Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O TRÍLIO DOURADO
As irmãs Haramis, Anigel e Kadiya derrotaram o maligno feiticeiro Orogastus, unificaram os reinos de Ruwenda e Labornok e restauraram o precário equilíbrio num mundo dividido. Com sua espada mística trilobada, Kadiya viaja para os pântanos sufocantes de Ruwenda, buscando cumprir seu destino entre os seus habitantes, os oddlings, cujos exércitos havia liderado uma vez.
Kadiya se aventura até a cidade perdida dos Desaparecidos e descobre uma estranha raça, que vive dentro dos muros proibidos. Criaturas minúsculas e inteligentes, conhecidas como has-sittis, que esperam pacientemente, mas em vão, a volta dos Desaparecidos. Os hassittis conseguem "captar sonhos" de acontecimentos e de lugares distantes, e suas visões trazem avisos vívidos e perturbadores sobre uma ameaça desconhecida, vinda das montanhas do oeste.
Essa apreensão é logo confirmada por uma misteriosa praga, que se alastra a partir das montanhas ocidentais, uma doença mortal que deixa um rastro de destruição por onde passa. O Portador da doença maligna se aproxima dos domínios dos skriteks, os terríveis monstros sáurios que se alimentam da carne de criaturas vivas, inimigos dos oddlings e dos humanos, seres que cultivam um ódio implacável.
Kadiya, acompanhada apenas de três oddlings, entra no Inferno Espinhoso, o reino pestilento dos skriteks, para enfrentar a origem da praga e descobrir um meio de derrotá-la. Lá se depara com um portal que conduz a um universo de escuridão aterradora, uma passagem fétida que ameaça a existência do mundo das Três Luas.
O trílio dourado é a saga tumultuosa de uma batalha desesperada contra as forças do mal, uma história de coragem diante de desvantagens avassaladoras, e de um amor que supera as barreiras eternas do tempo e do espaço.
ANDRE NORTON é autora da série de fantasia extremamente popular chamada Witch World, além de dúzias de outros livros de ficção científica e fantasia. É co-autora de O trílio negro, publicado pela Rocco, e uma das poucas escritoras que recebeu o título de Grande Mestre da Science Fiction Writers of America.
Eram três as filhas do Trílio Negro. Em sua feminilidade plena, eram Haramis, a feiticeira; Kadiya, a guerreira peregrina; e Anigel, a rainha. Vieram ao mundo em um único parto (o que já era uma coisa estranha e desconhecida) e, no instante em que nasceram, foram saudadas e batizadas pela Arquimaga Binah, considerada a única guardiã de toda a terra.
Ela profetizou que as três seriam a esperança e a salvação de seu povo. Deu a cada uma um amuleto de âmbar com uma florzinha do lendário Trílio Negro, que era o signo do clã real e da terra.
O país de Ruwenda ainda guardava muitos segredos, apesar de ter sido habitado por muitas gerações de seres humanos. Grande parte era formada por pântanos, nos quais havia algumas ilhas de terra firme. Em muitas delas havia ruínas, algumas tão grandes que podiam ser cemitérios de cidades inteiras. O rei vivia na Cidadela, outro vestígio de tempos antigos, só que permanecia intacta.
No leste, os seres humanos drenaram o pântano, criaram baixios secos, protegidos por diques, que eram muito férteis e proporcionavam pastos excelentes para manadas e rebanhos. Ruwenda também era o maior entreposto de importação de madeira vinda do sul, muito necessária para os vizinhos de Labornok ao norte. Outras mercadorias partiam do próprio pântano: ervas, especiarias, carapaças escamosas de criaturas aquáticas - algumas brilhantes como jóias, outras tão duras que podiam ser transformadas em armaduras à prova dágua. E os objetos mais raros de todos - muitos tão estranhos que não podiam ser identificados - vinham das ruínas das ilhas.
Quem colecionava esses objetos eram os oddlings - habitantes do pântano encontrados pelos ruwendianos naquela região, quando chegaram, e com quem não tinham desavenças. Nenhum dos dois grupos desejava o que o outro possuía, em termos de território. Havia duas raças desses oddlings. Os nyssomus, mais extrovertidos, alguns até trabalhavam na Cidadela do rei, e os uisgus, que eram tímidos e viviam afastados, na terra que escolheram, bem mais para o oeste, nos pântanos inexplorados. Os uisgus levavam para os nyssomus os objetos que tinham para negociar, e estes, por sua vez, ofereciam essas mercadorias aos comerciantes licenciados. Todos costumavam participar de reuniões na grande cidade em ruínas, que os homens chamavam de Trevista, e os forasteiros podiam alcançá-la facilmente pelo rio.
Havia mais uma outra raça no terreno alagadiço, declarando a posse da região mais longínqua ao norte, com quem ninguém lidava voluntariamente. Os oddlings os chamavam de afogados; os mais cultos batizaram-nos de skriteks. Eram torturadores e assassinos, uma praga maligna. Às vezes atacavam os baixios ou oprimiam os oddlings, e nada de bom partia daquela raça sáuria.
Ruwenda vivia em paz - a não ser quando esses ataques ocorriam - durante a infância das três princesas. Os homens não sabiam que uma tempestade estava se formando no norte.
O rei de Labornok era velho e ocupara o trono quase toda a vida da maior parte do seu povo. Seu herdeiro, o príncipe Voltrik, estava cansado de esperar. Passava muito tempo viajando por outras terras, onde aprendia coisas diferentes e cultivava aliados, inclusive o grande feiticeiro Orogastus. No regresso do príncipe para casa, esse homem da magia passou a ser seu companheiro inseparável. E quando Voltrik afinal assumiu a coroa, Orogastus tornou-se seu principal conselheiro.
Voltrik cobiçava Ruwenda. Não pelos pântanos, e sim pelo controle, que exercia sobre o comércio de madeira, e pelo tesouro, que diziam haver nos lugares em ruínas. Firmemente estabelecido no trono, ele atacou.
Os fortes das montanhas, que guardavam a única passagem, foram totalmente arrasados pelos relâmpagos invocados por meio da magia de Orogastus. Então, guiados por um mercador traiçoeiro e com a ligeireza do bote de uma serpente, os labornokianos tomaram a grande Cidadela.
O rei Krain e os nobres que sobreviveram à batalha tiveram mortes horríveis sob as ordens de Voltrik. A rainha caiu vítima das espadas daqueles que juraram matar todas as mulheres nobres, pois existia uma profecia segundo a qual apenas por meio delas os invasores seriam derrotados no futuro. As três princesas escaparam, cada uma com a ajuda do seu talismã de nascimento, mas não fugiram juntas.
Haramis foi levada pelo feitiço de Binah (que já estava velha e fraca, senão nenhum labornokiano teria posto o pé na terra), no dorso de um abutre gigante, que alçou vôo rumo ao norte. Kadiya, com o auxílio de um oddling caçador que há muito era seu tutor na vida nos pântanos, escapou para as terras alagadas através de uma antiga passagem. E Anigel, com sua mentora uisgu, a velha mestra das ervas Immu, fugiu disfarçada dos transportes do inimigo para a cidade das águas de Trevista.
Cada princesa, por sua vez, foi ao encontro da Arquimaga em Noth, e cada uma recebeu a missão de descobrir uma parte de uma grande arma mágica, que libertaria a terra.
Suas provações foram muitas. Haramis, nas terras montanhosas, foi seguida por Orogastus. Ele a cortejou habilmente, primeiro como uma manobra política, depois por ver nela a companheira adequada para o desenvolvimento de seu poder. Mas não conseguiu obter a varinha de prata, o talismã de Haramis.
Kadiya foi levada para a cidade perdida dos Desaparecidos e apoderou-se da espada, que crescia na haste do Trílio Negro, que a conduzira até lá. Anigel, escapando para o sul com a ajuda da uisgu, chegou às florestas de Tassaleyo, onde arrancou a coroa da goela de uma planta devoradora de vida. Encontrou também o príncipe Antar, filho de Voltrik, incumbido de levá-la prisioneira, mas ele ficara tão revoltado com os abusos do pai e temeroso do poder crescente de Orogastus, que não cumpriu suas ordens, transformando-se no mais fiel defensor de Anigel.
Kadiya, liderando seus exércitos de uisgus e nyssomus, juntou-se a Anigel para tomar a Cidadela de assalto. Foi Haramis quem deu fim à vida e ao poder de Orogastus, unindo os três talismãs e criando um grande e poderoso foco de magia.
Haramis recusou a coroa que era sua de direito, por ter sido a primeira a nascer, e optou por seguir o caminho de Binah como Arquimaga, quando a feiticeira moribunda abandonou seu manto de proteção. Kadiya também deixou de lado sua herança, pois os segredos das terras alagadas a estavam chamando, e ela sabia, no fundo do coração, que coroa e trono não eram feitos para ela.
Anigel casou-se com Antar e uniu as duas terras que tinham sido inimigas. Como rainha e rei de Laboruwenda, os dois juraram que reinariam como um único soberano e que manteriam a paz.
Haramis partiu para as montanhas do norte, pois o conhecimento que lá se acumulava exercia uma atração sobre seu coração, que nenhum ser vivo seria capaz de igualar. Antes de iniciar a viagem, separou novamente os três talismãs, levando a varinha com ela. Anigel guardou a tiara presa à sua coroa, parte da herança. Kadiya recuperou sua espada, que não tinha ponta, e cujo pomo se descobria em três olhos que disparavam energia. Um era da cor dos seus, o outro amarelo como os olhos de um oddling e o de cima era muito brilhante e não se parecia com os olhos de nenhuma raça.
Kadiya reuniu seu exército de oddlings e rumou para o pântano, logo no início da época das monções. Não sabia bem o que procurava, só que tinha de procurar.
A chuva açoitava o pântano. Os canais transbordavam, turvos de lama, arrastando montes de árvores e arbustos arrancados das margens. Plantas trepadeiras coleavam na água feito serpentes, e as serpentes verdadeiras boiavam de barriga para cima, mortalmente enredilhadas no junco. Algumas plantas monstruosas se espalhavam, formando armadilhas temporárias para os destroços, pondo em risco as embarcações que ousavam navegar rio acima. O barulho do vento abafava todos os sons, exceto o rugido da chuva e das águas.
Mas havia movimento contra todas as previsões. Embora todos que conheciam os pântanos temessem aquele mundo incontrolável, naquela temporada eles ousaram. E um exército saiu do lodaçal; clãs juntaram-se a clãs, povos a povos.
Travaram uma batalha tão terrível, que nem as antigas canções conseguiam descrevê-la. O mal atacou com um poder de fogo e bruxaria que ia além do conhecimento e caiu derrotado, transformado em cinzas. Os que se aventuravam pelos riachos e rios sentiam apenas uma necessidade compulsiva de dar as costas para aquele campo de batalha e de se recolher em seus lares. A vitória fora deles, mas a sombra do que havia acontecido era como as nuvens carregadas e negras no céu.
Sofriam perdas constantes durante a viagem. Uma força ou outra os impelia para canais secundários, desviando a busca e os afastando de seus lares nas ilhas ou das aldeias lacustres dos clãs. Os nyssomus partiram mais cedo, pois suas casas ficavam mais próximas. Seus primos distantes, os uisgus, navegavam em esquifes, impulsionados pelos companheiros de luta e por ajudantes, os rimoriks, habitantes das águas, que, apesar de muito fortes, também se abatiam diante da fúria das águas. Iam desaparecendo pelos afluentes quase invisíveis rumo às suas fortalezas, que as outras raças não conheciam, só alguns poucos aventureiros, nenhum bem-vindo.
Embora o exército, que diminuía rapidamente, se esforçasse muito para deixar o passado para trás, havia sempre as lembranças medonhas do horror que dominava tudo. Enrolados em um monte de junco enlameado jaziam os restos de um ser humano, um dos desgraçados membros da força invasora.
Kadiya bateu, violentamente, com o remo em um dos esquifes da frente e desviou depressa o olhar. Alguns skriteks tinham feito um banquete ali, satisfazendo a fome abominável de sua espécie com a carne de quem um dia fora seu aliado.
Os skriteks - muitos deviam estar em fuga naquele momento, tentando escapar da fúria da tempestade - sabiam muito bem o que aconteceria com qualquer um de sua raça que sobrevivesse à derrota e ficasse ao alcance dos vencedores.
O pequeno grupo da esquerda se aproximava do Inferno Espinhoso, um lugar terrível, no qual o medo mais profundo parecia preso na armadilha, formada por uma vegetação emaranhada e cheia de espinhos. A sensação de perigo se agarrava aos troncos das árvores mortas como manchas de lepra. Quem se aventurava por ali, buscando o caminho mais direto para seu destino, procurava não enxergar além da cortina eriçada que emparedava o rio nas duas margens.
A chuva formava véus sobre as águas e comprometia a visibilidade à frente. Abaixar a cabeça e encolher os ombros não resolvia. Kadiya, uma princesa que gozara todo o conforto habitual de sua classe, resistia e suportava o peso da espada embainhada, que espetava suas costelas com o movimento das remadas. Mantinha a mesma tenacidade que lhe valera um exército. Kadiya não podia e não queria dar as costas para qualquer um dos que continuavam a insistir para que ela se abrigasse com seu povo. E nem poderia ter ficado na Cidadela, já livre do mal que atacara os membros da sua casa. O preço tinha sido pago. Mas ela ainda não estava livre...
Mais uma vez aquele fardo que pesava sobre ela era maior do que toda a força da tempestade, mais forte do que todas as armadilhas flutuantes por onde procurava avançar com seus companheiros.
Por que sentia aquela necessidade premente, aquela pressão, que às vezes chegava à beira do desvario? Era como obedecer a uma vontade que não era a dela. A primeira vez que fugiu de lá fora por causa da morte vermelha, do fogo, do fim de toda a vida que conhecia. E agora... o que a motivava?
E essa motivação muito forte varava as entranhas da tempestade. As ilhotas onde tentavam montar acampamento não passavam de bacias de lama e macegais cheios de água. Não havia nenhuma espécie de abrigo. O sono era apenas um fim temporário da exaustão, que deixava o corpo todo dolorido. Mas toda vez que ela acordava, reiniciava logo a viagem arriscada.
Pelo menos a tempestade mantinha aquele mundo encharcado livre de alguns perigos. Nenhum voor circulava pelo céu, nenhum xanna de armadura escamosa surgia nos caminhos escuros, com suas pernas cobertas de ventosas, para ameaçálos. As plantas que possuíam armas perversas estavam encolhidas, aguardando o término das enchentes.
No sétimo dia chegaram ao fim do caminho dos rios. Só restava enterrar a proa da embarcação na lama pegajosa da margem. Pelo menos naquele ponto os espinhos não os rechaçavam.
Kadiya jogou seu saco de viagem em um monte de terra, que parecia suficientemente estável para suportar o peso. Estendeu a mão e segurou uma longa trepadeira, usando-a para se arrastar até terra firme. Então virou de frente para o grupo, que vinha com ela sem reclamar, e, cansada, ergueu uma das mãos para saudá-los.
Muitas coisas tinham mudado naqueles últimos dias, mas juramentos antigos ainda eram respeitados. Nenhum homem ou mulher da raça dos oddlings ia se aventurar além daquele ponto e se embrenhar em uma terra há muito proibida, não importa quão corajosos tivessem sido na batalha que arrancara seu mundo das mãos das trevas. Exceto Jagun, o caçador que a ensinara a viver nos pântanos, que pulara para terra e seguira suas pegadas cheias de água. Ele tinha jurado que jamais faria isso, mas o juramento perdeu o valor diante da confiança e da atitude de Kadiya.
Mas os outros que a observavam com seus grandes olhos amarelo-esverdeados, sem piscar, como se pudessem segurá-la com o olhar, relutavam em deixá-la partir.
- Portadora da Luz - disse uma das duas guerreiras, estendendo a mão em um gesto de súplica. - Venha conosco. Você carrega nossa esperança. - Por um momento ela ficou olhando o pesado fardo do cinturão de Kadiya. - A paz existe... a paz que conquistamos. Deixe que nós lhe daremos abrigo. Não parta em busca desse lugar que não deve ser visto...
Kadiya afastou uma mecha enlameada de cabelo que pendia do seu capacete de osso de xanna. Descobriu que ainda tinha forças para dar um sorriso.
- Joscata, eu recebi uma missão. - Kadiya pôs a mão sobre o punho bulboso do talismã que também era uma espada. Não posso descansar até cumprir mais um dever. Deixe-me fazer isso e prometo que voltarei de pleno coração para todos vocês, pois desejo esse companheirismo mais que tudo no mundo. Mas não cabe a mim escolher. Ainda há uma coisa que preciso fazer.
Os nyssomus espiaram a terra alagada atrás de Kadiya. No rosto dela havia uma sombra que podia significar medo.
- Que todo o bem a acompanhe, Visão Penetrante. Que a terra seja firme sob seus passos, e que o caminho que vai trilhar esteja livre de perigos.
- Que seus barcos sejam ligeiros, camaradas - respondeu Kadiya, pendurando o saco nos ombros -, que a viagem seja breve. Se o destino permitir, estaremos juntos novamente.
Jafen, porta-voz e guerreiro do clã que os levara até ali, continuava segurando o cabo de amarração do barco.
- Senhora da Espada, lembre do sinal. Sempre haverá um vigia. Quando tiver feito o que tem de fazer...
Lentamente Kadiya balançou a cabeça e piscou os olhos, para afastar a cachoeira que o gesto provocou com o movimento do capacete.
- Capitão da guerra, não espere um breve retorno. Sinceramente, não sei o que terei pela frente. Quando estiver livre, então certamente irei procurar os portadores das lanças que formaram uma muralha contra as trevas.
Uma lembrança aflorou em sua mente por um instante. Não estava mais diante de um nyssomu, e sim da figura espantosa que tinha visto apenas uma vez, quando ela era uma fugitiva perseguida, com o desespero mordiscando seus calcanhares. E foi graças à coragem que brotou do encontro com essa presença misteriosa no jardim da cidade perdida que a lembrança funcionou como um incentivo, animando-a a seguir em frente.
Os cinco que ficaram para trás não se afastaram da margem, mantendo a embarcação imóvel, enquanto conseguiam ver Kadiya e Jagun.
Por sorte a lama viscosa, que dificultava seus passos, não durou muito. Às vezes havia grandes poças no meio da trilha, e Jagun testava a profundidade com a ponta da lança. Tinham de andar bem devagar e o caminho era longo.
Não havia muitos lugares para se abrigar. A caça era rara, e as provisões, que representavam quase toda a carga que levavam, estavam acabando rapidamente, apesar de todo o cuidado que tomavam. Chegaram a ficar sem comida uma noite, e as coisas não melhoraram de manhã. Mas sob aquele céu cinza, a chuva tinha diminuído, e Kadiya afinal avistou um amontoado de ruínas mais adiante.
Era o Lugar do Aprendizado, a fortaleza das sindonas, dos Desaparecidos. Ela parou. Será que a antiga magia a afetaria, quando passasse por aquele portão arruinado? Avançou, chapinhando, na direção das ruínas, então lembrou de Jagun e olhou para trás. – Jagun?
O rosto dele estava impassível, preparado para a batalha, mas ele a seguia. Sem olhar para os lados, Jagun marchava como se fosse na direção de um perigo que é preciso enfrentar. Será que o juramento antigo, imposto ao seu povo, menos rígido para ele, pelo fato de os dois terem feito aquela viagem antes, ainda pesava sobre o caçador?
Ele não respondeu, mas continuou avançando. Uma forte rajada de chuva, carregada pelo vento, caiu sobre eles, como se a monção quisesse bloquear o caminho naquele último momento. Continuaram em frente, tropeçando nas ruínas do portão, caindo de joelhos com uma derradeira lufada de vento.
Mas... o rugido da tempestade tinha acabado! Parecia que tinham passado por baixo de um telhado, só que havia apenas o céu sobre suas cabeças. No ar pairava uma umidade densa, como um nevoeiro matinal. E diante deles...
Nada de ruínas, nenhum monte de pedras derrubadas pelo tempo. Kadiya vira aquela transformação antes, indo na direção oposta. De fora, a visão de ruínas. Dentro, uma cidade silenciosa, deserta, mas intocada pelos anos. As ruas surgiam vazias diante deles. Os prédios dos dois lados, cobertos de hera, estavam inteiros. Igual à Cidadela, na qual Kadiya nascera, que sobreviveu ao tempo sem entrar em decadência, aquele lugar também sobrevivia, embora todos os outros centros que os Desaparecidos haviam abandonado fossem apenas montes de pedras.
O saco de Jagun fez um barulho surdo ao cair na calçada. Ele resmungou alguma coisa, atitude típica de alguém que vivia segundo as leis naturais e não gostava de ter de encarar algo que as invalidasse.
- Esse é um lugar de... - ele hesitou, como se não encontrasse as palavras certas.
As nuvens estavam mais escuras. A noite ocupava o lugar da tempestade. Kadiya tinha conseguido. Crepúsculo ou noite escura, estava agora tão perto...
- Este é um lugar de poder - disse ela, e suas palavras eram suavizadas pela névoa que ficava mais espessa. - E preciso fazer uma coisa.
Kadiya não olhou para trás para ver se ele a seguia, nem ficou esperando alguma resposta. Saiu apressada. À direita e à esquerda as construções intactas se avolumavam. As cortinas de hera que as cobriam ficavam mais escuras com o cair da noite. Janelas que pareciam enormes olhos sem pálpebras espiavam por trás dessas telas vivas. Não via nenhum luzir de lampião ou brilho de tocha para acolhê-la. Mesmo assim, ela não estava assustada, não temia que houvesse qualquer coisa à sua espera.
Percorreu ruas e praças buscando o que sabia que era o coração do lugar. Deu a volta em um poço coberto de névoa e chegou a uma escada. Parou e levou a mão à espada que carregava, sem tirá-la da bainha. Dos dois lados, apoiadas sobre os degraus, havia estátuas em tamanho natural (ou talvez maiores do que o natural), de frente umas para as outras, de modo que ninguém passava por ali sem ser visto.
O artista que as esculpira dera-lhes uma vida faiscante, como um encantamento. Homens e mulheres juntos eram certamente a representação dos Desaparecidos. Cada semblante diferia dos outros, indicando serem réplicas dos que um dia ali haviam vivido.
Kadiya tirou o saco das costas e desembainhou a espada. Segurou-a pela lâmina sem ponta. Como se o gesto garantisse seu direito de passagem, ela subiu a escada.
Chegou à plataforma com colunas em cima e parou. Lá estava a segunda escada que procurava, descendo para um jardim que não era de nenhum mundo que conhecia. Frutas e flores partilhavam os mesmos galhos ali. O tempo se desfez. Não havia passado, nem futuro, apenas o momento em que ela avançava. A névoa tinha praticamente desaparecido. Até a luz crepuscular permanecia, como se a noite não tivesse seu espaço naquele lugar.
Fagulhas de luz dançavam pelo ar. Eram multicores, jóias esvoaçantes. De flor em flor, de fruto polpudo em fruto polpudo, rodopiavam e giravam. Kadiya jamais vira nada igual nas terras pantanosas.
Ela deu um suspiro e caiu sentada no último degrau. Naquele instante todo o cansaço da viagem desabou sobre ela. Levantou a mão para tirar o capacete que de repente pareceu pesado demais. Ele caiu com estrondo na pedra branca, e ela fez uma careta por causa do barulho.
Seu cabelo estava grudado no rosto enlameado e espalhado em mechas, sobre os ombros protegidos pelas cotas de malha. Tinha a negritude das águas de turfa. Seu corpo exalava os cheiros fortes do pântano. A fragrância do jardim parecia reprová-la.
A espada estava apoiada nos seus joelhos. Os três olhos que formavam o punho estavam fechados, bem fechados, como se nunca tivessem aberto para não perder os poderes. Kadiya deslizou a mão pela lâmina. Seu toque um dia despertara um formigar de vida, mas não mais. Certamente era assim que devia ser.
Enquanto acariciava a espada, observava o jardim. Aquele que tinha vindo ao seu encontro ali, que a tinha enviado para a batalha contra as trevas, para aprender sozinha um pouco do que ela era, ou poderia ser, será que viria novamente?
Não. Afinal a luz crepuscular ia se apagando lentamente. Nada se movia, exceto as pedras preciosas voadoras. Suspirando, com os ombros caídos, Kadiya levantou-se e desceu lentamente os degraus até o jardim.
A relva fechada que cobria toda a terra entre os arbustos, os canteiros de flores e as trepadeiras entrelaçadas só desaparecia em um ponto. Sobre aquele pedaço visível de terra pairava uma luminosidade.
Kadiya cambaleou até o lugar. Inclinou-se para a frente, segurou com força, com as duas mãos, as protuberâncias ovais que continham os olhos, e enfiou a ponta quadrada da lâmina do talismã na terra nua. A lâmina entrou com dificuldade. Houve uma forte resistência, que representou um grande esforço para a sua energia debilitada. Mas a espada ficou em pé, quando ela se afastou um pouco, como um estranho broto novo, nesse lugar de aconchego e paz.
Levou as mãos ao pescoço para tocar o outro símbolo de poder, que usava desde seu nascimento, o amuleto de âmbar com uma minúscula flor no centro. Kadiya esperou.
Tinha devolvido sua espada de poder ao lugar onde havia crescido. Ela não se modificara como havia pensado. Kadiya endireitou os ombros, corrigiu a postura. Largou o amuleto para afastar as mechas lisas de cabelo da frente dos olhos e clarear a visão. Nada se mexia.
Kadiya pigarreou. Apesar de falar em voz alta, as palavras pareciam abafadas, distantes.
- Tudo acabado. Completamos a tarefa que nos foi designada. O mal foi derrotado. Haramis é Arquimaga. Anigel reina sobre povos amigos e povos que foram inimigos um dia. O que você quer de mim?
A resposta? Será que a espada, sem nenhuma modificação, era a única resposta E ela estaria demonstrando sua antiga impaciência, naquele lugar sem tempo? Decidida, falou novamente.
- Aquele que veio ao meu encontro aqui antes disse-me que este é um lugar de aprendizado. Minha... minha necessidade então era enorme, pois lutava contra todas as forças que nossos inimigos podiam lançar sobre nós. - Ela parou de falar e procurou as palavras certas, outra vez. - Agora tenho também uma grande necessidade. O que tem para mim? O que há no meu futuro, o que tenho de dar em troca? Haramis tem a sabedoria e o poder que desejava, Anigel seu reino. Se eu realmente fiz por merecer um futuro, qual será? Não obtive resposta, mas fui atraída para cá por alguma razão. Dê-me as respostas, você que se abriga neste lugar, como já me mostrou o caminho uma vez!
Nada se moveu, a não ser as coisas brilhantes. A noite estava mais escura, mas uma luz fraca rodeava a espada plantada.
Kadiya fez menção de pegar a espada, mas afastou a mão com um gesto brusco. Tinha de compreender melhor primeiro. Deu meia-volta e subiu os degraus até o topo, sem olhar para trás.
O cansaço tinha triplicado e com ele veio uma sensação de vazio e de perda. Não por ter deixado sua parte do poder para trás, era mais porque alguma outra vontade a tinha deixado de fora, ficando entre ela e o conhecimento.
Mas lá no fundo ainda possuía a obstinação de jamais aceitar a impotência, e não a aceitaria também naquele momento. Havia sim um propósito em tudo isso, ela tinha certeza. E pretendia descobrir qual era. Se não imediatamente, em algum dia.
-Senhora...
Ao pé da escada das guardiãs, à beira do poço, estava Jagun, segurando a mochila dela junto com a dele. Tinha apoiado sua lança com a ponta para baixo, como se faz quando há um ancião ou um capitão de clã por perto. Mas talvez esse gesto não se destinasse a ela, e sim aos que um dia viveram ali.
Kadiya desceu os degraus com passos firmes. Segurava o capacete em uma das mãos e lembrou que ainda tinha uma adaga no cinto, apesar de estar sem a espada. Não havia nenhum perigo ali que ameaçasse o corpo, estava certa disso. Mas havia outra coisa. O que era, devia aprender sozinha.
- Mestre das Trilhas - ela apontou para o prédio do outro lado do poço -, eis um ótimo abrigo, e certamente podemos usá-lo.
O prédio escolhido era o abrigo mais aconchegante que tinham encontrado desde que saíram da Cidadela, mas não houve jeito de fazer uma fogueira, pois a umidade persistia. Entre o abrigo e a escada estendia-se o espelho negro do poço. A escuridão do lado de dentro da porta era meio assustadora, e Kadiya vacilou logo na entrada, tentando enxergar pelo menos um pouco do poder que havia lá. Resolveu que o sentido de alerta que desenvolvera, lentamente, durante suas viagens pelos pântanos, era incerto demais para merecer total confiança agora. Não sentia nenhum pressentimento sutil, mas isso não era garantia de não haver nada à espreita ali dentro.
Jagun estava procurando alguma coisa na mochila dele. Kadiya tinha a habilidade de ver ao longe, mas a escuridão era sempre menos compacta para o oddling. Ele tirou do saco um tubo, pouco menor que seu antebraço. Com ele na mão, saiu novamente para o ar livre.
Tudo que Kadiya conseguiu ver foi um movimento de sombras nos arbustos que ladeavam a calçada. Então surgiu uma pontinha de luz fraca. Jagun tinha encontrado e tentava arrancar do esconderijo, embaixo de uma folha, uma larvafulgente. Ele enfiou outra e mais outra, metodicamente, no tubo. Quando retornou, estava segurando um cetro que gerava uma luz débil, mas muito bem-vinda.
Um rápido exame revelou que tinham encontrado um cômodo vazio, apenas quatro paredes, um chão sólido e um teto, que certamente era à prova de tempestades.
Com os dedos enrijecidos, Kadiya soltou as fivelas de sua armadura. O cheiro do cabelo molhado e do corpo manchado de limo era ofensivo. Mesmo buscando sempre os pântanos, essa sujeira era algo que nunca aceitara e sempre lhe provocava um certo nojo. Livre da armadura e desgrudando o blusão molhado do corpo, ficou um pouco mais à vontade.
As presilhas da mochila também eram duras, e as fibras de junco trançadas estavam muito apertadas. Kadiya quebrou uma unha no sabugo e soltou um palavrão.
Com o brilho limitado do lampião improvisado de Jagun, ela conseguiu separar uma tira da toalha feita de polpa de junco. O poço esperava lá fora, mas não pretendia visitá-lo à noite. Só que batidas suaves do outro lado da porta indicavam que uma chuva benéfica começava a cair. Descartando o resto de suas roupas ensopadas e usadas demais, aventurou-se deliberadamente para fora. Um punhado de folhas serviu de esfregão e ela usou aquele poço na vegetação, que se esvaía rapidamente.
Há muito tempo tinha sacrificado seus longos cabelos por causa do capacete. Então, como não passavam dos ombros, agora trêmulos de frio, conseguiu molhá-los bem e desembaraçá-los com os dedos, fazendo o melhor que pôde para melhorar sua aparência, pelo menos um pouco.
A chuva estava fria, e ela voltou para o abrigo para se enxugar vigorosamente com a tira de toalha. Um blusão de baixo limpo foi um luxo que ela saboreou, enquanto amarrava os cordões no pescoço. Por um instante lembrou do que costumava ter nos aposentos particulares das damas na Cidadela, todo o conforto que agora era de Anigel. Então Kadiya balançou a cabeça, para afastar o pensamento e para soltar o cabelo.
Jagun falou pela primeira vez.
- Você não está usando a espada.
Ele estava sentado de pernas cruzadas, com as mãos dentro da mochila, e os grandes olhos refletiam a luz fraca, pareciam até ter um brilho próprio.
Kadiya bateu a toalha no ar e sacudiu o cabelo ainda molhado.
- Não... não foi aceita - disse ela. - Eu a pus no lugar onde cresceu, a partir do caule da Arquimaga. Nada mudou. Nenhuma mudança... - ela repetiu e acrescentou com mais firmeza: - Como pode ser, mestre caçador? A profecia não foi cumprida inteiramente? Nós, mulheres da casa de Krain, trouxemos a grande arma dos antigos. Voltrik e Orogastus estão mortos. Seus exércitos juraram fidelidade a Antar, e, como ele é o senhor escolhido de Anigel, o juramento vale também para Ruwenda, que eles pretendiam derrotar e destruir, também. Os skriteks fugiram de volta para seus buracos pestilentos. Vi minha irmã mais nova ser coroada em segurança e casar-se feliz, segundo ela. Minha irmã mais velha foi para seu lugar de aprendizado, sua opção de controle do poder. Mas a minha missão ainda não foi determinada.
Ela estava ajoelhada, de forma que seus olhos ficavam quase na mesma altura dos olhos do oddling. Ficou olhando para ele, como se exigisse respostas.
- Diga, Jagun, por que estão me negando a recompensa de um trabalho bem-feito?
- Visão Penetrante, quem pode compreender os que construíram este lugar? Eles se foram há séculos e séculos. - Ele olhou rapidamente para a direita e para a esquerda. - Tinham poderes muito além do que se pode calcular... a vida deles não era como a nossa.
- É verdade. Eles se foram há muito... Jagun fazia que sim com a cabeça. - A Grande Binah foi a última da raça deles e escolheu ficar de guardiã quando partiram. Agora o tempo a levou também.
Ele pegou o último bolo de raízes secas que tinham, partiu cuidadosamente ao meio e deu um pedaço para ela. Ela estava fraca de tanta fome (e isso ficou ainda mais evidente ao ver o último naco de alimento), mas não mordeu imediatamente o bolo, que era duro feito pedra. Ficou revirando o pequeno bloco na mão.
- Jagun, fale desses Desaparecidos. Ah, eu sei o que dizem os nossos registros na Cidadela. Então eu não fiz uma pesquisa antes de vir para cá? Sei que essa terra um dia foi um grande lago, talvez até uma enseada de mar, que rodeava ilhas onde vivia um outro povo, que não era oddling, nem da minha raça.
”A lenda diz que tinham poderes grandiosos, que não conhecemos, e viveram muito tempo em paz. Então sobreveio uma grande guerra, na qual armas com as quais nem sonhamos foram usadas, umas contra as outras. Talvez tenhamos visto parte daqueles traficantes da morte, quando testemunhamos o que Orogastus invocou contra nós, Eles romperam a essência da terra e as águas foram escoadas, as cidades entregues aos perigos do tempo. Mas para onde foram os Desaparecidos? Certamente nem todos morreram na ruína infernal que forjaram.
”Mas quem eram eles? Lembra, Jagun, a primeira vez que viemos para esse lugar, seguimos o braço estendido de uma estátua, que estava coberta de lama seca. Você deu um nome para aquela estátua: Lamaril. Diga, Mestre Caçador, quem era Lamaril?
Kadiya não sabia por que tinha escolhido aquela pergunta de todas que fervilhavam em sua mente.
Talvez devesse perguntar sobre aquele ser oculto que falou com ela na primeira vez. Um pensamento surgiu, repentino e claro. Será que era outro desaparecido, como Binah, que preferiu ficar?
Lembrando bem, Kadiya concluiu que o encontro tinha sido meio ilusório. Não apresentava nada da realidade da sua reunião com Arquimaga. A perplexidade gerou outra pergunta.
- Portadora da Espada - o tom de voz do companheiro era formal como se estivesse falando com um Orador, o governador de um clã de família -, ninguém do meu povo jamais ousou entrar nesse lugar. Estamos presos ao juramento de não fazer isso.
- Você não tem mais esse compromisso, Jagun. O talismã o libertou.
Kadiya lembrou das palavras que surgiram de algum lugar além da sua compreensão, a fim de sanar o desespero de Jagun quando ele se considerava um renegado. Ela repetiu aquelas palavras.
- Não guarde esse peso na alma.
Ele ficou em silêncio um tempo, sem olhar para ela, olhava para o lampião de larvas, parecia ler ali alguma mensagem, como faria uma mulher sábia com um pote cheio.
- Você pergunta sobre Lamaril. Mas meu povo também tem suas lendas, só que fragmentadas pelo tempo, difíceis de entender agora. Ele era um guerreiro, um guardião protetor contra as trevas. Dizem que no final ele enfrentou sozinho um dos seres do mal mais poderosos, que ele venceu a batalha pela Luz, mas que depois morreu. E também que protegia meu povo, por isso, quando se foi, prestamos todas as homenagens possíveis. ”Visão Penetrante, os Desaparecidos nos criaram, nyssomus e uisgus. Éramos os que iam e vinham nos pântanos, insensatos, sem memória do passado, nem ideias para o futuro. Com o auxílio dos Desaparecidos viramos um povo de verdade. O conhecimento que tinham da força da vida, do fluxo da vida, era muito grande, por isso eram capazes de fazer coisas incríveis para os dias de hoje. Por termos sido criaturas menores, transformadas pelo poder deles, procuramos manter vivas nossas lembranças. Mas sempre guardaram o segredo das fontes do seu poder, porque éramos como crianças a quem não se entrega uma adaga afiada. Quando as trevas se transformaram em ameaça, os que nos tiraram dos pântanos se manifestaram. Impuseram o juramento, segundo o qual não podíamos procurar o que desejavam manter oculto, e ordenaram que nos escondêssemos, senão seríamos caçados pelo mal.”
- Mas quem eram eles? - Kadiya fez a pergunta para ela mesma, não para Jagun. - Eu vi aquelas estátuas que montam guarda no caminho. Vi algumas parecidas com Lamaril na trilha. De certa forma eles poderiam pertencer à minha raça, mas são diferentes também.
- Nenhum relato passou entre nós, de orador para orador, contando o que eles eram antes de o nosso povo surgir dos caminhos das águas ao seu comando. Acho que não são da sua espécie, Visão Penetrante. E se todos morreram na guerra contra as trevas... não. Dizem que alguns sobreviveram e se refugiaram em outro lugar, talvez no lugar de onde vieram.
- Essas trevas, o oculto... oh, eu sei que esse nome foi dado pelo meu povo para seres malignos como os que Orogastus lançou sobre nós... de onde isso surgiu?
- Visão Penetrante, há trevas no coração da sua raça, nos oddlings, talvez em todos os seres vivos, se pudéssemos medir ou desvendar isso. Os Desaparecidos não eram todos mestres da Luz. Talvez tivessem seus Voltrik, seus Orogastus. Pelo menos a lenda da guerra indica isso, só que o nome que davam a esse mal não chegou até nós.
”No mesmo instante em que nyssomus e uisgus eram promovidos a criaturas pensantes da vida e da esperança, pela Luz, contam que os skriteks foram criados para executar a obra do mal, e ficaram sem controle no final, passando a ser a eterna praga de nossa terra.”
- Mas havia aquele que falou comigo. Só que não vi esse orador claramente. - Kadiya ousou fazer a pergunta mais difícil. - Ouvi dizer que há uma essência em todos os seres, que se desprende com a morte do corpo. Foi essa essência que encontrei aqui Ou será que Binah não era a única guardiã que restou? Jagun, eu preciso saber!
Ela pensou, arrependida, em todo o tempo desperdiçado. Haramis sempre consultava os velhos livros e registros da Cidadela, mas desde a mais tenra infância Kadiya ficava impaciente com essas coisas. A necessidade de agir era muito forte nela. Mesmo naquele momento estava se remexendo, inquieta, enquanto mordiscava sua ração. Ela pensou no jardim do outro lado. Havia ali alimento em abundância, frutos muito melhores do que aquele bolo, que parecia cinza ao seu paladar.
O oddling não respondeu. Lá no fundo ela sabia o que tinha de fazer. De manhã ia procurar algo mais que comida. Muitas coisas tinham sido descobertas nas ruínas devoradas pelo tempo, já exploradas pelos nyssomus e uisgus. O que poderia haver intacto no lugar onde a exploração era proibida?
Engolindo em seco a última migalha, ela estendeu a mão para o bastão de larvas.
- Deixe-me usar isso um pouco, caçador. Quero saber que tipo de abrigo escolhemos para esta noite.
Ele fez que sim com a cabeça, mas não se levantou para acompanhá-la, quando ela levou a luz para a parede mais próxima. Sim, estava certa. Apesar da escuridão, tinha avistado algo naquele ponto. Segurava o tubo bem perto da pedra, movendo-o devagar.
Havia pinturas naquelas paredes. A maioria de flores, mas aqui e ali surgiam criaturas fantásticas, tão desbotadas pelo tempo que eram quase invisíveis. O desenho tinha uma concepção estranha. Podia ser a visão do jardim através de uma janela. Flores e frutos em um mesmo galho e, no ar acima deles, coisas esvoaçantes em tons um pouco mais brilhantes, que pareciam saltar da pedra quando a suave luz das larvas encostava nelas.
Percorrendo a pintura, Kadiya viu detalhes intrincados que exigiam uma análise mais elaborada. Mas em nenhum lugar havia uma representação de criatura viva, a não ser as esvoaçantes. O artista ou artistas que trabalharam ali não dei- xaram nenhum retrato deles mesmos, nem dos que poderiam ter encomendado aquelas cenas.
Kadiya chegou ao canto e virou para examinar a outra parede. No meio dessa segunda parede encontrou uma abertura, e os padrões florais foram substituídos por curvas, linhas interrompidas... uma escrita? Achou que havia ali a sugestão de algo assim, mas não tinha a chave para desvendá-la. Traçou com o dedo algumas linhas, como se pudesse resolver seus mistérios pelo toque.
Então viu-se diante de outra passagem. Balançou o tubo na abertura. A luz era fraca demais para iluminar o que tinha mais adiante. Se estivesse em outro lugar, talvez não gostasse do fato de não haver uma barreira na entrada, para ser fechada. Ali não sentia o menor desconforto, mas não prosseguiu.
Havia uma outra seção de escrita e depois um segundo canto. Era a parede onde ficava a passagem para o mundo exterior. Também tinha imagens, só que não eram de um jardim viçoso. O que ela via era água. Não era a mesmice escura de uma laguna de pântano, nem o curso amarelo de um rio, nem um poço espelhado. Não, aquilo estava pintado de azul metálico cintilante, e bem longe de um pedacinho da margem, indicada na parte debaixo da parede, havia uma sombra que podia ser uma ilha.
Nenhum barco perturbava a superfície daquela água clara, mas havia marolas, e Kadiya estava certa de que não era um simples poço. Seria aquela famosa lagoa-mar que um dia existira?
A quarta parede contrastava com as outras três. O que apareceu com a luz fraca e trêmula provocou uma exclamação em Kadiya. Uma fileira de estranhas criaturas parecia pronta para saltar da superfície.
- Jagun! – Kadiya chamou o caçador, que estava desenrolando as esteiras de dormir, sem participar da sua exploração. – Jagun, quem são esses?
Ele atravessou o cômodo com passos lentos, e Kadiya pôs o tubo de luz o mais perto possível da pintura.
- Estes... Eu nunca vi nada assim antes.
- Eu não sei, Visão Penetrante.
Ela estava exagerando, ou tinha mesmo o ouvido um tom lúgubre, evasivo, na resposta dele?
Podem ter existido muitas coisas nos tempos antigos que são desconhecidas aqui, atualmente.
Ele deu meia volta e voltou para seus preparativos para a noite.
As figuras retratadas estavam apoiadas nos membros traseiros, em uma posição semelhante à humana, e tinham apêndices superiores que pareciam braços, só que as “mãos” eram coleções de garras formidáveis. Seus corpos acompanhavam o formato geral de um escudo de guerreiro, largo em cima, na altura dos ombros, e diminuindo até um espaço bem mais estrito entre as pernas. As cabeças ficavam em cimas desses ombros largos, como se não tivessem pescoço. Os corpos em forma de escudo eram serrilhados na parte da frente e feitos de placas, cada uma formada, por sua vez, de pequenas escamas.
A cor usada com maestria na pintura da parede criava um reflexo em algumas partes daqueles corpos, iridescente, igual ao que Kadiya vira nas asas de insetos. Eram todos azul-esverdeados, até as cabeças, com um formato de gota d’água prestes a pingar do bico de uma jarra. A parte mais larga separava duas grandes orelhas, uma de cada lado na parte superior do crânio, e a parte mais estreita formava um focinho. Os olhos eram pequenos, mas o artista pôs dentro deles uma faísca vermelha que captava a luz das larvas e dava vida a todo o conjunto.
Eram muito estranhos, mas não havia nada de assustador neles. As mãos com garras estavam abertas diante deles, como se fossem pegar um presente dado com prazer, ou então prontas para saudar um amigo. Possuíam um encanto melancólico.
Kadiya encostou os dedos na testa de uma das figuras do grupo, esperando sentir um tipo de textura diferente na pedra. Mas era só a habilidade do artista. Não passavam de pinturas.
- Visão penetrante! – O chamado de Jagun foi autoritário. – É hora de descansar... não de ficar admirando paredes.
Ela sentiu mais uma vez que aquela parede e o que estava pintando nela deixavam Jagun inquieto. Por suspeitar disso, desejava saber mais. Mas ele tinha razão. A fadiga tornava seu corpo pesado. Ela esfregou a mão na testa; aquela dor que sempre sentia, quando abusava de suas forças, começava a incomodar. Kadiya voltou para o lugar perto da porta, onde Jagun montar o acampamento.
Já não se ouvia o tamborilar da chuva, nenhum escoamento da tempestade, transformando o desconforto em sofrimento concreto. Kadiya pôs o tubo entre as duas esteiras de dormir. Era o fim da trilha, pelo menos da trilha que resolvera seguir até esta noite. A pressão que a levou para longe da cidadela tinha terminado. Mas quando cedeu ao sono, a última coisa que havia em sua mente era a lembrança da espada, que deixara como um desafio, enterrada no solo que relutava em recebê-la.
Kadiya despertou de repente, como costumava fazer nos últimos dias, quando caminhavam pelos pântanos cheios de inimigos escondidos. Ela sentiu uma mudança. Seu sentido aguçado de desbravadora a fez acordar.
Examinou tudo em volta, com os olhos semicerrados. O bastão brilhante estava quase sem luz. As larvas estavam hibernando, porque fazia muito tempo que não se alimentavam. Mas conseguia ver Jagun, e o caçador continuava imóvel.
Kadiya concentrou-se na audição. Fazia silêncio surdo naquele lugar, divorciado de todos os sons noturnos do mundo lá de fora. Ela podia ouvir o sibilar fraquinho da respiração do companheiro... e nada mais. Mas tinha certeza de que alguma coisa a fizera acordar.
A conversa que tiveram mais cedo sobre a essência que podia ter permanecido ali, depois que os habitantes se foram...
Ela sabia que os skriteks podiam caminhar furtivamente, sem fazer barulho quando queriam, mas com certeza não havia traços do fedor daqueles matadores ali. Não. Ainda imóvel, Kadiya procurou sintonizar outra forma de busca.
É isso!
Ela sentou-se de um salto, empurrando para o lado a ponta da esteira de dormir. Estava lá! Como uma corneta chamando para a ação! Entretanto ela não pegou a armadura que despira, só afivelou o cinto com a bainha da espada vazia e a adaga pendurada.
Saindo do prédio com cuidado, olhou para o outro lado do poço, para aqueles débeis lampejos que marcavam as estátuas das guardiãs da escada. Lentamente Kadiya caminhou na direção delas, dividida entre a cautela aprendida a duras penas e a sua impaciência característica. O desejo inato de agir sempre vencia.
Ela subiu os degraus, parando em cada um para espiar as sentinelas imóveis, à direita e à esquerda. Suas feições eram perfeitamente visíveis, apesar da falta de luz, como se houvesse vida dentro delas.
Afinal chegou às colunas de onde se via a cidade, com seus prédios sufocados pelas trepadeiras, além do poço. Luz!
Obedecendo ao reflexo de um longo treinamento, sua mão cobriu imediatamente a bainha da adaga. Sem dúvida, à sua direita, tinha visto uma centelha de luz!
Seria a radiação daquela figura envolta em névoa, que encontrara ali? Impossível... mas...
Não podia haver nenhuma expedição de nyssomus ou uisgus ali. Os oddlings podiam explorar as ruínas em busca de ”tesouros”, que seriam negociados no mercado de Trevista, mas não o que restava de uma cidade proibida pelo juramento. Nem como conseqüência de uma guerra, que mobilizara todos das terras alagadas. Não haveria tão cedo expedições de caça, como as que alguns membros mais aventureiros da sua raça costumavam fazer.
A guerra! O povo de Labornok, que encharcara a terra com sangue, até ousou invadir os pântanos. As conquistas do seu general Hamil chegaram quase até essa cidade. Será que haveria desgarrados daquelas tropas, escorraçados pelos oddlings, ameaçados pela própria natureza da terra que não compreendiam e encurralados até?
Ou outros... alguma outra coisa? Kadiya não conseguia parar de pensar nessa presença velada.
A noite estava terminando. Ela via cada vez melhor, enquanto examinava a cidade que se espalhava diante daquele mirante. Se havia outros, então era melhor descobrir tudo que pudesse sobre eles, e o mais depressa possível.
Kadiya desceu a escada correndo e localizou uma rua transversal na direção certa. Quando entrou naquele caminho lateral, a cautela que aprendera nos últimos meses dominou a pressa.
Andando mais devagar, ela procurou abrigo adiante.
Neste ponto as construções eram niveladas com a rua, e até a cobertura de trepadeiras, tão abundante em outros lugares, era muito limitada. Ela não seguiu em linha reta. Desviava de ruas para vielas, seguia pelos caminhos estreitos, voltava para as ruas, com a esperança de estar indo na direção certa.
A névoa pesada que substituiu a chuva, açoitada pela ventania entre aqueles muros, era espessa e ondulada, dificultando ainda mais o avanço de Kadiya. A cada poucos passos ela parava, encostava na parede mais próxima e estudava o caminho à frente, prestando muita atenção em quaisquer fiapos de nevoeiro que pudessem ocultar um movimento.
Por sorte suas botas encharcadas não produziam nenhum som no calçamento, e ela continuou a utilizar a cautela do caçador e tudo que tinha aprendido com Jagun, mestre dessa arte.
Uma outra ruela aqui, ainda mais estreita. Os prédios formavam paredes tão altas dos dois lados que todo o caminho era escuro como o crepúsculo. Não havia nenhuma porta ou janela. Mas quase no final da rua, uma trepadeira formava uma argola, pendurada do segundo andar. Parecia o nó corrediço de uma armadilha, só que estava completamente à vista. Kadiya aproximou-se, pé ante pé, ouvidos aguçados, procurando também invocar aquele outro sentido que ainda não sabia muito bem o que era.
No tempo que usava a espada talismã, sempre pressentia as coisas. No entanto, aquela arma não estava mais em seu poder. Os oddlings possuíam sentidos próprios para alertá-los do perigo, que funcionavam bem, nos brejos dos pântanos. Mas em uma cidade? Aquelas paredes e construções eram desconhecidas, até para ela, que nascera e fora criada na Cidadela, também resquício do passado longínquo.
Obedecendo a um instinto, Kadiya fechou os olhos e tentou perscrutar o exterior por meio do pensamento. Tinha feito isso uma vez com algum sucesso, a fim de se proteger da presença das trevas. Será que serviria para outras coisas?
A resposta veio suave como o roçar de penas macias em sua pele, só que por dentro, não do lado de fora do seu corpo.
Soltou o ar com um assobio. Não esperava uma resposta, tampouco havia tempo para meditar sobre o que tinha acontecido, para questionar ou examinar a questão. Ela procurou aprisionar aquela sensação, como prenderia um anzol na boca de um peixe, com um giro da mão. Não que desejasse atrair a sensação para perto. Não, ela queria ser guiada para a sua origem.
Afastando-se da parede, Kadiya abriu os olhos e descobriu que o fato de tentar se agarrar àquele guia ilusório a tinha deixado muito próximo de um desastre. O laço da trepadeira se desenrolou com uma velocidade incrível e chicoteou o ar. Ela se jogou para trás, tropeçou e caiu, ferindo um joelho.
Sentiu um tranco e gritou, quando a ponta daquele chicote enroscou-se apertado no seu cabelo. A dor foi intensa e o cipó arrastou-a para frente. Kadiya sentia que ia ser escalpelada.
Sacou a adaga e, apesar de não ver bem o que pendia lá de cima, o que a aprisionava, apesar da agonia de dor que o esforço provocava, virou de um lado para outro, golpeando e cortando acima da cabeça. Às vezes a lâmina encontrava resistência.
Lágrimas de pura dor molhavam seu rosto, e a coisa continuava a puxá-la para cima. Seus pés já mal encostavam no chão, e seu captor tentava erguê-la no ar. Apareceu à sua frente uma outra trepadeira feito cipó. Kadiya cortou-a com a adaga. A arma penetrou na planta. A trepadeira, meio cortada, recuou para a parede de pedra.
Talvez isso tenha causado algum efeito no cipó que a mantinha presa. O puxão para cima parou um pouco, quando ela serrou furiosamente seu cabelo. O fio daquela lâmina foi a salvação, pois cortou todas as mechas repuxadas, e ela aterrissou de cara no calçamento.
Sem procurar ficar de pé, Kadiya arrastou-se pelo chão, arranhando as palmas das mãos na superfície áspera.
Ouviu um zunido vindo de cima. Deu um último mergulho para a frente, esperando escapar do alcance da coisa, e deslizou no chão até bater com o ombro na parede oposta.
A raiva apossou-se dela como uma lança penetrando seu cérebro. Mas aquele ataque, de certa forma, tinha sido providencial, pois era a raiva de um caçador enganado pela presa.
Kadiya levantou e ficou colada à parede, virada para a ameaça. A corda comprida chicoteava o ar na sua direção, chegando bem perto uma ou duas vezes, a ponto de criar um vento em seu rosto. Ela foi se esquivando freneticamente.
A aura de raiva fervente era um novo tipo de dor. Balançou a cabeça de um lado para o outro, fraca e ofegante. Pelo menos estava fora do alcance da coisa.
Sentiu outro tipo de raiva. Achava que tinha sido traída por aquela sensação de paz que a envolvia desde que entrara na cidade. Seria parte de uma cilada? Há poucos minutos acreditava não haver nenhuma ameaça nos prédios vazios e nos muros em volta. Só que...
Sem fôlego, apertou o amuleto com uma das mãos e ficou com a adaga em riste na outra. Então invocou o pequeno poder que sabia possuir.
As trevas exalavam um odor característico que traía sua posição, como os skriteks, com seu fedor horroroso. Kadiya já passara por isso e não ia esquecer o cheiro que só um sentido interior podia captar. Mas naquele momento, naquele lugar, não sentia nada igual a essa podridão. Havia um cheiro, sim, partindo da gosma grossa que escorria do corte na trepadeira. Seiva... ou sangue?
No pântano havia plantas que representavam perigo para todas as criaturas vivas. Não provinham da magia negra, mas a natureza delas oferecia perigo. Ali na cidade a vegetação era exuberante em todos os lugares descobertos. As trepadeiras que tinha visto em outros lugares rodeavam e cobriam muitos prédios abandonados.
Essa coisa, essa parte que continuava a colear feito serpente, podia muito bem ser de uma espécie similar, enraizada do outro lado da parede. Mas se fosse uma caçadora, como as coisas que tinha visto no pântano, como podia continuar vivendo ali, onde aparentemente não existia outro tipo de vida?
Kadiya limpou a gosma da lâmina da adaga passando-a na calça, gasta de tantas andanças. Pôs a mão de leve no topo da cabeça que doía. Vários tufos de cabelo saíram entre seus dedos, com as raízes ensangüentadas.
Seus joelhos estavam em carne viva. Ela ainda tremia depois do que sofreu. A prudência recomendava que voltasse para o acampamento, procurasse tratar dos ferimentos e visse se Jagun sabia de alguma coisa.
Ali de pé, Kadiya deixou livre aquela sensação na mente. A fúria do atacante ainda era uma ameaça. Conseguia captar também uma corrente oculta de dor, como se a ferida do membro machucado alimentasse seu ódio. Mas aquele toque de pluma, que identificava como um chamado, persistia.
Havia muitas perguntas sem respostas. Mesmo diante da possibilidade de conseguir apenas algumas, tinha de tentar. Levada mais uma vez pelo propósito implacável que a fez buscar a espada talismã, Kadiya escolheu seguir em frente.
A luz cinzenta do dia já estava bem forte, e ela enxergava bem melhor à frente. Saiu da rua estreita para um outro grande espaço aberto.
Os prédios não eram altos, eram imponentes. As paredes externas tinham desenhos gravados com sulcos profundos, especialmente em volta das portas e das janelas. Havia locais com vegetação, de onde saía um estonteante perfume de flores. Quando Kadiya chegou ao espaço aberto ouviu uma correria e a fuga rápida de uma criatura, que devia ter o tamanho da sua mão. Então havia vida ali.
Encaminhou-se para o centro da praça, para a bacia de uma fonte, mantendo a maior distância possível das plantas. Surpreendeu-se ao ver que havia água ali, subindo em borrifos frágeis a partir de dois pontos afastados, encontrando-se no meio e caindo juntos.
Kadiya tropeçou na beirada larga da bacia e caiu sentada no banco que a circundava. Deixou a adaga bem ao seu lado, a fim de poder pegá-la rapidamente, e inclinou-se para a frente, mergulhando as mãos na água.
Ficou muito surpresa de a água não ser gelada, mas morna, como se tivesse ficado sob o sol de verão. Encheu as palmas das mãos em concha e aproximou-as do rosto. Sentiu um cheiro levemente adocicado.
Resolveu se arriscar e lavou os braços e os joelhos arranhados, depois inclinou a cabeça cuidadosamente para a frente jogando a água sobre o cabelo e o couro cabeludo que estavam ensangüentados. A água era muito cristalina. Dava para ver claramente o interior da bacia.
Pontos de luz faiscavam lá no fundo, embora não houvesse sol incidindo sobre eles. Enfiou a mão e pegou um. Da água surgiu uma fina corrente de metal bem trabalhado. Ela reconheceu um dos estranhos tesouros do passado que sempre encantaram os ferreiros de seu pai na Cidadela. Não era amarelo-avermelhado como ouro, nem possuía o brilho frio da prata. Parecia feito de fios tirados de alguma gema azul-esverdeada, trançados para formar um cordão.
Kadiya ergueu a peça no ar, e a água escorreu de inúmeras pedras claras, prateadas, dispostas ao longo da corrente, que também emitiam faíscas reluzentes. Ficou maravilhada com a sua descoberta. Durante toda a sua vida tinha ouvido histórias de tesouros nas ruínas, e viu artefatos (muito quebrados), que comerciantes de sorte levavam da feira em Trevista. Eram sempre pedaços e partes que só davam uma idéia de qual formato deviam ter. Mas aquele estava inteiro, perfeito.
Ela esticou o cordão e notou que tinha a forma de um peitilho, feito para descer do pescoço como um colarinho e cobrir o peito. Sua mãe tinha jóias, algumas tão finas que eram usadas apenas nas ocasiões mais solenes, mas essa superava tudo que tinha visto.
Tinha outros pontos brilhantes na água. Kadiya segurava o colar e examinava atentamente toda a bacia. A riqueza que havia ali era incalculável. Era uma beleza, um luxo que excedia o de todos os sortimentos da Cidadela, além da imaginação do seu povo, se todas aquelas faíscas correspondessem ao menos em parte ao que tinha nas mãos. Kadiya revirava o colar de um lado para outro, embevecida. As contas pareciam água congelada, contendo todo o espectro de luz do arco-íris.
Bem no seu íntimo surgiu uma pergunta. Por que aquele tesouro estava ali, assim jogado?
Os borrifos de água da fonte eram mornos em contato com sua pele, mas Kadiya não se sentia muito reanimada. A apreensão comprometia o encantamento da descoberta. De repente ela soltou o colar e deixou-o cair novamente nas profundezas de onde ele viera. Não tentou pescá-lo outra vez, nem alcançar nenhuma das peças que via.
Os Desaparecidos não viviam como o seu povo, apesar de as estátuas terem formas parecidas. Duas temporadas atrás tinha sido a vez dela, com toda a sua impaciência em relação aos costumes cerimoniais, de assistir à primeira semeadura das terras baixas. Era um dever que cada mulher de sangue real assumia em turnos.
Lá ela fez os sacrifícios exigidos à fortuna, à fertilidade e aos campos, para assegurar boas colheitas. Foi levada até uma piscina com água não tão clara quanto a que jorrava ali, mas também não era poluída pelos pântanos, onde executou o ritual que consistia em tirar do braço uma pulseira de ouro retorcido da qual gostava muito (a oferenda devia ser algo de valor para o doador) e jogá-la na água, antes de as Donzelas da Fonte que a escoltavam fazerem o mesmo com suas guirlandas de flores. Assim ela pagou o tributo a certo poder, embora ninguém explicasse que poder era esse, nem por que devia ser aplacado com tesouros.
Kadiya ficou olhando fixamente para a bacia. Seria esse um lugar de conciliação, como a piscina nas terras baixas? O que havia lá dentro representava pedidos de prosperidade? Ela se levantou devagar. Sendo ou não sendo, não tiraria nada dali.
Com a chegada da manhã, a névoa se desfez. Mas a sensação insistente que a levara até aquele ponto não diminuiu. Deu meia-volta para observar as construções que rodeavam a fonte. Eram bem mais ornamentadas que as que tinha visto antes.
Explorar tudo aquilo...
Essa idéia não teve tempo de desanimá-la. Por cima do barulho da água, ela ouviu claramente um tilintar tão suave como sinos de cristal. Atraída pelo som, deu a volta na fonte e aproximou-se de um prédio sombreado por um pórtico colunado.
Mais de perto, Kadiya avistou uma entrada aberta, sem sinal de impedimento. Essa passagem também era guardada por uma estátua de cada lado. Mas esses guardiões silenciosos não tinham formas parecidas com a dela. As sentinelas gêmeas eram cópias das criaturas da pintura na parede, aquelas figuras excêntricas que Jagun não conseguira identificar.
Diferente das estátuas da entrada do jardim, essas não davam a impressão de vida suspensa. Apesar de grotescas, Kadiya tinha certeza de que não haviam sido erigidas para inspirar medo. Ela estava examinando as estátuas, primeiro uma, depois outra, quando percebeu algo mais.
Do interior mais escuro, além do portal sem porta, emanava um perfume. Na Cidadela, em dias de grandes festividades, acendiam lampiões no alto dos postes, que queimavam óleos aromáticos. Aquele cheiro era parecido. Será que um desses lampiões seria a fonte da luz, que convenceu-a a sair explorando? Se fosse, a quantidade de luz significava mais de um lampião, postos na parte mais alta do prédio, ou ela poderia não tê-los visto. Nenhum oddling usava esse tipo de iluminação.
Kadiya resolveu se aventurar e avançou, satisfeita com o fato de suas botas serem completamente silenciosas. Ela caminhava com a mão sobre o cabo da adaga. Sacou a arma sem querer, quando deu um segundo passo e se viu na mais completa escuridão. Sentiu uma vertigem, ficou zonza e nauseada. Temia uma armadilha naquele breu total.
A tontura piorou, e ela combateu esse desconforto se mexendo. Jogou-se para a frente, saindo da cegueira que a envolvia para uma luz cinza, na qual readquiriu o poder da visão.
Diante dela surgiu um grande salão. Ficou imóvel e sem ar ao ver o que a esperava. Era um lugar de elegância formal, muito mais luxuoso que a câmara de audiência da Cidadela. Procurou um tablado, um trono.
Percebeu um movimento de sombras indo e vindo, só que o que as provocava permanecia invisível. Mas eram sombras... coloridas! Ela piscou os olhos várias vezes. Quando tentava focalizar uma daquelas formas tênues, para ver com mais clareza, ela fugia ou apagava. Mas com o canto dos olhos captava em um relance o que podia ser um grupo com roupa de festa, reunido de modo solene e formal.
Ouviu o tilintar novamente. Dessa vez as notas cristalinas ecoavam das altas paredes da sala. Aquele som encheu Kadiya de coragem. Assim que pararam de tocar, ela ousou falar em voz alta.
- Grandiosos... - Kadiya guardou a faca na bainha. Ninguém ficava diante dos senhores com as armas desembainhadas, mesmo se os que mal via à sua frente fossem ou não apenas sombras. - Grandiosos, se meu julgamento estiver correto, houve um chamado: Eu atendi e estou aqui.
Será que tinha mesmo visto aquelas sombras mudarem de posição, juntando-se em duas longas filas, abrindo um caminho diante dela? As notas de cristal soaram novamente, mais alto dessa vez. No espaço não muito claro que foi formado, duas figuras pequenas e estranhas, com a firmeza de corpos concretos, estavam se movendo.
Tinham a metade da estatura de Kadiya. O primeiro estava parcialmente coberto por um xale ou um lenço grande, enrolado nos ombros largos, uma ponta cobrindo a cabeça, a outra arrastando no chão. Apêndices, feito mãos, surgiam de dentro do tecido e seguravam um bastão com um grande anel em cima. Penduradas nesse anel, contas de cristal na forma de sinos tilintavam a cada passo que ele dava.
O companheiro do tocador de sino era do mesmo tamanho, mas usava uma vestimenta que, obviamente, tinha sido feita para alguém muito maior. As mangas estavam enroladas, e a gola alta servia de capuz, escondendo suas feições tão completamente quanto o lenço do parceiro.
Este segurava um lampião nas mãos em forma de garras, com uma chama que saía de um bico na frente. Dali emanava a fragrância que ela sentira, como se o combustível fosse óleo destilado diretamente de flores. A roupa enorme se estendia no chão, criando uma pesada cauda.
O lenço e o manto eram muito coloridos, cobertos de faíscas que refletiam os arco-íris dos cristais. Nenhum dos dois parecia se importar com as sombras. Enquanto passavam ao longo da ala, algumas pareciam se materializar por um instante, mas nunca tempo suficiente para Kadiya se certificar do que via. A aproximação dos dois era um ato muito solene. Podiam ser crianças vestidas com as roupas cerimoniais dos mais velhos, tentando imitar rituais que tivessem visto, com a mesma atenção e seriedade que os sacerdotes ou sacerdotisas originais teriam demonstrado. Apesar da estranheza daquela aparição, não havia nada de assustador neles. Kadiya relaxou aos poucos, à medida que os observava fascinada.
Certamente o objetivo da procissão formal dos dois era ela. Por um segundo imaginou como podiam enxergar através dos capuzes. Dirigir-se a eles, chamando-os de grandiosos... não, não parecia correto.
Kadiya saudou-os como faria com um orador oddling, juntando as palmas das mãos e abaixando a cabeça.
- Que o dia seja belo, a colheita e a caça boas, os caminhos das águas livres para vossa passagem.
Ela falou na língua comercial dos oddlings, esperando ser compreendida.
A criatura tocou os sinos vigorosamente mais três vezes e endireitou o bastão, para silenciar os badalos. Seguiu-se um chilrear que com certeza não era a língua dos oddlings, sons que ela jamais ouvira.
Kadiya ficou sem saber o que fazer. Devia descobrir uma maneira de se comunicar com aquela dupla, mas como?
Jagun tinha ensinado uma linguagem com as mãos, utilizada nos pântanos, quando era necessário ficar em silêncio, em uma emboscada de oddlings espreitando os skriteks. Kadiya flexionou os dedos e movimentou-os fazendo o mais simples dos gestos, o que significava trégua.
O tocador de cristais respondeu com um chacoalhar vigoroso do seu instrumento. Será que aquela badalada curta e forte significava aceitação? A criatura virou de lado, chamando com um gesto.
Por alguma razão Kadiya não sentia medo nem apreensão, só uma crescente curiosidade. O que carregava o lampião também tinha se virado com um farfalhar do manto, liberando uma das garras para desembaraçar as dobras de pano. Kadiya seguiu os dois pelo longo salão, cuidando para não pisar nas caudas das roupas inadequadas.
Kadiya notou, ao chegar mais perto, que o manto usado pelo portador do lampião estava tão gasto, que apenas tiras e espirais do que deviam ser fios metálicos mantinham as partes juntas. Devia ter sido um dia uma peça esplendorosa, um manto real de gala, talvez até do tempo dos Desaparecidos, agora usado por estes outros.
Enquanto ela avançava, aquelas sombras imprecisas começaram a desaparecer, e quando a pequena procissão chegou ao final do gigantesco salão, restavam apenas fiapos etéreos, como farrapos de névoa. A única luz existente era a do lampião, e as paredes sumiram no escuro. Kadiya diminuiu um pouco o passo, motivada pela desconfiança inata diante do desconhecido que dominava as terras alagadas.
No rastro de seus guias, Kadiya passou por um arco na parede e entrou em um lugar ainda mais escuro. Os sinos soaram e ela percebeu outros sons. De algo raspando, deslizando, até uma batida que podia ser de pés calçados, um adejar...
No meio da escuridão, a luz do lampião iluminou uma cabeça, depois outra. Kadiya levou um susto. O longo focinho, as orelhas grandes, cobertos por uma coisa que não parecia pele, mas camadas de escamas iridescentes. Não eram estátuas, nem pinturas, eram os modelos vivos das criaturas retratadas na parede.
A pele deles era escamosa e em algumas partes em forma de couraça, mas não se assemelhava em nada com a dos skriteks. Nem havia fedor, apesar de o som e a radiância limitada do lampião traírem o fato de que alguns deles se amontoavam em volta dela. Seus olhos de contas estavam fixos nela, e Kadiya sentia que a examinavam com assombro igual ao seu.
O anfitrião que carregava o lampião largou sua carga sobre uma mesa. Logo em seguida, como se fosse um sinal, brilharam outros pontos de luz. Em poucos instantes, vários outros lampiões juntaram-se ao primeiro ou ficaram balançando em volta da mesa, clareando a visão de Kadiya.
A mesa era baixa, apropriada para criaturas pequenas como as que povoavam o lugar. Alguns corpos encouraçados estavam quase nus, a não ser por colares ou cintos, com gemas incrustadas que refletiam a luz. Outros usavam peças de roupas antigas.
Envolta na luz forte dos lampiões sobre a mesa, surgiu uma criatura para a qual todos logo abriram caminho. Seu corpo não estava coberto por nenhum manto gasto, ele usava uma faixa comprida de tecido sobre os ombros largos. Nesse pano estavam presos broches, colares e outras jóias aparentemente preciosas; como o colar da fonte, sem obedecer a alguma ordem ou padrão.
Esse recém-chegado fez um sinal para Kadiya se aproximar, e dois deles saíram apressados das sombras arrastando um banco, que puseram diante da mesa, ao seu lado, um convite claro para ela se sentar.
Os outros também estavam atarefados. Travessas apareceram saídas da escuridão, a maioria cheias de frutas iguais às que Kadiya tinha visto no jardim. Os pratos eram de cristal, alguns com desenhos gravados, outros com formas diferentes, de pássaros de asas abertas com as costas côncavas para guardar as frutas, ou de cascos de algumas criaturas dos pântanos, até as curvas de pétalas de várias flores. Dava para ver que não estavam lascados ou rachados. Aqui havia um tesouro que qualquer comerciante daria praticamente a vida para obter.
Havia também dois cálices daquele precioso metal azul-esverdeado. Um estava diante dela, o outro na mão da criatura que usava o lenço coberto de jóias.
Um outro adiantou-se para servir um líquido de uma ânfora. O líquido não era cor de rubi como o vinho de banquetes, parecia água pura.
A criatura que tinha sido designada para partilhar aquela refeição com ela, talvez um banquete cerimonial, levantou o cálice e fez um pequeno gesto na direção de Kadiya, como se propusesse um brinde. Kadiya, que havia sentado depois de uma pausa, na qual venceu a cautela, seguiu o exemplo dele, imitando aquele gesto.
Do focinho do anfitrião saiu uma língua, como um tubo preto, que mergulhou no cálice, chupando em vez de beber. Kadiya bebeu um gole. Era água, sim, e tinha um leve gosto de fruta.
Depois de beber, o anfitrião ou anfitriã empurrou um dos pratos em forma de flor na direção de Kadiya. No prato havia um ogarn maduro embrulhado nas próprias folhas, uma guloseima raramente vista na Cidadela. Kadiya pegou o fruto acenando com a cabeça para agradecer e mordeu o lado mais roliço, saboreando o sumo e a polpa, notando que o outro comensal atacava seu fruto com a ponta da língua comprida.
Animada, Kadiya comeu toda a fruta e depois parte de um prato que parecia uma papa mole, usando os dedos da melhor forma que pôde, já que não havia colheres ou outros talheres à vista.
Todo o tempo ouvia uns estalidos à sua volta e concluiu que devia ser a linguagem deles. Certamente aquela língua estava além da sua compreensão. Perguntas proliferavam em sua mente, frustrando a paciência que aprendera com tanto custo.
Então, de uma tacada só, com a velocidade da luz, palavras se formaram em sua mente.
- Observamos e esperamos muito tempo, ó Nobre. Hoje é um dia de imensa alegria, conforme a promessa em sonho. Você voltou para nós!
A criatura que partilhou a refeição com Kadiya olhava fixamente para ela. Teve certeza de que a mensagem mental partia dela. Diziam que transmissão mental fazia parte da antiga magia, mencionada apenas nas lendas. Ela recebeu uma pequena porção desse poder, quando estava com as irmãs. Mas aquilo era como uma conversa normal, só que totalmente silenciosa.
Kadiya não sabia como responder. Será que tinha de pensar nas mensagens que desejava transmitir? Formar imagens de palavras na mente? E a mensagem em si... Não sabia que esses seres existiam. Quem e o quê eram eles? Quem eles pensavam que ela era?
- Eu sou Kadiya - ela falou bem devagar, como se tateasse no escuro procurando formar as palavras na mente -, filha do rei Krain que era de Cidadela. Eu fui uma das que receberam uma missão, a de encontrar parte do Grande Talismã do Trílio Negro, para que o conjunto pudesse ser usado a fim de combater as forças do mal. Foi neste lugar que encontrei o talismã, e nós o utilizamos para o bem.
Kadiya concentrou seus esforços na construção de uma imagem mental da espada com punho em forma de pomo, que estava naquele momento no jardim, de onde a tinha tirado, anteriormente. Então mudou a imagem para a do pé de trílio, no qual tinha crescido a arma.
- Agora voltei a fim de devolver esse objeto de poder para a Vontade que o concedera.
Os seres que rodeavam a mesa ficaram muito agitados. Ela teve a sensação de espanto misturado com excitação. Mas de alguma forma também compreendeu que não era aquilo que esperavam dela.
- Você é... - A imagem mental transmitida para ela parecia com o ser envolto em névoa que a enviara para a batalha, algo também semelhante às estátuas da escada do jardim. Um Desaparecido! Será que aqueles estranhos e pequenos seres a comparavam com os antigos e fabulosos mantenedores do Alto Poder?
Kadiya balançou a cabeça. Era importante não assumir nada daquilo, não deixar que acreditassem que ela era mais do que realmente era.
- Aqueles grandiosos eram dos tempos mais remotos. Era muito difícil traduzir esse conceito em uma imagem mentalizada. Ela não sabia se iria conseguir. Mas certamente aquelas criaturas deveriam saber que já tinham se passado gerações, centenas e centenas, desde que a cidade vivia povoada pelos que a construíram. Eles deviam ver que havia diferenças entre uma menina toda enlameada, com trajes surrados dos pântanos, e aquela gente das estátuas.
Fez-se um longo período de silêncio. Até os movimentos, e sons da multidão, cessaram, enquanto ela continuava a manter o contato visual com o líder.
- Se você não fosse esperada, não teria vindo.
A resposta parecia ambígua. Kadiya só podia tentar adivinhar o significado. Haveria guardas pela cidade, que teriam barrado a entrada de qualquer visitante, como o juramento barrava os oddlings? Teriam impedido sua entrada, se aquela reunião não estivesse programada?
Programada? Seria essa a resposta de uma das perguntas que fazia, desde o momento em que a espada plantada não se modificou? A forte atração que a levara através dos pântanos, até mesmo enfrentando a monção, era para comparecer à reunião?
- Nós esperamos muito tempo. - As palavras continuaram a surgir na mente de Kadiya. - Fizemos a busca nos sonhos muitas e muitas vezes. Tivemos muito trabalho para encontrar os que deviam voltar...
- Mas não sou da raça deles! - protestou ela depressa.
- Se não tivesse sido aceita, não andaria por esses caminhos. Era uma afirmação categórica, e Kadiya percebeu que nenhum argumento seria capaz de modificá-la. Mas o que aquelas criaturas queriam dela? Tinha escolhido o pântano como seu domínio, mas será que algum outro poder teve influência nisso?
- Eu sou Kadiya - explicou ela novamente. - Não sou da mesma raça nem partilho do mesmo sangue do povo que governava aqui. Mas foi com a ajuda de um deles - ela pensou na Arquimaga Binah - que encontrei este lugar pela primeira vez. Pertenço a outro povo que chegou a essa terra muito tempo depois dos Desaparecidos terem partido. Os oddlings eu conheço. Eles têm sido meus companheiros de batalha. Os skriteks eu conheço, e eles são o inimigo. Diga-me, orador, quem são vocês? Em nome de que povo vocês falam?
Ela o tratou com o título mais alto do povo do pântano, por não saber como se dirigir ao que devia ser o líder.
Mais uma vez fez-se uma pausa silenciosa, interrompida por um movimento dos membros do grupo, mas a posição do que estava diante dela não se alterou. Então veio parte da resposta.
- Este é Gosel dos hassittis, os que esperam. Kadiya assentiu inclinando a cabeça cortesmente.
- Os que esperam - repetiu Gosel -, pois esse foi o nosso compromisso quando Os que Brilham partiram para o lugar deles. Sonhos nos foram enviados, muitos sonhos por meio das estações, e em cada um deles vimos novamente o que tinha sido e recebemos a promessa do que viria e que não estaríamos sozinhos, embora não pudéssemos seguir o caminho deles, que não era para a nossa raça. E esperamos pelo prometido... mas faz muito tempo e temos estado muito solitários...
Se o pensamento podia sumir em um suspiro, então aquele sumiu. Kadiya sentiu um pouco daquela carência enorme, há muito insatisfeita.
- Não sou um daqueles que os deixou.
Tinha de fazê-los entender isso. Tinha de destruir de uma vez qualquer esperança que eles pudessem ter, que ela era do povo da cidade que retornava.
- Você foi trazida até nós - retrucou Gosel obstinadamente. - Certamente veio pela vontade dos Grandiosos, senão não estaria aqui. Por isso os hassittis serão novamente cortesãos, amigos-do-coração, como fomos um dia.
- Amigos, eu alegremente os reconheço - respondeu Kadiya, estendendo a mão por cima da mesa, como se recebesse um convidado.
E suas mãos se tocaram, palma com palma. Imediatamente Kadiya sentiu uma onda de calor, de boas-vindas e sentimentos bons, como jamais sentira. Havia uma candura nos hassittis que a atraía, da mesma forma que fora atraída pelos oddlings e pelas terras alagadas, só que bem mais intensa.
- Guardamos tudo que pudemos, intacto, para a sua vinda - disse Gosel com o entusiasmo de uma criança desejosa de agradar a alguém mais velho. - Venha conosco, Nobreza, ver como os hassittis se esforçaram para seguir todas as exigências do dever.
Assim ela foi escoltada do salão de banquetes por Gosel, pelo que carregava os sinos de cristal e por um grupo de carregadores de lampiões. Juntos passaram de cômodo em cômodo.
Kadiya viu o que sobrou da mobília luxuosa, esqueletos de cadeiras e mesas, bem maiores das que ela conhecia e numa proporção até maior que a mesa de Gosel. As paredes eram pintadas. Algumas exibiam cenas que ela desejou estudar mais demoradamente, mas seus guias a apressavam, impacientes. Um cômodo tinha várias prateleiras cheias de caixas de metal, muitas um pouco enferrujadas.
Gosel deu ordem para algumas serem abertas e exibiu o que continham. Era uma estranha mistura de objetos. Havia mais das pedras preciosas que tinha visto no fundo da bacia da fonte e das que adornavam os trapos que os hassittis usavam. Tinha também bastões com incrustações proeminentes dos lados, e rolos que imaginou ser de pele curtida, como a que era usada pelo seu povo para escritura de documentos formais. De novo não permitiram que ela tocasse em nada ou examinasse com mais cuidado.
Várias salas estavam tão cheias de coisas que só dava para espiar da porta. A luz dos lampiões não chegava muito longe, e Kadiya não conseguia ver os objetos escondidos naquele amontoado. Ela só percebeu que muitas peças eram grandes e volumosas.
Kadiya estava começando a achar que os que moraram ali um dia, ou talvez os hassittis, desejando preservar tudo o que restava, tinham esvaziado os outros prédios e transportado seu conteúdo para ali. Ela levaria dias até entender tudo aquilo, se é que era possível. Mas mesmo assim a curiosidade gerava animação, e ela sentia uma parte do seu sangue se agitar, a que provocava a febre do caçador de tesouros. Sem dúvida era uma descoberta que os ruwendianos jamais imaginaram existir.
Chegaram afinal a um pátio, depois de atravessar um labirinto de salas e corredores. Ali havia outra fonte funcionando e ar livre e fresco.
Pela primeira vez ela pôde ver claramente o grupo que a acompanhava. A maioria usava algum tipo de tecido, lenços cobertos de jóias ou alguns mantos longos e esfarrapados. A pele escamosa brilhava com algumas jóias que usavam, cintilando verde, azul e laranja à luz do dia. Eram todos do mesmo tamanho, chegando à altura do ombro dela. Não havia nenhum menor que sugerisse proles entre eles.
Os que carregavam os lampiões assopraram para a apagar a chamas. Afastaram-se do grupo fechado da escolta e alguns empurravam os outros para a frente, inclinando as cabeças e esticando as longas línguas para solver a água da fonte.
Não fazia sol, e Kadiya percebeu de repente o passar do tempo. Jagun devia ter acordado e saído à sua procura, visto que ela não estava lá. O caçador tinha habilidades que o ajudariam a segui-la através da cidade, já que ela não tentara ocultar sua passagem. Mas havia perigos como as trepadeiras que a atacaram, e certamente não podia deixar Jagun ansioso, sem saber o que tinha acontecido com ela.
Ela conseguiu identificar Gosel por causa dos enfeites no lenço e aproximou-se do Orador, procurando formar rapidamente uma imagem mental do caçador nyssomu.
- Meu companheiro de batalha... ele deve estar me procurando.
- O remador do pântano já veio - respondeu Gosel calmamente. - Ele está a salvo, preso no labirinto. Deseja que seja libertado?
Será que os hassittis e os oddlings eram inimigos? Kadiya lembrou da reação de Jagun diante dos desenhos nas paredes. Será que ele sabia dos hassittis e por alguma razão desejava manter o segredo?
- Ele é meu grande amigo! Deixe-me ir até ele! - Havia um tom de comando na sua voz.
Que perigo Jagun estaria enfrentando? Mais uma vez sua insensatez impetuosa criara problemas para outra pessoa. Será que jamais aprenderia? O hassitti andava depressa, mas Kadiya se impacientava e passava a frente de Gosel, e acabou tendo de diminuir a marcha para a pequena criatura poder alcançá-la.
Estavam sendo seguidos, novamente, por uma fila de hassittis. Os estalidos da fala deles ecoavam nos muros maiores, enquanto iam passando, sem entrar no prédio para o lado de onde tinham saído, mas enveredando por um longo corredor, cujo teto tinha quadrados transparentes que deixavam passar uma luz fraca e esverdeada.
A passagem fazia uma curva, e Kadiya tinha certeza de que estavam virando de volta para o pátio externo, onde encontrara a fonte com as jóias. Mas não saíram naquele lugar. O corredor curvo transformou-se em uma rampa inclinada para baixo. Os quadrados de luz do telhado desapareceram.
A escuridão foi tomando conta do caminho, e nenhum dos hassittis parecia se importar. Eles não carregavam lampiões e mesmo assim seguiam em frente, confiantes. Contudo Kadiya ficou apreensiva e diminuiu a marcha. Seus companheiros haviam demonstrado apenas boa vontade, mas a recepção podia ser um engodo. Eles admitiram que de certo modo Jagun era prisioneiro deles. Será que também a estavam capturando com a maior facilidade, graças à sua imprudência?
A rampa de descida terminou, e o chão ficou horizontal. Kadiya tropeçou, pois a escuridão era quase completa, e bateu em um dos hassittis. Garras ásperas e fortes seguraram sua mão. Ela tentou se libertar, mas um puxão violento de nada adiantou.
- Ó Grande... nós a levamos. É seguro...
Kadiya corou de vergonha. Em um instante, e sem pensar, ela traíra sua desconfiança. Devia enfrentar o desconhecido com pelo menos uma disfarçada compostura.
Continuaram sem lampiões. Ela seguia de mãos dadas com aquele estranho escamoso em uma escuridão tão completa para seus olhos, que era como se algo negro e tangível a tivesse envolvido.
O guia puxou-a para a esquerda e ela não teve saída, senão segui-lo. Os outros tinham parado com o falatório, mas ela ouvia o arranhar constante das garras nas pedras.
Então apareceu uma luz à frente, um clarão tão forte que os olhos de Kadiya não suportaram a explosão de cores puras. Protegeu os olhos com a mão e tentou espiar entre os dedos, para ver o que a esperava mais adiante.
Uma fogueira enorme parecia preencher um espaço tão vasto quanto o salão de audiências, que já devia estar bem longe, acima deles. Mas as chamas não subiam verticalmente, e sim para os lados, direita e esquerda, em um movimento constante. Também não eram só vermelhas e amarelas. Havia laivos azuis, verdes e também de cor branca, ofuscavam de tão brilhantes. Piscavam, saltavam, ficavam parados um instante e depois sumiam.
Os hassittis a tinham levado para uma saliência, que se estendia até onde seus olhos, afetados pela luz, podiam ver. Diante deles, relâmpagos de cores violentas deslizavam, pulavam, balançavam sobre um espaço enorme que ficava em um nível abaixo de onde estavam. Muitas vezes alguns raios daquela estranha explosão voavam alto no ar, mas nenhum se aproximava da saliência nem caía perto dela. Kadiya também não sentia calor.
É o labirinto. - A explicação de Gosel tomou forma na mente de Kadiya.
Aquele furioso jogo de raios luminosos não obedecia a padrão nenhum. Labirintos não deviam ser um conjunto de caminhos que se cruzam ou terminam em becos sem saída, a não ser para quem conheça o segredo? Protegendo os olhos da melhor forma possível, Kadiya esforçou-se para distinguir tais caminhos. Havia apenas aquela luz chamuscante, sempre em movimento.
Ela se virou para Gosel.
- Onde está meu amigo? O que vocês fizeram com ele? O hassitti apontou para o lugar das cores.
-Ele está lá.
Preso naquilo?A raiva de Kadiya fez com que ficasse a apenas dois passos da beirada da saliência. Mas como poderia encontrá-lo?
- Tire-o de lá! - ela ordenou.
As mãos de Gosel formaram um gesto que sugeria claramente impotência. O hassitti olhava para ela de modo estranho. Ele caiu para a frente e virou a cabeça encapuzada em um ângulo que devia ser doloroso, para continuar olhando para ela.
- Ó Grande, não há como...
Aquela luz queimava a visão, e não a carne. Jagun, cujo povo vivia nos pântanos sombrios, onde a maior parte da terra estava sempre coberta por nevoeiros, devia estar passando por um terrível tormento. Se ela sofria com os clarões que pareciam relâmpagos, para ele devia ser pior ainda.
- Tem de haver um jeito! - Kadiya afirmou para ela mesma e os dentes cerrados dirigiram o comentário também para o hassitti.
- O Grande - respondeu Gosel -, os caminhos estão fechados para todos, menos para os que têm o poder.
Poder? Ela pôs a mão no amuleto que levava pendurado no pescoço. Pensou na espada com punho circular. Dois poderes... seriam a as chaves para isso?
Mas primeiro tinha de saber, ter certeza de que Jagun estava mesmo lá, ter alguma idéia de qual direção devia seguir para encontrá-lo. Kadiya abriu a bolsa presa ao cinto e rolou na palma da mão um junco oco, pouco mais longo que um dedo. Tinha sido feito para ser usado pelos nyssomus, mas já obtivera sucesso com ele antes. E conseguiria de novo. Ela o empunhou com delicadeza, pois era muito pequeno. Encostou os lábios em uma ponta e dispôs os dedos em certos orifícios que apareciam no tubo.
Kadiya soprou uma série de notas, parecendo o tilintar dos cristais que os hassittis usavam. As chamas que ocupavam o espaço diante dela não crepitaram nem cresceram. Será que aquele chamado, que servia para alertar outro caçador, chegaria até Jagun?
Ela tocou a flauta novamente e variou o som com notas que ampliavam o chamado. Os hassittis ficaram em silêncio. Será que tinham certeza de que ela falhara?
Soprou o chamado pela terceira vez.
Bem fraquinha... sim, tinha certeza! Era uma resposta.
Ela já descartara seu plano original de se embrenhar naquele labirinto. Talvez pudesse atrair Jagun para fora desse jeito, fazê-lo chegar até onde ela estava, do mesmo modo que um caçador chamava outro a fim de seguir um novo rastro de caça. Tinham feito isso na última batalha, reunindo esquadrões de oddlings para se juntar a uma força central, quando necessário.
Kadiya continuou a tocar o mesmo chamado, sentindo por ter de parar de vez em quando para secar o tubo. Mas estava certa de que a resposta era a cada momento mais forte.
Ela entoou mais uma vez o chamado. Seus olhos ardiam com os clarões constantes de cores puras, mas não podia protegê-los. Encheram-se de lágrimas, enquanto tentava ver alguma coisa no meio daquela tempestade boreal, à procura de Jagun.
As notas da flauta aumentavam e diminuíam. Há quanto tempo estava chamando? Seus dedos se enrijeceram apertando os orifícios. Tomou ar mais uma vez. De novo...
Em uma faixa alaranjada e ofuscante cambaleou uma figura negra, que não pertencia ao mar de luzes.
Kadiya guardou a flauta na bolsa e deitou-se de bruços na beira da saliência. O oddling estava lá embaixo, balançando de um lado para outro, como se lhe tivessem tirado todo o sangue ou se estivesse tão cansado que seu corpo não lhe obedecesse mais. Kadiya esticou-se toda, até a cabeça e os ombros ficarem projetados para fora da saliência. Sentiu um grande peso nas pernas e olhou para trás para ver o que era. Através da névoa dos seus olhos marejados, viu que dois hassittis estavam em cima dela, prendendo bem seu corpo na rocha.
- Jagun! - Kadiya gritou e estendeu a mão para baixo.
Ele rodopiava, com a cabeça baixa, envergado, talvez a única forma de se proteger da explosão de cores.
-Jagun!
Ele quase caiu e bateu na barreira que formava o suporte da saliência. Levantou a cabeça e olhou para ela. Os seus olhos eram apenas dois riscos e deles escorriam grandes gotas de muco. Ele ergueu as mãos e segurou os pulsos de Kadiya, e ela também apertou os dele. Ela começou a recuar, usando toda a sua força para puxar o oddling para cima, longe daquela armadilha. Mãos com garras a seguraram, intensificando o seu esforço.
Ela já estava bem longe da beirada, e a cabeça e os ombros de Jagun começavam a aparecer. Os hassittis correram para a frente e agarraram o oddling. Kadiya sentiu a tensão acabar, quando puxaram o caçador para um local seguro.
Jagun ficou deitado, imóvel, de bruços, e ela se apressou em rolá-lo e virá-lo de barriga para cima. A boca dele se abriu, e seu corpo ficou inerte nos braços dela. Kadiya sentiu medo. Conseguiu pô-lo de pé, ambos de costas para a tempestade boreal, a cabeça apoiada no ombro dela. Nem tinha certeza se ele estava respirando. Que tormento ele havia passado naquele labirmto? Ela nem imaginava. Para os oddlings podia até ser fatal.
Você... - Ela olhou para Gosel. - O que você fez?
O hassitti estava ao lado dela, com a ponta do focinho virada para o oddling, como se farejasse.
Será que a criatura entendia? Kadiya procurou o pulso no pescoço do oddling, aprumando-o contra seu corpo. Sentiu o forte cheiro que a raça dele exalava ao sentir um pavor terrível.
- Leve-o para fora! - A ordem era mais para ela mesma do que para os hassittis.
Mas como? Embora Jagun fosse menor que ela, não era leve, e o longo corredor, por onde tinham passado para chegar até ali, era demais para ela percorrer com ele nas costas. Com cuidado deitou-o no chão novamente, virou-se e agarrou um dos xales compridos que um dos hassittis usava, arrancando-o dos ombros da criatura.
Kadiya esticou o pano no chão. Seus olhos queimavam e ardiam, mas conseguiu arrumá-lo. Esticou-o e pôs Jagun em cima. O pedaço de tecido era mais grosso do que parecia. Tinha posto o lado com os enfeites para baixo, virado para o chão, e arrumou Jagun na superfície macia. Com o próprio cinto ela amarrou Jagun, enrolando o xale em volta dele até onde dava, e depois prendeu as pontas. Feito isso, segurou a ponta que deixara solta.
Não era suficientemente longa para puxá-lo, verticalmente. Mas faria tudo que podia. Só que mãos com garras pegaram a ponta do trenó que ela havia improvisado, e Gosel comunicou-se mentalmente.
- Nós levaremos o habitante do pântano...
- Foram vocês que fizeram isso com ele! - reclamou Kadiya.
Aquela sensação calorosa que teve, desde que vira os hassittis, desaparecera. Podia confiá-lo a eles agora? Não enquanto ainda tivesse esperança de ele estar vivo.
- Ele chegou sem palavras de paz. Ele é oddling, não é nobre, e o labirinto foi feito para pegar os que não são daqui - retrucou Gosel. - Nós podemos ajudá-lo... se sua nobreza quer este habitante do pântano, ajudaremos.
Quatro deles cercaram o caçador embrulhado, seguraram o xale com suas garras e o levantaram do chão. Kadiya deu um passo para trás. Eles o equilibravam no ar de um jeito que ela não teria conseguido, e logo se dirigiam para a abertura por onde tinham chegado. Ela sentiu a pele grossa e escamosa arranhando seu pulso. Gosel estava ao seu lado, indicando que se apressasse. Ela foi atrás dele, mas manteve os olhos que ainda ardiam em Jagun e nos carregadores.
A viagem de volta foi demorada. Alguns hassittis se afastaram para seguir mais depressa. Mas o resto ficou, pois substituíam os carregadores de Jagun de tempos em tempos. A cada parada, Kadiya procurava algum sinal de vida no oddling. Na segunda vez que tentou, sentiu uma respiração fraquinha na sua mão.
- Jagun? - Ela vasculhou a mente dele como fizera com o hassitti.
Um redemoinho de cores, dor torturante... e no meio disso um sentimento que a deixou muito emocionada. Ele estava preocupado com ela. Foi por medo do que podia acontecer com ela que ele chegara a isso.
Kadiya tentou atingir os pensamentos embaralhados dele.
- Está tudo bem, guerreiro. Eu estou aqui, não há perigo... Podia não ser verdade, mas ia insistir naquilo pelo tempo que pudesse. Então ela ouviu pés arrastando no chão, e mais dois hassittis juntaram-se a eles. Um carregava um monte de folhas grandes, meio amassadas, e o outro um frasco.
Kadiya conseguiu ver essas coisas muito bem, pois logo atrás vinha outro com um lampião pendurado em correntes. Mais uma vez os companheiros deles abriram espaço em volta de Jagun. Kadiya não quis se afastar e se ajoelhou ao lado do oddling. Já dava para ver que ele estava respirando, mas continuava com os olhos fechados, cobertos com a secreção amarela.
O hassitti que levava as folhas depositou-as cuidadosamente ao lado de Jagun, e o do lampião inclinou-se para a frente a fim de iluminar melhor. O companheiro deles abriu a tampa do frasco.
No cheiro de mofo, que permeava aquela profunda passagem subterrânea, espalhou-se um outro que Kadiya conhecia bem. Era o ar do jardim... aquele lugar perfeito de serenidade e paz. Dedos em forma de garras se dobraram e pinçaram, pegando uma gelatina esverdeada, e o cheiro de coisas saudáveis em crescimento ficou mais forte.
O que segurava o frasco abaixou-se e passou as garras com a gelatina para a frente e para trás no pedaço de folha menor, cobrindo-o todo, com uma camada bem grossa.
A partir daí o primeiro que chegou assumiu o comando da operação. Ele estava tão enrolado no xale que aparentemente teve dificuldade para livrar as mãos e pegar a folha coberta de gelatina.
- Tostlet veio ajudar. - Gosel deu essa informação para Kadiya, como se achasse que ela fosse recusar a ajuda que prestavam ao oddling. - Ela é especialista na arte da cura.
Uma curandeira sábia? Por que não? Todas as raças, mesmo as mais diferentes, deviam ter os que ensinavam a curar. Embora Kadiya ainda não conseguisse determinar a diferença entre macho e fêmea nos hassittis, acreditava que Gosel era macho.
Tostlet enfiou uma garra na massa sobre a folha. Parece que aprovou a preparação, pois pegou a folha e, com todo cuidado, pôs em cima dos olhos de Jagun... ou melhor, de toda a parte superior do rosto dele. Ele tentou se livrar do cinto que o prendia na padiola improvisada, como se quisesse empurrála para longe. Mas Tostlet, com a ajuda de outro hassitti, ergueu a cabeça do oddling e fixou a bandagem no lugar com a pomada no resto das folhas, transformadas em tiras para amarrar.
O hassitti que segurava o lampião foi na frente, e o grupo reiniciou a longa viagem para as regiões na superfície. Não sem antes Tostlet espalhar um punhado da gelatina em um pedacinho de folha e dar para Kadiya.
- Para os olhos, ó Nobreza - explicou ela, e Kadiya usou o ungüento, passando nos olhos enquanto andava.
Os redemoinhos de luz que continuavam a brilhar diante dela acabaram, e a ardência passou. Tinha certeza de que se fosse parar no meio do labirinto, também teria ficado cega com a fúria dos raios à sua volta.
Afinal chegaram aos níveis mais altos da cidade, ao segundo pátio com a fonte. Kadiya teve a impressão de estar mais escuro. Seria sua vista, debilitada, apesar de os olhos não estarem mais ardendo? Como devia ser ficar cega, perdida para sempre na escuridão? Ela estremeceu.
Puseram Jagun no chão perto da fonte. Ele mexia a cabeça de um lado para o outro e gemia.
-Escuro... dor... eu tenho sede...
Kadiya conhecia essas palavras, mesmo na língua dos oddlings. Ela correu até a fonte, com as mãos em concha, para pegar água. Alguém tocou no seu ombro. Esse alguém, que estava de pé ao seu lado, deu-lhe um cálice todo cravejado de pedras preciosas, como o que Kadiya tinha usado para beber no banquete.
Ela o mergulhou na fonte, encheu-o de água e, imediatamente, ajoelhou-se ao lado de Jagun, apoiando sua cabeça no seu colo e segurando o cálice junto aos lábios dele, por baixo da máscara de folhas.
- Beba, irmão protetor. - Ela falou na língua dos oddlings da melhor forma possível, apesar de ninguém da sua raça conseguir pronunciar os sons corretamente.
Jagun obedeceu. Ele tentou mover as mãos de novo e Kadiya, ainda servindo de apoio para ele, acenou para o hassitti mais próximo afrouxar o cinto. O caçador ergueu o braço até seus dedos encontrarem o pulso de Kadiya e segurá-lo com força.
- Visão Penetrante - dessa vez ele falou na língua dos comerciantes -, é você de verdade? Você também caiu nesse lugar de muitos fogos sem calor? - Ele estava muito aflito e ela apressou-se em responder.
- Camarada, estamos livres daquele lugar. Mais uma vez estamos a céu aberto. Beba. Isto é água, clara como raramente é, longe das ilhas.
Ele bebeu a água e levou as duas mãos à bandagem sobre os olhos. Mas Kadiya segurou-as e não deixou que ele encostasse nas folhas.
- Ainda não, camarada. Isso é a cura para as luzes.
Ele virou um pouco a cabeça, encostado no ombro dela. Ela viu suas narinas chatas se dilatando, como se farejasse um rastro de caça, como se pudesse sentir o cheiro de qualquer intruso.
- Há outros por aqui. - Ele usou a língua do comércio, e sua voz era quase um sussurro.
- São os que nos tiraram do lugar das luzes. Eles se chamam de hassittis.
Ela sentiu imediatamente o corpo dele ficar tenso.
- Hassittis...
Então Kadiya captou a comunicação mental, e Gosel estava lá. Será que Jagun podia ”ouvir” aquilo também? - Parecia que o hassitti queria que ele ouvisse.
- Somos os que esperam, habitante do pântano. Nós esperamos, apesar de a sua raça não ter querido esperar e ter enveredado pelos caminhos que escolheram! - ele disse isso em tom de acusação.
- Hassittis - Jagun repetiu a palavra em voz alta. - Mas eles constam das lendas ocultas...
- Habitante do pântano! - O hassitti estava com raiva. Nós jamais lidamos com as trevas! Nós éramos os que serviam, os que ficaram de guarda! Quando vocês partiram para sua lama e suas sombras, nós continuamos aqui.
Jagun virou um pouco mais a cabeça, de forma que o rosto coberto com o curativo encostasse no peito de Kadiya.
- Visão Penetrante, mentalize a imagem deles para eu poder vê-los.
Ela ergueu a cabeça para olhar diretamente para Gosel, construindo uma imagem mental daquele que parecia ser o líder das criaturas.
- Então... - Jagun pronunciou a palavra lentamente - as lendas muito antigas são verdadeiras. Mas como podem ser? Diziam que eles tinham ido com os Desaparecidos, que tinham um gosto estranho na hora de escolher companheiros e que jamais os deixariam para trás.
- Nós resolvemos ficar - a resposta foi mental. - Pois éramos os últimos, os que os guardiões conheciam. E...
Kadiya foi dominada por uma dor e uma saudade tão grandes que por pouco não ergueu o braço como se fosse para desviar um golpe.
- E quando os que fecharam o caminho e resistiram às trevas finalmente caíram, nós ficamos. Sabíamos que não terminaria daquele jeito. A grandeza não morre, ela pode nascer outra vez. Veja, nós estávamos certos, pois eis essa nobre que voltou, do jeito que sonhamos!
- Jagun - Kadiya procurou deixá-lo em uma posição mais confortável -, os hassittis acreditam que eu sou um dos Desaparecidos, embora tenha dito a eles que não sou.
- Você veio a nós - Gosel olhou diretamente para ela -, e os sonhos se tornaram realidade. O que deve ser feito, ó Nobre, por que voltou para sua gente?
Kadiya se lembrou da espada ainda plantada no jardim. Não tinha se livrado daquele peso com a sua volta. O que ia acontecer?
Na cidade o céu continuava cinzento, pois era época de tempestades, mas as chuvas e as ventanias violentas não a atingiam. Mais uma mágica dos Desaparecidos, pensou Kadiya.
De uma janela no último andar, ela espiava as fileiras lúgubres de prédios, que aqui e ali tinham suas linhas suavizadas e as paredes cobertas pela vegetação. Aquele não era o palácio com o grande salão no qual enfrentara pela primeira vez os hassittis, e sim uma torre atrás do salão, para onde tinha sido escoltada, e para onde insistiu que levassem Jagun.
Havia alguns móveis. Era óbvio que aquele cómodo e os outros dois no mesmo andar tinham servido de moradia para alguém influente, e os hassittis fizeram o possível para mantê-los bem cuidados.
Uma cama com formato estranho, que parecia a metade de uma concha (talvez até fabricada com a matéria da concha pulverizada), ficava em cima de um tablado redondo. Uma mesa com pernas curtas apresentava o mesmo brilho opalescente. Ao lado havia uma pilha de esteiras cobertas por um tecido todo bordado, bem desbotado, mas intacto. Lampiões acesos, com mangas de concha, combatiam as sombras no canto mais distante do quarto.
A pintura nas paredes representava a margem de um rio, tão bem desenhada, que se não fossem as três janelas que davam para o mundo real Kadiya poderia pensar que via a água se mexendo. Nas margens havia pássaros e juncos cheios de espigas de flores douradas.
Havia também uma grande arca que duas hassittis fêmeas fizeram questão de abrir mais cedo, cheia de roupas de tecido com pedras brilhantes. Em uma seção menor estavam guardados colares, pulseiras e outras jóias.
Olla e Runna insistiram que tudo aquilo era de Kadiya e ficaram desapontadas, quando ela não aproveitou logo a oportunidade para trocar suas roupas gastas de viagem pelo esplendor que lhe ofereciam. Kadiya não deu importância às sugestões delas, muito mais preocupada em providenciar para que acomodassem Jagun com o maior conforto possível em um catre de esteiras, onde ela poderia vê-lo sempre.
Tostlet tinha tirado as bandagens para examinar os olhos do oddling há pouco tempo. Momentos depois, Jagun levantou, olhou para Kadiya e disse alegremente o que ela pensava nunca mais ouvir.
- Filha do Rei, eu estou vendo!
Ele agarrou com força o braço de Kadiya, quando ela se ajoelhou ao seu lado, fazendo-a abaixar-se ainda mais. A expressão no rosto dele era de uma felicidade tão grande, que ela jamais vira.
- Estou bem, Visão Penetrante, estou bem! Tostlet chegou, com uma xícara na mão.
- Dê para ele beber.
Ela entregou a xícara para Kadiya, como se achasse que ele não a aceitaria de sua mão.
- Beba e durma, porque agora só precisa de sono.
Ele bebeu, e Kadiya o fez deitar-se nas esteiras novamente, com os olhos quase fechando. Ainda estavam inchados.
Ela esperou até ter certeza de que ele dormia e então mandou a hassitti embora. Se eles realmente haviam prendido Jagun naquele lugar das luzes, pelo menos tiveram a boa vontade de cuidar dele depois que saiu. Ela não estava mais com raiva. Eles podiam muito bem estar apenas obedecendo a algum juramento antigo, quando mandaram Jagun para o labirinto ou permitiram que ele entrasse. Não podia culpá-los por isso, não mais.
Ficou intrigada com o labirinto. Uma armadilha como aquela era muito mais que tudo que ela aprendera. Talvez até Orogastus, no apogeu de seus poderes, não fosse capaz de criar uma defesa igual. E há quanto tempo teria sido erigido e ativado? Se não foram os hassittis, será que fora deixado lá, desde o tempo dos Desaparecidos?
Kadiya esfregou a testa. Tantas perguntas, tantos enigmas. Aquele dia tinha mostrado quão ignorante ela era. Haramis era Arquimaga. Magia era problema dela, não seu. Talvez, em vez de buscar mistérios nas montanhas, sua irmã devesse procurá-los nos pântanos.
Cansada, ela se afastou da janela. Já era noite e estava esgotada, com todo o esforço e os terrores do dia. Foi mais uma vez para perto da arca que Olla deixara aberta. Obedecendo a um impulso, pegou uma roupa dobrada que estava em cima da pilha.
O tecido brilhou glorioso em suas mãos, com as pontas tilintando no chão. Tilintava porque tinha miríades de gotas de cristal, que batiam umas nas outras suavemente, conforme ela ia virando o tecido nas mãos.
A roupa parecia um daqueles mantos gastos que via vários hassittis usando, só que cintilava, de tão nova, como se tivesse sido confeccionada na véspera. As mangas eram longas e cheias, com pulseiras de cristal nos punhos. Tinha presilhas complicadas na frente, com cordões que passavam de um lado para o outro em volta de botões salientes de cristal.
A cor era branca, mas as dobras, à medida que Kadiya abria para examinar melhor, tinham nuanças de outras cores claras, furta-cor como o interior das conchas. Ela segurou a roupa em cima. Era longa, devia ter sido feita para alguém mais alto, mas dava perfeitamente para usar, e ela não ficaria deselegante se quisesse vesti-la.
Resolvendo o que ia fazer, Kadiya pendurou o manto em um braço e, depois de verificar que Jagun estava bem, foi para o cômodo ao lado. Igual às fontes que vira ao ar livre, um riacho
de água clara jorrava da boca de uma criatura esculpida, que parecia um peixe, e caía em uma banheira, grande o bastante para acomodá-la.
Kadiya deixou a roupa no canto e começou a desamarrar seu colete de escamas. Então percebeu que havia alguém ao seu lado. Assustada, já estava com a adaga na mão, descobriu que era o maior espelho que tinha visto, ia do chão ao teto. Aquela criatura miserável que via era ela mesma. Desde a massa emaranhada do cabelo embaraçado, eriçado em cima, onde a trepadeira tinha prendido, até as botas encharcadas, ela estava pior que um camponês do pântano na época do plantio.
Rapidamente descartou suas roupas sujas de lama e instalou-se na banheira. A água era morna, como a da fonte. Kadiya compreendeu a utilidade de uma fileira de caixas em uma prateleira na parede, ao alcance da mão, um dos prazeres que tinha na Cidadela, depois de um longo dia de exploração no pântano com Jagun. Ali estavam guardados cubos de musgo grosso, que produziam em suas mãos uma espuma com cheiro de ervas, quando espremidos na água. Kadiya lavou o resto de lama que atravessara sua roupa e escurecera sua pele, depois tratou do cabelo, mas as regiões do couro cabeludo que a trepadeira tinha puxado ardiam com a espuma.
Colocaram no banheiro uma toalha de fibra de junco, e ela secou o corpo vigorosamente, antes de erguer mais uma vez o manto real. Tinha visto roupas de gala toda a sua vida, e às vezes era obrigada a usá-las, contra a sua vontade. Mas entre todos os tesouros do guarda-roupa de sua mãe, jamais houvera nada tão fino quanto aquele.
Era grande demais. Kadiya teve de pegar seu cinto, limpálo da melhor forma possível com musgo molhado e secá-lo, para poder prender o tecido encorpado com o peso dos cristais. As mangas teve de enrolar bastante, e apesar de puxar bem a saia para cima, por dentro do cinto, continuava arrastando no chão e ia fazê-la tropeçar. Kadiya virou-se novamente para se ver naquele espelho revelador. E fez uma careta diante do reflexo.
Contrastando com a alvura da roupa, suas mãos e seu rosto pareciam pesados e escuros. Não podia fazer nada com o cabelo falhado, a não ser torcer para que crescesse logo. Essas coisas finas não combinavam com ela. Todavia, olhando para as roupas jogadas no chão, não teve coragem de se desfazer do manto glorioso e vesti-las de novo.
Na verdade ela nem queria que a roupa nova encostasse na outra. No entanto não podia deixar tudo ali embolado. Teria de dar um jeito de lavar tudo, de costurar o que estava rasgado e acabar com as manchas.
Kadiya pegou suas roupas e levou-as, com o braço bem esticado para a frente, de volta para o quarto, deixando-as sobre uma esteira em um canto. Certamente Olla ou Runna saberia explicar como cuidar delas.
As esteiras amarelo-claro espalhadas pelo chão protegiam seus pés descalços. Mas o cinto pesado em cima do tecido fino incomodava, e ela foi de novo remexer na arca. Encontrou uma echarpe prateada, macia como seda, que torceu, formando uma faixa. Prendeu sua adaga nela. Tinha vivido muito tempo com a arma sempre à mão e não ia separar-se dela agora.
Ouviu um suave murmúrio por trás da cortina de ripas, que servia de porta. Era um hassitti. Ela conseguia captar as ondas cerebrais dele, embora não ousasse se intrometer em seus pensamentos.
- Entre.
Jogando a saia para um lado para poder se mover, Kadiya viu Olla entrar com uma bandeja cheia de pratos de prata, e atrás dela Runna, carregando um daqueles lampiões que exalavam aromas de especiarias.
As duas abaixaram as cabeças com os longos focinhos, cumprimentando Kadiya, e atravessaram o quarto para deixar as coisas em cima da mesa.
Olla apontou para a mesa e depois para Kadiya, com a voz ciciante dos insetos da grama, baixa e alegre. Kadiya obedeceu e sentou-se (com alguma dificuldade por causa do manto) nas esteiras. Runna correu para ajudá-la a desenrolar a saia, enquanto Olla destampava duas terrinas e servia água em um cálice igual ao que Gosel e Kadiya tinham usado.
Novamente a refeição era composta de frutas e de uma terrina com uma substância grossa como sopa, mas dessa vez tinham providenciado uma colher muito grande. Kadiya achou saboroso e comeu com vontade, sorrindo e balançando a cabeça para agradecer às hassittis.
Tudo aquilo parecia um sonho. Kadiya comeu e bebeu. A fumaça perfumada do lampião formava um fio no quarto, à medida que escurecia, e os lampiões menores nas prateleiras não davam conta das sombras que aumentavam. Quando terminou, e as hassittis levaram embora a bandeja, Kadiya foi se sentar ao lado de Jagun. Ele dormia calmamente, mas estar assim tão perto dele trouxe a realidade de volta.
Ela passou os dedos de um lado para o outro no tecido que cobria suas pernas cruzadas. Decerto era real ao toque, como aquele quarto parecia também muito sólido.
Mas ela estava inquieta. Era como se tivesse entrado em uma cena da qual não conhecesse nenhum detalhe. Antes sua missão parecia concreta. Visitar o jardim e desfazer-se da sua parte do Grande Talismã, depois descobrir... aprender... conforme o ser misterioso, velado, tinha prometido. Mas aprender o quê? Não tinha a menor idéia.
Poderes mágicos Não, isso era para Haramis. Criar um reino do pântano Ela não almejava nenhuma coroa, não era rival para Anigel. Havia um vazio dentro dela que precisava descobrir como preencher. Mas com o quê?
Nunca houve alguém de sua raça tão livre nas terras pantanosas. Os nyssomus e os uisgus atendiam ao seu chamado para a batalha ou compareciam, porque sabiam que ela comandava a força antiga. Os pântanos e seus caminhos ela conhecia como ninguém mais, com o sangue de Ruwenda, até mesmo os comerciantes mais aventureiros.
No entanto aquela era uma terra de segredos e mais segredos. Talvez até uma vida inteira não bastasse para atingir o conhecimento completo.
A Arquimaga Binah ficava afastada, em sua torre em Noth, mas devia saber muito. Se de fato era um dos Desaparecidos, escolhida para ser a guardiã, então todo o passado se abriria para ela, aquele passado de partes desconexas pelo qual os hassittis lutavam tanto.
Kadiya fechou os olhos lentamente, determinada. Tinha conseguido se comunicar com Gosel, conhecido pelo menos superficialmente os pensamentos dos outros membros da sua raça. Naquele momento ela queria encontrar o que tinha ido procurar ali: o que fez a promessa de ensinar-lhe alguma coisa.
Da mesma forma que tinha tentado dominar seus pensamentos para chegar aos hassittis, ela estava se esforçando para construir a imagem mental da figura que parecia uma coluna de névoa, para chamar...
Kadiya retesou os músculos, mas não emitiu o grito que quase chegou aos seus lábios. Interrompeu a concentração, estremeceu e levou as mãos à cabeça, sem pensar, para cobrir as orelhas.
No seu esforço ignorante ela tocou em algo tão obscuro, tão impregnado de perigo, como se fosse uma lâmina apontando para o seu pescoço. Ela abriu os olhos.
O quarto estava cheio de sombras. Ela olhou para cada canto, à procura do menor indício da origem daquela ameaça. Mas não havia nada. Só Jagun deu um grito e começou a se debater, como se tentasse afastar um inimigo. Mas ele não se levantou nem abriu os olhos, e Kadiya achou que ainda dormia, que o que sentira devia tê-lo atingido na forma de um sonho perturbador.
Sonho! Os hassittis tinham mencionado sonhos, sugerindo que eram guiados por eles...
Estava pensando nisso, quando ouviu um barulho na porta e reconheceu perfeitamente Gosel pelas ondas mentais, como se visse seu rosto.
- Ó Nobre! - A mensagem mental dele era urgente.
- Entre.
Ele enrolou o xale comprido que usava para caminhar mais depressa e entrou correndo pela cortina da porta.
- Ó Nobre!
Para surpresa e constrangimento de Kadiya ele caiu aos seus pés, com a mão estendida para a frente, sem tocar na barra do seu manto. Ele trazia medo, ela sentiu. Na cama de esteiras Jagun rolava a cabeça de um lado para outro e emitia um som baixo que não era bem um gemido.
- Há uma perturbação... - Gosel olhou para ela, como se a intensidade do olhar pudesse arrancar de Kadiya a resposta que ele queria.
”Quave sonhou”, continuou ele depois de um segundo. “Um sonho profundo. Há algo maligno se preparando, só que onde e como, o sonho não revelou. Mas Quave está muito perturbado. Ó Nobre, use o poder, conte-nos o que está vindo aí e o que podemos fazer!”
Eles não acreditavam, ainda achavam que ela era um dos Desaparecidos. Como fazer para convencê-los de que não tinha tais poderes?
- Gosel. - Kadiya procurou ordenar suas ideias para tornálas claras. - Eu já disse... não sou quem você pensa que sou. Minha raça não possui grandes poderes... - Ela se lembrou de Haramis e corrigiu: -A maioria não, e eu sou um dos que não têm. Uma missão na terra trouxe-me até aqui... quem me incumbiu disso e por quê, eu não sei. Mas... - Ela mordeu o lábio.
”Quando me ofereceram uma coroa, Gosel, eu não quis, preferi as terras do pântano. Talvez tenha feito isso por acreditar que o mal tivesse saído dos pântanos, quando derrotamos Voltrik e Orogastus. Todavia foi a minha opção e vou mantê-la.
”Neste lugar você me mostrou um depósito de conhecimento, que acho que está muito além do que o meu povo jamais sonhou... no entanto, não é o meu conhecimento. Eu comandei o poder, mas foi pela vontade de alguma coisa externa à pessoa que é Kadiya, filha de Krain. Você não pode se iludir. Eu não sou capaz de criar relâmpagos, nem invocar a obediência dos ventos. Não posso conjurar demónios, nem chamar qualquer vida estranha para montar guarda para vocês ou para qualquer um desta terra. ”Mas o que eu puder aprender, o que eu puder fazer, isso eu farei.”
Ele estava de pé, com a cabeça um pouco inclinada, de forma que a luz do lampião criava uma sombra esquisita na curva da cama de concha.
- Quave sonhou, Vasp sonhou, Thrug sonhou e antes deles Zanya, Usita e Vark e outros e mais outros, antes... Os que estiveram aqui voltarão. E o que mais deveria fazê-lo senão a perturbação que Quave viu nas sombras esta noite? Só quem tem de vir aparece aqui. Você esteve aqui antes você foi vista. Mas então nós também sabíamos que não era hora. “Agora pedimos, ó Nobre, que fique conosco para ver o que virá.”
Kadiya suspirou. Tinha feito o que podia. E talvez fosse verdade que naquele momento estivesse destinada a fracassar... mas sua antiga força de vontade começou a estimulá-la. Pensar em desastre era atraí-lo para a nossa presença. Se os hassittis não aceitavam a verdade, ela devia fazer o melhor possível. Mas sem conhecer o que ia enfrentar, estava em desvantagem dupla.
- Que tipo de mal está despertando? - ela perguntou.
- Não ficou claro para Quave... só que é antigo e obscuro. Esteve muito tempo adormecido...
- Os que viviam aqui mantinham registros. Se essa coisa é antiga, podemos procurar nos registros, não e?
O hassitti ficou logo animado.
- Isso pode ser feito, ó nobre. É verdade que precisamos de uma luz para encontrar o que procuramos. Além disso os sonhadores tentarão de novo! Agora mesmo eles vão tentar!
Com um rodopio que fez a roupa esvoaçar, ele foi embora.
Kadiya estava com a adaga na mão. A realidade daquela arma valiosa era uma âncora em um mundo de sonhadores de sombras ameaçadoras. Os registros que tinha visto em uma daquelas salas abarrotadas com os pertences dos Desaparecidos... será que os hassittis podiam lê-los? Tinha certeza que essa tarefa estava além dos próprios talentos.
-Visão Penetrante...
Ela se virou depressa para Jagun.
- O que posso fazer por você, camarada?
Ela viu a boca larga formar um meio sorriso.
- É mais o que eu posso fazer por você, filha do rei. Esses seres assustados com seus sonhos, armazenando o que nem eles conhecem... não deixe que a façam lutar por eles.
- O que você realmente sabe sobre essa gente pequena, Jagun? - ela perguntou.
O sorriso dele sumiu.
- Visão Penetrante, sei bem pouco. Até vê-los com meus olhos eu achava que aquele conhecimento era feito do mesmo material que a névoa do pântano... ou até menos. Eles descendem dos Desaparecidos, assim como nós dos kins e dos skriteks, mas diziam que eles tinham ido embora para o desconhecido com os grandes. Achavam que eles não tinham vida real sem os outros, visto que fomos nós que recebemos o pântano para manter e governar. Eles não pertencem à nossa raça, assim como os skriteks também não, mas não são das trevas como aqueles.
- Você também sonhou, caçador.
Ele ficou quieto um tempo e virou um pouco a cabeça para longe dela.
- Sim, eu sonhei.
Ela viu que ele estremeceu.
- Mas agora não consigo lembrar. Pode ser que tudo isso... - ele fez um gesto com a mão - seja um lugar de sonhos. Visão Penetrante, estaremos melhor fora daqui.
Kadiya balançou a cabeça com tristeza.
- Posso até concordar com isso... mas tem a espada. Ela continua lá, e enquanto continuar, não estarei livre para seguir meu caminho. Mas você não tem esse compromisso, Jagun.
Ele olhou diretamente para ela, e ela se envergonhou da última frase que disse.
- Camarada - Kadiya apressou-se em dizer -, não quero que você se afaste de mim, a não ser por decisão sua.
- Decisão que já tomei há muito tempo - ele respondeu.
Kadiya deixou um lampião aceso. Mesmo com a luz fraca, conseguia distinguir alguns reflexos dos desenhos do manto, que tinha deixado dobrado ao pé da cama. Dentro da concha que servia de cama não havia esteiras, com as quais estava acostumada, mas uma coisa fofa que ela achava ser extraída dos tufos das sementes de junco mak. Era naquele ninho que o ocupante do quarto devia se entocar.
Ela deitou com as mãos atrás da cabeça e procurou discernir o que ia ter de enfrentar. Era uma busca às cegas, a menos que encontrasse alguma coisa naquele monte de registros, que apenas vira de relance, quando os hassittis a levaram para visitar os aposentos que serviam de depósito.
Kadiya nunca foi dada a estudar documentos antigos, mesmo os que continham palavras que soubesse ler, e duvidava muito que fosse esse o caso dos que havia ali. Isso seria uma tarefa para Haramis.
Haramis...
Kadiya segurou o amuleto de âmbar pendurado no pescoço. Aninhou-o nas palmas das mãos, fechou os olhos e tentou comunicar-se com a irmã, usando a fala mental. Não conseguiu contato, nenhuma sensação de algo à distância. Tinha somente um fio de esperança de conseguir.
No entanto o amuleto aqueceu suas mãos, e o calor alastrou-se pelos braços e chegou ao coração. Kadiya, apertando o amuleto contra o peito, desistiu de se esforçar para usar o que não compreendia. E seus pensamentos vagaram pelo jardim. De manhã iria até lá...
Acordou de repente, como se fosse sua hora de substituir a guarda. O lampião continuava aceso, um facho de luz no meio da noite. Kadiya desvencilhou-se das fibras lanosas da cama, que subiam como ondas em volta dela.
Atravessou o quarto e descobriu que em um curto espaço de tempo as hassittis já haviam cuidado das suas roupas de viagem. O que podiam lavar, lavaram; o que era para costurar, costuraram. Podia usá-las de novo.
O chamado que a fez despertar continuava a ecoar em sua cabeça. Parando um pouco para assegurar-se de que Jagun dormia, ela saiu do quarto, pé ante pé.
Viu uma luz fraca lá embaixo, como se tivessem deixado um lampião aceso. Desceu o lance de escada até o térreo. Havia uma porta sólida, a primeira que viu, que cedeu ao ser empurrada, e ela saiu na escuridão da noite.
Segurou o amuleto mais uma vez. Da mesma forma de quando a guiara até a torre de Binah há muitas luas, ele brilhava. Aquela centelha de luz coroava o minúsculo Trílio Negro lá dentro, aumentando e diminuindo, conforme ela o virava, com cuidado, de um lado para o outro.
Presente de Binah no seu nascimento, o amuleto era magia dos Desaparecidos. Ali, no centro do território deles, ela achava que podia confiar nele de novo. Obedecendo ao impulso que a fizera acordar, Kadiya caminhou na névoa da noite. Dividia sua atenção entre o que estava segurando e o que havia em volta, lembrando muito bem da armadilha da planta trepadeira.
Não conseguia ver muita coisa enquanto avançava, mas tinha certeza de estar refazendo o caminho por onde viera. E não se surpreendeu quando afinal se viu mais uma vez diante da escada do jardim, com as guardiãs silenciosas e imóveis.
Foi para o meio das colunas e ficou olhando as faíscas dos insetos que faziam desenhos entre uma flor e outra. O perfume parecia mais forte do que o dos lampiões com especiarias dos hassittis, quando ela desceu a escada interna. Uma das faíscas, azul-esverdeada, voou para perto dela e ficou pairando, um ou dois segundos, sobre o amuleto, na palma da mão estendida.
- Eu vim - Kadiya disse em voz alta.
Ela estava ao lado da espada que continuava ali plantada, sem modificação nenhuma.
Mas... alguma coisa havia mudado, sim. Desde que a espada fora parar novamente em suas mãos, depois do serviço prestado como parte do Grande Poder, as pálpebras pareciam fechadas para sempre nos três olhos. Mas naquele momento estavam só semicerradas, como se fossem abrir.
Kadiya teve medo de tocar no talismã, apesar de saber que não tinha escolha. Curvou-se e pegou a lâmina, logo abaixo do punho. Ela saiu da terra com facilidade, como se pulasse espontaneamente para sua mão.
Era uma responsabilidade que não desejava, mas tinha de assumir. Kadiya aproximou a espada para examinar melhor. Sim, os olhos estavam um pouco abertos. Guardou-a depressa na bainha, sem querer despertar o poder que continha. Não se sentiu ameaçada. Não podia acreditar que o perigo a espreitasse naquele momento.
De qualquer maneira ainda não tinha se livrado da sua missão.
Kadiya voltou pelo mesmo caminho até chegar aos degraus. Sentou em um deles e ficou observando a névoa sobre o jardim. Mesmo no meio da noite, conseguia distinguir arbustos, árvores e plantas. Mais uma vez, cheia de tristeza, estendeu as duas mãos para tudo que crescia ali, tudo que podia ter sido...
- Diga-me... diga, quem comanda tudo isso? Binah determinou uma missão para mim. Quem vai me usar agora?
Ela ouviu um ruído, galhos farfalhando que mal podia ver. Insetos faiscantes voaram depressa para perto uns dos outros, como se estivessem assustados e quisessem enfrentar o perigo unidos. Kadiya prendeu a respiração bastante tempo, certa de que o mesmo ser que encontrara antes ia aparecer.
Mas tudo que viu foi o vento soprando os galhos, a reunião das faíscas. Então elas se separaram, rodopiando cada uma pelo próprio caminho, como se o que as perturbava tivesse ido embora.
Kadiya ficou com raiva, aquela mesma raiva que sentiu no passado, quando deparou com a frustração. Era como estar diante de uma porta aberta e não poder entrar.
Ela voltou para as colunas externas. A névoa estava mais espessa do que antes. Via as formas das estátuas guardiãs apenas como figuras encapuzadas. À medida que descia os degraus ela encarava uma e depois outra, estendendo a mão com o amuleto para a frente, para que o brilho constante a ajudasse a ver melhor as sentinelas. Aproximou-se de uma forma à direita e encostou os dedos no corpo frio.
Acreditava que aquelas estátuas tinham um significado, uma função que precisava conhecer. Se ao menos não fosse tão ignorante! A raiva que sentia começou a se virar contra ela mesma.
Com a espada na mão de novo, Kadiya retornou pela cidade silenciosa e subiu para o quarto da torre. Não tinha visto nenhum hassitti pelo caminho e achou que eles talvez tivessem um lugar próprio para dormir. Será que sonhavam?
Voltando para a cama, ela deixou a espada desembainhada ao seu lado. Os olhos não abriram mais, nem fecharam por completo. O poder podia estar adormecido, mas não tinha acabado.
Se alguém sonhou no resto da noite, não foi Kadiya. Apesar de ter pego a espada de volta, estava mais em paz consigo mesma. Jagun já estava de pé novamente, partilhando sua refeição matinal (coisa que Olla e Runna, embora nada dissessem, desaprovavam claramente).
Kadiya só pensava na casa do tesouro, ou, mais exatamente, a sala onde tinha visto o monte de livros e de rolos de leitura. Se conhecesse melhor o passado, talvez pudesse determinar o que era necessário no presente.
- Nossos oradores têm suas tecelagens do tempo – observou Jagun, quando ela contou onde ia pesquisar. - Algumas aldeias possuem rolos muito antigos. Mas apenas os oradores podem tecer e depois traduzi-los. Esse conhecimento parece que vem de nascença, pois quando um filhote chega a uma certa idade passa por um teste. O que para alguns continua a ser um mistério impenetrável, para outros é um depósito de sabedoria.
- E você, caçador? Essas histórias tecidas, elas são claras para você?
Já que os oddlings tinham um jeito próprio de preservar o passado, talvez se baseasse em alguma forma que seus mentores, os Desaparecidos, tivessem usado. Se isso fosse verdade, a ajuda de Jagun seria inestimável. Ela duvidava que obteria auxílio dos hassittis, pois tinha a impressão que eles guardavam muita coisa que não compreendiam.
- Não, Visão Penetrante, meu conhecimento está voltado para outras coisas: a vida dos animais, o que cresce no pântano, as estações. Eu adquiri esse conhecimento porque, quando pequeno, fui aprendiz de Rusloog, um dos maiores viajantes dos pântanos que minha aldeia conhecia. Aprendi algumas outras coisas com o seu povo, já que morei na Cidadela e servi ao rei. Mas quanto a esses mistérios antigos, relativos às lembranças e à tecedura... não espere grande coisa de mim.
Kadiya pensou no que ele disse.
- Você diz ”grande coisa”. Então sabe um pouquinho...
Jagun se remexeu um pouco e apressou-se em pegar um cálice, bebendo tudo de uma vez, como se precisasse de tempo para considerar.
- Visão Penetrante, a oradora do meu clã é quem quer sempre saber mais. Quando eu era um viajante dos pântanos e caçador de coisas antigas, ela me mostrava o que devia procurar, no meio de tudo que eu encontrava. Sei reconhecer alguns sinais antigos. E é só.
- Mas já é alguma coisa! - Kadiya largou o prato de mingau vazio, lambendo o restinho na colher. - Eu podia ter aprendido muita coisa. Mas não gostava das horas que passava na biblioteca bolorenta, como também não gostava das que era obrigada a passar na sala das senhoras, bordando desenhos bonitinhos nos tecidos. Haramis recebeu a sabedoria, Anigel a habilidade manual, e eu fiquei com o pântano.
A sala que servia de depósito para o conhecimento era assustadora. Kadiya tinha apenas espiado da porta, quando os hassittis passaram rapidamente com ela pelos armazéns. Ao pedir para ser levada até lá pela segunda vez, três seres daquele povo pequeno formaram uma escolta, dois carregando lampiões.
A pesquisa ia ser um trabalho colossal... maior ainda, porque ninguém sabia exatamente o que procurar. Os lampiões da porta iluminavam apenas uma parte do cômodo. As estantes que podia ver claramente estavam cheias de rolos de registro, alguns dentro de invólucros, outros não, entregues aos estragos do tempo e talvez dos insetos. Havia pilhas de caixas encostadas nas paredes, embaixo das prateleiras. No mesmo lugar apinhado havia livros enormes, iguais aos que vira algumas vezes com os comerciantes, que seu pai comprava avidamente, mesmo que o conteúdo fosse ilegível. As capas destes livros eram lascas de madeira e alguns tinham bordas de metal.
Por onde começar... e o que realmente estavam procurando? Não eram os mistérios da magia e de assuntos estranhos que pertenciam a Haramis. Era a história dos que guardavam aqueles registros. Eles tinham magia, mas Kadiya queria saber mais sobre eles, para onde tinham ido e por quê. Alguma coisa dizia que os sonhadores, que profetizaram a vinda do mal, estavam associados ao que tinha acontecido, que o presente era formado a partir do passado.
Os hassittis não quiseram entrar na sala. Discutiam zangados entre eles, quando Kadiya pegou o lampião de um e o entregou para Jagun, estendendo a mão para pegar o segundo para ela. Eles ficaram na frente, como se quisessem barrar o caminho com os próprios corpos, mas ela avançou decidida, e eles se afastaram para o lado.
Ela segurou o lampião no alto. Jagun foi até a parede mais próxima, iluminando pergaminhos, caixas, e o metal fosco da capa dos livros, com o dele. A luz de Kadiya era limitada, suficiente apenas para indicar que havia uma mesa perto (quase toda coberta de caixas de pergaminhos) e uma cadeira toda trabalhada (com poeira branca nas ranhuras).
Era um lugar para trabalhar. Kadiya abaixou o lampião a fim de iluminar a superfície da mesa. Havia um espaço vazio entre as caixas, bem na frente da cadeira. Mas um brilho chamou sua atenção. Era um pequeno tubo metálico colocado de pé, dentro de um pote. E uma única folha de pergaminho, quase tão escurecida quanto a superfície sobre a qual se encontrava, desenrolada ao lado. Quem trabalhava ali devia ter sido chamado às pressas, no meio de uma tarefa.
Kadiya passou o dedo no pergaminho e tirou uma camada de poeira. Tinha marcas nele... linhas iguais às que enfeitavam a parede do primeiro prédio em que entraram.
- Jagun - ela chamou o caçador -, o que acha que é isso?
O caçador examinou atentamente, passou o dedo por baixo da primeira linha, como se fosse chegar a alguma pista traçando o desenho.
- Isso - disse ele um tempo depois - é um sinal das montanhas.
Kadiya ficou surpresa. As montanhas a leste e ao norte formavam há tempos a defesa impenetrável de Ruwenda, até a magia de Orogastus e a traição dos homens atravessá-la, espalhando a morte no único mundo que ela conhecia. Haramis tinha ido às montanhas para aprender seus poderes e voltou para elas porque quis, para lapidar e ampliar ainda mais o que tinha aprendido.
Kadiya só tinha visto as cordilheiras de longe, quando visitou os trabalhadores do pântano. Havia habitantes naquelas terras que subiam ao céu, mas nenhum jamais entrara em contato com os que viviam nas terras baixas, e os homens também não se metiam com eles.
- O que mais? ela perguntou ansiosa.
Jagun mordeu o lábio pensativo, segurando o lampião bem perto. De repente o lampião pulou, como se a mão que o segurava tivesse feito um movimento involuntário.
- Isso! - ele disse, em um tom de urgência, apontando para outro ponto, com uma linha sinuosa que não apresentava palavras nem letras. - O mal... um grande mal. Um aviso!
O dedo dele traçou novamente a linha, e então ele balançou a cabeça.
- Visão Penetrante, não consigo ler mais nada.
- Alguém estava escrevendo aqui - Kadiya raciocinou em voz alta. - Era importante, tenho certeza. Então foi deixado aqui bem à mostra... de propósito Para avisar os que viessem depois? Montanhas e o mal... uma premonição? Orogastus mantinha seu esconderijo nas montanhas do norte. Ele colecionava um estranho aprendizado e teria até incluído Haramis em sua coleção, se ela quisesse, porque ela podia deter o conhecimento de coisas novas para ele. Uma advertência sobre Orogastus?
Mas prever com tanta antecedência o futuro... será que uma coisa dessas era possível? Kadiya duvidava. Mas deve ter havido outra coisa maligna nas montanhas, tão forte, que até os Desaparecidos tiveram de registrar um aviso.
Ela se virou para Jagun.
- Montanhas... você consegue ler esse signo. Vamos procurá-lo aqui primeiro.
Era uma pista pequena... quanto tempo levariam E mesmo se encontrassem o sinal certo, será que faria sentido, já que só conseguiam ler um único símbolo?
- Visão Penetrante - Jagun falou devagar -, você está usando a espada da justiça implacável novamente. Talvez ela possa servir de ferramenta na busca.
Surpresa, Kadiya pôs o lampião na mesa para poder pegar a espada, cuidando para não encostar a mão naqueles olhos semicerrados. Olhos eram feitos para ver, e o olho de cima tinha o poder dos antigos. Obedecendo a um impulso, ela virou o punho da espada para aquele papel escrito que estava lá há tanto tempo.
- Sssss... - Jagun sibilou como uma cobra-sal.
Kadiya segurou firme a espada. A arma não resistia, e o olho de cima estava totalmente aberto. Um raio de luz iluminou a longa tira de pergaminho.
Partes das linhas onduladas mudavam de cor, mas os tons não eram muito definidos. Havia verdes-escuros como plantações de likan, traços de vermelho que podiam ser gotas de sangue rodopiando na água, um azul e um pouco de violeta, virando um marrom-arroxeado, como lodo de poço.
Uma trama de linhas que Kadiya não entendia de jeito nenhum. Nem de longe parecia alguma escrita que ela pudesse imaginar.
Os grandes olhos de Jagun estavam arregalados a mais não poder.
- Registros de orador!
- Você consegue ler isso? - Kadiya continuava esperançosa. Se aquilo era a escrita dos oddlings, certamente Jagun devia saber alguma coisa!
Ele estava de pé, com as mãos espalmadas na mesa, uma de cada lado do pergaminho, olhando atentamente.
- Lugar dos Sals - disse ele devagar. - Ficar de guarda... perigo... montanhas.
- Lugar dos Sals? - repetiu Kadiya. - Onde fica isso?
Ele olhou para ela, com uma expressão quase de espanto no rosto.
- Já foi uma aldeia, mas com a chegada das grandes chuvas, foi levada pelo rio. Os que viviam lá, os que sobreviveram depois das águas baixarem, construíram de novo em outro lugar. Visão Penetrante, você já viu esse lugar... é a aldeia do meu clã!
Ela lembrava bem da visita àquele lugar, onde as casas compridas eram construídas em plataformas sobrepostas no meio do lago. Era longe, perto do Pântano Dourado, rio abaixo, depois do Inferno Espinhoso.
Kadiya olhou a bagunça em volta. Talvez aquele texto não fosse o único que pudesse ser decifrado pelo olho. Segurando o lampião com uma das mãos e a espada com a outra, com Jagun ajudando a desenrolar os pergaminhos e a abrir os livros que pareciam imprescindíveis, ela rodeou a mesa e apontou o punho da espada para os registros que estavam empilhados na proximidade. Mas não deu resultado, e ela não conseguiu encontrar nenhum símbolo familiar. Jagun protestou, dizendo que também não via nada.
Um barulho na porta interrompeu a concentração na pesquisa. Gosel apareceu, junto com Tostlet. Os dois seguravam as pontas dos panos que usavam perto do corpo, para não derrubar as pilhas entre as quais passavam.
- Ó Nobre - Kadiya prestou atenção na comunicação mental -, Quave sonhou novamente. As trevas virão. Invoque seus poderes para nada nos atingir aqui.
Kadiya encarou o hassitti diretamente.
- Gosel, eu não tenho poderes verdadeiros. Isto - ela ergueu a espada para ele ver os três lobos no punho - serviu meu povo muito bem, por meu intermédio. Mas não sei de onde vem sua força, nem se posso invocá-la quando quiser. Testá-la em plena batalha, sendo tão ignorante, seria bancar a tola. E isso foi tudo que ela fez por nós hoje. - Ela apontou, e Jagun pegou a tira de papel na qual a escrita tinha sido modificada. - Meu companheiro de batalha disse-me que isso é um registro do povo dele, mas ele não aprendeu a ler estes sinais. O que você consegue ler neste lugar, Gosel?
O hassitti olhou espantado para ela.
- Ó Nobre, nós não somos os escolhidos para fazer os registros. Nós - ele fez um gesto com as garras da mão, indicando a sala - trouxemos para cá tudo que encontramos, mas do que se trata, não sabemos.
- O seu sonhador - falou Kadiya, perdendo o que não passava de uma vã esperança. - Como era o sonho
- Trevas e mais trevas, nobre.
Gosel aproximou-se da espada meio ressabiado, mas não encostou nela. A pálpebra do olho de cima estava aberta, era como se estudasse o hassitti.
Gosel olhou fixo para aquele olho. Então, para surpresa de Kadiya, ele ergueu as duas mãos com garras e tocou no próprio rosto longo, no meio dos olhos.
- Ó Nobre - o pensamento dele comunicou-se com ela! Isso tem um poder que não conhecemos, mas é tão grande que nos obriga a fazer coisas estranhas e grandiosas.
Ele virou um pouco a cabeça para espiar a tira de papel que Jagun continuava segurando.
- Se foi isso que o talismã mostrou, então, ó nobre, deve saber o que significa.
Kadiya teve vontade de silvar como Jagun, de tão exasperada que estava. Ela não obteve respostas para toda a sua busca, apenas mais e mais perguntas!
Muito bem, tinham uma mensagem que fora deixada para trás, traduzida com a ajuda do único objeto que com certeza continha o que seu povo podia chamar de ”magia”. Essa mensagem mencionava uma aldeia antiga, arrasada pela tempestade e que renasceu como a aldeia de Jagun. Se não podiam descobrir mais nada de concreto ali, por que perder tempo procurando no meio daqueles registros ilegíveis de uma outra raça e de outro povo, tendo de ouvir avisos constantes sobre sonhos de trevas?
Ela podia levar o pergaminho para a aldeia de Jagun. Certamente eles deviam ter registros mais completos, algo mais útil. Montanhas, aldeias sombrias e esquecidas... se havia alguma descoberta a ser feita, seria por meio da ação. Esse era o modo de vida de Kadiya, Precisavam levar o que encontraram para onde pudesse ser traduzido em informação útil.
Depois de ter resolvido que ia mesmo fazer a viagem, Kadiya teve de encarar a argumentação dos hassittis. O povo pequeno estava muito enraizado na cidade e não era capaz de imaginar que alguém pudesse querer se aventurar além dos seus limites. Ela enfrentou avisos de perigo e pedidos, que minaram sua paciência. Em alguns momentos até imaginou se os hassittis podiam tomar providências para detê-los, talvez usando algum truque parecido com o labirinto de luz.
No entanto, continuou alimentando suas reservas de paciência, conquistada a duras penas, insistindo que tinha de ir. Ficou surpresa ao receber o apoio repentino dos sonhadores, quando se reuniu com Gosel e os outros líderes.
Quave era o chefe daqueles sábios do sono, um hassitti cujos olhos não eram botões brilhantes, e sim velados, cobertos por uma película opaca, como se ele tivesse de usar outro meio de visão. Era tratado com grande cerimónia pelo seu povo. Quando chegou para a reunião, um de seus ajudantes carregava um pote, não de metal como Kadiya tinha visto em outros lugares, mas feito com um tipo de madeira, antiga, escurecida pelo tempo.
Depois que Quave se instalou na cadeira que Gosel apressou-se em pegar para ele, puseram o pote na mesa, na sua frente. Ele ficou ali encolhido, com a cabeça baixa, olhando para o fundo do pote, onde havia um líquido escuro. Então ele fez um movimento tão súbito que pegou Kadiya desprevenida. A pata do hassitti saiu debaixo da borda do grosso xale enrolado nele, e os dedos em forma de garras agarraram o pulso de Kadiya, que estava com as mãos sobre a mesa.
Ele segurou com tanta força que a mão de Kadiya foi puxada para a frente e Quave ergueu a cabeça, fixando os olhos aparentemente cegos no rosto dela.
- Os sonhos vieram. - As palavras de Quave eram muito claras imperativas na mente de Kadiya. - Ó Nobre, se você não tem sonhos... então veja! Peça o que você precisa para os seus objetivos!
O que eu preciso para os meus objetivos? As ideias de Kadiya não estavam bem ordenadas. Ela precisava de um tipo de conhecimento que não era comum, e que bem lá no fundo causava medo. Quem poderia ter esse conhecimento? Havia mulheres sábias entre os oddlings... e havia Haramis!
Ela olhou para dentro do pote, concentrou-se na irmã e procurou criar uma imagem dela igual à que tinha visto da última vez na Cidadela.
- Haramis... - ela chamou o nome em voz alta, ao mesmo tempo que a procurava com seus pensamentos mais profundos.
O líquido do pote não se mexeu, mas a superfície escura ficou mais clara, com uma faísca bem no centro, e a luz se espalhou para as bordas a partir daquele ponto luminoso.
A imagem não era clara. As paredes pareciam trêmulas, aparecendo e desaparecendo. Ao longo dessas paredes ela via livros e rolos de pergaminho, mas tudo em ordem, bem diferente da sala onde tinha feito a pesquisa. Havia uma mesa com muitos frascos e jarros e uma pilha de folhas de pergaminho vegetal. A pessoa sentada diante dessas coisas, com uma pena na mão, era menos visível do que o que a cercava.
- Haramis! - Kadiya apelou para sua força de vontade e energia, para entrar em contato com a irmã.
A sombra que era Haramis ergueu a cabeça repentinamente como se ouvisse o chamado e virou-se um pouco, de forma que Kadiya conseguiu ver a irmã de frente. Ela moveu os lábios e apertou os olhos como se lutasse para ver através de uma barreira.
- Haramis!
A cena ficou tremida e ondulada, como se alguém tivesse mexido no espelho líquido no qual ela se formava. E então desapareceu.
- Quem é essa tecelã de sonhos que está tentando chamar? - perguntou Quave, soltando o pulso de Kadiya.
- Minha irmã, aquela que a Arquimaga Binah escolheu para substituí-la como feiticeira e guardiã.
- Ela tem um grande poder, essa Haramis?
- De todas nós é ela quem tem o maior poder - respondeu Kadiya. - Eu só domino isto - ela explicou, tocando de leve na espada -, mas não tenho conhecimento de magia. É por isso que preciso descobrir tudo que puder. Não tenho sonhos para me avisar ou guiar.
Ela tentou camuflar o tom de urgência na voz, para fazer Quave compreender sua verdadeira impotência e transmitir isso para os outros que estavam ali.
Passaram-se alguns segundos, e ele não respondeu. Fez um breve gesto com uma das garras e o ajudante que levara o pote tirou-o da mesa.
- Isso é possível - Quave falou afinal. - Não somos nós „ que lidamos com as forças que os nobres conheciam. Se você acredita, personagem dos nossos sonhos, que deve buscar o conhecimento, então realmente confirma que é um dos antigos... pois eles sempre fizeram isso.
Ele puxou o xale meio aflito e depois olhou para Gosel.
- Se esta deve seguir em frente, então devemos ajudá-la. Há aquele que desperta e que tornará o céu bem mais negro do que qualquer tempestade que vimos. - Ele se virou para Kadiya. - Nobre, o mal existiu no passado, e aqueles que você conhece lutaram contra ele. O mal desperta novamente. Tenha cuidado na sua busca, pise de leve em qualquer trilha e esteja sempre alerta com seus olhos e esse objeto de poder. Ultimamente eu também tenho sonhado. Acho que alguma coisa está começando a nos afetar, de forma que não conseguimos mais detectar o perigo que corremos.
Ele ficou de pé e fez um cumprimento de cabeça para Kadiya. Sentindo a força da personalidade daquele sonhador, e ele inclinou a cabeça também.
Assim os hassittis não tinham mais restrições em ajudá-la. Jagun demonstrou estar satisfeito com isso. Mais uma vez enfrentaria a furia da tempestade e a viagem descendo o Mutar Superior, arriscando-se novamente a atravessar o Inferno Espinhoso. Apesar de toda dificuldade em viajar com as tempestades praticamente constantes, era melhor partir logo e não ficar esperando o tempo mudar, pois a força dos ventos e das águas manteria muitos habitantes perigosos daquelas paragens em suas tocas.
Iam precisar de um suprimentos, estes últimos mais fáceis de arranjar que o primeiro. Mas quando Kadiya perguntou, Gosel apareceu com um meio de transporte estranho, do formato de um esquife, que podia ser usado tanto na lama escorregadia quanto na água do rio. Pelo menos foi isso que Jagun declarou ao inspecioná-lo cuidadosamente.
Os hassittis tiveram outros visitantes ao longo dos anos, ou melhor, há muito, muito tempo, exploradores infelizes que ficaram presos nas antigas defesas. Eles foram vítimas da cidade, mas seu equipamento foi recolhido pelos hassittis, que o examinaram e depois guardaram, com a habitual mania de preservação.
Jagun admitiu que o barco-esquife era diferente de tudo que tinha visto, embora algumas características dele o deixassem bem animado. Queria experimentá-lo logo ou talvez só quisesse sair da cidade.
Foi fácil juntar os mantimentos. O mingau favorito dos hassittis seria desidratado no fogo. Tiraram a poupa das frutas e acondicionaram em potes. E Tostlet providenciou alguns pacotes, esforçando-se para convencer Kadiya do valor de cada um deles para a saúde e para a cura.
Do lado de fora do portão as nuvens baixas estavam bem escuras na manhã que partiram. O esquife estava equipado com cordas que Kadiya e Jagun manejavam juntos. Os hassittis foram todos ao portão para ver a saída, mas a espessa cortina de chuva cobriu tudo muito depressa, deixando apenas a sombra das ruínas à vista.
Como todos os caçadores, Jagun tinha um senso de direção inato e bem desenvolvido. Ele avançava confiante, mas com a carga pesada que carregavam, mal conseguiam acelerar além do passo normal de uma caminhada.
Kadiya tinha trocado algumas das suas roupas, que ficaram arruinadas com a podridão dos pântanos, e estava usando vestes de tecido das coleções que os hassittis armazenavam. Ela ficou satisfeita ao descobrir que a maioria das peças que escolheu era boa, e vários tecidos eram até à prova dágua.
Ainda tinham um longo caminho pela frente para chegar ao rio Mutar. Embora estivessem na estação das chuvas, Jagun mantinha-se sempre alerta. Kadiya também estava atenta aos perigos enraizados e aos que rastejavam e saltavam no caminho escorregadio, por onde tinham de passar.
Ela ia preparada com uma lança curta, que encontrara na sala do tesouro, e Jagun empunhava sua zarabatana, quando sentiram um repentino cheiro nauseante. A coisa que se remexeu diante deles era escamosa, com chifres retorcidos e uma cabeça que parecia grande e pesada demais para o corpo cheio de pernas.
Kadiya assumiu posição de ataque, atraindo a criatura para a esquerda, permitindo que Jagun atirasse diretamente em um dos olhos saltados. Os dois tinham usado esse truque antes, porém essa presa era nova para ela.
Com um dardo pendurado no olho, a coisa se contorceu e cuspiu uma gosma amarela pela boca entreaberta. Kadiya desferiu um segundo golpe bem na boca, torcendo a lança para dentro. A coisa jogou a cabeça para trás, arrancando a lança das mãos de Kadiya, e parou de tentar atacá-los. Começou a bater na lama com as muitas pernas, procurando esconder seu corpo moribundo.
Quando parou de se debater e apenas estremecia, Kadiya e Jagun se aproximaram com cuidado, para recuperar suas armas. Mas ele também sacou sua faca do cinturão, enfiou-a na base de uma das presas e arrancou-a da mandíbula da coisa, depois fez o mesmo com a outra. Enrolou os dentes em uma grande folha e guardou-os em sua mochila. Kadiya imaginou que seriam pontas formidáveis para lanças de pesca.
Outros habitantes do lodo se juntaram para comer o monstro morto, mas Kadiya e Jagun não tiveram problema com eles ao se afastarem da movimentação no terreno encharcado.
Aquela noite montaram acampamento em um lugar mais alto, onde uma esteira de junco podia ser pisoteada para formar o chão de um abrigo, cujo teto era o esquife. Não podiam acender uma fogueira naquela mistura de lama e água. Apesar de todo o cansaço físico, Kadiya não conseguiu descansar no ninho de junco batido, coberto com uma esteira de viagem.
- Jagun... - Ela sabia que o caçador também não estava dormindo, pois ouvia o estalido suave dos juncos que traía a agitação do amigo. A chuva tinha parado, mas era uma trégua na qual não podiam confiar. - Por que seu povo construiu essa sua aldeia distante? Você disse que é um posto avançado em terra dos nyssomus. Foi por causa dessa enchente de muito tempo atrás, da qual falou?
- Quer saber por que viemos para o norte, Filha do Rei? Bom, isso é uma história bastante desgastada por muitas estações. Dizem que nosso clã sempre teve esse desejo de conhecer o que havia além. Há mais caçadores entre nós do que na maioria das outras aldeias. Temos o costume de viajar para longe. Foi isso que me fez chegar pela primeira vez à corte do seu pai. Resolvi ficar lá porque estava curioso, queria conhecer seu povo e saber o que o levava a fazer o que fazia, coisas que não eram habituais para nós. Tornei-me caçador da corte, como você já sabe...
-É!
Ela lembrava muito bem daquela época, da primeira vez que viu Jagun. Ele estava com dois filhotes de intons, aos quais tinha ensinado truques simples... simples, mas encantadores para todos que assistiam à exibição, pois intons eram muito tímidos e difíceis de encontrar.
- Você estava com Issa e Itta - ela recordou os nomes. Depois você guiou os comerciantes pelo caminho escuro, e eles levaram de volta muitas conchas ral e peles de voors.
- O que inúmeros companheiros do meu clã poderiam ter feito com a mesma facilidade - ele retrucou. - Mas também havia outra coisa. A oradora do meu grupo, como já disse, estava interessada em conhecimentos estranhos. Mandei para ela muitas coisas que aprendi na Cidadela e nas viagens que fiz. Por isso recebemos méritos do clã e meus parentes próximos assumiram posição de destaque nos grandes discursos.
”Fiquei muito contente com isso, porque também sinto necessidade de aprender o que muitos já esqueceram ou jamais souberam. Agora posso contribuir ainda mais para os registros.”
Kadiya percebeu a satisfação na voz dele.
- Esses hassittis... os sonhadores deles... falaram de um grande mal - ela ponderou.
-Visão Penetrante, o pântano é um terreno estragado e foi formado assim por acaso. O fato de o mal perambular por ele é tão natural quanto a formação de sementes em um vinhedo desbastado. Tivemos a prova do que o mal pode fazer. Sabemos que os problemas podem acontecer novamente...
- Os de Labornok?
- Há uma rainha agora da sua terra, e essa terra e ela partilharam o seu nascimento, Visão Penetrante. Foi ela também que a ajudou a conquistar o grande talismã.
- E Orogastus está morto. Voltrik também - Kadiya observou devagar -, Haramis é a guardiã... mas ela foi para longe. Binah escolheu viver em Noth, que fazia parte das terras alagadas, mas minha irmã foi para as montanhas. E é nas montanhas que mora o perigo... Jagun, em todas as suas andanças, você jamais observou as montanhas ocidentais? Viu quem ou o quê mora lá?
- Visão Penetrante, suas viagens são como as minhas. Não, eu nunca me embrenhei tanto nas terras dos uisgus, que ficam na base das montanhas. Nem os caçadores do meu clã, cujos registros eu vi. Agora procure dormir, filha do rei, que eu ficarei de vigia primeiro.
Kadiya deitou-se, meio relutante, mas pensava em Haramis e na visão meio encoberta da irmã, que o sonhador hassitti tinha mostrado. Haramis tinha falado dos vispis, regentes da neve e do gelo das alturas, em geral invisíveis para os que se aventuravam até lá. Será que Haramis tinha um deles com ela para fazer companhia, como Jagun para Kadiya, ou será que estava sozinha? Kadiya estremeceu. Ficar sozinha... não queria isso para Haramis. Desde pequena, ela, Kadiya, enveredara pelos caminhos dos pântanos. Nos limites mais estritos da corte, sempre ficava impaciente, achando que não estava sendo o que devia ser. Os oddlings eram muito mais seus amigos que os cortesãos. Uma noção oculta faiscou em sua mente. Será que um dia acharia o pântano solitário por não pertencer à raça deles? Era uma dúvida que nunca a incomodara antes.
A chuva começou a cair de novo. O martelar constante no esquife sobre suas cabeças era bem forte. Inquieta em sua cama com cheiro de pântano, Kadiya tentava não pensar. Afinal o vazio do sono profundo chegou.
Quando Jagun a fez acordar, ela se sentou com a lança apoiada nos joelhos, olhando para o aguaceiro que caía. Não poderia detectar nada com os olhos naquela escuridão, nem podia ouvir nada também, com o barulho constante da chuva. Meio sem jeito ela liberou o outro sentido que tinha aprendido a usar, a busca mental de sinais de vida ao seu redor.
Percebeu a palpitação de coisas pequenas, que não se intimidavam com a chuva e as armadilhas da lama, como as populações maiores. Tudo que Kadiya conseguiu captar dessas piscadelas efêmeras foram sensações de fome e a necessidade de encher barrigas vazias, a mente totalmente concentrada de um predador no rastro da presa. Fora isso, o mundo em volta parecia sem vida.
Lentamente ela percebeu que havia mais alguma coisa. O amuleto de trílio que usava desde o seu nascimento estava quente. Ao tirá-lo de dentro do blusão molhado, viu um pequeno brilho no centro, um círculo de luz fraca em torno da flor aberta que havia lá. Obedecendo a um impulso inexplicável, Kadiya encostou o amuleto logo abaixo da fita que usava na testa.
Com certeza estava quente. E outra coisa: pulsava. Aquela flor presa lá dentro parecia respirar como um animal. Seu talismã já tinha dado sinal de vida assim antes. Servira como um verdadeiro guia, quando procurava Binah. Se ao menos soubesse mais sobre os tipos de ajuda que ele podia prestar! Haramis possuía o poder... ela moldou os talismãs usando tudo que tinham conquistado, formando uma arma poderosa. Kadiya passou a mão pela lâmina sem ponta de sua espada, tomando cuidado para não encostar nos três olhos. Aquele era o seu poder, e tinha matado com ele. Será que precisava fazer isso novamente?
Ainda estava escuro, com o céu da madrugada nublado, quando saíram. Jagun testava o solo à sua frente com a ponta da lança, procurando marcar as poças traiçoeiras de lama que podiam engolir os incautos, e tinham de estar sempre desviando. Naquele dia eles avançaram lenta e obstinadamente, sem sofrer nenhuma ameaça, só a que o terreno podia representar. No amuleto de Kadiya a luz continuava a brilhar, um raio que combatia os pensamentos e o dia sombrios.
Quando chegaram ao fim daquela jornada rumo ao rio, depois de quase quatro dias de viagem, Kadiya deu um profundo suspiro de alívio, obedecendo às ordens de Jagun para lançar o esquife na água.
A correnteza estava forte por causa da tempestade. Jagun tinha embarcado um longo remo que servia de leme e montava guarda com total atenção. Sem precisar remar, Kadiya ficava abaixada na proa, ampliando suas ondas mentais até onde podia. Vida... havia bastante lá... mas ela não captou nenhum sinal de algo realmente ameaçador.
Já estavam viajando há dez dias, desde a partida da cidade, quando chegaram ao lago que cercava o longo cais e sustentava as casas do clã de Jagun. As águas do lago estavam bem mais altas do que quando Kadiya estivera lá da primeira vez. Muita coisa tinha mudado nela e no mundo exterior, desde aquele dia em que ousara ir contra os costumes. Era uma fugitiva, com um bom preço oferecido por sua captura, e tinha procurado os nyssomus no território deles, fora lá para pedir ajuda na luta contra um inimigo comum. No entanto, exceto pela água que chegava mais alto naquelas plataformas, tudo parecia igual.
Como antes, a chegada deles foi anunciada por sentinelas ocultas. O assobio de saudação ainda ecoava, quando o barco em que Kadiya estava bateu na passarela sobre estacas da casa central.
Mais uma vez quatro mulheres nyssomus aguardavam, aparentemente insensíveis à chuva, que lavava os desenhos pintados em suas faces e fazia seus mantos grudarem em seus corpos. Duas delas Kadiya reconheceu. Como seria a saudação delas agora?
Jagun abaixou a cabeça.
- Saudações, Primeira da Casa. Que todos estejam bem, diante Daqueles a quem Não Damos Nome.
A mulher nyssomu ficou olhando para eles, durante o que pareceu para a cansada Kadiya um tempo enorme, antes de dar a resposta formal.
- Que este teto o abrigue, caçador, e a você também, filha do rei, que vem nos visitar novamente.
Kadiya respondeu primeiro com o gesto de respeito, aprendido há muito tempo, em Trevista, quando começou a percorrer os pântanos.
- Eu, Kadiya, desejo o bem de todos - disse ela, encostando a palma da mão enlameada na mão estendida da mulher.
A nyssomu sorriu.
- Que o bem a acompanhe nesta visita, filha do rei. Ouvimos falar do que você e os seus fizeram, derrotando um grande mal. Fomos companheiros de batalha lá e seremos companheiros da paz aqui. - O sorriso dela desapareceu, e ela olhou bem nos olhos de Kadiya, como se lesse ali alguma mensagem. ”Seu coração está inquieto. É bem-vinda no seio desta família, pois resolveu vir até nós. São seus todos os direitos de hóspede.”
As mulheres que estavam diante de cada uma das portas do longo corredor fizeram mesuras, enquanto a primeira da casa levava Kadiya para o salão do qual ela se lembrava tão bem. O luxo, embora estranho, era muito apreciado por quem tinha acabado de sair da lama e das enchentes.
Kadiya tomou um banho, lembrando da outra vez, quando o que esses amigos ofereceram, de certa forma, ajudara a diminuir a dor em seu coração, do mesmo modo que as loções e os óleos deles cuidaram do seu corpo. Tinha fugido de sangue e fogo e de uma crueldade tão monstruosa que mal dava para acreditar que existia. Seu mundo tinha acabado em um único dia e uma única noite, e não havia mais nada em que se agarrar, a não ser sua força de vontade e a necessidade de vingança.
O punhado macio de sabão, que ela tirou de uma concha que estava convenientemente perto, ardeu em seu couro cabeludo, no lugar em que o cabelo tinha sido arrancado, mas não passou de um pequeno desconforto. Ela relaxou na água e deixou toda a paz e todo o conforto oferecidos pelos nyssomus fluírem nela outra vez.
Embrulhou-se em um dos roupões franjados que puseram no banheiro para ela e penteou o cabelo molhado com um pente de espinha de peixe. O perfume das pétalas do banho cobria sua pele molhada, e ela sentiu-se grata por aquela pequena escapada do cheiro do pântano.
Os seis líderes de clã que formavam o Conselho dos Primeiros se reuniram, do mesmo modo que tinham feito a primeira vez que Kadiya se apresentara, nervosa, diante deles. Ela sentou-se em um banquinho acolchoado, de frente para eles. Uma mulher mais jovem levou a taça de recepção, e cada um bebeu um gole. Kadiya teve o cuidado de deixar cair no chão a costumeira libação.
- Filha do Rei, tenho visto você carregando problemas como um fardo. Mas não recebemos nenhuma notícia de movimentação de exércitos... não, desde o retorno dos nossos que participaram da vitória, quando aquele rei sombrio das montanhas e seu mago maligno tentaram nos destruir. Você usa isso - ela apontou para o amuleto no peito de Kadiya - e carrega isso. - Com a ponta do dedo indicou a espada que Kadiya deixara no chão, a seus pés. - Ambos estão vivos. Sendo assim, ainda não nos livramos dos problemas, afinal. Que novo rei se levanta para invadir nossa terra?
Kadiya hesitou um pouco, depois resolveu que seria melhor contar a história toda de uma vez.
- Nenhum rei está cruzando nossas fronteiras, oradora. Minha irmã Anigel está usando a coroa dupla das duas terras, neste momento, e governa em plena paz. No entanto foi dado um aviso de que o mal ainda não desistiu de nós... ou melhor, há uma nova força das trevas que vem testar nosso poder, se alastrando a partir das montanhas.
Assim ela começou a contar a história do que tinha acontecido desde que partiu da Cidadela, sendo levada por uma pressão interior, para viajar até o jardim da espada.
Quando Kadiya falou dos hassittis, os ouvintes se inquietaram. A nyssomu que governava a casa interrompeu.
- Filha do Rei, você fala de lendas.
- Lendas vivas - retrucou Kadiya com firmeza. - Os que se consideram guardiões de tudo que os Desaparecidos deixaram para trás.
As mulheres nyssomus murmuraram baixinho. Kadiya achou que não era descrença, e sim espanto.
Ela passou rapidamente para a aventura de Jagun no labirinto de luz e viu a líder principal balançar a cabeça.
-Armadilhas! Então é assim que nos tratam, nós que não medimos esforços para ir a lugares distantes pelos Desaparecidos! Isso é inaceitável!
Kadiya fez uma pausa e depois continuou.
- Dama da Casa, eu creio que não foram os pequeninos que prepararam as armadilhas. Elas já deviam estar lá, quando os Desaparecidos foram embora. Os hassittis afirmam que são os guardiões e protetores de tudo que os excelsos deixaram ficar. De fato, parece que fizeram o melhor possível para confirmar isso.
Ela descreveu as diversas salas com os tesouros empilhados no seu interior. E assim chegou às revelações dos sonhadores e mais uma vez foi interrompida.
- Eles dizem que captam sonhos! E sonhos que você diz serem avisos enigmáticos. Perigo das montanhas. Mas não acabamos de travar uma guerra com os que vieram das montanhas? - Certamente eles não se levantaram de novo!?
- Outras montanhas... não as do norte, mas do oeste - respondeu Kadiya. - Esses sonhadores são ouvidos com muito respeito e todos acreditam neles.
- E você procura o conhecimento dessas montanhas conosco, Filha do Rei? Por quê? Nosso povo nada tem a ver com as alturas além das terras pantanosas.
- Eu vim por causa disso.
Kadiya abriu a bolsa de pele de silis que pegara no meio de suas coisas, antes de começar a contar sua história. Desenrolou a tira de tecido desenhado, que o punho do talismã tinha revelado.
Por um momento a líder parecia não desejar tocar naquilo. Depois, como se fizesse um esforço para cumprir um dever do qual não gostasse, a oddling aceitou a tira de pergaminho e esticou-a de lado sobre os joelhos. Uma das que estavam sentadas perto dela levantou-se e correu para espiar por cima do ombro da líder.
Aquelas linhas que o pomo tinha revelado não estavam nem um pouco apagadas e eram bem visíveis. A líder passou a ponta do dedo ao longo das linhas, como se tocando a substância a mensagem ficasse ainda mais clara.
Depois ergueu o rosto, consultando a outra que se aproximara para inspecionar o achado, fitando-a olho no olho.
- Líder - a outra falou -, o desenho tecido é verdadeiro. Isso é nyssomu.
- Mas muito, muito antigo - objetou a líder. - O que diz aqui está no passado, há muitas estações. No tempo da mãe de minha mãe, já estava quase esquecido. Tecelã, nós temos um registro igual a esse?
A outra balançou a cabeça lentamente, concordando.
- Sim, há desenhos iguais a esse. Dois deles tiveram de ser refeitos na última estação da seca, porque eram tão antigos que podiam desaparecer.
- Havia essa mensagem: que o mal perdurou no oeste, mas que ficou preso lá, com tanta segurança, que os pântanos não precisam se armar contra ele. Os Desaparecidos cuidaram dessa segurança. Este aqui - ela olhou para Kadiya - fala que uma de suas barreiras era uma poderosa armadilha. Eles tinham um poder que não podemos igualar.
”A grande anciã, Binah, tinha poder. Você tocou nesse poder, filha do rei... ou em parte dele... Uma que tem o seu sangue, sua irmã, ocupa o lugar de Binah. Mas ninguém tem o poder que os Desaparecidos usavam e conheciam. Nós não almejamos tal poder. Não está em nós invocar algo que não nasceu com a nossa raça. Em todas as longas estações, desde que os Desaparecidos nos deixaram, apenas estudamos a fim de manter nosso povo em segurança, dentro do possível. Temos vivido de acordo com os antigos juramentos, e esse lugar de onde você acaba de vir nos foi proibido por um juramento que fizemos. Talvez porque entre nós pode ter nascido alguém tão perverso e inescrupuloso que deseje ter o que não lhe pertence.
”Se o mal se prepara”, ela ficou na frente da líder e parecia muito austera, ”talvez esteja despertando, é porque o antigo poder foi muito invocado nas luas do passado recente. Esse feiticeiro Orogastus, que mexeu em coisas que eram proibidas, usando até as chamas do ar como arma... como podemos saber se ele não perturbou algum equilíbrio antigo, pondo a perder o que supostamente estava determinado para sempre?”
A líder ergueu a mão, e a companheira parou de falar.
- Filha do Rei, você nos deu muito em que pensar. - Ela alisou a tira de pergaminho com a palma da mão. - Temos nossos registros, bem mantidos e com toda a segurança possível. Graças a isso... ao aviso desse sonhador... graças ao que você tem, que não pode devolver ao lugar de origem - ela apontou para a espada -, temos de acreditar que de fato existe uma perturbação. Você tem o direito de recepção aqui e a ajuda de parentesco no que tem de ser feito. Embora sejamos um povo que não ergue a lança nem sopra dardos com facilidade, também não fechamos os olhos e os ouvidos aos avisos.
- Líder, eu agradeço. Algumas coisas necessitam de muitas mãos. É bom ouvir a sua oferta - respondeu Kadiya.
As mulheres se levantaram e moveram as mãos e as cabeças juntas em um gesto formal. Levadas pela líder elas saíram em fila da sala. Então entraram correndo dois oddlings jovens, que pediram a Kadiya para acompanhá-los. Levaram-na para um cômodo que ela pensou ser para visitantes não pertencentes à raça deles.
Havia uma refeição posta lá, e ela comeu com vontade, saboreando os pratos que aprendera a apreciar desde a infância, quando se aventurava pelos pântanos com Jagun. Eram bem diferentes dos mingaus moles e das frutas polpudas que os hassittis tinham oferecido para ela. Kadiya adorou a textura crocante das raízes de brotos de junco laka.
Quando a jovem serva chegou para levar a bandeja, indicou a pilha de esteiras de junco, que era a cama, e levantou convidativamente uma ponta da coberta de capim tecido, na qual haviam entremeado os talos desidratados e cheirosos de flores, que diziam servir para relaxar.
Kadiya instalou-se nas esteiras e já ia puxar a coberta até os ombros, quando ouviu um chamado baixinho do outro lado da cortina, que cobria a porta. Kadiya respondeu, e não foi a serva que voltou ao quarto, e sim a oddling anciã, que a líder tinha chamado de tecelã, e que tomara parte no interrogatório de Kadiya.
A nyssomu carregava uma coisa bem afastada do corpo, com os braços esticados. Um junco rijo tinha sido entortado em um formato oval. Dentro dele havia um tecido irregular, com o desenho aberto, de fibra em fios, como uma teia desigual. De um lado da moldura oval pendiam duas cordas feitas de junco e coloridas, uma verde e uma azul. Elas não tinham o mesmo comprimento, mas nas pontas das duas tinha um tufo de plumas, que emitiam um brilho, metálico, mesmo com a luz fraca do quarto.
- Você já viu isso, Filha do Rei?
- Não, tecelã. O que é isso, um objeto de poder?
- De fato é de poder. Isso é uma teia de sonho, uma armadilha para se proteger das visões malignas durante o sono. Como disseram a você que esses sonhos estão por aí, é melhor pendurar isso aqui.
Segurando a teia de sonho com uma das mãos, a tecelã estendeu a outra tão alto que precisou ficar na ponta dos pés para encostar no que queria. Puxou uma linha quase invisível à qual prendeu a ”proteção”, de forma que a coisa ficou livre é rodopiando no ar, com as penas adejando.
A tecelã examinou sua obra e deu um peteleco em uma das cordas penduradas, fazendo com que começasse a rodopiar novamente. Depois balançou a cabeça como alguém que acaba de completar um bom trabalho.
- Durma bem, Filha do Rei. Não será mais afetada pelos sonhos negros agora.
Antes de Kadiya começar a agradecer, ela já tinha deixado a cortina cair, ao passar para fora do quarto. O lampião aceso sobre um banquinho bruxuleava fraquinho, e Kadiya recostou-se sob a coberta perfumada. Havia uma superposição de sombras na luz suave do quarto. A armadilha de sonhos continuava rodando um pouco. Ela ficou pensando o que o sonhador hassitti acharia disso. Parecia que os nyssomus não estavam dispostos a se abrir para sonhos significativos, como os que viviam na cidade.
Se foi a fadiga que se apoderou dela, empurrando-a para as profundezas do sono verdadeiramente sem sonhos, ou se a proteção funcionou mesmo, Kadiya não saberia dizer. Ela enveredou por um lugar de escuridão e calor bem-vindos, muito satisfeita.
Enquanto a biblioteca que Kadiya tinha explorado na cidade era um labirinto de coisas reunidas ao acaso, a que visitou com a tecelã na casa da aldeia de Jagun era um modelo de ordem e um lugar muito ativo. A mulher nyssomu, que comandava toda aquela atividade, não se dispôs a explicar muita coisa para a visitante, e Kadiya percebeu logo que a tecedura de registros era um daqueles mistérios típicos de guildas, preservados com o ciúme dos que trabalhavam neles.
Os teares eram pequenos e ficavam em cima de mesas, bem parecidos com os que Kadiya tinha visto em Trevista, com os quais produziram lenços e fitas. Eram três, e dois estavam em uso.Os novelos de fibras de junco e capim fiados, tingidos de várias cores, ficavam em grandes carretéis. No lugar de lançadeiras, os tecelões usavam longas agulhas, para guiar as linhas que formavam um desenho, mas os olhos de Kadiya não conseguiam entender qual era.
Perto do terceiro tear estava a tira que ela levara e, ao lado dela, um carretel maior, no qual tinham enrolado um material quase tão largo quanto o do antigo pergaminho.
Enquanto as duas mulheres oddlings mais jovens continuavam a trabalhar, a tecelã levou Kadiya para o tear central e começou a desenrolar, com um cuidado infinito, a tira do carrretel. Surgiu uma nuvem de ciscos de poeira, quando ela puxou suavemente os rolos emperrados, e Kadiya percebeu que aquele era um registro que devia existir a bastante tempo.
Embora as janelas estivessem bem fechadas para evitar a chuva intermitente, havia bastante luz gerada pelos lampiões pendurados nos caibros do teto, e Kadiya conseguiu ver as linhas de cores diferentes que se enroscavam e se separavam, virando círculos ou pontos aqui e ali.
A tecelã desenrolou apenas um pequeno pedaço. Então pegou a tira da cidade e segurou-o ao lado do pergaminho tecido, que havia soltado do carretel.
- Esse é o trabalho de Jassoa, que foi tecelã há cem anos. É um excelente trabalho, que resistiu muito bem ao passar do tempo. Aqui há um relato das tempestades que alagaram o lugar onde morávamos na época. Há também uma outra coisa... correu um boato entre os uisgos de que eles temiam um certo mal que vivia além de suas fronteiras, porque as montanhas tinham sofrido um certo tremor. O vento e a chuva tinham provocado um desabamento lá no alto...
- Isso poderia ser considerado um mal provocado? – interrompeu Kadiya, acrescentando rapidamente: - Perdão, tecelã, tive pressa demais e esqueci as boas maneiras.
A tecelã, que Kadiya tinha achado bem mais severa que a líder, na reunião que tiveram mais cedo, sorriu um pouco.
-Filha do Rei, a pressa de aprender nem sempre pode ser cerceada por modos formais. Quanto à sua pergunta, a resposta é não. O desabamento causado pela tempestade não pode Ser um ataque do mal. No entanto, se esse fenômeno abrisse uma passagem ou porta fechada, poderia sim ser considerado proposital.
-Uma passagem ou uma porta nas montanhas - repetiu Kadiya - para a cordilheira do norte... dos vispis? Minha irmã já lidou com eles e saiu-se bem. Eles se estendem além dos uisgus?
- Eu não sei - retrucou a tecelã. - Os uisgus, em todos os contatos que tiveram conosco, jamais mencionaram esses povos. Mas depois desse - ela voltou a prestar atenção na tira tecida - não vieram mais avisos de problemas.
- Existem outros registros sobre o que os uisgus temiam?
- Os uisgus podem ter os próprios registros. Quando os partilham conosco, é apenas para avisar de algum perigo que toda a região pantanosa terá de enfrentar. Eles enviaram apenas isso... - Ela estava enrolando o carretel dos registros tecidos.
- E aquelas montanhas além dos uisgus, o que se sabe sobre elas? - insistiu Kadiya.
Ela começava a perceber, cada vez mais, quão pouco sabia sobre o mundo do pântano. Logo ela, que se julgava em alta conta por causa de seus contatos com Jagun e de suas viagens para cá e para lá, que, naquele momento, pareciam tão limitadas. Suas aventuras em tempo de guerra a tinham levado bem além de qualquer lugar que conhecia ou imaginava existir, e estava achando que mesmo isso era pouco para afastar os limites da sua ignorância.
- Nós registramos o que conhecemos do pântano, da vida do nosso povo - respondeu a tecelã. - O que representam as montanhas para nós? Os uisgus são nossos parentes, mas só nos encontramos para tratar do comércio ou em momentos de grande perigo.
A oddling levou o carretel para seu lugar junto com os outros, nas fileiras ordenadas das prateleiras, alinhadas em três paredes da sala, e então ressoou no ar...
...Ou teria sido dentro dos seus ouvidos? Kadiya levou as mãos às orelhas sem pensar, para abafar aquele gemido de dor, e apesar disso o volume dos gritos não diminuiu. Só poderia ser um gemido mental, tão forte e agudo, que parecia que ela levara uma pancada na cabeça, provocando tontura e desequilíbrio.
Os oddlings na sala fizeram o mesmo gesto de tapar as orelhas, e suas feições se contorciam de dor. Aquilo não podia ser nenhum efeito da tempestade lá fora.
Kadiya endireitou-se quando o som acabou. Estava com a mão no punho da espada e se dirigia para a porta, com a tecelã bem atrás dela, e ouviu quando a oddling murmurou.
- Problemas estão chegando.
Já havia uma multidão no salão em frente, e não parava de chegar mais gente, vinda de cada núcleo familiar, amontoando-se na larga plataforma mais adiante, onde seus barcos ficavam aportados. Todos eles, observou Kadiya, estavam armados. Havia ali uma floresta de lanças e zarabatanas prontas para o manejo por machos e fêmeas, sem distinção. Só os pequenos ficavam lá atrás, e os pais, impacientes, davam-lhes tapas, ordenando que se escondessem.
Aquela casa não era a única a se agitar daquele jeito. Kadiya via a mesma aglomeração de moradores diante de todas as outras casas que formavam a aldeia. Alguns defensores entravam em seus esquifes leves e navegavam pelas águas turbulentas do lago, em direção à margem.
Ela viu Jagun juntando-se a um grupo que aguardava para embarcar e abriu caminho até ele.
- O que é? - perguntou ela, elevando a voz para ser ouvida na zoeira dos gritos dos outros, todos falando na língua do pântano.
Ele nem virou a cabeça. Ficou esperando uma chance para entrar em um dos barcos. Então ela o agarrou pelo braço, com medo de o amigo desaparecer, antes de conseguir a informação.
- Um está vindo. Há uma mensagem de morte! - ele disse, libertando-se com um puxão violento.
Kadiya sabia que era melhor não segui-lo no barco que ele escolheu. Ela era muito pesada e não era treinada para usar as armas dos nyssomus, por isso não seria de grande ajuda no momento.
A líder e seu conselho de mulheres já estavam bem na frente do espaço aberto, e nenhuma delas prestava atenção na chuva que mais uma vez caía, com rajadas fortes. Em cada barco lançado no lago, pelo menos um dos barqueiros ficava baldeando água para fora.
Kadiya surpreendeu-se ao ver que os barcos que partiam de todas as casas estavam se espalhando. Alguns iam para a boca do rio, outros seguiam para as margens, em toda a volta do lago. E quando o primeiro chegou à praia de lama, os tripulantes arrastaram a embarcação para terra firme e se embrenharam no mato. Sem contar os barcos que ainda se podia avistar, em pouco tempo as margens pareciam completamente sem vida.
Kadiya conhecia bem a habilidade dos oddlings de usar seu país alagado como defesa. Havia um número suficiente de guerreiros espalhados pelo pântano, para garantir que qualquer força, que tentasse chegar ao lago da aldeia, encontrasse muita dificuldade pelo caminho.
Skriteks? Kadiya não conseguia imaginar nenhum outro inimigo. Se algum pequeno bando dos homens de Voltrik estivesse perdido naquela imensidão, esses sobreviventes não teriam condição de atacar. Mas os skriteks eram mais conhecidos por suas emboscadas, e se embrenhavam sorrateiros por territórios ocupados a fim de destruir alguns oddlings. Jamais ouvira falar de qualquer grupo de ”afogados” atacando uma aldeia... a não ser sob o estímulo dos homens de Voltrik, durante as últimas semanas terríveis da guerra. Não era o jeito deles de lutar.
Kadiya aproximou-se da líder e de suas conselheiras. Não se ouviu mais aquele som que superava o ruído da tempestade. As rajadas de chuva, que varriam o lago, eram como cortinas que apagavam as margens de vez em quando. E Kadiya desconfiava disso. Os skriteks podiam muito bem ter aprendido novas táticas com os invasores, e algum líder estranho entre eles podia estar testando essas novas táticas neste momento.
A frota de barcos que se dirigia para o final do lago ficava quase invisível sob aquelas condições. Havia sempre sentinelas a postos, não só perto do lago, mas ao longo do riacho do outro lado, e também um portão de arbustos que normalmente ficava atravessado no rio para esconder a passagem.
Ela se esforçava para ver melhor os barcos, e até sua visão penetrante da qual se gabava estava prejudicada, quando aquele som se fez ouvir novamente. Esse não era tão violento ou talvez, pelo fato de tê-lo ouvido uma vez, estivesse mais capacitada para suportá-lo naquela hora.
As mulheres junto a ela se agitaram. Uma chegou perto da líder e entregou-lhe um búzio grande, que era usado como corneta. Levando-o à boca, a líder soprou uma série de pios, tão estridentes quanto as notas de um clarim, mas bem semelhantes à fala dos nyssomus.
Outro grito mental, e a líder respondeu. Da extremidade mais distante do lago dois barcos apareceram, no meio deles um terceiro, com duas figuras encolhidas, conforme Kadiya conseguiu distinguir à medida que chegavam mais perto.
Logo que pôde avistar as capas encharcadas e esfarrapadas deles, ela descobriu que eram uisgus. E o fato de terem ido até lá significava que a coisa era muito séria.
Não havia nenhuma disputa entre as duas raças de oddlings, mas eles também não se davam muito bem. Os uisgus eram muito mais selvagens do que os nyssomus, tímidos quando tinham de se misturar com outros que não pertenciam à sua raça ou casta. Antes da guerra, Kadiya vira poucos deles em Trevista, pois, mesmo viajando muito pelas terras alagadas, eles não se aproximavam de nenhum grupamento de humanos e usavam os nyssomus como intermediários.
Era surpreendente ver aqueles dois uisgus chegando assim. Quando o esquife escoltado dirigiu-se para a casa onde Kadiya estava, ela ficou ainda mais espantada com a natureza do grupo. O que estava na proa do barco minúsculo jogou o capuz para trás e levantou a cabeça. Era uma uisgu que, como todos da sua raça, tinha o corpo coberto de pêlos, exceto o rosto, e esse pêlo estava tão molhado e grudado ao corpo, que parecia que tinha mergulhado em uma tinta escura.
A pintura do rosto, que também era uma questão de costume para o povo dela, tinha praticamente desaparecido, lavado pela chuva, restando apenas algumas manchas desbotadas aqui e ali. O companheiro dela era um macho... bem jovem. Kadiya achou-o bem musculoso e que tinha treinamento de viajante, pelo modo como manejava o remo do barco.
Os esquifes da escolta chegaram um de cada lado. Quando embicaram na plataforma, Kadiya viu que Jagun comandava um. O barco uisgu não encostou para jogar as amarras, como se os dois a bordo não tivessem certeza de serem bem-vindos.
Mais uma vez a líder se manifestou. Só que não com a ajuda da corneta, e sim falando bem alto para ser ouvida através do tamborilar da chuva, embora Kadiya não entendesse as suas palavras.
E o barco uisgu embicou no atracadouro. O macho jogou uma corda que foi pega pelo nyssomu mais próximo. Puxaram o barco com cuidado para que a mulher uisgu pudesse alcançar a plataforma, onde um dos homens do clã rapidamente estendeu-lhe a mão.
Ela não ficou ereta, inclinava-se um pouco para frente, e o seu companheiro entregou-lhe logo um cajado, no qual ela se apoiou.
Um dos barqueiros que escoltara os uisgus fez um breve relato, e mais uma vez a líder soprou sua corneta. Então ela estendeu a mão para a uisgu, como se fossem irmãs de clã, e levou-a para o abrigo da casa. As conselheiras e Kadiya seguiram logo atrás.
O menino uisgu carregava sobre os ombros uma sacola de viagem bem grande e foi andando ao lado de Kadiya, olhando para ela espantado, com os olhos arregalados. Ele ergueu a mão e fez um gesto estranho que Kadiya tinha visto antes. Foi assim que as patas dos hassittis se moveram, quando se encontraram. Hassittis, uisgus... o que eles tinham em comum? Mais uma das perguntas que a perseguiam sempre.
Dessa vez foi a mulher uisgu que se sentou no banco do visitante para ser interrogada, e Kadiya ficou de pé atrás de um dos assentos em que se sentaram as interrogadoras. Ofereceram um lugar para ela descansar e uma refeição ligeira, mas a uisgu recusou demonstrando impaciência e pediu imediata audiência com a líder.
Além disso, insistiu para que chamassem também as líderes das outras cinco casas que formavam a aldeia, e só aceitou comida e bebida enquanto esperavam a chegada das outras.
O jovem que a acompanhava também tinha entrado na sala do conselho. Estava de cócoras logo atrás de Kadiya, com as mãos em cima da mochila que tinha posto no chão à sua frente, como se o conteúdo fosse tão precioso que precisasse guardá-lo com extrema cautela.
A mulher uisgu usou a fala telepática, talvez para ter certeza de que todos entenderiam.
- Eu sou Salin, da casa de Safor, do clã de Segin. Sou aquela que vê... - ela acrescentou à fala mental um gesto com a mão, que foi imitado na mesma hora pela líder da casa.
”Está chegando uma coisa tão tenebrosa, que não se vê igual há centenas de estações. Essa coisa mata por meio de um grande horror. Para ela não temos nome nem lembranças. Por isso vim até aqui, para pedir a vocês, tecelãs dos pensamentos passados, que procurem conhecer a natureza desse terror que se esgueira. Sabendo o que é, talvez meu povo possa tomar medidas para combatê-lo.”
- Essa coisa da qual fala, de que tipo é?
- Deste tipo. - Sem virar a cabeça a uisgu estalou os dedos. O jovem enfiou rapidamente a mão na mochila e tirou uma bacia rasa do mesmo metal azul-esverdeado que Kadiya tinha visto os hassittis usando.
Dentro desse pote, o menino derramou uma medida de líquido cristalino, tirado de uma bolsa de pele de peixe e depois, engatinhando, se aproximou para pôr a bacia aos pés da uisgu, de frente para a líder.
A líder, por sua vez, chegou um pouco à frente e inclinou-se, para poder ver o fundo da bacia. A uisgu fechou os olhos. Sua respiração ficou mais lenta e mais profunda, e o silêncio na sala era completo. Kadiya percebeu o que estava acontecendo. Havia visionários que tinha visto em Trevista, que ”liam a água” para quem pedisse. Alguns proclamavam que até podiam ver um pouco do futuro desse jeito; outros só conseguiam mostrar o que acontecia em outro lugar ao mesmo tempo.
Dentro da bacia a água começou a se mover como se alguém tivesse mexido, formando um redemoinho em miniatura. Enquanto rodopiava, foi escurecendo, deixando de ser transparente.
Quando já estava negra, como uma piscina pantanosa de turfa, a água parou de rodar. A uisgu pôs a mão sobre a bacia, bem acima da superfície da poça que agora era de água parada, e seus dedos longos tremiam e se contorciam. A cabeça da vidente estava bem para trás sobre os ombros encurvados, e ela mantinha os grandes olhos fechados.
Então deixou as mãos caírem inertes sobre os joelhos. A água da bacia estava se mexendo de novo. Dessa vez não rodopiava. Parecia uma faísca de luz piscando na superfície escura.
Kadiya chegou mais perto, até conseguir ver claramente a imagem que adquiria vida ali. Estavam vendo de cima, como se tivessem asas iguais ao quim, uma área de terra sólida, um espaço aberto, como havia nos pequenos outeiros dos pântanos. Em geral esses lugares abrigavam ruínas. Mas esse era todo marcado por sulcos, e havia sinais de ter sido uma plantação de pulin.
No entanto os restos dessa plantação, que ainda continuavam intactos, estavam sendo absorvidos por uma coisa amarelo-esverdeada toda riscada de vermelho-sangue. E a coisa parecia pulsar, alastrando-se pela terra fértil como as lesmas gigantes do Pântano Dourado.
Havia algo de nojento, totalmente estranho, naquela coisa. Kadiya engoliu em seco, sentindo o gosto amargo da bile que subia à sua boca. Aquilo não combinava com qualquer mundo saudável, destinado a abrigar seres humanos ou oddlings. Mas o pior não era o tapete ondulado que envenenava o solo. Era o corpo que aparecia deitado de um lado, todo encolhido como se procurasse amenizar uma tortura derradeira. A vítima era obviamente um uisgu, só que nos braços que abraçavam os joelhos dobrados apareciam manchas do mesmo amarelo-esverdeado da coisa no chão.
A imagem na bacia ficou maior. Estavam bem em cima daquele corpo e Kadiya viu que os braços e as pernas muito encolhidos não escondiam o fato de haver uma faca de caça enterrada no peito da vítima.
Então a água que continha aquele quadro criou vida, rodou vigorosamente e parou de novo. Estavam olhando para outra cena. Dessa vez era água passando bem veloz por uma outra ilhota no pântano. De novo, lá estava o abominável amarelo-esverdeado, só que em pedaços, como se tivesse respingado de algum recipiente gigantesco. E essas manchas iam crescendo diante dos olhos de todos.
Outra imagem, a de um esquife à deriva. Ao lado dele, de barriga para cima, flutuava um dos rimoriks, amigos que viviam com os uisgus, e que impulsionavam seus barcos a toda velocidade quando precisavam viajar. Por cima da barriga inchada havia uma mancha amarelo-esverdeada, e dentro do esquife um uisgu.
Não era uma cena parada. Enquanto observavam o uisgu no barco mover-se bem devagar, fazendo o esquife adernar perigosamente, o navegante exibiu sua perna esquerda, e do tornozelo aos quadris tinha aquela mancha que já era familiar. Ele pegou com extrema dificuldade um ralador de peixe pontiagudo. Então, em um último esforço, abriu a própria garganta com ele.
À água rodopiou, a imagem sumiu; Kadiya tinha certeza de que todos que observavam viram algo que realmente acontecera.
Não apareceu nenhuma cena nova. A mulher uisgu abriu os olhos e mudou o ângulo de sua cabeça em relação ao corpo, de forma que pudesse encarar diretamente as líderes dos clãs nyssomus.
- Então, está entre nós, mulheres sábias. Esse mal se alastra por nossa terra como um monstro a galope, deixando a morte fétida no seu rastro, à medida que vai avançando. Não há esperança alguma de vida para tudo que o veneno amarelo toca. Perdemos um clã inteiro, porque tentaram ajudar um caçador que chegou trôpego em casa, vítima da infecção. Agora todos que são vitimados por essa coisa estão se matando para não passá-la para os outros.
”Os registros das tecelãs são conhecidos por serem muitos e cobrirem centenas de estações. Os nossos não mencionam essa coisa, nem como lutar contra ela, mas ela está se espalhando, e esta terra está ameaçada. Então eu pergunto a vocês, que informação podem me dar com relação a isso”?
A tecelã levantou-se e foi espiar a bacia já adormecida, onde a escuridão sumia lentamente.
- Eu não conheço isso, e sou guardiã dos teares de registros há duas vezes sessenta estações, irmã em poder. Mas você tem razão, há muitos registros guardados aqui e podemos pesquisá-los todos.
Kadiya, com um pouco da antiga impetuosidade, chegou mais perto.
- Visão Penetrante - disse ela à uisgu -, de que direção vem essa coisa abominável?
A uisgu franziu um pouco a testa. Seus olhos examinaram Kadiya dos pés à cabeça, duas vezes. Nunca houvera laços entre o seu povo e os ruwendianos da Cidadela. Será que também não havia confiança?
Instintivamente Kadiya segurou a espada de forma que o punho com os olhos salientes ficasse bem à vista. Ao fazer isso ela o passou por cima da bacia. E...
Um daqueles olhos semicerrados se abriu... o dos oddlings. Parecia que olhava diretamente para a sábia uisgu.
O pequeno corpo ficou tenso. Uma de suas mãos afastou-se um pouco do joelho. Então ela olhou para Kadiya.
- Detentora do Poder - ela disse, fazendo o gesto parecido com o dos hassittis, como fizera o menino -, então você está caminhando pela terra mais uma vez. Que resposta tem para isso - Ela apontou para a bacia.
- Eu não sei. Mas diga-me, mulher sábia, esse rastro de morte espalhou-se a partir das montanhas do oeste?
A uisgu piscou os olhos.
- Sim, Detentora do Poder.
- E para onde está se dirigindo?
- Para as terras dos skriteks. A líder do clã de Jagun falou.
- Tecelã, devemos fazer uma pesquisa. Mas Kadiya queria perguntar outra coisa.
- O que existe na terra dos skriteks que pode estar atraindo esse mal?
A líder torceu os lábios, como se fosse cuspir.
- Quem sabe sobre os skriteks? Eles são uma mancha negra de maldade neste mundo. Aqueles inimigos que atacaram o seu povo, Filha do Rei, não tentaram alistá-los em seus exércitos? Não era a gente daquele feiticeiro que arrasou a terra? Já é de se esperar que algum novo poder maligno venha procurá-los.
Então ela falou para a mulher sábia:
- Irmã em Poder, sua jornada foi longa e deve estar muito cansada. Vá descansar enquanto os registros são pesquisados. Qualquer coisa que precisar, nós providenciaremos. Se essa praga se espalhar, mande seu povo para cá, para se proteger.
Como fizemos contra os skriteks, nossas lanças e nossos dardos estarão unidos para enfrentar isso.
A sala dos registros estava bem iluminada, com muitos lampiões. Naquela luz toda, tinham desocupado a mesa e levado vários bancos, de forma que além da tecelã e suas duas aprendizes, também a líder e Kadiya puderam se sentar. A uisgu Salin e sua escolta se alimentaram e agora dormiam, para desfazer os efeitos da árdua viagem.
Era a tecelã que, com mãos hábeis, desenrolava as tiras dos registros. Algumas descartava imediatamente e dava para as assistentes para serem enroladas de novo, mas três ficaram sobre a mesa. O quarto registro era o que Kadiya tinha levado da cidade dos Desaparecidos.
A tecelã desenhou com a ponta do dedo as linhas azul-esverdeadas, tocando de vez em quando em um ponto vermelho. Kadiya lutava contra a impaciência que crescia. Pensava naqueles outros registros guardados a esmo pelos hassittis. Será que seria necessário voltar à cidade e ver se conseguia descobrir mais alguma coisa lá? Sua falta de conhecimento era uma barreira frustrante. Não sabia ler aqueles símbolos arcaicos. E nem tampouco acreditava que qualquer um ali pudesse fazer melhor. Haramis?
Quando Haramis assumiu a capa de Arquimaga sobre seus ombros, também assumiu o posto de guardiã que Binah detinha há tanto tempo. Por isso, essa praga nos pântanos certamente seria um problema para ela.
Kadiya segurou o amuleto de âmbar pendurado no pescoço. Ele já tinha sido a chave da comunicação com a irmã. Será que serviria de novo?
Havia silêncio na sala, a não ser pelo arranhar das unhas da tecelã nas tiras de registro. Kadiya afastou-se um pouco da mesa, apertando o amuleto com força, fechando os olhos, se concentrando da melhor forma possível em uma imagem mental da irmã, do mesmo jeito que estava naquela sala escura.
- Haramis! - O chamado mental tinha um tom de comando. – Haramis...
Era como se um nevoeiro escondesse quem ela queria alcançar. Ela avançou por dentro dele, mas sentiu que ia de encontro a uma barreira.
- Haramis?
Nada. Era como se houvesse uma porta fechada e trancada entre as duas. Embora ela sentisse que a perda de comunicação não era obra de Haramis. Será que havia forças em ação naquele momento, maiores do que as que sua irmã controlava? Kadiya apertou o amuleto, como se quisesse arrancar dele a resposta que precisava.
- Ah... – O dedo parou de se mexer afinal.
Ela se virou para a assistente mais próxima.
- Traga o rolo de Lysta, aquele da quarta estação!
A menina nyssomu levantou-se e foi até a parede mais distante da sala. Passou os dedos em uma prateleira abarrotada de rolos, dos quais um ela levou para a mesa. O registro tinha sido costurado em um cilindro transparente de pele de peixe, e a tecelã rasgou-o com cuidado, desenrolando-o, milímetro a milímetro, com a mesma cautela. Duas pessoas que observavam espirraram, e Kadiya sentiu uma coceira no nariz, um cheiro que não conseguia identificar.
- Isso é informação de muito tempo atrás. -comentou a líder - Será que antes havia alguma indicação deste mal?
- Da praga, não - a tecelã respondeu, abrindo bem a mão a fim de manter o espesso rolo aberto, inclinando-se para a frente e espiando o que havia na superfície.
O que Kadiya podia ver não se parecia com os outros rolos tecidos à volta deles. Havia linhas na trama, sim, mas não eram regulares, eram espirais horizontais.
- Na quarta estação da tecedura de Lysta houve um ataque do território dos skriteks. Essa invasão da nossaterra foi tão séria que uisgus e nyssomus tiveram de se unir para enfrentar. Houve uma marcha de um clã aqui da aldeia que seguiu para este lugar - ela bateu no rolo com a ponta do dedo -, bem dentro do domínio dos skriteks. Capturaram skritek, visitante de sangue.
”Na guarda havia um detentor de poder que podia ler os pensamentos do visitante. E ele entendeu o seguinte: que no interior mais profundo da terra deles há um lugar de escuridão, talvez uma porta. Alguma coisa naquela época saíra de lá, pronta para se lançar sobre nós. Mas a força maligna não era bastante forte para durar. Ao contrário, foi enfraquecendo, até desaparecer. Disseram que a nobre Binah enviou uma mensagem mental muito poderosa, selando novamente esse lugar, que jamais devia ter sido aberto, e reduziu a nada o que saíra de lá.”
Kadiya não conseguia mais ficar calada.
- E agora essa praga está atravessando a terra, talvez para esse lugar reconhecido anteriormente?
A tecelã olhou para ela.
- Pode ser.
- Então houve uma praga assim também - insistiu Kadiya.
- Não há registro de ter havido.
Kadiya puxou a espada e segurou-a em cima da série de linhas no rolo. Um fio de luz tocou o tecido. Era o olho dos Desaparecidos que respondia dessa vez.
- Saa... - A tecelã deu um pulo para trás, saindo do raio de luz, e as outras também sibilaram.
A luz se apagou, e o olho fechou, quase por completo. Kadiya ergueu a espada.
- Não tenho poder como a Arquimaga - disse ela. - Eu queria falar com a minha irmã. O maior aprendizado é dela e talvez ela possa responder a muitas perguntas. Mas não consigo alcançá-la com minha mente destreinada. Se vocês têm alguém no seu meio que pode se comunicar, talvez possa ajudar.
- Temos apenas uma sob este teto... a que veio nos pedir ajuda, Salin dos uisgus. - A líder ficou de pé. - Quando ela estiver descansada, pode tentar. Nós já testemunhamos seu poder, não foi? Tecelã, mande copiar isso - ela indicou o rolo sobre a mesa. - Pois pode haver necessidade de um guia.
Os registros da aldeia tinham fornecido tudo que podiam. Que era pouquíssimo, pensou Kadiya. A mulher uisgu já havia provado que tinha poder. No entanto, se o poder dela já tinha sido usado na procura, talvez não pudesse fazer muito mais.
Kadiya voltou para os aposentos que lhe tinham cedido. Começou novamente a vistoriar sua mochila de viagem. Se ia explicar para Haramis da melhor forma possível, tinha de ver essa praga com os próprios olhos e descobrir para onde estava indo.
Aninhando a espada nos braços, tentou usá-la como tinha feito com o amuleto. Mas não obteve resultado algum. Nem mesmo uma visão enevoada.
Um tempo de espera cansativo passou antes da nova reunião. Salin sentou-se com sua bacia diante dela, e os outros se agruparam nas sombras, em uma sala em que havia apenas dois lampiões acesos.
A mulher uisgu parecia ainda mais fraca e cansada da viagem. Mas suas mãos estavam firmes ao preparar a bacia. Ela se dirigiu à Kadiya, quando o líquido começou a ficar escuro, sem tirar os olhos de dentro da bacia.
- Uma com poder, pense em quem deseja chamar. Kadiya também olhava fixo para o líquido opaco.
- Haramis!
Ela chamou mais uma vez, com toda a força que podia, segurando o amuleto com uma das mãos e a espada com a outra, ao mesmo tempo.
Uma névoa se formava na bacia, um redemoinho de nuvem. Ele rodava e rodava, mas não clareava para mostrar alguma imagem.
- Haramis!
Kadiya estendeu a mão para a frente. Outra vez bateu em uma parede invisível, com tanta força que se machucou, como se seu corpo tentasse passar através de uma pedra.
Salin mexeu a mão por cima da bacia, com os dedos curvados como se quisesse rasgar aquela cortina. De nada adiantou, e o nevoeiro continuou lá.
- Há alguma coisa contra nós - disse ela lentamente, como se lamentasse cada palavra. - O poder cresce, e não é de luz.
Kadiya deixou o amuleto cair de encontro ao peito, mas não soltou o cabo da espada.
- Mulher sábia, se não pode chegar até a minha irmã, será que pode ver a praga de novo? Ela continua seguindo na mesma direção?
Salin juntou as mãos sobre a bacia. O nevoeiro tinha sumido, mas o líquido não tinha clareado.
Parecia mais grosso e escuro, com sombras que adquiriam uma forma mais definida. Viram novamente uma parte do pântano, onde manchas amarelas brilhavam como musgo mortal. Encontraram uma outra coisa também: um ponto preto no meio daquela mancha irregular de corrupção. Só que não ficou mais claro, a ponto de poderem ver o que era.
Ficou ali apenas alguns segundos, depois surgiu uma chama, e a imagem desapareceu. Salin pulou para trás e gritou:
- Poder... É um poder que sabe que estamos espionando!
— Esse lugar eu conheço - uma das conselheiras quebrou o silêncio. - É a ilha da Torre Sal.
Todas as mulheres se agitaram. E a líder fez aquele barulho sibilante ”sssaaa” novamente. Ela olhou para a tecelã.
- Desenrole o guia do caminho para nós.
Liberaram uma parte da mesa e apareceu um quadrado de pergaminho, tão largo que teve de ser enrolado nas pontas para caber no espaço. Kadiya viu linhas onduladas e logo reconheceu o que era. Estava olhando para um mapa... a curva do rio Mutar era bem clara.
A líder alisou o mapa.
- Chame Jagun - ordenou ela. - Esse assunto é para o que busca ao longe.
Um macho do clã ser admitido em uma conferência daquele tipo era totalmente incomum. Algumas mulheres resmungaram discordando; a líder olhou para uma das menos importantes do conselho e ela obedeceu, mesmo contrariada.
Salin se adiantara para espiar o mapa. Estendeu a mão e traçou uma linha que ia de uma das pontas enroladas até o outro ponto.
- Mas já se espalhou muito!
Existia um mapa na parede do grande salão na Cidadela, e Kadiya raramente olhava para ele. Linhas desbotadas de tinta não tinham tanto significado quanto as terras vivas do pântano . Daquele mapa ela lembrava só um pouco, e quase nada do território ocidental dos uisgus.
Jagun chegou com a mensageira e saudou a líder respeitosamente.
- Caçador, você já esteve na Torre Sal. - Ela foi direto ao ponto, fazendo uma afirmação, não uma pergunta.
- Uma vez. Encontrei-me com Sinu, do clã Vai. Ele conhecia bem o lugar, já que ficava dentro das suas terras. E existiam algumas lendas sobre a Torre Sal que me fizeram querer vê-la.
A líder dirigiu-se a Salin.
- Mulher sábia, mostre-nos até onde essa praga se espalhou, desde o ponto em que surgiu.
A oddling mais velha inclinou-se para mais perto do mapa e traçou com o dedo um caminho do oeste, que ia praticamente em linha reta até o ponto onde ficava a torre.
- Aqui - disse ela.
Jagun observava a oddling atentamente, e quando ela retirou a mão ele pôs o dedo.
- Parece que a linha vai por aqui, mas a Torre Sal pode não ser o fim. Se continuar nessa direção, vai se embrenhar no território dos skriteks.
- Antes que a praga se espalhe - disse Kadiya -, temos de saber mais. Já que seu poder, mulher sábia, não esclarece muito bem o que estamos enfrentando, temos de ver isso com nossos olhos. Não se pode combater qualquer inimigo sem conhecer sua natureza e que tipo de armas ele tem. Essa Torre Sal é um lugar para onde podemos viajar.
Ela não deixou a lembrança do que Salin tinha mostrado assumir o primeiro plano em sua mente. Para evitar isso, concentrou-se em outra imagem, a da espada, com força total, quando atacava com poder de destruição. Talvez, se defrontasse com esse invasor, fosse o que, ou quem fosse, então conseguisse acabar com ele.
A líder esfregou o dedo na beirada do rolo do mapa.
- Os poderes, Filha do Rei, nem sempre podem ser avaliados, até ser tarde demais. Uma coisa nós sabemos... que não sabemos o suficiente. Você tem alguma proteção, que é só sua. Se resolver fazer isso, então faça.
Kadiya segurou firme a espada. Bom, tinha feito a oferta. Será que podia se arrepender de essa oferta ter sido aceita? De fato era bem melhor, na sua opinião, seguir essa morte sorrateira até a sua origem, em vez de ficar sentada diante de uma bacia e vê-la matar, sabendo apenas que era fatal.
Ela se virou para Jagun.
- Companheiro de luta, você marchará comigo?
- Visão Penetrante, essa aventura é nossa.
Mas Kadiya já estava considerando um outro problema.
- É nossa somente. - Ela olhou para a líder. - Qualquer força mais numerosa seria facilmente descoberta. Com Jagun para encontrar a trilha e sendo apenas nós dois, as chances de ver sem sermos vistos são maiores.
- Nós também, detentora do poder. - Salin ergueu a cabeça e encarou Kadiya por cima do mapa. - Essa aventura na verdade é minha, e estou comprometida por meio de um juramento.
Kadiya teria protestado na mesma hora, mas não conseguiu dizer nada. Havia uma segurança naquela mulher sábia, semelhante à da líder. Era ela que não estava habituada a ser contrariada.
Pelo menos a monção já estava quase no fim. Quando embarcaram novamente - dessa vez em um barco mais substancial do que o que tinha transportado Salin e o neto - não havia mais as rajadas de chuva para tornar a viagem um período de constante vigilância e baldeação. Os suprimentos eram os melhores que a aldeia podia providenciar. Além disso, com o tempo um pouco melhor, eles podiam sobreviver com o produto da terra... ou melhor, da água, pois o neto de Salin provou ser um mestre pescador. Kadiya, que há muito aprendera a se adaptar à trilha, comia suas porções desfiadas, cruas mesmo, sem reclamar.
Toda noite, quando encontravam um lugar para acampar, um pedacinho de chão acima do nível da água, Salin consultava sua bacia vidente. Ainda que os resultados tão claros que obtivera na aldeia não aparecessem mais. Surgiam sombras na superfície, mas nenhuma se definia, formando uma imagem real. Ela tentou duas vezes com Kadiya comunicar-se com Haramis, mas só se deparava com aquele nevoeiro desanimador. Jagun guiou-os afinal até um pedaço de terra que era mais do que uma ilhota. Havia ali os restos de uma ruína... alguns blocos empilhados, um em cima do outro. Ele conseguiu acertar com a lança um pelrik recém-saído de sua hibernação de tempestade. Perto de uma das pedras Smail encontrou um pouco de musgo parcialmente seco, o suficiente para os talos oleosos e as folhas diminutas pegarem fogo, e pelo menos chamuscar os pedaços da caça.
- A partir daqui - anunciou o caçador - temos de ir a pé. Há um caminho antigo por baixo da lama e do mato, que servirá de estrada para nós... embora tenhamos de testá-lo.
À luz da manhã, que não estava mais tão carregada de cinza em virtude da tempestade, Smail e ele puxaram o barco para cima, ancorando-o bem firme e empilhando mato ao redor. Kadiya dividiu os mantimentos em três pacotes, pois Salin precisava de toda a sua força para usar seu cajado e caminhar firmemente pela terra desigual.
Tomando cuidado com as leiras na terra, eles avançavam lentamente. Em alguns lugares a fúria das chuvas deslocara terra e plantas, e Kadiya via os blocos que realmente podiam ter sido parte de uma estrada. Dava graças por todos do grupo terem pernas fortes, pois conseguiram fazer um tempo melhor do que ela achava ser possível.
Chegaram a uma parte em que não havia muito mato e grandes pedaços da estrada de pedra eram visíveis.
- Cuidado! - O aviso mental de Jagun fez Kadiya ficar imediatamente alerta, e ela aprontou sua lança no mesmo momento. Uma zarabatana apareceu na mão de Smail.
Então ela foi atingida por uma dor mental tão intensa, que quase a derrubou. Ouviu Salin gemer baixinho e a mulher uisgu caiu de joelhos, levando as mãos à cabeça.
Dos arbustos, que cercavam o lado oposto da clareira, saiu uma criatura cambaleante, se arrastando com dificuldade. Era praticamente uma massa amarela arquejante, com membros muito finos, se agarrando desesperadamente em qualquer coisa a fim de conseguir avançar.
O vento soprava da criatura em direção a eles, e Kadiya engasgou com o fedor forte e pútrido que sentiu. Aquele berro insano de dor, que não acabava mais, ficava insuportável em sua mente.
- Não... não deixem que se aproxime! - gritou Salin, segurando Kadiya, que dera um passo à frente.
Foi Smail que empunhou a zarabatana, mirou com todo o cuidado e lançou um dardo, que penetrou na cabeça daquela massa monstruosa. A coisa estremeceu, tentou se segurar nas pedras e subitamente levantou-se, caindo para trás.
Kadiya ficou horrorizada, porque esse movimento rápido revelou quem era a criatura. A metade do rosto de um oddling aparecia na parte frontal da coisa repugnante.
- A praga - disse Smail.
O rosto do jovem demonstrava medo. Ele não se adiantou para recuperar o dardo. Salin puxou Kadiya de novo.
- Não chegue perto, vá por outro caminho! Ele plantou a praga mesmo se arrastando.
Kadiya não queria nada com o morto, mas fez um esforço para lembrar que tinha de aprender tudo que pudesse sobre aquela coisa do terror. Mudando a lança de mão, ela sacou a espada e levantou-a no ar, com os olhos virados para o corpo miserável e atormentado.
Livrou-se de Salin e deu dois passos adiante. Na luz cinzenta do céu nublado surgiu um raio de fogo. Os três olhos estavam completamente abertos. Deles saiu um fio retorcido de luz, atingindo em cheio o corpo.
O clarão de luz azulada foi tão forte que cegou Kadiya, por um momento. Depois seguiu-se uma explosão de ar fétido, o que restou foi apenas uma mancha no calçamento meio exposto.
Kadiya sentiu alguém segurando suas pernas e depois subindo até a sua cintura. Era Salin que se apoiava para ficar de pé.
- Use o poder, Filha do Rei... limpe nossa terra!
Kadiya perdeu o equilíbrio, com o peso da pequena uisgu sobre ela. Continuava segurando a espada e apontou-a para a frente, mas o punho inclinou-se em direção ao chão. Um peso forçava seu braço para baixo e por dentro sentia uma fraqueza como se a fúria daquele raio de fogo tivesse sugado quase toda a sua energia.
Jagun aproximou-se da mancha na pedra, parando a uma boa distância. Então virou a cabeça e olhou para um ponto, além do lugar onde o uisgu tinha aparecido, no meio dos arbustos.
Kadiya também viu o que ele via. A parede de mato estava murchando a olhos vistos, adquirindo um tom horrível de amarelo esbranquiçado. O uisgu certamente tinha transmitido aquela infecção terrível para tudo o que tocara.
E estava se espalhando, com uma rapidez apavorante. Ela achou que logo contaminaria toda a vegetação molhada, talvez tudo em volta deles.
Com grande esforço, Kadiya ergueu a espada uma segunda vez. Tentou mais uma vez dar-lhe vida, apontando-a para as plantas que murchavam, para o verde que apodrecia.
E a luz apareceu novamente. Agora ela sentira o puxão, como se toda a sua força, menos a de vontade, estivesse servindo de alimento para a coisa.
O fogo gerou não uma única explosão, mas vários raios menores, ao longo dos galhos e dos caules das trepadeiras, abrindo um caminho bem na frente do lugar onde o grupo estava.
Kadiya esforçou-se para continuar de pé, para manter firme a espada. Mas não conseguiu fazer com que ela continuasse o trabalho. A luz empalideceu e apagou. Os três olhos se fecharam. Ela caiu de joelhos repentinamente, fraca demais para ficar em pé. Jagun foi logo para o seu lado.
-Visão Penetrante!
- Ela...eu não posso mais... - ela balbuciou.
Kadiya arfava como se tivesse corrido uma longa distância, e seus braços estavam tão fracos que pendiam inertes ao lado do corpo, a espada sem ponta batendo no calçamento de pedra.
Sentiu mais alguém do seu lado, um braço em seus ombros.
- Smail! A bebida da Visão Penetrante!
Essa ordem impaciente formou-se na mente de Kadiya. Era Salin que a segurava, melhor do que ela, a mulher sábia. O jovem uisgu tinha tirado da mochila um frasco com tampa. Quando foi aberto, um cheiro guerreou com o fedor sufocante que ainda pairava no ar, um perfume limpo de alguma erva.
Kadiya bebeu.
Ela ainda estava cansada demais para se mexer, mas um calor espalhou-se por dentro do seu corpo, e a respiração ficou mais tranqüila. Jagun ficou ao seu lado o tempo todo, com ar de preocupação. Finalmente ele balançou a cabeça, talvez para ela, talvez para Salin.
Pendurando sua mochila nas costas, ele se encaminhou para o túnel que a espada tinha aberto. Com cuidado chegou a um ponto de onde podia espiar de cima.
- Continua morrendo mais à frente - ele informou. Mesmo assim, não acho sensato ir por essa estrada, apesar de aberta.
Kadiya ficou imaginando se seria capaz de andar por qualquer estrada. Estava mais que assustada com essa perda de força. Sabia muito bem que o uso do poder tirava energia. Podia ter nas mãos a resposta para limpar a terra, só que seu corpo não podia arcar com essa missão.
- Filha do rei, você pode matar isso! - Smail dirigiu-se a ela pela primeira vez. - Você pode libertar nossa terra...
Lentamente Kadiya balançou a cabeça.
- Não tenho força suficiente. Não sou detentora de um grande poder.
Ela pegou a espada outra vez. Sim, os olhos estavam bem fechados. Talvez não fosse apenas o fato de estar tão exausta. Podia ser que o que existia dentro do seu talismã também estivesse esgotado no momento. Ou será que tinha acabado mesmo, sem possibilidade de recuperação?
Ela enfiou a espada na bainha e apoiou-se na lança, fazendo um esforço para se levantar. Smail e Salin ajudaram, e ela ficou cambaleando entre os dois, fraca como se tivesse estado muito doente.
A fraqueza gerou uma raiva dentro dela. Não era nenhuma bordadeira para ficar tão arrasada! O pântano exigia muita resistência de quem caminhava por ele... e ela ia caminhar mesmo! Era o que queria.
Kadiya passou a língua nos lábios e girou os olhos rapidamente pela mancha na pedra, pelo mato que se desfazia. Ela chamou Jagun.
- Há um caminho mais adiante, caçador
Ele apontou para o lado direito dos arbustos que o poder tinha queimado. Ela não viu nenhum sinal das manchas amarelas, das plantas murchando.
- Por ali, Visão Penetrante, mas devagar. Kadiya conseguiu reunir forças para sorrir.
- Bom, tem de ser devagar, camarada. Agora sou eu que tenho de dar um passo de cada vez.
Jagun conduziu o grupo para bem longe da possibilidade de contágio, por isso acharam a caminhada mais difícil. O antigo trabalho de pedra não sustentava mais a fina camada de terra e vegetação. Jagun e Smail se revezavam, experimentando o solo com as pontas das lanças. Kadiya surpreendeu-se ao notar que a ilha, na qual tinham ido parar, era bem grande, talvez até maior do que a que suportava Trevista ao sul.
Sua força voltou aos poucos, e depois do segundo dia ela já conseguia um ritmo melhor na caminhada. Não voltou a usar a espada, mas olhava para ela de vez em quando, e via que os olhos continuavam fechados. Com o tempo ela começou a ficar ansiosa, imaginando se realmente tinha usado todo o poder naqueles raios.
Na tarde do quarto dia deram na água de novo. As tempestades tinham castigado muito o lugar, mas a enchente já havia baixado. Mesmo assim, a extensão de águas turvas diante deles era escura e espessa, como se a lama do fundo do rio tivesse subido para a superfície. Do outro lado havia um matagal tão alto quanto uma árvore polder, era uma massa sombria, envolta por trepadeiras entrelaçadas. Elas estavam a pouca distância, por isso podiam ver que espinhos enormes, tão longos quanto os dardos que Jagun carregava em uma caixa a tiracolo, cresciam nos galhos daquela vegetação. Não havia dúvida de onde começava o Inferno Espinhoso, a fortaleza dos skriteks.
Kadiya já passara por lá duas vezes, somente pelo rio, onde os espinhos ameaçadores que emparedavam as margens não tinham de ser atravessados. Ela começava a duvidar que alguém pudesse mesmo passar por ali.
Tiraram de suas mochilas sapatas de folhas para andar na água e prenderam bem as tiras de couro nas botas. Jagun ajustou uma bandoleira em sua zarabatana, para poder pegá-la mais rápido. Smail seguiu o exemplo do caçador, depois de apertar bem as sapatas de água da mulher sábia.
Eles seguiram adiante, e os artefatos para caminhar na água funcionaram bem. Kadiya continuou a analisar a escuridão da água bem de perto. Sabia que havia seres sorrateiros ali. Só torcia para não serem muito grandes, capazes de desafiar os viajantes.
Chegando ao escudo de espinhos da terra, Kadiya não viu nenhuma abertura, mas sabia que os skriteks atravessavam essa fortaleza com facilidade. Só que os afogados viviam praticamente o tempo todo na água, gostavam de mergulhar e de atacar a presa sem serem vistos. Será que utilizavam alguma passagem submersa para entrar e sair daquele esconderijo?
Se Jagun também estava intrigado com aquela barreira, ele não demonstrava. Kadiya fez um esforço, tentou se lembrar de todas as histórias de caçadores que aprendera com ele a fim de descobrir uma maneira de avançar. Não esperava vêlo enfiar a lança diretamente no arbusto, que parecia impenetrável, depois a cabeça e então girar os ombros com tanta força, que seus músculos ficaram todos visíveis nos lugares em que sua camisa tinha rasgado.
Smail adiantou-se, com suas botas de água, e apontou a lança para um lugar perto de onde Jagun tinha enfiado a dele, e também se inclinou e começou a se contorcer.
O arbusto em que os dois tentavam entrar, que era quase tão alto quanto as árvores do parque da cidade, estremeceu. Kadiya viu uma cobra vermelha brilhante cair de um galho mais alto, abrir asas como barbatanas e planar para outro galho mais distante. Uma nuvem de insetos tão compacta, que quase impedia a visão de Kadiya, saiu rodopiando no ar.
Jagun e o jovem uisgu fizeram mais força ainda.
Kadiya não teria acreditado que o esforço dos dois produziria algum efeito, se não visse o arbusto entortar lentamente para a direita. No lugar em que ele estava antes apareceu uma abertura escura, um caminho imperfeito de terra negra, exalando um odor fétido.
Segurando o arbusto de lado, Jagun deu uma ordem.
- Entrem, Visão Penetrante, Salin.
Kadiya obedeceu, sem confiar por completo no conhecimento do caçador, achando que podia acabar empalada naqueles espinhos, longos e resistentes.
Havia um túnel que atravessava a barreira naquele ponto, mas tinha sido feito para caminhantes do tamanho dos oddlings, e Kadiya teve de se abaixar para os espinhos e os cipós não arrancarem seu elmo. Ela espiava os cipós receosa, lembrando muito bem da briga que teve com um na cidade dos Desaparecidos.
Além dos odores normais do pântano, Kadiya sentia de vez em quando uma lufada do cheiro dos skriteks. Nada ainda do bafo pútrido da praga.
Encolheu-se de um lado, quando Jagun juntou-se a ela, pronto para assumir a liderança.
- Isso é uma trilha de skriteks? - perguntou Kadiya, sussurrando.
- É um caminho... o único pelo qual podemos entrar... ele retrucou. - Não é longo e vai nos levar até a Torre Sal.
Puseram Salin no meio, com Jagun e Kadiya na frente, e Smail cuidando da retaguarda. Kadiya sentia o calor do amuleto na pele. Olhou para ele e viu a luz dourada que emitia através das escamas quase translúcidas de sua cota de malha. Mas nem precisava desse aviso.
Não havia água por perto para ocultar uma emboscada de skriteks, mas Kadiya não podia garantir que a parede coberta de espinhos afiados não se abriria de repente, revelando um bando pronto para a guerra.
Jagun avançava como se soubesse exatamente o que estava fazendo, e Kadiya confiava bastante na experiência dele em trilhas e tinha esperança de poder atravessar aquele túnel assustador, sem sofrer nenhum ataque. Era verdade que o cheiro dos skriteks não estava tão forte, indicando que não tinham passado ali recentemente.
Ela ouviu um forte estalo, logo atrás de onde estava, e virou-se preparada para enfrentar um inimigo, mas viu que Salin tinha quebrado um espinho de um galho próximo. Aquele não era tão negro quanto os que tinham visto primeiro, mas meio cinzento, e a mulher sábia estendeu a mão para pegar outro. Ela deu um puxão forte e conseguiu arrancá-lo do tronco.
- O quê...? - ia perguntar Kadiya.
Salin já pegava um terceiro espinho.
- Dardos - explicou a mulher uisgu. - Esses dardos vão nos servir muito bem.
Smail soltou um grunhido, concordando, mas não largou suas armas para ajudar na colheita.
À medida que iam avançando, além de aumentar sua coleção de espinhos, Salin também ia pegando, aqui e ali, uma folha de alguma planta ou o pedaço de uma flor com aparência maligna, que Kadiya achou parecida com a cabeça de uma víbora vibon.
Era um lugar úmido e abafado. O suor brotava embaixo da borda do elmo de Kadiya e escorria pelo rosto, chegando a pingar no queixo. Suas mãos escorregavam pela lança, e ela respirava com dificuldade. Não havia como medir o tempo ou a distância naquele lugar, e Jagun continuava decidido, levado por uma grande força de vontade.
Ele só parou ao darem de cara com uma parede de vegetação, que parecia impenetrável. Ele tirou a mochila do ombro, e um movimento atrás de Kadiya indicava que Smail fazia o mesmo. O jovem uisgu ficou ao lado de Jagun outra vez, mas muito próximos um do outro, por causa dos muros que fechavam o caminho.
O nyssomu e o uisgu enfiaram suas lanças bem fundo na massa de espinhos e fizeram força juntos.
Nada aconteceu, só o chicotear dos galhos com espinhos, como se a vegetação tivesse o poder de raciocinar e repelir. Kadiya largou sua mochila. A fenda no muro vivo deixava pouco espaço para manobras, e ela não conseguia ficar completamente ereta, mesmo assim enfiou sua lança no meio das lanças dos oddlings, empurrando a ponta o mais fundo que podia. Quando sentiu que estava presa, ela também fez força, em um trabalho conjunto com os dois.
Finalmente ela sentiu um movimento. Dessa vez a vegetação emaranhada não deslizava para o lado, mas chegava para trás, como se empurrassem uma rolha para fora da garrafa. Kadiya sentia e via a tensão dos oddlings e se preparou para um último esforço.
A coisa soltou tão bruscamente que os três tropeçaram e quase caíram. A luz penetrou na escuridão do túnel; e com ela chegou outra coisa... o odor pútrido da praga.
Jagun e Smail foram em frente com todo o cuidado. Mais adiante havia uma clareira. Mas eles ficaram de fora. Pedras que cobriam o solo formavam uma barreira para as raízes dos espinheiros. Era maior do que eles imaginaram inicialmente, tiveram de analisar com atenção, para encontrar um caminho pelo meio dos blocos de pedra. Com certeza devia ter havido alguma construção ali. Em cima de um bloco, bem perto de Jagun, havia uma cobra lenth brilhante, com listras vermelhas e pretas, toda enrolada. Kadiya já estava pronta para avisá-lo, mas o caçador virou rapidamente e desferiu um golpe muito forte, com a ponta da lança, que deixou a víbora meio esmagada, mas ainda se mexendo.
Kadiya sabia que esses rastejantes perigosos ficavam bem escondidos naquele lugar. Ela começou a examinar o chão coberto de pedras, à procura de rastros de um outro tipo de perigo mortal... as manchas leprosas amarelas daquele mal que ainda não tinha nome, exceto a praga.
E afinal descobriu uma, sob a sombra do que tinha sido uma torre outrora. Só restava um pedaço, o primeiro andar e a metade do segundo, do que devia ter sido uma estrutura impressionante.
Smail abaixou-se perto da pedra, onde a cobra tinha morrido, e cortou-lhe fora a cabeça, que enfiou com a ponta de uma faca em uma pequena bolsa, amarrando os cordões bem apertados. Veneno de lenth na ponta de um dardo era uma arma tremendamente mortal.
Sacudindo a lança à sua frente, Kadiya foi avançando cuidadosamente, de pedra em pedra, na direção da torre. Bem longe da parede de espinhos por onde tinham passado, ela podia ver melhor a mancha na base da torre. Não era uma mancha grande; aparentemente a ausência de vegetação tinha evitado que se espalhasse. Ao se virar um pouco ela rastreou a praga, até a parede de onde tinha saído, e viu uma segunda linha de manchas gosmentas e putrescentes que continuavam a partir da base da torre, iguais a pegadas.
Ela achou que a ruína devia marcar um lugar de parada, talvez até um acampamento, se é que a coisa que caçavam fosse dada a acampar. Em alguns lugares, a vegetação infectada tinha formado poças de líquido podre. Nas bordas de algumas ela viu o que parecia ser esqueletos de pequenas criaturas, meio fosforescentes na luz fraca do dia cinzento.
Jagun juntara-se a ela, empoleirado em uma das pedras.
- Já veio e já se foi.
Ele entendia aqueles rastros da mesma forma que Kadiya.
Ela se lembrou do ponto preto que tinha aparecido na bacia vidente. Esta certamente era a localização daquela cena. Mas para onde tinha ido? A trilha que via atravessava para o lado oposto da clareira que cercava as ruínas da torre.
Kadiya alisou a espada. O talismã tinha destruído a praga, promovendo a morte misericordiosa do pobre oddling, que a mancha maligna atacara. Mas se precisavam seguir aquele rastro nocivo entre os espinhos, será que o poder já se renovara suficientemente para ela poder traçar um caminho livre para eles? Jagun conhecia o caminho até a torre, por isso tinham chegado tão longe sem ter de enfrentar a praga novamente. Só que naquele momento estavam vendo que a torre não era o objetivo final do que tinham de combater.
Enquanto ficava ali pensando, o dia foi escurecendo.
Tinham de encontrar algum tipo de abrigo, que não podia ser a torre infectada, para descansar durante a noite. Aquele labirinto de pedras cheio de víboras era o pior lugar para acampar que Kadiya tinha visto.
Mas eles não ousavam ir mais adiante. Todos estavam cansados com a marcha daquele dia. Salin tinha se deitado em uma pedra, toda encolhida, esfregando as pernas e os tornozelos. Assim caída, a mulher sábia parecia um aviso de que o fim de suas forças devia estar próximo.
- Um acampamento - arriscou Kadiya, desviando o olhar da torre agourenta para além das ruínas.
A chuva havia parado, mas o ar continuava abafado e úmido. Quem sabe podiam ficar ao ar livre sem temer a vinda de outra tempestade.
Jagun girava em cima do seu poleiro, atento ao território adiante e à direita de onde estavam. Ele apontou com a lança.
Três paredes de uma construção tinham se inclinado para dentro e formavam um espaço relativamente coberto. O caçador desceu de seu posto de observação e andou cauteloso até o lugar. Chegou à abertura e abaixou-se um pouco para examinar o que havia lá dentro. Ficava bem longe da trilha da praga, havia quase que só pedras nuas entre o abrigo e a estrada fétida, por isso estava livre do perigo da pestilência.
Quando ele acenou, Kadiya (que tinha posto de novo no ombro a mochila que levara para fora do túnel) estendeu a mão para Salin. A mulher enfiou o cajado entre duas pedras e apoiou-se nele para ficar de pé.
Kadiya decidiu, achando que não tinham feito má escolha, depois que Jagun e Smail limparam um pouco da terra que se acumulara em volta das três paredes improvisadas, e se certificaram de que não havia nenhum orifício de víbora por ali. O chão de pedra era frio. Também não podiam fazer uma fogueira. Mas era melhor do que ficar ao relento.
As provisões que levavam eram alimentos de viagem, muito secos, sendo preciso beber alguns goles da água, que transportavam, para torná-los mastigáveis. Salin remexeu na bolsa que pendia do seu cinturão e pegou umas folhas secas retorcidas, que dividiu com todos. A aparência áspera dessas folhas era enganosa. Kadiya achou-as refrescantes quando misturadas com a saliva. Na verdade eram revigorantes como as bebidas restauradoras existentes na Cidadela.
A mulher sábia entregou o embrulho cheio de espinhos para o neto, e ele começara a trabalhar com a pedra lisa que carregava no seu saco de dardos, limando os pedaços mais duros até ficarem retos e passando-os para Jagun quando prontos. O caçador apontava delicadamente as pontas com uma faca, mas o crepúsculo já chegava ao fim, e ele devia estar usando apenas o tato, não mais a visão.
Kadiya sentou de pernas cruzadas, alisando a espada com as mãos, para cima e para baixo. Da última vez que observou os olhos à luz do dia, eles estavam fechados. Mas a menos que estivesse se iludindo, esperançosa, parecia haver um calor emanando do punho, que conseguia sentir quando encostava um dedo perto dos olhos fechados. O amuleto continuava quente também, mas sua luz era limitada pela cota de malha que usava.
- Mulher sábia - disse ela -, você recebeu alguma mensagem do poder? Para onde vai essa coisa maligna? Você pode visualizar e nos dizer?
Não dava para ver o rosto da mulher uisgu, mas Kadiya percebeu mentalmente que a outra estava preocupada.
- Uma que Tem Poder, estamos agora em uma terra governada por outros. Os skriteks sempre foram servos do mal. E o mal tem seus próprios ouvidos e olhos... sim, e outros sentidos além desses. Se eu invocar o meu poder, ele pode vir a ser um chamado para algo que não conseguiremos enfrentar. Mas tem um outro jeito...
Ela hesitou um pouco, não muito certa da sugestão que ia dar.
Kadiya sentiu alguma coisa se movendo ao seu lado e depois ouviu um som fraco de metal encostando na pedra.
- Filha do Rei, traga aquele amuleto que você usa.
Ela disse isso de repente, e foi quase uma ordem. Kadiya obedeceu, entregando o pedaço de âmbar na corrente.
Dedos apertaram seu pulso e puxaram sua mão para a frente. Ao mesmo tempo a luz da gota quente de trílio aumentou, e ela conseguiu ver o amuleto pendurado sobre a bacia vazia de Salin. O lado da bacia refletia a luz e parecia um pequeno lampião no meio deles.
- Poder, Filha do Rei - ordenou Salin.. - Dê-me seu poder. Invoque-o!
Kadiya fez o melhor que pôde, concentrada no amuleto, com a imagem de Salin em sua mente.
A luz do amuleto começou a rodopiar, igual ao líquido nas outras visualizações. E como acontecia quando empunhava a espada para matar, ela sentiu suas forças se esvaindo pelo braço, passando dos seus dedos para o amuleto.
O amuleto começou a se mover, formando um círculo no meio do redemoinho de luz. Abaixo do centro deste círculo formou-se uma imagem.
Não devia ser maior do que o comprimento de um dedo, mas durante alguns momentos de susto essa imagem ficou tão clara para Kadiya, que parecia que ela mesma estava dentro da bacia, fazendo parte do que via.
Os skriteks, só que havia um outro com eles. Não era nenhum refugiado do exército destruído de Voltrik. Era mais uma caricatura de outra coisa... um dos guardiões da cidade perdida! Eram as mesmas feições, retorcidas e pálidas, e o corpo também, apesar de encurvado e murcho, como uma luva vazia. Certamente estava vendo um dos Desaparecidos, mas essa criatura era a personificação da morte, da podridão, do desespero. Daquele corpo enrugado partia o mesmo brilho amarelo-esverdeado que as vítimas da praga emanavam.
A coisa estava marchando. Os skriteks andavam ao seu lado, mas não havia nenhum atrás, e no chão a coisa deixava manchas de putrescência que deviam sair de seus pés. Essas marcas fétidas e gosmentas adquiriam uma vida própria monstruosa, algumas se unindo rapidamente e fluindo para longe, em busca de alimento. Havia uma rigidez naquele andar. Como Salin, a criatura usava um cajado para se manter de pé. Era assim que os mortos deviam caminhar para fora de seus túmulos, movidos por algum propósito que não podia ser negado.
Viram o caminhante e sua escolta pela última vez. Então a luz piscou na bacia, e a mão de Kadiya caiu inerte ao seu lado.
— Para onde esta coisa está indo? - perguntou Kadiya em voz alta, para ela mesma e para os outros também.
- Estamos apenas seguindo uma trilha - retrucou Jagun -, a trilha de morte que ela deixa para trás.
- Um Desaparecido. - A pergunta se formou na mente de Kadiya. - Como pode um Desaparecido ficar assim?
- Existiam os que teciam as trevas, embora sua raça fosse da luz - respondeu Jagun. - Dessa trama foi criado o Julgamento que modificou o mundo. Essa coisa é daquele tempo, foi solta e se move novamente.
Kadiya estremeceu e levou a mão mais uma vez ao punho da espada. Estava quente? Virou a espada para ver. A luz tinha sumido de seu amuleto e sua mão estava muito pesada. Teve dificuldade em fazê-la obedecer à sua vontade. Na escuridão que se formou, quando a luz do amuleto se apagou, ela passou um dedo com todo o cuidado nas formas proeminentes dos três olhos. Estavam completamente fechados.
- Dizem que a porta proibida fica neste lugar de amargura e morte - Salin comentou mentalmente. - Só pode ser isso o que essa coisa procura.
- Para quê? - perguntou Kadiya depressa.
Eles estavam tão apertados naquele abrigo exíguo, que Kadiya pôde sentir a mulher sábia se mexer, o braço pequeno encostando no dela, mais longo e coberto pela cota de malha.
- Mulher do Poder, essa coisa que deixa um rastro tão mortal parece ter uma doença fatal... no entanto procura algum tipo de ajuda. Pode existir um centro do mal capaz de recuperar suas forças. As histórias mais antigas contam que quando os Desaparecidos viram a destruição que suas guerras internas causavam sobre a terra, resolveram partir para outro lugar, arrependidos. Havia uma porta para esse lugar e foi por ela que eles passaram.
- Mas se os de boa vontade também foram - retrucou Kadiya -, por que algo que é a personificação do mal procura agora seguir o mesmo caminho?
- Talvez para se curar - disse a mulher sábia. - Não podemos julgar os pensamentos de um Desaparecido. Somos parte de sua obra, mas não cabe a nós adivinhar o que os move ou que poderes eles detêm.
Kadiya passou a mão na espada novamente. Essa... essa coisa saída de lugar nenhum envenena tudo que toca. Mesmo se deixasse a terra por meio de alguma bruxaria, a praga que plantou ia se espalhar, e apesar de ela ter destruído uma pequena parte dela, não tinha poder para queimar tudo que tinha sido criado.
Se pudesse alcançar essa morte ambulante, antes de ela adquirir alguma força ou renovação, talvez tivesse alguma chance de destruir a podridão pela raiz. Essa não seria uma batalha que conhecia, como a guerra que travara contra Voltrik ou até contra os skriteks. Aqueles inimigos eram de carne e osso e podiam ser mortos. Mesmo morrendo, esse caminhante poderia vencer, espalhando sua infecção. Mas não havia outra resposta. Tinha de segui-lo da melhor forma que pudesse e tentar acabar com ele, como fizera com o general de Voltrik.
Seu elmo raspou em uma das pedras que os cobria, quando levantou a cabeça. Naquele momento não podia convocar exército algum. Nem podia se comunicar com as irmãs... com Haramis, que devia ser protetora e guardiã de Ruwenda. Aquela missão era sua. Devia ser a razão para a viagem precipitada saindo da Cidadela. Não tinha sido atraída para entregar a espada. Não, era para empunhá-la novamente, contra um inimigo bem mais sinistro do que qualquer invasor da sua espécie.
- Jagun, Salin, Smail - disse ela, com autoridade. - Eu preciso fazer uma coisa, tentar evitar que o mal atinja seu objetivo. Mas não peço a nenhum de vocês para vir comigo.
- Visão Penetrante, esse é um mal antigo, e somos um povo que tem ligação com o dia em que ele foi formado. Não diga que seguirá esse rastro sozinha!
Ele falou em um tom ríspido, uma rispidez que ela jamais ouvira de Jagun, a não ser em duas ocasiões no passado, quando ele achou que ela havia se arriscado desnecessariamente.
- Filha do Rei - disse Salin -, eu resolvi seguir essa trilha antes mesmo de conhecê-la. Vou segui-la até o fim. Posso não ter um poder como o seu, mas dedicarei minha vida a usar tudo que conseguir invocar contra essa coisa abominável. Smail é do meu sangue e está preso ao juramento que fez diante dos anciãos ao viajar comigo. Não vamos dar para trás agora.
Kadiya suspirou. Jagun estava ligado a ela por anos de lembranças comuns e por um respeito mútuo pelos talentos um do outro. Tinha realmente se transformado em companheiro de luta, e Kadiya ficaria perdida sem ele. Os dois uisgus não eram tão íntimos assim, mas era óbvio que tinham um senso próprio do dever.
- Então seguimos - disse ela, meio desanimada.
Ela teve um sono intranqüilo. De manhã Kadiya tinha certeza de que havia sonhado. A sensação ao despertar era de que os sonhos eram maus, mas não conseguia se lembrar de nada.
Naquela manhã não havia chuva, e além disso o sol brilhava um pouco atrás das nuvens, quando deixaram as pedras perto da Torre Sal. Os sinais no caminho que iam seguir eram bem claros, e tinham de avançar em uma lentidão exasperante, para evitar os pontos de morte que se espalhavam, o cheiro pútrido sempre pairando sobre eles.
Talvez graças a um calçamento feito na estrada, para evitar o crescimento do mato, não havia vegetação fechada, o caminho se abria diante deles. Seguiam atentos a qualquer sinal de movimento que pudesse indicar a presença de uma víbora. Viram uma, mas ela deve ter tocado em algum lugar com a praga, pois estava morta, com a metade do corpo apodrecida.
A abertura estreitou de novo e reduziu-se a uma trilha, com restos de calçamento, tornando mais fácil desviar da podridão, que só podia atacar algumas trepadeiras e alguns cogumelos. Então viram logo à frente um poste plantado bem firme entre dois blocos de pedra.
Em cima dele havia um crânio, e não era muito antigo, pois restos de pele rasgada ainda pendiam do osso. Na pedra embaixo havia uma grande mancha de sangue, atraindo insetos e seres voadores.
Marcas de skriteks. Kadiya tinha visto aquilo antes. Dessa forma os sáurios demarcavam fronteiras ou deixavam sinais do seu rastro. Uma linha de pedras atrás desse poste marcava um muro de alguma construção há muito destruída. O grupo passou por cima do muro e encontrou água novamente, uma língua estreita escoando de um lago grande. Na beira do lago havia uma massa fétida do que tinha sido juncos de água, arrasados pelo toque da praga... um sinal claro de que a presa deles tinha seguido pela água, naquele ponto.
Se havia transporte à espera do outro grupo, para eles não havia nada. Jagun pulou para a beira da água, bem longe dos juncos contaminados. Usou a outra ponta da lança para cutucar a camada de plantas aquáticas. Com estocadas vigorosas, ele tirou do esconderijo um tipo de embarcação que Kadiya nunca tinha visto antes.
Diferente dos bem-acabados esquifes construídos pelos oddlings, aquele era uma plataforma irregular feita de galhos grossos, tão fortemente entrelaçados quanto os arbustos de espinhos. Na verdade, quando o caçador o descobriu por inteiro, Kadiya percebeu que era feito exatamente com aqueles galhos, e os espinhos entremeados ajudavam a mantê-los unidos. Mas os que apontavam para cima ou para os lados tinham sido cortados e uma camada de junco misturado com lama posta por cima.
A jangada desajeitada não parecia capaz de agüentar nenhuma viagem, e Kadiya ficou imaginando se deviam se arriscar e confiar nela. Mas depois de tirá-la do esconderijo, Jagun pulou em cima dela destemido, equilibrando-se no balanço repentino, de um lado para o outro, depois mergulhou sua lança no fundo lodoso para ancorá-la, enquanto fazia um gesto com a cabeça, chamando os outros.
Não era uma embarcação confortável nem segura. Tiveram de se arrumar, junto com as mochilas, bem no meio, mantendo o equilíbrio, antes de Jagun e Smail poderem usar as varas que estavam meio escondidas na lama, a fim de se afastarem da margem e flutuarem na direção da parte mais larga do lago.
Como faziam todas as manhãs, desde o início da viagem, eles besuntaram a pele para evitar picadas de insetos. Mas no lago havia um tipo novo de sugador de sangue, que não era repelido pelo método habitual, só que eles não ousavam se mexer para afastá-lo, por causa do estado precário da embarcação. Kadiya tentou ser a mais estóica possível com os ataques das pestes, mesmo vendo e sentindo marcas de sangue das picadas nas mãos e no rosto.
Jagun e Smail se esforçavam, mantendo a jangada paralela à margem esquerda, e seguiram em frente. Kadiya ficou atenta para descobrir qualquer sinal da podridão, que traísse a passagem do que estavam caçando por ali. Mais adiante os arbustos deram lugar a uma vegetação mais alta, que poderia ser chamada de árvores, só que não tinham apenas um tronco, e sim vários.
Desses troncos partiam galhos curvados que se estendiam sobre a água e formavam arcos retorcidos. De vez em quando viam a água se mexer sob esses arcos, sugerindo que havia vida ali escondida. Mas Kadiya achava que os espaços eram pequenos demais para ocultar skriteks caçadores.
Não encontraram nenhum guarda, e por isso Kadiya acreditava que os skriteks se sentiam seguros no próprio território, não sendo necessário tomar a precaução de deixar um guarda de sentinela na retaguarda.
Continuamente atormentados pelos sugadores de sangue, o grupo avançava devagar. Até aquele ponto não tinham avistado nenhuma marca da praga na margem. Então Kadiya de repente foi forçada a parar de se estapear por causa dos insetos, devido a um calor estranho, mais forte do que os vapores que subiam do lago escuro em que navegavam.
Seu amuleto, que estava inerte desde a última vez que foi usado na criação de uma imagem, apresentava vida outra vez. Com cuidado Kadiya tirou-o de dentro de sua camisa de cota de malha. O trílio aprisionado parecia vivo, e o âmbar brilhava. Seria um guia? Ele estava sintonizado com o poder e se havia alguma fonte de poder diante deles naquele momento, podia ser que o amuleto estivesse reagindo.
Ela chamou a atenção dos companheiros e chegou um pouco mais para o meio da tosca jangada, apontando o amuleto para a margem esquerda. Isso porque, para a frente e para a direção oposta, o âmbar apagava imediatamente.
Naquele lugar os galhos que pendiam sobre a água ficavam cada vez mais altos. Quase dava para a jangada passar por baixo dos arcos formados pelas raízes, mas Jagun a mantinha bem longe desse tipo de experiência.
Nenhum sinal da praga, mas subitamente o amuleto moveu-se na mão de Kadiya e se não tivesse fechado a mão instintivamente, ele teria pulado no ar.
- Por ali! - Kadiya apontou diretamente para um dos arcos de raízes, muito alto e muito espesso. A árvore que ele sustentava devia ser muito antiga.
Jagun prontamente virou a jangada, e um segundo depois estavam sob a sombra do arco. Não viam sinal da margem adiante. O que viam eram mais raízes encurvadas, que formavam um teto retorcido e uma escuridão completa. Podiam estar entrando em algum riacho que desaguasse no lago naquele ponto, mas Kadiya não sentia correnteza alguma puxando a jangada.
Ela olhava fixo para a frente, à procura das manchas de musgo delatoras. Mas se o grupo que eles seguiam tinha tomado aquele caminho, o semeador de podridão não tocara em nada que pudesse hospedar a praga.
Passaram por baixo do quarto arco. Em cada um deles havia menos luz, pois mais acima as árvores se fechavam, formando um verdadeiro telhado, impedindo a entrada da luz fraca do dia. Sentiam o cheiro de esterco e de ranço na vegetação, mas não as baforadas pútridas que antes os alertaram do perigo.
Jagun foi para a parte da frente da jangada, usando a vara com a destreza adquirida com muita prática, enquanto Smail passava com cuidado para o outro lado, afundando e erguendo a vara no mesmo ritmo que o caçador.
Em algum lugar mais adiante devia haver uma fonte de poder, disso Kadiya tinha certeza. Mas do bem ou do mal? O amuleto reagia tanto a uma forte emanação do mal quanto a do bem que o criara, como proteção e guia.
Pelo menos o brilho mais forte fornecia alguma luz, enquanto a viagem incerta continuava. As paredes estavam se fechando em volta deles, como tinha acontecido no túnel de espinhos. Mas foi só mais tarde que Kadiya, virando um pouco o amuleto, viu uma parte daquelas paredes. Eram paredes mesmo, de pedras muito antigas, por onde escorria uma água rançosa e verde de vegetação aquática.
O amuleto iluminou um lampejo de olhos. Um pedaço do musgo estremeceu, desgrudou-se de um tufo e caiu na água. Então aquele lugar também tinha seus habitantes.
O silêncio era quase completo, só ouviam o barulho das varas saindo da água e mergulhando novamente mais adiante. Kadiya ouviu uma exclamação de Jagun e notou no brilho do amuleto uma agitação repentina, enquanto o caçador segurava a vara com muita força para fazer a jangada parar, ancorada naquele riacho subterrâneo.
Kadiya ficou de joelhos e estendeu a mão para a frente, passando por cima do ombro do caçador, com aquela pequena fonte de luz. Havia de fato uma barreira diante deles - e um tipo de barreira que só se via em lugares esquecidos e fantasmagóricos.
Ela vira as teias intrincadas de roxlin uma ou duas vezes nas regiões mais remotas do Pântano Dourado, Mas eram pequenas, obra de criaturas como aranhas, do tamanho da ponta do seu polegar. Essa teia, perfeitamente estruturada, preenchia totalmente o espaço diante deles, de uma parede a outra, desde o nível da água até a escuridão lá no alto, até onde não podiam mais ver.
Não eram fios finos que formavam o círculo perfeito. Pareciam grossos como os cordões de botas de viagem. E eram entrelaçados, com várias camadas em alguns lugares, prendendo os corpos de pobres insetos... e outras criaturas. Em um ponto havia um lagarto verde como a vegetação que o cercava, certamente uma das coisas que Kadiya tinha visto mergulhando na água. Seu corpo não era leve, mas o peso nem chegava a vergar os fios que o aprisionavam.
Todos evitavam as roxlins. Embora não pudessem sugar a vida de presas grandes, sua picada era perigosa, capaz de causar uma ferida de cicatrização muito difícil. Uma roxlin com porte para ter tecido aquela teia devia ser uma oponente formidável.
Apoiando a mão no ombro de Jagun para se equilibrar na jangada, que jogava perigosamente, Kadiya segurou o amuleto sobre sua cabeça. As paredes não apresentavam qualquer sinal de conter um esconderijo para uma criatura tão volumosa. A tecelã só podia estar em algum lugar no alto. Mas a luz do amuleto, que ela segurava o mais alto que podia, não acusou nada. Tocar naquela teia talvez fizesse a roxlin aparecer, ansiosa para inspecionar a presa capturada.
Um ataque de cima seria perigoso, empoleirados como estavam na jangada frágil.
Kadiya, continuando a segurar o amuleto para cima, passou-o da mão direita para a esquerda. Então desembainhou a espada. Sob seus dedos os olhos pareciam fechados, mas naquela situação lanças ou dardos não poderiam fazer o trabalho necessário.
- Preciso de espaço - pediu ela baixinho, com medo de o som de sua voz provocar um ataque.
Jagun chegou para o lado e um pouco para trás, e Kadiya avançou lentamente, sentindo logo a jangada reagir ameaçadoramente à mudança de peso. Tinha de ser rápido para não adernar demais. Já que só tinha duas mãos, não poderia se salvar se a embarcação virasse.
Então sentiu um braço em volta da cintura dando-lhe equilíbrio. Era Jagun que continuava também segurando firme na vara que servia de âncora, enquanto ajudava como podia.
Kadiya rapidamente golpeou a teia com a espada. Sua espada não tinha ponta, mas tinha uma aresta e essa aresta encontrou uma certa resistência, por menos de um segundo, antes de furar a teia. Ao dar uma segunda estocada e depois uma terceira, ela ficou muito tensa, sabendo que a qualquer momento a roxlin podia atacar.
Os círculos ficaram em frangalhos, pendurados dentro da água, onde algum movimento sugeria que algo estava esperando, a fim de comer o banquete preso à cola dos fios arrebentados.
Kadiya espantou-se de não obter resposta da criatura, cujo trabalho ela estava destruindo com toda a força que podia. Era difícil acreditar que a armadilha tinha sido abandonada. Mas quanto mais estragos fazia naquela barreira, mais se convencia de que isso devia ser verdade.
A luz do amuleto iluminou um buraco irregular, grande o bastante para permitir a passagem deles. Mas e se a construtora estivesse astuciosamente esperando que a jangada passasse por baixo para então atacar?
- Devemos tentar agora? – Ela contava com a experiência de caçador de Jagun e queria deixar que ele decidisse.
- Preparem-se!
Ela se baixou e ficou na mesma posição que estava antes, sentindo a respiração acelerada de Salin logo atrás. Ficou com a espada em riste.
Jagun soltou a vara, esticou-a para frente e a jangada balançou, embarcando um pouco de água, quando Smail imitou o movimento dele. Avançaram em uma velocidade que Kadiya achava ser a maior que conseguiam. Involuntariamente ela ergueu os ombros ao passarem por baixo do que restava da teia, continuando a achar que não poderiam evitar uma represália da tecelã.
Os esforços concentrados de Jagun e Smail fizeram com que ultrapassassem a teia em segundos. Kadiya ouviu Salin soltar um silvo baixinho e percebeu que a mulher sábia devia estar partilhando seus temores.
- Há uma coisa - comentou Jagun, enquanto a viagem continuava. - Agora podemos ter certeza de que aqueles que caçamos não vieram por aqui.
Kadiya ficou pensando se aquilo era bom ou ruim. Será que o amuleto, reagindo a alguma outra emanação antiga, tinha afastado o grupo da trilha que deveriam seguir?
Mais uma vez girou o amuleto de um lado para outro e captou apenas lampejos de paredes de pedra, cheias de musgo e escuras. Então a jangada de repente bateu em um obstáculo dentro da água.
Kadiya teve de se equilibrar outra vez e apontou o amuleto para a frente, segurando-o apenas pela corrente, de forma que a luz limitada pudesse alcançar uma distância maior.
Erguendo-se da água diante deles havia um declive feito com a mesma pedra das paredes. Era óbvio que tinham chegado ao fim do riacho. Smail passou por ela e pulou para aquele lugar sólido, imitando Jagun e juntando-se a ele para puxar a jangada mais para cima na plataforma de pedras.
Kadiya também desembarcou rapidamente e passou na frente deles. Um pouco depois, a luz do amuleto refletiu o primeiro degrau de um lance de escada que levava para cima. Não havia cheiro da praga ali.
Ela se virou para ajudar a puxar a jangada para fora da água até um ponto em que não seria levada embora. Então pôs a mochila nos ombros, e Jagun e Smail fizeram o mesmo. Salin, apoiada em seu cajado, não ficou muito para trás, quando começaram a subir a escada. Kadiya assumiu a liderança, já que a luz do amuleto era tudo que tinham para ajudá-los.
Os degraus eram bem largos, e no terceiro Kadiya parou abruptamente. Lá embaixo a água suspirava de encontro à plataforma de pedra, subindo e descendo, indicando uma correnteza que não tinham notado durante a viagem. Só que naquele momento ela ouvia um outro som, bem fraco, pouco mais que uma vibração, nas pedras em sua volta. Kadiya não sabia o que era, mas ficou gelada por dentro. Jagun sibilou baixinho.
- Skriteks!
Talvez fosse tolice continuar subindo, mas o amuleto brilhava cada vez mais na mão de Kadiya. Certamente deviam estar se aproximando de um centro muito forte de poder. Diziam que os afogados não possuíam sabedoria alguma e nenhuma arma a não ser suas presas, garras e algumas lanças e clavas toscas. Realizavam suas investidas mais ben-sucedidas graças ao fator surpresa. No entanto Kadiya e seus companheiros já estavam bem no interior de seu território, e quem podia imaginar que forças eles teriam ali?
Não foi a voz de Salin que ela ouviu, mas seu pensamento.
- Esses prestam homenagem... eles não caçam.
A certeza na afirmação da uisgu fez com que Kadiya acreditasse. Mas a quem esses monstros escamosos prestavam homenagem? A algum chefe ou líder deles... ou àquela coisa que tinha espalhado a morte por onde passava?
Não era possível retornar. Só podiam seguir em frente, com toda a cautela possível. Pelo menos os sentidos de Jagun eram bem adequados para uma situação como aquela.
Kadiya avançou decidida. Esperava que os sons ficassem mais altos, mas não ficaram. Na verdade houve momentos em que pareciam diminuir.
Ela percebeu que havia uma outra fonte de luz na escada, competindo com o brilho do amuleto, que ficava mais forte a cada passo dado.
A luz saía do topo dos degraus, dividida em vários raios, como se filtrados através de pequenas aberturas.
Kadiya deixou o amuleto pender da corrente de encontro ao peito, cobrindo-o um pouco com os dedos. O calor dentro dele era bem forte, chegando quase a queimá-la, e ela teve de fazer um esforço para mante-lo junto ao corpo.
A outra luz aumentou de repente e extraordinariamente no fim da escada. Ao longo da saída havia uma barreira, uma tela profundamente recortada, que deixava a luz passar por aberturas curvas e angulosas.
Ela já tinha visto uma coisa assim antes! Havia passagens dentro das muralhas da Cidadela de Ruwenda, parte de um sistema de caminhos secretos e escondidos. Muitos tinham sido descobertos, e na sua infância, Kadiya desafiava Haramis ou Anigel a segui-la por aquelas passagens esquecidas. Algumas ficavam atrás de paredes furadas por arabescos ornamentais. Vistas pelo lado de fora, pareciam apenas com uma decoração rebuscada, mas na verdade forneciam luz, ar e locais de espionagem para os que espreitavam nos caminhos secretos.
Eles se encontravam diante de uma tela daquele tipo. Do lado em que estavam, a luz era forte. Kadiya chegou para a direita a fim de dar espaço para os outros na plataforma no topo da escada, assim todos poderiam partilhar daquela posição favorável.
Do outro lado da tela havia uma sala. As paredes eram feitas com a mesma pedra branca, resistente ao tempo, que usavam na cidade dos Desaparecidos. Dois lampiões estavam pendurados por correntes em ganchos, um de cada lado.
Acesos e soltando fumaça, como deviam ter feito muitas vezes, mancharam as paredes com leques pretos de fuligem.
A superfície que esses lampiões iluminavam era toda trabalhada, como a que barrava a passagem de Kadiya e dos outros. Talvez também fosse pintada, para fazer sobressair alguns desenhos. Kadiya via partes vermelhas, azuis e toques de amarelo, muito desbotado.
Não era um desenho de alguma forma de vida. As espirais, os círculos, as rosáceas e as linhas entrelaçadas sem sentido criavam ilusões de ótica.
Uma tensão tomou conta do grupo escondido. Ouviram de repente o falatório dos skriteks. Kadiya segurou o amuleto, sofrendo com o calor do âmbar, mas decidida a não deixar que o brilho fosse visto. Ninguém sabia se o esconderijo deles ia funcionar, mas Kadiya tinha certeza absoluta de que precisavam ver o que ia acontecer ali.
Na porta que havia à esquerda, a única entrada visível naquele cômodo sem janelas, surgiu um grupo estranho.
Gingando de uma pata para outra, um skritek avançava. Sobre sua cabeça de lagarto havia um crânio que podia ser de algum membro da sua raça, só que muito maior, o que sugeria que devia ter existido uma forma gigante dessa espécie. As presas expostas desse enfeite de cabeça estavam manchadas de vermelho e nos buracos dos olhos havia insetos luminosos que serviam de luz para todos os habitantes dos pântanos.
Além da caveira que usava como coroa, o skritek não usava mais nada para se cobrir, como era o costume deles. Os ombros escamosos apoiavam cinturões idênticos cruzados no peito e nas costas. Deles pendiam ossos que batiam uns nos outros, quando a criatura andava. Em volta da cintura ele usava um outro cinto. Era feito de pedaços de pele de animal e prendia a bainha de uma faca, quase tão longa quanto uma espada, e uma grande bolsa. Em uma das mãos a criatura segurava uma vara, de onde pendia outro crânio, só que este era obviamente humano.
Quando chegou ao centro da sala o skritek virou de frente para a parede. Erguendo o cajado, fez um sinal de ofício por cima da cabeça e bateu no chão de pedra, em um movimento ritmado que combinava com o ronco estridente que saía de sua mandíbula com dentes pontiagudos. Kadiya achava que ele devia estar executando algum tipo de ritual.
O fedor dos skriteks era forte e ficou mais forte ainda quando mais duas criaturas apareceram. Essas não usavam a coroa de caveira e seguravam lanças toscas em vez de cetros com crânios na ponta. Depois que entraram na sala, eles foram se afastando do centro de costas, até quase encostar na tela atrás da qual Kadiya e seus companheiros estavam.
O líder com coroa de caveira continuava com seu cântico rouco, e então chegou mais alguém. Aquela figura acabada, corroída pela praga, que Kadiya tinha visto na bacia vidente, cambaleou até o centro iluminado pelos dois lampiões. Atrás dela, a uma certa distância, vinham mais quatro skriteks empunhando lanças.
O fedor do corpo deles, junto com o vapor pestilento emanado pela praga, ia disfarçar qualquer odor natural dela e do seu grupo, essa era a esperança de Kadiya - embora já estivessem bem disfarçados com a pasta de ervas que espalhavam diariamente pelo corpo para afastar os insetos. Pelo menos nenhum membro do horrível grupo tinha dado sinal de ter detectado a presença dos espiões.
Dando um último e poderoso berro, o skritek que usava a caveira na cabeça bateu o cetro no chão com força e deu meiavolta, ficando de frente para a vítima da praga. Para Kadiya este último era uma visão muito mais assustadora do que os demónios do pântano, pois era um dos belos corpos das estátuas que tinha visto na cidade, todo carcomido, transformado em algo nojento e apavorante.
Quase tão encurvado quanto Salin, com a pele pardacenta cheia de marcas feito úlceras supuradas, a cabeça macilenta com uma pele finíssima cobrindo o crânio, aquilo era um pesadelo.
Mas quando ele se adiantou, o skritek coroado caiu de joelhos e prostrou-se com a cara no chão, aos pés daquela coisa monstruosa.
A coisa parou, cambaleando, como se tivesse dificuldade de se manter de pé. Ergueu um braço trémulo, soltando gotas do líquido amarelado, que se espalhou pelo chão.
Uma dor explodiu dentro da cabeça de Kadiya tão subitamente que ela quase caiu em cima da tela. Jagun estendeu o braço e segurou-a. Era uma barulheira, um trovejar dissonante em sua cabeça. Ela mordeu o lábio com força e lutou para fechar a sua mente para isso.
No chão o skritek prostrado estremeceu, quem sabe sentindo o mesmo tormento contra o qual Kadiya lutava. O monstro olhou o seu adorador com olhos cheios de rugas em volta, tão encovados em montes de pele flácida, que quase não dava para vê-los. Ele deu um pontapé no cetro com o crânio em cima e depois cambaleou na direção da parede.
Com um grande esforço conseguiu se endireitar. Estendeu para a frente os dois braços que pingavam veneno. Os dedos, que estavam completamente podres, tocaram quatro pontos do desenho intrincado na pedra.
Ouviram um som, como se a própria pedra protestasse vigorosamente contra o que lhe era ordenado. Logo uma fenda se abriu.
De dentro dela saiu uma luz vermelha, como as labaredas de uma fogueira. A criatura avançou com passos trôpegos até ser tragada pelas ondas de luz. E sumiu.
O skritek que estava no chão ficou de quatro, ergueu a cabeça de sáurio e virou-se para a parede, na qual as chamas e a coisa que as havia invocado tinham desaparecido. Então o sacerdote - se é que aquele com coroa de caveira era mesmo um sacerdote - ficou de pé e reuniu os guardas, rosnando ordens que fizeram com que eles corressem para a porta.
Mas o líder ficou para trás e aproximou-se da parede. Na mente de Kadiya surgiu uma coisa diferente do estrondo, que foi a comunicação do semeador da praga para seus seguidores. Esse skritek era ávido de conhecimento e ficara ressentido, porque não tinham partilhado esse conhecimento com ele.
Com a ponta do cetro o afogado tocou os pontos, que deviam abrir a tranca da porta, primeiro timidamente, depois com mais força. Mas nada aconteceu. Kadiya captou mentalmente uma sensação de frustração e um princípio de raiva.
Depois de um certo tempo, o skritek desistiu de tentar descobrir o segredo e saiu da sala, batendo com o bastão no chão, mal-humorado.
Kadiya teve de soltar depressa o amuleto. O calor era intenso e queimava seus dedos. Além disso, ele estava subindo sozinho. E dentro dela uma vontade também crescia...
Uma porta... abrir uma porta... seguir... Os restos do seu pequeno estoque de prudência argumentavam contra essa vontade.
- Jagun... Salin... - Kadiya queria apoio, alguma ajuda para compreender aquele impulso que a impelia e tomava conta dela.
- Visão Penetrante. - Ela ouviu as palavras do caçador em sua mente e agarrou-se a elas como forma de se defender da necessidade que a dominava. - Este é um lugar de grande poder.
- Sim - concordou Salin. - Mas, Filha do Rei, não é do bem nem do mal. Ele responde a qualquer um que o invoque.
- Mas ele ajuda ou prejudica - perguntou Kadiya. - Alguma coisa está me empurrando. Não vou ser arrastada para aquele lugar dentro da parede.
Ela combateu a pressão com determinação. Do mesmo modo como tinha sido atraída através da monção até a cidade perdida, naquele momento crescia dentro dela uma compulsão para ir além da tela, enfrentar a outra parede e seguir o monstro que rompera o antigo selo.
Kadiya esgueirou-se ao longo da tela, incapaz de aquietar aquela vontade que se impunha. Não havia mais nenhum skritek, embora nada impedisse que eles voltassem. Jagun e os outros foram atrás dela, movidos pela mesma atração.
Quando entraram na sala atrás da tela, o caçador e o jovem uisgu não chegaram perto da parede que guardava a passagem secreta. Concentraram toda a atenção na porta, por onde o grupo de inimigos tinha entrado. Smail estava com os dardos prontos entre os dedos, os dardos feitos de espinhos e mergulhados no veneno da víbora. Jagun segurava a lança à espera da ordem de atacar.
Kadiya ia sendo atraída, passo a passo, sua vontade à mercê dos movimentos do corpo. O talismã continuava a queimar em seu peito. Ela sentiu uma outra coisa, como um tipo de avanço e retirada, depois um avanço de novo, uma força lutando para se libertar, não conseguindo, e tentando novamente.
Evitou com cuidado os pingos amarelos no chão, que marcavam o caminho do destruidor. Na parede esculpida viu pontos semelhantes de podridão fosforescente, onde os dedos desfeitos tinham tocado. Não ia encostar sua mão ali, a não ser que a espada pudesse destruir o veneno.
Kadiya desembainhou o talismã. A lâmina logo abaixo do punho estava quente, mas não queimava tanto quanto o amuleto. Ela viu a pálpebra do grande olho se abrindo. Erguendo a espada, Kadiya tentou focalizar o olho nas marcas do veneno.
Mas a lâmina não se deixava controlar. Ela não conseguia segurá-la com firmeza. O raio saiu do olho de cima e quase ao mesmo tempo a luz dos outros dois juntou-se a ele. Embora tentasse segurar a espada com força, ela virava e girava, como se Kadiya estivesse de fato impotente.
O raio triplo foi realmente disparado, mas não no lugar em que Kadiya tentava mirar. O talismã escolhia o próprio alvo. Aqui... ali... e lá... a luz pulsava e tocava partes do vasto desenho... só que nenhuma dessas partes era onde o monstro tinha tocado.
O barulho da pedra relutando em abrir fez-se ouvir outra vez. Então a luz cobriu Kadiya. Não era vermelha de fogo... era mais como o brilho do sol. Junto com a luz apareceu uma outra coisa: aquela fragrância que Kadiya sentira no jardim, de onde tirara a espada que acabava de usar como chave.
O brilho dourado envolveu-a como as chamas tinham envolvido o outro ser. Em um segundo, a sala em que ela estava desapareceu. Kadiya sufocava. Parecia que não podia encher de ar os pulmões, que estava em um lugar sem ar. E havia outra sensação. De estar sendo puxada para cima, para cima, rodopiando como se uma ventania brincasse com ela, jogando-a de um lado para outro, igual à tempestade da monção brincando com folhas e galhos, que arrancava de arbustos e árvores.
Com a mesma rapidez que subiu, ela desceu e foi dominada pelo medo. A força do vento podia jogá-la na terra. Voltou a respirar, engolindo o ar com dificuldade. A perigosa descida ficou mais lenta. Seus pés tocaram uma superfície sólida suavemente. A força que a sustentava permaneceu ao seu redor, até conseguir recuperar o equilíbrio.
Mas o brilho da luz dourada continuava a ofuscá-la, e Kadiya não conseguia ver nada, nem mesmo a espada que sabia ainda estar na sua mão.
Kadiya piscou os olhos várias vezes. Fechando-os por algum tempo, continuava a ver o brilho fortíssimo nas pálpebras. Mas finalmente ele foi se apagando. Ela tentou mais uma vez e viu que a luz dourada estava diminuindo, se diluindo, como o nevoeiro que se esgarça no pântano.
Ela estava em um salão tão grande que o lado oposto parecia ter o comprimento de uma rua. O calçamento sob suas botas maltratadas e molhadas formava desenhos de cores suaves, igual a um tapete. As cores sumiam, se juntavam às outras, se misturavam em desenhos que eram um descanso para seus olhos ofuscados.
Nas paredes havia tiras brancas de um material macio, com símbolos dourados, que reconhecia dos pergaminhos da biblioteca da cidade... uma escrita que não conseguia ler.
Uma espiral de fumaça azul, emanando a fragrância floral, flutuava para perto dela, vinda da esquerda, e Kadiya olhou naquela direção. Viu um bloco de pedra cravejado com o metal verde secreto dos Desaparecidos. O bloco devia ser oco, pois dele crescia uma planta que Kadiya nunca tinha visto. O caule grosso era da sua altura, as folhas longas como seus braços, mas o que havia no caule era o mais assombroso.
Era uma gigantesca flor com três pétalas, igual às que ela conhecera a vida inteira, o signo da sua casa, cujo broto minúsculo estava preso no seu amuleto. Mas em vez de pretas, as enormes pétalas eram douradas e brilhavam com pontinhos coloridos, como poeira de arco-íris.
Enquanto Kadiya observava, a flor magnífica inclinou-se para eles. Jamais em toda a sua vida tinha visto coisa tão assombrosa e maravilhosa. Lentamente ela abaixou a espada. Sem sentir caiu de joelhos, mas não curvou a cabeça. Não podia. A flor atraía seu olhar para cima.
Ela ouviu um trinado. Será que era a flor? Kadiya não sabia, mas naquele lugar aceitaria qualquer coisa fantástica.
Ergueu a espada, segurando-a pela extremidade sem ponta da lâmina, e ficou assim algum tempo, em uma espécie de saudação. Os olhos estavam todos abertos, mas não emitiram seus raios de fogo.
-Ó Grande...
Kadiya achava que aquilo tinha poder. Talvez não fosse vida inteligente como sempre conhecera, mas semelhante à de sua espécie.
- Ó Grande - recomeçou ela -, recebi um chamado.
Ela continuava segurando a espada com uma das mãos, enquanto com a outra tentava pegar o amuleto também. O âmbar parecia uma bola de ouro, com um brilho quase igual ao da flor. Dentro dele o Trílio Negro estava completo.
Ouviu novamente o trinado. Ficou triste, pois não compreendia. Será que tinha o direito de estar naquele lugar? Estaria sendo questionada? Sendo esse o caso, ela resolveu falar uma terceira vez.
- Oh!, Grande, eu sou uma das três de Ruwenda... na grande terra dos pântanos. Este foi meu presente de nascimento da Arquimaga Binah. - Ela tocou o amuleto. - Isto - ela segurou mais alto a espada - eu ganhei quando segui a missão que recebi, depois que Ruwenda caiu nas mãos dos maus. Tentei devolvê-la ao terminar minha tarefa, mas a terra de onde ela nasceu recusou-se a aceitá-la de volta. Grande, ela me guiou até aqui no momento em que eu rastreava um novo mal pela terra. Eu sou Kadiya, a filha do rei, mas escolhi os pântanos. Qualquer mal que os acometa é problema meu. O Grande, hoje eu vi esse mal passar pela porta da parede antes de mim...
- Não é verdade!
Kadiya virou a cabeça depressa. Eles chegaram em silêncio ou então ela estava tão enfeitiçada pela flor que nem ouviu. Três deles...
Ela arregalou os olhos. Os Desaparecidos! E não eram estátuas imaginárias ou saídas de um sonho.
Ao redor deles também não havia aquela névoa que fazia parte do ser que Kadiya tinha encontrado no jardim anteriormente. Aos seus olhos, eles estavam tão vivos quanto ela.
Eram mais altos que ela, da mesma forma que ela era mais alta que os oddlings... os oddlings! Desde o instante que passou pela luz dourada e entrou no templo, era a primeira vez que se lembrava dos seus companheiros. Espiou em volta, à direita e à esquerda, e viu que estava sozinha.
Apoiou a ponta da espada no chão, embora continuasse com a mão logo abaixo do punho, deixando livres os olhos abertos. Estava maravilhada com tudo aquilo, mas mesmo assim adotou uma atitude defensiva em relação a esses outros.
Eram dois homens e uma mulher. Usavam pouca roupa e de um tecido tão fino que Kadiya via perfeitamente seus corpos através dele. Os homens usavam cintos, um em cada ombro, cruzados no peito. Neles brilhavam pedras brancas e verdes, e no ponto em que se encontravam havia um grande medalhão também com pedras preciosas. Tinham outro cinto na cintura, mais enfeitado ainda, que segurava um saiote que não chegava aos joelhos. Cobrindo os pés, até perto dos joelhos, usavam botas com um brilho prateado.
A mulher, que estava um pouco atrás dos dois, vestia uma espécie de manto solto, preso nos ombros com grandes broches também cravejados de pedras, e um cinturão complexo como o dos seus companheiros. Nos pés ela usava sandálias amarradas nas pernas.
A roupa contrastava com a pele deles, ela era escura como a dos camponeses labornokianos, que trabalhavam ao sol. Embora os homens parecessem imberbes, suas cabeças eram cobertas de cabelo encaracolado, cortado bem curto. O cabelo da mulher não era tão curto, e cachos caíam sobre seus ombros.
Mas foram as feições deles que fizeram Kadiya prender a respiração. Pois dos três, ela tinha visto dois antes, esculpidos em pedra, a léguas de distância daquele lugar. De um ela até sabia o nome...
- Lamaril!
Ele era a personificação daquela estátua que, livre da armadura de lama seca e dura como ferro, tinha apontado o caminho para a cidade perdida, na primeira vez que ela foi até lá. Lamaril, que Jagun contara que as lendas o consideravam um grande guerreiro no combate do mal.
A mulher Kadiya também conhecia, mas não de nome. A sósia dela ficava à esquerda, no quarto degrau da escada do jardim.
Nenhum dos três fez qualquer gesto de boas-vindas. A mulher e Lamaril franziam a testa. O terceiro falou.
- Quem é você... o que é você... quem ousou atravessar o portão?
Aquela pergunta fria despertou Kadiya de seu estado de assombro. Ela ergueu o queixo e encarou os três ousadamente, e com uma das mãos segurou o amuleto e com a outra apertou a espada.
- Eu sou Kadiya, filha do rei Krain que reinou na Cidadela de Ruwenda. Sou responsável pela defesa dos pântanos contra o mal. Nós somos os que vieram depois que seu povo partiu.
- Os pântanos - repetiu o homem. - Você fala de um lugar que não conhecemos, mas passou pelo último portão como alguém que tem todo o direito. E ouvimos você dizer que seguiu o mal até aqui. Não há mal neste lugar!
- Você chamou o meu nome - era Lamaril que falava -, você, que diz que é filha do rei. Mas eu nunca a vi antes. Que truque é esse para Saber meu nome?
Ele ficou muito sério, mas Kadiya recusou-se a ficar atemorizada com a frieza do seu olhar.
- Eu já vi uma imagem sua, não você pessoalmente. - Ela não sabia que título deveria dar a ele, e naquele momento não estava se importando com isso. - Há uma estátua sua de guarda... só que há muito tempo ela foi coberta pela lama, e foi o inimigo que a libertou. Jagun, o nyssomu, contou-me o seu nome e que era um poderoso capitão, que resistiu bravamente ao mal em tempos de crise.
A dureza das feições dele desapareceu de repente. Ele estava espantado, como se ouvisse uma pedra falar.
Kadiya continuou; sentindo que tinha uma pequena vantagem.
- E você - ela se dirigiu diretamente à mulher -, eu não sei seu nome. Mas a sua imagem também está na cidade do belo jardim, no Lugar do Aprendizado. Fica de guarda na escada que leva para esse mesmo jardim.
- Yatlan! - A mulher chegou para a frente. - Yatlan - ela repetiu, e sua voz era suave. Ergueu a mão e estendeu o braço na direção de Kadiya. Você que veio, o que é Yatlan agora
- Uma cidade esquecida. Não - Kadiya se corrigiu -, esquecida por muitos. Mas tem seus habitantes. Eles se chamam de hassittis e se esforçaram muito para guardar em segurança tudo o que foi deixado. Há o jardim - Kadiya levantou a espada para que os três vissem -, e isso nasceu no jardim. Binah, a Arquimaga determinou que eu e minhas duas irmãs seríamos as salvadoras de Ruwenda. Ela me deu uma raiz que me guiou até a cidade e lá eu a plantei no jardim perene, para se transformar... nisso, e mais tarde a terceira parte de uma defesa muito poderosa para salvar nosso país.
”Cada uma de nós encontrou uma parte. Haramis, minha irmã maga, que se tornou a sucessora de Binah, soldou as três partes em um todo-poderoso. Depois que essa peça única serviu a seu propósito, ela as separou novamente, devolvendo a cada uma de nós a parte que encontramos, guiadas por nossas missões. Eu senti uma grande necessidade de devolver a espada ao jardim, mas quando a plantei de novo nada mudou. Assim fiquei sabendo que a missão dela e a minha ainda não tinham terminado.” Ela falava cada vez mais depressa, levada pelo desejo de contar tudo de uma vez.
falado com ela primeiro. - Ela a que preferiu ficar... você a viu?
- Foi ela quem determinou a minha missão. Mas seu trabalho já estava quase terminado. Sua última tentativa de evitar que o mal invadisse a terra deixou-a fraca demais. Ela escolheu minha irmã Haramis para ocupar seu lugar, depois morreu.
- Binah! - O homem levou a mão à cabeça, meio confuso.
- O nome dela... lembrado na terra inculta!
- Você falou que seguiu o mal... até aqui! Algo que não pode ser verdade... - Lamaril dirigiu-se a Kadiya outra vez. Como foi que você encontrou o último portão... e por quê
Kadiya enrubesceu. Era óbvio que ele não acreditava nela, e ela ficou irritada ao perceber isso.
Segurando forte a rédea de sua velha raiva e impaciência, Kadiya começou a contar a história, desde a descoberta da antiga tira de pergaminho com a mensagem, a preocupação do sonhador hassitti. Passo a passo cobriu sua viagem até a aldeia de Jagun, a chegada de Salin e Smail, descreveu o que todos tinham visto na bacia vidente. Enquanto relatava tudo que aconteceu, percebeu que os três a ouviam com a maior atenção. Ao mencionar o país nas montanhas do oeste, Lamaril levou a mão ao cinto rapidamente, como se fosse pegar alguma arma.
Com a descrição da praga, a expressão dos três mudou. Havia horror nos olhos da mulher. Mas não interromperam, e Kadiya terminou a história bem depressa, contando o que tinha acontecido naquela sala estranha com a parede trabalhada.
- E assim eu vim parar aqui - ela concluiu.
Lamaril tirou a mão do cinto e estendeu para ela... ou melhor, para a espada. Soou um trinado igual ao que ela ouvira antes. A grande flor dourada se mexeu. Dela saiu um chuvisco de ciscos arco-íris, iguais aos que enfeitavam suas pétalas.
Voaram para longe da planta e depois para baixo. Grudaram no punho da espada de Kadiya, criando pontos brilhantes na borda da pálpebra de cada olho.
- Era vermelha... a luz que acolheu o doente... vermelha. Isso não soava como pergunta, mas Kadiya respondeu à mulher.
- Como chamas de uma fogueira que envolveram o homem... envolveram a coisa... e levaram-na para dentro. Mas eu não toquei nos mesmos lugares que ele - repetiu Kadiya. Isso - ela ergueu um pouco a espada - escolheu por mim.
- Para o santuário de Varm - disse Lamaril. - Um dos que dormem... mas como é que despertou?
- Eu não sei desses que dormem. - Kadiya achou que a pergunta era para ela. - Os hassittis disseram que o poder que Orogastus invocou podia acabar com o equilíbrio, que talvez ele tivesse libertado algum ser maligno antes de ser destruído pelo talismã das Três. Eu detive um poder pequeno, mas não sou versada nessas coisas. Não compreendo, apesar de ter sido marcada desde o nascimento por Binah, para servir ao meu povo.
Ele não devia estar prestando atenção no que ela dizia, percorria uma outra linha de raciocínio.
- Varm tem poder, e bastante. Descobrimos isso quando tivemos de cuidar dele antes. Filha do Rei - agora ele estava mesmo falando com Kadiya -, de acordo com sua história, você foi enviada, levada, trazida para Aquele que Perdura. Ele olhou para a flor no altar. - Aquele aceita você. Não podemos mais duvidar disso.
Kadiya suspirou, aliviada. E começou a pensar nos três que não tinham ido com ela. Será que tinham ficado naquele santuário guardado pelos skriteks, ou... será que foram despachados para outro lugar? Ela não sabia quase nada de magia. Jagun, Salin e Smail tinham se tornado parte de sua missão. Não podia deixá-los para trás, para morrer.
- Os que vieram comigo, eles ainda estão naquele lugar das portas e portões? - ela perguntou audaciosamente. – Ou foram capturados e levados para outro lugar? São gente minha e sou responsável por eles. A mulher balançou a cabeça.
- Eles não puderam vir com você. Você só conseguiu entrar porque segurava isso, de Yatlan - ela apontou para a espada. - Eles devem ficar onde estão.
- Jagun não vai desistir! Ele vai tentar me seguir e pode ser capturado pelos skriteks. Se esse portão de vocês abriu uma vez, certamente poderá abrir de novo, para eu voltar para a minha gente. É óbvio que o monstro que eu segui não está aqui, e é ele que estou caçando.
Foi a vez de Lamaril balançar a cabeça.
- Filha do Rei, não podemos abrir o portão, só com a concordância de todos e a união de suas forças. Ele permanecerá trancado.
Kadiya não duvidava que ele falava a verdade. O espanto - e o constrangimento gerado por este espanto, quando viu aqueles estranhos seres pela primeira vez - ficava cada vez mais forte, embora o relato de sua história o tivesse amenizado um pouco, por algum tempo. Não podia voltar? Ela sentiu o calor do amuleto, a vibração do poder na espada. Ainda não estava preparada para aceitar aquilo. Não podia voltar!
Ela os seguiu, quando eles entraram por um longo corredor. Suas botas encharcadas chapinhavam sobre desenhos no chão, e imediatamente ela pensou na figura estranha que ela devia ser naquele lugar de luz, ordem e beleza, com sua armadura manchada e rachada, o elmo sujo cobrindo o cabelo despenteado. Alguém tão desmazelado assim, afirmando ser uma guerreira em luta contra um mal antigo, seria uma farsa. Kadiya mordeu o lábio e tentou acompanhar os passos dos outros, que eram mais altos e caminhavam com leveza e graça.
O corredor comprido ia dar do lado de fora e Kadiya viu um território sob o sol quente, sem nenhuma nuvem de chuva. Construções brancas, com as cores claras do arco-íris por cima, espalhadas como um punhado de conchas jogadas a esmo, sem ordem e sem nenhum padrão de ruas, como existe em Yatlan. Flores e arbustos com folhas de cor clara cobriam o solo entre os prédios.
As pessoas andavam por estreitos caminhos. Ao ver Kadiya e sua escolta, começaram a se aproximar. Todos eram Desaparecidos e pareciam tão surpresos ao vê-la quanto ela ficara da primeira vez que os viu no templo.
Estavam em silêncio, mas Kadiya sentiu um murmúrio distante dentro da sua cabeça e achou que estavam usando telepatia, em um nível que ela não alcançava. O grupo se afastou à medida que Kadiya e os três chegavam perto, embora alguns começassem a segui-los. Ela examinava cada rosto enquanto andava, imaginando se seria capaz de encontrar outros, representados pelas estátuas dos guardas de Yatlan.
E descobriu um... outra mulher que se juntou ao grupo cada vez maior. Aproximaram-se de um segundo prédio, quase tão imponente quanto o que os hassitis usavam como moradia e depósito, em Yatlan. Mas ali não havia trepadeiras cobrindo as paredes, e a vegetação perto da entrada era cultivada. O ar era leve e havia fragrâncias, que passavam a cada suave lufada de brisa. Kadiya ficava cada vez mais maravilhada. Tinham dito muita coisa sobre os Desaparecidos. Eles tinham resolvido viver em um lugar com mais belezas do que Kadiya achava possível existir em qualquer terra.
O portal parecia não ter porta. Lamaril adiantou-se. Pôs a mão em uma placa brilhante na moldura da abertura. Soou uma série de notas musicais.
Kadiya só viu um brilho sólido azul-esverdeado diante deles. Ao som daquela mensagem musical, a cortina de luz ela achava que era isso - abriu, permitindo que entrassem.
Dentro havia um corredor, e de acordo com o que ela podia determinar, com muitas portas de luz, que variavam desde o azul mais profundo até o verde-claro. Uma delas, bem lá na frente, no corredor, também se abriu, e ela viu duas pessoas saindo.
Os primeiros Desaparecidos que Kadiya encontrou eram espantosos, mas esses dois eram o verdadeiro poder, muito bem guardado. Kadiya tropeçou e caiu de joelhos. Sempre achou que a Arquimaga era alguém que merecia reverência completa. Aqueles dois, um homem e uma mulher, eram tão especiais, que Binah poderia servi-los. O poder que radiava dos recém-chegados era tão forte que dava para sentir, como o calor do sol a pino, no auge da estação da seca.
Em sua mão os três olhos, com os círculos de pontos brilhantes que a flor lançara sobre eles, estavam completamente abertos e olhavam fixo para os dois, como se o que animava a espada reconhecesse uma energia superior à qual precisava reagir. O amuleto também ficou resplandecente. Mas Kadiya se sentiu diminuída, apesar de achar que não tinha criado nenhuma idéia falsa sobre o que ela era.
- Filha da terra que abandonamos - era a mulher que falava -, por que veio nos perturbar agora? Nós nos retiramos como devíamos, fomos forçados a partir para o exílio por causa do orgulho e das más opções. Deixamos aqueles com quem não fomos justos, aqueles cujas vidas moldamos com arrogância, para que vivessem em paz.
Kadiya não ousava olhar diretamente para a mulher que falava.
- Ó Grande, a escolha pode ter sido feita no passado, mas a terra não está livre. Um ser do mal que parece ser da sua raça, apesar de disfarçado com uma nova doença, semeou um tipo de morte pela terra que os que ficaram não conseguem derrotar. Era ele que eu estava seguindo, e cheguei a esse lugar. Não entendo como pode um ser como esse conviver com vocês aqui.
- Ele não convive conosco - respondeu o homem. -Aquele que é de Varm retornou para o seu senhor. O portão pelo qual ele entrou não é o nosso. Mas aquele de Varm vive, e é uma coisa do mal. Filha das novas terras, descanse e fique em paz. Temos muito o que pensar agora.
Eles sumiram, como vela que se apaga, e Kadiya estava certa de que eram tão sólidos quanto ela. Ela ficou de joelhos e continuou a olhar para o lugar onde eles estavam. Foi assim que o ser envolto em névoa do primeiro encontro no jardim desapareceu.
Alguém tocou em seu ombro, e ela viu o rosto da mulher que a acompanhara até ali.
- Filha do Rei, venha. Descanso, comida e bebida estão à sua espera. Na verdade, há muito em que pensar.
Kadiya levantou-se, trêmula. O amuleto estava menos brilhante Os olhos na espada semicerrados. Aquele poder que os tinha feito abrir devia tê-los deixado assim, mas ela não sentia a fraqueza de sempre, quando fazia uso dos objetos Mágicos. Estava muito cansada. Sabia que há muito tempo não comia e percebeu que seu corpo estava todo doído.
A mulher escoltou-a pelo corredor até uma porta com luz Verde, que desapareceu ao se aproximarem.
Kadiya conhecia o conforto da sala das senhoras na Cidadela, no entanto às vezes se impacientava com a necessidade desses luxos. Tais luxos não eram nada, se comparados ao que estavam lhe oferecendo naquele momento.
Banhou-se em uma piscina em forma de concha, na qual a Mulher derramou punhados de um pó, fazendo uma espuma calmante para banir os desconfortos de contusões, arranhões e todas as outras dores da árdua viagem.
Enquanto ela relaxava com prazer, a mulher ficou sentada em um banquinho. De repente, depois de menear a cabeça rapidamente, quando Kadiya agradeceu toda aquela generosidade, ela falou:
- Conte-me de Yatlan, viajante. Eu sou Lalan, e um dia pertenci à guarda interna de lá. Às vezes sonho que estou passeando pelas ruas, no jardim... - Sua voz tinha um vestígio de nostalgia.
- A cidade tem magia dentro dela - disse Kadiya. - De longe parece estar em ruínas, como todos os outros lugares nas inúmeras ilhas - ela hesitou -, dá a impressão de estar esperando, como os hassittis.
- Os hassittis. - Um pouco da saudade desapareceu do rosto da outra. Ela sorriu brevemente, curvando os lábios. - Aqueles pequeninos! Eles estavam sempre por lá e faziam muitas brincadeiras, provocando o riso, mesmo quando o coração estava pesado. Como estão os hassittis agora, Filha do Rei?
Kadiya descreveu mais uma vez seu encontro com os habitantes de Yatlan, explicando melhor os detalhes. Enfatizou o fato de os hassittis preservarem da melhor forma possível o que consideravam tesouros dos que partiram. Lalan balançou a cabeça.
- Eles sempre foram assim... salvadores de coisas. Gostaria que tivessem podido vir conosco, pois sentimos falta das suas brincadeiras.
- Vocês não puderam trazê-los?
A mulher fez que não com a cabeça.
- O portão recusava-se a deixar passar quem não era da raça. Quando escolhemos este exílio, não o fizemos pelo bem dos outros: os que vocês chamam de oddlings e os hassittis também. Nós os criamos a partir de sementes desconhecidas e tinha chegado a hora de crescerem e ser o que tinham de ser.
- O portão não me repeliu.
Saindo da banheira, Kadiya secou o cabelo embaraçado com uma toalha.
- Não, e isso ainda não compreendemos - respondeu Lalan.
Ela deu para Kadiya uma roupa feita com o mesmo tecido transparente que ela usava; ela não era branca, mas cinza, como a névoa que surgia nos rios todas as manhãs. Os broches no ombro eram de prata, com pedras iguais a bolhas de água, transparentes mas com pontos de todas as cores do arco-íris. Kadiya deixou de lado o cinto que estava junto com a túnica, preferindo usar seu cinturão gasto da espada. Saciou a fome com uma refeição parecida com a que os hassittis deram a ela: frutas e um pote com uma substância cremosa.
Quando Kadiya terminou, Lalan, que tinha partilhado com ela aquela refeição, fez perguntas sobre as terras pantanosas. Kadiya pensou que talvez ela tivesse um motivo para isso, que não era apenas curiosidade.
Kadiya também fez perguntas.
- Todos os Grandes saíram mesmo de Yatlan? Eu encontrei um... ou alguém lá, que falou de conhecimento a ser conquistado. Isso foi real, um sonho, ou será que ouvi uma sombra falar?
Lalan demonstrou espanto.
- Fale mais sobre isso.
Era como se desse uma ordem. Kadiya obedeceu. Ao terminar, Lalan respirou fundo.
- Ora... até esse ponto Carnot teve sucesso. Mas continuar ativo durante tanto tempo... - ela suspirou. - Ele era um de nós e se recusava a Creditar que o nosso tempo tinha acabado de fato. Ele jurou que outros viriam nos procurar, que mereciam trilhar nossos caminhos. Até quase o fim ele trabalhou com todo o seu poder, e ele possuía um conhecimento maior que o da maioria e se esforçou para formar aquela aparição, que estaria sempre pronta para ajudar esses seguidores... se fossem da luz.
Ela observou Kadiya atentamente.
— Então esse mensageiro apareceu para você.
- Só uma vez - respondeu Kadiya. - Ao retornar a Yatlan esperava vê-lo de novo, mas não o vi.
- O poder enfraquece sob a pressão do tempo. Talvez esse único contato tenha sido o que Carnot deixou. Ele tinha pouco tempo para fabricar isso pois estava ferido de morte e morreu antes da nossa última retirada. Mas talvez tenha funcionado bem, pois fez com que você seguisse o caminho que a trouxe até aqui.
Bom, nós já conversamos bastante e você deve estar muito cansada, chamada pela sombra. É hora de descansar.”
Lá fora estava escurecendo, e Lalan levou Kadiya para um outro aposento. Era esterito, mas tinha uma janela aberta, por onde entrava uma brisa perfumada. Tinha uma cama feita de acolchoados fofos, um em cima do outro, como as esteiras dos oddlings.
Com a espada à mão Kadiya deitou-se naquela maciez, que afundava e acariciava seu corpo. Murmurou um agradecimento para a anfitriã e fechou os olhos.
Vermelho... vermelho de sangue fresco, como uma chuva horrenda depois de uma batalha no céu. Dentro do vermelho coisas se moviam escondidas por essa capa escarlate, e havia sons, fracos demais para serem percebidos como palavras, mas que eram importantes.
A cortina de sangue ficava cada vez mais forte, como se uma força dentro dela perturbasse o ar e a vida. Então Kadiya conseguiu ver, não estava mais cega com aquela explosão de chamas.
Ela via um poço de escuridão em que sombras profundas pesavam dos três lados de uma grande cadeira. Nessa espécie de trono estava sentada uma figura inerte, com as costas encurvadas, o queixo encostado no peito, sem força para erguer a cabeça, as mãos abertas sobre os braços da cadeira. Esse corpo esgotado não estava coberto, tinha apenas manchas amarelas incrustadas, como feridas abertas, a carne podre por baixo.
Kadiya sabia que aquele era o que tinham seguido pelo rastro da praga. O corpo dele estava tão emaciado que Kadiya pensou que estivesse morto.
O trono, que era negro, começou a ficar avermelhado, igual a um carvão cuja brasa desperta e vira chama novamente. O brilho foi ficando cada vez mais forte, mas a luz não iluminava a escuridão em volta. Ao contrário, as sombras se aproximavam. Na cadeira incandescente o corpo estremecia e se contorcia, a cabeça subia e descia. Os olhos, sem sinal do dom da visão, estavam abertos, e a boca com lábios carcomidos se esticava em um esgar. A criatura devia estar berrando bem alto, atormentada, mas nenhum som perturbava aquele cântico que aumentava e diminuía.
O fogo penetrava no corpo. As incrustações amarelas escureceram e sumiram, talvez calcinadas. Os ossos que estavam perfeitamente desenhados sob a pele segundos antes foram cobertos, e a estrutura do esqueleto ganhou forma. O maxilar relaxou e a boca se fechou firmemente. Dava para perceber que os olhos podiam ver outra vez.
Endireitando as costas, com as mãos abertas diante do rosto, como se admirasse a vida recuperada, ali estava um dos Desaparecidos. Ele possuía o mesmo poder espantoso que Kadiya tinha visto nos dois que governavam aquele lugar.
Mas o lugar em que estava era outro, bem distante do templo da flor e do quarto em que havia adormecido. Kadiya tinha a sensação de ainda estar dormindo, mas estava certa de que aquilo que via era verdadeiro.
Uma sombra caiu sobre o homem sentado no trono em chamas. Ele a segurou e puxou-a para si. E apareceu um corselete de escamas igual ao que os oddlings usavam, só que o dele era preto e lustroso e, cada vez que se mexia, soltava um brilho vermelho como fogo.
Ele esticou a mão outra vez para a sombra, com os dedos curvados, e um pedaço daquele manto escuro se soltou. Na mão dele surgiu um bastão com um terço do comprimento de uma lança. Em uma ponta formou-se uma bola, que cresceu e se transformou em um crânio, uma miniatura da que o skritek usava.
Os buracos dos olhos da caveira tinham um brilho vermelho como o da cadeira, quando o homem levantou o cetro bem alto, com uma máscara de exultação vitoriosa no rosto. Ele se levantou, e o trono no qual sofrera aquela transformação foi se apagando e ficou cinzento.
Ele segurou o bastão com as duas mãos. Inclinou a cabeça e soprou no maxilar aberto da caveira. Girou o pulso rapidamente e o cetro rodopiou. Da mandíbula onde tinha soprado surgiu um raio amarelo-esverdeado, da mesma cor da praga.
O raio seguiu direto para Kadiya. Ele percebia que ela estava ali Mas o golpe, se era para ser um golpe, não funcionou.
Houve um clarão de fogo novamente e depois a escuridão. Ela sentiu a carícia de uma brisa ao abrir os olhos. Aquele era o quarto onde tinha se deitado para dormir. Lá fora uma penumbra silenciosa cobria o mundo. Kadiya levantou-se e foi até a janela para ver o que havia mais além. Era um canto de jardim, sereno ao crepúsculo, e de repente ela sentiu vontade de se libertar das paredes e ir para aquele espaço aberto, de quietude e beleza.
Quietude e beleza, bem distante daquele lugar de escuridão e fogo, onde um recebera uma nova vida e uma arma infame que lhe dava poder.
Pois Kadiya tinha certeza de que o sonho era real, assim como os hassittis também sabiam quando viam as imagens de Salin. Tinha visto uma coisa que de fato aconteceu, longe dali.
Tão carente da pureza, do frescor e da paz que havia lá, Kadiya pulou pela janela, em vez de sair pela porta. Sentiu com os pés descalços a suavidade da grama macia. À sua volta havia uma cerca alta de arbustos floridos, balançando um pouco com o vento do começo da noite. Ela ficou ali parada, respirando fundo o ar perfumado.
Kadiya sabia que tinha de contar o que vira para os que lhe davam abrigo, mas estava constrangida. Era como se o fato de ter testemunhado aquilo pudesse maculá-la de alguma maneira, pois ninguém poderia passar pelas chamas de sangue e ver o poder que operava com tanta força naquele trono, sem adquirir uma pequena mancha.
Kadiya deu um passo à frente. Só essa lembrança fazia com que sentisse de novo o fedor terrível da praga. Ela se inclinou para encostar o rosto em uma flor grande, sorvendo o seu perfume. Um dos insetos faiscantes como fogo, que tinha visto no jardim de Yatlan, pousou na sua mão e ficou ali parado, batendo as asas brilhantes.
- Sim - disse ela em voz alta, para a noite e para o inseto -, sim, isso é...
Ela procurou uma palavra que englobasse tudo que sentia naquele momento.
- É você, Filha do Rei
A voz assustou Kadiya. Sua mão segurou o cabo da espada que tinha pendurado na cintura ao sair do quarto. Ele apareceu de trás de um grande arbusto e ficou olhando para ela com um olhar desafiador.
- Lamaril!
Ele chegou perto dela com passos muito leves. Antes de Kadiya perceber o que ele ia fazer, Lamaril já estava com a mão no seu queixo, erguendo um pouco seu rosto para poder olhá-la nos olhos.
- Você continua a me chamar pelo nome, Filha do Rei. Será que estou ligado a você de alguma forma? O que você sabe sobre os usos do poder?
- Muito pouco. - Ela virou o rosto e livrou-se da mão dele, sentindo que a paz interior terminara. - Não tenho motivo para comprometê-lo, guerreiro.
- Conte-me mais dessa estátua igual a mim que você viu.
Ela repetiu em poucas palavras como Jagun e ela encontraram os montes de lama ao longo da estrada esquecida e como o último, livre da cobertura úmida, era a estátua que apontava o caminho para Yatlan.
- Jagun conhecia as antigas lendas - rematou Kadiya. - Foi ele que disse que você fora um guerreiro na última batalha.
Pela primeira vez ela viu Lamaril sorrir, só um pouquinho, igual a Lalan quando Kadiya falou sobre os hassittis.
- Poucos sabem que eles são homenageados assim - comentou ele. - Mas antigas lendas muitas vezes são modificadas e se tornam incríveis. Então a guarda externa continua lá, mesmo coberta de lama. Isso dá o que pensar. Erous, Nuers, Isyat, Fahiel e eu... os últimos.
- Há outros... na cidade, nos degraus que dão no grande jardim - disse Kadiya. - Mulheres e homens... eles são guardas também?
Ele parou de sorrir, mas fez que sim com a cabeça.
- São - Lamaril falou baixinho e mudou a direção do olhar, como se visse através dela. - Nós éramos muitos... depois poucos, poucos conseguiram chegar ao portão. No final a própria terra se manifestou e nos expulsou a todos, do mal e da luz, juntos. Filha do Rei...
Kadiya interrompeu o que Lamaril dizia.
- Meu nome é Kadiya. Se existe algum poder nos nomes, então ofereço o meu em troca.
Outra vez aquele meio sorriso nos lábios dele.
- Kadiya - ele repetiu o nome dela, saboreando. - Esse nome é estranho, mas você o carrega com orgulho, Dama do Poder. Diga-me, e a velha terra? Deve estar muito diferente.
- Primeiro você me diz - retrucou ela. - Onde é que fica uma cadeira de fogo, na qual um homem à morte pode se sentar para restaurar sua vida?
O sorriso desapareceu por completo. Os olhos dourados estavam semicerrados.
- O que você sabe de Varm?
- Nada, só ouvi quando mencionaram seu nome aqui. Mas tive um sonho e creio que foi um sonho real, como se espiasse em uma bacia vidente.
Ela contou o que tinha visto naquele lugar de fogo e sombras.
- Então é isso! -A voz dele ficou estranha, denotando cansaço. - A coisa desperta novamente. Talvez seja infinita, essa luta. Mas Uono e Liça precisam saber disso, e logo. Venha!
Lamaril segurou o braço de Kadiya e levou-a com ele, por um caminho no jardim até a porta da frente do prédio, de onde ela havia saído tão sem cerimónia.
Dessa vez ele tamborilou com força na placa ao lado do portal e o som que ouviram foi mais profundo e mais imperativo, exigindo atenção.
Ela não tentou se livrar dele, pois sentia que o assunto era da maior importância, e achou, naquele momento, que a sua presença era semelhante à de Jagun, e que ele ficaria ao seu lado.
Ela se viu na presença dos dois que ofereceram sua hospitalidade.
Kadiya repetiu rapidamente a história do seu sonho vendo o homem e a mulher trocarem olhares, enquanto ela falava.
Quando terminou, o homem falou demonstrando o mesmo cansaço que ela viu em Lamaril.
- Outra vez... será que nunca vai acabar?
- Será que pode haver um fim - questionou a mulher. Para cada coisa existe um oposto, assim o equilíbrio se mantém. Onde existe luz, há escuridão, talvez para que a luz possa ser melhor apreciada. Mas o poder de Varm despertou, e acho que nosso campo de batalha está nos esperando novamente. Só que o portão está trancado.
- Aquele portão não abre para ninguém! - declarou o homem, mas Lamaril interrompeu.
- Há os guardiões.
- Isso é uma missão... - Mas a mulher não estava respondendo ao capitão, ela olhava diretamente para Kadiya, avaliando-a criteriosamente, de forma que Kadiya logo ficou tensa, pronta para enfrentar um ataque.
- Poderia ser feito. - O homem ficou pensativo, olhando para Kadiya também.
O espanto inicial diante deles diminuiu. Kadiya queria entender.
- Eu fui trazida para cá a fim de cumprir alguma missão, ó Nobres E vocês agora hesitam em contar que missão é essa? Escolhi as terras pantanosas porque quis. Elas agora estão infestadas com a praga e talvez outros perigos. Uma vez que isso é meu - ela tocou na espada - e que não voltou para quem a enviou, então devo seguir o caminho que ela indica.
Eles continuavam a olhar para ela, avaliando.
- Você faz parte de um povo que não conhecemos - a mulher falou devagar. - Mas parece que vocês tomaram conta da velha terra. Se Binah se dava com vocês, era porque achava que tinham valor. Conte-nos mais, Filha do Rei, sobre sua raça e sobre a velha terra. Pois esse é um assunto que não pode ser resolvido sem muita reflexão.
A história do povo de Kadiya estava gravada nela, apesar de toda a sua resistência, quando criança, em desperdiçar seu tempo com os rolos antigos, em vez de passear com Jagun. Kadiya procurou pôr em ordem tudo que se lembrava daquele aprendizado. Como seu povo tinha atravessado o oceano e se apossado das terras pantanosas, protegidas pelas barreiras de montanhas, que os mantiveram seguros durante tanto tempo, as barricadas que tinham sua contrapartida ao sul, na forma das florestas de Tassaleyo.
Contou como os camponeses drenaram a água no norte e como cultivaram a terra já livre da água, falou dos negócios com os oddlings, da feira de comércio em Trevista, de como seu povo respeitava os que viviam no pântano, e que muitas vezes formavam-se laços de amizade entre eles.
- Nós não somos um grande povo - disse ela, apesar de devolver o olhar deles na mesma medida -, mas nos demos bem na terra. Servimos como pudemos, resistimos ao mal. Os nyssomus nos recebem de braços abertos, os uisgus não nos temem. Não nos intrometemos em suas terras, só vamos lá fazer negócios, e eles são bem-vindos na nossa. Nossa luta é contra os skriteks... mas todos que vivem nos pântanos estão sempre prontos para lutar contra eles.
Kadiya procurou criar imagens com palavras da corte de seu pai na Cidadela, falou da chegada da Arquimaga Binah no nascimento das três irmãs para dar a elas os amuletos do poder.
Depois vieram de enxurrada as lembranças de sangue, de mortes cruéis, de horror, quando relatou a invasão de Labornok, a crueldade de Voltrik e do frio e principal servo, Orogastus. Contou da sua missão, das que couberam a Haramis e a Anigel, do embate resultante de grandes poderes que por pouco não destruiu tudo que conheciam.
Ela passou um bom tempo falando, sentada naquela sala. Duas vezes Lamaril chegou por trás dela, dando-lhe uma bebida para aliviar a secura da garganta, que Kadiya tomou, agradecida.
Lá fora a noite avançava. Com a chegada da escuridão, acenderam luzes em certos pontos no alto das paredes, e ela via bem os rostos dos que ouviam sua história.
- O meu retorno à sua Yatlan e o que aconteceu lá eu já contei. - Ela tocou na espada, um peso sempre presente no cinto gasto que usava. - Mas o que eu disse sobre as terras alagadas é o que está acontecendo agora.
- Yatlan - repetiu a mulher chamada Liça, em um tom de voz suave. - Yatlan, onde deixamos nossas dádivas de despedida nas águas que correm. - Ela ergueu a mão na direção de Kadiya. - Você que veio, diga como está Yatlan agora?
- Uma cidade esquecida, mas não despojada. - Kadiya lembrou-se do tesouro na fonte. - Suas dádivas continuam intactas, ó Nobre. E tem seus habitantes. Eles se chamam hassittis e trabalharam muito para guardar em segurança tudo que foi deixado para trás. Há o jardim... - Kadiya ergueu a espada para que todos vissem. ”Isto nasceu naquele jardim. Binah, a Arquimaga, determinou que eu e minhas duas irmãs seríamos as salvadoras de Ruwenda. Ela me deu uma raiz que me guiou até Yatlan e lá eu a plantei no jardim. Dela cresceu o que vocês estão vendo... a terceira parte de um talismã muito poderoso, a salvação de nosso país. Não peguei mais nada lá”, a lembrança do colar da fonte passou rapidamente por sua cabeça.
A mulher ficou inquieta.
-Tanta coisa... tão estranho... isso mais parece uma história de outra terra, não da que conhecemos.
- É a verdade!
Kadiya bebeu mais um gole e afastou a xícara dos lábios. Podia ser água o que estava bebendo, mas tinha um leve gosto que não conseguia identificar... era acre, mas aliviava a secura da garganta.
- Não estamos negando isso, Filha do Rei. É a sua verdade, que é a verdade deste momento. Mas parte dela está relacionada a uma outra verdade, mais sombria e ameaçadora.
”Nós éramos, nós somos, um povo que está sempre procurando aprender”, a mulher explicou. ”Segredos foram arrancados da terra, da própria fonte da vida. Nós podíamos comandar as pedras, o mar, a terra. Nós crescemos... talvez tenhamos crescido muito preocupados com os poderes que buscávamos com tanta avidez.
“Nós interferimos. Da vida que conhecíamos criamos novos seres, os que você chama de oddlings e os hassittis. Modificamos o crescimento das plantas para servir de alimento ou para agradar aos olhos. Durante um longo tempo, ficamos ocupados com essas interferências e criações.
“No entanto, o poder atrai o poder. Os que o detêm jamais se satisfazem... estão sempre querendo mais. Havia alguns entre nós que não trabalhavam mais com o que pertencia à natureza, eles procuravam criar novidades a partir de outras fontes.
“O poder se levantou contra o poder. Outros despertaram a tempo e perceberam aonde essas pesquisas iam chegar. Houve uma guerra...”, ela fez uma pausa e apareceram rugas em volta de sua boca, como se mastigasse algo amargo.
”Foi então que conhecemos o lado maligno do poder. A terra ficou dividida, as águas jorraram para atacar e dominar. Não éramos mais um só país, pois as terras alagadas nasceram nessa época. Os que eram mais gananciosos pelo poder maligno libertaram suas experiências: os skriteks e as plantas que matavam e se alimentavam de suas presas.
”As cidades foram atacadas e dominadas, e continuamos a lutar, força contra força, liberando novos segredos da terra e do céu. No final a morte caminhava sempre ao nosso lado. Alguns do mal que tinham liberado o pior do conhecimento das trevas não podiam ser mortos. E restou um grupo deles.
”Fugindo de um confronto final, eles buscaram refúgio nas montanhas. Lá eles haviam preparado um lugar que era o último recurso, pois tinham um poderoso vidente, chamado Varm”, ela pronunciou o nome sibilando. ”Mas não serviria para quase nada, pois tínhamos lançado a nossa maldição. Se saíssem daquele esconderijo, todas as mazelas do mundo cairiam sobre eles, e eles apodreceriam.
”Eles foram para esse esconderijo, menos Varm e dois de seus acólitos. Os outros se deitaram em túmulos para dormir até o dia em que, segundo Varm garantiu com sua vidência, eles dominariam o mundo outra vez.
”Nossa força de ataque estava nos calcanhares deles, mas quando chegamos ao esconderijo na montanha, Varm e os dois protegidos tinham sumido. Mesmo assim selamos aquele lugar do sono da morte com magia forte que, de acordo com nossos cálculos, duraria para sempre.
”Varm tinha um lugar só dele”, a mulher fez uma pausa. ”Para quem não nos conhece, isso é difícil de explicar. Você veio por meio de uma barreira... uma barreira de tempo e de espaço. Este lugar não é no seu mundo e nós, que optamos por vir para cá, não podemos voltar. Varm encontrou também um refúgio assim, invocando os próprios poderes para atingi-lo. Mas como era do mal e não da luz, ele não veio para cá.
”O que acreditamos agora é que um dos que dormiam o sono da morte foi libertado de sua prisão, e que ele procurou Varm para receber dele o que faria sua raça despertar novamente.”
Lamaril estava ao lado de Kadiya. Ele tocou gentilmente no seu ombro.
- Kadiya, conte de novo o seu sonho.
- Não creio que tenha sido um sonho - ela disse. - Eu não sou vidente, apesar de ter tido visões. Mas isso, eu juro mais uma vez, foi o que vi enquanto dormia.
E ela repetiu tudo, procurando não esquecer um único detalhe, sobre a cadeira de fogo e de quem a ocupava.
Antes de qualquer dos ouvintes poder dizer alguma coisa, Kadiya fez uma pergunta e praticamente exigiu uma resposta.
- Vocês disseram que não podem retornar ao pântano. E esse seguidor de Varm pode? Varm pode? Ainda estamos batalhando para curar as feridas da guerra. Será que temos de enfrentar e lutar contra um inimigo ainda maior?
Não era uma pergunta, mas várias, e ela sentiu a antiga frieza surgir lá no fundo, enquanto esperava impaciente pela resposta.
O homem falou primeiro.
- Filha do Rei, o nosso caminho e o de Varm não são o mesmo há muito tempo, eles seguem em direções opostas. Nós aceitamos que não haveria volta. Talvez ele tenha procurado um modo de retornar. Ou então o servo que ele chamou pode ser habilitado para voltar.
Kadiya encarou-os e percebeu que tinha superado o espanto que eles provocavam.
- Ó Nobres, vocês estão dizendo que não têm como nos ajudar? Vamos perder nossas vidas e nossa terra para aquela praga rastejante do mal? Acho que nem Haramis, com todo o seu conhecimento, pode criar uma arma para acabar com aquilo!
-Existe um jeito...
Kadiya percebeu que Lamaril estava ao seu lado.
- Será que os Silenciosos não foram deixados lá... quem sabe exatamente com esse objetivo? Eu posso invocá-los, se vocês quiserem.
A mulher balançou a cabeça.
- Esse mal partiu de nós. Não podemos continuar alienados e deixar que se espalhe novamente. Fizemos um juramento um dia, comandante das Sindonas. - Ela se virou para Lamaril. - Você deseja cumpri-lo
- Lica, eu desejo sim, e todos que fizeram o juramento também.
Kadiya mudava o peso do corpo de um pé para o outro. Não usava mais sua armadura gasta e quebrada, o elmo amassado e toda a sua roupa de viagem. E não estava também com a túnica transparente. Tinha os ombros presos em uma cota de malha feita com o metal azul-esverdeado do depósito dos Desaparecidos. E por baixo calças de um material resistente como couro bem curtido, só que macio como o melhor tecido que seu povo conhecia.
Sob o braço esquerdo segurava um novo capacete, cuja parte da frente era uma meia máscara. Abaixado cobria até sua boca e tinha buracos para os olhos, com um vidro esverdeado. Em volta dele havia uma grinalda com forma de trílios, só que esses eram amarelos como a imensa flor, que estava à sua direita, e se mexia um pouco sobre o altar.
Tinham dito a Kadiya o que devia ser feito, mas não prometeram grande ajuda nisso. E a estranheza da tarefa fazia com que as lendas cantadas pelos bardos fossem todas verossímeis e maravilhosas. Mas os que estavam enfileirados diante dela acreditavam, por isso ela devia aceitar que era possível.
Havia seis na frente, e Lamaril era o líder. Doze perfilavam atrás e ela conhecia cada rosto. Eram o povo de pedra, os guardiões, só que estavam vivos e respirando.
Estavam todos nus e não carregavam armas. Será que encontrariam as armaduras e as armas que precisavam do outro lado do portão? No meio do monte de coisas que os hassittis juntaram, certamente há bastante tempo. Mas e as armas? A não ser que as deles fossem completamente diferentes de espadas e lanças.
A grande flor dourada balançava, lançando no ar aquelas partículas coloridas. Uono e Liça avançaram para o lado oposto do altar. Na mão da mulher havia um pote dourado, quase transparente. O homem carregava um frasco prateado, de boca larga, que podia ser facilmente amarrado a um cinto... um cinturão de espada maltratado e manchado como o que Kadiya usava.
Da flor partiu uma música que chegou ao grupo reunido atrás dos que esperavam. Embora Kadiya não compreendesse as palavras, sentiu a emoção daquela invocação.
Trompetes podiam despertar o seu povo para a batalha. As cornetas de conchas dos oddlings soariam grosseiras naquele lugar. Aquilo não era um chamado para a vitória, era um adeus. Havia uma possibilidade de retorno para os que esperavam, é verdade, mas era apenas isso e ninguém podia garantir.
Eles não eram seres da sua espécie. Kadiya não tinha certeza de poder fazer o que era preciso, não importa quão importante a causa. Seu olhar procurava sempre Lamaril. Não via o que estava diante dela, e sim aquele outro, sujo de lama, plantado no lodo das terras alagadas.
Ela esperou durante três dias atemporais deles, e por duas vezes ele a procurou. Fazia perguntas objetivas, questões que interessavam a um homem de luta, prestes a comandar suas tropas em batalha.
Confiança... eles a aceitaram baseados na confiança. Ela conhecia a exultação da vitória apesar das dificuldades, da época que enfrentou Voltrik e Orogastus. Aquele momento era mais tocante do que qualquer outro que experimentara.
Tinham dito que aquele lugar estava suspenso fora do tempo, como o que ela conhecia. Não havia passado, e o futuro não importava. Havia apenas o presente. Teria de voltar no tempo e sair de um lugar que a envolveu com uma paz maior do que a do jardim de Yatlan... pois aquele jardim era apenas uma amostra do que havia ali.
O brilho misturou-se com o trinado da música e o trinado com o canto. No altar a flor começou a se mexer mais depressa. Liça chegou para a frente, e pôs o pote aos pés do caule que balançava. Do coração da flor saiu uma nuvem de partículas douradas, pólen que escapava com os movimentos. O pote começou a brilhar, enquanto a chuva de ciscos minúsculos caía dentro dele.
A canção dos Desaparecidos ganhou força. Deviam estar estimulando a flor a soltar seu pólen. Quando a bacia estava meio cheia, a enorme flor estremeceu e curvou-se, fechando o triângulo formado pelas pétalas, perdendo a cor viva.
Liça ajoelhou-se diante do altar. Ela enfiou as mãos na terra escura, onde a flor estava plantada. Jogou a cabeça para trás e fechou os olhos, rugas de tensão apareceram nos cantos da sua boca.
Kadiya também sentia! Do mesmo modo que sua energia alimentava a espada trilobada quando em uso, aquela mulher dos Desaparecidos oferecia sua força para alimentar a flor.
O canto ficou mais suave, o trinado não passava de notas isoladas. Liça caiu para a frente e ficou com a cabeça encostada na beirada do altar. A flor se endireitou e separou as pétalas outra vez, renovada.
Era a vez de Kadiya. Tinham explicado o que ela devia fazer naquela cerimónia estranha para sua compreensão.
Ela pôs o elmo no chão e avançou de lado, com cuidado, até chegar perto de Liça. Esticando os braços por cima dos ombros encurvados da mulher, Kadiya pegou a bacia com as duas mãos. Sabia que o que havia ali dentro era insubstituível. Tinham dito que não podiam invocar de novo aquela chuva de pó da flor.
Segurando o pote de encontro ao peito, Kadiya virou-se e desceu o único degrau que havia para o piso do templo. E seguiu em frente.
Lamaril era o primeiro. Ela ainda não estava bem certa do que ia acontecer, só sabia que não podia deixar cair o que segurava, que ia uni-la aos que viviam naquele lugar, que ia uni-los ao que havia além da barreira que ultrapassara para chegar até ali.
Chegando na frente do comandante das sindonas, Kadiya ergueu um pouco a bacia. Ele levantou a mão e mexeu o conteúdo com a ponta dos dedos. Uma espiral minúscula de pólen subiu e rodeou a cabeça de Lamaril.
Uma névoa se alastrou a partir daquele fio de ouro, perdeu o brilho maravilhoso, virou uma nuvem, desceu e cobriu o homem da cabeça aos pés. Uma ponta de fio surgiu no meio do nevoeiro e entrou na bacia, onde se desfez. Lamaril desapareceu.
Kadiya engoliu em seco e apertou mais ainda o recipiente que segurava. Ouvir contar que aquilo podia acontecer e ver acontecendo eram coisas bem diferentes.
Um por um eles foram sumindo diante dela. Mas a bacia não ficou mais cheia e nem mais pesada em seus braços. Aquela mágica Kadiya jamais tinha visto.
Depois que o último se foi, Kadiya voltou para perto do altar com a bacia. Liça estava de pé, mas apoiada na pedra onde ficava a flor. Era óbvio que estava completamente sem forças.
Ela estendeu a mão, e Kadiya entregou-lhe a bacia. Então Liça virou-se para Uono, que segurava o frasco de boca larga. Dentro dela ela derramou o pólen, tão devagar, que devia estar caindo um grão por minuto. Uono tampou o recipiente. Ele umedeceu o indicador da mão direita e apontou-o para a flor. A planta soltou outra vez a poeira de arco-íris, e Uono espalhou-a cuidadosamente entre a tampa e o frasco, para selá-lo.
Feito isso, entregou-o para Kadiya. Ela respirou fundo. Apertou os dedos em volta do frasco. Prendeu-o ao cinturão da espada, certificando-se de que o nó estava bem apertado. Depois pegou seu elmo. Como faria para se despedir? Eles tinham feito o que podiam pelo bem de uma terra que não era mais deles. Ela podia dizer que obedeceria às suas ordens, mas isso eles já sabiam. Tinha sido sempre muito fluente, tanto quanto era impetuosa, mas não tinha palavras para oferecer naquele momento, talvez nem pensamentos.
Os dois que estavam perto do altar não pareciam esperar que ela dissesse qualquer coisa. Uono fez um gesto, e Kadiya obedeceu. Virou-se, com Liça de um lado e o alto camarada conselheiro do outro. Escoltada pelos dois, f ficou de frente para uma parede.
Kadiya ainda não tinha certeza do que ia acontecer, e achava que os dois estavam tão ansiosos quanto ela. Só podia fazer o que parecia certo.
Ela sacou a espada. Os olhos, cujas bordas das pálpebras ainda cintilavam com a dádiva da planta, estavam bem abertos. Segurou a lâmina sem ponta com firmeza e virou os olhos para a parede.
Então surgiu aquele raio unido de força, e ela teve a sensação familiar de energia se esvaindo. No lugar em que o raio atingia a parede, a luz se espalhava e ficava na superfície como uma capa grudada ali.
Kadiya andou para a frente, prestando atenção apenas no bloco de luz. Aquele era o teste. Não havia pedra lá. Não. Era uma porta aberta, pronta para ela.
Continuou visualizando a porta. Teve outra vez uma vertigem, a sensação de estar sendo privada de tudo que era estável e conhecido. Estava novamente na sala subterrânea, até onde tinham seguido o acólito de Varm. Diante dela, com a lança em riste e a zarabatana na boca, estavam Jagun e Smail, e atrás deles os dedos de Salin teciam estranhos desenhos de poder no ar.
Ninguém lhe deu boas-vindas. Tudo que Kadiya viu foi um cansaço desconfiado. Então se lembrou da máscara do seu novo elmo e rapidamente empurrou o visor para trás, revelando seu rosto.
- Visão Penetrante! - O grito sufocado de Jagun era uma recepção animada. - Mas... - Seus olhos se arregalaram de espanto. - Você sumiu. Você voltou. E agora está usando uma nova armadura...
- Fui e voltei... quanto tempo se passou, Jagun? - Ela se lembrava de dias atrás, talvez cinco. Será que os três ficaram naquele lugar esse tempo todo
- O tempo que levaria para tirar o couro de um borick... talvez um pequeno - ele respondeu.
- Mas... não. Foram dias! - Kadiya estremeceu de medo. O que foi que os outros disseram? Que onde viviam o tempo não significava nada.
Contudo podia acontecer de ela não ser a única a ter retornado para aquela sala.
- A morte que anda, aquele de Varm... - perguntou Kadiya. - Ele também voltou?
Os três oddlings balançaram a cabeça.
- Só você, Visão Penetrante, e esteve fora apenas uma fração de tempo... não dias.
Ela olhou para trás, para a parede de onde tinha saído. Com isso tinha ganho um pouco de tempo, do modo como compreendia o tempo. O outro ainda não voltara.
- E os skriteks - quis saber Kadiya.
- Eles também não voltaram - garantiu Jagun. - Salin - ele virou a cabeça para a mulher - montou um alarme que não acusou nada ainda.
Mais uma vez a sorte estava do lado deles. Ela alisou o frasco muito bem preso no seu cinturão. Tinham uma longa viagem pela frente, e ter de lutar para abrir caminho até o seu objetivo significava atraso... se não derrota, mesmo.
- Filha do Rei - chamou Salin -, o que você encontrou do outro lado?
- Aqueles que governaram um dia - ela respondeu. - Os Nobres.
- E eles também vêm nos ajudar? - A mulher uisgu olhou para a parede atrás de Kadiya.
- Do jeito deles - respondeu Kadiya. - Mas não estarão conosco neste lugar. E é bom sair daqui antes que aquele outro retorne. Ele carrega com ele um objeto do poder das trevas. Temos de ir!
Kadiya já estava no final da tela, que escondia a entrada secreta e, sem mais perguntas, os outros se enfileiraram atrás dela. Seguiram pela mesma escada, só que dessa vez descendo para as profundezas. Ninguém tinha mexido na jangada tosca que os levara até lá. Kadiya viu as narinas dos três oddlings se distendendo e sabia que procuravam sentir algum cheiro, que traísse a presença dos skriteks. Mas se as criaturas conheciam aquele caminho, não o usavam há muito tempo.
Embarcaram na jangada primitiva e partiram para céu aberto. Kadiya olhava para cima à procura de qualquer movimento que pudesse indicar a presença do monstro tecelão, cuja teia tinham destruído. Mas passaram tranqüilamente pelos fios arrebentados.
Kadiya continuou tensa depois que se afastaram das sombras dos arcos, formados pelas raízes das árvores. A terra de espinhos e monstros ainda os cercava. Era difícil aceitar que tivessem chegado tão longe sem nenhum ataque. O céu estava cheio de nuvens, mas não chovia.
Ao cair da noite chegaram ao abrigo improvisado nas ruínas sinistras da torre. Não tinham conversado durante a viagem, estavam todos muito atentos, de guarda. A ansiedade que incomodava Kadiya obviamente era partilhada pelos companheiros. Mas ela sentia a maior tensão de todas... a necessidade de chamar à vida a ajuda da qual precisavam.
Diante deles havia um perigo novo, ou melhor, um perigo antigo, só que reforçado. O contágio semeado pelo seguidor de Varm tinha se espalhado, e eles tinham de desviar das manchas de corrupção com todo o cuidado. Já era quase noite. Por sorte, dos pontos nojentos emanava uma luz fraca e purulenta, que servia de aviso. Estavam sendo forçados a sair da rota direta por aquela coisa pútrida. Afinal chegaram a um lugar por onde não podiam mais passar. A cerca de espinhos formava uma barreira outra vez. Nessa, os próprios espinhos estavam contaminados, cobertos de bolhas, como pústulas de doenças incuráveis. Kadiya viu algumas estourando e respingando gotículas de matéria esverdeada, que subiam e voavam com a brisa, grudando em tudo que tocavam.
Ela sacou a espada. Apesar de saber muito bem que o que ia fazer acabaria por enfraquecê-la, não tinha escolha. Os olhos estavam abertos desde o Templo da Flor Eterna. De fato, até pareciam mais brilhantes, estranhos, mais conscientes, por causa daqueles pontos cintilantes em torno das pálpebras.
Kadiya concentrou toda a sua força de vontade. Do mesmo modo que tinha servido de chave para a porta na parede, o olho de cima lançou um raio de luz, incrementado pelos dos outros dois. Aquela língua faiscante golpeou a vegetação podre diante deles, e Kadiya movia a espada de um lado para o outro, como se usasse a lâmina contra um inimigo armado.
Aconteceu uma explosão de fogo no meio dos espinhos, que foi se espalhando à medida que avançava. Os outros três fizeram uma fila atrás dela. Kadiya ouviu um canto fraquinho e então sentiu algo tocando em seu ombro. Salin estava ao seu lado e dela emanava um fluxo de força, atendendo ao seu apelo. O fluxo aumentou uma, duas vezes. Jagun e Smail deviam estar colaborando também.
O fedor da morte quase desapareceu sob o odor de mato queimado. Kadiya procurou avançar mais depressa. Aquilo estava traindo a presença deles e qualquer skritek que vagasse por ali ia querer investigar.
Ela tropeçou uma vez. Raízes parcialmente queimadas, saindo da terra, enganavam os desprevenidos. Mas continuou a usar a espada, embora seu braço estivesse pesando. Não conseguia manter o passo rápido do início. Sua energia era sugada sem parar, apesar da ajuda que os outros prestavam.
Kadiya tropeçou outra vez, mas não caiu. Viu que o raio de luz que comandava estava mais curto. Ele piscou uma ou duas vezes. Ela mordeu o lábio e continuou, obstinada. Seu mundo se resumia àquela luz, ao negrume da parede de espinhos à frente.
-Visão Penetrante!
Não era um chamado em voz alta, era mental, poderoso o bastante para interromper sua concentração.
- Nós já passamos da praga.
- Mas ainda não atravessamos os espinhos... - ela disse em voz alta, cansada demais para usar o último restinho de força interior para se comunicar mentalmente.
- Essa tarefa é nossa, Visão Penetrante. Deixe-nos limpar o caminho.
A oferta de Jagun funcionou como um encantamento. O braço de Kadiya caiu ao lado do corpo e, embora cerrasse os dentes e fizesse muita força, ela não conseguia erguer a espada. O raio de luz tocou o chão, piscou no ritmo de um coração pulsante e apagou. Ela também não conseguiu comandar sua força de vontade para levantá-la de novo.
Salin chegou perto, pôs o braço esquerdo de Kadiya sobre seus ombros e sustentou as duas com o cajado. Sem a luz da espada, Kadiya andava na escuridão, quase cega. Ela não viu, apenas sentiu, quando os outros dois oddlings a ultrapassaram.
O que podiam usar para limpar o caminho, imaginou ela, meio perdida. Ouviu um estalido adiante, que não era de fogo. Então Salin empurrou-a para a frente, dando apenas três ou quatro passos de cada vez. Havia um caminho, mas era tão estreito que os espinhos tocavam neles de vez em quando, arranhando a armadura lustrosa como seda dos Desaparecidos, sem encontrar nenhuma abertura para ferir a pele por baixo.
- Em frente - a voz mental de Salin soava baixinho. - Eles estão usando as facas de passagem, ó Nobre. Não falta muito agora... sinto cheiro de água logo adiante.
Kadiya só se mexia, cambaleante, com a ajuda da mulher sábia. Percebeu vagamente que o arbusto já não estava mais tão fechado. Olhou para cima. Os buracos dos olhos no elmo limitavam sua visão, mas pensou ter visto estrelas no céu da noite que começava, onde as nuvens se abriam. Achava que não ia conseguir ficar de pé por muito tempo.
Kadiya ficou espantada com a força da mulher sábia, que além de mantê-la de pé, também a arrastava para a frente.
Em seguida ela não estava mais de pé, estava deitada, espiando uma estrela emoldurada pelas nuvens. O peso daquelas nuvens escuras caiu sobre ela. A última coisa que fez foi segurar a espada com força, para não deixar a arma, que achava ser só sua, entregue à escuridão transgressora.
Havia um som de vozes, mas Kadiya não conseguia compreender as palavras. Quando abriu os olhos foi atingida por raios de sol. Apoiou-se em um cotovelo e espiou ao seu redor.
Os três oddlings estavam juntos. Diante de Salin, a bacia vidente. Os dois machos, um de cada lado, prestavam atenção no que viam. Os dedos de Salin se moviam formando um desenho. Jagun soltou uma exclamação e levou a mão à lança que estava no chão, perto dele.
Kadiya nem precisava ver a imagem que a mulher sábia tinha invocado. Sentiu o medo exalando dos três como a névoa do pântano. Fez um esforço e ficou de joelhos.
Estavam em uma pequena colina com alguns arbustos, mas nenhum tinha espinhos. Kadiya percebia o cheiro da podridão que havia nas profundezas do pântano, mas não sentiu a ameaça da praga.
- O que é que vem vindo? - Kadiya conseguiu falar, mas esse movimento trouxe de volta um pouco da sensação de fraqueza.
Ela assustou os três. Jagun virou a cabeça muito depressa e olhou para ela.
É o mal, Visão Penetrante. - Ele logo pôs-se de pé e se aproximou dela. Segurou-a pelos ombros e puxou-a para cima, com uma força extraordinária, mesmo para seu corpo musculoso.
- Veja você mesma.
Kadiya conseguiu avançar cambaleante, com a sua ajuda e caiu ajoelhada no mesmo lugar em que ele estava abaixado um momento antes. Ela se inclinou para a frente para poder ver a imagem na bacia.
A cena era muito real de novo, parecia que espiava por uma janela. O plano de fundo com certeza era a barreira de espinhos que tinham atravessado. Por ali seguia uma tropa de skriteks, armados com clavas toscas e lanças.
Kadiya viu mais claramente quem eles escoltavam. Era o homem do trono flamejante. Não apresentava sinal algum da doença que o consumira. Era alto, forte, com a pele muito limpa e com uma aura tão vigorosa quanto a de Lamaril. Segurava o cetro que era uma arma. Era óbvio que os skriteks o estavam escoltando, mas eles não se aproximavam muito, na verdade ficavam vários passos adiante ou atrás dele.
O seguidor de Varm caminhava com passadas largas, olhando para a frente como se buscasse um objetivo que devia alcançar em um tempo limitado. Então, subitamente, ele parou, no meio de uma passada. Ergueu o cetro, virou a cabeça para a direita, depois para a esquerda. A atitude dele era de quem procurava alguma coisa.
Salin mexeu a mão sobre a bacia. O líquido reagiu rodopiando, e a cena apagou imediatamente. Mas uma sombra de medo continuava pairando nas feições da mulher uisgu.
- Aquele sabia que estava sendo observado! - Kadiya recebeu a mensagem mental. A mulher tocou na bacia. - Não devemos usar isso de novo.
- E se usarmos para nos comunicar com outro de nós? - perguntou Kadiya. - Será que isso também trairia a nossa presença? - Ela pensava em Haramis. Talvez a irmã, naquele exato momento, pudesse produzir algo que funcionasse melhor como arma para eles. A sabedoria podia ser mais poderosa do que apenas armas.
Salin balançou a cabeça.
- Filha do Rei, toda vez que invoco isso - ela segurava a bacia com as duas mãos - há uma perturbação naquilo que não podemos ver. Isso guiaria aquele até nós.
- Você tem isso... - Jagun indicou a espada.
- Eu tenho mais que isso, mas tenho de ser capaz de invocá-los respondeu Kadiya. - Os Desaparecidos vêm juntar-se a nós... da maneira deles, e com a nossa ajuda. Jagun, precisamos chegar à estrada das sindonas. Você consegue encontrar a trilha?
Ele encontrou, depois de alguma exploração. Viram o sol desaparecer. Passaram a noite de guarda, mais um dia. Recuperando as forças, Kadiya acelerava o máximo que podia, e o frasco raspava em sua perna a cada passo que dava, como um lembrete para se apressar.
As placas de argila eram iguais às que vira antes, marcando a estrada esquecida que levava a Yatlan. O primeiro da fila era Lamaril, o único descoberto. Não era como o tinha visto no lugar atrás da parede, mas como devia ter sido neste mundo.
No fim da tarde chegaram ao lugar, que certamente era um território exposto. Kadiya esperava que aquele outro grupo que tinham espionado não seguisse nessa direção. O seguidor de Varm tinha suas prioridades. O tempo o fustigava, como fustigava Kadiya.
- Precisamos libertar estes aqui, todos eles - ela apontou para os montes de terra amarela e endurecida -, o mais depressa possível.
Ninguém perguntou nada. Não faziam perguntas desde que ela retornara para eles. Às vezes Kadiya achava que Jagun olhava para ela meio de esguelha, um pouco espantado. Todos começaram a trabalhar, descascando a lama com pontas de lanças e facas. Kadiya operava o mais rapidamente possível com sua adaga. A argila estava muito dura e seca com o calor. O trabalho era tedioso, mas de vez em quando um golpe de sorte fazia desprender um pedaço grande.
A noite chegava, mas Kadiya e os outros não paravam. Talvez todos estivessem sentindo a necessidade de se apressar. Expostos daquele jeito, não podiam acender uma fogueira para iluminar o trabalho, mas Smail se afastou e voltou logo em seguida com um punhado de junco, no qual havia algumas larvas de insetos luminosos, iguais aos que Jagun usara para providenciar o lampião em Yatlan.
Embora aquela luz fosse muito limitada, pelo menos dava para ver onde cavar.
A terra amarela que cobria a velha estrada, ladeada pelas estátuas ocultas, ganhou vida com a escuridão. Apareceram criaturas rastejantes, que só podiam ser vistas pelo seu movimento na superfície. Salin parou de cavar o monte que tinha escolhido e vasculhou sua mochila de viagem à procura de um pequeno recipiente. Com esse pote na mão, ela rodeou o local de trabalho, lançando uma poeira vermelha.
Apesar da proteção do elmo novo contra os insetos minúsculos, que representavam um tormento para os olhos, e com o ungüento que todos os viajantes do pântano usavam para afastar insetos, Kadiya sentia as picadas. Mas continuava a trabalhar, obstinadamente.
Uma estátua estava quase descoberta, e Kadiya se lembrava do seu rosto, na reunião no templo da flor. Ela enfiou os dedos em uma rachadura e puxou com força. Um pedaço inteiro de lama se soltou. A mulher estava livre.
Atrás do monte de terra, surgiu um brilho verde repentino. Kadiya deu meia-volta, assustada. A luz ficou suspensa no ar alguns segundos e depois começou a se aproximar deles. Se era carregada por qualquer criatura, não lançava sua luz para baixo e assim não iluminava quem a segurava, feito tocha.
E não estava sozinha. Outras três apareceram. Smail afastou-se de seu trabalho. Tinha quase acabado de libertar outra sindona... um homem.
-Fogooss!
Salin tornou a procurar algo na mochila. Dessa vez tirou um jarro no qual Smail introduziu um dardo. Ele já estava com a zarabatana na boca.
Estava escuro demais para seguir o voo do dardo, se pudesse ser detectado na velocidade que ia. Ouviram um estouro bem alto. A bola de fogo mais próxima deles e que continuava avançando não era mais um globo. Pedaços dela pulavam como fagulhas, mergulhando na terra. Smail foi pegando os outros, metodicamente.
Kadiya tossiu. Parecia que um pouco daquele fogo tinha entrado em seu nariz, seguido de um fedor tão forte que a fez engasgar.
Ela apoiou uma das mãos no segundo pilar que ia descascar. Kadiya teve ânsia de vómito e sentiu o gosto do resto da ração, partilhada com os outros horas atrás. Salin se aproximou, enquanto ela limpava a boca com as costas da mão.
- Coma! - A mulher sábia segurava na ponta dos dedos algo que parecia um maço de folhas cortadas.
Kadiya obedeceu sem muita convicção. A coisa era azeda. Quis cuspir, mas acreditava no que Salin conhecia de proteção para o pântano. Quando se forçou a engolir o caldo, que tirou das folhas com os dentes, descobriu que não sentia mais náuseas.
Era noite de lua. Ao nascer, seus raios amplificaram a luz das larvas, permitindo que o grupo continuasse seu trabalho melhor... mas não era uma tarefa fácil.
Quando afinal limparam toda a cobertura de lama, Kadiya achou que já era quase de manhã. Os ombros doíam e seus dedos, cheios de pequenos cortes causados pelas arestas dos pedaços que tinha arrancado com as mãos, estavam enrijecidos e doloridos. Mas foi dominada pela idéia de que, se parasse para descansar naquele momento, perderia a batalha antes de começar... não ousava ceder a nenhuma vontade de dormir.
Salin compareceu mais uma vez para ajudar, com curativos para os pequenos ferimentos. Kadiya jogou parte fora, com medo de o grude impedi-la de fazer o que tinha de fazer naquele momento.
Os oddlings se afastaram, quando ela desamarrou o frasco do cinto. Com a ponta da adaga que já estava rombuda de tanto usá-la aquela noite, ela abriu a tampa.
O brilho acinzentado do início da manhã certamente bastava para ela ver as estátuas que precisava. Kadiya cerrou os dentes com o esforço que fazia para não virar o frasco e limpou os dedos da outra mão na calça. Então avançou para a estátua de Lamaril. Pegou uma pitada do pólen. Estendeu o braço para cima e passou um pouco na testa, no meio dos olhos de pedras preciosas. Assim... agora!
Uma segunda pitada do pólen, dessa vez nos lábios.
Ela chegou um pouco para trás. Tinham dito o que devia fazer, mas era difícil acreditar, era muito difícil compreender.
A luz que antecede o alvorecer era fraca. Será que tinha visto alguma mudança na estátua?
Então... aquela cabeça, que durante tantos séculos olhava apenas em uma direção, se mexeu. Os olhos viraram para baixo e espiaram em volta dela. Aquela cabeça monstruosa que Lamaril segurava com sua mão de pedra como aviso rolou para longe, na lama.
- Está feito, e bem-feito...
Kadiya olhou para o homem que a encarava.
- Então vou fazer de novo! - ela respondeu toda trêmula, passando com energia renovada para outra das estátuas, que o grupo tinha libertado de suas prisões de lama.
Eles estavam vivos, respirando, olhando em volta. Kadiya tampou o frasco.
- Isso... isso... - Era uma das mulheres que tinham sido libertadas, que arregalava os olhos, confusa. - O que é isso?
O sol já estava bem alto e dava para ver bem a camada de lama que escondia a estrada antiga. Em alguns lugares o pântano possuía uma beleza própria, mas ali era só desolação.
- Isso é o que veio - disse Lamaril.
- O mal. - Uma das outras sindonas chegou mais perto do limite daquela área amarela.
Foi Kadiya quem respondeu.
- Não é o mal - explicou. - Isso é do pântano, e não do enviado das trevas.
Se os que retornavam viam o mal naquilo, Kadiya ficou imaginando o que achariam quando avistassem um pedaço da terra infestada com a praga.
- O pântano - repetiu Lamaril. - E o tempo. Mais uma vez temos de lidar com o tempo. Que seja, e quanto mais depressa, melhor.
Ele apontou para a frente, com o mesmo gesto da estátua, para o caminho pela velha estrada.
- A trilha é mais perigosa do que parece - avisou Kadiya. -Jagun...
O oddling sobressaltou-se e chegou mais perto dela. Ele e os dois uisgus estavam observando maravilhados os que Kadiya tinha trazido para a vida.
Ele se adiantou, empunhando a lança para verificar a firmeza do caminho sob a lama. Não estavam usando as sapatas de folhas de caminhar na água, mas Kadiya confiava na memória de Jagun, na sua lembrança de como tinham passado por aquele caminho anteriormente. Ela mesma se lembrava daquela viagem, e eram recordações tristes. A morte trilhou o caminho antes dela e deixou um rastro doentio.
Atravessaram o espaço aberto e chegaram ao lugar de terra firme onde arbustos, bambus retorcidos e cipós davam lugar a verdadeiras árvores. Ela estava muito cansada. O trabalho daquela noite tinha se sobreposto à fraqueza causada pelo poder da espada, no Inferno Espinhoso.
Logo depois que entraram no meio das árvores, Lamaril tocou no ombro dela.
- Você e os pequeninos que trabalharam com tanta valentia precisam de descanso. - Ele acenou para os oddlings. Apesar das mudanças, nós conhecemos este caminho. Marcharemos na frente, e vocês nos seguem. Mas primeiro vamos dar uma parada.
Pelo menos ali havia uma brisa, que não transportava muito do cheiro do pântano. Kadiya percebeu que chegava quase ao fim de suas forças, quando afinal se permitiu sentar-se no chão.
Havia vida ali. Pássaros cantavam nas árvores, e uma coisa pequena e peluda subiu correndo por um tronco em curva. Smail estava atarefado, pegando um pacote coberto com folhas presas com pequenos gravetos. Kadiya pôs-se a abrir as fivelas de sua mochila, e alguém a puxou com delicadeza de suas mãos.
Era Lamaril que estava ajoelhado ao seu lado. Os outros sob o comando dele se espalharam sob as árvores, mas ele esperou até que Kadiya pegasse o embrulho de raízes secas e compactadas, insossas, mas suficientes para a viagem.
Kadiya empurrou a mochila para o lado. Na esteira de capim amassado que se formara embaixo, ela dispôs sua parte dos mantimentos que carregavam. Jagum acrescentou um punhado de tiras de peixe seco, que não cheiravam muito bem. Smail tinha bolos de viagem feitos de raízes de junco, esfarelados em migalhas acinzentadas que pareciam terra. Uma pequena oferenda para o grupo, nada que desse para ser dividido entre os outros companheiros de viagem.
Mas já havia uma agitação no meio das árvores. Eles voltavam com comida. Frutas, pequenas e azedas, se comparadas à fartura do jardim, mas do mesmo tipo. Algumas raízes, com terra escura grudada nelas. E dois do grupo levavam peixes com escamas prateadas penduradas em bambus.
Foi uma refeição estranha – certamente nenhum banquete -, mas dividiram tudo irmanamente. Isso, mais do que todas as coisas que já tinha visto, fazia Kadiya acreditar que a magia que executara era de uma ordem muito elevada, apesar de não entendê-la. Estátuas vivas, comendo e olhando em volta, atentas, procurando...
- Nuers! – Ao chamado de Lamaril uma das outras sindonas engoliu o alimento depressa e aproximou-se do comandante, que estava sentado ao lado de Kadiya.
“Nós seguiremos. Fahiel ficará de guarda, enquanto os outros descansam...”
Kadiya teria reclamado, mas sabia que ele tinha razão. Ela e os oddlings não estavam em forma para a trilha, depois da trabalheira daquela noite. As iam precisar de força, na cidade também, para aumentar a do grupo.
Só que podia haver mais segredos naquelas salas de tesouro de Yatlan, onde os hassittis guardavam tudo o que os Desaparecidos tinham abandonado. Lamaril e o resto certamente precisariam de tempo para ver tudo naquelas salas cheias de coisas. Porisso ela não protestou quando as sindonas partiram, menos a que ficou encarregada de ficar com eles.
Com aquela sentinela, Kadiya sentiu pela primeira vez que lhe tiravam o peso da responsabilidade das costas. Ela remexeu o capim, amassando um pouco. Livrou-se do elmo-máscara e encolheu-se para dormir.
O sol já descera bastante, sumindo do céu, deixando apenas raios esparsos marcando seu caminho, quando Kadiya acordou. Jagun já estava acocorado junto à sua mochila, afiando a ponta da lança com uma pedra de amolar. Smail sentou-se no mesmo momento que ela, dando um enorme bocejo, exibindo seus dentes pontudos. Salin continuava encolhida, mas quando Kadiya se mexeu os olhos da mulher sábia se abriram.
O guarda esteve ocupado lá do seu jeito. Havia uma pilha de cipós ao seu lado, pois arrancara um monte deles, e ele os trançava, formando uma corda marron-esverdeada, que testava a cada palmo, enquanto ia tecendo. Quando os oddlings começaram a se mexer, ele pegou a corda enrolada, revelando que na ponta havia um laço.
Kadiya passou a mão na cabeça. O couro cabeludo não doía mais no lugar em que a armadilha de cipó a agarrara. Mas o que Fahiel fabricou a fez lembrar, por um instante, aquele ataque.
A noite caía, e ela não queria mais ficar acampada ali. O frasco e o dever, apenas parcialmente cumprido, provocavam o desejo de prosseguir.
Tinham passado por aquele lugar da morte, onde Kadiya havia aliviado o tormento do uisgu cativo. Não tinha motivo para temer qualquer um do bando de Voltrik, embora os skriteks pudessem estar à espreita.
Chegaram ao final do túnel, pelo qual entraram em Yatlan pela primeira vez. Kadiya avisou aos oddlings o que havia depois, sabendo que eles nadavam muito bem por natureza. Com certeza as sindonas, que falaram muito pouco durante a viagem, também deviam conhecer aquele caminho.
Estava quase amanhecendo. Kadiya tinha certeza de que eles percorreram o caminho em bom tempo, até Salin acompanhou seu ritmo sem hesitar. A trilha era toda firme, nas partes em que a antiga estrada não estava mais completamente pavimentada.
Kadiya mergulhou mais uma vez na escuridão, onde um dia buscara refúgio. A água subiu, e ela começou a nadar, sentindo um pouco o peso da espada presa ao cinto. Havia se certificado de que o frasco estava bem selado.
Fahiel reuniu todas as mochilas, amarrou-as umas às outras com sua corda e carregou o fardo sozinho. Parecia tão consciente do que fazia que nem Kadiya nem os oddlings protestaram.
Ela emergiu do poço, mas com a luz fraca a água não tinha o brilho azulado, como da primeira vez que ela percorreu aquele caminho. À sua frente estavam os degraus com suas estátuas guardiãs. Percebeu um movimento no meio delas. Debateu-se na água, evitando sair do poço.
Então os lampiões oscilantes revelaram o que - ou quem os esperava. Hassittis se amontoavam nos degraus e entre eles havia uma figura bem mais alta. A luz do lampião cintilou na malha brilhante feito jóia, mas ele não usava o elmo que escondia o rosto. Quando Kadiya tocou com os pés no fundo, bem na frente dele, Lamaril estendeu a mão para segurar a dela, erguida inconscientemente para saudá-los, e puxou-a do poço com a maior facilidade, como se ela fosse apenas uma flor kotta, boiando ali.
Yatlan era muito antiga, camuflada há séculos pelo silêncio do tempo. Lampiões luziam nas janelas dos prédios diante da fonte, no caminho para o jardim. Ouvia-se o barulho de pés, correndo de um lado para outro. Os hassittis, quase histéricos de felicidade, providenciavam tudo que podiam oferecer para promover o conforto daqueles que afinal retornavam.
Kadiya foi cercada pela glória do jardim à noite, que a tranqüilizou, física e mentalmente. Continuava com a mão em cima do frasco, já vazio. Tinha atendido os desejos dos que viviam atrás da parede longínqua: não havia mais estátuas silenciosas nas escadas lá fora. Homens e mulheres de uma outra raça percorriam os prédios que um dia os abrigaram. Ela não sabia bem o que procuravam. Armaduras como a que Lamaril usava, e talvez armas muito mais potentes do que a sua espada.
No que poderia ser um período curto de paz, ela capturou todo o poder tranqüilo de cura do jardim, observando com olhos pesados de sono as luzes voadoras que formavam desenhos, de flor em flor.
O pântano era sempre fascinante para ela, com toda a sua escuridão e seus perigos. Aquele lugar além da parede era todo beleza, sem perigo algum. Isso... Kadiya suspirou. Naquele momento, mesmo tendo baixado a guarda por completo e abdicado da impaciência, sentia-se deslocada. Qual seria o seu lugar por direito? Tinha assumido o pântano com arrogância, quando saiu da Cidadela. Não, a corte não era para ela mesma. Anigel reinaria com correção e altivez, em um trono destinado a uma rainha. Haramis, em suas montanhas do norte, viveria para aprender, desejosa de saber sempre mais e mais daquilo que aumentaria seus poderes. Quando esse perigo passasse - se Kadiya sobrevivesse a ele -, que aconteceria? Ela resolveu ignorar essa pergunta.
Um pouco antes havia tentado novamente se comunicar com Haramis, por meio da bacia vidente de Salin, mas não obteve resposta. Será que a irmã também pressentia o perigo e estava saindo do seu ninho de águia para seguir o rastro do mal?
Ela levantou um pouco a cabeça. Seu cabelo estava preso em tranças, menos na parte de cima, onde os cachos que tinham sido cortados estavam curtos. A pele estava toda arranhada, tinha perdido peso... mas pelo menos teve a chance de se banhar com todos os pequenos luxos que os hassittis ofereciam. Foi obrigada a recusar as jóias e os antigos mantos luxuosos que insistiram para ela usar. Trajava a mesma roupa de cota de malha que recebeu no Lugar da Flor.
Ouviu um som fraco atrás dela. Seria um dos hassittis vindo perguntar de novo, como faziam há horas, o que ela queria
- Um lugar para sonhar...
Embora transmitidas mentalmente, aquelas palavras não eram de nenhum hassitti. Kadiya olhou para trás e ia se levantar, mas Lamaril não deixou. Ele acenou para que ela ficasse onde estava e sentou-se ao seu lado, arranhando a pedra com a armadura.
Ela fez uma pergunta que a intrigava o dia todo.
- Você sente raiva, ou tristeza, de ver Yatlan como está agora?
Ele não respondeu, e ela ficou desconcertada. Com sua impetuosidade habitual, talvez estivesse invadindo um domínio no qual jamais devesse entrar. No lusco-fusco não conseguia distinguir bem as feições dele. Esse podia muito bem ser um lugar do qual ele se lembrasse com alegria e prazer.
- Sua visão é profunda. -A mensagem dele chegou, afinal.
- Esses muros contêm o que funciona como um sonho, e voltamos à infância, buscando tudo que era calor e bondade. É uma sombra do que foi... Mas não é bom deixar as sombras cobrirem o que existe agora. Eu conhecia a Yatlan de antes. Essa é uma Yatlan diferente, e preciso aprendê-la de novo... se tiver tempo.
- As montanhas... - Ela levou a mão ao punho da espada.
-As montanhas nos esperam - ele concordou. - Salin conversou com outros da sua raça. O sonhador dos hassittis contou-nos algumas coisas. Sim, o mal está voltando para libertar a maldade antiga. E era mesmo maligno.
- O que temos de fazer? - Ela compreendia batalhas contra homens, contra os skriteks, como as que enfrentaram durante a invasão. Será que era hora de chamar Anigel e Haramis, e juntar os talismãs, formando uma única arma poderosa?
- Eles dormem. Cinco esperam aquele que vai retornar de Varm para acordá-los. São os senhores das trevas, que não conseguimos matar no final. Por isso os prendemos com forças que achávamos que jamais seriam desfeitas.
-Até Orogastus vir perturbar e se meter. Mas se vocês não puderam acabar com eles naquela época, como esperam fazer isso agora? - perguntou Kadiya.
- Enquanto dormem eles não têm poder. Temos de impedir que o mensageiro vá despertá-los. Mas, Filha do Rei de outra era, você já cumpriu sua parte...
Uma pequena brasa se incendiou dentro de Kadiya. Será que ia ser dispensada agora, como uma criança que acaba de fazer um pequeno favor e não deve atrapalhar os mais velhos, enquanto eles tratam de seus assuntos mais importantes?
- Essa de fato é uma outra era. - Ela procurou conter sua agressividade, tentando convencê-lo, sem demonstrar o que sentia. - Há algumas dezenas de dias eu fiz um juramento de servir às terras alagadas... aos povos e à própria terra. Os da minha raça não conhecem a vida nos pântanos. Mas desde criança essa terra coberta pela água me atraiu. Quando chamei os nyssomus, os uisgus também acorreram, prontos para a batalha... algo que nunca tinham feito por qualquer um do meu povo, nem mesmo para Krain, meu pai.
“O que afeta esta terra, o que ameaça esta terra, é assunto meu, já que essa é a minha era. Aqui mesmo, neste jardim, surgiu uma arma feita para mim”, ela puxou a espada e mostrou-a para ele. Os olhos estavam completamente abertos, mas não lançaram nenhum raio vingador. Era como se espiassem mesmo, avaliando Kadiya e Lamaril também. “Enquanto isso for meu, Senhor Guardião, o que acontece em qualquer batalha no pântano é problema meu!”
Ele ficou em silêncio. Depois balançou a cabeça lentamente.
- Já que está tão determinada, Kadiya, não podemos nos opor. Mas você não conhece o que terá pela frente. O poder liberado pode ser muito grande, capaz de reduzir seu talismã a cinzas. Nem temos certeza se conseguiremos enfrentar o que vai acontecer, se os que dormem vierem a despertar e se armar com Varm.
“Há muito, muito tempo, nos desligamos do tempo e vivemos em paz. Não esquecemos as habilidades antigas, mas não temos praticado. As armas enferrujam se não saem de suas bainhas, de vez em quando. Não quero que pense que somos todo-poderosos. Neste tempo podemos morrer com a mesma facilidade que qualquer um da sua raça ou dos pequeninos que você chama de oddlings.”
Subitamente ele pegou a mão dela e pôs sobre o seu braço. Com a ponta dos dedos Kadiya sentiu que a pele dele era como a sua... não era lisa como pedra.
Um inseto adejou por perto e pousou no dedo de Lamaril. Ele exclamou alguma coisa e espantou-o.
- Está vendo? Até essas coisas voadoras podem nos picar, como fazem com vocês. Somos vulneráveis
- Mas vocês são os Desaparecidos. Essa cidade estava deserta e coberta de mato antes do meu povo aparecer, e já estamos aqui há mais de seiscentas estações completas. No entanto você se lembra dessas ruas e desses salões, você já andou por eles antes.
- O tempo reina aqui. Atrás do portão, não. Embora meu povo viva muito, também tem o seu fim. Binah não morreu. Ela escolheu ficar à mercê do tempo, e esse tempo ficou cada vez mais pesado para ela. Sim, quando você atravessou a barreira com nossos seres interiores e nos deu corpos novamente, nós nos tornamos vítimas do tempo, do mesmo modo que somos vítimas da morte... e de outro tipo de vida.
- Então agora vamos para as montanhas - disse Kadiya. A imortalidade dos Desaparecidos era uma lenda cantada pelos bardos. No entanto Lamaril disse que eles eram vulneráveis ao tempo e à morte, que optaram por isso quando se dispuseram a participar da luta.
- Pelo menos conhecemos o caminho, mesmo sem saber o que nos espera no final. Kadiya, fale-me do seu povo... você disse que escolheu o pântano depois da queda desse feiticeiro Orogastus. Quando fez essa escolha, que tipo de vida deixou para trás?
Kadiya percebeu que era verdade, tinha optado por uma outra vida, como Lamaril e os outros ao resolverem voltar. Ela pensou na Cidadela. Partes da vida lá ela conseguia lembrar, eram flores coloridas que atraíam o olhar. Outras evitava recordar... aquelas últimas horas de horror, quando Voltrik ultrapassou os muros, e tudo que representava sua vida segura e feliz terminou.
Ela se concentrou nas primeiras lembranças. A vida na enorme fortaleza que também deve ter sido construída pelos membros da raça de Lamaril, do festival do Banquete das Três Luas, da chegada das frothas de barcos de comerciantes subindo o rio, partindo de Trevista, das expedições de caça com Jagun, das aborrecidas cerimónias da corte que aturava de má vontade, porque era obrigada.
Então rememorou deliberadamente os horrores. A morte terrível de seu pai e da guarda, o corpo da mãe varado pelas espadas e machados de guerra, da fuga pelos caminhos secretos que se aprofundavam cada vez mais para o centro da terra.
- O resto eu já contei - disse ela afinal.
Kadiya sentiu que estava tremendo, mas a brisa do jardim não era fria. Será que era possível lavar o sangue da memória?
Ele segurou a mão dela novamente, sem força, mas com firmeza, transmitindo um calor através do contato, afastando o frio. Kadiya agarrou-se a uma idéia, como alguém que se agarra a um escudo. Tinha um laço de união com as duas irmãs, mas era tênue... eram completamente diferentes uma da outra, por isso só atendiam aos chamados do sangue que partilhavam.
Com Jagun a união era de companheirismo de batalha, mas pertenciam a espécies diferentes. Ela sabia que podia contar com a ajuda dele em todos os momentos, mas de repente percebeu que havia um vazio dentro dela, um vazio que jamais se manifestara a ponto de revelar a sua existência.
Aquela mão firme segurando a sua era como a espada. Uma chave, uma chave para sentimentos que nunca teve.
Não, não queria virar aquela chave! O aqui e agora pertencia a ela. Não queria sonhar nem prever o futuro. Kadiya puxou a mão de forma quase grosseira. E rapidamente fez outra pergunta.
- O caminho para essa prisão na montanha é muito longo?
- Temos de atravessar o Pântano Dourado - respondeu ele. - Há contrafortes logo depois, uma linha deles. O caminho foi bloqueado, nós o escondemos da melhor forma possível, naquela época remota. Não é uma trilha fácil.
Kadiya pôs-se de pé de um pulo.
- E algum caminho dentro dos pântanos é fácil? Os rios e riachos podem servir, mas não correm em linha reta. Vamos na direção do Monte Brom ou de Gidris? Haramis vive lá. O poder que ela tem...
- Não, vamos contornar o limite do Inferno Espinhoso, depois seguir para o sul através da terra habitada pelos uisgus, até chegar perto do pico do Rotolo.
- E os vispis E o país deles. Será que eles também não estão avisados desse perigo?
Lamaril balançou a cabeça.
- Achamos que a antiga barreira de silêncio ainda funciona. Para o servo de Varm que vai acordar seus companheiros será útil mantê-la funcionando, como proteção para sua volta.
Salin andou tentando ver, e o pequeno sonhador dos hassittis também fez tudo que podia para descobrir alguma perturbação nas montanhas. Mas tudo que ele sentiu foi o medo e o horror da morte que se espalham nos pântanos.
”Os uisgus já estão rumando para o sul, tentando fugir além dos limites por onde ela avança, transformando toda a terra em podridão.”
- Mas você tem certeza de onde fica esse lugar dos que dormem? - Kadiya não sabia por que tinha feito a pergunta. Era óbvio que ele devia saber. Mas se surpreendeu quando Lamaril não respondeu de imediato.
- A terra mudou - disse ele devagar. - Dois dos nossos possuem a visão penetrante. O que eles vêem é um deserto dominado pela praga, que deve ser atravessado.
Kadiya pensou na espada. O que podia invocar seria suficiente para limpar o terreno para eles?
- O fogo - ele devia estar lendo os pensamentos dela, mas Kadiya não sentiu o contato mental - vai limpar em parte. Isso nós podemos fazer... se aquele que procura o mesmo lugar não invocar alguma outra arma.
Os Desaparecidos eram todos poderosos. As lendas que marcaram toda a sua infância afirmavam isso. Mas as palavras de Lamaril não eram uma confirmação tranqüila. Kadiya reagia com uma ponta de dúvida. Talvez não existisse a verdadeira essência da segurança que pudéssemos buscar... pelo menos não deste lado daquela porta. Só que esta era a sua terra, e seu destino era viver nela.
O grupo partiu cedo na manhã seguinte. Kadiya ficou muito surpresa ao ver que havia seis hassittis esperando quando se reuniram. Tinham abandonado as desgastadas roupas luxuosas antigas, mas alguns continuavam usando correntes com pedras preciosas. Cada um carregava uma mochila. Os dois da frente Kadiya reconheceu. Tostlet, a curandeira, e Quave, o sonhador.
Portavam armas de um certo tipo... longas facas que serviam de espadas, porque os hassittis eram muito pequenos, e bastões com correias nas pontas, parecidos com chicotes. Kadiya não sabia como eram usados.
Ela ficou intrigada com o fato de eles se juntarem ao grupo, mas principalmente com a permissão dada pelas sindonas. E Lamaril e os outros davam a entender que consideravam a presença deles coisa perfeitamente normal.
Deixaram a cidade pelos portões que provocavam a ilusão visual e foram para o oeste, para longe do Inferno Espinhoso. Por ali o solo era bastante estável e não tinham de temer o lodaçal. Kadiya era capaz de entender a comunicação mental, se direcionada para ela, mas não compreendia a que utilizavam naquela hora, só percebia que as sindonas trocavam informações o tempo todo, talvez com os hassittis também.
Ela não caminhava junto com os guardiões. Teimosamente acompanhava seus amigos, Jagun, Smail e Salin, esta última agarrada ao cajado, apesar de o ritmo imposto por Lamaril ainda não ser acelerado.
Jagun e Smail saíram separados do grupo no início. Kadiya sabia que a necessidade de batedores impelia os oddlings à frente, mas as sindonas não achavam que era preciso.
Já estavam bem longe de Yatlan, quando o aviso mental de um oddling chamou a atenção de Kadiya, e ela se adiantou até onde estava Lamaril.
- Skriteks! Um grupo de ataque! Jagun descobriu o rastro deles!
Um dos seguidores do comandante também se virou para o oeste. Era Lalan, a mulher que Kadiya conhecia, embora seu rosto estivesse coberto pelo elmo. Ela adotou a postura de quem capta um cheiro trazido pelo vento.
- Um guarda na retaguarda - a mensagem mental foi enviada de modo que Kadiya entendesse. - A criatura de Varm está avançando depressa, e as mandíbulas escamosas atendem ao seu comando.
- Há uisgus. - Kadiya recebeu uma comunicação nova de Jagun. - Eles fogem da podridão. Smail vai avisá-los.
Lamaril apenas balançou a cabeça, mas apertou o passo. Kadiya, a contragosto, deixou-se ficar para trás para acompanhar
Salin, pois embora a mulher sábia estivesse bem disposta, não conseguia acompanhar aquele ritmo.
Quando as duas ficaram para trás, os hassittis se juntaram a elas. Kadiya foi empurrada com força e viu, surpresa, que Tostlet estava ao lado da mulher uisgu, oferecendo seu apoio.
- Nós vamos ficar bem, Nobre - assegurou logo a hassitti.
- Vá para onde o poder será necessário.
Alguns hassittis começaram a correr, apressando-se para seguir Kadiya quando ela se juntou de novo à dianteira do pequeno grupo de batalha.
-Assim seja!
Lamaril tirou um cetro do cinturão que podia servir para abrigar uma espada. A ponta do cetro parecia estremecer. Kadiya cambaleou. Sentiu uma dor muito forte no fundo dos olhos. Uma sindona que marchava ao seu lado abaixou o visor do elmo, que Kadiya usava levantado, porque não enxergava muito bem através dos buracos da máscara.
A dor passou na mesma hora. Ela sentiu o calor crescente da espada que tinha tirado da bainha na hora da dor. Os olhos estavam abertos e, obedecendo a um impulso, ela ergueu um pouco a lâmina, como se os olhos pudessem realmente ver e assim compreender o que estava acontecendo, para saber de antemão o que seria exigido deles.
As sindonas saíram da formação compacta que adotaram desde a partida de Yatlan e desenharam uma linha curva que continuava avançando sem parar, lembrando o movimento dos caçadores que direcionavam a caça para as redes, como Kadiya tinha visto os nyssomus fazerem, em uma grande ilha perto de Trevista.
Todos já empunhavam seus cetros e embora não estivesse ouvindo aquele som ensurdecedor, Kadiya sabia que qualquer criatura sem a proteção do elmo devia estar sofrendo. Mas aquilo não afetava os hassittis, que caminhavam bem depressa, às vezes até passando da linha das sindonas.
Estavam quase chegando a uma touceira de arbustos, a primeira obstrução concreta que enfrentavam desde a saída de Yatlan, quando os galhos começaram a balançar furiosamente.
E de lá saiu um skritek. Uma espuma esverdeada escorria pelos cantos de suas mandíbulas abertas. Os olhos tinham um brilho vermelho que Kadiya já tinha visto, quando dominados pela sede de sangue.
Mas se aquele portava alguma arma, devia ter deixado cair. Estava com as duas mãos na cabeça, com o longo focinho balançando de um lado para outro. O pulo para sair do meio dos arbustos fez com que ele caísse de joelhos e parecia incapaz de se levantar, apesar de todos os esforços que fazia.
Os olhos eram poços de raiva gerada pela dor, e Kadiya sentia o calor do ódio que a criatura nutria por eles. Um dos hassittis correu na direção do bicho furioso, e Kadiya também avançou, certa de que um único movimento daquela mandíbula acabaria com a vida pequenina. Então o braço de Lalan surgiu feito barreira na sua frente.
O hassitti atingiu seu objetivo. A arma igual a um chicote que segurava desceu com um estalo terrível na cara escamosa do skritek. O afogado foi lançado para trás e quase ficou de pé, girando a pata com garras em um golpe contra o atacante. Mas o hassitti estava bem longe, observando o inimigo que caía para a frente novamente, de cara no chão, se contorcendo.
Os pés do hassitti pularam de um lado para outro durante alguns segundos, em uma espécie de dança da vitória. Kadiya não imaginava que tipo de golpe era aquele com o chicote, mas certamente era eficiente. Nenhuma das sindonas, nem os hassittis se preocuparam em olhar de novo para o skritek quando seguiram em frente, apesar de a criatura ainda não estar morta. Kadiya via o corpo se mexendo, o bicho arfando.
Estavam no limite da barreira formada pelo mato espesso e pararam um pouco. Lamaril quebrou um galho da vegetação, enrolou uma folha e o galho com os dedos e então levou o mato amassado à borda do elmo. Simplesmente cheirava o que havia colhido.
Deixou a folhagem cair e passou os dedos lentamente pelo cetro que era sua arma, gesto que foi imitado por seus seguidores. Apontando os bastões para a frente, eles marcharam confiantes, como se não existisse barreira alguma. E não existia mesmo. Folhas, galhos, troncos... tudo tinha sumido. O ar em volta era uma névoa verde, pesada como fumaça espessa. Kadiya abanou a mão, andando sem ver logo atrás de Lamaril, sentiu uma umidade na pele e descobriu que estava ficando verde, como a pintura que os uisgus usavam no corpo.
O desaparecimento do mato revelou mais cinco skriteks, rolando pelo chão, as armas abandonadas e inúteis. Outra vez o hassitti, com a ajuda de mais dois, entrou em ação, reduzindo as criaturas a nada.
Só tiveram de perseguir um deles, que se arrastava obstinadamente, a cabeça rolando de um lado para outro, estalando as presas como se destruísse alguma vítima. Em volta do pescoço escamoso havia uma corrente de metal negro, da qual pendiam pequenos ossos cinzentos... ossos de dedos. Kadiya reconheceu que aquele era um caçador habilidoso, que conquistara o direito à liderança. Ele deu meia-volta e ficou de frente para o grupo.
Jogou a cabeça para cima e para trás, uma criatura uivando seu desespero para os céus. Kadiya recuou um passo. Aquele berro doía como o som que as sindonas usavam. Era emoção pura, um ódio tão potente que parecia veneno lançado em seu rosto.
Três hassittis cercaram o bicho, mas demonstravam mais cautela. O skritek apoiou o peso em um braço e desferiu um golpe com o outro. As garras expostas quase rasparam no peitoral da armadura de um dos hassittis. Os outros dois saltaram de um jeito que Kadiya pensava ser impossível com aquelas pernas curtas e corpos pesados. As armas-chicotes desceram quase ao mesmo tempo sobre a cabeça da presa.
Ouviram uma última explosão da raiva avassaladora... depois mais nada, apesar de o corpo estrebuchante estar no meio do caminho, e de terem de desviar dele para prosseguir viagem.
Aquela noite acamparam em terra seca, Kadiya ficou observando Lalan que apontava seu cetro para o solo, formando um círculo em volta das mochilas amontoadas. Uma fagulha dourada seguia o desenho, e Kadiya percebeu que estavam protegidos, havia uma sentinela invisível de guarda.
Já se avistava a borda pontiaguda das montanhas contra o céu e, como estavam tão perto, Kadiya fez mais uma tentativa de alcançar a irmã. Salin sentou-se com ela diante da bacia vidente, ficaram observando o espelho negro e imóvel.
Kadiya deu as mãos para a mulher sábia uisgu, pedindo à bacia para mostrar o que queria ver. Houve um movimento repentino, Kadiya inclinou-se mais para a frente.
Dentro do recipiente uma sombra cresceu, saída de uma névoa branca como a neve que cobria os mais altos picos. A figura de capa ficou mais clara.
Haramis! - Kadiya projetou um chamado mental com toda a sua força e mais a energia transmitida por Salin.
A irmã virou-se bem de frente para ela. Haramis segurava seu cajado, aquela fonte grandiosa de poder que se alinhava à espada apoiada nos joelhos de Kadiya. Mas a expressão de Haramis não era de boas-vindas, não era uma resposta. Ao contrário, aparentava estar questionando alguma coisa e depois um desassossego. Haramis virava a cabeça encapuzada da esquerda para a direita, espiando, procurando algo.
- Haramis! - Se o chamado mental pudesse ser um grito o de Kadiya teria alcançado esse nível.
Dessa vez a irmã moveu os lábios, como se estivesse falando.
- Haramis! - Pela terceira vez Kadiya empenhou todas as suas forças naquele brado.
Ouviu apenas um sussurro, tão fraco que mal distinguia as palavras.
- Irmã... o mal... barreira... ainda não Conheço... Haramis levantou o cetro da neve na qual pisava. Como se segurasse uma pena adequada para a mão de um gigante, a feiticeira começou a desenhar símbolos no ar. Tinham a forma de flocos de neve rodopiando, mas Kadiya conseguia vê-los, até sentir seu efeito. Eram poderes de defesa, da própria Haramis, de defesa e de alarme.
Os desenhos aéreos ficaram embaçados. sumiu tudo.
- Ela está certa.
Kadiya despertou sobressaltada de seu meio transe, com aquela voz ao seu lado. Lamaril ajoelhou-se no chão e ficou olhando para a bacia que já não mostrava mais nada.
- Há uma barreira - ele continuou falando bem devagar. Isso que vamos enfrentar era muito forte no seu tempo. Nós o derrotamos, sim, mas não pudemos tirá-lo da face da terra. Pois ele é da terra, igual a tudo que comandamos.
Kadiya estremeceu... aqueles flocos rodopiantes distantes deviam estar em cima dela, por um momento. Haramis, que tinha assumido os poderes antigos de Binah, estava impotente... e a fé que Kadiya depositava no poder das sindonas estava abalada pela confissão do seu líder.
- Se pudermos manter o que busca afastado dos que dormem... então seremos vitoriosos aqui e agora. Ele está armado, certamente bem armado, com o melhor que Varm podia oferecer. Não pode despertá-los!
Ele se virou para Salin.
- Mulher sábia, até onde vai o seu alcance esta noite? A trilha dele pode ser captada por suas visões?
A uisgu não respondeu e ficou em silêncio durante um tempo que pareceu muito longo para Kadiya. Seus dedos longos e finos teciam figuras no ar, sem parar
- Ó Nobre - disse ela afinal -, tentamos uma vez... quando aquele procurava a ajuda que precisava... e ele pressentiu a nossa observação! Às vezes, fui avisada disso através de todo o uso que fiz deste talento, em que a própria morte pode fulminar o visionário, quando os que estão sendo espionados são bastante fortes e sábios.
- É verdade... mas aquele está sozinho no momento e nós estamos em maior número do que ele pode enfrentar. Ele não vai querer gastar o que carrega para a renovação dos que dormem conosco. Não ousaria... seu mestre deve ter se certificado disso. Mas temos de descobrir o caminho que ele tomou. Quanto mais próximo ele estiver do que procura, menores serão as chances de obtermos uma vitória.
Salin deixou as mãos caírem ao lado da bacia. Seus olhos enormes continuavam fitando Lamaril, quando ele se virou para Kadiya.
- Filha do Rei, antigos laços são mais fortes dos que os novos, neste caso. Você já trabalhou com Salin antes. Você já viu esse que procuramos. Quer invocar a imagem para nós?
Kadiya se lembrou do medo que sentiu no sonho, do poder adquirido pelo que iam espionar. Havia calor em seu peito, o amuleto estava vivo. Ela olhou para a espada. Os olhos pareciam ver e fixavam-se nela.
- Quero - ela disse, uma pequena palavra que provocava frio e um tremor dentro dela.
Ele podia estar pressentindo o que ela sentia, mas Kadiya cumpriria sua palavra.
Lamaril chegou perto e pôs as mãos nos ombros dela, e Kadiya sentiu outros atrás dele... as sindonas estavam se unindo, tocando umas nas outras.
Kadiya passou a língua nos lábios subitamente secos e disse para Salin:
- Agora!
A mulher uisgu iniciou um cântico rouco, com a cabeça baixa como se suportasse um grande peso. Kadiya sentiu o puxão, bem maior do que antes. Havia um outro movimento. Alguém chegou e ficou atrás de Salin, mas Kadiya não ousava quebrar a concentração. Mentalmente procurou criar a imagem do homem no trono de fogo.
Dessa vez o líquido na bacia borbulhou, em vez de rodopiar como sempre fazia. Era como se o recipiente estivesse diretamente sobre o fogo. Fogo... havia calor lá dentro, espalhando-se pelas mãos de Kadiya e de Salin, que se tocavam.
As borbulhas ficaram espessas. Não era mais um espelho de vidro escuro, e sim um punhado de algo viscoso e desprezível. A superfície ficou lisa e apareceu uma imagem. Tremeu um pouco e depois ficou bem clara, e Kadiya realmente viu aquele que servia ao Varm.
Ele estava de pé em um pequeno monte, e diante dele ardia um fogo com chamas sombrias, todas emolduradas em negro. Ao redor da fogueira uma multidão de skriteks. Kadiya os viu lançar um prisioneiro que esperneava desesperadamente no meio do fogo.
Ela ficou nauseada. Bile subiu até sua garganta. Os monstros do pântano arrastavam para perto da fogueira mais uma vítima: uma menina uisgu mal saída da infância. Brincavam com ela, deixando-a livre, jogando-a de um para outro. Seguraram-na diretamente na frente do homem de Varm. O rosto dele... Kadiya tentou fechar os olhos para não ver, mas também era uma visão interior, além da exterior, e não podia evitar.
Ele abaixou a ponta em forma de cetro da arma que segurava com certa delicadeza, e dali partiu uma língua de fogo. De um lado para outro, sobre aquele corpo trémulo, que se contorcia em agonia, ele passou o fio de poder maligno, como faria com um chicote.
Os skriteks deixaram o corpo incinerado cair para a frente, dentro da fogueira. Por alguma razão a imagem na bacia ficou maior, o líder bem no centro. Houve um momento em que o rosto dele parecia preencher todo o espelho que tinham criado.
Ele semicerrou os olhos, ele sabia!
Então a visão se afastou dele, viram os skriteks se movimentando no outro extremo da turba. Kadiya, mesmo pressionada a fazer aquilo, percebeu o que as sindonas precisavam: algum ponto de referência, alguma pista de onde era aquele lugar de destruição e dor.
Ela teve pouquíssimo tempo. A imagem ficou deformada, começou a escurecer nas bordas, como se o fogo a consumisse. Sentiu um calor repentino e escorchante nas mãos, insuportável.
Lamaril agarrou-a com mais força e arrastou-a para longe, rompendo o contato com Salin e com a bacia vidente. Enfim ela conseguiu tirar os olhos da turbulência no líquido que já estava acabando. Mas cada pequeno movimento gerava uma reação de dor em seu corpo.
O líder não a largou. Puxava-a cada vez mais para perto do seu corpo. Uma nova força fluiu para dentro dela com aquele contato. Mas nada apagaria de sua mente o que havia visto.
- Eu conheço aquele lugar - disse Smail de poucas palavras. Kadiya nem tinha percebido que ele e Jagun haviam voltado da expedição de reconhecimento.
- Eles estão nas Presas de Rapan. Fica perto do Nothar. Lamaril soltou Kadiya gentilmente.
- Descanse, Kadiya - ele disse baixinho. - Esta noite você lutou feito o herói de uma batalha. E você também - ele apontou para Salin.
Lalan tinha se ajoelhado perto da mulher sábia e estava com as mãos na cabeça inclinada da uisgu. Kadiya imaginou que fazia por Salin a mesma coisa que Lamaril tinha feito por ela, estava renovando as suas forças.
O líder dos guardiões passou a alisar a terra em um ponto em que havia posto um lampião de larvas de cada lado, para iluminar o que fazia. Com a ponta da adaga ele desenhou linhas no chão.
- Faz muito tempo. Há muitas mudanças - comentou ele, enquanto trabalhava. - Jovem guerreiro, pode nos mostrar onde ficam essas suas Presas?
- O Nothar corre por aqui, descendo das montanhas onde fica o Monte Gidris com suas cavernas de gelo, como dizem. – Smail se abaixou perto do desenho e apontava com um dedo comprido.
- Sim, há cavernas ao norte do Nothar. É o lugar que procuramos. Mas e as Presas?
- Ficam aqui! - Smail pôs o dedo em um ponto a oeste do rio. - Nobre, a praga contaminou quase tudo naquela região. Os clãs fugiram para o sul. Será fatal seguir essa trilha. Conversamos com os batedores que disseram que só se está a salvo desse lado. - O dedo dele deslizou mais para o leste. - O que era Noth, onde vivia a Arquimaga, está em ruínas agora, no entanto ainda existe alguma virtude no lugar, pois a praga parou de avançar ali e não vai mais além.
- E o que caçamos está lá. - Lamaril analisou o mapa. - A terra com a praga o atrapalha?
Ele devia estar fazendo a pergunta para ele mesmo. Pois nem esperou a resposta e fez logo outra pergunta.
- O pântano é um terreno firme para a nossa estrada?
- Não muito, ó Nobre, mas falamos com os batedores. Alguns deles vão se juntar a nós ao nascer do sol, e eles conhecem trilhas de caçadores. Além disso, os clãs têm por hábito manter suas embarcações escondidas perto de qualquer local de travessia, e esses que estão vindo sabem disso.
Kadiya achou incrível os dois estarem vendo alguma coisa com aquela luz tão fraca, mas eles citavam com segurança distâncias e caminhos que talvez retardassem demais o avanço do grupo. Aquele que procuravam tinha também os skriteks, e os colecionadores de crânios eram um inimigo formidável no pântano.
- Faremos o que tiver de ser feito. - Nuers juntou-se ao grupo em volta do mapa improvisado. Ao lado dele estava um dos hassittis. A pequena criatura ficou de cócoras, bem perto, como se pudesse farejar as linhas com seu longo nariz.
Então ficou de pé outra vez e apontou, não para o mapa, mas para o oeste, emitindo seus estranhos sons de fala, muito excitado. Lamaril prestou atenção naqueles estalidos rápidos da língua do hassitti e falou:
- Este é Quave da linhagem dos sonhadores. Ele pede para usar sua visão para nós esta noite. Mulher sábia - ele continuou, para Salin -, parece que precisamos de algumas ervas. Esta aqui, a curandeira Tostlet - o outro hassitti apareceu, saída do escuro - não tem todas. Você pode dividir a sua parte com ela?
Salin concordou prontamente, a hassitti juntou-se à mulher uisgu e as duas foram remexer na mochila. Tostlet afinal exibiu um maço de folhas torcidas na mão, enquanto Salin observava atentamente.
Mas Kadiya não queria mais saber de visões. Por dentro, a náusea que nasceu do que tinha visto ficou mais forte. Ela não conseguia levar à boca sua parte da ração de viagem, embora fingisse comer. Quando se encolheu na sua esteira de dormir, segurou a espada bem apertada contra o peito, com os olhos virados para fora, como se montassem guarda.
Felizmente não teve nenhum sonho aquela noite. E com as precauções que as sindonas tinham tomado para fortificar e guardar o acampamento, não se considerava a responsável. O sono chegou bem rápido, a noite foi tranqüila.
Kadiya ouviu um chilreio e sentiu um toque no ombro curvado. Abriu os olhos para o amanhecer nevoento e cinza. Era Tostlet. Assim que Kadiya olhou para cima, ela passou a mão no seu rosto.
O frio se espalhou por onde as garras passaram. A hassitti segurava com a outra mão uma xícara com uma coisa espessa e oleosa. Diferente do ungüento que os habitantes do pântano usavam para besuntar seus corpos, contra picadas de insetos, aquilo cheirava bem e emanava uma frescura revigorante através da pele.
- Curandeira - Kadiya espantou um restinho de confusão provocado pela sonolência -, muito obrigada.
Ela sentou-se, sorrindo para Tostlet.
- A sábia tinha algumas coisas. Eu tinha outras. Juntas fazemos os atacantes voadores irem embora - explicou a hassitti com certa complacência - e também não insulta o nariz com um cheiro ruim.
Kadiya deu uma risada.
- É verdade, Tostlet, e isso é um conforto neste lugar.
Foi a primeira vez que Kadiya despertou confiante. Tinham muita coisa a favor deles naquela batalha. Apesar dos avisos de Lamaril, tinha certeza de que as sindonas podiam invocar um tipo de poder que seu povo jamais imaginara... talvez até bem maior que o potente talismã que as Três comandavam.
Ela enrolou sua esteira de dormir para guardar na mochila e viu que era uma das últimas a se arrumar. A maioria do grupo já estava comendo, não só as rações de viagem, mas também gorba, recém-grelhado. Viu Lamaril lambendo os dedos, uma visão que acabaria com a veneração dedicada à sua raça, se exibida para os que viviam na Cidadela.
Depois de amarrar bem a mochila, Kadiya aproximou-se da fogueira que já era só brasas e aceitou o último pedaço de gorba, empalado no galho que o sustentara sobre as chamas.
- Belo dia, boa viagem. - A saudação de Lamaril foi formal, e ela respondeu da melhor maneira possível.
- Que assim seja para todos aqui!
Ela esperou o peixe esfriar um pouco e perguntou.
- O sonhador?
- Sonhou - respondeu Lamaril. Ele não parecia despreocupado, e a sensação de boa fortuna que Kadiya teve mais cedo esmoreceu um pouco. - Precisamos viajar depressa e para longe.
Jagun e Smail não estavam em lugar algum. Kadiya imaginou que estivessem explorando o terreno mais à frente. Viu as mochilas deles, penduradas no ombro de uma das sindonas, junto com as que os guardiões normalmente carregavam. Lalan ficou ao lado de Salin ao partirem, mas não ajudava fisicamente a mulher sábia, cujo cajado já não parecia mais uma muleta, e sim um símbolo de poder, apenas caminhava atenta.
Saíram logo da extensão de terra firme que os apoiou durante tanto tempo, e diminuíram o passo buscando um caminho pelo meio do brejo. Aquela manhã encontraram dois lagos, e nas duas vezes descobriram uma embarcação do pântano à espera para a travessia. Não havia rimoriks para conduzir esses barcos. As sindonas se encarregaram das varas e impulsionaram o grupo até a margem oposta.
Passaram pelas altas plantas douradas, que davam o nome àquela parte do pântano. A monção tinha quebrado as coroas de sementes, mas a vegetação estava cheia de folhas novas que cresciam do solo. As sindonas se revezavam, muitas vezes com os hassittis junto, golpeando o mato espesso com suas lanças e expulsando os habitantes de lá. Duas vezes Kadiya viu os hassittis se abaixando, com as mãos em forma de garras esticadas para a frente, pegando víboras coleantes para quebrar-lhes as espinhas com precisão, e jogá-las para longe do caminho.
O grupo não pôde parar ao meio-dia - apesar de avançar mais devagar - pois não havia terreno bastante firme para descansar. Salin usava seu cajado, e Kadiya ia ao seu lado, pronta para ampará-la quando suspeitava da solidez do chão que pisavam.
Sempre espalharam rumores de que existiam ruínas perdidas naquele lugar inóspito do pântano dourado. Os uisgus certamente levavam tesouros para negociar em Trevista que provinham daquela terra. Mas não encontraram nada em um dia inteiro de viagem.
Jagun apareceu no fim da tarde, quando afinal encontraram uma parte elevada do terreno, no qual podiam parar para descansar, depois de tanto lutar contra os bancos de lama e os cursos dágua. Ele chegou acompanhado por três uisgus, com os rostos muito pintados, desenhos que Kadiya sabia serem de guerra.
A notícia que eles deram fez com que o grupo desviasse o caminho para oeste, com os recém-chegados de guias. Antes do pôr-do-sol atingiram uma ponta de terra insular. Havia até algumas árvores, e a chegada deles fez seis droskis alçarem voo - os pássaros de penas multicoloridas muito caçados pelos comerciantes. O brilho iridescente, cor de pêssego e laranja contra o céu, era maravilhoso. Mas não havia um doce canto para combinar com aquela beleza toda, apenas o grasnar rouco das aves. Apesar de muito bonitos, os droskis eram aves de rapina e tinham hábitos incoerentes com sua aparência.
Por outro lado, eram muito ariscos quando viam qualquer criatura grande se movendo no solo. Assim sendo, encontrálos nos ninhos por ali significava que os viajantes tinham chegado a um lugar de acampamento, que não era usado por nada suficientemente grande para ser um inimigo... certamente nenhum da raça deles.
Os uisgus estavam reunindo tropas, essa era a mensagem que os recém-chegados traziam. Aparentemente a praga tinha parado de se alastrar pela terra, mas tinha infectado um bom quarto do território deles. Seus curandeiros e mulheres sábias se esforçavam ao máximo para descobrir um remédio, algo para limpar a terra leprosa, sem sucesso até aquele momento.
Havia skriteks vagando por toda parte, invadindo as terras como fizeram no tempo de Voltrik. Já tinham travado uma batalha que terminou em empate, com uisgus mortos. Mas os afogados pareciam ter pressa em seguir para o oeste - direção das montanhas -, embora fossem perseguidos pelos guerreiros uisgus, não procuravam se desviar do caminho escolhido, impondo mais danos na terra e no povo que já sofria.
Além disso, os uisgus notaram que podiam viajar até mesmo pelo terreno infectado sem correr perigo aparente. Mas eles desviavam para território livre sempre que podiam. Podia ser que o que garantia a segurança deles não durasse muito tempo.
- Nós atravessaremos o Nothar - anunciou Lamaril. - E depois viramos para o oeste. A terra é melhor lá, e poderemos seguir mais rápido.
- E o seguidor de Varm? - perguntou Kadiya.
- Ele caminha deste lado do rio, pelo menos foi o que sonharam.
- Com que velocidade? - quis saber Kadiya.
Ele não teve tempo para responder. Ouviram um grito ribombante que parecia rasgar o céu sobre suas cabeças. Kadiya jamais ouvira barulho igual. Era o som de uma ameaça, de fome, de fúria...
Todos ficaram de pé e os hassittis amontoados em volta, com as armas em riste.
O guincho atormentou seus ouvidos uma segunda vez. Kadiya olhava para o céu, já que parecia que era de lá que vinha o barulho. Os arbustos do outro lado da ilha, em que estavam acampados, se agitaram com tanta força que deu para ver claramente o anoitecer.
A coisa saiu do esconderijo com um salto. Não era muito alto, mas a largura do seu corpo fazia dele um monstro, cuja descrição Kadiya nunca ouvira dos caçadores, e a boca, escancarada para soltar outro guincho, era tão grande quanto uma porta.
As duas pernas da frente estavam arqueadas para fora, e ele as firmou no chão, com a pança cinzenta embarricada no meio. Essas pernas terminavam em patas gigantescas, com membranas interdigitais.
Aquilo era um pesadelo, mais ainda porque Kadiya conseguiu reconhecer a origem dele. Nos juncos enraizados na água, havia habitantes, do tamanho da sua mão, que se pareciam com aquele monstro.
De dentro daquela boca cavernosa saiu uma língua que parecia uma corda, grossa e manchada de lodo. Ela partiu direto para um dos hassittis e teria pegado o pequenino, se Lamaril não se mexesse com a velocidade de um espadachim experiente, girando seu cetro de forma a golpear em cheio aquela língua ameaçadora.
Surgiu um clarão, e a língua do bicho ricocheteou para cima. Ao longo dela correu um fio incandescente, verde-azulado.
O fogo atingiu a cara do monstro, bem próximo do olho. O corpo da coisa enrijeceu. Kadiya mal teve tempo de se jogar para um lado, arrastando Salin com ela, antes de o bicho dar outro pulo, caindo onde o grupo todo estava.
Soou um grito vindo do céu. Kadiya foi lançada longe pela gigantesca pata, que raspou nela no momento em que o monstro aterrissou. Ela caiu de barriga para baixo, atordoada. Estava tentando se levantar e virar-se na terra molhada, quando ouviu uma barulheira atrás dela.
O que Kadiya viu foi um verdadeiro campo de batalha. O sapo monstro estava lutando, e além disso voors mergulhavam do céu sobre as cabeças do grupo. As aves não eram enormes, mas mesmo voors de tamanho normal eram capazes de agarrar e erguer um oddling, manejando o prisioneiro para fazê-lo em pedaços em pleno voo.
Ela sacou a espada. Sem ponta, não tinha muita utilidade. Kadiya esperava que o poder funcionasse, tornando-a uma arma eficaz.
Mas não sentiu calor nenhum na mão. Não havia vida na espada... os olhos estavam praticamente fechados.
Clarões dos cetros-armas das sindonas voavam por todo lado. A coisa que parecia um sapo berrava, levantava bem alto uma pata e a batia com a maior força no chão. Kadiya ficou chocada ao ver o bicho amassar um dos hassittis na lama.
Então uma palavra, tão clara quanto um grito de batalha, surgiu em sua mente: ”ilusão!”
Ela fugiu em disparada do raio de ação da pata do bicho. A língua pendia flácida da boca da criatura, mas a ponta se retorcia feito parte cortada de uma serpente.
”Ilusão!” Mais uma vez aquele sinal imperativo.
Como é que podia haver alguma ilusão naquilo? Kadiya via a perna do hassitti aparecendo por baixo daquela pata. Havia dardos no couro do monstro... e do céu outro voor mergulhava planando, com os esporões mortais prontos para o ataque.
Ela viu Lalan com mais três sindonas. Não se esforçavam para evitar o ataque vindo de cima. Será que realmente estavam à mercê de algum tipo de ilusão?
Finalmente Kadiya conseguiu falar.
- Cuidado... voor!
Ninguém levantou a cabeça para ver o atacante. A ave já estava tão perto que as garras começavam a se fechar em torno do capacete de Lalan. As sindonas podiam ser pesadas demais para serem levantadas no ar, mas os esporões dos voors eram capazes de matar.
”Ilusão!” Aquela palavra mental surgia pela terceira vez.
Kadiya apertou com força a espada inútil. As garras do voor se fecharam em torno do pescoço de Lalan. O bicho perverso batia as asas pesadamente, tentando levantar a presa. Mas as mãos da mulher não manejaram o cetro para afastá-lo, e ela também não se mexeu.
Ilusão! Kadiya pôs a mão no peito. O amuleto! Puxou a correntinha, tirou o amuleto de dentro da roupa e segurou a gota de âmbar na testa, erguendo a máscara do elmo. Não sabia por que estava fazendo aquilo, só que precisava.
Sentiu uma dor repentina e lancinante, como se o amuleto tivesse o poder de furar seu crânio. Sua visão perdeu a nitidez e depois clareou.
Não havia nada no céu, não havia garras no pescoço de Lalan. Kadiya quase engasgou de susto e olhou para o lado do outro inimigo monstruoso. Não havia nada com a forma redonda, cheio de verrugas, enorme como um navio mercante. Lamaril estava de pé sobre um dos pequenos habitantes do pântano que ela conhecia há muito tempo. Ele se abaixou e espetou o corpo inchado, que esvaziou na mesma hora.
Ilusão... tudo era ilusão! Kadiya ainda achava difícil acreditar. Foi engatinhando até o hassitti, que estava deitado de cara para baixo, no lugar em que a poderosa pata o tinha esmagado... Tostlet... Não!
O amuleto balançava de um lado para outro em seu peito, e Kadiya usou as duas mãos com a maior delicadeza possível para virar o pequeno corpo escamoso. Havia uma marca no chão; essa parte não era imaginação. E Tostlet rolou inerte ao tocar nela.
Rapidamente Kadiya pôs os dedos no pescoço da hassitti, procurando um sinal de vida. Como é que alguém podia ser morto por uma ilusão... ou será que a crença na ilusão era a verdadeira arma?
- Tostlet - Ela tentou a comunicação mental para se assegurar de que a curandeira estava viva. - Tostlet, foi tudo uma ilusão!
Ela tentava fazer o mesmo que Lamaril tinha feito, lançando aquela palavra mentalmente, tentando chegar ao cérebro da hassitti.
O longo nariz mexeu um pouco. A ponta da língua afunilada apareceu e os olhinhos se abriram.
- Foi uma ilusão, Tostlet! - Kadiya abraçava o pequeno corpo, sem notar que as escamas arranhavam sua pele. - Uma ilusão... veja!
Kadiya apoiou Tostlet para ela poder ver o lerdo habitante do pântano, que Lamaril continuava a examinar.
A curandeira engoliu em seco e deu um grito agudo. Ela virou a cabeça para cima a fim de ver o rosto de Kadiya e apertou seu braço. Kadiya balançou a cabeça, reforçando a informação mental.
- Um truque, Tostlet, um truque para nos indispor, uns contra os outros.
- É verdade - Salin chegou mancando e ajoelhou-se com dificuldade, apoiada no seu cajado. - Mas foi uma ilusão muito forte. - Ela balançou a cabeça de um lado para o outro. Certamente coisa do grande poder maligno.
- De quem? - Kadiya ficou segurando a curandeira. - Que poder?
E por que a espada falhou? Ela estremeceu. Será que estava dependendo demais do seu próprio poder, aquele que de fato ela não conhecia e jamais compreendera?
Lamaril finalmente afastou-se do sapo.
- Mais uma vez o antigo padrão: a terra transformando o que tem em arma - ele disse isso torcendo um pouco o lábio, por baixo da borda do elmo. - Mas esse é um jogo para ignorantes. Como foi que a criatura de Varm achou que funcionaria contra nós?
- Porque funcionou mesmo... contra alguns de nós - disse Kadiya com tristeza. - Eu vi a morte... e Tostlet a sentiu. A crença tomou conta de nós, menos dos seus seguidores. Ele pode saber quais são nossos poderes? Até minha espada falhou.
- Mas isso que você usa no pescoço, não - retrucou Lamaril.
- Só por causa do seu aviso - disse ela teimosamente. Senão... acho que essas ilusões poderiam mesmo ter nos matado. Não é verdade?
Ele não respondeu logo.
- Não é verdade? - perguntou Kadiya uma segunda vez. Eu não pertenço à sua raça, nem os oddlings, nem esses pequeninos que cultivaram a sua lembrança durante tanto tempo. Se não conseguimos traduzir as ilusões lançadas sobre nós por um mestre, então não é verdade que podem causar nossa morte?
- É! - ele finalmente respondeu. - Mas ilusões como essa agora já são conhecidas, pois se revelaram, e estamos de sobreaviso...
- Tão de sobreaviso que temos de desconfiar de tudo que nossos olhos vêem, que nossos ouvidos ouvem. Essa é uma terra que já está em parte contra nós. Cada lodaçal e cada brejo podem se transformar em uma armadilha agora.
Lamaril concordou balançando a cabeça, e Kadiya estremeceu outra vez. Ela esperava mais dele, que lhe garantisse que não era assim. Ela conhecia o medo, mas sempre antes de se tornar realidade, partindo de um confronto que compreendia. Mas naquele momento estava indefesa.
- Filha do Rei... Kadiya. - Lamaril aproximou-se dela. Nós somos o que temos de ser. Você lutou muito no passado. Não fique se preocupando com o que não tem, pense no que pode ser feito. A espada falhou, mas seu presente de nascimento funcionou. Você não está sem recursos.
Ela esperava que a mente de Lamaril não fosse mais fundo, descobrindo o redemoinho das sensações dela, as dúvidas que surgiam como sombras negras que abatiam sua confiança. Ela sempre foi considerada temerária, alguém que se arriscava sem pensar. Mas naquele momento o raciocínio apagava sua coragem, mostrando um abismo que talvez jamais conseguisse transpor.
- Eu faço o que tenho de fazer - resmungou Kadiya, ficando contente quando ele se afastou, atendendo ao chamado de um dos seus comandados.
Tostlet sentou-se, ainda com o apoio do abraço de Kadiya.
- Ó Nobre...
Kadiya fez uma careta.
- Por favor, Tostlet, você bem vê que não faço parte do grupo desses grandes. Meu nome é Kadiya e gostaria que também me chamasse de amiga.
- Amiga - repetiu a hassitti. - Sim, há bondade entre nós, Kadiya. Mas você também não é menos do que o nome que lhe damos. Você carrega o poder.
Tostlet se virou nos braços de Kadiya e estendeu a mão para o amuleto, sem tocar nele. O brilho do trílio, capturado para sempre no invólucro de âmbar, era uma visão tranqüila, carinhosa até.
- Não se diminua, amiga - continuou Tostlet. - Vamos combinar poder com poder, todos nós temos algo a oferecer. Quando um trabalhador de metal funde um tipo com outro, ele cria uma arma mais forte. Nós seremos essa arma que poderá libertar a terra.
Se as ilusões foram criadas para retardar a marcha do grupo, o mago que as invocou não estava bem servido. Eles seguiram depois do ocorrido em um ritmo ainda mais acelerado, e as sindonas se revezavam com os batedores à procura de mais alguma armadilha.
O inimigo podia estar querendo levá-los ao descuido, mas não sofreram nada nos dois dias seguintes de marcha. No segundo usaram barcos mais uma vez, só que esses foram ao encontro do grupo. Além de tripulados por uisgus, estavam também atrelados a rimoriks, o que proporcionava uma velocidade que Kadiya pensava estar fora do alcance de suas esperanças.
Subiram um afluente pequeno do Nothar, e o sol se punha atrás dos grandes penhascos das montanhas ocidentais. Batedores uisgus retornaram duas vezes, relatando que os skriteks formavam tropas e avançavam para as montanhas. Mas do lado sul do rio havia um outro exército se formando. Eram uisgus com nyssomus dos clãs do norte.
Muitos deles Kadiya conhecia, do grupo que tinha se reunido para o confronto com Voltrik. Duas vezes ela pediu para ir à margem a fim de conversar com os comandantes de forças dos clãs e preveni-los quanto às ilusões.
O sonhador hassitti estava quase histérico de tanta frustração. Todo o talento que possuía não podia evitar uma nuvem escura que crescia no norte. E Kadiya também não tentou chamar Haramis de novo.
Na manhã do terceiro dia, depois da briga contra as ilusões, o riacho já beirava o sopé das montanhas. A água perdera o tom escuro que tinha no pântano e estava gelada, provocando arrepios em quem se banhava. Esse riozinho nascia nas neves eternas das maiores altitudes.
O calor do pântano também acabou. Os oddlings se enrolaram em capas de tecido vermelho e ofereceram algumas para os companheiros, apesar de serem pequenas demais para cobrir as sindonas. Kadiya aceitou uma agradecida e descobriu que não a protegia dos ventos das montanhas como esperava.
Os uisgus que levaram as embarcações, puxadas pelos rimoriks, infelizmente, informaram que não podiam mais pedir aos companheiros que viviam na água para continuar a viagem. O frio não fazia bem para os que habitavam os pântanos.
Por isso o grupo adotou o ritmo mais lento da viagem por terra de novo. Mas já chegavam ao sopé das montanhas, e o terreno continuava firme.
Pela primeira vez Kadiya viu as árvores retorcidas pelo vento nas alturas. O ar era tão frio de manhã cedo que parecia queimar, ao entrar nos pulmões. Lamaril usou sua arma-cetro de uma forma estranha, quando desmontaram o acampamento, um dia depois de desembarcarem dos barcos uisgus na margem oeste do rio. Um pouco à frente do grupo, ele equilibrou o pedaço de metal brilhante na palma da mão e ficou olhando para ele, completamente concentrado.
Kadiya tinha passado a usar o amuleto por fora da armadura e dependia do seu calor. Ele brilhava há dias e estava sempre quente, sinal de que se aproximavam de alguma fonte de poder.
O cetro começou a mexer na palma da mão de Lamaril, inclinando-se um pouco para o sul. Ele endireitou o bastão e continuou observando, até ver o mesmo movimento novamente. Então foi naquela direção que eles partiram.
Entraram em um vale no meio de duas montanhas. O cascalho marcava o leito de um rio que tinha desaparecido - ou talvez um que só enchia em certas épocas do ano. A rica vegetação do pântano não existia ali. A grama era grossa, cinzenta e muito afiada, como Kadiya descobriu quando torceu o pé em um dos seixos do rio. Ela tentou agarrar o mato para se equilibrar e teve de lamber gotas de sangue que brotaram em seus dedos.
A viagem não era silenciosa. Às vezes ouviam uma arma batendo em uma pedra, nos lugares em que o vale ficava mais estreito. Uma vez ouviram um grito vindo de cima e viram as asas abertas de um abutre-dos-alpes, quando a enorme ave das montanhas mergulhou, querendo examinar mais de perto os invasores de seus domínios. Os abutres-dos-alpes serviam a Haramis. Se houvesse algum modo de se comunicar com esse que podia ser uma sentinela... Kadiya viu o pássaro se afastar. Mas com certeza a irmã sabia que havia problemas e seria alertada.
O leito do rio era cercado por pedras inclinadas que ficavam cada vez mais altas à medida que avançavam. Não se via mais nenhuma vegetação. Apenas marcas antigas de água nas paredes de rocha, provando o nível e a fúria da água que um dia abrira caminho por ali.
Mais à frente se depararam com uma curva fechada. E o caminho foi bloqueado por um enorme penhasco de pedra, cuja superfície cinzenta tinha manchas vermelho-fosco e amarelo-claro. Algum tipo de cristal, concluiu Kadiya, examinando mais de perto.
O curso do leito do rio seguia para o sul a partir dali. Mas Lamaril não desviou da barreira que tinham pela frente. Apontou o cetro para a rocha.
Kadiya engoliu em seco. A arma saiu em disparada da mão aberta de Lamaril - ele não a jogou - e foi bater na pedra, onde ficou na horizontal, como se a ponta tivesse furado a rocha. Ao mesmo tempo seu amuleto voou para a frente, e a corrente que o prendia arranhou o seu pescoço. Ele também ficou pendurado no ar, até Kadiya pegá-lo e brigar um pouco para arrancá-lo de um puxão invisível.
Na superfície da pedra os veios de cristal brilharam. Kadiya percebeu então que formavam desenhos muito parecidos com os que o povo de Jagun tecia e com os caracteres de alguns livros antigos de Yatlan.
Lamaril segurou o cetro e puxou. Durante alguns segundos as inscrições continuaram brilhando, depois se apagaram. As sindonas se agitaram, e Lamaril apertou os lábios, preocupado.
Kadiya percebeu um certo constrangimento que não chegava a ser um medo concreto, e sim o que ocorria logo após a desobediência de algum velho mandamento, como aconteceu com Jagun na primeira vez que pegaram a estrada para Yatlan, proibida para o povo dele por juramentos muito antigos.
Lamaril virou-se para a esquerda. Mas nenhum riacho abria caminho por ali. Devia ter sido condenado há muito tempo pela barreira dos cristais: um monte de pedras que pareciam soltas e perigosas, ocasionado pelo desmoronamento de uma rocha mais acima, que tinha cedido.
Tiraram as mochilas dos ombros e amarraram-nas em pacotes. Depois tiraram as capas, preparando-se para a dificuldade da subida. Kadiya olhou para Salin. Será que a frágil mulher uisgu ia conseguir?
Mas a mulher sábia não parecia perturbada. Ela prendeu o cajado nas costas e estendeu os braços para a frente, flexionando os dedos como se os preparasse para descobrir bons pontos de apoio.
Os pequenos hassittis já estavam reunidos no início da subida e começavam a testar a firmeza dos apoios. Seus pés com garras e suas patas dianteiras provaram ser extremamente adequados para a tarefa, e eles subiam com muita disposição, seguidos por Jagun e os uisgus, em um passo mais lento. Duas vezes tiveram de ficar parados, grudados aos apoios, quando pedras soltas despencaram em um baque surdo.
Kadiya certificou-se de que a espada estava bem presa na bainha e deixou a lança curta junto com a mochila.
Não saberia se era boa alpinista até enfrentar a tarefa, mas talvez ainda pudesse ajudar Salin. Ela apontou para uma corda enrolada na mochila de uma sindona.
- Juntas - ela disse mentalmente para a mulher sábia.
Lamaril, apesar de Kadiya não ter enviado a mensagem telepática para ele, virou-se atentamente. Mas não se opôs. Ao contrário, ele pegou a corda de seu companheiro e entregou-a para Kadiya.
A princípio Salin balançou a cabeça e chegou para trás. Mas Kadiya, sem avisar, jogou um laço da corda em volta da pequena oddling e amarrou-a antes de a mulher sábia poder escapar. Decidida, Kadiya encarou a escalada. Atrás dela Lamaril estava pronto, liderando as sindonas maiores e mais pesadas.
Kadiya jamais testara sua força em uma escalada em contato direto com a aspereza da rocha. Não havia montanhas nas terras alagadas. Mesmo assim ela sabia que não devia olhar para nenhum lado, só para a frente, para a muralha de pedra diante dela. As muitas rachaduras serviram de apoio para dedos e pés, mas se iam agüentar seu peso era uma outra história. Tinha perfeita consciência de que alguns pontos se deslocavam com a passagem dos oddlings, menores e mais leves.
Era um empreendimento lento testar da melhor forma possível cada ponto de apoio, antes de jogar todo o seu peso nele. As pontas dos seus dedos estavam arranhadas e as unhas quebravam na pedra, com o esforço de Kadiya para encontrar frestas bem grandes que encaixassem a ponta de sua bota. Mas ia avançando.
E Salin também. A corda entre as duas não esticava. Até ali a mulher uisgu tinha sido capaz de subir junto com Kadiya. Então uma pedra se deslocou sob sua bota. Apavorada, Kadiya enfiou as mãos em um apoio mais acima e ficou pendurada de pernas abertas, grudada na superfície traiçoeira da rocha.
Alguém segurou seu tornozelo. Sentiu a força deliberada daqueles dedos através das botas. Um segundo depois enfiaram seu pé em um buraco bem firme. Porém ela estava tremendo, e apesar da brisa gelada que os açoitava durante a escalada, suava em bicas. As gotas escorriam pelo seu queixo, por baixo do capacete.
Ficou ali mesmo parada, tentando acalmar os nervos, buscando coragem para encontrar novas frestas mais acima. E acabou conseguindo. Apoio para os dedos, apoio para os pés, batalhava para subir. Então as mãos de alguém que estava embaixo seguraram seus pulsos e a puxaram com força, de bruços, por cima de uma beirada. Ainda de quatro Kadiya afastou-se da borda e sentiu um puxão na corda que a prendia, à medida que Smail e um dos hassittis a pegou, puxando Salin para a segurança precária daquela plataforma.
Era mesmo apenas uma plataforma, pois não tinham chegado ao topo da montanha. Nela podiam ficar de pé e de costas para a encosta cheia de pedregulhos, por onde tinham subido na sua base. Depois que se endireitou Kadiya conseguiu ver de onde o desmoronamento partiu. A plataforma tinha sido muito mais larga, mas com rachaduras nela, prova clara de que a maior parte se quebrara e rolara em cascata até o leito seco do rio.
Mas havia uma outra coisa. Kadiya levantou mais a cabeça, dilatou as narinas e tentou captar um cheiro no ar. Era bem fraco, mas estava lá! Era a morte!
- A praga! - Ela transformou o perigo em palavras e também enviou uma mensagem mental.
Não havia vegetação destruída ali, nenhuma forma de vida que o fungo pudesse devorar, mas aquele fedor carregado pelo vento era inconfundível.
Os que estavam ao lado dela abriram espaço para a subida de Lamaril na plataforma. Ele devia estar bem atrás dela. Ficou imaginando se teriam sido as suas mãos que firmaram seus pés.
A plataforma estreitou no ponto em que o desmoronamento tinha sido pior, e o grupo se esgueirou dando as costas para a rocha, com a mesma cautela da subida. As sindonas maiores precisavam se arriscar, ficando bem na beirada, para conseguir avançar. E em todos os cantos pairava aquele fedor da praga.
No entanto o caminho era a plataforma, pois ela atravessava a barreira cristalina sobre o leito do rio condenado. Lamaril e o membro da guarda, Fahiel, passaram à frente dos outros, seguros por eles, enquanto avançavam. Mais adiante iam os hassittis, quase correndo. Os pequeninos de Yatlan pareciam cada vez mais ansiosos, como se disputassem uma corrida.
A barreira era larga, e a plataforma ficou ainda mais estreita. No finzinho dela, os líderes do grupo tiveram de saltar no topo da muralha de cristais. Dali dava para ver mais adiante. O leito do rio continuava e tinha marcas de água bem altas, como se a represa tivesse criado ali um pequeno lago um dia. Aqui e ali Kadiya viu manchas nas pedras secas e pensou que eram flores, de tão brilhantes que eram as cores sobre as rochas. Logo percebeu que eram pequenos veios de cristais amarelos e vermelhos, iguais aos que tinham visto encravados na barreira.
Chegaram ao fim da muralha de pedra. Precisavam descer de volta para o leito do rio, pois o estreito caminho suspenso não oferecia mais apoio. As mochilas, que foram içadas para cima por cordas, desceram de novo. Depois as sindonas seguraram firme as cordas lá em cima para os oddlings, hassittis e Kadiya descerem.
Um por um os Desaparecidos foram seguindo o grupo, até que apenas Lamaril e Fahiel ficaram lá em cima. Os dois se ajoelharam e enfiaram a ponta dos cetros na grande pedra. Manejavam os bastões como as brocas que Kadiya tinha visto os construtores de barcos usando. Os bastões ficaram firmes na rocha.
Amarrando as cordas nas varetas, Lamaril e Fahiel pularam por cima da beirada e escorregaram para baixo, praticamente juntos. Quando suas botas tocaram o leito seco do rio antigo, puxaram as cordas e Kadiya ouviu um apito de longo alcance.
Deu para ver os cetros girando, soltando da pedra. Então eles pularam no ar e caíram. Seus donos os pegaram com movimentos rápidos.
Lamaril passou o dedo naquela estranha ferramentaarma. Kadiya só viu esse gesto e não a sua expressão, escondida sob a máscara do elmo. Mas sentiu um mal-estar que emanava dele e de Fahiel, como se o poder que eram capazes de invocar tivesse diminuído. Se era isso, os dois aceitaram o fato bem depressa, pois o líder dos guardiões virou-se na mesma hora para o resto do grupo.
- Nós vamos por aqui - ele apontou para a frente. - Mas cuidado para não tocar nos cristais. Eles são uma espécie de guarda, e não sabemos por quanto tempo dura o seu poder, que força eles ainda podem ter.
Dado esse aviso eles seguiram em fila indiana, vigiando o chão e desviando das várias manchas brilhantes. O cheiro da praga continuava no ar, mas não tão forte como Kadiya tinha sentido no pântano. Ela observava tudo atentamente, não só os cristais, mas também qualquer sinal de vegetação que pudesse conter a contaminação. Até ali não vira nada, a não ser pedras estéreis.
O leito do rio começou a subir e, apesar das muralhas de pedra dos dois lados, dava para ver adiante a massa escura do território das montanhas. O vento, que assobiava, descendo encanado pelo rio, era frio como neve e gelo.
A luz do dia, já reduzida pelas paredes de pedra, estava acabando. A noite se aproximava e aiinda não tinham encontrado nenhum lugar sem os cristais para acampar. Mas precisavam descansar e se alimentar. Pelo menos ela, os oddlings e os hassittis, pensou Kadiya. Talvez as sindonas não sentissem necessidade disso.
À medida que escurecia, os cristais iam ficando fosforescentes. A luz que emitiam era suficiente para sua localização e assim podiam ser evitados. Mas eles não acabavam nunca, até onde Kadiya conseguia ver.
Até onde conseguia ver... De repente ela percebeu que havia um nevoeiro se formando, uma nuvem diante deles naquele caminho, semelhante à névoa que pairava sobre as terras alagadas. Só que ali não havia água para gerá-lo.
Uma coisa mais grossa parecia flutuar nas bordas do nevoeiro. E o cheiro da praga estavva mais intenso. Kadiya diminuiu a marcha e enviou uma mensagem mental, esperando atingir o grupo todo. Mas as sindonas mantiveram o mesmo ritmo.
- Lamaril! - Ela se esforçou para acompanhar os passos maiores do líder. - Há podridão à frente...
- Não há outro caminho, Filha do Rei - retrucou ele.
Ela queria parar, segurar os oddlings, os apressados hassittis. A praga podia representar um perigo menor para as sindonas, mas Kadiya tinha visto a coisa.
Lentamente ela sacou a espada. O esforço da escalada fez com que a lâmina ficasse mais presa na bainha. Havia um brilho fraco, as pálpebras estavam semi-abertas. Delas partia uma pequena radiância. Estavam vivos, aqueles estranhos pomos, e de fato tinham queimado as manchas da praga no solo - mas será que suportariam um esforço mais demorado de poder?
O nevoeiro já era uma cortina escura e parecia tão espesso que dava a impressão de ser concreto. O caminho em sua direção ficava mais curto. Kadiya continuou testando o ar. Até ali o cheiro pútrido não tinha ficado mais forte.
Lamaril apontou o cetro para a frente. Um facho de luz da espessura do indicador de Kadiya partiu na direção da cortina. Lamaril estava cortando a névoa, movimentando o cetro para cima e para baixo, como uma faca.
A nuvem escura não se desmanchou. Ao contrário, rolou para fora em longas tiras, chegando perto dos viajantes. Outra ilusão? Kadiya achava que não. Mas também não acreditava ser algum guarda antigo que os Desaparecidos tinham deixado ali, embora Lamaril enfrentasse aquilo com tanta despreocupação.
Um daqueles braços da nuvem escura estendeu-se para a esquerda. Um hassitti, Quave, abaixou-se no chão de pedra e se arrastou para trás. Lalan ergueu seu cetro, feito um chicote colocando alguém nos trilhos, e golpeou uma ponta de névoa.
Como se fosse uma criatura sensível, ele recuou, mas uma pedra em que havia tocado ficou com um ponto de substância viscosa, uma bolha de podridão de onde saía aquele cheiro revelador.
Mais três sindonas foram para o lado do líder. As pontas de seus bastões eram uma fonte de luz, uma luz que saltava sobre as línguas de névoa que se contorciam.
O fogo correu ao longo da nuvem, ela se mexia e rodopiava como uma criatura viva sendo destruída em uma fornalha. Então desapareceu, e todos puderam ver o que havia mais adiante. Só que o solo estava cheio de pontos fedorentos, sujando o caminho que deviam tomar. Kadiya segurou a espada com os olhos virados para a gota da substância viscosa que estava mais perto.
Mas seu comando não obteve resposta dos três olhos. Foi uma das sindonas que queimou a mancha e a destruiu completamente.
Abalada, Kadiya ficou segurando a arma na qual sempre confiara. Os olhos estavam abertos e ela olhava para eles, via dentro deles. O esverdeado que se parecia com o dos oddlings, o castanho salpicado de dourado que podia ser o dela e o maior e mais brilhante, cuja semelhança via no rosto de qualquer sindona.
Observando, eles estavam apenas observando, ou esperando. Esperando o quêi? Preservando sua força para alguma prova que estava por vir? Os pensamentos embaralhados de Kadiya podiam conter a resposta, mas quem garantia que era a verdadeira?
Mesmo assim ela continuou com a espada desembainhada, quando avançou atrás das líderes sindonas, acompanhada pelos oddlings e pelos hassittis que, dessa vez, ficaram para trás. O nevoeiro tinha acabado. Kadiya conseguia ver o caminho.
O antigo leito do rio se estendia sempre para a frente, mas à sua esquerda havia uma coisa nova. Uma escada estreita, esculpida na encosta. E tinha marcas nos degraus. Manchas desbotadas e lascadas que ainda guardavam o fedor da praga.
O cetro de Lamaril estava pronto. A luz se espalhou em cada degrau que ele subia, limpando o caminho. A escada era alta e íngreme, obviamente destinada aos pés dos grandes Desaparecidos. Os hassittis usavam as mãos e os pés para subir, e Kadiya só conseguia galgar um degrau de cada vez, de lado, com as costas para a parede de pedra, a fim de poder ajudar Salin. A mulher sábia parecia mais frágil e menor, no entanto não reclamava de nada, apenas tirava da bolsa presa ao cinto um pouco de folhas secas, enfiava na boca e mastigava com determinação, como se esperasse algum resultado daquela operação.
Chegou a noite, mas a escuridão não deteve as sindonas. Talvez possuíssem o talento de ver no escuro, mas Kadiya, evitando deliberadamente olhar para o lado desprotegido da escada, passou a considerar aquela subida um sacrifício quase tão grande quanto a escalada dos pedregulhos.
A caminhada não acabava mais. Será que já tinham passado dos contrafortes para as montanhas propriamente ditas? Ela tremeu com o vento gelado, que felizmente não era forte. Pelo menos não era forte o bastante para arrancá-los da escada.
Afinal chegaram a uma parte plana de pedra, que parecia pavimentada de tão lisa. A extremidade dessa pedra era um espaço aberto para os ventos da noite que caíam. O outro lado era também subida, de pedra áspera, não explorada, com fendas aqui e ali.
Lamaril e os outros, que o ajudaram na batalha contra a cortina de névoa, foram diretamente para a parede de pedra. Apoiaram os cetros nas mãos espalmadas, virados para a superfície da rocha. Os bastões começaram a se mexer sozinhos outra vez. O de Lamaril saiu da mão dele e ficou preso na horizontal, em um ponto um pouco acima do elmo, que protegia sua cabeça. Os dos companheiros fizeram a mesma coisa, de um lado e do outro.
Kadiya viu as ferramentas-armas se movendo de novo, primeiro a de Lamaril, para a direita, depois para a esquerda, desenhando uma linha finíssima de luz na rocha. As outras varetas funcionaram do mesmo modo e produziram duas retas verticais. A moldura que formaram era alongada, parecia uma porta.
Mas as linhas de luz se apagaram tão logo apareceram. Lamaril tocou no cetro rapidamente, mas não procurou arrancálo da pedra. As linhas surgiram de novo e sumiram.
Ele encostou as mãos na pedra, dentro da moldura desenhada pelos bastões. Kadiya viu o corpo dele ficar tenso. Dois companheiros se aproximaram por trás, cada um tocando em um ombro do comandante.
Poder! Kadiya captou o ricochete do que eles transmitiam. Era óbvio que as sindonas tentavam forçar alguma abertura.
O coice de energia crescia sem parar. A espada girou na mão de Kadiya, protestando. Ela viu os olhos se fechando, como se sentissem dor.
Outra onda de poder. Mas Lamaril e os outros enfrentavam uma muralha imóvel. As linhas se apagaram pela última vez.
- Selada. - Lamaril deu um passo atrás, depois de arrancar o cetro da pedra. - Está selada como a deixamos... mas não responde ao nosso comando.
Ele guardou o cetro no cinto e encarou a parede de pedra novamente. Encostou as pontas dos dedos na superfície da rocha e moveu-as de um lado para outro, dentro da parte que as linhas marcavam.
- Há escuridão aqui... escuridão provocada!
A mensagem mental não partiu de Lamaril, era Salin que se adiantava. O rosto da mulher sábia revelava nojo e medo.
- Escuridão - ela repetiu, quando Lamaril virou-se para olhá-la.
- Obra dos escolhidos de Varm! - declarou Lalan. - Então ele chegou aqui antes de nós!
- Acho que não - Lamaril afirmou lentamente. - Se tivesse chegado antes, este caminho certamente estaria aberto, já que ele deseja que o que há lá dentro saia. Caskar providenciou a última tranca, e ele não era da escuridão. Nem Binah, que testemunhou o trabalho para poder montar guarda. Kadiya - a força mental dele chegou até ela -, você nos contou sobre esse Orogastus que mexeu no que era proibido. Que tipo de homem era ele
Ela procurou pensar em tudo que Haramis tinha dito. Mas sabia também que muitas coisas sobre o feiticeiro só sua irmã conhecia e jamais contara para ninguém, embora até mesmo Haramis tivesse ficado contra Orogastus no final, derrotando-o com o poder dos talismãs combinados.
- Ele sabia muito, mas era um estranho, de outra terra. Nunca soubemos por que razão Voltrik o convocou para ser seu conselheiro. A única coisa que sabíamos com certeza era que Voltrik fazia tudo de acordo com o que ele dizia a partir de então, com ou sem o conhecimento do rei.
”Haramis disse que, apesar de saber muito, ele tinha sede de mais conhecimento e acreditava que encontraria segredos escondidos nas ruínas do pântano. Obviamente ele era das trevas e estava sempre procurando dominar o poder.”
- De outra terra... - Lamaril ficou pensativo. - E poder atrai poder. Isso pode tê-lo atraído.
- O lugar dele era aqui nas montanhas - Kadiya acrescentou ansiosamente.
- Ele buscava o conhecimento e se intrometeu; talvez tenha posto uma tranca para sua intromissão permanecer segura até a sua volta - arriscou Lalan.
- Pode ser... mas um escapou para chegar a Varm. E pode ser o selo dele que impeça nossa entrada agora. Bem. - Lamaril olhou de novo para a parede. - Nós podemos fazer o mesmo. Quando ele voltar isso pode retardá-lo. - Ele concentrou sua atenção na mulher uisgu.
- O que você conhece do poder dos selos?
Ela se ajeitou de pernas cruzadas na pedra da grande plataforma, movendo-se com dificuldade. Mas com um gesto, ela fez Smail levar a mochila para perto e desamarrar as cordas.
- O que eu tenho, ó Nobre, é pequeno. Eu vejo ao longe, eu posso prever... um pouco. Conheço as artes da cura até certo ponto. O que tenho de proteção é para os caçadores, os que fazem longas viagens ou alguém perturbado por sonhos maus...
- Sonhos! Isso interessa aos hassittis - interrompeu Quave, caminhando pesadamente para perto da uisgu. - Sei lidar com sonhos. Mas que utilidade eles teriam aqui?
Salin estava remexendo na mochila e tirou lá de dentro três pacotes pequenos e um prato de metal, do tamanho da mão de Kadiya.
- Talvez ainda não sirvam, pequenino - Lamaril, e não a mulher sábia, respondeu à pergunta de Quave. - Mas todos os tipos de poder têm utilidade.
Kadiya pôs a mão na espada. Todos os tipos de poder...
Salin esfarelou um punhado de folhas secas no prato e acrescentou pitadas de pós diferentes, que tirou de cada um dos outros pacotes.
Já estava escuro, mas o prato adquiriu um brilho e os cetros funcionavam como velas nas mãos das sindonas, que formaram um círculo em volta de Salin, deixando uma abertura para o lado da montanha.
- Essa é a maior guarda que eu conheço, ó Nobre.
A mulher sábia pegou uma pequena lasca, e tocou no prato com ela. Apareceu uma fagulha no meio da mistura e dali subiu uma nuvem de fumaça fosforescente, perfeitamente visível. Salin abanou com a mão e o fio vertical de fumaça ficou horizontal, avançando para a parede de pedra.
Lamaril apoiava um joelho no chão e olhava de Salin para a pedra, da pedra para Salin. Mesmo com a iluminação fraca Kadiya conseguiu ver as narinas dele se dilatando. Ela também sentiu o cheiro: acre, forte, como de uma iguaria fervente e muito temperada.
- Zarcon... é. - Ele balançou a cabeça.
- É a sua canção, mulher sábia
Com a mão estendida para direcionar a fumaça, Salin jogou a cabeça para trás, talvez para se comunicar com algo invisível lá em cima, no ar.
Dos lábios dela saiu um som trêmulo, não uma canção como Kadiya conhecia. Salin fechou os olhos. Smail foi se ajoelhar ao seu lado. Ele virou a palma da mão para cima e depois bateu na rocha, repetindo o gesto em um ritmo regular. Kadiya percebeu que o som combinava com os sons guturais e tremidos da mulher sábia.
Lamaril ficou de pé. Com apenas dois passos chegou à parede de pedra. Ele virou a ponta do seu cetro para o fio de fumaça. A nuvem envolveu o bastão e, quando Lamaril o levantou, a fumaça foi junto.
Com um movimento de braço, ele lançou a nuvem na porta escondida. O cetro brilhou com força, no momento em que Lamaril começou a balançá-lo para a frente e para trás. As linhas apareceram na superfície da rocha novamente, só que mais finas e cinzentas dessa vez, linhas de fumaça que se entrelaçavam formando uma rede bem fechada.
Foi Jagun quem descobriu um lugar escondido, fora da plataforma. A rede desapareceu depois de cobrir a porta, mas Kadiya tinha certeza de que ainda existia. Eles caminharam ao longo da plataforma até uma fenda na parede de rocha, que não podia ser vista de onde estavam antes.
Naquele lugar as rachaduras formavam uma escada, em forma de chaminé, até um ponto mais alto da montanha. Os oddlings, os hassittis e Kadiya acharam fácil a subida, mas as sindonas quase ficaram entaladas. Kadiya ouvia suas armaduras raspando na pedra.
Felizmente a subida não era muito longa, e eles chegaram a uma garganta estreita de uma fenda maior, que se abria em um vale. Aquele espaço tinha sido habitado no passado, pois o grupo tropeçou em uma massa de galhos secos, capim e um material desconhecido, formando um ninho gigantesco. Estavam na toca dos abutres-dos-alpes.
Mas Jagun e dois uisgus, depois de uma busca cuidadosa, garantiram que havia muitas estações de reprodução e nenhuma ave vivia ali. Como os pássaros gigantes sempre voltavam para os mesmos ninhos, na época de pôr os ovos, deviam ter abandonado aquele local por alguma razão.
O grupo começou a limpar um monte de lixo - o qual, quando mexiam, exalava um cheiro ruim - em um espaço suficiente para caberem todos, apesar de meio apertado.
Kadiya sabia que esperavam a chegada do homem das trevas. Se ele, quando escapou, realmente montou a barreira para proteger seus companheiros indefesos, então a rede que Lamaril e Salin teceram podia muito bem retardá-lo.
Kadiya só se rendeu à fadiga causada pelos esforços daquele dia quando conseguiu se sentar no reduzido espaço que encontrou, mordendo um pedaço duro de ração de viagem. A dor persistente dos músculos distendidos a incomodava. Kadiya achava que estava preparada para a trilha, depois dos esforços dos dias anteriores, mas naquele momento reconhecia o preço do árduo caminho que tinham acabado de percorrer.
Aquela noite as sindonas não formaram nenhum círculo de proteção, nem acenderam fogueira alguma, embora os restos do velho ninho estivessem bem secos e perfeitos para um bom fogo. Era óbvio que não usariam magia nem luz para não trair seu esconderijo.
Kadiya ficou imaginando se seria fácil encarar o homem que ela viu se levantando do trono de ferro. Ela não sabia a extensão do poder que as sindonas ou ele podiam controlar, mas estava certa, pela atitude de Lamaril, de que os Desaparecidos consideravam aquele antigo inimigo da sua própria raça um oponente formidável.
Felizmente as paredes daquela fenda protegiam o grupo da maior parte dos ventos da noite, mas Kadiya sentiu o tremor de Salin, encostada nela, e o arrepio de Tostlet do outro lado. Partilhavam com ela essa reação ao frio, coisa que os nascidos no pântano não conheciam. As capas de junco trançado, feitas para proteger dos nevoeiros úmidos do pântano, não serviam para aparar o vento.
Kadiya estava cansada demais para conseguir dormir e teve de lutar contra pensamentos sombrios sobre o que estaria esperando por eles. Se as sindonas não tivessem falhado na porta lá debaixo, não ficaria tão insegura. Toda a sua vida tinha acreditado no poder supremo dos Desaparecidos, e ter de aceitar limites para esses poderes abalava sua confiança.
Desejou que tivessem tentado alcançar Haramis outra vez. Ali, bem nas montanhas que a irmã escolheu para estabelecer seu novo lar, certamente não existiriam as barreiras que enfrentaram no pântano lá embaixo. Mas a proibição do uso de qualquer tipo de feitiçaria servia para a proteção de todos.
Depois de um tempo, o cansaço superou todas as perguntas e dúvidas, e ela dormiu sem sonhos perturbadores.
O céu estava começando a adquirir o tom acinzentado do amanhecer, quando ela acordou no acampamento exíguo. A forma à sua direita se mexeu e sentou-se. E contra o céu, na beirada da fenda em que estavam, Kadiya viu a silhueta de duas cabeças com elmos. Eram sindonas, já alertas e montando guarda.
- Filha do Rei... - Era um fiapo de comunicação mental, seguido por um toque suave com mãos de garras. Era Tostlet.
- Algum problema”? - Kadiya afastou o sono e percebeu uma outra coisa, que a bainha da espada encostada no seu braço estava cada vez mais quente.
- Há um... segredo... - A última palavra foi quase uma pergunta, como se a curandeira hassitti não tivesse muita certeza.
- Onde?
- Embaixo de nós.
Tostlet afastou a base do ninho, um material poeirento que cobria a pedra por baixo da massa espessa e emaranhada de galhos. Ela arranhou de leve a pedra com as garras. Kadiya não conseguia ver nada na escuridão que começava a ir embora, apenas adivinhava o que a hassitti fazia. Mas ela estendeu a mão e sentiu as garras segurando-a e apontando seus dedos para baixo.
Havia a pedra, mas também algo mais. Era a superfície lisa de um metal! E estava muito bem preso à rocha, nivelado com ela. Sob a orientação de Tostlet, Kadiya tateou um ângulo que podia ser o canto de uma peça maior.
Quando ela se abaixou, com o puxão da hassitti, o amuleto pendurado em seu peito criou vida e ficou dourado, balançando sobre aquela parte da rocha embaixo das duas.
- Kadiya!
Um chamado mental de Lamaril. Ela sempre o reconhecia com facilidade.
- Há alguma coisa aqui. É o poder.
Os que estavam em volta se mexeram. A mensagem telepática deve tê-los acordado. Alguns abriram espaço para o líder das sindonas passar e chegar perto de Kadiya.
Com o brilho do amuleto, ela viu Lamaril encostar a palma da mão naquele ponto da pedra.
- Poder. - Ele ecoou a convicção de Kadiya. - Vamos aprender mais sobre isso.
Não havia muito espaço para trabalhar ali, mas os que estavam em volta se afastaram o máximo possível. O depósito poeirento, que cobria a rocha, soltou um cheiro desagradável ao começarem a raspar, mas não era um aviso da praga.
Com as mãos e alguns pedaços de galhos, eles rasparam uma área e descobriram uma coisa que era de fato de metal. Com o clarear do dia, puderam ver detalhes que a luz do amuleto não mostrava. O que haviam descoberto era uma grade encravada na rocha. As tiras estreitas, que formavam a maior parte, estavam cheias de terra. Não havia sinal de um mecanismo para abri-la. O metal parecia fundido na rocha em suas extremidades.
- Isso é da prisão dos que dormem. - Lamaril levantou-se.
- Também está bem guardado - comentou Tostlet. - Ó Nobre, é uma guarda poderosa... dos tempos antigos.
- É mesmo. Mas pode ser útil para nós. A descoberta servirá...
O que ele ia dizer foi tragado por um sinal potente, dominando toda a comunicação mental.
- Alguém está vindo lá de baixo!
A corrente do amuleto de Kadiya se mexeu, e o talismã balançou para a esquerda, apontando na direção da abertura da fenda. Kadiya ficou tensa. Ela olhou para a espada, porque estava longe demais do alvo do amuleto, e havia muita gente na sua frente, impedindo a visão do que acontecia lá. A espada ganhou vida, e não existia mais nenhuma opacidade nos olhos do punho naquele momento.
Ela ouviu o barulho provocado por Jagun, quando ele saltou para a parte de trás da plataforma mais acima.
- Os skriteks estão dos dois lados lá em cima!
O grupo estava encurralado em parte pela fenda estreita, onde tinham montado acampamento. As sindonas retrocederam pelo caminho que usaram para chegar até ali. Seus cetros lançavam raios de luz para baixo, através dos restos dos ninhos, enquanto os uisgus se encostavam na parede da rocha para dar espaço para os outros, com suas zarabatanas a postos. Os hassittis assumiram sua posição no meio do povo do pântano. Kadiya foi forçada a fazer o mesmo temporariamente, pois os corpos volumosos das sindonas bloqueavam a descida pela chaminé.
Ela analisou a montanha dos dois lados. A rocha se alargava para fora, formando uma espécie de cunha, e eles estavam na parte mais estreita. Os abutres-dos-alpes eram pássaros gigantescos capazes de transportar viajantes em suas costas. Kadiya tinha visto Haramis montada em um. Por isso a descida para o ninho abandonado devia ser suficientemente grande para os voors menores poderem passar.
O fogo era a arma mais eficaz contra aqueles atacantes assassinos. Mas incendiar aquela massa de material do ninho significaria também condená-los a morrer queimados. Estava tudo seco e quebradiço demais, e as chamas subiriam muito depressa.
Grandes asas negras surgiram no céu cinzento. Deviam ser de voors. O que será que os atraiu? Eles não gostavam do vento frio das montanhas. Deviam estar sob o controle do seguidor de Varm. E não eram só os voors que esvoaçavam no céu. Uma lufada de vento que desceu do rochedo trouxe o fedor dos skriteks. O grupo comandado pelas trevas tinha descoberto aquele lugar e se espalhava para cair sobre eles, por baixo e por cima.
Um rugido lá no alto foi seguido pela queda de pedras do topo do penhasco, no qual Kadiya e uma boa parte do grupo se abrigavam. O desmoronamento bateu do lado oposto e resvalou na direção deles! As pedras bateram na montanha de novo, tão perto que Kadiya teve de se encolher. Os uisgus que estavam mais próximos daquele ponto se jogaram para um lado, a tempo de escapar.
Aquele foi só o começo do bombardeio, que visava esmagá-los onde estavam ou obrigá-los a descer pela chaminé. Estavam mesmo encurralados. Um voor desceu planando. Depois girou e soltou um grito. Os oddlings podiam estar sofrendo um novo tipo terrível de ataque, mas não eram medrosos e estavam preparados. A criatura estava caindo, rodando e rodando, e quando bateu na massa de restos do ninho antigo, Kadiya viu dois dardos em seu corpo, reconhecendo os espinhos envenenados que Smail tinha feito durante a viagem.
As pedras continuavam a cair. Ouviram um berro que ecoou dentro da cabeça de Kadiya. Abateram um componente do grupo sitiado.
O voor que viam, voando para lá e para cá no alto, não tentou um segundo ataque. Mas as pedras que lançavam neles, para prendê-los ou esmagá-los, não paravam de rolar. E Kadiya também não via um jeito de chegar aos atacantes do topo do penhasco. Jagun tinha subido lá mais cedo e desceu trazendo o aviso. Mas tentar uma segunda escalada significava enfrentar pedras rolando, era arriscado demais.
Estariam mais seguros lá embaixo. Kadiya enviou uma mensagem mental, e os que estavam enfileirados de costas para o rochedo começaram a obedecer, movendo-se lentamente para a abertura por onde deviam descer.
Ela tentou se comunicar com Lamaril. O que ele e as sindonas estavam enfrentando lá embaixo?
Por um ou dois segundos ela passou a ver por meio dos olhos dele. Os skriteks procuravam chegar à plataforma onde ficava a porta lacrada, e eram atingidos pelos raios dos cetros. Mas não paravam de chegar, e Kadiya ouviu seus gritos lamurientos, que eram mais altos do que o bombardeio das pedras.
O contato mental foi interrompido como se a ligação jamais tivesse existido. Lamaril? Mas se ele tinha caído, como foi que o inimigo o atingiu? Ela não viu nenhum skritek ultrapassar a plataforma. Ela usou toda a sua força para refazer o contato, mas só se deparava com uma barreira impenetrável. Lalan... ela formou a imagem da mulher em sua mente, esforçou-se para manter o quadro em foco. A escuridão apagou a imagem, dominou tudo.
Mortos! Será que os dois estavam mortos? Não podia acreditar... não tinha coragem de acreditar nisso.
Salin tinha poder, o sonhador hassitti também tinha um tipo de poder, mas naquele momento sua espada podia ser a única defesa que tinham. Ela não ia deixar os outros prosseguirem naquela descida, para talvez cair nas garras dos skriteks.
Obedecendo a um comando seu, os oddlings e os hassittis recuaram para deixá-la seguir na frente, mas Jagun e Smail não arredaram pé, até Kadiya brandir a espada diante dos dois e conseguir que afinal chegassem para trás, com a visão daqueles olhos abertos e brilhantes.
Ela precisava das duas mãos para descer, mas também tinha de ficar com a espada preparada. Kadiya pôs a lâmina entre os dentes, sustentando-a como podia com os maxilares. A arma ficava cada vez mais quente e queimava os cantos de sua boca. Mas ela continuou implacável, concentrando-se nos apoios para mãos e pés que a levariam até lá embaixo.
Kadiya estava na metade da chaminé, quando a força do poder a atingiu. Chegou como uma enxurrada de rio na época das chuvas. Ela se agarrou às fendas, reunindo forças para não cair.
Aquela força punitiva mudou, de enxurrada para uma pressão constante. A descida era como um mergulho em um poço de energia, e Kadiya esperava ser jogada contra a rocha a qualquer momento, com a mesma força das pedras que os atacantes lançavam.
Aquela pressão transformava cada movimento em uma batalha. A espada que carregava entre os dentes estava virando uma brasa bem acesa. Mesmo assim Kadiya continuou a descer, obstinadamente. Quando afinal encontrou um apoio firme para os pés mais à frente, continuou agarrada um tempo antes de descer, pois a força do poder era tanta, que ela não sabia se ia conseguir agüentar.
No meio daquela atividade, Kadiya não ia arriscar tentar se comunicar de novo com os companheiros que procurava. O poder era capaz de fluir por qualquer via de comunicação, descobrir onde ela estava e tentar atingi-la. A espada... trêmula, ergueu uma das mãos e tirou a arma do aperto dos maxilares doloridos. O poder atrai poder... Mas não havia como controlar a produção de energia da espada nem do amuleto resplandecente no seu peito.
Kadiya afastou-se da parede de pedra e saiu de lado para o espaço aberto. O peso da força lá fora era intenso. Certamente devia indicar que as sindonas continuavam vivas, lutando, ou será que eram reféns da mesma pressão que sentia
Ela conseguia ver a plataforma toda. Avistou as costas das sindonas que estavam de pé, ainda vivas. Teve de se esgueirar um pouco, sem se aventurar para fora da sombra da fissura que escondia a chaminé, para ver Lamaril.
Ele estava um pouco à frente dos outros, com o cetro em fogo. Diante dele estava aquele outro, o que tinha visto no santuário. Um brilho estranho envolvia aquele homem, como se não usasse armadura, e sim uma força que fluía de dentro do seu corpo. A cabeça também não tinha proteção e dava para ver seu rosto claramente.
Ele estava sorrindo. Os olhos tinham pontos vermelhos no centro. Não apresentava nem sombra da devastação provocada pela praga. Ao contrário, parecia perfeitamente confiante, com controle absoluto de suas faculdades.
Comunicação mental - Kadiya tinha certeza de que usavam a comunicação mental. Eles estavam tão imóveis naquele confronto... Ela passou a língua nos lábios machucados. Será que devia tentar captar o que estavam dizendo Ou isso perturbaria de alguma forma as ondas cerebrais, atraindo atenção para o lado errado
Mas não podia ficar ali aguardando o resultado. Tinha de saber. Aquela batalha era sua desde o início. Os outros a adotaram também, mas não ia deixar de assumir a sua parte. As terras alagadas estavam sendo ameaçadas por aquele estranho envolto em brilho - conspurcadas de um jeito que nem Orogastus tinha conseguido. Kadiya concentrou-se para captar o nível no qual os inimigos se comunicavam.
- foi dito que este dia chegaria, tolo. Seus encantamentos se desfizeram afinal... eu estou aqui para provar isso!
- Mas não foi você que os quebrou, Ragar Que Era. Alguém se intrometeu nas montanhas, mas o intrometido não está mais lá. Você o invocou, não foi, Ragar?
- Como você é esperto, Lamaril. Acho que ficou mais astuto, enquanto se refestelava naquele seu paraíso durante todo esse tempo. Sim, o que se chama Orogastus podia ser invocado, mesmo por uma mente adormecida. Os sonhos são muito poderosos... e quem dorme pode usar os sonhos. Ele não podia ser controlado, é claro... nossas prisões não permitiam um contato direto... mas inserimos em sua mente a informação de que havia um segredo por aqui que valia a pena ser encontrado. E ele era um intrometido muito curioso quanto ao que não compreendia.
- Só que ele não libertou você por completo. O ato dele estabeleceu o padrão para outros, Ragar.
- Uma porta destrancada é a única coisa que preciso, Lamaril. E isso agora me impele a agir. Atrás de você está a que eu tranquei e que agora vou abrir. O que me enviou não costuma ter muita paciência e ele já esperou demais.
- Os adormecidos dormem - retrucou Lamaril calmamente. - Você não vai perturbá-los, Ragar.
Um canto da boca de Ragar mexeu de um jeito que transformou o sorriso em um esgar cruel.
- Eu não vou? Ousa dizer tais palavras para mim?
Ele girou a ponta do cetro criando um clarão de fogo. As chamas eram escuras, vermelho de sangue coagulado, sem a pureza do verdadeiro fogo.
Esse raio bateu em uma parede dourada, erguida pelas armas das sindonas. Apareceu uma fumaça negra e as chamas vermelhas penetraram nela, soltando faíscas aqui e ali. Por duas vezes o fogo vermelho entrou na parede dourada, mas a barreira voltou a se fechar. Acontece que tudo que chegava a Lamaril atingia Kadiya também. As sindonas resistiam, mas não podiam contra-atacar. Ragar tinha posto na outra arma um ódio furioso que era energia pura... um combustível que gerava ainda mais força. A raiva amarga e antiga, alimentada através dos tempos, seria usada quando a oportunidade chegasse.
O encontro de fogo com fogo criava até um lamento surdo, de animal que não quer ser privado de sua presa.
Então a chama investiu, e surgiu uma faísca dourada. O fogo atravessou a barreira de ouro e bateu na rocha atrás de Lamaril. As sindonas à esquerda do capitão dobraram os joelhos. Nuers caiu para a frente.
Ragar soltou um berro triunfante. A chama escura ficou presa à pedra. A luz dourada contra-atacou, isolando o ponto de origem, mas o fogo continuava a se arrastar de um lado para outro sobre a rocha.
- Ainda não, Ragar, ainda não.
Aquilo soava como uma promessa inabalável. Nuers não se mexeu. O cetro que ele deixou cair estava quebrado e imóvel, como um galho partido.
- Em breve, em breve, Lamaril... muito breve!
Havia uma confiança obstinada nessas palavras, eram como um golpe concreto.
A muralha de luz das sindonas continuava a resistir. A chama que corria sobre a pedra também persistia, mas não se via sinal da porta. Um grito abalou a transmissão de energia para o fogo.
Um voor mergulhou sobre os que estavam na plataforma. Era o maior da espécie que Kadiya tinha visto, e ele embicou direto para cima de Lamaril. Sem pensar ela ergueu a espada e mirou os olhos na morte voadora.
Do grande olho saiu um raio com a espessura de um dedo que atingiu a cabeça da ave de rapina. O voor parou de gritar, girou no ar e caiu feito uma pedra.
O corpo mergulhou na batalha de chamas vermelhas e luz dourada. Seguiu-se um clarão com brilho de fogo, tão forte que cegou Kadiya por um instante. Então ela ouviu um grito de triunfo que não era mensagem mental, mas pronunciado bem alto. A linha de luz dourada tinha se partido, a chama vermelha crepitava avidamente em busca de Lamaril.
Outra vez Kadiya virou a espada sem pensar, contra o ataque. Dessa vez não obteve resposta. Lamaril caiu de joelhos e a luz do seu cetro diminuiu. Aquele fogo que atacava cintilou por trás dele, direto para a porta.
- Vá embora... saia daqui, vá embora!
O grito ecoou na mente dela. Kadiya segurou a espada com as duas mãos. Quando derrubou o voor, ela causou a ruptura da defesa das sindonas. Ela as via com os olhos marejados de lágrimas, pois a explosão de fogo continuava a ofuscá-la.
Se aquela porta se abrisse naquele momento - e os que estavam lá dentro saíssem -, Lamaril e sua gente seriam pegos entre dois ataques, seriam esmagados...
Ela chegou mais para trás. Havia apenas uma chance remota, tão remota que não podia contar com o sucesso. Mesmo assim, ela sabia que tinha de arriscar.
Kadiya se virou. Ali, amontoados, estavam os hassittis e os oddlings, alguns ainda pendurados nas paredes da chaminé, porque não havia espaço para descer.
Será que as pedras ainda estavam desabando lá em cima? Talvez o que Kadiya tinha de procurar estivesse soterrado, mas havia uma possibilidade, uma possibilidade...
- Jagun. - Ela avistou o caçador no meio do grupo compacto atrás dela. - Eu preciso voltar...
Os outros captaram a mensagem rapidamente. Ela ouviu murmúrios, o chilreio dos hassittis.
- Se existe uma outra entrada para o lugar dos que dormem, precisamos usá-la e atacar!
Todos se moviam dentro da chaminé, subindo novamente, para abrir caminho. Ela viu Jagun pular para um espaço vago e estender a mão procurando apoio. Kadiya esforçou-se para passar no meio do grupo, pois Salin, os uisgus e os hassittis abriam espaço para ela. Segurou a espada entre os dentes de novo, suportou o calor que crescia cada vez mais. E subiu.
Os que tinham ido na frente estavam encostados nas paredes da fenda. A chuva de pedras tinha parado, mas havia pilhas delas ao longo do ninho. E certamente devia haver sentinelas acima para garantir que ninguém mais saísse por ali.
O que Kadiya procurava estava no espaço aberto, à vista de qualquer observador lá do alto. Mas ela não tinha escolha. Segurou a espada pela lâmina e vasculhou desesperadamente o monte de pedras à sua frente. A grade - devia estar... lá!
Alguém a empurrou, e ela ouviu um chilreio bem alto e impaciente. Os hassittis tinham seguido seus passos até lá. Ela quase caiu, quando o primeiro passou a sua frente.
Kadiya tentou evitar que ele se expusesse, pondo a mão na frente dele, mas o hassitti já estava deitado de barriga para baixo, deslizando sobre o ninho e entrando na pilha de coisas que tinham empurrado para o lado, a fim de descobrir a grade, mais cedo. Formou-se uma nuvem de poeira, com o cheiro da sujeira antiga de fezes secas.
Pedras? Kadiya olhou para cima e verificou a extremidade do rochedo. Nenhum skritek de guarda à vista.
Ela ficou de quatro e abaixou-se ainda mais, para ir se arrastando e se contorcendo, como o hassitti, à procura da grade. A poeira rodopiava à sua volta. Ela não ousava tossir, porque estava novamente com a espada entre os dentes. Ficou atenta para os gritos de triunfo dos skriteks e para o som de pedras caindo.
O fato de nada disso acontecer era meio assustador. Ela não podia acreditar que as criaturas tinham abandonado seus postos no alto, que não estivessem prontas para atacar novamente qualquer um do grupo que ousasse voltar.
Ela continuou avançando de gatinhas. Quando chegou ao espaço aberto, se encolheu toda, como se um alvo assim tão claro pudesse ficar invisível. Agarrou a espada com tanta rapidez, que sentiu uma dor aguda nos lábios e um fio de sangue escorreu pelo queixo.
Eles tinham limpado a grade, quando a encontraram. O hassitti que chegou antes dela ao objetivo passava as patas na junção da rocha com o metal, tentando achar alguma abertura.
- Para trás! - O grito de Kadiya soou como uma ordem. O hassitti, que naquele momento ela viu que era Quave, obedeceu.
Ouviram um barulho vindo de cima. Era uma pedra rolando. Kadiya se encolheu. Se ia cair mesmo... Ela rolou para o lado e viu a coisa bater no chão.
O projétil caiu tão perto que lançou sujeira e poeira no rosto dela. Mas Kadiya viu outra coisa. Jagun e Smail estavam subindo pelas paredes de pedra. Em volta dos dois cresceu uma nuvem verde-clara, espessa, estranha e trêmula, e eles desapareceram. A coisa foi ficando cinza e se desfez na pedra. Poder... mas de quem? Kadiya não tinha tempo para ficar imaginando.
Ela se virou de novo e ergueu a espada, tentando tirar tudo da cabeça, menos o que precisava fazer, passar para a arma, que segurava, toda a força que possuía.
A espada esquentou ainda mais e a dor que Kadiya sentia na mão se transformou em um tormento crescente. Os três olhos brilharam sobre a grade. Ela mudou o foco de forma que a luz passou a dançar de um lado para o outro no metal. A dor estava chegando a um ponto em que tinha vontade de gritar, mas se conteve. Tinha de fazer aquilo!
A grade adquiriu um brilho trêmulo - ou será que seus olhos a traíam? Não, quando ela moveu a espada o brilho permaneceu no metal. Com toda a força que restava Kadiya continuou a fustigar a grade, do mesmo modo que Lamaril tinha atacado a porta lá embaixo. Só que não queria selar uma barreira. Aquilo era a chave para abrir uma passagem, se todas as forças da luz assim desejassem!
O poder estava se esvaindo! Um segundo hassitti juntouse ao primeiro. Não se perturbaram nem um pouco ao ver a grade brilhando com o calor, e continuaram a passar as patas nas barras de metal em brasa.
Um som forte de algo se quebrando. Os hassittis, trabalhando juntos, caíram para a frente, e a grade cedeu!
O que a abertura selava era um buraco escuro. Kadiya se arrastou para a frente. Não tinha tempo a perder.
Procurando não pensar em um possível ataque de pedras, e intrigada com a ausência delas, Kadiya sentou-se e segurou a espada por cima do buraco. Os olhos estavam quase fechados. Não emitiam luz alguma. O amuleto! Será que era ele que ia funcionar? Kadiya arrancou a corrente do pescoço e pendurou-a dentro do buraco. Quando o âmbar desceu além da superfície da pedra, onde a barreira estava, ele realmente acendeu. Produziu luz suficiente para pelo menos revelar um grande espaço no interior, e que a queda até o chão não era impossível para ela.
Sua boca doía muito e não poderia segurar a espada com os dentes outra vez. Ela conseguiu prendê-la ao cinto, de forma que ficasse bem à mão. Então pulou no buraco, afastando-se bem a tempo quando dois uisgus a seguiram, e depois mais outro.
A câmara em que penetraram não era uma caverna natural. As paredes tinham sido trabalhadas, eram lisas. Elas refletiam um pouco o brilho do amuleto. Enfileiradas ao longo dessas paredes havia várias caixas de metal, iguais às que Kadiya tinha visto em Yatlan.
E nada mais. Mas quando se virou lentamente, com o amuleto na mão, viu de relance uma mancha escura, perto da parede oposta, onde a escuridão era tanta que mal dava para distinguir qualquer coisa.
Foi correndo até aquele ponto, com os uisgus atrás. Salin tinha se juntado a eles, assim como os hassittis, que se jogaram no buraco em bando e enfrentaram a queda, para eles muito maior.
Quando Kadiya estava chegando à parede oposta, ela viu uma porta. Ou melhor, uma passagem sem nenhuma barreira aparente. Mas quando tentou atravessar, deparou-se com uma parede invisível, que era muito concreta ao toque das mãos, estendidas para a frente, sentindo aquela superfície transparente.
Ela só conhecia uma chave para isso, uma que já tinha servido a ela fielmente no passado. Soltou a espada do cinto e segurou-a verticalmente, de frente para o desconhecido.
Do punho surgiu de fato uma luz, mas muito fraca, de um só olho, aquele que parecia com o dela. Kadiya varreu a passagem com a luz, como fizera para desmontar a grade.
Depois ela tateou de novo. A passagem estava aberta, só que não dava para ver o que havia lá dentro. Parecia que o brilho do amuleto refletia ali e voltava para o ponto de origem.
Mas Kadiya se adiantou assim mesmo, seguida pelos outros bem de perto. Depois que passou pelo portal, a luz ficou mais forte, e ela evitou tropeçar em dois degraus para baixo, que davam em um espaço onde a iluminação não chegava tão bem.
Com a espada em riste e o amuleto na outra mão, Kadiya prosseguiu com toda a cautela. Sob suas botas gastas o chão era macio. Havia uma poeira grossa, subindo ao passarem, e todos começaram a tossir.
Então a luz fraca iluminou uma coisa que surgia naquele pó. Kadiya viu outra caixa, mas essa era longa, do tamanho de uma sindona. As laterais eram feitas com o metal azul-esverdeado que a raça deles usava tanto. Mas a parte de cima soltava faíscas brilhantes, mesmo com a luz pálida que o amuleto emitia. Quando chegou mais perto, Kadiya viu que toda a tampa era uma laje maciça com cristais incrustados, com as pontas para cima.
Salin apareceu ao lado dela.
- Um adormecido - a mulher respondeu à pergunta que Kadiya não fez.
Os hassittis, que tinham se afastado do círculo de luz do amuleto, voltaram correndo.
- Há mais três seladas, e uma aberta com fogo - informou Quave.
Kadiya foi verificar. O hassitti tinha razão. A tampa com cristais incrustados da caixa mais distante estava quebrada e carbonizada, como se tivesse pegado fogo. Na verdade a maior parte jazia no chão, em pedaços.
De dentro da caixa saía um odor fétido, que fez Kadiya lembrar do cheiro da praga.
- Não cheguem perto - ela avisou logo, voltando para examinar as outras caixas.
Se as sindonas que guardavam a plataforma falhassem, se... Lamaril estivesse morto, então os que estavam nessas caixas seriam convocados para obedecer ao comando das trevas. E se sairiam muito bem, pensou ela com tristeza. Talvez conseguissem espalhar a praga, para fazer o pântano apodrecer ainda mais. O perigo atingiria toda Ruwenda e lançaria a morte por todas as terras que ela conhecia, talvez até mais longe.
Os adormecidos... só havia uma resposta. Eles não podiam despertar!
- Salin, Quave. - Ela chamou a mulher sábia, o sonhador. eles tinham um certo tipo de poder, o dela era maior. Mas será que aqueles fios podiam se transformar em uma trama, para fazer o que tinha de ser feito? Era preciso! E seria uma corrida contra o tempo. Suas habilidades tinham trancado a porta de fora, mas o poder das trevas já estava por cima e por baixo dos seus encantamentos - dois lados podiam muito bem esmagar o centro! E as sindonas podiam estar sendo derrotadas naquele momento, da mesma forma que Lamaril tinha tombado.
O uisgu baixinho e a hassitti, ainda menor, puseram-se cada um de um lado de Kadiya.
Ela apontou para a caixa perto da que estava quebrada.
- O que está aí dentro não pode despertar.
- Matar! - A hassitti resolveu logo.
- Filha do Rei, não possuímos poder para manter isso trancado. A pequenina está certa... o adormecido deve ser destruído.
- Mas primeiro temos de abrir isto. - Kadiya olhou meio desconfiada para a tampa com cristais pontiagudos.
Os guerreiros uisgus que a seguiram começaram a se aproximar. Pareciam frágeis e pequenos perto daquele caixão, mas um deles já estava passando a mão e experimentando um canto da tampa, à procura de alguma tranca ou fecho. Então três se adiantaram, e Kadiya juntou-se a eles. A tampa era maior que a caixa e oferecia bastante apoio para os dedos. Os quatro fizeram força juntos para erguê-la.
O peso, ou talvez um feitiço limitante, se opôs a eles.
Kadiya tentou enfiar a extremidade sem ponta da espada embaixo da tampa, sem resultado. Então Salin passou a mão pela linha do selo entre a parte de cima e os lados.
- Há uma tranca de poder - informou a mulher sábia. Kadiya imaginou se teria sido criada pelos Desaparecidos há muito tempo ou por aquele distribuidor da morte que lutava lá fora, a fim de proteger seus semelhantes até ele voltar. De qualquer forma, as duas maneiras estariam além da sua esperança de poder desfazê-las.
Tinha apenas a espada; mas não tentar era admitir o fracasso, e isso Kadiya não faria.
Ela recorreu a Salin mais uma vez.
-Vamos nos unir... você e Quave também...
Não podia avaliar a força que o sonhador hassitti era capaz de invocar, mas com certeza existia poder por trás daqueles sonhos.
Salin chegou mais perto. Encostou a mão no ombro de Kadiya, e o hassitti rapidamente se juntou às duas, tocando na mulher sábia. Kadiya respirou fundo e invocou a espada, apontando os olhos abertos para a beirada da caixa.
O raio de luz respondeu. Ela viu a luz se concentrar na aresta entre a tampa e a lateral. Kadiya não moveu a mão deliberadamente, mas a espada se inclinou, de modo que a luz passou por toda a área da tampa, incendiando as inúmeras pontas de cristal com explosões brilhantes, que a deixaram quase cega.
Os pontos de cristal absorveram a fúria completa das labaredas. Kadiya viu tudo envolto em névoa, como se queimasse realmente. A luz oscilava de um lado para outro. Kadiya se sujeitava ao que quer que tivesse assumido o controle de sua arma.
Ela notou de relance uma perturbação às suas costas, para onde os guerreiros uisgus tinham ido, mas manteve a concentração da melhor forma possível.
Ouviu-se o barulho de algo quebrando. Pedaços do cristal explodiram e foram lançados para longe da caixa. Kadiya tentou se esquivar, quando sentiu uma dor percorrer seu rosto, da borda da máscara do elmo até o queixo. A tampa se partiu e os pedaços voaram em todas as direções. A drenagem da energia tinha feito Kadiya chegar alguns passos mais para perto, e ela teve de proteger o rosto com um braço, pois havia cacos de vidro por todo lado. Um segundo depois ela sentiu dor, como se muitos dardos dos oddlings tivessem furado seu corpo.
Quando resolveu espiar em volta, Kadiya percebeu que a tampa estava toda quebrada. Partes dela faltavam. Tinham sido arremessadas para longe pela força da explosão ou tinham caído na cavidade oculta.
A espada perdia sua luz. Com toda a energia extra que acrescentou à força de Kadiya, mesmo assim era óbvio que estava praticamente esgotada. Kadiya percebeu também que sua cabeça rodava.
Estava molhada de suor por causa do esforço, exausta, mas ainda capaz de manter-se de pé. Com a mão livre pegou alguns pedaços soltos da tampa e jogou-os longe, rolando pelo chão. Salin e Quave chegaram para ajudar.
Pela primeira vez Kadiya se deu conta de uma outra coisa: um lamento agudo, penetrante e muito alto. Ela olhou para a parede atrás dela.
Havia ali a moldura de uma porta, igual à da plataforma lá fora, mas não marcada de dourado, pelo poder das sindonas, e sim de um vermelho opaco, controlado pelos protegidos de Varm.
Cerrando os dentes, Kadiya concentrou-se novamente em sua tarefa. Os guerreiros uisgus esperavam, com as zarabatanas nas mãos, de frente para aquela parede. Ela duvidava de que conseguissem resistir, se as sindonas tinham sido derrotadas. Mas a porta continuava fechada.
Ela espiou dentro da caixa. Havia uma névoa, como se a caixa contivesse um líquido viscoso que se movia. Assim mesmo Kadiya conseguiu ver a forma de um corpo humanóide lá dentro, tão alto quanto as sindonas.
Não acreditava que qualquer dardo ou lança pudesse matar o que dormia ali. A névoa que rodopiava em volta dele começou a subir e dela saiu o odor fétido da praga, tão podre que parecia que tinham jogado vísceras em seu rosto, coberto de sangue por causa dos ferimentos.
O fogo da espada tinha derrotado os rastros da praga e esse fogo era a única coisa que ela podia invocar naquele momento. Kadiya sentiu o toque de Salin e mais um poder pequeno mas constante, que devia ser de Quave.
Ela ergueu a espada horizontalmente sobre o que jazia deitado naquele lodo. Havia uma luz, mas não era do grande olho que ficava acima dos outros. Essa luz saía dos dois menores. E era apenas um fiapo, comparado com o que tinha sido capaz de invocar antes.
Mas ela ficou bem firme, lançando o raio duplo sobre a massa dentro da caixa.
A luz bateu na superfície do que cobria o adormecido e se espalhou para os lados. Apareceu uma fagulha que não era bem de fogo, mas que se movia. Então ela se incendiou como quando se sopra uma brasa, e cobriu todo o corpo do que dormia, exalando o fedor da morte.
Bem no fundo da sua mente Kadiya ouviu um grito agudo e angustiado. E afinal, ela viu ou não viu aquela forma enrolada em panos se contorcer sob o fogo?
Os olhos da espada se fecharam. Ela precisava aceitar que o talismã já dera o que tinha para oferecer. Mas só tinha destruído uma caixa. Apenas uma!
Kadiya olhou desesperada para as três restantes. Não podia fazer aquilo, mas precisava! Encostada na beirada da caixa onde o fogo já se apagava, ela deu uma espiada apreensiva para a moldura da porta.
Era mais do que apenas uma moldura. A parte de dentro das linhas começou a brilhar. Mas parecia que o vermelho opaco não estava tão escuro, estava meio diluído, mais fraco. Quem sabe o poder das sindonas não minou o poder do inimigo? Mas Kadiya tinha certeza de que, mesmo enfraquecido, o poder dele era muito maior do que qualquer coisa que ela podia invocar.
Ela se afastou da caixa espoliada e foi cambaleando até a próxima. Salin já estava lá e o braço de Quave em volta da cintura de Kadiya a sustentava com uma força que parecia impossível para o pequeno hassitti.
- O poder do pântano - disse Salin -, poder da sua raça, Filha do Rei. Acho que o poder dos antigos sozinho não funciona aqui. Se for o poder do pântano...
Em vez de só encostar em Kadiya, Salin pôs a mão sobre a dela, segurando a espada, e Quave ficou entre as duas, com uma pata em cada uma.
- Agora! - Salin transformou a palavra em um grito de batalha.
Kadiya ergueu a espada com dificuldade. E se concentrou. Sentiu uma onda de força na lâmina, mais poderosa do que antes. Já sabia o que tinha de fazer, e com a ajuda da uisgu segurando a arma, passou o raio de um lado ao outro da tampa, sobre os cristais, o mais depressa que pôde.
Ouviram a explosão novamente, e Kadiya viu com o canto do olho uma linha de sangue se abrir no ombro de Salin, sentiu um bombardeio de cristais quebrados em sua armadura. E a luz dos dois olhos queimou o que havia dentro da caixa.
Kadiya não estava conseguindo mais ficar de pé. O braço da espada estava tão pesado que ela temia não poder erguê-lo outra vez. Nem esperou para ver o fogo acabar com o segundo adormecido. Aproximou-se logo da caixa seguinte, trôpega, com Salin e o hassitti. Mais dois... será que iam conseguir?
A porta na pedra estava toda brilhante e tão quente que a guarda dos uisgus teve de recuar. Mas o brilho era dourado. As sindonas? Será que não tinham sido derrotadas? Lamaril... sua mente se esquivava da lembrança dele. Ela afastou a imagem dele, apagou-a. Só uma coisa importava naquele momento: as duas caixas que tinham de ser esvaziadas.
Salin foi cambaleando para o lado dela. Mais uma vez se uniram e, com o hassitti dando força, atacaram os cristais. Os estilhaços voadores fizeram um corte em sua garganta, mas felizmente o elmo protegeu seus olhos. A luz incendiou tudo de novo e acabou com o que dormia.
Foram para a última caixa. Kadiya achava que não conseguiria se manter de pé tempo suficiente para alcançá-la.
Ouviram um som, e não era de cristais quebrando, pois ainda não tinham feito nada. Era um rangido profundo. Diante de seus olhos a tampa da última caixa começou a se levantar lentamente.
A coisa que surgiu se mexia devagar, com grande esforço. O líquido que o envolvia escorreu aos poucos. Era viscoso, como a gosma grossa de um caracol do pântano. A coisa estendeu os dois braços para fora, com os dedos retorcidos na beirada da caixa para se levantar.
A cabeça meio coberta virou-se para o lado deles. Kadiya viu apenas os olhos, onde queimava o fogo negro de Varm.
Ela recuou instintivamente, e seus companheiros fizeram o mesmo. Kadiya brandiu a espada entre eles e aquela coisa que se erguia de seu leito secular.
Um líquido esverdeado que parecia podridão destilada se esparramou na rocha, quando ele ficou de pé. Mexeu um braço e gotas respingaram perto do grupo. Uma perna comprida apareceu por cima da lateral da caixa e a coisa estava quase totalmente livre.
A espada... Não havia brilho nenhum no olho de cima. Ele estava vidrado, sem vida. Mas dos outros dois partiram raios de luz que se juntaram para formar uma linha que não era mais grossa que os fios de uma rede de junco.
Kadiya apontou, reconhecendo no mesmo instante que podia estar cometendo um erro fatal ao avaliar o ponto fraco daquele adormecido. Mesmo assim mirou o raio mais fraco bem no meio da cabeça dele, onde a gosma ainda escorria. Acertou em cheio e a criatura deu um pulo para trás, erguendo um braço para tentar se proteger do raio.
No ponto em que a luz encostou surgiu uma fagulha, como se acendesse um pequeno graveto. O fogo não era nem vermelho como o de Varm e nem dourado como o das sindonas. Era verde, um verde vivo, igual ao dos brotos do junco dos rios.
O fogo acendeu e pegou, e dele pularam fios ainda mais finos que se retorceram em volta da cabeça. O grito da criatura não foi tão alto para os ouvidos, mas uma dor aguda na mente de Kadiya. Ela quase caiu cambaleando para trás, mas o hassitti, em uma surpreendente demonstração de força daquele corpo tão pequeno, conseguiu firmá-la.
A cabeça do ser despertado estava sendo rapidamente envolvida pela rede verde. O segundo grito saiu de sua garganta, um berro que era mais de raiva do que de dor. Ele se jogou para a frente, com as mãos estendidas como se quisesse abraçar os três juntos em uma única investida.
Morte! Como o companheiro dele, este também carregava a morte nas mãos. Kadiya encostou na caixa aberta atrás dela, com medo, sabendo que não podia escapar daquele ataque vingativo.
O amuleto em seu peito era um globo de fogo. Ele balançava para lá e para cá, embora Kadiya não fizesse movimento algum. E ela ouviu um barulho confuso, um lamento, como se centenas, milhares de vozes do pântano, oddlings e todo tipo de criaturas, talvez até as plantas, emitissem gritos de batalha, irredutíveis em seus postos de defesa.
A cabeça do adormecido já estava toda coberta pela luz, menos os olhos que eram como brasas. Talvez o ódio que ardia por dentro dele preservasse sua visão, e essa visão era o que ia derrubar seus inimigos.
Ele ergueu os braços bem para o alto, deixando pingar o líquido imundo no qual estava mergulhado. Continuou cambaleando. A espada ficou muito pesada nas mãos de Kadiya. Os três olhos estavam vidrados, inertes.
Um dardo surgiu no ar, e sua ponta penetrou fundo em um dos olhos vermelhos. Um uisgu que estava atrás de Kadiya acertou o alvo.
A criatura não reagiu. Mas Kadiya tinha certeza de que o oddling tinha lançado um dos dardos envenenados. Talvez aquela coisa fosse tão venenosa que nenhum veneno pudesse se misturar com o que corria em suas veias no lugar do sangue.
Ele pulou. Ao mesmo tempo ouviram um som novo na câmara que já cheirava mal... um chamado.
-Pela Flor... pare!
Uma nuvem de poeira dourada surgiu atrás de Kadiya. Quando atingiu o amuleto brilhante, soltou fagulhas coloridas, como pedaços de cristal. Um manto cintilante cobriu o adormecido que despertara. O verde da rede de luz foi ficando mais forte até cobrir a cabeça e os ombros. Kadiya não via mais as horríveis fagulhas vermelhas dos olhos dele.
As mãos da criatura sujaram as laterais da outra caixa, a um palmo de onde Kadiya tinha se apoiado. Ela foi puxada para trás, ao encontro de um corpo alto e forte. O alívio de ter escapado foi tão grande que tudo em volta começou a girar. Ela foi acometida de náusea e tentou resistir, tão dedicada à luta para controlar seu corpo, que mal se deu conta que estava sendo carregada para fora do ar podre daquele lugar, para um espaço aberto.
Kadiya pestanejou diante do céu sem nuvens e sentiu o calor do sol. E então arriscou-se a virar a cabeça para ver quem a segurava. Ele a deixou de pé sobre a pedra da plataforma, toda cheia de riscos negros do fogo da luta.
- Lamaril! - Mas ele tinha caído, quando a arma do seu povo falhou...
- E o homem de Varm? - Ela virou um pouco a cabeça para espiar.
Na rocha havia uma mancha maior... maligna, negra, como uma sombra com a forma de um homem todo encolhido, sofrendo, seriamente ferido.
Lamaril encostou na parede de pedra. A porta para a câmara dos adormecidos era uma boca aberta.
Kadiya pôs a mão trêmula no rosto. Sentia o gosto adocicado e grudento de sangue. Seus dedos escorregaram pelos cortes ardidos feitos pela explosão dos cristais.
- Então terminou - Ela estava tão esgotada que era difícil formular palavras ou pensamentos.
- Varm não tem mais portas para chegar a esta terra. Os antigos terrores estão mortos, Kadiya. Os laços que uniam o passado ao presente se romperam, afinal... como tinha de ser. Nós fomos omissos quando não acabamos com tudo naquela época. Não podíamos matar nossos prisioneiros com as próprias mãos. Mas teria sido melhor se tivéssemos assumido a culpa pelo sangue. Ele quase venceu. Se não fossem você e os que criamos, teríamos fracassado. Para nós isso será algo que não podemos esquecer. Não somos todo-poderosos, apesar de vitoriosos nos tempos antigos. Somos apenas homens e mulheres com outros talentos, capazes de provar a morte e de conhecer a desgraça.
- As terras alagadas estão salvas. - Ela não fez uma pergunta, apenas declarou um fato, algo que talvez pudesse ser um consolo no futuro.
Por que ia precisar de consolo, Kadiya não sabia ao certo. Estava cansada demais, esgotada demais.
Ela olhou para a espada. Tinha sangue nas mãos por ter apertado tanto a lâmina que, mesmo sendo cega, havia cortado sua pele. Os olhos estavam completamente fechados. O brilho que havia em volta das pálpebras tinha sumido. Ela sentiu a diferença no corpo todo. O poder que respondia ao seu pedido tinha se exaurido afinal... não havia mais vida.
Kadiya pôs a mão no amuleto. Com o toque, que manchou de sangue a armadura, sentiu que o âmbar estava frio. Sem vida também Talvez.
Não tinha a capacidade de Haramis para o poder. O poder que tinham emprestado a ela, usou da melhor forma possível. E agora não existia mais. Kadiya olhou fixo para a frente, para além daquela mancha na rocha, que marcava o fim dos seguidores de Varm. Ela estremeceu. Os ventos que começavam a soprar na plataforma eram gelados como a montanha.
- Para onde vamos agora? - ela fez a pergunta para ela mesma, não tanto para ele.
- Nós vamos para Yatlan. - Essa mensagem mental parecia distante, fria.
Kadiya lembrou o que significava voltar para Yatlan.
Aqueles que ela trouxera para fora do tempo voltariam para o lugar sem tempo.
- Filha do Rei!
Kadiya virou-se assustada. Jagun se aproximava dela. Um dos braços dele estava em uma tipóia, atravessada no peito. Ele mancava, e um dos uisgus o amparava.
- Jagun! - Kadiya exclamou e acrescentou logo depois. Smail?
O caçador piscou os olhos.
- A curandeira está cuidando dele. Ele derrubou três skriteks, e o quarto tentou despedaçá-lo contra as rochas. Os afogados fugiram quando ouviram o grito de morte do protegido de Varm. Mas poucos conseguiram escapar dos dardos e das lanças nessa fuga.
- Muito bem. - Apesar de todo o esforço de Kadiya contra o cansaço, seu corpo relaxava de uma maneira que não compreendia. As pálpebras pareciam chumbo. Não podia mais lutar contra a exaustão. Era pesada como as rochas que caíram na fenda, onde havia o ninho.
A escuridão acariciava Kadiya com o conforto macio do manto do sono. Ela se rendeu suspirando, atrás da cura pelo esquecimento.
Não sabia quanto tempo ficou ali deitada, encolhida, mas logo surgiu um chamado do qual não podia fugir.
- Kadiya... - Alguém chamava seu nome à distância, insistentemente.
Ela procurou bloquear a audição e a mente para não ouvir.
- Irmã!
O grito foi alto demais e perto demais para ser ignorado.
Kadiya não sabia que lugar era aquele onde se encontravam. Talvez ele nem existisse na realidade que conheciam. Haramis era apenas um rosto pairando em sombras nevoentas.
- O que perturbou a terra? - A pergunta foi feita de modo autoritário. - Minha visão ficou bloqueada todos esses dias. O que aconteceu com Ruwenda?
- Um demónio dos tempos antigos - a voz de Kadiya soou arrastada, pois o cansaço avassalador ainda a dominava. Ela conseguiu se concentrar no rosto da irmã e sabia que Haramis estava ouvindo.
A praga, a descoberta daquele outro lugar para onde os Desaparecidos tinham ido, a volta deles... a aventura até a batalha nas montanhas... tudo que aconteceu nos últimos dias.
- Lamaril me disse - concluiu Kadiya - que a terra agora está limpa. Ele e os seus voltarão para aquele lugar além do tempo.
Haramis fez uma careta.
- Me disseram que eu era uma guardiã... mas não participei disso.
Kadiya quase podia sentir o gosto da amargura da irmã. Era mais que orgulho ferido. Ela sofria pelo que honestamente sentia pela terra.
- Eu não sei por que isso veio parar nas minhas mãos - disse Kadiya cansada. - Eu não detenho nenhum grande poder. Ela se lembrou da aparência acabada da espada, do desaparecimento do fogo em seu amuleto. - Agora até acho que não tenho nenhum. Talvez eu tivesse maior facilidade para atingir os grandes. Haramis, eu não quero ter mais nada a ver com o poder... e ele comigo.
- Esteja certa, irmã - retrucou Haramis -, que encontrarei um jeito para isso não acontecer de novo. Eu tive pouquíssimo tempo - ela fez uma pausa -, e parte do meu aprendizado ficou contaminada. Orogastus era das trevas e esforçou-se para levar-me com ele.
- Mas você não cedeu - lembrou Kadiya. - E possui grande determinação, irmã. Lamaril vai embora com sua gente, mas ficarão ensinamentos em Yatlan. Eu posso não compreender, mas guardarei para você pelo tempo que quiser... e sem poder, se for preciso.
Haramis olhou fixo para ela durante um tempo.
- Irmãzinha, você é muito mais grandiosa do que imagina.
- Os olhos dela adquiriram a aparência de quem está tendo uma visão. - E será mais ainda. Até nosso próximo encontro, querida.
A escuridão macia voltou, a perfeita integração com o nada, descanso para a mente e para o espírito.
Quando Kadiya acordou não estava em nenhum lugar fora dos limites do mundo real. Via rendas verdes contra o céu azul, sentia o perfume de tudo que crescia depois das monções. Estava deitada, enrolada em capas de fibra de junco, dentro de uma embarcação leve. Na sua frente um uisgu segurava as rédeas de um rimorik, e navegavam bem rápido.
-Nobre Dama...
Kadiya virou-se. Ainda se sentia fraca, como se acabasse de acordar de uma longa doença. Viu Salin e Tostlet.
- Onde estamos?
- Você dormiu durante um longo tempo, Nobre Dama. O Grandioso disse que tínhamos de cuidar bem de você, que devíamos fazer tudo que pudéssemos, pois você deu quase toda a sua força para o poder. Agora estamos navegando no rio, a caminho de Yatlan.
Ela tentou raciocinar. Já estavam no rio... então tinham percorrido um longo caminho.
Salin falou outra vez, bem baixinho.
- As sindonas da guarda de fora, as que seguem Lamaril, já retornaram como deviam para o seu lugar. Os de Yatlan viajam conosco. Nem todos sobreviveram à batalha, Filha do Rei. Cinco passaram para a Chama Derradeira. Pois o ser das trevas era muito poderoso. Se tivesse conseguido despertar os que dormiam, nenhum de nós estaria vivo.
Lamaril não tinha morrido. Kadiya tinha uma vaga lembrança dele naquela plataforma de pedra. Mas ele partiu... Kadiya sentiu uma fome estranha, que não era de comida, era como se procurasse uma parte do seu ser interior que estava faltando.
Ninguém jamais tinha preenchido esse vazio. Kadiya descobria isso naquele momento. Sua mãe, seu pai tiveram seus lugares em sua vida, e ela sentiu a dor misturada com raiva quando eles morreram de forma tão violenta. Haramis. A irmã mais velha e ela não tinham muito em comum, a não ser o sangue. Não tinha acesso ao que alimentava a vida de Haramis.
Anigel. Sentiu de novo o leve desprezo gerado pela união da irmã com o filho do inimigo. Como rainha, Anigel já estava entregue a uma vida que Kadiya comparava a uma prisão. Mas Anigel tinha nascido para usar a coroa. Jagun? Não conseguia imaginar nenhum dia sem ele... mas ele era um oddling, de outra raça, com pensamentos e crenças próprias, nas quais ela não podia entrar. Salin? Kadiya olhou diretamente para a mulher sábia. Salin também era sua amiga e esperava que nunca deixasse de ser.
Mas...
Kadiya encostou a cabeça no travesseiro de cobertores. Não ia mais pensar! Não podia pensar! Para ele, ela seria como uma oddling... como os hassittis... uma criatura estranha sem nenhum ponto comum na vida. Ele já tinha ido embora, para deixar seus seguidores montando guarda no caminho de Yatlan. Já devia ter desaparecido além do tempo.
Kadiya travou sua batalha ali deitada. Ela lutou, sabendo que não podia ganhar. Os ferimentos saravam, mas sempre deixavam cicatrizes. Nos momentos em que esteve com ele, jamais percebeu a mudança que ocorria nela. Foi só quando ele não apareceu no ataque do ser das trevas, quando ela achou que ele estava morto, que finalmente caiu em si, percebendo a verdade que ficava mais forte e mais profunda ali naquela embarcação, navegando pelo rio.
Bem, ela não era fraca. Kadiya achava que tinha provado isso. Podia viver com lembranças dolorosas. O tempo ia passar... e ela entrou novamente no fluxo do tempo.
Os outros guardiões, os que ficavam na escada, estavam reunidos em outros dois barcos dos uisgus que tinham saído na frente. Eles não tentaram conversar com ela quando acamparam, ficaram quietos no seu canto. Ela imaginou se já não estavam se retirando aos poucos para o paraíso sem tempo deles. Ela também não os procurou, pois só de olhar já dava para perceber a barreira cada vez mais espessa que se formava entre eles e o pessoal do pântano.
A força voltou. Kadiya comeu o que a curandeira deu para ela, ouviu os relatos dos uisgus, cujos clãs caçavam skriteks perdidos e os mandavam para o território barulhento deles. Talvez os afogados tivessem sofrido uma derrota tão grande que nem representariam mais perigo no futuro. Mas isso não significava que batedores e patrulhas deixariam de funcionar nas fronteiras e de ficar de olho neles. Kadiya achava que seriam sempre uma ameaça.
Quando o grupo teve de deixar os barcos, ela foi capaz de caminhar bem pela terra. O fato de não seguir pela estrada dos guardiões foi um alívio. Ela nunca mais queria ver a estátua de Lamaril, congelada para sempre em pedra, coberta de lama.
Quando entraram em Yatlan, os Desaparecidos aceleraram o passo e deixaram os outros bem para trás. Passaram rapidamente pela fonte, mas Kadiya os acompanhava de perto. Não tinha mais contato nenhum com eles, e mesmo assim achava que devia ver o final da mágica que operaram por meio dela.
Eles tiraram as armaduras nos degraus, empilhando-as como se as jogassem fora, sem querer tornar a vê-las. Um dos elmos rolou e caiu no primeiro degrau, perto dos pés de Kadiya. Os Desaparecidos assumiram a mesma posição de quando o pólen de trílio os despertara.
Então... a vida se desprendeu deles como uma lâmpada que se apaga. Ficaram lá parados, como tinham estado durante séculos, mas não eram nada além de réplicas dos que Kadiya tinha visto vivos, alguns minutos antes.
Os hassittis se agitaram em volta dela, correndo para as armaduras descartadas e se afastando depressa com as partes, como insetos desmembrando algo morto.
Kadiya adiantou-se devagar. Em cada degrau ela parava para espiar os guardiões. Tentou se lembrar dos nomes, mas alguns jamais chegou a ouvir, aqueles que ficavam mais distantes dos oddlings.
Os olhos opacos fizeram Kadiya estremecer, mas ela se obrigou a olhar para todos. Sim, eles tinham ido embora todos eles - e tinha certeza de que não voltariam. O mundo destruído há muito tempo por uma guerra poderosa estava se recompondo de uma forma diferente, que não significava nada para eles. Ela se lembrou daquela terra rica e pacífica além da parede. Ruwenda tinha sido assim um dia, mas não havia mais volta, e ela também não podia mais se encaixar na pessoa que era a filha da corte de seu pai, que não existia mais.
Precisava descobrir quem ela era. Kadiya imaginou que isso seria uma tarefa longa e sofrida. Tinha praticamente se apossado das terras alagadas em sua arrogância - por isso assumia a sua responsabilidade. Premonição... Salin tinha esse poder, um pouco. Kadiya balançou a cabeça. Não. Já que não havia nenhum perigo imediato, não pediria nenhuma previsão da mulher sábia. Que cada dia apresentasse o que tinha para oferecer, e ela o enfrentaria da melhor forma que pudesse.
Ela tirou a espada da bainha. Não tinha mais vida. Os olhos estavam selados, como se jamais tivessem aberto. Essa parte da sua vida de fato tinha terminado. O amuleto pendia feito um belo berloque sobre seu peito. Via o trílio negro lá dentro, mas sem a fagulha do fogo da vida.
Kadiya tirou seu elmo e deixou-o em um degrau da escada. Ainda usava a armadura, mas os hassittis deviam ter roupas mais adequadas para alguém que não era mais uma guerreira.
Ela passou pelo meio das colunas e desceu a escada até o jardim. Começava a escurecer... os insetos luminosos teciam seus desenhos entre as flores, cujo forte perfume permeava as sombras.
Segurando a espada com as duas mãos, Kadiya chegou ao pedaço de terra nua. Ergueu a lâmina bem alto para ter mais força e espetou-a no solo. O fato de não ter ponta não impediu que penetrasse direito, e a terra parecia ansiosa para recebê-la.
Ela ficou de cócoras, esperando. Viu um brilho, fraco a princípio, que foi ficando mais forte, escondendo a lâmina e o punho.
Uma flor nascia... igual à que tinha visto em outro lugar, em outro tempo. Não era um trílio negro, e sim dourado, que cobria a espada completamente. Ele se mexia, como se uma brisa o empurrasse de leve, e lançou uma chuva de pólen colorido.
Kadiya engoliu em seco, espantada. Depois ficou tensa, pois sentiu um peso nos ombros. Mãos...
Virou-se devagar e olhou para cima. Ele estava abaixado também, mas como era mais alto, avolumava-se sobre ela.
- Lamaril! - Os lábios de Kadiya, subitamente secos, formaram o nome dele sem emitir som.
Ele estava sem o elmo, e ela via o seu rosto por inteiro. Kadiya ficou sem ar.
- Mas... você tinha ido embora! - protestou ela. Ele balançou a cabeça.
- Sempre temos opções. Eu escolhi o que queria. Nenhum rio de tempo vai ficar entre nós, coração plantado. Veja - ele a pegou nos braços e a fez olhar para o trílio dourado, tão bem enraizado -, essa é a resposta... para nós dois Yatlan está morta, o mundo que ela governava se foi... mas temos diante de nós muitas estações de uma vida nova. Temos muito que aprender e muito que fazer... juntos.
Uma brisa juntou o pólen precioso do trílio e o levou até eles. Kadiya suspirou. Ter aqueles braços em volta dela era melhor do que qualquer premonição. Não... aquilo era a premonição!
Andre Norton
O melhor da literatura para todos os gostos e idades