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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O TRIUNFO / Anne e Serge Golon
O TRIUNFO / Anne e Serge Golon

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Nos quase trezentos anos que se seguiram ao descobrimento da América, os franceses tentaram de todas as formas estabelecer um império colonial em terras do Novo ^ Mundo. Desde o início do séc. XVI, quando a ação isolada de corsários e comerciantes os levou a explorar o litoral americano, até o final do séc. XVIII, quando tiveram de se retirar, cedendo ao avanço do imperialismo inglês, os franceses chegaram mesmo a estender seus domínios por um considerável território - no Brasil, nas Antilhas, na América do Norte.

O auge da presença francesa na America registrou-se durante o reinado de Luís XIV, quando o Canadá passou a ser uma colónia oficial, administrada diretamente pela Coroa francesa. O comércio e o povoamento foram incentivados, fundaram-se novas cidades, firmaram-se alianças com os nativos.

Mas a terra nunca produziu as imensas riquezas ambicionadas, e a sólida presença inglesa na região acabaria por frustrar seus sonhos coloniais. Depois da Revolução, praticamente findava o poderio francês no Novo Mundo.

Angélica e seu amor, o Conde Joffrey de Peyrac, viveram o auge do domínio francês em terras americanas.

"Depois de tudo o que passei", conclui Angélica, "o céu bem que me deve a felicidade!"

Num derradeiro gesto de esperança, Angélica correu o olhar pelo vasto horizonte ao longo da fortaleza destruída de Wapassu. Além, muito além das montanhas geladas do Canadá, do outro lado do oceano, o Conde Joffrey de Peyrac a esperava.

Numa espécie de vazio causado pela saudade e pela angústia, sua mente rodopiou numa embriaguez vertiginosa. Ilusões! Vivera apenas ilusões! Sonhara com um Novo Mundo. Trabalhara para construí-lo. Amara todos aqueles lugares: Katarunk, Wapassu, Gouldsboro, Salem, Quebec. Todos, um a um, deixados para trás.

O futuro que a aguardava era ainda um mistério, mas levaria consigo todas aquelas histórias com que preencher horas inteiras de numerosas vigílias e travessias. Reencontraria os amigos, e poderiam brindar e beber alegremente. Sua vida e sua obra não se apagariam. A lembrança de tantos momentos carregados de significados permaneceria como uma soberba promessa de felicidade.

Agora seu desejo era navegar para a Europa num belo navio, numa viagem sem atropelos nem tempestades. Lá encontraria um esposo cheio de expectativas, para em seus braços se lançar, prometendo-se mutuamente uma vez mais: dali por diante, nunca mais iriam separar-se!

Mais uma vez separada do marido, o Conde Joffrey de Peyrac, que partira para a França com o governador da colónia, o Sr. de Frontenac, Angélica não tinha a quem recorrer. Numa cabana perdida na imensidão gelada do interior do Canadá, diante das ruínas do que fora a fortaleza de Wapassu, destruída pelos canadenses comandados pelo Conde de Loménie-Chambord, ela não sabia o que seria de sua vida e das três crianças que a acompanhavam: seus dois filhos gémeos, os bebés Rodrigo Rogério e Gloriandra, além de Carlos Henrique, o enjeitado filho de Jenny Manigault, que tomara a seus cuidados. Os perigos pareciam brotar de toda parte: até sua filha Honorina fora obrigada a buscar refúgio entre os iroqueses, perseguida pela sanha vingativa da diabólica Duquesa Ambrosina de Maudribourg. A Diaba da Acádia e seu aliado secreto, o Padre Sebastião d'Orgeval, seus piores inimigos, como que ressurgiam das trevas. Quem viria em seu socorro: o Arcanjo da profecia? Como, se seu filho Cantor - identificado com o tal Arcanjo - acompanhava o irmão, Florimond, nas homenagens e divertimentos da corte do Rei-Sol, Luís XIV, em Versalhes, do outro lado do oceano?

 

 

 

 

A VIAGEM DO ARCANJO

CAPÍTULO I

Cantor de Peyrac despede-se da amante e enfrenta os piratas

O arcanjo estava no encalço da Diaba, desde a antecâmara do rei.

Um pano de tapeçaria que se desloca, uma porta aberta para uma passagem estreita, dois ou três degraus a galgar. A crónica fala daqueles que conduziam do salão da Sra. de Maintenon à sala de bilhar, aonde o rei se dirigia todas as noites para jogar uma partida.

Um pajem o precedia, para segurar o batente de tapeçaria, damas mergulhavam em seus brocados e uma delas se levantava.

Dois olhares, um de ouro, o outro de esmeralda, que se cruzam. E na sombra dos labirintos de um palácio, Versalhes, se engolfa o ar salino de um litoral perdido da América, o odor de podridão do peixe que seca ao sol, uma mulher que urra ajoelhada diante de um corpo trespassado por um arpão: "Zalil! Zalil! Não morra!..."

"E Ela, tenho certeza", pensara Cantor de Peyrac. No mesmo instante, enfiara um luís de ouro na palma de um lacaio próximo a ele.

— O nome dessa mulher que acaba de cruzar comigo!... O lacaio não sabia, mas, estimulado pela fortuna que acabava cair-lhe do céu, não precisou mais de um minuto para voltar e msinuar-se na assembleia que formava um círculo em torno ao bilhar do rei, e sussurrar ao ouvido do belo pajem, tão generoso:

- Sra. de Gorrestat.

-        Seu esposo? Qual é? Seus títulos? - retorquiu-lhe o pajem, doando-lhe. um segundo óbolo.

Dessa vez o lacaio abandonou por uma hora seu posto de porta-tocheiro, calculando que, se aquela deserção arriscava atrair-lhe admoestações, custar-lhe-ia menos do que o que tinha a ganhar a serviço daquele jovem senhor.

Antes do final da partida do rei, estava de volta e confiava a Cantor, junto ao seu ouvido, tudo o que conseguira recolher.

Aquela senhora era a esposa do senhor governador do Nirvanais, recém-chegado a Versalhes por convocação do rei. Corria o boato de que esperava uma nomeação importante. Sua esposa, pessoa de qualidade, discreta e agradável, agradara à Sra. de Main-tenon, que a recebia entre suas damas, o que para elas constituía a melhor maneira de ficar junto ao Sol.

Soube que o casal já se preparava para embarcar no Havre para o Canadá, do qual o Sr. de Gorrestat fora nomeado governador.

Já no dia seguinte, soube que se tratava exatamente da "viúva" do velho Parys, que se casara com o Sr. de Gorrestat.

Tudo se encaixava.

Se queria munir-se prontamente do dinheiro para uma viagem além-mar, Cantor precisaria encontrar um expediente. Ele compreendeu. Não havia mais nem um dia, nem mesmo uma hora, a perder.

Correu à casa da Sra. de Chaulnes, sua amante. Encontrou-a inquieta por não ver o seu jovem amante havia quarenta e oito horas. Sem querer dar-lhe as razões de sua brusca decisão, Cantor avisou-a que tinha de embarcar urgentemente para a Nova França e que, com esse intuito, teria necessidade de uma soma de vinte mil libras.

A Sra. de Chaulnes pensou que o mundo se fendesse em dois.

Deu um grito terrível, cujo eco não podia voltar-lhe aos ouvidos sem que se sentisse petrificada de vergonha, de aflição e de dilacerante concupiscência. Um grito de animal frustrado.

-        Não!... Não você!... Jamaisl Não me deixei...

Ele a olhou com um estupor indignado.

-        Não sabe então, minha cara, que nada dura eternamente?

Eis por que nos é preciso colher o fruto e saboreá-lo quando ele nos é dado... Você o sabia quando me recebeu em seu leito. Não existe nada perene no mundo!... Tenho de partir!...

Ela o imaginava sozinho, galopando por caminhos, atacado por bandidos, afogado...

-        Mas o mar!... - gemeu.

Ele riu. O mar?... Isso não era nada. Algumas semanas ruins balançando ao sabor das ondas, sonhando, cantarolando, ligado à sorte da nave que o conduz, uma questão de paciência!

Sua juventude resplandecente inspirou-lhe o arrependimento de não ter sabido levar as coisas da vida alegremente, quando tinha a idade dele.

— Você vai encontrá-lo?... O animalzinho dos bosques?... Cantor franziu o sobrolho. Uma sombra passou-lhe pelo rosto.

— Não é certo que eu o encontre - respondeu, preocupado.

— Ele o chamou?

— Não sei...

— Não descontente o rei...

— Meu irmão tratará disso...

Trocavam algumas palavras, enquanto a Sra. de Chaulnes abria cofres, depois caixinhas, e derramava na escarcela estendida de Cantor luíses de ouro, que nem se dava ao trabalho de contar.

— Não o deixarei partir...

— O dever não se discute, minha cara.

— Mas afinal! O que se passa? Sua família lá na América está em perigo?...

— Pior que isso!

Ela deixou cair a cabeça em seu ombro, cobrindo-o de lágrimas.

— Meu belo sire, pelo menos, diga-me... quem vai abater?

— O Mal!...

Ele se levantou. E ela se afastou. Via-o apenas através de um nevoeiro.

Ia esperá-lo, rememorando seus gestos, seus raros sorrisos, suas palavras tão sábias. "Minha cara, não sabe então que nada é eterno?..."

— Obrigado - gritou ele. - E reze! Reze por mim! Corria para a porta.

— Não! Você não pode partir assim... sem me dizer adeus!...

Num impulso confuso, Cantor voltou e tomou-a nos braços. Enquanto "ele a beijava, ela soube que ele era um homem, um homem que teria tanto sonhado encontrar na aurora de sua vida! Com o qual teria sonhado tanto viver, "dia após dia!

-        Espere, meu querido... Subitamente veio-me uma ideia... Dois diamantes de brincos pingentes, pérolas de um colar, que poderá negociar.

Entregou-os a ele, encheu-lhe as palmas das mãos, fechou-lhe os dedos sobre as jóias como se ali estivesse seu pobre coração, que ela lhe confiava. Ele beijou as mãos generosas que seguravam as suas.

-        Obrigado. Obrigado. Falei com meu irmão para que a reem

bolse o mais cedo possível.

Ela gemia, já sem lágrimas.

-        Não. Fique com tudo... Será um pouco de mim que perma

necerá com você.

Ele se lançou aos seus joelhos como da primeira vez, abraçando-a.

-        Doce amiga, seja bendita!...

A vida toda ela conservaria a lembrança daqueles braços jovens enlaçando-lhe os quadris, daquela fronte juvenil contra seu ventre.

Morreria com esse viático.

O único que guardaria, como o único tesouro de toda uma vida.

Desvairada de dor, fez disso um juramento.

Seu único viático de amor!

A perseguição levou Cantor de Peyrac até o Havre-de-Grâce, um porto da Normandia.

O navio que levava o governador provisório da Nova França, sua esposa e sua comitiva, fizera-se ao mar dois dias antes. Só restava esperar que a tempestade que acabava de se formar sobre a Mancha os deportasse até o golfo da Gasconha e os atrasasse, dando a Cantor tempo para conseguir uma passagem para si mesmo. Encontrou dificuldades. Frota e flotilhas de pesca sazonais, navios de comércio, encarregados do correio e de passageiros para a Nova França, já haviam embarcado todos em coro. As primeiras partidas efetuar-se-iam aproximadamente nas mesmas datas. Acabou por encontrar uma embarcação, retida por reparos indispensáveis de última hora. Era um patacho, mas, ao saber que a intenção do capitão era percorrer pelo caminho mais direto o Saint-Laurent, Cantor ofereceu uma boa quantia para subir a bordo. Sua experiência das travessias e dos navios ensinara-lhe que uma casca de noz rangente, provida de uma tripulação restrita, mas formada por sujeitos que se encontram o mais das vezes no mar, pode levar vantagem quanto à velocidade sobre os grandes monumentos de três pontes e vinte e cinco canhões.

Soube também, pela cara dos marujos, que sua aparência e seus luíses de ouro exibidos não deixariam de suscitar intenções muito precisas em seus espíritos, como roubá-lo e assassiná-lo.

Na segunda noite da viagem, duas silhuetas se insinuaram na despensa onde dormia, arremessaram-se sobre a forma ali estendida e, enquanto se ocupavam em lanhá-la a golpes de facão, dois socos violentos, aplicados na parte traseira de seus crânios, fizeram-nas adormecer de vez.

Depois Cantor de Peyrac foi despertar o capitão e pediu-lhe que o acompanhasse a fim de verificar os danos que haviam pretendido causar-lhe, e cuja única vítima fora o manequim de panos e trapos estirado em seu lugar.

- Capitão - disse-lhe -, quero crer que você é um homem honrado e que não tem participação neste complô, mas surpreende-me que não se empenhe mais, conhecendo seus homens, em manter a boa reputação de seu navio. - E continuou: - Estou em suas mãos, mas você está também nas minhas. Proponho um negócio. Se eu chegar vivo às praias do. Canadá, dar-lhe-ei a metade do que contém esta bolsa cheia de ouro. Se me matar para ficar com tudo, não apenas será obrigado a dividir com seus piratas, mas não poderá desfrutar os poucos luíses que lhe sobrarão, pois, daí em diante, seus dias estarão contados. Indiquei a minha família em que navio embarcaria. Em qualquer canto do mundo aonde você fosse doravante, os homens de meu pai o encontrariam e lhe cortariam o pescoço, no mínimo. Ocultar-lhe-ei seu nome a fim de que não alimente o projeto de me manter cativo para pedif resgate.

Enquanto isso, um dos marinheiros que, mais hábil, conseguira se libertar dos laços um pouco apressados com que Cantor o paralisara,..veio em socorro do capitão, armado com sua faca. Cantor voltou-se e descarregou sobre ele a pistola à queima-roupa.

— Você matou um de meus homens - disse o capitão, após contemplar o cadáver por algum tempo, como se não estivesse muito certo de que estivesse ali estirado a seus pés.

— Quem não sabe matar não pode viver - replicou seu jovem interlocutor. - Eis uma verdade que meu irmão mais velho me repete todas as manhãs, e ambos fomos instruídos a esse respeito por nosso pai e seu exemplo. Por isso, capitão, que essa intervenção lhe prove a seriedade de minhas palavras. Reflita bem. A metade do ouro que trago comigo em troca de minha vida, ou todos os meus bens e minha vida, e você não gozará muito tempo de minha fortuna adquirida. Sem contar que seus bandidos de marinheiros tentarão tirá-la de você. Portanto, proteja-me contra esses piratas com todo o poder e domínio que detém sobre este navio, onde a lei dos homens o fez o único mestre a bordo, depois de Deus. E começarei por lhe sugerir que, quanto àquele, culpado de ter-se ausentado da vigia a fim de praticar seu crime, seja colocado na golilha, de acordo com a pena prevista, pena leve, além daquela, mais recomendada, de ficar três dias no porão.

As previsões do jovem navegador mostraram-se corretas.

O patacho, com o vigor do vira-lata face aos cães de raça, evitava os aguaceiros, pés-de-vento, piratas e calmarias podres, e corria a boa velocidade pelas rotas ordinárias.

Foi uma travessia fácil, daquelas que entretém o tédio do marinheiro.

O jovem loiro, sentado contra a amurada, soprando uma flauta de pastor grego e mergulhando durante horas na contemplação das imagens, continuava a tentar os bandidos, que quiseram obter suas riquezas por vias menos diretas. Enviaram-lhe um homem de Dieppe chamado Léon, o Muçulmano, porque ficara dez anos cativo em Argel entre os bárbaros e habituara-se a usar turbantes e aproveitar-se de rapazes.

O sorriso meigo com que abordou Cantor congelou-se quando ao ajoelhar-se perto dele, sentiu a ponta de uma adaga espetar-lhe as costelas.

-        Que quer de mim? - perguntou o jovem loiro.

O homem de turbante procurou fazer-se entender. Cantor segurava-o com uma mão e com a outra continuava a cortar-lhe a respiração com a ponta do punhal.

-        Conhece o regulamento de bordo "Faltas-Castigos"? Quais são os termos para aquela que se prepara para pedir-me que cometa com você?

Cantor recitou com uma voz monocórdia de aluno:

— Falta: sodomia; pena: estrangulamento e lançamento ao mar ou desembarque numa ilha deserta, às vezes, sem água...

— Nosso capitão fecha os olhos para esses jogos...

— Posso pedir-lhe que os abra. Paguei-o para isso.

O pobre Muçulmano repelido saiu, indo confirmar a seus confrades que não havia nada a fazer. Nem sequer conseguira ver a bolsa com os luíses de ouro. Em compensação, pela japona entreaberta do loirinho, vira um verdadeiro arsenal. Duas pistolas, um cutelo e uma machadinha como as dos índios. E mais a espada pendente do boldrié. E devia ter uma adaga em cada bota.

Desse modo, a seguir, tudo permaneceu calmo. Estavam na outra vertente da viagem. Mais próximos do grande continente da América que da Europa familiar.

CAPITULO II

As aparências de um sonho triste - Cantor esgueira-se ao Convento das Ursulinas

Na Terra Nova, confirmou-se que o navio que levava o governador, sua esposa e escolta, continuava em Quebec, como fora previsto. Nãò havia notícias de pessoas que tivessem descido na escala e que tivessem embarcado para a baía Francesa.

Tranqiiilizou-se em relação à família.

Em Tadoussac, deixou o patacho, após acertar suas dívidas com o capitão. Uma alegre sensação de ter voltado ao país nasceu dentro dele ao aspirar o perfume das fogueiras, das peles, e o do rio, mais insosso, era repousante, após tantos dias na salmoura. No entanto, por muito tempo a água era ainda salgada, muito antes de Quebec. Entretanto, apesar de apreciar as sensações amigáveis da natureza, não procurou dar-se a conhecer. Uma neblina antecipando o outono, bastante fresca, permitia-lhe manter uma aba da capa sobre o rosto, e nas embarcações que tomou emprestadas para subir o Saint-Laurent, a maior parte do tempo dormiu com o chapéu enterrado até o nariz.

Diante da ilha de Orléans, sabia já que faria o possível para manter-se incógnito, enquanto não tivesse sondado o ambiente, ouvido os comentários, sabido como Quebec acolhia o governador interino e sua esposa, que ia exibir todas as suas graças de Benfeitora para conquistar a capital. Seus sentidos alertados dar-lhe-iam uma visão diferente da cidade.

Ereta em meio à bruma, a cidade, tão bela com seus sinos e campanários, apareceu tocada por um morno encanto como uma cidade submersa. Contudo, não estava deserta nem adormecida.

A agitação dentro e em torno dela pareceu-lhe fantasmagórica.

Os sinos dobraram.

Prestando atenção às palavras dos transeuntes, enquanto subia a encosta da Montanha, soube que era a Sra. Le Bachoys que ia ser enterrada.

Um calafrio percorreu-lhe a espinha até a raiz dos cabelos.

Os crimes começavam.

Quando chegou à praça da catedral, percebeu, escondido num canto, o cortejo que passava. Vestidas de preto, as pessoas caminhavam lentamente, salmodiando. A garoa ocultava as copas das árvores e o cimo do campanário e do domo. As cerejeiras silvestres à beira do riacho tinham a cor do sangue. Já era outono.

Tomou a direita, atravessando a praça, sempre com o rosto escondido entre a gola da capa e o barrete, um chapéu camponês que comprara na viagem por causa de suas abas largas, à moda antiga, que protegeriam melhor tanto do sol e da chuva como dos olhares indiscretos.

Começou a subir a Rue de la Petite-Chapelle. A Taverna do Sol Levante estava fechada. A tabuleta molhada parecia chorar.

Sua intenção era bater à porta da Srta. d'Hourredanne, mas as persianas estavam fechadas. A casa parecia vazia. Um latido abafado sugeriu-lhe que só estavam ali a' criada cativa inglesa e a cadela cananéia.

Ia por lá, pois sabia, tinham-no avisado, que seu glutão viera rondar por ali, inverno após inverno. "Ele vai adivinhar que estou chegando."

Mas, ao mesmo tempo, o lugar perdia sua realidade. A casa de Ville-d'Avray ali estava,, o olmo e o pequeno acampamento dos huronianos nos wig&ams de casca de árvores, com os dois atlas de bronze na relva. Mas não passava de um cenário.

Parecia inimaginável que, naquele caminho lamacento, vazio e nostálgico, sua mãe, tão bela, tivesse andado com sua corte de crianças, de selvagens e de grão-senhores, sempre tão ridiculamente afoitos em recolher o menor de seus sorrisos e de suas palavras.

Tudo estava apagado. Aquilo tinha apenas as aparências de um sonho triste, cheio de mistérios e ameaças.

Vendo um filete de fumaça diluir-se preguiçosamente no alto

da casa do marquês, saltou a rampa, passou pelo pátio e pendurou-se a uma das janelas da grande sala, onde viu luzir o reflexo de um pequeno fogo ha lareira.

Distinguiu a criada de Ville-d'Avray -a que não quisera ficar quando soube que não teria seu amo só para ela -, ocupada em esfregar as peças de prata como se, no dia seguinte, naquela casa abandonada, fossem receber convidados importantes para um lanche ou ceia.

Bateu.

Ela o reconheceu imediatamente, mas continuou carrancuda.

— Oh! Você aqui a esta hora, meu rapaz? Veio com toda a família?

— Que nada! Mas trago-lhe notícias de seu amo, que vi muitas vezes em Versalhes, em casa do rei.

Por captar a hipocrisia das pessoas importantes e não se deixar iludir por seus trejeitos, Cantor confiava nas pessoas simples. Criados, cocheiros, criadas se calam, mas nem por isso pensam menos. Essa mulher, de que não lembrava nome ou sobrenome, foi naquele instante mais próxima para ele do que todas aquelas que pudera encontrar desde sua partida.

Que alívio poder falar com franqueza e quase sem empregar muitas palavras! Uma mímica, um fungar, um dar de ombros... bastavam para dizer tudo e com precisão.

Ainda não terminara a terrina de sopa que ela servira ao jovem viajante esfomeado, e já sabia sua opinião sobre a mulher do novo governador, a Sra. de Gorrestat. Embora todas aquelas damas se congratulassem com sua vinda, se felicitassem por sua piedade, sua generosidade infinita, sua urbanidade para com todos, a ela, Joana Serein, nascida no Canadá, seu nariz - que ela indicava - avisava que, por trás daquela mulher, havia algo de feio, de mau. Sua vida habituara-a a reconhecer as feiticeiras, as verdadeiras, que têm às vezes uma carinha bonita. Seu mosquete estava carregado, apesar de não ser bem com um mosquete que se acabava com aquelas histórias.

-        Pense o que quiser, queridinho, mas que o Diabo existe, existe... Eu nunca me engano. Nós o encontramos entre nós como em toda parte... Lembra-se daqueles senhores que fizeram sortilégios numa pedra preta, que o exorcista teve de ir procurar com todo o aparato.

-        Foi ela que ele viu na pedra preta - disse Cantor.

E começou a fazer-lhe a longa narrativa dos dramas e malefícios que tinham se desenrolado certo verão nas costas da Acá-dia, e dos quais aquela mesma mulher, que reconhecera e seguira desde Versalhes, fora a instigadora.

Longa narrativa, de múltiplos episódios, que ela ouviu sentada diante dele e, como ele, inclinada para a frente, com os braços sobre a mesa a fim de falar mais de perto, a meia-voz, que os conduziu do fim do dia até a noite, desfiando suas horas nos diferentes sinos e campanários do exterior, e que Joana Serein pontuava com breves observações.

-        Não me surpreende... É isso mesmo o que está acontecendo... A cidade está louca e como que perdida... Eis por que a Hen riqueta da Sra. de Baumont morreu.

Descobriu que houvera vários atentados inexplicáveis. Os aborrecimentos choviam sobre as pessoas honestas como granizo.

Delfina tinha fugido e, mais grave ainda, Janine Gonfarel, a proprietária do Ao Navio de França, desaparecera.

Inclinou-se ainda mais para a frente.

-        Seria preciso saber o que atormenta Madre Madalena. O senhor governador foi visitá-la e, pelo que dizem, ao vê-lo, a freira desfaleceu de horror...

Nesse momento, na catedral, soaram duas ou três badaladas, a hora noturna do maior repouso e, subitamente, o jovem explorador de bosques e a mulher do Canadá se interromperam e se entreolharam, com os sentidos alertados por mudanças sutis na textura do silêncio noturno.

Cantor lançou um olhar vivaz para as janelas, verificando, com alívio, que ao cair da tarde ela colocara os batentes internos. Ninguém podia, do lado de fora, vê-lo sentado àquela mesa, onde uma grande vela se consumia numa pirâmide inchada.

Ambos pensaram ao mesmo tempo. "Eles" se aproximam! "Eles" rondam a casa!

Com um sinal do queixo, ela o intimou a levantar-se. Sem fazer barulho, desceram às adegas. Como outrora, ali se encontravam ovelhas sonolentas e palha, na qual ele se escondeu. A criada alojava-se a meio caminho da escada de pedra. Admirou a presteza com que ela Vestiu a vasquinha e a touca de-dormir, enquanto ao rés-do-chão o ruído surdo de punhos batendo sacudia a porta, acompanhado de chamados e de injunções: "Abram!..."

Fingindo-se de mulher arrancada do sono, ela subira e, de seu esconderijo, ele ouviu um diálogo veemente que por vezes tomava ares de discussão.

Surpreendeu-se de que a numerosa tropa que sentia em volta da casa não tivesse ainda irrompido porta adentro e feito um revista completa.

Era, cercado de soldados do prebostado e delegados do novo governador, aquele manhoso do preposto dos Assuntos Religiosos, encarregado de observar, no momento da chegada dos navios, eventuais clandestinos da religião reformada, protestantes tentando desembarcar na Nova França. Procuravam um jovem louro que ao chegar não se apresentara no cartório para declarar sua fé católica.

A fiel guardiã da casa de Ville-d'Avray recusara-se a retirar a trava da porta e abrir.

-        Isso não são modos. O que lhes deu a uma hora dessas?

Contentara-se em abrir a parte de cima da porta lateral e postar-se ali, como a uma janela, de modo que não se podia penetrar na casa sem forçar a passagem, empurrando-a e galgando a parte de baixo da porta, que era bem alta.

O preposto dos Assuntos Religiosos retirara-se com seus homens, afirmando porém que poderia voltar.

Ela baixou de novo a voz.

-        Ela deu ordens, ou ele deu ordens terminantes para procurar seu carcaju e matá-lo. Homens e selvagens, por boa recompensa, estão dando uma batida, faz mais de uma semana, nos arredores da cidade, nos lugares onde supõem estar sua toca.

Cantor sentiu-se empalidecer.

Era certamente "ela"! Se subsistira alguma dúvida sobre a identidade da Diaba, reconhecia aquela ferocidade minuciosa para com todos aqueles que a haviam ofendido, sobre os quais tinha de vingar-se, mesmo se fosse um pobre animal dos bosques!...

Tê-lo-ia reconhecido a ele, Cantor de Peyrac, na antecâmara do rei, ele, que a repudiara outrora, o filho daquela que não conseguira vencer?

— Meu glutão será mais forte que eles todos - afirmou com fervor, pensando em Wolverines.

— Isso nem se discute! Claro! - encorajou-o. - Um carcaju, todos nós sabemos, é muito mais maligno que um homem!

Quanto a sair da casa sem ser visto nem preso, não havia problemas.

E já que, antes de mais nada, queria encontrar Madre Madalena, pois bem! O caminho estava livre!

Desde o tempo em que costumavam cavar o chão em Quebec e quando isso trazia um monte de problemas e processos monstro, teria sido uma pena não se utilizar daquela rede de toupeiras tão cómoda, quando a tempestade impedia pôr o nariz fora de casa ou quando se temia o olho do vizinho. Bastaria lembrar a adega do Sr. Ville-d'Avray, que dava na de Banistere, o qual tinha um processo com as ursulinas, cujas cavações, feitas sob um terreno pertencente a ele, tinham por engano levado a seus entrepostos.

Foi assim que, à noite, depois de ter passado pelas adegas e ter emergido em meio às reservas de vinhos e de queijos do Convento das Ursulinas, Cantor de Peyrac conseguiu se introduzir até o ateliê de douração da religiosa visionária.

CAPÍTULO III

Madre Madalena, em desgraça, recebe uma visita inesperada

"Eles" não acreditavam nela. "Eles" não acreditavam mais nela.

Isso desde a visita da mulher do novo governador ao Convento das Ursulinas.

Importunada, repreendida, punida, Madre Madalena, a freirinha visionária, fora relegada ao ateliê de douração, onde devia, como penitência, trabalhar sem descanso, sem ter o direito de falar durante o dia com suas companheiras, tendo de levantar-se à noite para cuidar da "cola de aparas de luvas" ou do urucu e da goma-guta para fazer o vermelhão, tremendo sobre um fogareiro, cuja chama precisava permanecer estável e baixa.

Cogitou-se em privá-la da santa comunhão cotidiana, mas ela chorara tanto, que a superiora teve pena dela.

— Que Deus a ajude, que Ele lhe inspire o arrependimento. Reconheça que você quis se tornar interessante... que quis intervir na política que não lhe diz respeito... Certamente, lamentamos pelo Sr. de Frontenac, mas você não teve habilidade.

— Minha madre, eu apenas disse a Santa Verdade. E ela, aquela que eu vi elevando-se das águas... a Diaba!

— Basta!... Não recomece com sua mania. Esse caso já foi resolvido há muito tempo e suas visões nos causaram aborrecimentos suficientes... sem que hoje tenhamos de transformar o novo governador em inimigo.

Portanto, ficou ali, sozinha e sem defesa com seu pesado e aterrador segredo. Seu coração se congelava. "Senhor, vai me abandonar?"

A cidade se transformava, como que virada do avesso, e mostrava uma máscara oposta. Só se falava da piedade, da modéstia, da caridade da Sra. de Gorrestat.

Ela prestava atenção às tagarelices, que chegavam do outro lado dos muros do claustro. Sozinha nesse concerto de elogios, a Sra. Le Bachoys tivera uma frase chocante, em que se viu uma declaração de guerra, devida talvez ao ciúme, ou à fidelidade que muitos mantinham ao Sr. de Fromenac.

Tendo alguém observado, diante da Sra. Le Bachoys, como a primeira dama da Nova França tinha maneiras suaves, ela replicara: "A serpente também tem maneiras suaves".

Madre Madalena ficou esperançosa.

A Sra. Le Bachoys era considerada uma "pecadora", mas isso era sinal de ousadia, de coragem, e eis por que ela saberia resistir. Se pelo menos a pobre religiosa pudesse falar com ela em segredo! Madre Madalena conseguiu fazer enviar-lhe um recado, a respeito de uma encomenda de tabernáculo que os burgueses da cidade baixa desejavam oferecer a uma paróquia da costa de Beaupré. Mas a menina que levara o recado voltou anunciando que a boa senhora fora acometida por uma congestão... e que temiam por seus dias. Enquanto lidava com seus instrumentos durante o dia, Madre Madalena rezava por sua cura. Ouviu o dobre dos sinos. Dizia-se que a Sra. Le Bachoys sacrificara-se muito pelo amor, e que aquilo um dia havia de lhe acontecer. Ela estava morta.

O desespero e o terror invadiram o coração da freirinha.

Temia menos por sua vida, embora soubesse que um dia a "outra" voltaria para acabar confèla, do que pelo que ia abater-se sobre o país, nem bem arrancado ao paganismo, e ao qual consagrara sua vocação.

Era-lhe indiferente morrer.

Como não compreendera há tempos que nada havia acontecido ainda? Era isso o que deveria ter dito aos juízes, aos confessores, quando a interrogavam e a confrontavam com a Sra. de Peyrac. Nada aconteceu ainda! Não sejam tão impacientes nem de ser tranquilizados, nem de concluir algo. Eles decidiram que o caso da visão estava terminado. Ora, era agora que ia se desenrolar o drama da Acádia, assaltada pelo demónio súcubo saído das águas. E ninguém mais esperava por ele.

Caiu de joelhos no ateliê deserto. "Deus! Piedade!" .

Naquele halo luminoso e amendoado como a auréola de Cristo, via definir-se a eterna imagem, a obsessão daqueles anos todos de debates e de confrontações que sofrera, a mulher nua, de uma beleza surpreendente, com seus olhos atravessados por sentimentos imundos, e tremia dos pés à cabeça.

"Deus, não fará nada para nos salvar?" Atrás dela, houve um leve ruído.

Voltando-se, percebeu o Arcanjo.

CAPITULO IV

A mensagem redentora do Arcanjo

Deus tivera piedade dela.

O Arcanjo da visão ali estava, o mesmo que lhe aparecera, armado com uma espada, fazendo recuar os espíritos malignos, enquanto um monstro de dentes aguçados, que ele parecia comandar, se lançava sobre a Diaba e a fazia em pedaços.

E, tal como observara desde a primeira vez que vira a Sra. de Peyrac, a outra mulher que se opunha à aparição diabólica, o arcanjo vencedor se parecia com ela.

Uma onda de alegria inundou-a, como um rio que regenera uma terra árida.

Por que duvidara? Não sabia que o Bem triunfaria?

Ele se aproximou, com um dedo sobre os lábios.

-        Minha irmã, eu me chamo Cantor de Peyrac. A senhora conhece minha mãef

Agora ela compreendia. Bom Deus! O senhor sabe servir-se dos homens para Sua justiça e para socorrer os inocentes!

Sua emoção era tanta, que teve de retirar os óculos.para enxugá-los, pois estavam turvos pelas lágrimas.

Depois a angústia apunhalou-a novamente. Se a Sra. de Peyrac se encontrava em Quebec, estava em perigo.

Ele sacudiu a cabeça.

— Não, não tema nada. Ela está em seus domínios e meus pais ignoram que voltei à América. Mas acorri à senhora, minha irmã, quando soube que a Sra. de Gorrestat se dirigia ao Canadá.

— Então... Você sabe quem ela é?

— Sei.

Os lábios de Madre Madalena tremiam. Juntou as mãos e disse, precipitadamente:

— Impeça-a de fazer malefícios, senhor. É horrível. Ninguém crê em mim.    

— Ninguém. E aqueles que sabem calam-se ou tremem. Silêncio! Estou'só. É preciso silenciar. Não dizer mais nada. Vim para lhe recomendar isso e para que saiba que estou a caminho.

— Mas... como você entrou?

— Silêncio - repetiu ele, docemente. - E preciso agir com naturalidade. Não incite mais sua vingança... Humilhe-se... Desculpe-se... Humilhe-se... Onde ela está?

— No momento, dizem que está em Montreal.

— O que não a impede de deixar atrás de si um rastro de morte... Minha irmã, evite encontrar-se em presença de quem quer que lhe peça para vê-la... Desobedeça à Santa Regra, se preciso for... Senão ela conseguirá matá-la também.

— Não temo a morte.

— É proibido dar a vitória ao Destruidor - sussurrou ele -, quando se sabe... Seja mais forte que suas astúcias... Vou ao encontro dela.

Seus olhos luziam com um brilho tão meigo e ofuscante que ela se perdia em seu esplandor. Ao perceber que ele desaparecera, sentiu ao mesmo tempo a fraqueza e a embriaguez que vêm a nós na convalescença, após uma longa e perniciosa enfermidade. Continuava a tremer, mas doravante seria forte.

CAPITULO V

Cantor em busca de seu glutão, Wolverines

Cantor abriu a porta do jardim das ursulinas. Atravessou o cercado, galgou o muro.

Não o procuravam por ali, e a neblina da alvorada era espessa. Desceu até o rio Saint-Charles. Desconfiava que os caçadores que perseguiam seu glutão estavam por ali. Por instantes, através dos pântanos, ouviam-se passos pesados e silhuetas indistintas passavam por perto, chamando umas às outras. Ele respondia como se pertencesse ao grupo, pois não o podiam distinguir com o nevoeiro.

— Encontraram o carcaju?

— Ainda não! Bicho desgraçado!...

O sol começava a aparecer e dissipar as brumas, que se diluíram numa chuva fugitiva. Alguém gritou ao longe:

-        Encontraram-no!

Cantor apressou-se, com o coração batendo e as mãos sobre as armas.

De longe, o corpo abatidój com à longa curva de pêlos dourados que lhe ensolarava o pelame, pareceu-lhe menor, mais franzino do que aquele de que se lembrava.

"Teria se ressentido com a vida dos bosques?... Pouco habituado à natureza selvagem, não soube defender-se?... Wolverines..."

Mas quando se aproximou bem e viu o animal meio virado, compreendeu.

"É uma fêmea. Não é Wolverines."

Ajoelhado perto do animal inerte, examinou-o.

Apesar da máscara negra de bandido, em torno de seus olhos, que tinha o poder de assustar os índios, a pequena carcaju, com as pálpebras cerradas, tinha um aspecto tão meigo... Seu grande corpo peludo, com a longa cauda soberba, que os assistentes cobiçavam, contrastava com a cabeça pequena, de focinho curto. Os lábios, contraídos numa triste careta, permitiam vislumbrar as temíveis presas dos dois lados da mandíbula, que não tiveram sequer tempo de se descobrir para exibir sua ameaça de defesa, pois fora apanhada na armadilha. As curtas patas dianteiras, com as garras fechadas, erguiam-se rígidas e impotentes como braços de boneca.

Acariciou o pêlo sedoso entre as orelhas pequenas e redondas.

E adivinhou: "Sua fêmea!... Era a fêmea dele";

Cantor levantou-se, olhando à sua volta os homens silenciosos e, mais longe, os bosques de cimos franjados de chuva perolada, onde os caçadores iam recomeçar a perseguição a Wolverines.

"Eles mataram a fêmea dele... Mais um crime na série de crimes que vai se espalhar na esteira da Diaba... Mas eu estou aqui, Wolverines."

Ele estava lá longe. Ou então bem perto. Vira tudo. A captura e o encarne. Jamais se esqueceria.

Mesmo reconhecendo-o, deixaria que Cantor se aproximasse dele, daí em diante, um daqueles humanos que haviam matado sua companheira, depois de tê-los vigiado e perseguido a ambos, durante longos dias e noites cruéis?

Nunca se esqueceria. Nem o crime, nem aqueles que o cometeram, e havia de persegui-los até derrotá-los, até liquidá-los, até que pudesse esganá-los, estraçalhá-los, até conseguir pendurar no alto de um olmo suas cabeças dilaceradas, separadas do corpo por suas garras e presas vingadoras.

Cantor voltou os olhos para os homens que o observavam. Não o reconheciam.

Sem ruído e à sua maneira peremptória, foi de um a outro dos batedores, entregando a cada um uma gratificação, com o pedido de suspender a caçada e limitar-se àquela caça que ali estava.

- É que... a senhora governadora também nos pagou muito bem para que acabássemos com o carcaju que ronda Quebec há dois invernos e que vem causando muitos estragos - observou-lhe um dos homens.

-        Ela nos fez prometer que lhe mostraríamos os despojos quando voltasse de Montreal.

-        Despojos? Já os têm - disse ele. - Isso deverá satisfazê-la.

Já desaparecera.

Afastava-se sem ruído, deixando o grupo discutir com veemência sobre quem se apropriaria dos despojos do glutão fêmea.

Pelo resto da manhã avançou pelo sobosque e pelas brenhas quase impenetráveis de uma floresta que as lavras relegaram ao cume das encostas, mas que encontrava meio de se espraiar e progredir bastante na cidade, até ali, onde os terrenos não tinham ainda sido entregues aos arroteadores.

Parecia-lhe que o glutão não estava longe, seguindo-o, precedendo-o, observando-o, e ele falava incessantemente, naquela mesma linguagem de palavras francesas, inglesas ou índias e de onomatopéias que outrora empregava.

Finalmente, quando se encontrava na orla do valezinho devastado, vislumbrou uma massa escura^ agachada sob arbustos, e um olhar humano à espreita.

Havia tanta tristeza mas também tanta alegria incrédula naquelas pupilas que luziam sob as groselheiras silvestres, tanto sofrimento mas também tanta felicidade...

-        Perdoe-me - disse ele mais uma vez. - Wolverines, não cheguei a tempo. Mas vamos vingá-la, vamos vingar sua fêmea...

E continuou a falar-lhe até que sentiu que os laços estavam reatados.

Começou então a correr, galopando e saltando sobre os obstáculos do sobosque, em direção à margem do grande rio, o caminho de água, gritando a plenos pulmões:

-        Siga-me, Wolverines, siga-me, agora... venha! Venha comigo, Wolverines!... Venha comigo a Montreal.

CAPÍTULO VI

Na pista de Honorina - O barqueiro Pedro Lemoine

Antes de aparecer diante daquela que vinha perseguindo de tão longe, a Sra. de Maudribourg, hoje mulher do novo governador, Cantor rodou através, das ruas de Ville-Marie, de Montreal. A cidade ao pé do monte Royal estava ainda marcada pela grande feira de peles do outono, cuja tradição se perpetuava com a vinda das tribos vizinhas.

Cantor jamais estivera em Montreal, e se sentia estranho.

Seu espírito permanecia ocupado por dois pólos: Ambrosina, que devia surpreender, apanhar na armadilha, e Honorina, que devia proteger, pôr a salvo, se ainda houvesse tempo.

Andando para a frente e para trás com hesitação, sem decidir sobre a qual das duas faria sua primeira visita, compreendeu sua imprudência. Se continuasse a se expor daquela maneira, far-se-ia notar. Já estavam se voltando à sua passagem. Ali as notícias corriam depressa. E tinha de se lembrar que a tal Sra. de Gorrestat tentara mandar matá-lo, antes de sua partida de Versalhes, e prendê-lo em Quebec.

Sem tergiversar mais, decidiu-se pelo Convento de Nossa Senhora. Não se enganava. Sua hesitação em buscar notícias de Honorina era causada pelo medo. Medo de saber que chegara tarde demais. Um pressentimento não parava de atormentá-lo. Conhecia muito bem o ser infernal que jurara destruir dessa vez para sempre. Se "ela" chegara à ilha de Montreal havia três «emanas, não devia ter esperado para atacar a filha de Angélica, pois era esse seu objetivo ao empreender aquela viagem aparentemente oficial. Isso também sabia Cantor, por instinto. Por isso, quando uma religiosa, de ar altivo sob um lenço preto bordado de branco, o recebeu num parlatório cheirando a cera e maçãs recém-colhidas, não se surpreendeu ao ouvi-la dizer que Honorina de Peyrac não estava mais ali. Mas, captando o nome da Sra. de Gor-restat misturado às explicações muito confusas que lhe dava sua interlocutora, seu coração baqueou. Obrigou-se, contudo, a exigir, num tom leve e casmurro, maiores detalhes, e por fim compreendeu que a menina desaparecera, tendo escapado por diversas vezes, pois "era muito desobediente".

A Sra. de Gorrestat, que se apresentara como uma grande amiga da Sra. de Peyrac, interessava-se pela menina. Ao saber de seu desaparecimento, tinha movido céus e terra para encontrá-la. "Céus e terra! O inferno, isso sim!", pensou. Em resumo, era tocante ver com que dedicação aquela grande dama, que tinham doravante a felicidade de acolher junto àquele que ocupava o mais alto posto da colónia - o que era - explicou num longo parêntese - outro sinal da bênção divina, pois até então a colónia só tivera em sua direção governadores privados da doce e generosa influência de uma companheira, e agora se podia augurar que as obras de caridade seriam beneficiadas, com esse domínio mais aberto à compreensão e à atividade feminina -, era pois comovente e encorajador ter podido constatar com que fervor ela pusera todo o país em ação para encontrar a pequena interna fugitiva e a ajuda que trouxera espontaneamente às pobres religiosas de Nossa Senhora em sua preocupação.

Cantor examinou sem condescendência aquela que lhe falava, e ela lhe desagradou.

Pediu para ver Madre Margarida Bourgeoys. Lembrava-se subitamente de tê-la encontrado, sem dar a isso muita atenção, em Tadoussac e em Quebec, e que aquela mulher caridosa e alerta parecia ser verdadeiramente uma amiga de sua mãe.

Mas, apertando os lábios, Madre Delamare disse que Madre Bourgeoys, sua diretora, cujas funções estava naquele momento assumindo, fora convocada com urgência por monsenhor, o bispo, em Quebec, e que se cogitava inclusive que deveria fazer uma viagem à França, a fim de explicar-se com o arcebispado de Paris, e também a Roma, em virtude dos estatutos de sua ordem de religiosas docentes mas não clausuradas, o que era motivo de muitas controvérsias nos meios eclesiásticos.

O rapaz deixou o lugar num estado de espírito agitado, em que se misturavam cólera para com as damas do lugar, inquietação por Horiorina, terror em relação a Ambrosina. O pesadelo recomeçava.

Chegando à cerca que delimitava o pomar, voltou-se para a casa baixa e branca, no fim da alameda, que tinha por fundo a extensão cinzenta do rio confundida com o céu do mesmo azul-acinzentado que as águas. Traçada ao longe, a linha da infinita floresta americana mal se distinguia sob a aproximação de um nevoeiro, arauto dos primeiros frios.

Sentadas na relva, sob macieiras de ouro polido e cerejeiras nuançadas de encarnado, as meninas comiam pão com melaço e o olhavam com curiosidade.

Por trás da imagem mais inocente, uma sombra sinistra rondava. Um sopro deletério envenenava o ar que se respirava. Havia como que um hálito ruim que embotava as cores e o brilho da vida feliz, para impregná-las de pecado.

Como Madre Bourgeoys pudera deixar em seu lugar uma pessoa como aquela que o recebera, que falava extasiada daquele monstro de vícios, Ambrosina? Mais urna que se deixara enganar e que subitamente se achava guardiã do Mal, entre as santas mulheres.

Enquanto subia uma alameda de carvalhos que levava à estrada carroçável e que o ocultava da casa, ouviu alguém correr atrás dele e percebeu uma jovem religiosa que se esforçava por alcançá-lo, provocando muito barulho com as pesadas saias.

- Senhor, pelo que compreendi, é o irmão de nossa pequena Honorina. Oh! caro senhor, encontre-a! O que irá dizer Madre Bourgeoys quando voltar? Ela deixou ordem para que a menina pudesse partir com a caravana, conforme pedido do mensageiro enviado por sua mãe. Como nossa irmã Delamare se-deixou enredar a esse ponto?...

A força de interrogá-la, o rapaz compreendeu como as coisas haviam ocorrido. Ambrosina, usando das prerrogativas de sua posição, armada com seu suave e inflexível poder sobre os seres de boa vontade, como sobre as almas negras igualmente, detivera tudo e acionara a máquina ao contrário, a seu bel-prazer.

Suspendera a partida de Honorina, mandara trazê-la de volta. Depois a menina desaparecera, mas aparentemente não caíra nas mãos de Ambrosina, pois esta mandara continuar as buscas. A menos que fosse apenas um artifício para dissimular seu crime. Ela era capaz de tudo. Um dia encontrariam um pequeno cadáver mutilado. O coração de Cantor doía-lhe, confrangido pela angústia.

— Não ouso emitir em voz alta minha opinião - sussurrou a freirinha, olhando para os lados -, mas alegrei-me de que a menina tenha escapado, pois essa pessoa, a mulher do novo governador, me pareceu assustadora...

— E você tem razão, irmã - desferiu-lhe ele -, pois sei de fonte segura, de uma fonte eclesiástica, que se trata de um demónio, um demónio súcubo.

Ela deu um grito de horror, tapou a face com as mãos e fugiu soluçando para a casa.

Cantor estava furioso. Essas freiras eram todas retardadas? Uma abandonava suas responsabilidades por uma viagem que podia durar pelo menos dois anos, a outra, assim que sua superiora virara as costas, contrariava suas ordens, uma terceira se escondia, com medo de incorrer em censuras por tentar proteger as crianças... Depois voltou atrás. Pobres mulheres! Podia-se reconhecer ali o vento de desordem que se levantava à passagem da Diaba.

Mas, enquanto isso, o que acontecera a Honorina?

Chegou à margem do rio e começou a acompanhar seu curso, sem saber ainda o que fazer. Para abordar a inimiga, a hábil criatura de língua viperina, precisava refazer as energias. Pensava em Honorina e, por trás dás palavras pronunciadas no parlatório: "ela era muito desobediente", "ela desapareceu", "causou uma grande confusão, fugiu", revia a silhueta da garotinha de cabelos ruivos, alta "como três maçãs", com a carinha redonda, desprovida de beleza mas tão cómica, encimando-lhe o lindo pescoço, naquela atitude de desafio e dê dignidade tão característicos...

Que força indomável naquela criaturinha! Era por isso que havia uma tendência, a se mostrar duro e injusto para com ela. E ele em primeiro lugar, pensou com remorsos. É verdade que ela era insuportável.

Mas continuava a sentir raiva de todas as mulheres, e quando pensou na injustiça que jamais deixara de pesar sobre Honorina, sua cólera estendeu-se àqueles que a tiveram sob sua guarda e que não lhe tiveram amor, portanto, a si mesmo. Todo mundo queria livrar-se "da menina. Ele também, quando estava em Wapas-su, queria que ela fosse punida. Aquela menininha, exigente e suscetível, que monopolizava sua mãe e mesmo seu pai sem qualquer direito, o agastava. De onde vinha aquela menina?... Era melhor não pensar nisso, pois sentia vontade... de desembaraçar-se dela.

E agora, era bem feito! Não sabiam nem onde ela estava. Todo mundo quisera isso. Mas era uma coisa horrível, mais pesada que chumbo para se carregar. Pois ela era tão pequena e tão engraçada... Era orgulhosa, teimosa mas indefesa. "O que é uma criança?", diz o iroquês. "Não se pode dar importância a seus atos, pois ela não tem juízo. O que lhe deve o adulto?... Defendê-la enquanto ela se fortalece e cria juízo!...

Mas Honorina fora arrancada e lançada ao vento!... Lembrava-se de quando ela lhe levava raminhos de flores, quando lhe engraxava as botas para lhe agradar... Ela sempre o amara. Ele era seu preferido. Por que a repudiara? Não compreendia mais. Era apenas uma criança! Não deveria ter deixado aquele estúpido ciúme corroer seu próprio coração. E agora Honorina estava perdida, por culpa deles todos, por sua culpa...

As lágrimas brotavam-lhe dos olhos... Esforçava-se por retê-las.

"Seguirei sua pista!... Irei até o fim do mundo. Farei aquela megera confessar. Eu a encontrarei, Honorina... Vou trazê-la de volta."

A pequena Honorina em. preces. Fora assim mesmo que ela se anunciara da última vez. Ele havia ido às ursulinas de Quebec para despedir-se dela, antes de embarcar com Florimond. Mas ela mandara dizer pela madre superiora que estava rezando na capela, que tinha tido uma visão... e simplesmente se recusara a vê-lo. Que cabeça-dura!..."

Enxugou os olhos.

"Vou encontrá-la, cabeça-dura!.

Sozinho, acompanhava a beira do rio. Estava agora longe da cidade e ultrapassara as últimas casas, dispersas em meio aos jardins e campos.

Ouvia apenas o roçar das plantas altas contra as botas e o sussurro dos insetos de fim de verão, cujo número começava a reduzir-se pelas noites frias, agrupados em nuvens vorazes.

Maquinalmente dirigia-se para o oeste, tomara a direção oposta à de seu acampamento, um canto sob os chorões que escolhera na extremidade oposta da ilha, num lugar pouco povoado, onde só havia, no alto da colina, um velho moinho abandonado, por que o proprietário do lote nunca trouxera um contingente de pessoas para povoar essas terras. Os sulpicianos que as haviam cedido estavam em negociações para retomá-las, mas o caso se arrastava, e o lugar, enquanto isso, continuava a ser domínio da caça aquática.          .

Cantor de Peyrac desembarcara ali pela manhã. Não se aproximara da ilha de Montreal sem precaução, e após uma série de manobras destinadas a confundir sua pista, e a encontrar em cada etapa seu companheiro Wolverines, seguia-o ao longo do rio. Dotado de um instinto que o avisava a distância de suas intenções, o animal esperava-o sob um arbusto no lugar onde o jovem viajante deixava a barca ou o navio em que conseguira passagem por um dia para subir o Saint-Laurent, ou então Cantor, sentado junto à fogueira na noite do litoral, via-o surgir ao cabo de algumas horas, dando grandes saltos cómicos.

A canoa servira-lhe para fazer o animal atravessar. E agora, o glutão estava na ilha. Era preciso agir depressa, antes que os cães ou os índios ou habitantes, lavradores, pescadores, caçadores ou casais de namorados o descobrissem e anunciassem sua presença.

Cantor de Peyrac tinha dè arquitetar um plano. Mas precisava acalmar dentro de si aquele furacão de inquietação que o submergira.

Esforçou-se por se acalmar e encontrou consolo na lembrança de todas as brincadeiras que fizera com Honorina, aquele diabrete de cabelos ruivos. Pois, no fundo, os dois entendiam-se muito bem. Muitas' vezes empoleirava-a nos ombros para fazê-la dançar e saltar "como os índios" em suas danças guerreiras, gritando "iu! iu! iu!", e uma noite enluarada levara-a, às escondidas, para escutar o coro dos jovens lobos, chegando bem perto para vê-los.

Uma voz de rapaz cantando sobre a água chegou até ele.

"A seis de maio do ano passado,

Fui lá para cima...

Para fazer por lá uma longa viagem...

Ir aos países altos

Em meio a todos os selvagens..."

Cantor levantou a cabeça e viu que o nevoeiro que vinha de longe recobria o rio. Ele passaria e iria pendurar-se na beirada do monte Royal para o norte. Ou então se dissiparia como por encanto. O outono era uma estação clara e alegre, de cores quentes mas breves.

Por trás do nevoeiro, a voz melodios a continuava:

"Quando a primavera chega

Os ventos de abril sopram em suas velas

Para voltar a meu país

Na extremidade de Saint-Sulpice

Irei saudar minha amiga

Que é a mais bonita..."

Uma barca despontou, saindo do nevoeiro, conduzida apenas por um rapaz de dezoito a vinte anos, robusto, no qual Cantor reconheceu Pedro Lemoine, terceiro filho de um negociante de Ville-Marie. O mais velho, Carlos de Longueil, servia como tenente no Regimento de Saint-Laurent em Versalhes e fazia parte de sua companhia.

Depois de se olharem, cumprimentaram-se. Pedro Lemoine passara também uma rápida temporada na corte. Apesar da pouca idade, era um marinheiro emérito, que já conduzira navios na travessia do oceano.

-        Julgava que você estivesse na França. Traz notícias de nosso irmão Carlos? Tivemos notícias dele recentemente por Tiago, meu irmão do meio, que voltou na escolta do Sr. de Gorrestat, o novo governador.

Ao ver Cantor franzir o sobrolho, acrescentou:

-        Isso não quer dizer que estejamos de acordo com ele. Ele é meio louco, o Tiago. Fez parte do conchavo contra o Sr. de Frontenac. Mas tudo isso vai se acalmar com o inverno que se aproxima... E você, teria chegado também com o governador?...

-        Vim para procurar minha irmãzinha, Honorina de Peyrac.

Pedro Lemoine, amarrando o barco numa estaca à margem do rio, saltou para a terra. Estava se dirigindo a Lachine e decidira fazer uma parada, enquanto o nevoeiro se dissipasse.

— Sua irmãzinha, você diz? - perguntou, com um ar pensativo. - Imagine que há menos de três semanas ela estava aí, bem no lugar onde você está. Estava aí, sozinha, tão pequena e carregando um grande alforje. Eu a vi. Disse-me que queria ir até o solar do Lobo, à casa dos tios. Levei-a em minha barca e deixei-a não muito longe do solar.

— Meu tio De Sancé! - exclamou Cantor, iluminado, pois via ali uma pista para encontrar Honorina.

Dera pouca atenção à descoberta de uma parentela no Canadá. Já bastavam todas aquelas que Florimond desencavava em Paris.

Subiu por sua vez na barca do jovem canadense. Obteria mais informações lá embaixo. "Ora, vejam, aquela danadinha!", dizia consigo, todo animado, "como soube se arranjar direitinho..."

Um vento fresco dissipara as brumas. Cruzaram uma barca carregada de crianças. Os jovens de Montreal passavam a vida sobre a água, manobrando velas.

Mosqueadas de branco, as corredeiras se anunciaram a montante.

Pedro Lemoine deixou Cantor na extremidade inferior da costa. Disse-lhe que se preparava para partir para o alto Saint-Laurent e que, se quisesse encontrá-lo, estaria em Lachine, onde ia recolher bagagens e mercadorias.       

CAPITULO VII

Mariângela do lobo

Um elfo de cabelos loiros descia a campina, ainda verde, correndo e dançando, vindo em sua direção.

Tinha um olhar que lhe pareceu familiar. Achou-a imediatamente muito graciosa e, quando ela parou a alguns passos para examiná-lo com ar pensativo, lembrou-se de que uma das filhas daquele tio, reencontrado após um silêncio de quase trinta anos, teria, diziam, os traços semelhantes aos de sua mãe, Angélica de Peyrac, nascida Sancé de Monteloup. O que, na ocasião, lhe parecera impossível. Em seu foro íntimo, devia retratar-se.

Não seria mais o único a evocar um rosto que fazia o rei suspirar quando ele aparecia, o que ao mesmo tempo lisonjeava e causava alguma inquietação ao jovem pajem, portador, a contragosto, de sombrias lembranças para Sua Majestade.

Esta era uma evidência que acarrateria outra. Os dois jovens pareciam-se de tal forma um com o outro que acabaram por rir.

— Prima, abracemo-nos! Como se chama?

— Mariângela. E você, suponho que seja Cantor, não?

Olhava à sua volta e começava a se surpreender por não ver ninguém mais, como se a jovem com jeito de fada fosse a única habitante de um domínio adormecido sob efeito de um súbito encantamento.

Ela o avisou que seus pais estavam ausentes. Tinham sido chamados a Quebec e tiveram que partir para a capital, a fim de acolher o governador que substituía o Sr. de Frontenac. O que não impedira que o tal governador chegasse a Montreal quase imediatamente após a partida do Sr. e Sra. do Lobo.

-        Mas o que significa essa-maluquice de viagem e de correr por causa do governador? - gritou Cantor, novamente transtornado. - As pessoas estão enlouquecendo?

— Gom efeito.

— Por quê?

— Porque o governador e sobretudo sua esposa estão pondo o país inteiro de pernas para o ar.

Finalmente alguém que não se deixava iludir. Ela o mirava com os olhos claros e tranquilos, um pouco trocistas.

— Por que você se desola tanto por não ver meus pais?

— Eles poderiam dar-me notícias de minha irmãzinha Honorina. Soube que ela tentqu encontrá-los.

— Se é por sua irmã que está preocupado, posso dar-lhe notícias dela.

Por pouco não a sacudiu, tão impaciente estava. - Você a viu?

— Não. Mas sei o que lhe aconteceu. Um índio trouxe-me notícias dela.

— Fale, eu lhe imploro.

— Primeiro ela foi escondida entre os iroqueses da missão de Khanawake, dos lados da Madeleine, em frente a Lachine, e depois os índios a levaram para mais longe.

— Por quê?       

— Para que escape àquela mulher que quer matá-la.

O pobre Cantor sentiu o peito dilatar-se sob o efeito de um alívio incomensurável.

-        Oh, minha amiga, você me agrada - disse ele, passando afetuosamente o braço pelos ombros da adolescente. - Venha contar-me tudo isso num lugar tranquilo, longe dos olhos curiosos que vêem de longe.

Esperou que ela o fizesse entrar no solar, mas ela o levou para o lado das dependências de serviço, introduzindo-o numa vasta construção, meio granja, meio entreposto. Ganchos dependurados do teto prendiam lotes de peles. Num canto, uma boa parte da colheita de feno fora-empilhada, e foi ali que se sentaram.

Notou alguns objetos de toucador, um pente e uma escova colocados sobre uma arca, uma almofada, uma manta e um braseiro como os usados nos navios.

Depois da partida dos pais, contava Mariângela, não demorou muito para acontecer. "Eles" tinham voltado. E o problema é que ela não compreendera que daquela vez não fora por eles que tinham voltado.

— Vi-os de longe. Sua carruagem estava parada embaixo, no grande prado, no Caminho do Rei. Não sabia o que vinham fazer ali nem o que esperavam. Só o soube mais tarde. Mas era a garotinha que estavam esperando, e foi lá que a pegaram.

— Senhor! - exclamou Cantor, lívido.

Ela colocou vivamente a mão no braço do primo.

— Ela escapou-lhes, eu lhe estou dizendo! Mas tenha paciência, deixe-me prosseguir minha história. Eles voltaram no dia seguinte, esses franceses, como periquitos com seus saltos vermelhos, rendas e plumas. Dessa vez subiram até o solar. A esposa do governador andava à frente. Eu disse a meus irmãos: "Vamos sumir daqui! Vamos sair por trás e nos esconder no bosque". - Ela continuou: - Encontraram a casa vazia. Mas, depois de sua passagem, eu não quis voltar para dentro da casa. Mandei meus irmãos instalarem-se na cidade, os maiores com os senhores de Saint-Sulpice, onde fazem seus estudos, e o mais jovem, em casa de minha irmã, casada com o oficial com guarnição no burgo de Saint-Armand. Enquanto isso, alojei-me neste armazém. Alguns dias mais tarde, vi o índio que rondava pelas imediações, procurando alguém para entregar sua mensagem. Chamei-o, e ele me contou tudo. Honorina fugira com a ajuda de uma de suas irmãs batizadas da tribo dos agniers, e eles a esconderam, entres eles, em Khanawake. Mas, quando viram que aquela mulher vinha procurá-la com tanta constância e quê seus padres jesuítas, julgando agir cor-retamente, lhe davam ajuda, ficaram muito assustados. Então, con-fiaram-na a uma caravana de cidadãos das Cinco Nações que, apesar de batizados, desejavam reaproximar-se de sua nação iroquesa.

— Está salva!... - gritou Cantor, erguendo-se se atirando o chapéu para o alto. Agarrando as mãos de Mariângela, fê-se girar numa ciranda entusiasta. - Minha irmã está salva! Priminha, você tirou de meu coração um peso enorme! Essa caça podre, essas feras da corte não poderão mais persegui-la no fundo de nossas florestas!...

— Não o tentaram. Dizia-se à boca pequena que a Sra. De Gorrestat não conseguia disfarçar seu desprazer diante da inanidade das investigações.

— Que caminho tomaram os homens de Khanawake para ir ao país das Cinco Nações?  

— Ignoro. O índio batizado me disse que o intinerário devia ficar em segredo para que a menina corresse o menor risco possível.

— Certo! Eu encontrarei... mas mais tarde. Antes, tenho de acabar com o demónio. E, creia-me, minha amiga, não será coisa fácil livrar a terra da sua presença ímpia.

Como ele esboçasse um movimento para se despedir, a moça reteve-o.

-        Anoitece. Você teria de ir pela estrada, pois essa parte do rio não é navegável à noite. Que faria se voltasse à cidade e o reconhecessem? Fique até amanhã pelo menos. Será um dia novo, e suas forças também. Vou buscar-lhe algo para comer.

Enquanto ela se eclipsava, Cantor deixou-se cair para trás no feno. Estendeu os membros doloridos. Agora que estava tranquilo sobre a sorte de Honorina, sentia-se esgotado. Não tinha mais forças para pensar em nada, permanecendo apenas pasmo com esse encontro com sua prima Mariângela. Era verdade que se parecia com Angélica, e supunha de bom grado que esta devia ter a mesma vivacidade airosa, em sua juventude em Monteloup. Tinha-a ainda quando, incitada por um trabalho a realizar ou uma diretiva a ser dada, todas coisas urgentes, geralmente, dava-lhe vontade de correr, atravessar prados ou casas, subir alegremente uma escada ou uma senda nos bosques, sem se preocupar com a idade ou com a dignidade de sua posição.

O surpreendente era que Mariângela tinha também alguma coisa da alma de Angélica, e junto dela sentia-se à vontade, como se ele a tivesse conhecido sempre, ela houvesse partilhado suas brincadeiras no Plessis ou em Versalhes, em sua primeira infância.

Ela voltou com grandes fatias de pão, frios, um pichei de sidra. Enquanto ele comia, ela se estendeu perto dele no feno-e lhe disse que seu pai lhe propunha partir para França para conhecer a vida de uma jovem nobre francesa. Apoiado ao cotovelo, sentiu que ela o examinava com os olhos brilhantes de satisfação.

Perturbou-se um pouco. Não devia esquecer que essas moças canadenses eram muito audaciosas. Privilegiadas por seu sexo, num país em que faltavam mulheres, inocentes e naturais, como todas as crianças que nascem fora das restrições ou das desigualdades de uma velha sociedade hierarquizada, não se embaraçavam com os ares reservados, que lhes pareciam sem sentido. Os caminhos alambicados do Amor descritos pela Carte du Tendre e as sutilezas das preciosas parisienses eram-lhes desconhecidos.

Os curas de suas paróquias e as religiosas que as ensinavam tinham muita razão em fazê-las passar sem demora da férula da escola àquela do casamento. Desde os catorze anos, eram afáveis mulheres de colonos, prontas a assumir a solidão do inverno, os nascimentos anuais, os trabalhos dos campos e do estábulo, nos longínquos censos.

Mariângela do Lobo, aos dezesseis anos, quase dezessete, não sendo casada e não reconhecendo em si qualquer vocação religiosa, achava-se numa situação que não tardaria a tornar-se difícil. Devia ser ao mesmo tempo mais infantil e mais amadurecida que suas companheiras, nascidas e criadas como ela na Nova França, mas que, do berço ao casamento, cresciam estreitamente motivadas por esse destino de mulheres de pioneiros, de fundadores de famílias, que as esperava.

Ali, os anos de formação mundana não eram levados em conta.

-        Primo, já não é tempo de nos tratarmos como parentes íntimos?

Levantou-se novamente para ir buscar uma grande coberta, que lançou sobre os dois, estendidos um ao lado do outro, pois o frio do crepúsculo começava a se fazer sentir.

— Em que está pensaiído? - perguntou.

— O combate é para amanhã - respondeu, juntando as palmas das mãos sobre o peito e tomando a atitude de um mor, bundo, com os olhos fechados.

Ficou-lhe grato por não lhe fazer outras perguntas e por, longe de procurar distraí-lo, ter-se posto a dormir, depois de enterrar o narizinho confiante em seu ombro.

CAPITULO VIII

A ressurreição de Ambrosina - Cantor face a face com a diaba

A Sra. de Gorrestat, aliás, Ambrosina de Maudribourg, olhou ao seu redor com mau humor.

Estava diante da penteadeira, que, por instantes, lhe devolvia o reflexo de um rosto ao qual não estava ainda totalmente habituada.

Pouco adiantava maquilar-se com habilidade, endireitar os cachos junto às têmporas e bochechas, havia certas protuberâncias, certas cicatrizes que não conseguia apagar inteiramente.

Ali estava ela, no centro daquela casa de grandes pedras achatadas, posta à sua disposição pelos anfitriões de Montreal. Mesmo tendo de reconhcer que era muito bem mobiliada, sentia-se pouco à vontade, desde que soubera que Angélica fora ali recebida antes dela.

A desaparição da filha de Angélica parecera-lhe um mau presságio.

Começou a experimentar o insólito dos lugares onde se encontrava.

Devia ter-se lembrado de que as terras longínquas exalam forças estranhas. Experimentara o mesmo em Gouldsboro. Mas ali era pior, pois havia também o tédio, que vinha solapar sua febre de ação.

Era tudo tão entediante ali! Ao passo em que Gouldsboro...

Em primeiro lugar, havia Angélica. Uma mulher tão bela de se olhar, vivendo, conquistando, fazendo sofrer. E saboreara cada minuto de aproximação, cada golpe desferido. Nada mais delicioso do que ver obscurecer-se, devido a inquietação, a cor verde de seu olhar, quando lhe insinuava que Joffrey de Peyrac, por quem estava tão loucamente apaixonada, tentava tornar-se amante da Sra. de Maudribourg.

Mas era Ambrosina que se entristecia ao lembrar-se disso.

Ele! Ele! Por que aquele homem galante, de sangue meridional, não cedera a seus avanços?...

Levara anos para compreender. "Ele me desprezava. Desmascarava todas as minhas mentiras. Desde o primeiro instante, desconfiou de mim. Enquanto acreditava que ele caía em minhas armadilhas, cada uma de suas perguntas insidiosas tinha por ob-jetivo me desmascarar..."

Ainda agora, rangia os dentes ao pensar nisso. Hoje, quando retornara ao local escolhido para sua vingança, sentia a amargura invadi-la ao rememorar o longo purgatório vivido pela Diaba vencida.

Ah! quantos anos de fingimento!

E sem poder sequer oferecer a si mesmo o sutil e secreto prazer de torturar alguma tola esposa de província roubando-lhe o marido, ou aquele, mais voluptuoso ainda, de ver cederem, diante de seus encantos, as defesas masculinas de homens considerados incorruptíveis: eclesiásticos ou altos funcionários devotos.

Tinha de ser prudente, inatacável.

Durante todos esses anos, nenhuma falha se insinuara em seu plano. Podia felicitar-se por não, ter dado qualquer motivo de suspeita.

Uma amarga e inconcebível experiência, vivida em terras da América, a tornara prudente.

Primeiramente, fora uma silhueta discreta deslizando pelas ruas. Julgavam que ela se cobria com um véu por viver à sombra de um amante rico, um homem idoso que voltara das colónias e que a tomara como amante, um tal de Nicolau Parys.

Fora preciso esperar, dar as cicatrizes do rosto tempo de se apagarem.

No final das contas,- (c)velho Parys era um bom comparsa e cúmplice.

Tanto um como o outro-se ativeram aos termos do contrato firmado entre eles numa noite sinistra, na costa leste de Tidmagouche.

Ele a queria. Sempre quisera e continuava querendo aquela mulher ferida, desfigurada, mas cujo corpo permaneeia-intacto. Queria se espojar sobre ela, como um porco no chiqueiro.

Quanto a ela, queria ser salva e escapar de seus inimigos, que a entregariam à justiça do rei, se tivesse sobrevivido, como assassina, feiticeira e envenenadora.

Precisava desaparecer. Desaparecer para sempre.

O velho Parys satisfaria sua necessidade carnal com ela. Sempre preferira os velhos, nos quais o fogo ardente de uma virilidade declinante exige, para se acender, muitos artifícios, nos quais, desde a juventude, Ambrosina sempre fora perita.

O pacto foi concluído.

Nenhum escrúpulo, nem dela, nem dele, em assassinar Henriqueta Maillotin, que a ajudara a evadir-se, em desfigurá-la e entregá-la aos animais selvagens da noite, que acabariam .por tornar irreconhecível aquela jovem mulher que iria substituí-la no túmulo.

O navio se distanciara.

A França fervilhante permitia ao casal apagar os últimos vestígios.

No fundo das províncias, encontram-se> sem dificuldade, por bons escudos legalmente válidos, notários" ou homens de negócios, e mesmo curas complacentes para passar papéis de casamento, ao simples enunciado de um nome de batismo, acompanhado de data e lugar de nascimento, igualmente imaginários.

E, para se divertir, Ambrosina designara-se como nativa da província do Poitou. Mas essa fantasia criou-lhe problemas depois. Pois essa identidade falsa lembrava-lhe incessantemente que, se conseguira enganar a rival, nessa questão de origem, no final Angélica fora, de qualquer modo, a mais forte.

Por isso, longe de diverti-la, aquela evocação do Poitou provocava-lhe raiva. O que era excelente, dizia consigo, para dar prosseguimento a sua vingança.

Pois, à força de ser tão ajuizada, apagada e discreta, não teria acabado por esquecer que só tinha um objetivo em vista: vingar-se deles e, principalmente, dela? E por esquecer, o que era mais grave que tinha uma missão a cumprir, imposta ademais por um amo que não suportava o fracasso?

Não fora tentada, por instantes, a esquecer? E então calafrios de terror a sacudiam, despertando seu ódio por "eles", que a haviam colocado em xeque.

Ah! quantos anos fingindo, espreitando no espelho a cura, e depois a ressurreição de seu rosto. Certos vestígios jamais se apagariam. Não era isso o que mais a tocava. Não era mais totalmente a mesma, e por vezes se felicitava por isso. Não era mais tão bela, tão jovem, e isso era culpa de Angélica, dizia-se, pois parecera-lhe que a outra nutrira com sua derrota a própria beleza, a própria juventude. "Quanto mais eu descia mais ela se tornava deslumbrante. Sim... até em Tidmagouche, quando estava doente, e eu a mantinha à minha mercê..."

Acalentando suas ofensas, os anos haviam passado para Ambrosina, a reclusa, a apagada.

Os véus foram se tornando menos espessos. Os espelhos lhe anunciavam que podia reaparecer à luz do dia, e chegou o momento de o velho Parys falecer, por efeito de alguma poção. E pouco depois, para ela, sua viúva, de fugir para outra cidade e mostrar-se com o rosto descoberto e sob outro nome.

A seguir, tudo se passara conforme seus planos, longamente urdidos, segundo seus desejos.

Foi apenas depois de desposar, em Nevers, o Sr. de Gorrestat, intendente de província, que começou à recrutar seus "fiéis": senhores arruinados ou criados sem escrúpulos, almas negras de sua espécie, que atrelava a sua fortuna e que, bem pagos, bem recompensados de mil maneiras, se encarregavam, sob sua ordens, de intrigar, comprar alianças ou cumplicidades e, se fosse preciso, reduzir ao silêncio os "estorvos".

O primeiro desses servidores não era, sem sabê-lo, aquele homem de pouca inteligência e muita vaidade, mas munido de apoio seguros e relações importantes, que transformara em marido, o Sr. de Gorrestat?

Muito rapidamente e atenta a todas as oportunidades, encorajara-o a se ocupar dos negócios coloniais, depois a pleitear um cargo na Nova França. Múltiplas intervenções obtiveram para ele sua nomeação como governador interino, durante a viagem do governador efetivo, o Sr. de Frontenac, obrigado a ir a Paris explicar-se com seu soberano. No pé em que estavam as coisas, já se podia considerar certa a desgraça de Frontenac, e seu substituto, vice-rei por vários anos.

Para Ambrosina, sua esposa, que se fazia chamar Armanda, nascida Richemont, e que todos admiravam por acompanhá-lo tão corajosamente àqueles longínquos e rudes países, houvera duas semanas em Paris onde se introduzira em algumas repartições. Havia algum tempo, pedira, por correspondência entregue por homens da lei, que se mandasse esclarecer o caso do La Licorne. Não deixava de ser engraçado reclamar, sob pretexto de parentesco, notícias da Sra. de Maudribourg e de sua expedição.

Depois, dirigira-se a Versalhes, para uma reverência ao rei, que não a notou de modo algum.

Uma reverência supérflua, entretanto. Junto ao batente de uma porta, o olhar verde de um adolescente fixara-se no seu, com um súbito clarão.

Prontamente a carruagem dos Gorrestat tomava o caminho do Havre, e Ambrosina rejubilava-se por afastar-se da capital e fazer-se ao mar.

Não receava as travessias. E pouco lhe importava começar pela província do Canadá, como exigia seu novo título de mulher de governador. A primeira vez viera como uma benfeitora, livre para ir aonde quisesse. Mas, dessa vez, tinha de passar por Que-bec, e armara-se antecipadamente de paciência, preparando seu sorriso mais gentil.

Mas... o que todos eles estavam pensando?...

Seu objetivo não era ser incensada por aqueles xucros coloniais.

Nunca tivera a intenção de ficar mofando em Quebec, uma cidade dos antípodas gelados, que tinha a pretensão de passar por capital. Uma "pequena Versalhes", dizia aquele ridículo Ville-d'Avray. E Frontenac, o bufão, acreditava nisso.

Mas sua nova função a obrigava a descer até lá, a ser ali recepcionada e aclamada, se fosse preciso. Por outro lado, isso não era de todo inútil, pois pretendia acertar ali alguns contenciosos com aqueles que, conforme soubera, haviam apoiado seus piores inimigos, Joffrey e Angélica de Peyrac, e pedido a desgraça do Padre Sebastião d'Orgeval. O anúncio de sua morte a espicaçara.

"Mais tarde, Gouldsboro", dissera a si mesma. "Paciência, pelo tempo que for preciso..."

Tivera razão.

Desde os primeiros dias de navegação no Saint-Laurent, o presente lhe apresentava imagens do passado. E já estavam mortos os que deviam morrer. Ah! como se alegrara vendo balançar, pendurado às vergas de sua nau capitânia, o Tenente de Barssem-puy, que a odiava por ter mandado executar Maria, a Meiga, sua amiga!

"São ingleses!", conseguira convencer seu esposo, o novo governador. "Traidores inimigos, que conseguiram penetrar no estuário do Saint-Laurent... Execute-o para mostrar que não é, como o governador Frontenac, indulgente com esses inimigos da França e com os huguenotes franceses renegados, seus aliados."

Pena que, por causa do nevoeiro, não se tivesse podido capturar toda a tripulação do pequeno iate, que navegava arvorando o pavilhão de franquia do Conde de Peyrac!

E em Quebec, sentindo-se reconhecida e suspeita em certos olhares, fizera prontamente justiça.

Infelizmente, aquela tola da Delfina e a gorda proprietária do Ao Navio de França, cuja antipatiapudera perceber, tinham-lhe escapado por entre os dedos... Por quê? Como?... Inquietava-se, sentindo vacilar a infalibilidade de suas astúcias.

Considerara uma volta afinal da sorte e da proteção oculta, da qual começava a duvidar, saber que a filha do Conde e da Condessa de Peyrac - a menina para a qual Angélica apanhava ame-tistas nas praias de Gouldsboro - era interna na instituição das religiosas da Congregação de Nossa Senhora, em Montreal.

O acaso entregava-lhe a filha de seus inimigos. Lambia os beiços, antecipadamente. O Diabo, desta vez, estava do seu lado. A ilha de Montreal, a montante do rio, ficava longe, mas os prazeres que antevia nessa captura e nos sofrimentos que infrigiria a pequena vítima compensavam os aborreciamentos daquelas viagens fluviais em meio às homenagens, que sentia serem falsas e perigosas, daqueles colonos-aldeões grosseiros, que queriam ser chamados de "habitantes" e que se consideravam como senhores pelo simples fato de terem recebido direitos de caça e pesca.

Mas quanto mais os detestava mais se rejubilava, pois teria muitas oportunidades mais tarde de fazê-los pagar por sua arrogância. E começava a aceitar, a rigor, uma estação nos gelos da pequena corte de Quebec, já que lhe anunciavam que não podia ser de outra maneira. "Mais tarde, Gouldsboro... Você pode esperar. Gouldsboro, tornarei a encontrá-la! A vingança é um prato que se come frio," E repetindo interiormente o ditado, explodia num riso estridente. "Muito frio!..."

Podia esperar aquele prato de resistência depois de oferecer a si mesma em Montreal o de raptar a pequena Honorina, torturá-la até a morte e enviar, uma a uma, as provas do crime a sua tão odiada, tão desejada, tão maldita inimiga, Angélica, de beleza estonteante, possuidora de um incompreensível poder de sedução, Angélica, a mãe daquela criança.

"Partamos rapidamente para Montreal", dissera ao esposo; "é preciso que conheçamos todos os nossos administrados antes do inverno, e que apaguemos em cada um deles a lembrança do governador anterior, o Sr. de Frontenac."

Sim, tudo andara muito bem até então. Até o momento em que se encontrara diante daquela menina enfurecida, que se pusera a urrar, tratando-a de envenenadora: "É a Dama Lombarda! É a Dama Lombarda, a envenenadora..."

Quanta paciência e abnegação aparente tivera de demonstrar para apagar a má impressão da cena! Aquelas pessoas do Canadá tinham uma proteção ridícula a adorar suas crianças e a dar-lhes razão em tudo.

Conseguira afastar Madre Bourgeoys, fazendo que fosse convocada pelo bispo em Quebec, e também os tios de Honorina, pois era com desprazer que tomava conhecimento de haver naquelas paragens um irmão de Angélica. Tudo isso era exatamen-te desagradável. Deve-se'desconfiar da coalização oculta dos membros de uma mesma família; cria-se entre eles, mesmo entre aqueles que pouco se conhecem e não se dão bem, uma cumplicidade natural, de uma espécie mal conhecida, mas de ondas poderosas.

Conseguira pois afastar da criança seus protetores importantes; foi procurá-la no convento e, ao saber que fugira, conseguira capturá-la de novo. E depois, novamente, um inexplicável revés. Sua presa desaparecia. Desvanecia-se, melhor dizendo. Todas as investigações, uma fortuna distribuída, tudo em vão.

Ambrosina agora via claramente. Não fora por culpa de um enfraquecimento pessoal de suas faculdades, alteradas por uma inércia demasiado longa, durante anos de desterro numa província da França, não fora pela perda da proteção satânica, que jamais lhe faltara, não fora sequer pelo fato de os franceses e os índios do Canadá se revelarem menos maleáveis, menos fáceis de enganar que os humanos do Velho Mundo, que Ambrosina, a Diaba, se via posta em xeque. Mas porque, uma vez mais, atacara a "eles". Era-lhe pois preciso concluir que a menina era tão perigosa quanto a mãe.

Pior ainda!...

O que havia afinal naquela família que lhe era tão adverso?...

Espalhou à sua frente, sobre a penteadeira, o conteúdo dos dois cofrinhos encontrados no alforje da criança.

E, diante daqueles objetos heteróclitos de valor desigual, uma turquesa, por exemplo, e plumas, conchinhas, um dente de ca-chalote gravado, adivinhava que alguns deviam ter pertencido a Angélica, antes que os desse à filha.

Ali havia largada uma mecha flocosa dos longos cabelos ruivos que ela mesma arrancara da cabeça da menina, ao maltratá-la com raiva. Pegou aquela mecha entre o polegar e o indicador, fazendo-a deslizar na outra mão.

Onde estava ela agora, aquela pequena miserável? Como alcançá-la? Causar-lhe infelicidade?

"Podem-se fazer muitas coisas com cabelos..."

Em Paris, teria uma pletora de endereços úteis, nomes de adivinhos e adivinhas, que se podiam visitar em seus covis. Mas ali...

"Devia ter providenciado os serviços de um mágico."

Teria podido fazê-lo, sem atrair a atenção da polícia e acarretar, consequentemente, suspeitas e investigações?

Passando por Paris, quisera consultar a mais famosa das feiticeiras, a Mauvotsiíi, chamada La Voisin.

Ao se aproximar de sua casa, vira saindo de lá um grupo de "missionários", daqueles padres pertencentes à or-de-nx fundada pelo Sr. Vicente de Paulo para pregar à gente humilde, e aquilo lhe parecera inquietante e insólito, motivo pelo qual se afastara precipitadamente. Dois dias depois, Paris inteira tomava conhecimento da prisão da adivinha em causa. Ambrosina tremia só de lembrá-lo. E, por trás daquela prisão, sempre o horroroso policial Francisco Desgrez.

Por causa daquela personagem, sua partida para o Havre assumira o aspecto de uma fuga. Como da primeira vez, quando lhe escapara no momento exato em que fora prender sua amiga íntima, a Marquesa de Brinvilliers.

Dessa vez, o policial atingia o cerne da fortaleza dos envene-nadores.

Como as notícias correm, o Sr. e a Sra. de Gorrestat ainda não tinham embarcado quando souberam que La Voisin era acusada de tentativa de envenenamento do rei. Atenaís de Montespan fugia da corte.

"Se ela for interrogada, dará o meu nome. Foi outrora, com minha cara Brinvilliers, uma de suas mais assíduas clientes... Mas que importa que me nomeie? Estou morta", morta!"

Deu uma gargalhada que finalizava numa cachota macabra e sem eco.

- A Duquesa de Maudribourg está morta! - disse, em voz alta.

Mas não pôde deixar de olhar em torno, medrosamente.

Não era uma coisa injusta?

Sempre fugir. Sempre esconder-se, sempre dissimular.

Entretanto, Ambrosina sentira-se aliviada por poder fazer-se ao mar, refugiar-se no Novo Mundo - onde poderia se manter incógnita com mais facilidade, como da primeira vez -, escapando, num refluxo imprevisível das circunstâncias, àquele Desgrez e a seu mestre, o tenente de polícia do reino, Sr. de La Reynie, ambos cães de fila do rei..

Seria preferível não deixar em sua passagem nenhuma pista que pudesse ser farejada.

Contava com o Sr. de Varange, perito na arte de feitiçaria e que a esperava em Quebec, para a função de mágico.

Ora, eis que lhe anunciavam sua morte... e há muito tempo. Desaparecido, efetivamente. Seu desaparecimento coincidira com a visita que o Sr. e a Sra. de Peyrac tinham feito a Quebec.

Por que Varange desaparecera no momento em que "eles" chegavam? Como se quisesse ceder-lhes o lugar...

Uma suspeita assustadora começou á apoderar-se dela.

'Eles' também estão por trás dessa morte... desse desaparecimento", disse consigo.

"Foi ela que o matou!", exclamou.

Estava tão segura de seu pressentimento que não mais conseguia discernir se estava se deixando levar por divagações obsessivas ou se estava sendo avisada magicamente da realidade.

Angélica matara o Sr. de Varange. Só podia ter sido ela. Onde? Quando? Por quê? Como adivinhara que o velho debochado era seu cúmplice? Impossível sabê-lo. Mas fora Angélica quem matara o Conde de Varange.

"Vou gritar em toda a parte que foi ela quem o matou, e... vão me considerar louca. Serei olhada com suspeita... Mesmo esse Garreau d'Entremont, que só espera uma denúncia nesse sentido... Ele também sabe que foi ela que matou Varange."

Mas pediria provas...

Essa nova polícia, que o rei pusera em ação, exigia provas. Antigamente, bastava recorrer à delação, à acusação, à pecha de feitiçaria.

Hoje, queriam provas...

E a flor da nobreza da França seria enviada à Bastilha ou ao exílio, e, mesmo, à guilhotina, por culpa dos cadáveres de crianças recém-nascidas, imoladas nas missas negras, muito bem pagas, rezadas sobre um ventre de prostituta. Que visão ridícula e despropositada! Que importância tinham esses bebés sem nomes, verdadeiras larvas humanas, em comparação às grandes personagens que pagavam um preço tão alto por sua imolação?

"Larvas humanas, ignóbeis larvas brancas retorcendo-se e bocejando", repetiu, torcendo a boca numa careta de asco, "sem nome e nem mesmo batizadas... Ah! sim. Parece que La Voisin ou outra comadre as batizava antes de enfiar-lhes a agulha no coração... Idiota."Ela vai pagar caro por haver arrancado a Satã sua presa..."

Provas! Não podia acusar Angélica sem apresentar provas!

Deteve abruptamente a louca progressão de seu pensamento. Não devia mais fazer projetos. Sentia medo. O Medo! Era a primeira vez. Por não tê-lo experimentado nunca, adivinhava que era o medo que lhe apertava a garganta.

Cometera um erro por esquecer.

Esquecer o que acontecera na Acádia. O Fracasso! A Derrota total! Mas sobrevivera, com a única finalidade de concluir sua missão. Senão, não tinha razão alguma para sobreviver. Se não o conseguisse desta vez, não lhe concederiam sobrevivência. O medo e o ódio dilataram-lhe o coração, despertando nele espasmos voluptuosos. Suas mãos se abriam e fechavam no desejo de apertar um pescoço de criança, um pescocinho branco e firme, muito ereto, muito belo, o de Honorina, que trazia em si a dor possível de Angélica.

"Ah! como odeio as duas!..."

A frustração e o desejo das visões entrevistas atormentavam-na desvairadamente.

"Que volúpia!", repetia baixinho com unrlongo suspiro, nascido do mais profundo de suas entranhas.

Suas entranhas despertavam. Graças a Deus!, teria dito, se um pacto interior feito com as forças infernais não lhe proibisse empregar esse vocábulo, a não ser em voz alta e para enganar. Como é difícil afinal habitar uma carne tão fraca! E eis que, fora de qualquer estratégia, desejava um amplexo amoroso para acalmar ardores quase dolorosos, inspirados pelas evocações lúbricas de seus projetos frustrados, de sua vingança inacabada.

Queria muito gozar, mas não sofrer, e seu corpo pareceu-lhe fraco, subjugado, suplantado por forças que ela mesma desencadeara.

"Tornei-me realmente, eu também, uma criatura humana?...", indagava-se com terror.

A voz de um serviçal informando-lhe que um homem jovem desejava falar-lhe chegou ate ela.

-        Mande-o entrar!

Sentiu uma presença no limiar do aposento, a alguns passos, e voltou-se.

Estremeceu-se violentamente. Mistura de medo e de satisfação. Aquele que acabava de entrar era uma resposta a suas dúvidas e indecisões. Preferia o corpo-a-corpo com o adversário.

No corpo-a-corpo era a mais forte. E quando se tratava de um belo jovem como esse, a vitória estava assegurada de antemão. Ela podia fazer as mulheres chorar, destroçá-las, destruir-lhes a existência, mas não domá-las, exceto algumas. Enquanto esses machos imbecis, escravos de seus sentidos e de sua vaidade, era muito fácil levá-los a ceder, de joelhos tremendo.

Entretanto, havia também o medo.

Desde que se sentira reconhecida por ele em Versalhes, na an-tecâmera do rei, uma surda certeza a obsedava, a de que ele não permaneceria lá. Eis por que quisera mandar matá-lo imediatamente. O atentado fracassara, então?

O receio não cessara de atormentá-la. Ridículo! Pois, chegando ao Havre com o esposo, embarcara para a Nova França.

Apesar disso, não parava de imaginar aquele Cantor de Pey-rac, que tinha os mesmos olhos da mãe, procurando saber mais coisas a respeito dela. Embarcando talvez em sua perseguição. Estava tão convencida disso que, ao sair de Quebec para Montreal, previra sua vinda. Descrevera-o a seus homens, que deixou à sua espera no lugar, e dera-lhes ordens precisas a seu respeito e do glutão. O animal fora morto, mas ele, como lhes escapulira novamente?

Ele tirou graciosamente õ" chapéu de feltro e saudou profundamente.

— Senhora, está me reconhecendo?

— Certamente - disse ela, levantando a cabeça com desafio '-, e não me cabe nenhum mérito, pois, desde Versalhes, você me persegue. Posso saber por quê?

— Reconheci-a, senhora, quando todos a julgavam morta há vanos anos. Não é normal ter querido assegurar-me de que meus olhos não me haviam enganado?

— Uma curiosidade tão desmedida, que o impele a vir aos antípodas para satisfazê-la? Está gracejando, senhor!... Ou mentindo...

— Senhora, ao meu ardor e à minha paixão, que importam os mares a atravessar... Nada representam quando,se„trata de me assegurar desse milagre. Você está viva! E, com efeito, tratava-se, para mim, ao me lançar em seu encalço, de satisfazer desejos muito diversos de uma simples curiosidade. Oh! senhora - prosseguiu, sem deixar-lhe tempo de perceber nele e nela a falsidade daquelas declarações -, quantas lágrimas derramei, quantos remorsos me atormentaram, quantas saudades me dilaceraram! Você foi tão maltratada na praia de Tidmagouche, e tão injustamente! A loucura dos homens não tem limites quando o ciúme se apodera deles. Eis, portanto, o que eu tinha a lhe dizer, e por que atravessei os mares, já que um acaso abençoado me permitia, implorando seu perdão, apaziguar minha consciência.

Acredita nele? Havia nos olhos puxados de Ambrosina clarões frios e fixos, assassinos. Ela repetiu:

— Viram-no correndo em Quebec...

— Eu estava à sua procura.

— Não acredito em você, belo pajem.

Como era belo esse Cantor de Peyrac! Seu nome e sua beleza faziam ao mesmo tempo rilhar os dentes e subir água à boca.

Em Versalhes, quando por ali passara, ouvira mexericos a propósito de uma das damas de honra da rainha, que estava louca por ele. A tal ponto que, em vez de censurá-la e desfazer-se dela, a rainha, que a apreciava muito, concedera-lhe um feriado de amor ilimitado, deixando-a "arrulhar" seu jovenzinho até não poder mais.

Pequeno deus, pequeno senhor, investido já de poder e de arrogância, ali estava naquelas plebeias províncias, tendo deixado tudo por ela afirmava ele.

-        Está me ferindo, senhora, duvidando de minha lembrança e de meu fervor. De que modo poderia provar-lhe esses sentimentos senão cometendo a loucura de persegui-la? O que eu procurava nessa corrida insensata? Veja! Julgando tê-la reconhecido, abandonei imediatamente meus cargos na corte. Arrisco-me à desgraça junto ao rei... Mas não pensei em nada!... Quem faria tal gesto senão impelido pelo ardente e sincero sentimento que ouso confessar-lhe? Não reconhecê-lo é lançar-me ao desespero e desconhecer também a força dos ardores que me inspira. Ah! Sra. de Maudribourg. Pronuncio este nome sem mesmo acreditar.

-        Psiu! - fez ela, vivamente. - Com efeito, não o pronuncie.

Olhou em torno com terror. Seu ser se desdobrava. Ela era ainda, mas com dificuldade, a Sra. de Gorrestat, mulher do novo governador, tendo já conquistado os edis da colónia, e estabelecido a reputação de dama caritativa e casta, mas, desde que ele surgira, era sobretudo aquela mulher aventureira do Novo Mundo - como esse papel lhe agradara! - que alguns anos antes passara, nas praias da Acácia, por uma odisseia secreta, cujas peripécias nutriram incessantemente suas lembranças com fantasmagorias.

— Tidmagouche!... - disse, com amargura. Os cantos da boca descaíram-lhe, e adivinhou que o trejeito a enfeava. Mas não pudera refreá-lo. - Tidmagouche, não me lembro de você ter me tratado com justiça.

— Eu era apenas uma criança.

— Era isso o que me agradava - disse ela, numa voz estrangulada, com um sorriso matreiro e cruel.

"Dane-me, Senhor, por meu pecado", pensou ele, "mas, pelo menos... que minha carne sirva para issc^L. aturdi-la, perdê-la, mistificá-la!"

Foi invadida por um tremor. Explodiria em insultos, cuspindo fogo e chamas, como na praia de Tidmagouche, ou, ao contrario, esse estremecimento era o sinal precursor de.sua rendição? Ele notara suas fraquezas,"sêus receios. Tiraria partido disso, ao mesmo tempo para levá-la de volta ao passado e fazê-la temer o presente. Não queria ser reconhecida. Ainda não eliminara totalmente testemunhas perigosas de seu passado. Havia vários pontos em que não tinha segurança, em que precisava ser assegurada. Sua beleza, entre outros, suas possibilidades de sedução...

— Então é você realmente - sussurrou, fingindo-se deslumbrado. - Reagiu a seu nome. Ainda me restava uma dúvida...

— Por quê?... - lançou, com ansiedade. - Mudei tanto assim?

— Sim, mudou, mas mesmo assim a reconheci. Que mistério explica que seja mais bela do que em minha lembrança, mais próxima de meu sonho, Sra. de...

— Não me nomeie - intimou-o novamente.

— Ambrosina, então! Ambrosina! Esse nome cheio-de encanto preencheu minhas noites, cantando incessantemente dentro de mim...

Avançou imperceptivelmente para ela.

Os olhos verdes defrontavam-se com o olhar de âmbar, depois apoderaram-se dele, e essas duas luzes se aniquilavam numa espécie de trégua, um arrefecimento passageiro da luta.

Ela sentiu junto de si aquela carne rija de um homem muito jovem, e dediciu acreditar nele, pois disso, dessa sólida e segura sensualidade primitiva, tinha daí em diante uma fome e uma sede devoradoras. Sua necessidade dele devastava tudo, sacudia-lhe o corpd, mas chocava-se-com a onda contrária de sua desconfiança demoníaca. Havia em seu ser um debate incoerente. Reconduzida a uma vida longínqua, esquecida, apagada, em que ele fora quase o mesmo diante dela, numa praia, um pouco mais jovem apenas, mais criança, perdeu o controle de suas palavras.

— Todavia você estava com aqueles que se lançaram sobre mim para me massacrar!

— Deus me livre disso; tive, ao contrário, piedade de você, da violência que era cometida contra você naquele momento. Creia-me.

As pupilas de Ambrosina brilharam com um clarão venenoso.

— Não acredito em você - repetiu. - Lembro-me de sua maldade quando, em Gouldsboro, eu tentava agradá-lo.

— Eu era apenas uma criança, minha cara, assustado com o amor e o domínio da carne, que me eram desconhecidos.

— Bem que eu quis iniciá-lo.

— Tive medo.

— Tinha medo da cólera de sua mãe, que tinha ciúmes de mim. Por causa de minha beleza, que rivalizava com a dela. E que me odiava porque eu conseguira seduzir seu pai e atraía o olhar dos outros homens.

Cantor sentiu que empalidecia.

O horror e o asco comprimiam-lhe a garganta.

Felizmente para ele, ela se voltara para o espelho e se examinava, inconsciente de trair com essa atitude uma inquietação quanto à perenidade de sua beleza e de seus poderes. Depois sorriu, serenada.

-        Em seguida, ele me renegou e mentiu para satisfazê-la. E você também, pobre tolinho... Não ousou contrariá-la... Não será um pouco tarde agora para vir implorar meu perdão?...

Nunca mais, jurou a si mesmo, enojado, ouviria mulher alguma murmurar-lhe palavras de encontro e promessas voluptuosas. E, enquanto ela falava, ele a via virar e revirar nervosamente em torno do dedo um longo fio de ouro vermelho, um fio de cobre, flexível, cintilante, que atraía o tempo todo seu olhar, a despeito de si mesmo, até que compreendeu que eram alguns cabelos de Honorina, alguns dos longos cabelos da ruivinha, que a harpia provavelmente arrancara do crânio dela, maltratando-a em sua fúria.

"Eu a matarei", disse consigo, com uma soturna intensidade dolorosa, a única capaz de ajudá-lo a dominar sua cólera. "Eu a matarei, Diaba!... Que Deus me assista e sustente minha espada!..."

-        "Elas" me desafiaram - resmungou Ambrosina. - Elas!... Apenas elas!... Elas me escaparam!... É inadmissível! Isso exige punição!... Ah! como as odeio, às duas! Quanto a ele, não lhe queria mal... por ter me repudiado. Não.'Era um homem. O homem tem todos os direitos. O homem tem o direito de ser o mais forte. Pois é o mais fraco. Faço o que quero com eles, um dia ou outro. Mas as mulheres, não, as mulheres não têm o direito de triunfar sobre mim! As mulheres me pertencem. Mulheres, quero-as apenas como vítimas ou cúmplices! Quanto aos homens, não há o que temer deles. Mas elas, elas zombaram de mim... Ah! como odeio às duas...

Um pouco afastado, atrás dela, adivinhava que estava falando de Angélica e de Honorina: Uma candente indignação turvou-Ihe a vista. Sua mãe! E uma criança, sua meia-irmã!... Seja como for, uma criança colocada sob Sua proteção, pois se tornara seu meio-irmão mais velho.

Como aquela horrível criatura ousava falar delas naquele tom diante dele?... Como se ele já fosse uma aquisição indiscutível dela!...     

"Tome cuidado!", intimou a si mesmo, esvaziando o cérebro de todos os pensamentos. "Que ela não suspeite nada do que o agita..."

E surpreendeu o olhar que ela lhe lançava pelo espelho. Procurando adivinhar-lhe os pensamentos, pronta a lançãr-se sobre ele, uma fúria, ao menor sinal, brilho de cólera ou de repugnância, que poderia fazê-la suspeitar que ele não lhe era totalmente devotado. A seus pés... Acorrentado pelo desejo carnal que o cegaria, tornando-o indiferente a tudo o que não fosse ela, surdo às aterradoras palavras que ela pronunciava como que por descuido, a fim de provocar sua ira. A menor suspeita do que ele sentia verdadeiramente decidiria sobre seu destino.

Mas ela não conseguiu ler nos olhos claros, fixos nela, nada além de uma impávida luz, essa fixidez ausente, obsedada, quase imbecil, que uma cobiça ardente, estrangulada, empresta por vezes ao olhar dos homens.

Tê-la-ia enganado? Gostaria de crer nisso. O suor molhava as costas do pobre Cantor, tomado pelo medo de que pudesse alertá-la pelo quebrantamento de um só de seus "pensamentos.

Toda a astúcia e sangue-frio de seu pai se reuniam nele. Compreendia agora aquela força de dissimulação do Conde de Pey-rac, que tantas vezes o irritara ou decepcionara, ferindo sua sensibilidade infantil, embora também se abrigasse à sombra daquela força e se felicitasse com sua proteção.

Compreendia que a arma se forja pela virulência do inimigo, pela extensão do perigo, que a traição só pode ser evitada com uma traição ainda maior.

Deu mais um passo em sua direção.

"Que minha carne sirva ao menos para isso", pensou, "que minha carne, que a subjuga, sirva para isso... Para a salvação de todos!..."

Ela via tão próxima sua boca polpuda, firme, que capitulou, enquanto ele murmurava:

-        Onde?... e... quando?...

Esse ultimato já dera certo anteriormente.

Fora Florimond quem lhe indicara algumas estratégias e fórmulas que, pretendia, eram irresistíveis.

Ela estremeceu da cabeça aos pés. O desnorteamento ávido que apareceu em seu rosto provocou-lhe náuseas.

Ela respondeu, ofegante:

-        Esta noite, na ponta da ilha, a jusante do rio. Ali existe um moinho abandonado... cercado de olmos e de faias-pretas. E o nevoeiro se soma à noite para dissimular aqueles que não querem ser vistos. Espera-lo-ei lá, junto ao bosquezinho...

CAPITULO IX

O fim da Diaba - Reação devastadora do Mal e a fúria dos elementos

Oculta sob um manto cinzento, que tomara de empréstimo a uma de suas criadas de quarto, e confundindo-se, àquela hora da noite, com a sombra projetada pelo moinho vazio, ela esperava.

Os mil ruidozinhos do lugar davam-lhe arrepios, e ela se surpreendia com um sentimento mesclado de impaciência e de angústia que não lhe era habitual.

Saltos de rãs na água adormecida - de uma campina esponjosa coberta de caniços, rangidos, coaxos, saltos abafados, pesados, do lado dos bosques, o estalejar de asas como de velas moles chocando-se com as ripas do telhado do moinho, onde se abrigavam e despertavam pequenas corujas aveludadas, que por duas vezes lançaram seu apelo modulado.

Como fora tola deixando-se tentar por essa escapada! Ele já devia estar morto. Era tão simples e era o que precisava ser feito. "Não", repetiu a si mesma. "Eu o matarei, mas... depois!"

E movida por esse pensamento, passou a língua pelos lábios. Alguma coisa de si mesma lhe escapava, como se lhe escorregassem das mãos as rédeas que sempre mantivera firmemente sim, sempre.

De onde lhe vinha essa vontade devoradora de desfrutar o corpo do jovem, de saber tudo sobre ele, de conhecer o vigor de seus braços enlaçando-a, de se afogar em suas pupilas límpidas, que lhe lembravam as de sua rival, e as da criatura feminina, sua irmã, que deveria ter subjugado tão facilmente e que se rira dela?

"Tudo, menos renunciar àquele instante", disse consigo, ardendo de um desejo que, de segundo em segundo, lhe pareceu desconhecido e que deslizou para todos os seus membros, como o movimento de uma serpente sutil.

Ouviu os passos de um cavalo.

Iluminado de frente pelos últimos raios de um crepúsculo que se quisera pálido, matizado por uma claridade mais para lírio do que para rosa, um cavalo branco apareceu, montado pelo jovem herói esperado.

Por que vinha a cavalo?

Ele não pertencia a este mundo.

Estava deslumbrada pelo brilho de suas madeixas douradas sob o grande chapéu emplumado, que batido pela luz, lhe formava uma espécie de auréola.

Em sua embriaguez de vê-lo, perdeu a noção de sua própria realidade carnal. Não podia nem mover-se, nem avançar um passo. O fogo de sua paixão se desprendia de seu ser, como labaredas púrpuras que lhe fossem arrancadas uma a uma.

"Era essa a felicidade conhecida pelos humanos?", indagava-se, tomada pelo terror, compreendendo demasiado tarde que esse corpo, traje habitual e muito mimado como instrumento dócil, apanhava-a em sua armadilha. A espiral arrastava-a, fazendo de sua carne uma espécie de chama devoradora e sublime, esse fogo do sangue vermelho pelo qual "eles" estão prontos a vender sua alma, sibilante ascensão prestigiosa e fatal, pois implicava desobedecerão mestre, o que lhe inspirava um terror sem nome, e as dores de um arrebatamento, dissociação das naturezas inconciliáveis. O fenómeno, que lhe causava um padecimento tão atroz quanto um esquartejamento, ocultou-lhe a visão da bola escura e aveludada fendendo a relva como um projétil.

Tinha as pupilas fulgurantes, o pavoroso ricto daquele que fora expulso do céu para os infernos, E arremetia contra ela.

A beleza perdida de Lúcifer ficava para o outro, lá longe, que, montado no cavalo prateado, à beira do bosque, a fitava com os olhos translúcidos como água límpida, de um azul inviolado.

- Face de anjo, maldito seja!... - gritou.

O impacto do animal derrubou-a. E ela se transformou no mesmo instante em sua presa devastada.

-        Deixe-me chegar perto - dizia Cantor.

Apesar de sua repugnância e do maldito terror que o invadia, apeara do cavalo e, nas trevas, girava em torno-da cena imunda, tentando acalmar o glutão enfurecido.

Mas este não queria afastar-se. Lançava-se com ímpeto sobre ela, investia, voltava sem cessar.

-        Deixe-me chegar perto! Devo fazer isso!

Durante a viagem, a meia-voz ou em pensamento-, viera falando com o animal domesticado por ele, atiçando-o daí em diante contra a mulher assassina que ele seria encarregado de exterminar.

O que sabia Wolverines? Lembrava-se dos cães gigantescos, tão grandes quanto ursos, que Ambrosina lançara contra ele em Tid-magouche? Adivinhava que era às suas ordens, a ela, que obedeciam os caçadores que o acossaram em volta de Quebec e tinham matado sua fêmea diante de seus olhos?... Teria subitamente "visto", como o pequeno gato outrora, a verdade do ser aparecido?

-        Deixe que eu me aproxime! Tenho de fazê-lo! Eu prometi.

Tenho de enterrar-lhe minha adaga no coração, a fim de assegurar-me de sua morte. Eu prometi. Depois você poderá fazer o que quiser!...

O cavalo relinchava, dominado pelo pânico, encabritando-se, puxando o galho ao qual estava preso. Atabou quebrando-o e fugiu a galope!...

A tempestade eclodiu! Uma tempestade sem chuva. Um raio, passando em ziguezague ao nível dos telhados de Ville-Marie, caiu sobre as ardósias do solar que fora posto à disposição do senhor governador, e ricocheteou, como uma bola caprichosa, engolfando-se por uma das chaminés.

Foi o tempo de formar-se uma fila de pessoas até o rio e de se apanharem os baldes, e já estava tudo consumido. Não sobraram senão as paredes de pedra enegrecidas.

Os serviçais e as criadas salvaram-se a tempo. O governador estava aquela noite em casa dos senhores de Saint-Sulpice. Foi essa a razão pela qual não se procurou imediatamente a Sra. de Gorrestat, julgando-a desaparecida no incêndio.

Foi preciso esperar para poder sondar as ruínas ainda quentes, quando se surpreenderam por não encontrar nenhum vestígio dela. Simultaneamente, um caçador de abetardas acorreu, falando de um cadáver horrivelmente mutilado, encontrado lá pelos lados da ponta do moinho.

Diante dos restos irreconhecíveis que, mistura de carnes e de pedaços de tecido, tinham já servido de pasto às raposas, ainda se duvidava.

Mas a pavorosa descoberta, não longe dali, de uma cabeça de mulher de cabelos longos e soltos, embebidos em sangue, pendurada no galho de um olmo, fez com que todas as testemunhas desistissem de prosseguir as investigações sobre a identidade da vítima. O horrível espetáculo levou os oficiais e fidalgos, recém-chegados da França, a vomitar, encostando a testa ao tronco de uma árvore.

Cercados de homenagens, baixaram-se rapidamente os restos É da desditada mulher do novo governador, sobre a qual só se falava bem em voz alta, mas cujo desaparecimento causou secretamente a muitos um certo alívio.

Na ilha de Montreal as investigações criminais não tinham a seriedade que lhes emprestavam ali em Quebec, a capital, onde um Garreau d'Entremont se empenhava em fazer reinar a justiça do rei, com a ajuda de uma polícia inspirada nas reformas do tenente de polícia civil e criminal do reino, o Sr. de La Reynie.

Estavam ali nos postos avançados, numa região pioneira.

Cheio de ambições, que lhe haviam sido insufladas, e da necessidade de agir, o Sr. de Gorrestat mandou enforcar um iroquês chamado Magoniganbauit. Tratava-se de um índio batizado, mas acusavam-no de traição, pois seu nome significava "amigo do iroquês".

Esse tipo inédito de execução gelou de espanto todos os índios. Achavam indigno que, pelo estrangulamento, se impedisse um condenado de entoar seu canto de morte.

Retomando o projeto que concebera de suplantar em ações gloriosas seus predecessores; que haviam agido apenas como governadores, enquanto ele pretendia agir como vice-rei, aproveitou-se do pretexto de vingar a morfe ignominiosa da esposa para reclamar o início imediato de uma campanha de represálias até os confins do vale das Cinco Nações.

Estava seguro de. encontrar em Montreal, onde não faltavam mortos a vingar, seguidores entusiastas nesse projeto.

Quatro companhias, o mesmo número da milíci'a,~urh pouco menos de abenakis, algonquinos ou huronianos, se reuniram e dispuseram-se numa flotilha animada e cantante, subindo o Saint-Laurent para atingir o Forte Frontenac.

Convocou seu missionário, o Padre Raquet, que se dirigiu aos cantões com o capelão das tropas, o Padre de Guérande, e conseguiu persuadi-los a enviar uma delegação a Cataracuí para homenagear o novo governador.

As tribos, que lamentavam não ter seu encontro habitual de verão para festins e danças com o Sr. de Frontenac, deixaram-se tentar por um convite lisonjeiro, embora tardio, que lhes incitava a curiosidade. Numerosos capitães e grandes homens das Cinco Nações, acompanhados cada um de uma pequena escolta de guerreiros, tomaram o caminho do lago Ontário.

Ao término do banquete, quando estavam bem adormentados pela boa comida, mandou que as tropas os cercassem e lhes amarrassem uma corda ao pescoço e aos braços, também atados, prendendo-os a cepos que os carpinteiros tinham acrescentado aos preparativos da festa, sem que ninguém o notasse. Diante disso, "eles começaram a entoar a plenos pulmões seus cantos de mortos".

Quarenta e cinco chefes iroqueses foram assim capturados e enviados a Ville-Marie, depois a Quebec, sendo outros tantos embarcados imediatamente para servir nas galeras de Marselha.

Assim que foi avisado de que os quarenta delegados das Cinco Nações tinham sido mandados para as galeras da França, o Sr. de Gorrestat, sempre ébrio de raiva e de transportes interiores grandiosos, como que possuído, lançou suas tropas sobre os cantões iroqueses. Em Cataracuí, mandou-as desembarcar o mais próximo possível, isto é, na margem sudeste do lago Ontário. A escolha do território era infeliz.

Os onondagas comportavam-se, havia vários anos, como nação pacífica.

Haviam sempre resistido aos apelos do massacre geral dos franceses, incessante lançados por Utakê, um dos mais ardorosos chefes da tribo dos agniers.

A moderação não beneficiou os onondagas. Seiscentos regulares, trezentos milicianos e o mesmo número de aliados selvagens caíram sobre eles. Em poucos dias, duas de suas mais importantes aldeias foram incendiadas: Cassuets e Tuansho.

Seus guerreiros, numerosos mas dispersos pelas primeiras caçadas, não tiveram tempo de se reunir.

Nesse momento, o inverno abateu sua pesada pata sobre um outono ainda incipiente e que se anunciava brando, como se a Natureza se sentisse subitamente importunada pelas loucuras delirantes dos homens.

Soldados vindos da metrópole, vestidos com suas roupas de verão, despertavam sob a neve, ou não despertavam, congelados no sono.

Muitos foram esmagados pela queda de árvores que, ainda cobertas de folhas, sucumbiam sob o peso da insólita neve.

Foí um desastre. Sem raquetes, insuficientemente vestidos, os homens se afogavam nos montes de neve, nos pântanos invisíveis, nos lagos que em certos lugares não estavam suficientemente gelados, e pelos quais entravam, julgando estar atravessando planícies.

Cantor de Peyrac, que durante esse tempo subira o rio Utauais e chegava à baía Georgiana, com a intenção de alcançar pelo sul os cantões iroqueses, detido pelas neves, conseguira chegar à grande ilha de Manituline para invernar entre os odjibways.

A leste do Ontário, os exércitos bem ou mal reunidos e guiados pelos milicianos canadenses, eles mesmos incomodados pela chegada precoce do frio, mas conhecendo o país, fecharam-se nos fortes ou muralhas das missões que os sobreviventes conseguiram alcançar, os fortes dos lagos Champlain ou Saint-Sacrement, ao norte do rio Hudson, os fortes Saint-Louis e Sainte-Thérèse, Saint-Anne, na ilha de Lamothe, o Forte de Richelieu e até o Sorel.

O Sr. de Gorrestat permaneceu no Forte Frontenac, no lago Ontário.    

No início, esperava-se uma volta do bom tempo, um abrandamento, uma retomada normal da estação. Não foi o que se deu.

Até as margens do,Atlântico no sul e as do golfo-Saint-Laurent a leste, franjadas de um mar enegrecido e esverdeado, carregando pedaços de gelo, o deserto branco se estendia, recobrindo por longos meses espaços infinitos.

Num ponto dos quais, denominado Wapassu, uma mulher e três crianças pequenas, prisioneiras de um fortim soterrado, privadas de qualquer ajuda, iriam morrer de fome dali a algumas semanas.

O DESERTO BRANCO

CAPITULO X

Em Wapassu destruído, a espera angustiante de Angélica

Uma ansiedade, que ela não queria ver transformada em angústia, começava a invadi-la sorrateiramente.

Assim que abria os olhos, aquilo lhe saltava ao pescoço. Antes mesmo de ter percebido a volta de uma nova manhã, de ter reconhecido a luz da vida ao sair do sono e do esquecimento misericordioso, havia aquelas garras apertando-lhe o pescoço e, no peito, um peso que a impedia de respirar. Mal-estar que traía a percepção profunda que já possuía da situação, verdade imposta por um subconsciente mais lúcido que seu consciente. Fazia-o recuar logo, como se faz retroceder um cavalo empacado, à custa de injúrias e de palavras violentas, cujo vocabulário evocava com o Pátio dos Milagres. Entre elas, a mais convincente e expressiva começava por um m..., palavra que todo francês, de todo tipo e de ambos os sexos, parece trazer do berço, escondida num canto da memória e que permite exprimir, em circunstâncias muito penosas, o conjunto de seu desprazer. •

Confissão de má sorte, constatação de uma situação desastrosa, e mesmo perdida, protesto contra o destino adverso, e contra todos aqueles, inimigos, traidores, aos quais responsabilizamos, censura velada dirigida a nossa própria tolice e que sugere o movimento benfazejo de bater no peito ou de se xingar de imbecil, tudo estava contido naquela palavra, ao mesmo tempo curta e simbólica, no grito de derrota, de impotência, mas também de feroz reivindicação contra o Céu e os homens. Depois de tê-la repetido energicamente várias vezes, Angélica se sentia melhor.

Esse grito devia ser ouvido, compreendido por quem de direito.

Lançá-lo pelos cantos aliviava-a e lhe devolvia a coragem. O raciocínio recomeçava a funcionar, com a ajuda de seu temperamento, e ela se deixava levar a uma visão mais sadia e otímista das coisas.

Com efeito, de nada adiantava proferir insultos aos quatro ventos. Havia ainda o que comer por alguns dias, e, até lá, ter-se-ia encontrado uma solução... ou então a caravana chegaria. Tomava pé novamente com animação, endireitava-se, sacudia os cabelos, as roupas, como que para espantar-lhes os miasmas da desgraça. Algumas vezes, caía na gargalhada diante dos sorrisos e olhos arregalados, cheios de malícia e de surpresa escandalizada, de Carlos Henrique e também dos gémeos - aqueles pequenos "venenosos", como dizia Iolanda -, sempre atentos às palavras proibidas e que não tinham perdido nada de seu requisitório contra a injustiça e a "cachorrada" da existência.

-        Levantem-se, Pequenos Polegares! Está menos frio. Vamos tentar encontrar as armadilhas de Lymon White.

As crianças gostavam de sair quando o tempo o permitia, e ela percebeu que não era apenas porque podiam foliar ao ar livre, mas porque estavam felizes por reconhecer seu cenário familiar.

Para eles, era sempre Wapassu. Viu-se olhando de outro modo os arredores devastados, como se reconhecese, por trás de uma face machucada, um ser amado.

As crianças tinham razão. As felicidades vividas em Wapassu jamais poderiam ser apagadas, nem os atos praticados, as vitórias, as apostas...

Ele lhe dissera: "Eu lhe construirei um reino". Aquelenão era um reino. O termo parecia-lhe impróprio em terras da América. Era uma pequena república. Com as crianças, à noite, habituara-se a brincar de "a pequena república".

Perguntava-lhes:

-        Quem habita nossa pequena república?

E elas faziam um esforço para evocar os rostos das pessoas que haviam amado e que lhes faziam falta.

Carlos Henrique era o interprete dos gémeos quando ela não compreendia o que explicavam ou evocavam em sua animação.

-        Estão falando de Colin, estão falando do cachorro, estão falando de Granadina...

Estimulava-lhes a memória interessando-se pelas imagens que já haviam acumulado e que, por sua escolha, os definiam, os revelavam.

-        Lembram-se daquele? Daquela? Ele era gentil? Malvado, vocês dizem? O que ele fez que não o agradou, Raimundo Rogério?

Falava-lhes daqueles que marcavam sua lembrança ou daqueles de que não se lembravam, tomando um tom de lenda ao descrevê-los como heróis de romances, fazendo-lhes, em episódios, a narrativa das façanhas de seus amigos, os habitantes da pequena república.

Assemelhava-se a uma crónica, cujo desenrolar também lhe era benéfico, pois revia mais intensamente os rostos de cada um. Retratos aos quais os comentários das crianças, comentários que com frequência não eram destituídos de sabor, acrescentavam um toque suplementar e às vezes inesperado.

Essas conversas permitiam-lhes evadir-se, alçar vôo para evocações alegres; repousavam-nos da monotonia das horas escandi-das pelos instantes muito breves das refeições e pela espera dessa outra evasão abençoada, o sono. As crianças não estavam conscientes dessas duas obsessões que pouco a pouco se instavalam em suas vidas e as comandavam, sentindo-se nelas ainda a chama sempre pronta a se acender para brincar, saltar, correr ou dedicar-se a essa atividade especificamente infantil que os adultos chamam "fazer tolices", mas Angélica sabia que teria, grande dificuldade em conservar o rifrho de dias normais em sua vida de soterrados.

Lembrando um por um dos amigos, prometendo revê-los em breve, povoava seu refúgio, bem vazio para crianças habituadas, desde o nascimento, a viver em comunidade. Também lhe fazia bem evocar tantos anos felizes vividos ao lado de Joffrey e toda aquela vida fervilhante que'se estabelecera e se desenvolvera à sombra de sua proteção e de sua atividade incansável.

E, pouco a pouco, Angélicatomou consciência do papel que a na tragédia recente, cujo último ato - a morte de Loménie-Chambord - lhe pesava no coração.

"Eu os detive!''

Julgando apro.veitar-se de sua ausência, eles tinham vindo, como da primeira vez em Katarunk, e a encontraram.

Se não estivesse ali, ou se tivesse capitulado, teriam prosseguido para o sul, ao longo-do Kennebec, e teriam capturado, sem dar um só tiro, sucessivamente, as minas e postos disseminados, pertencentes a Joffrey de Peyrac, e depois Gouldsboro. Quanto a Gouldsboro, talvez não deixasse de haver troca de tiros, mas naquelas condições, com ou sem a ajuda de Saint-Castine, a bandeira do rei da França teria substituído, no torreão do forte, a do escudo prateado do fidalgo independente.

Situação que, uma vez ratificada, seria mais espinhosa de acertar do que a atual.

Wapassu incendiara-se, mas os vingadores do Padre d'Orgeval limitaram-se a isso. Retornaram na direção do norte.

"Eu os detive!"

Fazia-se essa justiça para manter a coragem.

Na verdade, dessa vez, apesar das aparências, não tinham, ela e Joffrey, deixado que lhes passassem à frente.

A medida que se avança em idade e em experiência, o que se exige não é permanecer continuamente alerta, o que seria insuportável, mas adquirir esse sexto sentido que permite chegar a tempo em socorro dos pontos fracos da fortaleza. Às vezes, ignorando que ela já se encontra ameaçada.

Tanto um como outro, por viverem unidos, estavam formados nesse jogo de defesa inconsciente, sem esforço, quase sem o saber.

Seus instintos tornaram-se únicos. Quando pensava nisso, via claramente que a decisão dele de acompanhar Frontenac, e a dela, de voltar a Wapassu, apesar dos debates e das separações que isso custara, impusera-se naturalmente, porque era isso o que tinha de ser feito.

Tinham recebido a graça de chegar a tempo nos pontos sensíveis visados pelo inimigo.

O que não queria dizer que se salvaria tudo sem perdas e danos, como se costuma dizer. Mas fora a melhor estratégia. Isto é, a que permitira evitar o pior.

"O pior foi evitado", repetia-se, lançando um olhar de desafio às lonjuras geladas que, a cada dia, a cada hora, tomavam uma tonalidade ou uma nuança diferente. "É uma lei, uma lei lógica da Natureza. Elas nos favorecerá... Chegamos a tempo às seteiras, diante das quais se apresentava o inimigo, e a tempo pegamos em armas... Teria desencadeado em vão sua crueldade cega?...

De pé no topo da colina, falava sozinha, voltando-se para um lado e para outro. Com o correr dos dias, parou de erguer a voz e de mover os lábios, pois isso era mais um desgaste de energias. Continuava, porém, a discorrer com veemência com seu único interlocutor, a paisagem, numa mistura de sensações interiores que oscilavam do medo à alegria mais exaltada, da admiração e confiança ao receio e rancor, de uma certeza de domínio sobre os elementos ao acabrunhamento, à renúncia diante de sua força cega.

Alternadamente, via através delas a imobilidade da Natureza, sua inércia petrificada, a crueldade do destino dos homens e a promessa da grandeza desse destino.

Ela era a Humanidade tremula às portas do Éden. Estas, pesadas e guardadas pelo anjo de espada chamejante, fecharam-se às suas costas. Diante dela, frio, fome, sofrimento, suor do pão de cada dia... Mas também... a Beleza, o segredo dos tesouros enterrados, o segredo das consolações, para essa aventura da Vida que se anunciava e que seria preciso buscar.

Por esse motivo fazia essas surtidas quase todos os dias, como se fosse a um encontro de afrior, ao baile, a um casamento, a uma festa.

Misturava-se a esse prazer um sentimento de espera, a certez -de que dessa vez, naquele dia, alguma coisa ia mover-se ao longe a aproximação da caravana, a chegada de socorro.

Sabia também que, mesmo que o horizonte permanecesse mudo, um viático lhe seria dado, uma flor de esperança.

Através daquele espetáculo grandioso passava a corrente de uma confiança que fortificava todo o seu ser, tornando-lhes perceptíveis as verdades salvadoras. "Através de mim, que você contemple o sorriso de Deus!..."

De pé na plataforma, ou à borda da trincheira, dava alguns passos como que para se colocar melhor no centra de uma solidão em que sua presença única de ser humano, frágil, mas com esse minúsculo e vermelho coração vivo que batia dentro dela, esse sangue vermelho e quente que circulava em suas veias, tomava um significado decisivo.

Aquele dia, aquela madrugada, aquela orgia de cores, linhas, múltiplas formas, era como uma ópera.

CAPITULO XI

Imenso abismo de gelo - Um ténue sinal de fumaça

Naquela manhã, a leste, a cortina da noite abriu-se sobre duas nuvens cor de areia, alongadas como dunas sépia-escuras orladas de ouro. Estagnavam imóveis por detrás do monte Kathadin. Suas metamorfoses coloridas anunciavam o aparecimento do astro do dia.

Naves do espaço, carregadas de ameaças ou, ao contrário, das consolações do esplendor.

Como elas, Angélica, de pé na pequena protuberância de neve gelada, esperava o sol.

Levantava-se muito cedo e seu primeiro gesto era empunhar o caldeirão, colocado sobre as brasas, e jogar água quente nos gonzos de couro da porta para desprendê-la. Se um belo dia as almofadas de madeira, ferragens, gonzos, se revestissem de gelo, não teria mais forças para mover aquela porta pesada e abrir a passagem para fora.        

Se tivesse nevado durante â noite, ela se reaquecia e se punha novamente em ação, retirando a neve com a pá e desobstruindo a beirada da soleira e os degraus talhados no gelo, que permitiam sair da trincheira. Esta se tornava mais profunda a cada inverno. Isso constituíra um problema quando invernavam no fortim de Wapassu. No início, era apenas um abrigo para quatro mineiros, edificado contra o talude, com acesso às galerias de minas, um verdadeiro covil. Já meio enfiado sob a terra, a neve só podia enterrá-lo ainda mais, pois as ampliações e reformas não tinham sido feitas na entrada principal. Tinha, pois, todas as manhãs, que retinar a neve, sob pena de ver aquela abertura logo condenada.

Depois que saía, hà noite mal iluminada, Angélica sentia o vento, sondava o frio e, se nem um nem outro se mostravam muito agressivos,-içava-se para fora do buraco e dirigia-se, a alguns passos dali, a um leve desvio", e onde podia observar o horizonte, ao alvorecer.

Quando não se sentia com disposição para os trabalhos de desobstrução, subia à plataforma por um alçapão interno. Dali também se podia abarcar com o olhar o horizonte, mas de uma maneira menos minuciosa que do outeiro, pois o talude em que estava encostada a casa ocultava uma parte do lago de Wapassu, chamado o Lago de Prata. Este, recoberto de uma leve camada de ne^e naquele momento, formava a seus pés uma grande extensão branca.

Nos dias de muito frio, na fase mais difícil da estação, as horas que.precedem o alvorecer são talvez as menos sofridas. Se a neve e as rajadas de vento não sopram, parece que o gelo afrouxa seu abraço, marcando uma pausa clemente.

Angélica gostava daquela hora, que parecia prometer o perdão.

Não estava mais assustada por estar sozinha ali, nas trevas infinitas do céu e da terra misturadas, e onde nenhuma luz penetrava. Perdera um pouco a noção das datas e, quando a luz do dia começava a se expandir, desvelando aquele deserto branco mudo, surdo e congelado, não queria reconhecer que se havia atingido aquele momento do ano que, nos outros invernos, fazia com que as pessoas de Wapassu pensassem com seus botões, ou dissessem àqueles que se impressionavam com isso: "O inverno se fechou".

De todo modo, não vinha ali para meditar sobre sua solidão. Havia uma vida, um movimento ao qual era sensível naquele instante grandioso, o mesmo e diferente a cada nascer do sol.

Era a vida. Mexia-se. Falava. Um teatro ordenava-se para ela em todos os pontos do horizonte. A imagem não era idêntica.

Era às vezes o único momento do dia em que podia perceber o sol. Através de uma bruma translúcida, ele se levantava, como um enorme escudo rosa, depois desaparecia, apanhado por uma pesada cortina de nuvens.

Mas outras vezes o espetáculo se desenrolava com magnificência, instante após instante, até que, estando todas as cortinas erguidas, todos os instrumentos da' orquestra afinados, o sol consentia em prosseguir seu caminho para um mundo purificado e, por aquele dia, transmutado em branco e azul.

Agora, as duas nuvens, por trás do monte mais elevado, pareciam duas baleias escuras escoltadas por baleotes, nuvenzinhas que haviam surgido, não se sabia como, do éter azul. Seus dorsos eram escuros, de um cinza pesado de tormenta, e os ventres, de um branco cintilante. Suas formas se alongaram, navegando, tornando-se, ao se estirar e se dividir, ilhas, praias, continentes com praias cor de mel, à beira de uma água azul levemente verde. Daquele jade puro ia surgir o astro dourado.

A oeste, a luz que subia já enganchava pontas de rubis, multiplicava os punhados de jóias lançadas ao léu, ametistas, pérolas, diamantes, através da massa escura e tormentosa das montanhas adormecidas.

Nos vales indistintos, as neblinas se destacavam contra um cinza espesso, distendendo-se, numa preguiçosa melancolia, acima dos rios e dos riachos, encobrindo-lhes os meandros.

O lençol estendia-se de um lugar a outro, mas sem pressa. Seria um dia em que o sol teria por mais tempo direito de cidadania sobre o mundo, direito usurpado com frequência pelas nuvens invernais. Ao meio-dia, quando o sol estivesse a pino, poderia deixar as crianças saírem. E como todas as manhas, no momento de deixar a plataforma ou -o belvedere, hesitava,, não se decidia a voltar para dentro; retida pelo encanto, experimentava uma frustração deprimente...

Para se decidir a entrar, era preciso que o frio começasse a penetrar em seus ossos, que não sentisse mais nem os pés, nem as mãos entorpecidas, e certa vez teve medo de que o nariz lhe tivesse congelado, como acontecera com Eufrosina Delpeh, a comadre de Quebec, que, a fim de espionar os maus passos da Sra. de Castel-Morgeat, incorrera nesse dano. Voltando para o calor, espreitou, no espelho, com inquietação, seu apêndice nasal, prometendo a si mesma que seria mais prudente no futuro. Se um dia ou outro tivesse de reaparecer em Versalhes, não podia fazê-lo marcada por cicatrizes indeléveis de suas viagens no Novo Mundo. As cicatrizes são gloriosas apenas para os homens.

E no entanto, aquela manhã, alguma coisa a detinha. Várias vezes voltou da porta a seu ponto de observação, com a impressão confusa de que um detalhe lhe escapara. Subitamente, com o coração batendo, uma interrogação se esclareceu. -

Em meio àquelas brumas errantes e longínquas, àquelas névoas exaltadas dos pântanos endurecidos e dos abismos fechados sobre quedas-d'água geladas, seu olhar detivera-se numa mancha ao longe, alternadamente esbranquiçada ou transparente, de formas cambiantes, e que se arredondava por vezes, como que impelida por um sopro do vento, ou, ao contrário, estirava-se verticalmente no ar puro, subitamente calmo, num filete branco. Menos que nada: uma mancha arredondada, depois um filete branco alongando-se, mas que não mudava de lugar.

A partir do momento em que reparou nele novamente, não lhe despregou mais os olhos. Prendia até a respiração para poder observá-lo melhor. Estava infinitamente longe e não tinha mais consistência que um sonho.

Mas não podia confundir-se nem com as briímas acima dos rios, nem com neblina.

Era fumaça.

Voltou para casa num transporte de alegria, mas não querendo acreditar naquele frágil indício.

Seria fumaça?

Muitas vezes durante o dia voltou a sair, a fim de espreitar o sinal, e ele continuava no mesmo lugar.

- Você fica saindo o tempo todo! - queixaram-se as crianças.

Finalmente, não teve mais dúvida: era fumaça. E, atrás da fumaça, havia homens. Fossem eles quem fossem, representavam a salvação.

Ao cair da noite, deu mais uma saída. Voltada para a direção de onde vinham os sinais de fumaça, não conseguiu distinguir nenhum ponto vermelho que, na sombra da noite, teria revelado a localização de uma fogueira.

"Por isso mesmo!", tranqúilizou-se. "Eles deixaram o lugar e apagaram o fogo porque continuam 'a caminhar para nós."

Ficou observando durante muito tempo; quando, diante da obscuridade crescente, decidiu afinal ir para dentro do fortim, estava tão congelada que mal conseguia mover-se.

Apesar da decepção por não ter podido distinguir nenhum ponto vermelho, continuava a ver naqueles diferentes indícios novas razões para esperar.

"Eles" vinham, "eles" subiam em sua direção. Aqueles fogos eram de uma parada, antes da última etapa que os traria a Wa-passu, naquela mesma noite.

Algumas horas mais e os homens da mina do Sault-Barré, os da mina do Croissant, talvez os de Gouldsboro, alertados, desabariam na trincheira de neve e bateriam na porta do seu retiro, como daquela primeira vez em que, sob trombas-d'água, tinham se refugiado, após o episódio de Katarunk, e seria um nunca acabar de congratulações: 0'Connell, Lymon White, Colin Paturel...

Acendeu o fogo na sala grande. Era o máximo que podia fazer para preparar-lhes uma recepção, fora a aguardente e o vinho...

Para fazer as vezes de farol, subiu para fincar na neve uma grande tocha.

Preparou os colchões e cobertas, e esperou.

Ficou acordada a noite toda, mantendo o fogo aceso, espreitando cada estalo no exterior, julgando ouvir a todo momento ruídos de passos ou de vozes no sopro do vento, e precipitando-se ao seu encontro à soleira~'da porta na noite glacial.

Mas pela manhã ninguém tinha aparecido, e o grande silêncio continuava.

Entretanto, quando subiu à plataforma, a fumaça ao longe permanecia lá, no mesmo lugar, parecendo divertir-se com sua espera, desdobrando-se de modos diversos, em pequenos topetes ou penachos bem visíveis, tfepois fundindo-se até apagar-se completamente, para tornar a aparecer. Estava sempre lá como um sopro humano falando de vida,Tima respiração humana à superfície da terra.

Daí em diante decidiu ir até lá para ver. Pelo menos, tentaria avançar suficientemente ao encontro do fenómeno para formar uma opinião. Se havia pessoas lá, elas representavam socorro, possibilidade que não podia desprezar. A ideia de deixar as três crianças sozinhas, nem que fosse por algumas horas, preocupou-a. Eram tão pequenas! Fez algumas recomendações a Carlos Henrique: entre outras, não se aproximar do fogo; acendera-o com pedaços de turfa, que duravam bastante tempo e não produziam chamas altas.

— E se o fogo apagar?

— Irão para a cama, sob as cobertas, para se aquecer. Não demorarei muito. Voltarei antes do anoitecer.

Enfiou os calções de Lymon White, seu capote de lã grossa, puxou o capuz sobre a-cabeça, cobrindo-o, além disso, com um de seus gorros de pele, tão apreciados pelos habitantes de Wapassu.

Escolheu uma raquete bem leve, pegou uma arma de pederneira, pendurou à cintura um chifre para pólvora e saquinhos com balas.

As crianças seguiram-na até a porta, prometendo comportar-se.

"E se me acontecer alguma coisa? Um acidente!", pensou, atormentada. "O que seria deles?"

Recordou-se de sua angústia, na época de suas cavalgadas no Poitou, naquele dia em que, depois de deixar Honorina, um bebe de dezoito meses de vida, amarrada ao pé de uma árvore, a fim de correr em socorro daqueles homens atacados, recebera um golpe na batalha, perdera a consciência e dera por si na prisão, desconhecendo o que acontecera com a criança, sozinha na floresta.

Sem saber o que ia encontrar ao final de sua expedição, voltou ao quarto e escreveu numa folha de papel: "Há três crianças pequenas sozinhas no fortim de Wapassu. Socorrei-as, pelo amor de Deus", e enfiou-a no bolso do capote. Se fosse ferida, se... Era preciso prever tudo e agir "como se..."

Mas de fato, estava persuadida de que só se lançava a essa empresa para dissipar uma dúvida insuportável: era ou não fumaça,

aquilo?... O que mais receava era estar tendo uma miragem.

Encontrou as crianças brincando na sala, onde tinham mais espaço que no quarto.

— Podem brincar um pouco aqui, mais sair, não.

— Nem para ir até o lago deslizar um pouco? - perguntou Carlos Henrique, decepcionado.

— Deus do céu! Não! Não podem sair, estou dizendo.

— Nem para fazer bolas de neve?

— Nem para fazer bolas de neve - repetiu. - Por favor, meu homenzinho, você tem de se comportar como um irmão mais velho, como Tomás. Você se lembra de quando ele lhe dizia: "Respeite as instruções". Minha instrução é: "Não saia".

Quanto aos gémeos, só lhe restava uma coisa: obedecer a Carlos Henrique.

E repetiu-lhe ainda uma vez tudo o que ele devia fazer e não fazer, dirigiu uma última súplica a seus anjos da guarda e saiu para a planície.

Avançava sem poder calcular a distância que teria de percorrer. Não sabia se o ponto que visava,e do qual não tirava os olhos, estava próximo ou se situava a horas, ou dias, de caminhada.

Aquela fumaça ao longe era um sopro fino, uma mancha ínfima que se diluía, por momentos; perdia-a de vista, depois percebia-a novamente, sem estar certa de não se iludir. Dir-se-ia que era um sopro de agonizante, cuja interrupção significaria para ela, na verdade, quase que a morte.

Seria, de qualquer modo, a perda de uma esperança louca.

Felizmente, de passo em passo, a fumaça tornou-se mais precisa a seus olhos, lacrimejantes de frio, fatigados de perscrutar a luz para não perder de vista aquele traço azulado, que, finalmente, começou a se desdobrar mais nítido e mais próximo sobre uma cortina de árvores negras.

A margem da floresta, homens tinham acendido uma fogueira. Não os via, mas, doravante, sua presença era indubitável.

Outros pensamentos a assaltaram. Homens! Amigos? Inimigos?

Homens que, vendo-a aproximar-se, uma forma indistinta e desajeitada, mexendo-se na imensidão branca, crendo talvez tratar-se de um animal, poderiam atirar à queima-roupa, como numa caça qualquer.

Nesse momento e inesperadamente, um pedaço de bruma amarelada, bastante espessa, arrastou-se para ela pela-esquerda e a envolveu.

"Prefiro isso!", pensou.

O odor da fumaça a guiaria, pois agora podia percebê-la pelo olfato. Era embriagador. E apesar do perigo possível, Angélica estremecia de impaciência.

Subitamente, sob suas raquetes, o solo cedeu.

Avançando numa paisagem cujo revelo se esbatia devido à neblina, viu tarde demais a beira de uma falha profunda. Só teve tempo de se agarrar a uma pequena árvore no rebordo.

CAPÍTULO XII

O cunhado de Passaconaway - Insólita caridade no wigwam abandonado

Angélica inclinou-se por cima da ravina. Era daquela falha que a fumaça se erguia em volutas preguiçosas, estendendo-se como um lençol e misturando-se à pesada bruma.

Nesse momento, o ramo ao qual se agarrara, e que estava coberto de gelo, quebrou como vidro e ela desabou no buraco, batendo nos rochedos mas sem se machucar, devido à espessura da neve que arrastava consigo.

Viu-se no fundo, quase enterrada pela avalancha, e teve muita dificuldade em livrar-se dela, encontrar a arma, que lhe escapara das mãos, e uma das luvas, que lhe fora arrancada. A neve introduzira-se em suas mangas, no pescoço, no capuz.

Com movimentos de nadadora, conseguiu atingir um terreno mais firme, encontrando-se junto a um riachinho semigelado.

Diante dela erguiam-se as colunatas de gelo de uma queda-d'água, um "salto", como diziam ali. Ao pé de uma cascata, no momento congelada e muda, estagnava-se a fumaça, emanando dos do-mos submersos de dois wigWatns índios, desses abrigos que os nómades armam apressadamente com varinhas flexíveis, sobre as quais jogam pedaços de casca de olmos ou de carvalhos. Através dos interstícios das cascas e sem mesmo derreter completamente a neve, filtrava-se a fumaça, traindo a presença de vida.

Ao redor, e apesar da queda da neve fresca da noite anterior, distinguiam-se sinais de um acampamento. Percebeu um trenó e um arreio que emergiam e julgou ter ouvido rosnar um cachorro no interior de um dos dois cogumelos recobertos de branco.

Com o dedo no gatilho, ficou à espreita. Ficara tão privada de qualquer presença humana naquelas longas semanas, provavelmente meses, que hesitava e temia o contato. Amigos? Inimigos? índios? Ou exploradores-de bosques canadenses?...

A placa de casca que servia de porta afastou-se. Um rosto de mulher índia sob sua tiara de contas mostrou-se a meio, depois apagou-se para dar lugar ao do seu amo e senhor, um índio, o qual, para sair do covil, apontou à frente um alto birote oleoso, ornado de "facões" negros feitos de asas de corvo. Soerguendo a cabeça, observou a intrusa, postada a alguns passos atrás dos arbustos.

Pelo perfil arqueado, o queixo curto, os olhinhos faiscantes, ela supôs tratar-se de um abenaki do sul. Assemelhava-se a Pik-sarett. A visão do mosquete não parecia impressioná-lo.

Aventurando-se, chamou-o de longe, saudando-o em sua língua. Ele respondeu em francês.

-        Eu o saúdo. Sou Pengashi, da Federação, dos Wapanogs. De onde saiu, criança?

Por sua silhueta, devia tomá-la por um jovem branco. Ela esboçou um gesto para o alto da ravina.

-        De Wapassu, lá longe.

Ele franzia os olhos para vê-la melhor.

-        Eu pensava que estivessem todos mortos lá. Vi de longe as ruínas do forte e das casas...

Deu-se então a conhecer, e ele pareceu agradavelmente surpreso. Ela lhe disse que estava sozinha em Wapassu com três crianças.

-        Aproxime-se! Entre! - intimou-lhe, afastando-se para abrir-lhe passagem pela estreita entrada.

Ela fincou as raquetes diante da soleira, ao lado da cabana, e deslizou para o interior do wigwam. Uma vez fechada a porta, isto é, a placa de casca de árvore recolocada contra a abertura, aquele abrigo estreito, onde só se podia estar sentado, ficou agradável. Estavam imersos numa espessa fumaça, mas Angélica foi sensível sobretudo ao cheiro de mingau, que devia ter sido cozido numa panela colocada sobre as brasas, e do qual duas ou três crianças acabavam de juntar os restos em escudelas de madeira.

Eram certamente pessoas muito pobres. Tinha escrúpulos em pedir-lhes comida. Pengashi contava que o inverno os surpreendera quando não havia sequer concluído o comércio de verão nas costas de New Hampshire. Mais que isso, não tivera tempo de caçar e de defumar carne e peixe suficientes para as provisões de inverno.

Desprovido de munições, tendo que abandonar suas peles num esconderijo ao pé de uma árvore, tornara a subir para as montanhas do interior para reunir-se à gente de sua tribo; estavam, porém, quase na mesma situação que ele, e todo mundo se dispersara, a fim de arriscar sua sobrevivência, cada um por seu lado. Seu irmão mais velho encorajara-o a dirigir-se ao norte, a fim de pensar o inverno sob a proteção dos brancos de Wapassu. Mas, após uma longa e penosa viagem, cruzou com alguns grupos dispersos de abenakis e algonquinos, que perambulavam, desorientados, e que o avisaram de que o Forte do Homem do Trovão estava destruído, não havendo vivalma ali.

No entanto, não querendo acreditar naquilo, ele prosseguiu, e percebeu de longe as ruínas enegrecidas; resignou-se, mas, como estava quase sem víveres, antes de partir em outra direção procurou um lugar propício para acampar, a tempo de preparar armadilhas. Esperava poder apanhar alguma caça, muito rara devido ao inverno precoce.

Tinham erguido suas cabanas havia três dias. No fundo de sua ravina, preocupado apenas com as armadilhas e a caça, antes de pôr-se novamente a caminho, nâo.pensara em examinar mais de perto o sítio de Wapassu e procurar ali sinais de vida, o que explicava que não tivesse notado a fumaça do fortim.

Sua intenção era continuar para o norte e pôr a família ao abrigo das missões no Forte de -Richelieu ou no Forte Sainte-Anne.

Enquanto falava, fumava seu cachimbo em pequenas baforadas e conservava uma expressão satisfeita, abanando a cabeça com o ar entendido de alguém que tem convicções próprias e que se felicita por ter conduzido tão bem os negócios.

- O Forte de Richelieu? O Forte Sainte-Anne? Mas fica muito longe - observou-lhe Angélica. - Por que não tentam voltar Pela Chaudiéré em direção a Quebec? Teriam de percorrer uma distância menor.

Ele sacudiu a cabeça. Ouvira dizer que o exército do novo governador invernava no Forte de Richelieu e nos dos lagos Saint-Sacrement e Champlain, e que as barcas haviam passado todo o outono levando um abastecimento monumental de Montreal para lá.

Não apenas ficaria com os seus, protegido da fome, mas também estaria no local quando chegasse a primavera, para participar da grande campanha guerreira que se preparava contra as Cinco Nações iroqueses.

De repente perguntou o nome das crianças que estavam com ela no fortim, e quando ela respondeu, manifestou novamente uma grande satisfação.

-        Carlos Henrique! Carlos Henrique! - repetiu várias vezes.

Depois, inclinando-se para ela, com um ar malicioso, confiou-lhe:

-        Sou o cunhado de Jenny Manigault.

Em resumo, ele era o irmão de Passaconaway, o chefe dos pemacooks, que raptara Jenny, e com quem ela fora se encontrar depois de sua fuga, confiando seu filho Carlos Henrique a Angélica.

Pengashi achava que seu irmão mais velho agira mal raptando uma francesa.

-        Nós dissemos a ele, no começo, nós, seus parentes, amigos. "Meu irmão, tome cuidado", sempre lhe dizíamos. "Você raptou uma francesa, e nossos aliados brancos do Canadá vão criar problemas conosco." Então, ele foi se esconder nas montanhas Verdes, mas, depois, avisou-me que soubera que sua cativa francesa era da mesma religião que os ingleses, daqueles que tinham crucificado Nosso Senhor Jesus Cristo, e que, por essa razão, seus compatriotas franceses a considerariam como prisioneira, se lhes propusesse devolvê-la. E, longe de resgatá-la, os franceses a entregariam a outros abenakis como butim. Compreendeu então que ninguém viria tomá-la dele, se soubesse precaver-se contra uns e outros.

A última vez que Pengashi vira o irmão, o chefe Passaconaway, ele se preparava para "descabanar" com sua família, comnosta de Jenny e da criança que tivera com ela, uma menininha, sua mãe e um jovem primo, que perdera toda a família na guerra do Rei Filipe.

O inverno anunciava-se muito rigoroso nas montanhas Verdes. Quis se aproximar do litoral, preocupando-se em não atrair a suspeita dos colonos ingleses que avançavam, cada vez mais numerosos, em direção às montanhas para deslindar a floresta, e que viam por toda parte, assim que a pluma de um selvagem despontava, contingentes guerreiros do norte canadense, franceses e abenakis, vindos para escalpelá-los.

Passaconaway não era batizado como Pengashi, que era cristão, assim como sua família, e até seus pais. Passaconaway desconfiava dos homens brancos que podiam vir tomar-lhe Jenny; dos franceses, porque ela era de sua raça, e dos ingleses, porque era de sua religião. Ficaria feliz por poder levar a Jenny notícias do filho.

-        Se você voltar para o norte, não terá tempo de rever seu irmão nem de transmitir a Jenny notícias de seu filho - disse ela.

Mas essa noção de tempo e de distância não impressionava o índio. De qualquer modo, a campanha de guerra contra os iro-queses os conduziria para perto das regiões onde se escondiam Passaconaway e sua pequena tribo.

Depois que os iroqueses fossem aniquilados, Pengashi poderia seguir um contingente decidido a recolher as cabeleiras dos ingleses entre os habitantes das fronteiras, o que o colocaria nos limites da hinterlândia do New Hampshire e das montanhas Verdes. Poderia subtrair alguns dias aos combates para encontrar os seus e visitá-los.

No wigwam de Pengashi havia duas mulheres. A' mais nova dava de comer a um bebe amarrado a uma pequena prancheta. Era sua filha mais velha, cujo marido morrera esmagado por uma arvore, durante seu êxodo.

-        As neves chegaram muito cedo. As árvores não tinham ainda perdido as folhas. Com o peso, muitas delas se quebraram.

A outra, a esposa, observava Angélica com um olhar pouco ameno. Apesar da estreiteza da cabana, resolvera besuntar os cabelos com gordura de urso líquido. As índias tinham sempre muito cuidado com os cabelos. Aquela, a despeito de sua situação

precária, não derrogava seus hábitos. Perguntou a Angélica se não tinha um pente para dar-lhe, de chifre ou de osso, pois o seu, de madeira, se quebrara.        

Pengashi mandou-a calar-se, com mau humor, e Angélica compreendeu que lhe censurava desperdiçar banha de urso quando suas provisões estavam esgotadas.

Sua filha mais velha, a jovem viúva, por sua vez, indagou se a mulher branca podia fornecer-lhe uma faixa para seu-recém-nascido. Acusava também o inverno. Não pudera fazer uma provisão daquela penugem de caniço ou de madeira de pruche socada com que se revestiam as coxas dos bebes, a fim de não sujar as peles. Mais uma vez, o índio mandou a filha calar-se, lembrando que as mulheres tinham usado o pó da madeira de pruche para desengordurar os cabelos, antes de lavá-los, só para tornar a engordurá-los depois. Seus cabelos! Sempre seus cabelos! E não tinham o que comer!

Mas logo depois pedia a Angélica, para ele, álcool e também uma coberta, pois não pudera ir à feira buscar nos navios ou no posto do holandês as mercadorias de que precisavam.

Angélica lamentou não ter trazido álcool. Pusera-se a caminho tão persuadida de estar indo em direção a uma miragem que não pensara em se munir, pelo menos, de um pouco daquele produto de troca. Recomeçou a explicar sua situação. Estava sozinha naquele fortim com as três crianças, entre as quais Carlos Henrique. Tinham lenha para se aquecer, mas as reservas de alimentos estavam se esgotando. Esperava socorro, que um companheiro sobrevivente fora buscar, mas até agora não chegara ninguém. E a neve recobrira completamente o lugar das armadilhas.

Enquanto falava, não podia deixar de olhar cobiçosamente para a tigela com gordura de urso e um resto de mingau de milho; depois de muitas encenações, as crianças acabaram deixando-o para o cachorro, que esperara pacientemente sua decisão, lançando-se depois avidamente àquela suprema bolinha de pasta.

Com a perspicácia de seus congéneres, Pengashi, sempre fumando, deve ter compreendido a linguagem muda de seus olhares. Acabou de fumar seu cachimbo e, dirigindo-lhe novamente uma de suas piscadelas de conivência, pediu-lhe que o acompanhasse ao lado de fora, dirigiu-se ao segundo wigwam, fazendo-lhe m sinal para que entrasse com ele. Dois velhos encontravam-se ali- um homem e uma mulher de tranças grisalhas, sentados com muita dignidade no fundo da cabana. Coberto com um gorro de pele, o homem fumava seu cachimbinho de pedra vermelha e a intervalos, estendia-o à velha esposa, para que desse algumas baforadas. Uma menina de cerca de doze anos, agachada ao lado do fogão, raspava cuidadosamente uma pele, da qual arrancava os últimos fiapos de carne e de nervos, por menores que fossem, para jogá-los numa panela colocada sobre os tições, no centro da cabana.

Angélica e seu anfitrião tomaram seus lugares. Pengashi explicava aos pais quem era ela e as razões de sua vinda. Eles escutavam, sem parar de fumar e sem que um músculo de seu rosto se mexesse; podia-se perguntar se tinham ouvido alguma coisa do que lhes dizia o filho. Este não se aborrecia com sua indiferença, dando-se ao trabalho de respeitar as regras de cortesia devidas aos ancestrais.

Observando a pequena índia curvada sobre sua tarefa, Angélica surpreendeu o olhar de curiosidade que ela lhe lançava e viu uma pupila clara numa carinha magra escurecida pelo sol e pela gordura, mas que deixava vislumbrar manchas de sardas. Apesar da gordura que os untava, os cabelos trançados, presos na testa por uma tira bordada com miçangas coloridas e cerdas de porco-espinho, tinham um reflexo dourado. Mais uma pequena cativa inglesa.

- Meu irmão era tão louco por sua cativa branca! Deu-me vontade de ter uma também em meu wigwam. Há alguns anos, com um grupo aliado, seguimos a campanha do Toga Negra, que desceu ate as proximidades de Portsmouth. Raptei esta menina. Ela era tão pequena e tão loura! Fui eu quem lhe calçou os primeiros mocassinos. Arranjei um meio de cortá-los e costurá-los, apesar da corrida na floresta, pois .os yennglis nos perseguiam e tivemos de matar quase todos os nossos outros cativos, que não podiam manter a velocidade. Coloquei-lhe esses mocassinos nos pés. E depois, acabou. Ela já não era uma criança de yenngli. Daqui a pouco estará suficientemente grande para tornar-se minha esposa. È por isso que Ganita não gosta dela. Então dei-a como criada para meus pais.  

Angélica ouvia-o, menos atenta a suas palavras que aos gestos.

Ele penetrara até o fundo do wigwam e soerguera uma placa de casca de árvore que formava a parede, tirando um volumoso pacote coberto de gelo, envolto em peles. Depois de fechar cuidadosamente a abertura, ordenou com voz rude à pequena criada que atiçasse o fogo. Esperou que o calor voltasse ao interior da cabana para desenrolar as peles, endurecidas pelo gelo. Com certo orgulho, mostrou um grande bloco gelado de uma matéria avermelhada.

-        Fiz uma boa caça anteontem. Um filhote de gamo. Mas não contei tudo a minha mulher Ganita. Ela logo ia querer fazer uma patuscada. Ela não tem miolos. Meus pais não dirão nada. Eles aprovam que eu seja parcimonioso. O inverno é um inimigo traiçoeiro e cruel, e nunca é demais precaver-se.

Pegou num canto uma velha lâmina de espada bem afiada e, com três ou quatro golpes decisivos, cortou um grande retâgulo de carne, enrolando-o num pedaço de pele, também cuidadosamente cortado. Enquanto ordenava à pequena criada que costurasse as bordas do embrulho, o que ela fez com rapidez e habilidade, puxava, de um outro buraco, do lado de fora, um saco, do qual retirou duas raízes de rábano e uma colherona encerrada numa bainha de couro corrediça. Abrindo-a, contou na concha da mão, com tanto cuidado quanto um avarento com suas moedas, parcelas pretas ou amarronzadas de um produto leve, cujo valor parecia apreciar tanto quanto o ouro.

Hesitava, acrescentava três ou quatro pastilhas de suplemento, hesitava novamente, sacudia um pouco o saco, depois parecia reconsiderar e arrepender-se de seu gesto, e se corrigia, derramando mais um pouco. Quando a mão ficou cheia, pediu que Angélica estendesse as suas para recolher a preciosa provisão.

-        Deixa esses frutinhos dos bosques incharem dentro de um caldo. Eles defendem do escorbuto.

Ela se confundiu em agradecimentos.

— Eu sou o cunhado de Jenny Manigault - respondeu, como o parentesco o constrangesse a certas obrigações para com ela. --- Não teria com você algum objeto que eu pudesse entregar-lhe uando tornar a vê-la? Meu irmão mais velho acha que sou mentiroso. Assim ele poderá ver que falo a verdade.

Angélica procurou alguma coisa que pudesse deixar com o selvagem e que testemunharia a Jenny que ele a encontrara. Para Tenny, uma palavra escrita. Não tinha papel, nem pena, nem tinta consigo, e não usava nenhuma jóia. Exceto uma aliança muito larga em seu dedo emagrecido. Acabou tirando-a meio maquinalmente, entregando-a a Pengashi e explicando-lhe que Jenny reconheceria aquele anel, que vira em sua mão.

-        Pode dar-me também seu fuzil? - pediu o abenaki, após guardar a aliança na sacolinha suspensa ao pescoço que todo índio usa no peito. - Tenho direito a um fuzil, pois sou batizado.

Essa generosidade que demonstrou e que o deixou satisfeito não lhe custou caro. Com todo o arsenal armazenado nos flancos do fortim de Wapassu, podia dar-se a esse luxo.

Pengashi rejubilou-se.

-        Tenho também um presentinho que Jenny me deu para seu filho, mas não consigo encontrá-lo:. Aposto que foi essa danada da Ganita que o furtou de mim. Mas vou fazê-la confessar. Volta daqui a três dias. Quem sabe! Com o fuzil, se o Grande Espí

rito continuar a ser bom comigo, talvez eu consiga um pouco de carne para partilhar com você.

Apesar de batizado, quando se tratava de caça, preferia dirigir-se ao Grande Espírito.

Ela prometeu trazer aguardente, uma coberta para sua velha mãe e a faixa para o bebe.

Com alegria por levar víveres suplementares para alguns dias, a volta lhe pareceu fácil e rápida. Chegou a casa antes da noite.

Aliviada, apertou contra o peito as crianças. Como eram corajosas, tão pequenas, por terem sabido esperá-la sem se assustar com sua ausência, sem se inquietar e sem fazer tolices!

-        Comemos ê depois dormimos - disse Carlos Henrique.

Ela deixou para falar-lhe sobre a mãe mais tarde.

Aquele Pengashi a enganara com seus projetos de voltar para as montanhas Verdes. Será que conseguiria, pobre coitado, atingir as missões do norte? Deixou passar alguns dias antes de retomar o caminho de seu acampamento.   

No intervalo, um vento desagradável começou a soprar. Vento seco mas glacial, que corroía como poeira de aço a superfície da neve. Esperou, sabendo que não poderia dar dois passos sem ser derrubada, e, se quisesse rastejar, teria rodopiado, sendo varrida de um lado para outro, ao rés-do-châo; compreendeu por que, naquela estação, Pengashi erguia suas cabanas na parte mais fundas das ravinas.

Finalmente, um dia o vento começou a amainar, deixando sob um céu baixo e ameaçador um mundo decapado, recoberto por uma carapaça de gelo. As coníferas estavam negras como tinta, sem uma pitada de neve em suas agulhas, com as folhas despojadas cor de osso, os ramos em forma de candelabro, sem o mínimo galhinho. Devido ao adiantado da hora, teve de esperar pelo dia seguinte para ir ao acampamento dos índios. Levaria um quartilho de aguardente, um pente, algumas faixas de pano e, apesar de não estar muito bem provida, duas cobertas de lã inglesa de Limburgo para os avós.

Mas, durante a noite, a neve recomeçou a cair em grande flocos. Com medo de se perder, esperou mais-um dia, depois outro. Agora o vento cessara totalmente, mas as pancadas de neve, mole e silenciosa, pareciam não ter fim. Na manhã seguinte, houve uma calmaria. Os flocos ficaram mais esparsos, turbilhonando com lassidão, parando pouco a pouco.

Um trecho do horizonte se descobriu para oeste num espaço restrito, mas suficiente para que tivesse a possibilidade de saber em que direção estava indo.

Fez suas recomendações a Carlos Henrique, como da vez anterior, e, depois de desobstruir mais ou menos os arredores da entrada, içou-se para fora e rumou para a planície. Contra qualquer expectativa, encontrou, apesar de quase apagados, vestígios de sua antiga pista. Com a passagem constante de névoas e nuvens no horizonte, era impossível tentar localizar os sinais de fumaça do pequeno acampamento perdido.

O céu baixava cada vez mais, a neve recomeçou a cair. Caía compacta, mas o vento, que transforma uma paisagem já escura numa muralha intransponível, ainda não se levantara e provavelmente não se levantaria. Prosseguiu a caminhada.

Dessa vez, munira-se de um feixe de varinhas para balizar a pista. Quase imediatamente, lamentou não tê-las cortado mais compridas, pois a neve, em enormes flocos macios, caindo como um dilúvio, ameaçava recobri-las dali até a sua volta.

Apesar das raquetes, afundava até os joelhos a cada passo que dava. Avançava lentamente, mais pesadona que um urso, guiando-se pelo sulco muito tímido do trajeto anterior.

Como da primeira vez, não percebeu a beirada abrupta do despenhadeiro e, não tendo pressentido a tempo o desnível, foi arrastada para o fundo, na mesma precipitação de neve, o que não tinha gravidade, pois ela lhe amortecia a queda. Precisou de mais tempo para se livrar da neve, mas, em compensação, não perdera nem a raquete nem as luvas.

A ravina assumira um aspecto fantasmagórico. As árvores estavam transformadas em longos círios gigantes, chorando suas lágrimas de cera lívida, e a própria cascata desaparecera, confundindo-se com os rochedos submersos.

Nem sinal dos wigwams.

"Eles descabanaram."

Depois, aproximando-se, percebeu a forma redonda de um dos dois abrigos e, em seu alívio de sabê-los presentes, não se preocupou por não ver fumaça. Chamou, não teve resposta. Levantou a cavilha de madeira, afastou a casca de árvore da entrada, e percebeu os dois velhos no fundo, sentados lado a lado, com as pernas cruzadas, o homem com seu gorro de peles e a velha com sua tiara bordada enfeitada com uma pena, tal como os deixara, da primeira vez.

Saudou-os. Uma fina poeira de neve, infiltrando-se por um buraco no teto, pulverizava os tições do fogão, assim como os dois velhos, sublinhando-lhes de branco as dobras das roupas.

Não pareciam dar-se conta daquela neve fina que pouco a pouco os recobria e, impassíveis, fixavam-lhe os olhos turvos.

Só depois de um bom tempo, quando notou o cachimbo apagado colocado diante do homem e constatou a invasão da cabana pelo sopro-imperceptível da poeira de neve, compreendeu que estavam mortos.

No momento em que Pengashi e sua família partiam de novo, pelos espaços nevados e pelos furacões, numa direçào tão distante quanto incerta, o ancestral dissera: "Meu filho, eu fico. Minha pista termina aqui".

Segundo o ritual e a tradição, Pengashi deixara-lhes o wigwam para abrigá-los, um último fogo aceso diante deles, Com uma última panela colocada sobre os tições, contendo duas supremas rações da sagamité, uma última pitada de tabaco para o cachimbo do pai; depois, recolocando cuidadosamente a placa de casca de árvore que servia de porta, e acompanhado pela mulher, os filhos, a filha mais velha, o bebe e a cativa inglesa, com seus passos lentos nas raquetes, carregando e arrastando os aprestos dos pobres e derradeiros bens, retomou sua marcha para o norte, à procura das missões e dos postos franceses. -

Angélica ficou inerte, ajoelhada diante das duas dignas múmias, até que viu à sua volta que a neve começava a se depositar sobre suas roupas e que estava petrificada de frio.

Com um gesto instintivo, estendeu a mão para a panela. Mas, como já esperava, estava vazia e meio encoberta pela neve.

Tinham fumado calmamente o cachimbo da paz, passando-o um para o outro, e depois, após a última baforada, o velho índio colocara o objeto sagrado diante dele. Esperaram que o último tição se apagasse repartindo então os últimos bocados de alimento terrestre. Depois, com as mãos colocadas sobre os joelhos, na obscuridade que pouco a pouco se resfriava, deixaram vir a morte.

Quando o galho desabara sobre o teto do wigwam, eles já estavam longe, continuando seu caminho pelas planíceis do Grande Espírito, lá onde só existe calor e luz.

Sob a luz baça que entrava pela abertura, não se cansava de contemplá-los, retida involuntariamente, sem pensamentos, sem saber por quê, por aquele espetáculo macabro, e no entanto nobre e sereno. Continuavam tão vivos que se continha para não colocar em seus ombros as cobertas que trouxera.

Pouco a pouco, um detalhe insólito atraiu-lhe a atenção adormecida. Nas mãos abertas de cada uma das duas personagens hieráticas, repousava uma espécie de torrão de alguma coisa indistinta. Seme-lhava-se a um grande cascalho de lama, também salpicado de neve.

Mas ao se aproximar percebeu quê era comida. Dois grandes blocos congelados de mingau de milho, misturado com pedaços de carne e frutas secas. A última refeição dos ancestrais, em que não haviam tocado.

Estremeceu com uma alegria insensata. Trémula, desprendeu os dois pedaços das palmas esquelétricas e hesitou, interrogando-os com o olhar: "E para mim? Sabiam que eu ia voltar?"

Em seus peitos, entre os amuletos de dentes de ursos, cerdas de porco-espinho, colares de conchinhas, entre saquitéis, medalhas, via brilhar aquelas cruzinhas de ouro feitas e usadas pelos índios batizados do sudeste.

Deveria ver nesse gesto uma suprema oferenda ao Deus da caridade sem limites que os Togas Negras lhes ensinaram a cultuar?

O que era uma ração a mais nesta terra, tinham pensado, quando iam partir para lá, onde estariam saciados para sempre? A mulher branca e as crianças brancas de Wapassu tinham fome.

Transbordante de gratidão, enfiou seu butim na sacola. Havia também uma sacolinha de couro colocada sobre a porção que a mulher segurava; também pegou-a, pois parecia fazer parte da oferenda.

Ao se retirar, chocou-se com um objeto envolto em pele, que não vira anteriormente. Pela forma, reconheceu uma armadilha de aço para os pequenos animais de pele e se lembrou de que se queixara a Pengashi de não ter encontrado as que o inglês colocara no outono.

Em troca do fuzil, o índio lhe deixava um de seus instrumentos de caça para comércio, que poderia lhe oferecer uma última oportunidade.

Recuando de joelhos, saiu do wigwam, olhando uma última vez para os velhos.

- Obrigada! Obrigada! Que Deus os abençoe.

Ajustou e firmou melhor a porta, esforçando-se por tapar a abertura no teto, a fim de. evitar-lhe o máximo tempo possível o ultraje dos animais carniceiros.

CAPITULO XIII

Os pingentes de Jenny Manigault - A loucuras do silêncio

Quando esvaziou a pequena sacola de couro encontrada perto da avó, um par de brincos pingentes deslizou na mão de Angélica, pequenas granadas engastadas em prata cinzelada. Eram os brincos que Jenny Manigault de La Rochelle usava no dia em que fora raptada pelos índios.

Angélica contemplou-os com emoção, desejando que sua aliança pudesse um dia chegar até a pobre criança. Prestes a entregar o presente a Carlos Henrique, a falar-lhe da mãe, conteve-se.

A fome tornava a todos frágeis. Sua sensibilidade se aguçava, oscilava. Uma coisa de nada tocava-os, atingia-os, e não se podia saber de que modo repercutiria o menor choque.

As crianças não eram infensas ao que ela mesma, adulta, experimentava. Portanto, ainda que fosse mais fácil distraí-los, receou abalar o bom equilíbrio do menino.

Sabia que, de sua odisseia com a índia, que o arrastara duas estações de wigwan a wigwan, não conservava uma lembrança feliz. Evitava sempre falar a esse respeito e não respondia quando se aludia a ela. Se, por outro lado, reconhecera nela sua mãe, a ruptura não teria deixado nele uma ferida? Evocá-la não iria despertar sua nostalgia e mergulhá-lo na melancolia? Ele aprendera a sorrir em Wapassu, o que levara vários meses.

Recolocou as modestas jóias na sacolinha.

Mais tarde as entregaria, ao menino, quando ele estivesse maior, ou quando tivessem saído daquele pesadelo e estivessem todos reunidos, sentados em volta de uma boa mesa, na casa de Abigail. Ele gostava dela, pois fora a única a consolar sua pequena infância abandonada.

Assim que pôde, foi preparar a armadilha que lhe deixara Pen-gashi, a alguma distância do posto. Colocou-a ao abrigo de uma árvore, num lugar que lhe pareceu propício à passagem da caça, sacrificou uma bolinha de carne para a isca, enquanto se perguntava se era mesmo daquele modo que se procedia e censurando-se por não ter testemunhado maior interesse pelo manejo daqueles engenhos de desgraça. Armas de caçadores furtivos! Seu pai, um fidalgote provinciano, praguejava contra os camponeses furtivos que lhe pilhavam os coelhos-bravos para poder colocar um coelho na panela. Pego em flagrante pelo couteiro, o homem arriscava-se a ser enforcado, segundo a lei senhorial. Mas os San-cé de Monteloup sempre foram pobres demais para pagar os serviços de um couteiro, e o barão nunca enforcou ninguém. As vezes, os senhores da vizinhança, tão esfomeados quanto seus aldeões nos anos de má colheita, organizavam com os vizinhos batidas em suas terras, a fim de pegar um veado ou dois, partilhando-o entre eles.

Pensava vagamente em tudo isso enquanto lutava, com os dedos entorpecidos, com a malvada mandíbula de aço que era preciso fechar sobre o pulso.

Ali, na América, a carne de veação era caçada com fuzil, tanto pelos brancos como pelos índios. Muitos continuavam a caçar com arco, reservando-se aos chefes o uso das armas de comércio, mas ele estava se generalizando. As armadilhas serviam à captura dos animais de pêlo, moeda de câmbio; na primavera os indígenas levavam-nos para a feitoria ou entregavam-nos aos viajantes e exploradores de bosques, "que vinham em suas canoas, em troca das mercadorias de trato: machados, facas, lâminas de espadas, panelas, aguardente, e muitos outros objetos dos quais eram ávidos e aos quais nãò podiam renunciar.

O tráfico de peles era terminantemente recusado em Wapas-su, a fim de não descontentar os franceses; por isso Angélica se desinteressara. Não gostava de imaginar aquele estalo perpétuo das armadilhas fechando-se sobre os bichinhos dos bosques, aquela música macabra que pairava perpetuamente nos grandes espaços selvagens. Disse consigo que fora estúpida. Em sua juventude, não era tão sensível em relação aos bichos. Honorina, com sua mania de se identificar com toda criatura inocente maltratada, a influenciara.

Seres humanos tinham vindo e, no entanto, em seguida, a situação lhe pareceu pior que antes. Tinham-lhe dado uma prorrogação de alguns dias de alimentos, mas arrebataram-lhe a esperança.

A visão daquela pequena família errando através do deserto branco forneceu-lhe a medida do isolamento em que estava encerrada.

Agarrou-se à ideia de que Pengashi falaria dela. Saberiam que estava viva.

Mas será que Pengashi voltaria algum dia, ele também, à praia dos vivos? Sem fim era a pista, mortais as tempestades. Tocada pelo inverno, toda caça desaparecera no céu e na terra. Com o fuzil, o índio teria alguma possibilidade. Não se arrependia de ter-lhe deixado a arma.

Como último recurso, os índios comeriam o cachorro.

Ela sonhou com favas no toicinho e feijões de Boston, que, em Salem, se degustavam regados com creme e melaço. Chamou Ruth e Noémia em seu socorro. Despertou dando um grito de decepção, que assustou as crianças.

Montanhas de pratos fumegantes, que se lhe deparavam como na mesa do rei.

Os últimos anos tinham sido marcados por um selo de vitalidade cintilante, aureolados ao mesmo tempo de esplendores terrestres e ingerências místicas, que emprestavam a tudo um sentido diverso daquele que lhe atribuíra outrora.

Pensava nos primeiros dias de sua chegada ao Novo Mundo.

Pensava em Wallis, sua égua, inquieta e atormentada como ela, que se defrontara com a tartaruga gigante, símbolo dos iroqueses.

"Os cavalos!... Os cavalos!"

No outono passado, no momento do ataque dos índios, enquanto corria para a cabana de Lymon White para se refugiar, percebera numa visão relâmpago os cavalos que, ao longe, galopavam através das pradarias, como que tomados de pânico, adivinhando que era o fim de Wapassu e que era preciso fugir. Não sabia se aquela visão lhe causava mal-estar ou se a tranquilizava.

"Eles descerão para o sul. Procurarão o caminho das charnecas e dos planaltos. Livres, reencontrarão seu instinto, se organizarão em rebanhos..."

Mas o Maine era uma região muito difícil, de florestas e precipícios, e o inverno chegara cedo demais.

"Não pense. Imagine antes que estão felizes por ter reencontrado o espaço. Tinham sido habituados a viver ao ar livre e, no fim do verão, alguns se tornavam novamente selvagens e indomáveis."

As crianças berravam a plenos pulmões, enquanto Carlos Henrique se inclinava sobre ela.

- Não chore, mamãe! Eu os vi galopar! Não se deve ficar triste. Eles saberão encontrar o caminho. Irão para os lugares onde há menos neve e muita grama e povoarão a América.

Era preciso lutar contra a loucura do silêncio; obrigava-se a falar com as crianças, manter sua atenção desperta.

Dizia-lhes que o cão boboca dera provas de grande inteligência. Fora embora antes do incêndioe, de certa forma, o anunciara. E fora encontrar-se com Honorina, que estava entre os iroqueses. Quando Honorina voltasse, ensinar-lhe-ia a atirar com o arco.

Seus rostos pálidos iluminavam-se quando se pronunciava o nome de Honorina.

"Honorina, minha queridinha! Meu tesouro!"

Honorina sobreviveria. Era a mais forte de todos.

CAPITULO XIV

Entre a fome e a tempestade

Angélica começava a duvidar de que o "pior fora evitado".

"Você me traiu! Você me traiu", censurava ao horizonte mudo, quando subia à plataforma. "Você prometeu... Havíamos feito umcontrato com você... Nós lhe trazíamos cavalos! Trazíamos o teto e o incenso da fumaça dos homens. Trazíamos a aliança dos homens de boa vontade. Os trabalhos dos homens, o fogo de seu coração e as chamas de seu génio."

O pior seria a morte das crianças, depois sua própria morte. Joffrey recebendo a notícia, ele, que dissera: "Agora não poderia mais viver sem você".

A ele, tão só, tão renegado, não podia fazer isso. Se desaparecesse, seria ela quem infligiria o golpe de misericórdia naquele homem indómito. Daria o triunfo a seus inimigos, que haviam jurado terminar com a alegre força daquele espírito livre.

Ele teria o direito de censurá-la para todo o sempre. Dir-lhe-ia:

"...Você me corroeu o coração, a mim, que não me deixaria capturar nas malhas do Amor, para em seguida desaparecer e me deixar desarmado diante daqueles que juraram minha perda, os bispos, os devotos, os tolos, os ignaros, os pedantes, os ciumentos, os incapazes, os medíocres, os tiranos débeis e os tiranos inspirados... como o Rei-Sol, que a disputava comigo, Angélica, meu amor, mas um tirano de qualquer modo, o que é repulsivo, você me deixou depois de tirar-me todas as forças, como Dalila, com os cabelos de Sansão..."

— "Não! Não! Não diga isso. Eu lhe prometo que sobreviverei", gritou.

Não! O pior seria a morte das crianças, e que ela sobrevivesse e reaparecesse diante dele, como da primeira vez, sem as crianças!.. Ciclo infernal, história caçoísta recomeçada, composta por um bardo feroz, que lhes dispensaria os corações em farrapos... O coro dos medíocres, o coro dos destruidores, clamando com alegria: "Desta vez... desta vez, estão vencidos!.,."

"Não pense! Não pense!", ordenava Angélica a si mesma, quando sua imaginação esmorecia. Pois sabia que desgastava inútilmente suas forças.   

Já nem tinha coragem, toda manhã, de insultar o destino, como fizera no início. Ao despertar, já não eram as expressões enérgicas do Pátio dos Milagres que lhe voltavam aos lábios, mas, num estado de sonolência, ouvia-se murmurar: "Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!...", invocações que lhe emergiam à consciência como as bolhas de seu desespero.

E todos sabem que esse apelo à ajuda suprema, quando se manifesta no ser humano, tão convencido de seu poder de sair de todas as dificuldades por seus próprios meios, significa que ele entrevê o fim de suas esperanças terrestres, que atingiu o fundo de sua desgraça.    :

Ninguém. Nenhum ser humano!...

É preciso crer em Deus! Deus permanece. "Deus que está em toda parte, em todos os lugares!...", como diz a oração.

...Jó queixando-se de sua miséria a Deus:

"Tu me engoliste como o leite!

Tu me partiste como o queijo..."

"Jó!... é preciso não esquecê-lo... No fim, Deus lhe devolveu tudo." Bem se vê que tudo isso foi escrito por homens e não por mulheres!...

Pôs cinturões e retalhos de couro para ferver e fazer uma gelatina, que acompanhava as poucas colheradas de alimento, parcimoniosamente dividido entre eles. Dois dias, três dias no máximo. E depois... Para ganhar .um. dia para as crianças, ela se privava, sustentava-se com aguardente.

Estava dominada pelo medo das alucinações. Pois então, azar, teria alucinações. Tinha de resignar-se a isso. Fazia parte dos fenómenos da fome.

Pegava um pouco de aguardente no côncavo da mão e friccionava as crianças para revigorá-las. De tanto procurar em todos os cantos, encontrou um restinho de pó de café turco numa lata. Lymon White tinha suas pequenas fraquezas. Foi um belo dia. Depois de preparar o café com o máximo cuidado, bebeu-o como um néctar precioso, dando-o também às crianças. Carlos Henrique fez uma careta.

- Hum, que ruim!...

Mas bebeu com avidez, e todos pareceram menos dolentes depois.

Partir. Andar até os bosques lá embaixo. Será que poderia fazê-lo?... A neve caíra sem descanso. Não poderia naquele dia arrastar-se até a ravina de Pengashi.

Examinava periodicamente a armadilha, encontrando-a sempre vazia. Acabou por retirar a isca, que poderiam consumir.

Uma vez, quando se arrastava novamente até lá, em meio às rajadas de neve, procurou-a em vão, perdeu-se, e só conseguiu reencontrar o fortim guiando-se pelo cheiro fugaz da fumaça.

Outra vez, desmaiou no caminho, aíordou dura de frio, arrastou-se para o abrigo, não saberia dizer até hoje com que forças.

Quando, de manhã, por ocasião de breves claros no céu, se esforçava para abrir a porta e subir para ver o nascer do sol, seu distanciamento da casa, onde as crianças repousavam, tomava ares de fuga. Não tinha mais coragem de vê-las definhar. Por enquanto, estavam dormindo. Aquecera seus corpos franzinos com tisanas, às quais misturava plantas calmantes, já que dispunha de muitas. No sono, esqueciam as agonias da fome. Mas lembrava-se das histórias da velha Rebeca, de La Rochelle. A velha Rebeca que, jovem mãe de três crianças, presenciara o sítio de La Rochelle, sob o Cardeal de Richelieu. "O que se haveria de encontrar numa cidade, quando tudo o que pode ser comido já o foi? Não se deixa nem a um talo de grama tempo para crescer entre os lajedos..."

"Foi meu filho mais velho que se foi em primeiro lugar", contava ela. "Certa manhã, pensei que estivesse dormindo. Mas estava morto."

Então Angélica se precipitava à cabeceira das crianças, espreitando-lhes a respiração em seus lábios descorados.

Depois subia de novo ao outeiro. Postava-se diante do horizonte, elevando as mãos com as palmas unidas como para uma invocação, sacerdotisa de um sacrifício de que era a única celebrante.

A frisa malva e cinza das montanhas desenrolava-se contra um céu realmente cor de pêssego. "Por que você é tão cruel?", gritava à Natureza. "Tão bela e indiferente?"

Também lhe foram recusados aqueles momentos em que, saindo e se movimentando, extraía forças da impressão de estar fazendo alguma coisa.

O poente aquela noite foi de um amarelo agressivo, ácido, contrastando com o encarneiramento das montanhas, de um azul água-marinha. Era belo mas inquietante. A noite, o blizzard começou a soprar. Não veio de mansinho, mas com uma violência brutal que acordou as crianças, habituadas todavia a esses uivos das noites de inverno e às sacudidelas dos batentes.

Mas, surpresas, acreditaram que o teto ia despencar. Angélica abençoou o céu por estar o posto tão profundamente ancorado na terra e na rocha.

Apertava as três crianças contra si, cobrindo-as de beijos e murmurando-lhes palavras reconfortantes.

- Eles passam! Eles passam! Estão apenas passando.

Os negros esquadrões de tempestade, entretanto, não paravam de passar.

As noites e os dias sucediam-se, sem que se pudesse saber se era dia ou noite.

CAPÍTULO XV

Em meio ao delírio, o cadáver de um mártir

Precisava ao menos reunir suas energias para mover-se através do espaço estreito que lhes permanecia reservado. Se se limitasse àquele único cómodo, não poderia levantar-se mais e deslizaria lentamente no sono da morte, com os filhos ao lado até que, parando de dispensar-lhes seu próprio calor e suas forças vitais, adormecessem também para sempre contra seu corpo de gelo.

- Levante-se! Mova-se.

Endireitava-se, enrijecia-se, agia como um autómato. Lançava aos ombros sua manta, no gesto habitual, cotidiano. Abria a porta do quarto e tomava o corredor com a mesma.resolução com que começava cada estação, e cada dia, na soleira da habitação principal de Wapassu, atravessava os pátios, inspecionava os estábulos e armazéns, transpunha os limites das muralhas, visitava os acampamentos indígenas mais próximos, is fazendas vizinhas que, pouco a pouco, se espalhavam fora dos muros, família por família. Do lado de fora, agora, era o deserto. Naquele dia, na grande sala, percebeu que a porta bloqueada pela neve tornava impraticável a saída. Outra hora, prometeu a si mesma, quando se sentisse mais forte, se empenharia em abri-la e depois arrastar-se, passo a passo, até a armadilha. Poderia orientar-se? Desprender o aparelho da massa de neve? Começou a andar em volta do quarto, batendo o tacão no assoalho, para ouvir o barulho de seus passos.

Arrastou um escabelo para junto do respiradouro, a única saída pela qual a luz do dia podia ainda escoar-se, parcimoniosamente, como uma água turva mas presente, para o fundo de seu túmulo. Por ali, talvez, seria mais fácil deslizar para fora.

Arrancou com a faca a proteçào de pele, untada de óleo. Um muro de gelo bloqueava quase inteiramente a abertura. Pelo interstício desobstruído, um frio cruel lhe mordia o rosto. Ergueu a gola do manto até os olhos. Seu olhar seguia a fuga da superfície da neve, na qual uma fonte de luz invisível projetava salpicos de cobre: aurora ou crepúsculo? Permaneceu observando bastante tempo, decidindo afinal que era crepúsculo. Ia poder desse modo determinar o andamento dos dias e das noites. Com a condição apenas de que a tempestade não voltasse a enterrar o mundo em sua noite eterna.

Recolocou a pele que servia de cortina, ocupou-se em tapar o respiradouro com uma proteção de esponja e de peles, fixando-as com pregos. Já que, pelo menos, lhe restavam ferramentas, tinha obrigação de servir-se delas. Proteção contra o frio! Todos os dias viria despregar um pano da cortina, a fim de seguir a evolução das horas, da temperatura no exterior. Estava coberta por um suor de fraqueza, mas decidiu que esses trabalhos lhe revigoravam as forças, do mesmo modo que é necessário mexer-se e ativar-se quando o entorpecimento do gelo se apodera dos membros e do espírito.

Alimentou as crianças, dosando cada bocado, percebendo-lhes a avidez, que não podia satisfazer, cuidou delas, mimou-as, enrolou-as mais nas peles de gato selvagem, ganhou novas esperanças ao vê-las sorrir e até rir e pronunciar algumas palavras. Entretanto, apenas o sono delas, embora lhe notasse a inquietante apatia, a tranquilizava,'a serenava. Despertas, podia ler muito bem em suas carinhas e corpos o que lhes faltava, receando a cada dia perceber os sinais precursores do mal terrível, o escorbuto, ou os sinais precursores da morte.

Ainda restavam muitas provisões: gorgura, carne salgada, milho, para três ou quatro dias, talvez mais. Dedicava-se todos os dias a retirar o gelo do respiradouro.

Depois, acabou toda a comida. Após engolir os últimos bocados, as crianças enroscaram-s*e no entorpecimento. A fome chegaria antes do escorbuto. Ela mesma, desesperada, fugia da visão de seu último sono. Içou-se até o respiradouro, deslizou convulsivamente para fora da passagem que cavara no gelo, soergueu-se gritando:

-        Não quero vê-los morrer!...

Deu consigo correndo _ na superfície gelada e cintilante, repetindo:

-        Não quero vê-los morrer! - e afastando-se, como Agar no deserto, afastando-se da árvore sob a qual morria seu filho Ismael.

Tropeçou, caiu de encontro às mandíbulas da armadilha que emergia do chão. Um coelho das neves ali estava preso, branco no meio de todo aquele branco, quase invisível, congelado e tão hirto quanto as mandíbulas de aço.

Desprendeu-o por milagre; dessa vez, protegendo as mãos com o xale' e com o auxílio da faca, encontrou os gestos que devia fazer. Pegou o coelho nos braços. Apertou-o contra o peito.

-        Obrigada! Obrigada, irmãozinho! Como és bom! Como és bom por teres vindo!

Nunca sentira de forma tão intensa e terna a aliança do homem e do animal. O animal, que dissera ao homem: "Eu, eu quero muito... Tome-me, sirva-se de mim para sobreviver, agora que, por sua culpa, perdemos o Paraíso terrestre".

"Contarei essa história às crianças..."

Mais dois ou três dias de alimentação!

-        Obrigada! Obrigada, irmãozinho!...

Aquele era o sinal. O sinal de que atingiriam o fim do túnel. Que aqueles que estavam a caminho para salvá-los chegariam a tempo. Acalentava contra o peito o animalzinho rígido e com grande orelhas erguidas.

-        Obrigada! Obrigada, irmãozinho!

No dia seguinte, voltou à armadilha.

Com fragmentos da pele do coelho e um pouco dos ossos moídos, preparou uma isca suscetível de trair animais maiores e carniceiros. Recolou a armadilha.

Mas não pôde voltar a ela, pois a tempestade levantou-se prolongando o aprisionamento dos seres vivos ao fundo de seus abrigos; toda tentativa de sair e distanciar-se deles equivaleria a uma condenação à morte imediata. De novo ergueu-se o espectro da fome.

Era uma noite lúgubre. Víveres esgotados. Morte próxima.

Percebendo uma calmaria do lado de fora, dirigira-se à sala grande e tentara desobstruir o orifício do respiradouro, para constatar que, dessa vez, a saída se tornara impraticável. Tudo estava tapado, bloqueado. Neve, gelo, ou uma árvore abatida? Dia ou noite? Já não se podia saber. Seus cálculos avisavam-na de que era noite. Mas de que servia enumerar os dias e as horas? Iam morrer. Ela girava e andava pela grande sala deserta e gélida. Seu cérebro começou também a girar loucamente, mostrando-lhe as etapas de sua vida que a haviam conduzido àquela hora.

O fel que lhe queimava as entranhas tornava-se uma maré de amargura, nascida da fome e da desgraça, submergindo-lhe os pensamentos.

Viu-se no centro de um inexplicável feixe de hostilidades que a haviam rodeado a vida toda e soube claramente que, atraindo amigos, nunca cessara de estar cercada de inimigos.

Não inimigos ferozes, e que soubessem por que motivo queriam aniquilá-la. Mas inimigos por natureza, em outros termos, por condição.

Simplesmente inimigos que eram seus inimigos porque não podiam ser seus amigos.

Que erro cometera para ser assim condenada? Não soubera se submeter? Deveria ter se submetido?

"Mas eu obedeci ao Amor..."

"Oh! meu amor", exclamou, "nunca houve ninguém a não ser você, jamais houve alguém além de você... Eu lhe prometo, partiremos ainda. Não voltaremos mais. Iremos à China, iremos para qualquer lugar, pouco importa!... Com você..."

Continuava a andar como um animal enjaulado e se sentia animada a decidir sobre sua vida, quando a morte estava ali.

As perguntas embarálhâvam-se em sua cabeça: "Estávamos errados por não compreender? Por não nos submetermos?... ao fato de que não se pode ter razão contra todos? Contra o mundo inteiro?... E sobretudo contra os representantes de Deus?"

Loménie a adjurara:

"Não temos o direito de esquecer os ensinamentos de nossa infância, e que a graça do batismo foi-nos dada ao nascermos. A morte de um santo veio para lembrar-me isso. Cara Angélica, submeta-se... pois, sinto-o, não terá razão contra ele".

A predição se cumpria.

Mas Angélica, perdida, aniquilada, continuava a se debater:

"Que erro imperdoável cometi? Tão grande que tenha de pagar com a morte de meus filhos? Faltou-me humildade? Quem nos virá dizê-lo? Quem nos reconhecerá? Se Deus se cala... E vinga assim seus ministros desafiados!...

"Faltou-nos humildade", reiterou, voltando o rosto para os quatro cantos da sala, como se ali estivessem emboscados interlocutores, agachados na sombra que a triste tocha acesa mal conseguia dissipar.'

"Pecamos por audácia, fé, confiança?

"Quem me responderá?

"Acusadores não me faltam. Mas quem virá dizer-me: "Você não se enganou... Você me consolou com seu fervor... Não traiu a mensagem...'"

Esperou. E tudo era silêncio. A tocha crepitava como que chorando, aos pouquinhos, fraca, também ela moribunda.

Tudo era fracasso.

Tinham sonhado com um Novo Mundo. Tinham labutado para construí-lo. Ela amara Wapassu, Gouldsboro e Salem... e Que-bec... E Quebec apagara Wapassu e, um dia, Ruth e Noémia seriam enforcadas nos patíbulos de Salem.

Rostos desfilavam. Pela primeira vez, via o que ocultava sua fachada comum. Tudo era tão claro e tão nítido daí em diante!

Ilusões! Vivera apenas ilusões! Ilusões que viu se cristalizarem na ingénua imagem de Gouldsboro que acalentara o tempo todo.

Deteve-se. Sua agitação se acalmava. A cortina fechada diante da qual tripudiara por tanto tempo abrira-se e, pelo menos, estava aliviada por não ter mais que alimentar esperanças sem futuro. Quantas vezes sonhara que um dia, em Gouldsboro, iria sentar-se, cercada de amigos, e que seria agradável. As dificuldades seriam aplainadas. Não haveria mais distâncias.

Naquele espécie de vazio causado pela fome e pela angústia, seu cérebro rodopiava numa embriaguez vertiginosa, numa corrida desabalada que não conseguia deter, mas cujo desenrolar de pensamentos precipitados, aparentemente opostos e incoerentes, não era destituído nem de lógica nem de lucidez.

O que importava não era servir a Deus. O que importava era a forma de consolo ritual com que se decidia servi-lo.

O Espírito desaparecera por trás dos quadros rígidos e pontuais, os dogmas e práticas que eles idolatravam, mais preocupados em manter suas crenças, e assustados de perdê-las, do que em agradar ao Todo-Poderoso.

Loménie estava certo. Não se luta contra um santo. E esse santo decidira fazer guerra a três princípios que ele abominava.

Primeiramente, a mulher, rival do homem no coração de Deus e perversa por natureza, depois a beleza, que aos olhos dele não era, de modo algum, um dom do céu mas uma armadilha de Satã, enfim sua liberdade de espírito, porta aberta a todas as heresias, inadmissível, ademais, numa mulher.

E hoje, quando toda uma obra gigantesca e benfazeja estava perdida, não haveria um dedo que se erguesse acusador, nenhuma voz para gritar: "Jesuíta, você é um criminoso! E um destruidor!

"Ele triunfa", disse consigo, "e nós estamos perdidos."

A tensão, que a mantinha vibrante como a corda de um arco, caiu bruscamente.

Seus ombros se abateram. .

"Ele triunfa!" pensou, com desânimo. "Oh! por que, por que é preciso que triunfe dessa forma?"

Nesse exato momento, e quando, sucedendo a sua exaltação, a consciência do estado lamentável em que se encontrava a invadia com uma onda sufocante, houve um baque, uma espécie de pancada na porta, ressoando demoradamente, no silêncio já quase tumular do pequeno posta enfiado na neve. Foi breve e súbito, mas muito nítido.

Alguma coisa chocou-se contra a madeira, e, enquanto ela estremecia e sustinha a respiração, duvidando de seus sentidos, sem poder determinar de onde exatamente viera o ruído, houve uma segunda pancada, mais surda, igual à que produziria um punho vigoroso batendo-na porta ou o choque de um bastão-manejado com as duas mãos ou da coronha de um fuzil, talvez!? Depois, nada mais.

Dessa vez, tinha certeza. Duas vezes ressoara uma pancada na porta.

Permaneceu rígida, interrogando ainda o silêncio novamente opaco, excetuando-se as modulações sibilantes do vento turbi-lhonando incessantemente ao redor, sem se precipitar para se convencer de que não havia sido vítima de uma alucinação.

O estremecimento de uma alegria incrédula começou a correr-lhe nas veias, com uma efervescência, um arrepio de seda tal como o dos riachos no momento do degelo, fazendo-a desfalecer, sufocar, enquanto sua carne estremecia. Era a mesma sensação que a fizera erguer-se uma noite em sua primeira invernada, quando a fome os ameaçava. A tempestade soprava lá fora e nenhum socorro podia ser esperado. Nenhuma pancada a alertara daquela vez. Apenas uma sensação poderosa. Ela dissera, numa voz átona:

"Há alguém lá fora".

E, com a Sra. Jonas, caminhou para a porta. Aquela mesma porta ali, enquanto seus companheiros abanavam a cabeça, caçoando um pouco. As duas, apoiando-se, puxaram a pesada porta revestida de uma carapaça de gelo. E, através das rajadas do blizzard, perceberam silhuetas nuas inclinadas sobre a trincheira de neve. Eram Tahutaguete e seus mohawks, que, enviados por Utakê e o Conselho das Mães Iroquesas, lhes traziam víveres...

Dessa vez, a mesma alegria diante do milagre a invadia com tanta violência que receava cair se esboçasse um gesto.

"Eu sabia que ele viria. Utakê! Utakê! Eu sabia que ele não ia me abandonar, que 'eles' viriam..."

Tremia dos pés à cabeça... Logo iria poder dar aos filhos uma sopa de feijões, bem quente,_ engrossada com carne-seca desfiada. Oh! meus filhos! Como vai ser bom! E depois arroz integral, alguns punhados daqueles grãos transparentes e marrons recolhidos na superfície dos lagos, no Illinois, a aveia-louca que se coloca para germinar num pouco de água morna e que cura o escorbuto...

Teria forças para abrir aquela porta? Era preciso.

Andou até ela com passos duros e arrastados de velha.

Após retirar a tranca e girar as chaves, no momento de afastar o pesado batente, hesitou, apoiando-se à madeira. E se fosse uma alucinação? Não! Não! Não tinha sempre conservado no coração, sem nada dizer, a esperança de que o milagre da primeira invernada se repetisse?...

Teve de lutar, como que invadida por um pesadelo, para abrir aquela porta que dava para a noite como um perigoso abismo cheio de monstros dissimulados. E, forçando-se a suportar o amplexo coercitivo do frio, levantou os olhos para o cimo da trincheira.

A tempestade não tinha a severidade cruel da outra vez. Percebeu a lua entre nuvens de aço negro esgarçado, que corriam céleres num céu de chumbo derretido.

A crista branca dos altos entulhos de neve diante da porta resplandecia, mas nenhuma silhueta humana se perfilava naquele cenário, em que a obscuridade e a claridade se entrelaçavam tumultuosamente.

Teria sonhado?...

Forçava tanto a vista que seus olhos choravam de frio. Sua esperança não queria morrer. Mantinha-a dentro de si como um peso enorme suspenso que não queria deixar cair, pois ele a esmagaria e ela não sobreviveria. Não! Não! Não tinha sonhado! Ouvira uma pancada... duas até... Sentia... Sentia que acontecera algo. Alguma coisa havia mudado... Alguma coisa se movera, alterando a imutável e impávida solidão que os cercava, e os mantinha prisioneiros. A noite deixara de ser deserta. Um movimento humano ocorrera.

Com o rosto estendido para o rebordo de neve deu um passo adiante, mas lua se escondeu com a chegada súbita de espessas nuvens escuras arremessando-se ao assalto do céu, como se lamentassem ter deixado se instaurar por alguns instantes uma sutil trégua. Surpresa e adivinhando a tempestade iminente, tornou a avançar, depois cambaleou e por pouco não caiu sobre um obstáculo.

Chocara-se contra uma massa dura e escura. Parecia um bloco de pedra lançado horizontalmente no chão. Sua mão apalpou, adivinhou as dobras de uma textura inólita, couro ou pano áspero, que um fino pedrisco soprado pelo vento norte" já estava recobrindo de pó: um saco! um saco grande!... Víveres!... Provisões!...

Então não tinha sonhado!...

"Eles" tinham vindo...

Abarcou com os braços a massa que, provavelmente lançada do alto da trincheira, se comprimia entre as paredes, obstruindo a entrada.

Era um saco enorme, inchado, em relevo.

Feijões! Milho! Abóboras secas!...

Víveres!...

Não conseguindo movê-lo mudou de tática. Febrilmente, com os dedos nus esfolados pelo gelo, procurava agarrar uma saliência, uma dobra que lhe permitisse puxar com força suficiente para abalar e arrastar o volume pelo leve declive que dava acesso à porta.

Estava muito fraca. Pensou em entrar para pegar as luvas. Mas nada no mundo poderia fazê-la afastar-se de sua presa, temendo, se o fizesse, que o sonho acabasse.

A tempestade desabou, encobrindo bruscamente a lua, abaixando o céu ao nível da terra e derramando, até o fundo do buraco onde se encontrava, turbilhões de neve que, em alguns segundos, ameaçavam soterrar a ela e ao fardo que tentava deslocar.

Finalmente encontrou uma saliência mais dura numa das extremidades e, quando conseguiu agarrá-la, o resto sucedeu-se com relativa facilidade. Recuava, de joelhos, com a cabeça abaixada para escapar às bofetadas da ventania, e pouco a pouco conseguiu encontrar a soleira, entrar na grande sala, para onde arrastava o saco, enquanto trombas de neve se introduziam às suas costas.

Num canto, a luz fraca da tocha vacilava.

Consciente de estar finalmente abrigada e de que devia evitar, a todo custo, ficar na obscuridade, e ainda de que era urgente voltar a fechar aquela pesada porta antes que a neve, que se amontoava, tornasse a operação impossível, Angélica arrastou-se mais uma vez para a abertura.

Reunindo suas forças, ergueu-se. Cada movimento lhe era custoso. Retirar a neve, puxar a porta, empurrá-la, ajustá-la, colocar os ferrolhos, virar a fechadura, colocar a tranca.

O silêncio voltou. Angélica, exausta, apoiou-se ao batente para não cair.

Seu esforço fora tão grande e tão desesperado, que a sensação de alegria e de triunfo vivida ao descobrir aquela encomenda diante da porta se dissipara. Experimentava apenas um sentimento morno de esgotamento, enquanto, lutando para não desfalecer, se abandonava à cadência ofegante de sua respiração, que lhe passava como um fogo através dos pulmões, da garganta, dos lábios ressecados, já insensíveis à mordida do frio. A sala, que achara fria pouco antes, parecia-lhe agora sufocante. Acalmou-se, ganhou vida.

Abatida por uma imensa fadiga, fechava os olhos, depois os abria. O saco continuava ali no chão, aquele saco que encerrava sua salvação e a das crianças.

Na penumbra, achou a forma estranha. A luz fraca da tocha, projetando sua sombra, conferia-lhe um comprimento desmedido.

Hesitante e apunhalada por uma suspeita súbita, aproximou-se e ajoelhou-se. A neve derretida em volta da massa estendida revelava um casulo comprido de pele grosseiramente curtida, fechada quase inteiramene de uma ponta a outra por uma tira de couro trançado.

Mas uma das extremidades"êstava solta, entreabrindo-se ligeiramente. Angélica, subitamente horrorizada, julgou vislumbrar naquela fresta o esboço de um rosto.

Aproximou a mão temerosamente, afastou aquele espécie de capuz.

A face de um homem apareceu-lhe enegrecida, aparentemente queimada, com pálpebras cerõsas, pálidas e fechadas. Permaneceu petrificada, oprimida por um decepção incomensurável.

Não era um saco contendo víveres que fora deposto à sua porta.

Era um cadáver.

Seus sentidos recusavam-se a compreender. E teria agora desejado apagar aquela descoberta diante da porta, aquilo que, pouco antes, a projètara ao ápice da felicidade. "Que isso não tenha acontecido! Que não seja isso!" O destino não tinha o direito de brincar assim com sua miséria! Aquela cabeça de morto no fundo de um capuz obscuro, o que significava? Que tipo de brincadeira? Que mascarada?

Pela palidez das pálpebras abaixadas, contrastando com o negrume do rosto, no qual as queimaduras do gelo se misturavam à sujeira de uma barba negra e hirsuta, adivinhou que era um homem branco, provavelmente um francês. Havia também sangue coagulado, enegrecido, no rosto... Os lábios eram dois traços delgados carbonizados, arregaçados sobre o brilho dos dentes, o que lhe emprestava um aspecto macabro.

Um explorador de bosques perdido?... Viera-morrer junto à sua porta, esgotado? Não! Não o teria confundido, desde o início, com um pacote informe. Ora, ele estava todo costurado, da cabeça aos pés, numa pele virada com o avesso para fora, como numa mortalha.

Então, "eles" tinham vindo.

"Eles"... Franceses? índios? Iroqueses? Ãbenakis} Presenças humanas na noite mortal e deserta do inverno; em vez de se darem a conhecer, "eles" depuseram aquele morto à sua porta, desvanecendo-se depois como fantasmas.

Só os iroqueses seriam capazes de uma visita tão cruel e inútil. Mas por quê?

Mecanicamente puxou um cordão, alargando a abertura. Quando afastava os pedaços de couro enrijecidos, arrastou alguma coisa que estava colada e viu tratar-se de um retalho de pano preto, ao qual aderia um pedaço de carne. A pele e a carne daquele homem já deviam estar em putrefação. Parecia breu, alcatrão. Era a carne de um homem queimado, que, ao menor toque, se desfazia.

Angélica perdeu o fôlego. Sua garganta contraiu-se de horror e de piedade.

- Uma mártir!... um padre!...

Sobre o peito o crucifixo se incrustava nas próprias feridas, uma pequena cruz simples de missionário.

-        Pobre infeliz!...

Subitamente, levantou-se de um salto, fora de si, com os olhos dilatados.

-        O que você fez, Utakê?... O que você fez?

Continuava trémula, mais de raiva impotente que de medo.

A incredulidade, a certeza de estar vivendo um pesadelo e de estar sendo vítima das alucinações da loucura lutavam dentro dela, movidas por um sentimento de fatalidade inelutável, lembrando-lhe que ela sempre soubera também que isso aconteceria um dia. A tal ponto que tinha a impressão de já ter vivido várias vezes aquele instante que acabara de viver. Aquele instante em que seu olhar vira brilhar no centro da pequena cruz, como uma gota de sangue, o brilho vermelho de um rubi.

CAPÍTULO XVI

Frente a frente com o jesuíta Sebastião d'Orgeval

Teria desejado dizer-se: é sangue. Mas não dizia, não pensava nada.

Sabia. Chegara o instante que devia chegar.

Teria podido dizer consigo: este crucifixo, seu crucifixo, é outro padre que o está usando.

Mas seu entendimento recusava-lhe qualquer clemência. Não se enganava sobre a inanidade de tal explicação falaciosa.

Sabia! Este crucifixo pertencia ao mártir que estava estirado ali, sem vida.

Este corpo era o delel

Este cadáver era ele!

Ele, ele, enfim! O perseguidor!... O inimigo sem rosto.

Utakê mantivera sua promessa: "Irei lançar a seus pés o corpo de seu inimigo!..."

Ele, ali a seus pés, o jesuíta maldito.

Sebastião d'Orgeval, o irredutível. Ele, a seus pés, aquela forma informe em decomposição, quebrado, queimado, mortificado de cem modos?...

Morto!...

E ela, Angélica, a Mulher que ele, sem conhecer, perseguira com seu ódio, de pé, diante dele, lançando àqueles restos macabros um olhar também" quase extinto.

Quanto tempo ficou imóvel?

Alguns segundos talvez? Longos minutos? Durante esse tem-Do a natureza misericordiosa concedeu-lhe uma total ausência de sensações e pensamentos. Nem dor, nem revolta, nem ódio, nem alegria, nem triunfo...

Começou então lentamente a voltar a si, à realidade. Não tremia mais. Não sofria mais fome ou medo. Havia dentro dela apenas um grande vazio que, pouco a pouco, como uma maré cinzenta que se dilata e sobe sem ruído, foi preenchido por uma infinita tristeza. Amarga e estéril vitória! A onda tocava-lhe os lábios, fazendo-a vacilar.

Zumbindo nos seus ouvidos, plangente como o sopro de uma concha marinha distante, chegava até ela intermitentemente um apelo lamentoso, tão triste e nostálgico como o que às vezes paira sobre Salem ou Gouldsboro, nas noites de nevoeiro ou de lua... Um apelo tão dilacerante que ficou abalada. Dir-se-ia o lamento de uma criatura humana. E, mais uma vez, voltava à superfície de si mesma, reencontrava o clarão vacilante da tocha nas paredes de madeira desniveladas do fortim de Wapassu e sua solidão tumular, e, a seus pés, aquela forma estendida, da qual percebeu se escapar em certos instantes o gemido lúgubre.

Ora, quando julgava ter tocado o fundo do desespero, da revolta e da repulsa, sua angústia renascia, requerendo suas últimas forças para um novo dilema.

Se queixumes escapavam dos lábios daquele morto, isso devia significar que ainda estava vivo?!... •

Mais uma vez, acreditou ter perdido o juízo. Seu cérebro, fustigado por um chicote áspero, pôs-se velozmente em funcionamento, recusando abandonar-se ao delírio e, imperativamente, ela o iptimou a se pronunciar, sem falsear a verdade, por mais espantosa que fosse.

Como um animal teimoso, reconduzia-o à frente do obstáculo, obrigava-o a considerá-lo sem anteparos, por mais demente que parecesse.

Estava louca?... Ou então, se reconhecia que dos lábios negros daquele morto se escapavam queixumes, devia admitir portanto que estava... vivo?

E nesse caso, por que Utakê o jogara à sua porta? Por que 6 devolvera vivo a ela?

Para satisfazer a qual de suas leis vingativas ou canibais? Para que ela acabasse com ele? Para que o comesse?...

Era isso o que ele queria, segundo sua lógica e sua ética, de raízes primitivas, entretecendo obscuramente sabedoria e loucura, generosidade e crueldade, vingança e alimento?

Um espasmo retorceu-lhe as entranhas. Sentiu queimar-lhe o estômago torturado, e levou a mão à boca para reter uma náusea incoercível. Comida, carne, carne. Um cozido quente!... e saboroso!... A salvação! A vida!

Precipitou-se em direção à porta para fugir das imagens atrozes e encontrou, na indignação e na raiva que a sacudiam, forças redobradas para soerguer ainda a pesada tranca, puxar os ferrolhos, girar as chaves, arrancar o batente à neve e aos gelos.

Lançou-se para fora, na tormenta, chamando-os com todas as suas forças.

-        ...Voltem! índios, voltem! Voltem!...

O blizzard a acometia com mil serpentes furibundas, silvando, estridentes. Teve de recuar, enceguecida. Mas continuava a gritar:

-        Voltem! Voltem! Mohawksl... Não têm o direito!... Não têm o direito de fazer isso!...

Misturava palavras francesas e iroquesas. Estariam escutando-a, agachados, nus e selvagens, atrás de montes de neve endurecida?...

-        Vocês me traíram, índios! Vocês me traíram, índios iroqueses. Vocês me mataram! Eu morro por sua causa!...

Caiu desmaiada na mortalha profunda e suave da neve amontoada à porta. Mais tarde se lembraria de ter-se ali afundado com um infinito alívio.

A lembrança das crianças reanimou-a. Julgou ver diante dela três pequenas silhuetas cinzentas no blizzard mortal, chamando-a e, aterrorizada, ergueu-se de um salto. "Eles vão se congelar!"

Os braços abertos para socorrê-los só encontraram o vazio, e dessa vez soube que fora mesmo vítima de uma alucinação.

Todavia, de volta ao interior do posto, continuava perseguida pela ideia de que haviam, acordado e, não a tendo encontrado, haviam saído à sua procura.

Cambaleando de fadiga, arrastou-se até o quarto e viu os três, que continuavam a dormir serenamente na cama grande, um gémeo de cada lado de Carlos Henrique, inclinando suas pequenas cabeças para ele, que as apoiava no pescoço.

Tranquilizada, retornou à entrada para terminar o que não tivera tempo de fazer: fechar a porta inteiramente.

Teve de trabalhar muito para desobstruir a porta, mas já não sentia fraqueza.        

O medo de ter-lhes quase causado a morte com seu desmaio era tão grande que nada mais importava.

Um sentimento de culpa a atormentava.

Como ousava deixar-se dominar daquela maneira pelos nervos quando era afinal o único amparo daquelas três pequenas vidas?!...

Consagrou à tarefa de fechar a porta as últimas reservas de energia.

A neve penetrara em turbilhões no interior da sala central, formando uma grande montanha, mas isso não tinha importância, pois seu refúgio estava novamente fechado. Os furores do inverno bateriam em vão, e a neve derreteria ali dentro.

Voltando ao quarto bem aquecido, sentia-se loucamente reconhecida para com o céu.

O pior fora evitado!...

Ficou contemplando as crianças, achando-lhes as bochechas um pouco rosadas. Seria a mistura de liquens e grãos que lhes dera para beber antes de pô-los na cama, como a derradeira refeição, que lhes fizera bem?... Olhou o que restava no fundo da tigela, aqueceu-o sobre as brasas e bebeu demoradamente a mistura bem quente. Sim, aquilo fazia bem, e era o que bastava. Não tinha necessidade de mais nada! Sentada na pedra da lareira, apoiou-se ao montante do fogão.

Abastecido com madeira de olmo, o fogo duraria bastante. Pensou em ir repousar um pouco; depois refletiria. Adormeceu, acordou tremendo, colocou mais lenha e turfa na lareira e, quase inconsciente, enfiou-se sob as cobertas perto das crianças, no grande leito, que lhe pareceu deliciosamente morno. Adormeceu. Estava feliz.

Seu despertar a fazia flanrar, ainda indolor, entre o esquecimento dispensado pelo sono e a apreensão latente por aquilo que a aguardava quando voltasse à^realidade. Foi um momento de transição misericordioso. "Tudo está resolvido", disse consigo com um alívio" infinito, "tudo está resolvido".

Seu corpo estava leve, mas repousado.      

O pensamento das crianças arrancou-a de um estado de languidez semelhante a uma suave embriaguez, que lhe retirava todas as forças. Levantandp-se, seu primeiro olhar lúcido era para elas e, como a cada vez, seu coração baqueava com o receio de que a morte as tivesse alcançado enquanto ela dormia.

Mas continuavam a dormir pacificamente. E pareceu-lhe ler naqueles rostinhos emagrecidos um reflexo da beatitude que acabava de experimentar. Inquietava-se. "Eles dormem demais. E preciso despertá-los."

Mas, ao acordar, reclamariam comida.

Apoiou-se à guarda da cama e se lembrou: "Não há mais nada para comer".

Lembrou-se. Quisera sair para tentar, custasse o que custasse, caçar. Emergindo como que das profundezas de um oceano no-turno, fragmentos do que acontecera na véspera se impuseram: ouvira uma batida na porta, havia um saco, e eram víveres. Tropeçava no acre bafio da decepção que quase a matara. Não, não eram víveres. Gemia alto. Não queria saber a continuação.

"Eu sonhei!"

Houvera um cadáver, e esse cadáver estava vivo.

"Eu sonhei."

Ela se tranquilizava: "Eu sonhei".

Reinava uma grande calma. Dentro e fora do forte, a tempestade amainara. A neve estava acima das janelas, mas, por aquela ténue luz de alabastro, transpassada pela flama de uma lamparina que invadia o aposento, ela adivinhava que o sol brilhava num céu purificado.

"Será que sonhei?"

Ela olhava suas mãos esfoladas pelo gelo. Cada detalhe de sua luta insana contra a neve, contra a porta, contra o peso do saco, vinha-lhe à memória e lhe deixava amarga a boca.

Sua decepção, sua loucura, sua cólera contra Utakê, seus gritos, a goela negra da noite abocanhando-a em suas presas, soltando uivos sinistros, quase devorando-a, o silêncio tumular da grande sala quando ela conseguira reentrar e empurrar os pesados batentes protetores. E aquele grande corpo negro no centro, estendido, inerte, sobre o soalho.

O corpo ainda estaria lá, na sala ao lado? perguntou-se.

Esse pensamento lhe deu a noção, a um só tempo assustadora e insólita, de uma outra presença partilhando aquele abrigo perdido.

E se realmente "ele" ainda estivesse lá?

"O que você fez?", pensou, aterrada.

"Na verdade, 'ele' estava morrendo e você o abandonou!" . Fraca e lúcida agora, não podia explicar-se o que a impelira a fugir para apagar o horror daquilo que acabava de surgir rompendo a monotonia já horrível dos dias que estava vivendo, a mergulhar no misericordioso sono para esquecer.

"Que delírio dominou-me? Pensei que era... O Padre d'Orgeval... Por que essa obsessão?"

Porque Ruth lhe havia dito: "Eles vão sair do túmulo!!!" Sentiu-se louca e culpada.

Estava agora certa de ter visto brilhar um rubi no crucifixo? Talvez fosse apenas sangue, sangue, repetia. Não constatara que aquele homem estava coberto de chagas?... Tinha perdido a cabeça!

"O que você fez?"

Com gestos lentos, levantava-se, alisava maquinalmente as roupas e jogava um casaco aos ombros.

Na lareira, o fogo mantivera-se sob as cinzas e, uma vez reanimado, produziu chamas alegres. Em contraste com o quarto bem aquecido, o corredor e a sala estavam gelados. Seu alento flutuou imediatamente em vapor diante dela. Caminhou apoiando-se às paredes, tremendo de ansiedade, incrédula aingV è alimentando uma secreta esperança de que todos os vestígios daquele pesadelo tivessem desaparecido.

Mas ele continuava lá. Estátua jacente negra e imóvel, no meio da sala, ali no chão, tal como o deixara na noite anterior.

Parada à soleira da porta, examinou-o de longe, tocada pelo terror e pela aversão.

Certas tribos primitivas fogem e descabanam se se comete a inabilidade de introduzir em sua aldeia uma encomenda com aquela forma alongada de um cadáver. Compreendia-os. O que não a deixava menos terrificada.

"O que você.fez? O infeliz estava moribundo. E agora ele está verdadeiramente morto."

O pensamento de que o chefe dos mohawks montara aquela horrível mistificação a fim de que ela pudesse se vingar de seu inimigo-acabando com ele e, talvez, comendo-o, sacudiu-a num sobressalto salutar de nojo e de cólera.

"Você não me conhece, Utakê! Não compreendeu quem eu sou!...

"Mesmo assim, ele ganhou, aquele selvagem!"

Com as entranhas retorcidas, ela fugira.

"O que foi que eu fiz? Mesmo que fosse ele, o que é um absurdo, não tinha o direito de deixá-lo morrer."

Movida por uma infinita piedade, por um infinito remorso, chegou-se suavemente e ajoelhou-se junto ao corpo.

Inclinada, afastava tom as duas mãos os pedaços de couro enrijecido do capuz e, tal como nas criptas medievais se descobrem, no fundo das cogulas de pedra revolvidas, os rostos em lágrimas daqueles "chorões" cujas estátuas velam junto aos túmulos dos reis, ela encontrava ali, no vazio da sombra, aquela mesma face que, ela também rígida, como mármore, entrevira na véspera. Uma face enegrecida pela barba hirsuta e sangrenta, as cicatrizes e queimaduras. Pensava: "Perdoe-me. Perdoe-me!..."

Era um homem branco, um padre missionário católico, um francês, um jesuíta, e ela não compreendia que espécie de medo ou rancor a agitara ao vê-lo, impelindo-a a fugir. Era um homem branco, um cristão, um mártir, um moribundo, um irmão.

E não deveria ter feito aquilo.

- Perdoe-me, meu padre. Eu pequei. Perdoe-me, pobre homem!

As lágrimas a cegavam.

Fustigou-se. Não adiantava mais nada chorar. O que ia fazer, agora que ele estava morto? E por sua culpa!

Seu olhar desceu até o crucifixo. O rubi ali estava e cintilava. O rubi!

Com os olhos pousados na face martirizada, perscrutando os traços informes e desconhecidos, ela se interrogava.

Quem poderia ser esse jesuíta? E por que trazia ao pescoço o crucifixo do Padre d'Orgeval?

Um arrepio tomou conta dela. Acabava de discernir um leve vapor flutuando acima do rosto imóvel. Então ainda estava vivo? Inimaginável!

Febrilmente, procurou nos bolsos, encontrou seu espelhinho e passou-o diante dos lábios rígidos.

A mão lhe tremia, a vista se lhe embaralhava, mas não pôde negar o vestígio do hálito que aflorava.

- Está vivo!

Instantaneamente reencontrou força e coragem.

"Vou cuidar dele! Tenho de salvá-lo!"

Apressou-se, impelida por uma febre de resgate, um sentimento de urgência. Se conseguisse arrancar aquele homem à morte, dizia consigo, eles todos estariam salvos.

Era o sinal. O sinal da Redenção, o sinal do Céu sobre a Terra.

O sinal de que sobre eles velava uma força mais justa e misericordiosa que a dos homens.

Dirigiu-se ao outro cómodo para atiçar o fogo sob panelas cheias de água.

As crianças continuavam a dormir.

Voltou com um cântaro de bebida tépida, o cofre de remédios, os instrumentos de cirurgia, faixas de bandagem.

Juntara à bebida que queria fazê-lo engolir uma boa dose de álcool. Aquilo acabaria com ele ou o ressuscitaria. Era um risco. Entretanto, sempre confiara na promessa contida na denominação latina "aqua vitae", "água da vida".

Sob os lábios enegrecidos e ressecados, a mandíbula crispada fechara-se como um estojo. Mas conseguiu filtrar, gota a gota, a bebida através das frestas entre os dentes, que tinham se quebrado, caído ou apodrecido. Isso lhe tomou um tempo enorme, pois receava ver transbordar da cavidade bucal o precioso líquido, mas um imperceptível reflexo de deglutição deve ter-se produzido, pois a xícara ficou vazia e ela se persuadiu de que, pelo menos, o remédio impregnara as papilas ressecadas e que ele ia se insinuar lentamente e reanimar o corpo petrificado. Precisaria cuidar para que não se reaquecesse depressa demais, pois sabia que somente o frio o mantivera vivo, entorpecendo-o como ao animal que hiberna, evitando que as feridas se deteriorassem.

Com sua "água" benfazeja, de cujo segredo era depositária, lavou-lhe o rosto, untando as pálpebras grudadas pelo sangue e pelo pus com um bálsamo emoliente. Seria preciso esperar para tratar das queimaduras do peito, pois retirar os pedaços de tecido negro ali aderidos exigiria um trabalho de muita paciência.

Desistiu de arrancar o crucifixo de seu estojo de carne.

Empenhava-se agora em desprender o corpo em todo o'comprimento do couro espesso e muito duro daquela espécie de casulo no qual ele fora envolto e costurado inteiramente, da cabeça aos pés. Vendo, à cabeceira, um pedaço de corda pendurada, podia imaginar que "eles" o haviam arrastado assim, no gelo, por léguas, pois o couro malcurtido era tão resistente e liso quanto a madeira 'de um reboque.

Um corpo sacudido por montes e vales nevados, atrás daqueles índios seminus, iroqueses ou abenakis, correndo aos saltos em suas raquetes, empreendendo uma corrida alucinada pela brancura imaculada dos dias, pelo negror das tempestades sibilantes e das noites, arrastando aquele corpo, em sua mortalha de couro, tudo isso para ir jogá-lo na soleira de um covil onde Angélica, a Dama do Lago de Prata, e suas crianças pequenas, abandonadas por todos, morriam de fome.

"Jamais os compreenderei, índios."

O estojo enrugado cerrava-se sem cessar, e teve de cortá-lo em placas, como uma casca de árvore. Sob o envelope duro, ficou surpresa por encontrar espécies de almofadas, que pareciam estar ali para envolver e acolchoar o corpo do mártir. Puxando-o, retirou o primeiro saco de pele de gamo, inchado e esticado, e, antes mesmo de ter desamarrado o atilho, adivinhou-lhe o conteúdo.

Como a decepção na noite anterior, a alegria de hoje poderia tê-la matado.

- Oh! Utakê! Utakê! Deus das Nuvens!...

Como da outra vez!

Feijões, feijões do vale dos'Cinco Lagos!...

Deslumbrada, fazia-os deslizar na palma da mão, tal como um avarento contemplando sumamente extasiado suas moedas de ouro.

-        Víveres! As crianças!... Elas serão salvas...

Outros sacos e saquinhos continham arroz, germe de aveia-louca, carne salgada, grãos e pedaços de abóboras secas, e ainda milho, ervilhas, feijões...

-        Obrigada, meu Deus! Obrigada, meu Deus!

Ajoelhada, erguia as mãos juntas num gesto de gratidão.

O sol brilhava. Ele penetrava pelo estreito respiradouro, e o feixe de luz incidia sobre ela. A obscuridade recuara. A vida retomava seu curso.

"Elas estão salvas! Obrigada, meu Deus!..."

Falava bem alto e ria de felicidade.

Sentiu que alguém a fitava em sua expressão de alegria delirante.

Virando a cabeça, percebeu que as pálpebras do moribundo estavam levantadas. Um olhar filtrava-se por elas, um olhar diluído, incolor, mas um olhar.

Por mais estranho que fosse o meio empregado pelo sutil Uta-kê para socorrê-la, aquele infeliz trouxera-lhes a salvação.

Renasceu a áspera vontade de retirar dos limbos aquele espírito que, havia tantos dias, errava às portas da morte.

Disse, em voz alta:

-        Está em segurança, meu padre. Não receie mais. Vou cuidar de você. Vou curá-lo.

Essas palavras a ajudaram a compreender que ele estava vivo, a lembrar-se daquilo que precedera seu estado de inconsciência.

-        Está me ouvindo, meu padre?... Sê me ouve, faça-me um sinal, tente mover as pálpebras...

Decorreu um longo tempo. As pálpebras não pestanejavam. E os olhos permaneciam fixos e sem expressão.

Estaria morrendo?

Foram os lábios que se moveram, mexendo-se no vazio várias vezes; depois, um som escapou deles e uma voz longínqua e penosa, mas distinta, perguntou:

-        Quem... é você?

Ela hesitou. Sua cabeça girava. Sentiu vertigem. Encontrava-se num limiar temível, e teria desejado adiar o momento de transpô-lo.

Com os olhos presos àquele elhar de cego, respondeu, ofegante:

-        Sou a Condessa de Peyrac.

Ele não se moveu. Mas se poderia jurar que uma luz azul brilhara, por um momento, naquelas pupilas turvas.

Ou seria uma ilusão? O fruto de sua obsessão?

Nenhuma força poderia tê-la obrigado a interrogá-lo, por sua vez.

E também teria ele ouvido? Compreendido?

"Vou preparar a comida para as crianças", disse consigo; "depois... veremos."

Mas eis que o fenómeno se repetia. Os olhos pálidos se animavam, e, devolvendo-lhes a vida com o colorido da íris, o mesmo brilho azul emergia translúcido, de um azul muito ténue, muito puro, muito intenso, mas também trespassado por uma cintilação dura e ferina: o brilho da safira.

O olhar ali estava também.

A mesma voz abafada e frágil elevou-se, desmentindo por sua fraqueza o olhar no qual acabava de se reunir toda a energia do corpo percluso. Teve de inclinar-se para mais perto a fim de captar as palavras pronunciadas. E era lamentável e quase dilacerante ouvir aquele timbre partido e ver aqueles lábios feridos esforçarem-se por pronunciar as fórmulas de cortesia consagradas pelo uso de uma educação aristocrática.

-        Per... permita-me, senhora... que... que... rae apresente. Eu

me chamo... Sebastião... d'Orgeval...

O feixe de sol se deslocava com lentidão.

Nada se movia no forte perdido, nada parecia vivo, exceto aquelas nuvens evanescentes de duas respirações conjugadas, condensadas pelo frio.

Ténue sinal de vida, para duas vidas prestes a extinguir-se, o vapor prateado de seus fôlegos esgotados fremia entre eles.

Aquilo não deveria ter acontecido daquele modo. Era tarde demais!

Mas acontecera.

Angélica de Peyrac e o jesuíta Sebastião d'Orgeval olhavam-se frente a frente.

A JANGADA DE SOLIDÃO

CAPITULO XVII

O refúgio volta à vida - Cuidados com o mártir moribundo

As ressurreições obtidas por uma terrina de mingau de milho enriquecido com um pouco de carne-seca incluem-se entre aqueles fenómenos que redimem a enfermidade do mundo e confortam as crenças num Deus bom e generoso.

Era preciso aparentemente tão pouco e dons da terra tão modestos para conduzir da beira do túmulo aquelas crianças cheias de vida e que a fome estiolava como flores privadas de água!

Angélica alimentara-as com pequenas quantidades, como pássaros, deixando-as adormecer entre cada colherada. E agora elas despertavam como numa bela manhã de Wapassu outrora, e deslizavam para fora da cama as perninhas magras, impacientes de partir para a descoberta de todas as surpresas que lhes prometia aquele novo dia.

E Carlos Henqrique, que se vestira com esmero e impusera aos gémeos pelo menos vestir uma casaco por cima das roupas de dormir, plantava-se diante de Angélica e lhe dizia:

- Posso ajudá-la, minha mãe, a cuidar do "morto"?

Tinha ele encontrado um meio de sair do quarto e de explorar a casa? E de descobrir na sala grande aquele corpo estirado no chão? Certamente.

Os três estavam muito mais lúcidos que ela, que, mais uma vez, emergia de um repouso mais próximo do desfalecimento que do sono.

Na véspera - tinha sido na véspera? -, durante algumas horas, fora tão-somente uma formiga laboriosa transportando tesouros inestimáveis para o quarto comum: saquinhos de carne-seca e arroz integral, sacos de milho e de feijões, lascas de abóboras secas que ela preparara e reservara, dividindo-as em porções cotidianas. Oh! Caro e santo alimento!

Pendurara imediatamente caldeirões na cremalheira, onde colocara punhados de trigo-sarraceno, e num outro pusera feijões com um pouco de sal natrão para apressar o cozimento; diluíra a carne-seca em água morna para introduzi-la de surpresa na boca das crianças inertes com os pedaços de abóbora amassados. Tinham ingerido esse primeiro viático sem abrir os olhos. E somente depois ela se alimentara, relegando para o fundo do pensamento a lembrança da declaração que lhe fizera aquela voz moribunda: "Eu sou o Padre d'Orgeval".

O estranho processo que usara Utakê para socorrê-la continuava a mantê-la em estado de incerteza. O próprio Utakê mandara dizer-lhes: "O Padre d'Ofgeval está morto", e tudo isso parecia alucinação.

Mas nada lhe assegurava que fosse Utakê o chefe iroquês mo-hawk que lhe enviava aqueles víveres salvadores. E o pobre mártir talvez não fosse senão um pobre jesuíta dos Grandes Lagos que enlouquecera com as torturas.

Ouviu-se murmurar: "Não aguento mais esses selvagens! Não os suporto mais!..;

- Não - respondeu mais alto, dirigindo-se a Carlos Henrique -, você é muito gentil, querido. Mas prefiro que fique aqui cuidando de Raimundo Rogério e Gloriandra, a fim de que não caiam no fogo e não façam tolices.

Pegou uma escova e começou a escovar-lhes os cabelos, e depois os seus.

Aí está. Basta um pouco de sopa no estômago para que nos sintamos novamente criaturas dignas de viver.

A vida, em sua essência, é isso: alimentação. Não recomece a pensar, não canse seu cérebro. Há ainda muitos dias pela frente antes do fim da invernada.

Mas agora, apesar de precariedade de sua situação, o processo de salvação estava iniciado.

Pois, tendo chegado ao fundo do desespero e confessado a si mesma: "É o fim", ocorrera um milagre, em que via uma garantia de que todos eles chegariam com vida ao término daquela longa viagem de inverno.

Até ele, o "comatoso"...

"Eu sou louca", pensou, com a escova na mào. "Como o abandonei desse modo?!... Mais uma vez estou abandonando-o!"

Depois, fatigada, dando-se algum tempo para recuperar as energias, dizia: "Um pouco mais... um pouco menos... Ele está morto! Ele vai morrer!... O que posso fazer?... Mas quem pode ser ele?"

Não acreditava realmente que ele tivesse falado com ela, e sua declaração: "Eu me chamo Sebastião d'Orgeval", confundia-se em seu espírito com os efeitos de sonhos ou de obsessão. Era agora que acreditava realmente na morte anunciada pelo Padre de Marville. Pois não podia ser de outra maneira.

Entretanto, começou a fazer seu plano de ação para cuidar daquele infeliz: tinha ervas, bálsamos, bandagens. Caldo também, porque seria preciso alimentá-lo quando ele saísse de seu estado letárgico.

Faria os curativos no cómodo ao lado. O frio ali era glacial. Se ele não o matasse, manteria sua insensibidade.

A seguir seria preciso arrastá-lo para aquele cómodo, instalá-lo diante da lareira. Será que se reaqueceria? Voltaria à vida? Emer-geria de seus limbos? Conseguiria retornar da condição de um cadáver, de um corpo miserável que ela teria cuidado como de uma criança, um ser humano que se faria conhecer e partilharia sua clausura invernal?

Temia mostrar ao menino o estado a que um ser humano podia ser reduzido pela crueldade de seus semelhantes. Mas Carlos Henrique, nascido em terras da América, teria talvez suportado esse espetáculo com mais simplicidade do que ela, aceitando sem dificuldade, como toda criança, o cenário dos lugares de seu nascimento, a selvageria que o embalara, as regras do teatro erigido onde, como naqueles gestos ou mistérios da velha Europa, nos estrados montados nos átrios das igrejas e das catedrais, cada personagem desempenhava seu papel simbólico segundo um ritual imutável.

Ali, sobre um fundo de florestas e de águas cascateantes, de lagos com horizontes sem fim e vales desertos, era a gesta dos dois mundos defrontando-se, os mesmos atos colocados, as mesmas personagens irreconciliáveis: de um lado o 'missionário de sotaina preta, chapéu grande, cruz na mão, uma barba inquietante e suà febre de levar.a Deus as almas pagãs; do outro, o gla-bro índio nu, emplumado, tatuado, e sua feroz e inexplicável paixão, como um código de honra, pela morte pela tortura, fosse ela a sua ou a dos outros.

Tinha agora de fazer-lhe curativos dos pés a cabeça. Como havia resolvido, fez essa primeira operação na sala grande, no lugar onde ele jazia desde a sua chegada. Continuava contudo a respirar, mas com um alento tão fraco que ela se perguntava por onde começar sua tarefa, para não partir, num gesto desconside-rável ou muito brutal, o fio ténue daquela existência.

Quando quis retirar o crucifixo, foi inútil tomar todas as precauções, colocando compressas de água quente ao redor; a marca continuou ali, incrustada, transudando sangue entre as carnes enegrecidas.

Segurou a cruz de madeira de buxo, na qual o olho do minúsculo rubi cintilava. Depois de lavá-la piedosamente, colocou-a num pano branco. Precisou cortar o cordão que a sustinha ao pescoço.

Não saberia dizer do que o homem estava vestido. Tendo cortado com certa dificuldade a pele coriácea de um gibão, retirou peça por peça os farrapos negros de uma sotaina.

Queimaduras e mais queimaduras, algumas das quais exalavam um cheiro pútrido.

"Pobre infeliz! Pobre infeliz!, não podia deixar de murmurar, indo de uma ferida a outra e sem compreender como, coberto de tantas queimaduras, ainda lhe era possível manter-se vivo. Mas depois de lavar e relavar-lhe o corpo, os braços, as pernas esqueléticas, um exame intrigado lhe fazia observar a "distribuição" das queimaduras, algumas causadas pela aplicação em cheio de machados incandescentes e outras por sovelas incandescentes que atravessavam um músculo. Restava uma superfície considerável de carne que fora poupada. E notou que o membro viril não sofrera qualquer dano.

Era costume dos iroqueses respeitar a vítima naquilo que ela, a seus olhos, tinha de mais sagrado.-Não amarravam seu inimigo no pilar de torturas com o intuito de humilhá-lo e de aviltá-lo. Ao contrário, essa tradição das tribos iroquesas de fazer peref cer nos suplícios mais bárbaros aqueles que os haviam combatido era uma marca de honra, que se sentiriam culpados de reCusar a um adversário valoroso. Sofrer e aplicar bem a tortura constituía um dos mais preciosos ensinamentos que eles recebiam, disciplina cujo pensamento e preparação não cessavam de dominar sua vida, desde o nascimento até a morte, uma morte que todo guerreiro digno desse nome sempre desejava tão lenta quanto terrível.

Ao acaso das conversas, Angélica soubera por pessoas do Canadá que os iroqueses eram peritos na administração dos suplícios, conseguindo torturar um prisioneiro mais de doze horas, e até dois dias, sem que ele morresse ou perdesse a lucidez. A fim de obter esse resultado, procuravam evitar o derramamento de sangue.

"É uma ciência", afirmara-lhe com certo orgulho um L'Aubigniere ou um Nicolau Perrot, "e nossos huronianos, que são de raça iroquesa, demonstram muita habilidade nessa prática."

Dessa vez poder-se-ia dizer que haviam torturado o missionário de modo a permitir-lhe sobreviver. Mas por muito pouco.

Sentia náuseas.

Apesar do frio penetrante que reinava na grande sala, estava banhada de suor...

Espreitava as reações no rosto do supliciado. Fora, porém, do leve vapor acima dos lábios, ele não dava nenhum sinal de vida. Foi preciso cortar-lhe bem ou mal a barba eriçada, cheia de nós e pegajosa de sangue seco.

Finalmente examinou-o, coberto agora de pomada e ataduras. O pior seria arrastá-lo até o quarto.

Quando tentou deslocá-lo, ele deu um profundo gemido. O primeiro. A dor voltava-lhe com a consciência.

- Tenho de transportá-lo - explicou-lhe bem alto, esperando que sua voz o alcançasse onde ele se encontrava.

Mas ele soçobrou novamente, deu um estertor e tornou-se mais pesado ainda. Só depois que lhe colocou diante dos lábios um espelhinho, que foi pegar no quarto, ficou convencida de que não dera o último suspiro.

Pensara ém instalá-lo numa enxerga diante do fogo. Essa solução não a satisfazia. Por um lado, no chão, arriscava-se a se res-íriar, por outro, podia morrer com a face assada, se o fogo ficasse muito alto, como o desditado rei da Espanha que, doente, não encontrara ninguém para afastá-lo do braseiro, pois o preposto encarregado protocolar mente dessa função não pôde ser encontrado.

E, para ficar assado, bastava o estado em que se encontrava.

Carlos Henrique trouxe-lhe a solução que, em sua fadiga, não lhe ocorria.

— Devemos colocá-lo em nosso leito. Ali está sempre quente. Vamos pô-lo de um lado e ficaremos do outro; você ficará no meio para cuidar de todos.

— Tem razão, meu menino.

Dessa vez aceitou a ajuda da criança. Com muita energia, cerrando os dentes, ele susteve os pés envoltos em curativos, enquanto, segurando sob os ombros a comprida e sinistra marionete machucada, ela o içava como podia do outro lado da cama. Tiveram de recomeçar várias vezes, e os gemidos da mulher e do menino respondiam aos profundos gemidos do mártir, enquanto sua cabeça balançava para todos os lados, caía para a frente ou tombava para trás, como um frango com o pescoço quebrado.

Foi finalmente deitado em toda a extensão, e ela suspirou ao vê-lo protegido do chão duro e do frio e na situação de um honrado doente destinado a se encaminhar para a cura ou, caso contrário, em estado de exalar com dignidade o último suspiro.

Com seixos envoltos em peles ou panos grossos, poderia ajudá-lo a se reaquecer, pois era preciso evitar que ele perdesse, na luta contra o frio, suas últimas forças. Agora que transpusera esse limiar de hibernação, do estado de coma, não devia mais recair num estado letárgico, precursor da morte. O processo de cura, além da linha fatal, devia prosseguir incessantemente para uma volta à consciência, que o traria de regresso ao convívio dos vivos. Sobre os travesseiros de crina e de ervas, nos quais se apoiava a cabeça descarnada, ela colocara um pano branco. Poderia à noite, quando estivesse ao seu lado, umedecer-lhe os lábios ressecados, fazê-lo beber alguns goles, vigiar a febre ou a perigosa recaída de fraqueza, acalmar-lhe os sofrimentos, mudar as compressas, reduzir a dolorosa inflamação de uma ferida com alguma pomada...

Naquele dia, depois de tê-lo instalado na cama, quando doente e enfermeira descansaram um pouco, resolveu cortar-lhe os cabelos, encontrando o sinal de uma tonsura, malcuidada. Tratava-se pois realmente de um padre.

Depois friccionou-lhe o crânio e as têmporas com um vinagre medicinal.

Aplicou-lhe compressas sobre os olhos queimados pela reverberação da neve e ameaçados de cegueira branca.

Sabia que esses cuidados que lhe dispensava com habilidade, pois tinha uma prática de muitos anos - na verdade desde a infância -, os aproximavam. De estranho que era tornava-se seu filho, e ela, sua mãe.

Tentava lembrar-se de que se tratava do Padre d'Orgeval, seu inimigo, seu assassino, em suma, acreditando cada vez menos nisso, pois cuidar e receber cuidados é uma das mais espontâneas linguagens de paz e de compreensão mútua.

Lutava antecipadamente contra o apego que ia tecer-se coti-dianamente entre eles, devido, nela, á seu devotamento, e nele, a sua dependência.

Inerte, não tendo um sopro de vida, era também difícil acreditar que ele fosse real, e, Húrarite aquele dia, ela sobressaltou-se várias vezes ao descobrir sua forma imóvel estendida na cama.

Quando anoiteceu, e depois de ter por sua vez posto as crianças na cama, arrumando os remédios, as bebidas que poderiam ser necessárias durante a noite e coberto o fogo com cinzas, permaneceu indecisa, sem se resolver a ir deitar-se junto àquela lastimável múmia, fixa êm'sua rigidez mortal, interrogando-se, atormentada por questões que toldavam sua alegria primeira ao receber os víveres para salvar os filhos.

"O que eu devia fazer? Agi corretamente?... Qual é o dever do ser humano em.nosso tempo?... Cuido dele... Mas quem ele é?... Uma fraude?... Ou na verdade nosso irredutível inimigo?... Em ambos os casos, perigo!... Salvei Ambrosina. Arranquei-a das mãos dos homens que queriam matá-la. E desse modo deixei-a continuar a praticar seus crimes. Pus minha filha em perigo!...

Colocara o crucifixo do jesuíta sobre o anteparo da lareira, e os clarões abafados das brasas faziam cintilar o rubi.

- O cruz, perdoe-me - disse em voz alta. - Bem sei que é de você que vem todo milagre.

A noite foi tranquila.

Pela manhã, acordou persuadida de que tinha sonhado aquela intrusão extravagante em sua existência condenada. Depois, encontrou-o, com uma mistura de satisfação e de terror. Não podia, porém, esquecer que "devia à sua vinda as bochechas mais rosadas de seus filhos e a volta à vida no forte, enterrado sob a neve, que estivera prestes a se transformar em seu túmulo.

Nos primeiros dias, vendo as crianças correrem pela casa com uma necessidade de se expandir, de reencontrar agilidade e forças, concebeu o projeto de -levá-los para fora a fim de tomar ar.

O sol brilhava. Podia-se percebê-lo através dôs interstícios das janelas e das ombreiras que ela tapara cuidadosamente contra o frio de todas as maneiras possíveis. Mas ao adivinhá-lo, acima daquele buraco esfumaçado, foi tomada por uma necessidade de sentir-lhe a carícia. O sol tinha virtudes terapêuticas divinas. Mais de uma vez constatara a cura de feridas ulcerosas, eczema, dar-tros, pela exposição aos raios solares. Um pouco de sua carícia e as crianças lânguidas recuperavam o apetite, o vigor. Joffrey contara-lhe de que modo sua mãe, em sua infância, ao recebê-lo ferido, machucado, das mãos do aldeão das Cévennes, que o levara do massacre no qual perecera sua ama-de-leite, o instalara no terraço do palácio de Toulouse, onde ele permanecera durante anos, exposto aos raios do deus Febo, recuperando sua saúde.

Içou-os pelo alçapão à pequena plataforma que servia de telhado acima de seu antigo quarto e reuniu-se a eles; eles ficaram ali, vacilantes, numa luz dourada pálida, cruel, petrificante, que lhes feria os olhos enfraquecidos pela penumbra, as pálpebras irritadas e avermelhadas pela fumaça, numa atmosfera confinada.

Cobertos como estavam, mostrando apenas a ponta do nariz, o frio oprimiu-os, fazendo-os cair como os passarinhos nos galhos nas florestas. Quando Carlos Henrique quis falar, uma lufada de ar secou-lhe as palavras no fundo da garganta, e ele permaneceu de boca aberta, incapaz de tornar a fechá-la.

Angélica apressou-se a fazê-los descer para dentro, fechou o alçapão da plataforma, a do falso celeiro acima, e refugiou-se no quarto único. Voltou para acender um bom fogo na lareira da sala principal e ferver um grande caldeirão de água. Enfiou as crianças tal como estavam na cama grande, ao lado do moribundo. Fê-las engolir uma bebida quente com uma grande colher de mel - aquele mel, mais precioso que o ouro, que encontrara também entre as vitualhas enviadas, exsudando em seu cestinho de casca -, transportou para o quarto seus caldeirões de água fervente, encheu uma tina de madeira e, quando o banho ficou pronto, desvestiu-os e mergulhou os três, carregando-os rígidos e pálidos como se, mais ainda do que o frio, a paisagem de fim de mundo que haviam entrevisto, ao mesmo tempo lívida e de um azul pálido translúcido, houvesse tido o dom de petrificá-los.

Readquiriram logo as cores e se animaram, tagarelando com loquacidade. De pé na tina, excitaram-se, com os olhos brilhantes. Os gémeos contavam uma história com grandes gestos descritivos que faziam respingar a água, ambos exagerando os detalhes.

Angélica só podia compreender algumas palavras" de seu pequeno jargão, que repetiam a todo momento: navio, pássaro, não deve! não deve!

— Mas o que estão dizendo? - informou-se com Carlos Henrique, para quem essa linguagem não era Jiermética e que seguia sua exposição aprovando com a cabeça.

— Estão dizendo que as águas ainda não se retiraram e que não se deve soltar a pomba! Sabe, mãe, como na Arca de Noé!... Contei-lhes que estamos na Arca de Noé. Eles gostam muito disso. Mas dizem que ainda não se deve enviar a pomba para fora. Faz frio demais... Oh! mamãe, é verdade. Ela não teria onde pousar. Não poderia voar. Olhe como agitam os braços e depois param para mostrar que ela não poderia voar.

-        Pluf. - fez Raimundo Rogério, deixando-se cair na tina em meio aos salpicos, imitado imediatamente pela irmã.

- Veja, dizem que ela cairia, pluf, como uma pedra... Carlos Henrique voltou-se para a cama e gritou:

— Não é, morto, que não se pode ainda enviar a pomba?...

— Com quem estás falando?

— Com o "morto"... Falo frequentemente com ele enquanto você está preparando a comida ou quando vai buscar lenha no depósito.

— E ele responde?

— Não. Mas ouve tudo.

Depois a temperatura baixou mais ainda, e a tempestade, cujos anúncios observara, declarou-se. O frio era tão intenso que foi uma tempestade seca, mais terrível ainda que as que trazem a neve. O blizzard, o vento do nordeste, o "nordait" dos canadenses, "esse cruel inimigo do homem" vindo do pólo, passou pela superfície da terra a velocidades incalculáveis, com uma violência, uma fúria, que desenraizou árvores, ceifou como uma lâmina gigante afiada o cimo dos bosquezinhos nas ilhas dos lagos, carregou aldeias de wigwams inteiras com seus habitantes.

Naquele "ano, o inverno que tomou de assalto o Escudo Lau-renciano, do Labrador ao sudoeste do Maine, foi tão terrível que ursos adormecidos morreram de frio em seus covis, o que é raríssimo acontecer.

Angélica temia em alguns momentos que o vento uivante acabasse por enganchar-se no fortim de Wapassu, por mais enfiado que estivesse na terra e na falésia, e lhe arrancasse o telhado como uma simples panela perdendo sua tampa.

Transportara para o quarto comum uma considerável provisão de madeira, que, empilhada, ocupava a quarta parte do espaço. Não teria pois de sair daquele último refúgio interior, cuja porta, mesmo dentro da casa, era sacudida em alguns momentos. Três dias, quatro dias, permaneceram encolhidos sob as cobertas, procurando no sono o esquecimento das saturnais externas. Angélica só se levantava para cuidar do fogo, verificar as aberturas, portas, janelas, reforçar as trancas das ombreiras, preparar as rações de alimento - com a preocupação que recomeçava a despontar, de que não se esgotassem muito rapidamente -, fazer todas aquelas bocas avidamente entreabertas engoli-las, dar de beber às crianças e ao doente. Era preferível tomar tisanas quentes de camomila e de tília para ter um sono tranquilo a enervar-se e assustar-se com os clamores selvagens que corriam lá em cima sobre a terra.

As crianças pareciam não se perturbar com aquele ruído do vento. As tempestades da América do Norte haviam embalado suas curtas vidas. Dormiam muito, mas dessa vez era um sono melhor. Quanto a ela, permanecia acordada, concedendo-se apenas curtos períodos de repouso, alerta contra os assaltos lúgubres do exterior, que traziam sombrias ameaças: a destruição da habitação sob a ventania ou o incêndio, sempre ameaçador com o fogo, cuja fumaça era soprada para dentro pelas lufadas contrárias.

Precisava também trocar os curativos do ferido. Longa e ingrata tarefa, que aumentava seu esgotamento.

Ele permanecia inerte, inconsciente.

Em certos certos momentos ela o sentia muito distante, alhures, num lugar onde podia restaurar suas forças, e em outros, o estado de insensibilidade no qual ele mergulhava advertia-a da lenta aproximação de uma saída fatal.

Insensivelmente ele começou a recusar alimento. Deixava-o escorrer pelas comissuras dos lábios, e Angélica punha-se ao mesmo tempo irritada e desesperada, pois, de um lado, era um alimento precioso que não se podia desperdiçar, e, de outro, isso indicava que ele estava começando a perder os reflexos da sobrevivência.

Falava-lhe num tom baixo, suave e persuasivo, sabendo que o conhecimento pode ser atingido sem que nada se perceba, por sons, inflexões ou palavras que o despertem e o tirem de sua apatia. Como para as crianças, procurava o que poderia despertar nele, um religioso, seu interesse pela existência e encorajá-lo a fazer um esforço a fim de voltar à superfície de seu ser e se alimentar. - É preciso viver, padre... É um dever. Deus o exige! Abra a boca!... Tente engolir....Faça um esforço!... Pelo amor de Deus!... Pelo amor à Santa Virgem!

Mas essas objurgações piedosas não produziam nenhum efeito. E ele parecia às vezes mais morto do que quando o descobrira em sua mortalha de couro.

Entretanto as feridas do rosto se cicatrizavam.

Ela notara, da primeira vez em que as tratara, que não eram queimaduras, mas chagas estranhas, causadas aparentemente por instrumentos pontudos ou garras. Esses buracos estavam infectados e envenenados à volta toda. Depois de alguns dias, o inchaço cedera e formaram-se cascas, dando ao doente um aspecto deplorável. Mas, quando as crostas caíram, os traços das feridas começaram a se apagar. A carne tornava-se sadia, embora lívida. As bochechas se encheram, a imensa fronte, sobre a qual caíam mechas de cabelos com reflexos castanho-dourados, se desanuviou, e ela viu esboçarem-se traços de um rosto que não era destituído de beleza, uma beleza viril e regular. "A beleza de Cristo", suspiravam alguns penitentes um pouco exaltados, ao evocar seu confessor, o Padre d'Orgeval.

CAPITULO XVIII

A caçada ao alce - Angélica e os lobos - Diálogo com um morto

Ao cabo de seis dias, os furores do blizzard começaram a amainar e, certa noite, o vento parou completamente. Uma calma surpreendente estabeleceu-se, o que coincidiu para Angélica com o melhor sono de que desfrutou após um longo período e um sonho paradisíaco.

Fosse por pressentir o fim da tempestade, sabendo instintivamente que podia relaxar a guarda, fosse porque chegara o momento, como em todo episódio dramático, de o movimento de terror refluir para enviar os sinais de esperança, ela dormia como uma criança feliz, e viveu esse sonho que lhe pareceu tão verdadeiro que a percorreu com uma impressão subjacente de que tivera um pesadelo horrível na noite anterior. Nesse pesadelo, estava encerrada com as crianças num buraco sob a terra enquanto uma tempestade furiosa passava acima de suas cabeças. Que sonho estúpido! Num momento em que fazia um tempo tão boni

to naquela primavera e os pássaros cantavam apaixonadamente nas árvores!      

Estava apoiada ao braço de Joffrey enquanto caminhavam pelas alamedas de um parque, ou talvez de uma floresta, pois era uma floresta furta-cor e cintilante, cheia de árvores de espécies escolhidas e bem ordenadas, carvalhos e castanheiros, escoltados por pequenos faiais e bosquezinhos de freixos e, dispersos aqui e ali, um pinheiro azul de tronco rosa, uma conífera elegante, lançando notas escuras sobre a seda verde das folhagens.

Uma floresta que poderia.ter sido um parque, pois seus caminhos e veredas tinham a clara elegância de aléias traçadas, e ela via pousar na areia_a-ponta de seus sapatos de cetim bordado rosa e prata.

Havia uma volúpia em andar naquele caminho calçada com sapatos tão encantadores.

Apoiava-se ao braço de Joffrey e sentia o calor de seu braço, de seu corpo, de sua perna contra ela em sua caminhada. Sentia a adoração de seu olhar, que se voltava incessantemente para ela, e a doçura de seus lábios pousando-lhe no rosto, nas pálpebras, na boca, na testa, nos cabelos, atraídos continuamente, nãp conseguindo saciar-se com sua carne viva, sua pele suave e morna, seu sorriso, sua presença.

Chegaram à beira de um promontório e postaram-se ali, tendo às suas costas a floresta murmurante.

Joffrey1 passou um braço por seus ombros e com o outro indicou-lhe, embaixo, um pequeno castelo claro, diante do qual se estendia o mosaico vermelho, malva e azul de-canteiros à francesa.

Ao derredor, a mesma floresta o cercava, mas era uma floresta humana, com seus recantos de sombra e de luz, suas rochas e águas murmurantes, rebanhos de corças e javalis, mas que levava além a outros domínios, outros campos lavrados.

No seio da floresta o pequeno castelo era uma ilha cor de mel.

Curiosamente, pois era a primeira vez que o descobria, Angélica soube que naquela manhã, ao despertar, numa das encruzilhadas, vira pousar um pássaro branco cercado de luz: a pomba da Arca.

Ela perguntou:

— Há um pombal aqui?

— Sim, há um pombal.

Ficou tão contente que julgou estar vivendo um conto de fadas, mas tudo era muito real.

-        E nossa casa? - interrogou.

O braço de Joffrey enlaçou-lhe os ombros e sua voz dizia:

-        Construí para você muitos palácios e casas... Mas este é o presente do rei!...

A garra de um abutre pegou-lhe o.pulso e ela não conseguiu dar um grito. O abutre caíra daquele céu azul-pálido da Ile-de-France?... Estaria querendo pegar a pomba?

Emergiu do sonho num estado de sofrimento que a deixou emudecida.

A garra em seu punho era uma mâo.

Uma mão horrível, com os dedos mutilados, roídos.

Um homem que ela não conhecia e de olhos dementes estava inclinado sobre ela, quase lhe tocando o rosto e repetindo:

-        Há um alce lá fora, um alce canadense!... Acorde, senhora.

A voz autoritária arrancava-a de seu sonho, de seu entorpecimento.

-        Levante-se! Levante-se! Há um alce lá fora. Tem de abatê-lo. Isso lhe dará carne... carne até a primavera...

A notícia penetrou no espírito de Angélica. Bruscamente, livrando-se da garra do abutre que a segurava, pulou para fora da cama. Com o coração disparado, os olhos arregalados, perguntava a si mesma quem era aquele homem barbudo que estava vendo ali, no lugar de seu "morto".

Ele repetia:

-        Abata-o... Terá carne até a primavera...

Começou a enfiar mecanicamente o casaco e as botas. Depois tirou o mosquete do cabide, procurou o polvorinho e o saco de balas. Voltando-se subitamente, olhou para o leito, fixando no catre aquele desconhecido que lhe falara com uma voz vinda de alhures e que continuava a fitá-la com olhos ardentes.

— Que está dizendo? Como sabe que há caça lá fora, um alce?

— Vivi muito tempo prisioneiro dos iroqueses, e sei quando o animal está rondando... Apresse-se! Que está esperando?... Não se deve deixá-lo afastar-se...

— Está delirando...

— Não! Eu sei... Depressa, não o deixe escapar.

Então ela pensou que a vida - se estava ainda viva - tomava aspectos fantásticos e burlescos. Era a primeira vez que dialogava com ele, de humano para humano, de vivo para vivo.

Ele estava realmente ali:

Estava realmente vivo.

Era o Padre Sebastião d'OrgeVal, diante dela. Discutiam e brigavam por causa da carne, por causa do alimento do qual sua

sorte dependia, como os índios exacerbados pela fome, como todas

as verdadeiras criaturas daquele deserto branco, expostas ao inverno infernal.

— Apresse-se! Apresse-se! O que está esperando?

— Não posso sair. Faz muito frio! E estou muito fraca. Deixou o mosquete tombar contra a parede, sem forças para

sustentá-lo.

-        Na verdade, você não acredita em mim - disse ele, encolerizado. - E, todavia, a vida está la fora... Você deve sair.

Estava inclinada a acreditar nele. Estava pronta a arriscar-se por uma ilusão, uma miragem. Mas cada etapa pareceu-lhe insuperável. Por onde sair? Conseguiria subir ao telhado? Colocar as raquetes? Avançar na neve profunda? Ela cairia, morreria sozinha...

Ninguém para socorrê-la.

— Se eu cair, ninguém virá... As crianças morrerão.

— Aproxime-se. - A mesma voz estranha adjurava-a: - Aproxime-se!

Obedece u-lhe, incerta de que essa ordem emanasse dele, desconfiada da loucura que parecia ter-se apoderado daquele semimorto e sem conseguir resistir a ele.

-        Chegue mais perto!

Ele estendia para ela dois braços hirtos, que tinham dificuldade em se mover, e as duas mãos que a seguravam dobravam sua vontade renitente. O que queria dela? Obrigava-a a ajoelhar-se perto da cama. E, sempre com aquela energia de ferro contra a qual sua fraqueza não tinha qualquer poder, puxava-lhe a cabeça contra seu ombros, mantendo-a ali apertada.

Ouviu-o falar acima dela.

— Você poderá fazê-lo! Sempre ganhou! Com esse alce, haverá carne até a primavera para você e seus filhos. Tem de abatê-lo... Você pode...

— E se eu falhar o tiro?

— Não falhará. Dizem que você atira muito bem, Sra. de Pey-rac. Melhor do que qualquer arcabuzeiro... Ganhe! Ganhe mais uma vez, Sra. de Peyrac. Você foi chefe de guerra...

Subitamente, viu-se de pé, arreada da cabeça aos pés, movida por uma vontade feroz. Dirigiu-se à sala grande. Decidira sair pelo sótão, sobre a plataforma. Dali, poderia primeiro verificar se havia realmente, nas paragens do ioite, um alce, como ele afirmava.

A noite estava mais glacial do que julgara, mas clara pela magia de uma lua quase redonda, semelhante a uma frágil concha de nácar, prestes a se quebrar sob o efeito do gelo. As estrelas, pequenas e numerosas, juncavam o firmamento de rastros pálidos, suavizando o azul aveludado da noite. Sob a abóbada celeste, tudo era branco ou negro. Branca era a planície gelada, negros os buques de árvores, as florestas junto às quais impalpáveis rastros de bruma pareciam captar em luzes fugazes os reflexos da claridade lunar. O blizzard arrancara a neve das árvores, emprestando-lhes silhuetas e volumes tenebrosos.

Olhou em torno de si, ávida por surpreender, naquele silêncio petrificado, o eco de um passo, o movimento de uma sombra. Nada se mexia. Seus olhos doíam. Sentia florescer em seus cílios cristaizinhos de gelo.

Não quisera acreditar nele, mas, agora que constatava a inanidade de seu aviso, percebia, decepcionada, que a esperança a invadira imediatamente.

Deu a volta na plataforma, olhando para todos os pontos do horizonte. Se o animal passara junto, à casa, deveria encontrar suas pegadas. Mas a neve em volta do fortim era um belo tapete branco imaculado que havia muito tempo não era pisado nem por homem nem por animal. Procedeu a um exame do bosque-zinho mais próximo, que avançava como uma ilha num mar leitoso.

Não queria desistir sem antes ter tentado tudo, e pensou em saltar por cima da muralha, que estava apenas a uma toesa do solo com a acumulação das neves, para ir desemboscar aquela caça fantasma na floresta, se ela ali estivesse. Foi nesse instante que discerniu uma agitação na zona de sombra projetada junto ao pequeno bosque. Saindo cautelosamente de seu abrigo, o animal apareceu. Sua silhueta parecia imensa, destacando-se contra a neve. Avançava com passos hesitantes, aspirando o ar. Atrás dele, alguma, coisa se moveu, e um alce de menor porte surgiu na sua esteira.

- Dois! São dois! Uma fêmea e seu filhote!

Começaria pelo adulto. Depois pensaria em garantir a outra presa.

Aproximou-se da beirada de madeira contra a qual pretendia apoiar-se.

O que lhe picava o rosto eram gotas de suor geladas. Sua língua estava tão seca, tinha tanta sede, que agarrou um punhado de neve e o levou à boca. A dor causou-lhe um choque e depois lhe fez bem. Seu espírito desanuviado permitia-lhe raciocinar. Devia ter gestos lentos, precisos, e não podia tremer.

Calculara que àquela distância tinha ainda uma chance de atingi-lo. Mas eis que, talvez alertado, o animal agitou-se e tomou alguma distância, depois começou a correr.

Sobre a neve dura, o alce se distanciava como que galopando, e o eco de seus cascos, diminuindo e abafando-se, escandia a louca decepção de Angélica. Agora não podia mais atirar da plataforma. Era muito longe.

O menor, que tentara seguir a corrida da mãe, pareceu hesitar e parou. Decidiu tentar o tiro. Tentar ao menos atingir aquele.

Subitamente o adulto voltava a galope. Angélica, que se preparava para mudar de lugar para visar melhor o filhote, não compreendeu inicialmente a direção tomada por aquela massa em movimento, uma sombra negra sob o luar. Vendo-a aumentar, compreendeu que o animal se reaproximava e pôs-se prontamente em posição à beira da seteira.

Quando ombreou a arma e pôs o dedo no gatilho, sentiu que aquele dedo em repouso aderira à placa de aço e que deixava, ao levantá-lo, um retalho de carne. Mal percebeu o ferimento. A dor nada era naquele momento crucial.

Desejava deixar o animal aproximar-se o máximo possível, pois ele parecia impelido como uma bala na direção do posto.

Mas, vendo-o diminuir, a corrida e depois parar e farejar o ar, virando para a direita e para a esquerda um perfil papudo com um longo focinho caprino, não quis arriscar-se a vê-lo partir numa outra direção e atirou.

Reunindo todas as suas faculdades de visão, de precisão e de instinto, visara a cernelha para atingir o coração, pois temia que a cabeça pequena e móvel fosse um alvo menos seguro.

Quando olhou, em meio ao estrondo dos ecos do tiro, repetido de maneira infinita até os últimos cimos curvos dos montes Apalaches, o animal continuava de pé.

Recarregou apressadamente, não sabendo com que dedos podia realizar os gestos necessários, pois não os sentia mais.

Mas quando, tremula, de impaciência e.de ansiedade, levantava a arma para mirar novamente, não viu mais o alce. Em Seu lugar havia um montículo negro sobre a superfície lívida da extensão nevada. O filhote fugira e se refugiara, ao abrigo do bos-quezinho.

O animal caíra fulminado. Apenas a pressão de seu corpo repartida pelas quatro patas dotadas de cascos flexíveis, uma base larga e preênsil como ventosas, o mantivera de pé por alguns segundos após sua morte. Depois desmoronara pesadamente.

Uma espécie de embriaguez de alegria invadiu Angélica, diante do efeito de uma vitória tão completa e cheia de segurança de vida mais embriagadora ainda. Para lá do corpo do animal morto, era o inverno vencido.

Despencou pelos degraus das escadas do sótão, atravessou cómodos e corredores quase sem tocar o chão.

-        Consegui! Consegui!

Jogou-se ao pé da cama, rindo e soluçando, e apertando com os braços o corpo de seu morto-vivo.

— Consegui! Consegui! Oh, meu caro padre, obrigada. Estamos salvos! Estamos salvos!"'

— Trouxe o animal?

Ele a empurrava, e ela quase caiu ao pé da cama.

-Trouxe o animal?... Não se deve abandoná-lo aos lobos!...

Ela soltou um grito. De revolta, de esgotamento... de consternação, enfim.

— Ah!... Não me deixa respirar... tomar fôlego!... Os lobos, você diz?... Os lobos! Meu Deus!...

— Se tiverem tempo de chegar^não lhe deixarão nada... Apressese, mulher tola! Eles não estão longe, eu os ouvi!

As luzes, que julgara ver à fímbria da floresta, seriam os olhos deles? Não. Ele simplesmente queria a sua morte, que mergulhasse novamente naquele frio glacial para mocrer. Não, não aguentava mais! Amanhã iria buscar o animal.

— Apresse-se, apresse-se!... - repetia ele. - Cuidado com os lobos... Leve uma tocha, que é a melhor arma. E uma pistola de dois canos, se tiver uma preparada. Senão, a tocha. Apenas a tocha. Pegue um trenó selvagem ou um pano grosso, uma coberta para puxar sua caça sobre a neve... pegue uma tira de pano para amarrar o animal, é melhor do que cordas, pois elas são muito rígidas... correias para içar a carga. Vá! Vá...

— Não conseguirei.

— Vá! Estou lhe dizendo! O tempo está passando!

A pistola de dois canos? Não havia nenhuma em condições de funcionamento.

Na sala grande, ocupou-se da tocha. Pegou uma comprida como um círio e bem embebida e foi acendê-la na lareira do quarto comum. Reassumira seu autocontrole, se se considerasse que uma fervilhante cólera interior pode gerar algumas vezes o sangue-frio distraindo o espírito, com seu domínio, dos problemas insuperáveis do momento. Estava muito calma agora.

Perguntara-se algumas vezes se poderia-odiar o jesuíta que os prejudicara tanto. Mas agora sabia que o odiava com todas as forças.

Estava furiosa contra ele, aquele homem, aquele intruso, por causa da sanha com que a empurrara, gritando: "Apresse-se, mulher tola!"

Era preciso reconhecer que a maneira como se lançara sobre ele chorando de alegria vazava-se no delírio mais imbecil e mais deliquescente, e que era imperdoável ter-se deixado levar àquela histeria e ter esquecido a irrupção possível dos lobos num lugar de caça.

Ocupada com sua vindita, ordenou mentalmente, com uma rapidez inigualável, as diferentes fases da operação que se anunciava. E em primeiro lugar precisava desprender a porta, principal, pelo menos abri-la. Fora de cogitação içar o alce morto à plataforma, e para introduzi-lo pelo alçapão pequeno, teria de cortá-lo antes, o que lhe seria impossível fora da casa. Só tinha uma solução: pôr o alce abatido naquela sala, introduzindo-o pela porta.

Essas diferentes possibilidades apresentavam-se ao seu espírito numa velocidade vertiginosa, pois tinha de decidir sem demora.

Por sorte, os esforços que despendera para desprender a porta, na noite em que encontrara o "cadáver" na soleira, surtiram seus efeitos. Os gonzos, fechaduras, barras de ferro, funcionavam bem. Untara-os com um pouco de geléia de líquen. Teve apenas de dar algumas pancadas com pás e picaretas de quebrar gelo para abri-la mais.

A trincheira diante do posto estava coberta de uma fina poeira raspada pelo vento na superfície da neve endurecida. Sobre essa neve, que parecia polida por uma plaina, aquela espécie de trenó de couro não curtido, no qual os iroqueses lhe haviam enviado o Padre d'Orgeval, aberto em toda a sua largura, deslizaria facilmente.

Com a tocha em punho, munida de um saco cheio de rolos de correias e tiras de pano, arrastando atrás de si o trenó emba-raçante, içou-se para fora da trincheira, e, quando estava conseguindo galgá-la, um uivo suave elevou-se aparentemente bem próximo.

Não tivera tempo de pôr as raquetes, mas seu uso na neve endurecida era inútil e teria atrasado sua caminhada.

O alce fêmea continuava ali, caído. E em volta da forma abatida, o menor girava em passos cautelosos rias longas patas filiformes. Depois endireitava-se, tremendo da cabeça aos pés e olhando a sua volta como se todas as saídas estivessem fechadas à sua fuga. Angélica parou e plantou á tocha no solo. O terror do jovem animal era tal que sua chegada pesada e ruidosa não conseguira fazê-lo afastar-se do cadáver do outro. Atirou à queima-roupa. "Dois", pensou, vendo-o cair perto da mãe. "Com isso estamos garantidos; sobreviveremos até a primavera."

Foi então que ouviu como que o sussurro de uma maré avançando, um barulho feito dê marteladas pequenas e continuadas, e percebeu os lobos que vinham a galope da orla da floresta.

O tiro tinha-os imobilizado apenas ligeiramente. Eles retomavam sua corrida em direção à presa entrevista, parecendo uma vaga de espuma cinza rolando para ela, pontilhada pelas luzes douradas de seus olhos. Não se deixou impressionar por sua volta furtiva e rápida.

- Tarde demais, meus bons amigos - disse-lhes. - A carne vai ser minha.

Apanhou a tocha e colocou-a na dianteira do alce abatido, criando um círculo de luz que manteria a distância as feras esfomeadas, mas receosas do fogo do homem.

Depois recarregou o mosquete, colocando-o ao alcance da mão.

Enquanto vigiava incessantemente, para lá da luz, o bale enervado e mudo dos lobos, cujas idas e vindas se cruzavam e entre-cuzavam numa hesitação febril, ela empurrava, puxava, sacudia sobre o trenó o corpo enorme do alce, agarrando-o como lhe era possível, pelas patas, orelhas, acreditando num dado momento que o gelo lhe soldara o flanco ao solo. Manejou a faca e o machado freneticamente, e desprendeu-o bem depressa, amarrou-o de qualquer jeito com as tiras de bandagem que ele recomendara como preferíveis às cordas, içando por cima mais facilmente o corpo do filhote e fixando a tocha na retaguarda sob o peso dos corpos dos animais; còm o mosquete atravessado sobre o trenó, atrelou-se às correias de couro e conseguiu abalar sua curiosa equipagem. Uma vez a caminho, o gelo sobre o qual se deslocavam tornava a tarefa fácil. Andava tão depressa quanto podia, quase correndo, adivinhando que os lobos se lançavam em seu encalço, retidos todavia pela chama da tocha na retaguarda e pela chuva de fagulhas que chovia sobre eles a cada solavanco. Mas a fiel amiga subitamente vacilou. Angélica não teve tempo para deter o trenó e precipitar-se para trás para pegá-la, antes que ela caísse na neve, com o risco de apagar-se.

O que provocara a queda da tocha fora o deslizamento do filhote mal arrimado, que caíra do trenó e que ela percebeu, felizmente, a menos de dez passos. Incidente que começara na sua primeira fase por provocar o recuo dos lobos, medrosos de todos os ruídos, de todos os movimentos insólitos.

Ainda dava tempo. Com a tocha nas mãos, Angélica correu para pegá-lo e colocá-lo novamente no trenó, mas tropeçou e caiu.

Quando se levantou, os lobos estavam bem perto dela, do outro lado do animal e prestes a enfiar-lhe as presas.

Agitou a tocha com frenesi, gritando: - Para trás! Para trás!

Mas ele se recusavam a recuar, com as patas agarradas ao solo, a espinha abaixada ao mesmo tempo para a esquiva e para o salto para a frente. E ao se inclinar para apanhar a pata do filhote de alce e puxá-lo para ela, viu, quase ao nível dos seus, os olhos dos lobos, que Honorina amava tanto, e que lhe pareceram menos fosforescentes do que ao longe nos bosques, mas apenas brilhantes, mais meigos ainda do que os dos cães, quase humanos e como que suplicantes, ávidos e tristes. Viu como estavam magros e eram pouco numerosos no total, cinco ou seis, submetidos como ela à provação infernal que ameaçava suas existências: a fome.

Não tinham ferocidade. Era ela a mais feroz, não querendo deixar nada de sua presa.

"Vou deixar-lhes o filhote", pensou, "devo fazê-lo, devo."

Começou a recuar lentamente, de joelhos, continuando a brandir a tocha para impor-lhes respeito pelo tempo que pudesse.

- Deixo-lhes o filhote - gritou-lhes.

E dessa vez eles se sobressaltaram e deram um pulo para trás, ao ouvir aquela voz humana que se erguia, surpreendentemente clara e poderosa, no ar gelado. "Deixo-lhes o filhote... porque têm fome... e porque somos irmãos... irmãos."

"Fome, fome, fome!... Irmãos, irmãos, irmãos!...", repetiram os ecos intermináveis do país do cristal. Chegara ao trenó e permanecia de joelhos, o que era mais perigoso do que ficar de pé.

Era para permanecer ao nível de seus olhos, e, enquanto ela os fixou com o olhar, eles não se moveram. Apenas quando se levantou foi que pôde vê-los aproximarem-se do filhote de alce, duvidando ainda de sua boa esmola, e depois se lançarem vorazmente a ele.

Outra vez, Angélica atrelou-se aos arreios de couro com uma energia redobrada. Um leve declive facilitava sua corrida para o forte, e sua carga a aco"mpanhava sem dificuldade, trepidando e raspando ao passar por asperezas com um ruído repercutido que lhe enchia os ouvidos. Próximo ao final, a tocha, mal-equilibrada, caiu, rolando sobre a neve e apagando-se com crepitação. Preferiu hão parar. Voava, sendo às vezes ultrapassada pelo trenó.

A sombra do forte mergulhou-a na obscuridade. Dificuldades surgiram. Havia barrancos nos quais caiu. A carga virava. O animal se deslocava. Empurrava-o mal-e-mal sobre o trenó e refazia os nós com dedos inexistentes.

Chegando finalmente à beira da trincheira, derrubou sua carga para baixo e saltou por sua vez.

Perguntava-se incessantemente se os lobos, depois de darem cabo prontamente de sua magra ração, não a seguiriam. Levantando os olhos julgou distinguir um lobo maior, mais magro e mais velho que os outros, inclinado e apontando o focinho pontudo enquanto ela tentava empurrar a porta para introduzir na sala o corpo do enorme alce.

Estava ali debatendo-se naquele buraco com aquele animal do tamanho de um cavalo que, ao cair, havia prendido o mosquete, e a porta nada de se abrir. E o lobo ali, olhando para ela.

Fantasmagoria! Muito tempo depois, a lembrança do lobo de focinho comprido e dos olhos oblíquos e humanos, dos olhos tristes, sonhadores e todavia cheios de interesse, por seus gestos, aquele lobo que talvez não tivesse visto, yiria colocar um bálsamo agridoce em seu coração. Ela se lembraria que murmurara com os lábios rachados: "Eu lhe suplico! Eu lhe suplico!..."

Contaria às crianças que o eco dos lugares perdidos de Wapas-su desaparecido cantara: "Nós somos irmãos... irmãos... irmãos!"

E que a passagem do alce através das portas e do sass obscuro do fortim era exatamente igual a um monstruoso parto, do quaí ela tivesse sido a parteira minúscula, como no conto de Gargân-tua. Isso era uma coisa que os faria rir e bater as mãos, lançando gritos agudos de vingança e alívio provocados pelo aspecto cómico do trágico.

"Meus filhos", diria, "o alce finalmente ali estava na sala do forte. As duas portas estavam fechadas. Nem os lobos, nem ninguém podia vir tirá-lo de nós. Tínhamos carne daí em diante. Carne, até a primavera!"

-        Dei-o aos lobos - declarou-lhe com ar de desafio -, dei-lhes o filhote!...

O homem deitado dirigia-lhe um olhar zombeteiro, parecia-lhe, como se sua excitação lhe parecesse pueril.

-        Pela manhã vão ver se eles deixaram os cascos. Pode-se fazer uma boa sopa de cola, muito nutritiva, como último recurso... E agora é preciso destrinchar o animal... Não se deve esperar - disse, num tom impaciente, como se previsse a revolta de sua lassidão. - É preciso retirar as vísceras, que podem estragar as partes sadias, cortar a língua, separar os miúdos, o fel, a bexiga.

Tem um avental grande, de couro?

Ele não parou durante toda a noite de indicar-lhe as etapas do trabalho. Ela acendera um fogo bem alto na outra sala, dispondo ali todos os seus caldeirões, pratos, escudelas. E vinha perguntar-lhe, descabelada e com as mãos ensanguentadas:

-        E agora?

Ele dizia:

-        Pegue uma serra, um machado, um cutelo. Serre, corte, raspe,

triture!...

O que a surpreendeu muito foi descobrir que não se tratava de uma fêmea, mas de um macho.

— Como se explica que não seja uma fêmea?

— Porque é um macho - retrucou ele, sempre com aquela careta que ela julgava ser um sorriso zombeteiro.

Ele era exasperante, não tinha qualquer consideração pelo estado de fadiga no qual ela se encontrava e que a tornava meio atoleimada.

— Um filhote o acompanhava.

— Não era um filhote, mas um alce provavelmente novo, magro e de menor tamanho que o ancestral.

Ele lhe dava instruções precisas para retirar o coração, um prato especial.

— Ele não tem coração - lançou-lhe ela. - A bala estourou-o.

— Você queria visar o coração?

— Sim.

— Só uma bala?...

— Sim.

— A que distância?

— Ao alcance de um tiro.

Sempre aquele brilho de ironia.

Só percebeu a chegada do dia e que já estavam no meio da manhã quando viu Carlos Henrique diante dela propondo-se a ajudá-la, enquanto os dois pirralhos, vestidos com roupas limpas que o menino os ajudara a vestir, começavam a chafurdar no meio dos quartos de carne e a se interessar pelas orelhas do.alce e por seus grandes olhos extintos sob cílios semelhantes a escovas. Não tinham o sentimentalismo de Honorina, que teria dito: "Pobre alce!"

-        Dar-me-á ao menos algum tempo para cuidar de meus filhos e preparar-lhes um caldo? - gritou a seu atormentador e guia no corte da carne.

Ele perguntou-lhe se ela colocara os pedaços principais de carne envoltos em peles ou em cascas de árvore no gelo, consentindo finalmente em que interrompesse o trabalho.

Mesmo assim, ditava-lhe a receita do caldo, os pedaços que ela devia usar, era a receita de sua "Tia Nenibush", disse-lhe, e Angélica começou a considerá-lo um loucov

Ou então era ela que estava ficando louca por ter respirado aquelas exalações de sangue e de entranhas quentes. Estava ao mesmo tempo enojada e superexcitada.

Deu de beber às crianças, e sua alegria era tanta que se esquecia de seus membros doloridos e das horas de provação. Bebeu por sua vez, julgando que iria desmaiar de tanto bem-estar. Ainda não era hora para isso. Preparou para ele uma tigela do divino e quente néctar e, embriagada como se tivesse, em vez de caldo de carne, bebido um cálice cheio de vinhos capitosos, entregou-o a ele. Sustentando-lhe a cabeça, fê-lo beber em pequenos goles. Ele se calava Ela pensava que, depois do alce, depois de tê-lo acomodado um pouco, seria preciso renovar-lhe as compressas.

— O menino já me dispensou alguns cuidados. Eu posso esperar. Repouse, senhora.

— Realmente. Você me concede um pouco de repouso?!... Não esperava tanta bondade de sua parte - ironizou ela.

Dirigiu-se cambaleante para a lareira, surpresa com seus gestos, mas encantada, pois era vida que voltava para ela, com agressividade, e o raciocínio, reações de pessoa viva e, não mais semimorta. Era sinal de que a ceifeira não os alcançara. Oh! Obrigada a você, jesuíta! Caro mensageiro da noite e dos iroqueses. Ele era destestável, mas era um boa coisa ser capaz de irritar-se contra alguém. A vida voltaria a ser cotidiana, os gestos se tornavam seguros, os gestos daqueles que têm com que se aquecer e se alimentar sobre a terra.

Não acontecera nada. Olhando para o leito, ela se perguntava ainda o que fazia ali.

Ele tinha um olhar muito azul.

Duas luzes puras que emergiam daquela cloaca cinza na qual se perdia seu olhar habitual Sua voz, novamente longínqua, fraca e hesitante, se elevou.

— Creio dever apresentar-lhe minhas desculpas, senhora, por minha falta de civilidade. A caça passava ao seu alcance. Os segundos eram preciosos.

— Isso não era motivo para me insultar, como fez. Você, que é a causa de nosso estado miserável, meu e dessas pobres crianças, você, que, mesmo morto, continuou sua obra de destruição, você, a quem devemos a perda de tudo o que havíamos sonhado, concebido, construído, edificado, com tantos esforços e sacrifícios aqui!

Tomou fôlego e, como ele continuassecalado, deixou fluir sua onda de cólera.

-        E lhe informarei em primeiro lugar que tive razão em não me lançar do telhado onde me encontrava empoleirada para trazer para dentro aquele animal enorme. Não poderia nem arrastá-lo até o posto nem subir ao teto e entrar na casa. A porta estava fechada... Não seria você quem poderia me ajudar! Nem nenhuma dessas frágeis crianças! Você não sabe de nada!... Você me repugna. Não passa de desprezo, orgulho, egoísmo... Julga que me diverte curar suas feridas- úma a uma, esgotar-me para devolver-lhe a vida, a você, a quem injustamente devo tantas desgraças, tantas derrotas, mortes e desastres? E ainda por cima me insulta! Ah! Como você odeia as mulheres!

Via-lhe a face" empalidecer e o olhar turvar-se, mas não conseguia refrear suas. palavras. Já estava na hora de ele ouvir aquelas verdades de sua própria boca. E azar dele se reassumia sua aparência de tronco morto e apodrecido, abatido sobre a terra que vai absorvê-lo e enterrá-lo. Era isso mesmo o que ele era.

Quando ela se calou, ele falou entretanto, e sua voz continuava inteligível, apesar de lenta e rouca.

-        Tem razão, senhora, eu lhe devo mil desculpas. O trato com os bárbaros torna as pessoas grosseiras, e toda a vilania, toda a lama que permanecem no fundo dos corações dos homens emergem à superfície naquele que não possui uma alma suficientemente forte para resistir a esse rebaixamento. Perdoe-me, senhora.

Repetiu várias vezes, num tom de súplica intensa: "Perdoe-me! Perdoe-me!", e calou-se.

Essa súbita humildade fez ceder sua cólera, que se apagou como a chama de um fogo de palha, deixando-à completamente sem forças, o que a fez apoiar-se à parede.

— Não sei o que me deu - reconheceu -, para gritar assim e perder a cabeça, depois de ter abatido o alce... Fiquei enlouquecida... Mas não sei se era de alegria, de reconhecimento, da embriaguez de vitória...

— Nossos corpos são fracos para as correntes que os atravessam - disse ele. - Há coisas enterradas que subitamente saem como cóleras ou desesperos de crianças que jamais teriam sido expressos. A loucura se apodera de nós quando percebemos que estávamos armados para a vitóra, mas que não estávamos ainda preparados para ela.

— Eu não estava pronta para viver um instante tão sublime - disse ela, com o coração pulsando ainda com uma emoção que não conseguia nem controlar nem explicar.

— Estamos prontos para o que devemos viver - respondeu ele -, mas nem sempre é o que havíamos previsto. Daí nosso desnorteamento...

Sua voz baixou.

-        Deus sabe que eu não estava pronto para nada do que me dispus a viver. Tudo foi surpresa.

Depois de ter assim falado com uma clareza e uma lucidez que não deixavam de ser estranhos, vindos dele e naquele lugar, calou-se novamente e pareceu apagar-se e desaparecer, como se desertasse do ser vigoroso e decidido que o habitara por algumas horas.

Via-o tão pálido, com as pálpebras azuladas e fechadas, o ar contrafeito, que compreendeu que o esforço feito por ele para levar a bom termo a batalha do alce o aniquilara. Ele reunira suas últimas forças. Pronunciara uma última palavra: "Perdoe-me". E depois, expirara.

Foi para ela um choque supremo. Ele estava morto. Dessa vez, estava morto de verdade.

Caiu de joelhos junto à cama, invadida por uma terrível decepção, que apagava a exaltação da vitória.

"Carne até a primavera."

Seria preciso novamente ficar sozinha. Ele estava morto. Ficaria novamente sozinha com as crianças.

Pousou a fronte sobre a mão inerte e pôs-se a soluçar.

Foi o balbucio das crianças que a despertou. Dormira tão bem que não compreendia muito bem onde estava. Tinha sobre os ombros uma coberta de peles. Adormecera de joelhos, com a testa apoiada à mão do morto.

— Quem colocou essa pele sobre mim? - perguntou a Carlos Henrique, que estava de pé ao seu lado.

— Ele! - respondeu o menino, apontando para o homem deitado.

Não estava, portanto, morto. Essas ressurreições e desaparições tinham algo de esgotante.

Acabava de se perguntar .se não fora visitada por um "verdadeiro" morto que, por instantes, parecia morto e em outros voltava a habitar-lhe o corpo. '

A mão cerúlea era bem a mão de um morto. Examinou-a. Era uma mão fina e longa que permanecia aristocrática, apesar da deformação dos dedos cortados e das unhas arrancadas. Acariciou-a várias vezes. A mão permanecia gélida. Não se reaquecera nem ao calor de sua fronte.

-        Por que você chorava? - perguntou uma voz.

— Quando?

— Antes de adormecer.

— Porque julguei que você havia morrido. Respondia àquela voz como à de um fantasma..

Mas sentiu estremecer a mão que segurava entre as suas, e ele exclamou:

-        Você lamentaria então minha morte!? meu fim? Eu, seu pior

inimigo?...

Ela continuava, sem o perceber, com a face apoiada,à sua mão, espreitando-lhe o estremecimento.

"Que força existe nele!", pensou rememorando aquele instante em que ele dissera: "Aproxime-se! Venha! Venha mais para perto!" E em que a pegara com mãos que pareciam garras e, à força, apoiara a cabeça dela contra seu ombro comunicando-lhe sua força, ele, um moribundo, a força para se levantar, sair e matar o alce.

Ficou muito tempo apoiada, de joelhos, como quando dormira aquele sono reparador, e depois, levantando a cabeça, sorriu. Teve a impressão de que os lábios lhe devolviam o sorriso. Uma trégua seria possível.

CAPÍTULO XIX

A cumplicidade de náufragos desenganados

Ela reconhecera ser ele Sebastião D'Orgeval, declarado morto havia dois anos, martirizado pelos iroqueses. Convencer-se disso iria exigir-lhe mais tempo. O passado edificara situações e imagens e tudo isso se esboroava diante da realidade, recompondo-se depois com brutalidade. O Padre d'Orgeval estava morto, e aquele que ali estava era um impostor. Ser-lhe-ia preciso esperar para obter resposta às perguntas que colocava a si mesma. Uma febre muito alta apoderara-se do doente, e, examinando-lhe as pernas no dia seguinte pela manhã, Angélica notava que uma delas estava mais inchada, com a pele esticada. O receio da terrível gangrena invadiu-a. Quando uma coisa como aquela começava, só havia duas saídas: a morte ou a ablação do membro atingido.

"Não! Não! Isso eu não poderia fazer."

Tinha cortado uma alce inteiro, mas ter de serrar uma perna de um ser vivo, não, não poderia! Readquiriu sua força interior.

Ele tinha de viver. Eles também. Muitos sinais haviam sido dados. Obstinou-se em prodigaJizar-lhe todos os remédios de que dispunha.

O espectro da gangrena se afastou. Mas a febre não baixava. Ele se agitava, lamuriando-se e virando a cabeça da direita para a esquerda e repetindo: "Oh! que ela se cale!...", e balbuciando o tempo todo frases indistintas, em iroquês.

Quando a febre baixou, .permaneceu prostrado, dando a Angélica novamente a impressão de que um morto partilhava a moradia, ou pelo menos um ser enfraquecido, o que lhe era mais difícil de suportar. Pois, agora que havia carne para muito tempo, teria desejado rejubilar-se e distender-se.

Considerando que talvez fosse realmente o Padre d'Orgeval, o pensamento de que os índios haviam levado o grande missionário a um tal grau de depauperamento, de exaustão, mas também, por vezes, de embrutecimento, a atormentava.

A moléstia que o corroía ia além de seus males físicos. Essa força que alguns momentos irrompia nâo parecia pertencer ao mesmo indivíduo que, abandonando-se às visões de seu delírio ou do torpor, parecia estar se deixando deslizar para a morte por covardia.

Teria desejado apagar os vestígios das sevícias que sofrera, fazê-lo voltar ao que era antes, o grande, o intratável, o intolerante Padre d'Orgeval, que conduzia suas tropas ao combate brandindo sua bandeira bordada, que se prostrava em preces ao pé do altar, que odiava a Mulher porque só conhecera mulheres infames e as combatia como a encarnação do Mal, mas também que sofria as traições de seus amigos, aqueles que diziam ter o dom da ubiquidade, confessando na Acádia, nos grandes Lagos, em Quebec, que sabia tudo, articulava mil intrigas e fabricava velas verdes perfumadas com a cera dos frutos da flor-de-cera.

Certa manhã, enquanto escovava os cabelos das crianças contando-lhes uma história, sentiu que ele "a observava de maneira consciente, e, voltando-se em sua direção, viu naquele olhar, novamente lúcido, uma expressão sorrateira.

Esboçava uma espécie de careta zombeteira, que ela julgou vulgar, cuja significação não poderia precisar, mas que lhe despertou novamente as dúvidas. Aquele que jazia ali era um impostor, algum explorador de bosques, desocupado, excomungado, bêbado, que para evadir-se pegara o crucifixo, a sotaina do falecido Padre d'Orgeval. Fixava-a com aquele sorriso sardónico, desdentado, o que lhe pareceu muito desagradável. Não pôde impedir-se de lançar-lhe:

-        Quem é você?

A essa pergunta abrupta, ele mudou de expressão e pareceu inquieto.

-        Já lhe disse! Sou Sebastião d'Orgeval, da Companhia de Jesus.

E seu olhar vacilou, em virtude de uma tendência a envesgar que se seguira à febre alta.

_ Não! Não é o Padre d'Orgeval. Ele era um ser de elite. Você!- Você é desprezível. Roubou seu crucifixo, sua identidade, tudo... Não é ele... Sinto-o.

Aproximou-se do leito, espreitando aquela face estranha, de expressão ambígua e subitamente angustiada.

-        Quem é você? - repetiu. - Não é o jesuíta santo e mártir. Vou desmascará-lo.

Puxou um escabelo e sentou-se à sua cabeceira, sem desviar-lhe os olhos. Estava decidida a preparar-lhe uma armadilha para confundi-lo.

-        Fale-me de sua irmã de leite - disse ela, num tom de conversa.

Ele pareceu perturbado como uma criança com medo de não encontrar a resposta correta. Ela insistiu.

-        Sim, sua irmã de leite... seu nome começa com A, como o da Diaba... Como poderia esquecer essa criatura do Diabo, Ambrosina?

Sua pele terrosa empalideceu. Seu: olhar turvou-se e ele virou a cabeça. Depois respondeu, hesitante:

-        Não... não era minha irmã de leite... mas... de Zalil.

Depois recomeçou a sorrir com a brusca ironia, continuando, após um breve silêncio:

-        Entretanto, a mãe de Zalil foi também minha ama-de-leite antes dele. O filho mais velho de Zalil, que ela amamentava ao mesmo tempo que a mim, meu verdadeiro irmão de leite, tinha um pé aleijado... Colocado ao,séu lado, pelo que me lembro, ele queria matar-me. Disseram-me que fui eu que acabei por estrangulá-lo em nosso berço comum.

Angélica estremeceu, lembrando-se das palavras que Ambro-sina gostava de repetir com exaltação e nostalgia: "Éramos três crianças malditas, lá longe, nas montanhas do Dauphiné".

Voltando à realidade, ela protestou energicamente:

-        Tolices! Quiseram persuadj-lo dessa fábula para assustá-lo, escravizá-lo. Que tenha sido cercado em sua infância por mulheres perversas e cruéis, acredito. Tive uma amostra disso com sua Ambrosina. Mas que tenha sido feito à sua imagem, não acredito.

— Com que ardor você me defende!... Mas talvez você tenha razão. Quanto mais estranho é o nascimento, mais exigente o destino.

— Você foi carregado com um fardo muito grande, padre, e não sem motivos.

— Você poderia expor-me os motivos?

— Não o conheço suficientemente bem. Na verdade ignoro tudo a seu respeito. A personagem que lhe foi atribuída: o missionário, o guerreiro, o conquistador de mundos novos para a glória de Deus e do reino, o padre devotado à salvação das almas, era mesmo você?, ou não passava de uma roupagem, um disfarce para um período transitório? Não teria se tornado jesuíta apenas para poder mais facilmente tomar seu atalho?

— Que me conduziria aonde?

-        Aonde está chegando, talvez.

Ele se debateu.

— Não. Não creio. Não quero aceitar que tantos horrores, tantos atos vis sejam o caminho de meu destino, desejado por Deus... Seus raciocínios estão fortemente maculados de heresia. Isso a aproxima de Lutero, que dizia: "Peque, mas peque fortemente!..."

— Oh! Não me fatigue, por favor. Não estou em condições de discutir teologia. Os dogmas! A Letra! Armas que matam. Quero dizer simplesmente que é preciso lançar sobre sua vida um outro olhar... considerá-la através de outras verdades... E que você deveria parar de se preocupar com o que diz Lutero, Calvino ou São Tomás... Pois não está apto a decidir sobre o que é pecado ou não!

Ela falara sem refletir. Fora uma troca de palavras súbita, como duas lâminas brilhantes de duelistas cruzando-se no início de um combate para avaliar suas forças.

Essas últimas palavras fizeram-no estremecer, e ela reencontrou o brilho perigoso de suas pupilas, cuja cor azul se tornava, com a volta da saúde, mais precisa, mas não se deixou impressionar.

-        Sim! Sim! É assim, por mais jesuíta que seja, e não me fará mudar de ideia. Não falemos de assuntos lúgubres.

Ele permaneceu estendido por um breve momento e depois lançou o corpo para trás, mantendo-se rígido e de olhos fechados. Angélica perguntou a si mesma se, sob o efeito da contrariedade, ele não estaria novamente passando desta para melhor, e arrependeu-se por ter sido tão ríspida, por não ter tido mais cuidado. Mas quando se levantava por deixá-lo repousar, ele se ergueu com um movimento ágil e, tomando-lhe a mão entre as suas, levou-a aos lábios:

- Deus a abençoe! - murmurou.

Seguir-se-ia um período silencioso, atenuado, mas não destituído de vivacidade e de brilho, tal como os que dispensam as brasas ardentes de um fogo minando sob um manto de cinzas.

Era na verdade um manto de neve.

E Angélica perdeu um pouco a noção do tempo, dividindo-o bem ou mal entre noites, em que precisava levantar-se para cuidar do fogo, e os trabalhos diurnos, que realizava muito lentamente, como se dava conta. Cozinhar, dar banho nas crianças, escovar-lhes os cabelos, trocar os curativos, distribuir as refeições, pois o dia, tão escuro e tão pouco diferente da noite, era muito curto. Via-o terminar com prazer, podendo enfiar-se novamente sob as cobertas. Mais tarde levantar-se-ia para alimentar outra vez toda a sua gente; seria então o momento de ir para trás de sua cortina fazer suas abluções e sentar-se diante do espelho para cuidar por sua vez dos cabelos. Mas algumas vezes sentia-se logo exausta de se manter sentada e voltava rapidamente para a cama, onde se deixava ficar com um suspiro de bem-estar; o leito, que era quente e onde se podia distender no repouso, esquecer a fome e as angústias, do dia seguinte, esse leito levou-os de um dia para o outro do inverno mortal, levou-os ao fundo da sombra, como uma jangada carregada de homens exangues descendo a corrente de um rio noturno em direção à luz da primavera.

Colocava em pratos revestidos com estopa úmida pequenas porções de arroz, de aveia-louca, para germinar dia após dia; esses germes representavam uma defesa contra o escorbuto, que era ali chamado também "moléstia da terra", sendo tão ameaçador nas invernadas, quando faltavam víveres frescos, quanto nos navios. Dava uma colherada todos os dias às crianças; quando quis introduzir-la nos lábios do "comatoso", ele virou a cabeça, gemeu e depois murmurou:

- Dê-o às crianças. Sou uma boca inútil. Por que me salvou? Por que não me comeu?...

Tudo havia mudado.

O deserto branco afrouxava seu abraço.

A noite, às vezes, acordava surpresa por sentir a doçura de momentos em que, finalmente, a angústia, ancorada no fundo de seu ser, se dispersara. O conforto que experimentava, do calor, do repouso concedido a seus membros enfraquecidos, do sono das crianças, permitia-lhe relaxar, desfrutando daquela calma em que todas as coisas tranquilizadoras estavam enfim nos devidos lugares.

A claridade dos carvões abrigados sob as cinzas lançava reflexos róseos e dançantes na vigas baixas do abrigo. A presença humana ao seu lado deixara de causar-lhe um mal-estar ambíguo, em que se misturavam o medo que se ligava a um nome inimigo e o receio que sentia permanentemente de vê4o morrer. Suas rea-ções primeiras haviam se acalmado. Restava apenas a obsessão de que, a todos os fracassos que a ele devia, se juntasse ainda o de vê-lo sucumbir. Teria visto esse fim como o anúncio inelutável do deles. Censurava-lhe antecipadamente esse último golpe. Até o dia em que isso também se evaporou, e compreendeu que não queria que ele morresse porque se lhe afeiçoara. No silêncio da noite, escutava a respiração de seu morto, entrecortada em alguns momentos pelo estertor ou por palavras desconexas. "Sede!... Sede!...", ou então: "Ah! que ela se cale!... que ela se cale!..." Era uma voz humana, em resposta ao grande silêncio que estivera prestes a enterrá-la nos limbos da loucura. Suas sensações aguçadas percebiam tudo a respeito daquela existência que tomara lugar ao lado deles em seu túmulo. Em palavras breves e sussurradas teciam-se uma cumplicidade, uma aproximação de cegos procurando-se em sua obscuridade, náufragos, únicos sobreviventes na superfície do mar, chamando um ao outro nas brumas.

— Está dormindo?

— Não.

— Sente dores?

— Não.

Uma vez ele respondeu:    

-        Não sei... Há muito esqueci o que é viver sem sofrer...

E começou a discorrer em seu tom de professor catedrático

sobre os princípios expostos na Practica Inquisitionis, um dos célebres manuais da Inquisição, escrito por Bernarel, que foi o Grande Inquisidor de Toulouse durante quase vinte anos, no início do século XII. Citou "Faudencia de tormento" como método de tortura utilizado de modo corrente. Nela, também, dizia, como que dando continuidade a uma conversa anterior, o sangue não devia verter-se de maneira a acarretar uma morte demasiado rápida. Eis por que se ativeram a três pontos principais: a roda, o cavalete e o interrogatório pela água. O fogo vinha em seguida, para a purificação.

No início, julgando que estivesse delirando, deixou-o prosseguir seu sinistro discurso, mas, como ele parecia esperar uma resposta ou comentário, intimou-o a meia-voz:

— Cale-se. Esses assuntos podem alimentar seus pesadelos. É noite. Durmamos.

— Não é noite, mas dia.

Sem se mexer e sem mesmo reabrir os olhos, ele sempre sabia se do lado de fora era dia ou noite, se a neve caía ou se o céu estava limpo, se o vento ia soprar ou se a geada ia aumentar.

Isso ajudou Angélica a dar à existência uma estrutura mais de acordo com a disciplina, que ajuda os mortais a conduzir a vida, de um dia a uma noite e de uma noite a um dia, para reuni-los em meses, depois em anos. Sendo o dia destinado a se ficar de pé e aos trabalhos, podia resistir melhor à tentação de se estirar e se refugiar no sono, tentação que a ameaçara quando, não podendo mais agarrar-se senão a vagas claridades que não sabia como interpretar, se deixava dominar pela influência da noite.

Seguir-se-iam pois as horas e os dias, as semanas, quase os meses do coração do inverno, seu núcleo duro e negro, cortado de remissões ensolaradas, mais perigosas que as tempestades uivantes, que aquelas pesadas e inesgotáveis quedas de neve, um período interminável e muito breve, mistificador como úmTlabirinto, obscuro e opressivo como um subterrâneo por onde se rateja sem esperança de algum dia encontrar a luz solar na outra extremidade, pontuado de momentos de encantos, de uma doçura e de uma ternura infinitas, que nasciam daquela pegajosa intimidade do inverno, envolvendo de neve algodoada dias em qué o sono tinha tanta importância, noites em que, consciente da vacuidade do mundo enfim deserto, o pensamento se comprazia em eclodir mais livremente, pois amiúde não souberam se era dia ou noite, um tempo fora do tempo, e em que Angélica sentia o estranhamento de ser conduzida por forças vitais de uma espécie desconhecida," vindas para ajudá-los a atravessar o inverno num estado de graça semelhante ao que se deve experimentar quando se anda sobre as águas e que, pela duração de sua salvação, os libertava do peso e da impotência que oprimem os humanos.

"Como fomos felizes!", dir-se-ia ela um dia.

Essas palavras lhe viriam aos lábios quando se voltasse para aquele tempo. Tudo tinha um sentido. Tudo era de uma leveza, de uma simplicidade, de uma clareza incríveis: os gestos, os silêncios, as palavras e até essas praias cegas do sono. Narrativas, confissões, confidências, discussões, ensinamentos, tudo foi trocado entre eles.

"Queria não me esquecer de nada", dizia consigo Angélica, receando o enfraquecimento da memória.

Imaginava-se mais tarde com uma pena na mão, diante de uma janela ensolarada, aberta sobre os murmúrios de um parque, ocupada em redigir suas "Crónicas da jangada de solidão", em que duas vozes subterrâneas, abafadas pela noite e pelo peso do inverno, dialogavam tendo por único eco um balbucio de crianças ou o crepitar do fogo na lareira de seixos, em que as respostas tinham sido dadas pouco a pouco sobre ele, seu passado, mas também sobre o futuro, os destinos, as revoluções dos tempos e dos espíritos, e até aquela pergunta que um dia se colocara: "E eu? Quem sou eu?", e à qual Ruth, a maga de Salem, replicara: "Alguém um dia lhe dirá".

Para o jesuíta o desenvolvimento da crónica seguia a evolução lenta e anárquica de sua volta à saúde e, numa certa medida, à razão. Dir-se-ia que esta emergia, aos arrancos, de uma ganga de embrutecimentos, cujos estupores profundos da alma o haviam ferido, acrescido do efeito mais material de revoadas de pauladas, de preferência no crânio, com as quais, segundo seu relato, fora cotidianamente cumulado em seus anos de cativeiro. As palavras que lhe escapavam às vezes, como que por descuido, retraçavam esse calvário. Por exemplo, a propósito de discussões para tornar saborosa a sagamité, o mingau de milho ou de trigo-sarraceno, explicou:

— Oh! Minha Tia Nenibush me cobria de pancadas, mas era uma ótima cozinheira. Conhecia pelo menos oito receitas diferentes para preparar o trigo-sarraceno.

— Quem era sua Tia Nenibush?

— Minha ama iroquesa.

No início, suas voltas à superfície tomavam um aspecto estranho. Como se tivesse se esforçado para reunir dentro de si os pedaços de uma personagem que se esfacelara, dizia de repente, com sua voz rouca, hesitante e aplicada, de magister mundano:

— Senhora, gostaria de ouvir-me falar sobre os alces?

— Os alces?

Mas Carlos Henrique, arrastando os gémeos para ouvi-lo, garantia:

-        Gosto quando ele conta histórias de bichos, mamãe.

Foi no dia em que Angélica estava fervendo os cascos do filhote de alce que, num esforço supremo, fora buscar, no dia seguinte à caça, e que encontrara em meio aos rastros dos lobos, misturados a alguns ossos e pedaços de pele, sobras do festim. E eis què ele lhe explicava por que, naquela época do ano, não podia ser uma fêmea com o filhote.

— Ele não tinha chifres - arguiu Angélica.

— O alce macho perde os chifres em dezembro, e eles só começam a crescer novamente por volta de abril, até se tornar aquele soberbo penacho que, no outono, aumenta a excitação do cio. Irritado e perigoso, seu chamado faz então ressoar as florestas.

A fêmea só parirá oito meses depois. Daí por que é impossível encontrar, nessa"estação, uma fêmea com o filhote.

— Que estúpida! Eu sabia tudo isso, parece-me, mas estava fora de mim...  

— Os dois animais, um velho e um jovem, expulsos de seus territórios pelas intempéries, deviam ser os últimos sobreviventes de um bando disperso pelo frio e pela fome.

A pergunta que ela fez:

-        Como sabia que havia um alce lá fora?

Respondeu irrefletidamente:

-        E você? Como soube, numa noite de Epifania, que o Padre Massérat e seus companheiros morriam sob a neve, a alguns passos de sua casa?

Ele sabia muitas coisas sobre ela, sobre eles. E afinal não havia nisso 'nada de tão maravilhoso, se se lembrasse a que ponto, durante seus anos de América, a existência daquele jesuíta estivera mesclada à deles.

Pouco a pouco, começou a esclarecer pontos obscuros.

-        Padre - disse-lhe um dia -, nas procissões em Quebec costumam levar, num relicário, um de seus dedos, ainda que isso não prove nada, pois os canadenses, missionários ou exploradores de bosques, jamais foram avaros de suas falanges em prol da salvação dos índios, solícitos em testemunhar pela tortura diante dos pagãos sua fé cristã e sua dedicação ao rei da França. Mas, no que se refere a você, Sebastião d'Orgeval, falam de relíquias santas. Você está morto, padre, morto como mártir dos iroqueses. Está já na lista das beatificações apresentadas a Roma, em breve virá a canonização. Como se explica a divulgação de sua morte e, além de tudo, há mais de dois anos já?

Ele fechou os olhos e deixou passar um tempo antes de responder, com um tom de desprezo:

— Os tagarelas gostam de criar lendas.

— Aquele que levou a notícia não tinha nada que autorizasse a dizer que era um tagarela, no sentido em que o entende. Trata-se de um de seus irmãos de ordem. Pareceu-me muito sério e pouco afeito a brincadeiras, o Padre de Marville. Ora, eu mesma o ouvi afirmar: "O Padre d'Orgeval morreu como mártir. Eu sou testemunha". E nos descreveu seus suplícios e seu, fim. Acompanhava-o Tahutaguete, o chefe dos onondagas, que levava a meu esposo, da parte de Utakê, o chefe dos mohawks, um colar de wampum, avisando-lhe: "O Padre d'Orgeval está morto". Vi o colar e decifrei-lhe a "mensagem".

O jesuíta soergueu-se na cama, com os olhos faiscando de cólera.

-        Ele fez isso! Ele fez isso! - repetiu várias vezes, sem que ela pudesse saber se se referia a Utakê ou ao Padre de Marville.

- Ele ousou fazer isso!...

Verrumou-a com um olhar feroz.

— O que dizia exatamente esse colar?

— Na verdade, acreditamos nesse primeiro sentido, que confirmava as declarações do Padre de Marville. Mas as palavras exatas do wampum eram: "Seu inimigo não pode mais prejudicá-lo".

Viu-o sacudir-se em espasmos e julgou que estivesse sufocando, mas ele ria às gargalhadas, um riso rouco e desencantado.

-        É verdade... Oh! Como isso era verdadeiro!... "Seu inimigo não pode mais prejudicá-lo."

Voltou-se para ela, perdendo as forças, e deixou-se cair sobre o travesseiro, murmurando:

-        Mas foi por culpa sua, por sua culpa. Sua culpa... tudo!...

Por essas explosões de raiva, compreendia melhor que estava diante de um homem que vinha perseguindo-os com sua hostilidade havia muito tempo, e que a atacara pessoalmente.

— Por que tanta animosidade no que se refere a mim, padre? Você não me conhecia... Jamais me havia visto!...

— Sim, eu a vi.

Ela recebia pois a confirmação daquilo que até então fora apenas uma suspeita.

Adivinhando a que incidente ele aludia, sentiu que não estavam, nem um nem outro, em condições de abordar com franqueza e simplicidade o tema. Nesse ponto, ele se chocava contra um obstáculo que o deixava ofegante, como que invadido por uma angústia enorme, e elá preferia restringir-se àqueles primeiros esboços de confidências. Preferia que ambos permanecessem nas explicações superficiais. Adivinhava o mergulho que ele seria obrigado a dar, um dia ou outro, nas zonas proibidas de seu ser. Pressentia que era de seu dever ajudá-lo nisso, e que somente ela podia fazê-lo.

Falava de bom grado sobre sua infância. Ela o encorajava. Essa infância parecia familiar a Angélica, provavelmente por causa das histórias e da pessoa de Ambrosina, que os aproximava pelo conhecimento íntimo e sem ilusões que cada um deles tinha acerca daquela criatura.

Infância soturna, dominada pela noite e pelos massacres, ao lado de seu temível pai, que lhe colocara, ainda muito jovem, um espadeirão nas mãos, abençoado pelo capelão do castelo, para ir massacrar os hereges das regiões vizinhas.

Nascera pois entre mulheres demoníacas, cada uma delas submissa, de diferentes formas, ao Maligno.

-        Eram todas Liliths, a mulher primeira do pecado, o princípio feminino do Mal.

Desde muito jovem, Ambrosina, encantadora como um anjinho, esmerava-se em todos os vícios, em especial no da mentira e crueldade.

-        E foi esse paradigma de vícios que você nos enviou para alcançar seus objetivos de abater seus rivais, da baía Francesa!...

D'Orgeval deu um sorriso zombeteiro.

— Um magnífico combate para duas belas mulheres!... Ela não pensava que você lhe devolveria suas armas: astúcia e impertinência. Você triunfou!

— Não inteiramente, ai de mim! Pois ela tampouco estava morta. Ela voltou para concluir sua obra.

Mas quando começou a explicar-lhe com veemência o desenrolar dos últimos acontecimentos, ele demonstrou indiferença. Não parecia convencido de que se tratasse da mesma Ambrosina, tão perigosa.

Seu espírito parecia detido diante dos primeiros episódios de sua luta. O que acontecera depois que fora para as tribos iroque-sas não lhe interessava.

Como ele evocasse Loménie, que fora seu amigo dos tempos de colégio, ela se informou sobre os acontecimentos que o tinham levado daquele rude Dauphiné ao convívio dos jesuítas, no início da adolescência. Ele falou a esse respeito de boa vontade.

-        Eu tinha um tio, irmão de meu pai, bispo ou cónego, não sei mais, tão feroz em descarregar a férula da Igreja sobre suas ovelhas quanto meu pai com sua espada sobre os hereges. Ele pôs na cabeça que eu devia entrar para as ordens, e meu pai tentou inutilmente demonstrar-lhe que eu era seu único herdeiro, sem conseguir demovê-lo. Ignoro se, como filho caçula, o eclesiástico queria ficar com uma parte da herança. Os dois enormes indivíduos lutaram durante dois dias, tanto pelas armas dos argumentos como por ameaças e alguns socos. Foi minha intervenção que decidiu a partida em favor do bispo. Consciente, pela graça de Deus, de que tudo o que eu vivia no domínio paterno não era sadio e acabaria por causar minha perda moral e física, insisti junto a meu tio em acompanhá-lo. Foi assim que entrei para o Colégio de Clermont dos Jesuítas em Paris.

Voltou com frequência a seus anos de estudos na adolescência, falando da amizade do jovem Cláudio de Loménie-Chambord, exceto de seu tempo de noviciado, pois tratava-se de longos anos de iniciação, vedados ao profano, e que a disciplina da ordem lhe impunha calar. Voltava depois à infância, à negra infância, mas para deplorar, dessa vez, a perda daquele estado de inocência quando chega a adolescência.

— As crianças se lembram do inefável. O êxtase é algumas vezes concedido somente ao inocente. Com que rapidez a cinza e a areia são lançadas sobre seus sonhos... Julguei reencontrar isso algumas vezes junto ao pequeno Cláudio de Loménie, alguns anos mais novo que eu. Os caminhos que fui obrigado a tomar em seguida afastaram-me de sua doçura.

— Eles me quebraram alguma coisa aqui - dizia, apontando o quadril.

E ela julgava que' estivesse falando dos torturadores iroqueses, mas ele se referia a seus mestres-jesuítas.

-        Quebraram não, pior que isso, torceram, até que o ramo

cheio de seiva se tornasse seco e petrificado e incapaz de renascer... Eu era -urna criança da natureza. Dominado pelas fontes e pelo sangue... As mulheres escapam com mais facilidade a essas influências. Conseguem conciliar melhor a' lu"z e a sombra, a harmonia e ó caos... Uma vez mais, quando eu embarcava para a América, onde me esperava meu antigo condiscípulo Cláudio de Loménie-Chambord, que se tornara Cavaleiro de Malta, eu alimentava ilusões. A América! Acreditava que, vindo para cá, a luz estivesse à minha espera. Mais tarde, depois de anos de lutas, eu continuava esperando encontrá-la. A obra que eu abraçara, e em que fora bem-sucedido, preenchia minha expectativa!... Via estender-se até os confins dessa terra selvagem o reino de Cristo, que eu viera trazer para cá. - Ele continuou: - Por isso, quando soube que um fidalgo de aventuras, que não dependia nem do rei da França nem do rei da Inglaterra, se instalava nessa no man's land do Maine, nas costas da Acádia, fiquei imediatamente de sobreaviso. Tomei informações sobre ele. Era um flibusteiro das Pequenas Antilhas. Mas havia mais alguma coisa. Se eu via nele um perigo, aquele que ele preparava para mim era de uma espécie desconhecida. Dessa vez, esse trazia consigo minha perda.

— Creio poder assegurar-lhe que meu^esposo, ao se instalar nas costas do Maine com cartas de gerência do Massachusetts, ignorava tudo a seu respeito. Ao contrário, sempre se mostrou disposto a encontrar todo habitante ou missionário da região, francês, inglês, escocês, para se aliar a ele. Quanto a mim, no início, nem sequer estava presente nas paragens da baía Francesa.

— Para dizer a verdade, não foi o perigo da vinda dele o que me alertou. A baía Francesa é um tal cadinho de nações que todos podem ainda encontrar ali o seu lugar. Mas eu tivera uma espécie de sonho: "Tudo começa. Tudo começa", gritava-me uma voz na nuvem...

Naquele dia ele se recusou a dizer qualquer outra coisa. Quando fingia não se lembrar ou estar confuso, ela sabia que nele isso era sinal de uma dor insuportável, que não conseguia superar com palavras sem desmaiar. Recomendava-lhe então que tivesse pa ciência, reconduzia-o a questões anódinas, a assuntos menos penosos.

Mas nada em sua vida fora anódino, parecia-lhe.

CAPÍTULO XX

Uma paixão condenada

-Seja como for, eu tinha conseguido até então que os diques não se rompessem - declarou de repente.

Depois, como lhe acontecia regularmente, deixou passar um longo momento de silêncio, dando a impressão de que perdera o fio do pensamento ou que adormecera.

Continuou, com uma voz sufocada, monocórdia e por instantes trémula:

-        A primeira vez que os diques se romperam... foi naquele dia do outono.. Eu andava na floresta. A essa altura, Loménie, por ordem minha, devia investir contra o posto de Katarunk.

"Ele e eu tínhamos feito um acordo de "arrancar sem demora as raízes do invasor, que prometiam -proliferar.

"Agíamos sem a aprovação de Frontenac, mas não era a primeira vez que meu amigo de infância e eu fazíamos nossos negócios de acordo com nossas próprias ideias. Eu o apressara a pôr-se em ação, a fim de chegar antes 'deles', daqueles que subiam do sul numa caravana... Cláudio atearia fogo no posto, depois prepararia a emboscada. De minha parte eu me preparava para reunir-me a um segundo contingente de forças armadas vindo de Trois-Rivieres e de Ville-Marie, assim como da região do Richelieu. Huronianos e algonquinos, comandados pelos melhores senhores canadenses que já me haviam acompanhado em minhas campanhas contra os heréticps da Nova Inglaterra: L'Aubigniere, Maudreuil, Pont-Briand.

"Estava indo pois ao seu encontro, seguro de ter posto tudo em açào para acabar com os indesejáveis. Mas eu andava como num pesadelo. Pois uma notícia me fora transmitida: 'eles' subiam com cavalos.

"Não sei por que esse detalhe me atormentava o espírito como uma verruma de artesão penetrando profundamente na madeira e extraindo-lhe a substância.

"Havia nessa audácia de invadir o centro de uma região até então deserta, não apenas com mulheres e crianças, mas com cavalos, uma afirmação de não se deixar deter por nada, uma tranquila segurança de se mostrar finalmente o mais forte, e que eu sentia como um desafio.

"O pressentimento associado a meu sonho abalava minha convicção de levar aquela campanha a bom termo, apesar do cuidado que tínhamos tido em prepará-la, a certeza de que nenhum daqueles estrangeiros lhe escaparia.

"Eu começava a andar num estado desdobrado. Estava ao mesmo tempo com os estrangeiros e seus cavalos, realizando uma façanha sem precedentes, e com Loménie e as tropas que os esperavam para trucidá-los.

"A floresta chamejava. Quero dizer, eu a via chamejar a meus olhos. O vermelho e o dourado das árvores no outono cercavam-me de chamas imóveis, e o calor incandescente do dia contribuía para essa miragem. Ela era em toda parte a presença temível. Minha angústia chegou a tal ponto que, no cimo de um promontório, a cavaleiro de um lago, tive de me deter, a fim de retomar fôlego.

"E foi então que eu A vi. Ela, 'a mulher nua saindo das águas".

"Pronto!", pensou Angélica.

Ele calou-se.

Mas quando ele se calava, ela não procurava romper o silêncio... Menos por tolerância que por lassidão. Menos por pudor que por estar habituada a esse tipo de debate. Havia expresso muitas vezes sua defesa quanto a seus direitos, que ela julgava dentre os mais inalienáveis, de poder, numa cálida tarde de verão indígena, reconhecidamente escaldante, banhar-se num dos dez mil lagos da regiãodo Maine americano, região por outro lado considerada tão impenetrável que havia poucos riscos, num âmbito de milhares de milhas ao redor, de que pudesse ser percebida por um estrangeiro-, de passagem por ali.

Que isso tenha acarretado toda uma série de dramas, de complicações e até guerras, que teriam provavelmente-ocorrido cedo ou tarde, mas que encontraram um pretexto para eclodir, foi o que se encarregaram de fazê-la compreender no decorrer dos anos, em que vira apresentar-se ao mesmo tempo toda a artificialidade do fenómeno, mas também sua amplitude secreta, indecifrável para todos ou quase todos.

A vontade de reduzir o caso a suas proporções normais ditou-lhe uma reflexão muita chã, as únicas palavras que podiam obrigá-lo a reconhecer que ele se utilizara disso para subjugar os espíritos.

— Não me diga que julgou ter visto realizar-se a visão da Madre Madalena sobre a Diaba da Acádia que agitava sua grei! Você, menos que ninguém, poderia enganar-se a esse respeito!

— É verdade - concordou, com uma voz sufocada. - É verdade, jamais tive a menor dúvida de que não fosse você a mulher demoníaca da visão de Madre Madalena de Quebec. Ao contrário. Mas eu me escondi. Decidi esconder-me atrás das mentiras, não porque lhes desse crédito, mas do mesmo modo que o animal em perigo se camufla. Depois do que acabava de me acontecer, não tinha outra alternativa.

Ele gemeu.

Seu peito erguia-se de maneira espasmódica. Ela se levantou e foi encher uma tigela com uma bebida quente. Depois, voltando à sua cabeceira, deslizou-lhe o braço sob os ombros, amparando-o enquanto ele bebia.

— Fale agora, se quiser. Que você queria esconder?

— O que me aconteceu.

— Mas afinal o quê?

— Como vou sabê-lo... A descoberta de paixões desconhecidas? Você não pode compreender. Um dia eu lhe explicarei tudo... melhor... Como explicar o sentimento que se apoderou de mim? Mais do que um sentimento, ele exigia que eu abandonasse tudo, como o jovem rico do Evangelho, que eu me apresentasse diante de vocês, estrangeiros jurados de destruição, e que reconhecesse: "Sou um dos seus".

"Pior: agindo dessa maneira, entreguei-me, aproximando-me de seu objeto, às penas de uma paixão que só poderia ser corrosiva e mortal, pois era assim que eu sempre considerara os transportes do amor, mas que .permanecia, adivinhava-o antecipadamente, insaciável, fazendo de mim um danado que queimava de um fogo cujo domínio jamais eu suspeitara.

"Quantas confissões tinham me descrito os mesmos sintomas irresistíveis, e que deviam ser evitados e combatidos, pois abrem-nos um paraíso, em que se é o único a penetrar, através de delícias e sofrimentos, que somos os únicos a viver, a dar, e dos quais, subitamente, me sentia presa.

"Caí fulminado como por um raio. A palavra é fraca. Encontrei-me só. Único em minha espécie, num mundo povoado de inimigos. O Amor!... Eu compreendia, o Amor."

— Valia a pena fazer disso um drama tão grande? - disse ela, prudentemente.

— Sim! Pois era a negação de toda a minha vida e, por isso mesmo, minha condenação.

"Encontrei-me nu, sem sequer a fé num deus qualquer ao qual pudesse oferecer o sacrifício de minha metamorfose. Devia obedecer à iluminação?

"Não pude fazê-lo. Isso exigia demais de mim. Decidi prosseguir meu caminho na direção escolhida. Mas, a partir daquele dia, tudo foi destruído. E tudo não passou de uma lenta e convulsiva queda de todo o meu ser até o fim.

"Contra você e os seus, tentei todos os meus planos. Mandei buscar na França a súmula do processo de feitiçaria movido outrora contra seu marido..Mas sua vitória em Quebec suplantou-me em rapidez, e não mesurpreendeu. Eu estava vencido de antemão, como, no fundo, sempre estivera. Quando vocês se aproximaram de Quebec, Maubeuge me exilou."

Deteve-se, depois lançou, num súbito acesso de cólera:

-        Sem sua intervenção, eu teria retomado a cidade, e vocês não a teriam conquistado.

Continuou, num outro tom de voz:

-        Maubeuge, meu superior, me exilou. Não sem antes fustigar-me com palavras duras. Entretanto, o que ele me disse, naquele último encontro, eu já sabia. Eu o soubera, num clarão, à beira de um lago.

"Meus votos de obediência me obrigavam a me afastar, no momento em que me sentia mais desprovido... Fui para muito longe, sozinho e sem amigos.

"Perdi meus poderes. "

"Sentia no fundo de mim a covardia, a fraqueza invadindo-me, e o medo de ser despojado daquilo que constituía minha força dominadora sobre os outros me atormentava."

Falou pouco dos meses passados nos povoados de um largo setor entre o lago Frontenac ou Ontário e o lago Huron. O ponto de ligação dos missionários era esse estabelecimento do Forte Sainte,-Marie, reconstruído no estreito que ligava o lago Huron ao lago Superior ou Tracy.

Situava-se a meses de navegação do último ponto da Nova França habitado, o povoado de Lachine, perto de Montreal, de onde partiam, para lá das corredeiras, todas as expedições para o alto Saint-Laurent e os Grandes Lagos. Fora os homens de guarnição dos fortes, como do Forte Frontenac, isolados, raros e a semanas de marcha uns dos outros, e à exceção da passagem de alguns "viajantes" ou exploradores de bosques, mais ou menos desprovidos de licença, selvagens, nada mais que selvagens.

As missões agrupavam os índios batizados e os catecúmenos de nações iroquesas, mais ou menos dispersas e aniquiladas pelas guerras com seus congéneres pagãos: os neutros, os do Erie, os andastes, e também iroqueses das Cinco Nações, convertidos, perseguidos e expulsos de suas tribos por esse fato. Eles deixavam o vale dos Cinco Lagos para vir se reunir à sombra dos franceses e dos jesuítas, não somente a fim de poder praticar sua nova fé, mas também para receber proteção dos militares franceses.

Segundo o que dava a entender, o jesuíta, banido e relegado, parecia ter atravessado aqueles anos, que se apresentavam como anos ativos de apostolado, num estado de transes nervosos, cuidadosamente dissimulados aos olhos de seus irmãos de religião, os outros jesuítas, e de seus ajudantes e servidores franceses. Procurava evitar os exploradores de bosques e os comerciantes canadenses, recusando-se a tomar conhecimento de fosse o que fosse que acontecesse no Canadá ou na Acádia. Daí o rumor que se espalhara prematuramente nas cidades, censos e senhorias da Nova França, de que estava prisioneiro dos iroqueses, pois nenhuma notícia chegava jamais sobre ele. E, ademais, não recebeu nenhuma notícia de quem quer que fosse. Ninguém procurou se informar sobre o lugar em que se encontrava nem fazer chegar-lhe às mãos qualquer mensagem.

- De fato, compreendi que ninguém se preocupava comigo - disse com um muxoxo de amargura. - Nem com o que podia acontecer-me, nem com a importância dos trabalhos aos quais eu dedicava meus dias. O Sr. e a Sra. de Peyrac estavam em Que-bec, e todos procuravam voltar-se para os vencedores, ávidos em se beneficiar com o encontro.

"Queriam esquecer-me. Eu desaparecera. E era mais simples dizer que eu era cativo dos iroqueses.

"Ora, cativo eu fui. Mas apenas depois de minha 'morte', essa morte que, como você disse, foi inicialmente anunciada na Nova Inglaterra, antes de o ser na Nova França."

CAPÍTULO XXI

O suplício entre os iroqueses- Um covarde entre os heróis

-Eis em que circunstâncias fui capturado.; Certa manha de verão, em companhia do Padre de Marville e de um jovem "dado"canadense, Emanuael Labour, que havia um ano fora para ali devotar-se à conversão dos selvagens, além de alguns neófitos, eu me dirigia a uma aldeia para celebrar a missa, quando fomos cercados por um contingente de guerreiros iroqueses. Você sabe como eles são. Estamos andando pelo centro de uma floresta aparentemente deserta, mas na qual os pássaros estão calados, e subitamente os troncos das árvores se desdobraram com uma silhueta humana. E eis-nos cercados por fantasmas emplumados que se apoderam de nós.

O calvário começava. Depois de dois dias de caminhada, guerreiros e prisioneiros chegaram às cercanias de uma das primeiras aldeias do vale dos iroqueses.

-        Nenhum de nós tinha ilusões. A tortura e a morte nos esperavam.

"A noite foi longa na cabana onde fomos encerrados. Conhecíamos a sorte que nos estava reservada. Eu olhava com inveja meus companheiros Marville e Labour, que, depois de terem rezado, haviam mergulhado num sono tranquilo. Eu mesmo os exortara a essa serenidade, dizendo-lhes que eles estavam nas mãos do Senhor. As palavras saíam-me dos lábios como substâncias estranhas.

"Fui invadido por uma fria paralisia. E eles, reconfortados por minhas palavras, dormiam, enquanto eu, espreitando as horas, via aproximar-se o momento das assustadoras torturas que já conhecera. 'Ah! que a noite jamais termine, que não comece um novo dia. Que Deus pare a terra, que Ele nos destrua a todos, humanos dementes e cruéis, vermes da Criação, mas que jamais chegue o instante da dor que nos preparam. Você não viveu, dizia comigo. Não conheceu a felicidade. 'E agora esse corpo, que não conheceu o amor, vai ser entregue aos bárbaros para suplícios aos quais sua carne se recusa.'

"Ah! A agonia de Cristo, como estava próxima! Nenhum anjo veio me consolar. Eu não fizera por merecê-lo.

"Estava no inferno. O céu era surdo. Estava num inferno povoado de demónios. Num inferno às portas do qual havia deixado toda e qualquer esperança.

"Subsistiam em meu espírito apenas o medo visceral das torturas e, em meu pensamento, as razões daquela odiosa fatalidade. E a lembrança daquela a quem eu devia minha queda voltou-me ao pensamento. Um rosto, uma silhueta de mulher, sempre a mesma. Você, surgindo desse caos como que para me desafiar, rejubilar-se, felicitar-se com minha perda...:

"Não", disse ele, colocando a mão sobre a dela. "Tudo isso é falso. Você não tinha nenhuma responsabilidade sobre aquele delírio que me corroía havia tanto tempo, a não ser por existir, por me ter aparecido!

"Mas, naquele momento, penetrado pelo terror, tremendo dos pés à cabeça, como um animal forçado que sente a morte e espera o abate, eu hauria um sombrio sustento num sentimento de rancor e de ódio para com uma personagem símbolo - uma mulher - que, com sua aparição, transtornara o curso de minha vida.

"Disse-lhe uma vez que eu não estava preparado para nada do que empreendera. Ora, uma coisa é tomar consciência de um erro ou de um fracasso, e todos devemos nos esforçar para enfrentá-lo eventualmente. Outra coisa, porém, e muito mais mortal, é perceber sua própria existência, já longa, como ridícula e perigosa impostura, fruto ela mesma de um monstruoso engano, cuja malícia jamais soubemos discenir.

"Desse despertar dava minha perda. Por essa brecha todas minhãs defesas haviam fugido.

"Minha presença-naqueles lugares, entre aqueles demónios prontos a me imolar pàrecia-me não só intolerável, mas de uma insuportável injustiça.

"Subia-me aos lábios um grito que, num último sobressalto de dignidade, eu impedia de sair.

'Duas vezes, não! Duas vezes, não!'

"Eu acreditava ter ganho por meu primeiro suplício direito à serenidade e à predominância. Mas Deus me enganara, também nesse caso. Não me bastava ter sido torturado uma vez, ter perdido meus dedos...

"Ao alvorecer, ouvi nossos índios cristãos, huronianos e iro-queses, que haviam sido colocados numa outra cabana, começarem a cantar seus cantos de morte. Percebi que vinham buscá-los, pois o canto se distanciava, mas por instantes podia-se ouvi-lo vogar pela floresta, acima da aldeia. Depois percebi os bafios do cheiro de carne grelhada tão característico que uma-brisa levava até nós: o odor dos suplícios.

"O sol nasceu. Por um interstício das paredes da cabana, sempre espreitando, vi a luz do dia invadir um céu puro e suave, refletindo-se na superfície de um lago.

"Levaram-nos por nossa vez. Até a clareira onde, já bem queimados, nossos índios continuavam a insultar seus torturadores. Outros se calavam, para lá da palavra, com a língua cortada ou queimada, mas com olhares lúcidos ainda.

"Três pilares nos esperavam.

"Revezando-se junto às vítimas, os guerreiros eram numerosos, reunidos numa espécie de silêncio solene e preocupado, cortado apenas, periodicamente, por uma litania de insultos e de responsos, nos quais, conforme o ritual, lançavam-se ao rosto uns dos outros as razões que possuíam para se odiar, para ter-se combatido e feito perecer amigos e parentes mútuos.

"Diante de mim, surgiu Utakê, que me enfrentou com seu olhar brilhante.

"As náuseas do medo atormentavam minhas entranhas.

"Foi então que ele se aproximou de mim, munido de um sílex de gume afiado e de um pequeno malho e, fazendo-me abrir a boca, quebrou-me dois dentes. Um serviço limpo e rápido.

'"Você tão orgulhoso de sua dentadura, Toga Negra!', disse ele. 'Inveja', como todos os brancos, nossos dentes sadios. Ouço dizerem: 'Que belos dentes têm esses selvagens!' E eu sei que você procurou descobrir nosso segredo para conservar os seus tão belos e brilhantes quando eram quando chegou a nossas terras. £ eu o vi mascar goma misturada com argila fina e suco de su-magre branco, como nós, para conservar-lhes a brancura e a saúde. Você não gosta de sofrer, Toga Negra, nem de ser diminuído diante de seus inimigos, e sobretudo, de seus amigos!...'

"Pus-me a tremer.

"Um guerreiro aproximou-se do jovem Emanuel e, pegando-lhe a mão, começou a serrar-lhe uma falange com o gume de uma concha.

"Tudo se misturava. Estava abnubilado por aquele dedo branco do jovem adolescente que o índio ia serrando com a concha, e pelas gotas de sangue caindo pesadamente no chão.

"Eu pensava: 'Eles já me tiraram dois dedos. Dessa vez, se me cortarem outros, estará acabado. Não poderei mais dizer a missa. O papa me recusará autorização por causa de minhas mutilações, e dessa vez ele não passará por cima disso, pois saberá que não sou digno'.

"Era uma coisa demente e sem lógica, mas o centro de meu espírito tornou-se um turbilhão de revolta, desespero e recusa.

"Um grito! Um grito de pavor soprou em meu peito como um furacão. Eu ouvia esse grito e não sabia que era eu que bramia.

"Joguei-me de joelhos diante de Utakê. Rastejava a seus pés, suplicando-lhe que me poupasse. Que me poupasse sobre tudo o suplício. 'Mais uma vez, nãol-Mais uma vez, não!...' gritava-lhe. 'Mate-me, mas poupe-me da tortura, farei o que você quiser.'

"O que havia de mais horrível nessa cena abjeta era perceber os olhares perdidos, escandalizados, incrédulos, daqueles que me cercavam, tanto dos carrascos quanto de meus infelizes companheiros prometidos ao martírio, daqueles, dentre os neófitos, que ja haviam derramado seu sangue- e sofrido sua paixão pela fé cristã, e que, semimortos," assistiam a minha ignóbil fraqueza.

"Depois, todos aqueles olhares se apagaram, se estreitaram, passaram a ser um único olhar, o olhar azul e cândido daquela criança, do pequeno 'dado2 canadense. Emanuel, que se deixava destacar, nu, no pilar de torturas, sem um queixume nem um sinal de medo, e que, me olhava, me olhava... horrorizado!... Nió pelos sofrimentos e pela morte próxima, mas por mim... horrorizado!..."

-Não chore - disse ela. - Faz mal a seus olhos. Você pode ficar cego.

Ela se levantou e foi banhar-lhe as pálpebras. As lágrimas escorriam em pequenos sulcos pela face machucada, enquanto ele arquejava com soluços secos e dilacerantes.

Ycalme-se! Acalme-se! - dizia-lhe Angélica, num tom baixo e reconfortante.

Acariciou-lhe suavemente a fronte, constelada de equimoses e de cicatrizes pérfidas.

- Acalme-se, meu Padre! Tornaremos a falar de tudo isso um outro dia.

Mas era-lhe preciso prosseguir o alucinante relato.

-Há uma certa volúpia em ser covarde, quando se lutou a vida toda para dominar os demónios do medo - continuou ele.

- Eu não ocultava absolutamente... O que posso dizer-lhe? Como descrever o covarde alívio que eu experimentava por me reencontrar vivo e ver afastar-se o espectro sinistro dos sofrimentos desumanos? Pouco me importava o desprezo com que todos me cumulavam, os vivos e os mortos, os carrascos e as vítimas, os amigos e os inimigos...

"Eu ouvira os chefes discutirem sobre entregar-me às mulheres e às crianças, o que era reservado aos guerreiros poltrões que davam mostra de pusilanimidade diante da morte e do suplício, e, acredite-me, aquelas pequenas criaturas inocentes de unhas pontudas não eram melhores que seus esposos, pais e irmãos para fazê-lo morrer como um covarde sofrendo dores inomináveis.

"Mas essa situação humilhante foi julgada ainda muito honrosa para mim, que havia trazido a toda a Companhia uma vergonha sem precedentes.

'Graças a Deus', disse comigo, adivinhando o veredicto.

"Meio desfalecido depois dessa crise, permaneci estendido no chão, com a fronte na poeira. Eu teria beijado a terra viva. Eu a teria comido.

"Levantaram-me brutalmente. Os olhos de Utakê eram duas lâminas cortantes.

" 'Não espere nada de mim', disse-me. 'Não lhe concederei o benefício de matá-lo com um golpe de tomabawk, como deseja. Você susparia o título de mártir junto a seus irmãos. E isso não lhe concederei tampouco. Você é muito vil, e me feriu com sua conduta, a mim, que o honrava. Você nos faz não só duvidar da grandeza de seu Deus, mas de sua existência.'

"Nada mais de seu desprezo me atingia, mesmo quando, em seguida, me atiraram como lixo aos pés de uma mulher velha, para ser seu servidor e substituir-lhe o filho, que ela perdera na guerra. Essa perda a deixava sem ninguém para levar-lhe caça e realizar as tarefas que a idade avançada não lhe permitia mais efetuar.

"Minha patroa me moía de pancadas... tanto mais que eu era muito desastrado, pouco robusto, e ela era objetivo de zombaria e de brincadeiras perpétuas por parte das companheiras, pois jamais se vira uma mulher da aldeia servida por um prisioneiro que se houvesse mostrado tão covarde diante da morte, tão repugnante em suas súplicas. A vergonha recaía sobre ela. 'Como você pôde fazer isso', dizia-me, 'você, que representava meu filho?' Eu tentava mostrar-lhe que, no momento daqueles acontecimentos, ainda não lhe fora dado como escravo. Mas para ela essa divisão do tempo não passava de brincadeira...

"Para certas coisas, entre os índios, não existe antes e depois. Ela confundia seu filho e a mim, apoiando-se na certeza, que se estabeleceu pouco a pouco, de que eu era seu filho ou a reencarnação dele, e isso era muito vergonhoso para ela. Então eu lhe lembrava que seu filho, precisamente, morrera com muita coragem, torturado durante pelo menos seis horas pelos huronianos do Sr. de L' Aubigniére. Mas isso não a consolava, pois vira em sonho que eu era seu filho e que minha atitude diante dos chefes das Cinco Nações a desonrara.-Ora, você sabe que os sonhos têm para os índios uma prioridade absoluta sobre a realidade dos fatos."

CAPITULO XXII

À cabeceira do supliciado

Quando ele se calou, aniquilado, com as pálpebras fechadas, Angélica ficou durante muito tempo sentada à sua cabeceira. Os termos da confissão que acabara de fazer-lhe, e tudo o que implicavam, e esclareciam em seu espírito.

-        Agora compreendo. Era esse, portanto, o terrível segredo

que o jovem Emanuel queria confiar-me no jardim.

Ela falara a meia-voz, para si mesma. Ela abriu bruscamente os olhos.

— O jovem Emanuel? Os iroqueses não o imolaram?

— Não, nós o vimos vivo. Ele acompanhava o Padre de Marville quando este, escoldado por Tahutaguete, o chefe dos onon-dagas, chegou a Salem para levar a notícia dè sua "morte" e... de seu martírio.

— Por que Utakê quis que os ingleses fossem os primeiros a saber?

— Não era "os ingleses primeiro", mas nós. Ora, Utakê sabia que estávamos na Nova Inglaterra, meu esposo e eu, e queria que fôssemos avisados antes do franceses.

— "Inimigos mais terríveis do que eu sou para você..." - murmurou, como se recitasse uma frase que lhe martelava a memória. - Assim, enviou primeiro a você, a quem eu havia combatido tanto, esse colar que dizia: "Seu inimigo não pode mais prejudicá-la". Oh! Como ele tinha razão!

"Haveria criatura mais desprezível e mais despojada de todas as possibilidades de prejudicá-la que eu?! Mas eu compreendo a que imperativo obedeceu Marville, testemunha de meu renegamento, declarando-me morto. Era preciso salvar a honra da ordem!"

"E certamente não poupou esforço para isso, deve-se fazer-lhe justiça", pensou Angélica, rememorando o luxo de detalhes com que o jesuíta lhes descrevera em Salem a "morte gloriosa" do Padre d'Orgeval.

Sua intuição era portanto correta. Em toda aquela cena não deixara de supor o tempo todo uma mentira oculta. Através da personalidade orgulhosa do Padre de Marville, sentira vibrar um sofrimento de esfolado vivo, um sofrimento verdadeiro, feito de humilhação, de decepção, de pavor e de pesar. Podia-se adivinhar o que sentira aquele jesuíta convicto diante da ruína do mestre, da covardia do maior e do melhor dentre deles, a seus olhos. A ordem dos jesuítas tinha sido marcada com a mais horrível das máculas: a abjuração.

— Que seu irmão em religião o tenha feito passar por morto, por não ter outra solução para ocultar sua vergonha, eu admito - disse ela. - Mas que tenha aproveitado a oportunidade para invocar sobre nós a maldição do céu e nos tornar responsáveis-por seu suplício, isso era levar a hipocrisia muito longe. O que há de verdadeiro nessa acusação que, ao que parece, teria proferido em seu suplício: "É ela! É por sua culpa que morro!"?

— Tudo isso é verdadeiro. Sim, eu proferi, gritei, com todas as minhas forças essas palavras. No momento em que o chefe Utakê baixava sua mão e, por desprezo, concedia-me perdão, subsistia em mim a vontade de clamar minha justificativa, de dar àqueles que eu escandalizava pelo menos uma explicação que ate-

uasse o alcance de meu ato... fazê-los acreditar, por exemplo, que eu tinha sido vítima dos maus espíritos, e só me aparecia ""esse caos, como lhe disse, o objeto responsável por minha ruí-a, a mulher cuja visão me arrastara por um processo que eu não odia nem analisar, nem admitir, numa loucura fatalmente con-ária a tudo o que era o caminho reto de minha vida até então, ponto de me persuadir de estar certo, ao denunciar os sortilégios e gritar-lhes: "E ela! E ela que me condena, é a ela, áDama do Lago de Prata, que devo minha p^rda, que devo minha morte..."

Deu um soluço profundo, semelhante a um estertor.

-        Eu falava de minha morte, que eu sentia desabar sobre mim. A verdadeira morte, a morte total, a morte de mim mesmo... A morte do herói que eu havia sido... que eu quisera ser?., que sonhara ser. Minha morte total... Eu não existia mais... E fora ela que me matara. Ela, a Mulher, minha inimiga de sempre.

"Eu o sei... Era uma ideia louca, monstruosa, acusá-la, a você especialmente, mas minha obsessão nutrira-se de tantas aberrações, durante anos de mutismo e de solidão, que eu conseguira persuadir-me de meu enfeitiçamento.

"Eu gritava: 'É ela, a Dama do Lago de Prata é a causa de minha morte... Vinguem-me!... Vinguem-me!...'

"Vi suas faces lívidas e rígidas. Soube que... eu gritava em vão. Eles não me vingariam. Eles não me vingariam como eu merecia ser vingado... Eles não eram meus amigos!... Tinham dormido durante minha agonia! Horrorizados com minha abjuração, eles me rejeitavam... Nada subsistia dos sentimentos de afeição, de devotamente, de respeito que eu acreditava que tivessem por mim. Soube que nunca me tinham amado. Eu não era mais nada para eles."

Ele se agitava, e Angélica, receando que fosse acometido por um novo acesso de febre, não deu atenção ,a suas palavras, avisando-o de que estava na hora de seus "ágapes" cotidianos.

Levantou-se para ir preparar e aquecer as rações, enquanto ele continuava a falar.

-        É verdade. Humilhado como estava diante de minha ruína, eu gritava que era preciso destruir aquela feiticeira. Pelo menos foi como indiquei a Marville, em sua perplexidade, o caminho a seguir para prosseguir minha luta.

"Enquanto Tahutaguete o conduzia para a costa, deve ter re-moído sua amargura. Havia recebido um abalo interior mais violento que o da tortura, e sendo seus recursos de transmutação mística limitados, deve ter-se apegado a esse pensamento de combater inimigos.

"Para não ser por sua vez destruído, precisava construir uma versão. Está bem! Está bem! Ele agiu corretamente."

Angélica escutava-o, intrigada.

- Palavra de honra, parece até que você o aprova!... Pois bem! Agora vejo que não é lenda quando dizem que os jesuítas sempre se apoiam, em qualquer circunstância.

Mas não era o momento de recomeçar o debate.

Fez as crianças se levantarem. Tomava-as nos braços e ninava-as, uma após outra, para despertá-las suavemente. Beijava-lhe as bochechas frescas, os cabelos embaraçados e sedosos, adorava sua fragilidade e sua inocência, a luz de seus olhos e de seus sorrisos, seus pequenos corpos harmoniosos e perfeitos, em que a vida e o vigor fremiam novamente. "Vocês são a consolação do mundo! São o tesouro de minha vida!", murmurava, baixinho. "São a justificativa de nossas lutas ferozes, de nossos combates imbecis!..."

Dava a cada uma um pouco de carinho, cantarolando-lhes um versinho, como um segredo ao seu ouvido, enquanto passeava de lá para cá, e depois as fazia sentar-se num banco diante dela, derramava sopa numa escudela e distribuía o alimento em suas boquinhas abertas como as de passarinhos.

Era um ritual imutável.

Olhando para os gémeos, seus dois anos e meio completos e solidamente postados em seu lugar nesta terra, evocou-lhes a primeira cólera, quando as duas "coisinhas", que acabara de pôr no mundo em Salem, haviam desaprovado em altos brados a intervenção do Padre de Marville.

Teria sido o rumor de vozes desagradáveis ou o fato de se verem subitamente postas de lado por pessoas habitualmente atentas e subitamente transformadas como galinhas no galinheiro pela aparição de um jesuíta no seio da puritana Salem, ou a obscura intuição daquilo que se declarava hostil à sua família, sua mes-nie, sua casa, sua criadagem e tripulantes?...

"Vocês já faziam parte da tribo, meus pequenos Peyrac!..."

Ou simplesmente as amas-de-leite nervosas e curiosas tinham esquecido a hora da mamada?...

Angélica, a parturiente, em seu roupão caseiro, estava sentada nos degraus da escada de Mrs. Cranmer, cercada por todas as mulheres inglesas e heréticas da casa, e embaixo, o Padre de Marville, como profeta vingador, com o rosto encovado pelas privações, a sotaina esfarrapada, apontava-a e gritava: "E ela que é a causa dessa morte".

Explodira então o vigoroso concerto gemelar e contestador daquelas criaturas que, juntas, não pesavam seis libras. E o espetáculo se encerrara.      

Ria sem querer daquela lembrança, mas, apesar de vontade de descrevê-la a seu hóspede, conteve-se. Não era hora para amenidades.

Depois de alimentar seus filhotes, deu-lhes um pauzinho de ju-juba para enganar-lhes a fome, caso não estivessem saciados.. Então, pôs a esquentar o caldeirão cheio de água para as abluções e arrastou o escabelo para o outro lado da cama, à cabeceira do ferido. Ajudou-o a recostar-se nos travesseiros a fim de poder alimentá-lo mais comodamente, sentou-se com a tigela na mão e começou a fazê-lo engolir caldo em pequenas colheradas. Não sabia nunca se conseguiria fazê-lo comer sem dificuldades. Seja por apatia, seja por desejo de economizar provisões, ele demonstrava uma verdadeira repugnância em relação à comida. Sentia-se humilhado por estar entregue à sua mercê, numa dependência infantil? Suas mãos, seus braços estavam muito fracos para poder segurar a tigela e levar à boca a colher sem derrubá-las.

Naqueles momentos irritava-se menos com ele do que quando ele discorria com uma súbita autoridade. Via nele um homem que superestimara os próprios talentos para dominar o cavalo fogoso da vida, uma vida que ele pretendera superior; o impetuoso e sorrateiro corcel do destino fizera-o perder as estribeiras. "Quando não se está preparado, os fatos se encarregam de avisá-lo disso!"

Essa máxima dirigia-se também a si mesma, e julgando-o pela medida de suas experiências e à luz das confidências que acabava de ouvir, pôs-se a considerá-lo como um irmão, um irmão de combate.

- Folgo em saber que ele tenha sido poupado - murmurou ele. - Ele, o jovem "dado" que tinha um nome tão belo... Emanuel... E que eu escandalizara tanto... Folgo em saber que tenha escapado ao fogo... E que tenha conservado a vida... Ele saberá o que fazer dela, para a glória de Deus e o benefício dos homens.

Vendo-o sereno e aceitando com docilidade o alimento que lhe oferecia, julgou o momento inoportuno para revelar-lhe toda a verdade a propósito do pobre Emanuel, que, infelizmente, também estava morto.

CAPITULO XXIII

O segundo martírio do jesuíta

Conversavam sobre temas que teriam feito arregalar-se de uma surpresa inquieta os olhos de quem quer que não tivesse vivido na América, perguntas, resposta que só podem ser trocadas por aqueles que falam, enfraquecidos, na penumbra de uma invernada sem fim.

— Você teria me comido? - perguntou ele, certo dia em que ela lhe contava a descoberta na soleira da porta e o desagrado por encontrar, em vez de víveres, um cadáver.

— Talvez!... Não... Também pensei nisso. Foi um pensamento fugaz... Foi uma vertigem causada pela fome, uma tentação... Eu estava exausta. Começava a compreender que não tornaria a ver o homem que amo, que meus filhos estavam morrendo... Não havia nenhum outro recurso... e tivera uma esperança tão grande... Não, realmente. Se isso me passou pela cabeça, foi com horror... E depois... você estava vivo! Não! Não! Utakê... Não sei o que ele quis... Será que o mandou para mim para que acabasse com você, o comesse?... Não sei. Tudo isso é muito louco... Seria o fim, o fim do mundo, o fim de nossos mundos... Não se deve pensar nisso...

— Pois bem! A mim eles comeram - disse - um pouquinho assim, em pequenos pedaços que um guerreiro me retirava das omoplatas com uma faca bem afiada... enquanto me levaram ao suplício.

-        É por isso que você tem essas duas feridas nas costas?

Notara que não eram queimaduras, e que as feridas cicatrizadas, apesar de seus cuidados deixavam profundos sulcos na pele.

— Sim!... Ele me comia, depois cuspia, dizendo: "Como sua carne é imunda!"

— Quando aconteceu isso? Em que suplício?

— No segundo"..; no terceiro, se quiser...

— Mas eu julgava que Utakê tinha decidido poupá-lo!

— Eu também acreditava que já estava resolvido. -Durante meses, eu me habituara, me acostumara à minha escravidão. Era evidentemente moído de pancadas da manha à noite, o que mantinha as forças de minha Tia, minha cara Tia Nenibush, que descontava em mim seus nervos, e no fundo éramos bons amigos. Tínhamos conversas interessantes. As mulheres índias não são nada tolas. Têm muito tutano. Gostam de refletir sobre os destinos humanos, e o domínio dos sonhos abrem múltiplos labirintos à sua imaginação. Eu recolhia e cortava lenha para ela, ia à floresta buscar um animal que um parente dela lhe caçava. Ia, tropeçando nas raízes, perdendo-me nas brenhas, acompanhando por zombarias das indiazinhas ágeis que também iam buscar os produtos da caça dos pais ou esposos. Eu voltava muito depois delas. Chamavam-me de Mulher Negra e riam de meu desajeitamento para encontrar o caminho e penetrar na floresta, pois, você pode imaginar como, mais ainda que os exploradores de bosques comerciantes, que são indianizados, nós, missionários, embaraçaçdos com nossas sotainas, ganhamos os prémios do desajeitamento entre os senhores selvagens. "Você é mais desajeitado que os yennglis", diziam-me.

"Creio que nem vi passar as estações. Nem as contei. Um outono? Dois outonos... talvez três?... Depois foi aquela outra manha, em que foram me buscar novamente. O inverno era atroz. As neves começavam cedo aquele ano. Eu estava tingindo peles, que minha Tia e eu devíamos preparar para o parente caçador.

"Não compreendi quando vi diante de mim quatro guerreiros, entre os jovens corajosos, que vinham procurar-me, encarregados de me levar à aldeia vizinha, aonde o chefe dos mohawks, Utakê, acabara de chegar. Fui imediatamente invadido por uma mortal inquietação, ao saber da chegada de meu pior inimigo.

"Já lhe disse. Eu acabara por me acalmar. Não temia mais nem as pancadas nem as fadigas daquela existência, nem a monotonia daqueles trabalhos humilhantes. Não receava nem desejava a morte, a menos que me fosse concedida por um golpe de tomahawk. Minha única obsessão era o receio de perecer sob as dores do fogo.

"Estava pois nessa situação quando vieram naquela fria manhã em que estava tingindo peles.

"Vieram e me disseram a fórmula consagrada e para mim aterradora: 'Meu irmão, coragem! Chegou o momento de cantar seu canto de morte'.

"Segui-os, não apenas mudo, mas num estado de estupor e de abatimento que bambeava tanto as pernas que tiveram de me segurar pelos braços. Eram pessoas muito jovens, aterradas por meu comportamento. Foi entretanto nesse trajeto que um deles começou a comer minhas costas.

"Quanto a Nenibush, foi ela que se encarregou de me cantar meu canto de morte com o concerto que ofereceu com protestos e uivos, agarrando-se, furiosa, a meus trapos para não me deixar ir.

"Foi apenas no meio do caminho que os guerreiros conseguiram li-vrar-se dela. Ouço-a ainda gemendo e maldizendo, pobre mulher, à qual retiravam uma segunda vez seu filho-prisioneiro-escravo. Seus gritos gravaram-se em minha memória e me perseguem em meu sono."

— Ouvi quando você repetia: "Ah! que ela se cale! que ela se cale!"

— Sem dúvida, trata-se mesmo dela!... Ao chegar ao burgo, encontrei alguns guerreiros em volta dos chefes das Cinco Nações, e à sua frente, como lhe disse, Utakê, o mohawk. Fez-se um longo discurso.

"Ó Hatskon-Ontsi, aqui está você! Teria reencontrado a amizade de seu Deus e o caminho de Sua Força?... Você que é o maior entre os maiores dos Togas Negras, você nos feriu e insultou mais que ninguém. Nós, que nascemos no orgulho de nossa morte, que nos rejubilamos desde muito cedo com a ideia da morte nas torturas, a fim de provar a grandeza do homem, você nos humilhou em nossas crenças.'

"Eu ferira profundamente Utakê, sabia-o. Minha covardia e minha fuga tinham feito deleita inimigo implacável; furioso por ter sido enganado, de uma maneira, a seu ver, desonrosa, mas pouco me importava, as palavras,não me atingiram.

"Finalmente, calou-se. Depois, após um longo momento, disse: ' 'Vejo pelo seu rosto que não se emendou e que não merece sofrer a prova dos bravos... Mas não se rejubile tão depressa, pois nos o entregaremos às mulheres'.

'Elas então irromperam com gritos agudos, jorrando de cada uma das Casas Compridas como uma torrente rolando as águas mortíferas. Como lhe descrever? Também nesse ponto minhas lembranças são caóticas. Só Gonsigo rever claramente o momento em que, seguro por mil punhos miúdos e com garras, lanharam-me o rosto com a ponta de caniços cortantes. Depois duas delas avançaram e, quando ficaram bem perto, vi que seguravam, com os punhos bem cerrados, pequenos roedores que se debatiam, só com a cabeça de fora, exibindo uma boca de dentes afiados, que elas me aplicaram aqui e ali, nas faces, na testa; eles começaram a morder e mordiscar, enquanto as mulheres histéricas riam e repetiam que iam deixá-los atacar meus olhos.

"Pus-me a gritar de pavor, mais do que de dor.

"Deveria ter dominado aquele sentimento de repulsa, agora sei. E calar-me, pois creio que, por uma nova razão, teria podido suportar a dor em silêncio. Mas era tarde demais. Eu me desou-rava mais uma vez.

"Diante disso, os anciãos interviram e me retiraram das mãos das mulheres e das crianças, arrastando-me para um canto até a sala do Conselho. Falavam entre eles e me observavam com um ar sombrio e desanimado, como os médicos contemplados um caso desesperador, cuja gravidade ultrapassa sua competência.

"Ouvi-os pronunciar palavras que tinham mais ou menos o seguinte sentido: 'É preciso no entanto prepará-lo".

"Após deliberarem, levaram-me para outra aldeia, onde havia uma choupana especial para pitar, isto é, reservada unicamente ao exercício de fumar.

"Era uma casa pequena, em que mal cabíamos, os anciões, os chefes, alguns de seus 'prestidigitadores' e eu. O cachimbo da paz começou a circular de boca em boca. Quando chegou a mim, pediram-me que tirasse mais baforadas que os outros. Isso durou muito tempo, e não ficaria surpreso se tivesse durado dois ou três dias. Ficamos assim fumando sem beber, sem nenhum alimento. No início circulou uma cabaça, não para beber mas para as necessidades naturais, unicamente para o líquido. Mas este logo se tornou rarefeito. Estávamos vazios, inteiramente impregnados de fumaça. O ar estava azul, denso. Os cantos salmodia-dos sustentavam o estado de idiotia.

"Senti náuseas. Meus pulmões queimavam. Depois desmaiei completamente, aspirado por um fenómeno que me seria difícil descrever, pois apagou-se quase inteiramente de minha memória. O que eu suponho é que, durante essa 'ausência', encontrei minha alma. Não apenas o meu eu, mas, mais complicado que isso, os diferentes amálgamas de minha alma, rostos, personagens de um tempo passado, vidas antigas que sobrecarregavam meu eu, que tinham se insinuado no centro de meu ser atual, submergindo-o, sufocando-o, paralisando-o com as gavinhas de uma vinha inculta. Entidades embaraçosas e estéries, fora de seu direito, que é deixar a criatura nova prosseguir livremente seu destino, desembaraçando-se pouco a pouco dessas sombras. Durante essa 'viagem' talvez eu tenha conseguido expulsá-las.

"Revejo a cena. Os anciãos continuavam à minha volta, mais como médicos do que como torturadores... Sim, a droga ajudou-me a voltar ao ponto de partida. A couraça era tão dura, que era preciso ao menos isso! Ajudou a quebrar essa concha petrificada ao redor do núcleo de meu ser. Nisso, muitas drogas são úteis quando a alma não pode, por suas próprias forças, reencontrar o fio de seu destino porque o Maligno, sempre ele, se divertiu em embaraçá-lo para perdê-la.

"Usadas eventualmente, elas salvam o espírito sem prejudicar o corpo... Os índios das possessões espanholas têm um cogumelo que permite tais regenerações, ajudando pelo menos a sobreviver sem enlouquecer tudo quando o que é humano se fecha..."

Passou a falar do mistério dos conhecimentos que o continente ainda inexplorado do Novo Mundo continha.

Ela esperava com paciência.

E, depois de refletir por muito tempo, ele voltou ao que se seguira à saída da choupana de pitar.

- Ainda assim, eu não estava curado. Os anciãos não se iludiam, pois continuavam a me olhar com ar dubitativo, mas, de minha parte, sentia-me mais como alguém que acaba de sofrer uma cirurgia, a ablação de órgãos importantes, mas que estavam podres e eram portanto perigosos. Somente o futuro diria o benefício que eu iria retirar daquela terapia singular.

"Eu adivinhava seus sentimentos. Para eles, os brancos eram uma espécie ingrata e inoportuna, que não aproveitava os precisos tesouros e ensinamentos "dispensados pela natureza tutelar.

Era preciso pegá-los muito jovens, diziam, para fazer deles homens dignos desse nome.

"Estavam tão convencidos de que não podiam tirar muita coisa de mim que renuciaram a pedir-me para cantar meu canto de morte enquanto me conduziam de novo ao sacrifício. Eu não era um ser honrado. Eu os cobria de vergonha. Dessa vez, para torturar uma criatura tão reles, escolheram um lugar afastado da aldeia, onde havia um velho pilar abandonado, e prepararam os instrumentos para aquecer ao fogo: machados, sovelas, com caras de nojo de pessoas obrigadas a realizar a mais entediante e insípida das tarefas..."

Angélica ouviu-o dar risadinhas como se revisse o espetáculo, e sobretudo as expressões aborrecidas dos carrascos humilhados, que começou a nomear à meia voz:

-        Utakê, Tahutaguete, Gosadaya, Hiyatgu, Garagonti.

Depois continuou a rir e, naqueles momentos, ela percebia-lhe um espírito jovem e brincalhão que apenas sua existência entre os selvagens lhe permitira exprimir.

— E... o que aconteceu em seguida?

— Ignoro-o.

Deixou passar um longo tempo. Ela pensou-que ele tivesse adormecido. Mas ele repetiu:

-        Ignoro-o... No entanto, lembro-me também... Vejo os machados incandescentes que passaram ao longo de minhas coxas e parece-me sentir aquele cheiro infecto de carne queimada sufocando-me... Creio ter sofrido o suplício... e creio ter sofrido horrivelmente... É muito vago... Não sei se gritei novamente, aumentando a vergonha de meus infelizes carrascos...

Deu novamente uma risadinha nervosa e soluçante.

-        Tenho ainda uma última lembrança, uma visão, melhor dizendo. Vejo Utakê acima de mim, ele é muito grande e ele me domina, pois parece-me que estou estendido no chão; atrás dele há o sol e grandes nuvens brancas dilatando-se, modeladas pela luz, deslizando através do céu como velas. Ele me diz:

" 'Não creia que vou perdoar-lhe a vergonha, Hatskon-Ontsi, a você que foi tão grande, a você que me enganou e me insultou mais que ninguém no mundo. Não admitirei que deixe em nossas memórias uma lembrança de desprezo e que se ouse dizer, quando seu nome for evocado: aquele que não merece sequer um nome era o inimigo de Utakewata! Você vai partir. Vou enviá-lo para além dos montes. Mas eu o perseguirei... tornarei encontrá-lo...

"Perguntei-lhe:

"Por que não acaba comigo?"

" 'Não cabe a mim acabar com você. Você atraiu maiores inimigos que eu, a quem cabe esse direito.'

"Diante do enigma dessa resposta, senti medo novamente. A quem iria entregar-me?... Seus olhos cruéis chamejaram.

'"Eu lhe declaro, Hatskon-Ontsi, você sofrerá, nesta terra, todas as dores, todas as paixões... até ser digno de que eu devore o coração!...'"

- Em seguida, houve uma longa viagem obscura, de que não me lembro.

"Da época mais sombria de minha infância, julgo ter conservado a esperança de que um dia eu poderia entrever a face luminosa da mulher, depois de ter-lhe conhecido o lado venenoso. Minha via, sem sabê-lo, encontrava seu significado naquele caminhar... A gente acredita que parte para as missões da América, mas agora sei que parti para um outro encontro.

"Quando despertei estava entre seus braços. Ela curava minhas feridas e dava-me de beber, como nenhuma mãe, nenhuma mulher jamais fizera por mim.

"Eu a reconhecia e nunca pensara vê-la tão próxima. Ela se identificou, eu esperava, extasiado e aterrorizado, aquele nome.

"Então, compreendi o quê Utakê quisera. Quão sutil e refinada foi sua vingança! Do mesmo modo que não podia fugir do tição inflamado aproximando-se de minha carne, não podia furtar-me à derradeira prova:

"O sonho ia estourar. A taça da salvação seria afastada de meus lábios. Eu retornaria às áridas e inelutáveis certezas da crueldade do mundo, contra a qual não há remédio.

"Entretanto; quando, por minha vez, eu disse meu nome, só pude ler em seu rosto tristeza, sofrimento e compaixão."

CAPITULO XXIV

Amor e ódio no jogo das paixões

Após esses dois longos e penosos relatos, houve um período de interminável mutismo.

Mortificado em seu orgulho, estaria procurando no silêncio o esquecimento? Ela continuaria a falar-lhe, a fim de manter-lhe o espírito alerta. Entretanto, mostrava-se prudente quando se sentia tentada a mencionar Joffrey de Peyrac. Evitava instintivamente pronunciar-lhe o nome, ou dizer: "meu esposo", pois sabia que, então, sua voz se abrandava, provocando nele uma irritação mesclada de amargura.

Se ele proclamava muito alto que ela era sua principal inimiga, ela adivinhava que Joffrey despertava nele um antagonismo mais confuso, pois dessa vez, a "traição" vinha do homem, e ele devia ter sonhado com um mundo em que todos os homens se uniriam para rebaixar e reduzir ao silêncio a Eva culpada, que havia arrastado Adão e toda a criação ao caos do pecado.

Por provocação, tentativa de justificativa à qual não queria renunciar, quando recomeçava a falar, ele não hesitava em se mostrar acerbo.

— Por sua culpa, perdi meus dois amigos mais queridos.

— Pont-Briand? Ele se impacientava.

— Pont-Briand não era alguém que se pudesse elevar ao nível de amigo. Era apenas um executante. O que lhe aconteceu foi lógico e sem más intenções.

— Você o induziu a isso de maneira hábil e maquiavélica.

-        Como julgar os seres sem deixá-los fazer uma escolha, e assim se desmascarar? Eu movi para a frente esse peão, e, graças a essa manobra, soube melhor não quem ele era, pois conhecia-o muito bem, mas quem era você, e também a que tipos de provocações podia reagir o Sr. de Peyrac.

"Mas deixemos Pont-Briand. Ele cumpriu seu papel.

"Fqlo de um de meus colegas de ordem, o Reverendo Padre de Vernon, e depois do Cavaleiro de Loménie-Chambord, meu irmão dileto desde o colégio de Clermonte, onde ele me sorriu pela primeira vez. Eu tinha catorze anos e ele, onze.

"Com esses dois, jamais tive qualquer querela. Nem sombra. Um entendimento perfeito. O conhecimento mútuo, a aliança eficaz em tudo. Em nossas missões e em nossos trabalhos. E foi só você aparecer para tudo desmoronar! O meus amigos desaparecidos! Quanta mágoa por tê-los perdido assim!, a vocês, que eram uma parte de mim mesmo!"

— Como soube que o Cavaleiro de Loménie estava morto?

— Morto!?

Seu grito explodiu como o de um homem que acaba de ser atingido no coração por um punhal assassino.

Angélica compreendeuque, até então, quando dizia: "Eu o perdi", falava do desafeto sentimental do Cavaleiro de Malta em relação a ele, não sabendo nada sobre seu fim,

Foi sentar-se ao pé da cama a fim de olhá-lo de frente. Inclinando para ela, ele fitava-a com um olhar alucinado, querendo decifrar em seu rosto a sentença em que se recusava a acreditar.

— Foi você que o matou?

— Sim!

Reclinou-se lentamente para trás. Sua face estava emaciada.

— Fui a causa disso?

— Você é a causa de todas as desgraças da Acádia. Você era o Homem negro que estava por trás da Diaba da visão. Você o soube sempre.

— Ele?! Não é possível! Onde? Quando foi isso?

— Aqui mesmo. No outono.

— Eu não disse a ele para vir. Cjueria mantê-lo afastado de minha desgraça. Temia-muito por sua vida.

-        Acontece que foi ele quem ouviu melhor seu apelo: "Vingue-me". Uma vez mafs, você o enviara para a vingança, e ele veio. Era uma missão sagrada. Dessa vez ele não faltaria com seu de ver, como em Katurunk, e realizaria seus desejos de álém-túmulo.

"E você mente a si mesmo, como fez em outras oportunidades. Sempre contou com ele, mais do que com qualquer outro, para obter nossa capitulação! Sempre esperou que ele se arrependesse de sua cegueria, que o levara a pronunciar-se a nosso favor, que voltasse a você, que reconhecesse seus erros culposos, que o afastaram de você, seu amigo e mestre.

"Ele pretendia renovar a façanha frustrada de Katarunk. Atacar o Forte de Wapassu em nossa ausência e queimá-lo.

"Mas eu estava presente.

"Não tinha outra alternativa senão executar-me, após obter a rendição de todos os nossos territórios até Gouldsboro, ou reconduzir-me à Nova França, não como triunfadora dessa vez, mas como prisioneira. Ali, eu teria sido entregue a Ambrosina. O ciclo infernal estava fechado. Aquele que você havia escolhido.

"Do alto deste fortim, onde eu estava refugiada, vi-o aproximar-se. Ele estava persuadido de que eu me deixaria convencer. Eu o abati. O que mais poderia fazer? Render-me? Trair os meus? Meus esposo? Meu amigos? Todos aqueles que haviam confiado em nós?

"Privadas de seu chefe, suas tropas se retiraram, não sem ter antes pilhado e depois incendiado Wapassu."

Ele baixava as pálpebras, pálido e sem fôlego. O sofrimento o consumia.

-        O Cláudio, Cláudio! - gritou - Meu irmão, meu amigo. Pelo menos você o matou imediatamente, espero?... pelo menos sua lendária habilidade lhe terá poupado uma longa agonia? Pois, ferido, longe de qualquer socorro, é preferível acabar com um ferido a arrastá-lo pelas intermináveis pistas do retorno!... Diga-me.

Segurou-lhe o punho.

— Ele morreu imediatamente, não é?

— Não sei! - gritou, libertando-se com tanto mais cólera quanto nunca deixara de recear ter tremido demais ao puxar o gatilho. - Eles retiraram o corpo e se foram.

— Se tivesse de encarar seus longos sofrimentos e sua agonia, jamais a perdoaria.

— E devo perdoar a você? Você se preocupa com nossos feridos, com aqueles que seus "vingadores" deixaram agonizar na ravina ou, quem sabe, no incêndio? Ignoro tudo o que aconteceu a meus amigos. É melhor assim. Senão, não sei se poderia perdoar-lhe o destino dessas mulheres e crianças, minhas companheiras, minhas amigas, crianças que vi nascer aqui em Wa-passu e que foram arrastadas pelas "pistas intermináveis do retorno", morrendo talvez de frio e de esgotamento, ou entregues cativas, como butim, a selvagens fedorentos... Por sua culpa! Por sua culpa!

Eles se espreitaram, abespinhados, ofegantes como dois lutadores esgotados pelo combate e que olham, pasmos, correr o sangue.

— Selvagens fedorentos? Por que fala assim dos selvagens? Eu a ouvi felicitar-se por saber que sua filha Honorina estava refugiada com os iroqueses e em segurança.

— Com efeito! E preferível o verme e a sujeira das Casas Compridas iroquesas a cair nas mãos de uma Ambrosina, discípula de Satã, de Lúcifer, de Belial e das oitenta legiões do Inferno!... O que não impede que seja um destino terrível ser prisioneiro dos índios.

Depois, cessaram o debate, não por falta de acusações para lançar ao rosto um do outro, mas por falta de energia para continuá-lo.

Por várias vezes ele se defendeu de ter feito a Sra. de Maudribourg vir para a América...

-        Apesar de tê-la encorajado a trabalhar em meus projetos, não pensava que viria. Ambrosina esteve comigo em Paris, quando eu ali pregava, numa de minhas voltas. Jamais me perdoou por haver fugido dela. Ela sabia que sua paixão me repugnava. Isso tinha raízes tão profundas! Jamais me tentou. Ela era meu medo. Meu medo das mulheres, que erguera uma barreira entre ela e meu desejo.

Quando soube que estava rica, que tinha influência, concebi a ideia de fazê-la servir a meus desígnios, encorajando-a a fretar uma expedição cujo objetivo era enviar colonos, escolhidos entre corsários ou flibusteiros, reconquistar um território que eu julgava francês, Gouldsboro, que caíra nas mãos dos hereges.

"Em Paris, ela fez' maravilhas, indo: de um ministério a outro. Os togados caíam como patinhos em suas armadilhas. Os armadores mais empedernidos vinham comer em suas mãos. Ela recrutou Colin Paturel, seu "navio e sua tripulação.

"Quando lhe foi dada a oportunidade de desenvolver astúcias e enganos e desempenhar o grande papel de sedutora junto a um número considerável de homens, pudemos, ela e eu, conciliar-nos. Eu era seu confessor, ela era minha penitente. Eu a encorajava a colocar-se como benfeitora para a salvação da Nova França, e ela se rejubilava por desempenhar um papel num obra que causaria dramas e derrotas. Vi brilharem seus olhos quando lhe falei de,seu esposo. Naquele momento, ele ainda não a havia trazido consigo. Quando lhe indiquei sua presença, ela deve ter tomado a decisão de fazer parte da expedição. Teve tempo para reunir todas as informações a seu respeito. Era muito hábil e ultrapassava de muito as recomendações que eu teria podido fazer-lhe."

— Pensei ter entendido que no momento de partida do La Licorne a polícia estava em seu encalço. Sua melhor amiga, a Sra. de Brinvilliers, acabava de ser presa pelo policial Desgrez. E descobria-se uma das maiores envenenadoras da história, um monstro de perversão, depravada desde a mais tenra idade.

— Ambrosina também jamais foi uma criança. Era um produto das trevas.

— Ela não deveria ter nome. Toda vez que a nomeio sinto um calafrio

— Ela se chama "legiões"...

— Padre de Vernon suspeitou dela imediatamente. Denunciou-a numa carta que lhe era destinada, mas que ela furtou em seguida, depois de tramar sua morte. Tive essa carta sob os olhos e lembro-me que ela dizia, em resumo, o seguinte: "Sim, meu padre. A Diaba está em Gouldsboro, mas não é a mulher que me indicou expressamente como tal, a Condessa de Peycrac!!.. "Julga que o fato de o Padre de Vernon tê-la desmascarado seja razão suficiente para que você se queixe de tê-lo perdido, enquanto amigo, por minha culpa? Ele continuava a ser-lhe muito dedicado. Não pode censurar-lhe não se ter mostrado um executante hábil e eficaz nas missões que lhe confiou. Ou seja, espionar os novos ingleses ou assegurar-se da mi-nha presença no navio de Clin Paturel.

— Você está obcecado, francamente! Ele, o Padre de Vernon! um verdadeiro jesuíta, Senhor! Que jesuíta! Fazia-me pensar em meu irmão Raimundo. Frio com gelo! Confundi-o facilmente com um inglês.

— Estava apaixonado por você... Tomou-a em seus braços

— ...Para me tirar da água... Mas como você sabe de tudo isso?

— Recebi dele uma carta enviada da fortaleza de Pentagouet. Estava ainda na casa do Barão de Saint-Castine, depois de tê-la deixado reconquistar Gouldsboro. Tomando, também ele, como o Coronel de Loménie-Chambord, a iniciativa de contrariar minhas ordens e de julgar minhas intenções. Essa carta continha um envelope selado com suas armas e algumas breves linhas, nas quais me solicitava o obséquio de fazer chegar a carta anexada à Sra. de Peyrac caso lhe acontecesse alguma desgraça.

— Aquela carta? Então você a leu?

— Sim! Eu era seu confessor.

— Belo confesso!

— Essas licenças são autorizadas aos diretores de consciência.

— Bela consciência!

— Era uma carta de amor. Começava assim: Minha cara criança, minha pequena companheira do VOiseau Blan".

Subitamente, o humor de Angélica mudou, e ela começou a rir, a rir tanto que as crianças, acordadas, a imitaram.

-        Perdoe-me! - disse, recompondo-se - , mas a vida é tão maravilhosa! Uma vidente mê disse um dia: "O amor a protege!..." O Amor me protegeu. O Padre de Vernon não pôde deixar a senteça ser execultada. Não pôde deixar que eu fosse afogada.

Ele mergulhou!... O meu caro Merwin! Como estou feliz!...

Mais tarde, ele voltou ao assunto de Loménie-Chambord. Não conseguia esquecê-lo. Não suportava principalmente a insensibilidade dela. Ficara alvoroçado.escandalizado com a brutalidade com que ela resumira a cena fatal: "Ele vinha com as mãos nuas, falando de paz. Eu o abati ". Era chocante!

-        Mais chocante para mim, desastroso - replicou Angélica -, teria deixar-me- enternecer, deixar-me submeter, segui-lo, entregando-lhe Wapassu, meus partidários, meus filhos, deixá-lo continuar, como pretendia, sua campanha até Gouldsboro, onde, com a ajuda de Saint-Gastine, ou contra ele, quem sabe?, o estabelecimento lhe teria sido entregue. Sem terçar armas?... não é coisa certa. Haveria mortos. A fraqueza muitas vezes apenas adia o massacre e multiplica sua amplitude.

"Você me achou brutal, meu padre, em minhas palavras, porque lhe expus todos os conflitos e tormentos que agitaram minha alma e partiram meu coração, aqueles poucos segundos de hesitação antes de atirar. Necessitaria de horas para descrevê-los. Eu lhe gritava: 'Não se aproxime! Não se aproxime!...'

"Mas ele continuava a avançar. Ele também fizera sua escolha, renegando a aliança que fizera conosco. Contando com a afeição que eu lhe dedicava para render-me mais facilmente... O que acontecia com ele? Recaíra sob sua égide a ponto de fazer pouco de sua própria honra, para comprazê-lo, comprazer a sua memória? Ou tentava escapar?, escapar àquela escolha, escapar a todos os que não o compreendiam mais?... Eu o abati", repetiu.

Foi Sebastião d'Orgeval quem dessa vez voltou lentamente os olhos a fim de observar aquele perfil de mulher ao seu lado, aureolado pela luz proveniente da lareira, aquela boca fina e perfeita que pronunciava tais palavras.

— Compreendo agora como você pôde vencer Ambrosina. É isso o que ela não lhe pode perdoar. Julgam-na uma mulher sensível, vulnerável. E subitamente você se revela astuta, implacável.

— Se bem entendo, você quer dizer que eu não faço o jogo, não?... Não é a primeira vez que me fazem essa censura e, sobretudo, que ficam desolados com isso... seria tão fácil, sem isso!... não é? "Fazer o jogo."Que jogo?... O da fraqueza, prostrando-se, vencida, aos pés da força?... Aquele da mulher hereditariamente submissa, inclinando-se espontaneamente diante do homem, do guerreiro... O da sensibilidade e da generosidade, fatalmente espezinhadas e destruídas pela crueldade e traição dos adversários, que não têm escrúpulos.

"É fácil abusar da bondade e do impulso dos corações generosos para causar sua perda. Sou uma sagitariana. Sempre me foi insuportável dar a meus inimigos a'satisfação de minha derrota sem fazê-los arrepender-se, de um modo ou de outro, por pouco que seja. Uma questão de justiça. Restabelecer o equilíbrio entre o Bem e o Mal. Entre as leis do Céu e as da Terra. Mas há mais algumas coisas. O ser humano está no meio. Ele não tem escolha.

"Não somos nós, os 'ternos', que nos mostramos duros e intratáveis, sem pé nem cabeça. E a vida, são os outros, os desgarrados ou os inecrupulosos. E a mediocridade, é a felonia dos outros que nos obriga à escolha.

"Quer o queimaremos, quer não, quer sonhemos com harmonia, paz, felicidade cotidiana, crianças felizes em meio a nossas obras fecundas, chega um momento em que somos obrigados a fazer uma escolha, um dia em que temos de pegar em armas. Para sobreviver ou para defender a inocência. E essa obrigação o que mais odeio, mas aprendi como ela era inelutável. Poucos são os que podem evitar enfrentá-la, pelo menos uma vez na vida.

"Cláudio de Loménie morreu porque ele fizera sua escolha, a de servir-lhe. Saiba, Sr. d'Orgeval, que me impôs um ato de que nunca me consolarei. Pois eu também o amava."

Essas duas cenas convulsivas deixaram-nos abalados, esgotados.

Enquanto retomavam forças, estendidos lado a lado, flutuaram sobre águas pacíficas, compreendendo a inanidade de suas discussões e a profundidade de um sentimento que vinha de longe e que se parecia com a amizade.

Acima deles passavam os-eoros do vento e também o dos anjos em cavalgadas fantásticas.

CAPÍTULO XXV

A fuga das crianças - Esperança de salvação

Imaginavam sempre que tudo fora dito, que a paz voltara a reinar. entre eles. E depois, a uma palavra, a uma alusão, despertavam-se o rancor, o desespero, os arrependimentos.

Rancor por ter pago um tributo tão pesado, desespero diante do irreparável, arrependimentos por terem se mostrado medrosos, imperfeitos, por terem, por boa vontade, feito o jogo de reles paixões que, uma vez saciadas, parecem fúteis, desproporcionais em relação aos desastres que acarretam, os lutos que engendraram, as lágrimas que fizeram correr.

Seu antagonismo explodiu mais uma vez, e isso ocorreu todavia de um acontecimento que deveria ser marcado pelo signo da alegria: sua primeira saída do fortim, depois de um longo período inclemente de noites e tempestades, durante o qual não puderam fazer nada além de ficar enterrados em seu buraco, saída que veria os primeiros passos do "ressuscitado" à luz do dia.

Desde o início, ela tomara o cuidado de fazê-lo flexionar as pernas, apesar das dores, que o faziam gritar. Pois ela notara que ele podia executar movimentos que davam mostras de flexibilidade e de vigor, como daquela vez em que ele se erguera para alcançar-lhe a mão e beijá-la. E isso evitava o enrijecimento dos membros, que se arriscavam a ficar deformados pelas cicatrizes, sempre imperfeitas, das queimaduras.

- Hoje você deve tentar sentar-se - disse-lhe ela, estendendo-lhe as mãos para segurá-lo.

Chegava o momento de encorajá-lo a mover-se ainda mais.

Os progressos foram lentos, marcados contudo por etapas decisivas, superadas de uma hora para outra como que por um milagre.

Um dia ele ficou de pé, esquelético, desengonçado, como um polichinelo quebrado, mas conseguindo deslocar os pés algumas polegadas, enquanto ela o segurava, ou melhor, o carregava, pela cintura, com um dos braços em volta de seus ombros, e ele se apoiava com a outra mão no pequeno Carlos Henrique.

Como o tempo melhorara, ela decidiu dar uma saída com ele e as crianças. A estação atravessava um período de estabilidade. O frio continuava intenso, mas o sol brilhava sobre a neve recém-caída e fofa.

Angélica desprendera a porta. Com as crianças, pusera o nariz para fora e percebera a carícia do sol para lá do abraço do gelo. E a época, no meio da invernada, em que alguns ursos se arriscam a uma saída titubeante para em seguida tornar a mergulhar num sono mais benéfico.

Em Wapassu, nos outros invernos, todo mundo saía, passando as breves horas ensolaradas do dia a flanar. Faziam-se visitas, ia-se ver os índios, passeava-se com as raquetes, andava-se de trenó e as crianças deslizavam à beira do lago, ou, para imitar a sociedade de Quebec, que organizava suas partidas de patinação e piqueniques no Pão de Açúcar, perto das quedas Montmorency, erguiam-se toldos em volta de braseiros, distribuindo salsichas e pães com melaço. Para as crianças eram sempre dias de alegria. Nessa época, Angélica e Joffrey subiam ao cimo do torreão e olhavam a animação em volta da bela fortaleza de madeira de Wapassu, com a fumaça elevando-se dos telhados enterrados das outras casas que, sob sua salvaguarda, haviam proliferado em torno. Os gritos das crianças soavam ao longe, os risos das mulheres, as interpelações dos homens, chamando-se ou encorajando-se em seus trabalhos.

Saíam para tomar ar e sol como uma panaceia, que era preciso amealhar, antes que a tempestade os aprisionasse por outras longas semanas, entre quatro paredes, sob o peso das neves.

Quando da chegada do Padre d'Orgeval moribundo, depois de ter-lhe tirado os andranjos que o cobriam, ela vasculhara entre as camisas e coletes de Lymon White para vesti-lo. Trouxe-lhe para aquela ocasião calções, meias, sapatos do guardião da casa - o que teria acontecido cõm o pobre mudo? -, além do casaco e do gorro de pele forrados, Quando viu o jesuíta, equipado dos pés à cabeça, não resistiu à malícia de perguntar-lhe se ele não ficava impressionado por estar vestido com os trajes de um inglês puritano congregaciònalista de Massachusetts. Ele replicou, estremecendo:

-        Como ousa brincar sobre suas traições? A canalha perniciosa de que se cercaram, você e seu esposo, causaram sua perda.

Como ele estava de pé e muito vacilante, tendo ela e Carlos Henrique dificuldade em sustentá-lo, obrigou-se a ter paciência e permaneceu em silêncio.

Cometeu uma imprudência. A de não levar em conta a emoção que tais palavras, injustas e revoltantes, despertavam nela.

A aventura começava mal. Fora um erro não ter renunciado a ela e prosseguir em seu desígnio, que era arrastar todo mundo para fora. Enfraquecida pela contrariedade e pelo rancor que aquelas reflexões mal-intencionadas de seu paciente lhe haviam provocado, sentiu-se mal. Odiou-o por isso.

-        Com você, vou envelhecer dez anos - disse-lhe ela.

Mas ele não compreendeu. Estava preocupado em avançar ao longo do corredor, custando-lhe cada passo um grande esforço e provavelmente muita dor.

Quando conseguir transpor a trincheira gelada, achando-se de pé ali na neve, presas do frio e da luz, o olhar que Angélica lançou sobre a planície branca e resplandecente, em vez de feliz, foi amargo.

O que via destacar-se contra o céu azul eram as ruínas de Wapassu, cujo caos, recoberto de neve, erguia uma bárbara catedral do outro lado da colina.

Nas saídas precedentes, sempre evitara voltar-se para aquele lado, mas hoje, por causa das palavras que acabara de ouvir, experimentava uma perigosa vertigem medindo toda extensão do desastre. Isso lhe partiu o coração, pois acabara por se esquecer, na urgência das ameaças da fome. Mas o espetaculo era para ela ainda mais penoso pelo fato de se encontrar diante do homem que quisera aquela derrota e que podia rejubilar-se com ela.

-        Olhe! - gritou, dirigindo-se a forma masculina, de pé ao seu lado. - Eis sua obra! Rejubile-se! Você se queixa de seus amigos, de seus fiéis, que o traíram. Mesmo assim eles o vingaram bem... Não se lamente mais disso. Você ganhou... Pois as últimas adjurações de um santo mártir são ordens sagradas. Eis o resultado!

As palavras violentas lhe saíam da boca. Repisara-as por muito tempo, repetindo-as em voz alta quando ficava sozinha no silêncio do deserto branco. Mas era incapaz de ordená-las, de dar uma coesão ao que lhe queria explicar.

— Teria sido preciso tão pouco para que tudo fosse salvo!... para que o pobre Emanuel tivesse tido tempo para me falar antes de morrer!

— Morrer? Emanuel? Você não me havia dito que ele fora poupado?

— Pelos iroqueses, sim! Mas não pelos seus! Ele está morto!... Morreu para que ninguém conhecesse a verdade sobre sua ruína... Ele foi até o jardim, em Salem, para me fazer revelações. Ia falar. Ia confiar-me sem dúvida o que vira no vale das Cinco Nações, ia gritar-me: "Não é verdade! O Padre d'Orgeval não morreu como mártir entre os iroqueses. Ele não a acusou, a você, Sra. de Peyrac, a você, a Dama do lago de Prata, inocentada pelas mais altas instâncias da Igreja, senão para dissimular sua fraqueza diante das torturas, encontrar um pretexto para sua fraqueza, mas não enganaria ninguém. Tudo não passa de mentiras", ter-me-ia dito chorando, "mas vejo meus mais veneráveis mestres construírem uma lenda destinada a enganar as almas piedosas".

"Eis o que estava prestes a me dizer. Eis o que explicava sua palidez e seu desatino. Ele não aguentava mais sentir-se envolvido nessa felonia."

O jesuíta tentava acompanhar-lhe as palavras loquazes, espreitando-a com um olhar ansioso.

— E?„. Ele falou?

— Não teve tempo. O Padre de Marville surgiu diante de nós. Intimou o rapaz a calar-se e segui-lo. Não o revi mais. No dia seguinte recolhiam das águas .do porto o corpo de Emanuel Labour. Dirão que ele se suicidou? Receio que uma vontade estranha o impeliu a isso.

E como Angélica julgasse ter surpreendido no olhar fixo pousado sobre ela um brilho de alívio, sentiu-se enlouquecer de indignação.

-        Você também acha que está tudo bem assim, não é? Você o teria feito? Teria jogado com seus "poderes", como diz, para arrastar aquela pobre criança, desorientada, enfraquecida pela fome, pela fadiga e pelas torturas, a destruir-se a si mesma, a se afogar voluntariamente, carregando seu segredo para o túmulo? Ele, tão cristão, tão corajoso, como se poderia explicar tal gesto, se não soubesse que vocês não hesitam, vocês, padres, a desencadear certas influências, quando julgam necessário... como tantas vezes fizeram...

"Você o teria feito, teria sacrificado a criança também você, como o Padre de Marville o fez. Era preciso salvar a honra da ordem. Pois bem! Aí está. Olhai à sua volta. A honra da ordem está salva. E nossa obra está aniquilada."

Ela ofegava. Pequenas nuvens de vapor escapavam-lhe da boca, sublinhavam as palavras irrisórias que ouvia a si mesma pronunciar, lançando-as aos quatro ventos do universo gélido.

-        As últimas palavras de um mártir têm o peso de ordenações! O imperativo de um testamento!... Marville soube o que conseguiria colocando-o nos altares. Sabendo que não poderia jamais apagar a realidade de seu ato, ele transmutou esse chumbo em ouro puro e, dissimulando-o, o fez servir à maior glória de Deus e do reino. Você é o maior. Você os simboliza a todos.

Glória lhe seja prestada, Padre d'Orgeval. Edificam-lhe capelas, e multidões lhe dirigem preces e súplicas. Seu irmão em religião fez mais do que vingá-lo. Ele o canonizou. E quem iria se arrepender do resultado de uma tão brilhante impostura!...

O frio raspava-lhe a garganta. Estava errada por falar assim, gritar dessa maneira, isso de nada mais adiantava e não vingava ninguém.

Angélica tossia. Seus lábios estavam secos.

"De que adianta a cólera?", pensou, arrependendo-se de sua explosão e do estado em que se colocara, pois sentia o suor escorrendo-lhe pela espinha e congelando-se. "De que adianta essa diatribe dirigida a um ressuscitado que não se aguenta em pé e que não consegue dar um passo?!"

E retomou fôlego, com os olhos fechados, e depois erguendo-os para ele.

Viu sua boca aberta, sua mandíbula caída, numa expressão de estupor, mas também de incredulidade. Acabava de dar-se conta da maquinação que o Padre de Marville armara em torno de seu nome. Começou a sacudir a cabeça e repetiu várias vezes:

-        O que foi que eu fiz?!... O que. foi que êu fiz?!...

Vagarosamente dobrou os joelhos. Ela estendeu o braço para ampará-lo.

Mas ele simplesmente se ajoelhara. E ela o viu erguer os olhos, depois as mãos para o céu.

-        Perdoe-me, Emanuel. E vocês, muito caros e santos e modestos mártires, meus irmãos jesuítas do Canadá, vocês, que o mundo esquecerá, perdoem-me! Perdoem-me por ter usurpado, involuntariamente, a glória e a reverência que lhe são devidas, a vocês somente, verdadeiros sacrificados de Deus, vocês, que morreram apenas pelo amor de Cristo e não pela adulação dos homens, para lhes servir, de exemplo e não para suscitar sua veneração idólatra, perdoem-me!

"Perdoem-me os erros cometidos por minha culpa, as felonias às quais impeli os meus. Perdoem-me! A mim, indigno, a mim, a vergonha de nossa santa ordem, a mim, o mais vil, a mim, o mais covarde. Pela fraternidade de nossos compromissos, conservem-me sua piedade, orem por meu resgate, e pela virtude de suas santas chagas, ó, eu lhes suplico, dignem-se assistir-me na hora da minha morte!...

A luz que tornava sua face translúcida viria do sol ou da transfiguração interior de seu ser?...

Mais uma vez Angélica se encontrava diante de um desconhecido, perguntando-se onde ficara o indivíduo ao qual acabava de dirigir seu violento requisitório.

Depois, subitamente, viu-se novamente cercada pelo grande silêncio branco e o frio cruel.

-        Onde estão as crianças? - gritou, voltando à realidade. -Para onde foram?

Olhava ao_redor. As" crianças haviam sumido. Recomeçou a bater os dentes de frio e de pânico. Perdera a cabeça discutindo com aquele homem, perdera as crianças de vista.

— Onde estão?- Onde estão? Onde estão as pobres inocentes?...

— Estão lá, à beira do lago, deslizando na neve - disse o Padre d'Orgeval, que "tinha uma visão penetrante.-

Levantara-se e colocara-lhe a mão no ombro.

— Acalrne-se!

— Não poderei jamais ir tão longe para buscá-las. Mas como é que elas conseguem? Eu mal tenho forças para dar alguns passos, e elas voam como pássaros. Como alcançá-las?... Estão se afastando. O meu Deus!

— Não se mova - disse ele. - Elas vão voltar. Vão voltar por conta própria.

Uma bruma sorrateira de fim de dia começava a despontar ao longe, dando às florestas azuis um tom pastel, fundindo toda a paisagem por trás de um véu de irrealidade.

Angélica não via mais as crianças e estava inquieta.

— Estão voltando?

— Sim, estão voltando.

— Não consigo vê-las. Onde estão? Elas vão desaparecer. Desaparecer!...

— Não, elas vão voltar! Acalme-se.

Sentia aquele braço nervoso enlaçando-a para sustentá-la e impedi-la de lançar-se à procura das crianças, pois teria caído e não poderia levantar-se.

Depois as crianças ressurgiram diante dela, três pontos redondos, que nem sequer eram silhuetas, tão pequenas e desengonça-das estavam em suas roupas, mas três pontos que aumentavam visivelmente de segundo em segundo.

— Estão vindo?

— Sim, estão vindo.

Estavam vindo, como se nascessem do ouro vermelho do inverno. Carlos Henrique no meio, dando a mão aos gémeos, que bamboleavam sem pressa ao lado dele, os frês muito satisfeitos com sua expedição.

-        Não lhes diga nada. Não ralhe com eles... Eles são o nosso perdão! São a nossa salvação!

O SOPRO DO ORANDA

CAPITULO XXVI

Insinua-se o "mal da terra"

Ela acreditava que o alce, fornecendo-lhes reservas de carne até a primavera, garantiria sua sobrevivência até lá. Mais eis que despontava a face insidiosa do segundo mais cruel inimigo das invernadas, depois da fome: o escorbuto. Face horrível, apodrecida, de carnes inchadas e gengivas sanguinolentas...

Começou a perceber-lhe a aproximação ao notar a palidez e a fatiga da pequena Gloriandra. Essa encantadora boneca, sempre alegre, e que seguia, com uma animação tão devotada quanto admirativa, as iniciativas de seus irmãos, não a acostumara à inquietação. Desde as primeiras horas de seu nascimento, dando provas de uma vigorosa saúde, ela sobrenadava como um pequeno peixe valente na correnteza das doenças e provações físicas que se abatiam sobre o irmão, e que se haviam habituado a vê-la transpor, por suas próprias forças e sem prejuízos.

Talvez por causa disso, Angélica levou mais tempo para se alertar. E quando se deu conta, o mal já lhe parecia muito adiantado. De todo modo, não lhe era possível detê-lo, pois faltavam-lhes elementos essenciais à alimentação.

Com a menina no colo, acáriciava-lhe o rosto redondo, em que as pupilas de um azul cambiante se haviam turvado, acariciava os longos cabelos negros, tão belos e incrivelmente longos numa criança tão pequena, que pareciam vesti-la, ocultá-la em seu abandono contra o ombro da mãe, enquanto os pequenos lábios inchados se esforçavam em vão para esboçar um sorriso.

- O minha princesinha! O meu tesouro! Não é possível! Sei ainda tão poucas coisas sobre você! Não tive ainda tempo para conhecê-la. E voeê se vai!... Eu lhe suplico... Não parta!

Esse terror", assa loucura, eram seu primeiro reflexo sob o choque da descoberta. Acreditara piamente que estivessem a salvo de tudo, e que todos reveriam a primavera com saúde...

Como defender-se da horrível doença?... Ia encontrar um meio. Mas nos primeiros instantes só podia apertar a criança contra o peito, apaixonadamente.

Gloriandra de Peyrac! A princesinha! A pequena maravilha!, ornada de todas as graças. A filha do Conde de Toulose. Pensou em Joffrey. Pensou nas mulheres de sua linhagem. E na regente da Aquitânia, sua mãe, soberba e ardente, sobre a qual ele dizia, evocando as vagabundagens de sua juventude aturdida, que, mesmo no fim do mundo, e sem lhe confessar uma lembrança coti-diana, guardara a sensação de jamais tê-la deixado. A esse espírito tutelar ela confiou a criança condenada.

Aquela mulher adorara seu filho, e Angélica compreendia e partilhava esse sentimento. Sua bravura devia ter dado à mãe de Joffrey o poder de continuar a velar por ele no além-túmulo.

"Você não tem o direito de deixar que lhe retomem sua filhinha."

Estipulado o acordo, sentiu-se melhor.

A voz do jesuíta, que estava deitado,, chegou até ela.

Ele se informava sobre sua preocupação, estampada em sua fisionomia.

-        Minha filhinha, eu a julgava salva - murmurou Angélica. - E eis que recomeço a recear que me seja tirada, que não alcance o fim do inverno.

Ela mordia os lábios, e era a primeira vez que ele a via retendo as lágrimas. Descobria-lhe nos traços transtornados a vulnerabilidade de seu coração, a ternura comovente que aquele belo rosto, às vezes tão imperioso, com um olhar que podia ser tão fulgurante, fazia esquecer.

— Outra vez, não! - murmurou. - Essa angústia, novamente, não!

— Ah! Você vê?... Compreende agora o que isso quer dizer. Outra vez, não. E o segundo golpe que provoca a queda... Para este, não se tem uma reserva de forças. O que você receia?

-        O escorbuto.

Ele fez um esforço para sentar-se e sair da cama, depois, com pequenos passos de doente de gota, foi inclinar-se sobre a criança e examiná-la com atenção.

Em seguida, voltou a estirar-se na cama e fechou os olhos com um profundo suspiro.

Mas, ao cabo de alguns instantes, disse, com voz firme:

-        Confie.

CAPITULO XXVII

Uma partida insensata

De manhã, ao despertar, viu-o de pé junto à cama, vestido com o casaco e o gorrinho de Lymon White.

Disse-lhe que decidira partir e andar até encontrar um posto ou uma missão, de onde traria o suplemento de víveres necessários.

Ia subir para o norte até atingir os canais gelados de Mégantic. Quando tivesse encontrado o fio de um outro riozinho que serpenteava no verão entre falésias de duzentos pés de altura, sabia que estaria no caminho mais curto, embora não o menos acidentado, para chegar à Missão de São José, dos abenakis, na região da Haute-Chaudiere, uma das mais modestas, mas a mais próxima para eles. Podia ser que estivesse deserta. Que todos ali estivessem mortos ou tivessem ido embora. Caso contrário, procuraria algo para mudar a sempiterna dieta de carne de alce, mais milho, farinha, quem sabe repolhos, se os padres os cultivassem, conservados sob a neve. E se não pudesse achá-los no caminho, sob as árvores, encontraria em sua farmacopeia aquela famosa casca de árvore, com a qual o chefe huroniano, durante a primeira invernada no rio Saint-Charles, salvara a tripulação de Car-tier, dizimada pelo escorbuto. "A sabedoria manda que nos fiemos nos remédios dos selvagens, quando já deram provas de eficácia."

Angélica levantara-se. Estava de pé diante dele, sem conseguir acreditar em sua decisão. Quanto mais pensava nela, mais o projeto lhe parecia o que era: louco, insensato e fadado ao fracasso irreparável, apesar da esperança que despertava. Mesmo um homem vigoroso não teria podido pôr-se a caminho naquela época do ano para atravessar a região por uma extensão tão grande, sem que todos lhe predissessem morte certa.

O círculo dos furacões cercava sua ilha deserta, e ela compreendera muito bem que ninguém podia escapar dele nem penetrar ali antes do degelo.

A distância era imensa. As tempestades ameaçavam todos os dias, e se uma delas o surpreendesse, ele "se perderia", conforme a terrível expressão, que condena o isolado perdido sob as rajadas de neve, sem ponto de referência nas trilhas apagadas.

— Sua filha foi atingida - disse ele, lançando um olhar à pequena Gloriandra. - Eu trarei a casca específica para isso - repetiu -, ou frutos secos, ameixas-pretas, repolhos, todas as coisas que afastam em pouco tempo o escorbuto, e também milho, feijões e grãos de aveia-louca para germinar.

— E se os jesuítas o reconhecerem? E se não o deixarem voltar?

— Só existem dois jesuítas lá. Um professor, o Padre de Lambert, e um coadjuntor temporal, talvez um servidor leigo. No máximo, três brancos. No verão, o lugar é impraticável por causa das cheias da Chaudiere, quando se abandona a cabana isolada infestada finalmente de pernilongos. Mas, no inverno, permanecem ali para dar assistência às populações errantes, que tentam alcançar Levis e Quebec a fim de buscar socorros e que, nessa etapa, morrem de fome e frio no caminho.

Angélica não podia habituar-se à ideia. Jamais conseguiria chegar até lá! Pereceria no caminho. Depois, lembrou-se da vinda de Pont-Briand e de seu índio, o grupo de Loménie e D'Árreboust, as façanhas isoladas de intrépidos como o jovem Alexandre ou Pacífico Jusserant, o "dado" do Padre d'Orgeval, e até daquela louca tripulação de Joffrey, que perseguira Pont-Briant até o lago Mégantic, para matá-lo em duelo.

Os loucos do deserto branco. Havia às vezes alguns que sobreviviam e que voltavam, pois aquela era uma região para os insensatos.

Todavia, ela insistiu:

-        Você está fraco, ferido, ainda doente. Mal se mantém de pé.

Ele ergueu o dedo, como que posto em comunicação com um contato invisível.

-        O sopro do Oranda me sustentará.

— O que é o Oranda?

— O Espírito" e a força suprema no seio das coisas, no próprio ar que respiramos. Eu o chamarei. Ele virá.

Num movimento, ela se lançou sobre ele, apertáhdo-o em seus braços.

— Você voltará, não.é?

— Voltarei. E você, viva! - disse ele, abraçando-a também, cada um querendo deixar ao outro o viático de sua confiança. - Viva, ó mulher bem-amada, a fim de que meu sacrifício não seja inútil!

CAPITULO XXVIII

Um companheiro de miséria - Apenas um corpo em movimento

Ele saltava! Galgava o espaço! Quebrava o cristal do frio, atravessava as vibrações douradas do sol.

Não possuía mais corpo. Não era ele que reconhecia a pista. Era a pista que lhe fazia sinal. A floresta que se abria diante dele. Sabia onde transpor as falhas do terreno com um salto. Onde abordar os montes para atravessá-los. Por instantes, voltava a cabeça para trás.

"Oranda! Oranda!"     

O Grande Espírito lhe trazia sua desforra. Ele seria um homem como os outros, lutando pela salvaguarda de uma mulher e de crianças pequenas.

Houve algumas borrascas, mas o tempo permaneceu limpo. Flocos de neve eriçavam-lhe a barba.

Uma brusca tempestade levantou-se no último dia, mas ele sabia que estava perto e não se perdeu. Foi através das rajadas sibilantes que ouviu o carrilhão»

O sino da salvação! O sino do ofício noturno. Salve Regina! Salve Rainha do Céu!

Foi o tempo de sair da floresta, atravessar uma longa planície e subir lentamente para a missão, e o céu limpou-se, as nuvens portadoras de neve fugiram.

Seus lábios enegrecidos pelo gelo e pelo sol esboçaram um sor-nso quando avistou a cruz da capela.

"Como eu te amo, signo de amor! Deus crucificado! Escândalo do Universo, como eu te amo!"

O cheiro cálido era embriagador.

-        Fizemos pão - disse-lhé o-missionário que o acolhia.

Os dois jesuítas consideravam-no em silêncio. Ele se inquietou. Estariam achando estranho que não se identificasse?

-        Você se perdeu, primo? - perguntou-lhe o irmão coadjuntor, que tinha um rosto de sólido camponês.

Ele sacudiu a cabeça negativamente. Depois compreendeu que sua aparência era a de um joão-ninguém, esquálido, meio enlouquecido pela solidão dos bosques, o medo, a fome. Todavia, não se lançou sobre o alimento que lhe apresentavam. Fez um sinal indicando que queria primeiramente apenas aquecer-se e repousar.

Quando se sentou diante da lareira, sentiu que as vestes se lhe colavam na carne em diferentes pontos, pois as feridas se tinham aberto de novo. Recusou-se a perceber seu corpo. Ele era apenas um ouvido atento. Escutava aquelas vozes de homens falando francês, retomando a língua algonquina quando o índio aparecia. Os índios tinham uma aparência estranha. Seu dialeto era quase incompreensível para os abenakis da região. Atribuiu-lhes parentescos com os narrangasetts do sul. Caiu a noite.

Depois de ter rezado o terço na capela e entoado os cânticos com os fiéis, os missionários fechavam as portas da pequena paliçada que cercava a habitação.

"Todos esses ruídos de uma missão", ele se dizia, "esses odores! Um cheiro de incenso. Um cheiro de pão! De velas apagadas. De missais! Ruídos de irmãos arrumando os terços na sacristia. Murmúrios de preces..."

Os dois homens de batinas pretas voltaram para a sala comum. Respeitavam o silêncio do hóspede estrangeiro, mas ele os examinava em segredo e desconfiava de sua sutileza. Dialogavam uns com os outros, primeiro sobre os nómades que acampavam à sua porta. Sobreviventes da grande confederação dos narragassetts. Ingleses sanguinários do sul haviam acabado com sua revolta para sempre. Depois conversaram sobre acontecimentos da Nova França. O novo governador parecia decidido a reduzir os iro-queses que trabalhavam para os ingleses. Começara uma campanha militar, detida pelo inverno. Também falaram de Wapassu, e ele ficou muito atento. A coalizão que Frontenac imprudentemente fizera com o fidalgo francês, aliado dos hereges da Nova Inglaterra, fora dissolvida. No outono, a campanha do Sr. de Loménie pusera fim àquela perigosa vizinhança. O ninho de piratas ímpios fora queimado. Wapassu não existia mais, e não renasceria de suas cinzas.

Seu coração batia. Pensava nela, tão longe, lá embaixo.

Calava-se. Perguntava-se se não estariam falando para ele, por havê-lo reconhecido... ou se não adivinhavam de onde ele vinha... Depois tranqúilizou-se, compreendendo que se tratava apenas de um diálogo banal, como os que travam após um dia de trabalho aqueles que se encontram e comentam a situação, a fim de decidir sobre o dia seguinte. Notícias chegadas recentemente tinham informado aqueles dois solitários sobre mudanças de política, cujas etapas não haviam podido acompanhar. Ouviu-os felicitar-se pela partida - dizia-se já "pelo chamado" - do Governador Frontenac, tão hostil à Companhia de Jesus.

Calava-se. Naquele ardor de destruir Wapassu que sentia em suas palavras, como se se tratasse de uma cruzada santa, reconhecia sua própria raiva, aquela que alimentara outrora, e não a compreendia mais.

"Você está lá longe", pensava, referindo-se à visão de uma mulher e à ternura de seu olhar pousado nele, meio indulgente, meio provocante, um olhar que ela só tinha para ele, "e me pertence, mesmo que eu seja apenas um companheiro de passagem, um companheiro de miséria, um inimigo ao qual você nunca perdoará, um pobre homem que merece piedade, mesmo que você não pertença senão ao outra,, aquele que habita em seu coração, aquele pelo qual você enlanguesce seu corpo, apaixonado pelo seu corpo, sua força, seu sorriso. Não sou nada perto dele, mas você me pertence se eu o quiser", repetia a si mesmo, encontrando uma doçura e um conforto nesse tratamento ousado, sinal de uma amizade mais profunda e que nunca transporia seus lábios, pois "eu sou aquele que veio para lhe dar apoio e ajudá-la a viver até que você possa se encontrar do outro lado do inverno e correr novamente para seja amor. Não sou nada, mas terei oferecido a você esse presente, que é mais que sua vida, conservá-la viva para ele, com os filhos de seu amor."

Ficava sentado no canto da lareira, com os olhos baixos, acentuando seu lado um pouco limitado de "viajante" taciturno que se "perdera" no furor do inverno, mal refeito das fadigas e dos esforços que tivera de fazer para escapar à morte branca. Receava também trair-se por seu olhar, e respondia às perguntas que lhe faziam resmungando.

O irmão dispôs escudelas sobre a mesa e copinhos de estanho.

-        Você vem partilhar nossa refeição, amigo?

Obedeceu-lhes, decidindo-se a retirar o gorro preto e as luvas forradas.

Quando avançou a mão para pegar o pedaço de pão que lhe estendiam, deram-lhe um olhar de piedade e de respeito.

-        Você também, meu irmão, sofreu nas mãos dos iroqueses, parece-nos.

Tinha de responder.

Falou de uma viagem aos andastes e como permanecera em seguida entre os sioux, aquelas tribos do extremo oeste dos Lagos, que são aliadas dos neutros e dos petuns, receando cair nas mãos de seus torturadores no caminho de volta. O anúncio da companhia do Sr. de Gorrestat contra os iroqueses o encorajara a fazer uma tentativa, mais tivera dificuldades dessa vez de escapar aos sioux, que queriam detê-lo, e depois a rudeza do inverno, muito rigoroso aquele ano, atrasara seu avanço.

-        Não será você um habitante do cabo da Madeleine, cuja família está sem notícias há três anos? - perguntou o padre.

Mas o irmão coadjutor sacudia a cabeça antes dele. Todos os rostos da Nova França lhe pareciam ser perigosamente familiares.

-        Não o reconheço, primo!

Ia continuar a fazer-lhe perguntas.

Para desviar-lhes a atenção, esforçou-se por interrogá-los sobre seus trabalhos. Quantos catequistas? Quantos batismos por ano?

Falaram de bom grado sobre seu ministério. Esse ano, havia aquelas tribos algonquinas que haviam subido do sul. Os índios não ouviam com boa vontade a boa palavra, disse o padre, mas, tendo perdido tudo para os ingleses, eles compreendiam que o único refúgio que podiam doravante encontrar era à sombra da cruz católica e a da bandeira do rei da França.

Chegavam em grupos cada vez mais numerosos. Não era fácil alimentá-los, cuidar deles, defendê-los-das feitiçarias de seus "prestidigitadores" e da amoralidade de suas mulheres. E sobretudo da embriaguez, que causava grandes crimes.

-        Temos uma reserva pequena de bebidas alcoólicas aqui. Apenas para os doentes e feridos. Nem sequer fazemos cerveja, para não tentá-los. Mas, assim que o tempo melhora e o frio fica menos intenso, eles partem em campanha, a pretexto de caçar, tornando a subir para Sorel ou Levis para obter provisões de aguardente, em troca das peles, que muitas vezes roubam nas armadilhas das tribos locais, o que cria muitos conflitos.

Conversaram e ele se deixou ficar a escutá-los, aprová-los, encorajá-los por breves palavras, tocado de piedade por eles, de compaixão pela rudeza de sua existência. Mas, sabendo em que fonte santa hauriam sua coragem, admirava-os, invejava-os, sentia-se seu irmão mais do que nenhuma outro poderia sê-lo e, ao mesmo tempo, separado deles para sempre, até a eternidade, como que por uma dura e intransponível cortina, como o véu da morte.

O fogo diminuía na lareira, e suas luzes vermelhas e saltitantes refletiam-se nas faces dos três homens sentados à mesa e inclinados uns para os outros numa atitude de confiança.

Sebastião d'Orgeval foi o primeiro a tomar consciência de que a noite avançava.

-        Faz-se tarde, meus amigos - murmurou. - Não é tempo de irem descansar? Quanto a mim, se me permitirem, dormirei nesta sala, naquele banco de-pedintes, que estou vendo ali.

Os dois religiosos levantaram-se silenciosamente. O irmão coadjuntor lembrou-se de que precisava vigiar até o fim o cozimento do pão da segunda fornada.

-        Eu vigiarei - interpôs-se o hóspede.- - Peço-lhes, repousem. Ficarei feliz por retribuir-lhes a hospitalidade com algum serviço. 

O Padre de Lambert e o irmão aquiesceram com um sinal de cabeça. Estavam diante da porta, segurando lamparinas chamadas de "bico-de-corvo", cuja mecha, mergulhada na gordura de urso, difundia um halo dourado-escuro como o das iluminuras. Na missão, as velas eram reservadas para a capela.

Eles olhavam para o homem, de pé ali na penumbra o homem com mãos de mártir, o hóspede que viera do frio desértico, como que surgido, nascido da própria tempestade, de suas rajadas e de seus gritos, e que não procurava mais simular a postura canhestra e ríspida de um explorador de bosques insubmisso, habituado aos índios.

— Nós nos levantamos para rezar as matinas - disse o Padre de Lambert. - Nossos dias não nos dão muito tempo para isso. Em seguida, direi a missa. Você estará conosco?

— Com alegria. E se não me julgar indigno, depois de confessar-me, ficaria feliz por assisti-lo.

Fizeram um sinal de cabeça afirmativo, e retiraram-se, com gravidade.

Sua noite seria curta.

Precisava aproveitar esse curto espaço de tempo.

Para ele, não haveria sono. Quando tornou a se levantar, suas feridas se fizeram lembrar. Não poderia cuidar delas. Os primeiros movimentos que esboçou provocaram-lhe caretas de dor. Pensou nas mãos suaves de Angélica aplicando compressas nos ferimentos e naquela rugazinha entre suas Sobrancelhas quando se punha examinar com atenção uma chaga, como se lhe falasse frente a frente e ouvisse suas explicações.

Sorriu. "Rápido! Apressemo-nos!"

Foi até o forno e, pelo cheiro que dele se desprendia, avaliou o tempo que ainda seria preciso para que os pães ficassem assados.

Depois entrou num telheiro contíguo que devia servir de cozinha no verão. No inverno guardavam ali reboques e raquetes, botas e luvas forradas, gorros, pesados casacos de pele ou capotes de lã grossa com capuz.

Escolheu um reboque grande, comprido e sólido, já arreado, e um par de raquetes de reserva. Entreabriu a porta da cabana e viu o pátio interno atravancado de neve com um terrapleno desobstruído diante da casa. O aterro de neve, debruado de luar, projetava sua sombra até o limiar. Dispôs o reboque do lado de fora,- retirando também o par de raqueques.

Voltou para o interior da cabana e foi abrir o galpão onde eram guardadas as provisões.

Agia sem fazer qualquer ruído, com passos tão leves e gestos tão precisos que nem um índio teria podido supreendê-lo.

Do armazém, trouxe sacos de farinha de trigo, trigo-sarraceno, caixas de ameixas e de conservas de limões verdes, grãos de aveia-louca, melaço, pães de açúcar, sal, potes de conservas de gordura de pato, feijões, abóboras secas e todo tipo de ervas.

Dirirgiu-se à sacristia da capela e pegou alguma coisa numa das prateleiras. Voltou para a casa. Deslocava-se com tal serenidade evanescente que parecia não deixar nenhum rastro nem na neve, nem na terra batida dos armazéns e das adegas, nem nos assoalhos da habitação. Toda a astúcia corporal do índio estava nele.

Procurava ainda um objeto que achou finalmente num cofre-zinho da sala grande e, antes de se afastar, colocou algumas cinzas no fogo, a fim de abafá-lo. O produto de sua rapina fora solidamente arrumado no reboque.

Em último lugar, voltou à habitação e abriu o forno para pegar os pães que estavam bem crescidos e que se poderiam considerar assados. Pegou-os todos e levou-os um a um para o reboque. Segurava-os junto ao coração com voluptosidade, aquecendo-se com seu calor e dizendo consigo que aquele perfume de pão era o mais embriagador da terra para uma pessoa esfomeada.

Em certo momento receou que aquele incenso generoso do mais nobre alimento do homem, o pão, chegasse às narinas dos religiosos adormecidos. No ar gelado, os eflúvios se elevavam como uma oferenda sagrada.

Cobriu os pães fumegantes com uma coberta de cornércio, tornando a apertar as fivelas e atilhos. Depois calçou as raquetes, passou pelos ombros os arreios do reboque e pôs-se a caminho através do pátio.

Não sentia mais nada, nem dor, nem fadiga. Era apenas um corpo em movimento, e o brilho claro do luar lhe era indiferente. Ao chegar à porta da paliçada, retirou habilidosamente as diversas cavilhas, girou a chave'da forte fechadura que eles haviam colocado para desencorajar os ladrões noturnos e começou a avançar pela planície.

Pouco depois, voltou-se. Do outro lado da colina, a missão, já semi-enterrada"sob massas de neve, começava a desaparecer aos seus olhos. A pequena cruz do sino continuava a brilhar como filigrana prateada contra o céu azul-escuro e vazio, pois, sob o brilho da lua ou de uma leve névoa, não se via brilhar nenhuma estrela.

Num nível inferior, havia os wigwams dos índios, wapanogs e wonolancets, amontoados em covis, dos quais se elevava um lençol estagnante de fumaça. Mas poucas luzes brilhavam. No coração da noite, economizavam lenha.

Os ruídos eram abafados, como a própria vida, não apenas pelo inverno, mas pela miséria e a angústia da derrota. A interrogação do dia seguinte como um peso infinito que nunca mais se poderia fazer recuar, rejeitar.

Crianças choravam, cães latiam, velhos tossiam. Era um barulho que mal se ouvia, muito fraco, longínquo, como um sonho.

Olhou na direção do sudeste e viu, acima das montanhas iluminadas pela lua, uma barra preta que subia lentamente. A tempestade. Era para ela que ele se dirigia.

Eles nem pensaram em persegui-lo.

-        Onde foram parar todos os pães da segunda fornada? - gritou o Irmão Adriano, quando, decepcionados por não ver seu hóspede na missa, os dois religiosos foram à sala comum e o convertido abriu a porta do forno.

Desorientado, ele olhava à sua volta e não discernia nenhum vestígio daquele que, na noite anterior, batera à sua porta e pedira hospitalidade.

— Será que sonhamos? Era uma assombração?...

— Uma assombração não furta três sacos de farinha de flor de trigo, três de milho e a metade de nossa reserva de ameixas - observou o Padre de Lambert, depois de fazer uma rápida ins-peção no armazém de víveres.

— Vamos ver se não roubou mais nada - disse o irmão, muito pesaroso.

— Que mais queria que roubasse?... Comida é o que ele queria.

— Ele pegou o reboque.

-        Para levar o saque.

O padre não queria contar que notara o desaparecimento de uma sotaina e de um missal.

Durante a noite, a tempestade passara por eles. De madrugada, nuvens escuras sobrevoaram a missão, uma neve revolta caíra, mas era apenas um prelúdio de quedas mais pesadas que não deveriam tardar. No tapete fino e aveludado formado pela neve fresca, a pista do reboque e das raquetes ainda era visível. Seguiram-na até um pouco além da paliçada e ficaram a olhar para as lonjuras, para o perigoso sudeste inabitado, em direção do qual se fora o desconhecido. A tempestade continuava a avançar, e prometia ser feroz. A neve recobriria as pegadas do ladrão, se não ele mesmo e seus furtos, enterrando-os.

-        Por que chora, meu irmão? - interrogou o padre professo.

-        Vamos! Vamos! São apenas algumas libras de farinha roubadas! Ele deixou o suficiente para nós.

-       Não é por isso que estou chorando - disse o convertido. -Que me importa o furto...

Lágrimas corriam-lhe pelas faces de camponês, sem que pudesse retê-las, mas eram lágrimas suaves.

— Estou chorando porque me lembro de nossa vigília ontem à noite. Como nos sentíamos bem quando ele estava sentado co-nosco, partilhando nossa refeição e conversando! Que luz! O padre, você o notou?

— Com efeito - disse o padre, sonhador. - Havia uma espécie de claridade em torno dele, e uma serenidade em nós e à nossa volta.

— Não me lembro de mais nada além disso. Nem de suas palavras, nem dos assuntos dé nossas conversas; lembro-me apenas que seus olhos eram azuis como o céu e que nossos corações estavam repletos de alegria.

CAPÍTULO XXIX

"Eles estão mortos!"

Várias milhas antes ele já retomara seus saltos dementes. Um pânico que, a cada passo, se dilatava, retorcendo-lhe as entranhas.

"Oranda! Oranda!"

Havia várias milhas já deveria ter percebido ao longe aquele vestígio de fumaça que olhos exercitados não podem confundir com os rastros de neblina e que o teriam avisado da aproximação de Wapassu.

Queimava os olhos para descobrir aquele vestígio de vida na paisagem morta, por trás das fendas da máscara de couro indígena que fizera para se proteger da reverberação.

Já devia ter percebido o cheiro de fumaça, pensava, farejando o vento, por mais ténue que ela fosse,- diluída do ar gelado.

Nada. E uma apreensão mortal o abatia. Ele parava e torcia as mãos. Depois continuava, voava por cima dos barrancos, engolindo, sem vê-la, a pista branca, impelido pelo ritmos das raquetes batendo na neve e pelo barulho de sua respiração sibilante.

Tarde demais! Lá embaixo, no fundo do impávido horizonte translúcido e gélido, estava a Punição!...

"O que eu fiz?", dizia consigo. "Eu quis sua morte, quis sua destruição... Através dela eu queria destruir a Mulher. Deus, por que deixaste uma loucura dessas apoderar-se de mim? Eu queria servi-lo... Não pensava que ela fosse tão frágil, tão alegre, tão meiga! Não pensei nas crianças pequenas. Como se não soubesse que atrás de toda mulher existem crianças! O Senhor, por que me fez nascer entre os demónios? Por que regou minha infância com sangue?..."

Fez alto.

O atroz estava diante dele. Seus olhos choravam de dor por trás da máscara de couro, pois avistava fortim de Wapassu. Mas nenhum filete de fumaça se elevava acima do telhado meio enfiado sob as neves.

Nenhum movimento.

Jamais em toda sua vida experimentara um choque tão terrível.

"Eles estão mortos! Eles estão mortos!"

Lançou-se pela encosta lançando gritos e apelos desesperados.

-        Aqui estou, minhas crianças!... Aqui estou, estou chegando! Estou chegando!... Vou preparar-lhes uma boa sagamité.

Quase quebrou o pescoço, caindo na trincheira com sua carga.

Levantava-se de novo, investia contra a porta pesada. Ela estava encostada e cedeu, batendo vagarosamente contra o vazio e o silêncio.

Embaraçado pelas raquetes, que não havia retirado, permanecia na soleira da porta, piscando os olhos feridos, a fim de se habituar à penumbra. Pouco a pouco distinguia com estupor as três crianças muito agasalhadas, mas que, no meio da sala jogavam cucarne tranquilamente.

— Onde está sua mãe?

— Mamãe está dormindo! - responderam com um gesto em direção ao quarto.

E continuaram a fazer soar, com gravidade, os ganizes no assoalho de madeiras grossas.

Ainda ofegante, pensava:

"Ela está morta! E as crianças confundem sua imobilidade e seu silêncio com um sono profundo."

Com passos titubeantes, tremendo dos pés à cabeça, chegou ao quarto no fundo do corredor e entrou.

Ela estava sentada diante da lareira apagada e dormia, com efeito, numa atitude de abandono que traía uma grande fadiga.

A claridade de um sol pálido entrando pela pequena bandeira da janela, diante da qual a neve fora retirada, amarelecia seu rosto já muito pálido; novamente estremecendo, ele julgoú-a morta.

Tocou-lhes as mãos, as faces. Estavam geladas, mas percebeu o leve movimento de sua respiração.

Ajoelhado na pedra da lareira, começou a quebrar gravetos e reunir ramos e cavacos para acender o fogo.

-        Aqui estou, minhas crianças - resmungava -, agora estou aqui... Vou preparar-lhes uma boa sagamité... bem quente, com airelas... Estou aqui... Trago-lhes a vida...

Foi um estalejar das chamas que despertou Angélica, e ela se ergueu com um sobressalto de espanto, pois, percebendo que ia perder os sentidos, evitara acender o fogo, receando cair ou não poder vigiá-lo, ou que as crianças resolvessem brincar com ele, com boa intenção de mantê-lo aceso.

Estava tão fatigada...

Viu o viajante de joelhos diante dela, espreitando-lhe o olhar.

-        Por que não acendeu o fogo? - gritou. - Quase morri de sofrimento quando não vi nenhuma fumaça acima do telhado.

Ela lhe disse que as horas do dia lhe pareceram muito quentes, preferindo deixar o fogo apagar-se para economizar um pouco da provisão de lenha. Tinha saído com as crianças, era preciso aproveitar aquele sol. Em seguida...

Ele pousou a fronte em seus joelhos, e Angélica viu entre os cabelos espessos a tonsura, semelhante a uma hóstia branca.

— O Senhor! - murmurou. - O Senhor! Que sofrimento! Mas cheguei a tempo.

Então ela lhe confessou como um pecado que, havia alguns dias, estava com febre. Teria se resfriado ou seria um ataque de malária?

-        Agora estou aqui. Trago-lhe também compota de cidra, ameixas e todo tipo de fruta seca, grãos de aveia-louca, mel, melaço...

Pendurava o caldeirão à cremalheira, vertendo-lhe água.

-        Por que, se está febril, não se aqueceu deitando sob as cobertas?

Ela explicou-lhe que receara ser arrastada pelos delírios da febre.

Ficando sentada, podia ficar acordada.

Compreendeu que ela não sabia mais há quantos dias ele partira, que não encontrara mais forças para os gestos essenciais dos cuidados às crianças, que tinha parado à espera de sua volta... Que só conseguia manter-se viva repetindo-se incessantemente: "Não adormeça..."

Ela olhava ao seu redor com desolação.

-        Desculpe-me, faz tempo que nem varro nem arrumo a casa. Está um chiqueiro.

Com muitas precauções, ele a carregou e colocou na cama.

-        Agora estou aqui. Eu me encarregarei de cuidar de você.

Deitou-a, cobrindo-a com cuidado.

-        Vou só chamar à ordem aqueles jogadores inveterados que estão na sala entretidos numa partidinha de cucarne, e já lhe mostro nossas riquezas. Depois vou preparar-lhe uma sopa digna de minha Tia Nenibush.

Mas ela virou a cabeça, murmurando que não tinha fome.

Apesar de suas recusas, conseguiu engolir algumas colheres do mingau.

O fortim de Wapassu assinara um novo contrato com a sobrevivência.

Angélica se resfriara quando fora procurar tripas de rochedo e casca de espinheiros para Gloriandra. Conseguira encontrá-las e dera-lhe uma tisana. A menina estava melhor.

-        Mulher de pouca fé - disse ele -, não me comprometi a mante-los todos com vida de qualquer maneira? Até a minha volta, quando se persuadirá que o mais precioso de si mesma é invisível? Você parece desprezar esses "poderes" com que, todavia, foi abundantemente provida, confiando apenas em seus atos. Esse é um defeito feminino, um defeito de dona de casa. Cristo o denunciou quando foi visitar Marta e Maria. As mulheres só se sentem em paz com

sua consciência quando podem provar sua utilidade, e apresentam, de modo às vezes excessivo, a justificativa de sua existência.

Pois bem, disse ela, fora um erro não ter ficado a esperá-lo, de braços cruzados, como uma lâmpada acesa de vigília. Não era de seu temperamento fazer isso. E, apesar de suas admoestações, tão cedo não se corrigiria.

Mas, encolhida sob as cobertas, com as pálpebras baixadas sobre uma martelante dor descabeça, concordou em -que era um dos prazeres da vida abandqnar-se à doença, transferindo a outra pessoa todas as responsabilidades.

Agora que o sopro do Oranda permitira ao jesuíta seu giro de salvação, o combate contra o inverno podia ser retomado.

Dispôs as rodas de pão nas prateleiras ao longo das paredes do quarto e da sala grande, no lugar onde guardavam as provisões. E quando não houvesse mais pão, poderiam assá-lo. Fariam crescer um bom pão no forno, daquele pão que é, por excelência, o alimento dos franceses, prato vital e rico, nascido no entanto de tão poucas coisas, água, sal, um pouco de fermento e farinha. Farinha de flor do trigo, milagre das searas, produto do grão mais precioso que o ouro. Pão, vinho. Vinho, havia muito pouco na missão. Apenas vinho de missa. Deixara-o. Em compensação, trazia uma provisão de aguardente.

E também velas. Mas ia-economizá-las. Podem constituir o último recurso para engrossar a sagamité, que fica muito quente mas demasiado rala no fim das invernadas.

Só as acenderiam para as festas, logo seria o dia de Santa Honorina.

-        Faremos um bolo em homenagem a sua grande irmã e rezaremos por ela.

Durante a noite, ela o ouviu delirar. Abriu os olhos e percebeu na parede as rodas de pão da Missão de São José, dispostas como rostos bonachões velando por ela.

Então ele voltara? Mas onde estava?

Na realidade, jamais acreditara que voltasse.

Sofrera sua partida como uma morte, e isso influíra mais sobre sua saúde que as privações.

Ele estava estirado diante da pedra da lareira, enrolado numa coberta.

Ainda fraca, mas sentindo-se melhor, foi ajé ele e ajoelhou-se ao seu lado. Dormia um sono febril e murmurava frases sem nexo. Àquele viajante que acabava de atravessar o Tártaro gelado do Inferno, só oferecera queixas e nenhuma hospitalidade. Tivera contudo tempo de dizer-lhe que ele parecia um espectro. Parecia quase em pior estado do que quando o encontrara costurado na mortalha de couro. A pele lívida sob a barba hirsuta, o nariz azulado, os olhos afundados na sombra do capuz, um esqueleto sob a roupagem gelada por seu suor na corrida, e agora úmida, irritando as feridas, uma assombração...

Como pudera executar tal façanha, despender tal esforço?!

Despertou-o suavemente.

-        Venha aquecer-se na cama. Aposto que suas feridas se reabriram e que você nem sequer tomou uma tigela de caldo. Ah!

que belo par formamos!...

Mas, revezando-se um ao outro, continuariam a fazer a morte recuar.

CAPITULO XXX

A profecia se cumpriu

Dias depois, ele lhe falou da morte daquela que eles continuavam a chamar de Ambrosina de Maudribourg. Surpreendera a notícia nas palavras trocadas pelos dois jesuítas da Missão de São José.

A esposa do novo governador, em visita oficial a Montreal, tendo se afastado em seu passeio, fora vítima, no outono, de uma estranha agressão.

— Ela morreu! Um animal selvagem devorou-a.

— Não é a primeira vez que isso acontece.

— Dessa vez, é verdade - murmurou ele.

As opiniões da colónia, muito abalada pelas condições horríveis desse atentado sem precedentes, permaneciam.divididas a respeito da agressão. Uns falavam de um animal selvagem que a teria feito em pedaços, outros, de um ataque de um grupo de iroque-ses que rondavam sorrateiramente nesse fim de verão.

— Você soube detalhes? Não é usual uma dama de prestígio ser atacada por um animal selvagem na ilha de Montreal, que é bem povoada.

— A Sra. de Gorretast fora passear à noitinha lá pelos lados do moinho, na extremidade oeste da ilha. Sozinha. Apesar da reputação de piedade e virtude que já havia granjeado, dizem as mas línguas que tinha uni encontro amoroso.

— Sempre a mesma ambiguidade quando se fala dela. Uns são inocentes e querem acreditar em seu encanto, outros sabem e se calam e só falam-depois. Então ela se afastou, sozinha, dirigindo-se a ponta do Moinho. E depois?

O companheiro de infância de Ambrosina sorriu sardónico.

— E o Arcanjo "estava lá! E o monstro!...

— O que viram?

— Nada! Nem ninguém! Não havia vestígios nos arredores, nem de passos, nem de patas... a não ser, segundo dizem, o traço de garra na casca de uma árvore... Mas, nada. Se havia vestígios foram apagados. O que habilitou em seguida a tese de um ataque de índios, pois, para apagar vestígios com tanto talento, seria preciso ser um espírito ou um frequentador dos bosques. Era preciso dar ao Sr. de Gor-restat algo para alimentar-lhe o sofrimento e o desejo de represálias. Conseguiram persuadi-lo de que a morte da mulher se devia a um grupo de iroqueses e, apesar das evidências, segundo os ferimentos, de que fora antes vítima de um animal feroz - o que também não deixava de parecer inverossímil, tão perto da cidade -, o esposo aniquilado, que não tivera coragem de olhar o corpo, arranjou forças para enfrentar sua desdita num ardoroso desejo de vingança.

"Um chefe huroniano foi propor-lhe uma "caldeira", isto é, uma expedição de guerra. O exército, os senhores canadenses e os aliados selvagens puseram-se em ação. Para justificar essa exibição de navios e barcos carregados de armas partindo para o lago Cham-plain, recorreu-se à astúcia. O novo governador enviou uma convocação aos chefes das Cinco Nações, manifestando o desejo de encontrá-los e oferecer-lhes um festim em suà honra. Os iroqueses, que lamentavam não ter estado no pawa do Forte Frontenac em Cataracuí, como todos os anos, aceitaram o convite do novo Onôn-cio. Durante a refeição, os chefes foram raptados e acorrentados, e depois levados a Quebec, de onde foram enviados às galeras do rei.

"Apenas Utakê, que estava em expedição num lugar distante, e, parece, Tahutaguete, escaparam.

"O exército continuou em direção ao Vale dos Cinco Lagos. Mas com a chegada do inverno, de um rigor sem igual, as tropas tiveram de retroceder, com algumas baixas. Retiraram-se para os fortes e feitorias de comércio, pretendendo continuar a campanha na primavera.

— O Mal prossegue seu caminho. Estará ela realmente morta?

— Tanto quanto pode .estar uma pessoa cuja cabeça foi encontrada na forquilha de uma árvore, enquanto o corpo jazia no chão a alguns passos dali.

A profecia se cumpriu.

A CONFISSÃO

CAPITULO XXXI

Um comediante nato

Assim que readquiriu forças e ficou em condições de cuidar ele mesmo das feridas das pernas, instalou-se no quarto de Lymon White. A lareira do pequeno cómodo correspondia-se com a chaminé central, que, construída segundo os modelos da Nova Inglaterra, abria-se para quatro fogos diferentes. Um dava para o antigo quarto dos Jonas. Os dois outros, para a grande sala.

Dispôs-se a reanimar a casa entorpecida. A noite, não parava de vigiar os fogos. Entrava de mansinho, saía novamente como uma sombra.  

Angélica, não tendo mais com o que se preocupar, dormia um sono mais reparador. Ele subia à plataforma para farejar as mudanças de tempo, para provar a si mesmo, pensava ela, que o inverno afrouxava seu abraço.

Nevou abundantemente, e as portas e janelas foram novamente bloqueadas. Mas a própria neve era sinal de um abrandamento.

O gelo, tão temível, parecia recuar.

Desobstruíam com constância a entrada do túnel, que dava apenas para o universo fechado, branco e cinza da neve enjoativa e invasora. Entretanto, Angélica não a odiava. Preferia aquela neve, pendurada sobre eles como que os envolvendo em seu regaço, ao círculo sem fim de um universo sem vida ou ao sopro das tempestades. Aquela neve salvara-os no outono.

Como o inverno era longo! Todavia, cada dia marcava um avanço.

Quando se lembrava do estado em que fora deposto na soleira da porta aquele que, com multo cuidado e vigilância, a ajudava agora, só podia, felicitar-se com a marcha do tempo.

Naquela manhã, estava sentada ao lado da lareira enrolando as tiras de bandagem, lavadas previamente em água fervente, à qual juntara um pouco de cinzas. Usara abundantemente aquelas faixas, mas, daí em diante, podia alinhar os rolinhos de tecido branco e deixá-los de reserva no cofre de farmácia, esperando não ter de servir-se deles por um bom tempo.

Subitamente o Padre d'Orgeval surgiu diante dela,.vestido com uma sotaina preta.

Ao vê-lo ficou estupefada.

Estava exatamente como o imaginara outrora, quando era seu inimigo declarado, e quando receava constantemente vê-lo surgir diante dela, acusador e implacável, e várias vezes, obsedada por, essa imagem, julgara tê-lo visto aparecer, uma silhueta negra, confundindo-o com outras. Eosse uma vez Penobscot, à beira de um bosque - mas não era ele, era o Padre de Vernon. Fosse na pequena casa de Ville d'Avray, ao pé da escada, uma noite em Quebec - e era simplesmente Joffrey, que voltava tarde da noite vestido com seu capote preto. Ou então, na penumbra da casa dos jesuítas, sempre em Quebec, a aparição inopinada de um deles fizera-a estremecer, mas reconhecera uma vez mais o Padre de Guérande. E assim, muitas outras vezes, por uma silhueta entrevista, pensara: "Desta vez é ele!... Chegou a hora do combate". Mas sempre, abrigando-se por trás de outros porta-vozes, ele se furtara.

E agora ali estava, com a mão colocada sobre o peito, segurando a ponta do crucifixo onde brilhava o rubi, fino, delgado, quase elegante em sua toga preta; o largo cinto, apertando-lhe a cintura magra, conferia-lhe uma silhueta quase feminina, com um ar espanhol, à imitação do grande Inácio de Loyola, pelo colarinho alto com o avesso branco arredondado.

Simultaneamente ela pensou: "Como é belo!", depois: '"Onde arranjou essa sotaina?!" E finalmente, com um medo pânico: "Ele vai-se embora!"

Mas, sem deixar-lhe tempo de abrir a boca, ele lhe pedia para não se emocionar e não interromper sua tarefa. Desejava simplesmente falar com ela.

Depois adivinhando seu receio, ele afirmou que isso não punha em questão sua presença entre eles. Ele permaneceria ao seu lado até a volta da primavera, até que pudesse deixá-los entre amigos.

Havia somente dois ou três pontos ainda que gostaria de esclarecer.

Primeiramente, falou de seu amigo mais dileto, Cláudio de Loménie-Chambord.

Lentamente, com uma espécie de devoção, evocou sua amizade e aquela forma de amor existente entre eles, sutil, encantadora e dilacerante, amor do coração aceito, amor carnal recusado, fazendo com que para que cada um deles o outro fosse o símbolo do fogo que queima no coração de todos os seres, oriundo do mesmo lar único do amor essencial, e através do qual tinham podido amar com paixão e ternura o resto da humanidade. Mas forma inacabada, porque interdita pela dura Bíblia, a qual devia, nos tempos primeiros, dar primazia à procriação.

Amor sublimado, pois, uma vez que não tiveram outra escolha, que haviam vivido desde a juventude e durante os longos anos naquela incompletude, mas que lhes permitira prosseguir com alegria e, frequentemente, com paz de coração, os caminhos árduos de devotamento e sacrifícios de suas vocações.

- E ainda - disse, prosseguindo um discurso que devia ter repetido amiúde a si mesmo - eu me pergunto atualmente se não teria sido melhor para a glória de Deus que não nos tivéssemos separado de forma alguma, pois aprendi que nada é mais criativo e vitorioso que o amor sincero, e reconheço que esse puro e terno amor que eu nutria por meu irmão predileto me preservou do peso da solidão e da aridez do coração e preencheu por muito tempo meu ser afétivo, deixando em paz meus sentidos, que não desejam ser envolvidos. Ensinam-nos em nosso noviciado a dominar pela sublimação esses desejos imperiosos. Eu era um mestre nisso.

Ela o escutava atentamente, enquanto continuava a enrolar as tiras, já que ele o pedira, mas com mais lentidão, dando involuntariamente uma suavidade ritual àqueles gestos simples dos afazeres cotidianos que acalentam a vida.

Quando ele falou do ardor do sentimento que o unira ao Conde de Loménie-Chambord, pensou em Ruth e Noémia, e seu coração se rejubilou ao ouvir esse padre de batina preta conceder a seu amor proibido uma espécie de absolvição indireta. No entanto, tratava-se realmente do Padre Sebastião d'Orgeval ali à sua frente.

Pouco a pouco sentiu-se invadida por uma convicção tranquilizadora de que naquela hora podiam dizer um ao outro tudo.

Estavam sozinhos no mundo.

Num mundo destruído, deserto, inacessível.

Ninguém podia ouvir suas palavras, ninguém podia recolhê-las para distorcê-las e transformá-las em armas mortíferas.

Não precisavam recear nem ser compreendidos. Nem desencaminhar, enganar, ferir, decepcionar, fazer inimigos que destruíssem suas vidas e a dos seus entes queridos.

A loucura de Babel agitava-se para além das fronteiras visíveis.

Quanto a eles, estavam sozinhos sem outra testemunha a não ser o Criador.

Tomou novamente a palavra, dizendo que devia voltar àquele dia de outono, ao lago de Moxie. Aquele dia em que, numa ruptura de todo o ser, acabava de compreender que o Amor, e o amor carnal também, podia ser o caminho do sagrado. Consequência da revelação. O desmoronamento de toda a sua vida, desmantelamento dos quadros que a sustinham.

- Soube então que o Amor era um dom de Deus, e que eu fora culpado, muito culpado, de tê-lo ignorado.

"Censurava a meu corpo estar implicado nesta revelação. Sensações de arroubos e de arrebatamento jamais experimentados. No momento, abençoei a Deus por isso. Mas era demais. Eu desfaleci. Voltei a mim tomado pela confusão e também pelo terror. Procurava retomar pé em meu universo familiar. A ideia da Diaba anunciada atravessou-me o espírito e foi-me difícil refrear um grito de vitória.

"Achara minha jogada.

"Foi assim. Não quis reconhecer a Luz. Ela me feria em todas as defesas que eu edificara para me preservar contra aquilo que

eu odiava e que mais me aterrorizava: o Amor, que eu confundia com concupiscência, o Amor, noção ignorada e que vinha me tocar com sua luz, que vinha me revelar o inverso oculto de seu mistério e ensinar-me que a força de um tal sentimento podia dar a todo indivíduo a sensação de existir na terra, e que é tudo para nós.

"Aquilo que eu entrevira era muito louco... Eu me obstinei. Talvez porque não visse como materializar a revelação. Renunciar a meus melhores amigos, decepcioná-los... Apontavam-me com o dedo, dizendo: 'Ele ficou louco...' A Mulher, o Amor, a liberdade da consciência... Era muito tarde para mim. Meu corpo estava formado, rígido, forjado no poder sobre os seres, na guerra, no poder... Deixar tudo... por uma verdade entrevista... sem nada esperar em troca.

"E como circunstância agravante, eu entrevira os cavalos dos homens no sobosque, uma caravana. Adivinhara quem era minha aparição... Portanto, tudo entrava nos eixos. Podia continuar minha guerra. Sim, como você vê, procuro desculpas. Mas isso não muda nada. Não as tenho.

"Soube-o no dia em que deixei de ter a consciência pura dian-:e dos meus atos. Quando era criança, partia para massacrar os protestantes com minha grande espada, estava apavorado, mas tão convencido de servir a Deus e de que Ele me perdoaria esses crimes...

"Nós nascemos cegos, cercados por neblinas, assustados por monstros; levamos anos para compreender que não passam de espantalhos de palha e de madeira morta.

"Mas quando se vê claro, é então que começa a culpa.

"Sinto-me criminoso por fêf continuado a viver dando àquilo que realizava aparências de açóes virtuosas, que na realidade ocultava todas as loucuras de um sentimento amoroso.

"Esse amor, que eu chamava de ódio, a fim de poder encontrar razões para pensar nele. Falava de campanhas de guerra, de cruzadas, a fim de justificar a obsessão de meus pensamentos.

"Todos os projetos de derrotas, de captura, de vingança, de perseguições quê fomentava contra vocês, nasciam sob o aguilhão de uma atração à qual eu recusava dar um nome. Eu acreditava querer abater, destruir, apagar, aviltar aquilo que não merecia triunfar, e estava obsedado por uma única coisa: aproximar-se disso.

"Acreditava que era para destruir os inimigos de Deus,"para cumprir minha missão...

"Quando subi para o assalto de Newchevanik, depois de Brunswick Falis, sabia que você estava lá, naquele lugarejo de puritanos na colina, e gritava: 'Tragam-na até aqui!' Estava certo de atingir o objetivo. Vibrava, e não sabia com que impaciência... O que eu esperava daquele instante em que ela estaria diante de mim, vencida, prisioneira?... Mas ela não foi... E Piksarett desapareceu com você!... Não ria!... Eu começava a compreender que o duelo tinha mais importância do que eu lhe queria atribuir, que eu não era o único a decidir esse duelo... e seu desfecho.

"Louco, quis sua morte para extirpar aquilo que me corroía, crendo que em seguida reencontraria minha alma."

Falou em seguida sobre o rancor e o ciúme devorador que sentira pelo outro, o homem a quem ela pertencia, o homem que a possuía e que, em virtude de uma injustiça intolerável, era também amado por ela.

Essa confissão era mais difícil, pois ele começava a conhecer melhor Angélica e sabia que, se conseguia acolher com uma fronte serena o anúncio de que ele quisera sua morte, era mais sensível quando se tratava daquele a quem adorava.

Não assegurou-lhe, a ele, seu esposo, seu amante, seu amor, não quisera matar. Teria desejado afastá-lo. Teria desejado que ele desmerecesse esse amor. Teria desejado ver sua soberba diminuir, quebrar sua insolente aptidão para viver.

— Não julga que a vida sempre lhe foi fácil, não? - tentou protestar Angélica.

— Ele sabia tudo - atalhou ele -, e eu não conseguia suportar isso.

Como era afortunado, pensara muitas vezes, aquele homem pelo qual ela estava tão perdidamente apaixonada e que não havia recusado nem a carne, nem o amor, e jamais se perturbara com as leis. Ateu, libertino, pisava em todos os preceitos, zombava da Igreja e de suas instituições - seu processo não fora provocado pelas queixas do bispo de Toulouse?

-        Eu via que, em contrapartida a tantas transgressões efetuadas com desenvoltura e sem se preocupar com o escândalo, ele havia coroado essa existência culposa pela descoberta das mais elevadas e embriagadoras alegrias. Não apenas descobrira o Amor, o verdadeiro, o que se liga ao êxtase divino,'mas fora correspondido. Tendo obtido a mais bela das mulheres, fora amado por ela. Ele foi aquele designado para satisfazê-la, arrebatá-la, maravilhá-la, ensiná-la.

"Aquele fidalgo de aventuras, aquele Conde de Peyrac, merecia tanto? Eu o maldizia. Por que ele e não eu?...

"Comecei a invejá-lo por não ter moralidade, nem apegos, nem servidão e vassalagem de qualquer espécie para com ninguém... E no entanto, eu o sentia justo, entre os justos. Tinha medo de compreendê-lo. Era ele quem tinha razão. Ele que andava pelo Caminho da Verdade, porque andava no caminho de sua verdade. Isso também eu tive de enfrentar.

"E uma coisa terrível descobrir o erro que se cometeu e a amplitude das armadilhas nas quais se caiu. É preferível ficar cego a compreender que a luz da Verdade não nos é concedida segundo nossos méritos, mas segundo o Plano. E melhor continuar a acreditar que somos um dos eleitos."

— E agora, o que pensa a esse respeito?

— Que Deus acolhe todas as vias que exaltam Sua grandeza e celebram Sua bondade. Estou tranquilo e seguro de mim mesmo, apesar de perdido diante dos meus, para sempre. Eis o que eu queria confessar-lhe para que o passado não deixe subsistir equívocos e amarguras entres nós. Era preciso desembaraçar esses acontecimentos do engano das aparências: Eu não combatia por Deus e vocês ?ião eram Seus inimigos.

"Tudo aconteceu alhures, lá onde se abrem, os novos olhares e onde se preparam as transformações das gerações. Mas... tudo e tão lento na terra..."

Calou-se.

Angélica acabara de enrolar as faixas, colocando-as cuidadosamente uma após outra no escabelo ao lado.

Percebeu que a deixara nervosa. Mas que ela não falaria. Pois, com efeito, tudo era imponderável, e tinha havido muitas palavras.

Com as mãos sobre os joelhos, ela o olhava.

Um leve sorriso brincava-lhe no canto dos lábios.

Ele achou-lhe uma graça -infinita e fechou os olhos.

Entretanto, após um longo silêncio meditativo, ela disse:

-        Posso fazer-lhe uma pergunta?

E como ele aquiecesse com um movimento da cabeça, ela disse:

— Onde arranjou essa sotaina en perfeito estado? Pensei ter feito em pedaços aquela que você usava quando chegou!

— Tomei-a emprestada aos missionários de São José.

— Por que a vestiu hoje?

— Para confissões difíceis às vezes é necessário uma armadura.

— Padre d'Orgeval, às vezes me pergunto se seu erro inicial não teria sido entrar para os jesuítas em vez de se apresentar ao grupo do Sr. Moliere. Não é um comediante nato?

— Sempre fui... No colégio fiz todos os grandes papéis dos heróis da Antiguidade. Pois você não ignora que a educação dos jesuítas atribui muita importância ao teatro. É preciso ter gosto pela declamação e pela tragédia para pregar. E não seria viver com os índios, que são comediantes natos, que iria curar-me disso.

CAPITULO XXXII

Um aspecto do espírito de Joffrey de Peyrac - Sonhos de regresso à Europa

A seguir, guardou cuidadosamente a sotaina "emprestada" e recolocou o crucifixo sobre o batente da lareira do quarto de Angélica. Algumas vezes viu-o lendo um missal, que provavelmente também tinha trazido da missão.

Daí em diante, quando falavam, era, como ele dissera, num clima de confiança e de familiaridade novas. Podia falar-lhe de Joffrey. Ele a escutava avidamente. Deu-se conta de que nunca tivera oportunidade de falar a respeito dele ede seu amor, mesmo com Abigail.

O frio continuava forte e trazia incessantemente pesadas nuvens fustigadas de neve, que caíam como cataratas ou turbilho-navam com agitação, obrigando-os a se encerrar em casa, subindo gradualmente para os desencadeamentos ordenados da tempestade, em atrelagens conduzidas por um vento único que conhecia seus caminhos e só tinha uma finalidade: devastar a terra até o osso.

Assobios, estertores, uivos."

Velha harmonia, um pouco",cansativa, um pouco desgastada. Companhia familiar que escutavam, reunidos novamente no único quarto, junto ao único fogo que devia ser mantido com sentimentos mesclados de simpatia e de receio pelo que bramia acima de suas cabeças, pois, se discerniam um imperceptível abrandamento nas violências- do furacão, sabiam que ainda não estavam a salvo de um despertar de suas forças numa derradeira cnse, durante a qual destruiria ludo, como os velhos tiranos loucos.

Os períodos de dias mais tépidos surgiam entre duas tempestades. Mas quando se falava em tepidez, isso era muito relativo. Durante as breves saídas que se permitiam fazer, esforçavam-se em vão por perceber aquele ruído ténue, aquele ruído das águas que recomeçam a murmurar nas profundezas dos bosques. Em vão se voltavam para as árvores mais próximas para ouvir o apelo aflautado, estridente do pássaro que nunca se vê, mas que se denomina "o pássaro da primavera" e que teria prefigurado para eles a pomba da Arca.

Oprimidos pelo eterno silêncio, a impassibilidade de uma paisagem onde ainda se lia a morte de todas as coisas, falavam das cidades longínquas que reveriam um dia, a cidade, refúgio dos homens.,

Os homens têm muita razão de construir cidades. Seu instinto gregário os impele a pôr em comum todos os bens e serviços de que têm necessidade para sustentar esta mísera vida que uma côdea de pão e um vizinho caridoso podem salvar da morte.

Só quem não conheceu o deserto branco do inverno nas re-giãos incivilizadas pode se queixar das cidades.

Sebastião d'Orgeval encorajava-a a fazer projetos no sentido de uma volta à Europa.

-        Nem por isso esses deslocamento e essa mudança cortarão os elos que vocês já estabeleceram com o Novo Mundo. O sr. de Peyrac é tão hábil quanto os novos ingleses em singrar os mares com seus navios, e não lhe será difícil conservar um pé em cada porto, de Nova York a Quebec, do mesmo modo que sempre fez em todo o resto do mundo.

Em sua opinião, o destino das colónias não se resolveria apenas por aqueles que ali se encontravam. Não havia saída, fora do círculo, que já se tornara infernal, das guerras, das campanhas de represálias, dos massacres perpetrados de ambas as partes, sem distinção de vítimas, índios ou brancos, ingleses ou franceses, ou seus partidários.

-        A bússola está lá - dizia. - Versalhes governa os destinos desses povos até os confins dos vales mais desconhecidos e menos visitados. Miúdas expedições de formigas roem os espaços. O Sr. de La Salle não tardará a ir plantar o estandarte do rei da França no Illinois, e quem sabe?, até no golfo do México, se conseguir descer o rio Mississipi, o Pai das Águas, até sua embocadura. Os espanhóis não reagirão.

— E a Nova Inglaterra ficará cercada.

— Veja que é de Versalhes que se decidem as partilhas, e as guerras que delas decorrem. Se seu esposo não tivesse podido acompanhar o Sr. de Frontenac, as intrigas fomentadas contra ele teriam conduzido nosso melhor governador à Bastilha. É preciso fazer ainda mais por ele. E preciso que ele volte ao Canadá. Pois o novo governador é um louco. E, o que é pior, um louco imbecil.

Ela evocou a corte. Ele falara, não sem razão, de uma selva perigosa, e quem mais que ela podia saber disso? No entanto, naqueles dias em que toda visão se adorna com um véu de clemência, era a beleza de Versalhes que lhe aparecia, de preferência às intrigas sortidas que circulavam nas estranhas do palácio.

Era o culto que o rei prestava à Beleza, a todas as formas de arte, o que, aos olhos de Angélica, absolvia Luís XIV.

A corte era uma selva, mas também o Templo do Beleza.

-        E no entanto - disse Angélica - é mais difícil voltar com confiança a um lugar onde se sofreu do que fazer ali suas primeiras armas.

Mas ela sentia forças vivas prontas a se erguer. Agora que Jof-frey entrara em contato com o rei, cumprira sua missão diplomática, teria desejado estar perto dele, não deixá-lo sozinho no meio daquela fauna absurda e fútil, cuja espécie lhe era tão contrária. A dois, tudo seria mais fácil e principalmente mais divertido. A dois, poderiam desfrutar, os encantos de Versalhes e o que ali havia de excelente e que tão poucos apreciavam no trato com o soberano.

Quando voltava desses desvaneios, o peso do silêncio e a rudeza do cenário que reencontrava eram difíceis de superar. Receava ainda um último e sorrateiro golpe do destino.

Do lado de fora, um planeta deserto e congelado.

-        Dá para imaginar que em algurfia parte existem palácios onde se dança, onde se deleitam com músicas celestes, onde se fazem rega-bofes de patês tão grandes que uma criança disfarçada em Amor pode ali se esconder para surgir sob os aplausos de uma corte coberta de pérolas e fitas, ébria de todos os prazeres, que existam banquetes onde se podem degustar, segurando com as duas mãos enormes e deliciosas frutas, colhidas nos jardins do rei?

- Sim, dá para imaginar - dizia ele -, e pode-se agradecer aos céus por isso. É a honra de nossa estrela Terra manter assim sem descanso, em alguns pontos, fogo, paz e riqueza. Se a vida se extinguisse em toda parte, se em toda parte só houvesse miséria, então seria realmente o fim do mundo.

"Quanto reconhecimento não devemos ter nós, perdidos em nossa geena, para com aqueles que, neste momento, dançam, riem, ou, como o rei, continuam a procurar e a criar todas as formas de Beleza para encantar os olhos e os espíritos!

"Pois isso significa que o fogo continua a crepitar, ainda que numa única lareira do mundo, e que há esperança para nós de vir um dia também a sentar-nos, vivos, entre os que estendem suas mãos a essas chamas revigorantes e partilhar com eles o festim. Tudo é permitido à esperança, se se sabe que num só ponto o fogo permanece.

"Certamente, a vaga de lama, crimes e torpezas, que nos arrasta, é poderosa. Mas a vaga de ouro e de pedrarias dos esplendores da vida, lava incandescente que escapa ao vulcão divino, que carrega nossos êxtases e arrebatamentos, nossas alegrias e ardores, tem também sua força irresistível. E com ela que devemos iluminar nossos sonhos e ambições."

Dir-se-ia que havia nele um aspecto do espírito de Joffrey. Cada vez mais ela acreditava ouvi-lo quanto o jesuíta se exprimia. Pois sentia que as palavras que ele empregava, as teorias que enunciava, eram exatamente aquelas, dentre a multidão de pensamentos que fermentavam no cérebro genial do senhor da Aquitânia, que Joffrey não teria hesitado em lançar e desenvolver com brilho e ardor nas cortes antigas da Arte de amar. Com a diferença de que ao Trovador do Languedoc, que havia perdido sua voz no átrio de Norte-Dame quando ali o arrastaram com uma corda no pescoço, repugnava expor atualmente em voz alta o fundo de seu pensamento. Aprendera a calar-se. Mas o que ele enunciava por sua conduta causara transtornos mais importantes que seus discursos.

Seu coração ansiava por Joffrey. Ela pensava baixinho: "Eu o compreendo, meu amor. Nós nos reencontraremos na paz e falaremos juntos".

Em várias oportunidades o Padre d'Orgeval repetiu que desejava que o Sr. de Peyrac não perdesse suas forças inquietando-se com a sorte de sua família.

-        Estou aqui para velar por vocês.

O importante era o rei. E conquistando-o, o Sr. de Peyrac faria mais para o bem dos povos e dos continentes do que tentando lançar-se em socorro dos seus.

Ela afirmou-lhe que sempre vira Joffrey consagrar-se a uma tarefa sem se deixar distrair no momento por nada, e sobretudo por falsos alarmas.

-        Talvez até demais - acrescentou, com uma ponta de censura.

Seu imenso poder de concentração não deixava de criar nos corações ciumentos uma impressão de abandono, e ela sempre se inquietara quando seu interesse, por exemplo, se dirigia ao género feminino.

No momento, era o rei. Tudo seria conduzido magistralmente, Sebastião d'Orgeval estava convencido disso.

Ela se divertia quando este insistia em que o Sr. de Peycrac devia também preparar com o maior cuidado sua instalação no reino da França.

— Você não pode vir a sofrer, qualquer desconforto! Deve poder aproveitar todos os prazeres que sua fortuna lhe permite e que a capital do reino coloca à' sua disposição. Ser-lhe-á preciso uma numerosa criadagem devotada, eficaz, ausência de preocupações domésticas, carruagens, belas parelhas. Nas paredes de seus palacetes e de suas residências campestres, belos quadros, ricas tapeçarias, móveis, objetos jdeestima, seda, veludo para vos vestir, jóias para vos ornamentar.

— Pode estar certo - dizia-lhe ela -, meu caro diretor de consciência. Se meu esposo desejar meu retorno à Europa e decidir ali esperar-me, tudo estará pronto e não faltará nada. Nenhum bibelô, nenhum adereço, nada que possa devolver-me o gosto pela existência e me ajudar a encontrar o esquecimento daquilo que perdi.

O FIM DO INVERNO

CAPÍTULO XXXIII

A face oculta de Deus - Rei e rainha da Criação, anjos entre flores de luz

Surpreendeu-o examinando as armas. Bem cuidadas, envoltas em panos impregnados de óleo, não haviam sofrido danos. Havia abundância de munições.

O fim do inverno representava a volta dos homens.

Ele conservava a lembrança daquilo que surpreendera na Missão de São José. Assim que o degelo começasse e os riachos, rios e lagos ficassem livres dos gelos, o Sr. de Gorrestat e seu exército retomariam a campanha contra os iroqueses.

— Eles estão em prontidão no lugar. Cercarão os povoados e os queimarão. Pode ser que seja o fim dos iroqueses. Mas eu os conheço. Utakê escapará uma vez mais. Ele trará consigo todos os sobreviventes. Inutilmente os perseguirão. Pois eles terão desaparecido da face da terra.

— O que quer dizer com isso?

— Terão desaparecido! - repetiu, com um gesto indicando apagamento. - Quero dizer que terão se tornado invisíveis.

E como ela esperasse a continuação, intrigada, ele consentiu em dizer algo mais.

— Não quero dizer que estarão mortos. Eles reaparecerão.

— Não nego o maravilhoso em muitos fenómenos, mas, nesse, penso que deve haver uma explicação material que você vai dar-me. Seja, Padre d'Orgeval, também não disseram que você voava pelos ares?!... e que "podia tornar-se invisível? Entretanto...

Mas ele apenas sorriu, mergulhado em profundas reflexões. Tenho uma opinião sobre isso, e creio que você tem razão. Assim que seus perseguidores tiverem se retirado, eles ressurgirão na face"da terra e... não longe daqui.

Ele conhecia de cor todos os segredos da imensa região de rochedos e de brenhas de florestas selvagens, cavada per lagos, estriada de falhas profundas intransponíveis numa extensão de léguas, empolada de montanhas em vagas sucessivas que lhe barravam o acesso, e que se chamava, conforme as bandeiras, Mai-ne ou Acádia, inextricável, incivilizável, que só podia se abrir para alguns loucos que saltam as corredeiras, ou que conhecem os bloqueios secretos dos precipícios ou os entrançados misteriosos de pistas antigas, de uma linha de cristas a outra.

Era uma loucura ter trazido para ali cavalos. Era uma utopia da parte do Sr. de Peyrac, lançava ele, com zombaria, ter julgado que se poderia um dia abrir estradas nesse lugar, que um dia se coriseguiria unir o norte e o sul, o Atlântico e o Saint-Laurent, atravessando-o.

Dois terços da França. Um deserto. Os próprios povos nómades não se agrupavam ali. Pois era um trecho de deserto impenetrável, uma teia de aranha, sim, uma teia de aranha, na complicação e no visco de sua teia, inverno e verão. Era preciso ser canadense ou abenaki para arriscar-se nesses lugares, ou então pertencer a um contingente de guerra iroquês em expedição para o litoral.

— Por onde eles passarão?

— Creio que sei.

Mas não dizia mais nada.

-        Então, se está persuadido de que vão surgir, e não longe daqui, é preciso fugir, meu padre.

Opôs a sua instância um rosto subitamente sombrio.

— Para que vida?... Para que existência? Para que obra?

— Sua vida.

— Ela já não me interessa... Dela só posso esperar perambu-lações solitárias. Não me sinto feito para ser ermitão. O mais isolado anacoreta pertence, até em sua solidão, a uma comunidade escolhida por ele. Aqueles que, como ele, ouviram o apelo do deserto, que professam o gosto da mesma austeridade e sobretudo das mesmas disciplinas místicas. O eremita liga-se a seus irmãos de espécie, dirige orações ao mesmo Deus, medita sobre as mesmas verdades. Tomei consciência disso em nossas palestras. Não existe mais comunidade para mim.

— Seremos sua comunidade. Não o abandonaremos. Mesmo no fundo dos desertos... Existem lugares muito bons desse tipo, você sabe! - disse ela, tentando sorrir e amenizar as palavras.

— Oh! eu sei. No Dauphiné... por exemplo... A França é rica desses lugares de recolhimento. Existem belos valezinhos que incitam à oração. Há cartuxas, abadias, grutas junto a águas murmurantes... Mas não são a América. Minha América.

— Alguns capuchinhos eremitas encontraram um lugar para erguer seu oratório lá pelos lados do rio Saint-Jean ou do istmo de Chignecto. Conheço um deles. E disseram-me que havia monges procurando refúgio em Maryland, que é o Estado católico das possessões inglesas. De qualquer maneira, onde estiver, estaremos ligados a você.

Sentia-se tentado. Menos pela perspectivas dessa existência, apesar de tudo vazia, que teria de enfrentar, pois nenhuma luz poderia substituir a vocação religiosa que queimara por tanto tempo, em seu íntimo, do que por esse medo diante da ideia de cair novamente nas mãos do iroquês, que Angélica sabia ainda existir e que o encorajava a partir para outros lugares.

Adivinhando, nos dias que passavam, o afrouxamento do círculo de gelo do inverno, vendo a terra renascer por sinais invisíveis, encorajavam-se mutuamente a emergir da inércia da morte, em que os mergulhavam o frio e a obscuridade ainda reinantes, a imitar a corajosa e constante Mãe do género humano, esta terra que não se recusava a reflorir da nudez e das devastações do inverno.

— Assim que a primavera chegar - dizia ele -, quanto trabalho para limpar o lugar! Contando as barreiras quebradas, os tetos arruinados, as sendas cortadas, os objetos perdidos que a neve levada pelos ares nos devolve... e os corpos. Existe uma energia irresistível em recomeçar tudo, não é?

— Quantos corpos terei"de contar? Terá ficado algum sob os escombros de Wapassu?... E o que me trará a primavera.

— Não - afirmou ele. - Nada de mortos. Seus heréditos de todo género, sobre os quais você fala com tanta ternura: seus hu-guenotes, seus quacrés," seus lolardos ingleses, seus "pobres de Lyon", a pior seita francesa, mais ainda que os cátaros, esses val-denses de que falam como que do Diabo em nossas montanhas, você verá, eles não estão todos mortos... Você haverá de encontrá-los e ainda salvá-los.

Ele sorria vendo que suas palavras atingiam seu objetivo e que o ardor que já lhe inspirava a perspectiva de se debater pela salvação de seus amigos punha-lhe nas faces uma cor rosada.

-        Você pode tudo, minha cara. O rei está a seus pés. Ora, que estou dizendo? O cetro do rei está em suas mãos. O soberano, que já governa a metade da Europa e uma parte do Novo Mundo, a escuta, e por sua influência, mais do que pelas armas, você poderá agir e fazer o bem. Por isso, você deve superar sua fadiga e sarar. Apenas alguns dias no.s separam da salvação: a primavera.

-        Seja. Mas, então, você deixará que o salve? Ouvirá meus conselhos, que lhe recomendam afastar-se a tempo?

O jesuíta desviou os olhos e sacudiu docemente a cabeça.

— Utakê me disse: "Eu voltarei, prometi a mim mesmo comer seu coração. Você deve isso a mim, Toga Negra".

— Loucura! Não se deixe levar pela loucura dos selvagens. Você mesmo dizia que não se deve tentar compreendê-los, nem perder a razão seguindo os meandros de seus pensamentos.

— Utakê me disse: "Você deve isso a mim, Toga Negra. Não veio do outro lado do oceano, até nós, para isso}"

Ela protestou com ardor.

— Não! Não! Uma vez!... Duas vezes!... Já basta! Você pagou seu tributo a sua vocação. Fuja! Vá para a baía Francesa. Nós o encontraremos. Encontrar-lhe-ei um refúgio. Escondê-lo-ei num lugar seguro.

— Não posso deixá-la sozinha com as crianças.

— Sinto-me melhor agora. Prometo-lhe. Parta sem demora.

— Não fique o tempo todo pensando em me mandar embora. A estação das tempestades e das quedas de neve ainda não se encerrou. Não é por mim que receio. Sare! Sarará mais depressa se não se atormentar nem por mim, nem por ninguém. Não tema nada. Saberei avaliar o momento de me afastar tranquilamente.

Angélica não protestou mais. Ele tinha razão. A noite ainda era profunda. A noite de inverno que torna os dias tão curtos, reduzindo-os certas vezes a uma cinzenta travessia de algumas horas, algodoada de neve caindo ou zebrada de rajadas fustigantes.

Ocorreu então a Angélica que era preciso reter aquelas horas, que seriam as horas derradeiras do inverno, e, como ele lhe recomendava, parar de se atormentar para desfrutar-lhes a riqueza e o encanto.

Depois de realizados os trabalhos do dia, o jesuíta sentava-se diante do fogo, Angélica ficava na cama com as crianças e seus brinquedos, e recomeçavam a falar casualmente e depois a conversar mais demoradamente.

Ele voltava menos ao passado, falando sobretudo da sua vida de missionário, de suas experiências entre as tribos.

-        Elas sobreviverão - dizia ele -, elas se prolongarão, mas pelo encontro dos elementos mais fortes que existem nelas com o que há de mais forte em nós. Utakê sabe o que diz quando me avisa: "Quero comer seu coração".

"A natureza esmaga aqueles que se opõem à sua marcha. Condena aqueles que se recusam a seguir sua torrente imperiosa. Aqueles que não querem ouvir desaparecerão, pois sua voz é a própria voz da Criação. Ora, a Criação é um lento nascimento, um lento partejar, uma lenta encarnação do poder divino que se encontra instilado, insuflado nas maravilhas do mundo. Nenhum povo, nenhuma ideologia, pode recusá-la, pois essa força é cega e irresistível. Ela sabe o que faz. Cruelmente, às vezes.

"Povos desaparecem por ter recusado o avanço. A evolução da Criação é nosso dever. Não~o sabemos. Julgamo-nos senhores dela. Mais longe, sempre mais longe. Os homens podem chegar à destruição, jamais à destruição completa antes da hora. E o completamento da Criação que perseguimos. Todos os espíritos são seus depositários, por mais humildes'que sejam, como essas crianças pequenas. Cada um contribui com seu raminho, seu feixe, para esse grande fogo,que não consome, mas engendra."

-       Um fogo também o atingirá se pronunciar tais palavras no púlpito - disse Angélica, que se deixara transportar por sua eloquência e que subitamente se reencontrava em sua pobre cabana -, e às criaturas frágeis também, por se igualarem a opiniões tão grandiosas.

-        E no entanto todos os ouvidos humanos podem ser abertos para ouvi-las. Mas "eles têm olhos e não vêem. Eles fêm ouvidos e não ouvem". Por trás desta palavra, a Natureza, imperativa, dominadora, inelutável, não vêem que se oculta a face de Deus. E se eu digo Deus, não o compreenderão. Verão seu ídolo. Não o verão, não o conceberão a imensa aventura dos mundos à qual cada homem, com toda a humanidade, é arrastado. O que os cativa são suas pequenas preocupações, seus pequenos negócios.

Levantava-se diante do fogo e olhava a seus pés como se contemplasse do alto do púlpito uma assistência ocupando a nave de uma igreja.

-        Eles estão lá, sentados- em bancos de madeira, em cadeiras de palha ou em banquetas de tapeçaria de cetim, eles estão lá, nos tronos, e levantam o nariz para ouvir o pregador, mas pouco lhes importam as palavras que lhe caem dos lábios. Não se pode abrir-lhes o horizonte. Ele é estreito demais. Eles não querem saber. E mesmo a América, ela é muito vazia e muito vasta para ouvir e compreender o que acontece, o que vai acontecer. Mas, pelo menos, ela é vasta e vazia e o futurp lhe está aberto. Eis por que eu a amo... Nela se descobrem mais facilmente os segredos enterrados. Se eu posso desdobrar meu corpo e se ele permanece aparentemente mergulhado no sono enquanto meu espírito viaja e vê esse corpo pesado elevá-lo acima da terra e deslocá-lo, não é, não é sequer porque Deus me concede uma graça ou por ter recebido um dom, mas porque, por intermédio de revelações pessoais, de adivinhações pessoais, penetrei no caminho de um segredo natural. Uns falam de milagres e outros falarão de ciências!...

"Entretanto, as mulheres são mais aptas que os homens a apreender os mistérios ocultos. Talvez seja por isso que o Espírito Maligno se preocupou tanto em ocultar-lhes a verdade, a essas curiosas. Com que cuidado, com que malícia impediu-as de agir, sobretudo de pensar."

-        Foi a punição de Eva, ávida de conhecimento, e já aturdida e indisciplinada por natureza.

-        Não. Antes mais audaciosa já e sem temor a Deus... por natureza!...

Eles riam. Divertiam-se tratando assim com impertinência as personagens bíblicas, tratando-as como marionetes no pequeno teatro de seus colóquios.

O severo jejum ao qual estavam, apesar de tudo, submetidos, liberava-lhes o espírito tal como uma leve embriaguez. A solidão de seu estado e o excesso de sofrimentos padecidos fizeram recuar, até apagá-lo, o círculo dos olhares-juízes que não cessam de pesar sobre cada membro de uma sociedade, na qual o acaso o fez nascer. Do mesmo modo, sentiam-se, em relação a soberanos que dirigiam o mundo, cheios de desenvoltura. Abandonados num astro morto, podiam olhar do alto os poderosos da Terra. O desaparecimento da vida em torno deles transformara-os em rei e rainha da Criação.

O tom de brincadeira e de comédia que adotavam e os risos que não conseguiam refrear faziam com que as crianças prestassem atenção a suas palavras. Elas ficavam imóveis e boquiabertas, dirigindo os grandes olhos para um e para o outro, podendo-se dizer que as palavras mais abstratas tinham o poder de mergulhá-las em êxtase, transportá-las para fora de si mesmas, ao domínio do sonho e da visão.

-        Olhe-as - murmurava ele -, como são belas! São flores de luz.

Ouvia-o andando de lá para cá no posto, cortando lenha, falando com as crianças. Era como a presença de um anjo. Viera como um anjo. Para escorar, render sua força de mulher que enfraquecia. Sua força de mulher e de mãe amorosa, encarregada de manter com vida as crianças pequenas, mas também a pequena Honorina perdida entre os iroqueses, força que devia se ligar, como que por um fio de prata, à de Joffrey, que lutava, ao longe, por eles. Joffrey de Peyrac, o conde-cavaleiro, o defensor, o invencível, o indómito, abrigo, refúgio, força de todos eles.

Mas as forças do homem mais4orte são tão fracas, seus meios, tão reduzidos! Nem todo o ouro do mundo pode resgatar a impotência na qual o çojocam muitas vezes as escolhas de suas lutas ou de seus mandatos. Ele não passa de um ponto mínimo no universo.

Mesmo Joffrey, dizia consigo, avaliando como aquele homem estava investido de encargos, e em quantas partilhas, apesar de sua coragem sem limites, se encontrava acuado. Somente o Espírito pode multiplicar a força. Ela compreendia o que ele quisera dizer-lhe, em palavras febris e apaixonadas, na última noite na costa Leste, quando a apertava nos braços. Sua força seria a sua. Sua constância sustentaria a sua.

Era apenas um inverno, no qual cada um combateria no torreão que devia guardar. Uma vez aceito isso, era preciso reconhecer que as intervenções do céu para sua salvaguarda tomavam as mais irnprevisíveis formas e rostos.

Ela não parara de tossir,- desde a última doença, e, sob efeito do calor do dia, ao qual se sucedia o frio glacial das noites, teve uma recaída.

Tossia, e isso lhe lembrava o tempo da costa Leste, quando Marcelina, a Bela, fora cuidar dela, acompanhada de lolanda e de Querubim. Marcelina certamente estava viva e, portanto, lolanda também, e, sem dúvida nenhuma, Querubim.

CAPITULO XXXIV

A primeira flor da primavera

Ele entreabriu a porta cautelosamente, dizendo:

-        A primeira flor!

Segurava entre o polegar roído e o dedo médio truncado um açafrão rosa, com o cálice aberto sobre pistilos dourados e ornado por algumas folhinhas em feixes verde-claros.

-        Encontrei-a ao virar uma placa de gelo, sob a beira do telhado que está começando a gotejar. Ela abrira caminho na sombra e no gelo, era de uma brancura de alface, levemente esverdeada, e depois, após alguns instantes em contato com o ar e com o sol, se soergueu e se adornou com todas as suas cores, como com um sangue novo subindo-lhe ao rosto.

Deixou a flor junto dela, num jarrinho de água.

Angélica pensava em Cantor. Sua voz sob a janela no fim da invernada.

"Mãe, a primeira flor!"

Teve uma súbita vontade de revê-lo, de rever os filhos, de reunir todos os seus à sua volta, como estavam naquela época. A ideia de atravessar o oceano para consegui-lo cessara de parecer-lhe insuperável. Como a vinda das flores, tudo ia ordenar-se espontaneamente. Ho-norina se juntaria a eles em Gouldsboro, e depois embarcariam, e todos se reencontrariam: Florimond, Cantor, Honorina, Raimundo Rogério e Gloriandra, todos, perto de Joffrey, sob sua asa. E também o pequeno Carlos Henrique e todas as crianças, todos os jovens que tivessem necessidade de ajuda, de socorro para iniciar o périplo de sua existência em meio às emboscadas deste século. Que teto abrigaria tão numerosa família? Que província seria seu feudo? Pouco importava!...

Onde Joffrey dissesse: "Fiquemos!", onde sua prudente experiência, seu conhecimento dos homens, da trama de suas alianças, o autorizassem à dizer: "Ergamos aqui nossa tenda. Aqui podemos viver em paz ainda um tempo de nossa vida".

"Joffrey! Joffrey!, logo a primavera vai eclodir, e poderemos nos encontrar!"

Gelo, à noite. Um vento forte se ergueu, curiosamente inaudível, infiltrando-se como um elemento espesso que tivesse preparado uma temperatura polar, da qual só se tomaria consciência sob seu efeito paralisante e mortal.

As árvores, que haviam recomeçado a respirar, foram imediatamente ajaezadas de gelo até a ponta da última agulha ou raminho.

Angélica levantou-se tiritando de frio e batendo o queixo, persuadida de que fora acometida por outro acesso de febre, e desanimada com a recaída.

Mas ouviu as crianças se agitarem e se queixarem em seu sono.

Seu companheiro logo chegou com cobertas e peles.

-        A florzinha tinha razão em se conservar sob a neve - sussurrou. - Ela sabia melhor que nós que o inverno ainda não acabou.

Atiçou o fogo, trouxe seixos enrolados em flanela com que os cercou e fez Angélica tomar uma bebida qilente, com uma dose de aguardente, da qual parecia ter guardado de sua expedição à Missão de São José uma reserva inesgotável e que se renovava incessantemente, como no milagre do óleo santo do templo ou no dos pães e peixes do Evangelho.

Acendeu o fogo em todas as lareiras do fortim, e ela o ouviu o resto da noite - ou melhor, pressentiu-lhe a presença, pois ele tinha sempre a mesma maneira furtiva de se deslocar como os felinos ou os índios - ir e vir para vigiar as lareiras e subir à plataforma, a fim de se certificar de que as chaminés estavam puxando na medida certa.

Podiam-se permitir essa orgia de lenha, explicou-lhe, pois aquele era apenas o último assalto do Pai Inverno.

-        Ele luta ainda. Mas é em vão. A primavera não e.stá longe.

A primavera sempre volta.

E para convencê-los ao mesmo tempo da iminência dessa volta e permitir-lhes olhar uma última vez de frente o inimigo que não os tinha vencido, não quis que renunciassem à saída cotidiana.

Permaneceram imóveis, e as próprias crianças desistiram de debater-se, no seio de uma paisagem de cristal, cintilante de mil fogos, sob uma luz translúcida que parecia brotar de todas as direções.

Sebastião d'Orgeval mostrou-lhes ao longe a mesma bruma dourada, bruma com uma água de pérola arrastando-se com as aparências desses vapores de calor que se vêem no verão. Ilusão. Era o gelo. Mas, olhando-o mais de perto, descobria-se que essa neve que não havia caído pulverizava o fundo já verdejante dos vales.

- O Pai Inverno não quer ceder. Mas isso não significa nada. Isso não nos impedirá, daqui a uma semana, de colher dente-de-leão e comer nossa primeira salada.

Colheram dentes-de-leão.

Ele tinha hábitos de celibatário, de homem que aprendera a se arranjar sozinho. A colheita das pequenas estrelas de verdura ligava-se a um ritual solene no início da nova estação.

Angélica recomendou que se raspassem as raízes, colocando-as de lado para secar. Essa flor, essa franja de espuma à beira do telhado, que deixava escoar lágrimas de alegria, esse ruído distante nas florestas proveniente do murmúrio das águas liberadas, e a superfície opaca do lago que ela percebera como um espelho sem polimento, tudo isso anunciava a salvação, mas também a volta dos homens. A neve derreteria depressa. Veriam diminuir, encolher-se a superfície de seu manto branco, e a neve desapareceria "sem que se saiba", como diziam as crianças espantadas, "para onde ela foi!!..."

Sobre as superfícies esponjosas liberadas, pés calçados de mo-cassinos já estavam a caminho. As notícias iam começar a correr. Chegariam de Gouldsboro e conheceriam finalmente a sorte de Wapassu. De todo modo, como de hábito, formar-se-ia uma caranava para subir para o alto Kennebec, e Colin Paturel estaria provavelmente mais apressado aquele ano para vê-la pôr-se em marcha, para informar-se sobre Angélica.

Essas diferentes perspectivas faziam-na oscilar entre a alegria e a angústia.

Ela repetia: "Fuja! Fuja!", sem saber se lhe recomendava fugir dos homens civilizados, que não compreenderiam mais sua linguagem, ou dos índios incivilizados, que viriam buscá-lo para fazê-lo morrer pelas torturas.

-        Prometo-lhe que partirei.

Levou-a para o quarto e ajudou-a a deitar-se. Voltou com uma tigela nas mãos.

— Beba mais uma tisana! É a última que nos resta. As pequenas flores nos escoltaram até agora e nossas provisões estão terminando, mas logo renascerão e você poderá colhê-las. .

— Em Wapassu?! Acabou-se. Eu teria perdido quase todas as colheitas... E agora, acabou-se.

— Haverá de colhê-las na Ile-de-France. As flores estão em toda parte. São as amigas mais fiéis do homem. Por ora, durma e recupere suas forças. Quando despertar, falaremos de meus pro-jetos. Partirei amanhã... ou depois de amanhã, tranqúilize-se. Vejo que está bem recuperada. Durma sossegadamente. As crianças estão brincando diante da casa. Vou até a beira do lago colher vime para fazer nassas, que os ajudarão a pescar enquanto sua caravana não chega.

Esses preparativos pareceram-lhe de bom augúrio, apesar de não confiar inteiramente neles.

"Está esperando que 'eles' cheguem", pensou, com uma mistura de irritação e de mágoa. "Não tem o direito de me fazer isso. Depois do trabalho que tive para curá-lo..."

Pensou nele com ternura, como teria pensado em um de seus filhos ameaçado. "Não quero que ele tenha de passar de novo por provações atrozes. Não quero mais que seja ignorado e desprezado. Quero que ele viva. Feliz! Ele merece viver. Pagou um preço muito alto."

— Você me promete que partirá amanhã?...

— Sim! Sob a condição de que, quando acordar, você possa descer comigo até o lago.

— Então, nesse caso, eu o obedeço. Vou dormir para adquirir forças.

Deslizou para o sono com felicidade e, pela primeira vez, com uma sensação de verdadeira convalescença.

CAPITULO XXXV

A chegada dos homens de Gouldsboro - O cheiro da grelha dos iroqueses

Antes de abrir os olhos, ela pensou: "Quem estão queimando?" O cheiro que lhe invadia o sono apagou-se quando voltou à consciência em seu quarto do fortim de Wapassu. O sol se punha, e ela dormira apenas algumas horas. Sentia-se bem, enfim repousada. Dessa vez, pensou, ele poderia partir. Olhou para a lareira onde estava o crucifixo e viu brilhar o rubi. "Vai deixar-me o crucifixo quando se for?... Ou irá colocá-lo novamente ao pescoço?"

Depois, voltando a cabeça, percebeu, sentado à sua cabeceira, um jovem de colarinho branco, vestido de preto, que, ao vê-la acordada, levantou-se e dirigiu-se para ela, sorrindo.

— Bom dia, Dame Angélica.

— Marcial Berne? Que faz aqui?

— Encarregaram-me de velar por seu repouso, cara Dame Angélica. Você dormia tão profundamente ao chegarmos, que, depois de nos asseguramos de que estava com vida, a deixamos entregue a seu sono reparador

Angélica ergueu-se, apoiada aos travesseiros, para olhá-lo com mais atenção.

-        Você não havia partido para Boston para seus estudos?...

Ele riu, parecendo aliviado por ver que ela o reconhecia e se lembrava dele sem esforço.

-        Tem boa memória, Dame Angélica. Mas achei que não era momento, quando Gouldsboro estava ameaçada de um ataque, de ir debruçar-me sobre os hieróglifos em país inglês. Nosso outono foi perturbado. Era melhor conservar todos os braços valentes, tanto mais .que o inverno se mostrou a seguir, mais do que nunca, tempestuoso. A neve abateu-se sobre nós, e um frio de rachar árvores. O mar gelou na embocadura dos rios Penobs-cot e Kennebec.

Vendo-a ouvi-lo com atenção, ele contou que, na costa, nem desconfiavam do que acontecera em Wapassu. Nenhuma notícia chegava até lá. Já estavam acostumados com o silêncio hibernal, e mais que nunca, naquele ano, cada qual vivera em sua fortaleza, combatendo o inimigo principal: o frio, as neves e, para muitos, a fome.

Quando chegou até eles a notícia, proveniente de vagos rumores de relatos indígenas, de que Wapassu fora atacado e queimado no outono, ficaram aterrados. Diziam que todos os habitantes haviam sido levados como prisioneiros para Quebec, o que era preferível à morte e reconfortava um pouco seus amigos, que aguardavam mais detalhes.

Depois, quando o frio começou a amainar, o inglês mudo chegara, conduzido por um empregado do posto do holandês de Houssnock. Lymon White fora retido como cativo numa aldeia abenaki. Quando a tribo "descabanou" por causa da fome, ele fugiu, dirigindo-se como pôde aos lugares habitados. Levava a notícia surpreendente de que Angélica e seus filhos estavam vivos em Wapassu, correndo grande perigo de perecer... se isso já não tivesse acontecido.

Descartou-se resolutamente a pavorosa perspectiva. O Sr. Paturel organizou imediatamente uma caravana de socorro, que não levara menos de dois meses a se deslocar, pois os rios e cursos de água ainda estavam gelados.

-        E eis que nos encontramos há algumas horas do lugar.

O rapaz começou a falar com loquacidade.

-        Que alegria de encontrá-la com vida! Que alívio à nossa angústia. As crianças! Como estão bonitas! - extasiava-se -, como cresceram! E estão falando que é uma maravilha!

Quem podia imaginar, repetia, que, depois de ter atravessado tais provações, iriam encontrar os pirralhos com tão boa saúde!... E acrescentou que o pai de Carlos Henrique quisera fazer parte da caravana. Sua experiência de bu.shranger lhes fora preciosa. Na verdade, ele também temera pelo filho. Este parecera reconhecê-lo com alegria.

Enfim, todo mundo estava feliz, e só esperavam que ela despertasse para ficar inteiramente tranquilos e festejar esse feliz desfecho de uma provação tão longa e terrível.

Um pesado passo de botas fez ranger o assoalho do corredor, e na moldura da porta baixa apareceu a forte estatura de Colin Paturel.

Seu olhar ansioso se iluminou quando viu Angélica recostada ao travesseiro e parecendo atenta ao que lhe explicava Marcial Berne. Foi nesse momento que este deixou de ser para Angélica uma aparição ainda incerta. Quando viu Colin inclinar-se para ela, compreendeu que não estava sonhando.

-        Oh! meus caros homens! - exclamou, lançando-se-lhes ao pescoço e cercando-os com os braços.

O momento tão esperado, tão sonhado, e que tantas vezes parecera impossível de se realizar, acontecera. Seres humanos tinham-nos finalmente encontrado em sua solidão e, o que era o cúmulo da felicidade e do reconforto, eram os seus, os homens de Gouldsboro.

E Colin começava a contar o que Marcial já havia exposto. O anúncio demasiado tardio do desastre de Wapassu, como tiveram de esperar para se pôr a caminho para as regiões inacessíveis do interior, as dificuldades de locomoção, quantas vezes tinham sido detidos pelas últimas tempestades de neve e as incomodida-des do degelo. Descreveu o medo lancinante que tiveram de não encontrá-los vivos, e a alegria, em que custaram a acreditar, por descobrir no forte as crianças muito vivas e espertas, que os acolheram com muita graça. Um verdadeiro milagre! Capaz de incitar os próprios huguenotes a colocar uma vela diante de alguma divindade papista falando de milagre.

-Quem estão queimando? - murmurou Angélica, maquinalmente.

Seu subconsciente continuava a se sentir indisposto por aquele cheiro de fogo, de incêndio, muito penetrante e desagradável para ela. Eram fogueiras de um acampamento? Não estava mais habituada ao cheiro dos humanos.

Colin pareceu não ouvir ou não compreender o sentido da pergunta estranha. Não entendia por que ela dizia: "Quem estão queimando?", e não: "O que estão queimando?"

Era um homem das praias atlânticas, e não do interior, e ainda estava aturdido pelcTcombate com as florestas e rochedos que tivera de travar para .chegar àquele coração das montanhas.

Insistia em que haviam acreditado no milagre de sua-sobrevi-vência, e a prova disso era que, compreendendo pelas narrativas - se assim se podia dizer -.do pobre mudo que Angélica e as crianças estavam desprovidas de tudo lá em cima, haviam trazido, além de víveres, roupa-branca, roupas de mulher e de crianças, sapatos e brinquedos, tudo oferecido com a melhor boa vontade pelas damas e crianças de Gouldsboro.

-        Oh! que ideia sublime! - exclamou Angélica. - Como a vida é boa!

Ao ouvir esses detalhes, o renascimento pôs-se a correr-lhe pelas veias com a mesma alegre vivacidade de uma fonte que finalmente quebra sua prisão de gelo.

-        Depressa, quero me levantar!

Seu olhar caiu sobre o crucifixo, no batente da-lareira.

— Eele?

— Ele?

— O homem que estava conosco... Aqui... Não o viram?... encontraram?...

— Com efeito! - reconheceu Colin, enquanto Marcial lhe lançava um olhar atento e depois se calava. - Com efeito - continuou Colin. - Quando chegamos à beira do lago, percebemos na outra margem um homem que estava colocando armadilhas ou nassas. Tinha o aspecto de um explorador de bosques, e, receando que surgissem em seu encalço exércitos vindos do norte, escondemo-nos primeiro. Depois, como parecia estar sozinho, dois dentre nós se mostraram e o chamaram. Ao ver-nos, ele abandonou precipitadamente o que estava fazendo e fugiu.

— Finalmente! Deus seja louvado! - suspirou ela. - Ele fugiu...

Fechou os olhos, recostando-se, subitamente fraca, ao travesseiro. Continuava a segurar-lhes as mãos, como uma criança medrosa, adormecendo ao ver presenças tranquilizadoras. Segurava-os agora. Não os deixaria mais. A afeição de seus olhares pousados nela a reaquecia. E logo reveria Joffrey.

-Deus seja louvado! - repetia. - Meus caros homens!

Ia poder voltar a viver, retornar ao convívio dos humanos como quando se retorna a casa.

Entretanto, uma sensação confusa continuava a atormentá-la.

— Colin, que cheiro de fogo e de carne grelhada é esse, tão forte?... Estão preparando um regra-bofe? Estou com náuseas. Parece um acampamento índio...

— Os iroqueses estão lá embaixo! - disse Marcial.

CAPITULO XXXVI

O perdão de Utakê - O coração do mártir

— Encontramo-los lá pelos lados de Katarunk, o antigo posto destruído - emendou logo Colin; - era um contingente de guerra, o que nos fez perder alguns dias preciosos, primeiro para nos defender de sua emboscada, depois para nos fazer reconhecer por eles e persuadi-los de que hão tínhamos intenções hostis. Os índios malecitas e etchemins que nos acompanhavam se retiraram, e não os vimos mais. Enfim, o chefe desses intratáveis convenceu-se de que não pertencíamos aos "normandos", inimigos deles.

— Utakê?

— É o nome dele.

— Para onde ele se dirigia?

— Para Wapassu, como nós. Dizia querer "apoderar-se de um jesuíta, o Padre d'Orgeval, que se encontrava aqui. Não sei se queria apoderar-se de seu fantasma ou de seu espírito, pois, se não me falha a memória, esse missionário está morto há dois anos. Sobre isso também nossas discussões não foram fáceis com esse selvagem. "Você não sabe nada", dizia-me com desprezo quando eu lhe tentava demonstrar que o padre não podia estar em Wapassu, pois fora morto, e, pelo que nos foi dito, pelo próprio Utakê. Por outro lado, eu tentava fazê-lo compreender que tínhamos pressa de chegar ao nosso destino, pois sabíamos que estava lá, senhora, mas temíamos não conseguir encontrá-la viva. "Ela está viva", retorquia-me, sempre com um desdém supremo. Apesar de sua garantia, insistíamos em dizer-lhe que estávamos impacientes por vir em seu socorro, receando chegar demasiado tarde. Essa reflexão ou nossa impaciência demasiado evidente, não sei, quase entornou o caldo. "Eu sou amigo de Te-conderoga, normando", disse ele. "Não pense que é mais amigo do que eu e que ele me deva menos que a você. Vigiei melhor por sua estrela do que você o fez...Sentíamo-nos em brasas. Esses demónios não são nada fáceis, e nós, que estamos habituados aos abenakis batizados do Sr. de Saint-Castine, não sabíamos como tratá-los. Enfim, consentiram em deixar-nos prosseguir, atrasando-nos um pouco devido ao peso das cargas, aumentadas por aquelas abandonadas pelos nossos ajudantes índios. Os iro-queses continuaram em nosso encalço ou nos precediam. Não sei se utilizaram outros caminhos. Seguíamos o caminho habitual. Enfim, um dia, avistamos, do alto de uma colina, as ruínas de Wapassu, e pouco depois... estávamos perto de você - concluiu Colin, com a voz subitamente embargada.

Segurou a mão de Angélica, para disfarçar a emoção.

- Vamos levá-la de volta a Gouldsboro, Angélica a você e a seus filhos. Somente lá estará fora de perigo. O Barão de Saint-Castine e seus etchemins e malecitas nos defenderão de qualquer adversário que apareça enquanto o Sr. de Peyrac, ao qual empenhou lealdade, não voltar. Ambos são da Gasconha, e prometeram-se assistência mútua. Ele nos ajudará a nos defender pela diplomacia, se tivermos algum problema com as pessoas da Nova França, e pelas armas, se se tratar dos iroqueses. Temos de partir sem demora. Não temos condições de defesa ou de ataque, nem segurança. Infelizmente! Aqui a batalha está perdida. Já é muito que esses terríveis inimigos dos franceses tenham concordado em nos deixar com vida, apesar de sermos franceses.      ..      

Ela o ouvia olhando-o fixamente, e ele se perguntava de onde lhe viera a ideia de que estava enfraquecida e que talvez lhe seria preciso - reencontrando com doçura e compunção em sua fisionomia as cicatrizes do deserto - carregá-la nas costas no caminho de volta, como fizera outrora nas estradas do Magreb.

Certamente aquele rosto tão querido trazia a marca de provações indizíveis, mas era evidente que as atravessara e dominara sem querer abandonar nada de sijnesma, nem a energia, nem a vitalidade de coração.

-        E o homem? - repetiu Angélica.

Ela o fitava com aqueles olhos claros que se dilatavam, acentuando a cor verde, límpida e rara, olhos cujo poder conhecera e que naquele momento analisava dizendo-se que éleS arrebatavam a alma, na acepção mais próxima da palavra "arrebatar", ou seja, mais de "apoderar-se" do que de "encantar", apesar de o encanto também existir. Um homem sob esse olhar não tinha escapatória.

Desviou a cabeça.

-        Pois bem, já lhe dissemos! - replicou, sob a perturbação que o subjugava apesar de todas as rudes e rígidas barreiras que o Governador Colin Paturel quisera erguer entre eles. - Avistamos esse homem na outra margem do lago, e ele fugiu.

"Em seguida, cautelosamente, contornamos o lago, que não podíambs atravessar, e chegamos próximo da parte baixa do fortim... E então..."

— E então?...

— Então, nesse momento, os iroqueses saíram da floresta, pelo oeste, comandados por Utakê. Vi o chefe mohawk correr em minha direção desabaladamente, brandindo o tomahawk. Ele me gritou: "Aquele que eu procuro está lá. Você o deixou escapar!..." Protestei energicamente, mas nunca estive tão próximo de ter o crânio rachado, sem ter tempo sequer para levar a mão à coronha da pistola; meus companheiros não puderam nem levar a arma ao ombro... Se ele não tivesse parado do mesmo modo brusco a alguns passos de mim, eu estaria morto. Mas ele parou. E estendeu o dedo para o alto da colina.

"Erguendo os olhos, percebemos o Toga Negra. Um jesuíta estava em pé lá no alto, imóvel como uma aparição. Esperávamos que desaparecesse. Mas ele começou a descer para nós num passo tranquilo, enquanto ficávamos todos em suspenso, brancos e selvagens igualmente petrificados, e perguntando-nos que intenções se ocultavam por trás de sua audácia. Segurava uma cruz, estendendo-a a nossos olhos, e, quando se aproximou, vi no centro do crucifixo uma pedra vermelha brilhante.

"O jesuíta foi diretamente a Utakê, dizendo-lhe: 'Eis-me aqui'."

-        E eles o pegaram - murmurou Marcial.

Angélica permanecia petrificada, ouvindo decrescer dentro dela o eco daquele gongo solene: "Eles o pegaram".

-        Colin, o que fizeram com ele? O que fizeram com ele?

Ele virava a cabeça.

Eles o haviam levado, contou, para o valezinho. Depois seu chefe subira até as ruínas de Wapassu, trazendo de lá um pilar de paliçada enegrecido. Depois de fincá-1(c) no chão, amarraram o jesuíta, tiraram-lhe as roupas e começaram a supliciá-lo.

Angélica sobressaltou-se, erguendo-se num salto.

-        Leve-me até eles!

Colin a segurou, enquanto, apoiada a ele, ela vacilava.

Com veemência, lançou-lhe todas as palavras que lhe giravam pela cabeça desde a sua chegada. Pois ele a conhecia e teria agora desejado que ela tivesse dormido por mais tempo.

— Eu lhe suplico, Angélica! Basta de riscos! Basta de loucuras! Já não obtivemos muito do céu encontrando-a a você e a suas crianças, vivas?!... Temos de partir o mais cedo possível. Aproveitar que eles estão... ocupados.

— Deixe-me! Você não pode saber. Não suportarei que ele caia novamente em suas mãos. Leve-me até eles!...

— Angélica, quer que nos massacrem? Sabem como eles são com seus prisioneiros. Seus costumes são sagrados. Não suportarão que os brancos se intrometam. E ainda que tentássemos... Será preciso matar todo mundo. Não estamos em condições, estou lhe dizendo! Não podemos intervir...

— Vocês, talvez. Mas eu posso. Eles não me metem medo... Se eu pudesse andar, iria sozinha. Ajude-me. Ajude-me a andar.

— Angélica, pelo amor de Deus, só estarei seguro de sua vida quando a tiver levado para a margem. Com que cara vou me apresentar diante de seu esposo se -você não estiver mais viva? Esse pesadelo me atormenta. Você decide nossa morte! Pense nele!

Ela teve uma breve hesitação.

-        Joffrey faria o mesmo!

Subitamente ela se precipitou, esquecendo-se de calçar os sapatos. Sentia-se mais leve descalça para correr. Correr...

Ouvia Marcial, o jovem huguenote de La Rochelle, gritar com desespero:

-        Por quê, por quê, Dame Angélica?... É apenas um jesuíta... Um de nossos piores inimigos...

"Ah! não me amolem com seus 'piores inimigos'!...", pensou ela.

Mas não teve forças para lançar-se sua resposta. Atravessou, sem vê-las, sem saudá-las uma ala de pessoas. Mais tarde voltar-Ihe-ia à lembrança o choque que sentira ao distinguir o espaço deserto que permanentemente os cercara preenchido de súbito por presenças humanas.

Estava agora descalça sobre o tapete castanho-douradó da relva esmagada, recém-liberada do degelo. Vestia sua pobre saia velha, que a acompanhara durante toda a invernada, tinha o aspecto de um fantasma, mas seu olhar não os enganava. Todos os que a viram aparecer como que saída de um túmulo a reconheceram. Era realmente ela, e não tinha nada de uma moribunda.

Colin a sustentava, mas era ela que o arrastava dirigindo-se ao valezinho onde estava reunida a massa sombria e emplumada dos iroqueses e de onde se elevava, transportados por um vento sereno, o odor de fumaça e um rumor incessante de tambores.

A um sinal de Colin, vários dos homens de Gouldsboro, entre os quais o grande Siriki, os seguiram de perto, segurando os mosquetes, enquanto outros iam se postar nas cercanias do fortim e na plataforma, prontos para qualquer eventualidade. Mas ninguém queria voltar para dentro, e o grupo, com as crianças nos braços, ficou a olhar de longe.

-        Você não pode compreender, Colin - murmurava Angélica, enquanto avançava. - Duas vezes, não! Três vezes, não!...

Não posso deixar que façam isso.

Seus pés mal tocavam a terra. Era apenas a força de Colin que a sustinha, impelindo-a para a frente, o que explicava a sensação de estar no mesmo lugar, como nos pesadelos, em que uma força contrária nos prega ao chão.

E diante dela, as longas, longas e longínquas montanhas dos Apalaches se desenrolavam, contra um céu pálido com trilhas mais verdes nos vales.

Uma natureza virgem e soberba despertara, e tão feroz e terna que as ruínas enegrecidas de Wapassu, do outro lado da grande ravina, a cavaleiro do lago na ponta do bosque, pareciam belas.

Ouvia aproximar-se o ruído dos tambores. O cheiro de fogo e de carne queimada se intensificava, e era nessa direção que se inclinava seu esforço. Seu cérebro estava como que vazio... Uma prece ali estremecia: "Meu Deus, faça que... faça que... eu não chegue demasiado tarde!... O wampum... não tenho mais o wampum..."

Lá embaixo!... O coração da América queimando a própria carne, devorando-a para sobreviver.

Teria desejado correr, arrastar Colin.

- Eu lhe suplico, não se destrua - implorava ele. - Veja, você está fraca. Vai cair.

Receava agora, por tê-la sentido tão frágil em seu corpo emagrecido, que sucumbisse àquela crise de força sobré-humana.

Mas ela não o ouvia. O coração dela também ardia... De revolta e de pesar. De revolta e de pesar impotentes... até o fim dos tempos.

Colin não podia saber. Era muito longo para contar-lhe... Era impossível contar-lhe... Mas precisava chegar lá embaixo.

Finalmente chegou!

E viu imediatamente.

Uma silhueta de carne nua, magra e miserável, amarrada ao pilar em meio às danças sincopadas de alguns "prestidigitadores" e à fumaça das brasas a seus pés, um homem branco cercado pelo bale horrível dos machados incandescentes que faziam chiar a pele de suas coxas, enquanto facas passavam e tornavam a passar lentamente, sabiamente, cortando pequenas tiras sobre seu peito.

Foi a única coisa que viu inicialmente, e teve de parar para reter o grito que lhe subia aos lábios e retomar fôlego.

Tarde demais!... Ela chegava tarde demais!...

Mas olhando novamente na direção do supliciado, viu que ele inha a cabeça erguida e os olhos voltados para o céu.

Seu silêncio não era o da morte, mas do heroísmo.

Tudo se tornou diferente. Tudo entrou nos eixos. Pôde avançar novamente, rápida, cheia de energia e de esperança.

-        Utakê! Utakewata! Dê-me sua vida!

Ela ia sozinha, lançando seu apelo numa voz alta e clara.

-        Utakê! Utakê! Dê-me sua vida!...

Ele voltou para ela o rosto, o deus vermelho, o deus tutelar da América, e, em meio às manchas sarapintadas de suas pinturas de guerra, seu olhar era febril. Sua cimeira erguida e os pingentes das orelhas fremiam. Aproximou-se alguns passos, enquanto ela parava. Não parecia surpreso por vê-la ali, mas sua expressão continuava ameaçadora. Estabeleceu-se um longo silêncio.

— Até quando você me pedirá vidas? - lançou-lhe enfim, mal-humorado. - Dei-lhe a sua e a de seus filhos. Não basta?... Até quando você se obstinará em salvar aqueles que a rejeitam ou aqueles que querem sua perda? O que importa esse jesuíta? Por que quer salvar-lhe a vida? Ele era seu inimigo. Enviei-o a você para que acabasse com ele. Enviei-o para que acabasse com ele - insistiu, animando-se - com suas unhas à moda das mulheres. E você não o fez. Eu a desprezo. Você desobedeceu às leis da justiça.

— Não preciso obedecer as suas leis. Venho de outro país, e tenho outro Deus para me julgar. Você o sabe muito bem, você, que atravessou o oceano, Utakê, Deus-das Nuvens...

Utakê começou a andar para lá e para cá, dirigindo-se com ênfase às tropas iroquesas, agrupadas na encosta relvada, numa mistura de dialeto mohawk e de francês, que ele falava muito bem apesar do sotaque agudo resultante de uma pronúncia gutural, quase sem movimento de lábios.

-        Vocês a ouviram?... Sou eu que a cumulo de benefícios, e é ela quem me dita ordens.

Continuou a se agitar com uma mímica que significava que estava sufocando de indignação e com gestos derrisórios que exprimiam que toda a sua razão era suplantada pela inconsciência dos seres, e sobretudo dos brancos, e sobretudo das mulheres!...

Depois, retesando-s,e subitamente, sua expressão mudou e adquiriu uma gravidade solene. O rosto pintado pareceu transmudar-se em pedra, os olhos de jade, imóveis nas órbitas dilatadas, lançaram estranhos fulgores.

Com um gesto lento e hierático estendeu para Angélica o braço, que permaneceu hirto como o de uma estátua.

As palavras que lhes caíram da boca tiveram uma espécie de ressonância eterna.

-        Olhem! Eis aqui uma mulher louca a serviço de um deus louco. E isso tem seu valor... Ela é louca mas é fiel a seu deus, que disse esta frase insensata: "Perdoem seus inimigos". Uma mulher tão louca quanto seu deus, ei-la. Ela, pelo menos, tem o coração reto e segue seu caminho sem se desviar. Salvou o inglês doente e o iroquês ferido, o pirata francês abatido e o Toga Negra moribundo. E vem gritar: "Devolva-lhe a vida! Devolva-lhe a vida!...

Sua pose mudou um pouco, os movimentos de seu braço tornaram-se ao mesmo tempo acusadores e líricos.

— Sim, você é bem isso... Você não se desvia de seu caminho, Kawa, estrela fixa, e o que podemos nós contra a estrela que está colocada no centro do céu, apontando sempre para a mesma direção?... Segui-la! Na noite de nossas almas, na noite de nossos corações... Ah! você brilha e no entanto nos desnorteia...

— Eu não o desnorteio.

— Sim!... Você me enganou. Eu lhe enviei o jesuíta para que acabasse com ele.

— Não! Você sabia que eu não acabaria com ele... A prova é que, antes de enviá-lo, lhe disse: "Voltarei para buscá-lo e devorarei seu coração".

O chefe dos mohawks permitiu-se uma breve risada.

— Queria saber se você era de fato isto: a estrela fixa.

— Portanto, sabia que eu o pouparia. Então, pare de usar artimanhas comigo, Utakê. Você me deu sua vida uma vez. Pode muito bem dá-la uma segunda.

O chefe das Cinco Nações recomeçou a andar de um lado para outro, como um animal feroz.

-        Pois bem! Eu lhe darei sua vida! Não quero que escarneçam de você por ter respeitado os preceitos loucos de seu Deus louco - declarou.

A um sinal deje, um jovem guerreiro avançou e cortou as cordas que amarravam o prisioneiro. Mas, apesar das cordas cortadas, ele permaneceu de pé, imóvel.        

Ainda veria aqueles que se agitavam à sua volta nesta terra?

Todavia, a ordem de Utakê de libertá-lo e sua subsequente execução provocaram a cólera daqueles que participavam do suplício e que, instalados em torno da fogueira, preparavam suas ferramentas de tortura com a aplicação e a seriedade de trabalhadores conscienciosos.

Um deles, chamado Hiyatgu, precipitou-se para a'arena. Seu discurso, pronunciado em seu dialeto loquaz, era difícil de acompanhar, mas seu furor era visível e os gestos exagerados o tornavam explícito.

Cpmo seus associados presentes, não admitia ver-se privado de uma nobre e difícil tarefa, a de fazer morrer lentamente um inimigo abominável - que, mal havia começado o suplício, já lhe retiravam das mãos -, tarefa para a qual ele, Hiyatgu, era reconhecidamente muito hábil e cuja execução lhe proporcionava intensas sensações, orgulho e satisfação. A isso se acrescentava a da vingança, que encontrava finalmente o objeto em que saciar esse ardente sentimento de desforra. Sem extingui-lo completamente, nem apagar o luto, cuja sombra encobriria para sempre o espírito de Hiyatgu ao se lembrar dos filhos, da mulher, dos guerreiros, mortos nas muralhas de sua cidade de Onondaga ou nas chamas daquelas Casas Compridas incendiadas, colocaria um bálsamo nos mais vivos ressentimentos, sabendo que ofereceria aos manes dos desaparecidos, multiplicada, a dor causada por seus ensinamentos fanáticos, seus apelos à guerra contra o iroquês, acolhidos com tão boa vontade por aqueles traidores huronia-nos e aqueles malditos algonquinos, inimigos hereditários e que não tardariam também a pagar por todos esses crimes. Eles também, por suas ordens, haviam causado a partida dos seus, tão atroz, imerecida e prematura, para as terras de caça do Grande Espírito. Deviam devolver-lhe a vida para que viesse destruí-los novamente?

Sua tirada veemente provocou uma aprovação geral por parte dos iroqueses presentes, traduzida por um surdo ronco, tão profundo e prolongado que poderia fazer acreditar na aproximação da tempestade se o céu não estivesse tão puro e azul.

Hiyatgu, adivinhando que tinha o controle da situação, interpelou Utakê de modo mais direto.

— Não existe chefe supremo entre nós, Utakê. Se houvesse, ele seria escolhido entre os onondagas, dos quais faço parte, e não entre os mohawks. Você infringiu os princípios da Liga Iroque-sa. Não tem o direito de nos tirar a caça, nós também participamos da caçada.

— Não é uma caça, mas meu inimigo - retorquiu Utakê, sem se perturbar. - Somente eu sofri com ele em minha juventude, quando fui raptado e levado para o outro lado do oceano para remar nos grandes barcos, as galeras do rei da França. E, desde minha volta, sempre os defendi de suas emboscadas. O Conselho colocou-me à frente daquilo que restava de nossos povos. Não comece a esquecê-lo, agora que o perigo foi afastado, graças a minhas astúcias e minhas injunções.

Um outro ronco se elevou, mas, dessa vez, Hiyatgu não se deixou iludir, pois, conhecendo seu adversário, sabia que a aprovação se dirigia às palavras de Utakê. :

-        Seja! Devolva-o - gritou-lhe com raiva. - Mas não será dito que não obtive nada!

Sua manobra foi demasiado rápida.

Num salto, pulou sobre o prisioneiro, sempre de pé, encostado ao pilar do suplício. Empunhando-lhe a cabeleira, cortou com uma lâmina aguçada o alto da testa e puxou. Um grito saído de todas as bocas sublinhou seu ato imprevisto e cruel.

Hiyatgu, triunfante, afastou-Sé.

Insensível à indignação e à cólera que provocava, pôs-se a emitir urros alucinados, cortados por imitações de cânticos cristãos. E, balançando seu trofeu como um incensório ou um hissope, aspergia a relva de sangue ao seu redor.

O jesuíta permanecia de pé. De seu crânio escalpelado, o sangue corria-lhe pelo rosto em mil regatos enceguecedores. Um guereiro puxou-o para a frente pelo ombro, mas, apesar disso, ele não caía.

Quando dois homens, pegando-o pelos braços, o arrancaram do pilar, desprenderam-se, da espinha até os rins, tiras de carne que ali se grudaram.

Foi aquele corpo sangrando que arrastaram e lançaram aos pés de Angélica.

Ela se ajoelhou, inclinando-se até envolvê-lo com os braços e aproximar o rosto do dele.

Dessa vez ele acabara.

Não voltaria mais dentre os mortos.

A vida apagara-se na face sangrenta, pois as pálpebras haviam se fechado sobre o olhar ainda brilhante, cego por uma súbita chuva de sangue.

Angélica desamarrou o lenço de pescoço e tentou suavemente estancar-lhe o sangue. Chamou a meia-voz:

- Padre! Padre d'Orgeval! Meu amigo!

A voz dela, mulher longínqua e terrestre, podia alcançá-lo nas zonas do inferno... ou do paraíso onde seu espírito já vagava? Desejava ouvi-la? Ele levantou as pálpebras. Seu olhar ainda azul iluminou-se com uma centelha de alegria. Ele a via mas distanciava-se como num navio rumo às margens ida alegria eterna, e ela sentiu que permanecia, pesada, ajoelhada num chão duro sujo de sangue, na obscuridade da terra. Houve então um brilho zombeteiro, depois uma expressão grave e imperiosa, e ela julgou ouvir a adjuração que ele lhe repetira com tanta frequência: "Viva! Viva! Por seu triunfo e por nossa luz... Viva para que meu sacrifício não tenha sido em vão". Seu olhar turvou-se. Leu ainda nele uma súplica ardente, triste e quase humilde de um homem que não se julgava digno, mas que, na última hora, aspirava ao mérito, o ardente desejo de um coração que viera para a Nova França para a salvação dos selvagens e que os amara tanto.

A última exigência de sua vocação.

Indagava-lhe suplicante quem iria dispor de seu cadáver. Ela compreenderia? Mas ela compreendia tudo. Estava tão próxima dele! Tinham seguido juntos trilhas pouco comuns, haviam explorado o dédalo dos mistérios do Amor e das múltiplas aparências sob as quais se dissimula sua chama.

-        Sim, eu lhe prometo - disse a meia-voz e ainda que essa decisão lhe fizesse mal -, eu o entregarei a eles, eu o entregarei aos iroqueses. E eles comerão seu coração... E você permanecerá entre eles... para sempre.

Durante essa cena, os dois chefes haviam prosseguido sua querela, continuando a se desafiar, primeiramente pelo insulto depois entregando-se ao bale da luta, girando um em volta do outro, brandindo o machado e o tomahawk, Utakê, louco de raiva por ter visto sua supremacia e seu direito de clemência questionado, e sua palavra traída pelo gesto do rival; este, lembrando-lhe incessantemente que as sentenças que estatuíam o destino de um prisioneiro deviam ser tomadas no Conselho, e que o chefe dos onondagas tinha prioridade sobre o dos mohawks...

Embriagados mais por uma mágoa que não conseguiam definir do que pela aguardente, pouco usada por aqueles chefes, essa querela em palavras e ameaças foi sangrenta.

Finalmente, ficou decidido que Utakê e o outro se bateriam num duelo iroquês, com o machado e o tomahawk.

Foi portanto um combate muito curto e cerrado, com passes e cambalhotas magistrais e que concluiu resolutamente pela vitória, por assim dizer, dos dois chefes, tão fortes um quanto o outro, e que não conseguiram ser atingidos por golpes suficientemente mortais para colocar este ou aquele fora de combate.

Mais tarde, a disputa se reacendeu quando se colocou o problema de saber se o coração do jesuíta seria comido assado ou cru. A discussão alteou-se a graus de veemência elevadíssimos, e a luta entre esses últimos sobreviventes das Cinco Nações estava prestes a estourar e se transformar em batalha, mas a questão foi acertada pela eloquência de Utakê.

— Eu sou filho da Paz. Enterro o machado de guerra ao mesmo tempo que devoro este coração. Temos de comê-lo palpitante ainda, porque ele deve nos comunicar sua força sobre-humana e sagrada.

— Mas ele está envenenado - retorquia o outro. - Para não Se tomar seu veneno ao mesmolempo que sua força, deve ser assado.

-        Não! Não é assim. O coração de Hatskon-Ontsi não tem mais veneno. Este coração é puro. Este coração está purificado.

A mulher branca fezrse fiadora dele ao reclamá-lo, ao devolvê-lo a nós.

Dessa vez Utakê foi o mais rápido. O mais rápido a abrir o peito do morto e arrancar-lhe o coração. Tocados pelo respeito, os outros fizeram silêncio.

O dia acabava. O céu tornava-se vermelho no poente. Na luz púrpura, Utakê levantou, na ponta dos dedos, aquele coração tão discutido, perolado de sangue.

-        Ei-lo. Vamos alimentar-nos deste coração purificado, receberemos os conselhos deste coração que nos trouxe o ódio e que nos amava. Poderemos marchar em busca da paz. A paz para nossas aldeias, a paz para nossos cantões que renascerão, pois não fomos todos exterminados. Ele nos inspirará. Ele nos trará o conhecimento desses franceses indomáveis que nos confundem o espírito e enganam nossos corações, e nos guiará para saber o que devemos esperar deles, a confiança que devemos conceder-lhes para sua sobrevivência e a nossa.

Então, quando a lua de cornos pontiagudos .como um punhal oscilava no céu de um azul primaveril, os chefes das Cinco Nações Iroquesas sobreviventes, confrangidos ao mesmo tempo por uma dor e uma esperança imensas, partilharam e devoraram o coração de seu inimigo Hatskon-Ontsi, o jesuíta duas vezes morto e várias vezes mártir.

Assim que os chefes iroqueses pegaram das mãos de Angélica o corpo do Padre d'Orgeval, Colin Paturel levantou a jovem mulher nos braços e a levou até o forte, sem muita dificuldade. Ela era tão leve, imaterial!

A pressa de arrancá-la às loucuras mortais que campeavam naquelas paragens apoderou-se dele. O dia já ia muito alto para que se pudesse organizar a partida.' Seria preciso ficar até o dia seguinte.

Com as ventanias noturnas aproximava-se uma noite gelada, e no fortim, mãos diligentes haviam acendido fogos em todas as lareiras. Recriava-se o alegre ambiente que haviam conhecido os homens de Peyrac na primeira invernada, com seus mineiros, soldados, artesãos, trabalhadores, estrangeiros de todas as nações e aventureiros de todo tipo. Acampariam no velho abrigo aquela noite, sob a guarda de sentinelas que se fenderiam a cada duas horas e que vigiariam permanentemente os bosques, as lonjuras, os arredores e mais assiduamente o valezinho onde faiscavam as fogueiras dos iroqueses e de onde chegava, em lufadas, o ronco lúgubre dos cantos e dos tambores.

As crianças, saciadas de guloseimas, já haviam comido e dormiam no antigo quarto dos Jonas, veladas por pares de olhos zelosos e enternecidos, que não as perdiam de vista um só instante. Bens preciosos que se julgavam perdidos, tesouros que era preciso agora levar com vida para as praias.

Dormiam apertando nos braços os brinquedos trazidos para elas de Gouldsboro.

Angélica pediu que a deixassem chorar sozinha.

Mas Colin ficou junto dela, e, quando via a onda de soluços se acalmar, dizia algumas palavras que aludiam à paz que encontraria entre eles em Gouldsboro, à volta próxima do conde, que não deveria tardar. Essas palavras não chegavam até ela, apenas o som de uma voz diferente que rompera a noite eterna dos dias de inverno.

Ela erguia as pálpebras doloridas e via-se sozinha na jangada da sobrevida. Via Colin sentado ao seu lado, atento, e a inquietação e a ternura daquele olhar claro, familiar.

Subitamente, afinal, o relógio do tempo soara. Uma pancada. E foi o fim dos dias sem fim.

As portas de gelo se romperam. 'Os homens haviam surgido.

Podia acreditar que nada acontecera. Ou poucas coisas. Nada a não ser alguma coisa muito simples e muito natural na vida dos homens. Alguns meses de inverno para atravessar. "Tudo tem fim!... tudo recomeça", dizia ele. Teria podido acreditar que havia sonhado. Um fantasma acompanhando-a com sua força para ajudá-la a chegar ao fim do túnel: Teria podido acreditar que ele não existira, se não houvesse esse crucifixo, sempre ali, que ela percebia com sua pequena cintilação Vermelha refletindo as luzes do fogo.

— Colin, você não me disse que o jesuíta levava ao pescoço um crucifixo, e que caminhava estendendo-o a você?

— Isso mesmo... Mas'quando os selvagens o pegaram eleretirou-o e deu-o para mim: Disse-me de modo muito cortês, mas muito firme: "Senhor, por favor, tenha a bondade de recolocar este santo objeto no batente da lareira, no quarto em que neste momento a Sra. de Peyrac está adormecida. Ela tem estado muito doente, mas ei-la fora de perigo. Quero que ao despertar veja este crucifixo em seu lugar habitual". Gritou-me de longe, quando o arrastavam: "Suba depressa para o forte. As crianças' estão sozinhas!..."

Angélica começou a rir em meio a suas lágrimas.

-        ...Como era autoritário!... Era um maníaco!... Oh! realmente, para esses detalhes, era maníaco como uma mulher!... Por que

dormi?

Continuou a chorar, mas mais suavemente.

— Por que dormi? Por que dormi tanto tempo? Se eu tivesse acordado no momento em que vocês chegavam acompanhados dos iroqueses, ele teria tido tempo de fugir.

— Não creio que quisesse isso - disse Colin.

CAPITULO XXXVII

Um último discurso de Utakewata - Notícias de Honorina

Mais tarde retirou as roupas sujas de sangue do mártir e impregnadas pelo cheiro de fumaça, pelo odor do inverno, pelo odor dos longos meses passados nas trevas.

Desejava chorar mais, mas ao ver-se vestida com roupas limpas e pouco usadas e reconhecer nas pregas da saia, do blusão e do lenço o perfume discreto de sua amiga Abigail, uma euforia benfazeja a conquistou.

Logo estaria junto à doce amiga, deixando-se rodear por suas atenções, ouvindo o mar bater nas praias de Gouldsboro, enquanto esperava que surgissem as velas do navio que traria Joffrey de volta.

Abigail pensara em tudo. Inclusive juntara ao que mandara um saquinho de cascas de quina trazidas por Shapleigh.

Deslizou para o sono tranquilamente. Soube que dormia quando o rosto de jesuíta veio inclinar-se sobre o seu. Seus olhos eram azuis e não havia nenhuma brecha negra no sorriso dos- belos dentes, que não tivera tempo de tratar. Julgou que fosse dizer-lhe: "Há um alce lá fora!... Levahte-se". Mas ele contentou-se em sussurrar-lhe: "E Honorina?", com uma piscadela cúmplice, como para lembrar-lhe um segredo entre eles, e que ainda tinham uma obra comum a resolver.

- E verdade! Honorina!... Eu sei por que não quero deixar wapassu - disse a Colin, que continuava à sua cabeceira. - Tenho de esperar Honorina. Ela não sabe que Wapassu foi incendiado e tentará encontrar-nos aqui.

Colin Paturel ignorava tudo a respeito da odisseia de Honori-na, e julgava lembrar-se de que a menina estava interna no colégio das religiosas em Montreal. Mas, vendo Angélica agitar-se, afirmou-lhe que ficariam em Wapassu o tempo que fosse preciso para esperar Honorina, prometendo interiormente convencê-la no dia seguinte. Por ora, a noite ainda era profunda. Era preciso dormir, insistiu.

Como ela estava fraca, nervosa e diáfana!, pensava, olhando-a recair no sono como que sob o efeito de um desmaio, mas sempre indomável.

Colin Paturel ajoelhou-se junto dela e colocou os lábios sobre a mão abandonada.

-        Obrigado! Obrigado, meu cordeiro - murmurou-lhe. -Obrigado por ter salvo a felicidade de nossas vidas suplantando sua morte...

A segunda fase de seu repouso, um pouco antes da aurora, foi para Angélica mais turbulenta. "Os iroqueses! Os iroqueses!", repetia, perseguindo um pensamento que lhe fugia mas que, ao final, se tornou preciso. "Os iroqueses, mas são eles, pelo menos alguns dentre eles, que podiam me dar notícias de Honorina... Se ela passou o inverno numa de suas nações... esqueci-me de pedir-lhe informações..."

Acordou gritando: "Os iroqueses". Estava sozinha dessa vez, mas num quarto ensolarado. Haviam-na deixado dormir, apesar da chegada do dia.

Zangada consigo mesma, atirou-se para fora da cama, com todas as energias reanimadas.

— Os iroqueses ainda estão por aí?

— Sim! Muito ruidosos e desagradáveis, para nossa infelicidade; continuam a parlamentar e a querelar no fundo do valezinho.

— Graças a Deus!...

Ela lhe explicou que era preciso ir ao encontro deles ou convocá-los imediatamente, pois apenas por eles podia esperar obter notícias de Honorina. Sem tentar distraí-la de sua ideia fixa, Colin pôde satisfazer-lhe a vontade logo. Não havia necessidade de convocá-los. Estavam vindo até eles. Utakê fizera-se anunciar com os seus para dali a uma hora.

Saindo, Angélica percebeu a grande poltrona de madeira que fora levada para fora.

-        O mensageiro do mohawk recomendou que lhe fosse preparada uma cadeira para que você possa escutar, sem fadiga, sua arenga, que ele pretende dirigir-nos antes de despedir-se, e que será longa.

Angélica tomou assento na poltrona preparada para ela, sacudindo a cabeça com resignação. "Esses índios, jamais os compreenderei!..."

Na esplanada, seu olhar abarcava a perspectiva de Wapassu, que lhe pareceu mais deserto ainda que nos primeiros dias, anos antes, quando haviam chegado em caravana para encontrar, no fundo daquele covil, os quatro mineiros que já haviam começado a trabalhar ali.

A esquerda, distinguia uma parte do Lago de Prata, reverberando ao sol, esquecido de que sobre sua planície branca ela correra, perseguida pelos lobos, arrastando um cadáver de alce.

Ao longe, na curva verdejante do valezinho, a multidão castanha dos iroqueses se agitava, e seus gestos de idas e vindas pareciam indicar que estavam se preparando para partir.

-        Se eles subirem sem armas, será preciso que nossas sentinelas dissimulem as suas - recomendou Angélica a Colin.

Pediu aos dois rapazes encarregados de vigiar Raimundo Rogério e Gloriandra que viessem colocar-se ao seu lado com as crianças. Seus dois rebentos, estava persuadida, não deixariam de se interessar por aquele espetáculo multicolorido de uma delegação iroquesa, mas não era por isso que tomava essas medidas, que suscitou murmúrios de desaprovação ao seu redor. Ela explicou àqueles que se inquietavam que a visão das crianças lisonjeava os índios, e principalmente os ferozes iroqueses, provando-lhes que não inspiravam receio e que eram recebidos como amigos da família.

Fora alguns, homens do grupo, que haviam andado pelos bosques à procura de peles, ou-que tinham tido a oportunidade de viver nas aldeias fronteiriças, a maior parte daqueles que tinham vindo das margens para socorrê-los nutria uma forte desconfiança em relação-aos índios do interior, mais ainda em relação aos iroqueses, muito temidos, e cujos contingentes de guerra vinham de muito longe semear o pânico entre os algonquinos do leste.

Angélica permanecia calma. De sua parte, não temia nada. Temia apenas perder a paciência. Ou ser vencida pela impaciência durante o discurso, em sua espera de receber algumas notícias sobre a filha. Tinha pressa de interrogar Utakê. Dele talvez obtivesse uma indicação, alguém que a tivesse visto, percebido, quem sabe falado com a menina, e que lhe devolveria a esperança, garantindo-lhe que estava viva, apesar das guerras, epidemias e fome. Deveria pois esperar sem nervosismo o final da arenga.

Uma pequena mão colocou-se sobre a sua, pousada no braço da poltrona.

— Eu também estou aqui - disse-lhe Carlos Henrique, lembrando-lhe sua presença com uma voz gentil. Angélica abraçou-o e apertou-o contra o peito.

— Sim, você também, você é meu filho, meu valente compa-nheirinho. Vai ficar de pé ao meu lado e me ajudar a receber o chefe das Cinco Nações. Conserve sua mão na minha e fique bem ereto como o orgulhoso soldado que é.

O que mais lhe iria pedir Utakê? O impossível... ou talvez nada. Com ele, podia-se esperar qualquer coisa.

-        Eis nossos teatrais que avançavam - disse a Colin, de pé atrás dela, e que lhe pareceu mais tenso e menos à vontade que se tivesse de tomar de assalto toda uma frota de piratas das Antilhas.

Quanto a ela, ladeada pelo pequeno Carlos Henrique, olhava-os vir sem receio, e quase sem rancor. Levavam na cintura as machadinhas de combate e os tomahawks de pedra vermelha ou branca. Tinham deixado os mosquetes no vale, e Angélica fez sinal aos portadores de mosquetes, que se mantinham com a mecha pronta para o ataque, para que se escondessem atrás da casa ou nas brenhas ao redor.

Os chefes das Cinco Nações pararam a alguns passos da poltrona, seguidos de uma massa de guerreiros reunidos.

Um sol pálido, um sol ainda frio de inverno os iluminava.

Apesar do penacho de plumas e de peles, cerdas de porco-espinho nos cabelos levantados, colares de dentes de urso, braceletes de penugens tingidas de vermelho, eles estavam magros, quase tão magros quanto lobos esfomeados. Sua carne pareceu-lhe pálida sob a retícula azulada das tatuagens. Ignorava que haviam vivido escondidos longos dias nas trevas da terra, atravessando, num percurso de várias léguas, os meandros das grutas e rios subterrâneos.

A homilia de Utakê, contrariamente ao aviso que havia dado, foi de curta duração. Mas, ainda que tivesse escolhido com cuidado, em seu francês castigado, as palavras adequadas, foi um discurso difícil de compreender. Cada palavra puxava outra e ia mais longe, tal como as linhas superpostas das montanhas.

Mais tarde, lembrar-se-ia dela como uma mão aflorando as cordas de uma harpa, e cujos sons chegassem até ela amplificados pelo eco, e pelo eco do eco.

Todavia, ele começou falando com toda a simplicidade sobre sua querela com Hiyatgu.

- Um de nós deveria estar morto. É a lei. E eis-nos aqui diante de você com vida, nós dois. O que significa, Kawa: de seu último combate, como de meu combate com Hiyatgu, não houve vencedor nem vencido. Foi um combate que nada decidiu. Porque na realidade não há inimigo e não há guerra. Apenas um precipício e uma ponte que faltava para passá-lo. Mas a cláusula é secreta e é preciso esconder-s,e daqueles que não vêem a ponte e que não compreendem por que nós a atravessamos.

"Teconderoga me fez fazer coisas bem estranhas desde que o vi. Ele torcia meu ser por dentro como uma pele ria água do rio. Ele obrigou minha razão a pensar um pouco ao lado de seu caminho habitual, o que é um sofrimento e um perigo, mas pode conduzir à ponte.

"Você, você é o espírito flutuante de Teconderoga. Ele se mantinha na terra, arcado sob o peso da ciência, e você, você corria para a frente; leve e invisível para me agarrar. Soube disso quando os vi em Kátarunk, depois do fogo. Dois e unidos, e de uma força tão grande! Foi o que disse o Toga Negra: 'Unidos não se pode abatê-los. É.preciso separá-los'."

Onde, quando, Sebastião d'Orgeval-explicara isso ao chefe das Cinco Nações?... Provavelmente, jamais. Utakê talvez o tivesse ouvido em sonho...

— Mas Teconderoga não está mais aqui, e você vai partir. Eis-me obrigado a andar ainda um pouco ao lado de meu caminho, se não quiser perder tudo. E eis por que Hiyatgu está vivo... Eis por que eu o poupei - disse, lançando um olhar prov.ocativo ao chefe dos onondagas. - Tenho ainda necessidade de ouvir uma palavra apenas de sua boca, Kawa. Assegure-me, assegure-me que aquele que morreu ontem não voltará para nos destruir..."

— Cpmo você pode duvidar? - disse ela, surpresa de ler em seus traços impassíveis uma ansiedade real. - Você é avisado dessas coisas melhor que eu mesma.

— A fome e a derrota enfraqueceram a clareza de minhas pres-ciências. Do mesmo modo que Teconderoga me fortalecia, Hatskon-Ontsi perturbava e enfraquecia meus julgamentos.

— Você fala no passado. Dá a si mesmo a resposta, Utakê. Não há vencido nem vencedor, você dizia, porque nunca houve inimigo. Você, que comeu seu coração, sabe agora como ele os amava...

— Não irá ele aplicar-se em ajudar seus irmãos de raça, os franceses, contra nós?

— Não! Os franceses não precisam dele da mesma forma que vocês, iroqueses das Cinco Nações, e foi por vocês que ele veio. Digo-lhe isso porque foi o que ele me disse e porque é o que sinto também. Veio para ficar entre vocês. Daqui a algum tempo ele se infiltrará entre você. Eu sei que você principalmente o sentirá presente para ajudá-lo na sua tarefa e combater ao seu lado.

— Quer dizer que ele terá descoberto a justiça de nossa causa e a horrível traição com que nos oprimem nossos inimigos? - interrogou o mohawk, cujas pupilas negras refletiam uma centelha de alegria e triunfo.

Angélica fechou os olhos. A imagem de Wapassu destruído, a América que deixavam para trás parecia-lhe como um campo de ruínas, uma terra queimada, uma terra que se devoraria a si mesma até que os renovos de raízes mais robustas conseguissem firmar-se e dominar o caos.

Não estava em condições de lançar sobre o futuro um olhar otimista, mas precisava responder-lhe'e devolver-lhe a confiança.

-        Ele terá descoberto que você mereceu tê-lo ao seu lado para apoiá-lo e aconselhá-lo até o fim de seus dias - respondeu com firmeza, mas erguendo as pálpebras com dificuldade.

Nesse breve instante em que fechara os olhos para refletir, julgara que ia desfalecer, ou pelo menos adormecer, de tal modo estava fatigada, mas sabia que, mesmo feridos ou ameaçados como estavam presentemente, os selvagens, e sobretudo seu interlocutor, eram capazes de adiar sua partida e minimizar o perigo que os espreitava, a fim de continuar uma discussão "de valor", mostrando, pela apresentação e refutação dos argumentos de sua defesa e de seus ataques, uma resistência que poderia levá-los até a noite.

-        Você crê realmente? - recomeçou Utakê, tomando fôlego por um longo período.

As pálpebras de Angélica fecharam-se novamente. Reabriu-as corajosamente, ficando surpresa por ver o chefe das Cinco Nações inclinado diante dela e apresentando-lhe nas duas palmas uma fina tira de couro com contas de koris brancas, pretas e malva.

— Ofereço-íhe este colar de porcelanas - disse ele. - É tudo o que me resta do tesouro de guerra dos mohawks, que os franceses chamam de "agniers". Guarde-o como símbolo de minha aliança eterna, e este, não o perca.

— Mas eu não perdi o wampum das Mães das Cinco Nações que você me enviou em nossa primeira invernada aqui - protestou Angélica. - Ele desapareceu no incêndio de Wapassu. Talvez se pudesse encontrá-lo nos escombros, não?

— As mães que o enviaram a você estão mortas - disse Utakê com uma voz cava -, e o wampum que teceram com suas próprias mãos está enterrado sob as cinzas. Assim são os sinais.

Ele recuou alguns passos, deixando o fio de conchinhas enfiadas sobre os joelhos de Angélica.

-        E agora tenho de dar-te notícias de sua filha, cujo nome é impronunciável,« que nós, iroqueses, chamamos de Nuvem Vermelha - disse, num,tom voluntariamente neutro e comedido.

Mas seu olhar faiscou de malícia, rejubilando-se antecipadamente com o que ia suscitar com essas palavras numa francesa tão impulsiva quanto aquela que estava à sua frente e que, ainda que se esforçasse por respeitar as maneiras ponderadas dos índios, continuava submetida ao sangue fervilhante e anárquico da raça dos caras-pálidas sem educação.

Não podia falhar.

Angélica soltou uma exclamação de alegria, e sua expressão dolente deu lugar à mais desperta excitação do mundo.

— Honorina! Minha filha Honorina! Você sabe alguma coisa sobre ela?... Sabe onde ela está? Ah! diabo de mohawk! Por que se calava? Por que não.o disse logo?

— Porque em seguida você não teria escutado coisa alguma dos discursos que eu tinha de fazer-lhe. Não teria dado a menor atenção às palavras muito importantes que tinha a lhe comunicar antes de deixá-la, para talvez nunca mais rever, e eu fazia questão de me dirigir a uma pessoa atenta. Você não teria sequer notado, eu a conheço - disse com um grande gesto desiludido -, que eu lhe oferecia meu único ramo de porcelanas em sinal de aliança eterna, ó Mãe que você é! ó Mulher! Mulher! Mulher que você é, pois você é três vezes mulher, pela lua e pelas estrelas. Há mulheres que podem se lembrar do homem que foram num outro ciclo, e encontrar as palavras ou atitudes que não chocam absolutamente a dignidade daquele que a ela se dirige, mas você sempre foi demasiado mulher para se preocupar com isso...

— Fale! - exclamou Angélica, agarrando-se com ambas as mãos nos braços da poltrona.

Se estivesse lidando com Piksarett, ter-se-ia levantado para sacudi-lo por suas tranças de honra.

-        Fale! Eu lhe suplico, Utakê! Diga-me tudo o que sabe sobre ela e não me faça esmorecer, ou prometo que vou me lembrar que fui também um guerreiro que manejava o cutelo melhor que você mesmo, e que o fez compreender isso uma noite junto à fonte, e isso não aconteceu numa vida anterior.

Utakê deu uma gargalhada, imitada por seus companheiros, que não compreendiam inteiramente a alusão, mas apreciavam a animação da cena.

Depois, acalmando-se:

-       Seja! Dir-lhe-ei tudo o que sei sobre ela. Vou primeiro dizer o que sei com certeza.

-        Onde ela está? Está viva? Você a encontrou?...

O mohawk fez uma expressão melindrada.

-        Se eu a encontrei? Que está dizendo? Se ela partilhou todos os meses de inverno a vida de uma família na Casa Comprida do ohtara do Chevreuil aux Oneiouts, e, todos os dias, eu, que me dirigia ao Conselho da Federação como chefe das Cinco Nações, via-a e conversava com ela, até o dia em que, maldito seja, o novo Onôncio de Quebec conduziu novamente suas tropas

até nosso vale dos Cinco Lagos e queimou o provoado de Tuansho, apesar de suas fortes paliçadas, após um combate assustador.

"É por isso que não posso responder com certeza à primeira pergunta: 'Onde está ela?...' Nem à segunda: 'Ela está viva?...' Pois, talvez você o ignore, quase toda a população desse povoado pereceu, exceto alguns poucos miseráveis que consegui arrastar comigo e subtrair por minha habilidade ao furor vingador dos franceses e de seus danados huronianos, e desses cachorros de abenakis. Tudo o que posso dizer com certeza é que ela não estava entre nós." Ele repreendeu com um gesto o movimento desesperado de Angélica. "Sei que algumas mulheres e crianças iroqueses, disseram-me, foram levadas pelos franceses até as missões de São José ou de Quinté, perto do Forte Frontenac, mas não posso dizer-lhe seguramente se ela estava entre elas."

Cobrindo o rosto com as mãos para dissimular seus traços, Angélica recusava-se a encarar que a criança tivesse perecido nas chamas das aldeias incendiadas. Era impossível. Era-lhe pois preciso desejar que Honorina estivesse em poder do.s franceses, seus compatriotas, que eles a tivessem levado de volta a Madre Bourgeoys ou a seu tio e sua tia do Lobo.

Utakê levantou os braços com solenidade como para reclamar do céu a inspiração e, das pessoas presentes, a mais escrupulosa atenção.

-        E agora vou lhe dizer o que sei dela, Nuvem Vermelha, por vidência.

Fechou os olhos e começou a sorrir.

-        Ela chega! - murmurou. - Ela vem para você! Nao se apresse em deixar estes lugares, Kawa, pois sua filha se dirige para o Lago de Prata para aqui encontrá-la. Ela está acompanhada... por um anjo!...

Novamente deu uma sonora gargalhada como se tivesse sido testemunha de uma brincadeira.

-        Ah! Você me escuta neste momento, e desta vez sem dormir!...

Ria cada vez mais, sustentado pela hilaridade de seus guerreiros. E com essas explosões de uma alegria franca, suscitada mais uma vez pelas expressões aturdidas dos brancos, e por suas dificuldades em dar fé às revelações tão seguras dos sonhos, os iro-queses se afastaram e se separaram daquela que provavelmente jamais tornariam a ver.

Atordoada pelo que Utakê acabara de dizer-lhe, Angélica compreendeu demasiado tarde que eles se haviam eclipsado. E quando quis pelo menos fazer voltar Utakê para pedir-lhe mais informações e despedir-se melhor dele, não se encontrou mais nem sinal do chefe mohawk nem de seus companheiros.

-        Por favor, alcancem-no - suplicou ela.

Utakê não dissera sobre Honorina: "Eu a via todos os dias?..." Queria interrogá-lo sobre a menina perdida no coração da vasta América.

E depois deu-se conta de que em nenhum momento pensara em agradecer-lhe pelos sacos de alimento que ele lhe mandara por intermédio do jesuíta.

-        Alcancem-nos!

Mas não conseguiram encontrar os iroqueses, que haviam partido à procura dos fragmentos errantes de suas tribos, a fim de reconduzi-los ao vale dos Ancestrais, e à procura de seus inimigos para exterminá-los.

Tinham-se diluído na vasta paisagem de montes, bosques e abismos, nas pistas invisíveis e não-traçadas.

E, para dizer a verdade, ninguém se sentia realmente muito ansioso por alcançá-los.

CAPITULO XXXVIII

A odisseia de Cantor e Honorina

Cantor puxou o barco para a pequena praia, num recanto do rio, e depois, içando-o sobre a cabeça, carregou-o até um abrigo de rochedos, onde o escondeu sob os galhos.

-        Não iremos mais muito longe pela água - disse. - Temos de ir a pé. Mas se andarmos bastante, poderemos estar em Wapassu um pouco depois do meio-dia.

A criança índia que o acompanhava opinou com seu penacho vermelho de cabelos eriçados, e pôs-se a andar docilmente atrás dele. Cantor segurava-a por uma corda presa ao pulso, pois a criança estava meio cega, e, no início de sua viagem, por várias vezes, quase a perdera ao atravessar florestas muito cerradas.

-        Onde arranjou esse selvagenzinho? - perguntara-lhe o boticário do Forte Orange, naquela noite em que, depois de atravessar mil perigos, puderam dormir ao abrigo das muralhas da cidadezinha anglo-flamenga, no alto Hudson.

Respondera que era um órfão iroquês, que recolhera entre os sobreviventes dos massacres, e epidemias que haviam dizimado o vale dos mohawks.

Era difícil confessar ao bravo holandês, que, muito caridoso, fora buscar uma pomada para cuidar dos olhos do pequeno ma-quas, que o bugrinho era sua meia irmã Honorina de Peyrac.

Honorina fora enfim encontrada por ele num campo de refugiados do lago Ontário, entre as mulheres e crianças iroquesas reunidas pelos franceses sob a ptoteção dos sulpicianos de Quinte.

O Sr. de Gorrestat, o intratável e limitado governador com que fora brindada a Nova França - provisoriamente, dizia-se, mas que parecia um pesadelo -, não esperara o degelo completo das neves para lançar novamente seus exércitos contra os cantões iroqueses.

Foi assim que Cantor, que, ele também, desde os primeiros sinais de degelo, se pusera a caminho, não sem incorrer no risco de enfrentar as últimas e temíveis tempestades do rigoroso inverno, só encontrara, quando se aproximou das regiões onde queria procurar sua jovem irmã, povoados devastados pelos combates, fumegantes ainda dos incêndios. Desnorteou-se perguntando-se se não estaria morta, onde deveria investigar.

Diziam que os iroqueses tinham "desaparecido da face da terra...

Um contingente dos mais valentes e dos principais "capitães" daquelas nações, entre os quais o incansável Utakê, evaporara-se no momento de uma batalha decisiva, e os viajantes e exploradores de bosques supunham-nos escondidos da perseguição dos franceses e de seus aliados índios sob os labirintos subterrâneos de grutas, cuja longa rede se desenrolava invisível através de várias dezenas de milhas. Mas nenhum branco jamais penetrara ali. E corria uma lenda de que a obscuridade era ali tão profunda que uma permanência muito prolongada naquelas trevas fazia perder a visão.

Cantor ocupava-se com os sobreviventes, sobretudo com as mulheres e as crianças, entre as quais lhe restava uma esperança de obter alguma informação sobre a pequena Honorina.

Jamais esqueceria sua alegria, mesclada de terror e de compaixão, quando finalmente a encontrara, uma noite, à luz das fogueiras, quando a segurara nos braços, uma pequena caça gordurosa, magra de fazer medo. Terror porque por pouco não a reconhecera sob seus trajes de menino, repudiando-a inicialmente; então ela escapara e ele tivera de percorrer todo o campo lançando seu chamado de antigamente: "HonnL. HonnL." Compaixão, descobrindo-á desfigurada pelas marcas da varíola, cuja epidemia começara por dizimar as populações iroquesas já durante o inverno.

Não diziam até que fora o Sr. de Gorrestat que tivera a ideia de mandar introduzir cobertas de comércio que haviam abrigado variolosos entre os inimigos, cuja perda pretendia?...

Mas diziam tantas coisas! Os flagelos abatiam-se sobre aquelas regiões selvagens como o furacão. Dir-se-ia que as intenções tinham possibilidades de materialização e de rapidez anormais. Elas se realizavam mais depressa que o pensamento. E, por outro lado, a imobilidade da morte também tinha o poder incomensurável de congelar subitamente todo sinal de vida por centenas e milhares de lugares, pois o domínio do frio impedia qualquer movimento, qualquer deslocamento dos seres durante meses na superfície de um continente.

"Maldito inverno!", pensava Cantor enquanto, num passo estugado, seguia a linha da crista dos montes eriçados, cuja pista maltraçada os levava a Wapassu. Na Europa, podia-se conceber o poder do deus feroz do inverno que os petrificava a todos, no lugar em que os surpreendia? E pobre daquele que procurasse enfrentá-lo. Por pouco os dois irmãos Lemoyne, que quiseram prosseguir seu caminho em direção à grande missão dos jesuítas em Sault-Sainte-Marie, não puderam voltar para os odjibways sem "se perder". Só o conseguiram graças a uma fogueira que Cantor acendera para eles, entre duas tempestades.

Maldito inverno! Muito precoce, longo e rigoroso, que não lhe permitira salvar a tempo Honorina. Mas teria podido fazê-lo? Pois o inverno é implacável e os teria apanhado a ambos em qualquer lugar inexoravelmente, e, talvez, longe de qualquer abrigo, no no man's land do deserto branco.

Em Quinté, carregando-a nos braços, pensara: ".Que importa! Está viva! Nossa mãe a curará!"

Sua única oportunidade,.pobrezinha! Ela, que já não era muito hábil, agora esbarrava em tudo, caía, perdia-se. Ela estava abusando, dissera consigo, readquirindo já as rabugices de irmão mais velho. Tivera de carregá-la nas costas e acabara por prendê-la com uma cordinha, enquanto, enfrentando os barrancos do degelo, a travessia das aldeias irOquesas incendiadas, pilhadas e cobertas de cadáveres, o perigo dos lagos e dos rios, cujo gelo cedia sob °s pés, empreendiam a longa viagem de volta para Wapassu.

Em Orange, onde se concederam uma noite de repouso sob o conforto dos colchões de penas dos holandeses, Cantor se interrogara.

Se o Hudson fora desobstruído dos gelos, teria achado mais seguro continuar a viagem descendo em direção a Nova York. Depois, de escala em escala, subiriam novamente para Goulds-boro. O périplo teria exigido vários meses.

Era melhor continuar em direção ao leste, pela selvageria das florestas.

Ele era como a irmã. Sentia a impaciência de voltar para casa. De voltar o mais depressa possível para a casa dele, a casa deles. E a casa, a casa deles, ficava em Wapassu. Era o rosto e os olhos de sua mãe, seus braços abertos, sua alegria de vê-los, que eles não paravam de imaginar,, era a presença do pai, o sorriso dele, raro mas tão caloroso, tão cúmplice, tão estimulante, que a gente se dispunha a conquistar o mundo para ser digno dele, receber-lhe a aprovação, eram seus amigos, os espanhóis, os Jonas, eram o irmãozinho e a irmãzinha que ele não conhecia, mas dos quais Honorina não parava de falar-lhe. Ela se perguntava como bebés daquela idade haviam podido realizar tantas proezas em suas curtas vidas.

Ele se voltava e olhava-a andar atrás dele "com um profundo sentimento de felicidade.

Tinha vontade de dizer-lhe que ela se parecia com um porco-espinho sem touca, mas continha-se. Estava tão orgulhosa por estar vestida como um menino iroquês!

-        Utakê disse que eu era digna de ser um guerreiro, e, já que havia meninos aos quais permitiam vestir-se de mulher quando não sentiam gosto pelas armas, não havia razão para impedir-me de me vestir de menino, pois eu atirava bem com o arco... Era bem feito para essas mulheres idiotas que queriam que eu fosse buscar lenha ou apanhar o animal morto pelo caçador, sob pretexto de que eu era uma menina.

As vezes ela parava. Um receio se apoderava dela.

— Acha que ela esteja morta? - perguntou um dia.

— Quem?

— Minha mãe, que está me esperando em Wapassu.

Ela dizia "minha mãe" num tom possessivo, mas Cantor não a levou a mal. Negava enfaticamente.

— Não! Isto não e possível. Ela nao pode morrer. Vou lhe explicar por quê. Muitas forças malignas se aliaram contra ela. E você sabe o que acontece nesses casos?...

— Não!

— Um bem imprevisto nasce desse mal intenso. É uma lei, como numa operação de transmutação química.

Honorina balançava a cabeça. Desde a mais tenra idade, ouvira discutir ao seu redor química, alquimia, fenómenos científicos.

Ela contou que numa noite de inverno, nos cantões iroqueses, enquanto estava dormindo, vira Angélica moribunda, e começara a correr, urrando: "Minha mãe está morrendo! Oh! façam alguma coisa por ela!...", pondo em polvorosa todos os habitantes da Casa Comprida. Corriam de uma toca a outra, informando-se sobre a saúde da índia que a adotara.

Calou-se, rememorando fatos que haviam se apagado de sua memória desde que fora acometida pela doença. Depois continuava suas confidências. No fogo vermelho da febre, várias vezes Angélica fora visitá-la. E, persuadida de que sua mãe estava ao seu lado, lutava a fim de poder falar-lhe. Mas quando voltava a si, só via tristes rostos indígenas inclinados sobre ela e que sacudiam a cabeça: "Não, sua mãe não está aqui!" Uma velha índia compreendeu o que era preciso fazer para manter viva a menininha branca. Dizia-lhe: "Beba este caldo, e quando despertar sua mãe estará aqui".

Uma vez ela acordou, e estava curada. Podia levantar-se, ir ao rio. A velha índia não estaca mais lá, pois morrera,-e Honorina sabia que sua mãe jamais viera. Pouco depois, os franceses chegaram e se encarregaram das mulheres e das crianças sobreviventes.

Nas proximidades do lago de Saint-Sacrement, Cantor sentiu-"os", pululando à sua volta.

-        Não grite! "Eles" estão em toda parte!...

Jogou-se com-ela atrás de um arbusto, que começava a recobrir com uma resina esverdeada os renovos pegajosos. Os sobos-ques sob o efeito dos primeiros sinais da primavera, brotos, folhas tímidas, enroladas como lagartas, ofereciam uma aparência esbatida, enevoada, propícia a todas as emboscadas.

Talvez fosse um engodo! A floresta estava vazia. Nào, ele não sonhara. Erguendo os olhos, viu flutuar, parcialmente, no celeiro molhado -pelas brumas baixas, uma bandeira com uma flor-de-lis.

- "Eles" estão em toda parte, atrás de cada árvore!...

Por sorte, um rosto adolescente apareceu-lhe entre os ramos, o do jovem Ragueneau, com o qual havia cantado Meia-noíte cristã na noite de Natal, na Catedral de Quebec.

Filho do Dr. Ragueneau, que, com seus dez filhos, levava todos os verões seu dízimo num buque de flores de seu jardim às religiosas da Santa Casa, ele fora convocado porque tocava pífaro e tambor.

Precedendo o exército, o rufar dos tambores semeava o terror nos corações iroqueses.

O exército franco-índio - cento e vinte soldadosda metrópole, quatrocentos regulares canadenses e o mesmo número de índios das missões, garantindo o avanço e os guardas de flanco - seguia a habitual pista que conduzia aos mohawks e aos oneidas. "Essa pista era tortuosa, interrompida em toda parte, cortada por buracos e despenhadeiros atravessada por inúmeras torrentes..."

Para alcançar o norte do Maine, Cantor devia atravessar esse exército em toda a sua extensão como um rio. O jovem Ragueneau lançou-lhe aos ombros um dólmã branco rasgado, uniforme do célebre regimento de Carignan. Assim vestido, misturado à tropa e arrastando o selvagenzinho cego, ficou ali por vários dias, aproveitou os bivaques, onde se comia bem, proveu a mochila com enguias defumadas, carne-seca e rações de pão.

Depois afastou-se da longa fila guerreira que deslizava inexoravelmente em direção ao sul, à procura dos sobreviventes das Cinco Nações, com a possibilidade de tropeçar com os primeiros habitantes das fronteiras da Nova Inglaterra e ali recolher escalpo;, e cativos para se desincumbir de uma perseguição inútil.

Continuando rumo ao leste, atravessaram uma região deserta, sem homens, sem animais, sem trilhas. Penetravam no Maine, o verdadeiro Maine, inextricável, onde, várias vezes por dia, era preciso, para efetuar qualquer avanço, descer ao fundo das gargantas, encontrar uma passagem na efervescência das torrentes ou das quedas-d'água, escalar novamente a falésia abrupta do outro lado.

Apesar de sua habilidade e faro, Cantor surpreendia-se girando no mesmo lugar entre os galhos de árvores quebradas hesitando entre as pegadas de pistas indígenas, muitas vezes desativadas, e que não levavam a parte alguma. Os bosquezinhos de Versalhes tinham-no feito perder o senso de direção naqueles cerrados, pensava com despeito.

Mas os cursos de água tornavam-se navegáveis. Uma pequena tribo de índios nómades, que emergia do inverno como sarças ressecadas, acabava de costurar barcos de casca de árvores à beira de um rio, envernizando-os com resina de abeto balsâmico.

As noites eram gélidas, mas o sol aquecia durante o dia. Os índios tinham recolhido a seiva adocicada do ácer e recuperavam as forças bebendo-a.

Com os índios, irmão e irmã desceram o rio, atravessaram lagos, transpuseram, com o barco sobre a cabeça, os saltos que, de degrau em degrau, os levavam para outros lagos ou vales sulcados de rios, onde se reuniam wigwams, semelhantes a sobreviventes do frio. Levavam suas peles e discutiam a direção que deviam tomar para ir ao comércio: seja na direção dos franceses, seja na direção dos ingleses.

Cantor comprou um barco e os dois remaram, continuando seu giro rumo ao leste.

Um dia, entre duas nuvens de um dia um pouco invernal, perceberam o cimo ainda recoberto de neve do monte Kathadin.

Wapassu não estava longe.

Era a última etapa numa suave manhã. Mais uma ou duas horas de caminhada...

Ouviu atrás dele gemidos de cachorrinho e voltou-se.

-        Cansada?

Estava surpreso, pois jamais ela se queixara das longas caminhadas que lhe impunha.

-        Ela me tirou minhas caixinhas de tesouros! - choramingava Honorina.

Na hora não sabia do que ela estava falando. Já ia tão longe o navio, a perseguição, o golpe de misericórdia, o fim da Diaba! Era como se ela nurtcà tivesse existido! Surpreendia-se até ao pensar que tinha vivido na corte da França. Tornara-se novamente um adolescente do Novo Mundo.

— Ela me tirou tudo, até o dente de cachalote de casca de castanha e a conchinha que você me tinha dado...

— Que está dizendo?

A doença deixara-lhe uma fraqueza na garganta, e, quando ela choramingava, sua voz ficava ininteligível.

— Até o anel de meu pai e a carta de minha mãe - continuava, num tom de homilia, Honorina, cuja aproximação de Wa-passu devia ter-lhe despertado as lembranças.

— Talvez tenha sido isso o que a enfraqueceu - murmurou, sonhador.

Foi a vez de Honorina tentar compreender e interrogá-lo.

-        O que está dizendo?

— O anel de seu pai e a carta de sua mãe devem ter-lhe saltado ao rosto, compreendeu? E depois disso, ela ficou como que paralisada. Compreendeu?

Ela sacudiu gravemente a cabeça. E, nesse pensamento, Honorina encontraria consolo para a perda de-seus tesouros.

Eles tinham mordido a Envenenadora, e fora bem feito!...

"Estamos chegando!...", pensou ele.

Mas não mais, como anteriormente, sob a comoção de uma impaciência infantil, que em sua exultação continha a mesma vasta impressão de vitória, de perfeição, de alargamento infinito que acabava de experimentar no momento em que murmurou estas palavras: "Estamos chegando!", e em que sentiu que englobava todos os seus num movimento novo.

A porta se abria e eles penetravam todos juntos por ela. Tudo era imenso e luminoso.

"Para tanta felicidade, um dia cantarei numa abadia Sua glória."

No instante seguinte, voltara a ser um jovem explorador de bosques, levando pela mão sua irmã selvagenzinha, e já contemplava com um olhar desconcertado e vagamente ansioso o sítio de Wapassu, que, daquele belvedere, deveria ter-lhe parecido mais povoado, e mais animado, e, em todo caso, mais bem construído, pensou imediatamente.

Tinham-lhe feito em cartas muito relatos detalhados, não apenas sobre a construção e reformas do grande forte, mas sobre ás habitações cercadas de jardins que haviam proliferado para além da paliçada. Descreveram-lhe pastagens cobertas de rebanhos, campos lavrados, ravinas drenadas, preparadas para os cavalos.

Ele reconhecia o quadro e só via extensões desertas... recobertas de vegetação nova, mas desertas.

Avançou mais e descobriu as ruínas enegrecidas.

Crispou inadvertidamente a mão em torno da de Honorina.

— O que foi, Cantor? - perguntou ela.

— Nada - respondeu, felicitando-se de que ela não pudesse distinguir esse espetáculo de desolação. - Estamos chegando! Logo veremos... a casa.

— O que está havendo? Onde estão todos?...

Seu pai, sua mãe, os pequenos gémeos! Os Jonas, os Malapra-de, os artesãos, os soldados! Seu coração pulsava fortemente no peito. Eram pulsações tão dolorosas que não conseguia pensar além destas duas perguntas torturantes que lhe soavam na cabeça a cada batida:

"O que aconteceu? Onde estão todos? O que aconteceu?... Onde estão todos?"

Continuou a andar, e um novo trecho de paisagem descòrtinou-se a seus olhos. Estava de tal modo aflito, com o olhar tão emba-ralhado, que não reconheceu imediatamente, encostado ao pico rochoso, o antigo fortim, que, no entanto, lhe era tão familiar, pois ali passara uma invernada. Pouco a pouco, notou o movimento de silhuetas humanas em torno.

"Até que há bastante gente, pensando bem", disse consigo.

Um vestido de mulher. Sua mãe! Sim! Era ela! Recomeçou a respirar, mas estava com as pernas bambas pelo medo que sentira.

Honorina arrancou a mão da sua e precipitou-se, na ponta do rochedo...

-        Cuidado, não caia - gritou ele, apavorado.

Mas o cômico iroquesinho com o rosto bexiguento iluminado de alegria, erguia os braços para o sol.

— Cantor! Estou vendo-o! Estou vendo-o...

— Quem você está vendo?...

— O velho da Montanha! Eu o vejo! Hoje posso vê-lo! Pegou-a na beira do precipício, segurou-lhe a mão. Ambos permaneceram imóveis lá no alto, ainda invisíveis aos olhos daqueles que, mais embaixo, se ocupavam em reunir os elementos da caravana, preparando-se para tomar o caminho do sul e deixar o lugar.

Estavam lá em cima, o irmão e sua jovem irmã, e.na falésia rochosa batida obliquamente pelos raios do sol, as sombras e as luzes esculpiam o relevo de uma face augusta e pacífica.

-        Também o vê, Cantor?

— Sim, eu o vejo - respondeu ele. - Está olhando para nós dois.

— Está nos sorrindo... Olá, Velho da Montanha! Aqui estou, Honorina. Eu voltei. E desta vez posso vê-lo! Oh! Cantor! Como estou feliz! A vida é bela!...

— E você não está completamente cega! Hurra! Hurra! Agora, venha... Vamos fazer-lhes uma surpresa daquelas...

Colocou-a escanchada nas costas e desceu saltando de rochedo em rochedo rumo a Wapassu.

CHEGADA DE CANTOR E HONORINA A WAPASSU

CAPITULO XXXIX

"Encontramos as crianças! Podemos partir" - Um novo limiar de felicidade

- É preciso partir, minha amiga - dizia Colin.

Quatro dias, cinco dias... seis dias de prorrogação!... Angélica acabara por consegui-los. Mas os últimos adiamentos se esgotavam.

A pequena Honorina não surgira dos bosques, acompanhada ou não de um anjo, como predissera aquele louco do Utakê. Se fossem fiar-se nos sonhos dos selvagens... diziam as pessoas das orlas, ansiosas por se afastar antes que aparecessem contingentes de guerra de não se sabe que nação, mas contra os quais não teriam condições de lutar.

Lymon White, o inglês mudo, familiarizado com Wapassu, e o pai de Carlos Henrique, explorador de bosques tarimbado, foram buscar Angélica e Colin Paturel, sob inspiração de um pro-jeto que permitiria conciliar tudo. Propunham ficar no lugar, instalados no fortim. Se as predições do iroquês por acaso se realizassem, pois bem, Honorina não encontraria o lugar deserto. Os dois homens se encarregariam dela e a levariam até Gouldsboro.

Apesar dessa nova decisão, Angélica não podia aceitar a sentença.

Partir!... Partir sem voltar a cabeça!

Abandonar tudo!

Jamais tornaria a ver Wapassu.

O Wapassu! É proibido conhecer o Éden na terra? Mas você o conheceu. De que se queixas?...

-        Olhem para as crianças! Elas sabem que não voltarão mais...

A primavera subia como o mar!... Jamais parecera tão bela, tão suave, tão cheia de flores e de cantos de pássaros.

-        Mais .um dia! Esperemos mais um dia - suplicava Angélica.

Irritava-se com sua pressa em deixar o lugar.

Quatro, cinco... seis dias de prorrogação, é pouco!

E no entanto aqueles dias estavam investidos de um poder de esquecimento e de renascimento que valia por anos.

Quatro, cinco... seis dias, e não era preciso mais que isso para que, com a mesma celeridade com que a primavera começava a invadir de verdor os vales, se evaporasse, derretesse, se apagasse como por encantamento um tempo de morte que parecera que jamais terminaria...

Ele também desaparecia, o jesuíta, ainda que ela procurasse retê-lo sob o aguilhão do apego e do remorso.

Nas primeiras noites, quando se deitava, sempre se lembrava daquele momento que ele vivera e que ela não vira...porque estava dormindo.

Aquele momento em que, tendo percebido os primeiros homens aparecendo do outro lado do lago, ele abandonara suas nassas de pesca e correra em direção ao fortim pela última vez. E passando junto às crianças, lançara-lhes: "Fiquem bem-comportados! Não se mexam! Eu voltarei".

Fora até o quarto de Lymon White. Vestira sobre o corpo descarnado a Toga Negra... A maldita! A magnífica!... Abotoara-a de alto a baixo com os dedos enfermos, colocara o cinto e enfiara o cordão do crucifixo no pescoço. Depois saíra. E talvez o pequeno Carlos Henrique, ao vê-lo, lhe houvesse gritado: "Morto, aonde você vai?"

Andara pela ravina e apresentara-se diante dos homens vindos para fazê-lo perecer.

Ela se agitava no sorto, censurando-se. Pois, em seguida, perguntara-se se não teria podido tentar cuidar dele, mesmo escalpelado. O sangramento de feridas na cabeça é abundante, mas pode ser facilmente estancado. "Eu deveria ter cuidado dele... Eu deveria..." Deixara-o sangrar em seus braços, aniquilada. Esperando essa morte. Esperando essa morte. Era preciso que ele morresse...

Ah! longa, longa morte, como às vezes demora a vir, você que ode ser tão súbita e tão breve!

Colin, sentado pacientemente à sua cabeceira, não tentava convencê-la, contentando-se em murmurar-lhe palavras de conforto e agasalhá-la quando ela acordava em prantos.

Depois, quando sua saúde melhorou, a inquietação por Hono-rina suplantou a do drama recente, dissipando-se a visão que a obsedava e que não conseguia deixar de reviver ponto por ponto. Seu sono daí em diante tornou-se tranquilo e profundo. Desperta, o ruído das vozes, das alterações, aquele movimento de silhuetas em torno dela, ancoravam-na outra vez à terra, em que por isso a colocassem totalmente entre eles. Estava mudada. Não sabia ainda em quê. Isso já acontecera vaias vezes em sua vida, mas nunca com aquela impressão de ruptura, de despojamento, como quando se põe de lado uma roupa.

Às vezes irritava-se com eles por suas palavras sensatas, as previsões lógicas, os projetos materiais e sólidos referentes à partida sobretudo por não poder explicar-se e comunicar-se realmente om nenhum deles, mesmo com Colin. Seu espírito, seu coração, sua alma, debatiam-se como pássa-os contra as grades de uma gaiola demasiado estreita. Isso a punha nervosa, facilmente impaciente, o que se censu-ava.

- Perdoem-me - repetia incessantemente. - Fui um pouco ríspida...

Mas eles lhe perdoavam tudo, e, como não eram testemunhas suas agitações interiores, só podiam rejubilar-se, inclusive Colin, por vê-la readquirir o espírito combativo e bastante vigor para scutir e opor-se-lhes quando a instavam a partir.

Na verdade maravilhavam-se com a rapidez com que reassumia a vitalidade:

Ao sol, seus cabelos, como que sob as mãos hábeis de um mestre cabeleireiro que os nutrisse com óleos revigofantes, readqui-riam flexibilidade e brilho.

A palidez diáfana tingia-se de rosa nos pômulos, os lábios descoloridos ganhavam vida, a sombra cavada sob os olhos já não era senão um círculo azulado sabiamente esbatido, de modo que, nesse período transitório que a levava da doença à saúde, apresentava essa beleza perturbadora, resultante dos artifícios das mulheres que se aprontam para um baile.

Os índios nómades começavam a chegar em pequenas famílias, ,e não compreendiam: onde estavam o posto, o pão, os copos cheios de continhas coloridas?...

Contemplavam o sítio transformado do Wapassu que estavam habituados a frequentar, depois, recusando a realidade, levantavam os pitis de peles sobre varas cruzadas ou os wigwams arredondados como cascos de tartaruga, feitos de cascas de árvores sobre arcos flexíveis. A fumaça lenta das fogueiras, os latidos dos cães e os gritos das crianças recriavam a trama familiar que anunciava os trabalhos de verão.

O último dia consentido havia terminado, e, naquela manhã, a caravana estava formada diante do fortim.

Angélica estava tão ressentida com Colin que nem lhe respondia quando ele lhe dirigia a palavra.

No último momento, o sinal de partida foi atrasado, pois não encontravam as três crianças, que tinham aproveitado os preparativos para escapar de uma vigilância demasiado constrangedora. Tinham tomado gosto pelas explorações pessoais. Entretanto, não deviam estar longe.

Enquanto se lançavam à sua procura, os carregadores recolocaram no chão as cargas que já tinham içado aos ombros.

Os olhos de Angélica percorreram o horizonte de Wapassu.

Subitamente não se sentiu mais triste. Aqueles montes, aqueles bosques haviam lhe confiado um segredo inefável. Esquecê-lo, deixar-se tomar pelo peso da terra era-lhe proibido

Os índios, que observavam de longe os brancos, subitamente também se animaram e se dirigiram para eles em massa, com exclamações afetuosas...

Angélica sentiu perpassar-lhe o mesmo sopro luminoso que transfigurava todo sofrimento.

Uma criança índia corria em sua direção, com os braços abertos, tropeçando, e não soube que presciência a fez lançar-se para ela, correndo também com os braços estendidos. Foi como o cimo de uma vaga de amor arrebentando, resumindo todos os transportes, paixões e esperanças de seu ser.

-        Honorina!

Ergueu a forma frágil, tão leve, e, apertando-a nos braços, julgou morrer de felicidade.

Nem o aspecto repelente do rosto e dos trajes, nem o disfarce de menino, nem a cimeira de cabelos vermelhos viscosos de resina tinham-na enganado.

Teria reconhecido, sob qualquer máscara, a chama dos olhinhos de Honorina...

-        Eu sabia que você viria... O você!, indomável, realizou seus sonhos, pelo que vejo, não é?!...

E ela ria, girando loucamente com a criança junto ao coração.

-        Um guerreiro iroquês!, um guerreiro iroquês! Venham todos, vejam que maravilha... Um guerreiro iroquês voltou para nós!...

No alarido que se seguiu,-mma voz gritou:

-        Senhor Deus! Ela teve varíola!

Uma outra voz, nova e quase desconhecida, replicou:

- Sim, mas está viva, e nossa mãe vai curá-la. Essa voz e essas palavras desviaram a atenção de Angélica, que sentira um choque gelado ao ouvir a terrível palavra: "a varíola"!...

-        Cantor!... Cantor!... Mas... de onde você vem?...

-        De Versalhes - respondeu Cantor, muito mundano -, mas fazendo um pequeno desvio por Quebec, Montreal e Ontário.

-        Ele foi me buscar entre os iroqueses - disse Honorina orgulhosa.

Angélica colocou-a nó chão para estender a mão para o rosto de Cantor, mas foi ele quem a tomou nos braços.

Ela sentiu-lhe a força determinada, feroz. Era um homem. Adivinhou tudo. O encontro que o levara a embarcar, a perseguição que fizera, o gesto que realizara...

Nesse momento, dois ou três homens devotados, que não estavam a par de nada, voltaram gritando:

-        Encontramos as crianças! Podemos partir.

E todo mundo caiu na risada, desafogando a necessidade de distender-se. Podiam partir...

-        Viu seu pai?

Cantor arregalou os olhos. Ignorava que o Conde de Pey-rac fora para a Franca. Seus navios haviam se cruzado no oceano.

Angélica compreendeu que, se o futuro que os esperava estava carregado de mistério, estava-o igualmente de um montão de histórias a serem contadas uns aos outros e que preencheriam as horas de numerosas vigílias ou travessias.

Sua vida não estava arruinada, sua obra não estava apagada. Wa-passu permaneceria uma rica e soberba messe de lembranças e de felicidades.

Estava agora num novo limiar, com Honorina junto a ela e, à sua frente, bastante contentes consigo mesmo mas prontos para a partida, os três pirralhos, lambuzados de fuligem por terem tentado explorar as ruínas e segurando os primeros buques de flores colhidas.

As imagens se precipitavam. O futuro desconhecido já se preenchia. E, em primeiro lugar, em sua marcha de volta rumo ao sul, seria preciso aproveitar o desaparecimento das neves para ir aos postos e minas inacessíveis informar-se sobre os sobreviventes do inverno... ou dos ataques do outono.

A perda dos bens não era nada.

A única coisa que não aceitaria era que houvesse outras vítimas.

Vítimas inocentes, que teriam sido imoladas à malignidade de uma Ambrosina.

Exigia que não houvesse mais vítimas.- Era assim. Queria isso. Não haveria vítimas.

Reencontrariam os Jonas, os Malaprade e seus filhos, os valões e os lolardos ingleses, os suíços, os espanhóis...

E poderiam beber e brindar alegremente, à saúde de todos, nas praias de Gouldsboro, antes de singrar para a Europa num belo navio, numa viagem que não conheceria tempestades, para um rei ponderado, amigos fiéis, impacientes por revê-la, um esposo cheio de expectativa, com o prestígio assegurado, nos braços do qual se lançaria prometendo a si mesma, mais uma vez, nunca mais separar-se dele.

Quanto a Honorina?... Pegou-a no colo para ver-lhe o rosto de perto e examiná-lo.

Sua vista ameaçada? Ainda estava em tempo. Assumiu a responsabilidade de cuidar das pálpebras, aumentando depois a acuidade da visão atingida pela horrível doença. A pele do rosto, a pele fina de criança crivada de cicatrizes? Levaria mais tempo! Ou talvez pouco tempo!?... Dependia dos meios que empregasse. Ela os encontraria, conseguiria. De uma coisa estava certa: conseguiria que os sinais de sofrimento e da maldição que tinham se abatido sobre ela desde o nascimento se apagassem do rosto da criança bem-amada.

Não faltavam forças miraculosas no mundo: mãos curadoras, taumaturgos, fontes de rios sagrados depositários da corrente divina, lugares consagrados, tocados por Seu poder...

"Eu irei, percorrerei o mundo se for preciso, e mais uma vez, ainda uma vez, você será salva, minha criança..."

Abraçou-a apaixonadamente, como se apertasse contra si sua vida nova.

"Não haverá mais vítimas! Será assim! Sinto-o! Encontraremos todos os nossos amigos perdidos!... E você, você será bela! E será feliz!... .

"Depois de tudo!", pensou, desafiando com as pupilas verdes a luz da primavera. "Depois de tudo!... O céu bem que me deve isso!..."

 

 

                                                                                                    Anne e Serge Golon

 

 

 

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