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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O TOQUE DO LOBO / Susan Krinard
O TOQUE DO LOBO / Susan Krinard

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Braden Forter, conde de Greyburn, dedicou sua vida a restaurar a pureza de sangue de sua raça de homens-lobos. Durante anos procurou em vão por uma prima longínqua americana, uma mulher cuja linha de sangue é um elo vital na herança de sua família. Braden acreditava que Cassidy Holt estava perdida para sempre, até que ela apareceu numa noite chuvosa à soleira de sua mansão londrina, com seu cabelo escuro como asas de corvo e sua pele cheirando a luz de sol e arbustos de artemisa. Quando Braden levou-a a distante propriedade familiar, ambos puderam sentir uma inegável atração. Mas ela logo soube que nunca poderiam satisfazer a mútua paixão, pois Braden já a havia prometido a outro. Sua esperança para reclamar o único homem que sempre amará é desenredar os escuros e luxuriosos segredos de seu passado...

 

 

 


 

 

 


PRÓLOGO
Northumberland, Inglaterra, 1860
Braden permaneceu à larga sombra de seu avô, Tiberius Forster, conde de Greyburn, e olhou a grande sala com cerca de trinta pares de olhos que pareciam
humanos como os seus, mas não eram; mas sim olhos observadores, ferozes, sempre alertas. Ansiosamente os homens e as mulheres esperavam em silêncio que o conde falasse.
Inclusive agora, neste nono grande encontro entre as famílias, os delegados nunca esqueciam quem eram.
Loups-garous (homens-lobos); uma raça separada da humanidade, mas que vivia entre os humanos, que poderia ser levada à extinção se não fosse pela grande
Causa do conde de Greyburn.
A história já havia sido relatada a Braden tantas vezes que ele a conhecia de cor. Tiberius tinha passado sua juventude procurando por seu povo disperso
na Europa, na Rússia, na Ásia, na América. Seus especiais dons permitiam-lhe sentir onde quer que vivessem, tanto entre a aristocracia e a elite de suas terras natais,
preferencialmente; como entre a gente comum, menos assiduamente, escondendo o que eram.
A discrição sempre era necessária. Era um mundo de humanos, e os humanos superavam demasiadamente em número à raça lobina, mas os loups-garous casaram-se
com humanos e seus filhos não eram puros.

Tiberius sabia que sua gente extinguir-se-ia lá fora, murchando-se durante anos ou décadas, indevidamente, a menos que o sangue puro brotasse de novo e
que essas linhas puras de linhagem e poder se unissem a outros igualmente puros. Somente havia uma forma disso se realizar: as fronteiras deviam ser extintas, as
antigas rivalidades e os velhos ódios, esquecidos e os loups-garous deviam unir-se realizando, deste modo, um grande pacto para preservar sua raça.
Tiberius tinha persuadido, ameaçado, rogado, discutido, e utilizado seu considerável poder para submeter todos a sua vontade.
E eles tinham vindo à sua fortaleza no coração de Northumberland, onde os Greyburn Forsters tinham conservado sua terra durante centenas de anos, os Forsters
possuíam um sobrenome humano, mas eram muito mais que isso. A primeira Convocatória em 1820 foi carregada de perigo e receio, mas ao final, os loups-garous tinham
escolhido sua salvação. Os primeiros contratos matrimoniais tinham sido negociados, tomando nota das linhas de sangue para os novos registros.
Tinham passado quarenta anos, e haviam se reunido duas vezes a cada década. Mas este era o primeiro encontro de Braden. Aos quatorze anos tinha aprendido
a transformar-se, tornando-se assim, merecedor de tomar parte na Causa.
Observou sob suas escuras sobrancelhas o delegado russo, o pai da moça que tinha sido prometido a ele precisamente durante esta reunião. Era um grande latifundiário,
um príncipe que governava um pequeno reino de servos em seu longínquo país. O sangue russo era forte, e quando se unisse a antiga linhagem inglesa,...
Braden sacudiu sua cabeça. Havia muito que ter em conta aqui, neste ameaçador lugar com seus estandartes e sua fria pedra. Olhou para os outros delegados,
memorizando seus rostos: severos escoceses das Terras Altas e Baixas; aristocratas franceses, que graças aos seus poderes tinham sobrevivido à purgação da nobreza
em sua terra; os cautelosos austríacos e prusianos, os pequenos grupos de orgulhosos espanhóis e italianos de climas mais quentes, onde sua gente escalava as montanhas;
noruegueses que tinham cruzado o mar para chegar de novo às mesmas costas que seus ancestrais tinham conquistado.

Havia todo um leque de convidados procedentes de terras mais exóticas, que tinham vindo contra a vontade; um príncipe hindu, um xeque do deserto, e o último,
um superior um venerável clã japonês. Somente seus sangues desumanos uniam-nos uns aos outros.
E depois, estavam os americanos. Guardavam ferozmente sua independência e observavam com olhos entreabertos, o nobre inglês que reclamava a liderança de
todos os que podiam correr como lobos e como humanos. Mas eles também reconheciam a importância do aviso do avô, e por isso tinham chegado a Greyburn, para falar,
debater e ultimar um compromisso.
Hoje, o nono encontro das famílias chegava ao seu fim. Os delegados se dispersariam por outros cinco anos, mas haviam elaborado novos contratos, e nasceria
uma nova geração de meninos, que conduziria às revividas linhas de sangue. Tal como o primeiro contrato tinha unido o defunto pai de Braden com Ângela Gevaudan do
antigo sangue francês. Ângela havia cumprido com o seu dever dando ao herdeiro de Greyburn três filhos: Braden, Quentin e Rowena. Cada um, por turno, casar-se-ia
segundo a grande Causa ditasse; e seus filhos também assim fariam, até chegar a um futuro onde os loups-garous converter-se-iam na raça poderosa e sem temor que
deviam ser...
-Menino.
Braden abandonou bruscamente seus pensamentos e elevou o olhar para seu avô. Um olhar de Tiberius podia congelar qualquer humano ou licántropo, e sempre
convertia os joelhos de Braden em gelatina. Mas o menino tinha aprendido a transformar-se, e o temor converteu-se em respeito.
-Senhor?
Tiberius empurrou-o ligeiramente dirigindo-o para as portas de madeira maciça.
-Vá. Tenho umas palavras finais para os outros, mas falarei contigo mais tarde.
Despachou Braden com um gesto de seu ombro, e Braden viu que todos os olhos dos estranhos, frios e calculadores, estavam sobre ele desta vez. Os delegados
sabiam que Braden era o herdeiro do condado e o grande propósito de seu avô, por isso procuravam algum sinal de debilidade nele.

Devo ser forte como meu avô, pensou Braden. Um dia todos irão me respeitar. Endireitou-se e saiu da sala, fechando as pesadas portas duplas atrás dele.
-E bem? -vaiou uma voz quando entrou no vestíbulo da entrada. Os olhos de Quentin estavam brilhantes de curiosidade e malícia.
- Foi tão excitante como pensava que seria? Tiveste que falar, ou sequer deram conta de que estava ali? O que pensa de gracioso...?
Braden aferrou o braço de seu irmão.
-Aqui não. -sussurrou.
Olhou para a Rowena que estava, como sempre, agarrada ao cotovelo de Quentin, e conduziu os gêmeos pelo vestíbulo para as portas principais. Um servo apressou-se
para abrir as portas, e saíram para a tênue luz do sol. Uma vez, estando sozinhos, e depois do alto escudo da sebe de arbustos, Braden fixou seu severo olhar em
seu irmão pequeno e utilizou sua profunda voz para impor-se a ele.
-Estava espiando - acusou-o.
- Não tinha direito de estar ali. Se vovô tivesse visto...
Quentin riu. Nada o assustava, nem a ameaça de um castigo, nem a perspectiva de graves conseqüências. Era, como sua mãe havia dito antes de sua morte: impossível.
- Acredita que só é um jogo? -perguntou Braden.
- O que o avô tem feito para salvar a nossa gente...
-Sei, sei -Quentin pôs os olhos em branco.- É tão completamente sério. Para que serve ser capaz de transformar-se se não houver diversão? Quando eu realizá-la,
desfrutarei dela.
Rowena curvou seus pequenos dedos ao redor do braço de seu irmão gêmeo.-Eu não -disse.- Desejaria não me transformar nunca.
-Não tem escolha -disse Braden, com mais rudeza do que pretendia.
- Todos devemos fazer o que vovô nos diz, ou não sobreviveremos -Sua voz suavizou-se.
- De todas formas, quando puder transformar-se, saberá, Ro. É assombroso... -Tremeu.
- Pobres humanos. Quase sinto pena por eles.
-Eu, não -começou Rowena.

- Se pudesse, eu...
Mas suas palavras foram afogadas por Quentin.
-Acredito que não pode esperar que o avô morra para ser o líder -disse a Braden, seu sorriso burlando-se de suas palavras.- Mas ele não está nem perto de
enterrar a tocha, assim terá que se resignar em estar em segundo plano durante uns poucos anos mais.
Braden ficou tenso.
-Quando eu for o líder, terá que fazer o que te diga.
Quentin dedicou-lhe uma saudação zombadora.
-Sim, milord, mas ainda não.
Soltou um uivo quando Braden agarrou-o, e de repente iniciou-se uma perseguição, meio a sério e meio como jogo. Derrubaram-se na grama, Quentin arrumando-se
muito bem, apesar de sua menor idade.
Rowena saltou um pouco como se fosse unir-se a eles, mas ela estava muito orgulhosa de seu novo vestido para manchá-lo, e sua dignidade de doze anos era
muito frágil para ceder.
Ao fim, Braden submeteu Quentin.
-Prometa-me - disse isso sem fôlego. - Prometa-me que me obedecerá quando eu for o líder.
Não havia rendição nos olhos de Quentin, e seu sorriso não vacilou.
-Teme que faça o que fizeram o irmão e irmã do avô, e estrague sua Causa?
Braden também conhecia esta história de cor.
-Ambos eram traidores. A tia avó Grace casou-se com um humano e não com o companheiro eleito para ela. E o tio avô William rompeu sua palavra e foi viver
na América, mas nunca enviou seus filhos de volta à Inglaterra. Agora está morto, e perdemos sua linha de sangue...
-Linhas de sangue. Fala igual à Tiberius.
-E você fala como um menino, porque não compreende.
-Só porque as famílias que vêm aqui são loups-garous como nós, não significa que sejam dignos. Como a moça russa...
-O que acontece com ela?
Quentin inclinou-se, mostrando seus dentes.

-Você gosta dela, não? Vi a forma com que a olha. Somente porque vovô arrumou para que você se case com ela dentro de uns anos. Mas seu pai e ela têm algo
ruim. Eu a vi chamar um moço dos estábulos de servo, E essa garota é malvada e vaidosa. Disse que quando aqui viver, todos deverão fazer o que ela ordenar.
Braden tentou imaginar esse rosto delicado e exótico dizendo tais ameaças. Certamente que não. Milena havia sorrido para ele, tinha-o feito acreditar que
também gostava dele...
-Não acredito em você - disse.
-Talvez não agora. Mas não acredito que ela ache Greyburn a seu gosto.
O tom de sua voz pôs Braden imediatamente em alerta. A expressão exagerada, muito inocente, de Quentin, era igual a que Braden havia visto muitas vezes,
justo antes que seu irmão pregasse uma brincadeira em alguma vítima desventurada e confiada. Seus pequenos truques não eram perigosos, e nunca tinham má intenção.
Exceto nessas estranhas ocasiões em que a vítima não gostava...
-O que você fez? -exigiu saber Braden, segurando-lhe o pescoço.
Quentin somente sorriu mais amplamente, mas seu irmão não teve tempo para esperar uma resposta. Um chiado proveio de alguma parte do interior da casa, bastante
alto para ouvidos desumanos que podiam ouvir, inclusive através dos grossos muros. Braden levantou Quentin e deu-lhe uma sacudida.
-Se você fez-lhe algum mal...
-Recorda essas flores do jardim que a fazem espirrar? Somente me assegurei de que tivesse suficientes para decorar seu quarto. -Quentin inclinou a cabeça.
- Não parecerá formosa com um nariz escorrendo.
Braden fechou seus olhos.
-Por que, Quentin? Sabe o que o vovô fará contigo quando se der conta?
Quentin sabia. Já tinha sido castigado antes. Mas nunca havia feito uma brincadeira com um dos familiares dos delegados.
-Faria bem em ir ao bosque por um momento -disse Braden, empurrando Quentin.
- Ro, você também.
Rowena, ao menos, teve o bom senso de estar assustada. Largou o braço de seu gêmeo.

-Vamos, Quentin!
Quentin permaneceu em seu lugar.
-Receberei um sermão de todas formas, assim por que deveria me incomodar...
Braden grunhiu e carregou contra Quentin.
- Corra!
Sob outras circunstâncias, Braden teria gostado de ver como Quentin obedeceu tão rapidamente. O poder da vontade de Braden estava crescendo, e podia senti-lo
correndo por suas veias igual à magia da transformação.
Mas ele não era nada comparado com o conde. Tragou com dificuldade e voltou para casa, alcançando os largos degraus, justo quando seu avô saía. Seu cabelo
branco estava revolto, seus olhos flamejavam, e tal era sua fúria que Braden acreditou que passaria por cima dele.
Mas Tiberius deteve-se, com os punhos fechados a seus flancos.
-Quentin -rugiu.- Onde está?
-Não sei -disse Braden.- Ele estava...
- Você se dá conta do que tem feito? A filha do conde foi insultada, e o próprio conde... - A vontade de seu avô atingiu Braden como uma catarata de água,
fazendo com que, virtualmente, ficasse impossível respirar.
- Os russos ameaçaram romper o contrato matrimonial. Por culpa desse menino, a própria aliança está em perigo. Diga-me onde está.
Por um instante Braden vacilou. Quentin devia aprender. Mas a maneira de ensinar de seu avô era dura na maioria das ocasiões; e com seu atual aborrecimento,
poderia fazer algo pior que lhe dar uma surra.
-Peço desculpas, senhor - disse Braden.
- Não sei.
Havia algo muito mais ameaçador na repentina calma de seu avô, que em seu anterior estado de fúria.
- Você acredita que também pode me enganar? -disse brandamente.- Não. Mataria você antes.


Braden tremeu dentro de si. Havia sido educado para acreditar que nada importava mais que a Causa, que todo o resto devia ser sacrificado por ela. Tinha
visto este princípio trabalhar com o matrimônio de seu avô com a mulher que tinha escolhido por seu sangue puro, e outra vez com seus pais.
Mas Tiberius não mataria o veículo do sangue puro que lutava por preservar, ao menos não o corpo. Mas havia outras coisas que perder...
Abruptamente, seu avô tomou o braço de Braden com um duro apertão e arrastou-o dentro da casa. O conde russo estava esperando ao pé da grande poltrona,
seus olhos eram como chapeadas fendas. O avô deteve-se diante dele, e algum tipo de silenciosa comunicação passou entre os lordes, do tipo que Braden somente começava
a compreender. As vontades chocaram-se, e foi o conde quem se afastou primeiro.
-Vá para os meus aposentos -ordenou Tiberius ao seu neto, e o garoto não duvidou em obedecer.
Podia conseguir mais tempo para Quentin e assim seu avô se acalmaria um pouco. Começou a subir as escadas que conduziam ao patamar e corredores que discorriam
ao longo do primeiro andar, através da ala da família e dos convidados. Um pequeno grupo de delegados e seus casais estavam observando com cautelosa curiosidade
da ala dos convidados, mas retiraram-se quando o avô alcançou o patamar. Os serventes humanos partiram com igual discrição.
O dormitório de seu avô era um lugar onde Braden nunca tinha estado. Aqui se aplicavam os castigos e os sermões eram dados. E aqui o peso da Causa era esmagante.
Uma antiga armadura descansava contra o muro, escudos e armas que tinham sobrevivido a uma época mais selvagem. O sangue Forster remontava muito mais além
que a própria casa, embora os nomes dos ancestrais de Braden tinham mudado com os séculos. Não havia nada tenro ou suave no quarto. Era gélido, porque Tiberius renegava
qualquer coisa que insinuasse uma debilidade humana. Os loups-garous não sofriam com o que era frio.
Seu avô estava sentado em sua poltrona de duro respaldo.
-Permaneça onde está e escute -disse. - Acredito que você tem idade suficiente para compreender. Estive equivocado. Vou esclarecer isso de novo. Quentin
somente tem valor para mim quanto aos filhos que possa engendrar. E Rowena também. Mas você... de você espero muito mais.


Braden levantou o queixo.
-Conheço meu dever.
-Não -Tiberius golpeou o punho sobre o esculpido braço da cadeira.
- Mas o conhecerá, antes que termine contigo. Seu pai era menos que inútil, mas seu sangue é forte. Você não me trairá ao final - Levantou-se e caminhou
para a antiga janela de onde se via o parque. Sua voz descendeu até um áspero murmúrio.
- Fui traído antes, em duas ocasiões. Minha querida irmã fugiu com um humano antes que seu matrimônio com o homem que eu tinha escolhido para ela tivesse
tido lugar. Rechaçou os costumes de nossa gente. E a filha de William, Edith, escapou com um granjeiro americano, um humano chamado Holt. William e Fenella faleceram
durante estes últimos cinco anos, e Edith e Holt e seus dois descendentes estabeleceram-se em algum abandonado lugar do selvagem oeste americano.
-Mas se souber onde estão... -começou Braden.
-Faz cerca de um ano, sim. Se sobreviveram, iremos encontrá-los e os traremos de volta. Essa será sua tarefa quando chegar à idade adequada. Trazê-los de
volta e forçá-los a... -deteve-se, inspirando profundamente. - Não haverá mais traições.
A paixão e a angústia na voz de Tiberius eram muito reais e completamente inesperadas, e sacudiu o coração do neto como nenhuma outra coisa antes. Seu avô
tinha passado sua vida tratando de salvar uma raça, e seus próprios irmãos deram-lhe as costas. Somente seu inato poder tinha conservado a cooperação entre os outros
homens-lobos, quando tinham motivos para duvidar de sua força e autoridade, inclusive sobre sua própria família.
Os loups-garous respeitavam a força. Mas a lealdade à família estava marcada a fogo em suas almas, por isso as rebeliões de seus irmãos eram feridas que
não curariam. Braden não podia imaginar Quentin e Rowena fazendo o mesmo a ele. Nunca.
Cruzou a gasto o tapete até o flanco de seu avô.
-Eu não farei o que eles fizeram -prometeu.
- Não deixarei que a Causa morra.
Seu avô olhou-o, e foi como se nunca tivesse revelado esse instante de vulnerabilidade.

-Quando terminar contigo, não terá outro propósito. Viverá pela Causa, como eu mesmo. Nada mais terá importância para você. Compreende?
O menino não podia falar. O olhar de seu avô apanhou-o como as armadilhas do bosque para agarrar os furtivos humanos, e sua língua estava paralisada.
-Não voltará a mentir para mim. Irá procurar seu irmão e me trará ele. Depois administrará o castigo que o conde escolha. Vá.
Após essas palavras, não havia lugar para a negociação, nem um rincão à compaixão ou à piedade. A lição não seria somente para Quentin, mas também para
ele. De tal modo que nunca esqueceria.
Braden voltou-se e saiu dos aposentos com a mente em branco. Atravessou o patamar até uma porta que conduzia a uns corredores estreitos, ocultas escadas,
e uma entrada traseira que utilizavam os serventes. Ali se deteve, farejando à tarde; o outono aproximava-se, e pôde cheirar o feno e a urze, e as ovelhas e as cristalinas
águas do rio que estavam ao fundo do inclinado parque.
Despojou-se de sua roupa atrás dos arbustos do muro e se transformou com um só pensamento. Sobre quatro patas correu através dos jardins, passou o aberto
prado e entrou no bosque, que um ancestral tinha plantado e que Tiberius tinha cultivado, e agora era muito maior que qualquer outro bosque privado do norte da Inglaterra.
Enquanto corria, saltando e esquivando os pinheiros, carvalhos e fresnos, ignorou os rastros do coelho e da raposa e de todas as outras pequenas criaturas
que compartilhavam o bosque. Somente havia um a quem caçar, e muito em breve encontrou o aroma familiar. Mas quem se encontrou com ele foi Rowena com os olhos muito
abertos e o rosto pálido. Sua saia estava coberta de barro e seu cabelo estava enredado com ramos e folhas.
-O que lhe farão? -sussurrou ela.
Braden transformou-se e rapidamente Rowena olhou para outro lado.
Seu pudor sempre tinha sido exagerado, mas Braden não tinha tempo para sua sensibilidade quase humana.
-Onde está? -perguntou.
-Veio buscá-lo?
-Vim para lhe dizer que fique no bosque -Braden cruzou seus braços sobre o peito, embora começasse a sentir o frio do ar.

-Vovô ordenou-me que o leve de volta. O conde decidirá seu castigo, mas se Quentin se mantiver afastado até que os russos partam, talvez nada aconteça.
Rowena mordeu o lábio. - Você se meterá em problemas se não levá-lo de volta.
Braden encolheu de ombros.
-Sei que Quentin pode encontrar algum lugar para esconder-se durante uns poucos dias. Quando o vir, diga-lhe...
-Pode dizer isso você mesmo -Quentin saiu detrás de um grosso grupo de árvores, sem mostrar seu habitual sorriso.
- Não sou um covarde. É minha culpa. Voltarei contigo.
-Não -Braden olhou seu irmão menor fixamente, projetando sua vontade.
- Não é tão forte como eu, e você nunca gostou do vovô. Mas estará em dívida comigo por isso, Quentin. Não esqueça que me deve isso.
Quentin fechou e abriu seus punhos.
-Não esquecerei.
Braden olhou para Rowena.-Será melhor que volte. Não se aproxime do vovô durante um tempo. Os delegados partirão logo, e as coisas voltarão para sua normalidade.
Normalidade. O normal que se possa estar em Greyburn.
-Eu o verei, se puder -disse Braden a Quentin.- Mas mantenha-se fora de problemas, por uma vez.
Olharam-se um ao outro. Rowena chorava silenciosamente. Depois de um momento, Quentin deu um passo atrás, e logo outro, até que desapareceu de novo depois
das árvores.
Mais tarde Braden falaria com Rowena, tentaria consolá-la se lhe permitisse. Mas sempre tinha estado mais unida a Quentin, e a separação seria difícil para
ela. Ele voltou a ordenar que retornasse a casa, e transformou-se de novo.
Sua corrida de volta a casa foi tão veloz como certeiro. Sabia o que viria quando admitisse sua falta ante Tiberius. Podia suportar a dor, mas a humilhação
e o desdém de seu avô eram mais cortantes que qualquer látego.
Mas ele suportaria sem piscar, para provar sua força. Para mostrar que não era fraco. Devia ser merecedor de ser o encarregado do trabalho da Causa.
- Não o decepcionarei, vovô -prometeu.- Farei que nossa gente seja forte de novo. Nada me deterá, nunca.

A meio milha da casa desviou-se e correu para o topo de Rook Knowe. Dali podia ver todo o vale, através dos pequenos campos e os casarões isolados e mais
à frente até as fileiras de urze, e as colinas sem árvores que se marcavam na distância. Esta era sua terra; amava-a como amava Greyburn, com seus robustos arrendatários
humanos, e o inóspito de uma paisagem que nunca tinha sido inteiramente domado.
Sim, entregar-se-ia devotamente à Causa. Mas ele, ao contrário de Tiberius, encontraria lugar em sua vida para outras coisas. Para o afeto familiar, para
a beleza do páramo, do bosque e da paixão. Para a possibilidade de amar num matrimônio combinado. Para um ideal que não estivesse conduzido pela ira e pelo rancor.
Cumprirei com meu dever, lorde Greyburn. Mas farei à minha maneira, não à sua.
Braden acreditava com todo seu coração que seria uma promessa que sempre poderia cumprir.


Montanhas de Serra Nevada, Califórnia

Cassidy empurrou a aberta porta com o pé, ignorando o aterrador rangido que emitiu, e deixou cair ao chão à braçada de ramos e lenha junto à chaminé. Deteve-se
para recuperar o fôlego, sacudindo as sujas mãos em suas igualmente sujas calças. Folhas secas e marrons formaram redemoinhos dentro da casa antes que pudesse fechar
a porta, unindo-se as que já estavam empilhadas nas esquinas da pequena cabana.
A mãe havia falecido quando as primeiras folhas começaram a cair, e agora as árvores estavam meio nuas. Cassidy foi à despensa e observou as poucas sacas
e potes que permaneciam nas estantes. Não havia muita comida, nem sequer para ela com o inverno aproximando-se. E ela não era uma guerreira como sua mãe, ou como
um homem forte e grande como tinha sido seu pai antes de partir. Nem sequer Morgan estava ali para encontrar mais comida antes que a neve chegasse.
É uma moça forte -disse-lhe sua mãe durante as semanas anteriores à sua morte.- Possui o sangue puro dos Forster. Que Deus me ajude! O sangue que eu desejava
esquecer...

Cassidy fechou seus olhos e agachou-se frente à chaminé, partindo uma pequena peça de lenha entre suas mãos. Tinha memorizado quase tudo o que sua mãe havia
dito durante essas últimas semanas, porque era importante. Sua mãe sabia que havia algo mau dentro dela e, portanto, tinha tentado explicar-lhe as coisas que poderiam
ajudá-la no futuro.
Cassidy já conhecia a maioria delas: como acender fogos, como cozinhar mantimentos simples, como as bolachas, e o que ela chamava "mush", e como abrandar
a carne seca armazenada para o inverno. Sabia onde encontrar a melhor água e onde cresciam os bagos, como calibrar o clima e como se manter quente na neve.
Mas sua mãe não tinha falado como seria estar tão sozinha.
Saindo do bosque onde estava a cabana, Cassidy subiu a pequena colina depois da casa. As montanhas eram altas e agrestes. O céu parecia um lago suspenso
de barriga para baixo. As árvores agitavam-se com o vento.
Ali não havia nada que mostrasse quando ou onde tinha morrido Edith Holt. Cassidy fazia o que sua mãe desejava que fizesse. Tinham passado sua última noite
juntas fora da cabana, em uma clareira rodeada de árvores que sua mãe amava, aonde ia freqüentemente para transformar-se. Entregue-me ao bosque -disse-lhe, enquanto
seus olhos fechavam-se e sua respiração fazia-se mais e mais lenta-. Deixe-me descansar aqui. E não volte, Cassidy.
Não havia retornado, não depois de ter derramado todas as lágrimas que levava dentro, e de beijar o rosto de sua mãe, e empurrar algumas folhas de pinheiro,
ramos e folhas caídas sobre o corpo deitado. Sabia que sua mãe não sentiria frio, mas ajudou-a um pouco fazê-lo de todas formas.
O céu, as árvores e as montanhas estavam tal como hoje quando seu pai partiu, a quase um ano. Cassidy nunca soube por que se foi, embora sua mãe tinha tentado
explicar. Algo sobre prata, e dinheiro, e coisas que então não significavam muito para Cassidy, quando só tinha seis anos. Tudo o que sabia era que sentia sua falta
, e de Morgan quando se foi depois da época de neve para encontrá-lo.
Seu pai não era como sua mãe, ele não podia transformar-se. Não podia converter-se em um formoso e perfeito lobo que pudesse correr como o vento e desvanecer-se
como uma sombra.
Morgan sim. Tinha aprendido a transformar-se pouco antes de ir. Nada o assustava.

Mas retornou. Nenhum deles retornou. E sua mãe não havia voltado a ser a mesma depois disso.
Cassidy sentou-se sobre o chão e escutou. Às vezes acreditava que ainda podia ouvir o uivo de sua mãe, repetindo-se através do vale. Seu pai viria do campo
de pasto e Morgan do prado, e todos a felicitariam quando se reunisse com eles vindo do bosque, com sua pele brilhante e o cabelo solto, com um coelho ou um par
de aves para jantar.
-Algum dia -prometeu sua mãe-, será como eu. Como Morgan. Você também se transformará.
-E embora tivesse somente seis anos, Cassidy sonhava com esse dia.
Mas já não ficava ninguém para ensinar-lhe como se transformar. Somente tinha este corpo que era muito pequeno e muito fraco. Torpe, não elegante e gracioso
como o de sua mãe.
Se fosse capaz de transformar-se, talvez tudo seria mais fácil. Deixaria de sofrer. Conheceria os segredos que sua mãe não teve tempo de ensinar-lhe. De
alguma forma, estaria mais perto de sua mãe que nunca.
Fungou o nariz e esfregou o rosto. É tão boba, costumava dizer-lhe Morgan quando ela chorava. Zangou-se muito com ele nesses momentos, mas agora desejava-o
de volta. Desejava-o tanto, que lhe doía.
Mas já não podia chorar mais. Tinha que acender o fogo antes que anoitecesse, nem tanto pelo calor, como pela comodidade que conduzia. E estava faminta,
sempre estava faminta.
A porta da cabana ainda estava entreaberta, deixando que entrasse o frio. Ela empurrou-a com seu corpo para fechá-la firmemente e se aproximou da chaminé.
Arrumou a lenha cuidadosamente, acrescentando pedaços de papel que seu pai tinha deixado em apertados montes. Poucos sobravam agora, e ela nunca queimaria os poucos
livros da estante. Antes da more de sua mãe, Cassidy tinha aprendido a ler. E lia muito bem. Alguns dos livros eram muito difíceis para ela, mas continuou tentando,
tal como sua mãe tivesse querido.
E também porque os livros e suas palavras eram como tapetes mágicos que a levavam longe.

Agarrou um dos últimos pedaços de papel e estava a ponto de alimentar a pequena chama, quando notou uma diferença nele. Não era como uma das grandes folhas
amareladas com muitas letras pequenas -jornal, dizia seu pai - a não ser um envelope com endereço na frente. Endereço de uma cidade, um lugar chamado São Francisco,
a muitas milhas dali e estava escrito com a letra de sua mãe.
Cassidy aproximou o envelope do seu nariz. Ainda cheirava a sua mãe. Abriu-o lentamente com a unha e desdobrou a folha de seu interior. Uma a uma decifrou
as palavras que cruzavam o frágil papel em linhas trementes.
Minha querida Isabelle,
Rezo para que receba esta carta a tempo. Inclusive quando escrevo estas palavras, sei que minhas horas na terra estão chegando ao fim, e minha esperança
é que esta página esteja em suas mãos antes que vá.
Respire fundo, minha amiga, e não se aflija. Soube durante meses que minha morte estava próxima, mas tratei que lutar pelo bem de Cassidy. Desculpe minha
brevidade.
No ano passado, apenas uns meses depois que você se foi, Aaron partiu às minas de Nevada. Nunca retornou. Morgan seguiu-o, e ele também desapareceu. Não
sei nada deles. Em meu coração sei que Aaron está morto, e minha alma se foi com ele. É o costume entre nós nosso quando o laço é muito profundo.
Não, minha querida amiga! Não posso te sobrecarregar com isto, não quando sei que se sente em dívida conosco por esses anos felizes que passou aqui. Nunca
existiram dívidas entre nós, Isabelle. Mas agora devo te pedir que me ajude.
Reuni todas as provisões que pude para Cassidy, mas não há ninguém nestas montanhas em quem confio. Ninguém exceto você. Por favor, ajude e acolha Cassidy
em seu coração e em seu lar. Não me importa seu passado, assim como não te importa minha natureza. Somos irmãs em tudo, exceto no sangue.
Eis os papéis que revelam os nomes da minha linhagem na Inglaterra que minha querida mãe desejava esquecer. São pessoas de riqueza e alta fila. Nunca desejei
ir contra os desejos de minha mãe, mas eles são minha família. São de minha classe. Cassidy deve conhecê-los para compreender a si mesma e seus dons.

Sei que não tem desejo algum de voltar para a Inglaterra, mas não tenho outra eleição que pedir sua ajuda. Se puder fazer um sacrifício tão grande, leve
a minha filha àqueles que podem dar-lhe o que nenhum humano pode. Rezarei até meu último fôlego para que esta decisão seja a correta, e que Cassidy encontre a felicidade
e o lugar que meus pais nunca puderam encontrar.
Venha, oh... sem perder tempo, minha querida amiga.
A carta acabava com as últimas palavras quase ilegíveis, como se sua mãe estivesse muito cansada para terminá-la. Assinada ao pé era um garrancho.
Cassidy pressionou a folha aberta contra seu rosto. Isabelle. Recordava-a vagamente, como um rosto brilhante e uma saia ampla, rindo com sua mãe ou brincando
como uma menina pequena. Tia Isabelle. Sim, sua mãe tinha falado dela, e sorria quando fazia.
Esta era uma carta, e supunha que devia chegar à tia Isabelle, que se mudou para São Francisco quando Cassidy era pouco mais que um bebê. Cassidy sabia
o que era uma carta, e como sua mãe estava acostumada a ir ao povoado, às vezes para enviá-las. Mas esta nunca tinha sido enviada. Talvez sua mãe esqueceu, ou estava
muito doente.
Algumas partes da carta eram confusas, mas Cassidy entendeu o suficiente. Sua mãe desejava que Isabelle viesse e a levasse a um lugar chamado Inglaterra,
onde havia... deteve-se para decifrar as palavras de novo. "... família na Inglaterra que minha querida mãe desejava esquecer... família... minha linhagem"
Família. Loups-garous, como sua mãe. Esse era o nome no que podia transformar-se.
Cassidy encontrou os outros papéis sobre quais sua mãe falou e olhou a pequena lista de nomes.
Forster. Sua mãe também tinha mencionado o nome antes. O sangue Forster. Não significava nada para Cassidy, nem palavras como "conde", "Greyburn" e "Northumberland".
Mas todas tinham que ver com família. Pertencer a algo. Não estar sozinha nunca mais. Conhecer todos os segredos que a manteriam a salvo para sempre.
Não sempre. Sua mãe estava morta. Mas em algum lugar havia pessoas como ela. Pessoas com as quais conviveria... Se pudesse encontrar Isabelle.

Cassidy balançou-se sobre seus joelhos e olhou fixamente a fraca chama presa na madeira. São Francisco estava muito longe, ela sabia. Isabelle se alegraria
em vê-la?
Um nó formou-se em sua garganta. Sentir os braços de alguém ao seu redor, e escutar palavras amorosas, uma voz dizendo que tudo daria certo...
No exterior da cabana relinchou um cavalo.
Cassidy ficou de pé com um salto. Já não havia cavalos aqui, não desde que roubaram a égua.
Todo seu cabelo pareceu ficar arrepiado, e suas pernas tremeram. Pai. Papai tinha voltado para casa. Ou Morgan. Ou ambos. Tinham vindo para recolhê-la.
Meteu a carta em seu bolso, correu à porta, tropeçou na soleira, e saiu voando para o estreito alpendre. O homem estava baixando do cavalo, mas Cassidy
soube imediatamente que os aromas não estavam bem. Nem seu pai, nem Morgan. Um estranho.
-Olá? -chamou o homem.
Cassidy ficou muito quieta, como um coelho. O homem a viu e começou a aproximar-se dela.
-É esta a cabana dos Holt? Seu pai está em casa, menina ?
Ele conhecia seu sobrenome. Possivelmente conhecia seu pai. Ela deu um passo adiante e se deteve na beira do alpendre.
-Meu pai partiu -disse, tentando parecer mais velha. Olhou o estranho nos olhos. Estavam rodeados de rugas e sua pele era muito escura. Havia algo em seu
rosto...
Ele franziu o cenho.
-Qual é seu nome?
-Cassidy - ela disse.
- Cassidy Holt.
O homem encolheu os ombros.
-Então vim ao lugar correto -Seu olhar varreu a cabana e voltaram para Cassidy.
- Quando voltará seu pai?
Ela mordeu o lábio porque, como estava assustada, certamente balbuciaria.
-Partiu e nunca voltou.

O estranho tirou o chapéu mostrando seu rígido cabelo cinza e os sustentou entre as mãos.
-Quanto tempo faz disso?
-Quando eu só tinha seis anos -disse ela.
- Depois partiu Morgan, e minha mãe... -As palavras queriam sair a fervuras, porque não havia ninguém para escutar até agora. Mas ela mordeu o lábio com
mais força e olhou fixamente a bota do homem, gasta e coberta com o pó vermelho da montanha.
-Deve ter uns sete anos -disse o homem.- Onde está sua mãe?
Cassidy reteve o fôlego com um soluço e saltou fora do alpendre para os braços do estranho. Ele deu um passo para trás e fechou seus braços ao redor dela,
o suficiente para mantê-la sobre seus pés. Manteve-a apartada com as mãos sobre os ombros dela. Ela se abraçou a si mesma em seu lugar.
-Está morta -murmurou.
O homem emitiu um som rude, tomou-a pelo pulso, e empurrou-a para a cabana, olhou dentro, e voltou-se para fechar a porta.
-Maldito seja, Aaron. Deixou-me limpando o que deixa atrás pela última vez.
Cassidy olhou para cima e viu o rosto do estranho. Agora estava zangado, mas não havia ninguém com quem se zangar. Exceto ela.
De repente agachou-se junto a ela.
-Escute-me, pequena. Terá que vir comigo -Não falava como se desejasse que fosse com ele.
- Não posso te deixar aqui, fosse o que fosse sua mãe... -Sacudiu a cabeça.
- É meu parente. - Parente. Família. - É minha... família? -perguntou ela com uma pontada quase dolorosa de esperança.
-Seu tio Jonas -disse ele, endireitando-se.
- O irmão de seu pai. Vim da Califórnia por outras razões, mas parece que terei que cuidar de você, eu goste ou não. -Entrou outra vez na cabana, deixando-a
no alpendre, e retornou poucos instantes depois com um fardo preso com uma velha manta.

- São pouco mais que farrapos, mas terão que servir - Examinou de novo.
- Querido Senhor, pequena, aqui só, desde quando só Deus sabe,... é um milagre que siga viva -Seu rosto obscureceu.- Mas do que me surpreendo?
Não compreendia exceto quando havia algo de que não gostava. Por um longo momento ele simplesmente olhou-a fixamente.
-Graças a Deus que tem mais de Aaron que dela. Nesta noite ficaremos na cidade.
-São Francisco? -perguntou Cassidy.
Ele soprou.
-Iremos ao Leste, pequena, não ao oeste. Ao Novo México. Ali tenho uma granja. Terá bastante que comer, e trabalho para se manter ocupada. Sua tia se encarregará
disso -Ele estirou a mão.
- Venha... cavalgará detrás de mim.
Cassidy se deu conta de que ele queria dizer partir agora mesmo, que ia partir com um estranho que era sua família, mas que realmente não a queria. Olhou
ao seu redor e se precipitou dentro da cabana, para os poucos livros gastos da prateleira. Encontrou outra manta e confeccionou uma instável pilha de livros em seu
centro, acrescentando quanta comida podia conduzir.
Quando voltou para o seu tio, ele franziu o cenho.
-O que é isto? -Desfez o nó da parte superior do fardo-. Livros? Não tenho lugar...
-Não posso ir com você -disse ela.
- Devo encontrar Isabelle.
-Não conheço nenhuma Isabelle.
-A amiga de minha mãe -Ela escavou em seu bolso e tirou a carta, alisando-a contra seu peito.
- Minha mãe escreveu-a...
O tio Jonas tomou o papel de sua mão. Depois de um momento espremeu-o em seu punho e deixou-o cair ao chão. Cassidy inclinou-se para recolhê-lo, mas seu
tio esmagou-o com seu pé até reduzi-lo a nada. Tragando o nó de sua garganta, Cassidy fechou os olhos e rememorou cada linha da carta, de forma que nunca esquecesse.
-Não necessita das amigas de sua mãe -disse ele.

-Mas a família de minha mãe vivem na Inglaterra - ela disse, pronunciando a palavra cuidadosamente. - Ela disse que podiam me ajudar.
-Esqueça-os.
-Mas... você pode me ensinar como me transformar, tio Jonas?
A cabeça dele levantou-se bruscamente. -Não falaremos sobre isto nunca mais. Eles não têm nada que ver conosco. Não mencionará outra vez essa transformação.
Ela calou ante a dureza de suas palavras. Já tinha se dado conta de que seu tio, como seu pai, não era um loup-garous. Havia algo distinto no aroma, na
sensação que percebia quando tocava alguém que podia transformar-se. Mas Jonas não queria falar sobre isso. Alguma coisa o havia assustado.
Cassidy não estava assustada. Inclusive, se o tio Jonas não queria mencioná-lo, devia existir alguém que faria. Alguém que compreendia e poderia explicar
o presente que lhe tinham prometido antes que sua mãe morresse.
-Não se preocupe comigo -disse ela.- Não tem que me cuidar. Isabelle...
Sem acrescentar palavra, ele envolveu seu pulso com sua grande mão e lançou-a para o cavalo. Ela teve o tempo justo para aferrar seus livros. Ele atou o
fardo à cadeira e montou, com o cenho franzido. Era bastante forte para lançá-la atrás dele, embora ela tivesse que subir para encontrar um assento entre a mochila
e os fardos atados depois da cadeira. Jonas chutou ligeiramente seu cavalo para que se movesse, e ela agarrou seu casaco para manter-se. Ele não olhou pra trás uma
vez sequer. Cassidy distanciava-se para sempre de tudo havia conhecido. Ela girou seu pescoço e ombros para olhar, como se ainda houvesse alguém na cabana que lhe
pudesse dizer adeus. Então giraram em uma curva, passaram depois de um grupo de pinheiros, e a cabana se perdeu de vista.
O chão estava muito longe. Se saltasse, ficaria sem seus livros e sem comida. Não podia deixar seus livros, nem sequer para encontrar Isabelle.
Era muito pequena, agora, para fazer o que sua mãe desejava. Mas chegaria o dia em que seria grande o bastante, e muito forte, para ir a São Francisco.
Então Isabelle poderia levá-la à Inglaterra, e ela voltaria a estar com a família. Família que a amaria e lhe ensinaria como ser loup-garous. Não importava o que
acontecesse no Novo México com o tio Jonas, nunca perderia esse sonho.
Prometo. Mãe - disse em silêncio. - Nunca me esquecerei.

CAPITULO 1

Londres, Inglaterra, 1875

Cassidy abriu seus olhos à desacostumada escuridão e permaneceu muito quieta, escutando os sons da água e o ruído surdo do barco a vapor.
Mas os aromas não eram de salmoura e ar de mar, e o ruído não era tão tranqüilo como no mar. Ficou muito quieta e rememorou em sua mente o longo caminho
que havia feito até ali, ao hotel da Estação Vitória e ao pesado fedor da noite de Londres.
Tudo tinha sido como um sonho do momento em que tinha deixado o rancho onde tinha passado os últimos quinze anos de sua vida, deixando atrás um lugar que
nunca tinha sido um lar e a pessoas que se alegraram por vê-la partir. Os parentes de seu pai, que nunca a tinha compreendido ou aceitado, devido ao selvagem sangue
de Edith Holt que corria por suas veias.
O sangue daqueles a quem tinha vindo encontrar.
Recordou o longo caminho para o oeste do território do Novo México até a Califórnia, racionando o pouco dinheiro que tinha podido regular e economizar ao
longo dos anos.
Tinha estado imersa em uma enchente de sensações estranhas no momento em que tinha montado na lotada diligência em Las Cruzes. Sua pouca experiência do
mundo -um mundo de salvia, arbustos de creosoto e mesquite, o calor do deserto, vacas e tijolos de barro crú - tinha trocado para sempre, quando o trem chegou ao
Colorado. Nem sequer seus livros de poesia e de histórias românticas e de aventuras cuidadosamente preservados, teriam podido prepará-la para o que encontrou nas
buliçosas cidades ao longo das vias do trem, nem poderia imaginar nada tão enorme e desalentador.
Até que chegou a São Francisco e procurou o endereço que tinha memorizado fazia tanto tempo. Somente o instinto e a sua férrea determinação tinham-na conduzido
através do labirinto de ruas e edifícios para encontrar a única pessoa em todo mundo que podia ajudá-la.

Isabelle Smith, a amiga de sua mãe, que tinha feito possível o resto desta viagem. E agora, ambas estavam em Londres, uma cidade maior que São Francisco,
inclusive maior que Nova Iorque, a qual Isabelle havia dito que era a maior cidade da América. Imensa, buliçosa, impossível de evitar nem sequer durante o sonho.
Cassidy sentou-se e olhou o tênue quadrado da janela. Devia ser quase meia-noite, e o estrépito e o clamor das ruas debaixo logo tinham diminuído. Se aproximasse
da janela, podia ver as carruagens subindo e baixando pela rua pavimentada, de caminho e de volta de lugares com nomes como Belgravia e Mayfair.
Era a "temporada", tinha-lhe explicado Isabelle, uma época de festas e constante atividade nesta zona de moda de Londres. As pessoas da vizinhança eram
ricas, nobres ou importantes de alguma forma. Era o tipo de lugar onde o conde de Greyburn devia viver.
O conde. Um lorde, como os cavalheiros das antigas histórias, uma classe de homem distinto, qualquer que tenha conhecido sua vida. Seria poderoso, e nobre,
e muito magnífico para os gostos de Cassidy Holt.
Mas era um Forster. Estava na lista que Cassidy tinha memorizado quando tinha sete anos. Era sua família.
E amanhã encontraria-os. Mas amanhã já era hoje. Os largos anos de espera chegavam ao fim.
Estirou as pernas para o chão e olhou através do escuro quarto para a cama contígua onde dormia Isabelle. Seu delicado rosto -tão formoso como devia ser
o da Bendita Damozel do poema de Rossetti - estava tranqüila pelo sono, e Cassidy sentiu uma quebra de onda de afeto e gratidão. Isabelle tinha sido amiga de sua
mãe, e agora era de Cassidy. Ela era uma verdadeira lady, tal como os das carruagens debaixo. E tinha nascido na Inglaterra. Assim também tinha voltado para o lar.
Lar.
Cassidy aproximou-se da janela e abriu-a, farejando a grossa névoa, procurando algum aroma familiar. Havia um lugar onde cresciam coisas no meio desta cidade
interminável, eles o chamavam de Hyde Park, e ela podia cheirá-lo, junto com os outros magníficos e murados espaços que os ingleses tinham preparado para seus jardins.

Muito mais fortes eram os aromas do esterco de cavalo, da fumaça e da água rançosa do grande rio do sul. Tão longe como podia ver, havia edifícios semelhantes
a feios escarpados quadrados aparecendo sobre profundos e ruidosos arroios, partindo em fileiras até perder-se na interminável bruma e escuridão.

Perguntou-se como alguém podia tolerar viver entre esses frios canhões. As paredes do hotel pareciam capturá-la, e recordou com nostalgia a austera beleza
do deserto, sem travas e sem domesticação.
Mas no Novo México tinha estado sozinha.
Um calafrio de espera atravessou-a como se uma mão invisível roçasse sua nuca. Estavam-na esperando, lá fora. Podia sentir. Uma silenciosa chamada no pesado
ar úmido, recordou-lhe pela metade a suave cadência da voz de sua mãe. A voz dos loups-garous. A linguagem que Cassidy desejava converter na sua própria.
Isabelle ensinou-lhe algumas maneiras próprias da cidade durante a viagem à Inglaterra; aqui, uma moça não viaja sozinha. Isabelle nunca aprovaria os pensamentos
que corriam através da mente de Cassidy.
Mas Isabelle estava profundamente dormida, e Cassidy sabia como se mover em silêncio. De noite podia caminhar sem ser vista, sem ser incomodada pela multidão
que convertia as ruas impossíveis de caminhar durante a luz do dia.
Podia seguir a chamada. Devia fazê-lo.
Duvidou na escolha de suas roupas; tinha um vestido de viagem liso de seda que Isabelle comprou-lhe, mas não podia mover-se comodamente com ele. Seu vestido
de trabalho, o único que possuía no rancho, salvo para as ocasiões especiais, não era o tipo de armadura que necessitava para aventurar-se no desconhecido.
Murmurou uma silenciosa desculpa para sua amiga adormecida e colocou os jeans e uma velha camisa que tinha escondido do crítico olho de Isabelle. Ela tinha
obrigado-a a desfazer do maltratado chapéu de trabalho; assim que jogou o cabelo para trás e o atou o melhor que pôde com um pedaço de laço que a amiga tinha deixado
sobre a mesinha.
Não foi difícil sair e passar junto às poucas pessoas que havia no vestíbulo, pessoal do hotel e convidados com negócios de última hora. Encontrou uma escada
lateral e seguiu seu olfato até uma estreita porta afastada da grande entrada principal.

Em uns poucos minutos encontrou-se na rua, em um pequeno beco. Estava muito escuro e lotado de lixo, mas ela encontrou seu caminho para a rua principal,
detendo-se na esquina. Uma fileira de luzes iluminava a travessia para as carruagens de passageiros, e esclareceu suas idéias.
Ao norte estava o aroma da erva, de árvores e de água, ao sul o grande rio chamado Tamesis. Era muito mais largo que o rio Grande, conforme tinha ouvido,
mas nenhum granjeiro trabalhava suas bordas em Londres.
Em alguma parte, começando nesta mesma rua, descansava o caminho do seu futuro. Em Novo México tinha sido capaz de rastrear um coelho entre milhas de matagais
e deserto. Tudo o que precisava era um sinal, uma pista neste lugar sem pistas, para lhe mostrar o caminho.
Fechou seus olhos e desejou com todo seu coração.
A resposta chegou em forma de uma fina, esquiva espiral de aroma que se distinguia com força, elevando-se sobre os pesados aromas como o grito do falcão
em uma tormenta.
Ela não podia explicar como este aroma, tão distinto ao que tinha encontrado antes, fazia com que seu coração saltasse e que sua respiração se entrecortasse.
Era extraordinário, como uma flor brotando fora da estação no deserto. Único. Irresistível.
Ela soube. Era o sonho feito realidade. Era a vida. Era ela mesma.
E enquanto permanecia ali paralisada, com o assombro, o aroma começou a afastar-se, desvanecendo-se além de seu alcance.
Ela entrou na rua e capturou o rastro como se fosse uma corda roubada de sua mão por um excêntrico brincalhão. Norte; conduzia-a para o norte, e o objetivo
não estava longe.
Não podia perdê-lo. Era a melhor rastreadora do rancho de seu tio, nenhum outro vaqueiro aproximou-se de sua habilidade. Sob o amarelado resplendor das
luzes seguiu o aroma com rapidez, apenas pendente dos transeuntes, inadvertida porque ela assim o desejava.
Que seguia, era inequívoco. Quando o encontrou, soube.
Ele caminhava sozinho, com a cabeça baixa e o olhar fixo à frente como se esperasse obstáculos que pudessem afastá-lo de seu caminho. Era alto, de ombros
largos; levava casaco e chapéu, sustentava uma fortificação e seu passo era firme e decidido.

Cassidy tinha visto homens de todos os tipos durante sua viagem a Londres. Homens altos, homens baixos, atraentes e feios, ricos e pobres, amáveis e cruéis.
Mas sempre tão humanos como as pessoas que tinha conhecido no Novo México. Era algo mais.
Não importava que não pudesse ver seu rosto e nem sequer que não soubesse seu nome. A necessidade em seu interior era forte; era selvagem em si mesmo, à
parte dela que tinha esperado despertar. Era muito forte para resistir. Não tinha outra opção que seguir este homem, este estranho familiar, como se seguisse seu
destino.
Ele estava entrando em uma larga praça, com grama pulcramente recortado, sebes, árvores e fileiras de enormes casas, todas similares, a ambos os lados.
A riqueza das magníficas carruagens, e as pessoas belamente vestidas indicaram-na quem vivia nessas casas. Parecia correto que seu estranho pertencesse
a esse ambiente. Ele subiu os degraus da entrada de uma das coisas, e depois de um momento a porta abriu-se e ele entrou.
Cassidy agachou-se atrás um arbusto e esfregou suas palmas nos gastos joelhos de suas calças. Os poetas falavam sobre coisas como o destino. Possivelmente,
teriam algo que dizer sobre por que estava ela aqui, neste lugar e tempo.
Isabelle ficaria se horrorizada, se soubesse. Mas Cassidy não ia dar a volta agora. Estava lutando para encontrar o valor de cruzar a rua, quando uma carruagem
aproximou-se da casa; um veículo elegante com briosos cavalos, um condutor e um homem uniformizado que apeou assim que a carruagem parou. Seu estranho saiu novamente,
e o homem uniformizado sustentou a porta da carruagem aberta para ele.
Quando a carruagem ficou em marcha, Cassidy já tinha tomado sua decisão. Deixou que ganhasse uma pequena distância, e logo correu atrás dele. Podia correr
durante milhas, se tivesse que fazê-lo. Uma suave garoa começou a cair, uma umidade que empapou suas roupas e pele. Ela apenas sentia.
A carruagem tomou uma curva e entrou em uma larga avenida, flanqueada em um lado por jardins gradeados. Cassidy recordou-se de Isabelle mostrando-lhe e
dizendo que era o palácio de Buckingham, pertencente à rainha da Inglaterra.

A carruagem,porém passou direto, para uma buliçosa intercessão que obrigou Cassidy a utilizar toda sua concentração para seguí-lo. Logo avançaram ao longo do
Hyde Park, o maior espaço aberto que ela tinha visto em Londres, e giraram para o por uma rua mais estreita, uma vez mais encaixada entre fileiras de casas cuidadosamente
dispostas.
Ocultar-se era mais complicado aqui. Havia muitas carruagens, pessoas indo daqui para lá, entrando e saindo das casas entre estalos de risadas e música
tênue. A casa diante da qual se deteve a carruagem de seu estranho, era a mais buliçosa de todas, brilhante de luzes, guardada por homens de uniforme que se inclinavam
diante de todos os convidados que chegavam à porta.
Uma vez, Cassidy tinha pensado que os amigos e conhecidos de seus tios que iam a suas freqüentes festas estavam esplêndidos com sua elaborada roupa recém
comprada. Ela tinha observado com freqüência essas reuniões, através das janelas da fazenda de tijolo de barro crú de seu tio, às quais nunca tinha sido convidada
e tinha invejado as pessoas do interior. Sabia que ela, com sua roupa de trabalho, remendada e poeirenta, nunca seria um deles.
As pessoas daqui se moviam como se vestissem todos os dias esses trajes tão ostentosos e magníficos, como se nunca tivessem conhecido a sensação da sujeira
sob seus pés nus ou tivessem remendado um buraco de um par de meias.
Ninguém era tão magnífico como seu cavalheiro.
Ele desembarcou da carruagem e parou, levantou a cabeça, e ela pôde ver seu rosto à luz do abajur.
Fazia honra a promessa implícita em seu aroma de todas as maneiras possíveis. Seu porte era o de um rei, seu escuro traje perfeitamente talhado sobre um
elegante e forte corpo.
Seu rosto era atraente até tirar o fôlego. Sob seu chapéu uma única mecha de cabelo cinza cobria escuros e imponentes supercílios. Sua boca era nobre, seu
nariz largo, mas não muito grande, seu queixo quadrado e forte.
Mas foram seus olhos que a encantaram. Eram verdes, da rica cor da vida, como o deserto depois de uma boa chuva, ligeiramente inclinados sobre as altas
maçãs do rosto. Tinham o poder de penetrar a escuridão, e girou e olhou em sua direção...

Tigre! Tigre! Ardendo brilhantemente, disse ela em silêncio. Essa era a imagem que lhe vinha à mente. Ele ardia com muito brilho, em efeito. As janelas
de seu nariz alargaram-se como se farejassem o ar, um caçador a ponto de saltar. Autoridade e poder emanavam dele como o calor da terra do deserto, fluía como um
manancial que nunca secaria, um manancial com o dom de restaurar a vida ao final de uma larga e perigosa busca; um poço mágico que podia responder a todas suas perguntas.
No Novo México, quando as perguntas e as necessidades sem satisfazer se faziam algo impossível de suportar, ela entrava correndo no deserto, permanecia
de pé sob a lua e uivava até que sua garganta ficava rouca. Agora se sentia como se uivasse. Assim, mordeu o lábio e afundou-se mais profundamente nas sombras. Mas
a precaução não pôde acalmar a excitação que a convenceu de que conhecia este estranho tão bem como a si mesmo. De que, se saísse à luz, ele abriria seus braços
e a levaria ao seu reino mágico.
Ele se virou afastando-se dela, sem vê-la, e subiu os degraus da casa. Falou com os homens de uniforme, que se inclinaram e o acompanharam ao interior.
O homem que ficou olhou à esquerda e à direita e seguiu-os, deixando a entrada deserta.
Cassidy ajoelhou-se junto a uma baixa grade de ferro e olhou para a rua. Havia uma pausa no ir e vir das carruagens e a multidão; os guardas da porta não
estavam. Subiu correndo os degraus, deteve-se diante à porta, respirou fundo e abriu-a.
O grande vestíbulo estava vazio, mas ela sentiu que somente era uma condição temporária. Esses homens de uniforme voltariam. Podia ouvir música, e muitas
vozes descendo pela larga escadaria que subia até o segundo andar. Era óbvio aonde tinha ido seu estranho.
Ela não via outra maneira de continuar, exceto subindo aquelas mesmas escadas. Ao menos seus sapatos eram novos e não sujariam a polida perfeição dos degraus
de mármore. Ela apoiou-se no corrimão e subiu as escadas, pendente do grito que converteria sua aventura em uma parada humilhante.
Mas chegou no topo sem ser vista. Teve a sensação de que deveria haver mais gente no patamar; uma sensação de espera flutuava no ar, e provinha em sua maior
parte de uma porta aberta à frente das escadas.

Ali era onde a música e as vozes eram mais altas, e onde os dois homens uniformizados permaneciam, olhando ao interior da habitação mas sem entrar. Uma mulher
com vestido negro e gorro negro uniu-se a eles, sussurrando excitadamente.
Algo estava a ponto de ocorrer. Cassidy abandonou a precaução e colocou-se depois dos espectadores, na entrada. Os aromas dos corpos apertados, os perfumes
e as flores eram enjoativos, mas ela soube que seu estranho tinha passado por ali somente uns momentos antes. A mulher do gorro olhou-a surpreendida, mas Cassidy
sorriu e sustentou seu olhar, e a atenção da mulher desviou-se dela.
Cassidy agachou-se e teve uma vista clara do interior do salão entre um par de pernas embainhadas em meias brancas.
O primeiro que viu foi um grande número de pessoas, repartidas por cada zona do salão, entre vasos de barro de novelo e colunas artificiais e em cada esquina.
A música provinha da zona mais afastada, emergindo desde detrás de uma fileira de arbustos; os músicos eram quase invisíveis.
Então viu seu cavalheiro. Permaneceu ao lado da porta, sem seu casaco e chapéu, muito quieto. Seu cabelo, conforme viu ela, não era cinza de tudo, a não
ser uma mescla de branco e negro. Enquanto o observava, ele parecia varrer o salão com seu olhar, pousando em alguém em particular que estava fora da vista de Cassidy.
Então foi quando tudo foi sossegando. O zumbido das vozes e as risadas apagaram-se, enquanto as cabeças giraram, uma a uma, para o cavalheiro de Cassidy.
O silêncio em si mesmo tinha vida própria, era sinistro e severo. Alguém riu nervosamente e calou-se com rapidez. A música morreu com um gemido.
Era por causa do seu estranho. Tigre, Tigre, ardendo brilhantemente. Olhavam-no fixamente, muitos rostos pálidos sobre esplêndidos trajes, as lustrosas
cores das damas e os negros trajes dos cavalheiros. Olhavam-no como se nunca o tivessem visto antes.
Seu cavalheiro começou a mover-se. Caminhava lentamente, com uma graça e uma autoridade tão inatas nele como seus brilhantes olhos. Magicamente a multidão
saiu do seu caminho, como se fossem bezerros meio selvagens evitando a um vaqueiro com um ferro de marcar.

Cassidy estirou o pescoço para ver o objeto do interesse do seu cavalheiro. Um pequeno grupo de mulheres estava reunido no extremo mais afastado da habitação,
tão próximas umas a outras que Cassidy não poderia dizer onde acabava o vestido de uma e começava o da outra.
Mas uma das mulheres era sutilmente diferente às suas companheiras, e Cassidy soube que ela era o objeto do interesse do estranho. A dama era um pouco que
Cassidy, com uma figura esbelta e um rosto chamativo, por não dizer formoso, coroado por um cabelo dourado. Seus brancos e quase nus ombros brilhavam na suave luz,
como se ela tivesse saído das páginas de uma das revistas de modas da tia Harriet.
Justo quando o cavalheiro de Cassidy estava a ponto de alcançá-la, uma mulher mais velha e corpulenta interceptou-o. Falou-lhe com uma voz baixa e agradável,
inclinando-se para ele, mas seu corpo embutido em um pesado traje transmitia seu medo. O cavalheiro de Cassidy duvidou durante uns poucos segundos, murmurando umas
poucas palavras à mulher mais velha. Ela deu uns passos para trás, visivelmente abalada.
Bruscamente, a jovem mulher loira separou-se de suas amigas, com o queixo alto e as costas muito retas. O cavalheiro de Cassidy encontrou-se com ela em
um círculo de silêncio, e permaneceram frente a frente, parecidos somente no ar de absoluto controle que ambos possuíam.
-Rowena -disse o cavalheiro de Cassidy, com sua profunda e segura voz, tão suave como o veludo e fria como uma noite de inverno no deserto.
- É hora de voltar para casa.
A dama não respondeu, mas seu rosto parecia esculpido em pedra como as estátuas que tinha visto no vestíbulo. Sem pressa voltou-se para suas amigas, estreitou
suas mãos e falou com o mais tênue dos sorrisos. Depois retornou junto ao cavalheiro de Cassidy, que lhe ofereceu seu braço. Ela tomou, pousando apenas sua mão enluvada
sobre a manga dele.
O silêncio durou até que estivessem a meio caminho da saída do salão, e então os murmúrios começaram de novo, sussurros inaudíveis que gradualmente aumentaram
de volume enquanto as damas e os cavalheiros começavam a se distribuir pelo espaço vazio.

-Céus! Nunca acreditaria. O conde em pessoa, aqui, nos dando um bom susto a todos. E a dama...
Cassidy escondeu-se dos homens que tinha a seu lado justo quando se afastaram apressadamente da entrada. O que falou tropeçou com ela antes que pudesse
afastar-se, e olhou para baixo com assombro.
-Ei! Quem é você? O que está fazendo aqui?
Tentou segurá-la, mas ela se sacudiu e saiu correndo para a escadaria. Em seu caminho, passou junto a outros homens e mulheres vestidos esplendidamente,
mas nenhum deles foi o bastante rápido para detê-la.
Saiu voando pela porta e jogou-se degraus abaixo, procurando um lugar para esconder-se. Encontrou uma fenda a ambos os lados da entrada, rodeada pela metade
por uma grade de ferro. Preparou-se e saltou, aterrissando sobre seus pés, retrocedendo até um oco em sombras.
Mas seu perseguidor devia estar ocupado. Depois de um momento Cassidy escutou vozes, e soube que seu cavalheiro estava abandonando a casa em companhia da
dama. Inclinou-se para obter uma melhor vista e os observou irem em direção à carruagem que os esperava.
Ela permaneceu em seu esconderijo até que as portas da carruagem e da casa estivessem firmemente fechadas, e a carruagem tinha começado sua marcha. Então
se pôs a correr atrás dele como tinha feito antes, rezando para que o homem, que se encontrava em uma plataforma depois das rodas, não se desse conta, e que ninguém
mais tentasse detê-la.
Mas ainda correndo, seus pensamentos continuavam retornando ao modo em que seu cavalheiro tinha olhado a todas essas orgulhosas e elegantes pessoas, a forma
em que tinha dominado o salão apenas em estar ali de pé.
E, quem era a dama que ele tinha reclamado tão audazmente? Ela era seu complemento em todas as formas, esplêndida e orgulhosa. Não era uma tigresa como
seu Tigre, a não ser... uma Rainha das Neves, fria e régia.
Cassidy estremeceu em suas úmidas roupas. Não era muito tarde para deter-se e retornar ao hotel. A carruagem estava tomando seu caminho para a casa de seu
cavalheiro; o que faria ela ali? Seguí-lo ao interior?
Sim, gritou-lhe uma sonora voz interior, vibrando em seu sangue e ossos. Sim.
Assim continuou atrás da carruagem, a qual girou para entrar na praça e se deteve diante da casa do cavalheiro. Ela se escondeu depois de um arbusto no
outro lado da rua, antes que Tigre e sua dama chegassem aos degraus dianteiros. O homem uniformizado que ia com o chofer acompanhou-os através da porta, e depois
Cassidy ficou sozinha na noite londrina.
Sabia o que Isabelle diria neste momento. Tinha uma idéia do que era apropriado, e de como deviam fazer as coisas entre estas pessoas. Sabia que só era
uma moça cinza e monótona usando objetos de menino, um esquálido camundongo do deserto no ninho de uns elegantes e pássaros tropicais. Mas sua voz interior não se
deixaria sossegar. Era o legado de sua mãe, era seu destino.
-Não me peça mais -sussurrou ela-, seu destino e o meu estão selados: Enfrentei a tormenta e tudo em vão: Deixa que o grande rio leve-me ao mar: Nunca mais,
querido amor, por um roce me rendo...
Estava se levantando, quando uns poderosos dedos seguraram-na fortemente pelo braço e arrastaram-na para fora.
Ela olhou para cima no rosto do seu Tigre. Seus verdes olhos eram apenas umas frestas, seu rosto era severo e ameaçador.
-Quem é? -exigiu saber, o veludo impregnado em sua voz.
- Você esteve me seguindo.
Ela ficou muda, passando do medo à excitação ante sua presença.
-Eu...
Ele a aproximou mais, alargando as janelas do nariz.
-É uma de nós -disse. Sua boca movendo-se nervosamente. Elevou a mão livre para tocar o rosto dela.
- Impossível. Conheço você...?
Tudo o que Cassidy pôde fazer foi manter-se sobre seus pés enquanto os dedos dele examinaram sua mandíbula, sua bochecha, sua orelha. Teve a louca idéia
de que talvez estivesse no hotel, e isto era um sonho, cruelmente irreal. Estava assustada, mas o medo era a parte menor das emoções que faziam que todo seu corpo
tremesse.

Não podia falar, lutando por tirar de sua memória uma linha de poesia ou um fragmento de alguma história fantástica que pudesse explicar sua reação ante o roçar
dele, o incompreensível gozo de senti-lo apenas a um batimento do coração de seu coração, liberando todas essas conhecidas necessidades, terríveis de alguma forma,
que nunca se atreveu a perder.
-É uma de nós -repetiu ele, e deveria haver assombro em suas palavras se não fosse por sua aspereza. Seu apertão endureceu-se, e sua respiração ficou entrecortada.
- Quem é você?
-C... Cassidy - murmurou ela.
Ele a observou fixamente com esse olhar penetrante, olhos verdes como a esmeralda de sua tia.
-Cassidy, o quê?
-Holt -conseguiu dizer ela.- Da América. Cassidy Holt.
Estava tão concentrada nele que via cada mudança sutil em sua expressão: o relaxamento de sua boca, a forma de seus lábios, a suave respiração, a forma
com que a linha entre suas escuras sobrancelhas se esfumava. Sua mão caiu para aferrar o outro braço dela, e a sustentou como se pudesse devorá-la, como o Tigre
que era.
-Cassidy... Holt -disse.- Está viva.

















CAPITULO 2

Braden soube que o estavam seguindo, desde que tinha entrado na rua Lower Belgrave.
Tinha identificado seu perseguidor como uma fêmea por seu aroma, e que era uma loup-garous no instante em que a tocou. Isso por si mesmo era um milagre,
se ainda acreditasse em milagres. Estava seguro de que conhecia cada homem e mulher da raça na Inglaterra, e além das costas da ilha.
Mas nunca, nem em seus mais selvagens sonhos, permitiu-se semelhantes frivolidades. Teria adivinhado quem sustentava entre seus braços.
Cassidy Holt... a filha de Edith, neta de seu tio avô William Forster... estava viva.
Recordou o dia, oito anos atrás, quando Tiberius Forster, em seu leito de morte, tinha encarregado seu neto e herdeiro à tarefa de encontrar o ramo Forster
perdido na América e devolvê-los à Causa. Braden era pouco mais que um menino sem experiência naquele tempo, naquele tempo, loucamente apaixonado por sua jovem noiva
e preocupado por suas novas responsabilidades como conde e líder da Causa. Mas tinha cumprido com seu dever. Ele enviou agentes à América para rastrear a vaga pista
da filha de William Forster, Edith, e seu companheiro humano, perseguindo-a todo o caminho até a Califórnia.
Mas o rastro tinha terminado com a morte. A morte de Edith, e o aparente desaparecimento de sua esposa e de seus dois filhos meio humanos. Braden tinha
aceitado e deixado de lado os informes de seus agentes sem perguntas, porque, que importância podiam ter uns parentes tão distantes e de sangue mesclado, quando
o resto do mundo descansava na palma de sua mão, a companheira perfeita compartilhava sua cama, e a Causa era sua para moldá-la e levá-la ao triunfo?
Mais tarde, muito mais tarde, deu-se conta do que tinham perdido quando tinham abandonado a busca. Depois de pagar o preço de sua arrogância e aprendido
o pouco que em realidade controlava. Depois de compreender, pessoal e amargamente, o precioso e estranho que era o sangue loup-garou. Por sua culpa, em duas ocasiões,
a Causa tinha sofrido um dano irreparável.

Mas um milagre tinha ocorrido esta noite em sua própria porta. Não o tinha procurado. Não o merecia. Um dos desaparecidos descendentes de Edith Holt tinha
vindo a Londres como uma promessa de redenção. Tinha vindo diretamente a ele.
Há vários anos atrás, certamente teria rido pela total surpresa. Agora, não ria. Absorveu a realidade da presença da moça, sentiu a comoção transformar-se
em um sorriso e uma sardônica sensação de triunfo.
- Vê, vovô? - Perguntou silenciosamente, embora não tinha mais fé em que o velho tirano pudesse ouvi-lo.
A garota estava muito quieta. Ele podia sentir seu olhar, uma sensação tão física como a tensão elétrica que passava do corpo dela para entrar no seu.
-É como minha mãe -disse ela. Sua voz era baixa e rouca, com o acento típico do sul americano, mas continha toda a excitação de uma menina.
- É um loup-garou.
A esperança riscou um atalho inesperado no coração dele, mas jogou-a a um lado.
-É óbvio -respondeu com impaciência.
- Como me encontraste?
-Eu... capturei seu aroma, no hotel próximo à estação de trem. Segui-o.
Ele recordou quando passou junto à estação Vitória fazia uma hora, roubando uns poucos instantes para um passeio privado antes de enfrentar Rowena no Leebrook.
Era possível? Podia o sangue desta menina ser tão forte, seus dons tão puros, que podia distinguir o aroma desconhecido de um companheiro loup-garou entre
o lodaçal de peste e fedor que era Londres?
Mas Londres também tinha olhos e ouvidos, e ele não tinha intenção de sustentar esta excepcional conversação em público. Largou seu braço, empurrou-a para
a casa.
-Venha. Poderá explicar o resto no interior...
Ela era alta, embora não tanto como ele, e surpreendentemente forte quando se plantou sobre seus talões negando-se a dar outro passo.
-Mas nem sequer conheço seu nome!

Ele quase tropeçou no degrau mais baixo da entrada e voltou-se para enfrentá-la. Ela tinha reconhecido o que era ele, mas não sabia a quem tinha seguido?
Sem questionar o impulso, estirou-se para tocar seu rosto de novo, sentiu seu estremecimento e sua aceitação da exploração tal como tinha feito antes.
Esta vez ele se moveu mais lentamente, explorando cada contorno e cada linha, acariciando a suavidade de sua pele. Antes se tinha deixado levar pela urgência,
agora examinou os detalhes um a um.
Rasgos distintivos. Teimoso queixo, boca larga, nariz ligeiramente arrebitado. Os característicos olhos inclinados dos Forsters, raça pura. Grosso cabelo,
ligeiramente ondulado e apenas sujeito por um laço frouxo. Deteve-se em seus lábios, passando a gema ao longo. Eram tenros, docemente curvados.
Seus lábios se abriram, e sua língua saltou para tocar o dedo dele em um gesto nervoso.
Ele retirou a mão e apertou-a para seu flanco.
- Por que você veio a Londres?
-Para encontrar a minha família. Os parentes de minha mãe. Vivem aqui, na Inglaterra -Sua voz elevou ansiosa.
- Talvez você os conheça. Chamam-se Forster, e um deles é um lorde. Provavelmente vive justo... - Esticou-se com uma repentina revelação, e logo começou
a rir em um jubiloso estalo.
- É você, verdade? Você é minha família!
Um sorriso abriu-se na boca dele, como se a felicidade infantil dela fosse contagiosa. Conteve o impulso e inclinou-se com firmeza.
-Seu primo, Braden Forster.
Cassidy Holt deu um passo para trás, seus pés executando uma pequena dança fora de moda sobre a grama molhada. Por Deus, era uma menina. Apenas uma menina,
mas com idade suficiente. Sim, suficiente para jogar seu essencial papel. Ela possivelmente não podia conceber quão importante era.
-Isabelle não acreditará -disse ela.
-Encontrei você. -Sem aviso ou sequer um pouco de modéstia jogou-se sobre ele, abraçando-o com seus esbeltos braços, pressionando o rosto contra seu casaco.
- Encontrei você! -Repetiu.

Braden permaneceu completamente quieto. O aroma envolveu-o: flores silvestres e desconhecido odor, agudo pungente, ganho, pó e luz do sol que ainda não
tinha sido afligido pela umidade, a fumaça e a sujeira de Londres. Cuidadosamente largou de seus braços e colocou as mãos dela a seus flancos.
-Jovenzinha, que cheiro é esse?
-O quê? OH... é do rancho -Seu silêncio ardia com a vergonha.
- Tenho um vestido, mas...
-Que afortunada.
Mas possivelmente a escolha de sua roupa - tinha sido uma escolha - tinha sido inteligente. Dificilmente os transeuntes teriam percebido que era uma
mulher. Ele elevou a cabeça rastreando qualquer intrusão em sua privacidade, mas estavam sozinhos na praça. Toda a gente de presunção de Londres, conforme parecia,
estava na festa de Leebrook.
-Onde ficava esse rancho? -perguntou.
-No Novo México. Fui viver ali com meu tio quando tinha sete anos, depois de que minha mãe morreu -Sua voz suavizou-se.
- Mas ela queria que eu viesse para cá, para vocês. Com os Forster. Escreveu à Isabelle pedindo-lhe sua ajuda, mas a carta jamais foi enviada. Meu tio Jonas
veio até mim, e não pude vir, até muito tempo mais tarde, até que eu...
- Você veio sozinha à Inglaterra?
- OH, não. Isabelle veio comigo, chegamos ontem. Isabelle é uma dama fina, a melhor amiga de minha mãe e minha amiga também. Ela me disse onde poderia te
encontrar -deixou escapar o fôlego.
- Deixei-a no hotel. Suponho que nestes momentos estará muito preocupada, se estiver acordada...
-E o que te levou a deixar seu hotel na metade da noite?
-Senti... ouvi algo me chamando -Ele sentiu-a aproximando-se, deter-se, manter-se muito quieta. - Sempre, desde que minha mãe morreu, esperei isto -Tragou
audivelmente. - Meus tios nunca compreenderam. Não me queriam, não importava quão duro trabalhasse. Sempre estavam assustados.

Porque eram humanos, como o companheiro de Edith Holt. Braden escutou a dor atrás das palavras de Cassidy, e soube que havia mais na história do que ela
queria compartilhar. Podia imaginar muito bem. Abandonada como uma órfã, recolhida por pessoas que tinham negado sua verdadeira natureza.
A compaixão era algo que ele rechaçava, de outros ou para outros. Não havia tristeza em Cassidy Holt.
-Você estava me chamando -disse ela.- Guiando-me ao lar. E agora estou aqui.
O primeiro instinto dele era rechaçar sua reclamação. Nem sequer sabia que estava viva, e menos em Londres. Ela tinha confundido sua habilidade natural
para reconhecer os de sua mesma família, indistintos inclusive entre os loups-garous, com alguma chamada mística.
Por que não deixar que acreditasse? Devia fomentar sua ingênua simplicidade, seu sentido do destino, sua estranha, mas absoluta confiança nele. Nesses escassos
minutos, ele tinha aprendido o suficiente sobre ela, mas se sentia agradecido ao tio que a tinha mantido separada do medo. Tinha crescido claramente ignorante do
resto do mundo e sua multidão de complicações - decoro, distinções sociais, tentações e perigos ocultos - com sua inocência extraordinariamente intacta.
Tudo para o bem. Tal ingenuidade fazia com que ela parecese mais tentadora, facilmente moldável para o rol que lhe atribuiria.
Tinha cruzado o oceano para encontrar parentes que nunca tinha conhecido e caminhado sozinha pelas ruas noturnas de uma cidade desconhecida, esta menina
de um país longínquo, esta paradoxal descendente dos Forster rebeldes. Seus dons eram inequívocos, seu sentido comum era sólido. Como loup-garou estava a salvo dos
danos normais, mas tinha tido a sabedoria de não correr como um lobo neste mundo desconhecido.
Era inocente e ardilosa ao mesmo tempo, uma combinação inesperada. E tinha sido devolvida a ele. À Causa.
Não podia se permitir o luxo de esquecer que ela era algo mais que um artigo valioso perdido por sua falta de cuidado e fortuitamente recuperado. Muito
mais.

Recordou vividamente a sensação de sua pele, seu cabelo, sua boca sob as gemas de seus dedos e sentiu os primeiros puxões de um interesse mais profundo unido
a uma emoção que não pôde definir: quase íntimo, pessoal, completamente separado de sua preocupação pela participação dela na Causa.
Muito pessoal. Perigoso. Proibido.
- Você... me quer, verdade? -perguntou Cassidy.
- Não serei um problema. Posso trabalhar, conheço o gado e as ovelhas, um pouco de cozinha e costura. Se só me desse uma oportunidade...
Um nó formou-se na garganta dele.
-Os Greyburn Forster não são serventes, prima. Agora está entre os teus -Tomou seu braço e conduziu-a para a casa.
- Enviarei um homem ao hotel para pegar suas coisas. Escreverá uma nota a essa Isabelle informando-a de que está a salvo com sua família, e de que já não
necessita de seus serviços.
Dessa vez permitiu-lhe que a conduzisse até os últimos degraus antes de detê-lo.
-Pedi à Isabelle que viesse comigo. Ela é inglesa...
-Mas é humana, não é assim?
A pergunta pareceu assustá-la.
-Sim. Mas ela sabia tudo sobre minha mãe. Nunca esteve assustada.
Não foi uma surpresa que Edith Holt escolhesse humanos como amigos, tal como fez ao escolher um como companheiro. Ela, como seus pais, havia virado as costas
a seu sangue e à sua herança.
Cassidy não. Mas ela não sabia nada do que a esperava no futuro, ou o muito que descansava sobre seus esbeltos ombros. Devia aprender e aceitar.
- você me quer, verdade? Com uma simples pergunta tinha revelado sua maior vulnerabilidade, o que ansiava por cima de qualquer outra coisa, o que nunca
tinha conhecido entre a família de seu pai. Algo que somente ele podia dar-lhe.
Pertencer. Família. Aceitação. Ele podia outorgar ou reter o que ela tinha vindo à procura desde tão longe.
- Não há lugar para Isabelle aonde vamos -disse ele.- Permaneceremos em Londres durante uns poucos dias mais, e depois...
-Deixaremos Londres?

Ele tomou sua mão -cálida, dedos esbeltos, mas fortes e ásperos pelo trabalho - afastando-a de sua manga.
-A Greyburn, o coração de nossa família e de nosso sangue. Deseja se reunir com sua família? -Ele se deteve com esforço esperando o assentimento dela.
- Então deve começar obedecendo-me. Não conhece nenhum de nossos costumes. Rowena encarregar-se-á de você e fará com que se vista apropriadamente...
- Rowena? É a dama que trouxe de volta da festa?
Era desafortunado que tivesse sido testemunha da pequena cena: o velado motim de Rowena, o desafio que disfarçou de feminina obediência para a vontade de
seu irmão. Ele não toleraria mais oposição, nem dela nem de ninguém que desdenhasse a Causa. Não havia tempo para tolerar caprichos infantis.
- É sua esposa? -perguntou Cassidy.
O sobressalto rompeu sua ira.
- Minha esposa? - a palavra surgiu como uma maldição.
- Não. É minha irmã e sua prima, Lady Rowena Forster. Você a conhecerá amanhã -Subiu as escadas e abriu a porta.
- Venha.
Desta vez ela obedeceu, sem discussão. Aynsley apareceu no vestíbulo, e Braden enviou-o em busca da ama de chaves e de uma manta. Cassidy necessitaria de
roupa seca e de uma cama preparada para ela, possivelmente também comida. O resto poderia conseguir em Greyburn.
Tudo poderia resolvido, de uma vez e para sempre, em Greyburn.
Ele conduziu-a a biblioteca e aproximou uma cadeira ao fogo.
-Sente-se - ordenou.
Ela sentou, seu silêncio intencionado sugerindo que estava completamente absorta em observar o que a rodeava.
A Sra. Fairbairn apareceu e Braden deu-lhe as instruções necessárias. Ele podia sentir sua curiosidade, mas evitou ficar plantada e olhar fixamente à inesperada
convidada feminina.
-Era sua mãe? -disse Cassidy.

Cassidy Holt tinha o inoportuno hábito de fazer perguntas assombrosas.
-Era a ama de chaves, Sra. Fairbairn. -disse ele-,
-OH. Parece muito agradável.
-É uma servente eficiente - Ele desdobrou a manta que Fairbairn deu-lhe e sacudiu-a.
- Está empapada, prima. Abrigue-se com isto. A Sra. Fairbairn fará com que as donzelas preparem seu quarto.
Cassidy saltou da cadeira, evitando a manta.
-Por favor, não se incomode. Posso dormir em qualquer parte. Aqui mesmo, se não for incômodo.
-Acredito que você possuía aposentos próprios no rancho de seu tio.
-OH, sim -disse ela-, mas dormia freqüentemente no deserto com os vaqueiros. Não necessito de nada especial.
Ele tentou formar uma imagem dela dormindo entre um montão de toscos varões humanos, mas sua imaginação rebelou-se ante a mera idéia. Que tipo de vida tinha
tido da morte de seus pais? Vestia-se como um menino de forma inconsciente, e dizia o que pensava sem um pingo de decoro.
Mas sabia que estava intacta. Poderia jurá-lo sobre a mesma Causa. Não havia nada oculto nela, nem escuros segredos ou perigosas complexidades; era tão
evidente como a urze no páramo.
-Como você viveu na América não é importante - disse.- Aqui terá seus aposentos próprios, e uma donzela que atenda às suas necessidades. Já jantou?
-Ai Deus! Não acredito que possa tragar nem um bocado.
Sem dúvida, era algum palavrão aprendido com os trabalhadores do rancho,esses vaqueiros. Braden estava momentaneamente distraído pelo pensamento da reação
de Rowena ante semelhantes linguagem e comportamento. Rowena acreditava que podia renegar seu sangue de homem-lobo exercendo o papel da perfeita dama, como se as
duas identidades fossem incompatíveis.
Braden sabia melhor. A raça dos homens-lobos tinha pertencido à aristocracia desde o começo da História. Elevou-se com facilidade em posições de poder.
Os de sua espécie eram superiores aos homens normais em todos os aspectos, e essa superioridade era evidente em tudo o que faziam.

É óbvio, havia exceções. Existiam loups-garous que tinham quebrado as regras não escritas, pelas quais os homens lobo coexistiam com os humanos durante
séculos. Eram criminosos, deviam ser caçados e castigados.
Mas eram estranhos. O rechaço de Rowena à sua herança era pior que a estupidez, era uma loucura. Os Greyburn Forster viviam em um mundo de ordem e controle,
um equilíbrio perfeito entre o lobo e o homem.
Seja o que seja, o que Cassidy trazia consigo, devia aprender a ajustar-se aos costumes dos Forster. Nunca entraria na sociedade dos humanos. Braden não
cometeria esse engano outra vez, mas a disciplina e o dever suavizariam seu imoderado comportamento.
Braden colocou a manta sobre o respaldo da cadeira e enviou um servente para comprovar os progressos da ama de chaves. Inclusive agora, quando Cassidy estava
calada, absorta em seus pensamentos, ele estava inquietantemente pendente de outro.
E por que não? A chegada dela tinha trocado tudo. Quentin levava muito tempo esperando por uma companheira. Que melhor opção para ele que a neta americana
de William Forster?
Cassidy interrompeu seus pensamentos com o murmúrio de uma canção desafinada, seu aroma envolvendo-o como um raio de luz de sol. Por um só instante de loucura,
sua mente encheu-se com uma imagem impossível: esta moça sem formação ao seu lado, não ao de Quentin; sua companheira, tomada em nome da Causa, compartilhando sua
cama, oferecendo-lhe luz sem sombra e um sabor a simples felicidade...
Sem piedade cortou esse pensamento. Sua participação na Causa tinha sido resoluta fazia três anos, e não incluía unir-se de novo a alguém. Esse caminho
estava fechado para sempre.
Mostrou-se indigno por culpa de uns defeitos imperdoáveis, e podia servir à Causa unicamente, se mantivesse seu juramento.
Era dever dos outros produzir herdeiros do sangue. O momento de Quentin tinha chegado. E Quentin chegaria amanhã.
-É um lugar tão grande -disse Cassidy depois do ombro dele. - Tantos livros. São todos seus? -afastou-se novamente.

- Eu coleciono poesia, mas não vi este -Passou as páginas. - "...Com esta conversação, esqueci todo tempo. Todas as estações e suas mudanças, todos gratamente
diferentes. Suave é o fôlego da mãe, seu despertar doce. Com encanto..."
-Pare.
O livro voltou rapidamente para seu lugar na prateleira.
- Sinto-o -disse Cassidy.- Não deveria tocar seus livros.
Braden abriu seus punhos e soltou o ar.
-Eram de minha mãe -disse.-Morreu quando eu era um menino.
-Devia ser formosa -disse Cassidy.- Devia amá-la muito.
Em um instante, ela tinha passado de menina à confortadora, como se tivesse o direito de impor suas hipóteses e ingênuo consolo sobre ele. Ele se voltou
de costas para ela, deixando que a força de sua vontade comunicasse o desgosto que não podia expressar em palavras.
Ela devia senti-lo; era muito sensível para não fazê-lo. Mas em lugar de retirar-se, aproximou-se mais ainda.
-Não sei muito sobre o lado materno de minha família -disse ela, muito baixo - Desejo aprender sobre o que fazia quando foi um menino, e como é crescer...
com pessoas que compreendem.
Pessoas que compreendem. Ele se separou dela bruscamente.
-Aprenderá -disse-lhe.
- Agora é uma Forster. O passado se foi. Prima. Lembre-se disso.
- Está bem. -Sua voz era humilde, mas longe de ser submissa, cheia de uma calidez incomum.- Tudo o que desejei está aqui. Você nunca se arrependerá de me
deixar entrar.
Não, nunca se arrependeria. Mas o que ele desejava ou sentia era irrelevante para a Causa. O que qualquer deles desejassem ou sentissem era irrelevante.
Uma das donzelas entrou na biblioteca, e olhou-a com especulação.
-Prima -disse ele-, esta donzela mostrará seu quarto. Peça-lhe algo mais de que necessite.
Ela não se moveu.
-Não crê que pode me chamar Cassidy?
-Muito bem... Cassidy. Pode se retirar.

-E como te chamarei? -perguntou ela.
-Pode me chamar de Greyburn.
-Greyburn - disse ela com seu acento americano. - É um nome original. Como o meu.
Ele não estava de humor para explicar seu título, sobre o que ela estava claramente ignorante. Haveria tempo de sobra para isso pela manhã, quando sua mente
estivesse clara.
-Vá para seus aposentos, Cassidy.
-Estou agradecida, Greyburn... de verdade que estou. Mas antes devo falar com Isabelle -Sua voz tornou-se séria.
- Ela é a melhor amiga que tive, e não posso simplesmente deixá-la desta maneira.
Muito para suas garantias de obediência. Mas ela alguma vez tinha prometido isso, verdade?
-Voltarei logo que possa -disse ela.
A calidez do fôlego dela sobre sua pele provocou-lhe um alarme instantâneo, e então ela pressionou seus suaves lábios sobre sua bochecha. Ele estremeceu.
- Cassidy! - disse ele bruscamente.
Mas ela já tinha saído pela porta.



CAPITULO 3

O condutor da carruagem não fez muito mais que elevar suas sobrancelhas quando Isabelle anunciou seu destino. Possivelmente acreditava que ela vivia nas
guaridas das pessoas muito ricas, embora poucas mulheres respeitáveis viajariam sozinhas a semelhantes horas da noite. Ou possivelmente tinha outras teorias, menos
saborosas.Isabelle não se preocupava com isso.
Quando despertou já passava da meia-noite e notou que Cassidy tinha abandonado sua cama nos aposentos do hotel, somente pôde pensar em um lugar onde pedir
ajuda para encontrá-la. Esperava que o conde de Greyburn utilizasse sua influência para encontrar Cassidy, uma vez que soubesse que era sua prima.
O som dos cascos sobre os paralelepípedos tinha um efeito curiosamente calmante, mas Isabelle não se permitiu relaxar. Logo estaria entre pessoas muito
menos honestas que aquelas com as quais tinha tratado em São Francisco.
Aristocratas homens-lobos. Com segurança uma perigosa combinação.
Era difícil não se deixar vencer pelo pânico diante do pensamento de tratar com eles, ela, que tinha caído tão baixo.
Olhou pelo guichê e viu uma mulher só sob a luz de uma luz, suportando o frio como se estivesse esperando por alguém. Sua roupa estava longe de ser elegante,
embora estivesse relativamente limpa, e obviamente não era uma hóspede do Belgravia.
Isabelle então teve dificuldade em adivinhar a profissão da mulher. Na tênue luz parecia bonita, sem ser tocada pelo desespero ou pela enfermidade. Possivelmente
tinha nascido para algo melhor. Possivelmente ela, também, tivesse sido traída uma vez, abandonada sem opção alguma.
Opções. Isabelle tinha acreditado além de algum troco em sua vida quando Cassidy apareceu à sua porta em São Francisco, uma esbelta figura vestida com uns
jeans poeirentos e uma camisa excessivamente grande, botas raspadas, mochila, lenço no pescoço e um chapéu gasto. À primeira olhada, Isabelle confundiu-a com um
menino... até que tirou o chapéu e uma larga juba, grossa e negra, caiu solta sobre seus ombros.
Uma moça, para falar a verdade. Era alta, mas não havia engano sobre a curva de seus generosos quadris sob a cintura de seus jeans, nem sobre os seios disfarçados
parcialmente pela folgada camisa. Seu rosto era forte, mas delicado; devia ser atraente sob as manchas de sujeira. Chamativo, ao menos.


-Isabelle? -disse a moça, com o chapéu espremido entre suas mãos calejadas pelo trabalho.
- Sou Cassidy. Cassidy Holt, a filha de Edith.
Isabelle ainda podia sentir a comoção desse momento. A filha de Edith. Uma criatura de três anos na última vez que a tinha visto; nunca tinha esperado voltar
a encontrar-se com nenhum dos Holt. Nunca em seus mais selvagens sonhos imaginou que a filha pequena de Edith viria procurá-la.
Pôde ver Edith em seus olhos, tão grandes e cinzas. Mas não foi isso o que apanhou a atenção de Isabelle. Havia algo que emanava da garota, uma pureza indefinida
tal que Isabelle não tinha visto há muitos anos.
Sem idéia das portas ocultas que estava abrindo, Isabelle recebeu-a de braços abertos em seu humilde lar. A garota deixou cair sua pesada mochila, e jogou-se
aos seus braços.
Isabelle sorriu, recordando. Tal afeto de uma estranha poderia tê-la, se não fosse tão próprio de Edith. A selvagem e carismática Edith, a qual possuiu
um poder tão grande... Mas Edith estava morta, e seu marido e filho tinham desaparecido. Cassidy era uma órfã, criada pelos parentes de seu pai e procurou-a, a amiga
mais querida de sua mãe, em busca de ajudante.
Ajuda para encontrar a família de sua mãe na Inglaterra. Estava tudo em uma carta que Cassidy tinha memorizado quando tinha sete anos. Uma carta dirigida
à Isabelle, mas que nunca foi enviada.
Perdoe-me, Edith, pensou Isabelle. Devia tanto a você, mas não pude te ajudar quando mais me necessitou.
Quantas vezes desculpou-se em sua mente, e logo respondeu a si mesma: O que teria feito? Criar uma menina pequena com a vida que tinha? Não havia resposta.
Podia levá-la ao seu lar. À Inglaterra.
Inglaterra, aonde Isabelle tinha jurado não voltar nunca. Quinze anos atrás não poderia havê-lo feito. Mas quando Cassidy chegou, tudo mudou.
Cassidy já tinha viajado sem acompanhante através de centenas de milhas de territórios perigosos, em diligência e trem, defendida por sua brilhante inocência.
Não havia traços de mundanidade em suas palavras ou em seu rosto; apesar da perda de seus pais em uma idade tão precoce, não tinha adquirido amargura ou cinismo.
Não do tipo que Isabelle conhecia tão bem.

Mas nenhuma soma de esperança ou coragem a manteria a salvo cruzando o oceano para entrar em um mundo desconhecido repleto de milhares de obstáculos e
armadilhas esperando aos não-iniciados.

Isabelle graduou-se nessa dura escola. Não havia discussão sobre deixar a filha de Edith entrar sozinha na guarida do dragão.
Acompanhar a filha de Edith à Inglaterra estava longe de saldar a velha dívida. A mãe de Cassidy tinha sido uma verdadeira amiga durante uma época muito
má, e estranhamente parecia que essa experiência não tinha endurecido completamente o coração de Isabelle ante as emoções mais tenras.
Assim, aqui estava, perseguindo Cassidy através de uma das maiores cidades do mundo e rezando pela boa vontade de um tal Lorde Greyburn.
Ele poderia ver através de sua descarada máscara? Ela burlou de si mesma. Por que teria alguém que recordá-la? Não significava nada, não contava para nada
em seu mundo. Que aceitassem Cassidy; isso era tudo o que pedia. Que sejam melhores que os homens , se essas bestas são como Edith Holt...
O condutor deteve-se com uma sacudida. Apareceu à porta e abriu-a, seu rosto meio adormecido ainda mostrava curiosidade.
- Chegamos, madam.
A praça, como tantas de seu tipo, estava gradeada para manter os carros públicos fora de suas sagradas ruas. O condutor tinha chegado tão longe como podia.
Pagou-lhe, alisou sua blusa, e começou a andar pela calçada. Manteve seu olhar à frente, ignorando as magníficas fachadas de todas as casas, até que chegou ao seu
destino.
Um servente jovem, muito mais inquisitivo que o condutor do carro, respondeu à sua chamada. Ainda não tinha terminado de dizer seu nome, quando o assustado
servente apertou-se contra a porta para abrir caminho para uma figura vestida com jeans que escorregou até deter-se na soleira.
- Isabelle! -disse Cassidy, Sorrindo de orelha a orelha.
- Encontrei!
Isabelle controlou sua emoção. Por que teria que se surpreender? Adotou um perito sorriso e sustentou as mãos que Cassidy oferecia.
- Já vejo que sim -disse. - Mas desejaria que tivesse me avisado...

O som de uma garganta masculina esclarecendo-se soou no vestíbulo. Um homem alto, pulcramente vestido, presumivelmente o mordomo, entrou em cena, muito
tarde para evitar a interrupção do lar. O servente deslizou para o mordomo e sussurrou em seu ouvido.
-Sra. Smith? -disse o mordomo, sua voz impregnada com desaprovação.
- Se for tão amável de aguardar no vestíbulo, verei se Lorde Greyburn...
-Pode se retirar, Aynsley.
O homem que o interrompeu, entrou no vestíbulo, alto e escuro quando saiu das sombras. Isabelle soube imediatamente quem devia ser.
E definitivamente não estava preparada para o conde de Greyburn. Tinha temido este momento, mas não tinha contado com o contundente impacto da natureza
desumana do conde.
O homem que a olhava fixamente era alto, musculoso em seu traje de noite, irresistível com sua simples presença. Atrairia todas as olhadas em qualquer lugar
que fosse, seria obedecido sem perguntar. Isabelle se sentiu como se estivesse na guarida de um faminto depredador que estivesse considerando seriamente se ela seria
ou não uma comida satisfatória.
Não, certamente. Nem sequer estava tão interessado para isso. Ele a considerava como a uma criatura inferior, que logo que valia a pena.
E ela tinha ajudantedo a Cassidy a encontrar... isto. Mas Cassidy não tinha medo, e sustentava o olhar de Greyburn com firme franqueza. O que fosse que
tivesse ocorrido aqui na hora prévia não lhe tinha causado nenhum dano.
Ainda.
-Peço-lhe desculpas. Lorde Greyburn -disse Isabelle, inclinando a cabeça lentamente.
- Sou a Srta. Isabelle Smith. Acompanhei a Srta. Holt até a Inglaterra, e muito recentemente descobri que tinha abandonado nosso hotel. Vim aqui com a esperança
de obter sua ajuda para encontrá-la, mas vejo que minha preocupação era desnecessária. Havíamos combinado de vir até aqui amanhã, numa hora mais apropriada, para
que a Srta. Holt conhecesse...
Ele levantou a mão com um gesto de rechaço.
-Minha prima falou sobre você -disse.

-Explicou-me como chegou aqui. Até então, acreditávamos que nossos parentes americanos estavam perdidos para nós. Sua chegada foi bastante afortunada.
Então Cassidy era bem-vinda, ao menos. Isso deixava descansar uma de suas preocupações. Mas o rosto do conde não tinha expressão, atraente como era, e seus
verdes olhos enviesados eram curiosamente opacos, como se estivesse preocupado com seus próprios pensamentos.
-Parece que devo agradecê-la por acompanhar a minha prima à Inglaterra -disse. Aproximou-se de Isabelle, cada movimento impecavelmente suave e cheio de
graça, e se deteve diante dela fazendo com que se alarmasse por sua cercania.

- Verei que seja devidamente compensada por sua moléstia e os gastos investidos em sua comodidade. Agora que ela está conosco, já não necessitará dos seus
serviços.
Isabelle tinha se preparado para controlar seu desafio e seu ódio pelo bem de Cassidy, não importava quanto a provocassem. Seria pior que uma idiota se
provocasse este homem. Mas quando Cassidy deu um passo à frente para falar, Isabelle empurrou-a para trás e sustentou o gélido olhar do conde.
-Desculpe minha franqueza, Lorde Greyburn, mas a senhorita Holt não conhece nada da Inglaterra nem dos costumes ingleses. Sua mãe era uma querida amiga...
-Então sabe o que sou.
Ele não teve que ameaçá-la para que ela começasse a tremer com o mais primitivo tipo de medo.
-Sim. Tal como sabia o que era Edith. E Cassidy, quem não desejava mais que encontrar os outros como sua mãe.
O conde inclinou a cabeça, um gesto enganosamente juvenil que, de alguma forma, insinuava uma ameaça.
-E não está assustada.
-Edith foi amável comigo, sempre. Era uma mulher admirável.
-E contou-lhe que havia outros como ela?

-Falou-me dos Greyburn Forster, e... - Agüentou o desejo de contar ao conde o muito que Edith desejava que seus filhos não conhecessem seus parentes ingleses.
- Sempre soube, sim.
-Então você é uma privilegiada - Ele se moveu de novo, desta vez em círculo ao redor dela. Cassidy apertou sua mão, como se pudesse proteger a sua amiga
de um dos seus.
-Nunca abusaria desse privilégio -disse Isabelle, sem querer voltar-se. - Entendi a necessidade do segredo. Ainda o entendo.
-Admirável.
Soava a algo, exceto admiração. Ela teve a estranha convicção que ele podia de alguma forma... saber o que ela era. O que tinha sido durante os anos depois
de deixar a Inglaterra desonrada.
-Sou o único contato que Cassidy tem com seus pais -disse Isabelle com cautela. - Eu... me preocupo com ela. Se você me permitisse ficar com ela, por um
tempo...
-Duvido que você se sinta bem entre nós, senhora Smith -disse ele, e agora não havia dúvida da advertência implícita em sua voz.
- Minha prima pertence a este lugar; você não. Arrumarei...
- Não -disse Cassidy, de repente. - Ela veio por minha causa. Este é seu país. Está em seu lar.
Lar. Isabelle olhou sobriamente ao conde e quase desejou que não permitisse que ela ficasse.
Lorde Greyburn voltou-se para Cassidy com o cenho franzido, a primeira emoção genuína que tinha mostrado desde a chegada de Isabelle. Cassidy devolveu-lhe
o olhar, sem intimidar-se. Essa inocência sem medo era um dos dons únicos de Cassidy, e ela o utilizava, um pouco inconscientemente, tal como o conde utilizava o
poder de sua vontade. Pela primeira vez Isabelle perguntou-se qual prevaleceria. A cena recordou-lhe David e Golias.
Ela conhecia o final da história. Lorde Greyburn conheceria?
- Isabelle é a dama mais distinta que conheci -disse Cassidy. - E também é minha amiga. Se a obrigar a ir, irei com ela.
Era uma declaração temerária por parte de uma moça tão desesperada por reunir-se com sua própria gente, sua própria espécie.

Mas não vacilou. O conde estava rígido, sem dúvida assombrado de que uma prima do campo se atrevesse a falar assim com ele.
Mas ele titubeou diante da sua reação, igual a Golias.
-Cassidy -disse-, desejo falar com a senhorita Smith em particular.
-Não a fará partir?
-Naturalmente consultarei você antes de tomar alguma decisão.
Suas palavras estavam impregnadas de ironia, mas Cassidy dedicou a ele seu brilhante sorriso e começou a aproximar-se. Ele deu um passo para trás.
-Aynsley! - Chamou. - Acompanhe a senhorita Holt aos seus aposentos, e envie a donzela para atendê-la.
Cassidy voltou-se para Isabelle, apertando-lhe a mão.
-Não se preocupe -disse ela. - Tudo ficará bem.
Isabelle quase acreditou. Talvez não tenha tudo ao seu gosto, milord.
Ele olhou-a como se pudesse ler seus pensamentos, embora até onde sabia, esse poder em particular estava fora de seu alcance. Mas ele rapidamente assumiu
sua pose de indiferença, os olhos frios com um aparente aborrecimento.
-Parece que minha prima não pode passar sem sua presença, senhorita Smith -disse. - Deverá ficar... como acompanhante. Se isso ofendê-la, você é livre para
ir. Ela não necessita de uma tutora...
- E eu não desejo nenhuma recompensa por ajudar uma amiga -disse ela, encontrando seu olhar.
- Eu contei a ela sobre você, Lorde Greyburn, quando não era mais que um nome em um papel. Espero que seja... o que Cassidy deseja.
- E sou, senhorita Smith?
- Apenas nos conhecemos, Lorde Greyburn.
Olharam-se fixamente um ao outro. Ao fim, Lorde Greyburn inclinou a cabeça, seu sorriso sem humor.
- Está bem, senhorita Smith. Possivelmente deseja unir-se a sua... amiga durante a inspeção dos aposentos de convidados. Mandarei que preparem outro para
você, e enviarei um servente para buscar suas bagagens.
A vitória de Isabelle era precária, e ela sabia bem.
-Obrigada, milord. Estou muito agradecida por sua amável cortesia.
Nesse momento, entenderam-se. Lorde Greyburn partiu e falou com o mordomo, que despachou um servente.

Outra donzela apareceu para conduzir Isabelle às escadas que conduziam aos dormitórios nas segunda e terceira plantas. A casa era muito elegante, mas dava a
sensação de ser um lugar freqüentemente vazio. Escura, de algum jeito, e muito fria.
Ela seguiu a donzela a uma porta ao final do corredor do terceiro andar. Cassidy abriu a porta antes que a donzela chamasse, e capturou a mão de Isabelle
puxando-a para o interior.
O quarto estava mobiliado com simplicidade, mas era suficientemente confortável. Havia uma jarra com água quente e toalhas ao lado da bacia, e alguém tinha
encontrado uma suave camisola de algodão para Cassidy. A donzela esperou em silêncio até que Isabelle fez-lhe um gesto de despedida, depois do qual a moça efetuou
uma reverência e deixou-as a sós.
-Pode acreditar nisso, Isabelle? -disse Cassidy. - Estou aqui! De verdade estou aqui! -Dançou para a cama, acariciando a camisola com seus adornos de encaixe
e sua impecável feitura, e sorriu.
Isabelle sentou na cadeira mais próxima à cama.-Saberei em que acreditar, se me contar como chegou até aqui.
Cassidy ficou séria, mas o brilho permaneceu em seus olhos.
-Sei que não devi sair correndo sem você...
-Na metade da noite... -acrescentou Isabelle.
-Mas senti que alguém me chamava, e...
Isabelle escutou a atropelada explicação de Cassidy com assombro crescente e esqueceu seu pretendido protesto. Claramente havia outra faceta da natureza
dos loups-garous que desconhecia. Homens-lobos... chamando-se uns aos outros, sem vozes. Apesar de não ser consciente, aparentemente, da afirmação de Cassidy, esse
Lorde Greyburn surpreendeu-se ao vê-la.
Surpreso... e satisfeito. Se assim fosse, Lorde Greyburn tinha uma maneira peculiar de expressar seu prazer. Não obstante, já tinha disposto um lugar para
Cassidy aqui -quase muito facilmente - tivesse os motivos que tivesse.
A felicidade de Cassidy era indisputável.
-Recorda o que falamos em São Francisco? - Indagou Cassidy com melancólica seriedade. - Sempre soube que devia procurar os parentes que poderiam me ensinar
a ser como minha mãe. Agora aprenderei tudo aquilo que ela não conseguiu me mostrar. - Inclinou-se para a beira da cama.

- Nunca pude explicar o motivo quando finalmente deixei o rancho. Algo aqui -tocou o peito - me dizia que era o momento de ir. E agora sei que era real. Tinha
que ir -Fechou seus olhos. - A primeira vez que vi seu rosto, pensei que era exatamente como o poema de Blake sobre o Tigre. Ele é tudo o que sempre sonhei que seria.
E me quer, Isabelle. Ele me quer!
Isabelle manteve sua expressão cuidadosamente neutra. Tão rápido tinha ocorrido, então? Já tinha desenvolvido um capricho por este austero e proibido homem,
quem nem sequer era humano?
Ele era perigoso, e Isabelle não tinha nenhuma dúvida de que poderia ferir profundamente sua amiga sem nenhum esforço. O que pretendia o conde de Greyburn
de sua inocente prima?
Cassidy não escutaria os avisos agora. Estava entre os seus. Estava segura de ter encontrado seu lar.
E aí residia o perigo. Com o conde de Greyburn como professor, no que se converteria?
A tormenta chegou lentamente, salpicando gotas de chuva sobre a janela da biblioteca. Braden estava sentado em sua cadeira em frente ao fogo, apunhalando
as brasas com um atiçador. Um vento frio e úmido encontrou seu caminho entre os minúsculos ocos das paredes como um intruso concentrado em sua bota de cano longo.
Quando a chuva começou a golpear com força e o primeiro som do trovão fez vibrar o cristal, ele empurrou tão forte, que um tronco carbonizado veio abaixo com um
rangido furioso.
O resplendor do raio não o alcançou, mas pôde senti-lo, atravessando seus ossos e acelerando os batimentos do coração de seu coração. Uma luz branca iluminou
sua cabeça. Deixou cair o atiçador e levantou-se rapidamente, empurrando a cadeira para a mesa de seu flanco.
O seguinte som que ouviu foi o estalo de algo frágil golpeando o chão. Uma das delicadas figurinhas de Rowena, sem dúvida.
Telford apareceu na soleira. - Deseja algo, milord?
Braden voltou a sentar-se, ignorando as conseqüências de seu inoportuno movimento.

Tinha despedido seu valete fazia horas; era típico de um homem que secamente desobedecia às ordens e permanecia em seu posto enquanto seu amo sentava-se na tormenta.
- Vá dormir, Telford - disse. - Conheço o caminho dos meus aposentos.
Telford deu uns passos para o interior da biblioteca e parou. - Um livro, milord? A Origem das Espécies, talvez?
Braden sacudiu a cabeça. O ajudante de câmara era um dos poucos serventes de Greyburn que podia tomar a liberdade dessa suave desobediência. Braden permitiu
tal feito; sem Telford, havia ocasiões em que se sentia realmente indefeso, apesar de seus agudos sentidos e instintos.
Esses sentidos seguiram os passos de seu ajudante de câmara enquanto cruzava a sala e se ajoelhava ao lado do destroçado objeto de arte.
-Era valioso? -perguntou-lhe Braden.
-Um objeto bastante normal, milord, insignificante. Não posso imaginar onde se elaborou.
Rowena dificilmente apreciaria tal comentário. Telford era um conhecedor das coisas formosas, beleza que Braden já não podia apreciar.
Outro trovão fez vibrar a janela. Braden afastou sua atenção da tormenta e lentamente apoiou a cabeça contra a cadeira.
-Deixe, Telford. Necessito da sua opinião em outro assunto.
- Estou ao seu dispor, milord.
- Você deve ter observado a jovem dama que acaba de chegar... minha prima, a senhorita Holt.
-Sim, milord.
-Descreva-me .
Telford esclareceu a garganta. - Ela é... americana, milord?
-Sim.
-Então, talvez... nós não deveríamos ter em conta os costumes ingleses ao dar uma opinião..., é óbvio, totalmente irrelevante para...
Braden voltou seu rosto para Telford. - Você acha que ela é ... espantosa?
O tom do ajudante mostrou seu desconforto tão decididamente como um grito. Não mentiria a Braden. Poucos humanos podiam mentir com êxito a um loup-garou.

-Ela é... pouco normal, milord.
-Como?
-Se me permitir uma explicação singela, ela é uma... -Tossiu de novo - Uma maltrapilha, milord.
A comissura da boca de Braden tremeu. - E deixando à parte seu comportamento e sua roupa?
-Seu cabelo é muito grosso e negro, milord, e ondulado. Cai até a metade de suas costas.
Ele ainda podia sentir seu brilho.
-E sua figura. Está bem formada?
-É difícil dizê-lo. É bastante alta.
-Seus olhos?
-Normais. Sua pele é bastante... bronzeada, milord.
Isso seria certamente um ponto negativo do ponto de vista de Telford, e de Rowena.
-Ela viveu em um clima quente -disse ele, e se perguntou por que a defendia diante de seu próprio ajudante de câmara.- Devo pensar que a encontra pouco
formosa?
-Nunca o suporia.
Braden recordou-se acariciando suas feições, sentindo a força e a teima nelas. Assim não era uma beleza. Sua aparência não tinha importância... sobre tudo
para ele.
A tormenta estava dissipando-se, o trovão soava mais longínquo. O resplendor já não ardia dentro de seu crânio. Seu coração voltou a um compasso mais normal,
e o frio tinha sido substituído por uma calidez inexplicável.
Despediu-se de Telford, ergueu-se, e dirigiu-se aos seus aposentos. Quando alcançou o terceiro andar, encontrou-se paralisado no corredor, como se topasse
com um muro inesperado.
Não um muro, a não ser algo muito mais etéreo. Arbustos e luz do sol, e cacto. Cassidy, dormia nos aposentos de convidados. Ele podia ouvir sua tranqüila
respiração através da porta, o profundo sono do esgotamento. Ou da completa inocência.

Uns momentos atrás, ele quase se arrependeu de não ver o rosto dela tal como via Telford, encontrar o olhar desses indescritíveis olhos, sem dúvida tão
cheios de contradições como a moça em si.
Mas seu impedimento era uma bênção. Era uma defesa efetiva contra as emoções, um amparo invisível para os perigos da intimidade, um escudo que nenhum humano
ou licántropo podia penetrar. E menos que ninguém, Cassidy Holt.
Girou-se e caminhou lentamente para seu dormitório.



CAPITULO 4

-Senhorita?
A luz do sol esparramava sobre a cama como se fosse mel, e Cassidy abriu seus olhos. Tinha estado acordada desde antes do amanhecer, desfrutando do conhecimento
de estar em casa.
Casa. Mas esta não era o diminuto quarto junto à cozinha do rancho, mobiliado somente com sua cama cheia de vultos, a cadeira de três pés, e as prateleiras
inclinadas que sustentavam seus apreciados livros. Não havia vacas para ordenhar, gado para atender, mato para tirar.
Uns minutos antes, ouviu quando abriram a porta e a donzela movendo-se silenciosamente, mas o fino colchão de plumas era maravilhosamente confortável. Abriu
um olho e viu seus livros pulcramente empilhados sobre a mesa como velhos amigos preparados para dar-lhe as boas-vindas, as únicas posses além de seu vestido de
tarefa, as roupas que trazia postas e um pouco de dinheiro economizado, que havia trazido desde o Novo México.
A donzela abriu as cortinas e as venezianas, e voltou a colocar-se, absolutamente quieta, junto à porta. Cassidy pensou que ficaria ali para sempre, a menos
que alguém lhe dissesse que não o fizesse.
Era muito difícil pensar em outras pessoas como serventes; apesar de que os Holt tinham homens e mulheres trabalhando para eles no rancho, não tinham nada
a ver com as pessoas humildes, quase invisíveis, que iam e vinham às ordens de Greyburn.
Greyburn. Ela sentou-se com um sobressalto de ilusão, a calidez percorrendo seu corpo. Essa palavra era somente um título, não um nome; mostrava o poder
dele, mas não seu coração. Não o que era em seu interior. Hoje, descobriria qual era seu verdadeiro nome. Planejava saber tudo sobre ele.
Cassidy estirou-se, derrubou a roupa da cama, e sorriu à donzela. Esta fez uma reverência.
-Espero não tê-la incomodado, senhorita -sussurrou.
-A mim não. Esta manhã fui preguiçosa -Cassidy colocou as pernas na beira da cama e plantou seus pés nus ao chão. A habitação estava fria, mas não o suficiente
para necessitar de um fogo; a chaminé estava brilhantemente limpa e vazia de cinzas.

-Subi água quente, senhorita -disse a donzela, com os olhos castanhos baixos.
- A donzela de milady virá com sua roupa. Devo dizer-lhe que o café da manhã será servido no salão matinal às nove em ponto.
Em ponto. Essa parecia ser a forma em que Lorde Greyburn queria que se fizessem as coisas.
-Muito obrigada... e, qual é seu nome?
A donzela ruborizou por cima do alto pescoço do uniforme e realizou outra reverência.
-Devo ir, senhorita. Por favor, chame se necessitar de algo.- Se balançou de novo e abandonou o quarto apressadamente, golpeando-se com o pomo da porta
em sua precipitação.
Cassidy fez uma careta. Devia ter feito algo incorreto para assustar a moça dessa forma. Como ela podia assustar a alguém?
Mas os Holt sempre tinham estado assustados, sempre desde que a tinham acolhido. Ela não tinha sabido durante anos e anos. Mantinham-na longe das visitas
que iam ao rancho, enviavam-na para fora com o gado, a qualquer parte desde que estivesse separada deles.
Somente quando começou a notar as profundas mudanças em si mesma, impossíveis de ignorar, deu-se conta o quanto da frieza deles era devido ao medo.
Estes serventes também estavam assustados. De Greyburn, sobre tudo.
Cassidy examinou a penteadeira e a nova pilha de toalhas limpas, que já substituíam às da noite passada. A fina malha da camisola parecia luxuriosa contra
sua pele, e ela quase não queria tirá-la. Tinha tanto que aprender, mas devia fazê-lo porque desejava que Greyburn pudesse achá-la digna. Para sorrir. Para ensiná-la
a ser como ele.
Porque ele era a personificação de tudo o que ela queria ser. Seguro de si mesmo, forte, completo, sabendo de sobra quem era e onde pertencia. Seu poder
interior parecia absorvê-la quando estava com ele. Começava a acreditar que nada podia ser mais maravilhoso que estar ao seu lado.
Se ele permitisse. Se ela demonstrasse ser merecedora de sua atenção, de sua amizade.

Sim. Isso era o que mais desejava de tudo. Alguém bateu à porta. Ela apressou-se a responder, esperando que fosse a donzela de lady Rowena.
Mas foi Isabelle quem entrou nos aposentos, levando firmemente um vulto de roupa sobre seu braço.
-Interceptei a donzela de lady Rowena -disse Isabelle energicamente, fechando a porta. - Pensei que você gostaria da minha companhia esta manhã. Tudo deve
parecer muito estranho para você.
Depositou o melhor vestido de Cassidy e sua nova roupa íntima sobre a cama. Embora Cassidy acreditasse que era muito extravagante quando a compraram em
São Francisco, não pôde evitar compará-lo com os esplêndidos trajes que tinha visto na noite anterior à festa.
De todas as maneiras, o que ia fazer ela com o vestido de uma grande dama?
Ao menos Greyburn iria vê-la vestindo algo distinto a suas velhas roupas de segunda mão.
- Você dormiu bem? - perguntou à Isabelle.
- Bastante bem - O tom de Isabelle era neutro, como se não desejasse falar de si mesma. Possivelmente sua cabeça estava cheia de pensamentos como a de Cassidy.
Alisou o vestido outra vez.
- E você?
Cassidy respondeu com um sorriso e começou a lavar o rosto e o pescoço. - A donzela disse que o café da manhã estaria preparado às nove horas, em ponto.
Isabelle aproximou-se dela com uma escova e começou a escovar o cabelo de Cassidy.
-Então devemos nos apressar, começando com isto -disse, soltando um grunhido.
- Seu cabelo é tão bonito quando está adequadamente cuidado.
- Nunca soube como arrumá-lo bem. Poderia me ajudar?
- Sim.Farei o melhor que puder. Sem dúvida, a donzela de lady Rowena está mais qualificada para estas tarefas, mas por esta manhã...
Afastou-se, voltando com uma caixa cheia de forquilhas e presilhas. Concentrada, movia-se por trás de Cassidy enquanto provava as diferentes formas de sujeitar
o cabelo no alto da cabeça dela.

Quando terminou, o rosto de Cassidy não parecia muito diferente de quando jogava o cabelo para trás prendendo-o com um chapéu para trabalhar com o gado.
Mas seu cabelo parecia mais cheio, mais brilhante, e mais feminino do que nunca o tinha visto. Cassidy sorriu amplamente.
Não, não era correto. As damas da festa não mostravam todos seus dentes como ela. Experimentou diferentes modos de sorrir, acabando com um ligeiro e conhecido
sorriso , como sempre, fazia com que parecesse tola.
-Você acha que sorrio muito, Isabelle? Greybunr nunca sorri. Devo estar me comportando mal para os costumes da Inglaterra - Sentou-se novamente. - Pode
me ensinar, Isabelle? Preciso aprender a ser como eles.
Isabelle não respondeu imediatamente, mas girou, permanecendo de costas à penteadeira durante uns momentos.
-É perfeita tal como é, Cassidy. Nunca tente mudar para agradar os outros. Nem sequer a Lorde Greyburn.
O silêncio que se produziu a seguir espessou-se com um sentimento incômodo que arrepiou a pele de Cassidy. Ela se levantou aproximando-se de Isabelle.
-Algo vai mal, Isabelle - franziu o cenho, tentando definir os sentimentos que percebia. - Não é feliz aqui.
-Tolice - Isabelle aplaudiu sua mão. - Só sugeria que não deveria depender de ninguém mais para conseguir sua felicidade ou seu valor. -Caminhou para a
cama e levantou o vestido de Cassidy.
- Venha. São quase nove horas, e suspeito que o conde desejará que sejamos pontuais.
-Acredito que tem razão -Cassidy agüentou outro sorriso, colocou sua roupa íntima limpa e deixou que Isabelle a ajudasse com o vestido.
Sentia-se quase como uma verdadeira dama quando saíram do quarto e se encaminharam para a escada. No meio do caminho, toparam com um homem baixo e elegante
com um fino uniforme que se inclinou diante de ambas e se apresentou como Telford, o valete de Lorde Greyburn. Saudou Cassidy com educação, mas com um interesse
penetrante, e logo se desculpou com outra inclinação e continuou seu caminho. Cassidy ficou sentindo como se tivesse sido julgada, e não estava segura de que o resultado
tinha sido a seu favor.

O salão matinal estava na planta baixa, o que os americanos chamavam primeiro andar, explicou-lhe Isabelle. Na Inglaterra parecia que tinham aposentos para
cada coisa.
A sala estava iluminada com a luz do sol que se esparramava através de uma única janela que dava à rua. Havia uma mesa no centro; um servente e o digno
mordomo, Aynsley, permaneciam de pé junto a uma mesa adjacente coberta com pratos e bandejas de prata. O aroma da comida era entristecedor.
Greyburn já estava ali. Girou-se quando entraram, seu rosto limpo de toda expressão.
-Bom dia -disse Cassidy, endireitando-se dentro do seu vestido.
Greyburn não pareceu notar nenhuma mudança nela.
- Bom dia -disse. - Acho que esteja cômoda em seu quarto.
-Sim... obrigado. A cama era...
Ele a interrompeu fazendo um gesto para a mesa. Isabelle tocou o braço dela e conduziu-a até ali. Aynsley afastou primeiro a cadeira de Isabelle e logo
a de Cassidy, que permaneceu tão quieta como pôde com medo de deslocar os elegantes talheres ou o vaso de flores frescas do centro da mesa.
Greyburn permaneceu de pé, com o rosto voltado para a porta aberta. Cassidy precaveu-se de que a tensão que sentia era somente em parte dela; Greyburn estava
esperando algo.
Duas vezes tentou começar uma conversa, e cada vez suas palavras não foram respondidas. Depois de cinco minutos de tensão que fizeram-na sentir a ponto
de saltar fora de sua pele, alguém mais entrou na sala. Estava vestida com muito mais simplicidade que a noite anterior, mas não havia engano sobre sua identidade.
Lady Rowena Forster era impressionante. Cassidy observou-a deslizar cruzando a sala, seus passos tão meticulosos que parecia cheia de graça até com uma
saia que mantinha seus joelhos tão apertados.
-Agradecemos -disse Greyburn-, que nos honre com sua presença esta manhã, Rowena.
Rowena olhou Greyburn com uma expressão idêntica e realizou uma exagerada reverência.

-É esse "nos" majestático, Greyburn? OH, desculpem-me. Vejo que nossa prima está aqui. Seria verdadeiramente negligente de minha parte não lhe dar as boas-vindas
depois de uma viagem tão longa.
Greyburn apresentou-as formalmente, como se não fossem parentes absolutamente. Rowena inclinou sua cabeça como saudação, mas seus olhos eram frios. Eram
de um brilhante castanho com reflexos dourados, fazendo jogo com seu formoso cabelo cor de ouro.
Cassidy ficou de pé e realizou uma torpe meia reverência, quase derrubando sua cadeira.
- Prazer em conhecê-la, Rowena -disse. - Espero que possamos ser amigas.
A sobrancelha perfeitamente arqueada da Rowena elevou-se.
-É nossa prima -disse Greyburn.
-De alguma parte selvagem da América, verdade? Que afortunado tê-la encontrado -olhou para Greyburn de solaio. - Espero que tenha a oportunidade adequada
para desfrutar de nossa cidade.
Permitiu a Aynsley que a acomodasse e concentrou-se em estudar o acerto floral. Cassidy voltou a sentar-se, sentindo-se tão desajeitada como um bezerro
recém-nascido.
As escuras sobrancelhas de Greyburn uniram-se, mas sentou-se sem dizer uma palavra. Aynsley aproximou-se da mesa adjacente e dispôs pão torrado, ovo, e
uma fina fatia de carne sobre um prato de porcelana e levou-a para Rowena.
O estômago de Cassidy escolheu esse momento para roncar. Cruzou suas mãos sobre seu regaço.
-Perdão.
-Devo me desculpar, prima -disse Rowena. - Aynsley deveria te servir primeiro. Espero que aprecie a comida inglesa. Temo te incomodar, mas não temos búfalo
nesta temporada, nem ... acredito que se chama ... costelas defumadas?
-Rowena -Greyburn dirigiu um olhar suficientemente agudo à sua irmã para rivalizar com os espinhos de uma roseira. Voltou o olhar para Cassidy, e um pouco
parecido a um sorriso apareceu em sua boca.

- Aynsley, por favor, sirva uma seleção à Srta. Holt e deixe que prove de tudo. Prima -ele parecia ter esquecido sua promessa de chamá-la Cassidy-, por
favor, prova tudo do que goste e ignore o que não agradá-la. Você se acomodará aos nossos costumes culinários em seu momento.
Por parte de Greyburn, era uma amabilidade inesperada. Cassidy sorriu-lhe, mas ele levantou-se e estava enchendo seu próprio prato enquanto Aynsley fazia
o mesmo com o dela.
A comida era abundante e mais variada do que Cassidy nunca tinha visto, incluindo vários tipos de carne e ave, pães, pães-doces, pãezinhos, ovos e inclusive
pescado. Ela provou de tudo, incluindo o chá e o chocolate servido pelo criado. Uma ou duas vezes reparou que Rowena observava-a com a sobrancelha elevada, como
se desaprovasse o apetite de Cassidy. Rowena não comeu o suficiente nem para alimentar um colibri. Talvez isso era o que a fazia tão cheia de graça, e tão séria.
Mas era a opinião de Greyburn que preocupava Cassidy. Ele não fazia muito mais que olhá-la de vez em quando.
-Está muito bom - disse Cassidy para romper o comprido silêncio. - Em casa temos feijões especiais de Mercedes e as melhores omeletes que poderia provar
nunca. Desfaz-se em sua boca. Embora tia Harriet pensasse que a comida singela de Mercedes não era bastante refinada para os convidados... - Deteve-se envergonhada.
- Caramba! Não queria dizer que toda esta comida tão fina não seja deliciosa...
Greyburn apoiou seu garfo, e todo o peso de sua atenção fixou-se em Cassidy. Era como estar exposta ao pleno calor do sol, só podia olhar a bola de fogo
durante muito pouco tempo, e logo seus olhos começavam a doer e devia correr para a sombra.
-Esta é sua casa agora -disse ele. - É uma de nós.
Também podia dizer-lhe que era formosa. Mas ele olhou para outro lado, como se tivesse esquecido sua existência.
-Cassidy -disse Rowena. - É um nome tão... americano. Ou é irlandês?
-Puseram-me o nome devido a um amigo de meu pai.
-Já vejo. E seu vestido, é bastante americano também, verdade? Muito pitoresco. Muito... apropriado para a vida em um rancho, acredito eu.

-Não trouxe isto do rancho. Danificaria-se em dois dias. O gado... -Mordeu o lábio e olhou seu prato. Não podia admitir que nunca tinha tido um vestido
decente no rancho.
Rowena inclinou-se para diante. - Que fascinante! Você conduziu gado no rancho? Acredito que nossos passatempos são bem diferentes aqui na Inglaterra. Mas
estou segura de que poderemos encontrar algum entretenimento que encaixe contigo -Tomou um sorvo de seu chá. - E roupas apropriadas para uma Greyburn Forster, já
que é uma de nós.
Os pés de uma cadeira chiaram contra o chão quando Greyburn levantou-se.
-Estou contente que esteja tão preocupada com o bem-estar de Cassidy, Rowena. Chegou a nós com muito pouco, e necessita da ajuda de uma mulher para selecionar
roupas adequadas. Encarrego-te para ajudá-la a adquirir os primeiros artigos para seu guarda-roupa... nesta tarde.
Rowena não reagiu com nenhum olhar ou palavra, mas Cassidy soube que, de alguma forma, Greyburn tinha ganhado uma batalha na guerra oculta que sustentavam
ambos, utilizando Cassidy como arma.
-Obrigada, Greyburn, - disse Cassidy, ficando de pé - mas Isabelle pode me ajudar. Ainda tenho algum dinheiro...
-Disporá de tudo de que necessite para reunir um vestuário apropriado, incluindo recursos suficientes e a ajuda de minha irmã. -Voltou-se para Rowena. -
Levará em conta os melhores interesses da Srta. Holt... sem se preocupar com gastos.
-É óbvio -disse Rowena. - Necessitará uma grande soma se tiver que ser apresentada em sociedade nesta Temporada...
-Sabe muito bem que não será apresentada em sociedade. Partiremos a Greyburn em uns poucos dias.
Rowena ficou quieta, quase tremente, e olhou diretamente à Cassidy.
-Talvez seja o melhor para você, querida. Acredito que acharia a Temporada um pouco desconcertante quando está acostumada à sociedade de condutores de gado
e homens com casacos de pele de urso.
Cassidy levantou o queixo e sorriu.
-Nunca conheci ninguém com um casaco de pele de urso...

-Acredito -disse Isabelle-, que Cassidy e eu terminamos. Iremos ver o piano que vi em seu salão.
Tomou o braço de Cassidy e puxou-a afastando-a da mesa. Cassidy foi voluntariamente, satisfeita de não ser testemunha do que ia ocorrer entre irmão e irmã.
Parecia-se muito a uma correria a ponto de aparecer depois de uma curva.
Mais cedo ou mais tarde teria que comprovar o que ocorria, e como poderia ajudar. Desejava muito ajudar, já que os Holt nunca o tinham permitido. Era sua
família.
Mas deixou para depois essa missão e seguiu Isabelle para a sala com o grande piano. Isabelle tomou assento para tocar alguma preciosa melodia, e Cassidy
obrigou-se a esperar. Sempre tinha sido boa esperando, mas algo estava se modificando dentro dela, e sentia que algo maior que a tensão no salão matinal ia explodir
logo. E tinha pensado estar preparada quando ocorresse.
- Está se divertindo, Rowena?
Braden estava de pé olhando-a de acima, sem ocultar sua fúria por mais tempo. - Acreditava que você se orgulhasse de seu refinamento, mas você provocou
a garota quando era evidente que não compreendia seus insultos. Quando se tornou tão cruel?
-Cruel? - Rowena riu, um som áspero reservado somente para ele.
-Se tiver sido cruel, certamente aprendi com um excelente professor.
Braden golpeou a mesa com força.
-Seja o que for que tenha contra mim, não tem nada a ver com nossa prima. Ela é membro de nossa família, e você a tratará como tal. Também a guiará em sua
adaptação aos nossos costumes.
-E desde quando você se preocupou pela comodidade de outros... Braden? -Ela utilizou seu nome como se fosse uma arma desenhada para causar dor. - Não revista
te envolver com sua família. Ou é porque nossa recém-descoberta prima é importante para a Causa? -Ela soltou uma gargalhada. - Sim, é óbvio. O sangue longamente
perdido dos Forster. Ela tem alguma noção de seu papel em seu excelente plano de reprodução?
Braden logo levantou a mão. Nunca tinha golpeado sua irmã. Não precisava empregar medidas físicas para fazê-la sentir seu desgosto.

Rowena acovardou-se, afastando-se dele, reconhecendo seu poder. Embora tivesse negado o lobo dentro dela, seus instintos reconheciam o predomínio dele.
-Permiti que ficasse com Lady Beatrice em Londres no ano passado para uma temporada mais -disse ele-, apesar da traição de outras famílias à Causa. Convoquei
você para retornar à casa depois da Pequena Temporada, e não retornou. Assim vim por você. Seu futuro companheiro estará presente na Convocatória dentro de duas
semanas. Você estará ali para lhe dar as boas-vindas.
-Outro americano. - Ela se moveu ao redor da mesa com um rangido de saias. - Acredita que se banhou alguma vez?
-Pode gostar dele ou não, como quiser. Mas terá filhos com ele para fortalecer o sangue. Foi selecionado como o melhor dos candidatos americanos. - Possivelmente,
se for muito afortunada, será capaz de escrever seu nome e ler uma cartilha para meninos. - Não necessita de nenhuma qualificação para engendrar seus filhos.
Ele pôde sentir seu desgosto ante suas bruscas palavras. Os loups-garous sempre foram gente atada à terra, acostumados às realidades da
natureza. Mas, depois dos séculos, o verniz da civilização tinha debilitado
essa antiga compreensão. Rowena era a prova vivente da desintegração de sua raça.
Se tão somente um dos anteriores líderes tivesse tido a sabedoria de guiar a raça lobina para alguma pura terra selvagem, longe da influência dos homens,
não teriam perdido tanto.
Mas tantos tinham caído sob o feitiço do poder que se adquiria tão facilmente, que tinham levado uma vida de luxo e domínio sobre aqueles que se deixavam
possuir.
Rowena desejava ainda mais, e imensamente menos. Desejava ser humana.
-E com quem planeja unir a nossa pequena prima americana? -perguntou ela, sua voz tensa. - Você parece lhe ter já bastante carinho, Greyburn. Mas isso é
impossível. Foi incapaz de sentir carinho pela Milena, e ela era mil vezes mais... -Reteve o fôlego. - Mas não. Milena era muito para você e para sua Causa, e de
uma vez tão pouco. Possivelmente a senhorita Cassidy Holt seja mais de seu gosto. Maleável. Sem polir. Próxima à natureza. -Pronunciou a palavra com desdém. - Sinto
pena por ela se está destinada a sofrer o mesmo destino que Milena.

Braden a ouvia de longe, como se seu escudo privado tampasse o som tanto como a vista.
-Não precisa temer por isso, irmã. Não tomarei outra companheira. -Mostrou a ponta de seus dentes. - Mas sua desmesurada linguagem prova que não pode controlar
os impulsos que desdenha. Sugiro que modere seus próprios defeitos antes de se queixar dos de outros.
Ele sentiu a forma em que a espinha dorsal dela se endireitava ante a ofensa.
-Tem razão, irmão maior. Farei como diz. Mas prometo que não me converterei em uma besta. Nunca voltarei a correr sobre quatro patas e uivar à lua. Morrerei
antes... como fez Milena.
Voltou-se e da saindo da sala, desta vez seus passos não eram delicados e curtos, mas sim compridos e torpes devido às apertadas saias que levava. No último
minuto, voltou-se, sua cauda golpeando seus tornozelos.
- Compadeço-me de ti, Braden. Não tem nada pelo que viver exceto sua Causa. Acabará como vovô. Realmente vale à pena o preço?
Depois que ela partiu, Braden sentou-se na cadeira mais próxima, esvaziando sua mente de toda emoção. Agora recordava a infância quando Quentin, Rowena
e ele jogavam, brigavam e riam juntos, antes que a Causa os envolvessem em sua inevitável pauta. Inclusive, então, Rowena tinha desejado ser como a filha da Lady
Beatrice Saver, Alice ... levando o sangue lobino, mas vivendo como humana.
Se Rowena odiava-o, que assim fosse. Era um preço que fazia tempo desejava pagar, separar sua família pelo bem de sua raça. E continuaria disposto a pagar
esse preço. Tal como tinha feito seu avô.
Não estava sozinho. Não havia lugar para a solidão na vida que construiu. Enquanto liderasse a Convocatória e fiscalizasse a Causa, tinha trabalho suficiente
para afastar qualquer outra distração de sua vida.
A próxima Convocatória seria o maior desafio. Não tinha havido um encontro de homens-lobos desde seu acidente. Outros não deviam ter dúvida alguma de que
ele era ainda o líder. Ainda o mais forte. Ainda o único para guiar a Causa para o êxito final.

Depois de um momento, levantou-se e chamou Aynsley, a quem deu instruções precisas concernentes ao chofer e a quão serventes acompanhariam Lady Rowena e
a Srta. Holt durante sua ronda de compras na rua Bond. Rowena não devia ter oportunidade para escapar. E a impressionável Cassidy devia ser conduzida de uma loja
a outra tendo o mínimo contato com o caos que era Londres durante a Temporada.
Muito em breve deviam estar longe daqui, a salvo, em Greyburn, onde não existiam tentações que as atraísse e as degradasse. Ele havia sentido a comoção
e a excitação das damas e cavalheiros na festa de Lady Beatrice na noite passada, assim como as olhadas fixas iguais a flechas, ouvindo seus murmúrios. Uma vez tinha
caminhado entre eles, para agradar à Milena. Os rumores sobre a morte de Milena converteram-no em objeto de temor e ódio? Que assim fosse. Deu as boas-vindas à
sua reputação. Que os humanos evitassem-no. E que os outros loups-garous da Inglaterra e Europa tomassem cuidado.
Subiu as escadas para intercambiar umas poucas palavras com Telford, após preparou-se para tratar de alguns negócios que necessitavam da sua atenção antes
de abandonar Londres. A fortuna dos Greyburn Forster continuava crescendo porque ele, como seus ancestrais, não se envergonhava pela contaminação dos ganhos comerciais.
Soube quando Rowena, Isabelle e Cassidy abandonaram a casa, duas horas depois do café da manhã. Continuou trabalhando até que não pôde concentrar-se por
mais tempo, e logo acomodou-se em seu lugar habitual na biblioteca a esperar.
Muito mais tarde houve um revôo na porta principal. Braden levantou-se com um estranho calafrio de espera, devia ser a volta das damas. Seu retrato interior
de Cassidy, formada por seu tato e a descrição de Telford, não encaixava absolutamente com a imagem de um vestido rígido e um montão de direitos femininos. Perderia
para sempre seu aroma de deserto e flores selvagens?
Mas ela não o tinha perdido. O aroma precedeu-a quando Rowena e ela entraram na casa, seguidas por um servente carregado de caixas...
E alguém mais, um homem cuja risada invadiu o vestíbulo como se todo mundo fosse uma única e satírica piada.

Quentin.
Braden saiu ao vestíbulo. Rowena estava muito calada; seu silêncio flutuava com amargura. As gargalhadas de Quentin detiveram-se em seco.
-Greyburn, -disse Cassidy, sua jovem voz forçada, devido à fadiga das compras - compramos tantas roupa. E quando vínhamos de volta, encontramo-nos com seu
irmão...
-Quentin -disse Braden.
-Como estava Paris?
-Divertido, como sempre. Não tema. Encontrei tempo para levar a cabo suas pequenas tarefas. Mas o que ocorreu em minha ausência, Grei? Encontro-me com não
uma, mas duas encantadoras damas em casa, e uma delas é uma doce e exótica estrangeira procedente de terras longínquas.
Cassidy emitiu uma rouca gargalhada. Braden esticou-se.
-Rowena, talvez você e as damas deveriam descansar antes do jantar.
Rowena acatou-o imediatamente. A curiosidade de Cassidy era tão evidente para Braden como seu acento, mas deixou-se conduzir escada acima por sua prima,
seu arrastar de pés revelando sua relutância. Sapatos distintos, notou ele, não os gastos que levava postos quando chegou. Certamente Rowena tinha dado conta das
necessidades, tal como ele sabia que faria.
-Seu sentido de oportunidade é excelente, Quentin -disse Braden, conduzindo seu irmão à biblioteca.
- Iremos a Greyburn em uns poucos dias.
Quentin deixou-se cair em uma cadeira.
-Que bem-vinda tão calorosa! Tem algo para beber? Não, é óbvio que não. Sim, sim, sei, um imundo hábito humano, mas preciso tomar um gole.
-Tenha a amabilidade de não se envenenar já -disse Braden.
-Ah. Deduzo que tem planos para mim, irmão. Posso me atrever a perguntar? Ou deveria sair correndo para a China enquanto tenha a oportunidade?
-Você não corre, Quentin.
-Que bem me conhece, irmão. Correr requer muito esforço -A cadeira rangeu ao reclinar-se com mais comodidade.

- Mas antes que as desagradáveis verdades saiam à luz, fale-me sobre nossa bela prima.
Rowena contou-me que é a neta longamente perdida do tio avô William. Virtualmente uma selvagem, dada a descrição de Rowena. Eu acredito que parecia bastante
atraente com esse singelo vestido.
Braden podia imaginar o brilho nos olhos cor de canela de Quentin, a sempre presente risada dançando ao redor de sua boca. Quentin era um homem perfeito
para as damas, como um príncipe, a cujo entorno pertencia. Mas tinha se fixado em Cassidy, e não havia desdém em sua voz. Menos mal. Sim, certamente, muito melhor.
-Agrada-me que aaente -disse Braden.
-Terá a oportunidade de conhecê-la muito melhor durante as próximas semanas.
A respiração de Quentin alterou-se. Apenas se moveu, mas Braden tinha aprendido a ler os silêncios tão bem como outros interpretavam as mais óbvias alterações
na expressão.
-Assim -disse Quentin.- Assim é o plano que tem em mente. Um irmão rebelde, uma prima perdida convenientemente recuperada, e... voilá. Um casal perfeito.
-Perfeita. Sim. Está surpreso, Quentin? Sabia que o dia chegaria. Cassidy é uma órfã com nenhum outro parente de nossa espécie. Desta maneira, permanecerá
sob o amparo de nossa família, e o sangue Forster será reunificado.
Quentin era muito ardiloso para perguntar, tal como Rowena fazia, por que Braden não tinha em conta a Cassidy para si mesmo. Levantou-se e encaminhou-se
para a porta. Esta estava aberta, houve um breve intercâmbio entre Quentin e Aynsley, e uns poucos momentos mais tarde um criado voltou com algo que cheirava claramente
a álcool.
- Não amaldiçoe, Aynsley -disse Quentin. - Trouxe-o de Paris. Um gênero excelente - Despediu-se do criado e se serviu ele mesmo.
- Não me negará meus pequenos prazeres ante esta decisiva conjuntura em uma vida planejada para sempre, sem transcendência.
Disse com ligeireza, mas Braden detectou a brincadeira de si mesmo depois das palavras.

Na sociedade humana, o filho mais jovem era muito freqüentemente uma carga econômica que devia encontrar seu próprio caminho em alguma carreira respeitável.
Mas deixando à parte seus escassos anos no exército, Quentin só tinha uma ocupação preparada para ele: companheiro da noiva loup-garou selecionada para ele, pai
da descendência do puro sangue licántropa.
Sempre tinha havido um entendimento entre Quentin e Braden.
Até que chegasse o dia em que tivesse que render sua liberdade, Quentin podia viver como desejasse. Enquanto não pusesse em perigo sua vida mediante os
excessos e a ociosidade e enquanto não engendrasse nenhum bastardo meio licántropo, tinha total liberdade. Inclusive seu tempo de serviço na Índia tinha sido cuidadosamente
arrumado para que não atribuíssem a nenhum lugar com evidentes perigos.
Se Quentin estava amargurado, não deixava que esse sentimento o preocupasse muito. Sabia tão pouco importantes que eram seus sentimentos. Tinha aceitado
o trato, vivendo com prazer dos ilimitados recursos que seu irmão provia e realizando ocasionais recados concernentes aos interesses de Greyburn.
Agora sua liberdade chegava ao fim.
-Cassidy Holt -disse Braden-, não sabe nada de seus passatempos. Você se comportará com discrição em sua presença e suprimirá qualquer hábito que possa
afligi-la.
Quentin suspirou e baixou o copo.
-É uma flor tão frágil, então? Apenas parece. O príncipe adora estas moças americanas, já sabe. Ama-as pela falta de pretensões e aterradora honestidade.
-Ela tem muito que aprender, e você a ajudará.
-As habilidades que conheço não lhe servirão muito em Greyburn -disse Quentin, servindo-se outro trago. - À exceção de quão única é indispensável. Procurarei
agir o menos doloroso possível.
Braden endireitou-se em sua cadeira e apertou o braço da mesma com força.
-Ela deve ter tempo para moldar-se aos nossos costumes, à nossa vida. Por agora, limite-se a ser agradável...
-OH, acredito que isso não será difícil. É uma garota bonita, de uma maneira americana. De fato...

No intervalo deixado pela frase sem terminar de Quentin chegou-lhes o rangido de saias e o som de dois pares de pegadas. Uns pertenciam à viúva Sra. Smith.
Os outros eram de Cassidy. Mais lenta que antes, mais decorosa, mas sem dúvida, ela.
-Por favor, desculpem a interrupção -disse a Sra. Smith-, mas Cassidy estava tão ansiosa por mostrar-lhe suas compras, Lorde Greyburn, depois de toda sua
generosidade...
As pisadas detiveram-se. Quentin assobiou baixo.
-Prima -disse.
-Permita-me dizer que está absolutamente encantadora.
Ele cruzou a biblioteca, e Braden pôde imaginá-lo inclinando-se brandamente sobre a mão de Cassidy. Executando seu papel habitual até o pescoço. Seduzindo
a sua futura companheira sem o menor esforço.
-Obrigada, primo -disse Cassidy com um tom ligeiramente rouco de excitação. - Deve ser este vestido. Nunca tive um como este antes.
-Chame-me de Quentin, por favor. E o vestido realmente realça sua beleza natural... Cassidy, se me permite dizer.
Cassidy lançou uma gargalhada, o surpreso som de uma moça ante seu primeiro encontro com o experiente encanto de um homem da cidade.
-A parte de trás se arrasta como a cauda de um peixe. Está tão apertado ao redor das pernas, sinto-me como um novilho amarrado. Mal posso respirar.
Mas Rowena disse que todo mundo em Londres usa-o assim apertado... - Deteve-se, como se tivesse percebido de repente o quão inapropriado era discutir sobre objetos
femininos com o sexo oposto. A seda sussurrou enquanto se voltava. - Não teria sabido o que fazer sem a ajuda de Rowena e de Isabelle -disse.
- Você gosta?
Braden detectou a sutil diferença em sua voz e soube que se dirigia a ele. Sentiu seu olhar como sentiria o sol saindo detrás de uma nuvem.
Ela desejava sua aprovação. Desejava doces cumprimentos por sua parte, do tipo que Quentin era tão fácil em oferecer. Ela ainda não se deu conta.

Telford acharia sua prima formosa agora, com seu vestido londrino escolhido com gosto sem os traços de Rowena? A mudança de roupas teria banido a rudeza,
a estupidez, a ingenuidade da moça americana vestida com calças que tinha aparecido em sua soleira?
-O vestido é... muito apropriado - disse. - Rowena escolheu bem.
-OH, demônios - disse Quentin. - Desculpem-me, senhoras. Irmão, tenho uma carta urgente de Gevaudan, referente à Convocatória. Disse-me que lhe entregasse
isso imediatamente. Tinha esquecido por completo - Um papel apareceu em suas mãos. - Aqui está.
Braden estirou-se para alcançar a carta. O marquês de Gevaudan, seu avô materno, não escrevia há muitos anos. Talvez o marquês estivesse planejando assistir
à Convocatória apesar de sua escassa saúde.
A folha de papel roçou os dedos de Braden, mas ele não conseguiu segurá-la.
-OH, que torpe sou -disse Quentin. - Deixei-o cair.
Houve um momento de pausa. Braden deu um passo adiante com impaciência.
-Faça o favor de recolhê-la, Quentin.
-Permita-me - disse Cassidy. Ele então a viu ajoelhar-se para recolher o papel.
-Obrigado -disse ele, estendendo sua mão.
Ela duvidou. - Mas isto é...
-Por favor,... - pediu ele.
Ela entregou-o e ele olhou para baixo.
- Lerei mais tarde.
-Como pode ler um desenho? -perguntou Cassidy.
A Sra. Smith ofegou com suavidade. Atendido pela suspeita, Braden mediu a superfície do papel.
Não estava marcada pelas habituais impressões da escritura. As linhas gravadas na superfície eram mais suaves, mais largas, mais aleatórias, formando figuras
em lugar de letras.
A traição apanhou-o despreparado, como uma peça de mobiliário deixada um pouco fora de seu lugar para fazê-lo tropeçar em um aposento familiar.

- É bastante parecida com Cassidy, não acha? -disse Quentin. - Fiz o esboço na carruagem durante o caminho para cá.
Um esboço. Quentin enganou-o deliberadamente, e deixou cair o papel o bastante longe para que Cassidy e a Sra. Smith pudessem ver seu conteúdo. Ver, e ele
não, que não era uma carta absolutamente.
Abriu sua mão e deixou cair o papel sobre o tapete.
-Meu irmão, -disse- sabe muito bem que não posso julgar a exatidão do retrato. Sua demonstração foi sutil, mas efetiva -Olhou diretamente para Cassidy.
- Como pode ver, estou cego.


CAPITULO 5

A princípio, Cassidy pensou que estava brincando. Alisou o franzido da parte dianteira de sua saia e sorriu insegura, pois seu coração ainda estava agitado
pelas novas experiências do dia. Tinha saído com Rowena à úmida Londres, a lugares desconhecidos para encontrar roupa nova, tal como Greyburn tinha ordenado. Tinha
aceitado os frios conselhos de Rowena, deixando que a dirigissem, que a medissem, que lhe ajustassem alfinetes como uma boneca, pelas mulheres das lojas, uma atrás
de outra. Tinha sido bombardeada por ruídos ensurdecedores, sentindo-se aturdida por multidões de pessoas,como não tinha visto antes, levada diretamente de uma loja
à carruagem e da carruagem a outra loja,
A ela mostraram uma vertiginosa coleção de luvas, chapéus e sombrinhas. Foi deixada de lado como se não tivesse opinião própria, empurrada e trespassada
dentro de um vestido recém-preparado para ela que fazia impossível andar, a não ser com os passos mais curtos. Observou-se no espelho e não soube quem lhe devolvia
o olhar do cristal.
Merecia a pena, pensou, por ver o olhar nos olhos de Greyburn quando jogasse uma olhada à dama em que milagrosamente se converteu.
O olhar em seus olhos....
-Greyburn? -disse.
Ele não respondeu, não mostrou nenhuma reação exceto breves olhadas para seu irmão. Seu olhar fixou-se nela, sem tremores, como se pudesse ler seus pensamentos
mais secretos.
Mas havia algo equivocado em seu olhar. E Quentin Forster, com suas maneiras alegres, singelas, tão distintas dos Greyburn, não estava sorrindo. Era a primeira
vez que ele ficava sério, desde que Rowena apresentou-os, há pouco mais de uma hora.
Sem pensar, deu um passo adiante e levantou sua mão para o rosto de Greyburn.
Ele agarrou seu pulso na metade do caminho, e ela quase riu com alívio. Mas então, Quentin moveu-se com extraordinária rapidez, sua mão descendendo entre
eles como uma barreira, apenas a umas polegadas dos olhos de Greyburn.

Cassidy sobressaltou-se; Greyburn não fez muito mais que piscar. E quando ele reagiu, soltando-a e empurrando o braço de Quentin para o lado, ela compreendeu.
Seu Tigre estava cego.
Não podia ver o esboço que Quentin fazia dela, ou o vestido que tinha elogiado, ou seus sorrisos, ou seus intentos por domar seu rebelde cabelo. Ela passaria
por boba durante dias antes de descobrir a verdade.
Porque o conde de Greyburn levava a cabo uma perfeita máscara. Movia-se com facilidade, com naturalidade, com a confiança de um homem que controlava seus
arredores. Nunca se detinha ou tropeçava. Olhava-a quando falava; tinha encontrado sua irmã sem engano em um salão repleto de pessoas; tinha sabido que Cassidy seguiu-o
desde o começo.
Mas no instante em que a tinha flagrado no exterior de sua casa, tornou-se invisível para ele.
Não. Invisível não. Quando se encontraram pela primeira vez, ele havia tocado seu rosto, não uma vez, mas duas. Ela recordou o que sentiu, como tinha pensado
que se derretia sob a carícia das pontas de seus dedos. Não se questionou os motivos dessa intimidade, ou pela forma em que seu corpo se estremeceu por seu contato.
Tinha desejado que continuasse para sempre.
Mas não tinha havido nada pessoal no que ele tinha feito. Era somente sua maneira de poder vê-la. Nada mais que isso.
Não a olhava agora. Permanecia com seus braços aos flancos, imóvel ante a comoção dela. Tinha-a excluído. Isabelle, serena, avançou sorrindo para Quentin.
-Sei que acabamos de ser apresentados, Sr. Forster -disse-, mas tenho entendido que passou algum tempo na Índia, e me sentiria fascinada em conhecer mais
a respeito de sua vida ali -Envolveu seu braço ao redor do de Cassidy-. Estou segura de que Cassidy também. Desculpe-nos, Lorde Greyburn?
-Será um prazer -disse Quentin. Olhou para seu irmão, mas Cassidy notou que tomava cuidado em manter a distância.
- Chá no salão, possivelmente?
Brandamente, Isabelle e ele apanharam Cassidy entre eles, conduzindo-a para a porta. Estavam assustados, ambos, embora tentavam não mostrá-lo. A quietude
de Greyburn era tão cortante como a mais fria noite do deserto. E tão solitária.

Cassidy deslizou seu braço liberando-o de Isabelle e se separou da porta.
-Posso ficar ? -perguntou.
Nem sequer a cegueira podia despojar o olhar de Greyburn de seu poder. Olhou para Quentin, que duvidou somente um instante antes de escoltar Isabelle para
fora da biblioteca. A porta foi fechada com um estalo apenas audível.
-Por favor, sente-se -disse Greyburn. Era uma ordem. Ela se dirigiu à cadeira mais próxima e obedeceu, mas ele permaneceu onde estava. Escutando. Esperando.
-Sinto muito -disse ela brandamente. - Não sabia...
-Evita as condolências.
Ele girou e caminhou para a mesa lateral onde descansavam uma garrafa e uns elegantes copos sobre uma bandeja de prata. Verteu um líquido fortemente cheiroso
em um dos copos, elevou-o até sua boca, curvou seu lábio com desgosto e baixou o copo de novo, tudo sem deixar cair uma só gota.
-Sim, estou cego -disse. - Há três anos. Vivo com um inconveniente mínimo - Separou-se da mesa e se aproximou da janela, afastando as cortinas. O sol do
entardecer banhou seu rosto, desenhando as fortes linhas com claros e sombras.
- Não sei qual é a cor de seu vestido, mas sei que é feito de cetim e seda. Tem uma cauda de longitude modesta. Seu chapéu está adornado com uma pluma de
avestruz, e foi adquirido na chapelaria favorita de Rowena. O perfume da proprietária é inconfundível.
Cassidy recordou ter sido afligida por esse perfume quando Rowena conduziu-a para o interior da loja. Apenas se notava agora, mas Greyburn cheirava-o. Não
havia tocado seu vestido, mas sabia como deveria ser. Tinha ouvido o som que a malha fazia quando ela se movia.
-Um humano sem vista estaria indefeso -disse ele. - Nós, os loups-garous, temos os sentidos muito mais desenvolvidos que eles. Não necessito da compaixão
de ninguém.

E ainda menos a dela, inclusive se ela se atrevia. E... ela fechou seus olhos, introduzindo-se na escuridão na qual ele vivia cada dia. Sem ver jamais o
céu azul, ou a forma em que a luz da manhã coloria as montanhas, ou as brilhantes florestas da pereira, ou as estrelas da noite. Não poder ler um livro e ler as
palavras que podiam te levar longe quando nem sequer a beleza do mundo era suficiente.
Quantas pessoas fora do entorno familiar conheciam sua cegueira? Certamente, não as pessoas elegantes da festa, que tinham se afastado de seu caminho e
murmurado enquanto passava. À sua própria maneira, eles também estavam cegos.
Mas Rowena não tinha mostrado nenhum sinal, nem nenhum dos criados. Acreditavam todos, como Greyburn, que não importava? Ou simplesmente estavam assustados?
-Você conheceu Quentin -disse Greyburn, sem esperar a que ela falasse. - Ele tem um peculiar senso de humor, mas não há verdadeira malícia nele. Acabará...
apreciando-o, Cassidy.
Ela queria acreditar nele, com todo seu coração, mas Quentin tinha enganado o irmão deliberadamente. Rowena era fria e grosseira cada vez que se dirigia
a ela. Era quase como se quisesse castigá-la.
Castigá-la... por quê?
-Por quê? - Indagou ela. - Por que me ocultou isso? Acreditava que me preocuparia?
Somente um ligeiro tremor em seu queixo revelou uma reação antes que voltasse a olhá-la com aquela implacável calma.
-Eu governo esta família -disse ele-, tal como lidero a Convocatória. Todo o resto é irrelevante.
Mas não o era, não machucava as pessoas, as pessoas que ela desejava amar com desespero. Braden parecia inacessível, orgulhoso, impertérito ante as emoções,
especialmente o medo ou a pena. Negava-se a deixar que sua cegueira o mutilasse.
Ainda era seu Tigre, mas estava tão sozinho.
-Possuo alguns livros muito bons de poesia - ofereceu-lhe ela, observando seu rosto em busca da mais ligeira suavidade. - Posso ler isso. Eu gostaria...
-Telford faz esse serviço pra mim.
Ela se levantou de sua cadeira para encará-lo.

-Não há nada que eu possa...?
- Consegui sobreviver até agora sem sua intervenção pessoal, prima. Acredito que poderei continuar assim.
Era uma despedida, mas ela não estava preparada para ir.
-Cassidy -disse. - Meu nome é Cassidy. Teme dizer meu verdadeiro nome?
Ele se deteve no ato de fechar as cortinas, voltando-se para ela com um estranho sorriso pela metade que se evaporou muito rapidamente.
-É uma menina teimosa, Cassidy Holt. Meu nome é Braden.
Braden. Era forte, como ele, e doce ao mesmo tempo. Um presente dado com relutância, mas um presente ao fim e ao cabo.
-Braden -repetiu com suavidade.
-Obrigado.
Com uma pernada silenciosa e sem dúvidas, ele cruzou o quarto. Sua mão se elevou, deteve-se e roçou a bochecha dela como a asa de uma traça.
Logo elevou a cabeça em uma atitude de vigilância e passou junto a ela para abrir a porta.
-Sra. Smith -disse ele-, quer entrar?
Isabelle estava de pé junto à porta, suas mãos apertadas em sua cintura e seus olhos muito abertos.
-Só devia ver... - deteve-se, seu habitual aprumo falhando-lhe.
- Se houver...
-Desejava falar com você de todas formas, Sra. Smith -disse ele-, com respeito à viagem a Northumberland. Quentin estará encantado de entreter Cassidy no
salão.
Isabelle dirigiu uma rápida olhada para Cassidy e obedientemente seguiu Braden ao interior da biblioteca. Ele não voltou a falar com Cassidy outra vez antes
de fechar a porta atrás deles.
Ela esteve tentada em ficar junto à porta e escutar, tal como obviamente tinha estado fazendo Isabelle, mas soube que daquela forma não obteria mais respostas.
E ainda estava Quentin Forster.

O salão ficava no fundo do corredor. Igual ao resto dos aposentos da casa de Greyburn, o salão estava escassamente mobiliado de uma maneira muito distinta
dos cansativos e lotados aposentos do hotel. Estava muito limpa e solene, e somente ontem Cassidy havia sentido um pouco de temor ao caminhar sobre o imaculado tapete
ou ao sentar-se em um dos elegantes móveis.
Quentin estava ali, como tinha prometido Braden. Estava sentado ante o piano, pulsando as teclas distraidamente e perdido em seus próprios pensamentos.
Ela se deteve na soleira para estudar seu rosto. Era tão completamente diferente a Braden, que ela nunca teria adivinhado que eram irmãos.
Tão estranho como pensar que Rowena era a irmã gêmea de Quentin. Ele tinha saído de repente de entre a fervente multidão de Londres, justo quando Rowena
estava seguindo Cassidy e Isabelle para a carruagem ao final de sua expedição de compras, e tinha levantado Rowena em braços. A expressão de Rowena tinha passado
em um instante da severidade à alegria, e Cassidy observou assombrada como as duas cabeças se uniam com evidente deleite.
As apresentações tinham sido rápidas e informais. O Honorável Quentin Forster tinha nascido à mesma hora que Rowena, mas o parecido entre ambos terminava
com a devoção que sentiam um pelo outro. Enquanto que o cabelo de Rowena era dourado, o de Quentin era de um castanho avermelhado. Os olhos de Rowena eram e um castanho
mais claro e os de Quentin eram quase do mesmo avermelhado que seu cabelo. Enquanto ela era esbelta e delicada, ele era magro e largo nos ombros.
Embora Rowena tivesse rapidamente recuperado sua habitual atitude digna, ele continuou mostrando a impetuosa conduta de um menino que tivesse fugido após
roubar um bolo deixado a esfriar no suporte de uma janela. Não tinha deixado de burlar-se e de contar piadas todo o caminho de volta à casa de Belgrave Square.
Mas tinha enganado deliberadamente seu irmão na biblioteca...
O piano emitiu um sonoro e discordante protesto quando Quentin apoiou sua mão sobre as teclas.
-Aqui está! -disse, ficando em pé.
- Observo que saiu ilesa da guarida do leão. Devo supor que a encantadora Sra. Smith está em suas garras agora -Cruzou a habitação e ofereceu-lhe seu braço.
- Eu a resgataria, mas temo que somente pioraria as coisas.

Cassidy sentou-se na cadeira que lhe ofereceu e cruzou seu olhar com o preguiçoso e amável olhar dele.
-Se pensava que ele se zangaria por enganá-lo assim -disse ela-, por que o fez?
Ele piscou e lançou uma gargalhada.
-Ah, essa assombrosa franqueza americana, transparece-lhe aos olhos -Ele cambaleou uns passos para trás e se deixou cair em sua cadeira.
- Que sopro do deserto tão refrescante é, prima.
Estava burlando dela, não lhe importava. Era fácil rir com ele, e gostava de rir. Mas ainda recordava a inquietação que flutuava na biblioteca, quando Braden
ficou pilhado na armadilha de seu irmão, e Quentin estava assustado.
Estava sério agora, e a expressão era tão estranha em seu rosto como um sorriso no rosto de Braden. Tinha perdido sua pose de indolência e se balançava
sem descanso em sua cadeira.
-Não sabia que Braden estava cego -disse, afirmando mais que perguntando.
- Saiu-se muito bem ocultando-o. Talvez fosse uma prova, sendo uma de nós. Mas não funcionará na Convocatória.
Convocatória. Braden também tinha utilizado essa palavra. Mas ela não se deixaria distrair do que tinha vindo a compreender.
-Quer lhe fez dano? -perguntou.
-Fazer-lhe dano? -Ele se levantou de um salto e começou a caminhar cruzando o quarto-. Machucar meu irmão? Não é possível, asseguro-lhe isso - Voltou
para ela de novo. - Não, Cassidy. Nada disso. Pensei que ele tentava te enganar, e não acreditei que fosse justo. Tinha direito de saber. Agora é parte da família,
não é assim?
-Desejo ser.
-Então não devem existir segredos entre nós - Aproximou-se até colocar-se ante a cadeira dela.
- Braden é orgulhoso. Não quer acreditar que tem alguma debilidade. Não aceitaria que necessita de alguém por nenhum motivo, e esse será sua perdição.

Ela estremeceu ante a inesperada intensidade dos olhos de Quentin. Não era isso o que ela admirava em Braden? Sua força, sua confiança, sua segurança sobre
quem era? Por quê, então, doía-lhe o coração escutar que ele não necessitava de ninguém?
-Mas não o compreenderia, verdade? -murmurou Quentin. -Meu irmão engana a si mesmo. Não lhe ajudarei a fazê-lo.
-Então se preocupa por ele.
A intensidade abandonou o olhar de Quentin, e pareceu ligeiramente aborrecido.
-É meu irmão.
-Ele disse que eu gostaria.
A comissura da boca de Quentin contraiu-se.
-Espero que assim seja, Cassidy. Eu gostaria de ser seu amigo.
Ela também desejava. Não somente porque era seu primo, mas sim porque poderia lhe contar mais sobre Braden que qualquer outro, exceto Rowena, e Rowena não
falava absolutamente.
-Como ocorreu? -perguntou ela. - Como ficou cego?
Quentin voltou-se sobre seus talões e afastou-se.
-Foi um acidente. Eu estava fora do país ... - Calou-se, ficou tenso e trocou de direção indo para o piano.
- Não sei muito sobre isso. - Seus ágeis dedos pulsaram uma estranha melodia. - Pelo geral, ele não está acostumado a fazer confidências a seu irmão pequeno.
Mas Quentin sabia mais do que admitia. Devia sabê-lo. Cassidy levantou-se, revolvendo-se em seu vestido como se pudesse afrouxá-lo tanto como suas velhas
calças, e foi reunir se com ele.
-Conhece-o a vida inteira -disse. - Desde que foram meninos.
-Certo. Mas Braden não é um menino há muito tempo. -Começou a cantar, sua voz elevando-se como um barítono. - Ao Lochaber nunca mais, ao Lochaber nunca
mais, não voltaremos para o Lochaber nunca mais... -Fez uma careta e finalizou o triste estribilho com um dramático golpe sobre as teclas.

- Não tenho humor para choros -cantou-, preocupar-se é de tolos; se o que quer é engordar, rir tem que procurar! - Piscou-lhe e deslizou sobre o banco do piano,
tamborilando-o de forma convidativa.
- Quer tocar?
Ela sacudiu a cabeça.
-Minha tia tinha um piano, mas nunca me deixou tocá-lo.
-Ofereço-me a te ensinar, mas as lições de piano são muito aborrecidas para maiores de dez anos - Endireitou-se.
- Ao final te perguntaria que acha da Inglaterra, e como foi sua viagem, e como se arrumou para chegar aqui e como Braden se rendeu com respeito aos nossos
parentes americanos. Tenho a impressão de que porá as coisas... bastante mais interessantes do que foram há séculos.
-Não há nada interessante em mim.
-Devo discordar, prima. Vocês, os americanos, são como seu país, nada é tão normal como aparentam - Ele agarrou um baralho de naipes.
- Conhece o pôquer? Aprendi com um americano, um magnata da ferrovia que procurava investidores na Inglaterra. Em um jogo despretensioso, mas jogar bem
requer certa capacidade para a decepção.
Ela observou suas mãos voarem enquanto embaralhava as cartas, quase muito rápidas para que pudesse acompanhá-las.
-É bom com isto? -perguntou.
-Se te respondesse com honestidade -disse ele-, perderia sua estima, e isso não poderia suportar. -Golpeou as cartas contra o piano para acomodar o baralho
e estudou-a com olhos faiscantes.
- Mas enfim, é uma habilidade mais útil que tocar o piano. Quer que te ensine?
Cassidy tinha os homens no rancho de seus tios jogarem, os vaqueiros jogando pôquer ou à bisca ao redor do fogo ou em seu barracão ao acabarem as tarefas
do dia. Riam e pareciam divertir-se, mas se incomodariam se ela tivesse perguntado se podia unir-se a eles. Não importava quanto respeitassem sua capacidade para
trabalhar com o gado, ela não era um deles.

Havia de uma só vez malícia e calidez no convite de Quentin, mas ela tinha a impressão de que Isabelle não concordaria, nem Rowena se soubesse.
-As damas jogam pôquer na Inglaterra? -perguntou.
Ele tossiu e deslizou fora do banco.
-Somente as mais ardilosas. Braden me pediu que procurasse fazer com que se sentisse cômoda conosco...
- Pediu?
-... e às vezes tomo minhas obrigações muito seriamente, quando me convém - ofereceu-lhe sua mão.
- Venha, prima. Temos uma ou duas horas antes que partamos como bons soldados para o jantar e aparentemos desfrutar sentados ao redor da mesa discutindo
quanta chuva se espera que caia amanhã. A menos que tenha uma idéia melhor.
Ela não podia negar, assim como já não podia ter em conta negativamente o engano que Quentin realizou na biblioteca. Ele a conduziu para um grupo de cadeiras
estofadas colocadas ao redor de uma pequena mesa circular, e ela escutou com interesse enquanto lhe descrevia as cartas e o jogo com um singelo humor contagioso.
Ele serviu a primeira mão e ela pôs em prática seus ensinos, realizando seu melhor intento para imitar a exagerada expressão vazia que ele adotava quando tentava
tornar um farol.
A princípio, estava convencida de que nunca aprenderia; ele via através dela uma e outra vez. Mas então ela começou a agarrar o truque, e observou o rosto
dele da mesma forma em que observava um ardiloso bezerro para adivinhar para que lado ia regatear. Às vezes, a pista não era mais que uma contração na comissura
do olho de Quentin, mas era suficiente. Sentiu uma aguda excitação quando ganhou pela primeira vez, e somente a estreiteza de seu espartilho nas costelas evitou
que rompesse a rir com o triunfo. Em seu lugar, limitou-se a sorrir amplamente.
Quentin deixou cair sua mão e admitiu a derrota.
-É uma de nós, de acordo -disse. - Melhor do que tem direito a ser -Seus olhos entrecerraram-se.
-Pergunto-me se Braden tem alguma idéia do que conseguiu contigo, Cassidy Holt.

Ela ruborizou de prazer.
-Ele também joga pôquer?
-OH, sim. Mas não com cartas.
Não explicou mais e procedeu a embaralhar as cartas de novo observando-a com um olhar espectador.
-Acredito que já está preparada para jogar com apostas.
Ela baixou o olhar para seu vestido.
-Não tenho nada -disse. - Exceto os livros que trouxe comigo desde o Novo México, e um pouco de dinheiro...
-Parece segura de que eu ganharei -disse ele. - E se você ganhar, Cassidy? Que deseja?
Tinha a resposta óbvia na ponta de sua língua. Pediria que lhe contasse coisas sobre Braden -sua infância, as coisas que lhe preocupavam, suas esperanças
e sonhos-, tudo o que lhe passava pela mente sempre que estava em sua presença.
Mas ela tinha a impressão de que Quentin encontraria a maneira de evitar responder às perguntas sobre seu irmão. Mordeu o lábio.
-Desejo... -Uma imagem chegou espontaneamente a sua mente, chegada de um mundo de sonho do distante passado.
- Desejo vê-lo transformar-se em lobo.
Quentin ficou gelado, as cartas detidas em suas mãos. Depois de um instante relaxou, como se ela tivesse feito uma piada que acabasse de entender.
-Esse não é um prêmio, Cassidy. Faço exatamente da mesma forma que você. Os ingleses não são tão diferentes, sabe.
O calor elevou-se nas bochechas dela. Ele acreditava... é óbvio ele acreditava que ela podia transformar-se, da forma em que sua mãe podia. Não havia razão
para que pensasse o contrário; era uma deles.
Mas tinha estado muito excitada, muito feliz por ter encontrado Braden para lhe contar que esperava que sua família inglesa ensinasse a ela o que sua mãe
não tinha podido. Eles pensavam que ela podia fazê-lo; essa capacidade que ela sempre havia sentido que estava fora de seu alcance. Pensariam que era tola e ignorante
porque não sabia como, da mesma forma em que Rowena encontrava falta das maneiras que uma dama devia possuir.

-É óbvio, você viveu com parentes humanos -disse Quentin. - De seu pai, não é assim?
Ela adotou a "cara de pôquer". Quentin a tinha ensinado bem.
-Sim.
-Bom, agora está aqui, e é pouco provável que se afastei de nós, inclusive se quisesse. - Ele a obsequiou com um sorriso inclinado que não chegou aos seus
olhos.
- Muito bem. Se você ganhar, trocarei para você. Se eu ganhar...
Ela conteve o fôlego. Se lhe pedisse que ela trocasse, seria obrigada a admitir que não sabia como. E não estava preparada para isso, ainda não, quando
estava tentando fazer as coisas bem. Quando por fim era querida.
-Se eu ganhar, -disse ele- deve-me um favor que reclamarei quando eu quiser. De acordo?
Seu alívio foi tão grande que não duvidou.
-De acordo.
Jogaram outra mão de cinco cartas, mas a sorte de principiante de Cassidy tinha desaparecido. Quentin ganhou com facilidade, embora tivesse piscado os olhos
os olhos e bancado o palhaço para subtrair força a suas vitórias. Ainda estavam absortos no jogo quando Aynsley apareceu à soleira, seguido de uma donzela e um criado.
-Lorde Greyburn deseja que informe aos senhores, Sr. Forster, Srta. Holt -disse- que não haverá jantar formal esta noite. Os serventes estão ocupados com
os acertos para a volta a Northumberland. O jantar será servido em seus aposentos dentro de uma hora. Se tiverem alguma petição, por favor, relate-a à donzela ou
ao servente. - Inclinou-se.
- Lorde Greyburn também solicita a honra de sua companhia na biblioteca, Sr. Forster, tão logo lhe seja conveniente.
Quentin baixou suas cartas e deu de ombros com muita afetação.
- Nossa diversão chegou ao seu fim, que triste. Mas foi agradável -ficou em pé, inclinando-se sobre a mão dela, e beijou as pontas de seus dedos.
- Muito agradável. Acredito que tem as maneiras de um verdadeiro jogador profissional, prima.

Suas palavras eram aduladoras, mas a pele dela não se arrepiou nem seu coração saltou quando ele a beijou, não como acontecia quando Braden a tocava, embora
fosse da maneira mais impessoal possível. Gostava-lhe de Quentin sem reservas, mas lhe sentia mais como o irmão que desejava ter, o irmão que tinha perdido fazia
tanto tempo.
Quentin suspirou e liberou sua mão.
- Vou a caminho da guarida do leão -disse-, e você deveria descansar, Cassidy. A donzela te ajudará com o vestido - Estremeceu.
- Rowena encontra prazer em embutir-se em um vestido que se ajusta como uma armadura e peso tanto como uma, e eu me sinto aliviado de ser um cavalheiro.
Com sorte, não terá que passar outro dia de compras até dentro de ao menos um mês.
Cassidy riu, agradecida por seus intentos em facilitar-lhe as coisas. Secretamente, odiava por completo o espartilho e as saias apertadas -não podia imaginar-se
caminhando uma milha no deserto usando-o, conduzindo uma corda em perseguição de uma preciosa vitela- mas não ia queixar-se em voz alta. Devia muito a Braden, e
inclusive estava em dívida com Rowena por seus conselhos e guia, apesar de sua evidente contrariedade em fazê-lo.
-Obrigada -disse.- Foi divertido.
-E haverá mais, asseguro-lhe - Deu-lhe uma piscada, quadrou seus ombros, chocou os talões em uma brincadeira da precisão militar, e saiu pela porta.
Através das paredes que delineavam seu solitário refúgio e do ressonante vestíbulo que tinha estado vazio de vozes durante tanto tempo, Braden ouviu-os
rir.
Escutou apesar de si mesmo, perguntando-se, e não pela primeira vez, se os humanos não possuiriam a vantagem com seus sentidos embotados. Não eram capazes
de ouvir aquilo que tão facilmente poderia trazer-lhes tão só aflição, tristeza e dor.
Não era dor o que sentia. Inclusive aflição era uma palavra muito forte. Relegou a irritação para o mais profundo de sua mente com uma impaciente sacudida
de sua cabeça. Ele desejava que Quentin ganhasse a simpatia e a confiança de Cassidy. E era evidente que Quentin estava tendo êxito, inclusive mais rápido do que
Braden esperava. Quentin podia ser encantador com facilidade, quando queria. Toda a alta sociedade adorava o alegre e galante Quentin Forster.

Cassidy Holt aprenderia a adorá-lo também. Era o primeiro passo essencial para o que viria a seguir. A pequena traição de Quentin causou-lhe um pouco de
dor, e ela não tinha mostrado excessiva compaixão nem tinha questionado sua liderança.
Certamente isso era uma sorte. Se não podia convencer uma menina sobre sua competência, não teria esperança alguma com os delegados na Convocatória.
E devia. Era o líder da Causa. Sua sobrevivência, a sobrevivência da própria raça dependia dele.
Mesmo que não tivesse herdeiros. Essa parte dele estava morta e além de toda recuperação.
Um suave golpe soou na porta, e Quentin entrou na biblioteca. Seus passos eram bem lentos para indicar que se sentia incômodo. Tal como devia sentir-se.
-Pude ouvir -disse Braden-, que você e Cassidy estavam bem.
-Imensamente. É uma moça muito divertida -Aproximou-se do aparador, levantou o copo que Braden tinha enchido antes e tomou um pequeno sorvo.
- Talvez a tarefa que me foi encarregada não seja tão laboriosa depois de tudo.
Uma lenta, insólita quebra de onda de hostilidade atravessou o corpo de Braden.
-E essa tarefa inclui dar aulas sobre truques de cartas?
-Ah, vejo que Aynsley, ou foi Telford, que já te entregou os informes? -Tomou outro gole mais comprido. - Não há nada de mal em um pouco de diversão inocente,
irmão maior. Ela é americana, depois de tudo. Não esteve tão protegida como nossas mulheres inglesas. Certamente nada a ver com Rowena.
O cristal ressonou contra a madeira quando Quentin posou seu copo.
- OH, mas está zangado comigo. Não pensaria de verdade que poderia enganá-la para sempre? Muito pouco esportivo por sua parte. E em qualquer caso... - serviu-se
outro gole da licoreira. - Sua vergonha foi somente temporária. Pouco mais que uma ligeira irritação tendo em conta seu indiscutível poder.
-Realmente é indiscutível, Quentin? -Braden cruzou a habitação até deter-se junto ao seu irmão, ameaçadoramente perto. - Deseja me desafiar?
Quentin pôs-se a rir com a boca cheia de brandy.

- Desafiar você? Como entrou essa idéia em sua cabeça, irmão maior? Sabe que não tenho a habilidade, a coragem ou o desejo de tomar lugar das suas responsabilidades.
Inclusive embora pensasse que poderia sobreviver a uma luta tão desagradável. Conheço minhas limitações.
-Recorda-o, Quentin -disse Braden, muito brandamente.- Não volte a me pôr a prova.
-Não o farei, prometo-lhe isso. As discussões são tão aborrecidas -Estirou-se para alcançar a licoreira de novo, e Braden tirou-lhe da sua mão.
-E nada disto. Quero-te sóbrio e concentrado em seu dever.
-Ah. Sabia que não podia evitar meu castigo -Quentin deixou-se cair na cadeira colocada depois do escritório de Braden.
- Falando do meu dever, você já disse à Cassidy o que tem em mente para ela? O destino que sem dúvida planejou até o último detalhe, tal como tem feito
para o resto de nós?
Braden sentou-se com rigidez em sua cadeira, e olhou com fixidez para seu irmão.
-Não disse. Haverá tempo suficiente para isso quando chegarmos a Greyburn.
-Apenas umas semanas antes da Convocatória! - Observou Quentin.
- Acredita que ela estará preparada para enfrentar todos os outros?
-Estará. Você a ajudará, Quentin. Mas não falará do resto de seu futuro. Está claro?
-Perfeitamente -Quentin bocejou com mais dramatismo que autenticidade-. E agora estou bastante cansado. Se me desculpar...
-Que seu ajudante empacote suas coisas. Iremos amanhã.
-Tão logo? Pensava...
-Mandaremos preparar mais tarde o que os criados não tenham preparado para amanhã. Quero que estejamos em casa.
Casa. Braden fechou seus olhos, como se a memória e a imaginação fossem algo mais vívido depois do véu dos sonhos. Cada instante em Londres tinha sido como
uma espécie de tortura, uma separação não natural da terra que amava e a que desejava tanto como o lobo de seu interior no que não podia converter-se nesta interminável
jaula de muros, máquinas e civilização.

Sentiria Cassidy o mesmo? Amaria o norte tanto como ele? Ou simplesmente entraria, sem suspeitá-lo, em alguma outra classe de jaula?
Pensamentos muito sensíveis eram inúteis. Despediu-se de Quentin com um leve aceno, mas Quentin não podia ir sem uma última ocorrência.
-Estou começando a acreditar -disse-, que me casar com a pequena Cassidy Holt será minha consagração.
Braden apoiou as palmas sobre a mesa, concentrando-se na aveludada suavidade da polida superfície, como se pudesse ficar tão insensível e funcional como
a madeira sob suas mãos.
-Se ela te ensinar a preocupar-se com algo mais que seus próprios entretenimentos -disse-, então terei muito que lhe agradecer.
-Suspeito que terá que lhe agradecer por muito mais que isso -murmurou Quentin. - Pergunto-me quanto tempo você levará para se dar conta disso. - encaminhou-se
para a porta antes que Braden pudesse replicar.
Deixemos que Quentin faça seus jogos verbais, afinal só eram palavras. Mas essas palavras voltaram para obcecá-lo enquanto chamava os criados um a um para
passar-lhes suas ordens e arrumar a compra dos bilhetes para a viagem do dia seguinte. Sim, tinha motivos para estar agradecido pela vinda Cassidy Holt. Mas quando
fosse a companheira de Quentin, sua única preocupação por ela seria a respeito dos filhos loups-garous que traria para o mundo.
Os filhos de Quentin.
Apertou os punhos e ficou imerso em sua própria escuridão privada durante toda à noite.



CAPITULO 6

Era a segunda vez que Cassidy viajava em um trem inglês, sua segunda viagem para o desconhecido. Não sabia onde acabaria ou o que a esperava no futuro.
Parecia que ninguém desejava falar dos dias que viriam, nem Isabelle, perdida em seus próprios pensamentos, nem Rowena, sentada junto a Quentin no assento oposto
do compartimento privado. Braden e seu ajudante tinham um compartimento somente para eles, perto, mas afastado, e o resto dos serventes viajavam em outra zona do
trem.
Mas enquanto Cassidy observava passar a paisagem inglesa, era mais feliz do que tinha sido desde aqueles longínquos e perdidos dias junto aos seus pais
e seu irmão.
Greyburn era o lar deles. O lar de Braden. Tinha visto a mudança em seu rosto quando falava dele. Rowena não queria deixar Londres, e Quentin parecia indiferente,
mas Braden estava ansioso por retornar ao lugar que amava.
Certamente aquilo que Braden amasse devia ser muito especial.
A viagem estava sendo muito excitante para ser aborrecida. Os criados tinham preparado comida e bebida, e os assentos estavam acolchoados; as horas passavam
enquanto o trem seguia seu caminho através da tranqüila campina do sul, através dos pântanos e das terras úmidas do este, subindo ao norte para Yorkshire com suas
colinas cobertas de ovelhas e urzes. O terreno ficou mais escarpado quando o trem cruzou Durham para bordear a costa para Newcastle.
Newcastle era tão feio como Londres; umas altas chaminés arrojavam fumaça, as ruas eram estreitas e sujas, e havia muitas pessoas aglomeradas nos pequenos
espaços. O ar estava impregnado com centenas de aromas distintos que Cassidy não podia sequer nomear. Entrelaçou seus dedos sobre o regaço de outro incômodo trajeto
de viagem e rezou para que Newcastle não fosse sua meta.
Mas depois de uma pequena espera, o traslado da bagagem a outro trem na estação de Newcastle foi feito, acomodando-os depois, com muita agitação e desnecessária
animação, em um novo compartimento. O grupo Forster pôs-se a caminho de novo.
Seguiam, terra adentro e para o leste de Newcastle, longe das multidões, do ruído e do fedor.

Entraram em uma nova terra que deu passo, assim que o trem girou para o norte do rio Tyne, dando vista a umas colinas mais selvagens, nuas e varridas pelo vento
e a uns vales afiados onde as árvores amontoavam-se ao longo das bordas dos arroios e riachos. Viam-se granjas dispersas que salpicavam o vale do norte do Tyne,
e da janela do trem nunca deixavam de ver o rio.
Havia uma estranha semelhança entre esta terra e aquela que Cassidy tinha deixado no Novo México; não era pela cor da terra ou pelas árvores ou pela cor
do céu. Aqui era todo verde, igual ao resto da Inglaterra. O mesmo ar estava impregnado de umidade, e pesadas nuvens passavam rapidamente levadas pelo vento.
Mas como o deserto, Northumberland era selvagem. Uma vez que deixaram a cidade para trás, foi como se as pessoas fossem somente uma minúscula parte de um
lugar muito grande para ser cercado, domesticado ou quebrado. Existiam prados cercados por pedras, campos de lavoura, ovelhas e gado. Mas Cassidy podia ver colinas
tão majestosas e inóspitas como as montanhas do novo México, onde uma pessoa podia correr durante milhas e milhas sem topar com ninguém mais.
-Ah - disse Quentin, depois de horas de um silêncio desacostumado. - Ulfington por fim - Tirou um baralho de cartas do interior de seu casaco e começou
a embaralhar distraidamente. - Já não falta muito.
Cassidy estirou o pescoço para ter uma melhor vista do povo que se aproximava. O trem diminuiu a marcha, sacudindo-se e soprando como um cavalo velho que
utilizasse sua última energia para alcançar o estábulo.
Ulfington era uma coleção de edifícios que se alinhavam ao longo de duas ruas que se cruzavam. Cassidy pôde vislumbrar alguns letreiros nas soleiras, o
campanário de uma igreja, e pessoas e cavalos movendo-se pelas ruas pavimentadas.
- É aqui que iremos apear -acrescentou Quentin. -Temos carruagens esperando-nos para nos levar a Greyburn.
Ela virou-se para olhá-lo.
-Não é aqui?
-OH, não. Braden não poderia suportar viver tão perto de uma cidade cheia de humanos... com perdão, Sra. Smith..., muito embora nossos ancestrais tivessem
achado apropriado instalarem-se aqui.

Isabelle sorriu para Quentin como reconhecimento, mas não disse nada. Parecia que ele a agradava o bastante, e era respeitosamente cordial com Rowena.
Mas desde que tinham deixado Londres, parecia ter se encerrado cada vez mais em si mesmo.
Seria por ela não ser um deles, porque não era uma loup-garou? Braden não lhe emprestava mais atenção do que emprestava aos seus criados, que eram todos
humanos. Isabelle dirigia-se a um lugar que pertencia aos loups-garous de uma maneira que Londres não. Isso poderia atemorizá-la?
O trem parou. Quentin estirou-se tanto como lhe permitia a estreiteza do compartimento, e Rowena agarrou sua pequena mala e olhou com fixidez para a frente.
Isabelle tocou o braço de Cassidy.
-Bom -disse-, está quase no final de sua busca, Cassidy.
-Não parece um final -respondeu. - Parece um começo.
Isabelle apertou sua mão e pareceu muito triste.
-Desejo-te toda a felicidade, querida minha.
-Sei.
Pela primeira vez Cassidy considerou seriamente o que Isabelle tinha deixado atrás, na América. Tinha uma casa confortável, bonitas roupas, amigos. Tinha
vindo à Inglaterra somente por ela, abandonando a vida que amava.
-Isabelle -disse com suavidade-, desejaria voltar à América?
Por um instante, Cassidy acreditou estar certa. A nostalgia passou pelo rosto de Isabelle. Mas em seguida, endireitou-se, sorriu e procedeu a colocar o
novo chapéu de viagem em Cassidy, sobre seu rebelde cabelo.
-Desfrutarei visitando outra vez uma casa de campo -disse. - E nunca estive em Northumberland.
Cassidy sorriu e tomou a mão de Isabelle enquanto seguiam Quentin e Rowena para sair do compartimento. Havia serventes uniformizados já preparados para
ajudá-los a descer. Braden já estava fora com seu ajudante, falando com um homem que parecia estar ao cargo de uma esplêndida carruagem com dois magníficos cavalos,
parados junto à plataforma. Uma segunda carruagem, menor, e uma carreta estavam alinhadas atrás.
-Adiantaremo-nos na carruagem pequena, e levarão a bagagem mais tarde -explicou Quentin. Seu olhar examinou o povo que se estendia além da estação. - Nada
mudou.

-Faz muito tempo que não está em sua casa? - Perguntou Cassidy.- Deve estar contente por voltar.
-Como o Grande Bardo disse tão acertadamente: "É muito comum que os homens são mais felizes quando estão longe do lar."
Ele ria como sempre, e Cassidy não acreditou. Ele saiu tranqüilamente da plataforma, deixando Cassidy e Isabelle esperando sozinhas. Rowena não estava em
nenhuma parte.
-OH, querida, meu chapéu!
Uma voz feminina chiou com alarme detrás de Cassidy, e ela voltou-se bem a tempo de apanhar a criação de plumas e flores artificiais levada pelo vento que
pegou a sua pele.
A proprietária do chapéu aproximou-se rápido, com grandes olhos azuis e loiros cachos.
-OH, obrigada! Cheguei a pensar que o tinha perdido para sempre. Este vento... tinha esquecido como podia ser no norte.
Cassidy sorriu e devolveu o chapéu a jovem mulher. Devia ter aproximadamente a idade de Cassidy, mas era mais baixa e bonita, bem vestida e desenvolta em
seu elegante vestido. A jovem devolveu-lhe o sorriso e começou a prender seu chapéu sobre os cachos. Uma criada, evidentemente sua donzela, chegou apressada atrás
dela.
-Veja, Ann ... Não o perdi depois de tudo! -A jovem estudou Cassidy com olhos brilhantes.
-Peço-lhe desculpas. Resgatou meu chapéu e nem me apresentei. Meu nome é Emily, Emily Roddam, de Stonehaugh. O senhor de Stonehaugh é meu pai, e mandou
que eu retornasse da França... mas OH, o que deve estar você pensando? Sou tão charlatã!
-Não penso tal coisa. Meu nome é Cassidy Holt, e estou a caminho de Greyburn.
Os olhos de Emily abriram-se ainda mais.
-Greyburn! Sério? Que fascinante! Stonehaugh está justo detrás da colina de Greyburn, onde nós nunca... quer dizer... - Ruborizou.
-Vive perto de Greyburn? -Cassidy moveu-se, inclinando-se como se compartilhasse um segredo.

- Nunca estive ali. Você sim?
-OH, não -Emily estremeceu dramaticamente.
-Quando era uma menina, antes que mamãe me levasse a Paris... recordo as histórias. Nossa babá nos contava que se fôssemos além da colina para as terras
de Greyburn, os cães de Gabriel viriam atrás de nós. Mas temo que possa considerar-me estúpida...
-Não. Eu venho da América...
-América? Seu acento é óbvio. Conheci alguns americanos em Paris. Chegou recentemente à Inglaterra?
-Sim. Os Forster de Greyburn são meus primos.
-Já vejo... Sério,... essas velhas histórias são mentiras. Agora sei. Mas nós gostávamos que nos contassem essas histórias de medo, já sabe. E os criados
são todos tão supersticiosos - emitiu uma risada.
- OH, mas onde estão minhas maneiras! Veio passar o verão? Possivelmente possamos ser amigas. Isto é quase o fim do mundo, sabe. Preferiria ficar em Londres,
mas meu pai... bom, ele me quer em casa, e com mamãe fora... -aplaudiu seu chapéu. - Estou segura de que papai se alegrará de que nos visite. Se a seus primos não
os molesta.
Era muito rápido para Cassidy, mas sentiu-se comovida pela oferta de amizade de Emily. Tinha conhecido poucas garotas de sua idade no rancho, e não havia
se aproximado de nenhuma. Ser querida por si mesma, tal como era...
- Eu adorarei visitá-los - disse.
Emily aplaudiu com suas mãos enluvadas. - Delicioso. Monta a cavalo?
-No Novo México montava todo o tempo.
-Então ambas temos alguém com quem sair a montar. Faz séculos que não vejo o Muro. Podemos fazer um piquenique. Estou convencida de que seremos grandes
amigas!
Estendeu sua mão, e Cassidy estreitou-a. Sorriram com perfeita harmonia, e Cassidy pensou que não podia ter tido uma boa-vinda a Northumberland melhor que
esta. Tudo ia ser perfeito. Tinha Braden e seus outros primos, Isabelle, e agora Emily, sua primeira amiga de verdade na Inglaterra.

-Está esperando transporte para sua casa? -perguntou Cassidy.
-Se Stonehaugh estiver tão perto, talvez nós possamos...
-Cassidy!
Emily levantou o olhar quando a sombra de Braden caiu sobre ela. Deu um passo atrás, agarrando suas saias.
-As carruagens esperam -disse Braden. Logo que viu Emily, sua expressão era gelada. - Por favor, desculpe-nos.
Cassidy sorriu de modo tranqüilizador à Emily, que olhava Braden fixamente como se tivesse visto um monstro saído de um conto infantil.
-Devo ir agora -disse Cassidy.
- Espero que voltemos a nos ver logo.
Mas Emily estava muda, e seu olhar caiu sobre Cassidy com uma mescla de consternação e desejo. Alguém disse seu nome; com um coice de alívio fez uma reverência
e partiu com sua donzela para uma carruagem que esperava.
-Venha -disse Braden, tomando o braço de Cassidy. Isabelle seguiu-os, quase esquecida. Cassidy olhou para Emily, mas a jovem não fez nenhum intento em despedir-se
enquanto sua carruagem partia.
-Era Emily Roddam -disse Cassidy com um gesto de explicação, tentando compreender a rudeza do Braden. - Vive em Stonehaugh...
-Sei quem é. Falaremos disto mais tarde.
Alcançou o final da plataforma e se cambaleou na beira; refez-se imediatamente indo para a primeira das carruagens de Greyburn.
Rowena e Quentin já estavam sentados. Braden ajudou Cassidy a entrar e deixou que o criado ajudasse Isabelle. Logo desapareceu, e a carruagem ficou em marcha.
Isabelle olhava pelo guichê, e Rowena estava perdida em seus próprios pensamentos, como estava quase sempre. Somente Quentin parecia estar de humor para conversar.
-O que acha de Ulfington? - perguntou-lhe.
-Não sei -disse ela honestamente.
-Mas conheci a senhorita Roddam na plataforma...
-Ah. Uma das mais antigas famílias humanas da região - disse ele, enfatizando "humanas". - Deve estar desejando conhecer mais a respeito dos arredores.

Sem esperar sua resposta, ele narrou uma descrição de Ulfington e do caminho a Greyburn. Ela aprendeu que Ulfington era o povoado maior em muitas milhas
ao redor, um lugar onde os granjeiros locais e os pastores se reuniam no verão para sua feira anual. À altura de Ulfington, o Tyne continuava para o noroeste até
a fronteira da Escócia. O rio Ulf chegava ali do norte, de um vale agreste e mais estreito que se estendia entre as Colinas Cheviot.
Enquanto ele falava, o estreito caminho que se movia em paralelo ao Ulf subindo pelo vale, passava junto a mais granjas dispersas localizadas aos pés das
colinas nuas. Não houve mais povoados, somente algumas casa soltas apinhadas junto a prados de pasto, ou campos de grão ou erva. Em uma ocasião, um pequeno grupo
de ovelhas cruzou o passo no caminho à borda do rio; o pastor parou para tocar sua boina, suas maneiras eram respeitosas, mas seu rosto estava sombrio e receoso.
Por fim chegaram a uma bifurcação no caminho, onde uma avenida ainda mais estreita se estendia em paralelo com uma fita chapeada de água. As árvores de
um bosque formavam um túnel que quase cercava o arroio: Grei Burn, de onde os Forster tinham tomado seu nome.
Muitas árvores alinhavam-se à beira do caminho, em um número maior do que Cassidy tinha visto em nenhuma parte, desde que tinham deixado a estação de trem.
-Nossos ancestrais plantaram -disse Quentin.
-A maior parte do bosque foi destruída faz muito tempo, mas os Greyburn Forster não poderiam viver sem seus bosques.
E o bosque era encantador. Profundo e misterioso, chamando Cassidy com uma voz desconhecida, o distante eco dessa obsessão em seu interior que nunca tinha
aprendido como seguir.
A urgência por abrir a porta da carruagem, saltar para a esponjosa terra verde e lançar-se entre aquelas árvores era quase irresistível. Fechou seus olhos
com força e tentou não escutar a voz do bosque, concentrando-se em troca no tamborilar dos cascos dos cavalos, os rangidos da carruagem e o assobio sem melodia de
Quentin.
Quando voltou a abrir seus olhos, já tinha Greyburn à vista.

Ninguém lhe tinha dado uma descrição com antecedência, não tinha nada no que apoiar sua imaginação. Devia ser magnífico, imponente e impressionante como
o próprio Braden. Devia ser merecedor de seu amor.
Era todas essas coisas e mais.
-"O esplendor derrama-se pelos muros do castelo" -murmurou Cassidy.
Greyburn não era um castelo de verdade, embora tinha uma espécie de torre em ruínas em um lado, e a própria casa principal, de pé no meio de um grande prado
em pendente e flanqueada por umas altas e solenes árvores, tinha um aspecto antigo de pedra e majestuosidade. Chaminés e agulhas elevavam-se de um montão de telhados
retos e inclinados a intervalos regulares, e umas janelas altas olhavam para fora desde cada muro como se fossem olhos vigilantes. Era o bastante grande para satisfazer
a idéia de qualquer um de como devia ser um palácio que encaixasse com um poderoso senhor.
-É um gosto bastante estranho, devo admitir -disse Quentin, inclinando-se para diante para seguir o olhar dela.
- Cada conde de Greyburn deixou sua marca nela, mas a construção original é da época Isabelina. Meu avô tinha um gosto pelo medieval, mas escolheu
acrescentar mais que alterar. Que Deus proíba o sacrilégio da simetria. Braden fez relativamente pouco... -Fez uma pausa e dirigiu-lhe um olhar de diversão.
-Mas suponho que isso não te importa.
-É maravilhoso! - Disse ela.
-Esta casa e estas terras estão cheias de lendas. A maioria data da época das lutas fronteiriças, famílias da Escócia e da Inglaterra que lutavam nestas
terras e passavam a maior parte de seu tempo roubando o gado uns dos outros. -Ele abriu mais os olhos.
- Dizem que o fantasma de um desses guerreiros ainda ronda pela zona, Matthias, um dos primeiros guardiães de Greyburn. Talvez o encontre algum dia.
Um guardião fantasma encaixava-se perfeitamente em um lugar como este.
- Espero que sim -disse Cassidy. - Desejo conhecer tudo sobre Greyburn.
- Braden deveria apreciar seu entusiasmo. Devo te advertir que não encontrará muitas comodidades modernas em Greyburn. Minha família prefere a tradição
histórica ao vulgar progresso.

Ela não podia acreditar que Greyburn tivesse defeitos. Quando a carruagem sacudiu ao deter-se ante os degraus que conduziam às largas portas, aguardou o
servente para ajudá-la a descer. Tropeço em suas saias quando seus pés tocaram o chão, mas foi uma mão familiar que a sustentou.
Braden liberou seu braço, assim que ela recuperou o equilíbrio. Sua cabeça estava elevada e voltada para a grande casa, com uma expressão de satisfação
em seu rosto.
Isto era o que significava voltar para o lar. O lar era mais que um lugar; era um modo de sentir. Significava que pertencia a algo.
Ela desejava pertencer a este lugar. Desejava que Braden se voltasse para ela com o mesmo aspecto de alegria tranqüila.
Mas ele logo pareceu perceber sua presença. Quentin, Rowena e Isabelle permaneciam de pé atrás deles, aguardando as indicações dele. Reunidos aos pés dos
degraus estavam duas fileiras de homens e mulheres vestidos de branco e negro: serventes, muitos mais dos que havia na casa de Londres, aguardando sua atenção.
Um dos homens aproximou-se para saudar Braden, inclinando-se com impecável dignidade. Cassidy reconheceu Aynsley, que devia haver-se adiantado na chegada
a Greyburn.
-Bem-vindo a casa, Lorde Greyburn -disse.
Braden subiu os degraus, detendo-se ante cada servente com uma breve palavra. As cabeças inclinavam-se e olhos curiosos olhavam Cassidy. Ela sorriu para
uma donzela de branco uniforme, mas a moça emitiu um inarticulado suspiro e rapidamente afastou o olhar.
-Esta é minha prima, a senhorita Holt -informou Braden aos serventes. - Deve ser considerada como uma mais da família - Quase como se acabasse de pensá-lo,
fez um gesto com a cabeça para Isabelle. - A senhora Smith, a acompanhante da senhorita Holt.
Um servente abriu a porta principal e Braden ofereceu seu braço à prima. Rowena deslizou atrás deles, e Quentin acompanhou Isabelle ao interior da casa.
O vestíbulo da entrada estava franqueado por umas cadeiras grandes e singelas, e o teto arqueava a bastante altura sobre suas cabeças.

Um largo tapete, cujas ricas cores esfumaram-se com os anos, estendia-se com o passar do chão. Uma imponente escada ao fundo do vestíbulo, com postes intricadamente
esculpidos, subia para um largo patamar, e conduziam a habitações a cada lado.
Cassidy olhou para o teto e pôde ver grandes pinturas no muro do primeiro andar. Braden deixou para ir falar com Aynsley, com seu ajudante e com a ama de
chaves, a senhora Fairbairn, enquanto o resto dos criados saía silenciosamente e desaparecia no interior da casa.
-É impressionante, verdade? -disse Isabelle ao seu lado, com a voz entrecortada.
-Já esteve em casas como esta?
-Sim. Faz muito tempo.
-Parece muito imponente para alguém como eu.
Isabelle olhou para outros.
-As aparências podem ser enganosas -disse. - Inclusive lugares como este escondem seus segredos. Nunca esqueça, Cassidy.
A seriedade das palavras de Isabelle pegou Cassidy de surpresa. Estava a ponto de pedir uma explicação, quando uma donzela uniformizada aproximou-se fazendo
uma reverência.
-Senhora Smith? -disse.
-Poderia me acompanhar? Mostrarei seus aposentos.
-Voltaremos a falar logo -prometeu Isabelle, e seguiu a donzela para a enorme escada. Braden ainda conversava com Aynsley; Quentin tinha deixado o vestíbulo,
e Rowena já tinha subido a metade das escadas.
Sentindo-se muito sozinha, Cassidy percorreu o vestíbulo com o olhar. A advertência de Isabelle estava clara em seus pensamentos, mas não sentiu que houvesse
nada que temer. Os aromas de Greyburn pareciam formar parte dos muros: madeira, pedra, couro, tecidos e pó revestido de umidade e os aromas longínquos da cozinha.
Uma das portas laterais capturou sua atenção; era enorme e estava intricadamente esculpida. Ela cruzou o vestíbulo para estudá-la com maior atenção. As
imagens eram de homens lutando com espadas, e cavalos galopando sobre onduladas colinas.

Sem poder resistir, Cassidy empurrou a pesada porta até abrí-la.
Dentro havia uma habitação completamente distinta ao vestíbulo e ainda mais imponente. O teto era um esqueleto de grossas e nuas vigas, o chão estava formado
por compridos quadrados de pedra. Havia uma mesa enorme e um sem número de cadeiras em uma esquina do aposento, junto a uma imensa chaminé. Estandartes e escudos
penduravam dos muros. Cassidy pensou em cavalheiros com armadura e atos de valentia ocorridos há muito tempo atrás.
Várias figuras emolduravam a chaminé, e Cassidy foi atraída indevidamente para elas, mas aqui os temas eram diferentes.
Havia homens com armadura e cavalos, mas entre eles corriam formas ágeis e peludas com presas nuas: lobos. Por onde olhasse, Cassidy via lobos, em umas
ocasiões com humanos e em outras correndo sozinhos.
E então encontrou o tema principal, sobre o centro da chaminé. Estava muito alto para que pudesse vê-lo bem, assim arrastou uma cadeira até ali e levantou
as saias para subir nela.
Dois enormes lobos enfrentavam-se, com as orelhas rígidas e as caudas levantadas. Cada um se sentava sobre algo que Cassidy pensou, a princípio, que eram
rochas estranhamento esculpidas. Então notou melhor os perfis, e viu corpos de homens com as mãos esticadas em forma de súplica, esmagados contra o chão pelo peso
dos lobos.
-Meu avô encarregou essas esculturas.
Cassidy baixou com dificuldade da cadeira e voltou-se para enfrentar Braden. Ele permanecia na outra ponta da grande sala, mas sua voz chegava clara e ressonante.
- Os desenhos da parte exterior da porta foram realizados na época de meu tataravô - disse ele, caminhando para ela. - notaste o contraste, Cassidy, entre os daqui
e os de fora?
Ela supôs que era uma prova de sua habilidade para observar e apreciar seu novo lar, e estava decidida a não falhar.
- Os da porta não têm lobos.
-É correto - Passou junto a ela e parou, justo debaixo das figuras da chaminé. Era bastante alto para as alcançá-las; passou seus dedos sobre os lobos e
seus cativos humanos. Com gentileza, como se fossem amigos velhos e queridos.

- Meu avô -continuou-, reconstruiu esta sala quando redesenhou a casa depois da morte de meu bisavô. Incrementou o tamanho de Greyburn em cinqüenta por
cento, mas a Grande Sala foi seu maior lucro. Este estilo gótico não estava na moda naquele tempo, mas ele desejava reviver uma época mais antiga. Uma distinta forma
de vida.
Cassidy elevou o olhar para os estandartes, os escudos e as antigas armas que se oxidavam nos muros.
-"O sol brilhava sobre as folhas das espadas -citou-, e flamejava sobre a metálica armadura do audaz Sir Lancelot." em-Lancelot, se alguma vez existiu,
era humano -Ele se voltou para ela, e parecia tão sério como em Ulfington, quando tinha aterrorizado Emily Roddam.
- Meu avô construiu isto para os loups-garous. Unicamente para os de nossa raça, e para aqueles inquestionavelmente leais a nós.
Instintivamente Cassidy olhou para as sinistras gravuras da chaminé. Como se ele tivesse pressentido seu movimento, Braden estirou-se para tocá-los novamente.
-Todas as gravuras desta habitação, exceto estes, foram encarregados quando meu avô era jovem -disse.
- Este painel final chegou quando eu era um menino. O que vê quando o olha, Cassidy?
Ela tremeu um pouco e disse o primeiro que lhe veio à mente.
-Os lobos conquistaram as pessoas.
-Sim - Ele deixou cair a mão e se aproximou da mesa.
- Quando ele era jovem, meu avô precaveu-se de que nossa raça estava morrendo, porque muitos de nós, através das gerações, cruzaram com os humanos. Estávamos
perdendo os dons que nos convertem no que somos, as habilidades que nos fazem superiores para os homens ordinários. Mas somos superiores, Cassidy, isso é algo que
sempre deve recordar.
Esta era a oportunidade que Cassidy esperava, explicações que enchessem todos os vazios em seu conhecimento, uma oportunidade para aprender aquilo pelo
que Braden se preocupava, aquilo que desejava. Mas as palavras dele provocaram um calafrio, e por uma vez viu a impressionante vastidão de Greyburn como algo mais
que um castelo de conto de fadas ou o ideal de uns sonhos românticos.


-Meu avô encomendou este último painel quando se precaveu de quão traiçoeiros podiam ser os humanos -disse Braden-, quando soube que já não podíamos nos
permitir viver entre eles como se fôssemos seus iguais. Eles nos superam em número, sempre o têm feito. Mas essa é sua única vantagem.
Cassidy aproximou-se lentamente à mesa e agarrou uma cadeira. Sentiu-a tão pesada como a bigorna de um ferreiro.
-Não compreendo.
A paixão brilhou no rosto dele, com fera convicção.
- Compreenderá -disse. - Deve fazê-lo. Aprenderá a pensar em Greyburn como seu único lar e em nós como sua única família. O resto do mundo já não importa.
O resto do mundo. Mas ele não se referia somente a Londres ou ao Novo México, ou àqueles lugares que Cassidy nem sequer conhecia ainda. Ele se referia também
às pessoas. Pessoas que não eram homens-lobos como ele, ou como Rowena, Quentin ou Edith Holt.
Cassidy recordou Emily Roddam e sua borbulhante oferta de amizade. Sentiu-se tão bem falando com alguém que a apreciava tal como era, que desejava conhecê-la
melhor sem julgamentos ou expectativas.
Mas Emily Roddam não era uma Forster. Não era loup-garou. Assustou-se com Braden, e ele desejava que tivesse medo.
-Na estação de trem -disse ela-, não queria que falasse com Emily Roddam.
-Os Roddam são humanos. Não têm capacidade em nosso destino.
Cassidy apertou suas mãos sobre a mesa.
-Ela queria ser minha amiga...
-Esse tipo de amizade é que quase destrói a nossa raça, que quase nos faz perder a própria essência do que somos - Abateu-se sobre ela, mortalmente sério.
- Esqueça seu passado. Esqueça tudo o que te faz menos do que está destinada a ser.
O que estava destinada a ser. Durante toda sua vida se fez essa pergunta, despojada do conhecimento que sua mãe teria irradiado-lhe, se tivesse vivido.

Mas não tinha contado com isto. Tinha acreditado que encontrando a sua família seria um ganho, não uma renúncia a nada.
-Odeia os humanos -disse com súbita compreensão.
-Odiá-los? Não. Mas considero-os como são -Sua boca apertou-se em um sorriso pela metade. - Como foi sua vida entre eles?
Ela recordou o olhar de receio e temor nos olhos de seu tio Jonas, inclusive quando tentava ser amável com ela, e os dias maus com a tia Harriet quando
ele não estava no rancho. Nunca disseram que tinham medo dela e nunca falaram de sua mãe, mas tampouco deixaram que esquecesse que era diferente deles, uma desagradável
carga para sua caridade. Alguns dos vaqueiros afastavam-se quando ela passava por perto, e enviavam-na aos prados mais longínquos quando chegavam convidados à fazenda.
Mas também tinham sido generosos. Mercedes, a cozinheira, sempre tinha se preocupado por ter o bastante que comer. O velho Juan tinha gabado sua capacidade
para encontrar o gado extraviado e a ajudava a pedir seus preciosos livros de poesia no armazém do povoado.
E seu pai havia sido humano. Apenas tinha uma leve lembrança, mas amava-o. E ele a amou. Braden tinha esquecido isso?
-Não são todos iguais -disse. - Algumas pessoas são amáveis...
-A maioria dos humanos nos odiaria e nos temeria, Cassidy, se revelarmos o que somos. No passado, caçavam-nos como animais. Esse é o motivo de que poucos
saibam o que somos.
-Mas Isabelle não tem medo. Ela conhece...
-Permiti que viesse aqui para sua tranqüilidade. E não falará do que viu. -Sua certeza era ameaçadora, como uma enorme nuvem negra que pressagiasse uma
tormenta do verão.
-Os criados... eles vivem aqui com vocês -disse ela.
-E eles também sabem, mas são leais à família. Nunca nos trairão.
Ela pensou na muda, ansiosa deferência dos serventes... todos, exceto Aynsley, que se envolvia a si mesmo em uma espécie de majestosa indiferença, e o ajudante
de Braden, com quem se encontrou nas escadas em Londres.
Franziu o cenho olhando seus punhos fechados sobre a mesa.

-Se somos tão diferentes dos humanos -disse-, então por que vivemos como eles? Por que os loups-garous casam-se com eles e têm filhos?
Se ele sabia que ela falava de seus próprios pais, de seu próprio nascimento, não deu mostras disso.
-Fizemos para sobreviver -disse.
-Acreditávamos que sendo como eles, nos protegeria. E cada vez havia menos de nós com os que nos unir. Mas agora tais costumes se converteram em uma ameaça
para nossa existência -Seu olhar cego era veemente, obcecado.
- Você não é como eles, Cassidy. Seus sentidos são mais penetrantes, seus reflexos são mais rápidos. Pode correr durante um dia sem te cansar absolutamente
e sobreviver sem comida durante uma semana. Pode captar sons que, para os humanos, é completamente inaudível, ou localizar um homem por seu aroma a milhas de distância.
É resistente ao frio, à enfermidade e à dor. É loup-garou.
Ela nunca tinha dado conta de seus dons na forma com que ele fez agora, não com tantas palavras, mas ele tinha razão. Ela era todas essas coisas, tal como
sua mãe tinha sido. Deveria sentir-se feliz, sabendo que Braden a tinha aceitado completamente.

Mas ele falava como se ela fosse uma coleção de habilidades, não uma pessoa. E recordou o jogo de cartas com Quentin, quando se perguntou o que Braden diria
quando soubesse que ela não sabia como trocar.
-Nosso dever -disse Braden-, é restaurar nosso sangue para que volte a ser o que era nos dias antigos. É a Causa a qual dediquei minha vida. Você, também,
é parte dela.
Parte de uma causa com que Braden se preocupava ferventemente, profundamente, que conseguia iluminar seu severo e atrativo rosto com uma luz radiante. Finalmente
ele estava oferecendo uma oportunidade de ajudar.
-Como? -perguntou. - Como posso ajudar?
-Acreditando na Causa, tal como eu faço -Ele estendeu suas mãos para abranger a sala.

- Durante mais de cinqüenta anos, as últimas famílias de puro-sangue loup-garou do mundo se reuniram aqui, trabalhando para salvar a nossa gente. A próxima Convocatória
será em menos de duas semanas. Será apresentada aos delegados, e tomará seu posto entre nós.
Ela tentou imaginar a sala cheia com homens e mulheres como Braden, todos olhando-a, julgando-a, medindo sua valia. Braden estava tão seguro de que era
digna...
Ela devia ser o que ele desejava. Devia esquecer a parte dela que era humana e que tinha amigos humanos. Esse era o preço que devia pagar para ser uma deles.
Levantou-se da mesa e caminhou até deter-se junto a ele. Um calafrio percorreu-a, dos dedos de seus pés até o mais alto de sua cabeça, tal como ocorria
sempre que ele estava perto.
-Isto significa tanto para você. -disse.
-Lutamos por nossas vidas - A atenção dele estava concentrada nela, e não como alguma peça em um jogo que não tinha aprendido a jogar. Capturou suas mãos,
sustentando-as em um apertão que deveria paralisá-la, mas que fez com que o sangue se acumulasse em suas têmporas baixando até seu ventre.
- Se entregará à Causa, Cassidy?
Perguntou como se não a desejasse para sua Causa, a não ser para si mesmo. Unicamente uma parte dela compreendeu o que isso significava, despertando seu
interior como uma semente na terra seca do deserto, esperando pelas chuvas que a fariam florescer.

Ele era a chuva, derramando-se sobre ela, alimentando-a com seu toque, seu aroma e sua força.
E ela tinha algo que ele desejava... algo que somente ela podia dar.
-Precisa de mim. -disse. -Necessita-me .
O rosto dele estava muito perto do dela, seus lábios entreabriram-se, seus verdes olhos tão intensos como se nunca tivesse perdido o dom da vista. As janelas
de seu nariz alargaram-se para captar o aroma dela. Repentinamente separou-se de um salto, deixando cair as mãos dela, e a luz morreu em seus olhos.
-A Causa precisa de você -disse ele, sua voz despojada de emoção.
-Tal como necessita de qualquer um com o sangue puro. Sei que cumprirá com seu dever como Forster e como loup-garou.

Uma Forster e uma loup-garou. Nem "Cassidy", ou sequer "Prima", as quais eram palavras que agora pareciam totalmente impessoais. Palavras como "Causa",
"Sangue puro" e "Superior", etiquetas que edificavam muros entre as pessoas. Lemas que ocultavam escuras curvas que Cassidy não desejava ver.
Tal como Braden não desejava vê-la .
Abraçou a si mesma, dolorida e perplexa.
-Quero ir para os meus aposentos agora.
Em resposta ele atravessou a sala e abriu de par em par as enormes portas.
-Uma donzela mostrará o caminho -disse.
Cassidy inclinou a cabeça e apressou-se fora da Sala. Uma donzela estava esperando, tal como Braden tinha prometido. Devia chegar ao seu quarto, encontrar
o vestido que trouxe consigo do rancho, a roupa com a qual podia mover-se com comodidade. Precisava pensar, e sempre tinha ido ao selvagem quando estava preocupada
como o estava agora.
No Novo México internava-se no deserto. Aqui não havia planícies secas e abertas, a não ser profundos bosques e úmidas colinas sob um céu estranho a ela.
O bosque a tinha chamado; iria pra ele, e talvez responderia às perguntas que não sabia responder.
A donzela conduziu-a aos seus aposentos e entrou atrás dela. Em outra ocasião, Cassidy teria se sentido afligida pela suntuosa câmara que lhe tinham atribuído,
tal como sentiu-se com relação a Greyburn. Seu quarto na casa de Londres tinha sido pequeno e singelo; este era adequado para uma princesa. A ampla cama tinha um
dossel ricamente adornado, a jogo com o elegante mobiliário, com uns pesados cortinados profusamente decorados e um luxuoso tapete. Uma enorme banheira permanecia
em frente à chaminé, onde um pequeno fogo mantinha o frio fora do quarto.
.-Tem um banho quente preparado para você, senhorita, e suas roupas estão no roupeiro -disse a donzela.- Prepararei um vestido...
-Meu vestido de algodão... sabe onde o puseram?
A donzela pareceu confusa. Provavelmente o vestido pareceria um farrapo comparado com a coleção londrino de Cassidy. Cassidy encontrou o roupeiro em um
pequeno vestíbulo anexo e começou a procurar. O vestido de algodão estava pendurado no fundo, atrás de todos os elegantes vestidos.

Os pequenos botões de seu vestido de viagem negavam-se a soltar, apesar de seus torpes esforços.
-Pode me ajudar com isto? - pediu à donzela. A moça aproximou-se imediatamente, soltando o comprido corpete, a saia superior e a saia interior, e logo o
espartilho, com dedos peritos.
Pela primeira vez em muitas horas Cassidy pôde respirar com liberdade. A donzela ajudou-a a colocar o vestido de algodão, e depois pôs-se atrás dela sem
comentários, enquanto Cassidy saboreava sua recuperada liberdade. Cassidy desabotoou suas elegantes e incômodas botas, e procurou em vão os sapatos que utilizou
durante sua viagem à Inglaterra. Alguém tinha decidido que não eram adequados para uma "superior" Forster.
Não podia correr com nenhum dos sapatos comprados em Londres. Sentir a terra sob seus pés era exatamente do que necessitava.
-Pode ir agora - disse à donzela. - Estarei bem. É só que... desejo estar a sós.
Se a donzela desaprovava o aspecto de Cassidy, não se atreveu a demonstrá-lo. Fez outra reverência e se dirigiu para a porta.
-Se necessitar de algo, senhorita, somente chame.
Cassidy deu-se conta do incômodo que sentia com essa automática deferência, com o conhecimento de que todo o trabalho da moça consistia em atender a uma
só pessoa. Mas a donzela não tinha culpa. Cassidy sorriu e agradeceu-lhe, permanecendo no dormitório até que as pisadas da moça se desvaneceram pelo corredor.
Então utilizou todos seus sentidos para sair da casa sem ser detectada. Se Braden estava vigiando, ela não podia controlá-lo. Mas os poucos criados humanos
que cheirou perto não a viram, porque ela não queria que o fizessem. Descobriu uma porta na parte traseira da casa e deslizou por ela, saindo em um exuberante jardim
cheio do aroma das flores. A suave luz do crepúsculo brilhava sobre as colinas e o bosque detrás de Greyburn, colorindo a folhagem de rosa e ouro. O jardim era amplo,
bem cuidado, cruzado por atalhos de pedra e cascalho, perfeitos para um tranqüilo passeio vespertino.

Isso não era o que Cassidy desejava. Seu coração já pulsava velozmente, sabendo que logo, embora somente por um pequeno momento, tudo seria singelo de novo.
Quase tinha alcançado a beira do jardim quando percebeu que não estava sozinha. A última pessoa que desejava encontrar agora, era Rowena, que veria seu
vestido de algodão e seus pés nus e acharia que Cassidy era simplória demais para fazer parte da família, olhando-a com seu régio e refinado olhar de desdém.
Mas junto com o aroma de Rowena chegou-lhe um solitário e familiar som, seco e chiado. Cassidy duvidou, e um pedaço de papel enrugado passou voando perto
de seus pés, detendo-se na base de um arbusto. Ela , então, inclinou-se para recolhê-lo, alisando-o com decisão. Havia algo escrito, e as palavras eram como uma
poesia. A carta estava dirigida à Rowena. "Minha queridíssima", começava, e falava de "meu amor por você", "grandes obstáculos", "cruel separação", e "comportamento
irracional de seu irmão".
Antes que Cassidy pudesse ver a assinatura, Rowena apareceu no atalho. Seu usualmente imaculado cabelo estava desordenado, e seu rosto estava avermelhado.
Cassidy ofegou e quase deixou cair o papel enrugado de sua mão.
Lady Rowena Forster -refinada, elegante e correta, sempre fria e condescendente, membro da melhor sociedade de Londres - tinha chorado.


CAPITULO 7

-Devolva-me ! Gritou Rowena.
Surpreendida pela mudança na irmã de Braden, Cassidy obedeceu. Rowena apanhou a folha de sua mão e a alisou tal como Cassidy fez. Seus elegantes dedos estavam
tremendo, e as lágrimas ameaçavam derramar de seus olhos ante a mais ligeira piscada. Por um momento, toda sua atenção estava posta na carta, e logo pareceu perceber
que estava sendo observada. Sua cabeça elevou-se, perdendo mais forquilhas de seu cabelo. Douradas ondas caíram sobre seus ombros.
-Como se atreve a ler minha carta? - disse, sem muita ênfase, como se falar somente fosse um hábito. Ou para proteger os fragmentos de sua destroçada dignidade.
Para alguém como Rowena, a perda de sua perfeita máscara devia ser terrível. Cassidy se alegrava de não ter tido nunca nenhuma a perder.
-Sinto muito - disse. Falou sinceramente, e sentiu uma genuína pontada de compaixão. A óbvia infelicidade da Rowena tocou-a de uma forma que os frios conselhos
e reticente aceitação desta não tinham conseguido. Era algo que Cassidy compreendia. - Não pretendia ler.
Rowena sorveu seu nariz e tentou recompor seus rasgos até aparentar uma indiferente calma.
-Quanto leu? -perguntou.
-Que foi escrita para você -admitiu Cassidy. - De alguém que... -Fez uma pausa, recordando a poética linguagem e as doces palavras de carinho. - De alguém
que te ama.
A máscara de Rowena veio abaixo de novo, e voltou-se repentinamente.
-Dirá a Braden?
Confusa, Cassidy sacudiu sua cabeça.
-Dizer o quê? -perguntou. - Por que chora?
O som que Rowena emitiu não era exatamente uma gargalhada.
-É possível que ainda não saiba? -Seu olhar dirigiu-se ao longe, e quando voltou a olhar para Cassidy havia um estranho brilho em seus olhos.

- Quer dizer que Braden ainda não lhe explicou isso tudo. Que negligente da sua parte. - Sua boca curvou-se como se saboreasse algo amargo. - Que injusto
para você, pobre menina!
Esta era a Rowena que Cassidy conhecia, ligeiramente zombadora sob suas meticulosa, brandas e soltas palavras. Mas Cassidy não era estúpida. Rowena estava
sofrendo, tanto que Cassidy podia sentir a dor em seu próprio coração.
- O que não explicou? -perguntou. -Tem a ver com a carta que não deseja que ele conheça?
Acreditou que Rowena não responderia, que simplesmente partiria e deixaria seus comentários envoltos no mistério, sem compartilhar sua tristeza.
-Não sei se posso te ajudar -disse Cassidy. - Mas eu gostaria de tentar.
Rowena pareceu à beira da risada de novo, mas a gargalhada converteu-se em um afogado soluço. Abruptamente sacudiu sua cabeça, um movimento extravagante
em alguém tão controlado, e olhou Cassidy sem traços de brincadeira.
-Muito bem -disse. - Pode me ajudar, mas possivelmente... -Indicou a Cassidy que a seguisse, e conduziu-a até um banco de ferro depois de uma curva do atalho.
Sentaram-se, rodeadas pela fragrância das flores que não ocultavam o selvagem aroma do bosque, tal como a altiva reserva de Rowena já não podia ocultar as emoções
que não desejava revelar.
-vieste a Greyburn por sua própria vontade -disse Rowena. - É assim, não?
-Sim -disse Cassidy. - Queria vir para encontrar um lar. Minha família.
-Uma vez, faz muito tempo, este era meu lar. Mas não desejava retornar -Crispou as mãos sobre seu regaço, os dedos apertados uns contra outros. - A carta...
é de um cavalheiro de Londres, um homem elegante e respeitável que deseja casar-se comigo. Tal como eu desejo casar-me com ele.
Cassidy imaginou como seria receber uma carta como essa, tão cheia de formosas frases. Ter um pretendente, como a maioria das damas tinha. Mas quando tentou
desenhar um rosto que encaixasse com a carta, foi o de Braden que veio à sua mente. Braden, o qual não podia imaginar escrevendo jamais algo como isso. Sentindo
como isso...
A voz da Rowena penetrou em seus melancólicos pensamentos.
-Não me permite essa eleição -disse. - Braden já tem planos para meu futuro. Devo me casar com um homem que jamais conheci, um homem que não posso respeitar.
E tudo para servir à Causa de Braden.
A Causa. Cassidy olhou fixamente a Rowena.
-Quer dizer que... ele não deixará que você se case com o homem que ama?
Rowena suspirou. -É uma romântica, Cassidy. Uma vez eu era como você. Uma vez acreditei que poderia ser como escolhesse ser. E escolhi viver como uma pessoa
normal, como humana, não como uma besta.
Uma besta. Queria dizer uma loup-garou. Uma licántropa.
-Não quer ser...
-Sabia que antigamente, os Greyburn Forster eram grandes anfitriões desta zona? -disse Rowena. - Nos tratávamos com todas as melhores famílias do norte.
Fomos conhecidos em Londres, na mais distinta sociedade. Escondíamos nossa maldição. Nem todos desejavam os dons que meu irmão valoriza tanto. Minha própria tia-avó
casou-se com um homem normal.
Um humano. Como o pai de Cassidy.
-Como minha mãe -disse com suavidade.
Rowena dirigiu-lhe uma fervente, quase suplicante olhar.
-Então possivelmente... pode compreender. Nossos primos, os Sayers, viveram livres da maldição desde que minha tia-avó Grace fez sua escolha. Isso é tudo
o que eu sempre desejei. Casar-me com um homem honrado e educado, cuidar sua casa... criar meninos que não sejam meio animais.
Cassidy estremeceu. Fazia menos de uma hora Braden tinha estado declarando seu desprezo para com os humanos. Agora sua irmã falava dos loups-garous como
se fossem monstros.
-Não compreendo -disse-, como pode desejar ser... menos do que é.
-Porque não tenho nenhum desejo de adotar a forma de um animal selvagem e não natural. Que não deveria existir, exceto como história para assustar os meninos.
Nego-me a perpetuar... - Interrompeu-se, respirando com rapidez. - Mas você deseja, como Braden.
Sim. Ela desejava. Desejava saber como era ser como sua mãe, como Braden. Ansiava isso com todo seu coração.



Rowena estava equivocada. Era um dom, poder trocar. Não podia ser ruim, não se Braden...
-Ele te falou sobre sua missão? -disse Rowena. - Seu grande plano para conduzir à raça licántropa a uma nova glória? Sim, vejo que sim. Mas não lhe contou
isso tudo, verdade? -Baixou o olhar para suas mãos. Uma vez, acreditei que havia esperança para ele. Para todos nós. Quando Milena estava aqui...
-Milena?
-Sua esposa. Sua defunta esposa. -O rosto da Rowena, se era possível, fez-se mais sombrio.
- Não a mencionou.
Braden não tinha mencionado. Cassidy sentiu uma sacudida de surpresa e recordou os últimos dias. Uma vez ela pensou que Rowena era sua esposa, mas após,
nada nele, nem nas palavras de outros em Londres ou em Greyburn, tinha insinuado que foi casado.
Milena. Era um nome formoso.
-Agora não se preocupa com aqueles a quem machuca -disse Rowena.
- Devo me casar com um grosseiro estrangeiro que possui a linhagem apropriada, de modo que possamos... - ruborizou. - De modo que nossos filhos sejam de
"sangue puro" - Burlou das palavras que Braden utilizava com tanta seriedade. - Meus desejos não importam. E tampouco os teus, Cassidy -Sua expressão endureceu até
parecer cruel. - Ele planejou seu futuro, também. Você entrou caminhando em sua armadilha. Desejava encontrar um lar e uma família, e terá. Na forma que ele deseje.
-Eu... -gaguejou Cassidy. - Não posso acreditar...
-Guarda seu coração, Cassidy Holt. Não deixe que o toquem. Evita a dor que eu e outros sofremos.
Cassidy ficou quieta, sentindo-se tão sem fôlego como se ainda tivesse posto o asfixiante espartilho.
-Por que não parte? -disse temerariamente. - Se é tão infeliz...
Rowena sacudiu a cabeça.
-Não conhece seu poder. Sou uma prisioneira aqui, mas há uma oportunidade para você. Volte para a América, se puder, antes que seja muito tarde, antes que
Braden te destrua.



Novamente havia lágrimas nos olhos de Rowena, e isso mais que nada convenceu Cassidy de que falava com o coração. Estava sofrendo, e culpava Braden. Mas
se ele era responsável por sua infelicidade, se era tão cruel como Rowena dizia...
Então tudo o que Cassidy tinha sentido no primeiro instante em que tinha conhecido Braden Forster, conde de Greyburn, estava totalmente equivocado.
Com uma sussurrada desculpa para a Rowena, Cassidy voltou-se e correu para o bosque.
Isabelle escutou as vozes no jardim e rapidamente se voltou, caminhando através do cuidado prado para o arroio. Não parou para pensar em quem tinha
chegado ao jardim antes dela. Tinha tentado, sem êxito, não pensar absolutamente.
Não pensar nesta imponente casa, tão parecida com aquela outra que recordava com tanto dor. Ou na arrogância, orgulho ou natural superioridade de Lorde
Greyburn, a própria essência do que ela tinha desprezado da aristocracia.
Ou em que aqui era mais forasteira que nunca. Alguém emparelha com aparência de respeitável viúva, uma humana entre licántropos. Duplamente amaldiçoada.
Cassidy perguntou-lhe se desejava voltar para a América. Tinha mentido, tanto para disfarçar sua própria covardia para economizar a preocupação da moça.
Como podia esperar proteger Cassidy quando estava ali a desgosto, tal como o conde tinha deixado abundantemente claro antes da saída de Londres?
Mas tinha feito uma promessa, a si mesma tanto como a Cassidy. Se a rompesse agora, perderia os últimos retalhos de respeito próprio que ficava.
Subiu pela colina detrás da casa, inspirando o úmido ar vespertino da Inglaterra. Apesar de suas inquietações, todas as lembranças de sua infância no campo
voltaram para ela neste lugar: piqueniques no pequeno bosque próximo à vacaria, os domingos quando papai lia os grandes clássicos da literatura assim como a Bíblia,
tempos tranqüilos pelas tardes quando o mundo inteiro parecia estar em paz.
O mundo parecia estar enganosamente em paz agora. Northumberland era muito distinto de Surrey, mas ainda assim era a terra onde tinha nascido. E onde parte
de si mesmo tinha morrido.




Sentou-se na desigual erva, pisoteada pelas ovelhas, perto do topo da colina. O sol descendia pelo leste atrás dela, a última luz recortando-se sobre as
taças das árvores no pequeno vale a seus pés. As ovelhas eram visíveis somente como pálidos contornos contra a escura paisagem, dispersas pelas colinas dos arredores.
A solidão era de uma vez familiar e estranha, familiar porque fazia tempo que se acostumou a ela; estranha porque quase tinha esquecido o que era desfrutar
de uns poucos instantes de verdadeira paz.
Fechando seus olhos, deixou que a brisa fria da tarde acariciasse suas têmporas com mais suavidade do que nenhum homem tinha feito.
-Ah, Cassidy -murmurou-. Se somente fosse mais forte...
-Um problema compartilhado é menos duro.
Ela se sobressaltou ante o som da suave voz masculina e girou. Ao seu lado havia um homem sentado... um homem que não tinha visto e que não tinha ouvido
chegar, mas que parecia estar muito cômodo sentado ao seu lado. Imediatamente examinou-o, tal como tinha aprendido a fazer com incontáveis clientes.
Dizer que estava estranhamente vestido seria subestimar as épicas proporções. Levava um gibão de corte arcaico, engatado e acolchoado, quase com forma de
peitilho. As mangas de sua camisa eram amplas e estavam cortadas de maneira que mostravam um forte contraste com o gibão. Suas calças estavam enfiadas dentro de
umas botas que chegavam aos joelhos, e luzia luvas de couro em suas mãos. O mais estranho de tudo era o elmo que cobria seu comprido cabelo cinzento.
- Perdoe-me, milady -disse o homem, executando uma reverência desde sua posição sentada. - Sei que não deveria incomodá-la, mas esta não é a melhor noite
para estar a sós.
Ela ficou tensa, desconfiando imediatamente do que queria dizer. Mas o rosto dele era sereno apesar de sua pele curtida e das linhas da idade e do sol,
e ela soube que não tinha motivos para ter medo.
Talvez não fosse uma reação inteiramente insensata. Tinha conhecido homens quase tão estranhos em sua profissão, semelhantes excêntricos e costumavam ser
inofensivos. Greyburn estava justo aos pés da colina; estava a tiro de pedra.

E ela estava farta de ter medo.
-Está me advertindo de algum perigo, senhor? -perguntou-lhe, com o tom alegre que estava acostumado a utilizar com seus clientes.
-É uma estranha na fronteira, e não conhece os costumes da região. Mantenho-me à espreita dos saqueadores, milady, e não vejo que esteja machucada.
Suas palavras brotavam de sua língua com o zumbido gutural de Northumberland, curiosamente antiquadas, e era evidente para Isabelle que não se tratava de
um trabalhador ordinário ou de um pastor. Seu rosto parecia familiar sob o ridículo elmo; supôs que teria uns cinqüenta anos, firmemente formado sob suas roupas,
depravado e com um claro ar de disposição em sua postura.
-Certamente não devo temer nada -disse ela-, em companhia de um campeão tão galante.
Ele a olhou e sorriu. Seu sorriso era encantador, aberto, desprovido de engano... como o de Cassidy, pensou ela. Mas seus olhos eram verdes, e seu forte
rosto era bonito e totalmente masculino.
-Sim. Embora não seja provável que os ladrões se aproximem tanto de Greyburn. Não quando o senhor está em casa.
-Quer dizer o conde? -perguntou ela.
-Sim -Ele estudou-a tal como ela havia feito com ele. - Toda a vizinhança sabe que trouxe duas formosas damas de Londres -Inclinou a cabeça. - A história
de sua beleza não era um conto de meninos, parece.
Ela tinha escolhido encarar normalmente seu pequeno jogo, mas ele falou com tal sinceridade, que ela ruborizou. Quando foi a última vez que os cumprimentos
de um homem a tinham comovido? Quem era ele?
-Meu nome é Isabelle Smith -disse. -Estou em Greyburn com minha jovem pupila, Cassidy Holt, prima do conde de Greyburn.
-Holt? -Ele franziu o cenho sob a estreita beira de seu elmo. - Esse não é um sobrenome da fronteira.

-Ambas viemos da América -disse ela, perguntando-se por que se sentia tão iludida ao conversar com um estranho. Possivelmente era porque ele a tratava como
o que não era... uma pessoa digna de respeito. E era humano, apesar de todas suas raridades.
-As colônias? -disse ele. - Você fez uma longa viagem então, milady.
Sua referência aos Estados Unidos como "colônias" parecia formar um tudo com sua maneira de falar e sua aparência. Se estava louco, era uma loucura agradável.
-Assim é -disse ela. - Você vive aqui, senhor...
-Matthias - disse ele.
Matthias. Os pensamentos de Isabelle voltaram para a viagem de carruagem desde Ulfington, à descrição de Quentin sobre Greyburn e seu legendário passado.
"Esta casa e estas terras estão cheias de lendas... Dizem que o fantasma de um desses guerreiros ainda ronda pela zona..."
Esse guerreiro fantasma se chamava Matthias. Mas este homem não era um espírito. Era de carne e osso.
-Cuido das ovelhas do conde e mantenho a vigilância contra os ladrões -continuou Matthias.
- Vivi aqui toda minha vida.
Não era um fantasma, a não ser simplesmente um excêntrico que jogava seu papel em uma lenda por causas desconhecidas. E era um pastor, depois de tudo. Se
ainda fosse uma menina, teria mantido uma pose digna, sabendo que era superior a ele. Agora dita pose era ridícula.
-Esses ladrões vêm freqüentemente? -perguntou.
-Não muito a estas terras. Temem os lobos de Greyburn.
Os lobos de Greyburn. Sabia o que eram os Forster? Era melhor que fingisse ignorância.
-Não compreendo.
Ele inclinou a cabeça.
-Não deve me temer, milady. Conheço, igual a você, o tipo de homens que são os Forster.

-Sabe?
-Sim. Não são humanos, nem tampouco bestas, a não ser algo intermédio. E sei que você não é um deles.
Ela sentiu um desacostumado entusiasmo por ele falar tão livremente, e correspondeu de igual forma.
-Não -disse. - Não sou um deles.
Ele estirou suas largas pernas diante dele.
-É uma maravilha, sabe, que lobos criem ovelhas. Mas as bestas pequenas reconhecem seus amos.
A imagem de lobos conduzindo ovelhas passou por sua mente, mas ela não riu.
-E as pessoas daqui... sabem o que são os Forster?
-Sim. Nenhum arrendatário, servente ou granjeiro desta terra esquece jamais -Isabelle sentiu uma nova tensão nele. - Os Forster cuidaram de Greyburn há
gerações. Seu segredo está a salvo.
Ela acreditava bem. Não estava segura de que pudesse contar a outra alma o que os Forster eram realmente, inclusive embora quisesse fazê-lo. E ela nunca
os tinha visto trocar.
Mas estava bem saber que não era quão única a compartilhar esse conhecimento, embora fosse com um cavalheiro tão curioso.
-Quantos além deste vale adivinhariam que tais pessoas vivem entre nós? -perguntou ela. - Qualquer que falasse disso seria tomado por um louco.
-Sim -disse Matthias.
-Mas poderá ver por você mesma por que os lobos de Greyburn não são traídos. Ouvi que se celebrará uma iniciação esta mesma noite.
-Uma iniciação?
Ele a olhou fixamente.
-Possivelmente você não tome parte. O senhor terá que ver se é de confiança -Seu doce sorriso retornou.
- Sim. Apostaria minha vida nisso.
Levantou-se e estirou uma mão enluvada. Ela tomou sem duvidar. Elevou-a com facilidade, e ela viu que não estava tão ridículo como tinha pensado com sua
antiquada indumentária. Especialmente não com a espada a seu flanco.

Ele seguiu seu olhar e executou uma profunda reverência.
-Minha espada está a seu serviço, milady. Se alguma vez necessitar de mim,, diga meu nome. Eu acudirei.
Não havia um duplo sentido em suas palavras, nenhum traço de ironia. Ele dizia com convicção. Era um estranho, mas ainda assim ela não teve nenhuma dúvida
de que a defenderia até a morte contra os saqueadores, ladrões ou qualquer outro vilão.
Talvez, inclusive, contra os lobos de Greyburn.
-Obrigado, senhor -disse ela, realizando uma reverência. - Não esquecerei sua cortesia.
-Nem eu sua beleza -disse ele. - Nos encontraremos de novo.
Ela pôde senti-lo ir observando-a, mantendo-se alerta, enquanto descia pela colina. Mas quando alcançou o pé e olhou para cima, partiu tão veloz e silenciosamente
como tinha chegado.
Se ela fosse uma menina fantasiosa, teria acreditado que ele era somente um produto de sua imaginação, um companheiro ilusório durante sua solidão. Mas
ainda podia sentir o formigamento em sua mão onde ele a tinha sustentado com a sua.
E recordava o que lhe tinha contado a respeito dos segredos dos Forster e a "iniciação" dessa noite. As palavras de Matthias quase tinham sido uma advertência.
Se esta iniciação tinha algo a ver com Cassidy, tinha a firme intenção de saber exatamente no que consistia.
Conhecer Matthias fez com que se lembra-se de que não era tão covarde depois de tudo. E, ao parecer, estava tão louca como ele.
Os aposentos de seu avô estavam exatamente como Braden tinha deixado. Cada peça do mobiliário, cada armadura permanecia no mesmo lugar em que estavam no
dia em que tinha morrido, perfeitamente conservados pelos constantes cuidados da servidão, que cuidava da suíte como um lugar sagrado.
Um lugar sagrado para a Causa.
Braden parou na porta e escutou, como sempre fazia. Tiberius Forster ainda estava aqui. Estava morto, mas seu poder ainda persistia. Era como se nunca tivesse
deixado o condado, ou sua liderança na Causa.

Mas era uma ilusão. A morte tinha afrouxado sua presa, e seus deveres e responsabilidades tinham passado ao moço que tinha preparado para sucedê-lo.
O moço. Isso era no que Braden se convertia aqui. Tinha que se pôr a prova outra vez. E não podia voltar atrás. Tiberius não o permitiria.
"Viverá pela Causa, igual a mim." Se alguma vez Braden estivesse a ponto de esquecer essa lição, recordaria no instante em que cruzasse estas portas. Podia
haver ficado com esta suíte, a maior de Greyburn, para si mesmo, mas nem sequer tinha considerado tal coisa.
Enquanto estes aposentos permanecessem sacrossantos, a Causa sobreviveria. O avô se ocuparia disso, inclusive da tumba.
-Não permita que nada te influa, menino. Nada nem ninguém, exceto a Causa. Se o permitir, falhará.
A voz era tão real para Braden como os muros de Greyburn. Uma vez tinha permitido que outros tocassem seu coração, acreditando que esse sentimento podia
coexistir com o dever. Acreditando que seus próprios herdeiros poderiam nascer do amor para fazer cargo da Causa. Tinha aprendido três anos atrás que o avô tinha
razão.
Mas outra voz penetrou em suas lembranças, suave, rouca e fervente, tão distinta de seu avô como o dia da noite. A imagem de Tiberius Forster estava clara
em sua mente após todos aqueles anos, mas não tinha nenhuma imagem de Cassidy Holt.
Como era possível, então, que ela pudesse abrir passo incluso aqui?
Disse a si mesmo que todas as dificuldades provocadas por Cassidy Holt se solucionariam em Greyburn, mas tinha sido ridiculamente otimista. Quando a escutou
falando com a moça Roddam na plataforma de Ulfington, soube com que facilidade ela seria amistosa com qualquer que lhe oferecesse a mais mínima amabilidade. Era
de coração generoso, ainda uma menina sem noção do que era apropriado, pelo que sua verdadeira natureza exigia.
O avô a teria educado de uma maneira em que não poderia esquecer. Mas quando Braden imaginava-a sofrendo sob a rigorosa tutela de Tiberius Forster...
Sua mente rechaçou a imagem.

Em seu lugar, tentou conjurar um rosto que encaixasse com a fervente e jovem voz. Não um rosto de menina, apesar de seu valoroso caráter, a não ser um com a
ingenuidade de uma menina e o atrativo de uma mulher. Por que estava imaginando as suaves curvas amadurecidas de uma mulher, escondidas nas calças de um homem e
na sua conduta despreocupada? Por que achava que a ingênua risada de Cassidy parecia mais potente que uma perita paquera sofisticada?
Por que, quando estava perto dela, achava tão difícil recordar a única razão pela que estava aqui?
Estes aposentos faziam-no recordar. Melhor se Cassidy fosse como imaginava. Quentin a considerava encantadora, isso faria com que fosse mais fácil assumir
seu papel como seu companheiro. Um corpo forte, generosamente feminino, serviria bem a Cassidy para parir filhos. Sua natureza aberta a converteria em uma boa mãe
da próxima geração dos Forsters, a geração que herdaria Greyburn quando Quentin e ele já não estivessem.
Só faltava dizer a ela. Tinha tentado fazê-la entender na Grande Sala, mas falhou. Tinha perdido a habilidade para explicar-se, é obvio.
"Precisa-me". Recordou como suas palavras haviam-no comocionado, como se ela pudesse ver uma carência nele que acreditasse poder reparar. E não era sua
cegueira, a não ser uma coisa mais profunda.
Como se desejasse que ele a necessitasse. Quando ela tivesse seus filhos, seus desejos, pela metade, ao menos estariam satisfeitos. Quanto mais tempo a
mantivesse ignorante, mais oportunidades haveria para os mal-entendidos. Mas se sentia resistente em destruir sequer uma parte de sua inocência, essa inocência que
a fazia ser como era.
Que assim seja. Tornou-se perigosamente brando no que concernia à Cassidy; a compaixão era fatal para a Causa. Igual aos lobos do painel de seu avô, devia
superar cada barreira, derrotar cada inimigo, conquistar cada debilidade... Cada debilidade exceto uma.
- Você falhou - havia dito seu avô. - Falhou no dever que até o último de nossa raça deve cumprir. Só fica um propósito. Não me falte de novo.

Tocando apenas o lavrado dossel de madeira da cama e a navalha de barbear ainda colocada, como sempre, junto ao lava-mãos, Braden saiu da habitação. Caminhou
para sua própria suíte a pouca distância baixando o corredor. No fundo do vestíbulo desfez-se de sua roupa e deslizou através do passadiço oculto.
Sob a tênue cobertura da luz do crepúsculo, Braden lançou-se para o bosque.
A princípio, correu como humano, sentindo o vento frio em sua pele nua e a grama sob seus pés. Sentiu o aroma de sua irmã, e logo o de Isabelle Smith, evitando
ambos em seu forte desejo de solidão. Na beira do bosque transformou-se dando um salto, e quando aterrissou outra vez o fez sobre quatro garras, quatro velozes patas
que o levaram ao interior do úmido bosque que rodeava o arroio.
Este era o lar, tão seguro como as salas de Greyburn. Este era o lugar onde estava mais em paz, onde era mais ele mesmo que em nenhuma outra parte do mundo.
Conhecia cada polegada do bosque e das colinas circundantes, cada pedra, árvore e curva do riacho. Recordava-o dos dias em que podia ver; sentia cada sutil mudança
de estação em estação através das plantas de suas garras, da grossa pelagem que cobria seu corpo e da sensível pele de seu focinho.
O curto verão de Greyburn estava em seu apogeu, uma estação de gloriosa vida e música que nenhum humano podia escutar. As folhas pendentes roçavam suas
orelhas e o focinho, mas não se preocupou dos ocasionais encontros com os ramos recém-caídos, nem com outros obstáculos do terreno. Aqui era o professor indiscutível.
Recreou-se com a flexão de seus músculos, na velocidade e a graça que sua forma humana nunca poderia imitar.
Depois de um momento parou à borda do arroio para beber da água gelada. Um pássaro trilava sem temor; alguns animais corriam entre os arbustos. Encontrou-se
escutando, com a cabeça erguida, girando indevidamente para a casa. E para ela.
Pôs-se a correr novamente, apenas consciente da direção que tomava. O silêncio do anoitecer apoderou-se do bosque e tudo ficou calmo.
Deslizou até parar, as garras escorregando na terra coberta de musgo. O aroma dela não superava os aromas de madeira e água, crescendo e decaindo, mas sim
formava parte de tudo, mesclando-se e insinuando-se no lugar que ele amava.

Estava perto, na outra borda do arroio. Ele acreditou que daria a volta e fugiria como qualquer humano normal que se encontrasse com o desconhecido.
-Braden?
Seus pés estavam descalços, saltando cada pedra e chapinhando na água. A roupa sussurrava ao redor de suas pernas, muito solta para levar anágua ou
espartilho.
-Braden? -repetiu. - Não sabia... - Parou ante ele, seu aroma envolveu-a quando se ajoelhou. - É tão formoso -sussurrou.
Todas suas firmes resoluções se romperam imediatamente, como os ramos quebradiços sob suas garras. Ele não podia vê-la, mas seus sentidos lobinos deixavam
seus sentidos humanos tão insignificantes como o débil sol do inverno no dia mais frio do ano. Toda sua pelagem estremeceu, intensamente consciente da cercania dela.
Abriu a boca, e sua língua quase a lambeu.
Como um caçador furtivo ela tinha invadido seu bosque, sua curta paz, e atacou-o com palavras amáveis, mais letais que um bombardeio de flechas.
Levantou o lábio deixando os dentes à vista. Como um homem, sua armadura era a Causa e anos de disciplina; agora estava indefeso em seu poder, vulnerável
em uma forma que sempre tinha significado liberdade. Faltava-lhe mais que a capacidade de falar. Sentia-se irracional, forçado e desesperado por desejos primários
que o deixavam louco, e era culpa dela.
-Vá!-gritou em seus pensamentos.- Vá...
Mas estava tão surda como ele estava cego. Os dedos dela roçaram o colar de pelos de suas bochechas, desceram por seu pescoço, enterrando-se com duvidoso
assombro nas profundidades de sua pelagem. Tocava o lobo de uma forma que nunca se atreveria a fazer com o homem, e com tanta inocência, sem duvidar...
E ele não podia suportá-lo, não podia suportar a tenra ingenuidade que a fazia tão inconsciente a qualquer aviso, a toda consciência do que estava correto
e do que estava proibido.
-Magnífico -murmurou ela. Sua mão acariciou a parte inferior de sua mandíbula e o espaço entre suas orelhas.

- É muito mais do que tivesse sonhado.
Quando pensava que já não poderia suportá-lo mais, deixou-o. Ficou em pé, deu um passo atrás...
Pôs-se a correr com a graça de um cervo em movimento. Com o impulso do caçador, ele a seguiu. Correram pelo estreito atalho junto ao arroio, ele pego aos
talões dela.
Logo estavam próximos, juntos um ao outro, os pés dela golpeando a terra com passo firme, ele sem fazer ruído. Poderia ultrapassá-la com facilidade, mas
não o fez. Entregou-se ao deleite novamente, livre de pensamentos e medos humanos. No bosque tudo era uma unidade, e ambos eram filhos de uma mãe mais anciã que
o próprio tempo.
Ele ainda corria quando percebeu que novamente estava sozinho.
Encontrou-se no alto da colina que dominava Greyburn, quase sobre as árvores. Uma brisa fresca trouxe o aroma de Cassidy de abaixo, estava a caminho de
casa. Podia imaginá-la ruborizada e sem fôlego ao alcançar a porta, tentando limpar seu vestido da sujeira, olhando por cima do ombro para ver se ele a seguia...
Não sabia por que lhe tinha deixado. Deveria estar agradecido. Possivelmente a prudência tinha voltado para ela quando o abandonou. Não tinha nada de prudente
na euforia que havia sentido quando estavam juntos a sós, ou o vazio em seu coração agora que ela não estava.
Mas durante todo o tempo que tinham deslocado juntos, ela não tinha trocado. Era tão tímida ou levava tanto tempo entre humanos para tirar a roupa em sua
presença sem acanhamento?
Essa noite, na cerimônia, deveria deixar tais inibições de lado. Na Grande Sala, a transformação deveria realizar-se com um propósito específico, racionalmente,
sem risco de contato íntimo. E por isso também ele estaria agradecido.
A cerimônia seria outra parte essencial da educação de Cassidy como um loup-garou. E amanhã deixaria o resto bem claro a ela. Amanhã, o escudo do dever
estaria firmemente colocado em seu lugar.
Quando todas as barreiras de roupas e de costumes humanos forem desprezados, não ficará nada, exceto combater os mais profundos instintos da besta.
E essa era uma batalha que Braden não se atrevia a perder de novo.


CAPITULO 8

Cassidy correu escada acima e entrou em seu quarto, fechando a porta atrás dela. Apoiou-se contra ela, estendendo as mãos contra a fria madeira, até que
amainaram os batimentos do coração de seu coração e pôde respirar com normalidade de novo.
A banheira seguia esperando ante o fogo, oferecendo um tranqüilo consolo. Tirou-se seu vestido de algodão e permaneceu nua no centro da habitação, tremendo
apesar de que sua pele estava ruborizada e quente.
Por culpa do lobo. Um enorme lobo cinza de olhos verdes que tinha deslocado a seu lado no bosque, cuja pelagem tinha sido tão exuberante sob suas mãos,
a quem tinha reconhecido no instante em que o tinha visto.
Braden.
Aproximou-se da banheira e provou a água. Esfriou, mas não necessitava que estivesse mais quente. Afundou na água até o peito e logo mais abaixo, até que
seu queixo roçou a superfície.
Quando correu para o bosque, esperava estar só. Não tinha contado com um desejo feito realidade.
No pouco tempo que conhecia Braden, somente foi capaz de imaginar como seria em sua outra forma.
Não se atreveu a pedir que ele trocasse, como tinha feito com Quentin. Tinha vagas lembranças de sua mãe para comparar, mas nem as lembranças nem a imaginação
a tinham preparado para a formidável realidade.
Braden era muito mais que um homem, ou um lobo. O que era não podia explicar-se com palavras, nem sequer com a mais deliciosa poesia. O Tigre de Blake nem
podia se comparar.
E isso era o que Braden esperava que ela fosse. Esse poder, essa graça, essa maravilhosa perfeição.
Observou seu próprio corpo sob a água. Sentia-o estranho agora, como se pertencesse à outra pessoa. Como se o visse pela primeira vez através dos olhos
de outro.

Tocou o ventre plano, as costelas que apareciam ligeiramente sob a pele, a curva de seus quadris e seus peitos. Suas pernas eram longas, sua cintura estreita.
Seu corpo sempre tinha feito o que lhe pedia.
Mas não sabia como trocar.
Sabia que Braden não seria distinto a próxima vez que lhe visse; seria o mesmo homem, com o mesmo rosto e o mesmo comportamento. Nada trocaria pelo fato
de que tivessem corrido juntos pelo bosque, ou porque o tivesse visto em sua forma lobina e tivesse sentido-se mais próxima a ele do que nunca antes.
Tinha sido maravilhoso correr ao seu lado, conhecer por uns poucos momentos a viva camaradagem da alegria e a compreensão compartilhada, mas apesar de tudo
isso, faltava algo. A sensação de proximidade tinha sido tão fugaz como uma miragem no deserto.
Ele teria se perguntado por que ela não se unia na forma que ele adotava com tanta segurança? Teria se sentido aborrecido porque não se transformou, saltando
essa última barreira?
Com um gemido de frustração, Cassidy afundou na água. Manteve-se assim até que seus pulmões lhe doeram e logo emergiu, retorcendo sua pesada e molhada juba
entre as mãos. Encontrou o sabão e passou-o sem piedade em cada rincão de seu corpo, afundando logo para enxaguar-se, até que sentiu-se bem limpa.
Logo depois, secou-se com as toalhas que tinham deixado em um varal junto à banheira, sua mente já estava clara. Por muito vergonhoso que fosse admitir
as profundidades de sua ignorância, devia contar a Braden que necessitava que lhe ensinassem como se transformar. Ele se daria conta cedo ou tarde, e então a tomariam
por falsa tanto como estúpida.
Agachou-se ante o fogo, desenredando seu cabelo com uma escova com cabo de marfim que tinham deixado ao seu dispor sobre a penteadeira. Tudo isto tinha
um lado bom, se Braden a ensinase, então poderia estar com ele ainda mais tempo. Talvez pudesse recuperar a confiança que tiveram durante a corrida no bosque. Talvez
fosse só o começo, e quando finalmente aprendesse a converter-se em loba...
Sua imaginação travou com a lembrança de um nome que escutou uma vez. Milena, a esposa de Braden.
Milena devia ser um loup-garou. Braden e ela eram da mesma espécie, capazes de correrem juntos como lobos sem nada que se interpusesse entre eles. Que
lembranças Braden tinha de sua mulher? Como era ela, e como tinha morrido? Por que ele não falava sobre ela?
Mais que simples curiosidade sentiu Cassidy para encontrar as respostas. Rowena tinha começado a falar de Milena. Era a primeira a quem perguntaria.
Cassidy colocou seu segundo vestido mais cômodo, um que esperava que não ofendesse Rowena, e jogou para trás seu cabelo úmido sujeitando-o com uma fita.
Seu sentido do tempo indicou-lhe que já seriam mais de dez horas. O céu estava tão escuro de nuvens, que não se viam as estrelas, mas os abajures ainda ardiam no
corredor quando abandonou seus aposentos para encontrar os deda Rowena.
Rowena abriu a porta antes que chamasse. -Pensei que viria - disse. Ninguém que a visse agora poderia acreditar que tinha estado chorando somente uma
hora antes. Jogou uma olhada em Cassidy sem dizer comentário algum e deu um passo atrás. - Por favor.
O quarto não era diferente ao de Cassidy, mas era esquisitamente feminina, uma extensão do gosto e delicadeza de Rowena. O objeto mais dominante da câmara
não era a cama de formoso dossel nem a penteadeira brilhantemente gentil com seu alto espelho emoldurado. Pendendo de uma das paredes, havia um retrato em tamanho
natural de uma mulher com um impressionante vestido debruado com pele. Seu cabelo era de um dourado tão pálido que quase era branco, e seus rasgados olhos eram negros.
As mãos finas e elegantes descansavam sobre seu regaço a poucos centímetros da beira inferior da pintura, com os dedos brilhando com anéis. Seu corpo tinha umas
curvas exuberantes. Era deslumbrante, além de qualquer imagem de beleza que Cassidy tivesse visto em sua vida.
-Milena -disse Rowena. Colocou-se a um lado do retrato, com porte orgulhoso e possessivo. Comparada com a mulher da pintura, era simplesmente bonita, mas
não parecia temer a comparação.
Cassidy só pôde ficar olhando fixamente. Assim que esta era Milena. A graça de seu nome não lhe fazia justiça.

Seu rosto possuía uma fragilidade que inspirava certo ar travesso, mas ainda assim não perdia seu nobre porte. Cassidy soube que devia ter sido uma grande dama,
de acordo com um grande lorde como Braden.
Não se surpreendia que Braden tenha se casado com ela.
-Veio da Rússia -disse Rowena. -De uma grande família de latifundiários. Chegou a Greyburn como uma estranha, mas se fez querida durante os seis anos
que esteve entre nós. Era a dama perfeita.
Semelhante cumprimento por parte de Rowena não podia ser singelo de merecer.
-Foram boas amigas -adivinhou Cassidy.
-Fomos como irmãs -Rowena elevou o olhar para o rosto docemente risonho e levantou uma mão para tocar os dedos congelados. - Obteve que a vida em Greyburn
fosse... passível. Sua calidez, seu encanto, sua graça... ninguém que a visse podia evitar amá-la, exceto... -Mordeu o lábio inferior. - Não nos ocultávamos
nada.
A mente de Cassidy imaginou as duas loiras juntas, falando com vozes educadas sobre coisas de damas. Achava impossível imaginar-se nessa cena. Não era
estranho que Rowena fosse fria com Cassidy, se Milena era seu ideal. E tinha sido a esposa de Braden. Tinha sido muito amada.
A imagem na mente de Cassidy agora era outra muito diferente... Cabelo negro e prata contrastando com esse ouro pálido, como a água cinza e as folhas do outono.
Um rosto forte e o outro delicado, um junto ao outro.
-Como... Como se conheceram Braden e ela? -perguntou Cassidy lentamente.
-Conheceram-se quando eram muito jovens. Os pais dela e meu avô acordaram que deviam casar-se...
-Pela Causa?
Os olhos da Rowena escureceram.
-Sim. Mas Braden foi afortunado, apesar de todos seus abandonos. Todos fomos afortunados.
Apesar de Rowena odiar os matrimônios arranjados, não parecia desprezar este em particular.

-Milena era uma loup-garou.
A afirmação teve um visível efeito em Rowena. Aproximou-se da cadeira próxima à janela e se sentou, afastando-se ligeiramente de Cassidy e do retrato.
-Sim. Mas ela compreendia o que eu sentia. Era muito amável e boa para desafiar Braden, mas estava de acordo comigo. Teria deixado à besta atrás dela, exceto
Braden.
-Então ... amava-o.
-Adorava-o. Fazia todo o possível para agradá-lo.
Cassidy olhou fixamente o retrato, sentindo uma estranha pressão no coração. Milena parecia perfeita. Como poderia uma pessoa normal estar à altura disso?
-E Braden amava Milena -disse.
-Como não poderia amar? Era um anjo. E quando a perdeu... - Rowena levantou o olhar para Cassidy. - Não tornou a falar dela após.
Por isso Cassidy nunca tinha escutado seu nome. O coração de Braden tinha quebrado quando Milena morreu. Era essa a razão por ter se convertido em alguém
tão distante e estrito... porque tinha perdido o amor de sua vida?
-Como morreu?
Mas Rowena não estava escutando. Olhava fixamente para a porta, a angústia e o ódio foram claramente visíveis em sua expressão antes que a suavizasse para
substituí-la por uma expressão de formal cortesia.
-É tarde, Cassidy -disse. - Faria melhor em voltar para seu quarto.
Cassidy caminhou para a porta, incapaz de deixar de olhar o quadro. Um anjo. A dama perfeita, mas fazendo parte da Causa. Amada de verdade. Tudo o que
Cassidy não era.
Nem sequer fechando a porta, a imagem do retrato de Milena apagou-se dos seus pensamentos. Estava quase chegando ao seu dormitório, quando percebeu que
a porta estava aberta e um casal de fortes serventes estava conduzindo a banheira.
Somente uma coisa tinha mudado durante sua ausência.

Sobre a cama descansava um objeto que atraiu- a como uma abelha à flor, uma túnica de tecido ricamente estampada em vermelho e prata, com uma bandagem a jogo.
Era totalmente diferente de qualquer traje novo de Cassidy, mais parecido ao impressionante e pouco comum vestido que Milena usava no retrato e a qualquer outra
coisa que ela tivesse visto em Greyburn.
Passeou seus dedos sobre o suntuoso objeto. Impulsivamente, tirou seu vestido, as anáguas, as meias e os sapatos. O objeto deslizou nela como o manto de
uma rainha. Ajustou a bandagem e se plantou ante o espelho.
Quase, quase pôde imaginar-se tão gloriosa e exótica como Milena... Escutou as pisadas justo antes do golpe na porta.
-Desculpe-me, senhorita -disse sua donzela, afastando seus olhos-, mas venho dizer que a requisitam na Grande Sala, dentro de uma hora.
Em uma hora seria meia-noite.
-O que ocorre na Grande Sala?
-A cerimônia, senhorita.
-Qual cerimônia?
O rosto da mulher se estico. -Não me corresponde falar disso, senhorita -Parecia tão aterrorizada que Cassidy decidiu não insistir. - Não haverá jantar
formal, senhorita, mas posso trazer algo que queira.
Cassidy suspirou. Tinha que aprender a maneira em que se faziam as coisas em Greyburn, por muito estranhas que parecessem à primeira vista.
-Que roupa devo usar?
Com o rosto pálido, a donzela pegou a escova da penteadeira. -Se não se importar, deve sentar-se, senhorita, para que eu escove seu cabelo.
Cassidy obedeceu. O nervosismo da donzela parecia fluir através da escova para o corpo dela, e quase saltou quando outra donzela trouxe uma bandeja com
chá e bolachas.
Esperava que a donzela tirasse algum vestido de noite apropriado, que a ajudasse a colocar o odioso espartilho e a abotoasse como se fosse uma boneca,
outra vez. Mas a mulher nem sequer prendeu o cabelo dela, mas sim deixou-o cair livremente, ainda úmido, por suas costas.
Depois, Cassidy desfrutou de um curto período de solidão, durante o qual esmagou as bolachas até convertê-la em fino pó sobre a bandeja de prata.

Daí a meia hora, a donzela retornou e se inclinou da porta.
-Por favor, venha comigo, senhorita -disse.
-Com isto? -disse Cassidy, movendo seus pés nus sob a prega da túnica.
-Sim, senhorita.
O pêlo da nuca de Cassidy arrepiou enquanto seguia a donzela pelo corredor. Alegrou-se muito quando toparam com Isabelle na metade das escadas. Isabelle
olhou a roupa de Cassidy, ou sua falta dela, com surpresa.
-Vinha justamente vê-la. - disse. - Houve problemas com sua roupa?
-Não -disse Cassidy.
- A donzela me disse que devia usar isto -Pensou em todas as coisas que queria discutir com sua amiga, mas reconheceu que não era o momento nem o lugar
para isso. - Algo estranho está ocorrendo, Isabelle.
Sem uma palavra, a donzela partiu, deixando-as sozinhas. Isabelle franziu o cenho.
-Tinha notado que os serventes se comportavam de forma estranha -disse. - Mencionou a donzela algo sobre uma iniciação?
-Disse algo sobre uma cerimônia. Você sabe do que se trata?
-Ainda não, mas eu gostaria muito de me inteirar.
Se Rowena sabia, nem tinha mencionado.
-Sei quem pode nos dizer -disse Cassidy.
- Se pudermos encontrar Quentin...
Encontraram Quentin inclinado sobre o balaústre, na parte superior das escadas, olhando para o vestíbulo da entrada. Em lugar de sua pulcra jaqueta, colete
e calças usuais, vestia uma túnica idêntica a de Cassidy, nos mesmos tons vermelho e prata.
Endireitou-se quando elas se aproximaram e realizou uma reverência.
-Ah, senhora Smith, Cassidy. Encantado em vê-las de novo -Dedicou um irônico sorriso à Isabelle.
- Você parece um pouco confusa ante nossa estranha aparência, senhora Smith. Entendo que não foi convidada para o nosso peculiar ritual.

-A donzela mencionou uma cerimônia -disse Cassidy-, mas não sabemos do que se trata.
Quentin emitiu um suave som de desaprovação.
-Meu irmão parece ter dificuldades para mantê-la informada, prima. Esta noite será para teu benefício, embora haja dois serventes novos. Não queremos que
saiam correndo livres para mexericar, verdade?
-Não se dá conta de que só está confundindo-as mais, Quentin?
Rowena saiu das sombras, para reunir-se a eles, já vestida com outra túnica vermelha e prata. Seu cabelo dourado, igual ao de Cassidy, caía comprido e solto
sobre suas costas. Seu rosto estava muito pálido e não olhou Cassidy nos olhos.
-Deixe que aprenda por si mesmo o que somos realmente - Voltou-se girou para Isabelle, seu tom friamente cortês. - Senhora Smith, desculpe-me pelas moléstias.
Se for tão amável de aguardar em seu dormitório, farei que lhe sirvam um refresco tão logo seja possível.
Isabelle não se moveu.
-Estou aqui em Greyburn como amiga de Cassidy. Se algo não for correto...
-Tudo é exatamente como deve ser.
Cassidy deu a volta para enfrentá-la. Quentin, Rowena e Isabelle giraram para a profunda e autoritária voz.
Braden parou a poucos passos da parte superior das escadas, com Aynsley atrás dele. Estava descalço igual a Cassidy e os gêmeos, vestido como eles, mas
parecia mais imponente que nunca. Sua pesada túnica varreu as escadas, esplêndidas e bárbaras, dando-lhe a aparência de um antigo rei.
-Isto não é de sua incumbência, senhora Smith -disse.
-Permanecerá em seu dormitório. Aynsley, acompanhe a senhora Smith e depois retorne à Grande Sala.
Isabelle teria discutido com Rowena, mas não podia desobedecer ao conde de Greyburn. Dedicou um preocupado olhar a Cassidy.
-Não se preocupe -sussurrou Cassidy. -Contarei tudo mais tarde.
Inclusive a habitual dignidade de Aynsley parecia encolhida quando se inclinou rigidamente ante a senhora Smith e lhe indicou o caminho à ala de convidados.
Braden aguardou até que estivessem fora da vista para começar a descer pelas escadas. Quentin foi a seguir, seguido por Rowena, deixando que Cassidy fosse a última.

A casa estava em um silêncio inquietante. Faltava o habitual ir e vir dos criados e a constante sensação de atividade; em seu lugar, o vestíbulo da entrada
estava vazio, e os débeis abajures logo que aliviavam as sombras.
Braden conduziu-os para as maciças portas esculpidas da Grande Sala. Empurrou-as até abri-las, e Cassidy pôde ver onde se encontravam os habitantes humanos
de Greyburn.
Encontravam-se formando fileiras regulares a um lado da sala, homens e mulheres com seus sóbrios trajes e uniforme, emprestando atenção como soldados em
um desfile. Havia muitos mais serventes do que Cassidy teria imaginado, pessoas que logo que tinha vislumbrado, com idades que foram desde apenas meninos até os
mais anciãos de cabelo grisalho. Nenhum emitiu o menor som.
Cruzando a sala, estava colocado um grande biombo. O valete de Braden, Telford, estava junto a ele, seu afiado rosto tão pálido como todos os outros. A
cada lado, as paredes estavam cheias de tochas, obtendo que os estandartes, escudos e espadas se sobressaíssem em agudo relevo. As talhas de lobos e homens pareciam
saltar e lutar na tremente luz.
Braden entrou lentamente na Sala e se colocou junto a Telford. Quentin e Rowena ficaram atrás dele, Aynsley deslizou no interior da Sala e foi unir-se à
primeira fila de serventes, seus movimentos bruscos como os de uma marionete.
-Foram convocados aqui -disse Braden, sua voz retumbante-, para renovarem os vínculos e compromissos que protegeram Greyburn desde que o primeiro de nós
veio a esta terra. Nesta noite, aceitaremos os juramentos de duas pessoas que devem trabalhar nesta casa, e prometeremos protegê-las enquanto vivam entre nós - assentiu
com a cabeça a Telford, que realizou um gesto por volta da primeira linha de serventes.
Duas pessoas deram um passo adiante, um homem jovem que parecia estar muito assustado e a moça que Cassidy reconheceu como sua donzela na casa de Londres.
Braden aproximou-se deles. As pernas do homem quase se dobraram. Os olhos da donzela estavam muito abertos. Olhava a um e outro lado, como se procurasse ajuda...
ou escapatória.
-Fique onde está -disse Quentin, quando Cassidy começou a se mover.

-Não pode interferir agora. Observe-nos, Rowena e eu, e faça exatamente o que nós faremos.
A voz de Braden se impôs sobre o sussurrado protesto dela.
-John Tobias Dodd e Kitty Wanless --disse a ambos--, escolhestes servir em Greyburn. Já lhes disse o propósito desta iniciação, e o que se requer de vós.
Esta é sua última oportunidade para renunciar.
A boca do homem abriu-se e a donzela fechou seus olhos, mas nenhum deles falou. Braden assentiu.
-Muito bem. Realizastes sua eleição. Esta noite serão testemunhas de algo que jamais revelarão a ninguém fora destes muros.
Deu um passo atrás, desatou a bandagem de sua cintura, e deixou que a túnica caísse ao chão. Cassidy ofegou.
Envolto pela luz das tochas, Braden colocou-se frente aos serventes. Permitiu que o olhassem até saciarem-se, e logo jogou a cabeça para trás. E se transformou.
Foi como ver uma nuvem trocando de uma forma a outra através de um cristal sujo. Uma escura névoa se formou como um redemoinho ao redor da nudez dele, apagando
os ângulos e contornos de seu corpo até que desapareceu qualquer forma. A névoa agitou-se, reuniu-se e voltou a solidificar-se formando uma figura inegavelmente
desumana.
A jovem donzela ofegou, mas se manteve em seu lugar. O homem não mostrou nenhuma reação. Braden, o lobo, olhou-os fixamente nos olhos, a ambos, durante
tanto tempo e com tanta atenção como pôde e depois se aproximou espreitando. A donzela estirou uma mão tremente. Braden abriu suas mandíbulas e fechou os dentes
sobre os frágeis dedos, brandamente, tão brandamente que, inclusive Cassidy soube qual era o significado do gesto. Braden podia esmagar a mão, e à garota, sem o
menor esforço. Demonstrava seu poder e as conseqüências da deslealdade.
Liberou a mão da donzela, sem marca alguma, e voltou-se para o homem. Tragando com esforço, este ofereceu sua mão. Braden repetiu o ritual da dominação
e depois deixou-o ir. Um dos serventes teve que ajudar jovem quando cambaleou e quase caiu.

Braden ignorou-o. Voltou-se para seus irmãos. Quentin apertou o braço de Cassidy e deu um passo atrás do biombo.
E Cassidy compreendeu, com repentina claridade, o que ia ocorrer.
A porta estava ligeiramente entreaberta, mas esse pequeno espaço parecia suficiente. Isabelle tinha sua bochecha apoiada na ombreira e espiava a cerimônia
a que lhe tinham proibido assistir.
Não se espantou quando o conde de Greyburn se converteu em lobo, embora quase tinha esquecido o assombro e o terror que provocava a transformação. Edith
tinha sido sua amiga; Braden era perigosamente imprevisível, mas ambos pertenciam à mesma raça. Como Cassidy, que parecia tão perdida na grande sala cerimoniosa
como estava em sua chamativa túnica.
Mas Isabelle tinha observado com terror crescente, quando o grande lobo cinza capturava as mãos dos dois serventes, um a um, em suas mandíbulas. Ainda quando
Braden solto-os, ilesos, Isabelle sentia um mal-estar em seu estômago que não tinha nada a ver com o medo ordinário.
Isto era o que Matthias, o pastor, tinha querido dizer quando a advertiu sobre a iniciação. E Cassidy, tão ingênua nos costumes dos iguais à sua mãe, tão
inocente de toda arrogância e cobiça para dominar, estava sendo obrigada a participar.
-Intuo que está preocupada, milady -disse uma suave voz junto a seu cotovelo-, mas não se pode evitar. Isso é o que são.
-Matthias! -disse ela, apertando-se contra a parede. - O que faz aqui?
Seguia vestido de igual forma que pela tarde, preparado para a ação, com a espada a seu flanco. Para ser um homem que estava onde não devia, como ela, parecia
bastante despreocupado, embora sua atitude era vigilante.
-Não lhes contei muito na colina, milady -disse ele. - Vim para comprovar como ia, mas vejo que eu estava certo. Fostes excluída.
Ela tremeu. Excluída desse estranho ritual da Grande Sala? E se a tivessem obrigado a isso, teria acudido Matthias em seu resgate? A mera idéia era absurda.
Voltou-se para a porta.
-Cassidy, a senhorita Holt, está aí dentro -disse.
-Sim. Disseram-me que era um Forster.

Sim, que Deus a ajudasse. Mas também era a filha de Edith.
-Você me contou que ninguém que soubesse o segredo de Greyburn poderia revelá-lo -disse ela.
- É assim que garantem a lealdade? Mediante o terror e às ameaças de... -Não pôde completar a frase, imaginando essas mandíbulas bestiais na garganta de
alguém.
-Não é uma ameaça -disse Matthias, aproximando-se. - Só é um símbolo. Há mais...
-Espere. Algo ocorre -Era consciente da proximidade de Matthias contra ela junto à porta e se sentiu estranhamente cômoda.
A comodidade durou pouco. Enquanto ela observava, Braden olhou para os Forster que aguardavam, e Quentin caminhou depois do cenário biombo do centro da
Sala. O ajudante do conde se aproximou para recolher a túnica de Quentin quando este o tirou. Um momento mais tarde, outro lobo emergiu: uma besta de avermelhada
pelagem, a cor do cabelo de Quentin. Uniu-se ao seu irmão maior e repetiu o ritual das mãos com os dois serventes, com muito mais rapidez que Braden.
-Não é simplesmente o medo -disse Matthias junto ao ouvido de Isabelle.
- É a vontade do senhor. Pode falar com suas mentes e impor obediência. Em correspondência, não lhes faltará nada enquanto vivam.
Essas molestas náuseas retorceram seu estômago de novo, e quase vomitou. Matthias apertou seu braço.
-Ele não o utilizará com você -disse ele. - Eu juro.
Com um esforço ela se endireitou.
-Os arrendatários e os jornaleiros... também acontece com eles?
-Confiam em alguns sem necessitar tais garantias.
-Como você?
Ele sorriu.
-Sim. Confiam bastante em mim -Fez um gesto para a porta. - Preste atenção.
Ela fez o que pediu, bem a tempo de observar lady Rowena, movendo-se como em sonhos, desaparecer depois do biombo.

Passaram muitos minutos antes que saísse. Quando o fez, era uma formosa loba de cor ouro pálido, menor que os outros dois. Deslizou pelo chão, as orelhas caídas,
sua cauda baixa. Nenhuma voz humana teria podido descrever reticência e tristeza com maior claridade.
Logo que roçou as mãos dos serventes, que já pareciam imunes ao medo. Quando finalizou, os três lobos se voltaram, como um só, para Cassidy.
Isabelle sabia o que esperavam. A túnica de Cassidy tinha um propósito específico, como as deles. Dito objeto era facilmente descartável para efetuar a
transformação. Inclusive através da habitação, Isabelle podia notar o pânico da moça.
Nunca foi ensinado à Cassidy como se transformar. Tinha perdido sua mãe quando era muito pequena e tinha crescido entre humanos normais. Não havia nada que
Isabelle pudesse fazer para ajudá-la.
-Eles não a avisaram -disse Isabelle. - Não pode fazê-lo.
-Não pode trocar? -disse Matthias. Sacudiu a cabeça, com uma expressão de compaixão lhe cruzando o rosto. - Pobre menina.
Braden separou-se dos serventes e de seus irmãos, aproximando-se de Cassidy com uma pernada impaciente e decidida. Emitiu um som baixo com a garganta, um
grunhido sinistro.
Cassidy apertou a túnica contra seu peito cambaleando sobre seus pés nus. Um dos serventes emitiu uma exclamação afogada quando ela saiu correndo para a
porta. Isabelle teve o tempo justo para sair do caminho antes que Cassidy atravessasse a porta.
-Deixe-a ir -disse Matthias, quando Isabelle ia seguí-la. Afastou Isabelle da porta meio aberta. - É melhor que não a vejam agora, milady. Estarão furiosos
esta noite, mas você não deve se intrometer. Não, entre os dessa espécie.
Ela liberou o braço.
-Se Cassidy estiver em problemas porque não pôde transformar-se...
-Eles não a machucarão -disse ele com voz cansada e apagada. - Espere um pouco, milady. Não abandonarei à menina, nem que eles queiram.
Uma vez mais ela se sentiu emocionada por sua sinceridade, embora só era a segunda vez que se encontrava com ele. Era humano, mas compreendia estes Forster
e seus costumes. E estava se permitido ir e vir livremente.

-Obrigado -disse ela. Ofereceu-lhe sua mão - Necessitamos de amigos aqui. Ambas.
Ele cobriu sua mão com a sua.
-Devemos ir.
Movendo-se com graça apesar de suas pesadas roupas, conduziu-a até a porta principal entrando na noite. A um lado da casa parou, elevou a mão até seus lábios
e beijou-a com tosca ternura.
-Tenha paciência, milady. Não estão sozinhas.
Saiu , mas ela o deteve segurando a beira de seu gibão. -Por quê? -perguntou-lhe. - Por que deseja tanto nos ajudar?
Os olhos dele eram quentes ao olhar os dela.
-Não sente a conexão entre nós, milady? Estamos ligados um ao outro, de alguma forma. Senti no instante em que a vi. É o destino que eu não desejo evitar.
E deixou-a com a pele tremendo no lugar onde a havia tocado e com o coração pulsando muito depressa.
Como era possível que um homem, e além disso um estranho, a afetasse tão profundamente? Cassidy era a única pessoa que tinha entrado em seu coração desde
há muito tempo, muitos anos. Mas era inegável que Matthias também o tinha feito, contra todo prognóstico e contra suas firmes intenções.
Parecia genuinamente preocupado por ela... e por Cassidy.
Tinha mencionado uma conexão, um vínculo, um destino. Românticas palavras certamente. Mas o que pensaria se soubesse que Isabelle não era uma dama absolutamente?
Continuaria lhe dedicando doces sorrisos e promessas de amparo como um galante cavalheiro satisfeito em serví-la com casto respeito? Ou a veria como uma criatura
irremediavelmente manchada... ou pior, a olharia com olhos que vissem somente um objeto para ser utilizado?
Não. Não havia como saber. Ambos levavam a cabo uma máscara, ele devido a uma amável loucura, ela por necessidade. Quaisquer que fossem os motivos de Matthias,
eram puros. Era diferente de qualquer outro homem que tivesse conhecido. Não podia se permitir perder nenhum aliado, não quando Cassidy estava em perigo. Tenham
paciência, havia dito Matthias. Faria caso de seu conselho, e estaria preparada para quando Cassidy necessitasse dela.
E, se chegasse o momento em que teria que desafiar o conde de Greyburn pelo bem de Cassidy, atrevia-se a acreditar que não estaria sozinha.
Braden deu fim à cerimônia de iniciação como sempre fazia. Voltou a transformar-se e disse os pronunciamentos finais como se nada impróprio tivesse ocorrido,
despediu-se dos serventes, e permitiu que Rowena e Quentin voltassem para seus aposentos. Nenhum deles, homem-lobo ou humano, atreveu-se a mostrar surpresa ou consternação
ante o dramático giro dos acontecimentos.
Não se permitiu pensar no ocorrido até que esteve vestido e no refúgio do santuário de sua biblioteca. Inclusive, então, se negava a aprofundar no que estava
pressentindo, a inconcebível possibilidade que jazia como um vento amargo no fundo de sua mente.
Nenhum som perturbava sua solidão. Mas Braden encontrou-se escutando, à espera de umas ligeiras pegadas, à aproximação da única pessoa em Greyburn que
mais desejava e temia voltar a encontrar.
As pisada chegaram antes do que esperava, bem antes que se sentisse impelido a sair para procurá-la. Ele convidou-a para entrar.
Cassidy duvidou à soleira. -Sinto muito-disse.
Ele se levantou da cadeira, incapaz de manter sua calma habitual.
-Fugiu da cerimônia -disse asperamente. - Por quê?
Ela fechou a porta e entrou na sala. Vestia, notou ele, outro dos vestidos de Londres, embutida em formalidade para enfrentá-lo. Semelhante formalidade
oferecia algum tipo de proteção a ambos. Mas ela devia compreender, tal como ele tinha feito, que não havia proteção contra a verdade.
- Devia ter lhe dizer isso antes -disse ela, quase em um sussurro-, mas não me dava conta de que esperava... que se supunha que eu devia saber... -vacilou.-
Quando corremos juntos no bosque, desejava tanto me transformar, ser um lobo como você. E quando soube que queria que o fizesse durante a cerimônia, eu...
Braden parou no centro da sala, cada músculo paralisado. -Não pode... -começou, e sua boca negou-se a formar a palavra.
A sala estava mortalmente silenciosa.

-Minha mãe morreu antes que pudesse me ensinar -disse ela. - Eu... não sei como trocar.
Braden balançou-se sobre seus pés, golpeado pela surpresa. Se fosse humano, seria como se lhe dissesse que não sabia caminhar, comer, ou que seu coração
não seguisse pulsando. Ou como se nunca tivesse nascido.
A tormenta de emoções tomou-o de surpresa. Retrocedeu, tratando de agarrar ao painel de cristal da livraria.
-Você nunca se transformou... -disse.
-Não -Sua respiração ficou entrecortada.- Sinto. Acreditava...
Um profundo vazio seguiu-se à surpresa, deixando-o tão frio como o cristal sob suas mãos.
-Acreditava que fosse uma de nós em todos os aspectos -disse, tirando as palavras do vazio. - Mostrava todos os sinais, tinha todas as demais habilidades.
Sua mãe...
-Minha mãe me disse que o faria algum dia. Acreditei que se encontrasse a minha família, eles poderiam me ensinar...
-Não se pode ensinar a mudança -disse ele. Suas mãos apertadas em punhos sobre a livraria. - É o que somos.
Desde o começo tinha cometido um terrível engano. Tinha assumido que Cassidy era um deles em tudo. Outros, meio-humanos ou pior, tinham herdado a capacidade
de trocar, e ela era a última dos Forster americanos. Sua devoção pela Causa o tinha cegado.
Um engano inaceitável. Uma debilidade imperdoável.
-Posso aprender -disse Cassidy, sua voz firme de resolução.
- Sempre soube que era como minha mãe...
-Seu pai era humano.
-E você despreza os humanos. Despreza-me por isso .
Uma menina que nem sequer podia transformar-se, não devia ter semelhante poder para comovê-lo. Suas palavras não deviam ferí-lo como uma flecha sob as costelas,
esvaziando seus pulmões de ar. Deveria ser alheio à compaixão que rasgava seu coração e que despertava algo muito parecido à pena.

Recordou a sensação de plenitude que havia sentido, quando correram juntos no bosque, algo que não havia sentido desde que era um menino.
Reconheceu sua insistente consciência do aroma único dela, a arbusto de artemisa e terra do deserto. E quando tinha pensado nela como a companheira de Quentin,
sua mente se negava a lhe proporcionar os inevitáveis detalhes.
Levantou o punho da livraria e deixou-o cair de novo com todas suas forças. O painel de cristal ficou destroçado. Cassidy gritou. Os fragmentos de cristal
se introduziram em sua carne como agulhas.
-Desprezá-la? -sussurrou ele, e riu, flexionando sua mão. O sangue correu ao longo de seus dedos.
-Você se feriu! -Cassidy colocou-se ao seu lado, levantando com suavidade a mão ferida. - Tenho que tirar os cristais, e logo te enfaixarei.
Seu contato, tão cuidadoso e seguro, encheu-lhe de uma estranha lassidão. Sua rouca voz estava impregnada de preocupação, consternação e inquietação...
por ele, apesar de tudo.
-Caramba! -gritou ela. - Meu vestido é muito rígido. Não posso rasgá-lo. Chamarei Aynsley...
-Não -Ignorando seus protestos, tirou torpemente sua jaqueta e deixou-a cair ao chão. Começou a desabotoar o colete com uma só mão, mas os dedos de Cassidy
se meteram sob os seus ocupando-se da tarefa.
Imediatamente a dor se foi, e somente sentia os hábeis e calejados dedos dela soltando os botões de sua camisa um a um. A respiração dela esquentou seu
peito nu enquanto tirava os baixos da camisa do interior de suas calças. Sem se dar conta, as mãos dela roçavam seu abdômen, enviando sacudidas elétricas por todo
seu corpo. Estava tão perto... passando a camisa sobre seus ombros, deslizando-a por seus braços, com os seios sob o espartilho apertando-se contra seu flanco.
Ela parou quando a camisa estava a meio caminho, apanhando os braços dele, deixando-o incapaz de se mover. Sua respiração se acelerou, superficial, inspirando
o ar como se o saboreasse. Suas mãos caíram.
Um estranho conhecimento flutuou entre eles.

Braden podia sentir sua confusão. À exceção de seu primeiro encontro, quando ela o abraçou tão impulsivamente e beijou-o na bochecha, ele só havia tocado sua
mão.
Era uma moça sem experiência, com seu corpo de mulher. Uma criatura meio-humana. Meio-humana e incapaz de se transformar. E se não podia trocar, não era a
companheira adequada para Quentin e seu sangue puro. Já não servia para ser a mãe dos filhos de Quentin. Inútil para a Causa.
Livre. Braden se desfez de sua camisa, e Cassidy tomou-a logo sem lhe tocar. A malha vaiou quando a rasgou em tiras.
-Não está tão mal -disse Cassidy. Conduziu-o até uma cadeira, esquecendo seu embaraço, e empurrou-o para que se sentasse.
- Sei um pouco disto devido ao meu trabalho no rancho. -Guardou silêncio e começou a tirar as partes de cristal um a um. - Há alguns muito pequenos que
não posso tirar -disse. - Você sentirá arder se não os...
-Não é nada -disse ele.
Ele sentiu o olhar dela fixo nele.
-Muito bem -Envolveu a mão com as tiras do objeto, hábil e eficientemente.
- Pronto. Deixará de sangrar. Disseram-me que os loups-garous sanavam rapidamente. Quando eu me machucava, sempre... - interrompeu-se abruptamente.
Ele fechou a mão, desejando que voltasse a doer, mas seu resistente corpo lobino já estava curando a si mesmo. Havia tanto que podia reparar. Mas não
tudo.
-Sinto -disse Cassidy. - Não tinha intenção de te enganar. Desejava... tanto ser como você.
O aroma das lágrimas, lágrimas que ele sabia que ela lutava por conter com seu teimoso orgulho, sem caírem, provocaram-lhe um nó na garganta. Levantou sua
mão ilesa. Seus dedos roçaram as pestanas dela e se umedeceram.
-Posso aprender -disse ela em um entrecortado murmúrio. - Sei que posso.

-Não compreende -disse ele, desprezando-se a si mesmo. - A mudança... está no sangue. Quando nos... quando nossa raça alcança a maturidade, ferve em nossas
veias, em nossos nervos e músculos, impossível de ignorar, clamando pela liberação. Se nunca houver sentido a chamada...
-Mas a hei sentido. Posso sentí-la agora.
-Pode? -Ele pegou sua mão e uniu sua palma a dela. Sentia seu pulso golpeando sob a pele, e seu corpo estava tenso como se escutasse alguma música longínqua.
Quase podia ouví-la ele também, emanando do interior dela, derramando-se de sua carne para a dele. Música da alma, música de vida, uma sinfonia pura e rica como
o rugido do oceano ou o antigo batimento do coração do coração do bosque.
A música de Cassidy tinha o poder de fazê-lo acreditar que tudo o que dizia era certo. Havia muito mais nela que o sangue que corria por suas veias. Quando
a tocou, começou a acreditar que ele, também, tinha algo mais valioso que a liderança da Causa.
Mas as emoções só haviam lhe trazido a ruína, ainda antes que conhecesse a completa extensão de seus defeitos. Estavam vinculados para sempre em sua mente:
a paixão com a traição, a esperança com a desgraça, o amor com a aniquilação.
Tornou-se para trás, recostando a mão ferida contra seu peito. Um golpe ressonou na porta da biblioteca, e se abriu de par em par.
-Peço-lhes desculpas - disse Quentin. -Estou interrompendo? Acreditei escutar que se rompia algo. Nada sério, espero.
Braden levantou-se e cruzou o aposento até que seu pé tropeçou com a jaqueta atirada no chão. Recolheu-a e colocou-a sobre os ombros.
-Um pequeno acidente -respondeu.- Nada que necessite de sua preocupação.
-É óbvio que não - Quentin entrou na biblioteca.- Atrevo-me a dizer que o mobiliário levou a pior parte da batalha. Aynsley se incomodará bastante quando
vir o tapete.
O muito absurdo do bate-papo de Quentin funcionou como um reconstituinte para o agitado autocontrole de Braden. Sentia-se ele mesmo de novo.

-Sente-se, Quentin -disse. - Você também, Cassidy -Enfrentou seu irmão. - Serei Breve! - Cassidy acaba de me informar que nunca se transformou.
-Sério?
Braden não estava de humor para os jogos de despreocupada indiferença de Quentin.
-Apesar de todos os precedentes contra, é possível que possa aprender. E você a ensinará.
A cadeira de Quentin rangeu quando se esticou.
-Eu? Mas...
-Já é hora de que assuma suas responsabilidades, Quentin. Espero que trabalhe com Cassidy até apurar cada possibilidade. Os primeiros delegados da Convocatória
chegarão dentro de uma semana. Ela deve aprender a trocar antes que termine esta semana.
Por uma vez, Quentin estava genuinamente alterado. Ficou em pé, caminhou a metade da biblioteca e logo depois de volta.
-Por que não você não pode ensiná-la?
-Tenho minhas razões.
Quentin riu.
-Pergunto-me se sabe quais são realmente.
-Advirto-lhe isso, Quentin. Não me questione.
-Pelo amor de Deus, Braden...
-Sabe o que isto significa para todos nós.
-Para sua Causa.
-Suficiente -Braden girou para Cassidy. - Se for uma de nós, encontrará o que necessita em seu interior. Deve fazê-lo.
Apenas umas horas antes, ele tinha tentado lhe explicar seu futuro papel na Causa, de forma que não houvesse ocasião para os mal-entendidos. Agora, qualquer
explicação era inútil. A menos que aprendesse a transformar-se.
Mas com Quentin como seu professor, seria natural que desenvolvesse um vínculo apropriado com ele, ganhando mais... conhecimento íntimo que facilitaria
a transição se -quando- provasse que tinha herdado a habilidade de sua mãe.

A saia de Cassidy sussurrou com a decisão de seus passos quando se colocou frente a Braden.
- Tudo bem -disse. - Encontrarei a maneira.
Braden girou o rosto a um lado.
-Começará amanhã. Retorne ao seu quarto e descanse.
-Não te decepcionarei -disse Cassidy. - Não importa o que...
-Vamos, prima -disse Quentin. - Como diz Braden, precisa dormir um pouco. Amanhã pela manhã te mostrarei os estábulos. Acredito que tenho os arreios perfeitos
para você. Sabe montar? Que tolice da minha parte, é óbvio que sabe... -Sua voz, e as pisadas de ambos, desvaneceram-se quando Quentin fechou a porta atrás deles.
Braden não ficou sozinho mais de um minuto antes que Aynsley entrasse. O silêncio do mordomo transmitiu seu desgosto ante o estado do tapete, do mobiliário
e de seu senhor.
-Estou bem -disse Braden. - As donzelas podem arrumar isto pela manhã. Procure Telford...
-Estou aqui, milord -O ajudante não podia deixar de notar o estado da mão de Braden, mas não fez comentário algum.
-Leia para mim, Telford.
-Que deseja escutar, milord?
-O que quiser -Braden tomou assento em sua cadeira favorita e fechou os olhos. Telford se aproximou da livraria, fez uma pausa, deu uns passos mais e abriu
uma porta. Um livro deslizou de entre o resto.
Telford se moveu para a cadeira situada em frente a Braden e começou a falar.
-"Um belo objeto é uma jóia para sempre: sua formosura cresce; nunca cairá em um nada; mas sempre conservará um vínculo conosco, e um sonho cheio de doces
lembranças, de saúde e respiração acalmada."
Braden se esticou e se obrigou a relaxar de novo. O ajudante terminou o poema:
-"... sim, apesar de tudo, um pouco de beleza se separará do manto que cobre nossos escuros espíritos."

-Keats -disse Braden. - Acredita que estava certo, Telford?
-Sim, milord.
-E a senhorita Holt ainda te parece tão pouco atrativa?
O ajudante esclareceu sua garganta.
-Suas qualidades únicas parecem melhorar à medida que a conhece, milord. "Seus olhos como estrelas da bela noite; como a noite também seu escuro cabelo".
-Sem dúvida um elogio muito grande para semelhante pilantra -disse Braden com suavidade.
-Se me perdoar, milord -disse Telford-, devo admitir que a senhorita Holt é muito mais formosa do que supus em um princípio.


CAPITULO 9

Cassidy teria cruzado a Jornada do Morto sem comida nem água se Braden pedisse, ou dormido em uma cama de bicudos cacto, ou cruzado a nado o oceano Atlântico.
Mas não lhe exigia uma prova tão singela a não ser outra. Devia aprender como transformar-se em menos de uma semana. E a única viagem que fazia era sobre
o lombo de um cavalo, cruzando as terras de Greyburn com Quentin ao seu lado. Quentin ia ser seu professor, e ela tentou com força não desejar que Braden tivesse
escolhido a tarefa para si mesmo.
A manhã era brilhante e ensolarada, com nuvens brancas cruzando rapidamente o céu e o aroma do feno no ar quente. Uma cotovia cantou do páramo próximo,
e os coelhos saltavam com o passar do caminho.
Quentin tinha conseguido para ela uma bonita égua bago , Cleopatra, e montava seu formoso cavalo próprio. Tinha respondido ao desconforto dela com a cadeira
de montar lateral fazendo que um moço de quadra a trocasse por uma cadeira de homem; ainda era bastante distinta às cadeiras que Cassidy estava acostumada, mas poderia
cavalgar sobre o lombo nu de qualquer cavalo se fosse necessário. E se sentia feliz de que Quentin lhe sugerisse que colocasse seu "bonito vestido de algodão" em
lugar do rígido traje de montar que Rowena tinha ajudado a comprar em Londres.
Quentin estava depravado, parecendo, em seus olhos, a quem quer que os visse, que tinham saído para um passeio de prazer. Um pacote que pendurava atrás
de sua cadeira continha comida, uma toalha e, conforme tinha prometido ele com uma piscada, um baralho de cartas. Tudo o que se necessitava para obter o dia perfeito.
E teria sido, sob qualquer outra circunstância. Cassidy estava ansiosa por explorar o campo, por converter esta nova terra em seu lar. Podia chegar a amar
a amplitude das redondas colinas varridas pelo vento, os arroios, a terra úmida e os verdes pastos. Como o deserto, este lugar fervia de vida, transbordante de mistérios
à espera de ser descoberto.

Mas não podia deixar suas preocupações a um lado tão facilmente. No momento em que a cerimônia da passada noite tinha começado, a noite se tornou um desastre.
Tinha-o visto vir quando Quentin e Rowena se transformaram detrás do biombo. E depois todos a olhavam fixamente, esperando, e se sentiu mais nua que Braden antes
de se converter em lobo.
Tinha tentado. Com toda sua vontade tinha tentado realizar a mudança como os outros. Se o desejo fosse suficiente, teria conseguido em um instante.
Tinha falhado. Inclusive Isabelle tinha visto, e o homem estranhamente vestido que estava com ela. Cassidy tinha desejado esconder-se em seu quarto e pretender
que nunca tivesse ocorrido. Quis retornar ao bosque e correr até que não fosse capaz de pensar na desaprovação de Braden e sua própria desgraça.
Mas não podia fugir. Nem de si mesmo, nem de Braden.
Tinha voltado para ele, e era muito pior do que tinha suposto.
Uma vez, no Novo México, estava com um vaqueiro quando contaram a este que sua filha pequena tinha morrido de febre. O vaqueiro ficou muito quieto, como
se não acreditasse, e depois tinha caído de joelhos no pó e bramou, contra o mundo, contra Deus, contra todas as pessoas e todas as coisas sem distinção. A própria
vida lhe tinha traído.
Braden não tinha bramado ou chorado, mas ela soube que se sentia traído no mais profundo de sua alma.
Tinha-lhe falhado. Sem compreender como ou porque, tinha-lhe falhado completamente.
Seu pai era humano havia dito, suas palavras condenando-a. Enfaixar suas feridas não podia compensar suas falhas. Mas estar tão perto dele tinha tido um
efeito inesperado. Parecia tão vulnerável, embora isso não diminuía sua força ou sua beleza. Como lobo, tinha fascinado. Quando ajudou-o a tirar a camisa, tinha
visto mais do homem que era: os elegantes contornos dos músculos sob a pele, a inclinação de seu ombro, o fino pêlo em seu peito, a flexão do tendão em seu antebraço,
a dura firmeza de seu abdômen. A dor da pena em seu estômago se transformou em sensações muito diferentes e apenas familiares, descendendo por seu corpo.

Recordou-se no rancho, quando se havia sentido impulsionada por algo estranho e poderoso procedente de seu próprio interior, algo que os Holt não podiam
compartilhar. Tocar a mão de Braden tinha sido suficiente para sentir que essa energia cantasse em suas veias. Tinha estado a ponto de agarrar aquilo que estava
justo fora do alcance, a única habilidade que significava a diferença entre ser loup-garou ou humana, entre ser aceita ou encontrar-se desejando-o para sempre...
-Um peni por seus pensamentos -disse Quentin. Olhou-a malicioso.
-Esqueça isso. Acredito que oferecerei ao menos uma libra. Tenho a impressão de que valerá.
Cassidy estirou-se na cadeira e olhou de verdade ao seu redor pela primeira, vez desde que tinham deixado os estábulos de Greyburn.
-Agradável clima -continuou Quentin, como se quisesse levantar-lhe o ânimo. - Northumberland costuma ser uma terra úmida e pantanosa. Parece ter trazido
o sol desde seu deserto, pelo qual te estou eternamente agradecido.
Ela não pôde evitar sorrir. A despreocupação de Quentin era contagiosa.
-Aonde vamos?
-Só a um bonito lugar privado que conheço -respondeu ele, provocando seu cavalo a um meio galope.
Cassidy concentrou-se na cavalgada enquanto escalavam suaves colinas, saltavam baixos cercados de pedra e arroios chapeados. Quentin conduziu-a por alguns
grupos de casinhas muito pequenas para chamar de povoado, e solitárias granjas. Ovelhas dispersas e algum pastor ou lavrador ocasional que levantava a vista de seu
trabalho para observá-los passar.
-Quanto de tudo isto pertence a Greyburn? -perguntou ela quando levavam aproximadamente uma milha de cavalgada.
-Não possuímos mais que uns quantos acres, mas estivemos aqui por mais tempo que a maioria das pessoas. Ouvi que a América é tão vasta que toda Greyburn
equivaleria a uma ínfima fração de um de seus enormes ranchos. Ainda assim, Braden toma sua tutela muito a sério. Cuida do bosque, melhorou a terra, mantém longe
aos ladrões. E o pior de tudo, cuida bem de seus arrendatários e lavradores.

-Então as pessoas daqui, as pessoas normais, não o temem?
Quentin manteve-se em silencio uns poucos instantes.
-Está pensando na cerimônia.
Mas ela não queria pensar nisso, nem em sua própria vergonha, nem na inquietação que havia sentido quando os Forster tinham mostrado seu poder aos serventes.
-Greyburn é um dos principais empreiteiros nesta parte de Northumberland -disse Quentin. - As pessoas se alegram de ter trabalho, e os serventes sempre
têm opção. Eles, assim como os arrendatários de Greyburn, sabem que Braden cuidará deles enquanto permaneçam leais... e discretos -Seu marcante sorriso retornou.
- Há muitos anos, os paroquianos escutaram as lendas e viram coisas que não podiam explicar. Mas se cuidam bem de fofocar -Olhou para Cassidy com interesse.- Braden
pode ser bastante generoso quando se despista, embora nunca deixaria que soubesse. Está um pouco obcecado, mas suponho que é lógico, se tivermos em conta as cargas
que se impôs.
-A Causa -indicou Cassidy.
-Certo. Tomou-se a salvação dos homens-lobos do mundo como uma responsabilidade pessoal. É um milagre que não esteja completamente louco.
-Mas você deve lhe ajudar. É seu irmão...
-Precisamente. E desde que Braden perdeu todo interesse por divertir-se, eu converti a compensação de sua deficiência em minha missão pessoal. No mínimo
um dos Forster devia fazê-lo. E Ro, em que pese a ser minha gêmea, parece-se com Braden.
A menção da Rowena trouxe de volta inquietantes lembranças.
-Ele espera que Rowena se case com alguém que ela não ama -disse Cassidy.
-Ah. Ela lhe contou isso, não? Perguntava-me quanto demoraria seu gelo em romper-se. Tem uma verdadeira capacidade para encontrar gretas nas armaduras,
Cassidy Holt.
-Não me contou muito.
-Teria sido bastante embaraçoso para minha estirada e correta irmã. Tudo é extremamente medieval. Braden tem planos para nós... sobre tudo para você.

A ilusão e a excitação produziram-lhe calafrios.
-Conte-me -disse ela, atirando das rédeas de sua égua para que parasse.
- Sei que devo aprender a transformar-me. Mas o que ele deseja que eu faça? Como posso ajudá-lo?
Quentin não podia olhá-la nos olhos.
-Antes de mais nada, deve se converter em uma de nós -disse-, em todos os sentidos -Nesse momento era quase como Braden, até que sorriu e lhe dedicou uma
reverência.- Não é que não seja imensamente bonita tal como é, minha querida prima. Não acredito que possa melhorar. Estou certo de que você e eu podemos encontrar
a forma de que estas lições sejam agradáveis para ambos -Bocejou tampando-se com a mão. - Embora eu gostaria mais de jogar outra mão de pôquer. O que diz você?
Almoço, um pouco de vinho, um jogo amistoso...
Impulsionou seu cavalo a um repentino galope, adiantando-se bastante da égua de Cassidy. Cleópatra seguiu-o com ânimo, e muito em breve corriam um junto
ao outro sobre a irregular superfície de uma colina pedregosa.
Quentin parou junto a um arroio, onde um pequeno bosque formava um refúgio sobre a borda e grupos de flores cresciam entre a erva. Gretadas rochas emergiam
do chão aqui e lá. Quentin atou seus arreios a uma árvore e fez o mesmo com a égua de Cassidy. Tirou a toalha e a comida, e estendeu-os entre duas das rochas.
-Restos de um acampamento romano - explicou-, de outra época. Alguns de nossos ancestrais já estavam aqui antes que os conquistadores chegassem, mas eles
se foram e nós permanecemos -Girou os olhos.- Que poético da minha parte. Que Deus proíba que alguma vez aspire a me converter em poeta. Supõe muito trabalho .-
Deixou-se cair sobre a grama baixa, deitando-se de costas.
- Acredito que não me acha muito descortês se permitir que arrume sozinha o almoço do cozinheiro.
Apesar de seu absurdo comportamento, Cassidy não podia evitar desfrutar de sua companhia. Fazia com que o mundo parecesse um pouco ridículo, e todos os
medos se faziam tão insustanciais como as tênues nuvens sobre suas cabeças. Ela se estirou para tomar uma fatia de frango frio.

-Bem. Agradam-me as mulheres que gostam de comer -Apoiou-se sobre seu cotovelo o suficiente para tirar uma cigarreira do interior de sua jaqueta.
- Gosta de um pouco de brandy, prima?
Cassidy capturou o aroma daquilo e enrugou o nariz.
-Não, obrigado.
-Então suponho que me verei obrigado a beber em solidão -Tomou um profundo gole, limpou a boca e voltou a recostar-se, cantarolando de forma pouco melodiosa.
-Rowena me contou algo mais -disse Cassidy. - Disse que Braden foi casado.
Quentin engasgou e se sentou erguido. Seu rosto estava ligeiramente avermelhado.
-Não é nenhum segredo.
-Vi o retrato da Milena -comentou Cassidy com melancolia. - Era tão perfeita. Rowena me contou o muito que todos a amavam.
-OH, sim. Tinha escravizado cada homem, mulher e menino de Greyburn enquanto viveu.
-Quanto tempo passou desde que ela...?
-Abandonou seu envoltório mortal, quer dizer? Três anos.
Somente três anos.
-Mas ninguém fala sobre ela -disse Cassidy. - Nem sequer Braden.
Quentin elevou a vista para as nuvens.
-É um tema complicado.
-Não tiveram nenhum filho?
O rosto do Quentin crispou-se, relaxando rapidamente de novo.
-Não... embora Braden desejasse-os fervorosamente pela Causa.
Só pela Causa?
-Como... como morreu? -perguntou Cassidy.
Ele tomou outro gole da cigarreira.
- Um acidente - Com um ágil movimento tampou a cigarreira e arrancou uma fibra de erva. - caiu.

Essas frases curtas e diretas não eram típicas de Quentin.
-Sinto -disse ela, comendo uma parte do pão que tinha sabor de pó. - Braden deve ter sofrido muitíssimo.
-Sim - Quentin meteu a fibra de erva na boca.
Por alguma razão Quentin não queria falar de Milena. Tinha provocado sua morte uma perda tão terrível que todo mundo em Greyburn seguia sofrendo por ela...
Braden mais que todos? Outro sacrifício cruel que acrescentar à desgraça de sua falta de visão...
Desanimada, abandonou sua comida e dirigiu-se à Cleópatra, desenrolando a corda que tinha pendurado de sua cadeira. Formou um laço, girando-o no ar. O familiar
movimento acalmou-a.
- Você gira o laço muito bem -comentou Quentin.- Presumo que aprendeu essa habilidade no Novo México. Onde conseguiu a corda?
- Consegui no porto, quando cheguei à Inglaterra -respondeu ela.
- Suponho que aqui parece estranho.
-Eu acho fascinante.
Ela agachou a cabeça.
-Braden ficou cego antes ou depois de Milena morrer?
Quentin partiu o caule de erva em dois e o cuspiu a um lado.
-Que conversa tão macabra , querida minha -Rodou sobre um flanco.
- Não tem motivo para sequer pensar em Milena. Você, pequena prima, eclipsa-a como o sol a uma vela.
Ele tinha uma estranha luz em seus picantes olhos. Cassidy deixou a corda a um lado e começou a guardar os restos do almoço.
-Não esbanjemos nosso fôlego discutindo sobre Milena, ou sobre Braden -disse Quentin, ficando de joelhos. - Não quando podemos falar sobre você.
Era inútil tentar manter Quentin em um tema que ele desejava evitar.
-Viemos aqui para que eu pudesse aprender como trocar. Talvez poderíamos começar...
-Relaxe. Temos muito tempo -Ele se aproximou mais-. Ninguém te disse alguma vez que seus lábios são como pétalas de rosa? Ou é muito óbvio?
-Ninguém me disse nunca nada semelhante.

-O que? Nada de pretendentes? Nada de amantes na América?
Amantes... como Lancelot e Genebra, ou Tristan e Isolda. Havia vezes em que se imaginava a si mesma entre eles.
-Merece ter admiradores -murmurou ele. -Cem arrumados galãs aos seus pés. Acredito que não conhece sua própria formosura -estirou-se, abraçando seu queixo
com a mão. - Tão inconsciente de seu próprio atrativo.
Cassidy tremeu, menos por seu contato que pelo estranho tom de sua voz. Quis levantar-se, mas Quentin manteve-a apanhada com sua mão, seu olhar e suas palavras.
-Totalmente feminina -disse ele, acariciando sua bochecha.- Uma mulher feita e direita abaixo esse exterior sem polir e essa encantadora inexperiência.
Braden está verdadeiramente cego.
Ela estava muda, fascinada pelas novas, quase aterradoras, coisas que ele estava dizendo.
-Braden...
-Não posso acreditar que nunca a tenham beijado -disse ele, luzindo um sorriso muito distinto a qualquer que ela tivesse visto em seu rosto.
- Bem, bem. Braden me ordenou que te ensinasse. Uma lição é tão boa como outra. Sabia que haveria algumas compensações.
Antes que ela pudesse compreender, ele se inclinou para frente, puxou-a para ele e cobriu seus lábios com os seus.
Nos segundos seguintes mil sensações e pensamentos atravessaram sua mente e seu corpo. O calor da boca de Quentin, a suavidade do contato, a palpitação
de seu coração e o sangue em suas veias. Mas, mais à frente jazia a ausência de algo essencial que deveria formar parte do que ele estava fazendo. Uma calidez, uma
unidade como a que sentiu com Braden no bosque, ou quando lhe falava da mudança e tocava sua mão...
Braden. Fechou os olhos e imaginou Braden com ela agora, o aroma de Braden, os lábios de Braden.
-Braden -sussurrou.
Um ameaçador grunhido respondeu-a. Quentin tornou-se para trás sem pressa e voltou à vista para a origem do som. Cassidy tocou a boca e fez o mesmo.
O lobo estava a poucos passos, com a cabeça encurvada, orelhas e rabo elevados, com a pelagem cinza, negra e branca arrepiada sobre seu lombo. Seu olhar
estava concentrado em Quentin, quem se sentou sobre seus joelhos e elevou as mãos no ar com um sorriso envergonhado.
-Tranqüilo, irmão. Não estou abusando... você disse que devia lhe ensinar...
O lobo grunhiu, e sabiamente Quentin fechou a boca. Depois o lobo se escondeu, com os dentes ainda à vista, e começou a sumir.
Quando a escura névoa evaporou, Braden estava agachado no lugar do lobo. Estava carrancudo, ameaçador... e inegavelmente nu.
Braden permaneceu quieto, Cassidy ofegou e Quentin deixou-se cair sobre a erva.
-Que comecem as lições -disse Quentin.
Braden havia dito a si mesmo que havia uma excelente justificativa para seguir Quentin e Cassidy durante sua cavalgada matutina. Apesar de sua conversa
sobre a responsabilidade do irmão, Braden conhecia-o muito bem. Um leopardo não trocava suas manchas, nem um lobo a cor de sua pele.
Agora estava brutalmente claro como respeitava a tarefa que lhe tinha atribuído. Suas palavras a Cassidy avisavam de suas intenções, e logo tinha escutado
o inequívoco som de lábios encontrando-se, unindo-se...
Braden lutou contra a fúria que alagava o peito. Não era razoável. Se Quentin achava Cassidy o suficientemente bela... se Cassidy o desejava...
Não completou o pensamento. Era muito consciente da rouca respiração de Cassidy, a forte intensidade de seu aroma, a exuberante fragrância de sua feminilidade.
Da excitação.
Voltou-se para Quentin, com as mãos apertadas.
-É assim como planeja ensiná-la?
Quentin recostou-se na erva, assumindo uma postura de submissão.
-Mas irmão -disse em uma paródia de humildade-, depois de nossas poucas conversas, tinha a clara impressão de que desejava que eu...
- Suma. -Braden avançou para seu irmão, e Quentin levantou-se engatinhando do chão.
- Está claro que não posso confiar em você para levar a cabo a tarefa que te encarreguei. Se não fosse por seu sangue... -Mostrou os dentes. -Suma.

Quentin obedeceu com satisfatória rapidez. O couro da cadeira rangeu, o cavalo soprou, e logo só ficou o som dos cascos afastando-se.
Um pássaro emitiu um vacilante gorjeio entre os ramos. Cassidy não se moveu. Braden voltou-se agudamente consciente da cálida brisa sobre sua pele nua e
da tensão quase evidente. Tinha aprendido a sentir quão olhadas outros lhe dirigiam.
Cassidy estava olhando-o fixamente. Encontrava-se nu devido à mudança, mas Cassidy não se voltava com a timidez própria de uma moça inglesa bem criada.
Entre os de sua espécie, normalmente ele não se preocupava com a modéstia, mas nesse momento, seu corpo não estava em um estado cooperativo. Estava empenhado em
traí-lo também.
Na noite passada na biblioteca, ao menos estava meio vestido, com certa margem de segurança. Agora não tinha nenhuma. Recordava o beijo de Quentin e a resposta
de Cassidy, revivendo sua própria reação irracional, e imaginando-se no lugar de Quentin. Seu próprio corpo se mofava dele e escapava de seu controle como se fosse
um simples humano.
-OH, meu... -disse Cassidy.
Braden agachou-se na erva.
-Monta seu cavalo. Acompanharei você de volta a Greyburn.
-Mas vim aqui para aprender a trocar. E você ordenou a Quentin que fosse.
-Ele é... ele não tem disciplina alguma. Esperava que pudesse melhorar, mas...
-Então deve me ensinar você -A voz dela diminuiu até um sussurro. - Você, Braden.
A singela afirmação aprisionou-o como as faces de uma armadilha. Se aceitasse, seria seu mentor, seu guia, ajudando-a a alcançar um lugar em seu interior
que nunca tinha encontrado. Estaria próximo ao seu corpo e espírito, com todas as barreiras abatidas. E no meio dessa intimidade não desejada, teria que ser tão
insensível como uma pedra a sua cercania, a seu aroma, a sua fresca simplicidade e a sua selvagem honestidade.
Se aceitasse este desafio, tudo o que viria mais tarde seria um jogo de crianças. E saberia que ainda era digno de uma pequena parte das cargas de seu avô.

-Muito bem -disse. -Fique aqui até que eu volte - Transformou-se antes que ela pudesse replicar e correu em busca de um pouco de roupa escondida, oculta
no tronco oco de uma árvore. Transformou-se de novo, colocando-a camisa, as calças e as botas, semelhantes a outros deixados em muitos lugares escondidos ao longo
da zona.
Ela ainda esperava quando ele retornou a pé. A égua soprou e chutou a erva.
-Suba -disse ele.
-Você não tem cavalo -indicou ela. - Podemos compartilhar...
-Eu correrei -lhe respondeu. - Vamos.
Ele tomou a dianteira, adotando o passo regular a grandes pernadas que podia manter durante milhas incluso em sua forma humana. Ela manteve seu cavalo a
um passo tranqüilo, sempre ao seu lado ou justo detrás.
Antes, quando tinham deslocado juntos, tinham sido um lobo e uma mulher. Agora ambos eram humanos, mas ele era igualmente consciente de sua proximidade.
Concentrou seus pensamentos no caminho, nos pequenos obstáculos que podia antecipar e naqueles novos com os que poderia tropeçar, o invisível colchão de espaço a
seu redor atuava como escudo e como aviso.
Quando o arreio dela entrava nesse espaço, ele quase podia escutar os pensamentos de Cassidy. Sua excitação, sua esperança, seu desejo afligiam-no, então
a égua ficava atrás e ele se sentia liberado para reunir sua agitada concentração.
Ele não a guiou a Greyburn, mas ao bosque adjacente. Este deu-lhe a boa-vinda com uma promessa de paz, mas não podia relaxar sua guarda. Deteve-se junto
a um arroio, e Cassidy desmontou. Ele aplaudiu o flanco da égua enviando-a de retorno aos estábulos.
Cassidy sentou-se na borda. Ele escutou suas botas golpeando o chão quando tirou-as uma atrás de outra; e o chapinho da água quando tocou-a com as pontas
de seus pés.
- Amo isto-disse ela. - Soube que faria na primeira vez que vi isto.
Ele resistiu ao desejo de ajoelhar-se junto a ela e provar a cristalina doçura da água.
-Então já possui uma grande vantagem - disse. - Essa é a primeira coisa que deve compreender. Forma parte de tudo isto, das árvores, da terra, da água.

- A mudança é simplesmente uma extensão dessa compreensão. A mudança é intrínseca a nossa gente como é a queda das folhas em outono e o florescimento na primavera
para o fresno. Não há nada que eu possa te ensinar que não esteja já em seu interior.
-Sabia isso -disse ela-, inclusive no rancho. Mas nunca pude achá-lo.
-Deve fazê-lo -Ele escutou o som do arroio, procurando sua própria calma na tranqüila melodia. - Deve eliminar cada barreira que te mantém separada da essência
da vida.
Ela se ergueu.
-Como? Por favor, ... diga-me como.
-Primeiro... -deliberadamente ele girou e deu-lhe as costas.- Tire a roupa. Toda.
A vacilação dela foi breve. Sabia que ele não podia vê-la, e tinha sido suficientemente atrevida quando ele estava nu depois da mudança. Não tinha nada
que temer.
Mas ele não pôde isolar seus sentidos. Escutou o rangido de sua saia, o deslizamento dos botões saindo de suas casas, o sussurro da malha escorregando por
seus ombros, braços, quadris e pernas. Levava pouca roupa para tirar. Seu aroma abalou-o quando tirou a última de seus objetos e deixou-a cair ao chão.
-Estou pronta -disse. Sua voz era muito baixa, como se esperasse que ele a achasse deficiente.
Acaso pensava que ele a inspecionaria em busca de defeitos como um granjeiro quando compra uma ovelha, inclusive embora pudesse ver?
Sua traiçoeira imaginação rompeu as cadeias da disciplina uma vez mais. O olho de sua mente proporcionou-lhe o que sua vista não podia: uma imagem de finos
e elegantes membros; pernas largas de mulher, suaves embora musculosas de correr; ventre e cintura firmes; seios cheios e erguidos coroados por uns mamilos rosados;
ombros fortes e braços torneados; esbelto pescoço sob um rosto aberto e sincero.
Um rosto precioso. Um corpo cheio de graça apesar de sua estupidez. Telford tinha declarado que estava equivocado em sua primeira opinião sobre a aparência
de Cassidy. Quentin achava-a bonita. Mas a mera idéia de Quentin vendo-a agora, ou Telford, ou qualquer outro homem, humano ou loup-garou provocou um involuntário
grunhido na garganta de Braden.
-Braden?

Acalmou-se e se voltou para ela.
-Bem -disse.- Feche os olhos. Imagine seus pés ancorando-se no chão como as raízes de uma árvore. Sinta seu sangue pulsando em harmonia com os ritmos da
terra. Escute a canção da vida e deixe que te guie.
Ela conteve o fôlego.
-A canção... Não posso escutá-la exatamente...
-Na noite passada você disse que podia sentí-la. Procure-a outra vez. Olhe mais profundamente que nunca antes.
-Na noite passada ... você agarrou a minha mão.
Não havia nada provocador em sua petição, mas ele duvidou ao lhe conceder esta pequena coisa que pedia dele. Estendeu sua mão e ela tomou.
Seu corpo ficou muito quieto. Sua pele transmitia a intensidade de seu esforço através da carne dele como uma sacudida elétrica. Os dedos fortes e esbeltos
se esticaram com desespero.
-Posso sentí-la... em você -murmurou.
A última coisa que ele desejava é que ela pudesse alcançar a parte de si mesmo que definia sua razão de ser, sua alma, sua própria existência. Ninguém, exceto
Milena, tinha invadido jamais esse santuário privado, e ela tinha fechado suas portas para sempre.
Mas Cassidy não podia evitar sentir o crescente calor de sua pele, o batimento do coração de seu pulso, a primitiva paixão que jazia muito próxima à essência
da mudança.
-Não encontrará o que procura em mim -disse.
-Mas posso... quase... tão perto...
-Sinta a terra sob seus pés, a vida a seu redor -insistiu. - Escute a água e o vento. Não há separação entre você e cada coisa vivente. A divisão é imaginária.
-Inclusive entre você e eu?
Essa era a contradição que ele não podia... que não explicaria, como as restrições em seu próprio interior desmentiam tudo o que lhe dizia: deixar-se ir,
liberar o lobo, render-se à paixão. Paixão enfrentada com o dever e o controle, embora tudo era essencial para a Causa, a paixão para aparelhar-se e o controle para
fazê-lo de maneira lógica e com plena consciência das conseqüências.

Essencial para cada participante da Causa menos ele. Era a exceção. O dever em solidão era sua existência.
-Esqueça-se de mim -lhe disse bruscamente.- Não pode sentir a natureza dentro de você? A água do arroio flui por suas veias; os fogos das profundidades
da terra se elevam para te consumir...
-Sim... OH, sim.
-Pode submetê-los a sua vontade. Pode atrair o poder a seu corpo e desejar se transformar...
-Sim. Desejo-o. Desejo-o tanto.
O sangue de Braden espessou-se em suas veias e pulsou em suas têmporas. Vaiou entre dentes.
-Faça que venha, Cassidy.
-Já vem. OH... por favor. Não me solte. Quando me toca... eu... -Cambaleou, começando a cair. Ele a sujeitou, as mãos aferrando sua cintura. Ela se inclinou
para ele, ofegando. Seus mamilos eretos roçaram o peito dele, e o aroma de sua feminilidade rodeou-o como uma cadeia etérea.
Ela se encontrava na beira, balançando-se no fio. E ele também.
Elevou-a entre seus braços e encontrou seus lábios.


CAPITULO 10

O beijo de Braden não tinha nada a ver com o de Quentin. Não se parecia com nada que Cassidy imaginava que devia ser um beijo, um simples contato das bocas.
Este a deixava sem fôlego, assombrada e entusiasmada. Rugia por seu sangue da forma que ele dizia que faria a transformação, enviava calor a partes de seu corpo
que só começava a descobrir.
Tinha tido medo enquanto se despia, embora sabia que ele não podia vê-la, medo de que nunca pudesse igualar sua perfeição ou a da Milena. Sua primeira visão
da nudez dele inspirou-lhe assombro e multidão de outras sensações que não sabia nomear. Ele era um poema feito carne. Seu próprio corpo parecia normal comparado
com o seu, uma coisa pobre e frágil, viva pela metade.
Agora sua potência se derramava nela como um grito de triunfo, e era formosa. Tão formosa como Milena.
Braden a beijava, e ela ardia; convertia-se em fogo, reduzia-se a cinzas e renascia de novo. Ele a iniciava em um mistério que ela não podia esperar para
possuí-lo.
Suas mãos procuraram e encontraram os largos e musculosos planos de suas costas, atirando dele para lhe ter mais perto enquanto se pendurava em busca de
sustento. Os lábios dele pressionaram para abrir os seus, e ela obedeceu de boa vontade. Quando sua língua deslizou no interior da sua boca, esta aceitou a invasão
e desejou tê-lo dentro de cada parte de seu corpo.
Isto era magia. Isto era o que ele tinha tentado explicar. Esta era a canção da vida, a que ela tinha esperado tanto tempo poder escutar, a única canção
que importava.
Até agora tinha estado dormindo. Tinha caminhado em uma espécie de sonho, sem compreender o que estava procurando. A transformação de humano a lobo era
somente uma pequena parte do quebra-cabeça. Braden a beijava, e ela soube que tinha trocado além de suas fantasias mais selvagens.

Ainda não era suficiente. Faltava algo. O corpo doía e Braden era o único que podia fazer que a dor parasse. Suas fortes mãos deslizaram pelas costas dela
como água fresca na terra ressecada. Suas palmas pousaram sobre os quadris, amoldando-a ao seu corpo como se ele, também, desejasse mais do que podia explicar com
palavras.
Insistiu-lhe em encontrar as respostas para ambos. Ele saberia o que fazer. Tinha mais experiência nos costumes do mundo. Um lorde. Um líder. Um Tigre.
Ela tomou sua mão e a guiou para seu seio, soltando um grito quando seu dedo tocou o tenso mamilo. A umidade se acumulou entre suas pernas. No insondável centro
de seu ser, uma nova Cassidy lutava por emergir, esperando a chave que abriria sua jaula.
Braden era a chave. Ele lhe disse que eliminasse todas as barreiras entre ela e o mundo, mas as capas da roupa dele ainda separavam-nos. Quando agarrou-lhe
a mão, ela teve uma visão da alma de Braden. Quando a beijou, sentiu-se à beira de renascer. Quando seus corpos se tocassem, pele com pele, sem nada que os separe...
Seus dedos lutaram com o botão superior da camisa dele.
-Braden -murmurou contra seus lábios. - Ensine-me. Por favor...
Sua resposta sobressaltou-a muito mais por seu silêncio. Tirou-a dos braços, sua boca tão rígida que parecia impossível que esses lábios a tivessem acariciado
com tanta ternura.
-Vista-se -disse. Sua voz estava agitada, e quando se afastou, tropeçou com uma raiz semelhando-se a um homem que estivesse muito tempo no deserto sem água.
As pernas de Cassidy escolheram esse momento para dobrar-se. Caiu formando uma massa sem forças na terra úmida. Seu corpo era um amontoado de trementes
sensações, cada uma delas além de seu controle. Era como se tivesse estado preparada para inundar-se em um interminável e místico oceano de iluminação, e alguém
tivesse atirado dela no último minuto. Ainda ansiava o oceano, mas já não havia retorno a esse perfeito instante de compreensão.
E Braden se foi. Seu comportamento a confundia mais que nada. Ele tinha desejado beijá-la. Ele a desejava.

Saboreou a palavra, essa idéia em sua mente. Ele tinha se enfurecido quando Quentin a beijou. E quando Quentin a beijava, ela tinha imaginado Braden em seu
lugar.
As partes mais íntimas de seu corpo palpitavam com um crescente desejo quase intolerável. Havia-o sentido antes, com Braden, mas nunca com tanta força.
Era o tipo de mudança de si mesmo que estava vinculado à transformação que Braden queria que descobrisse. Ambos se pertenciam. Ela não encontrava as palavras que
explicassem o que parecia tão simples; acreditava que nunca encontraria a forma correta de dizê-lo.
Tinha estado tão perto de demonstrar-lhe, mas ele não lhe deu a oportunidade. Se tivesse dado, como teria terminado? Sua mente não sabia, mas seu corpo
sim. Seu corpo teria feito o correto.
Sentiu um calafrio penetrando em sua felicidade. Fazia somente três anos, a esposa de Braden tinha morrido. Quando sustentou Cassidy entre seus braços,
estaria pensando em Milena? Era sua lembrança tão indelével, o ideal que tinha deixado tão alto que Cassidy jamais poderia esperar igualar?
Se só pudesse transformar-se. Faria que Braden estivesse orgulhoso dela, e não pensaria em Milena. Se ainda sofria por ela, Cassidy encontraria a maneira
de ajudá-lo.
Estranhamente cansada, tornou-se junto ao arroio do bosque e permitiu que o pulso dos batimentos do coração da terra a acalmasse até dormir. Despertou ante
o estalo de um ramo e se sentou, inclusive antes de despertar de tudo.
Soube imediatamente que o intruso não era Braden, ou Quentin ou ninguém que tivesse conhecido em Greyburn. Ele saiu de entre as sombras e ao fim o reconheceu,
era o homem que tinha sido iniciado durante a cerimônia da passada noite. Então tinha estado aterrorizado, com os olhos fora de si, tremendo; ela tinha sentido pena
por ele, e pela donzela que compartilhava sua terrível experiência.
Já não parecia assustado. Pôde ver que era só um pouco maior que ela, sua nova roupa de criado já manchada, seu passo inseguro enquanto se dirigia para
ela.
-O que é isto? -disse. - Uma fada?

Cassidy estava consciente de várias coisas de uma vez: que seu vestido ainda formava um montão a uns poucos passos de distância, que a expressão do novo servente
era algo menos amistosa, e de que fedia como a bebida que Quentin lhe tinha devotado durante seu breve piquenique. Uma garrafa meio vazia pendurava de seu punho.
Estava bêbado, e ela estava nua. Engatinhou em busca de suas roupas justo quando o servente cambaleou para diante de novo.
-Preciosa -murmurou. - Justo do que necessito.
Cassidy sabia que não corria perigo algum. Poderia deixá-lo pra trás com facilidade pondo-se a correr. Mas havia uma hostilidade em seus olhos que desmentia
seu modo de falar, e ela se sentiu suja quando a olhou. Braden a fez sentir formosa; o olhar do servente a considerava como um objeto, não uma pessoa. Um objeto
para o que ele tinha algum propósito malvado.
-Você é o novo servente -disse ela, estirando-se para agarrar seu vestido.
- Não sei por que está no bosque, mas acredito que deveria voltar para Greyburn, antes...
-Venha, carinho -espetou o servente. -Vamos nos divertir um pouco.
Cassidy colocou o vestido, tampando a parte frontal de seu corpo.
-Penso que o conde não gostaria disso. - disse sem rodeios. - Não direi, sobre isso, se partir.
-Ir? -ele riu.- Sim... eles querem que volte... para lhes servir... -Gesticulou freneticamente com a garrafa, e seus olhos se estreitaram ao olhá-la.
- Mas você está aqui me esperando. Preciosa, preparada, quente, com suas bonitas tetas...
Cassidy deu um passo atrás apertando o vestido. Seu pé chapinhou no arroio, perdeu o equilibro e o servente se equilibrou sobre ela.
O instinto substituiu todo pensamento. Cassidy golpeou-o com ambas as mãos, empurrando-o com violência. Ele caiu de lado derrubando-se ao chão, sua cabeça
golpeando uma pedra. A garrafa saiu voando.
Quando o servente tentou incorporar-se, o sangue fluía livremente de um corte sobre uma das sobrancelhas. Ele mediu-a de frente e sua boca emitiu um disforme
grunhido de raiva.

-Você, puta -disse. - É como os outros, a rameira do diabo, uma rastreadora de Satã. Você e os de sua espécie amaldiçoaram esta terra. Mas eu... eu conheço
a verdade. Todos os outros sucumbiram ao mal -O sangue derrubava por seu rosto como uma máscara sangrenta-. Eu deterei todos -Agarrou a cabeça entre as mãos como
se sofresse um grande tortura.
-Está machucado -disse Cassidy, sentindo uma súbita pena. Sua estranha conduta não se devia à bebedeira ou ao corte de sua cabeça. Ela recordou seu terror
durante a cerimônia; era como se algo tivesse ido mal ali. -Deixe que procure ajuda -disse ela.
-Fique aí -vaiou ele, embora ela não tivesse se movido para ele. Ficou de pé e procurou a garrafa.
- Afaste-se, ou a matarei.
Cassidy levantou ambas as mãos, com as Palmas para fora e jogou para trás.
-Vou -disse.
Queria vestir-se, mas se o fizesse aqui estaria indefesa. O servente a olhava ferozmente enquanto ela continuava sua retirada. Somente depois de interpor
o arroio e um grupo de árvores entre eles, atreveu-se a fazer uma parada e passar o vestido pela cabeça.
Braden havia dito que os serventes de Greyburn eram leais, e ela tinha sido testemunha da iniciação que assegurava sorte lealdade. Sabia que existiam detalhes
sobre a cerimônia que ainda não compreendia, coisas que não lhe agradavam, mas estava claro que este criado não tinha aprendido o que fosse que se supunha devia
aprender.
Ou era porque ela não se transformou em lobo, e portanto, ele não a reconhecia como um Forster? De todas formas, ele era tão perigoso para si mesmo como
para outros. Ela tinha visto bêbados ficarem violentos antes. Teria que dizer a alguém...
Uma aguda dor golpeou-a na parte traseira da cabeça. Vislumbrou o retorcido rosto do criado uma última vez, e depois deslizou em um nada.

Isabelle utilizou cada polegada de sua coragem para desafiar o conde de Greyburn e permanecer ao lado de Cassidy, quando ele trouxe a moça ferida de volta
à casa essa tarde. Tinha-a encontrado no bosque, meio vestida e ensangüentada, e todos os habitantes da casa contiveram o fôlego enquanto subia com ela nos braços
pela escada.
O conde era um formidável inimigo em qualquer ocasião, mas estava realmente feroz com Cassidy, tão flácida e quieta entre seus braços. Olhou para todos
como se pudesse rasgar qualquer um que se aproximasse com seus dentes e dedos, incluindo Quentin -sem palavras por uma vez- e uma pálida lady Rowena.
Isabelle tinha tido muita, muita precaução.
-Cassidy necessita dos cuidados de uma mulher -disse. - Vi feridas como esta na América. Permita que a examine -A princípio, ele tinha estado disposto a
enviar em busca de um médico, até que lhe assegurou que o inchaço não parecia sério. Se Cassidy despertava logo não haveria motivos para preocupar-se.
- E sei que sua gente sara muita rapidamente. -acrescentou. - Posso fazer o que se deve fazer.
Ela tinha suposto corretamente que ele preferiria evitar trazer um médico humano a Greyburn, e se viu obrigado a acessar. Mas nunca deixou Cassidy, nem
quando a pousou sobre sua cama e ordenou a um grupo de serventes que trouxessem água quente, panos e mantas, nem um só instante enquanto Isabelle a atendia cuidadosamente.
Estava ali quando Cassidy começou a mover-se com um suave gemido, agitando o cabelo úmido.
-Isabelle? -perguntou sonolenta.
Isabelle soltou um suspiro.
-Está bem, Cassidy. Golpearam-lhe na cabeça, mas não é uma ferida séria. Agora que está acordada...
O olhar entreaberto de Cassidy topou com o conde.
-Braden?
Este se ajoelhou junto à cama, e Isabelle observou enquanto tocava a frente de Cassidy com surpreendente ternura, com cuidado para evitar a vendagem.
-Encontrei-a no bosque -lhe disse.
- Trouxe você de volta. Quem te fez isto?

Cassidy tirou sua mão de debaixo da manta e procurou a mão dele. Ele tomou, embora Isabelle captou seu quase imperceptível sobressalto.
-Há algo... mal nele -disse Cassidy.
Isabelle colocou um copo de água junto aos seus lábios. Cassidy bebeu sedenta e sorriu pra ela.
-Quem? -exigiu saber Braden, sua voz troando. - Quem te machucou?
Ela tentou sacudir a cabeça e fez uma careta de dor.
-O novo criado. o... da cerimônia. Estava louco. Ele não sabia...
Mas Braden já não a escutava.
-John Dodd -disse. - O que fez?
Cassidy se retorceu na cama.
-Disse... coisas estranhas. Algo sobre demônios. Eu... - ruborizou. - Eu o machuquei antes, quando se aproximou muito.
-Tocou em você?
-Não lhe dei oportunidade. Acredito... que me atirou uma pedra quando não estava olhando.
Braden deixou cair a mão de Cassidy e se ergueu. Cada músculo de seu pescoço e mandíbula se sobressaíam.
-Quentin.
Seu irmão, que aguardava ao fundo, colocou-se junto a ele.
-Não parece possível...
-Recorda ao Telford -disse Braden. - Sempre há uns poucos que podem resistir, ou aqueles cujas mentes são muito fracas -Mostrou os dentes. - Se atreveu
a atacar Cassidy...
-Possivelmente não a reconheceu como uma de nós?
-Isso não importa. Sabe o que terá que fazer.
Cassidy tentou sentar, fazendo caso omisso às recomendações de Isabelle de que estivesse quieta.
- Eu disse ... estava louco. Bebia de uma garrafa. Não acredito que sequer soubesse...
-É perigoso, Cassidy. Não só para você, mas também para todos nós -Ele disse cada palavra com estudada calma, o que não podia ocultar uma ferocidade letal.

- Descansará aqui, com a senhora Smith. O humano não voltará a te danificar nunca mais.
-O que vai fazer? -perguntou Cassidy, olhando ansiosamente de Quentin a Braden.
Lorde Greyburn se abateu sobre Cassidy, e Isabelle sentiu cada átomo de seu poder, como a esteira de um casco de navio de vapor que balançasse um barco
de remos.
-Durma -respondeu. - Durma até que retornemos.
Cassidy se esticou resistindo e logo relaxou lentamente. Suas pálpebras fecharam e sua respiração se acalmou adotando o ritmo do sonho.
-Peço-lhe desculpas, milord -Aynsley entrou no dormitório e inclinou sua cabeça.
- Acabam de me informar que Dodd não se encontra em nenhuma parte, e de que pegou um cavalo do estábulo.
-Assim já fugiu -disse Braden. Girou-se para o mordomo. - Existia algo que não me explicou sobre este John Dodd quando lhe propôs entrar no serviço em Greyburn?
-Não, milord -Aynsley estava visivelmente agitado.
- É o filho maior de uma família local, com experiência em casas menores. Suas recomendações eram impecáveis, e não mostrava sinais de... Não compreendo...
Braden silenciou Aynsley com um gesto da mão.
-Não pode chegar longe -Retornou ao flanco da cama.
-Senhora Smith, se deseja ser útil, consiga que Cassidy obtenha seu descanso e permaneça tranqüila na cama.
-É óbvio -Isabelle encontrou seu olhar e uma vez mais achou difícil recordar que estava cego. Como podiam os olhos de um homem cego ter tanta potência?
Mas não era simplesmente um homem. Ele acariciou o rosto de Cassidy, roçando sua sobrancelha com o dedo, afastando o cabelo úmido de sua frente. Ela murmurou
e ele retirou a mão.

-Cuide dela -disse à Isabelle e abandonou o quarto com Quentin e o mordomo atrás de seus talões.
Cassidy abriu os olhos.
- Ele se foi? -sussurrou.
-Não estava dormindo -disse Isabelle.
-Não podia -Cassidy se incorporou sobre seus cotovelos.- Senti-me estranha quando Braden me ordenou dormir, mas agora estou bem.
Se lorde Greyburn tinha tentado obter a obediência de Cassidy da mesma forma que com os serventes da cerimônia, tinha falhado. Essa pequena vitória produziu
em Isabelle uma grande satisfação.
Mas ele tinha razão em um aspecto.
-Deveria descansar - disse.
Cassidy sacudiu a cabeça, tentou sentar-se, e caiu para trás outra vez.
-Isabelle... devo ir com Braden.
-Está fora de toda questão. Não está em condições de ir a nenhuma parte. Vi homens feridos nas minas...
-Temo o que Braden faça -Cassidy tocou sua vendagem. - Estava... muito zangado.
-Se esse homem te atacou...
-Mas havia algo mal com ele, Isabelle. Pude senti-lo. E não me machucou muito. Durante a cerimônia... ele estava aterrorizado. Às vezes o medo enlouquece
as pessoas.
Era típico da desinteressada generosidade de Cassidy preocupar-se com o castigo do servente, mas Isabelle não gostava da idéia de Cassidy interpondo-se
entre lorde Greyburn e John Dodd. Devia distrair qualquer intenção que tivesse de ir atrás dele.
-Como é que ficou sozinha no bosque? -perguntou com rapidez.
O rosto de Cassidy perdeu seu aspecto ansioso, suavizando-se com expressão quase sonhadora.
-Não estava sozinha -disse. - A princípio, não. Braden levou-me lá para me ensinar como trocar.
Isabelle inclinou-se para diante.

-O que ocorreu à noite passada, depois da cerimônia?
-Já sabe... não pude me converter em lobo -Cassidy deixou cair a cabeça, espremendo a beira da manta entre os dedos. - Depois fui até Braden, para explicar-me.
Ele estava aborrecido. Disse-me que isso saía com naturalidade, que nossa espécie não necessita de ninguém para ensinar como se faz a troca. Eu não sabia quanto
importava... que pudesse fazê-lo.
O crítico comentário de Matthias voltou para Isabelle: "Estarão furiosos esta noite".
-Cassidy, se tiver sido cruel contigo...
-OH, não. Mas Isabelle... é tão importante para ele. Convenci-o de que poderia aprender. Disse a Quentin que me ensinasse, mas... - mordeu o lábio. - Nunca
começamos as lições. Quentin me beijou.
Isabelle se ergueu.
-Beijou você?
-Saímos para cavalgar depois do almoço, e quando fizemos um descanso, Quentin me beijou. Braden devia estar nos seguindo. Veio como lobo, transformou-se
e ordenou a Quentin que fosse para casa.
OH, Deus, pensou Isabelle. -E... o que sentiu, Cassidy?
-Senti muito por Quentin.
-Não. Sobre o beijo de Quentin.
Ela ruborizou e encolheu os ombros. -Ninguém me beijou antes. Mas... -Seu olhar ficou desfocado, sensual de uma forma que Isabelle não podia interpretar
mal. - Braden me levou ao bosque para me ensinar ele mesmo. E depois também me beijou.
Uma desconcertante imagem cristalizou-se na mente de Isabelle.
-Como ocorreu? -perguntou com cuidado.
-Primeiro me disse que me despisse...
-Ele o quê?
-Para formar parte da terra, das árvores e do vento, de forma que estivesse preparada. Os loups-garous devem despir-se para a mudança. Mas eu lhe pedi que
me sustentasse a mão, porque quando ele me toca, eu me sinto mais próxima ao que ele deseja que eu seja. E quando estava começando a ver, quando já quase estava
ali... ele me beijou.

-E você gostou.
-OH, sim -sorriu sonhadora. -Lembra um poema: "Uma vez ele levou minha alma inteira com um comprido beijo..."
Tennyson, pensou Isabelle. Quem teria adivinhado que um montão de livros usados, cuidados com esmero por uma jovem ingênua e romântica, poderiam ser tão
perigosos? Levantou-se e começou a passear pelo quarto.
-O conde também estava nu?
-Não. Mas... desejei que Braden me tocasse ainda mais. Desejava-o mais perto de mim. Aí foi quando ele... -tragou com esforço. - Quando partiu.
Assim, o conde possuía algum escrúpulo depois de tudo. Isabelle perguntou-se o que o conde tinha destinado para Cassidy, mas isto não estava em seu caráter.
Tinha sido tão formal, tão rígido com ela, como se fosse mais uma carga necessária que uma prima longamente perdida, ou uma mulher. Apesar de seus defeitos, Braden
Forster tinha parecido honrado.
Alguns homens ocultavam suas mais perigosas paixões depois de uma fachada de austeridade e frieza. Qual era o jogo de Braden? Cassidy nem sabia quão sedutora
era com sua inocência, quão irresistível seria para certo tipo de homens.
E Cassidy era preciosa em corpo e espírito. Estava disponível e desprotegida, exceto ser uma solitária mulher humana. E não deveria ter necessidade de uma
acompanhante entre seus próprios parentes.
O que sabia Isabelle sobre o passado do conde de Greyburn ou sobre suas inclinações? Como poderia supor o comportamento de um macho de sua raça, se somente
tinha tido à franca Edith como exemplo?
Os homens normais já eram bastante grosseiros. Os aristocratas podiam ser piores que nenhum. Que tipo de impulso primitivo e incontrolável poderia provocar
um homem que é mais que meio besta? Seria possível que os dois irmãos estivessem competindo pela mesma moça? E onde encaixava a habilidade de Cassidy para transformar-se
em tudo isto?
Deviam encontrar as respostas, e logo. Matthias... talvez ele soubesse como. Voltou-se para Cassidy.
-É capaz de te transformar?
-Não. Mas estive tão perto...

Isabelle alcançou as mãos de Cassidy.
-Escute-me. Sei que o que ocorreu te pareceu maravilhoso. Seu corpo inteiro se sentiu mais vivo que nunca, e não queria que parasse. Mas o que aconteceu
no bosque não é tudo o que ocorre entre um homem e uma mulher, Cassidy.
-Quero entendê-lo -disse Cassidy.
- Conte-me Isabelle. Você sabe muito mais que eu.
-Sim -respondeu Isabelle com amargura.
-Deixe que te conte uma história. Quando eu era muito jovem, inclusive mais jovem do que você é agora, conheci um homem. Desejava estar com ele como você
deseja estar com Braden. Eu era pobre e ele era rico, mas isso não parecia importar. Verá, na Inglaterra, supõe-se que os jovens solteiros e as mulheres de boa família
não devem ficar a sós. É uma regra muito estrita. Mas não me preocupava. Acreditei que ele me amava.
-Amor -murmurou Cassidy-. "Nunca fui ferido antes da hora em que o amor chegou tão repentinamente e tão doce."
Se fosse tão singelo, pensou Isabelle.
-Quando se é tão jovem, tais sentimentos podem ser muito confusos. Podem nos fazer acreditar em coisas que não são certas. Uma parte de mim sabia que não
me permitiriam casar com esse homem, porque éramos de distintos mundos. Mas eu ignorei meu sentido comum. Quando ele me pediu que fosse com ele, sozinhos, aceitei.
Acariciamo-nos um ao outro, Cassidy, beijamo-nos, e... quando terminou, ele me deixou. Fez-me acreditar que cuidaria de mim, mas quando obteve o que queria, fez
que nunca me tinha conhecido.
-OH, Isabelle -Cassidy cobriu as mãos de Isabelle com as suas e as apertou com suavidade. - Mas como pôde fazer isso? Por que quereria te deixar? É tão
formosa, e tão boa.
Humilhada pela fé de Cassidy nela, Isabelle ficou com o olhar fixo nas mantas.
-Não importou. Ele ia se casar com outra. Mas devido a eu ter estado a sós com ele, nenhum outro homem decente me quis. Essa regra, Cassidy é uma das
que não pode ignorar, não aqui. Por isso deixei a Inglaterra.

-E eu acreditei que desejava voltar -disse Cassidy. - Sinto muito te haver perguntado...
-Não. Nunca o sinta -sorrindo-lha. - Agora estou aqui contigo, onde quero estar. E posso te falar sobre essas regras, de maneira que não cometa os mesmos
enganos que eu. Há tanta generosidade em sua alma, Cassidy. Por isso deve ser cuidadosa e utilizar sua mente tanto como seu coração.
Cassidy ficou calada por um comprido momento.
-Braden foi casado -disse. - Acredito que talvez ele tenha se retirado do bosque porque ainda... Ela morreu em um acidente.
Isabelle tinha escutado rumores sobre a defunta esposa de Braden. Mas não sabia nem como a tinha tratado, nem como tinha morrido.
-As pessoas casadas podem estar juntas -disse Cassidy. - Se eu posso ser o bastante boa...
Bom Deus. Agora mencionava o matrimônio. Isabelle espremeu os dedos de Cassidy.
-É perfeita tal como é. Mudar o que a você mesma é para agradar aos outros é um caminho que só conduz à pena. Não faça nada, a menos que saiba que é o
correto para você. Poderia não ter outra oportunidade para decidir.
-Mas posso escolher o que é correto para mim.
Isabelle desejou poder obrigar-se a mentir.
-Sim, Cassidy. A eleição deve ser tua.
Cassidy jogou as mantas para baixo.
-Então devo ir com Braden.
Devia reforçar a distração.
-Nunca esqueça que lorde Greyburn possui um grande poder. Ele te ordenou que permanecesse aqui. Se for atrás dele, sua desobediência poderia inspirá-lo
a atuar com maior dureza -Isabelle se preparou para ser cruel. - Não te engane, Cassidy. Não é bastante forte para desafiá-lo. Não é igual a ele.
A expressão decidida de Cassidy derrubou-se. Voltou a recostar-se sobre os travesseiros.
-Não -disse, fechando os olhos. Mas essa persistente tenacidade ainda permanecia impressa em sua boca, e Isabelle pôde imaginar as palavras que não havia
dito: "Ainda não."



CAPITULO 11

Durante três dias, Braden e Quentin permaneceram fora de Greyburn, e ninguém podia -ou não queria- dizer a Cassidy quando voltariam.
A casa estava imersa em um manto de silêncio desde o desaparecimento de John Dodd. Os criados não respondiam quando Cassidy tentava falar com eles e realizavam
suas tarefas com anônima eficiência. Rowena, como sempre, permaneceu todo o tempo em seu quarto, exceto por um pequeno lapso para perguntar pela saúde de Cassidy.
Ninguém em Greyburn parecia preocupar-se em saber como Cassidy passava seu tempo. Podia comer quando desejasse e vagabundear pelas terras à sua vontade,
e tinha muito no que ocupar seus pensamentos.
Existiam duas coisas que não podia esquecer, não importava o quão longe tivesse ido Braden. Sempre revivia aqueles momentos no bosque, a maneira como a
tinha abraçado, como a tinha beijado.
E recordava o que Isabelle havia dito na noite em que Braden partiu, "Você não é seu igual a ele."
Sabia que não era... porque não podia transformar-se. Rowena tinha reforçado a perfeição de Milena; ela não tinha carecido da verdadeira natureza do lobo.
E Braden tinha amado Milena.
Isabelle lhe disse que mudando a maneira de ser para agradar a alguém, era um equívoco. Mas se Cassidy pudesse converter-se em lobo, Braden teria que vê-la
de outra maneira. Escutaria-a e não a afastaria... deixaria que entrasse nesse lugar solitário que não desejava que ninguém alcançasse.
Deixaria que o ajudasse.
Essa esperança a guiava a cada manhã, muito cedo, ao bosque, onde se sentia mais perto de encontrar o que lhe faltava. Durante horas lutava por capturar
as sensações que tinha sentido com Braden, esse quero e não posso, sentindo-se de uma vez tão assustada e tão excitada. Corria percorrendo toda a longitude do arroio
e de volta, imaginando-se sobre quatro velozes patas com o vento cantando através de sua pelagem.

Cada tarde voltava para a casa sem êxito, sem estar mais perto de seu objetivo. E cada tarde, na colina adjacente ao bosque via Isabelle encontrar-se com
o homem da roupa estranha.
Ele era outro mistério que Cassidy ainda não havia resolvido. Tinha-o visto na casa uma só vez, depois da cerimônia, mas obviamente Isabelle conhecia-o
muito bem. Depois da história de Isabelle sobre seu infeliz passado, parecia estranho que fosse ver um homem sozinha. Mas Isabelle não falava sobre ele, e Cassidy
estava segura de que ela acreditava que seus encontros eram secretos.
Cassidy teria guardado o segredo. Mas na terceira tarde de ausência de Braden, enquanto retornava de outro intento fracassado por trocar, viu-os juntos
à beira do bosque.
Estavam rindo. Cassidy deu-se conta do pouco que tinha visto Isabelle rir. Tinha sua mão sobre o braço do homem, e suas cabeças estavam unidas como se quisessem
deixar fora o resto do mundo.
Cassidy estava a ponto de tomar outro caminho para retornar à casa, quando olharam para cima e a viram. Isabelle deixou cair sua mão do braço do homem e
interpôs alguns passos de distância entre eles. O homem gesticulou amplamente e começou a caminhar na direção de Cassidy. Isabelle reuniu suas saias e correu para
alcançá-la.
-Cassidy! -gritou quando estavam mais perto.
- Não me dava conta de que estava por aqui. -Estava nervosa, mas seu desconforto não ocultava o rubor de suas bochechas ou o brilho de seus olhos, ou o
modo em que olhava o homem com espada parado junto a ela.
- Eu... eu gostaria de apresentar a você o Matthias, um pastor de Greyburn -Ela tossiu com delicadeza atrás de sua mão enluvada. - Matthias, esta é minha
querida amiga, a senhorita Cassidy Holt.
Cassidy recordou Quentin mencionar esse nome durante a viagem a Greyburn. Algo sobre uma lenda de Greyburn e um fantasma... Realizou uma reverência.
-Encantada em conhecê-lo, Matthias.
Matthias inclinou-se ante ela.

-Milady Cassidy, é uma honra. Ouvi falar muito de você, e tudo agradável. Bem-vinda a Greyburn.
-Obrigada, mas não deve me chamar milady. Só sou Cassidy. -Devolveu-lhe o sorriso. - Faz muito tempo que vive aqui, Matthias?
-OH, sim -Fez uma piscada exagerada. - Sou tão velho como as próprias colinas, e igualmente enraizado em meus costumes.
Cassidy estudou-o atentamente. Era tão estranho como parecia na sala depois da cerimônia, como alguém que tivesse saído de um poema, com seus brilhantes
gibão, elmo e espada. Não se correspondia a nenhum pastor que tivesse visto antes, mas seu aroma era familiar, como se fosse uma parte permanente da terra ao seu
redor. Era mais velho que Isabelle, mas seu sorriso era juvenil e a olhava como se compartilhassem algum conhecimento especial.
-Não é realmente um fantasma, verdade? -perguntou ela.
Ele lançou uma gargalhada. Isabelle ruborizou.
-Não existem fantasmas -respondeu-lhe.
Pois se não era um fantasma, definitivamente era um homem... e Isabelle tinha estado a sós com ele. E ela tinha sido tão inflexível sobre as regras entre
homens e mulheres.
Essas regras diziam que os homens e mulheres solteiros não deviam estar juntos a sós. Talvez as regras já não se podiam aplicar a ela. Certamente parecia
que cada um desfrutava da companhia do outro. Apesar de seus rubores, Isabelle moveu-se, aproximando-se dele outra vez, suas mãos quase se tocavam.
"Nenhum homem decente me queria", havia dito Isabelle. Mas Matthias era um bom homem, Cassidy estava segura disso. E Isabelle resplandecia. Por muito que
tentasse escondê-lo, era feliz. Feliz de estar com este estranho pastor. Era como se duas pessoas que não encaixavam em nenhuma parte encontraram um ao outro, e
nunca desejassem separar-se de novo enquanto vivessem.
Cassidy percebeu de uma vez o que vinha à sua mente, vendo Matthias e Isabelle juntos... Aquela tarde no bosque, quando esteve sozinha com Braden: as
confusas e extraordinárias emoções, as sensações aumentadas, o formigamento através de todo seu corpo, a alegria... Isso era o que Isabelle sentia com o Matthias.
Mas ele não fugiria dela, como Braden de Cassidy.

Matthias desejava beijar Isabelle. E ela o desejava.
Cassidy virou-se, aturdida pela nova consciência que a tomou com o beijo de Braden. -Devo voltar para a casa -disse. - Encantada em conhecê-lo, Matthias.
Não esperou por sua inclinação de resposta, e começou a volta imediatamente. Mas ainda devia estar concentrada neles, embora tivesse se retirado, porque
escutou a conversação em voz baixa.
-Assim, essa é a moça -disse Matthias. - Compreendo porque está tão afeiçoada com ela. Mas não tem porque preocupar-se por ela com respeito ao senhor,
disso estou seguro.
-Porque ela mantém sua esperança em alta, não importando o que lorde Greyburn faça, ou o muito que ele troque para ela momento a momento? -respondeu Isabelle.
- Ela quer agradá-lo, mas não compreende as conseqüências. É muito inocente...
-E o que tem de mal a inocência em uma senhorita, minha preciosa? -disse ele.- Há força oculta na moça. Contou-me que ela não permitiu que as armadilhas
do vilão a desgostassem. É um casal apropriado para o senhor.
-Prefiro levá-la da Inglaterra que ver... - interrompeu-se. - Ele é um homem amargurado, zangado, Matthias. E não é humano. Não como você.
-Aí te equivoca, minha preciosa. Não somos tão diferentes.
-Não, Matthias. Você não se parece em nada com Braden Forster. Ele oculta tantos segredos, e temo conhecer as respostas. Só existe um homem no mundo em
quem posso confiar.
Cassidy agachou-se depois de um arbusto e olhou para eles. Matthias sustentava Isabelle contra ele e os braços dela rodeavam sua cintura.
Com seus pensamentos girando ao redor do que tinha escutado, Cassidy deslizou para dentro da casa e subiu ao seu quarto.
Matthias havia dito que era um casal apropriado para o senhor. Isabelle chamou Braden de amargurado e zangado, mas se o tivesse visto no bosque..., se tivesse
visto correr o sangue por sua mão depois de esmagar o cristal da livraria...
Isabelle disse-lhe que não deixasse que ninguém escolhesse por ela. Cassidy começava a reconhecer o poder da escolha, de tomar decisões que podiam trocar
tudo... e não somente para si mesma.

Se tiver a coragem e a sabedoria de tomar as decisões corretas.
Apenas tinha tirado o vestido e começado a lavar-se na bacia quando uma donzela bateu à porta.
-Lady Rowena deseja informá-la que os convidados chegaram -disse a donzela-, e solicita que se vista e baixe ao salão para tomar o chá.
Convidados. Os únicos convidados que Braden esperava eram os membros da Convocatória, os delegados que se reuniriam para falar sobre a Causa e a sobrevivência
dos loups-garous do mundo. Mas Braden não estava aqui. Rowena estava fazendo cargo, e isso não parecia típico dela, quando odiava tanto sua herança lobina.
Cassidy terminou de lavar-se e aceitou a ajuda da donzela para colocar um de seus preciosos vestidos para o chá. Apressou-se escada abaixo, encontrando-se
com Quentin a caminho do salão.
-Quentin, está de volta! -disse. - Onde está Braden?
-Enviou-me na frente, imagino que não demorará muito. Não pegamos o criado. O homem parece que se desvaneceu no ar.
O estômago de Cassidy deu uma nervosa rangida. O criado se foi. Braden logo estaria em casa, e desejava vê-lo... mas ainda não estava preparada.
-Permite que te acompanhe ao salão? -perguntou Quentin.
Era a primeira vez que Quentin e ela estavam juntos, a sós, desde a interrompida lição de transformação. A lembrança de seu beijo, também as conseqüências
disso estava fresca em sua mente.
-Sobre o que ocorreu... -começou ela. - Eu gosto de você, Quentin. Quero que sejamos amigos. Espero que não troque nada.
Ele parecia a ponto de ruborizar.
-Entendo. Não pense mais sobre isso. Estou seguro de que ambos temos outras coisas em nossas mentes.
Cassidy suspirou com alívio. Obviamente o beijo não tinha significado nada para ele, tal como suspeitava.
-Hão-me dito que temos convidados -disse ela.- Vieram para a Convocatória?

-Dificilmente -Quentin caminhou pelo vestíbulo com um passo deliberadamente lento. - Lorde Leebrook e lady Beatrice são visitas inesperadas. São os descendentes
da minha tia avó Grace, que escolheu viver como humana entre os humanos. Braden os considera pessoas não gratas em Greyburn, por sorte não está aqui.
-Escolheram viver como humanos?
-Assim é. Minha tia avó Grace se casou com um marquês humano, e criaram seus filhos para que ignorassem seu sangue lobino e suas habilidades. Lady Beatrice,
a filha viúva de Grace, foi anfitriã de Rowena em Londres durante as passadas temporadas. Rowena e a neta de lady Beatriz, lady Alice, realizaram as rondas sociais
juntas. Era parte do trato de Rowena com Braden. - esfregou as unhas em sua imaculada jaqueta.
- Ro tentou saltar do tratado após. Deseja viver como os Sayers, e casar-se com um humano.
- Por esse motivo, Braden foi a Londres para trazê-la de volta para cá -disse Cassidy.
-E agora os Sayers chegaram no momento justo. Têm muito de seu lado. Posso sentir o matreiro cérebro de Ro em ação.
"Matreiro" não seria uma palavra que Cassidy usaria para Rowena, mas ainda havia muito que não sabia sobre a irmã de Braden. Perguntou-se o que aconteceria
se Braden retornasse na metade desta visita.
Cassidy se preparou para confrontar as olhadas altivas dos aristocratas bem criados e bem vestidos, do tipo que encaixavam no molde de Rowena. Mas quando
Quentin e ela chegaram ao salão, somente Isabelle estava presente. Esta dirigiu a Cassidy um olhar metade de desculpa e metade de súplica, e continuou observando
suas mãos cruzadas.
Não era o momento para falar sobre Matthias. Cassidy certamente guardaria o segredo de Isabelle. Sentou-se tão perto de Isabelle como pôde, enquanto Quentin
passeava pela sala com aparente aborrecimento.
Já estavam todos inquietos, quando o convidado chegou. Quentin levantou primeiro a vista e soltou um juramento pelo baixo.

Reconheceu o homem instantaneamente, apesar de sua mudança de roupa, e Cassidy surpreendeu. Isabelle foi a última a vê-lo. Sentou-se muito erguida em sua
cadeira, sem emitir nenhum som.
Era Matthias, mas um Matthias completamente distinto ao que Cassidy tinha conhecido apenas umas horas antes. Em lugar de sua antiga armadura, luzia uma
jaqueta, calças e um colete que estavam enrugados, remendados e gastos, e, supôs Cassidy, passados de moda. Nenhum elmo cobria seu comprido cabelo cinza. Passou
o olhar pela sala, seus movimentos longe, de alguma forma, da relaxada confiança que mostrava fora. Era quase como se não estivesse inteiramente ali.
Seu olhar posou em Cassidy, e sorriu dubitativamente.
-Boa tarde -disse-. Quentin. E... -Olhou a Isabelle, que continuava olhando-o fixamente sem expressão.
-Tio Matthew -disse Quentin. - O que está fazendo aqui?
Matthew. Não Matthias. A mente de Cassidy estava lhe pregando alguma peça? Podiam existir dois homens que se parecessem tanto?
Mas tinham o mesmo cheiro, e nenhum traje elegante podia tampar o aroma do feno, da samambaia e das ovelhas.
-Senhoras, acredito que não conhecem meu tio, Matthew Forster -disse Quentin. Fez as apresentações com uma preguiça, mas dissimulando um vivo interesse
pelas reações de cada participante.
Seu tio, um pastor? Mas se ele era um Greyburn Forster, não podia ser humano. Cassidy estava muito perplexa para fazer mais que murmurar uma saudação. Isabelle
ergueu-se com rigidez. Não ofereceu sua mão ao recém-chegado.
-Sr. Forster -disse. - Pergunto-me porque não nos encontramos antes. Reside longe de Greyburn?
Matthias... Matthew... olhou fixamente a ponta de seus gastos sapatos.
-Não... não longe, senhora Smith. Justo depois da colina -Sua voz era ligeiramente rouca e vacilante, como se procurasse as palavras apropriadas.
-E o que te traz a Greyburn hoje, tio? -perguntou Quentin, seu olhar passando de Isabelle ao Matthew e de volta outra vez.
- Muito poucas vezes temos o prazer.

-Não podia ser tão n-negligente para... ignorar os convidados de minha sobrinha -disse Matthew. - Especialmente quando trazem tal beleza a nossas distantes
terras norteñas.
Isabelle levantou seu queixo como uma rainha, contemplando seu súdito mais humilde.
-Talvez conheça um pastor de nome Matthias.
Ele permanecia quieto como um coelho que cheirasse a um coiote.
-Sim. Conheço-o.
-Então possivelmente seja tão amável para lhe dizer que apesar de seu amável oferecimento para me guiar pela zona, não necessitarei de seus serviços.
Ele deu um salto para trás.
-Ele... ele... - Tirou um lenço do bolso e enxugou sua frente.- Perdoe-me. Eu...
Não pôde terminar a frase. Houve uma pequena comoção na porta do salão, e entrou uma procissão encabeçada por Rowena. Seguiam-na uma mulher de meia idade
e uma jovem dama, aproximadamente da idade de Cassidy, ambas perfeitamente serenas em seus vestidos de bom gosto. Aynsley e um criado seguiam na retaguarda, conduzindo
as bandejas com o chá e as massas.
Rowena fez uma pausa quando viu Matthew, franziu o cenho e rapidamente recuperou a calma. Estava a ponto de fazer as apresentações oportunas, quando o último
convidado cruzou a porta. Um homem alto e magro com cabelo cinza e um rosto alargado.
- Ah, lorde Leebrook -disse Rowena. - Alegra-me possa reunir-se conosco...
Uma multidão de cenas pareceram ocorrer em rápida sucessão. A atenção de Isabelle desligou-se de Matthew e ficou fixada sobre lorde Leebrook. Este a olhou
e sua tez amarelada empalideceu ainda mais.
-Isabelle -disse com voz entrecortada. A robusta mulher maior, lady Beatriz, deixou escapar um grito.
Isabelle levantou-se, balançou-se e tropeçou com sua cadeira. Matthew estirou-se a ela para mantê-la firme, e depois olhou com desconcerto como ela saía
correndo através das portas francesas em direção ao jardim.

Lady Beatrice afundou em sua cadeira.
-É possível? Essa mulher, aqui...
Lorde Leebrook abriu a boca várias vezes, voltou-se sobre seus talões e abandonou a sala pela porta contrária.
-O que ocorreu? -perguntou Rowena, apressando-se para lady Beatrice.
- Aynsley, traga água e sal agora mesmo...
-Não -Lady Beatrice ergueu-se na cadeira, seu fofo rosto contraído com linhas de ofensa. - Não te dá conta, minha querida Rowena, que esta criatura que
acolheste sob seu teto é... --se abanicó violentamente.- OH, minha pobre menina, você foi enganada. Ela não é melhor que uma rameira qualquer.
Cassidy duvidou só durante um momento, mas e logo saiu correndo em busca de Isabelle.
O jogo tinha terminado.
Isabelle correu às cegas pelas colinas, para o lugar que quase considerava como um santuário, um remanso encantado de felicidade e amizade que tinha começado
a acreditar que nunca voltaria a ter.
Mas não existia tal santuário, nem tal amizade. Seu corpo ainda tremia com a reação ante a dupla comoção: saber que Matthias era um Forster, e encontrar-se
com Percy Sayers outra vez.
Não. Não Percy Sayers. Agora era lorde Leebrook, um marquês, intacto pelo breve escândalo que tinha destroçado a reputação da humilde filha de um vigário.
Isabelle riu e cambaleou a metade da ascensão à colina, com suas saias atrapalhando-lhe as pernas. Quão suprema ironia que Percy Sayers pertencesse à família
Forster. Que apropriado ter vindo à única mansão da Inglaterra onde seria mais provável encontrar-se com o autor de sua ruína. Era uma circunstância para a qual
nunca se preparou.
O dano parecia. Logo todos eles saberiam. Lady Beatrice se ocuparia disso, ela tinha sido a que mais tinha influenciado Percy para que a abandonasse como
a um lenço manchado.
E estava manchada. Manchada além da redenção. Como pôde esquecer isso?

E como pôde atrever-se a voltar a confiar em outro homem? Merecia a traição de Matthias. Devia pensar que era uma grande piada fazer o papel de excêntrico
galã com uma pobre viúva. Lorde Leebrook eclipsou-a no salão, mas não pôde calculá-lo com mais perfeição para destruir o breve flerte de Isabelle com a felicidade.
Deteve-se no topo da colina, sem fôlego e enjoada. Alguém a seguiu. Tentou mover-se, mas suas pernas tinham perdido toda sua força.
Matthew Forster saltava pela colina como um grande rastreador, com as abas batendo as asas. O coração dela ainda insistia em dobrar seu batimento do coração
quando ele se aproximou, e ela o amaldiçoou por esta outra traição.
Era Matthew, não Matthias. Não seu doce cavalheiro. Nem sequer era humano.
Mas ria enquanto a alcançava, nem havia condescendência ou desprezo em seus olhos verdes.
-Senhora... senhora S-Smith -disse-. Peço-lhe... desculpas. Deveria ter explicado...
-O quê? -disse ela. - Que sua pequena máscara era por diversão? Bem, não posso repreendê-lo, Sr. Forster. Eu também fui descoberta como uma fraude.
O olhar dele caiu ao chão entre seus pés.
-M-Matthias me falou de você. Mas ele n-não podia estar aqui hoje. Por isso vim eu.
Olhou-o fixamente. Um deles certamente estava louco, e ela estava muito consciente de sua própria saúde mental.
-Mas você é...
-Seu amigo, senhora Smith. D-desejo sê-lo.
Ela deixou a um lado sua própria desgraça e tentou encontrar sentido em suas palavras. Sabia que ele era Matthias; tinha estado muito com homens para não
estar segura disso. Não era um caso de gêmeos idênticos.
Mas se era Matthias, por que se referia a alguém separado de si mesmo? Sua forma de falar, seu comportamento, inclusive a forma em que se movia eram completamente
distintos aos de Matthias. Não estava burlando dela agora, ou se o fazia, era o maior ator especialista em História.

Pensou que Matthias estava um pouco louco com suas fantasias sobre os ladrões e as lutas fronteiriças. Isto era algo completamente distinto. Podia um homem
ser duas pessoas de uma vez e nem sequer sabê-lo?
-Posso me sentar? -perguntou Matthew.
Isabelle se achava além da esperança ou da incredulidade. Fez um gesto para a erva e ele se sentou, ágil e desajeitado.
-Obrigado -disse. Afastou uma mecha de seu despenteado cabelo cinza da frente.
- Verá, a primeira vez que e-encontrei Matthias foi quando tinha uma grande n-necessidade de um amigo. Uma vez evitou que cometesse um t-terrível engano
quando eu tinha caído em desgraça. Sei o que é ser um p-emparelha.
-Um emparelha -repetiu Isabelle.
-Sim. Faz anos, ia casar-me com uma mulher escolhida para mim por m-meu pai, Tiberius, que era o conde nnaquele tempo. Você veio com a senhorita H-Holt,
assim sabe c-como nós, os Forster, fazemos estas coisas.
-Essa é uma coisa que não sei.
-T-Tiberius iniciou a tradição de consertar m-matrimônios entre nós, entre todos os homens-lobos, para s-salvar a nossa raça. Ele chamou seu plano de C-Causa
- Deu à palavra uma inequívoca ênfase.
Isabelle se esforçou em absorver sua explicação. O assunto dos matrimônios arrumados a fez pensar na defunta esposa de Braden. Também tinha sido arrumado?
Ela não tinha sido capaz de saber nada de importância sobre Milena, nem sequer dos serventes mais enganadores, o que não quer dizer muito em Greyburn.
-A Causa -repetiu.
-S-fui. Meu matrimônio foi parte dela -riu brevemente. - Mas foi anulado, porque eu não era o bastante b-bom. Meu sangue não era puro. Não pude... não pude
me transformar.
Isabelle abriu os olhos de par em par.
-Não pode se converter em lobo?
-Não -Deixou cair a cabeça.

- Falhei. Não era útil para a Causa. Meu p-pai não quis me ter por perto. Assim, vivi afastado de Greyburn depois do ocorrido. M-Matthias foi meu único amigo.
Ele me deteve, c-quando ia a m... - Ruborizou.- Fez com que tivesse um motivo para continuar vivendo.
Bom Deus. Isabelle reorganizou o quebra-cabeças em sua mente. Matthew Forster era como Cassidy, incapaz de transformar-se em lobo, e isso o tinha conduzido
a um profundo desespero, bastante profundo para fazer sua vida insuportável.
Então Matthias tinha aparecido. Um homem em paz consigo mesmo, excêntrico e solitário, mas feliz de sê-lo. Um homem com a capacidade de encontrar a alegria
na vida, que não tinha nada que provar aos loups-garous de Greyburn.
Quando encontraram-se pela primeira vez, disse-lhe: "Não devem me temer, milady. Conheço, igual a você, a espécie de homens que são os Forster. Mas você
não é um deles."
Matthew Forster era um deles, e entretanto, um emparelha. Assim Matthew Forster se converteu em alguém mais. Alguém humano... e sem temor. Era tão distinto
ao que ela mesma tinha feito?
Ele era Matthias. Sentada agora, aqui com ele, sentia-se a mesma emoção quando Matthias e ela compartilhavam momentos de paz contemplando o pacífico vale
e às ovelhas pastando, em perfeita harmonia um com o outro sem necessitar de ninguém mais no mundo.
Sentiu um calafrio ao sol do crepúsculo. Se Cassidy não era capaz de trocar, sofreria o mesmo destino que o tio de Braden: alguém emparelha, não desejada,
desprezada?
-Conheço o que ocorre com a senhorita Holt -disse Matthew, como se tivesse adivinhado seus pensamentos. - Meu sobrinho Braden é... muito parecido a Tiberius.
É devoto à Causa de meu pai. -Olhou Isabelle nos olhos. - Matthias... soube que eu iria ajudar, se pudesse.
Nem sequer pode enfrentar seus próprios problemas, gritou Isabelle mentalmente. Como pode ajudá-la? Mas Matthias tinha sido seu aliado. Não podia permitir-se
rechaçar Matthew, pelo bem de Cassidy.

-Vou embora de Greyburn -disse ela com tom apagado. - Cassidy necessitará de alguém que cuide dela. Se você...
-Deixar Greyburn? -Ele conseguiu ficar de pé. -Por quê?
Não sabia? Acaso Percy ou Beatrice não teria deixado abundantemente claro, no instante em que Isabelle tinha saído voando do salão?
-Porque -disse-, sou uma prostituta, Sr. Forster. Uma perdida. Se não fosse por lorde Leebrook, nunca teriam sabido. Retornei à Inglaterra por Cassidy,
mas não me permitirão permanecer em uma casa respeitável.
Ele sacudiu a cabeça. -Que t-tolice, Sra. Smith -respondeu ele. - Você não é...
-Mas sou -Levantou-se, sem se incomodar em sacudir a erva e a terra de seu vestido.
- Deitei-me com Percy Sayers quando era pouco mais que uma menina. Ele me abandonou e se casou com uma mulher de sua própria classe. Fui à América e realizei
o único trabalho para o qual servia. É somente porque conheci a mãe de Cassidy que estou aqui agora -Lançou uma gargalhada. - O que diria Matthias sobre isto, Sr.
Forster?
Matthew tinha aspecto de ter perdido algo que logo que podia recordar.
-Eu... n-não...
-Não precisa fingir amabilidade, Sr. Forster -disse ela. - Mas devo pedir-lhe que mantenha sua promessa de ajudar Cassidy na forma que possa. Você... e
Matthias.
Ele dirigiu-lhe um olhar de perplexidade e de dor. Isabelle afastou o olhar, e viu outra figura subindo à colina... Cassidy, subindo tão rapidamente como
sua estreita saia lhe permitia.
Sem outra palavra, Matthew se foi. Cassidy logo diminuiu o passo quando ele passou junto a ela.
-Isabelle! -chamou. - Isabelle, espera...
Esta se obrigou a permanecer muito quieta quando Cassidy abraçou-a pela cintura.
-Não devia vir -disse Isabelle. - Outros... pensarão... não sou uma companhia apropriada para você agora, Cassidy. Nunca fui.

Cassidy agarrou sua mão e se negou a soltá-la.
-Não compreendo o que ocorre, Isabelle. Tudo o que sei é que quando viu lorde Leebrook, fugiu. E depois... essa mulher te chamou de umas coisas...
-Com bom motivo. OH, se pudesse evitar isto. Você se lembra da história que contei sobre minha juventude?
-Sim, mas...
-Lorde Leebrook é o homem que amei. O homem que me desprezou. Foi por sua culpa que abandonei a Inglaterra.
Cassidy pressionou a mão de Isabelle contra seu rosto.
-Deve doer muito vê-lo outra vez...
Ainda tão inocente.
-Sim, mas não da forma que pensa, querida minha. Nunca pensei em encontrá-lo em Greyburn. Mas agora que está aqui, todos saberão -Reteve o fôlego.- Quando
ele e eu estivemos juntos, caí em desgraça. As regras me marcaram como uma... não melhor que uma mulher que se deita com homens por dinheiro, embora não tinha estado
com ninguém mais. Eu não era adequada para os homens respeitáveis, para os homens honrados.
-Mas essas regras -disse Cassidy com ferocidade-, também existiam para lorde Leebrook...
-Não. Não em nossa sociedade. A mulher deve permanecer pura. Intacta... -Viu a confusão de Cassidy.- Você viveu em uma granja, Cassidy. Sabe como os homens
e as mulheres concebem os filhos?
-É isso o que fez com lorde Leebrook?
-Sim. Porque acreditava que me amava. Porque ele me pediu isso e eu não pude negar, sem me importar com as conseqüências.
-Mas se isso é o que homens e mulheres fazem quando se amam -disse Cassidy-, como pode ser errado?
Isabelle lamentou em silêncio. -Não sempre se faz com verdadeiro amor, Cassidy. E somente uma mulher pode ter meninos. Um homem deve saber que os meninos
que ela tem são deles. Sem matrimônio, os meninos não têm sobrenome. Isso é pelo que se fizeram as regras. Não tive um filho, mas não importou. Estava desonrada
aos olhos da sociedade.

-Não tem sentido. Por que a odeiam agora? Terminou faz tantos anos.
-Mas não esqueceram -disse Isabelle. Puxou a mão.
- Quando veio a São Francisco para me encontrar... Cassidy, entreguei-me a outros homens. Por dinheiro. Quando cheguei à América, não sabia o que fazer
ou como sobreviver. Não possuía habilidades úteis, exceto o que lorde Leebrook me ensinou. Durante um tempo, depois de conhecer sua mãe, deixei essa vida. Mas depois,
voltei para a vida que tinha construído para mim -Sorriu amargamente.
- Já vê, os homens pagam bem por estar com uma mulher. Os homens, como os touros ou os semelhantes, conduzem-se por poderosos instintos que devem ser saciados,
estejam casados ou não. Sempre há mulheres como eu que lhes provêem... por um preço. O amor não forma parte desse preço.
Muito pálida, Cassidy olhou-a fixamente.
-Lorde Leebrook sabia o que ocorreria quando ele... fez isso contigo -disse. - Não é tua culpa. Não me importa o que fez em São Francisco -Abraçou- a.
- É minha amiga, Isabelle. Isso nunca trocará.
As lágrimas escaparam ao controle de Isabelle.
-Não posso te ajudar agora, Cassidy. Minha presença aqui somente te machucará.
-Falarei com Braden -disse Cassidy. Existia uma estranha, teimosa certeza na voz que Isabelle tinha escutado poucas vezes antes. Empurrou um lenço enrugado
na mão de Isabelle. - Ele não te obrigará a partir.
O que pensava ela? Que poderia influenciar lorde Greyburn? Somente porque a tinha beijado? Isabelle estudou o rubor de Cassidy e seu rosto decidido, e
percebeu que tinha sofrido uma metamorfose que tinha começado no momento em que chegou à Inglaterra.
Era o rosto de uma moça despertando à idade adulta, o rosto de uma mulher apaixonada?
Se Isabelle partisse agora, não veria esse florescimento final. E não teria oportunidade de proteger as frágeis pétalas que podiam ser esmagadas pela arrogância
masculina.
Por Braden e por sua Causa.
-Ainda necessito de você, Isabelle -disse Cassidy. -Prometa-Me que ficará.

As promessas eram mortais. Isabelle estava assustada: da humilhação e do desprezo, da ternura que tinha crescido nela mesma, desde que tinha conhecido Cassidy
e Matthias. Mas quase podia acreditar que Cassidy a protegeria, como ela mesma pensou proteger a uma moça ingênua.
-Se for possível -disse com suavidade-, tentarei.


CAPITULO 12

-Ela não pode ficar.
Rowena estava sentada à beira da cadeira na biblioteca, sua eloqüente voz com tom de repugnância e educada ofensa. Braden podia imaginar suas costas rígidas
como uma vara, a ligeira curva de seu lábio e a altivez no interior de seus olhos.
Durante os passados três dias, nada tinha saído conforme o planejado. Quentin e ele tinham falhado, inclusive em localizar o traiçoeiro John Dodd, que dirá
agarrá-lo. Toda a resolução de Braden e suas habilidades lobinas como rastreador não tinham sido suficientes para trazer o homem à justiça.
E durante esses três dias inúteis de caça através do país, Braden não foi capaz de tirar Cassidy da mente. Espreitava-a, acordado e dormindo: sua ardente
inocência entre seus braços, o sabor de seus lábios e a esbelta força de seu corpo, seu valor depois do ataque do servente.
Deveria estar totalmente concentrado nos últimos preparativos para a Convocatória, com todas essas distrações atrás dele.
Em lugar disso, esta manhã tinha retornado ao caos.
-Você disse -disse, dando as costas à Rowena-, que a Sra. Smith não é a mulher respeitável que pretende ser. O que não explicou em primeiro lugar, é o motivo
pelo qual os Sayers estiveram aqui.
-São nossa família, Braden, embora não o queira. Tinha o direito a lhes pedir...
Ele virou-se para ela.
-Convidou-os porque ainda acredita que são aliados e que lhe ajudarão a escapar de seu dever. Melhor que tenham ido, ou eu mesmo os teria jogado.
-Não eram eles os que deveriam ir -disse ela, levantando-se. - E sim essa mulher...
-Considera Beatrice como a uma segunda mãe, e Alice como a sua irmã, mas eles nos deram as costas e a tudo pelo que nosso avô lutou. Esqueça qualquer
esperança de ajuda por esse lado.
A frustração e o desafio dela eram uma presença viva entre eles.

-Como já disse, foram embora -disse ela. - Mas essa mulher ainda está aqui. Exijo...
-Você exige? -Ele sorriu e ela se calou.
- Sugiro que faça sua petição com outras palavras, Rowena.
-É um tirano -murmurou ela. -Muito bem, solicito que peça a essa mulher que parta o quanto antes possível. Não é uma convidada adequada nesta casa. Deve
ter enganado Cassidy como fez com o resto de nós.
Sim, Isabelle Smith tinha enganado todos eles. Tinha quebrado todas as regras da sociedade respeitável e era a acompanhante de Cassidy...
A porta da biblioteca se abriu. Cassidy entrou em pernadas na sala, estirando suas saias até seus limites mais amplos em seu apuro.
-Braden, está... - Calou-se quando viu Rowena.- Braden, devo falar contigo. É sobre Isabelle...
Braden perdeu o fio de suas palavras enquanto se esforçava por acalmar a si mesmo, lutando por não aspirar o aroma de Cassidy ou permitir que sua cercania
lhe recordasse o que compartilharam no bosque.
-Não acredito ter solicitado sua presença, Cassidy - disse, interrompendo-a.
-Tinha que ver você ...
-Se for ficar, por favor sente-se e permanece calada.
-Seja o que for que Rowena te contou...
-Sente-se.
As saias rangeram e vaiaram em descontente. Sentou-se deixando-se cair com força.
-Rowena me contou tudo -disse ele gravemente.
- Conhecia o passado de Isabelle Smith?!
-Não soube até hoje -respondeu ela.
- E não me importa. Isabelle é minha amiga -Levantou o queixo. - Não pode ordená-la que se vá. Já teve muitos problemas...
-Minha querida prima -disse Rowena. - Com certeza você se dá conta de que uma mulher assim não é uma acompanhante adequada para nenhuma dama respeitável.
Ela corrompeu um homem que estava a ponto de casar-se, atraindo a vergonha sobre uma boa família, e está expulsa da boa sociedade...
-Suficiente -disse Braden. -Já tomei minha decisão. Tão logo se possa arrumar, uma carruagem levará a Sra. Smith à estação de trem, e lhe arranjarei alojamento
em alguma parte, até que realize seus planos para deixar o país.
Cassidy levantou-se.
-Por quê? Não lhe está dando uma oportunidade. Acreditei que... -Se voltou para Rowena.
- Por que a odeia tanto? Odeia ser uma loup-garou. Julga Isabelle da maneira em que pensa que outras pessoas julgariam você se soubessem o que é. Realmente
isso te faz feliz?
O pasmado silêncio de Rowena foi sua única resposta antes de abandonar o ambiente. A porta se fechou com uma furiosa portada.
-Fala com muita liberdade, Cassidy -disse Braden com frieza. - Acredito que a Sra. Smith já te prejudicou por sua presença aqui. Provou-se indigna...
-Porque rompeu as regras de sua sociedade? -perguntou Cassidy.
-Isabelle me explicou tudo sobre essas regras. Você me contou que nós somos melhores aos humanos, mas inclusive você segue as regras que eles fazem. E você...
no bosque, também rompemos as regras, verdade?
Deixou-lhe sem resposta, fechando sua armadilha com engenhosa ingenuidade. Seu primeiro instinto foi submetê-la com seu maior tamanho e sua forte vontade,
dominá-la com seu corpo na antiga forma que lobo e loup-garou compartilhavam.
Mas não se atrevia a aproximar-se tanto a ela.
-Obedecemos às regras que protegem nossa gente -disse ele.- Os humanos são inconstantes, inclusive em suas uniões. Nós nos unimos para toda a vida, Cassidy.
Isso, também, faz-nos superiores.
Inclusive enquanto falava, sabia que mentia. Milena espreitava-o da tumba... Milena, que tinha sido igual à Isabelle Smith.
-Então os loups-garous nunca se equivocam -disse Cassidy. - Nunca cometem enganos.

Acaso Cassidy burlava dele?
-Não justificarei nem a mim mesmo nem as minhas decisões contigo.
-Mas não me dirá nada -disse ela. Ele pôde ouvi-la, sentí-la aproximando-se dele.
- Isabelle não fez nenhum dano a você -Repentinamente ela estava tocando-o; a frieza convertendo-se em chamejante calor, o ressentimento em fome. Ela esmagou
cada um de seus pensamentos, cada uma de suas intenções.
-Por que está tão furioso, Braden? -perguntou. - Quer que todos acreditem que não se preocupa em machucar as pessoas, mas todo o tempo você está machucado
também.
Ele aferrou seus braços.
-Não sabe nada de mim -espetou. - É uma ignorante, uma menina meio humana. Nem sequer pode se transformar...
-Não me deste a ocasião. Tal como não quer dar a oportunidade à Isabelle - Deu um passo para trás. - Não está bem.
-Não -Ele segurou-a, aproximando-a mais, sentindo os batimentos do seu coração através do corpete e de seu próprio colete.
- Raramente está bem.
Ela se esticou um instante e logo relaxou seu corpo contra ele, afundando-se em seu abraço. Seus braços por debaixo do apertão dele se dobraram de forma
que suas mãos descansaram abertas sobre suas costelas.
-Por que construiu este muro ao seu redor? -sussurrou ela. - Eu passei sozinha a maior parte de minha vida, desejando alguém com quem compartilhá-la. Mas
você tem a sua família. Tem... - Interrompeu-se, apoiando a bochecha em seu peito. O coração dele retumbava freneticamente. - Perdeu alguém que amava. Sei o que
é isso. Não somos tão distintos -O abraço dele afrouxou e ela tomou as lapelas de sua jaqueta entre as mãos. - Conceda a ambos outra oportunidade.
Ele mal soube como tinha ocorrido, em um momento ela estava falando e no seguinte, estava pressionando seus lábios contra os seus. O primeiro beijo tinha
sido uma exploração, este era deliberado. Cassidy sabia o que estava fazendo. Tinha aprendido em sua única lição. Seus lábios se abriram, convidando-o a fazer o
mesmo. Ele grunhiu e a aferrou pela cintura, aprofundando o beijo, tomando o controle.

Não tinha sentido negá-lo por mais tempo. Estava profunda e perigosamente atraído por ela, em todas as formas havidas, não somente por sua frescura e sua
singela honestidade ou por sua coragem, mas sim pelo corpo de mulher com sua larga juba e marcadas curvas, pelo rosto que sustentava sob as gemas dos dedos de uma
vez obstinado e adorável.
Não podia vê-la como a uma peça abstrata, colocada com cuidado no jogo da grande Causa. Ela era menos do que tinha esperado, e ainda assim se converteu
em mais do que nunca tinha antecipado. Não era sua estrita obediência o que desejava agora ou sua sensibilidade a seu poder e autoridade. Mas desejava. OH, sim.
Desejava com força.
Permitia-se que isto continuasse, não se deteria até que tivesse seu jovem e firme corpo nu entre seus braços de novo. E não teria a força para afastar-se
como fez no bosque.
Se a tomasse, ficaria arruinada para Quentin, ou para qualquer outro companheiro digno. Ele não era digno. A paixão o tinha cegado antes. Sua luxúria trairia
a Causa, em lugar de fomentá-la.
Tornou-se para trás abruptamente. Ela murmurou um protesto.
-Braden...
-Falarei com a Sra. Smith -disse.
- Darei a ela a oportunidade que você deseja. Isso te satisfaz?
-Isabelle? Sim -Seu fôlego exalou um suspiro.- Sabia que o faria.
-Vai. Diga a ela que venha.
Foi um rechaço que ela não pôde rebater. Atrevia-se em interpretá-lo como uma vitória, ele deixaria que acreditasse assim. Era a melhor alternativa.
E a Sra. Smith lhe servia de desculpa.
-Obrigada -disse Cassidy brandamente. Seu passo era ainda cambaleante enquanto se encaminhava para a porta.
Ele se deixou cair na cadeira e tentou recuperar a fria indiferença que antes tinha sido tão fácil para ele.

Isabelle estava completamente preparada para ser expulsa da casa quando viu o rosto de lorde Greyburn. Nenhum outro homem que tivesse conhecido durante
seus largos anos de experiência podia projetar tanta fúria e ameaça com semelhante falta de expressão.
Mas esse granítico rosto não significava que não pudesse sentir. Certamente que não. Ela tentou recordar isso enquanto entrava na sala e se detinha frente
a ele. Ele não a convidou a sentar-se.
- Vou permitir que fique em Greyburn, pelo bem de Cassidy -disse ele sem preâmbulos.
Comportar-se-á com total decoro enquanto permaneça aqui. Verei que troquem suas coisas para um aposento na ala familiar. Quando chegarem meus convidados,
permanecerá confinada nessa ala a sós. Está claro?
-Perfeitamente -disse ela.
-Não tolerarei nenhuma insolência de você, Sra. Smith - disse ele -, se esse for realmente seu nome. Sei o que é. Sua posição aqui é no mínimo precária.
Se chegar ao meu conhecimento que suas impudicas afeições afetaram, de alguma forma, a minha prima...
-Minhas afeições? -disse ela, indignada além da precaução. - Cassidy me contou como a beijou -Ela captou seu sobressalto porque estava observando-o.
- Sim, conheço os homens, lorde Greyburn. E sei quando um homem deseja uma mulher, da forma em que você deseja Cassidy.
-Atreve-se a sugerir...
-Sugiro que animou Cassidy para que acredite que está apaixonando-se por você, embora não ela tenha uma mínima noção do que o senhor sente. Sugiro que
seus motivos não são mais puros que os de qualquer homem que utilizaria uma mulher como fui eu.
Por um momento ela quase acreditou que se converteria em lobo ali mesmo diante dela. Que trocaria, saltaria sobre ela e arrancaria a vida de seu corpo.
Seu grunhido -porque não havia outra palavra para esse som - pareceu sacudir o chão sob seus pés. Ela fechou os olhos e se manteve em seu lugar até que escutou se
mover.

-Você mede tudo desde sua própria contaminação -disse ele. - Vê maldade onde somente há... - Deteve-se. - Minha irmã tinha razão em sua opinião sobre você.
Ela riu abertamente, sabendo que não tinha nada que perder.
-Conheço sua Causa. Talvez sua intenção original fosse controlá-la através de seu carinho por você. Os homens se enganam tão facilmente. O que dizia esse
Burns? "Os melhores planos de homens e ratos se vêm abaixo por um engano". Certamente também é aplicável aos homens-lobos.
O conde surpreendeu-a sentando-se na cadeira e estirando as pernas com ar despreocupado, como se sua conversação fosse cortesmente informal.
-Deseja conhecer meus planos para Cassidy? -disse-lhe.- Talvez tranqüilize sua mente saber que nunca a pretendi para mim -Suas palavras estavam carregadas
de sarcasmo. - Está destinada a ajudar a nossa Causa mediante seu matrimônio com meu irmão.
A mente dela ficou em branco.
-Quentin? Mas...
- Decidi durante a tarde em que ela chegou à casa de Londres -disse ele.
- Cassidy é forte e saudável, e poderá ter muitos filhos a serviço de nossa gente. Permanecerá com a família, e terá tudo do que necessite ou deseje durante
o resto de sua vida.
O motivo tinha aflorado e com ele, uma fúria justificada que renovou o antigo ódio.
-Assim Cassidy será uma égua de cria para manter sua linha pura.
-Não é diferente aos matrimônios consertados entre as grandes famílias humanas -disse ele-, e com um propósito muito mais nobre. O que teria sido dela sem
nós? Deseja seu próprio destino para Cassidy, Sra. Smith? Desprezada, desprezada, sem pertencer a nenhuma parte?
Ela inspirou com força.
-Vocês, os Forster, têm uma grande habilidade para retorcer tudo em seu próprio proveito -respondeu-, especialmente os pontos débeis daqueles que governam.
Não sou absolutamente seu igual, lorde Greyburn. Mas me pergunto por que não foi tão sincero com a própria Cassidy. Por que teme dizer-lhe o que me disse?

-Ela necessitava de tempo para adaptar-se, para converter-se em uma de nós...
- Soube que outro Forster que não cumpriu com suas expectativas foi expulso como indigno. Cassidy não é capaz de converter-se em lobo, verdade? Se não puder,
também a exilará?
O conde de Greyburn estava muito quieto.
-Esta conversação terminou, Sra. Smith. Prepare-se para mudar-se aos seus novos aposentos dentro de uma hora.
Apesar de toda sua audácia, não tinha conseguido nada. Seu desafio era tão inútil como o orgulho. Caminhou lentamente para a cadeira dele e inclinou a cabeça.
-Eu suplico, lorde Greyburn. Não lhe faça mal.
Ele ficou em pé, obrigando-a a dar um passo atrás.
-Você somente tem um papel em Greyburn -disse-, e esse é desanimar Cassidy em acreditar que eu guardo algum carinho pessoal por ela. Não lhe será difícil,
à vista de sua óbvia antipatia para mim -Sua voz estava totalmente apagada.
- Cuidarei muito bem dela . Tem minha palavra.
-A palavra de um Forster.
-Minha palavra, Sra. Smith. Não me confunda com lorde Leebrook ou com os de sua espécie. Ele desonrou a si mesmo tanto como desonrou a senhora. Não ocorrerá
outra vez.
Semelhante reconhecimento devia lhe custar muito. Ele levantou a cabeça e assinalou para a porta.
-Pode ir, Sra. Smith. Tenho trabalho que atender. Recorde o que hei dito.
A porta abriu-se antes que ela pudesse replicar ou retirar-se. Quentin entrou, com evidente agitação em seus movimentos.
-Sra. Smith -disse com um olhar distraído. - Peço-lhe desculpas, mas devo falar com meu irmão...
Estudou-o, armada do conhecimento de que se supunha que Cassidy ia ser sua esposa. Era um homem bastante amável, somente ele entre seus irmãos não olhava
para Isabelle como se fosse uma rameira.
Mas não amava Cassidy, disso estava segura. Nem amava ele próprio, se Cassidy tinha a mais ligeira compreensão do que o amor implicava.

Todos os homens, humanos ou o que fossem, eram estúpidos.
-Obrigada, Sr. Forster -disse a Quentin. - Já ia.
-Queria que te informasse tão logo os primeiros convidados entrassem nas terras de Greyburn -disse Quentin quando Braden e ele estavam sozinhos.
Braden lutou por afastar seus pensamentos de Isabelle e suas acusações. Não era fácil. Cassidy e ela tinham escolhido o pior momento para fazer balançar
os próprios fundamentos do mundo que tinha construído.
Explicando à Isabelle seus planos para Quentin e Cassidy, tinha eliminado qualquer possibilidade para futuros mal-entendidos. Mas tinha deslocado um grande
risco. Cassidy ainda não tinha provado ser capaz de transformar-se, e se casasse com Quentin sem ter superado essa prova, a herança de Quentin se esbanjaria.
Mas tinha que deixar essas preocupações a um lado. Agora devia dedicar toda sua concentração à reunião que estava a ponto de começar. Tinha enviado Quentin
fora para vigiar a chegada dos delegados da Convocatória. Sua volta significava que os primeiros convidados estariam aqui em menos de uma hora.
Nem por um só instante podia permitir que nenhum dos delegados sentisse debilidade nele ou em nenhum dos Forster, física, mental ou emocional. O sangue
Forster devia ser forte e invulnerável. Cassidy deveria se manter separada dos outros loups-garous, de modo que estes nunca tivessem a oportunidade de adivinhar
que não era completamente um deles.
Quanto à Rowena... o companheiro americano escolhido para ela a reclamaria nesta Convocatória. Breve aprenderia a submeter-se ao seu verdadeiro destino.
Voltou-se para Quentin, que esperava em silêncio.
-E bem?
-Os primeiros convidados se aproximam de Greyburn -disse Quentin. Havia uma tensão em sua voz que se devia a algo mais que a fadiga de uma larga carreira
ou à transformação.
- Os delegados alemães e húngaros, e um dos espanhóis. Mas... Braden, vem alguém que não esperávamos.

Braden sentiu um calafrio de premonição.
-Boroskov -disse.
-Sim -Quentin cruzou a habitação e afundou-se em uma cadeira.
- Stefan, Fedor e uma mulher que não reconheci. Sei muito bem que você não os convidou...
-Não.
Braden chamou Aynsley. Quando o mordomo apareceu, Braden lhe pediu que enviasse Telford, a Sra. Fairbairn e o chefe de quadras. Deu-lhes instruções pessoais
a cada um deles, explicando-lhes a urgência da situação e logo ordenou que saíssem. Voltou-se para Quentin.
-Somente pode haver uma razão pela qual os irmãos de Milena vieram a Greyburn.
Quentin procurou um gole, o qual inalava com grande concentração.
-Certamente -disse.
-Se alguma vez houve um tempo em que devemos estar unidos, é agora. Se falharmos, se mostrarmos qualquer signo de debilidade, os parentes de Milena farão
o que puderem para destruir tudo para o que trabalhamos.
-A Causa, quer dizer. - Acredita que querem a Causa? - voltou-se para a janela, como se pudesse ver a ameaça que se aproximava.
- A última vez que me encontrei com Stefan, amaldiçoou-me. Eu sabia que o assunto não estava resolvido, mas Fedor e ele castigaram o suficiente para voltar
para a Rússia sem brigar. Evidentemente encontraram suficiente coragem -ou ódio- para me desafiar.
-Suponho -apontou Quentin brandamente- que não estarão aqui para fazer as pazes.
-Paz? Não aceito paz alguma com seu sangue pervertido. Engana-se mesmo, Quentin. Se puderem, me matarão e tomarão o controle da Convocatória. Põe em dúvida
quais seriam as conseqüências?
Quentin moveu-se incômodo.
-Souberam faz três anos que você estava...?
-Cego? Não. Então o ocultei, pela época da morte da Milena. Agora... -Sorriu, quase desejando uma das venenosas libações do Quentin.

- Saberão muito logo. Quando chegarem, encontraremo-nos com eles com indiferença e os obrigaremos a realizar o primeiro movimento.
-Deixa que eu aceite o desafio -disse Quentin.
- Stefan é...
-Sei como é Stefan -Sentiu uma quebra de onda de gratidão porque Quentin, quem aborrecia a violência, ofereceu-se a tomar seu lugar.
- Conhece as regras que Tiberius estabeleceu - disse.
- Ele é a cabeça de sua família, eu da minha. Ele me desafiará pela liderança da Convocatória, e devido ao que ele é, não se deterá até destruir a Causa
e a linha Forster. Isso inclui Rowena, Quentin. E Cassidy.
O rosto de Quentin estava tão sério como Braden podia desejar.
-Falarei com Rowena. Compreenderá a necessidade de uma frente unida.
E assim o fez. Apesar de sua repugnância para o matrimônio combinado para ela, sabia que seu destino seria muito pior se ficasse nas mãos de Stefan.
Stefan nunca se conformaria com nada menos que um desafio total. Cego ou não, Braden estava preparado. Sempre tinha estado preparado, treinando duramente
seu corpo e afiado os sentidos que lhe subtraíam, e agora estava impaciente pelo inevitável duelo.
Lutar pela vida de um era fácil. Sem emoções conflitivas, sem complicações inconvenientes. Como um lobo na batalha, Braden somente conheceria a necessidade
de proteger os seus e derrotar o inimigo. Seu coração bateria e seu sangue fluiria para os antigos ritmos da terra, sem manchar pela contaminação do homem.
Rowena e Quentin estavam ambos ao seu lado, firmes e serenos, quando a primeira das carruagens chegou transportando os delegados alemães e húngaros. O espanhol
chegou atrás dos alemães, um homem jovem e extravagante que substituía seu pai como delegado à Convocatória.
Os russos demoraram sua aparição até muito depois que os delegados tivessem sido acomodados em seus aposentos na ala de convidados. Enviou-se um jantar
ligeiro a cada câmara, e os convidados acabavam de reunir-se no salão, quando a elegante carruagem dos russos subiu pelo caminho de entrada. Deixando Rowena a entreter
os convidados, Braden se reuniu com Quentin para encontrar-se com seus inimigos nos degraus frontais.

O conde Stefan Boroskov descendeu languidamente da carruagem, ajudado pelo que parecia uma larga comitiva de serventes apressando-se de um lado a outro.
Braden não havia tornado a ver o russo, mas recordava quanto se parecia com Milena, com seu cabelo loiro platino roçando os ombros, sua roupa de dandy obscenamente
cara e seu ar de exotismo oriental.
Era exatamente igual a sua irmã em sua elegância, sua sofisticação e sua aterradora beleza. Seu risonho e malicioso olhar era o espelho de Milena, impregnado
de anos de hedonismo e cada vício conhecido pelo homem.
Ou loup-garou.
-Ah -disse Stefan com um marcado acento, aproximando-se.- Que agradável vê-lo de novo, lorde Greyburn. Separamo-nos baixo em tão... desafortunadas circunstâncias.
Nosso convite a esta reunião deve ter extraviado-se em alguma parte entre a Inglaterra e a Rússia. Naturalmente não desejávamos perder a primeira Convocatória atrás
de nossa mútua perda.
Se Stefan esperava uma boa recepção, ficaria profundamente desiludido. Braden calibrou a direção da voz de Stefan e olhou-o fixamente, sem piscar, com cuidado
de não revelar um só pensamento ou emoção.
-Percorreu um longo caminho, conde -disse. - Temo que encontrará esta Convocatória de pouco interesse para sua família.
-Sério? Pois aqui tenho meu irmano. Recordará Fedor, verdade? E minha prima Tasya, que suplicou em vir.
Braden escutou outros dois russos moverem-se para se unirem ao conde. Identificou o aroma de Fedor, a mulher era uma estranha. Braden assentiu para ela,
imediatamente consciente de seu temor. Nem Fedor nem Tasya falaram.
-Seu irmão, ao que recordo faz anos, antes de unir-se ao exército -disse Stefan. - Quentin, acredito. Já vejo que se converteu em um homem -Sua voz dirigiu-se
novamente para Braden.
- Já escolheu uma companheira para o Honorável Quentin Forster, lorde Greyburn? Talvez possa sugerir a nossa Tasya...
-Este não é momento nem lugar para tal discussão -disse Braden.
-É óbvio. Creio que não sejamos os últimos a chegar.

-Nossos convidados se encontram no salão, e o resto dos delegados chegarão durante os próximos dois dias. A Convocatória não começará até que todos estejamos
reunidos. Encontrará as comodidades de Greyburn... muito pouco ao seu gosto, conde Boroskov.
-Muito pouco ao meu gosto? Não estou de acordo. Existem tantos passatempos saudáveis a que dedicar-se em sua agradável campina inglesa -Suas palavras pareciam
poluir os arredores com promessas de depravação.
- E se isso não bastasse, está a encantadora companhia de sua irmã, lady Rowena. Ainda não se casou, conforme ouvi, embora já está algo... como diria...
muito amadurecida?
Assim já tinha começado, o primeiro intento de Stefan em provocar a fúria de Braden. Mas Braden não lhe daria essa vantagem. Enquanto permanecesse inquebrável
em seu controle, manteria o mando como herdeiro de seu avô e líder da Convocatória. Era um jogo primitivo de ataque e defesa nascido muito antes que o homem utilizasse
armas na batalha, quase tão letais, mas jogado mais com a mente e a vontade que com dentes e garras.
- Ouvi que tem uma nova aquisição à família -continuou Stefan. - Uma prima americana, adorável e inexperiente, conforme me disseram, mas deliciosa. Cassidy...
muito pouco comum. Estou ansioso em conhecê-la.
Braden realizou um esforço para não golpear o russo. Se Stefan sabia da existência de Cassidy, devia estar espiando os Forster durante muitos dias, possivelmente
em Londres além de Greyburn.
-A senhorita Holt -disse Braden lentamente-, está isolada. Ela não tomará parte nesta Convocatória.
-Uma pena. Espero que isso troque antes que este encontro termine. E agora, se for tão amável, agradeceríamos que nos mostrassem nossos aposentos.
A única alternativa ao consentimento era o desafio aberto. Braden fez um gesto a Aynsley, que tinha uns serventes preparados para ajudar os criados russos
com a bagagem dos Boroskov. Os russos não viajavam leves, e embora os dias dos servos tinham passado, o conde se deleitava com uma larga comitiva de submissos subordinados
humanos.

Braden tinha disposto que acomodassem os russos em aposentos o mais afastados possível dos outros convidados, e da ala familiar. Uns serventes bem colocados
informariam imediatamente se Stefan ou seu irmão se aventuravam onde não deviam. O próprio Braden escoltou os russos até sua suíte, com Quentin ao seu lado como
medida de precaução. Além de tais cuidados, havia pouco que fazer, exceto esperar.
Mas Stefan parecia não ter interesse em esperar. Depois de uma breve inspeção em seus aposentos, fez saber que seus parentes e ele desejavam unir-se aos
outros convidados o antes possível.
-O descanso já chegará mais tarde -disse.- Passou muito tempo desde que caminhei entre outros de minha raça além das fronteiras da Rússia. Não tenho intenção
de perder um instante desta deliciosa companhia. Vamos, Tasya; Fedor se ocupará dos criados.
O curto pêlo permaneceu arrepiado com o passar do pescoço de Braden enquanto Quentin e ele conduziam os dois russos até o salão. Instintivamente aguçou
os sentidos em busca do som da voz de Cassidy, ou do seu aroma único, algo que revelaria sua presença. Mas ela estava a salvo em seu quarto, com o mesmo Telford
montando guarda em sua porta. Stefan baixou as escadas sem mostrar excessivo interesse pela ala familiar.
Stefan Boroskov não tocaria nem a ponta do mindinho de Cassidy, a menos que passasse sobre o destroçado cadáver de Braden.


CAPITULO 13

Cassidy lançou o laço sobre a cadeira próxima à chaminé pela centésima vez, atirou, apertando o nó e deixou cair a corda, escutando outra vez as vozes longínquas
e a música que subia do salão.
Desde que os primeiros convidados tinham chegado a Greyburn há algumas horas atrás, ela tinha virado uma virtual prisioneira. Não tinha visto ou falado
com Braden depois de sua última conversa na biblioteca. Ele tinha irradiado seus "desejos" através de Telford de que permanecesse em seu quarto, o qual permanecia
no corredor como se fosse um carcereiro. Inclusive Isabelle estava confinada em seu novo quarto ao fundo do corredor, permitiram que ela ficasse com a condição
de manter-se completamente separada dos loups-garous que visitavam Greyburn.
Da sua janela próxima à entrada, Cassidy tinha observado a chegada do terceiro grupo de convidados, o homem de cabelo claro, seu moreno companheiro e a
mulher que os acompanhavam. Embora Cassidy não tivesse sido capaz de escutar a breve conversa entre Braden e os recém-chegados, soube imediatamente que algo ia muito
mal. A postura do corpo de Braden, a maneira em que o homem loiro o mirava... a esmagadora hostilidade enviou calafrios por sua coluna vertebral. Quase abriu a janela
de par em par para gritar a Braden que ficasse alerta devido ao ataque pelo bosque, pois estava certa de que iria acontecer a qualquer momento.
Mas não o fez. Braden não teria agradecido. Ele não desejava que tivesse contato com os delegados. Tinha combinado em dar à Isabelle outra oportunidade,
mas não a ela. Ainda não formava parte de sua Causa.
Cassidy reuniu a corda e retorceu-a entre seus dedos. Deu a suas preguiçosas mãos uma ocupação, praticando nós e enlaçando inofensivas peças de mobiliário,
enquanto sua mente repassava uma e outra vez os sucessos dos dois últimos dias.
No Novo México, era boa em algumas coisas, como trabalhar com o gado e rastreando. Em Greyburn, parecia não importar o quanto tentasse, não conseguia fazê-lo.
Especialmente porque Braden se preocupava.

Não podia transformar-se, mas estava segura de que aprender era só uma questão de tempo e estaria com Braden. Quando ele retornou a Greyburn, tinha desejado
desesperadamente recrear a perfeita união que tinham compartilhado no bosque. Assim era como devia ser.
Mas Braden não era o herói de um poema romântico ou um modelo além da incerteza e a solidão. Estava ferido, e rechaçava qualquer ajuda. Suas palavras afastavam-na,
mas seu corpo ardia por tê-la entre seus braços.
As explicações de Isabelle sobre os homens e seus instintos continuavam vagando pela mente de Cassidy como um rebanho de cabeças de gado em correria. Isabelle
tinha perguntado a ela, se sabia como os homens e mulheres faziam os filhos. Até que conhecesse Braden, esse tema tinha sido muito confuso para ela, algo que não
tinha pensado em sua vida.
Sentindo-se repentinamente acalorada, Cassidy arrojou a corda sobre a cama e se aproximou da bacia para salpicar água no rosto.
Se não fosse pelos beijos de Braden, provavelmente seguiria sem pensar nisso. Seus beijos tinham-na feito sentir-se leve como o ar e quente como o fogo
de uma só vez. Os homens tinham desejado Isabelle o bastante para pagá-la por fazer mais que beijá-los, e não era para ter bebês. Isso... o que Isabelle lhe tinha
falado... era o que certamente teria ocorrido se Braden não a tivesse deixado no bosque. Isabelle havia dito quem sempre se fazia por amor. Mas na primeira vez,
ela estava apaixonada. Lorde Leebrook tinha destroçado esse sentimento, para sempre, e a culpa tinha recaído sobre ela.
As regras da sociedade tinham pouco sentido para Cassidy, e o significado de "amor" era ainda uma confusão de emoções enredadas e versos de poesia.
Cassidy aproximou-se da pequena prateleira onde estavam os poucos livros que havia trazido da América. Tocou-os um a um. As respostas estavam ali, se pudesse
interpretá-las. Encontrou um poema de Coleridge:
"Todo pensamento, toda paixão, todo deleite
Todo aquilo que estimule este envoltório mortal,
Nada mais são que ministros do Amor,
alimentando sua sagrada chama."

Os beijos de Braden eram puro deleite. Amor significava desejar estar com alguém todo o tempo e de todas as maneiras.
Cassidy olhou fixamente seu úmido rosto no espelho. Braden havia dito que os loups-garous uniam-se para toda a vida. Se compartilhassem isso um com o outro,
permaneceriam juntos... para sempre.
Milena estava morta. Braden nunca a mencionava. Mas parecia, mais e mais, como se Milena ainda estivesse em Greyburn. E Cassidy não era uma verdadeira loup-garou.
Mas ela não se renderia. Agora não. Tinha que existir um modo...
-Cassidy?
A voz de Isabelle, baixa, mas reconhecível, atravessou a porta. Cassidy secou o rosto e respondeu, oferecendo à Isabelle a cadeira junto à chaminé.
-Alegro-me de que tenha vindo -disse. - Estou encerrada aqui desde meio-dia.
-Sim. Estamos ambas exiladas, verdade? - Isabelle falava com leveza, mas seu olhar era muito sério e firme. A tristeza se aderia a ela como um véu invisível,
e Cassidy conhecia o motivo. Não era somente porque quase todos em Greyburn a desprezassem. Era porque tinha perdido alguém muito querido para ela, chamado Matthew
ou Matthias. Tinha deixado Isabelle na colina, e não havia retornado após.
-Sei o quão difícil está sendo para você -disse Cassidy, ajoelhando-se junto à cadeira.
- Nunca devia te pedir que ficasse...
-Não. Existe uma razão para minha presença aqui, embora só seja por minha larga experiência da vida -respondeu Isabelle. - Não devo permitir que continue
ignorando os planos do conde para você.
O coração de Cassidy saltou em seu peito.
-Rowena e Quentin me falaram de uns planos dele, mas não explicaram...
-Duvido que se atrevessem -Suspirou.- Cassidy, merece saber que ele já dispôs seu futuro como parte da Causa. Ele se dedica a combinar matrimônios que salvam
a raça dos homens-lobos da extinção...

-Sei. Ele quer que Rowena se case com um homem que nem sequer conhece. Isso não é correto...
-Não, não é. Lorde Greyburn pretende que você seja simplesmente outro peão em sua estratégia. Seus planos para você, Cassidy... -Baixou o olhar.
Cassidy fechou os olhos e conteve o fôlego.
- Ele decidiu que você se casará com seu irmão, Quentin.
- Casar-me ... com Quentin?
-Acredito que o conde planejou isso faz tempo -disse Isabelle com suavidade. Tem a determinação de que seu programa de criação lhe servirá com o melhor
quando Quentin e você tiverem filhos. Você permanecerá a salvo com a família, mas não se relacionará com os Forster para não criar... dificuldades - Estremeceu.
- OH, Cassidy, como queria evitar-lhe isto.
Cassidy sentou-se na beira da cama, enrolando a corda entre seus dedos com ar de atordoamento. Preocupou-se porque Braden não a considerava verdadeiramente
uma loup-garou ou parte de sua Causa, e agora Isabelle dizia que ele esperava que ela... que a queria para... Quentin. Um homem que agradava -a. Um irmão. Não alguém
cujo beijo podia converter seu sangue em música e enviar descargas elétricas por todo seu corpo.
-Por que Quentin? -perguntou. - Por que não...
Os olhos de Isabelle estavam cheios de compaixão.
-Não sei. O conde não compartilhou suas razões comigo.
Nem as tinha compartilhado com Cassidy. Podia ter explicado em infinidade de ocasiões e tinha preferido não fazê-lo. Em lugar disso, tinha-a deixado imaginar,
esperar e acreditar em coisas que não sabia que fossem possíveis, até que ele entrou em sua vida.
Mas Braden não a queria.
A dor percorreu-lhe o braço, e se deu conta de que tinha enrolado a corda tão fortemente a seu redor que quase tinha talhado o fluxo de sangue. Seus dentes
estavam apertados e seu coração palpitava. De todos os novos sentimentos que Braden lhe inspirava, este era o que mais a aterrorizava.
Fúria. Saboreou a emoção com cautela, como faria com um condimento desconhecido. Estava furiosa com o Braden, de uma forma como nunca o tinha estado antes.

No Novo México, acostumou-se à posição de órfã não desejada. Seus tios, apesar de sua indiferença e as pequenas crueldades de tia Harriet, nunca a tinham
aborrecido por muito tempo. Podia perder-se no trabalho ou em seus livros. E sempre soube que sua vida seria muito melhor algum dia, com apenas ser paciente.
Em Greyburn era diferente. Pouco a pouco, como uma serpente de cascavel despertando ao sol, uma cólera desconhecida para ela se desenvolvia em algum lugar
desconhecido em seu interior. A princípio não tinha reconhecido, mas agora sabia. Tinha estado furiosa pelas regras que faziam Isabelle sofrer, furiosa com lorde
Leebrook, furiosa com Rowena. Na biblioteca, inclusive atreveu-se a desafiar a decisão de Braden sobre Isabelle.
Esta fúria era a mais forte de todas. Pessoal. Abrasadora como o deserto em uma tarde de verão. Quanto mais tentava se acalmar, mais forte se sentia. Era
um animal selvagem escondido atrás de suas costelas, frenético e formidável, tratando de abrir caminho para fora.
-Cassidy -Alguém tocou o seu braço. Ela saltou da cama e Isabelle retrocedeu.
-Sinto muito -disse Isabelle, abraçando a si mesma.
- Se eu soubesse... -Sou uma menina estúpida -disse Cassidy. As palavras saíram entrecortadas, curtas e duras, como freqüentemente era Braden. Agora ela
sabia porque soavam dessa forma.
- Rowena e você trataram de me avisar, mas eu não compreendi.
-Como poderia? -disse Isabelle. - Os homens nasceram para enganar as mulheres e a usá-las. Está em seu sangue, sejam humanos ou não.
Um estalo novo de música subiu do salão. Cassidy avançou para a porta, colocou sua orelha na madeira e logo abriu-a um pouco. Telford tinha ido.
As perfeitas feições de Milena encheram sua mente. O que teria feito ela agora? Rowena disse que era obediente e boa. Talvez por isso Braden a amou. Mas
ser boa não adiantou para Cassidy.
Sua boca formou um sorriso torcido que não encaixava em seu rosto.
-Não esperarei neste quarto para que outras pessoas decidam meu futuro -disse.

- Sou parte da Causa de Braden, assim deveria estar com outros. Vou descer, Isabelle.
Isabelle levantou-se, alisando as escuras saias.
-Há alguns dias teria desmotivado semelhante rebelião, Cassidy. Mas hoje não. Já não - Aproximou-se do roupeiro e tirou o melhor vestido de noite de Cassidy.
- Deixe que te ajude a vestir-se.
Quando Isabelle terminou com ela, Cassidy soube que estava preparada como nunca para enfrentar os convidados, os quais tinham proibido que encontrasse.
Isabelle abriu a porta e confirmou que tinha o caminho livre, depois beijou a bochecha de Cassidy e desejou-lhe boa sorte.
Havia alguns serventes pelo corredor e junto às escadas, mas nenhum indício de Telford. Cassidy podia ter utilizado o sigilo para cruzar a casa, mas optou
por caminhar erguida e audaz, impulsionada pela fúria que ardia baixa e firme em seu peito. Alguns dos serventes com quem cruzou, pareceram a ponto de falar ou
detê-la, mas ela olhou-os e ficaram em silêncio, exatamente como se tivessem visto o próprio Braden.
Esse era um poder que ela sabia que era ruim, e que não tinham motivo para temê-la. Mas aproveitou a vantagem que lhe ofereciam. Alcançou o salão em uns
poucos minutos. Aynsley, que aguardava no exterior das portas junto com algumas donzelas e criados, olhou-a com inquietação mas não bloqueou seu caminho.
A tensão golpeou-a com uma força tangível no momento em que entrou no salão. Deteve-se na soleira, desorientada pela pesada sensação de vontade insana,
ansiedade e cautela mescladas. Ninguém notou sua presença, e teve oportunidade de realizar uma rápida avaliação das pessoas reunidas ali.
Braden estava do outro lado do salão e de costas, mas ela soube por sua postura que aguardava, esperava e vigiava que passasse algo e não precisamente bom.
O perigo marcava cada linha de seu corpo sob o perfeito corte de seu traje.
A não ser pela postura dele e o manto de temor no ar, a reunião teria parecido uma festa normal de conhecidos.

Rowena estava sentada ao piano, tocando uma alegre melodia como se nada ruim acontecesse. Quentin permanecia de pé junto a ela, passando as páginas da partitura.
Havia outras sete pessoas no salão: três mulheres e quatro homens, um dos quais falava com Braden. Um casal dançava ao som da música . Outro casal se mantinha afastado,
e o casal restante estava sentado cadeiras agrupadas junto ao piano. Todos tinham expressões neutras ou agradadas, e cada um era uma máscara.
O que tentavam ocultar?
Elevou o queixo e caminhou dentro do salão.
Quentin, ao menos, viu-a. Deixou o piano e caminhou ao seu lado.
-Cassidy -sussurrou, tomando seu braço. - Não foi uma boa idéia descer esta noite.
Ela liberou o braço de seu apertão.
-Não acha que tenho direito a saber o que está ocorrendo?
O olhar dele estudou-a como se estivesse vendo uma estranha.
-De fato, sim acredito. Mas é muito mais complicado do que você possivelmente possa...
-Compreender? Como sabe se não me der uma oportunidade, ou dito a verdade? -Olhou-o fixamente e ele foi o primeiro a afastar o olhar.
- Dirá a verdade, Quentin?
Ele olhou para cima, com a comissura de sua boca torcida em um sorriso irônico.
-Farei o melhor que possa, mas não há muito tempo para explicações.
-Vai ocorrer algo, verdade? -disse ela. - Posso sentir. O que acontece?
Com um veloz olhar ao redor, puxou-a para a parede.
-O que sente é somente o que está acostumado a ocorrer quando tantos loups-garous de diferentes famílias se reúnem -disse. - É natural entre nós defender
nosso território e desafiar a aqueles que o transpassam. Estas reuniões são relativamente novas entre os de nossa espécie. Aprendemos a deixar o instinto de lado
em favor da civilização... e a sobrevivência. -Agora seu sorriso era abertamente zombador. - Se não fizermos, não ficará nenhum de nós para continuar a Causa de
Braden.
A Causa. Sempre a Causa. Ela inspirou profundamente e sacudiu a cabeça.

-É mais que isso. Eu...
Mas Quentin colocou-se de lado para dar passagem a Braden, que reclamou a mão de Cassidy e enlaçou-a por debaixo de seu cotovelo, sujeitando os dedos sobre
sua manga.
Por um instante a expressão dele prometia um castigo terrível por sua desobediência. Mas o homem com quem ele estava conversando se encontrava somente a
um passo atrás dele, e a desapaixonada máscara de Braden deslizou rapidamente de volta em seu lugar.
O desconhecido tinha o cabelo escuro e bigode, era bonito com feições afiadas e pele bronzeada. Seu olhar passou de Cassidy a Braden, com uma sobrancelha
arqueada.
-Poderia nos apresentar, por favor? -perguntou.
-Senhorita Holt -disse Braden com rígida formalidade-, permita que a presente a Dom Alarico Julian Do Feroz, delegado da principal família loup-garou da
Espanha. Dom Alarico, esta é minha prima da América, a senhorita Cassidy Holt.
-Senhorita Holt -disse Dom Alarico, inclinando-se com uma floricultura. - Encantado.
Cassidy realizou uma reverência.
-Boa noite, senhor. O que acha da Inglaterra?
Ele riu com deleite.
-Fala meu idioma! Como não vou amar a Inglaterra estando você aqui, senhorita? Lorde Greyburn, como é que não tinha conhecimento de sua deliciosa prima?
- Fui criada no Novo México -disse Cassidy.
- Eu...
-A senhorita Holt chegou à Inglaterra muito recentemente -disse Braden, arrumando-se as para aproximá-la mais a seu flanco. - Seus pais estão mortos e
se converteu em parte de nossa família.
- É um precioso adorno, certamente -disse o espanhol. - O Novo México deve estar chorando sua perda - Olhou Cassidy com aberta avaliação.

-Esteve alguma vez no Novo México? -perguntou ela. - Aqui é formoso, mas às vezes sinto falta do deserto.
O espanhol assentiu.
-Compreendo. Não estive ainda em sua terra, mas na Espanha - Interrompeu-se e inclinou a cabeça.
- Ah, a música. Perfeita para dançar.
A música tinha trocado, de algo suave e modesto a uma ligeira valsa. Rowena, ao piano, tinha um sorriso estático em seu rosto. O casal sentado estava de
pé agora, tomando posições para o baile.
-Com sua permissão, lorde Greyburn -disse Do Feroz. - Senhorita, permite-me a honra deste baile?
Cassidy ruborizou.
-Sinto muito, senhor. Nunca aprendi.
-Então possivelmente possa lhe ensinar -respondeu ele. - Não tenho dúvidas de que estará magnífica. -Estirou sua mão.
Braden moveu Cassidy de forma que ficasse detrás dele.
-Desculpe, Dom Alarico, mas reclamo este baile.
O espanhol olhou Braden fixamente, fez uma breve inclinação e se tornou para trás.
-É óbvio, milord. Serei paciente.
Antes que Cassidy pudesse reagir, Braden tomou-a nos braços. Não era como um abraço, ele a sustentava um pouco separada de si, colocando a mão esquerda
dela sobre seu ombro e colocando sua mão direita ao redor da cintura dela. Depois, de acordo com a música, começou a mover-se, guiando-a com movimentos cheios de
graça que ela somente tinha podido vislumbrar através das janelas do salão de sua tia.
Ela sabia que era torpe. O ajustado vestido não fazia que fosse mais fácil, e além disso, não tinha esquecido sua cólera por Braden. Mas a música criou
uma classe de magia, e Braden a olhava fixamente com uma intensidade que convertia sua cegueira em algo sem importância. Seus dedos curvados ao redor de sua cintura
eram muito quentes e fortes, o apertão de sua mão era possessivo. Outros dois casais compartilhavam o centro da habitação, mas Cassidy apenas o notava.

Braden a deslizava pelo piso, e ela quase esqueceu a tensão e sua resolução de procurar resposta, inclusive o ultraje que em primeiro lugar a tinha levado
escada abaixo. A música e o baile levaram-na a outro mundo. Era como no bosque, quando Braden e ela estiveram em perfeita harmonia durante uns preciosos momentos.
O rosto dele estava perto do dela, sua severidade suavizada pela melodia e seus lábios ligeiramente abertos. Ela poderia ter jurado que ele também quase tinha esquecido
que não estavam sozinhos.
Não se dava conta de que este lugar fora do tempo, onde estavam, era onde ambos pertenciam? Não parecia tão correto para ele como o era para ela? Era possível
que ele não sentisse estes calafrios de calor e frio, esta temerária necessidade de esmagar cada parte de seu corpo contra o seu, sem nada entre eles?
Havia uma só maneira de saber. Devia falar com ele, agora, antes que encontrasse algum modo de rechaçá-la de novo.
Estava pensando em como dirigir seus giros de baile para a porta do salão quando outro estranho se interpôs no caminho. Imediatamente, antes que sequer
pudesse pensar nisso, Cassidy compreendeu a origem de toda a tensão, toda a má vontade da habitação, estava aqui.
Aqui, neste homem, o qual sorria amplamente, mas sem um pingo da sinceridade do espanhol. Seu cabelo era comprido e claro, e flutuava sobre seus ombros
como o de um anjo. Sua pele também era clara, seu rosto possuía um encanto sobrenatural e seus olhos brilhavam como a prata à luz dos abajures.
Parecia-se indubitavelmente ao retrato de Milena.
-Assim, esta é a misteriosa senhorita Holt, de quem tanto ouvi falar -disse. - E você a escondia de nós, lorde Greyburn. Deve compartilhar semelhante tesouro
com seus convidados, ou poderíamos acreditar que está faltando à hospitalidade devida.
A mão de Braden esmagava a de Cassidy.
-Minha hospitalidade é ilimitada... para meus convidados. A senhorita Holt estava a ponto de retornar aos seus aposentos.
-Pois não parece necessitar de nenhum descanso. De fato, parece bastante... disposta a compartilhar os prazeres de nossa reunião -Observou Cassidy dos pés
à cabeça de uma maneira muito distinta à cortês apreciação de Do Feroz.

- Já que seu guardião não parece desejar nos apresentar, tomarei a liberdade por mim mesmo. Sou Stefan, conde Boroskov, da Rússia.
O piano silenciou abruptamente. Os outros dois casais pararam. Cassidy viu cada rosto no salão voltar a atenção a Braden e a Stefan. Rowena levantou-se
do assento, com as mãos apoiadas sobre o teclado. Quentin deu um passo para diante e se deteve.
-Tão silenciosa, senhorita Holt? -disse Boroskov. - Isso não é o que me contaram sobre você ...., a refrescante sinceridade dos americanos faz que sejam
tão... desenfreados.
Seus olhos chapeados passearam sobre ela de novo, e Cassidy soube de alguma forma que estava imaginando-a sem sua roupa, nua e vulnerável. O que teria sido
maravilhoso com Braden, parecia algo vergonhoso e sujo com Boroskov. Sustentou o olhar do russo.
-Somente falo quando tenho algo a dizer.
Boroskov lançou uma gargalhada.
-Um pouco de espírito, também. Excelente. Deve ser inclusive mais interessante na cama do que esperava, né, Greyburn?
-Silêncio -espetou Braden. - Mantenha sua maldita boca...
-Mas não estamos todos aqui com esse preciso propósito? -disse Boroskov, com desprezo na voz. - Para nos emparelhar e perpetuar a espécie? -Aferrou a mão
livre de Cassidy.- Ter meninos com a senhorita Holt seria o mais prazenteiro experimento. Entregue-a para um de nós. Asseguro-lhe que sabemos como satisfazer nossas
fêmeas.
Braden puxou a mão de Cassidy, liberando-a do apertão de Boroskov e empurrou-a para detrás dele. Ela aterrissou nos braços de Quentin. Braden girou para
enfrentar o russo, mostrando os dentes.
Cassidy se retorceu entre os braços de Quentin. Os dois homens iriam embrenhar-se em uma briga por ela, mas soube que isso era tão somente uma desculpa,
uma desculpa para a batalha que obviamente ambos desejavam.
-Rowena, por favor, acompanhe as damas para fora -disse Braden.
Sua irmã duvidou, e logo se separou do piano.
-Senhoras, se forem tão amáveis de me acompanhar ao jardim...

As três convidadas olharam umas as outras. A menor, de cabelo castanho, reuniu-se com Rowena junto ao piano, seguida por uma mulher alta e loira de meia idade.
A terceira mulher, mais jovem e morena, não se moveu.
-Temos direito de ver -disse com um pesado acento.
-Serão informadas -disse Braden. - Agora vão.
A mulher olhou-o entrecerrando os olhos, mas obedeceu. Rowena aferrou o braço de Cassidy.
-Devemos sair -disse.
Cassidy se manteve quieta.
-Por quê?
-Não piore as coisas mais do que já estão -sussurrou Rowena. -Ainda há uma oportunidade... - Calou-se e, com uma força surpreendente, empurrou Cassidy
para as portas do jardim. As outras damas seguiram-nas.
-Senhorita Holt -chamou Boroskov-, estou seguro de que nos conheceremos melhor muito em breve. Muito, muito melhor.
Unicamente o apertão de Rowena manteve Cassidy em movimento. A tensão entre as mulheres era quase tão aguda como a que havia no interior do salão.
-Rowena, me diga o que está ocorrendo -exigiu Cassidy quando saíram.
- Vão brigar, verdade?
-Não pode interferir -disse Rowena. Sua voz era áspera e entrecortada, impregnada disto ódio é o que provoca a besta de nosso interior- Afastou-se e permaneceu
sozinha, com os braços cruzados sobre as costelas.
-Senhorita Holt.
A mulher que falou era a pequena de cabelo castanho que tinha sido primeira em seguir Rowena. Cassidy reconheceu seu acento; era o mesmo de Boroskov. Imediatamente
ficou em guarda.
Mas a mulher russa parecia ansiosa e assustada, olhando por cima de seu ombro para as portas como se esperasse um ataque.
-Meu nome é Tasya -disse.

- Sou a prima do conde Boroskov. Por favor, há algo que devo lhe dizer. Uma vida está em jogo. Não sei que mais poderia fazer para abordá-la -Olhou para Rowena
e estremeceu.
- Você deve sabê-lo, já que vai ser a companheira de lorde Greyburn.
Cassidy abriu a boca para contradizer a mulher russa, mas Tasya continuou falando com inegável urgência. -Esta é minha única oportunidade -disse-. Meus
primos me impediriam isso, se soubessem -Agarrou a manga de Cassidy com acanhamento. - Você deve me ajudar a salvar ao filho de lorde Greyburn.
CAPITULO 14

Cada homem no salão sabia o que ia ocorrer. Braden tinha se permitido acreditar que Boroskov seria mais sutil. Preparou-se para observar o russo a cada
minuto, até que fizesse seu primeiro movimento, durante dias possivelmente, inclusive até o segundo último da Convocatória.
Seu julgamento foi terrivelmente equivocado. A espera chegava a seu fim, quase antes de começar. Boroskov estava impaciente. Mas também Braden. O insulto
que o russo fez à Cassidy era um ultraje que não podia deixar passar sem desafio.
Braden lutou por dominar sua fúria inverificada. Quando Boroskov falou com Cassidy, sobre ela, como se fosse um simples objeto de luxúria, seu domínio de
si mesmo quase se derrubou. Cada primitivo impulso exigia que atacasse o russo sem aviso, passando por cima das estritas regras de Tiberius para os desafios.
Semelhante ação teria terminado em desastre. Necessitava da gelada imparcialidade que emanava da absoluta concentração por sobreviver. Se agora falhasse
em manter sua liderança, perderia tudo. A Causa sofreria um dano irrevogável.
Sua debilidade seria um convite aberto para qualquer loup-garou que desejasse romper seu domínio.
Nenhum loup-garou teria a oportunidade. Sua cegueira era uma desvantagem, mas devia derrotar o russo igualmente. Qualquer outra coisa era inaceitável. Não
se tratava somente de salvar sua própria vida, isso tinha pouco valor.
Mas a Causa estava em perigo. A Causa... e o destino de Cassidy. Boroskov não ameaçava em vão. Se vencesse, usaria Cassidy para seus próprios desejos vis.
E se ocuparia de que Rowena sofresse. Quentin, também, morreria tentando vingar seu irmão.
Não podia ocorrer. Ninguém mais tocaria em Cassidy...
Sacudiu-se e enfrentou Boroskov. O ritual devia proceder de forma correta, passo a passo. Matar alguém de sua própria raça era um assunto muito grave entre
os loups-garous, e esta seria uma luta até a morte.

O ambiente estava mortalmente silencioso.
-Por que veio aqui, Boroskov? -perguntou.
O russo riu brandamente.
-Já sabe, Greyburn. Ambos sabíamos desde que cheguei. Meu irmão e eu esperamos suficiente por nossa vingança -Sua voz varreu a reunião.
- Escutem-me. Este hipócrita se casou com minha irmã pelo bem de sua preciosa Causa, mas não pôde provar a si mesmo como um companheiro digno dela. Quando,
com seu doentio ciúme, esforçou-se por escravizá-la como a uma serva, ela pediu que a liberasse de seu matrimônio. Ele negou. Manteve-a como uma prisioneira até
que se viu obrigada a escapar. Morreu no intento - voltou-se para Braden.
- Onde estão seus herdeiros, Greyburn? Onde está a prova da pureza de seu sangue e o motivo para a dor e sofrimento de Milena?
Braden sentiu como outros o observavam, começando a perguntar-se e a questionar-se. Mas não mentiria, nem sequer agora.
-Não obteve o que exige de nós -disse Stefan. - Não é digno de nos liderar -Estalou os dedos. - Aprenderá quão singelo é esmagar a Causa que destruiu a
minha irmã.
-Nada pode destruir a Causa -disse Braden. - E muito menos você.
-Ah, mas está equivocado. É o único que se preocupa o bastante para mantê-la viva. Não haverá maiores Convocatórias quando estiver morto.
-Nãoo conseguirá -disse Dom Alarico, dando um passo para diante. - Eu...
Apesar da falta de visão, Braden soube o que ocorreu nesse instante. O sangue do russo era forte; por isso seu avô escolheu-o para uní-lo aos Forster. Do
Feroz retirou-se e não voltou a falar.
Braden rompeu o silêncio. -Está-me desafiando, Boroskov?
- Ir-a inclinar-se ante mim, Greyburn? Se o fizer, respeitarei sua vida. Você é só meio homem, depois de tudo. Quase me compadeço de ti -Suspirou.

- Sim, se rebaixar ante mim e me jurar lealdade, permitirei que sua irmã deixe Greyburn a salvo. Dissolverei esta Convocatória sem violência. Mas a senhorita
Holt... ela será meu prêmio.
-Jamais.
-Então o desafio, Lorde Greyburn. Pelas mesmas leis que seu avô estabeleceu, reclamo o direito de liderar esta Convocatória. Pelas mais antigas leis, reclamo
tudo o que é dele.
-Aceito seu desafio, conde Boroskov. Pelas leis da Convocatória, e mediante os antigos costumes de nossa gente, derrotarei-o- Dirigiu-se com calma aos outros.
- Não há razão para demora. Encontraremo-nos à beira do bosque detrás de Greyburn, dentro de quinze minutos...
-Sós -disse Boroskov. - Você e eu, Greyburn. Ninguém mais.
-Temos direito de ser testemunhas -afirmou o delegado húngaro, tal como sua esposa tinha afirmado antes. - Não nos pode impedir isso, russo.
Boroskov riu de novo.
-Muito bem. Todos poderão ver Greyburn morrer aos meus pés.
Saiu a pernadas da sala. Outros falavam com sussurros, impregnados de inquietação e alívio.
-Quentin, -disse Braden - Procure Rowena e Cassidy. Leve-as para longe de Greyburn, tão longe como puder.
-A húngara tinha razão -respondeu Quentin, totalmente sério. - As damas têm tanto direito de serem testemunhas do desafio como os outros.
-Rowena não desejará esse direito, e Cassidy não tem por que sabê-lo.
-Espera que eu te abandone agora? -perguntou Quentin. - Braden...
Braden aferrou os braços de Quentin e sacudiu-o sem piedade.
-Faça o que te ordeno, irmão. Leve-as . Aconteça o que for aqui, deve mantê-las a salvo.
Quentin deixou escapar um comprido suspiro.
-E as outras mulheres?
-Deixe que venham.

Deu as costas a seu irmão, acreditando que Quentin obedeceria. Quentin conhecia as conseqüências que sobreviriam à derrota de seu irmão; também ele desejava
proteger Cassidy e Rowena. E se partisse, não poderia desafiar Boroskov em vingança.
Braden aguardou até que escutou as portas do jardim serem fechadas atrás de Quentin, e voltou-se para os convidados.
-Cavalheiros -disse. -Iremos nos rever em quinze minutos.
-Se seu irmão não for ser seu padrinho, ofereço-lhe meus serviços -comentou Dom Alarico junto ao seu ombro.
- Será uma honra para mim.
-Muito bem, senhor. Obrigado.
Do Feroz abandonou o salão. Outros delegados o seguiram. Braden permaneceu sozinho, preparando-se para a luta.
Encontrou Aynsley assim que saiu do salão, cheio de terror. Com poucas palavras, Braden relatou o que o mordomo ainda não conhecia. Aynsley se encarregaria
de que nenhum humano se aproximasse do círculo do desafio. Braden chamou Telford e ordenou-lhe que aguardasse pela volta de seu senhor. Quando tudo isto passasse,
conversariam sobre o abandono em seu dever de manter Cassidy afastada da obscena influência de Boroskov.
Quinze minutos mais tarde, Braden foi à beira do bosque. O aroma da violência já impregnava o ar da noite. Identificou as mulheres húngaras e alemãs, assim
como todos os convidados varões. Cassidy, Rowena, Quentin e a mulher russa não estavam presentes, assim como Fedor, o irmão de Stefan. O pêlo se arrepiou na nuca
de Braden.
Stefan esperava-o no centro do círculo formado pelos delegados. O ódio e a maldade emanavam do russo, como os gases nocivos de um pântano. Seu poder era
tangível; poder cru e corrupto da pior espécie.
As ameaças eram inúteis agora. As palavras não significavam nada. Este era o coração da natureza do homem-lobo, a alma selvagem que nunca tinha sido domado.
Somente conhecia a ação e a vontade de sobreviver a todo custo.
Era o que a metade humana odiava.

Braden começou a despir-se. Ouviu Stefan fazendo o mesmo. As testemunhas não emitiam nenhum som, exceto o de sua própria respiração.
Quando estava nu, Braden trocou. Como sempre, desfrutou com a transformação de seu corpo. Os músculos e os ossos se estiraram sem dor, sacudindo-se livre
das limitações humanas. Em apenas uns segundos se escondeu completamente transformado em lobo, cego como antes, mas possuidor de uns sentidos muito mais agudos que
em sua forma humana. Cada aroma tinha uma cor, cada som possuía uma textura.
E tudo ficou simples, limpo e claro. Afastou as testemunhas de seus pensamentos e se concentrou para a batalha. Como desafiado, correspondia-lhe o primeiro
ataque.
Mas Boroskov rompeu as regras. Devido a Braden estar preparado para uma traição assim, o impacto do corpo do russo não foi tão devastador como seu inimigo
esperava. Derrubaram-se na terra, cada um procurando a posição superior, com os dentes nus e as orelhas esmagadas.
Braden permitiu que o lobo tomasse completa posse de sua mente assim como de seu corpo. Esqueceu que alguma vez tinha tido o sentido da vista. Seus ouvidos,
seu focinho, seu flexível corpo e o sexto sentido inerente à raça loup-garou se expandiram a uma máxima capacidade. Sem engano, suas mandíbulas encontraram a pata
dianteira de Boroskov e morderam com força. Boroskov uivou de dor.
Era somente a primeira finta de uma larga e desesperada luta. Porque Boroskov também era poderoso, e sua depravação desconhecia qualquer sinal de ética.
Dava rédea solta ao seu ódio, e com sua temeridade era um adversário letal; tal como Braden o via. Sua própria disciplina lhe daria a vantagem final. Agora, eram
iguais.
A luta era desumana e sem piedade em ambas as partes, sem pedir ou dar piedade. Braden caía ao chão uma e outra vez, para saltar imediatamente ao encontro
das afiadas presas de Boroskov. O sangue corria e as garras escavavam para manter-se na terra revolta. As numerosas e pequenas feridas que salpicavam seu corpo sob
a pesada pelagem eram ignoradas, assim como Boroskov ignorava as suas. Somente os grunhidos ocasionais rompiam o horripilante e implacável silêncio.

Mas os danos infringidos se faziam mais severos, e a extenuação cobrava seu preço. Boroskov utilizava sua cegueira contra ele com maior freqüência. O sangue
empapava a pelagem de Braden e fazia que Boroskov escapasse de seus intentos. Os músculos se esticaram até o limite. Braden convocou suas mais profundas reservas
de energia para manter-se em pé.
E então cometeu um engano. Por um desastroso instante, todos seus sentidos lhe falharam. Calculou equivocadamente a posição de Boroskov, saltou ao ar vazio,
e repentinamente o russo estava em sua garganta, empurrando-o debaixo dos seus oitenta e oito quilogramas de ossos, músculos e malevolência. Os dentes atravessaram
a carne de Braden, penetrantes e dilaceradores.
Cassidy. Boqueando em busca de ar, Braden sentiu-a como se estivesse ao seu lado, oferecendo-lhe sua coragem e sua força. Em seu interior, ele uivou. Toda
a coragem dela não significaria nada se Boroskov ganhasse. Converteria-se em seu brinquedo, sua inocência seria corrompida; seu corpo, violado...
Com um estalo final de energia, Braden elevou-se, lançando Boroskov a um lado como se só fosse um manto de folhas mortas. Esmagou o russo com todo seu
peso, tentando morder o pulso da vida que pulsava quente sob a mandíbula de seu adversário.
O som de um disparo retumbou junto ao ouvido de Braden, fazendo-o perder sua presa. Vozes gritaram. Um corpo golpeou-o, não o de Boroskov a não ser outro;
Fedor. Fedor, que tinha estado ausente todo o tempo. Fedor em forma lobina, unindo-se traiçoeiramente a seu irmão.
As testemunhas não podiam interferir. Fedor estava fresco, ileso. Com seu irmão junto a ele, carregou de novo. Braden caiu. As probabilidades estavam contra
ele agora, e a morte estava perto. A extenuação e a dor lhe traíam tanto como seus inimigos. Mantinha-se a mesma beira do fosso.
As presas penetravam sua garganta. O mundo se voltava mais negro do que nenhuma cegueira poderia conseguir.
Cassidy, gritou sem som.
Ela respondeu. Estava ali, de verdade, seu aroma e seu inconfundível espírito. Ele era incapaz de gritá-la que se fosse, realizou um último esforço por
não cair na inconsciência.

Em um momento as presas do Stefan estavam preparados para cortar sua traquéia, e no momento seguinte o russo não estava, uivando de dor. Um alvoroço de
gritos e corpos que fugiam descendeu ao seu redor. Ofegou em busca de fôlego, consciente tão somente de que Fedor e Stefan já não tentavam matá-lo... e de que Cassidy
estava perto, sua presença como uma melodia triunfal.
-Espere -ordenou uma voz familiar. Quentin-. Tel-Ford, por favor...
Telford também estava ali, e todos os delegados, e Rowena. Quentin tinha desobedecido. Não tinha posto às mulheres a salvo.
-Braden -disse Quentin, sua mão apoiada com gentileza sobre seu lombo.
- Pode me ouvir?
A inconsciência estava muito próxima, e com ela a completa impotência. Milagrosamente estava vivo, e seus inimigos temporariamente vencidos. Mas se não
se transformasse rapidamente, poderia ficar apanhado em sua forma lobina até que suas feridas sanassem completamente, incapaz de falar ou liderar.
Existia um risco considerável em trocar agora. Se aguardasse, poderia curar-se de forma natural e transformar-se quando estivesse recuperado. Se transformasse
enquanto estava gravemente ferido, fraco como estava, podia acabar com o que lhe subtraía de energia vital, e morrer durante o processo. Ou se curava a si mesmo
em um único e grande esforço durante o milagre da transformação... ou morreria.
Fez sua escolha. Foi vagamente consciente do juramento de Quentin, enquanto obrigava seu corpo a voltar-se humano de novo. Desta vez não foi uma metamorfose
fácil. Cada célula protestou. Seus ossos, músculos e carne gritaram de agonia.
Mas quando terminou, estava vivo. Seu corpo estava inteiro, mas se sentia tão fraco como um cachorrinho recém-nascido.
-Onde... está Cassidy? -exigiu saber.
-Você... idiota, Braden... poderia te matar agora mesmo -Tragou audivelmente.
- Cassidy está a salvo. Ela é quem te salvou.
Braden tentou levantar-se do chão, mas falhou. Quentin sustentou-o até que pôde ficar de joelhos.

-Ordenei-te que a levasse... -Tossiu. - Como?
Quentin entendeu.
-Quando fui ao jardim, ela não estava e tampouco a mulher russa. Agarrei Rowena e fomos procurá-la. Encontrei-a com Telford ao fim, mas se negou a vir
comigo. Tinha que usar a força para detê-la e inclusive então não acreditei que poderia conseguir. É uma verdadeira tigresa. Ela sabia o que ia ocorrer. Correu ao
seu quarto e saiu com uma corda, empurrando-nos até aqui -Riu com um pouco de amargura. - Felizmente para você e para todos nós. O disparo que ouviu... era John
Dodd, Braden. Disparando em você -Confirmou o assombro de Braden com um bufo.
- Sim, Dodd. Saiu de alguma parte. Havia outro homem com ele, igualmente armado. Viraram-se para nós, dando ao Fedor a distração que necessitava para sair
de seu esconderijo e atacar. Do Feroz foi ferido tentando te ajudar... e então Cassidy se lançou ao círculo e enlaçou Stefan por suas patas traseiras.
Assombrado, Braden tentou conjurar a cena em sua mente.
-Cassidy... enlaçou Stefan?
-Como se fosse um pedaço de bife em um garfo. Acredito que chamam de "laço". Muito divertido. Puxou-o, afastando-o de você, dando-nos a oportunidade de
vencer os humanos e capturar Fedor.
-Dom Alarico está ferido?
-Estava, ... mas antes que pudéssemos ajudá-lo, desapareceu. Não tornamos a vê-lo após. OH, não há dúvida de que está do nosso lado, mas definitivamente
partiu. Tomamos como prisioneiros Stefan e Fedor, agora estão em nossas mãos. E também Dodd. O outro homem escapou. Todos os outros voltaram para casa.
-Dodd -disse Braden.
- Os russos devem tê-lo contratado, antes da cerimônia. Atando-o à sua vontade, contra nós...
-Também tentaram o mesmo comigo -disse outra voz. Telford se ajoelhou junto a eles.

-Perdoe-me, milord. Falhei em meu dever de guardar a senhorita Holt. Ausentei-me uns escassos momentos para investigar uma atividade suspeita na ala de convidados,
e Fedor me abordou. Revelou os planos de Stefan para forçar o desafio. Tentou me obrigar a trair o senhor. Tive que permitir que acreditasse que tinha tido êxito
-Telford esclareceu a garganta.
- Não teria me deixado partir até estar seguro de que eu procederia segundo suas ordens, e até que a senhorita Holt partisse. Cheguei muito tarde para
advertir ao senhor .
Isso explicava o desacostumado abandono do dever de Telford.
-Obviamente encontraram outros que obedecessem a eles -disse Braden.
- Sinto-me agradecido por existirem alguns humanos que não podem ser influenciados.
-Não obstante -disse Telford rapidamente-, falhei...
-A falha foi minha. Deveria ter sabido que tentariam isto.
-Agora já aconteceu -observou Quentin. - Precisa descansar.
Braden se balançou sobre seus joelhos.
-Ocupe-se de que Dodd e os russos estejam presos, Quentin. Irei vê-los assim que puder ... -Somente o sustento de Quentin evitou que caísse.
- Traga-me minhas roupas, Telford.
O ajudante apressou-se em obedecer, e Braden se concentrou em manter-se consciente o tempo suficiente para vestir-se e retornar à casa.
- Ajude-me a levantar -pediu a Quentin. - Comprove que Cassidy...
Sua petição nunca se completou. Uns braços fortes e esbeltos rodearam seu peito, o doce aroma do cabelo de Cassidy afligiu seu nariz. Os lábios dela roçaram
o oco de seu ombro, e as lágrimas molharam sua pele.
-Está bem -disse ela. - Graças a Deus.
-Não pude contê-la mais -disse Rowena. - Braden?
Mas ele não emprestou atenção a sua irmã. As mãos de Cassidy voavam sobre seu corpo, tocando-o por toda parte como se tivesse que se convencer de que estava
inteiro.

Braden não tinha forças, nem desejos, de afastá-la. Seu contato era curativo, como nada no mundo podia ser.
-Estou bem -respondeu ele, acariciando seu cabelo. - Muito bem.
Quentin tomou seu braço e ajudou-o a ficar em pé. Cassidy sustentou-o pelo outro flanco, dedicando-lhe palavras tranqüilizadoras como se fosse água cristalina
de um arroio.
Se alguma vez tinha necessitado de toda sua firmeza, era agora. A Causa ainda era perigosamente frágil. Um único passo em falso podia fazê-la em pedacinhos.
Havia posposto a decisão sobre o futuro de Cassidy. O ocorrido tinha provado que não podia esperar mais.
-Lorde Greyburn a verá agora, senhorita Holt.
Cassidy levantou-se de um salto da cadeira que Telford havia lhe trazido, piscando para tirar o sono dos olhos. O corredor em frente ao dormitório de Braden
estava escuro, mas ela sabia que a tarde já começava. Braden tinha estado se recuperando em seus aposentos durante algo mais de dezoito horas. Para Cassidy, a espera
era interminável. Era completamente alheia ao que ocorria em Greyburn desde o duelo.
Observou o rosto gasto e cansado de Telford. O ajudante tampouco tinha dormido, e sua normalmente imaculada roupa estava enrugada e suja.
- Ele está bem? -perguntou ela.
-Sim. Senhorita Holt... - calou-se e sacudiu a cabeça. - Por favor, entre.
Ela desejava fazer-lhe muitas perguntas. Somente ele tinha cuidado de Braden após a briga. Só agora teve oportunidade de falar com o servente. Era como
a sombra de Braden, impressionantemente reservado, aparecendo quando lhe necessitava e desvanecendo-se depois.
Se tinha tido intenção de lhe dizer algo, tinha pensado melhor. Sustentou a porta aberta para ela com uma ligeira reverência.
Cassidy entrou no escuro aposento. Não tinha estado na suíte de Braden antes.


A porta se abriu para uma salinha de estar, uma cama era visível na câmara adjacente. Era imensa, rodeada por um marco ricamente esculpido do qual penduravam
umas cortinas estofadas. Mas, apesar de sua grandeza, existia algo íntimo nisso. Era o lugar onde ele dormia. Jazia ali cada noite, talvez sonhando como ela em não
estar sozinho...
-Telford me disse que desejava falar comigo -disse ele atrás dela.
- Disponho de um pouco de tempo para compartilhar contigo.
Braden estava sentado em uma cadeira junto à janela, completamente vestido, com a comida intacta na mesa ao seu lado. Seu rosto e ombros banhados pela luz
do sol. Cassidy se aproximou dele detendo-se um passo de sua cadeira.
-Não está ferido -disse ela. - Quentin me contou que curou a você mesmo...
-Estou perfeitamente bem.
Ela desejava jogar-se em seus braços, abraçá-lo com força, beijar sua boca e suas mãos, e sussurrar quão feliz estava por encontrar-se são e salvo. A fúria
da noite passada fez com que ela fosse audaz, mas essa fúria a tinha abandonado quando Braden esteve a ponto de perder a vida. Permaneceu onde estava, empapando-se
dele com todos seus sentidos.
-Salvou-me a vida -disse ele.
-Foi sorte -respondeu ela.
-Tinha a corda em meu quarto. Não pude encontrar nada mais. Quando o outro lobo te atacou, eu... não pensei. Só lhe joguei o laço.
Ele ficou em pé e lhe deu as costas.
-Enquanto John Dodd te apontava uma arma.
-Tudo o que sabia era que você estava em perigo. Vi uma oportunidade e a aproveitei. Não tive medo.
Algo golpeou violentamente o chão, Cassidy se sobressaltou quando os restos de uma taça de chá e seu pires se esparramaram através da madeira polida até
deter-se sob a mesa. O braço de Braden se esmagou a seu flanco. Ele se mantinha rígido, mas Cassidy pôde notar seu tremor.
-Não teve medo -disse ele. - Mas é a segunda vez que quase morreu estando sob minha responsabilidade -Flexionou a mão, abrindo-a e fechando-a-, é minha
responsabilidade.

Sua voz mostrava desgosto de si mesmo, e ela soube que estava envergonhado. Envergonhado porque pensava que devia protegê-la e conseguir que todos atuassem
tal como ele o desejava e ganhar uma batalha contra inimigos traiçoeiros, tudo sem ajuda alguma.
Acreditava que devia ser perfeito. Sem cometer enganos jamais. Sem necessitar nunca de nada nem de ninguém.
-Você foi ferido -disse ela. - Pensou que ficaríamos a um lado para observar enquanto você...?
Ele virou-se com brutalidade.
-Era um desafio -respondeu. - Sua interferência foi aceitável somente porque Stefan foi o primeiro a romper as regras.
-De modo que se eles não tivessem feito armadilha, outros teriam deixado que Stefan te matasse?
-Se fosse muito fraco para derrotá-lo... Se provasse ser indigno. É nosso costume.
-O costume loup-garou -disse ela, escutando a voz que veio da nova parte furiosa de si mesmo.
Ele inclinou sua cabeça a um lado.
-Eles tinham o direito de me desafiar pela liderança e estragaram tudo. Estão desonrados e sua provocação é nula. Mas a Causa sofreu...
-A Causa -disse ela. Sentou-se no frio chão, entre os fragmentos da taça e o pires. - Parece que somente atrai a tristeza... todos -Agarrou um pedaço pequeno
do pires e o girou entre seus dedos.- Sei por que os russos te desafiaram. Quando nos enviou ao jardim, a prima de Stefan, Tasya, veio a mim. Explicou-me tudo -Braden
se sobressaltou. - Ela não formava parte do que planejavam, mas precisava falar com alguém. Escolheu-me. Sei que a briga foi por sua esposa... Milena, sua irmã.
-E que mais te disse?
-Que o matrimônio tinha sido arrumado por seu avô. Milena era formosa e todos em Greyburn amavam-na. Rowena descreveu-a como um anjo.
-Rowena -disse ele, com a voz estrangulada.

-Tasya não falou muito sobre isso. Somente disse que Milena não era completamente feliz aqui. E os irmãos dela culpavam você por seu acidente -Ela tragou
com dificuldade. - Como morreu?
-Caiu -respondeu ele. - Durante uma tormenta.
-Sinto muito. Deveu ser horrível para você.
Ele não disse nada. Cassidy imaginou sua dor, perder Milena e sendo culpado por isso. Outra coisa que ele não podia controlar. Mas houve uma coisa que podia
trocar.
-Tasya me contou que se supunha que deviam ter filhos, mas não tiveram, mesmo após anos de matrimônio, quando ela... -Cassidy ruborizou, envolta por um
torvelinho de emoções ante o pensamento de Braden com outra mulher, tendo filhos. - Tasya me falou do seu filho.
-Meu ... filho? -sussurrou ele.
-Mikhail. Que rechaçou, enviando-o fora.
Braden se tornou para trás até que seus ombros tocaram a janela. Seu rosto estava branco como o papel. Não voltou a falar durante um comprido tempo.
-É verdade, então -disse Cassidy.- Eu não queria acreditar. Por que, Braden? -O pedaço pequeno do pires quebrado cortou sua mão. - Como pôde rechaçar seu
próprio filho?
Ele tinha o olhar vazio.
-Eu não podia criá-lo... depois de Milena... morrer.
O retrato de Milena cintilou na mente de Cassidy. Tinha sido sua dor tão indescritível que não pôde suportar ter uma constante lembrança de sua perda? Mas
não havia desculpa para transformar um menino em um órfão. Ninguém deveria fazer isso deliberadamente.
-De modo que o enviou com a família de Milena, para a Rússia...
Ele saltou como se sofresse uma descarga.
-Não enviei à Rússia. Arranjei um lar decente para ele, na Escócia...
-Mas ele está vivendo com a família de Stefan. Tasya cuida dele. Veio para te avisar, porque temia Stefan.
A reação de Braden golpeou-a como algo físico.

-Enviei-o à Escócia. É impossível...
-Está lá... e Tasya diz que está em perigo -O fragmento do pires caiu de sua mão e ela flexionou seus dedos para deter a hemorragia. - Sei que Stefan e
Fedor são pessoas malvadas. Senti algo mau em Stefan, inclusive antes que tentasse te matar. Soube que ele desejava te fazer mal -Mergulhou em sua memória.- Tasya
chamou-o de maléfico. Explicou-me... algumas das coisas que faziam em suas terras, na Rússia. Coisas terríveis a quão humanos vivem ali. Desejam que Mikhail seja
como eles. Tasya diz que se Mikhail permanecer com eles, se transformará em um deles.
Braden voltou-se para a janela, com as mãos apoiadas no batente.
-É muito tarde -sussurrou.
-Para quê? É só um menino. Tasya tentou criá-lo sozinha, mas Stefan quer afastá-lo dela. Se Mikhail tiver pessoas como Stefan lhe ensinando... -Ela ficou
em pé de um salto. - Tasya não pode evitar que machuquem Mikhail. Veio aqui para pedir sua ajuda. Você é o único que pode fazer algo.
Braden estava rígido como uma pedra.
-Não compreende.
-É seu filho. Não pode abandoná-lo. Sei o que é viver com pessoas que realmente não se preocupam com o que te ocorre. Se eu tiver um filho... - calou-se,
atingida pelo pensamento de como se faziam os meninos e tudo o que supunha. As coisas sobre as que Isabelle tinha falado.
Ela desejava essas coisas. Estar com alguém, e não podia imaginar viver sem ele. Casar-se. Ter filhos que pudesse amar, da maneira em que ela tinha sido
querida tanto tempo atrás.
E desejava o mesmo para Braden. Para ele, e para o pequeno menino que nunca tinha conhecido.
Para todos eles.
-É seu pai -disse ela. - Ele é um loup-garou. Acaso não é bom para sua Causa? -Golpeou a mesinha com o punho. A bandeja do chá saltou. A fúria fluiu através
dela, limpa e brilhante. - Obriga Rowena a unir-se a um estranho, e teve que lutar com os russos... tudo pela Causa. Mas não trará seu próprio filho de volta.

-Ele não é... -Apoiou a frente contra a janela. - Tenho minhas razões. Não peça mais do que posso dar.
-Nem sequer aceita o que alguém deseja te dar -respondeu ela.
- Conheço seus planos para me casar com Quentin. Também é por culpa de Milena? Deseja que eu vá embora, como Mikhail?
No exterior da janela, uma nuvem passou por diante do sol. Braden ficou envolto em sombras.
-Não me unirei a ninguém outra vez -respondeu.
Devido a que os loups-garous se unem para toda a vida? Isso era o que lhe havia dito. Mas isso não era tudo.
-É por mim? -perguntou ela.
-Por favor... vá.
Desobedece-lo teria sido tão fácil... Ela tocou suas tensas costas.
-Tem tanto -disse. - Não somente sua família e esta casa, a não ser... tanta força. Sabe quem é. Do que tem medo?
-Supõe muito.
Ela passeou sua mão ao longo de seu braço, desejando fundir-se com ele e sentir como ele se fundia com ela.
-Só porque finalmente sei o que eu desejo -disse ela. - Desejo pertencer a isto, Braden. Desejo ser parte de tudo o que te importa. Desejo que você... -Desesperadamente
recordou um encontro, esperando que fosse suficiente.
"Adotarei sua vontade,
verei com seus olhos e unirei meu coração ao teu.
Submeterei-me ao manancial de sua alma.
E estaremos juntos na vida,
para bem ou para mal."
Ele virou-se lentamente.
-Só para o mal, Cassidy. Não pode ver com meus olhos. Nunca.
-Mas você pode ver com os meus.
-O manancial de minha alma está seco. Morreria de sede.
-Cruzei o deserto antes. Posso agüentar muito tempo sem água.

Ele a olhou fixamente. Ela nunca tinha visto lágrimas em seus olhos, mas se alguma vez podia chorar, devia ser agora. O desejo brilhava como uma luz em
seu rosto. Parecia o moço que foi tempos atrás, ainda o bastante jovem para ser esmagado por uma palavra ou destroçado por um simples engano.... Ou confiando o
suficiente para amar com todo seu coração.
-Deixe-me tentar, Braden -disse ela. - Deixe-me encontrar o caminho para nós dois.
Os dedos dele apertaram seus braços. Seus lábios se abriram. Ela fechou os olhos e elevou seu rosto.
Desde alguma parte no profundo da casa, alguém gritou.


CAPITULO 15


Foi o grito que o salvou.
Braden afastou Cassidy e avançou para a porta. Ela se manteve a um só passo atrás dele.
-O que foi isso? -perguntou ela ansiosamente. - Quem...
-John Dodd.
-O servente? Onde está?
-Na Grande Sala -respondeu ele-, esperando ser interrogado. Disse a você que tinha assuntos que atender.
Ela capturou seu braço.
- Está sendo castigado...
-Ainda não - libertou-se dela, sentindo a proximidade de Telford.
- Devido a John Dodd tê-la atacado antes, tem o direito de observar. Do contrário, deveria voltar para seu quarto.
Ele continuou seu avanço. Ela levantou suas saias e correu atrás dele.
-Mas os russos...
-Tratarei com eles muito em breve.
-Quer dizer matá-los?
Ele não respondeu. Tinha tomado a decisão de arrumar os assuntos com Cassidy hoje, tão logo estivesse completamente recuperado, mas ela superou-o outra
vez.
De fato, afirmava amá-lo. Deixaria que fosse testemunha do que ia ocorrer, ela e seu muito tenro coração, e depois que repetisse essas afirmações podia.
Um segundo grito reverberou através da casa enquanto se aproximavam das altas portas esculpidas da Grande Sala. Qualquer estranho suspeitaria que o servente
estava sendo submetido à mais desumana tortura.
Mas estava quase ileso, um pouco machucado, mas inteiro. Braden tinha ordenado que o atassem em frente à maciça chaminé. Seus gritos eram provocados pelo
terror e pela loucura de uma mente transtornada pelo mal.

Somente Quentin aguardava Braden na Sala. Nenhum dos delegados tinha solicitado assistir, isto era assunto de Lorde Greyburn, somente. Um de seus próprios
serventes o tinha traído. Não haveria interferência, nem por parte dos loups-garous, nem por nenhuma lei humana.
-Desamarre-o -ordenou Braden quando se aproximou do prisioneiro.
Quentin obedeceu. Braden escutava e cheirava o medo de Dodd, seu pânico sem mente, mas não sentiu compaixão alguma. Quando Dodd estava livre e engatinhava
na busca de escapar, Braden se interpôs sem esforço e o deteve com um pensamento.
Sua resistência era forte. Stefan já tinha convertido o traste em seu indiscutível brinquedo. Mas o humano não deixaria a casa até que sua mente fosse
purgada de qualquer idéia ou indicação que tivesse recebido dos renegados russos, qualquer que fosse o custo para sua prudência.
A embriaguez da batalha retornou a Braden com toda sua primitiva força. Ele outorgou o completo controle de sua cólera, recordando o perigo que tinha corrido
Cassidy, a mortal perfídia dos russos e seus próprios imperdoáveis enganos de julgamento. Avançou para Dodd com a cabeça encurvada e os dentes a descoberto.
-Por favor, ... por favor, não me mate - pediu o criado. Eram as primeiras palavras racionais que saíam de sua boca desde sua captura. Mas deixaram Braden
impassível. Dodd já não estava frente a uma moça só e nua, nem sustentava uma arma e a falsa coragem dos russos. Encontrava-se na presença de seu inevitável castigo.
Braden concentrou sua vontade na mente de Dodd como um raio de fervente luz branca.
-Venha comigo, John Dodd -ordenou.
O lacaio emitiu um lamento alto e agudo.
-Venha -repetiu Braden, e ao fim, o lacaio começou a mover-se, arranhando o chão de pedra com cada pegada. Braden sentiu a selvagem satisfação do completo
domínio, de saber que podia atar este homem à sua vontade igual à quase qualquer outro humano. Aguardou até que o criado se derrubou aos seus pés como uma marionete
para lhe cortassem os fios.

Braden permaneceu de pé sobre ele, apanhado em uma rede de paixões completamente humanas. Desejava castigar. Desejava vingança. Existiam maneiras mais antigas
e mais bárbaras para tratar os serventes humanos desleais. Formas que asseguravam que não houvesse risco para futuras traições.
O avô tinha ansiado esses antigos dias, quando se apagavam mais que alguns pensamentos humanos. Seria tão fácil destroçar a mente deste homem... ou sua
garganta.
Tão fácil.
-Braden! -gritou Cassidy, aparecendo de repente a seu flanco.
-Quentin -disse ele. - Deve mantê-la atrás -Inclinou-se para aferrar o pescoço do homem.
- Deixe que olhe... e aprenda.
-O que vai fazer? -disse Cassidy.
- Quentin... - Explique-lhe, Quentin -disse Braden. - As palavras soam melhor. Conte.
Quentin duvidou.
-Foi testemunha da cerimônia, Cassidy. Os condes de Greyburn utilizam-na para... assegurar a lealdade de seus servidores.
- Fizeram algo a John Dodd e à donzela -disse Cassidy.
-É uma habilidade entre os de nossa raça -explicou Quentin. - Muitos de nós, como Braden, podem concentrar sua vontade para obter a obediência dos humanos.
É algum tipo de hipnotismo, um controle mental. Utilizamos a cerimônia para... sugestionar nossos serventes de forma que permaneçam leais e não revelem os incomuns
atributos de seus senhores.
Braden sentiu o olhar de Cassidy como uma acusação.
-Então isso é o que queria dizer quando disse que nunca o trairiam -disse ela. - Converte-os em leais.
-Às vezes falha -continuou Quentin. - Meu irmão é cuidadoso quando aprova os serventes, mas se pode cometer enganos. Existem alguns que podem resistir.
Outros... infelizmente, algumas mentes humanas não podem tolerar a invasão, ou o conhecimento do que realmente somos. Tais humanos podem voltar-se loucos.

-Assim por isso ele me atacou...
-Não -respondeu Braden.- Os russos fizeram com que se voltasse contra nós. Contataram-no antes da cerimônia -Dodd emitiu um som estrangulado quando Braden
apertou seu pescoço.
- Criaram uma arma humana para utilizá-la contra nós. Atacou você e me traiu . Nunca poderá voltar a confiar nele. Apagarei de sua mente qualquer conhecimento
sobre Greyburn e o que somos.
-Mas isso está errado -Ele escutou como Cassidy se liberava de Quentin. Jogou Dodd a um lado.
- Está errado fazer isso a alguém. Como sabe que não se tornou louco devido a você e os russos danificarem sua mente? Estava louco... falava sobre demônios.
Não sabia o que fazia.
-Isso não muda nada.
-Se machucá-lo de novo, não será igual aos russos?
Dodd ofegou em busca de fôlego, e Braden afrouxou seu apertão.
-É por nossa sobrevivência. Se o mundo souber o que somos...
-Isabelle sabe -assinalou ela. - Meu pai sabia. E não traíram a minha mãe -Sua voz tomou o feroz tom da absoluta convicção. - Você nem sequer tenta confiar
nas pessoas. Não posso acreditar que sua maneira seja a única maneira. Não o farei.
Braden permaneceu muito quieto. Como era possível que sua desaprovação o partisse em dois como se fosse os dentes e as garras de um inimigo inesperado?
Quando tinha passado de ser uma moça que serviria a um propósito específico para a Causa em uma mulher cujo único papel era destruir sua paz e levá-lo a cometer
atos de loucura?
Se Tiberius estivesse presente, a teria feito em pedacinhos com uma só palavra.
Mas inclusive enquanto Braden ardia de fúria e vergonha incongruente, seu corpo era consciente da cercania dela, de seu aroma, do menor de seus movimentos.
Desejava tocá-la outra vez. Distraía-o de seu dever, de suas necessidades e do juramento que foi feito a si mesmo depois da morte da Milena.

Deixou que Dodd caísse ao chão e virou-se para enfrentá-la.
-Desejaria que o liberasse? Para que te ataque outra vez? Para que a mate?
-Não tenho medo. Ele necessita...
-Suficiente! Seja um de nós, Cassidy Holt, ou não -Perdido no desespero e com amargo remorso, Braden derrubou sua vontade nela.
-Deixe- me -grunhiu.- Vá!
Foi como se esmagasse contra um muro invisível. As defesas naturais dela eram tão grandes que foi repelido imediatamente.
Ela emitiu um som de comoção.
-O que fez?
Horrorizado, ele não pôde responder. Tinha cometido algo imperdoável. Desprezível. Proibido pelas leis não escritas dos loups-garous.
-Tentou entrar... em minha mente -sussurrou Cassidy.
A negativa subiu aos seus lábios e calou-se. Podia ver Cassidy em sua mente com mais claridade que nunca antes: seu teimoso rosto, sua valente postura,
o brilho rebelde em seus olhos. Não podia somente vê-la, também podia sentí-la. Sentir seu... poder, sua vontade.
Como podia ser meio humana? Ela não era consciente de quanto poder possuía, mas o conhecimento, a aptidão, estavam ali, esperando ser liberados.
Tinha estado perto dessa liberação no bosque, antes que ele a deixasse? Suas palavras, seus pequenos ofegos de excitação, tinham despertado um desejo nele
que afligiram sua restrição. Era como uma jovem virgem em seu leito nupcial, ansiosa e temerosa de uma vez, uma moça cuja inexperiência mascarava brasas que arderiam
em chamas ao contato do homem adequado.
A mudança era como o ato de amor entre um homem e uma mulher. A consumação, a conclusão, o êxtase. Tinha vacilado no fio mesmo, aguardando a indicação final
por parte dele?
-Acredito que o compreendo -disse Cassidy, suas palavras vacilantes.
- Culpou Isabelle por ter se entregado a Lorde Leebrook, mas ele é parte de sua família. Um loup-garou, embora não viva como tal. Ele pôde ter forçado Isabelle
para que... estivesse com ele, da forma em que você faz com que os serventes o obedeçam. Da forma em que acaba de tentar... - Deu um passo para trás.

- Se converter-se em um loup-garou significa machucar as pessoas, não desejo ser.
-A decisão não é tua. Trouxe você para Greyburn com um único propósito...
-Então não ficarei em Greyburn.
-Se estiver tão segura do que deseja, prima, não te deterei.
Talvez esperasse que ele admitisse que estava equivocado, ordenando-a que ficasse, realizando alguma absurda declaração de devoção. Não se moveu durante
uns poucos segundos agonizantes. Depois partiu, não com um sussurro de saias e pegadas apressadas, a não ser com uma longínqua dignidade que congelou o coração já
gelado dele.
-É um estúpido, Braden -disse Quentin. - Já é hora de que alguém te ensine quão estúpido é - Virou-se e seguiu Cassidy.
Braden escutou a respiração entrecortada de John Dodd enquanto o homem aguardava, mais à frente do terror, pela conclusão de seu destino.
Nesse momento, Braden e John Dodd eram quase como irmãos.
Braden não foi atrás dela.
Uma vez que transpassou as esculpidas portas, Cassidy pôs-se a correr. Cruzou o vestíbulo de entrada e subiu os degraus de dois em dois.
"Não ficarei em Greyburn". Tinha soltado essa ameaça imprudentemente, apenas consciente do que estava dizendo.
Mas Braden não tinha ido atrás dela, nem sequer pelo bem da Causa. "Não te deterei", havia dito. Só havia um branco vazio em sua expressão, em sua voz e
em sua postura. Nenhum rechaço poderia ter sido mais total.
E a forma em que tratava o lacaio a horrorizava. Não podia tirar essa imagem da mente: Braden elevando o homem com uma só mão, como se fosse uma presa meio
morta entre as garras de um puma. Estava cheio de raiva, e a tinha derrubado sobre alguém que não podia contra-atacar.
Inclusive tinha exilado seu próprio filho.
Nada podia comovê-lo -nem a fúria, nem a ternura ou as súplicas - nem sequer o amor. Ela tinha jogado e perdido.
Seu tornozelo torceu quando tropeçou em um dos degraus com seu apuro.

Uma mão magra, de longos dedos, agarrou-a pelo cotovelo.
-Senhorita Holt -disse Telford. -Posso ajudá-la a chegar aos seus aposentos?
Assustada, ela olhou os graves olhos castanhos do ajudante. Sua óbvia preocupação atravessou sua tristeza.
-Estou... bem, Telford -respondeu.
- Permita que duvide. Senhorita Holt -perguntou ele-, poderia falar com você?
Ela recordou que Telford tinha parecido querer lhe dizer algo antes que entrasse para falar com Braden em sua suíte. Certamente nunca tinha iniciado uma
conversa com ela antes.
Mas muitas coisas tinham ocorrido depois da luta entre os lordes.
-Sei que está preocupada com o conde, senhorita Holt -assinalou ele.
- Sei sobre John Dodd, e desejo lhe explicar... se for você tão amável em me escutar.
Algo em seu rosto a ameaçava para escutar. Ela sentiu nele uma absoluta lealdade a Braden, completamente distinta à obediência do resto dos serventes de
Greyburn. Ele não sentia temor.
-Permaneço com Lorde Greyburn há muitos anos, senhorita Holt -começou ele. - Desde antes de seu acidente.
Ela se apoiou pesadamente contra a parede mais próxima.
-Seu acidente? Quando ficou cego?
-Sim. Ajudei-o durante a inicial adaptação a sua lesão. Lendo, com o correio, com sua roupa. Mas ele é um homem admirável. Foi Solicitando meus serviços
cada vez com menor assiduidade, e... - Dirigiu-lhe um estranho e penetrante olhar. - Acredito, agora que está você aqui, logo não me solicitará absolutamente.
Cassidy olhou fixamente a seus pés.
-O que é o que deseja me dizer?

-Sem dúvida saberá, senhorita Holt, que John Dodd foi influenciado pelo conde Boroskov. O que possivelmente não saiba, é que Boroskov também tentou me submeter,
para me voltar contra o conde e você.
-Você também?
-Foi por isso que fui negligente em vigiá-la, e somente pude retornar para advertí-la sobre o desafio. Ao fazê-lo, eu a pus em perigo, senhorita Holt. Por
isso devo me desculpar. Mas acreditei que você podia ajudar o conde. E ainda acredito.
Ela mordeu o lábio para deter uma aguda negativa.
-Como pôde escapar do que fizeram com John Dodd?
-Sou resistente de alguma forma ao poder dos loups-garous -explicou ele brandamente.
- Lorde Greyburn soube assim que tomou-me a seu serviço, mas escolheu confiar em mim sem as medidas protetoras adicionais que utiliza com outros serventes.
-A cerimônia -afirmou ela.
-Assim é. Lorde Greyburn podia me despedir, mas eu me encontrava em... umas graves circunstâncias pessoais naquela época. Tinha servido nas casas mais elegantes
da Inglaterra, mas meus arrogantes equívocos me tinham levado à ruína. Lorde Greyburn deixou suas próprias preocupações a um lado por meu bem. Em essência, ele salvou
minha vida.
Assim, apesar de toda sua implacável insistência em obter a lealdade de seus humanos, de sua crueldade com John Dodd, Braden era capaz de permitir que alguém
se aproximasse tanto... por simples confiança e compaixão. As mesmas confiança e compaixão que os humanos deviam utilizar com outros.
Por que era tão difícil para ele arriscar sua confiança outra vez?
-Encontrei um lugar em Greyburn -disse Telford. - Ofereceu-me uma segunda oportunidade. E eu acredito nas segundas oportunidades, senhorita Holt -Afastou
o olhar.
- Quando você chegou a Londres, não estava seguro de que se encaixasse com a família. Cometi o engano de julgá-la, apoiando-me na mais superficial das considerações.

-Talvez você tenha razão -indicou Cassidy.
-Não, senhorita Holt. Não tenho dúvidas absolutamente de que estava muito equivocado -Ele alisou o pescoço de sua jaqueta como se pudesse alisar seus cansados
músculos. - Lorde Greyburn não é um homem fácil de entender. Mas acredito que você provocou uma mudança nele, senhorita Holt. Penso que ele... a queira enormemente.
O coração de Cassidy deu um tombo. Com segurança, de entre todas as pessoas do mundo, Telford saberia o que Braden pensava. O que desejava.
Mas ele não parecia querer a seu irmão, ou à sua irmã, nem sequer a seu próprio filho. E ainda não tinha ido atrás dela.
-Pensarei... sobre o que me disse, Telford -sussurrou ela. - Estou muito cansada. Devo retornar ao meu dormitório agora...
Ele fez uma reverência.
-Se desejar algo, senhorita Holt...
-Obrigada.
Ela se dirigiu para seu quarto, deslizou pela porta e fechou-a atrás dela. Pressionou a bochecha contra a madeira, lutando por esclarecer seus pensamentos.
Como podia pensar com claridade quando se sentia menos segura que um ramo levado para uma catarata? O que era verdade e o que era mentira? Em quem podia
confiar?
Umas dobradiças rangeram desde algum lugar atrás dela. Virou-se para ver Quentin atravessar uma porta na parede que não estava ali um momento antes.
-Assustei você? -perguntou Quentin, sacudindo o pó de suas calças.
- Suponho que Braden não te contou que todas os aposentos da família, exceto o de Rowena é óbvio, possuem estas pequenas e convenientes saídas privadas -Empurrou
a porta escondida e esta encaixou-se novamente na parede, tão astutamente oculta, que as bordas pareciam formar parte da decoração do papel de parede.
- Muito útil quando alguém deseja uma carreira noturna.
Cassidy apoiou as costas contra a porta do dormitório.
-Por que está aqui, Quentin?
-Para ver você -Ela pôde notar que sua pele estava ruborizada sob seu abundante cabelo mogno e que seu sorriso era forçado.

- Há algo que devo te mostrar.
-Por favor. Agora não.
-Este é o melhor momento -Aproximou-se dela e acariciou sua bochecha com o dedo.
- Lágrimas, Cassidy? Então necessita do que tenho pra te oferecer. Merece conhecer a verdade.
Ela obrigou seus olhos a que secassem e encontrou o olhar de Quentin. Ele não parecia nem atuava como um homem ansioso por casar-se com ela. Mas isso tinha
sido idéia de Braden desde o começo.
-Qual verdade?
-Sobre meu irmão. A verdade que ele nunca te deixaria ver.
Quentin sabia. Tinha adivinhado o quão desesperada se sentia por querer compreender Braden Forster.
E não era o único. Telford, Isabelle, Rowena... todos sabiam. Pela primeira vez em sua vida se sentia envergonhada por não ser capaz de ocultar seus sentimentos.
Converteu seu rosto em uma máscara, como Braden.
-O que acontece John Dodd?
-Entendo sua preocupação, mas acredito que encontrará uma solução para esse problema também. Se vier comigo agora.
-Onde?
-Contarei-lhe isso pelo caminho. Está um pouco longe daqui. Agarraremos minha carruagem - Passou junto a ela para abrir a porta e olhar ambos os lados
do corredor.
- Venha, não há tempo a perder.
E, depois de tudo, o que tinha a perder?
Por uma vez, Quentin parecia estar apurado. Em lugar de guiá-la pela porta aberta, fechou-a de novo e conduziu-a ao passadiço oculto. Apertando em um ponto
específico, ativou um fecho quase invisível e a porta deslizou abrindo-se de novo.

Passada a porta, havia uma estreita escada de pedra, úmida e pestilenta. Cassidy seguiu-o pelas escadas e por um comprido passadiço até outra porta. Saíram
na parte traseira da casa, depois de um arbusto. A tarde estava estranhamente tranqüila. Nenhum convidado passeava pelos jardins ou tomava chá na grama, embora Cassidy
soubesse que tinham chegado mais delegados para a Convocatória. Alegrava-se por não encontrar-se com nenhum.
Uma carruagem -pequena e construída para a velocidade - aguardava na avenida a um lado da zona de lavanderia da casa. Não havia nenhum chofer nem lacaio
atendendo-o. O próprio Quentin ajudou-a a entrar nele e tomou as rédeas.
Pôs-se a andar a um passo veloz para o caminho principal, quase como se esperasse uma perseguição. Depois de ter conduzido uma milha de Greyburn, relaxou.
-Agora pode me dizer aonde vamos? -perguntou ela.
Ele dedicou-lhe um sorriso temerário.
-Acredito que já estamos bastante a salvo. Suponho que sabe que Braden tem a intenção de que se case comigo.
Ela olhou fixamente à frente.
-Sim.
-Bem, eu não estava muito de acordo com a idéia a princípio, não sou do tipo dos que se casam, mas mudei de idéia. Acredito que podemos estar toleravelmente
bem juntos. Decidi que não há motivo para adiar por mais tempo.
-O quê?
-Não lute contra isso, Cassidy. Ambos somos prisioneiros do destino e da Causa -Lançou uma gargalhada e golpeou o bolso de sua jaqueta.
- Tenho uma licença especial preparada. Sem mais demora, vou conduzi-la ao altar.
Cassidy já estava preparada para saltar da carruagem em movimento quando Quentin agarrou-a por sua roupa e puxou-a, até sentá-la novamente no assento.
-Vamos, agora -disse Quentin, com uma risada.
- Não estará insinuando que sou tão pouco atraente! -Urgiu o cavalo a tomar mais velocidade. - Casar comigo é realmente um destino pior que a morte?

Cassidy tomou o controle de seu pânico e agarrou-se com força devido aos vaivens e balanços da carruagem.
-Surpreendeu-me -respondeu. - E mentiu. Disse que queria me mostrar algo sobre Braden...
-Porque estava bastante preocupado de que pudesse me rechaçar. Tenho uma ligeira idéia do que ocorreu entre vocês dois. De fato, isso foi o que me deu a
idéia de que devemos seguir adiante com isto, antes que se produza um dano maior.
Dano. Queria dizer para ela, para Braden, ou para ele mesmo?
Ele somente tinha paquerado com ela, tentou beijá-la uma vez e nunca voltou a tentá-lo.
-Não sei do que está falando -respondeu ela, imitando a frieza de Rowena e seu tom cultivado. - Quentin, isto é ridículo.
-É? -Ele riu.
- Parafraseando Napoleón... "esperemos que somente exista um passo entre o ridículo e o sublime."
-Mas você não deseja se casar comigo. Essa é idéia de Braden, não sua...
-Sim, e por uma vez é uma boa idéia. Não se viu ultimamente no espelho, amor. Existem algumas compensações para o matrimônio, sabe.
Ela sabia a que se referia. Mas só existia um homem no mundo que ela desejasse que a tocasse dessa forma. E ele era intocável.
-Leve-me de volta, Quentin -pediu ela, apertando os dedos na beira do assento enquanto a carruagem saltava pelo caminho. Quase estavam chegando à beira
das terras de Greyburn e logo deixariam atrás o que ela podia reconhecer.
- Não posso me casar contigo.
- Por que não? -Ele elevou uma sobrancelha. - Estou me apaixonando por você. Em qualquer caso, prometo que não serei tão indiferente como meu irmão.
-Ele não é... -Indiferente. Tinha razão, verdade?
-É infeliz, Cassidy, e é por sua culpa. É muito valente para admitir, tal como Rowena não permite que ninguém veja quão miserável é. Manter-se impassível
a tudo isso. Mas é muito honesta para mentir -Todo rastro de humor abandonou sua expressão.

- Admita a verdade. Braden é um bastardo frio, cruel e calculista que não se preocupa com nada mais que sua Causa. Você é somente outra peça em seu tabuleiro
de jogo, como o resto de nós. OH, de vez em quando tem uma recaída, mas qualquer coração que teve alguma vez, está murcho e morto.
Cassidy levantou o rosto para o vento.
-Por culpa de Milena.
Quentin olhou-a de esguelha.
-Ah, Cassidy. Ele não é bom para você. Uma vez que admita isso, será livre.
Podia admiti-lo e satisfazer Quentin. Inclusive podia tentar convencer a si mesma. Mas não podia fingir o suficiente para casar-se com ele... estar com
ele, e ter seus filhos.
-De verdade se preocupa por mim, Quentin?
-É óbvio.
-Então me leve à estação de trem. Volto para a América.
-Para a América? Agora?
-Sim.
-OH-ho. Julguei-te mal depois de tudo. Vai fugir -Ele a saudou.
-Somos melhor casal do que esperava. Um bom par de covardes. Ou não sabia isso sobre mim, Cassidy? Faço algo para evitar uma briga -riu entre dentes com
tristeza.
- Realmente alguma vez a puseram à prova, de verdade? Encontra -se na linha de batalha, frente à sua primeira derrota real, e esconde o rabo entre as
pernas. Que vida tão alegre compartilharemos, fugindo sempre.
Assustada, mas à frente do pensamento, Cassidy jogou-se para um lado e arrancou as rédeas das mãos dele. O cavalo rompeu em um galope irregular como se
tivesse sido golpeado com um látego cruel, girando para a beira da estrada.
-Cassidy -disse Quentin-, tome cuidado com...
A carruagem tropeçou com uma grande pedra e saltou no ar. A saia de Cassidy se enganchou em alguma parte do veículo e tirou-a de sua cintura. Ela quase
caiu do assento, lutando por manter a carruagem direito. Mas quando se voltou para olhar Quentin, o lugar junto a ela estava vazio. Ele tinha desaparecido.
Atirou das rédeas até deter-se e saltou ao chão.
-Quentin! Onde está?

O cavalo elevou a cabeça, ainda meio encabritado, e saiu rapidamente caminho abaixo. Cassidy observou-o, perguntando-se se estava sonhando.
Mas o trovão dos cascos continuaram ressonando em seus ouvidos, aproximando-se em lugar de afastar-se. Estava sacudindo a cabeça para esclarecer-se quando
um enorme e escuro cavalo se deteve ao seu lado, chutando o pó em uma nuvem asfixiante.
O cavaleiro desmontou com um movimento impreciso.
-Cassidy! -gritou com voz rouca. Levava tão somente uma camisa aberta no pescoço, calças claras e botas. Sua expressão era quão mesma tinha visto somente
uma ou duas vezes com antecedência: nem fria ou distante nem furiosa, mas selvagem. Era um lobo e de uma vez um homem. Ele sentiu o corpo dela e encontrou o esmigalhado
pedaço da sua saia.
-Quentin! -rugiu. O rugido se converteu em um uivo, o uivo de um lobo, aflito, mas potente de desafio.
Mas Quentin tinha desaparecido, seu aroma já se desvanecia. Braden permaneceu com a cabeça elevada, com as janelas do nariz farejando, e quando se voltou
para ela, sua selvageria o tinha transformado em um estranho.
Sem uma palavra, sem outro som, tomou-a entre seus braços.



CAPITULO 16

O cavalo negro não necessitava de nenhuma guia. Parecia uma extensão de seu amo, obedecendo a alguma ordem silenciosa, enquanto Braden subia Cassidy à cadeira.
Com admirável agilidade saltou sobre o lombo montando atrás de Cassidy e passou seu braço ao redor da cintura dela.
Depois o cavalo começou a correr. Cassidy tratou de agarrar-se à espessa crina, mas o braço de Braden a sujeitava tão firmemente como se estivesse atada
ao lombo do animal com a mais forte das cordas.
O tamborilar parecido dos cascos do cavalo e dos batimentos do coração de seu próprio coração encheram seus ouvidos. O vento açoitou seu rosto e liberou
seu cabelo das forquilhas. Os músculos do cavalo se flexionavam debaixo ela. O fôlego de Braden esquentava sua nuca. Tudo era sensações e ela se sentiu paralisada
por seu abraço.
Pelo abraço de Braden. Soube por que tinha vindo. Estava arrebatando-a de Quentin, reclamando-a, tomando-a para si mesmo. Estava tão segura disso como estava
de que o sol abaixava pelo oeste: a intenção dele se mostrava em cada linha e ângulo de seu rosto e corpo.
A euforia e o temor se expandiram por seu coração em igual medida. Ela desejava isto e de uma vez o temia. Foi-se com Quentin atemorizada ainda pela crueldade
de Braden. Furiosa, ferida e desesperada, mas ainda assim seus sentimentos não tinham trocado. O próprio Quentin a tinha convencido disso. Sua severa condenação
a seu irmão somente tinha iluminado a simples compreensão daquilo que não podia esperar resistir.
E Braden tinha vindo por ela. Sem desculpas, sem explicações, só ação tão implacável como sempre.
Voavam para Greyburn, sobre árvores caídas, arbustos e arroios, evitando os caminhos e os prados cuidados. Todo o tempo, o cavalo parecia saber qual era
a vontade silenciosa de seu cavaleiro. Realizaram um amplo arco ao redor da grande casa, evitando inclusive os bosques familiares. Quando Braden fez que seus arreios
se detivessem, foi junto a uma pequena e singela casinha ao pé de uma colina. O lugar estava deserto à exceção das ovelhas que se encontravam no alto da mesma.

Braden saltou do lombo do cavalo e estendeu os braços para ajudá-la a baixar. Cassidy deslizou, tropeçando pela metade com a saia rasgada. Braden a sujeitou.
-Onde estamos? -perguntou ela.
Ele simplesmente levantou-a nos braços, conduzindo-a para a soleira da casinha. Deu uma patada à porta e esta se abriu de par em par.
O interior era quente, agradava e estava mobiliado de forma singela. Não havia necessidade de um fogo, mas a chaminé estava preparada igualmente. Havia
duas cadeiras, uma mesa grosseiramente lavrada e uns armários contra a parede. Uma manta limpa, mas feita farrapos pendurava separando uma seção do único aposento
do lugar.
Quase imediatamente, Cassidy reconheceu o aroma do lugar: era de Matthias. De Matthew. Esfumado e de vários dias, mas inconfundível. Este devia ser seu
lar.
Braden depositou-a em uma das cadeiras e voltou para a porta. Fechou-a de uma portada e se colocou diante como se pensasse que ela tentaria escapar.
-Foi com Quentin -disse. - Por quê?
Uma semana antes ela teria feito algo por ganhar seu favor. Mas agora seu sangue estava inflamado e seu corpo vibrava de espera. Estava preparada para
contra-atacar.
-Por que veio por mim?
Ele a olhou fixamente, em silêncio. Ela começou a aproximar-se da porta e ele se moveu o suficiente para bloquear o caminho.
O pulso de Cassidy pulsou em seus ouvidos. Verdadeiramente ele não a deixaria ir se tentasse escapar. A nova, e ainda estranha, fúria insistiu em resistir,
já que ele não tinha direito de impor sua vontade nunca mais.
Mas ela estremecia de excitação, suas partes mais íntimas se fizeram úmidas e dolorosas. Não desejava escapar.
-Por quê? -repetiu.
O aroma dele era mais forte agora, como se tivesse acrescentado um novo elemento.

-Não adivinha? -respondeu ele..- Ou ainda é pouco mais que uma menina?
-Não sou uma...
Ele agarrou seu rosto com ambas as mãos e a beijou. Era diferente às duas vezes anteriores, duro e rude. Ela se deleitou nisso.
-Deseja-me, Cassidy?
A boca de Cassidy estava muito seca para formar palavras. Lentamente tomou sua mão e a colocou em seu seio. Era bom, melhor que bom, sentir seu contato
ali.
-Comprova o quão rápido pulsa meu coração -sussurrou ela-. Braden, pode...
Ele não a deixou terminar. Levantou-a em braços de novo e levou-a depois da manta que pendurava no fundo do quarto.
Depois dela havia uma cama, tão singela como o resto do mobiliário, mas igualmente pulcra e limpa. Braden depositou-a sobre ela.
Cassidy sabia o que ia ocorrer. Isabelle tinha tentado explicar, mas seu corpo já compreendia. Isto era o que tinha começado com o beijo no bosque, uma
união livre de vergonha e tristeza. Um homem e uma mulher a sós apesar de todas as regras.
Quase antes que pudesse acomodar-se na cama, os dedos dele já trabalhavam com os botões dianteiros de seu sutiã.
-Você gostou do que ocorreu entre nós no bosque -disse ele, respirando com rapidez.
-Sim.
Um botão saltou de seu sutiã indo cair sobre a colcha.
-Há algo que devo fazer, Cassidy. Não posso esperar mais. Tentei...
Ela cobriu sua boca com os dedos.
-Desejo aprender -lhe disse. - Desejo que me ensine.
Sem duvidar mais, ele abriu seu sutiã de um puxão com uma chuva de botões. Apartou as rígidas bordas para os lados, expondo sua combinação.
-Não mais espera -disse ele com aspereza.
-Estive esperando à sua porta durante horas -disse ela. - Não podia suportar que...
Ele deteve suas palavras com outro beijo rude enquanto seus dedos soltavam os botões da parte superior de sua combinação. O ar frio banhou seus seios. Depois
ele empurrou o suave objeto, debaixo de seus seios, elevando-o de forma que o enrugado objeto se soltasse.
Ela arqueou-se instintivamente, oferecendo-se a ele. Desejava que tocasse seus seios, e mais, mas não sabia como dizer as palavras.
Não teve que fazê-lo. As mãos dele encontraram-na, acariciaram-na, ajustando-se a suas formas. A sensação era indescritível. Seus mamilos se converteram
em dois montículos dolorosos.
Um grunhido retumbou na garganta dele, procurando sua boca de novo, pressionando seus lábios para que se abrissem e tocando a língua dela com a sua. Cobriu
cada seio com as mãos, esfregando os mamilos com os polegares.
-Braden -soluçou ela. Era muito mais do que nunca tinha imaginado, mas não era suficiente.
Como se ele tivesse lido seus pensamentos, inclinou-se sobre ela e tomou um mamilo em sua boca.
Ela ofegou e se aferrou às costas de sua camisa. Não sabia que seus seios pudessem ser tão gloriosamente sensíveis. Ele utilizou sua língua e lábios de
forma que a fizeram gritar de alegria. Cada vez que o fazia, ele a abraçava com mais força e a acariciava com maior rapidez, como se os sons que emitia lo excitassem.
Estirando-se para cima, ela tentou beijar o peito dele, para lhe devolver um pouco do prazer que lhe dava. Mas ele a empurrou para trás, gentilmente, mas
com firmeza, e afastou a saia com a mão. Seus dedos deslizaram por debaixo, subindo para a beira de sua calcinha, e baixando depois por sua panturrilha. Seu corpo
inteiro vibrava com tal carícia. Sua calcinha começou a umedecer-se, concentrando todas as sensações para essa parte que pulsava com mais força. A calcinha estava
feita para abrir justo nessa parte.
Se ele a tocasse ali...

Mas ele retrocedeu e tomou sua mão na dele. Ela observou sua expressão enquanto guiava sua mão à parte superior de suas coxas. Ele estava muito duro ali,
e ela recordou seu aspecto na primeira vez que o viu nu.
"Como os touros e os garanhões", havia dito Isabelle. Mas Cassidy pensou que Braden era muito mais formoso. Curvou sua mão e a apertou contra ele.
Desta vez foi ele quem ofegou. Seus olhos estavam fechados, e ela soube que estava dando-lhe prazer. Moveu os dedos com delicadeza, desenhando a firme longitude
sob o tecido de suas calças.
Ele agarrou seu pulso.
-Isto é o que ocorre quando um homem deseja uma mulher -disse ele com voz entrecortada.
-Isso significa que quando... Quentin me beijou e você nos encontrou..., desejava-me então?
Sua gargalhada foi pouco mais que um grunhido.
-Compreende o que ocorre quando um homem e uma mulher se deitam juntos?
-Eu... vivi em um rancho -respondeu ela incômoda. Não se atrevia a lhe dizer que Isabelle tinha tentado explicar-lhe E que deixou tanto por dizer.
- Desejo fazê-lo, Braden.
Não lhe custou muito saber como se desabotoavam suas calças, mas não teve ocasião de fazê-lo. Braden era muito rápido. Os dedos dela roçaram a carne cálida
e firme, recostando-se na cama com o corpo dele sobre ela. Sentiu o impacto de seu tamanho e força quando ele se acomodou e a beijou. Começou com seus lábios, e
depois se moveu para seu queixo, suas bochechas, sua frente, suas orelhas. Os lábios e a língua dele obraram magia no oco de sua garganta e na sensível união de
seu pescoço e ombros.
Ao fim, retornou a seus seios, saboreando e sugando, provocando uma resposta no mais profundo de suas vísceras. Ele levantou a saia sobre sua cintura e
separou as bordas de suas calcinhas.
Ela sentiu o ar muito frio no lugar onde estava mais quente e úmida.

Sentiu-se totalmente exposta, mais nua que se a tivessem despojado de toda sua roupa, sapatos e meias. Os dedos dele esfregaram a zona interior de suas coxas,
subindo lentamente. Mais perto do lugar onde toda a necessidade dela estava concentrada.
Então, sem prévio aviso, tocou-a... ali. Ela pensou que se emitia um som, seria um uivo. Ou um soluço de alegria.
-Está preparada, Cassidy -disse Braden, com a voz áspera e rouca.
- Completamente preparada para mim.
Ele conduziu seu dedo através dos suaves cachos, para a greta onde era mais sensível. Suas sensações pareciam arder de deleite.
-OH -disse ela.
- É... -Ela lutou, mas parecia não encontrar as palavras para descrever o que seu contato a fazia. Seu corpo se esticou como uma corda atada a um mustang
selvagem, tão fluída como a água ao mesmo tempo.
As mãos dele deslizou entre eles, e seus joelhos separaram suas pernas. Ela sentiu uma nova pressão em seu lugar secreto, uma coluna de carne firme deslizando-se
contra sua coxa.
-Cassidy -disse ele asperamente. - O que estou a ponto de fazer te doerá, a princípio. Mas não posso me deter...
-Eu não quero que se detenha -A umidade entre suas pernas se converteu em uma inundação, e se sentia como uma flor que abria suas pétalas ao sol, aguardando
a abelha que beberia seu néctar.
A mão dele a tocou de novo. Acariciou-a, deslizando-se entre suas pétalas. A pesadez de seu fôlego os excitava a ambos. Ele a conduzia a algum lugar onde
nunca tinha estado, ao topo da mais alta montanha, à borda do rio mais selvagem. Ela vibrava com o ritmo dos batimentos do coração dele. Vibrava e pulsava, preparada
para o grande salto...
Mas Braden não tinha terminado. Tomou outra posição, empurrou para baixo, encontrou o centro do corpo dela, e deslizou em seu interior.

Ela sentiu um vago desconforto do que apenas tinha se precavido. Todos seus sentidos estavam enfocados em um lugar de seu corpo. Ele estava dentro dela...
não por completo, mas o suficiente para saber como seria quando entrasse tudo.
Isto era o que Isabelle tinha tentado lhe dizer sobre... sentir um homem como parte de você mesma. Mas não qualquer homem. Ela desejava que Braden a possuísse
totalmente, agora e para sempre.
Arqueou-se para cima.
-Agora, Braden -ofegou. - Entra em mim. Agora...
Seu convite era mais erótico que as adulações da mais experimentada cortesã. Braden não podia deter-se embora tentasse.
Nem podia voltar atrás. Empurrou com uma profunda e única investida, rompendo a barreira. As coxas dela abraçavam seus quadris e se elevava para ele, insistindo
em continuar. Nenhum desconforto, nenhum temor, somente a valentia que era insuportavelmente sedutora com sua inocência e ausência de vergonha.
Milena tinha sido uma amante esquisitamente perita. Cassidy estava benta com um talento natural que escurecia milhares de vezes Milena.
E ele a possuía. Era o primeiro, e o último. Ele, somente, uniu-se a ela. Com uma exaltação triunfal cavalgou sobre seu jovem e flexível corpo, pendente
de seus gemidos de prazer. De alguma forma pôde tornar-se um pouco para trás. Arqueou-se para sugar seus mamilos ao mesmo tempo em que a investia, intoxicado por
seu sabor, seu contato, o rico aroma de sua excitação: o ardente coração do sexo feminino apertado ao seu redor, os duros montículos de seus seios, a esbelta força
de suas pernas rodeando sua cintura, e os braços que o apertavam contra ela.
-Braden -ofegou ela. - Algo vai passar...
-Deixe que venha -insistiu ele, ralentizando e aprofundando cada empurrão. - Deixe que te encha, Cassidy...
O corpo dela estremeceu debaixo dele. Ela gritou maravilhada e surpreendida, suas pernas apertando-o com mais força.
Ele não pôde esperar. Não tinha que fazê-lo.Esticou-se, esvaziando-se de todo pensamento com o puro prazer. Com um empurrão final, permitiu-se a liberação.

Quando o estremecedor êxtase passou, elevou-se para afastar-se. As mãos dela se flexionaram em suas costas como se desejasse que tudo voltasse a começar.
-Isso foi... -começou ela. - Eu... não sabia...
Ele a silenciou com um beijo. Tinha a pele úmida e o cabelo emaranhado, mas ele pôde sentir seu sorriso, as pálpebras pesadas com a satisfação de uma mulher
depois do prazer obtido.
E ele a tinha chamado de moça, uma menina. Era tão mulher que pensou que poderia tomá-la de novo em uns poucos minutos. Já começava a excitar-se.
Mas seu violento desejo inicial tinha-o abandonado, e pôde pensar com claridade outra vez. Atraiu-a para a curva de seu braço, entrelaçando seus dedos com
os dela.
Sabia o que tinha feito. Possivelmente era inevitável, da vez que tocou sua nudez no bosque. Possivelmente muito antes daquilo.
Mas unicamente hoje, a razão abandonou-o por completo. Nem sequer quando Cassidy declarou seu amor, nem mais tarde quando o desafiou por culpa do lacaio
e ameaçado partindo. Inclusive, então, tinha sido capaz de manter a cabeça fria. Estava devolvendo John Dodd a seu fechamento, incapaz de concentrar-se no que ainda
teria que fazer, quando Telford veio lhe dizer que Quentin tinha sido visto partindo com ela.
Braden não compreendia com claridade o que lhe passou. Era lobo e não era lobo, porque nunca pensou em transformar-se. De alguma forma encontrou a si mesmo
no estábulo selando seus arreios mais velozes, ignorando os intentos do cabalarisso por lhe ajudar.
Cavalgou temerariamente, confiando em que Kinmont Willie evitaria os obstáculos que ele não podia ver. Rastreou o aroma até que encontrou a carruagem e
Cassidy.
Quentin tinha desaparecido. Não havia ninguém que lhe recordasse o dever ou a necessidade. Tocou Cassidy, e estava perdido. Além da recuperação.
Seus juramentos de não tomar uma segunda companheira; de prescindir da paixão; de dedicar todas suas energias à liderança da Causa e aceitar que nunca teria
herdeiros loups-garous..., tudo isso ficou apagado por esse simples ato.

Seu grande plano para Cassidy e Quentin estava anulado para sempre. Havia tornado a falhar, tal como seu avô tinha falhado em seus planos para ele e Milena.
Mas o avô nunca culpou a si mesmo. Ele sabia de quem era a culpa.
"Traidor", diria agora. "Fraco". Teria-se negado a ver nenhuma circunstância atenuante.
Mas Braden as via. Sob todos os padrões dos loups-garous e da Causa, Cassidy era imperfeita. Não podia transformar-se. E ele era ainda mais defeituoso,
uma grande decepção para a missão de seu avô.
Talvez nos domínios do mais profundo instinto, ele soube que eram parecidos. Que se pertenciam um ao outro. O lobo tinha conquistado o homem e sua lógica,
sem importar o duramente que tinha tentado controlá-lo.
Parecia impossível acreditar que realmente tivesse considerado deixá-la ir.
Ele acariciou seu ombro, lutando contra a ternura longamente esquecida que lhe sustentava com tanta firmeza como o tinha feito o corpo dela. Era possível,
apesar de tudo, que essa paixão e esse carinho não destruísse o que ficava de sua valia para a Causa? Poderia atrever-se a confiar em seu coração outra vez, e confiar
em uma mulher com todo seu ser? Poderia proteger Cassidy das dificuldades que uma vida com ele indevidamente agüentava? Poderia confiar em si mesmo?
Possivelmente essa era a lição que Cassidy tentava lhe ensinar, que havia algo nele merecedor de confiança.
Agora ela jazia junto a ele, suave e cálida. Entregou-se a ele como o mais precioso dos presentes, o único que podia entregar. E lhe seria leal com toda
sua alma. Nunca o trairia.
Sentiu-se... feliz. Era muito mais que a saciedade detrás anos de abstinência. Muito mais que a satisfação da posse.
Mas algumas coisas não tinham trocado. Alguns feitos permaneciam insalvavel, e nenhum desejo os faria desaparecer.
-Braden? -Cassidy estendeu seus dedos sobre o peito dele, atraindo-o.
Ele se permitiu saborear a espessa suavidade de seu cabelo esparramado sobre seus ombros. Ela farejou seu peito.
-Sou tão feliz -disse.

Se pudesse fazê-la feliz eternamente, ele daria sua vida, sua alma -tudo, exceto a Causa- para conseguí-lo. Mas um pensamento se interpôs em sua satisfação.
-Por que partiu com Quentin?
Ela fez uma careta.
-Disse que tinha algo que me mostrar.
-Mostrar?
-Algo sobre você. Mas não estava dizendo a verdade -Sua boca torceu-se na comissura.
- Disse que você desejava que me casasse com ele, depois de tudo...
-Queria fazê-lo?
Ela se sentou e olhou-o fixamente.
-Essa é uma pergunta muito estúpida -respondeu.- Eu gosto de Quentin. Considero-o um amigo. Mas não podia me casar com ele.
Braden fechou os olhos.
-Ele é tão covarde que te deixou sozinha...
-Não estava ferida. Não foi culpa dele. Só fazia o que acreditava que esperava que fizesse.
E o que tinha pretendido fazer Quentin? O matrimônio ou algo muito mais matreiro?.
-O que te fez mudar de idéia? -perguntou ela com suavidade.
Ele não podia enganá-la. Mas seus sentimentos ainda estavam tão inexplorados, tão imaturos para as explicações. Ainda devia encarar as conseqüências de
suas imprudentes ações. E já estava pensando em quão frágil era este momento, no rapidamente que teria passado. O dever ainda aguardava por ele em Greyburn. A cada
dia chegavam mais delegados, e logo todos estariam presentes. Devia estar preparado para lhes dar a boa-vinda formalmente e inaugurar a Convocatória.
Sem alterar-se por seu silêncio, Cassidy falou de novo.
-O que vai fazer com o lacaio, e com os russos?
Tinha sido um estúpido acreditando que ela teria deixado esse tema a um lado. Uma coisa era certa. Não haveria bastante tempo para tratar cada problema
antes da Convocatória.

-E Mikhail -insistiu Cassidy, com os braços cruzados sobre seus seios.
- Pensaste no que te contei?
Sua vergonha ao romper sua resolução com respeito a Cassidy não foi nada comparado com o que sentiu ao pensar em Mikhail. Quando enviou-o embora, era pouco
mais que um bebê recém-nascido, irremediavelmente marcado pela tragédia da morte de Milena e as revelações que chegaram com esta.
Sim, tinha tido seus motivos. Bons motivos, tinha acreditado então. Não podia suportar olhar o menino nem confiar nele. Mas Boroskov o tinha levado e de
alguma forma silenciado seus pais adotivos. Agora o menino estava na Rússia, onde Braden nunca teria permitido que fosse.
Tinha passado muito tempo desde que havia sentido alguma emoção muito forte de suportar. Até que Cassidy chegou, tinha aprendido a eliminar quase todos
os riscos de sentir algo.
Mas agora estava nu, e a causa dessa nudez era também a cura para sua dor.
Voltou-se sobre seu flanco, empurrando Cassidy sobre suas costas. Beijou-a antes que pudesse fazer outra pergunta difícil. Ela se retorceu debaixo ele.
-Acredita que desta vez poderei tirar a roupa? -perguntou.
Ele riu, e o som surpreendeu inclusive a ele. O sutiã dela ainda estava aberto e sua combinação era fácil de tirar. Dedicou-se a liberá-la de sua saia,
anáguas, meias e sapatos, e depois sua calcinha. Ela tentou ajudar a princípio, mas depois, com a respiração entrecortada, permitiu-lhe terminar sozinho.
Por fim estava nua. Ele não podia vê-la, mas seu sentido do tato substituía a falha de seus olhos. Passeou as mãos ao longo de seu corpo, dos delicados
dedos dos pés até o espesso cabelo, e por cada parte entre meias. Ela era tal como ele a tinha imaginado: de curvas generosas, mas de firmes músculos devido ao duro
trabalho e a constante atividade, suave e forte de uma vez.
Estava a ponto de seguir o caminho de suas mãos com os lábios quando o deteve.
-Quero verte -disse. - Quero sentir seu corpo.

Sem esperar resposta de sua parte, sentou-se sobre seus talões e alcançou a camisa. Soltou cada botão lentamente, deleitando-se, como se estivesse desembrulhando
um presente longamente esperado. O coração dele parecia saltar com cada botão liberado. Galopou quando ela empurrou a camisa sobre seus ombros e estendeu a palma
sobre o centro de seu peito.
-É tão maravilhoso -disse. Acariciou o pêlo de seu peito como uma vez acariciou sua pelagem de lobo. Desenhou todos os contornos de seus músculos, tão distintos
às formas de seu outro eu. Roçou seus mamilos. Ele se sentiu seguro por um instante de que nunca voltaria a respirar.
Ela cruzou o espaço entre eles e se apertou contra o peito dele. Seus seios encaixavam perfeitamente no esbelto oco sob as costelas. Ela beijou a base de
seu pescoço onde o pulso pulsava tão fortemente. Esfregou seu ventre liso e baixou ainda mais.
A primeira vez que lhe tocou ali, tinha sido através de uma capa de forte malha. Agora ele estava flagrantemente ereto, e os dedos dela se fecharam a seu
redor sem duvidar, sem temor.
-Tão suave -murmurou-. Como seda quente -Seus dedos exploraram os contornos, da base até o topo. Braden jogou a cabeça para trás, apertando os dentes.
Ela retrocedeu repentinamente.
-Faço-te mal? Sinto-o se eu...
-Não -resmungou ele.
-Mas seu rosto... sente dor.
Ele riu um pouco grosseiramente.
-Não é dor -disse. Grunhiu.
Cassidy...
-Só quero te fazer sentir o que eu sinto -disse, e se estirou para lhe tocar de novo.
Ficou em movimento, tirando a alça sem nenhum cuidado por seu futuro estado. Tomou Cassidy pelos ombros e recostou-a sobre a cama. Tornou-se sobre ela,
da cabeça aos pés. Seu peito roçava os mamilos dela. Ele ardia com a necessidade de enterrar-se nela sem nenhum preliminar, mas por uma vez não seria tão egoísta.

Devolveu-lhe o beijo com desenfreado entusiasmo. Ele se satisfez com seus doces lábios e depois desceu pelo flexível corpo. Suas mãos cobriram os seios
firmes e cheios. Os mamilos endureceram sob o contato de sua língua. Seus pequenos gemidos convertiam a espera em um pouco quase intolerável, embora ele não tinha
bastante deles.
O peito dela se elevava e caía rapidamente enquanto ele acariciava seu ventre e seus curvados quadris. O exuberante aroma de sua excitação lhe intoxicava.
Ele acariciava seus cachos, beijando o interior de suas coxas, embriagando-se com seu aroma.
Cassidy não sentiu nenhuma culpa, nenhum pudor. Gemeu quando ele roçou sua delicada feminilidade com a língua. Saboreou-a cada vez mais profundamente. Acariciou-a,
abrindo a ruborizadas e úmidas pétalas. Aninhado-se entre eles, jazia o pequeno casulo, seu segredo mais guardado, ele tomou-o em sua boca e sugou como tinha feito
com seus mamilos.
As coxas dela se separaram e seu corpo se arqueou contra ele. Seu néctar fluiu sobre os lábios dele. Ele mediu a entrada com a língua, e ela se arqueou
mais para ele, lhe implorando sem palavras. Agarrou-se aos seus ombros, puxando-o.
Estava tão quente e apertada na segunda vez como na primeira, mas agora não existia nenhuma barreira que transpassar. Apoiando sua cabeça sobre o travesseiro,
ela ofegou seguindo o ritmo das investidas dele. Nunca tinha sido assim com Milena. Nunca. Cassidy era única. Era a combinação impossível entre a inocência e a paixão
erótica, a simplicidade e o mistério.
E era dele
Uma vez mais conduziu-a ao orgasmo antes de permitir-se sua própria satisfação. O desavergonhado desfrute dela em sua culminação faziam-no perder o controle.
Encheu-a, embalando-se mais tarde em seu interior com profunda paz.
-É hora de voltar -disse ao fim, levantando-se, embora resistente em separar-se dela.
Ela suspirou.
-Tão cedo
-Sim. Existem acertos que devem fazer-se.

-Acertos?
-Devo obter uma licença especial para nosso matrimônio logo que...
-Matrimônio?
-Acreditava que a tomaria e depois não proporcionaria o honorável amparo do matrimônio?
Ela se levantou de um salto, com as pernas ao redor de sua cintura e os braços rodeando seu pescoço.
-OH, Braden...
-Deve ser uma cerimônia privada. A Convocatória faz que qualquer outra coisa seja irrealizável.
-Mas ninguém saberá nunca que temos quebrado as regras. Eu me alegro de que o fizéssemos -Beijou-o e inclinou-se para trás. -Sabia -disse com suavidade.
- Sabia que estava bem. A maneira em que devia ser.
Ele levantou-a e acariciou seu rosto.
-Há uma coisa que devo te pedir, Cassidy. Como minha esposa, deve estar preparada para me obedecer... e nunca questionar meu trabalho pela Causa.
Ela se manteve calada um minuto antes de falar.
-Compreendo.
A última tensão abandonou o peito dele.
-Trarei água para que se lave.
Ele utilizou os poucos minutos separado dela para esclarecer seus pensamentos, e depois se permitiu o luxo de sentir, livre de remorso ou censura. Cassidy
cantarolava alguma cadenciosa melodia americana enquanto inundava um trapo em cubo de água e se lavava, completamente inconsciente do erótico encanto de suas abluções.
Irradiava uma pura exaltação que lhe enchia de humildade.
Enchia-lhe de humildade.
A metade de sua saia estava rasgada, mas fez o que pôde com ela. Ele encontrou suas próprias roupas e também se vestiu. Kinmont Willie estava pastando no
campo da frente da casinha. Braden tomou suas rédeas com uma mão e os dedos de Cassidy com a outra. Greyburn estava justo detrás da colina.
-Deve ficar aqui um momento, Cassidy -disse.
- Trarei roupa limpa. Será melhor que voltemos para Greyburn separado.

A mão dela se soltou da sua com óbvio desinteresse.
-Até que estejamos casados -disse.
-Até então -Ele tomou seu rosto entre as mãos.
- Tudo acabará bem.
Beijou-a novamente e subiu à cadeira, escolhendo uma aproximação desviada a Greyburn. Qualquer dos loups-garous que encontrasse, saberia o que tinha estado
fazendo... e com quem. O aroma era inconfundível. O matrimônio seria o selo formal a sua união.
Enquanto se aproximava da casa, o vento vespertino trouxe-lhe outro aroma. Telford. Encontrou seu ajudante à beira do jardim e desmontou.
-Milord -disse Telford, ligeiramente sem fôlego.- Tenho um telegrama para você de Londres, e uma nota do Honorável Quentin Forster.
Braden compôs sua expressão para adotar o rosto severo e depravado do Lorde de Greyburn e líder da Convocatória.
-Leia isso, Telford.
-O telegrama vem de Londres. ... Lorde Leebrook envia a mensagem que o Honorável Matthew Forster se apresentou na Casa Leebrook. Ao parecer, desafiou Lorde
Leebrook a um duelo. Com espadas.
Braden resistiu ao impulso de arrancar o telegrama da mão do Telford.
-O tio Matthew? Em Londres?
-Isso parece, milord.
Braden tinha acreditado, quando levou Cassidy à casinha de Matthew, que o velho excêntrico foi a viver nas colinas como fazia freqüentemente. Mas Matthew
jamais se afastou realmente das terras de Greyburn. Estava meio louco, embora inofensivo, andando por aí vestido como um fronteiriço do século dezessete. Braden
nunca teria acreditado que usaria sua antiga espada a sério. Os duelos eram coisa do passado.
Matthew vivia no passado.
-Por que desafiaria Leebrook? Mal o conhece.
-Temo que o motivo não é difícil de saber, milord. Observei que o senhor Forster, com seu antigo disfarce, esteve freqüentando a companhia da senhora Smith.
Ou o fazia, antes do incidente há dois dias.
-Freqüentando a companhia?

-Penso que é a forma correta de dizê-lo, milord. O senhor Forster estava no salão de estar, quando Lorde Leebrook e a senhora Smith se... encontraram. Seguiu
à senhora Smith quando esta abandonou a habitação. Parece possível que deseje defender sua honra.
A honra de uma prostituta.
-Você percebe tudo, Telford.
-Se tivesse acreditado que existiria problemas com isto, milord, eu o teria avisado antes, mas não desejava incomodá-lo. Lorde Leebrook solicita que vá
procurar o Honorável Matthew Forster tão logo seja possível, ou se verá obrigado a realizar outros acertos.
Braden mostrou os dentes.
-Leia a nota de Quentin.
-O Honorável Quentin Forster diz... -Calou-se, seu embaraço quase tangível.
- "Meu querido irmão maior, creio que neste exato momento tenha recuperado o senso, e Cassidy esteja sob seu amparo. Conhecendo-o como conheço, soube
que estaria ansioso por ter isto." -Um papel rangeu.
- Milord, o senhor Forster incluiu o que parece ser uma licença matrimonial em seu nome e o da senhorita Holt.
Uma gargalhada de assombro subiu pela garganta de Braden. É óbvio. Nem sequer se perguntou como Quentin obteve a licença, ou como dirigiu os acontecimentos
tão brandamente e com semelhante certeza em seus resultados. Tudo tinha sido um jogo para ele, seu talento para os jogos era extraordinário.
A imediata reação de Braden foi açoitar seu irmão menor até deixá-lo seco.
Mas o acoitamento devia esperar. Tinha uma tarefa para Quentin em Londres.
- Obrigado, Telford -disse. - Peço-te que me informe quando meu irmão retornar. Deverá assegurá-lo de que não exijo sua cabeça... ainda.
-Compreendo, milord.
-OH, e Telford... me deseje sorte. Vou me casar.
A pequena capela estava quase deserta. A tênue claridade da manhã tingia as vidraças das janelas, e as únicas testemunhas da cerimônia eram o ajudante,
o pároco e Telford, que permanecia atrás de Braden.

Cassidy não tinha acompanhantes. A noite passada, Braden tinha retornado à casinha, conduzindo uma pequena carruagem repleta com comida, um dos vestidos
mais singelos de Cassidy junto com um casaco e um jogo de sapatos e meias, e mantas adicionais. Em seu bolso levava uma licença especial de matrimônio, explicando
que se casariam à primeira hora da manhã. Tinham compartilhado um almoço à base de pão, queijo e frutas, e Braden tinha estendido as mantas no chão junto à estreita
cama de Matthew. Permaneceu ali enquanto Cassidy dormia, mas ela não conseguiu descansar na cama de armar, desejando que Braden se unisse a ela.
Mas era como se a licença matrimonial fizesse com que Braden não quisesse tocá-la outra vez. Ao amanhecer levantaram e se vestiram, Braden com uma casaca
azul escuro e um colete branco. Adiantou-se para falar com o pároco que os casaria. Retornou com Telford, e os três se dirigiram à igreja, alcançando suas portas
às oito em ponto.
Agora, a breve cerimônia chegava ao seu fim, e um anel brilhava no dedo de Cassidy. Um punhado de aldeãos curiosos entrou na capela durante os votos finais,
mas Braden ignorou-os. Parecia ser inconsciente de tudo, exceto de Cassidy, e ela mal podia acreditar que tudo isso era real.
-Até que a morte nos separe -prometeu ele. E ela prometeu o mesmo. Unidos para toda a vida, pela igreja e pelos costumes dos loups-garous.
Assinaram o registro da paróquia, e Cassidy escreveu seu nome pela última vez: Cassidy Holt. Sua mão sustentava a pluma com um ligeiro tremor. A partir
de então seria Cassidy Forster, Lady Greyburn. A esposa de Braden!
Não lhe importou que não houvesse banquete de bodas ou moças de sua idade que a invejassem. Tinha tudo o que sempre tinha desejado. Braden beijou-a e o
mundo girou com tanta rapidez que se balançou entre seus braços.
Às portas da igreja encontrou Telford aguardando e tomou sua mão.
-Obrigada -disse. - Obrigada pelo que me disse ontem.
- Alegro-me de ter sido de alguma ajuda, milady -respondeu, inclinando-se sobre sua mão. - Que sua vida seja larga e ditosa.
-OH, será, Telford -Olhou para seu recente marido, que dizia umas últimas palavras ao padre. - É impossível que possa ser de outra forma.



CAPITULO 17


-É verdade, Isabelle! -Disse Cassidy, seu rosto iluminado com uma nova e inconfundível felicidade. - Braden e eu estamos casados.
Isabelle sentou-se na beira de sua cama, lutando contra a vertigem.
-Casados?
-Sou realmente a condessa de Greyburn, pode acreditar? Soa ridículo.
Ridículo. Isabelle se recompôs e rememorou os últimos dois dias. A casa vervia de loups-garous. Ela tinha sido estritamente confinada em seu dormitório,
e Cassidy não tinha vindo vê-la nem uma vez, desde que o conde tinha sido ferido no duelo.
Mas onde existiam serventes, havia poucos segredos, inclusive entre pessoas como as de Greyburn. Isabelle soube que Cassidy tinha discutido com Lorde Greyburn
à sua recuperação e que, em conseqüência, tinha fugido com... o Honorável Quentin Forster.
Se isso não tinha sido bastante alarmante, em seguida escutou com autêntica histeria, que o conde tinha saído atrás do casal. E então tinha recebido a nota
anônima, deslizada sob sua porta.
Agora... agora era muito tarde para advertir Cassidy. Nada poderia ter preparado Isabelle para o desenlace desta trama.
-Sinto que não tenha estado ali -disse Cassidy, inconsciente de sua consternação.
- Foi em uma igreja muito pequena, e Braden não desejava... OH, Isabelle! -Abraçou-a e depois deu saltos junto a ela. - Não parece real. Mas sabia que estava
bem, no momento em que nós... - Calou-se, sorrindo amplamente-. Agora sei do que me falava. Quando os homens e as mulheres estão juntos. Mas é muito mais do que
tinha sonhado.
-Você e Braden... Lorde Greyburn...
-Sim. Antes de nos casarmos. Mas não deve preocupar-se, Isabelle. As regras estão a salvo agora.
Não se preocupar! Isabelle tampou os olhos com a mão. Tinha visto o desejo no rosto de Greyburn... mas nunca tinha suposto que acabaria assim.

Tinha temido que Cassidy se visse obrigada ou pressionada, a um matrimônio que não desejava. Agora estava atada ao conde para o resto de sua vida.
Era melhor que ser utilizada, abandonada e desprezada. Mas teria anos e anos de arrependimento e desilusão pela frente, com um homem como Braden Forster.
Talvez, inclusive, terrível perigo.
Tocou a nota de seu bolso. Por que tinham enviado a ela, entre todos? Quanto de verdade havia nisso? Certamente alguma, já que encaixava com suas próprias
suspeitas. Mas quanto deveria contar à Cassidy? Não merecia ela alguma advertência, se o pior ocorresse?
-Não vai desejar-me felicidade? -perguntou Cassidy.
Isabelle beijou sua bochecha.
-Sempre. Felicidade é o que você merece sobre todas as coisas. Mas, Cassidy, devo dizer algo a você, e peço que me perdoe por isso. - Nesta tarde recebi
uma carta... Não sei quem a escreveu, mas tem a ver contigo, e você deve saber o seu conteúdo.
-Uma carta?
-Sobre Lorde Greyburn -Espremeu o papel, ainda no interior de seu bolso. Certamente não havia necessidade de que Cassidy lesse a nota.
- É sobre sua ex-esposa.
-Milena?
-Sim. Não sei quanto de verdade há na nota, mas... Cassidy, assegura que Lorde Greyburn... provocou a morte de Milena.
Cassidy não mostrou sinais de surpresa.
-Sei -disse-. Tasya, a prima de Stefan, disse-me que os Boroskovs culpam-no por isso. Braden me contou que ela morreu em um acidente, que caiu durante uma
tormenta. E ela... -Sua expressão se fez distante. - Foi um acidente.
Se fosse tão singelo.
-A nota também diz que o amor de Lorde Greyburn por Milena era doentio. Que a manteve prisioneira aqui durante meses, separada do mundo exterior, enquanto
estava grávida. Que era tão ciumento que não permitia que ninguém a visse. Quando estava muito próximo, o momento do parto, ela escapou e o conde perseguiu-a como
a uma peça de caça.

- Diz também que ela caiu das alturas durante o enfrentamento, a nota sugere que foi empurrada. Quando a trouxe de volta a Greyburn, gravemente ferida, seu
bebê... nasceu morto.
Pálida e com os lábios brancos, Cassidy olhou-a com fixidez.
-Isso não é verdade.
-Sinto muito. Pensei que o melhor era que soubesse o que outros diziam do conde. Se Lorde Greyburn fez alguma dessas coisas...
-Não fez! - Levantou-se e cruzou o quarto. - Não o conhece, Isabelle. Amava Milena... -fechou os olhos. - Não posso desmentir isso. Mas o resto... não
acredito nada.
Isabelle suspirou e tampou os olhos. Tinha cumprido com seu dever, mas maldita fosse se fazia com que Cassidy sofresse mais do necessário.
-Possivelmente a nota não seja mais que um truque malicioso por parte de um dos Boroskov ou de sua gente. -Mas não pôde desfazer-se da sensação de que havia
parte de verdade atrás da missiva. Se alguma vez tinha pensado em deixar Greyburn, agora era quase impossível.
-OH, Isabelle -Cassidy ajoelhou-se junto à cama. - Braden não te tratou muito bem, e talvez tem boas razões para que não goste dele. Mas eu o conheço. Ele
não é como você crê.
Isabelle sentiu-se perigosamente próxima ao soluço.
-Querida minha, -sussurrou, tomando as mãos de Cassidy. - Tudo o que desejo para você, é que seja feliz.
-Sei. Você sempre foi tão boa amiga -Cassidy beijou o reverso da mão de Isabelle. - Confie em mim, Isabelle. Amadureci.
-Sim. E eu não tenho direito de interferir.
Cassidy descansou sua cabeça sobre o joelho de Isabelle.
-Tudo seria perfeito, se pudesse ser tão feliz como eu sou .
Isabelle não tinha resposta para isso. Matthew havia partido. Ela ainda estava isolada e só em Greyburn, mas não se atrevia a partir, enquanto o caráter
de Lorde Greyburn permanecesse em questão. Duvidava de que nunca estivesse segura disso.

Mas Cassidy se transformou em uma mulher em todas as formas possíveis. Escolheu seu próprio destino. Isabelle não duvidava de que tinha aceitado esse matrimônio
voluntariamente . Capturou o conde por ela mesma.
Seria possível que esta improvável união pudesse funcionar? Poderia a inocência de Cassidy, sem manchar por seu conhecimento do sexo, manter sua força?
Cassidy era completamente capaz de amar o conde com todo seu ser, inclusive de negar seus defeitos. Mas seria ele capaz de corresponder a esse amor? Estava
empurrado somente pelo desejo, ou pelo dever para algum código interno?
Se existia a justiça no mundo, talvez Cassidy o fizesse mudar. Se Cassidy podia desfrutar de uma vida plena e feliz, então Isabelle não poria nenhum impedimento.
Sorriu.
-Não se preocupe por mim, querida. Aceito muito bem tal como estou. Só sinto que não tenha desfrutado de umas bodas apropriadas com todos seus preparativos.
-Não necessitava disso. Tudo é perfeito tal como está.
Mas tudo estava longe de ser perfeito. Embora Cassidy tivesse se mudado para a suíte de Lorde Greyburn e todos na casa tivessem sido informados do grande
acontecimento, era quase como se nada tivesse ocorrido. Não houve festa, nem celebração, nem banquete de bodas, nem sequer entre os serventes. Cassidy não parecia
se importar ou sequer dar-se conta disso, mas Isabelle estava preocupada. Era evidente que Lorde Greyburn não esperava que Cassidy se ocupasse dos deveres de uma
condessa ou da esposa de um lorde, e de fato, tampouco desejava que ela se envolvesse com a Convocatória.
Quentin reapareceu um dia após ao matrimônio, e foi enviado imediatamente fora com algum recado do seu irmão maior. A Convocatória começaria oficialmente
no dia seguinte. Os delegados tinham chegado não somente da Espanha, Alemanha e Prúsia, mas também da França, Portugal, Grécia, Itália, dos países eslavos, Canadá,
das nações escandinavas, e inclusive das exóticas terras; da Índia e do Japão. Na aparência os convidados eram humanos, mas Isabelle tinha entendido os perigos que
agüentavam esta estranha reunião, e alegrou-se por permanecer reclusa durante as duas semanas do encontro.

Cassidy, também, foi mantida em um virtual isolamento. Contou tranqüilamente à Isabelle que Braden parecia que não estava preparado para enfrentar uma assembléia
tão grande de loups-garous, e ela pareceu aceitar sua opinião.
Mas sua resignação era forçada, como se realizasse um esforço supremo por não se rebelar. Isabelle a compreendia. Cassidy queria conservar o que tinha,
esta ilusão de pertencer a alguém, a todo custo. Por uma vez em sua vida estava enganando-se a si mesmo e Isabelle não podia ajudá-la.
De sua parte, Braden estava inteiramente absorvido na preparação da Convocatória. Tinha pouco tempo para compartilhar com sua recente esposa. Isabelle tinha
aprendido o suficiente destes loups-garous para saber que ele devia manter sua posição de domínio, o qual tinha sido posto a prova tão recentemente. Outros observavam
sua liderança. Ele fiscalizou as decisões tomadas com respeito aos matrimônios e às alianças, todas com a intenção de preservar sua raça da extinção.
Freqüentemente, durante as seguintes duas semanas, enquanto os convidados se encontravam na Grande Sala e os serventes vagavam como fantasmas, Cassidy passava
seu tempo nos aposentos de Isabelle. Falavam ou liam. Cassidy inclusive, tentou bordar, embora nunca tivesse aprendido a fina arte. Tais passatempos domésticos não
eram o forte de Cassidy, nem deveriam ser.
Mas ao chegar à noite, quando as reuniões do dia finalizavam, Cassidy voava de retorno à suíte que compartilhava com seu marido, ardendo de espera, orgulho
e amor.
Isabelle não duvidava de que suas relações físicas eram excelentes. Era uma perita em todos os aspectos do ato do amor e podia reconhecer uma pessoa satisfeita,
sendo varão ou fêmea. Raramente via o conde, mas Cassidy não era uma noiva vacilante, temerosa dos cuidados de seu marido. Mantinha essa aura de maravilha que chegava
com o conhecimento sexual antes que fosse moderado pelo tempo e a desilusão. Ou a traição.
Que Deus proibisse que isso fosse tudo o que o conde e ela compartilhavam.
Os dias passaram, e o final das duas semanas da Convocatória estava a ponto de chegar.

Os convidados retornariam aos seus lares, novos contratos matrimoniais foram assinados e os laços entre as famílias consolidados para outros cinco anos. Isabelle
sentiu a excitação de Cassidy, finalmente teria seu marido somente para ela.
Na manhã em que os delegados se preparavam para deixar Greyburn, Isabelle observava da sua janela, a qual como na antiga habitação de Cassidy, dava para
o caminho e o parque que se estendiam diante à grande casa. Duas carruagens chegaram ante a porta, os lacaios de Greyburn carregavam a bagagem e ajudavam homens
e mulheres a entrar nos veículos. Os convidados que partiam deviam ser os delegados franceses, ou possivelmente os italianos. Todos seus serventes tinham subido
na mais humilde das duas carruagens, e o chofer estava a ponto de animar os cavalos, quando houve uma repentina comoção.
O conde de Greyburn irrompeu em cena do interior da casa, claramente furioso. Os lacaios se separaram de seu caminho enquanto se aproximava rapidamente
à carruagem do delegado. Houve um breve e apressado diálogo, e depois o conde andou para a parte detrás do veículo.
A porta da carruagem foi aberta. Braden chamou um lacaio e aguardou, enquanto o homem ajudava uma das donzelas do delegado a descer. Ela não era o objeto
da ira de Braden. Uma segunda donzela apareceu e depois uma terceira, cada uma ignorada por turno.
Foi a quarta, com o rosto oculto atrás de um capuz, que atraiu a total atenção do conde. Capturou-a pelo braço com uma só mão e jogou para trás seu capuz
com a outra.
Lady Rowena olhava-o fixamente, rígida de desafio. Da sua janela, Isabelle pôde escutar o apagado murmúrio das vozes. O conde sacudiu sua irmã com muito
pouco delicadeza.
Então chegou Cassidy. Ela voou junto a Rowena. Também falou com Braden e seu semblante era de uma vez implorante e rebelde.
O conde virou- se para sua esposa e disse algo que fez com que ruboriza-se, deixando cair o olhar. Depois deu uma ordem à Rowena, e depois de um momento,
tremendo, ela obedeceu e caminhou com vã dignidade de volta ao interior da casa.
Depois de um último intercâmbio de palavras entre o conde e os delegados, as donzelas entraram outra vez em sua carruagem e partiram.

Isabelle deixou a janela e se sentou na cômoda cadeira próxima à chaminé, escutando cuidadosamente. Escutou portas fechando-se com força, vozes reverberando
no vestíbulo de entrada... e depois o silêncio.
Cassidy apareceu muito em breve no dormitório de Isabelle. Fechou a porta e se aproximou da janela para observar o caminho de entrada.
-Viu o que ocorreu? -Perguntou.
Isabelle levantou-se e uniu-se a ela.
-Vi, mas não pude ouvir. Deseja falar sobre isso?
Cassidy começou a passear pelo quarto.
-Sabe que Rowena vai casa-se com um americano que não conhece? -disse. - Supunha-se que o homem viria a este encontro, mas não apareceu. Assim, quando os
delegados franceses foram, tentou escapar.
-Vestida como uma de suas donzelas. Disse Isabelle.
Cassidy parou junto ao lavabo e afastou sua pesada juba do rosto.
-Sim. Não sei como conseguiu que a levassem... mas Braden adivinhou. Apanhou-a. Discutiram.
Isabelle soube que o conflito era muito mais perigoso que um mero argumento. Era acaso um reflexo do que tinha ocorrido entre Milena e o conde, se realmente
sua desesperada tentativas em escapar de Greyburn, grávida, era um fato real e não uma invenção de algum inimigo malicioso?
-Saiu em defesa de Rowena -murmurou Isabelle.
-Sei o que se sente quando se espera que se case com alguém que não ama. Às vezes não estou segura de gostar de Rowena, mas ela é tão infeliz. Posso ver
o que a Causa faz às pessoas. Não está certo.
E você acredita que pode mudar o que não é correto, pensou Isabelle. Era Rowena a segunda prisioneira mantida contra sua vontade por Lorde Greyburn? Seria
Cassidy a seguinte?
-Mas o conde não te escutou -disse Isabelle.
-Não -Cassidy sentou-se sobre a cama e abraçou a si mesma. - Quando entramos e Rowena foi para seus aposentos, ele me recordou que agora sou sua esposa
e que devo obedecê-lo. Nunca devo me colocar contrária quando a Causa está em jogo.

Olhou para cima. - Não acredito que possa fazer isso, Isabelle.
Mas houve um tempo, não muito atrás, pensou Isabelle, em que ela teria se atrevido a desafiá-lo abertamente. Estava o conde começando a se dar conta no
que estava se convertendo?
Possivelmente Milena tinha discrepado com Lorde Greyburn. Possivelmente também o tivesse desafiado. Se Cassidy desafiasse a tolerância de Braden ...
-Sei que Braden está equivocado sobre isto -disse Cassidy. - Sobre Rowena. Penso que ela fará algo para partir. Algo.
Isabelle encontrou simpatia em seu coração para Rowena, apesar dessa fria condenação da dama. Nunca seriam amigas, mas ambas eram mulheres. Ambas eram utilizadas
pelos homens, de uma forma ou outra.
-Há muito pouco que se possa fazer, Cassidy -indicou. - É um assunto entre o conde e sua irmã.
Cassidy agarrou uma dobra da colcha de Isabelle e espremeu-a entre os dedos.
-Estava tão bem com Braden, Isabelle. Acreditava que finalmente entendíamo-nos um ao outro. Acreditava que me escutaria.
Que difíceis são essas primeiras lições, pensou Isabelle. Teria podido evitar isso.
-Os homens e as mulheres são diferentes, Cassidy, humanos ou não. Sempre existem mal-entendidos, dificuldades...
-Não entendo por quê. Sou tão feliz, casada com Braden. Sabendo que sempre estaremos juntos. Mas não posso pretender que todos sejam tão felizes como eu.
Você, Rowena, inclusive John Dodd e outros serventes, como posso simplesmente ignorar o que acontece ao meu redor?
-Não pode solucionar todos os problemas do mundo -disse Isabelle. - Eu sou responsável por meu próprio destino. Rowena é responsável pelo dela. Assim é
o mundo.
Cassidy saltou da cama.
-Não conheço muito do mundo, mas não posso deixar de dizer o que sinto. Nem sequer Braden pode me dizer como tenho que pensar -Uma rebeldia que era quase
fúria cintilou cruzando seu rosto.

- Não quando considero que algo não é correto. Isabelle, agora olho no espelho e vejo alguém que não reconheço. Pela primeira vez em minha vida, estou certa
de quem sou e onde pertenço.
-Esse é um grande dom, certamente -disse Isabelle, com a garganta dolorida de orgulho e pena.
-Uma vez me disse que não mudasse por ninguém. Nem sequer por Braden. Tinha razão, Isabelle -Sua expressão se suavizou. - Se me ama, não me deixará fora.
Se me amar. Cassidy não pôde ocultar o desejo nessa frase. Ela acreditava que o conde a amava, mas Isabelle soube que ele não tinha entregado à Cassidy
o presente dessas palavras.
De todas formas, as palavras não significavam nada. Uma vez haviam dito essas palavras à Isabelle, somente para terminar em traição.
O conde tinha amado a sua primeira esposa. E ela estava morta.
-Agora que a Convocatória acabou, Braden disporá de tempo para mim outra vez -disse Cassidy. - Farei que veja através dos meus olhos -Deu um rápido abraço
em Isabelle. - Obrigada, Isabelle.
Deixou o quarto cheia de uma nova esperança e fé em que sua confiança varreria todas as dificuldades de seu caminho.
Isabelle voltou para seu assento junto à chaminé e afundou-se profundamente na tapeçaria. Disse a você que não mudasse por ninguém, Cassidy. Mas mudou,
para você mesma. Transformou-se em uma pessoa forte à sua própria maneira. E talvez isso seja algo que o Lorde de Greyburn nunca possa aceitar.
Extraiu a enrugada carta de seu bolso e leu-a de novo. Se alguma dessas palavras escritas era certa, a felicidade de Cassidy não podia durar.
Quentin retornou com o tio Matthew, justo depois de que os últimos delegados abandonassem Greyburn, tão pouco arrependido como sempre por seu atraso.
Braden economizou as recriminações. A presença de Quentin na Convocatória poderia ter sido útil, mas não essencial. Seu futuro, agora que Cassidy estava
obviamente ocupada, ainda devia ser decidido, mas algumas possíveis companheiras estavam abaixo dessa séria consideração. Não tinha evitado seu destino, somente
o havia posposto.

Quentin afirmou que tinha procurado o tio Matthew por toda parte, já que não tinha sido tão amável para esperar na Casa Leebrook para que o levassem de
volta ao lar. Lorde Leebrook não estava ferido, e Matthew conforme parecia, também havia retornado ileso de sua peculiar aventura. Quando voou de volta às colinas,
uma complicação a menos se foi com ele.
Ficavam Rowena... e Cassidy.
-Sinto ter perdido o feliz acontecimento -disse Quentin, sentado com fingido relaxamento em frente a Braden na biblioteca. - Mas ouvi que foi uma cerimônia
privada. Estava ansioso por evitar as preliminares?
Estava provocando Braden deliberadamente, como se desejasse que o castigasse por sua imprudência. Mas a fúria que Braden havia sentido antes se foi. Não
tinha nada que perdoar a seu estúpido irmão menor e nenhum desejo de picar o anzol de Quentin.
-Devo te agradecer uma coisa, Quentin -respondeu. - Sua irresponsabilidade demonstrou o quão inapropriado foi para Cassidy -Mostrou os dentes. - Se a tivesse
machucado...
-Mas nada aconteceu. Ela é uma coisa pequena extraordinariamente resistente, tão forte como qualquer de nós -Emitiu uma risada. - Ora, Braden, nem sequer
você pode acreditar que eu teria partido sem me assegurar disso. Simplesmente cuidei de não estar presente quando entrou em cena.
-Nisso foi sábio. Assegurarei-me te conseguir uma companheira para você que esteja por cima de todos seus truques.
Quentin bocejou.
-Que tema tão aborrecido. Ouvi que castigou a pobre Ro.
-Tentou escapar.
-Nossa irmã seria muito mais preparada se não estivesse preocupada com assuntos menores tais como a reputação.
-Não me engana, Quentin. Sugiro que nem sequer considere ajudá-la.
-Isso suporia muito esforço -O couro de suas botas rangeu quando descruzou as pernas. - E, como é a vida de casado, Braden? Com Cassidy, quero dizer?

-Tem muito que aprender -respondeu com rigidez-, mas tenho toda a confiança em que com a guia apropriada, será de grande ajuda para mim na Causa.
-Maravilhoso. Tudo o que poderia pedir.
A voz de Quentin estava impregnada de sarcasmo, mas Braden não deixou que o afetasse.
-Sim. Tudo o que requeiro de minha esposa, honestidade, lealdade e obediência.
-E o que supõe que ela requer, Braden? Um magnífico lar? Elegantes vestidos? Uma família saudável?
-Farei o melhor que possa para fazê-la feliz.
-Outro dever sobre seus ombros, irmão. Não te invejo -Suspirou. - Ela mencionou... crianças?
Braden ficou gelado.
-Não mencionou, verdade?
-Indubitavelmente está cansado de sua viagem -disse Braden, levantando-se. - E eu tenho assuntos que atender que estiveram esperando desde que começou a
Convocatória. Pode ir.
Quentin parou na porta.
-Se não tomar cuidado, irmão, encontrará muitos assuntos concernentes à Causa ou a outros que farão com que nem sequer chegue a conhecer sua esposa. E
não acredito que ela consinta em permanecer à sua sombra.
Braden foi cavalgar pouco depois com Telford e com o administrador, para fazer inventário das reparações ou acertos necessários nas terras de Greyburn de
cara à chegada do inverno. Visitou os arrendatários e escutou a descrição de Telford do estado das casinhas, cercas, caminhos e pastos. Como sempre, os granjeiros
e pastores emudeciam com sua presença, sobressaltados e intimidados. Falavam livremente, só quando delegava a seus acompanhantes humanos para que tratassem com as
pessoas que viviam sob seu cuidado.
Teria sido distinto se tivesse levado Cassidy. Ela teria obtido de maneira natural que se sentissem a gosto, já que desconhecia o comportamento de uma
condessa aristocrática. Via si mesmo apenas diferente de toda esta gente ordinária. Como poderiam evitar amá-la?

Mas iria muito longe. Sempre o fazia. Deixaria as formalidades além de toda recuperação, e faria com que os humanos esquecessem seu lugar. Como os serventes
de Greyburn, tinham tudo o que pudessem desejar ou necessitar. Ele não deixaria que Cassidy também não tivesse.
Somente quando estivesse seguro de que Cassidy conhecia seus limites, de que aceitava sua posição como esposa sua... então permitiria que o acompanhasse
em suas rondas. Quando estivesse seguro dela. Quando a última de suas dúvidas já não existisse.
Esta noite, como sempre, a levaria para sua cama. Era o único momento do dia em que estavam absolutamente sozinhos, as únicas horas em que não dependiam
das palavras para comunicarem-se. E ele nunca deixava de desejá-la.
Mas esta noite contaria a ela a verdade que ocultava. A parte da verdade que devia saber.
Supunha que a discussão dessa manhã sobre Rowena tinha criado uma tensão entre eles. A habitual alegria de Cassidy, seu bate-papo inconseqüente e as perguntas
sobre que tinha feito durante o dia, estavam ausentes, substituídos por um silêncio pensativo enquanto permanecia sentada na cama esperando-o enquanto se despia.
Zangada, talvez, ou preparando uma renovação de seus argumentos. Tinha dado provas de que possuía a paixão de uma mulher, mas nem sequer isso tinha alterado
sua natureza. Quentin o tinha advertido de que nunca chegaria a conhecer Cassidy. Quentin estava equivocado.
Conhecia-a como o que era, uma inocente que ainda via o mundo atrás de um cristal colorido de rosa. Jurou a si mesmo milhares de vezes que ela devia aprender
a dureza da vida, mas agora -de pé junto à cama e escutando sua respiração regular- admitiu que também ele estava equivocado.
Porque lutaria por mantê-la tal como estava esta noite, esperando-o na cama, vibrante e viva. Sim, ensinaria-lhe o que devia saber como sua esposa. Aceitaria
as exigências da vida entre os loups-garous. Mas também continuaria protegendo-a de tudo o que pudesse empanar a simplicidade sem sofisticação e a ausência de astúcia
que a faziam ser como era. Que fazia possível confiar nela.

Deixaria que tivesse suas pequenas e inofensivas rebeliões. Não podiam lhe fazer mal.
Ela não se converteria em outra Milena.
Recostou-se ao seu lado e beijou seus lábios. Os braços dela enlaçaram seu pescoço.
-Braden...
Ele sabia como evitar sua discussão logo que iniciada. Deslizou a língua dentro de sua boca e a provocou até que ela esqueceu todo o concernente a desacordos
abrindo-se a ele. Como sempre, sua paixão era totalmente desinibida, cheia de pequenos gritos, suspiros e gemidos que lhe avivavam e endureciam seu membro em apenas
uns segundos sem lhe dar alívio.
A cama dele -deles- era muito maior que a cama de armar da casinha de Matthew. Havia espaço suficiente para qualquer tipo de jogo erótico, se Cassidy tivesse
as mesmas inclinações que Milena. Mas não necessitava tais diversões exóticas.
Ela já sabia como levá-lo à loucura com seu simples contato. Sua audácia era o mais potente dos afrodisíacos. Mas esta noite, utilizou seu esbelto corpo
para empurrá-la sobre suas costas, e tombou sobre ela, com o cabelo esparramando-se por seu rosto.
Não era uma mera sedução. Ele o sentiu como um intento de domínio, e seu imediato instinto lhe ordenou empurrá-la a um lado. Teve que resistir à necessidade
de utilizar seu maior peso para arrastá-la abaixo dele e lhe mostrar quem era o amo.
Mas Cassidy começou a beijá-lo, e sua luta desapareceu entre quebras de onda de prazer. Seus beijos pareciam suave chuva sobre seu rosto, suas pálpebras,
suas maçãs do rosto e seu queixo. Se ela mandava esta vez no jogo do amor, foi mediante meios para os que ele não tinha vontade de resistência.
Fazia-o sentir. A vista era desnecessária. Cassidy fazia-o esquecer que alguma vez havia possuído esse sentido, que era completo e perfeito sem ele. Seu
corpo inteiro tomou o lugar de seus olhos.
Sentindo um evidente deleite ante as reações dele, Cassidy continuou seu caminho descendo pela coluna do pescoço e lambendo o oco sob a clavícula.

Esfregou suas bochechas e cabelo pelo peito dele, quase ronronando. Sua palmas ligeiramente calosas formando pequenos círculos em seu estômago, cada círculo
mais abaixo que o anterior.
Os nervos dele gritavam em antecipação do contato mais íntimo, mas de novo surpreendeu-o. Surpresa era uma palavra muito vaga para descrevê-lo. A boca dela
se fechou sobre ele, e quase saltou da cama.
Milena fazia isso freqüentemente, e bem. Mas não esperava isso de Cassidy. Suas explorações estavam cheias tanto de curiosidade e maravilha como do desejo
de agradá-lo. Fez sua a íntima carícia. Ele se manteve sobre a cama, lutando por evitar tomá-la nesse instante.
Mas ela ainda não tinha terminado com as surpresas. Moveu-se sobre ele, montando-o com suas coxas separadas a cada um de seus flancos, e tomou seu rosto
entre as mãos.
-Está bem... se tentarmos desta forma? -perguntou.
Ele emitiu uma gargalhada ligeiramente entrecortada.
-Sim -sussurrou. - Sim.
Ela não necessitou de nenhum fôlego mais. Sua cálida umidade descendeu para abraçá-lo, apoiando as mãos sobre seus ombros. Ele se moveu, para que ela seguisse
o mesmo ritmo. Apertou seus seios, sentindo a tensão em seus braços e costas enquanto o cavalgava. Era forte e formosa, e ele não tinha nada que temer.
Foi um pensamento estranho e abandonou sua mente imediatamente. Cassidy inclinou-se sobre ele, esfregando os mamilos sobre seu peito e tampando seu rosto
com a cortina de seu espesso cabelo.
Ele não pôde agüentar. Deixou que seu orgasmo a enchesse, mas ela o seguiu um instante mais tarde, soltando um profundo suspiro de satisfação contra sua
boca.
-Isso foi agradável -disse.
- Verdade?
Ele puxou-a até estirá-la sobre seu corpo e beijou a transpiração de seu rosto.
-Mais que agradável -respondeu, e o dizia a sério.
Ela acomodou sua cabeça na curva do ombro dele.
-Deve haver... muitas maneiras que ainda não tentamos.

Como poderia não dar-se conta de que seu corpo estava preparando-se para outro experimento?
-Talvez -murmurou ele, farejando seu pescoço. Este era o momento para as explicações, quando ambos estavam satisfeitos com a plenitude obtida.
-Cassidy...
-Espero que tenhamos feito um bebê -disse ela, com a voz baixa.- Nosso bebê, eu gosto disso, Braden.
A garganta dele esticou.
-Acabamos de nos casar...
-Sei... que isso é o que tinha planejado, para Quentin e para mim. Mas desejo um, contigo. Nosso filho -Acariciou seu peito. - Ainda fica muito por aprender,
mas...
-Cassidy -agarrou seus braços.
-Devo-te a verdade sobre mim.
-Braden... se for sobre Mikhail...
-É, mas não da forma que crê. Mikhail... não é meu filho.
Ela se sentou.
-Não é seu filho?
-Nunca serei pai. Sou... estéril, Cassidy. Compreende?
A respiração dela se deteve durante um momento.
-Mas... Mikhail...
-É filho de Milena -respondeu com aspereza. Não meu -A bílis subiu ácida à sua boca.
Um humano conseguiu o que eu não pude.
-Um humano?
-Milena e eu estivemos juntos durante quase seis anos. Em todo esse tempo, a única criatura que levou em seu ventre era de outro homem. Sabe o que é um
bastardo?
-Significa que os pais de um menino não estão casados.
Ela conhecia muito mais da vida do que ele acreditava.
-Sim. Milena ainda estava casada comigo quando teve o bebê do humano.

Quase podia ouvir como Cassidy absorvia o que lhe contava, considerando as implicações.
-Então isso é realmente o motivo pelo qual enviou Mikhail fora -sussurrou.
E Milena... não te amava.
Existiam cem coisas que poderia haver respondido, mas manteve os dentes apertados. Milena tinha ido. Já não podia lhe fazer dano.
Cassidy era quem ainda podia sofrer.
-Compreende agora, Cassidy? Durante seis anos não pude engendrar um filho. Você e eu... nunca teremos um.
Aguardou, com a tristeza apertando suas vísceras, pela reação de Cassidy, pela comoção e a negativa. Não era seu estilo chorar, ou culpar os outros de sua
dor, mas ele havia tornado a enganá-la. Ela tinha direito de conhecer esta parte dele antes de casar-se. Depois de todo seu bate-papo sobre linhas de sangue e descendentes
que continuassem com a raça loup-garou, ela teria esperado filhos de sua união.
E desejava-os. Desejava filhos dele.
-OH, Braden -disse.
Sinto tanto. - foi sobre ele, estendendo seus braços ao seu redor, tão longe como pôde alcançar.
-Isso era o que se esperava de você verdade? Ter filhos com Milena, pela Causa. E não pôde -Beijou sua têmpora. - Toda a dor que haverá sentido. A tristeza,
sabendo... e depois Milena... - Abraçou-o com ferocidade.
- Eu não te deixaria, Braden. Nem por isso, nem por nada.
O nó na garganta dele fez que fosse impossível responder, embora tivesse pensado em alguma resposta. Como se achava merecedor desta menina-mulher, com um
coração tão grande como o céu sobre as colinas? Não era. Os sentimentos se elevaram atrás de suas costelas, alargando seus pulmões até que acreditou que não poderia
respirar. Agarrou-se ao primeiro pensamento racional que lhe veio à mente.
-Agora se dá conta do porquê é tão importante que Quentin e Rowena cumpram com seu dever -disse. - Por nossa família. Por nosso sangue. Por nossa raça.

Ela estava muito quieta. Durante um momento permaneceu onde estava, sustentando-o, em silêncio.
-Ainda há Mikhail -disse ao fim. - Apesar de tudo, é meio loup-garou, como eu. Só é um menino pequeno, não importa o que sua mãe tenha feito.
E certamente um inocente de coração. Como Cassidy. Era possível salvá-lo?
-Posso ser sua mãe, Braden. Podemos fazê-lo nosso.
Nosso. Cassidy seria uma mãe maravilhosa. De todas as pessoas do mundo, ela poderia ajudar seu companheiro a enfrentar as conseqüências do que tinha feito
três anos atrás.
-Pensarei nisso -disse ele.
Beijou-a, e ele pôde sentir a calidez de seu olhar.
-Braden, amo-te. Amo-te tanto.
Sentiu-se agradecido por não poder ver o que jazia nos olhos dela. Suas palavras já eram muito mais do que podia suportar. Tinha desejado que não fossem
sortes, sabendo que Cassidy despia seu coração tal como despia seu corpo e que esperava que ele fizesse o mesmo.
Ele a desejava. Confiava nela acima de qualquer humano ou loup-garou. Ela havia trazido uma nova satisfação à sua vida que nunca pensou encontrar de novo.
Mas o que pedia, abria um enorme e escuro vazio em seu interior, aterrador por seu indirecionado poder. Sim, fazia-o sentir... muito. Muito profundamente.
Perdia toda objetividade, toda coerência quando ela estava perto. Seu intelecto humano não contava para nada contra o espírito do lobo que a reclamava como companheira.
Inclusive a Causa se convertia em algo sem importância.
Era muito mais do que tinha sido com Milena.
E ainda assim, não havia nada como esses momentos de loucura, de destrutiva paixão. Tinha esquecido que esse desejo poderia ser algo tão maligno. Cassidy
o recordava com sua ternura.
Devia existir um equilíbrio entre as emoções e o dever. Devia existir algum tipo de redenção para ele pelos amargos juramentos que tinha feito depois da
morte de Milena.

Tinha provado ser defeituoso em todas as maneiras que importavam: estéril, incapaz de um julgamento confiável, capaz de perder completamente a razão quando se
permitia preocupar-se com outra coisa que não fosse a Causa. Ele não fazia nada pela metade, e aí jazia o perigo.
Cassidy viu valia nele. Viu alguém que amar. Ele podia atrever-se a devolver seu amor sem sacrificar a Causa nem a ela?
Se existia uma maneira, devia encontrá-la ou voltar-se louco arrancado entre as duas metades enfrentadas de sua alma.
A própria Cassidy tinha sugerido uma forma possível, um símbolo de esperança para ambos. Não poderia dar a ele um filho de seu próprio corpo, mas podia
encher o vazio e desfazer um pouco o engano que sua cólera tinha perpetrado.
Mikhail devia ser devolvido a Greyburn. Em um instante, Braden soube como devia fazer. Mas ainda não havia garantias.
-Cassidy -disse, evitando qualquer emoção em sua voz. - Devo ir por um tempo... uma semana ou duas, possivelmente.
-Ir? -A cama balançou quando ela saltou.- A Convocatória acaba de terminar!
Ele não estava preparado para dar a ela os motivos verdadeiros pelos quais tinha que ir, não quando elevariam muito suas esperanças.
-Tenho assuntos no continente que não podem esperar.
-Mas pensei que finalmente poderíamos estar juntos...
-Meus deveres não desapareceram porque nos casado, Cassidy. Ainda sou responsável por este patrimônio, dos interesses de minha família e da Causa. E os
russos devem ser castigados - Sentou-se à beira da cama.
- Não te faltará de nada em Greyburn. Agora tem um lar.
-Meu lar está contigo.
Ele aplaudiu sua mão.
- Cuidarei de que a senhora Fairbairn e Aynsley se encarreguem de te mostrar os mesentérios de Greyburn com maior detalhe e que sugiram atividades apropriadas.
Terá muitas coisa a fazer para mantê-la ocupada.
-Da forma que Rowena se mantém ocupada? Está encerrada em seu quarto, aguardando a que outra dita...

-Não discutiremos sobre Rowena. Já expliquei como deve ser - Virou-se para lhe dar um beijo superficial na frente, esfriando deliberadamente seu desejo.
- Durma, Cassidy.
-Aonde vai?
-Correr pelo bosque.
-Irei contigo.
-Não -Era uma ordem cortante. Devia estar a sós, afastado deste torvelinho de emoções.
- Não me espere acordada.
Ele escutou ranger as molas da cama quando ela se recostou, atirando os lençóis para cobrir seus ombros. A urgência de unir-se a ela era forte, mas resistiu
a isso.
-Durma bem, Cassidy -disse. Passou em silêncio através da porta oculta ao fundo da habitação e entregou-se à noite.
Mas a pura alegria da mudança, a liberdade de correr como um lobo, os vibrantes aromas e sons do bosque já não eram suficiente. Existia um espaço vazio
nele que somente uma mulher no mundo podia encher.
Cassidy ainda dormia quando partiu para Dover.



CAPITULO 18

-Desculpe-me, Lady Greyburn.
Passaram uns poucos momentos antes que Cassidy se precavesse de que essa voz se dirigia a ela. Desde seu matrimônio com Braden, não havia se acostumado
ao título. Não significava nada, nem para ela nem para ninguém mais em Greyburn.
Separou-se das janelas da sala de estar e viu o Telford de pé à soleira. Lorde Greyburn levava fora há quase quatro semanas, e a autoridade de sua esposa
era limitada. Não que Cassidy desejasse governar os serventes, ou apropriar-se dos deveres que a senhora Fairbairn exercia tão bem. Mas estava sozinha para fazer-se
de grande dama entre os arrendatários humanos com os que já devia encontrar-se. E não saberia como, embora tentasse.
Bem podia estar de volta no rancho do Novo México, evitada e ignorada. "Lady Greyburn" era incapaz de ajudar aqueles que mais necessitavam de sua ajuda.
-Sente-se melhor esta manhã, milady? -perguntou Telford. - Se deseja que mande chamar um médico....
-Não. Não é nada -Cassidy esfregou sua cintura através do ajustado sutiã de seu vestido matinal. Ultimamente parecia que se levantava cada dia com a sensação
de que ia vomitar sua última comida, mesmo que não tivesse muito em seu estômago. E tinha perdido o apetite por muitas coisas que antes estava acostumada a gostar.
Os loups-garous podiam curara si mesmos de quase tudo, conforme parecia, mas ela não podia curar um estômago decomposto. Talvez, devido ao seu sangue humano.
-Muito bem, Lady Greyburn -disse Telford, sua boca torcida com a desaprovação.
- Desejo informá-la sobre lady Rowena, como me requereu. Enviou de volta a sopa e o pão que recebeu. Temo que nem tocou a comida.
Cassidy inclinou a cabeça e suspirou.
-Falarei de novo com ela, Telford.
O valete fez uma reverência e saiu da habitação. Desde a partida de Braden, ele tinha sido o único servente com quem Cassidy podia falar como um igual.

Era quem a mantinha informada dos selvagens pulos de Quentin pelo país, aventuras que o mantinham afastado de Greyburn seis dias a cada sete. Telford parecia
considerar as atividades de Quentin como inofensivas, mas Cassidy sentia um pouco de desespero nele durante suas escassas visitas ao lar, como se tentasse fazer
seu caminho jogando, bebendo e flertando, afastando-se a cada passo de uma tristeza que não podia admitir.
Durante as passadas duas semanas, não tinha voltado para o lar. Isabelle mantinha-se tão calada e retraída como uma sombra. Era como se tivesse aceitado
o julgamento da sociedade ao chamá-la de puta e proscrita; qualquer hálito de luta a tinha abandonado. Não mencionava o nome de Matthew, nem Cassidy tinha visto
o homem em nenhuma de suas identidades, embora tivesse procurado por ele nas colinas, uma e outra vez.
O lacaio, John Dodd, também tinha desaparecido com o destino desconhecido. Mikhail ainda estava nas mãos dos russos.
Mas o caso de Rowena era o pior de todos. Cassidy subiu as escadas para a ala familiar. Como sempre, havia lacaios colocados no corredor perto dos aposentos
de Rowena. Eram seus carcereiros. Cassidy desconhecia como humanos poderiam deter uma loup-garou, se esta desejasse sair, mas obviamente Rowena acreditava que podiam.
Os homens mostraram um respeito formal por Cassidy, mas permaneceram em seus postos como soldados.
Cassidy não se incomodou em bater à porta de Rowena.
Esta permanecia sentada em uma cadeira junto à janela com um vestido austeramente singelo, o cabelo recolhido para cima e as costas retas, uma figura desolada
rodeada por móveis de feminina elegância e beleza. À primeira vista, parecia a mesma de sempre, até que se notava os ocos sob seus olhos e maçãs do rosto, a palidez
de sua pele. Até se fazia evidente que o vestido negro que levava era muito grande, porque estava tentando matar-se de fome lentamente.
Não havia uma comida familiar formal em Greyburn desde antes da Convocatória, e Rowena permanecia sozinha em seu quarto, dia e noite. Cassidy descobriu
acidentalmente as intenções de Rowena, quando deu com uma donzela no corredor trazendo uma bandeja de comida intacta dos aposentos de Rowena. Um interrogatório cuidadoso
revelou a preocupante verdade: Lady Rowena não tinha comido nada desde que o conde tinha deixado Greyburn.

Braden não estava ali para obrigar sua irmã a comer, e nenhum dos serventes se atreveria a isso. Não conseguia localizar Quentin. Rowena tinha escolhido
o momento perfeito para protestar por seu destino da única forma que podia.
E mantinha-se em silêncio. Privava-se das palavras tanto como da alimentação. Cada dia das passadas duas semanas, Cassidy tinha tentado convencê-la a comer
e a cada dia dava-se por derrotada.
Quanto tempo poderia sobreviver uma loup-garou sem comida, inclusive uma que não queria seguir como tal?
Cassidy tomou assento na cadeira frente à sua cunhada.
-Isto não pode seguir assim, Rowena -disse.
Com as mãos descansando passivamente sobre seu regaço, Rowena não respondeu. Continuou olhando fixamente para fora, observando a chuva do verão golpeando
contra o vidro.
Cassidy levantou-se e colocou-se frente à janela.
-Realmente pensa em se matar? Não sabia que isso era o que as verdadeiras damas inglesas faziam.
Os olhos de Rowena encontraram-se com os seus.
-Deixe-me sozinha. -disse, sua voz rouca pela falta de uso.
A fome não tinha apagado seu temperamento aristocrático. Estava decidida a controlar sua vida, e não ia permitir que uma americana do povo interferisse.
Mas Cassidy possuía bastante da obstinação dos Forster e seus próprios sentimentos de impotência. Tinha saudades do marido, com uma permanente dor em seu
peito, que também estendeu-se a seu estômago. Necessitava dele... e se atreveu a acreditar que ele necessitava dela.
Mas ele parecia que não. As breves notas e os telegramas enviados durante suas viagens estavam cheias de banalidades sobre este ou aquele país, nada bastante
específico para indicar onde estava ou quanto tempo seguiria fora. Sentia-se um pouco contente porque também continham temperadas palavras de afeto, embora somente
ela as interpretasse como tais. Mas não lhe davam nenhuma pista de seu papel em Greyburn. Não podia ser mãe. Era imprestável para a Causa. Amar Braden deveria ser
suficiente. Seis semanas atrás, assim era.

Seis semanas atrás, a perfeita felicidade parecia estar próxima. Agora, se sentia mais alheia do que tinha estado no Novo México das coisas e das pessoas
que deveriam importar-lhe mais. Isso ia mudar.
-Sinto -respondeu-, mas não posso deixá-la só ou permitir que se mate de fome. Possivelmente você não goste, Rowena, mas é parte da minha família. Isso para
mim significa algo, embora para você não.
Rowena olhou-a fixamente como se fosse uma vitela de duas cabeças.
-Verdadeiramente não aprendeu nada. Se espera lealdade, amor e tranqüilidade, casou com a família equivocada.
-Penso que aprendi que... às vezes temos que fazer que as coisas ocorram, em lugar de esperar que venham a nós.
Rowena descansou sua cabeça sobre o respaldo da cadeira.
-Defendeu-me ante Braden à última vez que tentou seguir esse conselho. Não esqueci.
-Então, deixe-me ajudá-la agora.
-Sabe sobre Quentin?
-Não.
-Então não há nada que possa fazer -Olhou para Cassidy sem esperança.
-Ele ia voltar há duas semanas para me ajudar a escapar de Greyburn enquanto Braden estivesse fora. Não veio.
Cassidy deixou escapar o fôlego e se sentou em sua cadeira. De modo que Rowena não se rendeu depois do primeiro intento, e seu irmão gêmeo estava preparado
para ajudá-la, apesar das inevitáveis conseqüências. Quentin fazia um bom trabalho ocultando suas intenções. Ele nunca tinha interferido antes entre Braden e Rowena,
ao menos não na presença de Cassidy.
Mas era o gêmeo de Rowena, e tinha sentido que eram muito unidos, embora ambos ocultassem essa cercania junto com seus planos para a fuga dela.
Por razões desconhecidas, Quentin não tinha vindo como prometeu. A última oportunidade de Rowena se foi. Era desesperadamente infeliz e estava assustada,
bastante desesperada para escolher a única liberação que ainda via ao seu alcance...
Não. Se ninguém mais em Greyburn necessitava de Cassidy, Rowena Forster sim. Não com palavras, a não ser atos. Alguém que se preocupasse até esse ponto.

Apertou os dedos ao redor dos braços de sua cadeira e inclinou-se para diante.
-Diz que Quentin ia ajudá-la a escapar. Como?
-Ele não compartilhou seus planos comigo. Só sei que ia preparar uma adequada distração para os serventes que me vigiam e que tomaríamos um navio em Liverpool,
para a América...
-América?
A boca de Rowena formou um esboço de sorriso.
-É o último lugar onde Braden me buscaria.
Isso era bastante certo. Rowena tinha deixado claro seu desgosto para as coisas americanas, inclusive seu futuro companheiro.
-E o que faria na América? -perguntou Cassidy. - Irá ao encontro do homem que ama?
-Não. Isso acabou -Rowena fechou os olhos. - Já não importa.
-Fará ,se eu te ajudar no lugar de Quentin.
Os olhos castanho-claros se abriram de par em par.
-Você?
-Sou a única que posso.
-Agora é a esposa de Braden -disse Rowena com amargura. - Já viu como reagiu antes. Não sabe o que ocorrerá se interferir de novo?
Por um momento Cassidy pensou na nota de Isabelle e se perguntou se Rowena a tinha enviado. Tinha uma desculpa para criticá-lo, se Milena, a quem ela tinha
querido tanto, também tinha sido prisioneira de seu irmão.
Mas Rowena havia dito que Braden amava Milena. Nunca sugeriu o contrário. Não sabia nada sobre Mikhail, e não tinha falado de um menino nascido morto.
Como podia seguir admirando Milena se soubesse que a esposa do irmão tinha sido tão desleal? Ou acaso pensava que ele tinha merecido? Se acreditava que
Braden realmente tinha empurrado...
Não havia nenhuma verdade nessa carta. Nenhuma.
-É por isso que não pede minha ajuda -perguntou Cassidy, porque se preocupa por mim?

Rowena afastou o olhar.
-Não pode se colocar em seu contrário, Cassidy.
-Não me ponho em seu contrário. Amo-o. Mas se tiver que escolher entre sua Causa e salvar sua vida... não vejo como posso fazer outra coisa.
Rowena tampou o rosto com as mãos. Depois de um longo silêncio, levantou a cabeça. Seus olhos estavam úmidos.
-Ele se casou contigo, -murmurou- embora não possa se transformar. Se existir alguém no mundo que pode fazê-lo entender...
Se me amar, havia dito Cassidy a Isabelle, não me deixará fora. Escutará o que digo.
-Então está decidido -Cassidy levantou-se e caminhou pelo tapete para a cama de Rowena.
- Não sei como Quentin planejava distrair os serventes. Vi os que te vigiam.
-Braden obrigou-os mentalmente a perder todo o respeito por mim -disse Rowena. - Poriam as mãos em cima de mim para evitar minha fuga, e eu não lutarei
com eles.
-Então... terá que sair da única forma que nunca suspeitariam. Como um lobo.
Rowena tentou manter-se em pé, perdeu o equilíbrio, e agarrou a cadeira para sustentar-se.
-Não.
-Sei quanto odeia isso, mas é pela última vez... tem que fazê-lo, Rowena.
Parecendo doente, Rowena deixou-se cair na cadeira.
-O que pede... , eles me reconhecerão, inclusive como lobo...
-Por culpa da sua cor. Mas, e se obscurecermos sua pelagem com cinzas, de modo que se pareça com Braden? De noite, nenhum humano será capaz de notar a
diferença.
-Como sairei da casa?
-Através de um passadiço secreto em nosso quarto. Vi Braden utilizá-lo, e sei como funciona. Pensarei em alguma boa razão para que vá à nossa suíte. Não
acredito que os serventes me digam que não.

Rowena estremeceu.
-Não posso ir a Liverpool como... uma besta.
-Não terá que fazê-lo. Juntaremos um vulto com roupa e outras coisas que necessitará, e... -Cassidy pensou com rapidez. - Agarrarei uma carruagem para
te levar longe da casa. Tem que haver um trem...
-E quem conduzirá essa carruagem, se não podemos confiar em nenhum dos serventes?
-Eu o farei. Posso dirigir os cavalos. Levarei você à estação, e...
-Acredito que temos uma alternativa melhor.
Cassidy e Rowena giraram de uma vez para a porta. Isabelle entrou no quarto e fechou a porta com cuidado atrás dela.
-Peço-lhes perdão por entrar sem ser convidada, mas Telford me disse que encontraria Cassidy aqui -Encontrou o olhar de Cassidy.- Parece que meu sentido
da oportunidade é impecável.
O corpo de Rowena tremia como uma folha.
-Senhora Smith...
-Sei sobre o que discutiam, lady Rowena. Esperava algo nesse estilo. -Não realizou nenhum intento por entrar no quarto, e permaneceu muito quieta junto
à porta, com as palmas pressionadas sobre sua saia para evitar tocar o que pertencesse à Rowena.
- Acredito que posso ser útil -olhou para Cassidy-, se me permite falar a sós com lady Rowena uns minutos.
Era a primeira vez em semanas, que estas duas mulheres estavam juntas no mesmo aposento. Possivelmente, ao fim, haveria algum tipo de aceitação entre elas.
E talvez Isabelle, como Cassidy, estivesse ansiosa por sentir-se útil.
-Esperarei junto à porta -respondeu Cassidy-, e me assegurarei de que não sejam interrompidas.
Deixou-as sozinhas, e tentou manter seus pensamentos bastante ocupados para não deixar-se invadir pelo medo de que o que estava a ponto de fazer nunca pudesse
desfazer.
A primeira coisa que Isabelle viu quando entrou no quarto de Rowena foi o retrato de Milena. Com uma única olhada percebeu imediatamente porque esta mulher
morta era o centro de tanta confusão.

Mas se Milena era parte do problema atual, não era mais que um periférico. Teria que esperar.
Isabelle inclinou-se contra a porta e desejou estar em qualquer outra parte, neste dormitório decorado com bom gosto e com caros elementos tão de acordo
com a irmã de um nobre. Sentia-se esmagada pelo peso do julgamento da sociedade, representada na figura arrogante e correta da jovem sentada junto à janela.
Correta ainda, talvez, mas já não tão arrogante. Lady Rowena tinha sido empurrada ao sofrimento, tinha visto seus sonhos e desejos íntimos destruídos por
um homem que não se preocupava de sua felicidade.
Eram agora tão diferente a elegante dama e a mulher caída em desgraça?
-Lady Rowena -disse Isabelle-, estou segura de que compreende que é impossível que Cassidy possa acompanhá-la a Liverpool.
Rowena evitava olhá-la nos olhos. Sentia-se ofendida pela intolerável audácia da prostituta... ou era bastante desgraçada para aceitar ajuda onde quer
que pudesse encontrar?
-Dou-me conta que Cassidy e você não estão unidas -continuou Isabelle, endurecendo a voz. - Não a queria como cunhada, mas o fato feito está. Peço que
tenha em conta seu futuro aqui em Greyburn, depois de que você se for...
-Considerei isso, senhora Smith -Rowena levantou a vista. - Desde o primeiro dia que Cassidy se uniu a nós em Londres, vi que Braden sentia algo por ela
que não podia ser facilmente descartado. Quando chegamos a Greyburn, falei com ela sobre sua anterior esposa. -Sua delicada garganta tremeu. - Fiz Cassidy acreditar
que Braden amava Milena, que ela era tão perfeita que ninguém poderia tomar seu lugar. Eu acreditava no segundo, mas não no primeiro.
-Lorde Greyburn não a amava?
-Não. Possivelmente a princípio estava encantado por ela, mas isso passou, e tudo o que permaneceu foi luxúria e posse. A dominação do animal macho sobre
sua companheira. Enganei Cassidy para protegê-la. Esperava que se desapaixona e que se manteria longe de Braden.
Isabelle sustentou seu olhar.
-Foi você quem me enviou a carta?

-Eu não enviei nada -disse Rowena voltando para sua fria dignidade.
- Digo isto agora para que possa ajudar Cassidy se necessitar.
-É verdade, então... que lorde Greyburn estava ciumento e manteve Milena aqui, isolada...
-Sim. Foi um matrimônio arrumado. Nunca tiveram muito em comum. Ela tentou de tudo para lhe agradar, mas por sua natureza, ela preferia estar entre pessoas
que podiam rir e encontrar alegria na vida, tal como ela trouxe a alegria a Greyburn. Ela desfrutava em sociedade e com a temporada. Mas Braden desejava permanecer
aqui por sua Causa. Isso era o único pelo que se preocupava. Começou a desprezá-la porque não tinha dado um filho para a Causa -Seus olhos brilharam com lágrimas.
- Por um tempo, ele permitiu que ela voltasse a Londres a cada temporada, mas no último ano de seu matrimônio, ele... se voltou louco. Em sua enfermidade, acreditava
que cada homem com quem ela falava era seu amante, e estava decidido a castigá-la. Trouxe-a de volta, tal como fez comigo, e converteu-a em sua prisioneira. Enquanto
estava confinada em Greyburn, ele... embaraçou-a. Milena não podia suportar a idéia de ter seu bebê aqui, sem amor nem felicidade. Suplicou-me que a ajudasse a escapar.
Mas fui muito covarde para desafiar meu irmão.
Isabelle se sentiu doente. Então, as afirmações da carta não eram inteiramente falsas.
-E sua morte?
Rowena estremeceu ante a brusca pergunta.
-Ela conseguiu escapar, apesar dos estratagemas de Braden. Ele saiu atrás dela durante uma terrível tormenta. Trouxe-a de volta, ferida e inconsciente.
Nunca voltou a ser ela mesma. Seu filho morreu.
-Já vejo -murmurou Isabelle. - Obrigado por me contar isto, lady Rowena.
Os olhos dourados de Rowena eram a única nota de cor em um rosto orgulhoso, formoso e crispado.
-Queria que soubesse. Se Braden souber que Cassidy me ajudou a escapar, as conseqüências...
As conseqüências.

Não existiam palavras para descrever o que lorde Greyburn faria se tivesse algum motivo para duvidar da lealdade de Cassidy. Mentir agora não serviria a Rowena
para nada. Embora lorde Greyburn não empurrasse a sua esposa, sua morte era responsabilidade dele. Tinha-a tratado com crueldade, acusando-a dos mesmos pecados que
a sociedade tinha impulgido à Isabelle, talvez, inclusive, obrigando-a a submeter-se à sua luxúria.
Uma vez, Isabelle tinha pressentido que Braden era um homem que escondia grandes paixões sob um frio exterior. Essas paixões eram mais perigosas do que
nunca tinha suspeitado.
-Não duvido de que Cassidy ofereceu sua ajuda livremente -disse Isabelle.
- Antes teria pensado que era o ato impulsivo de uma menina, mas ela amadureceu e mudou nestes meses. Dissuadí-la seria difícil -Caminhou um pouco dentro
do quarto e calou-se, lutando contra sua própria inquietação.
- Embora Cassidy saiba que Braden se enfurecerá, sua fé é maior que sua razão. Ela já escutou algo do que você me contou, mas ama lorde Greyburn, e porque
unicamente pode amar com todo seu coração e alma, acredita que só com isso estará protegida.
-Não estará -Rowena apartou o olhar. - Não com Braden
Isabelle estremeceu ante o pessimismo dessas palavras.
-Então ambas devemos evitar que se envolva mais do necessário. Eu irei com você a Liverpool.
Ambas se olharam fixamente. Isabelle sorriu de forma irregular.
-Sei o que sente por mim, lady Rowena. Mas também sei que como uma moça respeitável, não desejará viajar sozinha. Considero-me uma atriz bastante boa...
ninguém fora de Greyburn terá suspeitas sobre minha verdadeira identidade.
Rowena voltou-se para a janela, seu perfil emoldurado pela chuva.
-Admito -disse-, que você tem um grande talento.
-E tem medo de que meus talentos a contagiem -riu Isabelle.
- Já se sente manchada por suas habilidades desumanas, as quais Cassidy sacrificaria tudo por obter. Bem, lady Rowena, se minha companhia for tão repelente,
pode continuar com o caminho covarde e suicidar-se. Apesar de minhas faltas e minha mera humanidade, este é o único recurso que terei em consideração.

Com uma brusca inspiração, Rowena rodeou sua cadeira. Sua pele empalideceu. Sua boca abriu-se e voltou a fechar-se. Pouco a pouco sua aristocrática máscara
perdeu todos seus afiados bordos. Parecia enrugar-se enquanto Isabelle observava.
- Você tem razão -murmurou Rowena. Tampou os olhos. - Sentiria-me ...agradecida por sua companhia.
O orgulho é uma medicina difícil de tragar. A gratidão de Rowena era tensa, mas autêntica. Desejava se sentir triunfante ante tal vitória? Perguntou-se
Isabelle. Sente-se superior agora? Acaso não sacrificamos ambas a honra para sobreviver?
-Não podemos esperar que nenhum dos serventes nos acompanhe -disse Rowena.
- Alguém deve conduzir a carruagem até a estação.
-Pensarei em algo. Sugiro que prepare o mínimo do que necessitará para a viagem, e recupere forças comendo o que possa.
Rowena olhou para cima.
-Braden voltará a qualquer momento...
-Então deveremos estar preparadas para atuar a qualquer momento -Preparou-se para partir quando a voz da Rowena a deteve.
-Eu não importo para você... -disse. - Por que faz isto?
-Pelo bem de Cassidy. Não há muito que lorde Greyburn possa me fazer . -Na porta duvidou e voltou-se.
- E porque... acredito, que todos devemos ser livres para formar nossos próprios destinos.
Deixou a habitação com alívio e encontrou Cassidy aguardando como tinha prometido. Se os lacaios colocados no corredor se sentiam molestos por estas idas
e vindas, não mostravam nenhum sinal.
-Penso que lady Rowena consentirá em comer agora -disse Isabelle.
- Você se ocupará disso e a ajudará a escolher o que necessitará para a viagem? Devo fazer meus próprios preparativos.
-Então partirá com ela?
Isabelle acariciou a bochecha de Cassidy.
-Só até Liverpool. Tenho assuntos ali que devo atender.

Apressou-se a partir antes que Cassidy pudesse fazer perguntas ou ver suas lágrimas. Existia outro obstáculo a enfrentar, se ia ocupar-se de que Cassidy
permanecesse fora deste embrulho tanto como fosse possível. Era o único dos presentes que Isabelle estava segura que faria algum bem.
E significava que também ela devia tragar seu orgulho e esquecer tudo, exceto o bem-estar de Cassidy.
Trocou de roupa, vestindo uma saia apropriada para caminhar, saiu da casa através das portas do jardim e escalou a colina que se elevava detrás. Nunca tinha
estado na casinha de Matthew, mas a tinha visto do topo da colina, aninhada no pequeno vale a seus pés. Sabia que Matthias -não, agora devia pensar nele como Matthew-
tinha voltado para Greyburn depois de uma inexplicada ausência.
Não. Não sem explicação. Foi por culpa dela. Porque não tinha sido capaz de aceitar a verdade de seus pecados.
Mas ele parecia bem disposto para Cassidy, em suas duas encarnações. Era um homem amável de coração. E estava relativamente livre das maquinações do clã
Forster. Se alguém em Greyburn poderia ajudar, era ele.
Isabelle desceu pelo outro lado da colina, reunindo toda sua coragem. Não suplicaria, mas quase, por Cassidy.
Não sabia o que esperar quando bateu à porta. Responderia o homem de pitoresca armadura ou o estranho que tinha visto pela última vez em tão baixa humilhante
circunstância?
A porta abriu-se para um aposento vazio. Ele não estava ali. O alívio e o pânico se mesclavam, debilitando seus joelhos.
-Senhora Smith -chamou uma áspera voz atrás dela.
Isabelle virou-se, com a mão na garganta. O homem que a saudava do jardim levava roupas gastas e puídas, mas era a vestimenta de um homem de boa família
do século dezenove, não um fronteiriço do dezessete.
Matthew.
Ela se endireitou e olhou-o nos olhos. Tinha passado muito tempo da última vez que o tinha visto, mas era tão dolorosamente bonito como antes.

O cabelo cinza como o aço se esparramava sobre seus ombros, de uma longitude passada de moda. Seu rosto estava marcado por alguma nova tristeza. Seus olhos...
Seus olhos passearam sobre ela nublando-se de emoção.
-Isabelle -disse. Deu um passo para frente e se deteve tocando o pescoço de sua desfiada camisa e-é... não esperava...
-Onde está Matthias? -perguntou ela de súbito.
- Foi-se -disse. - Eu sinto. Se tiver vindo para encontrá-lo, t-temo-me... foi-se.
Isabelle sobressaltou-se ante o estranho tom de suas palavras. Falava como se Matthias estivesse morto. Mas estava diante dela, em sua outra identidade,
bastante vivo.
-Senhor Forster, sei que tem muito pouco desejo de conversar agora. Entretanto, vim pedir...
Ele se precipitou para frente em uma ardente carreira, com uma mão estendida em súplica.
-Falhei, Isabelle.
Ela olhou seu ruborizado rosto sem compreender.
-Não entendo...
-Não. Não lhe disseram, verdade? -Ele riu pelo sob. -Matthias foi quem propôs. Disse que... um de nós d-devia ir a Londres para desafiar Leebrook e defender
sua honra.
-O quê?
-Não podia permitir que ele a insultasse como o fez. Mas Matthias... não p-podia ir a Londres. Eu fui em seu lugar. E falhei.
Isabelle precisava sentar-se com urgência. Como se ele adivinhasse seus pensamentos, Matthew se apressou a tomar seu braço e conduzí-la ao interior da casinha.
Sentou-a em uma singela cadeira junto a uma mesa igualmente singela.
-Você... desafiou lorde Leebrook? -perguntou fracamente.
-Matthias me deu sua espada. Viajei a Londres... mas tudo f-foi um desastre -Inclinou-se pesadamente contra a mesa.,
- Leebrook não aceitou meu desafio. Tomaram-me por l-louco. O conde enviou meu sobrinho Quentin para me trazer de volta.

Isabelle resistiu ao impulso de apertar a inclinada cabeça dele contra seu peito.
-Então... foi por isso que deixou Greyburn?
Um brilho de feroz orgulho cruzou pelo rosto dele.
-Sim. Ia fazer que esse b-bastardo do Leebrook pagasse... -Calou-se, e quando olhou para Isabelle, foi com uma amarga tristeza.
- Mas ele não pagou por seus crimes. E eu... estou envergonhado.
O mundo virou de pernas para acima. Matthew, envergonhado, por falhar ao defender sua inexistente honra. Era o tipo de louco plano que um herói à antiga
levaria a cabo... um homem como Matthias, criado em outro século menos civilizado.
Mas Matthew era quem tinha ido a Londres... Matthew, que durante tantos anos se manteve oculto, em solidão e pena.
-Não -disse ela com suavidade. Atreveu-se a tocar a mão dele. - Não tem nada de que se envergonhar.
Ele suspirou e apoiou o queixo sobre seu peito.
-Foi quando estava em Londres... que soube que n-nunca voltaria a necessitar de Matthias.
-Aonde foi?
A luz nos olhos dele era distinta de qualquer que tivesse visto antes. Deu-se conta de que sua gagueira era muito menor, e que falava com um eco da calma
segurança de Matthias.
-Quando voltei para Greyburn, ele não estava aqui. Ambos sabíamos que já não era n-necessário.
Ela examinou seu rosto, perguntando-se se o estava compreendendo.
--Por quê?
-Porque eu me... -Girou sua mão para agarrar a de Isabelle.
- Antes, contei a você parte de uma h-história... sobre como Matthias me salvou do desespero. Você certamente p-pensou que estava louco, Isabelle. Mas eu
sabia todo o tempo que eu era Matthias, e que ele era eu. Era minha maneira de pretender que o m-mundo real não existia. Inundei-me em meus próprios sonhos de incursões
e guerreiros fronteiriços.

Perdi-me em uma antiga lenda sobre um guardião de Greyburn. Deu-me um propósito, não importava quão ilusória fosse, e pude c-me converter em alguém forte e
seguro. Permiti que minha família acreditasse que somente era um excêntrico inofensivo. Preferi minha fantasia ao desprezo de minha família.
Incrementou o apertão.
-Verá, desejei conhecê-la da p-primeira vez que a vi passeando pela colina. Mas Matthias era o único com coragem para aproximar-se. De modo que permiti
que essa parte de mim a cortejasse, da única forma que sabia.
Ela levantou a mão até a sua bochecha.
-OH, Matthew. Que somente devia estar...
-Nunca me tinha dado conta disso, até que a conheci você. E quando vi a valentia da jovem Cassidy, a p-pesar das incapacidades que a converteriam em uma
proscrita, como eu era ... me envergonhei de minha covardia. Quando Leebrook insultou-a, eu fui atrás dele -Deixou cair o olhar. - E também fui c-covarde por não
procurá-la e admitir que não tinha podido defendê-la. Você pode me perdoar?
-Mas fui eu quem enganou você -disse ela. - Como pode ignorar o que eu...?
Ele posou um dedo sobre seus lábios.
-Uma vez, faz muito tempo, devia existir outra Isabelle, que se viu forçada pelas circunstâncias e a desonra de um homem que não lutou por ela. Está ela
aqui agora?
Como desejou dizer que não.
-Sim, Matthew -respondeu, liberando sua mão da dele. - Ela forma parte de mim. Não posso negar as escolhas que tomou.
-Mas agora, aqui, hoje... tem novas escolhas que tomar -Ele recapturou sua mão.
- Não serei um covarde nunca mais. Devo saber. E Matthias o único que você...? -Sua bronzeada pele se avermelhou. - Posso ter esperanças, Isabelle?
-Esperanças? -sussurrou ela.
-Quando retornei, temia havê-la perdido. Sabia que quem lhe interessava era Matthias. Agora ele se foi, e q-possivelmente eu seja um pobre substituto -Inclusive
enquanto falava, seus olhos a observavam com desejo.
O coração de Isabelle galopou sob suas costelas.

-Mas você é Matthias.
-Ele sempre será parte de mim -Seus dedos acariciaram os dela.
- Mas era um papel que encarnava, um fantasma. Agora tenho algo melhor que as fantasias pelo que viver.
Sim. A paz de Matthias estava ali, no rosto dele, em sua voz. A angústia e o remorso aos que Matthew se referiu pareceram desaparecer, levando também os
dela.
-Amo-a, Isabelle -disse ele.
Ela fechou os olhos. Isto era um sonho. Matthew e Matthias falavam com uma só voz, unida... de amor. Amor com os olhos bem abertos. Sem truques, sem decepção,
sem remorso.
Ele uniu as duas mãos dela com as suas e se ajoelhou ao seu lado.
-Você pode me amar, Isabelle? Tal como sou?
Ela apoiou seu rosto sobre o ombro dele.
-OH, Matthew... conceda-me tempo. Isto não é algo que eu esperasse acontecer. Nunca.
-É óbvio -Ele acariciou seu cabelo.
- Se necessita de tempo para aprender a confiar de novo. E um homem pode viver muito tempo com a esperança, formosa minha, minha querida.
Ela se inundou em seus doces olhos.
-Matthew... vim buscá-lo por uma razão. Não pode esperar -Afastando sua própria confusão, explicou-lhe o plano de Cassidy para ajudar Rowena, e seu próprio
papel na aventura.
-Mas necessitamos de alguém que nos leve à estação -disse. - Não sabia a quem mais apelar.
-Veio a mim. E a ajudarei - Ergueu-se, levantando-a.
- Você... deseja acompanhar Rowena à América?
-Não. Tinha planejado deixar Greyburn... mas certas circunstâncias mudaram há poucos momentos - Separou-se dele.
- Não podemos pedir aos moços que preparem a carruagem, nem podemos ocultar nosso papel nisto.
-Compreendo -Ele sustentou seu olhar, mas não fez nenhum intento em segui-la até a porta.
- Possuo certa h-habilidade com os cavalos. Posso fazer o que for necessário.
-Então venha aos estábulos amanhã, uma hora antes do amanhecer. Devemos tomar uma carruagem e nos encontrar com Rowena a uma boa distância da casa.
-Estarei ali.
Isabelle saiu da casinha e subiu a colina, negando-se a olhar para atrás. Tinha esperado que este encontro fosse humilhante e doloroso, mas todas suas predições
tinham resultado falsas. Dispunha de uma noite para tomar uma decisão que decidiria seu futuro: entregar seu coração e confiar em um homem que pouco conhecia, plenamente
consciente de que na Inglaterra nunca poderia esquecer seu passado...
Ou deixar atrás de si qualquer esperança de amor.
Tinha falado à Cassidy sobre escolhas, acreditando que as suas foram feitas muito tempo atrás. Parecia que uma pessoa nunca era muito velha para ser estúpida.
O amanhecer chegou impregnado por uma pesada névoa que conduzia o indício do próximo outono. Os cavalos da carruagem galopavam, exalando vapor por seus
narizes. Isabelle colocou seu xale sobre os ombros e observou as imprecisas silhuetas de um grupo de árvores para o oeste. Para Greyburn.
Matthew estava sentado no assento do chofer, sustentando as rédeas com soltura. Assobiava brandamente.
-Alguém vem -disse. Mas não houve mais aviso antes que um lobo, negro e cinza, emergisse da névoa.
Parou a poucos passos de Isabelle e sacudiu sua pelagem vigorosamente. Cinza negra voou dele, deixando-o o de um branco brilhante.
Um lobo branco. Tinha visto antes este lobo, quando espiou a cerimônia da Grande Sala, mas era bastante diferente estar tão perto de Rowena Forster em sua
outra aparência. Nesta forma, o lobo era tão elegante e formoso como a mulher, mas indubitavelmente era muito mais. Era indubitavelmente perigoso.

Rowena encontrou o olhar de Isabelle com olhos ligeiramente mais amarelos dos que possuía em sua forma humana. Isabelle sentiu o desafio nesse olhar e estremeceu.
Mas Rowena desprezava a si mesma neste momento mais do que possivelmente poderia incomodar-lhe a prostituta, cuja ajuda necessitava com tanto desespero.
Isabelle retornou à carruagem e tirou a manta que havia trazido com as malas menores de Rowena. Sacudiu-a e sustentou-a aberta entre o lobo e ela mesma.
Como se a névoa circundante obedecesse às ordens de Rowena, reuniu-se ao seu redor e envolveu-a em um casulo de ar. No interior desse casulo, transformou-se.
Isabelle mal piscou, quando uma mulher apareceu ante ela, pálida, nua e dolorosamente magra.
Rapidamente, Isabelle ofereceu-lhe a manta e Rowena arrebatou-a. A audácia do lobo se foi, Rowena colocou a manta sobre sua cabeça inclinada e apressou-se
para a carruagem.
Conforme o lembrado, Matthew escapuliu para conceder à sua sobrinha a privacidade de que necessitava para colocar o singelo vestido de viagem que Isabelle
havia trazido. Seguia sem haver rastro de Cassidy.
Por um momento, Isabelle atreveu-se a esperar que Cassidy tinha tido o bom senso de permanecer na casa.
Mas o apagado som de uns cascos em seguida estragaram essa esperança. Um cavalo e seu cavaleiro, movendo-se com um trote enérgico, apareceram onde o estreito
caminho desaparecia entre a bruma. Cassidy vestia seu vestido de algodão e montava escarranchada, com o cabelo úmido e solto formando uma espessa juba às suas costas.
Desmontou o cavalo com uma suave palavra e olhou para a carruagem. Sua pele estava estranhamente pálida e tinha escuras olheiras sob os olhos, como se
não tivesse dormido. Isabelle duvidava de que nenhum deles o tivesse feito.
-Funcionou -disse Cassidy. - Ninguém me deteve quando convidei Rowena aos meus aposentos. Quando os serventes se perguntem esta manhã onde está, será muito
tarde -Fez uma careta.
- Os moços dos estábulos ainda estão perseguindo os cavalos que deixei soltos. Eu não gostei de fazê-lo, Isabelle. Se não fosse por Rowena...

-Era necessário -respondeu Isabelle. Quão último Cassidy precisava era sentir-se mais culpada, além das conseqüências que ainda tinha que enfrentar, embora
não se precavesse de quão enormes seriam. As verdades que Rowena tinha revelado deviam permanecer ocultas até que Isabelle retornasse e tivesse tempo para explicar
o mais delicadamente que pudesse.
- Tem feito sua parte, Cassidy. Pode voltar agora...
-Ainda não -Olhou para Isabelle, com os olhos úmidos apoiando a bochecha sobre o pescoço do cavalo. - Teria chegado antes, mas não me sentia bem. Tenho
que esperar uns minutos antes de poder montar.
Instintivamente Isabelle tocou a frente de Cassidy. Ela não era do tipo que se queixava por moléstias menores, e Isabelle nunca a havia visto doente, exceto
depois do ataque do lacaio.
-Sente-se muito doente?
-Meu estômago. Às vezes pela manhã cedo, tenho que... -Tragou, empalidecendo mais. - Desculpe-Me.
Entregou as rédeas à Isabelle e correu para o grupo de arbustos mais próximo. Isabelle escutou os sons de um vômito, e depois Cassidy retornou, movendo-se
lenta e tensamente.
-Sinto muito -disse. - Isto nunca me aconteceu antes.
Uma idéia chegou à Isabelle como o resplendor da luz do sol através da névoa. Rapidamente fez um cálculo mental.
-Desde quando se sente assim?
-Não muito. Sabe o que me passa?
Isabelle procurou um lugar onde se sentar. Rowena ainda estava ocupada detrás de um biombo feito à base de mantas atadas à carruagem, e Matthew ainda não
havia retornado. Conduziu Cassidy para um grupo de pequenas rochas e a fez sentar-se.
-Cassidy... às vezes estes problemas não são absolutamente um sintoma de enfermidade. Existe uma verdadeira probabilidade de que esteja grávida.
A própria luz solar se envergonharia ante o brilho do rosto de Cassidy.
-Quer dizer... um bebê... -Começou a levantar-se e imediatamente se sentou de novo. A luz abandonou seus olhos. - Não pode ser, Isabelle.

-Não pode? -Essa breve e deslumbrante dita tinha convencido ao Isabelle de que Cassidy desejava um filho. Sua condição somente podia se supor um bem aos
olhos de seu marido, um amparo contra sua ira. O que outra coisa podia ir mal? - Sei que deveria te haver falado disto antes, mas... -Braden não
pode ter filhos -disse Cassidy. -Explicou-me isso pouco antes de partir.
Isabelle piscou. Braden havia dito à Cassidy algo que diretamente se contradizia tanto com a carta como com as afirmações de Rowena sobre Milena ter dado
a luz um bebê morto. Era este outro engano do conde de Greyburn? O que podia ganhar mentindo? Ele desejava filhos para sua Causa.
A menos que não desejasse filhos, que não fossem totalmente loups-garous. Os filhos de Cassidy. Inclusive assim, seria difícil para ele evitar sua concepção
sem o uso de algum amparo. E Cassidy certamente se daria conta.
Cassidy cruzou seus braços sobre o estômago.
-Se somente...
Isabelle ajoelhou-se torpemente.
-OH, querida minha.
-Não se preocupe por mim. Braden sente muito mais dor.
Naturalmente pensaria nele antes que nela mesma. Isabelle sacudiu a saia ocultando sua fúria e seu desgosto depois de uma aparência de calma.
-Entretanto, é óbvio que não se encontra bem. Levaremos você de volta a Greyburn antes de continuar para a estação.
-Não -Cassidy ficou de pé e olhou além de Isabelle.- Rowena. Está preparada para continuar?
Rowena se uniu a elas.
-Está bem, Cassidy?
-Perfeitamente. E você?
-Sou livre -respondeu Rowena. Apesar de sua gasta aparência, sorria com a maior calidez que Isabelle tivesse visto nela jamais. Parecia... humana.
-É graças a você -Rowena incluiu Isabelle com seu olhar-, a ambas que nunca voltarei a ser obrigada a suportar à besta. Devo-lhes minha vida. Não esquecerei
sua amabilidade.
Cassidy deu um passo à frente e obsequiou Rowena com um de seus impulsivos abraços.

-Desejaria que tivéssemos podido nos conhecer melhor -disse. - Espero que encontre o que procura na América.
-E eu espero e rezo para que você encontre a felicidade aqui -disse Rowena. Mas seus olhos se encontraram com os de Isabelle por cima da cabeça de Cassidy,
e seu olhar era triste.
-Se querem atravessar as terras de Greyburn antes que haja plena luz, devemos ir logo -disse Matthew atrás delas.
Rowena assentiu.
-Esperarei na carruagem -disse. Apertou a mão de Cassidy pela última vez e deixou-a a sós com Isabelle.
Cassidy foi direta ao grão.
-O que acontece entre Matthew e você, Isabelle? -perguntou.
Evitar sua aguda perspicácia era impossível.
-Não sei -respondeu. Foi impossível sustentar o olhar de Cassidy.
- Nunca esperei...
-Amar alguém outra vez? -Cassidy sorriu amplamente.
-Eu necessitava de você, mas não me dei conta de pensar que você também necessitava de alguém -ficou séria. - Matthew é um bom homem. Penso que pode confiar
nele, Isabelle.
Ah, mas você confia com muita facilidade. Eu não sou como você. Mas Isabelle sentiu expandir seu coração, como se alguém tivesse tirado um peso de cima
dela.
Cassidy abraçou-a e deu um passo atrás.
-Tome cuidado, Isabelle. Volta sã e salva -Seu sorriso vacilava entre a tristeza e uma valente determinação. - Tem feito tanto por mim. Eu não sabia nada
da vida quando cheguei à Inglaterra, mas aprendi uma coisa, Isabelle. Vale à pena lutar pelo amor.



CAPITULO 19


Faltavam duas milhas.
Somente ficavam duas milhas da viagem de volta a Greyburn, e quando sua carruagem alugada se aproximou da fronteira de suas terras, Braden foi consciente
de uma nova e comovedora felicidade ante os aromas e sons do lar.
Era por Cassidy. Sua esposa -um pensamento novo e milagroso - que aguardava sua volta, na qual nunca tinha deixado de pensar durante estas largas semanas
de separação. O aroma de Cassidy ainda estava muito longe, mas encontrou a si mesmo inclinando-se contra a janela, estendendo seus sentidos em busca de um indício
da essência única dela flutuando no vento.
Tinha saudades dela agora como tinha sentido a cada dia de sua ausência. Aceitar essa necessidade tinha sido difícil. Antes, sempre tinha viajado sozinho,
com Telford como único acompanhante. Tinha negado qualquer solidão ou desejo de companhia, orgulhoso de sua auto-suficiência.
Orgulho. Quão completamente tinha sofrido seu orgulho nas mãos de Cassidy. Mas ainda assim a recordava nesse lugar que sua cegueira não podia tocar -cheia
de alegria, acolhedora, leal em sua devoção - e seu coração se encheu, afligindo-o de exaltação.
Durante sua viagem à Rússia e o que passou a seguir, tinha começado a sentir que suas dúvidas e temores se faziam insubstanciais como sombras. Se sua separação
de Cassidy tinha sido uma prova, tinha daso a si mesmo uma resposta.
Suas emoções deviam ser aceitas, não rechaçadas. Ele faria que funcionasse. Esqueceria o passado. Permaneceria leal à Causa e à Cassidy, custasse o que
custasse. Cassidy se converteria como parte da Causa, sua companheira, inseparável em seu coração.
Com um esforço recostou-se na cadeira e voltou sua atenção aos outros ocupantes da carruagem. Soube que o menino o observava. Sentia aqueles olhos -os olhos
de Milena - olhando-o fixamente com firme concentração, desde que tinham saído da Rússia, e durante cada milha de trem, navio e carruagem do continente à Inglaterra.
Neste último lance da viagem entre a estação de Ulfington e Greyburn, Braden era plenamente consciente do que tinha feito.

E de que o filho de Milena chegava finalmente a Greyburn.
O acordo com os russos foi feito com bastante facilidade. Braden tinha permitido que Stefan e Fedor retornassem ilesos à Rússia em troca de um refém...
o filho de Milena, Mikhail. Não tinha sido tão estúpido em que os irmãos acreditassem que queria o menino para outro propósito que não fosse um seguro para sua boa
conduta. Para quando se precavessem de que tal conduta não faria que voltasse, o menino estaria estabelecido em Greyburn.
Braden tinha esperado encontrar um inferno infantil nos domínios dos Boroskov, uma criatura que rechaçaria ser devolvido à Inglaterra. Em seu lugar, Tasya
Boroskova tinha apresentado-o timidamente a um menino de três anos que mal falava e mantinha uma estranha dignidade amadurecida em seu forte e pequeno corpo. Braden
soube então que não partiria sozinho.
Mais ainda, queria o menino. Os instintos de Cassidy tinham sido certeiros. A cura descansava neste ato de reconciliação, tanto para o menino órfão como
para o guardião cheio de remorso.
Mas a serenidade de Mikhail Boroskov era quase aterradora. Não tinha chorado quando disse adeus à mulher que o tinha criado. Partiu sem resistência, obedecendo
a Braden e à babá, que este tinha contratado em Londres, e tinha se comportado de maneira ideal em todos os aspectos. Era totalmente o contrário de sua mãe.
Seria o filho de Cassidy.
E dele.
Ele sentia uma inesperada possesividade, a necessidade do lobo de proteger os jovens e os indefesos. Mas havia muito mais que isso, mais que a culpabilidade
ou o arrependimento. Era como se Mikhail fosse carne de sua carne.
Isso não podia ser, mas negou-se a fazer que supusesse uma diferença. Tinha atuado o melhor que podia para tratar Mikhail com amabilidade, embora se sentisse
torpe em seus intentos. Talvez o menino só se sentisse confuso, e esse era o motivo de seu acanhamento e seu olhar fixo. Depois de tudo, era meio loup-garou.

Criou-se com o amor de Tasya, mas também tinha passado seus três primeiros anos formando parte de uma família imersa no vício e na crueldade. Havia algo
bloqueado nele, dormindo, esperando... esperando pela única alma que podia chegar a ele.
Cassidy, que tinha derrubado os muros de Braden com decidida persistência e acalmada fé.
Cassidy, sua esposa. Sua...
A palavra permaneceu bloqueada em sua mente.
A carruagem estralou através das largas grades que se abriam ao parque de Greyburn. A babá de Mikhail, uma mulher de meia idade chamada Betsy, emitiu um
som apreciativo. Braden sabia que devia a ele mesmo a iniciação da mulher. Ela parecia o suficientemente respeitosa e total, assim postergaria esse assunto durante
um dia ou dois... até que o menino se adaptasse, e ele soubesse que tudo iria bem.
Alcançaram uma casa silenciosa que não parecia estar preparada para sua chegada. Algum dos serventes notaram sua aproximação; em pouco tempo um grupo de
lacaios teria saído e Aynsley ofereceria-lhe suas formal bem-vinda, mas Braden alegrou-se por estes poucos momentos de paz.
Desembarcou da carruagem e voltou-se para o menino. Mikhail agachou-se em seu assento junto à babá, tão silencioso como sempre.
-Venha, filho -disse Braden ,- é seu novo lar.
Possivelmente a babá deu-lhe um empurrão, ou o menino não pôde romper seu hábito de obediência. Deslizou para frente e permitiu a Braden que o elevasse
até deixá-lo no chão. Agarrou a mão de Braden e este o aproximou mais a ele.
-Logo se acostumará a isto -disse bruscamente. - Aqui temos cavalos e muito espaço para correr.
Sentiu como o menino levantava a cabeça para olhá-lo. Esperando. Talvez desejando sob toda essa quietude. Braden teve a repentina urgência de levá-lo à
Cassidy, de modo que pudesse sentir e escutar sua alegria ante a surpresa que havia lhe trazido.
-Há alguém que conhecerá logo - disse ao menino, dando-lhe um apertão na mão.- Alguém que gostará muito de você, ... e você também gostará. Mas antes a
babá te levará ao seu quarto, onde poderá descansar.

A mão do menino soltou a de Braden somente pela grande insistência da babá, que falava sem parar ao menino. Chegou Aynsley, seus movimentos menos seguros
do habitual nele. Braden deu-lhe instruções para o emprego do menino na zona para meninos que levava tanto tempo sem ser utilizada.
Telford baixou rapidamente as escadas.
-Bem-vindo a casa, milord -disse.
Braden quase haveria descrito seu tom como incômodo.
-Encarregou-se do assunto de Dodd como lmandei?
-Sim, milord. Tudo está preparado.
-Excelente. Poderá você partir quando estiver preparado - Tocou o ombro de Telford. - Aprecio seus esforços. Farei que seu tempo valha à pena.
-É um prazer, milord -Telford voltou-se e partiu, deixando Braden com a sensação de que algo não ia de tudo bem.
Mas esse era o antigo pessimismo de Braden, a voz que estava decidido a esquecer. Estava em casa. Separou-se dos atarefados lacaios e seguiu os urgentes
ditados de seu coração.
Cassidy o esperava no vestíbulo de entrada. Estava muito calada. Não correu para ele para lançar-se aos seus braços. Sua quietude a fazia parecer maior
que sua idade, ou possivelmente era o tempo que tinha passado fora o que o fazia imaginar uma nova dignidade. Tinha aprendido a ser uma dama em seis semanas?
Não sua Cassidy. Ela não podia mudar. Ele não permitiria. Seu desejo chegou imediatamente, e com ele a imagem de sua esposa nua entre seus braços, tomando-o
dentro de seu flexível corpo e sussurrando palavras que ele apenas se atrevia a acreditar que fossem reais.
-Cassidy -disse, sua voz rouca pela emoção. - Estou em casa.
-Sim -disse ela. Só isso, como se levassem décadas casados e fossem indiferentes um ao outro. Ele a escutou reter o fôlego.
- Tenho algo que te dizer, antes...
Ele desejou nesse momento que ela fosse incapaz de falar devido à falta dele. Deu umas pernadas para ela e envolveu-a com seus braços, sentindo-se completo
no instante em que sentiu seu coração pulsando contra o seu.
Lar. Este era o lar como nunca tinha sido; isto era vida, promessas e felicidade.

Encontrou sua boca e beijou-a, seus pensamentos corriam pensando na maneira mais eficiente de alcançar seu dormitório e despojá-la de sua roupa. O vestido estava
apertado e formal, uma das escolhas de Rowena. Ele o odiava.
-Cassidy -murmurou, beijando seu cabelo e desejando liberá-los das forquilhas que o asseguravam. Não podia sustentar a espessa juba em suas mãos até que
estivessem a sós, escada acima. Desejava acariciar sua pele e saborear o néctar de seu corpo, levá-la ao êxtase uma e outra vez. A partir deste momento, já nunca
voltaria a estar sozinho.
O corpo dela se esticou em seus braços sem oferecer resposta.
-Tem que saber, Braden -disse ela. - Precisamos falar disso agora.
Doído e perplexo, ele a liberou e deu um passo atrás.
-Estou encantado de que me tenha tido saudades tanto, minha querida esposa. Que mais poderia pedir depois de uma viagem tão larga?
-Estou contente de que haja retornado. Mais que contente. Sem você... OH, Braden...
Tocou seu braço e ele sacudiu-a.
-Já que parece tão urgente que fale comigo, por favor fale. Estou seguro de que ambos temos assuntos mais importantes esperando nossa atenção.
Ele não necessitava de pistas visuais para reconhecer sua frustração... ou seu profundo desconforto.
Algo ia mal. O bastante mal como para que ela não pudesse saudá-lo com o amor que tão audazmente lhe tinha confessado antes.
Mas ela não desejava desgostá-lo. Era uma noiva recente em um mundo ainda estranho para ela. Sem dúvida tinha tido alguma metedura de pata com os serventes
ou uma transgressão similar que pareceria muito pior a ela que a ele. Era torpe e desajeitada com respeito aos padrões ingleses, jovem e afligida.
Ele curvou a boca em um sorriso e estendeu a mão.
-Perdoe-me, Cassidy. Só estou cansado pela viagem. Onde está Quentin?
-Quentin... não esteve aqui há um mês -respondeu ela. - Não sei onde está.
Um zumbido de alarme se moveu ao longo dos nervos de Braden. Não tinha estado presente para manter os excessos do Quentin a raia. Podia estar em qualquer
parte, metido em algum problema. Mas maldito fosse se permitia que a ausência de Quentin estragasse sua chegada a casa.

-Não se preocupe -disse a ela. - Eu o trarei de volta logo. Confio em que Rowena esteja bem, falarei com ela dentro de pouco. Tenho uma surpresa para você...
-Braden... Rowena se foi.
A voz de Cassidy era suave e serena, mas foi como se tivesse gritado. Braden endireitou-se imediatamente, com a cabeça elevada, farejando o ar.
O aroma de Rowena era velho, de vários dias. Braden lançou-se para a escada a pernadas e subiu os degraus de dois em dois, ignorando seus ocasionais tropeções.
Alcançou o dormitório da irmã e encontrou a porta sem correr o ferrolho.
O quarto estava vazio. Rowena tinha partido fazia tempo suficiente, pois sentia que seu aroma estava desaparecendo.
Cassidy subiu atrás dele, movendo-se com pisadas em ligeiras e dúbias.
-Ela se foi há duas semanas.
Ele voltou-se para ela.
-Como? Como conseguiu partir?
O coração dele pulsou umas quantas vezes antes que ela respondesse.
-Eu a ajudei -respondeu.
A declaração ficou suspensa entre eles como um grito moribundo. Braden se encontrou incapaz de respirar.
-Tive que fazê-lo -continuou ela. - Estava muito mal, péssima.Teria marido antes... -Levantou o queixo. - Era algo que evia fazer, Braden. Por favor,
entenda.
O atordoamento expulsou toda sensação do corpo dele antes que pudesse sentir ou reagir. Simplesmente permaneceu onde estava, absorvendo a confissão dela.
Imaginou Rowena em seu dormitório, voltando-se histérica em seu ódio para o que era. Convencendo a si mesma de que a morte era a única escapatória.

A compaixão chegou até ele de nenhuma parte sem que desejasse. Compaixão, negação e pena pela irmã que uma vez o tinha querido. Outro sacrifício para a
Causa. Mas o sacrifício era necessário. Nenhuma vida podia pesar mais que a sobrevivência de uma raça.
Rowena conhecia isso. E também Cassidy, mas o traiu em um desafio deliberado dos requerimentos básicos que lhe tinha imposto para seu matrimônio... sua
absoluta lealdade e a aceitação da Causa e suas exigências.
Traído. Seu estômago e sua garganta se retorceram como se um torturador o atasse com bandas de ferro. Lutou por encontrar qualquer explicação que pudesse
absolvê-la.
-Quentin -disse com voz rouca. - Quentin estava atrás desta...
-Rowena não tinha notícias de Quentin.
Quentin não. Mas Rowena era sua gêmea. Ela ocultava sua astúcia detrás do decoro, o instinto selvagem sob uma aparência de normalidade humana. Estava bastante
desesperada...
-Como te convenceu? -exigiu saber. - Deve ter te enganado. Tomando vantagem de sua amabilidade...
-Não tomou vantagem sobre mim, Braden.
-Rowena tem os poderes dos loups-garous -disse ele. - Pode usá-los...
-Ajudei-a por minha própria vontade -respondeu Cassidy. Moveu-se para ele e calou-se. - Sei o que sente pela Causa. Sei o que me contou, e nunca quis te
desobedecer -Ele a escutou tomar ar também, como se fosse difícil respirar.
- Mas estava errado, Braden. Estava errado mantê-la prisioneira. Se tivesse encontrado outro caminho...
Ele ignorou seu intento por explicar-se. Tudo o que seu coração podia fazer era continuar pulsando quando as garras do desprezo retorceram seu peito.
Cassidy. Sua ingênua e inocente Cassidy tinha-o feito acreditar que era diferente de todos que tivesse conhecido. Singela, cândida, firme. Oposta à Milena,
sem sequer um rastro da amargura de Rowena ou a alegre irresponsabilidade de Quentin. Alguém com quem pudesse deixar descansar seu controle durante uma hora, ou
um dia. Alguém imune à traição.

Ele nunca teria acreditado que ela fosse capaz disto. Tinha-a deixado por umas poucas semanas, e inclusive isso foi muito tempo para manter sua devoção. Ela
sabia o que Rowena significava para a Causa. Sabia desde o começo que a Causa era sua vida.
E pedia sua compreensão.
Encaminhou-se para a cama de Rowena e curvou seus dedos ao redor do esculpido poste, apertando até que sentiu os desenhos impressos em sua carne.
-Sabe o que tem fez?
-Sim -Nenhuma desculpa. - Sei. Mas...
-Aonde foi?
-A um lugar onde pode viver sua própria vida -disse Cassidy, e ele se perguntou como podia falar tão tranqüilamente do desastre. Da destruição de seus cuidadosos
planos, da confiança que Tiberius lhe tinha outorgado tantos anos atrás.
E a destruição de sua própria esperança. A estúpida e crédula esperança em que Cassidy era o que Milena nunca tinha sido: a outra metade de si mesmo.
Seu... amor.
Soltou o poste e se voltou para ela.
-Dirá aonde ela foi -disse com uma voz sem expressão. - Eu a trarei de volta.
-Não posso -respondeu ela. - Eu prometi à Rowena. Ela tinha direito de procurar sua própria felicidade, tal como eu o tenho feito. Contigo.
A ironia de suas palavras encheram-no de mordaz diversão.
-Deveria ter tido mais consideração à sua felicidade antes de ajudá-la. Acredita que pode resistir à minha vontade se escolho usá-la contigo?
-Mas não fará -respondeu ela brandamente. - Sei que não o fará.
Estava tão segura dele... tão segura de que aceitaria sua deslealdade pelo simples feito de estarem casados? Devido a terem compartilhado uma cama e umas
poucas horas de paixão?
Milena tinha estado igualmente segura, confiada em que nunca abriria os olhos à sua infidelidade ou tomaria ações contra ela, sem importar quão flagrante
fosse seu comportamento licencioso. Tinha utilizado seu amor por ela contra ele uma e outra vez, e se tinha burlado de sua metafórica cegueira.

Quanto teria rido, inclusive da tumba, quando a metáfora se converteu em realidade e inundou o conde de Greyburn em uma perpétua escuridão.
Mas ele tinha aprendido a adaptar-se. Seus outros sentidos se voltaram mais intensos, sua intuição se fez mais aguda. Em todos os aspectos, exceto num.
Suas defesas mais fortes não tinham sido suficientes para evitar que Cassidy invadisse seu coração. E destruindo tudo outra vez.
Que estúpido tinha sido ao conceder a ela o poder de lhe fazer mal.
O vazio de luz atrás de seus olhos pareceu encher-se de cores que ainda recordava, escarlate como o fogo e vermelho como o sangue que pulsava ao ritmo de
uma fúria irracional, fúria que expulsasse a dor.
Ele agarrou seu pulso.
-Foi feliz comigo -grunhiu burlonamente. - Sabe por que me casei contigo? Porque ambos somos inúteis para a Causa e para a continuidade do sangue dos loups-garous.
Você não pode se transformar e não podia esbanjar o sangue de Quentin em um matrimônio com alguém como você. Eu sou estéril. Fiz-me responsável por você, e não podia
te repudiar quando tinha demonstrado ser mais humana que loup-garou. Que solução mais conveniente teria que nos casar?
Ele sentiu a comoção percorrendo o corpo dela.
-Mas... no bosque... -gaguejou. - Quando veio detrás de mim e de Quentin...
Sabia o que estava fazendo a ela, fazendo-se a si mesmo. Queria que ela sentisse sua dor, embora se sentisse envergonhado por sua debilidade. Sentimentos
contraditórios rasgavam-no, e não pôde deter as palavras de fúria e dor que saíram dele como um veneno fatal.
-Eu te desejava -disse.- Sim, Cassidy, desejava seu jovem e intacto corpo. Foi audaz, voluntariosa e disposta para o contato. Como minha esposa, seria minha
na cama, sempre que eu o desejasse, com todas as normas sociais satisfeitas. Certamente não acreditaria que tinha algo a ver com o amor?
Seu estalo deixou Cassidy sem fôlego e tremendo, como se Braden a tivesse atirado ao chão com os punhos, mais que com as palavras.
As palavras eram como armas. Palavras sinceras, já que ela soube com um olhar ao seu angustiado rosto, que não estava mentindo.

Ela tinha se preparado para sua fúria, suas recriminações, inclusive para o castigo por sua desobediência. Aceitaria todas estas coisas, porque tinha feito
sua escolha.
Mas não isto.
Ele a tinha desejado. Desejado seu corpo, na forma em que os homens desejaram Isabelle e pagaram por seus serviços. Mas ele tinha seguido ao menos algumas
das regras da sociedade humana, e acreditava no dever. De modo que se tinha casado com ela, não por amor ou sequer amizade, mas sim porque ela era imprestável para
sua Causa. De nenhuma utilidade, exceto para desafogar suas necessidades na cama, fazendo exatamente o que lhe havia dito que fariam durante o resto de suas vidas,
acreditando como ele acreditava.
Só que ela não era sua sombra, obrigada a estar de acordo com tudo o que ele pensasse que era correto ou não. Ela tinha atuado segundo sua própria consciência,
sabendo que ele a desaprovaria, confiava que a perdoaria porque a amava. Nunca o havia dito, mas tinha estado tão segura, tão absolutamente segura.
Recordou a voz de Isabelle, relatando uma história que não pôde aceitar: sobre um amor que tinha trocado e se converteu em ciúmes, sobre a prisão e tragédia.
E o papel de Braden na morte de Milena.
-É por culpa de Milena, verdade? -perguntou ela, asfixiando-se com as palavras. - Amava-a tanto, e depois ela...
-Amá-la? -Ele riu. - Isso é o que pensou? Rowena não te contaria isso. Ela sempre acreditou que eu odiava a minha esposa.
Mas Rowena havia dito, embora não com tantas palavras. A autêntica verdade se mostrava no rosto dele.
-Odiava Milena -murmurou ela. - Pelo que tinha feito com esse outro homem...
-Era minha companheira na Causa. Nada mais. E falhou no cumprimento de seu propósito.
-Mas você... a desejava.
-Era formosa -disse ele, com a dureza de uma pedra. - Podia despertar a luxúria em qualquer homem.
Luxúria. Luxúria era tudo o que havia sentido, pela Milena e por sua nova esposa.

-E estava ciumento -disse Cassidy.- Manteve-a prisioneira, como Rowena...
-Sim - Disse à Cassidy. - Eu a mantive aqui, para servir à Causa. Ela não aceitaria minha autoridade. Ela... -Virou o rosto.
-Por que foi a esse homem? -perguntou Cassidy. Mas conhecia a resposta a essa pergunta. "Converteu sua vida em uma miséria", havia dito Isabelle, lendo
da carta. Sem nenhuma esperança de amor por parte de seu marido, esteve tão equivocada em buscá-lo em outra parte? Se ele não podia lhe dar filhos, lhe negando inclusive
essa pequena felicidade... -Não amava Milena -disse ela.
- Todos outros a amavam, mas você não pôde. E se não pôde amar alguém como ela, nunca poderia me amar.
Uma última e débil esperança em seu interior aguardou em mudo desespero por uma simples palavra, um simples movimento por sua parte que demonstraria que
se equivocava. Mas Braden permaneceu completamente imóvel, sem olhar para ela e sem tocá-la. E dessa forma respondeu a ela.
Tinha cometido um terrível engano.
Sentiu como se um véu se elevasse de seus olhos, permitindo-a ver com claridade pela primeira vez, ver Braden tal como realmente era e a si mesma como sempre
tinha sido. Insensata, estúpida, desejando tão desesperadamente pertencer a algum lugar e ser amada que ignorou as realidades que Isabelle tinha tentado lhe ensinar.
Deu as costas a ele, asfixiando-se com as lágrimas sem derramar. Teria continuado durante anos enganando a si mesma, vivendo em seus próprios sonhos infantis.
Sempre tinha visto as possibilidades e as portas abrindo uma a uma ante ela, mas não as limitações e os altos muros que as pessoas - loups-garous ou humanas - construíam
para fazer que seu mundo parecesse seguro.
A Causa era a barricada insalvável de Braden, feita não somente para proteger a si mesmo a não ser para apanhar, manter e esmagar qualquer um ao seu alcance.
Nem sequer olharia dentro desses muros para ver quem ou o que destruía.
Seu Tigre se voltou contra ela com os dentes e as garras nuas para devorar a fé, o amor e tudo no que ela se transformou.
-Agora sabe -disse Braden, sem lhe permitir trégua.

- Também me enganou, lady Greyburn. Sua aparente inocência esconde uma habilidade natural para a duplicidade que não fui capaz de reconhecer. Penso que eu fosse
ingênuo - Dedicou-lhe um sorriso grotesco em sua desolação.
- Nosso matrimônio não pode desfazer-se. Dispõe do meu nome, minha fortuna e meu amparo. Procure sua felicidade em outra parte, Cassidy. Nunca a encontrará
comigo.
Lentamente, com deliberação, ele se virou dando-lhe as costas, como se a cegueira não fosse bastante para expulsá-la de sua atenção. Era mais que uma despedida,
era uma eliminação. Ela sentiu sua finalidade, como uma maciça grade que se fechasse de repente em seu lugar. Para ele, ela tinha deixado de existir.
Suas pernas vacilaram, ameaçando deixar de sustentá-la. Uma maré de dor atravessou-a, chegando aos próprios alicerces de seu ser. Não ficava nada. Braden
tinha se encerrado em um lugar aonde ela não podia seguí-lo, e com ele levou seu futuro e a ela mesma.
Caiu em um lugar sem final, um lugar inimaginável por sua escuridão. Viveu a tormenta que Isabelle tinha conhecido toda sua vida, a angústia que quase tinha
conduzido Rowena ao suicídio e Milena para outro homem e sua própria morte.
Isto era a agonia. Isto era a desesperança. Tinha sido somente meio consciente antes, cega ao verdadeiro desprezo. O preço por ver com claridade, por amadurecer,
era muito alto. Faria algo para retornar à sua cegueira, a sua antiga e infantil vida de ingênua crença e escassamente ilustrada solidão.
Mas não havia como voltar atrás. Ou permitia que a destruísse ou encontraria outro caminho. Um novo caminho...
Do centro mais profundo de seu corpo, desde esse lugar que Braden tinha despertado com seu contato, uma violenta fúria surgiu rugindo para levar toda a
comoção e todo o sofrimento. Tinha começado a reconhecer sua própria fúria com antecedência, mas isto se parecia com a anterior emoção como um fogo selvagem à chama
de uma vela. Cassidy renasceu, esticando os membros, os músculos e os tendões como uma pantera que se levanta faminta depois de um comprido sonho.
A liberação de sua fúria liberou sentimentos que não sabia que possuía. Nesse momento odiava Braden. O ódio tirou-a do poço onde ele a tinha empurrado,
e com ele chegou a vontade de contra-atacar.

Tinha mentido à Isabelle: o amor de Braden não merecia brigar por ele, não ao preço de sua alma. Ela não necessitava de ninguém, e de Braden Forster menos
que a ninguém. Ele não era digno da luta.
Era livre, forte e poderosa em formas que Braden não podia adivinhar e somente estava começando a compreender. Viver aqui sem amor seria uma rendição, e
ela nunca voltaria a render-se. Nem ante o desprezo, nem ante o conde de Greyburn.
-Eu não sou sua irmã, nem sou Milena - disse-lhe, com os punhos apertados e a cabeça elevada. - Não sou lady Greyburn. Sou Cassidy Holt. Uma vez acreditei
que te amar era tudo o que importava. Você foi tudo o que tinha desejado ser, nobre, forte e seguro de si mesmo. Dava por feito que existiam boas razões para que
tratasse as pessoas como o fazia... os serventes, Isabelle, Rowena e inclusive Quentin. Convenci-me de que poderia aprender a preocupar-se por outras coisas alheias
à Causa. -As costas dele estavam rígidas, inflexíveis, mas ela sabia que escutava cada palavra.
- Estava equivocada -continuou. - Tenho lido sobre o amor nos poemas, mas não entendia realmente o que era. Agora sei que não o tem em seu interior. E não
desejo o pouco que está disposto a dar.
Um triunfo embriagador levou-a mais à frente do sentido comum. Desejava feri-lo, e continuou adiante.
-Já não temo romper as normas, lorde Greyburn. Nunca me converterá em uma prisioneira. Sou Cassidy Holt. E sou livre.
Despreocupada pela cara malha de seu vestido, arrancou os botões de seu sutiã, pulverizando-os como sementes sobre o tapete. Toda a força de lobo de sua
mãe chegou a ela enquanto tirava a pesada roupa do corpo. Os sapatos voaram através do quarto. Sua combinação ficou em migalhas aos seus pés. Afastou o espartilho
entre um rangido de encaixe, e ficou vestida somente com a roupa interior. Sua pele formigou ante a carícia do ar frio. Livre.
Sua mente ficou vazia de todo pensamento, seu coração secou-se limpo de emoções.

Permitiu que seu instinto a tomasse como uma vez permitiu que Braden possuísse seu corpo e seu coração. Conduziu-a para a porta e ao corredor, baixando as escadas
à carreira e para o vestíbulo de entrada. Captou uma olhada no rosto assombrado de um lacaio, justo antes de abrir a pesada porta principal de um puxão e lançar-se
à nublada tarde.
Devia haver outros que a viram, correndo grosseiramente como uma lunática em sua roupa interior, mas não significavam nada para ela. A paisagem passava
como um borrão de formas e cores. Correu sem o destino ou propósito, longe de Greyburn, passando sobre as colinas e junto a grupos de árvores e baixos cercados de
pedra.
O mundo inteiro se reduziu à palpitação de seu coração, ao ardente ar em seus pulmões e ao ritmo dos pés. Chegou um momento em que, inclusive a escassa
roupa que levava, pesava como se fossem cadeias. Parou o tempo justo para tirá-las. Era um lobo, era magnífica, era unida com a natureza.
Nua, saltou e quando começou a cair sentiu abrir um novo abismo debaixo dela. Retorceu-se de lado para evitá-lo, e seu corpo se transformou.
Como a água fluindo do rio ao mar, como a suave mudança das estações, como uma larva convertendo-se em mariposa, realizou a transição com facilidade e alegria.
Duas pernas passaram a ser quatro. Golpeou o sólido chão de novo, cheia de graça e segurança. O vento soprou através do exuberante negrume de sua pelagem. Toda a
vida se abriu ante ela: cada som era música, cada aroma era embriagador.
Era um lobo, era magnífica, era uma com toda a natureza.
Era loup-garou. Estava completa e livre, e não necessitaria de nada nem de ninguém, nunca.
Passou uma hora, talvez duas, antes que Braden saísse da escura cidadela de sua própria mente e se precavesse de que Cassidy não estava.
Tentou ouví-la. A casa estava silenciosa como uma tumba.
Agora todos se foram. Tudo o que ouvia era o desigual tamborilar das gotas de chuva na janela.
Braden se moveu mecanicamente para a porta, tropeçando com a roupa. Os restos da indumentária de Cassidy, dispersos pela habitação como testemunhas de sua
rebelião final.

"Convenci-me de que poderia aprender a preocupar-se por outras coisas alheias à Causa. Inclusive acreditei que poderia te amar."
Ele separou de seu caminho a rasgada anágua de uma patada e caminhou, com tanto cuidado como um velho aleijado, pelo corredor da ala familiar. Nem sequer
uma donzela interrompeu sua solidão. Passou junto ao dormitório de Cassidy com apenas um ligeiro tropeção e parou ante a porta do quarto de Isabelle Smith.
Como a recriminação de um tenaz fantasma, as acusações de Isabelle voltaram para lhe obcecar. Nenhum desdém para sua humanidade ou sua vergonha, podia
protegê-lo delas agora.
"... seus motivos não são mais puros que os de qualquer homem que utilizaria uma mulher como me utilizaram ...vocês os Forster possuem uma grande habilidade
para retorcer algo em seu próprio proveito, especialmente as vulnerabilidades daqueles sobre os que governa. Se Cassidy falhar, também a exilará?".
Que clarividentes tinham sido essas palavras. Ele a havia proscrito, com tanta segurança como se fosse um servente humano culpado de traição. Tinha-o feito
com umas poucas frases cruéis, destruindo o que ficava de sua inocência e do frágil escudo de seu auto-engano.
Que mais havia dito Isabelle? "Os melhores planos de homens e ratos se vêm abaixo por um engano".
Braden não era nem um homem nem um camundongo, mas encontrou pouco consolo nesse fato.
Deixou a porta da senhora Smith e passou junto a outras que conduziam aos quartos vazios, sem utilizar desde fazia muito tempo. A porta de Quentin permanecia
entreaberta justo à frente. O aroma de seu irmão era ainda mais tênue que o de Rowena. O lugar tinha um ar de abandono. Braden soube com repentina certeza que Quentin
não retornaria em bastante tempo. Ele, como Rowena, tinha abandonado Greyburn.
Uma traição atrás da outra. Deserção. Uma solidão mais profunda que qualquer que Braden acreditasse que teria que sofrer.

Vagabundeou sem rumo pelo quarto, sem realizar nenhum intento por evitar o mobiliário estranho para ele. Seu corpo logo que sentia o doloroso impacto ao
golpear cada obstáculo.
Por fim, seu olfato guiou-o para o armário da esquina. O fedor do licor de Quentin, seu veneno, era inconfundível. Braden abriu a porta com força e tirou
as garrafas uma a uma. Abriu a janela e sustentou a primeira garrafa no alto.
"Se não tomar cuidado, a voz de Quentin se mofava dele, encontrará suficientes assuntos, concernentes à Causa ou outros como para que nem sequer chegue
a conhecer sua esposa. E não acredito que ela consinta em permanecer à sua sombra."
Deixou cair o braço e a garrafa deslizou de seus dedos. Inclinou-se sobre o batente, aspirando com força o ar limpo pela chuva.
Havia uma tormenta o dia que perdeu a vista. O dia que perdeu tudo exceto a Causa.
Ajoelhou-se junto à janela medindo em busca da garrafa. Surpreendentemente tinha ficado encaixada sob seu braço. Encontrou uns copos de cristal em uma prateleira
do mesmo armário e tomou um junto com a garrafa. Fechou com firmeza a porta de Quentin atrás dele ao partir.
Seu destino era o quarto no final do corredor. A porta à suíte de seu avô era pesada e esculpida como a madeira da Grande Sala. Sua mesma aparência tinha
intimidado a Braden quando era um menino, quando a identificava com sermões e castigos.
Agora se sentia mais à frente do temor.
Tudo estava igual a quando visitou o quarto dois meses atrás. Como sempre tinha estado. Caminhou para a cama e apoiou a mão sobre a colcha de veludo.
Tiberius Forster tinha exalado seu último suspiro nessa enorme cama medieval, um tirano até o fim. Um tirano que sabia que sua Causa estava a salvo nas mãos do neto
que tinha educado a imagem de si mesmo.
Houve um dia, muito tempo atrás, quando Tiberius tinha chamado Braden ao seu quarto. O último dia da Convocatória onde Braden tinha conhecido Milena pela
primeira vez.

"Quentin só tem valia para mim pelos filhos que possa engendrar, havia dito Tiberius. E também Rowena." Que bem se gravou essa lição no coração, tomando
essa filosofia como própria.
Tomou assento na beira da cama. Esse menino logo que recordado despertou em seu interior, sentindo-se muito atrevido pelo sacrilégio. Pousou a garrafa e
o copo sobre a colcha e verteu o líquido sem cuidado, deixando que o brandy se esparramasse pela beira do copo caindo sobre suas calças.
O sabor era tão venenoso como o aroma, mas ingeriu-o de um só gole. Sentiu o olhar fixo de seu avô, cheio de desgosto e desprezo pelo defeituoso boneco
de pano que era.
"Você não me trairá ao final."
Não. Tinha traído tudo e a todos, mas nunca a Tiberius Forster e à sua Causa.
"Para quando terminar contigo, não terá outro propósito. Viverá pela Causa. Nada mais importará..."
Braden voltou a encher o copo e esvaziou-o tão rapidamente como o primeiro. Seu corpo era uma vasilha vazia enchendo-se de doce calidez. O néctar do esquecimento.
O que tinha estado Quentin tentando esquecer? O dever que Braden lhe tinha imposto?
Elevou o copo vazio para seu ausente irmão.
-Pois ganhou, verdade? Não perseguirei vocês. Estou acabado. Terminei com...
"Não me trairá", rugiu seu avô. Braden arrojou o copo ao chão e escutou-o quebrar-se contra a madeira nua. Cambaleou para as perfeitamente conservadas armaduras
e golpeou a mais próxima. O metal emitiu um estrépito e um chiado. Ele empurrou e caiu com um grito parecido ao de um homem morrendo na batalha. Em rápida sucessão
Braden fez cair o resto, até que o chão esteve coberto de membros desmembrados e torsos de guerreiros uma vez orgulhosos.
Inspirando com força, lançou uma gargalhada. Que valente era quando Tiberius não estava aqui para ser testemunha de sua insignificante insurreição. Encaminhou-se
aos tropeções através do quarto e recuperou a garrafa meio vazia da cama.

Telford esperava-o junto à porta.
-Milord -disse com suavidade. - Posso ajudar?
Braden mostrou os dentes.
-O que está fazendo aqui?
-O carro está preparado para partir, milord.
-Então se vá. Vá-se.
-Talvez não seja o momento adequado...
-Não necessito de você, Telford -Inclinou a cabeça contra a porta. - Ela se foi.
A incongruência saiu de tudo inesperada, como se o licor tivesse solto a língua. Telford já saberia. Todos em Greyburn já saberiam.
-Se a vir... -Não. Não pediria. Não suplicaria.
- Vá.
Telford moveu-se sem lhe dar as costas, como se estivesse em presença da realeza, ou de uma imprevisível e maliciosa besta. Quando o homem partiu, Braden
foi ao seu quarto -a habitação que compartilhava com Cassidy- e tomou assento na cadeira junto à janela. Não podia ver a luz, mas sabia que a tarde chegava. O aroma
da chuva filtrava através do vidro. O aroma de Cassidy se sobrepunha a isso e tudo o que havia no quarto. Ele tentou apagá-lo com o sabor do licor, bebendo-o diretamente
da garrafa.
Quando a garrafa estava vazia, retornou ao quarto de Quentin e encontrou outra, descartada no chão com o resto. Os sons, aromas e tatos fundiam-se em
sua mente, convertendo-se em um grande borrão de sensações. Encaminhou-se com exagerado cuidado pelo corredor e baixou as escadas indo para as portas da frente,
enquanto os assombrados serventes apressavam-se em se afastar do seu caminho como ratos.
A chuva caía normal, com suficiente força para penetrar seu atordoamento. Caminhou para onde a grama estava empapada e suave sob seus pés. Tal como antes.
A água fresca corria em sua boca, diluindo o sabor do álcool.
A voz de Cassidy sussurrou entre as gotas de chuva. "Tenho lido sobre o amor nos poemas, mas não entendia o que realmente era. Agora sei que você o tem
dentro de você."

Braden se estirou para frente como se ela estivesse ali diante dele, como se pudesse... o quê? Obrigá-la a admitir que estava equivocada? Castigá-la por
abandoná-lo?
Com cada respiração, ela se afastava mais e mais de seu alcance. Nem sequer podia criar sua imagem em sua mente. Nunca tinha visto Cassidy, sua segunda
esposa, que o havia abandonado igual à primeira. O rosto que imaginava era esquisitamente formoso, emoldurado por um cabelo claro, mas indubitavelmente cruel.
O último rosto que tinha visto, em uma noite exatamente igual a esta. O primeiro trovão retumbou e ele ficou rígido, como se tivesse sido golpeado por um
raio. O terror afligiu-o. O veneno de Quentin abria passo por suas veias, penetrando seu coração e sua mente, mesclando-se com venenos mais sutis que Braden tinha
enterrado e quase esquecido. O mesmo tempo se emaranhou até que o passado e o futuro não tiveram nenhum significado. Sua roupa molhada pendurava de seu corpo como
ataduras destinadas a estrangular e sufocar.
"Não quero o que está disposto a dar." Alguém lhe havia dito isso. Alguém que tinha afirmado amá-lo. Mas era uma mentira. Ela era uma mentira, um sonho,
uma falsa esperança de felicidade.
Permitiu que todo controle o abandonasse e deixou que o ódio se apoderasse dele. Possuiu-lhe totalmente, olhos vermelhos com a necessidade de uma devastadora
vingança, de castigar, de destruir. Era a besta que tinha esperado escapar durante todos esses anos, mantida sob cadeias pelo dever, pelo medo e pela insuportável
culpa.
Algo, alguém tinha quebrado por fim suas cadeias.
"Não pode me deter, havia dito ela, rindo com crueldade. Estarei livre de você para sempre..."
A dor golpeou seu peito. Seu sopro quebrou o que ficava em seu coração. Rugiu, ignorando a agonia que lhe atravessou enquanto se transformava.
A garrafa rodou pela erva, derramando o líquido como se fosse a vital água para uma terra sedenta.



CAPITULO 20


O lobo negro corria. Ela provou sua nova forma até o limite, alheia a seu destino. A chuva a cegava, mas mal necessitava do sentido da vista. As largas
garras escorregavam no barro e cambaleavam com as pedras soltas, mas seu equilibro era misteriosamente perfeito. As necessidades, preocupações e debilidades humanas
foram descartadas igual ao nu corpo de mulher que tinha umas horas ou anos atrás. O tempo tinha deixado de ter sentido.
Não tinha inimigos nem iguais. Sentia os animais menores encolhendo-se de medo a seu redor, reconhecendo sua supremacia. Rebanhos de ovelhas, apertando-se
contra o clima, dispersaram-se e fugiram. Seu único inimigo era a extenuação, e lutou contra ela tanto como pôde, até que seus músculos, nervos, coração palpitante
e pulmões se rebelaram.
Caiu em um lugar desconhecido junto a um caminho enlameado. Seu corpo mudou para sua forma humana sem seu consentimento, reconhecendo seu cansaço melhor
que ela mesma.
Em sua forma humana recordou tudo o que tinha ocorrido antes do milagre. O amparo da fúria se foi, diluído durante a precipitada e temerária fuga. No despertar,
seu triunfo foi tão miserável como negro era a pelagem do lobo.
Tinha provado seu sangue loup-garou... muito tarde. A fúria, o desprezo e a pena tinham-na conduzido a cruzar essa última barreira como o amor e a felicidade
não puderam. Finalmente tinha encontrado seu eu inteiro.
Mas não podia retornar. Braden tinha casado com ela porque carecia da habilidade para transformar-se e porque ele era estéril. Tinha demonstrado ser incapaz
de aceitar ou dar amor. A Causa tinha ocupado esse lugar em sua alma.
O que diria agora que ela se transformou, sabendo que ele mesmo a arrancou de seu sangue? Que castigo seria esse conhecimento. Que agonia. Ela desejava
chorar.
Tudo era muito tarde.

A chuva tinha diminuído, caindo como uma ligeira bruma que encaixava com a tristeza de Cassidy. Muito fatigada para fazer nada mais que engatinhar, permaneceu
onde estava entre a erva empapada. Desejou o alívio do sono, mas inclusive isso tinha escapado dela. Seus sentidos estavam afiados, como se cada nervo de seu corpo
fosse ferroado com espinhos de cacto. Seus olhos ardiam com as lágrimas não derramadas.
Isto era o que se sentia ao estar completamente sozinha. Nem sequer no rancho, tinha sido nunca como isto. A fúria e o ódio eram companheiros desumanos
e volúveis. O amor não era melhor. Pertencer a alguém era uma ilusão. Braden tinha entregado a ela algo precioso e depois o tinha arrebatado sem piedade. Teria sido
melhor não ter tido nunca, não ter conhecido sequer a possibilidade da verdadeira felicidade.
Se ia estar sempre sozinha, sem amor, teria que voltar a ser forte, não com a força da ignorância, a não ser a da sobrevivência. A força do lobo. A força
de uma mulher. Procurou muito dentro de si mesmo, desconectou seus sentidos e converteu sua mente em um lugar cinza e vazio.
Mas algo a esperava nesse lugar. Alguém. Uma presença, um brilho de luz, formando parte de seu corpo e de uma vez sem fazê-lo. Ela envolveu seus braços
ao redor de seu ventre quando o conhecimento se fez claro.
Não estava sozinha. Outra alma compartilhava este espaço com ela. Outra... pessoa. Sem formar, sem definir, mas ali. Descansando em sua matriz.
Ia ter um bebê.
Cassidy apertou o rosto contra a molhada erva e riu até que unicamente soluços secos saíram de sua garganta. Era uma loup-garou. Ia ter um bebê, o filho
de Braden. Braden estava equivocado em ambas as coisas, e era muito tarde.
O filho dele.
Abraçou a si mesma, embalando a preciosa carga que ainda não podia sentir com seus sentidos externos. Isabelle havia dito que o mal-estar vinha ao esperar
um filho. Com alegria passaria por isso centenas de vezes para conservar este presente.
Braden não a tinha deixado sem algo de si mesmo. Ela tinha o que ele nunca cederia voluntariamente, se soubesse. Mas não saberia.

Não entregaria seu bebê a um homem que não podia amar. Um homem em sentimentos, amargurado e com o coração congelado que somente trataria seu filho como outra
ficha na Causa.
Não. Gritou o desafio em seus adentros para Greyburn. Este bebê é meu. Será amado e querido por ele mesmo, e nunca estará sozinho. Ouça-me, Braden Forster?
Será amado.
Inclinou-se, balançando-se sobre seus joelhos, até que as lágrimas deixaram de cair. Gradualmente escutou o que antes tinha ignorado: o som de uns cascos
de cavalo, aproximando-se. Não era o violento tamborilar de um galope, a não ser o passo firme de um cavalo de tiro.
Não se precaveu do quão perto estava do caminho quando parou para descansar ou nas terras de quem estava. Esquadrinhou por cima da tela de samambaias.
Era um carro forte, mas modesto, com um condutor e três passageiros. Ela estava a ponto de voltar a se esconder, quando reconheceu o homem que sustentava
as rédeas.
Telford já não vestia seu habitual traje imaculado e formal. Levava um casaco de tweed, calças cômodas e botas, e uma boina sobre a cabeça. A singela roupa
o fazia parecer muito normal.
Ao final, Telford tinha sido um amigo para ela, embora estivesse equivocado com respeito a Braden. O desejo de falar com ele uma vez mais afligiu-a de
desejo. Deliberadamente o tinha mantido ignorante dos planos para ajudar Rowena a escapar, mas obviamente , mais tarde ele se deu conta em seguida. Sabia que não
a tinha julgado por seu ato, que estava preocupado por ela, embora não tivessem falado a respeito do desaparecimento de Rowena.
E ele era o único concernente a Greyburn que voltaria a ver.
Mas não estava vestida e não desejava dar nenhuma explicação. Permaneceu onde estava e o carro quase tinha passado, quando viu o rosto de um dos homens
que estavam na parte de atrás do carro.
Esse rosto era muito diferente à última vez que o tinha visto.

Na Grande Sala de Greyburn, estava gelado de terror e desprovido de esperança. Agora John Dodd, o lacaio -humano, traidor e boneco dos russos- estava sentado
comodamente ao lado de uma mulher maior, sorrindo como se não tivesse nenhuma preocupação no mundo.
Cassidy saltou ao empapado caminho antes de saber o que estava fazendo. Alguém no carro ofegou. Telford girou em seu assento, controlou os cavalos, pôs
o freio e saltou ao chão.
-Condessa! -disse, apanhando uma manta da parte traseira do carro com apenas uma olhada a seus curiosos ocupantes. Apressou-se para ela e, afastando o
olhar, envolveu suas úmidas dobras ao seu redor.
- O que você está fazendo aqui?
Sabia bem por que estava nua, mas também sabia que se supunha que ela era incapaz de transformar-se.
-É uma larga história, Telford -respondeu ela com cansaço. Olhou para John Dodd, que a observava sem sinal de reconhecimento, hostilidade ou temor.
- Por que você está aqui, com ele?
-Lorde Greyburn liberou-o -O magro rosto de Telford estava muito sério.
- Sei que você julgou com dureza o conde por sua maneira de tratar o Dodd. Mas nunca lhe teria feito um dano permanente - Baixou a voz.
Tristemente, as experiências do homem... danificaram sua mente. Os russos poderiam ter tido um pouco de cuidado por preservá-lo além de sua utilidade para
eles. Lorde Greyburn acredita que curará com tempo, descanso e os cuidados adequados.
Cassidy recordou a cólera de Braden para o lacaio. Como podia ter passado de semelhante violência à preocupação por um simples humano?
-Quais são as outras pessoas? -perguntou.
-A família do Dodd, sua mãe, irmã e irmão os que ele mantinha. Lorde Greyburn se ocupou dos acertos para que nem Dodd nem sua família tenham necessidades
pelo resto de suas vidas. Entregou-lhes uma granja magnífica em Orkshire e uns ganhos regulares, inclusive os cuidados de um médico até que Dodd esteja o suficientemente
recuperado.

-Inclusive depois do que fez? -perguntou ela.
-Inclusive, apesar disso -Ele examinou seu rosto. -Pediu-me que os acompanhasse ao seu novo lar. Suspeito que atrás de minha volta, deverei procurar um
novo posto. Ele não requererá meus serviços nunca mais.
-Você está equivocado. Necessitará de você, se é que necessita de alguém. Deixei Greyburn.
Não houve surpresa na expressão de Telford.
-Lorde Greyburn falou pouco comigo antes de nossa partida, mas eu sabia... - Calou-se e suspirou.
- Milady, tentei explicar-lhe, uma vez...
-Recordo-o. Você disse que acreditava que eu tinha provocado uma mudança nele. Mas agora sei mais de como era ele antes que eu viesse -Sacudiu a cabeça.
- Pensei que ...se importava o bastante comigo para entender o que eu tinha feito. E tinha que fazê-lo, Telford - Apertou a manta ao redor de seus ombros
e olhou fixamente para seus pés nus. - Mas me disse que se casou comigo por conveniência. Que não sabia o que mais fazer comigo, devido a eu não ser de nenhuma
utilidade para sua Causa -Lançou uma gargalhada. - Realmente acreditei que poderia me amar.
-Mas você o ama.
Ela quis negar com toda a fúria, o poder e a independência que tinha encontrado em seu interior, mas nem sequer agora sabia como mentir.
-Sim -sussurrou. - Mas isso não muda nada -Sustentou o olhar de Telford. - Vou ter um bebê.
A pele dele se avermelhou.
-Está você...
-Braden me disse que não podia engendrar meninos. Mas o fez.
Telford deu uns poucos passos para trás e logo para frente.
-Sabe você o que isto significaria para ele?
Ela estendeu a mão sobre seu ventre por debaixo da manta.
-Quero que meu bebê seja amado, Telford.

As pessoas dentro do carro estavam muito quietas, observando. Um pássaro trilou da árvore mais próxima. Telford passou a mão pelo rosto e fechou os olhos.
-Você crê que ele é incapaz de tal emoção, milady. Não é. No passado...
-Sei tudo de Milena. Ele nunca a amou. Ela só era alguém com o propósito de engendrar meninos para a Causa.
Telford abriu os olhos e sustentou o olhar dela.
-Lorde Greyburn permitiu a você e a todo mundo, acreditar isso, condessa. Admitir a verdade seria aceitar que cometeu enganos, que era débil. O bastante
fraco para ser humano. Apesar de tudo o que ele diga, milady, os loups-garous são em parte humanos, e para ele isso significa inaceitável fragilidade e imperfeição.
-Mas por quê?
-Seu avô, o defunto conde de Greyburn, o inculcou da infância. Tiberius Forster não era um homem bom. Desprezava os humanos e aqueles loups-garous que
escolhiam viver como humanos, incluindo a sua própria irmã. Governou Greyburn com um punho de ferro e moldou seu neto a sua própria imagem, para ser seu herdeiro
na Causa. O atual conde aprendeu mediante uma cruel disciplina, que esse dever para a Causa suplantava qualquer outro interesse. Mas quando prometeu casar-se com
Milena, apaixonou-se por ela. Apesar de seu avô, atreveu-se a pensar que poderia satisfazer ambas as coisas, o dever e sua felicidade. Ela era muito sedutora, uma
consumada na paquera. A princípio, ela parecia desejar o lorde Greyburn tanto como ele a ela.
-Rowena a chamou de anjo...
Telford riu, surpreendendo Cassidy.
-Ah, sim. Era uma perita em enganar, inclusive para seus iguais. Rowena acreditou por completo em sua atuação. Milena conseguiu que todos em Greyburn e
em Londres acreditassem que era um modelo de virtudes, incluído Braden, no princípio. Ele ainda era um ingênuo, à sua maneira. E óbvio, ela escondeu sua verdadeira
natureza do mundo exterior, mas era bastante ardilosa para utilizar suas habilidades e obter aquilo que desejava.
Cassidy tentava conciliar a descrição de Telford com o rosto do retrato e com os apaixonados louvores de Rowena. Onde estava a verdade?

"Era bastante ardilosa para utilizar suas habilidades..." Rowena estava desesperada por alguém com quem compartilhar seus sentimentos e medos, outra mulher
que fosse sua confidente íntima.
-Quer dizer que Milena utilizava seus poderes para fazer com que as pessoas a vissem como ela queria que a vissem?
-Vai contra a lei loup-garou que um deles utilize sua vontade contra outro. Mas ela não teria duvidado em fazê-lo -Sua boca torceu-se. - Não importava
que o conde a amasse até o atordoamento. Teria entregado algo, exceto a Causa para fazê-la feliz. Mas não ela não se importava com a Causa absolutamente, e rapidamente
começou a aborrecer-se com seu marido. Ele estava muito maço ao dever e vivia com muita tranqüilidade. Ela era uma devota da vistosidade e do prazer de Londres,
e passava tanto tempo fora de Greyburn como lhe era possível, entre a sociedade humana. Ele suplicou a ela que voltasse, mas ela se negou.
Braden suplicando? Parecia impossível.
-Voltou-se ciumento -disse ela.
- Obrigou-a voltar...
-Só depois de ela tomar um amante humano atrás do outro. Ela também ocultou isso, mas era em qualquer aspecto não muito melhor que uma prostitu... Desculpe-me,
milady.
Uma prostituta, queria dizer ele. Como Isabelle.
-Esteve com outros homens, embora fosse casada -disse Cassidy.
-Com cada homem que pôde seduzir, o qual era algo singelo para ela. Nem sequer tinha que se aproximar... -Telford tomou fôlego e continuou.
- Mas burlava do conde porque depois de cinco anos ele não tinha... engendrado meninos para sua Causa. Ele culpava a si mesmo por esse fracasso. Penso que
ele começou a acreditar que esse era o motivo pelo qual o abandonasse. Era mais fácil tomar a culpa que reconhecer a verdade.
Cassidy recordou o desprezo de si mesmo de Braden quando revelou a ela sua esterilidade. Milena tinha sido todas essas coisas terríveis e ele ainda se culpava?
Acariciou o ventre com ternura.
-Mas estava equivocado, Telford. Meu bebê...

-Sim. Mas ele a amava, assim que era necessário para ele desfazer o desentendido. Qualquer outra coisa deixaria suas faltas nuas ante seus próprios olhos.
Não seria mais que um patético carnudo, indigno de liderar a seus iguais ou de continuar os passos de seu avô. Veria-se obrigado a desprezar toda promessa de amor
ou felicidade. Assim, deliberadamente cegou-se às infidelidades dela e ao seu comportamento selvagem e temerário em Londres. Até que chegou o dia em que, inclusive
ele, foi obrigado a admitir a verdade.
-O que ocorreu? -perguntou Cassidy, sentindo-se doente.
-O último amante de Milena era um libertino de escandalosa reputação, um defunto oficial do exército de sua Majestade. Milena tornou-se mais e mais indiscreta
em seus namoricos, e ao fim cometeu um ato o qual... baste dizer que lorde Greyburn já não podia ignorar. O conde viajou a Londres e a trouxe de retorno à força.
Ninguém pôde discutir seu direito, mas Milena tinha convencido todos em Londres que ele era um tirano que a maltratava e que a tinha afugentado com suas crueldades.
A sociedade humana compadeceu-se dela, mas ele foi objeto de desprezo. Para os loups-garous, ele tinha mostrado debilidade permitindo que lhe fosse infiel tão descaradamente,
desafiando-o em tão direta contradição com sua própria Causa. Teve que provar de novo que era digno de ser líder.
Cassidy tentou imaginar Braden permitindo que alguém o tratasse da maneira com que Milena o tinha feito. Deve tê-la amado enormemente, e o traiu. Fez mal
a ele e à sua posição entre os loups-garous. A traição devia ser devastadoramente insuportável, já que Braden não podia ver-se afastado da Causa. Para si mesmo,
ele não era de nenhuma valia sem ela.
-Lorde Greyburn soube, não muito depois de sua volta, que estava grávida -disse Telford. - Acreditou que era dele. Mas ela exigiu que a deixasse livre e quando
ele se negou, disse-lhe que o menino era de seu amante humano -A voz de Telford baixou ainda mais.
- A revelação dou o conde mei louco, mas nem assim a castigou. Milena convenceu toda Greyburn, inclusive Rowena, que ele atormentava e abusava de sua
esposa enquanto levava seu filho no ventre. O conde não disse nem fez nada para negar suas histórias. Era a única maneira de provar que era forte e invulnerável,
de permitir-se parecer desumano e sem sentimentos.

De modo que por isso Rowena temia tão profundamente seu irmão e seus planos para ela. Tinha aprendido a odiar a seu irmão por causa das mentiras de Milena.
E ele nunca tinha tentado fazê-la trocar de opinião - Pensou Cassidy.
-Lorde Greyburn observou como o ventre de sua esposa crescia com o filho de seu amante, e nunca lhe permitiu esquecer. Então, muito perto da hora do parto,
seu amante veio em segredo para liberá-la. Lorde Greyburn perseguiu-os através do país. Os amantes tinham combinado chegar tão longe, ao sul, como o muro do Adriano,
antes que o conde os encontrasse.
-O acidente que o cegou -disse Cassidy com um brilho de perspicácia.
- Foi quando ocorreu.
-Sim -Mas o fluxo de palavras de Telford se deteve como uma primavera que se voltasse repentinamente seca.
-Como? -perguntou Cassidy, com a garganta muito tensa.
-Somente duas pessoas sabem, milady... o conde e seu irmão. Soube o resto mais tarde por Quentin Forster.
-Mas Quentin me disse que ele estava fora do país.
-Entretanto, estava ali. Só ele foi testemunha de parte do que ocorreu naquela noite tormentosa, e não falaria de nada mais lá do que já lhe hei dito. Mas
o conde não recuperou sua visão.
-Milena estava ferida quando a trouxe de volta. Não sobreviveu mais que uns poucos dias.
Porque tinha "caído". Mas realmente tinha sido um acidente?
-Milena resistiu o bastante para trazer seu filho ao mundo, mas morreu pouco depois.
-Mikhail -sussurrou Cassidy.
-O conde não tinha nenhum desejo de conservar o filho de Milena. Disse aos Boroskov e aos habitantes de Greyburn que o bebê estava morto, e em segredo enviou-o
para ser criado por uma boa família na Escócia. Mas os Boroskov deviam conhecer a verdade e levaram o menino à Rússia. Lorde Greyburn nunca soube.
Cassidy se sentou no caminho, sem fazer caso do lodo e das pedras. Agora se dava conta do porquê Braden não podia tolerar nenhum desacordo ou espionagem
de rebelião por parte daqueles inferiores a ele ou nenhuma vulnerabilidade nele mesmo.

Agora sabia por que atuou como fez com respeito à Rowena, a John Dodd, e inclusive à Isabelle, que recordava a uma esposa que se entregou a tantos homens. Por
que não tinha querido a Mikhail.
E por que tinha expulsado qualquer possibilidade de amar outra vez.
Mas tinha mostrado piedade para com Dodd... afastou-se de seu caminho para ajudar ao antigo lacaio. Tinha permitido que Isabelle ficasse, quando deveria
havê-la desprezado. E tinha prometido considerar trazer Mikhail de volta a Greyburn.
Mas Milena tinha morrido, e ninguém, com exceção de Braden e Quentin, sabia como.
-Pensa que... -disse-, você crê que Braden podia ter... que faria algo a... -Não pôde acabar, mas Telford compreendeu.
-Não sei, milady -respondeu com gravidade.
-Não sei. Mas quando os rumores começaram, propagados possivelmente pelo amante de Milena, ele se negou a rebatê-los.
De modo que tinha sido julgado, e declarado culpado.
-Obrigada -disse ela brandamente, levantando o olhar para Telford.
- Agradeço que tenha me contado isto -Olhou para a carreta. - Não deveria fazê-los esperar mais.
-Não posso deixá-la aqui sozinha, milady -disse ele. Era típico dele não mencionar sua volta a Greyburn. Ele a respeitava, tal como o respeitava. Confiava
nela para que tomasse suas próprias decisões, suas próprias decisões.
Mas sua preocupação era real. Ela sentiu uma quebra de onda de calidez por ele, e ficou em pé.
-Não tem que se preocupar comigo. Agora posso me transformar, Telford. Sou loup-garou.
Ele assentiu sem surpresa.
-Sempre possuiu um grande poder, Cassidy Holt. Não percebi a princípio, mas somente um cego poderia não vê-lo agora - Inclinou-se.
- Não direi adeus. Estou convencido de que voltaremos a nos encontrar.
Ela tragou com dificuldade e impulsivamente agarrou sua mão. Primeiro Quentin e Rowena, e agora Telford, saindo de sua vida. Não pensaria em Braden.
Telford sujeitou sua mão em um firme apertão.

-Uma vez li um poema que nunca esqueci...
"Não diga que a luta não vale à pena,
que o trabalho e as feridas são em vão,
o inimigo não desaparece, nem desfalece,
e assim como são as coisas, eles permanecem...
E quando as janelas do Leste,
ao chegar a luz do dia se iluminam;
à frente o sol se eleva lentamente,
mas para o oeste, olhe, a terra é brilhante!"
Apertou sua mão uma vez mais e soltou-a, indo para a carreta.
Cassidy permaneceu à beira do caminho até que a carreta desapareceu na próxima curva. Muito depois de que a última vibração dos cascos do cavalo cessasse,
ainda ficou onde estava, uma prisioneira de outro coração.
Desejou ter segurança em si mesma para voltar, a confiança que lhe chegou em sua forma de lobo, a liberdade sem desejos nem preocupações. Mas essas coisas
tinham-na abandonado igual às pessoas que tinha chegado a amar.
Não, não a tinham abandonado. Faziam suas escolhas e ela fez as suas. Com uma estranha claridade, podia olhar pra atrás e ver cada decisão tal como tomou.
Não se arrependia de nenhuma delas nem se questionou se eram corretas.
Porque não tinha sabido fazê-lo melhor. O mundo tinha parecido singelo, quando não o era absolutamente. Isabelle tentou se acostumar a ele, mas o tipo
de coisa que devia aprender por você mesmo.
Tal como Cassidy tinha aprendido.
Escolheu vir à Inglaterra, esperando encontrar a si mesma além de um propósito e um lugar a que pertencer. Tinha escolhido entregar-se a Braden, amando-o.
Ignorante como era naquele tempo, naquele tempo, seus motivos tinham sido dignos.
Exceto o terceiro, desafiá-lo e ajudar Rowena. Havia se sentido tão nobre e convenceu a si mesma que poderia enfrentar o desgosto de Braden.
Agora, via com dolorosa compreensão, que não o tinha feito só por Rowena.

Tinha acreditado o bastante na carta que Isabelle recebeu e nos relatos de Rowena para sentir-se justificada em desafiar seu marido. Braden a tinha deixado
sozinha em Greyburn atrás de seu matrimônio, e ela tinha desejado... tinha desejado feri-lo. Desejava que se sentisse tão perdido como ela, embora nem ela mesma
se dava conta do que sentia em seu interior.
Desejava que ele se sentisse tão... abandonado e só como ela, porque o que tinha com ele não era o poético sonho que esperou.
E tinha tido muito êxito. Tinha triunfado sobre ele; transformou-se em alguém como Milena. Tinha conseguido que o passado revivesse ante seus olhos, afogando
qualquer confiança e afeto que pudesse sentir pela moça com a qual se casou.
Mas já não era uma moça. Era uma mulher. Teria um filho. E isso significava que deveria viver com suas escolhas, igual à Isabelle. Aceitar as conseqüências
do que tinha feito, em lugar de fugir delas.
Se Braden tinha causado a morte de Milena, vivia cada dia com essa culpa. Ou possivelmente... possivelmente se mantinha imune a qualquer sentimento, para
proteger-se de uma emoção muito horrenda de suportar.
Atou-se com cadeias, como se, com um simples gesto, pudesse fazer-se em pedacinhos como o cristal que tinha quebrado na biblioteca. Sua cegueira era outra
forma de conservar as pessoas, e a ameaça do amor, sempre mais à frente do alcance.
As conseqüências do amor eram insuportáveis. Ela não podia deixar de amá-lo, dissesse o que dissesse ou fizesse o que fizesse. Mas, tinha o poder de obter
que ele se enfrentasse consigo mesmo? Poderia viver com um homem que poderia haver...?
Fechou os olhos, sentindo a criança que tinham engendrado juntos. Era tanto dele como sua. Deixar que continuasse acreditando que nunca poderia ter filhos...
Se desejasse castigá-lo, não poderia existir melhor maneira.
Talvez Braden merecesse o castigo, mas não dela. Não tinha esse direito.
Lentamente deixou cair a manta até formar uma pilha aos seus pés. Jogou a cabeça para trás, absorvendo os úmidos aromas do crepúsculo e do fim do verão.

A terra se preparava para a estação da calma e a quietude, da morte aguardando renascimento. Seu filho nasceria quando o mundo estivesse a ponto de despertar
de novo. A esperança.
Ela tinha chegado à Inglaterra com pouco mais que esperança e inocência; era como se uma parte dela tivesse estado adormecida. Agora se sentia consciente
da dor da sabedoria, da cólera e do temor. Estava assustada como nunca tinha estado em sua vida. Assustada por Braden. Assustada por seu filho. Assustada por si
mesma e daquilo no que estava se transformando.
Pelo que nunca se transformaria, pelo que nunca teria, retornaria.
Era a escolha mais importante de sua vida.
Como tinha feito uma vez no deserto do Novo México, permitiu às suas turbulentas emoções encontrarem sua voz.
Uivou, deixando sair o lobo de seu interior e convocando a transformação.
Do norte, em Greyburn, outra voz áspera de cólera e pena respondeu à sua chamada.



CAPITULO 21

O uivo do lobo emergiu da bruma como uma trompetista de guerra, e ele respondeu ao desafio, escondido no topo de uma colina enquanto a chuva renovava seu
assalto sobre a terra.
Sua humanidade tinha sido abandonada muito atrás. Não podia recordar quando se transformou ou o que o tinha conduzido a isso. Somente sabia que caçava e
que aquilo que procurava não devia escapar dele.
Não o que caçava, a não ser quem. O apagado uivo tinha divulgado só uma vez, e encheu-o de fúria.
Ela, que o tinha traído, estava fugindo. Acreditava ser seu igual. Pensava que podia desafiá-lo impunemente.
Estava equivocada.
Lançou-se à carreira, arranhando a molhada terra com suas garras e sacudindo a chuva de sua pelagem com cada enérgica pernada. O fôlego ferroava sua garganta
e assobiava entre seus dentes. Agora sabia como encontrá-la, depois de horas de busca.
Umas imagens passaram por sua mente como sabujos perseguindo os coelhos. Sua inútil confiança nela. Seus repetidos esforços por fazê-la feliz. A última
vez que se deitou com ela -a esperança, a vacilante felicidade, suas promessas sussurradas - todo vazio, toda mentira. Todos riam dele, de seus enganos. Somente
uma coisa faria que o respeitassem de novo.
Devia realizar o sacrifício, pelo bem da Causa.
A pesada chuva não tinha poder para distraí-lo, nem o escorregadio chão podia atrasá-lo. O aroma dela era um farol que se aproximava cada vez mais. Era
quase como se permanecesse quieta. Esperando.
Ele gritou seu nome, emergindo de sua garganta como um rugido. Cheirou a umidade de sua pelagem. Lançou-se através de uma cortina de samambaias e sentiu
sua presença como se fosse a luz do sol visto por um prisma de água.
Formosa. Formosa e enganosa, e sua inimizade.

Com um grande salto recortou a distância entre eles, arrojando-a ao chão. No último instante se tornou para trás, utilizando somente uma pequena fração
de sua força.
Manteve-a sujeita, com as mandíbulas abertas ao redor de seu pescoço. Seu cabelo acariciou-lhe o rosto, suave e fragrante. Ela não lutava. Jazia debaixo
dele, com o pescoço exposto, estranhamente quieta.
Uma voz, uma voz humana, gritou em sua cabeça. Ele tentou sossegá-la. Inimizade. Ela era sua inimizade...
"Sabe o que é, Braden Forster? Um estúpido. Um boneco de pano e um estúpido. E você acreditou que alguma vez senti amor por você?"
Cada palavra era como uma estaca atravessando seu coração. Tinha-o golpeado. Tinha desfrutado com sua derrota e sua humilhação. Ele devia ter sua vingança.
Preparou-se para fechar suas mandíbulas e esmagar a carne e os ossos.
Mas não podia mover-se. Não podia machucá-la, igual a antes. E enquanto duvidava, a própria substância do corpo dela pareceu fundir-se debaixo dele, trocando,
fluindo com a chuva até que a pele nua e lisa substituiu a pelagem.
Milena. Ele despiu seus dentes, incapaz de fazer mais, incapaz sequer de chorar. Milena...
"Não significa nada para mim. Desprezo-te, riu ela. Desejava filhos. Bem, agora tem um. Mas não é teu. É meio humano...".
-Braden! -gritou alguém.
Equivocada. A voz não era a correta, rouca e cálida.
Cassidy. Mas isso era impossível. Ele tinha caçado um lobo e agora se encontrava com uma mulher.
Uns dedos capturaram sua pelagem, mas não para afastá-lo. Tocaram-no para aproximar-se mais, até que cada gota de chuva se fundiu com seu aroma.
Aroma equivocado. Voz equivocada. Não era Milena, fugindo com seu amante. Era Cassidy a quem caçava, Cassidy que o tinha deixado. Mas Cassidy não podia
transformar-se.
Cassidy. Milena. Confundiam-no, alardeando de sua traição, burlando-se de sua clemência. De sua debilidade. De seus imperdoáveis defeitos.
-Braden -repetiu ela, essa mulher a quem tinha amado.

- Não tem que me obrigar a voltar. Já estava de volta. Vamos ter um filho. Nosso filho, Braden...
Ele jogou a cabeça para trás e uivou. Seu corpo se transformou, despojando-se de sua forma lobina com não natural frenesi. A chuva esmagou o cabelo em sua
cabeça e caiu em quebradas sobre sua pele, incapaz de esfriar o inferno em seu coração.
-Você... mente -gritou-. Não é meu filho. Nunca... voltará a mentir para mim.
Os dedos dela se estenderam sobre o rosto dele.
-Sou eu, Braden. Nunca te menti...
Ele se voltou surdo a suas palavras tal como era cego à sua encantadora e enganosa beleza. Deteria-a de uma vez e para sempre. Odiava-a. Faria sua mente
em pedaços, tal como ela tinha destruído tudo aquilo pelo que ele vivia.
Concentrou-se no centro da essência do espírito dela, reuniu seu poder e sua vontade, e liberou-os como uma besta ávida de matar.
Foi como saltar de cabeça ao sol. Uma agonia como nunca tinha conhecido esfaqueou seu corpo, seu núcleo mortal se centrou em sua própria mente. O contra-ataque
dela era letal e soube que estava matando-o.
Tentou conter esse ardor e o sentiu carbonizar cada cadeia criada por ele. Tentou rompê-lo tal como dominaria a mente de um humano desleal. É minha!, gritou.
Minha!
Mas a vontade dela era como uma arma ante a que ele não possuía força para afastá-la a um lado. Mantinha-o indefeso como um pescado em uma rede, e todo
o tempo ela ria, enquanto seus embates mentais o derrotavam.
Estava perdendo. Milena tinha se imposto como seu superior. Era indigno da Causa, muito defeituoso para sobreviver.
Que assim seja. Que o destruísse. Que o sacrifício fosse sua própria vida.
Entregou-se ao inferno e permitiu que tomasse. Inundou-se no crisol. Mas enquanto permanecia à beira do esquecimento, a agonia cessou, e a luz se transformou
em um brilho que curava em lugar de matar.
O brilho de Cassidy, inconfundível, completamente puro.
E ele pôde ver. Via a si mesmo, escondido no chão, seu rosto contorcido de dor e de ódio.

Depois se viu impulsionado sobre uma onda de lembranças, e foi o rosto de Quentin o que encheu sua mente: Quentin, sempre rindo, mas com uma profunda e insuportável
tristeza depois de uma fachada de jovial indiferença. Quentin, cujo temor não era por seu irmão, mas sim por algo em seu próprio interior. E Braden tinha estado
muito obcecado para vê-lo.
O rosto de Quentin se desvaneceu, e o de Rowena tomou seu lugar. Sua majestosa e arrogante irmã, que, igual a seu gêmeo, doía-se em seu interior.
Ela odiava sua natureza loup-garou, mas uma parte dela desejava convencer-se de que não era uma abominação, a não ser uma liberação. Teria acudido Braden
se pudesse, mas ele se negou a escutar. Converteu-a em uma ferramenta de sua Causa mantendo-a à distância, como a Quentin, devido ao seu próprio temor à debilidade.
De modo que ela acudiu Milena.
Isabelle foi a seguinte, uma mulher leal a uma menina que havia trazido para a Inglaterra, reconhecendo o conde de Greyburn como um homem que não se preocupava
com nada e com ninguém, exceto seus próprios desejos. Uma mulher que suportou a humilhação para ajudar outros, uma mulher de indubitável coragem, que tinha julgado
Braden como verdadeiramente era.
E o tio Matthew, uma alma gentil abandonada por sua família, empurrado à loucura pela Causa porque nenhum Forster seria seu defensor.
Telford, cuja lealdade não conhecia limites, um presente maior do que seu amo merecia.
Uma moça humana, Emily Roddam, que viu nele uma monstruosa lenda renascida quando a tratou com o desdém que utilizava com todos os de sua raça.
John Dodd veio a seguir, e Aynsley, e uma sucessão de serventes temerosos de sustentar seu olhar. Temerosos de seu poder, inclusive enquanto pagavam o preço
do custo da segurança e o emprego, suas mentes violadas como Milena violava a sua.
A iluminação penetrou os rincões escondidos de seu ser, a louca fúria e o ódio em seu interior se fragmentaram em milhares de dardos radiantes.
A luz o fez livre.
Mergulhou de volta ao seu corpo como se tivesse estado voando sobre a terra.

Cassidy estava ali, arremessada ao chão, onde ele a tinha jogado. Não Milena. Nunca Milena. Tudo tinha sido uma ilusão.
Com uma mão tremente afastou o cabelo do rosto. Tinha saído desencardido da loucura, como deslustrada prata polida com um único movimento. Sentiu a marca
da brilhante alma de Cassidy embelezando sua própria alma. Podia vê-la, não com seus olhos, a não ser com uma parte de si mesmo tanto tempo esquecida que já não
tinha nome.
Podia ver toda a verdade pela primeira vez em sua vida: o terrível preço da Causa, as expectativas de seu avô, a traição de Milena. A cólera que tinha escondido
durante anos, temendo deixá-lo livre, pretendendo um gelado desinteresse para os sentimentos de outros. O agudo conhecimento de seu imperdoável engano ao amar e
atrever-se a esperar a felicidade. A culpa, sabendo que tinha provocado a morte de Milena.
Ele a tinha assassinado. Em seu terror, cegado e sofrendo uma dor insuportável, tinha encontrado a suficiente força para utilizar seu corpo para empurrá-la
a um lado. Empurrando-a com tanta violência que ela tinha caído, e continuou caindo até jazer ao fundo do escarpado. Ele conseguiu baixar para descobrí-la inerte
e destroçada, apenas viva...
- Braden -disse Cassidy. - Pode me ouvir?
Ele voltou para o presente e se arrastou para ela, apertando-a entre seus braços. Ela se liberou e deu um passo atrás.
Sabia. Ela sabia o que ele era e não podia suportá-lo.
- Pensou que eu era Milena - disse com suavidade.
Ele se recordou atacando-a, resolvido a assassinar. Toda essa fúria reprimida se tornou contra a mulher equivocada, uma mulher que merecia muito mais do
que ele nunca poderia dar.
-Podia... te matar -disse ele.
-Não, Braden. Senti como entrava em minha mente, mas não pôde me danificar.
Uma risada doentia buliu em seu interior. Milena havia tornado às voltas contra ele e tinha enrolado sua vontade com a própria. E Cassidy tinha a habilidade
de rechaçá-lo como se estivesse despojado de tudo poder.

-Sei como Milena te traiu -disse ela -Seu rosto foi quão último viu. Foi ela quem te cegou.
Sim. A vontade desatada dela tinha prejudicado tanto seu corpo como sua mente. Tinha atacado algum ponto de seu cérebro, queimando sua visão em um instante.
Somente Quentin conhecia a verdade: Quentin, que o tinha seguido nessa noite tormentosa e observado o clímax da tragédia. Em seu delírio de perda e culpa,
Braden havia contado tudo ao seu irmão e logo tinha feito que guardasse silêncio sob juramento. Tinha permitido acreditar o mundo, o que ele acreditava que era
a verdade.
Tinha provocado a morte de Milena. E a cegueira era seu castigo. Castigo por enganos que nunca poderiam ser retificados.
-Braden -Cassidy tocou seu braço e ele sentiu seu silencioso poder.
- Vi o que Milena te fez. Ela entrou em sua mente e tentou destruí-la.
Tal como Braden tinha invadido as mentes de tantos serventes, tinha tentado fazê-lo à Cassidy. Era igual à Milena.
-Milena era uma pessoa cruel -disse Cassidy. - Enganou todo mundo. E você também enganou a todos.
A todos, exceto a esta moça, que via tão agudamente no interior de seu oculto coração.
Repentinamente soube como tinha chegado a ver tão claramente Quentin, Rowena, Isabelle, Matthew e todos outros. Tinha olhado através dos olhos de Cassidy.
Durante o tempo que suas mentes estiveram enlaçadas, viu-os como ela os via. Viu o que ele tinha feito a eles.
-Nunca terminou para você -disse ela. Sua mão subiu até apoiar-se em seu ombro, um gesto de consolo que poderia ter vindo de uma irmã.
- Não podia admitir por completo seu ódio por Milena, da mesma forma que não podia admitir sua culpa. E a amou, tanto que não podia ver como era realmente,
até que foi muito tarde. Para você o amor era uma maldição. De modo que tentou não sentir nada. Levou essas cicatrizes a cada dia, junto com sua cegueira. E quando
eu fui... foi como a repetição da traição dela. Tudo o que tentava ocultar saiu quando me encontrou.
A fúria, a vergonha, a loucura. Outra vez.

-E estava justificado, Cassidy? -perguntou ele com aspereza. - Perdoa todos meus pecados, inclusive o assassinato?
A mão dela se esticou, os dedos afundando-se em sua pele molhada.
-Não teve a intenção. Estive ali, contigo. Vi-o através de seus olhos. As coisas que recorda estão emaranhadas, mas vi como realmente ocorreu. Havia uma
tormenta. Encontrou-a com seu amante, perto de um grande muro sobre um escarpado. Podia matá-lo com facilidade, mas não o fez. Ele fugiu, e Milena fingiu render-se.
Não a machucou, Braden, embora estivesse furioso. Ela atacou sua mente quando acreditou que ela havia se rendido. Lutou com ela e, enquanto brigava por sobreviver,
utilizou suas últimas forças para empurrá-la a um lado. Mas ambos estavam à beira de um escarpado, e ela caiu.
-Eu a empurrei -disse ele.
-Mas não sabia. Foi instintivo, Braden. Mais tarde, tentou salvá-la. Dispensou-lhe os melhores cuidados possíveis.
Por que procurava desculpas para ele? Tinha afirmado amá-lo, e ele se negava a acreditar. Não se atrevia a acreditar.
-Fui o responsável -disse ele. - Neguei-me a ver. Ao final, odiava-a.
-Porque a amava muito. Cometeu enganos, mas você teve somente uma parte de culpa nisso, Braden. Unicamente uma pequena parte.
Ela podia perdoar. E ele tinha sido incapaz de perdoá-la por preocupar-se mais pelas pessoas que por sua Causa.
-Compreendo porque veio me buscar, e porque pensou que eu era Milena. Parecia outra traição. Não pensei que assim que poderia te machucar -Deixou cair
sua mão. - Espero que possa me perdoar. E espero que possa aprender a perdoar a você mesmo.
Ele olhou-a fixamente, cego mas capaz de vê-la tal como verdadeiramente era. Ela podia sentir a dor de outros e fazê-lo seu, sem importar quais fossem as
conseqüências. Era seu maior dom e sua carga mais terrível. Tinha mudado: a ingenuidade tinha dado passo à iluminação, a inocência à experiência, à dúvida à certeza.
Ele tinha tomado essas mudanças como uma ameaça para ele, para seu congelado coração e para sua vida cuidadosamente edificada. Tinha lutado por mantê-la fora.

Já não podia esconder-se de si mesmo. Obrigou a confissão a sair de seu esconderijo, dando-lhe forma em sua mente.
Amor.
Ele... amava... Cassidy Holt.
Em algum lugar de seu coração, um muro caiu, como as antigas fortificações que esta terra conhecia tão bem. Abriu a boca para dar voz ao pensamento. Para
dizer-lhe para suplicar-lhe que voltasse para ele.
Mas não a merecia. Ainda poderia machucá-la sem sequer dar-se conta. Esse brilhante núcleo de força interior não era invulnerável. Com tempo e suficiente
abandono podia vir-se abaixo, perder seu brilho, converter-se em um frio dardo de apagado metal no centro desse adorável corpo. Ele tinha provado ser instável e
fatalmente defeituoso. Ainda poderia destruir aquilo que finalmente tinha aprendido a amar.
As palavras deslizaram fora de seu alcance. Estremeceu como se acabasse de afastar-se da beira de um precipício. Cassidy nunca devia conhecer seus verdadeiros
sentimentos. Ela tinha ido. Permitiria que pudesse encontrar seu próprio caminho. Ela possuía o valor, a vontade e o coração para isso.
-Tinha razão, Cassidy -disse ele com tom neutro. - Sobre Rowena, Isabelle e os serventes. E sobre mim -Voltou o rosto para Greyburn.]
- Não me interporei em sua liberdade. É minha esposa; isso será difícil de mudar na Inglaterra. Mas te proverei com o que necessite para viver onde quiser,
inclusive na América. Encontrarei umas habitações apropriadas para você em Ulfington, enquanto meu advogado prepara os papéis...
-Não quero seu dinheiro -disse ela. - Não estava fugindo quando me encontrou, Braden. Estava retornando.
Por um momento a esperança foi como um nó doloroso em seu peito. Retornando, pra ele, porque ela...
Virou-se para ela, endurecendo sua expressão com indiferença.
-Não cometa o engano de acreditar que desejo sua companhia porque sofri tanto. Estou acostumado a estar sozinho. Você necessita um tipo de vida diferente...
-Que tipo de vida? O mesmo que tem Quentin? O tipo de vida que Rowena desejava? -Seu cabelo roçou a pele dele quando ela sacudiu a cabeça.

- Não. Não sou uma dama elegante, e não sou uma menina indefesa. Posso cuidar de mim mesma. Posso viver sozinha lá fora, se tiver que fazê-lo, e não necessito
de nada mais. Verá, aprendi como me transformar.
A princípio ele não compreendeu o completo significado de suas palavras, mas então recordou a exuberante pelagem esfregando a sua, uma flexível forma feminina
e o delicado focinho...
-Não -respondeu ele asperamente. - Foi minha loucura...
-Ocorreu enquanto escapava de Greyburn -disse ela.- Posso me transformar, Braden. Sou um loup-garou.
De repente, ele sentiu o formigamento elétrico da transformação, não a sua a não ser a dela. Zumbiu através do chão, subindo por seu corpo, uma carga evidente
que lhe arrepiou o pêlo da nuca.
E então sentiu a pressão dela contra sua mão.
-Cassidy -disse. Seus dedos se fecharam para capturar a grossa pelagem que circundava o pescoço dela, mas esta dançou fora de seu alcance. Outra normal
chispada, umas poucas respirações entrecortadas e se colocou ao seu lado, novamente uma mulher.
Ela era loup-garou, e a total ironia do fato golpeou-o como um murro no estômago. Ele mesmo tinha traído a Causa quando era a última coisa que tinha tentado
proteger.
Caiu de joelhos no lodo. O maior castigo de todos era saber como se enganou a si mesmo.
Escutou os joelhos dela golpeando o chão junto a ele.
-Agora sabe que posso estar contigo em todas as formas possíveis -disse ela. - Ainda deseja que eu vá?
Depois de tudo isto, ela ainda esperava sua opinião, como se ele tivesse o direito de tomar a decisão para ambos.
-Voltaria quando a única coisa que mudou é a prova de seu sangue? -perguntou ele, impulsionado a pô-la a prova e odiando-se por isso.
Ela guardou silêncio enquanto a chuva caía em rajadas irregulares entre eles.
-Algumas coisas mudaram, Braden. Mas não tudo. Não o mais importante -Ela se inclinou aproximando-se tanto que ele pôde sentir seu fôlego na bochecha.

- Fiz minha escolha muito tempo atrás. Queria estar contigo. Desejava me casar contigo.
-Dever -disse ele com amargura. - Não obrigarei o que prometeu, estando ignorante de tudo. Não me deve nada.
-Se tivesse que repetí-lo tudo outra vez, não mudaria nada. Possivelmente por um curto tempo te odiei. Nunca havia me sentido assim antes. Mas foi o único
que me fazia sentir todas essas coisas pela primeira vez em minha vida, e... me dava conta de que o ódio não é muito útil. Amo você, Braden. Sei que você não me
ama, mas talvez com tempo...
-Compartilharia-me com a Causa, Cassidy? -exigiu saber sem piedade.
- Permaneceria em segundo lugar por algo que provocou tanto mal?
O cocuruto de sua cabeça, molhada pela chuva, apoiou-se contra o ombro dele.
-Nunca te pediria que a deixasse, Braden. É muito importante, embora se cometam equívocos. Nenhum de nós é perfeito. Talvez não seja fácil, mas quero tentar.
A menos que me jogue, volto para casa. A Greyburn, contigo.
Que Deus o ajudasse. Já não podia seguir lutando contra isso. Não podia evitar amá-la mais do que podia negar seu próprio sangue. Se a deixasse partir,
sua alma e sua força se murchariam e morreriam com tanta segurança como sua vista.
Ela era sua alma.
Inclinou-se para tocar seu rosto com o seu.
-Perdoe-me -sussurrou. - Quero que volte para casa. Quero você, Cassidy -Emoldurou seu rosto com as mãos, como se pudesse perder o valor, se por um instante
ela se fastasse de seu abraço.
- Amo você.
A pele dela tremeu sob suas palmas.
-Não tem que dizer isso. Não tem que...
-Amo você! -repetiu ele com ferocidade, e se apoderou de sua boca com a sua. Enquanto ela estava aturdida com uma submissão temporária, ele soltou o resto.

- Sempre te quis, Cassidy, inclusive quando não podia admití-lo nem a mim mesmo. É como... o limpo ar do deserto no meio da asfixiante névoa de Londres.
Propagou-te através de mim, abrindo caminho para o meu coração, e eu estava assustado -Ela tentou sacudir sua cabeça. - Sim -disse ele-, assustado. Se permitisse
sua entrada, acreditava que perderia os compromissos que tinha contraído com a vida para me proteger. Perderia inclusive a Causa. E temia te fazer mal, embora tenha
me alegrado quando não pôde se transformar. Tinha a desculpa para te fazer minha, mas não estava preparado para aceitar as conseqüências. Menti a mim mesmo milhares
de vezes. E menti pra você. -Ela tomou fôlego para falar, e ele cobriu seus lábios.
- Escute-me. Não mais mentiras. Amo você, Cassidy, e deixarei o passado pra trás. Você me ajudou. Vejo meus enganos. Fui injusto com Quentin e Rowena,
assim como contigo. Se puder viver comigo e a Causa...
-A Causa é parte de você -disse Cassidy.
- Parte do que amo. É merecedora da luta, inclusive se necessitar de algumas mudanças. Quero compartilhar isso contigo.
Ele se atreveu a imaginar como seria a vida com esta mulher, tão tenra, cálida e forte. Sua companheira de todas as formas possíveis, ao seu lado na próxima
Convocatória, ensinando-o como governar e guiar com compaixão.
Um nó atravessou na garganta dele.
-Ainda não podemos ter filhos -disse ele. - Mas o menino, Mikhail... se puder ser uma mãe para ele...
Ela emitiu um borbulhante som de alegria.
-Sim. Quero ser a mãe de Mikhail. Mas não tem que estar sozinho. Terá um pequeno irmão ou uma irmã -Tomou a mão dele e sustentou-a contra seu ventre.
- Nosso filho, Braden... nosso filho está crescendo dentro de mim.
Se não tivesse sido pela exultante convicção na voz de Cassidy, ele teria rido com incredulidade. Mas não havia dúvida ante o segundo e evidente raio de
luz e vida que sentia no interior do corpo dela.
E estava ali. Afundou seus dedos no barro como se pudesse obrigar o mundo a que parasse de girar.
-Milena mentiu, Braden. Acredito que Mikhail é seu filho.

Seu filho. Tinha prejudicado uma criatura inocente sem outra justificativa que seu próprio ódio egoísta, e pensar que essa criatura podia ser seu próprio...
-Como pude não me dar conta? -sussurrou.
-A mente de Milena era muito forte. Podia fazer que qualquer um acreditasse o que ela desejasse e, se te odiava, podia ter evitado a gravidez, verdade?
Braden cruzou os braços sobre seu peito. Era mais que possível. Inclusive os humanos tinham formas de evitar a concepção, mas para os loups-garous podia
ser ainda mais singelo.
-Mikhail -murmurou. - Meu filho. Perdoe-me.
- perdoará -disse Cassidy. - Não é muito tarde -Envolveu seus braços ao redor dele. - Vai ser pai, Braden. E nossos filhos, todos, serão amados.
De repente deu um salto ficando de pé, e ele escutou seu chapinho no barro.
- Você me ama! -A chuva caía ligeiramente, rindo com ela. - Não se dá conta? Nosso bebê... ele será algo novo para a Causa, porque provém do amor. Possivelmente
isso seja o que faltava e deve ser devolvido. É o amor o que mantém a nossa gente viva. Amor.
Saindo de nenhuma parte puxou-o até que ficasse de pé, impulsionando-o a uma dança selvagem, escorregando e tropeçando sem nenhum retalho de dignidade.
Ela balançou e começou a cair, chiando, quando ele a apanhou e a sustentou com força.
-Pare! -exigiu ele.
Parou. Ele sentiu apenas o mais ligeiro raio de desafio para lhe recordar que ela estava ali por sua própria escolha, não por coação.
-O que foi?
-Se for ter nosso filho, não haverá mais comportamento selvagem como este -disse ele. Puxou-a,de seu corpo, seu corpo tranqüilizado, mas seu coração ainda
dançava.
- Não perderei nenhum de vocês, Cassidy. Não posso.
Ela suspirou contra seu pescoço.

-Não posso esperar até que Isabelle volte, para lhe perguntar mais sobre os bebês. Há tanto que ainda não sei. Que mais se supõe que não devo fazer?
Sua resignação aliviou-o e de uma vez comoveu-o.
-Quando o bebê é tão pequeno, está bastante a salvo para transformar-se -disse ele. - Seu corpo protege a criança do mal. Mas logo não será acertado -Acariciou
seu cabelo como desculpa. - Deverá permanecer em sua forma humana.
-Esperei tanto por isso. Posso esperar um pouco mais.
-E quero que descanse -disse ele com gravidade. - Deixe que os serventes se encarreguem...
-Temos que ter serventes sequer?
Ele se surpreendeu ao deixar escapar uma gargalhada, embora deveria estar além da surpresa.
-Não posso alterar tanto minha vida, nem sequer por você -respondeu ele. - E Greyburn é o maior contratante de pessoal nesta paróquia. Seria cruel despedi-los.
Mas talvez... -Amorteceu suas palavras entre sua linda juba. - Talvez existam melhores formas de tratar humanos que aquelas que meu avô me ensinou.
-Talvez possa aprender a confiar neles.
-Talvez.
-Não mais cerimônias na Grande Sala?
-Possivelmente possamos encontrar uma forma de... melhorar.
-Talvez comecem a gostar dos humanos.
-Tudo é possível. Acredito que você foi de tudo, exceto humana quando me apaixonei por você.
Ela se afastou, apertando suas mãos.
-E o que acontecerá com Rowena e Quentin?
Remorso e fúria mescladas causaram estragos em suas desequilibradas emoções.
-Ambos estão bastante longe do meu alcance, verdade?
-Não para sempre - abraçou-o. - Voltaremos a vê-los, algum dia.
Quando fosse muito tarde para a Causa. Mas Braden aceitava o trato: amor e Cassidy em troca da perda de dois peões em um jogo do que se devia trocar as
regras.

O dia que se reunissem, esperava dar-lhes as boas-vindas como um devoto irmão maior e não como a tirânica sombra de Tiberius Forster.
A Causa não morreria, enquanto ele tivesse esperança e Cassidy ao seu lado.
-Há algo que deveria saber a respeito de Isabelle e de seu tio Matthew -disse Cassidy. - Partiram para Liverpool com Rowena, mas acredito... quando voltarem,
haverá outras bodas.
Ele recordou o que Telford tinha contado. Outro cortejo tinha tido lugar sob seus narizes e ele não tinha sido consciente disso. Era hora de procurar por
seu tio e dar-lhe a boa-vinda de novo ao seio da família. E se isso significasse acolher à senhora Smith...
-Isabelle sempre permaneceu ao seu lado -disse ele. - É uma amiga leal. Ambos serão bem-vindos a Greyburn.
Cassidy enlaçou seus braços ao redor do pescoço dele e plantou um quente e úmido beijo sobre seus lábios.
-OH, Braden. Sou tão feliz -Acariciou sua bochecha. - Diga-Me... entre todas as coisas que não devo fazer, significa que não podemos...? -Murmurou em seu
ouvido. O corpo dele reagiu como se ela tivesse gritado.
-Acredito que ainda será aceitável -respondeu ele, deslizando suas mãos ao redor de sua cintura.
-Bem, porque não sempre vou obedecer, Braden. Se tivesse dito não... -Beijou-o outra vez, e ele perdeu todo sentido do dever e da dignidade na forma mais
maravilhosa imaginável.
-Ah, Cassidy -sussurrou. - Amo você -Embalou seu rosto e acariciou cada curva e linha até que conheceu sua forma e expressão de uma maneira mais profunda
do que a mera visão poderia permitir. Ao fim, podia lamentar abertamente sua cegueira, mas se deu conta de que não tinha necessidade.
-Meu amor... -começou a dizer brandamente.
"Meu amor com seus vestidos
mostra sua graça,
para cada estação

possui atavios apropriados,
para o inverno, a primavera e o verão.
De nenhuma beleza carecia
quando suas roupagens vestia;
mas ela é a própria Beleza
quando sem roupas está."
Recostou-a sobre uma colcha de samambaia e erva suavizada pela chuva, esquentando-a com seu corpo. Ela respondeu com todo o ardor de seu generoso espírito.
O calor que desprendiam evaporou a umidade, sentindo-se embalados como em uma cama de penugem. Ele adorava seu corpo, não com luxúria, a não ser com amor, ternura
e gratidão. O carinho dela afrouxou outro nó de pena e dor, até que ele se sentiu realmente livre pela primeira vez em sua vida.
Beijou seus lábios, seus seios, seu ventre e mais abaixo, levando-a com doçura para o clímax. Mas ela não se submeteria tão facilmente. Rindo, fez-lhe voltar-se
de costas e se sentou escarranchada sobre ele, com o véu de seu cabelo roçando seu rosto em um arco zombador. E então fez amor com ele, guiando-o ao seu interior.
Converteram-se em um, e quando chegou seu êxtase, as nuvens se abriram mostrando a lua, brilhando em sinal de vitória.
Mas não se conformaram jazendo com preguiçosa satisfação quando terminou. Ainda havia uma coisa que nunca tinha feito juntos. Antes que Braden pudesse dizer
seu desejo, Cassidy tinha se transformado, dançando ao seu redor, mordiscando suas mãos com brincalhonas mandíbulas. Seu coração se alargou com orgulho e impressão.
Transformou-se, e permaneceram ombro a ombro, pelagem esfregando pelagem. Ela lambeu seu focinho, saltou no ar e se lançou à carreira com um travesso latido.
Ele saiu em sua perseguição e quando a alcançou, correram em um perfeito complemento sob a brilhante lua, durante todo o caminho a Greyburn.


Epílogo

Greyburn, 1876


A terceira décima Convocatória não tinha precedentes. Convocou-se apenas um ano depois do último, quando Stefan Boroskov tinha tentado, e falhado, apropriar-se
da liderança do conde de Greyburn.
A grande grama ante Greyburn, banhado pela luz do sol de finais do verão, estava repleta de meninos rindo. Famílias loups-garous inteiras tinham vindo a
este encontro, desde todos os rincões do mundo. Não havia mais delegações formais. A Convocatória se converteu em uma alegre celebração de vida, amor e esperança.
Cassidy saiu, arrastando-se debaixo dos arbustos, com a bola perdida entre as mãos. Lançou-a para a turma de crianças, que reatou seu jogo entre quebras
de onda de agradecimentos. No caso , ela realizou um vão intento de escovar sua saia manchada pela erva.
-Peço desculpas, milady -disse a babá, aproximando-se do grupo de cadeiras e mesas dispostas para o chá à sombra dos anciões.
- Acredito que a pequena lady Ângela está procurando a sua mãe.
-Obrigada, Betsy -disse Cassidy, estirando-se para sua filha. A pequena carinha se levantou para ela, sorrindo sem dentes, entre as mantinhas, e um punho
fechado golpeou sua mão.
-Também quer um pouco de chá? -perguntou, esfregando o nariz de Ângela com a sua.
- Espero que o leite sirva igualmente.
Ângela Edith Forster fez gorjeios, procurando o queixo de sua mãe. Cassidy beijou os diminutos dedos e retornou à sua cadeira para satisfazer as necessidades
de Ângela. Os serventes se acostumaram a vê-la alimentar a sua filha, com unicamente uma inclinação da cabeça em prol do pudor, tal como tinham aceitado gradualmente
que a antiga formalidade e o temor tinham desaparecido de Greyburn para sempre.

O qual não significava, é óbvio, que Aynsley era menos digno ou que as donzelas deixavam de fazer reverências ante seu conde e condessa. O respeito ainda
estava ali, mas era um respeito saudável não poluído pelo receio ou a coação.
Ela observou os casais loups-garous passeando, alguns emparelhados fazia tempo, outros cortejando. A Causa já não se apoiava no dever e nos matrimônios
consertados, mas Cassidy sabia que essas mudanças eram para melhor.
Com Ângela embalada em um braço, estirou-se para alcançar as cartas da pequena mesa ao seu lado.
A primeira missiva de Rowena tinha chegado a Greyburn seis meses depois de sua marcha. Tinha sido enviada sem uma direção de remetente, e Cassidy ainda
não sabia em qual parte da América se instalou Rowena.
Abriu a carta mais recente e sorriu, ainda assombrada ante a precisa e perfeita caligrafia. Os acontecimentos mais duros a respeito da vida de Rowena na
América eram escassos, como sempre, mas uma coisa se percebia com claridade: Rowena estava bem e estava contente. Não feliz, possivelmente; Cassidy sabia que sua
cunhada ainda não havia enfrentado os temores que a tinham apressado tão fortemente em Greyburn, nem tinha feito as pazes com sua natureza lobina. Mas agora era
livre para fazê-lo quando chegasse o momento.
E com respeito a seu pretendido companheiro americano, era como se nunca tivesse existido.
A carta de Quentin era igualmente vaga e sem direção de remetente, mas assegurava a suas pessoas queridas que também ele estava bem. Nunca retornou a Greyburn
atrás de seu último desaparecimento ao redor de um ano atrás, mas agora sabiam que tinha seguido Rowena à América e estava, como ela, construindo sua própria vida.
Com um pouco de sorte, encontraria cura para a dor que ocultava tão bem atrás dessas cuidadosas maneiras e um rosto risonho.
Cassidy voltou a fechar as cartas e descansou sua bochecha sobre a suave cabeça da Ângela. Tinha fé em que Rowena e Quentin encontrariam seus destinos,
tal como tinha feito ela.
Isabelle tinha encontrado o seu. Matthew tinha comprado de Braden uma agradável granja na beira das terras de Greyburn, e estavam felizmente assentados
em uma vida doméstica .

Matthew tinha se reconciliado completamente com sua família, e o casal era convidado freqüente e bem-vindo a Greyburn. A lenda do fantasma de Matthias era, uma
vez mais, somente uma lenda.
E atrás de tantos anos, as portas de Greyburn se abriram a convidados humanos, Emily Roddam e sua família. Viriam outros, embora não ao mesmo tempo em que
os loups-garous. O mundo não estava suficientemente preparado para semelhante encontro. Mas tinham realizado os primeiros passos.
A viagem mais comprida começava com um único passo,..e fé.
-Mãe!
Cassidy levantou o olhar. Um menino pequeno agitando seus braços corria para ela, com o cabelo claro revoando. Mikhail emitiu uma risada e se escondeu atrás
da cadeira de Cassidy, olhando às escondidas por seu bordo.
-Papai está me perseguindo e estou me escondendo! -anunciou, incapaz de controlar sua risada.
Ela riu em resposta, mas seu pulso já saltava com ilusão e alegria. Nunca falhava, este repentino incremento nos batimentos do coração de seu coração quando
sabia que Braden vinha.
Ele não a decepcionou. Cruzou a grama a pernadas, realizando um amplo espetáculo na busca de seu filho... detendo-se para farejar o ar, inclinando a cabeça
e arranhando seu queixo com aparente desconcerto.
-Cassidy! -chamou, sua voz cálida de afeto. - Viu um jovem fantasiado de diabo fugindo nesta direção?
-Eu não - declarou Cassidy.
Mikhail rompeu a rir de novo. Braden se esticou como um sabujo depois de um aroma e se escondeu. Incapaz de conter-se, Mikhail saiu disparado de seu esconderijo
e Braden apanhou-o a meio caminho, subindo o menino sobre seu ombro com um balanço.
-Peguei você, pequena uva sem semente -disse. - Deveria te comer agora ou estragará meu jantar?
Cassidy observava com assombro às duas cabeças tão pegas a uma à outra, uma loira e outra escura. Apesar das diferenças em sua cor de cabelo, ninguém poderia
negar o parecido entre eles. Tinha sido evidente para Cassidy desde o primeiro momento em que viu Mikhail.

Braden não podia sabê-lo quando trouxe o menino da Inglaterra, mas ninguém duvidava de que Mikhail era o verdadeiro filho e herdeiro do conde.
Balançando o menino em um amplo arco ao redor de seus ombros, Braden plantou um beijo sobre a testa do menino e deixou-o no chão. Imediatamente Mikhail
correu para Cassidy. -Mãe, posso pegar a Ângela?
Desde o nascimento de Ângela, Mikhail ficou fascinado por sua diminuta meia irmã, e rapidamente se converteu em um devoto irmão. Como quer que fosse a vida
de Mikhail na Rússia, não tinha deixado nenhuma marca permanente em sua alegre natureza. A reserva e acanhamento que tinha mostrado à sua chegada se desvaneceram
com a atenção e o amor que lhe dedicaram seu pai e sua nova mãe. Braden tinha se proposto a compensar sua negligência por volta do menino e logo se fizeram inseparáveis.
Mikhail adorava o chão que Braden pisava.
Cassidy entregou cuidadosamente a adormecida Ângela ao seu irmão, suportando pela metade o bebê, enquanto permitia que Mikhail agüentasse parte de seu
peso. Mikhail olhava fixamente o bochechudo rosto com algo muito parecido à adoração.
-Minha irmã -disse. - Pai, venha, olhe!
Braden se aproximou. Apoiou uma mão sobre o ombro do filho e a outra sobre o de Cassidy. Não podia ver sua filha com seus próprios olhos, mas desde esse
dia de ajuste de contas, quando sua companheira e ele tinham compartilhado suas mentes, assim como seus corpos, tinha aprendido a ver através dos olhos de Cassidy.
Sabia que Ângela tinha o cabelo de corvo de sua mãe e seus próprios olhos verdes.
-Formosa -disse. Mas olhava diretamente à Cassidy, com um mundo de amor e orgulho em seu rosto. - Como cheguei a merecer tanto, minha querida pilantra americana?
Ela apanhou sua mão e beijou seus nódulos. Mikhail se aproximou mais e Ângela bocejou.
-Tenho tanto que aprender -disse Braden, abraçando-os com seus braços.
- Mas você me ensinou a maior lição de todas, minha amada Cassidy. A única Causa... é o amor.

 

 

                                                   Susan Krinard         

 

 

 

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