Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O TRÍLIO NEGRO
Segunda Parte
Um cheiro pútrido quase fez Kadiya vomitar. Não precisou o aviso de Jagun. Notou o movimento entre as árvores mortas, um som pegajoso e uma skritek apareceu.
Não parecia alerta, mas arrastava-se, apoiada num cajado, balançando o corpo de um lado para o outro. A carne esverdeada do corpo atarracado era manchada, a barriga enorme, toda ela muito mais pesada na parte superior. Apoiou-se num galho que se partiu, esfarelando na sua mão. A skritek caiu de joelhos. Por mais que se esforçasse, não conseguiu ficar de pé e arrastou-se até encontrar uma árvore um pouco mais resistente.
Contorceu o corpo e abriu a boca para um grito rouco. De baixo da barriga enorme saiu um objeto branco, contorcendo-se como se tivesse vida própria, caiu no chão e começou a saltar. Foi seguido por outro e mais outro, e outro ainda, até Kadiya contar dez crias gordas, dez vermes gordos, esbranquiçados, do tamanho da cabeça de um bebê humano.
A mãe skritek caiu exausta, encostada na árvore, e os dez filhotes, que pareciam reclamar alguma coisa, avançaram juntos para a fêmea que acabava de lhes dar à luz. Evidentemente estavam se alimentando.
Jagun aproximou-se da princesa.
— As crias nascem famintas. — Ele falava muito baixo. — E aquela infeliz fêmea não tem carne suficiente para satisfazer toda a ninhada.
Duas ou três daquelas coisas nojentas afastaram-se da carcaça da mãe. Duas arrastaram-se como vermes na direção da canoa escondida. Kadiya não via nada que parecesse uma cabeça naqueles seres disformes, embora andassem com a parte da frente um pouco mais alta. Depois de se balançar no ar, eles seguiram em linha reta para a canoa e começaram a entrar na água.
Jagun moveu-se rapidamente. Sua zarabatana estava pronta e o primeiro dardo bateu no corpo da larva com uma pancada surda. O segundo acertou a que vinha logo atrás. Os filhotes bateram com a parte da frente no chão e ficaram imóveis.
Jagun tirou da sacola de caça uma tira dobrada de um material fino como um véu. Partiu pela metade e deu uma parte para Kadiya, indicando, com gestos, que ela devia seguir seu exemplo. Enrolou a tira fina na cabeça, cobrindo os olhos, o nariz e a boca. Examinou o nó na tira de Kadiya antes de continuar.
Outras larvas de skriteks caminhavam para a canoa, com a parte da frente erguida, farejando a presa. Dessa vez Jagun não apontou para elas, mas para as plantas azul-avermelhadas que cobriam o solo da ilhota. A primeira, atingida pelo dardo, explodiu como se algo muito potente estivesse se libertando de dentro dela. Uma nuvem azul ergueu-se no ar, seguida por outra e mais outra, até formarem uma neblina espessa de esporos que desceu lentamente. Jagun levou o barco para o meio do rio e ficaram ali até a nuvem se esgarçar e cair toda no solo. Onde estavam os skriteks viam-se agora massas gelatinosas que aos poucos desapareciam na terra.
Kadiya inclinou-se para fora e apanhou a haste do trílio que resistiu, apontando sempre para a frente. Finalmente, deslizou dos dedos dela e voou, como se Kadiya a tivesse lançado para cima. Não havia dúvida, a haste estava agora onde haviam estado os skriteks, apontando para o interior da ilha. Kadiya olhou para Jagun, ele deu de ombros.
Então o oddling disse, com a voz abafada pela máscara fina.
— Para lá fica o Inferno de Espinhos, Olhos Penetrantes. Parece que não temos escolha.
Que não tinha escolha era evidente. Não podia deixar a trilha destinada para ela pela magia da Arquimaga. Kadiya subiu para terra. A raiz do trílio continuou resolutamente seu caminho, dando uma volta para evitar as plantas venenosas.
— O que há lá adiante? — perguntou Kadiya, passando os braços pelas alças da mochila.
Jagun balançou a cabeça.
— Terra desconhecida, filha do rei. Se tivermos sorte, podemos chegar às terras dos uisgus.
Kadiya desviou cuidadosamente de uma planta redonda, sem olhar para onde estavam os ossos da fêmea skritek devorada.
— Sorte? — A princesa riu com amargura. — Ninguém consegue ter sorte por tanto tempo.
Chegaram a um canal cercado de mato com água verde e espumosa. Havia uma árvore morta atravessada sobre ele. As marcas na lama indicavam que era usada como ponte. Kadiya abaixou-se para apanhar a raiz do trílio, temendo que ela caísse na água e se perdesse. A raiz-guia ficou rígida e reta na sua mão. De uma das extremidades saía um vapor que parecia um fio de fogo negro e, embora nenhuma brisa soprasse, ela apontava para a frente na direção que deviam seguir, a selva de plantas enormes e espinhosas, duas vezes mais altas do que um homem.
Viajaram durante horas. Finalmente, Jagun disse:
— Vamos parar aqui esta noite.
O lugar para onde a raiz os levara era uma pequena elevação, sem plantas espinhosas nem bolas cheias de veneno, circundada por uma relva alta de hastes cortantes. Embora tivessem visto poucos sinais de ruínas, desde que deixaram Noth, era evidente que aquela elevação não era obra da natureza. Kadiya segurou um pequeno arbusto para ajudá-la na subida e a planta saiu na sua mão, com raiz e terra, deixando a descoberto o que parecia ser pedra trabalhada. Não era o granito escuro das ruínas que ela conhecia, mas um mineral mais macio, tão liso que parecia impossível que o mato pudesse crescer sobre ele. E refletia a luz do poente com um brilho estranho.
— O que é isto? — Kadiya perguntou.
Talvez a raiz-guia os tivesse levado a algum aparelho tão enorme que ela nem podia imaginar o que era nem para que servia. Cavou mais um pouco a terra. Aquela ruína não era de pedra. Tinha uma superfície lisa e macia.
Jagun olhou para a descoberta e desviou os olhos apressadamente.
— É dos Desaparecidos.
Fez um gesto breve no ar e olhou fixamente para a raiz do trílio na mão de Kadiya. A chama negra que até ali indicava o caminho a seguir curvou-se por um momento, depois ficou reta, circundada por um halo verde.
De repente, a dúvida que a atormentava há tanto tempo dissipou-se. Kadiya subiu até o topo da pequena elevação e viu que estava de pé na borda do que parecia uma bacia enorme. Os lados desciam íngremes e deslizamentos freqüentes provocados pelas tempestades haviam retirado a lama e os detritos de partes da superfície que era lisa e sem marcas.
Kadiya ficou atónita e depois começou a rir.
— Caçador, esta terra guarda muitas surpresas. Talvez a sorte esteja conosco, afinal, pois sinto...
Ergueu os braços -abertos e respirou fundo. Os Desaparecidos pareciam aprovar sua presença naquele lugar, até mesmo a recebiam alegremente. O coração de Kadiya ficou mais leve. Os terrores e sofrimentos dos últimos dias pareciam pequenos e distantes. Não sentia mais a fadiga da jornada, apenas uma excitação crescente e a crença de que, fosse o que fosse, o que a esperava a ajudaria a atingir seu objetivo.
O Príncipe Antar saiu à procura da Princesa Anigel com um grupo de vinte cavaleiros e sessenta soldados, além da Voz Azul do feiticeiro, que se encarregaria de informar a posição da jovem através dos contatos com seu mestre. Os homens de Labornok partiram da Cidadela em três grandes barcaças equipadas com caiaques auxiliares. Os froniais dos cavaleiros foram deixados para trás por ordem do príncipe, o que desagradou extremamente Sir Rinutar, Sir Karon e seus homens embora nenhum deles soubesse dizer o que iam fazer com as montarias no Pântano Labirinto. Cada barcaça levava duas equipes de remadores que se revezariam na viagem sem paradas, e os grandes barcos deslizaram velozmente nas águas calmas do Baixo Mutar e do Lago Wum.
Depois da segunda consulta promissora de Orogastus ao espelho de gelo, o mestre-mercador Edzar juntou-se à expedição, uma vez que tinha experiência em tratar com os wyvilos, os nativos da Floresta Tassaleyo que forneciam madeira aos compradores, tanto quanto com os nyssomus de Trevista. Por meio da Voz Azul, o mercador conversou com o feiticeiro e imaginou um plano que, segundo ele, era infalível.
Agora a força labornok aproximava-se rapidamente da cidade de Tass, a única povoação humana importante no lago. O centro de comércio madeireiro de” Ruwenda era um pobre aglomerado de docas, armazéns e galpões, situados numa ilha, com barreiras de vigas flutuantes que formavam grandes cercados para guardar os troncos abatidos. O mestre-mercador Edzar explicou aos cavaleiros que os troncos eram transportados para os pátios dos armazéns, na outra extremidade do lago, amarrados uns aos outros, e como jangadas seguiam para o norte, na estação das chuvas, quando os ventos eram favoráveis. A madeira mais valiosa, cortada, limpa e embalada, era transportada em barcaças, em qualquer estação do ano, e do norte, seguiam pela Rota do Comércio durante o tempo da seca.
No convés de proa do barco, sob o grande toldo que os protegia do sol escaldante do lago, os homens do príncipe, sem nada para fazer, exceto beber e olhar a paisagem, estavam fartos da viagem e das explicações intermináveis do mercador, ansiosos para começar a caçada.
A primeira expedição de busca no Pântano Labirinto, perto da Cidadela, foi um fracasso. Os homens eram cavaleiros, não marujos, e não sabiam se organizar para uma caçada na água. A força de vinte canoas auxiliares, cada uma levando um comandante, três homens armados e três remadores, percorreu o Pântano às cegas, de um lado para o outro, obedecendo às ordens dos capitães inexperientes. Desentenderam-se sobre quem devia procurar nas áreas mais próximas e quem devia rumar para as mais distantes, quem faria a busca nos canais limpos, quem iria aos canais de água imunda, cheia de vermes aquáticos venenosos, insetos agressivos e os vorazes peixes milingais.
Perderam horas procurando no mesmo lugar e deixando outros inexplorados, até o comandante do barco capitâneo sugerir ao príncipe que os barcos deviam ser dirigidos pelos barqueiros e não pelos cavaleiros, com a promessa de uma boa recompensa a quem encontrasse a princesa. Foi conduzida então uma busca ordenada e eficiente, mas sem resultados. O Príncipe Antar não parecia desapontado com a falta de sucesso da expedição.
Agora que se aproximavam de uma área mais promissora, o príncipe estava cabisbaixo e irritado. Sir Rinutar, o belicoso cavaleiro, comentou com seus amigos que o príncipe não parecia muito entusiasmado com aquela missão. O fiel e sincero Sir Penapat por acaso ouviu essa observação e furioso ameaçou quebrar a cabeça de Rinutar.
A briga inoportuna foi evitada pela intervenção do próprio Antar, que restaurou a ordem com a ajuda do seu ajudante, Sir Owanon. O príncipe retirou-se então sozinho para o tombadilho de proa, onde ninguém ousou perturbá-lo e onde ficou até o barco chegar às docas.
Antar chamou o mestre-mercador Edzar e mandou que descrevesse outra vez seu plano para os cavaleiros, explicando-o detalhadamente com a ajuda do mapa, para que não houvesse nenhum contratempo. Edzar envergava ainda o curto manto verde bordado a ouro, mas sua roupa era agora púrpura, e o chapéu, com aba larga, era feito de agulhas de pinheiro artisticamente trançadas e enfeitado com grandes flores cor de cereja.
— Como podem ver, senhores — começou ele —, três grandes rios, incluindo o Baixo Mutar, alimentam o Lago Wum. Mas há uma única saída, o Grande Mutar, que atravessa a Floresta Tassaleyo, e é a única passagem naquela selva imensa. Se o poderoso Orogastus interpretou corretamente sua visão, a Princesa Anigel dirige-se para a floresta e, para chegar lá, terá de passar por aqui.
Seu dedo indicava a extremidade sul do Lago Wum, que no mapa tinha o nome de Catarata Tass.
O magro e moreno Voz Azul adiantou-se. Geralmente ele ficava na cabine do capitão, evitando a luz do sol como um verme, mas a proximidade da cidade de Tass o fez sair da toca.
— Meu digno mestre-mercador, o espelho de gelo do meu Mestre Todo-Poderoso não só vê, como ouve também. A visão não dura mais que um minuto. Contudo, na sua segunda consulta, meu mestre ouviu claramente a serva da Princesa Anigel referir-se à Floresta Tassaleyo como sua meta seguinte.
O príncipe olhou para o mapa com a testa franzida.
— Se não a alcançarmos nas cataratas, teremos de descer o Grande Mutar no seu encalço. Faltam menos de quinze dias para a estação das chuvas... e em nome de Zoto, que tipo de embarcação vamos usar então?
Edzar disse:
— Talvez possamos descer nossos barcos pelo elevador dos troncos de madeira. Contudo, os barcos dos wyvilos, muito mais rápidos do que os nossos, ficam ancorados logo abaixo da cachoeira. Normalmente, não são usados por humanos. Pelos humanos de Ruwenda, quero dizer. Mas se precisarmos seguir a princesa no Grande Mutar podemos — bem — tentar convencer os wyvilos a nos transportar rio abaixo. Sir Rinutar riu maldosamente.
— Ora, como poderão recusar ajuda a um grupo de homens tão simpáticos?
Terminou de afiar sua espada e, com um gesto de espadachim, quase a encostou no nariz grosso do mestre-mercador. Edzar engasgou-se e os cavaleiros riram.
Voz Azul disse:
— Tenho autorização para usar certo tipo de mágica com os oddlings da floresta, se relutarem em nos ajudar. Com meu método de persuasão, aliado aos métodos de Sir Rinutar, não teremos dificuldade para conseguir o transporte, se for preciso. É claro que, se o plano do mestre Edzar der resultado, capturaremos a Princesa Anigel aqui, antes da cachoeira.
Sir Owanon, amigo do Príncipe Antar e seu segundo em comando, um homem jovem, inteligente e de bom temperamento, ergueu um dedo.
— Ouçam! Esse é o ruído da cascata?
— Sim, meu senhor — respondeu o mercador. — A Catarata Tass é praticamente intransponível. Tem mais de sessenta ells de altura e um grande volume de água, mesmo na estação seca. Abaixo dela, o Grande Mutar corre tranqüilamente até o mar. Os lenhadores wyvilos não têm dificuldade em levar a madeira até a cachoeira. É engraçado ver aqueles estranhos seres não-humanos, encarapitados numa fileira de toras enormes, no meio do rio, conduzindo-as com varas rio acima e cantando seus hinos bárbaros.
— E sem dúvida imaginando o melhor meio de fazer picadinho do fígado do primeiro infeliz humano que encontrarem — disse Sir Karon, com voz arrastada.
Quase todos os cavaleiros riram sombriamente.
— Não, não, meus senhores — protestou Edzar. — Apesar da sua aparência horrível, os wyvilos são — bem — relativamente civilizados. Estão confundindo com seus primos, os glismaks, que vivem mais para o sul. Esses são os oddlings com tendências canibalescas...
— Pedras de Zoto! — exclamou alguém. — Teremos de enfrentar comedores de homens?
— Você pode ficar segurando nossos mantos Stolafat, se a idéia o deixa tão apavorado — zombou Rinutar.
— Chega dessa conversa — disse o Príncipe Antar. — Mestre Edzar, descreva outra vez aquele seu plano infalível. — Voltou-se para os homens. — Prestem atenção e parem com as brincadeiras!
Edzar desenrolou o mapa com um gesto largo fazendo sinal para que todos se aproximassem.
— Vejam. A cidade de Tass fica nesta ilha, perto da margem leste do lago. O canal a leste é completamente bloqueado pelos cercados com as toras de madeira. A oeste há menor número de cercados, pois aí erguem-se as rochas chamadas Presas de Munjuno, através das quais correm águas velozes até a borda da cachoeira. A margem oeste do lago neste ponto, é rocha pura e praticamente intransponível, ao passo que na margem leste a floresta espessa só é penetrada pela rampa que vai do grande elevador das toras, na borda da cachoeira, até a enseada que fica em frente da cidade de Tass, onde a madeira é colocada na água. Nesta rampa leste é que devemos armar nossa cilada.
Edzar apontou primeiro para o mapa, depois para a margem leste, no lado oposto ao que estavam ancorados além do grande labirinto de toras flutuantes. O príncipe e seus homens viram carroças paradas na trilha, com rochas da altura de um homem. Mas aparentemente não havia movimento de homens ou animais por perto. A praia parecia deserta
— A guerra acabou com o comércio de madeira na cidade de Tass — explicou Edzar. — Os ruwendianos que trabalhavam na serraria, logo abaixo da cachoeira, no grande elevador e na rampa ainda não voltaram ao trabalho. Lorde Zontil, um dos mais fiéis ajudantes do General Haniil, foi encarregado de estabelecer uma guarnição aqui. Ele çspera ter resolvido tudo até o fim da estação das chuvas. A essa altura, todas as toras que estão vendo na água terão sido transportadas para o extremo norte do lago. E, quando chegar a estação seca, a produção de madeira deverá estar normalizada.
— Pare de nos aborrecer com sua conversa tola, mercador! — exclamou Sir Rinutar, batendo com a mão no mapa, impaciente. — Você garante que a fugitiva só pode chegar à Floresta Tassaleyo passando por aqui — por esta rampa?
Edzar empertigou-se, ofendido.
— Garanto. Neste lado do planalto de Ruwenda há uma escarpa que não pode ser escalada. Há muito, muito tempo, os oddlings cortaram uma trilha estreita no penhasco a leste da cachoeira. O grande elevador de madeira e a serraria lá embaixo, que usa a força da água, foram construídos pelos primeiros habitantes humanos de Ruwenda, utilizando as fundações que, segundo dizem, foram feitas pelos Desaparecidos. Não existe outro caminho do Lago Wum para o Grande Rio Mutar, a não ser o elevador e a trilha. A princesa terá de tomar o caminho das carroças para chegar a qualquer um dos dois.
As três barcaças da força de busca estavam sendo amarradas à doca da cidade de Tass, que também parecia completamente deserta. Os soldados armados de Labornok montavam guarda em toda a extensão do cais, enquanto ruwendianos carrancudos seguravam os cabos e colocavam as pranchas de desembarque. Um nobre labornok, com armadura enfeitada, acompanhado por vários oficiais, esperava impaciente o fim das manobras de atracação para cumprimentar o príncipe.
Porém, Antar estava inclinado sobre o mapa, dando suas instruções.
— Então, devemos nos dispor do seguinte modo. Dividiremos nossas forças em três companhias — Owanon comandará a primeira, Dodabilik, a segunda, e Rinutar a terceira — que ficarão no cais da rampa, no meio do caminho entre o ponto em que ela é cortada pela trilha e a parte superior do elevador.
— Não vai comandar nenhuma companhia, meu príncipe? — perguntou Sir Rinutar com uma leve sugestão de malícia.
— Não — respondeu o príncipe, secamente. — Voz Azul e eu coordenaremos toda a ação de um ponto estratégico. Ele pode usar sua visão até uma certa distância. Penapat também ficará conosco, porque ainda não sarou completamente da picada do verme aquático no pé, e se encarregará dos sinaleiros e mensageiros que transmitirão minhas ordens. Precisamos ter certeza de que a Princesa Anigel não vai escapar desta vez.
Era o começo da tarde do seu terceiro dia no Lago Wum e o som da Catarata Tass ribombava no ar como um trovão distante, e a sua parte mais alta era delineada por uma névoa brilhante. Anigel e Immu tinham se aproximado cautelosamente da ilha da cidade de Tass e o barco estava agora escondido sob um chorão que se erguia numa fenda do grande precipício na margem oeste.
Em volta do esconderijo, rochas imensas erguiam-se da água. Entre elas e a ilha, a menos de duzentos ells, as cinco Presas de Munjuno, aguçadas, marcavam o ponto do começo da queda-d’água. Um barco pequeno podia navegar contra a corrente ao norte das rochas e chegar a salvo nos cercados de toras e na margem oposta, mas passar ao sul das Presas significava ser apanhado por uma corrente veloz e carregado pela catarata.
— O que devemos fazer — disse Immu, arrumando a refeição frugal na sombra verde da árvore — é esperar o cair da noite, então atravessar acima das Presas. Há uma estrada na margem com menos de meia légua. Seguindo por ela, chegaremos a uma trilha íngreme que vai dar na serraria ruwendiana, no sopé da cachoeira, e lá podemos roubar um barco.
— Mas os rimoriks..! — exclamou Anigel.
— Mas mas mas! Libertaremos as boas criaturas e elas voltarão para as águas em que vivem. Pensa que pode guardálas -para sempre, como animais de estimação?
Anigel inclinou a cabeça.
— Eu não estava pensando nada. Immu bateu de leve no ombro dela.
— Não importa. O Grande Mutar é muito raso, a não ser no canal principal. Podemos fazer uma jangada com os troncos e descer o rio, se for preciso — deixando para trás pelo menos um dos seus grandes temores. Os soldados de Labornok jamais pensarão em nos procurar na Floresta de Tassaleyo. Se tivermos sorte, os wyvilos respeitarão seu amuleto do trílio, como os uisgus respeitaram, e eles a ajudarão na sua procura do talismã.
Anigel, mastigando as raízes secas, não parecia convencida.
— Você acha mesmo? Ouvi dizer que eles são muito hostis para com os humanos e muito feios também.
— Não são o tipo de povo que você convidaria para um baile de gala na Cidadela — concordou Immu. — Os nyssomus dizem que, há muitos anos, alguns membros da nossa raça foram capturados pelos skriteks e obrigados a se unir a eles, e dessas uniões nasceram os wyvilos e seus vizinhos mais primitivos, os glismaks.
— Como são eles? — perguntou Anigel, lambendo os dedos.
— Eu nunca vi nenhum, mas dizem que são uma mistura de skriteks com nyssomus ou uisgus.
— Horríveis! — disse a princesa.
— Seja qual for seu aspecto — continuou Immu, em tom de censura —, os wyvilos são também súditos da Dama Branca e adoram o Trílio Negro, portanto podemos esperar que nos recebam bem.
— Esses glismaks são hostis aos humanos? Immu suspirou.
— Como os skriteks, aqueles demónios do Pântano Labirinto, os glismaks detestam todos os seres vivos, a não ser eles mesmos. Vamos rezar para que o seu talismã...
— Veja! — exclamou Anigel, apontando para o outro lado do lago. — Veja, Immu! Uma frota de barcos saindo de trás da ilha — e o líder traz a bandeira de Labornok!
Com a mão em pala, Immu protegeu os olhos do reflexo da luz da água. O ar estava parado e fazia muito calor.
— Tem certeza?
— Ó, sim, eu tenho. O miton aguça todos os sentidos. — Anigel recuou cheia de terror. — É um grupo de busca à minha procura e estão indo para a margem leste.
— Pela Flor! — resmungou Immu. — Cortaram nosso caminho. Se ao menos tivéssemos chegado mais cedo.
— Não podem me capturar! Não existe outro caminho para descer o rio?
Immu franziu a testa, pensando.
— Descer descer descer. Só conheço um caminho. — Mas então sua expressão mudou e, com a mão de garras afiadas no ombro da jovem, apontou com a outra para a água, perto do barco. — Mas eles devem conhecer outro.
— Os rimoriks? — perguntou Anigel, em voz baixa.
— Pergunte — disse Immu. A princesa inclinou-se na amurada. Os tirantes que os atrelavam tinham sido alongados para a viagem no lago e a água ali era profunda. Os rimoriks tinham mergulhado para fugir do calor.
Meus amigos, quero perguntar uma coisa muito importante.
Apareceu primeiro um vulto escuro, depois o outro. As duas cabeças pintadas de verde apareceram sem provocar nenhuma agitação na superfície da água, com as presas à mostra, num arreganho que Anigel sabia agora ser um sorriso e não uma demonstração de ferocidade.
Amiga humana, pergunte.
Vocês sabem onde estamos agora?
Certamente. Na borda da Grande Queda de Água Branca. Tem outra pergunta?
Existe um caminho para descer a cachoeira? Até o Grande Mutar?
Existe. Há um caminho da Grande Água Plana para a Água que Corre para o Mar.
— Immu! — exclamou a princesa. — Eles dizem que há um caminho!
— Pergunte se podem nos levar por ele — a voz de Immu estava tensa e rouca.
Podem nos levar até lá, no barco?
Se quiser.
Há humanos malvados em outros barcos em volta da ilha, agora. Podem nos levar de modo que não nos vejam?
Sim. Podemos. Deseja ir agora? Nesse caso, precisamos primeiro tomar o miton.
— Disseram que sim! — exclamou Anigel, cheia de alegria. — Querem saber se desejamos ir agora! Oh, é maravilhoso! O que devo dizer a eles, Immu?
A oddling piscou lentamente os olhos amarelos e enormes. Então olhou fixamente para a humana que ela amava, vendo a pele, antes delicada, com marcas de picadas de insetos e bronzeada de sol, o cabelo, antes comparado a fios de ouro, como um emaranhado de palha, os olhos azuis, antes chorosos e cheios de medo, agora cintilantes e decididos.
— Minha doce criança, é claro que deve dizer a eles para nos levarem agora.
Dizendo isso, Immu começou a guardar calmamente a comida nas duas mochilas e as amarrou no banco do barco.
Anigel tirou o jarro com miton da bolsa no seu cinto. Tomou um gole, depois deu para os rimoriks.
— Agora, estamos prontas. Sente no seu lugar, Immu. A princesa voltou para o banco da proa e segurou as rédeas, enrolando-as nas mãos calejadas para maior firmeza. Mentalmente, deu a ordem.
Meus amigos, vamos!
Os dois animais mergulharam, nadaram para a frente dando impulso com as nadadeiras munidas de garras, e tiraram o barco longo e leve do esconderijo para o meio do lago. Fazendo uma curva longa, nadando com toda sua força prodigiosa, seguiram para o sul — direto para as Presas de Munjuno e para a borda da enorme cachoeira.
Encostado na grade de pedra, o Príncipe Antar viu seus cavaleiros e os soldados desembarcarem dos barcos e começarem a tomar suas posições ao longo da rampa. Antar, Voz Azul e Sir Penapat, este último mancando, estavam na parte mais alta da Torre de Tass, um farol com quase quinze ells de altura no lado oeste da pequena cidade da ilha.
O príncipe e o cavaleiro, só com as túnicas e os calções, por causa do calor, observavam a cena do parapeito externo do farol, mas o magro Voz Azul, com o manto e o capuz, estava sentado numa banqueta perto da grande lâmpada apagada, seguindo com sua visão a distância o movimento das tropas em terra.
— Eu não gostaria de morar aqui — disse Penapat.
— Por que não, Peni? — Antar examinava os telhados lá embaixo com poucas espirais de fumaça saindo das chaminés. Lorde Zontu dissera que a maior parte dos moradores, exceto os marinheiros das jangadas, abandonava Tass na estação das chuvas. A guerra tinha apressado o êxodo.
— Muito barulhento — disse o alto cavaleiro. — A cachoeira. Me dá dor de dente.
— Dor de dente..
— Você não sente? Um som tão profundo que não chega a ser um barulho. Atravessa as rochas, faz tremer todo o farol, meu corpo também e me dá dor de dente.
Antar começou a rir — mas parou de repente, com a impressão de ter visto alguma coisa na água. — Meu Deus! — murmurou. — Peni, quer olhar para aquele lado? Vê o que eu vejo?
— Um barquinho — confirmou Penapat, intrigado. — Não devia passar além daqueles rochedos. O mercador disse que há uma corrente muito forte naquele lugar, que carrega o barco para a cachoeira.
— Azul! — rugiu o príncipe. — Venha aqui, depressa! Voz Azul ergueu-se da banqueta com relutância evidente e Antar o arrastou até a grade do farol, apontando para o pequeno barco.
— Aquele barco! Quem está dentro dele? — perguntou Antar.
Voz Azul fez um muxôxo.
— Tirou-me do meu transe, príncipe. É uma coisa extremamente perigosa.
A mão forte de Antar apertou o braço do homem vestido de azul.
— Aquele barco, seu verme cretino! Depressa!
Os olhos do vidente desapareceram, deixando no seu lugar um abismo negro e vazio, os lábios finos tremeram.
— Meu senhor. eu. eu não posso dizer quem está dentro dele.
— Anigel! — exclamou o príncipe. — É a princesa!
O barquinho, movendo-se com rapidez espantosa, estava agora bem além das Presas. Havia dois vultos dentro dele, um bem na proa, com o corpo ereto e rígido, o outro encolhido na popa. Uma brisa leve dissipou a neblina que pairava sobre a beirada da catarata. Podia ser vista claramente do farol uma linha quase reta azul-escura, franjada de branco. Além dela só se via o céu e, ao longe, árvores indistintas.
Antar por um momento viu de relance formas escuras e grandes puxando o barco para a cachoeira. Então, a pequena embarcação pareceu pairar por um instante, com a proa quase no ar, a popa ainda na água, antes de se inclinar para a frente e desaparecer.
O lammaergeier voou incansável sobre os picos e os campos de neve dos enormes Ohogan, tão alto que Haramis sentia dificuldade em respirar o ar muito fino. Logo depois que o pássaro deixou Movis, vencida pelo sono, enrolando-se no grosso manto de peles, aninhou-se nas penas brancas e adormeceu.
Não viu quando passaram sobre o Monte Rotolo, nem a aproximação lenta do enorme Monte Gidris, envolto em densas nuvens. O lammergeier voou durante horas e horas contra o vento forte, mas quando a noite caiu não tinham chegado ainda ao seu destino.
Haramis acordou quando ele começou a descer atravessando a neve espessa que caía. Como os vispis haviam ensinado, primeiro ela mentalizou uma imagem clara da cabeça do pássaro, branca e preta, coroada pela crista e com dentes aguçados. Então, mentalmente disse seu nome. Hiluro!
Eu escuto, Haramis!
A princesa ouviu a resposta numa parte da sua mente que Magira a ensinara a usar. Para Haramis, aprender a linguagem sem palavras foi uma experiência estranha. As primeiras tentativas foram um completo fracasso. Então, quase por acaso, conseguiu se comunicar com Magira. Depois de vários outros sucessos semi-acidentais, Haramis compreendeu o que estava fazendo e depois disso tudo se tornou simples, quase automático. Bastava ”abrir” aquela parte da mente depois de chamar a pessoa com quem queria se comunicar. Quando Haramis começou a dominar a linguagem sem palavras, Magira a apresentou ao lammergeier que seria sua montaria e companheiro na fase seguinte da sua missão.
O pássaro enorme desceu suavemente num telhado plano, atendendo ao chamado de Magira. Suas asas abertas eram quase da largura da casa e os pés gigantescos, com garras negras, podiam apanhar um homem vestido de armadura, com a facilidade com que um pássaro canoro da noite apanhava um vart das árvores. Porém, com toda aquela aparência feroz, a enorme criatura alada cumprimentou Magira com afeição.
Vou lhe contar agora um dos grandes segredos do povo das montanhas, disse Magira para a princesa, afagando a cabeça do lammergeier. Sabe que fomos feitos para viver numa terra rodeada de gelo e de neve — assim como estas criaturas. Quando os Desaparecidos refizeram a carne abominável da Raça Fundadora, criando o Primeiro Povo, criaram ao mesmo tempo o voor, que os humanos chamam de lammergeier, originário de uma espécie de pássaros mais fracos. Desse modo, o povo e o voor nasceram juntos, uma vez que os Desaparecidos sabiam que precisaríamos de ajuda para nos movimentar num mundo encerrado no gelo. Nossas cidades são poucas e muito distantes umas das outras, mas, com a ajuda dos nossos grandes amigos alados, fazemos longas viagens em segurança. Como você fará a sua, para cumprir sua missão..
O lammergeier, depois de aterrissar com segurança, apesar da neve, abriu com o bico uma fenda na rocha coberta de gelo, revelando uma passagem escura.
— É este o lugar em que está escondido meu Círculo de Três Asas? — perguntou Haramis.
Não, este é um abrigo para a noite. Nós dois precisamos comer e descansar, e você estará segura aqui enquanto eu estiver caçando. Voltarei logo. Hiluro levantou voo outra vez.
Haramis tirou de baixo do corpete o amuleto com o trílio. O âmbar brilhava como uma lanterna, iluminando seus passos sobre pedaços de gelo quebrado, para o interior da caverna.
Era um lugar enorme, quase todo seco, embora o vento atirasse flocos de neve para dentro. Alguns blocos de pedra com veios largos de quartzo branco e outro material refletiam o brilho quente do amuleto. Haramis compreendeu que estava vendo um filão de ouro.
A princesa pôs a mochila no chão e caminhou pela caverna à luz do amuleto, encontrando afloramentos de ouro por toda parte e, às vezes, pepitas grandes no chão.
Mas foi no fundo da caverna que ela fez a descoberta mais interessante.
No interior de uma alcova talhada na pedra, a luz dourada do amuleto iluminou algo escuro e brilhante. Haramis aproximou-se e viu uma parede de gelo negro completamente lisa que refletia sua imagem, segurando o amuleto.
Um espelho de gelo...
Não era uma coisa assim que o feiticeiro usava para sua visão a distância?
Fez a pergunta para o espelho de gelo negro e sua imagem pareceu oscilar, transformando-se no reflexo de outra pessoa, um homem, com trajes estranhos e um chapéu que parecia uma estrela enorme. Ele sorriu e estendeu a mão, oferecendo para mostrar seus segredos, compartilhar seus conhecimentos, sua mágica.
Haramis!
— Orogastus — murmurou ela, paralisada de espanto por tê-lo reconhecido.
Ele parecia procurar alcançá-la através do espelho de gelo negro..
Haramis!
O chamado mental não era humano, mas familiar, urgente
Hiluro?
Haramis, volte! Agora!
Ela viu outra vez o próprio rosto na parede de gelo. Gelada até os ossos, voltou-se e correu para a entrada da caverna, para tranqüilizar Hiluro, cujo chamado sem palavras ecoava ainda em sua mente, afastando todos os outros pensamentos.
Jagun nem tentou acender o fogo. Ficou parado com as mãos caídas ao lado do corpo. Era como se tivesse chegado ao fim de uma trilha para encontrar apenas uma parede intransponível. Kadiya olhou para ele, preocupada. Nunca o vira assim. A princesa ia perguntar o que tinha acontecido quando ele se voltou rapidamente e, usando suas garras, lutou para subir até onde ela estava, no topo da abertura em forma de bacia. Deu alguns passos vagarosos pela borda larga, sem olhar onde pisava, mas com a cabeça erguida, olhando de um lado para o outro, o corpo tenso procurando ansiosamente ouvir, ver, saber. Quando ele completou a volta e aproximou-se dela, a princesa disse:
— O que é, Jagun?
Por um momento ela pensou que o oddling não ia responder. Então, ele a olhou de frente.
— Olhos Penetrantes, para todos nós existem coisas secretas. Esta é uma terra estranha, tanto para mim, quanto para você. Mas acho que encontramos agora algo mais estranho.
— Algo que devemos temer? — perguntou Kadiya.
— Eu não sei.
Jagun tirou a comida da mochila — alguns biscoitos secos e dois peixinhos defumados, tão duros que se quebraram quando ele os tocou. Embora intrigada com o fato de Jagun não ter acendido o fogo, Kadiya achou mais prudente não perguntar. As noites eram sempre úmidas naquela região alagada, mas nessa noite ela não estava com frio. Era como se a grande estrutura côncava conservasse um pouco do calor do sol.
A fadiga dos trabalhos daquele dia pesou finalmente sobre ela. E embora a lembrança das larvas e das plantas venenosas passasse por sua mente cansada, Kadiya não tinha ânimo para sugerir que se revezassem na guarda durante a noite. A sensação de segurança, quando subiu na borda da grande estrutura, envolvia-a como um manto quente, prometendo um sono tranqüilo.
Estaria dormindo ou acordada? Kadiya não tinha certeza. Ficou deitada, quieta, na noite escura, com filetes de névoa espiralando no alto da grande estrutura.
A raiz-guia estava ao lado da sua cabeça, enfiada na terra, com a ponta negra para cima, sem nenhuma chama brilhante agora. Mas não estavam completamente no escuro. Com os cantos dos olhos, Kadiya via um brilho trêmulo. Quando se voltava rapidamente, ele desaparecia, ou fugia, escondendo-se, para continuar como uma mera sugestão.
Depois de algum tempo, as chamas brilhantes ficaram imóveis. Tinham a altura de Jagun, colunas finas onde giravam cores diversas, tão claras que não se podia distinguir uma da outra.
A princípio ficaram paradas, sem nenhuma ordem aparente, depois tremularam com mais força e ergueram-se no ar. Kadiya não tinha certeza, mas era como se estivessem tecendo desenhos complexos dos quais ela e Jagun eram o centro. Não sentiu medo. Finalmente, as colunas de luz desapareceram, deixando apenas uma névoa que subiu dando voltas pelo lado oposto da grande estrutura côncava.
A névoa adquiriu mais brilho e dentro dela apareceu uma bela cidade — a cidade do seu sonho, antes de chegar a Noth! Era como se Kadiya a conhecesse e tivesse encontrado lá toda a felicidade e todo o contentamento que podia desejar. Tudo que queria agora era achá-la.
Uma música distante, diferente de todas as que o bardo de Ruwenda tocava na harpa, fez nascer em Kadiya um novo desejo. Então, a visão desapareceu.
Kadiya sentou-se, sentindo frio, e levou a mão ao amuleto. A sensação de estar protegida e confortada desapareceu. Visualizou claramente a região terrível que tinha atravessado e percebeu então que o dia estava nascendo.
Notou movimento ao seu lado. Jagun, pronto para seguir viagem, acenou para ela, ainda com aquela expressão sombria e estranha nos olhos. Kadiya levantou-se, apanhou a raiz, ajeitou a mochila nos ombros, pronta para continuar a jornada. Os dois viajantes olharam para baixo e para longe da grande colina que abrigava a estrutura côncava. A névoa do pântano dançava no ar e não viam nem sinal do sol para dissipá-la. A raiz do trílio reviveu na mão de Kadiya, deslizou entre seus dedos e começou a descer a colina, no lado oposto ao que tinham subido na véspera.
— Vamos — disse Jagun com voz inexpressiva. Não disse nada sobre comerem alguma coisa — apontou para os altos arbustos espinhosos e para os horrores bulbosos que cresciam entre eles. Seguiram, diminuindo o passo e ziguezagueando para evitar as bolas venenosas.
Chegaram a uma clareira atapetada com uma espuma amarela e fofa. Não havia árvores, apenas uma série de colunas, como pequenas torres de barro, e adiante um campo que parecia plano e limpo. Jagun avisou que aquilo era areia movediça. Um passo em falso e seriam tragados para sempre.
Jagun tirou um embrulho da sua bolsa de caça, abriu-o, revelando quatro objetos ovais em forma de pratos. Libertos do material que os envolvia, os objetos abriram-se, tornaram-se mais espessos como que absorvendo a umidade do ar, transformando-se em folhas em forma de barco com as bordas viradas para cima. Os caçadores os chamavam de deslizadores.
Kadiya já havia usado os deslizadores antes, sempre com muita cautela e só quando estava com Jagun. Sentada numa das colunas de terra, ela atou os tirantes dos deslizadores nos tornozelos. Bateu com os pés no chão para verificar se estavam firmes e saiu atrás de Jagun, seguindo as pegadas do caçador experiente. A raiz-guia já estava na frente deles, deslizando no solo traiçoeiro. A areia e a lama cediam de leve ao peso dos viajantes, que seguiam agora rapidamente, ladeados pelas colunas de terra, mais altas do que os dois.
A névoa era tão espessa agora que mal se via a entrada do Inferno de Espinhos que acabavam de deixar. Às vezes até as colunas desapareciam na neblina. Aos poucos, o solo ia ficando mais firme sob seus pés. De repente, um véu enorme de névoa parou no ar, como se tivesse enganchado em alguma coisa, libertou-se e voou para longe.
Apareceu então a última coluna. Só que não era uma coluna. Grandes pedaços de barro seco haviam se desprendido da coluna, revelando uma figura estranha, mas de modo algum monstruosa.
Não era a estátua de um oddling. As proporções eram humanas, a imagem de um homem. Exceto pelo elmo coroado e enfeitado e três cinturões, a estátua estava completamente despida. Os cinturões cruzavam-se no peito, terminando num cinto largo preso com uma fivela. A cor do corpo era brancomarfim e brilhava como se tivesse sido recentemente polido. Os cinturões e o cinto eram recobertos por pequenos flocos ou escamas verdes, douradas e azuis, cuja tonalidade ia do mais claro ao mais escuro.
A atenção dos dois concentrou-se no que a estátua tinha na mão estendida.
Nos últimos dias Kadiya havia testemunhado muita selvageria. Mas a cabeça decepada, na mão da estátua, contrastava tão brutalmente com a sensação transmitida por aquela figura que a princesa ficou chocada. Não era a cabeça de um skritek, nem de um oddling. Embora fosse completamente calva e grande demais, podia ser a cabeça de um ser humano da sua espécie!
A jovem recuou para ver melhor o rosto da estátua, esperando uma expressão feroz como a dos labornoks quando perpetravam aqueles horrores na Cidadela.
Porém, o rosto sob o elmo era calmo, cheio de força e serenidade. Podia ter sido feita para servir de advertência, ou para comemorar uma vitória, contudo, quanto mais Kadiya examinava aqueles olhos — fixos à sua direita, porque a cabeça estava levemente inclinada —, mais se convencia de que significava uma espécie de justiça, destinada a permanecer para sempre como um aviso.
Os olhos não eram apenas cinzelados e brancos. Cada pupila era uma pedra negra em cujo interior, como no coração da flor do Trílio Negro, cintilava um leve brilho dourado.
— O sindona! — Jagun afastou-se rapidamente da estátua. — Este é o Caminho Proibido! — Sua expressão era de temor respeitoso.
Sem tirar os olhos da estátua, Kadiya perguntou:
— Quem?
Sem responder, Jagun abaixou-se e apanhou um pedaço de lama seca que tinha sido arrancado da estátua.
— Isto não foi feito há muito tempo. Mas — não foram os skriteks. Eles não teriam coragem de encostar as garras nesta estátua. Quem então?
— Por favor, o que representa esta estátua? — perguntou Kadiya erguendo a voz.
Jagun piscou os olhos rapidamente.
— Sentinelas dos Desaparecidos — aqueles que comandavam a terra e a água... — Não terminou a frase e segurou o braço de Kadiya.
— Veja!
A raiz do trílio estava parada sobre um pedaço de lama seca, com a pequena chama brilhante apontando, não para onde eles estavam indo, mas para onde a estátua olhava. Jagun enfiou o cabo da sua lança na lama amarela. A madeira penetrou até a profundidade de um dedo e encontrou resistência, embora a superfície fosse igual à da areia movediça que acabavam de atravessar. Kadiya observou o caçador dar alguns passos, enfiando o cabo da lança na frente dos pés. A raiz ia de um lado para o outro, como ansiosa para seguir Jagun, mas sem querer deixar Kadiya para trás.
Magia — tudo magia! A antiga impaciência acendeu-se dentro dela. Porém, até então, a raiz-guia não os tinha enganado. Com relutância, a princesa seguiu o caçador pelo novo caminho. As folhas do deslizador afundavam-se levemente sob seu peso, depois encontraram solo firme e a raiz partiu velozmente, como um cão de caça livre da correia.
Finalmente começaram a aparecer entre a terra amarela pedaços de chão que parecia calçado. Atravessaram a última faixa de névoa e chegaram a um lugar coberto de relva áspera como a dos campos do nordeste. Havia também outros tipos de vegetação aqui e ali, e Kadiya foi arranhada por espinhos quando estendeu a mão para apanhar a raiz-guia.
As costas e as pernas da princesa estavam doloridas por causa da tensão com que tinha atravessado a areia movediça. Kadiya tropeçou duas vezes e caiu de joelhos. Jagun aproximou-se dela imediatamente com o cantil de água na mão. Ela bebeu, agradecida, e deitou-se para descansar entre os tufos de relva. Em menos de um minuto adormeceu.
Acordou com a luz nos olhos e olhou para o céu assustada. Sonhou que estava no seu quarto na torre das mulheres, na Cidadela. Mas não via o teto entalhado. A princesa sentou-se, gemendo de dor nas costas.
A clareira de relva era circundada por árvores com troncos lisos de um verde bronzeado e as folhas azuladas com bordas verdes farfalhavam ao toque da brisa. Estava sozinha, mas viu a bagagem de Jagun não muito longe. Um pássaro blabat tentava apanhar uma amora no galho da árvore e não deu atenção a Kadiya quando ela se levantou e se espreguiçou para aliviar os músculos. A raiz do trílio estava enfiada no solo, onde ela a havia deixado, tremulando levemente.
— Na... na... na...
A princesa reconheceu o som imediatamente. Os nyssomus jamais falavam alto nem tagarelavam, mas tinham suas expressões de contentamento. Jagun saiu de trás de uma moita carregando o que parecia uma trepadeira da qual pendiam frutos ovais vermelhos, completamente maduros.
Kadiya quase engoliu inteiro o primeiro fruto, e começou a comer o segundo antes de perguntar:
— Onde estamos?
Jagun descascava cuidadosamente um pedaço de cana doce. Deu de ombros, indicando que não sabia. Kadiya estava tão acostumada a confiar no conhecimento que ele tinha do Pântano Labirinto que olhou para o caçador incrédula. Jagun mastigou a cana e cuspiu o bagaço.
— Estamos além de todos os caminhos que eu conheço, Olhos Penetrantes. Só sei que sob este solo há pedra. — Bateu na relva com o pedaço de cana. — E aquilo — com um gesto da cabeça, indicou a raiz-guia — nos trouxe até aqui.
— Mais ruínas.
Deixando a cana de lado, Jagun cavou a terra com a ponta da faca. A superfície que apareceu era realmente pedra escura.
— Uma estrada, é isso — apontou uma abertura entre as árvores.
— Uma estrada feita pelos sindonas? „ Jagun desviou os olhos, olhando para o buraco que havia feito no chão, como se descobrir aquela superfície fosse um grande erro.
Então falou, hesitante, com grandes pausas entre as palavras, como se relutasse em dar a informação.
— Os Desaparecidos — e com eles, suas sentinelas, os sindonas — no passado governavam as águas e as ilhas. Fomos feitos por eles, criados por suas mentes e suas mãos. Os Poderes das Trevas rebelaram-se e a morte assolou a terra. Porém, antes de sua partida, os antigos nos chamaram e disseram que estávamos livres. Pediram apenas alguns juramentos.
Jagun olhou para a faca que tinha na mão, girando-a devagar.
— Os sindonas ficaram para tomar conta do que foi deixado pelos Desaparecidos. Certos objetos — e certos conhecimentos — eles não puderam levar, nem conseguiram destruir. Esta estrada — com um gesto indicou as sentinelas cobertas de lama seca — leva a um dos lugares proibidos.
Recolocou o pedaço de terra no buraco que havia feito.
— Filha do rei, seu pai tinha Companheiros Fiéis que o serviram até a morte. Embora tenhamos jurado lealdade a outra pessoa,- somos obrigados a cumprir nossos juramentos do mesmo modo. Porém, Olhos Penetrantes, acabo de quebrar esse juramento! Lá adiante, depois dessas árvores está o Caminho Proibido. Ontem à noite enviei o Grande Chamado. Não tive resposta. Não consegui me comunicar com nenhum vigia do meu povo. Chegamos à barreira imposta aos da minha raça. Ela continua — apontou com a faca para a raiz-guia —, e você deve segui-la. Não sei se posso acompanhá-la. Pensei que estávamos indo para a terra dos uisgus, mas estamos aqui. E alguém descobriu a estátua do Capitão das Sentinelas — Lamaril, o Grande, que nem os skriteks ousam desafiar. Não, meu chamado não foi respondido. Mas lá adiante — apontou outra vez com o aço da faca que refletiu ameaçadoramente a fraca luz do sol —, avistei um fogo durante a noite. No meio daquelas árvores, ao longo do Caminho Proibido.
Kadiya sobressaltou-se.
— Eu estava dormindo.
Pela primeira vez naquele dia, o rosto de Jagun se iluminou.
— Olhos Penetrantes, você dormiu quase um dia inteiro e toda a noite seguinte. Este é o segundo dia.
Ela franziu a testa.
— Devia ter me acordado.
— Não, não devia. O que nos espera eu não sei, exceto talvez que é um perigo muito maior do que todos os que já enfrentamos. Qualquer caçador teria preferido lutar com os skriteks a seguir pelo Caminho Proibido. Você vai precisar de toda a força da mente e do corpo, por isso eu a deixei dormir.
— Esse fogo que você viu...
Jagun disse, outra vez com expressão sombria:
— Os fogos do nosso povo são pequenos. O que eu vi era muito grande. Muitas mãos seriam necessárias para alimentá-lo.
— Os homens de Voltrik?
— Se forem, estão nos esperando no lugar onde aquilo — apontou a raiz-guia — nos levará.
Caminharam em silêncio, mas era evidente que Jagun estava cada vez mais agitado.
Kadiya também estava nervosa. Mais de uma vez teve vontade de segurar a raiz-guia. Mas não podia destruí-la. A raiz estava presa à magia da Arquimaga e à sua procura do talismã — o misterioso Olho Chamejante de Três Partes — e a princesa não podia impedi-la de cumprir sua missão.
De repente, com um grito assustado, Jagun tirou da bolsa de caça um pequeno bracelete de ouro com pedras vermelhas. Kadiya vira aquele objeto duas vezes antes. A primeira, quando Jagun chegou à Cidadela para ser recebido pelo rei seu pai, e a segunda, numa reunião musical festiva do seu povo, quando ele a usava na parte superior do braço. Devia ter apanhado o bracelete na aldeia nyssomu.
O caçador girou o bracelete entre os dedos, acariciando-o levemente e resmungando. Então, apertou-o com tanta força que os músculos do seu ombro ficaram tensos e ergueu o rosto com uma expressão de pavor.
O bracelete se partiu e Jagun jogou para longe os pedaços. Um som sinistro e agudo saiu dos seus lábios, um som que Kadiya já ouvira também, quando um oddling morria e os outros o levavam dentro do barco para o lugar sagrado.
— Jagun? — disse ela, com medo.
O rosto dele estava rígido, com uma expressão gelada que ela jamais vira.
— Jagun está morto — disse ele, com voz inexpressiva.
— Este não tem nome. Eu sou o que quebrou o juramento, expulso do meu povo, um que não pode falar e com quem ninguém jamais falará. Nós vamos quebrar o silêncio proibido. A Dama de Noth tem direito de tirar nossas vidas.
— Quando seguimos o guia que ela nos deu? — perguntou Kadiya, furiosa. Por acaso ele atribuía a culpa a ela? O amuleto ficou mais quente contra sua pele. — Eu vou continuar! — exclamou. Mas depois de alguns passos, tropeçou e só com esforço manteve o equilíbrio. Foi invadida por uma sensação tão estranha que tentou falar e não conseguiu emitir nenhum som. Por um breve momento, um medo terrível fez tremer todo o seu corpo.
Medo do quê?, pensou Kadiya. Agarrou um arbusto próximo para não cair. Como sempre, o medo acordou a fúria dentro dela.
Empunhando a adaga desembainhada, a princesa voltou-se. Jagun estava caído na relva que cobria a estrada antiga, apertando o peito com os dedos e respirando com esforço.
— Jagun! — Kadiya ajoelhou ao lado dele.
Da boca do oddling escorreu um filete de líquido.
— De volta! — A voz dele era fraca e distante. Ergueu os braços, num gesto de desespero, procurando levantar-se. — Leve-me de volta!
Kadiya embainhou a adaga e o segurou pelos ombros. Reunindo todas as suas forças, ela o arrastou por cinqüenta ells sobre a relva, para fora da estrada antiga que a raiz queria que ela seguisse.
A raiz estava parada, mas tremia, chamando-a com urgência. Todo o medo tinha desaparecido, como se tivesse sido fechado atrás de uma porta. A princesa segurou o amuleto, quente e brilhante, mas sem nenhuma sugestão de ameaça. Ao contrário, parecia encorajá-la a seguir.
O vento soprou da direção das árvores e Jagun, tossindo, ergueu o corpo e ficou sentado no chão.
— Uma barreira — disse o caçador com voz rouca. — Eu não posso ir por aquele Caminho. — Inclinou a cabeça sobre o peito. Seu rosto inexpressivo parecia estar vendo alguma coisa muito mais forte do que ele e contra a qual não tinha nenhuma arma.
— Olhos Penetrantes... — disse com a voz repleta de tristeza. — É proibido — só você pode continuar. Mas eu juro que, se houver um meio de ir ao seu encontro, eu o descobrirei!
— Eu. — Agora eram seus lábios que pareciam gelados. — Jagun... tenha cuidado.
Jagun ergueu a mão, num gesto de encorajamento e segurança. Então, girou o corpo, desviando os olhos. Depois de algum tempo, levantou-se e acenou um adeus. Kadiya tinha certeza de que ele faria tudo para descobrir um meio de chegar até ela, evitando o caminho que os separava agora.
A raiz moveu-se impaciente na relva, chamando-a para seguir viagem.
Kadiya pôs no ombro a bolsa de caça de Jagun e com relutância, arrastando os pés, acompanhou a raiz-guia na direção das árvores. O vento soprava agora contra ela, trazendo um cheiro enjoativo que não era o fedor dos skriteks, nem o do pântano. Duas vezes, olhou para trás, esperando ver Jagun, mas o caçador tinha desaparecido.
Perto de uma árvore havia alguma coisa com brilho fosco. Kadiya abaixou-se e apanhou uma flecha, bem-feita, com penas vermelhas como sangue. Já vira outra igual, sim. e durante o cerco da Cidadela ajudara a recolher todas as que estavam perfeitas para serem usadas pelos defensores de Ruwenda. Não era do povo do pântano, mas dos invasores! Como foi parar ali? E por que estava tão perfeita — como se fosse um guia, como sua raiz?
A princesa ia jogá-la para longe, mas pensou melhor e a colocou no lugar, mas com a ponta na direção contrária.
Como teriam os labornoks ultrapassado a barreira que havia derrotado Jagun? O amuleto do trílio devia ser sua chave
— mas os homens de Hamil, o que mais tinham eles além do aço já muito manchado de sangue? Seria mais uma das mágicas de Orogastus?
Deu mais alguns passos e viu na lama a marca de uma bota Logo adiante — e Kadiya esforçou-se para não vomitar — estava o skritek morto, deitado de lado, como se tivesse sido chutado para fora do caminho. Não viu nenhum ferimento na criatura, nem sinal de sangue.
Kadiya continuou, contando seus passos em voz baixa, procurando ficar alerta a tudo que a rodeava. Então outro bafo fétido infestou o ar e ela olhou para a direita. O corpo peludo de um oddling, evidentemente uisgu, estava amarrado numa árvore. Dessa vez via-se perfeitamente que sua morte não fora nada fácil.
Logo adiante, havia mais marcas no solo e o cheiro de fogo. Arbustos arrancados espalhavam-se no chão e a relva estava amassada. Então, Kadiya encontrou outro oddling torturado. Queria evitar ver de perto a pobre criatura, mas um gemido a fez aproximar-se do uisgu. Ele tentou erguer o braço quebrado e um dos olhos no rosto torturado fixou-se nos seus.
Mais uma vez Kadiya valeu-se da força da sua raiva.
Quem fez isto? — Parou, indecisa. Como aliviar tão terríveis ferimentos? Não tinha nada.
A mão do uisgu se moveu, como se a boca torturada não pudesse mais falar. Com grande esforço, ele apontou para a faca de Kadiya.
E então ela compreendeu a súplica. Seu coração bateu disparado. Kadiya sempre fora fascinada por armas, e uma vez ou outra, quando o Mestre de Armas estava de bom humor, treinava um pouco de esgrima. Tinha aprendido também alguns truques com Jagun — mas não estava preparada para aquele.
Mais uma vez a súplica com voz fraca, o gesto com a mão...
Enchendo-se de coragem, Kadiya segurou a adaga com as duas mãos. Vieram-lhe à mente as palavras de Jagun quando ele encontrou um fronial desgarrado, tão enterrado num atoleiro que ninguém poderia salvá-lo.
— Atravesse com segurança... — Abaixou a adaga e sentiu a lâmina penetrar a carne. Então ela engoliu em seco, uma, duas vezes.
Levantou-se, cambaleando, ansiosa para fugir, livrar-se de tudo aquilo. Mas a raiz-guia continuava a deslizar para a frente. Não havia dúvida de que ia enfrentar muitos perigos e estava tão mal preparada quanto a guarnição da Cidadela quando os invasores atacaram.
Viu a névoa adensando-se entre as árvores à sua frente, lançando uma vez ou outra uma língua de neblina. A raiz continuava firme, em linha reta. Kadiya sobressaltou-se quando sua guia ergueu a ponta, com uma chama verde, e virou para a esquerda, apontando para o espaço entre as duas árvores mais altas que ela já vira.
Um assobio fino e estridente cortou o ar. Instintivamente a princesa saltou para o lado, no momento em que alguma coisa chocou-se contra a árvore à sua frente. Kadiya viu a espiral de fumaça oleosa e espessa, atirou-se de bruços no chão e, apesar da dor que sentia, arrastou-se para a proteção de uma moita.
Mais uma vez o silvo agudo e fino, seguido do que parecia uma resposta abafada. A bolsa de caça de Jagun enganchou-se nos arbustos, prendendo Kadiya com o rosto contra o solo. A princesa tentou freneticamente se libertar. A fumaça a alcançou, engasgando-a e provocando tosse. Mas a tosse a salvou. Os galhos dos arbustos soltaram-se com o movimento dos seus ombros e ela caiu para a frente no que parecia um buraco escuro. Estendeu a mão e tocou pedra, nenhum tronco nem galhos.
O grito de caça soou pela terceira vez atrás dela e Kadiya seguiu lentamente no escuro. Em pânico, uma parte de sua mente dizia que estava sendo levada para uma armadilha, mas continuou em frente.
Esperava ser alcançada a qualquer momento, puxada pelos tornozelos e tirada daquele buraco como um scubri retirado da concha por mãos hábeis. Kadiya continuou arrastando-se até sua mão estendida encontrar só o vazio e ela começou a cair, a cair...
A água fechou-se sobre ela, escondendo toda a luz. Mas não era a água espessa e suja do pântano. Era clara e cristalina, a não ser em volta do corpo da princesa, do qual soltava-se a terra e os galhos grudados na sua roupa. A bolsa de caça de Jagun a levava para o fundo, mas não queria se desfazer dela. Batendo as pernas, tentou chegar à superfície. Um brilho verde despertou sua atenção. Então a guia estava ainda com ela! A raiz nadava na sua frente.
Finalmente chegou a uma parede, com um impulso subiu por ela, dentro d’água, até à superfície. Saiu de quatro, no chão de mosaico azul-metálico. Nem uma folha, nada maculava a água cristalina. À sua frente viu uma escadaria, ladeada por estátuas.
Kadiya levantou-se. A primeira coisa que notou foi o silêncio. Depois que saiu da piscina, a superfície da água” ficou calma e lisa.
Resolveu subir a escada. Não havia nem sinal de folhagem, apenas as estátuas que Jagun havia chamado de sindonas. A luz que se refletia nos ornamentos das sentinelas imóveis feria os olhos da princesa. Nem todos os sindonas que pareciam observá-la com tanta calma eram homens, mas estavam vestidos ou despidos do mesmo modo. E era tão forte a impressão de estarem vivos que a princesa não ficaria surpresa se um deles se movesse ou falasse — talvez proibindo sua passagem, talvez convidando-a para entrar.
Kadiya olhou para o próprio corpo arranhado e sujo e para as roupas dadas pelos nyssomus que não haviam resistido muito bem à árdua jornada. Porém, sentia-se estranhamente forte e descansada. Queria conhecer aquele lugar que não era citado em nenhuma lenda, nem descrito por nenhum viajante.
No topo da escada Kadiya parou na frente de uma das estátuas. Era mais alta do que ela — talvez o tamanho natural da raça que a havia feito. Examinou o rosto sombreado pelo elmo.
— Quem é você? — Sua voz soou brusca, autoritária demais para aquele lugar de silêncio e beleza. Como podia esperar uma resposta da sentinela silenciosa?
Em lugar da resposta, Kadiya ouviu um ruído estranho, como de uma cortina se abrindo, seguido por um som límpido como se sinos tocassem. Pássaros chilrearam e uma brisa leve e perfumada eliminou os últimos vestígios do horror que a havia apavorado.
A princesa viu outra escada, mais larga do que a primeira, mas sem as sentinelas, que levava para o ar livre, para um parque que ninguém nascido nos pântanos em volta de Ruwenda jamais poderia ter imaginado. Era um lugar de vegetação rica e paradoxal. Frutos maduros e apetitosos pendiam dos galhos ao lado das próprias flores dos quais nasciam. O céu estava limpo e azul. O parque parecia um lugar encantado, tão envolto em magia que a princesa não ousou entrar nele. No último degrau da segunda escada estava sua raiz-guia,-com o halo verde da ponta cintilando como se fosse feito de esmeralda.
Kadiya piscou os olhos uma vez, duas vezes. Não estava mais sozinha.
A pessoa que cruzava o parque na sua direção era, evidentemente, do povo representado pelas estátuas, embora o elmo e os cinturões militares fossem substituídos por um manto transparente e esvoaçante.
Mulher — de verdade? Kadiya não tinha certeza, mas sabia que era uma pessoa à qual até a Arquimaga devia obediência. A Princesa Kadiya ajoelhou.
— Filha do Triplo, o que fez o seu povo para abalar o grande equilíbrio do mundo? Para trazer a morte e a dor até este lugar — a última fortaleza?
Kadiya não podia acreditar que estivesse sendo acusada — aquele ser queria apenas a verdade. A princesa levantou-se lentamente.
— Em primeiro lugar — procurou falar com a mesma naturalidade da outra —, sou filha do Rei Krain de Ruwenda. Os de Labornok, sob o comando do Rei Voltrik, fazendo uso da traição, da força das armas e principalmente das artes de um cruel feiticeiro, arrasaram meu país. Com a ajuda de um caçador nyssomu, Jagun, eu escapei da Cidadela quando foi tomada pelo inimigo. Procurei então a Arquimaga que reina em Noth e recebi isto — apanhou a raiz-guia e a estendeu para sua interlocutora. — Ela também me incumbiu de uma tarefa solene — a procura de um talismã. Diz a profecia que só pelas mãos de uma mulher da nossa casa Ruwenda será justiçada. A Arquimaga deu a mim e a minhas irmãs o nome de Pétalas do Trílio Negro. Nós somos três — embora eu não tenha certeza de que minhas irmãs estão vivas. E esta pequena raiz do trílio me conduziu até aqui.
— A Arquimaga de Noth — disse a figura com o longo manto. — Há muitos anos ela não mandava ninguém ao Lugar do Conhecimento. Mas, uma vez que a enviou, temos de acreditar que há sombras sobre a terra. Segundo os costumes antigos, a vida deve ser assim. — Estendeu uma das mãos horizontalmente e a outra sob ela, em posição vertical. — O uso dos Poderes das Trevas altera esse equilíbrio. Isso aconteceu uma vez antes, e houve grandes batalhas e destruição na terra. Terra seca se transformou em água, água se transformou em terra e o Gelo Conquistador amortalhou tudo.
Kadiya perguntou:
— Como os sangüinários encontraram o caminho para este lugar e atravessaram a barreira que impede a passagem dos nyssomus?
— Filha do rei, uma vez aberta, a menor fresta numa parede pode se alastrar e formar uma grande porta. Esse feiticeiro que chamou de inimigo alcança muito alto e aprendeu muita coisa. Deu uma certa proteção aos seus seguidores, que os ajudou a abrir nossos antigos portões. Filha do rei — a mulher apontou para a raiz na mão de Kadiya —, termine aqui a sua jornada. Se a Arquimaga de Noth a escolheu, então você realmente vai lutar. Se vai lutar sozinha ou não, depende do modo que agir.
— Não estou segura aqui, no Lugar do Conhecimento?
— Não contra o que aconteceu — pois eu não fui chamada para anular a ameaça dos Poderes das Trevas. — Ergueu a cabeça, como para escutar alguma coisa. — Aí está! Mas eles não têm tanto poder quanto pensam. O caminho secreto que a trouxe está fechado e agora vão andar de um lado para o outro às cegas, com seus skriteks. A antiga proteção ainda tem força, afinal.
— O que eles procuram?
— Aquilo que consideram um tesouro, filha do rei. Porém, o que os homens de Labornok e os skriteks mais desejam não é o que motiva seu mestre. Ele procura aquilo que é proibido e seus seguidores estão muito cansados. Voltarão para a Cidadela sem o que ele deseja.
— E o talismã que eu procuro? — exclamou Kadiya. Deixou cair a raiz do trílio que ficou imóvel e sem brilho. Onde está o Olho Chamejante de Três Partes que a Arquimaga me mandou encontrar?
— Procure em você mesma, filha do rei — abra completamente seu coração e sua mente.
Kadiya olhou fixamente para a mulher.
— Não tenho nenhum talismã mágico! Não tenho exército! Não tenho nem mesmo uma espada.
— Tudo isso existe, filha do rei. — A voz era gelada. — Olhe no seu próprio interior e vai encontrar.
Com isso, ela desapareceu.
Kadiya caiu de joelhos. Nada naquele jardim maravilhoso a encantava agora. Estava exausta, perdida. Tinha apenas a raiz murcha do trílio.
Magia! Bateu com os punhos fechados no chão até a dor superar sua fúria. Olhar dentro dela mesma! Dentro dela estava a fúria! Inclinando-se para a frente, apanhou a raiz que a levara até ali e tentou fazê-la em pedaços, mas a hastezinha resistiu.
Uma das três.
A frase, vinda de lugar nenhum, ecoou na sua mente. Kadiya olhou para cima. A sentinela viva teria voltado? Não, via apenas aquele jardim tolo e sua raiz-guia inútil.
Jogou a raiz para longe com toda a força. O pedacinho do trílio voou com a precisão de uma das flechas de Jagun, dando uma volta no ar para aterrissar verticalmente num pedaço de terra na frente de Kadiya. Ficou ali, plantada, tremulando de leve. Kadiya levantou-se, pensando em amassá-la sob os pés. Mas parou de repente. A raiz estava crescendo e ficando mais espessa, mais alta, mais larga. Kadiya abaixou-se ao lado dela, maravilhada. Duas pequenas hastes apareceram na parte superior, retas como barras de ferro. Sob elas, a haste ficava cada vez mais larga, formando um cilindro grosso e escuro. Na Ponta superior apareceram três esferas — que pareciam botões - muito unidas.
Kadiya olhava espantada, mal podendo acreditar. Notou movimento nas esferas e a camada externa negra se abriu. O que apareceu então..
Três olhos.
Um era um olho do povo do pântano, verde-amarelado. Um era castanho brilhante — e bastava ter um espelho para Kadiya ver que era exatamente da cor dos seus. O terceiro era azul-prateado, com a pupila muito grande e uma chama dourada no fundo.
O amuleto parecia queimar sua pele.
Antes que Kadiya pudesse segurá-la, a pedra de âmbar saltou para fora do corpete, como se tivesse vida própria, o cordão de ouro se partiu e o amuleto voou para o Olho Chamejante de Três Partes, incrustando-se no centro das três esferas.
Os três olhos então fecharam-se, deixando apenas três globos brancos e informes no seu lugar. Kadiya segurou a haste, logo abaixo dos globos e acima das folhas e, certa de que era o que devia fazer, puxou com força.
O que saiu da terra não foi a raiz da planta arrancada, mas uma espada cintilante! O punho adaptava-se tão bem à sua mão que parecia feita exclusivamente para ela. Kadiya passou os dedos nas três esferas no pomo da espada.
— O Olho Chamejante de Três Partes — Kadiya exultou. Notou então que a arma brilhante não tinha ponta nem corte! — Senhores do Ar, que espécie de espada é esta? Como posso usar isto contra meus inimigos?
Uma voz suave, pouco mais do que um sopro no seu ouvido, disse:
Aprenda.
- O que estão fazendo? — gritou Anigel para os rimoriks, — Não podemos ir por aí — morreremos todos!
Mas os animais, sem responder, nadaram mais depressa e o barco cortava a água numa velocidade incrível. A princesa firmou os pés na madeira da proa e segurou as rédeas com força. Sua mente recusava-se a acreditar que aqueles animais amigos, aquelas criaturas leais que a tinham trazido de tão longe, estavam levando o pequeno barco, com ela e Immu, diretamente para a borda da Catarata Tass.
Anigel via a queda-d’água aproximar-se cada vez mais. Ficou muda, incapaz de formar um pensamento coerente, de ordenar aos animais que desistissem daquela loucura. Não podia sequer segurar o amuleto com o trílio porque as rédeas enroladas fortemente em suas mãos pareciam a ponto de arrancar seus braços. Não pensou em Immu, convencida de que era sua morte que estava próxima.
O som da catarata era agora um rugido. Gotas levadas pelo vento molhavam suas roupas e seus cabelos. Anigel olhava para a beirada da queda, onde a água quase negra do lago adquiria uma combinação maravilhosa de azul, água-marínha, verde — e, finalmente, branco. Quando chegou bem perto da queda, a canoa diminuiu bruscamente a velocidade. Anigel desenrolou as rédeas das mãos, jogou-as sobre o banco e segurou com força nas duas bordas. Com uma exclamação de espanto viu os dois corpos escuros e enormes saltando fora d’água com um chuveiro de gotas prateadas, e depois desaparecendo num mergulho.
A proa do barco, onde ela estava, por um momento ficou no ar e ela olhou para baixo, para além do tumulto de espuma branca, e viu um grande lago azul com pequenas casas na margem esquerda. Do lago saía um rio largo com muitos canais que brilhavam como uma trança prateada à luz do sol, serpenteando entre a extensão verde-escura da Floresta Tassaleyo, até se perder na névoa cor de púrpura.
Anigel viu tudo isso e em sua mente parecia ouvir Immu e os rimoriks dizendo: Confie!
Então a canoa inclinou-se para a frente, um véu de borrifos a envolveu com centenas de arco-íris redondos e ela começou a cair através de um mundo branco e tremendamente barulhento que finalmente desapareceu no vazio.
No novo sonho, sua mãe, a Rainha Kalanthe, andava rapidamente por uma trilha, numa paisagem desconhecida, que Anigel julgou ser uma floresta das terras secas, com seus trajes da coroação e a magnífica coroa do estado. Anigel estava muito atrás, correndo para alcançar a rainha, gritando para sua mãe esperar por ela — mas Kalanthe não podia ouvi-la. A única solução era correr mais depressa e foi o que Anigel fez, com o coração batendo forte no peito, os pulmões em fogo e uma dor tão grande nas pernas que teria chorado se tivesse fôlego. Devia ter desistido, ter se atirado no chão, dando vazão ao seu desespero, e deixado que a rainha se fosse, mas, em vez disso, obrigou-se a prosseguir.
Então, o milagre. A rainha parou, voltou-se e com um sorriso esperou que a filha, exausta e sem forças, se atirasse nos seus braços, chorando de felicidade.
— Minha filhinha querida — disse Kalanthe. — Eu estava com tanto medo que você também não viesse. Suas irmãs seguiram outros caminhos, você sabe. Mas tudo vai ficar bem agora, logo que você esteja preparada.
Então a rainha do sonho levou Anigel para um regato próximo, abriu sua bolsa de veludo e dela tirou sabonete, um esfregão macio e um pente de marfim.
— Precisamos limpá-la — disse Kalanthe — e pentear seu cabelo e vesti-la com ricos trajes para que seus súditos a reconheçam.
O esfregão atoalhado tirou toda a sujeira do rosto de Anigel, esfregando cada vez com mais força, até a princesa gritar de dor...
Anigel acordou.
Estava deitada em solo macio recoberto por uma espessa camada de musgo na margem de um rio. Uma criaturinha com pêlo listrado de amarelo, focinho pontudo e grandes olhos negros, lambia seu rosto com a língua áspera. A exclamação de surpresa de Anigel a assustou e, com um grito, o animalzinho fugiu para dentro do mato alto. O canto do desconhecido pássaro branco, no galho mais baixo da árvore sob a qual a princesa estava deitada, era como uma fita colorida cortando o som distante do trovão. O rio, a poucos ells de Anigel, tinha vários canais que se cruzavam nos dois lados do leito principal repletos de bancos de lama e ilhotas baixas.
Estou viva!
A conscientização desse fato veio devagar e a princesa começou a mover primeiro as pernas, uma de cada vez, depois os dedos e depois levantou-se lentamente. O vestido tecido de hastes de relva estava em frangalhos, bem como a camiseta de linho. Calçava ainda as sandálias fortes de couro dadas pela Observadora, mas as meias estavam em tiras. O cinto com a bolsa de couro estava intacto, bem como o amuleto com o trílio, no cordão de ouro. Sua pele estava coberta de lama seca, o que significava que devia estar ali há algum tempo. Não se lembrava de como tinha chegado àquele lugar.
Andou com cuidado, entre pedaços de madeira apodrecida, até a margem, de onde podia ver claramente a parte alta do rio. Em toda a extensão do horizonte, ao norte, erguia-se um paredão enorme e verde, saindo da floresta e dividido em duas partes por um manto prateado — a catarata. Parecia estar a uma légua de distância. De onde estava não via a grande lagoa azul, nem as casas que avistara antes de saltar do topo da queda-d’água. Só o rio largo e raso, com seus canais entrelaçados, e a floresta densa, de folhagem verde-azulada, duas margens, bem diferente das florestas do Pântano Labirinto.
Até o cheiro era diferente — mais acentuado, mais resinoso, com bafejos ocasionais de perfume de flores desconhecidas.
— Estou viva — disse Anigel, maravilhada. Então ergueu os braços arranhados e cheios de lama seca e exclamou: — Viva!
No mesmo instante veio a culpa. Immu! Onde estava Immu? E seus dois amigos leais, os rimoriks? Olhou para um lado e para o outro da margem, mas viu nas partes mais rasas do rio apenas pássaros vermelhos de pernas longas e bicos que pareciam pontas de flechas. Por um momento o pânico quase a dominou. Estava viva, sim, mas sozinha na Floresta Tassaleyo, sem a mínima idéia do que devia fazer agora.
Devia gritar? E se os labornoks estivessem de tocaia em algum lugar e a ouvissem? Não tinha para onde ir, nenhuma trilha ao longo da margem, só a pequena clareira com galhos podres trazidos pelo rio, no meio da vegetação densa, e olhando para o interior, viu os troncos maciços das árvores enormes.
Immu e os rimoriks estariam mortos?
Uma idéia terrível a assaltou. Lembrou-se da atitude estranha de Immu, quase resignada, enquanto arrumava sua mochila no lago. Immu tinha amarrado as mochilas no banco do barco! Nunca fizera isso antes. Devia saber qual o caminho que os rimoriks iam tomar!
”Será que ela ficou comigo por amor?”, murmurou Anigel, ”na esperança de que eu sobrevivesse porque possuía a força dos rimoriks, por efeito do miton — mas sabendo que ela morreria na certa?” Seu coração se apertou. Oh, Immu. Querida e velha amiga.
Mas não adiantava lamentar-se inutilmente. Estava na hora de continuar. Por que não tomar um pouco do líquido sagrado e tentar chamar novamente os rimoriks?
Encontrou uma rocha coberta de musgo, na sombra, abriu a bolsa e tirou o jarro vermelho com sua rede protetora. Tirou a tampa, levou-o aos lábios e, com os olhos fechados, orou mentalmente. Depois chamou, Amigos!
Ouviu uma pancada na água.
Abriu os olhos e viu as duas cabeças escuras no canal principal do rio, não muito longe dela. Anigel ficou de pé e esperou que eles atravessassem os bancos de terra, com o pêlo brilhante cada vez mais sujo de lama a cada movimento das nadadeiras. Finalmente eles se aproximaram e pararam na água rasa, com os olhos negros e enormes solenemente fixos nela.
Amiga humana, procuramos sua amiga do povo do pântano.
— Immu. vocês a encontraram?
Não, procuramos por toda parte. Mas a Água que Corre para o Mar é muito grande e tem muitos remansos para onde o corpo da sua amiga pode ter sido levado.
Com um ardor nos olhos, Anigel levou a mão fechada aos lábios para conter um grito.
— O corpo!... Acham que ela não sobreviveu à queda?
Procuramos. Não encontramos. Agora devemos partir. Seus inimigos humanos estão descendo pela Grande Vinha que Leva Árvores para o Céu. Eles a encontrarão se não a tirarmos daqui.
Anigel compreendeu que os labornoks estavam descendo para o Vale do Grande Mutar pelo elevador de madeira. Por um momento, pensou em mandar os rimoriks continuarem a procurar Immu, mas mentalmente parecia ver a velha ama oddling brandindo o dedo para ela, numa censura furiosa. O sacrifício de Immu seria em vão? A velha oddling não morreu por mero capricho, para fazer companhia a uma pessoa qualquer. O grande gesto tinha como objetivo mostrar seu apoio e seu amor a uma princesa numa missão, uma princesa que não podia fugir das piores tragédias ou dos maiores perigos. Immu caminhara bravamente para a morte. Competia a Anigel apressar-se, agora que estava tão perto do talismã.
— Encontraram o barco? — ela perguntou.
Seu barco está em pedaços. Encontramos a mochila da sua amiga, mas não a sua. Apanhamos um barco do povo da floresta. Está escondido ali adiante.
Desceram uns doze ells pela parte rasa do rio e entraram num regato mais fundo. Anigel não teve remédio senão acompanhá-los. A lama do fundo era pegajosa e grudava como cola. e a princesa não ousou parar nem uma vez com medo de ficar atolada. Chapinhando freneticamente na água para não perder de vista os rimoriks, chegaram ao barco grande e de forma estranha que eles empurraram com a cabeça para a parte mais funda.
O barco era duas vezes mais comprido do que a canoa de madeira, porém, mais estreito. Era branco e parecia feito de osso macio ou marfim, preso com tendões secos. O casco era transparente, como um vidro resistente mas flexível. Os pedaços desse estranho material eram costurados uns nos outros com pontos caprichosos de bordado, e as costuras eram cobertas com uma resina brilhante à prova d’água. Era muito leve e parecia mal tocar a água.
Anigel subiu a bordo. A mochila encharcada de Immu estava no fundo do barco.
— Não tenho rédeas, amigos. E parece que perderam seus arreios. Como vou conduzir o barco?
Os rimoriks riram para ela.
Este barco não precisa ser puxado. Flutua como uma fava seca. Iremos nadando, um de cada lado, empurrando e você diz para onde quer ir.
A princesa sentou-se, abriu a bolsa no cinto e tirou a folha do Trílio Negro, que não estava nem um pouco murcha. Pela primeira vez notou que os veios da parte superior, que representavam o caminho já percorrido, não eram mais dourados, mas marrom-claro. Logo abaixo de uma mancha bege, que indicava o Lago Wum, a nervura dourada dava uma volta para o lado, mais ou menos do comprimento do dedo mínimo de Anigel, antes de chegar à haste curta e curva.
— Temos de percorrer alguma distância ainda — ela disse para os animais —, mas parece ser o tempo todo no Grande Mutar. Acho melhor viajarmos o mais depressa possível, para nos distanciarmos dos soldados inimigos, até eu receber algum sinal mágico.
Quer que a levemos ao povo da floresta do rio?
— Bem. — Anigel hesitou. — Não tinha pensado nisso. Talvez seja melhor. Falam dos wyvilos, eu suponho. Eles têm aldeias?
Existe um lugar onde eles vivem. Nós a levaremos até lá
— Muito bem — disse a princesa.
Roncando e bufando com o esforço de se mover fora do seu elemento, os rimoriks empurravam o barco de um banco de areia para outro, levando-o para os canais secundários sempre que podiam, até chegarem ao canal principal. Então, os animais rolaram na água limpa por algum tempo, satisfeitos, depois, colocando-se cada um de um lado do barco, começaram a descer o rio. Sem precisar nenhum incentivo de Anigel, os animais imprimiram a maior velocidade possível ao barco.
A princesa calculou que a tarde estava quase no fim. Tirou da mochila de Immu o saco de dormir e algumas peças de roupa e estendeu-as para secar. Felizmente Anigel era pequena e podia usar as roupas da velha ama. Encontrou um chapéu de palha, com abas moles e grandes, uma pequena capa de chuva de couro, e um par de meias também de couro. O estoque das raízes secas para viagem estava muito baixo e Anigel as tirou da mochila para secar no sol. As frutas secas tinham acabado há muito tempo, e ela e Immu estavam se alimentando de frutas silvestres e nozes, além do que os rimoriks caçavam. Anigel precisava ter cuidado com alimentos que não conhecia. Immu havia identificado várias plantas venenosas com aparência inocente e apetitosa. Graças aos Senhores do Ar e ao acendedor de Immu — que poderia ser usado logo que estivesse seco —, Anigel não precisava comer o peixe cru. O resto do seu tesouro consistia da sua pequena faca e das outras coisas na bolsa que trazia no cinto: um pente, um lenço que ela lavava todos os dias, uma xícara e um sabonete prateado.
— Meu tesouro, meus trajes reais e minha comida suntuosa — disse ela, olhando os objetos no fundo do barco. — E dois servos fiéis para me defender. O que mais uma princesa pode desejar? — Com um suspiro, deitou-se no fundo do barco com o rosto virado para o sol. Meus amigos, acho que vou dormir.
Eles disseram:
Faz muito bem.
Livre da tarefa de conduzir os rimoriks, pela primeira vez, desde que haviam deixado Noth, Anigel mergulhou num sono sem sonhos, cansada demais até para chorar a perda de Immu. Acordou horas mais tarde, quando os rimoriks aportaram numa ilhota estreita coberta de relva macia, com areia limpa em vez de lama. A noite estava quente, mas uma brisa leve afastava os insetos. O leito do Grande Mutar alargava-se à medida que desciam e agora mal conseguia ver a outra margem. A floresta nos dois lados era quase completamente escondida pela névoa. O bramido de um animal de grande porte soou ao longe. Mas Anigel sabia que seus amigos tinham escolhido um lugar seguro para passar a noite.
A princesa viu um arbusto de bruddok e, sonolenta ainda, congratulou os amigos por terem encontrado um lugar tão perfeito. Os rimoriks arreganharam as presas rapidamente e nadaram para longe, para caçar. Anigel comeu alguns frutos doces e sumarentos, arrumou o saco de dormir à sombra do ”amigo dos viajantes” e aninhou-se para dormir.
Mais uma vez seu sono foi sem sonhos.
Os homens do Príncipe Antar procuraram os corpos de Anigel e da oddling no lago azul durante todo o dia, mas sem resultado. Encontraram os pedaços do barco atirados pela água perto da serraria deserta, e todos os cavaleiros foram de opinião que ninguém podia ter sobrevivido à queda. Porém a opinião deles não contava. Quem devia dar ordens para prosseguir ou interromper a busca era o feiticeiro Orogastus. A Voz Azul ia conferenciar telepaticamente com seu Mestre na manhã seguinte, quando Orogastus já teria novas notícias do espelho de gelo.
O grupo de busca acampou na margem do lago — cavaleiros, soldados e a tripulação das barcaças, contratada para aquele trabalho. Sentados em volta das fogueiras (o coro noturno de rugidos e roncos na floresta não os animava a se afastar muito), barqueiros e soldados mal continham seu entusiasmo. Com a morte da princesa podiam voltar para o conforto civilizado da Cidadela. Porém os cavaleiros estavam desapontados, vendo escapar uma oportunidade de conquistar a glória. Tudo parecia indicar que não iam descer o Grande Mutar, à procura do talismã que o feiticeiro tanto cobiçava.
Contrariando todas as expectativas, haviam encontrado somente três barcos dos wyvilos no cais e nenhum nativo para servir de guia. O mestre-mercador Edzar achava que os oddlings da floresta tinham voltado para a sua grande povoação chamada Let, quando a invasão dos labornoks interrompeu o comércio de madeira. Era pouco provável que eles subissem o rio antes da estação seca.
Naquela noite o Príncipe Antar isolou-se no seu pavilhão, recusando até mesmo os convites bem-intencionados de Sir Owanon e outros amigos leais. Seu sofrimento com a morte da princesa era um segredo de polichinelo. O simplório Sir Penapat contou para todos o nervosismo do príncipe quando o barco de Anigel despencou na cachoeira.
Na manhã seguinte Voz Azul, alertado mentalmente pelo mestre, retirou-se para sua tenda, para uma longa conferência telepática. Impaciente com a espera, Antar foi com Sir Owanon ver de perto a serraria que usava a força da catarata e o mecanismo do elevador que transportava a madeira.
— O elevador é uma máquina muito engenhosa — observou o príncipe, examinando os cabos de aço entrelaçados.
— Basta colocar uma tora gigantesca ou uma pilha de madeira que o sistema de roldana permite que os animais de tração, lá em cima, levem para cima o peso mais pesado, sem grande desgaste de energia.
— Sim, os ruwendianos são engenhosos — disse Owanon.
— Mas temos aparelhos semelhantes nas docas de Derorguila, embora menores.
Antar disse, em voz baixa:
— Apesar do tamanho, o elevador não pode carregar as barcaças que nos trouxeram até o lago, mesmo que elas sejam postas na rampa. Mas podem transportar os caiaques. Porém, não seriam suficientes para todos e precisaremos de suprimentos para descer o Grande Mutar.
Owanon concordou:
— Tem razão, é impossível continuar nossa expedição.
— Foi isso que mandei a Voz Azul dizer a Orogastus. Não estou disposto a conduzir uma busca às cegas na Floresta Tassaleyo para encontrar o talismã mágico que ele tanto deseja possuir. Mas não duvido que ele nos obrigue a fazer isso. Conto com seu apoio e com o de Dodabilik quando me recusar a levar nossos homens mais adiante.
— Não precisa nem dizer, meu príncipe.
Os olhos de Antar estavam sérios dentro do visor aberto do elmo azul.
— Temo que o feiticeiro aproveite o fracasso desta expedição para me diminuir mais aos olhos do rei meu pai. O bruxo maldoso sabe muito bem que não aprovo esta perseguição a mulheres indefesas. Além disso, ontem, na torre do farol, eu me descontrolei.
Owanon guardou silêncio discreto.
O príncipe olhou para o amigo com um misto de tristeza e zombaria.
— Owanon, todos sabem que eu me apaixonei por ela.
— Sim, meu príncipe. Mas os melhores homens não o censuram por isso. Não se pode evitar as inclinações do coração. E tem obedecido à risca as ordens do Rei Voltrik, meu príncipe. Ninguém pode dizer que o príncipe descuidou dos seus deveres.
— Orogastus pode — disse o príncipe com amargura. — Ele sempre me odiou e me invejou, e convenceu o rei de que sou muito imaturo para os assuntos importantes de estado. Esta maldita invasão. a crueldade monstruosa com que trataram os ruwendianos vencidos. tudo obra do feiticeiro! Ele transformou meu pai nesta criatura cruel, manipulando seus temores e encorajando seus instintos mais baixos.
Outra vez Owanon não fez nenhum comentário.
— O Rei Voltrik não foi sempre um homem cruel — disse o príncipe. — Quando eu era pequeno e minha querida madrasta Shonda estava viva, ele era um nobre príncipe herdeiro, marido e pai amoroso, um homem cheio de vida e de bondade. Só depois da vinda de Orogastus sua alma se envenenou. Meu pai esperou muito tempo por este trono, e a infeliz Shonda era estéril, e o feiticeiro encorajava cada ambição extravagante, cada idéia maldosa que aparecia na mente do meu pai. Até a morte de Shonda.
Owanon disse delicadamente:
— Esses fatos tristes são do conhecimento de todos, meu príncipe. Mas seu pai não admite críticas a Orogastus — e ele é o rei.
— Sim — suspirou Antar. — Mas às vezes, quando lembro da cena terrível, quando ele arrancou a coroa real da cabeça do Rei Sporikar, agonizante, e a satisfação com que antecipava o banho de sangue que seria a invasão de Ruwenda, temo que o feiticeiro o tenha enlouquecido. Mas é claro que sugerir isso seria alta traição.
Owanon disse com expressão sombria:
— Meu príncipe, não seria o único a pensar assim. Muitos no nosso exército consideram um erro a invasão de Ruwenda. Porém eu temo que tudo isto tenha de ficar pior antes de melhorar.
Owanon viu um homem correndo para eles e com um gesto avisou o príncipe para não falar mais.
Era Rinutar, sem fôlego, a armadura tilintando e nos lábios um sorriso malicioso.
— Meu Príncipe! Trago novas espantosas! Lorde Orogastus tem certeza de que a Princesa Anigel está viva e a caminho do Grande Mutar. Suas ordens são para segui-la, mas só com seus cavaleiros e um ajudante para cada um. Agora vem a parte mais estranha! O feiticeiro não quer mais que a jovem seja impedida de encontrar o que procura, nem que seja morta. Ao contrário, deve ter toda a liberdade na sua busca. Só depois que ela estiver com o talismã mágico, deve ser capturada e executada.
Antar olhou atónito para o cavaleiro.
— Ela está viva — murmurou.
— É o que diz o espelho de gelo — o sorriso de Rinutar era insolente. — Achei que ia gostar de ter outra oportunidade de capturá-la.
O lammergeier disse para Haramis, Lá está a caverna que você procura.
Nessa manhã, passada a tempestade, o brilho da face sul do Monte Gidris, todo branco, era tão forte que quase cegava Haramis. Ela protegeu os olhos com a mão enluvada, mas nem assim conseguiu ver o lugar indicado por Hiluro. O pássaro então começou a descida, voando em espiral, cada vez mais baixo, até a luminosidade disforme se transformar numa abertura côncava, logo abaixo do topo do monte, da qual saía uma geleira enorme.
O rio de gelo despencava num precipício, antes de começar a descida lenta na direção da bacia ruwendiana, partindo-se em enormes blocos que eram parcialmente cobertos pela neve recém-caída. As fendas e abismos da cachoeira gelada cintilavam com variadas tonalidades de azul. mas no centro da queda flamejava um surpreendente ponto dourado.
Quando o grande pássaro se aproximou, Haramis viu que era uma espiral de rocha, de cor leitosa, mas pintada de ouro. O que parecia uma agulha frágil, vista de longe, logo se transformou num afloramento de uns oitenta ells de altura e cinco ells de largura, aparentemente formado por quartzo branco com inclusões de metais preciosos. A erosão provocada pela queda da geleira, durante anos e anos, o transformara numa torre fina, esforçando-se valentemente para se manter acima de um mar caótico e gelado. No centro da espiral havia uma abertura sobre uma estreita plataforma de rocha.
Só posso pairar para você descer, disse Hiluro. A plataforma é muito estreita para mim.
O enorme pássaro preto e branco desceu mais um pouco. A abertura da caverna tinha o dobro da altura de Haramis, mas parecia menor por causa da franja de sincelos que pendia da borda, como presas de diamante. Quase toda a pequena plataforma era coberta de gelo escorregadio, com pedaços de rocha branca aqui e ali.
Haramis tocou o amuleto, fez uma prece silenciosa e abraçou com força o pescoço coberto de penas de Hiluro, cruzando os dedos das duas mãos na frente. A princesa preparou-se, com o manto flutuando ao vento e os pés apontados para baixo. Ouvia o assobio agudo do ar passando entre as Penas do pássaro, acompanhado por um rugido trovejante e uma seqüência de notas musicais, que pareciam vir de um violino gigantesco.
Seus pés tocaram a superfície sólida. Haramis relaxou o corpo, desceu lentamente, e então largou o pescoço do pássaro. Abriu os olhos e viu o vulto imenso subir numa vertical. Precariamente equilibrada, apoiando-se nas mãos e nos joelhos, Haramis olhou para a moldura de ouro na entrada da caverna de gelo cintilante.
Pelo menos era o que parecia.
Impressionada e temerosa, Haramis olhou em volta. A espiral de rocha no meio da geleira vibrava como um diapasão sob o fluxo constante de gelo, enchendo o ar de sons musicais. Quantos milhares de anos de erosão foram necessários para desgastar o quartzo sólido com veios de ouro, formando aquela coluna esbelta e espiralada? Vista de perto, a torre de rocha parecia extremamente frágil. A abertura da caverna com seus grandes e amorfos pedaços de ouro, era parcialmente fechada pelas presas de gelo, que começavam a derreter à luz brilhante do sol.
Haramis ficou de pé, deslizou cautelosamente entre as presas semiderretidas de gelo e entrou na caverna. As paredes e o teto eram de gelo negro.
Sua atenção foi atraída por uma luz fraca no fundo, atrás do lençol de gelo. Caminhou para ela, sentindo o calor intenso do amuleto com o trílio sobre sua pele, como se quisesse atrair alguma coisa. O objeto brilhante seria o seu talismã?
Haramis aproximou-se da massa de gelo negro e da luminosidade. Não distinguia ainda do que se tratava, mas o amuleto estava cada vez mais quente. Seu talismã estaria preso sob o gelo? Nesse caso, como ia conseguir libertá-lo?
Chegou mais perto do brilho misterioso. O amuleto agora chegava a queimar sua pele. Haramis descalçou as luvas e segurando o cordão de ouro tirou a pedra de âmbar para fora da túnica. A flor parecia em chamas e o âmbar estava tão quente que ela mal podia tocá-lo. Tirou o cordão do pescoço, segurando-o na frente do rosto. O amuleto, em vez de pender para baixo, começou a puxar o cordão para a frente, na direção do brilho na parede de gelo. A luz chamejante do trílio transformou toda a parede numa placa de ouro brilhante. A claridade, dolorosa e ofuscante, refletiu-se nos olhos da princesa como um ponto grande dourado, circundado por um halo azul vivo.
O amuleto a arrastou para mais perto da parede. Agora o calor era tão intenso que Haramis afastou o rosto da pedra de âmbar. Com o canto dos olhos, na área não alcançada pela luz, ela viu Um filete de água descendo pela parede. O amuleto estava derretendo o gelo!
De repente, algo prateado desprendeu-se do ouro e deslizou para o chão. O amuleto se apagou e esfriou rapidamente, ficando inerte no cordão. Haramis inclinou-se para apanhar o objeto antes que ficasse preso outra vez no gelo. Sem enxergar ainda, sentiu seu peso na mão.
Esperou pacientemente que sua vista se libertasse da ofuscação. Seus olhos doíam e ela dominou o impulso de esfregá-los. Mas, apesar do desconforto, sentiu crescer no fundo do coração uma certeza absoluta. Por um momento, Haramis compreendeu o padrão do mundo e o lugar que ocupava nele. Sabia tudo, tinha poder sobre tudo, comandava tudo. Tornara-se o que sempre soube que seria... mas só por um momento.. e a sensação transcendente desapareceu.
Na caverna iluminada agora indiretamente pela luz do sol, Haramis percebeu que podia ver outra vez. Segurava um bastão de metal prateado, com a metade do comprimento do seu antebraço. Numa das extremidades tinha uma argola para o cordão e na outra, uma espécie de laço, bem maior, pelo qual ela podia passar a mão fechada. Na parte superior do laço Haramis viu o que a princípio pensou ser uma flor, do mesmo metal prateado. Olhou com mais atenção e percebeu que o que havia tomado por pétalas eram três pequenas asas, na posição vertical.
O Círculo de Três Asas. Seu talismã. Finalmente.
Então você saberá que a luta final por Ruwenda e por sua alma está para começar...
As palavras da Arquimaga pareciam ecoar na caverna de ouro e cristal e Haramis, sobressaltada, exclamou:
— Quem está aí?
O amuleto e o talismã acenderam-se ao mesmo tempo. Haramis instintivamente largou os dois e levou as mãos aos olhos. Mas mesmo através das mãos via o brilho intenso. A jovem manteve as mãos sobre os olhos até a luz se apagar. Estava um pouco ofuscada, mas não completamente cega como da primeira vez. Ajoelhou rapidamente procurando o amuleto e o talismã, esperando que não estivessem congelados no chão. Será que me acham indigna deles?, pensou, ansiosamente.
Com imenso alívio viu os dois sobre o gelo. Mas agora fundidos num só, com o amuleto do trílio encaixado entre as penas do bastão.
Uma fonte de poder. De magia...
Sim — aquilo era mágica!
— E como vou aprender a usar esta força? — Olhou fixamente para as três asas. — A Dama Branca disse que existem mais dois talismãs para minhas irmãs, e se nós três tivéssemos êxito na busca, a solução viria naturalmente. Mas isso não me diz muita coisa.
Do interior do anel prateado, sob as asas, erguiam-se pequenas nuvens de vapor perolado. Como num sonho, Haramis ordenou:
— Mostre-me se minhas irmãs tiveram sucesso! Então, ela viu Kadiya.
A princesa estava entre uma multidão de oddlings — uisgus, a julgar pela pequena estatura — e tinha na mão um objeto brilhante como uma Espada de Misericórdia, a lâmina sem ponta, com três pomos negros no punho. O povo do pântano a aclamava com entusiasmo.
Sim - murmurou Haramis. — Você tinha toda probabilidade de vencer. Mas a pobre pequena Anigel. Onde está você, tímida irmãzinha?
A imagem de Kadiya desapareceu do círculo e foi substituída por outra, a princípio irreconhecível — mas então Haramis deixou escapar uma exclamação abafada.
Anigel! Os cabelos dourados tremulando ao vento, o rosto, não mais redondo e docemente pálido, mas magro, corado, exultante. Olhos de safira semicerrados, indo de um lado para o outro, alertas. Haramis jamais teria imaginado. Ani, com roupas andrajosas e enlameadas, sentada num barco exótico, num rio, deixando uma esteira branca atrás. Ani, a tímida pequena Ani, sorrindo ferozmente enquanto duas criaturas aquáticas empurravam o barco numa velocidade de tirar o fôlego.
Impossível! — exclamou Haramis.
A imagem desapareceu.
A princesa olhou para o Círculo de Três Asas, vazio agora.
”Seriam visões reais? Era tão fácil então comandar o talismã?”
Uma terceira visão. A Arquimaga, na cama, muito mais fraca do que quando Haramis a vira, com os olhos fechados e o rosto pálido. Os lábios secos e enrugados não se moveram, mas Haramis ouviu-a dizer:
As três devem cumprir as tarefas que lhes foram destinadas, dominando-se a si próprias acima de tudo, antes que Ruwenda possa se libertar do jugo de Labornok e seja restabelecido o equilíbrio do mundo. Se uma falhar, todas falharão.
Mas isso não faz sentido! — protestou Haramis. — Eu sou a rainha de Ruwenda, é minha obrigação. E a profecia do seu povo diz que uma mulher derrotará o Rei Voltrik — não três mulheres!
A Arquimaga agonizante abriu os olhos insondáveis. Seus lábios continuaram imóveis.
Eu disse também que Voltrik não é o principal inimigo. A Arquimaga desapareceu.
Alguma coisa cintilou na parede onde o talismã tinha estado. Haramis ergueu os olhos e viu o rosto sorridente de um homem com cabelos brancos.
Era de idade indeterminada. A passagem dos anos não deixara nenhuma marca no seu rosto. Seus trajes eram negros e prateados e ele estava sentado a uma mesa repleta de aparelhos estranhos, ao lado de um livro enorme e um pequeno bloco. Segurava um estilo numa das mãos fortes e uma frutaladu rosada, meio comida, na outra. Foi este detalhe doméstico — inesperado num demónio com forma humana — que levou Haramis a começar a retribuir o sorriso.
— Princesa Haramis — a voz era clara como se ele estivesse ao seu lado. — Bem-vinda à nossa companhia.
— De que companhia está falando? — perguntou ela, muito séria. — A companhia dos assassinos labornoks? Sou diferente de você, Orogastus, escolho com muito cuidado meus companheiros.
O feiticeiro riu e pôs a pena e a fruta na mesa.
— Tem um raro espírito de humor, senhora. Devo admitir que o Rei Voltrik, o General Hamil e os da sua laia não são os companheiros que eu teria escolhido — se eu tivesse escolha.
— Se tivesse escolha? — perguntou Haramis, com ceticismo.
Orogastus continuou, com perfeita amabilidade.
— A companhia a que me referi é a dos magos. Confesso que nosso número está bastante reduzido atualmente, consistindo apenas em você, eu e Binah — aquela que chamam de Arquimaga. E temo que muito em breve seremos só nós dois.
— Está pensando em matar a Dama Branca, agora que ela está doente e fraca demais para se defender? — perguntou Haramis, com voz fria.
— Minha cara menina — é claro que não! Não sou um assassino desumano. O que vai levar Binah é a idade e a morte.
— Sua expressão era agora tristonha e pensativa. — Acho que esse dia chega para todos nós. Há mais ou menos trinta anos, havia no mundo somente duas pessoas com o poder da magia: meu mentor, Bondanus, e Binah. Bondanus passou seu poder para mim. Binah, contrariando toda lógica, vai diluir o seu, dividindo-o entre vocês três.
— Para salvar Ruwenda! — exclamou Haramis.
— Ruwenda... — O feiticeiro balançou a cabeça com ar zombeteiro. — Seu talismã pode fazer muito mais do que salvar Ruwenda! A visão de Binah, como sua vida, está se apagando. Na verdade ela não conhece a natureza do poder do Talismã Triplo! Mas você, Haramis, tem séculos à sua frente para estudá-lo e fazer bom uso dele.
— Séculos? — Haramis piscou rapidamente os olhos. Nunca havia pensado nisso. A prática da magia prolonga a vida tanto assim?
— Séculos — repetiu Orogastus com voz firme. — Contanto que você não se mate acidentalmente com ela, é claro. — Com um gesto, indicou o talismã na mão da princesa.
Idiota! Haramis disse para si mesma, fica aí parada com o talismã na mão. Aparentemente ele o reconhece. Mas como? Quanto ele sabe realmente sobre seu poder? Tudo indica que a Arquimaga não pode me ensinar, e não tenho tempo para descobrir, fazendo experiências — não, se quiser salvar meu reino e minhas irmãs.
— O Círculo de Três Asas — disse Orogastus, com um sorriso. — Estou feliz por você ter encontrado. Tenho alguns livros que falam a respeito dele e sempre desejei vê-lo.
— Tem livros que falam sobre o talismã? — perguntou Haramis. E pensou, Eu queria que ele fosse embora e me deixasse consultar sua biblioteca! — O que eles dizem?
— Muita coisa. Tanta que não posso explicar agora — você ficaria congelada antes que eu tivesse contado uma sexta parte. — Apontou para a caverna. — Está tão absorta na nossa conversa agradável que nem notou a passagem do tempo.
Haramis olhou em volta rapidamente. Orogastus tinha razão. O sol estava baixo no céu e a caverna começava a ficar escura e fria. Voltou-se para o espelho. A roupa de Orogastus parecia ser de material leve e havia muita luz onde ele estava.
O feiticeiro chamou-a com um gesto.
— Venha à minha casa, Haramis, à minha torre na montanha. Deixe que eu a ensine a usar o talismã. Seria agradável ter companhia aqui. O Monte Brom fica muito afastado e raramente tenho visitas.
— Você não quer a minha companhia — disse Haramis, com os olhos nos dele. — Só quer o talismã.
Para surpresa da jovem, Orogastus riu descontraidamente.
— Eu esqueci que tudo isso é novo para você. Ninguém pode tomar seu talismã e quem tentar morrerá. Mas você não sabe como usá-lo. Você o usa para ver ao longe! — Ele riu outra vez. — O mais ínfimo mágico oddling pode fazer isso com uma folha cheia d’água... Não, Haramis, você não compreende. Mas eu posso ensiná-la. Tenho uma grande biblioteca e um número sem conta de aparelhos dos Desaparecidos. Peço apenas a satisfação de compartilhar com você meus conhecimentos. Você tem fama de ser inteligente e estudiosa — não conhece o prazer da procura do conhecimento? A extrema satisfação de ver se transformar em lógica clara algo que não compreendemos?
— Sim — disse Haramis com um gesto afirmativo. — Sei o que isso significa.
— Então, venha ao Monte Brom — convidou Orogastus. — Com o talismã pode chamar seu lammergeier e mandar que a traga à minha torre e chegar em tempo para o jantar.
Então ele não sabe que Hiluro está aqui, pensou Haramis. Pelo menos ele não é onisciente. Orogastus ficou sério.
— Juro pelos poderes que nos são comuns que não tentarei tirar o talismã à força, e que não permitirei que qualquer mal seja feito à sua pessoa. Que meus poderes me abandonem para sempre se eu quebrar esta promessa. — Levou a mão ao coração.
— Assim seja — disse Haramis, automaticamente, a resposta aprendida durante anos, ouvindo promessas variadas. O espelho de gelo ficou escuro.
Muito bem, e agora? pensou ela. Vou à casa dele, procuro a Arquimaga, ou vou para outro lugar qualquer, para ver o que posso fazer sozinha?
As duas últimas alternativas não pareciam muito promissoras. Além disso, a Arquimaga não exigira que ela voltasse imediatamente. ”Quando você realizar a missão do Círculo de Três Asas, volte para mim”, foi o que ela disse. Queria dizer a simples possessão do talismã ou será que a capacidade de fazer uso dele faz parte do objetivo da missão?
Uma vez que Binah não me mandou voltar, quando falou há pouco no espelho, talvez queira que eu aprenda a usar o talismã, primeiro — e talvez este seja o momento de enfrentar Orogastus.
O feiticeiro era sem dúvida perigoso, mas pelo menos ela teria calor e comida na sua torre. A Arquimaga disse que eu devo conhecer as fraquezas dele, pensou ela. Provavelmente é parte do meu destino e será muito bom, para variar, cumprir meu destino num ambiente confortável!... E se tiver algum problema no Monte Brom, posso pedir a Hiluro para me levar embora.
Só então notou uma vibração crescente na espiral de rocha e sons que vinham de fora da caverna. O rugido trovejante da geleira misturava-se ao grito de aviso do lammergeier.
Haramis! Venha para fora! Perigo! Grande perigo!
A princesa passou o cordão pelo anel menor do talismã, escondeu-o sob o corpete e foi para a entrada da caverna. As presas de gelo tinham-se partido com a vibração e a câmara no centro da espiral começou a se inclinar, balançando como um barco em águas revoltas. Haramis ergueu os braços. O pássaro branco e preto pareceu mergulhar diretamente do sol e alguma coisa se fechou em volta do seu corpo, erguendo-a da plataforma gelada. Ela viu um breve lampejo dourado, uma revoada barulhenta de prismas de arco-íris e o céu parecia girar, azul-violeta, atrás de uma enorme cabeça com crista.
Então o lammergeier planou suavemente, levantou a garra e a amparou com cuidado, enquanto ela subia para a concavidade macia entre suas asas. Haramis olhou rapidamente para o lugar onde antes estava a espiral de quartzo. Agora só a rocha, menos branca do que o gelo, marcava a superfície da geleira, e alguns pedacinhos de ouro cintilavam à luz do sol poente.
Chegou a noite e Kadiya dormiu entre os sindonas e o topo da escada. Depois de se servir dos alimentos oferecidos pelo jardim, achou que seria errado permanecer ali. A sentinela viva não voltou. Kadiya não a esperava e deitou-se, segurando o amuleto. Não foi num sono verdadeiro que ela mergulhou, acordou e mergulhou outra vez.
Tinha provas de que os invasores haviam conseguido entrar na terra proibida. E pensava também em Jagun — seria capturado pelo inimigo e torturado como o pobre uisgu que havia encontrado?
Para onde devia ir agora? Voltar pelo mesmo caminho — enfrentar os que a seguiam e que talvez estivessem ainda à sua espera? Seria pura idiotice. Mas não tinha nenhum guia, e de nada serviria ficar andando por aquele jardim estranho. À sua direita havia uma parede muito alta, resolveu seguir ao lado dela.
Tinha esvaziado a bolsa de caça de Jagun, da qual pouco tinha se utilizado, e posto para secar durante a noite. Desfez-se de alguns volumes que estavam completamente encharcados. As raízes comestíveis, apanhadas no jardim, e as frutas guardou num cesto de palha, primitivamente tecido, e encheu de água o cantil. Nada mais a prendia ali, mesmo assim Kadiya voltou para olhar o jardim pela última vez. Talvez fosse proibido, mas havia nele alguma coisa que a atraía — que parecia chamá-la, apesar da atitude fria da sentinela.
Com um suspiro, Kadiya ajeitou a bolsa de caça nos ombros. Fizera uma bainha provisória para o talismã, com uma alça, que passou pelo ombro e o peso servia para lembrar que tinha realizado parte da sua missão. Uma espada — quando o que precisava era de um exército!
Acompanhou o muro alto por algum tempo e chegou a um pórtico enorme. Lá dentro, depois de um parque imenso, cintilava uma cidade. Apavorada, entrou pelo pórtico e se aproximou do lugar. A vegetação quase encobria as casas silenciosas e a relva e o mato cobriam as ruas. Porém, sob toda aquela invasão verde não se notava nenhum indício de ruínas. As paredes que apareciam entre folhas e trepadeiras não eram de pedra, mas da mesma substância estranha da grande concavidade onde ela e Jagun haviam passado uma noite.
De repente Kadiya compreendeu que estava vendo a cidade do seu sonho. Outros muros erguiam-se além, protegendo-a completamente. A princesa caminhou, maravilhada, por uma larga avenida. Os prédios, dos dois lados, eram bem construídos e acima das portas e janelas havia inscrições indecifráveis em alto-relevo. A avenida levou-a a um portão da altura de um prédio de três andares, aberto. Kadiya passou pelo portão e entrou num mundo diferente, estava outra vez no pântano — e a avenida era agora ruínas de uma velha estrada. O que o tempo não havia tocado no interior da cidade, conquistara completamente ali fora.
Felizmente, a velha estrada não tinha desaparecido por completo. Kadiya notou a espuma amarela e ameaçadora nos dois lados do caminho, mas onde estava o solo parecia firme. Parou e cortou o galho de um arbusto para experimentar a solidez do solo à medida que andava.
Depois de percorrer uma boa distância no pântano, olhou para trás e balançou a cabeça, sem poder acreditar no que via. A cidade era só um monte de ruínas. Até o muro estava desmoronado e coberto de vegetação. Ilusão!
Porém, o que era ilusão? O jardim misterioso e a cidade de sonho, ou aquilo que via agora? Tudo que tinha acontecido com ela seria então encantamento? Mas sentia o peso da espada no ombro e ergueu a mão para sentir as saliências dos Três Olhos Chamejantes.
Caminhou durante várias horas sem ver nada estranho e ouvindo apenas os ruídos normais do pântano. A julgar pela luz do sol, que parecia sempre encoberta pela névoa, devia ser meio-dia, ou um pouco mais. À sua frente havia moitas de ervas espinhosas e árvores silvestres.
Então ela ouviu o trinado típico de um besouro rãs, repetido três vezes, num ritmo que ela conhecia. Jagun! Tinha de ser ele!
Um leve movimento entre as moitas e ela viu o rosto do amigo querido, com um largo sorriso. Um dos seus olhos estava inchado e escuro. Era evidente que as coisas não tinham sido fáceis para ele. O caçador oddling tinha uma compressa de folhas secas, atada com hastes de junco na parte superior do braço, perto do ombro, e parecia mover-se com dificuldade.
Jagun não perdeu tempo com cumprimentos.
— Eles estão aqui — os skriteks e os soldados. Kadiya pensou nas vítimas patéticas que tinha visto na outra estrada — e na fogueira distante e na flecha marcando o caminho. para alguém.
— Eu vi sinais de que o inimigo está muito perto.
O rosto de Jagun era uma máscara e sua atenção não estava em Kadiya, mas nos próprios pensamentos.
— Está próxima a festa das três luas — murmurou ele —, e a escuridão aumenta! Mas logo haverá muito fogo que só será apagado com sangue.
A festa das três luas. Na Cidadela, era sempre comemorada com banquetes, estranhas canções antigas cantadas pelos bardos e uma jangada cheia de flores era solta no rio, iluminada por candelabros com três velas cada um. Era o tempo em que o mal era afastado pela vontade de todos. E quando as três luas brilhavam no céu, muito unidas, em conjunção mística, o povo se rejubilava sob sua luz benéfica e cantava. Mas o que Jagun queria dizer? Estaria prevendo uma grande batalha durante as comemorações? Uma batalha na qual ela empunharia seu talismã para salvar Ruwenda?
Antes que ela pudesse fazer qualquer pergunta, o caçador disse:
— Os skriteks — e com eles a Voz do feiticeiro e um grupo de soldados humanos — atacaram uma aldeia uisgu. Fogo eles usaram, e magia, invocada do ar. Os cativos que ainda estão vivos logo servirão de alimento para os skriteks.
— Estão à minha procura! — exclamou Kadiya. — Por isso perseguem os pobres uisgus!
— Sua captura seria um grande triunfo. Mas eles querem mais do que isso. — Com um gesto da cabeça indicou a cidade dos jardins, escondida pela ilusão. — Você esteve lá. Terminou a sua procura?
Sem uma palavra, Kadiya tirou o talismã do ombro e o estendeu para Jagun.
Embora Kadiya conhecesse o caçador desde que era pequena, jamais vira tamanho júbilo nos olhos dele. Jagun estendeu a mão timidamente, como se fosse tocar a espada, mas depois recuou. Os lobos negros do punho continuavam fechados e sem brilho, mas a lâmina refletia a fraca luz do sol.
Kadiya levou a espada para mais perto dele. As lágrimas desciam pelo rosto de Jagun e ele caiu de joelhos aos pés da princesa.
— O talismã! Ó, Olhos Penetrantes, você o encontrou!
— Há uma crença entre meu povo — disse ela, falando devagar — de que uma ponta quebrada significa misericórdia. Mas para você... — Hesitou, depois tocou a cabeça dele delicadamente com a espada e, sem saber como, dos seus lábios soaram as palavras de absolvição. — Meu amigo querido, alegre-se. Receba de volta seu nome! Volte a usar o bracelete sagrado dos nyssomus. Você não quebrou nenhum juramento — apenas seguiu o curso das coisas como tinham de ser. A partir deste momento, liberte-se de toda culpa.
Então Jagun fez o que Kadiya jamais tinha visto. Quando o caçador chegou na Cidadela para falar com seu pai, o Rei Krain, saudou o monarca com as duas mãos erguidas, como ela o vira saudar a Primeira da Casa na aldeia dos nyssomus. Mas agora ele se inclinou para a frente até tocar o chão com os braços e com a testa.
— Inteiramente ao seu serviço, Portadora da Luz, Mensageira da Esperança, Protetora e Defensora — amiga do coração dos Desaparecidos!
Intrigada, ela ergueu o talismã. Era como se um eco distante reverberasse nas palavras de Jagun. Porém, alguma coisa dentro dela se encolheu, desejando apenas jogar no chão a lâmina negra para que voltasse a ser o que era — a raiz do Trílio Negro.
— Jagun. Não sei o que você quer dizer.
Jagun levantou-se rapidamente e, com os olhos nos dela, o robusto Mestre dos Animais e antigo guarda-caça real disse:
— Dama dos Olhos, o conhecimento será seu. E ninguém será chamado onde não estiver destinado a servir.
— Eu não sei como usar este talismã — protestou ela, sentindo-se completamente perdida. Até a raiva que sempre lhe dava força estava agora ausente.
— O conhecimento também virá. Agora deve começar o verdadeiro trabalho para o qual foi destinada.
Kadiya respirou fundo e guardou o talismã na bainha improvisada.
— Muito bem. Aqueles uisgus atacados pelo inimigo — disse ela —, onde estão?
— Perto do Alto Mutar. Eu os ouvi fazer o Chamado, mas a resposta do nosso povo vai demorar para chegar. Os skriteks — distendeu os lábios, mostrando as presas, tão diferentes dos dentes humanos — não são fáceis de controlar. Précisam ser recompensados com sangue... e carne.
Kadiya engoliu em seco, mas perguntou com voz decidida:
— Temos algum meio de ajudar os uisgus capturados?
— Olhos Penetrantes, eu diria que é impossível. Mas para você foi aberto o Caminho Proibido e você possui o triplo. Veremos.
— Então vamos.
Não seguiram a estrada, mas uma trilha tortuosa que atravessava a terra do Inferno de Espinhos. Quando a noite estava próxima, procuraram um lugar para acampar, porque não podiam seguir a trilha no escuro. Mas, antes de estarem prontos para dormir, a brisa trouxe um fedor pavoroso e conhecido. Os skriteks estavam perto!
Usaram folhas de cheiro acre para disfarçar o odor dos seus corpos. Depois, Jagun deitou-se de bruços, Kadiya o imitou e juntos arrastaram-se entre a relva. Momentos mais tarde, agachados, ombro a ombro, escondidos atrás das hastes grossas como troncos dos arbustos gigantes, observaram uma clareira.
Era uma espécie de acampamento. Um grupo de homens, com as armaduras enferrujadas, estava no centro da área aberta. Soldados labornoks. Entre eles e o esconderijo de Kadiya e Jagun havia uma série de lanças enfiadas no chão e atadas umas às outras com cipós, formando uma espécie de cercado. Um cercado cheio de cativos. Não havia nenhum homem entre eles. Cerca de doze mulheres nativas estavam sentadas ou deitadas em pequenos grupos dentro da jaula. Duas tinham filhos no colo. O sofrimento e o medo que as envolviam eram quase palpáveis e Kadiya sentiu um aperto no coração. Cuidadosa e silenciosamente, desembainhou seu talismã.
Ouviram um choro lamentoso e uma das mulheres imediatamente tapou com a mão a boca da criança. Quatro skriteks montavam guarda nos quatro cantos da jaula. Um deles ergueu a cabeça, com as mandíbulas salientes, deu um grito e apontou a lança para a mulher.
Kadiya abaixou a espada, segurando-a com a mão esquerda, e com a direita desembainhou a adaga. No ano anterior, a princesa vira um atirador de facas numa feira e, depois de muita prática, conseguiu dominar a arte. Tinha certeza de poder acertar a garganta do guarda skritek mais próximo, ó, se ao menos tivesse quatro arqueiros atrás dela!
Mas não tinha. e, a contragosto, controlou-se. Os outros skriteks, rindo, pareciam incitar o companheiro a embeber a lança na mulher e no filho.
Kadiya segurou o braço de Jagun. Não podiam fazer alguma coisa?
Jagun abriu a mão esquerda mostrando uma massa verde que ele segurava com cuidado. Era um aworik, um fungo estranho, muito raro, mas um grande amigo dos que eram perseguidos por qualquer predador dos pântanos.
Porém o inimigo moveu-se primeiro. Dois soldados humanos saíram de uma moita de espinhos, carregando um uisgu. O skritek que ameaçava a mulher e o filho hesitou e depois abaixou a lança.
Enquanto a atenção dos invasores estava voltada para o novo cativo, Jagun tirou do bolso sua zarabatana. Apoiado num joelho, atirou o aworik com toda a força, apontando para um ponto entre os soldados humanos e a jaula das prisioneiras. O fungo partiu-se quando atingiu o solo e de dentro dele voaram milhares de cápsulas de esporos, espiralando no ar, cortantes como navalhas. As cativas uisgus imediatamente deitaram-se de bruços no chão, protegendo os olhos. Mas os skriteks e os labornoks foram apanhados de surpresa. Os que não ficaram cegos contorciam-se freneticamente, enquanto as minúsculas lâminas dos aworiks laceravam as partes mais sensíveis dos seus corpos, antes de cair no solo.
Jagun estava com a zarabatana armada e Kadiya ouviu o silvo do primeiro dardo envenenado, embora não o visse passar por ela. Um skritek caiu. Com o talismã numa das mãos e a adaga na outra, a princesa levantou-se de um salto. O skritek mais próximo cambaleava cego, brandindo a lança. A jovem atirou a adaga com um impulso giratório, como tinha praticado durante tanto tempo. A arma acertou a garganta do monstro e ele caiu, contorcendo-se nos espasmos da morte. Outros dardos envenenados da zarabatana de Jagun abateram os outros dois skriteks. Um soldado com o rosto ensanguentado avançou para eles, mas Kadiya estava preparada, com sua espada-talismã erguida como um experiente Companheiro Fiel. Brandiu a lâmina e sentiu o impacto quando a espada amassou a garganta do homem. Ele caiu, sufocado no próprio sangue. Kadiya parou por um momento atónita, sem poder acreditar que tivera a coragem de usar a espada.
O acampamento era um pandemônio de gritos e imprecações. Os dardos de Jagun estavam dizimando o que restava dos soldados labornoks. Skriteks agonizantes rugiam e se contorciam, batendo na terra com seus talões. Kadiya ergueu a espada pela segunda vez e com um golpe cortou as tiras de junco da jaula. O junco desapareceu, derretido, não cortado.
— Para fora! — gritou ela para as mulheres prisioneiras, muitas das quais já estavam de pé. Kadiya apontou com a espada. — Corram! Para os arbustos espinhosos!
Elas fugiram, com Kadiya atrás, pronta para revidar um ataque de outros skriteks ou outros soldados. Jagun a acompanhou, depois de retirar a adaga da princesa da garganta do skritek.
Kadiya e os uisgus chegaram a um grande rio, sem dúvida o Alto Mutar, e viram uma jangada presa a uma longa barcaça, igual às que eram usadas pelos mercadores. Quatro soldados estavam de guarda, intrigados com o barulho que ouviam ao longe, e um skritek emergiu da água com um peixe vivo na boca.
— Jagun! — Kadiya, num segundo, percebeu o perigo. Precisava dos dardos envenenados do caçador. Ela não podia enfrentar todos sozinha. Mas Jagun estava muito atrás, certificando-se de que não tinham sido seguidos.
Os soldados labornoks com as espadas em punho aproximavam-se, tentando cercá-la. As mulheres oddlings gritavam apavoradas e o skritek nadou na direção delas.
Kadiya sentiu um calor na mão, tão intenso que largou o punho da espada e a segurou pela lâmina sem corte e sem ponta, erguendo-a na frente do rosto. Os três olhos estavam abertos, atentos ao soldado mais próximo que avançava para ela.
Com um grito rouco, o homem recuou cambaleando, deixou cair a arma e levou a mão aos olhos. Kadiya não sabia o que tinha acontecido, mas imaginava. Virou o talismã para o outro soldado. Ele gritou e chocou-se com o primeiro, que estava cego, o qual imediatamente girou o corpo e atingiu o terceiro com um golpe mortal. Kadiya virou a espada para o último homem. Mas vendo o que aconteceu aos outros, ele abaixou-se, avançando para atacá-la. Então, girou o corpo no ar e gritou. Na sua nuca estava um dardo envenenado de Jagun. Um aplauso tremendo partiu da margem quando o skritek foi atingido por outro dardo. Os dois soldados cegos continuavam a se atacar mutuamente como loucos. Jagun mandou que todos subissem na jangada. Cortou a amarra com a adaga de Kadiya e jogou a arma para dentro da embarcação. Duas mulheres uisgus apanharam espadas e outras as varas para impelir a jangada.
— Depressa! — gritou Jagun. — Mais skriteks estão chegando! Vamos embora!
Kadiya apressou-se em ajudar os feridos. As varas mergulharam na água e a jangada moveu-se. Uma das mulheres começou a cantar a canção dos remadores do rio, e as outras, com as varas, responderam, acelerando seus movimentos. Então, a corrente impetuosa os levou rio abaixo. — Jagun! — gritou a princesa.
Mas o caçador limitou-se a balançar a cabeça e voltou-se para enfrentar cinco skriteks que saltaram das moitas, aos berros. Sem poder fazer nada, ela viu o caçador levar a zarabatana à boca para se defender dos monstros uivantes... então a jangada entrou numa curva do rio e a brava figura de Jagun desapareceu.
Suas únicas armas eram agora as duas espadas, a adaga de Kadiya e o talismã. As mulheres uisgu não tinham sequer muita roupa, protegidas apenas por seu pêlo sujo e emaranhado. Eram onze ao todo, e duas crianças. Quatro tinham curativos feitos de folhas, sujos de sangue, e outras apresentavam ferimentos causados pelos esporos do aworik ou por seus captores.
— Senhora?
Kadiya estava absorta em sua dor pela morte de Jagun. Ao chamado, ergueu a cabeça. Uma mulher uisgu sentou-se ao lado dela.
— Eu sou Nessak de Dezaras, antes Primeira da Casa e Representante da Lei. Todas essas — indicou as outras mulheres — são também de Dezaras. A desgraça abateu-se sobre nós durante uma viagem. Nossos homens foram entregues aos skriteks pelos soldados humanos e nos obrigaram a assistir. Esses invasores procuram segredos, Grande Senhora, que nós não conhecemos. Pois nos comprometemos, sob juramento, a jamais entrar no lugar proibido dos Desaparecidos — o lugar que esteve sempre fechado, em todos os tempos. Quando viram que não podíamos falar sobre o que não sabíamos, o humano que comanda os outros, vestido todo de vermelho, ordenou que nos prendessem até a chegada de outros humanos que andam com os skriteks e que procuram erguer as Trevas contra a Luz. Esse homem desceu o rio um pouco antes da sua chegada para nos salvar. Agora somos seus servos para sempre, Senhora, e agradecemos por nos ter libertado. Poderia dizer quem é e de onde vem?
— Sou filha do Rei Krain, que não vive mais — e meu nome é Kadiya. Esses súditos do mal tomaram nossa terra. Meu pai morreu por suas mãos cruéis, bem como todos que o seguiam. Minha mãe também.
Emocionada, Kadiya olhou para o talismã. Se já tivesse aquela espada, quando os labornoks invadiram a Cidadela! De certo modo, a arma havia derrotado os soldados — o que poderia fazer contra o Rei Voltrik?
— Há uma profecia — continuou a princesa, acariciando os olhos fechados do punho da espada — de que a derrota desses homens cruéis virá pelas mãos de uma mulher da minha casa. Minhas irmãs e eu empreendemos longas jornadas, por ordem da Arquimaga Binah, que vocês chamam de Dama Branca, à procura daquilo que vingará nosso povo.
Pela primeira vez, depois do que lhe pareciam dias e dias, ela pensou em Anigel e Haramis. O que teriam conseguido? Estariam mortas e ela era a única que restava para exigir o pagamento pela destruição da sua casa?
— Anigel. Haramis... — Disse os nomes em voz alta, como se as estivesse chamando.
Alguma coisa se moveu sob seus dedos e Kadiya tirou a mão do punho da espada. Dois olhos abriram-se. Olhos? Não, não dessa vez. No lugar deles, viu duas imagens, duas visões! Lá estava Haramis, com um Trílio Negro, completamente aberto, na mão. E Anigel segurava outro igual. Kadiya teve certeza de que as irmãs estavam vivas e que em algum lugar esperavam por ela e pelo momento da prova final. Os olhos se fecharam, transformando-se mais uma vez nas esferas negras no punho da espada. Kadiya suspirou.
— Senhora — disse a mulher uisgu, solenemente —, posso ver que é a Portadora da Luz, Mensageira da Esperança — a Dama dos Olhos, do povo dos Desaparecidos.
Kadiya balançou a cabeça enfaticamente.
— Não, Representante da Lei, não pertenço ao povo dos grandes do passado, embora isto — pôs a mão no talismã — possa ter vindo do tempo deles. Não sei como carregar a luz, nem como transmitir esperança. Tudo que sei é que devo vencer o Rei Voltrik e seu feiticeiro, Orogastus, nem que tenha de fazer isso sozinha.
— Senhora — disse Nessak com voz suave —, não está sozinha. Os malvados que nos capturaram quebraram um grande juramento e foram punidos. Você esteve no Palácio do Conhecimento e passou incólume pelos sindonas. Foi enviada para nós. É a Dama dos Olhos — a muito esperada. Assim, os uisgus se erguerão ao seu lado, embora a guerra sempre fosse proibida entre nós. As trevas caminham pela terra, o grande equilíbrio foi destruído, e da luta que virá, ninguém pode fugir! Quando chegarmos a Dezara faremos o Chamado e o povo da raça uisgu marchará ao seu lado.
Kadiya conteve a respiração. O que ela havia sugerido a Jagun, o que lhe haviam dito que jamais podia acontecer ia se tornar realidade. Se os oddlings se revoltassem, transformariam o próprio Pântano Labirinto numa arma contra os invasores. Sentiu reforçada sua vontade. Seria a guerra total e, se conseguisse dominar o segredo do seu talismã, venceriam a luta...
Fechou as mãos com força, enterrando as unhas nas palmas. Tempo. — Precisava não só de tempo, mas também de conhecimento. Esperava que seus novos aliados pudessem lhe ensinar o que devia saber.
Os rimoriks desceram o rio, empurrando o barco de Anigel por mais três dias. Às vezes o canal principal passava perto da margem e da floresta, e a princesa olhava com espanto as árvores estranhas. Algumas eram muito altas, com galhos que se erguiam para o céu como braços sinuosos de dançarinas. Outras tinham os troncos delicadamente corrugados, como centenas de anéis sobrepostos, uns fora de centro, desafiando a gravidade. Havia árvores maciças, atarracadas como tuberosas gigantescas, largas na parte inferior, pontudas no topo, com uma coroa de galhos minúsculos cobertos de folhas que não paravam de tremer. Havia bosques de magníficas árvores-gonda, muito usadas para construção, maiores do que as que cresciam no Pântano Labirinto. Seus troncos, como imensas colunas, eram mais largos do que o portão principal da Cidadela, formando arcadas verdes iluminadas pela luz inclinada dos raios de sol. Havia árvores floridas, tão carregadas de flores vermelhas e cor de laranja que pareciam estar em chamas. Havia árvores desajeitadas, com poucas folhas nos galhos nodosos e orifícios enormes nos troncos, que abrigavam colónias barulhentas de cantores-noturnos. A variedade era quase estonteante e Anigel ficou satisfeita quando a corrente os levou para longe da margem.
Era evidente que na estação das chuvas o leito do Grande Mutar, largo e quase vazio agora, ficava cheio até a borda. Quanto mais desciam, maiores eram as pilhas de lenhos flutuantes que obstruíam o canal com os galhos secos e desbotados recobertos por uma quantidade imensa de cipós. Bandos de pássaros habitavam as terras de aluvião, procurando alimen-” to nos bancos de lama e nos remansos rasos, e erguiam-se assustados, em revoada barulhenta, quando o bote passava entre eles. Ocasionalmente aparecia um animal — quadrúpedes, gordos e cinzentos, comendo plantas aquáticas nos atoleiros, pequenos carnívoros que se alimentavam de peixes, que pareciam pelriks gigantescos e que os rimoriks saudavam como camaradas, e sempre uma grande quantidade das criaturinhas inofensivas listradas de amarelo que viviam também nas ilhas do rio e que haviam despertado Anigel para a Floresta Tassaleyo, voando em enxames entre a vegetação da margem.
Mas nenhum ser humano, nenhum oddling.
Anigel interrogou seus amigos. Disseram que os wyvilos já há muitos anos viviam num grande povoado. Procuravam a segurança na comunidade, como certos pássaros e peixes, porque eram constantemente atacados por seus primos, os glismaks, que habitavam mais abaixo, nas profundezas do coração da floresta.
Antigamente, disseram os rimoriks, não tinham aldeias permanentes e viviam em pequenos grupos familiares. Evitavam os incompetentes glismaks nunca dormindo no mesmo lugar. Mas depois que os wyvilos começaram a comerciar com os humanos, acumularam muitos objetos e não podiam mais levar aquela vida nómade. Tornaram-se cada vez mais ricos e passaram a correr maior perigo, porque os glismaks agora invejavam suas posses.
Mas não voltarão ao antigo modo de vida. Isso seria pior do que a morte para eles. Nós não compreendemos esse modo de pensar.
— Mas eu compreendo — disse a princesa. — Os humanos têm uma história parecida. Existe algo no interior de certas pessoas que as incita a fazer sempre melhor, a aprender mais, lutar mais, subir mais alto. Nem todos são assim, mas essa motivação pode ser passada de pais para filhos. Não é uma coisa má. É um grande mistério o modo como a força motivadora do mundo impulsiona as coisas vivas — especialmente os seres pensantes — para uma vida cada vez mais complexa — quando o normal talvez fosse que se cansassem de tanta pressão e voltassem à simplicidade, como o fogo volta às cinzas. Os muito velhos, entre nós, se cansam. Mas sempre aparecem mais jovens para levar adiante a luta por uma vida melhor.
Então, os humanos e o povo do pântano são parentes.
Eu... acho que sim- Mas não tenho certeza. Os nativos, que vocês chamam de Povo — segundo seus entendidos, pertencem realmente a este mundo. Nós os humanos não pertencemos.
Os rimoriks riram.
Ô, sim, vocês pertencem.
Anigel disse, com severidade:
— Não sou estudiosa, mas aprendi isso com os melhores professores. Minha irmã, Haramis, que é muito inteligente, afirma que é verdade. E não somos só nós, os ruwendianos, que acreditamos nisso, mas toda a humanidade.
Os humanos habitavam este mundo antes do povo do pântano, do povo das montanhas, antes do povo da floresta. Só os grandes afogadores estavam aqui antes deles.
Anigel não se convenceu.
— Como sabem? Vocês são apenas animais.
Mas os rimoriks riram outra vez, encerrando a conversa. Logo depois, Anigel avistou o povoado dos wyvilos e não estava mais disposta a pensar em mistérios.
Obviamente os wyvilos sabiam da sua chegada.
Mais de trinta canoas estreitas e transparentes deixaram a margem dirigindo-se rapidamente para o barco de Anigel. Cada uma transportava duas dúzias de remadores, com um patrão de pé na popa, dirigindo orgulhosamente com gestos sua tripulação.
Acho melhor pararmos — Anigel disse para os rimoriks, um pouco preocupada. — Pela Flor, quantos wyvilos! Será que vocês. podiam tirar as cabeças da água, assim com um ar protetor?
Como resposta, as duas cabeças apareceram e os rimoriks sorriram para ela. Depois olharam para a frota de canoas que se aproximava.
O povoado wyvilo ficava numa grande clareira que mais tarde a princesa soube ser uma ilha, circundada por canais artificialmente dragados. A costa estava repleta de pequenos cais, com mais canoas leves e brilhantes ancoradas. (Os rimoriks haviam dito que as canoas eram feitas com o material da vesícula natatória de um gigantesco peixe de rio.) As casas, todas sobre estacas, eram belas, feitas de toras descascadas, com telhados de ripas de madeira, venezianas e varandas de todos os tipos, que naquele momento estavam repletas de nativos. A maioria das casas era ligada por passarelas de aparência frágil.
Uma parte do povoado, um pouco mais abaixo, na margem do rio, evidentemente fora há pouco tempo destruída pelo fogo. As casas queimadas estavam sendo demolidas e novas estruturas erguiam-se das ruínas. Anigel notou, com estranheza, que os wyvilos não tinham árvores no povoado, apenas uma grande quantidade de moitas, de arbustos e canteiros rasos, e nos tetos cobertos de musgo cresciam flores.
A primeira canoa dos wyvilos parou de repente a cerca de dez ells do barco parado de Anigel. As outras fizeram o mesmo, formando uma linha sólida de embarcações repletas de oddlings curiosos, muito diferentes de todos que a princesa conhecia.
Eram mais altos do que os nyssomus e os uisgus dos pântanos do norte, quase do tamanho de robustos adultos humanos. Tinham a cabeça alongada, não redonda, e o nariz parecia um pequeno focinho. Os olhos eram mais parecidos com os dos outros nativos, grandes e amarelos, mas tinham pupilas verticais — como Anigel sabia que os skriteks também tinham. As bocas abertas dos wyvilos espantados mostravam os dentes fortes. Uma parte do corpo era coberta de pêlo, a outra de placas de pele que pareciam escamas brilhantes. O povo das florestas usava tangas pintadas com cores vivas e uma quantidade de colares, braceletes, peitilhos, tornozeleiras e outras jóias — algumas de ouro ou platina com pedras preciosas. Capim de haste azulada trançado parecia ser tão apreciado como ornamento quanto os metais preciosos, e Anigel viu um nativo segurando a couraça enfeitada de aço dos cavaleiros ruwendianos e outro com um xale feminino franjado sobre os ombros fortes.
Enquanto eles se aproximavam, Anigel havia calmamente penteado os cabelos e posto nos ombros a capa de couro de Immu, para esconder a roupa rasgada. Agora, ficou de pé cautelosamente no meio do barco, com um rimorik de cada lado, na água, e ergueu as duas mãos. A capa se abriu, mostrando o amuleto com o trílio cintilante.
A multidão nas canoas soltou um brado abafado. Os dedos com garras apontavam e os que estavam mais atrás esticavam os pescoços para ver melhor, murmurando e resmungando na sua língua gutural.
— Eu vim como amiga — disse Anigel —, procuro o talismã mágico chamado o Monstro de Três Cabeças.
De repente, o povo da floresta ficou silencioso. Mais uma vez as bocas se abriram e os olhos se arregalaram. Anigel esperou, depois disse:
— Alguém entre vocês pode falar comigo?
Um dos timoneiros mais enfeitados fez um gesto brusco. Seu barco saiu da fileira e aproximou-se do barco da princesa.
— Este aqui fala — declamou ele, na língua da Península. Sua voz era áspera, quase ininteligível, e ele franziu a testa ferozmente. Usava um colar de ouro batido com pedras preciosas de várias cores, um belo chapéu ruwendiano de brocado, cor creme, com um broche de brilhantes e enormes plumas vermelhas. — Este é Sasstu-Cha, porta-voz de Let — rosnou ele. — Quem é você? E por que procura o favor dos wyvilos?
— Sou a Princesa Anigel, de Ruwenda. Devem saber que meu país foi tomado por inimigos humanos do norte. — Ergueu o amuleto com o trílio e continuou: — A Guardiã da nossa terra, a Dama Branca, ordenou que eu procurasse o talismã que libertará meu povo dos grilhões dos conquistadores. Ouviram falar desse Monstro de Três Cabeças?
O porta-voz hesitou.
— Sabemos de algo parecido. Mas não é nenhum talismã. Fica mais abaixo, a um dia e meio de viagem, depois mais algumas horas subindo o Afluente Kovuko — na terra dos glismaks.
A princesa deixou escapar uma exclamação abafada que provocou o sorriso do vvyvilo.
— Pode me ceder um guia para me levar até lá? — ela perguntou.
— Não.
Anigel brandiu o amuleto.
— Eu ordeno! Pela Flor!
Os wyvilos soltaram um grito lamentoso.
Desesperada, ela tirou a folha do Trílio Negro da bolsa e a levantou no ar. Eles gritaram mais alto ainda e, dessa vez, cheios de medo.
— Mas preciso chegar lá! Ajudem-me — implorou Anigel.
— Se for a Kovuko, sem dúvida morrerá — disse SasstuCha. — As árvores naquele lugar são tão vorazes quanto os próprios glismaks. Ninguém do nosso povo a levará. Mesmo que não fosse um lugar proibido pelo Deus do Céu, não poderíamos ir. Quatro sóis atrás, os glismaks atacaram Let e queimaram nossas casas. Sempre fazem isso no fim da estação da seca, porque sabem que estamos mais ricos, devido ao comércio com os humanos. Logo eles voltarão para outro ataque. Todos os wyvilos devem ficar para defender nossa terra. Nem mesmo o Sagrado Trílio Negro nos desviará deste dever.
Anigel empertigou o corpo e respirou fundo.
— Muito bem. Então irei com meus amigos rimoriks. Podem ao menos nos indicar o caminho com detalhes, para que eu encontre Kovuko o mais depressa possível?
— Sim, com prazer. E também comida, roupa limpa dos humanos, se quiser.
— Ficaria muito agradecida. Devo pedir outro favor também. Outros humanos, meus inimigos, estão me seguindo. Peço que não lhes digam para onde eu fui.
— Não diremos — garantiu Sasstu-Cha. Fez um gesto largo para seus remadores. — Agora, este pede que nos sigam, Princesa Anigel de Ruwenda. Aceite por esta noite a humilde hospitalidade de Let, depois siga seu caminho. E, se encontrar seu talismã libertador, pense não apenas na sua terra em perigo, mas um pouco na nossa também.
Os uisgus eram extremamente sensíveis ao ambiente do pântano, notando as menores mudanças à sua volta. Caía a noite quando as mulheres que manejavam as varas do barco (tinham se revezado muitas vezes durante a descida do rio) pararam de repente. Kadiya as viu juntar as cabeças e conversar baixinho no seu dialeto.
Nessak, que falava a linguagem dos comerciantes, aproximou-se da princesa.
— Senhora, há mais inimigos à nossa frente. A maior parte está acampada na curva do rio. Precisamos encontrar um meio de evitá-los, para não sermos mais uma vez objetos dos seus prazeres cruéis.
Kadiya assentiu com um gesto. Teria de depender das habilidades deles, em terra e na água, como dependia antes de Jagun.
Jagun. seria para sempre uma lembrança dolorosa. Apesar de todas as esperanças da princesa e dos uisgus, ele não reapareceu no Mutar, e as mulheres não haviam recebido nenhum Chamado do caçador. Mas a princesa recusava-se a aceitar a idéia de sua morte.
— Há algum meio de evitarmos passar por perto dos nossos inimigos? — perguntou ela.
A névoa começava a subir outra vez, escondendo ora uma parte da margem, ora outra. Desde o começo da viagem não tinham visto nenhum sinal de ruínas.
Nessak balançou a cabeça lentamente.
— Senhora, os humanos malvados têm skriteks com eles, mas é verdade também que estão muito cansados e há outros perigos nesta região. Este é o território de caça dos loorus. Desse modo. — ela fez um pequeno gesto com a mão — quando chegar a noite precisamos nos esconder de algo mais além dos humanos e dos afogadores.
Loorus! Desde a infância, Kadiya ouvira falar das selvagens criaturas aladas noturnas. Eram os monstros com que as amas assustavam as crianças que ficavam fora de casa depois do pôr-do-sol. Mas, desde que haviam chegado àquela região, Jagun não os havia mencionado. Anos atrás ela vira pedaços curtidos do couro das asas dos loorus à venda em Trevista, mas eram raros, uma espécie de curiosidade. Olhou para o céu que escurecia rapidamente. Os loorus eram sugadores de sangue e podiam se agarrar a um homem e a um animal até deixá-los completamente secos, com garras capazes de matar qualquer presa menor.
— Senhora! — chamou uma das mulheres que estava na proa da canoa. — Veja aquilo!
Desde o começo da fuga, tinham passado por muitas curvas do rio e visto muitos canais. Agora, o rio parecia reto e ela notou uma luz na margem esquerda, certamente não era proveniente de nenhuma planta do pântano, mas de uma fogueira ou outra fonte de iluminação fixa. Ao mesmo tempo ouviram um clarim de guerra chamando os soldados, depois gritos dos homens e o ruído de alguém se afogando.
As mulheres uisgus levaram o barco imediatamente para a outra margem.
— Os humanos inimigos estão sendo atacados! — A voz de Nessak não era mais suave, mas estridente. — Talvez pelos loorus, senhora.
— Se são bastante idiotas para mostrar o caminho para os predadores, acendendo fogo — comentou Kadiya —, então, certamente não conhecem nada desta região. Os skriteks deviam tê-los avisado.
Nessak emitiu um som que podia ser uma risada amarga.
— Senhora, os homens que vêm de longe não dão atenção ao que dizem os afogadores. Não levariam a sério o aviso de um habitante dos pântanos. Não há nenhum entendimento entre eles, apenas a necessidade de derramar sangue para satisfazer seus senhores.
— Se os loorus os estão atacando agora — disse Kadiya, pensando rapidamente —, não podemos passar sem que nos vejam?
Nessak pensou por um momento.
— Pode ser uma boa chance para nós, senhora. Podemos tentar...
Tocaram a margem esquerda. Kadiya e algumas mulheres uisgus apanharam grandes quantidades de junco, atirando os molhos para as outras, que com eles cobriam a jangada fazendo-a parecer um monte de folhas levadas pelo rio. A única dificuldade era o tamanho da jangada. Era uma verdadeira ilhota flutuante, com menos de um quarto do tamanho da longa plataforma em que estavam as passageiras.
Terminados os preparativos, levaram a jangada para o meio do rio, onde a corrente era agora mais vagarosa, e começaram a deslizar com uma lentidão torturante. O fogo no campo inimigo ardia mais brilhante agora. As uisgus estavam deitadas na jangada, cobertas de juncos, mas observando a outra margem com olhos ansiosos.
Aparentemente, os invasores haviam aprendido alguma coisa em outras lutas contra os loorus, pois alguns homens brandiam tochas, ladeados por dois outros, armados de lança ou espada. Alguns animais abatidos contorciam-se no chão. Um skritek bateu na cabeça de um deles, e um homem com um curativo sujo de sangue numa das pernas ergueu uma espada leve, como se fosse uma faca de caça, para pregar no chão outro looru, que caiu batendo as asas violentamente.
Não havia nenhum sinal de orgulho ou de confiança naqueles soldados labornoks agora. As armaduras estavam enferrujadas, as plumas dos elmos amarfanhadas, e a roupa imunda. Muitos estavam feridos, e quase todos tinham o rosto e as partes expostas da pele inchados e vermelhos de picadas de insetos. Sob um toldo armado debaixo de uma árvore, uns quatro estavam deitados, imóveis.
Era evidente que o acampamento grande — pois não se tratava de um campo provisório de batedores — estava todo sob ataque organizado. Kadiya apanhou uma vara e a enfiou na terra da margem esquerda, dando maior velocidade à jangada. As mulheres uisgus fizeram o mesmo. Mas continuaram em marcha extremamente lenta.
Aparentemente, os loorus não esperavam tanta resistência. O bando voou rapidamente para longe do campo quando um deles foi atingido na asa por uma tocha lançada com precisão. Com um grito a criatura queimada mergulhou sobre seus atacantes, louca por vingança. Uma das garras da asa prendeu-se no queixo de um homem, arrancando o elmo. Ele soltou um berro de terror e o looru desceu verticalmente até o solo, prendendo sua vítima sob o próprio corpo em chamas.
Kadiya achou que agora a jangada teria mais chance de passar despercebida. Nenhum dos soldados estava perto do rio e, embora as tochas e a fogueira iluminassem parte da superfície da água escura, nenhum labornok ou skritek estava olhando naquela direção. Mas suas esperanças foram precipitadas. A jangada estremeceu debaixo delas e começou a ser arrastada para a margem direita. Kadiya tentou lutar com a vara contra o que pensou ser uma corrente mais forte. Então, a uma distância menor de um braço, a cobertura de juncos se ergueu. Uma uisgu gritou quando um braço com escamas apareceu da água pousando sobre os molhos de junco.
Ao mesmo tempo, sentiu que puxavam a vara que ela segurava e soltou-a em tempo, para não ser lançada para fora. A jangada agora movia-se diretamente para a cena da batalha.
— Afogadores — murmurou Nessak. — Debaixo da jangada. Estão nos levando para a margem!
Não era possível organizar uma defesa contra criaturas que podiam permanecer longo tempo sob a água sem serem vistas. Não podiam também se lançar ao rio e tentar nadar para longe, porque eles as afogariam num instante.
Kadiya compreendeu o que tinha acontecido. A maioria dos demónios do pântano lançou-se à água quando os loorus atacaram, deixando o combate a cargo dos homens. Devia haver um grande número deles agora no rio, a julgar pela velocidade com que a jangada se aproximava da margem.
No acampamento, o caos diminuía. Havia muitos loorus abatidos e os restantes voaram para longe, preparando-se para um novo ataque.
Então ela viu, à luz clara da fogueira, o homem vestido de vermelho com um capuz escondendo a metade do rosto. Só podia ser uma das Vozes de Orogastus, que há tanto tempo a procurava. Numa das mãos ele segurava um bastão que enfiou no chão, verticalmente. Um soldado correu e o ajudou a firmálo no solo. Na parte superior, bem acima das chamas da fogueira havia uma placa redonda. O homem de vermelho recuou e das suas mãos saiu um facho de luz que atingiu a placa. Ouviu-se uma pequena explosão. Chamas laranja-amareladas ergueram-se na borda da placa, que começou a girar com um som agudo ensurdecedor. O bando de loorus, com gritos de pavor, levantou voo rapidamente e desapareceu no céu escuro. A placa girou emitindo o som enervante por mais alguns minutos, depois, apagou-se, com uma chuva de fagulhas.
O homem de vermelho caminhou até a margem do rio para observar a jangada que se aproximava. Kadiya não o ouviu chamar, mas imediatamente apareceram vários homens usando os mantos rasgados e as insígnias manchadas dos cavaleiros.
Ordens foram então gritadas e os soldados correram da cena da batalha recente para a praia. Kadiya viu um punhado de arqueiros andrajosos com os arcos retesados. Porém, um oficial com uma armadura completa e limpa, vermelho-vivo, estendeu o braço e eles não lançaram as flechas. Nenhuma uisgu havia saído do esconderijo de hastes de junco, mas Kadiya tinha certeza de que os homens na praia sabiam da presença delas. Os skriteks saíram da água e começaram a balançar a jangada, rindo em triunfo, com os olhos enormes refletindo a luz da fogueira e das tochas.
O oficial, que Kadiya reconheceu como o General Hamil, voltou-se para a Voz Vermelha e disse alguma coisa. Imediatamente, o acólito de Orogastus gritou na língua dos nativos:
— Para terra, miseráveis! Ou preferem que nossos aliados peguem o que desejam? — Com um gesto indicou os skriteks.
Os montes de junco se agitaram e as mulheres uisgus saíram da jangada. Mas Kadiya não as seguiu. Segurou seu talismã.
Certamente, devia liaver uma chance. Os skriteks agarraram uisgus e as levaram para terra. Porém, Voz Vermelha não estava preocupado em capturá-las. Olhava com ar intrigado para onde Kadiya continuava escondida. O talismã parecia protegê-la de algum modo.
Voz Vermelha disse alguma coisa para o General Hamil e o oficial deu meia-volta. Uma das mulheres uisgus, com o filho no colo, tropeçou e caiu a seus pés, quando era arrastada pelos skriteks. Hamil abaixou-se e, segurando a criança por um braço, arrancou-a da mãe e a atirou para um skritek. O monstro rugiu de prazer e apanhou a presa no ar facilmente. Kadiya saiu do esconderijo, com o talismã na mão. — Não! — ela gritou.
Antes que pudesse fazer qualquer movimento as garras de um skritek que havia subido na jangada fecharam-se em volta dos seus braços, puxando-os dolorosamente para trás das costas. O talismã caiu na lama, e outro skritek abaixou-se para apanhá-lo. Mas o monstro recuou com um grito e Kadiya viu rolos de fumaça saindo da pedra de âmbar.
Empurrada para a frente pelo skritek, Kadiya ficou entre o general e a Voz, tensa e tremendo de raiva, impotente. Através do elmo aberto, Kadiya viu que ele não se parecia em nada com o homem esplêndido que ela vira na Cidadela. O rosto e o queixo, com a barba crescida, estavam cheios de picadas de insetos. Uma delas, bastante inchada, sob o olho esquerdo puxava a pálpebra para baixo, quase impedindo-o de enxergar. Mas ele sorria e agora deu uma gargalhada.
— Muito bem, Voz — disse ele. — Temos aqui uma coisa que compensa toda esta viagem na lama. A Princesa Kadiya! Sem dúvida fomos favorecidos pela sorte esta noite!
Ele estendeu a mão e segurou o rosto da princesa, enfiando as unhas dolorosamente na carne.
— Verme dos pântanos — disse ele, com verdadeiro prazer. — Está bem longe das suas sedas e confortos, agora, não é mesmo? Não foi preciso muita coisa para reduzi-la a uma criatura da lama — carne fraca, como todos da sua espécie! — Soltou o rosto de Kadiya e a esbofeteou com tanta força que as lágrimas afloraram aos olhos da princesa.
Hamil resmungou.
— Enxugue os olhos, menina. Não vai haver misericórdia para ninguém da sua casa. — Olhou para Voz Vermelha e disse com desprezo: — Então, as mulheres da linhagem de Krain vão derrotar Labornok! — A mão pesada caiu agora no ombro da princesa, fazendo-a voltar-se para o acólito de Orogastus.
— Isto — é isto que seu grande mestre diz que trará a morte para todos nós? Que piada!
Voz Vermelha não olhava para Kadiya, mas para o talismã, caído no chão, não muito longe deles. Abaixou-se para apanhá-lo, mas recuou, carrancudo.
— O que o assusta, Voz? — perguntou Hamil, jovial.
— É o talismã? Essa coisinha mágica tão cobiçada por seu mestre? Fique com ele, homem. O que está esperando?
Voz Vermelha ficou rígido. Parecia mais alto, mais maciço. Das aberturas para os olhos, na máscara, saltaram duas línguas de fogo e o general e seus homens exclamaram, apavorados:
— Hamil! — Como que trazida pelo vento da noite, soou uma voz que Kadiya já ouvira antes. Era o acólito falando, mas a voz era de Orogastus. — Você trabalhou bem. Melhor do que imagina. Mas precisa ter muito cuidado. Aquilo que está no chão, perto de vocês, pertence apenas à sua prisioneira. Nem você, nem qualquer outro que não possui o saber antigo pode manejá-lo — somente ela. Minha Voz Vermelha, obedeça! Obrigue a Princesa Kadiya a levar o talismã de volta para a Cidadela, mas não permita que ela faça uso dele.
O corpo da Voz Vermelha pareceu diminuir de tamanho. Os olhos ficaram negros outra vez e ele murmurou:
— Sim, mestre.
Hamil cuspiu, ruidosa e acintosamente, na lama, ao lado do punho da espada.
— Então ela e aquela vareta estão unidas por magia. Muito bem, Voz, como vai resolver o problema? Sem dúvida é o tipo de ação própria do seu mestre.
O acólito do feiticeiro tirou de sob o manto um pedaço de corda, feita de fibra incomum, mas de um material mosqueado, como a pele de um pequeno verme dos pântanos. Kadiya o viu fazer um pequeno laço na ponta, depois começou a enrolar a corda no dedo, murmurando palavras ininteligíveis.
Depois, com o cuidado de um pescador pronto para apanhar um peixe, abaixou o laço e com grande paciência o passou em volta do punho do talismã, puxando rapidamente. Certificou-se de que o laço estava firme, segurou a ponta da corda e ergueu a espada da lama. Hamil estendeu a mão para tocar o talismã, mas o homem de vermelho recuou rapidamente com ela.
— Lorde General, isto está realmente ligado à sua dona. Encoste a mão nela e pode ficar preso.
O general fungou com desprezo.
— Ouviu o que disse o meu mestre — continuou a Voz. — Isto é um objeto com grande poder que ele deseja possuir, e uma vez que está ligado magicamente à Princesa Kadiya, ela deve ser também levada a ele.
Hamil olhou pensativamente para a jovem.
— E o que acontece se ela conseguir usar essa maldita coisa, de algum modo?
A Voz observava Kadiya cuidadosamente através das aberturas da máscara.
— Lorde General, não sabemos o que ela pode fazer. Mas meu mestre deu-me algo para subjugá-la.
A espada balançava hipnoticamente na ponta da corda de pele mosqueada. Voz Vermelha com a outra mão tirou debaixo do manto um objeto pequeno e branco e o encostou na testa de Kadiya.
A princesa deu um grito e depois se calou, sentindo o frio do gelo penetrar seus ossos. Tentou se mover, mas o corpo não respondeu.
A Voz fez um gesto afirmativo.
— Pronto. Durante algum tempo, Lorde General, ela ficará inofensiva — mas não para sempre. Este instrumento só funciona uma vez e tenho apenas um. Mas podemos dominar esta jovem de outro modo. Aquilo que está ligado pode ser libertado — por força de vontade. Mas essa quebra da resolução de outra pessoa toma tempo. Devemos fazer com que o talismã continue em seu poder até estarmos em posição para recebê-lo de suas mãos.
— Recebê-lo de suas mãos? — Hamil começou a rir. — O, isso pode ser arranjado, é claro que pode!
Ordens foram dadas. Amarraram Kadiya como um fardo inerte, com o talismã nas costas. Passaram estacas através das cordas e dois soldados a carregaram como um trofeu de caça.
As uisgus da jangada foram mais uma vez reunidas e amarradas umas às outras pelo pescoço. Porém, tudo indicava que seus captores não iam fazer nada mais naquela noite. Talvez achassem tolice ficar longe do fogo, depois do ataque dos loorus. As cordas que prendiam as uisgus foram amarradas a duas árvores fortes entre os arbustos e os skriteks agacharam-se ao lado delas, rosnando e olhando para as prisioneiras com olhos famintos.
Os pensamentos de Kadiya processavam-se preguiçosamente. Teve uma sensação visual estranha, de alguém caminhando, passo a passo, num grande campo de neve. Pensou no General Hamil, um instrumento eficiente para o Rei Voltrik. Dele emanava uma sensação de mal, não de trevas extraterrenas como projetavam a Voz e seu mestre, mas de uma brutalidade que, de certo modo, era pior, por ser completamente humana. Entretanto, provavelmente seria mais fácil influenciar o general do que o fantoche do feiticeiro.
A princesa tentou usar sua fúria, como já fizera tantas vezes, para se livrar daquele gelo mortal. Mas estava presa. Não sentia nenhum calor, nem do talismã, cuidadosamente agarrado nas suas costas. Fechou os olhos e esforçou-se para pensar com clareza, mas seus nervos congelados pareciam pedirque se entregasse sem lutar.
Então, Kadiya ouviu um farfalhar de fazenda ao seu lado e lembrou-se de que há algum tempo não ouvia os grunhidos dos scriteks. Abriu os olhos e um hálito com cheiro forte de bebida soprou sobre seu rosto. Então, uma palma áspera cobriu sua boca e dedos fortes emaranharam-se nos seus cabelos.
— Princesa! — Era um murmúrio de bêbado. — O que me diz do tesouro que viu nas ruínas do pântano? Onde está aquela bruxa das lendas antigas que brinca com a magia, e que, segundo dizem, possui os instrumentos mais poderosos dos Desaparecidos? Orogastus quer tudo para ele. Ah, sei muito bem disso! Mais do que Voltrik, que talvez esteja morto, com aquele seu filho idiota. Mas o feiticeiro está muito longe, na sua torre, e sua Voz não passa de um cretino quando não está possuído pelo espírito do mestre. Conte-me os segredos que você descobriu! Compre uma morte decente, filha do rei. Se tiver de conseguir isso, será por minha vontade, somente por minha vontade.
Hamil! O homem estava fazendo um jogo à parte..
A mão foi retirada da boca de Kadiya, mas os dedos continuaram puxando dolorosamente seus cabelos. Estranhamente, as ameaças brutais do general pareciam anular em parte o encantamento gelado que a imobilizava. Então, não havia mais um objetivo comum entre os inimigos. Como podia tirar vantagem disso? Era tão difícil pensar com clareza.
— Prefere então enfrentar os skriteks, animal da lama? Muito bem, podemos arranjar um belo espetáculo amanhã cedo para você. Você vai assistir.
Os dedos soltaram seus cabelos e Kadiya ficou sozinha. Com todo seu tamanho, o general movia-se silenciosamente e Kadiya estava no chão, não muito longe da barraca. Então ela viu outro vulto movendo-se na sua direção, mas que não se aproximou demais. E ouviu o murmúrio sibilante.
— Então! Hamil pensa que pode vencer o mestre! Como se, em algum momento, ele tivesse sido necessário. Nem ele, nem o Rei Voltrik, nem o Príncipe Antar, nenhum deles é necessário desde que esta terra foi conquistada. O importante, jovem, é isso que leva com você! Orogastus permitirá que receba seu pagamento de sangue do rei labornok se contar a verdade a ele.
Voz Vermelha chegou mais perto. Então, pôs a mão no ombro dela, perto do punho do talismã.
— Vê, estou falando sinceramente. Posso libertá-la do encantamento do gelo. Podemos estar longe daqui antes da manhã sobre a qual Hamil estava falando, se você passar a posse do talismã para mim.
Reunindo todas as forças que ainda tinha, Kadiya disse:
— Não sou idiota, fiel servidor de um mestre infame!
— Infame? Ah, não, princesa. Verá que Orogastus é um amigo extremamente agradável. Sua irmã Haramis já está em sua companhia, aprendendo com ele uma arte maravilhosa que a sua Arquimaga nem sabe que existe. Ela tem gosto e talento para essas coisas, a Princesa Haramis, e já começa a ver tudo com os olhos do mestre. Você pode juntar-se a ela. Meu mestre não a impedirá de se vingar do Rei Voltrik e de Hamil. Eles começam a cansar sua paciência. Você pode ser rainha, se quiser — senhora de duas terras, e sua irmã terá um trono taumatúrgico para alcançar as estrelas.
Havia uma lógica venenosa nas palavras da Voz. Era fácil entender que Orogastus estivesse farto dos aliados labornoks. Que ele acreditava poder usá-la, uma princesa real, para governar Ruwenda e Labornok — sim, fazia sentido. É claro que estava mentindo quando disse que Haramis havia se submetido a Orogastus. Contudo, podia contemporizar.
— Eu. não posso fazer nada. amarrada como estou — disse Kadiya.
O homem de vermelho fez um ruído que era quase uma risada.
— Princesa, pode comandar o talismã, mesmo amarrada. Liberte pela palavra e pelo pensamento o que está carregando, que eu a livro das cordas.
Claro que Kadiya não acreditou. Mas tinha pouco tempo para pensar e sua mente parecia funcionar ainda com uma lentidão exasperante.. Então lembrou-se — lembrou da lâmina nascida de uma raiz. Podia dizer uma palavra mágica — enraizada em outra coisa qualquer — que o acólito de Orogastus não conhecesse.
— Eu lhe concedo permissão para tirá-la da bainha.
— As palavras que chegavam aos seus lábios não estavam em sua mente um momento atrás. — Plante a extremidade sem ponta no chão.
Kadiya ouviu a respiração acelerada do homem. Era estranho que ele acreditasse em suas palavras, mas a princesa não tinha tempo para pensar nisso agora. Sentiu que o talismã era tirado dos seus ombros. A espada estava completamente sem brilho. Voz Vermelha ficou de pé. Kadiya o viu enterrar a lâmina no solo como havia mandado.
Então, com um brilho cegante, a espada pareceu afinarse, até ficar estreita como uma haste de relva, mas os três globos não mudaram. Kadiya ouviu a própria voz num murmúrio feroz.
— Seja, ó talismã vivo, ó raiz do Trílio Negro, emblema e força da nossa casa, como sempre foi!
À sua ordem, as três esferas se abriram. Os três olhos estavam vivos e voltaram-se para Voz, que ficou imóvel e rígido. Por um momento, os olhos do homem cintilaram como estrelas, quando o feiticeiro, de longe, tentou invadir sua mente. Mas Orogastus não foi bastante rápido.
Um dos olhos do talismã expediu um raio de luz branca, seguido por um raio de luz verde do olho do oddling e um facho dourado do olho humano.
E a Voz de Orogastus ardeu em chamas.
O homem contorceu-se, envolto na claridade mágica. Uma coluna de chamas de três cores enrolou-se no seu corpo. Nem teve tempo de gritar. Então, o fogo desapareceu de repente, como tinha aparecido, e só sobrou um monte de cinzas no chão, do qual subiam espirais de fumaça.
No lugar do Olho Chamejante de Três Partes estava o talismã, sem vida e sem brilho.
O Príncipe Antar jamais passara noites tão terríveis como aquelas no Grande Mutar. O sol inclemente o torturava e a seus companheiros, como togaras no forno. Tinham levado apenas sete das maiores canoas de madeira (achando que as dos wyvilos eram por demais frágeis e inseguras), excessivamente carregadas com a força reduzida de quarenta e três homens mais os suprimentos.
Os labornoks, inexperientes, quase sempre paravam para a noite, em lugares muito quentes e cheios de lama, infestados de pegajosos sugadores de sangue, insetos que picavam e parasitas listrados de amarelo que perfuravam os sacos de mantimentos. As refeições, preparadas por cozinheiros amadores, eram sempre cozidas demais ou cruas. Dois homens foram acometidos pelo fluxo de sangue depois de comer frutos venenosos. Privados dos pavilhões confortáveis e das camas dobráveis, grandes demais para serem transportados nas canoas, os cavaleiros dormiam no chão, como os soldados, cobertos apenas com seus mantos.
Finalmente, quando a força, suja e exausta, chegou ao belo povoado Let, dos wyvilos, que lhes pareceu tão convidativo quanto o Palácio Derorguila, os malditos oddlings não permitiram que desembarcassem.
Os nativos foram ao encontro dos labornoks no meio do rio e não se impressionaram nem um pouco com a promessa do príncipe de uma generosa recompensa se os acolhessem por alguns dias. O porta-voz disse que esperavam um ataque dos glismaks a qualquer momento. Os humanos deviam seguir seu caminho. Não podiam fornecer guias nem alimento.
Sir Rinutar resolveu reclamar por conta própria, ofendendo todo o povo da floresta e seu porta-voz. Ameaçou-os com a fúria taumatúrgica do poderoso Orogastus, por meio de Voz Azul, se os wyvilos não atendessem imediatamente às exigências dos labornoks.
O amigo de Rinutar, Sir Karon, não quis ficar atrás no repúdio à insolência dos nativos e, de pé na canoa, desembai-nhou a espada, desafiando o porta-voz Sasstu-Cha para um combate singular. Nessa altura, os nativos apontaram suas catapultas e bombardearam os sete barcos com pedras certeiras.
O príncipe e a maioria dos seus cavaleiros, protegidos pelas armaduras, não foram feridos (embora o infeliz Sir Pe-napat por pouco não perdeu um olho), mas os vinte e um soldados, rebaixados relutantemente a remadores, que estavam sem as armaduras por causa do calor e por precisarem de liberdade de movimentos, sofreram ferimentos e lacerações.
Sir Karon sobressaltou-se com a surpresa do ataque e, brandindo a espada vigorosamente, emborcou a canoa. Sempre sacudindo a espada, o robusto cavaleiro, com armadura, desapareceu nas profundezas do Grande Mutar e nunca mais foi visto, bem como seu companheiro, Sir Bidrik. A Voz Azul, que também estava na canoa emborcada, emergiu das águas rapidamente e nadou para o barco do príncipe, onde foi puxado para bordo por Sir Owanon. Os três soldados-remadores debatiam-se pateticamente na água, gritando por socorro, pois não sabiam nadar e o seu barco já estava longe, levado pela corrente. Finalmente, foram puxados para bordo pelos companheiros das outras canoas.
Os wyvilos assistiram ao espetáculo calmamente, com suas atiradeiras em riste.
— Vão embora — ordenou outra vez o porta-voz Sasstu-Cha. — Não lhe faremos nenhum mal se partirem agora.
O Príncipe Antar murmurou para Voz Azul.
— Não pode encantar aqueles oddlings e obrigá-los a nos obedecer?
— Não, Grande Senhor — respondeu ele, calmamente, torcendo a ponta da saia longa sobre a borda da canoa. — Os instrumentos de encantamento que eu poderia usar estão no fundo do Grande Mutar, como Lorde Karon e Lorde Bidrik.
— Muito bem — suspirou o príncipe e, voltando-se para os remadores, ordenou: — Seguir em frente!
Assim, ridiculamente vencida, a equipe de busca continuou a descer o rio até o começo da noite, quando o príncipe calculou que estavam bem distantes de Let. Ancoraram então numa baía pequena e convidativa, perto do canal principal, com areia macia, e armaram o acampamento à luz da fogueira.
Sete soldados estavam feridos demais para remar ou combater e foram dispensados de qualquer trabalho.
— Amanhã — disse o Príncipe- Antar —, vocês sete e mais dois homens com ferimentos mais leves voltarão para a cidade de Tass numa das canoas. Digam ao mestre-mercador e aos comandantes dos barcos que devem esperar a nossa volta, sob pena de morte — mesmo que não tenhamos voltado no começo da estação das chuvas.
Os cavaleiros e soldados murmuraram descontentes, mas o príncipe não lhes deu atenção. Chamou Voz Azul.
— Chame seu mestre das trevas e peça para localizar a Princesa Anigel, a fim de determinarmos nossa rota amanhã. Diga a Orogastus também para informar meu pai, o Rei Voltrik, que continuo a obedecer fielmente às suas ordens e às ordens do Grande Ministro de Estado.
Dizendo isso, o príncipe afastou-se sozinho, pela praia enluarada. Os outros homens continuaram seu trabalho, cabisbaixos, com exceção da Voz Azul, que se retirou para um bosquete de chorões wydel, na beira da praia, ajoelhou e entrou em transe.
— Mestre Todo-Poderoso, ouça-me!
— Eu, Orogastus, o escuto, minha Voz!
— Meu senhor, infelizmente nossa expedição sofreu uma inconveniência no povoado Let, dos wyvilos. Os oddlings nos apanharam de surpresa com uma chuva de mísseis, emborcando o barco no qual eu estava. Perdi todo o equipamento mágico e os cavaleiros Karon e Bildrik afundaram com o peso das armaduras e se afogaram. Sete soldados foram feridos e deverão voltar para Tass conduzidos por outros dois com ferimentos mais leves e Sir Penapat está com um olho preto do tamanho de uma fruta ladu, atingido por uma pedra. Orogastus avaliou as notícias.
— O príncipe e os outros dezessete cavaleiros estão bem?
— Sim, Grande Senhor. E doze soldados — embora quase todos se queixem de escoriações e outras coisas.
— Localizei a Princesa Anigel. Está acampada um pouco abaixo de onde vocês estão, na desembocadura de um afluente que ela pretende subir amanhã, viajando a pé, quando não puder mais usar o barco. Seu grupo levará mais ou menos cinco horas para chegar ao acampamento se soldados e cavaleiros se revezarem nos remos, sem parar. Mande o Príncipe Antar partir de madrugada e perseguir a Princesa Anigel a toda velocidade — mas cuidar para que ela não seja molestada de nenhum modo, até encontrar o talismã, que deve estar muito perto agora.
— Transmitirei suas ordens ao Príncipe Antar, mestre.
— Informe também ao príncipe a boa notícia de que o rei seu pai está quase completamente restabelecido. Além disso, o General Hamil capturou a Princesa Kadiya e muito em breve tomará seu talismã, o Olho Chamejante de Três Partes.
— Mestre... — a Voz hesitou. — Esta noite, quando aportamos, tive uma grande agitação mental. Pareceu-me que meu Irmão Vermelho, que acompanha o General Hamil, foi vítima de alguma desgraça.
— Minha Voz Azul, deve ser bravo. Seu irmão pereceu servindo-me.
— Oh, que infelicidade!
— Os Poderes das Trevas receberão suas energias vitais e elas serão glorificadas. E vocês, as duas Vozes que me restam, receberão uma recompensa terrena mais do que generosa, quando minha grande ambição estiver realizada. Porém, lembre-se da outra tarefa que ainda tem de realizar, referente ao Príncipe Antar.
— Espero apenas o momento oportuno, Mestre Todo-Poderoso. O valente Sir Rinutar, seu fiel servidor, será posto a par do plano, quando tudo estiver terminado. Sem dúvida conduzirá nosso grupo de volta, em segurança, quando tivermos o talismã.
O feiticeiro disse então, com voz decidida, abandonando o tom de simpatia.
— Minha Voz, é extremamente importante não perder O talismã de Anigel!
— Grande Senhor, eu compreendo.
— O talismã de Kadiya está praticamente garantido. O da Princesa Haramis logo será meu — talvez antes mesmo que esta noite termine! Mas esses dois só terão poder total junto com o terceiro, aquele que você deverá trazer para mim.
— Por minha vida — disse Voz Azul —, eu o depositarei aos seus pés. E, se tudo correr bem, o Príncipe Antar não verá o pôr-do-sol, amanhã.
— Estou satisfeito. Adeus, minha Voz Azul.
O servo do feiticeiro voltou para o acampamento, onde o cozinheiro-daquela-noite preparava um cozido de carne-seca e vegetais, guarnecido com banha de porco salgada, enquanto outro tentava assar pães num forno refletor sujo. O cheiro não era convidativo.
Voz Azul aproximou-se do príncipe. A preocupação de Antar desapareceu e ele perguntou, ansioso:
— Tem notícias?
— Sim, Grande Senhor. A princesa fugitiva está a umas oito horas daqui. Aproxima-se do objetivo da sua missão e talvez amanhã ou depois seja capturada.
Falou da recuperação do rei e contou que o feiticeiro estava prestes a conseguir os outros dois talismãs. Não mencionou a morte do Voz Vermelha. O príncipe ouviu, distraidamente, depois afastou-se, sem uma palavra, para compartilhar o péssimo jantar com seus homens.
Naquela noite, uma forte tempestade caiu sobre a Floresta Tassaleyo, o primeiro sinal precursor da estação das chuvas, que começaria oficialmente dentro de seis dias, depois da festa das três luas. Os homens de Labornok acordaram com os trovões e correram para os barcos, procurando se abrigar da chuva. Porém, mais uma vez foram traídos por sua falta de experiência. A praia de areia fina, antes tão convidativa, foi completamente alagada pelas águas do Grande Mutar. Praguejando e gemendo, os homens tiveram de preparar os barcos, embarcar e depois remar para uma ilhota próxima, agora também sob a água, onde amarraram as embarcações pelo resto da noite. Dormiram mal, sob os mantos molhados, enquanto a tempestade rugia, balançando os barcos e enchendo-os de água.
O Príncipe Antar estava tão encharcado e infeliz quanto qualquer ”soldado. Mas não pensava no próprio desconforto, preocupado com a Princesa Anigel, que devia estar enfrentando aquela tempestade terrível.
Amiga, disseram eles, Amiga, acorde. É a primeira luz do dia. Pediu que a chamássemos. Acorde!
Dentro da árvore oca, Anigel bocejou e espreguiçou. Estava deitada sobre pó de madeira, seco e limpo, produto do trabalho dos vermes carpinteiros que se agitavam ainda em volta e acima dela para reduzir o gigante morto da floresta a um monte de húmus. O cabelo da princesa, seu saco de dormir e as belas roupas, presente dos wyvilos, estavam cheios de pó de madeira, mas era um preço muito baixo pelo calor daquele abrigo, durante a tempestade.
Naquela noite Anigel sonhou outra vez, mas a lembrança se foi com o primeiro chamado dos rimoriks. Pedira aos animais para a acordarem cedo, certa de estar próxima do objeto que procurava. Na noite anterior, acordada por um momento pelo trovão, vira o amuleto do trílio brilhar como fogo e o pequeno botão, dentro do âmbar, quase aberto.
Passou o pente pelos cabelos para tirar o pó de madeira e tirou o jarro de miton da bolsa no cinto. A folha do Trílio Negro já não parecia tão fresca e verde, a parte superior começava a secar e a nervura estava escura. Só a base mantinha-se ainda úmida e viva. O traço dourado que a guiava desde Noth só ia até a haste curva e curta.
Temos um peixe para você, amiga. Venha ver.
Apanhando suas coisas, Anigel saiu do oco da árvore. Os dois rimoriks estavam ao lado do barco, ancorado com a metade na terra. Anigel viu o gordo peixe winju sobre o musgo. Retalhos de névoa passeavam no meio das árvores, as samambaias e a relva alta inclinavam-se ainda ao peso da água da chuva. O céu estava claro e os pássaros brancos cantavam, saudando a chegada da manhã. Anigel notou que o regato estava muito mais cheio do que na noite anterior. Isso era bom, significava que podia usar seu barco por uma distância maior.
— Obrigada, meus amigos — disse Anigel —, mas acho que vou comer só este biscoito dos wyvilos e algumas cerejas. Seria difícil para mim fazer fogo nesta terra molhada e quero continuar imediatamente a viagem.
Isso será muito bom, disse um rimorik.
O outro disse:
Sabemos que seus inimigos aproximam-se rapidamente na Água que Corre para o Mar. Nossos companheiros nos dizem que os humanos estão muito molhados e muito zangados e mais ansiosos do que nunca para capturá-la.
Anigel suspirou.
— Por alguma estranha razão, não consigo me preocupar com eles, agora. Também não tenho mais medo do Monstro de Três Cabeças! Mas acho que não tem nada a ver com bravura. Apenas estou farta desta busca e ansiosa para terminar minha missão. Quando eu tiver o talismã. bem, talvez então eu pense num meio de me salvar do inimigo e voltar para minhas irmãs.
Os animais seguraram a popa do barco com os dentes e o empurraram para a água.
Tome o miton conosco e partiremos.
Depois do ritual, Anigel subiu no barco. Começaram a subir o afluente que os wyvilos chamavam de Kovuko, o sol apareceu e o vapor ergueu-se, em nuvens, das folhagens da Floresta Tassaleyo. O ar ficou tão quente e abafado que Anigel tirou quase toda a roupa, ficando só com a camisa que usava sob a túnica de caça e o chapéu de Immu de aba larga.
Foi uma surpresa para ela a quantidade de objetos humanos que havia encontrado nas casas do povo das florestas. Os utensílios domésticos e a roupa dos modestos nyssomus de Trevista eram quase todos feitos por eles, mas as casas que ela visitou rapidamente em Let estavam cheias de objetos ruwendianos e labornoks — chaleiras de ferro e colheres de prata, belas lâmpadas a óleo e candelabros dourados, móveis caros de couro, frigideiras e garfos para tostar, tapeçarias e quadros, elegantes animais de brinquedo, tapetes, harpas e mandolins, cartas de jogar, jogos de tabuleiro e todo tipo de bibelôs e enfeites criados pelos artesãos de Dylex. O porta-voz SasstuCha e sua mulher tinham até uma meia banheira de cobre, da qual se orgulhavam muito. Anigel tomou banho nela com sabonete perfumado. A roupa limpa que estava usando era dos filhos adolescentes do porta-voz, que gostavam de acompanhar sempre a moda dos humanos.
Uma vez acostumada com os rostos feiosos e os maneirismos um tanto rudes, Anigel gostou dos wyvilos. Eram sinceros e trabalhavam arduamente durante a estação seca, travando batalhas intermináveis com seus primos mais pobres, os glismaks, durante a estação das chuvas. O porta-voz contou tristemente que os mercadores humanos haviam posto embargo em um único tipo de mercadoria. Os wyvilos jamais haviam trocado por armas os produtos da floresta.
— Tanto os ruwendianos quanto os labornoks insistem nesse embargo por interesse próprio — disse Sasstu-Cha. — Pois, se tivéssemos armamento moderno — espadas e lanças de aço, e poderosos arcos —, poderíamos derrotar os glismaks para sempre e estender nosso domínio ao longo do Grande Mutar, até a terra dos vars, e vender nossa madeira para os agentes do Rei Fiodelon com maior facilidade e proveito.
Anigel não sabia o que dizer.
— Não me parece justo negar os meios de defesa ao seu povo. Por outro lado, meu pequeno país tem jurisdição sobre a parte norte de Tassaleyo e sua economia depende da exportação de madeira dessa região. Sem dúvida deve haver possibilidade de um acordo, para que os wyvilos e ruwendianos possam viver em segurança e com prosperidade.
— Se existe essa possibilidade, só os ruwendianos podem encontrá-la.
— Porém, não governamos mais. Sabe que os labornoks nos derrotaram!
— Tem certeza? E o que me diz do talismã que procura? Não é para salvar seu país?
— O Monstro de Três Cabeças! — Anigel riu com tristeza. — Acredita mesmo que sou capaz de domar essa coisa e usá-la contra nosso inimigo?
— Não — disse o porta-voz. — Não, se a sua procura termina com o Monstro de Três Cabeças que conhecemos.
Sasstu-Cha recusou-se terminantemente a descrever o monstro que conhecia. Porém, antes de Anigel deixar Let, ele disse:
— Logo teremos a festa das três luas. Quando elas sobem lentamente no céu, pode-se ver que cada vez estão mais próximas, para a estranha conjunção que só acontece a cada mil tempos de vida. Se acontecer este ano, então certamente haverá uma grande maravilha. E pode ser para você, Pétala do Trílio Vivo...
À medida que o barco de Anigel subia o Regato Kovuko, a floresta, nas duas margens, mudava de aspecto, tornando-se mais seca, com menor quantidade de relva e mato. Havia ainda muitas árvores altas como colunas, mas havia outras também de aparência muito estranha. Eram três vezes mais altas do que um ser humano, mais herbáceas do que árvores de madeira. Na base de algumas, havia uma roseta de folhas espessas de um verde-arroxeado e em outras, desenhos diversos em verde-dourado. Do centro da roseta erguia-se um caule carnudo, com galhos curtos e folhas menores, com flores brilhantes cor-de-rosa ou magenta, e cachos de frutas com um cheiro delicioso. Na extremidade superior do tronco havia outro conjunto de folhas maiores, recurvadas para cima, formando uma espécie de cálice. A aparência das árvores era exótica mas tentadora. Pareciam taças gigantescas com pés cravejados de pedras preciosas.
Encantada, Anigel quis parar para colher alguns daqueles frutos estranhos.
Não, amiga. Seria sua última refeição.
— São venenosos?
São deliciosos. Mas a árvore os usa como isca para apanhar a presa.
Com um arrepio de medo, Anigel lembrou-se das palavras do porta-voz Sasstu-Cha: ”As árvores daquele lugar são tão vorazes quanto os próprios glismaks...”
— Elas me devorariam?
Ou a nós, amiga. Ou qualquer criatura bastante tola para tocar as ofertas tentadoras que pendem dos seus galhos.
Continuaram subindo o rio, que agora estreitava-se cada vez mais, cheio de rochas. As árvores ”normais”, em forma de colunas, começavam a escassear, dando lugar às taças e a outras espécies de aparência sinistra. A terra nas duas margens ficou mais alta e entraram num desfiladeiro largo e úmido. Nenhum pássaro cantava e Anigel não viu nenhum animal. A floresta era extremamente silenciosa, a não ser pelo ruído da água caindo nas fendas e gritos distantes que pararam de repente.
Quando o sol estava quase a pino, os rimoriks levaram o barco para a parte inferior de um remanso de água clara, cheio de rochas. Há mais de uma hora estavam empurrando a embarcação lentamente, por trás, esforçando-se na água sem profundidade suficiente para nadar, enquanto as margens ficavam cada vez mais íngremes e a paisagem mais rochosa. Então, as duas criaturas mosqueadas de verde voltaram os olhos grandes para a princesa e disseram mentalmente as palavras que ela temia ouvir:
Amiga, não podemos levá-la mais adiante.
— Sim, eu compreendo. A água acima da corredeira é rasa demais.
Lentamente Anigel vestiu os trajes de caça, presente dos jovens e amistosos wyvilos. Botas azuis, uma túnica de couro azul que ia até os joelhos e um cinto enfeitado onde ela prendeu a bolsa. A renda da camisa de baixo aparecia nos punhos e abaixo da bainha da túnica de um modo que nenhum caçador de verdade toleraria, mas Anigel não se importou, pois há muito tempo desejava sentir alguma coisa macia e limpa sobre a pele. Verificou os suprimentos e resolveu deixar a capa de chuva de Immu. Se houvesse outra tempestade, sua roupa agora era à prova d’água e não fazia mal molhar as mãos e o rosto.
Pôs a mochila nas costas, o chapéu de palha de Immu na cabeça e a adaga num lugar fácil de alcançar. Então, disse para os rimoriks:
— Meus amigos queridos, o que vão fazer agora? Sua casa fica tão longe, que não vejo como poderão voltar. E a culpa é minha. Serão capazes de viver nesta floresta?
Não existe nenhum da nossa espécie aqui. Só parentes muito distantes. Mas não importa. Esperaremos por você aqui, com o barco, até terminar sua procura. Então voltaremos juntos para nossa terra.
Os olhos de Anigel encheram-se de lágrimas. Entrou na água para beijar as cabeças brilhantes e molhadas. Então, os três tomaram o miton.
Mais uma vez, ao longe, mas ecoando agora pelas paredes do desfiladeiro, soou o grito doloroso. Anigel fingiu não ouvir. Havia uma pequena trilha que acompanhava o rio. Com um último aceno para os amigos, Anigel entrou sozinha na floresta.
Com a dor de cabeça mais terrível de toda a sua vida, Haramis sentou no leito enorme, gemendo e segurando a cabeça latejante com as duas mãos. Furiosa com a própria tolice, procurou lembrar com detalhes os acontecimentos da noite anterior. Mas a dor e a náusea a impediam de pensar.
Teria ele usado algum encantamento para enfraquecer sua vontade, enganá-la e atraí-la para sua casa?
— Entrei nesta armadilha como uma asa-de-gaze voando para a teia da lingit! Fui imprudente como Kadiya e mais tola do que Anigel! Ó, minha cabeça dói tanto!
Uma parede da câmara era de pedra coberta com tapeçarias, e havia duas janelas com vitrais por onde ela via a luz cinzenta do dia e a neve caindo. Velas novas em nichos dourados iluminavam as outras paredes recobertas até a metade com madeira de lei, onde estavam pendurados quadros com paisagens estranhas. O fogo crepitava na lareira emoldurada por azulejos coloridos, com atiçadores de formato estranho ao lado. Surpresa, Haramis percebeu que de uma pequena grade, ao lado da cama, saía ar quente. Olhou para a porta. Era de madeira-gonda pesada, com estrelas entalhadas, faixas e dobradiças de ferro e uma fechadura maciça.
Trancada. Encurralada
Como?
A cama de dossel com acolchoado de penas, lençóis macios e franjas de brocado.
Lembrou-se de Orogastus levando-a para a cama quando seus sentidos começaram a abandoná-la, depois de uma longa conversa ao pé do fogo e vários copos de brandy morno. Ele riu ao fechar a porta, ela ouviu a chave girar na fechadura e, por algum motivo estranho, começou a chorar. Então, sentada na beirada da cama, sentiu-se tonta e, com as últimas forças, tirou a roupa, deitou-se e mergulhou num sono profundo.
Veneno. Teria ele tentado envenená-la para roubar...
Haramis ergueu a mão trêmula. Mas o talismã estava ainda a salvo entre seus seios, no cordão de ouro. O bastão. O Círculo de Três Asas.
— Graças aos Senhores do Ar. Bateram na porta.
— Vá embora — gemeu ela. — Será que não pode me deixar morrer em paz?
— Haramis, você não está morrendo — disse Orogastus, calmamente. — Abra a porta.
— Você mesmo a trancou, seu vilão!
— Veja na mesa, ao lado da lareira, Haramis.
Devagar, para evitar que a cabeça latejante se partisse em mil pedaços, ela levantou e saiu da cama. Viu um par de chinelos de pele negra ao lado da cama, sobre o tapete, e numa banqueta um roupão de veludo pesado e acolchoado. Calçou os chinelos, vestiu o roupão e caminhou para a lareira.
Na mesinha graciosa, com uma cadeira de couro vermelho ao lado, estava um cesto com pão fresco e um suporte de prata e ouro com potes de cristal cheios de geléias. De um bule alto de prata saía uma fumaça cheirosa. E sobre o guardanapo de puro linho, a grande chave de bronze.
— Por favor, deixe-me entrar — disse o feiticeiro. — Não quero que continue sofrendo. Juro que não vou lhe fazer mal.
Estaria mentindo? Será que ela se importava? Qualquer coisa que ele fizesse não podia fazê-la sentir-se pior do que se sentia agora.
Apanhou a chave, quase cambaleou até a porta e, depois de algumas tentativas, conseguiu abrir a fechadura.
Ele girou a maçaneta e entrou, alto, todo vestido de branco. Um braço forte a conduziu até a cadeira na frente do fogo. Haramis deixou-se cair, desanimada.
-— Você podia ter aberto a porta facilmente — disse ela, em tom acusador. — Não negue! Não precisava nem arrombála com seus relâmpagos! Que fechadura pode resistir a um feiticeiro? Você, ou um dos seus demónios, já esteve, no quarto, pois o fogo está aceso e a mesa arrumada!
Ele estava servindo o líquido quente na xícara. Era chá darei, e o perfume a animou um pouco.
— Não tenho nenhum assistente neste lugar. E não estive no quarto, embora tenha feito o fogo se acender e a comida aparecer. É o que eu chamo mágica utilitária. — A voz profunda estava alegre. — Admito que podia ter forçado a fechadura, mas não é assim que se trata uma hóspede. Agora, tome seu chá e coma alguma coisa. Então, se achar que pode me perdoar, volte à minha biblioteca na torre principal e continuaremos a conversa interrompida ontem à noite.
Haramis olhou para ele, constrangida.
— E se eu não quiser aceitar mais a sua hospitalidade? Ele inclinou a cabeça, escondendo o rosto.
— Seu lammergeier está dormindo no alto desta torre. Ele virá se o chamar. No quarto do outro lado do corredor há uma varanda — coberta de neve e de gelo, mas com bastante espaço para você subir nas costas dele e voar para onde quiser... se é isso que realmente deseja.
Ele saiu e fechou a porta que havia deixado aberta.
Haramis levantou-se da mesa e foi até uma das janelas. Apesar da neve espessa que caía, viu o abismo negro que cortava o flanco do Monte Brom, isolando a torre de Orogastus do outro lado da montanha. Como ele havia chegado até ali, vindo da Cidadela? Sem dúvida não podia voar! E sobre o que tinham conversado na noite passada?
Haramis lembrava-se claramente de ter chegado na torre no começo da noite. Orogastus estava de pé, no portão aberto, seu vulto em silhueta contra a luz, como se ela fosse uma hóspede há muito esperada. Ele foi delicado, mas não solene, e não parecia um feiticeiro, mas um lorde bem-educado de um castelo pouco convencional.
Seu cabelo longo tinha o branco brilhante das nuvens de verão, emoldurando o rosto maduro mas sem rugas. Os olhos, que nos sonhos e nas fantasias de Haramis cintilavam como estrelas, tinham agora a cor das águas profundas. Vestia uma túnica folgada com cinto, calções justos e sapatos macios — tudo imaculadamente branco. Do seu pescoço pendia um cordão de platina com um grande medalhão onde estava gravado o emblema de uma estrela com muitas pontas.
Orogastus desempenhou o papel do anfitrião delicado, mostrando a ela certas partes da torre, como o solar, a sala de música (que foi uma surpresa para a princesa), a grande biblioteca e, finalmente, sua sala de trabalho, onde o fogo alto na lareira fazia desaparecer qualquer lembrança da tempestade que rugia lá fora. Tapetes de pele cobriam o assoalho e uma mesa com velas estava arrumada para dois.
Orogastus havia preparado pessoalmente um jantar simples. Depois, sentaram no tapete, na frente do fogo, tomando brandy...
”O que foi que eu disse?”, tentou, em vão, se lembrar. Comeu uma rosquinha e tomou quase todo o chá.
Uma pequena porta que não havia notado antes abria-se para o quarto de banho, suntuoso e de bom gosto. Lâmpadas sem chamas dentro de conchas de cristal acenderam-se quando ela entrou. As paredes e o assoalho eram de azulejos verde-pálido e aquecidos por um hipocausto central — imaginou ela. Havia um espelho alto com moldura de ouro, uma penteadeira com pentes e escovas com cabos também de ouro, uma coleção enorme de outros artigos exóticos de toalete, e potinhos de cremes, vidros com essências para perfumar a água, e talco com um pufe de penas. Água quente e fria jorrou automaticamente das torneiras douradas na banheira de pedra verde onde quase se podia nadar. A água parou quando a banheira ficou cheia. Havia pilhas de toalhas macias. Em vez do quartinho separado, havia também um vaso moderno, um luxo exótico do qual Haramis ouvira falar, mas nunca tinha visto.
Haramis mergulhou feliz na água morna, mas sem largar o talismã pendurado no cordão no seu pescoço.
Mais tarde ela foi se encontrar com Orogastus, vestida com os trajes de montar dados pelos vispis e o cabelo negro numa única trança longa nas costas. Ele estava na biblioteca, consultando um livro e tomando notas numa espécie de bloco brilhante e estranho, com uma pena. Quando Haramis entrou, ele colocou um marcador de couro franjado na página que estava lendo e fechou o livro. Tocou com um dedo um canto do bloco e a luz se apagou e com ela o que estava escrito.
— Não quero interromper — disse ela, educadamente. — Se quer continuar lendo, terei prazer em examinar de perto alguns dos seus livros raros.
— Seu gosto pelo estudo é famoso em toda a Península, senhora. Foi uma das razões pelas quais meu senhor real, o Rei Voltrik, lhe propôs casamento.
Haramis riu.
— Uma das razões, sem dúvida! — Inclinou-se, para examinar o bloco. — O que é isto? Vi que estava escrevendo nele, mas agora não vejo nada.
Com o rosto inexpressivo, ele respondeu:
— É um aparelho dos Desaparecidos, e todos os seus aparelhos são mágicos.
— Não tenho tanta certeza — disse ela, lentamente. Não parece mágico, pensou. Orogastus olhava para ela, desconfiado, e Haramis mudou de assunto. — Disse que possui muitas coisas dos Desaparecidos.
— Sim.
Haramis apanhou o pequeno bloco.
— Como funciona?
— Deixemos para outra ocasião — disse ele, amavelmente, tentando tirar o bloco das mãos dela.
Haramis segurou com força e recuou. O objeto deslizou da sua mão e bateu de leve no talismã que pendia do seu pescoço. Uma fagulha passou do talismã para o bloco, cujo brilho desapareceu por completo.
Haramis o pôs na mesa rapidamente. Oh, não, pensou, embaraçada, Eu não queria quebrar o aparelho, mas será que ele acredita — ou será que se importa?
Orogastus aparentemente controlava-se com grande dificuldade. Haramis recuou, nervosa, e enfiou o Círculo de Três Asas para dentro do corpete.
Orogastus apanhou o bloco e com a ponta do dedo apertou em vários pontos, mas o brilho não voltou.
— Está morto — disse ele com os dentes cerrados, erguendo os olhos furiosos para ela.
Haramis, que pensava num modo de se desculpar do que havia feito sem querer, quando viu a expressão dele, ficou furiosa também. Com os olhos faiscantes e a voz áspera, disse:
— Morto? Essa coisa jamais foi viva! Meus pais estão mortos — e foi você quem instigou os assassinos!
Ele ficou calado.
Haramis deu meia-volta e foi até a janela. A dança louca da neve levada pelo vento refletia o turbilhão que girava em sua mente. Desde a queda da Cidadela não tivera muito tempo para lembrar os eventos daquele dia, sem dúvida cenas que ela preferia esquecer. Mas agora, de repente, as lembranças vieram de roldão. O relato do escudeiro sobre a morte do seu pai, a visão da mãe, sangrando até morrer. As lágrimas desceram pelo rosto de Haramis.
— Haramis...
Ela não o deixou terminar.
— Que idiota eu fui! Você me atraiu para cá com suas artes negras, e porque sou jovem e tola conseguiu anular meus temores e me fez esquecer quem você é realmente. E quem eu sou!
Orogastus pôs a mão no ombro dela e a fez voltar-se. Falou com voz suave, quase triste, e havia um reflexo da tempestade de neve nos seus olhos.
— Lembra-se também de que beijei a palma da sua mão e disse que a amo desde que aquele miserável Voltrik me mostrou seu retrato? Por acaso esqueceu que eu disse que a reconheci como aquela destinada a compartilhar o poder comigo?
— Você é o inimigo da Arquimaga, ela que protegeu nosso reino contra nossos inimigos durante tanto tempo. Negue, se for capaz! Você é responsável pela destruição do grande equilíbrio do mundo, o adorador dos Poderes das Trevas! Você quer roubar meu talismã e o das minhas irmãs.
Ele a beijou.
Por um momento, Haramis ficou rígida nos braços dele. Mas os lábios do feiticeiro eram doces e seu calor fluiu por todo o corpo da princesa. Atordoada, sentiu que tudo girava à sua volta e que ele era a única coisa sólida e firme que existia. Erguendo os braços, Haramis o abraçou com força. O talismã contra sua pele aqueceu-se com as energias possantes e desconhecidas, que passavam dele para ela, depois dela para ele, com intensidade crescente, até seus lábios e seus corpos parecerem prestes a se incendiar.
Haramis ouviu uma voz em sua mente. Somos ambos mágicos, Haramis — nascidos para comandar as estrelas! Mentiram para você, os que dizem que sou o mal. Não sou. Procuro a sabedoria, a verdade e o poder e a alegria que eles nos trazem. Ouça-me apenas! Deixe-me explicar por que seus pobres pais morreram, por que tive de suportar a conquista do Rei Voltrik, por que você e suas irmãs foram perseguidas. Deixe-me mostrar a verdadeira importância dos três talismãs e do Cetro Triplo do Poder! Depois disso, tome sua decisão.•. com sua mente tão parecida com a minha. Eu a chamei de muito longe e a trouxe para cá. Você veio por sua própria vontade! Sabe que veio! Sabe que a amo. Agora, ouse me amar também! Agora, Haramis. Agora.
Haramis ergueu a cabeça e soltou-se dos braços dele. Seu corpo estava estranho, sua mente atordoada.
— O que você fez comigo?
— Haramis, você me ama. Seu corpo me diz isso, mesmo que seu coração queira negar.
— Não... Não...
Mas ela o abraçou outra vez.
— Estou com frio. Com tanto frio.
A neve açoitava as janelas, como se quisesse penetrar através dos vidros para alcançá-la, cobri-la com sua brancura imaculada e apagar as últimas brasas acesas dentro do seu corpo.
Haramis viu a Dama Branca morrendo, com toda aquela dor solitária. Viu a própria imagem refletida num espelho de gelo negro.
Ela o viu.
-— Vamos para sua sala de trabalho — disse Haramis. — É muito mais quente. Então, vou ouvir o que tem a dizer.
Mas naquela noite, sozinha na cama, lembrou-se dos pais e chorou até adormecer.
Anigel seguiu vagarosamente, com passos firmes, subindo a encosta ao longo da margem do rio. Depois de algum tempo percebeu que estava atravessando a floresta estranha do sonho que tivera depois da descida na Catarata Tass. Sim! Era o mesmo sonho da noite passada, só que havia esquecido. A floresta onde sua mãe, a rainha, com a coroa de estado e seus trajes de gala, caminhava na frente e Anigel corria atrás, num esforço desesperado para alcançá-la.
Agora, na vida real, não havia nenhuma rainha. Sua pobre mãe estava morta. E a coroa estava com Haramis, herdeira do trono — se vivesse ainda.
A trilha começou a ficar mais íngreme e o coração de Anigel batia forte com o esforço. Graças a Deus, as árvores em forma de taça eram mais raras agora! Mas em seu lugar havia uma outra espécie, de aparência horrível, que a princesa evitava tocar e até chegar perto. Eram altas e robustas, coroadas com folhagem verde e rija. Em toda a extensão dos troncos macios havia aberturas ovais com quase um ell de comprimento, como bocas verticais. Tinham espigões nas bordas, como dentes, e se abriam e fechavam constantemente, como se a árvore estivesse respirando. O movimento era acompanhado por um som suave como o murmúrio da brisa ou uma música discordante e sinistra. Anigel sabia que eram árvores carnívoras, piores do que as primeiras, em forma de taça. As bocas escuras e enormes procuravam a presa e só cantavam e se fechavam à sua passagem. As árvores sentiam sua presença e a desejavam.
— Senhores do Ar, que coisas horríveis! — Anigel segurou o amuleto, mais uma vez cheia de medo. Então deu-se conta de algo que a fez tremer, deixando-a incapaz de dar mais um passo, com o corpo todo arrepiado.
Onde estava a trilha?
Tinha desaparecido!
Só havia vegetação virgem e intocada sob seus pés. Há quanto tempo estaria andando fora do caminho? Não tinha idéia. Estava atenta apenas em seguir o regato. Paralisada de medo, rodeada pelas árvores monstruosas, Anigel não sabia para onde devia ir.
— Dama Branca! — exclamou ela. — Ajude-me!
O amuleto na sua mão começou a se aquecer. Quando finalmente o soltou, o âmbar cor de mel cintilava, mesmo em plena luz do sol. As medonhas árvores carnívoras murmuravam e gemiam em volta dela, quase abafando o ruído do regato sobre as pedras.
A folha. Jogue a folha.
— O quê? O que foi que disse? — Anigel voltou-se rapidamente, procurando quem havia falado. Mas não viu ninguém. — Dama Branca — é a senhora?
A folha do Trílio Negro. Jogue para longe. Deixe que ela mostre o caminho.
Suas mãos tremiam tanto que quase não conseguiu abrir a bolsa no cinto. Nuvens encobriam o sol agora, e o desfiladeiro estava cinzento e sinistro. Anigel teve a impressão de estar congelando. A folha.
Quando a tirou da bolsa, a folha estalou. Estava toda seca, marrom, não mais verde. Só na ponta da haste um pontinho dourado brilhava ainda, mesmo na sombra que se adensava.
Jogue para longe...
Na ponta dos pés, Anigel jogou a folha para cima. Não havia vento, mas ela planou lentamente, conduzindo a princesa pela margem do regato. Anigel a seguiu, como uma sonâmbula. A folha começou a voar mais depressa e Anigel correu. Para cima. O caminho cada vez mais íngreme. A relva e o mato mais espessos, mais escuros. Ela só via aquele pontinho dourado dançante, planando, guiando-a.
Chegou a uma clareira. Era a parte superior do desfiladeiro, toda de rocha, coberta de musgo. O regato nascia de um filete de água que caía de uma altura espantosa, espalhando no ar uma névoa muito fina.
E, ao lado da água que vinha lá de cima, ela viu uma árvore.
Era a coisa viva mais imensa que Anigel já tinha visto. Ao lado dela, os outros gigantes da floresta eram insignificantes. Meros arbustos. Trinta homens, enfileirados, ombro a ombro, não abraçariam seu tronco. Era da mesma espécie das carnívoras com bocas e dentes, mas tinha apenas uma abertura entre duas enormes raízes, do tamanho das bocas das outras árvores menores da mesma espécie. A Princesa Anigel parou na frente da árvore gigantesca, tão espantada que esqueceu o medo. Ergueu os olhos e viu que era mais alta do que o penhasco de onde caía a água.
A árvore tinha três copas, com galhos enormes e folhas verdes.
Anigel aproximou-se, observando a boca denteada que abria e fechava cada vez mais depressa e sem parar, produzindo um rugido surdo que teria escapado a ouvidos menos aguçados do que o seu. E o interior da boca não era escuro, como nas outras árvores menores, mas tinha um dourado brilhante que combinava com a cor do seu amuleto.
O Monstro de Três Cabeças guardava seu talismã.
E sua boca abria e fechava cada vez mais depressa porque ele estava com medo.
— De mim — disse a Princesa Anigel. — Com medo de mim!
Como num encantamento, ela sabia exatamente o que fazer. Perto da pequena queda-d’água havia pilhas de madeira seca, restos das árvores arrancadas nas estações das enchentes. Anigel apanhou um galho seco, do comprimento do seu braço, porém mais grosso, e caminhou diretamente para a boca entre as raízes.
O brilho na cavidade cresceu, bem como o do seu amuleto. Com toda a calma, Anigel segurou o galho com as duas mãos, horizontalmente, na frente do corpo. Observou o ritmo da boca, por um instante, e então, com um movimento rápido, enfiou os braços entre as mandíbulas espinhosas.
A boca começou a engolir a presa, mas o galho prendeu-se nos dois lados da cavidade, impedindo-a de se fechar.
A árvore rugiu furiosa.
Mas Anigel sabia que era um rugido de medo, não de fúria. A árvore esforçava-se para amassar o objeto estranho na sua boca. O galho começou a se curvar e lascar, mas a boca ficou aberta ainda por mais um momento...
O bastante para que Anigel se inclinasse rapidamente e apanhasse a coisa que estava lá dentro, saltando para trás antes de o galho se partir com um estalido e a boca se fechar e ficar fechada, a casca da árvore em volta dela apertada, formando dois nós maiores do que os pulsos da princesa.
Anigel ergueu nas mãos uma pequena coroa, uma tiara em forma de C de metal prateado brilhante, com seis cúspides pequenas e três maiores. Era bela e estranhamente trabalhada com volutas, conchas e flores, e dentro das três pontas maiores havia uma figura grotesca, estilizada. Uma das faces do monstro tinha uma abertura na parte inferior — e Anigel sabia o que devia ser encaixado ali.
Afastou-se para a margem do regato, sentou numa pedra, tirou o chapéu, abriu o cordão do amuleto do trílio e retirou dele o pequeno pedaço de âmbar. A pedra encaixou perfeitamente na abertura na frente da tiara e, uma vez no lugar, não podia mais ser retirada. A flor fossilizada, dentro do amuleto, abriu-se completamente, exceto nas bordas, que continuaram um pouco enrugadas.
Anigel pôs a tiara na cabeça e voltou para perto da árvore, agora silenciosa, com a boca fortemente fechada.
— Agora o talismã é meu — disse Anigel. — Você guardou bem o tesouro, mas ele era destinado a mim. Não precisa ter medo. Eu a deixarei aqui, em paz.
Deu meia-volta. Estranhamente, seus olhos se encheram de lágrimas. Sentiu um peso na boca do estômago e a sensação de que alguma coisa — uma coisa terrível — estava para acontecer. Pensou: tenho meu talismã — mas é apenas uma das três partes. Onde estarão minhas irmãs?
De repente, a árvore, a clareira e a pequena queda-d’água desapareceram.
Num lampejo rápido, Anigel viu outro lugar, o interior de um pântano cheio de arbustos espinhosos. Kadiya!
Sua irmã estava agachada, chorando e gritando, revoltada, no meio de homens armados, cavaleiros de Labornok. Anigel viu que não tinha o amuleto do trílio no cordão, mas apertava contra o peito algo que parecia uma espada, em cujo punho pulsava uma luz brilhante ambarina. E no fundo da cena viu um ser alto e horrendo com olhos cor de laranja e dentes manchados de sangue.
Antes que Anigel tivesse tempo de gritar, a imagem desapareceu. Viu então um quarto aconchegante numa torre, com ricas tapeçarias e tapetes de peles e uma mesa repleta de livros antigos. Um belo homem de cabelos brancos como a neve, com um manto negro e prateado, sentado numa almofada, na frente do fogo, conversava com uma bela mulher de cabelos negros.
Ele beijou a palma da mão esquerda da mulher. Na outra ela segurava um bastão de metal brilhante, com um círculo prateado na extremidade superior, circundado por três asas fechadas. E a mulher era Haramis...
Não! Não!
Anigel arrancou a tiara da cabeça e a atirou no chão da floresta coberto de musgo.
Não — as visões mentiam. A brava Kadiya nas mãos dos labornoks, ameaçada pelos skriteks? A inteligente Haramis compactuando com o infame feiticeiro Orogastus? Nunca! Nunca!
Se as duas estavam perdidas, quem era a mulher da profecia que derrotaria Labornok e salvaria Ruwenda? Ela, Anigel? Ridículo! Uma brincadeira! Uma brincadeira cruel...
Anigel atirou-se no chão e soluçou, com o coração partido, afastando-se da tiara, como se ela fosse realmente o que seu nome dizia. Então esse era o seu talismã! O fim da longa busca, o cumprimento da ordem solene da Arquimaga! O talismã era um mentiroso — um criador de pesadelos piores do que sua mente podia inventar. Não passava de um monstro.
.Porém, no seu sonho, a Rainha Kalanthe dizia que suas irmãs tinham seguido outros caminhos. Era ela, Anigel, quem estava sendo lavada e preparada — para quê?
Aos poucos os soluços aquietaram, sua respiração voltou ao normal e Anigel dormiu profundamente.
Acordou de repente, uma hora depois. Teria ouvido alguma coisa? Talvez um daqueles gritos misteriosos? Não tinha certeza. Porém, sentia-se muito melhor. Lavou o rosto e as mãos no regato e comeu alguma coisa. Então, apanhou a tiara e a examinou por um longo tempo. Os três rostos grotescos pareciam sorrir maliciosamente.
um sinal, pensou ela, e um instrumento. Sei que pode fazer uma coisa, evocar visões. Porém, se são a personificação dos meus temores, ou verdades, não sei dizer. Mas vou descobrir.
Colocou a tiara na cabeça, o chapéu de Immu sobre ela e voltou pelo mesmo caminho.
— Meu príncipe, as canoas não podem passar daqui.
O sargento, que manejava a vara no primeiro barco subindo o Regato Kovuko, deu a péssima notícia, enquanto as outras embarcações superlotadas paravam num remanso rochoso, abaixo de um trecho onde a água nem chegava aos tornozelos dos homens.
Antar, seus cavaleiros e Voz Azul reuniram-se para resolver o problema, e os soldados-marinheiros, exaustos, lavavam-se no regato e comiam suas magras rações, sentados na sombra das estranhas árvores em forma de taça. Os labornoks não sabiam que eram árvores carnívoras, mas tinham aprendido a não comer frutos desconhecidos, portanto não tocavam nas iscas tentadoras.
— Daqui em diante iremos a pé — disse Antar. — Como o calor está por demais opressivo, sugiro que tiremos as armaduras, conservando apenas os elmos, peitorais e dorsais..
— Meu príncipe! — gritou o sargento, da outra margem do regato. — Acho que encontramos um sinal da fugitiva!
Todos atravessaram a água rasa, e sob as folhas largas de uma moita de arbustos encontraram um dos estranhos barcos dos wyvilos. No fundo da embarcação estava uma pequena capa de chuva de couro, do tipo que os nyssomus usavam, cuidadosamente dobrada.
— Esta capa é igual às que usam em Trevista — disse o sargento. — Lembro-me bem dos desenhos estampados no capuz. Havia muitas à venda no mercado da Praça Lusagira. Pode pertencer à princesa.
Voz Azul abriu caminho entre os cavaleiros.
— Dê-me a capa. Vou fazer um teste.
Segurando a capa com as duas mãos, inclinou a cabeça raspada para trás e fechou os olhos.
— Poderes das Trevas, ouçam-me! Revelem a este suplicante quem usou esta capa! — Levou o agasalho ao nariz e respirou fundo, depois entoou, com voz diferente: — Foi usada por Immu, serva da família real de Ruwenda, e por Anigel, princesa de Ruwenda.
— Pelas tripas de Zoto! — exclamou, satisfeito, Sir Rinutar. — Afinal, um sinal concreto da mulher! Eu começava a pensar que estávamos perseguindo um fantasma.
Voz Azul abriu os olhos, cobriu a cabeça com o capuz e jogou a capa na canoa transparente.
— Esta capa estava perto da princesa há menos de duas horas. Devemos estar muito perto dela. Vamos continuar e não perder mais tempo.
— Muito bem — disse o príncipe. — Sargento, reúna seus homens. E vocês, meus companheiros, preparem-se para...
Um grito partiu do bosquete de árvores-taça na outra margem do regato. Com uma praga, o príncipe voltou-se rapidamente. Viu um soldado correndo na praia, gritando apavorado. O sargento apressou-se para ver o que havia acontecido, acompanhado pelos cavaleiros.
— Aquela coisa comeu o pobre velho Gomi! — disse o homem, com os olhos arregalados. — Engoliu como se ele fosse geléia de morangos!
Todos começaram a gritar ao mesmo tempo, mas o sargento mandou dois soldados apanharem suas armas e disse para o príncipe:
— Eu vou investigar.
Voltou logo depois, com o rosto inexpressivo, e informou:
— Foi uma dessas árvores estranhas, meu príncipe. O soldado Gomladik foi se aliviar perto do tronco e, de acordo com a testemunha, quatro braços finos saíram da copa da árvore, como vermes enormes, o agarraram e ergueram no ar.
O príncipe e o sargento acompanharam os homens no interior do bosque, onde as árvores-taça enfileiravam-se como se estivessem na vitrine de uma estranha joalheria. Mas uma delas estava guardada por dois soldados e as folhas superiores dobradas para dentro formavam uma bola, de onde sangue e outros fluidos escorriam, descendo pelo tronco e empoçando entre as folhas do chão.
Todos observavam a cena com horror e nojo, mas, antes que alguém pudesse dizer alguma coisa, outros gritos soaram vindos do regato.
— As armas! As armas! Nativos hostis se aproximam! O pobre Gomladik foi esquecido. Antar, Sir Owanon e o sargento correram para o regato, na frente dos homens, gritando ordens. Os soldados retiraram os barcos da agua, empilhando-os, para formar uma barricada. Os cavaleiros colocaram os elmos e empunharam as espadas e os arqueiros prepararam-se para o combate. Sacos de suprimentos, peças de roupa e de equipamento espalhavam-se na margem ou eram levados pela água, rio abaixo.
E pela primeira vez tudo ficou quieto.
- Voz Azul - murmurou o príncipe, atrás de um barco emborcado. — Consegue ver o inimigo?
Um momento... um momento. — O acólito do feiticeiro estava agachado na extremidade da barricada, entre Sir Rinutar e um soldado, numa situação extremamente desfavorável para entrar em transe. Concentrou-se, seus olhos ficaram vazios, seu corpo rígido. - Sim, eu os vejo! No outro lado do regato, escondidos atrás das árvores assassinas. São vinte. quarenta.. Que os Poderes das Trevas nos protejam, são tantos que mal posso contar! E não parecem wyvilos, meu príncipe. Esses nativos são maiores e de aparência mais terrível — sem dúvida, são os canibais glismaks!
— Isso é suficiente! — disse o príncipe. Voltou-se para os outros. — Meus homens, coragem. São oddlings selvagem e por mais terríveis que pareçam, são inferiores a nós. Podemos vencer esta luta.
— Veja — disse Owanon, em voz baixa. — Começam a aparecer.
Seis criaturas saíram das moitas, na outra margem, e ficaram de pé na praia, a menos de dez ells dos soldados. Eram menos humanóides do que os wyvilos e mais altos do que os humanos. Empunhavam lanças longas com pontas de pedra sílex. Estavam nus, mas alguns tinham ornamentos de jóias e todos usavam cintos dos quais pendiam maças e outras armas de guerra. O rosto tinha a forma de um focinho e os dentes, especialmente as duas presas salientes, eram grandes e afiados. Os olhos fundos e vermelhos eram protegidos por placas de pele duras e brilhantes que cobriam também a cabeça e iam até os ombros, as costas e a parte superior dos braços. Os três dedos de cada mão e de cada pé eram unidos por membranas e armados com garras fortes. A barriga era protegida por poucas placas e, como os membros e o rosto, recoberta por pêlo espesso cor de ferrugem. As placas eram circundadas por uma penugem, cuja cor diferia de indivíduo para indivíduo. Na verdade, havia nos glismaks uma beleza selvagem — e um ar de suprema confiança.
Um dos seis adiantou-se e começou um discurso em voz áspera e coaxante, brandindo a lança. Terminada a oratória, lançou a arma com toda a força e a ponta de sílex mergulhou na madeira da canoa atrás da qual o príncipe se protegia. Os outros cinco ergueram os braços, para fazer o mesmo.
— Arqueiros — disse Antar —, atirar.
Um chuveiro de flechas cruzou o regato. Cinco glismaks caíram, gritando horrivelmente. O sexto soltou um berro tremendo de guerra, respondido por centenas de selvagens que atravessaram correndo a água rasa. Bandos de glismaks saíram da floresta, gritando e uivando, brandindo as lanças e suas outras armas.
Em poucos segundos, a pequena força dos labornoks estavá cercada. As flechas eram inúteis a pouca distância e os soldados lutavam com espadas curtas e adagas, enquanto os cavaleiros brandiam com as duas mãos suas espadas de dois gumes, cortando e transpassando o inimigo, até os glismaks caírem em massa sobre eles.
O sargento conseguiu matar dois monstros, mas um terceiro, atacando-o pelas costas, deu uma dentada fatal no seu pescoço. Os poucos homens que não estavam cercados fugiram, perseguidos pelos glismaks de pernas longas, que os apanharam e arrancaram a carne dos seus ossos com as garras. Cada homem que caía tinha os membros arrancados e, no meio da batalha, começou o banquete sinistro. Os berros pavorosos dos glismaks abafavam os gemidos e os gritos dos soldados agonizantes.
O Príncipe Antar e todos os seus cavaleiros foram aprisionados, mas, estranhamente, os glismaks não os mataram, nem tiraram suas armaduras. Apenas os desarmaram, amarraram suas mãos e seus pés com cordas de fibra e, erguendo-os como se fossem bonecos, os atiraram sobre uma pilha de corpos sangrentos.
Alguns glismaks começaram então a dançar e cantar em volta dos homens empilhados que, perdendo toda a esperança, faziam suas preces finais. Outros selvagens antropófagos empilharam gravetos, galhos secos e as canoas dos labornoks, para uma grande fogueira. Era evidente que o próximo prato do banquete ia ser cozido.
— Que Deus tenha misericórdia de nós — gemeu o Príncipe Antar, no topo da pilha de prisioneiros — e condene para sempre ao mais profundo dos infernos o feiticeiro Orogastus, que nos mandou para esta morte ignóbil.
O canto e a gritaria dos glismaks cessaram de repente.
Pararam de dançar. Aqueles que procuravam ainda pedaços saborosos de carne crua deixaram a refeição e olharam atónitos. Todos os selvagens estavam imóveis e boquiabertos, olhando para alguma coisa que descia o regato na direção deles. Antar contorceu o corpo e conseguiu ver quem estava chegando.
Uma mulher.
Ela parou na trilha ao lado do pequeno regato, a doze ells da pilha de cavaleiros e ao alcance da mão do glismak mais próximo. Vestia trajes de caça de couro azul-celeste, carregava uma mochila nas costas, numa das mãos segurava um chapéu de palha de abas largas e na outra um galho que servia de cajado. O cabelo dourado descia até abaixo dos ombros em ondas cintilantes. Na cabeça tinha uma tiara estranha de metal branco brilhante, com a pedra de âmbar e o trílio engastado na -frente. Sua expressão era de horror e ultraje e as lágrimas desciam por seu rosto.
O coração do Príncipe Antar apertou-se dentro do peito. Conhecia aquele rosto, era o mais belo que jamais vira e o único que amava na vida. Era a Princesa Anigel, que para seu infortúnio chegava à cena da carnificina, e certamente seria a próxima vítima dos demónios da floresta...
Mas eles não a atacaram. Recuaram com roncos, grunhidos e até gemidos quando ela caminhou para a clareira cheia de sangue. Anigel olhou para os ossos humanos, os pedaços de roupas e a pilha de cavaleiros amarrados, agora atónitos com sua coragem e temerosos do perigo que ela corria.
— O que vocês fizeram? — perguntou Anigel para os glismaks. Seu rosto estava ainda úmido de lágrimas, mas sua voz era firme.
Os selvagens rosnaram e sibilaram.
Um dos que estavam dançando até sua chegada adiantou-se. Era mais alto do que os outros, usava um cinto com tachas de ouro e a bainha da sua adaga de sílex era também de ouro. As escamas do seu corpo eram adornadas com desenhos em verde, amarelo e encarnado.
O chefe da tribo apontou a garra suja de sangue para a tiara e rugiu alguma coisa, na sua língua, em tom de desafio.
— Eu tenho direito de usá-la — disse a princesa, com autoridade. Deixou cair o chapéu e enxugou as lágrimas com as costas da mão. — E digo que vocês fizeram uma coisa terrível. Esses homens eram meus inimigos, não seus. Não fizeram nenhum mal aos glismaks e vocês os massacraram e comeram sua carne como animais! Mas vocês não são animais, foram feitos para servir ao Deus Triúne e uns aos outros, e o que fizeram foi um grande mal.
O chefe dos glismaks emitiu um som terrível, que só podia ser risada. Então, ergueu as mãos com garras, abriu a boca, mostrando os dentes afiados que brilharam à luz mortiça do fim de tarde, e avançou para a jovem indefesa.
Anigel apontou para ele o galho que servia de cajado e disse, calmamente:
— Senhores do Ar, defendam-me.
Um relâmpago azul desceu do céu encoberto e ameaçador, cegando os cavaleiros cativos. O trovão ensurdecedor que se seguiu quase os fez perder a consciência. Quando voltaram a si, viram a princesa de pé, com os olhos muito abertos, e o chefe glismak reduzido a um monte de cinzas.
A horda de oddlings canibais caiu de bruços, com o rosto encostado no chão, apavorados e estarrecidos.
— Vão embora! — disse Anigel, com voz clara. — Vão embora e não voltem.
Uma ou duas cabeças se ergueram, com expressão feroz. Os glismaks hesitaram e de repente levantaram-se e correram, gritando, alguns rosnando ameaças. Atravessaram o regato e desapareceram na floresta. A princesa olhou com espanto e medo para a carcaça do chefe a seus pés.
Antar exclamou:
— Princesa Anigel! Estamos vivos. Quer nos soltar destas cordas?
Anigel saiu do devaneio, correu para eles e cortou as cordas com sua pequena adaga. Os cavaleiros se desembaraçaram uns dos outros e os que não estavam feridos ajudaram os companheiros a tirar as armaduras e chegar até o regato. O Príncipe Antar, depois de fazer o que podia por seus homens, aproximou-se de Anigel e ajoelhou aos seus pés.
— Princesa, não tenho espada para lhe entregar. Assim, eu, Antar, Príncipe Herdeiro de Labornok, lhe dedico meu corpo e minha alma. Não posso ser seu inimigo. Sua alma é repleta de nobreza e bondade e aqueles que a perseguem e que querem matá-la estão cheios de maldade. Se quiser me matar como matou esse selvagem bruto, estarei recebendo um castigo merecido. Mas, se me poupar, eu a servirei fielmente como escravo, pelo resto da minha vida.
— E eu também — disse Sir Owanon, adiantando-se e ajoelhando-se ao lado do príncipe.
— E eu — disse Sir Penapat com voz rouca, lavando seus ferimentos no regato.
Um a um os cavaleiros fizeram o voto de lealdade e os que podiam ajoelharam-se na frente dela. Apenas Sir Rinutar e dois dos seus homens ficaram imóveis.
De repente, Voz Azul surgiu da moita que escondia o barco de Anigel, atravessou o regato e se aproximou da princesa com um sorriso amável.
— Grande e poderosa senhora — disse ele, com uma profunda reverência. — Eu sou escravo de outro mestre a quem devo servir por toda a eternidade. Mas prometo, em honra dele, servi-la e segui-la do melhor modo possível, e deposito meus pobres poderes em suas mãos, se tiver a bondade de me aceitar.
Enquanto falava, a Voz Azul voltou-se para Sir Rinutar e os olhos dos dois homens se encontraram por um momento.
— E talvez aqueles três bravos cavaleiros, que hesitam em faltar com seus juramentos a Labornok, juntem-se a mim numa promessa de trégua. Somos todos humanos, perdidos numa terra estranha, e não podemos ficar divididos, quando ameaçados por um inimigo comum tão terrível.
— Sim — rosnou Sir Rinutar. — Eu e meus homens concordamos com uma trégua.
Anigel olhou para Voz Azul por um momento, depois para os três cavaleiros, e então disse:
— Muito bem. Príncipe, levante-se, e também vocês, homens que prometeram lealdade a mim. Dentro de poucas horas será noite. Não precisamos mais temer os glismaks, porém, mesmo assim, não podemos acampar no meio desta carnificina. Vou conversar com o príncipe para resolver o que devemos fazer. Enquanto isso, devem reunir todas as armas e os suprimentos e tirar suas canoas da pilha. Mas não desmanchem a fogueira. Levem para ela os restos dos seus companheiros e, antes de partirmos, acenderemos o fogo em sua honra.
Ouviram-se murmúrios de aprovação. Anigel fez um gesto para o Príncipe Antar segui-la e caminhou até a margem do regato. Quando não podiam ser ouvidos pelos outros, ela disse:
— Não devemos confiar no homem alto de azul.
— Eu sei. Ele é uma das Vozes do abominável feiticeiro Orogastus. Devemos vigiá-lo na nossa viagem de volta. Pretende voltar para Ruwenda, não estou certo, minha senhora?
— Quando chegar a hora — disse ela. Seus olhos azuis estavam solenes e as pupilas cintilavam na sombra. — Antes tenho outro dever a cumprir. O bando de glismaks sem dúvida vai atacar agora o povoado dos wyvilos. Estavam a caminho de Let quando os encontraram. Precisamos chegar lá rapidamente e avisar o povo da floresta, e fazer o possível para ajudá-lo.
— Sim! — disse o príncipe, com admiração. — Nós, os cavaleiros, a protegeremos com nossas espadas enquanto evoca seus relâmpagos para dizimar os demoníacos glismaks.
Anigel recuou com uma exclamação de horror.
— Não!
— Mas, então, como podemos salvar os wyvilos, senhora? Somos dezesseis homens — vinte, se contarmos os três que não juraram lealdade e o lacaio do feiticeiro — e alguns estão feridos. São centenas de glismaks! Acha que podemos conter aquele exército de selvagens sem a ajuda da sua magia?
— Eu não sabia que o talismã ia matá-lo — murmurou ela, com os olhos cheios de terror. — Eu não sabia..
Antar segurou a mão da princesa. As lágrimas enchiam outra vez os olhos de Anigel. Ele levou aos lábios a mão calejada e arranhada.
— Não se preocupe. Talvez possa experimentar o poder do talismã durante a viagem e descobrir meios mais suaves de defesa.
Anigel afastou-se dele outra vez, impaciente, pensando na tarefa que tinha de realizar.
— Descansaremos esta noite e amanhã viajaremos sem parar, todo o dia e toda a noite, para chegarmos a Let antes dos glismaks.
— Viajar durante a noite? — Antar ficou perplexo. — Senhora, nossos homens são amadores e não poderão navegar no Grande Mutar à luz das Três Luas — além disso, pode cair outra tempestade.
Os lábios de Anigel curvaram-se num leve sorriso.
— Teremos o serviço de guias excelentes.
A princesa foi até a margem do regato e ainda sorrindo chamou: Amigos!
Hamil aproximou-se de Kadiya com passos largos, flanqueado por dois soldados que carregavam tochas. Agarrou-a pelos cabelos, obrigando-a a ficar de joelhos.
Kadiya via o riso dele e ouvia os dos outros homens.
— Agora você está fazendo a coisa certa, filha de Krain, humilhando-se — de joelhos. O que aconteceu por aqui?
Hamil olhou em volta — para a espada enfiada no solo e para a pilha de restos queimados. Uma das mãos da Voz Vermelha, chamuscada e esquelética, parecia apontar para o objeto poderoso que seu dono havia ambicionado possuir.
Depois de um longo momento de silêncio, Hamil riu outra vez, porém, menos confiante. Os homens armados, atrás dele, evitavam chegar perto do talismã.
— Então, parece que a Voz disse a verdade, mas não acreditou nela! Foi isso que aconteceu, sua ordinária? — O general sacudiu Kadiya pelos cabelos. — Ele tentou tomar o talismã que só pode pertencer a você e a espada o matou.
Largou os cabelos da princesa e passou um dedo no lábio inferior. Kadiya ouvira o suficiente sobre o general para saber que, com toda a sua brutalidade, era um homem mais esperto e mais inteligente do que parecia.
Alguns homens abriram caminho para outro oficial, um homem enorme. Seu manto rasgado era tão ornado quanto o de Hamil, mas estava sem o elmo, tinha uma atadura suja na cabeça e a barba crescida.
— O que há agora, meu general? — O tom áspero indicava que podiam ser companheiros na luta, mas não eram amigos.
Antes que Hamil pudesse responder, alguém, no meio dos homens gritou: ”Amarrem a bruxa na espada e joguem no pântano!”
Um murmúrio de aprovação ergueu-se entre os soldados. Outro sugeriu: ”Entreguem a bruxa aos skriteks!”
A aprovação foi mais unânime ainda. Os homens tinham se afastado de Kadiya, e a borda do círculo que formavam escondia-se nas sombras, onde a luz das tochas não chegava. Era como se aos poucos compreendessem melhor a importância do que tinha acontecido à Voz Vermelha.
Hamil voltou-se para os homens com uma expressão furiosa, que todos deviam conhecer muito bem, pois fez-se silêncio imediatamente, como se tivessem fechado uma porta. Então, ele se dirigiu ao oficial ferido:
O que há, Osorkon? Ora, nós obedecemos ordens.
Sempre obedecemos ordens! Viemos até aqui para encontrar isto. — Agarrou outra vez os cabelos de Kadiya e a sacudiu de um lado para o outro. — Muito bem, nós encontramos. Temos outra coisa, também. — Apontou para o talismã. — Se o Rei Voltrik recompensa generosamente quem lhe entregar uma dessas bruxas, o que acha que ele dará a quem levar também o tesouro que nosso Grande Ministro de Estado tanto deseja possuir?
Um tesouro — Osorkon acentuou enfaticamente a palavra — que já eliminou um dos que sabem muito mais sobre seus perigos do que qualquer um de nós.
— Sim — Hamil passou a língua nos lábios grossos. Ergueu Kadiya pelos cabelos e, abaixando um pouco a cabeça, fitou os olhos dela. — Acho que agora vai ser mais sincera. Sabemos como lidar com aqueles que são cheios de coragem e zelo, a ponto de fazer com que cedam à nossa vontade, mesmo que isso signifique matar uma pessoa que amam. — Estalou os dedos e o círculo se abriu outra vez, dando passagem a um skritek.
Pellan! — chamou Hamil, com voz autoritária.
Um homem esquelético adiantou-se das últimas fileiras de espectadores. Kadiya, que estivera muitas vezes com o mercador, nos seus dias de vida honrada e próspera entre seus companheiros, a princípio não o reconheceu. Foi um farrapo humano que caiu de joelhos e ergueu para o general os olhos mortos.
Hamil inclinou-se e examinou atentamente o talismã. Depois fez um gesto afirmativo, como se acabasse de ouvir o que queria saber.
— Ainda está lá.
Apesar da transformação da espada, o laço de corda mosqueada feito por Voz Vermelha ainda estava preso perto do punho do talismã.
— Pellan, mande esse selvagem estúpido apanhar a espada e colocá-la nas costas da mulher, usando somente a corda.
O homem engoliu em seco, depois deu a ordem na língua gutural dos skriteks. O monstro olhou para ele, para a espada, depois para Hamil. As mandíbulas se abriram, mostrando as presas, e a criatura respondeu na sua linguagem murmurante.
O rosto de Pellan empalideceu mais ainda, sob a poeira e a lama. Kadiya viu que ele apertava, uma contra a outra, as mãos trêmulas.
— E então? — perguntou Hamil, depois de um longo silêncio.
— Lorde General, ele diz que não toca naquilo — o guia indicou a espada com um aceno da cabeça. — Diz que é dos Desaparecidos e guarda todo o seu poder.
— O que tem isso? — A expressão de Hamil não mudou. Segurou a ponta da corda de pele e levantou a espada do chão. Depois, virou o corpo lentamente, para que todos os homens pudessem ver o que estava fazendo.
— Os Desaparecidos — observou ele. — Temos ouvido muitas coisas sobre esses Desaparecidos desde que entramos neste pântano. Vejam, vejam todos! O homem que usa o emblema de Labornok não precisa ter medo de lendas!
Osorkon tossiu.
— O que me diz dele? — apontou para os restos incinerados no chão. — Ao que parece, algumas lendas contêm advertências verdadeiras.
Hamil nem piscou, mas Kadiya teve certeza de que o general não morria de amores por seu subordinado imediato. Percebeu também que os soldados começaram a se aproximar, o que significava que o gesto do general havia eliminado em parte o terror que sentiam.
— Aquele — disse Hamil, com um gesto para as cinzas — era um homem que manejava brinquedos mágicos. Talvez os do seu mestre sejam seguros, mas esta coisa tem outra origem. Um homem que maneja certas armas sem se ferir fica descuidado. Acho que a Voz confiou muito nele mesmo.
O general estava outra vez ao lado de Kadiya. Pôs a pata pesada no ombro da princesa e a fez girar, quase derrubando-a. Mas Kadiya conseguiu manter-se de pé e sentiu que o talismã estava sendo amarrado outra vez nas suas costas.
Hamil voltou-se e chamou um homem que estava ao lado do que segurava a tocha. Erguendo a mão, apontou para o skritek que havia desobedecido suas ordens.
— Desse não precisamos mais — disse o general.
O skritek agachou-se, com um rugido. Na mão escamosa apareceu um machado com lâmina dupla. O grito de desafio da criatura foi respondido por vários outros.
O soldado saltou para a frente com a espada erguida e pronta. Ao que parecia não era a primeira vez que um labornok enfrentava um dos seus horríveis aliados.
A machadinha saiu da mão do skritek com tamanha força e velocidade que parecia uma névoa na luz incerta das tochas. Mas o soldado já avançava agachado, não ao encontro da arma, mas em posição de combate. Sua espada cintilou no ar e o sangue escuro jorrou. O skritek inclinou a cabeça para trás com um grito medonho e com a perna esquerda quase separada do corpo. Estendeu as mãos com as garras afiadas e uma delas, mais por acaso do que intencionalmente, agarrou o ombro protegido pela armadura do soldado e o derrubou. Antes mesmo de ouvirem o grito do companheiro, os soldados desembainharam as espadas e os outros skriteks apareceram em bando, prontos para a luta.
Soldados labornoks e skriteks lutavam e morriam em volta da fogueira. Um dos homens livrou Hamil das garras de um monstro, enfiando a tocha na boca semi-aberta da criatura.
A luta foi feroz enquanto durou, o que não foi por muito tempo porque os skriteks logo desapareceram na noite, deixando três de sua raça mortos e dois ainda vivos. Quatro soldados estavam imóveis no chão e vários outros feridos.
Logo no começo da desordem, Osorkon agarrou Kadiya e a levou para perto da barraca de Hamil, que estava despencada em um dos lados porque a corda fora cortada. Osorkon não entrou na luta, ficando apenas como observador. Quando tudo terminou, olhou para Hamil, com expressão sombria. Esperou que o general se aproximasse, limpando o sangue da espada com um punhado de folhas, para que Kadiya pudesse ouvir o que ia dizer.
— Nossos aliados parecem pensar diferente de nós no que se refere a servir — observou Osorkon, secamente. — Aquele verme de carga, traiçoeiro — com um gesto da cabeça, indicou Pellan, que estava encolhido num canto do que restava da tenda —, há dois dias chegou ao último lugar do rio que ele conhece. Desde então temos sido guiados pelos monstros. — Indicou o lugar em que as uisgus estavam amarradas. — O pântano ferve à nossa volta, há dois dias não temos notícias dos nossos batedores. Acho que devemos voltar, agora que atingimos nosso objetivo e você tem a jovem e o que ela encontrou.
Hamil franziu a testa.
— Pode haver outros tesouros ainda.
— E se os oddlings se revoltarem? Aprisionamos uisgus e o modo com que os temos tratado dá para revoltar o estômago de qualquer um. Agora, antagonizamos os skriteks. Se tivermos de depender de guias que têm toda a razão para nos odiar, somos uns idiotas.
— Oddlings — demónios escorregadios! Algum deles já demonstrou disposição para pegar em armas? Não! São covardes miseráveis, fracos como togares de quintal. Os uisgus se revoltarem...? Impossível. Não podem e não querem lutar. Não é verdade, verme? — Hamil cutucou Pellan com a ponta da bota. — Você não está sempre dizendo que esses miseráveis dos pântanos são covardes?
Pellan ergueu a cabeça e o braço esquelético, como para aparar um golpe.
— Sempre foi assim, Lorde General. Os skriteks podem lutar, mas só quando os demónios do Pântano Labirinto os atacam. Entre eles não há hostilidade, e jamais ergueram armas contra os humanos que entram no pântano. Ouvi dizer que fizeram um juramento, há muito tempo, que os proíbe de guerrear, e eles o cumprem à risca.
Hamil bufou com desprezo.
— Esta jovem atravessou o Inferno de Espinhos, sem dúvida, com a ajuda dos uisgus, do contrário não teria conseguido chegar até aqui. Com ela e mais aquelas — apontou as prisioneiras — em nosso poder, os uisgus não vão nos impedir de continuar.
Na manhã seguinte levantaram acampamento e seguiram uma trilha, subindo o rio. O General Hamil não falou mais com Kadiya, embora a mantivesse ao seu lado enquanto ouvia os relatórios dos batedores. Assim ela ficou sabendo que aquele grupo de labornoks não viajava sozinho. Alguma coisa — ou alguém — os acompanhava, embora os homens não tivessem tido oportunidade de ver o que era. Estariam sendo seguidos pelos povos do pântano, finalmente em pé de guerra e resolvidos a vingar seus companheiros? Será que podia esperar tanto?, pensou Kadiya.
Saindo da letargia gelada, a princesa ouviu um homem muito picado de mosquitos e sujo de lama dizer:
— Era Gam. Eu juraria pelo Escudo de Zoto. Só sua cabeça com os dentes arreganhados, enfiada numa estaca ao lado de uma moita. Nenhum sinal dos monstros. Só algumas pegadas muito imprecisas na lama — e isto.
Mostrou um dardo que tinha na mão — mais longo do que os que eram usados pelos nyssomus. Porém, a haste era pintada com duas linhas estreitas, uma azul, a outra amarela, e essa marca Kadiya vira antes: Jagun! Ou, pelo menos, sua marca de caçador.
— Gam — repetiu Hamil, passando os dedos sujos de lama seca na barba crescida do queixo. — Eu o vi matar aqueles piratas Westlinger -— dois com um só golpe. Bem, estou certo de que ele não se entregou facilmente. Foi obra dos skriteks?
— O dardo não é skritek — disse Osorkon, tirando-o da mão do soldado. — Eles não sabem fazer um trabalho tão perfeito.
— O que a nossa senhora princesa tem a dizer? — perguntou Hamil. Os carregadores a tinham posto no chão. — Tem mais alguns amigos esperando para se meterem nos nossos negócios? — Ergueu a mão para esbofeteá-la.
Kadiya respondeu com uma parte da verdade:
— Eu... nunca vi nada parecido... antes.
Osorkon não deu tempo ao general de forçá-la a responder de outra forma.
— Ela pode servir de isca, se eles tiverem outras armas. Não perca tempo maltratando-a. Vamos para terra mais firme, se estamos ameaçados de um ataque. Não podemos nos defender nem atacar enfiados nesta maldita lama dos demónios.
Um rugido selvagem soou na frente deles. Hamil empunhou a espada imediatamente e seus homens reuniram-se em posição de combate.
— Skriteks — gritou o batedor. — E pelo barulho devem estar perseguindo algum infeliz!
— Para a frente! — ordenou Hamil. — Cerrar fileiras! Temos terra alta adiante e precisamos de solo firme e seco.
Mais uma vez ouviram o grito dos skriteks. Os ouvidos de Kadiya zumbiam e ela estava quase inconsciente, sacudida pelos carregadores apressados. Não sentia mais os braços por causa da pressão das cordas. Mesmo que estivesse livre, com o talismã na mão, não tinha certeza de poder usá-lo. Entretanto, sob a dor, a impotência — e sim, sob o medo, fervia ainda dentro dela a fúria antiga. Devia haver algum meio de se livrar! Se ao menos aquela paralisia mágica passasse.
Os homens correram, guiando-se pelos avisos dos batedores. A terra agora era seca e aberta, com pouca vegetação baixa, mas ao mesmo tempo parecia a região cheia de perigos que Kadiya atravessara com Jagun. Aqui e ali havia trançados de cipós grossos e cinzentos, com folhas que pareciam pouco mais do que botões murchos, rodeados por nuvens de insetos. Quando amassados pelos pés dos homens, exalavam um cheiro pútrido.
Então, chegaram a uma casa.
Não era de pedra — mas feita com o mesmo material liso da concavidade onde ela e Jagun haviam passado uma noite, e igual ao lugar onde havia encontrado seu talismã. Numa das paredes havia uma porta ladeada por duas estátuas, iguais às das sentinelas no Caminho Proibido. Cada sindona empunhava uma espada. Kadiya piscou os olhos ardentes. As espadas — sem ponta, como a que ela levava nas costas — estavam cruzadas, proibindo a passagem.
Hamil parou. Havia avidez em sua voz, quando exclamou:
— Por Zoto — exatamente o que eu esperava encontrar! Uma fortaleza dos Desconhecidos, provavelmente cheia de tesouros! Capitão Loskar, vá até lá e dê um empurrãozinho naquelas espadas. — Com a cabeça, indicou as estátuas. — Os outros, fiquem prontos com suas flechas!
A obediência imediata das suas ordens dava a medida do poder que exercia sobre seus soldados. Um jovem oficial ergueu a espada e tocou o lugar onde as espadas sem ponta das sentinelas se cruzavam. O metal ricocheteou com um ruído estridente, a espada de Loskar voou da sua mão e com um grito de dor ele segurou o braço e caiu de joelhos.
— Flechas — dentro — ordenou Hamil
O zumbido das flechas de guerra dos labornoks, feitas para aterrorizar e para matar, cortou o ar. Penetraram na abertura, atrás das duas sentinelas. Não podiam ver o que havia no interior escuro. O ataque ordenado por Hamil não foi revidado. Ele gritou para os homens que carregavam Kadiya:
— Wunit! Vor! Empurrem a mulher e a façam passar sob as espadas das estátuas!
Os soldados a atiraram com força, com estacas e tudo. As sentinelas continuaram imóveis e Wunit e uns dez homens entraram atrás de Kadiya.
— Não tem perigo, meu general! — gritou Wunit. — Precisamos de tochas!
As tochas foram acesas e passadas para os homens. No interior viram apenas uma porta no fim de um corredor estreito, com um grande trílio gravado acima do batente.
— Esperem, eu vou entrar — disse Hamil. Apanhou uma tocha, curvou-se e entrou.
Imediatamente todas as tochas dos labornoks se apagaram. Ouviram-se gritos dos homens, sons de corpos se chocando e, depois, silêncio.
Kadiya estava de bruços, sem poder se mexer. A luz do dia não penetrava naquele lugar. A sombra da porta externa parecia uma cortina, embora ela não tivesse notado nenhuma quando foi atirada para dentro. Estranhamente, a paralisia que a imobilizava há tanto tempo estava diminuindo. Kadiya debateu-se como um peixe fora d’água, tentando ficar de pé. A escuridão que a rodeava era densa e completa, mas ela sentia diminuir também o medo que a acompanhava desde a sua captura.
A princesa continuou a se debater. De repente, seus braços estavam livres, ao lado do corpo. Tirou então as cordas das pernas. O chão sob seus pés não tinha pó nem qualquer sujeira do mundo exterior. Era escorregadio e inclinado num ângulo crescente. Kadiya começou a escorregar, usando os braços para se manter de pé. Caía cada vez mais depressa, e então bateu numa barreira invisível, sempre segurando o talismã, e continuou a escorregar em outra direção, para bater outra vez. Quase inconsciente, ela não largou a espada mágica. até bater na última barreira, voar no ar e cair desmaiada numa superfície plana.
A ponta de uma bota no lado do seu corpo a acordou.
Kadiya piscou os olhos, uma, duas vezes. Não estava mais no escuro, mas numa sala grande, e não pôde ver de onde vinha a iluminação, muito fraca.
— Ela é resistente, general.
Três homens formavam um triângulo em volta dela. Um era Hamil, os outros dois, Wunit e Vor. O resto dos soldados estava parado, carrancudo, atrás deles. Kadiya viu que os labornoks estavam contundidos e que procuravam não demonstrar o medo que sentiam.
A princesa ergueu a cabeça. Seus braços haviam recuperado a força, mas tinha dificuldade para alcançar o punho do talismã amarrado nas suas costas.
— Acha que ela conhece o caminho para sair daqui, senhor? — perguntou Vor.
— Pode ser — respondeu Hamil. — De qualquer modo, podemos usá-la para descobrir outras malditas armadilhas, enquanto examinamos este lugar. Faça-a andar.
Ninguém tocou em Kadiya. Ela conseguiu apanhar o talismã e levantou-se devagar, com a cabeça dolorida de tantas pancadas. Ainda atordoada, imaginou por que estava ainda com a espada e então lembrou-se de que tinham bons motivos para não querer tocar na arma mágica.
A luz cinzenta iluminou um pátio interno. Viram uma fonte cheia de água. No outro lado havia uma escada e Kadiya dirigiu-se para ela e olhou para cima. Não conseguiu ver nada, só escuridão.
Em cada degrau via-se uma pegada vermelha e brilhante.
Sem hesitar, Hamil ordenou:
— Para a frente!
Pôs o pé sobre a primeira pegada e começou a tremer violentamente, como se estivesse com a febre dos pântanos. Pálido, cambaleou para trás, desembainhou a espada e a brandiu na frente de Kadiya.
— Magia! — exclamou Hamil com voz rouca. — Deixem que ela vá na frente.
Empurrou Kadiya e o pé da princesa pousou sobre a pegada do segundo degrau.
Pelo trílio, ela ía gritar! Foi como se uma chama percorresse seu corpo. Então o talismã aqueceu-se também, mas Kadiya não conseguiu largá-lo. Ouviu o grito de espanto de Hamil. Kadiya estava no quinto degrau, fora do alcance dele, e a pegada cintilante no degrau seguinte desapareceu de repente. Seu pé pousou num círculo de prata com um Trílio Negro no centro. Hamil não esperava o movimento rápido que se seguiu. A princesa estava livre, completamente recuperada das escoriações e do encantamento, e cada degrau à sua frente tinha o mesmo símbolo amigo. À medida que subia, ganhava novas forças.
A fúria ferveu dentro dela. Podia Voltar-se e matar todos eles! Não. Seria uma tolice. Homens armados a observavam, alguns com os arcos retesados. Sua única arma era o talismã que ela não sabia ainda como devia ser usado.
Finalmente chegou a uma grande sala no fim da escada. Todas as paredes eram cruzadas e recruzadas por redes de luzes vermelhas. No centro havia um blocco do estranho material pálido do qual era feita a casa, com apenas um ponto de cor. Uma planta alta, feita de metal precioso, erguia-se no centro da sala, como se estivesse num jardim. Uma planta de trílio. A haste terminava num único botão grande e fechado.
Hamil, que a seguia, desconfiado, na frente dos seus homens, adiantou-se para olhar a planta, com a mão no punho da espada. Podia estar no coração do território inimigo, longe do seu exército, mas nada em sua atitude Sugeria que não acreditasse inteiramente em si mesmo e no seu poder. Olhou furioso para Kadiya, que estava de pé à sua frente, desafiadora, segurando o talismã.
— Não vamos passar daqui — disse ela) com voz calma. O general olhou para trás. Não disse uma palavra, mas Wunit e Vor colocaram-se cada um de um lado dele, com as espadas na mão.
— Ouvi dizer — disse Hamil em Voz baixa e cheia de ódio — que sangue é poder. Este é certamente um lugar de poder. Levem a mulher para o altar! ordenou.
Com as pontas das espadas eles a obrigaram a encostar na pedra sobre a qual se erguia a flor.
— Eu — disse Hamil em voz alta e sonora — sou um homem de sangue. Aprendi a pagar com sangue o que eu desejo possuir. Quando você morrer, Princesa, não mais estará ligada ao talismã mágico. Orogastus não tem mais poder aqui. Eu tenho! E pretendo decepar sua mão que segura a espada, e, quando todo o seu sangue se esvair o talismã será meu.
Ergueu a espada. A Flor gigantesca pairava sobre Kadiya, e a princesa teve a impressão de vê-la estremecer e explodir, desabrochando. Seria uma flor ou outra coisa como a sentinela? Kadiya não tinha certeza, pois uma luz verde cegante envolveu o trílio.
A lâmina sem ponta do seu talismã chamejou com uma luz verde viva, unindo sua força à da flor.
A luz pulsava em volta dela e Kadiya teve certeza de que alguma coisa tinha mudado no altar. Pois Wunit, Vor e os soldados fugiram correndo escada abaixo, pálidos e amedrontados.
Hamil estava cinzento de raiva. Avançou para ela. Sem que Kadiya soubesse como, o talismã se moveu, aparando o ataque da espada do general. O tempo parecia se mover em ritmo diferente — primeiro, rápido como um furacão, depois como se ambos estivessem amarrados a pesos enormes. Cada vez que ele atacava, Kadiya defendia-se. Hamil era três vezes maior do que ela, mas não conseguia vencê-la, nem passar pela guarda do talismã.
Ele lançou a cabeça para trás, com um uivo selvagem. Então, para espanto de Kadiya, deu meia-volta e desceu correndo a escada.
A princesa apoiou-se no altar. Acima dela, a enorme flor do Trílio Negro estava completamente aberta na haste prateada. Kadiya não ousou erguer os olhos. Levantou o talismã e os três olhos se abriram, de frente para outros três, maiores, no centro da flor do altar.
Então, foi como se uma janela se abrisse para a luz do dia. Os olhos chamejaram, e pareciam penetrar no mais recôndito da sua alma.
Ela, Kadiya, não era mais importante. Não existia mais Kadiya de Ruwenda.. apenas a Dama dos Olhos.
Então, toda a glória desapareceu. A coluna de luz no altar apagou-se. Não havia mais nenhum Trílio Negro. A sala estava vazia, a não ser por ela e seu talismã, agora sem brilho.
Kadiya voltou-se e caminhou para a escada. As cores das paredes empalideciam, voltando a um cinza opaco. Desceu, viu uma porta aberta e ouviu os gritos dos homens e o clamor das armas lá fora. Sentindo-se renovada, em espírito e no corpo, Kadiya saiu para uma batalha renhida.
Os labornoks caíam atingidos por dardos envenenados em todas as partes expostas dos seus corpos. Então, das moitas surgiram centenas de uisgus, manejando agilmente seus arcos, movendo-se num misto de saltos e dança. Havia skriteks também lutando contra os oddlings. Hamil, com o manto rasgado, lutava contra as lanças de três pequeninos uisgus. O general brandiu a espada horizontalmente para cortar ao meio os oddlings, mas Kadiya saltou para a frente dele, enfrentando-o. Mais tarde, a princesa jurou que estava possuída por um espírito. Quase deixou cair o talismã, mas, segurando-o com as duas mãos, brandiu a arma quando Hamil preparava-se para abatê-la.
— Para aquilo que você escolheu ser — disse ela, ofegante —, volte agora, homem de sangue!
Hamil girou o corpo, deixou cair a espada e levou as mãos à garganta. Seus olhos estavam em chamas, chamas saltavam dos seus lábios, cobriam seu corpo. De dentro dele veio um grito de tormento que fez Kadiya tremer. O Olho Chamejante de Três Partes fixava-se nele com toda a sua força e o general caiu no chão pesadamente. Como a Voz, antes dele, tudo que restou foi um monte de cinzas.
Outra língua de fogo saiu do punho do talismã e dividiu-se, ameaçando os skriteks. Os monstros fugiram apavorados, seguindo o exemplo dos labornoks. A chama desapareceu.
— Senhora dos Olhos...
Kadiya olhou para os jubilantes guerreiros oddlings.
— Jagun! — O nome parecia vir de uma lembrança muito distante, de um outro tempo. — Você está bem!
Mas outra voz se ergueu, silenciando até os lamentos dos feridos.
Minha filha!
Kadiya voltou-se para os sindonas que guardavam a porta. Acima das cabeças das sentinelas viu um círculo prateado e dentro dele um rosto sorridente.
— Dama Branca! Já fiz o que devia fazer?
— Ainda não.
Kadiya respirou fundo, quase com um soluço.
— O quê, então? Devo levar isto comigo — ergueu o talismã — até o fim?
— Deve — respondeu a voz, calmamente.
— Eu sou aquilo para o que fui feita... — Era quase uma súplica.
— Sim, está certa.
Tinha tanto que aprender!
— O que há ainda no meu caminho?
” Nenhuma resposta. A visão desapareceu e Kadiya ficou imóvel, com as lágrimas descendo pelo rosto arranhado e ferido. Haviam permitido que vislumbrasse algo além da sua compreensão, que devia ser seu objetivo. Mas, no momento, tudo que tinha a fazer era continuar. Voltou-se e olhou o campo de batalha. Lá estavam os uisgus, com Jagun sorridente ao lado deles. Ergueram as mãos numa saudação. Esquecendo os costumes do passado, clãs e tribos haviam se reunido para um objetivo comum. Devia ser essa a vontade de Kadiya, uni-los cada vez mais.
Depois de ter sido apresentado aos rimoriks e informado sobre tudo que eles podiam fazer, o Príncipe Antar resolveu que viajariam mais depressa usando apenas duas embarcações, além da canoa transparente dos wyvilos, de Anigel, e o mínimo de suprimentos. Antes que tivessem permissão para dormir, teceram novos arreios para os rimoriks com tiras de couro dos mantos dos soldados, e os barcos foram unidos uns aos outros por meio de amarras. Depois de cinco horas de sono, o grupo seguiu viagem.
Não havia necessidade de rédeas, pois os rimoriks sabiam exatamente para onde deviam ir. Eles puxaram os três barcos enfileirados no regato raso e depois de três horas chegaram ao Grande Mutar. Uma vez no grande rio, os animais podiam nadar mais livremente, ajudados pelos cavaleiros nos remos. A canoa leve da Princesa Anigel seguia os barcos de madeira dos cavaleiros e com ela iam o Príncipe Antar, Sir Penapat, gravemente ferido, e Voz Azul, que tinha demonstrado ser péssimo remador — talvez de propósito. Pelo menos, com o acólito do feiticeiro no seu barco, Anigel e Antar podiam vigiá-lo de perto. Voz Azul comportava-se muito bem, passando a esponja na testa febril de Sir Penapat, enquanto o príncipe e a princesa conversavam em voz baixa na proa.
Os rimoriks os conduziam velozmente e ao cair da noite do mesmo dia, um pouco antes da segunda tempestade, estavam chegando ao povoado Let.
Mas não antes dos glismaks.
— Senhores do Ar — não! — exclamou Anigel, quando viu as nuvens de fumaça que se erguiam contra o sombrio pôrdo-sol. Os barcos seguiam ainda velozmente e ela não ousou ficar de pé.
— Voz, use sua visão a distância! — ordenou o príncipe. — Diga o que aconteceu!
Anigel, muito pálida, murmurou:
— Espere — deixe que eu tente.
Voz Azul olhou para ela boquiaberto de espanto. Anigel fechou os olhos e ficou imóvel. Mas o belo rosto da princesa não adquiriu aquela expressão vazia e repulsiva dos transes dos acólitos de Orogastus. Depois de alguns momentos, ela disse:
— Os glismaks atacaram o povoado, por terra, há mais ou menos uma hora. Não sei dizer se são os mesmos que atacaram vossos homens. Parecem três vezes mais numerosos do que os que vimos em Kovuko. Incendiaram muitas casas... Estou vendo o porta-voz Sasstu-Cha e vou tentar me comunicar com ele...
Antar e Voz Azul esperaram. Sir Penapat disse, ansioso:
— Se vai haver luta, podem contar comigo! Mesmo só com um olho, uma perna e um braço, posso lutar melhor do que muitos dos meus companheiros! Já me conhece, meu príncipe!
— É claro que conheço, Peni — disse o príncipe com tristeza na voz. — Mas temo que não possamos fazer muita coisa se os selvagens já tomaram Let.
Anigel abriu os olhos.
— O porta-voz agradece nossas bondosas intenções — disse ela, com voz inexpressiva —, mas a luta agora é corpo a corpo e quase um terço das casas está em chamas. Ele está prestes a capitular, como fazem sempre que estão em desvantagem, e vão indenizar regiamente os invasores, que os deixarão em paz durante algumas semanas.
— Mas, princesa — protestou Voz Azul, com um leve tom de censura. — Tem o poder de salvá-los. Se quiser.
— Silêncio, patife miserável! — sibilou o príncipe. — Como ousa dirigir-se à senhora com tanta falta de respeito?
Anigel voltou para Voz Azul os olhos muito abertos e mordeu o lábio, como se ele fosse um verme venenoso do pântano que acabava de deslizar para dentro do barco. Mas, logo depois, ela disse:
— Ele tem razão. Eu podia salvar os pobres wyvilos se tivesse coragem de invocar a força assassina do meu talismã. Se eu pudesse recriar, a sangue-frio, o ódio e o desejo de destruição que inconscientemente dirigi para o chefe dos glismaks na cena do massacre.
— Pois então faça isso — insistiu a Voz Azul —, e salve seus amigos!
— Eu... não tenho coragem — Anigel começou a chorar. Voz Azul deu de ombros e sorriu.
— Afinal, são só odllings.
— São criaturas racionais que não conhecem outros meios! — exclamou ela. — Os glismaks são como crianças malcomportadas e devem ser punidos e educados — mas como se pode ensinar os mortos?
— Enquanto você se lamenta e derrama lágrimas inúteis, seus amigos estão morrendo.
— Não posso evitar!
— É claro que pode.
Anigel gritou a plenos pulmões:
— Não posso! Não sei como, e meu coração está muito magoado e estou com tanto medo e simplesmente não posso.
Interrompeu-se, como se acabasse de dizer a maior das blasfêmias, com uma expressão de medo e de desespero tão intensa que Antar teve vontade de amarrar Voz Azul com seus punhos fortes. Mas, antes que o príncipe pudesse fazer qualquer coisa, o rosto de Anigel mudou outra vez, como se tivesse virado a página de um livro de gravuras, e ela disse, com voz calma:
— Príncipe Antar, se eu for, irá comigo?
— A Let? Agora? — Vendo que Anigel falava sério, o príncipe se controlou. — Doce senhora, eu a acompanharia aos alçapões do inferno se me pedisse.
Anigel fez um gesto afirmativo e com voz suave e estranha disse:
— Meus amigos, parem.
Os três barcos diminuíram a velocidade e pararam ba lançando na água agitada, pois um vento forte soprava agora e o céu atrás deles estava repleto de nuvens carregadas de tempestade. Ouviram o trovão distante. A meia légua à sua direita, colunas de fumaça e fuligem se erguiam de Let, espalhavam-se a uma certa altura, formando um teto negro sobre o povoado.
— Sir Owanon! — Anigel chamou o ajudante do príncipe que estava na primeira canoa. — Corte os arreios que prendem os rimoriks ao seu barco!
Owanon apressou-se a obedecer. Anigel cortou a amarra que prendia sua canoa à segunda.
- Meus amigos, venham até aqui para que eu os atrele ao meu barco.
Estamos indo.
O Príncipe Antar e os outros não sabiam ainda o que Anigel ia fazer, mas à medida que ela dava ordens sua intenção tornou-se clara.
— Homens! Remem até aqui e levem Sir Penapat e Voz Azul para seus barcos. Você, na popa do barco de Sir Owanon — corte a amarra que prende sua embarcação na segunda e traga-me as duas amarras cortadas.
Todos obedeceram prontamente e Anigel fez dois orifícios nos dois lados da borda da canoa com sua pequena adaga, pelos quais passou as pontas dos arreios cortados dos rimoriks, prendendo-os com um nó apertado. As duas amarras, ela prendeu nos animais, para servirem de rédeas.
Os rimoriks disseram:
Vamos tomar o miton e estamos prontos.
Anigel tirou o jarro vermelho da bolsa e tomou um gole. Os animais lamberam seus dedos, como sempre, sob o olhar espantado do príncipe.
Sir Penapat já estava no outro barco, mas Voz Azul continuava sentado na popa da canoa wyvilo de Anigel. Estendendo o braço, ele empurrou os barcos de madeira dos cavaleiros, e as três embarcações separaram-se imediatamente, levadas pelo vento e pela corrente.
— Vou ficar aqui também, princesa! — gritou Voz Azul. — Posso ajudar.
— Saia já do barco! — gritou o príncipe. — Seu velhaco azarado! — Voltou-se e foi na direção da popa, com tanta violência que a canoa leve balançou perigosamente.
Mas era tarde demais. A um sinal da Princesa Anigel, os rimoriks partiram a toda velocidade.
— Vocês homens vão para a outra margem! — disse ela para Sir Owanon. — Não devem estar no rio quando chegar a tempestade. Se não voltarmos até amanhã, procurem se salvar do melhor modo possível. Adeus!
A canoa transparente deslizou sobre a água, com Anigel segurando as rédeas, e logo perderam de vista os outros dois barcos.
Com o tranco da partida, Antar foi jogado no fundo do barco. Por um breve instante, ele ficou imóvel, segurando num dos bancos, temendo que fossem naufragar a qualquer momento. Com a armadura, ele afundaria como uma pedra. Mas a canoa deslizou sobre a água encrespada do rio como uma flecha em voo rasante, numa velocidade que Antar jamais teria julgado possível.
Voz Azul estava com eles definitivamente, agachado, ocupando o menor espaço possível, com o capuz cobrindo metade do rosto. Antar não podia atirá-lo para fora do barco. Resmungando, o príncipe procurou uma posição mais confortável, sempre mal-humorado. A princesa não dava a menor atenção a nenhum dos dois.
Acontece que o príncipe ficou ofendido com o modo autoritário da princesa — não que sua devoção por ela tivesse diminuído. Antar estava mais do que nunca disposto a morrer por sua dama. Mas Anigel, que parecia tão patética nas masmorras da Cidadela, tão bela e tão perto da morte quando desceu a catarata, uma verdadeira deusa quando destruiu o glismak, tão jovem e vulnerável quando lutava com seus demónios interiores poucos minutos atrás, era agora a personificação de uma rainha guerreira vingadora, conduzindo os rimoriks. Alguma coisa no coração de Antar preocupava-se com essa mudança e até mesmo a temia.
Anigel estava com os olhos fechados e o príncipe não duvidava de que estivesse vendo a carnificina em Let e avisando os wyvilos da sua chegada.
Mas, como era linda! Graciosa, mesmo com aqueles trajes masculinos, com os cabelos soltos ao vento e a tiara mágica na cabeça. Olhando para a figura dela recortada contra o céu cada vez mais escuro, onde os fogos do povoado pintavam de vermelho as nuvens pesadas, o Príncipe Antar sentiu o sangue ferver e tudo que desejava era morrer por ela.
O que seria da Princesa Anigel — e dele? Revoltara-se contra seu pai, renunciando a Labornok, entregando sua sorte à amada, que havia jurado libertar Ruwenda. Mas isso seria possível, mesmo com a ajuda do talismã mágico? Orogastus podia também comandar o relâmpago e Voz Azul afirmara que o feiticeiro já possuía o talismã de uma das irmãs, e logo teria o da outra.
Anigel pretendia voltar para a Cidadela. Mas sem dúvida seria inútil. Mais da metade da força de invasão dos labornoks, de dez mil homens, estava ainda em Ruwenda, e o resto do exército, que acompanhara o General Hamil na procura da Princesa Kadiya, logo estaria de volta do pântano. O que podia fazer Anigel, mesmo com seus novos poderes, contra a força militar de Labornok e os Poderes das Trevas de Orogastus?
O Rei Voltrik estava curado e mais determinado do que nunca a matar as três princesas. Sem dúvida daria pouca importância à deserção do filho que ele desprezava. O maldito bruxo devia estar satisfeito! Orogastus podia até convencer o rei a fazer dele seu herdeiro. Talvez esse fosse seu plano, desde o começo!
Com Orogastus e sua magia no poder, e Labornok preparando-se para conquistar o resto da Península, onde ele e Anigel estariam a salvo? Ou teriam de fugir com seus fiéis companheiros para uma terra distante onde...
Um movimento.
Antar despertou dos seus pensamentos e viu Voz Azul movendo-se sorrateiramente na sua direção.
— O que você quer? — perguntou Antar, secamente. O vento forte arrancou as palavras dos seus lábios.
— Só uma palavrinha, meu príncipe. Acabo de me comunicar telepaticamente com meu Mestre Todo-Poderoso e ele lhe envia uma mensagem urgente.
— Não quero saber de mais mentiras do seu infame feiticeiro. Volte para seu lugar. Volte, eu disse!
Mas Voz Azul continuou aproximando-se, com um sorriso tão insincero nos lábios que apareciam sob o capuz que o príncipe ficou furioso, depois alarmado. Mas, antes que pudesse reagir e desembainhar a espada, o acólito estava sobre ele como um lothok agarrando a presa, ignorando completamente sua armadura azul de guerra.
Ergueu um punhal longo e fino e desferiu um golpe de baixo para cima entre as placas de metal que protegiam o pescoço do príncipe. A lâmina afiada penetrou a armadura e, se o príncipe não tivesse desviado rapidamente, estaria morto, com o pescoço cortado. Mas o punhal apenas arranhou a pele e a manopla de metal do príncipe segurou a mão do atacante, afastando a arma assassina. Os dois homens começaram a lutar selvagemente no fundo do barco.
Anigel puxou com força as rédeas dos rimoriks. Segurou com firmeza na amurada, pois o barco balançava tremendamente, e olhou para os dois homens que lutavam, com medo de se mexer e provocar um naufrágio. Não podia invocar o relâmpago para destruir Voz Azul, sem se movimentar. Impotente, pediu a ajuda da Dama Branca. Mas, ao que parecia, não ia ser atendida.
Voz Azul era incrivelmente forte, pois compartilhava uma parte dos Poderes das Trevas do seu mestre. Estava agora em cima do príncipe, com um joelho de cada lado do corpo protegido pela armadura. Segurava o punhal com as duas mãos e cada vez mais o aproximava do elmo aberto do príncipe. Antar segurava com força os pulsos do acólito do feiticeiro, mas nem sua força imensa era suficiente para deter o punhal que descia na direção dos seus olhos.
Anigel arrancou a tiara da cabeça e gritou:
— Não! Não o mate! Eu lhe dou meu talismã!
Voz Azul ergueu a cabeça raspada. Tinha um corte que ia da orelha até o meio da testa e seu rosto era uma máscara ensangüentada. Os olhos em brasa fitaram a princesa e ele disse, com os dentes cerrados, o punhal a menos de um dedo do olho de Antar.
— Ponha a tiara na minha cabeça! — A voz era do feiticeiro Orogastus.
,,a — Não! — exclamou o príncipe. — Ele nos matará!
Mas Anigel já se inclinava para a frente com a tiara nas mãos e o barco balançava de um lado para o outro, e as primeiras gotas de chuva, duras como pedras, caíram sobre os três, alisando a água por um momento.
E dos dois lados do barco apareceram os rimoriks.
Os corpos esbeltos subiram quase com lentidão, as mandíbulas abertas, tão grandes que podiam abocanhar a cabeça de um homem. As línguas longas e serradas pareciam chicotes. Com a mesma delicadeza com que lambiam o miton nos dedos de Anigel, as línguas se enrolaram no braço de Voz Azul.
O homem soltou um grito estridente. Estava bem seguro pelos animais. Anigel recuou, segurando a tiara. Antar livrouse das mãos de Voz Azul e ao mesmo tempo os animais começaram a nadar na direção da popa com a metade dos corpos enormes fora d’água.
O acólito do feiticeiro, gritando a mais não poder, foi tirado de cima do príncipe e atirado para o ar, atravessando todo o comprimento do barco. Ele desapareceu no rio escuro, espirrando água, e os rimoriks mergulharam atrás dele. A chuva não aumentou por algum tempo.
Alguns minutos depois, as duas cabeças enormes e sorridentes apareceram na proa, perto da Princesa Anigel. Um dos rimoriks tinha um pedaço de pano azul enganchado no dente.
Ó, amigos!...
Segure as rédeas. Uma grande tempestade está chegando. Seu barco vai afundar se não chegarmos rapidamente em terra.
— Está ferido? — Anigel perguntou, ansiosa, para o príncipe. — Vejo sangue no seu peitoral.
— É só um arranhão. Mais uma vez salvou minha vida, muito amada senhora, e...
— Para Let, então! — exclamou Anigel, sacudindo as rédeas.
E partiram numa nuvem de espuma, com o príncipe outra vez agarrado no banco para não cair na água.
Quando Voz Azul morreu, Orogastus gemeu dolorosamente e saiu do transe banhado em suor, recostando na grande poltrona em sua sala de trabalho, de onde havia assistido ao fracasso do seu servidor.
— A culpa é minha! Sou o único culpado! Agora dois talismãs estão fora do meu alcance.
Se seus estudos sobre a festa das Três Luas estivessem certos, tinha apenas três dias e quatro noites para salvar o que restava do seu grande plano..
Por ter sido invocado pelo Voz Azul, Orogastus assistiu a toda a luta com o Príncipe Antar. Mas o barco parecia conduzido por uma pessoa invisível, porque a Princesa Anigel estava protegida da Visão sobrenatural do feiticeiro pelo amuleto, agora engastado na tiara talismã.
Voz Azul havia sugerido adiar seu ataque ao príncipe para quando chegassem em terra firme, mas Orogastus achou que ele teria maior chance de sucesso se o príncipe fosse atacado nas águas revoltas, sem nenhum wyvilo ou cavaleiro para ajudá-lo. Orogastus não disse ao seu assistente que, se o pior acontecesse e a canoa naufragasse no rio, Antar morreria junto com o Voz Azul, por causa do peso da armadura — enquanto que os rimoriks sem dúvida salvariam Anigel e o talismã.
Mas agora o agente de Orogastus estava morto e o Príncipe Antar vivia ainda, apaixonado pela princesa e com possibilidade de atrair um grande número de labornoks para a sua nova causa. Vivo, Antar era um obstáculo de grandes proporções para os planos ambiciosos do feiticeiro.
Procurando furiosamente uma solução, Orogastus levantou-se e começou a andar pela sala. A neve não caía mais e as Três Luas transformavam a solidez do Monte Brom num cenário de extraordinária beleza.
A Princesa Haramis já havia se retirado para seus aposentos. Naquele dia a conversa entre os dois foi bastante satisfatória. Ela agora parecia disposta a aceitar sua versão do ataque dos labornoks, segundo a qual os responsáveis pelas atrocidades eram o Rei Voltrik e o General Hamil, com Orogastus no papel de mero aliado relutante. Conseguira explicar ou justificar quase tudo. Por sorte, Haramis não tivera a idéia de usar a visão a distância quando Kadiya estava nas mãos do General Hamil. O feiticeiro acreditava que agora Haramis podia tentar ver as irmãs sem prejuízo para sua causa.
Porque, quer ela admitisse ou não, a Princesa Haramis estava apaixonada por ele.
O feiticeiro não tinha nenhuma intenção de estudar a fundo esse sentimento. É claro que ele jamais poderia se apaixonar por ela!. Contudo, um diabinho zombeteiro, no fundo da sua alma, o aconselhava a ter cuidado. Não mentiu para Haramis quando disse que era solteiro. Precisava ser muito cauteloso. Sua mente era invulnerável para ela, mas seu corpo certamente não era. Quando seus corpos se incendiaram mutuamente de desejo, o prazer momentâneo foi algo que ele jamais havia sentido antes.
E isso o assustou tremendamente.
O amor sexual era tradicionalmente proibido para quem exercia a magia — e com muita razão. Distraía a mente dos objetivos maiores, cegava a objetividade, minava a vontade e gastava energias que deviam ser guardadas e concentradas para conseguir o verdadeiro poder.
Mas Orogastus precisava dela! E não só por causa do talismã. Haramis era a companheira que há tanto tempo ele procurava, infinitamente superior às Vozes bajuladoras. Haramis tinha a chave do Cetro do Poder, temido até pelos Desaparecidos.
Portanto, usaria Haramis, compartilharia com ela, teria até mesmo prazer em sua companhia. Mas sempre em guarda para não amá-la.
No dia seguinte, encantaria a princesa com outros instrumentos antigos, depois provocaria sua compaixão contando um pouco mais sobre sua vida. Se ela não cedesse, o que era possível, em se tratando de uma mente forte como a da jovem, então ele começaria a soltar um pouco o laço — para apertá-lo novamente de uma vez por todas, no momento crucial..
Orogastus parou de andar, e seus lábios curvaram-se num sorriso. Voltou para a poltrona, entrou em transe e chamou seu último acólito na Cidadela de Ruwenda.
— Minha Voz Verde!
— Eu escuto, Mestre Todo-Poderoso.
— Encontrou alguma coisa nova nos livros da biblioteca da Cidadela?
— Várias referências que podem ser importantes, mestre. Uma história antiga de Ruwenda diz que os primeiros habitantes humanos da região acreditavam estar vivendo na ”Era do Trílio”. E que o fim dessa primeira era e o começo da seguinte seria marcado por um grande desastre, e os acontecimentos culminariam na festa das três luas, quando o Trílio do Céu se manifestaria. Suponho que seja a descrição de algum evento astronómico incomum.
— Sem dúvida. É muito interessante e confirma uma das minhas teorias. Continue.
— Num livro que descreve as supostas artes mágicas dos uisgus, existe uma tradução literal de um certo canto. É o seguinte:
Um, dois, três, três em um.
Um a Coroa do Mal nascido, dotada de sabedoria, alimentadora do pensamento.
Dois, a Espada dos Olhos, distribuindo justiça e misericórdia.
Três, o Bastão das Asas, chave e unificador.
Três, dois, um, um em três.
Venha, Trílio. Venha, Todo-Poderoso.
— Aparentemente os uisgus cantam essa canção todos os anos, no seu festival das três luas, mas não sabem ao certo o que significa.
— Eu acho que sei o que significa — disse Orogastus brevemente. — Isso também confirma minhas pesquisas. Muito bem! Mais alguma coisa?
— Mestre, uma última descoberta. De significado pouco auspicioso.
— Diga.
— Diz respeito ao chamado Cetro Triplo do Poder, que, segundo nossas conclusões, é a combinação dos três talismãs. Num baú embolorado encontramos por acaso, alguns dias atrás, um pergaminho quase ilegível. Só hoje o velino foi cuidadosamente aberto com vapor. Vi imediatamente que estava escrito em tuzameni, a língua da sua terra.
— Isso é muito estranho. Nenhum dos povos da Península sabe da existência do meu país. Continue.
— A maior parte do pergaminho é indecifrável. Mas a parte que menciona o que chamam de ”Grande Cetro” pode ser lida e diz: ”O Grande Cetro, quebrado e escondido por Aqueles que Partiram, reaparecerá e abalará as raízes do mundo, fazendo do velho novo e provocando a queda de uma grande estrela.”
— Entendo — Orogastus ficou calado por alguns instantes. Finalmente disse, quase com despreocupação: — Existem milhões de estrelas no céu, minha Voz.
— Sim, Mestre Todo-Poderoso.
— Como o Rei Voltrik reagiu à perfídia do Príncipe Antar?
— Teve um acesso de fúria quando soube que o filho havia penhorado sua espada e seu coração à Princesa Anigel. Mas, a despeito do seu conselho, mestre, não concordou em deserdar o príncipe imediatamente. Antar é popular entre os soldados por seu bom temperamento e coragem e tem muitos amigos entre os parentes da falecida mãe. Sua majestade pensa em deserdar e depor o príncipe depois que o exército de Hamil voltar para a Cidadela, o que aumentará o número de homens leais ao trono.
— Nosso rei está agindo sabiamente — Orogastus acrescentou para si mesmo, Mais sabiamente do que eu, e evitando que eu fizesse outro grande erro! Forças das Trevas, o que aconteceu comigo, para cometer um erro tão grosseiro?
Mas os Poderes das Trevas não deram explicação e ele disse para Voz Verde:
— Temo que agora você tenha de dar ao rei outras más notícias. Hamil está morto. A maior parte do seu exército está intacta, agora sob o comando de Lorde OsorKon. Não precisa entrar em detalhes — diga que desconhecerão a totalidade da situação — mas que a missão da captura da princesa Kadiya e do talismã infelizmente falhou, bem como a da captura da Princesa Anigel.
— Mestre!
— E meus assistentes, Voz Azul e Voz Vermelha, estão mortos.
— Posso perguntar como morreram meus irmãos e Lorde General?
— Pode dizer ao Rei Voltrik que Voz Vermelha e o General Hamil morreram durante uma tentativa fracassada de obrigar Kadiya a entregar o talismã. O talismã está ligado a ela por magia e matou os dois que tentaram se apossar dele. A Princesa Kadiya escapou, mas diga que ela fugiu para o interior do pântano e não é mais uma ameaça para Labornok.
— Devo contar também a Sua Majestade o que aconteceu ao Voz Azul?
— Não diga nada. Para sua informação, Voz Azul tentou matar o Príncipe Antar dentro de um barco. Voz Azul falhou e morreu afogado.
— Que infelicidade! Azul era o mais bravo de nós três e Vermelho o manipulador mais astuto.
— Mas você é o mais inteligente, minha Voz Verde, e está encarregado da tarefa mais delicada, que consiste em evitar que o Rei Voltrik faça algo irremediavelmente idiota antes da minha volta à Cidadela. Lorde Osorkon está conduzindo seus homens de volta com toda a pressa. Com o aumento da força das águas do rio, devido às tempestades que já começaram nas montanhas, seus barcos deverão chegar dentro de três dias. Pode dizer isso ao rei.
— Os ventos já trouxeram as primeiras chuvas a Cidadela também, mestre. Logo os caminhos por terra e os rios deste maldito reino ficarão intransponíveis. Devido a uma certa inquietação entre os ruwendianos das regiões fronteiriças, o Rei Voltrik resolveu que todo o seu exército vai ficar aqui na estação das chuvas. Ele e seus auxiliares já fizeram planos para alojar metade do exército em várias mansões e povoados ruwendianos, e a outra metade no Knoll da Cidadela.
— Isso é prudente. — Outra contingência que eu devia ter previsto e aconselhado o rei a respeito — pensou Orogastus. — Minha Voz, quero que continue a lamentar a traição do Príncipe Antar, sempre que falar com o rei. Insista com sua majestade para deserdar o príncipe logo que seus oficiais leais chegarem à Cidadela. Não preciso dizer que, se acontecer alguma coisa a Voltrik, meus planos serão extremamente prejudicados.
— Compreendo isso, mestre. Farei o melhor possível para aconselhar o Rei Voltrik. Mas a inquietação do rei cresce com a aproximação da festa das três luas. Certos empregados ruwendianos da Cidadela fizeram questão de informar sua majestade sobre as terríveis profecias a respeito desse evento. Ele gostaria de voltar para Labornok.
— Ele não deve deixar a Cidadela! Seria apanhado pelas chuvas na Estrada do Comércio!
— Mestre, eu já disse isso. Mesmo assim, o rei acha que a Cidadela é um lugar de má sorte, por ser tão antigo e repleto da magia ruwendiana.
— Bobagens! Tranqüilize o rei. Ele sabe que os meus Poderes das Trevas, aqueles que lhe deram a vitória, são superiores! E eu estarei com ele, pessoalmente, antes da conjunção das três luas.
— Mestre! Mas como? É uma jornada de oito dias da sua torre até a Cidadela, mesmo com tempo bom.
— Não interessa como vou fazer isso. Apenas espere-me antes da festa das três luas e diga ao Rei Voltrik que estarei aí e que tudo vai ficar bem.
— Mestre Todo-Poderoso, vou tranqüilizá-lo e minimizar os acontecimentos funestos, e ele o receberá de braços abertos, ansioso por seguir seus conselhos.
— Excelente. Adeus, Voz Verde.
— Mestre, adeus. - Quando desapareceu a imagem do acólito, o feiticeiro ficou sentado, por algum tempo, com a cabeça entre as mãos. Então, ergueu o rosto com uma expressão determinada e dura.
— Tudo vai ficar bem. Em primeiro lugar, consultarei o espelho de gelo para ver a Princesa Kadiya, depois vou tratar de Haramis.
Na noite seguinte, Haramis encontrou um presente quando voltou para seus aposentos, depois de jantar com Orogastus. Um embrulho grande de pano negro, atado com umcordão de prata e um bilhete.
Minha muito querida.
Amanhã eu lhe mostrarei minha possessão mais valiosa, o espelho de gelo, com o qual posso ver os lugares mais distantes do mundo. Jamais o mostrei a qualquer pessoa. A fim de não ofender os Poderes das Trevas, dos quais depende o funcionamento do espelho, peço que me acompanhe vestida com as roupas que estão neste embrulho, feitas por mim, especialmente para você. Ouso esperar que compartilhe comigo os prazeres desses mistérios ocultos, bem como sinta alguma estima por este que os coloca a seus pés, junto com meu coração.
Se estou sendo presunçoso, querida princesa, e você preferir deixar minha torre amanhã, então perdoe-me a ousadia deste bilhete e perdoe este tolo que há tanto tempo está sozinho, esperando por você, sem jamais ter conhecido o amor até agora.
Sempre seu, com o mais profundo respeito,
ORUGASTUS
Haramis sentiu-se um tanto constrangida com o tom íntimo do bilhete. Será que ele pensa que estou enfeitiçada, pronta para entregar meu coração numa bandeja? Serei pór acaso uma camponesa, para me tornar escrava do primeiro homem que me toca? Ou pensa que estou deslumbrada com sua coleção de instrumentos antigos?
Haramis pensou nas coisas que Orogastus já havia mostrado.
Quem sabe do que são capazes aqueles aparelhos? Não me parecem brinquedos.. e aquele mais complicado, que parece um cabo de besta, tem uma aura bastante sinistra.
Por outro lado, talvez ele não seja o vilão que eu sempre pensei que fosse. Pobre Homem — que infância terrível!
É claro que seu apoio à invasão do Rei Voltrik é imperdoável. Mas acho que não podia se opor diretamente à loucura do monarca, sem ser expulso de Labornok. E ele sabia que seu destino não está em sua terra distante, mas aqui, nestas montanhas, para onde o chamou a Caverna do Gelo a fim de lhe entregar seus tesouros.
No lugar dele, pensou ela, o que eu faria? Teria agido de modo mais inteligente e mais ético? Teria declinado o posto de Feiticeiro da Corte de um governante corrupto, se isso significasse ignorar o chamado de um destino mais alto?
Haramis abriu o embrulho e examinou os trajes que deviam torná-la aceitável aos olhos dos Poderes das Trevas, e não resistiu à tentação de experimentá-los imediatamente.
Havia uma túnica de fazenda negra forrada de pele e botas combinando. Um vestido longo de malha prateada com panos de um negro brilhante, muito frio ao tato. Depois, um manto negro, com forro prateado, com uma fivela trabalhada e o símbolo da estrela de várias pontas nas costas. Finalmente, Haramis apanhou uma espécie de chapéu, de aparência estranha, e hesitou, antes de levá-lo à cabeça. Consistia num capuz prateado, justo na testa e sob o queixo, deixando descoberta a parte superior do rosto. Logo acima dos ombros, erguia-se um círculo de pontas prateadas, afiadas, que circundavam sua cabeça como uma estrela brilhante, deixando o cabelo negro solto nas costas. A máscara não era de metal, mas de um material macio, que parecia couro prateado. Havia também luvas longas, combinando.
Quando acabou de se vestir, Haramis sentiu uma vontade imperiosa de rasgar toda a roupa, fugir do quarto e chamar o lammergeier para levá-la dali. O talismã, no cordão de ouro, estava frio como gelo e sem brilho.
O que estou fazendo?, perguntou Haramis. Esta roupa me dá uma sensação estranha. Os instrumentos que ele me mostrou até agora não são mágicos — tenho certeza disso —, mas, há alguma coisa nestas roupas. Os Poderes das Trevas de que ele tanto fala existirão realmente? Sem dúvida ele acredita que sim e, certamente, alguma coisa concede a ele poderes superiores aos dos homens comuns. Orogastus pode muito bem governar o mundo, como deseja.
Será essa a causa da estranha atração que sinto por ele? Ele tem poder, seja qual for a origem, mas que espécie de poder? Será alguma coisa que posso aprender e usar?
Um tremor de medo percorreu seu corpo. Ergueu o Círculo de Três Asas, olhou fixamente para o centro e disse:
— Dama Branca! Responda!
Não aconteceu nada por um longo tempo. Então, Haramis tirou as luvas prateadas. O bastão aqueceu-se em suas mãos e o trílio no âmbar pulsou com um brilho fraco. Lentamente, apareceu uma névoa perolada no interior do círculo e nela o rosto envelhecido e doente da Arquimaga, sobre um travesseiro. Sua expressão era de dor. Os olhos, linhas escuras, rasos de lágrimas, fixaram-se em Haramis, vestida com a roupa dada por Orogastus.
— Tão depressa? — A voz era fraca como uma brisa sobre um campo de flores. — Ele a conquistou tão depressa?. Mas, não, eu a julguei mal, minha filha. Vejo que ainda não resolveu seguir o caminho dele.
— É claro que não!
A ansiedade de Haramis com a aparência da Dama Branca transformou-se em irritação. A velha maga falava como um adulto censurando uma criança malcomportada. Haramis não a chamara por sentir-se culpada. Não tinha feito nada errado, nada de que se envergonhasse.
— Vim para cá porque fui convidada — disse a princesa, com gelada cortesia —, e porque achei que ninguém sabe toda a verdade sobre Orogastus. Vim para ver pessoalmente o que ele é — e para descobrir suas fraquezas, como você me aconselhou!
— É verdade que esse conhecimento pode vir a ser útil — disse a Arquimaga, com voz suave. — Mas será prudente continuar sob o mesmo teto que ele?
— Não corro perigo aqui — disse Haramis impulsivamente. — Meu lammergeier pode me levar embora a qualquer hora. Orogastus não pode roubar meu talismã. Ele me trata com cortesia...
— Mais do que cortesia.
Haramis corou sob a máscara prateada.
— Sim — admitiu ela.
— Vejo que você está intrigada, Haramis, fascinada pelo homem e por seu poder. E pensa que conhece um grande segredo sobre os instrumentos dos Desaparecidos que Orogastus não suspeita — um segredo que o tornará vulnerável.
— Sim — disse Haramis. — Afinal, foi para isso que vim para cá, à procura de conhecimento. Há muito que aprender aqui. E quanto mais eu aprendo, mais quero saber sobre Ruwenda e sua mágica. Mas estou aprendendo e tudo vai acabar bem. Tenho certeza.
— Sim, tudo vai acabar bem... Mas você deve me procurar logo e ouvir minha visão. Difere completamente da visão de Orogastus e, para algumas pessoas, poderia parecer menos gloriosa. Porém, a decisão é sua. Há um grande abismo entre o meu caminho e o caminho de Orogastus e os iguais a ele. Você deve conhecer os dois antes de fazer sua escolha
— Sim — concordou Haramis. — Eu a procurarei logo.
— Não demore muito.
O rosto envelhecido desapareceu. O círculo ficou vazio.
Largando o talismã, Haramis foi até o espelho do banheiro e olhou para a imagem que ele refletia. Negro e prata. Olhos insondáveis, uma figura alta e imponente. E, sim, assustadora.
Deu as costas ao espelho e começou a tirar os trajes escuros. Mas sabia que ia vesti-los novamente no dia seguinte, e que iria com ele à Caverna do Gelo Negro.
Avisado pela comunicação sem palavras da chegada iminente do barco, o porta-voz Sasstu-Cha e uma delegação de dignitários do povoado esperavam a Princesa Anigel e o Príncipe Antar no cais, não muito distante da cena da batalha. Os wyvilos conduziram os dois humanos para o abrigo de um armazém, porque a chuva era agora torrencial.
— A chuva vai apagar os incêndios, mas não deterá os glismaks — observou o porta-voz de Let. — Já recebemos uma delegação deles com o pedido de resgate. E concordamos em pagar. Este porta-voz teme, Princesa Anigel, que tenham chegado tarde demais.
Anigel, cansada, sentou num fardo de mercadorias, com o chapéu e a capa de Immu, e não respondeu. Vendo que a princesa parecia hesitar, o príncipe adiantou-se.
— Deve lembrar-se de mim. Sou Antar, Príncipe Herdeiro de Labornok, que vocês expulsaram do seu povoado há algumas semanas. Sou agora servo desta grande dama, que por duas vezes salvou minha vida, como são também os meus homens que vivem ainda. Viemos até aqui enfrentando um grande risco para ajudá-los. Antes de capitular aos seus inimigos, permita que eu explique o tipo de assistência que podemos oferecer.
— Fale — disse Sasstu-Cha com sua voz profunda e não-humana. — Mas devem saber que os glismaks invasores são mais de mil, que mais ou menos um terço dos nossos foi capturado, alguns já foram devorados e não podemos lutar mais esta noite.
— Isso não será necessário — disse o príncipe. Segurou a mão de Anigel, gentilmente a fez levantar-se, e tirou a capa de chuva e o chapéu que ela usava.
Quando viram o talismã, os wyvilos ficaram deslumbrados e dos olhos de um velho grisalho correram lágrimas oleosas.
— O Monstro de Três Cabeças! — exclamou ele, na língua dos humanos. — Graças sejam dadas à Flor, ela o tirou da árvore!
— E com ele abateu o chefe de uma horda de glismaks e derrotou seus guerreiros, chamando o relâmpago dos céus.
— É verdade? — Sasstu-Cha perguntou para Anigel.
— Sim, é verdade — respondeu ela.
Uma nova luz brilhava nos olhos da princesa e nova força invadia seu corpo cansado. O âmbar com o trílio cintilou no metal branco da tiara, iluminando a flor negra aberta no seu interior.
— Pode transformar em cinzas os demónios comedores de carne? — perguntou o velho, ansioso.
— Leve-me até os glismaks — disse Anigel — e verá o que posso fazer.
Na outra extremidade do povoado, onde um canal estreito separava Let do continente, os glismaks tinham ancorado uma frota enorme de barcos toscos para transportar os despojos da luta. Quando Anigel chegou, os wyvilos derrotados já haviam emp;lhado sacos de mantimentos e outros objetos que estavam sendo examinados pelo chefe dos glismaks, Hak-Sa-Omu, e seus ajudantes.
Mais de uma centena de glismaks fortemente armados, com as presas sujas de sangue arreganhadas, enfileiravam-se no cais, indiferentes à chuva pesada que caía. Outros revistavam as ruelas próximas, à procura de corpos carbonizados, que reclamavam também como despojos de guerra. Outros ainda estavam nas canoas, enquanto o grosso do exército glismak esperava no continente a divisão do produto do saque.
O porta-voz Sasstu-Cha dirigiu-se ao chefe dos glismaks no dialeto dos nativos. Depois de uma conversa animada, Anigel adiantou-se e tirou o chapéu. O âmbar na tiara iluminou o cais varrido pela chuva como um farol e os glismaks, em uníssono, soltaram um brado de desafio.
— Silêncio! — ordenou Anigel. E os nativos ferozes obedeceram.
Então, ela começou a falar na língua dos nativos, mas Antar duvidava que todos os presentes pudessem entender.
— Vocês sabem quem eu sou. Seus irmãos do Vale Kovuko comunicaram-se com vocês, através de léguas de distância, contando o que eu fiz. O talismã é meu e uma vez que vocês são do povo da Flor sabem que sou uma das Três Pétalas do Trílio Vivo. Essa é a verdade e pretendo trazer a paz a toda esta terra.
Suas palavras foram abafadas por um coro de rugidos e assobios, mas ela ergueu o braço e um relâmpago poderoso cruzou o céu, seguido pelo trovão, que silenciou todos os glismaks.
— Vocês, glismaks, são pobres. Seus primos, os wyvilos, são ricos. Vocês os matam e roubam seu povoado desde tempos imemoriais e comem sua carne porque é um costume herdado dos seus cruéis ancestrais. Mas eu digo que não farão mais isso! Um novo dia chegou. Os costumes antigos se foram e não voltarão..
Olhando para ela e ouvindo suas palavras, Antar de repente gelou de terror. Ali na frente dos seus olhos, a jovem bela e graciosa estava se transformando. Anigel ficava cada vez mais alta. Suas roupas tinham desaparecido, substituídas por um manto de luzes brilhantes, vermelhas, azuis e brancas. Agora Anigel estava mais alta do que as casas próximas e erguia-se para o céu tempestuoso, com os braços levantados, os cabelos em chamas, o âmbar na sua testa incandescente como um pequeno sol, sua voz o som de milhares de clarins.
— Farei a paz entre os wyvilos e os glismaks! Paz entre sua raça e a raça humana! As coisas boas serão compartilhadas. Os filhos dos glismaks não farão da guerra sua profissão, como seus pais, mas aprenderão a trabalhar. Ninguém matará ninguém, sob pena da minha ira, nem comerá a carne do seu semelhante!
À medida que a princesa crescia, os glismaks gritavam, com as almas selvagens cheias de pavor. Os que estavam nos barcos encolheram-se e tamparam os olhos. Os outros, no cais e na margem oposta, atiraram-se de bruços, com o rosto no chão. Só o chefe, Hak-Sa-Omu, estava de pé, com os olhos esbugalhados e a boca escancarada.
— Não levarão as mercadorias empilhadas neste cais! — disse Anigel. — Os glismaks devem se retirar com as mãos vazias e permanecer em suas casas até o fim das chuvas, meditando sobre minhas palavras. Se ousarem se armar e fazer guerra outra vez, serão vítimas da nossa ira — três trovões soaram em rápida sucessão —, e os desobedientes não viverão para ver as boas coisas que serão concedidas aos glismaks que obedecerem às minhas ordens!
A figura gigantesca agora tinha três cabeças, todas coroadas com o trílio.
— Falamos agora com Hak-Sa-Omu, chefe dos glismaks! Está ouvindo, miserável?
O chefe disse alguma coisa com voz trêmula e chorosa. O Príncipe Antar viu que ele tremia da cabeça aos pés.
— Vai levar seu povo daqui e fazer o que mandei? A resposta murmurada só podia ter sido afirmativa.
— Vai esperar em paz a minha volta? Outra afirmativa.
— Então, vá!
Uma detonação final cegou e ensurdeceu a todos, a figura gigantesca desapareceu e com ela Anigel.
Hak-Sa-Omu deu uma ordem rápida, e ele e todos os seus guerreiros correram em desordem para as canoas, que se afastaram rapidamente da margem. Os glismaks então abandonaram seus botes e desapareceram na noite.
A pequena Princesa Anigel surgiu de trás de uma pilha de móveis, vestida outra vez com sua roupa de caçador e com o cabelo louro caído ao lado do rosto. Sorriu para os dignitários wyvilos e para o príncipe que correu para ela.
— Você conseguiu! — exclamou Antar. — E sem matar ninguém!
— Foi tolice minha não pensar nisso antes — disse ela, calmamente. — Os glismaks são como crianças. Não podemos discutir ou usar a razão com crianças, especialmente quando têm instintos assassinos. Infelizmente, nessas circunstâncias, tudo que podemos fazer é assustá-las para que se comportem. Mais tarde então, podemos conversar com elas e ensinar o que é certo.
— Tem razão — disse Sasstu-Cha, com um gesto afirmativo. — Qualquer pai ou mãe sabe disso.
— Eu não poderia matá-los — admitiu Anigel, em voz baixa, só para Antar e o porta-voz. — Mas não foi necessário. Aparentemente, posso manifestar qualquer tipo de pensamento por meio do talismã. Assim, os glismaks fugiram, e eu disse que eles são do meu povo e que eu os amo.
— Assim como nós seremos seu povo — disse o porta-voz. — E este aqui, princesa conquistadora, declara que somos agora seus devedores, e nossa honra exige que paguemos o ato sem precedentes que realizou esta noite.
Todos os wyvilos que estavam próximos juntaram suas vozes concordando com o porta-voz, pois mesmo os que não entendiam a língua da princesa compreenderam o que estavam dizendo.
Anigel baixou os olhos por um momento. A chuva continuava, mais branda agora, e havia estrelas no céu a sudoeste. Poderiam ter ainda alguns dias claros até a festa das três luas.
— Queridos amigos — disse a princesa. — Seus inimigos glismaks são crianças grandes. Mas agora devo enfrentar inimigos realmente adultos — não só por meio da guerra, mas também para anular encantamentos do espírito do mal. Eles não se impressionarão com meu espetáculo tolo de horror, nem se comoverão com minha promessa de amor. Fui enviada a esta busca pela Dama Branca, a quem nós todos reverenciamos. Há muito tempo, no dia do meu nascimento e de minhas irmãs, ela disse que somos as Três Pétalas do Trílio Vivo e que teríamos de enfrentar um destino terrível. Disse também que tudo acabaria bem. Durante todo o tempo da minha busca, não consegui acreditar nessa última parte da profecia. Agora eu confio nas palavras da Dama Branca. Segurou a mão de Antar e o puxou para ela.
— Aqui está o próximo rei legítimo de Labornok. Ele é um homem bom. Na Cidadela de Ruwenda está seu pai, o malvado Voltrik. Devo partir para a Cidadela amanhã ao nascer do dia e lá tirarei o Rei Voltrik do trono de Ruwenda que ele usurpou. Sasstu-Cha, se você e seu povo querem realmente me pagar, então venham comigo e me ajudem a recuperar meu reino.
— Temos cerca de quinhentos guerreiros, princesa, e eles a acompanharão a qualquer lugar. Nosso chefe guerreiro, Lummomu-Ko, foi levemente ferido e está no hospital. Mas amanhã estará às suas ordens. Pode ter qualquer coisa que quiser de nós.
— O Príncipe Antar comandará os que me seguirem — disse Anigel. — Agradeço a você e ao seu povo de todo o coração por se aliarem à minha causa, porém, devo avisar que meus inimigos são poderosos...
— O seu talismã também é — disse Sasstu-Cha.
A princesa suspirou. Tirou a tiara da cabeça e a guardou dentro da túnica.
— Deixarei que descanse pelo resto desta noite. Eu também descansarei, pois estou exausta.
— Você e seu príncipe devem aceitar a nossa hospitalidade — disse o porta-voz, imediatamente.
Os outros wyvilos curvaram-se sorridentes e com muitos gestos e palavras pediram a Anigel e Antar para segui-los. Passaram pela rua de casas incendiadas e chegaram à parte intacta do povoado. Depois de algum tempo, as nuvens desapareceram e as Três Luas iluminaram a terra, refletindo-se nas águas quietas do rio.
Anigel despiu-se e se deitou no quarto alegremente cedido à salvadora de Let pela filha mais velha do porta-voz. De repente, teve a impressão de estar sendo observada. Levantou-se, foi até as janelas, examinou o closet e até debaixo da cama, mas não havia ninguém.
Então viu a luz do talismã pulsando sob as peças de roupa.
Anigel apanhou a tiara com certa relutância. Não queria usá-la naquele momento. Não chegava, por um dia? E se tivesse outra visão horrível, que lhe roubasse o sono de que precisava tão desesperadamente?
Ponha a tiara na cabeça.
— Oh, oh, excremento de lothok — exclamou a princesa com petulância.
Sentada na cama de estilo ruwendiano, pôs a tiara sobre os cabelos louros.
— Kadi! — exclamou Anigel, quase desmaiando de felicidade. Lá estava sua irmã, com os olhos cintilantes e um grande sorriso no rosto sujo. Estava ao lado de uma fogueira rodeada por um grande número de uisgus sorridentes e tinha no colo uma coisa brilhante, como uma espada sem ponta com três esferas no punho e no centro o amuleto do trílio na pedra de âmbar.
— Finalmente você respondeu! — disse Kadiya, em tom levemente irritado. — Tem estado tão preocupada com você mesma que não deu nenhuma atenção aos meus chamados. Também, nunca esperei ouvir essas palavras da sua boca.
— Kadi, Kadi! — Anigel ria e chorava ao mesmo tempo. — Você está viva e salva!
A irmã brandiu o objeto brilhante.
— Graças ao Olho Chamejante de Três Partes, meu talismã.
— Eu vi você... — Anigel hesitou. — Meu talismã mostrou-me você capturada pelo General Hamil.
Kadiya ficou séria.
— Eles me capturaram, um bando de batedores do exército de Hamil, logo depois que consegui o talismã. Eu não tinha idéia do que isto — ergueu a espada — podia fazer. A Voz Vermelha de Orogastus foi o primeiro a saber, quando morreu. Depois disso, ninguém ousou tentar tirá-lo de mim, mas Hamil pensou que podia me obrigar a entregá-lo a ele. Quis usar as prisioneiras uisgus para isso.
— Oh, Kadi, é monstruoso!
Kadiya franziu a testa.
— Minha irmã, não há nada de misericordioso na guerra em que lutamos agora. Você ainda não aprendeu isso? Há poder nisto. — Olhou para a espada sem ponta. — Mas o poder é uma carga pesada — devemos usá-lo com parcimônia, Anigel, e sempre com a mente muito clara. Até a ira pode servir, mas deve ser controlada. Isso faz parte do que eu aprendi.
— Então o seu talismã — murmurou Anigel — a mudou, como o meu. Não sou mais uma chorona covarde...
— Meu talismã deu-me um poder que eu devo aprender a combinar com justiça. Hamil e os skriteks, que ele usou como armas monstruosas, foram julgados e não percorrerão mais estes caminhos. Pois mesmo uma espada de misericórdia, como esta, pode matar.
— Eu também usei meu talismã para matar — disse Anigel, com voz hesitante. — Mas só uma vez e por acidente. De modo nenhum eu serei capaz de repetir isso.
— Eu posso — disse Kadiya, em voz baixa e calma —, se for necessário. E talvez seja. O resto do grupo de Hamil está agora voltando para a Cidadela. Enquanto isso, os uisgus e os nyssomus se reúnem. É um pequeno exército que cresce a cada hora. Escolheram-me para sua líder. Que o talismã permita que eu os sirva tão bem quanto eles vão nos servir.
— Eles nos ajudarão a retomar nosso reino?
— Disseram que sim. Os uisgus, que pareciam tímidos e medrosos na feira de Trevista, mas que na verdade são criaturinhas corajosas e mais fortes do que parecem. Viajam rapidamente em barcos puxados por uma espécie de pelrik gigante..
Anigel riu.
— Eu sei. Sou amiga de sangue dessas criaturas e viajei com elas.
— Sim, eu vi — disse Kadiya, com um sorriso. — E amanhã vai partir com seu exército, a caminho da Cidadela. E seu namorado principesco é agora seu general!
Anigel corou e disse, zangada:
— Ele não é meu namorado! Mas é um homem nobre e leal e jurou que será meu escravo para sempre.
Kadiya apenas sorriu.
Anigel pensou então num assunto mais importante.
— Kadi, além de ter visto você capturada por Hamil, tive outra visão horrível. Meu talismã mostrou Haramis com Orogastus e ela parecia enfeitiçada por ele!
Kadiya ficou séria outra vez.
— Há mais do que encantamento entre os dois... Ani. Eu vi Haramis e temo que nossa irmã esteja apaixonada pelo feiticeiro infame. Ou talvez apaixonada pelo poder que ele prometeu compartilhar.
— Não é possível!
— Sim, é — disse Kadiya, com ar sombrio. — Esta noite falei com a Dama Branca, por intermédio do meu talismã. A Arquimaga está muito perto da morte e deseja que Haramis a visite, mas Haramis insiste em ficar com o feiticeiro. Chamei Hara, mas ela não respondeu. Pode tentar falar com ela, mas não se surpreenda se não tiver resposta. As pessoas apaixonadas não pensam em mais ninguém a não ser no objeto do seu amor.
— Isto é horrível. A pobre Dama Branca! E nossa irmã. Se ela foi seduzida por Orogastus, então seu talismã deve estar controlado por ele. O que podemos fazer?
— Nada. A Arquimaga realizou a tarefa que se impôs. Nós três temos nossos talismãs. Porém, somos espíritos livres, você, eu e Haramis, e devemos fazer nossas escolhas.
Anigel disse com a voz trêmula de preocupação:
— Você sabe que, para a mágica funcionar totalmente, os três talismãs devem estar unidos. E há neles um potencial para o mal tanto quanto para o bem.
— Sim. Aprendi isso com alguém que encontrei na minha viagem, um servo dos Desaparecidos, se não me engano.
— Dos Desaparecidos? Mas como...
— É uma longa história que terá de esperar. Descanse agora, minha brava irmãzinha, e eu vou descansar também. Logo nos encontraremos na Cidadela.
Quando a imagem de Kadiya desapareceu, Anigel tentou chamar Haramis. Viu a irmã dormindo, mas, como Kadiya disse, Haramis não ouviu o chamado mental, completamente absorta, sonhando com Orogastus.
Anigel tirou a tiara. A luz do talismã diminuiu.
Não vou poder dormir, pensou ela. Mas então teve a idéia de tocar o talismã e pedir um sono reparador. Depois de um momento Anigel adormeceu suavemente.
De manhã, Anigel, Antar e uma grande frota de guerreiros wyvilos foram apanhar os cavaleiros acampados na outra margem do rio. Depois, subiram rapidamente o Grande Mutar, para a Catarata Tass, onde descobriram que o resto dos labornoks havia abandonado a posição, ignorando as ordens do príncipe.
Uma terceira tempestade se anunciava quando Anigel, Antar e seu povo pararam perto da catarata para resolver o que fariam. A princesa usou o talismã para uma imagem da cidade de Tass e verificou que estava quase deserta. Todas as barcaças dos labornoks do grupo de busca do príncipe, bem como as dos soldados da guarnição, tinham partido para a Cidadela, antecipando a chegada das chuvas. Não haveria inimigos no topo da catarata, mas também não teriam nenhuma embarcação de grande porte para transportar o exército de wyvilos até a Cidadela.
— Subiremos o elevador de madeira — disse o Príncipe Antar. — Se fizermos várias viagens, podemos levar todas as canoas para cima. Então, esperaremos passar a tempestade e subiremos o Lago Wum a remo, até a embocadura do Baixo Mutar.
— Não, príncipe — disse o chefe Lummomu-Ko, dos wyvilos, adiantando-se. — Há um meio muito melhor de atravessar o lago. E não teremos de esperar o fim da tempestade. — Então explicou seu plano para Antar.
Embora fosse um homem corajoso, o príncipe empalideceu.
— Isso é possível? — perguntou Anigel, atónita.
— Até humanos já fizeram — disse Lummomu-Ko, com superioridade. — Há um certo perigo, é claro. Mas se conseguirmos, estaremos em Ruwenda dentro de poucas horas.
— Então é o que faremos — resolveu a princesa. Começaram a cair os primeiros pingos pesados de chuva.
Os wyvilos não se abalaram. Estavam à vontade tanto no sol quanto na chuva.
A princesa reuniu os cavaleiros.
— Meus amigos humanos, guardem suas armaduras, pois não vão precisar delas por algum tempo, e então seguiremos nosso caminho. Quando chegarmos à Cidadela, nos esconderemos no pântano próximo. De lá, convocaremos todos os nobres e o povo de Ruwenda que fugiram para o pântano, para nos ajudar a retomar nossa terra. Minha irmã, a Princesa Kadiya, também se dirige para a Cidadela com um grande exército de guerreiros uisgus. Se Deus quiser, estaremos preparados para enfrentar nosso inimigo na festa das três luas.
Anigel pôs na cabeça o chapéu de abas largas de Immu, para proteger os olhos da chuva, e foi a primeira a entrar no elevador de madeira.
Mais tarde, naquele mesmo dia, uma criatura faminta e patética chegou ao povoado de Let, sob a chuva forte, remando numa jangada de junco, e caiu desmaiada no cais. Os wyvilos viram que ela era do povo do pântano, portanto sua parenta, e resolveram ajudá-la. No dia seguinte, ela voltou a si perguntando pela Princesa Anigel. Os wyvilos ficaram atónitos.
— A Grande Dama está a caminho da Cidadela — disseram os wyvilos da floresta —, com seu talismã mágico na testa e um exército de wyvilos sob seu comando. Nossos guerreiros nos informaram que vão atravessar o lago nas asas da tempestade, sobre as grandes toras amarradas, com velas para aproveitar o vento.. Mas por que uma pobre coitada como você pergunta por ela?
— Pobre coitada pobre coitada pobre coitada! — gritou Immu. — Porque ela precisa de mim, só por isso!
E Immu fez tanto barulho e tanta desordem que eles concordaram em lhe dar uma canoa quando a tempestade passasse, com três jovens e fortes wyvilos nos remos. Assim, Immu partiu em busca da sua princesa.
Horogastus e Haramis dirigiram-se para a Caverna do Gelo Negro. A princesa estava ansiosa para verificar se o tão decantado espelho era mesmo mágico ou apenas outro instrumento dos Desaparecidos, como suspeitava.
Na frente da porta coberta de gelo, antes de entoar o encantamento chamando os Poderes das Trevas, Orogastus olhou para Haramis e viu os olhos azuis muito grandes e muito brilhantes sob a máscara prateada e os lábios entreabertos num sorriso de expectativa.
O feiticeiro pensou que nunca Haramis lhe parecera tão bela e tão desejável, com a coroa de estrela e vestida de negro e prata, as cores do seu acordo com os Poderes das Trevas. Orogastus não se conteve e, segurando o rosto de Haramis com as duas mãos, beijou-a na boca.
Seus lábios separaram-se relutantemente e o feiticeiro suspirou.
— Espero que os Poderes não se ofendam. Mas vendo-a assim tão bela, tão misteriosa e tão perto de mim... Oh, Haramis, fique comigo! — implorou, envolvendo-a nos braços. — Sei que a Dama Branca a chamou. Mas ela vai tirála de mim, com suas velhas meias-verdades e meias-mentiras, e dominar sua vontade.
— Se não fosse por ela, eu não teria nascido — lembrou Haramis. — Devo ouvir suas últimas palavras. Ela me deu o Trílio Negro, ela me enviou nesta busca. Tenho certeza que me guardou e me guiou quando eu estava prestes a morrer nas montanhas. Não posso ignorar o seu pedido. Se você disse a verdade, nada tem a temer dessa visita.
— Ela vai tirar a coroa de Ruwenda de você!
— Não. Ela guarda a coroa para mim. E com a coroa ou sem ela, eu sou a rainha de Ruwenda, não importa quais os soldados que ocupem a Cidadela! — Seus olhos encontraram os dele com desafio.
Orogastus suspirou.
— Por que discutir aqui neste frio? O espelho de gelo nos espera.
Ele começou uma evocação solene dos Poderes das Trevas, pedindo para os dois a complacência de entidades que, para Haramis, provavelmente nem existiam. Pobre homem iludido! Mas ela não sorriu. Deixaria que os outros acreditassem nos poderes mágicos de Orogastus, enquanto ela continuava a avaliar sua sinceridade. Começava a se convencer de que a maior parte dos poderes extraordinários de Orogastus nada tinha a ver com magia. Mesmo assim, ele os usava. Poderão ser anulados pela minha mágica? pensou ela, lembrando-se do pequeno bloco ”mágico”. É provável que sim, mas acho melhor não experimentar neste precioso espelho de gelo — ele me mataria, sem dúvida, se eu o estragasse. Não, devo observar e aprender.
Quando entraram na sala do grande espelho de gelo, e Orogastus chamou o demónio que morava nele, Haramis não precisou fingir seu espanto. O feiticeiro havia sugerido que procurassem ver suas duas irmãs e ela concordou imediatamente, sentindo-se culpada por não procurar se comunicar com elas há tanto tempo, com seu talismã. Porém, depois daquela primeira vez, quando verificou que as duas estavam seguras, esquecera-se delas, voltando-se para as próprias preocupações que pareciam muito mais importantes...
Agora, obedecendo à ordem de ficar em silêncio, esperou que Orogastus terminasse seu pedido e que o espelho (que Haramis verificou tratar-se de uma espécie de máquina, e por sinal muito malconservada) respondesse com um palavreado eco, mostrando primeiro um mapa, depois uma imagem espantosamente clara e colorida de Kadiya, depois de Anigel.
As duas viajavam por água, sob chuva pesada, é ambas estavam caladas. O espelho transmitiu os ruídos naturais que acompanhavam cada imagem.
Kadiya viajava com um verdadeiro exército de oddlings uisgus, num barco nativo feito de junco trançado. O mapa do espelho indicava que a frota uisgu estava no Alto Mutar, logo acima de Trevista. O grande rio corria turbulento, repleto de árvores arrancadas e outros objetos arrastados das margens. Mas nem a chuva, nem os obstáculos pareciam incomodar Kadiya ou seus pequenos companheiros. Alguns uisgus usavam armaduras de escamas douradas, como a princesa, e todos empunhavam armas primitivas. Mas Kadiya não tinha sequer sua pequena adaga, apenas o talismã, aquela coisa estranha que parecia uma espada de Misericórdia sem ponta.
A visão de Anigel era mais alarmante. O espelho mostrou uma jangada enorme feita de grandes toras de madeira amarradas com cordas fortes. Estava equipada com um mastro e uma grande vela quadrada, que apanhava o vento e conduzia a jangada velozmente, vencendo as ondas enormes do lago. Anigel estava agachada calmamente numa cabine minúscula, molhada até os ossos, com a tiara talismã na cabeça. Uma grade protetora rústica fora erguida em toda a volta da jangada e os cabos com uma das pontas presas a ela e a outra no mastro serviam de apoio para os numerosos passageiros. Alguns deles eram humanos, deitados de bruços, sujos e molhados, outros eram oddlings de aspecto estranho, altos, que pareciam estar se divertindo muito com a viagem perigosa.
Haramis teve o cuidado de só falar quando o espelho se apagou, embora as perguntas fervilhassem em sua mente. Era evidente, pelas indicações do mapa, que suas irmãs dirigiam-se para a Cidadela e que ambas tinham encontrado seus talismãs e os estavam usando. A Dama Branca teria dado a elas instruções especiais ou estavam fazendo aquilo por conta própria? Estariam pensando em atacar o exército armado do Rei Voltrik com aqueles bandos de nativos? Por acaso seus talismãs as faziam acreditar que essa loucura teria sucesso?
Como se lesse seus pensamentos, Orogastus disse, quando o espelho se apagou:
— Suas irmãs usaram seus talismãs para matar.
Paralisada de espanto, Haramis olhou para ele sem dizer palavra. Orogastus a conduziu para fora da câmara e para o túnel que levava à sua torre.
— Kadiya e Anigel pensam que podem libertar" Ruwenda usando seus talismãs como armas mágicas — com a ajuda dos seus amigos oddlings e do Príncipe Antar, que traiu o rei seu pai e colocou-se a serviço da causa da Princesa Anigel. Ela salvou sua vida na Floresta Tassaleyo e agora ele está completamente apaixonado. É claro que nenhuma das duas tem a menor chance contra Voltrik. Não compreendem ainda como funcionam seus talismãs, nem quais as suas limitações. Sem dúvida pensam que basta brandir o objeto mágico para que os inimigos caiam mortos... Mas isso não vai acontecer. Voltrik está protegido por minha mágica poderosa, sob o comando da minha Voz Verde.
— Oh, as duas tolinhas! — gemeu Haramis. — Não posso acreditar que a Arquimaga as tenha mandado atacar a Cidadela. Estão fazendo isso por conta própria!
— Os talismãs de Anigel e de Kadiya não foram feitos para serem usados separadamente. Minhas pesquisas deixam isso muito claro. Os Desaparecidos usavam essas três partes como um único talismã, o grande Cetro do Poder, para estabelecer um misterioso equilíbrio no mundo. É seu dever, Haramis, reunir outra vez o Três em Um. Com ele em suas mãos, poderá governar um mundo renascido para a paz e a prosperidade.
— Eu? Governar o mundo?
Ela riu. Foi como se sua mente se tivesse congelado ao ouvir essas palavras e Haramis as rejeitou imediatamente. Perguntava a si mesma qual seria o grande plano que a Dama Branca havia ocultado delas e que talvez fosse revelar agora. Irei ver a Arquimaga, logo que for possível, resolveu.
Enquanto atravessavam apressadamente o túnel, Haramis olhou para Orogastus através da máscara e viu que os lábios dele estavam apertados numa linha dura. Ele não estava falando levianamente. Acreditava no que dizia e era melhor levá-lo a sério. Haramis precisava procurar a Arquimaga imediatamente e exigir uma explicação sobre o tal Cetro do Poder. Mas, e suas irmãs? Se Voltrik ainda não sabia, logo seria informado pelo feiticeiro sobre sua intenção de atacar a Cidadela. O rei enviaria seu exército — e sem dúvida Voz Verde também — ao encontro delas.
— Orogastus — perguntou Haramis —, pode evitar que Voltrik envie seu exército para combater minhas irmãs? Deixe-me convencer as duas da tolice desse plano!
— Se elas se retirarem imediatamente para o interior do pântano não correrão perigo imediato. Os soldados de Voltrik dificilmente estarão dispostos a uma guerra ofensiva, ou mesmo a organizar uma perseguição durante a estação das chuvas. Mas acredita que suas irmãs vão ouvir seu conselho?
— Sempre me ouviram antes. Mas agora, com seus talismãs... — Haramis não terminou a frase, preocupada e ansiosa.
— Posso dar ordem à Voz Verde para não atacar suas irmãs com meus relâmpagos ou outras armas semelhantes. Mas é impossível evitar que o Rei Voltrik trate as princesas ou seu bando de oddlings como bem entender. Os talismãs não as protegerão. Se eu estivesse na Cidadela, podia convencer Voltrik. Mas daqui, trabalhando só através da Voz Verde, não posso.
Chegaram ao fim do túnel, entraram na torre e logo foram envolvidos por um calor agradável. Haramis segurou as duas mãos de Orogastus.
— Ainda há tempo. Para nós dois e para minhas irmãs. Não sei quais são seus planos e não quero saber enquanto não chegar a uma conclusão sobre nós dois. Mas, se eu voar até a Arquimaga e resolver, você me esperará na Cidadela para saber a resposta? E, enquanto me espera, vai tentar convencer o Rei Voltrik a não enviar seu exército contra Anigel e Kadiya? Eu posso fazer com que elas voltem! Sei que posso! Mas primeiro tenho de saber quais são as intenções da Arquimaga...
— Deixe-me orientá-la. Já tenho um plano..
— Não! — Haramis, pálida, trêmula, retirou o capuz com a estrela e não cedeu quando ele a abraçou e beijou no alto da cabeça.
— Minha querida, você fará o que deve fazer — disse Orogastus. — Porém, há uma falha muito grave na sua estratégia.
Não posso chegar tão depressa à Cidadela. Não conto, como você, com a ajuda dos lammergeiers.
— Pedirei a Hiluro para chamar um dos seus companheiros e ele o levará rapidamente.
Ele apertou o abraço.
— Faria isso? Confiaria em mim a esse ponto? Haramis ergueu para ele o rosto banhado em lágrimas.
— Você é um homem que há muito guarda em segredo o próprio coração. Talvez tenha erguido muralhas tão fortes para isolá-lo que nem sabe mais o que ele contém. Acho que não sabe ao certo qual o caminho que deve tomar. Assim como eu, terá de fazer sua escolha.
— Sim — admitiu Orogastus. Deixou cair os braços ao lado do corpo e evitou os olhos dela.
— O lammergeier virá buscá-lo — disse ela — e nos encontraremos na Cidadela um pouco antes da festa das três luas. Espere por mim.
Haramis afastou-se, deixando-o sozinho e imóvel, com a máscara prateada a seus pés, fixando nele os olhos vazios.
Naquele mesmo dia chegaram ao outro lado do Lago Wum, na louca corrida sobre as toras de madeira, e os wyvilos conduziram as estranhas embarcações para as ilhas da floresta do Pântano Verde, no delta no Baixo Mutar, protegidos pela tempestade.
Lá os nyssomus os esperavam com cem barcos, e saudaram a Princesa Anigel com grande respeito. Os pequenos nyssomus do pântano transportaram Anigel, seus cavaleiros e os wyvilos através de riachos secretos até uma ilhota seca desconhecida pelos humanos. O cômoro de terra, que se tornaria a base do exército de Anigel, ficava a poucas léguas de uma mansão no Rio Skrokar, que havia pertencido ao Lorde Manoparo dos Companheiros Fiéis e estava agora ocupada pelos labornoks. Porém, os edifícios externos e o solar da viúva abrigavam inúmeros membros da família Manoparo e seus servos e criados domésticos.
Os nyssomus locais haviam avisado a senhora do solar, Lady Ellinis, da chegada de Anigel. A senhora foi conduzida à ilhota isolada no meio da noite e cumprimentou a princesa com lágrimas e entusiasmo discreto.
Lady Ellinis era uma mulher de cabelos grisalhos com o rosto de traços finos marcados pelos sofrimentos recentes. Perdera o marido e dois filhos na defesa desesperançada da Cidadela. Sentou ao lado de Anigel, no abrigo feito pelos wyvilos, sob a copa molhada de chuva das árvores gondas, e conversaram sobre o plano da princesa para atacar a Cidadela ajudada por sua irmã Kadiya e seu exército de uisgus.
— Acho espantoso que estejam dispostas a tentar um ataque logo depois da conquista — disse Ellinis —, embora seja verdade que as forças de Voltrik não estão completamente preparadas, que seu exército está dividido e que terão de lutar em campo desconhecido, inundado pelas chuvas. Mesmo assim...! Vocês são tão jovens! Sem nenhuma experiência de guerra! E mesmo que os nossos nobres e fidalgos, espalhados por toda parte, venham em seu auxílio, como esperam, a maior parte do seu exército é de oddlings. Minha querida Princesa Anigel, desejo seu sucesso acima de tudo no mundo. Mas os labornoks são guerreiros experientes e tudo parece estar contra vocês.
Anigel levou a mão à tiara, onde o trílio cintilava dentro do âmbar.
— Não sei por que, mas estou certa de que a vitória será nossa. Talvez minha confiança neste empreendimento tão ousado seja obra do talismã. Tudo que posso dizer, querida Ellinis, é que tive de vir até aqui agora, no momento da conjunção das três luas, para atacar os labornoks na Cidadela. O mesmo acontece com minha irmã Kadiya.
Lady Ellinis aconchegou mais o manto ao corpo. Um pequeno braseiro ardia no abrigo e nele Anigel preparava chá darei contra a umidade penetrante. Ellinis disse:
— Fiquei atónita quando um nyssomu procurou-me secretamente e disse que vocês estavam atravessando o Lago Wum. Os oddlings podem se comunicar a distância, sem palavras, e suponho que tenham passado a notícia por todo o Pântano Labirinto...
— Para todo o seu povo, sim — concordou Anigel, solenemente. — Meus aliados, os wyvilos, nunca tiveram muito contato com os nyssomus ou com os uisgus. Porém, a conquista do nosso país pelos labornoks foi -um desastre, não só para os humanos de Ruwenda, como também para os nativos que vivem entre nós. Assim, os wyvilos abandonaram seus costumes tradicionais e até os pacíficos nyssomus estão dispostos a nos ajudar do melhor modo possível.
A chuva cessou, uma neblina densa pairava no ar. Os wyvilos construíam abrigos de palha e bambu para eles e para os que iam chegar. Como todos os do seu povo, enxergavam muito bem no escuro e trabalhavam com eficiência, como se fosse dia claro.
Lady Ellinis olhou para um wyvilo alto, que segurava um machado, e estremeceu.
— Eu nunca tinha visto um oddling da Floresta Tassaleyo e confesso que os acho assustadores. Não são tão feios quanto os skriteks, e parecem mais civilizados, mesmo assim, admira-me que você confie tanto neles.
Anigel sorriu.
— Seus rostos são horríveis, mas são nobres de coração e adoram o Trílio Negro, como seus primos menores. Graças aos wyvilos enviamos mensagens, através dos nyssomus, para os grupos de ruwendianos livres, que estão vindo de todas as direções para se juntarem a nós.
— Meu povo e meus três filhos estão às suas ordens — disse Ellinis. — E vocês podem dispor dos alimentos que conseguimos esconder do inimigo. Mas já temos cerca de quinhentos oddlings aqui e você disse que espera um número três vezes maior, ou talvez mais, de nyssomus e humanos que deverão chegar nos próximos dois dias. Receio que não tenhamos alimentos para todos para mais de poucos dias.
— Não ficaremos aqui por muito tempo. Se não vencermos na festa das três luas, teremos de nos retirar — confessou Anigel. — Mas vamos vencer. Eu sei!
A princesa estava de pé, com expressão decidida, ainda com o traje de caça dado pelos wyvilos. Lady Ellinis notou com admiração a diferença entre a mulher que via agora e a princesa frágil e fútil que havia encontrado há cinco semanas, num baile, antes da invasão. Aquela Anigel era uma figurinha tímida e ornamental, de cabeça vazia, interessada apenas nos mexericos da corte ou na moda do momento. Esta nova mulher era assustadora na sua dedicação, e Ellinis mal podia acreditar. Anigel serviu o chá, sem nenhum sinal da sua antiga futilidade, graciosa e confiante, como se a jarra de barro fosse um bule de prata e o abrigo úmido e invadido pelo vento, o solar da rainha, na Cidadela. Aos poucos, as dúvidas de Ellinis desapareceram e ela começou a achar que a aventura não era tão impossível, afinal.
— Este Príncipe Antar — disse Ellinis, em voz baixa. — Quando o apresentou, percebi claramente que ele está apaixonado por você. Entretanto, julgo meu dever aconselhá-la a não confiar muito nele.
Concordando com um gesto, Anigel sentou-se outra vez e disse, com voz inexpressiva:
— Ele jurou lealdade a mim, bem como a maioria dos seus homens. Porém, três cavaleiros recusaram-se a fazer o mesmo e estão sendo vigiados de perto — e são excluídos dos nossos conselhos de guerra.
— Mas, afinal de contas, Antar e seus cavaleiros são labornoks!
— Querida Ellinis, não sou mais tão simplória e confiante como antes e é verdade que o Príncipe Antar precisa ainda provar sua lealdade. Você disse que ele me ama, e é verdade também. Mas eu sinto por ele apenas um profundo respeito e, assim mesmo, muito cauteloso.
— Ótimo! — disse Ellinis enfaticamente.
— Porém, tenho de confiar em Antar para certas coisas, pois não entendo nada de táticas de guerra. Se vencermos, será sob seu comando. Não sei o que há no fundo do seu coração, mas estou certa de que é um homem bom, e que abomina a crueldade do pai, o Rei Voltrik. Disse-me que muitas pessoas do seu povo pensam assim, e talvez possamos, por intermédio dele, dividir os labornoks.
— Rezarei para que você esteja certa.
Conversaram por mais algum tempo e Ellinis levantou-se para partir. A dama da mansão beijou Anigel, como era hábito, mas a princesa não esperava a profunda reverência da castelã, antes de se retirar com sua acompanhante e com o guia nyssomu.
Antar entrou no abrigo quando Ellinis saía e Anigel disse:
— Ela nunca me tratou com tanta deferência antes. Na verdade, como uma mulher sensata, jamais deu muita atenção à minha pessoa.
— Pois então devia ser uma tola — observou o príncipe, sorrindo. — Mas vim para dizer que seu acampamento cresce rapidamente e já temos abrigos suficientes, para o caso de a chuva recomeçar. — Continuou, preocupado: — O chefe wyvilo Lummomu-Ko acha que os nyssomus, embora cheios de boa vontade, nunca serão bons guerreiros. São muito pequenos e a única arma que sabem usar com eficiência é a zarabatana. Num assalto frontal serão inúteis. Só poderão ser usados em escaramuças e ações irregulares.
— Pois então façam planos para isso — disse Anigel, serenamente. — Tem uma estimativa do número de humanos com que podemos contar?
— Com sorte, setecentos ou oitocentos ruwendianos livres poderão vir até aqui ou chegar ao rio, abaixo da Cidadela, antes da festa das três luas. A maior parte será de cavaleiros ou soldados que fugiram para o pântano quando a Cidadela foi tomada, com alguns senhores e homens armados das mansões do sul, que não chegaram a nos enfrentar — quero dizer, não enfrentaram nossos inimigos — durante a invasão.
— Ótimo. Agora, se ao menos o Conde de Goyk e os outros senhores livres de Dylex chegarem a tempo... — Não terminou a frase e virou o rosto, para esconder o constrangimento.
Antar, que nunca ouvira falar do Conde de Goyk e não sabia nada sobre o papel desse nobre nos planos de Anigel, compreendeu que a princesinha temia ainda confiar inteiramente nele. O príncipe ajoelhou lentamente.
— Minha senhora, se me ordenar, não direi nada sobre o conde aos meus leais companheiros. Peço que confie em nós — mas, se não for possível, talvez seja melhor mandar me prender e aos meus homens. Assim, ficará livre de qualquer preocupação que possa causar nossa presença.
— Eu confio em você — disse Anigel, tristonha — e em quase todos os seus cavaleiros. Mas sinto que Sir Rinutar e seus amigos, Turat e Onbogar, podem nos trair. Sei que concordaram com uma trégua, mas acho que foi um grande erro trazê-los a este acampamento secreto. Devíamos tê-los deixado na margem do lago, como Lummomu-Ko nos aconselhou.
O príncipe curvou a cabeça.
— Talvez. Mas ilhados na tempestade, num pântano repleto de perigos desconhecidos. certamente morreriam antes de encontrar o caminho para a guarnição dos labornoks. Como você mesma disse.
— Eu não quero vê-los mortos! Mas também não posso permitir que nos traiam para o Rei Voltrik.
Sempre ajoelhado, Antar segurou a mão fria da princesa.
— Anime-se, princesa. Os três se perderiam em poucos minutos se deixassem esta ilhota e se aventurassem no pântano, e ninguém aqui os ajudaria a escapar. Meus quinze companheiros fiéis e eu mesmo os vigiaremos. Não tenha medo.
Com um suspiro, Anigel olhou para ele.
— Acho que tem razão. Estou tensa como uma corda de arco, preocupada com o que vai nos acontecer nos próximos três dias. O Conde de Goyk, que citei há pouco, inadvertidamente, governa o feudo mais distante de Ruwenda, a nordeste do Dylex, no sopé dos Montes Ohogan. Ele, o Conde de Prok e os outros senhores do leste não foram subjugados por seus homens de Labornok.
— Eu sei, seria a nossa primeira prioridade depois das chuvas de inverno. Para pacificar aquela região e também o sul.
— Quando os wyvilos concordaram em me ajudar, pedi que usassem sua comunicação sem palavras para descobrir os humanos não conquistados. Através dos nyssomus, fizeram contato com todos que fugiram da Cidadela e com certos nobres de guarnições fortificadas, como Lady Ellinis e mais algumas mansões do sul. Isso você já sabia. Porém, meus amigos wyvilos falaram também com os vispis, os nativos das montanhas. E os vispis nos informaram que os condados de Goyk e de Prok ainda estavam livres.
O príncipe fez um gesto afirmativo:
— Compreendo. E então os oddlings das montanhas convocaram esses nobres para que viessem em sua ajuda.
— O Conde de Goyk é um homem obstinado e é também meu tio-avô Palundo. A princípio não quis acreditar no que dizia o povo das montanhas — que eu e minha irmã Kadiya estávamos prontas para atacar a Cidadela. Mas falei pessoalmente com os vispis, informando-os sobre certos segredos conhecidos somente pelos membros da família real, e meu tio Palundo finalmente se convenceu. Quando saímos de Let com os wyvilos, dois mil cavaleiros armados e soldados de Goyk e de Prok partiram dos seus condados distantes em barcos velozes. É uma longa viagem — mas os rios estão cheios, e ontem eles passaram pelo castelo de Bonor, cerca de sessenta léguas a oeste daqui. Se tudo correr bem, chegarão a tempo de nos ajudar.
Os olhos de Antar brilhavam.
— Ótimo, cada vez melhor! Oh, minha senhora, não imagina o peso que tirou do meu coração! Nossa situação não parece tão desesperada. Somos ainda em menor número, mas teremos muitos cavaleiros experientes ao nosso lado! — Beijou a mão dela, num transporte de alegria.
Anigel ficou rígida, depois, vendo o desaponto do príncipe, sorriu.
— Acha-me assim tão repulsivo? — perguntou Antar, tristemente.
— Não. De modo nenhum. Apenas — fiquei surpresa. Você compreende, tenho de pensar em tantas coisas.
Ela parecia tão pequena e confusa, aquela jovem mulher com a coroa mágica, sentada numa pedra coberta de musgo, com o rosto iluminado pelo pequeno braseiro, que o coração de Antar encheu-se de piedade e de amor. Ele levantou-se e virou o rosto para que Anigel não visse as lágrimas nos seus olhos.
— Sim, minha senhora, tem muito em que pensar. Demais até para uma pessoa tão jovem e de natureza tão sensível.
— Eu vou me sair bem — disse Anigel, secamente. Antar voltou-se para ela.
Agora eu a ofendi. Minhas mais humildes desculpas.
— Eu aceito. — Por um momento seus olhos se encontraram. Então, Anigel desviou os seus, absorta em outros pensamentos, e o sentimento que pareceu uni-los por um instante morreu antes de nascer.
Antar perguntou a si mesmo se havia realmente percebido alguma coisa. Sua vontade era professar em voz alta sua adoração — mas Anigel continuava a fitar uma das paredes do abrigo, tocando com a ponta dos dedos a tiara prateada.
— Desejo-lhe uma boa noite, então — disse ele.
Mas Anigel não respondeu. Escutava a imagem da sua irmã Kadiya que acabava de aparecer em sua mente.
— Haramis disse o quê?
— Ani, ela me disse para voltar. Foi uma ordem! Como se eu fosse ainda uma criança levada recusando-me a sair dos estábulos e voltar para casa!
— Ela disse por quê?
— Tem medo de que Voltrik saiba que estamos a caminho e que envie seus homens para nos impedir de chegar à Cidadela. Mas isso é ridículo! Os nyssomus saberiam imediatamente se um grande número de homens saísse da Cidadela. Eles nos avisariam e podíamos nos esconder nos atoleiros e nos remansos do pântano, onde nenhum homem da planície se aventuraria. Foi o que eu disse. Mas Haramis ficou irritada e jurou por seu amuleto e seu talismã que eu estou navegando para minha morte e que vou desbaratar um grande plano. Perguntei se o plano era dela ou de Orogastus e ficou furiosa.
— Acha que está enfeitiçada por ele, Kadi?
— Quem sabe. Ela já disse a você todas essas bobagens também?
— Não. Mas tenho estado tão ocupada e tão cheia de problemas que mal tive tempo para respirar.
— Se ela tentar falar com você — não responda!
— Kadi!
— Falo sério. E não conte nada mais sobre seus planos para Hara. Ela foi ver a Arquimaga, supostamente para ouvir da Dama Branca sua versão dos nossos destinos e o objetivo dos talismãs. Talvez nossa irmã apaixonada recobre o juízo em Noth. Mas não conte com isso. Não fale mais com ela. Haramis não deve saber nada sobre nossos planos até nos encontrarmos pessoalmente e esclarecermos tudo isto.
— Bem. acho que é a coisa mais prudente.
— Ela me disse também que o feiticeiro chegará amanhã à Cidadela.
— Como? Ele estava na montanha, com Hara.
— Ela emprestou um dos seus pássaros mágicos. Quando a censurei — na verdade, eu a chamei de idiota e de miolo de galinha —, Haramis insistiu, dizendo que estava agindo no nosso interesse.
— Agora teremos de lutar também contra os encantamentos de Orogastus, além do exército de Labornok. Oh, Kadi...
— Muito bem, não desanime. Hara acredita que o poder mágico de Orogastus é muito limitado. Segundo ela, sua taumaturgia baseia-se quase toda em certas máquinas fabulosas dos Desaparecidos! Os relâmpagos, as línguas de fogo e a chuva de aço que destruíram os fortes das colinas, o ruído horrível e ensurdecedor que apavorou as cidades de Dylex, até mesmo o pânico dos froniais dos nossos cavaleiros — tudo não passa de truques mecânicos, sem nenhuma mágica verdadeira!... Se Hara está dizendo a verdade...
— Kadi, eu não compreendo. Tem de existir mágica. Nossos Trílios Negros... nossos talismãs... a própria Arquimaga! A magia está no mundo todo!
— Não se preocupe, Ani. O importante é lembrar que não podemos permitir que nossa irmã nos detenha agora. Portanto, não dê ouvidos aos seus avisos malucos. Continuo muito à frente de Osorkon e seus homens, tenho mais de três mil uisgus comigo e elaborei um plano para invadir a Cidadela, evitando uma batalha fora do Knoll, onde certamente seríamos detidos pela cavalaria de Voltrik.
— Oh! Conte-me seu plano!
— Para você tagarelar com aquele covarde Antar? Nada disso. Vai saber quando nossos exércitos se encontrarem, na véspera das três luas.
— Você está fazendo mau juízo de mim e de Antar.
— Espero que sim. E espero estar fazendo mau juízo da nossa irmã também! Enquanto isso, tenha muito cuidado e encontre-me no lugar que vou mostrar... Quando estivermos juntas, vamos convidar o Rei Voltrik e Orogastus para uma comemoração especial da festa das três luas!
O dia estava nascendo quando Hiluro começou sua descida para Noth. Haramis, na noite anterior, tinha chorado até adormecer, e sonhou com uma conversa com Kadiya, na qual a irmã, escandalizada, censurava sua ligação com Orogastus. Kadiya sem dúvida teria tentado apunhalar o feiticeiro e seria destruída por um relâmpago — como ousava dizer que a conduta de Haramis era escandalosa! Agora, a princesa acordou com a luz do dia nos olhos cansados. Todos os seus músculos doíam, mas sua posição nas costas do pássaro não encorajava muito movimento. Assim, ela não via a hora de aterrissar.
Quando o lammergeier começou a voar em círculos sobre a torre de pedra da Arquimaga, Haramis olhou para baixo, atónita. Na sua última visita, a torre estava coberta de vegetação verde, com um gramado florido em toda a volta. Agora, apenas alguns galhos esqueléticos subiam pelas paredes e o que restava do gramado era marrom e cheio de ervas daninhas. A pouca água do fosso estava suja e cheia de espuma malcheirosa.
— O que aconteceu aqui? — perguntou Haramis em voz alta.
Hiluro estremeceu e por um momento ela pensou que o pássaro ia responder, mas ele continuou em silêncio.
Os soldados do Rei Voltrik teriam chegado tão longe?, pensou ela. Não. A destruição seria diferente. Eles teriam queimado e demolido tudo, mas isto parece apenas morto. Não há nenhuma razão para tudo secar desse modo, não nesta época do ano!
Lembrou do grande número de jardineiros que trabalhavam na Cidadela. Talvez com a iminência da morte da Arquimaga, seus empregados — Haramis lembrava-se de a Arquimaga ter mencionado um empregado, o mordomo — não tinham tempo para cuidar das plantas. Mesmo assim, não podia estar tudo morto!
O lammergeier aterrissou na extremidade da ponte levadiça e Haramis desceu, preocupada com o que ia encontrar lá dentro. A Arquimaga estaria morta? Estava bem forte na noite passada, quando falou comigo, pensou.
Uma sensação de urgência apossou-se dela e Haramis atravessou correndo a ponte, o pátio de mosaico, quase todo coberto de musgo morto, passou pela fonte agora seca, atravessou o jardim, um solo árido com algumas flores mortas espalhadas, as raízes ainda na terra que não as alimentava mais. Não ficou surpresa quando viu que a porta pesada que levava aos aposentos da Arquimaga estava aberta.
O quarto estava quente e abafado e um oddling — um nyssomu que Haramis não conhecia —, agachado perto da lareira, colocava pedaços de turfa no fogo. Ergueu os olhos quando a sombra da princesa, de costas para o sol nascente, caiu sobre ele.
— Senhora Haramis — disse o oddling. — Bem-vinda a Noth — ela disse que a senhora chegaria em tempo. — Indicou a cama com um aceno da cabeça.
— Saudações... Você deve ser Damatole — disse Haramis.
A Arquimaga dissera o nome apenas uma vez, por ocasião da sua última visita, mas Haramis fora ensinada desde pequena a lembrar o nome, o rosto e as características principais de todos que conhecia ou de quem ouvia falar. Seus pais consideravam essa habilidade uma parte importante da sua educação para ser rainha.
— Sim, minha senhora. — O pequeno nyssomu fez uma reverência. — É uma honra para mim servir à Senhora Binah e à princesa. Ela dorme agora, mas logo vai acordar. Aceita um pouco de chá?
— Aceito — disse Haramis, agradecida. — É claro que aceito. Muito obrigada, Damatole.
O oddling saiu apressadamente do quarto e Haramis, apanhando uma banqueta, sentou-se silenciosamente ao lado do leito da Arquimaga, observando a mulher adormecida.
Binah parecia pior do que da última vez que a vira, com a pele ressecada e flácida. Ela acordou quando Damatole voltou com o chá.
— Haramis — disse ela, falando devagar. — Você veio.
— É claro que vim — disse Haramis. — Você me chamou. Além disso, preciso de mais informações sobre o uso dos talismãs. Infelizmente, o fato de encontrar o Círculo de Três Asas não me ensinou como usá-lo. Na biblioteca de Orogastus encontrei alguma informação a respeito — incluindo um livro segundo o qual os três devem ser unidos para formar um cetro...
— Ainda não — interrompeu a Arquimaga. — Você não está preparada para controlar esse poder. Precisa adquirir muita sabedoria — muito mais do que possui.
— Onde vou aprender toda essa sabedoria? — perguntou Haramis, irritada e impaciente. — Patinhando na lama do pântano, enquanto o exército de Voltrik saqueia meu reino? Ou a encontrarei em minhas irmãs — que usam seus talismãs para matar?
A Arquimaga disse, com tristeza:
— Elas também não possuem a sabedoria necessária — suspirou. Depois de um longo silêncio perguntou, com voz severa: — Por que ficou tanto tempo com Orogastus?
Haramis franziu a testa, procurando a resposta certa.
— Eu estava tentando descobrir como ele é — você mesma me disse para procurar conhecer suas fraquezas. É estranho. Aparentemente ele pensa que os aparelhos dos Desaparecidos são mágicos — foi o que ele disse! Ficou muito zangado quando eu quebrei um deles — disse que o aparelho estava morto. Mas máquinas não têm vida, têm?
— Não — disse a Dama Branca. — E você pensa que os aparelhos são mágicos?
— Não. Não posso explicar exatamente, mas não sinto que sejam mágicos. Porém, magia ou máquinas, eles lhe dão poder e esse poder, seja lá o que for, pode causar muito mal. Enquanto esse poder existir, vou procurar saber como funciona!
— Então, procurou Orogastus para descobrir o uso do poder? Acha isso prudente?
— O que é prudente? — respondeu Haramis, com amargura. — Você estava aqui na cama quando meu lar foi invadido, meus pais terrivelmente assassinados e centenas de vispis chacinados, porque você os chamou tarde demais para enfrentar um inimigo muito mais poderoso. Isso é sabedoria? Se é, qual a vantagem em ser sábia e prudente?
— Sei que você está sofrendo e está confusa, Haramis — disse a Dama gentilmente —, mas deve aprender a olhar além deste momento para ver um cenário muito mais vasto.
— Isso — respondeu Haramis — foi exatamente o que Orogastus disse. E se meus pais eram nada e suas mortes sem importância... — Começou a chorar, magoada, zangada e desamparada. E agora você vai morrer também, pensou, no seu desespero, e ficarei sozinha com meu reino ocupado por soldados inimigos, minhas irmãs não sei onde, e o Rei Voltrik tentando nos matar. Não sei o que fazer e parece que ninguém sabe.
— Eu protegi Ruwenda durante um longo tempo — disse Binah, suavemente —, muito mais longo do que você pode imaginar. Amei a terra e seu povo e os guardei e ajudei a crescer como deviam. Foi um grande trabalho que me deu muito prazer. Mas agora meu tempo está no fim e o seu está começando. — Virou a cabeça e seus olhos se encontraram. — Você disse que Orogastus a convidou para ir à sua torre. Diga-me, Haramis, por que ele convidou a você e não às suas irmãs?
Haramis olhou espantada para a Arquimaga.
— Não sei — nunca pensei em perguntar isso.
— E agora, que sabe a pergunta, qual acha que é a resposta?
Haramis franziu a testa, tentando lembrar as palavras exatas do convite de Orogastus, bem como tudo que ele havia perguntado quando estava na torre.
— Acho que ele se sente muito sozinho — disse lentamente. — Falou da minha fama de estudiosa e do seu desejo de compartilhar seus conhecimentos comigo... Acho que está procurando alguém igual a ele, capaz de usar mágica e pensar como ele pensa, alguém que entenda o que ele diz.
— E você é igual a ele? — perguntou a Arquimaga, em voz baixa.
— Em certas coisas, sou — admitiu Haramis. — Não quero explodir ninguém com relâmpagos, nem invadir outras terras, nem matar pessoas — mas posso compreender o desejo de aprender, de tentar compreender o mundo...
— ...de ver os padrões da vida à sua volta?
— Sim — disse Haramis —, exatamente.
— E quando conquistar esse conhecimento, o que pretende fazer com ele?
— O que quer dizer?
— Usaria esse conhecimento para ferir e destruir, para manipular as pessoas e impor a elas sua vontade? — É claro que não! — respondeu Haramis, indignada. — Isso é errado. As pessoas devem ter liberdade de escolha e não serem usadas como fantoches para divertimento dos mais fortes e mais inteligentes. Mas, por que eu precisaria fazer alguma coisa com meu conhecimento? Por que não posso simplesmente estudar e aprender e ter prazer no que aprendo e no que posso ver? Por que terei de usar isso?
— Porque você é o que é e não pode esconder. Eu vejo, Orogastus vê e qualquer outro com algum conhecimento de magia pode ver. — A voz da Arquimaga era intensa agora. — Haramis, você compreende as palavras. A maioria das pessoas não conhece a importância das palavras, não sabe que dizer uma coisa significa dar a ela uma sombra de existência — e nomeá-la realmente significa lhe dar vida. Você ouve, escuta e lembra e isso é um dom muito raro. Sem ele, jamais poderá compreender a magia, a maior parte dela será praticamente inconcebível para você. Kadiya possui grande ardor e determinação e Anigel tem um coração amoroso e compassivo, porém esses dons, embora grandiosos e de grande valor, não são o que se exige para o uso completo da magia. Sua paixão é o conhecimento, Haramis, e isso, combinado com o sangue real de Ruwenda, fará de você uma maga. Se se negar o uso dessa habilidade, você — e eles — serão usados por pessoas como Orogastus.
— É por isso que me sinto como uma peça sem importância no jogo que você e Orogastus estão disputando? — perguntou Haramis.
Os olhos da Arquimaga chamejaram nas órbitas como se contivessem toda a vida que lhe restava.
— Você se sente como uma peça sem importância porque tem sido exatamente isso, Haramis. Mas está chegando na última casa do tabuleiro, onde pode escolher o que deseja ser.
— Uma rainha, é claro — disse Haramis, surpresa. — Não foi essa a escolha feita para mim há muitos anos?
— Não — disse a Arquimaga, quase num sussurro —, essa escolha só será feita quando você escolher. O importante é restabelecer o equilíbrio do mundo, o que só será feito se,” e quando, você e suas irmãs encontrarem seu próprio equilíbrio. A coroa pode não ser o seu destino.
— O que quer dizer? — perguntou Haramis, horrorizada. — Vamos perder nosso reino para Voltrik? Eu vou ser morta? Ou aconteceu alguma coisa com a coroa? Eu a deixei sob sua guarda — cometi um erro?
— De modo algum. — A voz da Arquimaga estava fraca, mas ainda audível. — A coroa está aqui e a salvo. — Virou a cabeça para a lareira. — Damatole...
Haramis pensou que o oddling não podia ouvir aquele chamado tão fraco, mas ele correu para o lado de Binah.
— Chegou o momento — murmurou a velha mulher.
Damatole fez um gesto afirmativo, foi até um dos armários na parede oposta e voltou com um embrulho branco que entregou para a Arquimaga. Ela segurou uma dobra do pano e a entregou a Haramis. O volume começou a escorregar da beirada da cama e Haramis o segurou. O pano branco abriu-se nos seus braços e ela viu, com surpresa, o manto da Arquimaga.
— Vista o manto, Haramis — ordenou Binah, num murmúrio. — É seu agora.
— Está dizendo que vou ser a nova Arquimaga? — perguntou Haramis, surpresa. Não quero esta incumbência, pensou ela, desapontada. — Já é difícil ser rainha — mas pelo menos fui treinada para isso! Mas ser a Arquimaga — ela não pode me pedir isso!
— Você tem o dom — murmurou Binah —, mas a escolha deve ser sua. Eu lhe dou minha bênção e meu amor, e um último aviso. Lembre-se de que a linha entre autoconfiança e superconfiança é estreita e facilmente transposta. Proteja-se sempre. Escolha sabiamente. — Então, com um suspiro áspero, a Arquimaga ficou imóvel.
Haramis olhou chocada para o corpo na cama. Isto não pode estar acontecendo, pensou. Estou sonhando. Estou na cama, na torre de Orogastus, e isto é um pesadelo. Tenho lido muitos livros de mágica, eu...
Só então percebeu que Damatole falava com ela.
— Dama Branca?
Voltou-se lentamente e olhou para ele.
— O que é, Damatole?
— Quais são as suas ordens, Senhora?
Ordens? Ele pensa que sou a nova Arquimaga. Por que, oh, por que eu me levantei da cama esta manhã — ontem de manhã — sei lá quando? Precisava dizer alguma coisa. Afinal, ele estava apenas fazendo seu trabalho. Mas não conseguiu pensar em nada.
— Deixe-me trazer-lhe água para se lavar e alguma coisa para comer — sugeriu Damatole. — Deve estar com fome.
Fome. Sim, agora que ele mencionou, estava com fome.
— Obrigada, Damatole — disse Haramis, suavemente —, isso seria ótimo.
Damatole serviu uma refeição simples, depois conduziu-a a um quarto pequeno com uma cama estreita. Haramis deitou, dormiu, acordou no meio da tarde e encontrou uma refeição na mesinha ao lado da cama. Comeu tudo e foi procurar Damatole. Encontrou-o no quarto da Arquimaga, mas a cama estava vazia.
— Você já enterrou o corpo, Damatole? — perguntou. — Eu podia ter ajudado.
— Não há nenhum corpo — respondeu ele. — Não está lembrada?... Não, vejo que não. A carne que abrigava o espírito de Binah transformou-se em pó, como vai acontecer com este lugar quando a senhora partir.
Haramis examinou a cama com mais atenção. Sim, havia pó no travesseiro, onde estivera a cabeça de Binah — onde está a coroa de Ruwenda?
Damatole abriu o armário na parede oposta e tirou um volume embrulhado em pano branco, que entregou para Haramis. A princesa o abriu e com alívio viu que a coroa estava inteira e intacta. Teria se transformado em pó se eu a deixasse aqui também? pensou.
— Vou apanhar uma sacola para levá-la — ofereceu Damatole, saindo do quarto, sem esperar resposta.
Haramis tentou pensar no que ia fazer agora, mas, quando Damatole voltou com a sacola de couro, não tinha decidido ainda. Porém, como o nyssomu evidentemente esperava que ela partisse, chamou o lammergeier. Então, lembrou que não era a única sem um lar agora.
— Damatole, você tem para onde ir? Ele fez um gesto afirmativo.
— Meu povo virá me apanhar. Está tudo arranjado. Só mais uma coisa. — Apanhou o manto da Arquimaga, ainda na banqueta onde Haramis o deixara, e o guardou na sacola, com a coroa.
— Por que me deu isto? — perguntou ela quando saíram juntos da torre, temendo já saber a resposta.
— Porque é seu, Dama Branca — respondeu o nyssomu. — E agora eu lhe digo adeus.
Uma lufada de vento fez esvoaçar os cabelos da princesa. Ela ergueu os olhos para as nuvens cada vez mais numerosas e imaginou se ia chover no dia seguinte, na véspera das três luas.
Hiluro desceu das nuvens e aterrissou ao lado dela.
- Para onde quer ir, Dama Branca?
— Não me chame assim — disse Haramis, em voz baixa.
— Não ainda. — Subiu nas costas do lammergeier, segurando a sacola com a coroa e o manto, e Hiluro subiu para o céu ameaçador.
O Rei Voltrik, ao lado da Voz Verde, esperava no parapeito da Alta Torre da Cidadela, e as nuvens escuras pareciam se amontoar a poucos ells acima das suas cabeças, escondendo a bandeira de Labornok o mastro. Lá embaixo, a fortaleza, os prédios e pátios externos estavam estranhamente silenciosos numa hora em que os servos ruwendianos sobreviventes e os homens livres costumavam estar trabalhando ativamente. Mas nesse dia só a batida cadenciada do martelo do ferreiro quebrava a quietude, como um toque discordante de mau presságio. O Rei Voltrik estremeceu.
— Os conquistados faltaram ao trabalho hoje por causa da maldita festa das três luas. Quase metade do pessoal da Cidadela avisou que está com febre e não pode sair da cama — e os que vieram trabalhar estão se arrastando, sem fazer nada.
— Há alguma coisa no ar — admitiu Voz Verde. — Com certeza logo teremos outra tempestade.
— Não é disso que estou falando — disse Voltrik, zangado. — Alguma coisa maléfica está se preparando e acho que Você sabe o que é e está com medo de contar!
Voz Verde inclinou a cabeça encapuzada, num gesto de submissão.
— Meu Mestre Todo-Poderoso logo estará aqui, Grande Rei, e ele o tranqüilizará e responderá a todas as suas perguntas.
O rei explodiu numa risada sem alegria e afastou-se bruscamente do acólito, olhando para a grande extensão de terra, ao norte. A luz estranha da tarde emprestava uma densidade especial à selva, e o cheiro que vinha do pântano era extremamente acentuado.
— Se vou me tranqüilizar — disse Voltrik —, por que o feiticeiro ordenou que você chamasse os homens para a Cidadela, exceto um pequeno contingente, e que ficassem preparados para lutar?
— Mera precaução...
— Mentiroso! Traidores malditos! — o rei virou bruscamente e segurou Voz Verde pelo ombro. Mesmo só com uma das mãos, sacudiu o assistente de Orogastus até os dentes do homem baterem uns nos outros. — Elas estão vindo para me apanhar — as três princesas bruxas! É isso, não é? Eu podia estar seguro, bem longe daqui, em Derorguila, mas você e Orogastus garantiram que tudo estaria bem — que as bruxas foram capturadas e seus talismãs confiscados. Mas mentiram! E agora elas estão vindo para me apanhar, como diz a profecia!
— Não, Grande Rei...
— Estou encurralado aqui! — uivou Voltrik. — Que Zoto tenha pena de mim! Os soldados me odeiam porque terão de passar a estação das chuvas neste buraco do inferno e os cavaleiros estão fartos da falta de ação, só bebida e mulheres o tempo todo, e só tenho para me servir covardes, idiotas e infames traidores que planejam me tirar o reino depois que os demoníacos ruwendianos acabarem comigo.
Voz Verde caiu de joelhos e ergueu as mãos em atitude de súplica.
— Não é nada disso, não é nada disso! Meu mestre explicará tudo quando chegar.
— Se ele chegar — berrou Voltrik. Desembainhou a espada e bateu com o lado da lâmina no nariz de Voz Verde. — E se ele não chegar, sua cabeça raspada de orelhas de abano vai se separar do corpo, e eu saio imediatamente deste monte de lixo amanhã cedo! É melhor arriscar os perigos da chuva do que ficar aqui como um nunchik cretino, no matadouro.
Um violento pontapé do rei fez o assistente do mago se esparramar no chão.
Então ouviram um grito como o som de um imenso clarim.
Sobressaltado, Voltrik olhou para todas as direções, menos para a direção certa, e saltou assustado quando o pássaro gigantesco branco e preto surgiu das nuvens, soltou outro grito e desceu suavemente, aterrissando no parapeito.
Do meio das asas imensas, ainda abertas, Orogastus olhou para o rei atónito e inclinou levemente a cabeça.
— Saudações, meu senhor — disse ele, calmamente. — Estou aqui, como prometi e preparado para lhe entregar seus inimigos, como prometi também.
— Pelos dentes de Zoto! É uma daquelas coisas que servem à Arquimaga! E agora, servem a você?
Orogastus deslizou das costas do lammergeier. Agradeceu brevemente, o pássaro respondeu com um girar dos olhos e subiu para as nuvens com uma única batida das asas.
— A Arquimaga — disse o feiticeiro com satisfação indisfarçada — está morta. Sua sucessora não é outra senão a Princesa Haramis, que recusou seu pedido de casamento e que está agora sob meu poder — embora ela ainda não saiba disso.
— Por Dez Infernos! — Voltrik embainhou a espada, com uma careta de alívio. — E as outras duas ordinárias reais?
Orogastus caminhou para a extremidade norte da torre e sentou no parapeito com a cabeça abaixada e a metade do rosto coberta pelo capuz. Usando a comunicação sem palavras, deu ordens rápidas ao seu acólito. Voz Verde levantou-se e desapareceu no alçapão.
Então, o feiticeiro tirou o capuz e sorriu para Voltrik com todo o encanto e a autoconfiança que haviam enfeitiçado um príncipe ardente dezoito anos atrás.
— As outras princesas estão vindo — disse Orogastus. — Kadiya conduz um bando indisciplinado de anões dos pântanos, armados com zarabatanas e lanças de pedra. O terrível exército de Anigel consiste em algumas centenas de oddlings mal-encarados das florestas, alguns covardes nyssomus, um grupo de imundos ruwendianos. e seu filho, o traidor, com seus traidores cheios de picadas de insetos.
— Mas as princesas têm seus talismãs! Orogastus fez um gesto afirmativo.
— Mas não sabem usá-los adequadamente. Sem dúvida pensam que basta dar uma ordem e os talismãs se encarregarão de nos destruir. Mas eu juro por minhaalma imortal que não é assim que os instrumentos mágicos funcionam. São armas sutis, e as princesas são jovens imaturas, com mais entusiasmo do que cérebro, e não entendem dessas ccoisas.
Sentado ao lado do feiticeiro, Voltrik franziu a testa e mordeu o bigode. Apontou para o Pânta-no-
— Não podemos enfrentá-los lá. Não com o começo das chuvas. Jamais os acharemos no pântano, nem com a ajuda daqueles abomináveis afogadores.
— Não — admitiu Orogastus. — Exatamente por isso foram encorajados a atacar a Cidadela, onde nossas forças superiores e meus encantamentos poderosos darão cabo deles de uma vez por todas!
Voltrik animou-se.
— Você os fará explodir com seus relâmpagos! Vai devastá-los com a magia que usou para tomar a Cidadela.
— Depositarei as cabeças da Princesa Anigel e da Princesa Kadiya a seus pés. Haramis, que é minha criatura, o servirá de corpo e alma.
Voltrik riu nervosamente.
— Acho que vou gostar disso. Se você puder fazer com que ela se submeta usando sua mágica. Sempre gostei de mulheres altas e, de qualquer modo, preciso ter” mais filhos.
— Haverá uma batalha, senhor — disse Orogastus, quase com indiferença. — Ocorrerá dentro de dois dias, sem dúvida na festa das três luas.
Voltrik estava de pé, com os olhos brilhando, e disse em voz muito alta:
— Ótimo! Que diabo, é disso que precisamos para aquecer nosso sangue outra vez! Há um mês parado aqui, metade desse tempo, doente, quase à morte, sinto o coração estagnado como este maldito lodaçal! Você já planejou a estratégia para o combate?
— Sem dúvida, meu senhor — Orogastus levantou-se. — E desta vez é certo que venceremos. Meus grandes poderes estão afiadíssimos e estou ansioso para servi-lo. O exército da Cidadela está pronto e Lorde Osorkon logo chegará com mais cinco mil homens... E para que vossa majestade não se preocupe com o suposto poder das princesas e dos seus talismãs, tenho também isto.
Orogastus tirou uma bolsa de dentro do manto, abriu-a, mostrando ao rei uma caixa talhada com caveiras e outros símbolos da morte. Levantou a tampa revelando uma esfera grande e opaca do tamanho de uma fruta ladu, sobre um ninho acolchoado de veludo negro.
— Esta é uma arma mais mortal do que todas as minhas outras juntas. Foi o segundo presente de despedida do meu falecido Mestre Bondanus.
— O que deu as Pastilhas de Ouro?
— Sim. As pastilhas foram uma dádiva de vida — mas isto provoca a mais terrível das mortes. Só deve ser usado como último recurso, pois sua força mortal atinge a todos, amigos ou inimigos, que estiverem ao nível do solo, num taio de mil ells. Se for necessário usar esta arma — se não houver outro meio de matar as princesas —, eu pessoalmente a usarei.
O Rei Voltrik empalideceu com os olhos pregados na caixa.
— Como se chama e como funciona?
— É conhecida como Eflúvio Maldito e é uma arma mais antiga do que os Desaparecidos, usada contra eles pelos ancestrais do meu Mestre, na grande batalha pela conquista do mundo. A esfera é de vidro. Quebrada contra uma pedra, emite vapores que matam na primeira inalação. Estou disposto a usá-la para garantir nossa vitória — mesmo sabendo que matará tanto nossos homens quanto os do inimigo. Mas o senhor não precisa temer, desde que fique na parte mais alta da fortaleza. Os vapores pesados não sobem além da altura de um homem.
Orogastus fechou a caixa e a guardou.
— Provavelmente não será necessário. Eu a mostrei apenas para provar que as princesas não podem vencer de nenhum modo. Nós somos invencíveis.
Os olhos do feiticeiro brilhavam como estrelas e a voz suave infundia confiança e eliminava qualquer temor.
— Acredita em mim, não acredita, meu rei?
— Sim — respondeu Voltrik, num murmúrio trêmulo. — Acredito.
Sabendo que suas forças teriam de percorrer cerca de quinze léguas fora das trilhas conhecidas, através do Pântano Labirinto, do acampamento secreto no Rio Skrokar até o esconderijo de Kadiya, ao norte da Cidadela, a Princesa Anigel pediu ao seu talismã para escondê-los da vista do inimigo durante a viagem. E, maravilha! A neblina espessa, como um miasma opaco, cegava os humanos, mas não perturbava nem um pouco os oddlings.
A princesa achou que era uma resposta ao seu pedido e seu exército iniciou a jornada. A frota de canoas dos nyssomus transportou todos a salvo até além do castelo Manoparo, chegando à confluência do Skrokar com o Mutar. Daí, subiram o grande rio, pelos canais secundários, ao longo da margem norte, então, viraram para a direita, entraram num canal pequeno e tortuoso e ao cair da noite chegaram ao esconderijo de Kadiya.
O lugar era outra ilhota no pântano, iluminada pela luz de lanternas de vidros contendo pequenos vermes verdes e luminosos. Um chefe uisgu, com grandes círculos de tinta vermelha em volta dos olhos e uma armadura completa de escamas de peixe douradas, esperava o barco de Anigel na praia, e anunciou que conduziria a princesa, Antar e os cavaleiros labornoks à presença de Kadiya.
Desembarcaram à luz pálida das lanternas e seguiram a trilha até a tenda simples de couro onde Kadiya e seus comandantes uisgus estudavam um mapa da Cidadela, que estava aberto sobre uma mesa rústica.
Havia mulheres uisgus também no comando, mas nenhuma usava os vestidos longos e bordados. Todas vestiam calções de palha trançada e, sobre eles, túnicas cobertas com escamas e conchas, que iam até os joelhos, como uma cota de malha. Usavam elmos também, alguns feitos com metal encontrado nas ruínas. O elmo de Kadiya cobria o cabelo longo trançado e enrolado na cabeça. A não ser pela altura, ela podia ser tomada por uma comandante uisgu.
Quando a Princesa Anigel dos cabelos de ouro viu a irmã, esqueceu tudo o mais e, chorando de alegria, correu para ela com os braços abertos.
Mas Kadiya retribuiu o abraço com certa hesitação, sem tirar os olhos do rosto de Antar, que estava parado na entrada da tenda, na frente dos seus homens. O príncipe olhou de uma para outra e franziu a testa.
— O que está acontecendo? — exclamou Anigel, desapontada. — Nós estamos juntas outra vez, e vivas!
— Sim, estou viva — disse Kadiya com voz seca. — Mas quem são esses que a acompanham, irmã? Qual o trato que fez com eles? A confiança não pode se basear no derramamento de sangue de irmãos. — Olhou diretamente para o príncipe. — Já esqueceu tão depressa de quem era a espada que dilacerou nosso mundo?
Foi como se Kadiya tivesse trespassado a irmã com uma lâmina afiada. Com uma exclamação de dor, Anigel disse:
— Não devem temer Antar, nem desconfiar dele. Empenho minha vida como garantia. Meu talismã também! — Tirou a tiara da cabeça. À medida que se aproximava da irmã, a luz do trílio, dentro do âmbar, pulsava, cada vez mais forte. Anigel estendeu o talismã para Kadiya.
— Alteza — o príncipe olhou diretamente para Kadiya. — Em nome do que devemos jurar para que aceite a verdade?
Num gesto lento, Kadiya desembainhou seu talismã. Ergueu a espada verticalmente, segurando-a pela ponta, de frente para Anigel e Antar. Os três olhos se abriram e os cavaleiros murmuraram, consternados.
— Irmã, fique de frente para eles e deixe que os talismãs façam o julgamento.
Magoada, Anigel obedeceu.
— Senhores do Ar, grandes servos de Deus — entoou Kadiya —, revelem quais entre esses cavaleiros nos servirão com amor e quais nos prejudicarão e façam a estes últimos o que eles fariam a nós.
Uma luz azul silenciosa e, intensa explodiu no ar. O Príncipe Antar e seus quinze companheiros leais estremeceram em suas armaduras. Na terra molhada dois cavaleiros jaziam imóveis.
Depois de alguns segundos, Sir Owanon inclinou-se sobre eles. Balançando a cabeça, disse:
— Onbogar e Turat. Mortos.
Anigel gritou horrorizada. Mas o Príncipe Antar perguntou aos outros homens:
— Onde está Rinutar?
O cavaleiro não estava entre eles, e não fora visto desde que desembarcaram na praia. Antar queria enviar um grupo de homens à sua procura, mas Anigel o deteve.
— Eu o encontrarei — disse ela, em voz baixa.
Pôs o talismã na cabeça e seus olhos, voltados para a direção da Cidadela, pareciam ver através dos homens.
— Está no meio do rio, numa canoa roubada.
— Matem o traidor! — exclamou Sir Penapat. — Ele avisará os soldados da Cidadela!
— Não é necessário — disse uma voz.
O espanto agora foi de Kadiya e Anigel. A Princesa Haramis abriu caminho entre os homens armados e aproximou-se das irmãs. Vestia o manto branco da Arquimaga e tinha na mão a coroa de estado.
— Haramis! — exclamaram as duas princesas em uníssono.
— Kadiya! Anigel! — Abraçou as irmãs e disse: — Sim, sou eu. Deixemos que Rinutar siga seu caminho. O Rei Voltrik e Orogastus já sabem que vocês estão aqui e que pretendem atacar amanhã, antes de a lua nascer, no começo da festa.
Uisgus e labornoks, Kadiya e Anigel, até o pequeno Jagun começaram a falar ao mesmo tempo.
Haramis ergueu seu talismã. A luz dourada do trílio no interior do âmbar pulsou com um brilho intenso, assim como as pedras de âmbar dos dois outros talismãs. Fez-se silêncio.
— Irmãs — disse Haramis. — Eu sei quantos seguidores vocês trouxeram para este acampamento. — Procurava não demonstrar sua incredulidade, pois todos mereciam sua cortesia.
— Vi várias outras canoas de uisgus aproximando-se, bem como uma grande frota de ruwendianos armados, vindos do nordeste livre. Mas se atacarem a Cidadela, todos seus amigos leais morrerão, pois esta aventura está destinada ao fracasso.
— Quem disse isso? — perguntou Kadiya, furiosa. — Seu muito amado feiticeiro?
Haramis corou. Não merecia isso, embora não pudesse culpar Kadiya por pensar assim. Olhou nos olhos da irmã.
— Não importa o que você pensa que houve entre Orogastus e eu. O fato é que não fui eu quem trouxe o inimigo para o nosso meio. — Olhou para Anigel, que estava ao lado do Príncipe Antar. A princesinha mais nova corou, mas não disse nada. — Quanto ao destino desta empreitada — não sou cega e posso vê-lo perfeitamente. Seus nativos só têm armas leves. As forças do Conde Palundo provavelmente não chegarão a tempo — mas, mesmo que cheguem, terão de enfrentar os cinco mil homens que descem o rio sob o comando de Osorkon. A outra metade do exército de Voltrik já está em posição de combate, preparada para repelir qualquer ataque. Os grandes portões da Cidadela foram reparados.
— Talvez — disse Kadiya com um largo sorriso — tenhamos o necessário para abri-los. E para vencer seu bruxo também!
— É uma probabilidade que joga com muitas vidas — disse Haramis. — Talvez não saiba que não pode contar mais com a ajuda da Arquimaga.
— Por que não? — perguntou Kadiya. — Ela sempre nos ajudou. Está dizendo que ela vai ajudar Orogastus nesta batalha?
— Não — disse Haramis, com voz cansada. — Estou tentando dizer que a Arquimaga está morta.
Anigel deixou escapar uma exclamação de dor mas Kadiya disse:
— Como você sabe?
— Sei porque eu estava lá. — A dor daquela perda ameaçou envolvê-la. Haramis não havia ainda chorado a morte da Arquimaga, mas controlou-se mais uma vez e continuou com voz firme: — Orogastus as espera com todas as armas antigas que possui e chamou os skriteks do Pântano Verde. Estão convergindo para o Knoll da Cidadela para atacar e devorar todos que encontrarem à sua frente! Acreditam realmente que podem enfrentar isso — mais as armas de Orogastus?
Fez-se um silêncio, longo demais para Haramis.
— Vocês serão massacrados — disse ela, em voz baixa. — Recuem, eu peço. Eles não podem persegui-los no pântano, na estação das chuvas.
— Não! — Kadiya bateu com a mão fechada na mesa. — Você está enfeitiçada por Orogastus. Isso é evidente, pois roubou o manto da Arquimaga.
— Pensa mesmo que eu queria tomar o lugar dela? — perguntou Haramis. Toda a fadiga, toda a dor pela morte da Arquimaga ameaçaram dominá-la outra vez.
— Sim, eu penso — disse Kadiya. — Você sempre desejou avidamente o poder, Haramis. Não pode admitir que eu ou Ani tenhamos um plano melhor do que o seu.
A injustiça daquelas palavras atingiu Haramis dolorosamente. Teve a impressão de que ia sucumbir ao golpe. Kadiya olhava para ela com fúria, mas Anigel percebeu a dor nos seus olhos.
— Acho que está sendo injusta, Kadi — disse ela. — Vamos ouvir o plano de Haramis.
Kadiya olhou irada para as duas irmãs.
— O que vai ser da coroa, Haramis? — perguntou ela. — Você e Orogastus compartilharão os tronos de Ruwenda e de Labornok, depois de se livrarem de Voltrik com esse seu plano?
— É claro que não! Kadiya, você não compreende. — Haramis estava quase perdendo as esperanças de conseguir explicar seu plano. Como fazer com que as irmãs compreendessem?
Então, Jagun falou, para surpresa de todos:
— Deixem que os talismãs nos digam se ela diz a verdade ou não, como fizeram com os homens do Príncipe Antar.
Haramis empertigou o corpo.
— Como quiserem. Mas se seus talismãs são iguais ao meu, devem ser muito cuidadosas nesse teste. Pois estou certa de que o meu talismã, assim como os seus, pode matar.
— Que seja assim — disse Kadiya.
Anigel olhava de uma irmã para a outra, com imensa tristeza. Os pensamentos das três podiam ser lidos facilmente mesmo pelos cavaleiros labornoks e pelos uisgus.
— Querida Haramis — disse Anigel, tristemente —, queremos muito acreditar em você, mas nós a vimos com Orogastus. — Tinha lágrimas nos olhos, mas sua voz estava firme. — Não temos escolha senão pedir sua permissão para fazer o teste com você.
Haramis olhou para a irmã, um tanto confusa. Todos na tenda esperavam tensos, e no silêncio ouviram as primeiras gotas de uma nova tempestade, bem como o murmúrio de muitas vozes lá fora. Outro grupo de recrutas acabava de chegar.
— Não pedi para testar sua lealdade — disse. Haramis —, embora você tenha trazido seu príncipe. — Anigel corou e ela continuou: — Seja como querem. — Ergueu seu talismã na frente do rosto. — Façam o teste, então.
Nesse momento, os uisgus e os cavaleiros saíram apressadamente da tenda, ficando apenas Antar e Jagun, que fez no ar o signo do Trílio Negro na frente de cada princesa. Haramis entregou a ele a coroa e o caçador ajoelhou num canto, com ela na mão e a cabeça inclinada sobre o peito.
Kadiya e Anigel estavam lado a lado com seus talismãs erguidos. Mas dessa vez foi a princesa mais nova quem falou:
— Queridos Senhores do Ar, tenham piedade de nós três, mas demonstrem claramente qualquer perigo que possamos representar para o grande equilíbrio do mundo.
Os três talismãs cintilaram, enchendo a tenda com sua luz rubra. As princesas estavam imóveis como estátuas, com os olhos muito vivos e os lábios entreabertos.
Então a tiara, o bastão e a espada sem ponta adquiriram um aspecto espectral, saltaram das mãos das princesas e pararam no ar, um pouco acima delas. E ali se fundiram. O bastão encaixou no punho da espada com as três esferas e a tiara, com as figuras monstruosas sob as pontas, formou um círculo fechado. As três asas com o âmbar no centro ergueram-se formando anéis concêntricos. Uma voz misteriosa disse:
Este Cetro do Poder contém o potencial para o equilíbrio permanente, bem como para a ruína completa deste mundo. Pense sensata e sabiamente antes de dar alguma ordem a este cetro e lembre-se de que aqueles que o criaram, no fim, tiveram medo de usá-lo.
A luz vermelha apagou-se. Os talismãs voltaram, separados, para as mãos das princesas.
Depois de um longo silêncio, o Príncipe Antar perguntou:
— Os talismãs responderam?
Haramis olhou para ele, incrédula, mas foi Anigel quem perguntou, como quem acorda de um sonho:
— Você não viu e ouviu?
— Nada, graciosa senhora, a não ser sua invocação.
As três irmãs entreolharam-se. Instintivamente, uniram-se num abraço.
— Então parece que minha sinceridade foi provada — murmurou Haramis. — Não foi?
— É claro que foi — disse Kadiya secamente —, mas vamos atacar a Cidadela assim mesmo.
Haramis franziu a testa.
— Estão mesmo resolvidas?
— Estamos — disse Anigel. — Se não vier conosco, Haramis, pelo menos não fique no nosso caminho, nem nos entregue ao inimigo.
— Não farei isso — garantiu Haramis. — Mas agora devo deixá-las. Preciso ir ao Knoll da Cidadela e lá. não sei o que vou fazer. Mas sei que preciso estar lá.
Jagun aproximou-se com a coroa na mão.
— Se quiser, Princesa Haramis, posso levá-la numa canoa.
— Eu agradeço — disse Haramis. — Mas antes de partir — voltou-se para as irmãs —, quero dizer algo que descobri durante minha visita a Orogastus. Grande parte da sua suposta mágica é feita com aparelhos dos Desaparecidos e é possível que seus talismãs possam inutilizar esses aparelhos. Meu talismã tocou um deles e o instrumento deixou de funcionar. Pode acontecer o mesmo com os seus. — Abraçou as irmãs. — Kadiya, Anigel, tenham cuidado — e que os Senhores do Ar as protejam!
Apanhou a coroa das mãos de Jagun e com seu manto branco, acompanhada pelo caçador nyssomu, Haramis deixou a tenda, onde ficaram apenas o Príncipe Antar e as duas princesas. O trovão rugiu e a chuva começou a cair copiosamente.
Kadiya olhou para o homem alto com armadura azul e franziu a testa.
— É verdade que não viu nada? Nem a luz vermelha, nem a fusão dos talismãs? Não ouviu uma voz estranha?
— Nada, princesa — respondeu Antar.
— A visão foi para nós, Kadi — disse Anigel. — E especialmente, eu acho, para a pobre Haramis.
— Pobre? — disse Kadiya. — Ora, aqui estamos nós, exiladas, preparando-nos para uma batalha, enquanto ela, com a coroa e o manto, prefere assistir confortavelmente instalada.
— Se conseguirmos vencer sem o cetro, então ela sem dúvida será a mais privilegiada. Mas se precisarmos dele...
Kadiya empertigou-se e segurou com firmeza o punho da espada.
— Não vamos precisar.
Então, com voz brusca, pediu ao Príncipe Antar para chamar seus cavaleiros e os chefes dos oddlings, a fim de explicar a todos os planos da invasão.
Naquela noite Haramis dormiu segura em lugar seco, sob uma árvore, num pequeno parque do Knoll, ao lado do cais da Cidadela. Pediu ao talismã para ocultar sua presença e uma névoa ergueu-se entre ela e os guardas das docas.
De manhã a tempestade tinha passado, mas a neblina continuava densa, envolvendo-a num manto cinza-claro, onde só chegavam os chilreies e pios dos pássaros, o zumbido dos insetos e o ruído da água pingando das folhas da árvore. Os guardas das docas haviam se retirado para a Cidadela. Do cais um caminho levava diretamente ao portão principal da fortaleza, a menos de uma légua de onde ela estava, e Haramis sabia que uma parte do plano insano das irmãs consistia num ataque por esse caminho óbvio.
Haramis ficou imóvel por algum tempo, para meditar e orar, pedindo orientação. Não era fácil. Outros pensamentos interferiam. Preocupação com as irmãs, dor pela perda dos pais e da Dama Branca, revolta contra a acusação de Kadiya de que tinha roubado o manto da Arquimaga — como se alguma vez eu o tivesse desejado! Porém, quem mais pode substituí-la? Por acaso Kadiya pensa que ela pode ser a nova Arquimaga?
Como se essa idéia a tivesse chamado, Binah apareceu, vestida com um manto cintilante, com o rosto sob o capuz. Mas as mãos que se ergueram para retirar o capuz eram jovens e lisas, e Haramis estremeceu de medo. O que ia ver? O rosto de Kadiya — ou um demónio horrível?
Nenhum dos dois — era o rosto de Binah, transformado. Radiante, jovem. Como se tudo que era mortal tivesse desaparecido, deixando apenas o espírito na sua forma mais pura.
Senhora. Haramis inclinou a cabeça.
Teve a impressão de que acariciavam seus cabelos e ouviu a voz musical que era ainda, sem dúvida, a de Binah.
O que há, minha filha?
Minhas irmãs, disse Haramis, com tristeza. Pensam que estou apaixonada por Orogastus — na verdade enfeitiçada por ele — e Kadiya me acusou de ter roubado seu manto!
Mas você sabe que não é verdade, disse a voz suave. No momento certo, elas também saberão.
Kadiya disse que eu tenho sede de poder.
E ela pensa que é por isso que está usando o manto. Não era uma pergunta. Eu o dei a você, Haramis, mas não posso obrigá-la a usá-lo. É uma carga pesada e as outras pessoas, mesmo as que a amam, jamais compreenderão por que você realiza esse trabalho. Deve ser feito por ele mesmo, não porque alguém deseja que o faça, ou porque a exaltem por isso.
É um trabalho que vale a pena ser feito, continuou Binah. Alguém precisa cuidar de Ruwenda, garantir que o país cresça como deve — ou pelo menos que possa sobreviver até que outra pessoa mais forte aceite o encargo. Há muito prazer nessa tarefa, ver a beleza da realização e saber que seus esforços ajudam a mantê-la, ouvir a voz da terra e do seu povo, sentir o ciclo das estações e o ciclo maior das eras...
A voz de Binah silenciou, mas no silêncio Haramis sentiu e ouviu Ruwenda como nunca havia sentido ou ouvido antes. Era como se a terra tivesse um pulso, um coração batendo no mesmo ritmo que o seu. Era como se houvesse uma canção que ela quase podia ouvir e compreender — bastando para isso concentrar-se e escutar.
Ficou ali sentada, em transe, por um longo tempo e quase não percebeu a partida de Binah.
Então mãos invisíveis colocaram uma bandeja de metal no seu colo. Nela havia quatro corações, aparentemente humanos, e uma jarra com água do mar. Lave esses corações, ordenou uma voz. No estado de transe em que estava, Haramis não estranhou a ordem. Apanhou o primeiro coração, que se encaixou perfeitamente na sua palma, pulsando suavemente, cheio de vida e calor. A princesa derramou água do mar sobre ele e a mão invisível o levou. O mesmo foi feito com o segundo e o terceiro, que pareciam idênticos ao primeiro. Mas quando apanhou o quarto coração sentiu algo diferente e estranho. Alguma coisa picou sua mão e Haramis o ergueu para verificar o que era. Para seu espanto, viu que não se tratava de um coração de verdade, mas de uma espécie de aparelho. Estendeu o braço para apanhar o jarro com água, mas a mão invisível a deteve. Não, disse a voz, com tristeza, esse não pode ser lavado. Ele desistiu da sua humanidade. E o coração mecânico foi tirado da sua mão.
Não compreendo, pensou Haramis.
Deve ter forças para suportar a verdade, disse a voz.
Haramis também não compreendeu.
Então, permitiu que sua mente descansasse por algum tempo, num sono sem sonhos.
Acordou quase ao cair da noite. Por meio do Círculo de Três Asas, observou os preparativos dentro da Cidadela, os guerreiros tomando posição para defender a fortaleza, e os oficiais e cavaleiros que iam e vinham, fazendo seus relatórios e recebendo ordens do rei. Viu Orogastus e Voz Verde preparando os instrumentos marciais dos Desaparecidos, duas máquinas que criavam relâmpagos, uma cujo som agudo estourava os ouvidos desprotegidos, fazendo-os sangrar, duas que espalhavam uma chuva de grãos mortais, outra que lançava enormes línguas de fogo e outra ainda que lançava agulhas envenenadas. Enquanto observava, Haramis tinha a impressão de ouvir uma voz dizendo que aqueles instrumentos eram mais apropriados para o ataque do que para a defesa, e podiam funcionar contra aqueles que os usassem dentro da fortaleza.
Imaginou o que Kadiya e Anigel pretendiam fazer. Os muros externos e internos da fortaleza, reconstruídos, não podiam ser escalados. Eram íngremes demais e davam para as ameias onde podiam ficar os arqueiros ou os aparelhos do feiticeiro. Embora os talismãs das princesas pudessem protegêlas da visão sobrenatural de Orogastus, Haramis tinha certeza de que os outros invasores seriam vistos pelos olhos normais dos labornoks. Os novos portões eram fortes demais para qualquer aríete. Suas irmãs estariam contando com os talismãs para entrar na Cidadela? Apertando seu bastão contra o peito, Haramis perguntou: Isso é possível? A resposta formou-se em sua mente.
Não.
Sentiu um aperto no coração. Eu as ajudarei como puder, mas não vou interferir, pensou ela. Nem darei conselhos não pedidos. Elas estão seguindo seus destinos — e eu já escolhi o meu.
Uma grande tranqüilidade a envolveu. Sentada à sombra da árvore, protegida pela névoa do fim do dia, teve novamente a sensação de estar plantada no centro do mundo, de conhecer seu lugar no imenso cenário.
Tornei-me o que eu sempre soube que seria.
Mas o preço será a morte das minhas irmãs?
Segurou o Círculo na frente do rosto e pediu para vê-las. E então, ela as observou, maravilhada, durante horas.
A maior parte do exército, sob o comando dos ruwendianos humanos e dos cavaleiros leais do Príncipe Antar, tomou posição no pântano, no outro lado do rio, quase em frente ao cais onde Haramis estava, uma légua abaixo da fortaleza. Uma vez que estavam tão perto ela ouviu com atenção e verificou se podiam ser vistos por olhos humanos. Certificando-se de que não estavam visíveis, voltou para a visão no Círculo.
Separando-se do corpo principal de atacantes, algumas centenas de guerreiros uisgus e wyvilos, comandados por Kadiya, Anigel e Antar, subiram o Mutar de barco até a abertura do túnel que antigamente conduzia água para a Cidadela. Protegidos dos olhos do inimigo pelos talismãs, eles desapareceram no túnel que levava à cisterna abandonada.
— Pela Flor! — murmurou Haramis, admirada. — Se Kadiya e Anigel conseguirem abrir os portões da Cidadela para seu exército, talvez tenham uma chance de vencer!
Mais tarde, quando as três luas erguiam-se invisíveis no meio da neblina, e a festa começava oficialmente, Haramis realizou sua cerimônia e comeu um pouco das provisões que Jagun havia deixado com ela. Então, perguntou ao talismã onde estavam os reforços do exército de Labornok. O Círculo mostrou uma frota com mais de cem barcaças, descendo o rio com o máximo de velocidade que os remadores podiam conseguir. Mesmo que suas irmãs entrassem na Cidadela e abrissem os portões, seriam dizimadas por esse grupo de guerreiros labor-noks armados.
A imagem desapareceu e Haramis enxugou as lágrimas que afloravam a seus olhos. Que seja. O destino das suas irmãs seria cumprido, e ela devia tratar do seu trabalho.
Pediu para ver Orogastus.
— Fiz a minha escolha — disse Haramis. Ele respondeu, com o rosto inexpressivo.
— Pode me dar a honra de comunicar sua decisão pessoalmente? Sinto não poder ir até você. O seu lammergeier deixou-me aqui e desapareceu.
— Muito bem — disse Haramis. — Eu irei à Torre Alta no centro da Cidadela.
— Podemos nos encontrar no solar da torre daqui a uma hora, à meia-noite? — pediu Orogastus. — Com certeza sabe que ninguém pode lhe fazer mal, agora que seu talismã tem todo o poder.
— Eu sei — disse Haramis. — Estarei lá.
— Adeus — disse Orogastus e então o belo rosto suavizou-se com um sorriso. — Tudo de bom para você, Haramis, minha adorada. — A imagem desapareceu.
Haramis arrumou sua bagagem à luz do âmbar-trílio encaixado no talismã. A névoa começou a se levantar e uma rajada de vento frio fez farfalhar as folhas das árvores wydel do parque. Entre os juncos e os arbustos da praia, não muito distante, alguma coisa se mexia na água. Haramis não deu atenção e estava pronta para chamar seu lammergeier, quando os arbustos se abriram e dois olhos dourados e brilhantes apareceram.
— Princesa — sibilou uma voz.
— Pela Flor. Immu!
Deixando cair a sacola com a coroa e o manto, Haramis correu para abraçar a velha ama nyssomu.
— Immu, o que está fazendo aqui?
A pequena oddling franziu a testa e arreganhou as presas.
— Fazendo fazendo fazendo! É uma história muito comprida para contar agora. Minha cabeça está numa desordem porque vim correndo, para alcançar minha Princesa Anigel, e desde o meio-dia de hoje minha Visão recusa-se a me mostrar onde ela está.
Haramis fez um gesto afirmativo.
— É a mágica do talismã que a esconde da Visão dos inimigos, e, ao que parece, dos amigos também.
— Fui até o Knoll e vi você sentada aqui no parque. Mal podia acreditar! Sabe onde está a minha princesa? Ela precisa de mim!
— Sim, eu sei onde ela está. Mas duvido que precise dos seus bons serviços, Immu, pois, ao lado de Kadiya, neste momento ela conduz um exército para dentro da Cidadela, para enfrentar o Rei Voltrik.
— Senhores do Ar! — exclamou Immu em tom lamen-toso e seus olhos saltaram com um estalido. — Numa aventura como essa, ela vai precisar de mim mais do que nunca! Diga-me como posso chegar até ela!
Haramis hesitou.
— Você tem um barco?
— Sim, uma pequena canoa com remos. Haramis apanhou sua sacola.
— Vou mostrar o caminho.
Subiram na canoa e Immu remou silenciosamente nos remansos escuros do Mutar, seguindo a orientação de Haramis. Depois de meia hora chegaram a um banco de lama estreito com quase toda a vegetação submersa pela enchente. Logo adiante ficava a encosta do Knoll com uma margem alta cortada no seu flanco e, na base, uma moita de arbustos espinhosos.
A lama estava remexida e com marcas de pés.
— Aqui? — perguntou Immu, incrédula. — Eles desceram aqui? Mas fica a quase duas léguas da Cidadela e é tudo subida em campo aberto. Além disso, não vejo nenhum sinal deles.
— Immu, eles foram pela velha cisterna. Minhas irmãs estão certas de que os canos as protegerão da Visão de Orogastus pelo menos até chegarem ao nível da torre. De lá, tentarão abrir o portão principal e o portão de serviço.
Immu arregaçou a saia, com expressão sombria.
— Como subiram pela abertura da cisterna?
— Jogaram uma corda com um gancho na ponta. Um uisgu subiu por ela e prendeu várias escadas de cordas para os outros. As escadas ainda estão lá.
— Veja onde eles estão! Diga-me se a Princesa Anigel está a salvo ainda!
— Não. Vou apenas rezar para que os Senhores do Ar estejam do lado delas.
— Muito bem — exclamou a velha ama. — Você fica aí rezando. Eu vou subir!
Saltou do barco, patinhou na água lamacenta e logo desapareceu entre os arbustos.
Com um suspiro, Haramis inclinou-se para pegar os remos. As patrulhas de labornoks vigiavam o Knoll e mais cedo ou mais tarde descobririam aquela abertura e dariam o alarme. Eu posso demolir aquela parte da margem, pensou ela, escondendo a entrada do túnel.
Haramis ergueu o talismã. As três asas fechadas abriram-se dentro do Círculo e o trílio no âmbar cintilou.
— Que a terra seja derretida e a lama desça para esconder essa entrada dos olhos hostis.
Ouviu um ruído surdo, a margem alta partiu-se ao meio e desceu, cobrindo a abertura. A margem íngreme e a moita de arbustos desapareceram deixando apenas uma rampa de lama pontilhada por pequenas rochas.
O barco deslizou suavemente rio abaixo. Fiapos de vapor erguiam-se na superfície da água como fantasmas de serpentes. Haramis ouviu ao longe o ruído dos cascos de froniais. A cavalaria labornok patrulhava a estrada para o mercado de Ruwenda. Um clarim soou na distância, outro, mais próximo, respondeu.
Uma voz parecia dizer na mente de Haramis: O poder está em você. E esse é o grande perigo.
Haramis remou nos remansos lodosos, afastando-se da entrada agora encoberta pela lama, e então levou o barco para a margem. Amarrando a sacola no cinto, chamou.
Hiluro!
O pássaro gigantesco não apareceu imediatamente, mas Haramis não se preocupou. Sentada numa pedra, olhou para a Cidadela distante, que aparecia agora à medida que a névoa se dissipava. Devia haver fogueiras acesas nos pátios internos, porque a torre principal e seus anexos estavam iluminados. No mastro, na torre alta, balançava a bandeira enorme de Labornok, vermelho-sangue, com três espadas cor de ouro cruzadas. Estava também iluminada pelas fogueiras. Era como se Voltrik dissesse: Aqui estou! Retomem seu castelo se forem capazes!
— Faça com que minhas irmãs vençam essa batalha -— implorou Haramis, segurando o talismã. — Por favor, faça com que elas vençam.
Haramis. Ouviu a voz conhecida do seu lammergeier. ”Vi uma coisa horrível.”
Hiluro desceu suavemente como uma nuvem escura, e ela correu para ele.
— O que foi?
Suba nas minhas costas e eu lhe mostro.
Haramis subiu e o pássaro levantou voo, dirigindo-se para a parte lateral do Knoll, onde o Pântano Verde encontrava o Rio Mutar, além do mercado de Ruwenda. Era uma região desolada, sem casas, pois quase todo o Knoll ali era de rocha nua, com pouca vegetação.
O céu clareava rapidamente agora, e a neblina junto ao solo tinha quase desaparecido. A luz das três luas, um pouco velada ainda, era suficiente para que Haramis visse sombras escuras saindo do pântano por vários canais, convergindo todas para formar uma massa compacta que marchava na direção da Cidadela, a quase três léguas dali.
— Mas quem pode ser? A força dos labornoks não teve tempo de chegar ainda.
São skriteks, chamados pelo feiticeiro, disse o lammergeier.
— Oh, Deus Triúne! É claro!
Hiluro desceu, pairou a poucos ells acima do solo e Haramis viu os demónios do Pântano Labirinto, sibilando e saltando inutilmente quando o grande pássaro passou acima deles.
Não posso deixar que devorem os companheiros das minhas irmãs, pensou Haramis. O que devo fazer?
Ouviu uma voz em sua mente: Você é a Senhora de todo o povo oddling.
Mas o que significa isso?
Os skriteks pertencem a esse povo.
O pássaro fez a volta e passou outra vez acima dos skriteks. Deixou Haramis num penhasco, por onde os monstros deviam passar, e ficou atrás dela com as asas enormes abertas. Haramis pôs nos ombros o manto da Arquimaga e esperou. Os olhos dos skriteks que enxergavam no escuro a viram imediatamente e avançaram para ela, gritando e sibilando, com tamanha velocidade que a princesa ficou certa de que ia ser pisoteada por eles.
Porém, quando estavam muito perto pararam, em silêncio. Haramis ergueu seu talismã e falou na linguagem sem palavras:
Quem é o chefe?
Nove ou dez das monstruosas criaturas adiantaram-se. Das bocas abertas escorria saliva e eles fechavam e abriam os talões. Haramis percebeu que os cérebros lentos estavam completamente confusos.
Ela disse:
Sabem quem eu sou?
Você estava morta! Ele disse. Nós sabemos!
Aqui, no meu país, estou sempre viva. Todos vocês são meus filhos e todos me obedecem. Mas vocês não obedeceram. Vocês seguiram o feiticeiro e foram para a guerra, que é proibida.
Você não falou conosco! Você perdeu seu poder! Ele provou isso quando nos chamou e você não nos proibiu de atender ao chamado.
Estou falando agora. Estão ouvindo?
Estamos ouvindo, Dama Branca.
E todos os skriteks curvaram-se com o rosto no chão, arrependidos.
Haramis disse para os monstros:
Tiveram permissão para ajudar os invasores humanos antes. Mas, agora, estão proibidos. Entenderam?
Sim, Dama Branca. A resposta incluía muitos rosnados de descontentamento, mas mesmo assim era sincera.
Antes de voltarem para o pântano, têm uma tarefa a cumprir.
Obedecemos às suas ordens, Dama Branca.
Haramis explicou cuidadosamente o que deviam fazer, certificando-se de que haviam entendido que não deviam cometer nenhum ato de crueldade. Embora fosse um desapontamento para aqueles demónios, alegraram-se com a perspectiva de uma diversão e concordaram em fazer exatamente o que ela queria.
Haramis os abençoou, subiu para as costas de Hiluro e voou para se encontrar com Orogastus na Cidadela.
O Rei Voltrik não era tolo e já havia descoberto que o túnel da velha cisterna representava um ponto fraco na sua defesa. Mas os engenheiros de Labornok temiam fazer qualquer coisa no túnel ou na cisterna porque estavam ligados ao sistema principal de fornecimento de água da Cidadela. Desse modo, Voltrik não conseguiu fechar aquela abertura. Mas há quase duas semanas mandara postar sentinelas na boca da cisterna e um grupo de homens vigiava a longa série de escadas, de modo que, se algum ruwendiano tentasse invadir o castelo pelo subterrâneo, o aviso seria passado de homem para homem, imediatamente.
Mas a sala do poço era suja e sinistra, infestada por vermes rastejantes e animais noturnos alados cujos gritos e pios roucos enlouqueciam qualquer um. Com o passar dos dias, como não tivessem descoberto nenhum intruso humano (apenas os vultos fantasmagóricos que pareciam estar de tocaia no escuro fétido, entre as máquinas enferrujadas), as equipes de soldados labornoks designadas para guardar a cisterna retiraram-se para as masmorras antigas, um andar acima.
Ali usavam tochas para queimar as coisas rastejantes e os esqueletos embolorados, e com a conivência dos seus sargentos da guarda, muniram-se de banquetas e transformaram a tábua de tortura numa mesa onde passavam o tempo jogando cartas ou tomando cerveja contrabandeada.
Quis o destino que, no instante em que o gancho da corda do primeiro uisgu invasor prendeu-se com um estalido metálico na borda da cisterna, um soldado labornok, chamado Krugdal, foi apanhado roubando no jogo e seus camaradas resolveram lhe dar uma lição. O barulho que os soldados faziam abafou o movimento dos invasores com suas escadas de corda. Quando acharam que haviam castigado bastante o pobre Krugdal, quase quarenta oddlings, sob o comando do Príncipe Antar, haviam entrado na sala da cisterna e começavam a subir a escada.
O príncipe, com uma armadura completa, entrou na masmorra e começou a censurar os jogadores por negligenciarem seu dever. Os homens, espantados, vendo o filho do rei aparecer do nada e sem saber da sua suposta traição, aceitaram docilmente a reprimenda. Quando os ferozes wyvilos e uisgus entraram, os soldados, estupefatos, não tiveram tempo para resistir, nem para gritar e foram facilmente amarrados, amordaçados e atirados nas celas da antiga masmorra.
Então, as duas princesas e os chefes dos uisgus e dos wyvilos reuniram-se para um rápido conselho de guerra.
Levaria muito tempo para os quase trezentos invasores subirem as escadas estreitas até o nível do solo, onde procurariam se dirigir para os portões. Do sargento capturado obtiveram a informação de que os homens que vigiavam as escadas seriam substituídos em menos de uma hora.
— Precisamos subir antes disso — observou a Princesa Kadiya. — Devemos dominar os guardas, um a um, com muito cuidado para que não dêem alarme. Um grito e estamos perdidos.
Um chefe guerreiro uisgu chamado Prebb disse:
— Vou levar dois dos meus. Subiremos suavemente como a névoa do pântano e abateremos o inimigo com nossas zarabatanas.
— Mas se forem vistos por um deles. — observou o Príncipe Antar. — Vocês sabem que a mágica das princesas nos protegeu da visão a distância do feiticeiro. Mas homens comuns podem nos ver.
Anigel disse:
— Eu levarei os dardos e abaterei os guardas. Meu talismã pode me tornar invisível, como da outra vez, quando eu corria perigo de vida. Assim, nenhum guarda poderá dar o alarme.
Antar e os outros chefes não gostaram da idéia e o príncipe tentou proibir a princesa de executá-la. Mas Anigel estava resolvida e certa de ser capaz de fazer o que propunha. Kadiya, vestida dos pés à cabeça com uma cota de malha feita de escamas douradas que brilhavam mesmo sob a lama que as cobriam, adiantou-se e segurou as duas mãos da irmã mais nova.
— Tem razão, Ani. É uma tarefa para a qual você está bem preparada, e ninguém pode negar aquilo que sua coragem exige que faça. Boa sorte para você, minha irmã, e que nenhum mal lhe aconteça.
Prebb prendeu uma aljava cheia de dardos nas costas de Anigel.
— Você acerta o dardo e deixa no lugar, homem morre — disse ele. — Você acerta dardo e tira, homem dorme por longo tempo, mas vive. Porém, cuidado! Não se fira com o dardo!
— Compreendi! — disse a princesa, com o rosto tranqüilo sob a tiara prateada.
— Cada sentinela que você despachar, avise-me — disse Kadiya. — Seguiremos todos juntos, mantendo-nos bem abaixo de você, para não fazer barulho.
— Minha princesa! — exclamou Antar, apavorado. — Eu imploro.
— Não — Anigel aproximou-se dele e o beijou de leve nos lábios, uma carícia tão leve que quase não o tocou. Mas o coração do príncipe acendeu-se como brasa avivada e ele ficou paralisado por longo tempo antes de demonstrar sua alegria.
A essa altura, Anigel já tinha desaparecido e os guerreiros oddlings sorriam para o príncipe. Kadiya, com voz áspera, sugeriu que era melhor verificarem como estavam as coisas na sala da cisterna.
Anigel murmurou uma prece e um comando breve: ”Senhores do Ar, defendam-me.” E começou a longa subida.
Encontrou o primeiro guarda depois de três lances de escada, com a lanterna no chão e a balestra na mão. Era um jovem alto e forte, vestido como quase todos os soldados labornoks com uma cota de malha e elmo redondo, armado com uma espada curta, uma maça e uma aljava cheia de setas para a balestra. Ele assobiava baixinho para passar o tempo e apostava com ele mesmo qual das duas lingits que subiam pela parede chegaria primeiro no teto.
Anigel aproximou-se silenciosamente por trás dele e ergueu o dardo envenenado com a mão trêmula. Onde devia enfiar o dardo? Sob a cota de malha, o homem usava um colete de couro acolchoado e o pescoço estava protegido por placas de metal com dobradiças presas no elmo.
Anigel pensou. Ele vai cair e, se cair em cima de mim ou do dardo, não vou poder retirar a arma e ele morre. Oh, eu não aguentarei se ele morrer, pois é um jovem forte e belo e parece corajoso e sem dúvida tem mãe-
E é também seu inimigo mortal, uma voz murmurou dentro da sua cabeça. Que a violentaria e mataria sem pensar duas vezes, se pudesse vê-la. Pois, embora ele não seja um homem mau, obedecerá cegamente às ordens dadas por homens malvados. Quem escolhe o papel de guerreiro deve estar preparado para enfrentar o destino do guerreiro.
Anigel estremeceu, e pela primeira vez compreendeu que ela também havia escolhido o papel de guerreira, por mais que tentasse se convencer de que combateria o inimigo sem derramar sangue.
Se eu tivesse de matá-lo a sangue-frio, seria capaz?
Respirou fundo e enfiou o dardo nas costas da mão do homem, retirou imediatamente e se afastou um pouco. O soldado murmurou algo, surpreso, seus olhos rolaram nas órbitas e seus joelhos dobraram-se lentamente. A balestra caiu, rolando barulhentamente escada abaixo, e o elmo bateu no chão de pedra com um ruído metálico.
Mas ele estava respirando. Anigel certificou-se disso antes de avisar Kadiya. Então, subiu apressadamente para a outra sentinela, com o coração disparado e com uma euforia vigorosa que quase a envergonhava. A fadiga e o medo a abandonaram. Esqueceu a passagem sinistra pelo cano enlameado e a subida vertiginosa pela escada de corda oscilante. Estava outra vez dentro da Cidadela, seu lar, e em guerra com os invasores.
Ao todo, Anigel pôs dezoito homens para dormir. Chegou finalmente na porta da destilaria e encostou o ouvido na madeira por algum tempo (sem lembrar de examinar o interior com sua Visão). Não ouviu nada, entrou.
E deu de frente com o Voz Verde.
É claro que ele não a viu. Mas viu a porta se abrir e sentiu o mau cheiro do subterrâneo. Depois de dizer todas as pragas que conhecia, ele riu e disse:
— Sim, continuem, lixo dos pântanos, e recebam o que os espera! Talvez não possamos vê-los, mas graças ao meu Mestre Todo-Poderoso podemos ouvi-los muito bem — e, quando a sua vanguarda chegar ao topo da escada, terão a recepção que seu atrevimento merece!
Voz Verde estava sem o capuz e tinha sobre as orelhas dois objetos redondos com pequenos botões, unidos por uma tira que passava sobre a cabeça.
Mas Anigel não deu atenção a esse instrumento mágico. O que a interessou foi a máquina que dois fortes soldados labornoks estavam instalando. Era uma caixa cinzenta pesada com cantos arredondados e com desenhos completos na parte superior e atrás. Da frente da caixa saía um cilindro longo de vidro com várias argolas e bastões de metal e tinha na extremidade superior uma coisa estranha feita de ouro. Um cabo grosso feito com um material negro e brilhante ligava a caixa a outra maior, que estava num carrinho de mão, atrás da pilha de sacos de cereais, a cinco ou seis ells da primeira.
— Cuidado, seu idiota! — gritou Voz Verde para um dos soldados, que cambaleou com o peso e quase derrubou a caixa. — Este e mais o outro são os únicos geradores de relâmpagos que temos funcionando, e se o estragarem, meu Mestre Todo-Poderoso vai arrancar a pele dos seus corpos inúteis e fritá-los em óleo!
Anigel conteve uma exclamação de horror. O relâmpago de Orogastus vinha daquelas máquinas? E agora Voz Verde as preparava para explodir a escada por onde estavam subindo Kadiya e seu exército.
E o Príncipe Antar.
Movendo-se com a rapidez de um fedok, Anigel enfiou um dardo em cada soldado. Quando eles caíram, depositando a caixa delicadamente no chão, e os dardos usados caíram ao lado deles, Voz Verde se sobressaltou. Acostumado com mágica, percebeu que havia alguém invisível ao seu lado. Suspendeu a saia comprida e correu para a caixa grande no carrinho de mão.
Anigel correu e lançou-se sobre o homem, que se esforçava freneticamente para manipular as protuberâncias da caixa. A princesa apanhou um dardo e enfiou com toda a força na nuca do assistente de Orogastus. Voz Verde tombou sobre a caixa mágica, inerte como um dos sacos da sua barricada improvisada. A coisa estranha caiu da sua cabeça. Anigel afastou-se dele devagar. Com os olhos presos no dardo, chegou a estender a mão para retirá-lo, mas recuou. Teve a impressão de ouvir palavras ditas há muito, muito tempo — ou seria apenas há duas semanas? —, quando ela, Kadiya, Immu e Jagun olhavam para a sala do trono cheia de sangue e ela, Anigel, na sua inocência pediu uma explicação para o mal.
As pessoas boas não podem responder a eles com bondade porque os malvados não sabem o que é o amor e o tomam por fraqueza. Por isso, você que é gentil e amorosa, princesa, precisa encontrar um meio menos suave para tratar com essas pessoas.
— E você é a Voz de Orogastus — murmurou a princesinha. E ficou ali, ao lado dele, até Kadiya chegar com os outros na porta da destilaria, e então Voz Verde estava morto.
Anigel mandou o chefe wyvilo, Lummomu-Ko, destruir a máquina mortífera com seu machado. Feito isso, o pequeno exército seguiu para o primeiro andar da Cidadela e a batalha começou.
Em tempo de paz, as barcaças gigantescas usadas pelos mercadores eram tripuladas por remadores ruwendianos livres que se orgulhavam de sua força e habilidade e ganhavam muito bem para conduzir as pesadas embarcações rio acima e rio abaixo. Com a conquista, porém, a maioria dos remadores mais experientes fugiu para o Pântano Labirinto e os labornoks, na iminência de ficarem sem o meio de transporte mais importante, fizeram escravos dos que haviam ficado e obrigaram outros ruwendianos inexperientes a preencher os lugares vazios. Eram acorrentados aos remos, mal-alimentados e chicoteados quando descuidavam do trabalho. Porém, mesmo nos melhores momentos, a tripulação escrava era muito inferior à dos homens livres, como tinham descoberto o General Hamil e Lorde Osorkon nas suas malsucedidas expedições no Mutar.
Agora, quando Osorkon queria voltar rapidamente para a Cidadela (depois de saber, numa conversa com o falecido Voz Vermelha, que havia um plano de ataque programado para a festa das três luas), a grande frota de barcaças descia o rio pouco mais depressa do que a corrente. Chicotadas haviam matado um número enorme de remadores, desde que deixaram o acampamento, logo abaixo do Inferno de Espinhos, e o resto estava tão exausto que nenhum castigo podia apressar seus movimentos.
Osorkon chamou o comandante da barca capitânea e exigiu que ele tomasse alguma providência, mas Pellan, acovardado, disse apenas:
— Meu general, os remadores estão quase mortos e nada pode aumentar a velocidade das embarcações, a não ser que concorde com minha sugestão de substituir os escravos por soldados.
— Maldita seja sua alma, Pellan, perderemos mais tempo com uma parada para fazer a substituição. E os soldados vão fazer uma porção de tolices, pois não entendem nada de barcos.
— O que mais posso dizer? — O guia mercador não ergueu os olhos. — A enchente nos ajuda um pouco. Tudo que podemos fazer é aproveitar a força da corrente.
Osorkon rilhou os dentes mas não disse mais nada. Não era tão impetuoso quanto o falecido Hamil, que ele substituiu no comando, e sabia que Pellan estava certo. A frota chegaria à Cidadela, mesmo que ninguém manejasse os remos. Ergueu os olhos para o céu, para a grande névoa brilhante que indicava a posição das três luas. Era quase meia-noite e a festa começara ao pôr-do-sol. Quem podia saber que tipo de magia negra a bruxa-princesa Kadiya e seu bando de uisgus iriam empregar contra os labornoks?
Dando as costas ao guia, o oficial aproximou-se da amurada de proa e ficou parado, com as mãos cruzadas nas costas. Osorkon estava agasalhado e bem protegido contra o frio e a umidade, mas sem a armadura.
— O que é aquele clarão vermelho no céu, Homem do Rio? Será que estamos finalmente nos aproximando do Knoll?
— Sim, meu general. As docas do mercado de Ruwenda estão a uma légua daqui. Mas o senhor deu ordens para aportarmos no cais da Cidadela, que fica a três léguas, por água.
— Sim, sim, eu sei. Em quanto tempo chegaremos?
— Menos de uma hora — Pellan ergueu a luneta e perscrutou o rio escuro à frente.
— Estranho, a superfície está muito revolta mais adiante, como se peixes milingais enormes estivessem espadanando na água, mas nunca aparecem nesta época.
Osorkon ficou imediatamente alerta.
— Pode ser embarcação inimiga?
— Não, nada disso. Temos ainda bastante claridade e posso ver perfeitamente. Agora, a água começa a se agitar no través também.. Pela Flor! Para trás!
Uma série de pancadas na água e rugidos assustadores quebraram o silêncio da noite. Osorkon viu uma cabeça enorme erguendo-se acima da amurada, com olhos alaranjados e brilhantes e uma bocarra escancarada que parecia ter um ell de largura, mostrando os dentes afiados como facas. O cheiro nauseante o agrediu como uma arma.
— Skriteks! — berrou Pellan. Mas foi a última coisa que disse na vida. O monstro galgou agilmente a amurada baixa, agarrou o guia com seus talões e arrancou sua cabeça com uma única dentada.
Osorkon estava louco de medo e de raiva, com aquele ataque dos seus ex-aliados. Em toda a extensão da frota, bandos de demónios subiam nos barcos e os gritos de pavor dos homens misturavam-se aos rugidos e aos uivos animalescos das criaturas.
— Parem! — exclamou Osorkon. — Parem com isso, seus covardes miseráveis! Nós somos labornoks! Seus aliados! Seus amigos!
O skritek que acabava de decapitar Pellan parou, hesitante, como se acabasse de lembrar alguma coisa importante. Gritou uma ordem, na sua língua gutural, que foi recebida com rosnados e silvos de desapontamento. Então, ele largou o corpo ensangüentado de Pellan, segurou Osorkon com todo o cuidado e o atirou na água.
O oficial voltou logo à superfície, tossindo, engasgado, e quase bateu com a cabeça num remo solto ao lado do barco. Agarrou o remo e viu os monstros atirarem todos os labornoks na corrente rápida do rio lamacento. Não tocaram nos remadores ruwendianos acorrentados. Alguns skriteks não puderam se conter e deram pequenas dentadas nas vítimas, mas os companheiros os censuraram com silvos e rugidos e eles desistiram.
Quando os cinco mil homens foram atirados para fora dos barcos, um skritek muito alto, com colar e cinto de couro e pedras preciosas, arrancou a bandeira de Labornok do mastro e a fez em pedaços. Os outros monstros riram barulhentamente, saltaram na água e nadaram para a praia do Pântano Verde.
Quando os monstros estavam bem longe, Osorkon gritou:
— Ó! Algum cavaleiro ou soldado do grande Labornok vive ainda?
Algumas dezenas de vozes responderam — umas cheias de medo, outras com palavrões.
— Voltem para os barcos, homens! — gritou Osorkon. Nesse momento os remadores ruwendianos começaram a gritar, compreendendo finalmente o que tinha acontecido. Os remos enormes mergulharam na água com euforia e as barcaças começaram a se afastar dos labornoks que boiavam no rio.
Praguejando e tossindo, Osorkon agarrou seu remo, como um vart da água, puxando-o para baixo, e depois de um momento sentiu que -seu ponto de apoio estava solto na toteleira, sem oferecer nenhuma resistência. Finalmente ele conseguiu aproximar-se e subiu no barco com uma dezena de outros homens. Apanhando suas armas, tomaram novamente o controle da embarcação. Três outras barcaças, das cento e vinte que haviam partido de Trevista, foram retomadas pelos labornoks e as outras desapareceram na noite. As quatro embarcações, depois de recolher o maior número possível de homens, dirigiram-se para o cais principal do mercado de Ruwenda, onde foram recebidas pelo labornok mestre do porto e pelo capitão da guarda.
— Froniais! — gritou Lorde Osorkon, furioso. — Froniais para nos levar à Cidadela, ou vocês todos morrerão.
As montarias foram providenciadas imediatamente e Osorkon conduziu seus guerreiros, a galope, pela Estrada do Comércio, na direção da Cidadela. Dos cinco mil homens, restavam setenta e dois.
Hiluro voou até a torre alta da Cidadela e desceu suavemente. Haramis desmontou, abraçou o pescoço do pássaro e disse:
— Não sei se nos encontraremos outra vez, mas leve a minha bênção. Você foi um amigo fiel e dedicado.
Hiluro inclinou a cabeça, quase tocando com o bico as pedras da ameia. Estou sempre às suas ordens, Dama Branca. E levantou voo para o céu outra vez encoberto, com as três luas escondidas pelas nuvens. Haramis levantou o alçapão, notando que eles o haviam consertado depois da invasão da Cidadela, e desceu a escada. Os poucos homens de guarda nos andares onde ficavam os tesouros aparentemente não notaram sua passagem. Outros soldados patrulhavam o corredor que levava aos níveis centrais da torre principal e Haramis cruzou também com um grupo de cavaleiros labornoks, que olhavam sombriamente para o rio de uma das janelas. Ninguém sequer olhou para ela.
É como se eu fosse um fantasma, assombrando meu antigo lar, pensou a princesa. Será que me ignoram por ordem de Orogastus, ou é o talismã que me faz invisível a eles?
Serei espectadora neste conflito, mantendo-me distante, como fazia a Dama Branca? Qual será a minha parte na realização da profecia?
Finalmente chegou ao solar. O salão estava preparado para ela. O fogo ardia na lareira e as velas bruxuleavam nos nichos. Sobre a mesinha, ao lado das janelas que davam para o balcão, havia uma jarra com vinho e copos de cristal.
Haramis aproximou-se da janela e seu coração se apertou com o que viu lá fora. Milhares de guerreiros enfileiravam-se no adro do pátio interno — soldados armados e cavaleiros andavam de um lado para o outro, inspecionando os armamentos, outros estavam de pé, ao lado das fogueiras. Havia barricadas ao lado do portão principal e sobre uma delas, uma máquina estranha, guardada por homens do feiticeiro. Sobre plataformas maciças, dos dois lados da entrada da torre principal, havia mais quatro máquinas e os homens que deviam operá-las. Ao longo das ameias dos pátios interno e externo e do barbacã, alinhavam-se os arqueiros e os homens das catapultas, em posição de combate. O portão da Cidadela, que se abria para a estrada, estava completamente bloqueado por uma grande pilha de entulho.
Sem esperança, pensou Haramis, desanimada. Sem esperança. E voltou-se no momento em que Orogastus entrava na sala.
O feiticeiro vestia seu traje negro e prata e a espécie de coroa em forma de estrela, mas a máscara era diferente da que usava para tratar com os Poderes das Trevas, pois cobria toda a cabeça, escondendo completamente o rosto. Até as aberturas dos olhos eram protegidas por vidro negro e sua aparência era tão ameaçadora que Haramis deixou escapar uma exclamação de susto.
Ficaram frente a frente, imóveis. De alguma parte distante e profunda da torre, ouviram um som que Haramis não identificou.
Orogastus tirou o capuz com a máscara, as luvas e pôs tudo sobre um dos bancos ao lado da lareira.
— Você fez sua escolha — disse ele, lentamente —, e não me escolheu.
— Não.
— Escolhi meu caminho há muito tempo — disse Orogastus —, e não posso desistir e voltar agora.
— Eu sei.
O feiticeiro tirou de um bolso sob o manto uma caixinha de madeira com figuras sinistras entalhadas e abriu-a, revelando uma esfera verde. Haramis olhou, sem compreender. Percebia vagamente que os ruídos que ouvira antes- aumentavam de volume. Eram gritos e o tumulto da luta que se travava nos subterrâneos da Cidadela.
— Isto chama-se o Eflúvio Maldito. — Orogastus guardou a caixinha, com expressão séria e implacável. — Se eu atirar esta esfera aqui de cima, todos que estão nos pátios interno e externo morrerão em meio a terríveis tormentos. Dê ordens para Kadiya e Anigel se entregarem e passarem seus talismãs para você. Para nós!
Orogastus a abraçou e beijou quase ferozmente. Depois, apanhou as luvas e a máscara e saiu, batendo a porta.
— Não! — murmurou Haramis, — Não! Rapidamente tirou seu talismã para ver Kadiya e Anigel com sua força invasora. O Círculo dessa vez não tomou a cor perolada, mas cintilou fortemente e pareceu se expandir para envolvê-la em sua luz...
... e Haramis estava pairando no ar sobre a cozinha da torre, onde um bando de wyvilos altos e medonhos, comandado pelo Príncipe Antar, atacava um grupo de soldados e cavaleiros labornoks. Brandindo seus machados de cabos longos numa violenta carnificina, o povo das florestas desmoralizava e destruía o inimigo. E à medida que os homens caíam ou recuavam e os wyvilos abriam caminho, pequenos uisgus com armaduras de escamas e círculos vermelhos em volta dos olhos saíam aos bandos dos corredores como uma enchente de ouro derretido, gritando e brandindo lanças, assim que tinham espaço suficiente.
Os invasores passaram rapidamente da cozinha arrasada para a padaria e a despensa, e daí para a área aberta do pátio interno, onde os esperava a força principal dos defensores, gritando e brandindo suas armas.
Haramis não localizou imediatamente suas irmãs. Finalmente viu Kadiya, uma guerreira com cota de malha dourada, pouco mais alta do que os uisgus, incitando seus pequenos soldados, com o talismã erguido. Então viu Anigel, toda vestida de couro azul, que parecia bruxulear na lua incerta, ao lado do Príncipe Antar com sua armadura azul-celeste. Sempre que um inimigo tentava atacar o príncipe pelas costas, Anigel saltava sobre ele com uma pequena arma e o infeliz labornok caía imediatamente, imóvel.
Ora, Anigel está invisível! pensou Haramis. Por isso pode atacar impunemente aqueles brutos. Kadiya também deve estar protegida por seu talismã. E ao que parece, estão vencendo
Era verdade. Porém, quando os invasores saíram para o pátio aberto, a vantagem passou para o outro lado. O inimigo superava a pequena força das princesas em mais de quinze por um, e os lacaios do feiticeiro começavam a armar suas máquinas infernais, apontando-as para a área na frente da porta da despensa.
Haramis saiu do transe e correu para o balcão, de onde podia assistir à luta com seus próprios olhos. Chamou as irmãs urgentemente, usando o talismã.
Kadiya! A máquina de relâmpagos está na barricada próxima do portão principal! Acabe com ela! Ou melhor, use-a para explodir os portões, destruindo o monte de entulho com que os labornoks bloquearam a entrada da Cidadela!
Kadiya não respondeu, mas Haramis viu a figura dourada sair do meio dos uisgus e passar entre a horda de cavaleiros, com a luz das fogueiras cintilando na sua armadura de escamas.
Anigel! Perto da porta principal da torre há plataformas de madeira...
Mas, antes que pudesse terminar, os lacaios do feiticeiro começaram a usar as máquinas mortais. Bolas de fogo brancas e douradas partiram das duas máquinas contra os invasores, e quando acertavam o alvo, grudavam nas armaduras, infligindo queimaduras terríveis. Das duas outras máquinas, que faziam um barulho ensurdecedor, saiu uma chuva de balas de metal, seguida por uma linha de fagulhas vermelhas. Penetravam na carne e nos ossos, provocando ferimentos mortais quando não matavam imediatamente.
Estou vendo as armas, Haramis! Estou indo para lá!
Anigel! Haramis mordeu o lábio nervosamente. Tenha cuidado! Embora não possam vê-la...
Mas nesse momento Haramis cambaleou, quase cega com a descarga da máquina de relâmpagos. A explosão trovejante fez tremer a torre principal e a jarra de vinho e os copos de cristal partiram-se no chão.
Quando sua vista clareou, ela ergueu o talismã para ver através da nuvem de fumaça e poeira. Atónita, viu que quase toda a casa da guarda, acima do portão principal, estava destruída. Mais ainda, a trilha da destruição, seguindo em linha reta, havia demolido o portão e o barbacã... O monte de entulho na entrada da Cidadela estava maior do que nunca.. mas as colunas maciças que sustentavam os portões e uma área de quatro ells em cada lado do muro desmoronavam ante seus olhos.
E Kadiya.
— Deus de misericórdia! — exclamou Haramis.
No topo da barricada, a máquina de fazer relâmpagos era agora uma ruína queimada e retorcida. Ao lado dela estavam os corpos chamuscados dos servos do feiticeiro, e entre eles uma figurinha dourada, imóvel com a espada sem ponta ainda na mão. Kadiya deve ter destruído a máquina com seu talismã, pensou Haramis, mas não pensei que ela podia ser atingida! Preciso avisar Anigel...
A tola! Haramis compreendeu que estava ouvindo mentalmente a voz de Orogastus. Ela usou toda a força da máquina para um único disparo! As defesas estão destruídas e o inimigo atravessa o rio, a caminho da Cidadela!
Haramis o viu logo abaixo de onde ela estava, de pé num pequeno parapeito, logo acima da entrada da torre, a estrela na sua cabeça cintilando a cada movimento, agora que a fumaça tinha desaparecido e as dezenas de pequenos fogos acesos pela máquina cresciam com o vento. A voz do feiticeiro, ampliada por alguma mágica, parecia uma corneta gritando com os labornoks, que não tinham idéia do que estava acontecendo.
— Mantenham suas posições! Homens de Labornok, mantenham suas posições!
O Rei Voltrik apareceu atrás de Orogastus, com sua bela armadura de ouro, o elmo denteado, a espada longa em riste. Os homens lá embaixo o saudaram com gritos e a luta entre labornoks e os invasores wyvilos e uisgus recomeçou.
De repente o Príncipe Antar gritou com voz estentórea, que ecoou em todo o pátio.
— Homens de Labornok, não dêem ouvidos àquele demónio! Eu sou Antar, seu príncipe! E eu digo que Orogastus enfeitiçou meu pai e o transformou num fantoche!
Um rugido ergueu-se dos milhares de homens.
— Silêncio, traidor! — gritou Orogastus.
Mas outras vozes gritaram: ”Ele tem razão! O príncipe tem razão. Vejam como o rei só fica ali parado!” E outro disse: ”Por que o rei não está aqui, nos conduzindo pessoalmente?” E outro: ”Adiante-se, Voltrik. Fale conosco!” Outros brados seguiram, até Orogastus levantar as duas mãos com os olhos cintilando como duas estrelas.
Fez-se silêncio.
O Rei Voltrik sabia que precisava dizer alguma coisa. Mas o quê? Sua coragem estava despedaçada, suas grandes ambições desfeitas como sonhos tolos. A realidade era o exército ruwendiano entrando na Cidadela, apesar de toda a magia de Orogastus. A realidade eram as vozes dos seus homens hesitantes na sua lealdade. A realidade era seu filho Antar, sempre desprezado, desafiando-o abertamente. A realidade, acima de tudo, era o fracasso de Orogastus na destruição das três princesas bruxas, uma das quais estava destinada a destruí-lo
— Soldados de Labornok, continuem a luta! Lutem, eu digo! — Mas a voz do rei era mais o coaxar de um sapo do que um clarim de comando. — Quem está enfeitiçado é meu filho, o miserável. Morte ao traidor!
O pequeno discurso, em vez de encorajar os cavaleiros e os soldados, provocou um clamor mais ruidoso do que antes. E o Príncipe Antar gritou:
— A mim, filhos de Labornok! Abaixo o feiticeiro! A mim, eu digo!
A luta recomeçou, renhida outra vez, e a despeito dos gritos de advertência de Orogastus um grande número de labornoks tirou suas capas vermelhas e colocou-se ao lado do príncipe e das suas forças quase dizimadas.
Na confusão, quase ninguém notou — e certamente não o furioso Orogastus — que os homens vestidos de preto que manejavam as máquinas terríveis caíam desacordados no topo da plataforma. Só Haramis, boquiaberta com a temeridade da sua irmã mais nova, viu Anigel lançar o último dardo e começar a empurrar as máquinas pesadas para a borda da plataforma, jogando-as sobre as pedras cinco ells abaixo, onde elas se esfacelaram.
Quando Orogastus percebeu o que estava acontecendo, aos berros mandou que os soldados subissem na segunda plataforma rapidamente para defender as máquinas com suas próprias vidas. Mas os soldados perceberam que os homens do feiticeiro tinham sido eliminados por alguma arte mágica e que essa mágica estava em ação ainda na plataforma, pois seres invisíveis estavam atirando coisas sobre eles. Ninguém se moveu e Anigel passou da primeira para a segunda plataforma e acabou de destruir as máquinas que o feiticeiro havia usurpado dos Desaparecidos.
Muito bem! disse Haramis para a irmã mais nova. Mas agora precisamos ajudar Kadiya.
Anigel estava eufórica. Não foi maravilhoso, como Kadiya lançou o relâmpago? Meu talismã mostra nosso exército desembarcando no cais da Cidadela neste momento — e eles entrarão facilmente pelo muro destruído!
Anigel, Kadiya foi ferida. Vá até ela. Estou descendo para ajudar.
Haramis apanhou a coroa de Ruwenda e o manto da Arquimaga e desceu apressada, para ajudar as irmãs.
— Lá, lá, meu senhor — não está vendo?
Orogastus apontou para a casa da guarda destruída, além da barricada. O Rei Voltrik olhou com atenção e finalmente disse:
— Sim. Com uma espécie de armadura dourada. É ela?
— Exatamente. Inconsciente por ter demolido minha máquina. Ela não pode agora usar seu talismã. A Princesa Kadiya não está mais invisível e está completamente desprotegida! Caiu em nosso poder! Tudo que tem a fazer é ir até lá e acabar com ela, antes que recobre os sentidos — ou que seja salva por sua gente.
— Eu? — gaguejou o rei. — Ir lá embaixo?
— Tem medo de uma jovem inconsciente? — A voz do feiticeiro era macia e persuasiva. — Não vejo nenhum inimigo ao lado dela, meu rei, só os seus homens, que têm medo de tocá-la. Mas o senhor pode acabar com ela! Sua maior inimiga! Kadiya é a princesa marcial, a mulher da profecia. Ela matou o General Hamil e destruiu metade do seu exército, e foi quem instigou esta batalha. Mas ela não venceu! Temos ainda quase cinco mil homens experientes para enfrentar esta horda e a comandante do inimigo está ali à espera da sua espada!
— Isso é verdade — Voltrik empertigou-se. — A mágica da princesa de nada vai lhe servir agora!
— Vá, meu senhor. Mate a Princesa Kadiya, depois mande seus homens avançarem contra o barbacã da Cidadela. Cortem o caminho dos invasores quando tentarem passar sobre as ruínas.
— A bruxa morrerá! — berrou Voltrik. — E quando eu tiver na mão sua cabeça decepada, você anuncia meu feito com sua voz de trovão!
Orogastus foi até o parapeito e gritou:
— Homens de Labornok! Seu rei vai conduzi-los à vitória! Todos para o barbacã! Preparem-se para o encontro final com o inimigo!
Foi saudado com gritos esparsos.
— Quer saber — disse o rei com um largo sorriso. — Parece que estamos mesmo com vantagem. Quase todos os miseráveis que entraram pelas masmorras foram abatidos.
— Seu filho, o traidor Antar, está ganhando aliados enquanto fica aqui parado, meu rei. Desça! Mate Kadiya primeiro, depois organize seus homens para o combate.
— À vitória! — rugiu Voltrik, fechando com um estalo o visor denteado do seu elmo.
— Vá — disse Orogastus. — Vá.
Quando o rei finalmente começou a descer a escada o feiticeiro deu um grande suspiro de alívio. Descalçando uma luva, pôs a mão dentro do manto e tocou a caixinha de madeira com a esfera mortal, ao mesmo tempo enviando uma prece silenciosa aos Poderes das Trevas.
Voltrik conseguiria matar Kadiya? Ou o talismã da princesa iria fazer com o rei o que tinha feito com Hamil e Voz Vermelha? Valia a pena arriscar. Se Voltrik fosse bem-sucedido, não seria necessário arrasar completamente todo aquele cenário..
Orogastus observou o avanço do exército inimigo — aumentado agora pelas brigadas armadas dos ruwendianos do Conde Palundo. Então, examinou a escuridão do pátio interno da Cidadela, procurando descobrir o paradeiro das outras princesas.
Não viu Anigel nem Haramis, mas apenas uma pequena oddling, abrindo caminho cuidadosamente no meio do tumulto e da carnificina, como se procurasse por alguém.
Immu caminhava com dificuldade no meio da cena da batalha, tossindo por causa da fumaça, tropeçando nos corpos de amigos e inimigos, passando ao largo das escaramuças e dos combates singulares que faziam do pátio interno um inferno de sangue e aço.
— Anigel! — ela chamou. — Princesa, onde você está?
Perguntava pela princesa para os wyvilos e uisgus feridos, mas nenhum dos que tinham ainda forças para responder sabia onde ela estava, pois a Princesa Anigel estava invisível.
Immu viu o Rei Voltrik aparecer na porta da torre e chamar um grupo de cavaleiros. Depois, eles se dirigiram diretamente para onde ela estava.
De repente fez-se uma trégua. Obedecendo às ordens de Orogastus e dos seus comandantes, a maioria dos labornoks dirigia-se agora para o barbacã demolido e para o portão da Cidadela, reagrupando-se para repelir o avanço da força invasora que vinha do rio.
Mas, ao que parecia, o rei tinha outros planos.
— A bruxa! — gritava Voltrik. — Venham comigo, homens! Preciso matar a bruxa!
Ao lado dele estavam Lorde Osorkon, que havia chegado em tempo para a batalha, e Sir Rinutar, que chegara na noite anterior, com a notícia da invasão iminente, e dois outros cavaleiros, Lotharon e Simbalik.
O rei e os quatro homens abriram caminho entre a multidão de defensores, com os elmos abertos para enxergar melhor naquele caos de fumaça e pó, e começaram a subir com dificuldade para o topo da barricada onde a Princesa Kadiya estava ainda inconsciente.
Immu também a viu. E com toda a agilidade que lhe permitiam os velhos ossos, galgou penosamente o outro lado da estrutura destruída, correndo, ofegante, para a forma inerte com a armadura dourada.
Mãos invisíveis estavam tirando o capuz de escamas da cabeça de Kadiya. E Immu ouviu uma voz trêmula dizer:
— Kadi! Por favor acorde, Kadi! A pequena nyssomu gritou:
— Anigel! Você está aí, meu anjo?
A princesa de cabelos dourados apareceu bruscamente, assim que tirou a tiara da cabeça.
— Immu! Venha depressa! Kadi está respirando, mas acho que está ferida!
Ouviram um grito rouco.
— São duas agora! Grande Zoto, as duas bruxas estão aqui! O Rei Voltrik e seus quatro cavaleiros chegaram ao topo da barricada. Derrubando Immu com violência, o rei segurou a Princesa Anigel pelos cabelos e arrastou-a para longe da irmã. Soltou-a por um segundo e, com a mão que lhe restava, empunhou a espada e encostou-a na garganta da princesa. A tiara talismã caiu sobre as tábuas queimadas com um ruído surdo. O brilho do âmbar apagou-se imediatamente.
Simbalik e Lotharon levantaram Kadiya. A espada sem ponta soltou-se dos dedos flácidos e o âmbar perdeu também todo o brilho. Mas a princesa abriu os olhos e fitou-os nos da irmã.
— Homens de Labornok! — gritou o Rei Voltrik, num transporte de euforia. — Vejam! Duas das bruxas que ameaçavam o trono do nosso grande país estão em meu poder!
Um rugido de aplauso ergueu-se do grupo de soldados e do parapeito, sobre a entrada da torre, a voz de Orogastus ressoou:
— Salve, Voltrik! Salve o rei conquistador! Mostre-nos o que recebem aqueles que se opõem ao seu poder!
Enquanto isso, Immu arrastava-se cautelosamente para a tiara de Anigel. Quando chegou perto, saltou sobre ela como um lothok e a atirou para a princesa. Dois homens seguraram a velha ama, prontos para atirá-la do alto da barricada.
Anigel, ainda com a espada de Voltrik encostada no pescoço, gritou:
— Se fizerem mal a ela são dois homens mortos.
O trílio no âmbar da tiara cintilou e os homens que se guravam Immu ficaram imóveis. O Rei Voltrik, frenético, exclamou:
— O outro talismã mágico! A espada negra, ali no chão! Apanhem!
— Esperem! — gritou Osorkon, reconhecendo o objeto e lembrando o perigo que ele representava.
Mas Rinutar já tinha soltado Immu e inclinou-se para o talismã de Kadiya. Nesse momento, a princesa estendeu a mão e tocou o punho da espada um segundo antes do cavaleiro. Os três olhos se abriram e um facho luminoso atingiu o rosto de Rinutar.
A armadura do cavaleiro labornok incendiou-se e ele não teve tempo de gritar, nem de erguer o corpo. A carne do seu rosto e a pele da cabeça derreteram-se e o crânio ardeu, vermelho como uma fornalha. Voltrik e seus homens recuaram com gritos de horror e o corpo de Rinutar rolou de cima da barricada para o chão como um meteoro humano.
Foi um pandemônio total. Porém Voltrik, justiça seja feita, não moveu sua espada nem um milímetro do pescoço de Anigel, embora o suor frio escorresse da sua testa para os olhos e seu coração estivesse a ponto de explodir.
Anigel voltou-se e olhou para ele.
— Deixe-nos ir. Vocês estão derrotados. Entregue-se a nós e à nossa misericórdia.
Voltrik uivou com uma gargalhada histérica.
— Nada disso, bruxa! Primeiro sua irmã vai morrer, depois será a sua vez.
— Meu rei! — Lorde Osorkon, aterrorizado, apontou para o chão. — A espada negra — está se movendo!
Boquiabertos, Voltrik e seus três companheiros viram o Olho Chamejante de Três Partes erguer-se lentamente da mão de Kadiya, pairando no ar na frente deles. Anigel não se perturbou.
Abriu a mão e a tiara flutuou ao encontro da extremidade sem ponta do outro talismã.
— NÃO!
O grito trovejante de desespero partiu de Orogastus, de pé no parapeito da torre. Tarde demais. ”
A Princesa Haramis tornou-se visível, entre as duas irmãs. A coroa de Ruwenda na sua cabeça cintilava à luz das fogueiras e o manto da Arquimaga esvoaçava ao vento. Apanhando seu talismã, -encaixou o bastão na ranhura da lâmina da espada, o Círculo de Três Asas formando um meridiano e equador com o Monstro das Três Cabeças. As asas se abriram dentro desse espaço e apareceu um grande Trílio Negro no centro.
Orogastus ergueu bem alto um objeto verde e brilhante e o atirou com toda força na direção das pedras do pátio.
Haramis apontou o Cetro do Poder para a esfera — e o Eflúvio Maldito, ainda no ar, incendiou-se e desapareceu numa nuvem de fumaça.
Então ela voltou-se para os dois cavaleiros que seguravam Kadiya. Os olhos negros da princesa estavam alertas e seus músculos tensos para a luta.
-— Soltem a princesa! — ordenou Haramis.
Mas os homens hesitaram.
— Façam o que ela mandou, seus tolos! — gritou Osorkon.
— Não! — berrou o Rei Voltrik. — Eu os proíbo!
Vendo que os dois cavaleiros continuavam imóveis e firmes Haramis voltou-se deliberadamente, embora com relutância, e apontou o Cetro primeiro para Lotharon, depois para Simbalik.
Dessa vez, as armaduras não se incendiaram. Mas no interior dos visores dos elmos uma luz acendeu-se por um segundo e, quando se apagou, os elmos estavam vazios, bem como o resto da armadura. Os dois trajes de aço caíram aos pedaços no chão.
O Rei Voltrik, com um berro pavoroso, soltou a espada que ameaçava Anigel e caiu de joelhos.
— Misericórdia! Senhora, tenha misericórdia! Haramis, calmamente, apontou o cetro para ele.
— Receba tanta misericórdia quanta dispensou, e que a profecia se realize.
Com os olhos esgazeados, o rei retirou o elmo monstruoso e inclinou a cabeça. Então, no silêncio profundo, todos viram a espada de Voltrik se erguer do chão e sua ponta enfiar-se na nuca do rei. Ele caiu, empalado por sua própria arma.
Em toda a Cidadela ergueu-se um murmúrio baixo como árvores açoitadas pela tempestade. Na barricada, Lorde Osorkon depositou sua espada aos pés de Haramis e ajoelhou-se, com a cabeça descoberta. Então, com um ruído metálico quase ensurdecedor, todos os cavaleiros e soldados de Labornok atiraram para longe suas armas e ficaram imóveis, esperando.
Haramis voltou-se para Orogastus, no outro lado do pátio. O feiticeiro tinha retirado o capuz com a estrela e seu cabelo branco flutuava ao vento, que limpava o ar da fumaça e da poeira e atiçava as fogueiras ainda acesas. O céu estava claro, sem nuvens, e as Três Luas apareciam em conjunção entre o zénite e o horizonte a oeste, parecendo formar um grande olho único com três partes.
Haramis ergueu o cetro e apontou para Orogastus.
— Agora, que sejam julgados nossas vidas e nossos serviços — disse ela.— Realizamos astarefas que nos foram confiadas? Agimos corretamente? Contribuímos para restaurar o equilíbrio? Julgue-nos e julgue a ele também.
Orogastus segurou-se no parapeito com as duas mãos, com os dentes cerrados e os olhos com o brilho cintilante e terrível da magia. Ouviram-se gritos de medo.
O Príncipe Antar, aparecendo do nada, tomou nos braços a Princesa Anigel. Immu e Kadiya, lado a lado, estavam imóveis.
— Haramis! — gritou Orogastus, com a voz ainda ampliada pelo aparelho que estava usando. — Posso destruí-la ainda! Posso chamar os Poderes das Trevas e mover a própria terra!
Haramis fechou os olhos, segurando o cetro com força, mas em sua mente via ainda o rosto dele. Isto não está funcionando, pensou ela. O cetro precisa de nós três.
— Kadiya, Anigel — chamou, com urgência —, ajudem-me! Segurem no cetro e concentrem-se!
As duas princesas colocaram-se ao lado dela e seguraram o cetro.
Toda a força do talismã tomou vida, unindo os quatro. Haramis, Kadiya e Anigel de um lado e Orogastus do outro. O cetro cintilou com uma luz que cegava mesmo os olhos fechados, mas Haramis sentiu que podia ver ainda. Kadiya e Anigel estavam muito perto, como se fossem partes dela, e Orogastus as enfrentava na outra extremidade. E na luz brilhante que as unia, toda ilusão desapareceu e viram a si mesmas e umas às outras como eram realmente.
Foi terrível. Haramis lembrou-se das vezes em que havia magoado outras pessoas, mesmo inconscientemente, das vezes em que via as irmãs como criaturas inferiores, especialmente em contraste com a beleza e a força que via nelas agora. Sentiu as mesmas emoções nas duas princesas, remorso pelas falhas e erros do passado, admiração pelo que viam umas nas outras. E envolvendo todos os pensamentos e lembranças estava o amor que as unia. Haramis compreendeu então, e suas irmãs também, que, de certo modo, formavam uma única entidade, complementando suas forças e anulando suas fraquezas. A despeito das diferenças individuais — ou talvez por causa delas —, eram uma, e eram Ruwenda.
Certamente isto é o equilíbrio de que Binah falou.
Haramis percebia também a presença de Orogastus, mas de modo diferente. A sensação de proximidade que sentira nos braços dele desapareceu. O que a princesa sentia agora era o isolamento do feiticeiro — total e apavorante. Orogastus não estava ligado a Ruwenda e a nenhuma outra terra, a nenhum povo e — a despeito do que tinha acontecido entre eles — não tinha nada em comum com Haramis.
Parecia fechado dentro de si mesmo, experimentando horrores que a princesa só podia sentir vagamente. Haramis sofreu por Orogastus e sentiu a compaixão sempre viva de Anigel voltada para ele também, mas o feiticeiro não via nada fora do próprio eu. E o que via era insuportável.
Haramis apontou o cetro para Orogastus.
— Julgue-nos — murmurou ela. — Julgue Orogastus.
Outra vez o cetro cintilou.
Todos ficaram momentaneamente cegos e muitos gritaram de horror. Então, depois de longos minutos, viram que o feiticeiro tinha desaparecido.
Tudo que restava dele era uma mancha negra, como fuligem, na parede do parapeito e, bem acima, a silhueta branca e alta de um homem.
Naquele ano, pela primeira vez a festa das três luas foi comemorada com três dias de atraso, depois que os feridos receberam os cuidados necessários e os mortos foram enterrados com as honras devidas. Porém, na terceira noite, depois da grande batalha, quando as três luas em conjunção completa ergueram-se sobre o Pântano Labirinto, o povo dos oddlings, acampado em volta do Knoll, ruwendianos e labornoks reuniram-se mais uma vez no grande pátio interno da antiga Cidadela.
Os uisgus entraram na frente, conduzidos pela Princesa Kadiya, carregando tochas com três pontas e cantando sua antiga canção do festival. Vieram depois os nyssomus, conduzidos por Jagun e Immu, e atrás deles, os wyvilos, tendo à frente Lummomu-Ko. Vieram depois os labornoks com seu novo rei, Antar, sem armaduras e com flores nas mãos, e finalmente o exército de ruwendianos livres, conduzidos pelo Conde Palundo, formado por todos os cavaleiros e nobres convocados pelos oddlings, através do Pântano, por meio da comunicação sem palavras.
Haramis os recebeu, com a coroa na cabeça, o manto da Arquimaga nos ombros e o grande cetro na mão. Antar adiantou-se e ajoelhou-se aos pés dela, para oferecer a capitulação formal de Labornok.
Mas Haramis disse:
— Levante-se, Rei Antar, pois não posso aceitar sua capitulação. — Tirou a coroa da cabeça e ergueu-a bem alto. — Eu, que era a herdeira do trono de Ruwenda, renuncio a esta coroa. Peço à Princesa Kadiya, a segunda na ordem da sucessão, que a aceite — pois fui chamada para algo diferente, fui chamada para ser a Nova Arquimaga.
Kadiya, na frente do grande grupo de nativos, com o emblema do trílio cintilando sobre a armadura dourada e o cabelo ruivo solto, disse:
— Eu também renuncio à coroa, pois meu destino não é governar os humanos, e sim ser líder e amiga do povo que me pediu para servi-lo. Peço à Princesa Anigel, minha irmã mais moça, que aceite a coroa a qual ela fez tanto para merecer.
Anigel fechou os olhos por um instante, vendo outra vez a cena em que ela corria pela floresta atrás da mãe. E agora, quando alcançou a Rainha Kalanthe, não estranhou o fato de estar sendo lavada e preparada. Aquilo que a esperava era seu de direito, desde o princípio.
Sabia também que, das três, ela era a que estava mais bem preparada para ocupar o trono. Abriu os olhos, caminhou para Haramis e ajoelhou-se com a cabeça erguida. Quando a grande coroa com esmeraldas e rubis e a enorme pedra de âmbar com o trílio pousou na sua cabeça, Anigel ficou de pé, voltou-se lentamente e fez no ar o sinal triplo para todos que assistiam à cerimónia.
Antar ajoelhou-se aos pés dela.
— Aceita minha capitulação, Grande Rainha?
— Mas já é minha — disse Anigel, sorrindo —, junto com seu coração, eu espero. E como eu sou uma rainha que não poderá governar sem um rei, proponho que governemos nossos reinos juntos, como marido e mulher, em paz para sempre. — Tomando-o pela mão, ela o fez levantar-se e ficar de pé ao seu lado.
— Povo de Ruwenda — disse Anigel. — Eu lhes dou o seu rei.
E Antar disse:
— Povo de Labornok, eu lhes dou a sua rainha. Todos aplaudiam e choravam e os oddlings cantaram suas canções. Foram servidas grandes quantidades de comida e bebida e a festa começou.
As três irmãs se abraçaram. Então Haramis apanhou o cetro e o separou. A espada sem ponta, com os olhos fechados agora, ela deu para Kadiya, que a guardou na bainha presa na cintura. A tiara de prata com as três figuras grotescas Anigel colocou dentro da coroa de Ruwenda. O bastão com as asas fechadas e o trílio no âmbar com uma fraca luminosidade, Haramis pôs outra vez no cordão de ouro que trazia no pescoço.
— Éramos uma — disse Haramis —, e agora somos três outra vez. Queira Deus que o mundo tenha recuperado seu equilíbrio e que jamais seja preciso usar o Cetro do Poder.
— Pela Flor! — resmungou Kadiya. — Espero que não! Paz é o que todos nós precisamos. Pense no quanto temos ainda de aprender! Ani, as normas tediosas do governo, Hara a magia, e eu pretendo voltar a um certo Lugar do Conhecimento e fazer muitas perguntas a alguém que mora lá. Preciso resolver problemas complexos referentes às relações futuras entre os oddlings e os humanos e acho que vamos levar algum tempo para encontrar as respostas!
Anigel voltou-se para Haramis.
— Depois da festa, vai chamar seu lammergeier e voar com ele para Noth, onde vivia a Dama Branca?
Haramis olhou para longe e por um instante seu olhar parou no parapeito na entrada da torre.
— Não. Aquele lugar desfez-se em pó quando Binah morreu. Irei para outro lugar que conheço, no alto das montanhas.
Antar aproximou-se das três e delicadamente informou Anigel que seus súditos faziam questão que os dois abrissem o baile.
— Os deveres horríveis do trono! — disse Kadiya, rindo. — Vá, Rainha Anigel. A Arquimaga e eu continuaremos nossa conversa, com comida e bebida, e quando suas majestades tiverem buracos nas solas dos sapatos, de tanto dançar, voltem para a nossa companhia.
De mãos dadas, Anigel e Antar afastaram-se das duas princesas e a música começou.
Atravessando o gramado do Knoll, à luz da lua, na direção da Cidadela, o velho músico Uzun ouviu os sons da festa e apressou o passo. Mal podia acreditar nos próprios ouvidos. Sem dúvida, eram as canções da Lua Tripla! Mas o festival não devia ter ocorrido há três dias, enquanto ele e os outros no seu barco estavam no rio, reparando o casco partido? Uzun perdera a grande batalha, a vitória, o espetáculo da sua princesa querida destruindo o vilão Orogastus — tinha perdido tudo.
Teria mesmo? Se ao menos não fosse tão incompetente na comunicação sem palavras!
Eram sem dúvida os hinos do festival, e os sons alegres levados pela brisa abafavam as vozes das criaturas do pântano. Um milagre! Afinal, chegara a tempo!
Alguma coisa na relva iluminada pela lua chamou sua atenção.
Uzun parou e inclinou-se para ver melhor. O solo estava muito úmido ainda, devido às primeiras chuvas, e todo tipo de vegetação parecia brotar da noite para o dia. Mas aquilo era diferente. Algo que Uzun mal podia acreditar que fosse real. Era magia.
Milhares de pequenas plantas apareciam do solo onde antes só havia grama e arbustos. Plantas com pequenas flores negras de três pétalas.
Uzun, o músico, apanhou um Trílio Negro e o ergueu para a luz da lua. Sim! Não havia dúvida. O prado estava coberto de trílios. As plantas estavam por toda parte.
Rindo, feliz, ele apanhou todas as flores que podia carregar e correu para dar a boa notícia ao povo da Cidadela. Milhares de trílios ficaram no prado, abrindo suas pétalas para a luz das Três Luas.
Marion Zimmer Bradley
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