, com justificável impaciência.

— Que mais sabes? — Não sejas tão irritante, Phoebe! Por que não queres que te proponha casamento? É desagradável? Se fosse rico e razoavelmente amável, a mim não
me importaria nada mais. — Imagina! Terias tua própria casa, todos os vestidos novos que quisesses, e seguramente também magníficas joias e poderias fazer o que
desejasses.

A senhorita Battery olhou-a com desaprovação.

— Se não podes evitar de te expressar com o que não posso qualificar mais do que vulgaridade, Susan, deverás guardar silêncio. Ademais, é muito tarde e deverias
estar praticando essa sonatina.

Tendo-se livrado com extrema habilidade de Susan, a senhorita Battery recomendou a Mary que se ocupasse durante meia hora do exemplar que estava bordando para o
aniversário de sua mãe e a seguir saiu da sala acompanhada de Phoebe.

— Pareceu-me conveniente que não contasses nada mais a Susan — disse baixinho quanto fechou com firmeza a porta da sala de aula — É boa garota, mas às vezes um pouco
indiscreta. Estás muito nervosa. Por que?

— É assombroso! — respondeu Phoebe, que parecia muito trastornada —. Se qualquer um que não fosse minha madrasta me tivesse dito, pensaria que era uma piada. Mas
ela... Deus meu, estou muito aturdida. Acho que não recobrarei os sentidos em menos de um ano.

— Não fales tão alto! Conta-me em teu quarto. Tenta serenar-te, querida.

Obedecendo essas ordens, Phoebe seguiu mansamente a professora pelo corredor, até seu quarto. Como uma das medidas econômicas preferidas por lady Marlow consistia
em não permitir que se acendesse a lareira de nenhum dormitório salvo o seu, e o de seu esposo e o dos convidados bastante temerários para visitar Austerby nos meses
de inverno, a habitação não era em absoluto apropriada para um tête a tête. No entanto, Phoebe tinha-se habituado a esses rigores. A senhorita Battery dirigiu-se
para o armário, tirou dele um grande xale, o jogou sobre os delgados ombros de seu pupila e disse:

— Deduzo que não te satisfaz essa união. Não posso negar que me parece muito aconselhável nem que gostaria de ver-lhe tão bem casada. Mas diga-me, Phoebe: segues
pensando nesse disparatado plano de independência e de que eu vá viver contigo? Porque se é assim, nem o sonhes. Não penso seguir-te. Nem desejei-o e nem nunca achei
que estivesses falando seriamente se recebesses uma proposta conveniente.

— Não, não, não é isso! — assegurou-lhe Phoebe —. Porque se casasse, a quem iria encarregar a instrução de meus filhos se não a ti? Sibby, sabes quem é Salford?

A senhorita Battery franziu o cenho e olhou-a sem compreender.

— Quem é? — repetiu —. Disseste que é um duque, não?

— É o conde Ugolino! — exclamou, soltando uma risada histérica.

Poderia pensar-se que essa extraordinária resposta desconcertasse ainda mais a senhorita Battery, mas conquanto lhe surpreendesse muito, por outro lado compreendeu
o alcance exato da revelação. Exclamou — “Santo Deus!”, deixou-se cair numa cadeira e ficou olhando a Phoebe com expressão consternada. Conhecia muito bem o conde;
e mais, quase poderia dizer-se que tinha estado presente no momento de seu nascimento, um evento do que era, em certa medida, responsável, pois durante anos tinha
compartilhado com Phoebe as novelas românticas que também eram o bem-estar de suas horas de lazer. O único luxo que se permitia era a assinatura de uma biblioteca
de empréstimo de Bath; seu único pecado consciente era deixar que lady Marlow achasse que o pacote que lhe era entregue pela companhia de transportes todas as semanas
só continha obras de caráter erudito ou edificante. Lady Marlow desaprovava a tal ponto as obras de ficção que até proibia a suas filhas de ler as fábulas da senhorita
Edgeworth. Sua norma era tão inflexível que jamais lhe ocorreu duvidar de que não a obedeciam ao pé da letra; e como era tão despótica como pouco perspicaz, nunca
tinha suspeitado que a senhorita Battery não impunha, como ela acreditava, uma férrea disciplina.

A senhorita Battery não tinha descoberto essa disposição à fantasia tão reprovada por milady em nenhuma das filhas de lady Marlow; em Phoebe, ao contrário, essa
tendência era muito pronunciada, e a senhorita Battery, que a queria e se condoesse profundamente, a fomentou, consciente de quanto a sombria existência da jovem
se iluminava graças às excursões a um mundo completamente imaginário. Phoebe tinha passado de uma criança que rabiscava contos de fadas para grande deleite de Susan
e Mary, a uma escritora para valer, o que corroborava o fato de ter escrito uma comovedora novela romântica que tinha merecido ser publicada.

Phoebe concebeu-a depois de sua apresentação na sociedade londrina. Escreveu-a de uma tirada só, e em seguida a senhorita Battery percebeu de que superava em muito
suas anteriores tentativas de escrever novelas. O argumento era tão diferente como tudo o que publicava a famosa editoria Minerva Press; o comportamento das personagens
era, em geral, de todo ponto vista inverossímil; estava ambientada num país não identificado, e a história em si estava repleta de absurdos. Mas a pena de Phoebe
sempre tinha sido persuasiva e conseguia que as aventuras de sua heroína fossem tão fascinantes que, até que chegou ao final do livro, inclusive um crítico tão severo
como o jovem senhor Orde não se fixou nos diversos incidentes que, em retrospectiva, consideraria improváveis. A senhorita Battery, uma crítica bem mais exigente,
não só reconheceu o gancho da história, como percebeu que nela florescia um talento latente. Phoebe tinha descoberto em si mesma um dom para o retrato cômico, e
em Londres não perdeu tempo. Tom Orde podia alegar que tinha uns quantos personagens secundárias que resultavam irrelevantes, mas a senhorita Battery sabia que justamente
eram esses rápidos e acertados esboços que situavam O herdeiro perdido acima de outras obras do gênero. Não permitiu a Phoebe que suprimisse nem um só dessas personagens,
nem também não uma única linha de seus engenhosos diálogos, e a convenceu que o reescrevesse pondo esmero na caligrafia. Phoebe protestava desse tedioso trabalho,
mas dado que nem ela nem a senhorita Battery conheciam um copista profissional, e teriam tido dificuldades para pagar os serviços de semelhante pessoa, a própria
jovem ficou encarregada desse monótono trabalho. Depois empacotaram o livro e enviaram-no pelo correio ao primo da senhorita Battery, o senhor Gilbert Otley, sócio
da pequena mas prometedora editoria Newsham & Otley.

O senhor Otley, ao receber o manuscrito e ler detidamente a carta que o acompanhava, não ficou muito impressionado. A primeira vista, não julgou que O herdeiro perdido
fosse o tipo de livro que queria publicar, e saber que era a obra de uma jovem da alta sociedade só lhe arrancou um profundo suspiro. No entanto, levou o manuscrito
a sua casa e leu-o sem parar. Não demorou muito em perceber de que até certo ponto se tratava de um romance de pessoas reais, porque ainda que não conhecesse os
membros da alta sociedade, era bastante astuto para se dar conta de que a autora se tinha baseado na realidade para descrever a muitos dos personagens. Ainda recordava
o sucesso de Glenarvon, publicado uns dezoito meses atrás, e essa circunstância foi o que o animou, ainda com certa indecisão, a mostrar O herdeiro perdido a seu
sócio.

O senhor Harvey Newsham mostrou um entusiasmo inesperado; e quando o senhor Otley observou que aquele livro não estava na linha dos que tinham publicado até então,
Newsham replicou com ironia que se vendesse melhor que os três últimos não iria protestar.

— Mas terá sucesso? — perguntou-se o senhor Otley —. Afinal de contas, a história não é nada do outro mundo. — De fato é completamente disparatada!

— Isso não vai importar a ninguém.

— Bom, não o sei. Para meu gosto é demasiadamente fantástica. De fato, ainda me tem desconcertado. Para começar, o que diabos, fez com seu sobrinho esse tal Ugolino?
E por que não o afogou, por exemplo, quando por fim o achou, em lugar do o reter em seu Castelo? E quanto a irmã do garoto, que tenta entrar ali... por não falar
desse herói cabeça de vento e do casal que foge com o menino. — Tudo isso teria sido impossível!

O senhor Newsham fez um gesto de desdém ante essas insignificâncias.

— Não tem importância. Esta mulher — disse apoiando o índice no manuscrito de Phoebe— sabe capturar ao leitor. E mais, o livro está cheio de pessoas conhecidas e
isso é o que fará que os aristocratas o comprem. — Ficou olhando o original com expressão satisfeita —. Em três volumes, luxuosamente encadernado — acrescentou,
pensativo —. No início da próxima temporada. Ponhamos... em abril. Convenientemente publicado. — Acho que terá sucesso, Otley!

— Sairá muito caro — objetou o senhor Otley.

— Quero que este livro chegue a todos os salões elegantes, e para isso tem que ser de muito boa qualidade. Colburn lançou o relato de lady Caroline Lamb em couro
lavrado. Ficou muito bom.

— Sim, mas asseguro-lhe que lady Caroline se comprometeu com os gastos da edição — replicou o senhor Otley.

— Não há motivo para pensar que a autora desta novela não esteja disposta a fazer o mesmo — disse o otimista senhor Newsham —. Ofereça-lhe uma percentagem dos benefícios;
que ela cubra os gastos em caso de perdas. Pense, meu amigo, que se este livro chega a ter sucesso, Colburn lamentará que não o oferecessem a ele.

— Já o creio! — concordou o senhor Otley, animado por essa reflexão —. Na semana que vem escreverei a minha prima: não quero que pareça que estamos ansiosos por
fechar o trato. Lhe direi que não condiz completamente com nosso catálogo e que tem muitíssimos erros.

O senhor Otley, com a aprovação de seu sócio, pôs em prática esse plano; mas a partir de então, as negociações desenvolveram-se de forma muito diferente da que ele
tinha imaginado. A pronta resposta da senhorita Battery permitiu-lhe entender melhor a autora do livro. Sua prima se desculpava por ter-lhe feito ler um livro que
não era adequado para o editorial Newsham & Otley e lhe pedia que o devolvesse por correspondência ao escritório de Correios de Bath. Tinha feito indagações e tinha-se
dado conta de que devia ter oferecido o manuscrito a Colburn, ou talvez a Egerton. Assegurava-lhe que ficaria muito agradecida se pudesse aconselhá-la a esse respeito,
e se despedia dele assinando “tua prima que te quer, Sibylla Battery”.

Depois de assimilar esse contratempo, o senhor Otley começou a iniciar uma intensa negociação, e finalmente lembrou-se da quantia de cento cinquenta libras, que
a senhorita Battery receberia em nome da autora tão logo o editor tivesse cobrado os livros. Se somente ele tivesse feito a negociação, o senhor Otley teria feito
o possível por diminuir essa cifra em cinquenta libras, mas a essa altura do acordo interveio o senhor Newsham, o qual expressou sua opinião de que agir com mesquinharia
com uma promissora nova autora os expunha ao risco de que ela oferecesse o seu segundo livro a outra editoria. Se teria sentido gratificado ao se inteirar da alegria
que sua generosidade provocou na senhorita Marlow. A ela essa soma lhe pareceu enorme, e nesse preciso momento decidiu se mudar de Austerby tão cedo ganhasse a maioridade,
e, com a senhorita Battery como dama de companhia, se instalar em seu próprio lar, modesto, onde poderia desenvolver sua lucrativa vocação sem ingerências.

O senhor Orde era a única pessoa, fora a senhorita Battery, que conhecia o segredo de sua autoria, e até que lhe permitiram ver a quantidade de material o senhor
Orde não se livrou da suspeita de que aquele assunto era uma tentativa de se brincar com ele. Impressionou-lhe bem mais ver a história impressa do que considerava
decoroso admitir; mas reconheceu ante a autora o quão bem impressionado tinha ficado.

Capítulo 5

A senhorita Battery, uma mulher muito resoluta, não permitiu que a consternação se apoderasse dela.

— Que lástima que não seja de teu agrado — disse erguendo-se —. Mas se assim é, não se fala mais. Ainda que não ache que possa ser tão infame como o conde Ugolino,
é impossível.

— Não, não! Não é infame, ou ao menos não tenho motivos para o pensar. O que acontece é que nem sequer o conheço. Só o elegi para criar a personagem de Ugolino porque
tem as sobrancelhas muito inclinadas, traço que lhe faz parecer um vilão. E também, acredito, por seu... seu ar de superioridade, que me foi insuportável.

— É convencido? — perguntou a senhorita Battery, um tanto confusa —. Faz-se de importante?

— Não, não é isso — disse Phoebe negando com a cabeça e franzindo a fronte —: É... sim, é inclusive pior! Parece-me que, para ele, sua preeminência é tão natural
que nem sequer pensa nela. Entendes-me, Sibby?

— Não muito bem, na verdade.

— É muito difícil explicá-lo, mas estou convencida de que quando o conheças o entenderás. Dá a impressão de que considera inquestionável sua superioridade e de que
espera, ainda que inconscientemente, que o tratem em toda parte com grande distinção. E não me refiro a que suas maneiras sejam inadequadas, porque tem um ar muito
distinto, uma espécie de fria cortesia com as pessoas que não lhe interessam. Tenho entendido que é muito amável com as pessoas às quais professa simpatia, mas o
caso é, ou isso me parece, que não lhe importa o nem um pouco o que os demais pensem dele. E na verdade é que não me estranha — acrescentou, pensativa —, porque
é repulsivo ver como o reverenciam e o cortejam. Olhe, quando lady Sefton me apresentou-o (lady Sefton é a baronesa Josceline de minha história, já sabes, essa mulher
tão pedante e arrogante), pareceu que estivesse me fazendo um grande favor.

— Isso não tem importância — interrompeu-a a senhorita Battery —. Comportou-se ele como se também o acreditasse?

— Não, em absoluto! Está tão acostumado a esses elogios que não lhes presta atenção. Mostrar-se amável com as pobres mulheres que nem são formosas nem têm conversa
é um dos tediosos deveres que sua privilegiada situação lhe obriga a cumprir.

— Bom, pois eu em teu lugar, querida, não me preocuparia muito por enquanto — disse a senhorita Battery com grande senso comum —. Parece-me que não sabes nada dele.
De algo podes estar segura: se vai vir aqui a propor-lhe casamento, não te tratará com fria cortesia.

— Sim, mas ainda que não se mostrasse frio... Ai, teria que ter mudado muito para que me atraísse o suficiente para me casar com ele! Não poderia, Sibby!

— Nesse caso terás que recusar sua proposta — replicou a senhorita Battery fingindo convicção.

Phoebe olhou-a com gesto de desespero, mas não disse nada. Sabia que sobravam as palavras. Ninguém entendia melhor as dificuldades da situação em que se encontrava
a jovem que sua professora; e ninguém conhecia mais a fundo a crueldade do imperioso temperamento de lady Marlow.

— Fala com teu pai — disse a senhorita Battery depois de refletir um momento —. Ele jamais te obrigaria a casar com um homem que não te agradasse.

Esse conselho foi o mesmo que lhe deu o jovem senhor Orde quando no dia seguinte Phoebe, que sabia que sua madrasta não se achava na casa, se dirigiu à mansão para
falar com ele.

Thomas era o único filho do esquire, um homem muito respeitável que conseguia manter mais de trinta casais de cães de caça, uma vintena de cavalos de caça para seu
uso pessoal, a seu filho, a seus caçadores, vários cavalos de tiro e de carreira, meia dúzia de spaniels e mais de uma centena de galos de briga com uns rendimentos
não superiores a oito mil libras ao ano, e tudo sem necessidade de privar a sua esposa dos luxos da vida, nem de deixar que as moradias de seus numerosos arrendatários
se deteriorassem. Durante muitas gerações sua família tinha vivido no condado; a maioria de seus membros tinha-se distinguido por sua paixão pela caça e nenhum tinha
se destacado particularmente no mundo. O esquire era um homem muito sensato e razoável, e em seu círculo era considerado uma personagem muito importante. Pese o
fato de ser consciente da elevada situação que ocupava, levava uma vida sem pretensões; ainda que empregasse, além da um caçador, a vários serventes as cocheiras,
um cocheiro, um guarda caça, um experiente treinador de cães e um treinador de galos de briga, quando viajava para além dos limites de Somerset não se importava
de contratar postilhões. Em sua casa nunca tinha menos de três lacaios.

Era um pai carinhoso e sensato, e se seu filho tivesse gostado de estudar, o teria enviado a Oxford quando acabou seus estudos em Rugby, ainda que isso lhe tivesse
obrigado a reduzir gastos. E sem dúvida sua economia se teria ressentido, porque era impossível que um caçador tão entusiasta como Tom tivesse mantido um aspecto
meritório em Oxford por menos de seiscentas libras anuais, sem contar as dívidas que com toda segurança teria contraído. O sentido de dever para com seu herdeiro
permitir-lhe-ia enfrentar a necessidade de reduzir seus estábulos e desfazer-se de seus galos de briga sem protestar e sem tentar imprimir em Tom a ideia de que
era afortunado por ter um pai tão generoso; mas não lhe desagradou muito que Tom expusesse que enviá-lo a Oxford podia ser uma grande perda de tempo, porque ele
não gostava muito de estudar e sem de dúvida alguma ali nunca ia se sentir à vontade. Assegurava que estava bem mais alojado em sua própria casa preparando brigas
de galos; dedicando-se, no verão, a pesca e o tiro ao pombo e, no inverno, às caçadas de raposas e a caça ao faisão; adquirindo os rudimentos da agricultura com
ajuda do administrador e aprendendo a dirigir a propriedade. Ao final, Tom saiu-se bem, e o esquire decidiu enviá-lo à cidade quando fosse um pouco mais velho.

Com a exceção de uma ou duas visitas realizadas a amigos seus que viviam em outras regiões do país, Tom já a um ano levava a vida onde mais gostava: na mansão, interessando-se
tanto pelas colheitas como pelos cães de caça, o que justificava o secreto orgulho que seu pai sentia por ele; e em pouco tempo tinha-se feito tão popular entre
os habitantes do povo como entre a aristocracia rural dos arredores.

Era um jovem atraente, mais robusto que alto, com um rosto exuberante, modos nada formais e o senso comum que podia se esperar de um jovem cavalheiro de dezenove
anos, herdeiro, neste caso, de seu pai. Devido a fato que era filho único, desde a infância tinha visto em Phoebe, que tinha a mesma idade, a uma irmã; e como ela,
a pesar de ser uma menina, sempre se tinha mostrado disposta a secundar qualquer louca aventura que ele lhe propusesse, e dado que em pouco tempo se tivesse convertido
numa grande amazona, Tom nunca desprezou a companhia da jovem, nem sequer durante os primeiros cursos em Rugby.

Quando Phoebe lhe revelou a assombrosa notícia, Tom reagiu com a mesma incredulidade que Susan, pois, como assinalou com sinceridade fraternal, Phoebe não era o
tipo de jovem mais adequada para tão relevante casamento. Ela lhe deu a razão, e Tom acrescentou com ternura:

— Não digo que eu não te preferisse como esposa a qualquer jovem promissora, porque se tivesse que me casar, acho que te proporia casamento antes que a qualquer
outra jovem que conheço.

Ela lhe agradeceu.

— Sim, mas eu não sou um duque elegante — observou Tom —. Ademais, conheço-lhe desde que éramos meninos. Não entendo que pode ter visto em ti esse homem. Não pode
se dizer que sejas uma beldade e quando tua madrasta está perto te comportas como uma débil mental. Não me explicou como terá adivinhado que não és tola!

— Não, ele não adivinhou nada. Quer casar-se comigo porque sua mãe era amiga da minha.

— Isso são tolices! — disse Tom com ironia —. Como se alguém fosse propor casamento a uma jovem por esse motivo!

— Parece-me que o faz porque é uma pessoa muito influente e quer contrair um bom casamento, e que não lhe importa que eu não seja formosa nem dócil.

— Mas como pode pensar que poderias ser uma boa esposa para ele? — objetou Tom —. Deve estar louco! Talvez seja muito vantajoso isso de se converter em duquesa,
mas me parece que a ti não convém.

— Não, claro que não, mas que vou fazer, Tom? Pelo amor de Deus, não me digas que basta apenas que recuse a proposta do duque, porque já conheces lady Marlow. Ainda
no caso de que tivesse coragem para desobedecê-la, imagina o suplicio que me veria obrigada a suportar. E não me peças que passe por cima, porque quando minha madrasta
me condena ao opróbrio me deprimo tanto que nem sequer posso escrever, e isso ocorreria neste caso. Já sei que sou idiota, mas não consigo superar o temor que lady
Marlow se enfade comigo. Sinto como se sucumbisse!

Tom a tinha visto sofrer pela crueldade de sua madrasta até o ponto de enfermar, de maneira que não achou que sua amiga estivesse exagerando. Era estranho que uma
rapariga tão intrépida fisicamente era, ao mesmo tempo, tão sensível. Tom sabia que Phoebe era, pelo dizer com suas próprias palavras, uma jovem “destemida”; mas
também estava certo de que num ambiente intolerante seu ânimo vinha rapidamente abaixo, e que por muito que se esforçasse para levantar não conseguia aliviar a opressão
que transformava a jovem valorosa que se atrevia em toda classe de muros e valas numa jovenzinha coibida de comportamento submisso e conversa superficial,

— Se lhe escrevesses uma carta? disse um tanto indeciso— talvez lord Marlow considere adiar a visita do duque.

— Já conheces meu pai! Sempre obedece a minha madrasta, porque não suporta contrariá-la. Ademais, como poderia lhe fazer chegar uma carta sem que ela se inteirasse?

— Não, claro — disse Tom depois de refletir um instante. E... estás segura de que o duque não te interessa? Achava que qualquer coisa seria melhor que seguir vivendo
em Austerby. Ademais, asseguras-lhe que só falaste com ele uma vez. Na realidade não o conheces. Acho que é muito tímido, e deves ter em conta que isso pode fazê-lo
parecer convencido.

— Nem é tímido nem é convencido. Seus modos são muito corretos; sempre fala com grande distinção porque tem tão bom conceito de si mesmo que não lhe parece digno
tratar ninguém com o que não seja a mais fria cortesia; e como sabe que é importante, acredita que todos pensem igualmente dele.

— Então, é verdade que te foi antipático, não? — disse Tom sorrindo.

— Claro! Mas ainda que não tivesse sido assim, como ia aceitar sua proposta de casamento quando o converti no vilão de minha novela?

Tom pôs-se a rir.

— Isso não tens por que lhe dizer, tonta!

— Dizer-lhe? Não precisa! Descrevi-o tim tim por tim tim!

— Mas Phoebe, não achas que vá ler teu livro, não é verdade? — disse Tom.

Phoebe sabia aguentar com equanimidade que se menosprezasse sua pessoa, mas esse comentário sobre sua primeira novela lhe fez exclamar com indignação:

— Por que não a leria? Vão publicá-la!

— Sim, sei-o, mas não acho que a compre pessoas como Salford.

— Então, quem a vai comprar? — perguntou Phoebe, muito exaltada.

— Não sei. Suponho que as jovenzinhas, as que gostam dessas coisas.

— Pois gostastes muito! — recordou-lhe ela.

— Sim, mas porque era estranho pensar que o tivesses escrito — explicou Tom. Ao ver a expressão de tristeza de sua amiga, acrescentou —: Mas não entendo de livros,
já o sabes. Certamente que tua novela é muito boa e se venderão muitos exemplares. Ainda que, como ninguém saberá quem a escreveu, não tens por que te preocupar.
Quando chega o duque a Austerby?

— Na próxima semana. Supõe-se que vem avaliar o potro castanho. Também irá caçar, e agora minha madrasta está tentando decidir se é melhor convidar a todos nossos
amigos para cear, ou que meu pai convide somente a sir Gregory Standish e ao idoso senhor Hayle para jogar uma partida de whist.

— Deus do céu! — exclamou Tom.

Phoebe soltou uma risada.

— Assim aprenderá a não vir a Austerby com esse detestável ar de condescendência — disse satisfeita —. E mais, a minha madrasta não gosta dos modos modernos, assim
que sua excelência terá que se sentar para cear às seis em ponto, e a isso não está acostumado. E quando entrar no salão após o jantar descobrirá que a senhorita
Battery terá descido Susan e Mary. E então lady Marlow me pedirá que interprete algo ao pianoforte (já disse a Sibby que se assegure de que sei à perfeição a nova
peça que escolheu), e às nove em ponto Firbank entrará com a bandeja do chá; e às nove e meia minha madrasta dirá ao duque, naquele seu tom displicente, que no campo
nos deitamos cedo, e o duque se verá obrigado a jogar piquet com meu pai, ou algo assim. Espero que se aborreça terrivelmente!

— Asseguro que sim. Talvez nem proponha-lhe casamento.

— Como vou abrigar essa esperança, quando o único motivo de sua visita é pedir minha mão? — inquiriu Phoebe, mergulhando de novo na tristeza —. Deve estar inteiramente
decidido, porque sabe perfeitamente que sou muito tediosa. Oh, Tom, tento aceitá-lo com serenidade, mas quanto mais penso, mais claro vejo que me obrigarão a me
casar com ele ainda que não queira, e já me sinto doente, e ninguém me vai defender, ninguém!

— Não digas isso, Phoebe! — a repreendeu Tom —. Permita-me dizer-lhe, minha amiga, que não sou o único que te defende. Meu pai e minha mãe também estão do teu lado.

— Já sei que me apoias, Tom — disse Phoebe apertando-lhe a mão, agradecida— e a senhora Orde sempre foi muito boa comigo, mas... de nada serviria. Já conheces lady
Marlow.

Tom conhecia-a bem, mas respondeu, com certa agressividade:

— Se tua madrasta tenta casar-lhe pela força e teu pai não a impede, não aches que vou ficar com os braços cruzados. Se o assunto tomar um caráter sério, Phoebe,
podes casar-se comigo. Não acho que nos seria muito ruim, uma vez nos tivéssemos acostumado. É claro, prefiro casar-me contigo que te deixar na estaca de sacrifício.
De que demônios te ris?

— De ti, é claro! Não sejas tonto, Tom! Tem em conta que lady Marlow tem tanto medo que possamos nos apaixonar que quase me proibiu de me acercar de tua casa. Essa
possibilidade a horroriza e acho que ao senhor Orde também.

— Já o sei. Teria que ser um casamento clandestino em Gretna Green, certamente.

Phoebe emitiu um grito abafado.

— Em Gretna Green? Entre todas as ideias malucas, essa... Sério, Tom, como podes estar tão louco? Estou de acordo em que não sou afetada, mas também não uma jovem
dissoluta. Jamais faria algo assim, ainda que estivesse apaixonada por ti.

— De acordo — respondeu ele, um tanto mal humorado —. Não estou dizendo que queira me casar contigo, e se preferes te casar com Salford, não há mais o que falar.

Phoebe roçou o ombro de Tom com a face.

— Estou muito agradecida, Tom — disse com gesto de arrependimento —. Não te enfades comigo, por favor.

No fundo, Tom ficou tão aliviado que sua amiga recusasse sua proposição que, depois de repreendê-la com ar severo por não ter aprendido a recusar oferecimentos desse
tipo com maior cortesia, se abrandou, admitindo que um casamento secreto não era a melhor opção e acabou lhe prometendo que a ajudaria a levar a cabo qualquer plano
que lhe ocorresse para sua libertação.

No entanto, Phoebe não criou nenhum plano. Lady Marlow levou-a a Bath para que fizessem um corte de cabelo mais elegante e a para comprar um vestido novo com o que
supostamente tinha que cativar o duque. Mas como lady Marlow julgava que as únicas cores adequadas para uma debutante eram o branco, o azul ou o rosa pálido, e dado
que a Phoebe esses tons nada a favoreciam, era difícil achar que a assombrosa generosidade da madrasta iria cumprir sua finalidade.

Dois dias antes da chegada de lord Marlow e o duque, parecia que ao menos um dos projetos da visita se veria frustrado. O cocheiro de lord Marlow, um homem com uma
fina intuição para prever o tempo, prognosticou que ia nevar; e o Morning Chronicle informou que já tinham caído intensas nevadas no norte e no leste do país. A
possibilidade, por demais venturosa, de que o duque adiasse sua visita foi desfeita quando não chegou a Austerby nenhuma mensagem de lord Marlow, e deu lugar a algo
muito parecido ao pânico. Se o duque, que supostamente vinha para ver se gostava do potro castanho como lord Marlow tinha falado, não se acovardava diante da ameaça
de nevascas é que devia estar decidido a seguir adiante com suas intenções; e se não se organizavam partidas de caça que o mantivessem afastado da casa durante o
dia, disporia de numerosas oportunidades para pôr em prática seu plano. Por muito que o desejasse, Phoebe não conseguia se convencer de que o clima, cada vez mais
frio, mostrasse sinais de melhoria; e quando o esquire cancelou a primeira reunião de caçadores da semana e partiu para Bristol, onde o reclamavam assuntos pendentes,
se fez evidente que ele, o melhor meteorologista do distrito, não esperava poder usar seus cães ao menos durante vários dias.

Fazia muito frio, mas ainda não tinha começado a nevar quando lord Marlow, muito satisfeito de si mesmo, chegou a Austerby com Sylvester. “Já te disse que o traria”,
sussurrou ao ouvido a sua esposa; ainda que teria sido mais exato dizer que Sylvester o tinha levado, porque tinha realizado a breve viagem no cabriolé de Sylvester,
ao que seguiam seu cupé e o do duque, onde iam seus criados de quarto e a bagagem. A comitiva compunha-se dos cavalos de caça de milord, a cargo de seu cocheiro
e vários criados de cocheira. Ao que parece, Sylvester tinha enviado seus cavalos de volta a Chance desde Blandford Park. Keighley, o cocheiro de meia idade que
lhe ensinou a montar em um pônei, ia empoleirado atrás do duque no cabriolé; mas ainda que os postilhões que se ocupavam do cupé do duque levassem sua libré distinta,
as senhoritas Marlow, que assistiam a chegada de uma das janelas da casa, ficaram decepcionadas com o tamanho do séquito. Era menos impressionante que o de seu pai,
mas seu pai não tinha levado o cabriolé a Blandford Park, o qual, afinal de contas, bem teria podido fazer. No entanto, o cupé de Salford ia puxado por esplêndidos
cavalos; que mesmo com os dois cinzentos que eram atrelados ao carro de seu pai, ele os teria qualificado de soberbos; e a julgar pelo modo como o veículo apareceu
ao dobrar uma curva na avenida, o duque manejava bem as rédeas. Mary comentou, otimista, que talvez graças a isso, Phoebe o visse com melhores olhos.

Ainda que Phoebe não tivesse o privilégio de assistir à chegada de Sylvester, já o tinha visto conduzir seu cabriolé por Hyde Park, e sabia que conduzia muito bem,
de maneira que seus sentimentos não teriam mudado muito mesmo que tivesse comprovado com que elegância fazia a difícil curva da avenida. Estava com lady Marlow num
dos salões, costurando, sem nenhum entusiasmo, num trabalho que tinha preso no bastidor. Levava o vestido branco que tinha comprado em Bath, e como este tinha umas
pequenas mangas bufantes, somado ao ambiente frio do salão (apesar do grande fogo aceso), provocava nos braços delgados e nus a pouco atraente semelhança da pele
de galinha. Ainda assim, na opinião de lady Marlow, Phoebe oferecia o melhor aspecto que se teria podido esperar. O traje, a ocupação e a postura faziam-na parecer
uma donzela de impecável berço e educação, de modo que lady Marlow felicitou-se por sua excelente organização: sabia que se o projeto de casamento fracassasse, não
seria por sua culpa.

Os cavalheiros entraram na sala. Lord Marlow fez passar seu convidado e, jovial, exclamou:

— Ah, já imaginava que te encontraria aqui, querida! Não é preciso que te apresente ao duque, pois acho que já o conheceis. E Phoebe também! Já conhece a minha filha,
Salford. Minha pequena Phoebe! Verdade que é agradável— Uma tranquila reunião familiar, como lhe prometi: nada de cerimônias. Terá que se conformar com o que há!

Sylvester formulou seus estudados elogios enquanto apertava a mão de sua anfitriã, e mostrou-se comedido e circunspecto. Tinha tido tempo de sobra para lamentar
ter aceitado o convite de Marlow, e desde que tinha deixado Blandford Park teria gostado de estar em outro lugar. Já não recordava a habilidade de milord nos campos
de caça e sim, ao contrário, sua tediosa conversa. Ainda muito antes de chegar a Austerby, lord Marlow tinha conseguido não só enfadar a Sylvester, como também o
irritar. Uma vez que estava seguro de ter pego o seu nobre convidado, Marlow, de natural extrovertido, não considerou necessário manter a discrição que lady Ingham
lhe tinha exigido, assim lhe lançou várias indiretas. Estas caíram em terreno ermo, e o único efeito que provocaram foi alterar o humor de Sylvester. Também anunciou
ao duque que ia ser o único convidado em Austerby, o que não era o que Sylvester tinha previsto, já que isso conferia a sua visita uma particularidade que teria
preferido evitar. Pese que milord lhe tinha advertido que não pensava se mostrar formal com ele, Sylvester supunha que encontraria outras pessoas em Austerby, ainda
que só fosse para guardar as aparências, e com a intenção de fazer mais agradável a estadia do hóspede principal. Sylvester deduziu que milord estava desesperado
por se livrar de sua filha; mas se achava que podia manipular o chefe da grande casa de Rayne para que desse um único passo que ele não tivesse decidido a dar, cedo
compreenderia que se equivocava. Então Sylvester considerou que podia se dizer que já tinha dado tal passo ao aceitar o convite de ir a Austerby; essa reflexão feriu
tanto o seu orgulho que decidiu, com certa malícia, que a não ser que a senhorita Marlow demonstrasse ser uma jovem extraordinária, não seguiria adiante com o projeto
de pedir a sua mão.

Essa grosseira resolução viu-se reforçada pela primeira impressão que lhe causou Austerby. Bastou-lhe uma rápida olhadela ao vestíbulo para convencer-se de que não
era o tipo de casa que gostava. Os móveis estavam arrumados com rígida formalidade, o pequeno fogo que ardia na lareira era insuficiente para atenuar o frio das
correntes de ar, e ainda que o mordomo fosse inatacável — também os dois lacaios, trazidos de Londres, que recolheram os abrigos e os chapéus dos cavalheiros —,
Sylvester estava seguro de que não contavam com pessoal de serviço suficiente. Também não lhe teria estranhado se inteirar de que uma mulher dirigia a cozinha nem
havia dúvida de que não teria valetes de quarto para a comodidade dos convidados. No estado de ânimo em que se achava, não se deu conta de que costumava alojar-se
em casas muito menos luxuosas que a sua e que nunca prestava atenção ao tamanho nem ao estilo de sua organização doméstica; e se tivessem sabido que era tão duro
e tão crítico em relação a casa de lord Marlow, muitos amigos e parentes seus teriam ficado perplexos. Uma de suas primas favoritas, uma jovem viva e jovial que
tinha casado com um comandante dos Dragões da Guarda Real sem renda, não teria dado crédito, pois nenhum dos convidados que frequentavam seu modesto lar tinha sido
mais adaptáveis que Sylvester, nem se tinha mostrado mais satisfeito com as atenções que lhe prodigalizaram. No entanto, o duque professava simpatia pelo comandante
e a senhora Newbury enquanto por lord Marlow estava começando a sentir uma cordial antipatia.

Lady Marlow recebeu-o com suas melhores maneiras, segundo reconheceu seu esposo. A Sylvester surpreendeu-lhe o tom condescendente.

Deu a volta para saudar à senhorita Marlow, e no mesmo instante soube que seus piores pressentimentos se tinham cumprido. A jovem não se destacava por sua beleza
nem por seu porte, sua pele era feia e sua figura ainda pior; o vestido era vulgar e o monótono tom com que murmurou um “Como está você— “ confirmou-lhe que era
uma jovem insossa. Perguntou-se quanto tempo ficaria para dar como finalizada a visita.

— Estou seguro de que se lembra de Phoebe, Salford — perseverou lord Marlow com otimismo —. Dançou com ela em Londres, não é assim?

— Sim, claro — replicou Sylvester. Percebeu de que os demais esperavam algum outro comentário, assim que aventurou —: No Almack's, não é verdade?

— Não — respondeu Phoebe —. No baile dos Sefton. Acho que quando nos vimos no Almack's não me reconheceu.

“Esta rapariga — pensou Sylvester, indignado— precisa que lhe ensinem um pouco de urbanidade! Talvez pretenda se pôr em evidência— Muito bem, senhorita Marlow.”

— Oh, que grosseiro sou às vezes! — E num tom alto e indiferente acrescentou —: Mas talvez não a visse. — Então se apercebeu de que a jovem tinha corado até as orelhas,
e que olhava, contida, a sua madrasta; e recordou que lady Ingham tinha comentado que em presença de lady Marlow a jovem não mostrava o melhor de si. O duque observou
milady e surpreendeu-a perfurando Phoebe com o olhar, assim se sentiu o suficientemente culpado para acrescentar —: Não é a primeira vez que me recriminam não ter
saudado a algum conhecido no Almack's. Mas de um tempo a esta parte esse salão está tão abarrotado que é um milagre que alguém possa encontrar a seus mais velhos
amigos entre tanta aglomeração.

— Sim, é verdade — balbuciou Phoebe.

— Sente-se, senhor duque — disse lady Marlow —. Vem da casa dos Beaufort, não?

Tenho entendido que é um excelente caçador. Eu não gosto da caça, mas a meu esposo se encanta.

— Não digas isso a Salford! — interveio lord Marlow —. É um excelente ginete. O tem demonstrado a todos.

Sylvester não respondeu a esse elogio de seu anfitrião, e se limitou a dirigir um olhar enigmática. Lady Marlow afirmou que achava que o duque de Beaufort era um
homem muito respeitável, mas como depois de pronunciar esse elogio deplorou o dandismo de seu herdeiro, a conversa não prosperou. Lord Marlow interveio então para
contar-lhes um episódio da caçada, e Phoebe, pegando seu bastidor e dando outro ponto no trabalho, durante vinte minutos permaneceu escutando o diálogo a três que
teria achado divertido se não a tivesse irritado tanto. Lady Marlow emitiu num tom que não admitia discussão, como era seu costume, uma série de considerações; lord
Marlow, numa tentativa de tomar pé na conversa, intervinha sempre que podia com uma série de comentários e lembranças joviais, todos sumamente triviais; e Sylvester,
distinto, sereno e nada disposto a ajudar, respondia à cada um de seus anfitriões por turno, mas sem alentar demasiado a nenhum dos dois.

A Phoebe exasperava ouvir a seu pai esforçando-se com tanto empenho para acordar o interesse de Sylvester. Lord Marlow falava pelos cotovelos, e nem seus mais ferventes
admiradores consideravam-no um homem sensato, mas era muito mais velho que Sylvester e estava fazendo o possível para comprazer a seu convidado, de maneira que Phoebe
considerava detestável que Sylvester não lhe concedesse mais que uma educada tolerância. A antipatia que sentia por ele atingiu tais proporções que quando lady Marlow
anunciou que ceavam às seis, quase lhe desagradou ver que o duque recebia o anúncio com tranquilidade. Seu rancor teria aumentado se tivesse suspeitado que isso
era precisamente o que estava esperando o duque.

Quando entrou em seu frio quarto a fim de se mudar para o jantar, Phoebe encontrou um pedaço de papel preso na moldura do espelho, e ao pegá-lo e o desprender deu-se
em conta de que devia ter sido posto ali por Firbank, o mordomo, cujas insólitas caretas, ao passar por ele no vestíbulo, por trás de lady Marlow, a jovem não tinha
sabido interpretar. A mensagem era de Tom, mas resultou um tanto decepcionante. Depois de informar a Phoebe que se dispunha a cear com uns amigos, acrescentava que
se sairia mais cedo e passaria por Austerby antes de voltar a sua casa para saber como tinha ido tudo. “Dei uma gorjeta a Firbank, que me abrirá a porta lateral;
diz que estaremos a salvo na salinha de costura. Reúna-se ali comigo antes de deitar. Na verdade, hoje o correio chegou a Bath com quatro horas de atraso por causa
da neve que caiu em Reading. Não me estranharia que teu duque tivesse que ficar em sua casa uma semana inteira.”

Em Austerby, Phoebe não tinha uma criada particular, assim ninguém podia obrigá-la a dedicar mais tempo do estritamente necessário à tarefa de mudar de vestido.
Apressou-se a tirar o de musselina e pôr, com certa dificuldade, o vestido de noite que lhe tinha dado lady Marlow. Favorecia-lhe tão pouco como o de musselina,
mas além de pentear-se e pôr um colar de pérolas, Phoebe não fez nada mais para melhorar seu aspecto. Aguçou o ouvido por lhe chegarem vozes masculinas. Quando as
ouviu e compreendeu que seu pai estava acompanhando ao duque a seu dormitório, ela já tinha terminado de se arranjar. Jogou um xale sobre os ombros e saiu de seu
quarto; cruzou o corredor e entrou no salão de lord Marlow.

— Posso falar contigo, pai?

Lord Marlow estava com seu criado de quarto e já tinha tirado a jaqueta, mas como era de naturalmente afável, ia dizer a sua filha que podia passar, quando se deu
conta de que a jovem não podia dissimular sua agitação, assim que de imediato ficou nervoso.

— Bom, a não ser que seja de vital importância, querida... — disse em tom cordial.

— É de vital importância, pai.

A intranquilidade de lord Marlow intensificou-se.

— Ah, bom. Então... Está bem, suponho que posso te dedicar cinco minutos.

Seu criado de quarto saiu do quarto e, logo que fechou a porta, Phoebe disse entrecortadamente:

— Pai, quero dizer-lhe... que não gosto do duque de Salford!

Seu pai ficou ali de pé, olhando-a com firmeza, perplexo a princípio, e depois, à medida que ia apoderando-se dele a ideia de que sua filha era uma ingrata, preso
de uma cólera crescente.

— Caramba, Phoebe! Bonito momento elegeu para dar-me esta notícia! — exclamou.

— Como esperavas que a desse antecipadamente? Se tivesses revelado tuas intenções antes de marchar-lhe a Blandford Park...! Pai, já sabes que lady Marlow não me
teria permitido enviar a um servente ali com uma carta para ti suplicando-lhe que não seguisses adiante com o projeto. Por favor, não te enfades comigo! Não tenho
culpa de que não te informasse de... meus sentimentos com respeito ao duque.

A cor das avermelhadas faces de lord Marlow escureceu-se; sentia que o tinham utilizado. Estava muito orgulhoso de ter conseguido prender o duque nas redes de lady
Ingham; estava quase convencido de que o plano tinha sido concebido por ele e que tinha tido muito trabalho por sua filha. De repente parecia que todo seu cuidado
não tinha servido de nada. Isso lhe desagradou, mas ainda seria pior se ver na situação de informar a Sylvester que Phoebe não queria nem ouvir falar de se casar
com ele.

— Bah, isso são bobagens! — disse numa tentativa de invalidar os protestos de sua filha —. Só são nervos, querida! És uma rapariga muito tímida. Sim, é isso, és
tímida, quem o vai saber melhor que teu pai? Possuis uma grande sensibilidade; sempre achei que era preferível não te revelar as intenções da visita de Salford,
mas lady Marlow... No entanto, isso não importa agora que o mau já está feito. Estás aturdida! Não posso negar que tua situação seja incômoda. Reconheço que é irritante
que lady Marlow tenha... Mas não o penses mais! Asseguro-lhe que meditei muito sobre este assunto, e estou convencido de que Salford será um bom marido para ti.
Deves reconhecer que estou mais capacitado que tu para julgar o caráter de um homem. Pois bem, Salford me satisfaz: é um homem responsável e formal. — Soltou uma
sonora risada e acrescentou —: Asseguro que não está longe o dia que te perguntarás como pudeste ser tão tola. Como me divertirei te recordando!

— Pai, o duque não é de meu agrado — insistiu ela.

— Pelo amor de Deus, menina, não digas tolices — replicou ele, irascível —. Mal o conheces! Estamos bem se uma fedelha vai ter ascos a um cavalheiro da categoria
de Salford! Permita-me dizer-lhe que deverias estar agradecida de tua sorte.

— Pai já sabe que não gosto de contrariar-lhe, mas... — insistiu Phoebe, suplicante.

— Pareço-lhe bem? — interrompeu ele —. Não me tens a menor consideração! Em bonito aperto me porias! Isto é intolerável! Assim que tenho que dizer a Salford que
ele não é de teu agrado. Caramba deixas-me perplexo, asseguro-te. E eu aqui estou, me tomando tantos incômodos... E assumindo gastos! Porque se acontecer que Salford
goste do potro castanho, terei que o vender a um preço nada vantajoso para mim, é claro. Para não mencionar o vestido novo que te compramos, e não sei quantas garrafas
de Bordeaux. Paguei cem libras pelo barril, e não sobraram mais que cinquenta garrafas, pelo que me disse Firbank. O melhor vinho de Carbonnell!

— Pai...

— Não fales mais! — atalhou ele, disfarçando com fúria a sua debilidade —. Esgota-me a paciência! O que dirá lady Marlow!

— Oh, não lhe contes! Não o farás, não é verdade? — lhe suplicou Phoebe —. Poderias dizer ao duque... que te equivocaste com respeito a meus sentimentos, e assim
não me proporá casamento. Pai...

— Se tenho que me ver em semelhante aperto, lady Marlow deve sabê-lo — sentenciou ele aproveitando o temor de sua filha —. Lamentaria muito me achar na obrigação
de revelar-lhe esta conversa, mas se segues obstinadamente nessa ideia, não terei outro remédio que lhe contar. Pensa-o bem, minha filha! Salford não teve ocasião
de comprovar se lhe interessas; concede-lhe ao menos uma oportunidade. Se segue sem agradar-lhe após ter passado uns dias conosco, voltaremos a falar do assunto.
Enquanto isso, não mencionarei esta conversa a lady Marlow, nem tu também não. Bom, acho que vais recuperando a sensatez, não é verdade? — Deu-lhe umas palmadinhas
no ombro e acrescentou —: Agora deves ir, porque senão, Salford descerá antes de mim. Não estou zangado contigo; às vezes tens umas atitudes muito extraordinárias,
mas no fundo és boa, e sabes que podes confiar em teu pai.

Phoebe saiu sem dizer mais nada. Lord Marlow, que era uma pessoa otimista, achou que a tinha convencido, mas na verdade é que Phoebe o conhecia demasiadamente bem
para insistir. O incômodo que lhe causava se vir num aperto superava o amor que sentia por suas filhas; longe de confiar nele, Phoebe estava segura de que antes
de se deitar naquela mesma noite já teria contado a sua esposa. Lord Marlow não pressionaria a sua filha, porque isso também o teria incomodado; mas olharia para
outro lado enquanto sua esposa o faria.

Phoebe supôs que até a manhã seguinte não seria vítima de nenhum ataque. Não lhe ficava muito tempo para pensar em alguma forma de fugir de um destino que começava
a parecer inevitável, e não podia buscar ajuda em nenhum dos habitantes de Austerby. Pedir à senhorita Battery não só teria posto à professora numa situação muito
comprometedora, mas também que a despediriam de seu trabalho numas condições que dificultariam o fato de se estabelecer em outra casa. Tom faria o que Phoebe lhe
pedisse, mas não via de que modo podia lhe ser de utilidade. A única pessoa que se lhe ocorria que podia lhe oferecer alguma ajuda eficaz era sua avó. Não mantinha
uma relação muito estreita com lady Ingham, mas sabia que estava bem disposta em relação ela e também que desprezava lady Marlow. Se Austerby fosse mais perto de
Londres, Phoebe não teria duvidado em buscar sua proteção. Mas Austerby achava-se a cento quarenta e cinco quilômetros de Londres. Era inútil escrever uma carta,
pois parecia de todo improvável que uma inválida viajasse até Somerset para resgatar Phoebe em pleno inverno, e ainda que sua avó tivesse demonstrado em mais de
uma ocasião que não se amedrontava ante lady Marlow, sua madrasta contava com a vantagem da distância.

Enquanto refletia sobre isto, ficava cada vez mais desanimada, Phoebe recordou que Tom a iria ver essa noite. A esperança começou a florescer; pôs-se a tramar planos,
e tão concentrada estava neles que, em lugar de se apresentar no quarto de lady Marlow logo que se tivesse vestido, como lhe tinham ordenado, foi à galeria em que
a família tinha por costume se reunir antes do jantar.

Capítulo 6

Sylvester achava-se na galeria, sozinho, folheando um jornal. Estava de pé diante do fogo, que ardia com lentidão e do qual de vez em quando saía uma coluna de fumaça.
Ia vestido com sua habitual descrição e elegância: levava jaqueta e calças negras justas e um singelo casaco branco. De sua cintura pendurava uma única corrente,
um só diamante brilhava entre as pregas de sua gravata e apenas um anel, com um pesado sinete, enfeitava sua mão. Não adotava nenhum dos luxos dos dândis, mas tinha
um ar de indiscutível elegância, e o extraordinário corte de sua jaqueta conseguiu que Phoebe se sentisse desprovida de graça e estilo.

A jovem surpreendeu-se ao encontrá-lo na galeria e deteve-se na soleira.

— Oh! — exclamou involuntariamente.

O duque levantou a cabeça com leve sobressalto.

— Só os convidados grosseiros descem antes que seu anfitrião, não é verdade? — disse com gentileza enquanto deixava a publicação —. Permita-me acercar-lhe uma cadeira
junto à lareira. Sai um pouco de fumaça, mas não o suficiente para molestá-la.

Suas palavras indicavam uma pequena nota de mordacidade que a Phoebe não passou inadvertida. Entrou com relutância na galeria e, ao sentar-se na cadeira que Sylvester
tinha acercado ao fogo, disse:

— Todas as lareiras de Austerby jogam fumaça quando sopra vento do nordeste.

O duque, que tinha comprovado a veracidade dessa afirmação no dormitório que lhe tinham atribuído, não o pôs em dúvida e se limitou a replicar:

— Ah, sim? Suponho que toda a casa tem suas peculiaridades.

— Em sua casa não há nenhuma lareira de onde saia fumaça? — perguntou a jovem.

— Acho que antes sim, mas esse defeito pode remediar-se — respondeu Sylvester, e não quis entreter-se recordando as vezes que, exasperado ao encontrar o vestíbulo
de Chance cheio de fumaça, tinha jurado substituir sua lareira medieval por uma lareira moderna.

— Que sorte! — observou Phoebe.

Ficaram em silêncio. A senhorita Marlow permaneceu sentada observando, absorta, um armário Buhl; o duque de Salford, pouco acostumado a esse tratamento, olhava-a
a cada vez com maior ressentimento. Esteve a ponto de voltar a pegar o jornal, e se não o fez foi só porque o desgosto que lhe produzia a conduta da jovem não era
desculpa para que ele esquecesse seus bons costumes.

— Disse-me seu pai, senhorita Marlow, que é você uma excelente amazona — disse num tom de voz de quem tenta tranquilizar a uma colegial envergonhada.

— Sério? Pois a mim me disse que você o deixou em ridículo na caçada de Heythrop.

Sylvester olhou-a, mas depois de um instante decidiu que o comentário era fruto da estupidez.

— Suponho que não será necessário que lhe assegure que não fiz tal coisa.

— Não, claro! Estou convencida de que não!

Sylvester esteve a ponto de dar um salto; persuadido de que aquela aparente torpeza era deliberada, começou a se sentir tão interessado como alterado. Talvez tinha
algo mais do que ele acreditava naquela pequena provinciana, ainda que não entendia por que tinha que fazer comentários maliciosos. Seria desproporcionado que estivesse
ofendida porque ele não tinha se recordado em que ocasião tinha dançado com ela: talvez achasse que podia recordar-se de cada insignificante jovem com a qual se
tinha visto obrigado a dançar uma dança folclórica— E quando pretendia voltar a refugiar-se num silêncio indiferente— Sylvester decidiu mudar de tática.

— Agora toca a você, senhorita Marlow, propor um tema de conversa.

Phoebe afastou o olhar do armário e dirigiu-o rapidamente para o duque.

— Eu não tenho conversa — declarou.

Sylvester não soube se ria ou se zangava; estava intrigado, certamente, e acabava de decidir que ainda que não tivesse nem a mais remota intenção de propor casamento
a essa horrenda rapariga, talvez fosse divertido descobrir que tinha por trás de seus estranhos modos (se é que tinha algo), quando lady Marlow entrou na galeria.
Ao comprovar que seu convidado tinha chegado antes que ela, observou que tinha descido antes de tempo, ao que ele, ofendido, respondeu:

— Culpe o meu atrevimento ao vento do nordeste, senhora.

Sua ironia passou inadvertida.

— Equivoca-se, senhor duque: não é nenhum atrevimento que tenha descido tão cedo. E mais, considero uma excelente falta. Vejo que minha filha tem estado a lhe fazer
companhia. De que falavam?

— Não pode se dizer que tenhamos falado de nada — respondeu Sylvester —. A senhorita Marlow informou-me que não tem conversa.

O duque observou Phoebe enquanto pronunciava essas palavras, e ao ver em seu rosto uma expressão de tão feroz reprovação arrependeu-se e tentou remediar a situação
acrescentando, rindo:

— De fato, senhora, a senhorita Marlow entrou na sala um minuto antes da senhora, de maneira que não tivemos ocasião de conversar.

— Minha enteada é muito tímida — replicou lady Marlow lançando a Phoebe um olhar que pressagiava vingança.

Sylvester pensou que, depois do primeiro sobressalto, Phoebe não lhe tinha parecido tímida em absoluto. Recordou que lady Ingham tinha afirmado que sua neta não
era uma

jovem comum, e se perguntou se teria algo mais nela além do que ele tinha detectado até esse momento. Como a jovem não estava fazendo nada para que ele se interessasse
por ela, o duque deduziu que talvez ignorasse que tinha ido a Austerby para conhecê-la. Isso lhe permitia tentar que a jovem abandonasse aquela atitude tão desconfiada
sem se arriscar.

— Espero, então, que não seja demasiado tímida para conversar comigo quando nos conhecermos um pouco melhor — disse sorrindo a Phoebe.

No entanto, quando Sylvester se levantou da mesa, após cear, todo desejo de conhecer melhor Phoebe se tinha desvanecido, e a única coisa que desejava era encontrar
um pretexto para partir de Austerby na manhã seguinte o mais tardar. O jantar foi interminável, pois teve que suportar, por um lado, o monólogo de sua anfitriã,
mais transcendental que nunca, sobre assuntos de interesse tais como a deserção dos últimos titulares do benefício da paróquia, a excelência do bispo, a decadência
das boas maneiras e os costumes que regiam na casa de seu adorado pai; e por outro lado, uma série de episódios de caçada relatadas por seu anfitrião; de maneira
que não é de estranhar que a cara de sátiro lhe aumentasse ainda mais. Jamais o tinham tratado como o faziam em Austerby. Quando aceitava um convite para passar
nuns dias em casa de alguns de seus amigos, sabia que se acharia entre um grupo de pessoas agradáveis que conhecia bem, e que lhe proporcionariam todo tipo de atividades
e diversões para seu entretenimento. Caçava-se, praticava-se o tiro e, se o tempo voltava-se inclemente, jogava-se o whist, o bilhar, participava-se de peças de
teatro ou em bailes improvisados e se flertava abertamente com as damas mais formosas. Assim era como ele distraía também a seus convidados, e era algo que lhe parecia
tão natural que nunca se lhe tinha ocorrido pensar que muitas daquelas anfitriãs que o convidavam a suas festas se esforçavam ao máximo para tratá-lo esplendidamente.
No entanto, quando se viu como único convidado em Austerby, e seu anfitrião lhe prometeu uma partida noturna de whist com dois tediosos fazendeiros; e quando sua
anfitriã prometeu lhe apresentar ao bispo de Bath e Wells, pensou que lord Marlow, ao não preparar adequadamente atividades para sua distração, tinha incorrido numa
incorreção social.

Tinha sido recebido por uma anfitriã que parecia achar que o estava recebendo esplendidamente. O duque detestava as lisonjas e os bajuladores, e não esperava que
o tratassem com especial distinção, mas que se mostrassem condescendentes com ele era uma experiência nova que lhe produziu considerável aborrecimento.

Seu dormitório era insuportável pela fumaça que saía da lareira; no jarro a água estava morna, e seu criado de quarto tinha tido que ir a cozinha para trocá-la;
a filha mais velha da família mal tinha pronunciado uma dúzia de frases desde que entraram na sala de jantar, e ainda que os vinhos de lord Marlow fossem bons, a
comida que serviram resultou das mais comuns.

Quando lord Marlow, prometendo umas partidas de piquet mais tarde, o levou a se reunir com as damas no salão, o duque já se tinha resignado ao tédio. No entanto,
quando ao entrar na sala observou de imediato naquela mulher de aspecto severo, com um vestido de flanela negra, sentada muito reta numa cadeira ligeiramente afastada
do círculo ao redor da lareira, se deu conta de que tinha subestimado os horrores que lhe apresentavam. Por trás dessa sombria mulher tinha duas colegiais que se
tinham unido ao grupo; a mais velha era uma rapariga alegre de cútis rosadas e com os olhos azuis proeminentes do pai; a menor, uma menina demasiadamente pálida
e envergonhada que mal podia sussurrar sem ruborizar-se até as orelhas. Lady Marlow apresentou a ambas, mas pôs de lado a mulher do vestido negro. O duque deduziu
que devia ser a professora, e no mesmo instante decidiu demonstrar a sua anfitriã o que achava de seus péssimos modos. Saudou à senhorita Battery com uma inclinação
da cabeça e dedicou-lhe seu melhor sorriso, ao mesmo tempo em que dirigia uma olhada inquisitiva a lady Marlow que esta não pôde passar por alto.

— Ah, sim! A professora de minhas filhas — limitou-se a dizer —. Por favor, duque, acerque-se do fogo.

Sylvester escolheu uma cadeira mais próxima à senhorita Battery que a do grupo que estava sentado ao redor da lareira e lhe dirigiu um comentário cortês. Ela respondeu
com compostura, mas com certa aspereza, e o olhou com uma firmeza desconcertante.

Lord Marlow, que sempre se mostrava cordial e bondoso com as pessoas que tinha a seu cargo, aumentou a contrariedade de sua esposa dizendo:

— Ah, senhorita Battery! Não a tinha visto desde que voltei a casa. Como se encontra? Mas não sei por que o pergunto, porque você sempre está bem.

Esse fato brindou a Sylvester a oportunidade de perguntar a professora se era aparentada com uma família do mesmo apelido que vivia em Norfolk.

— Parece-me que não, senhor — respondeu ela —. Não tinha ouvido falar deles até que os mencionasse.

Aquilo não surpreendeu ao duque, pois essa família de Norfolk só existia em sua imaginação; mas sua pergunta tinha rompido o gelo: a senhorita Battery, um tanto
aplacada, revelou que era de Hertfordshire.

Lady Marlow interrompeu com brusquidão a conversa para expressar sua convicção de que ao duque se encantaria em escutar um pouco de música, e fez um gesto a Phoebe
para que se sentasse ao pianoforte.

Phoebe era uma pianista medíocre, mas como nem seu pai nem lady Marlow possuíam talento musical, estavam muito satisfeitos com suas interpretações, sempre que não
vacilasse nem se equivocasse claramente de nota. Sylvester também não se achava dotado para a música, mas estava acostumado a escutar aos melhores músicos do momento,
e pareceu-lhe que jamais tinha ouvido ninguém tocar com menos gosto e menos sentimento. Só pôde se alegrar de que Phoebe não tocasse harpa; mas quando, respondendo
aos carinhosos pedidos de seu pai, a jovem cantou uma antiga balada com débil e inexpressiva voz, pensou que talvez a harpa teria sido preferível.

As colegiais e a professora retiraram-se às oito e meia, e depois de meia hora de tediosa conversa, serviram-lhe o chá. Sylvester começou a avistar o final de seu
purgatório, e não se equivocava. Às nove e meia em ponto, lady Marlow informou-lhe que em Austerby se deitavam cedo, lhe deu boa noite com formalidade e saiu acompanhada
de Phoebe. Enquanto subiam a escada, lady Marlow disse com superioridade a sua enteada que a noite tinha decorrido muito bem. E acrescentou que ainda que temesse
que o duque fosse um homem excessivamente moderno, no geral lhe parecia aceitável.

— Teu pai disse-me que amanhã não poderão sair para caçar. Se não nevar, proporei a Salford que te acompanhe a um passeio com tuas irmãs. A senhorita Battery irá
consigo, por certo, mas lhe direi que pode ficar um pouco afastada com as meninas, e de passagem lhe advertirei que não participe excessivamente da conversa, pois
me surpreendeu muito ver como o fazia esta noite.

Phoebe escutou esse programa, que uma hora antes a teria horrorizado, com uma serenidade fruto de sua firme resolução de partir de Austerby muito antes que pudesse
ser levado em prática o plano de seu madrasta. Separou-se de lady Marlow ao final da escada e dirigiu-se ao seu dormitório, pois sabia que Susan e a senhorita Battery
iriam vê-la ali, e portanto seria arriscado ir à salinha de costura antes de ter recebido essa visita.

De Susan não demorou em se livrar; mas a senhorita Battery, que entrou depois, parecia disposta a demorar-se durante mais tempo. Sentou-se aos pés da cama e, metendo
as mãos nas mangas de sua grossa bata de lã, dizendo a Phoebe que achava que tinha sido injusta com Sylvester.

— Sibby! Não me irás dizer que gostas-te! — exclamou Phoebe.

— Não o conheço o suficiente para que goste. Mas, em todo caso, não me desagradou. Mostrou-se muito cortês comigo.

— Sim, mas só para aborrecer lady Marlow — argumentou Phoebe com astúcia —. O duque passou todo o jantar dominando o impulso de fazer a minha madrasta algum comentário
mordaz.

— Bom, não posso culpá-lo por isso. Já sei que não deveria dizê-lo, mas é a verdade. Ademais tem um sorriso encantador.

— Não percebi.

— Pois se tivesses observado este detalhe, não te seria tão antipático. Eu sim percebi. E mais — acrescentou a senhorita Battery com franqueza —, suportou muito
bem tua interpretação ao piano. Isso demonstra que é um completo cavalheiro! Deve estar decidido a

propor-te casamento quando pediu que tocasses outra canção.

A professora ficou um momento mais, mas ao ver que Phoebe não fazia caso a qualquer comentário que fizesse para que simpatizasse com Sylvester, acabou saindo, de
modo que Phoebe, depois de um prudente intervalo, saiu de seu quarto e percorreu o corredor até o ala oeste da casa. Ali, além da sala de aula, os quartos das meninas
e vários dormitórios, estava o que chamavam de salinha de costura, um local que mal se usava. Estava iluminada por um lampião de azeite que repousava no centro de
uma mesa; e ali, nessa atmosfera de penumbra, achava-se o jovem senhor Orde, com o sobretudo abotoado até o pescoço, lendo um livro de conselhos sobre economia doméstica,
que era a única literatura disponível na sala. Ao que parece, o tinha achado muito interessante, porque quando Phoebe entrou levantou a cabeça e disse sorrindo:

— Olha que livro tão fabuloso encontrei! Explica como conservar sementes. Dá uns conselhos muito interessantes! A única coisa a fazer é “pegar um bom pedaço de tripa,
bem fresca...”.

— Credo! — disse Phoebe, estremecendo-se, e fechou a porta com cuidado —. Que asco! Deixa esse livro!

— Tudo há seu tempo. Se não te interessa saber como se conservam as sementes, que me dizes de um “excelente prato para seis ou sete pessoas por apenas seis pennys?
Muito adequado para as cozinhas ducais! Prepara-se com pulmão de vitela, pão, gordura, tripa de cordeiro e...

— Como podes ser tão ridículo? Fecha já esse livro! — repreendeu Phoebe.

— “Tudo bem limpo” — prosseguiu Tom —. E se não gostas de tripa de cordeiro, podes utilizar tripa de porco, ou...

Mas Phoebe pegou-lhe o livro, e depois de uma breve luta, Tom soltou-o.

— Não rias tão alto, por minha vida! — lhe suplicou a jovem —. O dormitório das meninas está bem perto. Ai, Tom, não podes imaginar que noite mais terrível! Pedi
a meu pai que se livre do duque, mas se nega, assim decidi fugir.

Tom sentiu um vazio no estômago, mas reagiu incondicionalmente:

— Bom, já te disse que podias contar comigo. Só espero que não encontremos as estradas muito cheias de neve no norte. Se não há mais remédio que ir a Gretna Green,
iremos a Gretna Green!

— Não grites! Não vamos nos casar em Gretna Green! — falou ela, indignada, baixando o tom de voz —. Não grites, Tom! Se Eliza acorda e ouve-nos falar, contará a
lady Marlow! E agora, me escuta. Pensei em tudo durante o jantar. Tenho que ir a Londres, ver a minha avó. Uma vez disse-me que podia contar com ela em caso de necessidade,
e creio... Bom, estou segura de que se souber o que está se passando me apoiará. O problema é que... Tom, já sabes que lady Marlow me compra os vestidos e que me
dá uma quantia muito pequena para meus gastos. Poderias... emprestar-me o dinheiro para pagar o bilhete da diligência? Parece-me que custa trinta e cinco xelins.
E depois preciso da gorjeta do guarda, e...

— Claro, te emprestarei todo o dinheiro que precises — interrompeu-a Tom —. Mas não pensarás viajar a Londres na diligência, não é verdade?

— Sim, isso que vou fazer. Como iria num carro de aluguel, ainda que pudesse pagar? Seria muito complicado: mudar os cavalos... Não, não, é impossível. Recorda que
não tenho uma criada que me acompanhe. Viajarei bem mais segura na diligência. E se conseguisse um assento num dos carros rápidos que saem pela manhã...

— Não o conseguirás. Sempre se ocupam todos os assentos em Bath, e como não tens lugar reservado... Ademais, há muita neve após Reading, segundo dizem, esses carros
não circularão.

— Bom, não importa. Qualquer carro servirá, e certamente que encontrarei assento, porque as pessoas não gostam de viajar com este tempo, a não ser que seja imprescindível.
Estou decidida a partir daqui antes que possam me impedir, a primeira hora da manhã. Se conseguisse chegar a Devizes... Está mais perto que Calne, e sei que algumas
diligências de Londres tomam essa estrada. Só levarei um baú de viagem e talvez uma caixa de chapéu, assim que... Ai, Tom! Achas que poderias levar-me a Devizes
em tua caleça?

— Queres fazer o favor de deixar de preocupar-se por tudo? — disse ele com severidade —. Te levarei a onde queiras, mas esse plano teu... Olha, não quero me intrometer,
mas temo que não funcionará. Maldito tempo! Não acho que chegasses nem sequer a Reading. Pensa-o bem, Phoebe: verias-te num bom aperto.

— Não, não, já o previ. Se o carro continua, ficarei nele, mas se há demasiada neve sei o que farei. Lembras de Jane, a criada que esteve a cargo das pequenas— Casou-se
com um comerciante de grão que, segundo entendi, ganha muito bem a vida, e vive em Reading. De maneira que se não posso viajar para além de Reading, irei a sua casa
e ficarei com ela até que a estrada volte a estar praticável.

— Vais ficar-lhe na casa de um comerciante de grão? — perguntou ele, incrédulo.

— Por que não? É um homem muito respeitável, e quanto a Jane, me cuidará com muito carinho, to asseguro. Talvez prefiras que me aloje numa pousada?

— Não, em absoluto. Mas... — Fez uma pausa; não gostava do plano de Phoebe, mas não lhe ocorria outro melhor.

A jovem tentou convencê-lo, explicando-lhe as vantagens de seu plano e a desesperada situação em que se encontraria se visse obrigada a ficar em Austerby. E não
teve que se esforçar muito, porque Tom sabia que sem o apoio de lord Marlow o caso de Phoebe não tinha remédio, e também não podia negar que sua avó era a pessoa
ideal para protegê-la; no entanto, demorou um pouco em convencer-se de que não era nem perigoso nem indecoroso que sua amiga viajasse sozinha a Londres numa diligência.
Até que Phoebe lhe assegurasse que se ele não lhe prestasse ajuda estava decidida a ir até Devizes a pé, Tom não se rendeu. Depois, só restava organizar os detalhes
da fuga, e o fizeram rapidamente. Tom comprometeu-se a esperá-la com sua caleça no caminho, diante de uma das entradas de Austerby, às sete em ponto da manhã seguinte.
Phoebe prometeu ser pontual e despediram-se, ela muito segura de si mesma e ele tentando se tranquilizar.

Phoebe chegou pontualmente ao encontro; ele não, e durante vinte exasperantes minutos a jovem passeou pelo caminho de cima a baixo, protegida do vento por uma cerca
viva, enquanto sua descontrolada imaginação lhe propunha as diversas calamidades que podiam ter sucedido a seu amigo. A mais provável era que tivesse dormido, e
essa possibilidade acrescentava raiva a seu nervosismo. Quando Phoebe se vestiu e meteu sua roupa de noite no baú de viagem, já agitada, ainda estava escuro, mas
as sete em ponto era dia, e pensava que em qualquer momento podia aparecer algum vizinho ou algum peão. Era um dia triste, soprava um vento do norte e no céu tinha
umas grandes e ameaçadoras nuvens. Phoebe a cada vez estava mais furiosa e agoniada, mas a surpresa impôs-se sobre o resto de emoções quando viu chegar Tom ao lugar
combinado, mas conduzindo, em lugar de sua caleça, o cabriolé de seu pai, puxado por seus dois formosos cavalos castanhos, Trusty e True.

Tom deteve o carro ao lado de Phoebe e, sem preâmbulos, ordenou-lhe que se colocasse junto às cabeça dos cavalos. Ela obedeceu, mas enquanto ele tirava a manta que
lhe envolvia as pernas e saltava do carro disse:

— Mas Tom, que aconteceu? Por que trouxeste o cabriolé? Tens permissão?

Tom pegou o baú de Phoebe e subiu-o rapidamente ao carro.

— Sim, tenho permissão. Pensavas que não ia vir? Perdoa que me tenha atrasado tanto, mas é que tive que voltar. Vamos por esta caixa de chapéus embaixo do assento.
— Guardou-a enquanto falava, e depois foi para Phoebe e disse —: Sobe no carro e pega as rédeas. Tem cuidado! Estes cavalos não saíram desde que meu pai partiu,
e estão muito agitados. Aí está o velho abrigo de viagem de meu pai: ponha-o, e envolva-se bem com essa manta. E não percas o tempo discutindo! — acrescentou.

Phoebe obedeceu, mas estava muito desconcertada e, tão logo Tom subiu ao carro, sentou-se a seu lado e pegou as rédeas, perguntou:

— Ficas-te louco, Tom? Que demônios...—

— Não, não fiquei louco. O que passa é que ontem à noite fui um tolo e não soube o que devia fazer. Era muito simples, mas não se me ocorreu até que vim te buscar.
Estava tonto! Passei toda a noite em claro me perguntando que podia fazer. Não vi claro até que vinha para aqui com a caleça. Assim dei meia volta, deixei uma nota
a minha mãe, pedi a Jem que atrelasse a Trusty e a True...

— Mas por quê? — interrompeu-o Phoebe.

— Vou levar-te a Londres.

O primeiro que sentiu Phoebe foi gratidão, mas em seguida a assaltaram todo tipo de dúvidas, e disse:

— Não, não, Tom! Não podes o fazer!

— Claro que sim. É o mais fácil. Trusty e True são capazes de cobrir duas etapas completas, principalmente se não os apressar demasiado. Depois terei que alugar
outros cavalos, acredito, mas a não ser que quando cheguemos a Reading nos digam que há demasiada neve na estrada, chegaremos a Londres esta mesma noite. Não obstante,
se as notícias forem más em Reading, não o tentarei. Nesse caso, te levarei a casa desse comerciante de grão e eu ficarei no Crown. O único problema é que talvez
passes um pouco de frio.

— Isso não importa. Mas Tom, acho que não deves me acompanhar. Talvez...

— Olha, o que me importa o que penses — replicou ele —. De todas formas o vou fazer.

— Mas a senhora Orde... teu pai...

— Sei que meu pai me diria que não devia te deixar ir sozinha; e quanto a minha mãe, não se zangará, porque lhe deixei uma nota lhe dizendo que não deve se zangar.
E tu não armes também um escândalo. Não disse aonde ia, só que tinha que te resgatar desse duque e que seguramente demoraria uns dias em voltar. Assim está tudo
arranjado.

Phoebe não podia estar de todo satisfeita, mas como era evidente que era impossível fazer Tom mudar de ideia, e como ademais estava agradecida por não ter que viajar
sozinha a Londres, não tentou dissuadi-lo.

— Assim que gosto! — disse Tom interpretando corretamente o silêncio de sua amiga —. Que divertido, não é verdade? Espero que não neve, pois tenho de admitir que
não gosto nada do céu.

— Não, a mim também não, mas não peço nada mais que chegar a Reading, porque ainda que descobrissem aonde vamos, não acho que me buscassem ali.

— Claro que chegaremos a Reading! — exclamou Tom, otimista.

Phoebe respirou fundo e disse, agradecida:

— Tom, não sabes como te agradeço. A verdade é que não me fazia nenhuma graça empreender esta viagem sozinha, mas agora... agora posso relaxar!

Capítulo 7

Em Austerby, salvo nos dias de caçada, o café da manhã servia-se às dez em ponto, o qual, em opinião de Sylvester, era demasiado cedo. Em geral, o costume imperante
no campo era que os convidados tomassem o desjejum às onze ou as vezes às doze. Lady Marlow sabia-o, mas disse a Sylvester que não aprovava esses horários. Sylvester,
para quem a imperativa chamada do gongo tinha sido uma ofensa, recebeu essa informação com um leve sorriso e uma educada inclinação da cabeça, mas não fez nenhum
comentário.

Ao observar a ausência de sua filha, lord Marlow não demorou em se perguntar em voz alta onde estaria. Milady, com prudente comedimento, respondeu que devia ter
saído a dar um passeio.

— Um passeio? — disse lord Marlow rindo —. Phoebe? É mais provável que tenha ido às cocheiras. Deve você saber, Salford, que não há maneira de manter essa minha
filha longe dos cavalos. Gostaria que a tivesse visto cavalgar. Maneja as rédeas com precisão e tem uma postura excelente. E não se acovarda ante nenhum obstáculo!
Se seu cavalo pode superar algo, ela também: valas, muros de pedra, ribeiros... A Phoebe não importa! Encontrei-a caída numa vala em mais de uma ocasião, mas ela
não se importa com isso.

Sem atentar nas tentativas de sua esposa de chamar-lhe a atenção, lord Marlow teria seguido falando desse tema se Firbank não tivesse entrado nesse momento no salão
para lhe anunciar que a senhora Orde queria falar com ele.

Lord Marlow surpreendeu-se, e sua esposa ainda mais. Lady Marlow considerou uma circunstância extraordinária, e disse:

— Certamente que quer me ver, Marlow. Não sei por que tem que nos incomodar a estas horas. Isso não é nada habitual. Firbank, diga à senhora Orde que estou tomado
o café da manhã, mas que a atenderei tão cedo acabe.

O mordomo retirou-se, mas regressou quase no mesmo instante, muito atribulado e seguido de uma mulher roliça.

— Senhora, lamento ter que a interromper com tão pouca cerimônia — anunciou a senhora Orde, que parecia estar se esforçando para conter uma intensa emoção —, mas
o assunto que me trouxe aqui não pode esperar.

— Em absoluto! Alegramo-nos em vê-la! — apressou-se a dizer lord Marlow —. Já sabe que sempre estamos a sua disposição. Para que queria nos ver?

— Trata-se de um assunto da máxima urgência. Sua filha, senhor, fugiu com meu filho.

O silêncio apoderou-se de todos os presentes. Sem dar-lhes tempo de recobrar-se do comunicado, a senhora Orde soltou sobre eles toda a ira que acumulava.

— Não sei por que fica tão perplexa — declarou olhando com fúria a lady Marlow —. Você não deixou pedra sem remover até que conseguisse o que buscava. Já imaginava
o que ia acontecer quando meu filho me contou como o tinham recebido nesta casa durante os últimos dez dias. Passarei por alto sua insultante conduta, senhora, mas
permita-me informar-lhe que nada está mais longe dos desejos de seus pais que uma aliança entre Tom e sua família. Tenho muito carinho a Phoebe, pobrezinha, mas
meu esposo e eu albergamos outros planos para Tom, e lhe asseguro que não incluem este casamento aos dezenove anos.

— Que tolice! A nenhum dos dois ocorreu jamais essa ideia! — exclamou lord Marlow numa tentativa de deter a virulenta eloquência de sua vizinha. No entanto, ficou
sem argumentos quando a senhora Orde, furiosa, replicou:

— Não! Não até que milady a meteu na cabeça! Se eu tivesse visto sua amizade com apreensão, não teria agido como ela o fez. E qual foi o resultado? Pois exatamente
o previsível!

— Caramba! — interveio lady Marlow —. Diria que perdeu o julgamento, senhora! Não entendo como pode ficar assim só porque minha enteada saiu a montar com o senhor
Thomas Orde!

— Montar? — exclamou a senhora Orde com desdém —. Phoebe fugiu desta casa, e disso é você culpada, lady Marlow, pela maneira que a tratou, pobrezinha. Lady Marlow,
tira-me do meu objetivo! Não era com você com quem queria falar, mas com o pai de Phoebe. Leia isto, senhor!

Depois de pronunciar essas imperiosas palavras, pôs um papel na mão de lord Marlow. Enquanto este lia atentamente as escassas linhas que Tom tinha escrito para dissipar
a eventual angústia de sua mãe, lady Marlow lhe ordenou que lhe mostrasse a nota, e Sylvester se retirou com discrição para o lado da janela. Sabia que um homem
prudente aproveitaria essa oportunidade para sair do salão. Aceitou com aprumo a demonstração de que estava atuando de forma pouco prudente e se perguntou se teria
ocasião de dar uma olhada à missiva que tão poderoso efeito estava exercendo sobre seu anfitrião.

“Querida Mãe — tinha escrito Tom —, tenho que partir sem me despedir de ti, mas não te preocupes. Peguei o cabriolé de meu pai e me ausentarei durante uns dias,
não posso especificar quantos. As coisas chegaram a tal extremo em Austerby que a situação é insuportável. Tenho que resgatar a Phoebe, e estou seguro de que meu
pai e tu o entendereis quando estiver a par de tudo, porque sempre lhe tens professado um carinho sincero.”

Enquanto lia essas linhas, as faces de lord Marlow perderam sua habitual cor.

— É impossível! Não posso crer! Aonde terão ido? — balbuciou sem impedir que sua esposa lhe arrebatasse a folha das mãos.

— Exato! Onde? — perguntou a senhora Orde —. Essa pergunta é o que me trouxe aqui. Se meu esposo não se encontrasse em Bristol neste momento... Mas sempre se passa

o mesmo! Os homens nunca estão quando precisamos!

— Não sei o que significa esta mensagem — tangenciou lady Marlow —. Não fingirei entendê-la. Mas suspeito que o senhor Thomas Orde estivesse ébrio quando a escreveu.

— Como se atreve? — saltou a senhora Orde soltando faíscas pelos olhos.

— Não, não, claro que não estava ébrio! — apressou-se a dizer lord Marlow —. Querida, permita-me que... Isto é tão extraordinário que... Ainda que nem por um momento
pensei...

— Pelo amor de Deus! — gritou a senhora Orde dando batendo com o pé no chão —. Não fique aí como um imbecil! Talvez não se importe que sua filha esteja fugindo neste
preciso instante— Deve ir buscá-la! Verifique aonde pensava ir! Asseguro que Susan o sabe! Ou a senhorita Battery! Alguma pista lhes terá dado! E se não, alguma
das duas, que a conhecem melhor que você, poderá adivinhar suas intenções!

Lady Marlow não era partidária a levar em conta essa sugestão, mas seu esposo, que conservava uma vívida lembrança da conversa que tinha mantido com Phoebe na noite
anterior, estava muito alarmado. Disse que mandaria avisar de imediato a Susan e a senhorita Battery, e se dirigiu para a porta ao mesmo tempo em que chamava Firbank.
Enquanto enviavam a mensagem a sala de aula, a senhora Orde aproveitou para descarregar todo seu nervosismo e saldou a dívida de rancor que tinha acumulado em seu
interior durante anos dizendo a lady Marlow o que pensava exatamente de suas maneiras, sua conduta, sua insensibilidade e sua tremenda estupidez. Lord Marlow não
teve mais remédio que intervir na altercação e, no fragor da discussão, se esqueceram por completo de Sylvester. O duque tentou passar despercebido. Ainda não tinha
chegado o momento adequado para que se fixassem nele, ainda que esperasse que não se demorasse muito. Enquanto, escutou as hábeis acusações da senhora Orde à lady
Marlow, retendo na memória os diversos episódios ilustrativos da depravação de sua anfitriã, cujos detalhes a senhora Orde tinha guardado fielmente durante anos.

A senhora Orde calou-se quando entrou na sala a senhorita Battery, acompanhada não só de Susan, mas também de Eliza. Como é lógico, lady Marlow contrariou-se que
a professora se tivesse apresentado ali com Eliza; e dispunha-se a ordenar-lhe que saísse quando a senhorita Battery disse com gesto seco:

— Considerei que era meu dever a trazer. Diz que sabe aonde foi sua irmã. Ainda que duvido-o.

— Phoebe jamais o revelaria a Eliza! — assegurou Susan —. E sobretudo sem ter dito nada a mim.

— Sim sei aonde foi! — insistiu Eliza —. E pensava dizer-lhe a mãe, porque esse é meu dever.

— Bom, isso não importa — falou lord Marlow, irritado —. Se o sabe, diga agora mesmo.

— Foi a Gretna Green com Tom Orde, pai — disse a menina.

O tom com que Eliza pronunciou essa surpreendente informação foi tão petulante que incitou a Susan a exclamar com impulso:

— Isso é mentira, fedelha detestável!

— Susan! — exclamou lady Marlow —. Vá imediatamente a meu quarto de vestir e não saia dali até que te vá buscar!

Mas para sua surpresa, lord Marlow saiu em defesa de Susan:

— Não, não, há que se resolver esta questão. Acho que Sukey tem razão.

— Eu também — concordou a senhorita Battery.

— Eliza é uma menina muito sincera — declarou lady Marlow.

— Como sabes que foram a Gretna Green? — perguntou a senhora Orde —. Phoebe te disse?

— Não, senhora — respondeu Eliza adotando uma expressão tão inocente que Susan teve vontade de dar-lhe uma bofetada —. Acho que é um segredo que tinham Phoebe e
Tom, o que me entristece muito, porque não é correto se esconder coisas dos pais, não é verdade, mãe?

— Assim é, querida — corroborou lady Marlow —. Alegra-me saber que ao menos uma de minhas filhas conhece seus deveres.

— De acordo — disse lord Marlow sem muito entusiasmo —, mas como o sabes, minha filha?

— Veja pai, não gosto de contar fofocas de minha irmã, mas Tom veio vê-la ontem à noite.

— Veio vê-la ontem à noite? Quando?

— Não o sei, pai. Parece-me que era muito tarde, porque eu estava profundamente adormecida.

— Então, como vais saber de alguma coisa? — interrompeu-a Susan.

— Silêncio, Susan! — ordenou lady Marlow.

— Acordei — explicou Eliza —. Ouvi vozes na salinha de costura, e pensei que eram ladrões, assim me levantei, porque era meu dever avisar ao pai, para que ele pudesse...

— Mentirosa! — gritou Susan, indignada —. Se tivesses achado que tinham entrado ladrões na casa, terias metido a cabeça embaixo das mantas e terias morrido de medo.

— Vou ter que corrigir outra vez a tua conduta, Susan? — perguntou lady Marlow.

— Susan tem razão — falou a senhorita Battery —. Eliza nunca pensou isso. É muito covarde. Se levantou da cama foi por curiosidade.

— Bom, que importância tem? — gritou a senhora Orde —. Tom deve ter vindo ver Phoebe ontem à noite quando voltava a casa, não me cabe dúvida. Dizes que os ouviste
falar na salinha de costura, Lizzy? E daí o que disseram?

— Não o sei, senhora. Mas quando me dispunha a avisar a meu pai, reconheci a voz de Tom e me dei conta de que não eram ladrões. Disse que esperava que não tivesse
muita neve no norte, porque tinham que ir a Gretna Green.

— Céu santo! — exclamou lord Marlow —. Esse jovem... E daí? O que respondeu Phoebe?

— Rogou-lhe que não falasse tão alto, e depois já não ouvi nada mais, assim voltei a me deitar.

— Claro, porque ainda que tentasse, não pudeste ouvir nada mais — disse Susan.

— Fizeste o que devias — declarou lady Marlow —. Se tua irmã livrar-se das terríveis consequências de sua conduta, se deverá a teu senso de dever. Estou muito orgulhosa
de ti, Eliza.

— Desculpe, senhora — interveio a senhorita Battery —, gostaria de saber por que o senso de dever de Eliza não a instou a ir imediatamente ao meu dormitório para
me informar do que estava sucedendo. Não tenho nenhum escrúpulo em lhe dizer, senhora, que não acho que tenha nem uma única palavra verdadeira nessa história.

— Isso é! — concordou lord Marlow com renovado entusiasmo —. A mim também gostaria de sabê-lo! Por que não acordaste em seguida à senhorita Battery, Eliza? Susan
tem razão! Inventaste tudo, não é verdade? Confessa-o!

— Não o inventei! Mãe, prometo que não o inventei! — declarou Eliza rompendo a chorar.

— Santo céu! — exclamou a senhora Orde —. Suponho que nenhuma jovem de sua idade seria capaz de imaginar semelhante história. Ademais, como vai saber ela de Gretna
Green? Não duvido da veracidade de suas palavras; e mais, essa terrível suspeita já tinha passado por minha mente. Que podemos pensar, lendo a nota que me deixou
meu filho? Se se sentia na obrigação de resgatar Phoebe, como podia fazê-lo, se não se casando com ela? E onde o podia levar a cabo, sendo menor de idade, se não
do outro lado da fronteira? Peço-lhe (lhe suplico, senhor!) que os vá buscar.

— Que os vá buscar? — gritou milord, muito exaltado —. Pois claro, senhora! Me suplica? Permita-me que lhe assegure que não há nenhuma necessidade de que o faça.
Minha filha fugindo para Gretna Green como uma vulgar... Já verão esses dois quando os pegar!

— Não chegarão a Gretna Green! — sentenciou a senhora Orde com certa acidez —. E se os apanha (do qual não estou muito segura, porque levam várias horas de vantagem,
e se manterão afastados das estradas principais sempre que possam), lhe convém recordar, senhor, que meu filho é pouco mais que um colegial, e estou convencida de
que agiu movido pelas mais cavalheirescas e puras intenções.

Chegado esse ponto, ao perceber que seu anfitrião, que se tinha esquecido por completo dele, e se dispunha a sair precipitadamente da sala, Sylvester julgou que
tinha chegado o momento de recordar sua presença aos presentes. Colocou-se no centro da sala e disse com voz tranquilizadora:

— Bom, suponho que não lhe custará muito os alcançar, senhora. O mais provável é que fiquem detidos na neve.

Tenho entendido que faz vários dias que neva no norte. Meu querido lord Marlow, antes que saia em perseguição dos fugitivos, me permita me despedir. Nestas circunstâncias,
suponho que milady e você preferirão que eu parta. Aceite meu agradecimento por sua hospitalidade, meu pesar por esta inevitável abreviação de minha estadia em sua
casa e minha promessa (espero que desnecessária!) de que podem confiar em minha discrição. Só me falta desejar que tenha um rapidamente sucesso em sua missão e suplicar
que não atrase sua partida por mim.

Ditas essas palavras, pronunciadas com grande solenidade, apertou a mão de lady Marlow, saudou com várias inclinações da cabeça à senhora Orde e à senhorita Battery
e saiu da sala antes de que seu anfitrião tivesse reagido para formular algo mais que um débil protesto.

Seu criado de quarto, um servente muito correto, recebeu a notícia de sua imediata partida de Austerby com uma deferente inclinação da cabeça e uma impassível serenidade;
John Keighley, em ao contrário, alquebrado por um forte resfriado, protestou:

— No estado em que se encontram os caminhos, nunca chegaremos a Londres, excelência.

— Talvez não — concordou Sylvester —. Mas se duvidas de que possa chegar a Speenhamland— Te demonstrarei que te equivocas!

Swale, que já estava dobrando uma das jaquetas de Sylvester, sentiu um grande alívio ao ouvir a palavra mágica: Speenhamland significava o Pelican, uma pousada tão
famosa pela excelência de seu alojamento como pela exorbitância de seus preços. Ali, tanto sua excelência como seus serventes estariam muito melhor atendidos que
em Austerby.

— Speenhamland está a mais de cinquenta quilômetros de aqui, excelência — objetou Keighley, indiferente a essas reflexões —. Terá que mudar os cavalos, e também
os postilhões, porque os garotos não suportarão uma viagem tão longa se encontrarmos neve.

— Não, não vou viajar no cupé — esclareceu Sylvester —. Irei no cabriolé, é claro, e eu mesmo conduzirei. Tu virás comigo, e Swale pode nos seguir no cupé. Diga
aos garotos que devem ir tão longe quanto possam sem mudar. Quero que levem meus próprios cavalos em etapas curtas até o Pelican, e que se não me encontrarem ali,
continuem até a cidade. Swale, mete tudo o que possa precisar para vários dias num de meus baús de viagem.

— Se sua excelência quer que eu viaje no cabriolé, não me importo de fazê-lo — disse Swale, mais por heroísmo que por sinceridade.

— Não, Keighley me será de mais utilidade — replicou Sylvester.

Seu leal cocheiro resmungou baixinho e dirigiu-se às cocheiras. Meia hora mais tarde, resignado com seu destino, achava-se sentado junto a seu amo no cabriolé, contemplando
com ar taciturno um céu cujo aspecto era cada vez mais ameaçador. Tinha acrescentado um cachecol ao seu traje, e de vez em quando assoava o nariz com um lenço impregnado
de cânfora. Sylvester fez-lhe um comentário simpático, e Keighley replicou com afetação:

— Sim, excelência.

A uma segunda tentativa do duque de estabelecer conversa com ele, o criado replicou:

— Não saberia lhe dizer, excelência.

— Ah, não? — disse Sylvester —. Está bem. Digas o que quiser: que faz um frio de mil demônios e que estou louco por tentar chegar ao Pelican. A mim não me importa,
e seguramente tu te sentirás melhor.

— Jamais me rebaixaria até esse ponto, excelência — replicou Keighley com dignidade.

— Ah, isso é novo — comentou Sylvester —. Achava que ias soltar-me um de teus sermões. — Ao não obter resposta, acrescentou —: Pelo amor de Deus, John, não te ponhas
assim!

Keighley nunca tinha sabido resistir quando seu amo lhe falava nesse tom, desde a primeira vez que Sylvester, ainda muito jovem, conseguiu lhe impor sua vontade.

— Que ideia tão descabelada, excelência! — falou num tom severo —. Viajar para uma tormenta de neve! A única coisa que lhe direi é que se ficarmos presos, espero
que não culpe a mim.

— Não, não te culparei — prometeu Sylvester —. Verás, era agora ou nunca; ou só dentro de uma semana. Talvez tu estivesses passando a grande, mas eu não. E mais,
preferiria alojar-me numa taberna de má fama.

Keighley soltou uma gargalhada.

— Já o suspeitava. Não achei que fôssemos ficar muito tempo aqui. Sobretudo quando me inteirei de que tinha fumaça no quarto de sua excelência. Swale também não
gostou, porque é muito caprichoso.

— Igual a mim — observou Sylvester —. Ademais, não podia mais ficar se milord devia partir precipitadamente, não?

— Acredito que sim, excelência. Sobretudo tendo em conta que não tinha o mínimo desejo de ficar.

Sylvester riu, e uma vez restabelecidas as boas relações entre eles, empreenderam o caminho em harmonia. Em Devizes nevava, mas chegaram a Marlborough sem problemas,
e pararam em Castle Inn para que os cavalos pudessem descansar e para tomar um segundo café da manhã. O fogo que ardia nas lareiras e a excelente comida tentaram
Sylvester a ficar ali, e talvez o tivesse feito, se não se lhe tivesse ocorrido que se achava demasiado perto de Austerby para se considerar a salvo de todo perigo.
A chegada do correio de Bath dissipou suas dúvidas. Chegava com várias horas de atraso, mas Sylvester soube pelo cocheiro que ainda que a estrada estivesse má em
alguns trechos, se podia circular. Decidiu seguir adiante. Keighley, animado por um ponche de gengibre, cerveja, noz moscada e açúcar, não pôs objeções, assim que
voltaram a atrelar os cavalos.

Os dezesseis quilômetros seguintes foram mais problemáticos, e uma vez passado o bosque de Savernake, Sylvester teve que parar o carro um par de vezes enquanto Keighley
descia para afastar a neve que impedia distinguir o traçado da estrada. No entanto, chegaram a Hungerford sem contratempos. Os excelentes cavalos cinzentos de Sylvester,
atrelados a um veículo ligeiro, estavam cansados, mas não em excesso. O duque considerou que se os deixasse repousar um pouco, seriam perfeitamente capazes de terminar
a etapa seguinte, que os conduziria a Speenhamland e ao Pelican.

Quando retornaram a marcha eram já mais de quatro horas, e aos riscos do clima se acrescentaram os do anoitecer. Com o céu tão uniformemente coberto, Keighley opinava
que escureceria antes que chegassem a Newbury, mas conhecia demasiadamente a seu amo para perder tempo protestando. Sylvester, que teria podido contar com os dedos
de uma mão as ocasiões em que tinha estado bastante doente para ficar de cama, não se desconcertou pela ofuscante neve nem se preocupou pelos incômodos que supunha.
Keighley, no apogeu de seu resfriado, perguntou-se se seria capaz de convencer a seu amo para que se detivessem no Halfway House, e não teria lamentado que tivessem
ficado presos perto dessa ou de qualquer outra pousada. Nem ele nem Sylvester conheciam a estrada, mas a sorte os favoreceu quando o caminho começava a se pôr impraticável.
Encontraram uma diligência que avançava devagar para Bath, e puderam seguir as profundas impressões que deixava na neve durante vários quilômetros, antes que as
apagassem os flocos que seguiam caindo. As rodas ainda se distinguiam quando Keighley, que tinha boa vista, descobriu um cabriolé virado na valeta e assinalou que
alguém tinha sofrido um desafortunado acidente. O cabriolé achava-se coberto de neve, mas era evidente que se tratava de um veículo esportivo e que viajava para
o leste. De repente a Sylvester assaltou-o uma suspeita. Deteve o carro para examinar melhor o cabriolé abandonado.

— É um cabriolé, John.

— Sim, excelência — coincidiu Keighley —. A vara está rompida e a rodas direita, destroçada. Tenha muito cuidado ao conduzir! Não gostaria que tivéssemos a mesma
sorte.

— É curioso — disse Sylvester com uma pitada de regozijo na voz —. Não sei quem poderia estar tão desesperado para sair num cabriolé com este tempo. É muito curioso.

— Mas eles se dirigiam para a fronteira, excelência — disse Keighley, revelando que conhecia o que até esse momento, por discrição, tinha dissimulado.

— Isso foi o que assegurou a senhorita Eliza. Não acho que o jovem Orde seja tão iludido para pensar que poderia chegar à fronteira. Talvez não seja tão tolo, John.
Parece-me que cedo o averiguaremos. Alegro-me de que decidíssemos nos dirigir ao Pelican.

— Desculpe, excelência — disse Keighley com gravidade —, isso você decidiu. E mais, se permite-me o atrevimento, você não deseja conhecer o senhor Orde. E também
não quer voltar a encontrar-se com a senhorita Marlow, pelo que eu sei.

— Já vejo que sabes tudo — replicou Sylvester, e fez andar aos cavalos —. Como sempre. Que fariam quando ficaram presos na valeta?

— Não o sei, excelência — respondeu Keighley com enfado —. Talvez passassem para outro carro e partiram nele.

— Que absurdo! E daí, levaram os cavalos? Não são do jovem Tom, mas de seu pai. O lógico é que se ocupasse deles, não?

— Sim, se seu pai é como o honorável pai de sua excelência — admitiu Keighley com um humor mordaz —. Céus, quantos problemas tivemos daquela vez que sua excelência
levou o potro castanho e...

— Obrigado, mas não precisa que me recordes o episódio. O jovem Tom, John, desatrelou os cavalos do cabriolé e levou-os ao refúgio mais próximo. Não acho que quebraram
alguma pata, mas suponho que algum dano sofreram. Mantém os olhos bem abertos para que vejas vês alguma granja ou alguma pousada.

Keighley suspirou e não fez nenhum comentário. Mas não foi necessário que seguisse exercitando seus poderes de adivinhação porque setecentos metros para além, a
escassos metros da estrada e perto de um estreito caminho que cruzava o caminho de posta, tinha uma pequena pousada com um curral e vários edifícios anexos na parte
traseira.

— Ahá! — exclamou Sylvester —. Agora veremos se tinha razão, John. Sujeita os cavalos.

Keighley pegou as rédeas; incomodava-lhe tanto a caprichosa conduta de seu amo que disse com sarcasmo:

— Sim, excelência. E se demorar mais de uma hora, quer que os faça caminhar um pouco para que não se resfriem?

Mas Sylvester não lhe prestou atenção, saltou do cabriolé e entrou no Blue Boar.

A porta dava para um corredor, e em um dos lados estava a taberna, e do outro, um salãozinho. Defronte, uma estreita escada conduzia ao andar superior, e no alto,
olhando para abaixo com expressão agoniada, estava a senhorita Phoebe Marlow.

Capítulo 8

A exclamação de susto que proferiu a jovem e a expressão de consternação que adotou, produziu em Sylvester uma maliciosa satisfação.

— Como está você? — disse com amabilidade.

Agarrada com uma mão ao corrimão da escada e com um olhar de dolorosa interrogação, a jovem balbuciou:

— Minha mãe...?

— É claro! Está lá fora, em meu cabriolé. — Então percebeu que Phoebe tinha empalidecido e acrescentou —: Não seja boba! Suponho que me ache incapaz de fazer percorrer
trinta metros a sua madrasta, quanto mais cinquenta quilômetros, não?

As faces de Phoebe recobraram a cor.

— É verdade, e ela também não aceitaria subir num cabriolé — replicou —. Mas... que lhe trouxe até aqui, senhor?

— A curiosidade. Vi o carro virado na valeta e deduzi que era o cabriolé do senhor Orde.

— Oh! Assim que não tem... Não estava... — Interrompeu-se, aturdida, e depois, enquanto ele a olhava expectante, lhe perguntou —: Não veio me buscar?

— Pois... não — respondeu ele em tom de desculpa —. Estou a caminho de Londres. Temo, senhorita Marlow, que houve um mal entendido.

— Está me dizendo que não pensava em me propor casamento?

— Vejo que não tem papas na língua. Pois lhe responderei com a mesma franqueza: não, não pensava em fazê-lo.

Ela não se sentiu ofendida, mas, suspirando aliviada, disse: — Graças a Deus! Ainda que esta situação seja sumamente embaraçosa. No entanto, suponho que seja preferível
encontrar você do que não encontrar ninguém.

— Muito obrigado!

— Veja, quando o ouvi entrar, confiava que fosse esse desprezível cocheiro.

— Que desprezível cocheiro?

— O que trabalha aqui. A senhora Scaling, a patroa, enviou-o a Newbury para comprar provisões pois temia que a neve os deixasse isolados aqui talvez durante semanas,
e ainda não regressou. Como vive nesse povoado, a senhora Scaling pensa que aproveitará o pretexto da neve para ficar ali até que deixe de nevar. E o caso é que
se levou o único cavalo da senhora Scaling. Tom (o senhor Orde) não quer nem ouvir falar de montar a Trusty, e admito que talvez fosse um pouco difícil, porque não
temos sela e também não trouxe o traje de montar. Ademais Trusty nunca foi montada por ninguém. True, sim, me levaria até o povoado, mas é impossível: tem uma ferida
no jarrete esquerdo. Mas a outra perna sim está quebrada, e é preciso tratá-la!

— Que perna? — interrompeu-a Sylvester —. A do cavalo?

— Não, não! Não é tão grave — assegurou-lhe —. Refiro-me à perna do senhor Orde.

— Está segura de que a quebrou? — perguntou ele, incrédulo —. Se é assim, como pôde chegar até aqui? Quem tirou os cavalos dos tirantes?

— Cruzamos com um peão que levava uma carroça puxada por um burro. Isso provocou o acidente: Trusty sente grande aversão aos burros, e essa maldita criatura assustou-o
ao zurrar. Acho que Tom enganchou um pé na manta de viagem quando tentava dominar Trusty, e caiu. O peão ajudou-me a desatrelar Trusty e True; depois colocou Tom
em sua carroça e trouxe-o até aqui, enquanto encarregava-me de trazer os cavalos. A senhora Scaling e eu conseguimos cortar a bota de Tom, mas temo que lhe fizemos
muito dano, porque desmaiou. E aqui estamos desde então, com a perna do pobre Tom ainda sem tratar, sem meios para ir buscar um cirurgião, e tudo por culpa desse
abominável cocheiro.

— Santo Deus! Espere um momento — disse Sylvester contendo o riso e voltou para fora, onde o esperava Keighley —. Leva os cavalos às cocheiras, John — ordenou-lhe
—. Vamos passar a noite aqui. Só há um criado de estábulo e partiu para Newbury, assim se não encontras ninguém no estábulo, faz o que te pareça melhor.

— Vamos passar a noite aqui, excelência? — repetiu Keighley, estupefato.

— Assim é. Dentro de um par de horas estará demasiado escuro para continuar — argumentou Sylvester, e entrou de novo na casa.

Viu que se tinha unido a Phoebe uma corpulenta mulher com uma coifa de onde escapavam uns cabelos grisalhos e com um lindo semblante que nesse momento denotava nervosismo.
A mulher fez uma reverência, e Phoebe disse, pondo muito ênfase em suas palavras:

— Esta é a senhora Scaling, que nos ajudou muito a meu irmão e a mim.

— Que amável! — disse Sylvester dedicando à dona da hospedaria o sorriso que tanto benefício lhe tinha angariado —. Os pais de meus imprudentes e jovens amigos se
alegrarão ao se inteirarem de que caíram em tão boas mãos. Pedi a meu cocheiro que leve os cavalos ao estábulo, mas suponho que você quererá lhe indicar onde os
deve acomodar. Poderá alojar-nos na casa?

— É claro, senhor, será um prazer. Mas esta casa é muito modesta, como você já... E já instalei o jovem cavalheiro no melhor quarto — disse a senhora Scaling, consideravelmente
perturbada.

— Isso não tem importância — disse Sylvester enquanto tirava as luvas —. Senhorita, acho que deveria conduzir-me onde está seu irmão.

Phoebe vacilou um momento, e quando a senhora Scaling saiu da sala, disse com verdadeiro receio:

— Para que quer ver Tom? Por que quer ficar aqui?

— Veja, não tenho nenhum interesse especial — respondeu ele com gesto risonho —. É simples camaradagem, senhorita Marlow. Não seria honrado de minha parte deixar
esse pobre diabo em mãos de duas mulheres. Acompanhe-me até encima. Prometo-lhe que seu amigo se alegrará muito de me ver.

— Não o creio — contradisse Phoebe olhando-o com desconfiança —. E gostaria de saber por que falou à senhora Scaling como se fosse nosso avô.

— É que me sinto como se fosse seu avô — confessou ele —. Leve-me ao doente, e vejamos o que se pode fazer por ele.

Phoebe seguia indecisa, mas depois de um momento de vacilação disse de má vontade:

— Está bem! Mas não vou permitir que lhe dê sermões nem lhe recrimine a conduta, advirto-o.

— Deus meu, quem sou eu para discutir? — perguntou Sylvester seguindo-a pela estreita escada.

O melhor dos dormitórios da senhora Scaling era uma habitação com o teto baixo na parte dianteira da casa. Tinham acendido o fogo e tinham corrido as cortinas da
janela para impedir que entrasse a luz do crepúsculo. Tinha um candeeiro de azeite em cima do tocador e um par de velas na cornija da lareira, e como as cortinas
e o dossel que rodeava a cama eram de cor carmesim, o quarto oferecia um aspecto muito acolhedor. Tom, completamente vestido com exceção das botas e as meias, achava-se
caído na cama, coberto com um edredom de retalhos multicolores e reclinado sobre vários travesseiros macios. Estava pálido e seu olhar deixava transparecer grande
tensão.

— Tom, este é... o duque de Salford — anunciou Phoebe —. Pediu-me que o trouxesse para te ver, assim que...

Essa assombrosa revelação fez que Tom se erguesse se apoiando num cotovelo, o que lhe fez esboçar uma careta de dor, mas decidido a proteger Phoebe de qualquer tentativa
de obrigá-la a regressar a Austerby.

— Salford? — disse —. Estás-me dizendo...— Veem aqui, Phoebe, e não tenhas medo. Ele não tem nenhuma autoridade sobre ti e o sabe muito bem.

— Não nos ponhamos trágicos, por favor! — interveio Sylvester acercando-se à cama —. Não tenho nenhuma autoridade sobre nenhum de vocês, e não sou o mau desta história
nem de nenhuma outra. Como se encontra?

Ao ver que o duque lhe estendia a mão, Tom, muito desconcertado, a apertou e balbuciou:

— Co... como está você, senhor? Isto é...

— Melhor que você, pelo que vejo — respondeu Sylvester —. Parece algo machucado, segundo me contaram. Importa-se que dê uma olhada? — Sem esperar uma resposta, retirou
o edredom. Instintivamente, Tom pôs-se tenso; o duque olhou-o sorridente e disse —: Não se preocupe, não vou tocar a perna. Dói muito?

— Acho que dói! — respondeu Tom sorrindo debilmente.

— Ai, sinto muito, mas tivemos que lhe tirar a bota, e ainda que procurássemos não lhe fazer dano... — disse Phoebe.

— Sim, sei-o. O que ocorreu foi que esse rústico disse que sabia endireitar uma perna rompida, e a senhora Scaling acreditou.

— Quanto o lamento — disse Sylvester contemplando a perna ferida, na qual se apreciava um grande inchaço ao mesmo tempo a intervenção de mãos inexperientes.

— Eu também — replicou Tom —. É o filho da senhora Scaling, e acho que não é muito bom da cabeça.

— É retardado mental — esclareceu Phoebe —. Oxalá não o tivesse deixado se acercar de Tom, mas o fez bastante bem com o pobre True, e isso me levou a achar que saberia
te arranjar a perna, porque esse tipo de pessoas costumam ter conhecimentos desse tipo. — Deu-se conta de que Sylvester a olhava com ar zombador e acrescentou —:
É verdade! Em nosso povoado há um retardado mental que é melhor que qualquer veterinário.

— É uma lástima que você não seja um cavalo, Orde — disse Sylvester —. Quantas horas faz que sofreu o acidente?

— Não sei, senhor, mas acho que muitas. A mim me parece uma eternidade — respondeu o pobre Tom.

— Não sou médico, nem sequer veterinário, mas acho que deveríamos consertar esse osso o quanto antes. Teremos que fazer algo. Vamos, não ponha essa cara! Deus me
livre de tentá-lo. Precisamos de Keighley, meu cocheiro. Não me estranharia nada que ele soubesse o fazer.

— Seu cocheiro? — disse Phoebe com ceticismo —. Que vai entender de pernas rompidas?

— Talvez não entenda, mas nesse caso nos dirá. Uma vez pôs-me o ombro no lugar, quando eu era um garotinho e o desloquei, e lembro que quando chegou o médico assegurou
que nem ele mesmo teria feito melhor. Vou buscá-lo — disse Sylvester, e saiu pela porta.

— Que diabos o trouxe aqui? — perguntou Tom olhando a Phoebe —. Achei que nos tinha estado perseguindo, mas se assim é, por que se preocupa por minha perna?

— Não o sei. Mas não andava me procurando, disso estou segura. E mais, diz que não foi a Austerby para me propor casamento. Nunca me senti tão aliviada!

Tom olhou-a com expressão desconcertada, mas como estava esgotado por todo o

que tivera que suportar, e como lhe doía muito a perna, não quis seguir discutindo e guardou silêncio.

Um pouco depois regressou Sylvester com Keighley; levava um copo cheio de um líquido marrom escuro que deixou numa mesinha que tinha junto à cama.

— Bom, Keighley diz que se trata de uma fratura simples e pode arranjá-la — declarou —. Esperemos que o consiga! Mas parece-me que primeiro que tem que fazer é lhe
tirar a roupa e lhe pôr uma camisa de dormir. Deve estar muito incômodo.

— Veja se consegue convencê-lo para que tire sua roupa — falou Phoebe contemplando pela primeira vez a Sylvester com simpatia —. Precisamente, a senhora Scaling
e eu o tentamos desde o princípio, mas não teve forma de persuadi-lo.

— É isso verdade? — disse Sylvester —. Se segue mostrando-se tão obstinado, Keighley e eu o despiremos à força. Enquanto isso, senhorita Marlow, você pode descer,
se não se importa, e ajudar a senhora Scaling a confeccionar uns curativos. Já sei que não quer deixá-lo em nossas mãos, mas acredite, aqui não faz mais que estorvar.
Desça e prepare-lhe um ponche, ou um pouco de caldo, ou o que considere apropriado.

Phoebe não estava muito convencida, mas Tom riu entre dentes e disse:

— Vai, Phoebe, por favor!

Phoebe saiu do quarto, ainda que o incidente não contribuísse para gostar de Sylvester, que enquanto sujeitava a porta disse com amabilidade exagerada:

— Já lhe avisaremos quando possa voltar a subir.

No entanto, Tom estava tão agradecido que começou a pensar que Sylvester era um homem muito tolerável; quando o duque, depois de fechar a porta, lhe piscou um olho,
o jovem sorriu e disse com timidez:

— Estou-lhe muito agradecido, senhor. Phoebe é uma boa garota, melhor que todas, mas...

— Sei-o — disse Sylvester, compreensivo —. Um anjo de bondade!

— Sim — concordou Tom olhando com verdadeiro receio a Keighley, que tinha tirado a jaqueta e estava arregaçando a camisa, muito decidido.

— Prepare-se, senhor — preveniu-lhe Keighley —, porque vou ter que averiguar que osso se rompeu, se é que se rompeu algum.

Tom assentiu, apertou os dentes e os punhos e suportou, suando, mas calado, que Keighley verificasse a gravidade de sua lesão. O trajeto entre carroça até a casa
e as inexperientes tentativas de Will Scaling de pôr o osso em seu lugar tinham-lhe causado uma considerável inflamação.

— Bonita fratura, sim senhor! — disse Keighley endireitando-se —. Tem o perônio rompido, mas pode agradecer, porque podia ser muito pior. E agora, se esse palerma
que está lá embaixo me cortar uma boa prancha, como lhe pedi, solucionaremos isto num piscar

de olhos, senhor.

— Está seguro, John? — perguntou Sylvester —. Não será pior o remédio que a doença?

— Nada disso, excelência. Acho que seria preferível fazer dormir ao cavalheiro porque, ainda terei que lhe cortar os calças, e não as poderei tirar facilmente sem
lhe mover a perna.

Sylvester assentiu.

— Minha navalha de barbear está em cima da cômoda — disse Tom com um fio de voz —. Pode utilizá-la. Já está estragada, porque cortaram com ela a bota.

— Não se preocupe! — interveio Sylvester —. Emprestar-lhe-ei uma minha.

Tom agradeceu-lhe. Deixou que o despissem e que lhe pusessem a camisa de dormir, e quando voltaram a recostá-lo nos travesseiros admitiu que se encontrava bem mais
cômodo. Então Keighley foi a buscar as pranchas e os curativos, e Tom, um pouco pálido, disse com toda a presença de ânimo de que foi capaz que estava desejando
que aquilo terminasse.

— Não me estranha — disse Sylvester. Pegou o copo que tinha deixado sobre a mesinha e lhe ofereceu —. Enquanto isso, beba isto. Lhe fará bem.

Tom contemplou com vacilação o escuro líquido, mas levou o copo aos lábios.

— Mas se... Isto é rum, não é, senhor? — disse afastando-o.

— Sim. Não gosta de rum?

— Não, não gosto. Mas digo-o porque se beber tudo acabarei bêbado como um gambá.

— Isso carece de importância. Ah, está pensando no que dirá a senhorita Marlow? Não sofra: não a deixarei voltar até que tenha passado o efeito. Não discuta comigo!
Beba-o, é o melhor que pode fazer.

Keighley regressou e encontrou a Tom sorridente, ainda que um tanto embotado.

— Assim que gosto! — disse satisfeito —. Encontra-se muito melhor, não é verdade? Agora já não se importará com o que lhe façamos. Excelência, quer ajudar-me a...?

Ainda que Tom não estivesse tão anestesiado como tinha profetizado Keighley com otimismo, não cabe dúvida de que o rum lhe ajudou a suportar a dor e a angústia dos
minutos seguintes. Demonstrou grande coragem, animado por Keighley, que elogiou sua valentia. O suplício não durou muito, mas Tom acabou muito enjoado. Doía-lhe
a perna, e descobriu que aquilo em que tentava fixar seu olhar oscilava tanto que teve que fechar os olhos, se rendendo ao poderoso efeito do rum. Keighley, ao comprovar
com satisfação que o jovem estava mergulhando num profundo sonho, olhou a Sylvester, assentiu e disse:

— Já está, excelência.

— Assim o espero, mas será melhor que busquemos um médico — replicou Sylvester olhando com o cenho franzido a Tom —. Se algo sair mal, não quero que me responsabilizem.
Este jovem é menor de idade. Não sei por que me terei metido nesta confusão.

— Ah! — exclamou Keighley apagando as velas —. Isso mesmo eu estava me perguntando, excelência.

Saíram juntos do quarto e desceram a escada. Phoebe achava-se no salãozinho, sentada adiante do fogo com expressão preocupada.

— Bom, Keighley pôs-lhe o osso em seu lugar — disse Sylvester —, e Orde dormiu. Que eu saiba, não há nada mais que fazer, mas ao mesmo tempo... Como está o tempo?
— Acercou-se à janela e afastou a cortina —. Segue nevando, mas ainda não escureceu. Que quer que façamos, senhorita Marlow?

Phoebe tinha saudado a Keighley e tinha-lhe sorrido, mas ao ouvir essas palavras dirigiu-lhe um olhar de desculpa e disse:

— Gostaria que um médico o visse, porque tudo aconteceu por minha culpa, e sei que isso é o que teria feito a senhora Orde. Que irritante! A senhora Scaling só me
falou de um médico de Newbury, mas agora me inteirei de que há um tal doutor Upsall que vive em Hungerford. Se o tivesse sabido antes, teria ido andando até ali,
pois acho que não está a mais de seis quilômetros. Suponho que a senhora Scaling não o mencionou porque é demasiado caro para ela.

— Espero que não seja demasiado caro para mim. Crê você que esse inútil será capaz de nos guiar até sua casa?

— Espero que sim. Ao menos, isso diz ele. Mas está anoitecendo e talvez o médico não queira sair a estas horas para atender a um estranho.

— Bobagens! — disse Sylvester —. Seu dever é ir a qualquer hora. E será adequadamente recompensado pelo incômodo. Prepara os cavalos, John, e diga ao jovem Scaling
que te acompanhe. Apresenta meu cartão ao doutor Upsall e diga que lhe ficarei muito agradecido se vier de imediato.

— Muito bem, excelência — disse Keighley.

Phoebe, que tinha escutado as ordens de Sylvester com indignação, esperou a que Keighley saísse da habitação antes de exclamar:

— Não pensará enviar a esse pobre homem a Hungerford com este tempo!

Sylvester surpreendeu-se.

— Acaba de expressar seu desejo de que um médico visitasse Orde, não? — disse Sylvester —. A mim também me parece o mais sensato. E ainda que não ache que aconteceria
nada se esperássemos até amanhã, é muito possível que então a estrada esteja intransitável.

— Sim, quero que veja um médico. E se deixar-me utilizar seus cavalos, eu mesma o irei buscar, já que você não pensa ir.

— Eu? — perguntou o duque —. Por que o iria fazer?

— Não se dá conta de que seu criado se acha muito resfriado? — lhe reprovou Phoebe —. Está destroçado, e a você só ocorre o obrigar a sair outra vez, sem se preocupar
pelo que possa ser dele. Suponho que não lhe importa o mínimo que contraia uma inflamação pulmonar ou uma tuberculose.

— Muito ao contrário! Seria sumamente inconveniente!

— Claro, não se importa porque tem outros criados, não? É claro que nunca lhe faltam serventes para lhe poupar qualquer esforço.

— Sim, tenho muitos outros criados a meu serviço, mas nenhum como ele. Talvez lhe interesse saber, senhorita Marlow, que professo a Keighley um considerável apreço.

— Pois não, não me interessa, porque não acredito — replicou ela, furiosa —. Se o apreciasse para valer, não o teria feito percorrer cinquenta quilômetros num veículo
aberto num dia como hoje. Você teria partido de Austerby se estivesse com um forte resfriado? Claro que não!

— Equivoca-se! Claro que teria partido! Eu não me deixo abater por um simples resfriado!

— Porque você não tem cinquenta anos, ou mais!

— Também não Keighley os tem! Cinquenta anos, que barbaridade! Não tem nem sequer quarenta! — replicou Sylvester, acalorado —. E mais, se tivesse se sentido demasiado
fraco para viajar, me teria dito.

— Ah, sim? — disse Phoebe esboçando uma careta de desprezo.

— Sim, me... — De repente Sylvester interrompeu-se e ficou olhando a sua interlocutora com irritação. Então acrescentou com aspereza —: Me teria dito, é claro. Ele
sabe perfeitamente que eu não... Vejo que me toma por um amo cruel!

— Não, só egoísta — corrigiu-o ela —. Estou convencida de que nem sequer se tinha percebido que o pobre homem se tinha resfriado.

Sylvester esteve a ponto de replicar, mas controlou-se, ruborizando-se ao recordar que se tinha enfadado com Keighley por contrair um resfriado, porque lhe tinha
preocupado a possibilidade de que o contagiasse.

No entanto, depois de formular a última crítica, a Phoebe também a assaltou uma lembrança desagradável.

— Rogo-lhe que me perdoe! — disse num tom compungido corando ainda mais que Sylvester —. Não devia dizer isso quando... quando me acho em dívida com você. Rogo-lhe
que me perdoe, senhor!

— Não tem importância, senhorita Marlow — replicou ele com frieza —. Deveria estar-lhe agradecido por fazer que me fixe na saúde de Keighley. Asseguro-lhe que não
tem por que se preocupar. Sou demasiado egoísta para desejar que fique de cama, assim não o enviarei a Hungerford.

Antes de que Phoebe pudesse contestar, Keighley entrou na sala vestido com o grosso abrigo de viagem.

— Perdoe, excelência, mas parti sem o cartão.

— Mudei de ideia, John — disse Sylvester —. Irei eu mesmo.

— Irá você mesmo, excelência? — estranhou-se Keighley —. Importa-lhe que lhe pergunte por quê? Se sua excelência não quer que guie os cavalos, espero que me desculpe
se lhe digo que não seria a primeira vez que o faria. Prefere sua excelência que somente o senhor os guie?

Esse irritante sarcasmo teve o efeito de dissipar o cenho do semblante do duque.

— Exato! — disse desafiando com o olhar a seu ofendido servente —. Sairei sozinho! Bom, não! Esse inútil virá comigo, não? Espero que não me assassine nem nada parecido.
Não, não discutas comigo! A senhorita Marlow acha que a tuberculose está te consumindo, e não penso carregar tua morte em minha consciência. Ademais, que faria sem
ti? Onde está meu sobretudo?

Keighley dirigiu um olhar de surpresa e de reprovação a Phoebe.

— Eu? Por Deus, senhorita, não me passa nada. Só estou um pouco resfriado. Dê-me seu cartão, excelência, e partirei. E basta de tolices, por favor, porque se não
saio cedo, talvez acabe na valeta, e então sim que teríamos problemas.

— Não, estou decidido. Irei eu — insistiu Sylvester —. Deixaste meu abrigo em meu dormitório? Onde é meu dormitório? Conduz-me agora mesmo e depois vê se atrela
os cavalos. Céu santo! Devo fazê-lo eu também? Senhorita Marlow, crê você que...?

Keighley interveio antes de que Phoebe pudesse responder uma pergunta que suspeitava deliberadamente provocadora. Reiterando sua petição a Sylvester de que deixasse
de dizer tolices, acrescentou um veemente protesto contra o inapropriado de se passear por todo o país em busca de um curandeiro. Essa conduta, disse com severidade,
era de todo inadequada.

— Isso eu julgarei —. respondeu-lhe Sylvester —. Atrele os cavalos agora mesmo.

O duque encaminhou-se para a porta, mas de repente Phoebe deteve-o:

— Desculpe! Não queria carregá-lo com uma obrigação que pudesse lhe ser incômoda, mas... se vai a Hungerford, se importaria de me trazer umas cem gramas de cloreto
de amônia, meio litro de espírito de vinho e um pouco de pomada de espermacete?

Sylvester rompeu a rir.

— Certamente, senhorita Marlow! Como não! Está segura de que não precisa nada mais?

— Não, nada mais — replicou ela, muito séria —. A senhora Scaling tem muito vinagre. E se você não encontrar a pomada, me dará um pouco de gordura de porco. Ainda
que não esteja segura de que tenha salsa. É para pôr na pata dianteira de Trusty— explicou ao ver que Sylvester seguia achando tudo aquilo muito engraçado —. A tem
muito magoada; suponho que o pobre True lhe deu um coice quando tentava sair da vala.

— Eu me encarregarei disso, senhorita — interveio Keighley, interessado —. Está muito vermelha— Terá que limpá-la bem com água quente antes de lhe aplicar o unguento.

— Sim, já o fiz várias vezes, e também o jarrete de True. Ficaria muito agradecida se quisesse dar uma olhada, Keighley, e que me dissesse se acha que devo lhe aplicar
uma cataplasma de farelo de trigo esta noite.

— Presta toda a ajuda que precise à senhorita Marlow, John, mas antes atrele os cavalos — interrompeu-os Sylvester —. Ocupe-se de que o fogo esteja aceso em nossos
quartos, peça o jantar e um salão privado... Não, não acho que o tenha numa casa tão pequena; será melhor que digas à hospedeira que alugarei esta habitação. Não
incomodes o senhor Orde, e tem preparado um caneco de ponche para quando eu regressar. E não deixes que a senhorita Marlow te faça passar muito tempo no estábulo,
não vá se resfriar.

Com essas palavras de despedida, partiu seguido de perto por Keighley, que não deixou de censurá-lo até que o duque se dispôs a subir ao cabriolé.

— Maldito seja, John! Disse que não! — sentenciou Sylvester —. Ficarás aqui cuidando do teu resfriado. Por que não me disseste que estavas doente, estúpido? Teria
podido levar a Swale e tu nos terias seguido no cupé.

Pareceu um pouco contrito, mas a Keighley lhe horrorizava tanto a ideia de ceder seu posto a Swale que não se fixou na surpreendente e incomum solicitação de seu
amo. Enquanto o cocheiro recusou aquela desafortunada sugestão nuns termos muito pouco conformes com sua posição, Sylvester já tinha montado no cabriolé e tinha
posto a andar aos cavalos. A seu lado, Will Scaling, um rapaz grande e desajeitado de caráter afável, esboçou um amplo sorriso e acomodou-se no assento disposto
a desfrutar de um passeio de carro.

Capítulo 9

Quando Sylvester voltou ao Blue Boar eram quase oito horas, e Phoebe levava uma hora imaginando um acidente como o que tinha sofrido Tom e lamentando ter enviado
o duque como moço de recados. Quando por fim chegou, Sylvester a pegou desprevenida, pois a neve amortecia o ruído dos cascos dos cavalos e além disso o duque guardou
o cabriolé diretamente no estábulo e entrou na casa pela porta traseira. Phoebe ouviu uns passos rápidos no corredor e ao levantar a cabeça viu-o de pé na soleira
do salãozinho. Ainda não tinha tirado o longo sobretudo, que estava muito molhado e coberto de neve.

— Ah, voltou são e salvo! — exclamou Phoebe, sobressaltada —. Estava tão preocupada! Temia que tivesse sofrido um acidente. Trouxe o médico, senhor?

— Sim, sim, trouxe-o. Chegará em seguida; adiantei-me. Acenderam o fogo em seu dormitório, senhorita Marlow?

— Sim, mas...

— Então, sugiro que se retire para ali até que o médico tenha partido. Não mencionei sua presença, pois ainda que a patroa tenha acreditado na história dos dois
irmãos, é muito provável que um médico de Hungerford reconhecesse a algum dos dois. Estará de acordo comigo em que quanta menos gente se inteire desta sua aventura,
melhor.

— Não acho que nos conheça — replicou ela com um sangue frio que o duque julgou um tanto indecoroso —. No entanto, suponho que tenha razão, senhor. Mas, já que não
vou ver ao médico, quererá acompanhá-lo para ver Tom, por favor, e se inteirar do que temos de fazer por ele?

— Pedi a Keighley que o faça. Ele entende bem mais que eu dessas matérias. Ademais, desejo tirar esta roupa molhada. Já ceou?

— Não — respondeu Phoebe —. Mas comi uma rabanada de pão com manteiga quando você partiu.

— Santo Deus! Por que não pediu o jantar se tinha fome? — disse o duque, impaciente.

— Porque ordenou que não o servissem antes do seu regresso. A senhora Scaling só tem uma filha que a ajuda, assim não podia preparar dois jantares. De fato, está
muito nervosa desde que se inteirou de quem é você, porque, como é lógico, não está acostumada a alojar a duques em seu estabelecimento.

— Confio em que isso não signifique que nos vão servir um jantar intragável.

— Não, não! Pelo contrário! O jantar será esplêndido— assegurou-lhe Phoebe.

— Alegra-me sabê-lo — disse Sylvester sorrindo —. Tenho tanta fome que comeria um boi inteiro. Fique aqui até que ouça subir Keighley com o médico, e então se meta
em seu quarto. Suponho que, por cortesia, devo oferecer a esse homem um copo de ponche antes que parta de novo a Hungerford, mas me livrarei dele tão cedo possa.

Saudou com a cabeça a Phoebe e saiu, deixando-a com uma sensação mistura de ressentimento por sua autoritária atitude e de alívio porque a tinha livrado de ao menos
parte de seu ônus de responsabilidade.

Quando o médico saiu do quarto de Tom, Phoebe foi ver o seu amigo. Chamou à porta com uma batidinha, Tom disse-lhe que entrasse e Phoebe o encontrou na cama, muito
recuperado graças a seu longo sono, mas muito preocupado pelo aperto em que se encontrava Phoebe, por sua própria situação e pelos cavalos de seu pai. A jovem tranquilizou-o
com respeito aos cavalos e, com respeito a si mesma, assegurou que como não era provável que tivessem podido chegar a Reading, dava no mesmo estar no Blue Boar que
em qualquer pousada de Newbury.

— Sim, mas o duque... — objetou Tom —. Que situação tão embaraçosa! E isso que lhe estou muito agradecido, não obstante...

— Bom, não temos mais remédio que o suportar. Seu criado do estábulo é uma pessoa encantadora. Pôs um cataplasma na pata dianteira de Trusty, e afirma que se mantivermos
a ferida bem untada com pomada de espermacete até que se cure do todo, não lhe ficará nenhum sinal.

— Espero que tenha razão! — disse Tom.

— Asseguro que sim.

Então Phoebe recordou que os cavalos não tinham sido as únicas vítimas do acidente e perguntou a Tom por sua perna.

O jovem agradeceu seu sincero ainda que tardio interesse, mas disse que o médico não a tinha tocado e se tinha limitado a lhe aplicar um creme para reduzir a inflamação
e atar a perna com uma prancha nova e não tão rudimentar.

— O ruim é que assegura que devo ficar na cama ao menos uma semana. E depois não estarei em condições de te levar a Londres. Jamais achei que pudesse ser tão tonto
para virar assim! Sinto-o muitíssimo, ainda que não sirva de nada. Que vamos fazer?

— Por enquanto nada. Segue nevando, e não me estranharia que amanhã pela manhã nos encontrássemos isolados.

— Mas e o duque?

— Bom, ao menos não me dá medo — disse Phoebe depois de refletir um instante —. E tenho de reconhecer que ainda que não aprove sua conduta, porque pelo visto acha
que pode conseguir o que quiser, teve muitos incômodos por nós. Imagina, Tom! Acenderam a lareira em meu dormitório! Isso é algo que lady Marlow nunca permite em
casa, salvo quando estou doente. Depois disse que precisava de um salão privado, assim alugaria o salãozinho, suponho que nem se perguntou se isso podia ser inconveniente
à senhora Scaling; e ela não se atreveu a reclamar, é claro, porque desde que se inteirou de que é duque está muito deslumbrada e, se ele quisesse, lhe daria a casa
inteira.

— Suponho que lhe pagará generosamente; além disso, quem iria vir aqui numa noite como esta? — Vais cear com ele? Será desagradável?

— Bom, suponho que me sentirei um pouco incômoda — reconheceu a jovem —. Sobretudo se perguntar-me por que decidi partir para Londres. Mas talvez não me pergunte,
porque ainda deve de estar zangado comigo.

— Zangado contigo? Por quê? — perguntou Tom —. Não me pareceu que lhe importasse o mínimo que tivesses fugido.

— Não, não me refiro a isso. É que nos brigamos, sabes? Podes acreditar? Pretendia enviar o pobre Keighley para buscar o médico. Isso me alterou tanto que não o
pude suportar, e... bom, brigamos. Ao final foi o duque, de maneira que não me importa. De fato... acrescentou, pensativa —, alegro-me, porque antes de discutir
com ele estava muito tímida e não há nada como discutir com alguém para se sentir mais à vontade.

— Estás me dizendo que o enviaste para buscar o médico? — perguntou perplexo, Tom, que não compartilhava essa visão filosófica do assunto.

— Sim, por que não?

— Deus meu, é o cúmulo. Como se fosse um João ninguém! És incrível, Phoebe. Não acho que te proponha casamento depois de como o tratas-te.

— Pois muito melhor. Ainda que ache que não pensava me propor casamento. Que estranho! Custa-me entender por que foi a Austerby.

Keighley, que entrou com uma bandeja cheia a transbordar, interrompeu essas especulações. Como nem a lesão nem os goles de licor tinham reduzido o apetite de Tom,
este perdeu temporariamente interesse em qualquer outro problema que não fosse averiguar o que se escondia embaixo dos diversos panos que cobriam a bandeja. Keighley
deixou-a na mesinha que tinha junto à cama, lhe perguntou com tom paternal se tinha fome, e ao responder Tom que sim, sorriu com benevolência e disse:

— Assim que gosto! Agora, fique quieto, senhor, e me permita arrumá-lo para que possa comer. Em quanto a você, senhorita, o jantar está servido embaixo, e sua excelência
está a esperando.

Obedecendo a amável mas firme sugestão de Keighley, Phoebe retirou-se prometendo a Tom, em resposta à ordem um tanto peremptória deste, que voltaria tão cedo tivesse
terminado de cear. De repente, Tom sentia-se assaltado pela apreensão. Phoebe era demasiado inocente e sincera para ver alguma coisa de equívoco na situação; ele,
ao contrário, era muito consciente de sua impropriedade, e sentia que devia vigiar a sua amiga. Sylvester tinha-lhe parecido uma boa pessoa, mas na realidade não
o conhecia: existia a possibilidade de que fosse um leviano empedernido e, se fosse assim, Phoebe podia se ver numa situação muito desagradável, a sozinha com o
duque no salãozinho enquanto seu suposto protetor jazia impedido no melhor dormitório da casa.

Tom ignorava que Sylvester não se sentia nada inclinado ao flerte. Estava cansado e faminto, e começava a lamentar o impulso que lhe tinha feito se deter no Blue
Boar. Ser cúmplice de uma fuga era uma conduta muito pouco apropriada para um cavalheiro de sua situação; ademais, expunha-se a que o censurassem, e o fato de que
estivesse justificado não o ajudava a relevar a crítica. Olhava absorto o fogo, com o cenho franzido, quando Phoebe entrou na sala; ainda que levantasse a cabeça
e visse, a expressão carrancuda não desapareceu de imediato.

A jovem interpretou esta expressão como uma crítica a sua roupa, porque ainda levava o traje de viagem. Ele, ao contrário, tinha mudado as calças de camurça e o
casaco e tinha posto uns calções justos e uma jaqueta de abas longas de tecido azul céu, além de uma gravata limpa. Era um traje diurno, mas Phoebe sentiu-se desalinhada.
Desconcertada, pôs-se a explicar ao duque que não tinha mudado de roupa porque teria que sair de novo ao estábulo.

Sylvester não se tinha fixado na roupa que Phoebe levava, assim replicou com um tom indiferente, que sempre conseguia surpreendê-la:

— Querida senhorita Marlow, que eu saiba não há nenhuma necessidade de que mude de vestido e menos ainda de que volte a ir ao estábulo.

— Gostaria de comprovar que Trusty não tirou o cataplasma — disse ela com firmeza —. Não confio em absoluto em Will Scaling.

— Mas pode confiar plenamente em Keighley.

Phoebe não o contradisse, pois ainda que achasse que Keighley, que tinha começado a tossir, não devia sair da casa, também não desejava reiniciar uma discussão quando
estava a ponto de se sentar para cear com Sylvester. Olhou-o com vacilação e viu que o cenho tinha deixado lugar a um olhar de regozijo. Phoebe, que não suspeitava
que sua cara refletia com toda exatidão seus pensamentos, nem que o duque tinha interpretado corretamente as mudanças de expressão que apareciam nela, se surpreendeu
e lhe lançou um olhar de dúvida, levantando um pouco a cabeça.

Ao duque recordou-lhe a um passarinho, e rindo-se disse:

— Parece você... um pardal! Sim, sei exatamente que está se perguntando se deve ou não dizê-lo. Como queira, senhorita Marlow: irei dar uma olhada nos cavalos antes
de deitar-me, e se vejo que esse Trusty comeu o cataplasma, me ocuparei de lhe pôr um novo.

— Sabe você preparar uma cataplasma de sálvia? — perguntou ela, cética.

— Melhor que você, com toda probabilidade. Não, em geral não as aplico eu mesmo, mas acho que é uma máxima excelente a que reza que todo homem deve saber mais que
seus criados das cocheiras e ser capaz de solucionar qualquer problema que possa surgir em seus estábulos. Quando era menino, o ferreiro era um de meus mais íntimos
amigos.

— Tem ferreiro próprio? — perguntou Phoebe, intrigada —. Meu pai não, e é algo que sempre gostei. Mas com essa roupa não poderá preparar uma cataplasma.

— Sou capaz de fazer qualquer coisa para não a contrariar — assegurou-lhe o duque —. Desse modo contrariarei a Keighley, é claro, mas não importa. E isso me recorda
que tenho algo que lhe dizer. Tenho visto que as dependências dos criados desta casa não são do tipo a que Keighley está acostumado; de fato, só há um quarto onde
dorme o criado das cocheiras, e é muito frio, porque se acha em cima desse desmantelado estábulo. Estou convencido de que você convirá comigo em que não podemos
alojar ali a meu cocheiro, e espero que não lhe moleste o arranjo que dispus, que consiste em que a filha da senhora Scaling ceda seu quarto a Keighley e que ela
durma num catre no chão com você.

— Por que não dorme no quarto de sua mãe? — objetou Phoebe, a quem não agradava nada aquela nova mostra de autoritarismo do duque.

— Porque não há espaço suficiente — respondeu Sylvester.

— E por que não compartilha Keighley o quarto com Will Scaling?

— Porque dá-lhe medo.

— Bobagem! Esse rapaz é inofensivo!

— Keighley não gosta dos retardados mentais.

— Nesse caso, por que não lhe permite dormir num catre no mesmo quarto que você?

— Porque seguramente me passaria o resfriado — explicou Sylvester.

Phoebe suspirou com desdém, mas a resposta de Sylvester deve ter lhe parecido razoável, porque não replicou. Então os interrompeu a senhorita Alice Scaling, que
levava uma bandeja cheia de pratos tampados. Era uma rapariga robusta, com as faces coradas e um amplo sorriso; depois de deixar a bandeja no aparador, deteve-se
um momento para recobrar o fôlego antes de fazer uma reverência a Sylvester e recitar:

— Saudações de minha mãe, e aqui tem frango, coelho estofado, um guisado de arroz com miúdos, coalhada e panquecas de maçã, e se a sua senhoria preferir provar o
pastel de cordeiro que vamos comer minha mãe, Will e eu. — Um sussurro de reprovação proveniente do corredor a fez corrigir-se —: E sua excelência me diga se lhe
apetece. Sobrou um pouco e estava muito saboroso — acrescentou confidencialmente.

— Obrigado, não o duvido — respondeu ele —. Mas acho que não será necessário.

— Se mudar de ideia, não tem mais que o dizer — disse a senhorita Scaling deixando os pratos na mesa com agrado —. E não se preocupe com manhã, que não lhe faltará
comida: vamos preparar-lhe um peru fervido. O matarei a primeira hora, e tão cedo esteja depenado e limpo, o meteremos na panela. Assim não ficará duro — explicou
—. Não pensávamos matá-lo, mas minha mãe diz que um duque é mais importante que um peru, ainda que se trate de um dos mais jovens. E depois nós comeremos o porco
do senhor Shap, e ainda ficarão os pés, a cabeça, o lombo, as entranhas e o resto, senhoria. Ai, não! Excelência! Sempre me equivoco! — disse a rapariga, sorridente.

— Não me importa como me chame, mas lhe rogo que não mate esse peru por mim — disse o duque lançando um olhar de reprovação a Phoebe, que mal podia conter o riso.

— Que importância tem um peru? — disse a senhorita Scaling com generosidade —. Não sei quando conseguiremos outro, mas não se aloja em sua casa a um duque todos
os dias. Isso diz minha mãe.

Depois de pronunciar essa sentença, retirou-se e fechou a porta com suficiente energia para afogar a incontrolada gargalhada de Phoebe.

— Você é muito mal educada! — observou Sylvester —. Não sabe que não está bem se rir dos camponeses?

— Rio-me da cara que fez quando lhe disse que é mais importante que um peru — esclareceu Phoebe secando as lágrimas —. Tinham-lhe dito alguma vez?

— Não, nunca. E considero-o um agradável elogio. Mas não quero que matem o peru.

— Bah, só tem que lhes dar dinheiro para que comprem outro e ficarão muito contente.

— Jamais comeria um peru que tivessem metido na panela estando ainda quente — objetou o duque —. O que são as entranhas?

— As tripas do porco — explicou Phoebe, e voltou a rir.

— Santo céu! Deus queira que deixe de nevar antes que cheguemos a esse extremo. Enquanto isso, quer que trinche estes frangos, ou prefere fazê-lo você?

— Ah, não! Faça-o você, por favor — respondeu Phoebe enquanto sentava-se à mesa —. Não imagina quão faminta que estou.

— Sim imagino, porque também tenho uma fome feroz. Pergunto-me por que falta meio frango. Ah, suponho que o terão levado a Orde. Como está, na verdade?

— Parece que se recupera bem, mas o médico disse que deve permanecer uma semana na cama. Não sei o que inventarei para impedir que se levante, porque vai se aborrecer
muito.

O duque deu-lhe a razão, mas pensou que Tom não seria o único a morrer de aborrecimento se prolongava a estadia na pousada.

Falaram pouco durante o jantar, porque Sylvester estava cansado e Phoebe não queria tocar em nenhum tema de conversa que pudesse levar ao duque a lhe fazer perguntas
embaraçosas. Sylvester não lhe perguntou nada, mas a aventura da jovem lhe interessava mais do que ela supunha. Entre a neve e a perna rompida de Tom, parecia provável
que se vissem obrigados a permanecer no Blue Boar durante algum tempo. Sylvester tinha tomado medidas para conferir certo decoro à situação de Phoebe, mas estava
convencido de que sua obrigação como homem de mundo era fazer o que estivesse em sua mão para frustrar aquela fuga. Os perigos de uma aventura clandestina como aquela
talvez não fossem evidentes para um jovem de dezenove anos criado no campo, mas Sylvester, que era oito anos mais velho que Tom, estava plenamente consciente deles.

Supôs que o mínimo que podia fazer era os explicar a Tom. Não tinha intenção de falar desse assunto com Phoebe: em qualquer circunstância teria sido uma tarefa incômoda,
mas conhecendo à rapariga, seguramente também inútil, pois a despreocupação com que enfrentava o fato de que a tivessem descoberto fugindo apontava para um caráter
especialmente descarado.

Quando terminaram de cear, Phoebe foi ao quarto de Tom, que tinha estado refletindo sobre o aperto em que se encontravam.

— Recordas de que falávamos quando Keighley me trouxe o jantar? De que o duque não pensava te propor casamento. Pois bem, se esse é o caso, Phoebe, não precisas
que vás a Londres. Que tolos fomos! Como não o pensamos antes? Estava espremendo os miolos para encontrar a maneira de levá-la até lá!

— Não me tinha ocorrido. Mas ainda que o duque não seja um perigo, estou decidida a ir a casa de minha avó. Não se trata só de que tenha medo de minha madrasta,
Tom (ainda que quando imagino o quão furiosa que se porá comigo por ter fugido, tremo de pavor); é também que... agora que escapei, não posso, não quero voltar.
Meu pai também não me quer muito, pelo menos não o suficiente para me apoiar quando lhe supliquei que o fizesse. Quando me assegurou que se não aceitasse a proposta
de Salford contaria tudo a minha madrasta, me senti liberada de todos os meus laços com ele.

— Mas não estás liberada, Phoebe. És menor de idade, e é teu pai. Tua avó não tem nenhuma autoridade para te proteger de sua vontade.

— Ah, não! E talvez, se meu pai desejasse para valer que regressasse a Austerby, deveria voltar voluntariamente. Mas não o deseja. Se convencer a minha avó para
que me deixe ficar com ela, acho que meu pai se alegrará tanto como minha madrasta de se livrar de mim. Na realidade não se importa que eu não viva em Austerby;
só sentirá um pouco a minha falta quando não estiver para vigiar as cocheiras e se dê conta de que não pode se fiar em Sawley.

Tom não soube o que replicar. Tinha-lhe parecido razoável que sua amiga tivesse fugido de casa ante a perspectiva de um casamento não desejado; mas que partisse
só porque não era feliz ali o desconcertava um pouco e não o aprovava. Por outro lado, era consciente da desgraçada Phoebe seria se a obrigassem a voltar a Austerby
após semelhante escândalo, e lhe tinha demasiado afeto como para não dar-lhe a toda a ajuda que fosse capaz.

— Que posso fazer por ti, Phoebe? — disse por fim —. Estraguei tudo, mas se há algo que possa fazer, te prometo que o farei.

— Não estragaste nada: foi por culpa desse maldito burro — disse ela sorrindo com afeto —. Talvez, não nos descubram antes que possas te valer por ti mesmo, poderia
ir a Londres na diligência e tu poderias me pagar o bilhete. Mas por enquanto não penso ir a nenhum lugar.

— Não, enquanto siga nevando. E além disso...

— Além disso espero que não penses que seria capaz de te deixar aqui neste estado. Não sou tão malvada. Anima-te, Tom. Me arranjarei, verás. Talvez, quando partir
o duque (porque suponho que partirá assim que possa), lhe pedirei que leve uma carta a minha avó.

— Disse-lhe algo, Phoebe? Refiro-me porque fugiste? Perguntou de repente Tom.

— Não, não me perguntou nada. Verdade que é uma sorte...

— Não sei. Parece-me que... Bom, a ele deve parecer sumamente estranho. Que passou em Austerby quando descobriram que tinhas fugido? Também não o mencionou?

— Não, nem o perguntei.

— Céus! Espero que não pense... Phoebe, disse para que ele me venha ver?

— Não. Por quê? Queres que venha? Queres que o vá chamar? A menos que tenha ido ver a Trusty: prometeu-me que o faria e lhe poria um cataplasma novo se fosse necessário.

— Phoebe! O que você pensa? tratá-lo como se fosse um lacaio!

Phoebe não pôde evitar se rir.

— É sério— Suponho que isso lhe faria bem; mas não lhe pedi que vá se ocupar dos cavalos. Ofereceu-se voluntariamente, o que também me surpreendeu. Para que queres
falar com ele?

— Isso é assunto meu. Keighley virá antes de deitar-se e lhe pedirei que leve uma mensagem ao duque. Não quero que voltes a descer, de acordo, Phoebe?

— Não o farei. Vou deitar-me — disse ela —. Tenho tanto sonho que me fecham os olhos. Sabes que... Esse homem detestável pediu a Alice Scaling que ceda seu dormitório
a Keighley e que ela durma num catre em meu quarto. Sem pedir-me sequer permissão e só porque é demasiado orgulhoso para que seu criado durma num catre no dormitório
do duque. Assegura que é para que não lhe contagie o resfriado, mas não o creio.

— Eu também não. Deus meu, que boba és! Vá para cama! E sobretudo, Phoebe, mostra-te educada com o duque na próxima vez que o vejas.

Phoebe teve ocasião de obedecer a essa ordem antes do que Tom esperava, porque nesse momento Sylvester entrou no quarto.

— Posso entrar? Como se encontra, Orde? Dá-me a impressão de que tem melhor aspecto.

— Sim, entre, por favor! — disse Phoebe adiantando-se a Tom —. Meu amigo queria vê-lo. Foi já ao estábulo?

— Sim, senhorita Marlow, e pode se deitar tranquila. Trusty não tentou tirar o cataplasma. Seu colega ainda tem o jarrete um pouco inflamado, mas não parece preocupante.

— Muito obrigado — disse a jovem.

— Também eu lhe estou muito agradecido, senhor — interveio Tom —. Foi muito amável ter tantos incômodos por nós. Não sei como lhe agradecer.

— Já lhe agradeci — disse Phoebe, que ao que parecia julgava que era exagerado seguir oferecendo ao duque mostras de gratidão.

— Sim, claro. Bom, deves deitar-te — disse Tom dirigindo-lhe um eloquente olhar a Phoebe —. Dá boa noite a sua excelência e vai para cama.

— Sim, avô! — disse Phoebe sem poder conter-se —. Boa noite, senhor duque.

— Que durma bem, Pardal — replicou Sylvester abrindo-lhe a porta.

Para alívio de Tom, Phoebe partiu sem cometer nenhuma outra incorreção. Enquanto Sylvester fechava a porta, o jovem respirou fundo e disse:

— Senhor duque, acho que você merece que...

— Chame-me Salford — interrompeu-o Sylvester —. Submeteu-lhe o curandeiro a mais torturas? Espero que não. Disse-me que Keighley tinha feito todo o necessário.

— Não, não, só me pôs um creme na perna e voltou a atá-la. E isso me recorda algo. Lamento profundamente que tivesse que sair para buscá-lo com este tempo, senhor.
Surpreendeu-me muito quando me inteirei. Ah, e deve de ter pago também os honorários do médico, porque a mim não me pediu que pagasse a visita. Se tiver a amabilidade
de dizer-me quanto...

— Não se preocupe, lhe direi — prometeu Sylvester; acercou uma cadeira à cama e sentou-se —. Na verdade, terá que limpar esse jarrete com água quente um par de dias
a mais, mas a ferida se curará. Bonito par de cavalos, pelo que pude ver à luz do lampião.

— Meu pai comprou-os no ano passado. São animais de primeira. Não sabe quanto sinto o que lhes aconteceu.

— Acho que imagino. É muito severo seu pai?

— Não, não, é muito boa pessoa, mas...

— Entendo — disse Sylvester, compreensivo —. Meu pai também era muito boa pessoa, mas...

— Deve pensar que sou um inepto — disse Tom sorrindo —. Mas se esse condenado burro não tivesse zurrado... Enfim, agora já é tarde para lamentações: meu pai dirá
que fiz mal e o pior é que acho que é verdade. E não sei que teria sido de mim se não tivesse vindo me resgatar, senhor.

— A quem tem que estar agradecido é a Keighley— esclareceu Sylvester —. Eu não teria sabido pôr no lugar a perna rompida.

— Não, mas foi você quem saiu em busca de Upsall. E há algo mais. — Vacilou um momento, olhou com timidez a Sylvester e corou ligeiramente —. Phoebe não o entendeu,
porque não está a par destas coisas, mas eu sim, e... Quero agradecer-lhe pelo que fez por ela. Refiro-me a ter mandado a essa rapariga dormir com ela. Não sei se
terá percebido ou se... Bom, senhor, o caso é que... Em vista da confusão em que nos metemos, acha que devo me casar com ela?

Até esse momento, Sylvester tinha estado observando-o com expressão risonha, mas ao ouvir aquela ingênua pergunta, franziu o cenho e perguntou:

— Mas não é essa sua intenção?

— Não, claro que não! Isto é, não era minha intenção até que viramos. Mas agora que estamos presos aqui, talvez devesse, por minha honra... Ainda que esteja convencido
de que Phoebe não irá querer se casar comigo, então, o que faremos?

— Se não estavam fugindo, que faziam? — perguntou-lhe o duque.

— Já supunha que você pensaria isso, senhor.

— É lógico. E não sou a única pessoa que o pensa — disse Sylvester —. Quando parti de Austerby, o fiz porque Marlow já tinha partido para a fronteira a sua procura.

— Não! — exclamou Tom —. Que tolo! Se achou que Phoebe tinha fugido comigo, por que diabos não foi perguntar por mim em minha casa? Minha mãe lhe teria explicado
que não passava nada.

— Só posso dizer que não me pareceu que sua mãe o tivesse entendido assim — disse Sylvester com aspereza —. Na verdade foi ela que se apresentou em Austerby, com
a carta que você lhe tinha escrito. Não sei com exatidão o que dizia nessa nota, mas lhe asseguro que não a convenceu de que não ocorria nada. Deixou-a num estado
de profunda ansiedade, e não acho que fosse capaz de repetir o que disse a lady Marlow.

— Deu-lhe uma reprimenda? — perguntou Tom, interessado —. Mas minha mãe não podia pensar que tinha fugido com Phoebe! Na nota que lhe deixei, dei muito ênfase em
que não tinha por que se inquietar. Não me surpreende que lord Marlow se preocupasse, mas minha mãe sim.

— Ao contrário. Lord Marlow não tomou a sério essa sugestão até que uma de suas filhas pequenas deu seu depoimento. Não recordo como se chama: uma colegial muito
melindrosa cuja devoção pareceu-me nauseante.

— Eliza — disse Tom no mesmo instante —. Mas se ela não sabia de nada! A não ser que estivesse escutando-nos por trás da porta, e então devia saber que não tínhamos
intenção de ir à fronteira.

— Isso é, escutou a conversa, mas fez questão de dizer que tinha ouvido que se iam casar em Gretna Green.

Tom franziu a fronte e tentou recordar.

— Sim, talvez o dissesse, porque não se me ocorria nenhuma outra forma de sair do aperto. Mas Phoebe tinha um plano muito melhor, que me alegrei infinitamente de
ouvir. Tenho muitíssimo carinho a Phoebe (desde que era uma criança, Austerby sempre foi minha segunda casa, e ela é como minha irmã), mas lhe asseguro que não quero
me casar com ela. O caso é que prometi ajudá-la e a única coisa que me ocorreu era me casar com ela.

— Ajudá-la a que? — interrompeu-o Sylvester, desconcertado.

— A fugir de Austerby. Assim que...

— Não reprovaria a ninguém que quisesse partir dali, mas por que demônios elegeu tão mau momento? Não sabia que ia nevar?

— Sim, claro que sim, senhor, mas não tinha alternativa. A necessidade era urgente, ou ao menos Phoebe assim o acreditava. Se eu não tivesse passado para pegá-la,
estava decidida a ir sozinha a Londres na diligência.

— Mas por quê?

Tom vacilou e analisou o rosto de Sylvester.

— Não tema, não lhe vou fazer nada — animou-o o duque.

Tom compôs um sorriso e, num arrebatamento de confiança, disse:

— Veja, a verdade é que foi uma confusão tremenda, mas lady Marlow disse a Phoebe que você ia a Austerby para lhe propor casamento. Confesso-lhe que me pareceu improvável,
mas ao que parece lord Marlow também pensava o mesmo, assim não podemos recriminar a Phoebe que o acreditasse, nem que fosse presa de desespero.

— Está me dizendo que minha proposta não teria sido do agrado de Phoebe?

— Claro que não! Disse que não se casaria com você por nada do mundo. Mas suponho que já terá visto como tratam os assuntos naquela casa: se você tivesse tido intenção
de pedir a mão de Phoebe, lady Marlow a teria obrigado a se casar com você. A única coisa que podia fazer a pobrezinha era fugir dali. — Interrompeu-se, consciente
de que tinha falado mais da conta. Os olhos de Sylvester tinham uma expressão estranha, difícil de interpretar, mas muito inquietante —. Já sabe como são as mulheres,
senhor — acrescentou numa tentativa de sair do atoleiro —. Foi uma tolice, é claro, porque Phoebe mal o conhecia. Espero que... Ai, já vejo que não deveria ter falado!

— Por que diz isso? — perguntou Sylvester, e voltou a sorrir.

Capítulo 10

A Tom aliviou-o ver esse sorriso no rosto do duque, mas não estava tranquilo do todo.

— Rogo-lhe que me desculpe! — insistiu —. Pensei que não se importaria que lhe explicasse o que tinha acontecido, já que não pensava em propor casamento a Phoebe.
E não pensa em fazê-lo, não é verdade?

— Não, claro que não. Mas que fiz para desagradar tanto à senhorita Marlow?

— Não o sei. Suponho que nada — disse Tom, envergonhado —. Talvez não seja o seu tipo, simplesmente.

— Não parece que sejamos feitos o um para o outro, certamente. Na verdade, aonde pensava levá-la?

— A casa de sua avó, que vive em Londres. Phoebe está convencida de que a apoiará, ou de que a teria apoiado, se tivesse sido necessário.

— Refere-se a lady Ingham? — perguntou Sylvester olhando Tom nos olhos.

— Sim. Sua outra avó morreu faz anos. Conhece lady Ingham, senhor?

— Sim, claro — respondeu Sylvester, risonho —. É minha madrinha.

— Sério? Então a conhecerá bem. Acha que permitirá que Phoebe fique com ela? Phoebe está convencida, mas não estou tão seguro. Talvez se escandalize quando se inteirar
de que fugiu de sua casa, e a obrigue a voltar. Que acha senhor?

— Não o sei. Dou-me conta de que a senhorita Marlow pensa em seguir adiante com seu plano, ainda que já não exista a ameaça de minha proposta, não?

— Sim, isso que temo. Sugeri-lhe que já não precisa viajar a Londres, mas se empenha em ir de todas as formas, e acho que assim o fará. Espero que sua avó a receba
com amabilidade. Veja senhor, lady Marlow é uma mulher desapiedada, e de nada serve pensar que lord Marlow protegerá Phoebe, porque não o fará. Phoebe sabe que seu
pai não a vai ajudar (bom, ele mesmo lhe disse, quando ela lhe suplicou que a defendesse), e agora assegura que não quer voltar a Austerby por nada do mundo. Que
podemos fazer? Ainda que amanhã a neve derreta, vejo-me impossibilitado para acompanhá-la e sei que não devo deixá-la ir a Londres sozinha. Mas se essa detestável
mulher encontra-a aqui, Phoebe estará em apuros.

— Não se preocupe tanto, sir Galahad. Não existe perigo iminente, e antes que o tenha, estou seguro de que terá encontrado a solução ao problema. Ou talvez eu a
encontre.

— Como?

— Veja, tenho um cupé que partiu ontem de Austerby. Dei ordens no Bear de

Hungerford para que quando chegasse ali, meus criados o tragam a até esta pousada. Dadas as circunstâncias, será um prazer para mim acompanhar a senhorita Marlow
a casa de sua avó.

— É verdade que o faria? — exclamou Tom ao mesmo tempo em que iluminava--lhe o rosto —. Isso seria precisamente... Bom, supondo que Phoebe queira ir com você!

— Lhe suplico que não se preocupe pela possibilidade de que se negue a me acompanhar. O melhor que pode fazer agora é tentar dormir. Espero que não esteja demasiado
incomodado.

— Não, não. O doutor Upsall deixou-me um remédio para que eu beba. É xarope de papoula, ou algo parecido. Suponho que dormirei como um anjo.

— Bom, mas se acordar e precisar de algo, dê umas pancadas na parede. Certamente que o ouvirei, porque tenho o sono leve. E nesse caso lhe enviarei Keighley. Boa
noite.

O duque saiu do dormitório sorridente, deixando a Tom imerso em novas reflexões. A mais destacada era sua determinação de passar a noite em claro antes de levantar
da cama a seu nobre vizinho de quarto. No entanto, graças a Keighley, que interpretou livremente as instruções do médico, cedo sucumbiu a uma generosa dose do narcótico
que este lhe tinha receitado, e dormiu toda a noite de uma única tirada. Teve sonhos aprazíveis, pois ainda que, quando Sylvester o deixou só, estivesse pensando
em tudo o que tinha revelado ao duque e desejado não ter dito a metade do que lhe tinha contado, não demorou em se convencer de que tinha deixado voar em excesso
sua imaginação ao observar algum perigo no estranho olhar de Sylvester. Quando considerou o assunto, não pôde recordar ter mencionado nada que pudesse enfurecer
a Sylvester. Tom, que era um rapaz modesto, não entendia as emoções de uma pessoa que sempre se tinha considerado muito notória.

No entanto, a descoberta de que Phoebe tinha decidido que o duque não era o tipo de homem com quem queria se casar enfureceu a Sylvester. Enquanto achava que a jovem
estava fugindo com seu verdadeiro amor, não lhe teve nenhum ressentimento; mas a perspectiva tinha mudado, e quanto mais pensava nisso, mais lhe doía a ferida de
sua auto-estima. Tinha eleito, entre as debutantes, a uma garota do campo, sem estilo nem beleza, e ela tinha cometido a impertinência de o recusar. Além disso,
o tinha feito de tal forma que o tinha posto em ridículo, o que o duque não podia perdoar facilmente. Tinha podido tolerá-lo quando supôs que estava apaixonada por
outro homem, mas ao se inteirar de que tinha fugido de sua casa — uma ação temerária que só um amor apaixonado por Tom podia de certa forma justificar — devido ao
temor a ver-se obrigada a aceitar a proposição ducal, não só não podia perdoá-la, como se apoderou dele um desejo irresistível de dar uma lição na senhorita Marlow.
Certamente logo teria uma desilusão se pensava que podia encontrar um pretendente com metade da importância dele, mas não se tratava disso. Phoebe tinha-o ferido
em algo mais importante que sua vaidade. O orgulho, o duque podia passá-lo por alto;

o que não podia admitir era saber que, ao que parece, Phoebe o achava repulsivo. Além disso, tinha cometido a insolência de criticá-lo, e não tinha tido escrúpulos
em lhe demonstrar que não o tinha em muita consideração. Que tinha dito Tom? Não se casaria com você por nada do mundo! “Que petulância, senhorita Marlow! — pensou
—. Não lhe vai apresentar essa oportunidade... Mas vejamos se posso fazer com que se arrependa!”

Sylvester dormiu enquanto ruminava esse pensamento vingativo; e como Tom não o chamou com pancadas na parede que separava seus respectivos quartos, não acordou até
que Keighley lhe levou o café da manhã, às dez em ponto da manhã. Então viu que seu leal servente não só tinha as pálpebras muito inchadas, como que também tinha
perdido a voz.

— Volte imediatamente para cama, John — ordenou-lhe —. Deus meu, estás muito mau. Deverias pôr uma cataplasma de mostarda no peito. Pede à senhora Scaling que te
faça um e te enfie na cama.

Keighley quis sussurrar algo para tranquilizar a seu amo, mas lhe impediu um acesso de tosse.

— Não sejas teimoso, John! Queres fazer-me responsável de tua morte? Vá deitar agora mesmo! E faça com que acendam o fogo em tua lareira! É uma ordem!

— Como vou meter na cama, excelência? — sussurrou Keighley —. Quem vai cuidar do senhor Orde?

— Ao diabo com o senhor Orde! Por que não se ocupa dele esse atrasado? Bom, se ele não pode, terei que me encarregar. Que há de fazer?

— Já prestei todo o cuidado que precisa por enquanto, excelência, e me ocupei dos cavalos, mas...

— Então não tens que te preocupar com nada mais, podes ir deitar. Não sejas estúpido, John! Se ficar muito ao lado dele, só conseguirás contagiá-lo com o teu resfriado.

— Já devo tê-lo contagiado— disse Keighley com voz rouca.

— É sério? Pois eu não quero enfermar, assim não voltes a aparecer por aqui até que te tenhas curado. — Ao ver que Keighley se debatia entre o desejo de se meter
na cama e a decisão de não abandonar seu posto, disse em tom ameaçador —: Se obrigas a levantar-me, te arrependerás, John!

Isso fez rir a Keighley, o que voltou a lhe dar um acesso de tosse que o deixou tão esgotado que não teve mais remédio que obedecer a seu amo.

Uma hora mais tarde, Sylvester, muito elegante em seu roupão de cor vermelha com brocados dourados, entrou na sala de Tom e disse alegremente:

— Bons dias, sir Galahad! Tenho entendido que Keighley o contagiou com o resfriado. Como está?— Dormiu bem?

— Sim, como um anjo. Obrigado, senhor. Em quanto ao resfriado, já que devo permanecer na cama, não me importa. Mas sinto muito por seu criado: está muito mau.

— Daqui a pouco o sentirá por si mesmo, porque mandei Keighley para cama, assim terá que suportar meus cuidados em lugar dos dele. Que posso fazer por você?

— Nada, por favor! — respondeu-lhe Tom, horrorizado —. Como vou permitir que me preste seus serviços?

— Na verdade é que não tem opção.

— Claro que sim! O garoto pode fazer o que precise senhor!

— Quem? Esse atrasado mental? Se considerar que isso é uma opção, lhe agradecerei que não me insulte, Thomas.

Isso fez rir a Tom, mas fez questão de que ao menos por enquanto não precisava nada, exceto talvez, especificou com um suspiro, algo para se distrair.

— Vai acontecer isso com todos nós porque segue nevando. Se a senhora Scaling não nos proporcionar uma baralho de cartas, não teremos mais remédio que jogar charadas
ou algo parecido. Gostaria de ler “O cavalheiro de St. John”?. Publicou-se no ano passado; é da mesma autora que “Os irmãos húngaros”. Irei pegá-lo.

Tom não era um grande leitor, mas quando Sylvester lhe levou o primeiro volume da última novela da senhorita Porter e disse “Não gosto tanto como “Dos irmãos húngaros”,
mas a história é muito divertida”, se deu conta de que não era um relato histórico, com tinha temido, mas um romance, e se sentiu muito aliviado. Agradeceu ao duque
e a seguir ocorreu-lhe perguntar se lia muitas novelas.

— Todas as que caem em minhas mãos. Por quê?

— Ah, não sei! Não me pareceu uma pessoa aficionada em romances.

— Ah, acreditava que porque minha mãe é poetisa preferiria a poesia? — retrucou Sylvester um tanto surpreendido —. Pois não, em absoluto.

— Sua mãe é poetisa? — perguntou Tom, assombrado.

— Sim. E asseguro-lhe que não lhe desagradam os romances. Compra todos os que publicam. Minha mãe é inválida, e a leitura é um grande bem-estar para ela.

— Oh!

— Devo ir ver a meus cavalos. Acho que a senhorita Marlow foi ao estábulo; deve estar massageando o cavalo. Espero que não se enfade comigo por me ter atrasado tanto.

Saiu para acabar de vestir-se; depois de deixar Keighley ao cuidado da senhora Scaling, foi buscar Phoebe. Ainda nevava muito, mas nas cocheiras tinha um braseiro
aceso. Phoebe, que tinha dado uma volta com True em sua cocheira e lhe tinha tirado a manta, o estava escovando energicamente.

— Bom dia! — saudou-a Sylvester. Tirou a jaqueta e arregaçou a camisa —. Deixe-me fazê-lo, senhorita Marlow. Como está esse jarrete?

— Acho que melhor. Voltei a dar-lhe massagens. Não acho que a Tom gostará que se ocupe de dos cavalos, senhor duque.

— Pois não lhe diga — replicou Sylvester, e tirou-lhe a escova das mãos —. Talvez Tom não me acredite capaz?

— Não, não é isso. Tem-lhe um profundo respeito e talvez não considere adequado que você o faça. Mas asseguro-lhe que em relação a outras coisas não é nada estúpido.

O sorriso que acompanhou esse comentário era tão inocente que Sylvester não teve mais remédio que rir. Phoebe ia começar a limpar Trusty com a escova, mas Sylvester
disse-lhe que tinha a saia cheia de pelos de True. Aconselhou-lhe que fosse mudar de vestido e que desse o que levava à Alice para que o escovasse, mas a jovem respondeu
que como só tinha outro vestido, que era de musselina, morreria de frio se o pusesse.

— Além disso, Alice foi dizer ao senhor Shap que precisaremos do seu porco. Ainda não está criado do todo, assim talvez não queira vendê-lo.

— Por quê?

— Porque dentro de um tempo lhe pagarão melhor. E também porque é possível que seja ranzinza.

— Como diz?

Phoebe, que estava sacudindo os pelos de cavalo da saia, levantou a cabeça piscando e disse:

— Acho que significa que não está de bom humor. Mas confio em que Alice consiga que lhe venda o porco, porque é uma rapariga muito corajosa.

— Certamente que vocês duas se dão à maravilha — comentou o duque dando a volta a True e tirando-lhe o resto dos cobertores.

Phoebe voltou a levantar a cabeça e a inclinou um pouco.

— Está insinuando que também sou corajosa? — Oh, equivoca-se!

— Ah, sim— Então digamos intrépida.

— Oxalá o fosse — disse Phoebe suspirando —. Mas na verdade é que sou uma covarde sem remédio.

— Seu pai não acha o mesmo de você.

— Bom, não me dão medo as valas.

— Então, o que lhe dá medo?

— As pessoas. Bom, algumas pessoas. E... que se portem mal comigo.

O duque olhou-a com o cenho franzido, mas antes que pudesse lhe pedir que lhe explicasse o que queria dizer, Alice os interrompeu, entrando no estábulo batendo com
os pés no solo para tirar a neve dos tamancos e em seguida por um idoso com muito poucos dentes mas de olhar astuto. A rapariga apresentou o indivíduo dizendo que
era um repugnante verme e revelou que não pensava em lhes vender seu porco até que demonstrassem que o ia comer um duque, e não um impostor disfarçado de duque.

Sylvester, muito assombrado, pois jamais tinha ninguém posto em dúvida suas credenciais, nem o tinham tomado por um impostor, disse:

— Não sei como o vou convencer, a não ser que lhe mostre um de meus cartões de visita.

Mas o senhor Shap recusou ao mesmo tempo em que informava aos presentes que não sabia ler. Pelo visto considerou-o um triunfo, porque se pôs a rir à gargalhadas.
Phoebe assegurou-lhe que Sylvester era duque, o senhor Shap lhe disse com amabilidade que lhe tinham tomado por tolo.

— Não acredite nesta desavergonhada, senhorita — disse apontado Alice com o polegar —. Tem um irmão que é como um bezerro com uma sineta e ela é uma palerma. Bá!

Então assentiu várias vezes com a cabeça, convencido de sua astúcia, e perguntou onde se viu um duque limpando ele mesmo seus cavalos. Mas Sylvester já tinha tirado
a carteira do bolso de sua jaqueta, e se limitou a dizer:

— Quanto quer?

O senhor Shap, sem vacilar nem um instante, disse uma cifra que arrancou um grito de horror a Alice. A rapariga suplicou a Sylvester que não se deixasse roubar por
um malvado usuário; mas Sylvester, que estava farto do senhor Shap, lhe pôs três soberanos na nodosa mão e lhe disse que partisse. Essa generosa conduta fez que
o senhor Shap duvidasse de se, afinal de contas, não seria verdadeiro que aquele indivíduo era um duque; e depois de advertir a Sylvester, com tom paternal, que
não deixasse que a viúva Scaling se aproveitasse dele, partiu mancando e, com sua voz rouca de idoso, disse a Will que fosse buscar o porco.

— Bom — disse Alice antes de seguir o senhor Shap —, não esperava menos mesquinhez desse indesejável, mas de algo pode estar seguro, senhor: agora sabe que é um
duque e contará a todo mundo. — Assentiu com a cabeça e, sem dissimular seu regozijo, acrescentou —: Agora virão todos à taberna para vê-lo com seus próprios olhos.
Não tinha acontecido nada parecido desde o dia que se alojou em nossa casa a menina de duas cabeças. Seu pai levava-a a Londres, a uma importante feira. Veio gente
de Hungerford, e também muita gente de Kintbury, e às dez já não tinha nem uma única gota de licor na casa.

A expressão de fascinação e horror com que Sylvester escutou essas ingênuas confidências superou a capacidade de Phoebe de conter o riso. Alice, rindo também, foi
supervisionar o translado do porco do senhor Shap. Sylvester perguntou, com certa aspereza, se a fascinação que provocava estava acima ou abaixo da do monstro de
feira.

— Abaixo, é claro! — respondeu Phoebe enxugando as lágrimas —. Porque você não tem nada de especial em si mesmo. A única coisa é que está fora de lugar. Asseguro
que se tivesse se hospedado no Pelican sua presença na região não teria levantado o menor interesse.

— Como gostaria que estivéssemos todos no Pelican! Pense quão diferentes seriam as coisas! Mas não, será melhor que não pensemos nisso.

— Eu não vou pensar — replicou Phoebe com jovialidade —. A mim o Pelican não me interessa em nada, na situação em que estou. Mas se Keighley encontrar-se melhor
amanhã, em seu lugar tentaria chegar a Speenhamland. Não pode estar muito longe.

— E abandoná-los a você e a Thomas? Se essa é a opinião que você tem de mim, compreendo que se mostrasse relutante em aceitar minhas propostas, senhorita Marlow.

Phoebe se ruborizou, pois ainda que Tom a tivesse prevenido de que tinha falado além da conta com o duque, ela tinha acreditado dada a atitude de Sylvester até esse
momento, que não se referiria àquele assunto.

— Senhor duque, claro que não... Bom, eu não estava... Isto é, foi tudo um estúpido mal entendido, não? — balbuciou.

Phoebe armou-se de coragem, olhou a Sylvester e viu que ele a observava com expressão zombeteira; parecia evidente que o duque estava desfrutando com a perturbação
da jovem. Mas justo quando Phoebe começava a sentir ressentimento, a malícia desapareceu do rosto do duque, e ela percebeu em que era verdade que possuía um sorriso
encantador. Isso a surpreendeu, porque nunca tinha visto um olhar tão sedutor, quando um instante antes não tinha nem sinal dele. Apesar a desconfiar desse olhar,
não pôde evitar abrandar-se.

— Sim, só foi um estúpido mal entendido — afirmou ele —. Quer que lhe prometa que não a cortejarei? — Estou disposto a dar-lhe minha palavra, se assim vai se sentir
mais cômoda.

Mas Phoebe só riu; levantou-se e assegurou que nesse sentido já não tinha nenhum temor. Então partiu, e Sylvester não voltou a vê-la até uma hora mais tarde no quarto
de Tom, onde Phoebe polia com um pedaço de lixa os palitos que Tom, habilmente, ia talhando de um pedaço de madeira que tinha pedido à senhora Scaling.

— Sabe jogar aos palitos chineses, senhor? — disse Tom levantando a cabeça e sorrindo —. Antes era invencível, e estou disposto a enfrentar a qualquer um que queira
desafiar-me.

— Não tenho medo — respondeu Sylvester, e ofereceu-lhe uma jarra de peltre —. Cerveja caseira, Thomas. O melhor que provamos aqui até agora! Talvez você seja mais
hábil que eu, mas lhe asseguro que estou mais treinado. A não ser que tenha irmãos e irmãs mais jovens que você, e neste caso talvez me custe um pouco a ganhar.

— Não, não tenho irmãos. E você?

— Não, mas joguei muito com meu sobrinho — respondeu Sylvester.

Então chamaram à porta, e Will Scaling perguntou se podia entrar. Sylvester voltou-se para abrir, assim que não viu a expressão de consternação que suas palavras
tinham provocado no rosto de seus jovens amigos. Quando o duque impediu que Will deixasse cair uma pesada bandeja sobre as pernas de Tom, o casal se tinha recuperado
já da comoção que lhes tinha causado descobrir que Sylvester tinha um sobrinho e puderam enfrentar seu despreocupado olhar com certa serenidade. Não tiveram ocasião
de comentar o assunto do sobrinho até o dia seguinte, porque Sylvester voltou com Phoebe ao quarto de Tom após o almoço e não saiu dali até que chegou a hora de
voltar a se ocupar dos cavalos. A senhora Scaling tinha encontrado no fundo de um armário uma sujo baralho de cartas, de modo que os sitiados viajantes não se viram
constrangidos a jogar aos palitos chineses ou a fazer figuras de papel, mas embarcaram em diversas partidas de cartas, utilizando ervilhas secas como fichas, e manejando
as cartas e as apostas das personagens imaginários que tiveram que criar para que tivesse o número correto de jogadores. Essa proeza os teria entretido só uns minutos,
mas o talento de Phoebe para dotar seus personagens fictícios de nomes e características acrescentou talento à brincadeira. E quando Sylvester, que demonstrou estar
à altura da jovem, inventou também dois excêntricos, o jogo se converteu numa espécie de charada, que pôs a prova a capacidade histriônica dos dois jogadores, e
manteve Tom, que não aspirava a tanto, numa gargalhada contínua. Contudo, apesar da atmosfera relaxada, Tom a considerava uma diversão perigosa, porque de vez em
quando Phoebe não podia resistir a tentação de exibir suas dotes de imitadora. O jovem reconheceu várias personagens do herdeiro perdido; ele não conhecia às personagens
em que sua amiga se tinha inspirado, mas a julgar pela reação de Sylvester, Phoebe os tinha representado de forma que eram por completo reconhecíveis.

— Tem cuidado com o que fazes, pelo amor de Deus — advertiu-lhe Tom tão cedo Sylvester os tinha deixado sozinhos —. Se o duque ler teu livro, estou seguro de que
se lembraria da representação que fizeste e ligaria os fios, porque não tem nem nada de tonto. Olha, Phoebe, acho que deverias realizar mudanças no livro. Após como
se portou conosco, não me parece bem convertê-lo no vilão da história. Ademais, não entendo por que o fizeste, nem por que achas que era tão insuportavelmente orgulhoso.
Não é nada convencido!

— Reconheço que não esperava que fosse tão amigável — admitiu ela —. Seria absurdo que adotasse ares de grandeza num lugar como este, e é evidente que ele o sabe.

— Tens que mudar a história, Phoebe! — insistiu Tom —. Primeiro soubemos que lê romances e agora nos diz que tem um sobrinho. Deus meu, não sabia que onde pôr a
cara!

— Eu também não — concordou ela —. Mas acho que carece de importância. Todo mundo tem sobrinhos, não? É possível que o duque tenha mais de um, mas recorda que Maximilian
estava a cargo do conde Ugolino porque era órfão. Não tem nenhuma semelhança!

— De quem compõem a família de Salford?

— Não estou segura. Há muitos Rayne, mas não sei quantos deles são parentes seus.

— Acho que deverias ter-se inteirado antes de pôr o duque em teu livro, Phoebe — disse Tom em tom de reprovação —. Certamente que teu pai tem um Nobiliário, não?

— Não o sei — respondeu Phoebe com ar de culpabilidade. Nunca pensei... Veja, quando escrevi o livro não imaginei que chegaria a ser publicado. Agora lamento ter
convertido Salford no vilão da história, mas afinal de contas, Tom, bastaria com que pudesse mudar o seu aspecto físico para que ninguém suspeitasse jamais quem
é Ugolino. A culpa de tudo são as suas sobrancelhas: se Salford não tivesse essa cara de tigre, jamais se me teria ocorrido convertê-lo em vilão.

— Isso são tolices! Cara de tigre! Tem um rosto muito agradável!

— Bom, não exageres — interrompeu-o Phoebe, indignada —. Seu sorriso é agradável, mas em geral a expressão é de altiva indiferença. Quase diria de desdém, ainda
que ele não seja desdenhoso com as pessoas porque mal as percebe.

— Serias capaz de afirmar que mal se apercebeu de mim? — perguntou Tom com sarcasmo.

— Não, porque lhe foste simpático, por isso lhe atraiu agradar-lhe. E também — continuou Phoebe, apertando os olhos como se quisesse evocar a imagem de Sylvester
—, porque feriu o seu orgulho saber que eu não o achava atraente.

— Oxalá não lhe tivesse falado disso!

— Não te preocupes. Estou convencida de que lhe fez muito bem — replicou ela alegremente —. Asseguro-lhe, Tom, que quando o conheci em Londres sua atitude era muito
diferente. Então não tinha intenção de cair nas graças de uma pobre garota como eu; agora me dedica tantas atenções que suponho que cedo me sentirei obrigada a me
desfazer em elogios por sua pessoa.

— Não me estranharia! Permita-me dizer-lhe, Phoebe, que se conseguires chegar a Londres será graças à boa disposição do duque, e não da minha. Diz que te acompanhará
até ali em seu cupé, assim que, pelo menos que queiras, te mostra educada com ele.

— Não! Isso te disse— Reconheço que é muito amável, ainda que recusarei a sua ajuda: não posso te deixar sozinho aqui neste estado. Como te ia fazer algo tão cruel?
— E acrescentou com valentia: — Assim não importa que seja educada com ele, não é verdade?

Capítulo 11

Quando os dois antagonistas se dirigiram a Sylvester, este apoiou a ambos. Concordou em que em nenhum caso deviam deixar Tom sozinho, mas também argumentou que Phoebe
não tinha por que atrasar sua partida por esse motivo, pois ele podia ficar no Blue Boar e delegar a Keighley a tarefa de acompanhá-la a casa de sua avó. Phoebe
agradeceu ao duque por lhe oferecer uma solução tão prática a seu problema, e só temia que seu pai chegasse ao Blue Boar Antes que do cupé de Sylvester.

— A única coisa que posso dizer, senhorita Marlow — respondeu Sylvester a esse comentário —, é que se o primeiro veículo que chegar aqui procedente do oeste não
for o meu cupé, dois postilhões com impecável treinamento terão que procurar emprego numa casa que não seja a minha.

De fato, o cupé do duque chegou dois dias mais tarde, muito pouco tempo depois de ter parado de nevar. Como os postilhões tinham demorado mais de duas horas para
percorrer o trajeto entre Marlborough e Hungerford, a descrição que fez Swale dos perigos que tinham encontrado no cumprimento do dever não foram necessários para
convencer a Phoebe de que o estado das estradas ainda era o bastante ruim para que a chegada de seu pai ali não fosse mais que uma remota contingência.

Sylvester ordenou que levassem seu cupé ao Halfway House, que estava a uns três quilômetros a frente, mas Swale ficou no Blue Boar. Swale, ao inteirar-se de que
teria que compartilhar o dormitório com Keighley e fazer suas comidas na cozinha, se ofendeu tanto que durante trinta segundos esteve tentado a apresentar sua demissão
a seu nobre amo. Quando lhe ordenaram que servisse ao senhor Orde, fez uma rígida inclinação de cabeça e procurou acalmar sua ferida sensibilidade tratando o desventurado
jovem com uma educação tão meticulosa que Tom não demorou a suplicar a Sylvester que o deixasse nas mãos, menos inexperientes mas também menos intimidantes, de Will
Scaling. A timidez que Tom tinha sentido no princípio ante Sylvester se dissipou ao passar quarenta e oito horas dependendo dele para qualquer coisa; e uma hora
após ter-lhe feito, entre risos, essa queixa a respeito de Swale, Tom estava perguntado ao duque por que tratou tão mal o assunto.

— Deus sabe o que terá dito a esse pobre homem, mas se tivesse suspeitado que ia repreendê-lo por sua conduta, não teria me ocorrido queixar-me. Foi insuportável!
Veio pedir-me desculpas e contou-me uma história inverossímil para convencer-me de que não se encontrava muito bem, me assegurando que não voltaria a me dar motivos
para me queixar dele para você. Santo Deus! Prometo que jamais passei tanta vergonha em minha vida! Que papel mais mesquinho me fez fazer, Salford! Ameaçou-o despedi-lo,
só porque não queria se ocupar de mim?

— Não, não sou tão prepotente, Thomas. Só lhe pedi que me dissesse se gostava de trabalhar para mim.

— Ah, só isso? Não me estranha que estivesse tão compungido! E diz que não é prepotente! Sabe o que acredito? Que é você medieval!

Sylvester soltou uma risada.

— Mas por que o diz? Pago-lhe um salário muito digno.

— Mas não o contratou para que cuidasse de mim.

— Meu querido Thomas, que mais tem ele para fazer? — interrompeu-o Sylvester com um leve sinal de impaciência —. Todas as tarefas que deveria desempenhar para mim
neste antro não o teriam ocupado nem um par de horas ao dia.

— Não, mas se trata de seu criado de quarto, não do meu. Poderia ter-lhe ordenado que se ocupasse de seus cavalos ou que varresse o chão. E como se fosse pouco,
obriga-lhe a compartilhar o quarto com Keighley. Deveria ter em conta, Salford, que seu criado de quarto está muito acima de seu cocheiro.

— Mas eu não o tenho em tão alta estima.

— Já o vejo, não obstante...

— Basta de discussão, Thomas. Em minha casa, minha estima é a única coisa que importa. Isso parece-lhe medieval? Se a Swale parece, pode partir. Não é nenhum escravo!
— De repente sorriu —. Keighley tem mais motivos que Swale para se considerar meu escravo, lhe asseguro. E nunca o contratei, nem poderia despedi-lo. Mas por que
me olha com essa cara?

— Não... Bom, não saberia lhe explicar. É que meu pai sempre diz que um cavalheiro deve tentar não ferir os sentimentos das pessoas inferiores, e ainda que suponha
que essa não era sua intenção, me parece que... Mas não está bem que o diga! — concluiu Tom precipitadamente.

— Pois já o disse, não? — replicou Sylvester com amabilidade, ainda que lhe gelasse o sorriso.

— Rogo-lhe que me perdoe, senhor!

— Espero que ter conhecido a você e à senhorita Marlow me resulte benéfico — observou Sylvester com ar pensativo —. Quantos defeitos tenho que antes não era consciente!

— Não sei o que acrescentar para lhe pedir desculpas — disse Tom com frieza.

— Não tem que me dizer nada. A não ser que queira ensinar-me a tratar a meus criados. — Fez uma pausa, enquanto Tom observava-o com expressão hostil e os lábios
apertados, assim apressou-se a acrescentar —: Não, não! Por que terei feito esse comentário? Perdoe-me, disse-o sem pensar.

Era impossível resistir-se a essa nota de persuasão, ou à expressão suave, entre constrita e desconcertada, que substituiu à de sátiro. Tom tinha tido a impressão
de que o duque tentava se refugiar por trás de uma fina camada de gelo e isso o tinha incomodado, mas como o gelo tinha derretido, lhe passou o enfado. — Bah! Não
sou ninguém para criticar o que você faz! Sobretudo — acrescentou ingenuamente— após ter sido tão bondoso comigo.

— Não diga tolices!

— Não, nada disso. E mais...

— Se pensa pôr-se tão cansativo, Thomas, partirei — interrompeu-o Sylvester —. E permita-me dizer-lhe que se o que pretende é bajular-me, será muito difícil. “Bondoso”
não é o epíteto que escolheu esta manhã para descrever minha caritativa tentativa de lhe arranjar a cama.

— Bom, já vejo que não há forma de satisfazê-lo — disse Tom sorrindo —. Primeiro sou mal agradecido com você e agora sou cansativo. No entanto, não sou mal agradecido,
lhe asseguro. Quando chegou aqui, pensei que estava preso, e assim era, porque não estou em condições de ajudar Phoebe. Mas você sim a ajudará, não é verdade?

— Eu? Ah, levando-a a Londres! Sim, é claro. Se ainda quiser ir. Ainda que não entenda que espera conseguir.

Tom não pôde explicar, mas Phoebe confessou com absoluta franqueza que esperava não ter que voltar nunca a Austerby. Essa afirmação era suficientemente surpreendente
para que o duque arqueasse as sobrancelhas.

— Uma vez minha avó disse-me que gostaria que vivesse com dela, que sempre o tinha desejado — disse Phoebe perscrutando o rosto de Sylvester —. Mas quando minha
mãe morreu não pôde, por uma ou outra razão, propor a meu pai. E depois... bom, casou-se com minha madrasta e a minha avó pareceu-lhe desnecessário, além de tremendamente
descortês, tirar-me de Austerby.

— Mas no ano passado não a convidou para morar com ela, não? — aventurou o duque com um trejeito irônico e olhos risonhos.

— Não. Mas pensou... — replicou Phoebe olhando-o com certa apreensão —. Sir Henry Halford advertiu-a que eu era uma jovem muito inquieta... Enfim, minha avó não
considerou oportuno pedir a meu pai que me deixasse a seu cuidado, porque ela não podia me levar aos bailes e... Mas creio... Não, estou segura de que não me propôs.
Não me interessam os bailes, nem a vida moderna. Sim, estava bem quando saía com minha tia Ingham, porque é uma mulher muito carinhosa e nunca te embaraça, nem passa
o tempo te vigiando... Mas não vou a procura de diversão, e ainda que nesse momento não tenha me ocorrido perguntar a minha avó se podia ficar vivendo com ela, quando...
— interrompeu-se. Notou que tinha cometido uma indiscrição e corou.

— Quando temeu que a obrigassem a se casar pela força? — ajudou-a o duque.

Phoebe se ruborizou ainda mais, mas as palavras de Sylvester provocaram um brilho nos olhos da jovem.

— Pois sim! — admitiu —. Quando isso aconteceu, de repente pensei que se minha avó me acolhia em sua casa, talvez deixasse de constituir um problema e pudesse lhe
ser de alguma utilidade. E de toda maneira, já falta pouco para que atinja a maioria de idade, assim espero que então mude tudo e não seja um ônus para ninguém.

Essas palavras fizeram suspeitar ao duque que Phoebe se tivesse apaixonado por algum jovem que sua família teria considerado inaceitável, e lhe perguntou sem rodeios
se tinha pensado em se casar.

— Casar-me? Não, em absoluto! Acho que nunca me casarei. Tenho planos muito... diferentes. — Um pouco aturdida, acrescentou —: Rogo-lhe que me perdoe; não era minha
intenção falar deste assunto. Já sei que não devo falar deste assunto. Por favor, esqueça o que acabo de lhe contar! Diga-me só se acredita... já que suponho que
você a conhece melhor que eu... se a minha avó gostaria que vivesse com dela.

Sylvester pensava que a lady Ingham desagradar-lhe-ia essa ideia, mas também acreditava, com certa malícia, que seria impossível recusar a sua neta, assim que sorridente
contestou:

— Por que não ia gostar?

— A cada dia que passo longe de Austerby fortalece minha resolução de não voltar ali — afirmou a jovem muito séria, mas mostrando-se aliviada —. Nunca tinha sido
tão feliz como agora! Suponho que você não o entenderá, mas nestes últimos dias senti como se tivesse escapado de uma jaula. — De repente sua gravidade desapareceu
e acrescentou —: Oh! Que coisa tão boba! Mas não importa...

— Muito bem. Keighley a acompanhará a Londres tão cedo as estradas voltem a estar praticáveis. Phoebe agradeceu, mas perguntou, em dúvida:

— E Tom?

— Quando você partir, enviarei uma mensagem a seus pais. Não confia em mim? Não me separarei dele até que o tenha entregado a seu pai.

— Sim, é claro que confio em você. Mas não sei se devo aceitar sua ajuda. Utilizar seu cupé, privá-lo de seu cocheiro... — E acrescentou com inocência —: Sendo tão
mal educada como fui no princípio!

— No principio? Mas se jamais deixou de ser! — protestou ele —. Começou soltando-me um sermão e depois não teve reparos em condenar a minha conduta. E, se fosse
pouco, agora ameaça me negar à oportunidade de consertar o dano feito. — Ao ver que Phoebe não sabia o que dizer, riu, lhe pegou uma mão e a beijou com delicadeza
—. Façamos as pazes, Pardal. Sou tão mau assim?

— Não! Nunca disse isso, nem o pensei — balbuciou ela —. Como teria podido, se mal o conheço?

— Oh, isso é o pior! — lamentou-se ele —. Que te censurem Antes de te conhecer. Entendo-a perfeitamente: conheci muitas pessoas a quem lhes ocorre isso, mas nunca
imaginei que eu seria uma delas.

— Já o dizia! — replicou Phoebe. Então pôs cara de pesar e disse em tom titubeante —: Ai, que língua a minha! Rogo-lhe que me desculpe!

As palavras de Phoebe consternaram Sylvester, mas a expressão de arrependimento que as seguiram o desarmou.

— Acho que nunca conhecerei duas pessoas que me façam repensar tanto como você e o senhor Orde. Pergunto-me que ocorrerá me dizer a seguir. Suponho que não seja
preciso que lhe assinale que não tem por que se reprimir.

— Isso sim que é uma injustiça! Quando Tom não faz mais que adulá-lo!

— Adular-me? Não sabe você o que é um adulador! — De repente dirigiu-lhe um olhar penetrante e perguntou-lhe —: Talvez ache que é o que gosto? Que me adulem?

— Não, não exatamente — disse Phoebe depois de refletir um momento —. Trata-se mais de que você o espera, sem que goste ou lhe desagrade.

— Equivoca-se! Nem o espero nem gosto!

Phoebe abaixou a cabeça no que parecia ser um gesto de consentimento, mas um sorriso fugaz incomodou ao duque.

— Caramba, senhorita! — disse, incomodado, e ela levantou a cabeça com expressão interrogativa. Sylvester soltou um riso forçado e acrescentou —: Agora recordo que
me advertiram que não era uma jovem comum, senhorita Marlow!

— Oh, não! É verdade que lhe contaram isso de mim? — perguntou ela, ruborizando-se de satisfação —. Quem foi? Diga-me, faz favor!

Sylvester sacudiu a cabeça, divertido ante a curiosidade de Phoebe. Mal era um elogio e, no entanto a jovem morria por saber de onde tinha saído; parecia uma menina
enfeitiçada por um brinquedo que alguém mantivesse longe de seu alcance.

— Não penso em lhe dizer!

— Que mau é você! — disse Phoebe, e suspirou —. Estava brincando comigo?

— Em absoluto! Por que ia fazê-lo?

— Não o sei, mas não me estranharia. Ninguém me diz coisas bonitas; ou, se o fazem, nunca as ouço. — Refletiu um momento e continuou —: Ainda que isso possa querer
dizer somente que sou estranha — acrescentou, pensativa.

— Sim! E extravagante!

— Não. Isso não, porque não fui nada extravagante quando estive em Londres. Comportei-me com grande correção... e com grande insipidez.

— Pode ser que você fosse decorosa, mas insípida não, estou seguro!

— Pois então foi o que pareci a você. E a verdade é que era insossa. Porque minha madrasta não deixava de me observar nem um instante.

— Sim, você deve fugir de lady Marlow — concordou Sylvester ao recordar o quão silenciosa e estúpida lhe tinha parecido a jovem em Austerby —. Mas não de diligência,
nem sozinha. De acordo?

— Obrigado. A verdade é que será mais cômodo viajar na carruagem de posta. Quando acha que poderei partir?

— Não o sei. Ainda não passou nenhum veículo com destino a Londres, o qual me faz supor que deve ter muita neve acumulada para além de Speenhamland. Esperemos até
que passe o correio de Bristol.

— Tenho o pressentimento de que o que veremos será o carro de viagem de minha madrasta, e que não demorará muito — declarou Phoebe num tom apagado.

— Dou-lhe minha palavra de que não a levarão a Austerby. E pode confiar nela!

— Que promessa tão imprudente!

— Sim, não é verdade? Sou plenamente consciente, asseguro-lhe, mas agora que lhe dei minha palavra, estou comprometido sem remédio, e só posso rezar para não me
ver envolvido em nenhum delito grave. Acha que brinco, não é verdade? — Pois equivoca-se, e demonstrar-lhe-ei agora mesmo que ajo de boa fé solicitando os serviços
de Alice.

— Como? Que pode fazer ela?

— Viajar com você na qualidade de criada, é claro. Vamos, senhorita Marlow! Com a estrita educação que recebeu, não será necessário que lhe explique que uma jovem
de sua situação não pode viajar sem criada.

— Bah, que gritaria! Como se a mim me importasse!

— Já sei que a você não importa, mas a lady Ingham sim, lhe asseguro. Ademais, se a estrada estivesse em pior estado do que imaginamos, talvez se visse obrigada
a passar a noite em alguma pousada.

Ainda que o argumento de Sylvester fosse irrebatível, Phoebe insistiu, obstinada:

— Bom, mas se Alice não quiser vir, não terei em conta essas tolices.

— Agora é você que diz tolices! Alice fará exatamente o que eu lhe ordene — replicou ele, sorridente.

A veemência com que o duque se expressou fez Phoebe desejar que Alice recusasse a proposta, mas ficou decepcionada. Ao saber que teria que acompanhar à senhorita
à metrópole, Alice se pôs contentíssima; ficou olhando Sylvester com incredulidade e suspirou “Londres!”. E quando se inteirou de que lhe iam dar cinco libras para
seus gastos e de que lhe pagariam a viagem de regresso na diligência, ficou sem palavras uns minutos, temerosa, como informou a sua impressionada mãe, de que se
rompessem os cordões do seu corpete.

Começou o degelo e chegou o rapaz do estábulo da pousada, que ofereceu uma brilhante descrição do estado dos caminhos. A senhora Scaling disse-lhe, com ar misterioso,
que ia lamentar não ter regressado imediatamente ao Blue Boar; e quando o empregado se inteirou de que nobres hóspedes estavam alojados na pousada, lamentou muito.
No entanto, ao descobrir que as cocheiras estavam sendo governadas por um tirano que não tinha intenção de abdicar em seu favor, mas que, ao invés disso, estava
decidido a lhe fazer trabalhar mais do que nunca tinha trabalhado, não o lamentou tanto. Talvez tivesse perdido a generosidade do duque, mas também tinha evitado
por vários dias de suportar que o chamassem “jovem”, que criticassem seus defeitos e que lhe ordenassem realizar todas as tarefas das quais Keighley considerava
que o rapaz tinha escapulido. E não recebeu melhor trato de Swale. O criado de quarto do duque não teve mais remédio que cear na cozinha com aquela gente tão ordinária,
mas não tinha nenhuma força conhecida que o fizesse capaz de se fixar na existência de um vulgar rapaz do estábulo. Sua atitude era tão distante, seu olhar, tão
desdenhoso, que no princípio o rapaz achou que era o duque, ainda que não demorasse em comprovar que este era bem mais acessível.

Os primeiros veículos que viram passar proviam do oeste, o que inquietou muito a Phoebe; mas no dia seguinte passou o correio de Bristol, em uma hora tão incomum
que a senhora Scaling assegurou que a estrada ainda estava em muito mau estado para o este.

— Estou convencida de que demoraram mais de dois dias para chegar até aqui — conjeturou —. Na taberna asseguram que não se tinha visto nada parecido faz quatro anos,
quando gelou o rio em Londres, e acenderam fogueiras nele, e montaram uma grande feira, e não sei o que mais. Não me estranharia, senhorita, que tivesse que ficar
aqui uma semana mais — acrescentou com otimismo.

— Bobagens! — disse Sylvester quando Phoebe se referiu as palavras da senhora Scaling —. O que comenta-se na taberna não deve desanimá-la. Amanhã irei a Speenhamland
e inteirar-me-ei do que dizem os cocheiros do correio.

— Isso se esta noite não voltar a nevar — afirmou Phoebe, preocupada —. Esta manhã o solo escorregava muito, e já terá bastante problemas para dominar a esses cavalos
sem o acréscimo da dificuldade do gelo noturno. Minha consciência não me permitiria deixá-lo partir nessas circunstâncias.

— Nunca achei que chegaria a se preocupar tanto por mim, senhorita Marlow — declarou Sylvester, comovido.

— É que não quero nem pensar nos problemas que teríamos se lhe acontecesse algo — replicou Phoebe com sinceridade.

O duque apreciou essas palavras, mas retrucou com gravidade:

— O mais encantador de você, Pardal, é que nunca se sabe que vai dizer a seguir; ainda que se aprende rapidamente a esperar o pior.

No entanto, aquela noite não voltou a nevar, e a primeira coisa que Phoebe soube, quando entrou no quarto de Tom Antes de descer para o café da manhã, foi que seu
amigo tinha ouvido passar vários veículos diante da pousada e que estava convencido de que alguns proviam do este. A senhora Scaling confirmou-o, mas assinalou que
ignorava se vinham de Londres ou de outra cidade mais próxima, como Newbury. Opinava que não seria prudente iniciar tão perigosa viagem até que a neve tivesse desaparecido
por completo da estrada; e estava obsequiando a Phoebe com uma horrível história de três passageiros que viajavam na parte exterior da diligência e que tinham morrido
de frio em condições climáticas parecidas, quando chegou Sylvester e pôs fim ao relato ao afirmar que como a senhorita Phoebe não pensava em viajar a Londres na
traseira de uma diligência não tinha razão para que alguém temesse por ela. A senhora Scaling teve que lhe dar a razão, mas advertiu a sua excelência que entre Newbury
e Reading tinha uma perigosa cratera de cascalho que era uma grande dificuldade quando tinha fortes nevadas.

— Como o bule — disse Sylvester com mordacidade —. Não o vejo em nenhum lugar, e gostaria de vê-lo em seguida, por favor.

A senhora Scaling partiu rapidamente à cozinha.

— Crê você que há algum risco de que cairmos numa cratera de cascalho, senhor? — perguntou Phoebe.

— Não.

— Eu também não o creio provável. Mas pelo visto a senhora Scaling pensa que...

— A única coisa que pensa a senhora Scaling é que quanto mais tempo nos retenha aqui, mais benefícios obterá — interrompeu-a o duque.

— Não é necessário que me trate com tanta brusquidão — protestou Phoebe —, só porque se levantou muito antes da hora que está acostumado.

— Rogo-lhe que me perdoe, senhorita — retrucou ele com frieza.

— Não tem importância — admitiu ela sorrindo com amabilidade —. Seguramente você sempre se mostra assim desagradável antes do desjejum. Tenho entendido que isto
acontece a muitas pessoas; ainda que se esforcem, não o podem evitar. Não estou dizendo que você o tente, é claro. Por que ia se esforçar, se não é obrigado a ser
amável?

Talvez fosse uma sorte que o aparecimento de Alice nesse momento obrigasse a Sylvester a engolir a resposta que se dispunha a dar. E quando a rapariga tinha se retirado
outra vez, Sylvester já tinha compreendido (com muita menos incredulidade que teria sentido uma semana atrás) que a senhorita Marlow o estava a provocar deliberadamente,
assim se limitou a dizer:

— Talvez eu não seja obrigado a ser amável, senhorita Marlow, mas deveria pensar que se não ocorre o mesmo se for o caso. Levantei-me a esta intempestiva hora só
por você, mas ainda estou em tempo de decidir que não quero ir a Newbury.

— Ah, então também é caprichoso? — perguntou Phoebe olhando-o com gesto inquisitivo.

— Também? — perguntou Sylvester. Ao ver que Phoebe ia responder, se apressou a acrescentar —: Não, não me diga. Acho que já imagino.

Phoebe riu e começou a servir o café.

— Não lhe dirigirei a palavra até que lhe tenha passado o mau humor — prometeu.

Ainda que estivesse tentado a contestar, Sylvester decidiu morder a língua. Permaneceram em silêncio, mas quando, ao levantar a vista de seu prato minutos depois,
o duque viu que Phoebe o estava observando, e lhe parecia um passarinho à espera de encontrar umas migalhas, Sylvester rompeu a rir e exclamou:

— Ai, Pardal! Que jovem tão abominável é você!

— Sim, eu temo — disse ela com seriedade —. E não há forma de que aprenda a não dizer o que não devo.

— Talvez não deva tentar corrigir esse defeito — insinuou ele.

— Mas se costumo esforçar-me em corrigi-lo! — assegurou-lhe Phoebe —. Só acontece quando estou com pessoas como você e Tom.

— Ah, só então! — interveio o duque —. Quando está com pessoas cujas opiniões não são importantes para você, dá rédeas solta a sua língua, não?

— Sim— afirmou ela, satisfeita de que o duque a entendesse tão bem —. Poderíamos resumi-lo assim! Apetece-lhe outra torrada com manteiga, senhor duque?

— Não, obrigado. Passou o meu apetite.

— Não me estranha — disse ela com jovialidade —. Com o tempo que está preso na casa! Pensa ir logo a Newbury? Já sei que não deveria, mas estou muito nervosa. Não
sei que vou fazer se minha madrasta chegar enquanto você está fora!

— Esconda-se no sótão! — recomendou-lhe Sylvester —. Mas se sua madrasta tivesse uma pitada de senso comum, não faria nada para tentar recuperá-la.

Capítulo 12

Quando Sylvester partiu, Phoebe se pôs a jogar piquet com Tom. Num par de ocasiões, ouviu um barulho de carros e levantou a cabeça, com gesto de apreensão; mas ao
ouvir acercar-se um cavalo pela estrada não se alarmou. Por isso quando o senhor Orde entrou na habitação sem chamar à porta, a jovem se sobressaltou. Emitiu um
grito abafado e as cartas caíram-lhe das mãos. Tom voltou-se e exclamou, consternado:

— Pai!

O esquire, depois de jogar um olhar aos fugitivos com o ar de quem sabe perfeitamente o que vai encontrar, fechou a porta e disse:

— Vá! Querem fazer o favor de explicar-me que significa isto?

— Foi culpa minha! Por favor, não se zangue com Tom! — suplicou Phoebe.

— Não, isso não é verdade! A culpa foi minha, estraguei tudo e rompi uma perna.

— Isso me disseram! — disse seu complacente pai —. Suponho que posso dar graças ao céu de que não tenhas partido o pescoço. Que calamidade! E daí romperam-se meus
cavalos?

— Nada, nada! Só têm pequenas machucaduras — assegurou-lhe Phoebe —. E ocupei-me deles. Mas deixe-me ajudar-lhe a tirar o abrigo, senhor.

— É inútil que tentes enrolar-me, jovenzinha — disse o esquire com severidade, mas aceitando sua ajuda —. Que bela confusão! Vais enviar teu pai ao túmulo!

— Oh, não! — gritou Phoebe, muito pálida.

O senhor Orde se abrandou ao ver que a tinha assustado para valer e lhe deu umas palmadinhas na face.

— Não, não foi tão grave, mas já sabes como se põe quando algo o desagrada.

— Pai, nós não fugimos — interrompeu-o Tom.

O esquire olhou-o com uma mistura de afeto e desdém, e disse:

— Que tolice, Tom. Nunca pensei que o tivésseis feito. Mas agradecer-lhe-ia que me explicasses que demônios fizeste, para meter meu cabriolé novo numa vala e romper
duas rodas.

— Queria acompanhar Phoebe a Londres, a casa de sua avó. Estava decidida a ir sozinha na diligência, pai!

— E Tom não teve a culpa de que acabássemos numa vala, senhor — acrescentou Phoebe —. Estava conduzindo muito bem até que cruzamos com um estúpido burro.

— Cruzastes com um burro? Oh! — disse o esquire —. Bom, nesse caso, contas com alguma desculpa.

— Não, não posso desculpar-me — reconheceu Tom com sinceridade —. Devia ter controlado melhor aos cavalos, e preferiria que tivesse rompido ambas as pernas que ter
deixado que True se machucasse o jarrete.

— Vá, vá! — disse seu pai, visivelmente aplacado —. Graças a Deus que não rompeste as duas! Irei ver como está esse jarrete. Temi que algum cavalo tivesse rompido
uma pata.

— Senhor Orde — disse Phoebe, agoniada —. Sabe meu pai onde estou?

— Pois claro que sim! — respondeu o esquire —. Não esperarias que não lhe dissesse, não é verdade?

— E a ti, quem te disse, pai? — inquiriu Tom —. Suponho que foi Upsall, ainda que eu não o conhecesse e nenhum de nós lhe revelou meu nome. Também não viu Phoebe.

Tom não se equivocava: o médico tinha-lhe revelado, é claro, que ainda que não tivesse descoberto a identidade de seu paciente, sabia quem era o elegante jovem que
o tinha requisitado no Blue Boar. E não se podia esperar de um humilde médico rural que não divulgasse que sua excelência o duque de Salford tinha solicitado seus
serviços. A notícia tinha-se estendido rapidamente e de forma misteriosa, como ocorre nos povoados; e ainda que quando chegasse aos ouvidos do esquire se tinha deformado
até ficar praticamente irreconhecível, ainda era bastante verídica para convencer ao astuto esquire de que o suposto filho da casa de Rayne que tinha feito virar
um veículo na estrada de Bath não era outro que não seu próprio filho.

Não, não lhe tinha surpreendido muito. Tinha chegado à mansão poucas horas após a partida de Tom, e sua esposa, muito transtornada, tinha-lhe revelado a tremenda
notícia. Mas o senhor Orde, que conhecia muito bem a seu filho, não achou que tivesse fugido, e pensou que Marlow era um néscio por ter engolido aquela história.
Considerava que seu herdeiro sabia cuidar de si mesmo, disse com ironia olhando a Tom com uma sobrancelha arqueada, assim tinha decidido esperar e ver que ocorria.
E o primeira coisa que aconteceu foi que Marlow regressou a Austerby com um forte resfriado e sem notícias dos fugitivos. Segundo milady, o resfriado tinha-se convertido
numa congestão pulmonar; o caso é que milord estava muito abatido, e não era de estranhar, pois se tinha deitado numa habitação tão quente que suava como um galo
de briga. Então o esquire inteirou-se de que Phoebe tinha fugido para evitar que o duque de Salford lhe propusesse casamento. Ainda que no princípio essa história
lhe tivesse parecido inverossímil; e como tinha determinado que não se tinha equivocado ao pensar que Salford tinha ido procurar o médico para Tom, compreendeu que
essa versão do ocorrido não tinha nenhum sentido. E agora, disse, ficaria muito agradecido se lhe explicavam por que demônios se tinham partido de forma tão descabelada.

Foi muito difícil explicar-lhe, e não é de estranhar que o senhor Orde declarasse que não entendia nada. Primeiro, segundo Phoebe esse duque era um monstro de cujas
intenções a jovem tinha-se visto obrigada a fugir; mas depois tinha-se transformado num ser encantador com quem Phoebe tinha estado confraternizando durante quase
numa semana.

— Nunca disse que era encantador— explicou Phoebe —. Isso Tom o disse. Não faz mais que adulá-lo!

— Isso não é verdade! — indignou-se Tom —. O que passa é que tu és muito grosseira com ele!

— Basta! — interveio o esquire, habituado às repentinas brigas entre seu herdeiro e sua amiga da infância —. O única coisa que sei é que estou muito agradecido ao
duque por se ocupar de um par de fedelhos como vocês. Bom, disse a milady que com toda segurança comprovaríamos que este assunto não era mais que um mal entendido,
e vejo que não me equivocava. Não sou ninguém para reprovar-te, querida, mas não podes negar que mereces que alguém o faça. No entanto, não quero seguir falando
disso. Uma perna rompida é suficiente castigo para Tom; e em quanto a ti... Bom, seria absurdo negar que milady está zangada contigo, porque o está, e muito...

— Não penso voltar a Austerby, senhor — declarou Phoebe com a serenidade que lhe infundia o desespero.

O esquire tinha muito carinho a Phoebe, mas ele também era pai e não teria gostado que alguém animasse a um filho seu a desacatar sua autoridade. Com doçura, mas
com um toque de firmeza na voz que Tom conhecia muito bem, disse que é claro que voltaria a Austerby, e que ele mesmo acompanhá-la-ia. Tinha prometido a Marlow que
devolveria a sua filha sã e salva, e não tinha mais o que falar.

Nisso se equivocava: tanto Phoebe como Tom tinham muito o que dizer; mas nada conseguiu afastar o esquire do que ele considerava seu dever. Escutou com paciência
todos os argumentos que os jovens lhe apresentaram, mas passada uma hora de apaixonado diálogo, deu umas palmadinhas no ombro a Phoebe e disse:

— Sim, sim, querida, mas deves ser razoável. Se queres ir a viver com tua avó, tens que lhe escrever e lhe perguntar se está disposta a te acolher em sua casa, e
espero que te responda que sim. Mas não podes ir correndo assim pelo país; ela mesma te diria. E quanto à possibilidade de que eu te preste minha ajuda, sabes muito
bem que não posso fazê-lo.

— Você não entende! — disse Phoebe, desesperada.

— Não queres entender! — resmungou Tom, furioso.

— Não, Tom! Talvez, se lhe escrevesse, minha avó... Mas estarão tão zangados comigo! — Uma lágrima escorregou por sua face; Phoebe a enxugou e, com toda a valentia
de que era capaz, disse —: Bom, ao menos passei uma semana feliz. Quando temos que ir, senhor?

— Tão cedo seja possível, querida — respondeu o esquire com brusquidão —. Alugarei uma cadeira de posta para levá-la a tua casa, mas não sei o que fazer com Tom.
Acho que primeiro teria que consultar um médico.

Phoebe esteve de acordo, e então, enquanto escapava-lhe outra lágrima, saiu precipitadamente do quarto.

— Olhe, filho, quando tiver chorado um pouco se sentirá melhor — disse o esquire depois de pigarrear.

Essa era justamente a intenção de Phoebe: desafogar-se sozinha em seu quarto. No entanto, encontrou Alice ali, varrendo o chão, e refugiou-se na escada no preciso
momento em que se abria a porta traseira da pousada e Sylvester entrava no estreito corredor. Phoebe parou-se no meio da escada e ele olhou para acima.

— Que passa? — disse o duque, que percebeu que Phoebe tinha chorado.

— O pai de Tom — conseguiu balbuciar ela —. O senhor Orde...

Sylvester franziu o cenho, e a inclinação de suas sobrancelhas acentuou-se.

— Está aqui?

— Sim, no quarto de Tom. Diz... Diz...

— Desça ao salãozinho — ordenou-lhe Sylvester.

Phoebe obedeceu, assoando-se o nariz.

— Rogo-lhe que me perdoe — disse num tom apagado —. Prometo-lhe que estou tentado acalmar-me.

Sylvester fechou a porta.

— Sim, não chore, por favor. Que disse o senhor Orde?

— Que devo regressar a minha casa. Veja, prometeu a meu pai, e ainda que seja muito bondoso, não entende minha situação. Vai levar-me a minha casa assim que possa.

— Então não há tempo que perder — retrucou o duque com frieza —. Quanto demorará em se preparar?

— Isso não importa. O senhor Orde tem que ir primeiro a Hungerford para ver ao doutor Upsall e para alugar uma cadeira de posta.

— Não me refiro à viagem a Austerby, mas a Londres. Não é isso o que deseja?

— Sim, claro. Está a insinuar...— Mas o senhor Orde não permitirá!

— Talvez não tenha que lhe pedir permissão— Se quer partir, meu cupé está no Halfway House e posso levá-la ali imediatamente. Que me diz?

Phoebe esboçou um ligeiro sorriso, pois essas palavras tinham exercido um efeito mágico nela. De repente transformou-se.

— Obrigado! Oh, que bom você é!

— Direi a Keighley que não leve os cavalos às cocheiras. Onde está Alice?

— Em meu dormitório. Mas ela...

— Diga-lhe que tem exatamente quinze minutos para fazer a bagagem, e lhe advirta que não esperaremos — disse o duque dirigindo-se para a porta.

— E a senhora Scaling...

— Já falarei com ela — disse Sylvester acima do ombro, e partiu.

No princípio, Alice ficou muito desconcertada, mas tão cedo inteirou-se de que não pensavam em esperá-la, soltou o trapo que levava, como lhe queimassem as mãos,
e disse laconicamente:

— Vou com vocês! — E saiu precipitadamente do quarto.

Phoebe, temendo que em qualquer momento aparecesse o esquire e a surpreendesse, tirou o baú de viagem debaixo da cama e, frenética, começou a guardar sua roupa.
Não tinham passado quinze minutos quando ambas jovens desceram pela escada, uma com um baú de viagem e uma caixa de chapéus fechada da qual saía um véu de tule,
e a outra carregada com um volumoso recipiente de palha trançada.

O cabriolé esperava no pátio; Keighley estava de pé sujeitando os cavalos e Sylvester achava-se a seu lado. Sylvester riu ao ver as duas desalinhadas viajantes,
e se apressou a livrar Phoebe de seu ônus, enquanto dizia:

— Felicito-a! Não achei que estivesse preparada em menos em meia hora.

— Bom, não estou preparada — confessou ela —. Tive que deixar várias coisas, e... Oh, céus! Meu outro vestido assoma pela caixa de chapéus.

— Terá tempo do arranjar-se melhor quando chegar à Halfway House — disse o duque —. Mas coloque o chapéu. Não quero que me vejam com uma dama que parece completamente
esquisita.

Quando a jovem tinha conseguido oferecer um aspecto mais respeitável, a bagagem estava sob o assento e Sylvester se dispunha a ajudar a Phoebe a subir ao carro,
seguida de Alice. Um minuto depois punham-se em marcha e Keighley subia na parte de trás do cabriolé.

— Acha que conseguirei chegar a Londres esta noite, senhor? — perguntou Phoebe tão logo Sylvester tinha passado pela estreita entrada do pátio.

— Espero que sim, mas o mais provável é que tenha que passar a noite em algum lugar. Agora já não há perigo de que fiquem retidas na neve, mas os caminhos estão
difíceis, pois a neve se acha misturada com lodo. Keighley se encarregará de decidir o que é melhor.

— Veja, é que não levo muito dinheiro comigo — confessou Phoebe timidamente —. Bom, a verdade é que levo muito pouco! Assim que se pudéssemos chegar a Londres...

— Não se preocupe pelo dinheiro. Keighley me ocuparei dos gastos de alojamento, das postagens e das mudanças de cavalos. As primeiras etapas farão com meus cavalos,
mas temo que depois terão que alugar outros.

— Obrigado, você é muito generoso — disse Phoebe, timidamente —. Por favor, diga-lhe que tome boa nota de todo o dinheiro que gaste.

— Não tema, senhorita Marlow; sempre o faz.

— Sim, mas quero dizer que...

— Sim, já sei a que se refere — ele interrompeu-a —. Quer que lhe apresente uma conta de gastos, e não duvide que o fizesse se... se dedicasse-me a alugar carros...

— Talvez esteja em dívida com você, senhor duque — respondeu Phoebe friamente —, mas se você falar-me com esse tom zombador, é possível que... que...

Sylvester riu.

— Que que?

— Bom, ainda não o sei, mas me ocorrerá algo, prometo. Porque isso que faz não está bem. Suponho que seja correto que você pagasse os gastos do transporte, mas seria
absolutamente indecoroso que se encarregasse com os de alojamento numa pousada.

— Está bem. Se os pagar, apresentar-lhe-ei a fatura na próxima vez que nos virmos.

Phoebe fez uma inclinação da cabeça.

— Agradeço-lho, senhor.

— É assim que gosta que lhe fale? — perguntou Sylvester.

— Tenho de reconhecer que você não é nada estúpido — disse Phoebe soltando uma risada.

— Não, não sou estúpido! E possuo boa memória. Não esqueci como conseguiu imitar a uns quantos conhecidos seus, e não lhe vou ocultar meu desassossego. Tem você
um assombroso dom para imitar os gestos mais ridículos de suas vítimas.

Phoebe guardou silêncio, mas o duque deu-se conta de que a jovem adotava uma expressão muito séria. Ignorava por que a tinha alterado tanto esse comentário jocoso,
mas não lhe perguntou, porque já tinham chegado ao Halfway House e teve que prestar atenção ao rapaz do estábulo que foi correndo a sujeitar os cavalos.

Não demorou em chegar o cupé que ia transladar às viajantes a Londres. Alice, que tinha ficado placidamente adormecida no cabriolé, ficou impressionada ao ver o
elegante veículo no qual faria o resto do trajeto, com seus adornos, quatro magníficos cavalos bufando, inquietos, e agitando a cabeça; com elegantes postilhões,
as macias almofadas dos assentos e a pele de carneiro que cobria o chão. Tão emocionada estava que rompeu a chorar. No entanto, quando Phoebe lhe perguntou preocupada
o que lhe passava, Alice respondeu entre soluços que pensava em seus vizinhos, aos que tinha negado o privilégio da a ver partir como uma rainha.

— Isso não importa! — disse Phoebe, aliviada —. Quando votar a tua casa terás ocasião de lhes contar tudo. Sobe e deixe de chorar!

— Oh, não, senhorita! Mas se sou muito feliz! — disse Alice, e preparou-se para subir ao cupé.

Phoebe deu a volta e olhou Sylvester esperando que a ajudasse a subir ao carro; se ruborizou e estendeu-lhe uma mão, e quando ele a pegou, disse com voz entrecortada:

— Tenho pensando como lhe dizer co... como agradecida estou, mas não encontro as palavras. Em fim, obrigado.

— Creia-me, Pardal, você dá demasiada importância a esta insignificante ajuda. Saúde de minha parte à lady Ingham e diga-lhe que a irei visitar quando for à cidade.
Eu saudarei de sua parte a Thomas e a seu pai.

— Sim, por favor, faça-o. Bom, explique a Tom o que passou, e apresente minhas desculpas ao esquire, melhor que minhas saudações.

— Assim o farei.

— Bom, acho que é o mais correto. Só espero que não se zangue muito comigo.

— Não se preocupe.

— Sim, mas se zangar, estou segura de que você dará uma de suas cortantes respostas, e eu não gostaria disso — acrescentou ela.

— Já sabia eu que esta incomum cortesia não duraria muito. Permita-me assegurar-lhe que não tenho intenção de me comportar de outro modo que não seja com grande
correção.

— Isso é exatamente o que temo!

— Deus meu! É você uma jovem abominável! Suba no carro antes que me contagie — disse o duque, entre divertido e aborrecido.

Phoebe riu e disse com intenção de desculpar-se:

— Disse-o sem pensar! Para valer, não era minha intenção ser mal educada.

— É você francamente incorrigível. Eu, ao contrário, sou tão magnânimo que lhe desejo uma boa viagem, rápida e sem incidentes.

— Sim, muito magnânimo! Obrigado!

Retiraram o estribo; a voz de Alice foi a última que se ouviu antes que fechassem a porta.

— Há tijolos quentes, senhorita, e uma manta de pele! Espetacular!

Phoebe inclinou-se para frente para o saudar com a mão, os rapazes do estábulo soltaram aos cavalos e o cupé pôs-se em marcha, oscilando sobre seus excelentes eixos.
Sylvester ficou de pé olhando-a até que desapareceu em uma curva, e depois se voltou para Keighley, que esperava a seu lado sujeitando a brida de um cavalo de posta.

— Se puderes, leva-as a Londres esta mesma noite, John, mas não corras riscos desnecessários. Dinheiro, pistolas... Acho que tens tudo o que precisas.

— Sim, excelência, mas gostaria que me deixasse voltar para você.

— Não, me espera em Salford House. Não posso levar a ti e a Swale. E ainda que quisesse, não o faria. Os cabriolés não foram feitos para transportar três pessoas.

Keighley esforçou-se em sorrir e subiu ao cavalo.

— Me dá a impressão de que estava um pouco incomodado com tanta gente, excelência — comentou com certa complacência.

— E espero que me sirva de lição. Anda, vá logo!

O duque regressou ao Blue Boar a um trote pausado, pensando não com muita satisfação nos eventos da semana anterior. Não devia ter parado no Blue Boar. Não sabia
por que o tinha feito, mas estava quase convencido de que se tinha tratado de uma obstinação mórbida: John tinha tentado dissuadi-lo (maldito John, sempre tinha
razão!), mas ele tinha insistido, simplesmente para lhe contrariar. Bom, pois foi bem feito para ele. E quando viu o aperto em que se encontrava o jovem Orde, se
sentiu pego numa armadilha: só um monstro teria abandonado ali ao rapaz. Ademais, Thomas tinha-lhe sido simpático, e Sylvester não tinha previsto que sua exibição
de caridade o envolveriam em uma dessas situações que tanto lhe repugnavam. Ainda bem que não utilizava com frequência a estrada de Bath, porque sem dúvida falar-se-ia
muito dele no Halfway House, o que o horrorizava. Que furação de rapariga! Faltava-lhe urbanidade, era tremendamente descarada e não se destacava por sua beleza;
em suma, não era em absoluto do seu agrado. Por que demônios tinha decidido ajudá-la, se o única coisa que lhe ditava a razão era que lhe desse apenas o que lhe
era devido— Não tinha nenhuma obrigação com ela, salvo que lhe tinha dado sua palavra. Mas ao vê-la na escada, tão agoniada, e ainda assim tentando sorrir, não tinha
recordado sua resolução, mas que tinha agido movido por um impulso, e agora devia se responsabilizar por sua decisão. Ali estava, preso numa rudimentar pousada,
com um jovem cujo bem-estar não era assunto seu; sem seu cocheiro; exposto às justificadas censuras de um esquire ao qual não lhe unia a amizade (um desses proprietários
rurais respeitáveis, com toda probabilidade, que iam às recepções que Sylvester organizava em Chance); e objeto, se não se equivocava, de todo tipo de conjecturas
escandalosas. De um modo ou outro, a história acabaria se espalhando. O melhor que podia esperar era que as pessoas deduzissem que tinha perdido o senso; ou pior,
que, apesar de ser uma pessoa sumamente exigente, se tinha apaixonado loucamente de uma jovenzinha sem estilo nem beleza que tinha fugido dele e de suas pretensões.

Não, decidiu Sylvester ao entrar no pátio do Blue Boar: isso não podia permitir. A senhorita Marlow não devia expressar a pobre opinião que tinha dele ante a boa
sociedade. De fato, a senhorita Marlow devia deixar transparecer algo muito diferente do desprezo: não ia ser ele o único que ia aprender uma lição edificante.

Sua expressão, quando desceu do cabriolé e ficou olhando, com gesto impassível, como os serventes executavam suas curtas ordens à perfeição, era o bastante amedrontadora
para que criado dos estábulos se pusesse a suar de nervosismo. No entanto, quando entrou com passo decidido no quarto de Tom, todo rastro de mal humor se tinha desfeito
de seu semblante.

No dormitório de Tom reinava uma atmosfera tensa. O esquire, faminto após a viagem, acabava de dar conta de um copioso almoço, e Tom, que tinha ficado sem argumentos,
estava a dez minutos imerso num silêncio carregado de ressentimento. Ao abrir-se a porta, voltou a cabeça e, ao ver entrar a Sylvester, exclamou:

— Salford! É horrível! Talvez possa convencer a meu pai para que caia em si. Nunca imaginei que fosse capaz de... Perdoe-me! Apresento-lhe a meu pai.

— Não sei o que não me acreditavas capaz — disse o esquire levantando-se da cadeira e saudando Sylvester com uma inclinação da cabeça —, mas deixe-me dizer-lhe,
jovenzinho, que jamais imaginei que bastaria que te ausentasses de casa uma semana para que perdesses os bons modos. Se sua excelência estiver se perguntando se
o criamos num estábulo, eu não o reprovarei. Mas não é assim, e lhe asseguro que sua mãe dar-lhe-ia uma boa reprimenda se estivesse aqui. — Viu que Sylvester avançava
para ele lhe estendendo a mão, e a apertou com afeto —. É um prazer conhecê-lo, excelência. E já imagina que lhe estou muito agradecido pelo que fez. Foi sumamente
amável com Tom, e não sei como lhe dar agradecer.

— Asseguro-lhe que não é necessário que me agradeça em nada, senhor — replicou Sylvester fazendo alarde de seus encantos —. Passei uma semana deliciosa e ganhei
um amigo o qual não posso permitir que você o repreenda. Isso seria injusto, porque se abandonou sua perfeita correção foi só devido a um pedido. Ademais, suportou
seis dias de terrível aborrecimento sem reclamar nem uma única vez.

— Sim, e está bem empregado! — disse o esquire —. Este é um mau assunto, senhor duque! Asseguro-lhe que deixei a Marlow muito atribulado. Bom, bom! Marlow não tem
rival numa caçada, mas nunca pensei que fosse muito inteligente. Gretna Green! Não entendo como lhe ocorreu semelhante ideia!

— Oxalá tivesse levado Phoebe a Gretna Green! — interveio Tom, furioso —. Salford, meu pai está decidido a levar a Phoebe a Austerby. Não consigo lhe fazer entender
que isso só um bruto faria, após o que passou.

— Não há para tanto! — disse o esquire —. Na realidade não aconteceu nada e, graças a sua excelência, ninguém se inteirou. Encarregar-me-ei de assegurar a milady.

— Como se ela fosse te prestar atenção! E como fico eu! Se tivesse deixado que Phoebe se fosse na diligência, estaria a vários dias na casa de lady Ingham. Prometi
levá-la ali, e o única coisa que consegui é pô-la numa situação ainda mais comprometedora. Meu pai...

— Tranquilize-se, sir Galahad — interveio Sylvester —. Não há motivo para se desesperar. A senhorita Marlow partiu para Londres faz uma hora.

A estupefação deu lugar a um silêncio que Tom rompeu proferindo um grito de triunfo:

— Que astuto você é, Salford!

Essas palavras fizeram rir a Sylvester, que um instante depois arqueou as sobrancelhas, porque o esquire, depois de olhá-lo com firmeza, disse:

— Se teve algo que ver em isso, como temo, me permita dizer que cometeu um erro,

senhor duque, um grave erro.

Tom, ao reconhecer a severa expressão do semblante de seu pai, apressou-se a intervir:

— Não deves dizer isso, pai. Rogo-lhe que...

— Direi o que penso, Tom — interrompeu-o o esquire, sem deixar de olhar a Sylvester —. Se sua excelência não gosta, lamento-o muito, mas disse e o mantenho.

Tom olhou com apreensão a Sylvester, mas a intervenção do jovem tinha resultado mais frutífera do que ele pensava. Ao encontrarem-se os olhares de Sylvester e Tom,
o duque deu-se conta, com verdadeiro assombro, de que seu jovem amigo estava tentando impedir que o esquire se sentisse ofendido por uma desatenção. Sylvester não
tinha se percebido de sua própria rigidez, mas lhe vieram à mente as palavras de Phoebe. Tinha-as descartado por considerá-las uma tentativa impertinente de aborrecê-lo;
mas nesse momento perguntou-se se seria verdade que ele, que tanto se orgulhava de seus bons modos, dava a impressão de ser uma pessoa terrivelmente arrogante.

— Você tem razão — disse esboçando um sorriso —: não gosto, porque é injusto comigo, senhor. Talvez você tenha dado sua palavra a Marlow, mas eu dei a minha a sua
filha.

— Todo isso é muito bonito! — replicou o esquire —. Mas que demônios direi a Marlow, senhor duque?

— Acho que, em seu lugar, me limitaria a dizer-lhe que não pôde voltar a Austerby com a senhorita Marlow porque já tinha partido a Londres, para visitar a sua avó
— replicou Sylvester.

— Sim, claro, poderia dizer isso — disse lentamente o esquire, depois de refletir —. Eles não sabem que Phoebe ficou aqui todo este tempo, e suponho que o melhor
seria que nunca se inteirassem. Por outro lado, não me agrada a ideia de enganar a Marlow, e isso é o que estaria fazendo, sem dúvida alguma.

— Mas pai, de que servirá que lhe digas que encontrou Phoebe aqui? — perguntou Tom —. Agora que ela partiu, só conseguirias piorar a situação.

— Sim, tens razão — admitiu o esquire —. Que lhe contarei?

— Que a senhorita Marlow partiu a Londres em minha cupé, acompanhada de meu cocheiro e de uma respeitável criada — respondeu Sylvester com auto confiança —. Nem
sequer lady Marlow achará indecoroso.

— A não ser que tivesse ocasião de conhecer a respeitável criada — murmurou Tom.

— Não meta ideias equivocadas na cabeça de seu pai, Thomas. Permita-me que lhe esclareça senhor, que a criada que acompanha a senhorita Marlow é a filha da dona
da hospedaria. É uma jovem absolutamente decente!

— Sim, mas é uma aduladora — disse Tom com ironia —. Disse que você era mais importante que um peru...

Capítulo 13

Contrariamente ao que Sylvester tinha imaginado, Phoebe chegou à casa de sua avó às dez e meia dessa mesma noite. Tinha viajado durante quase oito horas, porque
o estado das estradas tinha obrigado aos postilhões a avançar a passo muito lento e, além de nervosa, estava muito cansada. O acolhimento em Green Street não foi
muito alentador. Enquanto ela esperava no cupé com a janela aberta, Keighley subiu os degraus da porta principal e chamou com a pesada aldrava. Teve uma longa pausa,
e a Phoebe assaltou-a o temor de que lady Ingham não se encontrasse na cidade. Mas quando Keighley se dispunha a chamar por segunda vez, Phoebe viu que ficava parado
e baixava o braço. A seguir ouviram-se ruídos de ferrolhos a abrirem, e Phoebe, esticando o pescoço, viu o mordomo de sua avó de pé na soleira, com um candeeiro
na mão, e suspirou aliviada.

Se esperava que Horwich lhe desse as boas-vindas, estava muito equivocada. O mordomo nunca recebia bem às visitas que chamavam à porta em horas intempestivas, ainda
que chegassem num ostentoso cupé puxado por quatro cavalos e escoltadas por um criado de libré. Uma luz iluminava a carruagem, e Horwich percebeu de que, apesar
do barro que cobria as rodas e a caixa, se tratava de um veículo muito elegante: não era um singelo cupé, mas um carro digno de um cavalheiro com gosto e meios.
Pareceu-lhe ver, meio escondido pelo barro, um brasão, e isso o fez relaxar um pouco; mas quando Keighley lhe perguntou se a senhora se encontrava na casa, respondeu
com frieza que a essas horas não recebia visitas.

Contudo, teve que deixar Phoebe entrar, é claro. O fez sem dissimular sua desaprovação, e esperou, adotando uma postura rígida, enquanto a jovem agradecia a Keighley
por serviços e despedia-se dele nuns termos que o mordomo considerou excessivamente amistosos.

— Verei se a senhora quer recebê-la, senhorita — disse ao fechar a porta da rua —. No entanto, informo-lhe que a senhora se retirou para descansar já faz mais de
uma hora.

Phoebe tentou não desanimar e, com toda a autoconfiança de que era capaz, e assegurou que não duvidava de que sua avó recebê-la-ia.

— E, por favor, Horwich, ocupe-se de minha criada. Levamos muitas horas viajando, e suponho que agradecerá algo para cear.

— Já o creio! — corroborou Alice sorrindo com cordialidade a Horwich —. Mas não se preocupe. Contentar-me-ei com um pedaço de carne fria e uma jarra de cerveja negra.

Ao ver a expressão de Horwich, a Phoebe não lhe pareceu que Sylvester tivesse agido com prudência ao enviar a Alice à cidade com ela. O mordomo disse, em tom glacial,
que pediria a governanta, se ainda não tivesse deitado, que se ocupasse em seguida da jovem criada. E acrescentou que se a senhorita esperasse no salão, iria procurar
a criada da senhora e pedir-lhe que avisasse a milady da inesperada chegada da senhorita.

Mas Phoebe estava começando a impacientar-se, e surpreendeu o venerável tirano dizendo, de maneira cortante, que não pensava fazer tal coisa.

— Não é necessário que se incomode em me acompanhar, porque conheço muito bem o caminho. Se a senhora está dormindo, não a acordarei, e se está acordada, não preciso
que Muker me anuncie — declarou.

Lady Ingham ainda não dormia. Phoebe chamou debilmente à porta, e uma voz ordenou-lhe que entrasse; encontrou a sua avó sentada numa cama com dossel, apoiada nos
travesseiros e com um livro nas mãos. Dois candelabros e o fogo da lareira alumiavam a cena e realçavam o agudo perfil da idosa.

— Que passa? — perguntou com irritação e olhou ao redor —. Phoebe! Deus meu! Mas que...— Entra, querida, entra!

Phoebe sentiu que se liberava de um ônus; sem poder dissimular a emoção, gritou “Oh, avó!”, e lançou-se sobre lady Ingham.

A viúva abraçou-a com ternura, mas, como é lógico, a alarmou um aparecimento tão repentino.

— Sim, sim, claro que me alegro de te ver, querida! Conta-me que passou. Não temas me assustar. Espero que não tenha acontecido nada a teu pai.

— Não, não! Não se trata disso, avó — disse Phoebe para tranquilizá-la —. Uma vez disseste-me que podia contar contigo se... se alguma vez precisasse ajuda.

— Essa mulher! — saltou a viúva, e incorporou-se.

— Sim, e... também meu pai — disse Phoebe com tristeza —. Por isso minha situação era tão desesperada! Aconteceu uma coisa... Já temia que aconteceria... E não pude
suportar, assim que... fugi!

— Santo Deus! — exclamou lady Ingham —. Minha pobrezinha. Que te fizeram? Conta-me tudo!

— Minha madrasta disse que meu pai tinha marcado um casamento muito vantajoso com o duque de Salford — explicou Phoebe com voz entrecortada. Deu-se conta de que
sua avó se tinha posto tensa, e fez uma pausa. Mas a viúva limitou-se a pedir-lhe que continuasse, assim a jovem inspirou fundo e prosseguiu —: Não podia me casar
com ele, avó! Só o tinha visto uma vez, e não gostei nada. Ademais, estava certa de que ele nem sequer se lembrava de mim. Ainda que tivesse gostado, não poderia
me casar com um homem que só tinha pedido minha mão porque sua mãe queria que o fizesse.

— É isso o que te disse essa mulher? — perguntou a viúva num visível esforço para controlar-se.

— Sim, e também que o duque queria pedir minha mão porque me tinham educado como Deus manda, e isso lhe fez pensar que podia ser uma boa esposa para ele.

— Deus meu! — disse a viúva com amargura.

— Tu... tu me entendes, não é verdade, avó?

— Sim, claro! Entendo-a perfeitamente! — replicou lady Ingham com expressão sombria.

— Já sabia que compreenderias! E o pior é que meu pai o convidou a Austerby para que me propusesse casamento. Ao menos, isso me disse minha madrasta.

— Quando vir Marlow... É verdade levou Salford a Austerby?

— Sim, mas não sei como pôde cometer semelhante erro. A menos, é claro, que fosse verdade que Salford queria pedir minha mão; mas deve ter mudado de ideia tão logo
me viu, o que não me estranha em absoluto. Não sei exatamente que passou, mas meu pai estava seguro de que o duque queria pedir minha mão, e quando lhe disse quais
eram meus sentimentos e lhe supliquei que dissesse ao duque... ele se negou — disse Phoebe num tom cada vez mais apagado —. E então me dei conta de que ninguém ia
me ajudar, exceto tu, avó. E fugi de casa.

— Sozinha? — perguntou a viúva, horrorizada —. Não me digas que vieste até aqui na diligência, e sozinha!

— Não, não vim sozinha — apressou-se a aclarar Phoebe —. Vim no cupé de Salford, que me fez trazer uma criada, e enviou o seu cocheiro para que se ocupasse de tudo.

— Que? — estranhou-se a viúva —. Vieste no cupé de Salford?

— Devo explicar-te, avó — disse Phoebe com gesto de culpabilidade.

— Sim, é claro — confirmou a viúva olhando-a perplexa.

— Sim. Mas... é uma longa história!

— Nesse caso, querida, faça o favor de tocar a campainha. Suponho que após uma viagem tão longa gostará de um copo de leite quente. E acho que tomarei outro. Ajudará
a serenar-me um pouco.

Dito isso, lady Ingham, para grande alarme de Phoebe, voltou a recostar-se nos desordenados travesseiros e fechou os olhos. No entanto, ao entrar a senhorita Muker
no quarto, a viúva abriu-os de novo e, com um vigor surpreendente, disse:

— Não ponhas essa cara, Muker, e nos traga dois copos de leite quente agora mesmo. Minha neta, que veio me visitar, fez uma viagem cansativa. E quando nos tiver
trazido o leite, te encarrega que lhe aqueçam a cama e acendam a lareira, e o dispõe tudo para que esteja confortável. No melhor quarto de hóspede!

Quando milady falava com aquele tom de voz não era prudente discutir com ela. Muker, que tinha respondido a saudação de Phoebe fazendo uma leve reverência, recebeu
suas ordens sem comentários, mas disse com profunda irritação:

— E deseja a senhorita que faça vir aqui à jovem que deduzo que seja a sua criada, milady?

— Não! Envia-a à cama! — respondeu em seguida Phoebe —. Ela... não é exatamente minha criada.

— Isso me tinha parecido, senhorita, se não se importa que o diga — replicou Muker com frieza.

— Que criatura tão desagradável! — disse a viúva quando a porta se tinha fechado por trás de sua devota criada —. E quem é essa jovem, se não é tua criada?

— É a filha da dona da hospedaria — respondeu Phoebe —. Salford obrigou-me a trazê-la comigo.

— A filha da dona da hospedaria? Não, não me expliques ainda, querida! Muker virá em seguida com o leite quente, e suspeito que se nos interrompem ficarei completamente
desconcertada. Tira esse horrível abrigo, tesouro. Deus meu, onde te fizeram esse vestido tão feio? É que essa mulher não tem nem uma pitada de gosto— Bom, não importa.
Aconteça o que acontecer, eu o arranjarei. Acerca essa cadeira ao fogo para que estejamos mais confortáveis. E talvez se me desses os sais... Sim, me dê; estão em
cima dessa mesa. Cairão bem.

Mas ainda que a história que Phoebe lhe contasse parecia criada expressamente para provocar palpitações em uma idosa de saúde débil, a viúva não teve necessidade
de recorrer aos seus sais. O relato era tão complicado que lady Ingham se viu obrigada a interromper várias vezes, e em suas incisivas perguntas nada sugeria nenhum
tipo de debilidade, nem física nem mental.

As perguntas mais perspicazes que formulou foram relativas à intervenção do senhor Thomas Orde no caso. Ao que parecia, interessava-lhe muito essa personagem; e
enquanto Phoebe descrevia-lhe com todo detalhe o seu velho amigo, a idosa mantinha a vista fixa no semblante de sua neta. Mas quando se inteirou de que Tom tinha
tido a nobreza de propor um casamento clandestino a Phoebe (“o que me horrorizou, porque Tom ainda não tem idade para se casar, e além disso é como um irmão para
mim”), lady Ingham deixou de se interessar-se por ele, e se limitou a pedir a Phoebe, num tom bem mais suave, que continuasse seu relato. Milady decidiu que não
tinha nada que temer do jovem senhor Orde.

A última pergunta que fez foi em um tom quase indiferente:

— E Salford mencionou-me?

— Sim, sim! — contestou Phoebe alegremente —. Disse-me que te conhecia muito bem porque eras sua madrinha. Assim me atrevi a lhe perguntar se achava que... que gostarias
que ficasse vivendo contigo, e ele retrucou que achava que sim, avó.

— Ah, sim? — disse a viúva adotando uma expressão inescrutável —. Bom, querida — disse com repentina energia —, pois tinha muita razão. Gostaria muitíssimo!

Essa noite lady Ingham demorou muito em conciliar o sonho. Sua inocente neta tinha-lhe dado muito em que pensar e conjeturar. Apartou rapidamente de sua mente a
lord e lady

Marlow (ainda que ia dedicar grande parte da manhã seguinte, com grande prazer, à redação de uma carta que tinha certeza provocaria uma perigosa recaída na saúde
de milord); e também ao jovem senhor Orde. O que mais intrigava a lady Ingham era o papel que interpretara Sylvester no comovedor drama que acabavam de lhe revelar.
O papel de salvador que o duque parecia ter assumido não se encaixava em absoluto com ele; também não o imaginava hospedando-se num antro e repartindo seu tempo
entre as cocheiras e o quarto de um doente. De fato, o única coisa de acordo com sua personalidade tinha sido animar Phoebe a procurar refúgio em Green Street. Também
não duvidava de que Sylvester o tivesse proposto por pura malícia. Muito bem! Seu afilhado não demoraria em descobrir que não tinha acertado no alvo. Lady Ingham
estava encantada de ter Phoebe em sua casa. Não entendia como não lhe tinha ocorrido antes que a companhia de sua alegre neta era precisamente o que precisava para
aliviar o intolerável aborrecimento que experimentava durante os últimos meses, quando quase todas as suas amizades se tinham retirado no campo. Deu-se conta de
que a companhia de Phoebe seria preferível às fadigas de uma viagem a Paris, um projeto que tinha estado lhe dando voltas sem entusiasmo desde que uma de suas melhores
amigas lhe escreveu para a animar a se unir à multidão de ingleses de alto berço que tinham ido se divertir na mais maravilhosa das capitais. Esteve tentada em empreender
essa viagem, mas o plano apresentava graves inconvenientes. Significaria afastar-se de seu querido sir Henry; somente com Muker não teria nenhuma graça, e ainda
que a pobre Mary Berry pensasse o contrário, a viúva estava convencida de que a companhia de um cavalheiro era indispensável para uma dama que pretendesse viajar
ao estrangeiro. Podia contratar uma acompanhante, mas isso só aumentaria os gastos, pois seguia sendo necessário um cavalheiro para vigiar as atividades da acompanhante
contratada. Não: era muito melhor adotar a Phoebe e ver o que podia fazer pela jovem. Uma vez que a tivesse vestido adequadamente, seria um prazer, na medida em
que permitisse sua saúde, apresentá-la em sociedade.

Milady deteve-se quando chegou a esse ponto. Não tinha intenção de permitir que sua neta renunciasse ao mundo (como tinha sugerido Phoebe), mas ainda que sua saúde
talvez se beneficiasse de acompanhar a jovem a um par de bailes privados, sem dúvida essas intermináveis noites no salão Almack's ou as festas celebradas por anfitriãs
as quais a viúva mal conhecia prejudicá-la-iam. No entanto, não demorou em dar com uma solução: recordou a existência de sua submissa nora, Rosina, que tinha duas
filhas casadouras. Certamente que podia acolher a sua sobrinha sem muito transtorno.

Mas esse era um detalhe insignificante, e cedo se esqueceu dele; bem mais importante e difícil de resolver era a charada que envolvia o comportamento de Sylvester.

Sylvester pensava ir visitá-la. Lady Ingham tinha recebido essa mensagem com aparente indiferença, mas na realidade tinha-lhe prestado muita atenção. Assim ia vir
visitá-la. Ainda que fosse contrário as normas da viúva, se o fazia ela recebê-lo-ia afavelmente. Talvez ao vê-lo pudesse descobrir o que estava jogando. A conduta
de seu afilhado fazia-lhe supor que se tinha apaixonado de Phoebe e que sua intenção era lhe causar boa impressão. Mas se o relato de Phoebe do que tinha passado
durante a estadia do duque em Austerby era verídico, era difícil perceber que tinha visto Sylvester na jovem que o tinha cativado. A viúva não achava que o duque
tivesse ido a Austerby muito predisposto a que lhe agradasse o que ia encontrar, porque era consciente de que na última entrevista que tinham mantido, Sylvester
se tinha aborrecido. Tinha duvidado, ao ver um brilho de ira nos olhos do duque, se devia insistir no assunto ou não. E tinha decidido apostar forte porque ele tinha
manifestado que tinha intenção de se casar; e uma vez que ele tivesse tomado essa decisão, era evidente que não tinha tempo a perder para lhe apresentar Phoebe.

Ao recordar os rigorosos termos que tinha ordenado a Marlow que não falasse daquilo a ninguém, apertou os punhos. Devia ter imaginado que lady Marlow não demoraria
em extraí-lo do tagarela de seu marido; no entanto, jamais ter-lhe-ia ocorrido suspeitar que lady Marlow fosse tão estúpida para revelar a Phoebe um plano que sem
dúvida alguma a poria contra Sylvester.

No entanto, não fazia sentido se enfurecer pelo que já não podia remediar-se. A causa ainda não estava perdida. Muitos homens apaixonavam-se por jovens pouco apropriadas
para eles; havia a possibilidade de que Sylvester, indiferente aos encantos de muitas belezas que tinham lançado seus chamarizes temporada após temporada, se tivesse
sentido atraído por Phoebe porque era, para usar um eufemismo, uma jovem diferente que, longe de se deixar cortejar por ele, o tinha recusado abertamente.

Era possível, mas pouco provável, pensou lady Ingham, que conhecia bem a Sylvester. Talvez tivesse se sentido ferido em seu orgulho; custava-lhe achar que tivesse
ficado fascinado. Sylvester dava muita importância aos bons modos; nunca, nem sequer em sua tenra juventude, se tinha comportado com excentricidade. E mais, os escândalos
das pessoas estrambóticas não mereciam, para ele, mais que um desdenhoso encolhimento de ombros; de maneira que, como podia se pensar que tivesse encontrado algo
admirável numa jovem tão extravagante?

Era bem mais lógico que a conduta de Phoebe lhe tivesse desagradado. Inclusive que o tivesse enfurecido, refletiu a viúva. Devia de ser humilhante para qualquer
homem saber que a perspectiva de receber uma proposta de casamento tinha levado a uma jovem de boa família a fugir de sua casa, mas para um homem orgulhoso como
Sylvester devia ser intolerável.

De repente a viúva pensou na possibilidade de que Sylvester não tivesse enviado a Phoebe a Londres para castigá-la, mas a sua neta. Sem dúvida devia de supor que
lady Ingham, ao se inteirar do despropositado comportamento de Phoebe, jogá-la-ia dali com horror. Como Sylvester não tinha conhecido Verena, não levou em conta
de que quando a jovem relatasse sua aventura a lady Ingham, esta não veria Phoebe mas Verena.

O excesso de sensibilidade não era um dos defeitos de lady Ingham. Tinha experimentado um momento de dolorosa nostalgia, acordada por uma fugaz expressão do rosto
de Phoebe, mas a viúva não queria pensar nisso. Não era Verena que a preocupava, mas a filha de Verena. Se Sylvester esperava que lady Ingham censurasse Phoebe,
ficaria decepcionado, o que seria muito bem feito por sua malícia.

Quando se achava a ponto de se dormir, a viúva se lembrou da filha da dona da hospedaria. Tinha sido Sylvester que tinha feito questão de que a rapariga acompanhasse
Phoebe à Londres, e qualquer que fosse o motivo que o tivesse feito tomar tal decisão, não se tratava de malícia. Não era prudente abrigar demasiadas esperanças,
pensou sonolenta, mas ainda não tinha motivos para desesperar.

Capítulo 14

À manhã seguinte, Phoebe encontrou a sua avó muito animada e com muitos projetos. Os mais urgentes eram uma visita a uma loja de sedas e outra a sua costureira.
“Agora o mais importante é te vestir adequadamente, filha — disse a viúva —. Põe-me doente ver-te com esse vestido andrajoso.

A perspectiva de eleger um tempo à moda seduzia-a, mas Phoebe teve que suplicar a sua avó que adiasse esse programa. Tinha prometido a Alice que lhe mostraria os
lugares mais destacados de Londres e, em particular, que a levaria as compras no Pantheon Bazar.

A Phoebe custou-lhe que sua avó desse seu consentimento a esse plano, porque não encaixava em absoluto com seu sentido do decoro permitir que sua neta passeasse
por aí sem outra companhia que uma vulgar camponesa. Lady Ingham disse a Phoebe que Alice desfrutaria mais em companhia de uma das serventes, mas ao final acedeu
a autorizar uma excursão ao Pantheon Basear, pois se tinha lembrado de que antes de poder pôr em prática seus propósitos tinha que escrever cartas a lord Marlow
e a sua nora.

Phoebe já tinha escrito a seu pai e tinha conseguido frustrar as intenções da viúva de enviá-la à cidade em seu carro lhe recordando que o cocheiro protestaria se
o obrigassem a esperar na rua com os cavalos quietos sob o mau tempo. Phoebe tinha uma missão secreta a realizar, e não queria que o cocheiro de lady Ingham explicasse
a sua ama que a primeira parada de Phoebe tinha sido o escritório de Newsham & Otley, os editores.

A jovem entrou no edifício com grandes esperanças, e saiu dele sob uma ansiedade tão profunda que lhe custou prestar atenção ao êxtase de Alice diante tudo quanto
via. A Phoebe não se lhe tinha ocorrido que pudesse ser demasiado tarde para eliminar de sua novela, que estava a ponto de se publicar, qualquer referência às características
sobrancelhas do conde Ugolino.

No entanto, assim foi. O senhor Otley, diante uma jovem que não tinha dado seu nome, ataviada com um feio vestido, que afirmava ser a autora do herdeiro perdido,
sentiu grande curiosidade. Seu sócio e ele tinham especulado com frequência a respeito da identidade dessa temerária autora, mas nenhum tinha suspeitado que pudesse
ser uma colegial sem nenhum estilo. O senhor Otley transformou-se, e adotou um tom um tanto condescendente. A atitude de Phoebe era sumamente cordial, ainda que
não estivesse acostumada que uma pessoa da categoria do senhor Otley se dirigisse a ela daquele modo. O senhor Otley, ao perceber um ar de assombro na expressão
da jovem, apressou-se a examinar sua primeira impressão e decidiu que o melhor era chamar a seu sócio. A atitude do senhor Newsham foi a ideal: uma boa mistura de
respeito e paternalismo. Se fosse possível, teria atrasado de bom grado a publicação do livro e corrido com os gastos de voltar a imprimir o livro inteiro. Mas...
ai! A data do lançamento já se achava determinada, a apenas um mês, e a edição já estava preparada. Lamentava-o muitíssimo, mas atrevia-se a afirmar que, de qualquer
forma, a autora ficaria muito satisfeita com o resultado de seu trabalho.

Claro, Phoebe estava satisfeita. Os três volumes eram muito bonitos; estavam elegantemente encadernados em pele de cor azul, as páginas tinham bordas douradas e
o título aparecia em relevo na capa. Parecia impossível que essas opulentas capas encerrassem uma história inventada por ela. Quando lhe puseram os volumes nas mãos,
a Phoebe lhe escapou um gritinho de prazer; mas quando abriu o primeiro volume a esmo seu olhar foi a parar em um parágrafo fatal:

O conde Ugolino possuía um físico extraordinário. Sua figura era elegante; seu porte, distinto; seu aspecto, o de um homem de alto berço; suas feições, muito atraentes;
mas seus olhos felinos, de expressão sinistra, estragavam as proporções clássicas de seu rosto. Matilda não pôde evitar um calafrio de repulsão.

Também a criadora de Matilda não pôde evitá-lo; fechou precipitadamente o livro e olhou com gesto implorante ao senhor Newsham.

— Não posso permitir que o publique!

Fez falta tempo e paciência para convencer a Phoebe de que não estava em sua mão deter a publicação de sua obra, mas o senhor Newsham não se importou de os empregar.
Era muito persuasivo, e como era o bastante astuto para perceber que uma previsão otimista das possibilidades de sucesso do livro só conseguiria consternar ainda
mais à autora, lhe explicou que era muito estranho que uma primeira novela passasse de umas vendas modestas, e assinalou a escassa probabilidade de que os membros
da boa sociedade se interessassem no livro.

Phoebe tranquilizou-se um pouco, mas quando saiu do escritório estava decidida a escrever imediatamente à senhorita Battery, suplicando-lhe que utilizasse a influência
que tinha sobre seu primo a fim de suspender a publicação do livro. O senhor Newsham, por sua vez, depois de despedir Phoebe, foi procurar em seguida a seu sócio
e disse-lhe:

— Não me disseste que essa prima tua é a professora da casa de um nobre — Quem é ele? Crê-me, essa jovem é sua filha e o livro vai ser um sucesso.

— Quem é essa personagem (me refiro a real) cuja descrição quer mudar? — perguntou o senhor Otley, nervoso.

— Não sei. Algum nobre. E esses não processam por difamação!

A carta da senhorita Battery chegou a mãos de sua ex-pupila quase uma semana mais tarde, e então Phoebe, envolvida no que lhe parecia um torvelinho de atividade
social, não tinha tempo para se ocupar de seus problemas literários. Era impossível preocupar-se muito quando sua vida se tinha transformado milagrosamente. A decepcionante
enteada de lady Marlow tinha-se convertido na menina mimada de sua avó, e Phoebe tinha mudado de forma assombrosa. Lady Ingham estava muito satisfeita. Phoebe nunca
seria uma beleza, mas quando se vestia bem e não temia se equivocar a cada vez que abrisse a boca, era uma criatura muito agradável. Só precisava alguma experiência
nos costumes da cidade, mas cedo adquiri-la-ia.

A senhora Battery escreveu a Phoebe uma carta muito afetuosa mas não muito útil. A professora conhecia melhor as dificuldades de publicar um livro, e só podia lhe
aconselhar que não se preocupasse em excesso pela possibilidade de que o duque lesse sua novela. Seguramente que não a leria; e se o fizesse, Phoebe devia recordar
que ninguém tinha por que saber que ela a tinha escrito.

Era consolador, mas Phoebe sabia que sentir-se-ia culpada cada vez que se encontrasse a Sylvester, e quase desejava não ter escrito o livro. Após como tão bem se
tinha portado com ela, retratá-lo como um vilão era uma traição; e de nada servia, se disse com severidade, alegar que o tinha feito antes de estar em dívida com
ele, pois era uma débil desculpa.

Ainda não tinha começado a temporada, mas o clima, extraordinariamente frio, estava provocando que muita gente voltasse à cidade. Iam celebrar-se algumas festas
pequenas; lady Ingham profetizou que a temporada achar-se-ia em seu apogeu muito antes da festa inaugural do Almack's, e queria que se soubesse o quanto antes que
sua neta vivia com ela. De nada serviu que Phoebe lhe assegurasse que não lhe interessavam os bailes.

— Bobagens! — disse a viúva.

— Mas se é verdade, avó. Sinto-me como uma estúpida nas festas importantes.

— Não tens por que te sentir estúpida sabendo que vais tão elegante como qualquer outra jovem e bem mais que a maioria delas — replicou lady Ingham.

— Mas avó! — protestou Phoebe —. O que pretendia era te ajudar e te fazer companhia, e não sair a uma festa todas as noites.

A viúva olhou-a com dureza, percebeu que seu tom angelical se contradizia com o brilho malicioso de seu olhar e pensou: “Se Sylvester tivesse visto esse olhar...!
Mas por que não terá vindo nos visitar ainda?

Phoebe também se perguntava por que o duque não se tinha apresentado em Green Street. Não lhe ocorria nenhuma razão pela qual pudesse querer voltar a vê-la, mas
Sylvester lhe tinha pedido que dissesse a sua avó que a iria visitar quando voltasse à cidade, e sem dúvida alguma já devia estar a vários dias em Londres. Phoebe
sabia que Tom tinha voltado a sua casa, de modo que o duque não podia ter ficado no Blue Boar. Não se sentia ofendida em absoluto, mas em várias ocasiões se tinha
surpreendido desejando que Sylvester aparecesse na casa de sua avó. Tinha tanto que lhe contar! Nada importante, é claro: só coisas engraçadas, como alguns comentários
de Alice que sua avó não tinha achado nada divertidos (sua avó não se tinha mostrado muito amável com Alice); e que seu pai a tinha repreendido por carta, não por
se ter escapado de Austerby, mas por ter partido sem antes lhe dizer onde estava a chave do baú onde se guardavam os unguentos dos cavalos. Isso sua avó também não
tinha achado engraçado; e os chistes perdiam parte da graça quando não tinha ninguém com quem os compartilhar. Sim, era uma lástima que o duque não tivesse ido a
Londres.

Na realidade, Sylvester tinha ido à cidade, mas tinha voltado a sair quase de imediato para Chance, pois uma das primeiras notícias que tinha recebido na sua chegada
a Salford House foi que lady Henry também se achava em Londres, com seu filho, em casa de lord e lady Elvaston. Como sua cunhada não lhe tinha mencionado que tivesse
a intenção de ausentar-se de Chance, Sylvester se aborreceu muito. Suas idas e vindas não eram assunto seu (ainda que não tivesse nenhum direito de se levar Edmund
sem sua permissão), mas considerava imperdoável que tivesse deixado sozinha à duquesa durante sua ausência, e sem lhe avisar. De maneira que regressou a Leicestershire;
no entanto, só ficou alguns dias em Chance, pois encontrou a sua mãe de muito bom humor e esperando a visita de sua irmã. Durante sua estadia ali não mencionou a
visita a Austerby. A duquesa achou que seu filho tinha passado todo aquele tempo em Blandford Park; e como tinha ordenado a Swale e a Keighley que guardassem um
discreto silêncio, estava praticamente convencido de que o relato de suas aventuras não chegaria aos ouvidos de sua mãe.

Ter-lhe-ia custado explicar por que não desejava que sua progenitora se inteirasse de um episódio que sem dúvida tê-la-ia divertido; e dado que isso lhe produzia
certa apreensão, não quis aprofundar no assunto. Além disso, a sua mãe não teria satisfação alguma em saber que tinha visitado a filha de sua querida amiga e que
tinha decidido que não merecia se converter em sua esposa.

Em Londres esperavam-no numerosos compromissos, entre eles uma elegante nota de lady Barningham o convidando a um baile em sua casa nessa mesma noite (desde que
não desdenhasse as reuniões informais com poucas pessoas). A filha de lady Barningham era aquela jovem divertida que ocupava o segundo posto na lista de cinco candidatas
a se converter em sua esposa. Como não tinha outros planos que passar por algum dos clubes a que pertencia, Sylvester decidiu se apresentar na casa dos Barningham,
onde com toda segurança encontraria alguns de seus amigos, e na qual sem dúvida sua anfitriã aceitaria suas desculpas por não ter respondido antes a seu convite.

Não se equivocou em nenhum aspecto. Sua chegada coincidiu com a de lord Yarrow, que o saudou na entrada e lhe perguntou onde demônios tinha estado escondido. No
salão encontrou a outros dois bons amigos seus, e a anfitriã, ao recebê-lo, disse-lhe que suas desculpas eram desnecessárias, e inclusive absurdas, porque já que
esse baile não era mais que uma improvisação. Que podia se fazer, senhor duque, no mês de março, quando Londres ainda se achava tão vazia?

— É verdade o que diz — replicou ele —. Não tenho nada mais que fazer além de me alegrar de ter chegado a Londres a tempo para vir hoje a sua casa, e posso me considerar
afortunado por me ter poupado uma merecida reprimenda.

— Como se não nos conhecêssemos o suficiente para poder nos poupar cerimônias! Já lhe adverti que esta noite não encontraria nada disso aqui. Não lhe vou apresentar
a ninguém; decida você mesmo com quem quer dançar, porque acho que conhece você a todo mundo.

Lady Barningham estava muito contente, mas teve a prudência de não exteriorizar sua sensação de triunfo para que ninguém sentisse ciúmes. Com Salford nunca se sabia,
e se ela mostrava auto-complacência, algumas de suas queridas amigas que estavam presentes nesse dia podiam lhe recordar, mais adiante, se ocorresse outra temporada
sem que o duque tivesse proposto casamento a Caroline, ou se em lugar disso pedisse a mão de Sophia Bellerby ou a da encantadora lady Mary Torrington. Não convinha
ser demasiadamente otimista. Tinha-o sido o ano anterior, e sua excelência não tinha cumprido suas expectativas; e por muito que parecesse gostar da companhia de
Caroline, ninguém podia o acusar de monopolizá-la. Nenhuma das doze jovens presentes essa noite voltariam para casa com a impressão de que o duque não lhes tinha
prestado atenção, e com pelo menos três delas tinha flertado abertamente.

Lady Barningham teria ficado consternada se tivesse sabido que Sylvester tinha descoberto um triste defeito em sua filha Caroline: era demasiado dócil. Bastava que
ele arqueasse as sobrancelhas e exclamasse “Não fala sério!” para que ela, no mesmo instante, se deixasse dissuadir. Caroline não tinha intenção de discutir com
ele, porque sabia que o duque era mais inteligente que ela. Bah! Se achava que gostava desse tipo de bajulação se equivocava: eram aborrecidíssimos. E não é que
não lhe tivesse agradado a festa: tinha passado uma noite agradável rodeado de amigos e, depois de sua experiência em Somerset, tinha sido muito gratificante que
o recebessem com tanta cordialidade. Perguntava-se como recebê-lo-iam em Green Street, e sorriu com ironia ao recordar qual era o motivo pelo que seu madrinha o
contemplava nesse momento com hostilidade.

Mas não detectou nenhum sinal de hostilidade no rosto nem no tom de lady Ingham quando o conduziram ao salão da viúva; e mais, seu madrinha recebeu-o com maior entusiasmo
que sua neta. Sylvester encontrou a ambas mulheres em casa, mas Phoebe estava escrevendo uma nota, e ainda que se levantasse para apertar-lhe a mão e lhe dedicou
um sorriso cordial, lhe pediu que a desculpasse enquanto terminava sua tarefa.

— Entre e sente-se, Sylvester! — disse lady Ingham —. Estava desejando que se apresentasse a ocasião de te agradecer por ajudar a Phoebe. Já imaginar-ás o quão agradecida
estou. Segundo contou-me, não a teria aqui comigo de não ser por tua amável intervenção.

— Com todo respeito, como posso contestar a uma madrinha quando esta se põe a dizer tolices? — replicou Sylvester beijando-lhe a mão —. Pensa ficar muito tempo aqui
a senhorita Marlow?

— Vai ficar vivendo comigo — respondeu a viúva sorrindo-lhe de maneira afável.

— Que maravilha!

— Não seja hipócrita — interveio Phoebe enquanto procurava um biscoito pela mesa —. Não pode fingir que seja maravilhosamente grato para você suportar minha companhia.

— Não tenho nenhuma necessidade de fingir. Talvez ache que não sentimos saudades quando nos deixou— Prometo-lhe que sim!

— Porque lhe faltava uma quarta pessoa para jogar o whist? — perguntou ela, e retirou a cadeira.

Sylvester levantou-se quando a jovem se acercou da lareira, e replicou:

— Nada disso. Não tivemos ocasião de jogar o whist. O senhor Orde só ficou uma noite mais conosco.

— Como? Levou Tom para sua casa em seguida?

— Não, o deixou comigo enquanto ele voltava a sua casa para acalmar os ânimos da senhora Orde e de lord Marlow. Regressou três dias depois, e levou Thomas num carro
enorme, equipado pela senhora Orde com todo tipo de comodidades, desde almofadas até frascos de sais.

— frascos de sais! Não!

— Asseguro-lhe. Pergunte a Thomas se não tentou os atirar pela janela! Mas conte-me como foi com você. Sei por Keighley que chegaram à cidade naquela mesma noite.
Estava muito cansada?

— Sim, mas não me importou. E quanto a Alice, acho que teria seguido viajando tão feliz durante horas. Ah, devo dizer-lhe que para ela você foi eclipsado, senhor
duque.

— Sério? — disse ele com desconfiança —. Por quem? Por um monstro de feira?

— Não, não — riu Phoebe —. Por Horwich!

— Oh, isso me anima muito. E o que fez Horwich para ganhar a admiração de Alice?

— Portar-se com ela de forma odiosa. Trata-a como se fosse uma barata, como ela mesma disse. Temi que Alice se sentisse muito desgraçada, mas duvido que algo que
tenha podido ver em Londres a tenha impressionado tanto. Confessou-me que Horwich encaixava muito melhor que você com a ideia que tinha do que é um duque.

Sylvester soltou uma gargalhada e pediu a Phoebe que seguisse falando de Alice. Mas a viúva assinalou que não lhe faziam graça as camponesas, assim Phoebe contou
ao duque sobre a carta de seu pai, o que Sylvester achou engraçadíssimo para desespero da viúva. A necessidade de lord Marlow ainda a divertia menos que as camponesas.

Sylvester não ficou por muito tempo, nem lhe ofereceram a ocasião de manter uma conversa sozinha com Phoebe. O único tête à tête que lhe concederam foi com sua madrinha,
que encontrou um pretexto para fazer sair Phoebe da sala uns minutos, momento que aproveitou para dizer a seu afilhado:

— Alegro-me de que não dissesses à jovem que sou a responsável de que fosses a Austerby. Lamento o ocorrido, Sylvester, e agradeço-lhe que a tenha me enviado, quando
sem dúvida deves de estar zangado comigo. Se tivesse sabido que ela já te conhecia, e que não gostava, não ter-lhe-ia proposto que a fosses visitar. No entanto,
não passou nada, e não há que se dar mais voltas. Ela não as dará, e podes confiar em que eu também não. Agora que a conheço melhor me dou conta de que não és o
tipo de homem que ela precisa. Não estranharia nada que fosse tão difícil de contentar como sua mãe.

Sylvester não teve que contestar a essa conversa porque Phoebe voltou a entrar na sala nesse instante. O duque levantou-se e, ao apertar a mão a Phoebe, disse:

— Espero que voltemos a nos ver brevemente. Suponho que assistirá a todas as festas que se celebrem. Quase não me atrevo a lhe perguntar (ainda que não sei se é
verdade que fui descortês com você no Almack's) se quererá me reservar alguma dança.

— Sim, é claro. Seria de muito má educação que recusasse seu convite, não acredita?

— Devia imaginá-lo! Como terei sido tão néscio para lhe oferecer a oportunidade de me dar uma de suas reprimendas?

— Não o tenho repreendido! — protestou ela.

— Pois que o céu me ajude no dia que me repreenda! Adeus! E não se torne demasiadamente cortês, lhe rogo. Ainda que não sei por que lhe peço, porque me parece algo
impossível.

Capítulo 15

Antes de voltar a vê-lo, Phoebe conheceu outro membro da família de Sylvester: uma manhã acompanhou a sua avó numa visita e ali coincidiu encontrar com lady Henry
Rayne.

Várias damas tinham elegido esse dia para ir visitar à idosa senhora Stour, mas as únicas representantes da geração mais jovem eram lady Henry e a senhorita Marlow.
Lady Henry, que tinha ido com sua mãe, estava tão enfadada que até lhe aliviou o aparecimento de uma jovem a quem não conhecia. Aproveitou a primeira oportunidade
que se apresentou para mudar de assento e se sentar ao lado de Phoebe.

— Acho que conhecemo-nos — disse esboçando um amável sorriso —, mas sou tão estúpida que nunca recordo os nomes.

— Bom, não exatamente — replicou Phoebe com sua habitual sinceridade —. Só a vi duas vezes em minha vida, e nunca nos apresentaram. A segunda foi na ópera, mas a
primeira foi no baile de lady Jersey, no ano passado. Certamente que você achou que já nos conhecíamos porque nesse dia cometi a grosseria de ficar olhando-a fixamente.
Mas é que estava tão formosa que não podia apartar a vista. Rogo-lhe que me perdoe. Pensará que sou uma impertinente.

Como era de esperar, a Lianthe não lhe pareceram nada impertinentes os comentários de Phoebe. As palavras que tinha dirigido a Phoebe só eram uma fórmula para estabelecer
uma conversa; na realidade não recordava tê-la visto, mas disse:

— Nada disso! Lamento que não nos tenham apresentado até hoje. Não venho muito a Londres — acrescentou com um sorriso nostálgico —, porque sou viúva.

— Oh!

Phoebe ficou muito impressionada. Lianthe não parecia muito mais velha que ela, assim lhe custava achar que já tivesse enviuvado.

— Casei-me quando só era uma criança — explicou Lianthe —. Não sou muito velha, mas meu esposo morreu faz já em vários anos.

— Achava que você devia ter a mesma idade que eu — disse Phoebe com franqueza.

Não precisava de nada mais para selar a amizade; Lianthe, divertida pelo erro de Phoebe, revelou-lhe que seu único filho tinha seis anos. “Oh, não! Impossível!”,
exclamou Phoebe, e sem dar-se conta, pôs-se a interpretar o papel de confidente. Assim foi como, em vinte minutos, se inteirou de que a família do esposo de Lianthe
a tinha obrigado a viver como uma reclusa, e que esperava que passasse o resto de sua viuvez num bucólico confinamento.

— Não entendo como cede ante ideias tão bárbaras! — disse Phoebe, consternada.

— Ai! É que há uma pessoa que tem uma arma contra a qual não posso lutar — disse Lianthe em tom melancólico —. É o único árbitro do destino de meu pobre filho. As
circunstâncias determinaram que de um único golpe perdesse a meu esposo e a meu filho. — Deu-se conta de que Phoebe a olhava com perplexidade e acrescentou —: Edmund
não ficou sob minha tutela. Não devo dizer mais nada, e de fato já falei demasiado; mas tão cedo a vi soube que o entenderia. Estou segura de que posso confiar em
você. Não imagina o alívio que tenho em poder falar com franqueza; normalmente tenho que ser bem mais reservada. Mas não devo seguir falando de meus problemas!

E ainda que tivesse querido fazê-lo, não teria podido, porque nesse momento viu que lady Elvaston se tinha levantado para se despedir de sua anfitriã. Lianthe levantou-se
também; estendeu uma mão a Phoebe e disse com sua doce voz:

— Vejo que minha mãe se dispõe a partir, assim devo me despedir de você. Vai ficar muito tempo na cidade? Desejaria voltar a vê-la. Por que não vem me visitar algum
dia? Gostaria que conhecesse a meu filho.

— Ah, mas está com você? — estranhou-se Phoebe —. Achava que... Mas sim, claro que gostaria de visitá-la, senhora.

— Asseguro-lhe que em Chance não gostaram nada que o trouxesse à cidade — disse Lianthe em tom lastimoso —. Mas nem sequer seu tutor pode impedir-me que o leve para
visitar meus pais. Minha mãe adora-o, e ter-lhe-ia doído muito que não o levasse comigo.

Apertou a mão a Phoebe e partiu, deixando esta presa entre a dúvida e a curiosidade.

Desde o princípio, Phoebe tinha ficado fascinada pela beleza de Lianthe, e como só levara um minuto falando com ela, já estava cativada por seus sedutores modos
e pelo encanto de um sorriso que delatava a coragem com que enfrentava seus desvelos. Mas Phoebe era uma observadora muito perspicaz e com muito senso comum; e ainda
que o lado mais romântico de seu caráter fosse sensível ao ar de trágico mistério que envolvia Lianthe, a parte mais prática de si mesma detectava certas anomalias
no que sua nova amiga lhe tinha revelado e a induzia a pensar que as confidencias que esta lhe tinha feito em tão pouco tempo talvez não fossem totalmente sinceras.

Estava desejando descobrir a identidade de Lianthe. Já sabia que era membro da família Rayne, mas essa família era muito numerosa, e Phoebe ignorava o grau de parentesco
que tinha com Sylvester. Certamente que sua avó poderia responder as suas dúvidas.

Lady Ingham lhe esclareceu em seguida.

— Lianthe Rayne? — disse no carro quando se tinham despedido da senhora Stour —. Uma jovem muito formosa, não é verdade? Um pouco simples, é claro, mas disso não
a podem culpar. É a filha de Elvaston, e casou-se com o pobre Harry Rayne no mesmo ano que se apresentou em sociedade. Seu esposo morreu quando seu filho ainda usava
fraldas. Uma desgraça! Acho que nunca descobriram de que tinha morrido; parecia o homem mais são do mundo. Alguma anomalia interna, suponho. Se tivessem consultado
a meu querido sir Henry Halford!

— Já sabia que tinha estado casada com um membro dessa família, avó, mas quem era seu esposo?

— Quem era seu esposo? — repetiu a viúva —. Pois o irmão mais novo de Sylvester! Seu irmão gêmeo, na verdade, para piorar as coisas.

— Então o menino... o filho de lady Henry... — balbuciou Phoebe.

— Ah, não, que eu saiba ao menino não lhe parecia em nada — replicou a viúva inclinando-se para frente para ver melhor a vitrine de uma casa de chapéus —. Querida,
não sei se esse chapéu de palha... Não, essas flores rosadas não a favoreceriam. Que me dizias? Ah, sim, o filho de Harry! Uma criança encantadora, segundo tenho
entendido. Não o conheço. Vive em Chance.

— E é...— Se não entendi mal a lady Henry, é o pupilo do duque, não?

— Sim, e também seu herdeiro, ainda que não ache que isso tenha importância. Já vejo que Lianthe ficou se lamentando de sua situação. — Olhou a Phoebe e prosseguiu
com franqueza —: Não a aconselho que penses demasiado no que possa te ter dito essa mulher, querida. A verdade é que Sylvester e ela nunca se deram bem. Lianthe
pôs-se feita uma cobra quando descobriu a situação em que tinha ficado depois da morte de seu esposo (e ser-lhe-ei sincera: acho que a mãe deveria ter compartilhado
a tutela do menino com Sylvester) e ele nunca tomou a preocupação de tratá-la com tato.

— Isso não me custa o crer! Sylvester trata bem a seu sobrinho?

— Suponho que sim, porque é o filho de Harry, ainda que digam que o menino é o vivo retrato de sua mãe. Mas querida, os homens da idade de Sylvester não costumam
adorar aos meninos pequenos. Certamente que cumpre com seu dever para com ele.

— Minha madrasta também cumpriu com seu dever para comigo. Parece-me que entendo quais devem de ser os sentimentos de lady Henry.

— Não estejas tão segura! Dado que cedo ou tarde ouvirás alguém comentar, devo te dizer que agora o estão disputando porque essa tonta quer voltar a se casar, e
sabe que Sylvester não permitirá que leve ao menino de Chance.

— Oh! — exclamou Phoebe, escandalizada —. Como pode ser tão cruel? Talvez espera que Lianthe siga viúva toda a vida— Ainda que após ter estado casada com um Rayne,
estranha-me que queira voltar a tentá-lo. Que gente tão arrogante!

— Antes de que te exaltes — replicou a viúva com aspereza —, permita-me dizer-lhe que se por arrogância Sylvester se nega a permitir que seu herdeiro se crie com
Nugent Fotherby, a criança deveria se considerar afortunada de que seu tio seja arrogante.

— Nugent Fotherby? — disse Phoebe, assombrada; de repente, sua justificada ira tinha desaparecido —. Não dizes a sério, avó! Referes a esse inútil que não pode nem
girar a cabeça porque o pescoço de sua camisa é demasiado alto, e que pagou a meu pai trezentos guinéus por um vistoso cavalo que qualquer com um pouco de entendimento
teria visto que era de complexão débil?

— Eu não entendo nada de cavalos — reconheceu a viúva, um tanto surpreendida —. E quanto a teu pai, se convenceu a Fotherby para que lhe comprasse um ruim, me parece
um ato muito mesquinho.

— Não, avó! — disse Phoebe com veemência —. Asseguro-lhe que a atitude de meu pai neste caso não pode censurar-se. Se um cavalheiro que não sabe distinguir um bom
cavalo de um cavalo de pau decide se fazer passar por um entendido, merece levar uma decepção.

— Tens razão — concedeu a viúva.

Phoebe permaneceu calada um momento, mas depois prosseguiu, pensativa:

— Olhe, avó, não acho que possa recriminar a Salford que não queira que seu sobrinho se crie com um padrasto assim.

— O mesmo creio eu. E mais, acho que nesse sentido Salford e Elvaston estão de acordo. Elvaston não aprova esse casamento, mas suponho que acabará dando seu consentimento.

— Pois meu pai não o faria! — disse Phoebe com franqueza —. Em certa ocasião assegurou-me que se algum dia metesse na cabeça de me casar com um janota que, além
de ser um mequetrefe e uma calamidade que não sabe distinguir um puro sangue de um cavalo de fazenda, deixando que todo mundo se aproveite dele, se desinteressaria
de mim.

— E se essa é a linguagem que considera adequada para te ensinar, quanto antes se desinteresse, melhor — retrucou milady em tom cortante.

Phoebe, muito envergonhada, pediu desculpas a sua avó e durante o resto do trajeto seguiu refletindo em silêncio.

Seus pensamentos não eram nada agradáveis, mas não era a falta de gosto de lady Henry o que a deprimia, mas a existência do filho órfão de lady Henry.

Ante essa funesta notícia a princípio ficou consternada, mas depois experimentou a profunda convicção de que o destino e Sylvester se tinham confabulado com o único
propósito de a destroçar. Fazia muito tempo que sabia que o destino era seu inimigo, e claramente responsável pela coincidência. E quanto a Sylvester, por muito
que a um observador pudesse lhe parecer que não podia culpá-lo de ter um sobrinho que também era seu pupilo, qualquer um que o conhecesse um pouco daria conta no
mesmo instante de que essa era uma conduta típica dele. E se não queria encarnar o vilão de uma novela, não deveria ter umas sobrancelhas tão satânicas. Ou ao menos,
corrigiu-se a ressentida autora, teria podido esforçar-se para ser mais agradável com ela no baile de lady Sefton, em lugar de recitar elogios e formalidades e a
olhar, sem mal a ver, com tanta frieza e indiferença. Então nunca teria lhe ocorrido considerá-lo maligno, porque quando Sylvester sorria não parecia em absoluto
perverso. Mais ao invés disso, admitiu, e se deu conta com certa surpresa que apesar de que, durante a estadia no Blue Boar, Sylvester a tenha feito enfurecer em
várias ocasiões, nunca, desde o momento em que entrou na pousada, Phoebe tinha percebido alguma coisa pérfida em seu aspecto.

Essas reflexões levaram-na a recordar que se achava em dívida com ele, e se apoderou dela um desânimo do que lhe era difícil se livrar. Só tinha uma coisa que lhe
proporcionava alívio: pensar que Sylvester não tinha por que saber quem tinha escrito O herdeiro perdido. Mas esse era um consolo muito pobre, porque a ignorância
de Sylvester não diminua a gravidade a perfídia de Phoebe.

Era provável que, se não tivessem voltado a se encontrar casualmente as duas jovens dois dias mais tarde, Lianthe tivesse esquecido seu desejo de conhecer melhor
a Phoebe; mas uma vez mais o destino interveio nos assuntos da jovem Marlow. Sua avó enviou-a a Bond Street a levar uns recados acompanhada de Muker, e Phoebe viu
um landau parado junto a cera e a Lianthe, a viva imagem da maternidade, que ajudava a seu filho a subir no carro. Quando percebeu Phoebe, Lianthe expressou sua
alegria e em seguida lhe apertou a mão. “Que bom! Deve ter algum encargo muito importante— Venha a minha casa! Minha mãe foi a Wimbledon visitar a uma de minhas
irmãs, assim estaremos sozinhas e poderemos conversar tranquilamente.” Sem esperar que Phoebe aceitasse seu convite, disse a Muker que a senhorita Marlow voltaria
mais tarde no landau; fez subir a Phoebe ao carro e pediu a seu filho Edmund que saudasse a sua amiga.

Edmund tirou o gorro com borlas, expondo seus dourados cabelos ao vento. A semelhança com sua mãe era muito acentuada. Tinha a cútis clara e delicada, os olhos grandes
de um azul intenso e o cabelo sedoso, como Lianthe; mas sua compleição robusta e o gesto de determinação da boca e o queixo conferiam masculinidade a seu aspecto.
Depois de submeter a Phoebe a um desapaixonado escrutínio, decidiu revelar-lhe uma interessante confidencia:

— Levo luvas.

— Já o vejo, e são muito bonitas — retrucou a jovem com admiração.

— Se estivesse em casa — acrescentou Edmund lançando uma misteriosa olhada a sua mãe —, não teria que as levar.

— Olhe, Edmund...

— Mas certamente que estás desfrutando com tua visita a Londres, não é verdade? disse Phoebe mudando de tema diplomaticamente.

— Claro que sim! — exclamou Lianthe —. Imagine! Seu avô prometeu levá-lo a montar no parque uma manhã, não é verdade, tesouro?

— Se portar-me bem — afirmou Edmund com inconfundível pessimismo —. Mas não vou deixar que me arranquem outro dente!

Lianthe riu.

— Edmund, já te expliquei que desta vez não o levaríamos para ver o senhor Tilton.

— Sim, mas a outra vez que viemos a Londres me disseste o mesmo — recordou-lhe o menino inexoravelmente —. Mas o tio Vester disse que tinha que ir. E fui. Não gosto
que me arranquem os dentes, ainda que me deixem os guardar numa caixinha e que ninguém os atire ao lixo — declarou Edmund com amargura.

— Isso ninguém gosta — interveio Phoebe —. No entanto, estou convencida de que foste muito valente.

— Sim — confirmou Edmund —. Porque o tio Vester disse que se não me portasse bem lamentá-lo-ia, e não gosto do modo como o tio Vester faz com que os demais o lamentem.
Faz dano!

— Já o vês! — disse Lianthe lançando uma eloquente mirada a Phoebe.

— Keighley diz que fui muito valente quando caí do pônei — explicou o menino —. Não chorei! Portei-me como um macho!

— Edmund! — exclamou Lianthe, incomodada —. Já te disse mil vezes que não quero que repitas as expressões vulgares que Keighley utiliza. Pede desculpas à senhorita
Marlow agora mesmo. Não sei que vai pensar de ti!

— Não, por favor, não lhe peça que se desculpe — suplicou Phoebe ao perceber o gesto de obstinação de Edmund.

— Keighley é um tipo estupendo — declarou Edmund com um olhar feroz —. É meu melhor amigo.

— Não me estranha — retrucou Phoebe antes que Lianthe pudesse se zangar ainda mais —. Eu também o conheço, e estou segura de que é uma pessoa magnífica. Ensinou-lhe
a montar em pônei? Fala-me de teu pônei!

Nem rápido nem preguiçoso, Edmund pôs-se a descrever seu pônei com grande detalhe. Quando chegaram à casa de lord Elvaston em Albemarle Street, o menino e a senhorita
Marlow tinham atingido um excelente grau de entendimento, e Phoebe se despediu dele com considerável pesar. Mas Lianthe já se tinha cansado da companhia do menino,
e o enviou ao seu quarto, explicando a Phoebe que se permitia ficasse com ela uma vez, ele esperaria que o fizesse sempre, o que incomodaria a lady Elvaston.

— A minha mãe não gosta que Edmund jogue no de o salão, salvo meia hora antes de se deitar.

— Achava que tinha dito que o adorava — disse Phoebe, que tinha esquecido que devia dominar sua rebelde língua.

— Ah, sim! Mas pensa que não convém que lhe dê demasiada importância — esclareceu Lianthe com um sangue frio louvável —. A conduzirei ao meu quarto para que possa
tirar o chapéu e o abrigo, porque lhe advirto que não penso em permitir que parta em seguida.

E efetivamente, passaram várias horas até que pediram o carro para levar a Phoebe a Green Street; desde então a jovem estava muito bem informada com respeito a todas
as circunstâncias do casamento, a viuvez e a proposta de segundo casamento de Lianthe. Antes de levantar-se da mesa na que lhes tinham servido um frugal almoço,
Phoebe já sabia que Sylvester nunca tinha querido carregar a responsabilidade de se ocupar do filho de seu irmão, e sua nova amiga a tinha obsequiado com vários
episódios que ilustravam a aspereza com que o duque tratava a Edmund e seu malicioso costume de animar a Edmund a desafiar a autoridade de sua mãe. O conde Ugolino
não era mais repulsivo que o insensível indivíduo que Lianthe lhe tinha descrito. Talvez não tivesse querido a seu irmão gêmeo? Bom, sim, a sua maneira, talvez.
Mas a viúva de Henry Rayne nunca esqueceria a cruel conduta de seu cunhado quando seu esposo, depois de vários dias de horrível sofrimento, exalou seu último suspiro.

— E isso que morreu em seus braços! Qualquer um teria pensado que era um pedaço de gelo, minha querida senhorita Marlow. Não derramou nem uma única lágrima e não
me dirigiu nem uma única palavra. Já se pode imaginar quão infeliz que eu estava. Completamente desconsolada! Quando vi que Sylvester deitava a meu amado esposo
na cama, e lhe ouvi dizer que tinha morrido (com uma frieza assombrosa!), apoderou-se de mim uma pena tão profunda que os médicos temeram por minha saúde. Estive
histérica três dias, mas a ele não se importou, é claro. Acho que nem sequer inteirou-se, porque saiu da casa sem olhar-me sequer, e não voltei a vê-lo até passadas
em várias semanas.

— Tenho entendido — disse Phoebe, à que essas evocações tinham feito sentir muito incômoda— que há pessoas a quem lhes custa muito exteriorizar seus sentimentos
mais profundos. Acho que não é correto supor que não os têm.

— Oh, não! Mas a reserva me era odiosa — disse Lianthe, ainda que fosse evidente —. E não acho que Sylvester possua sentimentos desse tipo, porque estou segura de
não conhecer ninguém com menos sensibilidade. A única pessoa pela qual sente afeto é sua mãe. Admito que a adora, o que, em minha opinião, é absurdo.

— Mas você mantém uma boa relação com a duquesa, não é verdade? — perguntou Phoebe com a esperança de dar uma orientação mais feliz aos pensamentos de Lianthe —.
Porta-se bem com você?

— Sim, é claro, mas também não entende muito bem o desesperado de minha situação. E não confio em que tente sequer convencer a Sylvester para que não me separe de
meu filho, porque o idolatra. Compadeço-me da mulher que se casar com Sylvester! Terá que ceder a todos os desejos da duquesa.

— Bom, talvez Sylvester nunca se case — sugeriu Phoebe para tranquilizar a sua interlocutora.

— Pode estar segura de que se casará, ainda que só para evitar que o pobre Edmund tenha direito à sucessão. Minha mãe está convencida de que já anda procurando esposa,
e que em qualquer momento anunciará seu enlace.

— Sim, mas para que se celebre um casamento fazem falta duas pessoas!

— Insinua que poderiam recusá-lo?

— Por que não?

— A Sylvester? Com tudo o que tem que oferecer? Claro que não o recusarão! Ainda que isso me encantasse, porque seria benéfico para ele. Ainda que se isso acontecesse,
poria mãos à obra para conseguir que essa jovem se apaixonasse por ele e depois proporia casamento a outra.

— Não vejo nenhuma razão para que alguém se apaixonasse por ele — declarou Phoebe com ironia.

— Não, eu também não, mas você surpreender-se-ia se soubesse quantas jovens suspiraram por seu amor.

— Sim, surpreender-me-ia muito — disse Phoebe com fervor —. Ainda que suponho que mais do que se apaixonar por ele, terão se apaixonado por sua situação.

— Pois não é assim. Sylvester pode planejar para que uma jovem se apaixone por ele ainda que no princípio não se tenha sentido atraída em absoluto. E ele sabe que
pode. Uma vez apostou com Harry que conseguiria atrair a senhorita Wharfe, e o conseguiu!

— Que apostou...— disse Phoebe, horrorizada —. Que vergonha! Como pode um cavalheiro fazer algo assim?

— Bom, já conhece aos homens — disse Lianthe, muito equivocada —. Ademais, tenho de admitir que nesse ano não se falava outra coisa que da frieza da senhorita Wharfe.
Era uma rapariga muito atraente e uma grande herdeira, de maneira que tinha montanhas de pretendentes. Ela os recusava a todos, e o assunto se converteu numa espécie
de piada. Chamavam-na “a cidadela inexpugnável”. Harry disse-o a Sylvester (caçoando, se me entende; passavam a vida caçoando) que nem sequer ele conseguiria abrir
uma brecha em suas muralhas, e Sylvester lhe perguntou quanto queria apostar. Acho que nos clubes também se fizeram elevadas apostas tão logo se soube que Sylvester
estava a sitiar a cidadela. Os homens são odiosos!

Phoebe estava completamente de acordo com essa afirmação. Partiu de Albemarle Street com muito sobre o que refletir. Era bastante perspicaz para passar por alto
grande parte do que Lianthe lhe tinha contado sobre o trato que Sylvester dispensava a seu sobrinho: Edmund não parecia um menino maltratado. Por outro lado, Lianthe,
sem dar-se conta, não tinha feito um retrato muito agradável de si mesma, e o que tinha contado a Phoebe demonstrava que era uma mãe insensata. Phoebe deduziu que
seguramente Sylvester sentia indiferença por Edmund, mas que tinha decidido, ainda que só por orgulho, cumprir seu dever para com o menino. A palavra “dever” não
tinha conotações muito agradáveis para uma pessoa que estava farta de ouvi-la ser pronunciada por sua pouco carinhosa madrasta, mas não incluía a injustiça. Lady
Marlow sempre tinha sido estritamente justa com Phoebe.

A última revelação de Lianthe que deixou Phoebe mais perplexa. Considerou-a sumamente interessante, porque já lhe tinha ocorrido suspeitar que a amabilidade de Sylvester
fazia parte de uma tentativa deliberada de conseguir que Phoebe se arrependesse de o ter recusado de forma tão grosseira. E sua atitude no dia que foi a Green Street
(incluído o brilho risonho de seus olhos ao olhá-la) também estava calculada para agradar. Sim, Phoebe admitiu que Sylvester sabia como cativar uma mulher desprevenida.
O dilema era se devia recusá-lo ou se, com a segurança que lhe dava saber que lhe estendendo uma armadilha, o animar a seguir cortejando-a.

A questão ficou sem resolver até o dia seguinte, quando Phoebe voltou a ver Sylvester. Estava passeando com suas primas Ingham pelo parque num pacífico grupo composto
por ela, a senhorita Mary e a senhorita Amabel, o jovem senhor Dudley Ingham e dois lacaios, que os seguiam a uma discreta distância, e morria de aborrecimento.

As senhoritas Ingham eram muito sem atrativos, muito boas e muito insossas; seu irmão, o prometedor segundo filho de lord Ingham, já estava se preparando para se
converter num destacado membro de algum futuro governo, e o cavalo de sela que tinham proporcionado a Phoebe era um animal sem nenhum garbo e de caráter gentil.

Sylvester, que montava um belo e arisco cavalo, e que ia acompanhado de dois amigos seus, captou a situação com uma única olhada, e a manejou de um modo que demonstrava
uma considerável habilidade e uma absoluta falta de consideração com lord Yarrow e o senhor Ashford. Sem que ninguém exceto ele soubesse como tinha passado, os dois
grupos se tinham fundido em um; e enquanto seus desafortunados amigos encontraram-se de repente conversando educadamente com as senhoritas Ingham, Sylvester cavalgava
junto a Phoebe, ambos um pouco atrasados.

— Pobre Pardal! — disse o duque com tom zombador —. Que imagem tão dolorosa! É um cavalo de fazenda?

— Não. É o cavalo preferido de minha prima Anne. Uma montaria muito segura e cômoda para uma dama, senhor duque.

— Ah, perdoe-me! É que não o vi demonstrar suas habilidades, claro.

— É porque não tem nenhuma — disse Phoebe, lançando-lhe um olhar de altivo desdém —. Se observar bem verá que arrasta as patas; isso sim, com muita elegância.

— Mas que ombros!

Phoebe não pôde conter o riso, o que fez que a senhorita Mary Ingham se voltasse e a olhasse com gesto de reprovação.

— Deus meu! Tinha visto alguma vez um cavalo de pau mais lamentável? — disse

Phoebe.

— Não, nem uma dama que monte melhor. A combinação resulta assombrosa. Permitirá que lhe empreste uma montaria enquanto está na cidade?

Phoebe ficou tão perplexa que não soube o que responder e o olhou fixamente.

— Em Chance tenho vários cavalos a disposição de minha cunhada — disse sorrindo —. Antes montava muito. Não me será nenhum problema fazer que me enviem um par deles
a Londres.

— Montar os cavalos de lady Henry? Ficou louco? Jamais me ocorreria fazer algo assim!

— Esses cavalos não são dela, mas meus.

— Acaba de dizer que os tem a sua disposição; portanto, ela deve considerá-los seus. Ademais, já deve saber que não posso permitir que me empreste seus cavalos.

— Sim, entendo-o — admitiu o duque —, mas é que não suporto vê-la montada num cavalo que não é digno de você.

— Obrigado. É você... muito bom — balbuciou Phoebe.

— Como disse— Pardal, lhe suplico que não deixe que lady Ingham lhe ensine a dizer gentilezas dessas. Você sabe perfeitamente que não sou bom, mas ao contrário:
sou o vilão cujos malignos planos obrigaram-na a fugir de sua casa. — Fez uma pausa e os olhos de Phoebe encontraram-se com os dele. Só sustentaram o olhar um instante,
mas a expressão da jovem fez rir ao duque. Esperou um momento, e depois perguntou com doçura —: Que passa? Que disse para fazer que me olhe desse modo?

— Nada! Como o olhei? — retrucou Phoebe muito corada.

— De forma muito parecida a como a vi uma vez olhar a sua madrasta: com medo!

— Que tolice! — disse Phoebe forçando-se a rir —. Parece-me que tem você demasiada imaginação, senhor duque.

— Isso eu espero.

— Não o duvide. Tem-me... bom, surpreendeu-me pensar que após o ocorrido pudesse supor que o considero... um vilão. Mas você só caçoava, claro.

— Sim, caçoava, mas asseguro-lhe que não o fazia com má intenção.

Phoebe voltou a cabeça para olhá-lo outra vez, tentando formar um julgamento sobre ele.

— Não. Ainda que suponha que poderia fazê-lo se quisesse.

— Creia-me se digo que não o estava fazendo.

— E creia-me se lhe digo que não o considero malvado.

— Ah, isso vai ser bem mais difícil! — protestou ele, enfurecendo a Phoebe —. Quando penso nas boas-vindas que me dedicou naquela lamentável pousada, me assaltam
sérias dúvidas.

Phoebe riu, mas não aceitou a provocação. E o duque não fez questão de seguir falando desse assunto. Cavalgaram um momento em silêncio, um junto ao outro, até que
Phoebe sacou outro assunto de conversa:

— Tinha me esquecido de comentar-lhe que ontem tive o prazer de conhecer ao seu sobrinho, senhor duque. Deve estar você muito orgulhoso dele, porque é um menino
precioso.

— E muito mimado. Conhece a minha cunhada?

— Apresentaram-nos faz nuns dias, e ontem teve a amabilidade de convidar-me a passar a tarde com ela.

— Ah, agora entendo esse olhar de pesar! — observou Sylvester —. Como me retratou— Como o Cunhado Insensível ou como o Tio Malvado?

Phoebe não teve que lhe responder, porque tão logo Sylvester tinha falado, uma dama que passeava junto à calçada dos carros saudou-o com a mão. Sylvester reconheceu
a sua prima, a senhora Newbury, e pediu a Phoebe que detivesse seu cavalo.

— Se ainda não se conhecem, gostaria de apresentar-lhe a senhora Newbury, senhorita Marlow. É a mais simpática de minhas primas: estou seguro de que se darão muito
bem. Georgie, que alegria te ver! Mas como é que vais sozinha? Onde está teu fiel marido? Não te fica nem um único galã?

Ela riu e esticou um braço para apertar-lhe a mão.

— Verdade que é vergonhoso— Lion está de serviço, e todos meus galãs me falharam. Os que já não estão isolados no campo se acham em sua casa com os pés num banho
de mostarda, assim tive que sair a passear com uma amiga minha. Mas não a procures, porque já nos despedimos.

Sylvester tinha-se inclinado para pegar-lhe a mão, e Antes de soltá-la apertou-a com cumplicidade e disse:

— Que pena! Conheces à senhorita Marlow, ou tenho que as apresentar?

— Ah, assim que você é a senhorita Marlow! — disse a senhora Newbury, sorridente —. Devia imaginá-lo, porque acabo de saudar a suas primas. Você é a neta de lady
Ingham, não é verdade? E vejo que monta esse deplorável cavalo de Anne Ingham. Que injustiça! Inclusive com tão ruim montaria nota-se que você é melhor amazona que
todas nós.

— Precisamente tentava convencer à senhorita Marlow de que me conceda o privilégio de lhe emprestar um de meus cavalos, mas se nega — interveio Sylvester —. No entanto,
acaba de me ocorrer uma ideia melhor. Acho que teu segundo cavalo de sela seria ideal para a senhorita Marlow.

A senhora Newbury só tinha um cavalo de sela, mas estava alerta desde o momento em que Sylvester tinha retido e apertado sua mão, e escutou essas palavras sem admirar-se,
interrompendo os protestos de Phoebe para lhe dizer com ternura:

— Aceite-o, senhorita Marlow! Não imagina o quão agradecida que ficaria se saísse a montar comigo de vez em quando. Detesto passear, mas montar sozinha, com a única
companhia de meu cocheiro seguindo-me com recato, é intolerável. Também estou desejando ter a ocasião de dar uma boa galopada, e isso não pode se fazer em Hyde Park.
Sylvester, se convenço à senhorita Marlow para que venha, acompanhar-nos-ás às duas a Richmond Park no primeiro dia de primavera que faça bom tempo?

— É claro, querida prima. Será um prazer.

— Diga-me que virá! — suplicou a senhora Newbury a Phoebe.

— Gostaria muitíssimo, senhora, mas não quero que se sinta obrigada em me convidar.

— Prometo-lhe que não a convido porque me sinto obrigada! Sylvester sabia que encantar-me-ia ter companhia. Ademais, se tivesse querido, teria podido dizer que meu
outro cavalo estava doente, ou que o tinha vendido. Irei visitar lady Ingham e convencê-la-ei para que dê seu consentimento.

Então retirou-se, e ao despedir-se dela, lançou um olhar inquisitivo a Sylvester. O duque dedicou-lhe um sorriso, assim sua prima deduziu que devia estar satisfeito,
e seguiu seu caminho, se perguntando se Sylvester se estaria a permitir um simples galanteio, ou se na verdade pretendia cortejar à senhorita Marlow. Este último
não parecia provável, como também não era que a tivesse elegido para flertar com ela. Talvez estivesse se limitando a ser amável com a rústica neta de lady Ingham
— Ah, não! Sylvester jamais faria isso, decidiu a senhora Newbury. Ele sabia ser amável, mas só quando queria. Enfim, era tudo muito intrigante, e estava disposta
a lhe prestar a ajuda que precisasse. A cavalo presenteado, não se olha o dente, pensou, e menos ainda se Sylvester presenteava o cavalo.

Capítulo 16

O encontro no parque decidiu o assunto: por enquanto não recusaria Sylvester. De qualquer modo, Sylvester tinha conseguido que fosse quase impossível recusar, mas
essa era uma consideração que a ela não lhe ocorreu até após ter tomado a decisão. Sem correr o menor risco de apaixonar-se dele, lhe seria agradável sua companhia,
e teria lamentado a perder. Se o que pretendia Sylvester era a utilizar como fez com a desconhecida senhorita Wharfe, não podia ter melhor forma de desbaratar seus
planos que receber suas insinuações com uma simpatia distante. Essa era uma excelente razão para tolerar Sylvester, mas em pouco tempo Phoebe encontrou outra. Com
o regresso a Londres de muitos membros da boa sociedade, começaram a chegar numerosos convites a Green Street; e Phoebe, que assistia as festas com verdadeiro temor,
cedo descobriu as vantagens que lhe oferecia sua amizade com o duque. Que diferente estava sendo a segunda temporada em relação à primeira! No ano da primeira, a
jovem não conhecia ninguém na cidade, tinha sofrido muitíssimo por causa de sua timidez e nenhuma pessoa se tinha fixado nela. Ao contrário agora, ainda que a lista
de seus amigos não fosse muito longa, muita gente se fixava nela, porque todos sabiam que a jovem era o último capricho de Salford. Àqueles a quem Phoebe anteriormente
tinha parecido uma jovem sem graça, beleza nem estilo descobriram que seu rosto era muito expressivo; sua franqueza, divertida, e sua singeleza, refrescante. Pouco
comum: assim era como definiam a senhorita Marlow. A primeira a descrevê-la desse modo tinha sido lady Ingham, mas ninguém já o recordava: uma jovem tranquila sem
nenhuma pretensão de beleza tinha que ser pouco comum para ter apanhado a Sylvester. Muitos, é claro, não entendiam que podia ter visto o duque nela, pois nunca
poderia competir com as aclamadas jovens aristocratas de Londres, nem aspirar a nada mais que a um sucesso moderado. Phoebe contentava-se com sentir-se cômoda em
público, em ter conhecido a umas quantas amigas agradáveis e que nunca lhe faltasse um par para dançar. Nenhuma dama à quem Sylvester pedisse duas danças numa noite
podia temer nada. E Sylvester também não arriscava-se a ser recusado enquanto continuasse tratando-a com o grau justo de galanteria. Talvez seus motivos fossem pérfidos,
mas não podia negar que era uma encantadora companhia; além disso, com ele não era preciso medir as palavras. Tinha um excelente senso de humor, e muitas vezes,
se alguém fazia um comentário tolo ou se comportava de um modo ridículo, Phoebe procurava instintivamente Sylvester com o olhar, segura de que ele também teria achado
engraçado. Parecia-lhe curioso que até a festa mais aborrecida pudesse se converter numa diversão porque tinha uma única pessoa à quem podia lançar um olhar fugaz
e compartilhar com ela, em silêncio, de uma piada que os demais não tinham captado; era quase estranho como eram tediosas as festas nas que não estava presente essa
pessoa. Ah, não pese ser muito consciente da arrogância, do egoísmo e da detestável vaidade do duque, a senhorita Marlow não tinha intenção, ao menos por enquanto,
de recusá-lo.

E como fosse pouco, Sylvester tinha proporcionado a Phoebe uma pequena e briosa égua, com muito boa boca, perfeita em todos os sentidos e muito alegre. A Phoebe
escapou-lhe um grito de alegria ao ver pela primeira vez a Firefly, como podia permitir a senhora Newbury que outra pessoa montasse sua formosa égua? Ainda que não
soubesse por que, a senhora Newbury preferia o seu velho Júpiter. Phoebe entendeu-a muito bem: também ela tinha um cavalo que, apesar de ser já velho, sempre seria
seu cavalo de sela favorito.

No entanto, Phoebe não demorou em descobrir a verdade a respeito de Firefly. Num dia, o comandante Newbury, muito elegante com a casaca vermelha do regimento, saiu
para despedir-se de sua esposa e de sua nova amiga, que iam dar um de seus passeios quase diários. Achava-se nos degraus da porta de sua estreita casinha e, quando
viu Firefly, exclamou:

— É essa a égua que te presenteou Sylvester, Georgie?

Phoebe estava um pouco afastada, o suficiente para que pudesse se pensar que não tinha ouvido nem o comentário nem a posterior gagueira do comandante:

— Como— Ah! Perdoa, querida, tinha me esquecido!

Ao princípio não soube o que fazer, mas depois decidiu fingir que não tinha ouvido nada, por consideração para com Georgiana e por não ter que renunciar a seus passeios.

Sylvester não se tinha equivocado ao prever que Phoebe e Georgiana se iam dar muito bem: tinham-se uma grande simpatia e, como sua avó não punha nenhuma objeção,
Phoebe se converteu numa convidada habitual da animada casa dos Newbury. Lady Ingham opinava que Georgiana e o comandante formava um casamento dispare; Phoebe, que
até aquela data só tinha assistido a importantes festas formais em Londres, os achava encantadores, e nada a agradava mais que passar as noites em sua caótica casa.
Nunca se sabia o que podia ocorrer numa das festas de Georgie, assegurava lord Yarrow, e declarou que numa ocasião tinha chegado cinco minutos após que o lustre
de cristal do salão se tivesse espatifado contra o solo, e que tinha encontrado Georgie de pé, como Dido entre as ruínas de Cartago, só que bem mais serena. Sylvester
concordou com ele em que essa tinha sido uma festa magnífica, mas sustentava que a melhor de todas as festas que tinha tido lugar naquela casa, fora aquela em que
o novo mordomo, depois de conduzi-lo ao salão onde se celebrava o baile, tinha caído bêbado. Phoebe jamais imaginou que as pessoas pudessem ser tão alegres e tão
pouco cerimoniosas como na casa de Georgie. E Sylvester nunca tinha lhe agradado tanto como quando o via ali, entre de seus amigos mais íntimos. Talvez fosse outro
exemplo de seu orgulho que só mostrava sua faceta agradável a seus parentes e a seus amigos íntimos, mas não podia negar que essa era muito atraente.

Também se mostrou encantador quando foram excursionar em Richmond Park, como tinham planejado; e isso foi ainda mais surpreendente, já que ao grupo original se uniram
mais três pessoas, uma das quais não era do agrado de Sylvester. O duque recebeu com alegria a notícia de que o comandante Newbury iria com eles; quando sua cunhada,
que se inteirou de seus planos e anunciou que ela e seu irmão Charles os iriam acompanhar, Sylvester o suportou com serenidade. No entanto, quando chegou no dia
e soube que Lianthe, em lugar de ir com seu irmão, pensava sem ver acompanhada por sir Nugent Fotherby, até o comandante, que não era famoso por sua perspicácia,
informou a sua esposa com um sussurro cúmplice que estava procurando algum pretexto para ficar em casa, porque se via à distância que a agradável excursão estava
condenada ao fracasso.

E no princípio pareceu, efetivamente, que estava sentenciada. Tinham lembrado que Lianthe e seu irmão encontrar-se-iam com o resto do grupo em Roehampton Gate, depois
de enviar a um criado com os cavalos ao lugar de reunião. Era uma mudança de planos de último minuto da qual Sylvester não se inteirou até que chegou à casa dos
Newbury para se unir ao grupo.

— Deus meu, Georgie! — exclamou incomodado quando lhe deram a mensagem —. Por que não disseste a Lianthe que se não pensava sair conosco ficasse em casa? Teremos
que a esperar uma hora, ou mais!

— Sim, sei-o, mas não te ponhas assim comigo — replicou Georgiana com serenidade —. Só passaram vinte minutos desde que recebi sua nota, e a única coisa que pude
fazer foi lhe enviar um lacaio para lhe recordar que como tu fez os convites primeiramente, mais vale que não se atrase.

— Como se isso fosse servir de algo! — disse Sylvester.

Mas quando chegaram a Roehampton Gate, Sylvester descobriu, surpreendido, que sua cunhada já estava ali, e começava a apiedar-se dela quando de repente se deu conta
de que o janota que a acompanhava não era seu irmão, mas sir Nugent Fotherby. O duque pôs-se tenso e sua expressão de bom humor tornou-se no mesmo instante num gesto
de assombro e altivez. Phoebe, que não teve mais remédio que reprimir um intenso desejo de lhe explicar o que pensava de tão detestável arrogância, sentiu lástima
por sir Nugent.

Ainda que a jovem poderia ter-se poupado esse sentimento. Sir Nugent sabia que Sylvester não sentia simpatia por ele, mas jamais lhe tinha ocorrido pensar que o
duque, nem ninguém mais, o pudessem desprezar. Se alguém tivesse tentado convencê-lo disso, teria pensado que Sylvester estava mau da cabeça, e teria ficado perplexo.
Quando Sylvester levantou seu monóculo, sir Nugent nem se intimidou, porque interpretou que Sylvester estava a estudar as extraordinárias pregas de sua gravata.
Isso não o surpreendeu, já que lhe teria desagradado muito que tanto tempo e destreza que lhe tinha custado para arranjá-la não tivesse chamado a atenção. Nem todo
mundo era destro em atar um nó de gravata oriental: estava convencido de que Sylvester não o sabia; e se Sylvester tivesse-lhe perguntado como se fazia, ele ter-se-ia
visto obrigado a lhe dizer que levavam anos para aprender essa arte, e muitas vezes, uma vez que um tivesse aprendido, várias horas de concentrados esforços para
obter um resultado decente. Talvez o resto dos mortais invejasse a sir Nugent, mas o que não podia conceber era que o desprezassem, porque sua linhagem era impecável,
sua fortuna superava as sessenta mil libras anuais e, segundo afirmavam seus amigos (aos quais lord Marlow qualificava de tolos), além de ser, em matéria de modas,
um verdadeiro dândi, no mundo da caça figurava como personagem de destreza incomparável.

O fato de que sir Nugent fosse imune aos insultos evitou que a excursão acabasse em desastre. Aproveitou a primeira ocasião que se apresentou para acercar seu espetacular
cavalo junto ao cavalo de sela de Sylvester com a intenção de chamar sua atenção sobre a proeza de ter conseguido que lady Henry chegasse a Roehampton Gate à hora
marcada.

— Felicito-o — disse Sylvester sem entusiasmo.

— Gosto de ouvi-lo dizer, senhor duque! — retrucou sir Nugent, agradecendo o elogio com uma leve inclinação da cabeça —. Não me importa admitir que foi difícil.
O assunto requereu muita destreza. Se existe algo de que me orgulho, é disso. “Lady Henry”, disse-lhe; se não quiser ofender o senhor duque, mas a verdade é que
não me dirigi a ela nesses termos exatamente. “Meu amor “, lhe disse, “sua excelência se vai enfadar se o fizermos esperar. Asseguro-te!”. E ela me acreditou.

— É sério? — disse Sylvester, e sua expressão se relaxou, ainda que contra a sua vontade.

— Sim — asseverou sir Nugent com gravidade —. “Coração”, disse-lhe. Espero que o senhor duque não a censure...

— Não, em absoluto.

— Não? — exclamou sir Nugent, girando todo o corpo a fim de olhar com firmeza a Sylvester, uma manobra necessária em função do rígido pescoço de sua camisa e das
pregas de sua gravata oriental.

— Por que iria censurá-la?

— Pôs você o dedo na ferida, senhor duque! Por que ia censurá-la? “Meu amor”, lhe disse (já que não a ia censurar), “vês coisas onde não as há”.

— E daí, o que respondeu ela? — perguntou Sylvester, lamentando que Phoebe se tivesse adiantado.

— Negou-o. Disse que você está empenhado em impedir que nos casemos.

— Ah, sim?

— Isso mesmo disse eu! “Ah, sim? disse.

— Não disse “Meu amor”?

— Não, nesse caso não. Porque estava surpreendido. Quase poderia dizer-se que estava estupefato.

— Como um pato no meio de uma tormenta.

— Não — disse sir Nugent, refletindo —. Creio, senhor duque, que se perguntasse entre os membros da boa sociedade se Nugent Fotherby se comportou alguma vez como
alguma espécie de ave em semelhante situação, a resposta seria: não!

— Bom, pois saiba que não tenho a menor intenção de impedir que se case com minha cunhada. Pode casar-se com ela com minha bênção, mas não conseguirá que renuncie
a educar meu sobrinho.

— Esse é outro assunto delicado! Talvez o mais delicado de todos. Milady jamais renunciará ao menino!

— Certamente que um homem tão hábil como você encontrará a maneira de a persuadir.

— Bom, isso mesmo eu acreditava — admitiu sir Nugent —. Que estranhas são as mulheres! Que apego sentem pelos meninos! Falando disso...

— Não. Não mencionemos o assunto — interrompeu-o Sylvester —. Falando comigo não conseguirá nada. Só lhe direi que não tenho nem o poder nem o desejo de frustrar
seu casamento com Lianthe, mas nenhum argumento que possa apresentar me induzirá a delegar nem uma pitada de minha autoridade sobre Edmund nem a você nem a ninguém.
Se quer pode tentar manipular a Lianthe, mas não perca o tempo comigo.

Enquanto falava assim, esporeou seu cavalo e o fez avançar a meio galope até atingir o resto do grupo.

Phoebe, enquanto isso, após dar uma curta galopada, tinha-se visto obrigada a parar e a continuar ao passo junto a Lianthe, que morria de vontade de falar de si
mesma e tinha comprovado que Georgiana não lhe prestava a menor atenção. Confessou-lhe que se tinha feito acompanhar de sir Nugent em lugar de por seu irmão porque
estava convencida de que a antipatia que Sylvester sentia por ele não se baseava em outra coisa além do preconceito. O duque mal conhecia a sir Nugent: Phoebe não
acreditava que se lhe oferecessem a oportunidade de o conhecer melhor talvez reconsiderasse sua cruel decisão de separar a mãe de seu filho?

Phoebe não queria responder, porque era evidente que não podia dar uma negativa rotunda. Por sorte, a Lianthe interessava-lhe mais sua própria opinião que a de Phoebe,
assim a pergunta era meramente retórica.

— Estou convencida de que sir Nugent surpreendeu a Sylvester — prosseguiu sem esperar resposta —. Não digo que sua inteligência seja superior, porque não o é (de
fato, não tem muito senso comum, e às vezes diz tolices), mas se a mim não me importa, não vejo por que teria que importar a Sylvester. Tem um caráter agradável
e seus modos, são sumamente corretos. É um homem de categoria e muito elegante; já sei que se relaciona com pessoas inferiores a ele e que está dilapidando uma fortuna
nos salões de jogo, mas isso acaba quando nos casarmos. E quanto a sua fixação nas corridas de cavalos, tem tanto dinheiro que o que possa perder no hipódromo carece
de importância. De qualquer forma, é absurdo pensar que possa prejudicar a Edmund. Ademais, até Sylvester deve admitir que não pode ter ninguém mais indicado para
ensinar a Edmund as normas de urbanidade. Sempre está à última moda, e a seu lado, os demais parecem francamente vulgares. Só há que o ver!

Mas Phoebe não olhou a sir Nugent, mas a Lianthe, e com gesto assombrado. Ao lado da discreta elegância de Sylvester e do traje militar do comandante Newbury, sir
Nugent parecia um janota. Era alto, esbelto e francamente atraente, mas levava a cintura tão cingida, e os ombros tão exageradamente acolchoados, que era ridículo.
Desde o estranho chapéu, colocado com descuido sobre seu coríntio corte de cabelo (já tinha divulgado que era o último grito), até suas reluzentes botas, sua aparência
parecia ter sido escolhida a fim de chamar a atenção. Sua jaqueta, de corte extravagante, estava enfeitada com uns botões muito grandes e brilhantes; o esplêndido
casaco que se entrevia por baixo era de uma cor exótica; os calções, de veludo branco; levava uma agulha com um diamante nas pregas de sua ridícula gravata, e brilhavam
tantos anéis nos dedos e tantas correntinhas penduras na cintura, que parecia um joalheiro anunciando sua mercadoria.

Phoebe não se viu obrigada a fazer nenhum comentário à última observação de Lianthe, porque Sylvester as alcançou nesse preciso momento, e um minuto mais tarde sir
Nugent cavalgava a seu lado, tentando informar a Lianthe, mediante uma série de acenos e gestos que estiveram a ponto de arrancar uma gargalhada a Phoebe, que sua
missão não tinha prosperado. Phoebe olhou a Sylvester de soslaio, temendo que sir Nugent o tivesse posto mal humorado, e se sentiu aliviada ao não achar nenhum sinal
do frio olhar de indiferença que tão pouco gostava. Sylvester parecia bem divertido, e quando se dirigiu a sir Nugent o fez num tom cordial e relaxado. Animado por
essa atitude, sir Nugent, que até esse momento parecia um tanto abatido, se animou e pediu ao duque sua opinião sobre o cavalo que montava. A resposta de Sylvester
foi tão educada que Phoebe teve que morder com força o lábio inferior e olhar à frente para que não lhe escapasse o riso. Sir Nugent, encantado pela resposta de
Sylvester, lhe recitou as numerosas virtudes do cavalo e confessou-lhe que tinha pago um preço elevadíssimo pelo animal. Phoebe, que sabia exatamente quanto lhe
tinha custado o cavalo, reprimiu uma risada; Sylvester conseguiu ouvi-la e tremeram-lhe os lábios, mas disse com dissimulação: “Sério?”

Não era habitual que um afamado caçador utilizasse seus cavalos de caça também para passear uma vez concluída a temporada de caça, mas sir Nugent não era tão cruel
como podia parecer aos não iniciados. Sir Nugent participava em diversas caçadas, e tinha muitíssimos cavalos que repartia em cocheiras por todo o país e que montava
com escassa frequência. Quando aparecia por ali, raramente se afastava para além dos primeiros campos, porque, como o senhor Brummell, levava polainas brancas em
cima das botas e não gostava de sujá-las. O atraente cavalo de lord Marlow parecia mais necessitado de exercício que de descanso, e conseguiu, mediante movimentos
furtivos, safanões e sacudidas da cabeça, que a sir Nugent acabasse lhe sendo muito incômodo aquele passeio.

E quanto viu a possibilidade de fazê-lo sem parecer descortês, Sylvester propôs a Phoebe dar uma galopada para que os cavalos pudessem desafogar-se. Ela acedeu com
voz apagada. Firefly pôs-se a meio galope, e pouco depois ampliou o passo até um galope mais longo, de maneira que, em pouco tempo, Phoebe encontrou-se a uma distância
que impedia que a ouvissem Lianthe e sir Nugent. A seu lado galopava o cavalo negro de Sylvester, mas nem ele nem Phoebe falaram até que se detiveram ao final de
uma pradaria. Então, enquanto Phoebe inclinava-se para frente para dar umas palmadas no pescoço de Firefly, Sylvester disse fingindo reprovação:

— Senhorita Marlow, uma vez tive ocasião de censurá-la por rir-se de uns camponeses e agora você se ri do galã mais elegante da boa sociedade. É incorrigível!

— Mas se não me ri dele! Você o sabe muito bem!

— Que eu o sei? Garanto-lhe que estava temendo que em qualquer momento lhe escapasse o riso. Se tivesse visto a sua cara...

— Bom, reconheço que tive que fazer um grande esforço — admitiu Phoebe —. O que não entendo é como pôde lhe responder com tanta seriedade!

— Está ao mesmo tempo que eu na cidade, de maneira que já me imunizei contra ele. No entanto, compreendo que seja impressionante vê-lo pela primeira vez em todo
seu esplendor.

Phoebe riu.

— Sim, mas não me serve essa desculpa, porque no ano passado o vi muito. E mais, até...

— Até...? — soltou o duque depois de esperar um momento a que Phoebe terminasse a frase.

Ela se tinha interrompido, muito perturbada, quando estava a ponto de dizer “o pus em meu livro”. Emitiu um gritinho afogado e disse:

—... que me acostumei tanto a ele que acabei por não o ver. Exceto no dia que se apresentou num baile com uma jaqueta de veludo verde e um casaco com rosas bordadas.

Sylvester não replicou de imediato, e Phoebe, olhando-o com verdadeiro nervosismo, observou que a inclinação de suas sobrancelhas estava acentuada por um ligeiro
cenho que fazia descer ainda mais os extremos interiores.

— Ah, sim? Mas não é isso o que ia dizer, não é verdade? — disse Sylvester olhando-a com firmeza.

— Não, mas acho que não deveria lhe contar o que ia dizer — retrucou Phoebe com a esperança de que o rosto não traísse e fingindo desenvoltura —. Bom, prometa-me
que não contará a ninguém — O que me deixou pasmada não foi seu aspecto, mas esse lamentável cavalo que monta, e o que disse dele. Comprou-o de meu pai e pagou trezentos
guinéus. E está convencido de que é uma maravilha!

Phoebe riu a gargalhadas, confiando que o momento de perigo tivesse passado. No entanto, ainda que Sylvester risse ante a astúcia de Marlow, disse:

— Sigo perguntando-me se seria isso que você ia dizer, Pardal.

Então Phoebe alegrou-se de ver que o comandante e a senhora Newbury chegavam a meio galope. Só teve tempo para dar uma breve réplica antes que Georgie os chamasse
e lhes dissesse que tinha uma área muito agradável para onde deviam se encaminhar. Esperaram que se unissem a Lianthe e sir Nugent, e Sylvester e Phoebe não tiveram
mais oportunidades de falar sozinhos.

O incidente desanimou um pouco a Phoebe. Não se sentia confortável. Ao seu nervosismo somava-se um intenso sentimento de culpabilidade, que a agradável cortesia
com a qual Sylvester a estava a tratando não fazia senão piorar. Não era exatamente galanteria, ainda que o duque não ocultasse que seu principal objetivo era satisfazer
em tudo a Phoebe; mais que flertar com ela, parecia que a estivesse pondo à prova. No entanto, seus olhos brilhavam quando a olhava e seus modos eram tão alegres
que a faziam se sentir como se o conhecesse fazia muito tempo. Por um momento, antes que os Newbury os alcançassem, esteve a ponto de lhe explicar o que tinha feito.
Tinha estado fortemente tentada, e a tentação voltou várias vezes, mas descartou-a por temor das consequências. Quando Sylvester a olhava com essa expressão tão
terna, Phoebe se sentia capaz de lhe dizer qualquer coisa; mas em outras ocasiões tinha visto em seu semblante um ar muito diferente, e sabia a rapidez com que essa
perfeita cortesia podia ficar oculta sob uma frieza terrível.

Phoebe ainda não sabia o que fazer quando se separou dele naquele dia; mas enquanto subia os degraus da entrada da casa de lady Ingham, de repente se deu conta de
que se alguém podia lhe dar conselho era sua avó; e decidiu que se encontrasse a sua avó de bom humor, contar-lhe-ia tudo.

A viúva achava-se de um humor excelente, mas algo preocupada. Tinha ido visitá-la uma velha amiga sua que acabava de chegar a Londres depois de uma prolongada estadia
em Paris, e a descrição que fez a senhora Irthing do muito que tinha se divertido na capital francesa, das agradáveis festas celebradas por seus amigos sir Charles
Stuart e lady Elizabeth na embaixada — igual como era antes que esse horrível Bonaparte estragasse tudo com seus costumes vulgares —, da elegância das pessoas —
tão diferente da de

Londres, onde, a cada vez mais, surgiam novos ricos e aduladores —, do luxo dos hotéis e da assombrosa qualidade e estilo dos artigos que vendiam nas lojas, tinham
acordado de novo o desejo de lady Ingham de passar uns meses em Paris. Era a época ideal do ano para uma visita; o embaixador e sua esposa eram velhos amigos seus,
e além disso a senhora Irthing tinha-lhe levado mensagens de muitos amigos franceses aos quais não tinha frequentado durante anos mas que se recordavam dela e tinham
expressado seu desejo de voltar a vê-la. Pois bem, ela também o desejava, e achava que lhe faria muito bem uma curta viagem ao estrangeiro. Não lamentava ter se
carregado com a responsabilidade de sua neta, mas lhe ocorreu que Phoebe podia ficar com Ingham e Rosina durante sua ausência. No entanto, depois de refletir um
momento, descartou essa possibilidade: Rosina era tonta, e não podia lhe confiar a delicada tarefa de promover um casamento entre Phoebe e Sylvester. A viúva ainda
abrigava esperanças a respeito, mas sem dúvida o projeto requeria muita habilidade. Rosina se confundiria; além disso, certamente que Sylvester se desmotivaria se
encontrasse Phoebe sempre em companhia de suas boas e cansativas primas. Não, a viúva decidiu que não funcionaria. Mas também não podia levar Phoebe a Paris: lady
Ingham não achava que a ausência fosse benéfica para os assuntos do coração, sobretudo quando o coração em questão era o de Sylvester, que tinha muitas jovens dispostas
a se render a seus pés.

Lady Ingham teve de descartar essa ideia, mas a visita da senhora Irthing tinha resgatado muitas lembranças de sua memória. Invadiu-a uma nostalgia e não saiu de
seu pensamento até que se retirou com sua neta para o salão, após cear, e lhe pediu que contasse o que tinha feito. Phoebe explicou-lhe que tinha se divertido muito,
e então, inspirando fundo e se armando de coragem, disse: “Tenho que te contar uma coisa, avó.”

Phoebe não teria surpreendido se sua confissão de ter escrito um livro tivesse sido recebida com uma firme censura; mas lady Ingham, uma vez que sua neta lhe assegurou
que o anonimato estava garantido, achou engraçado. Até confessou que sempre tinha sabido que Phoebe era uma menina muito esperta.

Seguramente julgava muito pouco provável que algum membro da boa sociedade chegasse a ler o livro de sua neta; considerava ainda mais improvável que um retrato feito
por uma mão tão inexperiente pudesse ser reconhecível. Quando Phoebe lhe contou a verdade, lady Ingham se limitou a rir. No entanto, quando Phoebe lhe perguntou
se achava que devia prevenir a Sylvester do que se aproximava, se apressou a contestar:

— Ah, não, por nada do mundo! Deus meu, seria uma loucura!

— Sim, avó. Mas é que... sinto-me tão desconfortável!

— Bobagens! Sylvester não saberá — replicou ela.

Capítulo 17

Diferente de lord Byron, Phoebe não podia dizer que se tivesse tornado famosa da noite para o dia, porque o astuto senhor Newsham não tinha deixado escapar a menor
pista sobre a identidade do autor. Não considerava oportuno que se soubesse que uma colegial tinha escrito O herdeiro perdido e convenceu a seu sócio de que era
muito melhor que a boa sociedade se mantivesse intrigada. Em vão protestou o pobre senhor Otley, alegando que ninguém em sã consciência pagaria dezoito xelins por
uma novela anônima, mas se resignou a se arruinar e observou com cinismo os esforços que levou a cabo seu sócio para vender o livro aos nobres londrinos.

No entanto, o senhor Newsham estava certo. As hábeis cartas que tinha escrito a personagens influentes, as adulações que tinha repartido e as misteriosas insinuações
que tinha formulado deram abundantes frutos. A lista de subscritores privados deixou atordoado ao senhor Otley.

— Sim! E isto é só o princípio! — se congratulou o senhor Newsham —. Estas pessoas da nobreza pagariam uma fortuna por não ficar atrasadas nas modas. Todas são mulheres,
é claro; já sabia que não deixariam passar a oportunidade de decifrar a chave de um romance. Na verdade, já descobri quem é o tipo das sobrancelhas: nada mais e
nada menos que seu excelência o duque de Salford, meu amigo. Se com isso não basta para fazer que todos os nobres da cidade comprem o livro, não sei o que fará.

Como o senhor Newsham seguiu correspondendo-se apenas com a senhorita Battery, Phoebe não se inteirou de que seu livro já tinha sido publicado até que viu os três
volumes no salão de lady Sefton.

— Chegou já a suas mãos este ousado livro, lady Ingham? Mas que pergunta! Não é verdade que é escandaloso? — exclamou milady, agitando energicamente o leque e as
pálpebras —. Que criatura tão odiosa, quem quer que seja! E não se trata de Caro Lamb nem dessa irlandesa: disso estou certa. Põe-nos a todos no pelourinho! Se a
perdoo é unicamente por seu retrato da pobre Emily Cowper. Fez-me rir a gargalhadas! Ela não tem nem ideia, por certo; acha que a autora inspirou-se na senhora Burrell.
Mas Ugolino... Ai, ai, ai! Que pensará se o livro cai algum dia entre suas mãos? E cedo ou tarde esse dia chegará, porque todo mundo fala dele.

Phoebe não demorou em comprovar que lady Sefton não se equivocava, o que a mergulhou num profundo desassossego. Algumas, como a arrogante condessa Lieven, tiraram
a importância da novela, tacharam-na de trivial; outras confessavam que as encantava; umas a achavam desconcertante; mas todas estavam ansiosas por descobrir quem
a tinha escrito. Phoebe pensou que nenhum autor podia ter assistido ao sucesso de seu primeiro livro com maior consternação. O orgulho e a satisfação que teria podido
lhe proporcionar se tinham desvanecido, e tudo por um pequeno detalhe que teria sido muito fácil mudar. Se tivesse podido eliminar do livro as menções àquele par
de sobrancelhas, ter-lhe-iam perdoado o resto, porque só nesse retrato tinha passado por alto as virtudes de sua vítima.

Lady Ingham, intrigada ao ver que quase a cidade inteira falava da novela de sua neta, pediu uma cópia à envergonhada autora. Phoebe, à quem a senhorita Battery
tinha enviado um exemplar, levou os três volumes a sua avó.

A viúva leu o livro sem interrupção até a última página. Ao princípio, sua trêmula neta observava-a, e sofreu muito ante as rápidas transições da esperança ao desespero
geradas pelas frequentes exclamações de lady Ingham. Uma risada de sua avó animava-a, mas de repente um “Deus meu!” voltava a mergulhá-la no pesar, de maneira que
teve que sair várias vezes da sala, incapaz de suportar o suspense.

— Que se vai reconhecer? — disse a viúva quando concluiu a leitura —. Pois claro que vai se reconhecer! Como pudeste cometer semelhante imprudência, filha minha?
Ainda bem que a história só é uma mistura de tolices! Não estranharia que Sylvester não considerasse este livro merecedor de sua atenção. Espero que assim seja,
mas, antes de tudo, deve ignorar que tu o escreveste. Quem conhece a verdade, além de tua professora? Suponho que essa mulher seja de confiança.

— Sim, avó, é de confiança. E fora ela só Tom Orde.

A viúva estalou a língua.

— Isso não gosto. Quem nos assegura que esse jovem tão falador não vá alardear de conhecer à autora quando se inteire de que te tornas-te famosa? Tens que lhe escrever
agora mesmo e o prevenir, Phoebe.

Phoebe empreendeu uma acalorada defesa de seu antigo colega de jogos, mas não foi sua declaração que aplacou o alarme de lady Ingham, mas o aparecimento de Tom em
pessoa, que caminhava bastante bem com ajuda de uma bengala, acompanhado de seu pai.

Tão logo anunciaram as visitas, Phoebe cruzou correndo a sala para abraçar a Tom e a seu pai. O esquire a beijou como se Phoebe fosse sua filha e disse: “Olá, pequena!
Que nos conta? A saudação de Tom não teria podido ser mais fraternal: “Olá, Phoebe! Eh, cuidado com o que fazes! Não me desarrume a gravata, pelo amor de Deus! —
Olhou-a de cima a baixo e acrescentou —: Mas que veem meus olhos! Que elegante te tornas-te! Susan não vai acreditar quando lhe contar!”

Lady Ingham concluiu que entre Tom e Phoebe não tinha mais que uma sã relação amistosa, assim centrou toda sua atenção no esquire.

Não podia se dizer que lady Ingham e o senhor Orde tivessem muito em comum, mas milady, que recebeu o esquire com amabilidade por deferência a Phoebe, cedo compreendeu
que era um homem sensato e franco, que ao que parecia pensava como ela com respeito a certos temas importantes como a estupidez de lord Marlow e a arrogância, a
devota hipocrisia e a crueldade de sua esposa. Não demoraram em se pôr a conversar, e Tom e Phoebe puderam falar na janela sem que os molestassem.

Tom, que conhecia bem a Phoebe, tinha ido a Green Street convencido de que sua amiga o encheria de perguntas a respeito de Austerby e da casa senhorial dos Orde,
mas Phoebe só lhe perguntou, por educação, pela saúde da senhora Orde e pela de Trusty e True. Estava em contacto com a senhorita Battery, que era uma excelente
correspondente; tinha recebido várias cartas de Susan; e inclusive uma ou duas de lord Marlow, que, devido a seu caráter otimista tinha acabado acreditando, passado
muito pouco tempo, que ainda que não tivesse sido cúmplice da fuga de Phoebe para casa de sua avó, ao menos ela tinha contado com sua aprovação. A Phoebe interessava-lhe
mais saber por que se achava Tom na cidade e quanto tempo pensava ficar.

Pois bem, o esquire tinha negócios que atender e, como Tom se aborrecia tanto na propriedade — porque ainda não podia montar a cavalo nem pescar nem sequer passear
até um pouco mais longe —, tinha decidido acompanhar a seu pai a Londres. Hospedavam-se no hotel Reddish's e pensavam ficar ao menos numa semana. O esquire tinha
prometido levar a seu filho a visitar um par de lugares que Tom queria ver fazia muito tempo. Não, não eram edifícios — já conhecia os monumentos de Londres —, mas
outros lugares interessantes como as pistas de Fives Court, o salão de boxe Jackson's, o pub Cribb's Parlour e a taberna Castle. Não eram o tipo de estabelecimentos
que atraíam Phoebe, é claro. E também queria ir visitar Salford.

— Propôs-me que o fosse ver se viesse à cidade. Não acho que o dissesse só por cortesia, não é verdade?

— Não, claro que não. Mas agora não está na cidade — replicou Phoebe —. Não sei quando tem previsão de voltar, ainda que suponho que antes de que vocês partam, porque
disse que não ia a ausentar-se muito tempo. Foi a Chance ver a sua mãe.

— Ah, então, viste-o? — perguntou Tom, surpreendido.

— Sim, vejo-o com frequência — replicou Phoebe, e corou um pouco —. Verás, conheci a uma prima sua, e... e nos encontramos muito. Mas aconteceu algo horrível, Tom,
e se vês a Salford, tens de ter muito cuidado para não me delatar. Temo seu regresso, porque não sei como o vou olhar o seu rosto.

— Delatar-lhe? — disse Tom, perplexo —. Mas que dizes?

— Meu ditoso livro!

— Teu... Ah, teu livro! Bom, que aconteceu?

— Teve muito sucesso! — respondeu Phoebe num tom trágico.

— Deus meu! Não falarás sério! Jamais pensei que pudesse interessar as pessoas! — exclamou Tom, e acrescentou, inocentemente—: Ainda que tenha de admitir que estava
muito bem encadernado: Sibby mostrou-me.

— Não é sobre a encadernação o que as pessoas comentam! — disse Phoebe com aspereza —. Falam das personagens e da autora. Todos querem saber quem o escreveu. Entende
agora?

Tom entendia. Franziu os lábios, emitiu um débil assobio e um instante depois perguntou:

— Salford leu-o?

— Não. Bom, ainda não. Partiu quase imediatamente após sua publicação.

— Achas que deduzirá? Não deves temer que eu te delate, mas não me surpreenderia que... Sabes que faria em teu lugar? — Phoebe negou com a cabeça, olhando fixamente
a Tom —. Confessaria tudo.

— Sim, também o pensei, mas quando recordo o que escrevi... — Estremeceu-se.

— Já, não será fácil — concedeu Tom —. Mas de todas as formas...

— Não acho que possa. Se zangar-se... Ponho-me doente só de imaginar! E minha avó aconselhou-me que não lhe diga.

— Bom, suponho que ela o conhece melhor — admitiu Tom com certa vacilação —. Mas que farás se Salford te acusa? Negá-lo?

— Oh, Tom! Não diga isso! — disse Phoebe, suplicante.

— Já o sei, mas é melhor que te prepares — insistiu —. Não acho que Salford acreditasse, porque nunca soubeste mentir.

— Se perguntar-me — disse Phoebe com desespero— terei que lhe dizer a verdade.

— Cabe a possibilidade de que não to pergunte — disse Tom ao ver que Phoebe estava muito perturbada —. Mas sobretudo não comentes a ninguém mais. Certamente que
acabas contando a alguém! Conheço-te!

— Contar a alguém? Não, claro que não!

Phoebe estava muito segura de que não revelaria a verdade a ninguém, mas tinha que se submeter a duras provas cada vez que se via obrigada a aguentar em silêncio
as discussões a respeito de seu livro que lhe davam vontades de gritar “Não! Eu não queria dizer isso!”. Porque a única personagem do herdeiro perdido que acordava
a curiosidade de todos era o conde Ugolino. As pessoas sensatas não lhes davam importância e consideravam-no uma mera exibição de impertinência; os amigos de Sylvester
estavam zangados; mas Phoebe tinha a impressão de que os estúpidos que afirmavam que quando o rio soa, água leva, era a maioria. Não demorou em se dar conta de que
ela não tinha sido a única confidente de Lianthe. Ao que parecia, antes inclusive de que Phoebe escrevesse O herdeiro perdido, Lianthe tinha desacreditado Sylvester
ante qualquer um que se tivesse mostrado disposto a escutar seus motivos de queixa.

— A autora maquiou um pouco as circunstâncias, é claro — disse uma dama de olhar ávido —. Não digo que Salford tenha agido igual a Ugolino, porque hoje em dia não
poderia. Mas quanto li o livro recordei o que uma vez me contou a pobre lady Henry...

— Poderia ser que o filho de lady Henry fosse o verdadeiro duque de Salford? — sussurravam os mais crédulos —. É verdade que Salford e lord Henry eram gêmeos?

Essa mórbida suposição esteve a ponto de levar a Phoebe ao limite de sua paciência. Faltou pouco para que escapasse da língua, mas por sorte, nesse dia lady Ingham
a impediu a tempo lhe lançando um olhar fulminante, e Phoebe permaneceu calada. No entanto, o olhar de sua avó não se achava perto para ajudá-la quando foi a própria
Lianthe quem formulou essa mesma teoria.

— Quem quer que escrevesse esse livro — disse Lianthe com veemência— sabe muito a respeito dos Rayne. Disso não tenho dúvida! As pessoas acham que tem que ter sido
escrito por uma mulher. Que acha você, senhorita Marlow?

— Sim, e uma mulher muito tola — disse Phoebe —. É o mais absurdo que jamais ouvi!

— Em absoluto! — insistiu Lianthe —. De acordo: Chance não é um castelo, seria impossível que Sylvester mantivesse Edmund escondido e Edmund não tem uma irmã, mas
isso só são detalhes sem importância. Já li o livro duas vezes, e acho que contém uma advertência.

— Uma advertência? — estranhou-se Phoebe.

— Sim, dirigida a mim. Uma advertência de que meu filho corre perigo. Não cabe dúvida de que Matilda sou eu.

Essas ingênuas palavras fizeram Phoebe emudecer de assombro. Nunca lhe tinha ocorrido que Lianthe pudesse se identificar com a irmã de cabelo dourado do herdeiro
perdido. Como não lhe interessava muito os simples heróis ou heroínas, se tinha limitado a descrever duas raparigas de beleza deslumbrante, as dotar de todas as
virtudes conhecidas e lhes fazer viver uma série de atemorizantes aventuras das quais, pessoalmente, achava que era extremamente improvável que pudessem ter saído
airosas por seus próprios meios.

— Ainda que Florian não seja Fotherby, é claro — acrescentou Lianthe, respondendo, sem dar-se conta, a pergunta que Phoebe estava para formular —. Acho que se trata
só de uma personagem fictícia. O pobre Nugent carece de estofo de herói. Ademais, ele é o barão Macaronio, isso salta à vista.

A serena complacência que surgiu no rosto e na voz de Lianthe provocou em Phoebe a segunda comoção do dia. No entanto, não demorou em se recuperar dela, pois um
instante de reflexão bastou para convencê-la de que até o mais grosseiro dos jornais podia perdoar a um autor que retratava lady Henry com tanta benevolência.

— E Harry era o irmão gêmeo de Sylvester — continuou Lianthe.

— Mas se o conde Ugolino e seu irmão não são gêmeos! — conseguiu dizer Phoebe.

— Não, mas suponho que a autora não se atreveu a reproduzir todos os detalhes com exatidão. O caso é que Ugolino é um usurpador.

— Lady Henry! — disse Phoebe tratando de controlar o tom de voz —. Não pensará seriamente que Salford é um usurpador!

— Não, mas essas coisas acontecem, e ele e seu irmão eram gêmeos, e muitas vezes pensei, quando Salford animava a Edmund a realizar coisas perigosas, como montar
no pônei pelo parque, sozinho, ou trepar em árvores, que ficaria muito feliz se meu filho caísse e partisse a cabeça.

— Não diga isso! Rogo-lhe que não fale assim, lady Henry. Já sei que só o diz por brincadeira, mas lhe rogo que não o faça.

O formoso rosto de Lianthe adotou uma expressão obstinada.

— Não, não falo de brincadeira. Não estou afirmando que seja assim, porque não acho que a duquesa mudasse aos gêmeos. Por que o ia fazer? Mas Sylvester nunca gostou
de Edmund. Ele mesmo confessou que não o queria, e ainda que mais tarde fingisse não o ter dito seriamente, sempre soube que era verdade. E bem, por que acredita
você que odeia a Edmund?

— Lady Henry, não deve imaginar essas coisas — insistiu Phoebe, horrorizada —. Como pode supor que uma novela tão estúpida tenha relação com a vida real?

— O herdeiro perdido não é mais estúpido que Glenarvon, e não dirá que não guardava relação com a vida real — replicou Lianthe no mesmo instante.

— Eu sei... Tenho motivos para crer... — retrucou Phoebe— que a autora do livro ignorava as circunstâncias de Salford e do resto de sua família.

— Bobagens! Como pode saber?

— Acontece que conheço à autora — disse Phoebe molhando os lábios e com voz trêmula —. Não devo revelar quem é, e você não deve mo perguntar... Veja, não deveríamos
nem o mencionar!

— Conhece à autora? — disse Lianthe, impressionada —. Oh! Quem é? Conte-me, não seja cruel! Serei um túmulo, senhorita Marlow!

— Não, não devo revelar seu nome. Nem sequer deveria ter mencionado o assunto, mas senti-me obrigada a comprovar o quão maluca é a ideia que você tem metido na cabeça.
Lady Henry, minha amiga só tinha visto Salford uma vez: a única coisa que sabia dele era seu nome. Impressionaram-lhe suas estranhas sobrancelhas, e quando se pôs
a escrever a história, se lembrou delas e lhe ocorreu pôr umas sobrancelhas parecidas em Ugolino; no entanto, não pensou que ninguém pudesse...

— Mas tinha que saber algo mais! — objetou Lianthe olhando com dureza a Phoebe —. Não ignorava que era o tutor de Edmund!

— Não, não o sabia. Isso só foi... Ela mesma mo explicou: só foi uma desafortunada coincidência.

— Não a creio! É impossível!

— Prometo-lhe, lady Henry! — perseverou Phoebe —. Sei-o com total segurança!

Produziu-se um breve silêncio. Lianthe olhava de cima a baixo a Phoebe, e de repente, sua expressão transformou-se e exclamou:

— Senhorita Marlow! É você! Você é a autora do livro!

— Não!

— Claro que sim! Ai, que demoniozinho! — gritou Lianthe.

— Asseguro-lhe que não!

— Não, não me enganará! Agora o entendo! Como se zangaria Sylvester se soubesse...! Quando foi tão condescendente e galante com você! Espero que o descubra. — Ao
perceber a expressão horrorizada de Phoebe, acrescentou —: Não direi, é claro; por isso não tem que se preocupar.

— Espero que não lho diga a ninguém, porque é falso e ademais, absurdo — retrucou Phoebe fingindo que aquilo a divertia —. E rogo-lhe que não mencione também que
conheço à verdadeira autora. Não preciso que lhe rogue: já deve de compreender o quão desagradável seria para mim. Não posso divulgar o segredo, e... e se me encherem
de perguntas...

— Não, claro que não mencioná-lo-ei! Imagine! Escreve livros! Estou segura de que eu seria incapaz de fazê-lo. Que inteligente deve de ser você! Mas para valer não
sabia nada das circunstâncias? Que estranho! Como lhe ocorrem essas aventuras tão emocionantes? Ignorava como planejou as aventuras de Matilda e Florian para resgatar
o pobre Maximilian, pese a que conheça muito bem a situação de cada um. Não pude fechar o último volume até que chegaram à costa e Florian grita: “Salvos! Salvos,
Matilda! Por fim nos livramos de Ugolino!” Achei-o tão emocionante que quase chorei.

Lianthe seguiu falando desse modo durante vários minutos, sem que Phoebe pudesse evitá-lo. A única coisa que se viu capaz foi de repetir era que ela não era a autora
do livro, o que só provocou o riso de Lianthe, e de se consolar com a duvidosa promessa de Lianthe de que não o revelaria a ninguém.

Capítulo 18

Phoebe começou a notar as primeiras repercussões dessa conversa quase de imediato. Detectou um par de olhares encobertos e em várias ocasiões suspeitou que era o
objeto de discretas confidencias. Sentia-se muito desconfortável; quando, nuns dias mais tarde, duas das patrocinadoras de Almack's a saudaram com uma fria inclinação
da cabeça, e lady Ribbleton, a única e imponente irmã da duquesa de Salford, fingiu não a conhecer, já não pôde continuar pensando que era sua imaginação. Fez o
possível para manter um ar de alegre despreocupação, mas em seu foro íntimo tremia de medo. Só uma pessoa se atreveu a lhe perguntar se era verdade que tinha escrito
O herdeiro perdido: uma ingênua jovem que estava em sua primeira temporada, a qual sua mãe olhou em seguida com o cenho franzido. Phoebe exclamou, fingindo surpresa:
“Eu?”, e ao menos ficou feliz em saber que tinha acalmado as suspeitas de uma pessoa. A senhora Newbury, outra das poucas pessoas que talvez pudesse acusá-la do
que Phoebe estava começando a considerar um crime, se encontrava indisposta e não podia sair de sua casa, e era provável que não estivesse a par dos rumores que
circulavam.

A viúva inteirou-se do curso que tinham tomado os acontecimentos por sua nora, à que tinha nomeado acompanhante de Phoebe. Rosina abordou-a com grande vacilação,
porque lhe surpreendia muito que Phoebe tivesse levantado essas suspeitas, e às vezes se perguntava se teria mal interpretado alguns comentários que tinha ouvido.
Ninguém lhe tinha perguntado nada nem formulado nenhuma observação ofensiva. Só tinha tido insinuações.

A viúva perguntou a Phoebe que tinha acontecido, e se enfadou muito quando sua neta se referiu a conversa que tinha mantido com Lianthe. Não pareceu entender os
sentimentos que tinham induzido Phoebe a estar tão a ponto de revelar seu segredo e afirmou, impaciente, que ninguém cuja opinião merecesse alguma consideração faria
caso das tolices que Lianthe contava de Sylvester. Perguntava-se como tinha podido Phoebe confiar em que Lianthe fosse suficientemente discreta para não divulgar
uma notícia como aquela, e se a perdoou foi só porque ao menos sua neta teve a sensatez de se manter firme em sua negativa.

— Lianthe não pode afirmar que tenhas admitido ter escrito a novela, e além disso, a única coisa que pode fazer é acreditar saber quem é a autora. Isso é perfeitamente
plausível. Estou segura de que muitas pessoas acharão o mesmo. Se as pessoas pensarem que Lianthe, segundo seu costume, enfeitou o que tu lhe contaste com detalhes
de sua própria imaginação, muito melhor. E se não, pensarão que foste tu a que exageraste fingindo saber mais que qualquer um para te fazer de interessante. Sim,
querida, não me tenho dúvida de que teria sido melhor que não te considerassem assim, mas devias tê-lo pensado antes. Vamos, não te desanimes! Se segues meus conselhos,
nem tudo está perdido. — Deu-lhe uns golpes joelho com o leque, num gesto de exasperação —. Devia ter previsto o que aconteceria se Rosina se encarregasse de ti.
Que mulher tão néscia! Eu teria podido pôr fim a esses rumores Antes que se propagassem. Enfim, agora já não tem importância. Quando é o baile dos Castlereagh? Amanhã?
Estupendo! Será a primeira grande festa da temporada, e vem-nos como uma luva. Acompanhar-lhe-ei eu mesma, minha filha, e verei que posso fazer.

— Devo ir, avó? — balbuciou Phoebe —. Preferiria ficar-me em casa.

— Ficar em casa? Que queres, confirmar as suspeitas dos fofoqueiros? Porás teu vestido novo, esse verde tão bonito com os bordados de pérolas, e te comportarás como
se nada soubesse. Eu, ao contrário, manter-me-ei muito atenta, e acho que me vou divertir como nunca. Assim enganaremos a todos. Espero que o truque funcione! —
acrescentou com certa consternação —. Deves saber, querida, que se não pormos fim a este escândalo, talvez nem minha influência consiga que te convidem para o Almack's.
Suponho que compreenderás o que isso significaria. — Viu que Phoebe estava muito compungida, assim se abrandou; inclinou-se para frente para dar-lhe umas palmadinhas
na mão e disse —: Bom, basta de reprimendas! É uma lástima que Tom não possa dançar por causa de sua perna. Se não, convidá-lo-ia a nos acompanhar ao baile dos Castlereagh
para que te animasse um pouco, pequena.

A viúva tinha-se gostado muito com o jovem Orde, mas ter-lhe-ia sido sumamente difícil convencê-lo para que assistisse a um baile no qual se teria visto obrigado,
como ele dizia, a se fazer pomposo com um montão de desconhecidos elegantes. Tom, muito sério, assegurou a Phoebe que não gostava dessas coisas: alegrava-se de poder
alegar sua perna rompida como desculpa.

Assim foi que na noite fatídica Tom foi admirar as novas luzes de gás de Drury Lane enquanto Phoebe se dirigia com sua avó, pouco depois das dez, à mansão dos Castlereagh.

A viúva deu-se conta ao instante do quão perto tinha estado Phoebe de cair em desgraça, e se dedicou a tomar nota da cada uma das damas que ousavam tratar com frieza
a sua neta. Estas damas cedo teriam que lamentar sua insolência: conquanto nos últimos tempos lady Ingham tinha decidido retirar-se um pouco do mundinho social,
ainda exercia certa preeminência. Constatou, com satisfação, que Phoebe se comportava com desenvoltura e pouco depois se aliviou ao comprovar que a tiraram para
dançar uma dança folclórica que estava começando.

O casal de Phoebe era um jovem cavalheiro ao que se via um tanto incômodo dentro de seu primeiro colarinho e seus primeiros calções de seda; como era tímido, Phoebe
se esqueceu de seu próprio nervosismo se esforçando para que ele se sentisse confortável, de maneira que sorria e falava com a despreocupação, que sua avó lhe tinha
aconselhado.

Mas quando ia ao meio do segundo quadro, Phoebe divisou Sylvester e notou como o coração lhe acelerava.

O duque achava-se junto à porta falando com sua anfitriã, no meio de um grupo de convidados. Ria, replicava a um amigo seu acima do ombro, apertava a mão de outro;
Phoebe alegrou-se de comprovar que estava de bom humor. Sylvester jogou um olhar ao salão de dance, mas felizmente; seus olhares não se encontraram. Phoebe perguntou-se
se a procuraria e não soube o que seria pior: que o duque não lhe fizesse caso ou se ver obrigada a enfrentá-lo.

A dança seguinte era uma valsa. Phoebe achava que Sylvester ainda não a tinha visto, mas quando os violinistas começaram a tocar, o duque se dirigiu a onde estavam
sentadas a jovem e a viúva e disse:

— Como está você, senhora? Minha mãe pediu-me que lhe apresentasse seus respeitos. Comprazes-me comunicar-lhe que se encontra muito bem. Senhorita Marlow, concede-me
esta dança?

Phoebe pôs-se de pé, lançou um olhar fugaz a Sylvester e o coração voltou a bater-lhe com força. Os lábios de Sylvester esboçaram um sorriso, mas a jovem percebeu
um brilho nos olhos do duque que lhe era estranho e suspeito, e pareceu ver que tremiam as aletas do nariz.

Sylvester conduziu-a até a pista de dança. Phoebe confiava em que ele não notasse seu nervosismo, e, fazendo um esforço, disse:

— Não sabia que tivesse regressado já à cidade, senhor duque.

— Ah, não? Cheguei de Chance ontem, expressamente para vir a esta festa. Alegro-me de tê-la encontrado aqui. E admiro sua coragem.

Phoebe era consciente de que lhe tremia a mão que o duque sujeitava com delicadeza, mas tentou restabelecer-se.

— Bom, é que já não sou tão tímida como antes.

— Isso é evidente. Permita-me que lhe apresente meus elogios e que a felicite por seu grande lucro.

— Não sei de que me fala.

— Claro que sim. Escreveu uma novela que tem convulsionado à boa sociedade: magnífica façanha! É muito inteligente, senhorita Marlow, mas não podia encontrar-me
um nome mais apropriado que “Ugolino”?

— Está equivocado. Muito equivocado! — balbuciou ela.

— Não minta. Creia-me, seu rosto delata-a. Talvez achasse que não descobriria, não é verdade? Não sou estúpido e possuo uma memória consideravelmente boa. Ou achou
que não ia ler seu livro? Se assim é, não teve sorte. Talvez não o teria lido se minha mãe não mo tivesse pedido. Mas ela, como é lógico, queria saber o que eu tinha
feito para criar tanta inimizade e a quem tinha ofendido tão gravemente. Não pude responder à primeira das perguntas. Mas tenho de confessar que a segunda não a
resolvi até que li seu livro. E então teria podido contestá-la, é claro, se o tivesse desejado.

— Sinto-o, sinto-o! — sussurrou ela, muito compungida.

— Não baixe a cabeça. Quer que todo mundo se inteire do que lhe estou dizendo?

— Tentei mudá-lo — retrucou Phoebe alçando a cabeça —, mas era demasiado tarde. Não devia tê-lo escrito. Não sabia... Jamais imaginei... Ai! Como posso lhe explicar?
Que posso dizer?

— Poderia dizer muitas coisas, mas não é necessário. Só há algo que me intriga, porque por muito que rebusco em minha memória, não encontro a resposta. Que foi o
que fiz, senhorita Marlow, para merecer que me pusesse no pelourinho?

— Nada! Nada!

— Nada? Dou-me conta de que lhe fui antipático na primeira vez que nos vimos; você mesma me disse que não a reconheci quando nos encontramos pela segunda vez. Foi
esse o único motivo para que me tomasse como modelo para descrever a seu vilão? Foi por esse mínimo detalhe que se propôs ventilar os assuntos de minha família ante
o mundo e publicar uma maliciosa paródia dos Rayne?

— Não! Se tivesse sabido... Como pode pensar que teria escrito o livro se tivesse sabido que tinha um sobrinho e que era seu tutor? Não o sabia! Foi por pura casualidade:
elegi-o para criar Ugolino porquê... pela forma de suas sobrancelhas e porque pareceu-me muito arrogante. Mas então não sabia que o livro publicar-se-ia.

— Um pouco complicado, não acredita? Não pensará seriamente que vou engolir uma história tão inverossímil.

Phoebe alçou a vista e descobriu que, enquanto falava com ela, Sylvester sorria sem mal decolar os lábios. A sensação de estar a ter um pesadelo ameaçava a apoderar-se
dela.

— É a verdade, acredite você ou não — disse com um fio de voz —. Quando me inteirei de Edmund... queria morrer-me!

— Mas não o suficiente para deter a publicação dessa triste coincidência.

— Não pude! Nem sequer deixaram-me mudar o texto! O livro já estava impresso, senhor duque. Quando cheguei a Londres foi a primeira coisa que fiz. Imediatamente
dirigi-me a ver aos editores e... prometo-lhe!

— E como é lógico, não lhe ocorreu pensar que se me avisasse, talvez eu teria mais influência para deter a publicação — retrucou ele em tom afável.

— Não, não se me ocorreu — confessou Phoebe.

— Isso está melhor! Esse olhar de inocência é excelente. Deveria cultivá-lo!

Phoebe se ruborizou.

— Não continue, lhe rogo! Aqui, não! Agora, não! Não posso lhe contestar. Cometi um grave erro, não tenho desculpa e estou profundamente arrependida.

— Sim, não me estranha. Quantas pessoas a têm menosprezado hoje?

— Não é por isso! — contestou ela acaloradamente —. Você sabe que não é isso o que me preocupa! Talvez ache que não sou consciente de sua amabilidade, do bem que
se portou com Tom e comigo quando nos encontrou?

— Bah, não pense mais nisso. Mas que digo! É evidente que lhe trazia sem cuidado.

Phoebe fez uma careta.

— Basta, por favor! Não era minha intenção lhe fazer dano. Teria podido convertê-lo no herói da novela.

— Deveria estar-lhe agradecido? Não compreende que descobrir que apareço numa novela (e se me permite, numa novela como essa), interpretando qualquer personagem
me seja nauseante? Ainda que tivesse me dotado de todas as virtudes imagináveis, seria uma impertinência intolerável.

Phoebe começou a sentir-se tão enjoada como quando sua madrasta a repreendia.

— Deixe-me voltar para minha avó. Não sei por que me pediu que dançasse com você. Não podia ter elegido outra ocasião para falar comigo?

— Sim, claro, mas por que iria fazê-lo? Deixarei que volte para lady Ingham quando cessar a música, nem um minuto antes. Você é muito mal agradecida, Pardal.

— Não me chame Pardal! — saltou ela, indignada pelo tom de voz que o duque estava empregando.

— Não, esse nome não lhe cabe — concordou ele —. Como prefere que a chame? Corvo?

— Deixe-me ir! Pode menosprezar-me se quer, mas não é necessário que me insulte.

O duque sujeitou-lhe a mão com firmeza.

— Deveria estar agradecida de que não a tenha desprezado. Sabe que teria passado se tivesse feito isso? Sabe quantos pares de olhos nos estavam observando para ver
o que eu ia fazer? Pedi-lhe esta dança porque, se não, as suspeitas de que é você a autora desse livro ter-se-iam confirmado, e amanhã teria se encontrado convertida
numa pária social. Teria sido bem empregado, e admito que me vi tentado. Mas se tivesse tomado uma vingança tão mesquinha, teria me considerado tão desprezível como
seu malvado conde Ugolino. Pode estar certa que a apoiarei, senhorita Marlow. O que me permite dizer-lhe, que terá que aprender a aceitá-lo com elegância. Irei apanhá-la
amanhã em Green Street e levá-la-ei a passear pelo parque: assim convenceremos aos cépticos.

Essas palavras foram a gota d'água. Phoebe escapou da mão do duque, sem pensar onde estava nem nas consequências, e foi correndo se reunir com sua avó, tão cega
pelas lágrimas incontroláveis que tropeçou em vários casais, e não observou como todos a olhavam primeiro e depois a Sylvester, que tinha ficado de pé no centro
da pista de dança, pálido de ira.

Capítulo 19

Lady Ingham achava-se indisposta. Sir Henry Halford tinha dito que não deviam molestar milady por nenhuma circunstância e que não queria receber visitas. A senhorita
Marlow também estava indisposta e tinha se deitado no sofá do salãozinho; também ela não recebia visitas nesse dia.

Essa infausta notícia, revelada por Horwich num tom sepulcral, afastou a um dos dois visitantes que chamaram à porta de Green Street, mas deixou indiferente o outro.

— Milady me receberá — disse a senhora Newbury com decisão —. Mas faz muito bem você em me avisar, Horwich. Tentarei não a pôr nervosa.

— Não posso responder por milady, senhora. Vou perguntar.

— Não é necessário, Horwich. Está milady em seu quarto de vestir? Não preciso que me acompanhe.

Animada pelo sucesso conseguido pela senhora Newbury, o outro visitante disse com firmeza: — A mim receberá a senhorita Marlow! Leve-lhe meu cartão, por favor.

A senhora Newbury subiu a escada e, depois de chamar à porta do quarto de vestir, assomou a cabeça e disse com voz débil: — Posso passar, lady Ingham? Espero que
não se enfade comigo.

As persianas das duas janelas estavam abaixadas; um forte cheiro a vinagre aromático impregnava a atmosfera, e uma figura abatida acercou-se, sussurrando que não
se podia molestar à senhora.

— És tu, Georgiana? — perguntou com um fio de voz a viúva do sofá —. Encontro-me tão mal que não quero ver ninguém, mas suponho que entrarás não importa o que diga.
A ninguém importa que me vá para o outro mundo! Traga uma cadeira à senhora Newbury, Muker, e saia.

A carrancuda criada obedeceu essa ordem de má vontade; e Georgiana, cujos olhos se estavam acostumando à penumbra, caminhou até o sofá e se sentou-se junto a ele,
dizendo num tom persuasivo:

— Não vim perturbá-la, senhora, mas ajudar, se é que posso colaborar em algo.

— Ninguém pode me ajudar — disse lady Ingham com resignação —. Não é necessário que pergunte se toda a cidade já se inteirou.

— Bom, acho que sim — retrucou Georgiana com sinceridade —. Charlotte Retford veio ver-me esta manhã, e a verdade é que me disse que todos só falam disso. Explicou-me
o que passou ontem à noite e... Olhe, achei que meu dever era vir vê-la, porque ainda que Phoebe tenha escrito esse livro, tenho-lhe muito carinho, e ainda que Lion
opine que não devo me intrometer, se posso as ajudar em algo, o farei.

— Suponho que ninguém tenha dúvida de que foi Phoebe quem escreveu esse livro. Quando penso em tudo o que fiz por minha neta ontem à noite... Até convenci a Sally
Jersey de que se tratava de um rumor espalhado por essa desavergonhada, Lianthe Rayne. Onde estão meus sais?

— Por que ela o escreveu, senhora? Qualquer um pensaria que odeia a Sylvester, mas penso que não seja assim.

A viúva explicou-lhe, interrompendo-se de vez em quando para tomar os sais. Depois bebeu um gole de tisana, se deitou e fechou os olhos. A senhora Newbury permaneceu
uns minutos pensativa, mas depois disse:

— Estranha-me que Sylvester a delatasse, dissesse ela o que dissesse.

— Delatou-se a si mesma! Deixá-lo no meio da pista de dança! O que pensou? Fiz o que pude, Georgiana, mas de que serviria assegurar que Phoebe tinha se sentido mal
quando todos podiam ver a Sylvester, furioso como um demônio— Nunca perdoar-lho-ei! Pô-la em ridículo diante de todo mundo! Já sei que minha neta não tem desculpa,
mas o que ele fez foi uma crueldade. E nem sequer posso consolar-me pensando que Phoebe também o pôs em ridículo, porque ao fazê-lo procurou a ruína. — O duque devia
de estar muito zangado — disse Georgiana franzindo o cenho —. Demasiado para pensar nas consequências de provocar essa situação em público. Porque seu comportamento
é indigno dele, lady Ingham. Nada incomoda mais Sylvester que a falta de decoro. Talvez Lion tivesse razão, apesar de tudo.

— Não o creio — afirmou a viúva.

— Bom, isso mesmo pensei— disse a complacente esposa do comandante —. Assegurou que era um assunto entre eles dois. E mais, como eu não estava de acordo com ele,
me propôs uma aposta. Sei muito bem como se comporta Sylvester quando começa a cortejar alguma mulher, e lhe asseguro que não se parecia nada com isso. Talvez se
apaixonou por Phoebe?

A viúva soou-se o nariz.

— Achava que estava tudo arranjado — confessou —. Era o que mais desejava, Georgie! Tudo ia correndo bem, e de repente meus planos fracassaram. Devo acreditar que
se restabelecerão os sentimentos que Sylvester tinha por ela? Não! Certamente que não!

Georgiana, com os comentários do razoável Lion na mente, alegrou-se de que lady Ingham lhe tivesse dado a resposta a sua própria pergunta. “Caramba! — tinha dito
o comandante —. Que lástima! Pareceu-me uma rapariga muito agradável. Agora já não lhe proporá casamento, é claro. “Não podia ter escolhido uma forma melhor para
afugentá-lo que o pôr em ridículo.”

— Não sei o que fazer! — lamentou-se a viúva —. De nada serviria me dizer que

Phoebe tem que enfrentar a situação: não é dessas jovens que mal se incomodam por uma situação como esta. Ademais, agora não lhe enviarão convites para Almack's.
Eu nem sequer os solicitarei: nada agradaria mais a essa odiosa Burrell que ter a ocasião de me dar uma decepção.

— Não, será melhor que não. Tenho uma ideia melhor, lady Ingham; por isso vim. Leve-a a Paris!

— Que a leve a Paris? — estranhou-se a viúva.

— Sim, senhora, a Paris — insistiu Georgiana —. Pense-o! Phoebe não pode ficar encerrada aqui, e a enviar para sua casa seria o pior, porque significaria abandonar
toda esperança de que voltasse a se estabelecer. O que precisa é ir a Paris! Todo mundo sabe que você já algum tempo tem pensado na à ideia de se instalar ali para
uma temporada. Eu mesma a ouvi explicando a lady Sefton.

— Talvez todo mundo o saiba, mas também saberia o motivo de minha viagem.

— Isso não tem remédio, minha amiga. Ao menos saberão que não abandonou Phoebe. E já sabe com que rapidez se esquecem até os escândalos mais graves.

— Este não será esquecido facilmente.

— Claro que sim. Prometo-lhe que não ficarei ociosa durante sua ausência, e sabe que ninguém pode ser de maior utilidade neste assunto que eu, porque sou prima de
Sylvester, e todos darão mais crédito ao que eu diga do que diga Lianthe. Mencionarei que a cena de ontem à noite foi o resultado de uma briga que começou antes
de Sylvester partir para Chance, e que não teve nada a ver com O herdeiro perdido. Afirmarei que por esse motivo ele partiu para Chance; tem lógica, não? E o direi
— acrescentou Georgiana com ar cúmplice— na mais estrita intimidade. Somente a uma pessoa, ou talvez a duas, para me assegurar de que essa versão dos fatos se estenda
devidamente.

— Abra as persianas! — ordenou a viúva rompendo um curto silêncio —. Que faz Muker nos deixando a escuras? Que mulher tão estúpida! És uma criatura frívola e desordenada,
Georgie, ainda que tenha de reconhecer que tens bom coração. Mas alguém acreditará que Phoebe não escreveu esse livro?

— Teremos que os convencer, ainda que tenha que dizer que eu também conheço à verdadeira autora. Se Sylvester tivesse-o aceitado bem (se tivesse caçoado a respeito
disso, como se não lhe importasse o mínimo, e agisse como se participasse do segredo desde o princípio), não teria tido nenhuma importância, porque ele é a única
pessoa retratada negativamente no livro, de maneira que se ele não tivesse se importado, as demais pessoas das que Phoebe se serviu para criar suas personagens teriam
seguido seu exemplo.

— Não me fales de Sylvester! — exclamou a viúva com desprezo —. Se não me tivesse ocorrido casá-lo com Phoebe, estaria encantada com esse livro, porque o descreve
à perfeição, Georgie. Certamente que ainda está ressentido. Maldito seja! Poderia ter pensado em mim antes de provocar a minha neta e conseguir que fizesse uma cena
no meio de um baile.

Ao ver que as lágrimas escorriam pelas faces de lady Ingham, o qual era muito incomum, Georgiana reprimiu o impulso de defender a Sylvester e se apressou a tranquilizá-la
dirigindo de novo seus pensamentos para Paris.

— Sim, mas de nada serve pensar em Paris — disse a viúva enxugando as lágrimas —. Não posso empreender essa viagem se um cavalheiro não me acompanhar. O pobre Ingham
se revolveria em sua tumba. E não proponhas que eu contrate a um acompanhante! Nego-me a viajar em companhia de estranhos. Ademais, as viagens fazem-me muito mal,
sempre me enjoo, e não posso contar com Muker, porque não quererá ir a França.

Georgiana se desaminou ante esses detalhes. Após a viúva recusar sua sugestão de que lord Marlow a acompanhasse, já não soube o que dizer, e se limitou a se lamentar
de que seu plano tivesse fracassado.

— Sim, é uma lástima! — coincidiu a viúva, aborrecida —. Mas dado meu estado de saúde, seria uma loucura empreendesse a viagem sem ajuda. Sir Henry não quereria
nem ouvir falar disso. Se Phoebe tivesse um irmão... — De repente interrompeu-se, e surpreendeu a Georgiana ao exclamar —: O jovem Orde!

— Como diz, senhora?

— É a pessoa certa! — assegurou a viúva incorporando-se com assombrosa energia —. Vou escrever ao senhor Orde agora mesmo. Onde se hospeda? No Reddish's! Georgie,
querida, traz-me tinta, minha pluma, papel, um mata-borrão! Estão no escritório! Não! Já me levanto! Toma, leva tudo isto, querida!

— Mas de quem se trata? — perguntou Georgiana recebendo da viúva um leque, um frasco de sais, uma garrafa de colônia, outra de amônia e três lenços limpos.

— É como um irmão para Phoebe, o conhece desde que era uma criança — contestou a viúva enquanto tirava-se vários xales, cachecóis e mantas —. Um jovem muito correto.
Falta-lhe experiência, mas é muito cavalheiresco.

— Um jovem de aspecto exuberante, com um tímido sorriso? — perguntou Georgiana arqueando as sobrancelhas —. Esse que coxia um pouco?

— Sim, é esse. Dá-me a mão... Não! Onde pôs Muker minhas sapatilhas?

— Pois acho que está com Phoebe neste preciso momento. Encontramo-nos na porta, e perguntei-me quem seria.

A viúva voltou a deixar-se cair sobre as almofadas.

— Por que não me disse antes— Toca a campainha, Georgie. Faça-o vir aqui de imediato.

— Claro, senhora — disse Georgiana obedecendo. Mas acrescentou —: Ainda que... está segura de que lhe convém fazer essa viagem com ele?

— Se me convém? Por que não me ia convir? Lhe fará bem ver um pouco de mundo. Ah, já sei. Estás a pensar que poderiam se apaixonar? Não, te asseguro que não há nada
que temer, ainda que não sei por que menciono a palavra temer — acrescentou milady com amargura —. Após o que ocorreu ontem à noite, deveria alegrar-me de vê-la
casada com quem fosse.

Uns minutos mais tarde, Tom entrou no quarto de vestir com gesto sombrio. Jogou um olhar, impressionado, à coleção de remédios e reconstituintes que repousavam na
mesa junto ao sofá de lady Ingham, mas sentiu alívio ao ouvir que o saudavam com voz enérgica. No entanto, quando a viúva lhe perguntou, sem preâmbulos, se estava
disposto às acompanhar a ela e à senhorita Marlow a Paris, se mostrou mais consternado que comprazido; e ainda que, quando lhe apresentaram o benefício de passar
uma semana em Paris como convidado de milady, e ele balbuciou que estava muito agradecido, era evidente que se tratava só de uma expressão de cortesia.

— Permite-me que te esclareça, Tom, que as viagens ao estrangeiro são uma parte imprescindível da educação de um jovem cavalheiro — disse a viúva com severidade.

— Sim, senhora — retrucou Tom. E acrescentou, esperançoso —: Mas acho que a meu pai não gostará que vá.

— Bobagens! Teu pai é um homem sensato, e ele mesmo comentou que já estava na hora de que adquirisses um pouco de experiência. Confia em mim: certamente que ele
pode passar sem ti uma ou duas semanas. Escrever-lhe-ei uma carta, e se queres, podes levá-la pessoalmente. Não sejas teimoso, rapaz! Se não queres ir por teu próprio
bem, certamente que o fará pelo bem de Phoebe.

Quando lhe colocaram desse modo, Tom declarou que estava disposto a qualquer coisa por Phoebe. Então pensou que a resposta era um pouco inadequada, assim que acrescentou,
ruborizando-se até as sobrancelhas, que lady Ingham era muito amável, que estava convencido de que divertir-se-ia muitíssimo em Paris e que seu pai ficaria muito
agradecido. No entanto, pareceu-lhe oportuno mencionar que sabia muito pouco francês e que nunca tinha saído de Inglaterra.

A viúva passou por alto essas insignificâncias, e explicou-lhe por que queria partir de Londres tão repentinamente. Perguntou a Tom se Phoebe tinha-lhe contado o
ocorrido da noite anterior, e isso fez que o jovem voltasse a adotar um gesto sombrio.

— Sim, me contou, senhora. É um assunto feio, sei-o, e não digo que Phoebe não fizesse mal escrevendo sobre Salford, mas também não foi bonito ele a repreender em
público. Eu... eu acho uma grosseria, porque estou certo de que o fez deliberadamente para a pôr em ridículo. E mais, não o esperava dele. Achava que era uma pessoa
decente, um verdadeiro cavalheiro. Ai, se Phoebe tivesse-lhe contado...! Eu queria ir visitar Salford. Mas agora não posso ir, é claro, porque fizesse o que fizesse
Phoebe, estou do seu lado, e teria que dizê-lo ao duque.

— Não, em teu lugar não o iria ver ainda — disse Georgiana contemplando ao jovem com aprovação —. Sylvester é um verdadeiro cavalheiro, mas temo que agora esteja
zangado. Se não, não teria se comportado desse modo ontem à noite. Pobre Phoebe! Está muito abatida?

— Bom, estava-o bastante quando cheguei — respondeu Tom —. Tremia como um pudim! Sempre se põe assim quando a repreendem, mas agora já se encontra melhor, ainda
que muito triste. Veja, lady Ingham: quer que a leve a sua casa.

— Que a leves a Austerby? — exclamou a viúva —. Impossível! Não pode voltar ali!

— Pois está decidida — insistiu Tom —. Diz que pôs em ridículo a você também. E que prefere enfrentar lady Marlow que à aristocracia de Londres, e além disso não
terá que ficar muito tempo em Austerby porque tão cedo esses editores lhe soltem a massa... Refiro-me a que tão cedo lhe paguem, Sibby e Phoebe irão viver juntas
no campo. Phoebe quer escrever outra novela em seguida, porque fizeram-lhe uma oferta muito vantajosa.

A revelação desse disparatado projeto alarmou à viúva, que emitiu um gemido e se derrubou sobre as almofadas com os olhos fechados, para desespero de Tom. Georgiana
a reanimou fazendo-lhe cheirar os sais e aplicando-lhe água de colônia na têmpora, e lady Ingham recuperou-se o suficiente para ordenar a Tom que fosse procura a
Phoebe imediatamente. Georgiana, ao perceber o olhar vacilante que lhe dirigia Tom, pegou suas luvas e sua bolsa e anunciou que partia.

— Suponho que Phoebe preferirá não me encontrar aqui. Entendo-o, mas, por favor, cumprimente-a de minha parte, senhor Orde, e assegure-lhe que ainda sou sua amiga.

A tarefa de convencer a Phoebe de que não devia contemplar com repugnância a perspectiva de se transladar do mundo elegante de Londres ao de Paris não foi fácil.
Em vão assegurou-lhe a viúva que se alguma mente malvada tinha escrito a seus amigos de Paris lhes contando sua queda em desgraça poderiam negá-lo; em vão prometeu-lhe
apresentar-lhe ao rei Luis; em vão descreveu com todo detalhe a simpatia e a elegância dos franceses: Phoebe recusava com um estremecimento todos os chamarizes que
lhe lançavam. Tom, acossado pela viúva para que atuasse, teve ainda menos sucesso. Adotando um tom enérgico, disse a Phoebe que devia fazer um esforço e se animar.

— O que quero é voltar a minha casa! — exclamou ela, desconsolada.

Tom disse que isso era uma loucura, porque em Austerby só conseguiria deprimi-la. O que tinha que fazer era se esquecer do assunto, ainda que talvez fosse bom que
quando chegasse a Paris escrevesse uma carta a Salford desculpando-se. Depois sentir-se-ia melhor, porque, se lady Ingham alugava uma casa em Paris, como tinha pensado
fazer, não deveria voltar ao vê-lo durante meses.

Mas a única coisa que conseguiu esse alentador discurso foi que Phoebe saísse da sala feita um mar de lágrimas.

Foi a vez do esquire de tentar que Phoebe adotasse uma atitude mais submissa, o qual fez de forma muito singela, argumentando que após os problemas que tinha causado
a sua avó, lady Ingham merecia que sua neta se animasse e satisfizesse seus desejos.

— Porque creio — acrescentou o esquire com astúcia— que se lady Ingham quer ir a Paris não é só por seu próprio interesse, mas também pelo dela. E também reconheço
que gostaria que Tom viajasse ao estrangeiro.

O assunto ficou claro: Phoebe iria a Paris para satisfazer a sua avó, e faria o possível para passá-lo bem. Seus posteriores esforços de mostrar-se animada foram
heróicos, e, como observou Tom, bastaram para que os demais se deprimissem.

Para não ter que suportar a aparência animosa de Phoebe, por um lado, e a melancolia não dissimulada de Muker, por outro, a viúva teria acabado descartando seus
planos se não fosse pelo apoio que lhe ofereceu o jovem Orde. Uma vez que concordou em as acompanhar, Tom se resignou de boa vontade, e empreendeu os preparativos
da viagem com tanta energia e bom humor que cedo começou a rivalizar-se com Phoebe na estima da viúva. Com alguma ajuda por parte do esquire, Antes de que este regressasse
a Somerset, Tom lidou com passaportes, aduanas e itinerários; averiguou que dias saía o correio para França e quando os barcos; calculou quanto dinheiro precisariam
para a viagem e aprendeu de cor todas as frases em francês que julgou que poderiam lhe ser úteis. Não se separava de um caderno de viagem, e a cada vez que sacava
sua carteira, caíam ao solo um monte de folhetos.

Tom não demorou em descobrir que a tarefa de levar lady Ingham de viagem não era uma sinecura. A viúva mostrava-se muito exigente, e mudava de ideia à cada momento.
Quando Tom voltou de inspecionar com o cocheiro o veículo que a viúva utilizava para as viagens (que seu sofrido filho guardava em sua cocheira e que ocupava um
grande espaço que a ele não lhe sobrava), lady Ingham decidiu que seria melhor viajar num de aluguel. Então Tom pegou um cavalo e foi alugar uma cadeira de posta,
mas no seu regresso a Green Street inteirou-se de que a viúva tinha recordado que como Muker ocuparia o assento da frente, eles três teriam que ir sentados atrás,
o que considerava intolerável.

— Temo — disse-lhe lord Ingham, desculpado-se— que você assumiu uma empresa complicada, meu amigo. Minha mãe é muito caprichosa. Não deveria permitir que o deixe
extenuado. Ademais, vejo que você coxeia.

— Ah, não é nada, senhor — disse Tom com alegria —. Manejo muito bem a cavalo.

— Se posso ajudá-lo em algo... — ofereceu-se lord Ingham, com tom vacilante— não duvide em me dizer.

Tom agradeceu-lhe, mas assegurou-lhe que tudo estava em marcha. Não achava que a ajuda de lord Ingham pudesse acelerar os trâmites, pois sabia que a viúva sempre
fazia o contrário do que lhe aconselhava seu filho e que a exasperava seu caráter indeciso. Lord Ingham pareceu aliviado, mas julgou oportuno prevenir a Tom de que
tinha muitas probabilidades de que a partida se atrasasse em vários dias, já que talvez a viúva decidisse no último momento que não podia partir de Londres sem um
vestido que sua costureira ainda não lhe tinha entregue, ou sem algum artigo que tinha guardado anos atrás e que não conseguia encontrar.

— Quando parti, lady Ingham tinha posto toda a casa procurando não sei que capa, mas conseguirei que saiamos a tempo, já verá, senhor.

Lord Ingham sacudiu a cabeça, e quando se apresentou em Green Street no dia lembrado para se despedir de sua mãe, o fez com a segurança de que teriam voltado a mudar
de planos. Mas Tom tinha feito valer sua palavra. A antiquada carruagem esperava junto à porta, carregada com a bagagem; quando lord Ingham entrou na casa encontrou
aos viajantes equipados para a aventura, e só os atrasou a repentina convicção de lady Ingham de que tinha esquecido suas tenazes para encrespar o cabelo, pois teve
que tirar tudo de seu sacola porque Muker as tinha posto no fundo.

Lord Ingham, observando ao senhor Orde com admiração, não pôde deixar de felicitá-lo. Tom confessou-lhe que tinha estado a ponto de fracassar, já que no dia anterior,
ao ver que piorava o tempo, milady tinha decidido atrasar a partida. “Mas consegui convencê-la, senhor, e acho que poderei embarcá-la no barco de quinta-feira sem
problemas”, estimou, otimista.

Lord Ingham, olhando com apreensão o céu nublado, não compartilhava a opinião do jovem Orde, mas se absteve de o mencionar.

Capítulo 20

Lord Ingham não estava errado. À viúva bastou-lhe um olhar para agitadas e cinzas águas do Canal, salpicadas de espuma, para que muito antes de que a ajudassem a
descer do carruagem no Ship Inn para que informasse a Tom que nem um regimento da Guarda Real conseguiria fazê-la embarcar no barco até que o vento tivesse amainado.
Os dois dias de viagem por terra (porque, para evitar a fadiga, lady Ingham tinha decidido passar uma noite em Canterbury) tinham-lhe provocado uma forte dor de
cabeça, e durante o resto do trajeto esteve cada vez mais irascível. Seu estado de ânimo não melhorou ao chegar em Dover, quando uma rajada de vento esteve a ponto
de lhe arrebatar o chapéu; durante vários minutos pareceu que voltaria a subir ao carro e regressaria a Londres. Por sorte, Tom tinha escrito reservando alojamento
para o grupo e ao descobrir que lhe tinham atribuído o melhor dormitório e o melhor salão, com amplas lareiras, a viúva se apaziguou. Uma dose da tintura de ópio
que lhe tinha receitado sir Henry Halford, seguida por uma hora de descanso e um excelente jantar, contribuíram para reanimá-la, mas, quando Tom lhe disse que o
barco tinha zarpado rumo a Calais nesse dia, como era habitual, o eu se podia deduzir que o barco não corria nenhum risco de naufragar, lady Ingham replicou: “Isso
é exatamente o que temia!” Na manhã seguinte, tendo como base as condições descritas por várias pessoas como sendo adequadas para a navegação, Tom descobriu que,
na opinião de lady Ingham, a única condição adequada para a navegação era a calmaria. Brilhava um radiante sol de abril, mas lady Ingham via cristas brancas na superfície
do mar, e isso era suficiente. Tom tentou convencê-la de que era preferível uma travessia de umas quatro horas com um pouco de vaivém que passar o dobro do tempo
num barco abarrotado, mas só conseguiu que a viúva recorresse ao seu frasco de sais. Suplicou a Tom que não voltasse a pronunciar a horrível palavra “vaivém”. Se
Phoebe e ele estavam animados com a viagem a Paris, ela não pensava em estragar-lhes os planos, mas tinha que esperar a que fizesse bom tempo.

Esperaram cinco dias. Chegaram e partiram outros viajantes; lady Ingham e o resto do grupo permaneceram no Ship Inn; Tom, que sabia que as faturas do dito estabelecimento
eram proverbiais, começou a temer que ficaria sem um centavo antes de ter levado às damas a Amiens.

O clima não melhorava; o humor da viúva decaía; Muker estava exultante e Tom, opondo-se ao mau tempo uma boa cara, procurava distração nos arredores. Como era um
jovem curioso e simpático, encontrou muitas coisas que lhe interessaram, e cedo esteve em condições de mostrar a Phoebe as diversas embarcações que tinha nas enseadas,
identificando corretamente brigs, barcaças, iates e cuters para instruir à jovem.

Lady Ingham, convencida de que todo lugar frequentado por gente de mar se achava infestado de personagens desesperadas, dispostos a roubar aos desprevenidos, se
opunha firmemente a que Tom passeasse pelos arredores e as enseadas, mas se acalmou quando o jovem pôs lhe entregou os vários bilhetes que ela lhe tinha confiado
anteriormente. Em sua opinião teria sido preferível que Tom e Phoebe tivessem subido a Western Heights (porque achava que teria dado ânimos a Phoebe), mas não teve
mais remédio que admitir que esse tipo de exercício não era adequado para Tom, que ainda coxeava. A Phoebe parecia-lhe injusto que a acusassem de estar desanimada
quando fazia um enorme esforço para se mostrar alegre e animada. Só numa ocasião pediu que a deixassem voltar a Austerby, e dado que esse lapso foi resultado de
que sua avó se queixasse de que se tinha deixado convencer demasiado facilmente pela senhora Newbury, podia lhe perdoar.

— Por favor, por favor, avó, não vamos a Paris só por mim! — tinha implorado —. Se acedi a acompanhar-lhe foi só porque pensei que quisesse ir. E não acho que a
Tom se importe muito, no fundo. Deixa que me leve a minha casa!

Mas a lady Ingham impressionaram-lhe as palavras de sua neta. Não estava acostumada a tomar em consideração a ninguém que não a si mesma, mas queria muito a Phoebe.
Sentiu uma pontada de remorso, e, muito decidida, replicou:

— Não digas tolices, filha minha. Claro que quero ir a Paris, e fá-lo-ei tão cedo melhore o tempo.

Ao quinto dia começaram a achar que estavam condenados a permanecer indefinidamente em Dover, porque o vento, em lugar de amainar, tinha aumentado e soprava com
força da terra. As pessoas que Tom tinha conhecido nos arredores lhe asseguraram que não tinha melhor vento para lhes fazer cruzar rapidamente o Canal, mas Tom sabia
que de nada teria servido repeti-lo à viúva, ainda que nesse dia lady Ingham não tivesse ficado na cama, indisposta. O ar marinho, explicou-lhe Muker, sempre a mareava,
e os que levavam anos a seu serviço teriam podido prevenir aos demais, desde que alguém se tivesse dado o trabalho de lhes pedir conselho.

Assim que Phoebe, que dispunha do salão somente para ela, tentou pela quarta vez redigir uma carta para Sylvester que combinasse o arrependimento e a dignidade,
e que expressasse sua gratidão de como ele tinha se portado com ela no passado sem lhe dar motivos para pensar que desejasse voltar a vê-lo. Esse quarto rascunho
seguiu a mesma sorte que seus predecessores, e enquanto contemplava como as enrugadas folhas de papel se enegreciam e ardiam, Phoebe começou a deprimir-se. Era absurdo
pôr-se nostálgica quando as lembranças que lhe vinham à memória (e sobretudo as lembranças felizes) eram dolorosas, mas por muito que tentasse olhar para frente,
tão logo ficava ociosa voltavam à assaltá-la os mesmos pensamentos, e a perspectiva de futuro mais alegre que se apresentava era a de logo conciliar o sono eterno.
Quando chegasse esse momento, o responsável de todas suas desgraças, cujo pétreo coração e cuja maldade ela tinha detectado desde um princípio, limitar-se-ia a arquear
as fatais sobrancelhas e dar essa leve sacudida de ombros que Phoebe conhecia tão bem, nem alegre nem triste, mas só indiferente.

Tirou-a de sua concentração a voz de Tom, que a chamava da rua. Phoebe assuou rapidamente o nariz, foi até a janela, abriu-a e olhou para baixo, onde seu amigo lhe
gritava com grande escândalo.

— Ah, estás aí! Desce correndo, Phoebe! Já verás o que está acontecendo no porto! Não quereria que perdesses por nada do mundo!

— Que passa?

— Vamos! Venha rápido e desce! Prometo-lhe que é a coisa mais divertida que jamais vi!

— Tenho de pôr o abrigo e o chapéu — disse ela, que não tinha muita vontade de ir com Tom.

— O chapéu, com o vento que faz? Joga um xale na cabeça! — aconselhou-a Tom —. E não demores, ou perderás o espetáculo.

Pensando que seria melhor deixar que o vento a sacudisse que seguir com seus funestos pensamentos, Phoebe disse que desceria em seguida, fechou a janela e correu
ao seu dormitório. A ideia de jogar um xale na cabeça não lhe parecia aceitável, mas a viúva tinha comprado uma grossa capa de viagem com capuz para quando se achassem
no barco, assim ela a pôs em lugar do abrigo, e quando estava remexendo numa gaveta em procura de um par de luvas, se sobressaltou ao ouvir uma voz que dizia:

— Importa-lhe que lhe pergunte, senhorita, se tem intenção de sair?

— Pelo amor de Deus, Muker — exclamou Phoebe voltando-se rapidamente —, que susto me deu! Não a ouvi entrar.

— Não, senhorita? — disse Muker, plantada na soleira da porta com os braços rigidamente cruzados —. E tem intenção de sair, senhorita?

Seu tom de voz era o de uma carcereira.

— Sim, vou dar um passeio — limitou-se a dizer, porque ainda que incomodasse a Phoebe e esta se tivesse ruborizado um pouco, sabia que a antipatia que Muker sentia
por ela se originava do ciúme, pelo que lhe inspirava mais pena do que aborrecimento.

— E posso perguntar-lhe, senhorita, se a senhora conhece suas intenções?

— Sim, pode perguntar-me, mas não sei por que teria que o fazer, nem por que eu teria que lhe responder — replicou Phoebe, cada vez mais irritada.

— Considero que é meu dever, senhorita, impedir que você saia sem que milady o saiba.

— Sério? — retrucou Phoebe, que já estava furiosa —. Tente-o se puder!

Muker, à quem Phoebe apartou com um empurrão, seguiu a Phoebe fora do quarto com as faces vermelhas.

— Muito bem, senhorita! Muito bem! Milady saberá! Achava que a senhora já tinha tido suficientes preocupações, pobrezinha, e só falta que...

— Como se atreve a me falar com semelhante insolência? — exclamou Phoebe detendo-se no alto da escada —. Se minha avó quisesse saber aonde fui, me faça o favor de
lhe dizer que não tem por que se preocupar, porque estou com o senhor Orde.

— Corre, Phoebe! — gritou Tom do vestíbulo —. Vamos chegar tarde!

— Já vou! — respondeu ela, e correu a se reunir com ele.

— Demoraste uma eternidade! — protestou Tom quando saíram à rua —. Será melhor que te cubras bem com essa capa se não queres sair voando. Que aconteceu?

— Muker! — disse Phoebe, furibunda —. Pretendia impedir que saísse!

— Bah, não lhe faças caso — disse Tom, acelerando o passo tanto quanto sua perna lhe permitia —. É uma velha amargurada! Espera para ver o que está acontecendo no
porto! Não me estranharia que quando chegássemos tivesse uma multidão o observando. Deus meu, espero que ainda não tenham embarcado aquela coisa!

— Que coisa?

— Uma espécie de carro de viagem — respondeu Tom rindo.

— Mas Tom! Para isso me fazes sair a toda pressa?

— É que não é um carro comum, to asseguro. É de um indivíduo que alugou um barco para levar a sua família e sua carruagem a Calais, e estão ele e um tipo com cara
de criminoso que parece um criado de quarto, e... Mas agora verás! Quando parti os deixei discutindo se não seria melhor fazê-lo subir a bordo usando cordas, e tinha
uma fila de criados que levavam suficiente champagne e baús de comida para uma viagem à Índia. Olha! Que te dizia eu? Ao menos veio a metade da cidade!

Talvez Tom exagerasse um pouco, mas era verdade que uma multidão se tinha congregado para observar com grande interesse a atividade dos que se preparavam para içar
uma grande carruagem a bordo do Betsy Anne. O homenzinho que Tom tinha descrito como um criado de quarto não afastava a vista daquele assombroso veículo, e de vez
em quando se adiantava para apartar aos moleques de rua que queriam olhar no interior e gritava em falsete: “Disse que não lhe pusessem vossas mãos sujas em cima!
Fora daqui! Fora!” Seu nervosismo era desculpável, porque nunca se tinha visto uma carruagem tão reluzente e luxuosa, com duplo pescante, enormes rodas, eixos descobertos
e o teto enfeitado com volutas de ferro dourado. A caixa estava pintada de marrom brilhante, as rodas eram de cor azul céu e o interior, que além de um assento com
múltiplas almofadas incluía uma mesinha que, estava forrada de veludo também azul.

— Parece a carruagem da Cinderela! — exclamou Phoebe —. Quem pode ter feito algo tão ridículo?

A bordo do barco reinava a confusão e o tumulto; a tripulação mal podia trabalhar pela quantidade de criados que se cruzavam, e protestavam a gritos e sem consideração.

— Estão preparando-se para zarpar — observou Tom —. Como vou rir se perdem a maré!

Enquanto Phoebe, divertida, passeava o olhar pela abarrotada coberta, fixou-se na figura de um menino que observava com olho crítico as diversas atividades que estavam
ocorrendo. A jovem ficou olhando-o, sem poder acreditar.

— Edmund! — exclamou agarrando a Tom pelo braço.

— Como? — disse Tom. Deu-se conta de que Phoebe olhava ao menino como se estivesse a ver um fantasma —. Que te passa? — perguntou.

— É Edmund Rayne! O sobrinho de Salford! Ali, no barco!

— É ele? — perguntou Tom fixando-se no menino —. Estás certa?

— Sim, claro. Como me ia confundir? Oh, Tom, temo algo terrível. Como era o proprietário da carruagem?

— Um janota — respondeu Tom —. Nunca tinha visto nada semelhante.

Phoebe empalideceu.

— Fotherby! Então, lady Henry deve de estar a bordo. Viste-a? Uma mulher loura, muito formosa.

— Não, só vi a esse dândi e ao criado de quarto, e a esse tipo daí, que deve de ser o ajudante. Mas por que? Insinuas que estão fugindo?

— Isso não o sei, nem me importa. Mas estão sequestrando a Edmund, e... Ai, Tom, é culpa minha! Vou subir a bordo!

— Não farás tal coisa! — disse Tom detendo-a —. Por que dizes que é culpa tua? Que ideias tão despropositadas, Phoebe!

— Mas é que não te dás conta, Tom— Já te expliquei por que meu livro era tão abominável!

— Não o esqueci. No entanto, teu livro não é o responsável de que lady Henry esteja fugindo com esse janota. Se estiveres pensando em intervir, deixa-me dizer-lhe
que não permitirei que te ponhas em ridículo dessa forma. O que eles façam não é assunto teu.

— Se é verdade o que acredito — disse Phoebe com serena determinação —, Tom, e lady Henry está tirando esse menino de Inglaterra, jamais me perdoaria. Fui eu a que
lhe deu essa ideia! A ela jamais teria ocorrido se não tivesse lido meu livro. Confessou-me como a tinha impressionado o desenlace da história, e eu não imaginei...
não suspeitei...

— Que tirou essa ideia de uma novela de aventuras? Não pode ser tão tola!

— Claro que sim. Não sei o que acontecerá se conseguem levar Edmund a França; não sei se Salford poderá recuperá-lo, ou sequer o encontrar, mas pensa no que isso
poderia significar. Mais problemas, mais escândalos, e tudo por minha culpa. Não o posso suportar, Tom! Deves deixar-me subir a bordo desse barco! Se conseguir impedi-lo,
talvez o duque... Talvez as pessoas não pensassem tão mal de mim. Tom, arrependo-me muitas vezes de ter escrito o livro, mas não o posso retirar; não achas que isto,
se pudesse impedi-lo, seria uma espécie de desagravo?

A Tom impressionaram-lhe sua veemência e a expressão de seus olhos, que era quase trágica.

— Bom, se achas que é o que deves fazer, suponho que... — disse depois de um momento de vacilação —. Pensando-o bem, se estão tirando o menino do país sem a permissão
de seu tutor, estão violando a lei, de maneira que temos verdadeiro direito de intervir. Só espero que não nos metamos numa confusão.

Mas Phoebe já tinha subido à passarela. Quando chegou à coberta, sir Nugent Fotherby saiu por uma porta que tinha por trás do passadiço que conduzia à coberta e
a viu no mesmo instante.

Depois de observá-la através de seu monóculo durante um minuto, acercou-se, saudou-a com uma inclinação da cabeça e disse em tom de satisfação:

— Senhorita Marlow! Como está? Foi muito amável vindo a nos visitar; milady ficará muito alegre, estou certo. Bem-vinda a bordo! Não é verdade que é um barquinho
precioso? Aluguei-o, sabe? Não podia levar a milady no barco.

— Sir Nugent, teria a amabilidade de conduzir-me À lady Henry? — disse Phoebe passando por alto suas mostras de cortesia.

— Será um prazer, senhorita. Mas... não se importará que a corrija— Já não é lady Henry!

— Entendo. Talvez devesse ter dito lady Fotherby, não?

— Não — respondeu sir Nugent com pesar —. Lady Lianthe Fotherby. A mim também não gosto, mas milady me assegurou de que se chamar lady Lianthe outra vez a faz se
sentir dez anos mais jovem, o que é muito agradável, não acredita?

Então foi interrompido. Edmund tinha-se acercado e de pé diante de sir Nugent perguntou:

— Quando vamos ver o circo?

Edmund tinha que jogar a cabeça para trás para o olhar aos olhos, mas seu olhar era firme e solene, e era evidente que sir Nugent se sentia incomodado.

— Ah, o circo! Claro! O circo!

— Prometeu-me que íamos ao circo — disse Edmund em tom acusador —. Disse que se não fizesse nenhum escândalo levar-me-ia ao circo.

— Disse Isso? — perguntou sir Nugent olhando ao menino com inquietude —. Sério?

— Sim, disse isso— afirmou Edmund —. Já vejo que só queria enganar-me! — acrescentou.

— Sim, poderíamos resumi-lo assim — admitiu sir Nugent —. Deve levar em conta de que a situação era muito comprometedora, garoto.

— Mentiu-me. Você é uma má pessoa, e não quero que seja meu novo pai. Meu pai não dizia mentiras.

— Seja razoável — suplicou sir Nugent —. Deves admitir que era a única coisa que podia fazer, porque resistias a vir conosco e ameaçavas fazer um escândalo. Ter-se-nos-iam
jogado todos em cima!

— Quero ir para a minha casa — disse Edmund.

— Ah, sim? — interveio Phoebe —. Pois vou pedir a tua mãe que me deixe te levar. Lembras-lhe de mim? Falaste-me muito do teu pônei.

Edmund olhou-a com atenção. Ao que parece recordava-a com carinho, porque a expressão de severidade desapareceu de seu rosto, e estendeu educadamente a mão a Phoebe.

— Você é a dama que conhece a Keighley. Sim, deixarei que me leve para casa. E talvez, se pelo caminho me falar de seu pônei não me enjoarei — acrescentou.

— Sentiu-se muito mal na viagem — explicou sir Nugent —. Se enjoou assim que subiu no carro. É um incômodo, porque isso inquieta sobremaneira a milady. É uma pena
que não pudéssemos trazer à babá, mas milady se negou. Teria sido inútil tentar suborná-la, assim que não tivemos remédio que a enganar. Queríamos que o menino viajasse
com a criada de milady, mas no último momento esse plano também se estragou. Essa bruxa caprichosa disse que a assustava viajar de barco. “Que teria acontecido se
Nelson tivesse medo navegar? Perguntei-lhe, e ela me respondeu que ignorava. “Os franceses teriam desembarcado”, disse então. “Porque ninguém os teria detido.” Mas
foi inútil. Argumentou que ela não teria podido detê-los ainda que tivesse embarcado. E como a essa afirmação não lhe faltava razão, não soube o que responder.

— Quem é esse cavalheiro? — perguntou de repente Edmund.

— É o senhor Orde, Edmund — respondeu Phoebe —. Sir Nugent, quer...—

— Alegro-me de que a criança tenha perguntado — disse sir Nugent —. Não me decidia a fazê-lo eu mesmo. Encantado de conhecê-lo, senhor. Milady diria o mesmo, mas
está muito cansada. Foi deitar-se em seu camarote. Permita-me acompanhá-la, senhorita.

— Esperar-lhe-ei aqui, Phoebe — disse Tom —. Vamos, grumete: me farás companhia.

Enquanto ajudava a Phoebe a descer pela escada, sir Nugent contou-lhe que o camarote de Lianthe era muito pequeno, mas que milady estava suportando os inconvenientes
da viagem com a fortaleza de uma angelical heroína. Então abriu uma das duas portas que tinha no final da escada e anunciou:

— Tens visita, meu amor!

Lianthe achava-se deitada numa das duas camas do que a Phoebe lhe pareceu um camarote muito espaçoso, e ao ouvir as palavras de Nugent emitiu um grito e se levantou
levando as mãos ao peito. Mas tão logo viu quem tinha entrado, lhe passou o susto e exclamou:

— Senhorita Marlow! Meu Deus, que surpresa! Oh, minha querida senhorita Marlow, quanto me alegro em vê-la! Jamais pensei que seria você a primeira a me felicitar!
Porque deve saber que Nugent e eu nos casamos ontem à noite com uma licença especial. Saímos pela porta da igreja e entramos na carruagem que Nugent fez construir
para mim. Não é verdade que é um encanto? Está forrada de veludo azul, para que faça jogo com meus olhos. Nugent, vá e digas que não façam tanto ruído. Vou ficar
louca com tantos gritos, rangidos, passadas e pancadas! Diga aos marinheiros que tenho dor de cabeça e que não suporto tanto alvoroço. Querida senhorita Marlow,
achava que tinha partido para Paris faz numa semana.

— Nos atrasamos. Lady Lianthe, desejo-lhe muita felicidade, mas... Desculpe-me, não subi a bordo para a felicitar. É que vi Edmund e me perguntei do motivo de sua
presença aqui. Rogo-lhe que perdoe minha impertinência, mas não deve levá-lo da Inglaterra.

— Que não devo levá-lo da Inglaterra? Como pode me dizer isso se foi você quem me fez compreender o que tinha que fazer?

— Não, não diga isso! — lhe exclamou Phoebe.

Lianthe riu-se.

— Pois claro que foi você! Em quanto li como Florian e Matilda tiraram clandestinamente Maximilian do país...

— Basta, lhe suplico! — exclamou Phoebe —. Não pensará que esperava que alguém levasse a sério essa tolice! Lady Henry, permita-me que leve a Edmund a Londres. Isso
de que Ugolino não podia procurar Maximilian fora de seu país era pura fantasia. Mas isto é a vida real, e lhe asseguro que Salford sim pode procurá-lo, e talvez
inclusive fazer que a lei a castigue.

— Salford não saberá onde estamos — replicou Lianthe com segurança —. Além disso, detesta os escândalos. Certamente que prefere suportar qualquer coisa a que todos
se inteirem do mais insignificante segredo de sua família.

— Então, como pôde fazer isto? — perguntou Phoebe acaloradamente —. E à duquesa! Não levou em consideração a angústia que provocará nessa pobre inválida se segue
adiante com seu plano?

Lianthe fez um trejeito e retrucou:

— Ela não é a mãe de Edmund! Acho que está sendo muito injusta comigo. Talvez não lhe importe minha ansiedade— Suponho que você não pode entender os sentimentos
de uma mãe, mas deve imaginar que eu seria incapaz de abandonar meu filho e o deixar nas mãos de Sylvester. E reconheça que pensava em Edmund quando retratava Maximilian,
porque todo mundo sabe que se inspirou nele.

— Porque você disse a todos! — saltou Phoebe —. Mas já não me fez bastante dano? Prometeu-me que não iria contar o que tínhamos falado...

— Não o fiz! Só o contei a Sally Derwent, e lhe adverti que não devia contar a ninguém — interrompeu-a Lianthe, muito indignada —. Como pode se mostrar tão desagradável
comigo? Como se não estivesse bastante nervosa! Não pude trazer a Burton, a babá de Edmund, e me vejo obrigada a cuidar dele pessoalmente. Meu filho está muito zangado
e porta-se muito mal com o pobre Nugent, e mal preguei olho toda a noite, porque estávamos viajando, e tinha que levar a Edmund no colo, e ele acordou várias vezes
e começava a chorar, ou vomitava, e... Estou esgotada! Se não lhe contei cinquenta contos de fadas, não lhe contei nenhum, mas ele não fazia mais que repetir que
queria voltar para casa. Ter-lhe-ia dado um tapa! A cada vez que me lembro dessa detestável criada, que no último momento se negou a me acompanhar... E se não fosse
pouco, agora aparece você fazendo reprovações... Oh, não aguento mais! Não sei o que vai ser de mim, porque já começo a me sentir indisposta. Por que esses horríveis
marinheiros não conseguem que o barco fique quieto— Por que não para de mexer-se se ainda não soltamos amarras? Certamente que deverei deitar-me tão logo zarpemos,
e então, quem cuidará de Edmund?

Esse apaixonado discurso terminou com uma explosão de pranto, mas quando Phoebe, lha jogando à última cartada, fez lembrar à desconsolada beldade sobre imprudência
que seria empreender com Edmund uma agitada travessia marítima sem ninguém que a ajudasse, Lianthe declarou que estava disposta a sacrificar sua saúde, sua comodidade
e até seu julgamento antes de se separar de seu filho, e acrescentou, afastando-se momentaneamente de tão nobres motivações:

— Todos diriam que me importam mais as riquezas que Edmund!

A Phoebe era difícil tranquilizá-la a esse respeito, porque Lianthe tinha razão sobre isso; mas quando tinha pronunciado apenas umas quantas palavras ocorreu uma
ideia brilhante a Lianthe.

— Já tenho a solução, senhorita Marlow! — disse levantando-se da cama com o rosto transtornado —. Você virá conosco! Só até Paris, claro. Não há nenhum inconveniente:
você pensava em ir ali, e estou convencida de que não é imprescindível que viaje com lady Ingham. Pode alojar-se na embaixada até que chegue a duquesa; certamente
que não terá nenhum impedimento. E lady Ingham pode fazer a viagem sem você, porque leva a sua criada. Estou persuadida de que seria a primeira em afirmar que eu
não deveria viajar sem a companhia de outra mulher. Por favor, senhorita Marlow, fique comigo, lhe rogo!

A senhorita Marlow ainda estava recusando essa proposição quando sir Nugent voltou a pedir permissão a sua esposa para entrar no camarote.

Seguia-o Tom, ao que apresentou com grande meticulosidade. Tom se desculpou ante Lianthe por incomodá-la e avisou a Phoebe de que tinham que desembarcar. Lançou
um eloquente olhar a sua amiga, e Phoebe compreendeu que suas tentativas de fazer entrar em razão a sir Nugent tinham fracassado.

Lianthe não lhe prestou muita atenção a Tom; limitou-se a obsequiá-lo com um sorriso maquinal e dirigiu-se a sir Nugent, explicando-lhe com grande entusiasmo a brilhante
ideia que lhe tinha ocorrido. Seu esposo era o único que a apoiava: pareceu-lhe que o plano era genial, e apelou a Phoebe e a Tom para que o aplaudissem. Mas não
obteve resposta. Tom, primeiro educadamente, e depois com angustiante franqueza, explicou-lhe por que a considerava uma ideia das mais desatinada. Assegurou que
não estava disposto a acompanhar o grupo até a França nem ficar na Inglaterra com a missão de comunicar a lady Ingham por que sua neta a tinha abandonado, e declarou
que nada fá-lo-ia mudar de opinião.

Tinha entrado no camarote unicamente para levar Phoebe dali. Em sua opinião, não tinha nada mais o que fazer, e sua amiga podia desligar-se daquele assunto com a
consciência tranquila. Mas como Lianthe reiterasse seus argumentos, afirmando que era absurdo que Phoebe tivesse escrúpulos, quando todos sabiam que tinha sido ela
quem tinha instigado o plano, os sentimentos de Tom experimentaram uma mudança. Compreendeu o peso dos argumentos que Phoebe lhe tinha apresentado, e chegou a mencionar
inclusive, que levaria o caso ante o magistrado mais próximo.

— Isso seria muito pouco cavalheiresco de sua parte — interveio sir Nugent sacudindo a cabeça —. Não acho que deva fazê-lo. Ademais, de nada serviria: se você vai
procurar o magistrado e nós zarpamos, em que posição vai se encontrar?

— Não poderão zarpar se não desembarco até que tenha passado a maré — replicou Tom, que estava acalorando-se por momentos —. E mais, levarei o menino comigo, porque
certamente seria perfeitamente legal fazê-lo, e se tentarem me impedir, estou convencido de que estariam cometendo um delito grave.

— É você um grosseiro! Nugent! Onde está Edmund? — gritou Lianthe —. Como pudeste deixá-lo sozinho? Céus, poderia cair da borda! Traga-o aqui agora mesmo, a não
ser que queiras que sofra um ataque de nervos!

— Não, meu amor, não te aflijas! Aí fora há muitos marinheiros que o resgatariam — disse sir Nugent para tranquilizá-la —. Mas o trarei aqui, se isso é o que queres.

— Não cairá da borda — exclamou Tom ao mesmo tempo que sir Nugent saía do camarote para ir procurar Edmund.

— Você não sabe nada de nada! — exclamou Lianthe —. Eu sou sua mãe, e não descansarei até que o tenha em meus braços.

Lianthe repetiu essa afirmação ainda fazendo maior ênfase quando sir Nugent reapareceu com a tranquilizadora notícia de que Edmund, estava a salvo sob a vigilância
criado de quarto, e estava observando como os marinheiros subiam a carruagem a bordo. No entanto, quando se inteirou de que, ao ver que seu novo pai queria levá-lo,
Edmund se tinha posto alarmantemente rígido, milady deve ter pensado que a presença de seu filho no camarote não iria tranquilizá-la, porque se limitou a mencionar
que se a criança se punha a gritar era inevitável que ela sofresse um colapso nervoso.

Insistindo sobre esse ponto, Phoebe fez tudo quanto pôde para convencer a Lianthe de que esse triste desenlace acabaria acontecendo se Lianthe se visse obrigada
a cuidar de Edmund durante a travessia. Recebeu o inesperado apoio de sir Nugent, o qual afirmou que, pensando bem, não seria má ideia deixar que a senhorita Marlow
levasse a Edmund para casa.

— O que quero dizer é que ao menino parecia lhe agradar a ideia. Não acho que esteja desejando ir à França. Parece-me que não gosta dos estrangeiros. O que é compreensível:
a mim também não.

Essa traição indignou a Lianthe. Depois de descarregar sua ira sobre sir Nugent, lamentou com gesto trágico que todos estivessem confabulados contra ela e rompeu
a chorar como uma Madalena. Percebendo que a batalha estava quase ganha, Phoebe redobrou seus esforços para convencê-la, enquanto Tom se encarregava de persuadir
ao indeciso sir Nugent. Como os quatro discutiam acaloradamente, não se perceberam de que na coberta reinava a cada vez mais atividade. O movimento, que até esse
momento tinha balançado suavemente a embarcação, estava aumentando, mas somente quando o Betsy Anne deu uma forte sacudida que Tom percebeu o que estava acontecendo.

— Deus meu! — exclamou, horrorizado —. Estamos nos movendo!

Capítulo 21

Sir Nugent soltou uma gargalhada.

— Ordenei-lhes soltar amarras quando subi para procurar Edmund — explicou —. Era mentira que estava olhando como subiam a bordo a carruagem! Enganei-os, meu amor!
Já o veem, Nugent Fotherby é mais astuto que uma raposa.

— Então, não pensavas deixar que a senhorita Marlow levasse a Edmund? Oh, Nugent! — disse Lianthe com admiração.

— Fui hábil, não é verdade? Não acha que fui muito hábil, Orde?

Tom, que tinha conseguido chegar a claraboia sem perder o equilíbrio, viu umas ondas cinzas e, vermelho de ira, olhou a sir Nugent.

— O que acredito é que é um sem vergonha! — soltou-lhe com frieza.

— Rogo-lhe que não fale assim diante das damas! — protestou sir Nugent.

— Deve estar louco! — gritou Phoebe —. Dê meia volta! Não pode nos levar assim! Minha avó... Toda nossa bagagem... Não se dá conta de que lady Ingham não sabe onde
estou e de que nem Tom nem eu temos aqui nada mais que o que vestimos? Diga ao capitão que tem que dar meia volta!

— Não o fará — disse sir Nugent.

— Ah, não? — interveio Tom dirigindo-se para a porta —. Isso já veremos!

— Não faz sentido o impedir — disse com tom afável sir Nugent enquanto a abria —. Discutamos o assunto nós três.

Tom chegou à coberta e viu que o Betsy Anne já se tinha afastado da embocadura do porto e que o vento inflava suas velas. Tinha conseguido subir a escada, mas a
passagem que conduzia ao castelo de popa apresentava maiores problemas para a sua perna. Teve que se dirigir aos gritos ao robusto indivíduo que o olhava de cima,
o que, pensou, o colocava em desvantagem. O diálogo que mantiveram a seguir resultou infrutífero, é claro. Depois de admitir que era o capitão, o indivíduo robusto
pareceu divertir-se que Tom lhe pedisse que o levasse de novo ao porto. Perguntou se Tom tinha alugado o Betsy Anne, e quando o jovem lhe respondeu que não, disse
que lhe tinha tirado um peso de cima.

— Escute-me bem! — disse Tom tentando controlar-se —. Se não dá meia volta, terá problemas.

— Teria problemas se desse meia-volta! — replicou o capitão.

— Equivoca-se. Se nos levar a mim e à dama que me acompanha a França contra nossa vontade, nos estará sequestrando.

— Sério? — disse o capitão, impressionado —. Vá, isso deve de ser um delito grave.

— Sim, muito grave.

O capitão sacudiu a cabeça.

— Jamais faria uma coisa assim. Mas não me lembro que subissem a bordo à força. E também não vejo que ninguém os esteja retendo a bordo. A única coisa que sei é
que você e a senhorita subiram no meu barco sem sequer pedir permissão. Mas é possível que me equivoque.

— Não, maldito seja, não se equivoca — admitiu Tom com sinceridade —. Mas tenha a bondade de dar meia volta. Certamente que não quer desagradar à dama, e se a leva
a França se vai encontrar num tremendo aperto.

— Direi o que vamos fazer — disse o capitão, magnânimo —. Suba você aqui, senhor, e entregar-lhe-ei o barco. Não tenho suficiente experiência para regressar a Dover
com um vento desta direção. Mas claro, só tenho quarenta anos no mar.

Tom se ruborizou ao ver que vários marinheiros lhe lançavam olhares zombadores.

— Tenta dizer-me que não pode dar meia volta?

— Exato! Não posso! — confirmou o capitão.

— Por todos os demônios! Em que bela confusão nos metemos! — Jogou-se a rir, e acrescentou —: Eh, capitão! Gostaria de subir aí com você para ver como maneja o barco.

— Será um prazer — respondeu o capitão.

Ao regressar ao camarote, Tom encontrou a Lianthe caída de novo na cama, com um frasco de sais na mão que, ao que parece, tinham tirado de um grande baú que estava
aberto no solo, com parte de seu valioso conteúdo espalhado ao redor. Tom piscou ao ver uma impressionante coleção de frascos com tampas de ouro e iniciais de safiras.
Sir Nugent, ao observar isso, disse com manifesto orgulho:

— Bonito, não é verdade? Desenhei-o eu mesmo. Acho que mostraram-me cinquenta baús, mas eu lhes disse: “Não, não são o que procuro. Pura ninharia. “Terei que desenhar
eu mesmo o baú.” E esse é o resultado. O mesmo ocorreu quando quis comprar uma carruagem para milady. “Escute-me bem, Windus”, disse. “Tem que ser de primeira categoria.
Nenhum destas me serve”, disse. “Desenhem-me uma a meu gosto!” E assim o fizeram. Gosto muito desenhar.

— Pois espero que desenhe um plano para nos tirar a todos do aperto em que nos meteu — replicou Tom —. Não há solução, Phoebe: o capitão diz que não pode voltar
ao porto com o vento soprando desta direção.

— Então, que vamos fazer? — lamentou-se a jovem.

— Fazer uma boa cara. Não podemos fazer mais nada— respondeu Tom, compungido.

Mas equivocava-se. A porta do camarote abriu-se nesse momento de par em par, e o criado de quarto apareceu na soleira, com olhos vidrados e aspecto muito alarmante.
Agarrou-se com uma mão à porta e soltou o ônus que levava ao ombro.

— Senhor... milady... O menino! — disse num tom estranho —. Peguem-no, rápido!

— Meu filho! — gritou Lianthe pondo-se em pé com dificuldade —. Está morto?

— Não, claro que não — disse Phoebe enquanto apressava-se a pegar Edmund nos braços.

— Sinto-o, senhor... Não estarei disponível... Durante o resto da travessia — disse o criado de quarto com voz afogada, agarrando-se com ambas mãos à porta.

— Caramba! — exclamou sir Nugent —. Espero que não se tenha enjoado, Pett!

— Temo... que sim, senhor — respondeu Pett.

Dito isto, o criado de quarto desapareceu precipitadamente do camarote, e sua saída se viu acelerada pela repentina subida do solo no momento em que o Betsy Anne,
triunfante, levantava sua proa acima das ondas.

— Edmund! — gritou Lianthe, agoniada —. Diga-me algo!

— Não seja ridícula! — exclamou Phoebe, que já tinha esgotado toda a paciência —. Não vê o que está acontecendo, pobrezinho—

Edmund, fracamente, levantou a cabeça do ombro de Phoebe e disse com galhardia:

— Não estou morto, mãe, só muito enjoado.

Ao ver o menino, Tom, com grande segurança, tinha ido procurar uma tigela, que entregou a Phoebe dizendo:

— Assim que gosto, amiguinho! És um valente!

Mas Edmund já tinha esgotado tudo. Tremiam-lhe os lábios.

— Quero ir para casa! — disse, choroso —. Não gosto daqui!

— Tenta não enjoar, meu filho— lhe suplicou sua mãe —. Pensa em outra coisa.

— Não posso pensar em nada mais! — gemeu Edmund, que voltava a ter ânsias de vômito.

Lianthe, que estava cada vez mais pálida, estremeceu e voltou a recostar-se com os olhos fechados e com o frasco de sais colado ao nariz.

— Está enjoada, meu amor? — perguntou sir Nugent, preocupado —. Ouve, irei procurar-lhe um pouco de conhaque. Já verás como cairá bem. Não há nada como o conhaque
para o enjoo!

— Não! — gemeu sua amada.

— É curioso, não é verdade? — comentou sir Nugent dirigindo-se a Tom —. Há pessoas às quais basta ver um barco que lhes começa a revolver o estômago; ao contrário,
há as que não se enjoam nem no meio de um furacão. Acho que é hereditário. Meu pai, por exemplo, era um excelente navegante. E olhe a mim: o mesmo! Sou famoso por
isso! Faz dois anos fiz a travessia com George Retford. Essa sim foi uma viagem agitada! Os passageiros estiveram grudados à grade até que chegamos a porto; era
um espetáculo do mais ameno! “Nugent”, disse-me George, é certo que é o homem mais alegre do mundo. “Escolhe”, disse-me. “Ou atiras esse charuto pela borda ou atiro-o
eu.” Curioso, não é verdade? Não tinha nada mais que o enjoasse, jamais se estremecia à hora de cear; de fato... Mas nesse momento sua esposa pôs fim a suas recordações
pedindo-lhe, num tom que deixava transparecer um verdadeiro ódio, que saísse do camarote.

— Bom, se não posso fazer nada mais aqui, estava pensando que Orde e eu poderíamos compartilhar uma garrafa — sugeriu —. Mas não importar-me-ia de ficar. Jurei que
cuidaria de ti, não é assim? Nugent Fotherby sempre é fiel a sua palavra. Pergunta a quem quiser!

— Vai! Vai! — gritou Lianthe —. Que queres? Matar-me?

Ao ver que sir Nugent se dispunha a lhe assegurar que não tinha essa intenção, Tom o tirou aos empurrões do camarote.

— Será melhor que saia também — disse olhando preocupado a Lianthe —. A não ser que queiras que fique, Phoebe.

— Não, não. Aqui não fazes falta. Fique tranquilo, Edmund! Deixa que Phoebe te abrace, e cedo ficarás melhor.

— Bom, chama-me se precisares — disse Tom —. Não me afastarei muito.

Tom partiu, convencido de que mãe e filho acabariam por dormir e que Phoebe não teria que fazer mais que vigiar seu sonho. Por isso se sobressaltou quando ouviu
que sua amiga o chamava ao pé da escada quando não tinha passado nem uma hora para lhe dizer que Edmund se encontrava muito pior.

— Tu também estás enjoada, Phoebe? — exclamou ao dar-se conta de que sua amiga também estava pálida.

— Eu? Não, claro que não. Não tenho tempo para enjoar — respondeu ela com ironia —. Não preciso que deças! Quero perguntar a esse idiota se posso levar Edmund ao
outro camarote. Parece-me que também o reservou, mas não acho que precise dele. E por favor, Tom, procura-me um tijolo quente. Edmund não para de tremer, e não consigo
fazê-lo se aquecer de jeito nenhum.

— Deus meu, deve de estar muito mal! Que lhe passa? Segue vomitando?

— Não, já não, mas segue tendo horríveis ânsias, e lhe dói tanto o estômago, pobrezinho, que não pode parar de chorar. Nunca tinha visto a um menino tão indisposto,
e isso que tive que cuidar de minhas irmãs muitas vezes. Foi uma crueldade obrigá-lo a fazer esta viagem! Sua mãe devia imaginar o que aconteceria. Vamos, ela o
sabia, mas a única coisa que se lhe ocorre dizer é que Edmund encontrar-se-ia bem se fizesse um esforço. Como se ela se esforçasse em algo! Está demasiadamente enjoada,
e é tão sensível e delicada que não suporta ver sofrer a seu filho. Produz-lhe palpitações, como as que tem agora, assim que tenho que tirar Edmund do camarote.
Ainda que pudesse voltar a Dover num tapete mágico, Tom, não o faria. Não! Não penso abandonar a essa criança até que o veja a salvo com Salford! Sejam quais forem
os sentimentos do duque para Edmund, não pode ser mais cruel que Lianthe.

— Quieta, Quieta! Estás a falar além da conta, minha amiga.

Phoebe soltou uma risada e passou uma mão pela fronte.

— Já o sei. Mas isso é só contigo, Tom. Prometo-lhe que já mordi demasiadamente a língua. — De repente levantou um dedo, aguçando o ouvido, e gritou —: Já vou, pequeno!

Nem seu pior inimigo teria podido negar que sir Nugent fosse tão flexível como afável. Ao transmitir-lhe Tom o pedido de Phoebe, subiu no mesmo instante e disse
à jovem que podia considerar como próprio seu camarote. Estava muito impressionado pelo aspecto de Edmund.

— Pobre menino! Está destroçado! — disse; de fato, repetiu-o tantas vezes que tirou Lianthe de sua cabine. Quando lhe informaram isso, deixou de prestar atenção
em Edmund e, solícito, acrescentou —: Ainda estás um pouco indisposta, meu amor? Vou dizer-lhe algo que a aliviará: com este vento, chegaremos em Calais em apenas
quatro horas.

— Quatro horas! — exclamou Lianthe com voz apagada —. Como podes ser tão cruel para me confirmar algo assim— Mais quatro horas aqui! Não sobreviverei. Minha cabeça!
Ai, como me dói!

— Que podemos fazer? — sussurrou sir Nugent a Phoebe —. Olhe como está a pobrezinha! Que situação tão angustiosa. Não a teria desejado por nada do mundo!

— Suponho que ficará melhor quando estiver sozinha e possa descansar um pouco — disse Phoebe com certa rigidez —. Lady Lianthe, diga-me onde posso encontrar uma
camisa de dormir para Edmund— Estão em seu baú? Devo procurá-la ali?

Mas aconteceu que Lianthe não tinha levado a roupa de Edmund para não levantar suspeitas em Chance.

Phoebe olhou, surpreendida, o novo baú, a montanha de chapéus e as diversas carteiras de viagem.

— Mas se...

— Tive que o comprar tudo novo! E com tanta pressa, me esqueci — explicou Lianthe, queixosa.

— Disse à milady que se equipasse com a máxima elegância e que fizesse enviar tudo a minha casa — esclareceu sir Nugent —. Boa ideia, não é verdade?

Milady, entretida com a aquisição de artigos luxuosos para ela, tinha esquecido se ocupar-se das necessidades de seu filho.

Transladado ao outro camarote, e coberto em sua cama, com uma garrafa de champanhe cheia de água quente que Tom tinha se encarregado de levar, Edmund pareceu se
tranquilizar. Phoebe teve a satisfação de vê-lo dormir, e se dispunha a fazer o mesmo quando sir Nugent foi suplicar-lhe que se ocupasse de Lianthe. Milady, sussurrou,
estava muito alterada, e precisava ajuda para certo assunto delicado que ele não considerava adequado mencionar.

Desconcertada, Phoebe encarregou sir Nugent que vigiasse o seu enteado e regressou ao outro camarote. O assunto delicado consistia simplesmente em desatar-lhe os
cordões do corpete de Lianthe, mas a Phoebe bastou-lhe um olhar para compreender que sir Nugent não tinha exagerado ao descrever o lamentável estado de sua esposa.
Lianthe padecia muito dos nervos, e quando Phoebe lhe tomou o pulso viu que estava muito acelerado.

Phoebe deixou a Edmund com sir Nugent por um tempo consideravelmente longo. Por desgraça, o menino acordou enquanto ela não estava, e tão logo viu a sir Nugent,
o repudiou. Sir Nugent reprovou sua atitude e assinalou que o fato de que Edmund lhe ordenasse sair de seu próprio camarote era ir demasiado longe. No entanto, quando
ouviu que o menino o chamava de má pessoa, se deu conta de que Edmund estava aturdido e tentou tranquilizá-lo. No entanto, não o conseguiu. Nas últimas horas, Edmund
não tinha tido tempo para pensar em outra coisa que não fosse seu sofrimento físico, mas a situação tinha mudado. Como já não o sacudiam as ânsias, pôde enfurecer-se
e se ocupar da urgente necessidade que se tinha apresentado.

— Quero a meu Botão! — soluçou.

— Como dizes? — perguntou sir Nugent.

Edmund afundou o rosto no travesseiro e repetiu seu desejo com voz afogada mas apaixonada.

— Queres um botão? Bom, não chores, pequeno. A verdade é que não o entendo, mas... que botão queres?

— Meu Botão! — gemeu Edmund.

Tom, que entrou no camarote cinco minutos mais tarde para perguntar a Phoebe se todo ia bem, encontrou com uma inquietante cena: embaixo das mantas nas quais Edmund
se tinha refugiado saíam uns pungentes gemidos de dor, enquanto seu pressionado padrasto revolvia febrilmente os bolsos de uns casaco de algodão..

— Mas que o que se passa? — inquiriu Tom entrando no camarote e fechando a porta depois dele —. Onde está a senhorita Marlow?

— Está com milady, mas não se preocupe em a ir procurar — disse sir Nugent, enlouquecido —. Deixou-me aqui vigiando a Edmund. Que criança tão esquisita! Chamou-me
de má pessoa; está claro que não me conhece. E agora quer um botão.

— Bom, pois dê a ele um botão! — disse Tom, coxeando para a cama e tentando retirar a manta —. Olá, Edmund. Que aconteceu?

— Quero... meu... Botão! — gemeu Edmund, voltando a esconder-se sob as mantas.

— Jamais tinha visto a uma criança mais teimosa! — protestou sir Nugent —. Não consigo lhe tirar nem uma palavra a mais. Onde estará esse botão que pede? Enfim,
não acho que lhe servisse muito se o encontrássemos. Diga-me, Orde, pediria você um botão numa situação assim?

— Bom, aos meninos gostam de brincar com coisas muito estranhas — disse Tom —. A mim isto acontecia. Dele um de seus botões!

— Maldito seja! Não tenho nenhum! — De repente ocorreu-lhe uma horrível possibilidade —. Não estará a insinuar que arranque um botão, não é verdade?

— Por que não? — disse Tom, que começava a se impacientar.

Sir Nugent ficou mudo de assombro, mas em poucos momentos recuperou-se.

— Arranque você um! — replicou.

— Eu? Nem pensar! — retrucou Tom com veemência —. Esta é a única roupa que tenho, graças a você. Ademais, não sou o padrasto do menino.

— Bom, ele também não me aceita como tal, assim que isso carece de importância. A verdade é que preferiria não o ser. Reconhecerá você que é muito embaraçoso ter
um enteado que vai por aí dizendo que é uma má pessoa.

Tom considerou que não valia à pena responder a esse comentário, e se limitou a ordenar que procurasse um botão adequado. Sir Nugent suspirou fundo e abriu um de
seus numerosos baús de viagem. Demorou um momento em decidir qual de suas jaquetas ia precisar menos no futuro imediato, e quando se decidiu a sacrificar uma elegante
jaqueta de montar, e começou a cortar um dos botões com sua navalha, ficou patente que a operação lhe produzia um sofrimento considerável. Animou-se um pouco ao
pensar que obsequiando a Edmund com um botão tão grande e tão bonito, melhoraria a opinião que o menino tinha dele. Acercou-se da cama e disse com voz melosa: —
Não chores mais, filhinho! Aqui tens teu botão!

Os soluços cessaram bruscamente, e Edmund saiu debaixo das mantas, com as faces molhadas pelas lágrimas mas contente.

— Botão! Botão! — gritou esticando ambos os braços. Sir Nugent pôs-lhe o botão na mão.

Teve um momento de silêncio enquanto Edmund, contemplando seu troféu, compreendeu o alcance da perfídia de sir Nugent. A ira somou-se a sua enorme decepção. Com
fogo saindo pelos olhos, lançou o botão contra a parede e, caiu de bruços na cama, e entregou-se de novo a suas emoções.

— Pelo amor de Deus! — exclamou Tom —. Pode saber-se que afinal queres, moleque?

— Quero meu Botão! — lamentou-se Edmund.

Por sorte, os lamentos da criança chegaram a ouvidos de Phoebe. A jovem entrou rapidamente no camarote, e quando sir Nugent lhe assegurou que, longe de maltratar
a seu enteado, acabava de destroçar uma de suas jaquetas para lhe proporcionar o botão que com tanta insistência reclamava, ela disse com desprezo: — Pensava que
era você mais esperto. O menino refere-se a sua babá. Façam o favor de sair, os dois! Tesouro, veem aqui com Phoebe. Meu pobrezinho!

— Disse que ia me dar o meu Botão! — exclamou Edmund entre soluços, apoiado no ombro de Phoebe —. É mau! Não quero ir com ele, não quero, não quero!

Capítulo 22

O Lion d'Argent era a pensão mais elegante de Calais. Sinderby, o acompanhante contratado por sir Nugent para aplainar o caminho do que prometia ser uma prolongada
lua de mel, tinha reservado um salão e os dois melhores dormitórios. Sinderby tinha cruzado o Canal para assegurar-se de reservar habitações dignas de seu endinheirado
cliente, tanto no Lion d'Argent como no melhor hotel de Abbeville, e também tinha contratado uma babá francesa para atender a Edmund. Quando regressou a Dover para
supervisionar o embarque do grupo, tinha a impressão de que tinha previsto todas as eventualidades.

Não gostava da carruagem que sir Nugent tinha desenhado, mas se resignou; custou-lhe um pouco mais resignar-se a que milady chegasse sem sua criada, porque previu
que pedir-lhe-iam que procurasse uma criada de primeira categoria tão logo voltassem a desembarcar em França, e sabia que isso ia ser impossível. Milady teria que
se conformar com os serviços de alguma empregada inexperiente até que chegasse a Paris, e não parecia uma mulher que se contentasse facilmente. Com a chegada a bordo
do Betsy Anne da senhorita Marlow e do senhor Orde, se desanimou ainda mais. Não que a incorporação de mais duas pessoas ao grupo alterasse seus meticulosos planos,
mas porque não aprovava aqueles inesperados viajantes. Rapidamente tirou a conclusão de que ocultavam algo. Não levavam bagagem, e quando, ao chegar a Calais, tinha
pedido ao senhor Orde que lhe entregasse seu passaporte e o da senhorita Marlow, o senhor Orde, levando uma mão ao bolso, emitiu uma exclamação de consternação.

— Não me digas que não tens os passaportes! — tinha gritado a senhorita Marlow.

— Oh, não! — replicou o senhor Orde —. Claro que os tenho! Todos!

Ao ouvi-lo, a senhorita Marlow esteve a ponto de desmaiar. Sinderby decidiu que tanto ela como o senhor Orde não eram trigo limpo.

Tinha previsto que em Calais lhe esperassem momentos agitados, mas não tinha imaginado que teria que se pôr a procurar miudezas tais como uma camisa de dormir para
uma criança de seis anos. Além disso, nem a riqueza de sir Nugent nem sua própria habilidade conseguiram obter mais que dois dormitórios no Lion d'Argent, que estava
completo. Não teve remédio do que aceitar para a senhorita Marlow o apartamento que tinha alugado para a criada de milady, e pôr o senhor Orde com sir Nugent, um
arranjo que a nenhum dos dois cavalheiros pareceu bom. Era evidente que a jovem que tinha encontrado para atender a milady não ia servir, porque lhe faltavam qualidades.
Estava seguro de que milady protestaria.

Quando voltou de percorrer a cidade a procura de uma camisa de dormir, descobriu que outro de seus planos se tinha desbaratado. Edmund tinha-se negado a dirigir
sequer uma palavra à babá que Sinderby lhe tinha proposto.

— Tive que despedi-la — disse sir Nugent —. Essa estúpida pôs-se a falar-lhe em francês com o menino. E ele não estava disposto a aceitar isso, é claro. Enfadou-se
muitíssimo. Sabia que ia acontecer quanto a ouvi dizer bon jour. “Já verás”, disse à senhorita Marlow, “não vai durar nem um minuto!”. E assim foi. No entanto, não
tem problema, porque a senhorita Marlow está disposta a se ocupar do menino. Que sorte que tenha viajado conosco!

Como lady Lianthe tinha ido deitar-se logo ao chegar no Lion d'Argent, só foram três os integrantes do grupo que se sentaram para cear no salãozinho privado. Edmund,
que se tinha recuperado tão logo desembarcou, tinha ficado dormido na caminha que lhe tinham preparado no quarto de Phoebe, e Pett o estava vigiando. De passagem
lavou e passou a única camisa do menino, uma tarefa que prometeu realizar todas as noites até que tivessem provido o menino de um traje novo.

Phoebe estava demasiado cansada para falar e Tom, demasiado preocupado pelos problemas que lhes apresentavam, assim o peso da conversa recaiu em cheio sobre sir
Nugent, que passou o jantar evocando momentos agradáveis. Contudo, quando retiraram os pratos se desculpou e subiu para fumar um charuto.

— Graças a Deus! — disse Tom —. Phoebe, temos que pensar que vamos fazer. Não quero ser pessimista, mas na verdade é que estamos metidos numa boa confusão.

— Sim, isso também creio— concordou a jovem com notável serenidade —. Mas ao menos sei o que tenho que fazer. Importa-lhe que eu escreva algumas cartas antes que
continuemos falando, Tom? O ajudante comprometeu-se a fazê-las chegar a Inglaterra no próximo barco. A carta que vou escrever a minha avó juntamente com os passaportes
os levarão diretamente ao Ship, mas Sinderby me advertiu que se continuar soprando este vento, talvez não possa zarpar amanhã. — Suspirou e disse com ar de resignação
—: Espero que sim; mas se não, é inútil que me preocupe, porque não tenho outra forma de me pôr em contacto com minha pobre avó.

— Para quem é a outra carta? Para Salford? — perguntou Tom com sagacidade.

— Sim, claro. Se não souber para onde fugiu Lianthe...

— Não temas — interrompeu-a Tom —. Certamente que ouvirá falar da carruagem, e ligará os pontos.

— Sim, assim espero — concedeu ela —. Mas poderia não se inteirar. Assim vou lhe contar o, e de passagem vou dizer que não penso em me separar de Edmund e que pensarei
em alguma maneira para lhe fazer saber nosso paradeiro cada vez que façamos uma parada na estrada.

— Ah! E isso é tudo? Olha, as cartas podem esperar. Primeiro temos de falar deste assunto. Quanto dinheiro levas com você? — Phoebe negou com a cabeça —. Nada, não
é verdade? Já o imaginava. Bom, a única coisa que temos é o dinheiro que levo nos bolsos, e não chega a mais de um par de guinéus, quinze xelins e umas quantas moedas
de meio penny. O dinheiro que meu pai me deu está no meu baú de viagem. Suponho que poderia pedir dinheiro prestado a Fotherby, mas te asseguro que a ideia não me
agrada o mínimo. Já tive que lhe pedir prestada uma camisa e umas quantas gravatas e lenços. E você?

— Horrível! — exclamou a jovem —. Vi-me obrigada a pedir roupa prestada a lady Lianthe, ainda que preferisse não estar em dívida com nenhum dos dois. Mas se os acontecimentos
desenvolvem-se como espero, logo tudo estará solucionado. Minha avó receberá os passaportes junto com minha carta, e suponho que partirá em seguida, faça o tempo
que fizer.

— Sim, suponho que sim. E não acho que esteja de muito bom humor! Ufa!

— Tens razão, mas não podemos reprovar-lhe. E se nos víssemos obrigados a ir para além de Paris? Não, acho que Salford já nos terá alcançado antes que isso ocorra,
ainda que não se ponha a caminho até ter lido minha carta. Consta-me que sir Nugent pensa chegar a Paris dentro de quatro dias, mas não me estranharia que demorasse
mais, ao levar a Edmund. Se é que consegue sair de Calais!

— Querem partir amanhã, não?

— Sim, essas são suas intenções, mas é provável que fiquem parados aqui por vários dias, porque me parece que lady Lianthe está doente para valer, Tom.

— Isso nos convirá muito, mas e se amanhã já se encontrar melhor?

— Então irei com eles — respondeu Phoebe —. Não penso em deixar Edmund. Já sei que é um menino um pouco estranho, mas encantador. Quando lhe dei boa noite, me abraçou
e me fez lhe prometer que não iria abandoná-lo. Quase me pus a chorar, porque a cena era enternecedora. Edmund não entende o que está passando, e temia que me perderia
se me perdesse de vista. Mas quando lhe disse que ficarei com ele até que volte a senhorita Button, ficou tranquilo. E asseguro-lhe que penso em cumprir minha palavra.

— Entendo.

Phoebe olhou-o, agradecida.

— Já sabia que compreenderias. Mas tenho estado pensando que talvez seja mais conveniente que pedisses emprestado a sir Nugent o dinheiro necessário para comprar
um bilhete de regresso a Dover e acompanhar a minha avó.

— É inútil que insistas! Se achas que vou deixar que percorras toda França com esse par de idiotas, estás muito equivocada.

— Na verdade é que já sabia que não irias permitir — disse Phoebe com franqueza —. E tenho de dizer que te agradeço. Sir Nugent não é muito bondoso.

— Bondoso é sim — corrigiu-a Tom —. Mas não acho que seja um homem de bem, porque não é assim. Em minha opinião é um tipo de conduta dissoluta. No navio tivemos
ocasião de falar longamente e está claro como a água que se juntou a um grupo de sem vergonhas. De fato, é o que meu pai chama meio tonto e meio idiota. Para começar,
se tivesse princípios não teria sequestrado Edmund.

— É uma má pessoa! — acrescentou Phoebe, sorridente.

— Sim, o pequeno Edmund não tem nem nada de tolo — disse Tom.

No dia seguinte, Phoebe subiu com Edmund para o café da manhã e comprovou que Lianthe seguia deitada; mas suas esperanças de demorar-se em Calais desvaneceram-se
quando sir Nugent lhe informou, com ar de grave preocupação, de que ainda que milady se encontrava muito mau, estava decidida a sair de Calais essa mesma manhã.
Lianthe não tinha pregado olho em toda a noite. Não parava de passar gente em frente a sua porta e no quarto de acima se ouviam pisadas; tinha pancadas, e o ruído
dos veículos no pavimento tinha-lhe produzido um espasmo nervoso. Estava destroçada, mas pensava ir a Abbeville nesse mesmo dia.

Edmund, que se achava sentado à mesa ao lado de Phoebe, com um guardanapo atado ao pescoço, levantou a cabeça e afirmou:

— Queres matar a minha mãe.

— Que? — saltou sir Nugent —. Santo céu! Como podes dizer algo assim!

— Disse-o minha mãe — replicou Edmund —. Disse-o no barco.

— Ah, sim? Bom, mas... Bom, refiro-me que isso são tolices. Adoro-a! Pergunte a qualquer um!

— E disseste-me mentiras, e...

— Come o ovo e não fales tanto — interveio Tom, e baixinho acrescentou —: Eu em teu lugar não discutiria com ele, Edmund.

— Sim, tudo isso está muito bem — objetou sir Nugent —. Nota-se que o menino não vai por aí dizendo a todos que você é um criminoso. Gostaria de saber quando abandonará
essa conduta!

— Quando o tio Vester souber o que você fez você, irá castigá-lo — disse Edmund com raiva contida.

— Vê? — exclamou sir Nugent —. Agora começará a dizer que o maltratei!

— O tio Vester — continuou seu pequeno torturador— é o homem mais terrível do mundo.

— Olha, não deverias falar assim de teu tio — disse sir Nugent com afetação —. Não posso afirmar que lhe tenha muita simpatia, ainda assim não vou dizendo que é
terrível. Um pouco convencido sim, mas...

— O tio Vester não quer ser teu amigo — declarou Edmund, acalorado.

— Imagino, mas se o que insinuas é que vai a desafiar-me a um duelo... bom, não acho que o faça. Mas se decidisse fazê-lo...

— Pelo amor de Deus, Fotherby, não lhe dê ouvidos! — interveio Tom, exasperado.

— O tio Vester vai-lhe moer os ossos! — ameaçou Edmund.

— Moer os ossos? — retrucou sir Nugent, perplexo —. És um mentiroso, moleque! Por que faria isso teu tio?

— Para fazer pão — respondeu Edmund prontamente.

— Mas se o pão não se faz com ossos!

— O que o tio Vester faz, sim — contradisse-o Edmund.

— Basta! — saltou Tom contendo o riso —. Agora és tu que diz tolices! Sabes muito bem que teu tio não faz isso, assim deixa de dizer mentiras.

Edmund, que ao que parecia, tinha reconhecido Tom como um adversário que devia levar em conta, calou-se e seguiu comendo o ovo. Mas quando tinha terminado, lançou
um olhar astuto a Tom e disse:

— Talvez o tio Vester lhe dê um soco no nariz.

Tom soltou uma gargalhada, mas Phoebe pegou Edmund nos braços e levou-o do salãozinho. Edmund, satisfeito com o sucesso de sua audaz missão, piscou um olho a Tom
acima do ombro da jovem e antes que se fechasse a porta lhe ouviram dizer:

— Nós os Rayne não gostamos que nos levem nos braços.

O grupo partiu para Abbeville uma hora mais tarde, com muita pompa. Sir Nugent tinha recusado com altivez a sugestão de enviar a bagagem mais pesada a Paris pelo
correio, e não menos que quatro veículos saíram do Lion d'Argent. A carruagem forrada de veludo em que viajavam sir Nugent e sua esposa encabeçava a comitiva; Phoebe,
Tom e Edmund seguiam-na numa cadeira de posta, e a retaguarda era fechada por dois cabriolés, um ocupado por Pett e a jovem contratada para atender a milady, e o
outro com a bagagem. Um bom número de curiosos reuniram-se para observar a partida do grupo, uma circunstância que produziu grande regozijo a sir Nugent até que
Edmund contribuiu com uma nota discordante ao se opor com todas suas forças, gritando e sapateando, a entrar no carro até que Tom o pegou nos braços e o colocou
no assento sem cerimônia. Quando o menino se sentiu em condições de se recompor, gritou que seu padrasto era uma má pessoa, sir Nugent se aborreceu muito, e sua
sufocação só se viu aliviada quando Tom lhe recordou que seguramente os curiosos não poderiam entender nem uma palavra do que gritava Edmund.

Já dentro do carro, Edmund deixou de gritar. Comportou-se corretamente durante as primeiras etapas, graças a Phoebe o convidou para jogar uma partida de piquet.
Mas a cada vez viam-se menos bando de aves, menos cavalheiros no lombo de cavalos cinzentos e menos idosos sentados sob os muros na estrada de Calais a Boulogne,
e como, de qualquer forma, essa distração tinha deixado de lhe interessar, o menino começou a se impacientar. Quando chegaram a Boulogne, o repertorio de contos
de Phoebe se tinha esgotado, e Edmund, que cada vez estava mais calado, anunciou com voz tremida que começava a se sentir mal. Pôde descansar um pouco em Boulogne,
onde os viajantes se detiveram meia hora para comer, mas a expressão de desespero de seu rosto quando voltaram a colocá-lo no carro fez que Tom comentasse: “É uma
crueldade obrigar o pobre menino a fazer uma viagem como esta!”

Sinderby esperava-os no melhor hotel de Abbeville, onde chegaram muito tarde, com uma notícia que produziu em sir Nugent incredulidade e indignação: o empregado
não tinha conseguido convencer ao proprietário do estabelecimento para que despachasse a seus outros clientes nem que vendesse seu negócio a sir Nugent.

— Como já imaginei que ocorreria — acrescentou Sinderby com uma voz desprovida de emoção.

— Por que não quer me vender o hotel? — estranhou sir Nugent —. És um estúpido! Disse-lhe quem sou?

— Não me pareceu que essa informação o interessasse muito, senhor.

— Disseste que minha fortuna é a maior de toda Inglaterra? — insistiu sir Nugent.

— Sim, senhor. E ele me pediu que o felicite de sua parte.

— Deve estar louco! — exclamou sir Nugent, perplexo.

— É curioso que diga isso, senhor — retrucou Sinderby —. É justo o que disse o dono, ainda que se expressasse em francês, é claro.

— Quê! — exclamou sir Nugent, vermelho de ira —. Disse isso de mim? Farei que esse maldito estalajadeiro se inteire de que não tenho costume aceitar estes desaforos!
Vá e diga que quando Nugent Fotherby quer uma coisa, a compra, custe o que custar.

— Jamais na vida ouvi tantas tolices! — exclamou Phoebe, que não podia seguir contendo sua irritação —. Agradecer-lhe-ia que deixasse de protestar, sir Nugent, e
que me dissesse se vamos nos hospedar aqui ou não. A você talvez não importe, mas este pobre menino está a morrer de cansaço enquanto está aí de pé alardeando seu
prestígio.

Esse repentino ataque surpreendeu tanto a sir Nugent que não soube o que contestar; Sinderby, olhando à senhorita Marlow com um débil brilho de aprovação no imperturbável
olhar, disse:

— Levando em conta, senhor, suas instruções de que devia proporcionar a milady um lugar muito tranquilo, procurei alojamento num estabelecimento menor que confio
que ache satisfatório. Não é um hotel elegante, mas sua situação, longe do centro da cidade, talvez seja agradável a milady. Fico feliz em dizer-lhe que consegui
convencer madame para que pusesse o hotel a sua inteira disposição, senhor, tantos dias quanto deseje, com a condição de que as três pessoas que já estavam hospedadas
estivessem dispostas a sair da casa.

— Não nos irá dizer que concordaram em partir, não é verdade? — perguntou Tom.

— A princípio não, senhor. No entanto, quando souberam que passariam o resto de sua estadia em Abbeville (e espero que não se prolongue muito) nos quartos que eu
tinha reservado neste hotel para sir Nugent, e que ele correria com os gastos, declararam estar encantados em satisfazê-lo. E agora, senhor, se quiser subir na carruagem
com milady, acompanhá-los-ei ao Poisson Rouge.

Sir Nugent ficou um momento com o cenho franzido e acariciando o lábio inferior. Edmund encarregou-se de encorajá-lo gritando:

— Quero ir para casa! Quero a meu Botão! Não passo bem!

Sir Nugent deu um suspiro, e sem discutir mais, voltou a subir ao carruagem.

Quando viu o tamanho e o estilo do Poisson Rouge, se indignou tanto que, de não fosse por Lianthe — que declarou, muito incomodada, que antes de seguir viajando
um único centímetro preferia passar a noite num estábulo —, ter-se-ia produzido outra altercação. Enquanto sir Nugent ajudava a sua esposa a baixar o estribo, madame
Bonnet saiu para receber a seus excêntricos convidados ingleses, e desfez-se em tais elogios sobre a beleza de milady e seu encantador filho que Lianthe decidiu
de imediato se mostrar encantada com a pousada. Edmund, olhando com ódio a madame, escondeu-se por trás de Phoebe, mas ao ver um cachorro que saía dando pulos do
edifício, adiantou-se e melhorou como por encanto exclamando: “Gosto deste lugar!”

A posada satisfez a todos, exceto a sir Nugent. Não era nada luxuosa, mas estava limpa e reinava uma atmosfera agradável. O salãozinho achava-se decorado com só
uns bancos e umas cadeiras de madeira, mas o dormitório de Lianthe dava para um pequeno jardim, muito tranquilo, e ela mesma observou, com gesto inocente, que isso
era a única coisa que importava. Além disso, madame, ao saber que milady estava doente, não só lhe cedeu sua cama, com um colchão de plumas, mas que lhe preparou
uma tisana, e em geral se mostrou tão compassiva com ela que a maltratada Lianthe, pese que lhe doía a cabeça e as extremidades, começou a se sentir bem mais animada,
e até expressou seu desejo de que lhe levassem seu filho antes de deitar para que lhe desse um beijo. Madame disse que estava desejando presenciar essa cena, porque
quanto viu os angelicais rostos de milady e de seu encantador filho se tinha lembrado da Santa Virgem.

Phoebe introduziu uma nota discordante ao interromper aquele momento de arrebatamento para dizer sem rodeios a Lianthe que não tinha levado Edmund porque suspeitava
que o que alquebrava a sua devotada mãe não era outra coisa além de um forte ataque de gripe.

— E seria o cúmulo que contagiasse o menino, após tudo o que teve que suportar o pobrezinho — concluiu Phoebe.

— Você tem muita razão, senhorita Marlow — disse Lianthe esboçando um caloroso sorriso —. Meu anjo! Dê-lhe um beijo de boa noite por mim, e lhe diga que sua mãe
pensa constantemente nele.

Phoebe, que tinha deixado a Edmund brincando com o cachorro, disse:

— Sim, claro! Assim o farei, se ele me pergunta por você.

A seguir retirou-se e deixou Lianthe com a companhia, mais agradável, de sua nova admiradora.

No dia seguinte, chamaram um médico para que examinasse Lianthe. Este confirmou o diagnóstico que já tinha feito Phoebe, e disse, sem que ninguém lho tivesse pedido,
que com as pessoas da delicada constituição de milady tinha que ter muito cuidado: milady não devia se cansar.

— Por conseguinte, acho que teremos que ficar aqui ao menos uma semana — disse Phoebe, que tinha saído com Tom e Edmund para comprar roupa de baixo para o menino
—. Tom, pudeste levar notícias de nosso paradeiro a esse hotel onde deveríamos nos hospedar? Para Salford, já sabes.

— Dar notícias de nosso paradeiro? — repetiu Tom com ironia —. Pois claro que não! Achas que essas pessoas esquecerão facilmente Fotherby? Pretendia comprar o estabelecimento!
Pareces uma informante!

— Como uma informante? — repetiu Edmund para gravar essa expressão em sua memória.

— Oh, não! — disse Tom —. Não deves repeti-lo, Edmund. E vou dizer-lhe algo mais: não deves chamar de ridículo a sir Nugent. — Esperou até que Edmund se tivesse
afastado um pouco deles, e então disse a Phoebe com severidade —: Olha, Phoebe, não está bem que o animes a ser grosseiro com Fotherby.

— Eu não o animo — replicou ela com gesto de culpabilidade —. O que acontece é que acho que seria uma tolice tratar de impedi-lo, porque se o menino fosse mais educado
com seu padrasto, talvez sir Nugent quisesse ficar com ele. E não podes negar, Tom, que se sir Nugent pegasse antipatia do menino, seria bem mais fácil... Seria
bem mais fácil persuadir a lady Lianthe para que não levasse Edmund.

— Phoebe! Não tens escrúpulos! Tem cuidado de que não se esgote a paciência de Fotherby e ele mate a esse menino. Não está de humor para suportar mais piadas grosseiras,
e a mania que tem esse diabinho de lhe perguntar se saberia tirar uma mosca da orelha de um cavalo, por exemplo, e depois assegurar que seu tio Vester o sabe, é
suficiente para fazer enlouquecer por completo a esse tolo.

— Bom, não me estranha que sir Nugent não esteja de bom humor — concordou Phoebe rindo —. Com uma esposa doente e um enteado que o odeia, acho que sua lua de mel
está sendo um desastre.

Em realidade, nenhuma dessas desagradáveis circunstâncias era o motivo pelo qual sir Nugent tinha perdido a serenidade, como Phoebe logo descobriu. Essa tarde sir
Nugent encontrou à jovem no salãozinho e não demorou em lhe confessar a verdadeira causa de sua insatisfação. Não gostava do Poisson Rouge. No princípio, Phoebe
surpreendeu-se, porque madame Bonnet, além de ser uma excelente cozinheira, tratava-o com toda a deferência e afã necessários para comprazer ao mais exigente de
seus clientes; e o resto de empregados, desde a camareira até o garoto do estábulo, se esmerava ao máximo para obedecer a suas ordens. Depois de escutar seu discurso
durante uns minutos, Phoebe compreendeu melhor o que se passava. Sir Nugent nunca tinha se hospedado num estabelecimento que não fosse os mais luxuosos e caros.
Seu convencimento e seu exibicionismo tinham sofrido um duro golpe. As pessoas sensatas não gostavam de chamar a atenção, mas para sir Nugent Fotherby, o homem mais
rico de Inglaterra, destacar-se era o essencial na vida. Tinha desfrutado enormemente com a impressão provocada pela opulenta carruagem de Lianthe; produzia-lhe
uma intensa satisfação que os donos dos estabelecimentos se desfizessem em atenções com ele e o conduzissem aos melhores quartos, e saber que todos o observavam
com inveja. No Poisson Rouge não existiam esse tipo de olhares. Sem dúvida alguma, se tivesse podido comprar o Hotel d'Angleterre e tirar dali aos demais clientes,
também ter-se-ia visto privado dessas lisonjas, mas como tê-los-ia impressionado! Com que rapidez ter-se-ia espalhado a notícia de sua excentricidade pela cidade!
Com que admiração os vizinhos tê-lo-iam apontado pela rua! Ter-se apropriado de uma modesta pousada numa rua tranquila podia ser uma excentricidade, mas não dava
ideia de sua fabulosa riqueza aos habitantes de Abbeville. Até era duvidoso que alguém o soubesse fora do círculo mais imediato de madame Bonnet.

Como é lógico, sir Nugent não expressou sua queixa com tanta clareza; mais esta aparecia entre outras queixas. Phoebe, que estava familiarizada com outro tipo de
orgulho, o escutava entre assombrada e divertida. Teria mentido se tivesse negado que o discurso de sir Nugent lhe produzia verdadeira hilaridade, empanada unicamente
por não ter conhecido a essa rica mina de absurdos que forneceria material, além de sua aparência de janota, quando criou as personagens do herdeiro perdido. Phoebe,
sem dar-se conta, começou a tramar uma nova história ao redor de sir Nugent, e recebeu com alívio (dado o devastador resultado de sua primeira aventura literária)
a entrada na sala de Edmund, acompanhado de seu novo amigo que brincava ao redor de seus tornozelos.

Madame tinha batizado com o nome de Toto ao cachorro, mas seus inquilinos chamavam-no Chien (cachorro), pois tinha surgido um pequeno mal entendido entre madame
e Edmund. O menino, superando a antipatia que lhe inspiravam os estrangeiros graças ao desejo de se fazer amigo de Toto, o tinha seguido até a cozinha, e inclusive
tinha perguntado a madame como se chamava. Madame tinha respondido “chien”, e quando o repetiu o a palavra, ela tinha assentido aplaudindo. De modo que o cachorro
tinha que se chamar Chien.

Sir Nugent olhou a seu enteado com apreensão, mas Edmund dirigiu-se a Phoebe para pedir-lhe o giz de cores que lhe tinha comprado Tom, porque Chien tinha expressado

seu desejo de que o desenhassem. Deram o giz e papel ao menino, que se sentou no solo e se concentrou em sua obra de arte. Chien sentou-se a seu lado, golpeando
o solo com a cauda e arfando ligeiramente.

Ao ver que Edmund estava ocupado com seus próprios assuntos, sir Nugent retomou seu discurso, passeando pela sala enquanto enumerava suas queixas.

Essa manhã tinha-se vestido com grande elegância. Seu traje, além das originais calças brancas justas e a gravata Fotherby, incluía umas botas decoradas com umas
enormes borlas douradas. Hoby as tinha feito sob medida, e nem sequer lord Petersham jamais tinha sido visto com um calçado tão impressionante. Enquanto sir Nugent
passeava pelo salãozinho, as borlas oscilavam a cada passo, como ele tinha previsto. Era impossível não se fixar nelas: nem sequer teriam passado inadvertidas a
um cachorro de duvidosa linhagem.

Chien estava fascinado pelas borlas. Esteve a observá-las por vários minutos com a cabeça inclinada antes de sucumbir à tentação, mas atraíam-no tanto que não pôde
se conter muito tempo. Levantou-se e foi examiná-las mais de perto, e mordeu a que tinha mais próxima ao focinho.

Sir Nugent emitiu um grito de horror e a seguir ordenou a Chien, com um grito, que soltasse a borla. Chien pôs-se a rosnar enquanto se atirava sobre ela, agitando
a cauda. Edmund ria a gargalhadas e aplaudia. Esse arrebato de inocente jovialidade arrancou de sir Nugent um impropério tão feroz que Phoebe julgou prudente ir
a seu resgate.

Então chegou Tom, e encontrou-se em um palco muito agitado. Chien ladrava, muito alterado, nos braços de Phoebe; Edmund se desmanchava de rir; Pett, a quem tinham
atraído os agoniados gritos de seu amo, estava ajoelhado ante ele e acariciava suavemente a borla, e sir Nugent, vermelho de ira, descrevia com uma linguagem desaforada
as diversas formas de execução que merecia aquele condenado cachorro.

Tom agia com grande segurança, ordenando a Edmund que levasse Chien dali e num tom tão peremptório que o menino obedeceu sem se atrever a discutir. Depois olhou
com severidade a Phoebe, que tentava conter o riso, e tranquilizou a sir Nugent lhe prometendo que não deixariam Chien voltar a entrar a no salãozinho.

Edmund indignou-se ao conhecer a proibição, e tiveram que chamá-lo a ordem quando pediu a Tom que desse em sir Nugent um soco no nariz. Retirou-se, muito indignado,
à cozinha, onde passou o resto da tarde com Chien, brincando com um pedaço de massa e comendo as uvas passas, o marzipan e a fruta cristalizada com que o obsequiaram.

No dia seguinte, sir Nugent, muito prudente, absteve-se de pôr-se suas bonitas botas novas, e por sua vez Edmund surpreendeu a seus protetores mostrando uma atitude
tão angelical que sir Nugent começou a olhá-lo com mais benevolência.

Pela tarde começou a chover, e depois de desenhar vários retratos não muito convincentes, que presenteou a Phoebe, Edmund se entristeceu um pouco, mas se distraiu
com as carreiras de gotas de chuva no cristal da janela. Estava ajoelhado numa cadeira, informando a Phoebe do lento avanço da gota que tinha tocado, quando uma
cadeira de posta entrou na rua e se deteve adiante do Poisson Rouge.

Edmund sentiu curiosidade, mas não mais que Phoebe, que tão logo ouviu o barulho do carro se acercou à janela. Aquele era o som que estava esperando ouvir, e quando
o carro parou, seu coração começou a bater com força, esperançoso.

Abriu-se a porta e por ela desceu com agilidade uma figura ataviada com um sobretudo; voltou-se para dar alguma ordem aos postilhões e entrou com grandes passadas
na pensão.

Phoebe suspirou fundo ao mesmo tempo em que Edmund soltava um agudo grito, descia da cadeira e se pôs a correr para a porta gritando:

— Tio Vester! Tio Vester!

Capítulo 23

Edmund seguia gritando “Tio Vester!” quando conseguiu abrir a porta e Sylvester entrou no salãozinho. Teve que se parar na ombreira porque Edmund se tinha abraçado
as suas pernas.

— Qual o motivo tanto ruído, pequeno? — disse inclinando-se para safar-se das mãos de seu sobrinho.

— Tio Vester, tio Vester! — gritava Edmund.

Sylvester riu e pegou ao menino em braços.

— Edmund, Edmund! Não, não me estrangules. Que bruto és, sobrinho!

Phoebe, à quem Sylvester ainda não tinha visto, ficou junto à janela contemplando, risonha, a clamorosa boas-vindas que Edmund estava dedicando a seu malvado tio.
Não lhe surpreendeu muito, ainda que não tivesse imaginado que o menino ficaria tão contente. O que lhe assombrou foi a expressão de satisfação de Sylvester quando
recebeu o violento abraço de Edmund. Não parecia um homem ao que não gostasse dos meninos nem também que lhe tinha dito aquelas coisas tão horríveis no baile de
lady Castlereagh. Essa imagem, que tanto tinha obsedado a Phoebe e que tanto dor lhe tinha causado, se desvaneceu, e com ela também a opressão que lhe tinha feito
temer a chegada do duque, apesar de que por outro lado estava desejando.

— Explica a essa má pessoa que não sou seu filho! — disse-lhe Edmund —. Minha mãe sempre diz que não é contigo com quem devo estar, tio Vester, mas eu digo que sim.
Não é verdade que sim?

O menino pronunciou essas frases com tanta paixão que Phoebe não pôde evitar rir. Sylvester voltou-se rapidamente e viu-a. Teve um brilho em seu olhar, e Phoebe
teve a impressão de que Salford ia ter com ela. Mas esse brilho desapareceu no mesmo instante, e Sylvester não se moveu. Voltou a invadi-la a lembrança de seu último
encontro, e compreendeu que o duque não a tinha perdoado.

Antes de falar, Sylvester baixou Edmund no chão.

— Que surpresa, senhorita Marlow — disse então —. Ainda que suponha que teria podido deduzir, se me tivesse tido o trabalho de pensar, que era muito provável a encontrar
aqui.

Seu tom era desapaixonado dissimulavam todas as emoções que ferviam em seu interior. Estas eram muito diversas, mas a que dominava era a ira: por Phoebe por ter
colaborado, como ele supunha, no sequestro de Edmund, e por si mesmo por se ter alegrado tanto, durante um inconcebível momento, de encontrá-la ali. Estava tão furioso
que resolveu não decolar os lábios até se ter serenado. Desde a noite do baile, tinha tentado apagar Phoebe por completo de sua mente. Não o tinha conseguido, mas
a força de mexer na ferida que lhe tinha causado, acreditava estar curado da absurda atração que sentia por ela. Tinha-lhe sido fácil recordar apenas a vergonhosa
conduta de Phoebe, porque não podia esquecer o dano que a jovem lhe tinha feito. Phoebe tinha-o ridicularizado: isso era, por si só, uma ofensa; no entanto, se o
retrato que ela fizera dele em sua novela tivesse sido irreconhecível, teria podido perdoá-la. Ele não se identificava com o conde Ugolino, mas quando olhou a sua
mãe, que era quem lhe tinha dado o livro para que o lesse, disposta a lhe diminuir a importância e lhe dizer que aquilo era demasiado absurdo para se indignar ainda
que só por um momento, não tinha visto no rosto dela indignação, mas preocupação. Sylvester surpreendeu-se tanto que exclamou:

— Não é meu retrato! De acordo, as sobrancelhas são iguais, mas nada mais!

— Está exagerado, é claro — replicou a duquesa.

Sylvester demorou um minuto para conseguir articular:

— Então, pareço-me com esse ser desprezível? Sou insuportavelmente orgulhoso? Sou tão egoísta e tão arrogante que...— Mãe!

— Para mim nunca o foste, Sylvester! — apressou-se a dizer a duquesa estendendo-lhe uma mão —. Mas às vezes perguntei-me... se não serias um pouco... indiferente
com os demais.

Sylvester emudeceu e ela não acrescentou nada mais. Não precisava: Ugolino era uma caricatura, mas reconhecível; e como Sylvester não teve mais remédio que acreditar,
seu ressentimento, como era de esperar em alguém com um temperamento como o seu, atingiu um grau até então nunca experimentado.

Enquanto observava a Phoebe no salãozinho, deu-se conta de que aquela jovem era uma influência maligna. Tinha-o envolvido em sua ridícula fuga; tinha-lhe feito dedicar
tantas atenções que ambos se tinham posto sob o olhar da boa sociedade. Sylvester não recordava que sua primeira intenção consistia em ganhar suas simpatias unicamente
para fazer que mais tarde lamentasse ter recusado sua proposta: isso já tinha esquecido fazia muito tempo. Sabia que Phoebe devia ter escrito seu livro antes de
conhecê-lo bem, mas nem tinha impedido que se publicasse nem o tinha prevenido. Ela tinha sido a culpada de que ele se comportasse, naquele maldito baile, de uma
maneira imprópria num cavalheiro de sua categoria. Sylvester ainda não entendia como se tinha deixado levar. Estava decidido a tratá-la com uma cortesia inquebrantável;
a não mencionar seu livro, nem na hora nem depois, e a se comportar com ela de um modo que lhe demonstrasse como o tinha julgado mal. Estava seguro de que tinha
tudo sob controle; no entanto, bastou lhe rodear a cintura com o braço e lhe pegar a mão, para a raiva e a sensação de humilhação tivessem tomado conta de sua pessoa.
Phoebe tinha-se separado dele com lágrimas nos olhos, o que o tinha enfurecido, porque sabia que tinha sido ele quem tinha provocado essa cena. E de repente encontrava-a
em Abbeville, rindo-se dele. Nunca tinha duvidado de que fosse ela que tinha dado a Lianthe a ideia de fugir de Inglaterra, mas até então achava que não o tinha
feito de propósito. Nesse momento compreendeu que Phoebe devia de estar a par dos planos de Lianthe desde o princípio.

Phoebe, que ignorava o que Sylvester estava pensando, ficou olhando-o com perplexidade.

— Não recebeu minha carta, senhor duque? — disse com um fio de voz depois de um longo silêncio.

— Não, não tive esse prazer. Que detalhe por sua vez, me escrever uma carta! Imagino que o fez para me informar deste assunto.

— Não podia ter nenhuma outra razão para lhe escrever.

— Poderia ter-se poupado este trabalho. Tendo lido seu livro, senhorita Marlow, não era difícil adivinhar o que tinha acontecido. Admito que não me ocorreu pensar
que estaria a ajudando minha cunhada, mas devia imaginar, é claro. Quando soube que tinha levado a Edmund sem a sua babá devia ter me dado conta. Você está ocupando
essa posição por maldade, ou porque pensou, após escandalizar a todo Londres, que se oferecia uma possibilidade de escapar?

Enquanto escutava essas incríveis palavras, Phoebe passou do assombro a uma raiva tão intensa como a de Sylvester, ainda que não tão bem dissimulada. O duque tinha
falado num tom despreocupado e desdenhoso; ela não pôde impedir que lhe tremesse a voz quando exclamou:

— Por maldade?

Antes que Sylvester pudesse replicar, Edmund disse com voz trêmula:

— Phoebe é amiga minha, tio Vester. Estás zangado com ela? Não te zangues, por favor! Quero-a quase tanto como a Keighley!

— Para valer, tesouro? — disse Phoebe —. Isso é um grande elogio! Ninguém está zangado; a única coisa que passa é que teu tio está um pouco alterado. — Olhou a Sylvester
e disse com toda a naturalidade de que foi capaz —: Suponho que queira ver lady Lianthe. Lamento comunicar-lhe que está indisposta. De fato, acha-se de cama com
gripe.

Sylvester se ruborizou, porque tinha esquecido que Edmund seguia aferrado a sua mão, e se envergonhou por ter agido com tão pouco decoro.

— Espero que Fotherby não esteja também doente — limitou-se a dizer.

— Não, acho que se encontra fazendo companhia a lady Lianthe. Vou informar-lhe agora mesmo de sua chegada — replicou Phoebe. Então sorriu a Edmund e disse-lhe —:
Queres ver se madame já terminou o pastel que prometeu te preparar para cear?

— Parece-me que ficarei com o tio Vester — decidiu Edmund.

— Não, vá com a senhorita Marlow. Tenho que falar com sir Nugent — disse Sylvester.

— Vais moer os seus ossos? — perguntou Edmund com otimismo.

— Claro que não. Por que o ia fazer? Não sou nenhum gigante, nem vivo no alto de um pé de feijão. E agora, te vai.

Edmund obedeceu de má vontade. Sylvester deixou seu sobretudo numa cadeira e acercou-se da lareira.

Sir Nugent não lhe fez esperar muito. O dândi entrou na habitação poucos minutos mais tarde, exclamando:

— Caramba, asseguro-lhe que jamais me tinha levado uma surpresa como esta! Como está? Alegro-me muitíssimo de vê-lo, excelência!

Essa inesperada saudação deixou Sylvester completamente desconcertado.

— Que se alegra de me ver? — repetiu.

— Muitíssimo! — corrigiu-o sir Nugent —. Lianthe estava convencida de que não nos seguiria. Achava que preferiria não armar um escândalo. Eu tinha minhas dúvidas,
ainda que admita que não esperava que nos alcançasse tão cedo. Diabos! Felicito-o, senhor duque! Sem ruído, sem grosseria... E só Deus sabe como nos seguiu o rastro!

— O que quero, Fotherby, não são as suas felicitações, mas que me devolva o meu pupilo — disse Sylvester —. E também agradecer-lhe-ia que me explicasse que demônios
tinha na cabeça trazendo-o a França.

— Olhe, senhor duque — retrucou sir Nugent com franqueza —, você me põe em dificuldade. E isso que sempre tenho resposta para tudo. Pergunte-o a quem quiser: qualquer
um que me conheça confirmará que sou uma pessoa muito astuta. Mas essa pergunta que acaba de me formular é difícil de responder. Não me importo em admitir que a
cada vez que me pergunto por que demônios trouxe a esse menino para França não sei o que responder. É um grande alívio para mim ouvi-lo dizer que veio procurá-lo.
Porque isso é o que disse, não é?

— Assim é, e acrescentarei que penso em levá-lo.

— Não o ponho em dúvida — replicou sir Nugent —. Nugent Fotherby nunca duvida da palavra de um cavalheiro. Falemos do assunto!

— Não há nada do que falar — resolveu Sylvester, inflexível.

— Asseguro-lhe, excelência, que o diálogo é imprescindível — disse sir Nugent com seriedade —. Esse menino tem mãe! Ainda que nestes momentos sua mãe não se encontre
muito bem. Há que reverenciá-la!

— Não serei eu quem a reverenciarei! — lhe afirmou Sylvester.

— Claro que não. Se me permite dizê-lo (sem desejo de ofender, é claro), não lhe cabe a veneração. Não digo que você deva fazê-lo. Suponho que como é solteiro, não
deve do saber, mas eu sim. Acho que até jurei-o. Sim, sim, jurei-o.

— Se com tudo isto está pensado que renuncie a Edmund...

— Não, não, em absoluto! — exclamou sir Nugent empalidecendo —. Equivoca-se, senhor duque! Estarei encantado de devolver-lhe! Sabe o que penso?

— Não! Nem quero sabê-lo!

— Edmund é como essa personagem que aparece na Bíblia — disse sir Nugent passando por alto a furibunda resposta de Sylvester —. Ou era um porco? Bom, não importa.
O que quero dizer é que está possuído pelo demônio. — E acrescentou precipitadamente —: Não se enfade: pode confiar em minha discrição. Jamais me ocorreria divulgá-lo!
Bom, agora já sei por que está tão ansioso para recuperá-lo; e mais: não o reprovo. Ademais, Edmund é seu herdeiro, não? Que situação tão complicada! É compreensível
que queira ter ao menino escondido. Não me estranharia que se tornasse mais perigoso à medida que vá crescendo.

— Terá você a bondade, senhor, primeiro, de deixar de dizer tolices e, segundo, de perguntar a lady Lianthe, sem mais demora, se pensa em me receber? — disse Sylvester
com uma serenidade ameaçadora —. Só serão cinco minutos.

— Cinco minutos! Mas poderia derrubar-se em cinco segundos! — exclamou sir Nugent —. De fato, acho que derrubar-se-ia só ao vê-lo, senhor duque. Este assunto tem
que ser tratado com muita delicadeza. Milady não alberga a menor suspeita de que está aqui. Ainda que faltasse pouco para que se inteirasse. Saí do quarto no preciso
instante em que lady Marlow se dispunha a chamar à porta e lhe pedi que não dissesse nem uma palavra a milady. “Senhorita Marlow”, disse-lhe... Deus meu! — exclamou
de repente sir Nugent, mudando por completo a expressão —. A criada! A patroa, rogo-lhe que seja indulgente, excelência... Há que se ter pressa! Temos que a avisar!
Desculpe-me, mas devo deixá-lo.

Enquanto seguia falando dirigiu-se para a porta, e tropeçou com Tom na soleira.

— É você! Excelência, permita-me apresentar-lhe ao senhor Orde. Senhor Orde, este é Salford: rogo-lhe que o entretenha durante minha ausência. Certamente que terão
muito o que falar!

— Não se preocupe — retrucou Tom —. Também tenho de dizer um par de coisas a sua excelência.

— Ah, sim— Pois alegro-me muito, porque devo ir ver a milady, ver se inteirou-se da chegada de Salford.

Sir Nugent saiu da sala. Tom fechou a porta e voltou-se para olhar a Sylvester, que estava de pé junto à mesa, o olhando com olhos duros e brilhantes como ágatas.
Tom sustentou-lhe o olhar sem acovardar-se, e avançou coxeando.

— Jamais pensei que se prestasse a um assunto tão lamentável como este — disse Sylvester sem perder a compostura —. Se importaria de dizer como tenho que interpretar
sua presença aqui?

— Pelo visto — replicou Tom sustentando-lhe o olhar —, você não entendeu nada, senhor duque. Que acha que faço aqui? Enganá-lo? Traí-lo?

Sylvester encolheu-se os ombros e voltou-se para apoiar um braço no peitoril da lareira.

— Suponho que terá vindo para ajudar à senhorita Marlow. A diferença entre isso e me enganar talvez esteja muito clara para você, mas para mim não tanto.

— Os únicos que tentaram enganá-lo, senhor duque, são lady Lianthe e esse figurino com quem se casou. E quanto a Phoebe, asseguro-lhe que eu teria preferido que
não se intrometesse neste assunto, mas quando penso no que fez por você, e em como você lhe tem agradecido, maldito seja, gostaria desafiá-lo a um duelo. Ainda que
já saiba que não aceitaria o desafio. Não precisa que me diga que não estou a sua altura.

Sylvester girou a cabeça e olhou a Tom com gesto de desconcerto.

— Não me fale desse modo, Thomas! — disse com uma voz mais calma —. Será melhor que se sente. Como está sua perna?

— Minha perna não me importa! Talvez interesse-lhe saber, senhor duque...

— Pelo amor de Deus, deixe de chamar-me senhor duque! — interrompeu-o Sylvester, furioso —. Sente-se e diga-me que fez a senhorita Marlow por mim para ganhar minha
gratidão.

— Bom, isso queria lhe contar desde o princípio, mas me fez perder a estribeira, que era precisamente o que não desejava que acontecesse — disse Tom —. E como parece
disposto a nos matar a todos, e Phoebe jura que preferia morrer de fome antes de percorrer um único centímetro em sua companhia, é muito provável que volte a perder.

— Não penso em pedir a Phoebe que percorra nem um centímetro em minha companhia!

— Isso já veremos. Se fizer o favor de sentar-se, contar-lhe-ei como Phoebe e eu chegamos aqui. Mas Antes gostaria de saber se lady Ingham ainda continua em Dover.
Ou não veio por Dover?

— Sim, mas ignoro o paradeiro de lady Ingham.

— Achei que a alcançaria na estrada. Ao que parece, ela não se animou a fazer a travessia. Deduzo que você não se hospedou no Ship.

— Não, não me hospedei em nenhum lugar. Vim até aqui no carro de correio noturno — esclareceu Sylvester.

— Ah, bom! Nesse caso, é possível que lady Ingham ainda se encontre ali. Em resumo, Salford: Sequestraram a Phoebe e a mim. Contar-lhe-ei como ocorreu.

Sylvester escutou-o em silêncio e sem interrompê-lo.

— Lamento ter sido injusto com a senhorita Marlow — disse com frieza quando Tom chegou ao final do relato —, mas lhe agradeceria muito que reservasse seu gosto pelas
aventuras românticas para suas novelas. Se achava que me devia alguma desculpa, teria

podido me escrever de Dover para me comunicar que tinham levado Edmund para França. Isso teria sido mais correto e mais útil.

— Isso é o que teria feito Phoebe se Fotherby não tivesse obrigado ao capitão a soltar as amarras — replicou Tom com serenidade.

— Não sei porque subiu a bordo do barco. As idas e vindas de meu sobrinho não são assunto seu — continuou Sylvester, com tanta arrogância que Tom esteve a ponto
de voltar a perder as estribeiras.

— Isso lhe disse. Mas ela achava que sim lhe concerniam, e você já sabe por que. Não lhe reprovo por estar zangado com Phoebe por ter escrito esse ridículo livro.
Nem sequer lhe reprovo que a tenha repreendido, ainda que me parecesse impróprio de um cavalheiro que o fizesse em público. Ainda que seja você duque...

— Basta! — saltou Sylvester, ruborizando-se —. Esse episódio também... lamento-o. Lamento-o muitíssimo. Mas se imagina que acho que meu título me autoriza a me comportar...
de forma pouco cavalheirosa, está a ser tão injusto como o fui eu com a senhorita Marlow. Pelo visto, você acha que dou um valor exagerado a meu título nobiliário,
mas se equivoca. Do que me orgulho é de minha linhagem. Deveria compreendê-lo, porque seu pai compartilha o mesmo sentimento de orgulho. “Nós, os Orde”, foi o que
me disse no dia que ceamos juntos, e não “Eu, o esquire”.

— Rogo-lhe que me desculpe — disse Tom esboçando um sorriso.

— Assim está melhor. Mas não volte a me jogar na cara o meu título! Deus meu, talvez seja um avaro burguês, surgido do nada, condecorado com um ducado com fins políticos
e cacarejando como um galo em seu próprio poleiro— Interrompeu-se, porque Tom tinha explodido numa gargalhada, e quase olhou-o com hostilidade —. Não era minha intenção
o fazer rir!

— Já o sei — replicou Tom enxugando as lágrimas —. Não se zangue, por favor! Entendo-o perfeitamente! Parece-se muito com meu pai, Salford. Para você, ser duque
é tão natural como o é para ele ser o esquire de suas terras, e só recordam o que são quando algum insolente não os trata com o devido respeito. Oh, céus, e eu comportar-me-ei
igual que vocês! — Rompeu a rir de novo, mas conseguiu dizer —: Não importa. O que mais lhe incomodou é que Phoebe se tenha imiscuído em seus assuntos, como se ela
tivesse querido invadir sua vida privada. Pois bem, não era essa sua intenção. A única coisa que lhe preocupava era achar a maneira de remediar o mal que lhe tinha
causado.

Sylvester levantou-se e acercou-se da lareira; deu-lhe a um chute com a ponta da bota e disse:

— Acha que deveria estar agradecido a Phoebe, não é verdade? Não há dúvida de que suas intenções eram nobres, mas quando penso no fácil que teria sido, se não tivesse
sido por sua intervenção, recuperar a Edmund sem provocar o mínimo barulho, não me sinto em absoluto agradecido.

— Sim, acho que deveria estar-lhe agradecido — insistiu Tom —. Se Phoebe não chegasse a subir a bordo do Betsy Anne para procurar o seu sobrinho, não sei o que teria
sido do pobre Edmund. Nunca vi ninguém em tão péssimas condições, e lhe asseguro que a ninguém mais parecia importar o que pudesse acontecer com o menino.

— Nesse caso, estou-lhe agradecido por isso. Se minha gratidão atenua-se pela reflexão de que Edmund não ter-se-ia embarcado nesse barco se Phoebe não tivesse metido
essa ideia na cabeça de Lianthe...

— Salford, não pode esquecer de uma vez essa absurda novela? — rogou-lhe Tom —. Se vai seguir pensando nela durante a viagem de regresso, bela viagem vamos ter!

Sylvester estava contemplando o fogo, mas ao ouvir a Tom levantou a cabeça.

— Que?

— Como espera que me leve e a Phoebe a Inglaterra? — perguntou Tom —. Talvez pensasse em nos abandonar aqui?

— Abandonados? Não sei por que precisam de meus serviços, quando ao que parece estão vocês em excelentes relações com um homem bem mais rico que eu! Sugiro-lhe que
peça um empréstimo a Fotherby.

— Sim, me verei obrigado a fazer isso se você decide a se vingar de forma tão mesquinha — retrucou Tom com decisão.

— Tenha cuidado! — advertiu-lhe Sylvester —. Aguentei muito, Thomas, mas desta vez foi demasiado longe. Se tivesse em França um representante de meu banco, poderia
pedir-me prestado o dinheiro que quisesse, mas não o há. Com relação a viajar com a senhorita Marlow, isso é que não! Peça a Fotherby que lhe procure assento. Dá
o mesmo que se endivide com ele como comigo.

— Não, não dá o mesmo — contradisse-o Tom —. Talvez a você não lhe importe a confusão em que se meteu Phoebe, mas a mim sim. Já conhece lady Ingham. A revolução
que se armou em Londres com o livro de Phoebe a afetou muito, e a última vez que a vi não estava de muito bom humor. Suponho que agora seu estado de ânimo tenha
piorado, mas você poderia acalmá-la. Se regressarmos a Inglaterra com você, e se explicar à avó de Phoebe que pôde recuperar ao pequeno Edmund graças a sua neta,
nada acontecerá. Mas se tenho que voltar sozinho com Phoebe, e se unicamente lhe importa é que ninguém se inteire do ocorrido, vamos sair prejudicados. Ademais,
como pensa o manter em segredo? Que me diz de Swale, e de...—

— O único de meus criados que sabe aonde fui é Keighley. Swale ignora-o. Não sou tão néscio como imagina, Thomas.

Lentamente, Tom esboçou um amplo sorriso.

— Não o tenho por néscio, Salford. O que está é louco!

Sylvester olhou-o com o cenho franzido.

— Que demônios se passa agora? Talvez acha que dependo do meu criado de quarto? Achava que me conhecia melhor.

— Ah, sim? E quem vai se ocupar de Edmund durante a viagem?

— Eu.

— Ocupou-se alguma vez dele? — perguntou Tom ampliando ainda mais seu sorriso.

— Não — respondeu Sylvester, ligeiramente na defensiva.

— Vai encantar-lhe a viagem! Espere até ter tido que o lavar meia dúzia de vezes todos os dias, senhor duque! Terá que vesti-lo e despi-lo, e lhe contar histórias
quando começar a enjoar no carro, e vigiar que não coma nada que não deva (e como suponho que não sabe o que não deve comer, seguramente passará toda a noite acordado
com ele), e nem sequer você poderá cear em paz, porque pode ser que o menino acorde e monte uma confusão. Desagradam-lhe os lugares com os quais não está familiarizado.
E não ache que poderá entregá-lo a uma camareira, porque também não gosta dos estrangeiros. E se você for bastante ingênuo para repreendê-lo por ser um incômodo,
começará a chorar, e todos o olharão como se fosse Herodes.

— Pelo amor de Deus, Thomas... — disse Sylvester, quase rindo —. Maldito seja! Oxalá nunca o tivesse conhecido! É tão grave?

— Muito pior! — assegurou-lhe Tom.

— Céus! Devia ter trazido Keighley, é claro. Mas tenha em conta que quando retirei de meu banco o dinheiro que supunha que precisaria, não contava que teria que
acrescentar duas pessoas. Não conseguiríamos chegar a Calais!

— Em isso não tinha pensado — admitiu Tom —. Bom, teremos que empenhar algo.

— Empenhar algo? — repetiu Sylvester —. Que?

— Vejamos... Trouxe consigo sua valise?

— Ah, assim que sou eu o que tem que empenhar algo, não? Pois não, me alegro muito de ter trazido só um baú de viagem.

— Nesse caso, teremos que empenhar seu relógio e sua corrente. É uma lástima que não leve agulhas nem anéis de diamantes. Se tivesse você uma esmeralda enorme, como
a que leva Fotherby hoje...

— Cale-se, por favor! Não penso em empenhar meu relógio! Nem nenhuma outra coisa!

— Fá-lo-ei eu em seu lugar — ofereceu-se Tom —. Não sou tão escrupuloso como você.

— O que você é, Thomas, é... — Sylvester interrompeu-se, pois tinha-se aberto a porta e Phoebe entrou na sala.

A jovem tinha uma expressão tão altiva que Tom teve vontade de rir; com uma voz quase mais gélida que a de Sylvester, disse:

— Desculpe-me, senhor duque. Tom...

— Senhorita Marlow — interrompeu-a Sylvester —, tenho entendido que fui injusto com você. Rogo-lhe que aceite minhas mais sinceras desculpas.

Phoebe lançou-lhe um olhar de desprezo.

— Isso não tem nenhuma importância, senhor. Tom, vim a comunicar-lhe que o que te disse antes na escada e o disse seriamente, e que já sei o que vou fazer. Pedirei
a lady Lianthe que me deixe acompanhá-la até Paris. Uma vez ali, posso esperar minha avó na embaixada. Estou segura de que sir Charles e lady Elizabeth me deixarão
ficar com eles quando lhes disser quem sou. Se queres regressar a Dover com sua excelência...

— Sim, esse é um plano perfeito! — disse Tom —. E mais, daria qualquer coisa para ver a cara do embaixador quando entrares e lhe disser que és a neta de lady Ingham
e que foste passar uns dias com eles porque perdeste milady pelo caminho, com toda tua bagagem. Pelo amor de Deus, não sejas tão ingênua. Queres converter-lhe na
piada de toda a Paris?

Phoebe estremeceu ao ouvir isso e Sylvester, ao percebê-lo, exclamou:

— Basta! Senhorita Marlow, compreenderá que é um plano completamente inconcebível. Rogo-lhe que me permita a acompanhar até Inglaterra.

— Antes empregar-me-ia de cozinheira — declarou Phoebe —. Qualquer coisa seria preferível a viajar em sua companhia.

Ainda que um pouco antes Sylvester tivesse se expressado em termos muito parecidos, molestou-se e disse:

— Não faz muito suportou você minha companhia durante uma semana inteira, sem sofrer nenhum dano, e suponho que sobreviveria se tivesse que a suportar alguns dias
a mais.

— Oxalá nunca tivesse subido nesse barco! — lamentou-se Phoebe, muito aflita.

— Eu também! Ainda que por outros... Rogo-lhe que me desculpe! Sei que o fazia com boa intenção!

— Nunca voltarei a fazer nada por você! — declarou ela com frieza —. E quanto a sua condescendência, senhor duque...

— Acalma-se, Phoebe! — exclamou Tom com severidade —. E escuta-me! Até agora te tenho secundado em tudo, mas não vou seguir fazendo-o. Desta vez obedecer-me-ás.
Voltaremos a Inglaterra com Salford, e não seguirás em dívida com ele, se isso é o que tanto te incomoda, porque ele precisa que cuides de Edmund. Sim, e deixa-me
recordar-lhe que prometeste ao menino que não o deixarias até que se reunisse com a senhorita Button.

— Isso a Edmund já não importa — disse Phoebe.

Mas nesse momento Edmund assomou a cabeça no salãozinho e, quando Tom perguntou, respondeu sem vacilar que não deixaria que Phoebe partisse; de maneira que Phoebe
ficou sem argumentos. A jovem disse a Edmund que já estava com seu tio e que ele lhe bastava, mas a criança agitou energicamente a encaracolada cabeça e disse:

— Não, porque o tio Sylvester não quer saber nada de mim antes do café da manhã.

Essa sincera revelação contribuiu para aliviar a tensão. Phoebe não pôde conter o riso e Sylvester, prometendo se vingar de seu sobrinho, abandonou seu ar rígido.

Mas Edmund ainda estava a gritar e rindo quando os sobressaltou um violento alarido procedente do andar de acima. Parecia provir de uma alma atormentada, e fez que
Sylvester levantasse a cabeça e que Edmund deixasse de rir.

— Que diabos..? — perguntou o duque.

Capítulo 24

Que aconteceu? — perguntou Tom, e foi coxeando até a porta —. É como se o príncipe da boa sociedade tivesse encontrado uma mancha de barro em sua jaqueta.

— Pett! Pett! — gritou sir Nugent enquanto baixava a escada —. Pett! Onde estás? Veem em seguida, Pett!

Tom abriu a porta, e Sylvester, deixando a Edmund no chão, inquiriu:

— Que se passa com esse homem, pelo amor de Deus?

Sir Nugent cruzou o vestíbulo, chamando a Pett a gritos, e apareceu na soleira, abraçando suas reluzentes botas e instando aos presentes a que as olhassem.

— Não faça tanto barulho! — reprovou Sylvester —. Que é o que temos que olhar?

— Esse cão de rua, esse imbecil! — gritou sir Nugent, fora de si —. Eu o mato! Esquartejo!

— Mas que ocorre, senhor? — gritou Pett ao chegar à sala.

— Olha! — rugiu sir Nugent enquanto sustentava as botas no alto.

Tratava-se das botas que ele mesmo tinha desenhado, mas as borlas douradas tinham desaparecido. Pett soltou um gemido e retrocedeu um passo. Tom lançou um olhar
a Edmund, tentou não perder a compostura e, sem poder se conter, se apoiou na porta e se pôs a rir a gargalhadas; Phoebe, controlando-se, conseguiu dizer:

— Oh, que má sorte! Mas não se preocupe, sir Nugent. Agora já tem um pretexto para comprar outro novo par de botas.

— Outro par novo? Pett! Se foste tu quem deixou a porta aberta para que esse vira-latas pudesse entrar em meu quarto te despeço hoje mesmo!

— Não fui eu! — gritou Pett com dramatismo —. A camareira, senhor! As botas! Não fui eu!

— Certamente que foi você! — disse sir Nugent voltando-se para Tom —. De que se ri? Você deixou entrar a esse cachorro em meu quarto!

— Não, claro que não — disse Tom —. Rogo-lhe que me desculpe, mas montar este espetáculo só por um par de botas...

— Só? — Sir Nugent deu um passo para ele, feito um energúmeno.

— Bata nele, Tom, bata nele! — gritou Edmund, com os azuis e angelicais olhos brilhando de emoção.

— Quer fazer o favor de controlar-se, Fotherby? — disse Sylvester com enfado.

— Não têm nem um arranhão, senhor! Ao menos tivemos essa sorte — interveio Pett —. Percorrerei toda Paris, dia e noite, senhor. Não deixarei pedra sem mover até
que...

— Desenhei-as eu mesmo! — lamentou-se sir Nugent fazendo não dando atenção as promessas de seu servente —. Cinco vezes devolvi-as a Hoby até que ficasse satisfeito!

— Sim, senhor. Como o ia esquecer?

— Bonito par de loucos! — disse Sylvester com profundo desprezo, alçando muito os extremos das sobrancelhas e olhando a Phoebe.

— Que criatura — atreveu-se a dizer Edmund ao mesmo tempo em que observava de relance a seu tutor.

Mas enquanto Tom contava a Sylvester a história do primeiro assalto de Chien às botas, seu relato foi ignorado. Sir Nugent, que parecia um ator de uma tragédia grega,
se lamentava com uma bota na mão, enquanto Pett abraçava a outra, e recordava todas as circunstâncias que o tinham levado a desenhar semelhante obra da moda e o
bom gosto.

— Isto é ridículo! — exclamou Sylvester quando se esgotou sua paciência.

— Ridículo! — concordou Edmund, saboreando essa nova palavra.

— Como pode dizer isso? — saltou sir Nugent, doído —. Sabe você quantas horas passei tentando me decidir entre uma singela banda de ouro ao redor da parte superior
do cano ou um cordão— você sabe...?

— Não me interessam essas vulgaridades! Agradecer-lhe-ia...

— Criatura ridícula!

—... enormemente que... Que acabas de dizer? — Sylvester, ao ouvir a voz alegre de Edmund, voltou-se rapidamente.

A pergunta, articulada num tom de voz furioso, ficou suspensa no ar. Edmund, assustado, olhou a seu tio e abaixou a cabeça. Até sir Nugent deixou de lamentar-se,
e esperou a que o menino respondesse. Mas Edmund, prudente, absteve-se de responder. Sylvester, com a mesma prudência, não repetiu a pergunta, mas que disse com
severidade:

— Que não volte a te ouvir! — Então voltou-se para o desconsolado dândi e disse-lhe —: Agradecer-lhe-ia enormemente que pusesse fim a este espetáculo e que me prestasse
atenção.

Mas nesse momento apareceu a criada para anunciar que milady, alarmada pelos gritos que chegavam a seus ouvidos, queria que seu esposo subisse de imediato ao seu
quarto.

— Devo ir para o seu lado! — disse sir Nugent —. Como vai se afligir quando se inteirar desta tragédia! “Nugent”, disse-me ontem quando pus as botas... As estreava!
Só cheguei a pô-las uma vez! “Vais impor uma nova moda”, disse-me. Devo ir com ela sem demora!

E dito isso, deu a bota que ainda segurava a Pett e saiu precipitadamente da sala.

— Terá que nos perdoar, excelência — disse Pett olhando com desaprovação a Sylvester —. É uma triste perda. Um duro golpe, excelência!

— Saia!

— Sim, excelência! Agora mesmo, excelência! — disse Pett fazendo uma reverência.

— E em quanto a ti — disse Sylvester dirigindo-se a seu compungido sobrinho —, se volto a ouvir-lhe pronunciar semelhante impertinência, asseguro-lhe que lamentarás.
E agora, te vai!

— Não voltarei a fazê-lo! — prometeu Edmund com voz suplicante.

— Disse que te vás!

Edmund partiu com as faces muito coradas. Esse penoso diálogo entre tio e sobrinho deu a Phoebe a oportunidade de retomar as hostilidades, e reprovou Sylvester que
tratasse a seu sobrinho com tanta crueldade.

— Ademais, é injusto que se desafogue com o pobre menino. Teria bastado com que o repreendesse com moderação. Estou assombrada!

— Quando precisar de seus conselhos, senhorita Marlow, pedirei — replicou ele.

Phoebe levantou-se rapidamente e foi para a porta.

— Tenha cuidado com o que faz! — lhe disse a jovem antes de sair da sala —. Não sou um de seus desafortunados serventes, obrigados a se submeter a sua detestável
arrogância.

— Espere um momento!

Phoebe girou a cabeça, disposta a seguir brigando.

— Já que Fotherby parece incapaz de pensar em algo que não sejam suas botas, talvez você, senhorita Marlow, tenha a bondade de informar a lady Lianthe de minha chegada
— disse Sylvester —. E, de passagem, seria tão amável de preparar a bagagem de Edmund— Quero levá-lo daqui tão cedo seja possível.

— Agora não pode levá-lo! — exclamou Phoebe ante esse pedido —. Não se dá conta de que a muito tempo que deveria estar dormindo? Talvez a você não se importe viajar
a noite, mas não pode exigir de Edmund que o faça.

— Não tenho intenção de viajar a noite, mas só de me transladar a outro hotel. Partiremos para Calais pela manhã.

— Então partirá sem mim! — impôs Phoebe —. É que nunca pensa em ninguém mais que em si mesmo— Não imagina quais devem de ser meus sentimentos, se é que pode se dignar
tomar em consideração algo tão insignificante— Enquanto viajava com sir Nugent, podia não dar importância ao fato de carecer bagagem, mas se tenho que fazê-lo com
você, é diferente. E se acha que vou ir a um desses hotéis luxuosos com um vestido de viagem sujo e sem mais bagagem que uma caixa de chapéus, está você muito equivocado,
senhor duque.

— Que importância têm os olhares ou a curiosidade de uns poucos serventes de hotel? — perguntou Sylvester com expressão assombrada.

— Oh, que próprio de você! — gritou Phoebe —. Que típico! Sem dúvida, o manto de seu título e seu prestígio me cobrirá, não é assim? Que maravilhoso será me ver
tão elevada que poderei assumir com indiferença as opiniões dos seres inferiores a mim!

— Como não estou utilizando meu título, e dado que todo meu prestígio, como a você gosta de chamá-lo, está contido num sozinho baú de viagem, comprovará que meu
manto está um pouco puído — defendeu-se Sylvester —. No entanto, não se preocupe. Reservarei um salão privado para você, para que não tenha que suportar os olhares
dos outros clientes.

— Não acho que isso lhe convenha, Salford — objetou nesse momento Thomas —. Esquece você que andamos um pouco curtos de dinheiro.

— Está bem! — exclamou adotando uma expressão aborrecida —. Nos alojaremos em alguma pequena pousada, como esta.

— Quase todas as pousadas estão cheias — advertiu-lhe Tom —. Se percorremos toda a cidade em procura de uma pequena pousada onde tenha habitações livres para nós
quatro, o mais provável é que não nos deitemos até passada a meia-noite.

— Talvez espera que eu fique aqui? — perguntou Sylvester.

— Bom, aqui há lugar de sobra...

— Se aqui há lugar, também terá...

— Não, não terá em nenhuma outra posada! — interveio Phoebe —. Sir Nugent reservou a casa inteira e despachou os clientes que se alojavam aqui antes que nós. E não
entendo por que põe essa cara, porque foi o mesmo que fez você quando exigiu à senhora Scaling que lhe cedesse seu salãozinho para seu uso privado.

— E pode saber-se a quem despachei do Blue Boar? perguntou Sylvester.

— Deu sorte de que nesse momento não tinha nenhum cliente no estabelecimento, mas não tenho dúvida de que, se tivesse, tê-los-ia despachado.

— Ah, sim— Então, permita-me dizer-lhe que...

— Escutem-me! — lhes suplicou Tom —. Se assim o desejam, podem se insultar mutuamente durante o caminho até que cheguemos a Dover. Juro-lhes que não direi nem uma
única palavra! Mas antes, decidam o que vamos fazer, pelo amor de Deus. Cedo virão servir-nos o jantar. Não lhe reprovo que não deseje ficar aqui, Salford, mas sem
dinheiro e com o pequeno Edmund a nosso cargo, que podemos fazer? Se não está disposto a que Fotherby corra com seus gastos, pode combinar com madame alguma forma
de pagar a fatura.

— Vou deitar Edmund! — anunciou Phoebe —. E se tenta apartá-lo de mim, senhor duque, direi que me tratou com rudeza, o qual se irritará com você, sobretudo após
o quão cruel que foi com ele.

Depois de lançar essa ameaça, Phoebe partiu e deixou a Sylvester sem saber o que dizer. Tom olhou-o sorridente.

— Sim, e não lhe convém que Edmund diga a todo mundo que é você uma má pessoa. Tem atormentado a Fotherby, asseguro-lhe. Agora que pensei, o menino está convencido
de que você moerá os ossos das pessoas para fazer pão.

— Já vejo que Edmund se tem rebelado — limitou-se a dizer Sylvester apesar de que lhe tremiam os lábios —. Em quanto a você, Thomas, saiba que se seguir se mostrando
tão insolente comigo...

— Assim está melhor! — disse Tom com entusiasmo —. Pensava que nunca ia voltar a me tutear. Olhe, Salford...

Interrompeu-o sir Nugent, que nesse momento regressou à sala aflito.

— Comunicou-lhe a Lianthe da minha chegada? — perguntou Sylvester no instante.

— Não, por Deus! Não lhe direi por nada do mundo! — respondeu sir Nugent, emocionado —. E menos agora. Está muito alterada. Seus sentimentos são exatamente os que
eu tinha previsto. Você terá que sequestrar o menino enquanto dormimos.

— Jamais farei nada tão indecoroso!

— Não me interprete mal— disse sir Nugent com ansiedade —. Não há nada de indecoroso nisso! Se o que o escandaliza é ter que entrar furtivamente no dormitório da
senhorita Marlow...

— Não estou pensando em nada parecido! — atalhou-o Sylvester com considerável aspereza.

— Já estamos outra vez! — lamentou-se sir Nugent —. Salta-me você em cima tão logo eu abro a boca! Não há nenhuma necessidade de que entre furtivamente no dormitório
da senhorita Marlow: ela o levará ao menino. Terá que levar também a ela, é claro, e acho que Orde deveria partir também, porque não sei de que seria capaz milady
se ele ficasse aqui. Resulta que...

— Não é preciso que me conte! Thomas, ou você para de rir, ou o deixo apodrecendo aqui. Preste-me atenção, Fotherby! Não tenho necessidade de sequestrar meu pupilo.
Nem você nem Lianthe possuem autoridade para impedir que o leve. E, ainda que isso seja o que vou fazer, sinto suficiente respeito pela sensibilidade de minha cunhada
não só para lhe informar de minhas intenções, mas também para lhe assegurar que ocupar-me-ei devidamente do menino. E agora, me conduza até Lianthe, ou vá lhe dizer
você mesmo que amanhã pela manhã levei Edmund para casa.

— Não, não o fará — retrucou sir Nugent —. Talvez tenha você direito fazê-lo... Bom, consta-me que sim, porque perguntei a meu advogado. Mas sabe-o milady? Isto
é, admitirá que o sabe? Se você crê que sim, senhor duque, a única coisa que posso lhe dizer é que não entende muito de mulheres. O que é absurdo, porque não me
negará que ofereceu um cheque em branco, pouco depois de atingir a maioridade, a... como se chamava aquela mulherzinha— Já sabe a quem me refiro. Uma criatura preciosa,
com cabelos dourados e...

— Rogo-lhe que não misture meus assuntos privados com esta discussão! — disse Sylvester, rígido de ira.

— Como queira. Ainda que muitas vezes tivesse gostado de perguntar-lhe... No entanto, já vejo que se porá feito uma fera, assim não importa. O caso é que se explico
a milady o que está acontecendo, ela pretenderá que eu o impeça de levar o menino. E além de que eu não quero lhe impedir, como diabos poderia consegui-lo? Já sabe
como são as mulheres, senhor duque (suponho que não terá inconveniente em que o diga, não é verdade?). Milady pensaria que meu dever era desembainhar a espada, e
de nada serviria lhe dizer que careço de espada, porque o problema com as mulheres é que não raciocinam. E eu passaria um mau momento, enquanto você fugia com o
menino, mais contente do que na Páscoa. Estou certo de que milady demoraria mais de um ano para me perdoar.

— Isso não é problema meu — disse Sylvester.

— Como pode você ser tão sem consideração? — lamentou-se sir Nugent —. Preocupo-me por ajudá-lo, e em lugar de... Mas como! Ainda não te deitaste?

Essa exclamação provocou-a o repentino aparecimento de Edmund na ombreira; a expressão do menino era a de quem, depois de tomar uma dolorosa decisão, não pensa se
deixar dissuadir da levar a cabo. Seguia-o Phoebe, que disse:

— Edmund quer falar com você antes de se deitar, sir Nugent.

— Não, não, leve-o! — saltou sir Nugent —. Acabo de receber um desagradável revés e não me encontro muito bem.

— Bom, não é exatamente que queira... — disse Edmund caminhando com determinação até a cadeira onde estava sentado sir Nugent e se plantando na frente dele com as
mãos às costas —. Rogo-lhe que me perdoe pelo tê-lo chamado de criatura, senhor. Criatura ridícula — acrescentou conscienciosamente.

— Está bem, está bem — disse sir Nugent dispensando-o com um gesto.

— E também quero lhe dizer — prosseguiu Edmund heroicamente— que não foi Chien. Fui eu. E sinto-o muito, e... aqui estão.

Enquanto falava, pôs os braços na frente do corpo e abriu as mãos, nas quais tinha duas borlas quase desfeitas.

Phoebe, à que esse gesto tinha surpreendido, sufocou um grito de consternação; sir Nugent, depois de contemplar as borlas uns instantes, disse com voz estrangulada:

— Tu! Tu! Vou-lhe a...!

— Fotherby!

A voz ameaçadora de Sylvester fez que o enfurecido dândi, que se tinha levantado da cadeira com gesto ameaçador, se detivesse bruscamente. Sylvester adiantou-se
com rapidez, e Edmund, ainda que não se tivesse movido de onde estava, respirou mais tranquilo.

— Como se atreve! — disse Sylvester apertando os dentes.

— Soia dar-lhe um corretivo — esclareceu sir Nugent, mal-humorado —. Maldito seja, sou seu padrasto, não?

Sylvester soltou uma breve e desdenhosa risada e olhou a Edmund.

— Dá-me essas borlas, rapaz, e vá a deitar-se.

— Pensava que se pedisse perdão passaria a raiva — disse com ar compugnado enquanto entregava-as.

— Não estou zangado — disse Sylvester, e acariciou-lhe fugazmente a face —. Palavra de Rayne! Boa noite, diabinho. Não faças esperar à senhorita Marlow.

— Que não está zangado! — explodiu sir Nugent —. Só falta que recompense a essa pequena víbora!

— É possível que o faça — replicou Sylvester com frieza —, porque meu sobrinho levou a cabo o que eu não pude: deu-lhe o que merecia. Quando sequestrou o garoto,
Fotherby, você sabia que estava a salvo de mim, porque eu não quereria expor minha vida privada. Duvido muito de que qualquer vingança que tivesse podido tomar lhe
tivesse causado tanto pesar como o castigo que lhe impôs Edmund. Que coragem tem o pequeno! Seu pai ter-se-ia rido com vontade.

— Parece-me que vou desafiá-lo em duelo! Sim, farei isso! — ameaçou-o sir Nugent.

— Está cerro? — replicou Sylvester —. Saiba que tenho muito boa pontaria.

— Pois tenha em conta que Nugent Fotherby se defende melhor que ninguém! — saltou sir Nugent, furioso —. Pergunte-o a quem quiser! O que passa é que milady não aprovaria.
Devo pensar nela! Mas se acha que vou levar a esse moleque comigo...

Ao que parece, se engasgou só de pensar outra vez em Edmund, porque não terminou a frase; vermelho de ira, pegou as borlas, que Sylvester tinha deixado em cima da
mesa com desprezo, e saiu precipitadamente da sala.

Tom suspeitava que a confissão de Edmund tinha complicado ainda mais a situação, porque no Poisson Rouge já não parecia ter lugar para Sylvester e sir Nugent. No
entanto, não demorou em comprovar que a infâmia do menino tinha tido também consequências positivas. Lianthe, ao inteirar-se do ocorrido, decidiu que tinha que castigar
a Edmund. Sir Nugent disse-lhe que Sylvester não iria permiti-lo, e assim foi como se revelou o segredo da chegada do duque. Lianthe se jogou sobre as almofadas
com um grito; mas sir Nugent, esquecendo seus votos matrimoniais, comunicou a sua esposa (dando um chute no tocador de Lianthe, o que fez que todos os frascos com
tampas de ouro que tinha em cima saltassem) que podia escolher entre ele e seu maldito filho. Essa mostra de violência deixou a Lianthe amedrontada. Também a impressionou
muito, pois era uma prova evidente de superioridade masculina ante a qual reagiu de forma instintiva. A seus protestos, ainda que formuladas com lágrimas nos olhos,
começou a faltar convicção; e quando Sylvester, tomando a justiça nas suas mãos, chamou à porta do quarto de sua cunhada e entrou antes de que lhe dessem permissão
para entrar, não o recebeu com tanta dramaticidade como teria sido de esperar. Lançou-lhe reprovações, é claro, mas sobretudo por ter animado a

Edmund a comportar-se mau. Lianthe lhe recriminou que tivesse castigado Edmund, e quando, a seguir, declarou que não estava disposta a abandonar a seu filho e o
deixar em mãos de alguém tão cruel, até a ela soaram insinceras suas palavras. Então Lianthe rompeu a chorar, lamentando-se de que ninguém se importava com seus
nervos.

Esse arrebato de auto piedade fez que Phoebe entrasse no quarto para suplicar a Lianthe que se controlasse, ainda que só pelo bem de Edmund.

— Estou segura de que não quer angustiá-lo! Pense no desconcertante que seria que um menino tão pequeno ouvisse chorar a sua mãe!

— É você tão cruel como Sylvester! — gemeu Lianthe —. A ninguém importa meu sofrimento!

— A mim não, é claro — confirmou Sylvester.

— Oh! — exclamou Lianthe dando um pulo da cama. A indignação pôs fim a seus soluços, a raiva coloriu-lhe as faces e seus adoráveis olhos fixaram com ódio a Sylvester.

— Não me importa o mínimo — reafirmou Sylvester —. Já vês que sou sincero contigo, Lianthe. E antes que retomes a esta lamentável exibição de sensibilidade, escuta
o que te vou dizer. Levaste quatro anos a recordando-me de uma tolice que te disse. Tens me jogado em cara tantas vezes que acabaste por achar que falava em sério.
Não, não olhes para outro lado! Olha-me no rosto e contesta-me! Achas que poderia tratar mal a única coisa que me ficou de meu irmão Harry?

Lianthe, amarrotando seu lenço, respondeu-lhe, mal humorada:

— Nunca pensei que tivesses muito carinho a Harry. Quando morreu, nem sequer derramaste uma lágrima! — Interrompeu-se, assustada pela expressão do duque.

Sylvester demorou um momento em falar. Phoebe observou que estava muito pálido; a posição de suas sobrancelhas enfatizava seu ar de sátiro e tinha os lábios muito
apertados. Quando os separou, foi para dizer com voz fria e cortante:

— Quando Harry morreu perdi uma parte de mim. Mas agora não vamos falar desse assunto. Só tenho algo que acrescentar: és a mãe de Edmund, e podes vê-lo sempre que
queiras. Já to tenho dito muitas vezes, mas o repetirei. Podes ir a Chance quando quiseres, com teu marido ou sem ele.

Sir Nugent, que tinha estado escutando atenciosamente, exclamou quando a porta se fechou por trás de Sylvester:

— Que generosidade! Terás que reconhecer, meu amor, que Salford foi muito magnânimo. Jamais pensei que convidar-me-ia a ir a Chance! Tinha a impressão de que não
lhe agradava muito. Acho que irei. Suponho que será aborrecidíssimo: não terá diversões, e a companhia será muito esnobe, claro. Mas poder ir de visita Chance...
vá! Já sei que farei: convidá-lo-ei a tomar uma copo de vinho comigo. Não! Convidá-lo-ei a cear, por Júpiter! Achas que deveria mudar de traje, querida? Não! Isso
o poderia desconcertar.

Porei outra gravata; isso bastará.

Sir Nugent saiu do quarto entusiasmado com seus novos propósitos. Lianthe rompeu a chorar de novo, mas recuperou-se quando Phoebe lhe assegurou que cuidaria muito
bem de Edmund até seu regresso a Londres.

— Oh, querida senhorita Marlow! Se não soubesse que vai viajar com eles, não consentiria que o levassem de meu lado — disse Lianthe pegando uma mão a Phoebe —. Estou
segura de que cuidará dele tão bem como eu o faria. E se alguém comete a injustiça de dizer que abandonei meu filho, você sabe que isso não é verdade.

— Se alguém se atrevesse a insinuar uma coisa assim, faria que lhe arrancassem os braços — prometeu-lhe Phoebe —. E agora desculpe-me, tenho que voltar com ele e
lhe apagar a vela.

Mas quando Phoebe chegou no dormitório que compartilhava com Edmund, parou na soleira, porque viu a Sylvester sentado na borda da cama de seu sobrinho.

— Rogo-lhe que me perdoe! — disse o duque com certa timidez, levantando-se em seguida —. Não deveria estar aqui, mas Edmund me chamou.

— Não tem importância — replicou ela num tom amistoso que até então nunca tinha empregado com ele.

— Phoebe, o tio Vester diz que meu pai teria cortado uma borla e que ele teria cortado a outra — disse Edmund com os olhos brilhantes.

Phoebe não pôde conter o riso.

— Não sei se gostaria muito que lhe cortasses as borlas de suas botas!

— Já expliquei a Edmund que isso nunca deve ser feito com as botas dos tios — disse Sylvester. Acariciou a cabeça ao menino, despenteando-lhe os cabelos, e acrescentou
—: Boa noite, diabinho.

— Não partirás...? — perguntou Edmund, assaltado por um súbito temor.

— Não sem ti.

— E Phoebe? E Tom?

— Não se preocupe. Virão ambos conosco.

— Bem! — pulou Edmund, soltando a jaqueta de seu tio —. Vamos nos divertir muito!

Capítulo 25

Os viajantes chegaram a Calais dois dias mais tarde, após parar em Etaples, onde se alojaram no que Sylvester descreveu sem vacilar como a pior pousada que jamais
tinha visto. Tom foi o único que satisfez as expectativas de Edmund, pois Sylvester esteve mal humorado desde o momento da partida, já que nem sequer entregando
em garantia o pequeno broche de pérolas de Phoebe e seu relógio e a corrente conseguiu suficiente dinheiro para lhe permitir viajar como estava acostumado. Aborreceu-se
muitíssimo com Tom por mostrar de repente o broche na loja do prestamista, e disse que aquela temeridade obrigá-lo-ia a enviar a algum empregado seu a França para
o recuperar. Desagradou-lhe ter que pechinchar pelo preço de seu relógio, mas ainda mais se ver em dívida com Phoebe, e saiu dessa degradante experiência com um
humor deplorável. Então percebeu que não podia se permitir o luxo de alugar duas cadeiras de posta de quatro cavalos de tiro para cobrir a distância entre Abbeville
e Calais, e teve que decidir qual dos dois males era o menor: meter quatro pessoas — entre elas um menino pequeno que se enjoava —, numa única cadeira de posta com
quatro cavalos de tiro, ou alugar dois carros singelos e percorrer mais de cento vinte quilômetros puxados por um único par de cavalos cada um. Quando pensou que
Edmund, antes de sucumbir a sua indisposição, não ficaria quieto nem deixaria de fazer perguntas, decidiu alugar dois cupés, e desse modo descobriu que o senhor
Rayne, um cavalheiros com escassos meios, não era tratado com a deferência que costumava receber sua excelência, o duque de Salford. O chefe do escritório de aluguel
não se mostrou descortês com ele, mas só indiferente. Sylvester, acostumado sempre a tratar com pessoas que se desvelavam para atendê-lo, sofreu um ligeiro revés.
Até que desembarcou em Calais, nunca tinha viajado num carro de aluguel. O carro que tinham lhe proporcionado no Lion d'Argent não tinha merecido muito boa opinião,
mas os que alugaram em Abbeville o desagradaram profundamente. A verdade é que estavam muito sujos.

— Por que este carro não tem quatro cavalos? — perguntou Edmund.

— Porque só tem dois — respondeu Sylvester,

— São um par de pangarés! — protestou Edmund.

Os cavalos eram muito lentos, e depois de realizar a primeira troca, não notaram uma grande melhoria quanto à velocidade. Phoebe não demorou em descobrir que era
muito diferente viajar num carro puxado por quatro cavalos que num puxado por dois. A viagem fez-se interminável; e ainda que aquele passo mais tranquilo parecesse
afetar menos a Edmund que o bamboleio de um carro com boa suspensão puxado por quatro velozes corcéis, o menino cedo começou a aborrecer-se, e nesse estado de ânimo
sua companhia ainda era mais cansativa de que quando se enjoava. Phoebe sentiu-se muito aliviada quando, ao chegar a Etaples, Sylvester, após a observar, declarou
que não pensava ir mais longe nesse dia. Phoebe não desejava mais que se deitar; no entanto, quando propôs que lhe enviassem um pouco de sopa ao seu dormitório,
Sylvester se apressou a dizer:

— Nada disso! Nem você nem Edmund comeram nada esta manhã, e se não têm fome agora, deveriam ter. — Dirigiu-lhe uma de suas inquiridoras miradas e acrescentou —:
Suponho que queira descansar um pouco antes de cear, senhorita Marlow. Edmund pode ficar comigo.

O criado da pousada acompanhou-a a um quarto no andar de acima com vista para um pátio. Depois de tirar o vestido e pendurá-lo, com a esperança de que desaparecessem
dele as arrugas mais marcadas, a jovem deitou-se na cama e fechou os olhos. Lhe rondava a ameaça de uma dor de cabeça, e cedo descobriu que tinha poucas possibilidades
de se livrar dela. A julgar pelos ruídos que chegavam pela janela, as cozinhas também davam para o pátio, e as pessoas que trabalhavam nelas não paravam de brigar
e fazer barulho com as louças.

Quando Phoebe se dispunha a sair de seu quarto, chegou Tom para ver como se encontrava. Trazia-lhe um copo de vinho de parte de Salford.

— Diz que estás muito cansada. É verdade — acrescentou Tom— é que não tens bom aspecto.

Phoebe era consciente de sua lamentável aparência, pois tinha-se olhado no sujo espelho de seu quarto, o que não contribuiu para animá-la. Bebeu um gole de vinho
com a esperança de dissipar a depressão que a tinha ameaçado durante todo o dia.

— Que ruído fazem estes franceses! — comentou Tom olhando pela janela —. Salford ficou-se irritado quando viu que este quarto dava ao pátio, mas o nosso dá para
a saída da taberna, assim não teria sido apropriado para ti. Pelo visto celebra-se uma feira: a cidade está abarrotada e não há quartos livres em nenhum lugar.

— Tens que compartilhar o quarto com Salford? Não vai gostar!

— Não, isso não é o que lhe incomoda — disse Tom alegremente —. Não gosta do ambiente e não está acostumado a que os camareiros lhe digam que o servirão bientôt
(logo). Deixei-o fazendo-se de duque no restaurante, para conseguir uma mesinha apenas para nós. E certamente que conseguirá a sua, porque o camareiro estava começando
a lhe fazer reverências e a apertar-lhe as mãos, e isso graças apenas ao ar aristocrático e ao sedutor sorriso de Salford.

Quando desceram ao restaurante viram que Sylvester tinha conseguido uma mesinha junto à porta e que os estava esperando ali com Edmund, que se achava sentado num
banco composto de dois grossos livros que tinham colocado sobre sua cadeira. Edmund tinha expressão angelical e estava a suscitar muita admiração.

— Se seguir assim — disse Sylvester enquanto acercava a cadeira a Phoebe —, seu caráter se porá a perder por completo.

— Sim, e é uma sorte que a Edmund não goste desse tipo de atenções — concordou Phoebe.

— Efetivamente, graças a Deus! Pedi para você algo que achei que gostaria, senhorita Marlow, ainda que não tivesse muito entre o que escolher. Um prato caseiro,
como diríamos nós.

O duque voltou-se para falar com um impressionado camareiro, e Edmund, aparentemente reconciliado com a língua francesa pela fluidez com que seu tio a falava, anunciou
de repente que ele também sabia falar francês.

— Vá, campeão! — disse Tom —. E daí o que sabes dizer?

— Palavras — contestou o menino —. Sei dizer bonjour, petit chou e... — Mas deixou de interessar-se pela conversa tão logo o camareiro pôs-lhe na frente o prato
que tinha composto com tanto esmero.

O jantar estava bom, e ainda que o serviço fosse lento, a noite teria decorrido sem problemas se Edmund não tivesse decidido obsequiar aos presentes com outra mostra
de seu domínio da língua francesa. Uma mulher descomunalmente gorda que estava sentada no final da mesa que atravessava o centro da sala, depois de o contrariar
sorrindo a cada vez que o menino levantava a cabeça de seu prato, ficou tão cativada por sua beleza que quando passou junto a sua cadeira ao sair do restaurante
que não só felicitou a Phoebe pelo seráfico rosto do menino, mas não pôde resistir a tentação de se inclinar sobre ele e lhe plantar um sonoro beijo na face.

— Petit chou!— disse a mulher, sorrindo extasiada.

— Salaude! (porca) — retrucou Edmund, indignado.

Seu tio mandou-o calar ao instante, mas quando Sylvester, depois de explicar à assombrada dama que Edmund tinha aprendido essa palavra sem saber o significado, lhe
pedir desculpas e suportar as risadas de todos os clientes que o tinham ouvido, voltou a se sentar e lançou a seu transgressor sobrinho um olhar que não pressagiava
nada bom, Phoebe saiu em defesa de Edmund e disse:

— Não é justo que o aborreça! Ele não sabe que significa essa palavra. Deve de tê-la ouvido no Poisson Rouge, quando estava na cozinha.

— Madame diz isso a Elise — explicou Edmund com ar enigmático.

— Veja, querido, não é uma palavra muito elegante — explicou-lhe Phoebe sem excessiva reprovação.

— Não pensava que o fosse — confessou Edmund com satisfação.

— Surpreende-me muito que lhe deixassem ficar na cozinha — disse Sylvester —. Supunha que tendo quatro adultos...

— Sim, e a mim me surpreendeu muitas vezes que tendo não sei quantos adultos lhe tenham deixado passar tantas horas nos estábulos — interrompeu-o Phoebe.

Essa observação era tão irrebatível que lhe seguiu um longo silêncio, até que Tom, para romper o gelo, perguntou a Sylvester a respeito da etapa do dia seguinte.
Quando saíram do restaurante, Phoebe se despediu com frieza de Sylvester, com mais afeto de Tom e levou Edmund para a cama.

Na manhã seguinte, no café da manhã, reinava uma atmosfera de meticulosa cortesia. Sylvester fazia comentários galantes a Phoebe, e ela lhe respondia com cortês
formalidade.

Mas a formalidade abandonou de repente a Phoebe quando descobriu que nesse dia ia viajar com Tom em lugar de com Edmund.

— Ah, não! Por favor, deixe-me ir com Edmund! Se decidi vir com você foi porque assim poderia cuidar dele, senhor duque, e lhe asseguro que o faço de muito bom grado.

— É muito amável, senhorita, mas hoje Edmund viajará comigo — replicou Salford.

— Mas por que? — perguntou a jovem.

— Porque assim o desejo — disse o duque depois de vacilar um instante.

Disse-o com sua indiferença habitual. Phoebe interpretou-o como uma censura do trato que dispensava a Edmund, consequência, seguramente, de sua incorreção da noite
anterior, e decidiu não dar a Sylvester a satisfação de comprovar o quão envergonhada estava. Quando voltou a olhar a Sylvester, descobriu que ele a estava a observá-la
e lhe pareceu detectar em seu duro olhar um ar de ansiedade.

— Disse algo que a tenha molestado? — perguntou Sylvester acercando-se dela —. Não era essa minha intenção!

Phoebe arqueou as sobrancelhas.

— Molestar-me? Não, em absoluto!

— Edmund virá comigo porque acho que você tem dor de cabeça — especificou então Sylvester, sem rodeios.

Era verdadeiro, mas Phoebe desmentiu-o enquanto suplicava de novo ao duque que deixasse que Edmund a acompanhasse. O fato de que Sylvester tivesse pensado nela a
desarmou por completo, e relaxou um pouco, e quando o olhou nos olhos esboçou um tímido sorriso. Sylvester observou-a um instante, e então, quase com brusquidão,
ao mesmo tempo que afastava o olhar disse:

— Não, não discuta comigo! Já tomei uma decisão!

Quando chegaram a Calais, a dor de cabeça de Phoebe tinha piorado, o que a jovem atribuiu a seu crescente abatimento. Quando Edmund se inteirou, revelou que ao tio
Vester também lhe doía a cabeça.

— A mim? — exclamou Sylvester —. Nunca sofri de dor de cabeça na vida, rapaz!

— Oh! — disse Edmund, e acrescentou com um sorriso cúmplice —: Então é que estavas um pouquinho enfadado.

Como Tom tinha tido o cuidado de pedir conselho a Sinderby, a pousada em que se

hospedaram essa noite, apesar de se tratar de um estabelecimento modesto num bairro pouco elegante da cidade, era tranquila e confortável. A tisana que tomou antes
de se deitar e um sonho reparador acabaram com a dor de cabeça de Phoebe. No entanto, seguia muito abatida; mas ao abrir os olhos e ver os vidros da janela molhados,
e o céu carregado, atribuiu seu abatimento ao clima.

— Espera-nos uma travessia sumamente fastidiosa — anunciou Sylvester quando se reuniu com os demais à mesa do café da manhã —. Mal sopra vento. Consegui um camarote
para você, senhorita Marlow, mas temo que a travessia será muito tediosa, sobretudo se segue chovendo, o que tudo parece indicar.

— Por que não posso comer um ovo? — perguntou Edmund —. Não quero pão com leite. Keighley diz que é comida de crianças.

— Não importa — disse Phoebe rindo —. Amanhã poderás comer ovo.

— Amanhã talvez não tenha fome — argumentou Edmund, compungido —. Agora é quando tenho fome!

— Pobrezinho! Estás tão faminto?

— Comeria uma vaca inteira! — respondeu o menino.

Sylvester, que estava lendo um jornal, abandonou momentaneamente a leitura e disse com gesto severo:

— Isso não o aprendeu de Keighley!

— Não — admitiu Edmund —. Isso diz o Jem.

— Quem diabos é Jem?

— O dos grãos. Não o conheces, tio Vester? — perguntou Edmund, perplexo.

— É um criado dos estábulos?

Edmund assentiu.

— Ensina-me expressões muito graciosas. É amigo meu.

— Ah, sim? — disse Sylvester com gravidade —. Pois se não queres que te sente a mão, não as repitas.

Edmund, sufocado, agachou a cabeça e seguiu comendo o pão com leite.

— Permita-me que me desculpe por ele, senhorita Marlow — disse o duque —. Essa atitude é consequência de ter uma babá e um mestre demasiadamente idosos. Devo procurar
para Edmund um professor particular mais jovem.

— Acho que lhe conviria mais uma mulher sensata — disse Phoebe —. Alguém como minha querida professora, que não se assusta por um rasgão na roupa, e que goste dos
animais, e caçar borboletas e recolher ovos de pássaro e... Tu já sabes a que me refiro, Tom!

— Querida senhorita Marlow, me dê o seu nome e sua direção! — lhe suplicou Sylvester.

— Você também a conhece — recordou-lhe a jovem —. Mas temo que não a possa recomendar. Tão logo eu atinja a maioridade, virá viver comigo.

— Virá viver com você? — repetiu Sylvester, incrédulo.

— Sim. Viveremos juntas; ela cuidará da casa, e eu... — De repente interrompeu-se, sufocou um grito e prosseguiu, desafiante —: E eu dedicar-me-ei a escrever novelas.

— Entendo — retrucou ele com frieza, e seguiu lendo o jornal.

Capítulo 26

Embarcaram no barco com uma ligeira brisa, e com menos oposição por parte de Edmund do que tinham imaginado. Quando o menino se deu conta de que seu todo poderoso
tio não podia levá-lo milagrosamente pelos ares até a costa de Inglaterra, esteve a ponto de montar uma cena.

— Não, não, não! Não vou subir no barco! — protestou com um impulso que pressagiava uma torrente de lágrimas.

— Como dizes? — atalhou-o Sylvester com veemência.

Edmund se ruborizou, engoliu saliva e disse com tom implorante:

— Por favor! Não quero subir no barco! Se o fizer voltará a me doer a barriga!

— Voltará a doer-lhe o que?

Edmund fechou os olhos e apertou muito as pálpebras.

— Achava que tinhas mais coragem — disse seu tio com desprezo.

— Claro que tenho coragem! — declarou Edmund jogando chispas pelos olhos —. Keighley diz que sou muito valente.

— Keighley está esperando-nos em Dover — comentou Sylvester em tom despreocupado —. Senhorita Marlow, rogo-lhe que não lhe mencione que Edmund se acovardou, porque
o decepcionaria muito.

— Subirei no barco! — decidiu Edmund com energia —. Os Rayne são capazes de qualquer coisa!

Quando chegou na passarela, Edmund vacilou um momento.

— Mostra-nos o caminho, jovem Rayne! — animou-o Sylvester, e o menino caminhou por ela com decisão.

— És um valente, Edmund! — alentou-o Tom.

— Sou mais homem que todos os demais! — afirmou a criança.

Para Phoebe, a travessia resultou aborrecidíssima. Sylvester envolveu Edmund com sua capa de viagem e ficou com ele na coberta; a jovem não tinha nenhuma ocupação
com que entreter-se, e como seguia chovendo, não lhe sobrou outro remédio que se retirar a seu camarote e refletir sobre seu funesto futuro. O barco demorou nove
horas para chegar em Dover, que a Phoebe lhe pareceram eternas. Tom visitava-a de vez em quando e lhe levava algum refresco ou lhe informava a respeito de Edmund.
Tom admitiu que o menino se tinha enjoado um pouco, mas que não tinha por que se preocupar. Tinham encontrado um lugar resguardado na coberta, e o duque e ele se
revezaram para fazer companhia ao pequeno. Não, não era necessário que Phoebe fizesse nada: Edmund, que tinha dormido um pouco, estava mais animado.

Para o final da travessia deixou de chover e Phoebe subiu a coberta. Encontrou

Edmund um tanto exaltado e Sylvester mostrou-se cortês, mas cortante com ela. Era a primeira vez que Sylvester tinha que cuidar de seu sobrinho, e o duque esperava
que fosse a última.

Quando o bote entrou no porto, eram quase oito horas, e os quatro viajantes, cansados e com frio, não estavam de muito bom humor. Contudo, ao ver o rosto de Keighley
dois deles se animaram consideravelmente: Edmund lançou-se sobre ele gritando de alegria e Sylvester, relaxando visivelmente o cenho, disse:

— Graças a Deus! Podes ficar com ele, John!

— Com muito gosto, excelência — retrucou Keighley, sorridente —. Espere um momento, senhor Edmund. Tenho que recolher o baú de sua excelência.

A Keighley surpreendeu-lhe ver a Phoebe, e ainda mais a Tom; mas aceitou com impassibilidade aparente as explicações de Sylvester e sua afirmação de que se achava
em dívida com a senhorita Marlow e o senhor Orde por tê-lo ter ajudado a recuperar o seu sobrinho.

— É claro, excelência — limitou-se a dizer —. E como está você, senhor? Vejo que ainda não dobra muito bem o joelho.

Keighley tinha reservado habitações para Sylvester no King's Head. Achava que não tivesse inconveniente em reservar outras duas, mas Phoebe lhes recordou que tinha
que voltar o quanto antes para o lado de lady Ingham.

— Antes seria conveniente averiguar se lady Ingham continua na cidade — disse Sylvester voltando a franzir a fronte —. Por que não nos acompanha primeiro ao King's
Head enquanto Keighley vai perguntar no Ship?

— Não é necessário que envie Keighley — declinou Tom —. Irei eu ao Ship. Ocupe-se de Phoebe até que regresse, Salford.

Phoebe resistiu-se por deixá-lo partir sem ela, porque considerava injusto que lady Ingham descarregasse sua ira sobre ele; mas Tom limitou-se a rir, disse-lhe que
ele enfrentava muito melhor que ela as reprimendas e partiu.

O King's Head não era tão elegante como o Ship. Keighley achava que não se hospedava ali ninguém que pudesse reconhecer a sua excelência, para quem tinha reservado
um salão. Depois comunicou a Phoebe que tinha um bom dormitório livre, se o precisasse. Phoebe, que estava sentada ao lado de Edmund enquanto ceava, disse:

— Obrigado, mas... Acredita que vou precisar, senhor duque?

— Como posso saber? — retrucou Sylvester —. Faz mais de uma semana que partiu de Dover. Surpreender-me-ia que lady Ingham tivesse esperado tanto tempo aqui, mas
deve conhecê-la melhor que eu.

— Escrevi-lhe uma carta — balbuciou Phoebe —. Devia saber que regressaria. Ou que, se eu não pudesse regressar, ao menos Tom o faria.

— Nesse caso, com toda segurança a estará esperando — disse Sylvester com sua habitual indiferença. Phoebe não acrescentou mais nada, e quando Edmund terminou de
cear, o levou para deitar. Uma roliça camareira foi oferecer-lhe seus serviços e, como Edmund a achou simpática, Phoebe o deixou a seu cuidado. Deduziu que o menino
se entreteria um bom momento, distraindo-a com suas aventuras, porque quando fechou a porta ao sair, Phoebe ouviu-o dizer com um tom muito animado:

— Viajei muito, você sabe?

Ao regressar ao salão, Phoebe viu que Tom já tinha voltado de sua missão. Achava-se falando com Sylvester, e a jovem deu-se conta no mesmo instante de que seu amigo
estava preocupado. Parou na soleira e ficou olhando Tom com um gesto de ansiedade.

— Não a encontrei, Phoebe — disse-lhe sorrindo —. Pelo visto regressou a Londres.

Então Phoebe olhou a Sylvester, que disse:

— Entre e sente-se, senhorita Marlow. Já imagino que tê-la decepcionado não encontrar a lady Ingham, mas na realidade não há problema. Amanhã pela noite já terá
se reunido com ela.

— Voltou a Londres! Deve estar muito zangada comigo.

— Em absoluto! — contradisse-a Tom com convicção —. Lady Ingham não chegou a receber tua carta. Aqui está! O lógico teria sido que esses mequetrefes a tivessem enviado
a Londres, mas não o fizeram. Na verdade é que nunca me pareceu que o Ship estivesse à altura de sua reputação, sobretudo após encontrar a marca do polegar do limpador
de botas em minhas botas novas.

— Então não tem forma de saber aonde fui! Todos estes dias... Ai, Deus meu! Que estará pensando?

— Bom, sabe que eu ia contigo, de maneira que não pode ter pensado que caíste no mar. Só espero que não se lhe tenha ocorrido a ideia de que tivéssemos fugido.

Phoebe levou uma mão à cabeça e disse:

— Não, é demasiado esperta para pensar isso. Estava preocupada? Tentou averiguar aonde eu tinha ido, ou...— Que te disseram no Ship?

— Não muito — confessou Tom —. Já sabes como são. Há muito tumulto, porque continuamente estão a entrar e sair clientes. O que descobri é que a tua avó teve uma
síncope, ou algo parecido, e que voltou a Londres, muito alterada, um dia após o nosso desaparecimento. Visitou-a um médico, mas não podia estar muito má, porque
caso contrário não teria empreendido a viagem.

Mas Phoebe, muito consternada, tinha desmoronado numa cadeira tampando o rosto com ambas mãos.

— Meu querido Thomas — interveio Sylvester, divertido com a conversa —, as síncopes de lady Ingham são seu mais precioso bem. Começou a padecê-los faz anos e deve
considerá-los valiosíssimos, porque, ainda que nunca interferiam em seus prazeres, sempre conseguem livrá-la de qualquer compromisso que possa aborrecê-la. Phoebe,
certamente que sua avó regressou a Londres para contar suas penas a Halford.

— Isso também eu creio— concordou Tom —. Lembra do trabalho que me custou para tirá-la de Londres. O que passou é muito simples: quanto soltei as rédeas, saiu a
galope para a cocheira. Não tens por que te preocupar, Phoebe.

— Como queres que não me preocupe? Causei-lhe tantos problemas... — A jovem interrompeu-se e voltou a cabeça. Depois de uma breve pausa, acrescentou, mais serena
—: Não deixou nenhuma mensagem?

— Bom — retrucou Tom de má vontade —, só instruções a respeito de nossa bagagem. Muker deixou dito no Ship, por se alguém perguntasse por ele, que estava no escritório
de aluguel de carros.

— Uma decisão muito sensata — opinou Sylvester acercando-se do aparador —. É evidente que lady Ingham pensou que regressariam. Senhorita Marlow, conheço bastante
bem seus gostos e sei que não me permitirá lhe servir um copo de xerez, de maneira que servirei ratafía.

Phoebe aceitou o copo que lhe acercou o duque e permaneceu sentada com ele na mão.

— No escritório de carros de aluguel... para que nós a recolhesse! Isso significa que pensou... Para valer acreditou que eu fosse capaz de abandoná-la?

— Na verdade significa que se enfadou — disse Tom.

— Sim, é bem mais provável— concordou Sylvester —. Madeira ou xerez, Thomas? Até que possamos falar com lady Ingham, senhorita Marlow, tudo serão conjecturas, e
particularmente inúteis. Confie em mim: encarregar-me-ei de convencer a minha madrinha de que sem sua ajuda teria perdido a Edmund para sempre.

— Você mesmo disse, senhor duque, que eu não tive nada a ver com sua recuperação — replicou Phoebe esboçando um tímido sorriso —. E além disso, é verdadeiro.

— De acordo, mas isso eu não tenho por que explicar a sua avó — prometeu Sylvester.

— Mas eu sim!

— Graças a Deus que não levou nossa bagagem a Green Street — interveio Tom com certa precipitação —. Irei com Keighley recolhê-la amanhã a primeira hora da manhã.
Que alívio poder mudar de roupa!

— Tendo em conta que a camisa que leva é minha — disse-lhe Sylvester —, por não falar da gravata, e que ambas me fazem muita falta, esse comentário não me agrada
muito, Thomas.

Phoebe, compreendendo que as palavras do duque eram uma tentativa de alegrar um pouco seus pensamentos, riu obedientemente, e não voltou a mencionar a lady Ingham.

Então entrou um camareiro para preparar a mesa para o jantar. Phoebe soltou uma gargalhada espontânea quando Tom, tão logo serviram o primeiro prato, recomendou
a seu anfitrião que o devolvesse de imediato à cozinha.

— Devolvê-lo? — estranhou-se Sylvester, a quem Tom tinha pego desprevenido —. Por que deveria devolvê-lo?

— Para dar-se importância, é claro. Pergunte ao camareiro se sabe quem é você. E se tiver algum problema, ofereça-se para comprar o estabelecimento. Tenha em conta
que Phoebe e eu estamos acostumados a que nos atendam com indiferença.

Fascinado, Sylvester pediu-lhes que lhe relatassem com todo detalhe a viagem a Abbeville. Desfrutou tanto com a história que por sua vez contribuiu com uma perfeita
descrição das calorosas boas-vindas que lhe tinha dispensado sir Nugent Fotherby, que até esse momento não lhe tinha parecido nada graciosa. Não só tinham esquecido
as atribulações que ainda os acossavam, mas também as discussões do passado. Dava a impressão de que tinham recuperado o bom entendimento de que desfrutaram no Blue
Boar. Tom, ao ver a facilidade com que Phoebe e Sylvester trocavam opiniões sobre temas muito diversos, já se estava a felicitando pelo sucesso de sua tática quando
um comentário irrefletido destruiu a atmosfera de harmonia que tinha imperado durante a noite.

— É como o vilão de um melodrama! — disse Sylvester.

O sorriso malicioso desapareceu dos lábios de Phoebe, coloriram-se as faces e passou da mais alegre das companhias a uma figura rígida que fez pensar a Tom numa
efígie. Voltaram a pôr-se em tensão. Sylvester, depois de uma brevíssima pausa, seguiu falando como se não tivesse passado nada, mas sua voz já estava desprovida
de cordialidade; tinha-se refugiado na sua fachada de gelo e mostrava-se perfeitamente afável, mas inacessível.

Tom não tomou a iniciativa para remediar esse estado de coisas. Tinha uma ideia muito clara de qual era a situação, mas não parecia que pudesse fazer algo para promover
uma reconciliação duradoura entre Sylvester e Phoebe. Estava convencido de que Sylvester não pensava em Ugolino quando mencionou o vilão, mas era inútil tentar convencer
disso a Phoebe. Sua amiga estava tão susceptível com tudo o que se relacionasse com sua infeliz novela que bastava aludir-se a um livro qualquer para a pôr nervosa.
E ainda que Sylvester não estivesse a pensado no herdeiro perdido quando comparou a sir Nugent com um vilão, agora sim o recordava.

Phoebe não demorou a se levantar da mesa; alegou que estava muito cansada e que se ia deitar. Sylvester limitou-se a inclinar a cabeça. E quando a jovem saiu e fechou
a porta, o duque se voltou sorridente e disse:

— Bom, Thomas, o que lhe apetece jogar? Ao Piquet? Ou perguntamos se há por aqui um tabuleiro de xadrez?

Tom optou pelo xadrez, e pensou que o duque era um caso perdido.

À manhã seguinte, Tom lanchou depressa e foi com Keighley ao escritório de aluguel de carros. Quando regressou à pousada, encontrou a Sylvester de pé junto à janela,
lendo um jornal, e a Phoebe limpando os restos de ovo em Edmund e da sua boca.

— Tenho toda nossa bagagem, Phoebe. Keighley está esperando que lhe digas que malas queres que te suba ao quarto. E também encontrei isto. Toma!

Phoebe pegou rapidamente a carta e reconheceu a caligrafia de lady Ingham.

— A menor, por favor, Tom. Edmund! Aonde vais?

— Tenho que falar com Keighley! — disse Edmund dando-se importância, e se pôs a correr para a escada.

— Pobre Keighley! — comentou Sylvester sem afastar a vista do jornal.

Tom seguiu a Edmund, e Phoebe, com mãos ligeiramente trêmulas, rompeu o selo que fechava a carta e a despregou. Sylvester desceu um pouco o jornal e observou-a.
Phoebe leu a missiva de sua avó em silêncio; depois dobrou-a e ficou de pé com ela na mão e com um olhar perdido.

— E bem?

A jovem voltou-se para a janela, sobressaltada. Nunca tinha ouvido Sylvester falar com tanta aspereza, e se perguntou a se devia que empregasse esse tom.

— Será melhor que me conte. Por sua expressão já sei que não se trata de boas notícias.

— Não — admitiu Phoebe —. Quando escreveu isto, lady Ingham acreditava... que tinha convencido a Tom para que me levasse para casa. Suponho que foi Muker quem lhe
meteu essa ideia na cabeça, pensando que assim livrar-se-ia de mim. É muito zelosa. Inclusive é possível que a criada achasse que tinha fugido com Tom. E disso...
tenho eu a culpa.

— Não é necessário que me jure! Possui você um dom natural para atrair os problemas.

Phoebe olhou-o um momento, entre doída e assombrada; depois deu a volta e acercou-se da lareira. Parecia-lhe tão gratuito e cruel, e tão pouco próprio dele, que
a ridicularizava sabendo o quão preocupada estava que ficou imobilizada. Não havia dúvida de que a tinha ridicularizado, mas em seu tom não tinha um deixe zombador,
mas só raiva. Phoebe não entendia por que Sylvester estava zangado, nem que tinha feito ela para reavivar seu ressentimento.

— Temo-me que sim — conseguiu dizer, ainda que lhe fosse penoso falar —. Dá a impressão de que sempre me estou a meter em alguma confusão. Minha madrasta sempre
me chamava de inconsequente, e fez o possível por inculcar-me prudência e decoro. É uma lástima que não o conseguisse.

— Não é você a única que o lamenta! — disse ele cruelmente.

A dureza da voz do duque estava a exercer um efeito inevitável em Phoebe: começou a enjoar e a tremer, e não teve mais remédio que se sentar e apertar as mãos.

— No mesmo dia que a conheci se meteu numa confusão, como você a chama — continuou Sylvester —. Seria mais acertado dizer que se meteu de cabeça nela, como quando
subiu a bordo desse barco. Parece-me muito bem que se meta em confusões, mas isso não lhe basta, não tem escrúpulos em de enredar a outros em suas complicações.
Tom é uma de suas vítimas, eu outra e, agora, sua avó. Acha que lady Ingham deixou-a abandonada? Sente-se maltratada? A única responsável por seus problemas é você!

Phoebe escutou essa invectiva com absoluta perplexidade; não podia achar que fosse Sylvester, mas um desconhecido, que estivesse lançando tão duras acusações contra
ela. Passou-lhe fugazmente pela cabeça a possibilidade de que Sylvester estivesse alimentando deliberadamente sua própria ira, mas a raiva que ela sentia, surgida
de uma diminuta fagulha que cedo se converteu numa labareda, não lhe permitiu considerar.

— Não! Não! Não comecemos! Pardal! Pardal! — disse de repente o duque.

Mas Phoebe nem sequer ouviu-o.

— Só há outro responsável, é você, senhor duque! — disse-lhe com a voz enrouquecida pela raiva —. Foi sua arrogância que me inspirou para criar o personagem de minha
novela. Se não fosse por você, jamais teria fugido de minha casa. A não ser por você, ninguém teria sabido que tinha escrito esse livro. A não ser por você, nunca
teria subido a bordo desse navio. Você é a causa de todos os problemas que tive! Afirma que o tratei mal, mas agora me escute: se isso é verdade, você o merece,
porque me destroçou a vida.

Para surpresa e indignação de Phoebe, Sylvester soltou uma estranha risada.

Enquanto a jovem olhava-o com ódio, o duque disse num tom de voz que ela nunca lhe tinha ouvido empregar:

— Verdade? Bom, se é assim, você terá uma reparação. Conceder-me-ia a honra de casar-se comigo, senhorita Marlow?

Sylvester, um empedernido conquistador, estava a propor casamento pela primeira vez a uma mulher.

Phoebe não observou que Sylvester estava tremendo de nervosismo nem em que era mais tímido que um jovem inexperiente recém saído do colégio. Ainda menos lhe ocorreu
pensar que o riso e a exagerada formalidade de sua proposta eram provocados pela timidez. Sylvester era famoso por seus modos impecáveis; Phoebe jamais o tinha visto
perder o domínio de si mesmo. Achou que estava troçando dela, assim se levantou da cadeira e exclamou:

— Mas como se atreve?

— Rogo-lhe que me perdoe! — disse Sylvester, envergonhado e consciente de sua torpeza —. Equivoca-se você. Phoebe... disse-o sem pensar. Não era minha intenção lhe
pedir que se casasse comigo... — prosseguiu, o que piorou ainda mais a situação —. Estava decidido a não fazê-lo! Mas... — Interrompeu-se ao dar-se conta do atoleiro
em que tinha lhe metido as suas tentativas de se explicar.

— Agora sim eu acredito! — retrucou Phoebe, acalorada —. Teve você a delicadeza de expor o que pensa de mim, e isso também eu acredito. Você foi a Austerby para
me examinar, como se fosse uma égua, e decidiu que não lhe servia, não é verdadeiro?

— Que mais me dirá? — perguntou Sylvester sem poder controlar o riso.

— Não é verdade?

— Sim. Mas esqueceu como você se comportou? Que queria que eu pensasse, se só tentava me desagradar? Foi só mais tarde quando...

— Claro! — interrompeu-o a jovem em tom mordaz —. Mais tarde, quando o converti pela primeira vez numa vítima, envolvendo-o em minha indecorosa fuga de Austerby,
e quando feri seu orgulho como acredito que ninguém o tivesse ferido até então, começou a pensar que talvez pudesse ser a esposa ideal para você. A calorosa proposta
que teve a amabilidade de me fazer surge, naturalmente, da temeridade que me levou a imiscuir em seus assuntos privados e que o obrigou a realizar uma viagem em
condições tão pouco condizentes com a sua dignidade e que sem dúvida se sentiu degradado. Que estúpida sou! Como não me dei conta em seguida do que ia passar! Rogo-lhe
que me perdoe. Se tivesse imaginado que minha má conduta o faria se sentir atraído por mim, teria adotado as maneiras de um exemplar de virtudes sempre que nos tivéssemos
visto. Assim você ter-se-ia poupado da vergonha de ver recusada sua proposta, e eu ter-me-ia poupado de um intolerável insulto.

— Não era nenhum insulto — retrucou ele, muito pálido —. Se expressei-me... Se pareceu-lhe que pretendia insultá-la, está equivocada, me creia. O que lhe disse anteriormente
foi porque sua absurda conduta me convenceu de que não era a esposa ideal para mim. Após aquela festa em casa dos Castlereagh não tinha nenhum desejo de voltar a
vê-la. Melhor dito, isso eu acreditava, mas estava equivocado, porque quando voltamos a nos encontrar... tive uma grande alegria.

Não era um discurso digno de um homem galante, mas Sylvester não estava acostumado a se mostrar galante com uma dama que tremia de raiva e desprezo.

— É sério? — disse Phoebe —. Mas não demorou a se recuperar, não é verdade?

— Não, só o tentei — replicou Sylvester, aborrecido —. Deixe já de hostilizar-me, sua rebelde!

— Não queres mudar de roupa, Phoebe? — perguntou Tom, que entrou na sala nesse inoportuno momento —. Keighley subiu com tua mala... — Interrompeu-se, consternado,
e balbuciou—: Pe... perdão! Não sabia que... Já sairei!

— Sair? Por que? — disse Phoebe alegremente —. Sim, claro que quero mudar de roupa, e o vou fazer agora mesmo.

Tom sustentou a porta para que Phoebe passasse e pensou que se Sylvester, se como parecia tinha sido interrompido no meio de uma cena, baixasse a guarda e lhe deixasse
falar, ele poderia lhe explicar como tinha que tratar Phoebe. Fechou a porta e voltou-se.

— Pelo amor de Deus, Thomas! Que magnífico traje! Talvez pretenda que me ruborize? — disse Sylvester ironicamente.

Capítulo 27

Partiram de Dover pouco depois das onze, quando a senhorita Marlow já tinha brigado com seus dois acompanhantes. Ao sair de seu dormitório com aspecto de altiva
e elegante jovem encontrou a Tom, e o primeiro que fez foi lhe perguntar se tinha recuperado já o dinheiro que tinha deixado em seu baú de viagem. Tom respondeu-lhe
que sim, e então ela lhe perguntou se podia lhe alugar um carro para voltar a Londres.

— Não — respondeu Tom, que não tinha papas na língua —. Ocorrem-me coisas melhores em que gastar meu dinheiro.

— Prometo devolver-te!

— Sério? Quando? — perguntou-lhe Tom com maldade.

— Minha avó...

— Pouca garantia! Não, obrigado!

— Se ela não mo der, venderei minhas pérolas — declarou a jovem —. Com elas conseguirei uma boa soma, não te parece? Compreende, Tom! Não quero viajar a expensas
de Salford.

— Isso tem fácil solução — lhe espicaçou Tom —. Vende as pérolas e paga-lhe.

— Se não estás disposto a fazer o que te peço — replicou ela com frieza —, ao menos poderias pedir ao duque que te diga quanto dinheiro gastou comigo desde que saímos
de Abbeville.

— Quando me pôr em ridículo será por minha própria decisão, e não para te tirar de um aperto.

Dispunham de dois veículos para fazer a viagem: um cupé de aluguel e o cabriolé de Sylvester; ambos os carros eram puxados por quatro cavalos. Eram animais de tiro,
mas Keighley tinha-os escolhido, e portanto, como assinalou Edmund a seu tio, eram um ganho de primeira. Quando Tom saiu da pousada com sua altaneira amiga, viu
Edmund sentado no cabriolé e Sylvester de pé junto a ele, pondo as luvas.

— Pensa guiar até Londres, Salford? — perguntou Tom acercando-se ao duque.

— Sim — afirmou Sylvester —. Pedir-lhe-ia que viesse comigo, mas temo que Keighley deva ocupar esse assento.

— Sim, claro, mas não pensará levar também a Edmund, não é verdade? Suponho que preferirá que venha conosco no cupé, não?

— Meu querido Thomas, a única razão pela qual pedi a Keighley que trouxesse meu cabriolé a Dover foi para evitar, na medida do possível, que o menino se enjoasse.
Ocorre-lhe nos carros fechados, mas nunca nos descobertos. Importa-lhe acompanhar à senhorita Marlow? Espero que a ela não seja muito cansativa a viagem; saímos
um pouco tarde, mas se não surgirem imprevistos, chegaremos à cidade à hora do jantar.

Tom, convencido de que Sylvester, em seu estado de ânimo, alegrar-se-ia de se separar de seu sobrinho ao final da primeira etapa, não pôs mais objeções e foi ajudar
a Phoebe a subir ao cupé.

Durante os primeiros oito quilômetros, Tom e Phoebe não trocaram nem uma única palavra, mas ao chegar a Lydden, Phoebe (cujo humor, na opinião de seu amigo, tinha
melhorado um pouco) perguntou a Tom onde pensava em se hospedar em Londres.

— Em casa de Salford. Convidou-me a passar nuns dias com ele. De fato, propôs-me que fique ali o tempo todo que deseje.

— Santo Deus! Que grande honra para ti! Não me estranha que não quisesses obedecer minhas instruções. Deves de sentir-se bem longe de meu alcance!

— Se não vais com cuidado, cedo lamentarás para valer que não esteja longe de teu alcance, minha amiga. Se tiveres algum outro comentário deste tipo guardado sob
a língua, reserva-o para Salford. Ele é demasiado educado para te dar o que mereces, mas eu não.

Durante o quilômetro seguinte permaneceram calados.

— Tom — disse de repente Phoebe com um fio de voz.

— Diga.

— Não devia dizer isso. Tem estado muito mal. Perdoa-me, por favor.

Tom pegou-lhe uma mão e apertou-a.

— Que tontas és! Que aconteceu? — Esperou um momento e acrescentou —: Já sei que interrompi uma discussão entre Salford e tu. Que te propôs? Cavar tua própria tumba?

— Rogo-lhe que me desculpe, Tom — disse a jovem retirando a mão —. Não estaria bem que repetisse o que dissemos. Não insistas, por favor!

— De acordo — concedeu Tom —. Mas não seja tão orgulhosa, Phoebe.

Tiveram que parar em Sittingbourne, e os viajantes tomaram um refresco no Rose. Quando saíram da pousada e Tom se dispunha a ajudar Phoebe a subir ao cupé, Sylvester
perguntou:

— Se importaria de guiar o cabriolé um par de etapas, Thomas?

— É claro que não! Se confia em que não o vá fazer virar — replicou Tom com um sorriso. —. E se... — vacilou, olhando de soslaio a Phoebe.

— Faz o que quiser — disse Phoebe muito tranquila —. Não tenho nenhum inconveniente em completar a viagem na diligência.

Sylvester deu a volta e encaminhou-se com grandes passadas para o cabriolé.

— Sobe! — disse Tom com irritação. E sentando-se no assento ao lado de Phoebe, acrescentou —: É a primeira vez que me alegro de que não seja minha irmã!

A jovem não contestou. Durante o resto do trajeto mal trocaram uma dúzia de frases; mas ainda que Phoebe fingisse dormir a maior parte do tempo, estava bem longe
de poder conciliar o sonho, pois debatia-se entre emoções contraditórias. Tom ia sentado ao seu lado, olhando pela janela e perguntando-se que teria dito Sylvester
a Phoebe para que se enfadasse tanto, e desejando intervir de algum modo para ajudar Sylvester, ainda que só fosse o livrando da companhia de Edmund.

Mas Keighley encarregava-se de proteger Sylvester de seu sobrinho.

— Deixe de molestar a sua senhoria, senhor Edmund — disse-lhe o cocheiro —. Basta, senhor Edmund! Não lhe convém ficar sem alento num de seus ataques de raiva! —
acrescentou, pensando que era uma lástima que não pudesse dizer o mesmo a seu amo.

Eram mais das seis horas quando ambos os carros se detiveram em Berkeley Square, diante de Salford House.

— Por que paramos aqui? — perguntou Phoebe.

— Para baixar meu baú, é claro — respondeu Tom ao mesmo tempo em que abria a porta do cupé —. E também para que Salford se despeça de ti. Tenta ser um pouco educada!

Tom desceu do carro. As portas da mansão já estavam abertas, e por ela saíram vários empregados.

— Reeth, Reeth! Estive na França! — gritou Edmund subindo os degraus a correr —. Onde está a senhorita Button? Não me acreditará quando lhe contar as coisas que
fiz! Oh, Botão, quanta saudades tive! E tu, Botão? Sentiste minha falta? Phoebe não sabe fazer nada. Tinha que lhe explicar como se fazia tudo!

— Moleque repelente! — disse Sylvester —. Reeth, o senhor Orde ficará uns dias comigo: ocupe-se dele. Quer entrar com Reeth, Thomas? Eu acompanharei a senhorita
Marlow a Green Street.

Esse plano parecia tão condenado ao desastre que Tom não pôde evitar dizer em tom agoniado:

— Eu não o faria Salford! Espere que Phoebe se tenha acalmado um pouco.

— Vá com Reeth, Thomas. Não demorarei em vir — replicou Sylvester, como se não tivesse ouvido seu conselho.

Sylvester subiu ao cupé e quase antes que tivesse fechado a porta, sujeitou as mãos a Phoebe e disse:

— Phoebe, tem que me escutar. Já sei que o fiz muito mal; agora sou incapaz de lhe o explicar, porque não temos tempo, mas não vou permitir que parta assim. Não
pode achar que seja capaz de lhe propor casamento por brincadeira, nem com o desejo de a insultar.

— Você mesmo me disse que não pensava me propor casamento — replicou ela ao mesmo tempo em que tentava retirar as mãos —. Certamente que ficará sinceramente agradecido,
quando se recupere da vergonha de ter sido recusado, de que eu não tenha sucumbido ante uma proposta tão deslumbrante. Quer fazer o favor de soltar-me, senhor duque?

— É que a amo! — declarou Sylvester, apertando-lhe ainda mais as mãos.

— É você muito amável, mas não posso corresponder a seus sentimentos, cavalheiro.

— Conseguirei que os corresponda! — prometeu ele.

— Mas pode-se acreditar? — retrucou Phoebe, muito trastornada —. Quer fazer o favor de soltar-me? Se seus modos são tão inacreditáveis para se comportar assim no
meio da rua, os meus não! Que conseguirá que o ame? Bah! Se não estivesse tão furiosa, deleitar-me-ia pensando com que exatidão o retratei em Ugolino, que, por mais
que tentasse parecer conciliador, era incapaz de abrir a boca sem delatar sua arrogância.

— Chama-me de arrogante quando lhe digo que a amo e que quero que seja minha esposa? — perguntou ele.

— Sim, e também louco! A você nunca o tinham recusado, não é verdade, senhor duque? Quando uma mulher mostrou desinteresse por você, se propôs a conquistá-la, custasse
o que custasse. Até apostou que onde outros tinham fracassado você teria sucesso.

— Que tolices diz? — exclamou Sylvester —. Eu?

— Sim, você! Talvez se lembre de uma herdeira a que chamavam a Cidadela? Ou são suas conquistas tão numerosas que já nem sequer as recorda?

— Recordo-o — disse ele com gesto seco —. Isso quem lhe contou foi Lianthe, não é verdade? Também lhe contou que só era uma brincadeira entre meu irmão e eu, uma
brincadeira desonrosa, de acordo, mas que sempre ficou entre nós dois?

— Está a dizer-me que não tomou de assalto a Cidadela, senhor duque?

— Pelo amor de Deus, Phoebe, vai jogar-me na cara as loucuras que cometi quando só era um rapaz?

— Não o faria se você tivesse abandonado esse convencimento! Mas persiste nele! Por que se mostrou tão agradável comigo? Deve ter muita prática, porque o fez muito
bem. Se eu não tivesse conhecido suas intenções, estou segura de que teria conseguido seu propósito. Mas sim as conhecia! Tom lhe revelou que eu tinha fugido de
Austerby porque a perspectiva de me converter em tua esposa me repugnava, e se sentiu tão ferido em seu orgulho que decidiu que devia me apaixonar por você, para
depois lamentar por não querer nada contigo.

Sylvester tinha esquecido por completo essa mesquinha resolução. Tanto é assim que as palavras de Phoebe o deixaram boquiaberto.

— E bem? — disse Phoebe olhando-o aos olhos —. Vai negá-lo, senhor duque?

Sylvester soltou-lhe por fim as mãos e cometeu um erro monumental ao admitir:

— Não. Senti-me ferido em meu orgulho, efetivamente, num arrebatamento de... vaidade, arrogância ou como goste de chamar; e é verdadeiro que criei esse ignominioso
plano. Mas rogo-lhe que me acredite quando lhe digo que isso não durou muito.

— Não, claro que não acredito! — declarou Phoebe.

O cupé dobrou uma esquina e entrou em Green Street. A senhorita Marlow, que já tinha descarregado grande parte da ira que se tinha visto obrigada a conter durante
tantas e tão dolorosas horas, tinha começado a deprimir-se. Aquele monstro que estava sentado a seu lado, não satisfeito em humilhá-la em público nem lhe pedisse
desculpas por ter tido que suportar numerosas experiências desagradáveis por sua culpa, tinha gritado com ela, a tinha insultado e agora, sem se importar que Phoebe
estivesse triste e cansada, e que precisasse de palavras tranquilizadoras, guardava silêncio e demonstrava, uma vez mais, ser uma pessoa sumamente convencida e egocêntrica.
Seria que precisava que o provocassem? Phoebe decidiu provar.

— Após ter conhecido a suas outras apaixonadas, senhor duque, todas elas diamantes de excelente qualidade, teria que ser muito ingênua para achar que preferia a
mim. Pediu-me que me case com você porque está tão decidido a não admitir uma derrota que faria qualquer coisa para conseguir seu propósito.

Aquela era a última oportunidade de Sylvester para salvar sua honra.

— Não diga nada mais, senhorita Marlow — disse Sylvester muito sereno —. Dou-me conta de que de nada serviria que tentasse discutir com você.

— Quer saber o que penso de você? — replicou Phoebe com voz trêmula —. Pois que é muito pior que o conde Ugolino.

Sylvester guardou silêncio, e isso demonstrou a Phoebe que tinha razão. Sylvester não estava nem um pouco apaixonado por ela, e a jovem se alegrava em constatá-lo.
A única coisa que queria era um lugar em que se esconder, como um depósito de lenha ou um refúgio, onde pudesse desfrutar largamente de sua infelicidade.

O carro deteve-se; Sylvester desceu e subiu o estribo com suas próprias mãos. Que detalhe! Phoebe se recompôs, desceu do carro e, com muita dignidade, disse:

— Agradeço-lhe, senhor duque, que tenha tido a amabilidade de me acompanhar até Inglaterra. Se não voltarmos a nos ver, gostaria de assegurar-lhe, antes de nos despedirmos,
que sou consciente de tudo o que lhe devo e que lhe desejo a maior das felicidades.

Phoebe teria podido poupar-se dessas bonitas palavras, porque Sylvester não lhes fez nenhum caso.

— Vou entrar com você — disse, e golpeou a porta com a aldrava.

— Rogo-lhe encarecidamente que não o faça — suplicou ela com apaixonada sinceridade.

Mas Sylvester pegou-lhe uma mão e disse:

— Senhorita Marlow, deixe-me fazer ainda que só faço isto por você. Conheço bem lady Ingham e seu temperamento. Estou seguro de que se falar primeiro com ela, sua
avó não se zangará com você.

— É você muito amável, senhor duque, mas lhe asseguro que não preciso que intervenha — retrucou ela com orgulho.

Abriu-se a porta e Horwich exclamou:

— Senhorita Phoebe! — A seguir consertou na desconcertante mirada de Sylvester, inclinou a cabeça e balbuciou —: Ex... excelência.

— Ocupe-se de que entrem com a bagagem da senhorita Marlow! — ordenou-lhe Sylvester com frieza, e voltou-se de novo para Phoebe. Era evidente que de nada ia servir
seguir discutindo, assim que, consciente de que Horwich podia ouvir a cada uma de suas palavras, estendeu uma mão a Phoebe e disse —: Despeço-me de você, senhorita
Marlow. Nunca poderei lhe estar o bastante agradecido pelo que fez. Por favor, apresente meus respeitos a lady Ingham e comunique-lhe que passarei para visitá-la
em breve; então explicar-lhe-ei, porque sei muito bem que você não o fará, a profundidade da dívida que me acho com você. Adeus! Que Deus a abençoe! — Inclinou-se
e lhe beijou a mão, enquanto Horwich, consumido pela curiosidade, olhava-o com os olhos arregalados.

Para Phoebe, que já não sabia como interpretar a atitude do duque, esse discurso foi o cúmulo.

— É claro! Isto é... Exagera você, senhor duque. Adeus! — conseguiu balbuciar, e entrou na casa a toda pressa.

— Quando tiver descarregado toda a bagagem, voltem a Salford House — ordenou-lhe Sylvester ao primeiro postilhão —. Então os pagarei. Eu irei andando.

Quando Reeth abriu a porta a seu amo, levou uma surpresa. Tinha suspeitado que algo tinha acontecido, e então comprovou que não se tinha equivocado. Só tinha visto
aquela expressão no rosto de seu excelência numa ocasião anterior. De nada teria servido fazer algum comentário ao respeito, mas ao menos podia lhe dar uma notícia
que reconfortá-lo-ia. Enquanto ajudava a Sylvester a tirar a capa de viagem, disse:

— Excelência, não tive ocasião de lhe o dizer antes, mas...

— Que fazes aqui, Reeth? — interrompeu-o Sylvester, como se acabasse de perceber na sua presença —. Deus meu, não me digas que minha mãe veio a Londres.

— Assim é, excelência. Está em seu salão, esperando-o — confirmou Reeth, radiante —. E fico feliz em poder assegurar-lhe que suportou muito bem a viagem, excelência.

— Vou vê-la em seguida — disse Sylvester dirigindo-se para a grande escada.

A duquesa achava-se sozinha, sentada junto à lareira. Quando Sylvester entrou no salão, levantou a cabeça e sorriu com ironia.

— Mãe!

— Sylvester! Olha, não vou permitir que me reprove. Por favor de diga-me que te alegras muitíssimo de me encontrar aqui.

— Não preciso que te diga — replicou ele se inclinando para beijá-la —. Mas partir de Chance sem mim... Não devia ter te escrito para explicar o que tinha ocorrido.
Se o fiz foi só porque temi que pudesses te inteirar por outras pessoas. Tens estado muito agoniada, mãe?

— Que tolice! Sabia que recuperarias ao menino são e salvo. Mas não podia ficar em Chance quando em Londres estavam acontecendo coisas tão inquietantes. Senta e
conta-me tudo. As confidencias de Edmund deram pé a todo tipo de extravagantes conjecturas em minha mente, e esse encantador rapaz que trouxeste a tua casa afirmou
que seria melhor que tu me contasses. Quem é, meu filho?

Sylvester tinha dado a volta para acercar uma cadeira, e quando se sentou, a duquesa teve ocasião de vê-lo pela primeira vez à luz das velas. Ficou preocupada; da
mesma forma que Reeth, reconheceu a expressão do rosto de Sylvester. Era a mesma que Sylvester teve durante meses depois da morte de Harry e que sua mãe tinha rezado
para não voltar a ver nunca mais. Entrelaçou as mãos sobre o regaço, pois sentia um poderoso impulso de estendê-las a Sylvester.

— Chama-se Thomas Orde — explicou seu filho esboçando um sorriso que à duquesa pareceu um pouco forçado —. Verdade que é encantador— Convidei-o para ficar aqui todo
o tempo que deseje; seu pai acha que já era hora de que se acostume um pouco à vida da cidade. — Titubeou um momento, e depois acrescentou—: Suponho que terá contado
(e se não, Edmund já terá feito) que é amigo da senhorita Marlow. Pode-se dizer que são como irmãos.

— Ah, sim! Edmund não para de falar de Tom e Phoebe. O que não entendo é como se viram envolvidos nesta confusão. Pelo visto, Phoebe foi muito boa com Edmund.

— Sim, boníssima. É uma longa história, mãe.

— E deves estar cansado e suponho que preferirás ma contar mais tarde. Mas fala-me de Phoebe! Já sabes que essa jovem me interessa especialmente. A verdade é que
se vim a Londres foi para vê-la.

Sylvester levantou bruscamente a cabeça.

— Para ver a Phoebe? Não o entendo, mãe. Por que querias...—

— Veja, Louise escreveu-me para explicar-me que todo mundo achava que era a autora dessa absurda novela, e que a pobre rapariga estava passando muito mal. Achei
que eu poderia a ajudar a superar o mau momento, mas quando cheguei a Londres me inteirei de que lady Ingham a tinha levado a Paris. Não sei por que não me escreveu,
porque devia saber que ajudaria de bom grado à filha de Verena.

— É demasiado tarde — lamentou-se Sylvester —. Eu teria podido pôr fim ao escândalo. Mas o que fiz... — Interrompeu-se e olhou a sua mãe —. Estava a minha intrometida
tia Louise no baile dos Castlereagh? Não o recordo.

— Sim, querido.

— Entendo. — Levantou-se de um pulo e foi até a lareira; ficou ali de pé, evitando olhar à duquesa —. Suponho que minha tia te contou o que passou nesse dia no baile.

— Um lance muito desafortunado — confirmou a duquesa com serenidade —. É lógico que estivesses zangado.

— Não tenho desculpa para meu comportamento. Sabia muito bem que a ela aterrorizam os... Ainda vejo sua expressão!

— Como é, Sylvester? — A duquesa esperou um momento, e depois disse —: É bonita?

Sylvester negou com a cabeça.

— Não, mãe, não é nenhuma beldade. Mas quando está contente acho que poderia se considerar atraente.

— Pelo que ouvi até agora, deduzo que é uma jovem um pouco especial.

— Já o creio! Muito especial! — confirmou ele com amargura —. Diz a primeiro que lhe ocorre; sai de uma aventura para meter-se em outra; é mais feliz escovando cavalos
e conversando com os garotos do estábulo que assistindo a festas; é impertinente; não te atreves a olhá-la por medo a que se ponha a rir; não tem nenhuma habilidade
especial; não conheço a nenhuma mulher menos recatada; é abominável, e condenadamente indomável, sincera até limites inimagináveis, e... em fim, um encanto!

— Achas que gostarei dela, Sylvester? — perguntou a duquesa contemplando o perfil de seu filho.

— Não o sei — respondeu ele com certa impaciência —. Suponho que sim... Confio em que sim... Mas talvez não. Como o vou saber? Ademais, isso não importa, porque
me recusou. — Fez uma pausa e então, como se lhe estivessem arrancando as palavras, exclamou —: Deus meu, mãe! Que torpe fui! Que posso fazer?

Capítulo 28

Phoebe dormiu mal essa noite, acossada pelos penosos incidentes do dia anterior, que tinham culminado com uma cansativa conversa com lady Ingham. Ao acordar viu
a segunda criada de sua avó abrindo as cortinas; a rapariga informou-lhe que em sua bandeja do café da manhã encontraria uma carta que um lacaio de Salford House
tinha entregue em mãos fazia dez minutos. Como é natural, a criada estava morta de curiosidade, mas se abrigava esperanças de se converter em receptora de alguma
interessante confidencia, estas se desvaneceram ante a aparente indiferença da senhorita Phoebe. O única coisa que queria a senhorita Phoebe era uma xícara de chá;
e a criada, depois de alongar uns minutos sua partida, deixou-a sentada na cama bebendo seu reconstituinte.

Uma vez sozinha, Phoebe pegou a carta, abriu-a e olhou quem a assinava. “Elizabeth Salford”, leu, e escapou-lhe um grito afogado.

Na realidade, na carta não se dizia nada que pudesse lhe causar desassossego. Era muito breve e não estava escrita em tom ameaçador. A duquesa expressava seu desejo
de conhecer a filha de sua querida e defunta amiga, mas também desejava lhe dar os agradecimentos por se ter ocupado de seu neto. Confiava que Phoebe pudesse visitá-la
nesse mesmo dia, ao meio dia, aproveitando que ela encontrar-se-ia sozinha na casa, o que lhes permitiria falar sem temor que as interrompessem.

Aquela carta teria comprazido a qualquer modesta jovem, mas pela expressão do rosto de Phoebe dir-se-ia que estava lendo uma história de terror. Depois de relê-la
três vezes minuciosamente e não detectar nela nenhuma ameaça encoberta, Phoebe fixou toda sua atenção nas palavras “Encontrar-me-ei sozinha” e refletiu sobre elas.
Se a duquesa tinha-as escrito com o fim de transmitir-lhe uma mensagem, era evidente que tinha que ser tranquilizador; mas isso significaria que Sylvester tinha
contado a sua mãe... Que lhe tinha contado?

Phoebe retirou os lençóis e saiu da cama. Pôs-se uma bata e desceu a escada até ao quarto de sua avó. Encontrou a afligida viúva sozinha, e mostrou-lhe a carta,
pedindo-lhe com voz tensa que a lesse.

À viúva tinha-se contrariado com a pouca cerimoniosa entrada de Phoebe em seu dormitório, e assim tinha reagido em seguida dizendo com voz débil: “Céus! Que passa
agora?” Mas essa exclamação não estava do todo desprovida de esperança, porque ela também sabia de onde procedia a carta para a senhorita Phoebe. A pobre lady Ingham
tinha passado quase tão má noite como sua neta, porque muitos assuntos a preocupavam. No princípio estava decidida a enviar a Phoebe a Somerset de imediato, mas
a interessante informação que lhe revelou Horwich a aplacou bastante (segundo Sylvester tinha vaticinado que aconteceria). Ela considerou-a promissora, mas seguiu
refletindo e seu moral voltou a se anuviar: fossem quais fossem os sentimentos de Sylvester, Phoebe não parecia uma jovem que tivesse recebido ou esperasse receber
uma agradável proposição de casamento. Suas esperanças viram-se de novo frustradas quando sua neta lhe mostrou a carta que acabava de chegar de Salford House; como
tinha feito Phoebe, o primeiro que leu foi a assinatura.

— Elizabeth! — exclamou, muito surpreendida —. Que estranho! Deve ter vindo a Londres para receber a seu neto. Espero que a viagem não tenha prejudicado sua delicada
saúde.

Phoebe ficou olhando-a com ansiedade enquanto a viúva lia a carta, e quando a devolveu, implorou:

— Que devo fazer, avó?

A viúva não respondeu em seguida. A carta da duquesa dava muito o que pensar. Permaneceu olhando à frente, e Phoebe teve que repetir a pergunta antes de que sua
avó respondesse, com um ligeiro suspiro:

— O que deves fazer? Pois o que te pedem, é claro! A duquesa escreveu-lhe uma carta muito bonita, e não entendo por que... Suponho que não terá lido esse horrível
livro!

— Sim leu-o, avó. Foi ela quem o deu a Salford. Disse-me ele mesmo.

— Então o duque não deve lhe ter revelado quem o escreveu — continuou a viúva —. Disso podes estar segura, porque a duquesa adora Sylvester. Se encontrássemos a
forma de convencê-la de que... Mas certamente alguém lhe contará.

— Devo dizer-lhe eu mesma, avó! — disse Phoebe.

A viúva inclinava-se a concordar com Phoebe, mas ainda resistia a deixar que se evaporasse a possibilidade de um futuro bem mais agradável.

— Faz o que te agrade! Não posso te aconselhar! Mas rogo-lhe que não me peças que te acompanhe a Salford House, porque não me convém fazer esforços. Podes levar
o landau pequeno, e pelo amor de Deus, Phoebe, ao menos tenta comportar-se. Põem o vestido de seda de cor bege, e o chapéu rosa... Não, esse não te favorece. Terás
que pôr o de palha com as fitas marrons.

Pouco antes de meio dia, a senhorita Marlow subiu ataviada com esse traje ao landau, mais pálida que se fosse uma carreta e seu destino fosse a forca.

Phoebe estava tão confusa que não ter-lhe-ia surpreendido que, ao chegar a Salford House, a tivessem recebido todos os membros da família Rayne e que a tivessem
apontado com o dedo, a condenando. Mas as únicas pessoas que viu ao chegar eram criados, e ao que parecia — com a exceção do mordomo, de aspecto afável —, não estavam
nada interessados nela. Por sorte para seu estado de ânimo, não suspeitava de que todos os empregados da casa que tinham acesso à sala de visitas estariam por ali
e para ter uma vista dela. Semelhante exibição de lacaios pareceu-lhe exagerado, por não dizer ostentoso, mas não era ninguém para se meter em como Sylvester governava
sua casa.

O mordomo de aspecto afável guiou-a por uma escada. A Phoebe batia-lhe com força o coração e notava que lhe faltava o alento; esses dois desagradáveis sintomas ter-se-iam
agravado se tivesse sabido quantos curiosos a estavam observando as escondidas. Ninguém teria podido dizer de onde tinha surgido a notícia de que sua excelência
tinha decidido por fim a sua metade da laranja, e que estava encontrando numerosas dificuldades no caminho; mas todo mundo o sabia, desde o administrador até o mais
humilde ajudante de cozinha, e um surpreendente número de empregados tinha conseguido presenciar a chegada da senhorita Marlow. A maioria ficou decepcionada; entretanto,
a senhorita Penistone e a senhorita Button não encontraram nenhum defeito em Phoebe: a primeira porque estava sentimentalmente predisposta a achar que qualquer jovem
pela qual Sylvester sentisse afeto tinha que ser um exemplo de virtudes, e a outra porque a considerava uma criatura celestial enviada para impedir que seu querido
Edmund morresse num naufrágio, de indigestão, de abandono e de um sem fim de perigos aos quais, na ausência de sua babá, se tinha exposto o pequeno em sua viagem
ao estrangeiro.

Phoebe ouviu como anunciavam sua chegada e franqueou a soleira do salão da duquesa. A porta fechou-se depois dela, mas em lugar de seguir andando, Phoebe permaneceu
de pé, como se tivesse fincado raízes no solo, olhando com firmeza a sua anfitriã. A jovem compôs uma expressão de surpresa; estava tão perplexa que até emitiu um
involuntário “Oh!”.

Ninguém lhe tinha mencionado a marcada semelhança entre Sylvester e sua mãe. A primeira vista resultava assombrosa. Depois, se percebia que a expressão dos olhos
da duquesa era mais terna que a dos de Sylvester, e que a curva que desenhava seus lábios também era mais suave.

Antes de que Phoebe tivesse podido assimilar essas sutis diferenças, a duquesa soltou uma risada e disse:

— Sim, Sylvester herdou minhas sobrancelhas. Pobrezinho!

— Rogo-lhe que me perdoe senhora! — balbuciou Phoebe, muito aturdida.

— Entre e deixe que te veja bem — disse a duquesa —. Suponho que tua avó já terá advertido que sofro uma absurda doença que me impede levantar do assento.

Phoebe ficou onde estava, aferrada com ambas mãos a sua bolsa.

— Senhora, estou muito agradecida por ter-me... honrado com este convite, mas não posso aceitar sua hospitalidade sem antes lhe confessar... que sou a autora desse
horrível livro!

— Oh, é verdade que te pareces com tua mãe! — exclamou a duquesa —. Sim, já sei que tu o escreveste, e por isso tinha tantos desejos de te conhecer. Mas venha e
dá-me um beijo! Te beijei muitas vezes quando estavas no berço, mas não podes te lembrar disso, claro.

Phoebe obedeceu: acercou-se da cadeira da duquesa e inclinou-se para beijá-la na face. A duquesa não só lhe devolveu essa casta saudação com ternura, mas disse:

— Pobrezinha! Conta-me tudo!

Para Phoebe era uma experiência muito inovadora que alguém se dirigisse a ela com tanto carinho. A senhorita Battery era bem mais brusca; a senhora Orde, muito franca,
e lady Ingham, mordaz, e essas eram as três mulheres que mais se tinham preocupado com Phoebe. A jovem, que nunca tinha recebido tanto afeto, se ajoelhou junto a
cadeira da duquesa e rompeu a chorar. Essa conduta ter-lhe-ia valido uma brusca reprimenda por parte de lady Ingham, mas a duquesa não deve tê-la considerado inapropriada,
já que recomendou a sua pouco convencional convidada que chorasse a gosto e tirasse o chapéu, enquanto lhe dava umas tranquilizadoras palmadinhas.

Desde que soube que Sylvester se tinha apaixonado por Phoebe, a duquesa decidiu não ter preconceitos com respeito à jovem e afastar de sua mente todo pensamento
relacionado com o livro que tinha escrito; mas imaginou que, por mais firme que fosse sua resolução, lhe seria difícil mantê-la. Uma coisa era albergar dúvidas,
em particular, a respeito de seu filho, e outra muito diferente, o ver descrito como a personagem malvada de uma novela que tinha escandalizado à boa sociedade em
seu conjunto. Não obstante, bastou um olhar à Phoebe, em cujo rosto se refletia um sincero arrependimento, para lhe abrandar o coração. E também se alegrou, porque
ainda que Sylvester já lhe tivesse advertido que Phoebe não era formosa, a duquesa não tinha previsto que Phoebe fosse uma rapariga magra, com a cútis morena e sem
nenhum traço mais destacado que uns expressivos olhos cinzas. Que Sylvester, que conhecia muito bem, e que tinha enumerado com assombrosa frieza todas as qualidades
que considerava indispensáveis em sua futura esposa, tivesse decidido que só aquela jovem podia satisfazê-lo, significava que estava bem mais apaixonado do que sua
mãe tinha suspeitado. Esteve a ponto de jogar-se a rir ao recordar o que seu filho lhe tinha dito naquele dia, porque não lhe parecia que tivesse qualquer coisa
em comum entre Phoebe e essa esposa imaginária que Sylvester tinha descrito. Supunha que se seu filho chegasse a se casar com Phoebe, os esposos manteriam mais de
uma acalorada discussão; é claro, sua relação não ia estar marcada por esse sereno e insulso decoro que ele considerava a base de um casamento feliz.

O casamento podia fracassar, é claro, mas a duquesa, que, pese não as conhecer pessoalmente, professava uma profunda antipatia às outras cinco jovens candidatas
a se casar com seu filho, e se inclinava a pensar que esse fracasso não seria provocado só por uma das partes; e quando Phoebe lhe contou entre soluços toda a história
do herdeiro perdido e lhe pediu perdão apaixonadamente, se sentiu em condições de assegurar à arrependida autora, com absoluta sinceridade, que se alegrava de que
o livro tivesse sido publicado, porque achava que tinha beneficiado muito a Sylvester.

— E em quanto à vergonhosa conduta do conde Ugolino com seu sobrinho, essa, querida minha, é a parte menos censurável. Porque uma vez descritas suas perversas ideias,
desaparece toda a semelhança entre ele e Sylvester. E temo que Maximilian também não se parece muito a meu travesso neto. Por tudo o que me contou o senhor Orde,
tenho a impressão de que Edmund teria posto Ugolino rapidamente em seu lugar.

— Garanto-lhe que tudo foi pura coincidência, senhora, mas ele... — disse Phoebe soltando um risada —. O duque não me acredita.

— Não tenhas muito presente o que te dissesse Sylvester; ele sabia que era uma coincidência. E além disso, já estava acostumado. Lianthe levou anos divulgando histórias
muito piores a respeito dele, e bem mais críveis, e sempre reagiu com absoluta indiferença. O que lhe molestou é a descrição que fizestes de Ugolino quando aparece
pela primeira vez no livro. Acho que não exagero se afirmar que o deixou incomodado. Mas não te preocupes! Parece-me que foi uma saudável lição para ele. Veja, querida,
ultimamente estava um pouco preocupada por Sylvester; suspeitava que se tinha tornado... arrogante, para empregar a mesma palavra que tu. Talvez penses que devia
me dar conta faz tempo, mas é que ele nunca se mostra assim comigo, e como já não saio muito, não tive ocasião de ver como se comporta em público. Estou-lhe muito
agradecida por fazer-me ver o que ninguém mais se atreveu a mencionar.

— Oh! Não, não! — apressou-se a dizer Phoebe —. Só era uma caricatura, senhora! O duque tem maneiras impecáveis, e não parece em absoluto convencido. Equivoquei-me
ao descrevê-lo assim, porque ele não me tinha dado motivos. Foi só que...

— Adiante! — animou-a a duquesa —. Não temas me dizer. Se não és sincera comigo, talvez imagine coisas piores que a realidade.

— Dava-me a impressão... de que Sylvester não era cortês por respeito aos demais, mas por respeito a si mesmo, senhora. E que as adulações que recebe... nem sequer
valoriza-as, porque considera que as merece de sobra. Ignoro por que me indignou tanto. Se Sylvester desprezasse as pessoas que o rodeiam (e esse seria um defeito
bem mais patente), não ter-me-ia chamado tanto a atenção. Acho que... é sua indiferença o que me exaspera.

A duquesa riu.

— Sim, já te entendo. E diga-me, não é demasiado exigente?

— Não, senhora, em absoluto! — assegurou-lhe Phoebe —. Sempre se mostra amável com todos. Também não é rígido! Só... não sei como o expressar. Distante, creio. Oh,
não era minha intenção a afligir! Perdoe-me, rogo-lhe!

O sorriso da duquesa se entristeceu um pouco.

— Não me afliges. Só me inquietou a possibilidade de que Sylvester se tenha retirado voluntariamente a um deserto emocional... Mas, esqueça, foi só um instante!
Não acho que o passado continue a atormentá-lo.

— Refere-se a seu irmão, senhora? — atreveu-se a perguntar Phoebe olhando com timidez à duquesa.

A duquesa assentiu.

— Sim, seu irmão gêmeo. Não se pareciam, mas o laço que os unia era tão forte que não se afrouxou com nada, nem sequer com o casamento de Harry. Quando morreu meu
filho, Sylvester se afastou. Não quero dizer que partisse fisicamente... Bom, já sabes a que me refiro, não é verdade? Estou certa, porque vejo que tu também és
muito perspicaz. Sylvester é muito reservado. Não gosta que toquem em suas feridas, e essa ferida... — Interrompeu-se, e depois de uma breve pausa, disse —: Veja,
adotou durante tanto tempo uma atitude fria e comedida com os que o rodeavam que no final isso se converteu numa espécie de rotina, e esse é o motivo de que o tornasse
distante, uma palavra que o descreve muito bem, na verdade. — Sorriu e tomou a mão de Phoebe —. E quanto a seu ar de indiferença, minha querida, o conheço muito
bem, porque convivi com ele durante anos. E não me refiro unicamente a Sylvester. Como tu supões, surge do orgulho. É um defeito herdado! Têm-no todos os Rayne,
e em Sylvester é especialmente marcado. É algo inato, e agravou-o o fato que herdasse, quando era demasiado jovem, o título de seu pai. Sempre achei que era o pior
que podia lhe ter acontecido, mas me consolei pensando que lord William Rayne (o tio de Sylvester, que foi tutor de meus filhos durante os dois anos que demoraram
para atingir a maioria de idade) acabaria rapidamente com a arrogância de Sylvester. No entanto, por desgraça, William, pese a ser o melhor homem do mundo, não só
se considera muito importante, mas que além disso está convencido de que o chefe da casa dos Rayne é uma personagem bem mais augusta que o da casa de Hanover. Lhe
professo grande carinho, mas é uma personagem que tu, seguramente, chamarias de gótico. Costuma dizer-me, por exemplo, que a sociedade se converteu numa mistura,
e que hoje em dia muitos homens de nobre linhagem não mantêm adequadamente as distâncias. Teria dado uma forte reprimenda em Sylvester se tivesse se mostrado descortês
com o mais humilde de seus empregados, mas estou segura de que lhe inculcou que o que correspondia a sua linhagem era uma meticulosa correção. Noblesse oblige, já
sabes. De maneira que, com William instando-o a não esquecer nunca a preeminência de sua situação e com tanta gente ao seu redor o tratando como se fosse um senhor
feudal, temo que Sylvester se imbuiu de certas noções muito equivocadas, minha querida. E, para ser sincera, duvido de que jamais se desprenda delas. Se casar com
uma mulher à quem ame, sua esposa poderia ajudá-lo a melhorar, mas não conseguirá mudar seu caráter.

— Não, claro que não, senhora. Isto é...

— E isso, em na verdade, seria admirável — continuou a duquesa, sorrindo ante aquela interrupção, mas sem prestar-lhe muita atenção —. O mais curioso é que algumas
das maiores virtudes de Sylvester procedem diretamente de seu orgulho. A meu filho nunca lhe ocorreria pensar que alguém pudesse discutir seu direito hereditário
ao título de duque, mas te asseguro que também não lhe ocorreria jamais se desviar nem do menor dos seus deveres, por mais fastidioso que fosse, que implica sua
situação. — Fez uma pausa e prosseguiu —: O que preocupa é que o interesse por sua gente não sai do seu coração. Lhe ensinaram, e ele o aceita como uma obrigação
inevitável, mas não sente o amor à humanidade que inspira aos filantropos, me entende? Temo que sempre se mostrará indiferente com todos salvo com seus seres mais
queridos. No entanto, por esses poucos não há nada que ele não esteja disposto a fazer, desde o mais heróico até o mais tedioso, como dedicar grande parte de seu
tempo a distrair a sua mãe inválida.

— Certamente que ele nunca pensou que fosse tedioso, senhora! — disse Phoebe com o olhar aceso.

— Santo Deus! Mas se deve de ser o mais tedioso do mundo! Decidi não permitir que Sylvester se preocupasse comigo, mas... Já terá se dado conta: Sylvester faz as
coisas a sua maneira e mais ainda se está convencido de que atua pelo bem da outra pessoa.

— Sempre o considerei... um pouco prepotente, senhora — disse Phoebe recordando certos episódios recentes.

— Sim, não me estranha nem um pouco. Harry chamava-o “Dook” para troçar de seu ar autoritário. O pior é que custa muito tirar o melhor dele. Sylvester não ordena
que se leve algo a cabo: consegue, simplesmente, que seja impossível não fazê-lo. Uma vez um médico estúpido convenceu-o de que curar-me-ia se tomava banhos quentes,
e meu filho me levou a Bath contra minha expressa vontade e sem mencionar sequer o nome desse horrível lugar. Quantos deslocamentos se viu obrigado a fazer! Se perdoei-o,
foi só pelos incômodos que teve por um assunto tão injusto. Suspeito que sua esposa terá que lhe suportar muitos defeitos, mas é claro nunca poderá reprová-lo por
se mostrar desconsiderado com ela.

— Equivoca-se senhora! — disse Phoebe ruborizando-se —. Eu... Ele...

— Tão mal portou-se contigo que não o possas perdoar? — perguntou a duquesa —. Isso foi o que me disse, mas confiava que tivesse exagerado.

— Sylvester não deseja se casar comigo, senhora. No fundo, não — esclareceu Phoebe —. A única coisa que queria era que eu lamentasse ter fugido de casa para evitar
que ele pedisse a minha mão, e que me apaixonasse por ele quando já fosse demasiado tarde. Não suportava que o tivesse vencido, e me propôs casamento contra sua
própria vontade. Ele mesmo me contou! E acho que depois seu orgulho impediu-o de retratar-se.

— É verdade? Envergonho-me dele! — exclamou a duquesa —. Sylvester assegurou-me que tinha estragado tudo, mas vejo que me enganava. Não me estranha que o recusasses,
mas me alegra saber que sua célebre habilidade para o galanteio o abandonou quando te propôs casamento. Sei por experiência que é muito estranho que um homem pronuncie
discursos elegantes quando está muito ansioso, ainda que se trate de um galã consumado.

— Mas se ele não deseja se casar comigo! — insistiu Phoebe enxugando as lágrimas com um lenço —. Tentou convencer-me, mas quando lhe disse que não acreditava...
respondeu que via que era inútil discutir comigo!

— Que bobo!

— E então lhe acusei de que era pior que Ugolino, e ele... ele ficou calado! — revelou Phoebe tragicamente.

— Está claro! — declarou a duquesa com voz levemente trêmula —. Não quero saber nada dessa tolice! Após o que lhe respondeu como não querias que se apresentasse
em casa tão desesperado, dizendo que te negas a escutá-lo?

Até perguntou-me o que devia fazer. Estou segura de que era a primeira vez na vida que me pedia.

— Tão desesperado? — repetiu Phoebe, entre otimista e incrédula —. Oh, não!

— Asseguro-te! E pôs-se muito desagradável. Após cear subiu com o senhor Orde para tomar o chá comigo, e nem sequer o relato de sir Nugent e o botão conseguiram
arrancar-lhe mais que um débil sorriso.

— Talvez esteja... envergonhado. Sim, certamente que é isso. Mas se nem sequer gosta de mim, senhora! Se tivesse ouvido o que me disse! E então, ao cabo de um instante,
propôs-me casamento!

— É evidente que está transtornado. Suponho que não era sua intenção deixá-lo num estado tão lamentável, mas acho que deverias, ainda que só seja por caridade, lhe
permitir, ao menos, que se explique. Provavelmente isso irá tranquilizá-lo, e voltará a ser o que era antes. Não convém que o duque de Salford fique desnorteado!
Pensa na consternação que sofreia a sua família, minha querida!

— Oh, senhora duquesa! — protestou Phoebe entre risos.

— Com respeito a de que não gosta... — prosseguiu a duquesa —, não me explicou, mas o caso é que não recordo que jamais me tenha descrito a nenhuma jovem como “um
encanto”.

Phoebe ficou olhando-a, incrédula. Tentou dizer algo, mas só conseguiu emitir um ruído sufocado.

— Seguramente, a esta altura já deve ter as unhas em carne viva de tanto as morder, ou terá assassinado o pobre senhor Orde. Acho que seria melhor que o visses,
minha querida, e que lhe dirigisses umas palavras tranquilizadoras.

Phoebe, atando as fitas do chapéu com um laço lamentavelmente torcido, disse, muito agitada:

— Oh, não! Não, por favor!

A duquesa sorriu-lhe.

— Olha, ele a espera impaciente, querida. Se toco esta campainha uma vez, subirá sem tardança. Se toco-a duas vezes, virá Reeth, e Sylvester saberá que nem sequer
queres falar com ele. Que queres que faça? Tu decides!

— Oh! — exclamou Phoebe, com as faces muito coradas e muito perturbada —. Não posso... É que não quero que ele... Ai! Que devo fazer?

— Unicamente o que desejes, querida. Mas deves dizer a si mesma — respondeu a duquesa fazendo soar uma vez a campainha.

— É que não o sei! — disse Phoebe apertando as mãos —. É que... não posso achar que ele queira se casar comigo, quando poderia fazê-lo com lady Mary Torrington,
que é muito formosa, e muito boa, e muito bem educada, e...! — Interrompeu-se, aturdida, e nesse preciso instante abriu-se a porta.

— Entre, Sylvester — disse a duquesa com voz serena —. Quero que acompanhes a senhorita Marlow a seu carro, por favor.

— É claro, mãe — retrucou Sylvester.

A duquesa estendeu uma mão a Phoebe e puxou-a para que a jovem a beijasse na face.

— Adeus, querida. Espero voltar a ver-lhe brevemente.

Phoebe, muito confundida, pronunciou um discurso de despedida tão incoerente que nos olhos de Sylvester, que, pacientemente, mantinha a porta aberta, brilhou um
brilho de malícia.

A jovem só se atreveu a lhe lançar um olhar fugaz enquanto se encaminhava à porta. Foi um olhar muito breve, mas bastou para tranquilizá-la com respeito a uma coisa:
Sylvester não parecia em absoluto transtornado. Talvez estivesse um pouco pálido, mas longe de dar a impressão de uma pessoa presa do desespero, parecia notavelmente
contente, inclusive seguro de si. A senhorita Marlow, assimilando esse fato com sentimentos desencontrados, passou a seu lado com recato, com a cabeça baixa.

Sylvester fechou a porta e disse com absoluta serenidade:

— Foi muito amável brindando a minha mãe com a chance de conhecê-la, senhorita Marlow.

— Foi uma honra para mim receber seu convite, senhor duque — replicou ela com a mesma serenidade.

— Concederia a mim a honra de me brindar com a oportunidade de falar com você uns minutos Antes de que se vá?

A calma de Phoebe desapareceu no mesmo instante.

— Não! Quero dizer... não posso ficar! Veja, o cocheiro de minha avó não gosta que

lhe façam esperar muito.

— Já o sei. Por isso disse a Reeth que enviasse o pobre homem a sua casa.

Phoebe deteve-se no meio da escada.

— Que o enviasse para casa? — repetiu —. E posso saber quem lhe deu...—

— Temi que pudesse se resfriar.

— A você jamais ocorreria pensar nisso! — exclamou ela, indignada —. E se tivesse pensado, não ter-lhe-ia importado em nada.

— Ainda não atingi esse nível — admitiu o duque —. No entanto, reconhecerá que estou melhorando. — Olhou-a, sorridente, e acrescentou —: Mas não se enfureça comigo,
lho rogo! Prometo-lhe que poderá regressar a Green Street num de meus carros.

Phoebe, compreendendo que Sylvester estava dando um exemplo dos métodos que empregava para conseguir o que queria, e que sua mãe acabava de descrever, o olhou com
hostilidade.

— Deduzo, pois, que devo ficar em sua casa até que sua excelência tenha a bondade de pedir o carro.

— Não só se negar a falar comigo. Nesse caso, pedi-lo-ei de imediato.

Phoebe pensou que Sylvester não só era arrogante, mas que além disso era pouco honesto.

E também muito pouco cavalheiroso, porque, se não, não lhe teria sorrido como o estava fazendo. E mais: era evidente que não era prudente ficar a sozinha com ele,
porque seus olhos podiam sorrir, mas por trás desse sorriso tinha uma expressão muito inquietante.

— Lhe... asseguro, senhor duque, que não precisa que... que me dê nenhuma explicação — conseguiu dizer a jovem.

— Não imagina quanto me alivia a ouvir! — replicou Sylvester guiando-a pela sala de visita até uma porta que se achava aberta e pela qual se via uma sala com as
paredes cheias de estantes —. Asseguro-lhe que não penso lhe dar nenhum tipo de explicação. Acho que não é que não faça falta, mas que seria desastroso. Quer entrar
um momento na biblioteca?

— Que sala tão agradável! — exclamou Phoebe olhando ao redor.

— Sim, e quantos livros tenho, não é verdade? — comentou Sylvester em tom afável ao mesmo tempo em que fechava a porta —. Não, acho que não os li todos!

— Não ia mencionar nenhuma das duas coisas! — declarou Phoebe tentando conter o riso —. Que é que queria me dizer, senhor duque?

— Só... meu amor! — disse Sylvester, e envolveu-a num abraço.

Era inútil brigar com ele, e seguramente também pouco decoroso. Ademais, todo mundo sabia que aos loucos há que lhes fazer a vontade. Assim a senhorita Marlow seguiu
fazendo a vontade daquele perigoso lunático: rodeou-lhe o pescoço com um braço e inclusive devolveu-lhe o abraço. Então apoiou a face no ombro dele e disse: “Oh,
Sylvester! Oh, Sylvester!”, o que lhe produziu, ao que parece, grande satisfação.

— Pardal! Pardal! — retrucou Sylvester abraçando-a ainda mais forte.

Convencida pela coerência de sua resposta de que o chefe da casa de Rayne tinha recobrado o juízo, Phoebe suspirou aliviada e lhe ofereceu outro paliativo:

— É tão feio o que disse sobre você, eu o disse sem pensar.

— A que te referes, minha preciosa? — perguntou Sylvester voltando ao estado de confusão.

— A isso de que... é você pior que Ugolino. Ainda não entendo como não me deu uma bofetada!

— Sabes muito bem que seria incapaz de te fazer dano, Pardal. Reconheço que esse chapéu que levas é muito bonito, mas me permita que o tire — disse o duque enquanto
desatava o laço e tirava-lhe o chapéu —. Assim estás muito melhor!

— Não posso me casar com você após ter escrito esse livro — disse Phoebe, mas apertou-se mais contra Sylvester para atenuar o golpe.

— Não só podes, mas deves, ainda que tenha que te arrastar até o altar. De que outra forma poderia consertar meu bom nome?

Phoebe refletiu, e de repente teve uma inspiração.

— Sylvester! — disse a jovem levantado a vista —. Já sei que podemos fazer! Escreverei um livro sobre você, o convertendo em herói.

— Não, obrigado, querida — replicou ele com firmeza.

— Não? E se escrevesse uma continuação do herdeiro perdido e fizesse cair a Ugolino em semelhante infâmia que acabasse morrendo no patíbulo?

— Santo céu! Pardal, és, sem nenhuma dúvida, a criatura mais incorrigível que existe no mundo. Não!

— Assim todos saberiam que Ugolino não podia ser você — assinalou ela —. Sobretudo se lhe dedicasse o livro, o qual poderia fazer com toda propriedade se assinasse
como “A Autora”.

— Isso sim me parece uma ideia esplêndida! Uma dessas bombásticas epístolas, com meu nome e meu título em grandes letras no cabeçalho, seguido de um “meu senhor
duque”, como tanto gostas de chamar-me; e a seguir, várias páginas salpicadas de um bom número de “suas excelências”, e tantos elogios quanto te ocorrerem, e...

— Não me ocorreria nenhum! Teria que apertar o cérebro durante semanas para pensar em algo que contar que não fosse que você é sumamente arrogante e que...

— Não te atrevas a me chamar arrogante! Se alguma vez tive alguma arrogância, algo que nego, foi quando Thomas e você me trataram sem nenhuma consideração — Interrompeu-se
e voltou-se para a porta, aguçando o ouvido —. E aí está Thomas, se não me equivoco! Creio, Pardal, que teu amigo merece ser o primeiro a nos felicitar, não te parece?
Com se esforçou para que acabássemos nos entendendo! — Foi até a porta, abriu-a e apareceu Tom, que acabava de chegar a casa e se dispunha a subir a escada —. Venha
à biblioteca, Thomas! Tenho uma notícia interessante que te revelar. — Ao ver o ramalhete de flores que Tom levava na mão, acrescentou: — Caramba! Que é isso?

— Ah, nada — replicou Tom, ruborizando-se, mas com muita naturalidade —. Vi estas flores e pensei que a sua excelência gostaria. Ontem à noite comentou que tinha
saudades das flores de primavera de Chance.

— Já vejo! Anda você atrás de minha mãe! Pois bem, não ache que o vou aceitar como padrasto.

— Não me parece que essa seja a forma correta de falar da duquesa — disse Tom com dignidade.

— Tens muita razão — conveio Phoebe quando seu amigo entrou na sala —. E essas flores são um bonito detalhe. Tua mãe estaria orgulhosa de ti.

— Sim, isso mesmo... Mas... céus! — exclamou Thomas olhando a Phoebe e a Sylvester com ansiosa expectativa.

— Sim, exato — confirmou Sylvester.

— Que alegria! — declarou Tom apertando afetuosamente a mão ao duque —. Nada me teria feito mais feliz! Olha como foi tonta, Phoebe! Desejo muitíssimas felicidades
aos dois. — Então abraçou Phoebe, recomendou-lhe que aprendesse a se comportar com correção e disse, fazendo uso de um tato incomum nele, que devia partir em seguida.

— Está em seu salão — disse Sylvester —. Mas deixe-me recordar que seria bom que fizesse as pazes com lady Ingham.

— Sim, o farei, é claro, mas mais tarde, porque não gosta de receber visitas em sua casa pela manhã — replicou Tom.

— O que quer dizer — disse Sylvester— é que lhe falta coragem. Diga-lhe que me deixou escrevendo uma carta a lord Marlow para pedir a mão de sua filha, e não tema.
Lady Ingham se jogará nos seus braços!

— Sim, parece-me uma ideia excelente — disse Tom, mais animado —. Se não te for inconveniente, acho que lhe direi.

— Faça-o — disse Sylvester com cordialidade, e voltou a entrar na biblioteca. Então observou em que sua amada o olhava reprovadamente.

— De todas as coisas arrogantes que te ouvi dizer...

—... Senhor duque... — interpôs ele.

—... Esse comentário é o mais insuportável — declarou Phoebe —. Que te faz pensar que minha avó se alegrará?

— Que devo pensar se foi ela que me propôs este casamento? — respondeu o duque, risonho.

— Minha avó?

— Inocente criatura! Quem acha que me enviou a Austerby?

— Insinuas que foste a Austerby a instâncias de minha avó?

— Sim, mas com a máxima discrição — alegou com atrevimento.

— Oh! Então, quando me enviaste a sua casa... Sylvester, és terrível!

— Não, não! — apressou-se ele a dizer, e voltou a abraçá-la. Então, com grande autoconfiança, beijou Phoebe para pôr fim a suas recriminações; e sua indignada noiva, ao que parece julgando que o duque tinha caído tão fundo na depravação que já era irrecuperável, abandonou (ao menos por enquanto) qualquer tentativa de lhe fazer ver sua iniquidade.

 

 

                                                                  Georgette Heyer

 

 

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