Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O TRÍLIO CELESTE
A incrível saga das trigêmeas da Cidadela de Ruwenda está de volta. A história, que se passa no fantástico Mundo das Três Luas, teve início no livro O trílio negro, escrito a seis mãos por Marion Zimmer Bradley, Andre Norton e Julian May, três dos maiores expoentes da ficção científica e da fantasia.
Desde então, foram lançados outros três episódios da saga, sendo que cada título levou a assinatura individual de um dos autores originais da trama. A história continua agora em O trílio celeste, de Julian May.
As trigêmeas são Kadiya, a Dama dos Olhos; Haramis, a Arquimaga da Terra; e Anigel, a rainha de Ruwenda. Só elas têm como trazer de volta o equilíbrio do Mundo das Três Luas, que está ameaçado por todo tipo de fenômeno natural destruidor, como erupções vulcânicas e terremotos. Cada uma delas recebeu no passado um poderoso talismã. Juntos, os três amuletos compõem o lendário Cetro Tríplice do Poder, a única força capaz de restabelecer a harmonia do planeta e defendê-lo do mal. Mas há um problema. Ou melhor, dois: o talismã de Anigel foi destruído numa batalha climática, e o de Kadiya perdeu seu poder. Pelo menos é isso que elas pensam. Além disso, ninguém sabe onde foi parar a caixa-estrela, o recipiente mágico sem o qual não é possível unir os três amuletos.
E isso nem é o pior. As trigêmeas ainda não sabem, mas seu maior adversário, o feiticeiro Orogastus, não está morto como elas imaginavam. Ele estava apenas exilado na Lua do Homem Negro, de onde conseguiu fugir com a ajuda de Nerenyi Daral, a temida mulher morta fundadora da Guilda da Estrela. Ela lhe deu três presentes valiosos: o poder da Estrela; o acesso a um viaduto mágico invisível, capaz de levá-lo instantaneamente ao Mundo das Três Luas; e um frasco de veneno, que ele usa para se livrar de Denby Varcour, seu carrasco, e conseguir fugir. Em troca, a mulher morta lhe dá uma missão: recriar a Guilda da Estrela e retomar o Cetro do Poder, de modo a recuperar o equilíbrio do mundo, dominando o Gelo Conquistador e fazendo o Trílio Celeste brilhar novamente.
Seu objetivo parece ser o mesmo das gêmeas, mas há uma intenção diferente em cada lado desse embate.
Um personagem que ganha grande importância neste novo episódio é o príncipe Tolivar, também chamado de Coração Misterioso. Filho de Anigel, ele tem apenas 12 anos, mas não deve ser subestimado. O garoto recuperou a tiara do Monstro de Três Cabeças, o talismã mágico perdido de sua mãe. E a caixa-estrela também está em seu poder. Mas não é sua intenção alardear suas valiosas descobertas. O que ele não sabe é que esses objetos têm um poder imenso e podem ser perigosíssimos para quem não sabe manejá-los corretamente.
Está tudo pronto para o início de uma grande batalha. E as armas deste mundo fantástico são as mais cruéis – uma delas faz o sangue da vítima ferver; uma outra provoca convulsões fatais; e ainda há as que produzem raios letais. Quem for corajoso que compre a briga. Mas primeiro é preciso ter sabedoria para diferenciar o bem do mal, pois no Mundo das Três Luas a fronteira entre os dois lados pode ser muito sutil.
O velho louco finalmente caiu inconsciente, apoiado na mesa da sala de jantar, em meio aos restos da refeição. O prisioneiro deixou sua lâmina de vidro cintilante descer até que a ponta encostasse na pele morena e enrugada do pescoço do Arquimago.
Um golpe. Um único movimento do braço e estaria tudo acabado.
Faça!
Mas o prisioneiro hesitou, praguejando contra ele mesmo por ser tão covarde e sentimental, a mente dominada por um vendaval de emoções conflitantes. A taça de vinho envenenado estava caída ao lado da mão morena de Denby. A borra formava uma poça na superfície brilhante de madeira, esbranquiçando lentamente o verniz. A mesa magnífica, com mais de doze mil anos de idade, provavelmente estava arruinada. Mas seu dono ensandecido ia sobreviver. No último minuto, ali ao lado da forma indefesa do Arquimago do Firmamento, com a faca afiadíssima na mão, o prisioneiro não foi capaz de matar seu captor.
Por que hesito?, ele pensou. Será que é por causa do bom humor excêntrico do velho, ou pelo seu ofício espantoso, que ele se omite de forma tão escandalosa? Será que estou vacilando porque Denby Varcour poupou a minha vida, apesar de ter me sentenciado a partilhar do seu exílio grotesco? Ou será que alguma magia está operando aqui, protegendo este ancião intrometido, embora caído, vulnerável, como uma criança dormindo?
Esqueça tudo isso. Faça o que tem de fazer. Mate-o! O veneno apenas o deixou sem sentidos. Mate-o agora, antes que seja tarde demais!
Mas ele não podia. Nem mesmo o poder da sua Estrela era suficiente para empurrar a lâmina para o seu destino. Denby ficou lá, roncando suavemente, com um sorriso nos lábios enrugados, a salvo, enquanto seu suposto assassino se enfurecia e se atormentava
A razão do fracasso era insondável, mas a impossibilidade persistia.
Balançando a cabeça, indignado com ele mesmo, o prisioneiro repôs a faca de vidro no prato com o suculento ladu que devia ter sido a sobremesa deles. Olhou pela última vez para o louco inconsciente e saiu rapidamente da sala.
Levou apenas um minuto para pegar um saco com agasalhos e objetos mágicos roubados que havia escondido numa prateleira da antecâmara do salão. Então ele partiu, correndo pelos corredores escuros e silenciosos, para a câmara da mulher morta que ficava a quase duas léguas de distância, em outro quadrante da Lua do Homem Negro.
O prisioneiro sabia que não tinha tempo a perder. As sindonas mensageiras e carregadoras estavam recolhidas na Lua do Jardim como de hábito, mas ninguém podia dizer quando uma ou outra das terríveis estátuas vivas ia resolver atravessar para aquele lado em busca do mestre lunático, para tratar de alguma missão misteriosa. Se uma sindona encontrasse Denby drogado, saberia num instante o que tinha acontecido e chamaria as sentinelas.
E se aqueles lindos demônios alcançassem o prisioneiro, ele morreria. As sentinelas descobririam o novo poder da sua Estrela, e nem mesmo a abracadabra senil de Denby seria capaz de salvar sua vida.
O fugitivo parou um instante. Ele segurou o pesado medalhão de platina, com uma imagem cheia de pontas gravada, que levava pendurado no pescoço e invocou sua magia para examinar a prisão. A Estrela informou que o feiticeiro idoso continuava inconsciente e que não havia nenhuma sindona por perto. As únicas coisas que se moviam na Lua do Homem Negro eram os zeladores, aquelas estranhas criaturas mecânicas que se esgueiravam sobre pernas articuladas como lingits metálicos enormes, cumprindo suas tarefas domésticas.
Uma dessas máquinas estava diante do prisioneiro, aparecendo subitamente depois da curva fechada do corredor. Ela carregava uma cesta de globos de luz sem chama e caminhava calmamente, "farejando" com um dos seus apêndices que pareciam braços, procurando luzes queimadas no teto que teriam de ser substituídas.
— Saia da minha frente, sua coisa!
O prisioneiro esbarrou na máquina volumosa ao passar por ela e fez com que ela derrubasse sua coleção de globos luminosos no chão. Ele pisou em um deles, perdeu o equilíbrio e caiu de joelhos.
— Perdão, mestre — disse o zelador das lâmpadas humildemente. — Está ferido? Devo chamar um dos consoladores para tratar do senhor?
— Não! Não faça isso! Eu o proíbo! — O suor brotou na testa do prisioneiro. Ele se levantou e conseguiu falar num tom mais normal. — Não estou machucado. Ordeno que você cuide de seus afazeres normais. Não peça assistência. Entendeu?
Quatro olhos desumanos analisaram o prisioneiro. As estranhas criaturas de Denby eram os servos mais solícitos, bem capazes de forçá-lo a aceitar os cuidados médicos de uma sindona consoladora contra sua vontade, se ele realmente precisasse.
Poderes do Mal!, ele rezou em silêncio. Não deixem que essa coisa chame uma sindona. Não deixem que todos os meus cuidadosos planos acabem dando em nada e eu perca a vida por causa de uma máquina estúpida!
— É verdade que o senhor não está ferido — disse o zelador das lâmpadas finalmente. — Retomarei o meu trabalho. Lamento qualquer inconveniência que eu possa ter causado. — A máquina piscou os olhos cumprimentando o prisioneiro e começou a recolher sua carga espalhada pelo chão.
O prisioneiro se afastou fingindo tranqüilidade, mas quando o zelador das lâmpadas estava fora de vista, recomeçou a correr, sentindo o medo crescer dentro dele. E se a maldita máquina chamasse a sindona de qualquer jeito? E se as sentinelas já estivessem no seu encalço?
Ele corria a mais não poder agora, com sua túnica formal de jantar esvoaçando e batendo com as botas no resistente piso do corredor. O medo criava um nó de cãibra nas entranhas dele e cada respiração era como um corte de espada. Viver naquele lugar maldito dois anos tinha privado o prisioneiro da sua força física e comprometido sua determinação. Mas ele recuperaria a forma se pudesse escapar das sindonas e finalmente aproveitar o segundo presente da mulher morta...
Agora ele estava na parte que não era usada da Lua do Homem Negro, uma ala silenciosa de galerias e salas vazias, quartos de dormir inabitados, oficinas e bibliotecas abandonadas. Era ali que a retaguarda dos Desaparecidos tinha vivido doze vezes dez séculos atrás, enquanto lutavam em vão para impedir o avanço do Gelo Conquistador.
Denby tinha lhe dado permissão para explorar os cômodos fantasmagóricos, aparentemente despreocupado com o que ele poderia encontrar neles. Logo que foi feito prisioneiro ele descobriu a câmara da mulher morta e recebeu seu primeiro presente precioso. Com essa ajuda ele acabou reunindo seu pequeno arsenal de objetos mágicos. Mas é claro que os artefatos eram inúteis enquanto ele continuasse refém de Denby. O Homem Negro era invulnerável à magia comum.
Um longo tempo depois de descobrir a verdade sobre ele mesmo e sobre o desequilíbrio do mundo, o prisioneiro encontrou a segunda dádiva da mulher morta: o meio de escapar daquela estranha prisão e do seu carcereiro demente. O terceiro presente dela, sem o qual os dois primeiros seriam inúteis, tinha encontrado apenas dois dias antes. Não havia nenhuma mágica nesse presente, e foi por isso que Denby acabou sucumbindo. O velho não tinha morrido, como o prisioneiro esperava, mas se o sono profundo durasse pelo menos um pouquinho mais...
- Homem da Estrela, para onde você vai? Misericordiosos Poderes do Mal, as sentinelas o encontraram! Suas vozes vibravam no cérebro dele como enormes sinos de bronze. O que fez com o Arquimago do Firmamento? Que objetos roubados carrega nesse saco? Responda, Homem da Estrela!
A qualquer momento elas podem se materializar naquele corredor diante dele. Elas apontariam seus dedos acusando-o, e sua vida terminaria numa nuvem de fumaça, enquanto seu crânio rolaria vazio pelo chão.
Homem da Estrela, esse é seu último aviso. Pare e explique-se! Mas ele apenas continuou fugindo. De repente, elas apareceram do nada, quatro delas, a menos de dez varas atrás dele e avançando com passos largos em sua perseguição. As sindonas, que eram chamadas de Sentinelas da Sentença de Morte, pareciam estátuas vivas de mármore, mais altas que um homem e mais belas do que qualquer ser humano. Usavam apenas cinturões cruzados de escamas verdes e azuis, e elmos iridescentes, que carregavam cabeças mortuárias douradas que simbolizavam sua função letal. O ritmo das sentinelas era pesado e deliberado, e ele se mantinha bem à frente delas, mas estava quase sem fôlego. O coração parecia prestes a explodir e as pernas começavam a falhar, não iam agüentar muito tempo.
Onde era o quarto dela? Já devia ter chegado lá há muito tempo! Mas aqueles corredores assombrados pareciam não acabar nunca, e as sentinelas estavam cada vez mais perto. Ele viu tudo vermelho e depois a visão começou a falhar.
Estou liquidado, disse para si mesmo, e se jogou para a frente, na direção da escuridão, soltando o saco. Quando caiu, agarrou seu medalhão num último gesto de súplica fútil. A Estrela parecia emprestar uma força nova para ele. Lá deitado, ele conseguiu erguer a cabeça e abrir os olhos.
Viu as quatro pálidas sindonas, com os crânios dourados aninhados sob o braço esquerdo, marchando em sua direção. E o prisioneiro também viu que um milagre havia sido concedido. Estava deitado diante de uma porta, feita de metal sólido, marcada com uma imensa Estrela prateada cheia de pontas igual à que ele usava pendurada no pescoço. O portal não tinha maçaneta nem fechadura. Estava a apenas alguns passos de distância.
Como um moribundo, ele se arrastou com uma lentidão agonizante, depois ergueu seu medalhão na corrente e encostou-o na porta.
Não!, gritaram as sentinelas. Lá dentro estava a mulher morta, que pareceu virar a cabeça e sorrir para ele, sem dizer nada, oferecendo asilo.
De alguma forma, ele foi puxado rapidamente para dentro, e a porta se fechou ruidosamente atrás dele. Ele foi envolvido pela noite, uma noite salpicada de estrelas que não piscavam. A sala era tão fria que o ar saía dos seus pulmões arfantes formando uma nuvem gelada, e o suor que escorria pelo rosto virou gelo rachado. Um gemido involuntário escapou dos lábios enrijecidos. Esquecera que só se visitava a mulher morta nos termos dela.
Quase paralisado de dor e por causa do frio intenso, tirou uma capa do saco, enrolou-se nela e pôs o capuz, cobrindo a testa até os olhos. Então calçou as luvas forradas de pele. Cambaleando, se pôs de pé e ficou encostado na porta trancada, lutando para recuperar o controle da mente e do corpo.
As sindonas seriam capazes de arrombar a porta e capturá-lo?
A mulher morta sorriu com serenidade e parecia dizer: Não.
Não sem o comando explícito do Homem Negro pessoalmente, e ele continua sem sentidos.
Ela sentou numa cadeira que parecia um trono, sem olhar para ele. Uma parede inteira da câmara era uma janela gigantesca, e os olhos dela, vidrados, bem abertos, pareciam olhar fixo, com fascinação, para a cena lá fora. Havia uma esfera brilhante, azul e branca, pairando no meio de um milhão de estrelas que não piscavam. A Lua do Jardim e a Lua da Morte estavam fora da vista, percorrendo seu curso no céu em algum lugar atrás da moradia do Homem Negro, por isso nada servia de distração para a beleza esmagadora daquela visão. A incontáveis léguas de distância, o Mundo das Três Luas pairava como uma gigantesca água-marinha nebulosa.
O mundo ameaçado. O mundo que era o lar dele, que só ele podia salvar. O mundo que certamente tinha sido o lar dela também, doze mil anos atrás.
A mulher tinha morrido com os olhos fixos, saudosos, naquele globo azul, segurando a Estrela que pendia de elos preciosos sobre seu seio; na outra mão, um pequeno frasco de vidro curiosamente trabalhado, com algumas gotas congeladas dentro. Seu corpo ficara perfeitamente preservado no frio profundo, com vestes luxuosas negras, de luto. O cabelo era escuro, rajado de prata. Era uma mulher de meia-idade mas de uma beleza inigualável, prisioneira como ele. Os arquivos do Homem Negro tinham revelado um pouco da trágica história daquela mulher.
Seu nome era Nerenyi Daral, e tinha sido a fundadora da poderosa Guilda da Estrela. Aquele que a amava além de toda racionalidade e lealdade a tinha ”salvado” do destino que vitimou a maioria dos membros do seu grupo, só para vê-la deliberadamente desistir da vida, em vez de fugir do Gelo Conquistador na companhia dele, que ela desprezava. A perda de Nerenyi tinha levado Denby Varcour, o maior herói dos Desaparecidos e Arquimago do Firmamento, à loucura.
O prisioneiro curvou-se numa mesura respeitosa diante do corpo dela, procurando controlar a tremedeira que o dominava. Não podia viver muito naquele lugar inclemente. Se o segundo presente da mulher morta não funcionasse depois de anos-luz de desuso, ele certamente congelaria até a morte antes de Denby despertar e mandar as sentinelas prendê-lo.
— Não pude matá-lo, afinal, Dama da Estrela — confessou ele para ela. — Talvez a magia o tenha protegido. Mas suspeito que foi minha alma que se negou a fazê-lo, incapaz de tirar a vida dele daquela maneira, ele estava lá caído, sorrindo, repleto de boa comida e bom vinho. Se houver um dia em que ele e eu possamos travar um combate mágico honrado, homem a homem, não hesitarei em destruí-lo. Isso bastará?
A voz que podia ser dela respondeu: Bastará. Você encontrou os instrumentos básicos de encantamento — aqueles que possibilitarão a retomada do seu trabalho?
— Encontrei. — Ele ergueu o saco. — A minha Estrela acabou me levando a todos eles, apesar de ter demorado um pouco. Agora estou pronto para retornar ao mundo, recuperar as três peças do Cetro do Poder e executar a missão que a senhora ordenou.
As Três farão de tudo para impedi-lo.
— Senhora, nenhum ser humano será capaz de me impedir... nem mesmo a que eu amo. Juro pela Estrela.
A primeira vez que ele encontrou Nerenyi Daral, algum instinto fez com que encostasse seu medalhão no dela... e a antiga magia da Guilda de Nerenyi fez seu trabalho, oferecendo finalmente para ele todo o poder da Estrela. Era o primeiro presente da mulher morta.
O segundo era um viaduto, uma daquelas deslumbrantes passagens que o Homem Negro e as sindonas usavam para viajar instantaneamente de um lugar para outro pelas luas ocas. Mas aquele viaduto específico, agora invisível como todos, até que um adepto ordenasse sua abertura, levava seu portador da Lua do Homem Negro até o mundo lá embaixo. Sua existência fora revelada ao prisioneiro em uma de suas últimas visitas.
Nerenyi Daral tinha avisado que o Arquimago do Firmamento saberia no mesmo instante se alguém tentasse usar o viaduto. E então Denby trancaria o viaduto ou faria com que enviasse o prisioneiro para alguma nova prisão tenebrosa. Só se o Homem Negro fosse assassinado ou ficasse debilitado a passagem levaria à liberdade.
Um minúsculo recipiente de vidro na mão de Nerenyi era o terceiro presente. Um mero acaso finalmente atraiu a atenção do prisioneiro para ele dois dias antes, e ele então perguntou o que continha. Quando descobriu que era veneno, começou logo a planejar sua fuga.
— Estou pronto para partir agora — disse ele para ela. — Dama da Estrela, peço que abra o viaduto do mundo para mim.
Jura pela Estrela recriar minha Guilda e levar adiante seu grandioso objetivo, que é recuperar o equilíbrio do mundo?
Ele segurou seu medalhão com a mão enluvada. Seus dedos estavam perdendo a sensibilidade, e o frio mortal penetrava rapidamente na capa também.
— Eu juro — disse ele.
Então leve a minha Estrela, querido filho adotivo e herdeiro, e dê para alguém em quem confie completamente. Com a ajuda da Guilda renascida, retome o Cetro do Poder. Ele ainda é capaz de banir o Gelo Conquistador. Aprenda a controlar suas faculdades perigosas e faça o Trílio Celeste brilhar novamente.
Com todo o respeito, ele tirou o medalhão dos dedos da morta, a corrente de jóias e o pingente do pescoço dela, e pôs no saco de viagem.
— Farei como ordenou... mas agora, senhora, imploro que me deixe partir, senão certamente irei congelar no limiar da liberdade.
Vá. Ativar sistema do viaduto!
Um acorde musical cristalino soou e um anel de luz com cerca de duas varas de diâmetro surgiu à esquerda da cadeira da mulher morta. Dentro dele havia uma área completamente negra da qual fluía um vento quente e com cheiro de mofo.
— O viaduto está pronto para me transportar?
Está. Só precisa entrar nele. Antes ele só levava ao domínio do Gelo Conquistador, por isso era inútil para mim. Vim para cá através dele, mas não pude usá-lo para escapar. Mas nesses últimos dias, enquanto a Calota de Gelo Sempiterna está temporariamente um pouco menor, o viaduto vai desembocar num lugar seguro.
Ele hesitou.
— Posso saber em que lugar do mundo vou aparecer? A Voz Estrela ficou séria.
Você irá para onde ele o levar, e lá deve começar imediatamente a executar sua missão. Rápido! Denbyjá vai despertar. Ele estará aqui na porta num segundo.
— Então, senhora, adeus!
Segurando o saco com força, ele entrou no anel brilhante e desapareceu. Ouviu-se um segundo som como de um sino e o círculo se apagou. Os resquícios da última respiração do prisioneiro, nuvens de minúsculos cristais de gelo, rodopiaram no ar gélido em torno do corpo morto sentado em seu trono.
A porta da câmara se abriu. As quatro sentinelas sindonas entraram marchando, seus crânios dourados em riste. Atrás delas entrou um homem muito velho arrastando os pés, com a pele escura e o cabelo crespo e branco como a neve. Ele estava enrolado num manto de pele dourada de worram.
— Orogastus! — chamou ele. Sua voz forte e retumbante podia pertencer a um homem bem mais jovem. — Você ainda está aqui?
Ele partiu, disse uma das sentinelas.
— Bem, isso é um alívio — disse Denby Varcour. — Agora podemos tratar de salvar o mundo... se é que pode ser salvo! Uma pena que ele não acabou comigo de uma vez, mas eu devia saber que teria de ir até o fim.
Ele acenou com a mão para uma sindona ordenando que elas voltassem para o corredor, depois ficou diante do corpo congelado.
— Perdoe-me, minha amada Nerenyi. A oportunidade era boa demais para perder. Não podia deixar que ficasse fácil demais para ele, sabe?
Como sempre, ela sorriu com suas feições tranqüilas.
O príncipe Tolivar estava deitado no escuro, completamente vestido, a não ser pelas botas, tentando desesperadamente não adormecer.
Não teve coragem de deixar as lamparinas de prata acesas, nem mesmo uma vela, com medo de alguém ver a luz por baixo da porta. A única iluminação no quarto era dos constantes relâmpagos pela janela, e do relógio na mesa ao lado da cama, um artefato dos Desaparecidos, com um mostrador que tinha um suave brilho verde. Tinha sido um presente no seu último onomástico da sua tia Kadiya, a Dama dos Olhos. Ela era a única no mundo, fora o bom e velho Ralabun, que não o desprezava.
Algum dia ia mostrar para todos, especialmente para seus detestáveis irmão e irmã mais velhos, o príncipe herdeiro Nikalon e a princesa Janeel. Chegaria o dia em que eles não iam mais provocá-lo e chamá-lo de segundo príncipe inútil. Eles terão medo dele e mostrarão o respeito que ele merece!
Se recuperasse o seu tesouro...
Deitado, Tolivar cerrava os dentes e desejava que os minutos que rastejavam lentamente passassem mais depressa. Ralabun só viria duas horas depois da meia-noite... se viesse!
— Ele tem de vir! — sussurrou o príncipe para si mesmo.
Mas não tinha ousado revelar para Ralabun para que precisava dele, e a velha criatura poderia desprezar o convite incomum como apenas um capricho infantil. Ele podia esquecer de ir, ou até adormecer enquanto esperava. Tolivar mesmo estava tendo uma dificuldade enorme para evitar que seus olhos se fechassem.
— Sagrada Flor, não permita que eu durma — rezou ele.
Já estava apavorado só de pensar no que tinha pela frente. Se dormisse e o terrível sonho aparecesse outra vez, podia ficar tentado a desistir de tudo.
Provavelmente tinha sido tolice esconder o tesouro no Pântano Labirinto, mas o estratagema parecia necessário. As pedras antigas da Cidadela de Ruwenda eram impregnadas de magia, e botões sagrados de Trílio Negro floresciam por toda parte agora no outeiro, crescendo à luz das Três Luas. O pior de tudo era que sua outra tia, a formidável Arquimaga Haramis, tinha passado a visitar com muita freqüência sua mãe ali na Capital de Verão, que era seu lar de infância. Tolivar não podia arriscar que a Dama de Branco descobrisse seu segredo, por isso encontrara um lugar no pântano para esconder os objetos preciosos. Ninguém ia tirá-los dele. Jamais.
— Eles são meus pelo direito de resgate. — Ele procurou se tranqüilizar. — Mesmo que eu tenha apenas doze anos de idade e ainda seja incapaz de utilizar os objetos com poder total, sou capaz de morrer antes de desistir deles.
A idéia desagradável se esgueirou novamente em seu cérebro, que ele podia muito bem morrer aquela noite afogado no volumoso rio negro.
— Assim seja — resmungou ele —, pois se deixar o tesouro para trás em Ruwenda durante as chuvas, ele pode ser levado embora numa grande tempestade. Ou pode ficar soterrado na lama antes da nossa volta na primavera, ou até ser encontrado por algum oddling perdido que os entregaria à Dama de Branco. Então, eu não teria mais nada por que viver.
Se ao menos a Época das Chuvas não tivesse chegado tão inconvenientemente cedo aquele ano! Mas tia Haramis tinha dito que o mundo estava muito desequilibrado e que o tempo estranho refletia isso, assim como a inquietação dos vulcões e o aumento do número de terremotos.
O rio Mutar, que contornava a Cidadela Knoll, tinha chegado ao nível de enchente praticamente sem aviso. O rei Antar e a rainha Anigel tinham resolvido que a Corte dos Dois Tronos não podia esperar até o fim do mês para se retirar para Derorguila, a Capital de Inverno, em Labornok. Em vez disso, a comitiva real devia partir dentro de seis dias, antes das águas lamacentas subirem demais.
O príncipe Tolivar, o mais jovem da família real, teve uma reação de pânico com o anúncio da partida. Enquanto continuassem as tempestades, a correnteza do Mutar seria forte demais para ele remar rio acima sozinho, no esquife que ele mantinha escondido para suas excursões secretas. Ele havia rezado para a Sagrada Flor e para os Poderes do Mal que ajudavam os feiticeiros, implorando por apenas alguns dias de estiagem e uma trégua da enchente. Mas os pedidos foram em vão. O momento da partida do séquito real se aproximava cada vez mais e agora só faltavam dois dias. No dia seguinte a caravana começaria a se formar. À luz do dia, ele não poderia se esgueirar para fora da Cidadela sem ser visto. Precisava pegar o tesouro aquela noite, ou deixá-lo para trás.
Tolivar tentou afastar o desespero ouvindo a chuva bater na janela do seu quarto. Era um som que dava sono. Diversas vezes o príncipe sentiu os olhos fechando e conseguiu despertar. Mas o tempo passava tão devagar, e o tamborilar das gotas da chuva era tão monótono, que finalmente ele não conseguiu mais evitar o sono.
E mais uma vez começou aquele pesadelo bem familiar.
Ele assombrava o príncipe havia dois anos. O ronco aterrorizante do grande terremoto, fumaça de prédios queimando, ele mesmo prisioneiro, choramingando, o medo de menino pequeno colorido pela culpa de uma traição. E então uma fuga milagrosa! Uma súbita onda de coragem no coração dele, que o fez pegar o grande tesouro! No sonho ele jurava usá-lo e transformar-se num herói. Ele salvaria a cidade de Derorguila do exército inimigo, salvaria seus nobres pais e todo o povo ameaçado. Apesar de ter apenas oito anos, ele o faria através da mágica...
No sonho ele usava o objeto mágico e todos morriam.
Todos. Os defensores leais e os invasores malignos, o rei, a rainha, seu irmão e sua irmã, até a Dama dos Olhos e a Arquimaga Haramis, mortos por causa da magia que ele criara! Uma grande pilha de corpos jazia na neve ensangüentada do pátio do palácio, do lado de fora da Fortaleza Zotopanion, e ele era o único sobrevivente.
Mas como isso podia ter acontecido? Era mesmo culpa dele?
Ele fugiu da cena horrível, correndo pela cidade devastada. A neve caía grossa de um céu escuro, e a ventania que a carregava falava com voz de homem:
Tolo! Tolo, ouça o que eu vou dizer! Eu sei que você está com o meu talismã. Vi quando o pegou quatro anos atrás. Cuidado, Príncipe insensato! A magia dessa coisa pode matá-lo com a mesma facilidade com que matou os outros. Você jamais aprenderá a usá-la com segurança. Devolva-o para mim! Tolo, está me ouvindo?
Deixe-o lá, no Pântano Labirinto. Eu vou pegá-lo. Tolo, ouça! Tolo...
— Não! É meu! Meu!
O príncipe acordou assustado. Estava a salvo em seu próprio quarto na Cidadela de Ruwenda. Ouvia as trovoadas distantes através das grossas paredes de pedra, e o eco do seu grito apavorado vibrava em seus ouvidos. Verificou o relógio na mesa-de-cabeceira, descobriu que ainda era cedo demais, e recostou-se novamente no travesseiro rogando pragas infantis.
O pesadelo era tão idiota! Ele não tinha matado ninguém com a mágica. Sua família estava viva e passando muito bem, e não suspeitava de nada. O feiticeiro estava morto, mas por culpa dele mesmo. Todo mundo sabia disso.
— Vou recuperar meu tesouro apesar das chuvas — disse ele em voz alta. — Vou levá-lo comigo para Derorguila e continuar praticando magia. E um dia serei tão poderoso quanto ele era.
Finalmente o pequeno relógio tocou duas horas. O príncipe Tolivar suspirou, sentou na beirada da cama e começou a calçar seu par de botas mais resistente. Seu corpo frágil estava cansado depois de um dia inteiro reunindo e empacotando as coisas que levaria com ele para Labornok. Os servos haviam cuidado da roupa dele, mas empacotar todo o resto era sua responsabilidade. Seis grandes baús de madeira com cantoneiras de bronze agora estavam prontos na sala de estar escura, ali ao lado, e quatro estavam praticamente cheios de livros. Havia também um cofre menor de ferro com uma fechadura bem forte, que o príncipe ainda ia encher e esconder no meio das outras coisas.
Se ao menos Ralabun se apressasse!
O relógio agora mostrava quinze minutos passados da hora marcada. Tolivar vestiu sua capa de chuva. Estava com uma espada curta e uma adaga de caça. Ele abriu a janela e deu uma espiada lá fora. Viu que a chuva tinha parado, mas os relâmpagos ainda faiscavam no oeste. O rio não era visível daquele lado da Cidadela, mas ele sabia que estaria alto e veloz.
Finalmente ouviu um leve arranhar na porta. Tolivar atravessou o quarto correndo e deixou entrar um velho nyssomu corpulento, vestido com roupas de couro à prova d’água marrom-escuro lindamente decoradas com uma costura prateada. Ralabun, o cocheiro aposentado dos estábulos reais, era companheiro inseparável e confidente de Tolivar. Sua aparência usual era de simpatia sonolenta, mas, naquela noite, seu rosto largo e enrugado estava abatido de ansiedade, e seus olhos amarelos saltados pareciam prestes a pular das órbitas.
— Estou pronto, Coração Misterioso. Mas imploro que me diga para onde temos de ir nesse tempo horrível.
— É necessário — respondeu o príncipe secamente. Há muito havia desistido de pedir a Ralabun para dar um nome do pântano mais auspicioso para ele.
— É uma noite péssima para estar lá fora no Pântano Labirinto — protestou o velho. — Certamente essa sua misteriosa missão pode esperar até amanhã de manhã.
— Não pode — retrucou o príncipe —, porque certamente seríamos vistos à luz do dia. E amanhã bem cedo lorde Steward vai recolher toda a bagagem da família real e começar a formar a caravana. Não, temos de ir esta noite. Vamos depressa!
O menino e o aborígine desceram correndo uma escada dos fundos, que normalmente era usada apenas pelas aias e outros lacaios que cuidavam dos apartamentos reais. No andar de baixo, um mezanino que dava para o grande salão, ficavam a capela e as pequenas salas de audiência do rei Antar e da rainha Anigel, e os escritórios dos ministros reais ao lado. Guardas da vigilância noturna estavam patrulhando o local, mas Tolivar e Ralabun escaparam deles com facilidade e se esconderam numa pequena alcova próxima dos aposentos do chanceler, onde as caixas da antiga correspondência real enchiam três estantes bem altas.
— A passagem secreta é aqui — disse Tolivar baixinho.
Ralabun ficou boquiaberto de espanto quando o príncipe tirou uma caixa de cartas e enfiou a mão no buraco. Depois ele pôs a caixa no lugar outra vez e todo o meio da estante deslizou para fora sem fazer ruído, como uma porta, revelando uma abertura escura por trás.
— Você trouxe sua lanterna conforme eu pedi?
Ralabun tirou a lanterna de dentro da capa e abriu a tampa de correr para a luz dos vermes-do-pântano fluorescentes que estavam lá dentro poder brilhar num raio fraco. Os dois entraram na passagem secreta. Tolivar fechou a porta atrás deles, pegou a lanterna e começou a caminhar rapidamente pelo corredor estreito e poeirento, acenando para o nyssomu segui-lo.
— Ouvi histórias sobre essas passagens secretas da Cidadela contadas por Immu, a enfermeira da rainha — disse Ralabun —, mas nunca estivera em uma. Immu diz que há muitos anos, quando as três Pétalas Vivas do Trílio Negro ainda eram jovens princesas, ela e Jagun tiraram da Cidadela a rainha e a irmã dela, lady Kadiya, por uma passagem dessas quando o malvado rei Voltrik ia matá-las. Foi sua mãe real quem mostrou essa passagem secreta para você?
Tolivar deu uma risada amarga.
— Não. Quem me ensinou foi um professor bem mais solícito. Preste atenção! Temos de descer esses degraus íngremes aqui, e eles estão úmidos e escorregadios.
— Quem foi que contou para você da passagem, então? Foi Immu?
— Não.
— Então você aprendeu em um daqueles livros antigos que está sempre estudando?
— Não! E pare de fazer perguntas!
Ralabun caiu num silêncio magoado enquanto desciam com mais cuidado. As paredes da escada apertada agora estavam muito molhadas. Nas fendas cresciam massas de cogumelos brancos que abrigavam criaturas meio brilhantes chamadas de vadios-dolimo. Esses animaizinhos se arrastavam pelos degraus como lesmas luminescentes, tornando a descida traiçoeira e produzindo um cheiro horrível quando eram pisados.
— Falta pouco agora — disse Tolivar. — Já estamos ao nível do rio.
Depois de alguns minutos eles chegaram a outro portal secreto, com um mecanismo de madeira que rangeu quando o príncipe o pôs para funcionar. Saíram num barracão abandonado, cheio de rolos velhos de corda, barris e caixas quebradas. Dois varts assustados guincharam e saíram correndo quando Tolivar e Ralabun se encaminharam para a porta do barracão. O príncipe apagou a lanterna e espiou com muito cuidado. Apenas uma garoa bem fina caía e estava muito escuro. Não havia guardas, pois aquele cais havia sido abandonado anos antes, logo depois da guerra entre Ruwenda e Labornok, e a sua entrada para a Cidadela vedada.
Eles avançaram com cautela por cima das tábuas podres da doca e agora Ralabun ia na frente. A visão noturna dos nyssomus era muito melhor do que a dos humanos, e eles não ousavam acender nenhuma luz que poderia ser detectada pelas patrulhas nas ameias lá em cima.
— Meu barco está mais adiante — disse Tolivar —, escondido embaixo daquela viga de amarração quebrada.
Ralabun inspecionou o barco desconfiado.
— É muito pequeno, Coração Misterioso, e a enchente do Mutar está mais forte a cada hora que passa. Teremos de ir muito longe rio acima?
— Apenas cerca de três léguas. E o barco é suficientemente resistente. Vou remar com os remos centrais enquanto você ginga com o leme na popa, e juntos vamos vencer a correnteza e atravessar o rio. Quando chegarmos ao outro lado, a corrente não estará tão forte e será muito mais fácil.
Ralabun deu um largo sorriso.
— Eu não sabia que você era um marinheiro tão experiente.
— Sou experiente em muito mais coisas do que você imagina — disse o menino com certa rispidez. — Vamos andando.
Eles embarcaram e partiram. Tolivar remava com toda a força, que na verdade não era muita. Mas Ralabun, apesar de idoso, tinha braços musculosos depois de anos de trabalho pesado nos estábulos, por isso o barco avançava bem através do vasto rio. Desviavam de entulho flutuante, inclusive as árvores desenraizadas do Pântano Negro rio acima. Chegaram até a deparar com uma tora, com um enorme e perigoso raffin em cima, que navegava com a tranqüilidade de uma embarcação comercial de Trevista. A besta rugiu quando passou a menos de três braças de distância, mas não se moveu em seu poleiro seguro para atacá-los.
Ao longo da margem oposta ao Outeiro da Cidadela, que era lamacenta e desabitada, a correnteza era bem mais fraca, como o príncipe havia previsto. Ele levantou os remos cansado e deixou Ralabun conduzir o barco sozinho. Deslizavam bem rápido subindo o rio e conseguiam conversar apesar do ruído da água, que passava velozmente.
— Há um afluente bem raso que desemboca no rio na margem norte — disse Tolivar —, na confluência dos rios logo acima do lago do Mercado. É para lá que nós vamos.
Ralabun assentiu balançando a cabeça.
— Sei do que você está falando. Um canal sem nome, coberto de capim e junco. Mas não é navegável...
— É sim, se tivermos cuidado. Naveguei muito por esse riacho na Época da Seca, em segredo, disfarçado de menino do cais.
Ralabun deu um grunhido de desaprovação.
— Isso foi muito imprudente, Coração Misterioso! Mesmo tão perto do Outeiro da Cidadela, o Pântano Labirinto não é um lugar seguro para um rapaz humano sozinho. Se você tivesse pedido, eu teria prazer de levá-lo para brincar no pântano...
— Eu não corria perigo nenhum — disse o príncipe com arrogância. — E minha missão no lodaçal era séria e pessoal. Não tinha nada a ver com o tipo de diversão que costumamos procurar juntos.
— Humm. Então que grande segredo esconde esse riacho?
— É problema meu — respondeu Tolivar irritado. Dessa vez o nyssomu ficou realmente magoado.
— Bem, peço humildemente perdão ao venerável príncipe pela intromissão!
A voz do menino ficou mais suave.
— Não se ofenda, Ralabun. Até os melhores companheiros devem ter alguns segredos um do outro. Fui forçado a pedir a sua ajuda nessa viagem para o meu lugar secreto esta noite por causa da força do rio. Não havia mais ninguém em quem eu pudesse confiar.
— E fico feliz de acompanhá-lo! Mas confesso que estou triste porque não confia em mim. Você sabe que eu jamais contaria um segredo seu para vivalma.
Tolivar hesitou. Não tinha a intenção de revelar a natureza do tesouro para o amigo. Mas agora estava achando que talvez fosse bom que pelo menos mais uma pessoa conhecesse os objetos maravilhosos que ele possuía. E quem melhor do que Ralabun?
— Você jura que não vai contar o meu segredo para o rei ou para a rainha? — disse Tolivar. — Nem mesmo para a Arquimaga Haramis, se ela ordenar?
— Eu juro pelas Três Luas e pela Flor! — disse Ralabun com vigor. — Qualquer segredo que você me confiar eu guardarei lealmente até os Senhores do Ar me carregarem em segurança para o além.
O príncipe balançou a cabeça melancólico.
Então está bem. Você vai ver o meu grande tesouro quando formos tirá-lo do esconderijo no pântano esta noite. Mas se revelar o que é para os outros, pode pôr a perder não só a sua vida, mas a minha também.
Os grandes olhos redondos de Ralabun brilharam no escuro, quando ele fez o sinal do Trílio Negro no ar com a mão.
— O que é essa coisa maravilhosa que estamos procurando, Coração Misterioso?
— Uma coisa que devo mostrar para você e não pode falar nada a respeito — disse o príncipe.
E ele não disse mais nada, apesar da insistência do nyssomu.
Depois de mais uma hora de viagem, a garoa cessou e o vento começou a soprar, fazendo nuvens escuras deslizarem rapidamente por um pedaço de céu estrelado. Na margem oposta as tochas do Mercado de Ruwenda, na periferia a oeste do Outeiro da Cidadela, piscavam vagamente, pois o Mutar agora tinha mais de uma légua de largura. Então eles entraram na bacia dos afluentes do rio, onde havia muitas ilhas densamente arborizadas na Época da Seca. Agora, a maioria estava submersa, com as imponentes árvores gonda e kala que cresciam nelas despontando da água preta e revolta. Era fácil se perder ali e várias vezes o príncipe teve de corrigir a navegação de Ralabun. Infelizmente a habilidade pantaneira do velho mestre do estábulo não era tão acurada quanto ele imaginava.
— Aqui está o riacho — apontou Tolivar, finalmente.
— Tem certeza? — Ralabun parecia desconfiado. — Acho que ainda temos de avançar mais um pouco...
— Não. É aqui. Tenho certeza. Pode entrar. Resmungando, o nyssomu apoiou-se no remo.
— A mata por aqui já está alagada e o lugar está cheio de entulho boiando. Não há sinal de nenhum canal. Eu realmente penso que...
— Silêncio!
O príncipe assumiu seu posto na proa. As poucas estrelas mal iluminavam o caminho. O igarapé logo ficou muito raso, com moitas espessas de junco, gladíolos e samambaias vermelhas no meio das árvores imensas. Na trégua do aguaceiro, as criaturas selvagens do Pântano Labirinto se manifestavam. Insetos cricrilavam, estalavam, zumbiam, e criavam sons como o badalar de sinos. Pelriks assobiavam, cantadores noturnos gorjeavam, karuwoks davam pancadas na água e silvavam, e um gulbard distante emitia seu rouco grito de caça.
Quando Ralabun não conseguia mais usar o remo da popa por causa da pouca profundidade e da quantidade de madeira flutuando, ele gritou.
— Isso não pode estar certo, Coração Misterioso!
O menino fez um esforço para controlar sua irritação.
— Eu indico o caminho enquanto você maneja o leme. Passe no meio daquelas duas grandes árvores wilundas. Eu conheço o caminho.
Ralabun obedeceu contrariado, e apesar do canal às vezes parecer irremediavelmente bloqueado com arbustos e trepadeiras, uma brecha de água quase da largura do barco aparecia sempre na frente deles. Eles avançavam com muita lentidão, mas depois de mais uma hora chegaram a uma pequena área de terra seca. Samambaias espinhentas, chorões e kalas altíssimas cresciam dentro do perímetro pedregoso da ilha. Tolivar apontou para um ponto de desembarque, e Ralabun levou o barco até terra firme.
— É aqui? — murmurou ele surpreso. — Eu podia jurar que estávamos perdidos.
O príncipe pulou na terra coberta de capim-serra açoitado pela chuva e amarrou o cabo da proa num toco. Então pegou a lanterna, abriu a tampa e fez sinal para o nyssomu acompanhá-lo pelo caminho quase invisível que serpenteava pelo meio das rochas e da vegetação molhada.
Chegaram a uma clareira onde havia uma pequena cabana feita de varas entrelaçadas e capim, o telhado feito de palha grossa.
— Fui eu que construí — disse o príncipe todo orgulhoso. — É aqui que eu fico estudando magia.
A boca larga de Ralabun se abriu de espanto, revelando presas curtas amarelas.
— Magia? Um rapaz como você? Pelo Deus Trino... você merece o nome de Coração Misterioso!
Tolivar abriu a simples porta de vime e fez uma mesura irônica.
— Por favor, entre na minha oficina de feitiçaria.
A cabana por dentro estava completamente seca. O príncipe acendeu uma luminária refletora com três velas que estava em cima de uma mesa improvisada. A cabana tinha pouca mobília além de um banco, um garrafão empalhado de água potável e um conjunto de prateleiras penduradas que continham alguns vidros e barriletes de alimentos em conserva. Certamente não havia nenhum instrumento, livro ou qualquer outro apetrecho do ocultismo que era de se esperar no covil de um feiticeiro.
Tolivar se ajoelhou, afastou as folhas de samambaia e junco que cobriam o chão de terra batida, e começou a levantar uma grande placa fina de pedra. Na cavidade por baixo havia dois sacos de tecido grosso de lã, um pequeno e outro maior. Tolivar pôs os dois sobre a mesa.
— Essas são as coisas preciosas que viemos buscar — disse ele para Ralabun. — Não achei que seria seguro escondê-las na Cidadela.
O velho aborígine olhou para os sacos cada vez mais ressabiado.
— E o que vai acontecer com essas coisas, quando você estiver morando em Derorguila durante o inverno?
— Tenho um esconderijo seguro nas ruínas, do lado de fora da Fortaleza Zotopanion, onde ninguém passa. Descobri esse lugar quatro anos atrás, durante a Batalha de Derorguila, quando tive a sorte de obter esse grande tesouro.
O menino abriu o saco maior e tirou uma caixa estreita e rasa, mais ou menos do comprimento do braço de um homem, com três palmos de largura. Era feita de um material escuro e vítreo, e sobre a tampa havia uma Estrela prateada com muitas pontas.
Ralabun deu um grito.
— Senhores do Ar! Não pode ser!
Sem dizer nada, Tolivar abriu o saco menor. Alguma coisa faiscou com um brilho prateado à luz do refletor, uma tiara curiosamente trabalhada, com seis vértices pequenos e três maiores. Era enfeitada com arabescos gravados, conchas e flores, e por baixo de cada um dos vértices maiores havia um rosto grotesco. Um era de um horrendo skritek, o segundo de um esgar humano e o terceiro era de um ser feroz, com cachos de cabelo estilizados como estrelas, que parecia uivar de dor em silêncio. Sob o rosto central havia uma réplica minúscula do brasão real do príncipe Tolivar.
— O Monstro de Três Cabeças — coaxou Ralabun, quase sem fala de tão assombrado que estava. — O talismã mágico da rainha Anigel, que ela deu para o malvado feiticeiro Orogastus como pagamento do resgate!
— Agora ele não pertence mais à minha mãe nem a ele — declarou Tolivar.
Ele pôs a tiara na própria cabeça e de repente seu corpo magro e seu rosto pequeno e sem graça pareciam transfigurados.
— O talismã está unido a mim pela caixa-estrela, e qualquer um que tocar nele sem minha autorização queimará e virara cinza. Eu ainda não dominei por completo os poderes do Monstro de Três Cabeças, mas dominarei um dia. E quando esse dia chegar serei um feiticeiro mais poderoso do que Orogastus jamais foi.
— Ó, Coração Misterioso! — gemeu Ralabun.
Mas antes de o nyssomu poder continuar o menino disse:
— Lembre-se do seu juramento, velho amigo.
Então ele tirou a tiara da cabeça, depois guardou-a, junto da caixa-estrela, nos seus sacos.
— Agora vamos. Talvez possamos chegar a casa antes da chuva começar de novo.
— Agora! — gritou Kadiya. — Peguem-nos!
A imensa rede de cipós caiu, todas as cordas que a sustentavam cortadas no mesmo instante pela equipe de nyssomus bem lá no alto das árvores kala. Era noite, mas um raio faiscante iluminou o momento em que a rede chegou ao solo da floresta pantanosa e cobriu o brilho dos olhos cor-de-laranja do grupo espantado de guerreiros skriteks.
A emboscada foi bem-sucedida. Mais de quarenta dos monstruosos Afogados, subitamente presos no trançado grudento e resistente, rugiam e guinchavam no meio das trovoadas. Atacavam em vão a rede com suas presas e garras, batendo as caudas e chafurdando no solo lamacento, cada vez mais enrolados. Saía almíscar das escamas da pele deles e o cheiro subia em uma nuvem nociva. Isso não impediu seus captores de enfiar longas lanças enfarpeladas no solo encharcado, prendendo as pontas da rede. Os nyssomus que não estavam empenhados nessa tarefa davam cambalhotas em torno da rede, esbugalhando os olhos à espreita, numa zombaria de seu antigo inimigo, assobiando e brandindo gaitas de sopro e lanças.
— Renda-se a mim, Roragath! — ordenou Kadiya. — Seu esquema de invasão e banditismo está terminado. Agora você deve pagar a penalidade por violar a Trégua do Pântano Labirinto.
Nunca!, retrucou o líder skritek na linguagem sem palavras. Ele era uma criatura gigantesca, com quase o dobro da altura dela, e ainda se mantinha ereto com a trama grudenta presa ao corpo. A Trégua não é mais compromisso nosso. E mesmo que fosse, jamais nos renderíamos a uma fêmea humana insignificante. Preferimos lutar até a morte em vez de ceder!
— Então você não me reconhece, Afogado traiçoeiro — murmurou Kadiya. Ela virou para o homem corpulento da tribo que estava logo atrás dela. — Jagun, parece que a visão noturna desses estúpidos violadores de tréguas está tão fraca quanto a inteligência deles. Traga tochas para deixar tudo bem claro para eles.
Havia começado a chover forte novamente. Mas, ao comando de Jagun, alguns membros da força nyssomu acenderam pedernais e atearam fogo a rolos de junco embebidos em piche que tiraram de seus embornais e prenderam a longos pedaços de madeira. Os guerreiros skriteks capturados silvavam e berravam desafios, enquanto cada labareda ganhava vida, iluminando a cena turbulenta na clareira. Então os portadores das tochas se reuniram em torno de Kadiya, ela tirou o capuz ignorando a tempestade e os monstros fizeram silêncio.
Ela era uma mulher de estatura média, mas parecia alta no meio dos seus diminutos adeptos nyssomus. O cabelo era ruivo, preso numa coroa apertada de tranças. Ela usava uma armadura de escamas douradas por cima da roupa de couro dos monteiros que era bastante parecida com a roupa que seus companheiros usavam, e no peito tinha o emblema sagrado do Trílio Negro. Cada pétala da Flor tinha um olho brilhante — um dourado como o da tribo, um castanho-escuro como os da própria Kadiya, e um azul-prateado com faíscas estranhas na pupila negra, e esse último pertencia aos Desaparecidos.
Agora nós a reconhecemos, admitiu o chefe dos Afogados com certa relutância. Você é a Dama dos Olhos.
— E sou também a Grande Defensora de todas as Tribos, inclusive a de vocês, tolos skriteks do Brejo Meridional. Como ousa invadir e pilhar essas terras da Tribo Nyssomu, violando minha ordem? Responda, Roragath!
Nós não aceitamos a sua autoridade! Além do mais, um maior do que você nos revelou a verdade sobre sua trégua espúria. Ele nos contou que logo os Desaparecidos vão voltar e o Trílio Celeste brilhará novamente no céu. Então vocês humanos e todos os seus medrosos escravos oddlings serão destruídos. O Mundo das Três Luas será como era no início: domínio exclusivo dos skriteks.
Sim! Sim!, rugiram os monstros. Eles ficaram agitados e começaram a lutar com mais violência do que antes.
— Quem foi que contou essa espantosa mentira? — quis saber Kadiya.
O líder skritek não respondeu, então Kadiya tirou da bainha uma estranha espada preta com o punho dividido em três, com uma lâmina sem ponta. Ela inverteu a pegada e segurou a espada bem alto, e à vista dela todos os bandidos do pântano capturados começaram a gemer de medo.
— Vocês reconhecem o Olho Ardente Trilobado que estou segurando. — Kadiya falava com uma calma terrível. Gotas de chuva escorriam pelo rosto dela e brilhavam como diamantes na sua armadura. — Eu sou a guardiã desse verdadeiro talismã dos Desaparecidos. Ele pode decidir num instante se vocês têm ou não o direito de zombar de mim. Mas pensem bem, seus Afogados do Brejo Meridional, se forem julgados e considerados culpados de sedição, o Olho envolverá vocês no fogo mágico e vocês morrerão com muito sofrimento.
Os monstros resmungavam entre eles. Roragath finalmente falou.
Acreditamos no que o Homem da Estrela disse, apesar de ele não ter apresentado nenhuma prova além das maravilhas que fez para demonstrar seu domínio da magia. Talvez... tenhamos cometido um erro.
— Um Homem da Estrela...? — gritou Jagun, abatido. Mas Kadiya o fez calar com um movimento da mão.
— Falsidades jorram facilmente de uma boca loquaz e maligna — disse ela para Roragath —, e os tolos que relutam em desistir de seus hábitos antigos e violentos podem estar excessivamente dispostos a acreditar em mentirosos e charlatões. Sei como seu povo tem resistido à trégua. Vocês achavam que por viverem num canto remoto do pântano estariam livres do governo da Dama de Branco... e além da minha imposição da vontade dela. Vocês estavam enganados.
O enorme skritek deu um gemido de desespero e fúria.
Kadiya dos Olhos, pare de brincar conosco como se fôssemos crianças estúpidas! Deixe seu talismã nos julgar e mate-nos. Pelo menos isso trará um fim para a nossa vergonha.
Mas, em vez disso, Kadiya abaixou a espada estranha e guardou-a de novo na bainha.
— Talvez isso não seja necessário. Até aqui, Roragath, você e seu bando só foram responsáveis por atos aleatórios de terror e pela destruição da aldeia de Asamun. A Tribo Nyssomu foi ferida, mas nenhum deles morreu, e não foi graças a vocês. Pode-se fazer uma reparação. Se vocês se arrependerem de seus atos hostis e jurarem retornar ao seu território e obedecer à trégua, então pouparei suas vidas.
O líder skritek manteve sua grande cabeça e focinho levantados em posição desafiadora alguns segundos, mas a criatura finalmente rendeu-se, submissa, e caiu de joelhos.
Juro, por mim e pelos meus companheiros, obedecer a suas ordens, Dama dos Olhos, e admito isso pelas Três Luas.
Kadiya fez que sim com a cabeça.
— Liberte-os — disse ela para o bando de nyssomus. — Depois deixem Asamun e seus conselheiros negociarem as reparações. — Dirigiu-se novamente ao líder skritek, com a mão sobre o olho do emblema no peito. — Não deixe seu coração contemplar mais nenhuma traição, Roragath dos Afogados. Lembre-se de que a minha irmã Haramis, a Dama de Branco, Arquimaga da Terra, pode vê-lo onde estiver. Ela me dirá se você ousar descumprir a Trégua do Pântano Labirinto novamente. Se fizer isso irei atrás de você, e dessa vez não serei clemente.
Nós compreendemos, disse Roragath. Temos permissão para nos vingar do perverso que nos enganou? Ele só nos procurou uma vez e depois foi embora para o oeste, para as montanhas, para fora de Ruwenda e na direção de Zinora. Mas poderíamos seguir seu rastro...
— Não — disse Kadiya. — Ordeno que não persigam o encrenqueiro. A Dama de Branco e eu cuidaremos dele na hora certa. Apenas avise aos outros skriteks para não darem crédito às mentiras dele.
Kadiya pegou a capa e vestiu para se proteger da chuva que não parava, pediu para Jagun pegar uma tocha e ir com ela. Lado a lado, a Dama dos Olhos e seu delegado-chefe partiram pela larga trilha que levava ao rio Vispar.
Depois que Haramis, a Dama de Branco, soube da fúria dos monstros nos confins do Sul e falou com sua irmã trigêmea Kadiya, precisou de dez dias para mobilizar o pequeno exército de nyssomus e armar a emboscada para o grupo de guerreiros skriteks. Agora que a expedição terminara vitoriosa, Kadiya estava tremendamente cansada. As palavras do líder skritek haviam sido enigmáticas e inquietantes, mas ela não tinha disposição para discuti-las agora com a Arquimaga.
E também não ia aturar um sermão da irmã quando a Dama de Branco soubesse de que forma tinha usado o talismã.
Afundando no profundo lamaçal, encharcada da cabeça aos pés e com todos os músculos doendo, a Dama dos Olhos puxou um cordão que tinha pendurado no pescoço e segurou um amuleto que usava escondido sob as roupas. Tinha um brilho levemente dourado e emanava um calor reconfortante, uma gota de âmbar cor de mel com um Trílio Negro fossilizado no meio.
Obrigada, ela rezou. Obrigada, Deus Trino da Flor, por deixar que o blefe funcionasse mais uma vez, por me dar força. E perdoe a fraude implícita... Se soubesse de alguma outra forma de conseguir isso, eu faria.
Com os vendavais anunciando a chegada da Época das Chuvas, rugindo nos galhos das árvores acima deles, Kadiya e Jagun mal se falaram até chegarem ao remanso do rio dilatado onde haviam deixado seus barcos. A Tribo Nyssomu costumava viajar em canoas de toras escavadas e lerdas chatas que exigiam muita força para serem impelidas por varas ou ginga de leme. Mas a embarcação de Kadiya era feita no estilo wyvilo, de couro raspado esticado sobre uma estrutura leve de madeira. Estava preso entre as raízes de uma imensa árvore kala, e quando Jagun e ela embarcaram e soltaram as amarras, duas cabeças lisas apareceram na água marcada pelos pingos da chuva ali perto e ficaram observando ansiosas.
Eram rimoriks, animais aquáticos formidáveis que partilhavam um relacionamento especial — não se podia dizer que eram domesticados — com a Tribo Uisgu, aqueles primos tímidos dos nyssomus que viviam no Pântano Dourado, ao norte do rio Vispar. Como Kadiya era a Defensora de todas as tribos, inclusive dos uisgus, ela também contava com a boa vontade dos rimoriks. Muitos animais, dispostos a servi-la, tinham deixado seu território habitual para viver perto da Mansão dos Olhos de Kadiya no rio Golobar, que ficava a quase setenta léguas a leste.
Os olhos das bestas aquáticas brilhavam pretos como azeviche à luz da tocha de Jagun. Os rimoriks tinham pêlo mosqueado de verde, bigodes eriçados e dentes enormes que exibiam no que, para eles, era uma expressão amigável.
Divida o miton conosco, senhora. Esperamos muito tempo pela sua volta.
— Certamente, queridos amigos.
Da bolsa do seu cinto Kadiya tirou um pequeno cabaceiro vermelho. Destampou, deu um gole, passou para Jagun dar o dele e então derramou uma quantidade do líquido sagrado na palma da mão esquerda. Os animais nadaram para perto e beberam, lambendo suavemente com suas línguas horripilantes, apêndices que pareciam açoites com pontas afiadas, que usavam para espetar suas presas.
O miton produziu sua mágica benigna, e os quatro improváveis amigos sentiram uma enorme satisfação que aguçou seus sentidos e eliminou a fadiga. Quando a comunhão terminou, Kadiya deu um suspiro. Jagun pôs cabrestos com rédeas nos rimoriks. Sem fazer barulho, os grandes animais submergiram e o barco avançou rapidamente pelo rio largo e escuro, indo para o atalho secreto que levaria todos eles para casa em menos de seis horas.
Quando já estavam navegando havia algum tempo, Kadiya e Jagun encolhidos sob o abrigo de um encerado de cera vegetal e mastigando uma refeição austera de raízes secas de adop e pão de viajante, ela disse:
— Correu tudo bem, eu acho. A sua idéia de fazer uma rede de cipós foi brilhante, Jagun, e nos poupou de uma batalha dura com os bandidos do pântano.
O rosto largo e pálido do velho aborígine parecia uma máscara, e seus olhos amarelos brilhantes olharam enviesados para ela. Era óbvio que ele estava profundamente angustiado. Kadiya gemeu baixinho, sabendo muito bem por quê. Ela podia adiar a reprovação da sua irmã Hara, mas não a do velho amigo.
Jagun ficou em silêncio um longo tempo. Kadiya esperou comendo, apesar de ter perdido o apetite, enquanto a chuva batia no encerado perto das orelhas deles e o barco silvava e vibrava com a velocidade que deslizava na água.
Finalmente Jagun falou:
— Olhos Penetrantes, faz quatro anos agora que você cumpriu o trabalho que escolheu fazer com sucesso, apesar do seu talismã não ter mais ligação com você e de não ser mais capaz de produzir magia. Ninguém além de mim e das suas duas irmãs sabe que o Olho Ardente Trilobado perdeu seu poder.
Até agora o segredo permanece seguro — disse ela sem demonstrar emoção.
— Mas tenho medo do que pode acontecer se você continuar a brandir o talismã na sua função de Defensora, como fez esta noite. Se descobrirem a verdade, todas as tribos ficarão profundamente escandalizadas. A sua honra ficará manchada e a sua autoridade comprometida. Não seria mais sábio fazer o que a Dama de Branco pediu tantas vezes, consignar o Olho Ardente aos cuidados dela até poder recuperar seu poder?
— O talismã é meu — declarou Kadiya. — Nunca desistirei dele... nem mesmo para Haramis.
— Se você simplesmente parar de usá-lo, ninguém ousará questioná-la.
Ela deu um suspiro.
— Talvez você tenha razão. Pensei e rezei muito sobre esse assunto, mas não é fácil tomar essa decisão. Você viu como os skriteks ficaram aterrorizados com o Olho esta noite.
Ela pôs a mão no punho da espada negra e segurou as três esferas unidas na extremidade. Aquelas orbes estavam frias agora, e um dia tinham sido quentes. O Olho Ardente Trilobado, criado séculos antes pelos Desaparecidos para seus próprios objetivos misteriosos, tinha sido capaz de produzir uma magia aterradora, pois era uma das três partes que formavam o grande Cetro do Poder.
Um dia, aquele talismã fora ligado à própria alma de Kadiya e os três lobos se tinham aberto ao seu comando, para revelar as contrapartidas vivas dos olhos no brasão da sua armadura. Ela comandava seu poder, e qualquer um que ousasse encostar na espada sem a sua autorização, morria na hora.
Mas quatro anos antes, o feiticeiro Orogastus, último herdeiro dos Homens da Estrela, roubou o talismã de Kadiya e adquiriu, através de extorsão, um segundo talismã que pertencia à rainha Anigel. Ele uniu os dois a ele mesmo e ousou ter esperança de que a Arquimaga Haramis cederia o terceiro talismã por amor a ele. Em vez disso, Orogastus perdeu o talismã de Anigel devido a um infortúnio, e mais tarde, numa batalha climática, ele foi destruído pela mágica das três irmãs.
A espada sem dono foi então devolvida para Kadiya. Mas o talismã não se unia mais com seu amuleto mágico do trilio-âmbar como fazia antes, ficando à disposição da vontade dela. O Olho Ardente Trilobado estava aparentemente tão morto quanto Orogastus.
Mesmo assim Kadiya continuou a usá-lo.
— Nunca menti deliberadamente para a Tribo sobre a função do meu talismã — disse ela para Jagun. — Seu valor simbólico permanece, mesmo que agora seja inútil em termos de magia. Você viu o bem que ele fez esta noite. Sem a ameaça dele, os skriteks certamente teriam lutado conosco até a morte. Com ele, fui capaz de poupá-los e evitar uma grande perda de vidas de nyssomus.
— Isso é verdade — admitiu Jagun.
— Os Afogados vão voltar para o Brejo Meridional e contar para os outros da tribo deles como foram dominados e alvo da misericórdia da Dama dos Olhos e seu talismã — ela deu de ombros. — Assim a Trégua do Pântano será mantida até a próxima crise chegar... E há sempre uma chance de Haramis acabar descobrindo como reunir o talismã a mim, recuperando sua potência.
O homenzinho balançou a cabeça, ainda aflito. Como os outros de sua raça, era superficialmente humano em aparência, com narinas minúsculas como fendas estreitas, uma boca larga com pequenos dentes afiados na frente e orelhas finas e levantadas que saíam dos dois lados do chapéu de caçador. Muitos anos antes, ele fora o Caçador Real do rei Krain de Ruwenda, o pai já falecido de Kadiya. Quando ela era uma menininha, Jagun a levou para o Pântano Labirinto que ocupava quase todo o pequeno platô do reino, e a ensinou muitos dos seus segredos e lhe deu o nome do pântano de Olhos Penetrantes por causa de sua aguçada visão. O apelido provou ser profético quando Kadiya se tornou a guardiã do Olho Ardente Trilobado e protetora das tribos aborígines que dividiam o Mundo das Três Luas com a humanidade.
Em todos aqueles anos Jagun continuou sendo o amigo mais íntimo de Kadiya, e seu delegado. Às vezes, para tristeza dela, ele parecia esquecer que ela não era mais criança, e a repreendia pelo seu temperamento estourado e pela teimosia ocasional. O que mais a incomodava nesse hábito que ele tinha era que muitas vezes tinha razão.
— Você deve compreender, Olhos Penetrantes — disse Jagun muito sério —, que esse conflito específico com os skriteks não foi nada comum. A história que Roragath contou de um Homem
da Estrela mentiroso deve ter sido um choque tão grande para você quanto foi para mim.
A idéia da volta dos Desaparecidos é bobagem — zombou ela. E apenas os Senhores do Ar sabem que tipo de prodígio um ”Trílio Celeste” pode ser. Quanto ao suposto Homem da Estrela...
E se o pior acontecer — imaginou Jagun —, e o próprio
feiticeiro maldito voltar mais uma vez do mundo dos mortos?
Impossível! O próprio talismã de Haramis disse que Orogastus havia morrido. — Kadiya fez um bico de desprezo. — E a minha tola irmã chora em segredo pela sua maldita alma desde então.
— Não zombe da emoção sincera da Dama de Branco — disse Jagun com muita firmeza —, especialmente porque você mesma nunca conheceu a paixão do amor. Não se pode escolher o alvo do nosso amor... como eu bem sei, para tristeza minha.
Kadiya olhou para ele surpresa. Pois em todo aquele tempo que conhecia Jagun, ele nunca teve uma companheira. Mas não era hora de questioná-lo sobre um assunto tão delicado.
— Você acha então — perguntou ela para ele — que Orogastus poderia ter deixado outros para dar continuidade à sua obra ímpia? Os seis acólitos dos quais temos notícia, os que ele chamou de suas Vozes, certamente morreram. E não foi encontrado mais nenhum aprendiz de feiticeiro quando meu cunhado vasculhou o covil de Orogastus na terra de Tuzamen.
— Essas pessoas podem ter escapado da justiça do rei Antar quando souberam da notícia do destino do seu mestre — disse Jagun. — E se foram espertas e evitaram o uso aparente de magia então elas também podem ter escapado do escrutínio da Dama de Branco. Nem mesmo o Círculo das Três Asas pode supervisionar todas as partes do mundo, em todos os momentos do dia e da noite.
Kadiya terminou de comer o pão e as raízes de adop e começou a abrir nozes blok com sua pequena adaga, tirando a carne de dentro para os dois.
— É mais provável que esse suposto Homem da Estrela não passe de um impostor, agente de algum inimigo de Laboruwenda que pretenda criar problemas por razões políticas. Foi muito esperto de incitar os skriteks agora, no início das chuvas. A corte de Anigel e Antar já vai se retirar para a planície de Labornok onde passará o inverno, deixando para trás apenas uma pequena guarnição em Ruwenda. Aquele jovem salafrário, o rei Yondrimel de Zinora, adoraria ver os Dois Tronos envolvidos em uma série de conflitos destruidores, com os bandidos do pântano durante a Época das Chuvas. Então o país dele poderia conquistar as rotas ocidentais de comércio de Laboruwenda.
— Isso é plausível — admitiu Jagun —, Roragath realmente disse que o Homem da Estrela partiu naquela direção.
— Se Yondrimel está tramando alguma coisa, o rei Antar e a rainha Anigel acabarão com suas brincadeiras num instante. Ele não pode se dar ao luxo de ser pego descaradamente minando a estabilidade dos Dois Tronos. Outras nações civilizadas vão relegálo ao ostracismo e ele não terá mais ninguém a quem vender suas pérolas, a não ser os Bárbaros Emplumados.
Jagun estava remexendo na bolsa de suprimentos deles, procurando um saca-rolha. Finalmente encontrou um, abriu um frasco de vinho de halaberry e encheu dois copos de madeira.
— Que os Senhores do Ar façam com que esse assunto seja resolvido rapidamente — disse ele, num brinde religioso.
Kadiya ergueu seu copo e os dois beberam. Quando Jagun se manifestou novamente, seu tom de voz denotava um aviso calamitoso.
— Mas se a Guilda da Estrela realmente renasceu, então não é só a nossa própria terra de Laboruwenda, mas também o resto do mundo que pode estar à beira de uma catástrofe. Com o seu talismã inutilizado e o da rainha Anigel perdido, não há possibilidade de reunir o Cetro Tríplice de Poder. E essa é a única arma garantida para combater a magia antiga da Guilda da Estrela.
Olhando para ele por cima da borda do copo, Kadiya sorriu.
— Anime-se, meu velho amigo. Minhas irmãs e eu descobriremos a verdade sobre essa situação. Amanhã, depois de ter dormido uma noite na minha própria cama e de ter refrescado meu cérebro exausto, falaremos com Haramis. Por enquanto, vamos beber nosso vinho e não dizer mais nada.
Mas no dia seguinte, quando Kadiya pediu para Jagun lançar o chamado da Arquimaga da Terra, utilizando a fala sem palavras, ninguém respondeu.
40
—- Iriane! — Haramis chamou baixinho junto ao seu talismã. — Iriane, está me ouvindo? Tenho problemas sérios para contar para você e preciso demais do seu conselho. Por favor, responda.
Mas a área interna do Círculo de Três Asas que ela segurava, olhando para ele como se fosse um espelho de mão, continuou um redemoinho disforme de luminescência perolada. As feições gorduchas, alegres e coloridas de azul-cobalto da Arquimaga do Mar não apareceram.
Haramis franziu o cenho perplexa.
— Talismã, pode me dizer por que Iriane não responde? Ela está protegida por mágica.
— Ela está na casa dela?
Não. Ela está nas ilhas Ocas, com a Tribo dos Simples do extremo ocidente.
— Por que ela se recusa a falar comigo? — perguntou Haramis com impaciência para o Círculo.
Essa pergunta é irrelevante.
— Que amolação! Agora imagino que tenha de ir eu mesma procurá-la.
Ela pegou a harpa que estava no tapete ao seu lado e tocou alguns acordes para se acalmar e para ajudar a ter um raciocínio proveitoso. Num grande pote de cerâmica ao lado da cortina da janela havia uma enorme planta coberta de flores de três pétalas escuras como a noite, Haramis olhou para elas e ficou mais tranqüila.
Haramis, Arquimaga da Terra, tinha passado a noite inteira em seu estúdio usando o Círculo de Três Asas para ver o conflito entre sua irmã Kadiya e os skriteks. Haramis tinha ficado espantada e profundamente preocupada com as palavras ditas pelo líder dos monstros. Assim que Kadiya obteve a vitória, Haramis desligou a cena da emboscada com a esperança de poder consultar sua colega e mentora, a Dama de Azul do Mar.
Nem por um momento a jovem Arquimaga da Terra pensou em enfrentar a presente situação sozinha. Se outro Homem da Estrela estivesse vagando pela terra, com a intenção de levar adiante os planos do seu mestre morto, então o mundo mais uma vez estaria correndo um perigo terrível. Quanto à idéia de que os Desaparecidos poderiam retornar, ela era tão incrível que Haramis nem ousava pensar nela...
— Ó, Iriane! — exclamou ela bem alto. — De todas as horas inconvenientes para você se esconder, tinha de escolher logo esta!
Com algum esforço, Haramis acalmou novamente sua agitação dedilhando a harpa e contemplando as flores. Não podia deixar sua imaginação desenfreada levar a melhor. Antes de assumir a tarefa de caçar a volúvel Arquimaga do Mar, primeiro ela ia descobrir quem tinha fomentado o ataque dos demónios do pântano. Os aborígines skriteks eram sabidamente crédulos, e aquele que os incitou à hostilidade podia ser apenas algum humano comum.
Ela largou a harpa e segurou o talismã mais uma vez.
— Mostre a pessoa que disse para o skritek que ele era um membro da Guilda da Estrela.
Obedientemente o Círculo de Três Asas produziu uma cena embaçada numa noite escura em alguma fortaleza de pedra, iluminada pelas brasas vermelhas de uma fogueira de acampamento quase apagada. Havia alguém dormindo no chão.
A visão se expandiu ao comando da Arquimaga até parecer que ela estava dentro dela, podendo andar pelo lugar e examinar tudo bem de perto, enxergando também como se fosse pleno dia. Montanhas grandiosas se elevavam de todos os lados, muitas cobertas de gelo. Não havia neve no chão do acampamento, mas um vento gélido soprava em rajadas, fazendo o fogo subir e depois quase apagar.
— Que lugar é esse? — perguntou ao talismã.
Fica nas montanhas Ohogan acima de Zinora, cerca de novecentas léguas a oeste da sua Torre.
Com a escuridão iluminada pela mágica do Círculo, Haramis pôde ver um grande fronial, bem-cuidado e com os chifres adornados com prata, perto de um ruidoso riacho. Estava preguiçosamente pastando folhas dos arbustos que cresciam nas margens. A sela e os outros arreios, empilhados ordenadamente de um lado da fogueira, eram de ótima qualidade e com estilo de Zinora, equipamentos prateados cravejados de pérolas. Do outro lado da fogueira estava o dorminhoco, tão bem enrolado em cobertores de lã de zuch que só aparecia o nariz. Perto dele havia um par do que pareciam ser alforjes, só que não eram feitos de couro, e sim de uma exótica pele de pássaro com penas vermelhas e pretas ainda no lugar. Apenas os sobranianos poderiam tê-los feito, aqueles humanos ricos, porém não-civilizados, que viviam nas fronteiras ocidentais do mundo conhecido, além da nação Depalanar.
Havia um objeto intrincado encostado nos alforjes, feito de metal escuro, e ao vê-lo Haramis sentiu uma pontada de horror e incredulidade e não foi capaz de evitar um grito. Mas a sua comunicação era imperceptível para quem dormia ali, e ele não se mexeu quando ela se ajoelhou ao lado do objeto para estudá-lo.
Tinha cerca de meia vara de comprimento, achatado e triangular em uma ponta, quase como a ponta de uma besta. Dali saíam três cilindros ou bastões, bem unidos por anéis, terminando em uma esfera de metal toda perfurada. A parte de cima da ponta de onde saíam os bastões era um tipo de punho brilhante, e atrás dele havia diversos botões, pinos e apêndices de misteriosa utilização.
Esse objeto específico era desconhecido. Mas a Arquimaga tinha visto outros parecidos, na sua caverna de Gelo Negro atrás da sua Torre no monte Brom, e também quatro anos antes, durante o cerco de Derorguila pelo feiticeiro Orogastus. O objeto que estava com o suposto Homem da Estrela era um daqueles artefatos dos Desaparecidos que costumavam aparecer de tempos em tempos nas ruínas de suas cidades decadentes. Há muito tempo era proibido para as tribos e para a humanidade possuir esses armamentos assustadores. Mas Orogastus adquirira vários deles saqueando o cofre de uma antiga Arquimaga da Terra, e seus guerreiros tuza-menis e raktumianos usaram as armas fatais declarando guerra contra o rei Antar e a rainha Anigel de Laboruwenda.
Quando o exército do feiticeiro foi derrotado, Haramis mandou reunir e destruir todas as armas arcaicas usadas pelo inimigo. Ela também inutilizou as armas e outros aparatos duvidosos dos desaparecidos que estavam guardados na sua Torre, assim como aqueles que restavam no antigo cofre de Kimilon, parcialmente Pilhado pelo feiticeiro. Metodicamente, durante vários meses, ela usou a magia do seu talismã para visitar cada ruína e outros locais esquecidos no continente-mundo onde estavam escondidas antigas armas que ainda funcionavam. O talismã havia confirmado isso.
De onde então tinha surgido aquele espécime que estava aos pés dela?
Do fundo do mar, disse o talismã, e a Arquimaga gemeu diante da própria estupidez. É claro! O talismã sempre considerava o que ela dizia literalmente, e ela pedira para ele vasculhar a terra.
A arma estava um pouco gasta, mas bem limpa e obviamente funcionando. Usada em alguma demonstração letal ela imporia respeito e medo ao seu dono, tanto entre as tribos e a humanidade como em qualquer parte do mundo, sendo o proprietário ou não um verdadeiro membro da Guilda da Estrela. A essa altura outras armas como aquela já podiam ter sido recuperadas dos seus esconderijos submarinos e postas em uso com fins nefastos.
Haramis levantou e ficou de pé ao lado da forma coberta do adormecido.
— Talismã, faça com que ele se vire para eu poder vê-lo claramente.
Haramis ouviu um grunhido abafado de dentro dos cobertores. O homem rolou para o lado e, ao fazer isso, expôs o rosto e a parte de cima do corpo. Ele era jovem e saudável, devia ter uns vinte e dois anos, o cabelo era castanho e tinha uma barba rala que talvez tivesse deixado crescer para dar às feições suaves uma aparência de mais idade. Sua túnica era de seda cinza, gasta e suja, mas forrada ricamente de pele. Em volta do pescoço, pendurado numa bela corrente de platina, havia um disco com uma Estrela de muitas pontas.
Ampliando a visão Haramis viu que o medalhão não era falsificado. Era idêntico ao que Orogastus usava, mas na sua visão não poderia saber se dava ao dono uma aura mágica.
— Quem é este homem? — perguntou Haramis ao Círculo. — De onde ele vem?
Essas perguntas são irrelevantes.
— Ele é o único da sua espécie?
Essa pergunta é irrelevante.
— Quais são os planos dele?
Essa pergunta é irrelevante.
— Onde ele obteve essa arma? Ele tem acesso a outras iguais a essa?
Essas perguntas são irrelevantes.
Por que você me deu essa visão dele, apesar de estar usando a Estrela?
Porque ele é um noviço, ainda não possui todos os poderes da sua Guilda.
Haramis deu uma risada amarga. Bem, saber disso foi mesmo muito útil! Ela agora tinha certeza de que o homem dormindo não era nenhum impostor, e sim um verdadeiro iniciado da terrível classe de feiticeiros antigos — que não tinha treino suficiente para se proteger completamente do escrutínio dela, como seu falecido mestre fizera, mas suficientemente apto para ocultar sua identidade e intenções. As recusas do talismã também confirmaram a suspeita da Arquimaga de que o jovem Homem da Estrela possuía amigos mais poderosos e perigosos do que ele.
Haramis não queria fazê-lo prisioneiro nem destruir a arma dele. Em vez disso, pretendia vigiar seus atos com seu talismã e torcer para ele fornecer informações valiosas sobre a Guilda. Cuidaria dele — e de quaisquer companheiros ou aliados que ele tivesse — depois.
— Já vi o suficiente dessa imagem — disse ela.
No mesmo instante, voltou para sua sala de estudos, já sentada na sua cadeira ao lado da aconchegante lareira, com as flores do Trílio Negro brotando no escuro nicho da janela. Ela largou o Círculo de Três Asas no peito e recostou-se na cadeira, pensando.
Então as armas vinham do fundo do mar! Ela nunca suspeitou que os Desaparecidos podiam ter vivido no mar, assim como na terra, e a Dama de Azul jamais mencionara este fato. De boa paz e nada desconfiada, Iriane governava seus súditos aborígines ingénuos com suavidade. O mais provável é que ela nem tivesse notado a Guilda da Estrela sorrateiramente buscando as armas escondidas. Infelizmente a doce Arquimaga do Mar conhecia pouco da perfídia da humanidade.
A discreta Tribo Simples de Iriane, que era capaz de viver longos períodos embaixo d’água, teria de ajudar Haramis a recuperar e destruir esses artefatos perigosos que continuavam escondidos no fundo do mar. Mais urgente ainda seria a cooperação de Iriane na caçada da base dos Homens da Estrela. Era muito possível que os vilões tivessem construído seu covil nas regiões ocidentais remotas e não mapeadas do continente-mundo, ou até numa ilha.
Naquele momento Haramis teve uma idéia apavorante. Ela ergueu seu talismã.
— Mostre-me uma visão de voor das ilhas Ocas no reino da Dama de Azul.
Mais uma vez, a sala desapareceu. Parecia que Haramis estava voando a grande altura, nas garras de um imenso abutre gigante, aqueles pássaros com dentes, muito inteligentes que eram seus amigos e auxiliares. Ela viu lá embaixo outra península que se projetava no mar a partir da margem sudoeste do mundo. No mar alto havia um arquipélago de bom tamanho, com algumas ilhas desertas e outras cobertas por uma vegetação desconhecida. Algumas tinham vulcões ativos que fumegavam um pouco. Haramis voou pelo meio dos pedaços de terra cercados de água, observando as entradas de muitas cavernas. Para um humano, aquele era um lugar triste e desolado, açoitado por enormes ondas provenientes do mar Ocidental desconhecido e por ventos que percorriam céleres milhares de léguas, sem nenhum obstáculo terrestre pela frente. Havia algumas aldeias da Tribo Simples espalhadas, mas ela não viu nenhum traço de humanos.
— A Guilda da Estrela fica aqui? — perguntou.
Não, disse o Círculo de Três Asas.
Bem, isso era um alívio.
Ela estudou o cenário com mais calma. Aquela era uma região que Haramis não conhecia, pois nenhum ser humano havia se estabelecido ali, e nenhum tinha sequer estado nas ilhas Ocas, até onde ela sabia. Os da raça dela que resolveram não desaparecer, que haviam ficado no Mundo das Três Luas e desafiado o Gelo Conquistador, habitavam as partes mais hospitaleiras da terra ao sul e ao leste. Se algumas almas corajosas alguma vez se aventuraram pelos recantos desconhecidos governados pela Arquimaga do Mar, não retornaram às terras civilizadas para contar a história. Haramis mesmo andara ocupada demais com os problemas do seu próprio domínio para explorar o de Iriane.
— A que distância ficam essas ilhas da minha Torre? — perguntou Haramis para o talismã.
Mais de sete mil léguas, no voo do voor. Pelo mar, como os humanos fariam a viagem, chega a oito mil léguas.
— Pela Flor Sagrada! — murmurou a Arquimaga. — É uma bênção eu não depender de um navio ou de um pássaro para me trazer até aqui.
Ela fechou a visão e retornou ao seu ambiente familiar.
Seu talismã a transportaria materialmente para o lugar num piscar de olhos, com a mesma facilidade da Visão. E ela podia agradecer à Iriane por aquele meio de transporte extremamente útil. Ensinando Haramis a usar bem a magia pessoal, a Dama de Azul havia capacitado sua jovem colega a comandar os poderes maiores do Círculo de Três Asas, de uma forma que Kadiya e Anigel jamais conseguiram fazer com seus talismãs. Haramis sabia que devia a Iriane mais do que poderia um dia retribuir.
— Só espero poder encontrá-la depressa — disse ela, olhando para o Círculo que agora estava vazio.
O talismã de Haramis não era grande. O bastão prateado tinha um anel numa ponta para passar a corrente que ela usava no pescoço, e na outra ponta uma argola pouco maior do que um palmo de diâmetro, com três asas minúsculas em cima. Essas asas protegiam uma gota de âmbar com um Trílio Negro fossilizado dentro, idêntico aos amuletos de âmbar das suas duas irmãs. Quando nasceram, as Princesas Trigêmeas de Ruwenda receberam os amuletos mágicos da Arquimaga Binah, que os balizara de Pétalas do Trílio Vivo e que profetizou para elas um destino assustador e missões terríveis.
Vivendo esse destino, Haramis, Kadiya e Anigel haviam enfrentado e superado muitas de suas fraquezas pessoais. As três irmãs haviam assumido responsabilidades ao mesmo tempo terríveis e magníficas. Será que os acontecimentos de agora as estavam levando para um desafio maior do que todos que já tinham enfrentado? Como a Flor Sagrada, elas eram Três e também uma só. Os futuros da Arquimaga, da Dama dos Olhos e da Rainha estavam inexoravelmente entrelaçados, quer elas quisessem ou não...
A oposição à ameaça da Guilda da Estrela então teria de envolver Kadiya e Anigel, além dela mesma. Disso Haramis tinha certeza absoluta. Ela resolveu que se transportaria para a casa de Kadi imediatamente depois de falar com a Dama de Azul. O Círculo de Três Asas então a levaria, junto com a irmã, para ver a rainha Anigel, que estava na Cidadela de Ruwenda. A rainha estava com quatro meses de gravidez, mas isso não a impediria de trabalhar com seu marido, Antar, e com os chefes das outras nações para se opor à ameaça armada da Guilda da Estrela ao equilíbrio já precário do mundo. Kadiya teria de reunir as tribos. Com a habilidade que tinham de falar sem palavras uns com os outros através de grandes distâncias, e com o conhecimento profundo que tinham da terra e do mar, os aborígines seriam valiosíssimos em qualquer empreitada contra a Guilda da Estrela.
Haramis resolveu que também ia insistir para Kadiya entregar seu talismã, que agora não tinha mais poder, para ela guardar, como devia ter feito há muito tempo. Sem estar ligado a alguém ele podia ser roubado por qualquer bandido... ou até pelos próprios Homens da Estrela!
Como se não bastasse o fato de o talismã da rainha Anigel, a tiara chamada de Monstro de Três Cabeças, ter sido perdido na guerra com Orogastus. Perder uma segunda peça do Cetro do Poder seria insuportável.
Orogastus... Mal ousara pronunciar o nome dele desde a sua morte, quatro anos antes. Qual era a ligação que havia entre o Mestre da Estrela que ela amara tanto e esse reaparecimento da Guilda?
Haramis levantou da cadeira e começou a andar de um lado para outro na frente da janela. Fazia uma noite terrível no alto das montanhas onde ficava a sua Torre. Nevava muito e um vento gelado da calota de gelo para o noroeste uivava nos batentes das janelas como um coro de demónios saídos dos dez infernos. Ela brincava com seu talismã enquanto refletia sobre os acontecimentos do passado.
Quando Orogastus iniciou seu último ataque a Derorguila, a capital setentrional dos Dois Tronos, ele detinha a posse não só do Monstro de Três Cabeças e do Olho Ardente Trilobado, mas também de um certo recipiente vítreo com o emblema da Guilda da Estrela na tampa, que podia unir ou desunir os talismãs. Ele tinha usado essa caixa-estrela de importância crucial para transferir a propriedade do Monstro de Três Cabeças e do Olho Ardente de Anigel e Kadiya para si mesmo.
A caixa, como a tiara mágica da rainha, desaparecera no tumulto da batalha.
Por algum tempo Haramis esteve certa de que uma pessoa desconhecida havia encontrado esses dois itens mágicos perdidos e que agora era a verdadeira dona do Monstro de Três Cabeças. O talismã dela, com poder total, que prontamente indicaria a localização do Olho morto de Kadiya (e que a levara sem demora ao jovem Homem da Estrela), tinha se recusado terminantemente a revelar qualquer informação sobre a tiara perdida, ou sobre a caixa que controlava a sua posse.
Iriane concordara com Haramis que isso só podia significar que a mágica do Monstro de Três Cabeças funcionava a toda a potência. Estava ligado a um novo dono.
E, no entanto, nenhum grande feiticeiro emergente havia aparecido no Mundo das Três Luas. O mestre da tiara a estava mantendo escondida e sem utilização. Haramis não conseguia imaginar por que... a não ser que essa pessoa estivesse esperando até também poder pôr as mãos no talismã de Kadiya, unir-se a ele também com a caixa-estrela. Possuindo duas partes do Cetro do Poder, o feiticeiro desconhecido comandaria uma magia que por pouco não superaria a de Haramis. Se essa pessoa se aliasse com a Guilda da Estrela renascida, equipada com os artefatos maravilhosos dos Desaparecidos, o mundo certamente estaria perdido.
— Senhores do Ar — rezou Haramis —, nós tivemos paz nesses quatro anos e, no entanto, está claro que o mundo nunca recuperou realmente o equilíbrio que Orogastus perturbou. Será culpa minha? Será que foi o meu amor por aquele feiticeiro, que, eu confesso, dura até hoje com a mesma força, que nos deixou vulneráveis?
Ou será que o impensável tinha acontecido, como antes?
Não, que o Deus Trino nos livre! Isso seria impossível.
Haramis jamais esqueceria o dia em que ela e suas irmãs valentes mandaram de volta para o feiticeiro a destruição que ele teria lançado sobre elas. A Flor derrotou a Estrela. Foi uma vitória inesperada para o Trílio Vivo, e a aniquilação para Orogastus, apesar de Haramis ter tido esperança de poder poupá-lo.
O momento em que ela perguntou qual tinha sido o destino do seu amor, e ouviu a resposta inclemente do talismã, ainda estava marcado no seu coração. Diante da janela da Torre, ao lado da planta do Trílio Negro, ela começou a chorar. Havia uma pequena área transparente no vidro congelado. Os flocos de neve voavam na direção dela levados pelo vento, parecendo fatalmente atraídos pela luz que havia na sala, se espatifavam e sumiam no vidro da janela com caixilhos de chumbo.
Ele também tinha sido fatalmente atraído.
Haramis havia desejado poupar Orogastus do castigo final. Antes do último embate, Haramis pusera o hexágono negro chamado de Cinosura da Guilda da Estrela dentro de uma antiga prisão dos Desaparecidos. Esse lugar, um abismo feito de rocha viva nas profundezas subterrâneas, teria mantido preso o feiticeiro, não importa qual mágica ele invocasse. A Cinosura devia atrair Orogastus para ela como um imã, no momento que ele usasse seu maior poder para o mal. No cativeiro, talvez arrependido com suave persuasão e pelo amor que sentiam um pelo outro, ela esperava que ele sofresse uma transformação que com o tempo permitiria que ela o libertasse.
Mas um tremendo terremoto tinha abalado aquela parte do mundo, fazendo ruir o precipício onde estava a Cinosura. Mas o artefato continuou exercendo sua mágica, atraindo Orogastus para um caos rochoso e sem ar, no momento em que foi derrotado.
Haramis tinha perguntado ao seu talismã o que havia acontecido com ele, e o talismã disse: Ele seguiu o caminho dos Desaparecidos. Ele não está mais neste mundo.
— Morto.
Haramis se afastou da janela e secou os olhos molhados com a mão fria.
— Você está morto, meu pobre querido imperfeito. E não me resta nada além do meu dever sombrio, que me obrigou a destruir o único homem que já amei na vida.
E agora os deveres daquele ofício não podiam mais ser adiados. Era hora de ir em busca de Iriane e depois encontrar-se com as suas irmãs. Mas primeiro...
Ela levantou o talismã e olhou para ele.
— Círculo de Três Asas, mostre aquilo que tive medo de conjurar até agora: uma verdadeira visão do rosto do meu amor morto. Estou precisando muito de consolo, e refrescar a minha memória com ele é a única coisa que pode me dar esse alento.
O talismã ganhou vida, o Círculo se encheu de cores claras e brilhantes. Ele disse:
Esse pedido não é válido.
— O quê? — gritou chocada. — Você está me negando algo tão simples, seu talismã cruel e caprichoso?
O pedido não é válido.
Você quer me enlouquecer além de partir meu coração? Mostre-o para mim!
Não, respondeu o talismã calmamente. Não posso mostrar o rosto morto de Orogastus porque ele não existe.
O que quer dizer? — perguntou irritada. — Sei que ele virou cinzas, espalhadas pelas rochas subterrâneas incandescentes. Só estou pedindo para refrescar minha lembrança das feições dele. Se o mundo está realmente fora do prumo, então tenho de partir para aventuras novas e perigosas. Eu... eu faria um retrato dele para me consolar. E talvez como um aviso para mim mesma também. Certamente não pode haver mal nenhum nisso. Ordeno que você mostre o rosto dele para mim, como era nos seus últimos dias neste mundo.
Agora seu pedido é válido.
Os redemoinhos inquietos de luz perolada ficaram mais brilhantes e se tornaram sólidos. Por um momento ela viu uma cabeça dentro de um capacete prateado dramático, com raios pontudos em volta e duas estrelas assustadoras no lugar dos olhos.
— Não! Não é assim que desejo lembrar dele. Reproduza o rosto daquele que eu amava.
A visão desapareceu e depois outra se formou. O rosto de um homem de cabelos brancos, desgastado e enrugado, mas estranhamente belo, parecia olhar diretamente para ela de dentro do Círculo. O maxilar dele era forte e a boca desenhava um sorriso torto. Os olhos eram da cor dos dela, o tom mais claro possível de azul, com grandes pupilas negras guardando faíscas douradas secretas.
Enquanto sorvia aquela imagem, Haramis invocou seus poderes pessoais. Com a mão direita, segurava o talismã. Na esquerda subitamente apareceu uma coisa fantasmagórica e cristalina, plana e um pouco menor do que o Círculo, brilhando como uma pedra preciosa abstrata.
— Um retrato — ordenou.
A lente de névoa cristalina escureceu e virou um rosto idêntico ao que o talismã produzia, delicadamente pintado em marfim de horik e emoldurado em ouro. A visão dentro do Círculo de Três Asas desapareceu, mas o retrato do feiticeiro era concreto. Haramis guardou-o em um dos bolsos do seu vestido, depois saiu da sala de estudos para se preparar para suas viagens mágicas.
Depois de dar instruções para sua castelã vispi Magira, e para seu mordomo, Shiki o Dorok, a Arquimaga vestiu uma roupa mais quente e pôs a capa longa do seu ofício. O tecido era branco e parecia mudar com o movimento para aquele azul delicado que se vê na neve sombreada. A capa tinha barras de platina e nas costas o emblema do Trílio Negro. Ela puxou o capuz sobre seu cabelo preto e comprido e calçou as luvas.
No silêncio do seu apartamento particular ela rezou pedindo força e sucesso. Então, sobre o tapete de pele ao pé da cama, pegou novamente seu talismã.
— Transporte-me fisicamente para aquele lugar nas ilhas Ocas onde a Arquimaga do Mar está.
O quarto dela se dissolveu no ar e ela parecia estar dentro de um cenário fantástico de teatro, uma caverna feita de diamantes abstratos que faiscavam numa centena de tons do arco-íris.
Um piscar de olhos depois a ilusão desapareceu. Ela estava dentro de uma caverna de verdade, úmida e extremamente fria. Estalactites pendiam do teto pingando, como presas de uma besta gigantesca babando. Embaixo delas havia poços negros onde a água que caía pingava e espirrava. Pilares de rocha, formas esculpidas pela água como estátuas meio dissolvidas e outras formações estranhas se avolumavam de todos os lados. Havia bolhas de substância brilhante que poderiam ser fungos ou até colônias de vadios-do-limo espalhadas pela superfície irregular do teto da caverna, iluminando o cenário fantasmagórico.
— Iriane! — chamou, mas ninguém respondeu e ela perguntou ao talismã: — Onde está a Arquimaga do Mar?
Como se fosse uma resposta, ela ouviu um barulho vindo de um dos poços maiores. Três aborígines com uma forma que Haramis não conhecia saíram do buraco, se sacudiram e fizeram fila, olhando para ela com olhos luminosos.
Eram de baixa estatura, como os nyssomus e os uisgus, porém tinham a pele cheia de escamas como as raças maiores da floresta. Os rostos tinham algo parecido com um focinho, como os wyvilos e os glismaks, mas no resto eram como os humanos. As mãos e os pés apresentavam uma membrana interdigital, com fortes garras sobre os três dedos, e nos braços usavam diversos braceletes de ouro com discos coloridos incrustados, feitos de escamas de peixe. No lugar do cabelo, as cabeças redondas eram adornadas com várias cristas paralelas que iam da testa até à nuca. Essas cristas e as grandes orelhas tinham nervuras como as barbatanas de peixes, com uma membrana transparente que ligava umas às outras. Eles não usavam roupas, mas as escamas dos seus corpos pareciam uma armadura flexível, verde e azul-escuro, dando-lhes uma aparência limpa e atraente.
— Ofereço minhas saudações — disse Haramis. — Sou a Ar-quimaga da Terra, e procuro a minha amiga, a Dama de Azul do Mar.
— Vamos levá-la até ela — os simples responderam em uníssono.
A língua deles não era familiar, mas, como sempre, o talismã fazia com que Haramis compreendesse o sentido do que diziam.
— Posso saber seus nomes, e a que raça vocês pertencem? O aborígine do meio, que usava um colar com os discos coloridos, apontou para o peito e disse:
— Este aqui é Ansebado, Primeiro dos lercomis, e esses são o Segundo e o Terceiro, Milimi e Terano, também súditos leais da Dama de Azul. Se a senhora vai cuidar dela, siga-nos.
Cuidar dela?
Haramis sentiu uma pontada de apreensão. Será que Iriane estava doente... ou alguma coisa ainda pior tinha acontecido?
Os três lercomis partiram com um passo rápido em fila única, com as presas dos pés estalando na pedra molhada. O ar da caverna foi ficando mais frio à medida que eles iam avançando, e enquanto a temperatura caía, o número de criaturas luminescentes diminuía drasticamente. Depois de tropeçar diversas vezes na escuridão crescente, Haramis segurou seu talismã no alto e pediu para o trílio-âmbar que havia dentro das asas, brilhar com mais intensidade e iluminar seu caminho.
Que lugar horrível, ela pensou. A não ser pelas bolhas luminosas, aquela ilha Oca especificamente parecia estéril e sem vida, nenhum sinal de que seres pensantes haviam deixado, algum dia, alguma marca nela. Não havia sinal de jazidas de minérios ou qualquer outra coisa de valor, e os aborígines não investigavam tais lugares por diversão, como os humanos faziam. Que diabos Iriane estava fazendo lá?
Haramis não via a amiga havia algum tempo, e percebeu naquele momento que sentia muita saudade do humor malicioso da Dama de Azul e do seu bom senso. A Arquimaga do Mar não era mística. Ela adorava boa comida e roupas bonitas (e provocava Haramis pelo seu desinteresse pelas duas coisas), e tinha sido a única a verdadeiramente simpatizar com o amor condenado da sua colega mais jovem por Orogastus.
Haramis pensou que Iriane também ia entender por que levava o retrato dele com ela, ao passo que suas irmãs nunca entenderiam.
Graças à sua avançada idade e experiência, a Dama de Azul provavelmente saberia se existia alguma possibilidade de os Desaparecidos retornarem — como o jovem Homem da Estrela disse para os skriteks — e o que o chamado Trílio Celeste pressagiava. Iriane podia até ser capaz de obter o conselho do misterioso Arquimago do Firmamento a respeito do renascimento da Guilda da Estrela. O enigmático Homem Negro da Lua só havia dado assistência, e de má vontade, durante a última guerra, e ele havia ignorado todas as tentativas de Haramis de se comunicar com ele desde então.
A viagem subterrânea pela ilha Oca parecia levar horas, de caverna em caverna, cada vez mais fundo nas regiões de escuridão gélida. Finalmente, depois de atravessar um túnel apertado e cheio de estalactites, os lercomis levaram a Arquimaga para uma câmara bem diferente das outras. Era cheia de névoa gelada, com um rico brilho azulado, rodopiando e se avolumando como cortinas fantasmagóricas e escondendo os detalhes do interior da caverna.
— Lá — disse o aborígine, apontando para a fonte indistinta de iluminação. — A Dama está lá.
— Iriane? — chamou Haramis meio hesitante.
Ela foi andando na direção da luz enevoada, pisando com cuidado no chão de pedra congelada. A névoa se desfez rapidamente e ela teve uma visão que a fez parar de repente, dando um grito de susto.
Filas e mais filas de lercomis parados, em silêncio, cabeças abaixadas, diante do que Haramis primeiro pensou que era uma safira brilhante colossal. O objeto tinha o dobro da sua altura e era escuro no centro. Chegando mais perto ela descobriu que tinha se enganado de pensar que era uma pedra preciosa.
Dentro da transparência azul estava a forma avantajada de uma mulher, de pé. Estava usando uma veste azul-índigo coberta de jóias minúsculas que formavam graciosos desenhos de criaturas marinhas. Uma capa transparente azul-escura caía de dois broches de pérolas presos no ombro dela. O cabelo preto estava elaboradamente penteado em cachos, preso com pentes enfeitados de conchas e grampos com pérolas nas pontas.
Os braços gorduchos da Arquimaga do Mar estavam estendidos num apelo imóvel e fútil. A boca aberta parecia ter sido congelada enquanto ela falava, e seus olhos tinham um brilho de terror.
— Ó Deus Trino, não — sussurrou Haramis.
— Sim. Ah, sim! — Os lercomis lamentaram sua resposta de corações partidos.
Haramis correu para o que pensava ser um recipiente de vidro que prendia sua amiga. Quando tocou nele ela descobriu a verdade.
Os olhos da Dama de Azul se mexeram um pouquinho.
Ela estava enterrada num enorme pedaço de gelo azul. E estava viva.
— Quem fez isso? — perguntou Haramis, depois de algum tempo tentando, em vão, libertar Iriane.
— Quatro humanos — declarou o Primeiro dos lercomis — chegaram num pequeno veleiro à nossa aldeia na ilha do Poente, que fica a meio dia daqui pela água. Três eram homens e um era uma mulher, e eles exigiram que chamássemos a Dama de Azul.
— Quando foi que isso aconteceu?
— Há quase doze luas. Ficamos muito espantados, pois as únicas pessoas da sua espécie que vemos são os Bárbaros Emplumados, e eles vêm muito raramente para comprar concha de fogo, ouro e escamas preciosas de peixe, e nunca durante a época das tempestades.
”Essas pessoas humanas tinham um comportamento muito arrogante e foram terrivelmente grosseiras. Cada uma usava uma Estrela pendurada numa corrente. Quando perguntamos por que queriam uma audiência com a Dama eles não responderam e em vez disso mataram alguns idosos do nosso povo com uma magia impressionante. Repetiram sua exigência, ameaçando destruir nossos filhos e depois todos da nossa tribo se não fizéssemos rapidamente o que eles queriam. Não tivemos escolha senão ceder. Não tivemos escolha! Está entendendo, Dama de Branco?”
Haramis não disse nada. O aborígine da Tribo Simples continuou:
— Nós explicamos que o portal mágico da nossa Dama de Azul é aqui, na ilha Voadora. Os estrangeiros obrigaram nós três a trazê-los até esta caverna. E então, um fez a Invocação pérfida. Como Primeiro dos lercomis, era meu melancólico dever. Mas se eu soubesse o que ia acontecer, teria implorado para aqueles selvagens nos matar a todos.
Ele começou a chorar e o Segundo e o Terceiro também, e no minuto seguinte todo aquele povo pequeno na caverna azul enevoada estava gemendo e soluçando de dor, batendo com suas cabeças cristadas no chão. Haramis acalmou-os e ordenou que contassem o resto da história.
— Assim que a Arquimaga do Mar saiu da sua porta encantada (que ainda estava atrás dela) — disse Ansebado —, o terrível feitiço foi executado. A fêmea estrangeira, com cabelo cor de fogo, usou um artefato mágico para cobrir a pobre Dama com um líquido astral gelado. Ela congelou no mesmo instante. A mulher borrifou mais líquido e formou o bloco de gelo azul que estamos vendo. Nenhum fogo é capaz de derretê-lo. Nenhuma prece é capaz de bani-lo. Nem mesmo a sua magia consegue derrotá-lo! O nome do Povo Simples lercomi ficará sujo em todo o Reino do Mar para sempre, pois nós condenamos a nossa querida Dama de Azul à morte em vida.
— Talvez não — disse Haramis com firmeza, erguendo seu talismã para impedir outro burburinho de lamentações. — Esse gelo não é magia verdadeira, mas alguma outra coisa que pertence aos Desaparecidos e à ciência deles. Não posso libertar a Dama de Azul agora, mas talvez possa descobrir um jeito.
Ansebado e seu povo encostaram a testa no chão para agradecer a Haramis, mas ela ordenou que levantassem, se aprumassem e rexpondessem a mais perguntas.
Haramis ficou sabendo que os vilões humanos estavam todos paramentados com as vestes prateadas e pretas da Guilda da Estrela. Nenhum tinha mais de trinta anos de idade, eram de estaturas diferentes, e todos, a não ser a mulher ruiva, tinham cabelo grisalho ou branco sujo. Cada membro da Guilda da Estrela carregava uma arma antiga diferente. Uma matava fazendo o sangue ferver, outra lançava um pequeno raio mortal, a terceira provocava convulsões fatais, e a quarta, bem maior do que as outras e de aparência mais complexa, tinha aprisionado a Dama de Azul.
Os malfeitores ficaram conosco vários dias — disse Ansebado —, fazendo perguntas sobre as regiões submarinas por aqui onde um dia os Desaparecidos viveram. Então chegou outro veleiro, com mais dois Homens da Estrela. Um deles era jovem, sem nada especial, a não ser seu discurso arrogante e belicoso. Mas o outro humano era diferente de todo o resto. Era muito mais velho e usava um chapéu de couro prateado com uma estrela cheia de pontas que escondia a parte de cima do rosto e deixava a parte de trás da cabeça descoberta. O cabelo comprido era branco como a platina da sua Estrela.
Haramis deu um gemido. Parecia que o gelo tinha congelado suas entranhas. Não podia ser. Não podia...
— Ele era... ele era alto? — perguntou ela.
— Mais alto que os outros, que o reverenciavam e o chamavam de Mestre. Ele entrou nesta caverna, passou pelo portal da Dama de Azul e desapareceu. Os outros ficaram algumas horas esperando e, então, ele voltou. Em seguida, o bando todo embarcou nos veleiros e foi embora.
— O, Senhores do Ar — sussurrou Haramis.
Com os dedos enluvados enrijecidos e sem jeito ela tirou o pequeno retrato com moldura de ouro da sua túnica e quase não conseguiu fazer aquela última pergunta.
— E o Mestre da Estrela era esse?
O pequeno aborígine franziu a testa olhando para o retrato, depois respondeu.
O rosto dele estava parcialmente coberto pelo aparato com a estrela que usava na cabeça. Mas era sim. Era ele. Os olhos eram assim. Olhos como os seus, Dama de Branco.
A dor que nascia no coração se espalhava como metal derretido por todo o corpo da Arquimaga da Terra. Era um sofrimento jubiloso, misturado com puro medo. Ela falou com a voz trêmula por causa da emoção.
— Desde a prisão da Dama de Azul alguém da tribo lercomi visitou as ruínas submarinas dos Desaparecidos por ordem do Homem da Estrela?
— Não — disse Ansebado —, mas ouvimos dizer que outras tribos simples foram obrigadas a fazer isso. Eles reuniram certos artefatos antigos cobiçados pelos Homens da Estrela, mas nenhum deles sabe o que são essas coisas, e nem nós.
Mas Haramis sabia.
— Voltarei a procurá-los, Ansebado. Ordene ao seu povo para guardar a Dama de Azul na sua prisão até eu voltar. Se alguma pessoa sair pelo portal mágico, comunique-se comigo imediatamente, mesmo se precisarem perder suas vidas para isso. E adeus.
Ela segurou seu talismã e comandou sua mágica para levá-la até Kadiya.
A rainha Anigel olhou para o prato de comida à sua frente, um simples filé de peixe garsu grelhado e uma porção de galantine de tubérculo dorun, e largou o garfo e a faca.
Confesso que o relato terrível de Hara sobre a Dama de Azul me fez perder o apetite. É de partir a própria alma saber que não há nada que possamos fazer para libertá-la daquele encantamento infernal.
— Se Iriane está congelada — disse Kadiya sendo lógica — não pode estar sofrendo. Que benefício você vai trazer para ela sofrendo e morrendo de fome?
— Você é muito prática — disse Anigel com um suspiro. — Mas com um coração duro.
— Bobagem — disse a Dama dos Olhos, pegando uma boa porção de salada de agrião e derramando um molho rico de queijo por cima. — Devemos simpatizar com os problemas dos outros, mas não ao ponto de prejudicar nossa saúde, especialmente se temos deveres de estado a cumprir. Você não concorda, Hara?
A Arquimaga inclinou a cabeça.
— Meu talismã se recusa a confirmar as minhas suspeitas, mas acredito que a prisão de Iriane pode ser apenas o começo de uma nova era de perigo para todos nós. O retorno da Guilda da Estrela e a possibilidade de Orogastus estar reunindo as armas dos Desaparecidos representam um sério perigo para a paz e o equilíbrio do mundo. Pode ser que mais uma vez nós três tenhamos de trabalhar juntas e, se isso acontecer, vamos precisar de toda a força física e mental de que podemos dispor. E você, querida irmãzinha, também tem obrigações pessoais importantes.
A rainha Anigel recebeu essa reprimenda com um silêncio gélido. Mas, apesar de certa relutância, começou a comer.
As três irmãs estavam jantando na Cidadela de Ruwenda, senmesa real, a rainha presidindo, enquanto outros membros da corte jantavam em mesas mais baixas no grande salão iluminado por tochas. Faltavam muitas pessoas, inclusive o rei Antar e seus consultores militares — e notava-se a ausência da habitual sociabilidade e alegria desses jantares. Menos de uma hora antes, a mágica de Haramis havia transportado Kadiya e ela para a Cidadela, onde reportaram para a corte laboruwendiana não só a infelicidade da Arquimaga do Mar, mas também a aparente ressurgência da Guilda da Estrela sob a liderança de Orogastus.
Essa última notícia causou furor, uma vez que só faltava um dia para a partida da comitiva real para a longa viagem para Labornok. O rei Antar, o lorde marechal Lakanilo e o general Gorkain tinham se ausentado para apressar os planos de aumentar a segurança da caravana, deixando a rainha e as duas irmãs especulando o que podiam indicar aqueles acontecimentos terríveis.
— No momento atual — disse a Arquimaga —, apenas os Senhores do Ar sabem quais podem ser os planos de Orogastus a longo prazo. Mas podemos ter certeza de que eles envolvem a conquista do mundo, tanto por meios físicos como por magia negra.
Anigel pôs mais mel cristalizado na sua xícara de chá de darei e mexeu bem devagar.
— Acho difícil acreditar que mais uma vez aquele homem perverso ludibriou a morte. Quem ia imaginar que uma coisa dessas seria possível? Hara, como é que o seu talismã pôde enganá-la assim sobre o destino dele?
Foi Kadiya quem deu a resposta desagradável.
— O talismã disse a verdade, só que a Arquimaga interpretou mal suas palavras.
Haramis admitiu as acusações com um movimento de cabeça pesaroso. Ela pegou o retrato de Orogastus e pôs em cima da mesa para as irmãs verem.
— Quando pedi uma visão do rosto morto dele, o talismã não pôde mostrar. Só quando ordenei outra coisa, evitando a menção da morte, foi que ele mostrou o rosto para eu poder fazer este retrato.
Furiosa, a Dama dos Olhos gritou:
— Aquele maldito feiticeiro! Pelo que sabemos, ele já encontrou a caixa-estrela e já associou o Monstro de Três Cabeças da Ani a si mesmo!
— Não — disse Haramis com convicção. — O meu talismã indica que ele ainda não fez isso. Alguma outra pessoa está com a tiara e com a caixa... mas o Círculo não quer me dizer quem é.
Kadiya pegou sua faca e com precisão cortou uma coxa do suculento togar assado na travessa à sua frente.
— Vocês podem apostar um poço cheio de platina que Orogastus encontrará esse esquivo mágico novato para tentar fazer uma aliança com ele.
— Você provavelmente está certa, Kadi — disse Anigel. — E esse é mais um motivo para você dar ouvidos ao conselho de Hara, e dar o seu talismã impotente para ela guardar, para que nenhum vilão ponha as mãos nele.
— Nunca! — disse Kadiya com a boca cheia de carne. — Nenn se as Três Luas despencarem do firmamento!
— Ó, Kadi — reclamou a rainha exasperada. — É a única providência segura, e você sabe disso.
— É muito fácil para você dizer isso — resmungou a Dama dos Olhos, apontando e acusando a irmã com o osso da coxa da ave — depois de ter desistido do seu talismã para dá-lo como resgate para Orogastus...
— Para salvar a vida do rei, meu marido! — exclamou Anigel com raiva. — Você acha que eu devia ter deixado Antar morrer no cativeiro?
— Você não nos deu tempo, a Hara e a mim, para podermos resgatá-lo — retrucou Kadiya — e, sim, capitulou diante dos seqüestradores com uma pressa impensada, abrindo caminho para a invasão do seu reino.
Discretamente, para que nenhum dos outros cortesãos notasse, a rainha começou a chorar.
— Tem razão, eu errei, mas você também está errada. O seu Olho Ardente Trilobado certamente será roubado por Orogastus ou por esse feiticeiro desconhecido, mais cedo ou mais tarde. A minha tolice e o seu orgulho obstinado podem acabar arruinando todos nós.
— Tenha compaixão, Kadi — disse a Arquimaga, abraçando a irmã mais nova. — Você se esqueceu que Ani está grávida e não deve se aborrecer?
— Ela é vigorosa como uma volumnial de tração, parindo seu bezerro anual, apesar da aparência frágil — observou Kadiya com rispidez. — E que nenhuma de vocês pense que pode me convencer a desistir do meu talismã com essa chantagem piegas.
Anigel parou de chorar. Endireitou-se na cadeira, secou os olhos com um guardanapo e deu de ombros.
— Valeu a tentativa — disse ela, docemente.
— Pela Flor! — disse a Arquimaga, magoada com o fingimento engenhoso da rainha e com a intransigência de Kadiya ao mesmo tempo. — Vocês duas vão acabar me tirando do sério.
— Não, querida Hara — disse Anigel, agora muito séria. — Nós vamos é fazer o que tiver de ser feito para ajudá-la a derrotar os Homens da Estrela e recuperar o equilíbrio do mundo, não importa a que preço pessoal. — Ela virou-se para a outra irmã com um olhar contundente. — Não é mesmo, Kadiya?
— Oh... bosta de lothok! — reclamou a Dama dos Olhos, jogando a coxa no prato. — Suponho que terei de ceder. Você terá o Olho Ardente, Hara. O que importa se meu orgulho está em frangalhos e a minha segurança solapada?
— É a melhor coisa a fazer — disse a Arquimaga, com um alívio evidente.
— Posso manter o talismã até nós Três nos separarmos, pelo menos? — perguntou Kadiya.
— Certamente. Não pode haver perigo aqui dentro da Cidadela. Sei, com certeza, que não há viadutos aqui, através dos quais Orogastus ou seus agentes poderiam entrar e roubar o Olho.
— Aqueles triplamente malditos buracos mágicos! — exclamou Kadiya.
Haramis afastou os pratos e os talheres, estendeu um guardanapo limpo na mesa e encostou seu talismã nele. Elas sentiram um leve cheiro de tecido queimado e imediatamente o guardanapo se transformou num mapa espantosamente detalhado do continente-mundo.
— Os viadutos não são realmente mágicos, apesar de parecerem para nós, que conhecemos pouco a ciência por trás da sua produção. Olhem os portais dos viadutos.
Anigel exclamou surpresa, pois o mapa ficou cheio de pontos vermelhos.
— Mas são tantos!
— E agora — disse a Arquimaga —, já que Orogastus certamente roubou um certo livro que pertencia a Iriane e que explicava a operação dos viadutos, eles estão acessíveis para o feiticeiro e para a sua Guilda da Estrela.
Os vilões são capazes de aparecer em qualquer um desses pontos como ziklus de coelhos — disse Kadiya — e podem também se esconder neles, escapando de seus perseguidores. Até agora Hara não foi capaz de destruir os viadutos nem de fechá-los com a sua mágica.
Parece que os Desaparecidos usavam essas passagens para viagens casuais no mundo deles — explicou a Dama de Branco. Para as pessoas comuns, as aberturas dos viadutos são invisíveis e imperceptíveis. Mas se souberem mais ou menos onde fica o portal, basta proferir o comando oculto apropriado: ”ativar sistema do viaduto”, e assim ele se torna visível e operante. Alguns viadutos foram destruídos no grande conflito entre os Desaparecidos e a Guilda da Estrela, mas esses permanecem no mapa. Até agora eles só foram usados pelos Arquimagos antigos e pelas sindonas, quando saem do Local do Conhecimento.
— Você gostará de saber, Ani, que este viaduto — Kadiya pôs o dedo em um dos pontos — abre diretamente na Fortaleza Zotopanion no Palácio de Inverno de Labornok! Foi assim que Iriane e as sindonas tiveram acesso à fortaleza durante o clímax da Batalha de Derorguila.
— Flor Sagrada! — gritou a rainha, desanimada. — Será que não há como nos livrar desses túneis abomináveis?
— Meu talismã diz que há — respondeu Haramis. — No entanto, as instruções são dadas no jargão científico arcaico e até agora não consigo entender. Quando voltar para a minha Torre vou estudar melhor essa questão de obliterar os viadutos, mas no momento teremos de bloqueá-los com barricadas. Todos que estão em locais críticos terão de ser cercados com jaulas bem fortes ou montes de terra, e mesmo assim precisam ser muito bem guardados.
Anigel estudou o mapa com atenção.
— Não há tantos portais no Pântano Labirinto como há em outros lugares, mas aqui está um que não fica muito longe da Via pantaneira da rainha. Será que... A viagem para a Capital de Inverno será muito longa e tediosa neste início das chuvas. Se, como voce diz, há um viaduto que leva diretamente para a Fortaleza Zotopanion...
Nem pense nisso! — disse Haramis, horrorizada. — Apenas um adepto da ciência dos Desaparecidos ousa utilizar uma dessas coisas. As vezes a rota deles é fixa e ninguém pode controlar seu destino final. Outras vezes, se um tipo de encantamento complexo é recitado antes de entrar, o viaduto leva o viajante para o lugar especificado. Mas, se esse encantamento não for pronunciado corretamente, a pessoa se arrisca a ir parar na Calota de Gelo Sempiterna, ou até no fundo do mar.
Ela apontou de novo para o mapa e de fato era verdade que alguns pontos vermelhos ficavam em lugares perigosos.
— Maldição — disse a refinada rainha.
Seu cabelo louro estava preso com fitas de ouro tão maciço que eram quase marrons, e ela usava um vestido solto de cetim da mesma cor, com pele de worram nas bordas, e a gola de trílio-âmbar. A gravidez de quatro meses ainda não era visível.
— Eu ficaria feliz de poder sair daqui com a corte num viaduto até Derorguila, para não ter de fazer essa longa viagem na chuva.
— Eu posso transportar você, Antar e as crianças — ofereceu Haramis, mas com certa relutância —, só que carregar outras pessoas desgasta demais a minha magia.
Mas a rainha balançou a cabeça.
— Foi só uma brincadeira, Hara. Eu nem sonharia em pedir para você exaurir suas forças. Não, nós temos de ir para Labornok com os outros da comitiva da corte, como é adequado.
— Eu darei a cada uma de vocês uma cópia deste mapa — disse a Arquimaga. — Ani, você terá de providenciar para que soldados, de preferência com ajudantes aborígines, montem guarda naquelas aberturas de viadutos em lugares críticos dentro de Labornok e Ruwenda. Ordenarei que as tribos de Kadi vigiem os terminais nas regiões mais remotas: no Pântano Labirinto, nas montanhas Ohogan e na floresta Tessaleyo. Se os membros da Guilda da Estrela forem avistados, as tribos soarão o alarme usando a fala sem palavras.
— E os viadutos em outras nações? — a rainha quis saber.
— Já enviei um aviso — disse Haramis. — Todo país civilizado em breve estará de olho em pessoas suspeitas que usam Estrelas.
— Os bandidos não podem fazer nenhuma feitiçaria sem seus medalhões — explicou Kadiya para Anigel. — Infelizmente, isso não se aplica ao uso das armas dos Desaparecidos, que não são realmente mágicas, mas compartilham a mesma ciência antiga dos viadutos e daqueles antigos artefatos que se pode comprar de certos comerciantes.
— Como vamos nos defender dos Homens da Estrela equipados com tais armamentos terríveis? — perguntou a rainha, apreensiva.
— Ainda temos a nossa magia — disse a Arquimaga. — E se for a vontade da Trindade, também teremos logo a aliança de todas as nações sob as Três Luas, para combater as forças bem menores dos que são leais à Estrela. Depois de avisar às outras nações, também pedi que despachassem enviados especiais em navios rápidos para Derorguila. As delegações devem estar lá quando a comitiva real de Laboruwenda completar sua viagem para a planície. Teremos um conclave de defesa mútua lá na sua capital dentro de quarenta dias.
— Terei prazer em ajudá-la e ao meu marido real na conclamação das nações — disse a rainha Anigel. — Suponho que Kadiya fará esse mesmo trabalho com as tribos.
— Por enquanto não — disse a Dama dos Olhos —, pois recebi a incumbência de executar um trabalho maior. Apenas um estado rejeitou o plano de aliança de Hara: Sobrania.
A rainha fez cara de triste.
— Eu já devia saber. Os Bárbaros Emplumados têm tanto medo de complôs armados por Galanar contra eles, ou pelas repúblicas de Imlit ou Okamisi, que resistem a qualquer pacto que restrinja sua tão valorizada independência. O imperador Denombo de Sobrania é um homem honrado no entendimento dele, mas impetuoso e de visão limitada, dificilmente inclinado a se preocupar com outros países além da própria coleção de tribos rebeldes. Você vai procurá-lo, Kadi, e tentar persuadi-lo?
— Sim, que a Flor me proteja. Hara ordena e eu obedeço de boa vontade.
— Ela também terá de desempenhar outra tarefa — disse a Arquimaga com a voz mais baixa, apesar de os músicos terem começado a tocar a introdução do programa da noite, fazendo tanto barulho que ouvir a conversa dos outros se tornava impossível. — Eu já contei para vocês que observei um jovem Homem da Estrela nas montanhas acima de Zinora. Ele tinha alforjes com penas de fabricação sobraniana. Isso poderia ser um detalhe sem significado... ou então pode ser uma pista valiosa.
- Para a localização do quartel-general da Guilda da Estrela!
Os olhos da rainha Anigel, azuis como o céu da Época de Estiagem, brilharam de animação. — Você tem alguma outra indicação que aponte para Sobrania?
— Nenhuma ainda — admitiu Haramis —, pois meu talismã não tem poder para visualizar membros da Guilda com controle absoluto da mágica da Estrela. Foi apenas sorte, ou generosidade dos Senhores do Ar, eu ter podido detectar e me transportar mentalmente para aquele Homem da Estrela que incitou os skriteks: Ele era um novato, não totalmente apto para comandar a proteção da Estrela, talvez desempenhando uma missão de menor importância enquanto seus companheiros tratavam de conspirações mais sérias. Elas pararam de conversar um pouco enquanto os pajens tiravam da mesa os pratos de comida, traziam tortas e frutas frescas, e enchiam os cálices de vinho. Então ouviu-se uma fanfarra de clarins. Uma trupe de acrobatas tuzamenis entrou no salão sob muitos aplausos. „
— Mas como é que Kadiya pode espionar os Homens da Estrela em Sobrania — perguntou a rainha para Haramis sob a cobertura do burburinho que recomeçava —, se até a sua grande magia é impotente para fazer isso?
— Olhos — disse Kadiya lacônica. — Não os Olhos Ardentes Trilobados, mas os dois que Deus pôs na minha cabeça. Onde quer que os Homens da Estrela se escondam, e pode muito bem ser num lugar atrasado como a Terra dos Bárbaros Emplumados, os salafrários precisam comer e dormir. E a menos que eles sobrevivam horrivelmente como nómades nas regiões desertas, vão necessitar de uma moradia permanente relativamente grande, alimento para comer, roupas limpas para vestir, animais para cavalgar quando não estiverem se transportando para lá e para cá através dos viadutos mágicos, e uma equipe de servos para manter tudo isso em ordem. E eles também não podem ficar invisíveis o tempo todo, pois isso requer um esforço muito grande. Se estiverem se escondendo em Sobrania, eu vou encontrá-los. Se não, procurarei em outro lugar conforme as instruções de Hara.
— Os Homens da Estrela vão saber que você está à procura deles — disse Anigel sem rodeios. — Eles podem visualizá-la através da magia e perseguir você.
— Você já se esqueceu — disse Kadiya, fingindo que observava os artistas com um sorriso tranqüilo — de que nós três, quando jovens princesas, fugimos apavoradas de Orogastus, das Vozes dele, e do maligno rei Voltrik? Nenhum daqueles vilões conseguia nos encontrar com mágica, porque na época estávamos protegidas... como estamos protegidas agora.
Ela tirou da camisa que usava por baixo do casaco de caçador um pingente de âmbar com um brilho fraco e um Trílio Negro fossilizado dentro, balançando numa corrente de ouro.
— Apenas os três talismãs do Cetro do Poder eram capazes de dar uma contra-ordem à mágica da Flor.
— Ah — respirou a rainha, sorrindo aliviada. — É claro. Acho que não dei o valor que essa magia merece.
Ela pôs a mão no peito, onde escondia o seu amuleto. Haramis sorriu. Seu trílio-âmbar ficava abrigado sob as asas prateadas do Círculo pendurado no seu pescoço.
— Kadi terá a proteção da mágica contra aqueles que podem prejudicá-la observando seus atos. O âmbar possui outros poderes, mas esse é talvez o mais valioso.
— Os Homens da Estrela ou seus seguidores ainda podem me reconhecer quando eu estiver entre eles — admitiu Kadiya —, assim como posso reconhecê-los através das suas Estrelas. Mas vou me disfarçar e disfarçar também o grupo que viaja comigo. Se eu puder fazer o âmbar obedecer, talvez até seja capaz de ficar invisível!
— Se você levar alguém das suas Tribos Simples com você para Sobrania, será muito conspícua — avisou Anigel. — Dizem que os aborígines daquela região distante têm uma aparência bem diferente dos aborígines da Península.
— Eu preciso levar Jagun, pois os conselhos dele são necessários, e sua habilidade de falar sem palavras cobrindo longas distâncias também, porque assim mantenho contato com Haramis. Meus outros companheiros nessa missão serão humanos... Ani, gostaria que você escolhesse seis dos seus Companheiros Juramentados mais valentes para me acompanhar como voluntários. Os wyvilos nos transportarão pelo grande Mutar até Var e o mar. Tenho amigos na capital varoniana que nos darão um navio e todas as outras coisas necessárias para a missão em Sobrania.
Os acrobatas deram um salto espetacular, e a rainha bateu Palmas como era de se esperar.
— Parece que você já pensou em tudo. É claro que encontrarei seis bravos cavaleiros para você. Mais até, se você quiser.
— Eu prefiro viajar mais leve e mais rápido. Bastam seis.
— Mesmo assim, essa empreitada será muito perigosa — observou Haramis. — E como você mesma disse, se Orogastus mais uma vez obtiver um talismã que funciona, nem mesmo o trílioâmbar poderá impedi-lo de ver e ouvir todas nós. Com um talismã ele pode localizá-la facilmente, Kadi. Eu não sei se ele pode matála enquanto você estiver usando o âmbar, mas você não seria de nenhuma valia para a sua causa mergulhada num bloco de gelo azul como a pobre Iriane.
Kadiya deu um sorriso largo para a Arquimaga.
— É sua função cuidar para que isso não aconteça. Fique me vigiando da melhor forma que puder e avise de qualquer perigo se for possível. Encontrarei o ninho dos Homens da Estrela e farei com que apareçam como pássaros noturnos de uma árvore de mel.
— Você só vai agir de acordo com o nosso plano! — repreendeu a Arquimaga. — Não deve atacar Orogastus ou a Guilda da Estrela sozinha!
Kadiya imitou uma mesura debochada.
— É claro que não, Dama de Branco.
— Perdoe a minha rispidez — disse Haramis. — Mas pelo amor de Deus, Kadi... prometa que não vai se precipitar.
— Você tem de tomar muito cuidado — acrescentou Anigel. — Eu me sinto culpada... a minha tarefa é muito mais fácil e segura do que a de vocês. Querida Kadi, eu iria com você, junto com todos os meus cavaleiros da Companhia Juramentada, se estivesse grávida de um único bebê e não de trigêmeos.
— Trigêmeos! — Kadiya e a Arquimaga ficaram surpresas.
— Só recentemente Immu teve certeza disso — disse a rainha, referindo-se à pequena nyssomu idosa que tinha sido parteira da pobre mãe delas, a rainha Kalanthe, e mais tarde enfermeira e grande amiga das irmãs.
— Será que essa gravidez é mais um presságio? — pensou Haramis. — Será que essas também serão crianças com um destino elevado e terrível, como nós Três?
Anigel pôs a mão sobre a da Arquimaga para tranqüilizá-la.
— O mais provável é que seja uma coisa inteiramente natural. De qualquer forma, Immu diz que todos os meus bebês são meninos, por isso as Pétalas do Trílio Vivo não precisam temer usurpadoras.
- Idiota! — riu Kadiya, virando o corpo para abraçar e beijar Anigel. — Que a Flor abençoe você e seus filhos. Antar deve estar muito orgulhoso.
Está sim — disse a rainha —, e meus dois filhos mais velhos também estão. Só Tolivar parece desanimado com a idéia. Doze anos é uma idade muito difícil, quando o menino está chegando à puberdade e em conflito com as emoções familiares. O pobre Tolo sempre foi perseguido pela insegurança e pelo ciúme do irmão e da irmã mais velhos, e agora parece que ele se ressente com o nascimento dos bebês. Mas quando os vir tenho certeza de que vai amá-los muito.
Haramis e Kadiya trocaram olhares por cima da cabeça da irmã. O jovem príncipe Tolivar era um menino introvertido e ciumento, que tinha sido um pestinha completo poucos anos antes. Ele se ressentia amargamente de ser subordinado ao príncipe herdeiro Nikalon que, aos quinze anos, além de mais alto e mais bonito, era também consideravelmente mais popular com os cortesãos e o povo em geral. A princesa Janeel, um ano mais jovem do que Niki e esperta como uma fedok fêmea, nunca foi capaz de resistir às oportunidades de implicar com o irmão caçula, que ela considerava um mau-caráter. Tolo, por sua vez, odiava a irmã de todo o coração.
Com o passar dos anos, Kadiya tinha se esforçado para ser gentil com o infeliz príncipe caçula. Mas ela temia que ele pudesse achar que sentia pena dele. Tolivar parecia não ter nenhuma afeição verdadeira por suas ilustres tias e fora apenas educado quando as cumprimentou aquela noite antes do jantar.
Kadiya estava observando o rapaz, sentado com os outros jovens reais e nobres em uma das mesas próximas das irmãs trigêmeas. O príncipe herdeiro Nikalon e a princesa Janeel estavam rindo e jogando moedas com os outros enquanto os acrobatas se retiravam, mas Tolivar estava parado, com os cotovelos apoiados na mesa, com uma expressão inescrutável.
O nome do pântano do menino era Coração Misterioso. E Kadiya achava que combinava demais com ele.
Tolo precisa ter algo de útil para fazer — disse ela. —
ANi, você nunca pensou em libertá-lo dos laços do seu avental? Por que não deixa Tolo passar algum tempo longe da corte, para não ficar o tempo todo se comparando com o Niki e se sentindo humilhado pela Jan?
— Ele sempre foi o meu bebê — confessou Anigel —, e desde que ele foi devolvido quatro anos atrás eu o mantive ao meu lado, esperando que o meu amor bastasse para alimentar sua frágil auto-estima. Mas talvez você tenha razão. Os bebês que vão nascer tomarão toda a minha atenção por algum tempo e Tolo pode sentir-se pior ainda.
— Deixe o rapaz vir comigo — disse Kadiya impulsivamente. — Talvez não até Sobrania, mas pelo menos durante a primeira parte da minha missão. Jagun e eu vamos mantê-lo tão ocupado que ele não terá tempo para ficar emburrado ou para sentir pena de si mesmo.
— Ele é muito jovem — disse Anigel, parecendo indecisa — e não tem força física.
Kadiya adotou uma expressão irônica.
— Ele sobreviveu quando foi seqüestrado pelos piratas e quando foi prisioneiro de Orogastus. Apesar de realmente não ter uma boa estatura, é suficientemente robusto. Não seja superprotetora com o menino, Ani. Não devemos negar aos filhos o direito de se deparar com grandes obstáculos e superá-los. Isso pode transformar até mesmo uma alma tímida ou petulante em herói.
— Como eu sei muito bem — admitiu a rainha, sorrindo. — O que você acha, Hara?
— A idéia tem seus méritos — disse a Arquimaga —, desde que o rapaz seja cuidadosamente supervisionado. O cavalariço aposentado Ralabun não é muito amigo dele? Ele é uma pessoa responsável, mesmo que não tenha uma inteligência extraordinária. Talvez possa acompanhar Tolo.
— Vamos deixar o menino resolver isso — sugeriu Kadiya. — Não vou levá-lo se ele não quiser ir.
— Então está bem — concordou a rainha Anigel, meio relutante. — Mas, se ele aceitar, você tem de prometer mandá-lo para casa antes de se aventurar fora da Península.
— Ralabun e ele podem pegar um navio veloz egípcio para Labornok no porto de Mutavari — disse Kadiya —, e com bons ventos estarão em Derorguila pouco depois da chegada da comitiva real. O que acha de conversar com o menino agora mesmo?
— Tudo bem. — A rainha chamou um pajem e disse para ele dizer para o príncipe Tolivar ir até a mesa mais alta.
Tolo apertou os lábios quando recebeu o recado.
— Em que encrenca você se meteu agora? — perguntou a princesa Janeel. — Encheu carroças demais com as caixas dos seus preciosos livros?
— Pode ser — sugeriu o príncipe herdeiro Nikalon — que ele tenha resolvido levar tantos que nem sobrou espaço para suas botas ou cuecas.
Isso fez com que a mesa inteira de jovens caísse na risada. Tolo enrubesceu e abaixou a cabeça para esconder sua raiva, enquanto acompanhava o pajem até a mesa alta, onde fez uma mesura demorada.
— Em que posso servi-la, grande rainha e mãe? — perguntou. As feições dele não tinham mais expressão alguma. Era um
rapaz magro, de cabelo louro e pele muito clara, como se passasse tempo demais trancado dentro de casa.
— A sua tia Kadiya tem uma proposta para você — disse Anigel.
A Dama dos Olhos explicou com alguns detalhes seu plano, sem minimizar as dificuldades da expedição, pois eles teriam de viajar rio abaixo com o grande Mutar em plena enchente, e o mar na viagem de volta para casa saindo de Var sem dúvida seria açoitado por tempestades.
Para surpresa de Anigel, a apatia do príncipe Tolivar se desfez como a casca de um besouro-nas. Os olhos dele brilharam de animação e ele exclamou:
— Oh, sim, tia Kadi! Leve Ralabun e a mim com você! Prometo obedecer-lhe em tudo e nunca reclamar ou deixar de cumprir meus deveres, nem aborrecê-la.
— Então está resolvido — disse a Dama dos Olhos, dando um tapinha no ombro do menino.
— Só quero que me deixe ajudá-la em sua missão contra os Homens da Estrela — disse Tolivar com firmeza.
As três mulheres riram.
— Você é corajoso, mas ainda muito jovem — disse a Arquimaga.
— O mundo tem de ser salvo de Orogastus — disse o rapaz em voz baixa. — Conheci pessoalmente a maldade dele e seus métodos traiçoeiros. Se necessário, daria minha vida para destruí-lo.
— Basta servir lealmente à sua tia — disse a rainha. — Deixe os assuntos mais graves para os mais velhos e mais sábios.
— Sim, mãe. — O comportamento do príncipe não podia ser mais respeitoso e dócil.
Ele fez uma mesura e pediu licença para sair do grande salão, dizendo que estava ansioso para contar a grande notícia para Ralabun.
— Pobre Tolo. — O olhar preocupado de Anigel seguiu o filho. — Ele foi afetado muito profundamente pelo tempo que passou prisioneiro de Orogastus. Ainda se sente culpado por ter acreditado nas mentiras do feiticeiro sobre tornar-se herdeiro dele e aprendiz de feitiçaria.
— Ele era imaturo demais na época para entender a enormidade de seus atos — disse a Arquimaga com bondade.
Mas a rainha balançou a cabeça.
— Ele tinha oito anos de idade e já era capaz de saber o que é o mal. Inúmeras vezes pediu para Antar e para mim que o perdoasse por ter nos repudiado, e tentamos de todo o coração tranqüilizá-lo. Mas sua sensação de culpa não diminuiu. Kadi... seja boa com ele. Procure acalmar seu espírito perturbado.
— Farei o que puder — disse a Dama dos Olhos —, mas suspeito que a cura de Tolo só acontecerá com o tempo. E com alguma reparação que ele mesmo tenha de executar.
— Esses tempos são perigosos — disse Haramis suspirando. — Haverá perigos, desafios e oportunidades de heroísmo suficientes para todos nós, até para o jovem príncipe. Rezem para estarmos à altura deles, Irmãs. Rezem de todo o coração e alma, pois não consigo evitar de sentir que algum desastre novo vai nos atingir em breve.
Bem depois da meia-noite ele ousou destrancar seu cofre de ferro, que não havia deixado os servos levarem até o momento da partida da caravana. Ele tirou o pequeno saco de tecido, desembrulhou o Monstro de Três Cabeças e segurou-o com as mãos trêmulas. A tiara de prata brilhou à luz da vela na mesa-de-cabeceira, e as sombras faziam as feições horríveis ali esculpidas parecerem quase vivas.
Será que ele tinha coragem? E se tivesse, haveria alguma chance de sucesso?
A grande oportunidade inesperada surgira quase como um milagre, mas não ia durar muito. Ele pôs a tiara na cabeça, respirou fundo e procurou falar sem gaguejar.
— Monstro de Três Cabeças — sussurrou —, você me pertence! Responda com sinceridade: se eu obtiver o Olho Ardente Tri-lobado que está morto da minha tia Kadiya e colocá-lo na caixa-estrela, ele se unirá a mim?
Por um momento nada aconteceu. Então uma voz misteriosa dentro da cabeça dele respondeu.
Sim. Se você apertar as pedras coloridas dentro da caixa em ordem consecutiva, o Olho será fiel apenas a você, destruindo qualquer outra pessoa que toque nele sem a sua permissão.
— O Olho vai obedecer às minhas ordens?
Vai, se as ordens forem dadas corretamente.
Tolivar quase deu um grito de prazer.
— Você pode... pode me tornar invisível para eu poder entrar no quarto da minha tia sem que ela me veja?
Essa pergunta é impertinente.
O príncipe quase chorou de frustração. De novo não! Agora não!
— Torne-me invisível! É uma ordem! O pedido não é válido.
O talismã obedecia a suas ordens às vezes, especialmente quando ele fazia perguntas simples, ou pedia que lhe desse a Visão de alguma pessoa ou lugar bem distante, mas em geral ele dizia aquela frase de recusa que era muito irritante. As experiências dele com feitiçaria que aconteciam na cabana ou no pântano, ou no seu outro esconderijo nas ruínas de Derorguila, sempre foram tímidas e hesitantes, e poucas vezes bem-sucedidas. Tolivar tinha bons Motivos para ter medo daquele talismã. Às vezes, por razões desconhecidas, o poder se voltava contra aquele que o invocava. Isso tinha acontecido com Orogastus, enquanto Tolivar era refém dele. O feiticeiro não ficou seriamente ferido.
Mas mesmo apesar de haver perigo, Tolivar não podia deixar aquela ótima oportunidade passar.
— Não vou dar lugar à covardia — disse o príncipe para si mesmo. — Afinal, o Monstro já me fez invisível uma vez, logo que me apoderei dele.
Ele fechou os olhos bem apertados, respirou devagar até se sentir mais calmo e então falou de novo com o talismã, dessa vez escolhendo as palavras com muito cuidado.
— Dê-me instruções para ficar invisível.
Visualize o fato que quer que aconteça e então ordene.
Seria assim tão simples? Então o funcionamento do talismã dependia dos pensamentos dele, e não das palavras proferidas? Seria esse o grande segredo da feitiçaria bem-sucedida? Era uma idéia que o menino nunca tivera antes. Será que havia feito a visualização sem perceber daquela outra vez, quando obteve sucesso com as ordens mágicas?
Tomara! Tomara que seja isso!
De olhos fechados, Tolivar imaginou a si mesmo sentado na cama do seu quarto, usando a tiara. Mantendo a visão bem nítida, ele fez seu corpo desaparecer como fumaça. Ele não disse nada até a imagem do quarto ficar vazia.
— Talismã — disse ele —, agora torne-me invisível.
Ele esperou alguns segundos e então abriu os olhos. Lentamente ergueu a mão diante dos olhos.
Não viu nada além do quarto e da mobília.
Havia um pequeno espelho pendurado na parede perto da bacia e Tolivar correu até ele. Nenhum rosto apareceu no espelho! O talismã tinha obedecido à sua ordem.
Ele sentou num banquinho e tirou as botas (que ficaram imediatamente visíveis quando ele as largou), e correu na ponta dos pés para a porta. Lá, ele parou, pois teve uma idéia inspirada no reaparecimento das botas. Será que o Olho Ardente desapareceria quando ele o pegasse? Se não desaparecesse, e se tia Kadiya acordasse e o visse flutuando para longe dela, levado por uma força mágica, ela poderia atacar com sua adaga. Invisível ou não, se isso acontecesse ele podia acabar ferido, ou até morto.
Ele fez a experiência tirando o jarro de prata da bacia no lavatório e deu um gemido de decepção. Horror! A coisa continuou visível e parecia flutuar no ar. Mas então ele se controlou, mais uma vez fechou os olhos e imaginou que o jarro desaparecia. Sem falar em voz alta dessa vez, ele formulou um cornando mental.
Talismã, faça o jarro ficar invisível.
Ele abriu os olhos. Seus dedos ainda seguravam a alça lisa de metal e os músculos do braço sentiam o peso que sustentavam. Mas ele não via nada. Com todo o cuidado, pôs o jarro invisível de volta na bacia. Ouviu um tilintar baixinho, tirou a mão e cutucou o recipiente invisível. Estava lá mesmo.
Tolivar se surpreendeu abafando uma risada de satisfação. Ele estava pegando o jeito da coisa! Nem mesmo a fala era realmente necessária. Era o pensamento que contava na execução da mágica.
— Isso é verdade? — perguntou ao talismã.
E a voz dentro dele disse: É.
Sério outra vez, ele fez o jarro reaparecer. Então saiu pelo corredor e se dirigiu para o quarto da sua tia Kadiya.
Ela o deixara, como sempre, ao seu lado na cama, mas quando acordou na manhã seguinte, o Olho Ardente Trilobado não estava mais lá, restava apenas a bainha vazia. Jagun jurou para ela que ninguém havia entrado no quarto, pois ele dormira do lado de fora da porta. Os servos e guardas da Cidadela não haviam visto nada incomum. No entanto, o Olho Ardente fora, sem dúvida alguma, roubado.
E o que era pior, o Círculo de Três Asas de Haramis se recusava a mostrar onde estava a espada quebrada e também não dizia quem era o ladrão.
— Isso só pode significar — disse a Dama de Branco para as irmãs aflitas — que o talismã de Kadi agora está ligado a outra pessoa e recuperou seu poder. Não adianta fazer uma busca na Cidadela de Ruwenda. Ela é grande demais e tem incontáveis esconderijos potenciais. Além do mais, o ladrão sem dúvida já deve estar longe com a sua pilhagem. Uma busca, além de infrutífera, também serviria para alardear o fato do furto do segundo talismã, deixando o povo desolado. Só nós Três e Jagun devemos saber disso.
— Agora estamos certamente perdidos — disse a rainha, com a voz pesada de desespero. — Todo esse tempo, um dos meus próprios cortesãos esteve de posse da caixa-estrela e da minha tiara furtada! E agora ele possui o Olho Ardente também. O maldito provavelmente já está a caminho para o seu encontro com Orogastus! A situação é irremediável.
— Não diga bobagem, Ani — reclamou Kadiya. — Vamos seguir em frente... como fizemos uma vez quando o próprio feiticeiro possuía dois talismãs. Ora, aquele sim, foi um momento realmente sem esperanças... e no entanto nós vencemos. Se a Trindade quiser, faremos a mesma coisa desta vez.
No dia seguinte, as três irmãs se despediram e saíram da Cidadela de Ruwenda.
A Arquimaga Haramis usou sua magia para se transportar instantaneamente para a sua Torre no monte Brom. Lá ela começou a preparar propostas para a conferência de defesa em Derorguila e a dar instruções para as tribos que iam ficar encarregadas de bloquear os viadutos. Depois disso, ela pretendia dar uma busca em seus arquivos e nos da Dama de Azul, com a esperança de descobrir uma maneira de controlar os portais invisíveis, ou de destruí-los. Não estava muito otimista quanto a um sucesso rápido.
Kadiya, o príncipe Tolivar, Ralabun, Jagun e seis dos valorosos Companheiros Juramentados da rainha partiram na primeira parte da viagem para a distante Sobrania. O príncipe pôde levar uma caixa de ferro trancada de tamanho modesto, que ele disse conter alguns dos seus livros mais valiosos.
Embarcações leves, puxadas por rimoriks, os levariam através do lago Wum. Depois de passar das cataratas Tass, eles desceriam o grande Mutar, atravessando a vasta floresta Tessaleyo até a cidade wyvilo de Let, onde embarcariam num navio comercial aborígine com destino ao reino de Var e ao mar Meridional.
A caravana com a rainha Anigel, o rei Antar e toda a corte iniciou a longa jornada rumo ao norte para Labornok, que devia levar no mínimo trinta dias. A Época das Chuvas agora havia começado de verdade, e uma chuva incessante caía sobre a longa fila de carruagens, carroças, cavaleiros e viajantes que iam a pé, como uma catarata do céu.
Apesar do tempo inclemente, o progresso da lenta comitiva real pelo pântano era observado por muitos olhos furtivos.
Quando os viajantes da corte já estavam a dez dias de distância da Cidadela, Anigel se entediava na sua grande e pesada carruagem com Immu e as quatro damas de companhia. A nova Via Pantaneira da rainha, aberta apenas no ano anterior, estava correspondendo à sua reputação de grande maravilha do mundo. Era uma estrada firme como qualquer outra em terra seca, até sob as chuvas excepcionalmente intensas que açoitavam a viagem aquele ano, e Anigel não via motivo para não poder ir a cavalo percorrendo a procissão, conversando e admirando a vista, como o rei, os príncipes e os homens da nobreza faziam.
As mulheres ficaram chocadas com a ousadia dela e tentaram dissuadi-la, mas a rainha desprezou as objeções. Afinal de contas, a estrada no pântano era dela. Por quase seis anos supervisionara a construção, arrumando fundos de um orçamento precário, enfrentando bandoleiros glismaks e outros problemas com aborígines, insuflando a confiança dos engenheiros que insistiam que certas partes da estrada nunca poderiam ser construídas.
Anigel abaixou a janela da carruagem e chamou um pajem que cavalgava ao lado.
— Chame o Mestre Real dos Froniais — ela sorriu com o ar perturbado das nobres damas em torno dela. — Eu me recuso a viajar trancada numa carruagem abafada como uma inválida simplesmente porque estou grávida. Cavalgar nessa chuva honesta de Ruwenda não vai prejudicar meus bebês.
— Mas rainhas grávidas não fazem esse tipo de coisa! — exclamou lady Belineel.
Ela pertencia a uma antiga família labornok, e estava sempre disposta a manifestar sua desaprovação a respeito dos costumes mais liberais dos ruwendianos.
Surpreendentemente a velha enfermeira nyssomu Immu saiu em defesa de Belineel.
- A sua estrada pantaneira não é a avenida Derorguila, minha rainha. Ela corta as terras mais perigosas da Península, especialmente nessa parte, e há um cheiro de ninhos de skriteks no ar. Peço que fique na carruagem.
Bobagem — disse Anigel. — Só sinto cheiro de esterco, de folhas molhadas e do rastro de tereniais inofensivos... e do perfume doce demais de alguém, que está me dando dor de cabeça.
Ela gritou pela janela da carruagem para o par de homens de meia-idade que mandara chamar:
— Lorde Karagil, faça o favor de me trazer uma montaria agora mesmo, e peça aos meus Companheiros Juramentados para me acompanhar. Vou cavalgar o resto do dia.
— Isso é muito imprudente — disse Immu mal-humorada. — Não se deve correr riscos quando há filhotes de skritek por perto.
O Mestre dos Froniais também ficou preocupado com a decisão de Anigel.
— A enfermeira oddling tem razão sobre os skriteks, minha rainha, pois nossos batedores encontraram pistas recentes. É incomum esses filhotes horrendos dos Afogados aparecerem assim tão distante a leste, mas...
— Obedeça-me — disse a rainha, com a voz baixa e agradável, mas com uma determinação inabalável. — Se meus Companheiros Juramentados não puderem me proteger das ninhadas de skritek, então devem entregar suas espadas e tratar de aprender a bordar. Primeiro irei ter com meu marido real, que está no grupo da dianteira.
— Teimosa, teimosa, teimosa! — disse Immu para Anigel, usando a intimidade familiar dos servidores veneráveis. — É indecente uma mulher real grávida sair galopando no meio de soldados montados e carroceiros... mesmo se não houver perigo de encontrar algum skritek.
— Mesmo assim — disse Anigel, alegremente —, eu vou. Immu olhou para as mulheres nobres.
— Alguma de vocês não quer cavalgar com a rainha?
Mas as senhoras só deram desculpas e continuaram a protestar. Finalmente Immu, sem saída, disse:
- Então eu mesma vou!
Anigel olhou para a enfermeira nyssomu com certa desconfiança.
— Você certamente pode montar na minha garupa, se insiste, querida amiga, mas devo dizer que será desconfortável demais para uma pessoa pequena como você ficar sacudindo atrás de mim.
Lorde Karagil se entusiasmou de repente.
— Tive uma idéia que pode resolver todos os problemas —. declarou, e se afastou na sua montaria.
Ele voltou logo com dois cavalariços, um puxando um fronial branco ajaezado para a rainha e o outro levando o potro manso e meio crescido do fronial branco, com sela e rédeas improvisadas para Immu.
Anigel calçou as botas e vestiu uma capa toda contente. Na companhia de vinte cavaleiros dos Companheiros Juramentados e com Immu resignada atrás, no potro de pernas compridas, a rainha avançou cavalgando pela fila em marcha até chegar ao grupo da vanguarda. Lá encontrou o rei Antar e seu comandante-chefe, o general Gorkain, que haviam desmontado em uma das novas pontes que atravessava um afluente caudaloso do rio Virkar. Estavam conversando com dois batedores aborígines que trajavam farda dos Dois Tronos. Lorde marechal Lakanilo e inúmeros outros oficiais nobres estavam sobre suas montarias ali perto, esperando as ordens do rei. Estavam de capacetes leves e armaduras por baixo das capas de chuva, assim como os Companheiros Juramentados, o rei e o general. Uma tropa bem equipada de soldados e um único cavaleiro de armadura completa de batalha haviam descido até a margem do rio, onde se preparavam para embarcar numa grande jangada manejada por dois barqueiros humanos e um guia nyssomu.
O rei Antar saudou sua mulher e os recém-chegados com amabilidade, depois mostrou para Anigel o mapa que ele, Gorkain e os batedores estavam analisando.
— Um daqueles viadutos infernais dos quais Haramis falou fica a umas seis léguas daqui, rio abaixo — disse Antar para ela. — Soldados sob o comando de sir Olevik se ofereceram para ficar de guarda perto dele, enquanto a parte principal da nossa caravana passa. Eles vão descer o rio naquela jangada.
— Mas o que nossos bravos homens podem fazer — perguntou a rainha em voz baixa —, se vilões aparecerem naquele portal mágico enquanto eles vigiam? Soldados não podem combater a magia, e certamente não terão tempo para bloquear bem o viaduto.
— Não, minha rainha — admitiu o general Gorkain. — Para falar a verdade, tudo que sir Olevik e sua tropa podem esperar conseguir é distrair quaisquer invasores por um breve espaço de tempo, dando suas vidas enquanto seu camarada oddling nos avisa com a fala sem palavras.
São bravos corações — murmurou Anigel.
—- Há pouca chance de um ataque dos Homens da Estrela tão cedo — Antar procurou tranqüilizá-la. — E Orogastus também não vai atacar uma coluna enorme e tão bem armada como a nossa. Estamos simplesmente sendo precavidos.
— Em duas vezes dez noites — disse um dos pequenos batedores nyssomu —, nosso povo que mora nesta parte do Pântano Labirinto terá dominado aquele viaduto, conforme as ordens da Dama de Branco e da Dama dos Olhos. Vamos construir uma grande pilha com pedras e terra em cima dele e montar guarda.
— Será muito difícil os Homens da Estrela aparecerem sem serem notados num viaduto depois disso estar feito — disse o outro batedor. — Eles terão de recorrer a uma magia muito poderosa para abrir caminho e sair. E isso nós certamente vamos detectar e então soar o alarme com a fala sem palavras.
Anigel olhou outra vez para o mapa.
— Parece que não há mais viadutos perto da estrada até as montanhas. Devemos agradecer por isso.
Os Companheiros Juramentados gritaram e aplaudiram quando a jangada com sir Olevik e seus homens foi empurrada para longe da margem.
— Que a Flor os abençoe — desejou a rainha, fazendo o sinal do Trílio no ar por cima da mureta da ponte — e que os traga de volta sãos e salvos para junto de nós.
Os que estavam na jangada responderam com gritos inspirados, brandindo suas armas. Então a jangada passou da curva do rio e ficou fora de vista atrás do denso arvoredo.
Os cavaleiros da dianteira retomaram seu progresso lento no meio da chuva, Anigel e Antar lado a lado com a tropa de cavaleiros, e Immu atrás da rainha. Depois deles, a uma boa distância, vinha uma procissão de mais de duas léguas de comprimento: carroças puxadas por volumniais carregadas de bagagem da corte, mais carroças carregando alimentos e suprimentos, belas carruagens transportando a nobreza e os funcionários civis, dignitários reais e cavaleiros montando froniais e quase mil servidores, montados e a pé. Filas duplas de soldados caminhavam dos dois lados da coluna principal e o som do canto deles pairava suave sobre o pântano e chegava aos ouvidos dos que iam na frente.
A rainha estava bem satisfeita agora, inspecionando com orgulho a sua estrada através do pântano. O que fora desde tempos imemoriais uma trilha indistinta e perigosa que só podia ser usada na Época da Seca (e, mesmo então, apenas por aqueles que conheciam bem a região, ou que tivessem os mapas secretos dos Mestres Comerciantes) agora era uma bela estrada pavimentada. Seu leito elevado, formado de camadas alternadas de brita e toras maciças da floresta Tessaleyo, ficava três varas ou mais acima do pântano e era coberta de pedras. Pontes de madeira haviam substituído as antigas gargantas de riachos e rios, a não ser no cruzamento do largo Virkar na fronteira de Dylex, onde a travessia era feita numa barca. Hospedarias com sentinelas, localizadas a cada dia de viagem, ofereciam abrigo seguro onde pequenos grupos de viajantes ou caravanas de comerciantes podiam descansar. Mas a enorme comitiva real era obrigada a acampar na própria estrada, e apenas a realeza e os idosos ou enfermos se abrigavam sob o teto das hospedarias.
A parte central da estrada onde a comitiva estava naquele momento era mais estreita do que o resto, porque havia sido muito difícil de ser construída. Serpenteando por quase cem léguas entre o Castelo Bonar e a cidade de Virk em Dylex, aquela parte da estrada atravessava uma área selvagem, sem nenhuma habitação humana. Árvores altíssimas e um emaranhado denso de samambaias com espinhos, vinhas e uma vegetação quase impenetrável ladeavam a via pantaneira e até pendiam sobre ela em muitos pontos, de forma que às vezes a rainha Anigel tinha a impressão de estar passando por dentro de um túnel verde coberto pela chuva nevoenta.
O grupo que ia na dianteira fez uma parada ao meio-dia para comer alimentos frios e descansar, enquanto o sol bem-vindo aparecia rapidamente no meio das nuvens, fazendo a estrada fumegar. Mas quando os cavaleiros montaram novamente, as nuvens de tempestade já cobriam o céu, juntamente com o vento, cada vez mais forte. Mesmo assim, Anigel por vezes cochilava sobre a sela enquanto os pacientes froniais avançavam lentamente, as cabeças com galhadas balançando, os tendões das pernas estalando, os cascos largos batendo no musgo das pedras do calçamento. Lá em cima, o céu de chumbo foi ficando cada vez mais opressivo apesar de não despejar a chuva pesada que prenunciava.
A rainha acordava sobressaltada quando ondas ocasionais de um fedor nauseante começavam a contaminar o vento. Ninguém se surpreendeu quando o general Gorkain voltou pelo meio das fileiras de cavaleiros e saudou o rei e a rainha antes de dar as más notícias.
Um batedor encontrou ossos recém-descarnados de raffin na estrada mais adiante, e as pedras indicam sinais de filhotes de skritek. Vamos parar aqui para cobrir a distância entre nosso grupo avançado e a parte principal da caravana. O lorde marechal e os Companheiros Juramentados serão a escolta de Vossas Majestades e os soldados da infantaria virão para a frente para nos acompanhar até o perigo passar. Também enviei um mensageiro para chamar o príncipe herdeiro Nikalon e a princesa Janeel. Não é mais seguro eles ficarem avançando e recuando na procissão com seus jovens amigos.
— Muito bem — disse Antar. — Pode prosseguir.
O general tocou no visor com a ponta dos dedos saudando o rei e fez seu fronial dar meia-volta. Mas antes de ele poder se afastar, todos ouviram gritos dos cavaleiros à frente.
— Crias de skritek! Skriteks na estrada!
Gorkain praguejou e esporeou sua montaria, sacando sua espada para duas mãos. O marechal Lakanilo e doze Companheiros Juramentados cercaram o rei, a rainha e Immu com as lanças em riste, enquanto os outros do grupo de elite seguiam o general.
Um fedor horrendo se espalhou pelo ar. Por um tempo, todos ficaram quietos e os únicos sons eram de cascos no chão ao longe, do ranger de cabrestos e do assobio e do tamborilar da chuva que começava a cair.
— Olhem lá! — sussurrou Immu, apontando para um lamaçal escuro à direita da estrada, meio escondido pela vegetação que chegava a duas vezes a altura de um homem.
Aflorando na água espumosa havia dúzias de formas brancas e brilhantes, algumas quase do tamanho de um humano, outras bem menores. Pareciam horríveis vermes ou larvas gordas, sem cabeça definida, mas com membros curtos, equipados com garras afiadas como lâminas. Levantaram as cabeças quando chegaram à estreita faixa de terra ao lado da estrada, revelando bocas escancaradas com dentes verdes dos quais pingava veneno. Os monstros cegos balançavam de um lado para outro em busca de suas presas, que pressentiam com sua audição aguçada.
Por um instante os cavaleiros ficaram paralisados de terror. Então um jovem cavaleiro exclamou.
— Pelas Pedras de Zoto, que coisas horrendas! Como vermes gigantes!
Ao som da voz dele os filhotes de skritek começaram a corcovear e a se contorcer subindo a ribanceira do rio para chegar à estrada.
A espada do rei Antar cantou ao sair de sua bainha.
— Sigam-me, Companheiros Juramentados!
Ele fez seu fronial avançar escorregando pela encosta íngreme, lorde marechal e os cavaleiros logo atrás, e com um único golpe circular cortou em dois um dos filhotes que estavam liderando o ataque. Ele se desintegrou, espalhando a linfa fedorenta que parecia uma geléia em cima do rei. Os Companheiros espetaram suas lanças em outros filhotes de skritek sedentos de sangue ou os empalaram com suas espadas, gritando de raiva e nojo quando também ficavam encharcados dos fluidos malcheirosos que saíam dos corpos mutilados dos animais.
O fronial de Lakanilo caiu no lodaçal, guinchando de agonia, com sua pata dianteira presa numa mandíbula venenosa. Mas os Companheiros correram para salvar o lorde marechal, puxaram-no para cima em segurança e mataram o filhote que se agarrava à perna do fronial com tenacidade feroz, garantindo uma morte misericordiosa à montaria condenada.
Pouco tempo depois todas as larvas estavam mortas ou tinham fugido, deixando Antar e os cavaleiros cobertos de muco do capacete às botas. Gritos vitoriosos da estrada mais adiante sinalizaram que a outra ninhada de skriteks imaturos também tinha sido dizimada por Gorkain e seus homens.
— Muito bem — gritou a rainha Anigel com entusiasmo. Mas o rei fez uma careta vendo a sujeira que o cobria.
— Só o Deus Trino sabe como vamos remover essa sujeira toda, a menos que resolvamos dar um mergulho no pântano para trocar a gosma de skritek por lama.
Como se respondesse ao rei uma trovoada soou no céu e desabou um dilúvio. Antar tirou o capacete e inclinou a cabeça para trás para a chuva lavar seu rosto, dando risada.
Obrigado, gentis Senhores do Ar! Assim talvez estejamos prontos para o convívio civilizado de novo quando a principal coluna da caravana nos alcançar.
Acho que talvez seja melhor voltar para a sua carruagem, minha rainha — sugeriu lorde marechal Lakanilo para Anigel.
Ele era um homem alto, magro e tinha uma postura muito séria e digna apesar da aparência suja. Fora indicado para aquele cargo depois da heróica morte do lorde marechal Owanon na Batalha de Derorguila.
A rainha balançou a cabeça, discordando da sugestão de se retirar.
— Céus, não, Lako! Com o cheiro dos skriteks agora mais forte do que nunca, as minhas damas cobrirão o rosto com seus véus encharcados de perfume. Francamente, o meu nariz se ofende menos com o fedor dos monstros.
A princesa Janeel e o príncipe Nikalon chegaram trotando com um grupo de atendentes nobres e saudaram ruidosamente os pais e os Companheiros Juramentados.
— Ufa! — gritou a princesa tampando o nariz. — O fedor dos skriteks está muito pior aqui... oh! — berrou ao ver as criaturas mortas.
— Eles estão bem mortos, madame — disse o lorde marechal. — Não precisa ter medo.
O príncipe Nikalon desembainhara sua espada e seus olhos brilhavam enquanto examinava os restos.
— Tem certeza, Lako? Talvez seja melhor dar uma busca no pântano. Estou pronto!
Aos quinze anos Nikalon tinha quase a estatura de um homem e estava usando um capacete, peitoral de armadura e uma capa militar.
Pronto pronto pronto! — exclamou Immu furiosa. — Seus nobres pais e os Companheiros Juramentados agora devem estar muito aliviados com a chegada de tal campeão.
- Oh, Immu — gemeu o príncipe.
Os cavaleiros davam risada, mas com simpatia, porque todos gostavam muito do impetuoso Niki.
- Não há necessidade de sair da estrada — disse Antar. — Na verdade, seria uma tolice fazer isso, uma vez que a água continua a subir.
— Bem, sinto muito ter perdido a luta. Nunca tinha visto filhotes de skritek antes.
O menino embainhou a espada e começou a fazer perguntas para os cavaleiros sobre o ataque, e lorde marechal mandou buscar outra montaria para ele.
Janeel se aproximou dos pais e da velha pequena enfermeira, e manifestou alívio quando soube que a única perda tinha sido um fronial.
— Que coisas horríveis são esses filhotes de skritek! É verdade que eles matam suas mães ao nascer?
— Em geral, sim — disse Immu. — Os skriteks adultos são capazes de raciocinar... mais ou menos!... mas os pequenos são muito vorazes e descerebrados. Se a mãe tiver sorte, ela consegue se afastar quando cada filhote em forma de larva sai do seu ventre, e ele se alimenta com a carne que ela deixou. Mas é mais comum a cria despertar antes de nascer e devorar a saída do seu confinamento através da carne da própria mãe.
— Argh! — disse Janeel. O rosto dela ficou branco por baixo do capuz da sua capa de chuva, e ela gostaria de se afastar daquela cena nauseante, mas a rainha Anigel parecia inabalável. — Não admira que os skriteks não saibam nada de amor ou de gentileza.
— E, no entanto — disse o príncipe Nikalon com um prazer macabro, juntando-se aos pais e à irmã —, os skriteks pertencem à raça mais antiga do mundo, e os sábios dizem que todas as tribos descendem deles. Até você, Immu!
— Eu pensei que a raça humana era a mais antiga disse a princesa.
— Nós não nos originamos neste mundo — disse a rainha. — A sua tia Haramis, a Arquimaga, descobriu que os seres humanos chegaram aqui vindos do Firmamento Externo num passado muito remoto. Os Desaparecidos eram os nossos ancestrais.
— O que é ainda mais espantoso — disse o rei Antar calmamente — é que os Desaparecidos usaram o sangue dos skriteks e dos humanos para formar uma raça que pudesse sobreviver ao Gelo Conquistador.
— Mas... por quê? — A princesa, ao contrário do irmão mais velho, nunca ouvira a história, e a maioria das outras pessoas também não, pois a Arquimaga havia resolvido que esta devia ser mantida em segredo, só revelada para a família real e para aqueles em quem eles mais confiavam.
Os antigos humanos se sentiam culpados por abandonar o mundo que suas guerras haviam destruído — disse Antar. — Sabe, Jan, os Desaparecidos acreditavam que o gelo que haviam criado sem querer doze vezes dez séculos atrás devoraria toda a terra do mundo, menos as costas continentais e algumas ilhas. Eles achavam que os skriteks certamente morreriam, deixando o mundo sem nenhum ser racional. Mas isso não aconteceu. O gelo não conquistou tudo afinal, e os skriteks e a nova raça resistente passaram a conviver. E sobreviveram também alguns humanos obstinados que foram deixados para trás quando o resto desapareceu no Firmamento Externo.
— Aqueles aborígines chamados de vispis — disse a rainha —, que vivem nas montanhas mais altas e que ajudaram sua tia Haramis a obter seu talismã, agora formando a tribo especial dela, são o resultado daquela antiga experiência. Eles são os verdadeiros primogênitos da combinação da linhagem dos skriteks e dos humanos. É claro que dão à luz como os humanos, como fazem outras raças elevadas.
— Mas os vispis são tão lindos — disse Jan —, e as outras raças são... — Ela parou de falar ao se dar conta de que seria muito inapropriado dizer tal coisa diante da velha enfermeira nyssomu. — Oh, Immu, perdoe-me. Não tive a intenção de insultá-la.
— Eu não me ofendo, docinho — disse Immu com tranqüilidade. — Para os nyssomus e os uisgus, os vispis são feios. Vocês os chamam de belos simplesmente porque são os que mais se parecem com vocês.
— Mas então como foi que as outras tribos surgiram? — perguntou Janeel.
— Alguns foram criados com novas infusões de sangue de skritek — disse a rainha muito séria.
A princesa pensou nas horríveis implicações disso, e o irmão e ela ficaram em silêncio algum tempo.
Então Immu falou.
- Com o passar dos séculos, o sangue humano novo também contribuiu nessa mistura racial. Nos tempos antigos os humanos costumavam se acasalar com membros das tribos. Foi só de seiscentos anos para cá que o seu povo começou a chamar o meu de oddlings, insistindo que éramos seres inferiores. Em outros reinos humanos, o desprezo por nós persiste. Só em Laboruwenda consideram que as tribos possuem almas, e alguns de nós merecem privilégios de cidadania.
— Eu vou providenciar para que a nação de Raktum faça a mesma coisa — declarou a princesa Janeel —, quando me casar com Ledavardis e me tornar a rainha de lá.
— Oh, Jan! — Anigel exclamou zangada. — Você sabe que a proibi de tocar nesse assunto na frente do seu pai.
— Que história é essa? — Antar olhou furioso para a filha. — Não me diga que ela ainda gosta daquele rei duende?
— Ledavardis de Raktum é um homem muito corajoso — disse Janeel —, e é tão duende quanto Niki. Apesar do corpo dele não ser bonito, ele tem um coração nobre.
— É o que você diz! — disse o rei furioso para a princesa com os dentes cerrados, e sua barba loura se encrespava. — A meu ver, os raktumianos não passam de piratas meio regenerados, e filha minha não vai se casar com o rei deformado deles! Como pode esquecer que Raktum se aliou a Tuzamen e ao desprezível Orogastus na guerra contra nós?
— Ledo lutou e rendeu-se com honradez — retrucou Janeel. — E desde então ele comanda seu povo para transformar sua antiga vida sem lei e adotar um comportamento civilizado.
— Civilizado! — O rei deu uma risada de desprezo. — Nada mudou no reino pirata, exceto o modo dos corsários cometerem seus crimes, que agora é às escondidas e antes era de forma descarada como as víboras de Viborn. Você nunca se casará com Ledavardis.
A princesa começou a chorar.
— Você não se importa com a minha felicidade, pai. O verdadeiro motivo para você rejeitar Ledo é sua esperança vã de que eu me case com o rei Yondrimel de Zinora, aquele fanfarrão dissimulado. Mas não poderá forçar-me a aceitá-lo! Deixe que ele se case com uma das filhas da rainha Jiri.
— Jan, minha querida! — apressou-se Anigel em intervir. —Peço que você se controle. Aqui não é lugar para tal discussão. Vamos esperar até chegarmos à próxima hospedaria, e então...
Uma trovoada colossal abafou as palavras da rainha. No mesmo instante a estrada tremeu como se abalada por um terremoto, um clarão cegou a todos. A chuva começou a cair prodigiosamente. Ouviram gritos dos cavaleiros assustados, que tinham se afastado um pouco para dar privacidade à família real. Os froniais se encolhiam apavorados com o barulho inesperado, e o rei esqueceu sua raiva quando avançou com passos largos para evitar que a montaria assustada da filha escorregasse e caísse nas águas revoltas da enxurrada.
O príncipe Nikalon se ocupava da mesma forma do fronial nervoso da mãe. O animal branco de Anigel empinava, agitando seus cascos bipartidos contra o dilúvio terrível, balançando a cabeça com sua galhada sem parar. A rainha recuperou o controle com dificuldade, só depois de Niki desmontar e se pendurar nas rédeas. A algumas varas de distância, o jovem fronial que Immu montava deitou de barriga na beira da estrada, tremendo de pavor, enquanto Immu tentava, em vão, fazê-lo se levantar. Mas o animal da princesa Janeel escapou das mãos de Antar e quase pisou em cima do potro e de Immu no seu galope pela estrada na direção da coluna principal da caravana.
— Companheiros Juramentados! — gritou a rainha. — Atrás da princesa! — E virou-se para o filho. — Salve Immu! Olhe, a lateral da estrada perto dela está desmoronando!
O príncipe Nikalon pulou na sua montaria e saiu andando pesadamente pela estrada açoitada pela chuva. Ele se inclinou na sela e ergueu a pequena mulher nyssomu bem na hora em que o potro fronial despencou na ribanceira e desapareceu sem emitir um único som na água revolta e lamacenta.
— Traga Immu para cá, Niki — a rainha gritou —, depois vá ajudar seu pai e sua irmã!
Anigel não entendia por que os Companheiros Juramentados não haviam ido ajudar. A visão dos cavaleiros mais adiante na estrada estava prejudicada pela cortina de chuva cerrada e pela escuridão crescente, mas ela ouvia os gritos deles em meio às trovoadas e a um estranho som sibilante. Com Immu a salvo sentada na garupa e depois que o príncipe se afastou para acudir Antar, que conseguira segurar a montaria de Janeel a certa distância dali, a rainha esporeou seu fronial para ir em busca dos Companheiros.
Seu animal branco empacou de repente, depois de dar apenas alguns saltos.
— Meu Deus, a estrada! — berrou Anigel, olhando para baixo. Entre a rainha e seus cavaleiros havia uma fenda íngreme na estrada sobre o pântano, de mais de cinco varas de largura. Parecia que um relâmpago havia explodido a estrada por baixo. As águas da enchente que se avolumavam de um lado da estrada agora corriam pela fenda, carregando árvores arrancadas e outros entulhos flutuantes. Antes de Anigel conseguir se recuperar do susto, outro clarão brilhante de raio e o rugido de uma trovoada fizeram tremer o Pântano Labirinto, fazendo com que sua montaria perdesse o equilíbrio.
— Segure firme, Immu — gritou, puxando a rédea para virar a cabeça do animal para a direita, de forma que ele rodasse, berrando.
Mas, dessa vez, o fronial não entrou em pânico, e ela conseguiu finalmente acalmá-lo e conduzi-lo na direção do rei e dos filhos.
Então o animal parou subitamente de novo. Anigel deu um grito sufocado ao ver outra fenda na estrada, mais estreita que a primeira, mas aumentando a cada segundo, conforme a correnteza ia cavando a base da estrada.
A rainha e Immu estavam presas numa pequena ilha de calçamento de pedra no meio da enchente furiosa.
— Ani! — berrou o rei.
— Mãe! — gritaram Nikalon e Janeel.
Um trovão pareceu responder com zombaria. Os Companheiros Juramentados estavam impotentes do lado deles da estrada arrebentada, mas algumas carroças e soldados tinham finalmente chegado ao lugar em que o rei estava. Um dos Companheiros com mais iniciativa correu para Antar com uma corda e pai e filho desmontaram para ajudar a jogá-la por cima da água.
Anigel e Immu também desmontaram e ficaram de cócoras na beirada do pedaço de estrada que só diminuía. Duas vezes a corda não chegou até elas. Mas na terceira vez Immu segurou a corda, deu um grito de alegria e quase caiu na correnteza que subia.
— Venha! — gritou a enfermeira para a rainha. — Amarre na sua cintura!
Anigel tentou, mas naquele momento a água minou a estrada por baixo e as pedras sob os pés dela se mexeram e se separaram. Ela caiu num buraco raso e cheio de água, com os braços e as pernas enrolados em sua longa capa. Immu largou a corda, arrastou-se até Anigel e ajudou-a a sair do buraco. A rainha e a enfermeira ficaram de quatro na superfície traiçoeira que se desfazia, enquanto o rei recolhia a corda e jogava de novo por cima da fenda cada vez maior.
Mas a corda caía sempre antes e logo a ilha de estrada seria varrida pelas águas.
— Seu trílio-âmbar! — berrou Immu para a rainha, tentando se fazer ouvir no meio do estrondo da tempestade. — Peça para ele nos salvar!
Elas se abraçaram. Anigel segurou seu amuleto mágico com a mão e agarrou Immu com a outra. Atrás delas, o fronial branco se agitava e berrava, dominado pelo terror. O chão se desfez embaixo dele e o animal foi tragado pela correnteza.
Uma terceira explosão monstruosa soou ao mesmo tempo que um raio caía. Pedras, toras quebradas, torrões de terra molhada e névoa encheram o ar, junto com os gritos frustrados do grupo de resgate.
A rainha Anigel percebeu que estava caindo, sentiu Immu ser arrancada da sua mão, foi açoitada pelos galhos estranhamente indolores levados pelo vento em volta dela, sentiu sua lenta queda na escuridão da torrente que encheu sua boca e seu nariz, afogando sua oração para o Trílio Negro.
E depois não sentiu mais nada.
O viaduto do monte Brom ficava na caverna de Gelo Negro.
Há muito tempo tinha sido o acesso dos Desaparecidos para seu misterioso depósito nas montanhas Ohogan. E agora, conforme Haramis havia previsto, o viaduto representava para Orogastus um meio de entrar na Torre dela. Através da magia do Círculo de Três Asas, ela o viu aparecer do nada, por um disco negro sem substância que desapareceu com um badalo bem agudo de sino, assim que ele atravessou. Ele estava usando seu paramento prateado e preto de Mestre da Estrela, inclusive as manoplas e um extraordinário enfeite de cabeça estrelado que escondia a parte de cima do rosto.
Ele ficou parado bem no meio do piso obsidiano da caverna, olhando para o teto de granito com veios de quartzo lá no alto e para as centenas de alcovas, compartimentos e cubículos de todos os lados. A iluminação peculiar do lugar, brilhando de fontes invisíveis, fazia com que as extrusões de gelo nas fendas da rocha cintilassem como ônix polido.
O feiticeiro parecia meio tonto, caminhando bem devagar para a saída, talvez lembrando da época em que a caverna do Gelo Negro, que continha aqueles artefatos deslumbrantes, pertencia a ele. As portas vítreas e escuras das câmaras e nichos estavam todas abertas. Restavam alguns objetos sem importância, inúteis para os propósitos dele. Os compartimentos que, um dia, contiveram as armas antigas ou outros artefatos com a função de intimidar ou causar danos estavam vazios.
— Então você os destruiu, não foi? — disse ele em voz alta, sabendo que ela o via através do talismã. — E no entanto você guardou o instrumento mais mortal de todos! Será que você nunca pensou que as outras duas partes do Cetro do Poder deixariam de ter seu maior e mais tenebroso poder sem o Círculo de Três Asas?
Haramis não disse nada. Ela realmente pensara naquilo, até considerara jogar o Círculo em um dos vulcões ativos das ilhas Flamejantes quando se tornou óbvio que os outros dois talismãs haviam caído nas mãos de um desconhecido. Mas aquele pequeno bastão de prata fora adquirido a um custo muito alto para ela. E o propósito original do Cetro Tríplice, confeccionado doze mil anos antes, jamais deixara de intrigar Haramis. Ela não era capaz de jogar fora o talismã.
Orogastus chegou a uma grande porta de madeira coberta de geada e dirigiu-se mais uma vez a Haramis. Com a boca ele fez um trejeito de ironia.
— Tenho a sua permissão para entrar na Torre, Dama de Branco? Afinal de contas ela é minha, apesar de você tê-la usado de graça nesses dezesseis anos.
Haramis fez a porta se abrir silenciosamente. Permitiria aquela única visita, durante a qual ela faria o que tinha de ser feito.
O feiticeiro fez uma mesura de agradecimento e seguiu apressado pelo corredor que ele mesmo havia perfurado na rocha da montanha com um dos antigos artefatos. Lembranças se amontoavam na mente dele. Tinha vivido ali no monte Brom a maior parte do tempo de sua aliança com Voltrik, o antigo rei de Labornok já falecido, e ali treinara seus primeiros três seguidores. As Vozes Verde, Azul e Vermelha (que os Poderes Negros lhes concedam felicidade eterna!), além de servi-lo com lealdade até a morte, também ajudaram a ampliar sua visão taumaturga... assim como seus três sucessores menos valorosos. Agora, é claro, graças ao Homem Negro e a Nerenyi Daral, ele não precisava de nenhuma ajuda de outras mentes para comandar toda a mágica da Estrela.
Infelizmente, a Estrela sozinha não era o bastante para realizar seu principal objetivo. Para isso ele ia precisar do Cetro Tríplice. Obter duas partes dele seria comparativamente fácil. Mas a terceira parte pertencia a Haramis, e tirá-la dela à força era praticamente impossível.
Mas havia uma alternativa, e ele tinha ido até lá aquela noite para explorar essa alternativa...
No fim do túnel ele chegou ao nível mais baixo da escadaria da Torre. O piso onde ele estava era de lajes e ficava em frente da entrada principal e Orogastus ficou sentindo a aura do seu antigo lar. Estava bem diferente do que ele lembrava, impregnado com o encantamento estranho do Trílio Negro. Agora aquela Torre pertencia de fato a Haramis. Por um instante uma breve onda de medo apoderou-se dele. Será que a Estrela forneceria a ele proteção suficiente?
Na verdade ele não sabia. Mas tinha ido para lá assim mesmo.
Dos dois lados havia depósitos, agora vazios, o estábulo onde um dia abrigara suas montarias, e o pequeno quarto onde guardava o maquinário para a ponte que cobria o abismo lá fora. Ninguém mais usava aquela surpreendente ponte. A Dama de Branco usava seus poderes sobrenaturais para viajar, e os aborígines vispis, que eram seus servos, voavam para onde queriam em pássaros gigantescos que viviam nos penhascos próximos.
A não ser pelo vento da noite que mal dava para ouvir através das paredes espessas, reinava o silêncio na Torre. Não havia sinal da presença dela, mas ele sabia que ela o aguardava e também sabia onde encontrá-la. Subindo a escada em espiral ele imaginou se ela estava se sentindo dividida com aquele encontro iminente, como ele. Ele estava ali por indulgência dela. Teria sido bem fácil para ela destruir o túnel que ligava a caverna à Torre, de forma que o viaduto virasse um beco sem saída. Mas ela não tinha feito isso.
A última vez que os dois compartilharam o abrigo da Torre, Haramis era pouco mais que uma menina, e acabara de receber um talismã com poderes que não conhecia, ingênua e suscetível ao charme de um homem belo e mais velho. Ele poderia tê-la enfeitiçado com a mesma facilidade que encantaria um vart recém-nascido.
Mas foi ela quem o enfeitiçou.
Ele chegou à biblioteca, o lugar onde aconteceu o primeiro e último beijo, e abriu a porta. Era o lugar favorito dele, seu santuário, cheio de livros, os mais raros e mais valiosos do mundo. Ela não havia modificado muito o recinto. Cortinas pesadas pendiam diante das janelas altas naquela noite de frio cortante. Duas poltronas de espaldar alto estofadas de damasco vermelho haviam sido postas perto do conforto da lareira. Entre as duas, havia uma mesa com uma jarra de vinho, duas taças de vidro tosco no estilo vispi e um prato de doces.
Ela levantou de uma das poltronas e, por um momento, era apenas uma silhueta escura contra as chamas cor de laranja. Então ela deu um passo para a frente e a luz das elegantes luminárias de leitura dos Desaparecidos revelaram-na claramente, e ele sentiu o coração na boca. O cabelo negro de Haramis caía em tranças lustrosas até a cintura. Ela vestia um manto de veludo branco, com uma Pele Prata-azulada na borda das mangas largas e da bainha e um cinto azul-celeste com selenitas incrustadas. O vestido por baixo era de tecido fino de lã azul-clara, todo bordado com Trílios Negros minúsculos na gola, onde o Círculo de Três Asas pendia numa corrente.
Bom dia, Mestre da Estrela — disse Haramis. — Vejo que está paramentado para combate. Que pena! Eu esperava uma breve trégua enquanto conversamos sobre o que está para acontecer.
E isso era uma mentira. Uma mentira pequena, mas a primeira que Haramis tinha contado desde que se tornara Arquimaga da Terra, plantada deliberadamente para provocá-lo a agir do modo que tinha de ser...
Ele não disse nada, mas tirou as manoplas de prata e deixou cair no chão atapetado. Então, removeu o elmo e a capa preta, que também deixou cair no chão. Livrou-se da estranha vestimenta de metal com os pedaços brilhantes de couro preto e ficou diante dela com uma simples túnica de lã natural e uma calça de um tecido mais escuro, enfiada em botas de cano alto. Uma bolsa cheia de alguma coisa pesada pendia do cinto dele.
— Saudações, Arquimaga da Terra.
A voz dele, sem o filtro da magia do talismã, era melíflua e falsa, exatamente como Haramis lembrava. Mas o rosto dele estava mais velho do que no retraio, emaciado e desgastado, com rugas profundas entre os olhos claros e dos lados da boca.
— Olhe só! Eu me desfiz dos paramentos da feitiçaria e dessa forma peço um armistício.
— Eu aceito — disse ela, mentindo pela segunda vez. E, num gesto que era nitidamente um desafio, tirou a corrente com o Círculo de Três Asas do pescoço e o colocou em cima da mesa.
Seguiu-se um silêncio sem respiração. Ele se aproximou e esticou uma das mãos com seus dedos longos por cima do bastão. As três asas minúsculas no topo do Círculo se abriram e o brilho do trílio-âmbar pulsou como um aviso.
— Você realmente deixaria que ele me matasse? — perguntou em tom de brincadeira.
Ela deu de ombros.
- Se deseja pegar meu talismã, Mestre da Estrela, eu lhe dou permissão. Ele não vai machucá-lo, mas vai ver que não responde seu comando, como um garfo ou uma colher comuns. Você sabe que ele só obedece ao dono a quem está vinculado... e mesmo assim, às vezes é um tanto caprichoso.
Ele deu uma risada, pegou a jarra de vinho em vez do talismã e serviu as taças dos dois.
— Caprichoso mesmo. Vamos torcer para que quem quer que seja o dono dos outros dois talismãs agora tenha tanto problema para aprender a comandá-los como nós tivemos.
— Então sabe que o Olho de Kadiya foi roubado.
— Sei.
— Foi algum dos seus agentes? Ele deu um sorriso enigmático.
— O ladrão não é nenhum aliado meu... ainda.
Ela ignorou a provocação e olhou fixo para a Estrela dele.
— Eu tirei meu talismã. Será que não podemos, pelo menos por algum tempo, negar a magia e conversar como homem e mulher?
Ele abaixou as pálpebras e escondeu seu olhar. Será que ousaria encará-la sem proteção? Mas ele tinha certeza de que ela jamais seria tão desprezível a ponto de violar uma trégua, assim como acreditava que o amor que ela sentia por ele não tinha acabado.
Ele tirou o medalhão da Estrela do pescoço e pôs na mesa, ao lado do talismã dela. Ambos sentaram, ela um tanto tensa, ele bem à vontade, aquecendo as botas perto da lareira.
— Então você andou espionando minhas irmãs — disse Haramis.
— Não consigo vê-las individualmente, como você bem sabe, porque elas têm a proteção do trílio-âmbar. Mas as pessoas em torno delas revelaram sem querer o que anda acontecendo. O furto do Olho Ardente é um fato bastante constrangedor... e também intrigante. Devemos perguntar por que esse misterioso ladrão não utilizou a magia da sua pilhagem. Será ele um paladino da prudência, que se contenta em manter os dois talismãs bem escondidos? Será que o ladrão é tímido demais para usá-los, sabendo que até os Desaparecidos tinham medo do seu terrível poder? Ou será que nosso ardiloso ladrão está simplesmente sendo cauteloso? Será que andou testando os artefatos mágicos sem ser notado para adquirir experiência e segurança na sua utilização?
— Acho que vamos descobrir isso em pouco tempo — disse Haramis com uma certeza amarga —, e para nossa desgraça.
Quem sabe, Arquimaga — disse ele calmamente —, se não é melhor nós nos aliarmos contra essa ameaça mútua?
Ela deu um sorriso frio.
Não sou mais a criança ingênua que você esperava conquistar para os seus Poderes Negros, Mestre da Estrela.
— Eu sei disso muito bem. E você vai descobrir que não sou mais o homem que eu era, quando combati pela última vez as Pétalas do Trílio Vivo e... percorri o caminho dos Desaparecidos.
Por um instante uma esperança ardente transfigurou o rosto dela. Mas então ela desviou os olhos e apertou os lábios com uma força de vontade inexorável.
— Só posso julgá-lo pelos seus atos, que indicam que você é o mesmo de sempre: charmoso, persuasivo e extremamente cruel na busca da sua ambição maligna.
Ele jogou a cabeça para trás e deu uma risada, e seu cabelo branco brilhante refletiu a luz do fogo como nuvens altas ao pôrdo-sol. A alegria dele era jovial, sincera e não tinha nada a ver com falsidade ou cinismo.
— Você não sabe nada das minhas ambições atuais, Haramis, assim como ignora onde estive cativo, enquanto você pensava que eu estava morto — os olhos dele faiscaram quando ele inclinou o corpo para perto dela por cima da mesa. — Quer ouvir a história?
Ela fez que sim com a cabeça, continuando com a testa franzida, sem confiar nela mesma para dizer qualquer coisa. Ele recostou e tomou um longo gole de vinho.
— Foi a Grande Cinosura que me salvou, é claro, aquele artefato mágico da minha Guilda que foi criada para se contrapor ao Cetro do Poder, atraindo para ela qualquer adepto da Estrela que seja abatido pela mágica do Cetro. Ela preservou minha vida duas vezes. Na primeira vez, quando a existência da Cinosura era desconhecida de todos nós, fui atraído para o Kimilon Inacessível nas profundezas da calota de gelo e fiquei preso lá por doze anos.
não sabia como tinha sido transportado para aquela Terra de Gelo. A Arquimaga Iriane se desfez da Cinosura depois que ela cumpriu seu trabalho e acabou entregando-a para você. Haramis! Você pretendia usá-la para me manter prisioneiro Para sempre naquela Prisão Abismo que fica embaixo do Lugar do Conhecimento. Mas a morte teria sido mais misericordiosa.
— Eu... eu tinha esperança de que você se regenerasse. Não tive coragem de destruí-lo, nem mesmo indiretamente.
Haramis olhava fixamente para as mãos crispadas no colo. Ela sentia vergonha, como sabia que sentiria. Ele estava manipulando seus sentimentos mais uma vez, como fizera antes. Mas dessa vez o resultado seria diferente.
— Acontece que outra pessoa estragou seus planos — continuou. — Ele pegou a Cinosura do abismo logo antes de você e suas irmãs me dominarem com o Cetro pela segunda vez. E foi assim que despertei e me vi a salvo na cama... dentro de uma das Três Luas.
— Pela Flor! — gritou Haramis, compreendendo de repente. — Denby! E agora imagino que ele o mandou de volta para retomar de onde você parou. Oh, aquele bandido pérfido! Que tipo de Arquimago é ele para brincar desse jeito com o equilíbrio do mundo?
— Na minha opinião, o Homem Negro é um lunático senil, mas que mesmo assim me ensinou muita coisa. Você sabe quem o Arquimago do Firmamento realmente é?
— Iriane me contou um pouco do seu jeito desligado e excêntrico. Sei que ele é muito velho e que não se importa muito com os acontecimentos do nosso mundo. No entanto, nos ofereceu a ajuda daquelas sindonas chamadas de Sentinelas da Sentença de Morte, derrotando o seu exército e salvando os Dois Tronos. Por que ele salvou você... — Ela balançou a cabeça.
— Ficou feliz por ele ter feito isso? — disse Orogastus bem baixinho.
— Fiquei... — respondeu ela. — Que Deus me ajude! — E isso não foi nenhuma mentira.
— Mesmo agora — continuou o feiticeiro — não sei quase nada a respeito dos motivos do Homem da Lua. Mas sei quem ele é. É aquele mesmo grande herói dos Desaparecidos que conquistou a Guilda da Estrela e produziu o nascimento das tribos. Ele é Denby Varcour, um homem de tez escura que tem mais de doze mil anos de idade. Quando os Desaparecidos fugiram do Gelo Conquistador, ele ficou, junto com um pequeno grupo de seguidores, na esperança de desfazer um pouco da destruição que a humanidade causara no mundo. O povo vispi e seus amigos pássaros telepáticos foram criados em oficinas dentro da Lua dele.
Haramis ficou chocada.
. A Lua é oca? Ele não vive na superfície dela, como vivemos aqui no mundo?
. Todas as Três Luas são artefatos da antiga magia. Aquela chamada de Lua do Homem Negro, onde fiquei encarcerado, tem tudo que é necessário para se levar uma vida civilizada dentro dela, inclusive oficinas abandonadas com ferramentas maravilhosas, e apartamentos lindamente decorados sem uma única alma morando neles. O segundo satélite é chamado de Lua do Jardim. Não permitiram que eu a visitasse, mas sei que é uma estufa de plantas e animais, e que um pouco dos nossos alimentos vêm de lá. Também é a residência de muitas daquelas malditas estátuas vivas, que funcionavam como minhas carcereiras e que serviam a Denby de outras formas misteriosas.
— As sindonas — murmurou Haramis.
Ela havia recuperado a calma, tomou um gole de vinho e experimentou um doce.
— A terceira lua é chamada de Lua da Morte. Não sei por quê. As Três Luas são ligadas umas às outras e a este mundo por viadutos. Eu escapei dois anos atrás através de uma dessas passagens bizarras. Não importa como. Por estranho que pareça, o Arquimago do Firmamento não fez nenhum esforço para me recapturar desde então... mas é claro que ele é louco.
— Por que você diz isso?
— Por causa do comportamento dele. Ele conversa com os mortos e se castiga por pecados indefinidos. Em outros momentos ele parece que não sabe onde está, como se vivesse num transe. Quase todo o tempo do meu cativeiro ele teve consideração, era até jovial, permitia que eu andasse por toda a Lua e estudasse seus tesouros exóticos. Mas de vez em quando, sem nenhum motivo aparente, ele berrava imprecações vulgares e ameaçava banir-me para a Lua da Morte, dizendo que todos os membros da Guilda da Estrela mereciam morrer sob tortura. Esses humores de tuna tresloucada eram ainda mais assustadores porque um segundo antes ele tinha sido o modelo da doçura e da lucidez bondosa.
E então você escapou — disse ela sem emoção. — E por dois anos viveu... onde?
Mas Orogastus só balançou a cabeça e sorriu.
” Sei que você está procurando o quartel-general da minha Guilda da Estrela, e Kadiya também. Mas, quando vocês encontrarem o lugar onde moro, esse conhecimento não terá mais utilidade nenhuma. A Guilda da Estrela renasceu para me ajudar a conquistar meu grande objetivo.
Ela olhou para ele com o semblante impassível e sério.
— Então agora chegamos ao cerne do problema, Mestre da Estrela. Qual é o seu objetivo? Você e os membros da sua Guilda pretendem conquistar o mundo para seus Poderes Negros? A prisão bárbara que impôs a Iriane é um aviso do destino que irá impor a mim, se me opuser a você?
Em vez de responder ele derramou mais vinho na taça dele e bebeu.
— Você carrega meu retrato com você, Haramis — disse ele. — Por quê?
— Porque sou uma tola — retrucou. — Mas, apesar disso, estou comprometida e determinada a cumprir meu dever solene como Arquimaga da Terra e Pétala do Trílio Vivo... qualquer que seja o preço pessoal que terei de pagar. E, dessa vez, se o meu dever incluir a sua destruição, não vou hesitar.
Ela tirou o retrato dele de um bolso interno do vestido e deixou que ele olhasse rapidamente. Então levantou da poltrona de repente, caminhou com passos largos até a lareira e jogou a imagem com moldura de marfim nas chamas.
Orogastus abaixou a cabeça e quando falou novamente sua voz estava trêmula.
— Eu amo você, Haramis. Tem de acreditar em mim. Acredite também quando digo que as minhas intenções no que dizem respeito a este nosso mundo não têm motivação maligna nem egoísta.
Ela estava de pé, de costas para ele, olhando para o retrato que ardia.
— Gostaria de poder acreditar em você.
— Aprendi muita coisa enquanto era prisioneiro de Denby... sobre o desequilíbrio mortal que ameaça o mundo, sobre mim mesmo, sobre o sentido da minha existência e sobre você. Você pensa que a obra da sua vida está inevitavelmente ligada à das suas irmãs. Eu digo que seu destino vai muito além das preocupações insignificantes delas, assim como o sol está muito além dos vermes luminosos do Pântano Labirinto.
Ele abriu a bolsa presa ao cinto e tirou uma segunda Estrela. A corrente cintilava cheia de pedras preciosas e ele ofereceu para ela.
Esta é para você.
Ela virou-se, olhou para o medalhão e suas feições ficaram crispadas de consternação.
Nunca!
Juntos, podemos salvar o mundo. Querida Haramis, você e eu controlamos o poder da mágica transcendental. Somos mais parecidos do que jamais imaginamos. É só olhar no espelho! Nossos olhos revelam isso. Denby Varcour possui exatamente os mesmos olhos prateados, e a mulher que ele amava também, cuja mão morta me ajudou a escapar. Nós somos parte dos Desaparecidos! Será que você entende o que isso deve significar?
Haramis levou alguns minutos para responder.
— A Dama de Azul do Mar, que é minha querida amiga, também foi minha instrutora nas artes da magia. Ela ensinou tudo que sabia e me encarregou de restaurar o equilíbrio perdido do mundo... aquele caos criado por você e pelos seus crimes. As minhas irmãs declararam que iam me ajudar, mas acreditei que a principal responsável era eu mesma. Na minha perplexidade, ainda dividida entre meu amor por você e meu dever, procurei a sindona chamada Mestra. Ela me deu uma última orientação preciosa: ”O amor é permissivo. A devoção não.”
Ele sorriu e ofereceu mais uma vez a segunda Estrela com sua corrente cheia de pedras preciosas.
— Um enigma intrigante. Que até me dá uma certa esperança.
Mas ela balançou a cabeça e falou com alguma hesitação e a voz baixa.
— Ouvi Iriane repetir esse aforismo naquele momento horrível em que a Flor o derrotou e a Cinosura tirou-o deste mundo. Em todos aqueles anos em que pensei que estivesse morto e que o amaldiçoei por sua maldade, meditei sobre essa máxima e não consegui entender seu significado. Só agora, sabendo que você está vivo, fiz uma nova descoberta e tirei forças das palavras da Mestra... daquelas frases misteriosas e terríveis que não servem de consolo para quem contempla, mas apenas a satisfação fria do dever cumprido - ela se aproximou da mesa, pegou a Estrela de Nerenyi Daral das mãos dele, deixou-a cair no tapete e a amassou com o pé. — Você compreende o sentido desse enigma, Mestre da Estrela?
Ele saltou da poltrona e agarrou Haramis com uma emoção semelhante à ferocidade.
— Eu só compreendo o meu amor por você... e sei que você também me ama!
— Sim — disse ela —, eu amo você.
As pupilas dos olhos dela ficaram enormes e no centro de cada uma havia um pontinho de luz branca.
— Haramis! — ele gemeu, e os olhos que olhavam para ela também eram duas brasas de luz de estrelas.
O primeiro abraço que ele deu foi tão forte que chegou a doer, mas então seus braços relaxaram e Haramis sentiu as mãos dele apoiando sua cabeça. Ele abaixou o rosto e os lábios dos dois se encontraram.
Por minutos incontáveis, o único som na sala era o estalido do fogo na grande lareira. Mas, finalmente, o beijo acabou e o brilho inefável arrefeceu e desapareceu. Os olhos dos dois voltaram a enxergar o mundo real. Ele deu um suspiro trêmulo. Ela pronunciou o nome dele pela primeira vez. Deixou a cabeça cair no peito dele, ele encostou o rosto no cabelo macio e negro da amada, e ficaram assim juntos, imóveis, até Haramis finalmente se afastar dele. Ela aparentava calma, suas feições demonstravam uma certa melancolia.
— O amor é permissivo — sussurrou ela. — A devoção não.
— O que isso significa? — A voz dele soou rouca, preocupada.
— Significa que não pode haver nada além disso, Orogastus. Nenhuma dedicação confessa de um para outro. Nenhuma união na sua Estrela. E, acima de tudo, nenhuma adoração física mútua... porque devoção implica isso.
— Você pode negar a magia especial que criamos juntos? — disse ele, segurando as mãos dela. — Isso é apenas o começo, Haramis! Você e eu...
— Estamos de lados opostos — disse ela, se afastando novamente e virando de costas para ele. — Somos oponentes um do outro, como os campeões mortos dos Desaparecidos se opunham à antiga Guilda da Estrela. Sou a serva dos humanos e das tribos, tenho a obrigação de guiá-los e ajudá-los com a minha magia. Você e seus seguidores idolatram os Poderes Negros e não têm escrúpulos de praticar o mal para atingir seus objetivos.
- Você não entende! Tudo isso mudou. Por que não me deixa explicar...
O que entendo é Iriane suportando uma morte em vida. Eu entendo o seu agente incitando os skriteks e o sofrimento que isso provocou no inofensivo povo nyssomu. Eu entendo que vocês possuem armas terríveis sob seu comando, que sua Guilda utilizou no assassinato brutal dos lercomis inocentes. Não duvido que você e seus capangas sejam culpados de outros crimes que ainda vou conhecer — ela virou-se e ficou de frente para ele. — Estou errada?
- Iriane será libertada no momento apropriado — disse ele. Lamento as mortes dos pequenos do povo. Meus seguidores são de uma nação que acredita que eles não passam de animais sem alma, e nem sempre consigo controlá-los. Mas fiz questão de garantir que nenhum nyssomu fosse morto pelos Afogados...
— Liberte a Dama de Azul agora — implorou Haramis. — Destrua as antigas armas que você reuniu. Desista do seu plano de conquistar o mundo.
— Não posso — disse ele —, pois uma parte da minha intenção é salvá-lo! Iriane teria me prejudicado por ignorância, assim como os governantes das nações, se não fossem obrigados a me obedecer.
— Como qualquer pessoa que pensa de maneira justa prejudicaria você! — disse Haramis com voz de trovão. E, de repente, o talismã estava na mão dela — Eu sabia que você viria aqui, Orogastus. Sabia que você ia tentar me convencer novamente, como fez antes. A decisão que tomei arrancou o coração do meu corpo e talvez condene minha alma ao inferno. Mas jurei que você não sairá desta Torre para retomar sua obra maligna. Não enquanto eu tiver poder para impedi-lo.
Uma súbita nuvem de fumaça, mais negra do que a noite, envolveu Haramis. O feiticeiro recuou, atónito com a mudança repentina na aparência dela, o negrume rodopiou e se reuniu em três grandes pétalas, transformou-se numa forma dividida em três que pairava no alto, chegando até o teto da biblioteca.
Um Trílio Negro.
Ela surgiu do centro da flor, suspensa no ar, uma mulher com capa e capuz de um branco translúcido que de alguma forma parecia combinar todas as cores do arco-íris. Na mão direita erguida, o círculo de Três Asas envolvia um vazio negro do qual o feiticeiro não conseguia desviar o olhar. O vazio se expandiu de repente, como se fosse uma enorme janela redonda que se abria para a noite sem luas ou estrelas, escondendo a forma brilhante da Arquimaga. Mas a luz dela ainda brilhava de dentro da nuvem de fumaça.
Ela não disse nada, mas mesmo assim ele sentiu que tinha de entrar no Círculo, como se fosse um viaduto que levava à eternidade.
— Não! — gritou ele, sem querer aceitar que ela realmente pudesse ameaçá-lo com a morte, depois de ter ficado desprotegido por amor e por confiar nela. — Haramis, você não pode fazer isso!
O Círculo ficou ainda maior, obliterando a visão das estantes da biblioteca, a mobília, a grande lareira de pedra, engolindo até a luz da sala. E ele ficou lá no meio da fumaça brilhante, com a sua condenação à distância de uma braça, magnética e terrível, atraindo-o para a noite eterna.
Ele sentiu medo. Ficou apavorado. Mas enquanto o Círculo terrível continuava a avançar ele não rezava para os Poderes Negros, e sim para ela.
— Haramis, querida Haramis! Você não pode quebrar a sua trégua, o seu juramento de Arquimaga... o seu amor. Deixe-me ir!
Eu sei que é injusto destruir você dessa maneira, Orogastus. Sei que menti para você e quebrei minha promessa. Mas, fazendo isso, posso poupar nosso mundo de um grande sofrimento... talvez até evitar sua destruição. Sem você, a sua Guilda da Estrela vai acabar e desaparecer. Finalmente haverá paz e equilíbrio.
— Minha amada, é você mesma que está pretendendo cometer essa traição monstruosa... ou é esse pérfido talismã? Será que ele a fez impor sua própria vontade sobre o destino? Denby Varcour conhecia o perigo que espreitava do interior do Cetro do Poder! Ele argumentou com Binah e Iriane, pois ele era contra você e suas irmãs possuírem as partes daquele terrível instrumento, mesmo sem formar o todo. Você sabe por quê? Porque os talismãs podem dominar seus donos!
Haramis ficou em silêncio, escondida. O Círculo enorme chegou mais perto e já estava a um dedo do corpo paralisado de Orogastus. Além dele era o nada. Extinção. Em um segundo ele estaria acabado. Ela o mandaria para o vazio eterno, pensando que ludibriando a própria consciência poderia fazer um bem maior.
Em desespero extremo ele gritou para ela.
- Não confie em você nem no talismã! Pergunte à sua Flor se você deve fazer isso. Pergunte ao Trílio Negro se está certo eu morrer desse jeito! Pergunte à Flor se é assim que você vai consertar o mundo!
Ele ficou cego de repente.
O Círculo me engoliu, ele pensou, e estou sozinho no escuro para sempre, só com a minha alma exibindo meus pecados sem parar, eternamente. Por que ela não me ouviu? Por que ela não me deixou explicar...
Ele ouviu Haramis chorando.
Sentiu o calor do fogo.
Sentiu o perfume do vinho e o cheiro de encadernações antigas, papel e pergaminho.
Ele abriu os olhos e a viu, encolhida e escondendo o rosto no tapete diante da lareira. O Círculo na corrente em volta do pescoço dela era apenas um anel de prata vazio, mas em cima dele o trílio-âmbar brilhava como um minúsculo sol alado.
Atordoado de alívio ele só conseguiu ficar imóvel, ousando respirar novamente, olhando para ela. Depois de um tempo ela se endireitou e sentou no meio das dobras brancas da sua capa de Arquimaga.
— Como pude fazer isso? — perguntou ela para ele, falando como uma criança pequena que se depara com um horror e não como uma mulher arrependida. — Santa Flor, como cheguei a pensar em tal desonra, mesmo por um segundo? E sem deixar de amá-lo, nem um instante?
— A resposta está na sua mão — disse ele muito seriamente. Ela abaixou a cabeça e olhou para o talismã.
— Eu não acredito em você.
Mas ela abriu os dedos e deixou o Círculo de Três Asas cair, pendurado na corrente.
— Enquanto eu era prisioneiro de Denby — disse ele —, descobri algumas coisas sobre o Cetro... sobre a mágica dos três talismãs... que você terá de enfrentar e resolver, Haramis. Deixe-me Aplicar...
Vá embora! — disse ela com a voz embargada pelo sofrimento. Seus olhos ficaram marejados de lágrimas. — Você sempre foi um mentiroso e um manipulador. Agora fiquei igual a você.
- Iriane e a Mestra estavam enganadas. O nosso amor é desprezível e vou arrancá-lo de mim, nem que eu tenha de morrer tentando! Ela quis ficar de pé, mas suas pernas não tinham força. Ele a ajudou a levantar-se. E então, antes de Haramis poder protestar, Orogastus beijou rapidamente seus lábios.
— Nós vamos conversar outra vez — disse ele —, quando você tiver meditado mais sobre esse encontro. E depois que outros acontecimentos a ajudem a clarear seus pensamentos.
— Vá! — gritou ela, segurando o Círculo com as duas mãos trêmulas na direção dele, os olhos fechados com força para evitar que as lágrimas escorressem. — Vá embora!
Ele pegou suas vestes e a segunda Estrela, pôs seu medalhão no pescoço e foi embora.
Lummomu-Ko, porta-voz de Let, líder do povo wyvilo, e amigo dedicado da Dama dos Olhos, se dispusera a obter passagem para ela e seu grupo numa chata que pertencia ao primo dele, que desceria o grande rio Mutar. Apesar dos protestos dela, ele insistiu em acompanhar Kadiya até a capital de Var, que ficava na embocadura do rio, na costa sul da Península.
Kadiya andava tensa e amuada naqueles primeiros dias da viagem. E agora a Arquimaga havia se comunicado com ela através da magia e Lummomu ficara esperando mais de uma hora no convés de proa, enquanto as irmãs conversavam secretamente. Quando finalmente a Dama dos Olhos apareceu, o wyvilo sentiu seu coração ficar apertado. O corpo dela estava rígido de raiva contida e a expressão sombria traía as marcas de lágrimas secas.
— A comunicação da Dama de Branco continha mesmo más notícias — declarou Kadiya. — Preciso falar agora mesmo com Wikit-Aa.
— Meu primo está no timão — disse Lummomu. — Venha comigo e tome cuidado onde pisa.
Visto por trás, o chefe wyvilo parecia um homem muito alto e corpulento, mas a mistura da raça dele com o sangue dos skriteks lhe dava uma cara comprida como a dos animais, com dentes brancos ameaçadores e olhos dourados saltados com pupilas verticais. O pescoço e as costas das mãos eram parte cobertos de escamas e parte cobertos de pêlos vermelhos e curtos. Atendendo à propensão do Povo da Floresta de seguir os modos refinados dos humanos, o porta-voz de Let estava vestido com suntuosidade. Sua capa de chuva era de couro macio castanho-avermelhado, com as bordas do capuz e da barra em relevo dourado. Usava calça comprida e uma jaqueta de brocado ocre, por baixo de um blusão sem mangas e couro de milingal verde-esmeralda. As botas do mesmo material tinham solas de plataforma e esporas de couro, apesar de ele jamais ter montado num fronial em toda a sua vida. A vestimenta se completava com um cinturão a tiracolo e bainha cobertos de pedras preciosas faiscantes, do resplandecente artesanato zinorano.
Para o observador desavisado, a jovem mulher que caminhava atrás do esplêndido aborígine parecia apenas uma serva. Sua roupa era de lã cinza sem vida e couro preto arranhado, e só a sua espada magnífica e seu porte confiante davam alguma idéia de que era ela quem comandava a expedição.
Kadiya e Lummomu passaram com cuidado pela popa da grande barca, desviando de fardos e canastras e de barris de carga. O convés estava escorregadio e traiçoeiro por causa da chuva incessante. A névoa cobria tudo e tornava as margens distantes do rio quase imperceptíveis, de forma que o progresso da barca a meio vapor parecia enganosamente lento. Mas o grande Mutar já estava no máximo da cheia e a embarcação mercante dos aborígines voava pelas águas marrons turbulentas, quase tão rápida quanto um estafeta montado a galope. Esperavam chegar à foz sinuosa do rio e à capital varoniana de Mutavari dentro de mais nove dias.
Depois de passar pela cabine do convés de popa, ela viu o jovem príncipe Tolivar e seu companheiro inseparável Ralabun através do vidro grosso e cheio de bolhas da escotilha. Eles observavam os Companheiros Juramentados e os membros da tripulação wyvilo que estavam de folga jogar uma partida de ossos-dançantes atrás da outra para espantar o tédio. Jagun descobrira, anos antes, que ele e Ralabun não haviam sido criados para serem sociáveis, por isso ele passava a maior parte do seu tempo vago com o capitão wyvilo, Wikit-Aa.
Kadiya e Lummomu encontraram os dois na pequena cabine de popa que não protegia muito o timoneiro dos elementos. Apertando um pouco, os quatro compartilharam o abrigo.
Jagun viu o ar desanimado da Dama dos Olhos e murmurou:
— Más notícias, então, Olhos Penetrantes?
— Aconteceu um desastre — disse ela, e descreveu de que forma a rainha Anigel tinha sido tragada pela enchente no pântano perto do rio Virkar. — Os guerreiros de Antar e os batedores nyssomus que acompanhavam a comitiva real estão à procura dela há dois dias. Eles salvaram Immu, que foi levada pelas águas ao mesmo tempo que a rainha, mas não encontraram vestígios de minha pobre irmã.
- Certamente o talismã da Dama de Branco... — ia dizendo Jagun.
Mas Kadiya balançou a cabeça.
. Ele não mostra onde Ani está nem revela nada mais sobre o estado dela, se está viva ou morta. É óbvio que isso é obra de magia negra.
Jagun, Lummomu e Wikit-Aa abaixaram a cabeça e disseram juntos.
Que o Deus Trino e os Senhores do Ar tenham piedade.
Como a Via Pantaneira da rainha ficou destruída... — continuou Kadiya — talvez pelos raios, mas o mais provável é que tenha sido pela feitiçaria dos Homens da Estrela... a caravana real teve de retornar para a Cidadela de Ruwenda. Não será possível consertar a estrada até a Época da Estiagem.
— E a procura da pobre rainha continua? — quis saber Lummomu.
— Continua — disse Kadiya —, com reforços do Castelo Bonar e das aldeias locais de nyssomus. Mas a busca pode ser infrutífera. Logo antes da minha irmã desaparecer, um grupo de guerreiros foi enviado da caravana para montar guarda em um viaduto perto da estrada. Esses homens também desapareceram por completo.
— Pela Santa Flor! — exclamou Jagun. — Então é praticamente certo que os Homens da Estrela seqüestraram todos por aquele viaduto!
— Tão certo quanto a mudança das fases das Três Luas — disse Kadiya fazendo uma careta. — E a todo-poderosa Dama de Branco diz que não pode fazer nada a respeito. Nada! Ela andou se encontrando com aquele bastardo do Orogastus, e de alguma forma se enrolou toda, e diz que precisa pensar nas alternativas antes de agir! Enquanto ela fica pensando, minha pobre irmã grávida e os outros podem estar morrendo... ou sofrendo torturas. Por isso vou salvá-los eu mesma, já que Haramis se recusa a fazê-lo. Precisamos voltar nesse instante.
- Senhora, não! — exclamou o capitão wyvilo, com desespero na voz. — A senhora não entende a dificuldade...
Já tomei minha decisão, Wikit-Aa — disse Kadiya. — Você será bem recompensado por todas as perdas.
Não é essa a questão — disse Wikit. — Eu teria prazer em sacrificar minha carga se ajudasse a salvar sua irmã, a rainha. Mas para voltar para Let pelo caminho que viemos, contra a correnteza do grande Mutar na cheia, levaríamos nada menos que vinte noites. Possivelmente trinta.
— E depois — acrescentou Lummomu-Ko —, são nove dias ou mais para ir de Let para o Castelo Bonar pelas cataratas Tass, pelo lago Wum e a pantaneira. Em tanto tempo, como espera encontrar a rainha viva, se até a Dama de Branco falhou?
— Vou procurá-los até o Gelo Conquistador congelar os dez infernos! — declarou Kadiya. — Agora como... a resposta veio a mim logo depois da comunicação da Arquimaga terminar. Irei para o local daquele viaduto com uma tropa de bravos guerreiros, ordenarei que ele se abra usando as palavras que a Dama de Branco me ensinou. Meus camaradas e eu iremos para onde quer que o viaduto nos leve... e do outro lado encontraremos o esconderijo dos Homens da Estrela, a rainha e as outras pessoas que eles aprisionaram.
— A sua irmã real já pode estar morta — disse Jagun em voz baixa.
— Anigel está viva! — insistiu Kadiya. — Nós somos as Filhas das Três Pétalas do Trílio Vivo. Eu saberia se ela tivesse morrido. Wikit-Aa, ordeno que volte.
— Dama dos Olhos, a senhora deve compreender que este barco não foi feito para viagens rio acima contra uma correnteza forte. É pouco mais do que uma enorme jangada com duas cabines no convés, como convém a uma embarcação que tem de suportar a força de corredeiras traiçoeiras e as colisões com entulho flutuante carregando carga pesada. É nosso costume, depois de descer o rio até a capital de Var, vender o barco pelo valor da madeira depois que a carga é retirada. Fazemos a viagem de volta remando em pequenas canoas varonianas pelas vaus do rio.
— Então deve me deixar em terra, junto com meus cavaleiros, na aldeia mais próxima — disse Kadiya. — Vou procurar outra embarcação pequena e barqueiros para nos levar de volta para Ruwenda. O príncipe Tolivar e Ralabun seguem com vocês e pegam o navio em Mutavari como havíamos planejado.
— Não há aldeias de humanos nessa região — disse Wikit para ela. — Até a Trégua do Pântano o povo de Var ficava aterrorizado demais com o povo glismak selvagem que vivia por aqui para sequer imaginar usar o grande Mutar como rota de comércio. Até nós, wyvilos, evitávamos a parte baixa do rio que passava pelo território da tribo dos glismaks, e isso impedia o comércio entre nós e os varonianos. Agora, claro, os comerciantes de Mutavare recebem muito bem os nossos barcos. Mas povoados humanos ao longo do rio praticamente não existem por causa do temperamento inconstante dos glismaks. Há apenas entrepostos primitivos aqui e ali onde agentes comerciais das companhias mutavaris negociam com garimpeiros ou caçadores de peles tribais — ele apontou para a margem direita que estava quase toda coberta pelo nevoeiro. – Um desses entrepostos é aqui perto, mas é um lugar detestável...
Encoste — ordenou Kadiya —, e vamos estudar a situação.
Era meio-dia quando a chata atracou. O agente comercial varoniano encarregado daquele entreposto desolado era um ser corpulento e barbudo chamado Turmalai Yonz. Usava uma calça de couro de gamo engordurada e tinha uma atitude suspeita de muito entusiasmo. Quando Kadiya e seu grupo desembarcaram ele os saudou cordialmente e ofereceu canecas de salka, a cidra amarga que era a bebida nacional de Var. Então ele foi embora, prometendo verificar a disponibilidade de pequenos barcos com tripulação.
O dia continuava escuro e tenebroso e a chuva não parava de cair, pingando pelo telhado malfeito da varanda da esquálida cabana do agente comercial. Kadiya, Lummomu, Jagun, Wikit e o lorde Zondain, o cavaleiro mais velho dos seis Companheiros Juramentados, ficaram sentados em bancos toscos em volta de uma mesa bamba à espera de Turmalai.
— Pelo menos o agente parecia animado para nos ajudar — disse lorde Zondain esperançoso. — Mas não posso dizer que gosto da cara do sujeito.
O cavaleiro era um homem forte de trinta e dois anos, cujo cabelo ralo já estava embranquecendo, nativo de Dylex, a nordeste de Ruwenda. Seus irmãos mais novos, Melpotis e Kalepo, que também faziam parte do grupo de Kadiya, tinham ficado no barco com os outros três cavaleiros.
Esse Turmalai está me cheirando a salteador — disse o pequeno Jagun, franzindo o cenho. — Já vi tipos como ele se esgueiando pela zona portuária de Derorguila e nas feiras de comércio em Trevista. Eles prometem qualquer coisa, mas a entrega é outra história bem diferente... especialmente se você pagou adiantado.
— Duvido que qualquer embarcação de boa qualidade possa ser encontrada nesse horrível buraco de pelrik — rosnou Lumrnomu-Ko. Ele observava cada vez mais aflito a atividade lá embaixo nas docas, onde se podia avistar figuras flanando em torno da embarcação wyvilo. — Os humanos nessas regiões são pobres e sem lei. Os comerciantes honestos de Mutavari os desprezam.
— Isso é verdade — disse Wikit-Aã. — Esses tipos do rio também detestam o povo wyvilo, porque somos muito mais trabalhadores e prósperos do que eles. Nunca paramos nesses entrepostos malcuidados se podemos evitar. E digo com toda a sinceridade que seria mais sensato sair daqui agora mesmo e seguir em frente — ele deu um tapinha no focinho com uma garra. — Meu nariz está coçando e, entre os wyvilos, isso é sinal de que há encrenca à vista.
— Preciso encontrar um jeito de voltar para Ruwenda! — Kadiya não queria ceder. — Eu não preciso de nenhum trirreme real, apenas duas ou três canoas para acomodar a mim, a Jagun e os cavaleiros...
— E a mim — observou Lummomu. — Vocês vão precisar de um guia confiável para orientá-los através do território glismak, e não devem encontrar nenhum por aqui.
Wikit-Aa derramou salka garganta abaixo com a facilidade adquirida com a prática.
— Será muito arriscado para a Dama dos Olhos e seu grupo, mesmo com a sua formidável assistência, primo. Será que não é melhor continuar rio abaixo até Mutavari, e lá embarcar com o jovem príncipe num navio que contorne a Península até Labornok?
— A viagem por mar levaria mais tempo ainda do que navegar rio acima — disse Lummomu —, por causa da enorme distância e dos ventos adversos nessa época do ano.
— E depois teríamos de viajar por terra de Derorguila até Ruwenda para chegar ao viaduto — disse Kadiya —, atravessando o passo Vispir. Com as monções anuais podemos encontrar o passo coberto de neve quando chegarmos lá. Não... estou decidida a voltar subindo o Mutar.
A porta torta da cabana rangeu e se abriu, e lá estava o agente todo animado, segurando uma bandeja com uma vasilha fumegante, uma pilha de potes lascados e uma coleção de colheres de madeira.
— Nobres hóspedes! Este humilde servo implora que aceitem bom ensopado karuwok feito agora mesmo. Os utensílios são toscos, mas vocês verão que o ensopado é delicioso e vai aquecêlos nesse dia tão feio. Kadiya franziu a testa. É muita gentileza sua, agente Turmalai, mas não pedimos comida.
O homem barbudo deu uma risadinha e começou a arrumar os potes. Acenou com a cabeça para dois jovens altos e esfarrapados que tinham entrado por alguma porta dos fundos carregando um caldeirão tampado e uma jarra de salka coberta de vime vindos do caminho enlameado que descia até o rio.
Tomei a liberdade de enviar meus filhos com comes e bebes para seus companheiros na barca. O custo disso será bem modesto, posso garantir. Enquanto vocês comem, meus sócios procuram seus pequenos barcos com remadores.
— A comida cheira bem — admitiu lorde Zondain, cheirando a porção de ensopado que havia sido servida no pote dele —, e por acaso estou faminto.
— Esplêndido! — O agente esfregou as mãos e deu um sorriso largo. — Vou pegar mais salka. — Saiu apressado da cabana.
Kadiya ficou olhando para o prato sem entusiasmo algum, mas Zondain já comia avidamente.
— Vá em frente! — disse o Companheiro. — Na verdade, está bem gostoso.
Jagun ergueu a colher e encostou a ponta da sua língua comprida no seu conteúdo. Seus olhos amarelos saltaram das órbitas e ele cuspiu, ficou de pé de um pulo e derrubou a mesa de forma que os potes e os copos de salka e a vasilha do ensopado se espalharam nas tábuas do assoalho da varanda.
— Flor Sagrada... está cheio de raiz de yistok! Não comam!
Kadiya, Lummomu-Ko e Wikit-Aã jogaram longe suas colheres e se levantaram, sacando suas armas. Mas lorde Zondain continuou sentado no banco, com a cabeça caída sobre o peito.
— Envenenado! — gritou a Dama dos Olhos. — Oh, aquele traiçoeiro estrume de worram! Lummomu, faça o que puder pelo Pobre Zondain, depois vá cuidar de Turmalai. E vocês... venham comigo para o barco!
Ela desceu rapidamente pelo caminho, sua grande espada de aço brilhando na chuva, com o capitão wyvilo e Jagun atrás dela.
A área do cais era uma coleção desordenada de barracões, fardos de peles e couro, pilhas malfeitas de toras de madeira e embarcações puxadas para a terra. Os filhos do agente evidentemente estavam a bordo da chata de Wikit. Três outros varonianos maltrapilhos guardavam a prancha de desembarque, um brandindo um sabre enferrujado, os outros dois empunhando peixeiras. Kadiya gritou para os que estavam a bordo.
— Veneno! Veneno! Não comam a comida!
Ao mesmo tempo ela golpeou o varoniano que empunhava o sabre com sua espada. Ele aparou o golpe de qualquer maneira, depois avançou para Kadiya tentando empurrá-la do cais nas águas turbulentas do rio. Ela pulou para o lado e estendeu um pé na frente dele. O varoniano urrou e perdeu o equilíbrio, e Kadiya bateu na nuca dele com o cabo pesado da espada. Ele caiu com estardalhaço na água lamacenta e foi carregado para longe.
Wikit-Aã já tinha dado cabo do seu inimigo humano, furando-o com uma bela lâmina de aço zinorano. Seu focinho se abriu num horrendo sorriso de triunfo.
— Vou ver o que está acontecendo a bordo! — berrou, subindo a bordo de um salto e correndo para a popa, de onde se ouvia gritos de luta.
Kadiya deu meia-volta para ajudar Jagun. Ele havia cortado a perna esquerda do seu atacante, vertendo sangue, mas o rufião havia acuado o pequeno nyssomu num beco sem saída formado por dois grandes fardos de couro de tareniais. Rindo de prazer antevendo a matança, o humano já estava com o braço levantado para enfiar sua faca na garganta de Jagun, quando Kadiya decepou o braço dele na altura do cotovelo. O varoniano caiu no chão gritando, banhado em sangue.
Naquele momento uma forma humana atravessou a janela da cabine de estibordo da barca. Era um dos traiçoeiros filhos do agente comercial, que bateu na amurada da barca, agarrou-se a ela precariamente por um instante e depois escorregou aos urros, despencando no rio enquanto um cavaleiro que aparecera na janela o empurrava com uma espada ensangüentada. Gritos e aplausos vieram de dentro da cabine.
Outro Companheiro Juramentado, sir Bafrik, chegou até a porta do convés e gritou:
— Acabamos com os bastardos, princesa! Como está se saindo?
— Subam para a cabana, alguns de vocês! Vejam se Lummomu precisa de ajuda — alguns cavaleiros saíram correndo e ela virou para o varoniano mutilado que estava sentado, segurando o braço decepado com o rosto lívido. — Vai morrer, camarada, ou devo cuidar do seu ferimento?
— Por favor, bondosa Dama — gemeu.
A chuva havia parado e era quase noite. Sir Bafrik e sir Sainlat saíram arrastando um jovem ensangüentado e o jogaram sem cerimônia no cais ao lado do homem morto, onde ele ficou, meio inconsciente. O jovem príncipe Tolivar saiu da cabine no convés com o nyssomu Ralabun, ambos aparentando estar tontos de pavor, e examinaram a cena. Wikit-Aa deu algumas ordens para a sua tripulação, depois ficou impassível ao lado de Jagun, vendo Kadiya cuidar do homem ferido.
Ela usou o cinto dele para fazer um torniquete, que estancou a perda mortal de sangue. O lenço quase limpo dela serviu para cobrir o coto de braço.
— Você tem resina de halaka na sua despensa? — perguntou para o paciente quando terminou. — É a única coisa que funciona para tratar esse tipo de ferimento.
— Eu... eu não sei — murmurou ele. — O agente Turmalai guarda todo tipo de medicamento sob chave e cadeado.
— Se não tiver, terei de cauterizar o coto com fogo — avisou Kadiya —, senão você vai morrer de gangrena. De pé, então. O capitão e eu vamos ajudá-lo a ir para a cabana.
Kadiya e Wikit seguraram o varoniano de um braço só, que estava prestes a desfalecer, e o arrastaram até o barraco dilapidado do agente, seguidos por Jagun. Turmalai, que intercalava impropérios e choro, tinha sido amarrado em uma cadeira sólida de madeira e era vigiado por Lummomu e por sir Edinar. Kadiya orientou os dois wyvilos para porem o homem ferido em outro cômodo e cuidar dele da melhor forma possível. Então, pela primeira vez, ela notou que sir Melpotis e sir Kalepo estavam ajoelhados ao lado de um catre improvisado num canto. Deitado nele estava lorde Zondain, imóvel e com o rosto pálido como cera.
— Como ele está? — perguntou Kadiya.
O jovem Melpotis balançou a cabeça. O rosto dele estava todo molhado de lágrimas.
— Senhora — disse Kalepo —, o nosso nobre irmão Zondain passou para o além em segurança, levado na glória dos Senhores do Ar.
— Que o Deus Trino lhe conceda misericórdia — sussurrou Kadiya.
Por um minuto ela ficou olhando para o Companheiro morto. Então ergueu lentamente seus olhos castanhos flamejantes e olhou para o agente preso, que não tinha cessado suas lamentações ruidosas.
— Podridão cheia de vermes — disse ela, aproximando-se dele com passos firmes. — Costuma praticar sua hospitalidade envenenando seus hóspedes?
Turmalai Yonz não respondeu, apenas continuou a se lamentar e soluçar desesperadamente por causa dos filhos mortos. Ele tinha visto a luta no cais antes de ser capturado e amarrado por Lummomu.
— Tchaa! — exclamou Wikit-Aa com desprezo. — Um dos rapazotes assassinos ficou apenas desacordado depois de sofrer ferimentos leves, e o outro que caiu na água foi visto subindo na margem cinqüenta varas rio abaixo.
— Meus preciosos filhos estão vivos? — gritou o agente. — Graças ao Deus do Ar o Misericordioso, Aquele que Dá a Vida!
Kadiya agarrou um punhado de cabelo sujo do agente e levantou a cabeça dele. Na outra mão ela segurava um punhal.
— Você realmente foi abençoado, seu saco de vómito de woth — disse ela como se estivesse conversando com ele. — Os seus bastardos desprezíveis escaparam da morte que tanto mereciam — ela espetou a garganta de Turmalai com a ponta do punhal. — Mas você terá de enfrentar o julgamento do seu deus em menos de dois minutos a partir de agora se não responder sinceramente às minhas perguntas.
O agente se encolheu e deu um grito como um gargarejo.
— Por que envenenou nossa comida? — Kadiya quis saber. — Foi só por maldade, para nos roubar... ou você tinha outro motivo?
Os olhos de Turmalai rolaram nas órbitas desesperadamente. O aço afiado na garganta dele tirou um risco de sangue.
— Fizeram uma... uma oferta — coaxou ele —, para todos que vivemos na beira do rio. Se conseguíssemos capturá-la, morta ou viva, e levá-la para um certo lugar antes das luas cheias, haveria uma recompensa de mil coroas de platina.
— Pelas Esporas Sagradas de Zoto! — exclamou sir Kalepo, pois a quantia era realmente uma recompensa de rei.
Ele e o irmão Melpotis interromperam a vigília ao irmão morto e ficaram ao lado da Dama dos Olhos.
— Quem prometeu essa generosidade extravagante? — Kadiya largou o agente fazendo uma careta e embainhou seu punhal.
— Não deram nomes — disse Turmalai Yonz de mau humor. — Só explicaram para onde devíamos levá-la, ao lado da cascata Dupla que fica no rio Oda, que encontra o Mutar a cerca de vinte léguas daqui, descendo o rio. Não acreditei na minha sorte quando vocês aportaram aqui.
Kadiya enfiou a mão por dentro da capa e tirou um pedaço de pano dobrado, que desdobrou.
— Sabe ler um mapa, bosta de qubar?
— Sim, senhora.
Ela indicou um rio no guardanapo desenhado.
— Aqui está o Oda. Este ponto vermelho é o lugar onde iam pagar a recompensa pela nossa captura?
Ele semicerrou os olhos diante do pano quase encostado no nariz.
— É. Exatamente aí. Devíamos levá-la para esse lugar ao nascer do sol qualquer dia na atual fase das luas, e os que iam pagar a recompensa estariam esperando.
— Ao amanhecer... — Kadiya fez que sim com a cabeça, guardou o mapa dos locais onde havia viadutos e dirigiu-se aos cavaleiros. — Companheiros, tragam o corpo de lorde Zondain para o cais. Vamos fazer a pira funerária dele com as mercadorias desse assassino desprezível.
— Não! — gritou Turmalai Yonz. — Vai me arruinar!
— Você deve agradecer — retrucou sir Kalepo — por nem você nem o seu pessoal que sobreviveu estarem também servindo de combustível para o fogo.
Sir Kalepo, Edinar e Melpotis levaram o corpo embora. Lummomu e Wikit saíram do outro cómodo.
— Encontramos o remédio — disse Lummomu — e aplicamos no ferimento do bandido. Havia também uma garrafa do ótimo conhaque Galanari, que ele consumiu para aliviar a dor. Agora ele está lá deitado, inconsciente.
— Vocês deram para ele todo o produto de boa qualidade? — choramingou o agente.
Melpotis deu-lhe um tapa na orelha e ele se encolheu, gemendo.
— O que faremos com essa abominável criatura, Dama dos Olhos? — perguntou Lummomu para Kadiya.
— Deixe ele aí amarrado na cadeira até alguém vir libertá-lo. Se o homem ferido não morrer, ele deve despertar do seu estupor de bêbado bem tarde amanhã.
— E o seu desejo de viajar rio acima? — perguntou Wikit. — Há esquifes aqui que podem atender aos seus objetivos.
— Mudei de idéia. Volte, por favor, para a barca e prepare-se para zarpar. Jagun e eu iremos para lá em seguida.
Kadiya fez um sinal para seu amigo nyssomu e ele a seguiu pela escuridão da noite. Foram para o lado da cabana e ficaram sob os galhos gotejantes de uma grande árvore ombako.
— Gostaria que você se comunicasse com minha irmã, a Dama de Branco — disse ela para o aborígine —, e pedisse para ela enviar sua imagem para falar comigo.
— Muito bem — disse Jagun.
Ele fechou seus olhos luminosos e o pequeno corpo ficou rígido como um pedaço de pau enquanto enviava o chamado na fala sem palavras.
Um instante depois Haramis estava lá, tão fantasmagórica e insubstancial que a cinco passos de distância ninguém conseguiria discerni-la.
O que foi, Kadi?
— Você viu o que aconteceu aqui?
Não, disse a Arquimaga. Andei ocupada com outros assuntos.
Kadiya contou rapidamente a história, e a Dama de Branco ficou muito aflita.
Eu devia ter previsto isso! Que tola que eu fui. É claro que eles tentariam pegá-la depois de capturar a pobre Ani!
— Para pressionar você? — perguntou Kadiya com tristeza.
- Sem dúvida alguma.
— E você entregaria o seu talismã, se Orogastus mostrasse para você Ani e a mim mergulhadas em gelo azul?
Não, disse a Arquimaga. Kadiya sorriu.
— Ótimo!... Obviamente não posso tentar retornar subindo o rio pelas vaus agora, não com todos os malditos sugadores de lama do grande Mutar à minha espera, lambendo suas facas. Terei de prosseguir como havíamos planejado originalmente, para Sobrania.
Pouco tempo atrás, vi o jovem Homem da Estrela que incitou os skriteks embarcando num navio em Taloazin, em Zinora. Ele também estava indo para Sobrania. Se o quartel-general da Guilda da Estrela está lá ou não, é pelo menos um bom lugar para começar sua investigação.
— O que você vai fazer quanto à Ani?... Eu já decidi entrar no viaduto no Pântano Labirinto à procura dela, com ou sem a sua aprovação.
Isso não será necessário. Já resolvi que eu mesma vou passar por ele. Reze por mim, querida Kadi.
A imagem desapareceu, mas Kadiya ficou algum tempo olhando fixo para o espaço na vegetação escura onde a projeção de Haramis tinha estado. Finalmente Jagun pôs a mão no ombro dela.
— Olhos Penetrantes, estão acendendo a pira de lorde Zondain. Devemos ir para lá.
— É — disse ela suspirando.
Os dois partiram para o cais sob a chuva monótona. Depois de alguns segundos ela disse:
— Jagun, você está disposto a me acompanhar numa viagem que pode ser muito mais perigosa do que a viagem por mar até Sobrania?
— Você sabe que estou. E os cinco Companheiros Juramentados certamente dirão a mesma coisa. Para onde vamos?
— Vamos conversar — disse a Dama dos Olhos —, depois de dar adeus para Zondain.
Depois da luta da rainha Anigel na água gelada e do subseqüente mergulho no vazio, fez-se um intervalo do mais completo silêncio. Então, seus sentidos começaram a voltar lentamente. Ela estava deitada em alguma coisa que se movia e balançava e sentia em diversas partes do corpo uma dor aguda que aumentava e diminuía, ofuscando a passagem do tempo e tornando impossível o pensamento racional. Ela percebia um lusco-fusco verde através dos olhos semicerrados, sentia cheiros pungentes da floresta e ouvia o som de pássaros desconhecidos. Alguém falou com ela mas era impossível entender as palavras. Ela mergulhou novamente na inconsciência.
E, então, veio a noite e ela ouviu cascos batendo na pedra na escuridão. A carroça sacudia demais, fazendo com que seus ferimentos piorassem. Ela chorou indefesa e angustiada até que finalmente pararam. Vozes masculinas veladas se misturavam com os relinchos nervosos das montarias e bestas de carga, e os débeis soluços da rainha foram abafados por cobertores. Cada vez que ela inspirava, sentia uma pontada de dor. Não conseguia mexer sua perna direita nem o braço esquerdo. De repente, assustou-se com uma explosão imensa e seu corpo estremeceu com a dor de novos ferimentos menores e os animais guincharam de terror.
Alguém berrou uma ordem. A carroça avançou novamente, retomando seu progresso aos trancos. Mas agora parecia, para o seu cérebro confuso, que de alguma forma haviam saído do mundo natural e que viajavam através dos dez infernos, pois ela viu com seus olhos inchados colunas crepitantes de fogo cor de laranja contra o céu negro da noite. O calor era tão intenso que ela se debatia no fundo da carroça, agoniada de medo, chamando seu marido.
O rei Antar não respondeu. Tudo que ela ouviu foi um grito rouco.
— Mais depressa, maldito! Use seu chicote. A qualquer minuto vai começar a chover e será a morte para todos nós!
O balanço violento e constante da carroça aumentou tanto que a rainha desmaiou de dor, e entrou mais uma vez num mundo de sonhos disformes. Permaneceu assim até que uma luz muito brilhante penetrou por suas pálpebras fechadas, piscou rapidamente sobre o seu rosto e deixou um rastro de luzes coloridas. Ela ouviu uma língua indistinta. O calor do fogo acabara. Ela não estava mais em movimento, e sim deitada num sofá ou cama dentro de uma casa, e não podia se mexer. Então algo duro bateu do lado do seu pescoço e, de novo, ela perdeu os sentidos.
Quando recuperou mais uma vez a consciência já era dia e tudo estava muito quieto. Ela ficou lá deitada entre o sono e o despertar, insegura a princípio, sem saber se o que estava vivenciando era sonho ou realidade.
Eu sou Anigel, disse para si mesma. Sou a rainha de Laboruwenda, fui ferida e me afoguei, mas agora estou inteira e viva.
Não tinha certeza de como sabia essas coisas, e não lembrava de que forma tinha se afogado. Estava deitada de costas sob uma coberta fina. Dois travesseiros duros e firmes como sacos de areia impediam qualquer movimento da sua cabeça, que estava um pouco elevada. Suas mãos e pés também estavam imobilizados de alguma maneira, mas não sentia desconforto. Sentiu um movimento mínimo dentro do seu ventre e sorriu. Seus bebês também estavam vivos.
Anigel podia ver um teto baixo, emoldurado por peças de madeira antiga, e as partes de cima de paredes de pedra. À sua direita havia uma janela aberta para um céu cinzento, com cortinas de tecido rústico. A brisa trazia um leve aroma pungente que ela não conseguiu identificar imediatamente.
Na parede da esquerda havia uma grande tapeçaria com cores vivas. A parte que conseguia ver revelava uma heroína com longas tranças de cabelo ruivo, vestindo uma exótica armadura, preparada para aniquilar algum inimigo derrubado com a sua espada. Chamas altas, quase da cor do cabelo da mulher, subiam das rochas dos dois lados dos combatentes. Ao fundo os restos carbonizados de uma floresta devastada formavam desenhos esqueléticos contra um céu violento, carregado de nuvens de tempestade.
Sim. O cheiro no ar era o de madeira queimada, intensificado pela chuva recente...
Confusa e desorientada, Anigel observou por algum tempo a tapeçaria pendurada na parede. Não era de tecido. Do que era feita? Que terra pretendia descrever? E que tipo de inimigo era aquele que a heroína bárbara estava prestes a destruir? Parecia importantíssimo para a rainha Anigel saber essas coisas, mas ela não entendia por quê. Vasculhou sua mente até chegar às respostas.
Penas. A tapeçaria brilhante era feita de camadas de penas elaboradamente trançadas, e a mulher triunfante ia matar um homem de barba ruiva encolhido com uma aparência estranhamente familiar. Ele usava uma capa vistosa e segurava o cabo trabalhado de um machado de batalha.
Penas...
Sobrania.
De repente ela soube, sem sombra de dúvida, que estava naquele país do extremo ocidente onde o clima era clemente a maior parte do ano e onde vivia uma variedade imensa de pássaros nas florestas férteis. A Terra dos Bárbaros Emplumados era uma coleção de pequenos reinos e tribos espalhados, onde o autoproclamado ”imperador”, Denombo, reinava, mas não governava realmente o povo truculento. Mas Sobrania ficava a milhares de léguas do Pântano Labirinto. A única maneira que ela poderia ter sido transportada para lá seria...
— Não! — gritou ela.
A rainha começou a lutar contra o que a prendia com toda a sua força, mas foi em vão. Estava indefesa como um togar engaiolado numa venda de pássaros.
Mas por que, ela se perguntou, o meu trílio-âmbar não me protegeu quando caí nas águas da enchente do rio?
Será que foi porque ela não conseguiu formular a oração a tempo... ou será que havia um outro motivo? Será que tinha perdido o amuleto? Algum vilão o tinha tirado dela? Não havia como saber, pois a coberta chegava até seu queixo e ela não podia movêla, apesar de todo aquele esforço inútil.
Finalmente rendeu-se, exausta, e fechou os olhos, tentando não chorar. Raiva, frustração e medo tomaram conta de seu ser, mas ela se recusava a desistir de lutar contra esses sentimentos, respirando lenta e profundamente, procurando se acalmar. Tentou pensar em quem podia tê-la capturado, e por que motivo, mas sua mente confusa não apresentou respostas e até o simples fato de pensar fazia sua cabeça doer.
Trílio Negro, ela rezou desesperada, ajude-me! Ajude-me!
Por um instante, a Flor de três pétalas pareceu brilhar por trás das pálpebras cerradas. Então a rainha Anigel caiu novamente num sono sem sonhos.
— Dama de Branco, todos que servem aqui na Torre imploram... não cometa esse ato mortífero!
Lágrimas pendiam dos enormes olhos não humanos de Magira, a castelã vispi da Torre da Arquimaga. Por um momento o corpo longilíneo e elegante da mulher aborígine pareceu piscar e desaparecer, restando apenas aqueles olhos verde-gelo, transbordantes de sofrimento e apreensão, brilhando à luz fraca do quarto da Arquimaga. Então os olhos piscaram e Magira tornou-se visível outra vez, com seu vestido vermelho e colar de pedras preciosas. O contorno do seu rosto era quase humano, a não ser pelos olhos grandes demais e pelas orelhas em pé quase escondidas sob o cabelo claro. Ela e os outros da sua raça serviam zelosamente a Haramis desde que tinha assumido a capa branca do seu ofício.
O povo vispi era famoso pelo seu sangue quente, mas Magira estava tremendo violentamente por causa da intensidade da emoção que sentia, abraçando o próprio corpo como se tentasse afastar um frio mortal.
— Perdoe-me! — gemeu ela, desaparecendo outra vez por um breve momento, como a sua espécie fazia quando dominada por forte emoção, e quando se rematerializou parecia mais composta. — Imploro urgentemente para que reconsidere. Não entre no viaduto que engoliu sua irmã, a rainha.
Haramis estava sentada a uma pequena mesa na sua sala de estar particular, onde fazia as últimas anotações na sua lousa mágica sobre a procura de armas antigas que as tribos deviam fazer no mar. Já era quase meia-noite, a hora que escolhera para partir. A última tempestade de neve que varrera as montanhas Ohogan já havia passado e as Três Luas brilhavam intensamente pela janela da sala numa noite de frio intenso, prateando as folhas e as flores do grande Trílio Negro no vaso.
— Magira, querida amiga, eu já resolvi — disse a Arquimaga com firmeza e simpatia. — Você deve tranqüilizar os outros e dizer que só estou fazendo isso porque não tenho opção. Sinto muito por você estar tão aflita...
Magira interrompeu sussurrando e com a voz trêmula.
Dama de Branco, em todos esses anos em que tenho servido aqui, nunca tive a pretensão de questionar sua sabedoria. Mas essa viagem que a senhora quer fazer pelo viaduto é diferente. A senhora sabe que nós, os vispis, somos um povo muito antigo, encarregado de cumprir tarefas especiais pelos nossos criadores, os Desaparecidos. Por milhares de anos, as lembranças dos nossos deveres foram diminuindo, foram se apagando, e muita coisa foi esquecida ou virou lenda. Mas a nossa obrigação com relação aos viadutos permaneceu bem clara: recebemos ordem de fugir deles porque são mortalmente perigosos, e de cuidar para que nenhum outro ser entre neles inadvertidamente. Se a senhora entrar em um daqueles portais secretos, podemos nunca mais vê-la! Só os Desaparecidos compreendiam como funcionam esses viadutos. Outros que ousaram entrar jamais retornaram. Dizem que a coisa mais terrível sobre os viadutos é que eles não levam um intruso para uma morte limpa, e sim para um reino de horror sem fim onde a alma continua viva, em agonia ou pavor para sempre, sem nenhuma esperança de escapar.
— Não posso simplesmente ficar aqui, esperando que as coisas aconteçam — disse Haramis com determinação. — Todos os dias descubro novas maldades dos comparsas de Orogastus. Ainda não contei para você a última enormidade, que só confirmei esta manhã. Sete outros chefes de Estado, além da minha irmã Anigel, desapareceram misteriosamente. Os queridos Widd e Raviya de Engi, a rainha de Galanar, o rei de Raktum e os chefes executivos eleitos de Imlit e Okamis. Todos eles desapareceram um pouco antes da rainha Anigel ser capturada. Ninguém nas nações afetadas admitiu para mim o que havia acontecido... certamente por medo de que os governantes seqüestrados fossem assassinados. Só confirmei a ausência deles através da magia do meu talismã, depois que os meus pedidos de audiência com eles pessoalmente foram estranhamente negados. Desde então, contei para os líderes de Var, Zinora e Tuzamen o que havia acontecido, e também recomendei que o rei Antar tivesse cuidado. Eles tomarão precauções Para também não serem seqüestrados.
— A senhora acha que os governantes humanos capturados foram levados através dos viadutos, do mesmo jeito que a rainha Anigel?
— Não tenho dúvida alguma. E isso torna muito mais urgente eu localizar o quartel-general da Guilda da Estrela, e o mais depressa possível. Não posso mais esperar, enquanto Kadiya faz uma longa viagem por mar até Sobrania. Se não agir logo, estarei dando vantagem para Orogastus. Não se preocupe comigo, Magira. Vou entrar invisível no viaduto que engoliu a rainha Anigel, armada com a minha magia mais poderosa.
— Mas se alguma coisa der errado...
— Tenho certeza de que o Círculo de Três Asas e o amuleto de trílio-âmbar dentro dele vão me dar segurança. — Haramis levantou da mesa, aproximou-se de Magira e pôs a mão no ombro da castelã. — Não tenho outra opção, querida amiga. Kadiya tinha razão quando me disse que o viaduto pelo qual Anigel foi abduzida era nossa única pista significativa para a localização dos degenerados Homens da Estrela. Certamente deve levar para uma região próxima da fortaleza da Guilda, isso se não der exatamente no interior do próprio quartel-general. Não pretendo atacar os Homens da Estrela neste momento nem provocar qualquer conflito direto. Vou simplesmente observá-los. Se tudo der certo, voltarei antes do amanhecer.
A castelã fez uma mesura.
— Muito bem, Dama de Branco. Que os Senhores do Ar a defendam.
Magira saiu da sala.
Haramis foi para seu quarto e vestiu uma roupa que mandara o costureiro da Torre fazer sob medida, uma túnica com capuz e calça de tecido branco à prova d’água. Calçou também luvas e botas de couro, e no cinto havia uma bolsa com comida, água e um pequeno canivete. Por cima dessa roupa, pôs a capa de Arquimaga. Depois de ajoelhar e rezar um pouco, ergueu o Círculo de Três Asas.
— Talismã, ordeno que me faça invisível para todos os olhos. Feito isso, ela se transportou para aquele viaduto no Pântano Labirinto através do qual sua irmã, a rainha, tinha sido sequestrada. Quando a habitual visão cristalina do seu destino adquiriu solidez, Haramis se viu de pé num pequeno pedaço de terra seca no meio do pântano alagado. Era noite e chovia, mas sua mágica lhe dava uma visão clara do local. Tinha estado ali antes, é claro, procurando pistas dos captores de Anigel. A lama pisoteada em volta do local do viaduto já tinha sido alisada há muito tempo pelo temporal incessante. A única coisa estranha no lugar era uma linha reta quase imperceptível com mais ou menos uma vara de comprimento que marcava persistentemente a terra encharcada. Seu talismã poderia mostrar o viaduto se ela fizesse o pedido, mas já era hora de usar meios sem mágica para conseguir isso.
Haramis conjurou em sua mente uma visão do portal sinistro e, ao mesmo tempo, disse:
— Ativar sistema do viaduto.
E ele apareceu, anunciado pelo costumeiro dobrar de sino, um grande disco mais negro do que as sombras da noite, encostando um ponto no chão e com uma aura discreta de luz perolada. Não tinha profundidade e a superfície da frente era idêntica à de trás. O pretenso viajante podia entrar por um lado ou pelo outro, tanto fazia.
Haramis lembrou do que lera rapidamente no livro de Iriane que os viadutos tinham dois modos principais de operação. Podia-se simplesmente entrar neles e ser automaticamente levado para um destino predeterminado, como ela mesma havia um dia viajado do Planalto Kimilon para a casa de Iriane no mar Aurorai. Ou então podia-se entrar e no mesmo instante dar um comando mental bastante complicado, pedindo para ser transportado para o local desejado. Haramis não pretendia arriscar essa última opção até compreender melhor os viadutos.
O único sinal de que aquele maravilhoso artefato dos Desaparecidos era mais do que um recorte de ébano impenetrável era uma leve brisa do ar em movimento que emanava dele. Mais cedo, quando Haramis havia ativado experimentalmente aquele viaduto específico, mas não ousara entrar nele, aquela brisa vinda de lugar algum levava um perfume agradável de madeira. Mas agora, por estranho que parecesse, o cheiro era indiscutivelmente de pão sendo assado!
Ela perguntou para o talismã.
— Para onde leva esse viaduto?
O Círculo de Três Asas respondeu: A pergunta não é válida.
Ela deu um suspiro. Era o que esperava. O viaduto só revelava seu segredo de uma maneira. Ela entrou nele.
Agora, sentia novamente a mesma sufocação horrível que havia sentido na viagem para o reino setentrional da Dama de Azul, a mesma sensação de estar pendurada no vazio, enquanto sua mente explodia ao acompanhamento de uma nota musical gigantesca e pulsante.
A viagem para o iceberg artificial de Iriane levara menos de um segundo. Mas esta passagem era mais prolongada e levou Haramis à beira do pânico, pois a explosão parecia continuar indefinidamente, separando cada tecido do seu corpo nos seus átomos distintos, espalhando-os sem nenhuma chance de recuperação, deixando sua alma à deriva num vazio que pulsava como marteladas.
Oh, meu Deus, ela pensou. Será que afinal me abandonou? Será que estou presa aqui no escuro para sempre?...
— Bem-vinda.
Ela ouviu uma voz rascante, sentiu o cheiro maravilhosamente familiar de pão quentinho mais forte ainda, sentiu um súbito calor e uma superfície firme sob os pés, viu...
Um homem muito velho com a pele marrom e olhos prateados, com grandes pupilas negras, que a cumprimentou movendo a cabeça. Ele deu um sorriso de prazer. Era óbvio que o talismã não tornara a Arquimaga invisível para ele. O cabelo branco do homem era crespo e se destacava da cabeça dele como lã rala de zuch. Usava um manto preto empoeirado que ia até o chão, com um chuvisco de diamante sem lustre na bainha, e por cima desse manto um avental comum de cozinheiro que precisava ser lavado.
Ela ficou boquiaberta olhando para ele, espantadíssima e sem fala. Os dois estavam numa espécie de saguão com o disco negro do viaduto no meio e quatro corredores que se afastavam como raios de uma roda. O velho fez sinal para Haramis segui-lo por uma distância curta através de um dos corredores e entrou por uma porta que já estava aberta. A sala era bem iluminada, estava entulhada de coisas e era bizarra, mas mesmo assim dava para ver que era uma espécie de cozinha. Ao longo de uma parede esverdeada havia uma bancada de metal coberta de cestas de frutas frescas, legumes e verduras, potes transparentes de mel, vidros coloridos de geléia e conservas, e pequenos tubos de temperos desidratados. Panelas e frigideiras de cobre pendiam de ganchos no teto, e nas prateleiras de um armário havia pequenas máquinas de função desconhecida e uma variedade assombrosa de caixas e recipientes de cerâmica, todas etiquetadas com um alfabeto que Haramis não conhecia. No meio dessa cozinha havia uma mesa exoticamente decorada, com um banco ao lado. Em cima dela havia um grande pote de vidro coberto com uma toalha xadrez vermelha, uma placa de metal com algum alimento meio moído espalhado sobre ela, um pouco de manteiga num prato e uma grande faca serrilhada. Encostados em outra parede havia o que parecia ser mais armários para guardar coisas e também diversas portas singulares com pequenas janelas, uma um pouco iluminada por dentro. Acima dela uma pedra vermelha brilhante piscava lentamente.
— Bem na hora! — disse o velho dando uma risadinha. — Eu sei que devia deixar esfriar, mas é muito mais gostoso logo que sai do forno.
Ele pegou um par de pegadores de panela acolchoados e abriu a porta brilhante na parede. Tirou lá de dentro uma chapa de metal com três bisnagas morenas compridas e finas em cima. Bateu a porta do forno (e a luz vermelha apagou) e transferiu o pão para um cesto de arame. Então tirou seu avental e começou a lavar as mãos cheias de farinha numa maravilhosa pia sem torneira, que aparentemente produzia água quente e fria com um simples pedido.
— Nós não fomos apresentados formalmente — continuou o homem, olhando para ela por cima do ombro enquanto sacudia o excesso de água na pia e secava as mãos em outra toalha xadrez. — Eu sou Denby Varcour, seu colega celestial — ele deu meia-volta, fez uma pose e apontou para o pão fumegante com o dedo indicador. — Não posso esperar. Pachuf! — Ele deu uma risadinha quando uma das bisnagas executou uma espécie de salto, subindo um pouquinho no ar e depois caindo de novo no cesto. — É! Assim esfria na medida.
Ele pegou uma bela bandeja de madeira numa bancada lateral e começou a enchê-la, abrindo um armário depois do outro. Encontrou dois pratos de cristal facetado e canecas formando um conjunto, e um par de pequenas facas de prata. Pegou um jarro de vidro com um líquido branco no que aparentemente era uma caixa-gelada mágica que ficava perto da pia, depois pegou o prato de manteiga que estava na mesa, a grande faca serrilhada e a bisnaga que acabara de encantar.
— Você prefere geléia ou pasta de carne? — perguntou ele. Ela só conseguiu sacudir a cabeça sem dizer nada.
— Você está certa. Puro e simples é melhor, se é! Venha comigo.
Ele empurrou uma porta de mola com o pé e os dois passaram para uma grande sala que era um caos de bagunça e que parecia ser um estúdio ou biblioteca. As estantes não tinham apenas livros, mas também recipientes transparentes cheios de lousas mágicas que ela sabia serem o material de referência dos Desaparecidos. Havia artefatos peculiares de metal que poderiam ser instrumentos científicos aqui e ali, sobre estrados. Marchando na frente dela, Denby deixou a bandeja numa mesa de madeira diante de uma vastidão de cortinas de veludo azul. Ao lado da cortina havia uma porta grande e redonda com uma placa toda elaborada com pedras preciosas no lugar de trinco ou maçaneta.
Com um movimento rápido de um dedo Denby fez livros, papéis e pequenos artefatos pretos misteriosos caírem da mesa no tapete, criando espaço para eles comerem. Ele puxou uma cadeira de couro e indicou para Haramis sentar, depois sentou na cadeira de frente para ela.
— Esqueci os guardanapos — observou ele, com uma piscadela. — Mas tudo bem. Um dos zeladores cuidará disso.
Ele estalou os dedos. Num segundo uma pequena máquina surpreendente, como um lingit mecânico, cujo corpo era uma caixa aberta, entrou pela porta da cozinha e subiu na mesa. Um dos seus membros cheios de articulações tirou dois quadrados de linho dobrados do seu recipiente nas costas e os pôs direitinho ao lado de cada prato.
— Mais alguma coisa, mestre? — perguntou a coisa, com uma vozinha que parecia um zumbido.
— Talvez uma xícara de chá? — perguntou Denby para Haramis.
Ela balançou a cabeça, ainda tonta demais para conseguir falar. Denby disse para a máquina.
— Pegue essas coisas do chão e ponha naquela mesa lá — então ele cruzou as mãos nodosas atrás da cabeça. — Obrigado à Fonte da Luz Eterna por essa boa comida.
Ele pegou a bisnaga e cortou fatias com a faca de pão. Ainda estava suficientemente quente para soltar um pouco de fumaça.
Passou manteiga nas porções dos dois e encheu as canecas com o líquido do jarro.
— É leite frio de volumnial. Vocês ainda bebem isso lá embaixo, não bebem?
— Bebemos... — ela pegou seu pedaço de pão, fitou-o um instante, depois olhou para seu anfitrião. — Você é ele. O Arquimago do Firmamento.
De boca cheia, o velho fez que sim com a cabeça, muito feliz.
— Então foi você que abduziu minha irmã, Rainha, e os outros governantes humanos?
Denby balançou a cabeça, ainda mastigando.
— Só você. Era necessário — o velho tomou um gole de leite e depois limpou os dedos engordurados no guardanapo. — Modifiquei a programação do viaduto de Oro temporariamente para trazê-la para me visitar. É claro que sou capaz de dar contra-ordens para as diretrizes de transporte de qualquer outro.
— Então... Anigel e os outros não estão aqui?
— Não. Mas você, sem dúvida nenhuma, está! E para ficar... pelo menos algum tempo.
Ele deu uma gargalhada escandalosa, resfolegando e balançando o corpo para a frente e para trás, lançando farelo de pão para todos os lados. A pequena máquina doméstica começou a limpar tudo pacientemente.
Haramis estava lutando para manter suas emoções sob controle.
— O que quer dizer... para ficar?
— Oh, querida criança! Teremos conversas tão maravilhosas, você e eu. Você deve me contar toda a sua vida... e as vidas das suas irmãs também. Tenho andado tão desgostoso com o mundo lá embaixo, mergulhado num desespero melancólico. O que fazer, o que fazer! Providenciei para Orogastus nascer antes de Binah criar o novo projeto, e desde o começo pensei que o dela era tolo e fútil. Mas a sentimental Iriane adorou, e as duas se uniram para me convencer a experimentar. Eu não podia acreditar que três meninas seriam capazes de consertar as coisas, se nós tínhamos tentado e falhado, mas vocês, trigêmeas, realmente encontraram as partes do Cetro. Parecia que, afinal de contas, havia mesmo algo de mágico em vocês... algo que tinha relação com a sua maneira de concentrar e influenciar a trama do destino do mundo. Pétalas do Trílio Vivo combinadas com a ressurgência da Estrela!
Ciência mágica contra mágica científica! Nunca previ a lógica disso, e agora não importa mais. Vocês acabaram fracassando, exatamente como eu imaginara. Mas vou cuidar para que tudo dê certo no final. Espere e verá.
— Eu não sei do que você está falando — disse Haramis, muito confusa.
Ele deu uma piscadela astuciosa.
— Aquele trílio-âmbar de vocês possui magia verdadeira... bem maior do que a ciência mágica da Estrela e da Universidade dos Arquimagos. É muito intrigante... e perigoso também! Eu tinha um pouco de medo que o âmbar pudesse evitar que eu a trouxesse até aqui para arrematar tudo, mas tudo funcionou maravilhosamente bem.
Ela concluiu que ele estava mesmo louco, assim como Orogastus tinha dito, mas deu uma resposta calma.
— Sinto muito não poder aceitar seu gentil convite para ficar, Arquimago do Firmamento. Para falar a verdade, pretendo deixálo agora mesmo. Há outros assuntos importantes que exigem a minha atenção.
Ela segurou o Círculo de Três Asas, visualizou a Torre no monte Brom e ficou esperando a visão cristalina que sempre precedia o transporte mágico.
Não aconteceu nada.
O bom humor burlesco de Denby desapareceu do rosto dele com a mesma rapidez que uma pegada na areia se desfaz com a onda do mar, deixando sua fisionomia carrancuda e triunfante. Ele se levantou, apoiou os punhos na mesa, e a voz dele, que antes era rouca e fraca, adquiriu uma ressonância metálica.
— A magia que você aprendeu com Iriane não funciona aqui, Haramis. Ela tira a sua potência da terra, que é seu domínio pessoal como Arquimaga. E seu talismã também não vai obedecer às suas ordens, porque o poder dele deriva das fontes planetárias, e você está fora da esfera de influência delas também. A única maneira de sair daqui é através dos viadutos que eu controlo... ou por ali — ele deu uma risada zombeteira, apontando para a porta redonda perto das cortinas. Ela era feita de um material metálico preto, com uma única e enorme dobradiça. — Mas aquela porta leva para uma liberdade que é eterna, e só eu passarei por ela um dia.
O rosto de Haramis brilhava de raiva.
— Denby, estou avisando...
— Conforme-se, Arquimaga — o sorriso condescendente reapareceu. — Pretendo que você fique comigo até a hora apropriada de partir.
-— E eu digo que você se engana! Pois ainda posso recorrer a uma terceira fonte de poder mágico que é meu desde o meu nascimento.
Haramis tocou nas asas de prata que protegiam seu trílio-âmbar e elas se abriram, revelando uma luz minúscula muito brilhante, como uma estrela dourada. Denby deu um grasnido de consternação quando ela se levantou e foi até a porta redonda.
— Você tinha razão sobre a magia do meu amuleto — continuou Haramis. — Ele é independente do talismã e é capaz de ajudar-me de várias formas. Lamento não poder explicá-las para você. Basta dizer que o âmbar abre todas as trancas nesta sua casa... inclusive esta.
Denby deu um pulo, e suas feições envelhecidas e sombrias manifestaram um autêntico alarme.
— Haramis... espere! — gritou. — Você não compreende! Não pode abrir isso! Seria a sua morte!
Ele correu aos tropeços até a janela atrás da porta preta redonda e abriu as cortinas de veludo azul.
Haramis deu um grito de desânimo. Apoiada numa cadeira ela olhou atónita para a cena lá fora. Era um céu noturno, salpicado de incontáveis estrelas multicoloridas. Três corpos celestes iluminados de um lado pendiam no meio daquela profusão de pontos cintilantes... um parecia ter um tamanho modesto, azul e branco, os outros dois bem maiores e prateados, sem marcas reconhecíveis.
— Flor Sagrada! — sussurrou Haramis. — Você me trouxe para a sua Lua!
— Sim — disse Denby, agora quase se desculpando. — Você realmente não pode ir até eu deixar. É necessário que fique, acredite em mim... assim como é necessário que Iriane permaneça fora da jogada por enquanto.
— O quê? Você sabe do monstruoso cativeiro em que ela se encontra e não faz nada para ajudá-la? — Com os olhos em fogo ”aramis se aproximou do Homem Negro com passos largos e o segurou pelos ombros esqueléticos. — Seu lunático senil! Que tipo de jogo idiota você pensa que está jogando?
— Não é jogo! Não é jogo! — gemeu. — Ai! Isso dói. Controle-se, jovem Arquimaga! Eu tenho doze mil anos de idade e meus ossos são frágeis e meu pobre coração é fraco. Posso simplesmente cair morto se você for muito bruta comigo. Então você jamais voltará para casa.
Ela o soltou e disse com desprezo gélido.
— Explique-se, então. Onde está minha irmã Anigel, se não está aqui, e por que você ousou interferir no cumprimento das minhas obrigações solenes?
Ele levantou a mão num gesto conciliador.
— A rainha está a salvo, junto com os outros governantes. Orogastus os mantém trancados em seu castelo em Sobrania. Tudo faz parte do meu plano.
A gota de trílio-âmbar sobre o Círculo de Três Asas começou a brilhar como um pequeno sol, e o rosto de Haramis transfigurou-se de modo espantoso em sua firmeza colérica.
— Denby Varcour — disse ela —, eu ordeno, como sua colega e parceira Arquimaga, que me mande de volta para o mundo agora mesmo... ou terá de enfrentar conseqüências terríveis.
Os nervos abalados dele pareciam estar se acalmando. Ele inclinou a cabeça e fez uma careta provocante.
— Que conseqüências? Você pretende arrancar os dentes do meu crânio decrépito se eu desobedecer? Ou ir contra seu juramento sagrado e me matar... um velho excêntrico e fraco que só deseja o melhor para o mundo? Você poderia fazer isso facilmente só com suas mãos, você sabe. Mas imploro que espere um pouco, jovem e adorável Haramis. Eu a trouxe aqui por um motivo muito bom — sua expressão era de quem a repreendia de brincadeira. — E tinha tanta certeza de que você gostaria do novo pão...
— O que você quer? — gritou desesperada. Subitamente ele pareceu sério e lúcido ao mesmo tempo.
— Arquimaga, você sabe que o Mundo das Três Luas que você tanto ama está desequilibrado, ameaçado por uma catástrofe.
— Eu... eu sei disso. Minhas irmãs e eu tentamos recuperar o equilíbrio, como foi profetizado que faríamos. Uma vez achamos que tudo ficaria bem, quando Orogastus foi derrotado, mas não foi isso que aconteceu. Agora suspeito que só a união das partes do Cetro do Poder será capaz de acabar com o perigo que nos ameaça.
— Isso! — afirmou o Arquimago do Firmamento. — Ele detém o segredo sim. O Cetro, aquele maldito instrumento que é capaz de restaurar o mundo e também de aniquilá-lo. Você tem uma parte, e as outras duas estão... — o velho parou de falar e balançou a cabeça. — Mas esse assunto é muito mais complexo do que isso.
— Então explique — exigiu ela.
Ele tentou dar um pequeno sorriso.
. Acho que facilitaria a sua compreensão se você primeiro permitisse que eu mostrasse uma coisa. Pode me acompanhar até aquela Lua lá? Há um viaduto na alcova ao lado da estante do meio.
Ela franziu a testa.
— Orogastus falou de uma Lua do Jardim e de uma Lua da Morte.
— É para essa última que temos de ir. — Denby gesticulou, abriu o viaduto, o som conhecido do sino soou e um disco escuro apareceu. — Não estou tentando enganá-la, moça. Vou primeiro, se você preferir.
Ele desapareceu. Haramis hesitou um pouco.
— A Lua da Morte! Devo ser tão louca quanto o Denby. Haramis segurou seu talismã, murmurou uma breve prece e foi atrás dele.
Os dois apareceram lado a lado num pedaço redondo de um tablado transparente, suspenso num crepúsculo vermelho e sombrio. Acima deles, abaixo e de todos os lados, até onde a vista alcançava, flutuavam miríades de esferas douradas de cerca de duas varas de diâmetro, cada uma ligada às outras mais próximas por fios diáfanos, quase invisíveis, como se estivessem presas em uma teia de lingit enorme, elegantemente tecida, cheia de imensas gotas de orvalho. Quando os olhos dela se acostumaram com a luz, Haramis compreendeu que as esferas eram transparentes, repletas de algum tipo de névoa luminosa. Dentro de cada uma havia uma forma humana, imóvel, com trajes estranhos.
— Amados Senhores do Ar — exclamou Haramis, chocada. - Deve haver milhares e milhares deles! Quem são eles?
— São Aqueles que Não Puderam Desaparecer — disse Denby Varcour.
— Eles estão realmente mortos? — perguntou Haramis, cheia de pena e horrorizada com a visão das incontáveis bolhas brilhantes e dos corpos dentro delas... homens, mulheres e crianças.
— Não — disse Denby. — Eles estão dormindo, como devem continuar fazendo, esquecidos por todos, menos por mim e pelas sindonas sobreviventes.
— Mas por que você não pode libertá-los? — exclamou. — As pobres almas... nem mortas nem verdadeiramente vivas! É terrível!
— Esperei doze mil anos pelo momento certo. Mas ele nunca chegou. Se essas pessoas revivessem agora... — ele interrompeu a frase e balançou a cabeça.
— O que aconteceria? — quis saber Haramis.
— Vou contar tudo para você, moça — disse Denby, segurando o braço dela e levando-a de volta para o disco negro do viaduto. — A verdadeira história. Não as meias-verdades que você soube com Iriane no seu tempo de estudos. Mas não podemos conversar aqui. Não nessa amaldiçoada Lua da Morte. Venha comigo.
Sem querer ela foi levada de novo para a escuridão tilintante. Quando completaram a passagem estavam em outro lugar que, à primeira vista, parecia bem comum, um hexágono pavimentado de doze varas de diâmetro, cercado por um parapeito de pedra. O sol brilhava muito lá em cima e por um momento ela sentiu uma onda enorme de alegria e alívio, pensando que tinham retornado para o mundo em que ela nascera.
— Venha dar uma olhada — disse Denby, indo para a beirada da plataforma e acenando com o braço como se a convidasse.
Ao lado dele, Haramis deu um grito de espanto. Ela e o Arquimago do Firmamento estavam em cima de uma enorme pirâmide composta de platôs empilhados. O nível logo abaixo deles tinha canteiros geométricos de flores azuis e cor de laranja, intercalados com pomares de árvores pequenas, carregadas de frutas de diversas espécies. O terceiro terraço, de cima para baixo, tinha bosques de árvores maiores e áreas como clareiras, onde alguns animais pastavam e espelhos irregulares de água cintilavam ao sol. Mais embaixo, havia outros terraços verdes, largos e envolventes, que se estendiam até as profundezas nevoentas. Haramis ergueu os olhos e contemplou a paisagem mais adiante. Ficou espantada ao descobrir que havia outras pirâmides imensas, quase invisíveis, em todas as direções. Não havia horizonte, apenas uma concavidade estonteante que se elevava com infinitas proeminências misteriosas. E o que ela primeiro pensou que eram nuvens escuras com formas estranhas na abóbada azul do céu, na verdade eram mais formas hexagonais, uma perto da outra, com o ”sol” obscurecendo as menores que ficavam logo acima da cabeça dela. Eles estavam dentro de um globo colossal cheio de jardins piramidais, com uma brilhante fonte de luz no centro.
— Numa época existiam casas e edifícios de lazer e locais para jogos aqui — disse o Homem Negro. — Mas o vazio neles me entristecia, por isso pedi para as sindonas levarem tudo embora, menos as plantações e os elementos na Gruta da Memória — ele segurou o braço de Haramis novamente. — Vamos descer para a gruta agora. Mas eu queria que você visse a Lua do Jardim primeiramente deste lugar privilegiado.
O viaduto tinha se transformado num poço negro e redondo exatamente no centro da plataforma. Antes de Haramis poder dizer qualquer coisa, Denby pisou calmamente nele e sumiu de vista.
— Nunca vou me acostumar com isso — murmurou Haramis, zangada.
Agarrada ao seu talismã, seguiu o velho.
No mesmo instante ela se viu numa clareira ensolarada no meio de uma floresta, ao lado do seu sorridente anfitrião. Um pequeno lago cintilava ao longe. Haramis examinou a vegetação peculiar no solo, que apresentava uma certa familiaridade. A relva era muito fina e macia, não tinha as bordas serrilhadas, e estranhas flores silvestres amarelas e carnudas cresciam aqui e ali, nos lugares iluminados pelo sol.
— O Lugar do Conhecimento tinha plantas estranhas como essas — observou ela.
— Sim. Aquele era o arquivo da paisagem floral da nossa universidade. Mas a minha é muito mais bonita, você não acha? — o velho estendeu a mão e arrancou uma flor esférica com sementes. — Essas são as plantas do nosso mundo de origem, mantidas nos dois lugares por motivos sentimentais e também por seu genoma exclusivo — ele assoprou e as sementes voaram, penduradas em minúsculos pára-sóis. — Milénios atrás essas plantas serviram de matrizes para as híbridas que são as plantas mais valiosas lá embaixo. É claro que havia muito mais variedades antes do Gelo Conquistador chegar e destruir o equilíbrio ecológico e geofísico.
— Não estou entendendo.
— Claro que não! Esse é um dos motivos de você estar aqui.
— Ele virou-se e começou a andar na direção do lago, puxando-a para ir junto com ele. — A Gruta da Memória é mais adiante, entre aquelas rochas do outro lado do lago. Tem uma coisa interessante lá dentro que quero mostrar para você, e lá podemos sentar e descansar um pouco também.
Rodeando o lago, Haramis admirou as flores exóticas cor-de-rosa e brancas que cresciam na água, cercadas de folhas redondas e chatas que flutuavam na superfície como jangadas. Estranhos animaizinhos verdes se acocoravam nas folhas e olhavam para ela com olhos dourados saltados, e um inseto muito grande de quatro asas esvoaçava logo acima da superfície da água, mantendo distância daqueles sentados nas folhas.
— É hora de você conhecer a história do Mundo das Três Luas — disse Denby quando chegaram à boca da caverna. Era larga, mas só um pouco mais alta do que eles. — Sei que Iriane contou alguma coisa para você quando estudou com ela, mas há muito mais. Por favor, entre.
A caverna era quase aconchegante, do tamanho de uma pequena sala de cabana. De algum lugar na escuridão surgia o tilintar de água caindo. Samambaias cresciam exuberantes nas paredes e no teto, e o chão era atapetado com musgo. No centro havia um pedestal baixo com uma bola de pedra com cerca de uma vara de diâmetro. Atrás dela havia um banco curvo de madeira.
Denby encostou a mão na bola. Ela brilhou por dentro no mesmo instante e ficou toda azul com uma única área irregular de ocre e marrom-escuro, salpicada de azul.
— Ora, é uma representação do nosso mundo! — exclamou Haramis. — Reconheço o único continente dos mapas da minha biblioteca na Torre, apesar da forma neste globo parecer um pouco diferente. Mas onde está a Calota de Gelo Sempiterna?
— Ah! — crocitou Denby. — Isso mostra o planeta como ele era antes da chegada da humanidade... quando os skriteks viviam em abominável supremacia no topo da evolução animal — ele apontou a mancha marrom com o dedo indicador. — Você está certa quando diz que o continente tinha o contorno um pouco diferente então. O mar era mais alto, mas a terra também era... porque não tinha sobre ela o peso de um espesso manto de gelo cobrindo a metade da sua superfície.
Ele indicou para ela sentar no banco. Uma das máquinas domésticas onipresentes chamadas de zeladores apareceu, chegando discretamente nas pontas dos pés, no crepúsculo viridente, carregando dois copos de vidro com um líquido roxo-avermelhado na caixa que tinha nas costas.
— A bebida que o senhor pediu, mestre — zumbiu a maquininha. — Mais alguma coisa?
— Traga-me um diagrama esquemático do Cetro Tríplice do Poder — disse Denby, dando um copo para Haramis e pegando o outro para ele. O zelador se afastou furtivamente para as profundezas da caverna.
Haramis olhou para a sua bebida como se examinasse um pote vidente. O perfume era ao mesmo tempo inebriante e familiar. Era conhaque de amora-da-garoa, uma das bebidas favoritas em Ruwenda, seu lar.
— O Cetro... então ele está bem no centro da questão?
— Ah, sim, moça. Tem sido ao mesmo tempo nossa esperança luminosa e a nossa maior ameaça desde que o desequilíbrio do mundo aumentou. Mas deixe-me contar toda a história para você, do meu jeito.
— Suponho que também tenha contado essa história para Orogastus, quando ele esteve aqui.
O velho deu uma risadinha.
, — Três Pétalas do Trílio Vivo e o último Mestre da Estrela... É claro que contei para ele! E ele aprendeu mais investigando os meus arquivos, descobrindo de que forma o desequilíbrio pode ser corrigido. Foi para isso que ele nasceu. E foi para isso que vocês nasceram!
E ele começou a cantar:
Um, dois, três: três em um.
Um, a Coroa do Ilegítimo, o dom da sabedoria, o amplificador do pensamento.
Dois, a Espada dos Olhos, distribuindo justiça e misericórdia.
Três, o Bastão das Asas, revelador e unificador.
Três, dois, um: um em três.
Venha, Trílio. Venha, Todo-Poderoso.
”Esses são os versos! Esse é o segredo! A maneira de invocar o Trílio Celeste e curar as antigas feridas do mundo! Binah e Iriane pensaram que vocês três seriam capazes de fazer isso, mas eu apostei o meu dinheiro em Orogastus. É impossível unir todas aquelas nações e tribos diferentes com doçura e luz, você sabe. É contra a natureza humana... contra a natureza aborígine também. Força! Essa é a única maneira de conseguir as coisas. Esmagar a oposição! Nós experimentamos a persuasão e a argumentação durante a guerra de encantamento, e aonde isso nos levou, hein? Desastre, foi isso! E no fim, a uma Lua da Morte. Nunca poderia deixar que eles despertassem nesse ambiente primitivo. Eles destruiriam sua civilização simples com sua ciência e alta magia... e a turbulência ia começar de novo.”
Ele tinha se levantado durante o discurso febril, com os olhos arregalados e soltando perdigotos. Ela recuou alarmada.
Ele está mesmo louco, pensou Haramis. Tão desequilibrado quanto o mundo...
— Eu sei o que você está pensando — cantarolou.
O frenesi evaporou e Denby sentou novamente no banco. Tomou um gole do copo de conhaque, ficou olhando fixo para o mundo simbólico e brilhante, e deu um suspiro desconsolado.
— É, eu sei mesmo o que você está pensando, e você tem razão. Sou um lunático. Foi por isso que nunca consegui consertar as coisas sozinho.
Duas grandes lágrimas escorreram pelo rosto escuro e enrugado de Denby.
— Você ia me contar a história — disse Haramis, gentilmente. — Comece, por favor.
Ah!, muito bem - disse Denby Varcour. - O problema começou doze vezes dez séculos atrás.
Naquela época o mundo inteiro era exatamente igual a esse globo. O continente tinha uma miríade de lagos com ilhas espalhadas neles, e foi nelas que construímos a maioria das nossas cidades. Você já viu algumas ruínas, nas profundezas do seu Pântano Labirinto. Lugares deslumbrantes como Trevista, cortados por canais e enfeitados com parques verdejantes e jardins. Nós modificamos a flora planetária original para atender às nossas necessidades e também alguns animais... apesar de já serem compatíveis com a nossa biologia básica.
A colonização foi um sucesso por muitos séculos. Então subitamente ficamos por nossa conta quando a ultra-estrutura política externa se desfez e passou a ser perigoso navegar pelo firmamento. Para alguns outros mundos isso significou uma calamidade, mas não para nós. Não mesmo! O nosso planeta era pequeno, mas totalmente auto-suficiente, nossa população era estável, esclarecida e satisfeita. Vivíamos o tempo que queríamos, depois passávamos em segurança para o além no momento apropriado, para seguir para um outro plano de existência. A maioria de nós era filósofo-trabalhador, mas havia muitos artistas também, e um quadro de cientistas e engenheiros profissionais que mantinha o maquinário necessário em ordem.
Eu era um desses, até começar a Era da Inquietude.
Para mim não é fácil explicar nossa Era da Inquietude para uma pessoa simples como você, acostumada com a vida numa cultura pré-industrial relativamente rude. (Não olhe assim para mim! Vocês não passam de bárbaros... uma cultura inteligente e primitiva... Ah, está bem. Peço perdão por insultá-la. Mas é verdade mesmo assim.)
Para você, o mundo em que vivíamos naquela época se pareceria com o paraíso. Ninguém tinha fome, doenças, ninguém era ignorante ou oprimido. Quase não se ouvia falar de crimes. Todos tinham um emprego gratificante, além de muito tempo livre para atender a outras necessidades. Mesmo assim, depois de anos de tranqüilidade, um descontentamento estranho e novo surgiu sem Aplicação. De repente, as pessoas começaram a questionar os antigos costumes, crenças e escalas de valores. Discutíamos apaixonadamente sobre coisas como a natureza do universo e o nosso lugar nele, sobre o que havia de mais profundo na vida, na mente, sobre o amor e o livre-arbítrio.
No princípio os debates eram civilizados e racionais, mas com o passar do tempo os grupos filosóficos discordantes foram ficando cada vez mais intolerantes e fanáticos. As controvérsias começaram a terminar em violência física. Isso devia ter servido de aviso para podermos prever o que vinha pela frente, mas não foi assim. Vivíamos em paz havia tanto tempo que não tínhamos armas de verdade. A agressividade parecia fazer parte da diversão e da excitação que estava varrendo o mundo.
Nem tudo que acontecia na Era da Inquietude era ruim. Invenções científicas proliferavam, inclusive os maravilhosos viadutos que eram capazes de transportar uma pessoa para qualquer lugar do mundo num piscar de olhos. Novas formas de entretenimento e novas escolas de arte foram surgindo. Construímos as Três Luas, originalmente como colónias de férias e parques de diversão para aqueles que estavam insatisfeitos com os tipos tradicionais de lazer. Apareciam novidades e mais novidades, discussões e mais discussões. Era um período excitante e também assustador, pois os mais sábios dentre nós suspeitavam que a nossa sociedade, que um dia tinha sido pacífica, nunca mais seria a mesma.
Nenhum dos nossos historiadores teve certeza de quem foi o primeiro responsável pelo renascimento da antiga arte humana que algumas pessoas chamavam de magia... mas de repente, lá estava ela, saída de lugar algum. Fascinante, não é?
A mágica foi mais do que apenas mais uma moda passageira. Os praticantes aprenderam a manipular os recursos internos da mente humana e também aquelas fontes misteriosas da ordem natural sobre as quais a mente pode exercer influência. Os mágicos autênticos são sempre ávidos de mais e mais poder... especialmente a habilidade de controlar outros seres humanos. Nós trabalhamos nisso, e o mais interessante foi que os que eram cientistas (como eu) acabaram se tornando os melhores magos. Nem todo mundo conseguia fazer mágica, é claro. Os que não tinham essa capacidade passaram a temer e a invejar os que tinham.
A medida que os mágicos foram conquistando uma influência maior, eles se dividiram em duas facções opostas: os mágicos, que eram muito corretos na utilização das suas habilidades do ocultismo, pelo chamado bem da humanidade, e os feiticeiros, que costumavam desprezar as pessoas que não eram adeptas e que achavam que tinham o direito concedido por Deus de dominar a sociedade.
Uma mulher chamada Nerenyi Daral foi a fagulha que finalmente acendeu nosso precário pavio social. Não se via entre nós o tipo de charme e magnetismo pessoal que ela possuía há milhares de séculos. Ela era extremamente bela e atraente, e não por meio da mera perfeição física, e sim graças ao seu intelecto brilhante, à sua força de vontade e à sua capacidade de impor lealdade e a forma mais profunda de devoção.
Ela fundou a organização dos feiticeiros chamada Guilda da Estrela e os melhores feiticeiros se juntaram para segui-la. O propósito expresso da Guilda era o aprimoramento forçado do mundo através da ciência mágica e a restauração das viagens pelo firmamento. O mago mais poderoso pertencia a um grupo de oposição chamado Universidade dos Arquimagos, que se dedicava a uma visão mais conservadora da sociedade, na qual ninguém jamais poderia ser oprimido pela magia, nem mesmo em nome do bem comum. Eu era o líder da universidade, e ninguém invejava essa minha posição.
O conflito entre as duas facções cresceu e se transformou numa guerra que durou mais de duzentos anos. Lutávamos com as armas mais geniais e com a magia que conseguíamos produzir. Perdemos mais de quatro quintos da nossa população e, no fim, o próprio planeta parecia lavar as mãos quanto a nosso povo, apesar de nós, magos, sabermos que o desequilíbrio na natureza era culpa da humanidade.
Desde o início da guerra de encantamentos, terremotos devastadores abalaram as regiões em que as piores batalhas eram travadas. Vulcões gerados por mágicas que deram errado apareciam onde nunca tinham existido antes, enchendo o céu de fumaça e transformando os dias em noites. Plantas e animais morreram de doenças misteriosas. Incêndios gerados por conflitos do ocultismo varriam as florestas e os campos. Quando as Três Luas brilhavam, exibiam uma cor horrível, como de sangue coagulado, um aparente presságio do grande desastre que estava por vir.
Então o clima começou a mudar.
Não pense que a temperatura mundial se precipitou abruptamente para marcas abaixo de zero. Nada disso! Os invernos realmente ficaram mais severos, mas o que realmente nos condenou foi uma aceleração do ciclo natural de precipitações. Tinha algo a ver com a poeira no ar, produzida pelos novos vulcões, e com a fumaça das florestas e planícies em chamas. Nas terras baixas as chuvas quase nunca paravam, e nas montanhas e nos planaltos do interior a neve caía em quantidades imensas e não derretia. Em vez disso ela ia se acumulando cada vez mais alta e se transformava em gelo com a compressão provocada pelo próprio peso. No fim de dois séculos de batalhas mágicas a Calota de Gelo Sempiterna se estabeleceu e teve início a verdadeira Era Glacial.
Mesmo então, quando a maioria das pessoas finalmente caiu em si, a Guilda da Estrela se recusou a abandonar seu objetivo original ou cessar as hostilidades. Nem mesmo as sindonas, aqueles nossos maravilhosos servos mecânicos, foram capazes de derrotar a Estrela. Desesperados, os membros sobreviventes da Universidade dos Arquimagos criaram um artefato tríplice chamado Cetro do Poder, que se destinava a compensar a terrível feitiçaria da Guilda da Estrela e a recuperar o antigo equilíbrio natural do mundo.
O Cetro foi confiado aos três Arquimagos principais, e um deles era eu. Nos dispusemos a destruir o quartel-general da Guilda, que se localizava nas montanhas Ohogan, na parte ocidental do mundo. Cada Arquimago detinha uma parte separada do Cetro, aqueles artefatos que vocês, Pétalas do Trílio Vivo, chamam de seus talismãs. Mas pedimos aos céus para nunca sermos forçados a pôr as três partes juntas e invocar toda a potência do Cetro.
Tínhamos medo dele, compreende?
Quando os talismãs eram usados separadamente, eram canais formidáveis do poder do ocultismo. Isso nós já havíamos demonstrado. Mas o Cetro unificado, teoricamente, comandaria uma magia toda-poderosa. Ele era capaz de se valer de toda a vitalidade do planeta e de todos os seres vivos que existiam nele, era capaz de não só derrotar a Estrela, mas também de reverter o insulto ecológico que tinha causado a Era Glacial.
Havia também o perigo de que o poder do Cetro Tríplice pudesse provocar a destruição do mundo desequilibrado.
E, por fim, não tivemos coragem de usar o artefato, nem mesmo para acabar com a guerra que tinha destruído nossa civilização. Em vez disso, cada um de nós, os três Arquimagos, ficou com uma parte do Cetro no ataque final à fortaleza da Guilda da Estrela. Tínhamos o apoio de um exército daquelas sindonas chamadas Sentinelas da Sentença de Morte, que têm o poder de matar.
Meus dois colegas lutaram com valentia contra os feiticeiros, mas pereceram na longa batalha. E eu, utilizando o Olho Ardente Trilobado, derrotei os Homens da Estrela numa batalha climática de magia contra magia. Depois, dei as três partes do Cetro para as sindonas, ordenando que elas as escondessem onde ninguém jamais pudesse encontrá-las.
Um punhado de feiticeiros sobreviventes escapou e se escondeu nos planaltos das geleiras perto do centro do mundo-continente. Nerenyi Daral estava entre os membros da Guilda da Estrela que foram capturados e aprisionados por nós no Abismo Prisão. A maioria dos meus colegas exigiu que a matássemos, mas eu não permiti, pois, assim que vi a Dama da Estrela em pessoa, apaixonei-me por ela de todo o meu coração e minha alma. E que o céu me proteja, eu ainda a amo.
Quando a grande guerra de encantamentos finalmente terminou, nosso lindo Mundo das Três Luas jazia em ruínas.
Menos de um milhão de pessoas havia sobrevivido. A calota de gelo monstruosa persistia, apesar da combinação de ciência e magia executada pela Universidade dos Arquimagos, e parecia inevitável que continuasse a crescer até cobrir toda a terra seca, exceto a costa e as ilhas. Em um mundo assim, a vida humana só poderia existir no nível mais primitivo e desesperador. Nem mesmo nossas colónias submarinas, dependentes de uma temperatura relativamente elevada do oceano para obter alimento, seriam capazes de sobreviver quando os icebergs dominassem as águas.
Nós sabíamos o que tinha de ser feito. Teríamos de desaparecer, abandonar o mundo e tentar encontrar outro lar além do firmamento externo. A maioria das pessoas começou a se preparar para a migração, enquanto nós, Arquimagos, nos incumbíamos de uma outra tarefa. Como dividíamos a responsabilidade pela guerra, fizemos um juramento coletivo de corrigir um pouco dos terríveis danos que a humanidade havia causado sobre o planeta. A nossa própria raça não podia mais sobreviver aqui, mas era possível que outra espécie, mais resistente, pudesse. Então, depois de milhares e milhares de anos, quando as geleiras derretessem, talvez o Mundo das Três Luas pudesse ser ocupado novamente por seres pensantes.
A nossa universidade criou uma nova raça, combinando as características hereditárias da humanidade e dos selvagens skriteks, os únicos aborígines conscientes que ainda viviam no pantanoso Planalto Ruwendiano, onde o clima não era severo demais. Os nossos laboratórios ficavam no Lugar do Conhecimento subterrâneo, também situado no Pântano Labirinto, onde havia existido a nossa maior universidade. A raça que acabamos criando foi a dos vispis, que eram seres belos e inteligentes, com uma capacidade modesta de utilizar mágica no seu dia-a-dia. Também criamos uma espécie de ajudantes para eles, pássaros telepáticos gigantes que vocês chamam de abutres gigantes ou voors, que ajudariam os vispis a viajar por suas aldeias espalhadas no meio do gelo e da neve.
Enquanto isso, chegava a hora da humanidade partir em busca de um novo lar.
Seis imensas naves de transporte tinham sido construídas e estavam à nossa espera perto das Três Luas. Como achávamos que a viagem ia durar muitos e muitos anos, todos a bordo teriam de dormir um sono mágico, do qual despertariam automaticamente num destino adequado. Uma das Luas foi modificada para servir de abrigo para os passageiros, já que levava algum tempo para prepará-los para o sono e para pô-los em recipientes especiais.
As primeiras cinco naves foram carregadas com os adormecidos e lançadas no firmamento com sucesso. E chegou a hora da sexta nave partir.
Como você sabe, minha querida Haramis, no último minuto muitos seres humanos resolveram ficar para trás. Alguns deles eram cabeças-duras que se recusavam a abandonar seus antigos lares, mas outros tinham motivos mais sérios para ficar.
Um novo desastre tinha acontecido.
Nerenyi Daral e vários outros membros importantes da Guilda da Estrela tinham escapado da prisão do abismo. Nós achávamos que a prisão era inexpugnável e não sabíamos nada do artefato mágico de segurança dos Homens da Estrela chamado de Cinosura. Esse aparelho, o mesmo que salvou duas vezes Orogastus da morte certa, fora retirado do cenário da última grande batalha pelos feiticeiros que conseguiram evitar ser capturados. Aqueles fugitivos acabaram encontrando um refúgio no Kimilon Inacessível, onde ativaram a Cinosura, e tiraram Nerenyi e alguns outros tenentes da nossa prisão.
Nós da Universidade dos Arquimagos não obtivemos sucesso nas nossas tentativas de recapturar os Homens da Estrela fugitivos. Quando chegou a hora de embarcar na última nave espacial nós hesitamos, temendo que os poderosos feiticeiros da Estrela pudessem descobrir alguma forma de escravizar os ingênuos vispis e frustrar o nobre plano no qual tínhamos trabalhado tanto.
Com a esperança de evitar isso, nós Arquimagos também resolvemos ficar para trás.
O último grupo de migrantes, já inconscientes dentro de suas bolhas-úteros, aguardava dentro de uma das Luas para ser transportado para a nave através de um viaduto. O mundo lá embaixo sofria com o inverno e tempestades terríveis varriam a terra e os mares. Com grande dificuldade tínhamos desativado todos os viadutos de terra que ainda não estavam enterrados no gelo, para que os Homens da Estrela fugitivos não pudessem usá-los. Nenhum de nós suspeitava que um único viaduto, localizado no Kimilon, havia sido liberado pelo degelo provocado pelo pequeno grupo inicial de fugitivos.
Estávamos no meio das manobras com a nave para que ficasse na posição adequada, antes de embarcar os passageiros quando aconteceu.
Nerenyi Daral e seu grupo passaram por aquele viaduto, chegaram à nave e tentaram assumir o controle. Houve uma luta breve, mas feroz. Dezenove dos vinte e oito membros sobreviventes da Guilda da Estrela e a maioria do nosso colegiado foram mortos. Restaram apenas seis Arquimagos sem ferimentos, e onze sobreviveram com ferimentos sérios. Capturei Nerenyi Daral, mas os oito feiticeiros que sobraram fugiram de volta para a superfície do mundo através do viaduto reprogramado e mais uma vez desapareceram.
Enviamos nossos feridos de volta para o Lugar do Conhecimento, para serem tratados pelas sindonas consoladoras, enquanto que o resto de nós tentava retomar nosso trabalho urgente de carregar a nave espacial. Mas um novo desastre havia ocorrido. A grande nave estava mortalmente danificada pelos raios artificiais das armas dos Homens da Estrela. Sendo semiconsciente, a nave nos avisou de sua inevitável destruição dentro de dois dias e também nos mostrou como poderíamos lançá-la rapidamente para longe das Três Luas, para que elas não sofressem nenhum dano quando a nave explodisse em milhares de fragmentos.
Movemos a nave para o outro lado do planeta, onde ela se consumiu numa bola de fogo mais brilhante que o sol.
Meus colegas Arquimagos se retiraram para o Lugar do Conhecimento, para cumprir o luto. Eu permaneci na Lua que agora tem o meu nome, como guardião daqueles que Não Puderam Desaparecer, junto com Nerenyi Daral, a Dama da Estrela, cujo corpo morto você já viu. Era minha intenção convertê-la através do meu amor, mas ela apelou para a fuga final, deixando-me sozinho com aqueles pobres adormecidos que jamais abririam os olhos para ver um novo mundo.
E desde então fiquei aqui perto deles, meditando sobre os recursos que tinha para aliviar seu triste destino e o do mundo.
Mais de onze mil anos se passaram. A Era Glacial parecia estar cedendo. Os pequenos bolsões de colonização humana suportaram uma existência difícil e primitiva, mas sobreviveram. E também sobreviveram os descendentes dos feiticeiros da Guilda da Estrela que escaparam, que ocultaram seus poderes e tentaram se misturar com as pessoas comuns.
Os vispis tiveram uma vida melhor, graças aos membros restantes da Universidade dos Arquimagos e de suas assistentes sindonas, que eram suas guardiãs benevolentes. Mas as nossas queridas criaturas não se multiplicaram com a velocidade que esperávamos. Como os vispis eram muito bonitos, os humanos que ficaram para trás às vezes se acasalavam com eles. Os filhos dessas uniões (que provaram ser mais férteis) muitas vezes não se pareciam com os pais. Alguns eram cruelmente abandonados pelos pais humanos ainda bem pequenos, e outros abandonavam a sociedade humana ou vispi para viver com a própria espécie até amadurecerem. Com o passar dos séculos as tribos se tornaram verdadeiras raças, os nyssomus, uisgus, doroks, lercomis e cadoons, os povos do pântano, das montanhas e das florestas. Os ferozes skriteks também sobreviveram, e inevitavelmente o sangue deles se misturou com o das tribos, dando origem aos aborígines mais altos e menos parecidos com os humanos, os wyvilos, os glismaks e os aliansas.
Mas a raça mais prolífica de todas era a dos paradoxais remanescentes da humanidade! Eles conseguiram prosperar apesar do gelo, e depois de milhares de anos superaram em número as tribos e dominaram as terras mais cobiçadas. Nascia uma nova civilização humana, bem mais simples do que a dos Desaparecidos, e a história antiga do Mundo das Três Luas foi praticamente esquecida.
Nós, Arquimagos, não obtivemos muito sucesso na nossa proliferação. Os membros sobreviventes originais da universidade viveram muito, mas com o tempo todos passaram para o além... exceto eu. Nossos sucessores adotados acabaram deixando o Lugar do Conhecimento e foram morar em diferentes partes do mundo, onde viviam como guardiões e fontes de sabedoria.
Agora só restam três de nós.
E da Estrela também.
E o mundo, que parecia estar recuperando seu equilíbrio perdido, cambaleia mais uma vez à beira do abismo. Nove séculos atrás, testemunhei o início desse terrível retrocesso, e Iriane e a sua predecessora, a Arquimaga Binah, também testemunharam. Provoquei o nascimento de Orogastus — o último Homem da Estrela verdadeiro —, e Iriane e Binah invocaram o nascimento de vocês três, com a esperança de que vocês se contrapusessem a ele. E como a Dama de Azul e a Dama de Branco esperavam, você e suas irmãs, Anigel e Kadiya, encontraram as partes perdidas do Cetro do Poder.
Vocês Três e o Mestre da Estrela têm enfrentado muitas vicissitudes desde então. A minha visão do seu destino conjunto e do futuro do mundo é nebulosa e imperfeita. Estou muito velho, muito desgastado, muito cansado... e provavelmente nem mantenho a minha sanidade mental.
Mas, seja como for, o que sei é que há duas formas possíveis de recuperar o grande equilíbrio, e as duas dependem do Cetro do poder e são tremendamente perigosas. Orogastus certamente é Capaz de executar essa recuperação. Se ele se tornar o soberano do mundo, poderá fazer o que tem de ser feito pela força bruta e Pela magia negra da Estrela.
A Flor — e vocês Três, que são sua personificação humana também pode restaurar o equilíbrio, e a sua vitória certamente seria mais propícia e elegante do que a da Estrela. Mas eu não entendo o Trílio Negro. Ele faz parte da herança mágica original deste mundo, é mais antigo do que a universidade e a Estrela, e por esse motivo não confio nele. Toda lógica indica que vocês, as Três Pétalas do Trílio Vivo, com certeza vão fracassar.
Mas eu posso estar enganado...
É por isso que você está aqui, minha querida Haramis! Talvez possamos elaborar a solução elegante juntos, talvez não.
Mas não deixarei que você saia da minha Lua e interfira com o Orogastus. Eu já vi vocês dois juntos, quando você estava pronta para matá-lo apesar do seu amor e do seu juramento sagrado. Tola! Ele é a verdadeira esperança do mundo... não você e suas fúteis irmãs.
Não, não ouse discutir comigo, Arquimaga da Terra! Você está aqui, e ficará aqui, até Orogastus conquistar o mundo e usar o Cetro para salvá-lo.
Ou destruí-lo de uma vez por todas.
Obedecendo às ordens da Dama dos Olhos, o capitão Wikit-Aa levou a barca para a confluência do rio Oda. Com a tripulação wyvilo manejando os remos, a embarcação foi contra a corrente durante uma pequena distância e atracou num remanso que tinha acesso fácil para a margem esquerda. Ainda faltava uma hora para o sol se pôr, e a chuva parara de cair.
— Agora quero que você mande os batedores para terra — disse Kadiya para Wikit —, para determinar se existe ou não uma trilha viável paralela ao Oda. Enquanto isso, vou conversar com o meu pessoal.
Ela se retirou para a cabine de popa, onde os Companheiros Juramentados, Lummomu-Ko, Jagun, o príncipe Tolivar e Ralabun estavam à sua espera. Tinham dado um jeito de arrumar a cabine depois da luta com os homens do agente comercial. Mas uma das duas janelas estava fechada com tábuas, de modo que era necessário acender um lampião, e o cheiro do ensopado de karuwok envenenado e da salka derramada ainda pairava no ar.
— Refiz meus planos mais uma vez — disse Kadiya depois que os outros fizeram uma roda em volta dela, sentados em beliches, bancos e baús. — Esse novo esquema depende dos batedores de Wikit encontrarem uma trilha aberta subindo o rio Oda, mas ele acha que eles terão sucesso.
— Planeja seguir por terra, Dama dos Olhos? — O jovial cavaleiro Edinar manifestou espanto. — Mas por quê?
Kadiya explicou pacientemente.
— Como a maioria de vocês já sabe, o desgraçado do Turmalai lonz foi levado a nos atacar pela Guilda da Estrela. Eu era o alvo Principal. Uma enorme recompensa foi oferecida por mim, viva ou morta. Iam me pegar se eu fosse levada para um certo lugar nesse mesmo rio Oda, perto da chamada cascata Dupla, a cerca de vinte e três léguas rio acima, a partir de onde estamos atracados — ela fez uma pausa e examinou todo o grupo. — O lugar da recompensa coincide com o local do viaduto.
— Pelos sagrados lóbulos das orelhas de Zoto! — gritou sir Bafrik, o novo líder dos cavaleiros, um homem intrépido de barba negra, com cerca de trinta anos de idade, que passara a ser o mais velho dos Companheiros. — Podemos supor que a passagem mágica levará ao lugar em que vivem os Homens da Estrela?
— Foi exatamente isso que eu deduzi — disse Kadiya. Os outros começaram a gritar animados, mas ela ergueu a mão pedindo silêncio. — Companheiros, vocês já anteciparam o que eu ia dizer em seguida. Pretendo entrar no viaduto, usando-o como um atalho para o território dos nossos inimigos. Jagun já concordou em me acompanhar, e torço para que vocês cinco venham conosco.
— Eu falo por todos — disse Bafrik. — Nós iremos com todo o prazer.
Os outros exclamaram que concordavam.
— E eu também — disse o wyvilo Lummomu-Ko —, se achar que posso ser útil.
Kadiya fez um gesto de pesar.
— Meu amigo, a situação continua como antes. Sua aparência não humana e sua grande altura tornariam seu disfarce muito difícil quando estivéssemos no meio dos inimigos. Peço que fique encarregado do príncipe Tolivar e de Ralabun no resto da viagem pelo grande Mutar, e que os leve em segurança para Derorguila, de acordo com a nossa intenção inicial.
O aborígine fez que sim com a cabeça.
— Vou guardá-los com a minha vida. Então Kadiya virou-se para o príncipe.
— Tolo, meu querido, tenho de contar coisas muito graves para você, coisas que influenciaram muito essa minha mudança de planos.
E Kadiya contou que a rainha Anigel provavelmente havia sido seqüestrada através de outro viaduto no Pântano Labirinto, e que agora a Arquimaga tinha descoberto que outros governantes também haviam sido abduzidos.
— A Dama de Branco não pode fazer nada para salvar a minha pobre mãe? — perguntou o menino.
— Ela me disse que não consegue nem visualizar o lugar em que a rainha e os outros são mantidos prisioneiros — disse Kadiya.
— O talismã dela não revela nada sobre o assunto. Ambas acreditamos que os prisioneiros devem estar nas mãos dos Homens da Estrela, protegidos da visão por magia negra. Só há uma maneira de descobrir se o quartel-general da Guilda fica em Sobrania, como imaginamos. Precisamos passar através do viaduto na cascata Dupla.
Os cavaleiros murmuraram entre eles e então sir Kalepo dirigiu-se a Kadiya.
— Dama dos Olhos, você disse que as passagens encantadas são imperceptíveis a olho nu e que só podem ser usadas através da utilização de feitiçaria. Como não tem mais o seu talismã, o Olho Ardente Trilobado, como vamos encontrar a abertura?
— Os viadutos podem ser abertos por qualquer pessoa que pronuncie certas palavras de poder — disse Kadiya. — É verdade que aquelas coisas normalmente são invisíveis, mas sempre haverá pistas na vizinhança das cachoeiras que indicarão onde a recompensa por mim devia ser paga. O viaduto não estará muito longe.
— Se nós não pudermos encontrá-lo — observou Jagun —, teremos perdido pelo menos quatro dias.
— Essa parte da floresta é habitada por um bando especialmente selvagem de glismaks — acrescentou Lummomu. — Eles praticam canibalismo, desafiando o édito da Dama de Branco. Não seria melhor se a tripulação de Wikit e eu fôssemos juntos até essas duas cataratas?
— Não permitirei que wyvilos inocentes se exponham mais ao perigo por nossa conta — disse Kadiya. — Já basta se você e o capitão ficarem esperando aqui a bordo do barco cinco dias. Se não voltarmos até lá, vocês podem concluir que encontramos o viaduto e que embarcamos em uma nova missão.
— Ou então que sofreram algum acidente fatal — resmungou Lummomu — e passaram para o além.
— Vocês terão de rezar por um resultado feliz — disse Kadiya. — Mas fiquem certos de que meus Companheiros e eu não seremos pegos de surpresa pela segunda vez. Vamos bem armados e atentos.
— Senhora — o mais impassível e corpulento dos jovens cavaleiros, sir Sainlat, disse com certa relutância —, por favor não Pense que eu não quero obedecer à sua ordem. Mas como saberemos o que estará nos esperando do outro lado da passagem mágica? Podemos dar de cara com o maligno feiticeiro Orogastus em pessoa, ou alguma força avassaladora da Guilda da Estrela...
— Não pensem que pretendo pular do viaduto como algum shangar impetuoso mergulhando de cabeça nas garras do caçador — respondeu Kadiya. — Elaborei um curso de ação prudente, que não vou comentar neste momento, com o qual poderei espionar as condições no destino do viaduto com antecedência.
— Vai consultar a Dama de Branco! — interrompeu Melpotis.
— Acho que não — disse Kadiya num tom evasivo. — Minha irmã Haramis está profundamente envolvida nos próprios assuntos. Se conseguir chegar ao território dos Homens da Estrela, terei bastante tempo para consultá-la.
— E se você tiver certeza de que vamos enfrentar um perigo insuperável ao entrar no viaduto?
— Se for esse o caso, abandonamos a empreitada, retornamos à barca e voltamos ao nosso plano original de viajar para Sobrania por mar.
— Isso seria uma pena — rosnou sir Bafrik. — A idéia de encontrar logo os vilões que abduziram nossa rainha incendeia meu coração com ardor!
Os outros concordaram. Kadiya deu algumas instruções e ordenou que eles arrumassem seu equipamento para partir no dia seguinte, quando o sol nascesse, e depois pediu licença para poder combinar tudo com Wikit-Aa. Mas assim que ela abriu a porta da cabine e pisou no convés molhado de chuva, o príncipe Tolivar correu até ela, com uma expressão muito agitada no rosto pálido.
— Tia Kadi, peço que você reconsidere. Deixe que eu vá com vocês para ajudar a salvar minha mãe. Eu... eu sei que não sou forte, mas posso ajudar de diversas formas.
Kadiya olhou para ele com impaciência.
— Não imagino como. Nada disso. Você seria apenas um peso inútil, Tolo. E se você tivesse a inteligência que Deus deu ao qubar, já teria entendido isso e desistiria de desperdiçar o meu tempo. Se não ouso arriscar levar um guerreiro valioso como Lummomu-Ko com o meu grupo, por que sequer pensaria em levar uma criança de doze anos?
— Porque... porque... — mas ele não conseguiu dizer o que queria.
Kadiya passou pelo menino e foi com passos firmes para a outra cabine. Tolivar ficou sozinho na amurada da chata por algum tempo, fingindo que olhava para a densa floresta na margem, apesar dos olhos estarem embaciados. Quando Ralabun finalmente saiu para juntar-se a ele, o príncipe foi rude e ordenou que ele fosse embora.
Mas o velho nyssomu já havia visto suas lágrimas de raiva.
O príncipe teve o pesadelo novamente, quando estava prestes a viver a aventura mais importante da sua vida. Dessa vez foi excepcionalmente vívido e sem os detalhes fictícios que antes haviam distorcido sua memória.
Ele tinha quatro anos a menos e vestia uma imitação miniaturizada e espalhafatosa dos trajes reais de Laboruwenda. Uma espada minúscula pendia do cinto, e ele estava usando uma coroa com imitações de pedras preciosas. Um exército de Tuzamen e do reino pirata de Raktum havia invadido a capital setentrional dos Dois Tronos, e a cidade estava a ponto de se render.
No sonho, o Voz Roxa, aquele capanga infame de Orogastus, e uma equipe de seis guardas tuzamênios estavam levando Tolivar pelas ruas tumultuadas e pela carnificina da batalha em Derorguila. O menino havia descoberto que Orogastus só fingia ser seu amigo, que mentira quando prometeu que o pequeno príncipe seria seu filho adotivo e herdeiro de sua magia. Em vez disso, o menino, apavorado, ficou sabendo que quando Laboruwenda finalmente caísse, ele seria empossado como governante fantoche. Pior ainda, seu destino era ser um cúmplice relutante no assassinato de seu pai, sua mãe, seu irmão e sua irmã mais velhos.
Todos eles tinham de morrer para o príncipe Tolivar poder herdar os Dois Tronos.
Sonhando, ele chorou de raiva e vergonha, enquanto era arrastado indefeso pelas ruas devastadas da capital. O inverno excepcionalmente severo que anunciava o desequilíbrio do mundo escravizava Derorguila com gelo. Havia soldados e civis mortos e feridos por toda parte, e o sangue deles manchava a neve. A fumaça de prédios em chamas e o fedor horrível da morte fizeram o menino tossir e engasgar. As pedras do calçamento, cobertas de gelo, estavam escorregadias demais e ele caiu muitas vezes.
Reclamando e mal-humorado por estar atrasado, o Voz Roxa finalmente içou o príncipe cambaleante e o pôs nas costas, fazendo com que ele segurasse a preciosa caixa-estrela do feiticeiro. O Voz a estava levando para o seu mestre, que liderava o ataque contra o palácio.
Eles avançavam abrindo caminho e passando por pequenos grupos de defensores empenhados num combate final e sem esperança. Multidões ruidosas de piratas raktumianos e membros dos clãs tuzamênios estavam espalhados por toda a cidade, carregados da pilhagem do que haviam roubado das mansões incendiadas.
E então aconteceu o terremoto.
Um grande muro de pedra desabou em cima do Voz Roxa e dos seis guardas, matando-os instantaneamente. Por milagre, Tolivar escapou, com escoriações, mas sem ferimentos sérios.
A caixa-estrela também ficou intacta.
O príncipe agiu rapidamente, porque estava quase louco de medo. Tinha apenas sua pequena espada para se defender e sabia que logo morreria de frio ou sofreria um destino pior nas mãos dos invasores, se tentasse se esconder nas ruínas da cidade. Deixou sua coroa e algumas peças de roupa nos escombros para Orogastus pensar que ele havia morrido, se visualizasse o lugar por meio de mágica, e depois correu para o palácio por vielas e caminhos sinuosos próximos do congelado rio Guila. Acabou conseguindo entrar no prédio do estábulo real através de uma porta secreta na muralha da fortaleza que um dia seu amigo Ralabun mostrara.
Uma batalha climática estava sendo travada em torno do Forte Zotopanion, o último reduto dos combalidos laboruwendianos. Milhares de combatentes raktumianos e tuzamênios invadiram o complexo do palácio. Orogastus em pessoa bombardeou os portões da fortaleza com bolas de fogo lançadas pelo Olho Ardente Trilobado.
Esgueirando-se pelos corredores escuros dos estábulos a caminho do quarto de Ralabun, onde esperava encontrar refúgio, o pequeno príncipe deparou-se com uma visão terrível. O corpo de um pirata com um forcado enfiado no pescoço caído numa poça de sangue do lado de fora dos aposentos do cavalariço. Estatelado em cima dele, ainda segurando o cabo do forcado, estava Ralabun... com uma adaga raktumiana enterrada nas costas.
— Oh, não! — gritou o príncipe, e abaixou-se ao lado do amigo.
O nyssomu deu um leve grunhido. Abriu um olho amarelo lacrimejante.
— Vá depressa para o meu quarto, Tolo. Esconda-se lá até eu ir buscá-lo.
Então Ralabun fechou o olho e não disse mais nada.
Acontece que Ralabun não estava morto, apenas ferido e em transe. Mas no sonho, assim como na vida, Tolivar se sentiu privado da sua última esperança. Ele ouviu alguém se aproximando e fugiu para o pequeno quarto aconchegante do mestre cavalariço nyssomu, onde se escondeu embaixo de uma capa jogada num canto.
Um homem que caminhava furtivamente e com a respiração ofegante, como se ele também temesse pela própria vida, entrou no quarto e fechou a porta. O príncipe apertou com força o cabo da sua pequena espada. Uma luz muito fraca da lareira de Ralabun iluminou o intruso que estava vestido com um manto dourado muito sujo. Era o acólito que Orogastus chamava de sua Voz Amarela, enviado pelo feiticeiro para atuar como assessor do jovem rei Ledavardis de Raktum durante a invasão.
Uma faísca prateada cintilou sob o capuz do Voz, e Tolivar quase soltou um grito de espanto. O homem estava usando a tiara talismã chamada de Monstro de Três Cabeças! Orogastus a tinha emprestado para seu comparsa, para que o Voz pudesse transmitir para seu mestre notícias da batalha que acontecia em volta dele.
Para Tolivar era óbvio que o covarde Voz Amarela tinha fugido, abandonando sua função quando a batalha ficou feroz demais.
No sonho, o coração do príncipe se inflou de brava determinação. (Na realidade, ele agia quase sem pensar.) A não ser pela área perto da lareira, onde o Voz estava, comendo o jantar abandonado de Ralabun, o quarto estava totalmente escuro. Tolivar se esgueirou por trás do acólito quando ele começava a servir-se de uma porção do ensopado quente de uma panela no fogo. O menino encostou a ponta afiada da sua pequena espada na nuca do homem, cortando o capuz dele.
— Fique quieto! — sibilou o príncipe. — Largue tudo.
— Eu não pretendia fazer mal algum — disse o Voz, trêmulo, Tolivar espetou a lâmina no acólito até ele deixar cair o pote e a concha. — Sou apenas um cidadão desarmado, envolvido por engano na luta...
— Silêncio... senão você morre! E não se mova.
— Vou ficar imóvel — choramingou o Voz Amarela. — Nem sonharia em me mexer.
Tolivar afastou a espada do pescoço dele e mais rápido do que um raio tirou o capuz e a tiara mágica da cabeça raspada do Voz. O Monstro de Três Cabeças rodopiou no ar e caiu no chão, rolando para fora da vista na escuridão.
— Negros Poderes... o talismã não! — berrou o acólito. — Mestre! Ajude-me...
O príncipe Tolivar compreendeu a temeridade dos seus atos, pois o Voz Amarela deu meia-volta e jogou-se em cima dele, soltando um uivo quando os dois caíram no chão. O menino conseguiu se livrar, mas perdera a espada. O acólito pôs-se de joelhos com dificuldade, cambaleando e com as mãos no peito, onde uma mancha escura se espalhava. Os olhos dele se transformaram em estrelas brancas brilhantes, e Tolivar teve certeza de que o próprio Orogastus olhava para ele através deles.
O Voz Amarela se contorcia em agonia, tentando em vão arrancar a pequena lâmina que por acaso havia se alojado no seu coração, e então ele virou lentamente a cabeça. Por um breve instante, seus olhos brilhantes, como dois pequenos faróis na escuridão, iluminaram o príncipe Tolivar. O menino se encolheu no canto do quarto, com a boca escancarada, presa por um terror mudo.
Então os olhos luminosos se apagaram, e o Voz Amarela caiu morto no chão.
No sonho, o pequeno príncipe se ergueu e tirou sua espada do corpo inerte, limpou-a no manto do acólito. Em seguida, foi calmamente até a cama de Ralabun, passou a espada embaixo dela e pescou a tiara mágica. Ficou olhando algum tempo para o Monstro de Três Cabeças em silêncio, sabendo, pelo emblema da Estrela incrustada no rosto central, que ainda estava associado a Orogastus e que o mataria se sua pele encostasse nele. O círculo de prata que formava uma parte do formidável Cetro do Poder havia pertencido à mãe dele antes de tê-lo dado para Orogastus como resgate do marido, o rei Antar... e de Tolivar, seu filho caçula, também.
Mas o príncipe se recusara a abandonar o feiticeiro, cego pela grande ilusão de que Orogastus o amava e que algum dia passaria para ele seu poder.
— Você mentiu para mim — sussurrou o menino, estranhamente excitado. — Mas mesmo assim eu terei poder.
Ele pegou a caixa-estrela, sabendo exatamente como a coisa funcionava, e a abriu. Dentro do recipiente raso havia um fundo de malha de metal e num canto um punhado de pequenas pedras preciosas achatadas.
Com a ajuda da espada, Tolivar deixou a tiara cair dentro da caixa. Um clarão intenso parecia indicar que havia se desligado de Orogastus. Uma depois da outra, o príncipe apertou as pedras coloridas numa determinada ordem e todas se iluminaram. Finalmente apertou a pedra branca. Ela produziu um som musical e todas as pequenas luzes se apagaram. O menino ficou olhando para o Monstro de Três Cabeças, hesitante. A caixa-estrela havia cumprido sua função? Será que o talismã estava associado a ele? Se não estivesse, provavelmente o mataria se tocasse nele.
Naquele momento Tolivar ouviu gritos e barulho de coisas se quebrando do lado de fora da porta. Os piratas estavam chegando!
A mão dele tremeu quando a enfiou na caixa-estrela. O metal da tiara estava quente quando ele a pegou. Não o matou. Por baixo da monstruosidade cavernosa do meio, onde antes havia um emblema cheio de pontas da Guilda da Estrela, agora brilhava uma réplica minúscula do escudo principesco de Tolivar.
— Você é meu! — disse ele maravilhado, e pôs o talismã na cabeça. A gritaria agora estava bem diante da porta do quarto. — Talismã, torne-me invisível, e a caixa-estrela também — ordenou.
Devia ter funcionado, porque a porta se abriu e três bandidos com as espadas ensangüentadas examinaram o quarto, zombaram do Voz Amarela morto e foram embora. O príncipe sentiu uma segurança enorme dominar seu coração.
— Serei um feiticeiro ainda maior que você, Orogastus! — proclamou em voz alta. — E farei você se arrepender de ter me enganado.
Neste ponto o sonho acabou e começou o pesadelo do príncipe já acordado.
- Tolivar! Tolivar, príncipe de Laboruwenda! Está me ouvindo?
— Não... vá embora — ainda meio adormecido o menino pôs o travesseiro áspero em cima da cabeça e se afundou ainda mais nas cobertas da cama beliche.
Eu não vou embora, Tolo. Não até você concordar em ser meu aliado.
— Não! — sussurrou Tolivar. — Estou apenas imaginando você, Orogastus. Você não está realmente falando comigo. Você nem sabe onde eu estou.
Isso não é verdade. Você está deitado numa cama numa chata wyvilo. O barco está ancorado para passar a noite no rio Oda, não muito longe da confluência com o grande Mutar.
Você não pode saber isso, o menino disse para a voz na cabeça dele.
Mas eu sei. E sabe por que, Tolo? Porque bem lá no fundo do seu coração você quer que eu saiba! Se não quisesse, seus dois talismãs o protegeriam de mim.
Não. Você não passa de um sonho. É a minha consciência culpada que está inventando você. Eu me sinto culpado porque... porque uma vez escolhi você em vez dos meus pais. Quando eu os odiava...
Você era pequeno demais para entender o que estava fazendo. O seu ódio não era genuíno. Seu pai e sua mãe sabem disso. Você já compensou aqueles pecados juvenis há muito tempo. Eles não têm importância agora, que está quase chegando à idade adulta. De qualquer forma, a minha promessa solene para você não tem nada a ver com aquelas maldades infantis... pois agora estou preparado para cumpri-la.
Não estou interessado nas suas mentiras. Deixe-me em paz!
É claro que está interessado. Como poderia não estar, se é tão inteligente? Mais do que qualquer coisa no mundo, você deseja experimentar todo o poder oculto nessas coisas maravilhosas que você possui.
Vá embora. Deixe-me em paz. Saia dos meus sonhos. Eu o desprezo! Um dia vou matá-lo para expiar meus pecados.
Bobagem. Seja honesto com você mesmo, Tolo! Você sabe que só eu posso ensinar como usar os talismãs. Nunca aprenderá sozinho. Venha me encontrar em Sobrania, caro menino. É só entrar no viaduto...
- Nunca! Você está querendo me enganar.
Ninguém pode fazer mal ao dono do Monstro de Três Cabeças e do Olho Ardente Trilobado. Você sabe disso.
Eu não os tenho.
Tem, sim. Vi você no estábulo quando meu Voz Amarela morreu. Só você poderia ter levado a tiara e a caixa-estrela. E quem além daquele que possui essas duas coisas poderia ter se apoderado do Olho Ardente?
Eu não. Eu não...
Querido Tolo, você sabe o que sua tia Kadiya planeja fazer amanhã. Vá atrás dela! Quando você entrar no viaduto e chegar em Sobrania, guerreiros do meu grupo estarão à sua espera para trazê-lo a mim. Haverá uma alegre celebração de boas-vindas para o meu filho adotivo e herdeiro há muito perdido. Você será iniciado imediatamente na Guilda, exatamente como prometi anos atrás.
Eu... Eu não confio em você.
Mas deve confiar. Sou o único que pode ajudá-lo a realizar o seu destino.
Não!
Tolo! Venha a mim!
Não, não, não!
Você sabe que tem de vir se juntar a mim! Tolo... Tolo... Tolo...
O príncipe gemeu em voz alta e sentiu uma mão sacudindo seu ombro.
— Não! Afaste-se de mim...
— Tolo! Acorde, rapaz. É a tia Kadi. Você está tendo um pesadelo.
O príncipe saiu de baixo das cobertas. A tia dele estava ajoelhada ao seu lado no escuro, o rosto dela levemente iluminado pelo brilho da gota de trílio-âmbar que pendia do seu pescoço. Ainda era noite. A chuva tamborilava no teto da cabine e a respiração pesada dos Companheiros Juramentados, de Jagun e Ralabun, que dormiam, se misturava com os ruídos das criaturas da floresta lá fora.
-— Sinto muito — sussurrou Tolivar com tristeza. — O sonho Parecia tão real.
Kadiya beijou a testa dele.
— Já passou agora. Tente dormir de novo.
Ele virou de costas para ela, de frente para a parede da cabine.
— Vou tentar.
Ela deu um tapinha nele para tranqüilizá-lo e voltou para o próprio catre. O príncipe ficou bem quieto até ter certeza de que Kadiya estava dormindo. Então deixou o braço cair do lado do beliche e procurou a caixa de ferro que tinha posto embaixo da cama. Estava lá, com seus tesouros bem seguros.
De olhos bem abertos, o príncipe Tolivar esperou o sol nascer.
Depois de se despedir de Tolivar e Ralabun, Kadiya vestiu sua capa com capuz e foi para o convés da chata de manhã bem cedo. Fazia frio e tudo estava muito quieto. Um denso nevoeiro cobria a água e a terra, mas pelo menos a chuva tinha parado. Lummomu-Ko e Wikit-Aa estavam perto da prancha de embarque, ajudando os cinco Companheiros Juramentados a descarregar as pranchas de bagagem que continham sacos com armas de reserva, roupas, algumas utilidades e comida. Jagun já tinha desembarcado para conversar com o grupo de batedores wyvilos.
— Estamos quase prontos, lady Kadiya — disse sir Bafrik. — O capitão disse que temos de tomar muito cuidado com as árvores-cálice devoradoras de homens e os insetos venenosos suni no caminho até o viaduto.
Sir Edinar acrescentou com mórbido interesse.
— E graças ao nevoeiro, há um perigo especial, os vorazes namps, criaturas horríveis que só existem nesta região. Elas espreitam no fundo de buracos muito bem camuflados, à espera de uma presa desavisada que caia neles.
— Já ouvi falar desses namps, Edi. Eles são formidáveis, mas não são páreo para um campeão tão bem armado como você — ela virou na direção de Wikit-Aa. — Como está a trilha? Seus batedores acham que poderemos chegar às cascatas e ao viaduto por volta do meio-dia de amanhã?
— O caminho está parcialmente alagado aqui nas terras baixas — informou o capitão da chata. — Meus homens marcaram uma curta rota alternativa. Quando a terra se eleva no oeste, a trilha original logo fica desimpedida. Se não acontecer nenhuma desgraça, vocês devem percorrer facilmente a distância em um dia e meio. Mas ainda estou preocupado com a possível presença de glismaks canibais.
Kadiya pôs a mão no símbolo heráldico do Trílio com Olhos brasonado na sua armadura de escamas de milingal.
— Mesmo aqui nessa parte selvagem ao sul de Var, a Tribo da Floresta terá ouvido falar da Dama dos Olhos.
— O que eu temo — disse Wikit-Aa com suavidade portentosa — é que eles também terão ouvido falar das milhares de coroas oferecidas pelos Homens da Estrela pela sua captura.
Kadiya deu uma risada.
— Vou exigir daqueles vilões a recompensa que eu quiser quando tivermos passado pelo viaduto.
— Nós vamos esperar cinco dias — prometeu o capitão. — Senhora, adeus.
Ela cumprimentou o capitão com um aceno de cabeça, deu um breve abraço em Lummomu e depois se juntou aos cavaleiros que a esperavam com uma inquietação mal disfarçada. Estavam usando elmos de aço e cotas de malha completas por baixo das roupas de couro para chuva.
— Companheiros — disse ela —, é hora de desembarcar. Enquanto eles desciam em fila pela prancha de desembarque Jagun deu um cajado recém-cortado para cada um. Ele foi na frente pela mata fechada nevoenta e os homens logo atrás dele. Kadiya ia na retaguarda, e deu um último adeus para o príncipe Tolivar, que observava de uma janela aberta na cabine de popa do barco. Em poucos segundos o grupo ficou fora de vista.
— Primo, não estou gostando disso.
Lummomu ia atrás de Wikit-Aa, enquanto o capitão fazia sua incursão de inspeção, verificando pessoalmente as amarras que mantinham a embarcação inteira. Havia começado a garoar.
— Meu nariz tem coçado muito desde que deixamos o Mutar e entramos nesse igarapé. Eu devia ter insistido para acompanhar a expedição... pelo menos até a cascata Dupla. Não consigo me livrar da sensação de que alguma grande calamidade está para acontecer. Mas se vai acontecer conosco ou com a Dama dos Olhos, isso não sei dizer.
Wikit-Aa deu de ombros e girou seus grandes olhos nas órbitas.
— Primo, o meu nariz também está coçando, mas só consigo pensar em uma desgraça que nos ameaça neste momento, que é perder nossas amarras. Essa margem esquerda é baixa demais. Logo a chuva vai começar de novo e quando o Oda subir essa margem vai alagar. A menos que queiramos nos arriscar e ser levados rio abaixo de novo para o grande Mutar, vamos ter de mudar a barca para a outra margem do rio, numa enseada mais adiante e amarrá-la em árvores mais resistentes. Se você realmente deseja afastar o desastre, suba na proa e prepare-se para manejar uma vara.
Foram necessárias mais de três horas de trabalho árduo para pôr a barca, que era difícil de manobrar, numa posição mais segura. Quando terminaram, Lummomu-Ko juntou-se ao capitão e ao resto da tripulação na cabine de proa, onde o cozinheiro serviu uma refeição bem farta. Depois disso a garoa virou um temporal incessante e todos os wyvilos foram tirar um merecido cochilo. O porta-voz esqueceu a apreensão que sentiu mais cedo.
Ele acordou no fim da tarde, com o nariz coçando mais do que nunca. Alguma coisa o fez ir investigar a cabine de popa, onde o príncipe Tolivar e Ralabun tinham permanecido desde a partida do grupo de Kadiya. Horrorizado, Lummomu descobriu que o menino e seu companheiro inseparável nyssomu haviam desaparecido, deixando para trás uma caixa de ferro aberta e vazia sob o beliche do príncipe.
— Preciso ir atrás deles! — disse o consternado porta-voz de Let para o capitão, que o seguira até a popa da barca.
Os dois wyvilos estavam no convés sob a chuva torrencial, olhando para o outro lado do canal. A expansão das águas barrentas e céleres era de pelo menos cinqüenta varas de largura.
— Precisamos mover o barco de novo para a outra margem agora mesmo!
Mas Wikit-Aa foi mais prático.
— Primo, a tripulação está exausta. Não íamos conseguir antes de anoitecer. E quando o puséssemos em terra, não teríamos outra opção senão deixar que a correnteza nos carregasse até o grande Mutar, pois não há lugar seguro para atracar lá, agora que o rio subiu.
— Prometi tomar conta de Tolivar com a minha vida! Se você não me levar para o outro lado, vou nadando!
Wikit-Aa conteve o porta-voz segurando-o pelos ombros.
- Primo, pare e pense um pouco! O príncipe e Ralabun devem ter conseguido sair do barco antes de nos afastarmos da margem esquerda. Isso significa que saíram daqui há mais de seis horas, pouco depois da partida da Dama dos Olhos. Na minha opinião, o menino resolveu impulsivamente acompanhar a tia. Certamente que esse ato foi de uma imprudência enorme, mas quando o grupo da Dama dos Olhos parar para descansar à noite, o príncipe certamente os alcançará. E você não poderia alcançá-los antes disso. Lummomu deu um tapa na sua testa escamosa, furioso e frustrado.
— Maldita idiotice do menino! Maldito Ralabun por ter sido cúmplice dele, em vez de agir com sensatez! Ah, se ao menos eu pudesse me comunicar com Jagun para alertá-lo!
Mas os wyvilos, diferentes do povo pequeno do Pântano Labirinto, não eram capazes de usar a fala sem palavras através de uma distância muito grande.
— Não vai adiantar nada ir atrás deles — insistiu Wikit-Aa.
— Mas a minha honra exige que eu vá!
— A lógica exige que você fique.
Lummomu-Ko levantou as mãos com garras para o céu e deu um grande rugido de fúria e humilhação. Mas o capitão só cruzou os braços, balançou a cabeça e esperou que o costumeiro bom senso do primo prevalecesse. Quando isso finalmente aconteceu, os dois aborígines entraram juntos na cabine e serviram-se de canecas de salka da grande jarra com tampa de vime que Turmalai Yonz tinha providenciado. A tripulação já determinara, havia muito tempo, que não estava envenenada.
A tropa de Kadiya parou ao meio-dia ao abrigo de uma imensa bruddock para um almoço rápido de queijo e pão, sentados em pedras que ficaram secas depois de arrancada a cobertura de musgo krip. Jagun tentou fazer uma fogueira para fazer um chá, mas o ar estava tão úmido que nem sua grande habilidade conseguiu produzir uma chama. Contentaram-se com água fria. Recuperaram o ânimo quando o pequeno nyssomu descobriu um arbusto com cachos de frutinhas brancas pendurados.
— Estes são sifanis — disse Jagun com entusiasmo. — São deliciosos, matam a sede e servirão como ótima sobremesa, mesmo que o resto de nossa ração seja modesto.
— O que eu gosto mais é da sobremesa — disse sir Edinar. O jovem cavaleiro começou a devorar as frutas suculentas sem cerimónia e cortou alguns cachos para distribuir entre os outros. A chuva diminuíra um pouco, mas a visibilidade continuava muito ruim. Eles já haviam passado e saído da floresta densa das terras baixas e estavam em uma região mais elevada, onde o progresso da caminhada era um pouco mais fácil, apesar de íngreme. Em alguns lugares, desmoronamentos haviam bloqueado a trilha, mas desvios eram prontamente criados e eles mantinham um bom ritmo. Notaram grupos de árvores-taça mortais de tempos em tempos — árvores enganosamente belas, de troncos grossos e copas em forma de cálice de folhas coloridas que escondiam tentáculos capazes de içar um homem para a morte —, mas o grupo não encontrou nenhuma cobra venenosa nem animais predadores grandes.
— Calculo que devemos ter andado quase oito léguas — disse Jagun, mastigando o pão. — Podemos continuar em segurança mais três ou quatro horas, mas depois temos de encontrar um lugar bom para parar bem longe da trilha, onde os notívagos glismaks não poderão nos achar com facilidade. As grandes rochas ao longo da margem do rio podem nos abrigar da chuva. Infelizmente não devemos acender uma fogueira depois que escurecer.
— Uma pena — suspirou Melpotis.
Kalepo e ele, irmãos do assassinado lorde Zondain, eram homens de rosto comprido, com barbas louras e olhos negros muito vivos.
— O fogo ajudaria a manter longe os animais selvagens.
— Nossa principal preocupação deve ser com os glismaks — disse Kadiya — e possivelmente com os Homens da Estrela bandoleiros que se aventurarem pelo viaduto. Meu trílio-âmbar dará o aviso se minha vida estiver em perigo, por isso devemos ficar juntos depois que escurecer e manter nossas armas bem à mão.
— Você acha — disse sir Bafrik meio ressabiado — que vamos encontrar o viaduto da cascata Dupla protegido por uma tropa de feiticeiros?
— O vilão Turmalai Yonz — disse Kadiya — afirmou que a recompensa que dariam por mim seria paga ao amanhecer. Creio Que os Homens da Estrela só devem aparecer a essa hora todos os dias Para ver se minha preciosa carcaça está dando sopa. Se chegarmos ao viaduto por volta do meio-dia, conforme planejei, devemos encontrá-lo deserto. É claro que faremos um bom reconhecimento da área antes de nos aproximarmos.
— É claro — disse Bafrik — que seria sensato esperar até a noite para entrar no viaduto.
— Se a passagem leva direto para o covil de Orogastus — disse o grande Sainlat muito sério —, não vai importar se atravessarmos de dia ou de noite. Seremos forçados a lutar por nossas vidas.
— Estou pronto para qualquer coisa! — declarou o jovem Edinar, limpando o sumo de sifani da boca.
Kalepo e Melpotis também manifestaram sua disposição para o combate.
Mas Kadiya disse:
— Tenho de contrariar suas esperanças sangüinárias, Companheiros, pelo menos por enquanto. Quando chegarmos ao viaduto, passarei primeiro, e sozinha.
— Não! — os homens começaram a exclamar imediatamente, mas Kadiya se manteve firme.
— Meu amuleto de âmbar vai me esconder dos olhos hostis. Se estiver tudo bem do outro lado do portão mágico e se for um caminho seguro para o território do feiticeiro, voltarei imediatamente para pegar o resto de vocês.
— E se você sair do viaduto num lugar mortalmente perigoso, Olhos Penetrantes? — protestou Jagun.
— Meu trílio-âmbar salvou minha vida inúmeras vezes, como você bem sabe. Não vai me faltar neste momento.
Os cinco cavaleiros se sentaram e não disseram nada alguns minutos, cada um pensando nas palavras de Kadiya, muito receosos quanto ao plano dela, mas sem querer se manifestar contra para não parecerem desleais.
Finalmente Jagun falou:
— E o que nós vamos fazer, Olhos Penetrantes, se você entrar no viaduto e não voltar?
— Então você dará a notícia do meu destino para a Dama de Branco e seguirá as ordens dela.
— Não seria mais prudente consultá-la antes?
— Não — disse Kadiya com firmeza.
Jagun abaixou a cabeça, desaprovando em silêncio. Kadiya se levantou e pegou sua mochila.
— Já nos demoramos bastante aqui. Vamos embora.
A tribo de glismaks do Oda possuía uma única aldeia de menos de quarenta almas, que ficava a três dias de viagem acima da cascata Dupla. A maioria da raça tinha uma vida austera, simplesmente caçando e coletando alimentos naturais. Os que viviam mais ao norte, perto do território wyvilo, ocasionalmente faziam algum trabalho braçal para a outra tribo aborígine ou até para os humanos. A tribo do Oda, que tinha mais sorte que as outras, havia aprendido com o agente comercial Turmalai Yonz a usar armadilhas, a tirar o couro e a curar a pele dos cobiçados diksus azuis. Com essa introdução ao comércio, eles eram mais ambiciosos do que os outros membros da raça e se acostumaram com certos luxos, como bebidas fortes, enfeites de Zinora com pérolas, e facas de aço. O agente Turmalai comprava as peles deles no início da Época das Chuvas, e os glismaks o haviam visto recentemente. Um fardo de pele da altura da cabana do líder da aldeia do Oda, que a tribo levara quase seis meses para acumular, rendeu para eles uma única coroa varoniana de ouro.
A tribo do Oda ficou atónita quando Turmalai Yonz revelou para eles a fabulosa recompensa oferecida pelos Homens da Estrela pela captura da Dama dos Olhos. A soma de mil coroas de platina estava muito além da compreensão dos glismaks. (Tendo apenas três dedos em cada mão, eles nunca aprenderam a contar acima de seis; mesmo assim sabiam que um milhar devia ser consideravelmente mais do que isso.) Enganados pela promessa mentirosa de dividir a recompensa com Turmalai se encontrassem a Dama dos Olhos, os glismaks do Oda voltaram para suas armadilhas na floresta.
Enquanto trabalhavam eles mantinham seus olhos grandes e vermelhos bem abertos, à procura da valiosa presa humana. Ontem eles a tinham encontrado.
A barca wyvilo haviam chegado à parte mais baixa do Oda logo antes do anoitecer. O dia estava nevoento, mas olhos furtivos na margem haviam visto claramente uma fêmea humana miúda de cabelo ruivo trançado de pé na amurada quando o barco aportou para passar a noite. Os glismaks não ousaram atacar naquele momento. Os marinheiros wyvilos, seus parentes raciais próximos, eram um inimigo formidável demais para enfrentar assim.
Os observadores só podiam esperar e cobiçar, pedindo ao seu deus de três cabeças para fazer com que a Dama dos Olhos desembarcasse sem seus companheiros aborígines.
Depois de um tempo suas preces foram atendidas.
Os glismaks do rio Oda eram uma raça primitiva, mas não eram nada burros. Eles resolveram esperar até a presa e os homens armados que a acompanhavam chegarem ao Portal Mágico para então atacá-los, para não terem de carregar o corpo a uma distância muito grande.
Na manhã seguinte o tempo melhorou bastante. A chuva e o nevoeiro desapareceram por completo, e quando Kadiya e seu grupo retornaram do acampamento perto do rio para a trilha, o sol já havia nascido. Eles caminharam quatro horas sem ver nada estranho e ouvindo apenas o barulho do rio correndo pelas pedras, um raro trinado de pássaro e um grito ocasional de algum animal ao longe.
— A cascata Dupla não deve estar longe agora — disse Jagun, quando o sol já estava quase no meio do céu.
— É bom mesmo — disse sir Sainlat —, porque estou quase morto de escalar essa trilha cheia de pedras. Eu venderia a minha alma por um fronial selado.
Os outros deram risada e começaram a implicar com ele, mas na verdade todos estavam muito cansados, pois não tinham o hábito de andar a pé de armadura e carregando aquele peso todo nas costas.
Kadiya, que continuava na retaguarda como fizera na maior parte da caminhada, parou e olhou para trás, para o caminho por onde eles tinham passado. O vale do Oda havia se estreitado e a floresta se modificara. Eles tinham atravessado as terras baixas e úmidas da floresta de Tessaleyo e chegado ao sopé da cordilheira Ohogan Meridional. Algo vermelho, bem alto da copa de uma árvore acima da trilha, chamou sua atenção. Era um imenso asade-gaze, maior que suas duas mãos, voando à procura de néctar. Kadiya sorriu diante da visão daquela criatura adorável, depois deu meia-volta para retomar sua marcha. Os outros já estavam chegando ao topo da vertente que ela agora começava a galgar.
Ela viu Jagun acenando para ela e ficou paralisada, pondo a mão na mesma hora no cabo da espada. Mas ele não parecia assustado, por isso ela subiu depressa e num minuto já estava ao lado dele e dos outros. Bem diante deles avistaram seu objetivo: dois riachos estreitos de água cristalina que caíam quase oitenta varas pela face da montanha. Na base da cascata Dupla havia um poço, cheio de espuma branca no lugar em que as cataratas batiam e azul-esverdeado muito límpido nas bordas. A clareira em volta dele parecia completamente deserta.
Eles se aproximaram sorrateiramente, não encontraram ninguém e chegaram ao pé das cachoeiras gêmeas, a um arvoredo cerrado de árvores peculiares. Elas tinham troncos com aberturas verticais de mais de uma vara de altura que abriam e fechavam o tempo todo, revelando uma goela cheia de espinhos verdes brilhantes que pareciam presas enormes. Aqui e ali havia uma árvore com a ”boca” fechada, e sangue e outros fluidos inomináveis escorriam de seus lábios de madeira.
— Essas árvores são chamadas de lopa pelos wyvilos — disse Kadiya para os Companheiros, que haviam se reunido em volta de uma e olhavam para ela apreensivos. — Elas parecem repulsivas, mas não representam perigo para os seres humanos, a não ser que algum seja suficientemente tolo para enfiar a mão na abertura com dentes. Quando a minha irmã Anigel partiu em sua busca inicial pelo seu talismã, o Monstro de Três Cabeças, ela encontrou a tiara escondida dentro de uma gigantesca árvore lopa e só conseguiu tirá-la de lá com muita coragem e inteligência.
Jagun tinha se afastado do grupo para explorar a área perto do poço.
— Olhos Penetrantes! — gritou ele. — Acho que encontrei o local do viaduto.
Os outros correram para junto dele. Lá, entre duas lopas excepcionalmente grandes que cresciam na beira da água, havia uma pedra chata estranhamente livre de musgo ou de qualquer vegetação. Havia uma linha perfeitamente reta marcada nela, e espetado num dos troncos ao lado havia uma tábua com uma estrela pintada.
— Logo veremos se você tem razão — disse Kadiya para Jagun. Avisando aos outros para chegar para trás, ela ordenou:
— Ativar sistema do viaduto!
Um grande disco negro que parecia não ter profundidade alguma apareceu ao som de um sino, e os cavaleiros deram gritos de espanto. Kadiya balançou a cabeça satisfeita e desamarrou as tiras da sua mochila. Antes que qualquer um pudesse dizer qualquer coisa, ela tirou do seu gibão a gota brilhante de âmbar que pendia de um cordão no seu pescoço e segurou-a firmemente com a mão esquerda. Com a direita, segurou o cabo da espada.
— Trílio Negro — disse ela —, peço que me proteja da visão de pessoas hostis e que me resguarde de qualquer perigo.
Ela pisou na superfície negra e agourenta do viaduto e desapareceu.
No momento seguinte fez-se o mais completo silêncio. Então soou um berro apavorante de raiva e frustração saído de muitas gargantas.
Jagun e os cavaleiros deram meia-volta. Mais de vinte guerreiros aborígines enormes, exibindo as presas e com os olhos flamejantes desceram correndo a encosta rochosa pelo meio das árvores, brandindo lanças com ponteiras de aço.
— Glismaks! — gritou Jagun.
Assim que ele disse isso, as criaturas lançaram suas armas. As lanças, cujo alvo era a Dama dos Olhos, voaram na direção do viaduto. Mas o disco negro piscou e desapareceu, e a maioria das lanças passou alta por cima do poço da cachoeira. Uma lança atingiu fortuitamente o pescoço desprotegido de sir Bafrik. Ele cambaleou para trás com sangue escorrendo sobre o peito e caiu dentro da água, que logo ficou vermelha.
A multidão de canibais parou momentaneamente, urrando sua decepção por ter perdido a presa. Então alguns sacaram suas espadas varonianas, enquanto seus camaradas empunharam maças de pedra e outras armas. Eles avançaram sobre Jagun e os quatro cavaleiros sobreviventes, pretendendo acabar rapidamente com eles.
Depois preparariam um banquete de consolação.
Ficar invisível tem lá seus problemas.
Quando o príncipe Tolivar e Ralabun saíram da barca e começaram a seguir Kadiya e os outros ao longo do rio e no meio do nevoeiro, logo descobriram que os vapores não penetravam o espaço ocupado por seus corpos invisíveis. Se alguém examinasse com cuidado poderia perceber uma forma humana, delineada pela névoa rodopiante. O príncipe ficou desconcertado. Não conseguia imaginar nenhuma ordem que pudesse dar para o talismã para corrigir aquela situação embaraçosa. No fim, Ralabun e ele simplesmente se mantiveram bem atrás dos outros, torcendo para não serem notados.
Quando o nevoeiro finalmente se dissipou e a dupla ficou realmente invisível de novo, surgiu outra dificuldade. Nem o príncipe nem Ralabun sabiam onde o outro estava em momento algum. Uma vez, quando o menino parou para atender ao chamado da natureza, o nyssomu continuou andando sem saber, até entrar em pânico quando descobriu que os únicos passos que ouvia eram os dele mesmo. Ralabun voltou correndo pela trilha, gritando freneticamente o nome do príncipe.
Tolivar repreendeu severamente o velho mestre cavalariço.
— Seu cabeça-dura! De que adianta ficar invisível se você trai a sua presença com essa sua boca enorme? Eu nunca devia ter trazido você comigo!
— Então, Coração Misterioso, ia ter de carregar a caixa-estrela você mesmo — retrucou Ralabun com o orgulho ferido —, além da sua comida e de outros suprimentos. Além do mais, sem meu conhecimento da terra, um rapaz jovem como você certamente se perderia ou sofreria algum acidente fatal antes de viajar meia légua.
Mas isso não era verdade. O príncipe aprendera muita coisa em suas excursões clandestinas para o Pântano Labirinto, enquanto Ralabun havia passado mais de quarenta anos quase sem sair dos estábulos reais, aproveitando os confortos humanos, e esquecera a maior parte dos conhecimentos do pântano que aprendera na juventude. Na verdade, ele era completamente inútil como guia.
Ele fez um escândalo quando avisou ao príncipe para que não encostasse em árvores-taça ou em amarra-pés e outras plantas obviamente perigosas, e deixou de falar de perigos mais sutis como os mortais insetos suni que pendiam de fios de substância viscosa nos arbustos, ou os snafi, que pareciam folhas mortas, mas que eram, na verdade, pequenos animais que andavam sobre milhares de pés iguais a dedos e eram capazes de injetar veneno se entrassem na roupa e encostassem na pele. Ralabun também prejudicava Tolivar parando inúmeras vezes para examinar a floresta, revirando suas longas orelhas, cheirando o ar úmido de chuva e se prevenindo contra a aproximação sorrateira de predadores que nunca apareciam realmente.
Com o tempo, o príncipe acabou perdendo a paciência e assumiu a liderança e, depois disso, eles progrediram muito mais. A partir daí, se precisavam atravessar algum riacho, era o menino quem escolhia o ponto em que iam entrar na água ou pular de pedra em pedra. Tolivar também resolvia como passariam por desmoronamentos na trilha, escolhendo o caminho com cuidado para não provocar ainda mais a instabilidade da terra. E quando às vezes o caminho parecia desaparecer entre árvores caídas ou mato crescido, era Tolivar quem encontrava a rota novamente, apesar de Ralabun protestar e afirmar que sabia o caminho o tempo todo.
Avançando através da chuva, eles chegaram ao lugar em que Kadiya e os Companheiros Juramentados tinham feito sua refeição do meio-dia, e lá se depararam com uma surpresa desagradável. O príncipe apontou para diversas pegadas enormes, com três garras, na lama encharcada.
— Isso não foi feito por animais — disse ele, tentando manter a voz firme, sem tremer. — Devem ser glismaks. Está vendo como as pegadas deles se sobrepõem às da tia Kadi e de seus companheiros? Os malditos estão seguindo o grupo dela.
— Ó, Santa Flor, nos livre! — gemeu Ralabun. — Precisamos encontrar uma maneira de avisar ao grupo da Dama dos Olhos que os canibais estão atrás dela!
— Talvez eu possa sussurrar no ouvido dela e ela vai pensar que é o amuleto do Trílio Negro falando. Ou até algum dos Senhores do Ar.
O príncipe riu de nervoso, até gostando da idéia de ser confundido com um guardião celestial. Ele apertou os dedos nas laterais da tiara, fechou os olhos e pediu para visualizar Kadiya. Era o tipo de magia que ele havia praticado muito e já sabia fazer muito bem.
— Está vendo a Dama dos Olhos? — disse Ralabun baixinho, ansioso.
— Estou — na mente de Tolivar havia uma imagem bem clara dela e dos outros, subindo a trilha cada vez mais íngreme com anéis de névoa rodopiando em torno deles.
Ele ouviu a voz de Ralabun.
— Conte para ela do perigo, Coração Misterioso. Rápido!
— Tia! Pode me ouvir?
Mas Kadiya continuava avançando sem perceber nada, e Tolivar a chamou diversas vezes, sempre de olhos fechados para não desfazer a visão.
— É inútil — disse o menino, finalmente. — Deve haver algum truque nessa comunicação sem palavras que eu ainda não domino.
— Deve ser isso mesmo. É melhor descobrir o que os canibais estão tramando.
Tolivar mandou a tiara mostrar os glismaks. Ela obedeceu prontamente, e o príncipe teve uma visão de aborígines muito altos e assustadores trotando em fila indiana por um caminho estreito cercado de samambaias enormes e outras plantas baixas.
— Onde estão os glismaks em relação a mim? — sussurrou o menino para o talismã.
Estão a aproximadamente uma légua ao sul da trilha do rio, e se afastando de você.
— Eles estão perseguindo a tia Kadiya?
Eles também estão se afastando dela. É impossível calcular suas intenções, já que eles não falam sobre isso e são seres que têm livre-arbítrio.
Tolivar contou para Ralabun o que o talismã tinha dito e o nyssomu ficou muito animado.
— Os canibais podem ter decidido que o grupo da Dama dos Olhos é formidável demais para eles atacarem. Afinal de contas, eles não passam de selvagens simplórios. Você deve verificar esses bandidos de tempos em tempos com seu talismã, para certificar-se de que eles não estão voltando. Mas agora é melhor ir em frente. Não seria sensato ficar muito atrás da Dama dos Olhos, se pretendemos passar pelo viaduto logo atrás dela.
Eles partiram andando o mais rápido que podiam, mas nenhum dos dois tinha pernas compridas. Para piorar as coisas, a trilha era quase toda subida e muitas vezes eles tiveram de parar, ofegantes e com pontadas do lado do corpo.
Então começou a escurecer.
Tolivar fez com que ele e Ralabun ficassem visíveis novamente, temendo que pudessem acidentalmente se perder um do outro na escuridão que crescia.
— De qualquer modo é hora de pensar em parar em algum lugar para passar a noite. Devo pedir para o Monstro de Três Cabeças encontrar uma caverna seca ou árvore oca? Ou será que devo usar a mágica do Olho Ardente para cortar madeira para fazer um abrigo?
— Tanto faz — o velho nyssomu estava muito deprimido. — Eu daria tudo por um par de botas secas e por alguma coisa que aliviasse a bolha que apareceu no meu calcanhar direito.
— Vou tentar ajudá-lo — disse Tolivar.
Ele tirou a espada escura e quebrada do cinto e segurou pela lâmina, como tinha visto Orogastus fazer.
— Olho Ardente Trilobado! Ordeno que recupere a saúde do pé de Ralabun e que seque as botas dele.
Enquanto dizia essas palavras, o príncipe visualizava o que queria que fosse feito.
Os lobos que formavam o cabo da espada se abriram e três olhos mágicos olharam para o pé de Ralabun.
— Ui! Ui! Está quente! Está quente!
Nuvens de vapor brotaram de repente das botas e Ralabun começou a pular histérico, praguejando na língua aborígine. O príncipe se apressou em se desculpar.
— Perdão! Eu não sabia que isso ia acontecer. Acho que eu devia ter usado a tiara. Eu tinha esquecido que a espada talismã da tia Kadiya é mais uma arma do que uma varinha de condão. Humm... a sua bolha está curada?
— Como posso saber — gemia o velho desesperadamente —, com meus pés em fogo? Da próxima vez deixe-me pelo menos descalçar as botas antes de você fazer suas experiências. Melhor ainda, pratique sua feitiçaria amadora em outra pessoa... nos glismaks canibais, por exemplo!
— Espero que não tenha de fazer isso — disse o menino em voz baixa —, e você deve torcer por isso também.
Ralabun suspirou. Seus pés tinham esfriado rapidamente e de fato a bolha estava curada.
— Desculpe-me, Coração Misterioso, eu sei que você só queria ajudar. Mas estou tão cansado e molhado...
Tolivar apertou a tiara.
— Talismã... pode nos levar para um lugar seco onde poderemos passar a noite em segurança?
Posso. Há uma reentrância de bom tamanho nas rochas da encosta à sua direita. Siga a fagulha verde.
Uma luz esmeralda minúscula saltou da boca aberta da cabeça do meio da tiara e começou a se afastar lentamente da trilha. Tolivar segurou a mão de Ralabun.
— Venha. É hora de descansar e comer. Com sorte vou descobrir um jeito de secar o resto das suas roupas com mágica. Mas não tenha medo, amigo velho. Dessa vez vou experimentar primeiro em mim.
Eles acordaram descansados quando amanheceu e Tolivar logo se assegurou de que Kadiya e seu grupo estavam a menos de um quarto de légua à frente, tomando café da manhã perto do rio Oda.
— E os glismaks estão atrás deles ou de nós? — perguntou o menino para a tiara.
Não.
Satisfeito e seguro de que seu plano audacioso estava funcionando esplendidamente, o príncipe voltou a ficar invisível, junto com Ralabun. Eles partiram ao mesmo tempo que Kadiya e seus companheiros, e caminharam muitas horas, ficando cada vez mais cansados à medida que o sol subia no céu, mas conseguindo ficar relativamente perto dos outros.
E então eles encontraram marcas recentes dos glismaks atravessando a trilha para a direita.
Tolivar parou e estudou aquela prova agourenta consternado.
— Isso é estranho — disse Ralabun. — Pensei que sua tiara houvesse dito que os canibais não estavam nos seguindo.
A verdade terrível ficou clara para o príncipe de repente.
— Não... eles estavam andando em círculo em volta de nós para preparar uma emboscada! Fui burro demais e não perguntei essa possibilidade ao talismã, que sempre responde literalmente às perguntas. Rápido! Temos de tentar avisar os outros!
Ele saiu em disparada, caindo às vezes e avançando aos tropeços até de quatro, pois a trilha naquele ponto era extremamente íngreme.
— Não posso acompanhá-lo, Coração Misterioso — disse o mestre cavalariço sem ar. — Vá em frente sem mim e...
A distância, eles ouviram uma gritaria bestial, seguida do grito agonizante de um homem.
Tomados pelo terror, os amigos invisíveis subiram no topo de uma vertente de pedra. Lá embaixo, havia uma pequena clareira perto das duas cachoeiras, cercada de árvores monstruosas. Parecia dominada por seres enormes que pulavam e se debatiam com espadas, maças de pedra e machados enferrujados varonianos, dando urros horrendos o tempo todo. Eles não usavam roupas, tinham placas de pele brilhante protegendo as costas, os ombros e os braços. Seus corpos eram cobertos de pêlos castanho-avermelhados, mais longos na cabeça, formando jubas. Tinham focinhos como os de seus parentes wyvilos, mas em vez de olhos amarelos, os deles eram vermelhos. Grandes dentes brancos brilhavam em suas bocas e tinham garras nos pés e nas mãos.
A quadrilha de glismaks travava uma batalha feroz com quatro Companheiros Juramentados que estavam em grande desvantagem. Não havia sinal do quinto cavaleiro, nem de Jagun, nem da Dama dos Olhos.
— O que vamos fazer? — gemeu o velho Ralabun. — Olhe! Um dos Companheiros foi abatido. Oh, não! Os selvagens estão fazendo picadinho dele!
— Você tem de fazer exatamente o que eu disser — o príncipe de repente ficou cheio de determinação e firmeza. — Vá pela trilha da esquerda, esgueire-se encosta abaixo e trate de chegar ao rochedo perto das cataratas. Suba nele e comece a jogar pedras nos glismaks com toda a sua força. Berre como se fosse um fantasma do Inferno Espinhento. Isso vai distrair os bandidos e talvez ajude a espantá-los. Enquanto isso, farei o que puder com os talismãs.
— Mas...
— Apresse-se! — o príncipe sibilou e disparou escorregando e deslizando trilha abaixo, carregando o Olho Ardente Trilobado. Quando chegou à clareira e conseguiu ver distintamente os participantes da batalha, ele parou e se abaixou sobre um joelho. Segurando o talismã pelo lado sem gume da lâmina, apontou o cabo para o mais alto dos três glismaks que atacavam o cavaleiro caído.
Na cabeça dele o menino viu aquela criatura abominável transformada em cinzas.
— Olho Ardente — disse ele —, mate-o.
As três esferas que formavam o cabo da espada se abriram, revelando olhos que miravam o gigante glismak. Do olho humano partiu um raio dourado, do olho do aborígine um raio verde e do olho prateado dos Desaparecidos um clarão branquíssimo. O corpo do guerreiro selvagem foi cercado por uma radiação tricolor. Num segundo a carne dele foi consumida e depois os ossos que brilhavam também desapareceram, restando apenas uma mancha cinza que parecia de cinzas molhadas no solo lamacento. Os outros atacantes recuaram, atónitos. A vítima deles ainda vivia, pois o cavaleiro tinha se erguido e estava sentado, irreconhecível porque estava coberto de sangue, olhando para as cinzas assombrado.
O príncipe também se espantou com o fato de o novo talismã ter obedecido tão prontamente à sua ordem. Um júbilo extasiante dominou seu coração. Ele apontou o Olho Ardente para os outros dois glismaks que ainda estavam próximos do Companheiro caído, meio paralisados, e incinerou-os também com os raios mágicos.
O resto dos canibais começou a berrar com fúria, gritando uns com os outros na sua língua gutural. Começaram a fugir e em poucos minutos todos desapareceram na floresta. Tolivar, invisível na beira da clareira, não se conteve e deu um grito de triunfo.
— Quem está aí? — gritou sir Edinar.
Ele e os irmãos Kalepo e Melpotis eram os únicos Companheiros que ainda estavam de pé. Os três estavam feridos, mas nenhum ferimento era mortal.
— É algum feiticeiro que veio nos ajudar — disse o cavaleiro encolhido no chão, que então gemeu de dor e caiu inerte.
Pela voz o príncipe reconheceu sir Sainlat, que sangrava de uma dúzia de ferimentos. Um dos pés fora arrancado por um machado dos glismaks, e o sangue jorrava como uma pequena fonte vermelha.
Tolivar correu para perto dele. Encostou a tiara na testa do homem segurando com dois dedos, fechou os olhos e viu Sainlat na sua imaginação, alto e forte como estava aquela manhã em que desembarcara da chata.
— Talismã — sussurrou —, que ele fique assim.
O corpo de Sainlat foi envolvido por uma suave luz verde. O cavaleiro corpulento se mexeu e sentou-se. O rosto estava limpo de sangue e a estupefação fez sua boca se abrir, pois todos os sinais de ferimentos tinham sumido do seu corpo. Até sua armadura e suas roupas estavam limpas e perfeitas.
— Flor Sagrada! — gritou Edinar.
Ele correu para o companheiro recuperado, seguido de Melpotis e Kalepo, e os três puxaram Sainlat para ele ficar de pé e começaram a rir e a bater nas costas dele. Enquanto isso, o príncipe mandou o Monstro de Três Cabeças curar os outros. Um pulsar triplo de luz esmeralda anunciou a realização da magia, deixando os cavaleiros transformados mudos de choque e felicidade.
— Ó feiticeiro, apareça e aceite nossa gratidão! — Kalepo conseguiu dizer.
Tolivar falou disfarçando a voz, tornando-a mais grave.
— Onde estão os outros? Onde está a Dama dos Olhos?
— Vocês ouviram? — exclamou Sainlat. — Ele está aqui por perto!
Os Companheiros começaram a falar todos ao mesmo tempo e Tolivar deu um grito.
— Edinar, responda!
O jovem cavaleiro se controlou.
— Feiticeiro invisível, a Dama dos Olhos passou por um viaduto, esperamos que tenha ido para a terra dos Homens da Estrela, e prometeu retornar daqui a pouco. Sir Bafrik caiu gravemente ferido dentro do poço e temo que esteja morto. Quanto ao nyssomu Jagun, não sei onde possa estar. Não o vejo desde que os selvagens glismaks nos atacaram. Mas quem é você? É um dos servos vispis da Dama de Branco? Os invisíveis Olhos no Nevoeiro?
O príncipe perguntou mentalmente para a tiara: Bafrik está vivo?
Não, disse a voz na cabeça dele. Ele passou em segurança para o além e seu corpo desceu o rio flutuando.
- Onde está Jagun?
Neste momento ele está na boca de um buraco de namp, na metade da encosta à sua esquerda, imaginando quem o animal acabou de devorar.
— Um namp! — gemeu o príncipe em voz alta. — Não! Oh, não!
E ele saiu correndo, escorregando na relva rasteira e tropeçando em pedras escondidas. Os quatro cavaleiros viram a vegetação se mexendo e correram atrás, manifestando sua perplexidade.
Tolivar avistou Jagun em poucos minutos, olhando preocupado para uma cavidade irregular no solo que media cerca de duas varas de diâmetro. Era óbvio que antes tinha sido coberta com galhos finos, folhas mortas e outros restos do chão da floresta para disfarçar sua presença. Alguma coisa... ou alguém, tinha pisado na cobertura frágil e caído lá dentro.
— Olho Ardente, traga-o para fora a salvo! — berrou o príncipe. — Ó, por favor! Salve Ralabun!
O pedido não é válido.
O menino invisível caiu de joelhos na beira do buraco, de frente para Jagun que estava do outro lado, e olhou lá para dentro. O buraco estava cheio de sombras, mas meio enterrada na terra e folhagens havia uma forma gigantesca que ocupava o fundo quase todo. Parecia uma careca inchada, com olhos azuis e brilhantes do tamanho de um pires que olhavam para cima sob pálpebras enrugadas. O namp se mexeu e parecia sorrir, revelando uma boca imensa que ia de um lado ao outro da cabeça. Membros muito curtos com dedos fininhos apareceram no lugar onde deviam estar as orelhas da criatura.
— Essa... essa fera maligna devorou Ralabun? — perguntou o príncipe para o talismã com a voz trémula.
Sim.
Tolivar começou a chorar.
— Oh, não! Meu pobre amigo! Se ao menos você tivesse tido mais experiência com a vida selvagem... se eu não tivesse mandado que saísse da trilha! Agora você se foi e nenhuma mágica poderá trazê-lo de volta.
Jagun franzia a testa, com o olhar fixo no lugar em que o peso menino invisível comprimia as folhas no chão. Os Companheiros Juramentados se aproximaram e lançaram olhares horrorizados para dentro do buraco. O namp lambeu seus lábios arroxeados quando os avistou e arranhou a terra com suas mãos minúsculas.
— Príncipe Tolo? — disse o velho caçador nyssomu.—É você?
Nesse instante, o namp soltou um soluço grotesco, estremeceu e piscou os olhos rapidamente. Tolivar, Jagun e os cavaleiros se afastaram depressa da boca do buraco, e a criatura tossiu e soluçou novamente, mostrando fileiras e mais fileiras de dentes pontudos e manchados. O tremor do namp se transformou em espasmos violentos, intercalados com sons de engasgo. De repente, sua boca se abriu como a abertura de um gigantesco saco cheio de presas e deu um arroto trovejante.
Um recipiente fino e prateado voou lá de dentro, junto com uma quantidade de catarro e caiu aos pés de Jagun. Aliviado, o namp suspirou, se sacudiu e afundou-se na terra deixando apenas os olhos semicerrados de fora, brilhando, fracamente na escuridão do buraco.
O mato estalou e Kadiya apareceu.
— Você voltou em segurança! — exclamou Jagun. — Graças ao Deus Trino!
— É mesmo — respondeu ela —, e tive algum sucesso. Mas antes de contar o que aconteceu, deixem que eu apresente para vocês um certo feiticeiro.
Ela rodeou rapidamente o buraco do namp, chegou onde as duas pegadas afundavam o solo e agarrou alguma coisa que parecia ser apenas ar.
— Você pode se tornar visível, Tolo.
O príncipe apareceu, com o Monstro de Três Cabeças na cabeça e ainda segurando o Olho Ardente Trilobado. O rosto dele estava todo molhado de lágrimas. Kadiya o segurava pela parte de trás do gibão, e apesar de os dois serem quase do mesmo tamanho, Tolivar parecia indefeso nas mãos dela, como a presa recém-capturada de um lothok, resignada com o seu destino.
— Esse é o feiticeiro que salvou nossas vidas? — espantou-se sir Edinar.
— Impossível! — disse Sainlat.
— Ele está usando a tiara mágica — observou Melpotis — e segura o talismã roubado da Dama dos Olhos.
— Mas ele é apenas uma criança — zombou Kalepo.
— Eu matei os glismaks e curei seus ferimentos — disse Tolivar sem entonação. — Eu sou um feiticeiro, e o seu desprezo não vai mudar as coisas.
— Você também é um ladrão — disse Kadiya calmamente —, mas isso é secundário. — Com firmeza, guiou o príncipe até a caixa-estrela coberta de gosma. — Abra!
Como se estivesse dominado por imensa fadiga, Tolivar obedeceu. E quando ela ordenou que ele pusesse o Olho Ardente Trilobado dentro da caixa, ele também obedeceu sem dizer uma única palavra. Então a Dama dos Olhos apertou as pedras preciosas dentro da caixa. Fez-se um clarão e um som musical. Um segundo depois, Kadiya pegou a espada mágica com um sorriso triunfante, segurando-a com as duas mãos pela lâmina quebrada, com o cabo para cima.
— Talismã — perguntou ela —, você é meu outra vez? Recuperou o seu poder?
Aninhados no punho do cabo da espada estava o trílio-âmbar de Kadiya, brilhando como uma chama minúscula à luz fraca do crepúsculo. Os lobos escuros se abriram e três olhos faiscantes que espelhavam os que ela tinha na couraça de escamas olharam para ela.
Estou associado a você, Dama dos Olhos, e com potência total.
— Ótimo — disse ela. — Agora ordeno que proteja a mim e aos meus companheiros da Visão de Orogastus e de toda a sua Guilda da Estrela.
Está feito.
Os olhos fecharam, Kadiya enfiou a espada no cinto e dirigiu-se aos outros.
— Jagun, por favor, tome conta da caixa-estrela.
— Certamente, Olhos Penetrantes.
— Não podemos nos demorar mais aqui — disse ela. — O sol já está se pondo e temos de passar pelo viaduto. Há alguém esperando por nós do outro lado que prometeu nos ajudar a chegar à cidade de Brandoba, onde mora o imperador Denombo, mas ele não pode esperar muito tempo.
— Então a passagem realmente leva para a terra de Sobrania? exclamou Edinar.
— Sim.
— E aos Homens da Estrela? — quis saber Melpotis. — Eles conquistaram o país?
— Ainda não — disse Kadiya, depois virou para o príncipe Tolivar. — Antes de partir quero que você dê o Monstro de Três Cabeças para eu guardar. Jagun! Abra a caixa-estrela.
O menino deu um passo para trás. A vida tinha retornado às suas feições. Com os olhos arregalados de desespero, ele levantou as duas mãos para segurar a tiara com força na cabeça.
— Não! — a voz dele era um sussurro entrecortado. — Eu... eu nunca desistirei do meu talismã. Não enquanto eu viver!
— Não é seu — disse Kadiya. — Ele pertence à sua mãe, assim como o Círculo de Três Asas pertence à Arquimaga Haramis, e este Olho Ardente Trilobado me pertence.
— Mamãe deu o talismã espontaneamente para Orogastus — disse o príncipe obstinado.
— Para pagar o seu resgate e o do seu pai real! — exclamou Kadiya com uma voz terrível. Ela tirou a caixa-estrela das mãos de Jagun e avançou para Tolivar, com a caixa aberta. — Ponha a tiara dentro da caixa.
— Não — murmurou o menino.
Ela tirou a espada preta e quebrada do cinto e apontou para a testa de Tolivar, segurando-a a menos de um dedo da borda da tiara. Os três Olhos se abriram.
— Tolo, faça o que estou dizendo. Entregue o talismã.
— Não toque nele! — avisou o príncipe, com um olhar desesperado. — Você sabe que ele vai matá-la se tentar tirá-lo de quem está associado a ele. Eu só consegui ficar com ele porque Orogastus o tinha emprestado para o Voz Amarela, que não estava bem protegido.
Ela olhou para ele furiosa alguns segundos, mas a força de vontade dele era intensa demais.
— Fique com ele, então, pelo bem que puder proporcionar a você. — Kadiya recolheu a espada e enfiou-a novamente no cinto. O cabo trilobado voltou a parecer apenas metal preto. — Sainlat, Melpotis... levem Tolo de volta para a barca do rio.
— Não! — reclamou o príncipe. — Jurei salvar minha mãe! Se você tentar me mandar de volta, usarei a magia para impedir isso.
— Olhos Penetrantes — Jagun chamou Kadiya com urgência. — Talvez seja melhor o príncipe vir conosco. Ele pode ajudar no resgate da rainha Anigel, já que é evidente que ele tem alguma habilidade no comando desse talismã.
— O truque de invisibilidade que ele fez foi mesmo impressionante — observou sir Edinar.
— E quando nos curou — acrescentou Sainlat animador — foi mais impressionante ainda. Eu mesmo estava quase morrendo e agora, além de recuperado, estou até mais forte.
Os outros cavaleiros murmuraram que concordavam. Kadiya olhou pensativa e com cara de brava para o menino.
— Quando a mãe dele estiver a salvo conosco — continuou Jagun —, ele pode devolver o talismã para ela — e o pequeno nyssomu disse para o príncipe: — Você fará isso, Coração Misterioso?
Ao som de seu nome do pântano, dado pelo falecido Ralabun, o príncipe se encolheu, mas não respondeu. Mais paciente, Kadiya disse:
— Tolo, se eu permitir que você vá conosco, promete se submeter ao meu comando e não executar nenhuma magia com a tiara sem a minha permissão expressa?
O príncipe hesitou e apertou os lábios. Mas ele finalmente disse:
— Prometo.
Kadiya ia exigir que ele também prometesse devolver o talismã para Anigel, mas ficou com medo de o menino continuar a resistir e talvez até tentar fugir, invisível, se exercesse mais pressão. Além do mais, seria mais fácil ele entregar a tiara a um pedido da própria rainha.
Ela deu um suspiro.
— Muito bem. Agora vamos nos preparar para passar pelo viaduto. Não há Homens da Estrela ou outros vilões do outro lado, mas a pessoa que está esperando, um homem de uma tribo que concordou em ser nosso guia, tem um temperamento muito nervoso e medroso e pode partir sem nós se não nos apressarmos.
— Espere! — gritou o príncipe, indo até a beirada do buraco do namp. — Tia, essa criatura miserável matou meu pobre amigo, Ralabun. Eu não sei se a minha tiara mágica pode matá-lo, mas Peço que me deixe tentar.
— Mas o namp não cometeu assassinato — disse a Dama dos Olhos. — É apenas um animal selvagem e não tem a faculdade da razão. Ele procurou alimento do jeito que está acostumado a fazer, sem maldade. Seria injusto matá-lo agora, a sangue-frio. Você não entende isso, Tolo?
— Não — o menino não queria olhar para Kadiya. Kadiya endureceu a voz.
— Então deixe a criatura viver porque eu estou mandando. Ela deu as costas para ele e desceu a encosta com Jagun e os cavaleiros.
— Mas eu preciso matá-lo! — gritou o príncipe desesperado. — Eu preciso!
Kadiya olhou rapidamente para ele por cima do ombro.
— Você não vai e não precisa nada porque o namp não tem culpa da morte de Ralabun. O culpado é outra pessoa, que você já sabe quem é, lá no fundo do seu coração.
Tolivar empalideceu. Não disse mais nada, mas desceu a encosta junto com os outros.
O som baixinho da porta se abrindo fez a rainha finalmente recuperar os sentidos por completo, mas ela continuou de olhos fechados. Passos se aproximaram de sua cama. Uma voz de mulher, vibrante e imperiosa, disse:
— Ela deve estar completamente recuperada agora, Mestre da Estrela.
Um homem deu um grunhido concordando.
— Mas não havia como ele tirar o Trílio Negro dela. Nem mesmo o poder da Estrela foi o bastante. Quando se toca neles, tanto o amuleto quanto a corrente ficam insuportavelmente quentes. Eles não queimavam a pele dela, mas só da pessoa que tentava pegá-los. Até usamos pinças e outros instrumentos, mas ou eles explodiam em chamas ou então ficavam quentes demais e não era mais possível segurá-los.
— Não importa. Acho que o âmbar não pode nos fazer mal. Ele só a protege. Agora dê-me o aparelho de diagnóstico.
— Sim, Mestre.
— Rainha Anigel! — a voz do homem era familiar demais. — Acorde.
Ela abriu os olhos.
Duas pessoas com mantos pretos e prateados da Guilda da Estrela olhavam para ela. Uma era uma mulher alta, o espírito e a imagem da bela guerreira ruiva da tapeçaria de penas, pendurada na parede do quarto atrás dela.
Ao lado dela estava Orogastus.
— Agora entendi tudo! — disse Anigel para ele com raiva e frieza. — Quando seu esquema de me afogar falhou, você me seqüestrou através daquele maldito viaduto.
— Boa-tarde, Majestade — disse o feiticeiro educadamente. Ele segurava um pequeno artefato de metal, que encostou rapidamente na testa dela. A máquina deu um guincho baixinho, Orogastus balançou a cabeça satisfeito e pôs a coisa na barriga dela sobre a coberta. Ela protestou com raiva e ele não lhe deu atenção, só guardou a máquina no manto, sorrindo.
— Você deve ficar feliz de saber que está curada dos seus ferimentos recentes. Seus filhos em gestação também gozam de boa saúde. Quanto ao seu afogamento, esse não era meu plano e o idiota estabanado que inventou isso foi repreendido.
— Onde está minha enfermeira nyssomu, Immu? — quis saber Anigel. — Ela foi arrastada pela enchente junto comigo. Você também a mantém prisioneira?
O feiticeiro balançou a cabeça.
— Não sei dela. Havia apenas um cavaleiro ruwendiano e alguns soldados lá no Pântano Labirinto que atacaram meus servos, quando eles a carregavam pelo viaduto.
— Sir Olevik! O que aconteceu com ele? Orogastus deu de ombros.
— Ele e seus homens morreram no tumulto, reduzidos a cinzas pelas nossas armas invencíveis.
A tranqüilidade do feiticeiro fez a rainha ficar mais indignada ainda.
— Liberte-me! — gritou, esforçando-se para arrebentar as amarras que a prendiam. — Como ousa me amarrar na cama como alguma reles criminosa?
— Essas amarras — disse Orogastus — serviram apenas para mantê-la quieta nos seis dias em que se recuperava, inconsciente. Não podíamos deixar seus ossos valiosos ficarem tortos.
— Por que você me seqüestrou? Estou avisando... nem meu marido real, nem a Arquimaga Haramis vão se submeter a você para poupar a minha vida e a dos bebês que carrego. Não sou mais a covarde que passivamente entregou o talismã para você quatro anos atrás! Agora estou preparada para morrer se assim puder frustrar seus planos malignos.
Orogastus sorriu e ajeitou seu cabelo comprido e branco com uma mão elegante.
— Eu prefiro você viva, rainha Anigel, mas a decisão é toda sua. Vamos discutir esse assunto mais tarde — ele virou-se para a mulher da Guilda da Estrela. — Naelore... solte a rainha e ajude-a a se vestir, depois leve-a para a sala-forte. Estarei esperando com os outros.
Ele saiu do quarto e fechou a porta.
Sem se dar ao trabalho de disfarçar seu desprezo, a Mulher da Estrela puxou o cobertor que cobria o corpo de Anigel.
— Vou servir de aia dessa vez, rainha. Mas, por mim, você teria se recuperado no calabouço, junto com seus arrogantes colegas governantes.
— O quê? Vocês mantêm os monarcas prisioneiros também?
Quem?
Naelore se abaixou para desamarrar os tornozelos de Anigel e depois soltou as correias acolchoadas dos pulsos.
— Você vai saber logo.
Sem gentileza alguma a Mulher da Estrela ajudou a rainha a se sentar.
Anigel descobriu que estava usando fraldas, como um bebê, e que, fora o seu amuleto do Trílio Negro, estava nua. Um tecido amarelado estranho, delicado e enrugado como a pele de um yarkil cozido caiu em tiras da perna direita, do braço esquerdo e do lado esquerdo das costelas quando ela pôs os pés com cuidado no chão. Um outro grande pedaço desse tecido caiu do seu ombro esquerdo e se desintegrou em flocos finos quando encostou na roupa de cama.
— O que é isso? — perguntou Anigel, afastando o tecido do corpo.
— Reparador de ossos — disse lacônica a mulher ruiva. — Parte da parafernália milagrosa do Mestre.
Ela pegou um lençol num armário, depois abriu uma arca e sacudiu um vestido de brocado verde-grama com um modelo curioso. Era muito leve, não pesava quase nada, e tinha milhares de minúsculas rosetas feitas de penas amarelas aplicadas com bordado.
Anigel se espreguiçou e passou os dedos pelo cabelo louro solto. Parecia bem limpo.
— Suponho que minhas roupas estejam arruinadas.
— Assim como estava seu corpo real, até o Mestre usar seu encantamento de cura nele — os lábios de Naelore se contorceram formando um esgar fastidioso. — Há uma bacia e um cântaro Para se lavar naquela alcova, e um necessarium atrás daquela pequena porta. Não perca tempo.
Anigel nem se dignou a responder, mas fez sua toalete o mais depressa possível. Vestiu a roupa de baixo e o vestido, depois enrolou o cabelo na nuca e prendeu com dois grampos dourados de madeira. Naelore providenciara um cinto de penas ocres e verdes e uma capa de lã ocre. Sapatos macios de couro marrom com tufos de penas esmeralda completavam a vestimenta.
Anigel examinou o resultado satisfeita e arrumou o fóssil de Trílio Negro para ficar sobre o peito.
— Obrigada por providenciar uma roupa adequada para mim, Naelore.
— Não fui eu — respondeu a Mulher da Estrela de má vontade —, foi o nosso Mestre que escolheu suas roupas. E aqui está um último enfeite para você usar.
Ela mostrou um par de algemas ligadas por uma corrente. Em silêncio Anigel permitiu que Naelore a algemasse.
— Agora venha — ordenou Naelore. — Eles estão à nossa espera — ela foi indo em direção à porta.
— Uma pergunta — disse Anigel, parando diante da tapeçaria de penas que mostrava a guerreira e as fontes de fogo. — Essa aqui é você?
— Não — disse a Mulher da Estrela. Pela primeira vez um sorriso sem a contaminação da descortesia pairou nos lábios dela. — É a minha ancestral, cujo nome herdei, e que construiu este castelo. Ela também foi injustamente privada do seu império. Mas conseguiu recuperá-lo, como eu também vou, muito breve.
Anigel seguiu Naelore pelos corredores de pedra, olhando em volta muito interessada. Será que aquele lugar era o quartel-general da Guilda da Estrela que Haramis, até aquele momento, havia procurado tanto, em vão? Se estavam de fato em Sobrania e não em algum dos seus sub-reinos mergulhados em trevas, ela talvez pudesse escapar com a ajuda do seu Trílio Negro e se submeter à misericórdia do imperador Denombo. Ele não se aliava a país algum, mas era muito cavalheiro e certamente lhe daria refúgio até Haramis ou outro salvador chegar...
— Aqui — disse Naelore, apontando para uma porta aberta.
Era uma pequena sala, um tipo de sala de descanso com apenas fendas estreitas no lugar de janelas. Lamparinas de prata a óleo penduradas ao longo das paredes forneciam a iluminação adicional. Mesmo assim Anigel precisou de alguns minutos para se acostumar e determinar quem eram os outros ocupantes da sala.
Havia nove cadeiras em volta de uma grande mesa redonda no centro da sala. Orogastus estava sentado em uma e ao lado dele havia outra vazia, provavelmente à espera dela. Os outros lugares estavam ocupados por cinco homens e duas mulheres, todos algemados como Anigel, com algemas douradas. Atrás de cada prisioneiro havia um homem da Guilda da Estrela de pé e empunhando uma das armas estranhas dos Desaparecidos.
— Bem-vinda, rainha de Laboruwenda — disse Orogastus, inclinando a cabeça num gesto civilizado de respeito. — Acho que conhece todos os outros à mesa.
E ela conhecia mesmo. Estarrecida com esse reconhecimento, Anigel examinou seus colegas prisioneiros, que exibiam expressões que variavam de raiva taciturna a despreocupação jovial.
À direita do feiticeiro estava um casal mais velho e despreocupado, com roupas antiquadas da corte, o eterno príncipe Widd e a eterna princesa Raviya das ilhas de Engi. Os três homens de roupas escuras do outro lado da mesa eram o presidente Hakit Botai de Okamis, e os duúmviros Prigo e Ga-Bondies, que juntos governavam a República Imlit. A mulher matronal de vestido vermelho e sorriso torto era a rainha Jiri de Galanar. Entre ela e a cadeira que Anigel devia ocupar, encurvado e com olhar ameaçador como o de um gradolik enjaulado, estava Ledavardis de Raktum, um homem de vinte anos, cujo corpo forte e deformado e aparência nada atraente haviam merecido o apelido de ”reizinho duende”.
A última vez que Anigel tinha visto Ledavardis havia sido meses antes, quando ele foi à Cidadela de Ruwenda para pedir a mão da filha dela, Janeel. O jovem monarca, esplendidamente vestido que aparecera na Cidadela de Ruwenda como pretendente estava irreconhecível. A roupa do rei Ledavardis estava rasgada e imunda, como se sua captura não houvesse sido nada fácil. Uma bandagem manchada cobria seu olho esquerdo, enquanto o direito se encontrava injetado e a pele ao redor estava toda roxa. As correntes das algemas dele eram duas vezes mais grossas que as dos outros.
— O, meus pobres amigos — murmurou Anigel. — Que reunião triste!
— Sinto muito eles terem capturado você também, doçura — chilreou a eterna princesa Raviya. — Peixes de boa qualidade essa rede, não é?
O eterno príncipe Widd deu um sorriso largo com o mais perfeito bom humor.
— Sete dias atrás estávamos jogando knockers no gramado da esplanada com nossos netos, quando uma dupla de homens estrelados apareceu do nada no arco azul e nos seqüestrou. Os bandidos avisaram para as crianças que nos matariam se eles contassem qualquer coisa sobre o seqüestro.
— Os Homens da Estrela ameaçaram matar todas as minhas preciosas filhas se alguém ficasse sabendo da minha abdução — disse a rainha Jiri.
Os mandatários eleitos de Okamis e Imlit balançaram as cabeças, concordando juntos. Todos tinham se unido à casa de Galanar, casando-se com três das nove princesas da ninhada de Jiri.
— Todos nós fomos seqüestrados através daquelas estranhas portas mágicas — disse o presidente Botai —, ou seja lá como as chamam.
— Nós as chamamos de viadutos — disse Orogastus gentilmente. — Por favor, sente-se, rainha Anigel, e vamos começar nossa conferência.
Naelore levou Anigel até a cadeira vazia. Então a Mulher da Estrela puxou o capuz do seu manto prateado para cobrir o cabelo flamejante, tirou um pequeno objeto de um bolso interno da veste e ficou de pé atrás da rainha.
— Bruxo sem estirpe! — gritou o rei Ledavardis, levantando da cadeira e erguendo os punhos acorrentados ameaçadoramente, — Não vai adiantar nada manter-me prisioneiro. Você pensa que a nação soberana de Raktum o aceitaria como senhor? Só quando as Três Luas virarem melões com espinhos!
Ele teria continuado a vociferar, mas Orogastus franziu a testa e fez um gesto impaciente. Naelore subitamente se afastou da sua posição atrás da cadeira de Anigel, levantou o artefato fino de metal que estava segurando e o encostou no ombro do rei.
O berro de Ledavardis fez estremecer os caibros do telhado. Os outros prisioneiros levaram um susto e depois proferiram exclamações de revolta contra a Mulher da Estrela, que permaneceu muito calma. O jovem rei despencou na cadeira, ofegante.
— Se Raktum vai ou não me aceitar como senhor feudal não é o assunto que discutiremos agora — disse Orogastus, quando o tumulto diminuiu. — Basta saber que seu governante e o resto de vocês são agora meus prisioneiros. Vocês permanecerão aqui no Castelo Incendiado, reféns do bom comportamento dos seus países, até que um certo plano meu amadureça.
-— Que plano é esse? — perguntou inocentemente a rainha Jiri.
.— Vamos tratar dos detalhes no momento certo, Majestade — disse Orogastus —, quando tivermos nos conhecido melhor.
— Humpf — bufou o duúmviro Prigo.
Ele era um indivíduo pequeno, com olhos castanhos astuciosos e modos afetados como os de um acadêmico.
— Quanto tempo pretende nos manter aqui, feiticeiro? — perguntou.
— Pode demorar um pouco, Excelência — admitiu Orogastus.
— Até os líderes dos outros países também serem capturados? — persistiu Hakit Botai. — E o governo do mundo se dissolver no caos?
O sorriso no rosto de Orogastus desapareceu.
— Infelizmente a Arquimaga Haramis já avisou sobre a localização dos viadutos. Acho que aqueles governantes que ainda estão em liberdade ficarão mais atentos para não serem abduzidos a partir de agora. Mas não importa. Tenho os mais importantes em meu poder.
É, pensou Anigel. Só falta um, meu marido, Antar! Os outros governantes que continuam livres são os fracos, como o velho rei Fiomadek de Var, ou então, como Yondrimel de Zinora e Emiling de Tuzamen, os que já estão inclinados a se aliar com o feiticeiro...
Os olhos claros de Orogastus tinham um brilho ameaçador e implacável.
— Vocês ficarão aqui como reféns para garantir que seus súditos não prejudiquem minhas atividades, até o Trílio Celeste anunciar a minha grande vitória para o mundo inteiro.
Os prisioneiros ficaram olhando para ele em silêncio. Finalmente, o eterno príncipe Widd apontou um dedo magro para o feiticeiro.
— Olhe aqui, meu jovem! Eu posso suportar viver num calabouço úmido e ouso dizer que os outros homens também podem. Mas a minha pobre mulher Raviya tem sido vítima da ciática naquela cela úmida em que está confinada. Se você tiver alguma decência precisa providenciar um alojamento melhor para as mulheres.
— Isso pode ser providenciado sim — disse Orogastus tranqüilamente. — Até hoje, a detenção de todos vocês, salvo a rainha Anigel que estava se recuperando de seus ferimentos, tem sido deliberadamente árdua para que possam reconhecer a seriedade da sua situação. Mas a partir de agora, desde que vocês concordem com certas condições simples, todos terão quartos mais agradáveis e serão tratados como convidados de honra e não como prisioneiros comuns. Cabe a vocês escolher se passarão o resto da sua estada aqui em apartamentos bonitos que condizem com a sua posição, ou se viverão em celas sem janelas, na companhia de criminosos comuns.
Os chefes de Estado murmuravam desconfiados entre eles. Ledavardis levantou-se mais uma vez e não disse nada.
— Se vocês concordarem com os termos do indulto — disse o feiticeiro —, terão liberdade no Castelo Incendiado. Mas podem acreditar quando digo que, além de à prova de fuga, também é impossível tomá-lo de assalto. Nenhum poder sob as Três Luas pode resgatá-los.
Anigel segurou seu pingente de âmbar em sua fina corrente de ouro. Ele estava quente e parecia acalmá-la.
— Que promessa você quer de nós? — disse ela.
— Jurem que não farão mal a qualquer um neste castelo e que vão se comportar com dignidade enquanto permanecerem aqui.
— Muito bem — disse Anigel quase em um sussurro. — Eu juro, pelo Trílio Negro sagrado.
Orogastus fez a pergunta para os outros, um de cada vez. Todos deram sua palavra solene, exceto o rei pirata, que ergueu seu rosto devastado e cuspiu no feiticeiro insensível.
A Mulher da Estrela tirou de seu manto um outro aparelho mágico, diferente do artefato de tortura e, dessa vez, enfiou no pescoço de Ledavardis. Ele deu um suspiro profundo e caiu desacordado em cima da mesa.
— Deixe-o aí que os carcereiros virão buscá-lo — disse Orogastus, levantando da cadeira. — Naelore, por favor, mostre as novas acomodações para nossos convidados. O resto de vocês, membros da Guilda, venham comigo até o observatório.
— Sim, Mestre — disseram os sete Homens da Estrela em coro.
Ainda empunhando suas armas estranhas, eles seguiram o feiticeiro e saíram da sala.
— Por aqui — ordenou Naelore, e tão potente era a sua personalidade que os governantes abalados saíram em fila atrás dela sem dizer palavra.
Eles subiram para um andar no alto da torre central, onde suítes lindamente mobiliadas se abriam para um corredor central, iluminado por janelas verticais que atravessavam o piso do andar. Cada prisioneiro foi levado para conhecer seu apartamento (Widd e Raviya ficaram com o maior), e Naelore então retirou as correntes douradas.
— Vocês terão criados para servi-los — disse ela rudemente e receberão instruções sobre as nossas rotinas domésticas. Vocês podem ir a qualquer parte do Castelo Incendiado, menos aos locais que os guardas proibirem. À noite ficarão trancados em seus quartos. Se tentarem escapar ou violar sua promessa de qualquer maneira, serão imediatamente confinados no calabouço.
Anigel foi a última que recebeu seus aposentos. Quando Naelore tirou suas algemas ela falou com gentileza e calma.
— Você disse que ficou privada do seu império. Como aconteceu essa injustiça?
Naelore respondeu de má vontade.
— Eu era a mais velha, mas nosso falecido pai, o imperador Agalibo, declarou meu irmão Denombo, que vem logo depois de num, herdeiro do seu domínio e o meu segundo irmão, Gyorgibo, como sucessor se Deno morrer sem prole. Meu pai fez isso apesar de eu ser mais inteligente e mais corajosa, dizendo que os reis vassalos de Sobrania jamais me aceitariam porque sou mulher.
— Entendo. Mas em certos países esse é o costume.
— Nem sempre foi assim aqui! — gritou a Mulher da Estrela com muito rancor. — Mais de duzentos anos atrás, Sobrania teve uma imperatriz, aquela mesma Naelore, a Poderosa de quem herdei o nome, e seu reino viveu um tempo de prosperidade única. A hegemonia de Sobrania na época se estendia por todo o mar Meridional! Galanar não passava de uma província nossa, e os chefes covardes de Imlit e Okamis se ajoelhavam aos pés da imperatriz Naelore. Até a orgulhosa Zinora pagava um tributo anual a ela, um navio carregado das melhores pérolas.
— Então você espera que Orogastus e a Guilda da Estrela ajudem a destronar seu irmão Denombo?
Os olhos de Naelore eram fogo puro.
— Eu não espero nada, eu exijo isso... e dentro de três curtos dias!
Ela não disse mais nada, deu meia-volta e foi embora, batendo a porta.
A rainha ficou um tempo parada, raciocinando. Depois, esfregando os pulsos distraída, andou pela suíte e finalmente parou diante da janela aberta da pequena sala de estar e observou a estranha paisagem. O sol havia acabado de se pôr, deixando o céu escuro coberto de nuvens cinzentas com uma pincelada de vermelho por baixo.
A vista era fantástica. O castelo da Guilda da Estrela ficava encarapitado numa encosta muito íngreme a mais de quatrocentas varas de altitude, numa montanha que se erguia acima de uma depressão enorme com formato arredondado. Penhascos bem altos formavam o perímetro irregular e distante da bacia. O fundo era quase plano e tinha imensas rochas negras e áreas verdes que pareciam charcos. Uma floresta cobria os flancos da montanha mais central que era coroada com o castelo, mas parecia que um incêndio tinha destruído a parte de baixo, deixando um rastro de troncos carbonizados e vegetação queimada. Uma trilha tortuosa se estendia da base da encosta e atravessava a depressão, talvez continuando até a muralha de pedra a muitas léguas de distância.
— Que lugar mais desolado! — disse Anigel para si mesma. Ela segurou o amuleto trílio-âmbar que pendia do seu pescoço e percebeu que estava tremendo. — Senhores do Ar, façam com que eu não tenha de parir meus trigêmeos neste lugar horrível! Ajudem-me a encontrar uma maneira de recuperar minha liberdade.
Anigel ouviu um som atrás dela e viu a rainha Jiri de Galanar parada na porta aberta.
— Pobrezinha — murmurou a bondosa monarca. — Temo que isso seja quase impossível. O feiticeiro escolheu muito bem o local para instalar essa fortaleza.
— Então é verdade que esse castelo é guardado por magia negra?
Jiri foi ficar ao lado de Anigel diante da janela.
— Oh, há muita feitiçaria nos domínios da Guilda da Estrela... mas eles não precisam de nenhuma para garantir a invencibilidade do Castelo Incendiado. Quando eu estava no calabouço, meu guarda sobraniano, o nome dele era Vann, dispôs-se a me contar tudo sobre este lugar em troca dos meus anéis e outras quinquilharias - ela levantou o indicador gorducho. — Está vendo? Só restou este rubi. Também aprendi muito com um camarada chamado Gyor que estava na cela ao lado da minha.
—- Gyor? Você disse que o nome dele era Gyor? Como é que ele era?
— Não deu para ver o rosto dele, já que estava bem ao lado, e ele também não disse nada sobre si mesmo, nem por que fora preso. Mas me entreteve com muitas histórias apavorantes sobre os fantasmas que habitam este velho castelo, e ele também tinha um conhecimento razoável de como Orogastus se apoderou dele há dois anos.
— Mas como o castelo é à prova de fuga — perguntou Anigel —, se não há feitiçaria envolvida?
— Olhe bem para aquela região lá embaixo. Você está vendo ou ouvindo qualquer criatura viva?
Anigel estudou cuidadosamente a paisagem. Era completamente silenciosa. Nenhum dos famosos pássaros de Sobrania cantava, nenhum voor, looru ou outro predador voador alçava voo, nenhum inseto ou animal anunciava o fim do dia. A única coisa que se movia era uma névoa muito fina que pairava sobre os charcos, lentamente subindo pela região dos esqueletos de árvores incendiadas na base da encosta e parando naquele ponto da montanha em que a floresta continuava saudável.
— Não vejo nenhuma vida animal — disse Anigel.
— Porque nada pode viver lá embaixo — disse Jiri. — Debaixo da terra escapa um miasma venenoso. Não é a névoa, que é inofensiva, mas um vapor invisível com um odor muito fraco. Ele cobre o solo da bacia logo abaixo das árvores queimadas. Ventos fortes podem afastá-lo de vez em quando, mas sempre volta, invisível e mortal.
— Mas há uma estrada — protestou Anigel. — E eu mesma me lembro de ter sido trazida para cá numa espécie de carroça...
— Você também lembra do fogo? — perguntou Jiri. Anigel franziu a testa.
— Ora, lembro.
— Essa é a única maneira de derrotar a atmosfera venenosa. Os gases são inflamáveis, sabe? Quando o Mestre da Estrela ou seus capangas querem atravessar a bacia, eles incendeiam as emanações. Gêiseres flamejantes aparecem e depois de queimarem por alguns minutos o ar puro toma o lugar do nocivo. Então se pode viajar em segurança pela estrada. Mas é importante andar bem rápido, porque ai de quem não chegar à montanha do castelo ou ao anel externo de penhascos antes dos gêiseres de fogo apagarem! O fluxo subterrâneo de gás é irregular e pode enfraquecer e parar a qualquer momento, o fogo se apaga e recomeça o escapamento letal invisível, enchendo de novo toda a bacia. A chuva pesada também pode apagar o fogo. As pessoas comuns têm pavor do Castelo Incendiado, que um dia já foi o abrigo secreto de uma imperatriz sobraniana que morreu há muito tempo. Ninguém ousa vir até aqui, a não ser os comparsas de Orogastus. Além do perigo muito concreto dos gêiseres, a lenda diz que o lugar é assombrado pelos fantasmas das pessoas que essa imperatriz mandou queimar vivas.
— Olhe lá embaixo — disse Anigel. — Estão abrindo o portão principal do castelo! Alguém vai sair.
— Então vamos observar — disse Jiri.
Lado a lado, as duas rainhas espiaram pela janela aberta. A escuridão aumentou, enchendo a bacia nevoenta de sombras impenetráveis, e as nuvens se tornaram violeta no oeste. Por causa do ângulo das paredes do castelo e das copas das árvores saudáveis, elas não conseguiam ver claramente o progresso do grupo que descia a montanha.
Foi uma surpresa e um choque quando acenderam o gás.
Um globo achatado de luz vermelha apareceu de repente no sopé da montanha. Um segundo depois as duas ouviram um estampido muito forte, depois um chiado prolongado como se fosse de fogos de artifício. A bola de fogo inicial lançou tentáculos horizontais azuis que se dividiram em milhares de pontas, voando em todas as direções e bem próximas do solo. Ouviram uma segunda explosão, depois outras, grandes e pequenas, estalando e trovejando, enquanto a rede de fogo azul ficava mais brilhante e crescia até se transformar numa radiação dourada que cobriu todo o fundo da depressão. Logo que essa incandescência cresceu, ela desapareceu. No seu lugar apareceram centenas de gêiseres flamejantes, fontes verticais vermelhas e douradas que dançavam e esguichavam em torno da montanha do Castelo Incendiado como coisas vivas, formando silhuetas dos esqueletos das árvores queimadas e refletindo as águas escuras do charco.
— Lá vão eles — disse a rainha Jiri, apontando. — Grande Deusa... é um pequeno exército!
— E Orogastus e a Mulher da Estrela Naelore seguem na frente — Anigel afirmou com convicção.
Pontos de fogo que se moviam bem depressa, as tochas levadas por uma fila de cavaleiros que incitavam suas montarias a seguir a galope, teciam um caminho intrincado no meio das chamas estacionárias dos gêiseres. Anigel observou fascinada até o seu anfitrião desaparecer a distância. Parecia haver algumas centenas de cavaleiros e também algumas carroças.
— Agora você entende — disse a rainha Jiri — por que a fuga é impossível. Mesmo se pudéssemos sair do castelo, jamais conseguiríamos atravessar aquela bacia. Nós sufocaríamos ou então daríamos o sinal da nossa fuga para os nossos captores quando acendêssemos o gás inflamável. É impossível, como garantiu meu companheiro de cela Gyor.
— Talvez não seja — falou Anigel tão baixo que quase não deu para ouvir sua voz. Ela segurou seu trílio-âmbar e o brilho dele aumentou quando encostou os dedos nele. — Está vendo este amuleto? É um objeto mágico que pode nos ajudar a escapar.
— Então por que Orogastus permitiu que você ficasse com ele? — perguntou sem rodeios a rainha mais velha.
— Para começar, porque o pessoal dele não foi capaz de tirálo de mim. Mas o mais importante é que ele não entende o seu poder, que não se parece em nada com o tipo de encantamento que ele domina. Desde recém-nascidas, minhas irmãs trigêmeas, Haramis e Kadiya, e eu usamos essas gotas de âmbar que contêm uma flor fossilizada do sagrado Trílio Negro. Nossos amuletos são simbólicos, representam nosso destino e também nos protegem. Eles nos guiam na nossa vida e mostram o caminho quando nos perdemos. Se nossas vidas forem ameaçadas por mágica, o âmbar encontra uma maneira de nos salvar. Eu mesma já fiquei invisível com a ajuda dele, e ele também abre qualquer tranca apenas encostando nela.
— Não! — sussurrou a rainha de Galanar, encantada.
— Sim — disse Anigel. — De nós três que usamos o trílioâmbar, eu sou a menos corajosa. Mas farei tudo que puder e, se os Senhores do Ar permitirem, minha mágica concretizará nossa fuga dessa prisão.
— Não se preocupe em pedir a permissão dos anjos — disse Jiri. — Devíamos discutir o assunto com nossos colegas reféns.
— É claro. E temos de fazer isso logo, porque acho que temos uma oportunidade única de escapar, enquanto tantos componentes da força da Guilda da Estrela estão fora do castelo.
Jiri resolveu tudo num piscar de olhos.
— Teremos uma conferência durante o jantar. Vou começar agora mesmo a espalhar a notícia, para todos estarem presentes.
— Não diga nada da sua conversa com aquele prisioneiro no calabouço. Estou certa de achar que os outros não sabiam o nome dele?
— Certíssima — Jiri estava confusa e animada ao mesmo tempo. — Eles todos estavam ocupados demais com seus próprios problemas para se preocupar com ele.
— Acho que sei quem é esse homem, e por que ele está preso. É possível que ele venha a ser muito útil para nós.
Anigel explicou. Então ela esboçou o plano de fuga que parecia ter elaborado numa única explosão de inspiração, enquanto Jiri ouvia com os olhos semicerrados.
— Magia — murmurou a rainha de Galanar, quando Anigel terminou. — Aliás, magia duvidosa!... Bem, docinho, estou disposta a experimentar. Mas vai ser difícil convencer os outros.
Anigel continuou de pé, perto da janela, muito tempo depois de a rainha Jiri sair, observando até as línguas de fogo começarem a perder a força e diminuir. Um a um, os gêiseres flamejantes se apagaram e finalmente restou apenas uma pluma bem alta, azul-dourada, balançando ao vento da noite como uma dançarina espectral.
Quando uma criada bateu à porta do quarto da rainha Anigel para avisar que o jantar estava na mesa, o último gêiser já havia se apagado e a região em volta da montanha do castelo havia se transformado num poço de escuridão venenosa.
- Por que temos de tentar esta noite? — reclamou o presidente Hakit Botai de Okamis. — Ora essa, nós mal nos recuperamos da estadia no calabouço! Ainda nem tivemos tempo de fazer um reconhecimento do castelo e de encontrar a melhor rota de fuga.
— Só existe uma saída, meu genro — disse a rainha Jiri, irritada. — O lugar por onde entramos, pelo portão principal.
— E temos de tentar esta noite — acrescentou Anigel —, porque agora é o momento em que os nossos captores menos esperam, vocês recém-libertados de suas celas e eu recém-despertada do meu sono encantado... e Orogastus e seu exército acabaram de partir para guerrear contra o imperador Denombo.
Os sete governantes reféns saíram andando tranqüilamente do salão de jantar onde tinham acabado de jantar. Cada um levava um copo de estanho e uma garrafa cheia do vinho forte que tinha sido servido à mesa. Seguindo o plano que Anigel tinha explicado enquanto comiam, eles fingiram beber e rir muito como se estivessem tontos, examinando as tapeçarias de penas e as estátuas exóticas que ficavam em nichos nas paredes, ladeadas por archotes em chamas. Seguiram por um longo e largo corredor na direção da escadaria que levava aos andares de baixo do castelo. Apenas um pequeno punhado de guardas estava a postos e bem à vontade, sem prestar nenhuma atenção especial no passeio dos prisioneiros. Poucos criados da Guilda da Estrela circulavam pelo castelo. A maioria dos comensais tinha permanecido no salão, bebendo e festejando.
— Não sei se sou capaz de embarcar nessa aventura — sussurrou Ga-Bondies. — Talvez vocês tenham de ir sem mim.
O duúnviro, que dividia o posto eleito mais elevado de Imlit com seu sócio Prigo, parecia extremamente pálido. Era um homem já avançado na meia-idade, de cabelo grisalho que rareava, e que vivia reclamando de tudo.
— Anime-se, velho amigo — pediu Prigo. Continuando com a encenação, ele deu uma gargalhada e fingiu beber diretamente da sua garrafa de vinho. — Se uma futura mãe como a rainha Anigel consegue, você também pode fazê-lo.
— Que jantar maldito! — gemeu Ga-Bondies. — Salsicha engordurada, legumes cozidos enjoativos, um pão tão seco que irrita os dentes, sobremesa sebosa e apenas essa droga terrível para beber! Pelo menos o adop e a água que nos serviam no calabouço eram benéficos para o aparelho digestivo. Agora mesmo estou me sentindo tão enjoado que sou capaz de vomitar a qualquer momento.
— Ó, pobre homem — os olhos da velha princesa Raviya faiscaram maliciosamente, enquanto ela fazia um brinde para o sofredor com seu copo vazio. — Talvez você não devesse ter comido aquela terceira porção de salsichas.
Alguém deu uma risadinha. Ga-Bondies sacou um lenço e secou a testa suada.
— Madame, eu estava morto de fome depois de seis dias naquela terrível prisão. Era de se imaginar que um feiticeiro que pretendia conquistar o mundo devia pelo menos servir uma mesa decente. Mas não! Fomos logrados com um repasto que só serve para camponeses.
— Enquanto o cozinheiro se ausenta, os lavadores de pratos se divertem — citou a rainha Jiri. — Aposto que relaxaram a guarda no castelo inteiro desde que Oro e seu exército partiram. Vocês notaram que os dois únicos Homens da Estrela no jantar eram muito jovens?
— Aprendizes que ficaram para defender o forte junto com os criados mais velhos — avaliou Raviya — e menos de três dúzias de guerreiros. Caberia dez vezes mais pessoas no salão.
— Anigel e eu vimos mais ou menos esse tanto de guerreiros deixando o castelo — disse Jiri.
— Fico imaginando como o feiticeiro espera conquistar alguma coisa utilizando uma força tão pequena — disse Widd.
— Ele vai enfrentar uma turba de bárbaros supersticiosos — retrucou Prigo com tristeza. — As chances podem estar mais ou menos equilibradas.
— O exército provavelmente levou embora a melhor comida que havia aqui — resmungou o duúnviro Ga-Bondies com amargura, ainda concentrado no seu desarranjo digestivo. — Para manter elevado o moral dos combatentes e ferrar os que ficaram para trás.
— Suspeito que o velho Oro está tendo uma dificuldade enorme para manter este estabelecimento abastecido de víveres — observou com astúcia o príncipe Widd. — Não se pode forçar os grandes fornecedores a fazer entregas diárias tendo de passar por um inferno miasmático, não é mesmo?
— Sem dúvida o feiticeiro obtém seus suprimentos com magia negra — disse o presidente Hakit Botai —, do mesmo jeito que nos seqüestrou dos nossos países.
— Quando Ga-Bondies e eu fomos seqüestrados — observou Prigo —, nós e nossos captores saímos do portal encantado no meio de uma densa floresta. Soldados de um acampamento bem próximo estavam à nossa espera para nos conduzir até o castelo. Levamos um dia e uma noite para chegar aqui e não vi em nenhum ponto do caminho qualquer aldeia, nem mesmo uma cabana de caçador. A trilha que seguimos era estreita e coberta de mato, como se fosse raramente usada. Certamente nenhuma caravana com suprimentos passa por ali.
Os outros, exceto Anigel, relataram experiências semelhantes. Apesar da diversidade das formas de abdução, ficou claro que todos tinham saído no mesmo lugar e que de lá eram levados até o Castelo Incendiado. Nenhum deles, salvo Anigel, sabia como o viaduto funcionava, e também não pareciam conhecer a existência de mais de um.
— Há um assunto de importância vital que esquecemos de comentar no jantar — disse Hakit. Ele fez uma pausa, fingindo estar interessado numa tapeçaria com uma bela casa à beira-mar no estilo zinorano, o preferido dos sobranianos ricos, com telhas douradas e paredes brancas brilhantes. — Supondo que realmente possamos escapar do castelo e atravessar a bacia de gêiseres flamejantes, para onde iremos depois?
— Para Brandoba, a capital de Sobrania — disse Anigel. — Pediremos asilo ao nosso colega soberano, o imperador Denombo... e, se isso falhar, convenceremos algum capitão de navio a nos levar em segurança para Galanar, onde os guerreiros da rainha Jiri podem nos defender.
— Mas como vamos nos orientar nesse território desconhecido? — persistiu Hakit. — Seguindo Orogastus?
Anigel fez que sim com a cabeça.
— A mágica do meu trílio-âmbar também vai nos guiar... e podemos talvez contar com a ajuda de outra fonte também.
— Nós nem sabemos a que distância fica a capital de Sobrania!
— São aproximadamente quatrocentas léguas — disse a rainha Jiri —, se os meus guardas linguarudos da prisão disseram a verdade em troca das minhas jóias.
O presidente Hakit ficou boquiaberto.
— Quatrocentas?
— Meu Deus — a voz da princesa Raviya tremeu. — Tão longe?
— Não há nenhum lugar mais próximo que sirva de refúgio? — perguntou o príncipe Widd.
— Nenhum que nos daria segurança de verdade — respondeu Jiri. — Tudo indica que a Guilda da Estrela mantém os líderes locais devidamente intimidados.
O duúnviro Prigo não disfarçou seu desânimo.
— Mas isso é espantoso! Por que não nos disseram isso antes, quando discutíamos o plano à mesa do jantar? Eu imaginei que...
— Vamos levar mais de um mês para cobrir essa distância cavalgando — interrompeu Ga-Bondies. — Eu não posso fazer isso. Não tenho muita saúde.
Hakit olhou furioso para Anigel.
— Rainha, você não foi completamente honesta conosco. Nenhum de nós tem experiência em viagens pelo interior. É loucura pensar que podemos chegar à corte do imperador Denombo se fica tão longe assim. Quem partir do castelo no nosso encalço certamente vai nos recapturar.
— Não, se a minha mágica nos ajudar, como rezo para que ajude. — Anigel olhou com simpatia para o rosto pálido de GaBondies. — E você não terá de suportar uma viagem árdua, duúnviro. No máximo alguns poucos dias.
— É claro que você não pode estar pensando em entrar naquele buraco mágico infernal que nos trouxe para cá! — exclamou Hakit.
— Não — disse Anigel. — Aquele viaduto ainda pode estar sendo vigiado e não temos como saber para onde ele nos levará.
Ouvi dizer que os adeptos são capazes de modificar o destino de certos viadutos. O que eles usaram para nos seqüestrar é obviamente do tipo modificável. Como não somos feiticeiros, nunca teremos poder sobre eles.
— Então o que vamos fazer? — quis saber Hakit. — Explique-se, rainha... senão eu serei obrigado a me recusar a segui-la.
O presidente de Okamis era um homem de estatura imponente, bem barbeado e com um maxilar proeminente que ele adorava projetar para a frente, no intuito de enfatizar suas palavras. Estava acostumado a exercer poderes quase ditatoriais na sua próspera terra natal. Antes, quando Anigel descreveu a fase inicial da sua proposta de fuga durante o jantar, Hakit Botai primeiro se limitou a dar risadinhas de desprezo paternalista ante a simples idéia de entregar seu destino ao suposto poder de um amuleto de âmbar. Depois, vendo que os outros não se opunham a apostar na magia benigna contra a feitiçaria negra de Orogastus, Hakit havia exigido que ele fosse nomeado o líder da fuga, em vez de deixar a empreitada a cargo de ”uma dama delicada como Vossa Majestade, que tinha pouca experiência em aventuras tão perigosas”.
A rainha Anigel, naquele momento sorriu docemente para o presidente de Okamis, e disse que certamente ele podia propor um esquema alternativo e liderá-lo se os outros preferissem segui-lo. No entanto, como Hakit afinal não tinha nada de concreto a oferecer, ele finalmente se submeteu de má vontade, quando todos os outros penhoraram seu apoio a Anigel.
No momento presente, ela disse para o presidente: — Sei que você está angustiado, mas tenho um bom motivo para manter a segunda parte do meu plano em segredo por enquanto. É para a proteção de todos, caso infelizmente aconteça de um de nós ser... capturado pelo inimigo durante a nossa fuga.
Fez-se um silêncio constrangido enquanto os prisioneiros meditavam sobre aquelas palavras, pois havia mais de uma implicação. Diferente dos monarcas, que tinham todos demonstrado sua inimizade pessoal para com Orogastus durante o jantar, os três líderes das repúblicas haviam dado sinal, mais de uma vez, de que estavam dispostos a fazer a vontade do feiticeiro e de sua Guilda da Estrela, se fosse vantajoso para o seu país.
Eles continuaram andando, evitando olhar nos olhos uns dos outros.
Finalmente Prigo, falando com elaborada tranqüilidade, mudou de assunto.
— Parece óbvio que os Homens da Estrela devem ter algum meio mágico de transporte, se pretendem atacar Denombo dentro de três dias, como disse a mulher Naelore para a rainha Anigel.
— Acredito que isso seja verdade — concordou Anigel. — E espero conseguir chegar à capital de Sobrania utilizando esses mesmos meios.
— Mas como?
— Existe alguém que pode nos dizer isso, duúnviro — disse Anigel —, além de outras informações valiosas. A rainha Jiri e eu vamos descer daqui a pouco ao calabouço e buscar essa pessoa, para que ele possa nos acompanhar na nossa tentativa de fuga.
— Não é aquele agitador do Ledavardis! — exclamou GaBondies, cheio de indignação. — Não o rei pirata!
— Não podemos deixá-lo lá definhando — disse Anigel num tom evasivo.
Prigo fungou.
— A culpa é do próprio Ledo de não estar em liberdade condicional como nós.
— Você pretende libertá-lo — perguntou o príncipe Widd —, usando aquele seu amuleto de âmbar para abrir as fechaduras?
— Pretendo — disse Anigel. — É exatamente isso que espero conseguir.
— Você também espera que esse seu treco encantado nos leve para Brandoba num piscar de olhos? — perguntou Hakit, falando com total ceticismo.
Anigel respondeu tranqüila.
— Infelizmente o meu trílio-âmbar não é capaz de produzir tal milagre. Mas com a graça do Deus Trino seus poderes podem bastar para conseguir nossa liberdade.
— Podem? — zombou Hakit. — Esse seu plano pode se tornar a morte de todos nós!
— Nada é garantido — disse a rainha com serenidade —, a não ser o fato de que todos nós passaremos para o além algum dia. Mas como não estou preparada para morrer ainda... nem estou disposta a entregar meu país e minha autoridade para um feiticeiro desprezível, como certos outros governantes talvez estejam. Minhas irmãs e eu conhecemos Orogastus há muito tempo e a magia do nosso Trílio Negro já nos salvou dele inúmeras vezes. Se os Senhores do Ar forem benevolentes conosco, podemos receber mais uma vez a ajuda da Ror.
— Essa fuga está parecendo cada vez mais incerta — disse Hakit, dando um sorriso amargo. — Estou ficando seriamente desconfiado, especialmente porque você se recusa a demonstrar sua magia para nós.
Anigel fez que sim com a cabeça como se aceitasse o argumento dele.
— Não tive oportunidade antes porque o amuleto só funciona para salvar-me de algum perigo, ou para guiar-me em circunstâncias perigosas. Portanto, abrir as portas do calabouço para resgatar Ledavardis servirá como um teste crucial do meu plano. Se o âmbar falhar no cumprimento dessa tarefa, saberemos que Orogastus lançou algum encantamento avassalador sobre o Castelo Incendiado que o Trílio Negro não é capaz de vencer.
— E daí? — perguntou o príncipe Widd.
— Se as portas do calabouço não se abrirem, voltarei penitente aos meus aposentos, onde rezarei pela nossa eventual salvação ou resgate e irei direto para a cama... E recomendo aos que não confiam em mim que façam isso agora mesmo! Não pretendo desperdiçar mais tempo conversando. Quem estiver do meu lado recomece o teatro de bebedeira e festividade, pois estamos perto da escada e vejo um par de guardas estacionados lá.
Depois de um momento de hesitação todos os outros se juntaram a ela. Widd e Raviya se deram os braços e começaram a cantar uma balada de Engi sobre uma moça que amava um marinheiro. Prigo dançou em volta deles e Hakit fingiu beber da garrafa, com o polegar enfiado no gargalo. Ga-Bondies simplesmente ficou cambaleando e parecia cada vez mais enjoado.
No topo da escada, a rainha Anigel deu um boa-noite com risadinhas de bêbada para os dois guardas que a saudaram achando graça.
— Bons homens, estamos fugindo — disse para eles com a voz insinuante. — Toquem o alarme! Chamem Orogastus e sua tropa de feiticeiros!
Os guardas entediados não moveram um dedo para impedir o avanço dos reféns distintos que desceram a escada em meio a risos e cantoria.
No andar térreo da torre havia um enorme saguão abobadado com um poço, calhas de água e vigas para amarrar os animais. No chão havia excremento de froniais, um saco de grãos rasgado e mais lixo deixado pelo pequeno exército do feiticeiro. Um único corredor bem largo ia direto do pé da escada para a muralha com seteiras e para os portões da fortaleza, e outros corredores, para a esquerda e para a direita, davam no pátio interno que cercava a torre, onde deviam ficar as casernas e os estábulos, cozinhas, uma padaria e outras facilidades domésticas que existem num castelo bem construído. Fora a passagem para a muralha, a área estava às escuras e cheia de sombras estranhas, mal iluminadas por tochas pendentes. Os únicos soldados que podiam ser vistos estavam a mais de quarenta varas de distância, perto dos portões.
Anigel foi sentar na larga crista do muro do grande tanque onde pegou água com as mãos em concha e fingiu lavar o rosto.
— Agora façam o favor — sussurrou — de fazer uma roda em volta de mim e vamos repassar o que devemos fazer.
— Eu ainda não estou me sentindo bem — choramingou GaBondies.
A rainha apenas sorriu para ele.
— Vocês, princesa Raviya, Hakit e Prigo vão até a barbacã. Lá vocês têm de descobrir exatamente quantos guardas estão a postos nas redondezas e de que forma eles patrulham a área. Prigo deve examinar cuidadosamente a surtida nos portões através dos quais teremos de sair e memorizar muito bem a posição de todas as trancas, fechaduras ou barras que terão de ser abertas.
— Os guardas podem desconfiar se ficarmos muito tempo por lá — disse Hakit.
— Continuem fingindo que estão muito bêbados — disse Anigel para ele. — Digam para todos que encontrarem que estão muito felizes de estarem fora do calabouço e livres para andar pelo castelo, apesar de acharem o lugar muito tenebroso. Lembrem-se do nosso plano! Perguntem aos guardas se os corredores são mal-assombrados. Digam que vocês viram algo fantasmagórico quando passeavam por aí. Perguntem se eles têm certeza de que o Mestre da Estrela baniu todos os demónios e espíritos malignos deste lugar. Quando perceberem que os guardas estão bem preocupados, voltem aqui para o poço, onde Widd estará à sua espera. Fiquem com ele e façam o que ele disser daí por diante.
— Tudo isso será feito — disse a princesa Raviya com firmeza. Anigel dirigiu-se ao idoso príncipe eterno, cujos olhos brilhavam de excitação.
— Querido amigo, não se esqueça de que a sua tarefa é encontrar o estábulo, que sem dúvida fica em um dos prédios do pátio interno. Procure alegrar os criados e cavalariços que encontrar trabalhando lá. Dobre-os com a bebida — ela entregou sua garrafa de vinho para ele e também a da rainha Jiri. — Examine as montarias que restaram nas baias. Verifique o depósito de arreios se puder e veja se encontra capas de montaria à prova de chuva para nós. Vamos precisar de nove froniais bem fortes e ligeiros para a nossa fuga.
— Nove? — disse Widd surpreso. — Mas somos apenas oito, incluindo o rei Ledavardis.
— Nove — disse Anigel com determinação. — Quando terminar suas investigações, peça licença aos cavalariços dizendo que está gostando tanto da companhia deles que vai procurar mais bebida par todos. Volte para cá, reúna os outros e leve-os para o estábulo com você, como se pretendessem admirar os animais e conhecer os rapazes com quem fez amizade. Distribua as garrafas de vinho. Quando os empregados do estábulo estiverem bêbados, domine-os sem fazer barulho, amarre-os e ponha mordaças neles. Mas lembre-se de que todos nós juramos não machucar ninguém dentro do castelo! Sele as montarias e encha as algibeiras com toda a comida e bebida que puder encontrar. Também vamos precisar de tochas de piche e um estojo de isca e pederneira. Cada pessoa deve ter uma capa grande com capuz, mesmo que seja apenas uma manta de sela. Vocês todos devem ficar escondidos no estábulo até a minha volta com Jiri.
— Vou cuidar de tudo — garantiu o príncipe eterno.
— Seria melhor — interrompeu Hakit, intrometido —, se eu me incumbisse das tarefas no estábulo. Sou mais forte do que Widd e se houver algum problema poderei me defender melhor.
— Mas o príncipe eterno tem uma aparência muito mais inofensiva — observou Anigel com sensatez. — Por isso ele é a pessoa perfeita para conquistar a confiança dos cavalariços. Antes do raciocínio deles ser afetado pela bebida, eles podem desconfiar de um homem tão robusto como você.
Hakit deu um grunhido meio indeciso e não disse mais nada.
Anigel estudou seu trílio-âmbar.
— Agora vou perguntar para o meu amuleto em que direção ficam os estábulos.
Ela segurou a gota de âmbar pendurada na corrente para que o príncipe eterno e os outros pudessem examiná-la e sussurrou a pergunta. Dentro do pingente com seu brilho fraco apareceu uma linha minúscula de luz e sua ponta que piscava apontou para o corredor da direita.
— Misericórdia! — disse Raviya muito espantada. — É mágico mesmo!
— Parece que é — disse Prigo, seu rosto emaciado e enrugado com um sorriso pedante de aprovação.
— E agora Trílio Negro — disse Anigel, segurando firme o âmbar e olhando para a pequena Flor fossilizada lá dentro —, peço que me mostre o caminho para o calabouço.
A linha brilhante girou e a faísca migrou para a outra ponta, indicando a área atrás da grande escadaria, onde queimava um único archote.
— Então é isso — disse Jiri. — O resto de nós conhece o caminho muito bem. Então vamos, menina. Vamos lá salvar aquele reizinho duende.
— Primeiro temos de ver se o meu âmbar é capaz de destrancar a porta do calabouço superior.
— O teste! — suspirou Prigo.
Todos foram em silêncio para a área atrás da escada. A porta era de madeira gonda maciça e reforçada com ferro, e tinha uma única fechadura do tamanho do dedo indicador de um homem. Anigel agarrou o âmbar com força, ele brilhou como uma lanterna pequena na escuridão, e ela o encostou no espelho da fechadura.
A porta do calabouço se abriu suavemente com suas dobradiças bem lubrificadas. Lá dentro havia uma escada íngreme iluminada por tochas de cera postas em nichos bem espaçados nas paredes.
— Funcionou! — sussurrou Prigo. — A mágica realmente funcionou! Agora não podemos mais voltar atrás.
Ga-Bondies deu um gemido baixinho de medo.
— Que a boa sorte acompanhe todos os nossos atos — disse a princesa Raviya com a voz suave. — Venham, meninos.
Ela partiu na direção da guarda do portão com os três logo atrás.
O velho príncipe Widd beijou o rosto de Anigel e também se afastou, cantando uma canção de marinheiro das ilhas Engi, enquanto as garrafas de vinho que carregava serviam de acompanhamento batendo umas nas outras.
— Pronta? — disse Jiri para Anigel.
— Segure a minha mão — disse a rainha mais jovem. Com a outra ela segurou bem o amuleto e disse para ele em voz alta: — Trílio Negro, faça de novo o que fez quando eu era mais jovem, quando salvou-me da morte. Esconda-me da visão de todas as pessoas.
A rainha de Galanar deu um pulo de susto. De repente parecia que ela estava sozinha ali perto da porta. Só que havia uma mão quente na dela.
— Agora é que realmente vai começar — disse uma voz no ar. Jiri sentiu que era puxada para a frente e começou a descer a escada do calabouço.
— Você foi esperta — disse Jiri para sua companheira invisível, enquanto caminhavam pelas entranhas do castelo — em não confiar demais em Hakit Botai ou nos duúnviros. Meus três genros são governantes competentes, mas também são radicalmente pragmáticos, a ponto de formar aliança com os Demônios do Gelo da Calota Sempiterna se acharem que com isso podem preservar a prosperidade comercial de Imlit e Okamis.
— Eu sei — disse Anigel. — Foi por isso que mandei Raviya acompanhá-los para espionar os portões, para minimizar a tentação de uma traição de última hora.
— Oh, eles querem escapar tanto quanto nós, docinho. Mas temem por suas peles. Nós, monarcas, somos amados pelo povo dos nossos países. Sei que os meus súditos fariam qualquer coisa para me levar de volta sã e salva, e tenho certeza de que o seu povo pensa da mesma forma. Mas governantes eleitos não atraem tal devoção. Pobrezinhos! Eles são substituíveis, como um ovo de griss pode substituir outro quebrado numa receita de bolo. No caso de Hakit Botai, muitos cidadãos do país dele dançariam nas ruas se soubessem que ele foi seqüestrado.
— Mas é claro que não! O orgulho nacional, pelo menos, serviria para impedir que fizessem isso.
— Bem, talvez — os olhos de Jiri tinham um brilho de humor insidioso. — Mesmo assim, um sujeito pomposo como Hakit deve estar mortificado de ter de contar com uma mulher para salvá-lo. Mesmo com uma tão intrépida quanto você.
Anigel riu baixinho.
— Ele tinha de conhecer minhas duas irmãs! Eu sou a Pétala do Trílio Vivo menos formidável, e nem de longe tão ousada quanto posso parecer. Vou ter de contar muito com o seu apoio nessa empreitada, Jiri. É você quem tem um caráter verdadeiramente corajoso.
— Bobagem — zombou a rainha de Galanar.
A voz que saía do nada estava carregada de presságios.
— A minha magia pode nos fazer passar pelos portões do castelo, mas ainda assim é uma distância enorme até Brandoba, como a querida Raviya observou. Nós assumimos o compromisso de não machucar ninguém enquanto estivermos dentro do castelo, mas o juramento não valerá mais quando estivermos lá fora fugindo para salvar nossas vidas. Uma vez, há muito tempo, matei um homem. No entanto sei que não conseguiria prejudicar um ser humano, mesmo se formos atacados pelos nossos perseguidores. E talvez não haja alternativa senão lutar, se essa nossa tentativa de fuga for bem-sucedida.
Jiri apertou a mão invisível da companheira.
— Deixe que eu e os outros cuidaremos disso.
Movendo-se rápida e silenciosamente, as duas mulheres chegaram ao pé da escada, onde havia uma espécie de vestíbulo. De um lado havia uma porta enferrujada com a palavra ARSENAL, e do outro um portão de barras de ferro que impedia a passagem para as celas da prisão e para a sala dos carcereiros.
— Vamos dar uma espiada no arsenal — sugeriu Jiri. — Talvez contenha armas que poderemos usar mais tarde.
Ao toque do âmbar de Anigel, a porta abriu para o interior do depósito que estava completamente escuro. As rainhas entraram depressa e fecharam a porta. Na mesma hora, Anigel tornou-se visível e o amuleto pendurado no seu pescoço brilhava tanto que o lugar ficou iluminado como se fosse dia. Não havia muita coisa para ser vista naquela câmara úmida de pedra, toda enfeitada lá no alto com teias de lingit empoeiradas. O exército de Orogastus certamente havia levado as melhores espadas, alabardas e maças, deixando para trás lâminas cegas e quebradas, achas-d’armas pesadas demais e lanças com as pontas tortas. Vários baús abertos continham algumas armas de batalha menores, assim como elmos dentados, camisas e vestes esfarrapadas de cota de malha. Não havia nenhuma daquelas armas antigas deslumbrantes dos Desaparecidos que Haramis tinha mencionado.
— Está vendo alguma coisa que você ou os outros podem usar? — disse Anigel.
A rainha Jiri estava remexendo em um dos baús.
— Bem, eu não sou nenhuma guerreira. Meu falecido e querido marido, Collo, cuidava desse tipo de coisa quando os reis tribais de Sobrania executavam investidas ocasionais contra as marchas de Galanar para o oeste. Mas isso pode acabar sendo útil, e será fácil escondê-lo.
Ela mostrou um instrumento simples que consistia em um cabo de madeira que era preso a um bastão curto e grosso de aço por uma corrente.
— Um mangual de guerra. Quando eu era menina, muitas vezes ajudava nas tarefas da fazenda real onde passávamos as férias e cultivávamos especiarias para a mesa real. Eu usava uma coisa parecida com essa, mas bem menos letal, para separar os grãos da palha — ela deu um sorriso triste. — Naquela época eu era capaz de matar um mosquito bot em pleno voo, ou arrancar uma única pétala de flor com isso. Talvez não tenha perdido o jeito.
Anigel estremeceu.
— Lembre-se do seu juramento de não machucar ninguém dentro do castelo.
— Um juramento feito à força não nos obriga a nada. Qualquer advogado sabe disso.
Jiri guardou o mangual num bolso do vestido.
— Por favor! Temos de conseguir isso sem apelar para a violência! Não posso desobedecer a uma promessa que fiz ao meu Trílio Negro!
Jiri suspirou.
— Então está bem.
— Agora vou precisar da sua ajuda para me vestir — disse Anigel. — Resolvi que não vou usar os nossos véus para me disfarçar afinal, e sim essas coisas. Será muito mais eficiente.
Jiri deu uma risadinha.
— É. Acho que você tem razão. Alguma outra mudança de plano?
Anigel balançou a cabeça.
— Apenas faça uma boa encenação quando chegar à sala dos carcereiros, preparando o terreno para a minha entrada triunfal.
Os três carcereiros estavam sentados a uma mesa tosca, terminando sua refeição de pão, queijo e cerveja. Os ocupantes das celas estavam quietos consumindo sua ração mais escassa. Só restava um pequeno número de prisioneiros, agora que a maior parte dos reféns nobres tinha sido libertada.
— Quase sinto falta deles — disse o sargento troncudo, cujo nome era Vann. — Vai ficar muito chato aqui embaixo sem eles.
— Certamente você sentirá falta da rainha de Galanar — debochou um dos guardas, um homem magro com o rosto grotesco, cheio de cicatrizes, que não tinha uma orelha.
— Cale a boca, Ulo — rosnou o sargento —, se sabe o que é melhor para você.
— Toda a guarda sabe que você estava se entendendo com ela — disse o terceiro guarda, secando a espuma de cerveja do bigode. Ele tinha pelo menos sessenta anos de idade, mas ainda era bastante forte. — E não só porque ela era uma visão da beleza, não é? — Ele deu uma risadinha e o companheiro dele também.
Vann socou a mesa.
— Calem essa matraca, malditos!
— Se não, o quê? — perguntou Ulo, insolente. — Você vai socar nossos narizes? Kobit tem razão. Você estava recebendo suborno da rainha Jiri. Contando segredos para ela, em troca das jóias. Isso é traição. Encoste um dedo em um de nós e teremos uma conversa com os dois Homens da Estrela lá em cima.
— Vocês não podem provar nada — vociferou Vann. — E se tentarem...
— Pssst! — o guarda chamado Kobit levantou do banco, com os olhos arregalados. — Ouviram isso?
Vann se levantou e caminhou mancando até a porta da sala dos carcereiros. Faltava-lhe uma das pernas, logo abaixo do quadril, que tinha sido substituída por uma de madeira.
— Mãe Matuta Misericordiosa! — exclamou ele e recuou espantado. — É ela!
A rainha Jiri de Galanar, magnífica com seu vestido de veludo roxo, um véu de seda branca e um diadema de folhas e flores esmaltadas, entrou na sala sorrindo.
— Boa-noite, homens.
Os carcereiros murmuraram um cumprimento, encostando os dedos na testa. Vann se dirigiu à visitante real com certa ansiedade.
— Madame, a senhora não devia estar aqui embaixo.
— Não? — A rainha Jiri parecia surpresa. — Mas as portas estavam todas abertas e não havia guardas, por isso pensei que...
— As portas estavam abertas? — exclamou Vann. — Mas isso é impossível!
— A guarda a serviço está desfalcada — observou Ulo com um sorriso malicioso. — A maioria dos mais capazes partiu com o Mestre e sua equipe de feiticeiros.
— Eu só queria dizer algumas palavras de consolo para o rei Ledavardis — disse Jiri, num tom suave. — Ele foi tratado com muita brutalidade esta tarde pela Mulher da Estrela Naelore. Não há mal nenhum nisso, não é, sargento?
Ela fingiu arrumar o véu, e o anel de rubi que tinha no dedo faiscou à luz das tochas.
— Bem...
A rainha tocou no braço de Vann.
— Venha comigo, se quiser. Devo dizer que a escuridão parece especialmente ameaçadora esta noite. Quase perdi a coragem quando desci a escada do calabouço. A cada curva da espiral parecia que ia deparar com algum fantasma semivisível — ela deu uma risada aguda de nervoso. — Talvez tenha sido um dos fantasmas que dizem que assombra este enorme castelo.
Ela seguiu pelo corredor indo para as celas sem janelas, e Vann foi atrás dela.
— Viu aquele rubi? — observou Ulo irritado. — Quer apostar que...
Kobit inclinou a cabeça.
— Ouça — disse ele em tom de alarme.
Os dois ficaram parados à porta da sala da guarda, olhando para a direção oposta à que Vann e a rainha haviam tomado.
As tochas enfileiradas no longo corredor que ia dar na escada estavam se apagando, uma a uma, começando pelas mais distantes. Da área escura veio um som de respiração ofegante, misturado com gemidos de dor.
Ulo pôs a mão no cabo da espada.
— Que diabos?
Um gemido espectral ecoou pelas paredes de pedra no momento em que a última tocha se apagou. Então fez-se silêncio. A única iluminação provinha de um archote tremeluzente na sala dos carcereiros e de outro pendurado na entrada da ala das celas, a quinze varas de distância.
— Lágrimas de Matuta! — coaxou Kobit. — Olha lá.
No negrume da escuridão havia uma inverossímil figura humana. Usava uma cota de malha do pescoço até abaixo dos joelhos, de manga curta, toda em frangalhos, um elmo antigo, luvas de metal e perneiras. Mas os trajes não pareciam estar sendo sustentados por carne humana ou ossos, e só eram visíveis por causa de um débil brilho dourado que saía de dentro da camisa de malha, onde devia estar o coração. A aparição segurava no alto uma antiga espada enferrujada.
— Desgraça! — gritou ela com uma voz estridente e áspera. — Desgraça para os que vivem neste maldito castelo! Pois todos em breve estarão mortos como eu.
O fantasma tirou o elmo e não havia cabeça embaixo dele. Ele começou a andar na direção dos guardas paralisados.
Ulo e Kobit berraram juntos e saíram em disparada para as celas do calabouço, esquecendo de pegar suas armas.
Com o anel de rubi bem guardado na bolsa que tinha no cinto, o sargento Vann relaxou no fundo do sombrio conjunto de celas, onde havia um lampião pendurado em cima de um banco de pedra. A rainha Jiri comprara privacidade completa para a conversa que teria com o jovem corcunda, rei dos piratas.
— Ledo, querido — sussurrou ela com urgência. — Prepare-se. Nós viemos libertá-lo. Quando a porta se abrir, saia depressa. Há três guardas e podemos ter de contar com a sua ajuda para empurrá-los para as celas vazias.
O rei Ledavardis, com o olho sadio brilhando e o outro ainda escondido sob uma bandagem manchada, articulou uma imprecação de alegria. Assim que Jiri transmitiu a mesma mensagem para o homem na cela ao lado, ouviu-se os gritos dos guardas apavorados. Vann deu um pulo e foi coxeando para a entrada da prisão, dando de cara com Ulo e Kobit que entraram correndo, quase atropelando o sargento.
— Um fantasma! Um fantasma! — berrava Kobit.
— Tranque a porta do bloco de celas! — gritou Ulo.
Mas a rainha Jiri havia passado rapidamente por eles e o seu corpanzil era um obstáculo considerável.
— Idiotas de miolo mole — berrou Vann para os homens. — E a senhora, madame! Afaste-se para eu poder ver...
— Desgraça! Desgraça para todos neste lugar amaldiçoado! Desgraça!
O guerreiro sem cabeça, de espada em riste e o elmo preso embaixo de um braço, apareceu na porta e deu um berro horrendo. Vann cambaleou para trás, prendeu sua perna de madeira numa rachadura do chão e caiu estatelado, completamente indefeso. O membro artificial soltou-se do toco de perna quando as correias arrebentaram, e o sargento gritou de dor. Os outros dois guardas fugiram pela ala de celas e os ocupantes delas se agarraram às grades e ficaram observando boquiabertos.
O fantasma jogou longe seu elmo e se desfez das luvas metálicas. Algo que brilhava como uma pequena estrela amarela e que flutuava no ar como um pirilampo encostou na fechadura da cela de Ledavardis. A porta gradeada se abriu. Rápido como o ataque de um rimorik, o rei saiu da cela, agarrou Vann, que estava caído, pelos ombros, e jogou-o na cela que acabava de vagar. O fantasma encostou novamente na fechadura para trancá-la.
— Este é Gyor — disse a rainha Jiri, apontando para um trapo humano imundo, de cabelo acobreado todo emaranhado e uma longa barba, que ocupava a cela ao lado do pirata.
A voz suave do fantasma agora era claramente de mulher.
— Saia, meu amigo, você também vai fugir conosco. A tranca da cela dele se abriu.
— Mas quem é você? — disse o prisioneiro embasbacado. — O quê você é?
O fantasma que agora parecia uma camisa de cota de malha animada e um par de perneiras presas a pernas invisíveis não se dignou a responder. Em vez disso ele virou e encarou Kobit e Ulo, que se encolheram no fundo da ala de celas.
— Maldição! Preparem-se para morrer! — guinchou o espectro, formando arcos cortantes no ar com sua espada enferrujada.
Os outros prisioneiros do calabouço ficaram tão apavorados que iniciaram uma grande gritaria.
— Vocês, carcereiros! — gritou a rainha Jiri. — Salvem-se do demônio vingador! Entrem numa cela e fechem a porta. Os fantasmas não podem passar através de barras de ferro.
A falta de lógica naquelas palavras passou despercebida. O fantasma sem cabeça se aproximou e Kobit e Ulo mergulharam numa cela vazia e bateram a porta. A aparição parou e os dois homens deram gritos sufocados porque um corpo começou a se materializar dentro da cota de malha que flutuava. Era uma mulher linda, com olhos que brilhavam como safiras e cabelo louro despenteado. Por baixo da cota de malha rasgada, ela usava um vestido verde dobrado acima dos joelhos. Ela abaixou a espada e deixou-a cair no chão.
A rainha Anigel segurou seu trílio-âmbar com uma das mãos. Encostou-o na tranca da cela onde estavam os dois guardas, produziu um estalo ruidoso na fechadura e então ela se virou para Jiri e para os homens que libertara. Os outros prisioneiros sussurravam e murmuravam incrédulos.
— O meu amuleto, além de destrancar fechaduras, também as tranca — ela sorriu para o rei Ledavardis. — Será que pode fazer a gentileza de me ajudar a tirar essa pesada cota de malha? Teremos de levá-la conosco, o resto da armadura e a espada também.
O monarca raktumiano deu uma gargalhada.
— Então o fantasma era você, minha futura sogra! Maravilha! Ele ajudou Anigel a tirar a cota de malha, depois desprendeu as perneiras das pernas dela. Jiri já estava recolhendo as luvas e o elmo. O prisioneiro ruivo que se chamava Gyor caiu de joelhos diante de Anigel e beijou a mão dela.
— Madame, eu lhe devo essa, apesar de não saber quem é você nem por que resolveu me salvar.
Então Anigel se apresentou e disse:
— Seu verdadeiro nome não é Gyorgibo? E você não é o irmão mais novo de Denombo e da Mulher da Estrela Naelore?
— Eu sou Gyorgibo, arquiduque de Nambit — disse ele, espantado —, e sou de fato irmão do imperador. Mas a senhora ainda não respondeu à minha pergunta...
— Oi! — gritou um dos homens ainda presos —, e quanto a nós, hein? Vão simplesmente nos deixar aqui nesse sufoco?
— Que tipo de homens eles são? — perguntou Anigel para Gyorgibo em voz baixa.
— Ladrões, arruaceiros e três que se amotinaram e se recusaram a acompanhar o exército de Orogastus quando ele partiu hoje mais cedo na sua sinistra missão.
— Você conhece algum detalhe dessa missão? — perguntou muito animada a rainha Jiri.
— Certamente, Majestade. Minha irmã malvada desceu para zombar de mim antes de partir com o feiticeiro. Daqui a três dias será o aniversário do imperador, que é sempre celebrado na capital, juntamente com o grande festival dos pássaros. Naelore e Orogastus pretendem atacar Brandoba enquanto os habitantes se distraem no festival. Eles vão atacar o palácio usando as armas milagrosas dos Desaparecidos e matar Denombo. Depois, já que sou dado como morto, a minha irmã assumirá o trono pela lei. Em troca da ajuda da Guilda da Estrela, Naelore jurou usar todos os recursos de nosso império para ajudar Orogastus a conquistar o mundo.
Anigel se aproximou do irmão do imperador. Ele era um homem alto e bem-apessoado por baixo do acúmulo de sujeira e da barba ruiva desgrenhada e do cabelo malcuidado.
— E Orogastus planeja — perguntou ela, muito concentrada — voar quatrocentas léguas até Brandoba com seu exército antes de iniciar essa guerra?
— Claro que não. Há uma passagem mágica chamada Grande Viaduto que fica a menos de duas horas de cavalgada do Castelo Incendiado, depois da bacia dos gêiseres. Ele desemboca numa floresta nas montanhas acima da capital.
— Um segundo viaduto! — disse Jiri. — É claro. Tinha de haver um para abastecer o castelo — ela apontou o dedo para Anigel. — Você suspeitava disso...
Anigel levantou a mão pedindo para a amiga parar de falar.
— Há muitos viadutos espalhados por todo o mundo, e sem dúvida muitos em Sobrania. Uma vez vi um mapa com a localização deles, mas esqueci os detalhes — ela virou-se para Gyorgibo. — Conte rapidamente o que você sabe sobre essa passagem mágica. Há guardas perto dela?
— Não. Eles consideram que não é necessário. O Grande Viaduto tem uma abertura enorme, capaz de acomodar carroças cobertas inteiras e até homens montados em froniais. Eu mesmo fui levado por ele como prisioneiro depois de ser capturado por Naelore e seus capangas, quando caçava na cordilheira Collum, oito luas atrás. Depois disso, fiquei sabendo que o Grande Viaduto não serve apenas para a entrega de provisões aqui no castelo, mas também como uma rota habitual para espiões da Guilda da Estrela que há muito se infiltraram em Brandoba.
— A que distância da capital ele desemboca? — perguntou Anigel.
— Não tenho certeza. É bem no interior da floresta de Lirda, uma imensa reserva imperial de caça na encosta da cordilheira Collum, proibida para as pessoas comuns. Um pequeno exército poderia se esconder facilmente naquela floresta, depois avançar sobre Brandoba à noite, tirando vantagem das comemorações.
— Esse é o velho estilo de Oro — disse Ledavardis com a fala arrastada. — Atacar a festa de aniversário do imperador! Vocês lembram quando ele invadiu a coroação de Yondrimel?
— Ninguém lembra disso melhor do que eu — disse Anigel com tristeza. — Pois foi quando você conspirou com Orogastus para seqüestrar meu marido e meus filhos.
O rei pirata parecia envergonhado.
— Não fui eu, e sim a minha avó maligna, que Deus a faça apodrecer. E já implorei seu perdão pela minha cumplicidade involuntária, futura sogra.
Anigel não disse nada. Gyorgibo perguntou impaciente:
— Como vamos mandar o Grande Viaduto se abrir para nós? Quando eu fui seqüestrado o portão era invisível até Naelore dizer algumas palavras mágicas para ele aparecer. Mas não consegui ouvir o que ela disse.
— Eu sei as palavras. — Anigel tranqüilizou a todos. — Agora precisamos sair deste lugar e levar conosco algumas armas do arsenal para os nossos amigos.
— E o resto dos prisioneiros? — murmurou Jiri. Balançando a cabeça, Anigel fez sinal para os outros irem na frente. O portão de grades da entrada da prisão, que ficara aberto quando o sargento escoltou a rainha de Galanar em sua visita, se trancou quando Anigel encostou nele seu amuleto. Os prisioneiros deixados para trás começaram imediatamente a praguejar e xingar. Quando deu meia-volta para ir embora, Anigel viu o olhar do sargento Vann. Ele estava sentado no chão da primeira cela, sem poder se levantar porque estava sem sua perna de pau, com um sorriso irônico.
— Muito inteligente, madame — disse ele. — Foi muito esperta mesmo. Mas cuidado com o demônio fêmea Naelore. Sua Alteza Imperial não acredita em fantasmas.
A rainha fez que sim com a cabeça.
— Obrigada pelo aviso, sargento. E espero que faça bom proveito do seu rubi.
Eles seguiram a galope pelo largo corredor que ia dar na muralha fortificada com o fantasma sem cabeça liderando. Os outros oito cavaleiros usavam capas compridas com capuzes que escondiam seus rostos. Brandiam tochas acesas e gemiam como almas condenadas quando chegaram diante do alto portão de entrada no meio da muralha, incitando suas montarias com suas galhadas e provocando a maior comoção possível. Quando os soldados estupefatos saíram correndo da casa da guarda tiveram de retroceder diante da visão do fantasma, que tinha desmontado do seu fronial. A armadura sem corpo brilhava por dentro como um lampião com forma humana. O fantasma brandia uma espada decrépita, pulava, berrava e ameaçava a todos com o juízo final e a destruição, enquanto seus companheiros montados se agitavam feito loucos no pátio interno, com suas tochas soltando fagulhas.
Antes de o capitão da guarda poder se recompor e dar uma ordem coerente, o espectro dançarino chegou à surtida do castelo, uma pequena porta do lado esquerdo do portão principal, no qual só cabia um cavaleiro de cada vez. Uma fagulha de luz passou pelas trancas de ferro e as duas traves de madeira da surtida, e a porta se abriu. A aparição deu um berro agudo de triunfo. Com as capas esvoaçando, a tropa com as tochas em riste saiu pela porta.
— Desgraça! — gritou o fantasma, agarrando as rédeas da sua montaria e saltando para a sela. — Destruição e fogo para aqueles que nos seguirem!
E então ele desapareceu, a porta se fechou por obra de algum encantamento e as barras de madeira voltaram para o seu lugar. Os guardas fizeram de tudo para abri-la, mas não conseguiram, como também não conseguiram abrir o portão principal.
— Façam soar o alarme! — gritou o capitão da guarda. — Chamem os Homens da Estrela!
Ele ainda não tinha uma idéia clara do que havia acontecido, mas era um veterano com a intenção de fazer o que era certo: passar a responsabilidade para alguém com mais autoridade.
O pessoal do castelo ficou algum tempo desnorteado diante dos portões que inexplicavelmente não abriam. Os dois Homens da Estrela, junto com o castelão, o senescal e outros empregados mais graduados que haviam sido chamados no castelo estavam entorpecidos de tanto que beberam. Levaram machados para arrombar o portão, mas ficou claro que levariam horas para atravessar a madeira grossa. Então, encontraram os cavalariços amordaçados nos estábulos (apesar de ninguém ter pensado em inspecionar o calabouço) e descobriram a identidade dos cavaleiros fantasmagóricos.
A calamidade serviu para tornar sóbrio um dos jovens Homens da Estrela, que finalmente lembrou de pegar a sua maravilhosa arma dos Desaparecidos. Ela emitiu um estreito facho de luz vermelha capaz de derreter metal ou pedra, e cortou a porta da surtida como um espadim cortando manteiga. Mas então os fugitivos já gozavam de uma preciosa dianteira de um quarto de hora.
— Será que... será que devemos usar nossas Estrelas para informar isso ao Mestre? — o feiticeiro cujo cérebro ainda estava enevoado pela bebida perguntou em particular para seu colega mais alerta.
— É melhor esperar até recapturar aqueles reféns — disse o segundo membro da Guilda, depois de pensar um pouco. — Não queremos preocupá-lo sem necessidade, não é?
Eles reuniram um grupo de trinta guerreiros montados e saíram atrás dos fugitivos.
O vento trazia o cheiro da chuva que se aproximava e da resina dos pinheiros, as nuvens estavam mais carregadas e, sem uma tocha, Anigel mal conseguia ver a trilha íngreme que ziguezagueava descendo a encosta do castelo.
— Santa Flor, dê-me mais luz!
O amuleto pendurado na corrente brilhou mais forte e ela esporeou seu fronial para acompanhar seus companheiros com as tochas. Enquanto avançava ela tirou o velho elmo e se desfez das luvas de couro e aço que tinham ajudado a compor sua fantasia de fantasma. Não havia como, só parando e desmontando, livrar-se da cota de malha comprida e pesada, nem desprender as fivelas das perneiras que cobriam suas pernas. Mas uma parada agora era fora de questão. Tinha de galopar sem parar como os outros estavam fazendo, apesar do desconforto crescente, e rezar para que a mágica do âmbar tivesse tornado impossível abrir os portões do castelo.
Estou livre!, pensou ela.
Por mais estranho que possa parecer, nenhuma alegria aqueceu seu coração. Agora que a excitação inicial da fuga diminuíra, ela começava a se sentir zonza e letárgica. Sua autoconfiança estava falhando e a crença no Trílio Negro que a defendera até aquele momento parecia escorrer de sua alma, como o mar que se afasta da praia na maré baixa.
Anigel ficou quase que deitada no pescoço do fronial, agarrada às rédeas, e o peso horrível da cota de malha feria seus ombros através do tecido fino de seu vestido. O animal pulava e escorregava pela trilha rochosa, mas os cascos duplos não perdiam o equilíbrio. Em volta dela, a floresta de pinheiros que cobria a encosta era uma imagem embaçada de troncos com galhos finos muito altos. Ela sentia frio e estava exausta, e isso não era surpresa alguma. Afinal de contas, havia despertado aquela manhã mesmo de um sono enfeitiçado de seis dias. Curada, é verdade, mas mesmo assim sem resistência física.
Começou a chuviscar.
Anigel estalou a língua para o fronial ir mais depressa, mas os instintos da criatura contrariavam aquela ordem e ele continuou a avançar num trote desconfiado. A trilha tinha ficado íngreme demais para o galope, sempre sinuosa e com curvas muito fechadas.
A garoa se intensificou e virou uma chuva leve, porém constante. Em minutos, Anigel ficou encharcada porque não lembrou de vestir a capa militar que estava presa na sela atrás dela. Aos solavancos, moída e completamente exausta, ela deixou sua montaria seguir como queria.
De repente, o fronial gritou e parou. Ela descobriu que estava no meio dos seus colegas fugitivos, que alguns tinham desmontado e que discutiam angustiados. Haviam parado na área dos tocos queimados perto do sopé da colina, logo acima da depressão cheia de gás.
Hakit Botai, que tinha desmontado, dirigiu-se a Gyorgibo com a voz rouca:
— O que você quer dizer, que não vai acender direito com a chuva?
— Só posso dizer o que aprendi nos meses que passei no calabouço — disse o arquiduque. — Houve ocasiões em que a chuva fez explodir as exalações inflamáveis, em vez de pegar fogo. As árvores então se incendiavam e as pessoas às vezes morriam com essas explosões, apesar de estarem bem longe da borda.
— Mas não temos outra saída! — gemeu Ga-Bondies.
— Só queria que vocês soubessem desse risco — disse o sobraniano.
— Não cheguei tão longe para render-me e retornar ao calabouço! — rosnou Hakit para Gyorgibo. — Você é covarde demais para tentar? Então me dê a tocha!
— Seu burocrata temerário! — debochou Gyorgibo. — Você não tem noção dos perigos dos gêiseres!
— Parem de discutir pelo amor da Deusa! — disse Jiri de Galanar. — Eis a nossa líder, ela dirá o que vamos fazer. Ajudem a pobre moça a desmontar e livrar-se daquela armadura. Ela está ensopada até os ossos.
Jiri e o rei Ledavardis ajudaram Anigel, e puseram em cima dela um manto de lã grossa e uma capa com capuz. Depois de ver que ela estava aquecida e vestida todos olharam ansiosos para ela.
— Gyorgibo — disse ela sem emoção —, você está disposto a acender o gás, apesar de ser perigoso?
— Estou — disse ele simplesmente. — Montem todos vocês e se preparem.
O sobraniano pegou uma espada curta que tinha tirado do arsenal do castelo, serrou um galho carbonizado e arrancou todos os seus ramos. O bastão resultante tinha o dobro da altura de um homem. Então Gyorgibo amarrou uma das tochas numa ponta dele e desceu pela trilha a pé, segurando a lança flamejante para a frente.
— Sigam-me e tragam meu fronial — pediu ele —, mas fiquem a uma certa distância de mim.
Não havia vento, um leve odor miasmático pairava no ar, e o único som que se ouvia era dos cascos dos froniais batendo nas pedras e o sussurro da chuva fraca. Afinal eles chegaram a um espaço aberto e nivelado, sem qualquer tipo de vegetação. Descia até o vale numa queda com cerca de vinte varas de altitude.
Gyorgibo avisou para ninguém se aproximar e chegou de quatro à beira da bacia e inclinou a tocha lá para baixo.
Um estalo ensurdecedor fez o chão tremer, seguido de um sonoro uuumf.
A primeira ignição foi um clarão branco-azulado que se transformou numa bola achatada brilhante, de um vermelho-alaranjado estonteante que se expandiu até a ponta do penhasco. Quando o arquiduque correu de volta para junto dos outros, que estavam tendo dificuldade para manter sob controle suas montarias em pânico, começou a soar um silvo, entremeado com diversas explosões menores. Veias finas de fogo azul como ramificações de relâmpagos percorreram a bacia em todas as direções, viajando a uma altura de mais ou menos cinco varas. A rede de fogo foi se fechando e se transformou numa folha de luminescência dourada que cobriu por completo a depressão. Um segundo depois, inúmeros gêiseres flamejantes ganharam vida e a névoa incandescente desapareceu.
O príncipe e a princesa eternos bateram palmas.
— Esperem alguns minutos — ordenou Gyorgibo, dando um sorriso largo de satisfação —, para o ar limpo tomar o lugar dos eflúvios nocivos. Então podemos descer por aquela ladeira.
Os froniais se acalmaram e seus cavaleiros também. Anigel murmurou sua gratidão ao rei Ledavardis por ter segurado a cabeça do fronial dela quando ele ameaçou empinar.
— Com a sua permissão, futura sogra — disse ele —, viajarei ao seu lado para lhe dar segurança enquanto atravessamos esse inferno.
— Agradeço a sua ajuda — disse Anigel —, porque confesso que estou morta de cansaço.
Ela não falou da sua gravidez, mas imaginava angustiada se os três bebês estavam bem. Não sentia nenhum se mexer desde bem antes do jantar.
— Avante! — gritou Gyorgibo.
Ele e seu corcel mergulharam ladeira abaixo, rumo à bacia de fontes de fogo. Ele havia perdido sua tocha e Anigel também não tinha nenhuma, mas os outros ergueram as suas bem no alto e partiram atrás dele. Quando chegaram ao fundo chato e cheio de cinzas da depressão, puderam avançar num trote rápido.
A rainha se entregou aos cuidados do rei pirata, agarrou-se no santo-antônio da sela enquanto ele segurava as rédeas para ela. As colunas de fogo se erguiam dos dois lados do caminho, entre as rochas, com as chamas refletidas na água salpicada de chuva do brejo. Era um cenário de uma beleza assustadora. Havia gêiseres grandes e pequenos, variavam de tamanho desde a altura do joelho até dez varas de altura. Todos pulsavam de forma irregular, explodindo com chuva de fagulhas e depois descendo de novo para queimar mais discretamente. De vez em quando, um ficava totalmente privado do seu fluxo de gás, diminuía e apagava, mas logo acontecia uma pequena explosão quando ele se reacendia com uma fagulha perdida e o gêiser se incendiava de novo.
Anigel não precisava se concentrar em conduzir seu fronial arisco, por isso ela pôde olhar para trás, depois de terem percorrido mais ou menos uma légua. Hakit Botai cavalgava logo atrás dela. Atrás do presidente de Okamis se avolumava a floresta na encosta e o próprio Castelo Incendiado, pintado com as cores berrantes do fogo.
Movendo-se bem rápido pela trilha da encosta ela viu uma fila de luzes cor de laranja que piscavam.
— Olhem, ó, vejam! — gritou a rainha. — Eles estão vindo atrás de nós!
O rei Ledavardis rosnou uma praga de piratas.
— Esporas nas suas montarias! — disse Hakit.
Mas não era tão fácil pôr isso em prática. À luz do dia eles veriam a trilha sinuosa com facilidade. Mas à noite, com sombras enganosas por toda parte e as fontes de labaredas ofuscando a visão, eles quase saíram da trilha algumas vezes e os froniais sempre batiam uns nos outros enquanto os cavaleiros confusos os incitavam a correr.
Finalmente Gyorgibo gritou:
— Não adianta! Precisamos ir mais devagar, pelo menos até sair dessa maldita bacia.
A fila dos perseguidores, que provavelmente conheciam bem o caminho, estava cada vez mais próxima deles. Então começou a chover mais forte e por toda parte os gêiseres flamejantes foram diminuindo e apagando.
— O que vamos fazer? — berrou o duúnviro Ga-Bondies. — Os vapores vão nos sufocar!
— Eles são mais pesados que o ar — disse Gyorgibo. — Podemos continuar a salvo algum tempo, desde que as cabeças dos nossos froniais e as nossas fiquem acima deles. Apaguem todas as tochas! Não podemos correr o risco de reacender o gás. Rainha Anigel, venha na frente comigo e deixe que o brilho do seu âmbar mágico sirva de guia... Agora, apressem-se!
Eles aceleraram como podiam, sem tirar os olhos da única luz que ia à frente da fila. A chuva pesada e uma névoa que começava a se formar sobre as poças do brejo logo impossibilitaram a visão dos perseguidores. Os contornos da bacia foram ficando cada vez mais imprecisos e os gêiseres flamejantes continuaram a se apagar. Finalmente restavam apenas duas chamas amarelo-azuladas, brilhando no meio das rochas mais altas no nevoeiro. Quando esses dois se apagaram, os reféns em fuga mergulharam na escuridão, a não ser pelo brilho pequeno e constante do amuleto da rainha Anigel.
Como se o céu os provocasse, a chuva parou naquele mesmo instante.
A montaria da rainha estava sendo puxada pelo arquiduque Gyorgibo, mas Anigel já não se importava mais se vivia ou morria. Seu coração estava muito deprimido, e sua mente cansada demais e desolada para pensar em rezar por um milagre. Eles iam ser pegos. Ela sabia que o fracasso era sua culpa e a morte dos seus companheiros seria um peso para sua alma quando passasse para o além. Então ela sentiu uma lufada de cheiro de piche e ficou subitamente nauseada. Os vapores venenosos! Com um esforço enorme ela se endireitou na sela e abriu os olhos. O brilho do âmbar iluminou um lençol de nevoeiro espesso que chegava ao peito dos froniais. Não ia demorar muito...
— Eles estão quase nos alcançando! — gritou Hakit Botai. Anigel ouviu o tropel atrás deles, mas não conseguia ver nada.
Os perseguidores do castelo também haviam apagado suas tochas.
— Senhores do Ar, levem-nos — sussurrou ela.
— Estamos quase do outro lado — disse Ledavardis. — Estou vendo a escarpa. Mais depressa! Chutem as costelas dos seus animais! Precisamos chegar à ribanceira antes que os inimigos nos alcancem.
— Ele tem razão — gritou Gyorgibo. — Ainda temos uma chance!
Anigel sentiu sua montaria apertar o passo. Então começaram a subir uma encosta lamacenta, saindo do miasma letal como se fosse um lago. As escarpas da borda da bacia tinham como fundo o céu cheio de nuvens espalhadas. Uma das luas apareceu, prateando a paisagem sinistra.
Gyorgibo não liderava mais o grupo. Ele voltou galopando pela trilha rochosa, gritando para os outros se apressarem e salvar suas vidas. Conforme ia passando ele dava uma pancada no dorso de cada fronial com o lado da espada. Os animais gritavam, balançavam suas galhadas e aceleravam, subindo para a área de pedras fuliginosas que formava uma zona segura acima dos gases.
Agora os perseguidores estavam bem visíveis, uma tropa de armadura avançando através da névoa sobre animais que pareciam não ter pernas, como barcos bizarros e não froniais. Dois Homens da Estrela montados em froniais brancos avançavam lado a lado na vanguarda da tropa. Um deles deu um grito indistinto e ergueu sobre o ombro a arma que tinha arrebentado o portão do castelo.
Gyorgibo fez sua montaria dar meia-volta e a golpeou freneticamente com as esporas para subir a ribanceira.
— Cuidado! Para trás! — gritou ele para os outros reféns. Quando chegou na borda, ele puxou as rédeas subitamente, fez seu fronial empinar bem alto e jogou sua espada na bacia.
O aço enferrujado caiu rodopiando e provocou um tinido metálico quando bateu nas rochas lá embaixo.
Nada aconteceu e o sobraniano vociferou uma praga de desespero.
— Pensei que ia lançar uma fagulha e acender os vapores, mas agora...
Anigel ouviu claramente a risada do Homem da Estrela que segurava a arma. Liderando os outros, ele ainda não havia chegado a base da ladeira quando disparou o raio mágico de fogo vermelho.
Uma explosão enorme quase derrubou os governantes reféns de suas montarias.
Por um momento, Anigel ficou surda e quase desmaiou. Seu tronial tropeçou, recuperou-se do choque inicial e começou a corcovear e empinar, de dor e pavor. Ela se agarrou ao cabresto do animal com toda a força e conseguiu se manter em cima dele até Se recuperar. Abaixo da saliência, ela viu um enorme incêndio dourado e azul e misturados com os estalidos do fogaréu, ouviu gritos humanos agonizantes. Depois de um breve tempo, as vozes se calaram, o clarão que cobria tudo diminuiu e a bacia voltou a ficar cheia de gêiseres flamejantes.
Os fugitivos do Castelo Incendiado passaram alguns minutos sem poder fazer outra coisa senão acalmar seus froniais histéricos. Milagrosamente, nenhum deles tinha caído e depois de algum tempo os nove conseguiram se reunir no topo da ladeira e observar o fundo da depressão.
Ao longo da trilha havia montes pretos disformes. Soltavam fios de fumaça tingida de vermelho pelo fogo dos gêiseres.
— Grande Deusa, tenha piedade — murmurou a rainha Jiri, olhando para a cena paralisada. — Eles mesmos fizeram isso.
Ninguém disse nada. Depois de alguns minutos, deram meiavolta e se afastaram lentamente dali.
Kadiya foi a última a sair do viaduto e rapidamente tratou de desativá-lo. Depois da quietude da floresta do rio Oda, a ensurdecedora cacofonia da selva sobraniana foi como um golpe para ela. Os camaradas que a haviam precedido no viaduto estavam reunidos num amontoado inacreditável sob uma das grandes copas das árvores-ninho, chocados com os escandalosos guinchos, assobios, grasnidos, trinados e pios dissonantes que atacavam seus ouvidos.
— Pelos tornozelos de Zoto! — gritou sir Edinar. — Que tipo de animais barulhentos vivem aqui em Sobrania?
— Disseram-me que apenas os pássaros famosos — disse Kadiya. — Imagino que vamos nos habituar ao barulho.
Sir Melpotis olhou em volta desconfiado, segurando sua espada com força.
— Descobriu alguma coisa sobre o paradeiro dos Homens da Estrela?
Kadiya balançou a cabeça.
— Só o emblema deles, pregado numa árvore mais adiante. Se eles estiveram aqui quando o sol nasceu, certamente já foram embora agora. Mas suspeito que a oferta de recompensa foi apenas um truque. Se os glismaks tentassem exigi-la, provavelmente seriam mortos por isso — ela olhou em volta e depois continuou: — Ah, lá está o nosso guia, nos esperando, conforme prometeu.
Devido à densa folhagem da copa das árvores, até para a visão privilegiada de Kadiya havia sido difícil localizar a pessoa de Pé perto de um tronco a menos de dez varas de distância. Ele era alto, magro, e sua túnica de mangas compridas e sua calça eram cobertos de penas entrelaçadas, de cor cinza opaca como a casca das árvores. O chapéu pontudo acima da barba grisalha tinha uma aba curta na frente, da qual pendia um véu de trama grossa que escondia a parte de cima do rosto. A parte de baixo fora pintada com alguma substância escura que obscurecia seus contornos. Ele não se mexeu quando Kadiya se aproximou e cumprimentou-o falando bem alto para ser ouvida apesar do clamor dos pássaros
— Obrigada por ter esperado, Critch. Esses são os amigos de quem eu falei, que também juraram combater os Homens da Estrela.
Critch saiu de perto da árvore e levantou o véu para revelar feições que eram tão regulares quanto as de qualquer ser humano apesar de contorcidas pela desconfiança. Apenas os olhos dele, enormes e dourados, e as mãos com três dedos, que seguravam uma podadeira afiada com um cabo bem longo, revelavam que ele era um aborígine.
Kadiya apresentou os outros, terminando as apresentações com o príncipe Tolivar, que não teve escrúpulos para fazer a pergunta que os outros hesitavam em fazer.
— A que raça você pertence, Critch? Eu diria que é um vispi, só que seus olhos não são verdes.
— Eu sou um cadoon — explicou o aborígine de má vontade para o menino. — Os vispis são nossos parentes próximos, mas como temos uma percentagem maior de sangue humano, ficamos sem os talentos sobrenaturais deles e tivemos de aprender a sobreviver com mais humildade — ele olhou para o príncipe com o cenho franzido e virou-se para Kadiya. — Explique por que um menino faz parte de um grupo de espionagem muito bem armado... e por que vocês dois manejam artefatos capazes de produzir mágicas tremendas.
— Fico surpresa de você ter observado isso — disse Kadiya.
— O meu povo não é tão habilidoso para reconhecer encantamentos como são os vispis — retrucou Critch —, mas também não somos tão broncos nesses assuntos como alguns outros... Dama dos Olhos, quando prometi ajudá-la eu pensava que a senhora era um humano normal. Mas se é uma feiticeira...
— Não sou grande coisa — disse ela num tom triste e sacudindo os ombros —, e meu sobrinho, Tolo, é ainda menos experiente que eu.
— Eu não ajudo feiticeiros... nem mesmo os incompetentes! — Critch apontou para a placa com uma Estrela pintada. — Aqueles vilões têm oprimido meu povo há quase dois anos. Eles até mataram caçadores de penas cadoons inocentes que ousaram vir a este lugar, que costumava ser um dos nossos principais locais de reunião até os Homens da Estrela resolverem ocupá-lo há menos de uma lua. Só estou aqui hoje porque, por acaso, vi os guerreiros da Guilda que normalmente montam guarda neste lugar fugindo às pressas.
— Excelente! — disse sir Melpotis. — Sabe para onde eles foram?
— Não.
O aborígine pegou uma grande mochila que estava atrás da árvore e deu um passo para trás.
— Esses homens que você viu eram mesmo da Guilda — perguntou Kadiya para ele —, com seus medalhões da Estrela, ou eram apenas capangas?
— Não me façam mais perguntas! Não tenho mais nada a ver com vocês.
Kadiya estendeu as duas mãos para tentar tranqüilizá-lo.
— Amigo, sou exatamente o que disse que era, filha do rei de Laboruwenda, um país no extremo leste, que veio em busca da irmã, a rainha Anigel. Ela foi seqüestrada pelos Homens da Estrela e pode estar presa neste país. Se você nos levar para a capital Brandoba...
— Eu não disse que ia fazer isso — respondeu o cadoon com violência. — Eu disse que talvez mostrasse o caminho, que é longo e difícil.
— Você também disse que havia um caminho mais curto, no seu próprio barco.
— Mesmo que vocês não fossem feiticeiros, eu hesitaria em ir para a capital. Há semanas correm boatos entre os aborígines que alguma coisa terrível vai acontecer em Brandoba no festival dos pássaros deste ano, que começa daqui a dois dias, ao pôr-do-sol.
— Que tipo de boatos? — quis saber Kadiya, muito aflita. — Eles têm algo a ver com a Guilda da Estrela? O imperador corre perigo?
Mas Critch não queria responder.
— Por favor, reconsidere — ela implorou para ele. — Outros governantes além da minha pobre irmã foram levados pelos Homens da Estrela. Há uma forte possibilidade de que os feiticeiros estejam planejando raptar ou até matar o próprio imperador Denombo. Esperamos poder avisá-lo e também contar com a ajuda dele para salvar a minha irmã Anigel.
— O povo cadoon não é muito amigo do imperador. Os humanos sobranianos nos desprezam porque cobiçam as penas que coletamos e vendemos para eles. Não... vocês terão de encontrar o caminho para Brandoba sozinhos.
Critch começou de novo a se afastar embrenhando-se no mato, mas Jagun se adiantou.
— Espere! — berrou ele para compensar a algazarra dos passarinhos. — Não tenha tanta pressa assim. A Dama dos Olhos não é nenhuma feiticeira e nós não somos vilões. Por favor, deixe-me explicar!
Critch parou, mas continuou segurando com firmeza sua podadeira.
— Como pode ver — disse Jagun para ele —, sou aborígine, como você. A Dama dos Olhos, que também é chamada de Olhos Penetrantes e Filha das Três Pétalas e princesa Kadiya, tem sido a minha amiga mais querida desde que era uma menininha. Na nossa terra, Kadiya é a Grande Defensora e Campeã de todas as Tribos. Por muitos anos, ela tem lealmente defendido os povos nyssomus, uisgus, doroks, wyvilos e os pacíficos glismaks, e até os skriteks do Pântano Labirinto nas suas disputas com a humanidade. Há apenas um ano a Dama dos Olhos selou a paz entre os ferozes aborígines aliansas das ilhas Windlorn e os comerciantes humanos de Zinora. Os vispis das montanhas Ohogan visitam a residência dela como convidados de honra. O talismã que lady Kadiya carrega não é um instrumento de magia negra e sim um símbolo da sua nobre função. Neste exato momento, ele está nos protegendo da visão dos malignos Homens da Estrela.
Podem provar que isso é verdade? — disse Critch. Kadiya fez uma careta.
— Se houver algum lugar de paz e silêncio onde eu consiga ouvir meus pensamentos, talvez possa chamar minha outra irmã, que é a Arquimaga da Terra, usando a fala sem palavras. Ela teria muito prazer de pedir para seus amigos vispis comprovarem o que digo.
O cadoon apontou o dedo para o príncipe Tolivar, cuja tiara brilhava à luz esverdeada.
— E quanto a ele? Kadiya deu um suspiro.
— Ele é um problema. Mas juro que não lhe fará nenhum mal — ela dirigiu-se ao sobrinho. — Tolo, diga para ele.
— Eu juro — disse o príncipe. — Por favor, ajude-nos. Eu daria a minha vida para salvar minha mãe, a rainha Anigel.
Critch ficou um tempo avaliando a situação e finalmente disse:
— Acabei de juntar as penas aqui e estou pronto para voltar para a minha casa na costa. Vocês podem me acompanhar sem me atrapalhar e sem prejudicar a minha caçada.
— A que distância fica a sua casa? — perguntou Kadiya. Critch deu de ombros.
— A uma boa distância. Quando chegarmos aos penhascos à beira do mar, vocês terão sua chance de provar que são realmente amigos dos nossos irmãos, os vispis. Façam isso e posso reconsiderar se vou ajudá-los a chegar à capital de Sobrania.
Eles seguiram Critch pela floresta barulhenta por muitas horas tediosas, parando de vez em quando enquanto ele coletava a plumagem que caía das grandes árvores-ninho e enfiava na sua mochila. Ele não parava quando a noite chegava, simplesmente continuava andando. Como todos os aborígines, Critch podia enxergar muito bem no escuro, assim como Jagun. Mas os humanos exaustos ficavam felizes quando as Três Luas nasciam, iluminando um pouco a trilha estreita.
Foi naquela hora lúgubre, antes do nascer do sol, que eles finalmente saíram da selva e chegaram a uma região mais aberta de arbustos com folhas grandes, onde o canto dos pássaros era mais discreto e mais musical. Subitamente, o cadoon fez um gesto para eles ficarem parados, aguardando. Ele se adiantou, ajoelhou e tirou do cinto uma rede do tamanho de um lenço, com pequenas pedras de contrapeso nas pontas. Jogou-a com habilidade embaixo de um dos arbustos, logo acima do chão e ouviu-se uma gritaria furiosa e aguda. Com muito cuidado, Critch pegou sua presa, um passarinho minúsculo com uma única pena no rabo, bem longa, que faiscava ao luar como se fosse coberta de diamantes infinitesimais.
— Que lindo! — disse Kadiya.
— O vitt é a criatura mais rara aqui em Sobrania — contou Critch todo feliz. —Nunca soube que havia um nessa região. Normalmente eles costumam frequentar as fontes quentes na vegetação das montanhas mais altas, mas é verdade que elas andam cobertas por uma camada muito profunda de neve fora de época ultimamente.
Com uma pequena tesoura ele cortou a pena cintilante e soltou o pássaro. Ele atacou a mão dele violentamente, tirando sangue com seu bico pontiagudo como uma agulha, antes de desaparecer. O caçador apenas riu, exibindo seu prêmio.
— Os comerciantes de penas de Brandoba vão me pagar por isso o suficiente para alimentar minha família por seis meses. Parece que vocês me trouxeram muita sorte esta noite... ou será que devo agradecer à sua magia?
— Apenas à sua habilidade — admitiu Kadiya. — O passarinho sofre alguma coisa com a perda do seu enfeite?
— Não, a única coisa que sofre é o orgulho dele. Tanto as leis de Sobrania quanto a religião dos cadoons garantem que nós, caçadores de penas, não podemos machucar os pássaros. Em geral, recolhemos a plumagem que já foi descartada por eles. Só quando encontramos grandes raridades como o vitt é que usamos redes ou visgo para prendê-los.
Eles seguiram em frente e quando o céu começou a clarear, chegaram a uma charneca rochosa. E finalmente, quando Kadiya e seus companheiros sentiram que não podiam dar mais um passo de tão exaustos que estavam, atingiram um penhasco escarpado com vista para uma imensa extensão de água cor de chumbo. Na costa ao longe mal dava para ver um mar de colinas e depois delas a silhueta de montanhas recortadas contra o céu oriental pintado de aurora. Uma brisa gelada soprava do mar e eles ouviram o murmúrio das ondas lá embaixo.
— Este é o maior estuário que corta a costa sobraniana — disse Critch —, e do outro lado fica Brandoba.
— Quanto tempo leva essa travessia de barco? — perguntou sir Melpotis.
— Pelo menos dez horas — disse Critch. — Infelizmente os ventos nessa época do ano são fracos e não favorecem essa rota.
— Estamos completamente exaustos e precisamos dormir primeiro — disse Kadiya —, mas temos bastante tempo. Se vai haver problema na capital, é mais seguro chegar lá depois que escurecer, quando o festival dos pássaros já estiver em andamento e os cidadãos menos propensos a notar estrangeiros.
O aborígine guardara sua podadeira numa bainha que levava às costas havia muito tempo, mas naquele momento ele ficou tenso e desconfiado.
— Não vou levá-los a lugar algum, Dama dos Olhos, até provar quem realmente é. Faça o que prometeu e chame os vispis, usando a fala sem palavras, senão os deixarei aqui. A trilha para Brandoba fica à sua esquerda, depois da ravina. Vocês levarão pelo menos doze dias para chegar à cidade a pé, rodeando o estuário, e estarão sujeitos aos oficiais sobranianos quando cruzarem as pontes de pedágio nas ilhas de Zandel.
Kadiya ignorou o tom hostil de Critch.
— Será que meus companheiros podem sentar um pouco para descansar? Vou me comunicar com a Dama de Branco, minha irmã, que pedirá para um dos seus amigos vispis atender ao seu pedido.
Critch inclinou a cabeça e resmungou que estava de acordo. Kadiya e seu grupo deram graças por poder descarregar suas pesadas mochilas. Os cavaleiros e Jagun caíram no capim entre rochas que serviam de abrigo, e o príncipe Tolivar ficou por perto, observando a tia com curiosidade e medo disfarçado. Ele sabia que ela ia contar para a Arquimaga que ele estava com o Monstro de Três Cabeças e que roubara o Olho Ardente Trilobado.
Kadiya tirou a espada mágica do cinto e segurou pela lâmina quebrada.
— Talismã — disse ela com segurança —, mostre para mim, e para todas as pessoas presentes, uma visão de Haramis, Arquimaga da Terra.
Uma das três esferas escuras no cabo da espada se abriu, revelando um olho castanho e brilhante. Na mesma hora a figura alta da Dama de Branco, com sua capa perolada cintilante e de braços estendidos se materializou no ar entre Kadiya e o cadoon. Critch deu um grito de espanto.
— Irmã, saudações! — disse Kadiya. — Chegamos em segurança à terra de Sobrania e quero fazer um pedido para você.
A Arquimaga permaneceu imóvel e em silêncio.
— Hara? Fale comigo! O pedido não é válido.
Antes de Kadiya, contrariada, poder reagir, o príncipe Tolivar disse para ela num tom de superioridade.
— Essa não é a Arquimaga de verdade, apenas uma imagem dela sem vida. Você cometeu o mesmo erro que eu costumo cometer e pronunciou errado seu pedido para o talismã.
— Então — disse Kadiya exasperada —, por que você não usa o seu Monstro de Três Cabeças e faz a pergunta direito?
Tolivar mudou de expressão, parecia mortificado.
— Eu... eu não sei nada dessa comunicação. É uma função do talismã que não entendi até agora. Sinto muito, tia. Foi grosseria minha corrigi-la.
Kadiya suspirou.
— Da próxima vez, trate de usar um tom menos malicioso e eu aceitarei qualquer ajuda que você puder me dar com esses malditos objetos. Meu talismã ficou quatro anos sem funcionar e eu perdi a prática... Olho Ardente! Quero falar com a Dama de Branco através das léguas. Permita-me fazer isso e também nos dê uma visão dela.
A imagem desapareceu e o talismã disse novamente em voz alta:
Isso não é possível.
— Por que não?
Ela não está neste mundo.
Kadiya sentiu seu sangue congelar nas veias.
— O quê? Você quer dizer que a minha irmã Haamis está morta?
Ela não está morta.
— Então onde é que ela está? — gritou Kadiya desesperada. A pergunta não é válida.
O cadoon olhou para Kadiya com total ceticismo, e Jagun e os Companheiros Juramentados ficaram embasbacados. Procurando controlar seu desânimo, Kadiya deu um sorriso forçado.
— Bem, eu avisei que não era uma verdadeira feiticeira. Esse meu talismã mágico muitas vezes teimava e não cooperava mesmo quando eu estava bem acostumada a usá-lo.
— Você pode tentar se comunicar com Magira — sugeriu Tolivar.
— Humm. Isso seria mais fácil, já que ela é aborígine e sabe usar a fala sem palavras. — Kadiya respirou fundo. — Talismã! Quero falar e ter uma visão bem clara de Magira, a castelã da Torre da Dama de Branco. Que ela também seja vista e ouvida pelos meus companheiros.
No mesmo instante a mulher vispi parecia estar ali com eles, de pé diante de Kadiya, com uma expressão de susto no seu lindo rosto. Usava seu habitual vestido vermelho transparente com pedras preciosas na gola. O cabelo claro, com as graciosas orelhas em pé aparecendo, parecia ondular com a brisa do mar.
— Dama dos Olhos — disse Magira —, como posso servi-la?
— Diga para essa pessoa — Kadiya apontou para o cadoon— quem sou eu, que não sou nenhuma feiticeira aliada dos perversos Homens da Estrela, e sim uma líder respeitável que vim com meu povo em busca da rainha Anigel.
Obediente, a mulher vispi deu uma breve descrição da posição nobre de Kadiya em Laboruwenda e também confirmou o seqüestro dos governantes humanos. Enquanto Magira falava o caçador de penas foi relaxando visivelmente. E também os cavaleiros e Jagun.
— Tentei e não consegui me comunicar com a Arquimaga através do meu talismã — disse Kadiya para Magira depois que a castelã acabou de falar. — Você tem alguma idéia do que aconteceu com ela?
— Essa é uma notícia muito triste, Dama dos Olhos! Dois dias atrás a Dama de Branco passou pelo viaduto que havia engolido a rainha Anigel, achando que a levaria para o covil de Orogastus e a sua Guilda. Não soubemos mais dela desde então.
— Haramis não está aqui em Sobrania — disse Kadiya com impaciência —, senão o talismã teria dito.
— Se ela foi capturada pelos Homens da Estrela, pode estar presa no mesmo lugar encantado em que está a rainha e os outros governantes sequüstrados. O próprio talismã da Arquimaga se recusou a dar-lhe a visão dos seqüestrados, e ela concluiu que eles deviam estar sob a proteção de alguma magia negra terrível.
— Suponho que isso pode explicar o silêncio dela. Mas por que o meu talismã disse que ”ela não está neste mundo”?
Magira deu um grito horrorizada.
— Ah, não! Diga que ele não disse isso!
— Haramis certamente não está morta — apressou-se Kadiya em dizer. — O Olho Ardente me garantiu isso. Mas o que essas palavras devem querer dizer?
A castelã relutou muito para responder.
— Talvez eu não devesse contar-lhe isso... O feiticeiro Orogastus esteve visitando a minha senhora na Torre. Ela... ela o ama apesar de tudo.
— Eu sei — disse Kadiya, laconicamente. — E daí?
— Haramis achava que ele havia morrido quando caiu na Prisão do Abismo, porque seu Círculo de Três Asas disse que ele ”não estava neste mundo”. Na verdade, Orogastus foi resgatado pelo Arquimago do Firmamento e ficou preso na Lua do Homem Negro, que certamente está fora do nosso alcance e, então, fora deste mundo. Será que a Dama de Branco está lá?
— Santa Flor — sussurrou Kadiya. — Acho que é bem possível. O destino dos viadutos podem ser modificados por quem costuma usá-los. Mas Haramis jamais iria para tal lugar de propósito sem dizer nada para nós! E por que o Homem da Lua ia levá-la contra a vontade dela? Ele não se importa com os problemas dos humanos.
— Quem pode adivinhar os desígnios dos Arquimagos? — disse Magira, desolada.
— Obrigada por sua ajuda — disse Kadiya, desfazendo a imagem da vispi e virando para seus amigos. — Mais uma bela confusão! E o meu talismã parece totalmente incapaz de revelar qualquer coisa a respeito disso.
— Talvez nossos dois talismãs — disse Tolivar —, funcionando juntos, possam conseguir o que um sozinho não consegue.
Os olhos de Kadiya brilharam.
— Vamos tentar. Segure uma de minhas mãos e toque o Olho Ardente que está na outra.
Mas o príncipe recuou com medo de tocar na espada, agora que estava associada a ela.
— Eu lhe dou minha permissão! — disse Kadiya. — Ele não vai machucá-lo.
Tolivar estendeu a mão e todos que observavam ficaram boquiabertos de espanto, pois a mulher e o menino foram cercados subitamente por um halo de radiação multicor. O Olho Ardente não era mais negro e opaco, ele brilhava como prata derretida, com raios dourados, verdes e brancos partindo dos seus três Olhos. A tiara na cabeça de Tolivar também brilhava muito, com raios das mesmas cores saindo das bocas abertas dos Três Monstros esculpidos nela.
— Agora! — gritou Kadiya. — Pergunte comigo, Tolo: Onde está Haramis?
Os dois pronunciaram juntos as palavras e veio a resposta. Ela está hospedada na casa do Arquimago do Firmamento.
— Outra vez, rapaz! Peça para ela falar conosco.
Mas dessa vez eles receberam a resposta antiga e frustrante: A ordem não é válida.
— Quando é que ela vai voltar? A pergunta não é válida.
Jagun e os Companheiros Juramentados resmungaram desapontados.
Kadiya e o príncipe tentaram descobrir outras informações sobre Haramis, mas o talismã se recusou a responder.
— Bem, então é isso — disse a Dama dos Olhos. — Pelo menos sabemos mais do que antes.
— E a minha mãe? — perguntou Tolivar aflito. — Quem sabe não conseguimos descobrir onde ela está presa.
— Menino esperto! — disse Kadiya. — Por que não pensei nisso?
Mais uma vez trabalhando juntos, eles pediram para os seus talismãs dizerem onde estava a rainha Anigel. Ela cavalga na floresta de Lirda.
— Pelas Canelas Sagradas de Zoto! — exclamou Sainlat. — Então a rainha está livre?
— Tolo — disse Kadiya —, precisamos pedir uma visão particular dela, primeiro sem que ela saiba para que não nos traia sem querer para o inimigo que pode estar perto dela. Sabe como se faz isso?
— Talvez melhor do que você, tia — respondeu ele. — Vamos fechar os olhos e dar a ordem.
Foi o que eles fizeram e na mente deles surgiu uma visão espantosa. Uma fila de froniais andando bem devagar numa floresta sinistra, à noite, e então a rainha cochilando, balançando a cabeça de um lado para o outro. Sua montaria estava sendo puxada por ninguém menos que o rei dos piratas e foi fácil reconhecer os outros cavaleiros, os governantes seqüestrados de Galanar, Imlit, Okamis e Engi. Alguns dormitavam sobre a sela como Anigel e outros estavam despertos, mas pareciam muito cansados. A coluna era liderada por um homem desconhecido que tinha uma péssima aparência, de cabelo e barba ruivos.
— Ajude-me a chamar sua mãe! — pediu Kadiya para o sobrinho.
— Diga o nome dela na sua mente, usando toda a sua força de vontade.
Mas, apesar de os dois estarem tentando falar com Anigel ela não tomou conhecimento deles, continuou dormindo, sem pôder reagir ao chamado mágico. Kadiya então perguntou ao talismã se sua irmã e os outros estavam a salvo do perigo.
Não.
— Pode nos dizer como ajudá-los? Não.
— Para onde eles estão indo? Para Brandoba.
— Deus do céu! — exclamou Kadiya. — Será que é verdade? A pergunta não é válida.
Ela deu risada.
— Não, claro que não é... Diga-nos se os Homens da Estrela planejam alguma vilania durante o festival em Brandoba.
A pergunta não é válida.
— Diga onde está Orogastus. A pergunta não é válida.
Kadiya e Tolivar abriram os olhos e trocaram olhares de tristeza.
— Acho que nossos talismãs não dizem nada sobre o abominável feiticeiro e seus capangas porque a Estrela os protege — disse ela. — Mas quando sua mãe acordar podemos tentar de novo falar com ela e então talvez tenhamos sucesso.
Eles largaram as mãos um do outro e a luz mágica desapareceu.
— Senhora — disse sir Edinar —, qual era a aparência da sua querida rainha e dos seus companheiros? Eles realmente não estão feridos?
Kadiya descreveu a visão para os outros. Enquanto falava do desgrenhado líder dos cavaleiros, Critch interrompeu.
— Esse homem ruivo desmazelado que vocês viram pode ser o arquiduque Gyorgibo, o irmão mais moço do imperador. Ele desapareceu muitas luas atrás enquanto caçava na floresta de Lirda.
— Onde fica esse lugar? — perguntou Kadiya.
O cadoon apontou para a linha de montanhas no horizonte do outro lado da baía.
— É uma reserva imperial, lar de animais ferozes e pássaros carnívoros como o terrível nyar, e fica no planalto oriental, do outro lado de Brandoba. Há muito é território proibido para homens comuns e para todas as tribos. Só a nobreza sobraniana caça lá, e não são muitos, porque nos últimos dois anos a Lirda ficou famosa por ser o esconderijo de feiticeiros. Quando o arquiduque desapareceu, apenas um membro do seu grupo foi encontrado vivo. O caçador que sobreviveu estava mortalmente ferido, mas antes de morrer ele disse que Homens da Estrela, liderados pela fora-da-lei arquiduquesa Naelore, haviam levado Gyorgibo. Desde então, ninguém mais ousou entrar na reserva, a não ser os duques renegados que apoiam Naelore na sua reivindicação pelo trono. Se a sua rainha está viajando pela floresta de Lirda, ela pode estar correndo um grande perigo.
— Os cavaleiros que estavam com a minha mãe não pareciam temerosos e também não estavam fugindo em disparada para salvar suas vidas — disse o príncipe Tolivar. — Na verdade, eles só pareciam extremamente cansados e suas montarias quase esgotadas.
Kadiya balançou a cabeça lentamente.
— Não tenho idéia de como podemos ajudá-los. Mas precisamos nos comunicar com uma outra pessoa agora, o rei Antar. Você tem de me ajudar de novo, Tolo, já que nunca consegui me comunicar assim com humanos comuns, como a sua tia Haramis faz.
Eles chamaram e por trás de suas pálpebras fechadas apareceu uma visão clara de Antar, acordando de repente nos seus aposentos na Cidadela de Ruwenda. O rei ficou surpreso de saber que Kadiya tinha recuperado seu Olho Ardente e que este estava funcionando mais uma vez.
Kadiya deixou esse assunto de lado.
— Querido cunhado, tenho notícias animadoras.
Então ela contou para o rei o que os talismãs haviam revelado sobre Anigel.
A alegria de Antar só diminuiu um pouco quando ele soube o que tinha acontecido com Haramis.
— Pode ser — disse ele — que a Dama de Branco tenha ido Para as Três Luas pedir a ajuda do Arquimago do Céu. Talvez ele conheça alguma maneira de destruir aquele maldito Orogastus de uma vez por todas.
Acho que isso é possível. Afinal, Denby já nos ajudou antes. Mas agora devo dizer que há rumores de problemas iminentes na capital sobraniana. Orogastus e seus Homens da Estrela podem estar a ponto de fazer sua jogada.
— Há alguma coisa que eu possa fazer? — disse Antar — Eu me sinto impotente, longe de tudo.
Kadiya pensou um pouco.
— Acho que você deve pedir para um amigo nyssomu convocar os vispis a se unirem a você, usando a fala sem palavras
— Immu pode fazer isso. Nós a salvamos do pântano.
— Excelente. Se conseguirmos resgatar Ani e os outros governantes seqüestrados e partir de navio de Sobrania, os vispis podem voar em seus abutres gigantes e espalhar a notícia para os outros governos - ela fez uma pausa. - Se nós falharmos ou se Orogastus der um golpe bem-sucedido e derrubar Denombo do seu trono, essa informação também terá de ser transmitida.
— Não importa o que aconteça — disse o rei — todas as nações peninsulares terão de se preparar para a guerra imediatamente. Não ha tempo a perder com conferências, como Haramis esperava.
— Infelizmente você tem razão.
— A maior parte da corte voltou comigo para a Cidadela por causa da estrada destruída - disse Antar. — Mas o general GorKam e o marechal Lakanilo seguiram para Derorguila com um pequeno grupo de cavaleiros leais, e eles vão convocar nossos súditos das terras baixas enquanto eu reúno um exército menor aqui para defender o Pântano Labirinto. Mesmo assim, não poderemos fazer grande coisa para combater a feitiçaria sem a ajuda da Dama de Branco. Temos de rezar para ela voltar logo... e torcer para que você esteja errada sobre a disposição de Orogastus de iniciar uma guerra.
- Se ele conquistar Sobrania, certamente usará a grande frota de galeras imperiais para invadir os países orientais. Pretendo fazer de tudo para avisar o imperador Denombo e ajudá-lo como puder com meu talismã, depois que Ani e os outros governantes estiverem fora de perigo.
— Que os Senhores do Ar a acompanhem — disse Antar.
Conversaram sobre questões estratégicas por mais alguns minutos e depois se despediram.
— Você não disse para meu pai que estou com a tiara mágica — disse Tolivar bem baixinho.
— Não. Ele vai saber de sua tolice depois que você devolver o talismã para sua mãe. Isso talvez amenize a mágoa e a raiva que ele vai sentir — ela pediu para Tolivar dar a mão para ela mais uma vez. — Agora vamos tentar informar o imperador de Sobrania do perigo que ele está correndo.
Deram a ordem para os seus talismãs e surgiu uma visão do imperador. Denombo estava dormindo profundamente, sozinho em seu suntuoso quarto, a não ser pela presença de um snithe de estimação encolhido num tapete ao pé da cama dele. Sua amada esposa Rekae morrera havia seis anos, junto com o filho natimorto que teria sido o herdeiro imperial. Apesar dos pedidos insistentes de seus conselheiros e dos sub-reis do império bárbaro vagamente unificado, Denombo não se casou de novo.
Kadiya comunicou-se com ele suavemente.
— Imperador! Imperador de Sobrania, acorde.
O imperador sonolento se mexeu sob um monte de edredons de penas. Usava uma touca bordada a ouro e estava com o rosto afundado nos lençóis. Quando Kadiya chamou novamente, ele abriu só um olho remelento.
— Quem está aí? — resmungou Denombo através das costeletas ruivas desgrenhadas.
— Eu sou Kadiya do Pântano Labirinto, irmã da rainha Anigel de Laboruwenda. Estou me comunicando através de magia.
O imperador sentou na mesma hora, totalmente alerta, e varreu o quarto com os olhos. Não havia ninguém.
— Vá embora, demônio do sonho! — coaxou ele.
O snithe assustado eriçou as escamas das costas, todo tenso e nervoso, levantou e trotou para o lado do dono, ganindo baixinho. Kadiya procurou tranqüilizar o imperador.
— Não sou nenhum demônio, imperador, sou sua amiga e tenho de transmitir uma mensagem importante. Não tenha medo.
Denombo arregalou os olhos e o rosto dele ficou roxo de raiva.
— Os sobranianos não têm medo de nada! Apareça, maldita! Mas Kadiya, apesar de um pouco mais hábil no manejo do seu talismã do que o príncipe Tolivar, nunca fora capaz de enviar uma imagem, e não poderia fazer isso agora, com os dois talismãs funcionando juntos. Quando tentou explicar isso para o imperador, o bárbaro tirou uma grande adaga debaixo do travesseiro, afastou as cobertas e pulou no chão com a arma em riste.
-— Eu sei quem você é! — berrou. — Você é um feiticeiro maligno... um daqueles malditos lacaios de minha traiçoeira irmã, que usam aquela Estrela! Guardas! A mim! Guardas!
— Imperador, o feiticeiro Orogastus pode estar planejando atacá-lo! Preste atenção...
Mas Denombo só continuou gritando. A porta do quarto se abriu com estrondo e uma dúzia de guerreiros armados com espadas e machados de guerra apareceram. Houve uma grande discussão, o imperador dava ordens incoerentes para seus homens (pois ele estava realmente apavorado com a voz sem corpo), e os guerreiros gritavam e marchavam pelo quarto todo, revirando baús, cadeiras e mesas, cortando as tapeçarias nas paredes à procura de vilões à espreita, e até furando os travesseiros e os edredons da cama imperial, caso houvesse Homens da Estrela escondidos embaixo deles.
A Dama dos Olhos suspirou e disse:
— Talismãs, já basta...
A cena do tumulto desapareceu.
Ela soltou a mão de Tolivar e enfiou o Olho Ardente no cinto.
— Não adianta. O imperador está apavorado demais com os Homens da Estrela para prestar atenção em qualquer mensagem que aparente ser magia. Terei de dar o recado pessoalmente — ela virou para Critch. — Meu amigo, agora você está satisfeito, viu que não queremos lhe fazer nenhum mal? Vai levar-nos para a capital de Sobrania em seu barco? É claro que pagaremos bem.
— Vou levá-los para Brandoba de graça — disse o cadoon —, agora que tenho certeza de que vocês são inimigos dos Homens da Estrela. Mas há uma coisa em minha cabana que vocês podem querer comprar... mercadorias que não levei para o mercado nesta temporada por causa dos boatos inquietantes.
Sir Edinar bufou zombando de Critch.
— Penas? Ra! Você deve estar brincando. Que utilidade teriam para nós?
— A minha casa fica num bosque não muito longe daqui — disse Critch. — Venham dar uma olhada no que eu tenho para vender e depois veremos quem vai dar risada.
O dia raiou na floresta de Lirda.
Depois de terminado o frugal café da manhã na suíte imperial do grande chalé de caça, Orogastus foi até a porta envidraçada que dava para a varanda, abriu e saiu. O chalé ficava encarapitado na beira de um penhasco dramático e, no cânion lá embaixo, havia corredeiras onde as águas estranhamente brancas do rio Dob passavam furiosas e rugindo por cima de rochas enormes.
O ar gelado da manhã atravessou a roupa de linho acolchoado que o feiticeiro usava por baixo da armadura que ia vestir, mas ele não se importou. Foi até um canto de onde podia ver uma seção aberta do terreno do chalé, cercado de árvores gigantescas. Lá, seu pequeno exército havia montado acampamento para passar a noite. Os guerreiros se moviam lentamente na névoa da manhã, desmontando suas barracas e empacotando seu equipamento com descuido e desleixo, tossindo, cuspindo, resmungando e rosnando para os sargentos que procuravam apressá-los. O oficial intendente, o capitão da Estrela Praximus de Tuzamen, gritava furioso com os vaqueiros dos froniais por causa de alguma trapalhada com as carroças de suprimentos. Haveria atrasos antes de a força poder seguir para o local definitivo, onde iniciariam a invasão de Brandoba.
Orogastus girou os olhos nas órbitas e não foi a primeira vez, perguntando ao espírito de Nerenyi Daral por que o mandara para Sobrania, com tantos lugares para onde poderia ir, para reiniciar a grande obra da Guilda. O povo era bastante inteligente, mas também cabeça-dura, voluntarioso e dado a discutir as ordens mais simples. E se aqueles, seus próprios guerreiros de elite, eram tão indisciplinados, então como ele podia pretender manter sob controle a força maior de guerrilheiros que estava sendo mobilizada na capital pelos seguidores secretos da arquiduquesa Naelore? Quando aquela gangue de valentões pusesse as mãos nas armas dos Desaparecidos, podia se amotinar no calor da batalha. Até o poder da Estrela podia não ser suficiente para deter milhares de bárbaros revoltados que de repente descobrissem o potencial letal da alta tecnologia. Era crucial obter um talismã para garantir que o ataque a Denombo acontecesse de acordo com seu plano meticulosamente elaborado.
Era hora de exercer toda a pressão no menino.
Orogastus saiu da varanda e voltou para a sala de estar imperial, construída de forma quase rústica, com suas vigas aparentes, paredes de madeira polida, castiçais com pedras preciosas e tapetes de penas. Sentou-se novamente à mesa onde mais cedo fizera sua frugal refeição matinal, composta de mingau de ferol e frutas, e passou algum tempo meditando. Então, segurou seu medalhão da Estrela e observou o príncipe Tolivar com calma.
Ainda não era a melhor hora de se comunicar com ele, mas logo seria. Orogastus concentrou-se na tarefa mais difícil que era comunicar-se com Haramis. Diferente de Tolo, cujos sentimentos ambivalentes formavam uma ranhura da sua barricada do talismã, a Dama de Branco e também sua irmã Kadiya estavam completamente protegidas da visão e da comunicação mental. Mas havia uma possibilidade remota de que o amor de Haramis pudesse torná-la receptiva ao chamado dele.
Ele pegou mais uma vez a Estrela.
Meu amor! Sei que você pode me ouvir se quiser. Responda! É a sua última chance para evitar a guerra. Diga que virá para o meu lado. Juntos podemos recuperar o equilíbrio que o mundo perdeu e evitar a sua destruição. Responda, eu imploro!
Mas ele não ouviu nada, só o distante rugido de um nyar ou de algum outro predador da floresta, e os guinchos dos froniais do exército que não estavam dispostos a serem selados. Haramis estava arredia e em silêncio, como tinha ficado na véspera, quando ele a chamou antes de sair do Castelo Incendiado.
Haramis! Você tem de acreditar que eu mudei na minha estada na Lua do Homem Negro. A minha ambição não é mais dominar o mundo, e sim salvá-lo! Só vou conseguir isso através da força se a recuperação não puder ser feita de nenhum outro jeito... Você pode obrigar sua irmã Kadiya e seu sobrinho Tolivar a entregarem para você os talismãs. Você e eu então formaríamos o Cetro Tríplice e juntos o usaríamos para curar a terra e banir o Gelo Conquistador para sempre. Haramis! Fale comigo!
Ele tinha levantado da cadeira e se aproximado da janela com vista para o acampamento. Chicotes estalavam e os carroceiros gritavam com suas parelhas. A caravana que avançava lentamente e sua escolta montada partiriam primeiro e o grupo principal de guerreiros iria em seguida. Ele e os outros membros da Guilda sairiam do chalé por último, depois de um breve conselho de guerra. Haramis... Eu até deixo você mesma manejar o Cetro Tríplice contra o desequilíbrio planetário. Apenas venha ficar comigo, minha amada! Vou contar para você o que aprendi nos arquivos dos desaparecidos no castelo de Denby... informações terríveis diante das quais o Homem Negro parece estar indiferente.
Ele parou e franziu o cenho com raiva, lembrando da reação apática do velho às suas descobertas, sua risada senil e o ar de desprezo com que ignorou o destino do mundo dizendo: ”Deixe estar, rapaz. Não adianta ficar se preocupando, tentando interferir no sentido para onde o cosmo se movimenta. Você pode conseguir desviar o inevitável por pouco tempo, mas a longo prazo as coisas vão acontecer exatamente como têm de acontecer...”
Se Denby realmente se dá conta de que o desastre é iminente, na sua loucura ele se recusa a tomar qualquer providência. Fale comigo, meu amor! Diga que você virá e eu chamarei meu exército imediatamente e voltaremos para o castelo. Senão essa guerra terá de começar de acordo com o meu plano, e não terei como interrompê-la. Minha querida Haramis, responda!
De olhos fechados ele a viu na memória com saudade, procurou projetar seu amor com toda a força da alma, sua disposição de abandonar a violência se ela ficasse com ele. Mas não obteve resposta. Ele deixou os ombros caírem e os dedos que seguravam a Estrela com força relaxaram. Orogastus abriu os olhos e dentro das pupilas negras brilharam dois pontos de luz gélida.
Muito bem. Será conforme ordenaram os Poderes Ocultos da Guilda da Estrela.
Como se alguém respondesse, ele sentiu o chalé tremer um pouco. Era apenas um daqueles pequenos abalos sísmicos inofensivos que eram comuns na região, chamados pelos nativos de Suspiros de Matuta, que supostamente significavam a indulgência da deusa diante dos evidentes pecados da humanidade. Na primeira vez que Orogastus pôs os pés em Sobrania os tremores o deixaram alarmado. Mas Naelore afirmou que nunca na história do país os movimentos da terra tinham causado qualquer dano, e nem a grande cordilheira acima de Brandoba havia dado sinais de abalos sísmicos ou atividade vulcânica dignos de nota.
O feiticeiro pôs a mão na Estrela.
— Poderes Ocultos... essas perturbações subterrâneas são um sintoma do maior desequilíbrio do mundo? São um presságio do desastre que está para acontecer?
Ele fechou os olhos e ficou completamente imóvel, deixando que todos os pensamentos se esvaíssem da sua mente de forma a ficar mais receptivo para qualquer resposta. Mas os Poderes nunca se comunicavam com ele diretamente através da sua Estrela, e naquele momento também não deram uma resposta clara. Um segundo tremor, tão minúsculo que nem teria notado em circunstâncias normais, fez o chão do chalé vibrar sob seus pés.
Podia ter sido apenas coincidência, ou talvez os Poderes Ocultos tivessem respondido da melhor maneira possível. Ele suspirou, sabendo que toda a verdade não seria conhecida até que fizesse a pergunta para o Monstro de Três Cabeças. Então, vestiu sua armadura completa, menos o elmo cintilante com seu halo de raios pontiagudos, que carregou embaixo do braço, e desceu a escada para conversar com os outros feiticeiros.
Havia trinta membros competentes da Guilda da Estrela, mas dois haviam sido deixados no castelo para supervisionar os reféns reais, e Praximus estava muito ocupado lidando com o exército rebelde. Os outros estavam reunidos no salão principal do chalé de caça, uma sala com uma lareira monstruosa (que naquele momento abrigava apenas uma fogueira pequena) e móveis grotescos feitos de ossos das presas dos caçadores imperiais. As paredes eram cobertas de troféus empoeirados de cabeças de animais e pássaros formidáveis, e escudos de couro rachados e armas primitivas.
Reunindo os membros da Guilda num grupo informal diante da lareira, Orogastus reviu com cada um o seu papel no ataque, falando por último com a arquiduquesa Naelore.
— O navio que vem trazendo o armamento mágico chegará ao porto de Brandoba amanhã bem tarde — disse ele. — Será que podemos contar que nenhum fiscal intrometido irá abordá-lo?
A Mulher da Estrela deu uma risada cínica.
— Os gerentes do cais e os agentes da alfândega terão todos ido para casa para se preparar para o festival dos pássaros, abandonando seus postos. Embora as festividades não comecem de fato até a queima de fogos à meia-noite, a cidade inteira começa a se aprontar logo que o sol se põe. Não tenha medo, Mestre. Meu fiel amigo Dasinzin vai desembarcar sua carga sem ser importunado.
— A única coisa que eu temo — disse ele com frieza — é que a incompetência que impera entre seus legalistas pode nos custar o elemento surpresa.
Ela ficou imediatamente contrita.
— Perdoe-me se faltei ao respeito. Tudo dará certo... eu juro! Os senhores que patrocinam a minha empreitada de destronar o usurpador são rudes, mas não são burros. Sabem muito bem que a única chance que têm de me pôr sentada naquele trono depende de sua magia. Eles morreriam por mim, mas preferem viver e recuperar o poder que perderam.
— E os nossos disfarces? A minha Estrela ainda não deu nem sinal do seu pessoal transportando qualquer coisa para o lugar combinado na floresta.
— As carroças sairão da cidade discretamente amanhã no final da tarde, quando os foliões começarem a chegar da periferia da cidade para a festa. Teremos os nossos disfarces com tempo de sobra... inteiramente pretos, como você ordenou. E as forças legalistas estarão usando roupas vermelhas para podermos identificálas com facilidade.
O feiticeiro balançou a cabeça em sinal de aprovação. Sem mais perguntas, ele disse para os membros da Guilda ali reunidos:
— Só falta eu me comunicar com nossos colegas no Castelo Incendiado, para avisá-los que tudo está correndo bem. Agora vocês podem se preparar para partir.
Os feiticeiros se dispersaram e a única que ficou foi Naelore, calada ao lado de Orogastus, enquanto ele usava sua Estrela para falar com os dois jovens Homens da Estrela que haviam ficado para trás, para tomar conta dos reféns. Inesperadamente a comunicação com eles provou ser impossível. O feiticeiro então usou sua magia para ver e ouvir as pessoas comuns dentro do castelo e quase na mesma hora ele descobriu que os prisioneiros tinham escapado e que os perseguidores tiveram um destino horrível.
— Poderes Ocultos, misericórdia! — sussurrou ele, chocado e horrorizado.
Naelore se aproximou dele.
— Mestre, o que houve?
— Aconteceu um desastre terrível! — Falando bem baixo, explicou para ela o que ocorrera. — Isso significa que teremos de adiar... ou até abandonar... nossa campanha.
— Certamente que não! Você pretendia usar os reféns só depois da conquista de Sobrania. Podemos muito bem recapturá-los a tempo.
— Mas eu também contava que a rainha Anigel seria uma peça-chave da barganha para recuperar o Monstro de Três Cabeças do príncipe Tolivar. Sem esse talismã, toda a minha estratégia pode ir por água abaixo.
A arquiduquesa ia dizer mais alguma coisa, mas ele fez um gesto para ela se calar e pegou sua Estrela de novo para procurar os fugitivos.
— Lá estão eles — resmungou —, viajando pela trilha não muito longe do Grande Viaduto. Não consigo ver Anigel mas ela deve estar lá, protegida pelo seu trílio-âmbar — praguejou baixinho. — Estão a pelo menos seis horas de viagem do chalé! Se eu mandar uma tropa de homens da Guilda para recapturá-los, o exército ficará sem as lideranças cruciais na hora da invasão... mas eu nunca poderia confiar essa tarefa a guerreiros comuns. A lealdade deles à Estrela não é inabalável e os governantes reféns certamente ofereceriam algum suborno irresistível — ele esfregou as mãos com suas luvas prateadas num gesto de raiva e impotência. — Não há alternativa. Teremos de adiar a invasão até podermos recuperar os fugitivos. Significa um atraso de pelo menos um dia, e a perda da vantagem de atacar durante a inauguração imperial, quando o imperador estará mais vulnerável.
Ele pegou seu elmo e saiu atrás dos Homens da Estrela que já tinham saído do chalé.
— Mestre, espere! — chamou Naelore animada, em voz baixa. — Tive uma idéia de como podemos salvar a situação.
— O quê? — Ele deu meia-volta.
— O esquema é de desespero — admitiu ela —, mas acho que vale a pena tentar.
Então ela explicou sua idéia.
No início Orogastus ficou desconfiado, mas depois percebeu que não tinham outra alternativa.
— Muito bem — disse ele finalmente. — Se você está disposta a arriscar o seu trono nessa tirada lunática, não vou impedi-la. Mas lembre-se de que o exército terá de sair do local combinado uma hora depois do pôr-do-sol amanhã, para estar posicionado antes da queima de fogos começar.
— Meu velho camarada Tazor e eu podemos fazer isso — disse ela, com os olhos brilhando. — Trarei a rainha Anigel para você e ele tratará de se certificar de que os outros reféns ficarão seguros aqui no chalé até depois da queda de Brandoba.
O feiticeiro sorriu para a Mulher da Estrela.
— Estou entendendo melhor por que o seu povo a considera preparada para ser imperadora — ele segurou a mão dela. — Que os Poderes Ocultos a ajudem.
— E a você também — disse ela, abaixando a cabeça para ele não ver a emoção que dominava suas feições.
Então Naelore pôs seu elmo com raios e saiu apressada para encontrar Tazor.
A arquiduquesa Naelore analisou os dois grandes pássaros que não voavam, amarrados com correias no pescoço a árvores do lado de fora do chalé de caça imperial, e franziu a testa para esconder o medo que crescia dentro dela.
— Meu amigo, se essa missão não fosse tão crucial para a nossa sorte, nada me faria encostar nesses seus horrendos animais selvagens.
Os carnívoros emplumados tinham duas varas de altura até o ombro e a plumagem deles faiscava como aço azulado à luz do sol. Os pássaros estavam temporariamente paralisados por encantamento, enquanto Tazor trabalhava neles, mas seus ferozes olhos vermelhos olhavam furiosos para os dois feiticeiros, prova de que apesar dos corpos dos nyares poderem estar sob o efeito da magia, seus espíritos não estavam.
— Enquanto estivermos usando nossas Estrelas e dermos as ordens para as criaturas com toda a confiança — disse Tazor —, elas nos obedecerão e não farão mal nem a nós nem a qualquer presa humana que estivermos perseguindo.
Ele punha os arreios nos pássaros e Naelore observava, sentindo repulsa e fascínio ao mesmo tempo. Orogastus e os outros membros da Guilda tinham partido atrás do exército uma hora antes. Tazor tinha levado esse tempo todo para chamar os nyares nas profundezas da floresta, mesmo com a ajuda da sua Estrela.
— Você tem certeza absoluta de que os monstros não vão se virar contra nós? — disse Naelore.
— Não, Alteza imperial. Ainda há um certo risco. Mas um risco que vale a pena correr, como eu disse para o Mestre da Estrela.
Ele passou o bridão com todo o cuidado por cima do bico cheio de dentes.
— Nyares! Só um louco como você teria esses predadores horríveis de animais de estimação, que dirá treiná-los para servirem de montaria. O que deu em você para inventar um projeto tão bizarro?
— Considerei essa tarefa um desafio que dediquei à minha Estrela — admitiu ele, dando um tapinha no pescoço de um pássaro. Era grosso como as toras que serviam de esteio das paredes da casa. — Esse casal freqüentava a vizinhança da cabana porque muitas vezes dei comida para eles. Quando a ferocidade deles diminuiu, tive a idéia de domesticá-los e confesso que me surpreendi quando a feitiçaria acabou funcionando e deixou os nyares dóceis. Foi uma maneira de passar o tempo enquanto eu descansava nesse fim de mundo seis luas atrás, privado da glória de sua presença imperial enquanto assumia meu posto de guardião dos suprimentos do castelo.
— Sei... — disse Naelore, se desfazendo dos elogios.
Mas ela sorriu para ele, pois eram verdadeiramente velhos amigos. Antes da chegada de Orogastus ter mudado suas vidas para sempre, Tazor era o encarregado da casa de campo da arquiduquesa, que ficava na periferia de Brandoba. Agora ambos eram membros da Guilda e teoricamente iguais. Mas os dois sabiam que não era bem assim.
— Se os Poderes Ocultos sorrirem para nós — disse Tazor —, os pássaros serão úteis para desfazer os danos provocados por aqueles idiotas negligentes no castelo. Os nyares são rápidos como as monções do inverno. Nem mesmo um fronial de corrida se compara a eles. Devemos alcançar os reféns em três horas.
— Se eu perder a batalha de Brandoba por causa dessa missão — disse Naelore —, vou fritar o fígado do refém que arquitetou essa fuga!
— Acho que nós dois sabemos quem deve ter sido. A única que o Mestre nunca conseguiu visualizar com a sua mágica porque se protege com o trílio-âmbar.
— Maldita rainha-bruxa! Eu sabia que devíamos ter tirado o pingente dela de alguma maneira... ou então mantê-la inconsciente até não ser mais necessária e podermos matá-la. Mas Orogastus não quis me ouvir. Agora só podemos imaginar que Anigel está acompanhando os outros reféns.
— Para onde mais ela iria? Vamos encontrá-la, Alteza imperial. Não se preocupe. Não vai perder a batalha nem deixará de comemorar sua vitória sobre Denombo.
— Ah, que longo caminho nós percorremos nesses dois breves anos, meu amigo! Quem iria imaginar, quando você abriu a porta da minha casa de campo para alguém que batia à meia-noite, que receberia um feiticeiro? E um feiticeiro que podia transformar nosso pequeno bando desorganizado de marginais políticos num grupo capaz de derrubar um império.
— Eu soube que Orogastus era um homem perigoso assim que pus os olhos nele — disse Tazor secamente. — E você também.
— Esse foi o principal motivo que me fez confiar nele.
— E também foi por isso que você se apaixonou por ele?
— Bastardo insolente — disse ela, dando uma risada novamente.
Mas os olhos de Naelore tinham perdido o brilho do bom humor, por isso Tazor não disse mais nada e tratou de afivelar rapidamente a sela do segundo pássaro.
Tazor tinha um belo físico, era mais alto do que a majestosa arquiduquesa e bastante forte. Tinha olhos inteligentes e nariz largo. Como tantos outros membros da Guilda da Estrela, com a notável exceção da própria Naelore com suas tranças cor de fogo, o cabelo dele havia ficado branco precocemente graças aos rigores da iniciação na magia dos Poderes Ocultos.
— Tazor — disse ela com um tom de voz estranhamente hesitante —, você acha mesmo que Orogastus vai cumprir as promessas que fez para mim?
— Acredito que ele vai fazê-la imperadora de Sobrania — disse o ex-administrador. — Não me entusiasmo tanto com seus planos grandiosos de conquistar o mundo por meio de feitiçaria e de tê-la como assistente. A Estrela é algo deslumbrante, mas o mundo é muito grande... e os acontecimentos recentes nos fizeram lembrar que existem outros magos além de Orogastus e da nossa Guilda da Estrela.
— Admito que fiquei profundamente preocupada quando o Mestre nos disse que o jovem príncipe havia dado um dos talismãs para a bruxa-do-pântano Kadiya. Mas Orogastus foi inteligente ao permitir que o menino e a tia passassem pelo viaduto e chegassem até Sobrania, reunindo as duas peças do Cetro num mesmo lugar, tornando mais fácil a recuperação deles.
— Fácil? — Tazor balançou a cabeça. — Acho que será tão fácil quanto destronar Denombo.
— Espere só até ele ficar ao alcance de um corte de espada!... De qualquer forma, podemos acelerar as duas coisas recapturando a rainha Anigel e os outros. Vamos indo.
Eles montaram nos pássaros sem asas que estavam imóveis como estátuas no pátio da cabana. Naelore pegou seu medalhão da Estrela e encostou no pescoço da sua montaria emplumada. O bico cheio de dentes do nyar se abriu e ele deu um rugido tremendo. Ela deu uma ordem e ele partiu como um cometa descendo pela trilha que ia dar no Grande Viaduto, deixando seu camarada tossindo numa nuvem de poeira.
Praguejando, Tazor foi atrás dela.
Foi graças a muita sorte que o príncipe eterno Widd conseguiu segurar a princesa eterna quando ela começou a escorregar da sela na travessia do rio lamacento.
— Socorro! — gritou ele desesperadamente. — Há algo de errado com Raviya!
O presidente Hakit Botai fez seu fronial dar meia-volta, entrou novamente na água e segurou a princesa idosa com o braço esquerdo. Ela estava inerte como um monte de trapos. Estava inconsciente e com o rosto cinzento. Junto com o príncipe Widd, o presidente levou a mulher até a outra margem do rio, onde os outros, exceto Gyorgibo, desmontaram imediatamente e se aproximaram dela. A rainha Anigel e a rainha Jiri de Galanar puseram a princesa deitada no chão.
— Trindade, tenha piedade dela! — Widd começou a chorar. — Ó, minha pobre Raviya. O esforço da fuga deve ter sido demais para ela.
— Ela está respirando — disse Jiri depois de afrouxar o corpete de Raviya —, e os batimentos cardíacos parecem regulares. Sem dúvida ela está apenas exausta e preocupada.
O duúnviro Ga-Bondies bufou.
— Todos nós estamos! É loucura continuar. Nossos froniais ainda estão desgastados com o excesso de esforço e por terem inalado os vapores venenosos ontem. Eles certamente ficarão esfalfados se não puderem descansar... e eu também. Cada osso do meu corpo está berrando de dor e estou morrendo de fome.
— Então morra em silêncio — disse friamente o rei dos piratas.
O corpulento monarca corcunda tirou sua capa e cobriu a princesa Raviya. As pálpebras dela estremeceram e ela gemeu. O príncipe Widd deu um suspiro.
— Se ao menos ela pudesse comer alguma coisa e dormir tranqüilamente...
Eles haviam consumido a pequena quantidade de comida e bebida que haviam conseguido levar dos estábulos do castelo na noite anterior, quando pararam para um descanso precário, apavorados com os ruídos assustadores feitos pelas criaturas da floresta de Lirda em volta deles. Desde a véspera, eles só tinham água e algumas frutinhas silvestres insípidas que Gyorgibo tinha garantido que eram comestíveis.
Seria perigoso parar para descansar agora — disse o arquiduque. — Há um risco pequeno dos animais e pássaros ferozes atacarem durante o dia, mas se os Homens da Estrela já descobriram que escapamos, eles podem vir atrás de nós.
— Estou quase desejando que eles venham — rosnou GaBondies.
Estamos avançando sempre para o oeste, para fora das terras altas — continuou Gyorgibo. — Sem dúvida, daqui a pouco, vamos encontrar alguns pontos de referência que eu conheço e poderemos abandonar essa trilha. Há atalhos para Brandoba que podem ser usados para enganar nossos perseguidores.
Não se Orogastus usar magia para nos caçar — observou Prigo.
— Se os Homens da Estrela vierem — disse Hakit Botai resignado e irritado —, não teremos como nos defender deles. Mas suspeito que o feiticeiro e seu exército devem estar ocupados com outras coisas. Eles já podem estar na capital, atacando o palácio de Denombo.
Por que temos de continuar nesse ritmo infernal? — Prigo quis saber. — Vai ser impossível chegar a tempo de avisar o imperador. Temos de pensar nas nossas necessidades... e nas necessidades dos nossos respectivos países, mergulhados em confusão por causa do nosso seqüestro. O que importa ter escapado do feiticeiro, se teremos uma morte miserável nessa selva imensa?
Na noite anterior, depois de atravessar a bacia de gêiseres flamejantes eles tinham cavalgado mais duas horas antes de chegar ao lugar em que ficava o Grande Viaduto, claramente identificável por causa da aparência peculiar do solo pisoteado em volta dele. Anigel pronunciou o encantamento e eles passaram pelo portal negro sem problemas. Tiveram uma noite intranqüila na clareira ao lado da saída do viaduto e prosseguiram viagem lentamente à primeira luz do dia.
Era fácil seguir a trilha larga... fácil demais. O arquiduque e o rei Ledavardis, os melhores cavaleiros do grupo, haviam se revezado indo mais à frente para fazer o reconhecimento do terreno e garantir que não ultrapassassem sem querer o exército de Orogastus. Os outros os seguiam com dificuldade, embalados pelo canto dos incontáveis pássaros. De vez em quando, despertavam do seu estupor com o grito de algum animal invisível, mas o resto do tempo cochilavam na sela, até Raviya desmaiar.
A princesa eterna se levantou e falou com a voz fraca.
— Eu estou bem. Ponham-me de volta no meu fronial. Posso continuar cavalgando.
— Não, querida — disse Anigel enfaticamente. — Não pode. Prigo tem razão. Já estamos bem longe e precisamos descansar.
— Se essa floresta é uma reserva imperial — disse Ledavardis —, deve ter algum tipo de abrigo. O que me diz, Gyor?
O arquiduque de Sobrania levantou a mão num gesto de desânimo.
— De fato há uma grande cabana perto do rio Dob, e outros abrigos e cabanas de caça bem confortáveis, além de inúmeros acampamentos permanentes. Infelizmente nada me parece familiar ao longo desta trilha. Os Homens da Estrela devem tê-la aberto para servir ao trânsito do Grande Viaduto. Esse rio, que pode ser o Dob do norte, mas tem as águas tão carregadas de lama branca que tenho minhas dúvidas. O Dob flui cristalino desde as montanhas Collum e é a fonte principal de abastecimento de Brandoba. Nunca fica barrento, nem mesmo com as piores tempestades.
— Talvez — disse Anigel — o meu trílio-âmbar possa indicar o caminho para nós. — Ela segurou o pingente e encarou-o com olhos fatigados. — Flor Sagrada, em que direção encontraremos um refúgio seguro?
O âmbar continuou a brilhar, mas não apresentou nenhuma fagulha de direção.
— Não está funcionando. Talvez a minha vida não esteja correndo um perigo tão grande.
— Ou então talvez não haja lugar seguro para nós por aqui — disse Jiri em voz baixa. — Pergunte ao seu amuleto se devemos parar ou continuar.
Anigel fez isso e deu um grito de tristeza quando o amuleto produziu um clarão ofuscante e logo em seguida apagou.
— Há alguma coisa errada...
Em volta deles, o canto dos pássaros da floresta se transformou numa algazarra dissonante. Gyorgibo, o único que continuava montado, ficou de pé nos estribos com uma espada enferrujada em riste, espiando aflito a trilha que ladeava o rio. Mas o ataque, quando aconteceu, chegou de outra direção. Uma nuvem de inúmeras criaturas emplumadas minúsculas, azuis, verdes e amarelas, explodiu da mata fechada e começou a rodopiar freneticamente sobre as cabeças dos governantes atônitos, batendo no rosto deles e fustigando seus corpos com asas que zumbiam. Raviya deu um grito agudo e alguns homens praguejaram. Os froniais apavorados empinaram e deram patadas no ar. Então os que estavam sem cavaleiros fugiram pelo rio, enquanto Gyorgibo usava toda a sua força para não ser derrubado. Todos tentavam proteger a pele exposta dos bicos afiados, puxando as capas por cima da cabeça e abanando os braços numa tentativa vã de espantar os pequenos pássaros.
— Chega! — ordenou uma voz estentórea.
A tempestade de passarinhos desapareceu com a mesma rapidez com que tinha surgido.
Anigel espiou por baixo de sua capa e viu duas aparições horrendas perto deles na trilha. Eram pássaros enormes de pescoço comprido, com pernas muito fortes cobertas de escamas, maiores do que os voors que já tinha visto. Seus corpos eram azul-escuros, estavam com os bicos bem abertos e seus olhos faiscavam como brasas. Montados neles, Anigel viu feiticeiros com as vestes prateadas e negras da Guilda da Estrela, armaduras de aço e elmos imponentes com diademas estrelados.
Um dos cavaleiros se adiantou e tirou de uma bainha uma arma dos Desaparecidos.
— Gyorgibo de Nambit! Desmonte e entregue-se a mim! Anigel reconheceu a voz, e também o cabelo ruivo que saía de baixo do elmo da feiticeira. Era Naelore.
As feições sérias do arquiduque se contorceram de ódio. Em vez de render-se à Mulher da Estrela, ele esporeou seu fronial e investiu contra ela num galope, com a espada em posição de ataque. Ela ergueu sua arma, fez-se um súbito clarão dourado e soou um trinado peculiar. O fronial de Gyorgibo berrou e caiu na trilha, com as pernas abertas e a galhada quebrada, gemendo de dor. Gyorgibo foi içado da sela, girou de cabeça para baixo no ar e caiu inconsciente na base de uma enorme árvore-ninho.
— Alguém mais se habilita a lutar? — Tazor conduziu seu nyar para perto de Naelore e apontou sua arma estranha para o fronial ferido. A arma projetou um raio vermelho que atingiu o animal entre os olhos e matou-o na mesma hora.
— Nós nos rendemos! — gritou o presidente Hakit Botai, erguendo as mãos. — Poupem-nos!
Ga-Bondies caiu de joelhos, choramingando, também com as mãos para cima. Prigo ficou parado de olhos arregalados, ainda meio coberto pela capa. O príncipe Widd, o rei Ledavardis e a rainha Jiri, que haviam tentado proteger a princesa eterna do ataque dos passarinhos histéricos, se ajoelharam ao lado de Raviya e olharam furiosos para os feiticeiros. Anigel ignorou os nyares e seus formidáveis cavaleiros, foi até onde estava Gyorgibo e curvou-se sobre ele, preocupada.
— Deixe-o! — ordenou Naelore.
Ela saltou de cima do pássaro, fez com que ele ficasse imóvel, e caminhou com passos largos até a rainha.
— O seu irmão bateu a cabeça — disse Anigel calmamente —, mas parece que ele está voltando a si. Deixe-me...
— Silêncio! Venha aqui.
Anigel levantou-se com dignidade e se aproximou da Mulher da Estrela que apontava a antiga arma para ela.
— Aí está bom — ordenou Naelore. — Tire seu amuleto de âmbar e ponha no chão entre nós duas.
— Não — disse Anigel. — Você pode me matar aqui mesmo, mas não vou tirar meu Trílio Negro.
— Então prepare-se para morrer, sua vadia burra!
— Alteza imperial! — Tazor desmontou e chegou perto das duas. O nyar dele também ficou imóvel no lugar. — Tenho uma sugestão...
— Fale — disse a feiticeira.
— Nós temos dois duúnviros de Imlit em nosso poder, mas apenas precisamos de um refém para garantir a sujeição do país — Tazor suspendeu sua arma e segurou Ga-Bondies pela gola da camisa. — Talvez se eu cortasse um braço do mais velho...
— Não! — berrou o duúnviro amedrontado. — Tenha piedade!
— ...a rainha Anigel reconsiderasse sua desobediência.
— Faça isso — disse Naelore.
Ga-Bondies caiu num pranto histérico. No mesmo instante, Anigel tirou o âmbar na corrente do seu pescoço e o colocou na lama da margem do rio. A Mulher da Estrela deu um sorriso venenoso de satisfação. Ela apontou sua arma para o âmbar, e apareceu um raio de luz amarela. Mas o amuleto continuou intacto.
Naelore vociferou uma praga frustrada.
— Tazor! Veja se consegue destruir essa coisa.
O raio vermelho mortal da arma de Tazor não foi mais eficiente do que o raio dourado.
— Alteza, a mágica do Trílio Negro torna o amuleto invulnerável. Mas eu tenho outra idéia.
Ele pegou a velha espada que Gyorgibo tinha deixado cair e usou-a para pegar o amuleto pela corrente. A espada ficou quente na mesma hora, mas ele conseguiu lançar o amuleto no meio da selva. Tazor deixou cair a espada fumegante e deu um sorriso largo.
— Os animais ficarão confusos com o amuleto mágico nas noites escuras — disse ele.
Naelore jogou a cabeça para trás e deu uma risada. Agarrou com força Anigel pelo ombro e empurrou-a para um dos nyares.
— Tazor, ajude-a a subir no meu pássaro. Ela vai na garupa e eu sigo o mais depressa possível para o local de encontro enquanto você cuida dessas mercadorias.
— O maldito feiticeiro vai matar todos nós! — gemeu GaBondies.
Naelore olhou com desprezo para o robusto duúnviro.
— Temos outros planos para você, moleirão. A única que o Mestre da Estrela precisa é dessa rainha-bruxa, para garantir que o filho dela entregue o talismã.
Anigel ficou tensa nos braços do ex-guardião. Sentiu o ar preso na garganta.
— Meu filho? De que filho vocês estão falando?
— Do seu filho Tolivar, é claro — disse a arquiduquesa. — Aquele que usa o Monstro de Três Cabeças. Ele tinha a caixa-estrela e o segundo talismã também... o Olho Ardente... mas a sua irmã Kadiya forçou-o a devolver as duas coisas para ela.
— Tolo... meu talismã... Isso é impossível! O menino está em Var, a milhares de léguas daqui, e Kadi também. E Tolo não está com a tiara.
Naelore deu outra risada.
— Que mãe conhece de verdade o próprio filho? Ele a possui e a está usando há pelo menos quatro anos, sem que ninguém saiba, exceto o Mestre da Estrela, que conversa com o menino em sonhos. Agora o seu precioso filho, a tia dele e seus ajudantes que sobreviveram estão aqui em Sobrania, como você. Duvido que você os encontre logo, para tristeza de todos.
Tazor levantou a rainha que havia ficado fraca com o choque. Ele a pôs na parte de trás da sela da arquiduquesa. Então amarrou as mãos de Anigel e embrulhou-a bem com uma capa.
— Vou cuidar dos outros e depois a alcanço, Alteza imperial — disse ele para Naelore. — Mas não deixe que o Mestre atrase a invasão por minha causa.
Naelore fez que sim com a cabeça e montou no pássaro. Ergueu a mão com a luva prateada da armadura, deu adeus para Tazor, e seu nyar partiu rapidamente.
— Você vai nos levar de volta para o Castelo Incendiado? — perguntou Ledavardis de Rakum para o Homem da Estrela.
Ledavardis e a rainha Jiri estavam de pé, e o velho Widd ajoelhado e abraçado a Raviya, ambos muito pálidos, mas com o semblante sereno.
— Não — disse Tazor, dando uma espiada em Gyorgibo, que tinha começado a gemer e a se mexer com os chutes do membro da Guilda —, vou trancar vocês todos na cabana de caça imperial, onde o nosso exército passou a noite. Fica a cerca de oitenta léguas daqui descendo o rio, umas seis ou sete horas de fronial. Os habitantes ferozes da Lirda vão mantê-los lá alguns dias, até o fim de nossa missão em Brandoba, quando viremos pegá-los. Ele virou para Hakit Botai.
Senhor presidente, o senhor e o seu reizinho duende vão atravessar o rio e pegar seus froniais. Apressem-se, senão arrancarei com o fogo do meu maçarico as orelhas de uma dessas senhoras.
Ele apoiou a arma no ombro e virou para o duúnviro Prigo.
- Você! Pegue aquela velha espada e corte duas varas compridas de cipó bem forte. Teremos de fazer uma liteira para arrastar a princesa Raviya — e para Ga-Bondies. — Tire os arreios e a manta daquele fronial morto, depois desafivele os pedaços de couro e transforme em tiras separadas.
Enquanto os reféns homens fisicamente capazes cuidavam de suas tarefas, Tazor se aproximou de Jiri, Raviya e Widd que estavam murmurando alguma coisa entre eles.
— Como vai a velha dama? — perguntou sem maldade.
— O maior problema da princesa é a exaustão — disse a rainha de Galanar. — A liteira é uma idéia excelente. Vai fazer uma para o pobre arquiduque também?
O Homem da Estrela deu uma risadinha sádica.
— Ele pode viajar amarrado e jogado sobre a minha sela, como um nunchick morto. Não importa. Diferente do resto de vocês, ele não sobreviverá muito tempo depois da subida da irmã dele ao trono.
— Será que você tem um pouco de vinho para dar para a princesa Raviya? — disse Jiri procurando ser muito gentil com ele. — Daria força para ela.
— Pegue a garrafa no meu alforje. Jiri olhou de lado para o alto nyar.
— Minha nossa! Eu não ousaria me aproximar daquele pássaro terrível...
— Eu o enfeiticei com a minha Estrela. Ele não vai se mexer nem machucá-la, a não ser que eu dê uma ordem.
Jiri foi até a grande criatura e começou a remexer em um dos alforjes que estava tão alto que quase ficava acima da cabeça dela.
— Talvez a garrafa esteja do outro lado — disse ela, dando a volta ao redor do pássaro e ficando fora da vista de Tazor. Um minuto depois, Jiri disse: — Ainda não encontrei.
Resmungando, o Homem da Estrela foi ajudá-la. A rainha gorducha e de meia-idade se afastou um pouco, sorrindo para tentar se desculpar, com as duas mãos escondidas nas mangas largas do vestido. Com a arma em uma das mãos, Tazor virou de costas para ela e vasculhou a bolsa de couro com franja de penas com a outra.
Jiri chegou perto dele. O espaço entre a borda inferior do elmo estrelado do feiticeiro e a parte de cima da armadura dele era estreito, tinha apenas uns dois dedos de largura. A rainha tirou um mangual de guerra da manga, girou a corrente em cima da cabeça e lançou a pesada espadela de ferro da ponta da corrente bem na abertura da armadura. A arma produziu um estalo horrível. De pescoço quebrado, Tazor caiu sem emitir um único som.
O nyar subitamente voltou à vida, rugindo, e deu um pulo para trás. Raspou uma pata com garras na lama ameaçador, abaixou a cabeça e se aprontou para pular em cima da rainha.
Dos arbustos saiu uma figura se arrastando sobre as mãos e os joelhos. Era o arquiduque Gyorgibo, que pegou a arma dos Desaparecidos que Tazor deixara cair e disparou diretamente no bico escancarado do monstro que ameaçava Jiri. A cabeça do nyar desapareceu numa explosão de fogo vermelho e o corpo colossal despencou no chão.
— Pelos tentáculos de Heldo! — gritou o rei Ledavardis. Hakit Botai e ele estavam na outra margem do pequeno rio, assombrados com o que a rainha e Gyorgibo haviam feito.
— Sinto muito por Tazor — disse Jiri. — Ele não era nem de longe um depravado tão empedernido quanto Naelore.
Uma lágrima brilhou no olho dela, e o arquiduque pôs o braço no seu ombro para confortá-la.
Os dois duúnviros se aproximaram e ficaram boquiabertos olhando para o Homem da Estrela morto e para o carnívoro decapitado.
— Minha sogra — disse Prigo todo trémulo —, estou pasmo. Saúdo a sua bravura de guerreira.
— Que diabos você usou para abatê-lo? — perguntou GaBondies.
— Um velho mangual de guerra que peguei no calabouço do castelo — ela se soltou do abraço de Gyorgibo. — Preciso ver Raviya. Toda essa violência deve ter sido um grande choque para ela.
Mas a princesa eterna estava sentada, calmamente ajeitando seu cabelo branco despenteado, e Widd estava de cócoras ao lado dela.
— Imagino que você não encontrou aquele vinho — disse Raviya para Jiri.
A rainha sorriu.
— Estava no primeiro alforje que examinei. Felizmente o nyar não caiu em cima da garrafa. Há comida também.
— Podemos dividir por nós todos — declarou Raviya — e depois precisamos ir andando. Ficarei boa assim que puser alguma coisa no estômago — ela inclinou a cabeça para o marido. — O que você está esperando, meu velho? Vá buscar os suprimentos daquele vilão morto e arrume-os para nós.
O rei Ledavardis, que havia atravessado o rio e se juntado ao grupo, levou a rainha Jiri para um canto.
— Você acha que Raviya está realmente bem para viajar? Jiri pensou um pouco.
— Ela se sente melhor agora, mas isso pode não durar muito. Seria melhor carregá-la numa liteira. Seguindo o rastro distinto dos nyares devemos chegar à cabana imperial de caça para onde o Homem da Estrela pretendia nos levar. Lá certamente encontraremos comida e camas decentes, se estava preparada para ser nossa prisão.
— Podemos descobrir que a cabana está cheia de capangas de Orogastus.
— Então teremos de simplesmente dominá-los — disse Jiri suavemente.
O rei dos piratas piscou para ela com seu olho sadio.
— Certo! Acho que não temos de nos preocupar com a volta de Naelore por algum tempo, pois ela terá de vigiar a rainha Anigel, e o feiticeiro estará instigando um alvoroço na capital de Sobrania.
— Anigel... — as feições da bondosa rainha manifestaram pesar. — Pobrezinha. Temo que teremos de deixar seu destino nas mãos dos Senhores do Ar.
— Talvez eu possa fazer alguma coisa — a cara feia do rei Ledavardis se iluminou quando teve a idéia. — Se vocês cuidarem dos nossos preparativos aqui, vou tentar achar o amuleto perdido. Duvido que ele faça algum mal a um amigo e futuro genro de sua nobre senhora. Quem sabe? O Trílio Negro pode fazer o favor de ajudar um certo pirata que parte para salvar a rainha Anigel.
— Você iria atrás dela? — Jiri arregalou os olhos.
— A espada e a milagrosa arma antiga do Homem da Estrela morto ajudariam a equiparar as chances entre mim e os captores da rainha.
— Ledo, você é um jovem muito corajoso — disse Jiri. O rei beijou a mão dela.
— Partindo de você, esse é o maior cumprimento de todos.
Apesar da intensa fadiga, o príncipe Tolivar se agitava inquieto na cabana de Critch, o cadoon, deitado numa cama de felpa macia. Eles tinham ido dormir de dia, mas o andar superior da casa era escuro e frio, com apenas duas janelas de treliça muito pequenas, uma de cada lado sob os caibros do teto de sapé. Das vigas aparentes pendiam inúmeros sacos de barbante, cada um com penas de cores diferentes. O ronco dos quatro Companheiros Juramentados que dormiam num outro canto do segundo andar se misturava com o marulho das ondas na praia de seixos lá fora, e com os miados e guinchos dos griss e pothi e de outros pássaros marinhos.
Kadiya e Jagun haviam dito que iam descansar no térreo, mas Tolivar ouviu os dois conversando um longo tempo com o aborígine e a família dele. A promessa que o príncipe tinha feito para a tia o impedia de usar a tiara para bisbilhotar — não que ele realmente se importasse com o tipo de mercadoria que a Dama dos Olhos estava comprando para a sua incursão a Brandoba no dia seguinte. Kadiya havia deixado bem claro que ele teria de permanecer no barco com Jagun e Critch, enquanto ela e os cavaleiros iam até a cidade para avisar o imperador de que os Homens da Estrela estavam planejando algum tipo de trapaça e para pedir a ajuda dele para salvar a rainha Anigel e os outros reféns.
Tolivar tinha tirado a tiara da cabeça e enfiado dentro da camisa, onde ficaria segura. Tinha ordenado que ela o acordasse imediatamente se alguém chegasse perto dele. Ali deitado cochilando, ele segurava o talismã por cima do tecido.
Você é meu, ele disse diversas vezes.
E o Monstro de Três Cabeças sempre respondia: Sim.
Apesar de desejar a volta da mãe em segurança de todo o coração, o fato de saber que os adultos iam obrigá-lo a dar a tiara para ela révirava suas entranhas.
Era tão injusto!
A rainha havia entregado seu talismã para Orogastus, sob pressão, é verdade, mas mesmo assim, voluntariamente, e Tolivar, por sua vez, o roubara do capanga do feiticeiro. A reivindicação da mãe à posse do Monstro de Três Cabeças era mais válida do que a de Orogastus? Mesmo quando a tiara era dela, ela apenas a mantinha escondida e quase nunca utilizava seu poder mágico para se comunicar a distância com as duas irmãs.
O talismã é meu, Tolivar pensou, é meu por direito, não importa o que os outros digam ou pensem.
Mas só por mais algum tempo.
Quem...? Não é o meu talismã que está falando!
Não. Eu sou o Mestre da Estrela. O seu mestre, Tolo.
Não! Nunca! Afaste-se dos meus sonhos!
Você não está sonhando. E já expliquei claramente que não seria capaz de me comunicar assim com você se você não quisesse.
Isso é mentira...
É verdade, e você sabe muito bem disso. Você ainda me admira e deseja partilhar os meus poderes como meu filho adotivo e herdeiro. É ignóbil tentar negar isso... assim como é ignóbil da sua parte negar que você provocou a morte do nyssomu Ralabun.
Ralabun! Meu pobre amigo. Eu não queria que ele morresse. Foi um acidente, embora a tia Kadiya diga que...
Responsabilidade não é necessariamente culpa. Ouça-me, Tolo. Se você não tivesse ordenado que Ralabun o acompanhasse pela trilha do rio Oda, ele ainda estaria vivo. Aceite esse fardo, como é dever de todo comandante! Mas não se torture com sentimentos de culpa. A cruel Dama dos Olhos quer controlá-lo, convencendo-o de que é moralmente culpado pela morte de seu amigo. Mas você não é.
... Não mesmo?
Você acha que Ralabun teria ficado para trás enquanto você partia numa jornada perigosa sozinho?
Não. Mesmo se eu não tivesse mandado ele teria ido comigo.
E você sabia que havia um namp à espreita quando mandou Ralabun sair da trilha?
É claro que não!
Portanto ele morreu por simples falta de sorte, e não por qualquer falha ou negligência sua. Você está entendendo?
Estou. Eu... eu agradeço essa sua explicação, Orogastus.
Tolo, nós estivemos separados muitos anos e grande parte da culpa é minha. Mas agora é hora de consertar esse nosso afastamento. Afaste-se dessas pessoas calculistas e negligentes que não sabem apreciar seu verdadeiro valor. Um dia você me amou como seu verdadeiro pai adotivo. Volte para mim agora e reassuma a sua posição ao meu lado. Os membros da Guilda e eu fomos impedidos de encontrá-lo na saída do viaduto por outros assuntos de importância vital. Mas posso encontrá-lo em qualquer lugar.
Não!
Amanhã você parte de navio para Brandoba com os outros. Eu também estarei lá na cidade. Use o seu talismã para enganar Kadiya e venha ao meu encontro, trazendo a caixa-estrela. Podemos nos encontrar no...
Não! Orogastus, você me enganou uma vez quando eu era uma criança tola e vingativa. Isso não vai acontecer de novo. Você só quer tirar meu talismã de mim.
Não posso tirá-lo de você e você sabe disso. O que eu quero que faça é devolver o talismã para mim livremente, assim como devolveu o Olho Ardente Trilobado que roubou de sua tia.
Aquilo foi... diferente.
Você não sabe usar a magia poderosa da tiara muito bem. É uma ferramenta para restaurar o equilíbrio do mundo, não para conjurações medíocres. Sei que você não conseguiu dominar o talismã... que simplesmente brincava com ele naquela cabana de palha secreta que tinha no Pântano Labirinto.
Eu entendo o talismã melhor do que você pensa!
Tolo, existe apenas uma maneira de você se tornar um feiticeiro competente: devolvendo a tiara para mim e fazendo parte da minha Guilda da Estrela. Venha comigo, meu querido menino. Vou perdoar a sua deslealdade e reafirmá-lo como meu filho adotivo e herdeiro. E quando eu morrer, o Monstro de Três Cabeças será seu mais uma vez, só que dessa vez você será o verdadeiro dono dele... e dono do mundo também.
Orogastus, você já me usou um dia como uma marionete. Nunca mais fará isso.
Lá no fundo do seu coração, Tolo, você ainda deseja ser meu filho.
Pode ser. Mas esse desejo não passa de uma fantasia infantil. É uma tentação escondida lá dentro de mim que só aparece quando durmo. Quando estou bem acordado e com o controle da minha vontade, eu o rejeito. Eu o rejeito agora!
Eu tinha a esperança de que você viesse para o meu lado por livre e espontânea vontade... mas que seja. Vou perguntar mais uma coisa. Você se importa se sua mãe, a rainha Anigel, viva ou morra?
É claro que me importo!
Então use a tiara para ter uma visão dela. O destino dela agora está inteiramente nas suas mãos, como o do pobre Ralabun nunca esteve.
O que você está dizendo?
A rainha é prisioneira de minha aliada, a arquiduquesa Naelore, uma mulher perigosa e implacável.
Isso não é verdade! Eu já tive uma visão da minha mãe. Ela está livre numa floresta em algum lugar ao norte de Brandoba, na companhia dos outros governantes que você seqüestrou.
A rainha Anigel realmente escapou do meu castelo com os outros, mas ela foi recapturada. Sua tiara vai mostrá-la para você, uma infeliz prisioneira sob o poder de Naelore. Desperte e ordene que o Monstro de Três Cabeças verifique o que estou dizendo.
Eu... eu dei minha palavra de honra para a tia Kadiya que não ia usar a mágica do talismã sem a permissão dela.
O quê? Pedir permissão? Você é um bebê chorão que tem de implorar a permissão da babá para mexer no armário... ou é o dono de uma parte do Cetro Tríplice de Poder? Você não deve lealdade nenhuma à sua tia. Ela se aproveitou de sua dor para arrancar essa promessa de você. Não tem valor nenhum. Use o talismã para confirmar que sua mãe é prisioneira. Faça isso agora!
Eu... acredito na sua palavra.
Menino bobo. Como você ousa brincar comigo?
E por que eu faria isso?
Talvez porque ainda alimente esperanças piegas de resgatar sua mãe sozinho! Tolo, já cansei de ficar ouvindo suas baboseiras infantis. A rainha Anigel e os três bebês que ela carrega no ventre vão morrer de uma forma horrível sob a espada de Naelore se você não vier para a capital sobraniana o mais rápido possível para me entregar o Monstro de Três Cabeças e a caixa-estrela.
Eu não acredito que você...
O palácio imperial fica no centro de Brandoba e em frente a ele há uma enorme praça, uma área aberta em que os cidadãos vão se reunir para celebrar o festival dos pássaros à meia-noite e para assistir à queima de fogos. Esteja lá, perto da fonte do Griss Dourado! Eu o encontrarei e entregarei sua mãe livre e saudável assim que você me der o talismã e a caixa.
A tiara é minha por direito!
E a vida da sua mãe me pertence... Não cometa nenhum erro, menino! Se me desobedecer, vai encontrá-la desviscerada ao lado da fonte.
Santa Flor... não!
E dessa vez a culpa pela morte dela será sua mesmo. Você sofrerá com isso enquanto viver.
Não, não, não...
Parecia que o príncipe estava vendo o rosto da mãe, com lágrimas escorrendo dos olhos. Ela não parava de chamar o nome dele, implorando para ele entregar a tiara para o feiticeiro, para que a sua vida e a vida dos bebês no seu ventre fossem poupadas. Mas Tolivar estava completamente atordoado, sem reação. Não podia responder. Por mais que se esforçasse, não conseguia pronunciar a palavra ”sim”, que libertaria sua mãe.
Não podia se desfazer do talismã.
Não! Nunca!
Ele acordou assustado, apoiou-se nos cotovelos e olhou histérico em volta do sótão das penas. Já era bem mais tarde naquele dia. Um raio do sol da tarde iluminava floquinhos dançantes de poeira. Os quatro cavaleiros tinham acordado e ido lá para baixo. Só a mente dele ainda ouvia o eco do apelo desesperado de Anigel e sua própria recusa vergonhosa.
Mas podia muito bem ter sido apenas um sonho.
Ele teria de descobrir a verdade. A promessa que tinha feito para a tia agora não parecia nada além de palavras ditas por uma criança crédula e assustada. Que direito tinha a Dama dos Olhos de exigir que ele evitasse a mágica, especialmente quando a vida da mãe dele podia estar dependendo justamente disso?
— Talismã — sussurrou ele, apertando o círculo de metal. — Mostre-me a rainha Anigel.
Ele fechou os olhos e na mente dele surgiu uma visão, como se ele fosse um dos pássaros sobranianos descendo de uma grande altura e pousando num galho de árvore a poucas varas do chão.
Numa grande clareira na floresta, algumas centenas de guerreiros muito bem armados descansavam. Alguns eram Homens da Estrela, de peitorais de aço por cima das vestes de feiticeiro e elmos com pontas metálicas. No meio desse exército havia um pavilhão de tecido aberto de um lado. Orogastus estava sentado embaixo dele, bebendo vinho num cálice dourado. Perto desse abrigo, estava Naelore com sua armadura preta e prateada, sorrindo, vitoriosa, enquanto o exército a aplaudia. Ela segurava uma espada.
Amarrada a uma pequena árvore diante da feiticeira estava a rainha Anigel.
O vestido da prisioneira estava rasgado e manchado, seu cabelo louro todo despenteado, e seus tornozelos e pulsos machucados e ensangüentados por causa das tiras de couro cru que a prendiam. Enquanto Tolivar observava horrorizado a espada de Naelore desceu até que a ponta afiada ficasse apoiada entre os seios da mãe dele. Bem de leve, a espada escorregou para a barriga, fazendo um curto corte vertical no tecido grosso do vestido.
Como sempre, a visão do talismã era silenciosa. A arquiduquesa parecia estar fazendo muitas perguntas para a rainha, mas Anigel continuava serenamente indiferente, com o olhar vidrado. O bando de soldados e Homens da Estrela riam e zombavam dela.
— Mãe! — gemeu Tolivar baixinho. — Ó, mãe.
A rainha Anigel não podia ouvir o filho, mas evidentemente Orogastus podia. Ele virou a cabeça e parecia olhar diretamente para o príncipe. O elmo do Mestre da Estrela tinha raios maiores e mais enfeitados do que os dos outros membros da Guilda. Um visor escondia a parte de cima do rosto dele, mas seus olhos prateados e irônicos eram bem visíveis. Os lábios do feiticeiro não se mexeram, mas Tolivar ouviu a voz dele falando claramente.
Não conte para ninguém o que você viu, senão a rainha e seus irmãos no ventre dela serão executados aqui e agora. Lembre-se: encontre-me à meia-noite na fonte perto do palácio. Estarei disfarçado, mas você saberá que sou eu. Traga a tiara e a caixa-estrela. Você entendeu?
Tolivar finalmente conseguiu dizer a palavra.
— Sim — murmurou ele. — Farei o que você quer.
A visão desapareceu e o príncipe só viu um vazio avermelhado por trás das pálpebras fechadas. Lágrimas amargas transbordaram e escorreram lentamente pelo seu rosto. Ele nem ligou, continuou deitado e imóvel como uma pedra, com o talismã nas mãos até a raiva impotente se transformar em torpor e sofrimento. Depois de um longo tempo, sua tia Kadiya o chamou e disse para ele descer para jantar.
— Estou indo — concordou ele, guardando de novo o Monstro de Três Cabeças na camisa, com as pontas viradas para dentro, para que não espetasse sua pele.
Havia passado uma hora depois do pôr-do-sol no dia seguinte quando a embarcação do cadoon, conduzida por Critch sozinho, chegou lentamente ao porto de Brandoba. Atrás dela, do outro lado do estuário para oeste, havia nuvens enormes pintadas de um roxo sombrio, um presságio garantido de chuva antes do amanhecer. O vento fraco que tornou mais lenta a passagem deles também mudou de direção para o oeste, ajudando o capitão aborígine a guiar seu pequeno barco pelas águas cheias de galeras, velas lotadas com comerciantes e uma miríade de embarcações menores ancoradas ao largo. Os cabos da maioria dos barcos piscavam com lamparinas a óleo coloridas, em homenagem ao festival dos pássaros.
Em terra, a capital sobraniana estava incandescente de tanta luz. Cestos de luz em postes bem altos se enfileiravam nas avenidas arborizadas e nas ruas principais, e grinaldas de lanternas pendiam de todos os prédios. A esplanada à beira do mar estava apinhada de pessoas fantasiadas que dançavam e pulavam, e até se balançavam nas balaustradas ornamentadas ao longo do cais. Diversas bandas de metais nos largos degraus da esplanada pareciam disputar uma competição de música, cada uma querendo abafar a outra.
Os passageiros de Critch ficaram dentro da cabine quando o barco se aproximou da costa, já que seria suspeito haver humanos numa embarcação aborígine. Kadiya e os outros espiavam das escotilhas, e ficaram observando o espetáculo até Critch amarrar o barco num cais só usado por comerciantes cadoon que ficava a uma certa distância da área central do porto.
O caçador de penas foi rapidamente até as docas para conversar com o povo do lugar, depois embarcou novamente e chamou os ocupantes da cabine.
— É seguro subir ao convés e desembarcar agora.
Jagun e o príncipe subiram primeiro a escada para o convés, seguidos pelos outros que iam desembarcar. Kadiya e os Companheiros Juramentados trajavam fantasias compradas de Critch que serviriam para passar despercebidos pelos celebrantes do festival. Mas como a cabine estava muito escura e era muito apertada, a subida ao convés era a primeira oportunidade que eles tinham de ver claramente uns aos outros com as roupas que haviam vestido com a ajuda de Jagun e Tolivar.
A Dama dos Olhos usava uma capa e um manto por baixo feito com uma plumagem deslumbrante, roxa iridescente. Por cima do capuz havia uma grande crista amarela e um bico dourado em cima da testa sombreava seu rosto. O talismã, dentro da bainha, estava escondido por baixo da capa.
— Você está esplêndida, Olhos Penetrantes — disse Jagun, e ela fez uma mesura de brincadeira.
Os irmãos Kalepo e Melpotis estavam usando fantasias azul-escuras que representavam nyares. Os chapéus enormes que cobriam suas cabeças tinham bicos com dentes e buracos para os olhos para eles poderem enxergar. A plumagem de Edinar era vermelho vivo, com um bico estranho e achatado preso ao capuz. Quando Melpotis debochou da aparência engraçada do jovem cavaleiro, Edinar descobriu a buzina embutida no enfeite da cabeça e soltou um grasnido rouco que fez os dois nyares caírem na gargalhada.
A última figura fantasiada a sair da cabine foi sir Sainlat. Como ele tinha um físico heróico, só uma fantasia de pássaro havia servido para ele, o de um pássaro pothi marinho. Era feito de penas cor-de-rosa brilhantes e tinha uma cauda ridícula, rosa e preta, em forma de leque, presa nas costas. O capuz emplumado deixava o rosto de Sainlat exposto, só cobrindo seu nariz, que ficava escondido sob um bico grande e preto em forma de cone.
— Estou me sentindo como um perfeito idiota — disse o grande cavaleiro alegremente.
— Está pior do que isso — garantiu Edinar.
— Dou os parabéns à habilidade da sua família — Kadiya disse para Critch. — As fantasias estão muito bem-feitas. Não restringem demais os movimentos e mal se notam nossas armaduras e armas escondidas por baixo.
O cadoon abriu um grande cesto de vime que estava no convés e tirou uma sacola de rede cheia de objetos redondos e coloridos.
— Talvez vocês queiram levar alguns desses. São ovos de griss desidratados, cheios de confete e esporos para espirrar e selados com cera. É um antigo costume do carnaval quebrá-los e espalhar o conteúdo sobre os outros foliões. Os ovos podem ser úteis se a multidão bloquear seu caminho.
— Obrigada — disse Kadiya —, mas minha magia basta para nós. Não quero ter de carregar mais coisas. E agora, preste atenção. Se não tivermos voltado até amanhã ao amanhecer, ou se algum problema sério acontecer na cidade, trate de zarpar com Jagun e o príncipe Tolivar. Eu estarei em contato com Jagun através do meu talismã e transmitirei novas instruções para vocês.
Ela fez um sinal com a cabeça para os cavaleiros, e os homens desceram a prancha de desembarque e ficaram à espera dela no cais. Contrastando com o alvoroço mais adiante ao longo da costa, a área usada pelas embarcações aborígines estava quase deserta, a não ser por alguns poucos marinheiros do punhado de pequenos barcos semelhantes ao de Critch que balançavam gentilmente na água escura. O povo cadoon não prestou atenção nos humanos com as roupas estranhas.
Antes de partir, Kadiya foi à procura do príncipe Tolivar, que estava sentado na proa, e disse algumas palavras de aviso para ele. Ele reagiu com humildade. Então ela retornou ao centro do barco onde estavam Jagun e Critch.
— Vigiem o menino com todo o cuidado — disse ela para eles em voz baixa. — Não o deixem sozinho nem por um instante. Ele parece muito deprimido e não acho que tentará qualquer ato imprudente. Mas se tentar comuniquem-se comigo imediatamente.
— Nós cuidaremos dele, Olhos Penetrantes — garantiu o velho nyssomu.
Ela já ia embora, mas Critch a deteve.
— Dama dos Olhos, há alguns acontecimentos estranhos contados por um barqueiro de minha raça que encontrei quando amarrava os nossos cabos que preciso revelar — ele apontou para um canto escuro do porto. — Está vendo aquele grande navio lá fora, com apenas uma luz vermelha na popa?
Kadiya fez que sim com a cabeça.
— Ele tem a bandeira de Zinora e chegou esta tarde. Meu amigo garantiu que não é um navio mercante costeiro comum, mas uma galera trirreme com três mastros, um dos navios mais velozes que existem. A tripulação não é formada por zinoranos, e sim sobranianos, e o proprietário é um nobre chamado Dasinzin, conhecido por simpatizar com os duques da rebelde arquiduquesa Naelore.
Kadiya resmungou uma imprecação e tirou seu talismã da bainha. Apontou a espada para o navio misterioso, que não passava de uma silhueta negra contra o céu escuro do início da noite e disse:
— Olho Ardente, diga se essa embarcação pertence aos Homens da Estrela.
A pergunta não é válida.
— Dê-me a visão da carga que ele transporta. A ordem não é válida.
De cara fechada Kadiya guardou a espada mágica na bainha.
— Eu acho — disse Jagun — que o seu talismã respondeu à pergunta não respondendo.
— Homens da Estrela... ou sou prima em segundo grau de um togar vesgo! — ela dirigiu-se a Critch. — Você sabe se os fiscais do imperador subiram a bordo desse navio?
— Não. Por causa das festividades desta noite, todas as inspeções foram adiadas. Os barqueiros cadoons como o meu amigo trouxeram comida e outros suprimentos para o navio, e a tripulação não teve papas na língua perto deles, pensando, como os humanos costumam pensar quando lidam com o meu povo, que somos retardados e inferiores. Os barqueiros ouviram dizer que o navio não veio do leste, onde ficam Zinora e outros países de humanos, e sim das distantes latitudes noroeste, além do país das tribos sem lei, onde não vive ninguém a não ser os pequenos aborígines do Povo Simples.
Kadiya semicerrou os olhos.
— Você se refere àqueles aborígines aquáticos de quem Iriane, a Arquimaga do Mar, é guardiã?
— Eles mesmos. Mas andam dizendo que a Dama de Azul agora está morta e que a Guilda da Estrela subjugou seu povo.
Kadiya e Jagun trocaram olhares. Os dois sabiam do emparedamento de Iriane no gelo encantado, e da probabilidade de Orogastus ter obrigado o Povo Simples a recolher os armamentos dos Desaparecidos no fundo do mar. Se o trirreme pertencia de fato aos Homens da Estrela e se carregava aquele arsenal antigo, podia muito bem ser o precursor de uma invasão.
— Obrigada por essa informação importante — disse Kadiya para Critch. — Quero que você avise o povo cadoon local para manter distância daquele navio. Seja de quem for, está aqui em Brandoba com más intenções.
— Farei o que ordena.
— Neste momento — continuou Kadiya —, não ouso fazer nenhuma tentativa de investigar a galera pessoalmente. Primeiro tenho de contar para o imperador Denombo de que forma a Guilda da Estrela seqüestrou os outros chefes de governo, e avisá-lo de que seu país e sua própria vida também podem estar correndo perigo. Vou informar o imperador da presença do trirreme e deixar que ele cuide disso.
— Vamos ficar observando o navio misterioso, Olhos Penetrantes — disse Jagun. — Se a tripulação tentar levar qualquer carga suspeita para terra, ou se realmente agirem como invasores, eu me comunico com você.
— Rezem para que os Senhores do Ar estejam conosco esta noite.
Kadiya pediu de novo para o seu talismã proteger a ela e aos cavaleiros da visão mágica dos Homens da Estrela. Então, ela desceu a prancha correndo até o cais, onde os quatro Companheiros Juramentados esperavam com impaciência. Em poucos minutos, os guerreiros fantasiados desapareceram pelos armazéns, e Jagun e Critch ficaram acompanhando o grupo com o olhar.
— Não vai ser fácil para eles chegarem ao imperador esta noite — observou o cadoon. — Primeiro ele estará ocupado com os deveres do cerimonial em benefício da deusa Matuta, e depois ele terá de presidir a grande queima de fogos. Haverá uma multidão enorme nos recintos do palácio e às vezes ocorrem tumultos. Os guardas estarão em alerta. Mas as multidões costumam ser pacíficas na primeira noite, especialmente se o espetáculo dos fogos de artifício for bom e o presente imperial a seguir for generoso.
— O que é o presente imperial? — perguntou Jagun.
— Um presente de boa sorte, distribuído pelo imperador para o povo como homenagem ao festival. Embrulhos bem pequenos são jogados para a multidão por moças em uma parada de carroças decoradas. A maioria desses presentes contém um pedaço de papel com um ditado humorístico ou sábio, embrulhando uma bala ou algum tipo de doce, mas uns poucos têm moedas de prata ou de ouro, e há sempre uma única peça de platina que será encontrada pelo humano mais sortudo de todos.
O barulho dos foliões ficou mais alto. Além da música das animadas bandas de metais, agora havia as explosões rítmicas de som dos apitos de pássaros que as pessoas sopravam formando paradas espontâneas e marchando pelas ruas. Critch, o cadoon, deu as costas para a algazarra colorida em terra e olhou preocupado para o trirreme ancorado.
— O vento esta noite traz o cheiro de chuva fria fora de hora... e de um mal enorme — Critch apontou para as águas do porto. — E você está vendo como o mar está estranhamente sem cor por aqui? Está cinzento como mingau de bebê, e nunca vi isso antes, nem ouvi falar. Desejo de todo o coração que não tivesse concordado em trazê-los para Brandoba, amigo Jagun.
— Fazendo isso você pode ter permitido que a Dama dos Olhos salve muitas vidas.
— Vidas humanas?... — resmungou Critch. — Como pode servir uma senhora que pertence à raça dos seus opressores?
— No nosso país do Pântano Labirinto — disse Jagun —, alguns do meu povo têm sido os aliados mais próximos dos humanos há muitas centenas de anos, merecendo seu respeito e até seu amor. E mais recentemente, graças às três mulheres conhecidas como as Pétalas do Trílio Vivo, das quais a minha senhora é uma, o antigo antagonismo entre humanos e aborígines diminuiu muito. Nós agora sabemos que o mesmo sangue flui nas veias das duas raças, por isso procuramos ser verdadeiros irmãos e irmãs apesar de sermos fisicamente diferentes.
— Os sobranianos pensam de outra forma — disse Critch —, e o povo cadoon também. Por que tem tanta certeza de que o que você acredita é verdade?
Jagun passou algum tempo contando para Critch a história dos Desaparecidos e da grande guerra entre os Arquimagos e a Guilda da Estrela, e da quase destruição do mundo que resultou dessa guerra, e de como os sobreviventes viveram, doze vezes dez séculos atrás até o presente. Quando Jagun terminou de contar sua história, Critch, o cadoon, estava encantado com tudo aquilo, apesar de sentir uma satisfação perversa de saber que o mundo estava misteriosamente abalado, já que isso confirmava as suas angústias. Então os dois aborígines ficaram em silêncio, debruçados na amurada do barco, até o príncipe Tolivar chegar, vindo da proa, onde havia ficado sozinho, sem poder ouvir nada.
— Dormi mal a noite passada — disse o menino. — Acho que vou lá para baixo dormir. Não é muito divertido assistir a um festival de tão longe.
— Eu vou com você — disse Jagun. O príncipe sorriu.
— Não é preciso.
— Mesmo assim — insistiu o velho caçador —, vamos juntos. Ele esperou até o menino começar a descer a escada e seguiu logo atrás.
Tolivar ajudou Jagun a arrumar a roupa e o resto da bagunça que tinham feito com as fantasias, depois subiu em um dos beliches estreitos do veleiro e fingiu dormir. O nyssomu ficou sentado mais de uma hora na pequena cabine do barco, depois subiu silenciosamente para o convés, exatamente como o príncipe esperava que ele fizesse.
Nenhuma escotilha do barco tinha mais de dois palmos de largura e a da parte de trás da cabine estava trancada, por isso a única saída era subir a escada. Tolivar tinha certeza de que Jagun e Critch iam montar guarda no convés a noite inteira, e também tinha certeza de que nenhum dos dois esperava que ele tentasse fugir. Achavam que ele ainda estava de luto por Ralabun, e que cumpriria sua palavra de não usar magia. Como eles também acreditavam que a rainha Anigel ainda estava livre, concluiriam que ele não tinha motivo para sair à procura dela.
— Errados — disse o príncipe para si mesmo com frieza —, estão redondamente enganados.
Deslizando para fora do beliche, ele calçou as botas, tirou a tiara de dentro da camisa e a pôs na cabeça.
— Talismã — ordenou ele em silêncio —, diga onde Jagun escondeu a caixa-estrela.
Está dentro do armário central na cabine.
Tolivar então disse para o talismã torná-lo invisível. Pegou a caixa, colocou-a dentro de um dos sacos das fantasias e amarrou o fardo comprido nas costas. Quando o saco e a caixa ficaram também invisíveis, ele fez um novo pedido para a tiara.
Diga como posso provocar um sono encantado em Jagun e Critch.
Simplesmente visualize-os assim na sua mente e dê a ordem.
Esse... esse encantamento pode prejudicá-los?
Eles vão acabar morrendo de sede e de fome se você não desfizer o encanto ou modificá-lo depois de algum tempo.
Posso pedir que eles durmam só até o sol nascer?
Certamente.
O príncipe Tolivar fechou os olhos e imaginou os dois aborígines deitados e dormindo em paz. Então visualizou os dois despertando ao amanhecer, ordenou a magia e abriu os olhos.
Eles estão dormindo?
Estão.
Com um suspiro de alívio o menino subiu a escada e foi para o convés. Os aborígines estavam encolhidos, um de cada lado do cesto de vime cheio de ovos coloridos. Tolivar arrastou o pequeno Jagun para o lado de Critch e cobriu os dois com uma lona para abrigá-los do frio e da possibilidade de chuva. Ficou olhando pensativo para o cesto e tirou dele um saco de rede cheio daqueles mísseis, amarrou ao cinto e o fez invisível.
— Talismã! Diga onde está minha mãe agora. O pedido não é válido.
O príncipe sentiu o coração apertar.
— Ela está escondida com o poder da Estrela maligna? A pergunta não é válida.
Mas o príncipe sabia que era isso. Antes, quando Orogastus quis que ele soubesse que sua mãe havia sido capturada, a visão dela foi bem clara.
—Bem, eu sei como encontrá-la — disse Tolivar para si mesmo.
Ele olhou para o céu. Um véu de nuvens altas criara halos fantasmagóricos em volta das Três Luas e o vento mais forte gemia no cordame do veleiro, soando como uma melodia assombrada que fazia contraponto ao alarido distante das bandas de metais. Ele não tinha idéia de quantas horas faltavam para a meia-noite, hora em que deveria encontrar Orogastus.
Tolivar ainda tinha uma pergunta a fazer para o seu talismã, uma pergunta que alimentava um último fiapo de esperança.
— Orogastus será capaz de me ver, apesar de eu estar invisível?
Sim, pois você ainda vacila em rejeitá-lo.
O príncipe suspeitara disso.
Ainda invisível ele desceu a prancha de embarque e foi para o cais, sem se importar de observar os navios ao largo no porto. Um deles, um trirreme muito grande que não estava enfeitado com luzes coloridas como as outras embarcações, parecia estar levantando âncora nas águas pálidas e chegando lentamente mais perto da costa.
O exército de Orogastus chegou sorrateiro a Brandoba no início da noite, entrando aos poucos pelo Portão dos Caçadores que era pouco usado, na extremidade nordeste da cidade espraiada. Obedecendo às ordens do Mestre da Estrela os guerreiros e membros da Guilda se misturaram discretamente às multidões dos participantes do festival. Numa determinada hora, iam se encontrar com os partidários da arquiduquesa Naelore na praça central onde, se tudo corresse bem, os invasores receberiam a ordem para atacar o palácio.
Cada seguidor da Estrela usava a mesma fantasia, uma capa volumosa de plumagem preta brilhante e uma máscara com bico de pássaro e olhos dourados bem chamativos. A única exceção no rebanho escuro era uma pessoa bem pequena que ia na garupa de um dos pássaros negros, que usava modestas penas cinza e brancas de griss marinho por cima de um manto de lã simples.
— Pare de se remexer — disse Naelore para a garupa —, senão mando a minha Estrela cobri-la de dor.
— Se você ao menos desamarrasse as cordas nos meus pulsos — respondeu a rainha Anigel —, eu poderia segurar nas abas da sela e não ficar correndo o perigo de perder o equilíbrio. E o enfeite de cabeça desse maldito pássaro também não ajuda, porque está sempre escorregando e cobrindo meus olhos.
A arquiduquesa deu risada.
— Desamarrar você? Acho que não, rainha-bruxa! Mesmo privada de sua detestável Flor, você sem dúvida é capaz de realizar magias terríveis.
— Não sou bruxa — disse Anigel suavemente —, e o Trílio Negro que você parece temer tanto só protege minha vida e não faz mal a ninguém.
— Ah, é? Diga isso para os membros da Guilda que tentaram tirá-lo de seu pescoço enquanto você estava sem sentidos no Castelo Incendiado. Os dedos deles ficaram carbonizados até o osso com o fogo mágico quando encostaram naquele amuleto maldito.
— É mesmo? Eu não sabia que o meu trílio-âmbar era capaz de tal coisa. Eu não teria machucado o seu pessoal de propósito.
— Imagino — disse Naelore com mordacidade — que você também não pretendia machucar aqueles que você queimou vivos durante sua fuga pela bacia de gêiseres flamejantes!
— Lamento a morte de nossos perseguidores — disse Anigel —, mas eles atiraram em nós com uma arma antiga, arriscando a minha vida e a dos meus companheiros. Foram essas mesmas armas que acenderam os vapores inflamáveis.
— Isso é o que você diz — retrucou Naelore.
E quando Anigel ia fazer mais um pedido, a Mulher da Estrela ordenou que ficasse calada.
Orogastus, que fora o último a passar pelo portão da cidade, cavalgava logo atrás da arquiduquesa e da prisioneira dela. Ele esporeou sua montaria e ficou ao lado das duas. Seus olhos claros brilhavam por baixo do bico preto da cabeça de pássaro da fantasia.
— Vou me adiantar um pouco — disse ele para Naelore —, para poder examinar a multidão à procura dos nossos inimigos. Não é provável que a Estrela possa me dar uma visão de Kadiya, já que ela deve estar protegida pelo seu talismã. Mas posso ver outros membros do grupo se eles se afastarem um pouco dela. Fique alerta e tenha cuidado com qualquer mulher que possua uma espada escura e quebrada.
O feiticeiro apressou o passo no meio da multidão que crescia e Naelore e Anigel seguiram atrás dele. Logo ficaram rodeados por uma multidão de gente fantasiada, alguns montados em froniais, mas a maioria a pé, caminhando para o centro da cidade antes do espetáculo da queima de fogos na praça. Grupos de músicos, avançando com a maré ou abrigados em varandas que davam para as ruas, se esforçavam para tocar mais alto do que a ritmada algazarra de apitos, buzinas e cantorias de bêbados. De tempos em tempos, foliões quebravam ovos cheios de confete cintilante e esporos de fungos, e provocavam espirros, gritos e imprecações bem-humoradas até o incómodo volátil se dissipar. Orogastus e Naelore usavam a magia da Estrela para afastar a poeira que irritava o nariz e também para tirar as pessoas do caminho.
Depois de um tempo, chegando a poucos quarteirões do palácio imperial, os dois feiticeiros e a prisioneira saíram da avenida apinhada e barulhenta e entraram numa rua secundária bem mais tranqüila. A rua era ladeada por mansões imponentes, todas enfeitadas com efígies de pássaros e brasões emplumados. Lanternas verdes e douradas piscavam, com as cores do brasão de Sobrania, penduradas nos galhos das árvores e em cima dos altos muros de pedra que cercavam a maioria das casas. Havia muita gente fantasiada passeando, mas todos pareciam estranhamente comedidos, reunidos em grupos silenciosos sob as árvores ou sentados lado a lado no meio-fio. Mesmo com aquela luz fraca, Anigel percebeu que todos usavam penas vermelhas.
Naelore avançava devagar, segurando firme as rédeas e sem virar para olhar para Anigel. Era óbvio que ela refreava seu animal para ficar bem atrás de Orogastus.
De repente ela disse:
— Conte-me sobre sua irmã Haramis!
A rainha, pega de surpresa, começou a recitar os deveres da Arquimaga da Terra, mas não era isso que a Mulher da Estrela queria saber.
— A sua irmã é bonita? Descreva Haramis para mim.
— Haramis é bem mais alta do que eu — disse Anigel. — Tem cabelo preto comprido e olhos azul-prateados com enormes pupilas, no fundo das quais há pontos minúsculos de fogo dourado. Ela é bela sim, mas o que mais se nota é seu ar autoritário e a aura de poder sobrenatural que parece envolvê-la.
— Ela... ela o ama, como ele a ama?
Meio atônita, Anigel sabia instintivamente o que a mulher queria dizer, assim como conhecia o motivo que havia por trás daquela pergunta.
— Acho que Haramis deseja de todo o coração e do fundo da alma não amar Orogastus. Os objetivos de vida dele são opostos aos dela. Ela não consegue evitar o amor que sente por ele, mas há muito tempo renunciou a qualquer esperança de consumá-lo.
A Mulher da Estrela adotou uma postura menos tensa, como se estivesse aliviada de algum peso. Quando recomeçou a fazer perguntas, sua atitude era menos revoltada.
— Eu sei que sua irmã Haramis possui a terceira parte do Cetro Tríplice do Poder. Como é esse maravilhoso instrumento?
— O Círculo de Três Asas é um bastão curto com uma espécie de laço numa das pontas. As asas são minúsculas, presas no topo do laço e protegem uma gota de trílio-âmbar idêntica à minha. Haramis usa esse bastão numa corrente pendurada ao pescoço.
— Ela consegue usar todo o poder da mágica desse Círculo... ou é apenas parcialmente competente com o seu talismã, como a bruxa Kadiya e seu filho pródigo com os deles?
Anigel não respondeu de imediato e ficou imaginando por que a Mulher da Estrela não perguntara isso para Orogastus, e depois pensou que talvez tivesse feito a pergunta para ele. Sim... De qualquer forma não parecia haver motivo para não responder.
— Duvido que qualquer pessoa hoje em dia conheça realmente o funcionamento do Cetro do Poder. É um artefato dos Desaparecidos, supostamente tão formidável que aqueles que o inventaram tiveram medo de usá-lo. Separadas, as três partes do Cetro que são chamadas de talismãs são bem menos poderosas. Haramis certamente tem mais habilidade em manipular o dela do que Kadiya, mas suas maiores habilidades mágicas independem do Círculo Alado, pois derivam da sua função sagrada e beneficente.
— Beneficente? Mas ela é uma tirana, como são a Arquimaga do Mar e o Arquimago do Céu! O Mestre da Estrela diz que os três manipulam a humanidade e os aborígines desde tempos imemoriais. Eles se opõem a todo progresso científico e social porque seria uma ameaça às suas posições de poder.
— Bobagem — disse Anigel. — Não posso falar do Homem da Lua, mas a minha irmã Haramis e Iriane, a Arquimaga do Mar, são guardiãs do bem que nem sonhariam em oprimir os povos deste mundo. Elas prestaram juramentos solenes de que jamais usariam a magia para provocar danos em qualquer ser vivo.
— E, no entanto — disse Naelore —, Haramis uma vez juntou as partes do Cetro e tentou matar o Mestre da Estrela com ele!
— Não — Anigel corrigiu Naelore. — Haramis, Kadiya e eu usamos o Cetro para fazer o feitiço de Orogastus se virar contra ele, quando ele queria destruir nós Três e conquistar o nosso pequeno reino.
— Não é isso que o Mestre diz!
— Orogastus muitas vezes distorce a verdade para satisfazer aos seus objetivos.
— Ele nunca mentiu para mim nem para os outros da Guilda da Estrela.
Anigel deu um suspiro.
— E ele prometeu que a sua Guilda governará o mundo com ele se você ajudá-lo em seus planos vangloriosos? Devo informar que uma vez ele tentou convencer Haramis com a mesma proposta ridícula...
A mulher sobraniana girou o corpo na sela e encarou Anigel com fúria.
— Sua idiota! — sibilou ela. — O que você sabe das grandiosas e nobres intenções do Mestre? Governar...? Ele vai mesmo! Mas não para satisfazer alguma ambição particular exagerada. Ao contrário, ele quer salvar o mundo do hediondo cataclisma para o qual ele caminha a passos largos, sem saber!
— Que cataclisma? Do que você está falando?
— Se Orogastus não nos salvar, estamos perdidos. Esse nosso mundo está à beira da destruição, abalado por doenças internas deflagradas há séculos. O Mestre da Estrela ficou sabendo dos detalhes desse terrível perigo enquanto era prisioneiro do Arquimago do Firmamento. E só o Mestre conhece o método para nos salvar.
— Então por que — perguntou Anigel com lógica e suavidade — ele simplesmente não continua essa sua obra tão elevada? Em vez disso, enviou agentes secretos para fomentar sedição e discórdia por todo o continente. Seqüestrou e manteve em cativeiro os governantes legítimos de seis países. E a menos que eu esteja enganada, acho que ele está aqui em Brandoba esta noite porque espera maquinar a queda do imperador Denombo, para você poder se apoderar do trono de Sobrania! Se a verdadeira intenção de Orogastus é salvar o mundo, por que ele está embarcando numa guerra de conquista?
— O remédio necessário para curar o mundo é drástico — disse Naelore enfaticamente — e exige muito sacrifício da população, além da execução de inefável magia. Se dependesse de vocês, governantes vaidosos e ignorantes, nunca poderiam controlar seu povo nos dias dessa recuperação do equilíbrio. Vocês são covardes demais, indisciplinados e muito egoístas para fazer o que precisa ser feito. É necessário haver um líder todo-poderoso para arrancar isso de vocês.
Anigel teria contra-argumentado indignada, mas Naelore continuou falando, como se estivesse em transe.
— Eu mesma não passo de uma serva obediente ao Mestre da Estrela. Quando me tornar imperadora de Sobrania, farei o que ele quiser para colaborar com sua grandiosa estratégia. Mais tarde, quando a obra estiver terminada e o Trílio Celeste brilhar sobre a nossa terra, depois do Gelo Sempiterno ser banido para sempre e os Desaparecidos voltarem a viver entre nós, então celebrarei o triunfo do Mestre. E talvez até conquiste seu amor, se os Poderes Ocultos permitirem.
Anigel ficou sem fala.
A grande calota continental de gelo derreter? Os Desaparecidos de volta? Era absurdo!
Mas o mundo realmente estava fora do eixo. Haramis estava convencida disso, citando os grandes terremotos, as erupções vulcânicas por toda parte e o clima desastroso que afligia tantos lugares do continente nos últimos anos. No entanto a Arquimaga nunca mencionou que esses acontecimentos pudessem ser um presságio da destruição do planeta.
Ou mencionou?
Sem querer, a rainha levou as mãos amarradas ao pescoço, procurando o conforto do seu amuleto do Trílio Negro. Mas a Flor não estava mais lá, assim como Haramis não estava mais lá, e não havia ninguém para responder àquelas perguntas, a não ser ela mesma...
Orogastus fez sua montaria parar diante de uma casa com um pesado portão de ferro, onde os grupos de foliões vestidos de vermelho eram especialmente numerosos. Ele levantou sua Estrela e um porteiro destrancou o portão. Fez sinal para Naelore segui-lo e entrou com seu fronial. Os dois animais desceram por um curto caminho de cascalho ladeado por jardins e chegaram finalmente à entrada iluminada da casa. Nove homens sobranianos com armaduras enfeitadas e capas de penas vermelho-sangue aguardavam em posição de sentido sob o pórtico, com os capacetes emplumados embaixo do braço.
Havia alguns lacaios de libré mais afastados. Orogastus desmontou e entregou seu fronial para um deles, tirou sua capa e deu para outro. Os nobres sobranianos ficaram boquiabertos quando viram a exótica armadura da Guilda da Estrela. Acenando para um terceiro lacaio se afastar, o feiticeiro ajudou Naelore pessoalmente a desmontar, deixando Anigel na garupa do fronial.
Com um único movimento, a arquiduquesa tirou sua fantasia de pássaro e a deixou cair no chão. Ela também estava com as insígnias de guerra prateadas e negras da Guilda dos feiticeiros, menos o elmo com raios, mas cada peça de sua armadura tinha enfeites de ouro e diamantes. A Estrela de Nerenyi Daral estava pendurada numa corrente de pedras preciosas no seu pescoço. Suas tranças vermelho-fogo estavam parcialmente escondidas sob uma coroa de platina e ouro com a forma de um pássaro com as asas abaixadas, a cabeça era uma única esmeralda gigante, com centenas de diamantes cintilantes, brancos e amarelos. Ela deu o braço para o Mestre da Estrela, que inclinou a cabeça respeitosamente e levou-a para perto dos homens que aguardavam.
— Meus lordes — disse Orogastus —, apresento sua imperadora.
Os nove nobres desembainharam suas espadas bifurcadas e as levantaram numa saudação de fidelidade.
— Naelore! — gritaram. — Vida longa para Sua Majestade imperial Naelore!
Um por um eles se adiantaram apresentando suas espadas para Naelore tocar nelas e abençoá-las. Então os dois mais imponentes se aproximaram carregando uma deslumbrante capa de plumas, que ia de um vermelho vivo no capuz e nos ombros até uma profunda cor de granada na barra, e vestiram Naelore com ela. Quando terminou a pequena cerimónia, Naelore disse:
— Queridos vassalos e súditos! Agradecemos por se juntarem a nós nesta noite do destino, que nunca será esquecida enquanto o nosso país existir. Já era tempo de corrigir essa grande injustiça. Com a sua ajuda, e a das forças que vocês reuniram, derrubaremos nosso irmão usurpador Denombo e assumiremos nosso lugar de direito no trono imperial de Sobrania. Mais tarde, depois de saborear essa primeira vitória, lideraremos pessoalmente a nossa armada imperial até os Mares do Sul, com o objetivo de recuperar para o império aquelas terras que eram governadas pela nossa ancestral, a primeira Naelore de gloriosa lembrança.
— Salve, imperadora Naelore vitoriosa! — Os nove lordes bateram com suas luvas de aço no peito da armadura. — Salve, Naelore a Grande! Salve, Naelore a Conquistadora!
Eles teriam continuado a homenagear Naelore e a dar seus brados marciais, mas Orogastus subitamente ergueu a mão e todos se calaram num instante. Os lordes bárbaros ficaram como estátuas de pedra, sem poder mover um só músculo.
— A celebração pode acontecer mais tarde — disse o feiticeiro secamente. — Qual de vocês é dono do grande trirreme no porto?
Orogastus fez outro gesto e os sobranianos recuperaram a mobilidade normal. Ficaram confusos e amedrontados com a demonstração casual de poder do feiticeiro, mas nenhum ousou reclamar. Naelore parecia despreocupada. Ela apoiou a mão no braço de um homem que tinha um grande bigode enrolado e a armadura decorada com esmalte azul, um dos que tinham levado sua capa de penas vermelhas.
— Mestre da Estrela — disse ela —, este é o lorde do Mar Dasinzin, nosso real aliado e amigo querido de nossa juventude. Foi o barco dele que trouxe o material tão importante para a nossa grande empreitada.
Dasinzin pigarreou e olhou com ar ameaçador. Manteve a mão sobre o cabo da espada na bainha.
— Então você é o grande feiticeiro que prometeu reempossar a nossa imperadora.
Orogastus apenas sorriu.
— Será que poderia fazer o favor de explicar a sua estratégia para nós? — perguntou Dasinzin com uma civilidade perigosa. — Ou pretende que acompanhemos o seu exército de feiticeiros baseados na fé cega?
Orogastus não deu mostras de ter ouvido o insulto.
— Lorde do Mar, você deu ordens para a tripulação do seu navio trazer as canastras lacradas para terra?
— Elas estarão aqui na minha casa em uma hora. Os seus homens me disseram que a carga deve ser desembarcada e transportada com muita discrição, poucas caixas de cada vez.
— E seus líderes e tenentes? — continuou o feiticeiro. — Eles também estão de prontidão aqui por perto?
— Estão reunidos no jardim dos fundos, à espera das ordens. O feiticeiro balançou a cabeça satisfeito.
— Muito bem. Vou conversar com eles daqui a pouco. Eu vi os guerreiros esperando nas ruas. De que tamanho é o contingente que vocês conseguiram reunir?
— Mais de quatro mil. Todos estão usando disfarces iguais, conforme Sua Majestade imperial ordenou, e todos estão bem armados.
Mesmo assim, não podemos esperar dominar a Guarda Imperial, a menos que...
— A menos que uma mágica poderosa nos ajude — disse Orogastus em voz baixa. — E vai ajudar.
Um outro nobre, alto e corado, se adiantou:
— Fizemos tudo que ordenaram, mesmo sem conhecer o plano de batalha, graças à nossa devoção à imperadora. Mas agora chegou a hora de confiarem em nós, feiticeiro. Antes de prosseguir, você deve explicar a sua estratégia e demonstrar para nós a capacidade ofensiva das suas armas da Guilda da Estrela.
Foi Naelore quem respondeu:
— Não se preocupe, Lucaibo. Assim que a carga do navio de Dasinzin chegar aqui você verá com seus próprios olhos que tipo de armamento assombroso nós trouxemos. Melhor ainda, você mesmo manejará uma arma mágica... e o resto dos lordes também, e todos que pudermos equipar das suas tropas.
Os sobranianos começaram a falar animados, mas silenciaram quando Naelore levantou a mão.
— Amigos — disse ela —, fiquem calmos mais algum tempo. Vamos para a casa de Dasinzin e o Mestre da Estrela contará tudo para vocês.
Os nobres murmuraram sua aprovação. Dasinzin fez uma mesura para a arquiduquesa e ofereceu seu braço para levá-la para a casa.
Anigel ainda estava quieta, sentada no fronial de Naelore, olhar baixo, apoiando os pulsos amarrados na patilha da sela. O lacaio que segurava o animal dirigiu-se ao feiticeiro timidamente:
— Meu senhor, o que faço com essa prisioneira? Orogastus observou Anigel algum tempo. Então ordenou que ela fosse levada à presença da dona da casa para poder descansar, comer e beber.
— Diga para a sua senhora que o Mestre da Estrela ordena que ela vigie essa mulher como se sua própria vida dependesse disso. Porque, na verdade, depende mesmo.
À medida que ia chegando mais perto da praça de Brandoba, o príncipe Tolivar se dava conta de que a invisibilidade era um truque fútil numa multidão, assim como havia sido na nevoenta floresta à beira do rio. Sem poder usar a mágica para afastar as pessoas do seu caminho sem machucá-las, talvez até por causa daquele pandemônio que o distraía, ele tinha de recorrer aos empurrões como todo mundo. O espaço ”vazio” ocupado pela forma dele, invisível mas bastante substancial, era perigosamente conspícuo, por isso ele subiu em uma das árvores decoradas que se alinhavam pela rua e, quando chegou a um ponto escondido pela folhagem da turba lá embaixo, ficou visível novamente.
— Talismã — disse ele —, preciso de uma fantasia de pássaro. Nada que chame muita atenção. Arranje-me uma igual à daquele homem ali — ele apontou para um adolescente com uma capa simples com capuz e um bico de penas marrons e, no mesmo instante, se imaginou vestido daquele jeito.
E foi assim que ele ficou. O saco contendo a caixa-estrela continuava amarrado às suas costas, mas sua tiara talismã estava escondida por baixo do enfeite de cabeça da fantasia. Satisfeito, desceu da árvore e retomou seu caminho.
Ele não esperava que Brandoba fosse tão grande, ou tão próspera. As pessoas eram bárbaros, afinal, que suspeitavam muito de estrangeiros e tinham uma crença muito arraigada na sua superioridade e auto-suficiência. Sobrania e suas tribos aliadas não tinham universidades, literatura, nem tradições de belas-artes ou de música clássica. Eles usavam escravos humanos, oprimiam o povo local e se divertiam com horríveis esportes sangrentos. Só sua habilidade com as penas era suficientemente exclusiva para ser comercializada nos outros países. O resto do comércio deles com os países mais civilizados do leste se baseava na venda de matérias-primas e certos temperos. A ”cultura” sobraniana merecia o desdém dos vizinhos civilizados que a consideravam uma mistura de coisas emprestadas: música e teatro de Var, arte e arquitetura de Galanar e das repúblicas, costura e joalheria extravagantes de Zinora. O império havia começado a usar a tecnologia dos estaleiros de Raktum e de Engi, e se apropriara da ciência da fabricação de armamentos de Labornok.
Por outro lado, pensou o príncipe Tolivar, vendo aqueles prédios brilhantes e os cidadãos mais bem vestidos à sua volta, os sobranianos de Brandoba pelo menos não tinham se saído mal na vida. E Orogastus também não, ao escolher a próspera capital bárbara como sua conquista inicial na dominação do mundo.
E o feiticeiro tinha se oferecido para dividir aquilo com ele...
Tolivar ficou pensando se tinha sido bobo de não aceitar. Será que havia uma chance de Orogastus permitir que ele mudasse de idéia? Ele tocou na tiara escondida e pensou em fazer a pergunta. Mas então a imagem da mãe surgiu como um clarão na mente dele, calma e indómita diante da espada de Naelore, ele abaixou sua mão traiçoeira e acelerou o passo para o centro da cidade.
Quando finalmente chegou à praça, só faltava meia hora para a meia-noite. Mais uma vez o príncipe subiu numa árvore bem alta, dessa vez para ter uma visão geral do terreno. Lá embaixo, havia um mar de gente que enchia um imenso espaço retangular, pontilhado aqui e ali com grupos de árvores ornamentais. A área era cercada em três lados por avenidas arborizadas, abertas para as carruagens e nobres cavaleiros e outros cidadãos privilegiados, com cordões de guerreiros imperiais armados com varapaus com pontas de ferro. As avenidas tinham ao fundo fileiras de prédios públicos elaboradamente decorados e casas enormes, protegidas da multidão por muros de pedra.
Na extremidade oriental da praça ficava o palácio imperial. Era uma estrutura que cobria uma área muito grande, externamente iluminada por inúmeros potes de fogo, sua arquitetura uma mistura de fortificação eficiente e vulgaridade escandalosa. A principal fachada era de mármore branco e jaspe vermelho, com altas colunas espiraladas de malaquita verde. Empilhadas em torno da estrutura da colunata central havia torres com ameias e inúmeras alas, todas interligadas por arcadas e contrafortes. Todos os ângulos do enorme telhado eram cheios de gárgulas e, como as telhas, eram dourados, assim como a grande rotunda da parte interna. Despontando da cúpula brilhante havia um pináculo de jaspe vermelho com um pássaro dourado na ponta, de asas abertas. Toda a confecção era cheia de brasões de esmalte multicoloridos, frisas pintadas, cornijas todas trabalhadas e nichos com estátuas. Havia centenas de janelas com molduras douradas, todas faiscando à luz de velas.
O terreno em volta do palácio era cercado por um muro largo de sete varas de altura, encimado por ponteiras ornamentais, tochas e mastros com flâmulas festivas, verdes e douradas. Portões de ferro dourado, trancados e patrulhados por guerreiros, com suas belas armaduras de desfile ficavam na frente da grandiosa escadaria que levava ao vestíbulo da entrada do palácio. Dos dois lados do portão havia guaritas de pedra adornadas com bandeiras e diante dele se estendia um vasto pátio rodeado por mais tropas.
No extremo oeste da praça, onde Tolivar estava encarapitado em sua árvore, havia um coreto (de onde a banda imperial tocava canções populares de Okamis e Var), um conservatório de vidro que abrigava pássaros raros e um santuário para a deusa nacional, Matuta. A parte curva do bulevar ocidental, que ficava na frente do prédio sagrado, cercado por cordas e guardas com lanças e espadas, abrigava o material pirotécnico que logo seria aceso para o espetáculo da queima de fogos.
Tolivar encostou na sua tiara e sussurrou:
— Mostre-me a fonte do Griss Dourado, onde devo encontrar Orogastus.
Uma voz na cabeça dele disse: Lá. Ao mesmo tempo, ele visualizou algo brilhando no meio da multidão, próximo a extremidade da vasta área aberta, entre dois dos parques em miniatura. Era um grande jato de água que se elevava do meio de uma bacia ornamental. Havia estátuas folheadas a ouro representando gaivotas cuspindo jatos menores de água ao redor, e o vento espalhava a água espantando as pessoas daquele lado mais distante, que era pegado ao pátio do palácio. Um número grande de pessoas que enfrentavam a área molhada usava fantasia de melro.
— É lá que o feiticeiro vai estar — concluiu o príncipe.
Ele desfez a visão, desceu da árvore e foi andando o mais depressa que podia para a praça. Aproveitou a vantagem de ser pequeno para se esgueirar pelo meio da multidão, ignorando gritos e pragas enquanto abria caminho com os cotovelos abertos, pisando sem dó nos pés das pessoas e chutando suas canelas.
— Ai! — gritou uma voz masculina furiosa. — Seu pestinha maldito! Você vai ver!
Mãos fortes agarraram Tolivar pelos ombros e o sacudiram até seus dentes baterem. Em pânico o menino já ia apelar para o seu talismã quando conseguiu dar uma olhada no rosto do seu corpulento captor, que perdera o capuz da fantasia no tumulto.
O rosto era largo, extremamente feio, tinha um olho tapado e o outro brilhava de fúria. O dono daquele olho era bem conhecido para o príncipe Tolivar, que parou de se debater e exclamou:
— O que você está fazendo aqui?
— Provavelmente o mesmo que você — retrucou o rei Ledavardis.
Mais cedo, o rei e o arquiduque Gyorgibo haviam ficado presos no meio da multidão em um dos grandes centros comerciais, a cerca de um quarto de légua ao norte da praça. As lojas elegantes estavam fechadas com portas de aço, mas bancas de comida e bebida que vendiam novidades do festival estavam abertas e trabalhando a todo o vapor. No centro do mercado havia uma plataforma onde um conjunto de músicos tocava árias animadas com trompas, gaitas de foles, flautas e tambores. Como o espaço era muito limitado, as pessoas que queriam dançar só podiam ficar pulando para cima e para baixo no mesmo lugar, batendo as asas das suas fantasias. Um relógio iluminado montado na fachada de um grande estabelecimento bancário mostrava que faltava uma hora e meia para a meia-noite.
— Isso não vai dar certo, Ledo — disse o arquiduque para o rei pirata. — A multidão está ficando cada vez maior e nós mal conseguimos nos mexer.
— Mas a fagulha no amuleto aponta para aquela direção! Só Deus sabe por que os vilões levaram a rainha para o centro da cidade, mas é óbvio que eles fizeram isso mesmo. Veja você mesmo, Gyor.
O sobraniano deu uma olhada no pingente trílio-âmbar na frente do seu nariz.
— Sim, sim, eu sei. Mas veja... a avenida do outro lado do mercado está apinhada de gente indo para a praça. É impossível caminhar naquela direção. Teremos de encontrar outro caminho.
Gyorgibo e Ledavardis haviam deixado os outros governantes no chalé imperial de caça, para onde o trílio-âmbar da rainha Anigel, que eles haviam recuperado, os tinha guiado no dia anterior. Os reféns fugitivos haviam encontrado a cabana deserta, e o rei e o arquiduque tinham podido dormir algumas horas preciosas, como pedras. Despertaram logo antes do amanhecer e dividiram uma refeição substancial que a rainha Jiri e o duúnviro Ga-Bondies haviam preparado com o que encontraram na despensa da cabana. Gyorgibo estava quase irreconhecível depois de aparar sua vasta cabeleira embaraçada, fazer a barba e vestir roupas limpas. Os dois jovens então se despediram dos companheiros, avisando para eles não se afastarem da cabana, e partiram para Brandoba por uma trilha que Gyorgibo conhecia. A viagem levou o dia inteiro e parte da noite. Sem saber, eles tinham quase alcançado a retaguarda do exército da Guilda da Estrela.
Antes de entrar pelo Portão dos Caçadores, a dupla abandonou seus froniais, com medo de atrair uma atenção indesejada. Dentro de Brandoba, compraram fantasias de pássaro baratas, com o dinheiro do falecido Tazor, e lentamente rastrearam a rainha Anigel com a fagulha guia que havia dentro do trílio-âmbar até o progresso se tornar impossível no meio da multidão.
— Como vamos poder encontrar outro caminho... — reclamou Ledavardis. — Só se a Flor mágica nos transformar em pássaros de verdade e sairmos voando.
— Siga-me — ordenou o arquiduque.
Ele soltou o fecho num portão que dava para uma passagem estreita entre dois prédios, entrou numa ruela muito apertada, onde só cabia uma pessoa de cada vez. Estava muito escuro, havia uma vala muito profunda no meio da passagem e uma ladeira bastante íngreme. Um fedor horrível revelou que a vala era um esgoto a céu aberto que recolhia dejetos dos canos das estruturas dos dois lados.
— Ufa! — gritou Ledavardis. — Para onde diabos estamos indo? Essa é exatamente a direção oposta à indicada pelo trílio âmbar!
Mas o sobraniano se apressava sem dar explicações e, depois de algum tempo eles chegaram a um pequeno canal de água preta, cheio de detritos boiando. Paredes sem janelas com portas bem distantes umas das outras davam para um estreito caminho ao lado do sinistro canal.
— Esse é um dos vários canais menores que esgotam os dejetos municipais para o rio Dob e dele para o mar — disse Gyorgibo. — Toda manhã, bem cedo, as barcaças de lixo passam por eles e os lixeiros públicos esvaziam as latas de lixo deixadas nas margens —- ele apontou rio acima, onde o céu estava mais claro. — Se formos para aquele lado, vamos acabar em um dos grandes canos de esgoto do palácio. Quando Denombo e eu éramos meninos, usávamos os túneis para escapar dos nossos tutores e passear pela cidade incógnitos.
O arquiduque se movia rapidamente pela calçada escorregadia e acabou chegando a um muro enorme. No nível da água havia uma abertura semicircular com o dobro da altura dele, barrada por uma forte grade de metal.
— O muro faz parte do perímetro setentrional do palácio. A grade do cano de esgoto está trancada, é claro. Deno e eu tínhamos as chaves... mas você tem uma coisa ainda melhor!
O rei Ledavardis encostou a gota de trílio-âmbar na fechadura da grade. Ouviram um clique, a grade se abriu, e Gyorgibo seguiu na frente entrando naquela escuridão fétida. O amuleto de Anigel fez o favor de brilhar como uma pequena lanterna.
— Há uma queda logo acima do rio. Fique bem atrás de mim e, pelo amor de Deus, não caia no esgoto. Não falta muito agora. Há um ramal à frente que serve de dreno para os bosques e as fontes da praça.
Eles seguiram arrastando os pés e finalmente viraram à direita, num túnel mais estreito. Felizmente, o líquido que fluía através dele era água relativamente limpa, só um pouco acinzentada na cor, pois nesse pedaço não havia passarelas nas laterais e eles tinham de ir pelo meio, com a água nos tornozelos. Para surpresa do rei pirata, aquele cano tinha uma certa iluminação, proveniente das aberturas de ventilação com grades, bem espaçadas, lá no alto. Depois de andarem algumas centenas de varas ficou claro que estavam sob a praça. O barulho da multidão penetrava naquele subterrâneo como trovoadas.
— Acho que vamos subir por aqui — disse Gyorgibo, indicando degraus de barras de ferro que levavam a uma das aberturas de ventilação. — Deve nos levar a um dos pequenos bosques.
Ele subiu pondo uma mão em cada degrau e ergueu a grade lá em cima. Quando Ledavardis saiu depois dele viu que estavam dentro de um pequeno grupo de árvores e arbustos, uma das muitas miniaturas de parque que enfeitavam a grande praça, separados das áreas abertas por cercas de ferro. A multidão em volta estava ombro a ombro, esperando a queima de fogos começar. O barulho era ensurdecedor.
O rei pirata tirou o trílio-âmbar da camisa e examinou-o. Viu que a linha direcional de luz agora estava muito mais brilhante e falou com o amuleto.
— A sua dona está por perto?
A fagulha na ponta da linha começou a piscar rapidamente. Ledavardis deu um grito de triunfo e berrou na orelha do arquiduque.
— A rainha Anigel está em algum lugar nessa direção, perto daquela fonte grande!
Gyorgibo balançou a cabeça confuso.
— Incrível! Não imagino por que os Homens da Estrela a trariam para cá, com tanto lugar para ir.
— Deixa isso para lá. Vamos!
Os dois homens só conseguiram penetrar na massa compacta de gente usando a força, avançando com uma lentidão glacial. Um relógio em um dos prédios públicos indicava que era quase meia-noite.
E então o moleque fantasiado que ia na mesma direção pisou com força nos dedos do pé de Ledavardis, deu-lhe uma cotovelada no estômago e, para arrematar, chutou suas canelas, por isso o rei o agarrou, sacudiu e gritou:
— Seu pestinha maldito! Você vai ver!
Os capuzes de pássaro de ambos caíram quando eles rolaram na grama. O menino arregalou os olhos ao reconhecer Ledavardis e ele parou de lutar. Ledavardis viu que estava castigando ninguém mais que Tolivar, o príncipe de Laboruwenda. E, mais ainda, o menino tinha uma tiara prateada peculiar presa na testa que só podia ser o fabuloso talismã Monstro de Três Cabeças da rainha Anigel.
— O que você está fazendo aqui? — exclamou Tolivar.
— Provavelmente o mesmo que você — retrucou o rei.
O menino e ele estavam de quatro no gramado pisoteado, com uma floresta de pernas em volta. Ninguém na multidão prestava atenção neles.
— A minha mãe real... — começou a dizer o príncipe.
— Está aqui em algum lugar desta praça — adiantou-se o rei —, e é melhor deixar que eu cuido de resgatá-la.
— Você não está entendendo — gemeu o menino. — Orogastus e a malvada Mulher da Estrela Naelore pegaram minha mãe e prometeram que vão matá-la, se eu não der para eles este talismã. Recebi ordens de encontrar-me com o feiticeiro perto daquela fonte quando começar a queima de fogos.
— Ele disse exatamente onde? — perguntou o rei.
— Não, ele disse que me encontraria. Depois que eu pagar o resgate, ele devolve minha mãe para mim.
Ledavardis pensou rápido.
— Duvido! É mais provável que o feiticeiro pretenda levar vocês dois como prisioneiros dele. A rainha Anigel é valiosa demais como refém para ser libertada. O que você acha, Gyor?
O arquiduque ficou de cócoras ao lado dos dois e disse:
— Acho o mesmo que você.
— Por que você não pode usar a magia da sua tiara para salvar a rainha? — perguntou o rei para Tolivar.
— Não sou um feiticeiro tão bom assim — disse o menino muito triste. — Eu esperava ficar invisível e ir salvá-la, mas o talismã disse que Orogastus poderia me ver mesmo assim — o desespero fez brotar lágrimas nos olhos do príncipe. — Ó, por favor, rei Ledo! Não interfira. Sou a única pessoa que pode salvar minha mãe. Mesmo se os Homens da Estrela pegarem nós dois, pelo menos ela estará viva.
Um floreado agudo de trombetas soou do coreto e imediatamente foi ecoado por outra fanfarra vinda do palácio, do lado oposto da praça. Um rugido coletivo partiu da multidão.
— É o imperador — disse Gyorgibo — que vem dar o sinal para o início da queima de fogos.
Os três ficaram de pé. Dava para ver uma fila dupla de portadores de tochas que ocupava a grandiosa entrada do palácio e descia a escadaria. Eram acompanhados por lacaios que carregavam um trono portátil e muitos banquinhos dourados, a guarda imperial de armadura enfeitada e uma procissão de cortesãos com magníficos mantos de pássaros. O imperador apareceu por último, trajando vestes brilhantes de penas de vitt, brancas cintilantes, e com um elmo-coroa de platina com um visor em forma de bico todo coberto de diamantes.
As trombetas soaram novamente e a multidão respondeu gritando o nome de Denombo. A escadaria do palácio era tão alta que dava para ver claramente os membros da comitiva imperial por cima dos portões. Eles marcharam para uma espécie de terraço que dividia os degraus em duas seções. O trono foi posto lá, ladeado pelos banquinhos para os nobres. O imperador ergueu os braços e as mangas do manto ficaram parecendo enormes asas faiscantes. Num instante, fez-se silêncio.
— Que os céus proclamem a glória da deusa Matuta — declamou — e a do seu leal servo Denombo!
Uma explosão enorme se ouviu. Seis foguetes partiram no espaço em frente ao templo, subindo para o céu nublado deixando um rastro de fagulhas. Quando chegaram ao topo de sua trajetória, explodiram formando uma cúpula de estrelas douradas e verdes. As pessoas ali reunidas irromperam numa gritaria entusiasmada. Então, as trombetas e os oboés do coreto começaram a tocar melodias animadas, e todos se instalaram para assistir ao espetáculo.
— Tive uma idéia — o arquiduque chegou mais perto de Ledavardis e começou a cochichar no ouvido dele.
Os dois conversaram assim alguns minutos, sem que o príncipe pudesse ouvir.
Finalmente o rei dos piratas disse:
— Tolo, está vendo aquele pequeno bosque, aquele grupo de árvores à esquerda da fonte?
O menino fez que sim com a cabeça, e Ledavardis explicou seu plano, e o que ele, Tolivar, devia fazer. O sangue desapareceu do rosto do príncipe.
— Se esse plano falhar eles podem matar minha mãe!
— O feiticeiro precisa da rainha Anigel viva — disse Ledavardis lacônico. — Ele nunca teve a intenção de matá-la, apenas queria assustá-lo para que você entregasse seu talismã. Olhe aqui! — O rei tirou o trílio-âmbar do esconderijo e explicou de que forma ele servira de guia para Gyorgibo e ele em sua procura. — A Flor Sagrada continuará a proteger sua mãe como tem feito desde que ela nasceu. Você tem de acreditar nisso, Tolo. Agora vá. Mas, antes, dê-me isso.
E o rei apontou para o saco de rede pendurado no cinto do príncipe.
A rainha Jiri entrou no grande salão da cabana de caça, onde Widd, Hakit Botai, Prigo e Ga-Bondies estavam sentados bebendo vinho quente e adoçado diante do fogo da lareira.
— Meus amigos, temos um problema. Depois que ajudei a princesa Raviya a se deitar lá em cima, fui à varanda para respirar ar fresco e vi algo que me preocupou muito.
O presidente Hakit Botai deu um suspiro sonoro de aborrecimento.
— Não é outro bando de monstros da floresta farejando o estábulo dos froniais! Posso garantir, Majestade, que não há possibilidade de essas criaturas entrarem e devorarem as montarias, assim como não podem causar mal nenhum a nós aqui dentro da cabana. A construção é muito sólida.
— Não estou preocupada com animais selvagens que podem ou não nos devorar, ou aos froniais — disse a rainha com aspereza. — Venham ver pessoalmente o que está acontecendo, depois tirem suas próprias conclusões.
Ela deu meia-volta e subiu a escada rústica aberta para o segundo andar. Os quatro homens foram atrás dela com certa relutância.
No final do corredor; ela abriu as portas envidraçadas que davam para a varanda. Os outros a acompanharam na escuridão. A noite era fria e o luar brilhava intermitentemente entre as nuvens negras.
— O que acham daquilo? — apontou Jiri para uma abertura no meio das árvores, onde a vertente serrilhada das montanhas Collum se avolumava negra contra um clarão rosado no céu.
— É um pôr-do-sol bastante sombrio — opinou o príncipe Widd sem muita convicção.
Mas Jiri o interrompeu.
— As montanhas ficam a leste.
— Não pode ser uma lua nascendo — disse o duúnviro Prigo pensativo —, porque as três luas estão altas no céu, apesar de parcialmente escondidas atrás das nuvens. Vocês acham que pode ser um incêndio na floresta?
— Não há fumaça — disse a rainha. — Primeiro pensei que uma tempestade violentíssima estava se aproximando, e que o clarão podia ser dos relâmpagos distantes. Mas o vento está soprando na outra direção e apesar do vermelho variar um pouco de intensidade, está firme demais para ser um relâmpago.
— Vo-você acha que pode ser ma-magia? — gaguejou GaBondies muito aflito. — Orogastus sitiando a capital de Sobrania com fo-fogo sobrenatural?
— Imbecil — resmungou Hakit Botai. — Brandoba também fica a oeste, na direção oposta.
— Mesmo assim o clarão pode ser mágico — disse o príncipe Widd. — Estou entendendo por que Jiri está preocupada.
— E há mais uma coisa — disse a temível rainha. — Escutem! Eles prestaram atenção. Então Prigo anunciou:
— Não ouço nada além do barulho do grande rio, e parece fluir mais tranqüilo do que o normal.
— As criaturas da floresta estão silenciosas — disse a rainha para eles —, e isso não é nada normal.
— Humm. Nenhum grito de animais ou pássaros — disse o presidente, demonstrando, pela primeira vez, preocupação na voz. — Sim... isso é esquisito. Alguma coisa deve tê-los assustado.
— Mas o quê? — sussurrou Ga-Bondies.
— Eu não sei — admitiu Jiri. — Mas há ainda uma outra coisa que parece um mau sinal que gostaria que vissem. É mais claro do outro lado da varanda.
Os homens seguiram atrás dela e chegaram a um ponto em que o barulho do rio Dob em seu cânion era mais forte. A rainha disse para eles olharem para baixo, mas eles não conseguiam ver quase nada porque as Três Luas estavam atrás das nuvens. Mas, depois de alguns minutos, as nuvens se abriram e os quatro vislumbraram uma cena espantosa à luz prateada.
O cânion do Dob não tinha mais duzentas varas de profundidade como o tinham visto aquela manhã. Um líquido brilhante e quase branco preenchia o espaço até o topo dos penhascos e nele flutuavam inúmeras árvores arrancadas pela raiz. As árvores desciam o rio com uma lentidão extraordinária e os homens levaram algum tempo para perceber que a água estava mais grossa, tinha quase a consistência de uma massa.
— É lama! — disse maravilhado o príncipe Widd. — Um fluxo extraordinário de lama cinzenta que desce daquelas montanhas. O que será que isso significa?
— Na minha opinião — disse a rainha Jiri —, significa que temos de sair daqui como se todos os demônios dos dez infernos estivessem nos nossos calcanhares.
Enquanto a queima de fogos acontecia e as pessoas ficavam paradas, ocupando-se de olhar para o céu, era muito mais fácil se esgueirar pelo meio da multidão. Tolivar chegou à fonte do Griss Dourado, onde havia muita gente de pé. Então, seguindo as instruções de Ledavardis, começou a andar bem devagar em torno da grande bacia ornamental, indo para o lado nordeste, onde os respingos da água da fonte desencorajavam a permanência de muitos espectadores.
Trílio Negro!, orou o menino. Não deixe que Orogastus ou Naelore me encontrem por enquanto!
A área com os paralelepípedos molhados tinha cerca de vinte varas de largura. Os postes com tochas mais próximos ficavam mais a leste, nas guaritas que ladeavam os portões do palácio, a uma distância de outras trinta varas, e a única luz provinha dos fogos de artifício. Ao norte ficava o bosque cercado, com uma vegetação densa de árvores e arbustos floridos. Tolivar desviou dos respingos, olhando para um lado e para outro, à procura de Homens da Estrela no meio das pessoas menos numerosas daquele lado. Mas tudo que via eram pessoas fantasiadas. Fantasias elaboradas, algumas modestas, algumas cômicas, outras assustadoras. Os pássaros humanos faziam: Oooh! e Aaah! a cada explosão dos fogos de artifício, e gritavam, aplaudiam, apitavam e grasnavam com os mais bonitos. Uma grande porção da multidão parecia estar bem suprida de bebida alcoólica. O calçamento estava cheio de canecas e copos descartados e alguns foliões bêbados jaziam inconscientes nas pedras do chão.
Quando chegou à cerca do arvoredo, o príncipe deu um grande suspiro de alívio. Seu maior medo era ter sido interceptado cedo demais. Havia apenas algumas pessoas ali por perto, enfrentando o ocasional borrifo de água. Na escadaria do palácio, o imperador Denombo e sua corte cintilante se divertia com o espetáculo, enquanto a banda tocava e o povo ficava cada vez mais entusiasmado.
O príncipe passou a ter uma consciência cada vez maior do peso da caixa-estrela nas costas e da tiara apertando sua testa. O corpo dele também reagia ao esforço físico da caminhada que fizera do porto até o centro da cidade, e ele desmoronou no pavimento molhado, sentando com as costas na cerca baixa de ferro fundido. Ele fechou os olhos.
— Ó, talismã! — murmurou desolado. — Você ainda é meu? Sim.
— Não há como você continuar sendo meu e mesmo assim salvar minha pobre mãe?
A pergunta não é válida.
— Eu sei. Mas tinha de perguntar.
— Tolo! — alguém chamou.
Ele abriu os olhos. De pé diante dele, como uma silhueta contra o céu iluminado pelos fogos de artifício, estava uma figura alta fantasiada de melro. Antes de o príncipe poder dizer qualquer coisa, o homem fantasiado puxou o capuz para trás e revelou o deslumbrante elmo com raios da Guilda da Estrela. Seus olhos eram dois faróis brancos.
— Levante-se — disse Orogastus. — Chegou a hora. Movendo-se com o máximo de lentidão que ousava, Tolivar ficou de pé e encarou o feiticeiro.
Para a rainha Anigel, a breve caminhada da mansão de Dasinzin até a fonte do Griss Dourado foi um momento de estranho distanciamento, além do sofrimento e do desespero, com o lindo caleidoscópio dos fogos lá no alto. Haviam desamarrado seus pulsos, mas os braços estavam firmemente seguros por dois Homens da Estrela muito taciturnos, cujos nomes eram Zanagra e Gavinno, com suas capas negras ocultando as antigas armas mortais penduradas nos cintos. Eles a arrastaram atrás de Orogastus, que abria caminho com sua magia, e a multidão que aplaudia o espetáculo não parecia notar a passagem deles.
Em poucos minutos chegariam à fonte e lá o pobre e tolo Tolivar entregaria a tiara e a importantíssima caixa-estrela para o feiticeiro, pensando que assim conseguiria a liberdade para ela. Mas Anigel agora tinha certeza de que Orogastus jamais a libertaria, assim como não soltaria os governantes reféns que o membro da Guilda Tazor mantinha cativos em algum lugar da floresta de Lirda. A rainha Anigel havia se dado conta dessa realidade quando estava sentada na cozinha de Dasinzin muito desanimada, uma prisioneira desprezível sob os cuidados das apavoradas mulheres sobranianas.
Ela e os outros chefes de Estado não haviam sido seqüestrados para garantir qualquer nebulosa ”cooperação” de seus países com o feiticeiro. Desde o princípio, Orogastus tinha um único objetivo: exercer uma pressão irresistível sobre Haramis, forçando a Arquimaga a entregar seu talismã em troca das vidas deles.
E a mesma opção terrível seria agora apresentada para Kadiya também.
Deus Tríplice da Flor, ela pediu, dê às minhas irmãs a força para resistir e que a nossa morte...
Chegaram à fonte e ela sentiu os respingos de água no rosto, misturado com suas lágrimas. O alto jato central balançava estranhamente de um lado para outro, independentemente da direção do vento, e a água que descia em cascata pelos enfeites de pedra dourada caindo na bacia estava turva, como se a tivessem misturado com leite.
Orogastus tocou na sua Estrela, balançou a cabeça satisfeito e disse.
— Lá está o menino. Sentado perto da cerca daquele pequeno parque à esquerda. Segure a rainha aqui, no meio da multidão, até eu chamar.
Anigel teria dado um grito de aviso, mas a mão enluvada de Zanagra tampou sua boca e ela sentiu uma adaga espetar sua barriga.
— Fique quietinha — sibilou o Homem da Estrela —, senão seus bebês vão morrer, apesar da magia do Mestre permitir que você sobreviva.
Ela parou de lutar. Se ao menos eles não tivessem tirado seu trílio-âmbar! Mas, sem o amuleto e sua Flor Sagrada, ela não tinha energia alguma. Ela viu Tolivar se levantar e encarar Orogastus. O que os dois diziam não podia ser ouvido graças às explosões do espetáculo pirotécnico. Então o feiticeiro fez um sinal para eles. Ainda trajando sua fantasia cinza e branca de griss, ela foi levada até o pequeno jardim onde seu filho a esperava. Ele tirara o capuz de sua fantasia sem cor, de forma que o Monstro de Três Cabeças ficou bem visível e parecia brilhar com uma pequena luz própria, prateada, no meio do cabelo louro dele.
— Mãe — disse ele com a voz embargada —, eles machucaram você?
— Na verdade não — disse ela. — Só meu coração está ferido... com essa descoberta triste que você esteve de posse do meu talismã em segredo por quatro longos anos...
Mas Orogastus interrompeu.
— Rainha, já chega! — e para o príncipe: — Tolo, dê-me a caixa-estrela.
O céu estava cheio de enormes manchas de luz violeta, azul e verde, riscadas por clarões que traçavam linhas brancas e douradas. A música chegou a um grandfinale de acordes e o imperador, na escadaria do palácio a umas cinqüenta varas de distância, levantou do trono e abriu os braços. A multidão começou a cantar.
— Denombo! Denombo! Denombo!
O príncipe Tolivar soltou a corda que prendia o saco às costas e tirou de dentro dele a caixa comprida e estreita com a Estrela na tampa.
— Abra — disse o feiticeiro —, e ponha a tiara dentro. O menino retesou o maxilar.
— Não, enquanto você não soltar minha mãe!
Orogastus levantou a mão e fez um gesto discreto. Seis homens vestidos com penas pretas, com armas dos Desaparecidos aparecendo nas aberturas de suas capas, surgiram do meio da multidão que ignorava o que estava acontecendo. Ficaram ao lado dos dois Homens da Estrela encarregados de vigiar a rainha e formaram um semicírculo fechado em volta de Tolivar e do feiticeiro. Pela primeira vez, o príncipe notou a quantidade de celebrantes na área da praça que ficava mais perto do palácio que estavam com fantasias pretas. É claro! Tinham de ser capangas de Orogastus.
O menino levantou as mãos e encostou nas laterais da tiara.
— Ordeno que liberte a rainha!
Por um instante, nada aconteceu. Então Orogastus sorriu com ar de desprezo e fez um gesto com uma das mãos. Os dois Homens da Estrela soltaram Anigel que chorava e estendia os braços para Tolivar. Ele correu para abraçá-la e eles ficaram unidos até que uma voz de trovão soasse.
— O talismã! Agora!
Orogastus e os seus Homens da Estrela ficaram ombro a ombro,
e os olhos dos três brilharam com o poder maligno. Anigel cambaleou e caiu de joelhos, gemendo e pondo as mãos na barriga.
— Não faça isso, Tolo! — gritou ela. — Ele usará o talismã para conquistar o mundo! Resista a ele, querido filho! Não se importe comigo. Ele não pode tirar a tiara de você à força... Aah!
Com o grito de dor da rainha o menino berrou:
— Deixem-na em paz!
Ele arrancou o talismã da cabeça e deixou cair dentro da caixa aberta. Fez-se um pequeno clarão que se perdeu no bombardeio colorido dos fogos de artifício.
— Não! Oh, não — murmurou Anigel.
— Finalmente!
Orogastus se abaixou para pegar a caixa. O príncipe ajudou a rainha a se levantar e a levou para perto da cerca, onde havia uma moita densa. O Mestre da Estrela removeu seu elmo cheio de pontas, entregou para Gavinno, e ficou com a cabeça descoberta, o longo cabelo branco ondulando ao vento. Então começou a apertar as pedras preciosas dentro da caixa, associando a tiara a ele.
Naquele momento, uma dúzia de pequenos objetos redondos e pequenos voaram dos arbustos ao mesmo tempo e se espatifaram nas pedras do calçamento, soltando uma nuvem de confetes cintilantes e esporos de fungos que quase não foram afetados pelos borrifos da fonte. O berro de raiva de Orogastus foi interrompido por um enorme espirro.
A rainha Anigel sentiu que a puxavam para trás, por cima da cerca baixa. Galhos arranharam seu rosto e ela gemeu espantada, lutando para se libertar.
— Não! — disse alguém com uma voz rouca. — Somos amigos. Prenda a respiração!
Ela ouviu espirros violentos e xingamentos dos Homens da Estrela e dos guerreiros de preto, e então sentiu um aperto doloroso nos ombros quando seu salvador a jogou de cabeça numa abertura no chão com borda de ferro. Outras mãos a seguraram, puxando-a por uma espécie de cano vertical. A rainha foi jogada em cima das costas de um outro homem. Eles deslizaram por um lugar totalmente escuro e caíram ruidosamente em águas rasas. Havia no alto uma iluminação fraca e ela viu Tolivar descer rapidamente por barras de ferro presas num poço bem longo. O homem que ainda a segurava gritou:
— Depressa! Estoure a entrada antes que os Homens da Estrela se recuperem!
— Saiam do caminho! — gritou a pessoa mais acima, que desceu pela escada às pressas.
Anigel foi arrastada pela água em completa escuridão, ouvindo o filho procurando tranqüilizá-la ali perto dela. Então um clarão vermelho estonteante formou a silhueta de uma figura corpulenta e disforme com alguma coisa nos braços. Ela ouviu o barulho de paredes ruindo. Algumas pedras estavam em brasa, e assobiavam quando batiam na água, e o túnel se encheu de poeira.
— Continuem avançando! — berrou a sombra corcunda. Ele ergueu o que estava segurando e produziu outra explosão, se esquivando da nova avalanche de pedras.
Instintivamente, a rainha puxou o capuz de sua fantasia encharcada para cobrir a cabeça e ajudá-la a respirar, e se arrastou de quatro pela água sobre os sedimentos escorregadios. Uma excitação incrédula substituiu o langor mortal que havia entorpecido seu cérebro. Reconhecera o corpo forte e malformado. Era o jovem rei de Raktum.
— Ledo?... É você? Oh, graças aos Senhores do Ar!
— Sim, minha sogra. E graças também ao arquiduque Gyor aqui, que lembrou desse labirinto de túneis de esgoto, e ao seu amuleto do Trílio Negro, que nos levou diretamente a você, e até ao jovem Tolo... que trouxe os ovos de rapé.
De repente, ela foi içada e ficou de pé. Um brilho dourado, visível através da trama aberta do tecido de penas do capuz, desfez a escuridão. O ar havia clareado milagrosamente. Anigel tirou sua fantasia molhada de griss e viu que estava num túnel arqueado com água dentro. Tolivar e dois homens com as roupas imundas olhavam para ela com enormes sorrisos. Ela deu um grito de alegria quando o rei Ledavardis guardou sua arma antiga, tirou a gota brilhante de trílio-âmbar do pescoço e o colocou no dela.
— Não podemos ficar aqui — disse Gyorgibo. — Os Homens da Estrela logo vão descobrir que há outros canos na praça que desembocam neste túnel. Eles virão atrás de nós. Teremos de bloquear a passagem atrás de nós à medida que formos avançando e esperar que eles não nos interceptem.
— Mas para onde vamos? — perguntou o príncipe Tolivar, a alegria transformada subitamente em pânico.
— Olhem! — gritou Anigel. — O âmbar!
O pingente estava piscando muito rápido e no centro a Flor estava dividida por uma linha com uma ponta brilhante.
— Está apontando na direção do palácio de meu irmão — disse Gyorgibo —, o único lugar possível onde encontraremos refúgio. Corram!
Atrapalhado com a caixa-estrela e seu conteúdo precioso, que instintivamente apertava sobre o peito, Orogastus, no início, só conseguia pensar em proteger o Monstro de Três Cabeças. Se unira a ele no exato momento em que os ovos diabólicos se espatifaram no chão, e mesmo todo encolhido e indefeso, conseguiu tirar da caixa a tiara e prendê-la na cabeça. Uma miniatura da Estrela em seu peito brilhou sob a cabeça central do Monstro.
— Talismã! — disse ele ofegante. — Destrua os malditos esporos! Cure a mim e aos meus homens desses espirros! Está me ouvindo?
Sim. Está feito.
Seus olhos e seu nariz se desanuviaram, e ele voou para a cerca do bosque e afastou os arbustos, revelando um grande buraco no meio das árvores com uma tampa gradeada de ferro ao lado. Antes de dar a ordem para os membros da Guilda, ouviu vozes ecoando no subterrâneo: ”... estoure a entrada... saiam do caminho...”
— Cuidado! — gritou o feiticeiro, caindo de costas em cima de um dos seus guerreiros. Continuava segurando com força a caixa-estrela. — Eles têm armas mágicas!
Um segundo depois um clarão de luz vermelha surgiu no buraco, junto com um barulho ensurdecedor e uma coluna de poeira. Seguiu-se uma segunda explosão. Xingando, Orogastus limpou o ar novamente com o talismã e descobriu que a abertura no chão estava selada com entulho.
— Talismã, mostre-me a rainha Anigel! O pedido não é válido.
— Por que não pode mostrá-la? — disse ele furioso. Ela está protegida pelo Trílio Negro.
O feiticeiro gemeu.
— Não pode ser! A menos que... — ele deixou a frase pela metade e pediu uma visão do príncipe Tolivar, mas o menino também estava protegido pela proximidade com a mãe, o que também acontecia com os salvadores de Anigel. — Então mostre-me o mapa do sistema de esgoto por baixo desta praça, e a localização desse poço bloqueado.
Dessa vez, a tiara obedeceu e na mente dele apareceu um diagrama bem claro dos túneis, com um ponto piscando onde a rainha e o príncipe haviam entrado.
— Mostre-me as aberturas mais próximas desta!
Outras duas luzes começaram a piscar e a esperança surgiu no coração de Orogastus quando compreendeu que uma abertura ficava atrás dele, perto da fonte, e a outra a apenas vinte varas atrás do bosque, do outro lado da alameda que rodeava a praça.
Mas antes de poder dar as ordens para seus homens se posicionarem, ele viu um terceiro clarão vermelho, não muito nítido por trás da multidão que enchia a avenida, saindo de um escoadouro de água de chuva. Os fugitivos estavam fechando todos os pontos de acesso enquanto avançavam. Mas ele podia enganá-los facilmente se pudesse estudar o diagrama do esgoto mais alguns minutos...
— Mestre! Os portões principais do palácio estão sendo abertos. A procissão do presente imperial está começando!
Orogastus gemeu mais uma vez. Ouviu trombetas e tambores. Não podia perder nem mais um segundo. O exército estava pronto para avançar, e Naelore e seu grupo de nobres aguardavam o resultado vitorioso daquele ataque. Ele agarrou sua Estrela e disse para o membro da Guilda encarregado dos guerreiros sectários:
— Preparem-se para invadir o palácio quando eu ordenar.
— Que diabos foi aquilo? — gritou Sainlat. — Eu podia jurar que senti o chão tremer... mas com essa maldita multidão agitada desse jeito, não posso ter certeza.
— É apenas a explosão dos fogos de artifício — berrou Melpotis para ele.
Edinar deu uma risada.
— Ou então são seus pés grandes batendo nas pedras do calçamento.
Os quatro Companheiros Juramentados avançaram pela massa compacta de foliões no lado sul da praça. Kadiya estava no meio deles, empunhando seu talismã para abrir caminho. Ela havia tirado seu capuz para ver melhor e Sainlat tinha perdido o bico pontudo que usava no nariz, mas fora isso as fantasias deles estavam intactas: Kadiya com plumas roxas, Edinar de vermelho, Melpotis e Kalepo de azul metálico, e Sainlat todo coberto de rosa-pothi.
O talismã, com o trílio-âmbar de Kadiya incrustado no cabo, os havia guiado desde o porto diretamente ao portal das audiências na ala ao extremo sul do palácio, através do qual eram admitidos visitantes à sala de audiências do imperador. Mas foram barrados. Fora matá-lo, que não era uma opção, o Olho Ardente Trilobado não conseguiu forçar o porteiro imperial a deixá-los entrar. O homem foi categórico: Denombo não ia atender ninguém aquela noite, nem mesmo um emissário do rei e da rainha de Laboruwenda. Disse para Kadiya voltar pela manhã.
Só que de manhã seria tarde demais.
— Há menos gente perto daquela fonte com os pássaros dourados — observou Kalepo. — Chegando lá poderemos nos aproximar do portão principal do palácio com facilidade. Mas não vejo como vamos ter mais sorte lá do que no portal dos visitantes. Está claro que o imperador e sua corte não querem ser incomodados durante esse grande espetáculo.
— Você devia ter aniquilado aquele lacaio insolente do palácio com o fogo mágico do seu talismã quando ele nos impediu de entrar — resmungou Sainlat. — Ou explodido um buraco no muro de fora.
— Não — disse Kadiya. — Eu já disse que o sucesso de nossa empreitada depende da boa vontade de Denombo. Ele não ia nos receber de bom grado e dar crédito ao nosso aviso se invadíssemos seu palácio à força, ou se fizéssemos algum mal aos seus servos. É óbvio que ele tem pavor de magia. Se ao menos eu pudesse criar um estratagema que...
— Aagh! — Subitamente Sainlat viu que não podia se mexer. — Essa maldita fantasia! O rabo enganchou de novo em alguma coisa. Socorro!
— Socorro! — guinchou uma mulher gorda indignada que estava presa ao rabo de Sainlat e era arrastada atrás dele. — Esse retardado está arruinando minha linda fantasia!
Rindo disfarçadamente, os outros Companheiros desprenderam seu camarada de cor-de-rosa da senhora, cujas penas cor de laranja eram adornadas com falbalás elaborados de tela dourada, salpicados com lantejoulas em forma de estrelas avantajadas e pontiagudas. O incômodo rabo em forma de leque do corpulento cavaleiro fora um aborrecimento a noite toda e, quando se libertou, Sainlat pediu que o cortassem imediatamente e o jogassem fora. Tiveram de esperar até chegarem mais perto da fonte para ter espaço suficiente para fazer isso, pois as pessoas esbarravam neles o tempo todo, apesar da magia de Kadiya para abrir caminho. Quando chegaram a um nicho formado pela elaborada cimalha da bacia dourada da fonte, Melpotis sacou sua adaga e começou a cortar o apêndice da capa de Sainlat. Véus de água em borrifos muito finos da fonte caíam em cima deles, a música da banda de metais imperial foi aumentando num crescendo e o clímax da queima dos fogos de artifício encheu o céu com riscos de chamas coloridas.
A cauda tinha sido muito bem presa e iam levar alguns minutos para realizar a amputação sem destruir a fantasia. Kadiya resolveu contatar seu amigo nyssomu que estava no barco cadoon e obter informações sobre o misterioso trirreme.
— Talismã, quero me comunicar mentalmente com Jagun.
Ele não pode se comunicar com você porque dorme um sono encantado.
— O quê? — exclamou Kadiya atônita. — Livre-o disso agora mesmo!
O pedido não é válido.
— Por quê? — ela quis saber.
Não posso desfazer o encantamento feito por outro talismã. Kadiya esfregou a testa exasperada ao compreender o que tinha acontecido.
— Tolo! Oh, aquele pestinha miserável!
Ignorando as perguntas confusas dos homens, que não podiam ouvir o que o talismã dizia, ela pediu para ele mostrar todas as partes da embarcação aborígine. Ele obedeceu, em vez de se recusar, como teria feito se Tolivar estivesse a bordo com a proteção da sua tiara mágica. O príncipe havia saído do barco, e não podiam encontrá-lo com o talismã dela. Um monte suspeito, coberto com uma lona no convés provou ser Jagun e Critch, roncando tranqüilamente. Ela expandiu sua visão mágica para observar o porto e viu que o trirreme agora estava aportado em uma das grandes docas comerciais. Não havia sinal de qualquer atividade estranha a bordo da embarcação ou perto dela.
— A carga daquele navio foi desembarcada? — perguntou ela para o talismã.
Sim.
— O que era?
A pergunta não é válida...
Enquanto Kadiya fazia suas perguntas urgentes para o Olho Ardente (e recebia poucas respostas úteis), Kalepo e Melpotis cuidavam de Sainlat e o jovem Edinar se movia em torno da fonte para evitar os respingos maiores de água e ter uma visão melhor do imperador Denombo. Era óbvio que o espetáculo pirotécnico estava acabando e algo curioso parecia estar acontecendo do lado de dentro do portão principal do palácio, à esquerda da grande escadaria. Parelhas de froniais haviam aparecido, puxando grandes carroças de quatro rodas com estruturas espalhafatosas em cima. Um carroceiro formava uma procissão com elas...
... e os guardas abriam lentamente os grandes portais dourados diante da escadaria do palácio!
Edinar trotou até um grupo de uns doze foliões que estavam vestidos, como ele, com fantasias vermelhas.
— Olá! O que acontece agora? — perguntou animado para eles, enquanto se ouvia uma fanfarra e os tambores começaram a rufar.
Só um homem prestou atenção nele e quando ele se virou o jovem Companheiro Juramentado viu o brilho da armadura por baixo da capa de penas vermelhas.
— Volte para o seu posto, idiota! — rosnou o homem. — É hora do presente imperial e a ordem para atacar deve ser dada a qualquer momento.
Edinar voltou correndo pela cortina de água com o coração disparado e um nó gelado se formando na boca do estômago. Até aquele momento de revelação terrível ele não notara que havia muitos homens de fantasias vermelhas aglomerados em torno da fonte. E então Edinar compreendeu que eles estavam por toda parte... dezenas deles, talvez centenas!... Em grupos atentos entre os celebrantes comuns, olhando fixo para Denombo e seus cortesãos. Misturados com os pássaros vermelhos havia outros de fantasias pretas, movendo-se furtivamente.
— Lady Kadiya! — berrou Edinar, apressando-se a contar para ela o que havia descoberto.
Ela e os outros já tinham observado os portões abertos e estavam discutindo a possibilidade de passar invisíveis por eles.
Ao mesmo tempo, o imperador fez alguma declaração bombástica, os tambores começaram a rufar mais alto e as carroças puxadas pelos froniais começaram a sair pelos portões abertos, virando à direita na direção da alameda que rodeava a praça. A multidão apitava e gritava. Cada carroça, ladeada por tocadores de tambor e trombetas, tinha uma enorme efígie de vime de um pássaro diferente e fantástico, adornado com plumas, ouropel cintilante e pedras coloridas e vidro. Na parte de trás de cada carroça havia quatro moças com pouca roupa segurando cestos dourados dos quais jogavam muitos presentes pequenos para as pessoas dos dois lados.
O imperador Denombo e seus cortesãos agora recebiam comida e bebida de servos que se ajoelhavam diante deles enquanto os grupos espalhados de pássaros vermelhos se uniam num único bando, liderado pelos de fantasias pretas. Quando recebeu a notícia de Edinar, Kadiya olhou em volta, tomada pela incerteza. As pessoas comuns estavam sendo empurradas com violência à medida que mais e mais homens de preto e vermelho se juntavam no calçamento entre a fonte e os portões abertos do palácio.
Uma lufada de vento soprou a capa de um pássaro vermelho e Kadiya viu que ele carregava um instrumento com um formato estranho. Os outros, com as mãos escondidas por baixo das capas, também pareciam estar carregados.
— Trindade! — exclamou ela, finalmente compreendendo. — Eles estão com as armas dos Desaparecidos! É um ataque ao palácio, exatamente como eu temia.
— O que vamos fazer? — Melpotis perguntou desesperado para ela. — Será que devemos abordar Denombo agora, mesmo invisíveis? Ele pode pensar que somos assassinos!
Kadiya ficou paralisada pela indecisão. Denombo estava longe demais e não iam alcançá-lo, o lugar estava cheio de Homens da Estrela, a qualquer momento uma batalha terrível ia começar... e em algum lugar naquela multidão estava o jovem príncipe Tolivar, usando o precioso Monstro de Três Cabeças.
A procissão dos carros alegóricos de presentes havia completado a travessia diante do palácio e agora se dirigia à parte norte do bulevar em torno da praça. Os músicos que acompanhavam o cortejo continuavam tocando e as moças que distribuíam presentes não pararam de espalhar a generosidade imperial. Apenas uma pequena porção da vasta multidão percebia que alguma coisa incomum estava acontecendo. As outras pessoas, sem perceber nada, corriam para os cordões da alameda na esperança de pegar um presente quando a procissão passasse.
— Olhem para o jato da fonte! — gritou Kalepo, espantado.
A coluna alta de água acima deles estavam balançando misteriosamente de um lado para outro e ao mesmo tempo uma vibração muito nítida parecia mover o chão.
— É um terremoto — disse Kadiya, ainda distraída —, mas bem pequeno, não precisamos nos preocupar...
— Naelore! — gritaram dos dois lados do grupo e mais pessoas começaram a gritar, até o nome ecoar de um lado ao outro da praça, abafando a música.
— Naelore! Naelore! A invasão começou.
Os guerreiros fantasiados que estavam mais perto dos portões avançaram numa formação compacta e dominaram a guarda imperial que estava diante da grande escadaria. Uma outra tropa de invasores surgiu da massa principal de celebrantes e correu para o palácio, dividida em duas colunas, uma de cada lado da fonte, e se juntou à força de frente. Estavam armados com espadas de duas pontas e cortavam qualquer um que ficasse no seu caminho. Kadiya e seus quatro cavaleiros se amontoaram na pequena ilha de segurança enquanto o exército de Orogastus passava correndo por eles, entrando pelos portões do palácio como uma onda de sangue com manchas pretas. Explosões de luzes multicoloridas, como fogos de artifício disparados para baixo, começaram a eclodir por toda a fachada do palácio. Os atacantes que estavam equipados com as armas dos Desaparecidos entravam em ação. Outra fuzilaria no meio da escadaria sinalizou o embate entre os homens do feiticeiro e os guerreiros imperiais que tinham acorrido para cercar o imperador e sua corte.
Passaram mais alguns minutos antes de a turba confusa entender que alguma coisa dera errado no seu festival. E então, seu único pensamento foi fugir. O cordão de isolamento formado pelas tropas imperiais ao longo da alameda ao norte se fragmentou e a multidão em pânico correu para a avenida, bloqueando o desfile de carros alegóricos. Como um animal irracional e aos berros, a multidão tentou escapar da praça, pisoteando outras pessoas e lutando enquanto fugiam para as ruas laterais.
— Dama dos Olhos, nossa missão fracassou! — gritou Sainlat. — Somos apenas cinco contra milhares...
Kadiya ficou imóvel, com os olhos vidrados, segurando seu talismã com força.
Tolo!, ela chamou. Tolo! Pelo amor de Deus, diga onde você está!
— Os homens do feiticeiro derrotaram Denombo e seus defensores! — exclamou Melpotis. — Senhores do Ar, tenham piedade deles.
— E de nós — completou Edinar com tristeza. — Precisamos sair daqui!
Mas Kadiya ignorou o tumulto e seus Companheiros também. Sua visão mágica já havia mostrado o imperador nas garras dos Homens da Estrela e agora ela fazia perguntas desesperadas para si mesma e para o Olho Ardente Trilobado: Onde o menino pode estar? Por que ele violou a promessa solene que fez para mim e usou a mágica do seu talismã? Não posso acreditar que Tolo encantou Jagun e Critch simplesmente para poder concretizar aquela fuga infantil. Ele é insensato, mas não tão desobediente assim. Santa Flor... será que ele teve algum outro motivo para deixar o barco?
Mas a espada mágica, que não sabia ler mentes, sempre respondia: A pergunta não é válida.
E então ela compreendeu... através do talismã, do Trílio Negro ou do próprio instinto, não sabia como. Mas de repente, teve certeza de que o príncipe Tolivar desembarcara com esperança de salvar a mãe.
Kadiya falou em voz alta com seu talismã.
— Olho Ardente, a minha irmã Anigel está em Brandoba? Sim.
— Onde?
Ela está num túnel de esgoto sob o palácio imperial. Kadiya procurou abafar um grito de felicidade.
— O que ela está fazendo num lugar desses? Ela... ela está presa?
Está fugindo de Orogastus. Não está presa.
— O feiticeiro a está perseguindo no subsolo? Ela corre perigo de ser capturada?
Orogastus não a persegue. No momento ela não corre perigo de ser capturada. A situação pode mudar se ela sair do túnel.
— Isso é inacreditável! Para onde Anigel está indo?
Ela está indo ao encontro do imperador Denombo.
Kadiya contou aflita para os cavaleiros o que o talismã dissera. Eles ficaram muito agitados, falando todos ao mesmo tempo, implorando para ela se comunicar com a rainha, para dizer para ela fugir do perigo iminente. A vanguarda da invasão agora se espalhava pela entrada principal do palácio, enquanto que, na praça, a população histérica entrava em pânico. Mas agora Kadiya estava preocupada apenas com a segurança da irmã.
— Fiquem bem perto de mim — ordenou ela para os Companheiros Juramentados. — Terei de me comunicar com a rainha Anigel. Ela deve estar com medo e preocupada, e será muito difícil captar sua atenção sem a ajuda de um segundo talismã — ela se abaixou e os quatro cavaleiros abriram suas capas emplumadas por cima dela e olharam fixo para o Olho castanho da espada quebrada.
— Talismã, deixe-me ver minha irmã Anigel — pediu — e falar também com ela, para que eu possa salvar sua vida. Peço isso em nome da Trindade e do Trílio Negro.
Por um momento, ela achou que havia fracassado. Então, o barulho e a confusão em volta desapareceram como se alguém houvesse fechado uma porta. Ela viu um túnel iluminado pelo brilho dourado do trílio-âmbar, um lugar de blocos de granito cortados por onde escorria uma argila brilhante, com água cinzenta correndo no fundo e o ar estranhamente cheio de poeira. De pé, completamente imóvel e boquiaberto de choque, o rei Ledavardis de Raktum segurava Anigel em seus braços poderosos. Um outro homem, de cabelo cor de cobre e parecendo igualmente atónito, estava de pé atrás do rei. Ao lado dele, Kadiya viu o príncipe Tolivar.
— Dama dos Olhos! — coaxou o pirata. — O que está fazendo aqui?
Anigel deu um sorriso trémulo.
— Querida Kadi! Você veio se juntar a nós no nosso passeio pelo esgoto de Brandoba?... Ponha-me no chão, Ledo.
Kadiya então descobriu que conseguira muito mais do que esperava. Além de ver e falar com a rainha e seus companheiros, eles também viam a imagem dela, num transporte mágico.
— Como veio parar aqui embaixo? — perguntou Kadiya para a irmã. — Está ferida?
— Ledo e seus amigos me arrancaram das garras de Orogastus — disse Anigel. — Estou bem, a não ser por um tornozelo torcido durante o meu salvamento, o que torna a caminhada difícil.
— Que visão bem-vinda, lady Kadiya — disse o rei pirata —, e o seu poderoso talismã mais ainda.
— Não estou com vocês em carne e osso — disse Kadiya com pesar. — Isso é apenas uma imagem do meu corpo verdadeiro, que continua lá em cima, perto da fonte dourada. Vim trazer notícias terríveis. Orogastus e seu exército atacaram o palácio imperial. Vocês têm de voltar agora mesmo...
— Não podemos — disse o homem ruivo calmamente. Ele carregava uma arma dos Desaparecidos, apoiada no ombro. — Para impedir que qualquer um viesse atrás de nós, de tempos em tempos explodimos o túnel por onde passávamos com o raio mágico desse artefato muito útil. É impossível voltar.
— Em poucos minutos o palácio vai pertencer aos guerreiros do feiticeiro e aos Homens da Estrela — disse Kadiya. — O imperador já foi feito prisioneiro.
— Pobre Denombo! — o homem abaixou a cabeça. — Minha irmã certamente vai matá-lo. Que Matuta lhe conceda a paz eterna.
— Este é Gyor, irmão mais novo do imperador — explicou Anigel para Kadiya. — Eles dois brincavam no sistema de esgoto quando eram meninos. Vindo por aqui, nós esperávamos poder avisar Denombo sobre os planos do feiticeiro.
— A irmã de quem Gyor está falando — acrescentou Ledavardis — é a arquiduquesa Naelore, membro da Guilda da Estrela e malfeitora renomada, que conspirou com Orogastus para usurpar o trono.
— Não há outra saída do esgoto — perguntou Kadiya desesperada — a não ser pelo palácio?
O arquiduque ergueu o rosto manchado de lágrimas.
— Este é um escoadouro das chuvas, não um esgoto propriamente dito. Os tubos acima de nós servem aos jardins suspensos e às goteiras dos telhados do palácio. Mas, uma vez embaixo da ala norte do prédio, podemos entrar em outro condutor de esgoto. É um túnel sujo e barulhento que nunca explorei, mas sei que ele acaba desembocando num canal que vai até o rio Dob. Infelizmente não há saída do túnel a não ser por aqueles que ficam dentro do palácio até chegar ao canal, a quase meia légua de distância da muralha fortificada.
— Vocês terão de continuar até o canal — resolveu Kadiya. — Meus homens e eu descobriremos um jeito de entrar no sistema de esgoto, guiados pelo meu talismã, e vamos encontrar vocês. Encontrem um lugar seguro e esperem por nós. Juntos daremos um jeito de viajar até o mar pelo rio. Só Deus sabe o que vai acontecer depois. Tínhamos um barco aborígine ao nosso dispor, mas o capitão está dormindo um sono encantado...
Todos tinham esquecido o príncipe Tolivar que interrompeu Kadiya.
— Jagun e Critch vão despertar do meu encantamento ao amanhecer, tia Kadi. Vocês podem pegar o barco então e podemos zarpar em segurança.
A visão de Kadiya olhou fixo para o menino em silêncio.
— Tolo, onde está seu talismã? — perguntou ela.
A rainha Anigel falou de repente, com a voz mais aguda:
— Meu querido filho deu o talismã como resgate da minha vida e das vidas dos seus irmãos que ainda não nasceram! O Monstro de Três Cabeças está com Orogastus, mas não adianta nada ficar lamentando esse fato agora. Não vamos mais falar do assunto.
— Muito bem — disse a Dama dos Olhos cerrando os dentes. — Não ouso ficar com vocês mais tempo. Que a Flor Sagrada os proteja e oriente até nos encontrarmos de novo.
A imagem desapareceu.
Kadiya contou para os Companheiros Juramentados o que acontecera no túnel. Eles ficaram felizes de saber que a rainha Anigel e o príncipe Tolivar estavam bem, e declararam que estavam dispostos a abrir caminho lutando para sair da praça ao lado de Kadiya, se ela usasse o Olho Ardente Trilobado contra os inimigos deles.
— São os pobres cidadãos de Brandoba — disse ela para os Companheiros — que impedem nossa fuga, e não os capangas de Orogastus. Olhem em volta. Quase todos que usavam disfarces vermelhos ou pretos participaram do ataque ao palácio. A multidão apavorada que nos cerca é composta de pessoas comuns.
Ela se abaixou de novo, segurando seu talismã. Em volta deles a noite se enchia de gritos e de um horrível som de algo desmoronando. As pessoas pisavam umas nas outras tentando escapar.
— Precisamos entrar no sistema de esgoto como Anigel e seu grupo fizeram, e caminhar lá por baixo até um certo canal que desemboca no rio Dob. É lá que Anigel e os outros vão nos encontrar. Vou perguntar ao Olho Ardente como fazer isso.
Os cavaleiros esperaram muito preocupados, enquanto Kadiya murmurava suas perguntas e ouvia as respostas que pessoas comuns não podiam escutar. Mas quando ela ergueu a cabeça novamente, suas feições demonstravam desalento.
— As seções do túnel que ficam mais perto daqui foram deliberadamente destruídas pelos salvadores de minha irmã para evitar que os Homens da Estrela os seguissem. Para desviar dos obstáculos teremos de abrir caminho lá pelo norte do bulevar e seguir por ele dois quarteirões. Teremos acesso ao escoadouro puxando a grade no jardim da frente de uma das mansões.
— Isso significa entrar bem no meio do tumulto — avisou Melpotis — Talvez não seja possível afastar as pessoas com gentileza como vocês fizeram antes. Elas não terão para onde ir.
— Se ao menos eu fosse uma feiticeira mais experiente... — lamentou Kadiya.
— Dama dos Olhos — disse Melpotis implacável —, você terá de abrir caminho com o fogo do seu talismã. Não há outro jeito de penetrar naquela confusão louca.
— Não posso matar gente inocente! — gritou ela.
Sainlat soltou uma praga desesperada, arrancou fora sua ridícula fantasia cor-de-rosa e pisou nela com uma satisfação maliciosa. Então desembainhou sua espada.
— Não podemos ficar aqui conversando! Eu estou pronto para abrir caminho com a minha espada até a entrada do túnel.
— E eu também — disse Melpotis, tirando a fantasia dele e pondo o elmo.
— Já sei! — o rosto jovem e imberbe de Edinar se iluminou. — Dama dos Olhos, peça ao seu talismã para fazer as pessoas que nos atrapalham dormir um sono encantado, como o príncipe Tolivar fez com Jagun e o cadoon! Elas cairão no chão e poderemos pular por cima delas.
Kadiya ficou meio cética.
— Eu nunca fiz isso, mas posso tentar.
Mais uma vez, como fizera durante o transporte inesperado, Kadiya usou toda a sua força para conseguir acalmar seus pensamentos. Franziu a testa quando uma grande explosão fez-se ouvir do lado do palácio e surgiram labaredas de diversas janelas do segundo andar, provocando uma gritaria de medo na multidão. Mas então ela se controlou e se concentrou num único folião patético, com suas penas destruídas, chorando e balbuciando sentado na beira da fonte a poucas varas dali.
Durma e só acorde ao amanhecer, disse ela para ele, segurando o talismã no alto e ao mesmo tempo fechando os olhos para visualizá-lo dormindo tranqüilamente. Quando abriu novamente as pálpebras, o homem estava caído numa poça de água cinzenta, com um leve sorriso nos lábios.
— Eu consegui! — exclamou exultante.
Kadiya tentou novamente, pensando em dois encrenqueiros que discutiam com uma ferocidade absurda. Manteve os olhos abertos dessa vez, imaginou os dois caindo inconscientes nas pedras molhadas do calçamento e mais uma vez pronunciou o encantamento. A dupla desmontou suavemente como crianças que caem no sono.
— Companheiros — disse Kadiya, respirando fundo —, estamos prontos para seguir adiante.
Ela removeu a fantasia, revelando sua armadura de malha de escamas com o brasão do Trifólio com Olhos e pôs o elmo que carregava numa bolsa presa à cintura. Então, ela ergueu o talismã. A gota de trílio-âmbar incrustada entre os lobos brilhou.
— Fiquem perto de mim — disse ela para os cavaleiros. — Vou tentar pegar uma faixa bem larga para não termos de pisar nas pessoas adormecidas.
Eles partiram sob o chuvisco da fonte na direção do mesmo bosque onde Anigel e Tolivar tinham se escondido, passando pela periferia da multidão no início com certa facilidade. Kadiya balançava o talismã para frente e para trás, olhando só uma fração de segundo para cada pessoa que ficava no caminho. Arruaceiros que gritavam histéricos ou corriam de um lado para outro numa fúria insana começaram a cair. Os que continuavam de pé, que não eram atingidos pela mágica, recuavam apavorados quando os outros caíam em volta deles. Alguém gritou:
— Uma feiticeira!
Houve uma gritaria generalizada, pontuada por mais gritos:
— Feitiçaria! Cuidado!
A multidão se afastava de Kadiya, lutando desesperadamente para fugir dela, acreditando que as pessoas caídas tinham sido mortas pela mágica.
Kadiya e os Companheiros seguiram em frente, pulando os corpos. Ela usava toda a sua capacidade de concentração para provocar o sono mágico, confiando que os cavaleiros a levariam na direção certa. Depois de passar pelo pequeno bosque eles foram para a alameda, onde a multidão era mais compacta e estava mais amotinada. Os carros alegóricos que distribuíam presentes tinham sido derrubados e os animais de tração estavam apavorados e histéricos. Bandoleiros haviam se apossado das caixas que continham os presentes imperiais e agora brigavam para ver quem ficava com elas, espalhando as lembranças coloridas por toda parte enquanto se socavam. Uma das moças que distribuía presentes estava deitada e imóvel, toda ensangüentada, pisoteada por um fronial enlouquecido.
Havia outras pessoas feridas e mortas por toda parte, mas Kadiya e seus cavaleiros tinham de continuar pela rua em ebulição, deixando um rastro de corpos inconscientes e se defendendo ocasionalmente de algum atacante tresloucado.
A mansão que era o objetivo deles já estava a menos de trinta varas de distância, logo depois de uma rua transversal apinhada de arruaceiros. Paradoxalmente, os que estavam nas ruas menores lutavam para retornar à praça e não para fugir de lá. No início ninguém sabia como explicar tal movimento anómalo.
Quando Kadiya e os Companheiros tentaram enfrentar essa massa de gente, a manobra deles que até ali havia funcionado começou a falhar graças à quantidade enorme de pessoas que os cercavam. Não importava quantos caíam adormecidos, outros surgiam para ocupar seus lugares. A pressão inexorável da turba que avançava tornava impossível para Kadiya executar a magia. O medo justificado dela, de que os que dormiam certamente seriam esmagados e mortos, acabou com sua concentração.
Edinar e Sainlat, que estavam à direita de Kadiya e sujeitos aos ataques mais fortes, descobriram que até suas espadas eram inúteis para abrir caminho pela torrente humana. Eles não podiam avançar mais. Impotentes, estavam sendo levados para o outro lado da alameda e de volta para a praça central.
Do norte, na rua lateral apinhada de gente, veio o trinado e o zumbido bem alto do disparo das armas antigas, clarões de luzes coloridas e os gritos agonizantes de pessoas queimadas. Kadiya soube então que uma segunda força de invasores estava avançando por ali, levando as pessoas histéricas a correr na frente deles, livrando-se dos retardatários com uma eficiência mortal.
— Homens da Estrela! — berrou Edinar no ouvido de Kadiya. — E outros vilões de vermelho, montados em froniais! Vire o raio mortal do seu talismã para eles...
As palavras do jovem cavaleiro se transformaram num grito. Ele foi arrancado do lado de Kadiya e desapareceu numa confusão de corpos pretos. Um segundo depois, Sainlat também sumiu e os irmãos Melpotis e Kalepo tropeçaram e foram tragados por baixo dos pés dela.
— Talismã! — gritou Kadiya desesperada — Socorro!
Ela segurou a espada quebrada bem alto mas, no mesmo instante, sentiu que caía. O Olho Ardente Trilobado escapou de seus dedos. Ela viu um clarão verde ofuscante e ouviu alguém berrar. Sacudida e sendo jogada como uma folha numa torrente, ela desmaiou antes de bater no calçamento de pedras.
Ela recobrou a consciência meio sufocada sob um grande peso e sem poder se mexer. A gritaria ensurdecedora dos arruaceiros diminuíra e os únicos sons que ouvia por perto eram gemidos, choro, gritos sufocados pedindo socorro, os guinchos dos froniais e os bufos e xingamentos de homens fazendo um esforço enorme.
Estavam tirando corpos de cima dela.
Um dos joelhos latejava, mas sua armadura... ou a mágica do talismã... parecia que tinha sido a sua salvação, impedindo que se ferisse mais. Ainda estava usando seu elmo, deitada com o rosto para baixo, em cima de alguma coisa. Ou alguém.
— Companheiros! — conseguiu ela dizer. — Sou eu, Kadiya. Vocês estão bem?
— Os seus guerreiros não podem ajudá-la agora — disse uma voz forte de mulher.
Antes de Kadiya poder emitir qualquer som, os últimos corpos foram tirados de cima dela, mãos enluvadas a agarraram e a puseram de pé com brutalidade. Ela ficou tonta e a vista se tornou turva, sentia uma pontada aguda de dor no joelho e teria caído se os guerreiros sobranianos não a segurassem.
Ela levantou a cabeça lentamente. A visão clareou e ela viu que a maior parte da turba tinha sumido da alameda, deixando um rastro de corpos empilhados. Uma tropa de froniais, todos enfeitados com pedras preciosas, fez um círculo em volta dela, nervosos com a carnificina, os cavaleiros estavam armados da cabeça aos pés com esplendor bárbaro e todos usavam capas com penas vermelhas.
O líder deles, olhando para Kadiya com um sorriso malvado, era uma mulher que usava uma magnífica coroa em forma de pássaro. Sua armadura era negra e prateada, e pendurada ao seu pescoço havia uma Estrela de platina.
— Amarre a bruxa, Lucaibo — disse ela —, depois pegue o talismã. Faça exatamente conforme eu instruí, se não quiser terminar como Kiforo, Tedge e aqueles outros cavaleiros infelizes.
Um dos captores de Kadiya amarrou seus pulsos e tornozelos enquanto o outro a segurava. Então, o homem chamado Lucaibo desafivelou a bainha da espada e a pôs no chão. Olhando para baixo, Kadiya viu que o Olho Ardente Trilobado estava num espaço aberto nas pedras manchadas de sangue. O âmbar incrustado no cabo do talismã estava apagado. Em volta dele havia um homem corpulento morto com os olhos bem abertos e cinco volumes incinerados que haviam sido, algum dia, seres humanos. Pessoas hostis obviamente tentaram pegar a espada mágica e morreram por isso. Mas o corpo que não estava queimado...
Uma pontada de dor percorreu o corpo de Kadiya quando ela compreendeu que era Sainlat. O cavaleiro não havia morrido pisoteado. Uma espada sobraniana de duas pontas estava enfiada no pescoço dele.
— Passe em segurança para o outro lado, querido Companheiro — sussurrou, e sentiu as lágrimas escorrendo pelo rosto.
Ela quase não notou quando Lucaibo usou a ponta da bota com proteção de aço para pôr a bainha em cima da lâmina quebrada do talismã, cobrindo-a sem se ferir. Ele então pegou o Olho Ardente e o prendeu nas costas de Kadiya com muitas voltas de corda para garantir e para imobilizar seus braços ao lado do corpo.
— Agora coloque-a na sua sela — disse a mulher coroada —, e vamos para o palácio, onde está tudo preparado.
— Onde estão meus outros três cavaleiros? — perguntou Kadiya em voz baixa. — E quem é você?
— Os seus capangas estão mortos, bruxa, esmagados pela turba. Eu sou a imperadora Naelore. Você terá o privilégio de verme assumir meu trono... depois que eu entregar o seu talismã para Orogastus.
O Arquimago do Firmamento tinha hospedado Haramis num belo apartamento, próximo a sua enorme biblioteca, e insistiu que ela a usasse como quisesse. Ele também apresentou para ela diversos tipos de sindonas que atenderiam a todas as suas necessidades — portadoras, mensageiras, serventes, consoladoras e sentinelas — e mostrou para ela os viadutos fixos através dos quais ela poderia viajar de uma Lua para outra. Depois, dizendo que ele a procuraria de novo quando chegasse o momento certo, foi embora para a sala de estudos.
— Momento certo para quê? — Haramis quis saber e correu atrás dele pelo corredor.
O velho apenas deu uma risadinha e bateu a porta da sala de estudos na cara dela.
Quando ela usou o trílio-âmbar no seu talismã inutilizado para entrar, Denby não estava lá. Aparentemente havia usado o viaduto do estúdio para viajar para um destino misterioso e o portal mágico não funcionou quando ela se comunicou com ele. Era óbvio que seu âmbar não considerava o viaduto uma porta de verdade.
Frustrada e irritada Haramis então foi para a biblioteca e procurou alguma pista de alguma maneira de escapar dali. Três dias depois ela não tinha encontrado nenhuma informação útil sobre o funcionamento dos viadutos. No entanto, uma antiga referência, junto com o diagrama do Cetro que o Homem Negro tinha dado para ela, parecia confirmar o que Orogastus havia dito. Os três talismãs, unidos, tinham a capacidade de recuperar o estado original não glacial do mundo, se manejados de forma apropriada. Infelizmente essa volta do equilíbrio produziria mudanças tão horrendas no clima e na forma do continente que a civilização certamente acabaria... a menos que alguém disciplinasse a população apavorada com uma vontade de ferro e mágica invencível.
Um tirano... como Orogastus.
Depois da terrível confirmação, Haramis foi mais uma vez para a Lua da Morte, e gritou para os Desaparecidos que dormiam no limbo:
— Não há outra esperança? Tem de ser uma escolha entre o Gelo Conquistador e o regime cruel da Guilda da Estrela?
As belas formas flutuando em suas bolhas douradas não ofereciam uma solução alternativa, nem seus pedidos para o Trílio Negro. Até a sabedoria e o bom senso pareciam tê-la abandonado, deixando apenas um vazio de desespero.
— Se ao menos eu pudesse voltar para a terra... para a solidez da terra que alimenta a minha mágica pessoal! Enquanto permanecer prisioneira aqui não há como alterar o destino terrível que Denby decretou.
Ou será que há?
O Senhor Negro do Firmamento era um Arquimago, afinal de contas, comprometido com a solenidade da função do mesmo modo que ela. Nenhum deles podia fazer mal a um ser pensante...
Ela avaliou uma idéia por um longo tempo. O sucesso dependeria de atrair a atenção do louco e parecia haver só uma maneira de fazer isso. Ela foi até a Gruta da Memória na Lua do Jardim e sentou no banco diante do globo brilhante, rezando em silêncio. Depois de muitas horas uma sindona consoladora apareceu, um ser com a forma de uma mulher com uma túnica dourada, com o corpo liso e duro como marfim, mas capaz, por algum milagre, de se mover com a graça de um ser humano. Ela foi bondosa e solícita, e tentou convencer Haramis a voltar para o seu apartamento, jantar e dormir.
Mas Haramis não quis.
— Se você quer mesmo me consolar — disse ela para a estátua viva —, diga a Denby para me libertar dessas Luas. Para ele deixar eu voltar para a terra, para poder cuidar dos meus deveres, orientando as pessoas que vivem lá. Senão eu ficarei aqui nessa gruta, sem comer nem beber, até morrer. E a minha morte será culpa de Denby por ter me mantido injustamente presa.
A sindona abaixou sua cabeça dourada.
— Vou contar para o Arquimago do Firmamento o que você disse.
Ela foi embora por um viaduto no fundo da pequena caverna, que Haramis não tinha notado antes.
Ela continuou na sua vigília mais três dias, cada vez mais fraca por causa do jejum e com uma sede horrível. Finalmente, quando estava deitada no chão coberto de musgo da caverna, ouviu o Homem Negro chamar seu nome.
Haramis levantou a cabeça e falou num sussurro bem fraco:
— Você chegou cedo demais, Homem Negro. Eu ainda não estou morta e o talismã que você cobiça ainda está ligado a mim.
— O que você quer dizer, minha querida? — a voz de Denby tremeu com uma inocência ofendida.
Ela se ergueu e sentou.
— Será que não podemos ser sinceros um com o outro? É claro que você pretende manter-me presa até eu dar o Círculo de Três Asas para você, ou até eu morrer, e a ligação que ele tem com a minha alma se desfazer. Por que mais você teria me trazido para cá?
Os lábios roxos dele se contorceram num sorriso.
— Talvez para conhecê-la melhor... talvez para ensinar algumas coisas sobre a salvação do mundo! Não é fácil para um louco conhecer os próprios motivos.
Ela desviou o rosto deliberadamente, como se estivesse diante de um espetáculo repugnante.
— Não acredito que você é louco. Você é apenas velho e está mortalmente cansado, e perversamente determinado a ver o fim desse terrível jogo que você e seus colegas Arquimagos começaram há muito tempo.
— Por que diz isso?
— Eu encontrei o relatório na sua biblioteca, aquele que Orogastus também leu. Há doze mil anos você vem manipulando o destino das tribos e também dos humanos, procurando em vão desfazer o desastre que causou durante a guerra de encantamentos. Talvez você quisesse o melhor para o mundo no começo. Mas, ultimamente, acho que você ficou impaciente. Sua intromissão ficou mais descuidada e caprichosa, e o resultado foi que o desequilíbrio do mundo original, que estava melhorando lentamente, passou a piorar drasticamente. E agora o planeta está fadado a ser completamente coberto pelo gelo, graças à sua atitude arrogante.
Ele respondeu calmamente:
— Você tem razão em tudo, menos nessa última afirmação.
Haramis ficou de pé com dificuldade e encarou Denby.
— Binah e Iriane não entenderam que você era o motivo para a recente deterioração do mundo. Aquelas duas Arquimagas eram realmente altruístas e bondosas. De acordo com o plano delas, as Três Pétalas do Trílio Vivo teriam recriado o Cetro do Poder e promovido uma grande cura. Elas acreditavam que os acontecimentos naturais calamitosos podiam ser derrotados através da influência amorosa da Flor.
Denby fez um gesto brusco.
— Achei que podia valer a pena experimentar o plano delas.
— Mas você só fingiu concordar com elas — acusou Haramis. — Você já tinha engendrado uma solução mais rápida e mais drástica, e o nome dessa solução era Orogastus! Você adotou a filosofia negra da Estrela que obrigaria almas livres a reverenciar um déspota, supostamente para seu próprio bem.
— Se formos esperar que a Trindade faça alguma coisa — disse o velho friamente —, podemos esperar indefinidamente. Esperei doze mil anos. Não posso esperar mais.
Haramis entendeu de repente.
— Você está morrendo.
— Estou. E antes de eu ir, quero ver o equilíbrio recuperado, ou então um fim! Você e suas preciosas irmãs serviram aos meus objetivos encontrando os pedaços perdidos do Cetro. Por mais poderoso que eu seja, não consegui fazer isso. Os talismãs tinham sido escondidos pelas sindonas, de forma que nenhum humano pudesse usá-los de novo como instrumento de agressão. Quando a mágica da Flor levou vocês até eles, fiquei bastante surpreso. Eu pretendia que Orogastus usasse a Cinosura da Guilda da Estrela para descobrir onde estavam os talismãs. Em vez disso, tive de usar a Cinosura para salvá-lo de vocês.
— Nós só nos defendemos da magia maligna dele...
— Chega dessa falação toda! Por que eu teria de me justificar para uma jovem principiante? Você e suas irmãs são tão covardes quanto o Colegiado de Arquimagos original. A solução deles para o primeiro desequilíbrio no mundo foi mandar o povo fugir para o espaço! Como vocês também têm medo de usar o Cetro, são irrelevantes. Só Orogastus importa agora.
— Minhas irmãs e eu não entendíamos completamente a natureza do nosso destino ou o dos talismãs. Com o tempo poderíamos compreender que o Cetro é a única esperança do mundo, e descobrir um jeito de usá-lo com segurança.
— Tempo! — rosnou o velho com desprezo. — Não há tempo! Orogastus agora tem o Olho Ardente e o Monstro de Três Cabeças. Ele deve receber a terceira peça do Cetro agora mesmo... e precisa usá-lo. Os terremotos que anunciam o fim já começaram. Logo a crosta continental vai rachar em mil lugares. Novos vulcões cuspirão sua fumaça, escurecendo o sol e envenenando o mar congelado para sempre. O único que viverá será o Gelo Sempiterno
Depois de fazer esse pronunciamento terrível ele fraquejou, como se tomado por uma profunda tristeza. Fez um leve movimento com a mão retorcida e duas Sentinelas da Sentença de Morte apareceram do viaduto dentro da gruta. As estátuas vivas com seus elmos coroados e cinturões de escamas azuis e verdes brilhantes ficaram lado a lado, serenas e mortais, com crânios dourados embaixo do braço esquerdo.
— Haramis — murmurou Denby —, dê-me o Círculo de Três Asas. Ordene que ele venha inofensivo para as minhas mãos e eu a libertarei imediatamente, para você poder salvar suas irmãs Kadiya e Anigel. Se você recusar, elas terão uma morte atroz.
Haramis levantou-se de novo e tocou no trílio-âmbar do seu talismã, que pendia da corrente ao seu pescoço.
— Não. Eu acho que você está blefando.
— Estou? Veja você mesma.
Ele se aproximou do globo e encostou o dedo nele. As marcas geográficas desapareceram e o globo se transformou numa grande bola de cristal, cheia de vapor perolado. A névoa foi formando imagens e Haramis viu uma câmara lúgubre, com muitos instrumentos de tortura. Acorrentada a uma parede e sentada sobre uma pilha de feno estava Kadiya, com o rosto inexpressivo, sem esperança. Ela estava observando um grupo de guardas que davam risada, liderados por um Homem da Estrela, arrastando quatro prisioneiros inconscientes. Um era um indivíduo ruivo que Haramis não conhecia, outro era o rei Ledavardis de Raktum, o terceiro era o príncipe Tolivar, e o último era Anigel, cujas roupas sujas estavam completamente rasgadas. O vilão que usava a Estrela deixou a rainha cair sobre a palha e começou a acorrentá-la com grilhões enferrujados.
Haramis deu um grito de horror e a visão dentro do globo sumiu na mesma hora.
— Eles estão em Sobrania — disse Denby sem emoção — prisioneiros da nova imperadora, Naelore, que tomou o trono daquele país depois de decapitar pessoalmente o irmão dela, Denombo. Você tem de saber que amanhã de manhã suas irmãs e os companheiros delas serão torturados até a morte... a não ser que Orogastus receba o seu talismã até o pôr-do-sol.
— Ele... ele nunca faria tal coisa! — disse Haramis. — Nem mesmo pelo Círculo de Três Asas.
— Talvez não — disse o Arquimago do Firmamento. — Mas garanto que a adorável Naelore fará, com muito entusiasmo, agora que uma misteriosa voz mágica plantou essa idéia na cabeça dela. A imperadora está muito aborrecida porque Orogastus não compareceu à sua coroação nem a ajudou a consolidar seu poder depois do golpe. Em vez disso, ele se trancou numa sala do palácio imperial com os dois talismãs. O objetivo dele é se familiarizar mais uma vez com o funcionamento deles... para poder encontrar você.
— A mim?
— Você.
— Para... para me obrigar a dar meu talismã para ele?
— Nem isso. O imbecil enfatuado quer simplesmente falar carinhosamente com você, para insistir nas suas tentativas fúteis de convencê-la de seu ponto de vista, através do que ele considera lógica. E amor — bufou Denby de desprezo. — Ele é uma decepção! Um tolo sentimental que tem de ser levado de volta para o caminho correto. A imperadora Naelore vai tratar disso... com a minha ajuda.
— Eu... eu não estou entendendo.
O velho começou a rir descontroladamente e só quando as gargalhadas deram lugar a uma crise de tosse ele conseguiu recuperar o controle.
— Oh, é uma ironia deliciosa. Naelore nutre uma paixão não correspondida por Orogastus, assim como ele é apaixonado por você, minha querida! A imperadora já presenteou seu amado feiticeiro com o talismã de Kadiya. Pobre mulher... ela ficou tão decepcionada com a reação distraída dele. Agora ela acha que se conseguisse entregar para ele o seu talismã também, Orogastus ficaria mais agradecido. Especialmente se tal gratidão fosse uma condição para ela lhe dar o presente... como sugere a voz misteriosa no ouvido dela.
— Seu manipulador vil! — gritou Haramis com ódio. — Você tem de tratar todo mundo como se fosse uma peça de um jogo?
— Evidentemente que sim. É muito entediante — ele estendeu sua mão escura. — O Círculo. Dê-me agora, ou assuma a responsabilidade pela conquista final do Gelo.
— Seu fanfarrão arrogante! — gritou ela. — Não acredito que Orogastus é a única esperança do mundo... e acho que você também tem suas dúvidas. Você é tão orgulhoso e está tão consumido pela culpa que se recusa a levar em consideração qualquer outra solução que não seja a sua!
— Dê-me o Círculo — repetiu —, senão vou ordenar que as sentinelas o tirem de você. E como você bem sabe, elas podem matar.
— Você violaria seu juramento de Arquimago? — perguntou ela com a voz firme, já sabendo a resposta.
— Não seja boba — disse ele. — Eu faria tudo que fosse preciso.
Subitamente, Haramis correu para cima do velho com os braços estendidos para frente, deu-lhe um forte empurrão que o fez cambalear para trás, caindo nos braços das sentinelas, com um grito de espanto. Antes de Denby poder fazer qualquer coisa para impedi-la, Haramis correu para dentro da gruta e disse:
— Ativar sistema do viaduto!
Ela entrou no círculo negro e desapareceu.
— Você não vai me desafiar! — berrou Denby. — Não igual aela!
Ele foi mancando até o viaduto e entrou nele, chamando as sindonas para irem junto.
Ele programara seu portal mágico para dar na sua própria sala de estudos na Lua do Homem Negro. Quando ele apareceu, viu Haramis caminhando com passos largos para uma porta redonda ao lado da grande janela de observação. Era a mesma que ele tinha avisado que ela devia evitar quando se conheceram, seis dias antes.
— Pare! — gritou ele.
— Meu trílio-âmbar abre qualquer fechadura — disse ela, virando de frente para ele. — Até essa.
Ela ergueu o bastão e a gota dourada aninhada entre as asas reagiu brilhando.
— Não faça isso! — ele gemeu, imóvel entre as duas sentinelas. — Essa escotilha é uma relíquia dos Dias do Desaparecimento e agora se abre para o vazio sem ar entre as Luas. Nós dois morreremos se você abrir, e o talismã se perderá para sempre!
— Então será assim — disse Haramis. — Pelo menos o seu joguinho diabólico terminará. Que o nosso mundo enfrente o destino que a Trindade preparou para ele... e não o que você determinou.
— Façam-na parar! — berrou Denby para as sentinelas. Antes de Haramis poder dar a ordem para a porta abrir as sindonas levantaram o braço direito e apontaram diretamente para ela. Ela viu dois raios de luz quase invisível saindo dos dedos delas avançarem cerca de um palmo e refletirem de volta quando o trílio-âmbar emitiu um clarão. Uma explosão imensa fez a sala tremer. Cega e tossindo no meio de uma nuvem de poeira, ela foi jogada contra a escotilha fechada, e pôs as mãos na frente do rosto num gesto instintivo de proteção. Ela esperava a morte instantânea. As sentinelas deviam ter transformado seu corpo em cinzas, deixando apenas seu crânio carbonizado inteiro. Mas, em vez disso, ela ouviu um barulho enorme, como se uma devastadora chuva de pedras tivesse se abatido sobre ela. E, finalmente, o silêncio, quebrado apenas por um fraco gemido.
Haramis abaixou as mãos e viu através da poeira que o estúdio estava em ruínas, a não ser por uma pequena área em volta dela. As poltronas de couro estavam esfarrapadas, a mesa e a escrivaninha reduzidas a lascas, as estantes caídas e arrebentadas, os antigos instrumentos científicos transformados em metal retorcido e disforme. No chão, havia pilhas de fragmentos cor de marfim, misturados com pedaços pintados de azul e verde. Um único crânio dourado intacto rolou aos pés dela.
Ele estava deitado embaixo dos detritos, sangrando de uma centena de ferimentos. Haramis foi até ele e se ajoelhou, e levantou a cabeça dele. Nenhuma feição era reconhecível naquela máscara de sangue e poeira, apenas a boca dele.
— Vou chamar uma consoladora — disse ela —, uma das sindonas curandeiras...
— É tarde demais — mal dava para discernir as palavras dele. — O Trílio Negro... Eu devia saber... mais antigo que o Colegiado, mais antigo que a Estrela... Três Pétalas para exercer o poder e o Arquimago do Céu para orientar, se você quiser, Haramis... o amor é permissivo, a devoção não é... Eu só queria salvá-lo... o pobre mundo.
— Eu sei — ela o acalentou nos braços. A gota de âmbar brilhava intensamente — Diga como posso voltar.
— O viaduto de... Nerenyi.
Essas palavras foram ditas com o último sopro de ar dos pulmões dele. Então Denby Varcour, o último herói dos Desaparecidos e Arquimago do Firmamento, fez sua passagem para o outro lado.
Ela chamou uma das sindonas consoladoras para curá-la da provação do jejum. A cura não podia ser completa porque o que ela mais precisava era de um sono reparador. Mas, depois, ela conseguiu comer, beber, vestir sua túnica, sua calça e sua capa branca de Arquimaga, e se preparar para partir. Quando saiu de seu apartamento, Haramis ficou atônita ao ver uma multidão de outras estátuas aguardando no saguão. Eram dezessete serventes, doze portadoras, cinco mensageiras, mais uma consoladora e vinte e duas sentinelas.
— Essas servas estão prontas — disse a consoladora que cuidara dela — para obedecê-la cegamente agora que o Arquimago do Firmamento não vive mais.
— Querem me mostrar como se opera o sistema de transporte do viaduto — pediu Haramis —, para eu poder escolher o meu destino quando entrar?
Uma das sindonas mensageiras se adiantou.
— Posso fazer isso agora mesmo, Arquimaga, desde que a senhora use um viaduto que possa ser programado. Alguns sistemas possuem uma rota fixa. Serão necessárias umas vinte horas de estudo para a senhora aprender o processo de programação.
— Tanto tempo? — exclamou Haramis desanimada. — Mas eu preciso salvar minhas pobres irmãs e os outros antes do sol nascer na terra de Sobrania!
— O viaduto dentro do quarto de Nerenyi Daral é um desses fixos — disse a mensageira —, ele vai transportá-la para o lugar que quiser simplesmente entrando nele. Além do mais, se levarme junto na sua viagem, poderei reprogramar os outros viadutos de acordo com as suas ordens.
— Graças à Flor!
Haramis deu um grande suspiro de alívio e ficou um momento pensando.
— Todas vocês, menos esta mensageira, esperem aqui até eu dar uma ordem — as cabeças sorridentes fizeram que sim. — Você — disse Haramis para a sindona escolhida —, leve-me agora mesmo para o viaduto de Nerenyi Daral.
O portal mágico se abriu num pequeno bosque. Quando Haramis apareceu, seguida pela mensageira, ela encontrou uma estrada de terra paralela a um penhasco à beira-mar. As Três Luas brilhavam no céu, emolduradas por nuvens velozes, e um vento forte que soprava do mar trazia as primeiras gotas de chuva. Em alto-mar, havia clarões de relâmpagos e um leve troar de trovões. O campo em volta era rochoso e desolado, a não ser por uma pequena casa às escuras, feita de pedras brancas, situada num promontório do outro lado da estrada. Dos dois lados embaixo da casa havia praias de seixos açoitadas pelas ondas que tinham um brilho estranho e pareciam meio lerdas.
— Onde estamos, exatamente? — perguntou Haramis para o seu Círculo de Três Cabeças.
A sindona mensageira só sabia que o viaduto ia dar em Sobrania.
Essa é a antiga villa da imperadora Naelore, disse o talismã. Fica a três léguas e um quarto ao sul da cidade de Brandoba.
— Alguém mora aqui?
Está abandonada há dois anos, desde que Naelore e seu administrador Tazor se juntaram à Guilda da Estrela.
Haramis balançou a cabeça satisfeita e disse para a sindona ao seu lado.
— Então vamos nos apossar.
Ela ordenou ao seu talismã para proteger a casa da visão de Orogastus ou de qualquer outro inimigo, destrancou a porta e entrou. O lugar estava embolorado e sombrio, restando apenas algumas peças simples de mobília. A sala de estar tinha vista para o mar e de um lado para Brandoba, subindo a costa. Parecia que havia vários focos de incêndio pela cidade, pois as nuvens acima dela estavam manchadas de vermelho e laranja. Havia também um brilho vermelho peculiar e intermitente, a leste no céu, que era irregular demais para ser a luz do amanhecer.
Haramis estudou o cenário por alguns minutos, perplexa, depois levantou seu talismã.
— Por que Brandoba está queimando?
Os incêndios começaram durante o tumulto que acompanhou a invasão de Orogastus.
Ela fez mais perguntas ao Círculo até obter um quadro completo do golpe bem-sucedido e de que forma Kadiya, Anigel e os outros haviam sido capturados. Ainda faltavam três horas para o sol nascer. A capital estava sob o controle dos legalistas de Naelore e da Guilda da Estrela. Denombo, seus nobres e a maior parte da guarda imperial haviam sido dizimados, e muitos milhares de civis morreram na correria que agora havia praticamente acabado. Não existia nenhuma oposição organizada aos conquistadores. A nova imperadora fora coroada às pressas, e reis subordinados e chefes tribais de Sobrania que estavam na cidade para o festival dos pássaros tropeçavam uns nos outros na ânsia de aclamá-la.
As péssimas notícias não surpreenderam Haramis. Ela não tentou ver Orogastus pois lembrou que da última vez que ele se apossara de dois talismãs, anos atrás, durante o cerco de Derorguila, ele conseguia de alguma maneira ver onde ela estava quando ela pedia uma visão dele. A hora do confronto dos dois ainda não tinha chegado.
Quando tentou determinar o lugar exato em que suas irmãs eram mantidas presas, Haramis se frustrou com a mágica da Estrela que ainda protegia o palácio imperial, como acontecera da primeira vez que tinha tentado avisar Denombo do perigo da Guilda da Estrela. Infelizmente não havia nenhum viaduto conveniente dentro dos muros do palácio, ou mesmo perto, que ela pudesse usar, por isso não seria possível contar com a ajuda da sindona no resgate. Ela teria de se transportar fisicamente para dentro, para poder salvar suas irmãs e seus companheiros. Levá-los para fora era possível, mas seria um desgaste enorme para a sua mágica. E se Orogastus a descobrisse, sem dúvida seria capaz de frustrar o resgate usando seus dois talismãs.
Mas parecia não haver outra alternativa. Quase como uma lembrança tardia, Haramis perguntou para o Círculo de Três Asas sobre o misterioso brilho distante no céu, a leste. A resposta foi espantosa.
É o reflexo de lava derretida saindo de certas crateras na cordilheira Collum, a mais de cem léguas de distância. Os picos são de origem vulcânica, com profundas camadas de cinzas em suas encostas que antes estavam cobertas de neve e de gelo. O calor da lava subindo derreteu o gelo e criou grandes torrentes de lama, que aumentam de volume cada hora que passa.
— A enchente... vai atingir Brandoba? — sussurrou Haramis.
Ela segue os leitos dos rios locais. O rio Dob, que passa no meio da cidade, é uma via principal. A lama acabará enchendo a bacia em que fica Brandoba, com uma profundidade de mais de cinqüenta varas.
— Daqui a quanto tempo...?
Menos de quatro horas.
— Bom Deus! Orogastus sabe o que está acontecendo?
Não.
— Mostre-me o fluxo de lama que ameaça a cidade.
Ela fechou os olhos e viu uma floresta num vale iluminado pelo luar. Muitas árvores se inclinavam e caíam numa terrível torrente viscosa e cinzenta que rodeava seus troncos. Uma árvore específica chamou a atenção dela, uma coisa enorme, com galhos baixos com mais de duas varas de espessura. O tronco dela ficou submerso, mas ela resistiu enquanto árvores menores dos dois lados eram arrancadas pela enchente.
Havia pessoas agarradas aos galhos mais altos.
— Santa Flor — murmurou a Arquimaga, imaginando quem seriam as vítimas da enxurrada.
Ela concentrou a visão nelas e reconheceu imediatamente a princesa Raviya e o príncipe Widd de Engi, a rainha Jiri de Galanar, o presidente Hakit Botai de Okamis, e os duúnviros de Imlit, Prigo e Ga-Bondies. A grande árvore que servia de abrigo para eles estremeceu e se inclinou. As raízes estavam sendo minadas pela torrente de lama.
Haramis deixou o talismã cair e ficou lá sentada espiando pela janela da villa. Se usasse sua mágica para carregar para longe os governantes em perigo, poderia não ter força suficiente para salvar suas irmãs. Mas a árvore ia cair a qualquer momento, e Ani e Kadi estavam a salvo, pelo menos até o sol nascer...
Ela tomou uma decisão, respirou bem fundo e desapareceu como a chama de uma vela que se apaga.
A visão cristalina que significava o transporte mágico escureceu e se transformou em galhos cheios de folhas fustigados pela ventania. Haramis se viu pairando no ar ao lado da árvore. Ergueu os braços e sua capa de Arquimaga ficou parecendo neve iluminada pelo sol, um branco luminoso com tons azulados brilhantes. O trílioâmbar no talismã era uma estrela dourada em miniatura, que funcionava como um farol.
— Meus amigos! — a voz da Arquimaga soou como um grande sino. — Vim salvá-los.
Os chefes de Estado deram gritos de alívio e todos, menos Ga-Bondies, que começou a balbuciar palavras sem sentido, começaram a fazer perguntas para Haramis.
— Não há tempo para explicações — disse ela —, preciso afastá-los do perigo, depois voltar para Brandoba e fazer o que for possível para evitar essa catástrofe iminente.
— Que Deus a ajude — disse a rainha Jiri de seu galho. — A lama está indo direto para a cidade. Tentamos desviar dela indo para a esquerda, enquanto ainda montávamos nossos froniais, mas outro grande canal cheio de lama cortou nosso caminho.
A velha princesa Raviya perguntou com sua voz fina:
— Você vai nos levar daqui com mágica, querida?
— Vou — disse Haramis. — Dois de cada vez. Você e Widd primeiro. Venham e fiquem juntos para eu poder cobri-los com a minha capa.
O casal ficou de pé num dos galhos mais largos, um feito duplamente perigoso, pois o vento soprava muito forte, e a árvore continuava a balançar, ficando cada vez mais inclinada e mais perto da torrente de lama. Haramis se aproximou, abraçou o príncipe e a princesa, e os três desapareceram. Passaram-se alguns minutos e a Arquimaga reapareceu sozinha. Sua aura oculta havia se apagado e seu rosto estava tenso por causa do grande esforço.
— Agora Jiri e Ga-Bondies — ordenou.
— Para onde vai nos levar? — o forte duúnviro quis saber, muito aflito.
— Para uma certa villa perto do mar, ao sul de Brandoba. É o melhor que posso fazer por enquanto. Transportar outras pessoas desgasta demais meus poderes mágicos.
Ela passou os braços por cima das duas amplas figuras e desapareceu de novo.
O retorno levou muito mais tempo dessa vez e, quando Haramis reapareceu, flutuava de cabeça baixa, rezando para ter forças, enquanto o vento forte levantava sua capa e a árvore continuava a ceder. Os dois homens restantes, com medo de se mexer, estavam lado a lado num galho a menos de uma vara acima da correnteza.
— Tem certeza de que pode fazer isso, Arquimaga? — gritou Prigo.
— Não — admitiu ela. — E se eu fraquejar no meio do caminho, existe uma possibilidade de nós três morrermos em algum reino desconhecido da escuridão.
A árvore deu um tranco violento quando suas raízes finalmente se soltaram. Ela começou a rodar e a flutuar rio abaixo e o fluxo cinzento cobriu os pés dos homens.
— Leve-nos — gritou Hakit Botai. — Qualquer morte é preferível ao afogamento na lama!
Haramis agarrou os dois como um abutre gigante pegando sua presa.
— Talismã! Transporte-nos para a villa perto do mar.
A badalada de sino que sinalizava o início da viagem mágica soou, mas era dissonante e desafinada. Haramis procurou reconstruir mentalmente a imagem cristalina do destino deles, mas o quadro mágico tremulou, assumiu uma fluidez sinistra e se desfez, disforme. Haramis e seus passageiros ficaram suspensos vários minutos num poço de luminosidade prismática. Seus pulmões não conseguiam mais sugar o ar e o repique do sino se intensificou a ponto de levá-los à agonia. Prigo e Hakit sentiram os braços da Arquimaga enfraquecendo. A visão misteriosa foi se apagando. Eles começaram a se afastar dela, sufocando, caindo num abismo de onde soava um clamor que parecia esmagar seus cérebros.
Flor Sagrada, seja a minha proteção e a minha força!
Luz! Uma casa feita de arco-íris, numa terra que parecia um enorme diamante, todo facetado... que foi se modificando lentamente, transformando-se numa casa comum, numa casa real. Os dois governantes desesperados finalmente conseguiram respirar. Sentiram o cheiro da maresia, a chuva no rosto, viram as paredes de pedra da villa cintilando ao vento na escuridão. Suas botas encostaram no solo rochoso e eles estavam salvos, apoiando um ao outro para não cair.
A porta da casa se abriu. Apareceu a silhueta de uma figura muito alta emoldurada no batente e um clarão de relâmpago revelou que não era humana, era uma estátua exótica de mulher, de marfim e ouro, que se mexia. Prigo e Hakit recuaram confusos, a coisa se adiantou sob a chuva, abaixou-se e pegou a Arquimaga inconsciente nos braços brilhantes.
— Vocês estão feridos? — perguntou a consoladora para os dois.
Eles balançaram a cabeça indicando que não, mudos. A estátua viva carregou a Arquimaga para dentro da casa, olhou para trás e disse:
— Entrem. Há comida e bebida para vocês aqui dentro, e agasalhos. Não tenham medo. Eu sou uma sindona, uma das servas da Dama de Branco.
— Ela... ela vai ficar boa? — perguntou Prigo timidamente, seguindo a sindona.
— Ela vai acordar logo e recomeçar seu trabalho — respondeu a consoladora. — Quanto à outra, não posso dizer.
Meu amor... fale comigo!
Os talismãs me disseram que você não está mais na Lua do Homem Negro, mas não revelaram onde você está agora, só disseram que está em Sobrania. Sei que Denby está morto. Sei que você continua com o Círculo de Três Asas. Você está bem? Aquele louco fez algum mal a você, tentando tirar seu talismã?
Haramis, diga alguma coisa!
Apenas se comunique mentalmente, e eu terei a visão e irei ao seu encontro. Não podemos esperar mais. O chão treme sob o palácio e não consigo acalmá-lo através de minha magia. Não sei ao certo se esses pequenos terremotos prenunciam o início da catástrofe final. Os talismãs que eu possuo se recusam a falar disso.
Se você sabe a verdade, então me diga!
Você sabe o que diz o antigo encantamento: o Bastão com as Asas, seu próprio talismã, é a chave para o Cetro e o seu unificador. Sem ele, o Olho Ardente e o Monstro de Três Cabeças são inúteis.
Eu sou inútil.
Venha me encontrar aqui no palácio dos bárbaros emplumados... ou deixe que eu vá ao seu encontro! Precisamos montar o Cetro do Poder juntos e usá-lo antes que seja tarde demais. Haramis! Haramis, meu único amor... fale comigo.
— O nascer do sol... Diga que ainda não amanheceu!
Ela lutou para se levantar do catre improvisado. A rainha Jiri estava ajoelhada ali ao lado, passando um pano molhado na testa dela. Uma sindona consoladora impassível estava de pé atrás da rainha, segurando uma bacia com água. O céu que era visível pela janela da villa estava cheio de nuvens cor de malva.
— Eles vão matá-los ao amanhecer! — gritou Haramis. — Tenho de levantar...
— Acalme-se, querida! — a rainha de Galanar passou o braço em volta dela. — Ainda falta meia hora para o sol nascer. Essa... essa sua estranha serva nos contou o destino terrível de suas irmãs. Ela também disse que você teria de dormir o máximo possível para recuperar sua força, para ter alguma chance de salvá-las.
A Arquimaga relaxou.
— Meia hora... Sim... deve bastar — ela sentou-se lentamente e disse para a consoladora: — Traga-me a minha capa — quando a sindona saiu do quarto, Haramis aceitou o vinho que Jiri estava oferecendo. — Onde estão os outros chefes de Estado?
— Um outro tipo de pessoa-estátua levou-os embora por um viaduto que fica do outro lado da estrada — disse a rainha — e explicou que os levaria a salvo para casa, para seus respectivos países. Resolvi ficar com você, apesar da estátua-enfermeira ter tentado me impedir. Ela disse que, quando a enchente de lama chegar a Brandoba, haverá um enorme terremoto e uma onda gigantesca destruirá a villa, junto com todas as partes da cidade que não estiverem soterradas pela lama. Isso é verdade?
Haramis passou a mão trêmula na testa.
— Essas coisas terríveis vão acontecer... a menos que eu consiga evitar.
Jiri ficou de cócoras e olhou calmamente para a Arquimaga.
— E você vai conseguir?
Devo dizer para ela?, pensou Haramis. Dizer que não é apenas Brandoba, que é o mundo inteiro que está à beira da destruição?
Ela pôs a mão no talismã pendurado ao seu pescoço. As Asas do Círculo estavam abertas e a gota de âmbar com o Trílio Negro fossilizado latejava no ritmo do coração dela.
Flor Sagrada, pode me aconselhar? Se eu der para Orogastus a terceira parte do Cetro, ele talvez consiga evitar o desequilíbrio final. Ele certamente poderia desfazer a torrente mortal de lama. Será que o meu destino é render-me à Estrela? Trílio Negro, é isso que eu tenho de fazer?
Mas a Flor dentro do âmbar ficou em silêncio, como sempre, e ela teve medo de fazer aquelas perguntas para o talismã.
Com os olhos cheios de lágrimas, Haramis buscou o consolo da mulher mais velha ajoelhada ao seu lado. O semblante mater-nal da rainha de Galanar exibia um sorriso melancólico que mesmo assim refletia uma esperança inabalável. Visto através do véu das lágrimas, aquele sorriso fez Haramis lembrar de outra mulher, morta há muito tempo, uma mulher que concedeu a ela e às suas irmãs os amuletos mágicos, que as lançou na busca de seus talismãs e que finalmente deu para Haramis a sua preciosa capa.
Filha do Trílio, não desanime.
— Binah? — murmurou Haramis incrédula.
A Dama de Branco, que fora madrinha das Pétalas do Trílio Vivo disse: Os anos vêm e vão muito depressa. O que está no alto pode cair, o que é muito querido pode se perder, o que está oculto deve, a seu tempo, ser revelado. E, no entanto, eu digo que tudo acabará bem. Acredite nisso, Filha! Lembre-se das últimas palavras do Arquimago do Firmamento. Lembre...
Haramis piscou os olhos para livrar-se das lágrimas. A rainha Jiri estava olhando para ela com uma expressão de ansiedade. A sindona consoladora que estava lá de pé, segurando a capa branca brilhante com suas mãos de marfim, perguntou:
— Arquimaga, a senhora está bem?
— Estou — disse ela. — Ajude-me a levantar.
Jiri e a sindona a puseram de pé. Haramis vestiu a capa e então disse para a estátua viva.
— Leve agora mesmo essa boa mulher para o seu reino de Galanar — ela então deu um beijo no rosto de Jiri. — Querida amiga, o que quer que aconteça comigo, você pode ter certeza de que em breve o seu povo precisará muito de sua coragem e sabedoria. Não os decepcione. Se a Trindade quiser, logo estarei lá para ajudá-la. Adeus.
Haramis segurou seu talismã e desapareceu.
— O que ela quis dizer? — perguntou Jiri para a sindona. Pela primeira vez ela parecia assustada.
— Ela quis dizer que chegou o dia do Trílio Celeste neste mundo — disse a estátua viva —, mas o que esse florescer anuncia só os Senhores do Ar podem dizer. Venha, rainha. Vou levá-la para casa, para a sua família e os seus súditos leais. O que está oculto será, a seu tempo, revelado.
O ruído distante de metal batendo indicou que a porta externa da prisão imperial estava sendo destrancada. A rainha Anigel se mexeu, abriu os olhos e bocejou.
— Ah, queridos amigos... o sol já está nascendo?
— Temo que sim — disse o rei Ledavardis suavemente para ela.
Estavam todos acorrentados em fila, jogados contra a parede sobre pilhas de feno fedorento. Bem no alto, perto do teto da câmara de tortura havia vãos estreitos por onde podiam avistar nuvens de cor púrpura.
Anigel sentou e começou a alisar e a ajeitar sua roupa rasgada.
— Então teremos de nos esforçar para morrer bem... Só lamento que Kadi e eu estamos sem o nosso trílio-âmbar. A Flor Sagrada talvez pudesse aumentar um pouco minha baixa auto-estima.
— Para não falar de soltar nossos grilhões — disse Kadiya. — Ah, que seja. Temos de nos consolar por saber que não vamos sofrer em vão nosso destino.
Os olhos azuis de Anigel pareciam concentrados em alguma visão interior reconfortante.
— Todos devemos passar para o além, mais cedo ou mais tarde. Mas apenas uns poucos com mais sorte podem morrer defendendo um mundo. Que os Senhores do Ar venham nos buscar depressa.
O rei e o arquiduque Gyorgibo murmuraram que estavam de acordo, e Kadiya também. Mas diferentes da rainha, que aparentava calma, quase chegando a um transe, os outros não conseguiam tirar os olhos do conjunto de instrumentos horrendos pendurados na parede oposta, nem da laje de granito manchada e arranhada, de três varas de comprimento, que ficava no centro da câmara. A laje estava inclinada e havia correias para os pulsos e tornozelos presas na parte de baixo. Logo depois da outra ponta, havia uma grande estrutura de tijolos que parecia um forno. Um fole, que funcionava com um mecanismo de madeira que Gyorgibo dissera que estava ligado a um moinho, bombeara ar para aquele forno a noite inteira, mantendo as brasas acesas e, de tempos em tempos, um capanga sujo de fuligem chegava arrastando os pés para pôr mais carvão e atiçar o fogo. Duas correntes enormes estavam presas a alguma coisa enterrada na camada de carvão. Formando um V invertido, elas se juntavam numa única corrente que, por sua vez, era presa numa roldana em uma barra de ferro. Gyorgibo se recusara a dizer o que a coisa enterrada no carvão poderia ser.
Eles ouviram vozes se aproximando, e o som áspero e agudo de risada de mulher ecoou pelo longo corredor abobadado fora da câmara.
— Minha irmã imperial está vindo supervisionar nosso tormento final — disse o arquiduque. — Ela parece muito animada.
— Que faça bom proveito — rosnou Kadiya. — É provável que a Arquimaga Haramis ainda esteja sob o poder do Homem da Lua, e que não saiba da nossa situação aqui. Eu daria tudo para ver a expressão de Naelore quando ela descobrir que acabou com a vida de reféns importantes por nada.
O rei Ledavardis suspirou.
— Eu não — ele virou para Anigel. — Parece que, afinal, não serei seu genro, querida rainha. Posso pelo menos pedir a sua bênção e o seu perdão pelo mal que causei à sua família e ao seu reino tempos atrás?
— Eu dou, de bom grado. E... mudei de idéia a seu respeito, Ledo. Se o seu destino fosse outro, eu teria ficado muito feliz de dar a mão da minha filha Janeel para você, em casamento.
O príncipe Tolivar, que havia sido posto entre Anigel e o rei graças a um carcereiro piedoso, estava tão quieto que os prisioneiros adultos pensaram que ainda dormia. Ele disse para Ledavardis:
— Eu também ficaria orgulhoso de ser seu irmão. O jeito de você salvar minha mãe e a mim foi... foi lendário!
— Você também encarou o feiticeiro com muita bravura, Tolo — o rei fechou a mão direita e só deixou o dedo mindinho esticado, que estendeu para o príncipe como um gancho. — Por isso, junte seu dedo mínimo ao meu! Vamos, não hesite. Tenho um último presente para você... Tolivar de Laboruwenda, eu o nomeio Corsário de Raktum, e por isso declaro que você é meu irmão e meu companheiro de navio em alto-mar!... Pronto. Agora estamos jurados. As feições do príncipe se iluminaram de deslumbramento e prazer enquanto ele olhava para os dedos enganchados.
— Sou um pirata de verdade!
— O maior! Mas lembre-se de que nós, raktumianos, agora estamos reabilitados, e que esse título é apenas de honra.
— Eu... eu vou tentar morrer com honra sob tortura — disse Tolivar para ele com uma voz meio trêmula. — Mas se eu fizer muito barulho, por favor, não pense mal de mim.
— Piratas nunca sofrem em silêncio! Faça todo barulho que quiser, rapaz... e eu vou berrar ainda mais alto, porque sou o rei pirata.
A porta de ferro se abriu com estrondo. Quatro homens, nus da cintura para cima, com as cabeças cobertas por capuzes de couro preto, entraram. Atrás deles, a imperadora Naelore, com um vestido de veludo marrom e acabamento de pele prata-azulada de diksu. Usava um simples diadema de platina no cabelo cacheado e, pendurado ao seu pescoço, a Estrela de Nerenyi Daral.
— Bom-dia — disse ela, e quando ninguém respondeu, ela inclinou a cabeça e sorriu. — Vocês vão aprender a ser educados daqui a pouco! A não ser que uma certa Arquimaga resolva dar mais valor às suas vidas do que ao seu talismã — ela virou para os torturadores. — Aprontem-se.
Os homens começaram os preparativos com eficiência. Um atiçou o fogo, dois começaram a girar uma manivela atrás do forno e o quarto verificou as correias na pavorosa laje de pedra.
A imperadora adotou uma pose dramática, com as mãos para cima, e gritou bem alto.
— Haramis, Arquimaga da Terra! Sei que você pode nos ver e ouvir. Também tenho amigos secretos no mundo da magia! Um deles me contou como conseguir o Círculo de Três Asas. Agora vamos, Arquimaga! Humilhe-se diante de mim e entregue seu talismã, e esses prisioneiros serão poupados. Ignore-me e eles terão uma morte horrível.
Os torturadores giravam a manivela, erguendo alguma coisa do meio do carvão. Lentamente foi subindo um tambor de ferro em brasa, com mais ou menos uma vara de comprimento e talvez dois palmos de diâmetro. Uma barra horizontal passava pelo meio dele, com argolas nas pontas onde estavam presas as correntes. Quando o cilindro foi içado acima do pé da pedra e esfriou um pouco, os prisioneiros puderam ver que era uma espécie de rolo. Sua superfície incandescente era cheia de pontas afiadas.
— Santas Ancas de Heldo! — assobiou Ledavardis chocado. Os outros, fora Gyorgibo, que sabia muito bem o que esperar, ficaram atordoados demais para dizer qualquer coisa.
— Haramis! — Naelore ergueu sua Estrela. — Não demore muito! O sol já está nascendo. O prazo que dei para você acabou.
Nada aconteceu.
— Imperadora — disse Kadiya —, o Mestre da Estrela tem conhecimento e aprova essa tortura?
— Fique calada, bruxa! — ordenou Naelore. Mas Kadiya insistiu.
— Eu lhe disse a noite passada que minha irmã estava visitando as Três Luas. Ela não pode responder a um chamado mágico. Eu mesma não consegui me comunicar com ela, nem usando dois talismãs. Esse seu artifício é inútil.
— Irmã, por que está fazendo isso? — gritou Gyorgibo. — Mate-me, se precisar, mas os outros não lhe fizeram mal algum.
— Ela fez! — respondeu furiosa a imperadora. — A arrogante Dama de Branco! E se estiver viva, ouvirá seus gritos, esteja ela com o Homem da Lua, ou escondida no mais profundo dos dez infernos.
E mais uma vez ela chamou Haramis, num tom de voz cada vez mais furioso e frenético.
O arquiduque balançou a cabeça.
— Brincar com feitiçaria destrambelhou a cabeça dela.
— Não — disse Anigel com tristeza. — O que a aflige é um outro tipo de perturbação.
— Calem a boca! — rugiu Naelore. — Senão mando arrancar suas línguas!
Os prisioneiros ficaram calados.
— Majestade imperial — disse um dos homens encapuzados —, está tudo pronto.
Gotas de suor pontilhavam a testa da imperadora e seu rosto estava vermelho. Ela começou a andar de um lado para outro diante dos cinco prisioneiros acorrentados, rodando a Estrela no cordão, nervosa.
— Qual será o primeiro a sentir as carícias de fogo do rolo? O rei pirata feio e temerário?... Não, acho que não. Ele não é tão amado assim pela Dama de Branco. Por que ela trocaria seu talismã pela vida de um bandoleiro do mar, caolho e corcunda? E, pelo mesmo motivo, não vou escolher você, meu inútil irmão caçula, apesar da sua agonia me dar um enorme prazer — ela deu uma risada histérica.
O rosto de Gyorgibo tinha se transformado numa máscara de pedra. Ele não se dignou a responder.
A imperadora parou para encarar Anigel.
— Será essa rainha miserável e imunda? Criatura pobre e patética! Ah... mas você torceu seu tornozelo na tentativa de fuga, não foi, e desmaiou com aquela dor insignificante quando meus comandantes a trouxeram para cá. Temo que você morra rápido demais sob tortura, talvez antes da Arquimaga se dar conta dos seus gritos de agonia.
— Experimente comigo, filhote de skritek — sibilou Kadiya, puxando suas correntes.
Naelore fingiu avaliar a sugestão.
— A bruxa corajosa que teria estragado nossa invasão e me privado do meu trono! Mas você chorou quando dei seu talismã para o Mestre da Estrela. Berrou como um filhote de snithe sendo chicoteado! Acho que gostaria de vê-la chorar de novo e implorar meu perdão — ela deu um passo para a frente e segurou o príncipe Tolivar pelo cabelo —, quando essa praga traiçoeira finalmente pagar por ter pecado tanto contra vocês.
— Ele tem o perdão de todos nós! — gritou Kadiya.
Mas Naelore acenou decidida e dois torturadores soltaram o príncipe dos grilhões na parede e o arrastaram, sem que o menino protestasse, até a laje de granito. Os homens encapuzados se atrapalharam, com dificuldade de ajustar os grilhões para prender o corpo pequeno de Tolivar. Mas, finalmente, o menino foi imobilizado na parte de baixo da pedra inclinada.
A imperadora foi até lá e afastou um cacho de cabelo louro e molhado que caíra nos olhos do príncipe.
— Você tem de enxergar bem, bravo rapaz — disse ela e depois gritou para o teto. — E a Arquimaga Haramis também tem de ver! Observe o rosto dele, Dama de Branco, quando o terrível rolo queimá-lo e amassá-lo dos pés à cabeça.
Ela estalou os dedos. Dois torturadores giraram a manivela de novo, desta vez no sentido contrário. Os outros dois seguravam uma corda grossa que puxava o mecanismo para frente, de forma que o pesado tambor em brasa descesse exatamente na parte mais alta da pedra, a menos de uma vara e meia dos pés do príncipe. O cilindro cheio de pontas encostou na superfície da pedra e sozinho começou a descer com uma lentidão agonizante para cima do menino, rangendo horrivelmente em seu eixo. Os homens que giravam a manivela pararam de fazer força e se afastaram para assistir, enquanto os outros na corda controlavam o progresso do rolo para que não cumprisse seu papel rápido demais.
— Haramis! — gritou Naelore, parada do outro lado da pedra, logo atrás da cabeça de Tolivar. — Você está vendo?
O chão de pedra da câmara de tortura tremeu.
— Terremoto! — berrou Ledavardis, mas ninguém prestou atenção nele, a imperadora menos ainda.
Os olhos dela estavam pregados no rolo que avançava e suas mãos apertavam a ponta da pedra de tortura.
O cilindro incandescente com suas correntes foi puxado para um lado quando a câmara balançou, mas Naelore só se firmou, esperando. As pontas arranhavam a pedra dura, soltando faíscas em todas as direções, e os quatro torturadores se agarraram à corda e puseram o rolo fumegante de volta no lugar. Ele continuou a avançar para cima do príncipe Tolivar.
Houve um outro tremor, mais violento que o primeiro.
Os torturadores praguejaram, esbarrando um no outro e cambaleando para lá e para cá, tentando se agarrar à corda e ao mesmo tempo evitando o carvão em brasa que caía do forno quebrado num jorro incandescente. Uma enorme rachadura se abriu na parede oposta à dos prisioneiros acorrentados e os instrumentos de tortura pendurados nela caíram com estrondo no chão. De baixo da câmara ouviu-se um ronco profundo, com rangidos e um gemido assustador.
O cilindro cheio de pontas começou a acelerar pela pedra. Os quatro homens abandonaram a corda e saíram correndo da câmara apesar dos gritos furiosos da imperadora. Tolivar sentiu o calor queimando as solas dos pés por dentro das botas e um gemido como o de uma criança apavorada escapou dos seus lábios.
Em cima dele, uma estonteante figura branca apareceu. Ele viu a Arquimaga Haramis apontando seu talismã. Os grilhões que o prendiam se abriram e seu corpo indefeso levitou, voou de lado, enquanto o tambor em brasa, descontrolado, rolou pelo lugar onde ele estava deitado.
Na ponta da pedra, ele balançou, pendurado em suas correntes como um pêndulo brilhante. A imperadora Naelore tentou fugir dele, assustada demais para lembrar de recorrer à magia da Estrela. O tambor atingiu o rosto dela em cheio. Tolivar, que berrava chamando a mãe, foi abaixando até o chão. Embaixo do cilindro incandescente que oscilava havia algo que estremecia e se revirava sem parar.
O estômago do menino se contraiu quando o fedor horrível de pano queimado e carne carbonizada chegou às suas narinas. Ele caiu de joelhos, vomitou, depois tentou se aprumar quando ouviu a Arquimaga chamar seu nome. Haramis tinha libertado os outros prisioneiros e levava todos para a porta.
— Tolo! Rápido!
Quando ele fraquejou e sentiu uma atração irresistível de olhar para trás e ver o horror que poderia ter sofrido, Haramis voou até ele e segurou sua mão. Lá no alto, alguma coisa se partiu com um estalo ensurdecedor e o teto abobadado da câmara de tortura começou a ruir. O príncipe voou por cima das pedras, passou pela porta e chegou ao corredor, arrastado pela capa branca brilhante.
Quando desceu tocou no chão sólido outra vez. Os tremores pareciam ter parado e as paredes do corredor continuavam firmes. Quase todos os archotes de parede haviam caído de seus suportes, mas suas chamas ainda tremeluziam no ar cheio de poeira. A rainha Anigel agarrou Tolivar num abraço de felicidade. Os outros tossiam e emitiam exclamações de alívio.
Depois que todos recuperaram o fôlego, Haramis disse:
— Irmãs, tenho algo para vocês que tirei dos seus algozes. Em cada uma das mãos ela segurava uma gota brilhante de trílio-âmbar, presas a cordões simples. Anigel e Kadiya pegaram seus amuletos, beijaram-os e os penduraram no pescoço.
Não se ouvia nenhum som das ruínas da câmara de tortura, mas gritos distantes ecoavam do outro lado.
Ledavardis, que lembrava muito bem do terremoto que antecedera o cerco de Derorguila, estava aflito.
— Temos de ir para um lugar a céu aberto rapidamente — disse ele. — Se acontecer outro tremor, o palácio pode ruir em cima de nós.
— Você pode nos levar embora com mágica? — perguntou Kadiya para a Arquimaga.
— Sinto muito. Isso exigiria muita força e a minha ficou desgastada mais cedo quando salvei os outros governantes seqüestrados da...
— Eles estão bem? — exclamou Anigel. — Ó, Hara! Graças a Deus!
— Então não temos escolha. Precisamos correr — resolveu Kadiya.
— Por ali — apontou Gyorgibo. — Subindo a escada. Podemos passar pela caserna da guarda imperial, chegar ao transepto norte da grande rotunda e de lá escapar por um dos pátios do jardim.
— Ainda posso defendê-los bem — disse Haramis. — É só o transporte mágico que está temporariamente fora do meu alcance.
— Ani, você consegue andar? — perguntou Kadiya para a rainha.
— A Flor Sagrada curou meu pequeno ferimento. Estou bem, e tão feliz que mal consigo controlar as lágrimas!
— Controle-se — disse a Dama dos Olhos —, pelo menos até estarmos em segurança, fora daqui, pois então poderá chorar o quanto quiser. Posso até lhe fazer companhia...
Eles subiram correndo a escada estreita e chegaram a uma ante-sala da caserna, que estava bem danificada. Várias vigas do teto haviam quebrado e parte de uma longa parede desmoronara. Eles avançaram com cuidado pelo meio dos destroços. O lugar estava completamente deserto, a não ser por um único membro da guarda imperial, um sujeito grisalho de armadura que estava sentado numa pilha de pedras da parede destruída, coberto de poeira e segurando a perna.
— Todos fugiram — coaxou ele quando Haramis e Gyorgibo o encontraram. — Aquela parede caiu em cima de mim. Meus companheiros devem ter pensado que eu estava morto. Os torturadores que passaram a galope por aqui não se importaram comigo. Por isso estou aqui, com a minha perna quebrada.
A Arquimaga parou e encostou seu talismã na perna do homem. O guarda praguejou surpreso e começou a cutucar o lugar onde era a fratura.
— Abençoada Matuta! Você me curou, feiticeira! — Ele ficou de pé de um pulo e olhou para ela subitamente confuso. — Mas se é um deles, onde está sua Estrela?
— Ela não precisa de nenhuma Estrela — disse uma voz de homem.
Haramis levantou e virou-se devagar. Orogastus estava à porta da ante-sala destruída. Trajava o uniforme preto e prata de sua Guilda e seu medalhão da Estrela, mas não estava usando a máscara ameaçadora cheia de pontas. Seu rosto estava crispado de preocupação, seu cabelo branco e comprido estava solto, e na testa estava o Monstro de Três Cabeças. Uma bainha presa ao cinto continha o Olho Ardente e ele apoiava a mão direita no cabo triplo.
— Saia daqui! — ordenou ele ao guarda encolhido, que saiu em disparada.
— Então você nos encontrou, Orogastus — disse Haramis. — Realmente achei que você o faria.
— Soube da sua presença assim que você se materializou na câmara de tortura. Estive horas à sua procura.
— Então você sabe que Naelore está morta. Ele apertou os lábios bem formados, com raiva.
— Aquela tola! Acredite em mim... eu não sabia o que ela estava planejando. Imagino que quisesse forçá-la a entregar seu talismã.
— Ela pretendia dar de presente para você — disse Haramis para ele —, e assim merecer seu amor.
Ele fez um gesto de exasperação.
— Amor? Amar Naelore? Que estupidez! Desde a hora que associei os dois talismãs a mim, só tenho pensado em encontrar você.
— Para poder experimentar em mim a sua própria forma de coerção? Mesmo assim... estou aliviada de você não aprovar a tortura.
— O homem que teria feito tal coisa não existe mais, Haramis. Por que não acredita nisso? — O feiticeiro foi se aproximando dela, com os braços estendidos. — Por que você não compreende...
— Eu o compreendo muito bem, assim como compreendi aquele infeliz do Denby Varcour, que criou você! Vocês dois são manipuladores dos feitos e das emoções humanas, consumidos pela arrogância e pela vaidade.
Ele deixou os braços caírem, e a expressão suave foi substituída pelo ar de desencanto.
— Meu amor por você é sincero e não tenho medo de proclamá-lo. Você me ama também... no entanto só me acusa, sem me dar chance de explicar nada.
— Essa doce reunião — interrompeu Kadiya com firmeza — e essas recriminações mútuas vão ter de esperar. Você também deve compreender que pode haver um grande terremoto a qualquer momento. A cidade inteira pode ser destruída! Você tem de fazer alguma coisa.
Orogastus desviou os olhos claros.
— Não consigo controlar os movimentos da terra com os meus talismãs. Tentei mais cedo, quando os tremores estavam mais fracos, mas não tive sucesso.
— Isso porque os terremotos são apenas um sintoma do grande desequilíbrio do mundo — disse Haramis —, como a colossal enxurrada de lama que está descendo das montanhas.
— Que enxurrada de lama? — o feiticeiro, Kadiya, Ledavardis e Gyorgibo perguntaram ao mesmo tempo.
Anigel e Tolivar apenas ficaram boquiabertos. Haramis ergueu seu talismã.
— Brandoba está diretamente no caminho dela. Vejam!
A metade da ante-sala em ruínas desapareceu e parecia que eles estavam em um imenso precipício sobre a floresta de Lirda. Não se via o céu do amanhecer por trás de nuvens baixas de tempestade que obscureciam os cumes das montanhas, como uma cortina parcialmente fechada. Por baixo dessa cortina, enchendo o vale do rio Dob como se fosse uma avenida verde, agitava-se uma massa que de longe parecia um mingau cinzento.
— Poderes Ocultos nos livrem! — sussurrou Orogastus. — Eu não tinha idéia... Talismãs! A que distância de Brandoba está a ponta da enxurrada?
Seis léguas.
— Estará aqui em menos de meia hora — disse Haramis. — E quando chegar, vai enterrar a cidade.
Ela brandiu o talismã e a visão desapareceu.
— Meu pobre povo — gemeu Gyorgibo. — Meu pobre país. O rei Ledavardis olhou para ele compreendendo.
— É... você é o imperador agora.
— Imperador do esquecimento! — Ele pôs as mãos na cintura, olhando furioso para Orogastus e Haramis. — O que acontece agora? Vai transportar seus colegas de Guilda para longe do perigo, Mestre da Estrela? A Arquimaga fará a mesma coisa, salvando aqueles que ama e deixando Sobrania e seus bárbaros desprezíveis à mercê do ataque da lama?
— Vamos? — perguntou Orogastus para Haramis. Haramis olhou para as irmãs e para os outros, que esperavam apreensivos, em silêncio. Devia contar toda a verdade sobre a situação para eles? Em breve teriam de saber, mas talvez ainda não. Não, se houver um fiapo de esperança, por menor que seja.
— Orogastus e eu temos de conversar a sós sobre isso — disse ela para todos. — Por favor, nos dêem licença.
Ela então fez sinal para o feiticeiro acompanhá-la e foi para um canto fora do alcance dos ouvidos deles, mas não dos olhos.
— Devemos nos separar para sempre? — ele perguntou para ela. — Essa minha aventura em Sobrania já terminou. Terei de recomeçar em algum outro lugar, se é que isso é possível. Você terá seu talismã, e eu terei o meu. Separados eles não são invencíveis... apenas extraordinários... especialmente porque não tenho experiência com o meu. Suponho que agora você também tenha acesso aos viadutos?
Ela fez que sim com a cabeça.
— Então podemos viajar por eles à vontade, desde que as saídas não estejam bloqueadas. Você só precisa reunir seus amigos e depois nada mais a prenderá a esse país condenado. Meus companheiros de Guilda e eu podemos ir para meu antigo lar em Tuzamen. Se você prometer que não vai me atacar lá, direi como libertar a Arquimaga Iriane de sua prisão de gelo azul. E depois nós dois podemos aguardar a queda final do mundo no silêncio congelado, você no seu santuário, e eu no meu, sem que nossos dependentes saibam de nada. Até o fim. É isso que você quer fazer, Haramis? Fugir?
— Mesmo se nós quiséssemos, não há para onde fugir — respondeu ela.
— O que você quer dizer?
— O Arquimago do Firmamento, o maior mágico que já existiu, me disse que o grande desequilíbrio culmina e começa agora. Essa catástrofe em Sobrania, por mais terrível que seja, apenas sinaliza o começo de uma miríade de acontecimentos desse tipo que imediatamente afligirão todas as nações do mundo. Não há refúgio para nós em parte alguma, Orogastus, não há como fugir. De agora em diante vamos apenas despencar até o nosso mundo ser enterrado no Gelo Sempiterno.
— Ah! Eu não tinha bem certeza...
— Denby Varcour acreditava que um único déspota, manuseando o Cetro Tríplice do Poder, poderia impedir essa catástrofe planetária. Ele exigia que eu entregasse meu talismã, para que ele pudesse dá-lo para você. Eu me recusei.
— E ainda se recusa — afirmou o feiticeiro.
— É.
— Você prefere ver o mundo destruído em vez de salvo e subjugado por mim?
— Prefiro vê-lo salvo... de outra forma — ela respirou fundo. — Você me daria os dois talismãs para eu poder montar o Cetro e tentar a cura sem o domínio?
— Nunca! — disse ele. — Sei que seria inútil. A cura por si mesma é um processo tenebroso. Os povos simples deste mundo e seus governantes ingênuos não saberiam como sobreviver a isso. A sua doce persuasão não os afetaria. Eles ficariam loucos de terror.
— Acho que encontrei uma resposta para isso.
— Então me diga qual é! — Ele segurou os braços de Haramis, mas ela se afastou, balançou a cabeça e ele não tentou impedi-la.
— Uma vez — lembrou ela —, você prometeu deixar que eu manipulasse o Cetro.
— Só se... — ele não completou a frase, incapaz de pronunciar as palavras.
— Nos seus últimos minutos — disse Haramis —, Denby Varcour mudou de idéia sobre seu esquema tirânico. À beira da morte, ele invocou o Trílio Negro, mencionando a Flor com ironia e uma estranha resignação ao mesmo tempo. Então ele me disse: ”O amor é permissível, a devoção não é.”
— Aquela maldita frase enigmática! — gritou Orogastus. — Você a citou na sua Torre quando me repudiou... Qual é a diferença, então?
— No princípio — disse ela —, os amantes continuam verdadeiros com eles mesmos. Eles se unem sem perder nada, sem submissão.
Nenhum dos dois se sente diminuído, ao contrário, ambos crescem — ela fez uma pausa e abaixou os olhos, olhos da mesma cor dos dele. — Eu amo você. Mas a Estrela exige proeminência sobre seus devotos. A Flor não.
Ele ficou pensativo, os dedos longos tocando no medalhão pendurado ao pescoço.
— Tenho de fazer o que nasci para fazer. Denby não tem importância. Ele fez a parte dele quando deixou que eu descobrisse a verdade sobre o meu papel nisso tudo, permitindo assim que eu descartasse as crenças tolas da minha juventude e me concentrasse no único motivo pelo qual existo. Não passarei o meu destino para ninguém, não desistirei dele por nada. Haramis... minha querida Haramis!... você precisa entender.
Ela deu um sorriso triste.
— Eu entendo. Mas talvez a verdadeira compreensão ainda nasça em você. Denby também disse para mim: ”Três Pétalas para exercer o poder e o Arquimago do Firmamento para orientar...” se eu quisesse.
Ele ficou atônito e quase riu da audácia dela.
— Você? Se você quiser? O que isso significa? Você acredita que o velho estava passando para você e para as suas irmãs a responsabilidade sobre o Cetro dos Desaparecidos?
— Podia estar. Binah e Iriane estavam convencidas de que nós seríamos capazes de usá-lo. Eu nunca tive certeza e talvez essa minha hesitação fosse o motivo de Denby sugerir uma quarta pessoa para ser nosso guia.
— O Arquimago do Firmamento está morto — declarou Orogastus zangado. — Como ele poderia ajudar no controle do Cetro? Denby Varcour era louco, e mesmo nos últimos minutos ele estava delirando.
— Existe outra autoridade que diz que as Três Pétalas do Trílio Vivo devem usar o Cetro juntas... um antigo cântico que Denby recitava:
Um, dois três: três em um.
Um, a Coroa do Ilegítimo, o dom da sabedoria, o amplificador do pensamento.
Dois, a Espada dos Olhos, distribuindo justiça e misericórdia.
Três, o Bastão das Asas, revelador e unificador.
Três, dois, um: um em três.
Venha, Trílio. Venha, Todo-poderoso.
— Ele estava zombando de mim quando citou isso. Mas ouvi esse cântico antes, com o povo uisgu do nosso Pântano Labirinto. Eles dizem que data da criação da raça deles.
Orogastus balançou a cabeça.
— Não faz sentido. É uma baboseira mística.
— Como o meu Círculo de Três Asas é o principal elemento do Cetro, aquele que revela, eu teria de comandar, não como uma arquimaga, mas como uma das Três com as minhas irmãs. Se pudesse escolher, eu desejaria que o Trílio Negro fosse reforçado e guiado por um amigo corajoso, tanto no manuseio do Cetro quanto no terrível resultado. Mas nós Três jamais seríamos guiadas por um Homem da Estrela.
— Você está brincando comigo, Haramis — dessa vez não havia ódio na voz dele, apenas desespero. — Sem a Estrela, eu não sou nada! Você e a sua Flor me humilhariam, exigindo devoção e se opondo à submissão.
Ela balançou a mão e segurou o Círculo de Três Asas pendurado na corrente sobre o peito. Ele ficou tenso, ainda com medo e se recusando a ceder, e ela repetiu.
— Eu amo você. E nunca faria mal nem pensaria em humilhar o novo Arquimago do Firmamento.
— O novo...
— A função agora é minha e posso passar para quem eu quiser. Sou o último membro ativo do Colegiado. Tenho certeza de que Iriane ia concordar. E também, eu acho, os Desaparecidos que dormem. Fazemos parte deles, você e eu.
— Haramis... isso é possível?
— Creio que depende de você. Do seu amor.
Ela pôs os dedos dele na Flor. Ele sentiu as asas minúsculas do talismã se abrindo e dentro delas Orogastus sentiu algo que deixou seus nervos em chamas. Privado momentaneamente do equilíbrio e quase caindo, ele se agarrou nela.
— É claro que eu amo você! Ah, Haramis, amo você mais que a minha vida! Mais do que... — ele deu um gemido suave.
Orogastus se recuperou e o abraço quase frenético se desfez. Tornou-se um contato reverente, que dava força para os dois.
Quando finalmente se separaram, ela murmurou:
— A tiara! perplexo, Orogastus tirou a tiara da cabeça
Franzindo a testa perplexo, Orogastus tirou a tiara da cabeça e analisou-a. A cabeça de monstro do meio, que tinha sido coberta por uma réplica minúscula da Estrela, tinha agora um novo símbolo das Três Luas crescentes. E o mesmo tinha acontecido com o Olho Ardente Trilobado.
Com a corrente partida, a Estrela jazia no chão aos pés deles.
Um novo tremor fez tudo balançar.
Anigel e Kadiya se afastaram dos outros e se aproximaram do casal.
— Hara — disse a rainha —, você tem de resolver logo o que vamos fazer.
Juntos, Haramis e Orogastus disseram para ela.
Por cima da abóbada dourada do palácio havia um pináculo bem alto de jaspe vermelho e dentro dele uma estreita escada em espiral que levava à enorme efígie de um pássaro dourado. As três irmãs e Orogastus foram para a pequena plataforma no topo do pináculo e ficaram olhando para a estátua de asas abertas.
— Ora, é um voor! — disse Kadiya surpresa. — O pássaro criado pelos Desaparecidos para ajudar e ser companheiro dos vispis. Pensei que eles estavam extintos nessa parte do mundo.
— E estão — disse Orogastus. — É por isso que são considerados sagrados.
— Está certo — disse Haramis.
Ela pediu para o feiticeiro transportá-los todos para as costas do pássaro. Ele pegou a espada quebrada, ergueu-a bem alto e deu a ordem. Os três lobos se transformaram em olhos e das bocas abertas dos monstros na tiara saíram raios de luz branca, verde e dourada.
Eles flutuaram no ar nevoento sob uma chuva fina e aterrissaram na larga superfície de pedra folheada a ouro.
— Agora temos de montar o Cetro — disse Haramis.
Ela pediu ao seu trílio-âmbar para sair do seu ninho sob as asas e o prendeu na corrente ao pescoço, depois de tirar o bastão com o Círculo.
Por um momento, a estátua gigantesca estremeceu sob os pés deles. Eles ficaram tensos, mas não perderam o equilíbrio. O pássaro balançou lentamente de um lado para outro. Lá embaixo, a cidade ainda ardia e havia muitas áreas em que os prédios tinham desmoronado. Mas a maior parte da devastação em Brandoba eles não conseguiam ver, por causa da fumaça e do nevoeiro, por isso nem tentaram.
— Diga para os seus talismãs — disse Haramis para Orogastus — que nós, as três Pétalas do Trílio Vivo, podemos tocar neles livremente.
Ele atendeu ao pedido dela com os dentes cerrados, fazendo uma careta. Então segurou a tiara com a mão direita e a espada com a esquerda. A rainha Anigel e Kadiya ficaram uma de cada lado dele. Quando a Arquimaga deu a ordem, elas puseram as mãos sobre os talismãs que haviam sido delas. Os amuletos pendurados aos seus pescoços brilharam dourados, e um latejar de luz partiu do âmbar sobre o peito de Haramis.
Haramis inseriu o bastão num canal na lâmina da espada, depois guiou o Monstro de Três Cabeças por dentro do Círculo de modo que formasse com a tiara um meridiano e um equador. Por cima do Círculo as asas se abriram e cresceram, e no centro delas brilhou um grande Trílio Negro dentro de uma bola de âmbar do tamanho de um punho. Haramis levantou o Cetro completo, enquanto os outros se posicionavam bem perto, com uma mão sobre a dela.
— Venha, Trílio — disse a Arquimaga da Terra. — Venha, Todo-poderoso.
O Cetro pareceu pegar fogo, com uma chama amarela. Deixou de ter partes separadas, prateadas ou negras, todas eram de ouro brilhante. Kadiya, Anigel e Orogastus sentiram um calor maravilhoso se espalhar pelas pontas dos dedos, percorrendo os braços e chegando aos seus corações.
— Cetro! — A voz de Haramis estava exultante e os outros sabiam que ela também estava sentindo o calor mágico. — Leve-nos com segurança pelo céu, bem acima deste lugar. E acabe com todas as nuvens para podermos ver a terra com clareza.
O pássaro dourado não ganhou vida. Eles não viram as asas batendo, não tiveram nenhuma sensação de movimento, nem sentiram o vento. No entanto, subitamente, se viram subindo e voando acima de uma extensão de ar límpido e azul. Ainda de pé sobre o dorso da estátua, eles pararam. O sol nascente estava acima das montanhas Collum, agora fumegando ameaçadoramente. Rios de lama jorravam dos planaltos em numerosos cursos, serpenteando pela floresta, e os maiores de todos quase chegando à periferia da cidade na represa do rio Dob. A grande Brandoba, ferida dentro de suas muralhas, fumegava como uma fogueira pisoteada. O porto ainda abrigava muitas embarcações e a água estava túrgida e cinzenta perto da costa, mas azul e luminosa nos pontos mais profundos do estuário.
A oeste, as Três Luas pairavam baixas, prontas para se pôr. A fumaça no ar fazia com que ficassem cor de laranja e sem brilho.
— Agora — disse Haramis para o Cetro —, invocamos toda a sua magia. Das fontes espiritualmente ricas deste mundo, de suas plantas e seus animais, e de todos os povos. Acabe com a torrente de lama que ameaça Brandoba, acalme a terra inquieta por baixo dela e, se a Trindade assim quiser, recupere as partes destruídas da cidade. Que isso seja feito sem a perda de uma única vida aborígine ou humana.
O brilho do Cetro se intensificou até ficar quase igual ao do sol no leste. Os quatro que o seguravam se encolheram diante do poder radiante que ele produzia, fechando os olhos e virando o rosto. Um ruído terrível abalou seus ouvidos, rangendo, guinchando e rugindo, mas mantiveram suas mãos firmes no Cetro e os pés bem plantados no pássaro dourado que pairava milagrosamente no ar. Quando o barulho diminuiu um pouco, todos, menos Haramis, tiraram as mãos do Cetro. E ousaram olhar para baixo.
Em torno do perímetro terrestre da cidade, onde ficava a muralha, subia um enorme baluarte. Saídas do subsolo, terra e rochas criavam uma represa que desviava a torrente de lama para o norte, onde alcançaria outro vale de rio e fluiria inofensiva até o mar. Outros movimentos de terra, que pareciam túneis subterrâneos cavados por alguma criatura colossal, transformavam colinas em vales e alteravam o curso de riachos menores. O terreno oscilava e se contorcia como um tapete que alguém sacudia, com o acompanhamento de um ronco poderoso. E, então, tudo parou. Diretamente abaixo deles, a cidade parecia tremeluzir. A fumaça que a cobria desapareceu.
— Mostre-nos agora uma visão mais próxima de Brandoba — ordenou Haramis.
Foi como se eles mergulhassem, ainda firmes, e depois ficaram pairando sobre a praça e o palácio. O edifício imperial e todos os prédios em volta brilhavam inteiros à luz do sol. As ruas e alamedas não estavam mais bloqueadas com entulho.
Mas os corpos dos mortos e feridos nos tumultos e tremores continuavam lá.
— Cetro — sussurrou Haramis. — Pode recuperar as pessoas afetadas?
As mortas não. Só os vivos podem recuperar a saúde, se tocados individualmente pelas minhas partes.
— Não há tempo para isso — disse Orogastus. — Se não conseguirmos consertar o maior desequilíbrio, aqueles que morreram serão os de mais sorte.
— Ele tem razão — disse Kadiya, de má vontade, porém respeitosamente.
— Ajudaremos os feridos mais tarde — disse Anigel. — Se pudermos.
— Muito bem. — Haramis dirigiu-se ao Cetro. — Que o nosso pássaro dourado nos leve mais alto — e depois: — Mais alto!... Mais alto ainda, e com segurança!
Eles subiram a tal altitude que o céu ficou de um azul muito mais profundo. As estrelas eram visíveis junto com o sol e as Luas. Não sentiam frio nem falta de ar. O continente-mundo com a sua Calota de Gelo Sempiterno, bela e mortal, aparecia em curvatura sobre o mar azul riscado de nuvens. Misteriosamente, não havia nuvens sobre a terra.
— Se o Cetro tentar corrigir o desequilíbrio e falhar — disse Orogastus para Haramis —, podemos morrer aqui em cima quando nossa montaria dourada despencar do céu. Mas, apesar disso, você escolheu um lugar apropriado para experimentar a magia... onde saberemos logo se o mundo está curado e o gelo derrotado.
Ele estava de pé diante dela, Anigel de um lado e Kadiya do outro, e ela sorriu para ele.
— Tendo ou não sucesso — disse Haramis —, estou contente que no fim a Flor abençoou o nosso amor.
— Eu me casaria com você — disse ele. — Viveria e trabalharia com você para sempre, se isso fosse possível.
— Desejo isso de todo o meu coração, meu querido, mas não podemos pensar nessas coisas agora.
— Mesmo assim, queria que você soubesse.
Haramis balançou a cabeça. Atrás de Orogastus, as Três Luas pairavam sobre o horizonte ocidental bem próximas umas das outras. Ela pediu para os três porem as mãos sobre a dela novamente, ergueu o Cetro e disse para ele:
— Agora faça o que você foi criado para fazer! Concretize as esperanças daqueles que morreram há muito tempo, daqueles que partiram para o firmamento longínquo, daqueles que dormem no limbo, daqueles que nos criaram. Realize as nossas esperanças também, agora que finalmente o empunhamos, e cure o nosso mundo doente segundo a vontade de Deus. Acabe com o desequilíbrio que nos condenaria ao Gelo Conquistador. Reúna tudo que é mágico, belo e verdadeiro dos nossos corações e da terra embaixo de nós. Faça isso agora!... Venha, Trílio! Venha, Todo-poderoso!
Dessa vez não houve tempestade de luz ou ruídos, apenas um sussurro como o suspiro das estrelas que depois se desfez em silêncio. A sensação da tensão mágica que percorria o Cetro desapareceu. Sua luminosidade se apagou quando as três asas se fecharam sobre o grande pedaço de âmbar e voltaram ao seu tamanho normal. O Cetro ficou vazio de energia. Os três olhos no cabo se fecharam e os rostos monstruosos perderam a vida e o brilho.
Ao mesmo tempo outro tipo de luz passou a existir no céu azul profundo do oeste.
Haramis arregalou os olhos atônita, e os outros três, vendo sua expressão de espanto, tiraram as mãos do Cetro exaurido e se viraram para descobrir o que estava acontecendo.
As Três Luas, em sua conjunção compacta, tinham mudado de cor, de um ocre pálido para o prateado mais puro e brilhante. Em torno delas havia três pétalas enormes com uma luminosidade vibrante de arco-íris. A pétala do centro se alongava quase ao zénite e as outras duas pareciam abraçar o horizonte.
— Meu Deus — murmurou Anigel. — O que é isso?
— Um Trílio Celeste — disse Kadiya.
— Mas isso é tudo? — balbuciou Orogastus.
— Nós pedimos — disse Haramis —, mas a cura acontece quando Deus assim quer... Olhem lá embaixo a calota de gelo.
Eles olharam e viram inúmeras nuvens pequenas surgindo de todos os pontos da superfície brilhante. Elas foram se expandindo enquanto os quatro observavam, formando um enorme manto de vapor que escondeu o interior do continente. A massa se alongou, levada pelo vento e começou a avançar lentamente para o leste.
— O que está acontecendo? — perguntou Anigel.
— Não tenho certeza — respondeu Haramis. — Mas... acho que está começando a derreter.
Ela se dirigiu ao Cetro.
— Pode levar-nos de volta em segurança para o palácio imperial em Brandoba?
Sim. Vamos voar um pouco mais devagar.
Eles começaram a descer. O dorso da estátua de pássaro era quase tão largo quanto a área de uma cabana. Curiosos, Orogastus, Anigel e Kadiya espiavam o mundo lá embaixo, enquanto Haramis, esgotada emocionalmente, estava sentada bem no meio.
— Talvez — disse Orogastus, quando desceram um pouco mais e puderam ver melhor as margens do gelo — o fogo de dentro do mundo, que teria explodido em vulcões por causa do desequilíbrio, agora esteja concentrado de uma forma mais moderada, por baixo da geleira continental. Aquelas colunas de vapor... elas vão se transformar em nuvens de chuva. Apesar de despejar grande parte dessa água no mar, haverá muitas tempestades violentas e enchentes nas terras do oriente, especialmente no meu antigo lar, Tuzamen, e em Raktum.
— Pobre Ledo — disse Kadiya. — Mesmo assim, o país dele tem uma imensa frota de navios. E aqui nessa parte ocidental do mundo há muita terra para a colonização dos piratas. Quanto a Tuzamen, a população é esparsa e na melhor das hipóteses é um lugar marginal para se viver. Duvido que o povo vá sofrer muito por ter de sair de lá.
— Então talvez o resultado não seja tão ruim, afinal — disse Anigel.
— O mar vai subir — disse Orogastus, balançando a cabeça. — Vai cobrir lentamente as cidades costeiras de todos os países do mundo e também as ilhas mais baixas. Uma grande quantidade de humanos e aborígines será forçada a deixar seus lares. Os rios mudarão de curso, inundando antigas fazendas. Lagos enormes serão formados novamente, onde existiam antes do Gelo Conquistador. O seu Pântano Labirinto, rainha Anigel, foi um lago desses um dia.
— Oh! — disse ela. — Oh...
— Novas montanhas vão surgir quando o interior da terra não tiver mais de arcar com o peso glacial — continuou ele. — Isso vai alterar o padrão das estações. Será um tempo assustador para as pessoas, talvez até uma Era das Trevas, mesmo explicando para eles o que está acontecendo, e que é para o nosso bem. Um despotismo universal poderia manter as pessoas sob controle, supervisionando a reconstrução. Mas sem isso... quem sabe o que acontecerá?
— Eu tenho certeza — disse com firmeza a rainha Anigel — de que você, Hara, e Iriane, farão o melhor possível.
— Pode ser que os nossos talentos fiquem diluídos demais — disse ele, suspirando.
— Teremos outros ajudantes — disse Haramis subitamente. Eles viraram surpresos para ela. O pássaro dourado estava mergulhando sobre Brandoba, mas, como antes, seus passageiros não tinham sensação alguma de estar cortando os ares.
— Que ajudantes? — disse Kadiya. — Você está se referindo às sindonas? Mas não sobraram muitas.
— Em uma das Três Luas — disse Haramis —, há quase um milhão de pessoas que dormem um sono mágico. São as que não conseguiram Desaparecer, nossos ancestrais, membros de uma civilização muito mais avançada do que a nossa. Denby Varcour nunca teve coragem de libertá-las. O fato de serem tantas e de suas habilidades serem superiores teria perturbado nosso modo simples de viver de forma irreparável. Ele sabia que seria injusto e cruel fazê-las reviver num mundo como o nosso. Afinal de contas, foi a guerra delas que provocou o desequilíbrio original.
— Mas Denby jamais perdeu a esperança de um dia poder consertar esses danos. Ele sabia que depois do fim do Gelo Sempiterno, se isso acontecesse, os gênios adormecidos poderiam nos dar uma ajuda valiosíssima na cura da terra e do mar. E é isso mesmo que eles vão fazer, orientados por um novo Arquimago do Firmamento, uma antiga Arquimaga do Mar e uma Arquimaga da Terra que no momento está quase morta de tanto cansaço, mas que espera sentir-se muito melhor amanhã.
— Isso! — exclamou Orogastus animado e abraçou Haramis. O pássaro dourado tocou no topo do pináculo do palácio e se prendeu lá com a mesma firmeza de antes. Anigel e Kadiya escorregaram do seu dorso e encontraram o rei Ledavardis, o imperador Gyorgibo e o príncipe Tolivar, que haviam subido no telhado do pináculo para aguardar a volta deles.
— Mãe! — gritou o menino. — Você não vai acreditar no que aconteceu!
— Vou sim — disse Anigel, acariciando o rosto dele. — Aconteceram maravilhas e haverá muito sofrimento, mas no fim tudo dará certo.
Ela pôs a mão na barriga e sentiu um pequeno movimento.
Seus três bebês nasceriam num mundo muito estranho, em que a mágica e a ciência seriam aliadas. Os meninos seriam príncipes... ou outra coisa qualquer?
Bem, isso estava nas mãos dos Senhores do Ar. Oferecendo o braço para Ledavardis, ela iniciou a longa descida.
Kadiya olhou para os dois que continuavam em cima do pássaro, achando graça.
— Acho melhor deixá-los com a feitiçaria deles — disse ela para o novo imperador. — Tenho de encontrar meus amigos aborígines Jagun e Critch que ficaram num pequeno barco no porto de Brandoba. Será que você pode me emprestar um fronial para eu ir até lá?
Gyorgibo fez uma mesura balançando as mangas esfarrapadas e sujas da camisa.
— Dama dos Olhos, eu a levarei pessoalmente na carruagem imperial... se alguém lá nos estábulos me reconhecer...
— Se não reconhecerem — disse Kadiya para ele como se fossem cúmplices —, nós roubamos o maldito bicho.
Depois que eles se foram, Orogastus ajudou Haramis a descer do pássaro. Ela ainda segurava o Cetro enquanto os dois olhavam a cidade lá embaixo.
— Teremos de cuidar de muita gente ferida.
— Podemos chamar as sindonas do Lugar do Conhecimento e das Luas — sugeriu Orogastus. — Elas podem vir através do viaduto da villa. Você pode usar o Cetro para transportá-las para cá...
— Não, meu amor — disse Haramis. — Vamos deixar as sindonas virem a Brandoba sozinhas para fazerem seu trabalho. O Cetro tem de ser desmembrado agora mesmo e não devemos usálo nunca mais.
Ele abaixou a cabeça com tristeza.
— É claro que você tem razão. E você deve se encarregar dos três talismãs.
Ela começou a desmontar o instrumento mágico e pôs o seu âmbar de volta no meio das asas do Círculo.
— Tenho uma idéia melhor — ela entregou para ele a tiara. — Você fica com o Monstro, Arquimago do Firmamento — ela deu um sorriso malicioso. — Por mais de um motivo!
— Obrigado.
Julian May
O melhor da literatura para todos os gostos e idades