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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O TRIUNFO DE CÉSAR / Steven Saylor
O TRIUNFO DE CÉSAR / Steven Saylor

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

- Ouvi dizer que tinhas morrido.
Comentário tão brusco, saído dos lábios da mulher de César, podia ter-me ofendido, não o tivesse eu ouvido já da boca de tantos outros desde que regressara do Egipto a Roma, onde, ao que parecia, toda a gente me havia dado como morto.
Tendo-me mandado chamar por um escravo, Calpúrnia recebera-me em sua casa - que ficava perto da minha, no Monte Palatino -, numa sala elegante mas escassamente mobilada, onde só havia uma cadeira. E ela estava sentada. Eu deixei-me estar de pé, esforçando-me por não me mostrar muito inquieto ao ser observado de alto a baixo pela mulher mais poderosa de Roma.
- Sim, tenho a certeza de que um dos meus agentes me disse que te tinhas afogado no Nilo - prosseguiu ela, olhando-me com uma expressão astuta. - E contudo, Gordiano, aqui estás tu, vivo como sempre estiveste, a não ser que esses Egípcios tenham aprendido, não apenas a mumificar os mortos, mas a ressuscitá-los. - E, fixando no meu rosto o seu olhar gelado, perguntou-me: - Que idade tens tu, Gordiano?
- Sessenta e quatro.
- A sério? Quer dizer que os Egípcios também descobriram maneira de rejuvenescer um homem? Pareces estar em muito boa forma, para um homem com a tua idade. Tens mais dez anos do que o meu marido, mas quase me atreveria a dizer que pareces ter menos dez.
Eu encolhi os ombros.
- O Grande César transporta às costas o peso do mundo. É certo que destruiu os inimigos, mas nunca teve responsabilidades tão pronunciadas. As preocupações e os cuidados do senhor do mundo devem ser intermináveis. A minha humilde vida tomou um rumo diferente. As minhas obrigações têm vindo a diminuir. Tive o meu quinhão de combates, mas agora estou em paz com o mundo e comigo mesmo. Pelo menos por agora...

 

 

 

 

 

 

Tendo sido convocado pela mulher de César, não podia deixar de perguntar a mim próprio se a tranquilidade da minha vida não estaria prestes a ser abalada.
- Quando foi a última vez que eu te vi, Gordiano?
- Deve ter sido há quase dois anos, antes de eu partir para o Egipto.
Ela fez um aceno de cabeça.
- Aonde foste porque a tua mulher não estava bem de saúde.
- Exactamente. Betesda nasceu no Egipto. Estava convencida de que só se curaria do mal de que sofria se mergulhasse nas águas do Nilo. E parece que de facto se curou, porque...
- E no entanto, passaste a maior parte do tempo na cidade de Alexandria, na companhia do meu marido - interrompeu ela, não demonstrando qualquer interesse pela cura de Betesda.
- Pois foi. Cheguei a meio da guerra civil que a Rainha Cleópatra travava com os irmãos. Acompanhei César ao longo do cerco que o impediu de abandonar o palácio real durante vários meses.
- Altura em que te tornaste amigo do meu marido.
- Tive o privilégio de conversar com ele em numerosas ocasiões - respondi eu, evitando pronunciar-me sobre a questão da amizade. Os sentimentos que eu tinha por César não eram assim tão simples.
- O meu marido acabou por sair vitorioso do Egipto, como saiu vitorioso de todas as outras campanhas que empreendeu. Pôs fim à guerra civil que devastava Alexandria... e colocou a jovem Cleópatra no trono.
Calpúrnia fez uma careta quando proferiu o nome da Rainha; o caso amoroso que César tivera com Cleópatra, que afirmava ter tido um filho dele, era um assunto que deliciava os cultores de escândalos de Roma. A careta tornou-lhe mais pronunciadas as rugas, e de repente Calpúrnia pareceu muito mais velha do que da última vez em que eu a vira. Nunca fora uma mulher bonita; César não se tinha casado

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com ela por causa da sua beleza, mas pela respeitabilidade que daí lhe adviria. A mulher com quem fora anteriormente casado havia-o envergonhado por se ter tornado objecto de bisbilhotices. "A mulher de César tem de estar acima de qualquer suspeita", declarara ele. Calpúrnia era inteligente, pragmática, impiedosa; César confiara-lhe a rede de espiões que tinha na capital, enquanto ele próprio se dedicava a combater os seus rivais em terras longínquas. Nada havia de frívolo na aparência ou nas maneiras da mulher de César, que não fazia qualquer esforço para embelezar o rosto com cosméticos ou a figura com tecidos elegantes.
Olhei em redor, verificando que a sala reflectia o gosto da sua ocupante. As paredes estavam pintadas de encarnado-escuro e amarelo-carregado. Em vez de apresentar uma imagem da história ou de Homero, o mosaico do chão, de fabrico impecável, era constituído por uma sequência de desenhos geométricos interligados, de cores discretas. Os objectos decorativos, embora de extrema qualidade, eram escassos - uns tapetes de lã, uns suportes de lamparina em bronze, e a cadeira sem costas de ébano com incrustações de lazulita, a única existente na sala, onde estava sentada a minha anfitriã.
Não era propriamente a sala de recepções de uma Rainha, como as que eu vira no Egipto, luzindo de peças de ouro e cobertas de ornamentos destinados a intimidar quantos lá entravam. E contudo, Calpúrnia era - de facto, ainda que não de título - a Rainha de Roma; e César, tendo derrotado todos os rivais, era o Rei, embora tivesse optado, para já, pelo mais venerável título de Ditador, o cargo que os nossos antepassados criaram para poderem depositar o governo do estado nas mãos de um homem forte em períodos de emergência. Porém, a dar crédito aos boatos - segundo os quais César tencionava levar o Senado a nomeá-lo Ditador vitalício -, em que se distinguiria ele dos Reis de antigamente, de antes de Roma se ter tornado uma orgulhosa república?
- César corre perigo - declarou Calpúrnia abruptamente, as mãos bem apertadas sobre os joelhos, uma expressão tensa no rosto. - Corre um grande perigo. Foi por isso que te chamei.
A declaração pareceu-me de tal maneira peculiar, que eu soltei uma gargalhada; mas controlei-me imediatamente, ao ver a expressão

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dela. Se o homem mais poderoso do mundo, o vitorioso sobrevivente de uma brutal guerra civil que tinha devastado a face da terra, corria perigo, o que podia Gordiano, o Descobridor, fazer para o proteger?
- Estou certo de que César sabe cuidar de si - observei. - Mas, se precisar da minha ajuda, que seja ele a pedir-me...
- Não! - Foi um grito veemente. Quem estava diante de mim não era a Calpúrnia desapaixonada, friamente calculista que eu conhecia; era uma mulher tocada por um medo genuíno. - César não se apercebe do perigo em que se encontra. César está... distraído.
- Distraído?
- Anda muito ocupado, a preparar os triunfos.
Eu acenei com a cabeça. Estavam marcadas quatro procissões triunfais para muito breve. A primeira, destinada a comemorar a conquista da Gália por César, seria dentro de três dias.
- César anda consumido com os planos e as combinações - prosseguiu ela. - Tenciona oferecer ao povo uma série de espectáculos como nunca se viram. Não presta atenção às pequenas coisas. Mas as coisas pequenas podem crescer e tornar-se grandes. Segundo me disseram, os crocodilos do Nilo começam por ser pouco maiores do que o meu dedo mindinho.
- E contudo, pouco demoram a transformar-se em monstros capazes de comer um homem em duas dentadas.
- Exactamente! Foi por isso que te mandei chamar, Gordiano. Porque tu tens faro para o perigo e gosto pela verdade. - Ergueu um dedo. Foi um gesto tão discreto, que eu mal me apercebi dele, mas um escravo atento que se encontrava à entrada do compartimento apressou-se a acorrer.
- Vai buscar Porsena - ordenou Calpúrnia.
O escravo afastou-se sem fazer um som que fosse. Momentos mais tarde, entrava na sala um homem de barba grisalha, envergando o fato amarelo característico dos arúspices etruscos: por cima da túnica de cor viva, trazia uma capa de pregas, presa no ombro com uma grande fivela de bronze, finamente trabalhada. A fivela tinha a forma de um fígado de ovelha, dividido em várias secções, com anotações em caracteres etruscos gravadas em cada uma delas; tratava-se de um mapa

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de adivinho, que permitia localizar os augúrios nas entranhas dos animais. O arúspice tinha na cabeça um chapéu alto e cónico, preso com uma tira que lhe passava por baixo do queixo.
O aruspicismo era a ciência etrusca da adivinhação. Desde tempos antigos que os vizinhos de Roma, para norte, prestavam culto a um deus-criança chamado Tages, que tinha pernas de cobra. Há muito tempo, Tages tinha aparecido a um sacerdote etrusco num campo acabado de lavrar, erguendo-se do pó da terra e trazendo consigo livros cheios de sabedoria. Era desses livros que provinha o aruspicismo.
Já antes da fundação de Roma os Etruscos examinavam as entranhas dos animais sacrificados, com o fito de preverem todos os aspectos do futuro, desde os resultados das grandes batalhas até ao estado do tempo no dia seguinte. Também se dedicavam a interpretar sonhos e a descobrir o sentido de diversos fenómenos; as tempestades, a queda de objectos estranhos do céu, o nascimento de animais monstruosamente deformados - tudo isso eram tentativas de os deuses comunicarem a sua vontade aos homens.
O aruspicismo nunca fora integrado na religião oficial do Estado. Para determinarem a vontade dos deuses, os sacerdotes romanos consultavam os Livros Sibilinos e os augures romanos observavam o voo das aves. (É certo que os sacerdotes romanos sacrificavam animais, oferecendo aos deuses o sangue e os órgãos das criaturas, mas não ousavam prever o futuro através desta piedosa actividade.) Contudo, apesar do seu carácter não oficial, a venerável arte etrusca da adivinhação continuava a existir. Os crentes consultavam os arúspices, pedindo-lhes orientações para a sua vida pessoal e de negócios e, nos últimos anos, até o Senado decidira pedir a um deles que lesse as entranhas de um animal sacrificado antes de dar início aos debates do dia.
Um dos encantos do aruspicismo era o facto de os respectivos praticantes procederem aos rituais em etrusco. Já ninguém - nem sequer os Etruscos - fala etrusco, e trata-se de uma língua muito diferente de todas as outras, cujo som transmite, só por si, uma sensação exótica, transcendente.
Ainda assim, havia muitos descrentes que troçavam do que consideravam serem superstições ultrapassadas, praticadas por charlatães. Catão, que comandara a última tomada de posição contra César em

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África, observara certa vez: "Quando dois desses palhaços de gorro amarelo se encontram na rua, balbuciando aquela língua incompreensível, só por milagre conseguem não desatar à gargalhada!" O facto é que Catão tivera um fim terrível, suportando aquela que foi talvez a mais horrenda de todas as mortes sofridas pelos opositores de César - uma morte de cujos macabros pormenores Roma inteira seria certamente recordada num dos triunfos que se preparavam.
De acordo com o meu filho Meto, que o tinha servido durante muitos anos, também César tinha uma visão pouco favorável do aruspicismo. Em Farsalo, todos os augúrios eram contra César, que contudo os ignorara, avançando para o campo de batalha e destruindo por completo as forças de Pompeu, o seu principal rival. César fingia observar os antigos costumes da adivinhação mas, quando os arúspices iam contra ele, tratava-os com desprezo.
Por tudo o que sabia dela, não me teria ocorrido que Calpúrnia confiasse mais no aruspicismo do que o marido; e no entanto, tinha diante de mim um arúspice, envergando o berrante trajo amarelo e o chapéu pontiagudo que os caracterizavam, e olhando para mim com uma expressão presumida.
- Este é aquele a quem chamam o Descobridor? - perguntou ele a Calpúrnia.
- É.
Porsena acenou vigorosamente com a cabeça, o que fez com que o chapéu pontiagudo chicoteasse os ares, qual arma cómica num espectáculo de mimos.
- De facto, foi este o homem que vi em sonhos. E este é o homem que pode ajudar-te, Calpúrnia, o único homem capaz de o fazer.
Ela ergueu uma sobrancelha.
- Da outra vez, disseste que o outro sujeito é que era o homem que me podia ajudar, e ambos sabemos como foi que as coisas terminaram.
- Pois foi, mas nessa altura também tive razão. Não estás a compreender? É que esse homem, apesar do infortúnio que sofreu, conduziu-nos a este homem. A adivinhação nem sempre nos conduz directamente à verdade, como o sulco de um arado. Por vezes, faz uns desvios, como um riacho. Não importa. Desde que cumpramos os preceitos de Tages, chegaremos...

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- Quem era esse "outro sujeito"? - interrompi eu. - E o que pretendes tu de mim, Calpúrnia? Quando o teu mensageiro foi chamar-me, acorri imediatamente. Nem podia recusar! Antes de eu partir para o Egipto, trataste-me com franqueza e honestidade, e eu respeito-te por isso, acima e para além da tua posição de mulher do Ditador. Mas devo dizer-te desde já que, se tencionas confiar-me uma missão que me obrigue a meter o nariz em recantos obscuros, a pôr a descoberto segredos desagradáveis, a fazer com que alguém seja morto... com que eu seja morto!... não estou disposto a aceitá-la. Deixei de me dedicar a esse género de actividades. Estou velho para isso. Não permitirei que me perturbem a vida tranquila que levo.
- Posso pagar-te bem.
Quer dizer que ela queria mesmo contratar-me para uma intriga qualquer. Soltei um suspiro.
- Felizmente, não preciso do teu dinheiro. Aconselho-te a contratares o meu filho Eco, que é quem se dedica actualmente a esse tipo de coisas. É mais jovem do que eu, mais rápido, mais forte, provavelmente duas vezes mais inteligente. Neste momento, Eco não se encontra em Roma, teve de ir a Siracusa em serviço, mas logo que ele
regressar...
- Não! És tu que tens de tratar disto, Descobridor - interveio Porsena. - Foi Tages quem o decretou.
- Tal como decretou anteriormente que fosses buscar o "outro sujeito" de que vocês falaram, o tal que sofreu um "infortúnio"? Esta conversa não está a agradar-me.
Calpúrnia começou a mostrar-se irritada.
- Pelo menos, vais ouvir o que eu tenho para te dizer, Gordiano. - Não se tratava de uma pergunta, mas de uma declaração, proferida num tom destinado a recordar-me que me encontrava na presença da mulher mais poderosa de Roma.
Eu inspirei profundamente.
- Pois bem, o que queres de mim?
- Que descubras a verdade. Apenas isso. É o que tu fazes. Está-te na massa do sangue. Foi o que nasceste para fazer; os deuses assim o decretaram. E, quando descobrires a verdade, desejo que ma reveles, a mim e a mais ninguém.

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- A verdade? Mas então Porsena não te descobre a verdade? Não é isso que ele faz?
Ela abanou a cabeça.
- O aruspicismo funciona a um certo nível. Um sujeito como tu funciona a outro nível.
- Estou a ver. Em vez de remexer em entranhas de animais, eu escavo na lama.
- É uma maneira de ver as coisas. Todos nós temos de usar as competências que possuímos, sejam elas quais forem, de fazer o que for necessário... para salvar a vida do meu marido.
- E que ameaça é essa que pende sobre César?
- Comecei por ser alertada em sonhos; tinha uns pesadelos de tal maneira horríveis, que pedi a Porsena que mos interpretasse. As adivinhações dele confirmaram os meus piores receios. César corre um risco imediato e terrível.
Soltei um suspiro.
- Estou espantado, Calpúrnia. Nunca pensei que fosses o género de pessoa que age em função de sonhos e augúrios. Que outros o fizessem, sim, mas tu não.
- Pareces o meu marido a falar! Eu tentei avisá-lo, mas ele troçou dos meus receios.
- Apresentaste-lhe o teu arúspice?
- Não! César não sabe da existência de Porsena, e não deve saber. Apenas serviria para lhe fazer aumentar o cepticismo. Mas eu garanto-te que César nunca correu risco tão grande.
Eu abanei a cabeça.
- Eu diria que César nunca correu tão poucos riscos. Todos os inimigos dele estão mortos! Pompeu foi decapitado pelos egípcios, que assim queriam agradar a César. Aenobarbo foi derrubado.e espetado numa estaca como um coelho por Marco António em Farsalo. Catão foi conduzido ao suicídio em África. Os sobreviventes a quem César perdoou, como Cícero, ficaram reduzidos a sicofantas agachados.
- E contudo, alguns deles devem desejar que César morra.
- Alguns deles? Muitos deles, diria eu. Mas os desejos não são punhais. Terão esses homens força de vontade para agir? César acha que não; de outra maneira, não lhes teria perdoado. Eu confio na ava-

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liação do ditador. É um homem que tem vivido toda a vida à beira do perigo, e conseguido levar a melhor sobre ele. Certa vez, em Alexandria, eu estava ao lado dele num molhe quando, de um navio inimigo, lançaram sobre nós um míssil em chamas. Eu pensei que era o nosso fim; mas César avaliou calmamente a trajectória do míssil, manteve-se imóvel, e nem sequer pestanejou. E, como seria de esperar, o míssil não nos atingiu. De outra vez, em Alexandria, vi o navio dele afundar-se durante uma batalha que teve lugar no porto, e pensei que ele se afogava. Mas César nadou para terra, onde chegou são e salvo, completamente equipado. - Soltei uma gargalhada. - Posteriormente, apenas se queixou de que tinha perdido a capa nova, uma capa escarlate que Cleópatra lhe tinha oferecido.
- Isto não tem graça nenhuma, Descobridor!
Teria sido a referência que eu fiz a Cleópatra a irritá-la? Eu inspirei
profundamente.
- Claro que não. Muito bem, quando me dizes que César corre perigo, o que queres dizer exactamente com isso? Suspeitas de alguma pessoa específica, de algum grupo em concreto? Existe alguma conspiração contra ele?
- Não sei. Franzi o sobrolho.
- Calpúrnia, o que queres tu de mim?
- Quero que me ajudes a salvar a vida a César! - Ela tinha começado a afundar-se no assento, mas voltou a endireitar as costas, apertando com força os braços da cadeira, até os nós dos dedos se lhe embranquecerem.
- Como?
- Porsena nos conduzirá. Eu abanei a cabeça.
- Não recebo instruções de arúspices.
- Serei eu a dar-te ordens - replicou Calpúrnia severamente.
Soltei um suspiro. César ainda não era Rei, e os cidadãos da República ainda não eram súbditos dele; e contudo, a mulher de César mostrava-se indisposta a aceitar uma recusa. Talvez pudesse argumentar com ela, para lhe mostrar que não tinha qualquer vantagem em me contratar.

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- Compreendo a tua premência, Calpúrnia, mas não percebo o que queres de mim. O que queres que eu faça? Por onde queres que comece?
Porsena pigarreou.
- Podes começar por seguir as pegadas do homem a quem pedimos que realizasse este trabalho antes de ti. Ele entregou-nos uns relatórios escritos.
- Presumo que o sujeito tenha acabado mal. Sim, pelas vossas expressões, acabou mesmo muito mal! Não estou interessado em seguir as pegadas de um morto, Calpúrnia. - Olhei para ela, ignorando ostensivamente o arúspice, mas foi Porsena quem me respondeu.
- É possível que essas pegadas te conduzam a quem o matou - observou ele - e, se soubermos quem o matou, talvez fiquemos a saber de onde provém a ameaça que paira sobre César. O sujeito deve ter descoberto alguma coisa perigosa, para ter tido de pagar com a vida.
Abanei a cabeça.
- Sonhos, adivinhações, morte! Não gosto mesmo nada disto, Calpúrnia. Recuso-me respeitosamente a envolver-me no assunto.
Porsena preparava-se para falar, mas Calpúrnia silenciou-o com um gesto.
- Talvez mudes de ideias se vires o morto... - sugeriu baixinho.
- Não me parece nada que isso seja relevante.
- Mesmo assim. - Levantou-se e avançou para uma porta. Porsena indicou-me que a seguisse. Eu obedeci relutantemente, com Porsena atrás de mim. Não tinha gostado do arúspice à primeira vista, e desagradava-me ser seguido por ele.
Percorremos um comprido corredor, passando por compartimentos decorados com a mesma simplicidade com que o estava aquele em que Calpúrnia me tinha recebido. A casa parecia deserta; os escravos de Calpúrnia estavam habituados a não se deixar ver. Atravessámos um jardinzinho ornamentado com uma fonte de água corrente, onde se via uma esplêndida estátua de Vénus - de quem César afirmava descender - erguendo-se, nua, sobre uma concha gigantesca.
Estava um homem sentado à sombra do jardim. Envergava a volumosa toga dos pontífices, as pregas adicionais juntas e presas numa

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laçada acima da cintura. O manto, puxado para trás, dava a ver uma cabeleira totalmente branca. O velho sacerdote ergueu os olhos quando passámos por ele, lançando-me um olhar zombeteiro. Pareceu-me detectar-lhe no rosto uma semelhança com Calpúrnia. As palavras que proferiu confirmaram esta impressão.
- Quem foste chamar a esta casa, sobrinha? Outro espião? Ou, pior ainda, outro adivinho?
- Cala-te, tio Gneu! Este assunto diz-me respeito, e eu tratarei dele como me parecer melhor. E nem uma palavra a César, ouviste?
- Com certeza, minha querida. - O sacerdote levantou-se (era mais alto do que me tinha parecido) e tomou a mão de Calpúrnia. - Fui desagradável contigo? E só porque tenho a impressão de que estás a incomodar-te por coisa nenhuma. Deixas que este arúspice te incite os medos, insistes em arrastar terceiros para este disparate, e já estamos a ver onde isto vai dar...
- Bem sei que opinião tens disto, tio Gneu. Mas, se não consegues apoiar-me, não digas nada!
Isto serviu para silenciar Gneu Calpúrnio, que largou a mão da sobrinha e se voltou para mim, parecendo olhar-me com uma mistura de piedade, desprezo e irritação. Eu segui atrás de Calpúrnia, satisfeito por escapar ao escrutínio do velho sacerdote. Voltámos a entrar dentro de casa.
Percorremos outro corredor comprido. Nesta parte da casa, os compartimentos estavam mais cheios, mas a decoração era menos elegante. Chegámos finalmente a uma pequena câmara, fracamente iluminada por uma única janela, aberta no alto da parede. Dava a impressão de ser um quarto de arrumos, pois havia diversas coisas empilhadas de encontro às paredes: uma carpete enrolada, caixas cheias de pergaminhos em branco e de material de escrita, cadeiras empilhadas umas sobre as outras.
No centro do compartimento, encontrava-se um corpo, deitado sobre uma padiola improvisada. A sua volta, tinham sido colocadas flores e especiarias, a fim de disfarçar o inevitável cheiro a putrefacção, mas o corpo não podia estar morto há mais de um dia, porque ainda estava rígido. O cadáver teria presumivelmente sido descoberto depois de já ter começado a instalar-se a rigidez cadavérica, porque

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o corpo petrificado conservava-se na postura da agonia, os ombros curvados para diante e os membros contraídos, as mãos apertadas ao peito e uma mancha de sangue imediatamente acima do coração. Evitei olhar para a cara, mas não consegui deixar de ver, pelo canto do olho, que tinha os maxilares firmemente cerrados e os lábios repuxados para trás, num sorriso repugnante.
O corpo vestia uma simples túnica, a mancha de sangue escurecida sobressaindo do tecido azul-claro. Era uma veste que nada tinha de particularmente notório - ostentava uma bainha preta, com um vulgar desenho grego -, mas que, no entanto, me pareceu familiar.
- Onde foi que descobriram o pobre sujeito? - perguntei.
- Numa viela particular, que corre ao comprimento desta casa - respondeu Calpúrnia. - E usada pelos escravos nas suas idas e vindas, e por alguns outros que, como este homem, preferem não bater à porta principal.
- Uma entrada secreta para os teus agentes secretos?
- Por vezes. Ele foi descoberto de madrugada, caído nas lajes do pavimento, mesmo à saída da porta.
- O corpo já estava rígido?
- Sim, estava tal como o vês agora.
- Quer dizer que é provável que estivesse morto, ali quieto, há pelo menos quatro horas. É nessa altura que se inicia a rigidez cadavérica.
- É muito possível. Tanto quanto sei, a viela não foi usada durante a noite, pelo que ele podia ali estar desde o cair do dia. Presumo que tivesse vindo dizer-me qualquer coisa e que, antes de ter conseguido bater à porta...
- Alguém o esfaqueou. Há mais ferimentos?
- Não, só este.
- Quer dizer que morreu em consequência de uma punhalada no coração. - O atacante devia ter tido muita sorte, ou então era muito rápido; ou então conhecia a vítima. De outra maneira, não teria conseguido aproximar-se o suficiente para lhe infligir golpe tão perfeito.
- Havia algum rasto de sangue na viela?
- Não. O homem caiu onde o apunhalaram. - E Calpúrnia estremeceu.

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- A túnica dele... Dá-me a impressão de que a conheço - comentei eu, pouco à vontade.
- Dá-te? Se calhar era melhor olhares para a cara.
Eu aproximei-me. O cheiro a flores e a especiarias encheu-me as narinas. O coração batia-me com toda a força no peito. Tinha a boc seca.
- Jerónimo! - sussurrei.

CAPÍTULO DOIS

Embora tivesse as feições de tal maneira contorcidas, que quase se não reconhecia, não havia sombra de dúvida. Era o meu amigo Jerónimo, o Bode Expiatório de Massília, quem jazia na padiola, morto, os dentes à mostra numa careta, os olhos muito abertos.
- Era ele o teu agente? Jerónimo?
Calpúrnia acenou com a cabeça.
Eu abanei a minha, sem querer acreditar.
Tinha-o conhecido em Massília, três anos antes, numa altura em que a cidade fora cercada por César. Seguindo um costume antigo, praticado em tempos de crise, os massilianos seleccionavam um cidadão, a quem concediam todos os luxos possíveis e imaginários, até ao dia em que o lançassem da Rocha do Sacrifício, como oferenda aos deuses, com o fito de evitar a catástrofe. Fora Jerónimo o escolhido para desempenhar esse papel; não se tratava de uma honra, mas de uma maneira de se livrarem dele de uma vez para sempre. O pai dele havia sido um homem poderoso, que perdera toda a sua fortuna, suicidando-se em seguida. Jerónimo começara por ocupar o topo da sociedade massiliana, mas acabara na base, levando uma existência que era um embaraço para a classe governante da cidade, que apenas valorizava o sucesso, nada desprezando tanto como o fracasso. E a inteligência cáustica que o caracterizava também não lhe valia muitos amigos.
Jerónimo tinha-me salvado a vida em Massília. Quando eu regressei a Roma, veio comigo, instalando-se em minha casa. Depois de eu ter partido para o Egipto, foi à vida dele; pelo menos foi o que me contou a minha filha Diana, afirmando que de vez em quando se cruzava

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com ele na cidade. Desde que regressara do Egipto, porém, eu nunca mais tinha sabido dele, coisa que não me surpreendia, porque Jerónimo tinha uma faceta de misantropo. Também não fora procurá-lo; tinha-me tornado um eremita tal, que só uma convocatória da mulher de César me tiraria de casa. Presumi que, mais cedo ou mais tarde, os nossos caminhos voltariam a cruzar-se, se ele ainda morasse na cidade, se ele ainda estivesse vivo. Jerónimo era apenas mais um amigo que eu tinha perdido de vista, no meio do caos e da confusão provocados pela prolongada e sangrenta guerra civil.
E agora vinha encontrá-lo de novo, repousando sem vida sobre uma padiola, em casa da mulher de César, que me afirmava que Jerónimo trabalhara para ela como espião. Era uma ideia absurda! Ou talvez não.
Num repente, percebi como era possível que tal coisa tivesse acontecido. Tendo morado em minha casa, tendo observado como eu trabalhava e tendo-me ouvido relatar investigações passadas, era mesmo típico de Jerónimo concluir que qualquer imbecil podia fazer o mesmo. Não se exigiam grandes competências, para além de perseverança e descaramento. Não eram necessários grandes recursos, para além de um círculo de informadores inteligentes, muitos dos quais Jerónimo já tinha conhecido através de mim. Ele sabia que eu já tinha trabalhado para Calpúrnia, pouco antes de partir para o Egipto, e que isso me rendera bastante. Na sequência da minha partida, deve ter decidido ir ter com ela, e oferecer-lhe os seus serviços.
- Mas porque foi que o contrataste? - perguntei. - Que género de informações podia Jerónimo conseguir? Era uma pessoa de fora, um estrangeiro. Falava com pronúncia grega. Nunca poderia ter passado por cidadão.
- Bastava-lhe ser ele próprio, não precisava de mais nada - replicou Calpúrnia. - A fama abria-lhe as portas.
- A fama? Ele fugia das pessoas.
- Talvez, mas as pessoas não fugiam dele. Em Roma, toda a gente tinha ouvido falar do Bode Expiatório. E, como Jerónimo veio rapidamente a descobrir, quando começou a fazer as rondas, quase não havia na cidade casa que não o recebesse se ele fosse bater-lhe à porta.

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Não percebes que ele era uma curiosidade? Era exótico, misterioso, era o famoso Bode Expiatório de Massília, a vítima sacrificial que não chegara a ser sacrificada. Em tempos como os que atravessamos, toda a gente quer conhecer um homem que foi capaz de enganar a morte. Os supersticiosos tinham a esperança de que ele lhes desse sorte. Os curiosos queriam apenas vê-lo de perto. E, uma vez admitido numa casa, Jerónimo sabia tornar-se encantador...
- Encantador? Ele tinha uma língua viperina!
- Pronto, divertido. Tinha sempre um epigrama na ponta da língua. Era um erudito.
Era verdade. Em criança, antes de o pai dele se ter arruinado, Jerónimo tinha recebido uma instrução excelente. Recitava longas passagens da Ilíada e sabia as tragédias gregas de cor. Quando decidia exibir a sua erudição, fazia-o geralmente em termos cómicos, dando uma resposta irónica, propondo uma metáfora divertida, lançando uns versos absurdamente pomposos, que esvaziavam a auto-importância do interlocutor.
- Jerónimo era de facto uma personagem - admiti -, e uma excelente companhia, quando a pessoa começava a conhecê-lo melhor. Compreendo que tivesse sido aceite nas casas dos teus amigos... e dos teus inimigos.
Baixei os olhos para a face do morto, ficando com a impressão de que a careta se lhe tinha amaciado ligeiramente. Seria a rigidez que começava a passar? Contemplei-lhe os compridos membros nervosos, o cabelo fino e claro que lhe cobria a cabeça, a tirinha de barba que lhe contornava o queixo aguçado. Que ironia amarga esta, ter sobrevivido a um destino terrível na cidade onde nascera, para vir encontrar a morte de maneira semelhante - sozinho, numa viela escura, longe de casa.
- Jerónimo, Jerónimo! - sussurrei. - Quem te fez tal coisa?
- Não sabemos quem o matou - disse Calpúrnia baixinho -, nem porquê. Pode ter sido uma das pessoas sobre quem ele andava a fazer relatórios. Se lesses esses relatórios, Gordiano, e seguisses as pistas que Jerónimo andava a seguir, talvez conseguisses descobrir quem o matou.
- E entretanto - resmunguei eu -, fazia o que tu queres; seguia as pegadas de Jerónimo para ver de onde vêm as ameaças contra

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César! - O atrevimento com que ela brincava com as minhas emoções para conseguir o que queria de mim! - E se fosses tu a deduzir o que Jerónimo descobriu? Disseste-me que ele te tinha entregado uns relatórios. Deves saber de quem andava ele atrás. Calpúrnia abanou a cabeça.
- Como todos os informadores, Jerónimo nunca era totalmente transparente. É uma característica da natureza humana esconder sempre qualquer coisa, guardá-la para a reunião seguinte, para o pagamento seguinte. Nesse aspecto, Jerónimo era mais... frustrante do que a maior parte dos agentes que eu emprego. Eu sabia que ele não estava a dizer-me tudo mas, como tinha um potencial incomparável, decidi ser paciente com ele. Se eu tivesse sido menos indulgente, mais exigente, talvez ele ainda estivesse vivo.
- Ou talvez soubéssemos, pelo menos, quem o matou - interveio Porsena.
Eu olhei fixamente para o arúspice, até o obrigar a baixar os olhos.
- Não responsabilizes Porsena - interveio Calpúrnia. - Ninguém recrutou Jerónimo. Foi ele que veio oferecer-me os seus serviços.
- E o teu adivinho, este homem que afirma ser capaz de adivinhar o futuro, aconselhou-te a aceitar. E agora isto: o fim de Jerónimo. - Eu tinha os olhos cheios de lágrimas, mas recusei-me a deixá-las correr na presença destes dois. - Deixem-me a sós com ele - pedi num murmúrio, desviando o rosto. Após uns momentos de pausa, ouvi-os sair discretamente.
Levei a mão à testa do cadáver. A rigidez tinha começado a passar. Endireitei-lhe os dedos das mãos manchadas de sangue, que ele apertava ao peito. Endireitei-lhe as pernas. Desmanchei-lhe a careta e fechei-lhe os olhos.
- Jerónimo! - sussurrei. - Quando eu cheguei a Massília, infelicíssimo, sem amigos, correndo terríveis perigos, tu acolheste-me. Protegeste-me. Partilhaste comigo o teu saber. Fizeste-me rir. Pensei ter assistido à tua morte, lá emMassília, mas tu voltaste à vida! Vieste comigo para Roma, e eu pude pagar-te a hospitalidade com a minha. - Abanei a cabeça. - Já é duro ver morrer um amigo uma vez. Mas esta é a segunda vez que tenho de sofrer a tua morte! Porque agora, tu estás realmente morto, meu amigo.

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Passei os dedos sobre os dele. Que mãos tão compridas e elegantes que ele tinha!
Deixei-me estar ali em silêncio mais uns momentos, depois saí do compartimento. Calpúrnia e Porsena estavam à minha espera na sala ao lado.
Eu pigarreei.
- E os tais relatórios...
Porsena já os tinha ido buscar, e estendeu-me um tubo de couro próprio para o transporte de pergaminhos e papiros.
Contrariado, peguei no tubo com os documentos que Porsena me estendia.
- Começo a lê-los esta noite. Se tiver alguma pergunta a fazer-te, espero que me respondas. Se me parecer que tenho alguma hipótese de descobrir como foi que Jerónimo morreu... e quem o matou...
Calpúrnia não conseguiu reprimir um sorriso de vitória.
- Mas não receberei qualquer pagamento, Calpúrnia. E não receberei indicações do teu arúspice. O que quer que venha a descobrir, pode ser que o partilhe contigo, como pode ser que não. Trabalharei para mim, e não para ti. Faço-o por Jerónimo, e não por César.
O sorriso morreu-lhe nos lábios. Ela estreitou os olhos, reflectindo por momentos, depois fez um aceno de cabeça, aceitando as minhas condições.
Ao sair, passei pelo tio dela, que continuava sentado no jardim. Apertando na mão as pregas da toga sacerdotal, Gneu Calpúmio olhou fixamente para mim.
Não se via uma nuvem no céu e o Sol ocupava o zénite quando eu saí de casa de Calpúrnia e atravessei o Monte Palatino, circulando num mundo luminoso e brilhante, desprovido de sombras. O ar espesso e quente parecia redemoinhar indolentemente em meu redor. As paredes sem janelas das casas dos ricos, pintadas em diversos tons de açafrão e cor de ferrugem, davam a impressão de estar tão quentes, que me queimariam as pontas dos dedos, se lhes tocasse.
Estávamos em Setembro, mas o tempo estava muito pouco outonal. Na minha infância, Setembro era o mês em que nós brincávamos

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por entre as folhas caídas das árvores, de capas aos ombros por causa do frio. Mas deixara de ser; Setembro era agora a meio do Verão. Aqueles que sabiam destas coisas afirmavam que o calendário romano era impreciso e que se fora gradualmente desarticulando das estações. O problema nunca fora tão grave: o calendário estava uns bons dois meses atrasado. As festividades do Outono, as festividades da Primavera e os dias festivos do Verão continuavam a ser celebrados com base nas indicações do calendário, mas tinham deixado de fazer sentido. Era um tanto absurdo oferecer sacrifícios aos deuses da colheita quando faltavam uns sessenta dias para ela se iniciar, ou celebrar a libertação provisória de Prosérpina do Hades com o solo ainda coberto
de gelo.
Seriam só os velhos como eu que sentiam intensamente o absurdo do calendário desfasado? Se calhar, os jovens limitavam-se a tomar como óbvio que Setembro se tivesse tornado um mês de dias compridos e sufocantes e de noites curtas, em que estava demasiado calor para se conseguir dormir; para mim, contudo, um calendário viciado representava um mundo viciado. A guerra civil, que se havia estendido a todos os recantos do Mediterrâneo, desde o Egipto até Espanha, tinha finalmente terminado, mas uma das coisas que ela destruíra fora a República de Roma, velhinha de séculos. Agora, regulávamo-nos por um calendário que já não servia para contar os dias, e éramos dirigidos por um Senado que já não governava.
Mas também tínhamos Júlio César, e César havia de resolver tudo. Era o que diziam os apoiantes dele; era o que César prometera. Ele reconstruiria o estado romano, tornando-o mais forte do que nunca. Tinha mesmo prometido emendar o calendário; diziam os boatos que os pormenores seriam anunciados no final dos iminentes triunfos, após os quais seriam acrescentados ao ano corrente os dias em falta - que correspondiam a um par de meses; o próximo ano, já com os meses na devida proporção, começaria de harmonia com as estações e o percurso do Sol.
Mas teria César a capacidade de compor o povo de Roma? Nem os deuses conseguem restaurar uma mão decepada ou um olho que salta a um corpo ferido no campo de batalha. Outros, cujos corpos poderão não dar sinais de violência ou privação, tinham contudo sido

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afectados pelo medo e a insegurança que pairara sobre as suas vidas durante tantos anos, todos aqueles em que César e Pompeu lutaram pelo domínio do poder. As vidas desses homens e dessas mulheres tinham deixado de ser o que eram, havia nelas qualquer coisa que deixara de bater certo. Médico algum teria capacidade para diagnosticar a doença sem nome que os afectava, transformando-os de dentro para fora. Tal como o calendário, também eles continuavam a funcionar, mas já não em harmonia com o Cosmo.
A própria Calpúrnia poderia ser contada no número destas vítimas invisíveis. A confederada de César e dirigente do bando de espiões que o Ditador tinha na capital - a estritamente lógica, a implacavelmente pragmática Calpúrnia - confessava agora deixar-se conduzir por sonhos. Permitia que um arúspice lhe dirigisse a vida. E fazia-o sem conhecimento do marido.
Cheguei à Rampa, a essa via comprida, direita e ladeada de árvores que ia dar a uma passagem situada entre a Casa das Vestais e o Templo de Castor e Pólux. Desci da calma silenciosa do Palatino para o burburinho do Fórum. Por mim passavam senadores e magistrados vestidos de toga, seguidos pelas respectivas comitivas de escribas e sicofantas, quais pequenos Césares de nariz no ar, a postura e o porte projectando a atitude de que seria o fim do mundo se alguém se atrevesse a impedi-los de chegar ao encontro a que se dirigiam. Davam-se um ar de importância, que parecia tanto mais absurda nesta altura em que a vitória de César os tornara irrelevantes. O Senado voltara a reunir-se, mas toda a gente sabia que o poder provinha exclusivamente de César, que nenhuma decisão importante se tomava sem que ele lhe desse a sua aprovação. Era ele quem guardava a chave do Tesouro. Ele tinha passado por cima das eleições, nomeando pessoalmente os magistrados. Ele tinha dividido as províncias, atribuindo a governação das parcelas a amigos e apoiantes seus, e andava ocupado a preencher as dezenas de vagas do Senado com criaturas por ele escolhidas. Para choque de indivíduos fora de moda, como eu próprio, alguns destes novos senadores nem sequer eram romanos; eram gauleses, homens que tinham atraiçoado o povo a que pertenciam para se juntarem a César, que assim os recompensava.

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Contudo, a actividade do Fórum prosseguia como se a guerra civil não tivesse existido. Ou pelo menos assim parecia; é que o Fórum era afectado pela mesma doença invisível que afligia a população de Roma. À superfície, tudo parecia ter regressado ao normal. Os sacerdotes ofereciam sacrifícios nos degraus dos templos, as vestais cuidavam da chama eterna, e os cidadãos comuns procuravam que os magistrados lhes fizessem justiça. Logo abaixo da superfície, porém, todas as coisas estavam retorcidas. As pessoas cumpriam o que se esperava delas, mas faziam-no cientes de que nada estava no sítio, e de que era possível que nunca mais voltasse a estar.
Fui ouvindo pedaços de conversas de quem passava. Toda a gente
falava sobre César:
- ... ainda renuncia. Foi o que eu ouvi dizer.
- Regressando à vida privada, como fez Sula? Nem pensar! Os apoiantes dele não lho permitiriam!
- Nem os inimigos. Matavam-no!
- Ele já não tem inimigos, pelo menos que lhe valha a pena ter
em conta.
- Isso não é verdade! Dizem que o irmão de Pompeu se encontra neste momento em Espanha, a reunir um exército para derrotar
César.
O meu filho Meto estava em Espanha, ao serviço das forças de César, de maneira que, ao ouvir isto, eu prestei atenção.
- Se isso for verdade - respondeu o interlocutor -, César há-de esmagar o jovem Pompeu como um insecto! Esperem, que hão-de ver...
- ... e pode mesmo acontecer que César dê o seu nome a um dos novos meses, que será o mês de Júlio! Tem de se proceder a uma revisão completa do calendário, com a ajuda dos astrónomos de Alexandria.
- E já não é sem tempo, se me perdoam o trocadilho!
- ... e segundo ouvir dizer, vai ser coisa para quatro dias inteiros.
- Não são quatro dias seguidos, seu pateta! Serão quatro triunfos, de facto, mas com um dia de intervalo entre cada um deles. Vamos precisar desses dias de descanso, para recuperar de tanta bebida
e tanta festança.
- Imagine-se! Quatro procissões em grande escala, mais banquetes públicos para todos os habitantes de Roma, seguidos de peças de

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teatro e corridas de carros e jogos de gladiadores. Não percebo como é que César tem dinheiro para montar semelhante espectáculo.
- Não pode dar-se ao luxo de não o fazer. Depois de tudo o que nós aguentámos, o povo de Roma merece umas festas! Além disso, ele tem todo o dinheiro do mundo; literalmente. Com as conquistas que fez, é o homem mais rico da história. É natural que gaste uma ponta dele connosco.
- Não tenho a certeza de que se deva assinalar o final de uma guerra civil com triunfos. Foi derramado muito sangue romano.
- Mas não é só pela guerra civil. Já te esqueceste da vitória que ele obteve sobre Vercingetorix e os gauleses? Há muito que se devia ter feito um triunfo por isso. Outro dos triunfos é por ele ter esmagado a revolta dos farnaces, na Ásia, e não há dúvida de que o merece.
- Está bem, como também merece o triunfo por ter derrotado o Rei Ptolemeu no Egipto, embora não se tenha tratado propriamente de uma conquista romana. Aquilo foi mais uma espécie de discussão em família. Cleópatra, a irmã do Rei, ficou com o trono.
- Por ter conquistado César!
- Ouvi dizer que, neste momento, a Rainha se encontra em Roma, que veio ver a irmã rebelde, Arsínoe, desfilar acorrentada, e ser morta no final, como coroação do triunfo egípcio.
- Sim, sim, triunfos de comemoração das vitórias de César na Gália, na Ásia e no Egipto, disso ninguém se pode queixar. E o triunfo que ele está a organizar para comemorar a vitória em África? Foi uma vitória sobre romanos, concidadãos dele e nossos. Pobre Catão! Como é que alguém pode aplaudir a maneira como ele morreu?
- Oh, há-de haver quem o faça! A plebe romana adora assistir à queda de um grande homem, em especial se for obra de outro maior do que ele. E, se Catão era o melhor general que a oposição conseguia apresentar depois da morte de Pompeu, eles mereciam perder.
- Tu! Tu aí? O que estavas tu a dizer? O meu irmão combateu ao lado de Catão, seu pedaço de bosta, e morreu em Tapso. E era melhor romano do que tu, seu porco!
Pelo canto do olho, apercebi-me de que estava prestes a começar uma briga, e afastei-me rapidamente.
Ultrapassando os edifícios públicos do Fórum, penetrei num labirinto de ruas povoadas de lojas, que ofereciam todo o género de mer-

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cadorias e serviços. Junto ao Fórum, ficavam os estabelecimentos mais respeitáveis, as lojas de comida, de roupa, os pisoeiros, os artífices e os comerciantes de jóias. Para diante, a atmosfera ia-se tornando progressivamente mais deprimida, a clientela menos abastada. Fui avistando menos togas e mais túnicas. Tinha entrado no bairro da Subura, conhecido pelas tabernas e os bordéis de baixa extracção. Ultimamente, estava cheio de veteranos de César, muitos deles mutilados ou exibindo cicatrizes horrendas. Ao sol do meio-dia, estes homens reuniam-se à porta das tabernas a beber vinho, e jogavam aos dados nas ruas, com dados de osso.
Avistei um grupo de artistas de rua, apresentando um espectáculo a uma pequena multidão que se reunira em seu redor. Ao contrário dos colegas deles que representavam em teatros, estes grupos incluíam por vezes artistas do sexo feminino; as desta companhia chamavam a atenção pelos amplos seios, mal contidos dentro de vestidos apertados e quase transparentes. Tratava-se mais de um espectáculo de pantomima do que propriamente de uma peça, com um sujeito quase careca vestido de comandante romano (a armadura era de lata) e uma actriz roliça, tendo na cabeça uma imitação barata de um toucado egípcio - a chamada coroa atef - e pouco mais. Os actores queriam como é óbvio representar César e Cleópatra, e o número ia-se tornando progressivamente mais sugestivo. Na sequência de umas quantas piadas obscenas, incluindo uma comparação da anatomia privada de César com a do hipopótamo do Nilo (o hippospotamios, ou cavalo do rio, como lhe chamara Heródoto), Cleópatra estendeu os braços, assentou os pés com força no chão e lançou-se numa dança obscena, agitando com intensidade todas as partes do corpo, mantendo contudo o alto toucado muito quieto, rigorosamente na vertical; de repente, apercebi-me de que o objecto se parecia mais com um falo do que com uma coroa.
A dança pareceu-me simultaneamente excitante e hilariante, tanto mais quanto tinha conhecido a Rainha em Alexandria, e ela não se parecia nada com esta imitação. Eu nunca vira mulher tão contida como a jovem Cleópatra, convencida como estava de ser a encarnação da deusa Isis, e tendendo por isso a levar-se muito a sério; a ideia de que ela pudesse fazer uma dança chocante como aquela era, ao mesmo tempo, deliciosa e ridícula. O homem que andava a recolher os dona-

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tivos viu-me rir e aproximou-se rapidamente de mim, estendendo-me uma taça. Eu depositei nela uma pequena moeda.
Segui caminho, em busca da rua onde Calpúrnia me tinha dito que ficava situada a casa de Jerónimo.
Há uns anos, quando vivia numa casa decrépita no Monte Esquilino, por cima da Subura, eu atravessava este bairro quase todos os dias, conhecendo o labirinto das suas vielas como conhecia as veias das costas da minha mão. Hoje em dia, era menos frequente vir à Subura, que mudara muito ao longo dos anos. Os edifícios altos e cheios de inquilinos - alguns deles chegavam a ter seis andares - eram de construção de tal maneira barata, que se desmoronavam com frequência, incendiando-se quase com a mesma frequência, e sendo rapidamente substituídos por edifícios novos. Ruas inteiras tinham-se tornado desconhecidas, e durante algum tempo senti-me perdido.
De repente, sem saber bem como, dei por mim diante do edifício de que andava à procura. Era inconfundível. "Novinho em folha, com seis andares", fora a descrição que Calpúrnia me fizera, "recentemente pintado de amarelo, com uma bica pública numa esquina e um restaurante no andar térreo." O edifício era dela. Uma das componentes do contrato que fizera com Jerónimo consistia em lhe proporcionar alojamento de graça.
Calpúrnia tinha-me informado de que encontraria um escravo de guarda ao minúsculo vestíbulo. O homem estava ali, em parte, para garantir a segurança dos inquilinos, mas também para evitar que eles acendessem fogos dentro de casa para cozinhar, ou que se dedicassem a negócios excessivamente perigosos, ou excessivamente ilegais. Deparei com um jovem com a barba por fazer, tão mal vestido, que mais parecia um pedinte, mas que me lançou um olhar de tal maneira desconfiado, que não podia ser senão um vigilante.
- Tu és com certeza o Agápio - disse-lhe eu. - O meu nome é Gordiano. Venho a mando da tua senhora. - E, para lhe provar que estava a dizer a verdade, mostrei-lhe uma ponta de cera, onde Calpúrnia tinha vincado o anel de sinete. O símbolo dela era o perfil do Rei Numa, com a sua barba comprida e o manto de sacerdote. Os Calpúrnio afirmavam ser descendentes de Calpo, um dos quatro filhos do piedoso Rei Numa, que vivera há mais de cem anos e fundara diversos ritos e sacerdócios.

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O rapaz inclinou obsequiosamente a cabeça.
- Em que posso ser-te útil, cidadão?
- Podes mostrar-me o quarto onde vivia Jerónimo de Massília. O jovem escravo apercebeu-se de que eu tinha usado o verbo no
passado e lançou-me um olhar curioso, mas nada disse. Voltando-se, começou a subir as escadas, e fez-me sinal para que o seguisse.
Em geral, os melhores apartamentos destes edifícios são os dos andares do meio, que são suficientemente altos para protegerem do ruído e dos odores da rua, mas não tanto que a subida das escadas se transforme num desafio oneroso, ou que, em caso de incêndio, uma pessoa que salte da janela venha a estatelar-se morta no solo. Eu estava à espera de que o apartamento de Jerónimo ficasse situado no segundo andar, ou talvez no terceiro, mas o jovial vigilante continuava a subir, um lance de escadas após outro. Dei por mim a arquejar com violência, e pedi-lhe que abrandasse, mas ele tinha desaparecido da minha vista.
Fui seguindo ao meu ritmo, e acabei por apanhá-lo num patamar, a examinar as unhas com ar atento, como quem se sente entediado.
- Jerónimo vivia neste andar? - perguntei eu. - Tinha imaginado...
- Não era neste. Era no seguinte.
- O quê?
- Tens de subir este último lance de escadas que começa ali. Porque teria Jerónimo trocado a minha casa por um sítio destes?
Não se tratava de um edifício tão esquálido como outros que eu conhecera, é certo, mas seria realmente melhor do que os aposentos confortáveis que eu tinha colocado à disposição dele?
Ao contrário dos anteriores, o último lance de escadas não nos fez chegar a um patamar com corredores escuros dando para numerosos apartamentos, mas a uma única porta, com uma clarabóia aberta ao alto. A luz brilhante do Sol, o vigilante tirou uma chave de ferro e abriu
a porta.
O compartimento estava esparsamente mobilado, mas os tapetes e as cadeiras eram de boa qualidade. O espaço era intensamente iluminado pelas janelas sem portadas rasgadas de ambos os lados. Via-se uma porta, que parecia dar para outra sala. Uma segunda porta dava para a varanda, que circundava por completo o apartamento. Saí para o exterior.

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- Um apartamento de telhado? - perguntei.
- É o único. Era exclusivamente ocupado por este inquilino. Parecia que, afinal de contas, Jerónimo não se tinha dado mal.
O espaço e o recolhimento ter-lhe-iam agradado, e a vista recordar-lhe-ia os bons tempos de Massília. Tratava-se de um dos edifícios mais altos da Subura, com uma vista praticamente desimpedida em todas as direcções. Tinha uma vista excelente do Monte Capitolino, situado do outro lado do Fórum e coroado de templos magníficos e estátuas monumentais.
Inclinei-me para diante, espreitando por cima do parapeito, e senti-me ligeiramente tonto ao olhar lá para baixo, para as minúsculas figurinhas que circulavam na rua.
- Conhecia-lo bem? - perguntei ao rapaz.
- Ao inquilino? Não. Era uma pessoa reservada. Voltámos para dentro.
- Ele recebia visitas?
- Nunca. Falas dele no passado. Quer dizer que o inquilino...?
- Podes ir-te embora, Agápio. Deixa-me a chave, para eu poder fechar a porta quando sair. Pensando bem, vou ficar com ela.
- Mas os inquilinos deixam-me sempre a chave quando saem. Não tenho mais nenhuma.
- Óptimo.
- O que vai dizer a senhora?
- Foi Calpúrnia quem me mandou. Lembra-te do selo que te mostrei.
- Pois mostraste - observou o escravo, erguendo uma sobrancelha. - Tudo isto é muito misterioso! - Deteve-se à porta, e voltou-se para trás. - Sabes uma coisa, para velhote que mal consegue subir as escadas, tu nem és mal-parecido. - E, lançando-se com agilidade pelas escadas abaixo, desapareceu da minha vista.
Eu sentei-me, momentaneamente confuso. Há bastante tempo que nenhum escravo, homem ou mulher, namoriscava comigo. Pestanejei, e vi o meu reflexo no quadrado de cobre polido que pendia da parede, ao lado da porta de entrada, e que Jerónimo devia ter ali para verificar se estava bem antes de sair. Os lábios cheios franzidos, a testa enrugada, o nariz achatado (nariz de lutador, como lhe chamava Betesda) -

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tudo isso projectava uma expressão severa. A barba e o cabelo grisalhos eram curtos e bem aparados, obra de Diana, a minha filha. Havia talvez uma certa suavidade no olhar, uma sugestão do jovem inexperiente que eu já fora, há tanto tempo que mais parecia uma vida inteira.
Fiquei a ver uma gota de suor escorrer-me da testa para o nariz. O calor do edifício subia todo até cá acima, a este apartamento onde o Sol também incidia com impiedade. Soltei um grunhido e limpei o suor, depois encolhi os ombros à figura do espelho e empreendi a exploração da toca de Jerónimo.
Circulei de um compartimento para outro, procurando nos sítios habituais. Levantei os tapetes. Verifiquei se as cadeiras tinham fundos falsos e bati com os nós dos dedos nas pernas, para ter a certeza de que não eram ocas. Revistei o baú onde ele guardava a roupa. Viam-se por ali umas quantas taças e jarros e outros recipientes, mas neles apenas havia vinho e azeite para as lamparinas. Examinei a cama estreita, o colchão de palha, as cobertas e as almofadas. Ele guardava os objectos valiosos numa caixinha que tinha debaixo da cama, onde encontrei umas moedas e umas quantas quinquilharias, mas pouco mais.
Jerónimo tinha uma pequena colecção de livros, os rolos bem arrumados nos orifícios de uma estante alta de parede, quase todos identificados com pequenas etiquetas onde estavam escritos os títulos e o número dos volumes: a História de Massília, de Eirenaio; a História de Roma, de Fábio Pictor; os Epigramas de Ápio Cláudio, o Cego, e por aí fora. Examinando cuidadosamente a estante de alto a baixo, deparei com uma fila de pergaminhos provenientes da minha biblioteca, entre os quais se contava um exemplar da Vida do Rei Numa, de Calpúrnio, uma obra rara que Cícero me tinha oferecido há muitos anos. Não me lembrava de a ter emprestado a Jerónimo. Ele devia tê-la levado "emprestada" - por assim dizer - ao sair de minha casa.
Sentindo-me um tanto irritado, tirei o rolo do orifício e desenrolei-o, para verificar em que estado se encontrava. O pergaminho estava intacto, mas tinha lá dentro5 diversos fragmentos soltos. Retirei aquelas páginas, que não faziam parte do livro, e vi que estavam escritas com a letra de Jerónimo. Bastou-me ler as primeiras linhas para me aperceber de que tinha encontrado, escondido dentro do rolo de Numa, o que me parecia ser um diário privado.

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Senti um arrepio. Tive a sensação de que havia outra presença na sala e voltei-me lentamente, quase certo de que ia ver o lémure de Jerónimo ao meu lado.
Mas não vi ninguém. Estava sozinho.
Ainda assim, tive a estranha sensação de estar a ser observado, e pareceu-me ouvir dentro de mim a voz de Jerónimo, que me dizia: "És tão previsível, Gordiano! Viste o teu precioso exemplar de Numa e tiveste de imediato ir verificar se eu não o teria danificado; fizeste exactamente o que eu queria que fizesses! Descobriste as minhas anotações privadas que, em vida minha, não deviam ser lidas por mais ninguém. Agora que eu morri, contudo, queria que encontrasses o meu diário, Gordiano, metido entre as páginas do teu precioso Numa..."
Estremeci e pus de lado os bocados de pergaminho.
Passei os olhos pelos outros rolos, mas não encontrei mais nenhum documento oculto. Houve, contudo, um rolo que me chamou a atenção, por ser completamente diferente dos restantes. Não se tratava de uma obra de história, nem de poesia, nem de teatro. Nem sequer se tratava propriamente de um livro, mas de uma colecção de pedaços de pergaminho de dimensões variadas, cosidos uns aos outros. Se eu estava a ler bem as enigmáticas anotações e os peculiares desenhos, os diversos documentos tinham um tema comum: a astronomia. Os movimentos do Sol, da Lua e das estrelas, bem como os símbolos usados para os representar, não eram coisas sobre as quais eu estivesse muito informado. O gosto de Jerónimo em termos de leituras não era de pendor científico, mas dava a impressão de que estas anotações tinham sido feitas pelo punho dele.
Peguei nos rolos que me pertenciam. Decidi deixar ali os restantes, pelo menos por enquanto, à excepção da miscelânea de escritos sobre astronomia, que queria estudar com mais pormenor. Juntei esse rolo aos que resolvera levar comigo, bem como ao diário privado de Jerónimo. Saí do apartamento, fechando a porta atrás de mim.

CAPÍTULO TRÊS

- Foste a casa dessa mulher sozinho? - Betesda viera receber-me ao vestíbulo, e falava comigo de mãos nas ancas. - Devias ter levado Rupa contigo, para te proteger. Ou pelo menos os dois malandros, quanto mais não fosse para mos tirares da vista. - Estava a referir-se a Mopso e Androcles, dois jovens escravos de nossa casa, dois irmãos que já não eram propriamente uns rapazes, mas também ainda não eram homens.
- Para me proteger? Não precisava de protecção nenhuma. Dizem que ultimamente a cidade se tornou bastante segura, depois de César ter voltado a residir cá, com os oficiais dele encarregados de manter a ordem, e metade dos cidadãos mortos ou no exílio. Segundo se diz, o próprio César passeia-se pela cidade sem guarda-costas.
- Porque Vénus o protege. E a ti, qual é a deusa que te protege? - Betesda continuava a olhar-me de sobrolho carregado. - Tu és um velho. E os velhos são uma tentação para os ladrões e os assaltantes.
- Não sou assim tão velho! Ainda hoje um jovem escravo se atirou a mim de maneira muito óbvia e totalmente espontânea. Disse-me que eu...
- Devia querer alguma coisa!
- Bem, na verdade...
- Promete-me que não voltas a sair de casa sem levares alguém
contigo.
- Mulher! Não sobrevivemos à guerra civil e aos dias de pior caos aqui em Roma? Não sobrevivemos a uma terrível tempestade no mar, a uma difícil acostagem no Egipto, a uma separação de muitos meses,

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e à minha intenção de me afogar no Nilo, quando pensei que tal fora o teu destino? Como é que podes pensar que eu não tenho um deus que me protege? Eu sempre presumi que eles deviam divertir-se bastante com a minha vida; de outra maneira, o facto de eu ainda estar vivo seria inexplicável!
Ela não se deixou impressionar.
- É possível que os deuses se divertissem quando tu eras Gordiano, o Descobridor, sempre a meter o nariz onde não eras chamado, a mostrar que os grandes homens e as mulheres famosas eram ladrões e assassinos, a desafiar as Parcas a que te destruíssem. Mas ultimamente, o que foi que fizeste para os divertir? Ficas sentado em casa, a brincar com os teus netos e a ver crescer o jardim. Os deuses sentem-se entediados contigo.
- Betesda! Estás a querer dizer-me que tu te sentes entediada comigo?
- Claro que não! Pelo contrário. Detestava aqueles tempos em que tu passavas a vida a correr riscos. A meu ver, esta é a melhor época da nossa vida, agora que decidiste finalmente acalmar e que já não precisas de trabalhar. É no jardim que eu te quero, a brincar com Aulo e a cuidar da Bet. Por que motivo achas que fiquei tão aborrecida ao ver que tinhas saído de casa para ir fazer uma visita a essa mulher, sem levares ninguém para te proteger?
Tinha os olhos marejados de lágrimas. Desde que regressáramos a Roma, Betesda estava diferente. Para onde fora a jovem escrava estranhamente distante que eu tomara como minha concubina, e com quem depois me casara? Para onde fora a matrona reservada e autocrática de minha casa, que nunca dava mostras de fraqueza?
Tomei Betesda nos braços. Ela submeteu-se por momentos, mas depois afastou-se. Estava tão pouco habituada a ser confortada, como eu estava a confortá-la.
- Muito bem - acedi eu baixinho. - Daqui por diante, terei mais cuidado quando sair de casa. Embora a casa "dessa mulher", como insistes em lhe chamar, fique a dois passos da nossa. - Decidi não lhe falar da excursão que tinha feito à pouco recomendável e perigosa Subura.
- Quer dizer que tencionas lá voltar?

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- A casa de Calpúrnia? Quero. Ela pediu-me ajuda.
- E deve ser para qualquer coisa suficientemente perigosa para voltares a suscitar o interesse dos deuses, não? - comentou Betesda com sarcasmo, totalmente recuperada do acesso de lágrimas. - Tem alguma coisa a ver com esses rolos todos que aí trazes? - perguntou, olhando para a sacola que eu trazia ao ombro com a desconfiança das pessoas que não sabem ler.
- Tem. Na verdade... tenho de te dizer uma coisa. Tenho uma coisa a dizer a todos. Podes chamar a família ao jardim?
Eles reagiram à notícia da morte de Jerónimo com uma intensidade que me surpreendeu.
Betesda começou a chorar - mas talvez isso fosse de esperar, dada a sua recente propensão para as lágrimas -, o mesmo fazendo a minha filha Diana. Aos seus vinte e quatro anos, ela era a jovem mais bonita que eu jamais vira (mesmo tratando-se de uma apreciação de pai), e doía-me ver semelhante encanto desfigurado por um ataque
de lágrimas.
Davo, o marido, que era um pesadão, apertou-a nos braços musculosos, limpando a humidade que também lhe enchera os olhos. A última vez que eu o vira chorar fora quando Betesda e eu tínhamos chegado inesperadamente do Egipto, descobrindo que toda a gente estava convencida de que tínhamos morrido. O pobre Davo, persuadido de que éramos dois lémures, começou por apanhar um susto de morte, para em seguida desatar a chorar como uma criança.
Aulo, o filho de ambos, que tinha cinco anos, ainda era novo de mais para compreender a causa do desgosto dos pais; porém, vendo chorar a mãe, fez coro com ela, emitindo um gemido de tal maneira lancinante, que suscitou outro gemido ainda mais lancinante por parte da irmã, Bet, que tinha aprendido recentemente a andar e correu para ele com passo incerto.
O meu filho Rupa era o mais recente acrescento à família; tratava-se de um filho por adopção, como seria facilmente perceptível por qualquer pessoa que nos visse lado a lado: ele era louro, tinha olhos azuis, e a constituição musculosa característica da sua bela ascendência

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sármata. Rupa quase não conhecera Jerónimo. Tocado, porém, pela dor do resto da família, abriu a boca e, apesar de ser mudo, emitiu um som de desespero tão pungente como qualquer deixa de Róscio em palco.
Até os jovens escravos, Mopso e Androcles, que geralmente trocavam observações mordazes diante da menor demonstração de fraqueza, baixaram a cabeça e deram as mãos. Os dois irmãos gostavam muito do Bode Expiatório.
- Mas, papá - perguntou Diana, tentando conter as lágrimas -, o que andava ele a fazer ao serviço de Calpúrnia? Tinha alguma coisa a ver com Massília? Jerónimo não tinha propriamente uma personalidade de diplomata. Além disso, tinha jurado nunca mais lá voltar.
Eu tinha decidido contar-lhes o mínimo que pudesse acerca da natureza específica das actividades a que Jerónimo se dedicava ao serviço de Calpúrnia. O facto é que eu próprio não estava certo daquilo que Jerónimo andava a fazer; ainda não tinha lido os relatórios que Calpúrnia me entregara. Por outro lado, não me parecia que houvesse necessidade de qualquer deles conhecer tais pormenores, em especial Diana, que mais do que uma vez expressara o desejo - que se transformara numa intenção - de um dia fazer precisamente o que Jerónimo tinha feito: seguir a mesma profissão que eu, ser o cão de caça dos ricos e poderosos de Roma. Embora ela fosse muito esperta, e pudesse contar com a protecção de Davo, actividade tão perigosa estava longe de ser adequada a uma jovem matrona romana.
- Se calhar ela contratou-o como professor. Não havia ninguém tão esperto como Jerónimo! - A intervenção fora de Androcles, que sempre se deixara impressionar muito pela quantidade de histórias que Jerónimo sabia recitar.
- Não podia ser - replicou Betesda por entre lágrimas. - Calpúrnia não precisava de professores; nunca deu um filho a César. Toda a gente sabe que ela é estéril.
- Mas César tem um filho, não tem? - interveio Mopso, seguindo teimosamente o pensamento do irmão. - Teve um filho da Rainha Cleópatra, um rapazinho que tem mais ou menos a mesma idade que a Bet. E ouvi dizer que, neste momento, Cleópatra se encontra

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em Roma; veio assistir ao Triunfo Egípcio de César, e trouxe o filhinho, Cesarião. Aposto que Calpúrnia queria que Jerónimo fosse professor de Cesarião - concluiu, o rosto iluminado pelo brilho do sucesso dedutivo.
Nem Davo, pouco inteligente como era, teria dito semelhante disparate.
- Não me parece nada que a mulher romana de César estivesse interessada em contratar um professor para o filho da amante egípcia de César! - retorquiu ele, soltando uma gargalhada.
E tinha razão, como era evidente. Mas qual era a atitude de Calpúrnia relativamente a Cleópatra, e mais especificamente à criança que Cleópatra afirmava ser filho de César? Ela tinha feito uma careta ao pronunciar o nome da Rainha, mas não dissera uma palavra, irritada ou não, sobre Cleópatra. Mopso e Androcles estavam nitidamente longe da verdade nas especulações sobre Jerónimo, mas teria a morte do Bode Expiatório tido alguma coisa que ver com Cleópatra? De repente, senti-me ansioso por começar a ler os relatórios que Calpúrnia me tinha dado, bem como o diário privado de Jerónimo.
Mas primeiro era necessário resolver algumas questões práticas. Eu tinha dito a Calpúrnia que assumia a responsabilidade pelos ritos funerários de Jerónimo. Mandei Rupa e os dois irmãos escravos irem buscar o corpo dele numa carreta. E mandei Diana, na companhia de Davo, falar com um cangalheiro que tinha um estabelecimento junto ao templo de Vénus Libitina. Era um sujeito a quem já tinha recorrido noutras alturas. Ele se encarregaria de mandar limpar o corpo e ungi-lo com óleo e perfumes, e de colocar a coroa de cipreste à porta e a padiola funerária decorada com grinaldas no vestíbulo de minha casa. Como também se encarregaria de inscrever o nome de Jerónimo no registo oficial dos mortos e de organizar as coisas para a cremação.
Betesda foi tratar da refeição da noite. Nesse dia, comeríamos em honra da memória de Jerónimo de Massília, o nosso amigo que partira do meio de nós.
Quando fiquei sozinho, retirei-me para o jardim, sentando-me numa cadeira, à sombra da tarde. Com os rolos de pergaminho a meu lado, e uma mui desejada taça de vinho na mão, pus-me a ler.

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Comecei pelos documentos que Calpúrnia me tinha dado. Os relatórios de Jerónimo - que eram muitos - tinham sido cuidadosamente organizados por secções, identificadas pelos nomes de diversas pessoas. Eu conhecia a maior parte delas, e percebia por que motivo achara Calpúrnia que valia a pena vigiá-las.
Comecei pelos relatórios sobre Marco António.
António fora, durante as campanhas da Gália, um dos oficiais em quem César mais confiava. Posteriormente, combatera ao lado de César em Farsalo, na Grécia, onde Pompeu fora derrotado de forma inequívoca. César seguira para o Egipto, em perseguição de Pompeu, e mandara António regressar a Roma, para impor a ordem na cidade. Dado que o regresso de António tivera lugar pouco depois de eu próprio ter partido para o Egipto, eu não tinha estado presente durante o período em que ele ocupara esse cargo.
Governar a cidade mês após mês, enquanto César derrotava os inimigos e dominava as revoltas nas províncias, não tinha sido uma tarefa fácil. Em tempo de guerra, a capital era atingida pela escassez de víveres, e dominada pela violência entre facções rivais. António tinha proibido os cidadãos de andarem armados, mas a proibição era universalmente ignorada. Os bandos dominavam as ruas durante o dia; os criminosos vulgares governavam a cidade durante a noite.
A violência generalizada somava-se a crescente indisciplina das classes mais baixas, muitos de cujos membros tinham a expectativa de que César abolisse as dívidas e (mas isto eram sonhos estouvados) distribuísse pelos pobres as magníficas propriedades dos apoiantes de Pompeu, agora derrotados. Acicatada por um dos mais jovens oficiais de César, um ferrabrás radical de nome Dolabela, a plebe reunira-se no Fórum para exigir o perdão das dívidas. António explicou-lhes que não tinha autoridade para lhes conceder semelhante coisa; que teriam de esperar pelo regresso de César. A plebe revoltou-se. Decidido a manter a ordem pública, António mandou os soldados limpar o Fórum. No final desse dia, tinham morrido mais de oitocentos cidadãos. Depois desse episódio, a cidade acalmou.
Quando César regressou, e soube do massacre, um dos seus primeiros actos públicos consistiu em criticar António por ter sido excessivamente duro, e em elogiar Dolabela, o instigador da plebe. Os actos

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de César terão sido puramente pragmáticos, um meio de reconquistar os favores das ordens inferiores. Mas a crítica ao protegido de sempre deve ter feito mossa. Pouco depois, António desaparecia da arena
pública.
Até aqui o que eu conhecia - de ouvir dizer - acerca do estado das relações entre César e António. Que mais tinha Jerónimo descoberto?
Passei os olhos pelas anotações escritas na elegante letra de Jerónimo, que alternava entre o latim e o grego. O latim dele era um tanto formal, mas o grego era quase absurdamente elevado, cheio de floreados homéricos, de referências recônditas, de trocadilhos complicados. Tudo isto tornava a leitura lenta e difícil; lançando os olhos à imensa quantidade de material, gemi baixinho à ideia de ter de ler tanta coisa. Surpreendia-me que Calpúrnia tivesse tolerado semelhante prosa.
Traduzindo mentalmente, tentei afastar os caprichos estilísticos de Jerónimo, e fixar-me nos factos.
António reside actualmente na antiga casa de Pompeu, chamada Casa dos Bicos, que fica situada no bairro de Carinas...
Como é que aquilo podia ser? Eu lembrava-me perfeitamente do dia (fora pouco depois de eu ter regressado a Roma) em que César tinha anunciado que todos os bens de Pompeu seriam vendidos em hasta pública, em benefício do Tesouro. E tinha encarregado António de dirigir o leilão, uma tarefa aliás formidável. A casa de Pompeu estava de tal maneira cheia de coisas preciosas, que ele trouxera das suas muitas campanhas de conquista, que a simples produção de um inventário era uma enormidade logística. Tanto quanto eu sabia, porém, não tinha chegado a haver leilão nenhum. E contudo, segundo informação de Jerónimo, o próprio António estava a viver na casa de Pompeu.
Teria César oferecido a casa a António, e com ela os tesouros de Pompeu? Não me parecia nada provável. Recompensar um favorito com tais riquezas seria uma bofetada na multidão que, de uma maneira geral, vivia com grandes dificuldades, e continuava disposta a revoltar-se

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para conseguir uma redistribuição radical das riquezas. Além de que recordaria o arrogante favoritismo de que Sula dera mostras quando era ditador, e a última coisa que César queria era ser comparado com Sula. Continuei a ler.
Há uns tempos, António divorciou-se da segunda mulher (que era sua prima direita), a bela Antónia, vivendo de forma bastante pública com a amante, a ainda mais bela Citéris. A possibilidade de casamento nem sequer se coloca, evidentemente. Um aristocrata como António, por muito dissoluto que seja, nunca poderia casar-se com uma simples actriz em especial tratando-se de uma estrangeira de Alexandria...
A informação de que António se tinha divorciado não foi uma surpresa. Eu tinha conhecido Antónia antes de partir para o Egipto. Tratava-se de uma mulher amarga. O casamento não fora feliz, em grande medida devido à relação que António mantinha abertamente com Citéris, que eu também conhecera. "Ainda mais bela" que Antónia, escrevera Jerónimo, mas quando tentei recordar-me de Citéris, a memória que me ocorreu não foi tanto a do rosto dela, como a do seu atractivo puramente sexual: um emaranhado de cabelo ruivo; faiscantes olhos cor de avelã; um vestido solto que mal conseguia conter-lhe os seios; e, muito em especial, a maneira como se movia, executando o mais pequeno gesto com a graça sinuosa de uma bailarina.
Tudo o que se ouve dizer acerca das festas que António e Citéris dão na casa de Pompeu é verdade. Trata-se de eventos obscenamente sumptuosos. Ninguém diria que há escassez de alimentos em Roma, a avaliar pela mesa de António. A famosa adega de vinhos caros de Pompeu? Está quase no fim! António e Citéris contribuíram bastante para esvaziar as ânforas, mas foram muito ajudados pelos sedentos actores, dançarinas, mimos epalhaços de Roma. (Citéris conhece toda agente do teatro.) Disse-me ela que tenho uma voz esplêndida para declamar grego, e afirma que devia ter sido actor.
Dei uma gargalhada, à súbita intrusão da vaidade de Jerónimo no relatório. Dava a impressão de que, para além de ter conseguido ser convidado para casa de António, o meu amigo também conseguira conquistar

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os aplausos de Citéris. Eu não tinha qualquer dificuldade em o imaginar a recitar uns versos picantes de Aristófanes numa das animadas recepções dadas pelo casal, depois de ter aquecido a garganta com uns goles de um dos vinhos escolhidos que Pompeu fora armazenando, e que estavam a desaparecer a grande velocidade.
Passei rapidamente os olhos pelo resto do material sobre António, que parecia conter tantos pormenores sobre o espião como sobre o espiado; Jerónimo contava que António se rira de tal maneira de um dos seus trocadilhos, que cuspira o vinho que tinha na boca, e narrava em pormenor um duelo verbal em que levara a melhor sobre um actor com as faces cobertas de carmim. Eu estava a ficar cansado da prosa floreada, e começava a achar os documentos cada vez mais difíceis de ler. Parecia-me que Jerónimo estava intencionalmente a preencher espaço em extensos relatórios, que afinal continham muito pouca informação efectiva. Não seria o primeiro informador a usar esse truque. Desde que Calpúrnia continuasse a pagar-lhe (e que António continuasse a convidá-lo), porque não havia ele de estender os relatos os mais possível, mesmo que não tivesse nada de importante a relatar?
Perguntei a mim próprio se o diário privado dele seria igualmente prolixo. Abandonei o material sobre António e peguei nos bocados de pergaminho que tinha encontrado em casa do meu amigo.
Apercebi-me imediatamente de que a prosa era efectivamente diferente; o texto estava totalmente escrito em grego, sendo algumas passagens tão sucintas, que estavam mesmo abreviadas, assemelhando-se ao código de estenografia inventado por Tiro, o secretário de Cícero.
Identifiquei o meu nome, e parei a ler a passagem.
Começo apensar que o meu velho amigo e caro Gordiano era um charlatãozito inchado. Esta actividade de "descobridor" está longe de ser tão difícil, ou tão perigosa, como ele a apresentava. As histórias que ele contava, em que figurava como herói destemido, perseguindo implacavelmente a verdade! O mais provável é que metade delas fosse inventada. Apesar disso, se ele tiver de facto morrido, como dizem, terei saudades do velho odre de vento...

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Corei intensamente. Se o lémure de Jerónimo estivesse ali presente a observar-me, o que pensaria agora dos perigos associados a este trabalho?
Percorri rapidamente as anotações, à procura de mais referências ao meu nome, mas acabei por deparar com o seguinte:
Descobri finalmente aquilo de que andava à procura! Os receios de Calpúrnia, que eu começava apensar que eram absurdos, poderão afinal ter fundamento - e a ameaça que paira sobre César poderá concretizar-se no momento e no local que ele menos espera. Mas posso estar enganado. Consequências de uma falsa acusação - impensável! Tenho de ter a certeza. Até essa altura, nem uma palavra nos relatórios oficiais que entrego à dama e ao vidente dela. Nem aqui me atrevo a anotar a minha suposição; e se este diário fosse descoberto? Tenho de o esconder. E se eu for silenciado? Deixo aqui uma pista ao investigador que descobrir estas palavras e queira detectar a verdade. Olha em teu redor! A verdade não se encontra nas palavras, mas as palavras poderão encontrar-se na verdade.
Fui percorrido por um arrepio que me gelou. Aparentemente, Jerónimo tinha mesmo descoberto qualquer coisa de importância letal. Mas o que seria?
Dava a impressão de que ele tinha mesmo previsto a própria morte e a descoberta do diário. Mas que pista era aquela, a que ele fazia referência? "Olha em teu redor!", escrevera ele, e contudo eu tinha procurado todos os recantos da casa dele e nada encontrara. "A verdade não se encontra nas palavras, mas as palavras poderão encontrar-se na verdade." Outro jogo de palavras, outro irritante e vaidoso jogo de palavras!
Mopso veio ao jardim dizer-me que o jantar estava pronto. Eu poisei os pedaços de pergaminho e levantei-me, satisfeito por sentir na cara o calor dos últimos raios de sol.

CAPÍTULO QUATRO

Nessa noite, fiquei acordado, a ler, até se acabar o óleo das lamparinas. Os meus olhos já não eram o que tinham sido, e nem o meu cérebro nem o meu corpo se podiam gabar de possuir a estamina de outros tempos. A tarefa de decifração da ornamentada letra e da tumultuosa prosa de Jerónimo, em especial à fraca luz da lamparina, esgotou-me até à exaustão. Quando finalmente sucumbi a umas horas de sono inquieto, ainda não tinha lido a grande maioria dos documentos.
Antes do pequeno-almoço, fui ao vestíbulo ver o corpo de Jerónimo. Todas as coisas tinham sido adequadamente dispostas, de acordo com os costumes romanos. Lavado, perfumado, envergando uma túnica imaculada, rodeado por grinaldas fragrantes, ali estava ele, deitado sobre uma padiola, com os pés voltados para a porta, a parte superior do corpo ligeiramente elevada, para que os ocasionais visitantes o avistassem imediatamente da entrada, onde fora pendurada uma coroa de cipreste para assinalar que a casa se encontrava de luto.
Os Massilianos teriam certamente outros costumes, mas Jerónimo havia rejeitado a sua cidade natal, e pareceu-me que os ritos romanos
eram adequados.
Detive-me longamente a observar-lhe o rosto que, assim em repouso, se encontrava pacificado. Na morte, as feições dele não davam qualquer indicação das "palavras mordazes que por vezes saíam daquela boca, dentro da qual se encontrava agora a moeda com que pagaria a passagem para o mundo subterrâneo.
"Inchado", tinha ele dito que eu era, e "charlatão", e - pior do que tudo - "odre de vento". Francamente! E contudo, olhando agora

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para ele, eu não sentia ponta de ressentimento. Os olhos encheram-se-me de lágrimas, e afastei-me dali.
Após um pequeno-almoço de fécula cozinhada à moda egípcia, com pedacinhos de tâmara e uma camadinha de sementes de papoila - desde o nosso regresso do Nilo, Betesda só fazia pratos egípcios, revisitando os favoritos da sua infância -, saí de casa, levando Rupa comigo. Para descobrir por que motivo havia Jerónimo sido assassinado, tinha de começar por algum lado. Por exemplo, pela casa de Pompeu, onde António residia actualmente.
O chamado Grande fora proprietário de diversas casas em Roma. A que eu conhecia melhor era a magnífica villa rodeada de jardins que ele possuía no Monte Pinciano, no exterior das muralhas da cidade. A casa de que António se apoderara ficava dentro das muralhas, no coração da cidade. Chamavam-lhe Casa dos Bicos, porque tinha o vestíbulo decorado com aríetes aguçados de metal, provenientes de navios capturados por Pompeu durante a célebre campanha que empreendera há cerca de vinte anos para acabar com a pirataria nos mares. Destes troféus, só os mais belos se encontravam em exposição; dizia-se que Pompeu tinha capturado uns oitocentos e quarenta e seis barcos. A Casa dos Bicos ficava situada no bairro de Carinas, na encosta sudoeste do Monte Esquilino, por sobre o vale da Subura.
O monumento mais proeminente que se erguia na encosta do Carinas era o templo da deusa da terra. Ao passarmos por ele, a caminho da casa de Pompeu, Rupa deu-me a entender, por via de um gesto e de um aceno de cabeça, que queria entrar uns momentos. Eu era capaz de adivinhar porquê. Terra é uma deusa que é celebrada durante as épocas da sementeira e da colheita, por ter aceitado a semente e ter feito germinar o trigo, mas também é venerada por receber os mortos, dado que todas as coisas acabam por regressar ao solo. Rupa ainda não tinha deixado de chorar Cassandra, sua irmã mais velha, cuja morte o trouxera a ele para o seio da minha família. Desejava certamente colocar uma moeda nos cofres do templo, e de rezar uma oração pelo espírito de Cassandra.
Eu fiquei cá fora, nos degraus do templo, recordando Cassandra à minha maneira.
No momento em que Rupa saía do edifício, avistei uma liteira a subir a colina, dirigindo-se para a Casa dos Bicos. A cortina amarela estava

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ligeiramente afastada, de maneira que pude ver de raspão quem seguia lá dentro. Tratava-se de Citéris, recostada sobre uma pilha de almofadas cor de ferrugem, que lhe combinavam bem com o cabelo castanho-claro e a compleição delicada. Citéris tinha conhecido Cassandra - bem como Rupa - nos tempos em que era dançarina em Alexandria. Se eu fosse rápido, talvez conseguisse dar a impressão de que nos tínhamos cruzado com ela por acaso. Na minha profissão, um encontro que parecesse fortuito era frequentemente preferível a uma visita premeditada. Fora uma lição que eu tivera a oportunidade de comunicar mais do que uma vez a Jerónimo; tê-la-ia ele absorvido, ou teria considerado que se tratava de uma corrente de ar quente, proveniente do odre de vento?
Agarrei em Rupa pelo braço (na medida em que a minha mão conseguia agarrar braço tão robusto), e desci a correr os degraus do templo, com o fito de interceptar a liteira, que avançava lentamente pela rua cheia de gente.
As coisas não podiam ter-me corrido melhor. Enquanto eu fingia olhar na direcção oposta, Citéris descobriu-nos e chamou-nos:
- Gordiano! Gordiano! És mesmo tu? Voltaste de entre os mortos? Não há dúvida de que és tu, porque esse enorme semideus louro que te acompanha não pode senão ser o irmão mais novo de Cassandra. Rupa!
Abriu as cortinas e, sem esperar por um escravo que a ajudasse, saltou da liteira para o chão. O vestido ligeiro que trazia seria mais próprio para andar por casa, do que para sair à rua, e o abraço que deu a Rupa, encostando por completo o corpinho ao dele, fê-lo corar até à raiz dos cabelos louros. Mas, quando Citéris recuou com uma gargalhada deliciada, Rupa fez o mesmo, embora o som que lhe saiu da garganta estivesse entre um zurro e um balido.
- Mas isto é maravilhoso! - exclamou ela, voltando as suas atenções para mim. - Disseram-me que tu tinhas morrido. Oh, deuses, é horrível dizer semelhante coisa em voz alta? Estou de certeza a ignorar uma qualquer regra supersticiosa, que me mandaria estar calada. Mas tenho de te dizer que é mesmo uma surpresa ver-te. Tinhas ido a Alexandria, não tinhas? Com Rupa? Mas regressaste! O que andas tu a fazer aqui no Carinas?

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- Bem... viemos aqui ao Templo de Terra, para Rupa rezar uma oração pela irmã. - Vendo bem, não era mentira nenhuma.
- Ah, pois, Cassandra... - Citéris e Cassandra tinham sido bastante amigas na juventude, quando eram ambas artistas de rua em Alexandria. - Mas tens de vir comigo, têm de vir os dois. Tens de me contar como está Alexandria. Há séculos que lá não vou, mas de vez em quando ainda acordo a sentir nas narinas o cheiro salgado do porto. Venham comigo à Casa dos Bicos, bebemos uma taça de vinho no jardim.
Estás a assistir, lémure de Jerónimo?, pensei. Então anota! Eu tencionava fazer da tua morte a razão da minha visita, qual portador de más notícias, mas isto assim é muito melhor. Dá absolutamente a impressão de que nos encontrámos por acaso, e de que a minha visita a casa de António foi ideia de Citéris, e não minha. Umitar-me-ei a referir a tua morte de passagem...
Os escravos acorreram para ajudar Citéris a subir novamente para a liteira, mas ela mandou-os embora com um aceno de mão e fez sinal a Rupa - que, com um gesto enérgico, a ergueu nos ares e a depositou entre as almofadas. Prosseguimos caminho, ela dentro da liteira, nós a pé. Os carregadores abrandaram o ritmo, em atenção ao meu passo lento, colina acima.
Tal como muitas das casas dos ricos de Roma, também a antiga residência de Pompeu apresentava uma fachada discreta, com um pórtico pequeno, praticamente desprovido de ornamentos. Ao atravessarmos a entrada, porém, percebi por que lhe tinham dado aquele nome. O vestíbulo era enorme - cabia lá dentro outra casa - e a quantidade de aríetes em exposição era estonteante. Alguns deles tinham formas pouco elaboradas, pouco mais eram do que pedaços de bronze da altura de um homem, com uma extremidade aguçada. Outros, contudo, eram espantosas obras de arte, com a forma de grifos de bicos ferozes, ou de monstros marinhos de múltiplos chifres. Eram objectos temíveis, inventados com o propósito de dar cabo de outros navios, mas nem por isso menos belos. Meditai por momentos no talento artístico que é desperdiçado na produção de lanças, espadas e outras armas, com o fim de tornar agradável à vista uma coisa destinada a provocar morte e destruição.
- São horrendos, não são? - comentou Citéris, apercebendo-se de que eu estava fascinado. - António adora-os como se fossem filhos

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dele. Deu-lhes nomes e tudo! Até parece que foi ele que os conquistou. Diz ele que um dia poderá muito bem vir a constituir uma frota de navios de guerra, e que os ornamentará com os melhores exemplares.
- Uma frota de navios dele? Não sei se César achará boa ideia.
- Ah, pois... César. - E Citéris torceu o nariz.
Enquanto percorríamos a casa, pareceu-me que os quartos tinham sido esvaziados de parte do mobiliário e dos ornamentos. Viam-se nichos sem as estátuas e paredes sem os respectivos quadros. Dava a impressão de ser uma casa a meio termo, de onde ou para onde os moradores estavam a mudar-se.
Completamente isolado da rua, o jardim do centro da casa era invulgarmente grande e esplendoroso, cheio de roseiras fragrantes e de caminhos delineados a seixos, decorados com fontes e estátuas. Por entre os pequenos arbustos de murta e os ciprestes, estavam instalados canapés de jantar, cobertos de almofadas macias. Era manifesto que os ocupantes da casa passavam grande parte do seu tempo neste local, capaz de acomodar muitos convidados.
Citéris conduziu-nos a um recanto do jardim, deixou-se cair num canapé com um suspiro, e indicou-nos com um gesto que fizéssemos o mesmo. Não foi preciso mandar servir o vinho. Antes de que eu tivesse tempo de me instalar, aproximou-se um escravo, que trazia nas mãos um tabuleiro com um jarro e taças.
- Então, Gordiano, conta-me tudo sobre essa tua viagem ao Egipto. Os alexandrinos continuam loucos como sempre? Continuam a odiar os Romanos? Conheceste Cleópatra?
- Sim, sim e sim.
- A sério? Eu passo a vida a insistir com António para que a convide a vir cá a casa, dado que ela se encontra em Roma, mas ele responde-me que é melhor não. Presumo que se sentisse incomodado por ter de apresentar a concubina a uma Rainha, mas António diz que é porque César ainda não aceitou em definitivo que esta casa é dele.
- Pois, tenho alguma curiosidade quanto a isso. Pensei que a Casa dos Bicos e todo o recheio estavam destinados a ser vendidos em hasta pública, com o produto a reverter para o Tesouro.
Citéris deu uma gargalhada.

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- Oh, sim, vai haver um leilão, mas não te incomodes em aparecer, porque António já ofereceu as coisas melhores aos nossos amigos. Sempre que damos uma festa, ninguém se vai embora sem levar uma peça de prata ou um livro raro, ou qualquer coisa que lhes apeteça meter debaixo do braço. "Prefiro que sejam os teus amigos do teatro a ficar com os despojos de Pompeu", diz-me António, "do que eles irem parar às mãos de um qualquer banqueiro rico, amigo de César." Olha em redor, Gordiano, a ver o que gostarias de levar para casa. Rupa é grande e forte. Não teria dificuldade em transportar aquela estátua de Cupido ali ao fundo.
- Estás a brincar, não estás?
- Não és nosso amigo, Gordiano? Conheces António, não conheces?
- Encontrámo-nos algumas vezes nos últimos anos.
- E ele não gosta de ti? António gosta de toda a gente. Bem, talvez à excepção de Cícero. Diz António que, depois de Farsalo, César devia ter executado Cícero, em vez de lhe perdoar. "Mostra bem a pouca atenção que César presta às minhas opiniões", lamenta-se o pobre António. Mas tu estavas a falar-me de Alexandria, Gordiano. Para ganhares o Cupido, vais ter de me contar um ou dois episódios divertidos.
- Para dizer a verdade, não me diverti assim muito no Egipto.
- Mas deves ter tido muitas aventuras. Passaste lá vários meses, e foi mesmo no meio daquela guerra horrenda entre Cleópatra e o irmão, com César a intervir para resolver o assunto. Deves ter visto a morte de perto umas quantas vezes; e não terás tido algum namorico com uma das criadas da Rainha? - Citéris ergueu uma sobrancelha.
- Sim, podia contar-te que foi por pouco que escapámos a uma multidão enfurecida, numa altura em que tivemos de percorrer uma passagem secreta que fica por baixo do túmulo de Alexandre, o Grande...
Citéris sentou-se muito direita.
- É exactamente o género de coisa que eu quero que me contes! Hilarião, traz mais vinho. Não podemos deixar secar a garganta de Gordiano.

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Eu regalei-a com a história, pensei em mais uns quantos incidentes que tiveram lugar em Alexandria, e a que ela poderia achar graça, e em seguida tornei a orientar a conversa para o tema da casa.
- Que bem que se está aqui no teu jardim. E que casa esplêndida, esta. Não é de espantar que Pompeu a apreciasse tanto. Mas ainda não percebi bem; a casa passou a ser propriedade de António?
O vinho tinha-a descontraído consideravelmente, de maneira que Citéris respondeu sem hesitações.
- Depende da pessoa a quem perguntares. Quando César percebeu que António andava a arrastar os pés, teve uma conversa desagradável com ele. César insistiu: "Dá uma festa de despedida na casa, se quiseres, mas depois leva aquela porcaria a leilão e põe-te a andar dali para fora!" Mas António recusou-se a mexer-se. Foi muito directo. "Cá para mim", disse ele a César, "mereço perfeitamente ficar com esta casa. Contribuí tanto como tu para a queda de Pompeu, e isto é a minha recompensa!" Desde essa altura, têm andado os dois às turras por causa disto, a ver qual deles é mais teimoso. Oficialmente, César insiste num leilão, mas eu tenho a impressão de que acabou por ceder, ou se calhar anda ocupado de mais a organizar os triunfos para continuar a incomodar António. De maneira que, agora, o plano de António é fingir que leva a casa a leilão - vender as togas velhas de Pompeu, e livrar-se das pratas cheias de mossas -, e depois continuar a viver cá. De qualquer maneira, eu quero alterar por completo a decoração. A mulher de Pompeu tinha um gosto horrível em mobiliário.
O caminho que Citéris percorrera, desde que fora dançarina de rua em Alexandria, até se tornar a companheira de um dos homens mais poderosos do mundo! Uma actriz estrangeira a falar mal da mulher de Pompeu, a viver descaradamente em casa de Pompeu, desafiando a vontade do próprio César!
- Mas António terá certamente percebido que isso vai cair muito mal junto daqueles que acusam César de trair o povo - observei eu. - Essa gente poderá comentar que César está a comportar-se como Sula, ao permitir que um homem da sua confiança distribua os despojos de guerra por um pequeno círculo de favoritos, em vez de os usar em prol do bem comum.
- As pessoas não são assim tão estúpidas. Em Roma, toda a gente sabe que António está a opor-se aos desejos de César.

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- Mas isso ainda me parece pior, do ponto de vista de César. As pessoas perceberão que ele aceita ser posto abertamente em causa. Um ditador não pode tolerar actos de desobediência. Fazem-no parecer fraco.
Citéris sorriu.
- Não, o que isto faz é com que António pareça um garoto mimado, e César o pai indulgente. E não é verdade que ele é actualmente o pai do povo de Roma? E que António é o mais brilhante dos protegidos dele, talvez um tanto estouvado e teimoso em certas ocasiões, mas um homem que, no longo prazo, vale a pena mimar? Pouco importa que, de momento, mal se falem. Isso passa-lhes.
Estaria Citéris realmente convencida disto? Ou estaria a ocultar uma preocupação mais profunda? Ter-se-ia César tornado uma ameaça para o mundo dela?
E o que sentiria António? A mim, ele sempre me parecera um sujeito impertinente, pouco sólido, que falava abertamente do que gostava e do que não lhe agradava, um improvável candidato a conspirações. Mas uma pessoa que subira tão alto como António tinha inevitavelmente de possuir o instinto de autopreservação a qualquer preço que caracterizava os homens e as mulheres que ascendiam na política. Ter-se-ia realmente incompatibilizado com César?
No momento em que estas perguntas me atravessavam o espírito, Citéris avistou-o do outro lado do jardim, e acenou-lhe com um sorriso. António dirigiu-se a nós a passos largos, envergando uma túnica que nem toda a gente acharia decorosa, porque lhe deixava à mostra uma grande parte das musculosas pernas. Tratava-se de uma veste amarela e toda amarrotada, que parecia ter-lhe servido de camisa de noite, com uma enorme nódoa de vinho na frente. António dava a impressão de estar com uma ligeira ressaca. Lançou-me um olhar de curiosidade, por baixo das pálpebras pesadas, e a seguir debruçou-se para depositar um beijo na face de Citéris. Ela sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido - deve ter sido o meu nome - e ele dirigiu-me um aceno de hesitante reconhecimento.
- Gordiano... ah, sim, claro, o pai de Meto! Por Hércules, há quanto tempo não nos víamos?
- Há bastante.

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- E contudo, os nossos caminhos voltam a cruzar-se. - Teria eu lido uma sugestão de desconfiança naquele olhar remeloso? O rosto de António combinava o poeta e a besta, o que fazia com que ele tivesse uma expressão difícil de captar. Tinha um perfil severo: o nariz amolgado, a testa saliente, o queixo espetado; mas a curva dos lábios cheios conferia-lhe um toque de suavidade e tinha nos olhos um brilho emotivo. A meu ver, ele era um tanto rústico, mas as mulheres pareciam achá-lo fascinante.
António soltou um resmungo e estendeu a mão, onde um escravo
depositou uma taça de vinho.
- Por onde anda Meto actualmente? Imagino que tenha regressado a Roma para assistir... - Calculei que fosse dizer "ao triunfo gálico", dado que Meto, tal como António, tinha servido César na Gália, mas a voz morreu-lhe na garganta.
- Não, Meto encontra-se em Espanha. António soltou outro resmungo.
- Anda a avaliar as forças do jovem Pompeu, não? Tu e Meto estavam ambos em Alexandria quando César lá foi, não estavam?
- Estávamos - respondi eu.
- E agora regressaste a Roma?
- Imagina! - interveio Citéris. - Encontrámo-nos por acaso, à saída do Tempo de Terra. E este é Rupa, que é actualmente filho de Gordiano. Rupa é um velho amigo, dos meus tempos de Alexandria.
- Ah, sim - observou António -, dá a impressão de que todos os caminhos acabam por ir dar a Alexandria. Também eu tenho de lá voltar um dia destes. Mas tenho a impressão de que me disseram... sim, tenho a certeza de que nos disseram que tu tinhas desaparecido no Egipto, e que se pensava que tinhas morrido, Gordiano. Quem terá sido que nos disse isso? Lembro-me perfeitamente de que nos encontrávamos aqui neste jardim, de que o teu nome veio à baila, já não sei porquê, e de que alguém... Citéris, quem foi, ajuda-me!
- Já sei! - replicou ela. - Foi o Bode Expiatório!
- O Bode Expiatório?
- O massiliano. Não te lembras? Jerónimo. Foi ele que nos contou o boato de que Gordiano tinha morrido. Estava muito perturbado. Nessa noite, quase não comeu nem bebeu.

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- Ah, sim... Jerónimo... - E António fez um aceno de cabeça. - Que sujeito peculiar. Pensei que se tratasse de um dos teus amigos actores, minha querida, até me explicares de onde ele vinha. Diz que é teu amigo, Gordiano.
- Jerónimo - sussurrei eu. - Quer dizer que o conheciam? - Que golpe de sorte terem sido eles a referi-lo, e não eu.
- Oh, sim, o Bode Expiatório é um dos cãezinhos amestrados de Citéris. - António não se mostrava inteiramente satisfeito com o facto.
-1- Vá lá, António, Jerónimo costuma fazer-te rir. Admite que é verdade! A língua maldosa que aquele sujeito tem.
- A bem dizer, receio ter recebido uma notícia pouco agradável sobre Jerónimo. - Tentei dar ao rosto e à voz o registo correspondente à emoção que uma pessoa sente quando se confronta, súbita e inesperadamente, com a tarefa de ter de comunicar uma notícia desagradável. Olhei de relance para Rupa, cuja mudez fazia dele um companheiro adequado para esta investigação; dali nunca sairia nada que me atraiçoasse.
- Jerónimo morreu - comuniquei-lhes bruscamente.
- Oh não! - Citéris parecia genuinamente surpreendida. Não
convinha esquecer, naturalmente, que era uma actriz profissional.
Foi mais difícil perceber o que sentia António, que franziu a testa e estreitou os olhos.
- Quando é que isso aconteceu?
- Há dois dias.
- Onde? Como?
- Foi esfaqueado numa viela do Palatino. - Era verdade, embora se tratasse de uma informação deliberadamente vaga.
- Por quem? - perguntou António, que já tivera a seu cargo a manutenção da ordem pública na cidade; dava a impressão de que a notícia de um crime lhe aguçava o interesse.
- Não sei. Passou-se durante a noite. Aparentemente, não houve testemunhas.
- Que horror! - comentou Citéris. - Quem teria querido matar o pobre Jerónimo, um sujeito inofensivo? Teria sido um ladrão? Eu pensava que os tempos dos roubos e dos assassínios de rua tinham acabado.

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Eu encolhi os ombros e abanei a cabeça.
- Temos de mandar uma grinalda para acompanhar o corpo - declarou Citéris. - Onde é que...?
- Jerónimo está no vestíbulo de minha casa.
- Sim, querida, manda-lhe uma grinalda - concordou António. - Deixo o assunto ao teu cuidado. - Franziu os olhos, protegendo-os da luz do Sol. - E agora, se me dão licença, tenho a cabeça a estalar. Não te levantes, Citéris. Deixa-te ficar aqui no jardim com os teus
convidados.
Mas ela já estava de pé, olhando-o com uma expressão condoída e estendendo as mãos para lhe massajar suavemente as têmporas. Percebi que eram horas de nos irmos embora.
- Obrigado pelo vinho e pela tua hospitalidade. Tenho de voltar para casa, pode ser que vá lá alguém prestar homenagem a Jerónimo.
António acenou com a cabeça.
- Se descobrires alguma coisa sobre a morte dele, diz-me.
- Com certeza. Calculo que andes ocupadíssimo com os triunfos de César. Se não me engano, o primeiro, para celebrar a conquista da Gália, é depois de amanhã. Meto contou-me que desempenhaste um papel muito importante nessa guerra.
António franziu o sobrolho.
- Seja como for, não tenciono participar no Triunfo Gálico.
- Não? Mas tu foste o comandante da cavalaria em Alésia, não foste? Quando Vercingetorix atacou os sitiantes romanos durante a noite, foi a tua rapidez de reacção que salvou a situação.
António soltou um resmungo.
- O teu filho contou-te esse episódio, foi?
- É o próprio César que o afirma, naquelas memórias que escreveu. Não me digas que não vais ocupar um lugar de honra, como pri-meiro-oficial a cavalo, atrás do carro de César! E eu até pensava que fizesses parte do número dos privilegiados que vão assistir à execução de Vercingetorix no Tuliano.
- Tenho a certeza de que eles não precisam de mim para estrangular o miserável gaulês. Sabes uma coisa, Citéris, acho que era boa ideia marcarmos o leilão para esse dia, aqui mesmo, em frente à casa. A ver se

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conseguimos convencer alguns paspalhos a desviarem-se do percurso da parada para virem esbugalhar os olhos diante dos anéis cor-de-rosa e dos chinelos de quarto de Pompeu.
- Mas César vai certamente querer que tu estejas presente? - insisti eu.
- César é um egoísta, um ingrato... - António interrompeu a razia. - Depois de Farsalo, fiquei meses a governar sozinho esta cidade de loucos, sem receber quaisquer instruções de César.
- Devo dizer-te que César estava fechado dentro do complexo real, em Alexandria, sem ter maneira de comunicar com o exterior - observei eu.
- Esteve de facto, durante parte do tempo. Mas, depois de ter de lá saído, e de ter derrotado Ptolemeu, apressou-se a regressar a Roma? Não, fez uma viagem de lazer pelo Nilo na companhia de Cleópatra. E, enquanto ele andava a ver as vistas, e a fazer sabe-se lá que mais com a Rainha, aqui em Roma, eu confrontava-me como uma multidão enfurecida, sem sequer saber se César estava vivo ou morto! A situação era bastante precária, deixa-me dizer-te! E Dolabela fez o que pôde para torná-la pior! Já não bastava o rapaz andar a dormir com a minha mulher, de quem já estou divorciado, graças aos deuses! Oh não! Dolabela insistiu em prometer ao povo a total remissão das dívidas, afirmando que essa teria sido a vontade de César. Deu esperanças à ralé, colocou-a em estado de frenesim, e lançou-a contra mim. Sabes o que foi que ele chamou à reunião que organizou no Fórum? Manifestação. Eu chamei-lhe revolta. Se não tivesse ordenado aos meus homens que pusessem ordem naquilo, a cidade teria caído no caos completo, com pilhagens e assassínios por todo o lado. Fiz o que tinha de fazer. Mas, quando finalmente regressou, ao ouvir queixas de todos os lados, César mostrou-se grato comigo? Elogiou-me, recompensou-me? Não! Censurou-me em público, humilhou-me! E abraçou Dolabela, afirmando que ele era um rapazinho muito esperto, que tinha demonstrado ter grande sensibilidade para as necessidades dos pobres.
Era precisamente o género de reacção espontânea que eu tivera a esperança de conseguir provocar. Seria agora capaz de o levar a ser

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ainda mais franco? Franzi o sobrolho e fingi-me surpreendido perante a veemência dele. Fazendo estalar a língua, observei:
- Dolabela, esse malandro, a dormir com a tua Antónia! Presumo que o fizesse nas costas de sua amada esposa, não?
- A patética Túlia, a cachorrinha de Cícero? Dolabela divorciou-se da dama, depois de ter finalmente conseguido engravidá-la. Mas não me obrigues a pronunciar novamente esse nome maldito.
- Que nome? - atrevi-me eu.
Estreitando os olhos, António observou-me com atenção, já desconfiado de que eu estava a provocá-lo deliberadamente.
- Ah, referes-te a Cícero - prossegui. - Bem sei que tu e ele são inimigos jurados há muito tempo. Mas César achou por bem perdoar a Cícero, não foi?
António fez ranger os dentes.
- Outro exemplo da escandalosa... - e calou-se. Coçou a cana do nariz, fez uma careta, voltou costas e foi-se embora sem dizer mais nada.
- Tenho a impressão de que o irritaste - comentou Citéris.
- Não tinha consciência de que a situação entre António e César
era tão delicada.
- Na verdade, não é tão mau como parece. - Ela abanou a cabeça. - Estas dores de cabeça dele é que me preocupam. Não é o que tu pensas. Não são provocadas pela bebida. É da tensão em que
ele anda.
- Um homem como António deve ter muito em que pensar.
- Ultimamente, não tem que chegue. E o problema é esse! Ele não tem estas dores de cabeça quando está no meio dos acontecimentos, quando tem de conter uma rebelião ou de chefiar uma carga da cavalaria. O que lhe provoca dores de cabeça é a ociosidade que vem a seguir. É como se continuasse a libertar a pressão, depois de ter passado por aqueles meses todos de tensão, de ter tido de governar a cidade no lugar de César, confrontando-se com uma crise após outra, sem saber se César voltaria. Foi muito duro para ele. Não é de espantar que, nesta altura, António só pense em dar festas, em beber e em dormir até meio do dia.
- Não é de espantar, de facto - retorqui eu.

CAPÍTULO CINCO

Quando Rupa e eu saímos da Casa dos Bicos, para regressarmos ao Palatino, tive a nítida sensação de que estávamos a ser seguidos.
Com o passar dos anos, aprendi a confiar nesta sensação; e nunca me engano. Infelizmente, a minha capacidade de identificação de um perseguidor furtivo foi diminuindo com o passar dos anos, em proporção inversa ao desenvolvimento da minha capacidade de o detectar. A certa altura, pedi a Rupa que se deixasse atrasar um pouco, para ver se conseguíamos despistar o perseguidor, mas a manha não resultou. Cheguei a casa sem problemas, mas com a perturbadora sensação de ter sido seguido, e sem fazer a menor ideia de quem o tinha feito, nem porquê.
Retirei-me para o jardim, sentei-me à sombra, e retomei a leitura dos relatórios e do diário privado de Jerónimo. Não encontrei grandes indícios que me permitissem suspeitar de que António pudesse constituir um perigo para César; os relatórios consistiam sobretudo em listagens pormenorizadas dos convidados para as festas na Casa dos Bicos, com referências ao que eles comiam, bebiam e ao modo como se apresentavam; bem como aos mexericos que por lá circulavam. Embora só me tivesse encontrado com eles uma vez, eu teria sido capaz de descrever melhor o estado de espírito de António e de especular com mais propriedade sobre quaisquer motivações perigosas passíveis de serem atribuídas a Citéris.
Jerónimo tinha descoberto qualquer coisa tão perigosa, que morrera por causa dela. Dava a impressão de que não albergava uma especial desconfiança de António, mas esse facto era, por si só, motivo de preocupação. O que é que o meu amigo tinha dito? "A ameaça contra

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César surgirá numa altura e de uma fonte imprevistas." Ora, a avaliar pelos relatórios, Jerónimo não tinha previsto que a ameaça tivesse origem em António e Citéris - ou teria começado a suspeitar deles quando já era tarde de mais para se salvar?
Escrevinhei, também eu, algumas anotações, que serviriam de base a um relatório destinado a Calpúrnia, e continuei a ler o material. Por qual das vias abertas por Jerónimo deveria enveredar agora?
Decidi conversar com Vercingetorix logo que pudesse. O homem morreria dentro de dois dias.
Desde que tinha sido derrotado e capturado em Alésia, seis anos antes, o antigo chefe dos gauleses fora mantido sob prisão. Se a guerra civil se não tivesse entretanto declarado, há muito que César teria organizado o Triunfo Gálico, e que Vercingetorix teria morrido. Era assim que as coisas se passavam desde os primeiros tempos de Roma: quando um general romano vitorioso comemora um triunfo, os seus prisioneiros mais proeminentes desfilam agrilhoados pelas ruas e, ao terminar a procissão, são conduzidos a uma masmorra chamada Tulia-no, onde são estrangulados, para deleite dos deuses e glória de Roma. Chegara o momento de César desfilar em triunfo e de Vercingetorix se confrontar com o seu destino.
Não era fácil perceber como poderia o chefe dos gauleses - que estaria certamente preso e bem guardado - constituir uma ameaça para César, mas Calpúrnia tinha arranjado maneira de Jerónimo se encontrar com ele, portanto devia achar que o sujeito era uma possível ameaça. Ao ler as anotações que Jerónimo tomara depois do único encontro que com ele mantivera, encontrei referências à aparência e ao estado de espírito do gaulês, mas não encontrei resposta para a pergunta mais importante: tinha Vercingetorix sido autorizado a entrar em contacto com a família e com os amigos? Se, tal como eu suspeitava, o prisioneiro fora mantido em total isolamento, não podia estar a conspirar contra César, nem ter conhecimento de qualquer conspiração. Por outro lado, mesmo que as visitas que recebia do exterior fossem rigorosamente controladas, é possível que trocasse informações em código, ou que, apenas, inspirasse os visitantes dando mostras de grande coragem. César tinha feito o possível por minar todo e qualquer vestígio

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de resistência gaulesa, por exemplo recompensando aqueles que haviam cooperado com ele, mas haveria com certeza muitos gauleses que o odiavam intensamente e queriam vê-lo morto.
Jerónimo não tinha tomado quaisquer notas sobre a questão dos contactos de Vercingetorix com o exterior, mas talvez Calpúrnia já dispusesse dessa informação. O que ele fazia era principalmente ruminar sobre os especiais atributos que possuía, que lhe permitiriam conquistar a confiança do preso:
Nós dois temos algo em comum. Na minha qualidade de Bode Expiatório de Massília, pesava sobre mim uma condenação iminente, de que eu tinha consciência todos os dias, a todas as horas. Também eu conheci o tormento com que V. se confronta, à medida que se aproxima o último dia da vida dele. Tendo eu escapado às Parcas, ele deduzirá que fui objecto de especial predilecção por parte dos deuses. Será natural um homem que se encontra naquelas circunstâncias aproximar-se de mim, na esperança de que essa predilecção possa comunicar-se a ele.
- Jerónimo! Jerónimo! - sussurrei, abanando a cabeça. - Escapaste às Parcas durante algum tempo, mas homem algum lhes escapa para sempre. O maldito gaulês vive ainda, enquanto tu repousas numa padiola no vestíbulo de minha casa. Teria ele tido alguma coisa a ver com a tua morte?
- Papá?
Diana veio ter comigo ao jardim, a luz do Sol fazendo-lhe luzir o cabelo escuro. Fiquei novamente espantado com a beleza dela - exclusivamente herdada da mãe -, mas a minha filha estava com uma expressão grave.
- O que é, filha?
- Está ali uma pessoa, que veio prestar homenagem a Jerónimo.
- Já? - Quer dizer que a notícia da morte dele começara a espalhar-se, mais depressa do que eu esperava. O cangalheiro inscrevera o nome dele no registo oficial dos mortos, e os abutres da coscuvilhice lêem esses registos diariamente. Ou teria sido algum membro da casa de Calpúrnia a difundir a novidade? - Quem é? - perguntei.
- Fúlvia. Diz ela que gostava de falar contigo.

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- Com certeza. Importas-te de ma trazer ao jardim, Diana? E os rapazes que nos tragam uma bebida.
Conhecia Fúlvia há muitos anos. Não seria mentira nenhuma dizer que se tratava da mulher mais ambiciosa de Roma. E contudo, o que tinha ela lucrado com tal ambição, para além das vestes de viúva? Primeiro, tinha-se casado com Clódio, o agitador da ralé, cujas multidões haviam aterrorizado a cidade; quando, porém, Clódio fora assassinado na Via Ápia, Fúlvia - sendo mulher - não pudera aproveitar o tremendo poderio político que o marido obtivera. Em seguida, casara-se com Cúrio, um dos mais promissores auxiliares de César. Ao iniciar-se a guerra civil, Cúrio conquistara a Sicília e prosseguira para África - onde o Rei Juba da Numídia voltara a fazer de Fúlvia viúva, tomando a cabeça de Cúrio como troféu. A última vez que eu a vira, antes da minha partida para Alexandria, ela continuava a ser uma bela mulher, mas era uma mulher amarga e pensativa, a quem faltava a única coisa que não pode faltar a uma mulher romana que quer exercer o poder: um marido tão ambicioso como ela. Em Alexandria, uma mulher como Cleópatra pode exercer o poder sozinha, mas os Romanos não são Egípcios. Podemos ter revertido à condição de súbditos de um Rei, mas nunca nos submetemos ao poder de uma Rainha.
Tanto quanto eu me apercebera, Fúlvia não figurava em nenhum dos relatórios que Jerónimo tinha entregado a Calpúrnia. Frustradas as ambições que a moviam, ela tornara-se irrelevante. Mas, se Jerónimo a não tinha visitado, por que motivo viera ela homenageá-lo? No momento em que eu me recordava a referência que Jerónimo fizera a uma ameaça "proveniente de uma fonte imprevista", Fúlvia chegou ao jardim. Como seria de esperar, dado o tipo de visita que viera fazer, envergava uma estola escura e trazia a cabeça coberta por uma capa preta. Vestia da mesma maneira a última vez que eu a vira, estava ela de luto por Cúrio. Talvez nunca tivesse chegado a abandonar as vestes de viúva. Tinha agora quase quarenta anos, e começava a notar-se-lhe no rosto a tensão e o sofrimento por que tinha passado ao longo dos anos; mas o fogo que lhe ardia nos olhos não se tinha apagado.
Fúlvia foi,a primeira a falar, como se fosse ela a anfitriã e eu o convidado. Era mesmo dela, tomar assim a iniciativa.

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- É um prazer ver-te, Gordiano, apesar de a ocasião ser de tristeza. Tinham-me dito...
- Sim, sim, já sei; que eu tinha morrido.
Ela sorriu muito ao de leve e fez um aceno de cabeça.
- Mas tu devias ter percebido que não podia ser verdade, Fúlvia. De certeza que soubeste quando foi que eu regressei a Roma, dada a tua famosa rede de espiões, que tudo vêem e tudo ouvem. Julgo recordar-me de que, no último encontro que tivemos, tu te gabaste de que nada de importante acontecia em Roma que não chegasse ao teu conhecimento.
- Se calhar, o teu regresso a Roma não foi assim tão importante. Encolhi-me ao ouvir aquilo. Seria sarcasmo? A expressão dela indicava que estava apenas a expressar um facto.
- Vieste prestar homenagem a Jerónimo?
- Vim.
- Conhecia-lo bem?
Ela hesitou uns instantes, e optou por não responder.
- Não conhecias Jerónimo, pois não, Fúlvia? Ela voltou a hesitar.
- Nunca estive com ele. Nunca falei com ele.
- Mas ouviste falar dele; sabias quem ele era, por onde circulava, o que andava a fazer?
- Talvez.
- E soubeste que ele tinha morrido, antes de praticamente todos os habitantes de Roma, e de que o seu corpo se encontrava nesta casa. Gostava muito de saber como. E por que razão te interessarás por Jerónimo, um desconhecido para ti, a ponto de vires prestar-lhe homenagem.
Ela endireitou os ombros, e manteve-se rígida por momentos, para em seguida libertar a tensão com uma pequena gargalhada.
- Ainda bem que não tenho nada a esconder-te, Gordiano. Só com dois olhos e dois ouvidos, percebeste logo tudo. Possuis um dom extraordinário! Muito bem. Sei quem Jerónimo era, porque tenho homens a vigiar a Casa dos Bicos, que me informam de quem lá entra e de quem de lá sai; incluindo o teu velho amigo, o chamado Bode Expiatório.
- E os teus homens estavam a vigiar a casa esta manhã, não estavam? Viram-me chegar, com Citéris, e pelo menos um deles veio atrás

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de mim quando me vim embora. Eu sabia que vinha alguém a seguir-me! O sujeito deve ser muito bom. Por muito que tentasse, não consegui levá-lo a dar-se a ver.
- Isso é um elogio e tanto, vindo como vem de Gordiano, o Descobridor. Ele vai sentir-se lisonjeado.
- E, quando viu a grinalda de cipreste pendurada na porta de minha casa, o teu homem percebeu que havia um morto no vestíbulo.
- A morte de Jerónimo já consta dos registos públicos. O meu homem limitou-se a ir lá confirmar.
- O que te proporcionou um pretexto para vires visitar-me.
- Exacto. Mas percebo agora que não precisava de me ter incomodado a arranjar um pretexto. Devia ter, muito simplesmente, vindo ter contigo... como tua amiga.
Tratava-se de um exagero na nossa relação, mas eu deixei passar
o vocábulo.
- E o que virias tu perguntar-me como amiga, Fúlvia?
- O que foste fazer a casa de António? Quem foi que te contratou para o espiares?
A minha resposta foi igualmente directa.
- Os teus homens limitam-se a observar as idas e vindas da Casa dos Bicos, ou também tens alguém a seguir Citéris para onde quer que ela vá?
Fúlvia não respondeu.
- É que, se algum dos teus homens andasse a seguir Citéris, poderia ter-te dito que ela e eu nos encontrámos por acaso à saída do Templo de Terra, altura em que ela me convidou para ir a sua casa.
- Não acredito. Se encontraste Citéris na rua, não foi por acaso, mas porque querias que isso acontecesse. Foste a casa de António porque querias lá ir, Gordiano. E só podes tê-lo feito porque alguém te contratou para investigares António. Ou então, estás a agir inteiramente por tua iniciativa, e nesse caso deves suspeitar de que António teve alguma coisa a ver com a morte do teu amigo.
- E se eu tivesse apenas querido ir informar António e Citéris de que Jerónimo tinha morrido, ciente como estava de que, nos últimos meses, ele fora convidado frequente naquela casa?
Ela franziu a testa.

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- Talvez tenha sido isso. - Deixou afundar os ombros, subitamente cansada de lutar comigo. Apercebi-me de que continuava de pé, ao sol; e o Sol estava quente.
- Senta-te por favor, Fúlvia, aqui ao meu lado, à sombra. Devem estar a trazer-nos vinho. Pergunto-me onde estarão estes inúteis destes miúdos...
Como se tivessem estado escondidos atrás de uma coluna, à espera de que eu me referisse a eles, Mopso e Andocles apareceram imediatamente, um deles com um jarro de prata, outro com duas taças na mão. Pelo menos, tinham tido o bom senso de trazer a louça melhor. Eu esperava que também tivessem trazido o vinho bom.
Ao vê-los, Fúlvia mostrou-se surpreendida, e a seguir sorriu.
- Pelos deuses, como eles cresceram! Estão quase da altura do meu filho Públio.
Eu quase me tinha esquecido de que os rapazes tinham sido propriedade de Fúlvia, a quem eu os tinha comprado no decurso da investigação que fizera à morte do primeiro marido dela. Percebia agora por que motivo eles haviam hesitado em se aproximar: continuavam a ter receio da antiga senhora. E não era de espantar. Eu próprio tinha uma pontinha de receio de Fúlvia. Androcles aproximou-se dela de olhos no chão, e estendeu-lhe uma taça. Mopso mostrou-se igualmente tímido quando lhe serviu o vinho.
- Têm-me sido muito úteis - comentei eu. - Foram comigo ao Egipto, e fizeram-me companhia em Alexandria. Podem-se ir embora, rapazes.
Depois de se atreverem a erguer os olhos para captar um vislumbre da face de Fúlvia, eles retiraram-se.
O vinho era muito bom, um mamertimo colheita especial, que era quase tão suave e delicado como um falerniano de boa qualidade. Pensei que Fúlvia fizesse algum comentário, mas ela nada disse. Estava obviamente habituada a esta qualidade.
- Em minha opinião, Fúlvia, a questão não é o que estava eu a fazer em casa de António esta manhã. A questão é: por que motivo o vigias tu dessa maneira?
Ela olhou-me atentamente, por sobre o rebordo da taça.
- Foi a primeira vez que estiveste em contacto com António e Citéris desde o teu regresso?

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- Foi.
- E o que achaste do arranjinho?
- Pareceram-me bastante à vontade um com o outro.
- Mostraram-se... íntimos? Eu sorri.
- Na minha presença, não. Se queres saber se eles se comportam como amantes desvairados, a resposta é que não. Para ser sincero, António pareceu-me ligeiramente ressacado. Tenho a impressão de que estava a dormir quando eu cheguei. Mas Citéris estava óptima.
- Citéris! - Fúlvia repetiu o nome num tom carregado de desdém. - Bem, pelo menos conseguiu que ele se divorciasse de Antónia, que era o objectivo dela.
- Dá-me a impressão de que Antónia também contribuiu para que tal acontecesse, com a relação que mantinha com Dolabela.
- De facto. Bem, o certo é que o casamento acabou, e é isso que é relevante. Agora, trata-se de o afastar daquela actriz horrorosa.
- Tencionas casar-te com António?
- Tenciono.
- E ele tenciona casar-se contigo?
- Discutimos o assunto. - Ela falava como se se tratasse de negociar uma parceria financeira, ou do planeamento de uma expedição militar. - Concordámos que tal casamento seria vantajoso. Como também estabelecemos a nossa... compatibilidade... noutras áreas. Sou uma mulher perfeitamente capaz de satisfazer um homem como António. - Disse-o em tom de desafio, como se houvesse alguma dúvida sobre isso. - Fui uma esposa apaixonada, quer de Clódio, quer de Cúrio, para além de ter sido uma boa companheira de ambos. Não consigo compreender por que motivo acha António que tem de continuar agarrado àquela criatura. Chegou mesmo a propor-me que aceitasse um acordo formal para a sua manutenção, em que ela ficasse a viver numa das casas de António, com um rendimento proporcionado por ele, como se fosse uma espécie de segunda esposa. Quando a minha mãe ouvisse falar de semelhante coisa... digamos que as repercussões não seriam agradáveis para ninguém.
Eu recordava-me de Semprónia, a lúgubre e grisalha mãe de Fúlvia, tão ambiciosa como a filha, mas menos encantadora do que ela.

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- Quanto àqueles que dizem que eu dei azar aos meus anteriores maridos, e também daria azar a António...
- Quem é que diz semelhante coisa?
- Citéris, evidentemente. Mas quem diz que eu estou amaldiçoada está a mentir e a difamar-me. Dados os tempos que atravessamos, não é absolutamente nada de espantar que dois homens que ousaram erguer-se acima da multidão tenham sido eliminados.
Eu tendia a concordar com Fúlvia, mas pareceu-me prudente mudar de assunto.
- E que dizes do distanciamento entre António e César? - perguntei.
- Trata-se de uma situação ridícula! E totalmente desnecessária. E Citéris quem está por detrás disso, evidentemente. Foi ela que o convenceu a instalar-se na Casa dos Bicos. Foi ela que fez da casa o ninho de amor do casal, onde eles recebem o dúbio círculo de dançarinas e acrobatas estrangeiros amigos dela.
- Estrangeiros dúbios... como o meu amigo Jerónimo? - sugeri eu.
- Tenho a certeza de que o receberam de braços abertos por causa da peculiar fama que o rodeava; ele era o Bode Expiatório que tinha enganado a morte.
- Pelo contrário, Jerónimo era bastante inteligente e divertido.
- Com certeza que era, nem era minha intenção dizer mal do teu amigo, Gordiano. Mas não se pode confiar numa mulher como Citéris, que apenas se preocupa com a sua ascensão pessoal, e para quem os outros não passam de simples degraus, incluindo António.
Ocorreu-me que Fúlvia estava a descrever-se a si mesma.
- Quer dizer que o teu casamento com António...?
- Ainda não concluímos o plano. Ele não quer deixar-se prender. Está a portar-se como um rapazinho irresponsável, rejeitando os conselhos sensatos das duas pessoas que mais se interessam pela carreira dele e que mais podem ajudá-lo, César e eu própria. Repeliu-nos para prosseguir a relação com aquela... aquela prostituta alexandrina!
- Talvez António não seja afinal o ideal para ti. Se é pouco sensato...
- Não. Ele já chegou até aqui, e há-de ir muito, muito mais longe. Era com ele que eu me devia ter casado de princípio. Ambos sabe-

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mos disso; sabemo-lo há anos. Acontece que as circunstâncias não se orientaram dessa maneira. Eu casei-me com Clódio e ele casou-se com aquela primeira mulher, aquela sujeita... nem sequer me lembro do nome dela. Depois, as Parcas conduziram-nos ambos a segundos casamentos, mas não foi um com o outro; eu casei-me com Cúrio, António com Antónia, e o nosso destino comum foi adiado. Até agora. Eu voltei a enviuvar; António está divorciado. É o momento ideal. Há-de acontecer. Tem de acontecer. Eu encolhi os ombros.
- Os deuses têm o costume de frustrar as nossas expectativas, mesmo as mais razoáveis.
- Não! Desta vez não. Há-de acontecer, porque eu farei com que aconteça. António há-de alcançar o destino que merece... e eu também.
Soltei um suspiro. Receei que não fossem os deuses a negar a Fúlvia o cumprimento dos desejos, mas um mortal como ela: António. Não há coisa mais incerta do que os planos que fazemos assentar na sensatez de outro ser humano.
- Presumo, Fúlvia, que tencionas "salvar" António, de Citéris e de si próprio. E se António se recusar a ser salvo?
Ela mostrou-se preocupada.
- Foi a impressão com que ficaste, na tua visita à Casa dos Bicos?
- Não propriamente. Eu fui lá falar sobre Jerónimo, não fui falar sobre António. - Não era bem verdade, mas o facto é que eu não tinha nada de interessante a revelar-lhe sobre os planos de António para o futuro, pelo menos no que dizia respeito às mulheres da vida dele. - Sei que ele não vai participar no Triunfo Gálico, mas não sei se por decisão de César ou por decisão do próprio António.
Ela abanou a cabeça.
- Ele devia desfilar na frente, logo atrás de César. Com a cidade inteira a olhar para ele, a fim de se recordar do papel que desempenhou na conquista da Gália. António ofendeu muita gente quando esteve ao comando da cidade; seria uma excelente oportunidade para o povo se recordar dos sacrifícios que ele fez, da coragem e da lealdade de que deu mostras! Este conflito com César... tem de acabar, de uma maneira ou de outra! - Subitamente, a luz que lhe iluminava os olhos intensificou-se, como as chamas avivadas por um vento quente.

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Fúlvia fechou os olhos, como que para me ocultar essa intensidade.
- Pelo menos retirarei alguma satisfação do Triunfo Africano, dentro de oito dias. O Rei Juba fez da cabeça do meu marido um troféu; agora que Juba morreu, e que o reino dele pertence a Roma, César fará desfilar o filhito de Juba como prisioneiro.
Levantou-se abruptamente e preparou-se para partir, ajustando a capa e alisando as pregas da estola.
- Como sempre, Gordiano, a tua sinceridade é imensamente revigorante. Esta cidade está povoada de aduladores e de mentirosos! Às vezes penso que tu és exactamente o que aquele monstro do Cícero dizia: "o homem mais honesto de Roma".
- Foi um dos raros elogios de Cícero - respondi eu sorrindo -, que estou certo de que ele não repetiria hoje em dia. - Expressei-me com cautela, porque se havia pessoa que odiasse Cícero ainda mais do que António, esse alguém era Fúlvia. - Há muito tempo que não estou com Cícero.
- Não o viste desde que voltaste do Egipto?
- Não.
- Quer dizer que não sabes o que anda a fazer o velho bode?
- Não sei, não - repliquei eu, erguendo uma sobrancelha. Ela soltou uma gargalhada estridente.
- Que coisa deliciosa! Mas acho que não vou ser eu a dizer-te. É melhor seres tu a descobrir. Nem vais acreditar na figura de tolo que o velho malandro anda a fazer.
Fui atrás dela até ao vestíbulo, onde Fúlvia se deteve por momentos a olhar o corpo de Jerónimo.
- Lamento imenso o que aconteceu ao teu amigo - sussurrou, e avançou para a rua, onde tinha à sua espera uma liteira e a correspondente comitiva.
Eu fiquei a vê-la afastar-se. Jerónimo não tinha introduzido quaisquer observações sobre Fúlvia nos relatórios nem no diário, mas referira-se a uma ameaça proveniente de uma fonte inesperada. Era ambição de Fúlvia que António cumprisse o destino dele, custasse o que custasse. Para que tal acontecesse, era preciso pôr fim ao conflito dele com César - "de uma maneira ou de outra", salientara Fúlvia.

CAPÍTULO SEIS

Depois de Fúlvia se ter ido embora, enviei uma mensagem a Calpúrnia, a dizer-lhe que, no dia seguinte, queria ir visitar Vercingetorix à prisão. Ela respondeu-me antes do pôr do Sol. Aparentemente, tinha conseguido arranjar-me a entrevista, mas sem que César tivesse conhecimento dela, pelo que me pedia que não contasse a ninguém, não fosse ele inteirar-se. O ponto a que se estendia a autoridade desta mulher nunca deixava de me espantar.
Ocorreu-me que Calpúrnia era a mulher que Fúlvia desejava vir a ser. Mas como podia tal coisa acontecer enquanto César fosse vivo?
Nessa noite, ao jantar com a família, contei-lhes partes da conversa que tinha tido com António e Citéris, mas sem revelar coisas que pudesse embaraçar (ou simplesmente desagradar) a Calpúrnia, caso saíssem de minha casa. Não é que duvidasse da discrição daqueles que me eram próximos, mas diz-me a experiência que as palavras proferidas arranjam maneira de se pôr a voar, como se agissem por vontade própria. Fiquei novamente impressionado com a facilidade com que Rupa se adaptava à função de meu companheiro e guarda-costas. Ele tinha ouvido tudo, mas não era capaz de repetir uma palavra que fosse.
O meu corpo estava fatigado. Teria ido dormir mal o Sol de pôs, não fossem os meus pensamentos inquietos manter-me desperto. A perspectiva de me encontrar com o chefe dos gauleses na véspera da morte dele enchia-me de trepidação. A entrevista seria quase de certeza desagradável, de uma maneira ou de outra, e dei por mim a desejar poder evitá-la.
Sem conseguir dormir, levantei-me. Estava uma noite quente. No jardim, os gafanhotos cricrilavam. Fui para a biblioteca, acendi uma

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lamparina e fiz o possível por desvendar a difícil caligrafia de Jerónimo. Das vezes anteriores, tinha passado propositadamente por cima das entradas relacionadas com Cícero, atribuindo-lhes uma prioridade mais reduzida. Por um lado, não tinha vontade de ler coisas sobre Cícero (se Jerónimo achava que eu era um odre de vento, o que acharia de Cícero?), por outro lado, parecia-me que ele era o mais improvável dos assassinos. Mas a referência que Fúlvia lhe fizera tinha-me acirrado a curiosidade.
Ao longo dos anos, as minhas relações com o grande leão dos tribunais romanos haviam sido complexas. Mais de trinta anos antes, eu tinha descoberto a verdade acerca do primeiro grande caso que Cícero levara a tribunal, defendendo um homem acusado de homicídio no terrível período em que a sombra de Sula ainda pairava sobre Roma. Por pouco não me tinha deixado matar, por mais do que uma vez, no decurso dessa investigação, e Cícero também correra riscos consideráveis, ao atrever-se a pôr em causa um dos mais perigosos homens de mão do Ditador. Mas fora surpreendentemente bem-sucedido, o que redundara em benefício para ambos.
Contudo, a meteórica ascensão de Cícero na arena política revelara um lado obscuro do seu carácter: ele era perfeitamente capaz de sacrificar a reputação, de sacrificar a própria vida dos seus rivais, para alcançar o sucesso, embora tivesse o cuidado de o fazer dentro do quadro legal - ou, na opinião de alguns, retorcendo ligeiramente esse quadro. A medida que ele ia tendo cada vez mais fama e poder, o meu afecto por Cícero ia diminuindo. Quando, porém, homens como César e Pompeu o empurraram para fora da cena política, fizeram-no de uma forma tão aterradoramente implacável, que Cícero, no seu pior, me pareceu benévolo por comparação. Nessa altura, os sentimentos que eu tinha por ele voltaram a suavizar-se, embora nunca me tivessem levado a procurar eliminar por completo a tensão que reinava entre nós.
Seria Cícero uma ameaça para César?
Quando a guerra civil se tornou inevitável, Cícero hesitou o mais que pôde entre César e Pompeu, e nunca teria chegado a optar por um dos lados se tal lhe tivesse sido de todo possível. Acabou por tomar o partido de Pompeu, e os poderes estabelecidos travaram a sua

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batalha contra César em Farsalo. Após a retumbante vitória que obteve nessa batalha, César achou por bem perdoar a Cícero e, desde essa altura, fossem quais fossem os seus verdadeiros sentimentos para com o novo Ditador, o grande orador achou por bem nunca os dar a conhecer.
Era-me tão difícil conceber Cícero no papel de conspirador, como conceber António nesse papel, ainda que por razões diferentes. Se António era excessivamente directo, e mesmo imprudente, Cícero era demasiado cauteloso e indeciso. E, justiça lhe seja feita, era um verdadeiro defensor das virtudes republicanas do debate, do acordo e do consenso; um homem como Cícero havia de seguir todas as vias legais possíveis, por muito tortuosas e ténues que fossem, de preferência a recorrer à violência. Mas não é certo que a vitória de César tinha encerrado todas as possibilidades legais de lhe desafiar a autoridade? O que havia um verdadeiro republicano de fazer, quando confrontado com a possibilidade de um ditador vitalício?
Vivíamos tempos estranhos. Se Calpúrnia podia deixar-se dominar por um arúspice, se António, que era um homem de acção, era capaz de desperdiçar os seus dias num estado de estupor alcoólico, se era possível uma dançarina alexandrina fixar residência em casa de Pompeu, porque não havia Cícero de se transformar num conspirador assassino?
O que teria ele andado a fazer na minha ausência e desde o meu regresso a Roma? A que estaria Fúlvia a referir-se? Eu tinha passado os meus dias num recolhimento tão completo, que não fazia de todo a menor ideia. Quando li os pormenores no relatório de Jerónimo, caiu-me o queixo.
Seria verdade? Marco Túlio Cícero, o advogado mais piedoso de Roma (depois da morte de Catão), o defensor das virtudes e dos valores familiares tradicionais, tinha-se divorciado da mulher com quem fora casado mais de trinta anos, para se casar com a menor que fora confiada à sua protecção, uma jovem chamada Publília - de apenas quinze anos?
Vivíamos de facto tempos estranhos! Dei uma enorme gargalhada, imaginando Cícero casado com uma adolescente. Era uma coisa que eu teria de ver com os meus olhos.

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O riso libertou-me a tensão. De repente, percebi que estava cheio de sono. Apaguei a lamparina e dirigi-me aos tropeços para a cama, onde Betesda bufou e suspirou, deslocando-se ligeiramente para me dar lugar debaixo da fina coberta.
A primeira prisão romana, chamada Cárcere e localizada na base do Monte Capitolino, por sobre o Fórum, foi construída há centenas de anos por Anco Márcio, o quarto Rei de Roma. Segundo a lenda, foi o sexto Rei, Sérvio Túlio, quem escavou uma cela subterrânea no Cárcere, que passou a ser designada pelo nome dele: Tuliano.
Esta palavra tremenda evocava humidade e frio; escuridão; um poço do qual não se podia fugir; um local onde se estava à espera da morte, sem apelo nem agravo. Mas tratava-se igualmente de uma palavra que políticos e militares proferiam com orgulho, porque o Tuliano fora durante séculos o destino final de muitos dos mais terríveis inimigos de Roma, o local onde eles se confrontavam com o respectivo destino, às mãos do carrasco romano.
Tinham sido os Reis a dar início ao costume de fazer desfilar os cativos em procissão triunfal, despojados de todas as insígnias e de todos os símbolos do seu estatuto mundano - por vezes mesmo completamente nus - para melhor demonstrarem a total humilhação em que consistia a derrota que haviam sofrido, e o desprezo que os conquistadores sentiam por eles. Depois de terem desfilado para divertimento da populaça de Roma, os cativos de menor importância eram vendidos como escravos. Os mais importantes eram estrangulados no Tuliano. Em seguida, os seus corpos eram lançados do alto de uma escadaria íngreme que ia dar ao Fórum, para que a população pudesse ver os cadáveres.
Enquanto avançava pelo Fórum, com Rupa a meu lado, em direcção ao Tuliano, em nosso redor prosseguiam os trabalhos de preparação para o Triunfo Gálico, que teria lugar no dia seguinte. Ao longo do percurso da procissão, estavam a ser erguidas tribunas com toldos destinadas às personagens importantes, estando as zonas onde os vendedores geralmente expunham os respectivos produtos a ser esvaziadas, para abrir espaços destinados a acomodar as multidões que se

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previam. Ao alto do Monte Capitolino, chegava-me o eco dos operários gritando, por entre o ruído dos martelos e da madeira a quebrar; em frente ao Templo de Júpiter, tinha sido instalada uma estátua de César, e estavam a ser retirados os andaimes que a rodeavam, em antecipação da inauguração oficial, que teria lugar no dia seguinte.
Na extremidade ocidental do Fórum, com a íngreme encosta do Capitolino erguendo-se acima de nós, chegámos a um lance de degraus cavados na pedra. Na base dos degraus, viam-se dois guardas. Eu apresentei o passe que me tinha sido entregue por Calpúrnia - um pequeno disco de madeira com o selo do anel dela impresso em cera vermelha - e eles deixaram-nos passar sem dizer palavra.
Os degraus eram estreitos e a pique. Atrás de nós, o Fórum era uma mistura de colunas, telhados e praças públicas. A uma certa distância, para nordeste, numa área de construção recente adjacente ao Fórum, avistei o brilho do mármore maciço do Templo de Vénus, erigido por César em homenagem à sua divina antepassada, a padroeira de todas as suas vitórias. O templo tinha sido acabado há pouco tempo, e dava para uma grande praça descoberta, rodeada por um pórtico de colunas, que ainda estava a ser construído, onde já fora instalado o pedestal para uma monumental estátua de César. O Templo de Vénus seria dedicado no último dia dos quatro triunfos de César, proporcionando um clímax divino às comemorações das suas conquistas terrenas.
Pensamentos tão elevados abandonaram-nos quando chegámos ao cimo da escada, à entrada fortemente guardada do Cárcere. Os guardas voltaram a olhar para o passe de Calpúrnia que eu lhes apresentei sem nada dizer, e deram-me passagem. Rupa teve de ficar à espera no exterior. As pesadas portas de bronze abriram-se à minha frente. Eu entrei no Cárcere e as portas voltaram a fechar-se atrás de mim.
A câmara, que devia ter uns vinte passos de diâmetro, tinha paredes de pedra e um tecto abobadado, também de pedra. A única fonte de luz natural e de ventilação eram umas janelitas no alto da parede que dava para o Fórum, que eram protegidas por barras de ferro cruzadas. O local fedia a urina e a excrementos humanos, a que se juntava o odor a putrefacção; talvez houvesse ratos mortos metidos nas paredes. Embora estivesse um dia quente, a prisão era gelada e húmida.

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O carcereiro, que parecia mais um touro grisalho do que um homem, insistiu em voltar a ver o meu passe. Olhou para ele atentamente, depois olhou para mim.
- Isto não é permitido - resmoneou. - Se o Ditador descobre...
- Por mim não há-de ele descobrir - retorqui. - E presumo que a mulher do Ditador te tenha pago uma boa quantia para tu não dizeres nada.
Ele soltou um resmungo.
- Eu não digo nada. Ninguém há-de saber que tu aqui estiveste, desde que tu não faças nenhum disparate.
- Como tentar ajudar o prisioneiro a fugir? Tenho a certeza de que não seria possível.
- Houve quem tentasse. Ninguém conseguiu - replicou ele em tom sombrio. - Mas eu estava mais a pensar que podias tentar ajudá-lo a escapar ao destino que o espera.
- Matando-o antes de César ter oportunidade de o executar? É a isso que estás a referir-te?
- Exacto. Neste caso, um gaulês morto é um gaulês inútil. Não vais tentar uma brincadeira dessas, pois não?
- Bem viste o selo que eu trago comigo. Que mais queres?
- Que me dês a tua palavra de romano.
- De romano que contorna as ordens de César, conluiado com outros que fazem o mesmo?
- Ser leal a César não é necessariamente o mesmo que ser leal a Roma. Não é necessário ser lacaio de César para ter sentido de honra como romano.
Ergui uma sobrancelha.
- Quem havia de dizer? Um apoiante de Pompeu encarregado do Tuliano.
- Nem pensar! Eu não choro por derrotados. Se o fizesse, não podia ter este emprego. Jura pelos teus antepassados que não estás a preparar alguma.
- Muito bem. Por todos os Gordiano que me antecederam, juro que não tenho qualquer intenção, nem de fazer mal, nem de ajudar Vercingetorix.
- Óptimo! E também não te deixes matar! Aí está outra coisa que me seria difícil explicar!

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- Deixar-me matar? Mas o prisioneiro não está acorrentado? O carcereiro baixou a voz.
- Magia de druidas! Dizem que ele é capaz de lançar um olhar malévolo. Eu nunca olho para ele de frente. Enfio-lhe uma saca na cabeça sempre que tenho de ir lá abaixo meter-lhe as fezes para o buraco de escoamento.
Com aquela agradável imagem em mente, sentei-me numa prancha de madeira, presa a uma espessa corda acolchoada; o conjunto parecia um baloiço improvisado, suspenso do ramo de uma árvore, desses em que as crianças brincam. O carcereiro entregou-me uma pequena lamparina de bronze com um único pavio e, com o auxílio de uma manivela, fez-me descer lentamente por um buraco que havia no chão. Era a única entrada que existia para o Tuliano.
Quando a minha cabeça passou pelo rebordo do buraco, desci para um mundo ainda mais escuro, húmido e malcheiroso do que o compartimento superior. Um fedor horrendo a mofo, suor e urina encheu-me as narinas. A fraca luz da lamparina extinguia-se na escuridão antes de conseguir chegar às paredes que me rodeavam. Enquanto descia lentamente, fui ouvindo abaixo de mim o ruído de ratos correndo de um lado para o outro. Olhei para baixo, mas não consegui ver o fundo. Por momentos, estive à beira do pânico; depois, avistei um reflexo da luz da lamparina na pedra do chão, luzidia devido à humidade, que se foi aproximando cada vez mais, até entrar em contacto com os meus pés.
- Tudo em ordem? - perguntou o carcereiro lá do alto. - Não, não olhes cá para cima! Ficas com vertigens. E a luz cega-te. Fecha os olhos uns momentos. Deixa-os adaptar-se.
A última coisa que eu tencionava fazer num sítio destes era fechar os olhos. Dei um passo, ainda agarrado à corda para me equilibrar, e ergui a lamparina para iluminar a câmara sem me deixar encadear. Lentamente, comecei a perceber as dimensões do local. Parecia maior do que a câmara lá de cima, mas talvez se tratasse de uma ilusão provocada pela escuridão.
Avistei uma figura humana encostada a uma parede. A luz da lamparina reflectia vagamente as correntes que tinha em redor dos pulsos e dos tornozelos. O homem envergava uma túnica esfarrapada

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e nojenta, tinha o cabelo e a barba compridos e emaranhados. Quando se voltou para mim, a luz da lamparina reflectiu-se-lhe nos olhos.
Era então este o chefe dos gauleses, Vercingetorix, o homem que tinha procedido à tarefa quase impossível de unificar as tribos ferozmente independentes sob um único comando. Quase conseguira derrubar o jugo romano, mas o génio táctico de César acabara por levar a melhor sobre ele. A total implacabilidade de César também desempenhara um papel relevante nesta vitória. Até o meu filho Meto, que adorava o Ditador, se sentira incomodado com as crueldades por ele infligidas aos gauleses - aldeias incendiadas, mulheres e crianças violadas e reduzidas à escravatura, velhos mortos à paulada. Durante a revolta de Vercingetorix, César montara cerco à cidade de Avárico, e não fizera prisioneiros; a população - quarenta mil homens, mulheres e crianças - foi totalmente massacrada. E César gabava-se destas atrocidades nas suas memórias.
O último reduto dos gauleses fora a fortaleza de Alésia. Vercingetorix convencera-se de que teria forças para sustentar aquela posição até chegarem os reforços, destruindo em seguida as legiões romanas com os exércitos da Gália reunidos. Mas os reforços tinham sido insuficientes, e o cerco montado pelos romanos à fortaleza era impenetrável; esfomeados, os sobreviventes tinham acabado por ser obrigados a render-se. Um comandante romano ter-se-ia suicidado, mas Vercingetorix saiu de Alésia e rendeu-se a César. Se estava convencido de que César o trataria com honra e respeito, estava enganado.
Vercingetorix ainda devia ser jovem - Meto contara-me que o gaulês não passava de um adolescente quando dera início à campanha destinada a unificar o seu povo -, mas tal juventude não era visível nesta figura derrotada, encolhida contra a parede, as sombras da face descarnada evidenciadas pela luz da lamparina, os olhos assombrados luzindo como cacos de obsidiana.
- É hoje? - sussurrou em voz rouca, num latim com forte pronúncia gaulesa.
- Não, ainda não é hoje - respondi eu.
Ele encostou-se mais à parede, como se tivesse vontade de desaparecer na pedra.
- Não vim fazer-te mal - disse-lhe eu.

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- Mentiroso! Então o que vieste cá fazer?
Se ele conseguisse ver-me a cara, pensei eu, talvez ficasse mais descansado. Ergui a lamparina à minha frente, a luz a incidir-me nos olhos. Ele passou a ver-me, mas eu deixei de o ver a ele.
O ritmo da respiração dele acelerou. As correntes fizeram barulho. Ao ver que eu me encolhia e recuava, ele ladrou um ruído que devia ser uma gargalhada.
- Tu estás com medo de mim, romano? Bela anedota! Depois das tareias que vocês me deram...
- Não vim bater-te. Só quero conversar contigo.
- Conversar sobre quê?
- Sou amigo de um homem que veio visitar-te há pouco tempo.
- Um visitante? Ninguém vem visitar-me.
- Era um massiliano. Chamava-se Jerónimo.
- Ah! - Ouvi-o respirar no escuro. Fez um ruído com a garganta, como se tivesse mucosidade nos pulmões. - Estás a referir-te ao Bode Expiatório. Nem tinha bem a certeza de que ele tivesse existido. Ocorreu-me que se calhar tinha sonhado com ele.
- Jerónimo era um ser real. E era meu amigo.
- O meu latim não é grande coisa, romano, mas tenho a impressão de que estás a falar no passado.
- Estou. Jerónimo morreu.
Mais respiração no escuro. Mais ruídos na garganta. Depois, uma explosão de gargalhadas. Vercingetorix murmurou qualquer coisa na língua dele.
Eu abanei a cabeça.
- O que foi que disseste?
- Que o homem que é famoso por enganar a morte morreu. E eu, Vercingetorix, ainda estou vivo. Pelo menos acho que estou. Ou talvez já esteja no mundo subterrâneo dos Romanos. E, contudo, não me lembro de ter morrido...
Como não conseguia ver a expressão dele, nem avaliar o tom das palavras, cobertas pela espessa pronúncia, não consegui perceber se Vercingetorix estava, ou não, a falar a sério. Senti a necessidade premente de lhe ver a cara, mas mantive a lamparina diante da minha, a iluminar-me. Podia ser que ele continuasse a falar, enquanto pudesse ver-me a cara e olhar-me os olhos.

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- Acho que a ideia me agrada, a ideia de que já estou morto - prosseguiu ele. - Quer dizer que a provação acabou. Que aquilo que receei tanto, e durante tanto tempo, já passou. Sim, ainda bem. E, cá para mim, tu és o deus romano dos mortos, e vieste buscar-me. Chama-se Plutão, segundo me parece. Não é?
A escuridão tornou-se mais espessa em meu redor. O ar húmido gelou-me os pulmões.
- Sim - sussurrei -, chama-se Plutão.
- Quer dizer que Jerónimo, o Bode Expiatório, chegou primeiro que eu ao Hades. Que azar o dele! Parecia sentir-se tão feliz por estar vivo neste mundo. Quando veio visitar-me, obriguei-o a falar-me das festas a que ia. Ele descreveu-me as casas dos ricos e poderosos, os jardins de doces fragrâncias, os banquetes com pilhas de comida de todo o género. Oh sim, a comida! - Na escuridão, ouvi-lhe o resmungo do estômago.
- Isto pode ser? - murmurou ele. - Será possível que, no Hades, o estômago vazio de um homem resmungue?
Eu não conseguia perceber se ele estava a brincar, se estava louco, ou se estava simplesmente a dar largas à fantasia, como os homens costumam fazer quando as circunstâncias se lhes tornam insuportáveis. Só sabia que ele continuava a falar, que era aquilo que me interessava.
- Sim, Jerónimo amava a vida - comentei eu.
- Como foi que ele morreu?
- Foi esfaqueado.
- Ah! Por um marido ciumento? Ou por algum guerreiro de valor que tivesse insultado?
- Para te dizer a verdade não sei. Afirmas que ele é o único visitante que recebeste?
- Sim.
- Mais ninguém veio ver-te?
- Mais ninguém, à excepção dos carcereiros.
- Mas tu não estiveste sempre aqui no Tuliano, pois não? - Em geral, aquela prisão destinava-se aos prisioneiros que estavam à espera de julgamento ou execução iminente.
- Não. Durante muito tempo, meses e meses, anos e anos, andei de um lado para o outro, metido em gaiolas e em caixas, e em buracos

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no chão. Calculo que me levassem de uma propriedade de César para outra, para impedir que os meus seguidores soubessem onde eu estava. O cerco de Alésia terminara há mais de seis anos. Com essa vitória, ficara completa a conquista da Gália. Normalmente, César teria regressado a Roma para celebrar o triunfo sobre os Gauleses logo que os acontecimentos lho permitissem, com certeza dentro de um ano ou dois; mas o conflito que manteve com o Senado, a que se seguiu a guerra civil, impediram que assim fosse. Vercingetorix devia ter sido executado há anos. Mas fora mantido em cativeiro este tempo todo, vivendo uma não-vida enquanto esperava pela morte terrível. Não era de espantar que parecesse mais um fantasma do que um homem.
- Como te tratavam nessas gaiolas e nesses buracos?
- Não me tratavam mal. Não me tratavam mesmo nada mal. Davam-me bastante que comer. Mantinham-me razoavelmente limpo. Só me espancavam quando eu tentava fugir ou levantava problemas. Precisavam de me manter vivo, compreendes, para o triunfo de César. Não se pode humilhar um morto, fazendo-o desfilar pelo Fórum. Não se pode fazer sofrer um cadáver. Não, tinham de me manter vivo, por tempo indefinido, de maneira que não me deixavam morrer à fome, nem me espancavam para além do que eu aguentava. Impediram-me por todos os meios de me suicidar. Chegaram mesmo a mandar-me um médico, uma ou duas vezes, quando eu estive doente.
"Depois, tudo mudou. Aproximava-se a hora. Trouxeram-me para Roma. Quando me fizeram descer para este poço, percebi que só voltaria a sair de cá no dia da morte. Começaram a dar-me pouco que comer. A espancar-me, sem razão nenhuma. A torturar-me. Obrigaram-me a dormir sobre os meus dejectos. Não queriam um gaulês vigoroso, que caminhasse direito pelo Fórum no triunfo de César. Queriam um homem derrotado, uma criatura abatida e patética coberta de porcaria, objecto de riso, objecto de ridículo, uma coisa de que as crianças fizessem troça e sobre quem os velhos cuspissem.
De repente, avançou bruscamente para mim, esticando as correntes até ao limite. Eu apanhei um susto, e por pouco não deixei cair
a lamparina.
- Diz-me que tenho razão! - berrou. - Diz-me que és Plutão e que o suplício já terminou! Dizem que os mortos se esquecem dos

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sofrimentos por que passaram quando passam ao mundo subterrâneo e bebem a água do rio Letes. Eu bebi dessa água? Esqueci-me do dia da minha morte?
O coração batia-me com força no peito. A mão tremeu-me, fazendo vacilar a luz da lamparina.
- Quem sabe o que terás esquecido! Conta-me aquilo de que te lembras, Vercingetorix. Fala-me... da conspiração para matar César.
Ele calou-se. Estaria intrigado, irritado, ou seria esperto de mais para me dizer alguma coisa. Por fim, perguntou:
- Falo-te de quê?
- Certamente que o teu povo não deixará de vingar a tua morte. Os Gauleses não se sentem amargurados? Não são um povo orgulhoso? Vão permitir que o grande Vercingetorix seja morto, sem nada fazerem para vingar a sua morte?
Voltou a fazer-se silêncio, um silêncio que se prolongou de tal maneira, que eu comecei a sentir-me inquieto, a imaginar que ele tinha conseguido libertar-se das correntes e que se aproximava de mim. Endireitei-me, preparando-me para o pior, deixando que o brilho regular da luz da lamparina me iluminasse o rosto.
- Eu não tenho povo - replicou ele por fim. - Os melhores gauleses morreram em Alésia. Os sobreviventes foram vendidos como escravos. Os traidores que tomaram o partido de César foram recompensados. - Era verdade; por toda a Gália, César havia colocado os chefes nativos que o tinham apoiado em posições de comando sobre os outros. Alguns deles tinham mesmo sido elevados ao Senado de Roma.
- Mas os gauleses têm outras maneiras de fazer mal a um homem - sussurrei eu. - Têm a magia dos druidas! O que tu deves desejar a morte de César! Lançaste-lhe alguma maldição?
Ele soltou uma gargalhada amarga.
- Achas que, se os druidas tivessem de facto poderes mágicos, a Gália era uma província romana? Eu nada posso fazer para causar a morte a César. Mas ele vai morrer em breve.
- Como é que sabes?
- Toda a gente morre, incluindo César. Se não for este ano, será no próximo, ou no seguinte. Vercingetorix morre. César morre.

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Todos temos o mesmo destino. É estranho que eu tenha de recordar esse facto a Plutão.
E começou a chorar. Eu desloquei a lamparina, para conseguir vê-lo. Ele tremia e agitava-se. Depois escondeu a cara nas mãos. Por entre os cabelos emaranhados e nojentos que lhe cobriam a cabeça, viam-se insectos e lesmas brilhantes. Uma ratazana atravessou-se entre nós a correr. Eu comecei a sentir náuseas.
Dei um puxão na corda, e chamei pelo carcereiro. A manivela guinchou e a corda retesou-se. Eu sentei-me na prancha de madeira e comecei a subir lentamente, a cara voltada para cima, para a abertura, desejoso de luz, ansioso por encher os pulmões de ar fresco e limpo.

CAPÍTULO SETE

Atravessei o Fórum a toda a pressa, com Rupa a meu lado, grato pela simples liberdade de olhar o céu azul lá no alto e de passar as pontas dos dedos pela parede de pedra - lisa e aquecida pelo sol - de um templo. Ao pé do Templo de Castor e Pólux, parei junto a um vendedor de comida para comprar uma empada recheada de pasta de figo e coberta de molho de peixe. Rupa, que nunca chegara a gostar do garum romano, assinalou com um gesto que queria a empada dele só com pasta de figo.
Seguimos caminho, a comer as iguarias, passámos diante da Casa das Vestais, e subimos a Rampa que vai dar à crista do Palatino. Lá no alto, avançámos para a vereda sinuosa que nos levaria a casa de Cícero, que não ficava longe da minha.
Quando contornámos a crista da colina, eu tive uma visão nítida do alto do Monte Capitolino, situado do lado oposto. O Templo de Júpiter, reconstruído após ter sido destruído por um incêndio no tempo de Sula, continuava imponente como sempre. Diante do templo, em lugar proeminente, tapada por um baldaquino de tecido de vela à espera de ser desvelada, encontrava-se a estátua de bronze que seria dedicada no dia seguinte. Que pose teria César assumido para a grandiosa imagem da sua pessoa que mandara colocar no Capitolino? A de mortal suplicante, a de homem superior aos outros homens, mas apesar de tudo obediente ao rei dos deuses? Ou a de algo mais grandioso, a imagem erecta de um descendente de Vénus, de um semideus, parceiro dos habitantes do Olimpo, que não se curvava diante deles?
Chegámos a casa de Cícero. Rupa bateu discretamente à porta com o pé. Eu disse o meu nome ao escravo que nos observou pelo

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orifício de segurança, e expliquei-lhe que desejava falar com o senhor dele sobre um assunto pessoal. Momentos depois, fomos admitidos ao vestíbulo, sendo depois acompanhados à biblioteca de Cícero, situada ao fundo de um corredor.
Cícero estava mais calvo e mais gordo. Levantando-se da cadeira, poisou o rolo de pergaminho que estava a ler e lançou-me um grande
sorriso.
- Gordiano! Há quanto tempo! Pensei...
- Já sei. Pensaste que eu tinha morrido - interrompi eu com um
suspiro.
- Não, não. Sabia que tinhas regressado a Roma. Devo ter sabido no dia em que regressaste. Passo diante de tua casa quase todos os dias, sabes. E os vizinhos conversam. Não, ia dizer que pensei que nunca mais vinhas visitar-me.
- Não tenho saído muito de casa. Ele acenou com a cabeça.
- Nem eu. Há muitas pessoas a fazer o mesmo, hoje em dia. É melhor não sair muito de casa, e ter um sujeito corpulento a guardar-nos aporta. Quem se atrever a esticar a cabeça corre o risco de ficar sem ela. - E fez um gesto expressivo, como se cortasse o pescoço.
Estava a exagerar, orador que era.
- César não é Sula - comentei eu. - Não vi a cabeça dos inimigos dele espetadas no Fórum.
- Não, não viste. Por enquanto... por enquanto... - A voz dele foi baixando de tom. - Mas deixa-me oferecer-te de beber, a ti e ao
teu... companheiro.
- Apresento-te Rupa. Adoptei-o antes de partir para o Egipto.
Rupa não fala. Cícero sorriu.
- Tu e a tua enorme família! Não é o terceiro filho que adoptas? Mas este é sem dúvida o maior deles todos. E é silencioso, hein? Bem, também houve um acrescento, e uma subtracção, na minha família, como talvez já saibas. Mas o novo membro de minha casa fala, e bem; a rapariga é uma grande faladora! Espero que regresse das compras
w" antes de te ires embora, para poderes conhecê-la. O que posso eu oferecer-vos? Têm fome?

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- Na verdade, comemos qualquer coisa agora mesmo. Talvez um pouco de vinho liberalmente aguado, para fazer descer.
Cícero bateu as palmas e mandou um escravo ir buscar as bebidas. Tirou de cima das cadeiras os rolos de pergaminho que as ocupavam, e sentámo-nos os três.
- Bem, Gordiano, conta-me as tuas novidades, que eu depois conto-te as minhas. - Pela expressão da cara dele, percebi que estava ansioso por falar da nova mulher.
- Receio bem que as minhas novidades não sejam muito agradáveis. Julgo que, enquanto eu estive fora, terás conhecido um grande amigo meu, Jerónimo de Massília.
- Ah sim! Já sei da má notícia. Ainda esta manhã enviei uma mensagem de condolências a tua casa. Gostaria de lá ter ido pessoalmente mas, como te disse, não saio muito.
- Já sabias que ele tinha morrido? Cícero acenou com a cabeça.
- Todos os dias mando um homem ver quem foi inscrito no registo dos mortos. Nos tempos que correm, a pessoa tem de estar actualizada, senão acaba por ficar definitivamente para trás. Não há coisa mais embaraçosa do que encontrar um amigo que não via há muito, ou uma pessoa que tenha defendido em tribunal, e não saber que lhe morreu um irmão, um filho ou o pai. Dá a impressão de que a pessoa não se importa, de que não anda informada. Sim, tive pena de saber que Jerónimo tinha morrido. De que foi que ele morreu?
- Foi esfaqueado, aqui no Palatino.
- Esfaqueado? Na rua?
- Mais ou menos.
- Que coisa horrível! E sabes quem foi?
- Ainda não.
- Ah! César afirma que a cidade voltou a ser segura, graças a ele, mas a verdade é que nunca houve tanta violência. É outra das razões por que raramente saio de casa. Quer dizer, Gordiano, que tu andas na pista do assassino? Voltaste a assumir o teu antigo papel, a fazer de Descobridor para fazer justiça ao pobre Jerónimo? A andar de um lado para o outro, a desenterrar escândalos e malfeitorias, e sei lá que mais?
- É mais ou menos isso, sim.

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- Como nos bons velhos tempos em que éramos jovens, tu e eu, em que fazia sentido investigar a verdade e lutar pela justiça. Chegarão os nossos netos a saber o que era uma república? Ou como funcionavam os nossos tribunais? Se vamos ter um Rei, calculo que seja ele a fazer justiça. Acabaram os júris, não é? Não haverá grande necessidade de um velho advogado como eu. - Falava num tom mais anelante do que amargo.
Eu fiz um solidário aceno de cabeça.
- Por falar em Jerónimo, conhecia-lo bem?
- Oh, convidei-o cá para casa um par de vezes. Ele admirava muito a minha biblioteca. Era um grande erudito, como sabes. Tinha lido tudo. E que memória a dele! Eu tinha um rolo antigo de Homero, que tinha apanhado água e ficara danificado; havia umas linhas que se tinham perdido e precisavam de ser reconstruídas. Acreditas que Jerónimo me recitou de cor as linhas que faltavam? Ditou-as a Tiro, e restaurámos os três o texto que se tinha perdido. Sim, era um modelo de grego versado, uma prova de que as academias massilianas são de facto tão boas como se diz.
Eu fiz um aceno de cabeça, perguntando a mim próprio se Cícero se mostraria tão entusiasmado se lesse as passagens do diário de Jerónimo em que o meu amigo se referia a ele. Eram passagens especialmente carregadas de pedantes jogos de palavras, como se Jerónimo se divertisse a fazer troça de Cícero por via de uma retórica exagerada.
O velho sátiro dá a impressão de não ter a menor consciência de que a única pessoa que não o acha ridículo é o sujeito que ele vê ao espelho; se parasse a reflectir, morria de vergonha. A jovem Rainha de lábios ferrados que ele trata por Meu Doce de Mel há-de acabar por ferrá-lo. (Há quem diga que ele se casou com ela pelo dinheiro, e não pela doçura.) Um velho sátiro como Cícero ainda acaba por morrer com uma doença da colmeia...
- Publília! - exclamou Cícero de repente, levantando-se. Rupa e eu imitámo-lo, porque a jovem noiva de Cícero tinha entrado no compartimento.
- Meu Doce de Mell Não te ouvi entrar - disse Cícero, correndo para ela. Pegou-lhe num dos bracinhos roliços com uma mão, enquanto

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lhe acariciava o cabelo cor de mel com a outra. - Fugiste como uma borboleta. Entras e sais sem fazer barulho. Os teus pezinhos delicados mal tocam no chão!
Rupa lançou-me um olhar e revirou os olhos. Eu tentei não me rir.
- Publília, este é Gordiano, um velho amigo. E este é Rupa, o filho dele.
A jovem - baixinha, de cara redonda - lançou-me um polido aceno de cabeça, após o que voltou as suas atenções para Rupa, que eu tenho reparado ser exactamente o tipo de sujeito para quem a maioria das jovens de quinze anos gosta de olhar. Publília observou-o de alto a baixo por momentos, depois riu-se à socapa e desviou os olhos. Cícero dava a impressão de não se ter apercebido da causa da reacção da esposa, mas mostrou-se deliciado com aquele riso infantil, com o qual fez coro com uma das suas gargalhadas.
- Na verdade, ela é muito tímida.
- Não sou nada! - protestou a rapariga, soltando o braço. Fez beicinho por momentos, após o que lançou outro olhar de relance a Rupa, sorrindo.
- Ah, tenho a impressão de que o Meu Doce de Mel está cansado das compras, não é verdade? - crocitou Cícero. - Ou é este calor que a torna susceptível? Talvez fosse boa ideia ires fazer uma sesta, minha querida.
- Sim, talvez seja melhor... ír-me deitar... um bocado. - Olhou Rupa de alto a baixo e suspirou. - Em especial se vocês estão a conversar sobre livros velhos, que é uma conversa entediante.
- Na verdade, estávamos a falar de morte e de assassínios - intervim eu.
- Oh! - respondeu ela com um arrepio exagerado, que lhe fez palpitar os seios, invulgarmente grandes para uma jovem de quinze anos.
- Gordiano, assustaste-a! - protestou Cícero. - Devias ter mais cuidado com o que dizes. Publília pouco mais é do que uma criança.
- De facto! - repliquei eu entre dentes.

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- Vai andando, Meu Doce de Mel. Bebe qualquer coisa. Refresca-te; pede a um dos escravos que vá abanar-te. Eu já vou ter contigo. Gostava de ver o tecido que compraste para o vestido novo.
- Fibra vermelha de Cós - disse ela -, tão leve e tão fina, que chega a ser transparente!
A protuberância do pescoço de Cícero saltou-lhe para cima e para
baixo quando ele engoliu em seco.
- Sim, sim, é melhor ires andando, Meu Doce de Mel - insistiu
ele, piscando os olhos.
- Tens uma noiva absolutamente encantadora - comentei eu, depois de Publília se ter ido embora. - Tinha um dote muito grande? - Nos círculos sociais a que Cícero aspirava, não era indelicado fazer
esta pergunta.
- Enorme! - respondeu ele. - Mas não foi por isso que eu me
casei com ela.
- Oh, não duvido - garanti-lhe eu. - Mas deve ter sido doloroso pores fim ao casamento com Terência, depois de teres vivido tantos anos com ela.
Cícero sorriu de través.
- Eu sou um homem forte, Gordiano. Sobrevivi a Sula. Sobrevivi a César, até agora. E, por Hércules, sobrevivi a trinta anos com Terência!
- Mas o divórcio deve ter sido doloroso para ela, se não foi para ti.
O sorriso desapareceu-lhe da face.
- Terência é uma rocha. - E, pela maneira como o disse, não se tratava de um elogio. - É uma mulher indestrutível. Há-de chegar aos cem anos, atenta bem nas minhas palavras. Não te preocupes com
Terência.
Se me preocupasse com alguém, pensei eu, seria contigo, Cícero. Como é que dizem os etruscos: "Não há tolo como um tolo velho"! Mordi a língua.
- Sinto-me feliz, compreendes? - E Cícero atravessou o compartimento de uma ponta à outra com ar presumido. Eu nunca o tinha visto tão presunçoso, nem sequer em tribunal, e Cícero sabia mostrar-se bem presunçoso quando discursava diante de um júri. - Apesar do lastimável estado em que o mundo se encontra, apesar de estar

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a assistir ao enterro de tudo aquilo por que lutei a vida inteira, em termos pessoais não tenho de que me queixar. Nessa esfera, depois de muitos reveses, desilusões e verdadeiros desastres, as coisas estão finalmente a correr-me de feição. Paguei todas as minhas dívidas. Terência saiu em definitivo da minha vida. E tenho uma nova noiva, uma rapariga maravilhosa, que me adora. Oh! - prosseguiu, erguendo as sobrancelhas - E a minha querida Túlia está finalmente à espera de um filho. A minha filha não tardará em fazer de mim avô!
- Parabéns - disse eu. - Mas eu ouvi dizer que o casamento dela com Dolabela...
- Acabou finalmente - interrompeu ele. - Ainda bem que Túlia se libertou daquele animal, que a única coisa que fez foi dar-lhe desgostos. O sujeito há-de acabar mal.
Em circunstâncias normais, uma respeitável figura pública como Cícero não se gabaria de a filha estar prestes a dar à luz sem estar casada. Mas as circunstâncias tinham deixado de ser normais; vivíamos num mundo em que Calpúrnia consultava um adivinho e Cícero se tinha casado com uma adolescente desenxabida.
Num mundo assim voltado ao contrário, seria Cícero - este Cícero vacilante, timorato e recluso - uma verdadeira ameaça para César? Ocorreu-me que o recente casamento poderia ser, a um tempo, o sintoma e a causa de uma importante alteração no comportamento de Cícero. Seria possível que o bode velho tivesse começado a pensar como um bode novo, batendo com as patas no chão e preparando-se para investir ousadamente contra César, com os cornos em riste? Adornado com uma nova noiva - e um neto - para impressionar, sentir-se-ia o marido de Publília suficientemente viril para assumir a posição de salvador da república?
E, se assim fosse, teria Cícero estado por trás da morte de Jerónimo? Quando eu lhe falara do crime, a reacção dele parecera totalmente inocente. Mas Cícero era um orador - o maior orador de Roma - e um orador era um actor. Eu já o tinha ouvido gabar-se de lançar poeira para os olhos de um júri. Estaria ele a lançar-me poeira para os olhos?
Se tivesse a possibilidade de me demorar mais algum tempo a conversar com ele, talvez ele deixasse escapar alguma coisa. Fiz um aceno

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de cabeça a Rupa, que meteu a mão no saco que trazia ao ombro, de onde tirou uns documentos.
- Estava a pensar, Cícero, se te importarias de dar uma vista de olhos a uma coisa que eu encontrei entre os papéis privados de Jerónimo.
- É uma obra literária? - perguntou Cícero, erguendo uma sobrancelha. - O teu amigo estava a compor uma tragédia em segredo? Um poema épico?
- Não, tenho a impressão de que se trata de uma coisa de natureza mais científica, embora não tenha bem a certeza. É por isso que quero mostrar-ta. Talvez tu, com os vastos conhecimentos que adquires nas tuas leituras, possas compreender do que se trata.
Cícero abriu o rosto num amplo sorriso. Publília também assim teria tanta facilidade em o conduzir por via da lisonja?
Estendi-lhe os documentos. Ele esticou os lábios, estreitou os olhos, e deu um estalo com a língua, murmurando uma cantilena enquanto os analisava. Estava a ganhar tempo, pensei eu; aqueles símbolos e cálculos arcanos eram tão misteriosos para ele como para mim. Finalmente, ele fez um aceno de cabeça e deu uma palmada nos documentos com as costas da mão, como que para indicar que tinha desvendado o código.
- Bem, não consigo perceber tudo, não sou propriamente um especialista em astronomia; mas é manifesto que isto tem alguma coisa à ver com o calendário.
- O calendário romano?
- Sim, o romano, mas também o calendário dos gregos e dos egípcios, e talvez mesmo outros. Há muitos calendários, Gordiano. Todas as civilizações têm proposto maneiras específicas de medir a passagem do tempo, dividindo os anos em estações, as estações em meses, os meses em dias. O calendário romano foi concebido pelo Rei Numa, que também instituiu os sacerdócios encarregados de o manter. Numa era Rei, mas também era sacerdote. O calendário servia essencialmente para garantir que os ritos religiosos não eram esquecidos e se faziam na altura indicada.
"Mas, como deves saber, ainda ninguém conseguiu conceber um calendário perfeito; ou seja, uma contagem dos dias que se adapte

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bem a todos os anos. Verificam-se sempre irregularidades, e ninguém percebe exactamente porquê. Seria de esperar que os movimentos das estrelas do céu fossem tão precisos e previsíveis como as medições de um relógio de água, mas as coisas não são assim tão simples. E é por isso que o calendário de Numa se encontra na lastimosa situação em que se encontra. Desactualizado, pelo menos em parte, durante quase toda a minha vida e a tua, hoje em dia está pior do que nunca.
- Mas os sacerdotes não vão acertando o calendário? - perguntei eu. - Todos os anos decidem se devem ou não introduzir mais um mês, e o mês tem a extensão que eles querem, porque eles acrescentam o número de dias que consideram necessário para realinhar o calendário com os planetas.
- Exactamente, Gordiano - respondeu Cícero em tom paternalista, como se estivesse surpreendido com o facto de um sujeito como eu ser capaz de compreender um conceito tão abstracto. - Talvez te recordes de que, no ano em que Clódio foi morto na Via Ápia, tivemos um mês intercalado entre Fevereiro e Março; foram vinte e sete dias, se bem me recordo. - Voltou a cantarolar um murmúrio, e virou-se para a porta. - E se chamássemos a Publília. Acho que ela podia aprender muito com esta conversa. Faz bem às mulheres alargarem o espírito de vez em quando.
Cícero estava com disposição pedagógica, e ansiava por ter público. Ocorreu-me que poucos assuntos entediariam o Doce de Mel de Cícero tanto como este.
- Ah, mas ela deve estar a fazer uma sesta. - Cícero suspirou e encolheu os ombros. - Onde é que eu ia? Ah, pois, mesmo com os meses intercalares que lhe são acrescentados, o calendário romano está cada vez mais desactualizado, de maneira que, hoje em dia, as festas das colheitas dos nossos antepassados têm lugar no Verão, o que não faz sentido nenhum, e as festas destinadas a contrariar o tédio do Inverno calham no Outono, numa altura em que anda toda a gente atarefada com as colheitas. E por aí fora. Neste momento, estamos a meio de Setembro, mas está um calor imenso, e os dias são compridos.
Eu acenei com a cabeça, para mostrar que estava a compreender. Cícero prosseguiu:

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- E é por isso que o nosso estimado Ditador vitalício planeia introduzir novo calendário, que será o primeiro grande progresso a sério desde os tempos do Rei Numa. Aparentemente, quando esteve cercado aqueles meses todos em Alexandria, impedido de sair do complexo do palácio, César teve tempo de sobra para se entreter.
- Eu sei, Rupa e eu também lá estávamos. Eu passei o tempo a ler os livros da famosa biblioteca dos Ptolemeus. Lia-os em voz alta, para Rupa e os meus dois escravos. Tenho a impressão de que li todos os livros jamais escritos sobre Alexandre, o Grande.
- César também se aproveitou do facto de ter acesso à biblioteca. Quando não andava a vigarizar aquela Rainha horrenda, consultava os astrónomos dela (a biblioteca gaba-se de possuir uma secção impressionante de cientistas e observadores do céu) e ocorreu-lhe que podia empregar o tempo a conceber um calendário mais preciso e mais duradouro. César voltou para Roma, e também cá está a Rainha egípcia, mais a comitiva dela, incluindo os estudiosos que fazem parte da biblioteca. Segundo dizem, César está a dar os retoques finais no calendário, que faz tenções de tornar público no último dia dos triunfos, quando dedicar o Templo de Vénus. Vamos ter um calendário novo para uma época nova - concluiu Cícero com ar carrancudo, o pedagogo desapaixonado dando lugar ao republicano contrariado.
- Mas isso é uma coisa óptima - comentei eu. - Independentemente da nossa opinião sobre os restantes feitos de César, se ele conseguir emendar o calendário romano, todos ficaremos a beneficiar
com isso.
- É verdade que sim. E se ele conseguir realmente arranjar uma solução, só fica bem ser um romano a dar ao mundo uma contagem precisa do movimento dos céus. Apenas lamento que esse romano seja
César!
Cícero não podia ser mais sincero. Ao longo de toda a conversa, nunca me pareceu dissimulado. Parecia estar completamente desprotegido, falando comigo como com um confidente. Eu começava a ter dificuldade em acreditar que ele pudesse ter alguma responsabilidade na morte de Jerónimo.
- Estas anotações e estes gatafunhos todos - disse eu, apontando para os documentos. - O que significam, e por que motivo estavam na posse de Jerónimo?

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Cícero apertou os lábios, pensativo.
- Sabes o que eu acho? Acho que Jerónimo se dedicou a fazer estes cálculos como se fosse uma espécie de exercício mental, um desafio. Deve ter ouvido dizer que César planeava apresentar um calendário novo. Não achas que ele era menino para pensar: Se César é capaz eu também sou? Ou talvez tenha tido acesso, sabe-se lá como, à proposta de calendário e estivesse a tentar detectar possíveis falhas. Era um sujeito muito competitivo. Tinha os seus talentos em elevada consideração e um muito razoável descaramento. Certa vez, disse-me que achava que não teria grande dificuldade em ser melhor orador do que eu. Imagina!
Eu acenei com a cabeça.
- Imagino perfeitamente. - Não era nada difícil conceber que Jerónimo tivesse obtido informações sobre o calendário, dadas por Calpúrnia, ou por qualquer outro membro de casa dela, ou talvez da casa de Cleópatra, que ele também visitara, e cujos investigadores trabalhavam com César naquele projecto. Mas, se Jerónimo tivera a esperança de opor um calendário próprio ao de César, também esse sonho, tal como todos os outros, chegara abruptamente ao seu termo.
Cícero olhou para além de mim. O escravo que me abrira a porta estava à entrada da biblioteca.
- O que é? - perguntou Cícero.
- Tens outra visita, senhor.
- Quem?
- Marco Júnio Bruto.
Cícero sorriu abertamente e bateu as palmas.
- Ah, Bruto! Deve ter acabado de chegar a Roma. Manda-o entrar! E traz mais vinho, uma bacia de água e comida. Bruto deve estar cheio de fome, depois da viagem que fez.
O escravo afastou-se a toda a pressa, para cumprir as ordens.
- Obrigado pela tua hospitalidade - disse eu -, e pelas ideias que me deste sobre Jerónimo. - Fiz menção de me levantar, mas Cícero mandou-me sentar de novo com um gesto.
- Por favor, Gordiano, não te vás já embora. Partilhei contigo a tristeza que sentias pela perda de um amigo; partilha tu agora comigo a alegria de me reunir a outro. Por Hércules, para além de Bruto

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continuar a respirar, o que é já de si um milagre, foi nomeado por César governador da Gália Cisalpina. Conheces Bruto, não conheces?
- Só de nome - respondi eu. - Julgo que os nossos caminhos
nunca se cruzaram.
Cícero acenou com a cabeça pensativamente.
- Eu parto sempre do princípio de que tu conheces toda a gente, mas não é bem assim, pois não? Nunca tiveste quaisquer ligações a Catão e ao círculo dele, ou tiveste? Andaste sempre muito ocupado a descobrir coisas a mando de Pompeu ou de César. Bem, nesse caso, tens mesmo de te deixar ficar, para eu poder apresentar-to.
Bruto entrou no compartimento, a túnica e as sandálias ainda cobertas do pó da viagem. Ele e Cícero cumprimentaram-se e abraçaram-se; Rupa e eu levantámo-nos enquanto Cícero nos apresentava, e em seguida sentámo-nos todos. Bruto lavou a cara e as mãos numa bacia de água que um escravo segurava diante dele, após o que aceitou entusiasticamente uma taça de vinho.
Era um homem elegante, de cara comprida e olhar intenso, que ainda não chegara aos quarenta anos. Ao longo de toda a sua vida de adulto, as ligações familiares e as filiações políticas de Bruto sempre o haviam colocado em posição de conflito com César. Bruto fora o protegido de seu tio Catão, que era o campeão de um grupo conservador altamente preconceituoso, e um dos mais incansáveis inimigos de César. Ao irromper a guerra civil, Bruto não hesitara em tomar o partido de Pompeu. Na véspera da batalha de Farsalo, porém, César ordenara explicitamente aos seus oficiais que poupassem o jovem e lho levassem com vida. Após a batalha, para além de perdoar a Bruto, integrou-o no grupo dos seus íntimos, na qualidade de companheiro respeitado.
Porque teria César dado provas de favor tão especial para com Bruto? Durante vários anos, Servília - a mãe de Bruto, que entretanto enviuvara - mantivera um tórrido caso amoroso com César (apesar da consternação do irmão dela, Catão). Bruto não passava de uma criança quando o romance tivera início, e chegara à idade adulta com César entrando e saindo de sua casa. A ligação que se estabelecera entre César e Bruto tinha sobrevivido ao arrefecimento da paixão de César por Servília, bem como ao distanciamento político entre os dois homens.

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Quando embarcara para África, a fim de pôr na ordem os últimos sobreviventes de Farsalo - entre os quais se contava Catão -, César mandara Bruto seguir na direcção oposta. Para além de ser uma maneira de recompensar Bruto, a nomeação para a Gália Cisalpina também permitira tirá-lo de Roma e mantê-lo longe da frente de batalha. César não podia propriamente esperar que Bruto participasse na morte de seu bem-amado tio.
César não tinha filhos, a não ser que fizesse tenções de perfilhar o filho de Cleópatra. Talvez considerasse Bruto uma espécie de filho emprestado. Talvez tencionasse mesmo, como especulavam alguns, fazer de Bruto seu herdeiro.
- Como correu a viagem? - perguntou Cícero.
- Foi comprida, cheia de calor e de pó! Obrigado por perguntares e obrigado pelo vinho. É muito simpático da tua parte. - Mesmo que estivesse a ter uma conversa descontraída, Bruto falava sempre com uma pronúncia cultivada. A família dele afirmava ser descendente do famoso Bruto que tinha chefiado a revolta contra o Rei Tarquínio, o Soberbo, e ajudara a fundar a república. Eu dei por mim a compará-lo com António, que era tão aristocrático como ele, mas se mostrava bastante menos pretensioso.
- E como vão as coisas no interior? - perguntou Cícero. Bruto resfolegou.
- A Gália Cisalpina é praticamente Itália. O Rubicão não é propriamente o Estige. Nós temos uns rudimentos de civilização: livros, bordéis e garum. Num cavalo que ande bem, Roma fica a poucos dias de distância.
- Chegaste mesmo a tempo dos triunfos.
- Pois foi, para o bem e para o mal. César não exigiu propriamente que eu estivesse presente, mas não deixou de manifestar claramente, na última carta que me enviou, que desejava contar comigo. Acho que não me vai incomodar muito vê-lo fazer desfilar os despojos do Egipto, da Ásia e do resto da Gália, mas se ele usar o Triunfo Africano para se gabar da vitória que obteve sobre o tio Catão, não sei se terei estômago para isso. Pelos deuses, acho que acabo de dizer um trocadilho horrível.

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E Bruto fez um sorriso de esguelha. Depois de ter sido esmagadoramente derrotado em África, Catão começara por tentar suicidar-se abrindo as entranhas ao fio da espada.
- Segundo sei - comunicou Cícero -, o Triunfo Africano destina-se essencialmente a comemorar a vitória dos exércitos romanos contra o Rei Juba da Numídia.
- Que caiu combatendo valorosamente ao lado do tio Catão - suspirou Bruto. - Bem, independentemente do que possamos dizer de César, o certo é que o rapaz venceu honestamente a guerra, não foi? E achou por bem permitir que tu e eu continuássemos a respirar, Cícero. E tu, Gordiano? Não és militar, pois não?
- Gordiano tem um filho que está há bastante tempo ao serviço de César - informou Cícero. - Talvez tenhas ouvido falar dele, chama-se Meto Gordiano.
- Bolas de Numa, estás a falar do sujeito que escreveu as memórias de César?
- O meu filho escrevia o que César lhe ditava, sim - respondi eu.
Bruto resfolegou.
- O que ele lhe ditava! César nem devia estar dentro da tenda enquanto o teu rapaz escrevinhava. Atribui a cada um o que lhe pertence, velhote. Toda a gente sabe que essas memórias foram escritas por um duplo. E, por Hades, que bem que o foram! Pela maneira como narram a coisa, a pobre Gália não tinha hipótese nenhuma. É uma bela história, cheia de sangue e ritmo, atingiu-me o coração de romano. E elevou imenso o prestígio de César entre a gente comum, não foi? Deu a sensação de que ele era invencível. E posso dizer-te que Catão ficou bastante assustado com aqueles relatos. "Não tenho vontade nenhuma de ir contra aquele louco sedento de sangue", comentou o meu tio. Olha que surpresa! O pai do grande duplo de César, aqui sentado a meu lado. Mas que bela reunião de literatos que aqui temos! Sabias que a última obra que Cícero escreveu é especialmente dedicada a mim? Ele tem andado a enviar-me os capítulos. É uma História da Oratória, dedicada a este teu amigo. Em comemoração de uma arte moribunda, está-me cá a parecer. Para que são precisos oradores, numa altura em que os tribunais estão fechados e o Senado é uma sombra?

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Mas o meu nome há-de tornar-se imortal, por figurar na página da dedicatória da grande obra de Cícero. O orador sorriu.
- Não tenho dúvida nenhuma de que hás-de tornar-te imortal por mérito próprio, Bruto.
- A sério? Não estou a ver bem como. Duvido de que, dentro de cem anos, alguém se lembre de quem era o governador da Gália Cisalpina no ano do quádruplo triunfo de César.
- Tu ainda és um jovem, Bruto. E César... - Cícero lançou-me um olhar de esguelha e voltou-se novamente para Bruto. - César não é eterno.
- Ah, sim, e o que virá depois de César? - perguntou Bruto. - Já se começa a especular quanto a isso. Não te parece significativo? Começámos a raciocinar como raciocinam os súbditos de um Rei. Não nos preocupamos com as próximas eleições, nem com quem corre o risco de ser exilado por corrupção, nem com a maneira de não perdermos o pé. Andamos é a perguntar a nós próprios: "Quanto tempo viverá este sujeito, e quem será o herdeiro dele?" Que vergonha! - Bruto engoliu o resto do vinho de um trago e estendeu o braço para o escravo voltar a encher-lhe a taça.
Suavizando-lhe o cansaço da jornada, o vinho também lhe tinha soltado a língua. Bruto voltou-se para Rupa e sorriu.
- Foi um antepassado meu, também chamado Bruto, quem fundou esta coisinha a que chamamos república. Sabias disso, granda-lhão? - Fez uma pausa, como se estivesse à espera de que Rupa respondesse, embora Cícero lhe tivesse inicialmente dito que o rapaz era mudo. - República. Vem de duas belas palavras antigas, res e publica; significa o estado do povo. Calculo que também sejas cidadão, não, já que és filho adoptivo de Gordiano.
- Exacto - respondi eu.
- Onde nasceste tu, grandalhão? Calculo que tenha sido num sítio bem exótico.
- Rupa é sármata.
- Vens mesmo dos limites desta terra, das montanhas onde se ergue o Sol! Como é que dizia Enio? Como era o epitáfio que ele escreveu para o túmulo de Cipião, Cícero?

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Cícero ergueu a voz e declamou em altissonante tom de orador:
- "O Sol que se ergue por sobre os pântanos orientais do Lago Meótis não ilumina outro homem de feitos iguais." - Longe de se sentir incomodado com a liberdade de expressão do amigo, Cícero parecia, estar tão embriagado como Bruto. Este não era o Cícero que eu conhecia.
- Exactamente - concordou Bruto. - E tu, sármata grandalhão, deves ter visto o Lago Meótis, embora eu esteja capaz de apostar que não fazes a menor ideia de quem era Cipião. Deixa lá! O ponto é mesmo esse. Esta república é de facto uma coisa notável, não é? Cresce e continua a crescer, espalhando-se por todo o mundo, desde os Pilares de Hércules até ao Lago Meótis, fazendo estradas e construindo cidades, instituindo tribunais, tornando seguras as rotas marítimas, e recompensando os melhores e os mais capazes com o prémio mais valioso deste mundo, a cidadania romana.
- E, no entretanto, reduzindo grandes multidões à escravatura - comentei eu. Rupa tinha sido escravizado, embora depois tivesse recuperado a liberdade.
- Não me parece oportuno discutir, aqui e agora, a natural necessidade da escravatura - retorquiu Bruto. - Cícero há-de escrever um livro sobre isso; um de muitos, agora que se reformou. O que os tribunais perdem, vão ganhá-lo os leitores! Aquilo de que eu estava a falar, se me permites voltar um pouco atrás, era do fim da nossa república e de tudo aquilo que ela representa. Como te disse, esta coisa foi fundada por um antepassado meu. - Tratava-se de um exagero, porque o Bruto dos tempos antigos não tinha propriamente expulsado os Tarquínios de Roma sozinho, mas eu deixei passar. - Há mais de quatrocentos e cinquenta anos! Há muitas e muitas gerações que a república nos parece um bom regime. Foi a república que nos tornou senhores de nós próprios e senhores do mundo. Como Bruto bem sabia que havia de acontecer. Ele amava a república! Esforço algum lhe parecia excessivamente hercúleo, sacrifício excessivamente doloroso, para que ela sobrevivesse! Sabes o que foi que ele fez, sármata, logo no primeiro ano da república, quando teve notícia de uma conspiração destinada a voltar a pôr o Rei no trono? Rupa abanou a cabeça.

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- Declarou que os homens implicados nessa conspiração seriam mortos. Foi então que um escravo lhe levou provas de que os filhos dele estavam envolvidos na conspiração. Ele abriu uma excepção para contemplar os filhos? Permitiu-lhes fugir discretamente da cidade, destruiu as provas, perdoou-lhes? Não, não fez nada disso. Mandou prender todos os conspiradores. Os culpados foram colocados em fila e obrigados a ajoelhar-se, e os lictores cortaram-lhes a cabeça, um por um. Chop, chop, chop! Bruto assistiu à decapitação dos dois filhos, e dizem os historiadores que não vacilou um momento que fosse. E a seguir recompensou o escravo que lhe tinha comunicado a informação atribuindo-lhe a cidadania; foi o primeiro escravo a receber a cidadania romana. Um precedente de que tu beneficiaste, meu amigo sármata!
Bruto recostou-se na cadeira, ergueu a taça para que voltassem a encher-lha e bebeu-a toda. O discurso fizera-lhe sede.
- E esta, caros concidadãos, é uma história de autêntica virtude republicana. Haverá hoje homem que possa afirmar que é tão corajoso, tão firme, tão decidido como este meu antepassado?
- O descendente dele, talvez - sugeriu Cícero, num tom que pouco mais era do que um sussurro.
Bruto, o fundador, tinha matado os próprios filhos para bem da república. Ousaria este outro Bruto matar o homem que era seu pai em termos afectivos, para bem da mesma respublica? E ousaria Cícero, o maior advogado e orador de Roma, ser aquele que persuadisse Bruto a fazê-lo?
- Mas o que é isto? - Bruto entregou a taça vazia a um escravo e pegou nos documentos sobre astronomia que Cícero tinha pousado quando ele chegara. Com o olhar já meio turvo, leu as anotações. - Símbolos de Capricórnio e de Caranguejo, de Virgem e de Balança... estes são bastante nítidos. Mas que palavras extraordinárias são estas, que não se percebem? São meses egípcios? Mesori, Famenoth, Farmuti, Tot, Paofi, Tibi, Athir, Mechir, Epifi, Khoiak, Pakhonsu, Paini. Que nomes que eles têm! E estas colunas todas com números... - Fechou intensamente os olhos por momentos e pousou os documentos. - Em que andas tu metido, Cícero, andas a ajudar o Ditador a fazer os cálculos para o novo calendário? Espero sinceramente que ele

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não tencione sobrecarregar-nos com os meses egípcios! Já nos chega uma Rainha egípcia! Francamente, seria a última gota! "Queres jantar nos Idos de Tibi?" "Encontramo-nos no Fórum dois dias antes das Calendas de Tot."
Lançou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.
- Na verdade, foi Gordiano quem os trouxe - informou Cícero. - Dá a impressão de serem um projecto de um amigo comum. Um amigo que, infelizmente, já não precisa de calendário.
Parecia ser o momento ideal para nos irmos embora. Eu enrolei os documentos e estendi-os a Rupa. Pedi a Cícero que transmitisse os meus cumprimentos à noiva. Desejei a Bruto uma agradável estadia em Roma. E fui-me embora.

CAPÍTULO OITO

- Amanhã! - disse Betesda, que estava à minha espera à porta de casa, de braços cruzados. E disse-o em tom inflexível, com postura imperiosa. Entreguem-lhe um mangual e um bastão curvado, pensei eu, ponham-lhe na cabeça uma coroa com uma serpente arqueada, e ela não terá qualquer dificuldade em passar por membro da família real egípcia.
- Tens razão - respondi eu. Já antes de entrar em casa me chegara às narinas uma lufada do odor a putrefacção que começava a emanar do corpo que se encontrava no vestíbulo. - Vou organizar a procissão para amanhã. Mandamo-lo cremar à saída da Porta Esquilina.
Betesda acenou com a cabeça, satisfeita por eu me dispor a fazer-lhe a vontade, e afastou-se ligeiramente, para me deixar entrar em casa.
No vestíbulo, o odor era mais intenso, mas não era devastador. Apesar disso, eu percebi por que motivo a minha mulher, que não saía de casa todo o dia, tinha atingido o limite da sua resistência.
- Alguém veio prestar-lhe homenagem enquanto eu estive fora?
- Não veio ninguém.
- Ah, bom, não me surpreende. Com todos os preparativos para os triunfos de César, que começam amanhã, calculo que ande tudo muito ocupado. Nesse caso, a única pessoa que cá veio foi Fúlvia, que nem sequer conhecia Jerónimo; só veio dar-me as condolências para ter um pretexto para me interrogar. Ah, Jerónimo. - Baixei os olhos para a cara dele. - Tu divertiste-os, seduziste-os com o teu encanto, espiaste-lhes a vida... e agora parece que todos eles se esqueceram de ti.

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- Não veio ninguém - repetiu Betesda - mas mandaram mensagens. Estão aqui. - E baixou-se para pegar nuns bocados de pergaminho, que haviam sido despreocupadamente atirados para um canto, ao pé da porta, como se fossem lixo. Betesda não tinha grande respeito pela palavra escrita. Entre as mensagens, também havia uma tabuinha de cera.
- Betesda, isto são notas de condolências. Trouxeram-nas para Jerónimo. Devias tê-las posto sobre a padiola.
Ela ergueu uma sobrancelha com ar céptico e encolheu os ombros.
- Presumo que foi uma sorte não as teres queimado.
- E não vão ser queimadas amanhã, juntamente com Jerónimo?
- Vão, mas só depois de eu as ter lido.
- Então diz lá de quem são?
- Esta é de Cícero. Ele disse-me que tinha enviado uma mensagem. "As gargalhadas e a erudição do nosso amigo de Massília farão Uma grande falta nestes tempos difíceis", e por aí fora.
- E as outras?
- Esta é de António, e Citéris acrescenta que quer ser ela a fornecer os cantores e os mimos para a procissão funerária; serão amigos dela, calculo eu. E estas...
Passei os olhos pelos nomes. Todos eles figuravam nos relatórios de Jerónimo. Tratava-se das pessoas de quem ele era visita, cuja confiança tinha procurado cultivar, com vista a descobrir se constituíam uma ameaça para César. O facto de estas pessoas terem enviado condolências torná-las-ia mais ou menos suspeitas? Com certeza que O responsável pela morte de Jerónimo também enviaria uma nota, tal como os restantes.
Chegara também uma mensagem de Octávio, o sobrinho-neto de César, que estava prestes a fazer dezassete anos; citava um epigrama em grego, provavelmente de uma peça de teatro, embora eu não o tivesse reconhecido. E outra mensagem de Arcesilau, o escultor na Companhia de quem, há muitos anos, eu comera cerejas ao jardim de Lúculo; Arcesilau era o autor da estátua de Vénus destinada a adornar

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o novo templo erigido em honra de César. E outra mensagem de Publílio Siro, um dramaturgo novo que parafraseava as últimas linhas do epitáfio que Enio tinha composto para Cipião, e de que Cícero havia recitado os primeiros versos esta tarde: "Se algum mortal pode ascender ao céu dos imortais, só para mim a porta dos deuses permanece aberta."
E chegara também, escrita num pergaminho pesado, o rebordo adornado com um padrão repetido de folhas de lótus em relevo, uma mensagem da Rainha do Egipto:
Para Gordiano, em calorosa memória do nosso encontro em Alexandria. Soube que o falecido Jerónimo de Massília era membro de tua casa, e que era a ti que devia enviar esta mensagem de condolências. Regressaste a Roma, e eu também aqui estou. O mundo em que vivemos é muito pequeno. Mas o domínio do outro mundo, onde reinarei como Isis em esplendor, é vasto e eterno. Que o nosso amigo comum seja rapidamente conduzido até ele, para receber a sua recompensa.
Depositei as mensagens entre as flores empilhadas sobre a padiola. Ainda tinha na mão a tabuinha de cera.
Desatei as fitas do painel exterior de madeira. A superfície de cera, que era reutilizável, não continha uma mensagem de condolências, mas duas perguntas, debaixo de cada uma das quais fora deixado um espaço para a respectiva resposta. Tive a sensação de que era um aluno a quem o professor entregara um teste. O remetente não estava identificado, mas era manifesto que a tabuinha fora enviada por Calpúrnia. A primeira pergunta era:
Com quem falaste? Responde apenas com iniciais.
Era uma pergunta de resposta fácil. A segunda pergunta era:
Descobriste alguma coisa que indique que ele não deve participar no evento de amanhã? Responde imediatamente.
Por outras palavras, tinha eu descoberto alguma coisa que indicasse que César corria perigo imediato? Pensei no que havia de responder. Se acontecesse alguma coisa desagradável, Calpúrnia podia vir a considerar-me responsável por esse facto, mesmo que César saísse ileso. Mas eu não tinha descoberto qualquer perigo actual e manifesto

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para César. "Não", escrevi. Era uma palavra muito pequenita, que ficava com ar pouco apropriado ali no meio do espaço que ela tinha deixado em branco para a minha resposta.
Na manhã seguinte, levantei-me antes do nascer do Sol. Toda a família, envergando fatos de cores carregadas - como era próprio da ocasião -, se reuniu para tomar em conjunto uma refeição matinal simples, de pão escuro com feijão preto.
Se a decisão fosse apenas minha, eu teria proporcionado a Jerónimo uma cerimónia o mais simples possível. Mas dado que Citéris, que tinha ligações no mundo do espectáculo, se tinha oferecido para contribuir com as tradicionais carpideiras, mais os músicos e os mimos, para além de uns quanto escravos jovens e robustos para o transporte da padiola, teria sido grosseiro recusar a proposta. Espantosamente, a trupe foi pontual. E ainda bem que Betesda tinha preparado uma refeição abundante, porque todos eles vinham com fome.
Uma hora após o nascer do Sol, a pequena procissão saiu de minha casa. Empreendemos um percurso longo, subindo e descendo as ruas do Palatino, a fim de passarmos diante das diversas casas de que Jerónimo fora convidado. Se os moradores não estavam acordados antes da nossa passagem, terão certamente acordado com os guinchos das carpideiras e o som das matracas, das flautas, das trompas e dos sinos dos músicos. Os transeuntes faziam uma pausa à nossa passagem, e os curiosos espreitavam das janelas das casas para ver o mimo, tentando adivinhar quem estava ele a tentar imitar. O sujeito só estivera com Jerónimo uma vez, numa das festas de Citéris, mas era espantosamente talentoso; tendo envergado uma das túnicas preferidas de Jerónimo, produzia uma inquietante simulação da postura, da atitude, dos gestos de mãos, da expressão facial - e até do riso do meu amigo.
Depois de observar o mimo por momentos, uma das pessoas por quem passámos na rua comentou:
- É Jerónimo, o Bode "Expiatório? É ele que vai na padiola? Não sabia que ele tinha morrido! - Tratava-se de uma homenagem ao talento do mimo, mas também à impressão que Jerónimo tinha deixado

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num número surpreendente de pessoas. Eu estava espantado com a quantidade de homens e mulheres que o tinham conhecido. Prosseguindo em passo lento atrás dos músicos e da padiola funerária, na companhia dos restantes membros da minha família, dei por mim a olhar fixamente para todos os desconhecidos que se detinham a observar a procissão, perguntando a mim próprio se o assassino de Jerónimo se encontraria entre eles.
Descemos finalmente a encosta oeste do Palatino e atravessámos a Via-Sacra a uma considerável distância do Fórum. Se Jerónimo tivesse sido um homem de negócios, e se fosse romano, teria sido imperioso passarmos pelo Fórum; mas eu decidira evitar aquela zona, onde já se congregava uma enorme multidão que vinha assistir ao Triunfo Gálico. Evitámos igualmente as ruas estreitas e ruidosas da Subura, optando por subir a encosta do Esquilino e atravessando o bairro de Cari-nas. Citéris tinha pedido que o cortejo funerário passasse diante da Casa dos Bicos.
Os artistas sabiam quem lhes pagava aquele dia; quando nos aproximámos da Casa dos Bicos, as queixas e os guinchos, e o som dos tambores e das flautas subiu em crescendo ensurdecedor. Ao mesmo tempo, o espaço viável de rua estreitou consideravelmente. Fiel à sua palavra, fora neste dia que António organizara diante de sua casa o leilão dos bens de Pompeu. O leilão ainda não tinha começado, mas já havia numerosos objectos em exposição em mesas improvisadas.
Viam-se peças soltas de serviços de mesa em prata, muitas delas amolgadas e embaciadas. Também tinham sido expostas várias peças de joalharia, presumivelmente provenientes da colecção de Cornélia, a mulher de Pompeu. Entre estas, contavam-se brincos solitários, colares partidos, anéis sem pedras e pedras sem anéis. Viam-se pilhas de roupas, peças de mobiliário, e umas quantas estantes cheias de rolos de pergaminho.
Ouvi murmurar atrás de mim, e percebi que Betesda e Diana olhavam de esguelha para os bens em exposição, conferenciando sobre eles. Mandei-as calar, mas elas deram a impressão de não me terem ouvido.
- Mais respeito! - exclamei por fim, e elas desviaram os olhos dos objectos em exposição, com ar desgostoso.

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- Voltamos cá depois a ver se ainda há alguma coisa - ouvi Diana sussurrar à mãe. Tive de confessar que também me tinha sentido tentado a passar os olhos pelas prateleiras, para ver que livros de Pompeu lá se encontravam.
- Vês alguma coisa que te agrade, Descobridor? Não me importo de a reservar para ti.
Voltei-me e vi António ali perto, descontraidamente apoiado numa das mesas. Estendeu a mão para uma volumosa túnica verde com bordados em prata, e ergueu-a ao alto, segurando-a pelos ombros.
- Será possível que esta saca gigantesca tenha sido de Pompeu? O Grande, dizia ele! O sujeito estava do tamanho de um elefante!
Uma mão arrancou-lhe a túnica. Lançando-lhe um olhar reprovador, Citéris voltou a colocar a veste em cima da mesa. António cruzou os braços e fez beicinho.
- Não vês que está a passar o cortejo de Jerónimo? - perguntou ela.
- Ah, sim. - António ergueu o braço numa saudação trocista.
- Salve e adeus, Bode Expiatório! Nos Elísios, há-de haver imensas
festas interessantes.
Era de manhã cedo, mas António já estava embriagado. Ou teria passado a noite em pé, a beber, não se tendo ainda deitado? Fora assim que ele decidira assinalar o dia do Triunfo Gálico de César, em que ele próprio devia ter desempenhado um papel de relevo.
Depois de passarmos a zona mais apertada da rua e entrarmos novamente numa passagem mais ampla, reparei num homem que estava encostado a uma figueira. Antes de ele ter oportunidade de se esconder por detrás da árvore, vi-lhe claramente o rosto, e reconheci Traso, um dos escravos de Fúlvia. Apercebendo-se de que eu o tinha visto, ele deixou de tentar esconder-se, optando por me lançar um ligeiro sorriso, acompanhado de um aceno de cabeça. Qualquer coisa me disse que se tratava do mesmo homem que me seguira depois de eu me ter encontrado com Citéris. Teria Fúlvia colocado um vigilante diante da Casa dos Bicos a toda a hora, todos os dias?
Atravessámos finalmente a Porta Esquilina. Fora dos muros da cidade, espraiando-se pelas suaves encostas da colina, ficava a necrópole pública, a cidade dos mortos. Os túmulos dos escravos - sem identi-

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ficação - e os túmulos modestos dos cidadãos comuns estavam todos agrupados numa zona. Num dia normal, haveria mais funerais, cujas piras em chamas perfumariam a necrópole com o odor da madeira e da carne consumidas pelo fogo. Hoje, porém, só havia o nosso enterro.
Algumas pessoas tinham enviado condolências, mas à cerimónia apenas assistiu a minha família. É certo que era muito cedo, e que se tratava de um dia com muitos acontecimentos. Mas eu pus-me a pensar na inconstância daqueles de quem Jerónimo se tornara alegadamente amigo após a minha partida de Roma. No fim de contas, ele não passava de um estrangeiro, sem quaisquer laços de sangue entre os habitantes da cidade.
Competia-me dizer umas palavras, mesmo que apenas estivesse presente a minha família. Recordei o meu primeiro encontro com Jerónimo, em Massília, em que só graças à intervenção dele eu fora salvo da prisão; a hospitalidade que ele nos proporcionara, a Davo e a mim, naquela cidade cercada e desesperada; a maneira como escapara, à justa, do destino que tinha à sua espera, na sua qualidade de Bode Expiatório; e a viagem que fizera comigo para Roma. Reflecti na oscilante fortuna que assinalara a sua vida: nascera entre os privilegiados que compunham os níveis mais elevados da sociedade massiliana, mas a ruína financeira e o suicídio do pai tinham reduzido a família à pobreza, fazendo dele um proscrito da sociedade. A sua escolha para Bode Expiatório prometera-lhe um curto período de enorme luxo, seguido da morte sacrificial. Mas não fora assim que as coisas se tinham passado, e este homem condenado acabara por se tornar convidado de minha casa, e depois, curiosamente, companheiro de festas avidamente procurado pela elite da cidade. Dera-se então um revés, tão irónico como todos os reveses que haviam caracterizado esta vida peculiar, e com ele o fim.
Enquanto eu falava, Davo começou a chorar, e Diana abraçou-o. Mopso, Ândrocles e Rupa mostravam-se distraídos com a actividade dos homens que pegavam o fogo à padiola: olhavam os três atentamente para a pira, na expectativa das primeiras chamas. Betesda mostrava-se rígida; estaria a recordar-se de outro funeral, o de Cassandra, a que não pudera vir por se encontrar doente? Eco ainda não tinha

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regressado de Siracusa, mas a mulher dele, Menénia, também aqui se encontrava, acompanhada de Tito e Titânia, os gémeos de cabelo louro.
- O que podemos aprender com esta morte? - prossegui eu, passando os olhos pelos rostos do pequeno grupo formado pelas pessoas a quem eu mais amava. - Uma coisa que já sabemos: que a fortuna é mutável, que o amor dos deuses é tão pouco fiável como o amor dos mortais, que todos quantos vivem têm de morrer. Mas as palavras e os actos dos vivos sobrevivem à morte deles. A história de Jerónimo ainda não terminou, e só terminará quando todos nós morrermos, nós os que nos recordamos dele.
E não terminará enquanto pelo menos um homem prosseguir a investigação para saber quem o matou eporquê, pensei.
Inclinei a cabeça. Pouco depois, ouvi estalar a madeira, cheirou-me a queimado, e senti o calor das chamas nas costas.
- Adeus, Jerónimo! - sussurrei.

CAPÍTULO NOVE

O que faz uma pessoa durante o resto de um dia que começa com um funeral? Dá a impressão de que estes dias decorrem fora do tempo normal. De que o mundo se cobre de uma espessa melancolia. Depois de ter sido obrigada a confrontar-se com a mortalidade em toda a sua crueza, a pessoa é forçada a encarar as horas que se seguem sem dispor do conforto simples da rotina diária. É impossível ter pensamentos normais. Está fora de questão proporcionar-se uma gargalhada descontraída, ou um romancear ocioso. Olhámos para o abismo e, se é certo que recuámos com vida da borda do precipício, também é um facto que fomos tocados pelo frio da morte no mais íntimo do nosso ser. Durante todo esse dia, temos de suportar o peso da melancolia, à espera de que o Sol se ponha e de que possamos finalmente refugiar-nos no sono que nos trará o dia seguinte.
Mas este não era um dia normal para nenhum dos habitantes de Roma. Este era o dia do primeiro dos quatro triunfos de César.
Ainda antes de termos voltado a entrar na cidade pela Porta Esquilina, chegou-me aos ouvidos o ribombar surdo que se fazia ouvir dentro de muros. Quando todos os moradores da cidade, homens, mulheres e crianças, têm motivos para vir para a rua ao mesmo tempo, conversando todos em simultâneo, a cidade zumbe como uma colmeia. Era esse género de zumbido que parecia emanar de todos os bairros de Roma, e que se foi tornando notoriamente mais intenso à medida que nos fomos aproximando do Fórum.
Estava toda a gente na rua, toda a gente muito bem-vestida. (As vestes escuras da minha família davam intensamente nas vistas!) Toda a gente se dirigia para o mesmo sítio, atraída para o coração do movi-

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mento. No meio daquela excitação contagiante, Betesda e Diana esqueceram-se por completo de que haviam tido a intenção de regressar ao leilão da Casa dos Bicos. Ansiosos por assistirem ao espectáculo, Mopso e Àndrocles corriam para diante, voltando em seguida para trás, mandando-nos a todos despachar.
Chegámos ao Fórum. As portas dos templos estavam todas abertas, convidando as pessoas a visitar os deuses, e os deuses a assistir aos eventos daquele dia. Os santuários e as estátuas estavam decorados com grinaldas de flores. O incenso ardia nos altares, enchendo o ar de uma doce fragrância.
Dizem os historiadores que o Rei Rómulo celebrou a primeira procissão triunfal de Roma depois de ter morto Acron, o Rei dos Ceninenses, em combate singular. Ainda o corpo de Ácron estava quente, Rómulo derrubou um carvalho, dando ao tronco a forma de um corpo humano; depois, despiu o cadáver de Acron da armadura e cobriu a efígie com ela. Com o troféu aos ombros e uma coroa de louros na cabeça, percorreu então as ruas, perante o olhar assombrado dos cidadãos. Subiu ao Capitolino e, ao chegar ao Templo de Júpiter, ofereceu solenemente a armadura de Acron ao deus, num gesto de gratidão pelo triunfo de Roma.
A marcha de vitória de Rómulo foi a origem e o modelo de todos os triunfos subsequentes. Com o passar dos séculos, a pompa e a cerimónia destas celebrações foram-se tornando cada vez mais elaboradas. O Rei Tarquínio, o Velho, foi o primeiro a usar um carro, em vez de fazer o percurso a pé, tendo escolhido para essa ocasião uma veste bordada a ouro. Naqueles tempos, os Reis eram os únicos que estavam Autorizados a celebrar triunfos; com a instituição da república, porém, o Senado manteve a tradição, concedendo triunfos aos generais, em "reconhecimento de importantes vitórias militares. Camilo, que libertou a cidade ocupada pelos gauleses, foi o primeiro a atrelar quatro cavalos brancos ao carro em que desfilou, emulando a estátua de Júpiter na quadriga instalada no alto do Templo de Júpiter, cujos cavalos brancos transportam o Rei dos deuses. Naqueles tempos, os generais triunfantes pintavam a cara e os braços de encarnado, para se igualarem à estátua de Júpiter, que nos dias de festa era tingida com cinábrio. Devia ficar com um aspecto bem peculiar!

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Eu já tinha assistido a uma série de triunfos. O primeiro de que me lembrava, tinha eu seis anos, foi quando Mário, o tio-avô de César, fez desfilar pelas ruas o Rei Jugurta, o monarca da Numídia que havia capturado, e que foi executado no final. Alguns anos mais tarde, depois de ter repelido a invasão das tribos germânicas, Mário celebrou novo triunfo. No ano antes de eu ter conhecido Cícero, vi o ditador Sula celebrar a vitória que obtivera sobre o Rei Mitrídates, de Punt. O Senado também votara favoravelmente a concessão de um triunfo ao próprio Cícero, em recompensa pela dúbia façanha de ter derrotado um bando de malfeitores durante o ano em que foi governador da Cilicia, mas a guerra civil adiara esse evento, talvez para sempre.
Pompeu celebrara três triunfos ao longo da sua carreira, o primeiro aos vinte e quatro anos. O último e o mais sumptuoso de todos tivera lugar há cerca de quinze anos, e destinara-se a assinalar as conquistas do general no Oriente, bem como a erradicação da pirataria no Mediterrâneo. Fora um triunfo que se prolongara durante dois dias, de pompa e largueza sem precedentes, com procissões, mas também enormes banquetes e distribuição de dinheiro aos cidadãos; por fim, num acto que surpreendera toda a gente, Pompeu optara por poupar as vítimas, demonstrando assim que um general romano vitorioso também sabia ser clemente.
Todos os triunfos a que eu assistira foram contudo eclipsados pelas celebrações organizadas por César para este dia, e para os dias que se seguiram.
Quando um homem viveu numa cidade tanto tempo como eu vivi em Roma, aprende a conhecer alguns dos seus segredos. Eu sabia qual era o melhor local para assistir a um triunfo. Enquanto os restantes atrasados empurravam e acotovelavam para conseguir chegar-se à frente, pondo-se em bicos de pés e olhando invejosamente para aqueles que tinham chegado mais cedo e arranjado melhores lugares, eu levei a minha família para o Templo da Fortuna, mandado erigir por Lúculo. Ao lado do templo, uma ligeira subida pelo tronco de uma oliveira dava acesso a uma plataforma recuada de mármore, com largura e profundidade suficientes para permitir que toda a minha família se sentasse; foi ali que nos instalámos, bem chegados uns aos outros. Até um velhote como eu era capaz de para ali subir sem difi-

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culdade, sendo a recompensa um poleiro confortável, situado acima das cabeças da multidão que se aglomerava lá em baixo, com uma perspectiva ideal da procissão que percorria a Via-Sacra. Vestidos como estávamos, devíamos dar a impressão de ser um bando de corvos, aninhados na pequena saliência de mármore.
No momento em que Betesda se instalava a meu lado, ouvimos um enorme rugido. Tínhamos chegado mesmo a tempo de assistir à parada.
De acordo com a tradição, a procissão começava pelos senadores, que eram geralmente trezentos. O corpo do Senado fora grandemente reduzido durante a guerra civil, mas César tinha feito outras nomeações, que voltaram a preencher-lhe as fileiras. Envergando as togas de bainha encarnada, os senadores desciam a Via-Sacra qual rio de branco salpicado de carmesim. Para muitos dos recém-chegados, esta ocasião assinalava a sua primeira aparição pública. Percebia-se quem eram os novos senadores, pela maneira rígida como assumiam a pose habitual dos políticos: uma das mãos apertando as pregas da toga, a outra erguida para acenar à multidão. Entre eles contava-se - não sei se adequada, se ironicamente, tendo em consideração o que estava a ser celebrado - uma série de chefes tribais gauleses, que se tinham aliado a César. Nenhum deles ostentava os tradicionais cabelos compridos, nem os enormes bigodes; apresentavam-se tão bem barbeados como os seus colegas romanos. Ainda assim, não era difícil detectá-los pela estatura. Os gauleses, agrupados numa zona, destacavam-se naquele mar de tecido branco.
Cícero e Bruto, que eram do género de seguir à frente numa coisa destas, tinham-se posicionado nas últimas filas do contingente. Avançavam com as cabeças coladas um ao outro, a conversar, como se estivessem mais interessados na companhia um do outro do que naquilo que estava a passar-se em seu redor. Era uma atitude que parecia quase desrespeitosa do acto. Sobre que estariam eles a conversar?
A seguir, vinham os touros brancos que seriam sacrificados no altar, diante do Templo de Júpiter, no Capitolino, acompanhados pelos sacerdotes encarregados de os matar, que traziam na mão os punhais cerimoniais. Os touros tinham os cornos dourados, a cabeça decorada com fitas entrançadas de lã de cores vivas, e grinaldas de flores em

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redor do pescoço. Seguiam-se os camilos, os rapazes e as meninas especialmente seleccionados que auxiliavam os sacerdotes, transportando as taças rasas da libação, onde recolheriam o sangue e os órgãos dos animais sacrificados.
Seguiam-se outros membros do corpo sacerdotal, envergando longas vestes, com mantos a tapar-lhes a cabeça. Entre eles, contavam-se os guardiães dos Livros Sibilinos, os augures responsáveis pela adivinhação, os flâmines dedicados a várias divindades, e os sacerdotes encarregados de verificar o calendário e de calcular os dias santos. No meio deste último grupo, avistei um rosto que me era familiar: o de Gneu Calpúrnio, o tio de Calpúrnia, o velho de cabelos brancos por quem tinha passado no jardim de casa dela. Era manifesto que o tio Gneu estava hoje no seu elemento, sacerdote entre sacerdotes, participando numa ocasião festiva. Com uma expressão, a um tempo, jubilosa e solene, tinha aquele ar empertigado que os sacerdotes muitas vezes apresentam, o ar de quem sabe um pouco mais do que as pessoas comuns, e a quem a posse desses conhecimentos superiores agrada particularmente. Apercebendo-me do sacerdócio a que ele estava ligado, ocorreu-me que talvez tivesse sido o tio Gneu a interessar Jerónimo pelo calendário, e que talvez até o tivesse ajudado a fazer os cálculos astronómicos; isto é, se se tivesse dignado relacionar-se com Jerónimo. Achei que era boa ideia falar com ele sobre o assunto, se tivesse oportunidade.
Seguia-se um grupo de corneteiros, que fazia soar o antigo apelo às armas, como se estivesse a aproximar-se um inimigo. E de facto o inimigo seguia atrás dos corneteiros; eram os chefes dos gauleses conquistados, que tinham sido presos. Eram muitos, porque os gauleses se encontravam divididos em dezenas de tribos, e César tinha-as derrotado a todas. Estes guerreiros, outrora orgulhosos, vinham vestidos de trapos, avançando aos tropeços, de cabeça baixa, acorrentados uns aos outros. A multidão ria-se, troçava deles, e atirava-lhes frutos podres.
À cabeça de todos eles, vinha Vercingetorix, que se apresentava como eu o tinha visto no Tuliano, quase despido e todo sujo; à luz do Sol, porém, aquela aparência era ainda mais chocante. Tinha os olhos vazios, os lábios secos e gretados, o cabelo e a barba ensarilhados

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como um ninho. As unhas pareciam garras, tão compridas que tinham começado a encurvar-se. Os sapatos haviam-se desintegrado à medida que ele avançava, de maneira que se lhe escapavam dos tornozelos pedaços de couro rasgado, cada passo deixando uma marca de sangue nas pedras do chão.
Confuso e exausto, deteve-se subitamente. Um soldado que caminhava ao lado dos prisioneiros, qual cão de guarda ao rebanho, correu para ele e chicoteou-o. A multidão rugiu.
- Reage, gaulês! - gritou alguém.
- Mostra-nos a massa de que és feito!
- Rei dos Gauleses? Rei dos Cobardes!
Vercingetorix avançou com um solavanco e por pouco não caiu. Um dos chefes estendeu a mão para o amparar, mas o soldado atingiu-o na cara, obrigando-o a recuar. Os espectadores riram-se e aplaudiram, saltando de excitação.
Os prisioneiros castigados apressaram o passo. Momentos depois, desapareciam da minha vista. Betesda tocou-me no braço, lançando-me um olhar de afecto. Eu apercebi-me de que apertava a borda da plataforma com uma força tal, que os nós dos dedos se me tinham embranquecido.
Era então o fim de Vercingetorix. Para ele, o dia terminaria como tinha começado, no Tuliano, onde seria descido ao poço e estrangulado. Os outros chefes teriam o mesmo destino, em rápida sucessão. Não haveria libertações de última hora. Não haveria sequer uma derradeira provocação, um desafio de orgulho ou de ira, mas apenas submissão e silêncio. Ele tinha sido definitivamente quebrado, estava quase incapaz de andar, ou de respirar. Os carrascos de César eram extremamente competentes, conseguindo obter o que queriam das vítimas, e Vercingetorix não fora excepção.
Em seguida, vinham os músicos e um grupo de mimos pretensiosos, que troçavam dos chefes tribais que acabavam de passar. A tensão subiu entre a multidão à passagem destas imitações dos seus inimigos, combinadas com gritos e gargalhadas. O mimo que fazia de Vercingetorix - reconhecível por uma versão de dimensões ridiculamente exageradas do famoso elmo alado do guerreiro, que quase lhe engolia a cabeça - confrontava um mimo que fazia de César, a avaliar

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pela brilhante armadura e a capa encarnada. O combate encenado que travavam, acompanhado por grandes palhaçadas, suscitava guinchos de riso nas crianças, e terminou com o mimo de César parecendo enfiar a espada pelo fundamento do mimo de Vercingetorix acima; este começou por lançar um grito agudo, para depois inclinar a cabeça para um lado e começar a remexer as ancas, como se estivesse a gostar da penetração. A multidão adorou.
Seguiam-se bailarinas, músicos e um coro de cantores. As pessoas batiam palmas e cantavam com eles as marchas que tinham aprendido com os avós. "Para a frente soldados romanos, por Júpiter combateis! O caminho de Roma é para a frente, a causa de Roma é justa..."
A seguir, desfilaram os despojos de guerra. Carros de fabrico especial, engalanados de coroas, transportavam as armaduras capturadas ao inimigo. Viam-se couraças soberbamente trabalhadas, elmos e escudos de excelente execução, bem como as mais impressionantes armas do inimigo, incluindo espadas brilhantes com punhos elaboradamente decorados, machados de ar temível, e lanças de ponta de ferro feitas de carvalho maciço, com estranhas runas nele gravadas.
O carro maior fora reservado para a armadura e as armas de Vercingetorix. A multidão aplaudiu o famoso elmo de bronze com as enormes asas de penas de ambos os lados. Também ali se encontravam os seus pertences pessoais, incluindo o anel de sinete com que selava os documentos, a taça de prata e o corno por onde bebia, uma capa de pele de urso, um animal que ele próprio matara, e até um par de botas, feitas de couro fino com intrincados desenhos celtas.
Passaram mais carroças, transportando o saque trazido de todos os cantos da Gália, artisticamente exposto para que a multidão pudesse ver bem cada objecto que passava devagar. Viam-se copos, jarros e vasos de prata, tecidos finamente bordados, produtos entretecidos com padrões que nunca se tinham visto em Roma, magníficas vestes de pele, lamparinas de bronze elaboradamente gravadas, pulseiras de cobre, colares de ouro, fivelas e alfinetes incrustados de pedras de cores e dimensões impressionantes. Viam-se estátuas de bronze e pedra, pouco trabalhadas a olhos romanos e gregos, que retratavam os estranhos deuses que não haviam conseguido proteger os gauleses.
Passaram mais carros, cheios de cofres a abarrotar de moedas de ouro e prata e outros tesouros. Ao ver tamanha riqueza, o povo abria

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a boca de espanto, os olhos brilhantes de ganância. Tinha-se espalhado o boato de que César tencionava distribuir ao povo de Roma uma parte considerável das riquezas capturadas na Gália. Cada cidadão podia ter a expectativa de receber, pelo menos, trezentos sestércios. Todos seríamos beneficiados com a pilhagem da Gália.
Por muito impressionante que fosse esta exibição de riquezas, jóias e metais, o saque humano da Gália excedia em muito as restantes riquezas. César tinha partido para a guerra com dinheiro emprestado, mas ficara fenomenalmente rico com a venda de seres humanos. A redução da população à escravatura fora feita em grande escala; nas suas memórias, o Ditador gabava-se de ter vendido mais de cinquenta mil elementos, só da tribo dos Aduátucos. Em comemoração deste feito, desfilava agora uma pequena amostra dos mais impressionantes cativos de César. Às centenas, de mãos presas atrás das costas, os movimentos limitados pelas correntes que tinham em redor dos tornozelos, que só lhes permitiam dar passos de bebé, desfilaram enormes guerreiros de compridos bigodes ruivos, jovens despidos de caracóis soltos, as cabeças baixas de vergonha. Seguia-se, com ar ainda mais infeliz, uma procissão aparentemente interminável de belas raparigas envoltas em véus transparentes, obrigadas a rodopiar sobre si mesmas para divertimento da multidão. Estes escravos seriam vendidos no dia seguinte, num leilão especial. Eram agora apresentados à multidão, para suscitar o interesse dos potenciais compradores. Aqueles que não tinham dinheiro para mercadoria de tão elevada qualidade podiam pelos menos olhar para eles com espanto, e sentir-se orgulhosos de César, que de tão notáveis espécimes humanos tinha feito escravos.
Tendo satisfeito o lúbrico interesse da multidão pela morte, a ganância e a luxúria - exibindo os chefes condenados e humilhados, os magnificentes despojos da guerra e por fim um sortido da carne que poderia vir a ser comprada, graças a César -, a procissão prosseguiu, agora com uma componente educativa.
A multidão pôde ver uma sequência de quadros, de tecido pintado e esticado sobre estruturas de madeira. Alguns deles, colocados sobre postes, eram suficientemente pequenos para poderem ser erguidos ao alto por um só homem; outros, porém, eram de dimensões razoáveis, pelo que tinham de ser apresentados por vários homens. Os quadros

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proclamavam o nome de todas as tribos vencidas e de todas as cidades conquistadas; eram acompanhados por maquetas, em madeira e marfim, das mais famosas cidades e dos fortes mais conhecidos da Gália. Outros quadros ostentavam características notórias da paisagem gaulesa - rios e montanhas, florestas e baías. Outros ainda retratavam vívidas cenas de guerra, habitualmente com César no centro dos acontecimentos, montando o cavalo branco de carga e de capa vermelha aos ombros.
Os oradores recitavam episódios vivazes das memórias de César, salientando o engenho do Ditador e a coragem das legiões romanas. Desfilaram igualmente enormes maquetas de torres de cerco, juntamente com aríetes, catapultas, balistas e outras máquinas de conquista que haviam sido efectivamente usadas no campo de batalha, com tabuletas identificando as batalhas em que tinham sido empregues. Na campanha contra os Gauleses, César e os seus engenheiros fizeram progredir enormemente a ciência da guerra; as muitas batalhas e os cercos que haviam feito tinham-lhes permitido aperfeiçoar novos métodos de destruição e morte, e aqui estavam os artefactos da imparável máquina de guerra que tinha esmagado, não apenas os Gauleses, mas todos os rivais de César.
Seguiam-se, marchando em fila indiana, os membros da guarda pessoal de César. A medida que avançava a multidão dos lictores armados, tantos que parecia que nunca mais acabavam, a multidão foi gradualmente silenciando os aplausos, reduzindo-se ao silêncio.
Fora Rómulo quem, há já muito tempo, se rodeara de lictores, armados com um machado para protegerem a pessoa do Rei, e com um feixe de bordões para disciplinarem quem o pusesse em causa. Quando a monarquia deu lugar à república, o Senado atribuiu lictores aos cônsules e a outros magistrados, a fim de os proteger durante os períodos em que ocupassem o cargo. Apesar das eternas expressões carrancudas com que se apresentavam, e das armas temíveis que empunhavam, ninguém se assustava ao avistar um grupo de lictores; era comum vê-los a atravessar o Fórum. O que tornava este grupo alargado tão inquietante era, parece-me a mim, o número. Eu nunca tinha visto tantos lictores ao mesmo tempo. Nem os antigos Reis tinham uma guarda pessoal tão alargada. Até os cidadãos mais distraídos

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foram obrigados a compreender, à vista de tantos lictores, o estatuto sem precedentes que César reclamara para si mesmo.
Acalmada pelo desfile dos lictores, a multidão irrompeu num rugido ensurdecedor quando César apareceu. Eu avistei primeiro os quatro cavalos brancos de neve, erguendo ao ar a orgulhosa cabeça de esplêndida crina, a que se seguiu o primeiro vislumbre do carro cerimonial dourado. César envergava o fato tradicional: uma túnica com folhas de palmeira bordadas, sobre a qual caía uma toga bordada a ouro; cobria-lhe a testa - cada vez mais pronunciada - uma coroa de louros. Trazia na mão direita um galho de loureiro e na esquerda um ceptro. Atrás dele vinha um escravo, que lhe sustentava sobre a cabeça uma coroa de ouro ornamentada com jóias.
Vi o escravo debruçar-se para diante e murmurar qualquer coisa ao ouvido de César. Devia estar a recitar-lhe a antiga fórmula: "Lembra-te de que és mortal!" A frase não se destinava a tornar humilde um general vitorioso, mas a desviar o chamado mau-olhado, os danos que um olhar invejoso poderia infligir. O carro trazia outros talismãs, que tinham o mesmo objectivo: uma campainha; um flagelo; e, escondido num local só conhecido das Virgens Vestais, um amuleto fálico chamado fascinum. Quanto mais alto ascendia um homem, mais protegido tinha de estar contra o mau-olhado.
Atrás de César vinham as tropas, as da frente a cavalo, e atrás delas, transportando os estandartes militares, as lanças adornadas com folhas de louro, uma grande multidão dos legionários que haviam prestado serviço na Gália.
No momento em que César passava diante de nós, ouviu-se um
estampido, de tal maneira cortante e sonoro que Mopso e Androcles
taparam os ouvidos. O carro cerimonial deteve-se com um grande solavanco. César foi violentamente atirado para diante. O escravo que lhe segurava a coroa caiu para cima dele. Os cavalos brancos bateram ruidosamente com os cascos nas pedras do chão e, lançando a cabeça para trás, soltaram um relincho lamentoso.
O coração bateu-me com toda a força no peito. Senti um arrepio gelado percorrer-me a espinha. O que estaria a passar-se?
Os lictores que se encontravam mais perto fizeram meia volta e correram para o carro. Alguns dos oficiais que seguiam a cavalo controlaram

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rigidamente as montadas, enquanto outros avançavam a grande velocidade, com uma expressão de alarme, para irem verificar o que se passava. César permanecia escondido pelos guardas e os oficiais que se tinham reunido à sua volta. A confusão generalizou-se entre os espectadores.
Eu tive uma sensação horrível. Afinal, Calpúrnia tinha razão, pensei. Havia uma conspiração contra a vida de César... e está a ter lugar aqui mesmo, diante dos meus olhos...
O burburinho que rodeava o carro de César prosseguia. Ouviam-se murmúrios e gritos de pânico provenientes do seio da multidão.
Finalmente, um oficial a cavalo separou-se do grupo e, erguendo um braço, dirigiu-se à multidão.
- Tenham calma! Não temos motivos para nos preocuparmos! César está bem. Foi o eixo do carro que se partiu, mais nada. O Triunfo prossegue assim que chegar outro carro. - E o oficial afastou-se, para se dirigir a outra parcela da multidão.
- "Mais nada", diz ele - resmungou alguém do meio da multidão. - Mas lá que é mau presságio, é sem dúvida!
A multidão que rodeava César foi diminuindo. O Ditador encontrava-se agora de pé, ao lado do carro empanado. Percebia-se que o veículo se havia afundado, tendo as rodas ficado todas torcidas. Ciente de que tinha os olhos da multidão fixos nele, César fazia o possível por assumir uma expressão despreocupada, mas não conseguia deixar de se mostrar um tanto abalado. Batia impacientemente com um pé no chão. Devia ser difícil um homem manter a dignidade depois de ter estado prestes a ser cuspido de um carro.
A espera prolongou-se. Para passar o tempo, os soldados ociosos começaram a cantar uma marcha, a que se seguiram gritos de aclamação a César. Vendo que a espera se ia prolongando, e que os humores se iam descontraindo, alguns soldados mais rudes entoaram um canto não muito delicado sobre o seu comandante:
Fechem o dinheiro Banqueiros romanos! Senão ele leva-o todo Para o gastar na Gália!

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Fechem as mulheres Gauleses medrosos! Chegou César O careca atrevido!
Fechem os livros Senadores e cônsules! Viva o Ditador! Que vai ser coroado!
Havia muito mais versos, alguns deles levemente obscenos. A multidão correspondia com gargalhadas deliciadas. Os soldados romanos têm fama de se rir dos seus comandantes, e os comandantes têm fama de não os levar a mal. César conseguiu emitir um sorriso de esguelha.
Vendo que os humores se descontraíam mais e mais, os cantos foram-se tornando ainda mais irreverentes, incluindo agora uma canção sobre a dúbia relação que, na sua juventude, César mantivera com o Rei Nicomedes da Bitínia:
Todos os Gauleses César conquistou, Mas Nicomedes conquistou-o a ele. Na Gália César encontrou glória, em César encontrou Nico um doce!
A multidão ria-se cada vez mais. As faces de César ficaram de um vermelho tal, que parecia que tinham sido pintadas com cinábrio, à semelhança dos generais triunfantes do passado. O Ditador subiu para o carro partido e, voltando-se para os soldados, ainda com o galho de loureiro e o ceptro nas mãos, ergueu os braços. Os homens suspenderam a canção, embora tivessem continuado a rir-se abertamente enquanto César se lhes dirigia:
- Soldados de Roma, vejo-me forçado a protestar! Estas canções são indubitavelmente divertidas, e a vossa coragem deu-vos o direito

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de hoje se entreterem de modo frívolo, mesmo que seja à custa de César. Mas esses versos relativos ao Rei da Bitínia são injustos, pouco fundamentados...
- Mas não são falsos! - gritou alguém lá de trás, provocando nova explosão de gargalhadas.
- ... e falsos! - concluiu César. - São efectivamente falsos. Por minha honra de romano...
- Jura pelas bolas de Numa! - gritou outro.
- Não, jura pelo bastão de Nicomedes! - bradou um terceiro. As gargalhadas eram ensurdecedoras, e César corou ainda com
mais intensidade. Aperceber-se-ia da figura ridícula que estava a fazer, um homem de cinquenta e dois anos, resplandecente com a coroa de louros e a toga, empoleirado num carro partido, tentando em vão convencer os soldados que comandava de que, trinta anos antes, não fora catamito de outro homem?
Os soldados não acreditavam nele. E eu também não. Durante uma das conversas que havíamos tido em Alexandria, César falara com razoável enlevo da relação que, na juventude, tivera com o Rei - um homem bastante mais velho do que ele -, apesar de, ao longo dos anos, os inimigos o terem picado com frequência com esse facto. Não era tanto o caso propriamente dito que o embaraçava, era sobretudo a presunção de que César desempenhara o papel passivo, uma posição imprópria para um homem romano, que deve ser sempre aquele que domina e que penetra. Fosse qual fosse a verdade acerca das intimidades de César com o Rei, o certo é que a história tinha adquirido vida própria. E, quanto mais César o negava, mais o assunto o perseguia.
A chegada de um carro de substituição permitiu-lhe evitar tornar-se ainda mais ridículo. Quando César desceu do carro empanado, era nítida a expressão de alívio que se lhe estampava no rosto.
O novo carro era um modelo cerimonial idêntico ao anterior, com a mesma forma redonda, mas com uma decoração menos esplêndida. Aproximaram-se vários sacerdotes e um grupo de Virgens Vestais, que vinham transferir os talismãs destinados a desviar o mau-olhado do primeiro para o segundo veículo. Entre eles, avistei Gneu, o tio de Calpúrnia, que murmurou umas preces e fez soar a campainha que

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instalou no novo carro. Tinha-lhe desaparecido da face a expressão de alegria solene, substituída por uma testa severamente franzida; é possível que não se sentisse muito satisfeito com o facto de ter de proceder a este dever sagrado pela segunda vez.
Entretanto, outro sacerdote prendia o flagelo ao carro, depois de o ter feito estalar no ar um par de vezes. Em seguida, e sob o olhar atento da Virgo Máxima, um jovem camilo rastejou para debaixo do carro partido, de onde tirou ofascinum. Antes de este ter sido aplicado na parte inferior do novo veículo, algumas pessoas tiveram um vislumbre do amuleto fálico - que habitualmente não era visto - e emitiram expressões de temor religioso.
O carro partido foi retirado da via. Os cavalos brancos foram atrelados ao novo carro e a procissão reiniciou-se. César desapareceu da nossa vista, seguido pela multidão de soldados que o acompanhavam. Os homens iam muito bem-dispostos, sorrindo e soltando gargalhadas.
Dava a impressão de que o colapso do eixo tinha sido um mero acidente. O resultado fora, para além de inofensivo, até divertido, dado que a interrupção introduzira uns laivos de candura na pompa e cerimónia da organização. As canções foram espontâneas, e a reacção de César também não podia ter sido ensaiada.
Mas eu não conseguia tirar da cabeça a frase que ouvira no meio da multidão no momento em que o eixo se partira: "Mas lá que é mau presságio, é sem dúvida!"
Seguiam-se mais dias de comemorações, em que os inimigos de César teriam muitas oportunidades para agir.

CAPÍTULO DEZ

No final da longa procissão, César abandonou o carro e subiu a pé ao alto do Monte Capitolino. A sinuosa vereda, visível para quantos nos encontrávamos cá em baixo, no Fórum, encontrava-se flanqueada por quarenta elefantes elegantemente ataviados, postados de ambos os lados.
Diante do Templo de Júpiter, o ditador ficou a aguardar que lhe fosse comunicado que Vercingetorix e os restantes prisioneiros tinham sido executados. Quando chegou o arauto que trazia essa notícia, ouviu-se uma grande ovação, e teve início o sacrifício dos touros brancos a Júpiter. Foram oferecidos ao deus vários despojos de guerra. O próprio César tirou da cabeça a coroa de louros e poisou-a sobre os joelhos da estátua de Júpiter que se encontrava no interior do templo.
A nova estátua de bronze de César, instalada diante do templo, foi oficialmente dedicada. Representava o Ditador em pose vitoriosa, em pé sobre um mapa do mundo. A inscrição, onde se lia a longa lista dos seus títulos e atributos - "Conquistador da Gália, Árbitro dos Faraós, Vencedor do Nilo", e por aí fora -, terminava com a declaração: "Descendente de Vénus, Semideus."
Seguiu-se um banquete público. O Fórum tinha sido transformado numa sala de jantar ao ar livre para o povo de Roma; as pessoas haviam trazido os talheres de casa ou comiam dos espetos, de pé, encostadas aos muros, ou sentadas nos degraus dos templos.
Ao cair da tarde, César desceu do Capitolino, o percurso iluminado pelos elefantes que flanqueavam a vereda, erguendo ao ar as tochas de bronze que tinham presas à tromba. Vista do Fórum, a imagem

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destes elefantes de lamparinas chamejantes, com César, de toga bordada a ouro, abrindo caminho pelo meio deles, dava a impressão de ser um estranho sonho, algo totalmente inesperado, inesquecível e atemorizador. Este derradeiro floreado do Triunfo Gálico suscitou brados de deleite, aplausos entusiasmados e suspiros de encantamento.
Nessa noite, quando finalmente regressei a casa, tinha um mensageiro à espera à minha porta.
Pedi ao sujeito que me seguisse até ao escritório, onde abri e li a tabuinha de cera que ele me estendeu. A mensagem não estava assinada, mas era obviamente de Calpúrnia:
O Egipto é o próximo, depois de amanhã. Tens de interrogar a Rainha. Terás de ser tu a marcar uma audiência com ela, mas não te demores! Quanto à irmã da Rainha, consegui maneira de a veres, como já tinha feito com o gaulês. Não é preciso responderes a esta mensagem, mas hei-de querer saber o que descobrires amanhã. Limpa estas palavras da cera depois de as teres lido.
Alisei a cera com a aresta da mão e devolvi a tabuinha ao mensageiro. Ele entregou-me um pequeno disco de madeira com o selo de Calpúrnia impresso em cera verde - um passe do mesmo género do que me permitira o acesso ao Tuliano - e explicou-me quando e onde podia ir, no dia seguinte, avistar-me com Arsínoe, a princesa egípcia.
Antes de adormecer, passei uma hora a ler o que Jerónimo havia escrevinhado sobre Cleópatra e sobre a menos afortunada irmã dela. Por esse motivo, os meus primeiros e últimos pensamentos desse dia foram para Jerónimo, ainda que César tivesse dominado as horas intermédias.
A Rainha do Egipto fora instalada numa das villas situadas fora das
muralhas da cidade que eram propriedade de César; esta ficava na
encosta do Monte Janículo, sobre o Tibre. Estava uma manhã tão

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quente, que eu me meti numa liteira no Fórum Boário, indicando aos carregadores que me levassem pela ponte, seguindo depois pela estrada junto ao rio; não estava interessado em aparecer a uma deusa todo corado e coberto de suor. Os carregadores hesitaram perante a ideia de terem de carregar com Rupa, e a Rupa também não agradava especialmente ser carregado, de maneira que ele seguiu a pé ao lado da liteira, flectindo os músculos, de maxilar estendido, olhando de um lado para o outro, suponho que para dar a impressão de que era o meu guarda-costas, mas dando mais a ideia (pelo menos a mim) de ser um miúdo curioso que crescera depressa de mais.
Haveria alguma possibilidade de Cleópatra estar implicada no assassínio de Jerónimo, e portanto numa conspiração contra César, como Calpúrnia parecia julgar? A mim parecia-me mais provável que Calpúrnia estivesse a tomar o desagrado que a Rainha lhe inspirava por uma genuína causa de suspeita. E contudo, Cleópatra contava-se no número das pessoas que Jerónimo costumava visitar. Além de que não era de presumir que Cleópatra se deixasse deter pelos normais escrúpulos que impedem as pessoas de, na maior parte das circunstâncias, matar terceiros. Que importância tinha a morte - ou mesmo o assassínio -, para uma mulher que estava convencida de que seria a monarca do outro mundo? Para Cleópatra, a morte de um simples mortal como Jerónimo não teria o menor significado. E era bem possível que nem a morte de um semideus - como César, que afirmava ser descendente de Vénus - lhe afectasse particularmente o estado de ânimo, se tal morte servisse os interesses da encarnação de Isis neste mundo.
Fosse como fosse, eu não estava minimamente certo de que Cleópatra me concedesse uma entrevista. Apesar das simpáticas palavras que ela escrevera na mensagem de condolências, a relação que eu mantivera com a Rainha em Alexandria não fora propriamente uma relação amigável.
Contudo, como já acontecera noutras ocasiões, Cleópatra surpreendeu-me. Pouco tempo depois de eu ter comunicado o meu nome ao guarda que se encontrava à porta, apareceu um escravo com a missão de me acompanhar à presença da Rainha. Rupa recebeu instruções para se deixar ficar por ali.

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O escravo não entrou em casa, conduzindo-me pelo jardim em socalcos. As roseiras estavam em flor, e o perfume das rosas enchia o ar quente. Por entre as flores e os arbustos do jardim, viam-se elegantes peças de estatuária. A Rainha estava a tomar o pequeno-almoço à sombra de uma figueira, sentada num banco de pedra, voltada para a espectacular paisagem do rio cintilante, para além do qual se avistava a cidade.
Cleópatra envergava um vestido plissado sem mangas, de linho fino, próprio para este tempo quente. Tratava-se de um vestido de corte simples, mas até nos mais modestos fatos dos muito ricos consegue um olhar observador detectar a extrema qualidade de produção. As sandálias leves de couro que tinha nos pés eram, também elas, discretas mas muito elegantes. Usava como jóias um conjunto de pulseiras, colar e brincos em prata martelada, com incrustações de topázio fumado e calcedónia preta. Penteara o cabelo preto para trás, preso num rolo, de maneira que o meu primeiro vislumbre foi do perfil que se encontra impresso nas moedas, o perfil de uma jovem de nariz e queixo proeminentes.
O filho de dois anos estava sentado na relva ali ao pé, envergando uma túnica roxa e rodeado de amas atentas. Apolodoro, o homem que era desde há muito o guarda-costas da Rainha, estava encostado ao tronco da figueira. Fora Apolodoro quem a trouxera à presença de César, enrolada numa carpete. O belo e elegante siciliano observou-me de alto a baixo com os olhos semicertados e depois endereçou-me um aceno de cabeça, mostrando que me tinha reconhecido.
A Rainha poisou um prato raso com uma pilha de amêndoas e tâmaras com casca.
- Gordiano-chamado-o-Descobridor! Nunca pensei voltar a ver-te.
Eu fiz uma vénia profunda, mas não me prostrei. Vendo bem, estávamos em solo romano.
- E espero que seja uma surpresa agradável, Majestade.
Como única resposta, ela endereçou-me um ligeiro sorriso, após o que meteu uma tâmara na boca.
Para um velho sobrevivente como eu, a Rainha pouco mais era do que uma criança - pelos meus cálculos, teria uns vinte e três anos - mas, desde a primeira vez que eu a vira, emergindo da referida carpete

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para se apresentar a César, tinha amadurecido consideravelmente. Se fora voluptuosa, a maternidade tornara-a ainda mais roliça. A suprema autoconfiança de que dava mostras deixara de parecer tão precoce; dava a impressão de ser agora um atributo conquistado, e já não apenas inato. Cleópatra era actualmente uma Rainha de pleno direito, sobrevivente de uma sangrenta guerra civil, governante do mais antigo de entre todos os reinos existentes e herdeira de Alexandre, o Grande, dado que descendia de Ptolemeu, o general e sucessor de Alexandre. Além disso - se o pequeno Cesarião era efectivamente filho de César -, dera à luz um filho de um semideus.
Ocorreu-me que, tradicionalmente, um general vitorioso se faz acompanhar pelos filhos nas ocasiões de júbilo; se tem filhos adultos, seguem a cavalo atrás dele; se são crianças, vão no carro do pai. Mas Cesarião não acompanhara César no Triunfo Gálico. Seria ainda possível que a criança egípcia viesse a participar no Triunfo Egípcio de César?
- Acabaste por encontrar a tua mulher - observou Cleópatra, referindo-se ao final da minha visita ao Egipto.
- Acabei de facto, Majestade. E regressámos ambos a Roma.
- Quer dizer que ela não se afogou no Nilo, como tu receavas?
- Aparentemente, não. Cleópatra deu uma gargalhada.
- Estás a ser irónico, Gordiano? Ou talvez tenhas uma réstia de misticismo em ti. A tua resposta não elimina a possibilidade de ela se ter afogado; e no entanto está viva. E porque não? O Nilo é um deus. Toma a vida, mas também dá vida. Talvez o Nilo se tenha apoderado da tua mulher e da tua vida, Gordiano-chamado-o-Descobridor, para depois tas devolver a ambas.
Na verdade, eu nunca soubera bem o que se passara no dia em que encontrei Betesda após prolongada separação. Avançara pela água adentro, à procura dela - ou em busca do olvido, se não conseguisse encontrá-la. Tinha entrado no Nilo, e o Nilo entrara em mim, pela boca. As águas haviam escurecido. Foi então que, dessa escuridão, emergiu uma mulher, que poisou a boca sobre a minha, num beijo. Em seguida, dei por mim deitado na margem do rio com Betesda a meu lado, sob um céu cor de púrpura raiado de azul-forte e vermelhão...

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Estremeci ao recordar-me daquilo, e procurei afastar a cena da memória. O Nilo estava longe. O rio que tínhamos aos pés era o Tibre, e estávamos em Roma.
Uma brisa ligeira agitou as folhas da figueira, o sol manchado de sombras incidindo na Rainha, os ornamentos de prata luzindo, as pedras de topázio e calcedónia emitindo intensos raios de luz.
- Recebeste a minha mensagem de condolências pela morte do teu amigo Jerónimo?
- Recebi sim, Majestade.
- Foi por isso que vieste ver-me?
Ela estava a facilitar-me a tarefa. Bastava-me acenar com a cabeça. Não tinha necessidade nenhuma de lhe explicar que estava ali na qualidade de espião da mulher do homem que era pai do filho dela.
- Surpreende-me que o meu amigo Jerónimo tenha tido a possibilidade de conhecer Vossa Majestade, e mais ainda de merecer as suas condolências.
- E porque não? O teu amigo Jerónimo e eu tínhamos mais em comum do que tu imaginas. Ele era um proscrito; eu também o fui durante aqueles meses terríveis em que o meu irmão ocupou o trono, obrigando-me a fugir para o deserto e a esconder-me entre condutores de camelos e nómadas. Além disso, Jerónimo falava um excelente grego e era muito culto, qualidades que não se encontram com facilidade nesta terra, apesar da pretensão que os Romanos têm de serem os guardiães da cultura grega. Tenho de te confessar honestamente que, quando aquele pomposo daquele Cícero tentou citar-me uma passagem de Esquilo, eu desatei a rir à gargalhada. Ele tem uma pronúncia tão vulgar!
Não é de espantar que Cícero te deteste, pensei.
- E o teu amigo tinha um excelente sentido de humor - prosseguiu ela. - Jerónimo fazia-me rir, como César noutros tempos.
- César já não faz rir Vossa Majestade? Ela franziu o sobrolho e ignorou a pergunta.
- Sim, tive pena de saber que Jerónimo tinha falecido. Foi assassinado, não foi?
- Foi de facto. Mas esse pormenor não constava do registo de morte.

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Ela resfolegou.
- Eu não obtenho as minhas informações nos registos públicos, Gordiano-chamado-o-Descobridor. Nem tu. O que foi que descobriste sobre a morte do teu amigo?
- Ainda não se sabe quem foi o assassino.
- Mas calculo que em breve se venha a saber. Tu és um sujeito tão esperto. Vieste pedir-me ajuda? Ou talvez aches que fui eu a responsável. Por Hórus, dá a impressão de que não há crime, grande ou pequeno, pelo qual os Romanos não me responsabilizem.
- Na verdade, há uma pergunta a que talvez Vossa Majestade possa ajudar-me a responder.
- Qual?
Na véspera, tinha-me ocorrido que o aparente interesse de Jerónimo pelos calendários poderia ter sido instigado por Gneu, o tio de Calpúrnia, na sua qualidade de sacerdote. Mas, dado que Jerónimo fora visita de Cleópatra, cujos sábios andavam a ajudar César a constituir o novo calendário, ocorreu-me igualmente que algum membro da comitiva de Cleópatra poderia ter instruído Jerónimo no domínio da astronomia.
Tinha trazido comigo as anotações dele. Tirei-as do saco e fiz menção de as estender a Cleópatra, mas Apolodoro interveio. Avançando para nós, arrancou-me da mão os pedaços de pergaminho. Cheirou-os e passou as mãos por eles de forma sistemática, pela frente e pelas costas, como se estivesse à procura de venenos. Pelo menos desde o tempo de Medeia que existem toxinas capazes de matar por via do contacto com a pele. Tendo-se certificado de que os escritos eram inofensivos, estendeu-os à Rainha, que os leu com uma expressão curiosa.
- Perguntava a mim mesmo se Vossa Majestade reconheceria estas notas.
- Não, nunca as tinha visto. Mas é manifesto que estas contas têm a ver com os movimentos da Lua e das estrelas e com o cálculo dos dias. Eram de Jerónimo?
- Encontravam-se entre as coisas dele, Majestade. Ela devolveu-me os documentos.
- Ele era mesmo um sujeito inteligente!

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- Perguntava a mim mesmo, Majestade, se Jerónimo teria consultado os sábios de Vossa Majestade sobre o novo calendário que César tenciona introduzir.
- De maneira nenhuma.
- Vossa Majestade parece muito segura.
- A pedido de César, dei instruções a todos os envolvidos na concepção do novo calendário para não falarem com ninguém. César insistiu muito para que ninguém tivesse conhecimento dos pormenores enquanto ele não os anunciasse oficialmente.
- Quer dizer que Jerónimo terá feito estes cálculos sem receber instruções de ninguém.
- Exacto. Ele não tinha informações precisas sobre o meu novo calendário.
- O vosso calendário? Pensei que o calendário revisto era obra de César.
Ela ergueu uma sobrancelha e acenou com a cabeça.
- E é. Foram os meus sábios que fizeram as contas necessárias, naturalmente, mas se isso lhe agrada, César pode ficar com os louros da concepção do calendário. César devia aliás reconhecer tudo quanto concebe - concluiu ela, lançando um olhar ao rapazinho que brincava na relva.
Eu segui a direcção desse olhar.
- Que miúdo tão bonito! - comentei, embora a criança me parecesse igual às outras todas.
- É parecido com o pai - afirmou Cleópatra. - Toda a gente diz.
A criança tinha mais cabelo do que César, mas talvez se conseguisse detectar uma semelhança na zona das faces e do queixo.
- Tem os olhos da mãe - observei. - Vai participar no triunfo de amanhã? - perguntei, num arroubo de atrevimento.
Ela olhou longamente para mim e em seguida respondeu:
- É uma pergunta delicada. A questão do Triunfo Egípcio é, toda ela, uma questão... delicada. O papel que me competirá desempenhar nele, bem como o papel que competirá ao meu filho, tem sido bastante discutido. - Os protagonistas desta discussão seriam com certeza ela própria e César, pensei eu, apesar da cuidadosa utilização

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da passiva. E, a avaliar pela maneira como Apolodoro revirou os olhos, sem se aperceber de que eu estava a observá-lo, as discussões não tinham sido agradáveis.
- Explicaram-me que, em última análise, um triunfo romano é uma comemoração estritamente indígena - prosseguiu ela. - Um triunfo romano tem a ver com as conquistas militares, e não com a diplomacia... nem com a descendência. O Triunfo Egípcio será uma comemoração da vitória de César sobre o renegado do meu irmão Ptolemeu, que se recusou a fazer as pazes comigo e que encontrou a morte no Nilo como recompensa pela sua perfídia. O Triunfo Egípcio comemora as armas romanas, e não... a relação pessoal... de César com o Egipto.
- Mas Vossa Majestade foi aliada dele na guerra. Ele combateu por vós.
Ela sorriu, mas sem alegria.
- Ele combateu para restabelecer a paz no Egipto, porque a nossa guerra civil estava a perturbar o fornecimento de trigo a Roma.
- Quer dizer que Vossa Majestade não vai participar no triunfo?
- Diz César que os triunfos são protagonizados por romanos, para os Romanos. Nem as mais distintas personagens de origem estrangeira têm lugar na procissão... a não ser como prisioneiras.
Eu fiz um aceno de cabeça.
- Ouvi dizer que Arsínoe, a irmã de Vossa Majestade, vai desfilar acorrentada. Não me lembro de alguma mulher de sangue real ter jamais desfilado como prisioneira num triunfo.
- Quer dizer que sempre é possível introduzir alguma inovação nos triunfos - replicou Cleópatra secamente. - Arsínoe ousou lançar as suas tropas contra mim. Merece o destino que vai ter.
- Mas ela só tem dezanove anos. E nessa altura ainda tinha menos.
- Apesar disso, vai desfilar como prisioneira na companhia de Ganimedes, que a apoiou, e no final será morta.
- Ganimedes?
- O professor dela.
- Um eunuco? - Os servos dos Ptolemeus eram quase todos castrados.

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- Naturalmente. Depois de Arsínoe ter mandado matar Aquilas,
o general dela, foi Ganimedes quem tomou o comando das tropas, se assim se lhes pode chamar.
Eu abanei a cabeça.
- Os gloriosos prisioneiros de César serão uma adolescente e um eunuco? Pergunto-me o que dirá o povo romano disso. Desconfio de que ficaria bem mais impressionado se visse Vossa Majestade, por exemplo entronada numa esfinge gigantesca.
Ela sorriu, agradada com a sugestão.
- Tens cá uma imaginação, Gordiano-chamado-o-Descobridor! Infelizmente, César não possui a mesma capacidade visionária. O triunfo destina-se a comemorar as vitórias que ele obteve no Egipto. Embora eu tivesse sido colaboradora e beneficiária destas vitórias, não participarei nele.
- E o filho de César também não?
Apolodoro estremeceu e abanou a cabeça com ar pensativo. Eu tinha tocado numa questão que devia ter suscitado muitas discussões acaloradas entre César e a Rainha, talvez aqui mesmo onde nos encontrávamos.
Cleópatra observou-me com intensidade durante longos momentos. Não lhe agradava que eu tivesse trazido o assunto à conversa, mas agradava-lhe que eu me tivesse referido ao miúdo como filho de César, sem equívocos.
- Foi decidido que Cesarião não seguirá no carro de seu pai - respondeu por fim.
Cleópatra estava a fazer todo o possível por esconder a desilusão que sentia, mas parecia manifesto que um dos propósitos - talvez o principal - desta sua visita diplomática a Roma fora persuadir César a reconhecer o filho dela como seu filho. Cleópatra tivera a esperança de fazer do Triunfo Egípcio uma comemoração de si própria e de Cesarião. Não era difícil seguir-lhe o raciocínio. Não seria natural que os Romanos ficassem satisfeitos com o facto de o herdeiro do trono egípcio ser um rapaz de sangue romano, ser o filho do homem que os governava? Não seria natural que ficassem impressionados com o facto de César ter copulado com uma mulher que era a herdeira de Alexandre, o Grande, a mais recente representante da mais venerável dinastia do mundo, a encarnação de uma deusa?

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Também não era difícil compreender por que motivo tinha César hesitado perante a ideia. Uma declaração aberta de intenções dinásticas era uma atitude que os Romanos ainda não estavam preparados para aceitar, e uma Rainha egípcia de sangue grego, por muito majestosa que fosse, não deixava de ser uma estrangeira, o que não fazia dela a mais adequada das mães dos filhos de um nobre romano. Também podia acontecer que César tivesse outros planos para o futuro, e não tivesse pensado em Cesarião como seu herdeiro.
Fosse por que motivo fosse, o certo é que César se tinha recusado a reconhecer Cesarião como seu filho. Apesar da oportunidade que este Triunfo Egípcio lhe proporcionava, Cleópatra tinha visto contrariados os seus desejos. Que sentimentos teria agora por César?
Ocorreu-me que, nesta altura, César poderia ter mais valor para ela morto do que vivo. O assassínio de César mergulharia Roma em grande tumulto, talvez mesmo em nova guerra civil. Por entre o caos e as ruínas, talvez o Egipto conseguisse expulsar as guarnições romanas e libertar-se do jugo romano.
Em comparação com as exigências de estado e as suas próprias ambições, os sentimentos que Cleópatra ainda albergasse por César eram inteiramente irrelevantes. A Rainha descendia de uma longa linhagem de crocodilos de sangue frio, famosos por devorarem os seus. Sua irmã mais velha, Berenice, tinha usurpado o trono ao pai; tendo recuperado as rédeas do poder, o pai mandara matar Berenice. Cleópatra não derramara uma única lágrima pelo irmão que morrera na guerra civil que os havia oposto a ambos. Nesta altura, parecia ansiar, com lúgubre satisfação, pela iminente humilhação e execução da sua irmã mais nova.
Seria Cleópatra capaz de conspirar para a morte de César? Teria motivações suficientemente fortes para isso? Olhei-a nos olhos e senti um arrepio, apesar do intenso calor que se fazia sentir naquele dia.

CAPÍTULO ONZE

Ao contrário de Vercingetorix, Arsínoe e Ganimedes não estavam presos no Tuliano; porém, se tudo corresse como estava planeado, seria para lá que seriam conduzidos amanhã, para serem mortos pelo executor.
Os dois egípcios estavam alojados no amplo complexo recentemente construído no Campo de Marte, que albergava o Teatro de Pompeu. O mensageiro de Calpúrnia tinha-me explicado como se ia lá ter, mas Rupa e eu, circulando por entre as lojas, as arcadas e as salas de reuniões, perdemo-nos por completo e fomos dar ao teatro propriamente dito, com as intermináveis fileiras semicirculares de assentos, coroadas pelo Templo de Vénus. No palco, estavam a ensaiar uma peça, certamente uma das muitas que seriam representadas no contexto das festas que se seguiriam ao quarto e último triunfo de César. Dramas, comédias, competições desportivas, corridas de carros no Círculo Máximo, recentemente alargado, batalhas encenadas nos campos de treino do Campo de Marte - tudo isto e muito mais tinha sido já anunciado. Após tantos meses de privação e temor, César queria proporcionar ao povo de Roma uma série prolongada de dias festivos cheios de comemorações e de todo o tipo de entretenimentos.
Olhei em redor para me orientar e detectei a escadaria dedicada que ia dar lá acima, lá muito acima, ao andar superior do teatro. Rupa e eu chegámos a uma porta bem guardada, onde apresentei o passe que trazia. Estava à espera de que me dissessem que Rupa não podia entrar, mas os guardas - agindo talvez com uma certa imprudência - deixaram-nos passar aos dois.

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Eu nem sabia que tal sítio existia; tratava-se de uma suite privada, localizada por detrás da última fileira de assentos, mesmo por baixo do Templo de Vénus. Talvez Pompeu tivesse mandado construir este ninho para as suas actividades pessoais, mas o isolamento e o acesso difícil faziam dele o local ideal para prender alguém. A proximidade do Campo de Marte, onde as tropas de César se reuniriam antes do desfile, permitia levar os prisioneiros, rapidamente e em segurança, até ao local da procissão.
O espaçoso compartimento, iluminado por uma série de janelas ao longo de uma das paredes, estava mobilado com gosto, se bem que escassamente. Tinha até uma varanda, com uma perspectiva alargada dos telhados em baixo, e do sinuoso Tibre, com as colinas onduladas para além dele. A varanda era alta demais para permitir a fuga.
Aparentemente, a princesa fora autorizada a ter pelo menos uma criada durante o cativeiro. Veio receber-nos uma aia muito alta e de rosto inexpressivo, que envergava um vestido semibrilhante de mangas largas, e um toucado que lhe juntava o cabelo numa espécie de almofada na nuca. Como única maquilhagem, umas linhas de kohl em redor dos olhos.
- Quem são vocês? - perguntou ela em tom severo, olhando-me de alto a baixo com desdém e para Rupa com uma expressão mais semelhante ao susto. Talvez eu tivesse um ar suficientemente decidido e Rupa fosse suficientemente musculoso para passarmos por executores públicos.
- Nada tens a temer de nós - descansei-a eu.
- São romanos?
- Somos.
- Nesse caso, a minha princesa nada pode esperar de bom de vós.
- Garanto-te que não vimos fazer-lhe mal. Eu chamo-me Gordiano. Este é o meu filho Rupa, que não fala.
- Presumo que venham da parte de César, não? Ninguém passa por aqueles guardas, se não tiver sido pessoalmente enviado pelo assassino de Reis. - Era manifesto que a opinião que ela tinha de César era diferente da opinião que Cleópatra tinha dele; César não era um arauto da paz, que tinha devolvido o trono a quem ele pertencia por

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direito, mas era o homem que tinha assassinado um monarca, o jovem Ptolemeu, e se preparava agora para assassinar um segundo.
- Isso não é bem assim, pois não? - sugeri eu. - Receberam pelo menos um visitante que não foi enviado por César, que foi aqui admitido por sua própria iniciativa, para satisfazer a sua curiosidade, e imagino que também para dar mostras de solidariedade. Refiro-me ao meu amigo Jerónimo.
A atitude dela mudou por completo. Descontraiu os ombros e as profundas rugas que lhe marcavam a face transformaram-se num sorriso. De olhos brilhantes, juntou as mãos ossudas numa sonora palma.
- Ah, Jerónimo! Dizes que é teu amigo? Conta-me então, como está esse homem encantador.
Eu fiquei impressionado com duas coisas: com o facto de os habitantes desta casa desconhecerem que Jerónimo tinha morrido; e com a percepção de que esta mulher estava apaixonada por ele. E porque não? Dava a impressão de ter aproximadamente a mesma idade que ele. Vendo bem, com este pescoço comprido e as feições estreitas e vulgares, podia perfeitamente ser a contraparte feminina dele.
- Lamento dizer-te que é por isso que aqui estou. Vim trazer más notícias à tua senhora.
Ela reagiu com uma gargalhada gutural, muito pouco feminina.
- Más notícias? Logo hoje, na véspera... Tendo em consideração o destino que impende sobre a cabeça da princesa, será difícil chamar "más" a quaisquer notícias. - Abanando a cabeça, a mulher olhou-me fixamente, dando às rugas nova configuração, e de repente, erguendo as sobrancelhas, pareceu compreender..- Oh não! Não me vais dizer que aconteceu alguma coisa a Jerónimo? Ao querido Jerónimo?
- Na verdade, sim. Mas eu preferia dar a notícia directamente a tua senhora. Ou talvez ao ministro dela, Ganimedes...
Ao mesmo tempo que eu pronunciava este nome, o mesmo fazia outra pessoa, que acabava de entrar no compartimento. Olhando por cima do ombro da mulher, vi a princesa Arsínoe, que se dirigia para nós.
- Ganimedes! - chamava ela. - Ganimedes, quem foi que bateu à porta? O que querem?
Eu olhei para a aia, pestanejei e, num instante, a ilusão criada pelos meus pressupostos desapareceu. Olhei para as mãos ossudas, cuja

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carne era macia, nunca tendo conhecido trabalhos físicos; mas não se tratava de mãos de mulher. Olhei para o pescoço e detectei a saliência reveladora, qual minúscula maçã. Olhei para a face vulgar, coberta de rugas, e perguntei a mim próprio como era possível que me tivesse enganado. A mulher não era mulher nenhuma. Quem estava diante de mim era Ganimedes, o eunuco.
Afinal, Arsínoe não fora autorizada a ter criadas. Ela e o ministro eram os únicos habitantes do pequeno apartamento. Não era de espantar que a princesa se apresentasse arranjada com tanta simplicidade: não tinha ninguém que a vestisse. O vestido comprido que envergava pouco mais elaborado era do que o de Ganimedes. Não tendo ninguém que lhe lavasse e arranjasse o cabelo, escondia-o dentro de um toucado de listras de tecido engomado, que lhe tapava a testa e que terminava em duas abas que lhe enquadravam as faces rechonchudas. Baixa e de constituição voluptuosa, como a irmã, Arsínoe tinha engordado durante o cativeiro.
Ganimedes também não dava a impressão de passar fome. A linha direita da veste que trazia era interrompida por uma protuberância na zona do estômago. Se ignorássemos o brilho nervoso que tinham no olhar, poderiam ser um casal entediado, que nada mais tinha que o ocupasse o dia inteiro senão comer.
Talvez por nenhum deles ser propriamente um guerreiro, não fora considerado necessário reduzi-los, por via da tortura e da fome, a um miserável estado de quase colapso. Mas também é possível que não tivessem sido maltratados por causa de serem quem eram. Princesa alguma desfilara jamais em Roma em antecipação da morte, e também não me parece que tenha havido eunucos nas procissões de triunfo. O organizador deste triunfo - que se calhar tinha sido o próprio César - poderá ter considerado que eles já eram ambos suficientemente pouco viris para ser necessário degradá-los ainda mais, em preparação para o desprezo a que seriam sujeitos por parte do povo romano.
- Ganimedes, quem são estes homens? - Arsínoe postou-se ao lado do eunuco, que era muito mais alto do que ela, e ergueu os olhos para mim.
Com um gesto delicado, Ganimedes limpou uma lágrima que se lhe formara no olho, tendo o cuidado de não esborratar o khol.

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- São amigos de Jerónimo - sussurrou, num tom quebrado pela emoção. - Do nosso querido Jerónimo.
- Chamo-me Gordiano. O meu filho, que não fala, chama-se Rupa - disse eu. - Majestade - acrescentei, curvando-me ligeiramente, e dando uma cotovelada a Rupa, a indicar-lhe que fizesse o mesmo.
Percebi que ela tinha apreciado o gesto, por muito superficial que fosse.
- É bem possível que sejam os últimos mortais a tratar-me por esse título e a cumprimentar-me com uma vénia - comentou ela com tristeza.
- Isso não é verdade, Majestade - interveio Ganimedes, ultrapassando as lágrimas. - Eu hei-de tratar-vos por Majestade e inclinar-me diante de vós até ao derradeiro momento.
- Claro que sim, Ganimedes - retorquiu ela. - Eu queria dizer que seriam os últimos sem contar contigo. Mas o que foi que aconteceu a Jerónimo?
- É com muita pena que tenho de te dizer que ele morreu. Ela suspendeu a respiração.
- Como?
- Foi assassinado com um punhal.
- Quando?
- Há cinco dias, no Monte Palatino. Ela abanou a cabeça.
- Não haverá fim para a maldade que reina neste mundo? Pobre Jerónimo.
Eu cheguei à conclusão de que o aspecto roliço não lhe ficava mal. Arsínoe era mais bonita do que a irmã mais velha, a suavidade das suas feições fazia com que se tornasse mais difícil imaginá-la no papel de crocodilo rapace. Atrás de mim, ouvi Ganimedes chorar.
- Soube que Jerónimo veio visitar-vos, Majestade, em mais do que uma ocasião.
- É verdade, era uma das poucas visitas que recebíamos, para além dos guardas. Começou por mandar uma mensagem, a explicar de onde vinha e quem era, e dizendo que tinha curiosidade em me conhecer. A curiosidade era mútua.
- E porquê, Majestade?

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Ela dirigiu-se à varanda e saiu para o exterior. Eu segui-a, a uma distância respeitosa.
- Tanto Massília como Alexandria foram cidades fundadas por gregos, perto da foz de rios importantes - explicou ela. - Ambas se tornaram centros de cultura, de estudo e de comércio. Alexandria é uma cidade muito mais importante, evidentemente, nem se compara, mas Massília é mais antiga. Jerónimo fora escolhido para servir de Bode Expiatório de Massília, para ser a vítima sacrificial que afastaria o sofrimento que, de outra maneira, poderia consumir por completo a cidade: o sofrimento infligido por César. E não é verdade que eu sou o Bode Expiatório de Alexandria? César chegou. César impôs-nos a sua vontade à força das armas. A cidade rendeu-se. E agora, tem de haver uma vítima a exibir ao povo de Roma, um povo sedento de sangue. E essa vítima sou eu.
Fixando os olhos na cidade que se estendia a seus pés, prosseguiu.
- Cidade vergonhosa! Povo vergonhoso! Pensar que uma descendente de Ptolemeu vai desfilar diante deles como se fosse uma criminosa, para depois ser morta como um cão. Os deuses terão muitas contas a dar-me quando me juntar a eles nos Campos Elíseos!
Voltou-se para dentro e trespassou-me com um olhar dolente. Parecia ter muito mais do que os dezanove anos que efectivamente tinha, e projectava uma presença que ultrapassava a sua estatura.
- Mas Jerónimo enganou as Parcas. Ele era o Bode Expiatório que tinha conseguido escapar-lhes! Nós tínhamos a esperança de que a fortuna dele se transmitisse a nós de alguma maneira, não era, Ganimedes? Infelizmente, a sorte dele deve ter passado para outra pessoa se, como dizes, ele foi assassinado. Conhecia-lo bem?
Expliquei-lhe rapidamente a relação que tivera com Jerónimo, bem como o motivo por que me encontrava ali.
- Desde que ele morreu, tenho andado a ler os papéis dele. Jerónimo escreveu coisas muito simpáticas sobre vós. - Na verdade, ele tinha escrito muito pouco sobre Arsínoe. Mas tinha-a visitado mais do que uma vez. Porque teria aqui voltado, se não tinha nada de interesse a relatar? Jerónimo nem sequer se tinha referido a Ganimedes, o que era estranho, dada a óbvia paixoneta que o eunuco tinha por ele.

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Ter-se-ia Jerónimo sentido tão embaraçado com as atenções de Ganimedes que decidira não se referir a elas, nem sequer no seu diário privado? Não me parecia. Jerónimo não era pessoa que se deixasse enervar com facilidade, ou que se deixasse silenciar. Se lhe parecesse que a paixoneta do eunuco era absurda, ter-lho-ia dito; não deixaria passar a oportunidade de o ridicularizar. Mas não fora isso que acontecera.
O que deixava em aberto uma curiosa possibilidade: de que a atracção tivesse sido mútua. Eu tendia a considerar Jerónimo um sibarita, um homem que se interessava por jovens belos; eram esses os prazeres que lhe haviam sido proporcionados quando fora escolhido para Bode Expiatório. Ganimedes, este ser de feições vulgares, não era um provável objecto das paixões do meu amigo. E contudo, nada há que seja tão pouco previsível como a atracção que um mortal sente por outro.
O que sabia eu acerca das ânsias mais profundas de Jerónimo - ou, a bem dizer, de Ganimedes? Certamente que o eunuco não era apenas aquilo que dava a conhecer a um primeiro olhar. Ganimedes ascendera a uma posição de grande poder numa das cortes reais mais competitivas do mundo, num ambiente do mais elegante e sofisticado que se possa imaginar. Os conhecimentos e a inteligência que possuía haviam-lhe sido muito úteis; ele tinha vivido o género de vida que Jerónimo devia ter vivido, não se tivesse a Fortuna voltado contra ele na juventude. Depois, a Fortuna voltara-se contra Ganimedes, numa altura em que Jerónimo parecia viver uma existência de encanto. Estes homens eram a imagem no espelho um do outro. Não poderia tal facto explicar a possível atracção mútua que tivessem sentido?
Se Jerónimo se tinha efectivamente sentido atraído pelo eunuco, talvez não fosse de espantar que não referisse esse facto nos seus papéis. Não o teria referido a Calpúrnia, considerando que ela não tinha nada a ver com o assunto, e eu desconfiava de que também não teria referido tais factos no diário pessoal, que era mais um repositório de observações contundentes e de jogos de palavras, do que um meio para confissões sentidas.
Voltei-me para o choroso Ganimedes. Atentei profunda e longamente naqueles olhos brilhantes, e tive a certeza de que a minha supo-

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sição era correcta. Jerónimo! Jerónimo! Deixarás jamais de me surpreender? Até depois de morto me lanças novos quebra-cabeças.
Teria Arsínoe sabido disto? Ter-lhes-ia proporcionado momentos em privado, quando Jerónimo vinha visitá-los? As visitas dele não podiam certamente ser muito prolongadas, porque os guardas não lho teriam permitido. Era bem possível que as intimidades entre o Bode Expiatório e o eunuco não tivessem avançado para além de uma carícia ou um beijo de passagem. Certas relações tornam-se mais intensas pelo facto de se encontrarem limitadas por circunstâncias trágicas.
- Espera aí! - Arsínoe avançou para mim e olhou-me atentamente. - Bem me parecia que estava a conhecer-te, e já sei de onde. Tu estiveste com César em Alexandria! Não podes negá-lo!
- Estive de facto, Majestade. Estive no palácio real ao mesmo tempo que César. Mas não me lembro de nos termos encontrado os dois...
- Mas eu lembro-me de ti. Estou a conhecer a tua cara. Tu eras um dos romanos que estavam presentes na enorme sala de recepções naquele dia; depois de Cleópatra ter conseguido chegar à presença de César e meter-se na cama dele. César reuniu-nos a todos, e procedeu à distribuição do reinado do nosso pai entre os irmãos. Decidiu que Cleópatra e Ptolemeu partilhassem o trono, em Alexandria. E eu ficaria com Chipre. Claro que o acordo durou tanto como uma gota de água no deserto egípcio. - Ela observou-me de alto a baixo. - Quem és tu? Um oficial de César?
- De maneira nenhuma.
- És um conselheiro político dele? És um daqueles mercadores que vieram com César ao Egipto para nos roubarem as reservas de trigo?
- Não cheguei a Alexandria na companhia de César, Majestade. Fui ao Egipto tratar de assuntos pessoais. Se acabei por ficar instalado no palácio real, foi porque...
- Conheces a minha irmã?
Eu interrompi o que estava a dizer e fiquei a olhar para ela de boca aberta.
Arsínoe não desviava os olhos dos meus.
- Não tens resposta pronta para esta pergunta, pois não? Quando foi a última vez que estiveste com Cleópatra?

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O crocodilo tinha-se agitado dentro dela. O tom ameaçador da voz de Arsínoe fez-me arrepiar, por muito que proviesse de uma adolescente gorducha que era, naquele momento, uma prisioneira incapaz. Tratava-se de uma inimiga vencida, que César considerava ter suficiente importância para a fazer desfilar no seu triunfo, e ser suficientemente perigosa para a mandar matar.
Se eu mentisse, ela aperceber-se-ia.
- Estive com a irmã de Vossa Majestade esta manhã. Na realidade, venho agora mesmo de lá.
- Foi ela que te mandou vires espiar-me? Tem medo de que eu consiga fugir? Se conseguisse, fugia! E ia direitinha à villa onde César a instalou, como se fosse a prostituta dele, estrangulá-la!
Dizendo isto, apertou o ar entre os dedinhos roliços. A ilusão do crocodilo desapareceu. Tratava-se de uma criança furiosa, e muito assustada. Veio direita a mim, mas eu agarrei-lhe os pulsos.
- Larga-me, seu porco romano! - gritou ela. Ganimedes fez menção de se aproximar de nós, mas Rupa impe-
diu-o de avançar.
- Pelo ka do meu pai, juro-vos que não sou um espião da vossa irmã - declarei eu. O juramento pareceu acalmá-la, mas eu nem por isso lhe larguei os pulsos.
- Então o que foste fazer a casa dela?
- Estivemos a conversar sobre Jerónimo.
- Jerónimo também visitava Cleópatra?
- Visitava. Mas não era vosso inimigo, como eu também não sou. Arsínoe soltou-se com um gesto seco e desviou o rosto. Mostrava-se trémula e ofegante, mas depois acalmou-se.
- Diz a César, ou à minha irmã, ou à pessoa que te enviou, quem quer que tenha sido, que a Rainha legítima do Egipto está preparada para enfrentar o seu destino. Fá-lo-á de cabeça erguida e ombros direitos. Não a verão chorar, nem tremer, nem arrancar o cabelo e suplicar misericórdia à multidão romana. Nem se lançará desta varanda, embora eu suspeite de que foi a esperança de que tal acontecesse que levou César a fechar-nos aqui; queria que eu me matasse e o poupasse à vergonha de executar uma mulher.

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Voltou-se para mim, suficientemente recomposta para ser capaz de me olhar de frente.
- O meu destino está nas mãos dos deuses. Mas o de César também está, quer ele saiba, quer não. Os crimes que cometeu contra mim são uma ofensa aos deuses, que nunca se esquecem e raramente perdoam. César não escapará ao juízo divino. Quando chegar o momento, sofrerá um castigo terrível. Atenta nas minhas palavras!
A porta abriu-se e um dos guardas entrou no compartimento.
- Que gritaria foi esta?
- As minhas visitas querem ir-se embora - declarou Arsínoe, voltando-me as costas e dirigindo-se novamente à varanda. Ganimedes seguiu-a a passos largos, passando por mim de nariz no ar.
Enquanto descíamos os numerosos lances de escadas, ponderei na ameaça que Arsínoe constituiria para César e para Cleópatra. Se pudesse, matá-los-ia aos dois, disso não tinha eu dúvida alguma. A morte de Cleópatra permitir-lhe-ia retomar o controlo do poder em Alexandria, na presunção de que conseguisse regressar viva à sua terra. A morte de César poderia gerar o caos em Roma, proporcionando ao Egipto a total independência. Mas de que meios dispunha Arsínoe para matar fosse quem fosse, ou para engendrar a própria fuga? Haveria, na comitiva de Cleópatra, indivíduos leais a Arsínoe?
Estava a entregar-me a especulações ociosas. Não tinha qualquer razão para pensar que Arsínoe tivesse a possibilidade de conceber um duplo assassínio e uma fuga de última hora. E contudo, Jerónimo tinha afirmado que a ameaça a César provinha de uma fonte inesperada...
Avançando mais depressa do que eu, Rupa estava continuamente a olhar para trás, tentando dizer-me qualquer coisa por meio do sistema de gestos e expressões faciais a que costumava recorrer. Eu franzi o sobrolho, sem conseguir compreendê-lo.
- O que estás tu a tentar dizer-me, Rupa? Vá, pára um momento, para eu te ver bem.
Ele quase explodia de emoção. Com um gesto, indicou as formas bem torneadas de Arsínoe - era um gesto bem claro. Mas o sentimento a que estava a tentar dar expressão era de tal maneira intenso, que o vocabulário não lhe chegava lá.

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Eu sorri tristemente.
- Sim, Rupa, concordo contigo. A maneira dela, Arsínoe é de facto magnífica!
Ele acenou vigorosamente com a cabeça, uma expressão de assombro no rosto, os olhos rasos de lágrimas.
Oh Rupa!, pensei. Não é nada boa ideia um sujeito como tu ter sentimentos desses por uma princesa; muito menos por uma princesa que vai morrer amanhã.

CAPÍTULO DOZE

- Quer dizer que conseguiste suportá-las a ambas no mesmo dia? - perguntou Calpúrnia. - Qual das irmãs te pareceu mais perversa?
Os últimos raios da luz do Sol, entrando pela janela, iluminavam o compartimento com uma luz suave; ainda não eram propriamente horas de acender as lamparinas. A mulher de César e o arúspice da mulher de César estavam sentados lado a lado; Rupa e eu permanecíamos de pé. O fato amarelo de Porsena - o elemento mais colorido que havia naquela sala - parecia absorver por completo a luz ambiente, refiectindo-a em seguida.
- Perversa não seria talvez a palavra com que eu descreveria qualquer delas - repliquei eu. - Não são pessoas assim tão simples.
- Que disparate! Não me venhas dizer que também foste contagiado pela famosa mística dos Ptolemeus, Descobridor, por essa ideia absurda que eles invocam de que são alegadamente divinos.
Eu ergui uma sobrancelha.
- Segundo creio, de acordo com a nova estátua de César que se encontra no Capitólio, o teu marido é um semideus.
- Descender de uma deusa e encarnar uma deusa são duas coisas completamente diferentes - objectou ela.
- Se tu o dizes.
Calpúrnia ignorou o meu tom sardónico.
- E não se calam com as tais numerosas gerações de linhagem real, que remontam ao primeiro Ptolemeu. Más quando foi que ele ocupou o trono? Há duzentos e cinquenta anos? Devo dizer-te que a minha família descende do Rei Numa, que viveu há mais de seiscen-

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tos anos. Comparados com os Calpúrnio, os Ptolemeus não passam de uns arrivistas. Não é verdade, tio Gneu?
E Calpúrnia dirigiu um aceno de cabeça ao sacerdote de cabelos brancos, que acabava de se juntar a nós.
Gneu Calpúrnio beijou a sobrinha na testa. Depois fez estalar os dedos, e um escravo trouxe-lhe uma cadeira.
O tio Gneu sentou-se, soltando um resmungo.
- Exactamente, minha querida; a nossa linhagem é muito mais antiga do que a dos Ptolemeus. Além disso, Ptolemeu algum fez jamais façanhas que se comparassem com as do nosso antepassado Numa. Numa instituiu a ordem das Virgens Vestais. Estabeleceu as datas das festas e dos sacrifícios, prescreveu os rituais para o culto dos deuses, e criou os sacerdócios encarregados de realizar esses deveres sagrados. Pela mediação da sua bem-amada, a ninfa Egéria, entrou em comunicação com o próprio Júpiter, o pai dos deuses. O que fizeram os Ptolemeus, para além de construírem aquele farol?
Que tu obviamente nunca viste, meu idiota pomposo!, pensei eu. O farol de Faros, a construção mais alta do mundo, que lançava um foco de luz que se conseguia avistar de enorme distância, em terra e no mar, era uma verdadeira maravilha do mundo, que provavelmente continuaria de pé muito depois de a decrépita contagem dos dias levada a cabo por Numa ter passado da memória, suplantada pelo novo calendário de César - ele próprio concebido pelos sábios residentes na biblioteca instituída pelos Ptolemeus.
Mas não disse nada disto. As gabarolices do tio Gneu mais não eram do que distracções. O que Calpúrnia queria saber era se Cleópatra ou Arsínoe constituiriam uma ameaça para o marido. As notas que Jerónimo tomara das visitas que lhes fizera eram, a este respeito, inúteis. Eu só podia confiar nas minhas próprias observações e no meu instinto.
- Estou persuadido de que a Rainha do Egipto veio a Roma com um objectivo em mente: convencer César a reconhecer o filho dela como seu filho.
- Coisa que ele nunca fará! - declarou Calpúrnia. - Por um lado, porque a criança não é filha de César. Porsena estudou o assunto.
- Ai sim? - respondi eu.

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O arúspice sorriu.
- Consegui obter uns cabelos do rapaz, não interessa como. Fiz um sacrifício. Queimados o pêlo e as entranhas do animal sacrificial, o padrão do fumo indicava claramente que a criança não tinha ponta de sangue romano. A ciência dos arúspices nunca se engana em questões deste calibre.
- Deve ser uma cria daquele lacaio dela, o sujeito que a transporta de um lado para o outro enrolada numa carpete - observou o tio Gneu. - Uma mulher que recorre a semelhante indignidade é perfeitamente capaz de permitir a um escravo que se aproxime dela.
Eu duvidava de que assim fosse. Se havia coisa que Cleópatra levava a sério, era a dignidade da sua pessoa. Para uma mulher que se considerava uma deusa, copular era uma actividade séria, uma actividade sagrada.
- César tem conhecimento dos resultados desta adivinhação? Calpúrnia fez uma careta.
- César nem sempre concede suficiente importância aos antigos métodos de conhecimento.
- Observa os rituais, mas não tem deles uma compreensão profunda - completou o tio Gneu, abanando a cabeça.
- Silêncio, tio! - interveio Calpúrnia vivamente. - Não é boa altura para discutirmos as deficiências de César em matéria religiosa. Vamos ouvir que mais tem o Descobridor a comunicar-nos.
- Como estava a dizer, a Rainha veio a Roma na expectativa de estabelecer a legitimidade de seu filho. Tinha a esperança de que tal evento fosse comemorado no Triunfo de amanhã. As suas intenções foram no entanto frustradas. Parece-me que ela não tinha compreendido como reagiria o povo romano a tal notícia. Parece-me que também não tinha compreendido exactamente em que consistia um triunfo romano. César corrigiu-lhe estas deficiências de percepção.
- E o que tenciona ela fazer agora? - perguntou Calpúrnia.
- Cleópatra é uma mulher pragmática; suficientemente pragmática para se deixar enrolar numa carpete se isso lhe permitir realizar os seus propósitos. Mas também é uma mulher tremendamente voluntariosa. Não seria eu a querer desiludi-la. E não seria eu a querer que ela me tomasse por seu inimigo.

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- Queres dizer que César, tendo-a desiludido, é agora inimigo dela?
- Não sei. Talvez fosse preferível perguntares a César o que acha ele. Eu sinto-me muito mais seguro no que aos sentimentos da princesa Arsínoe diz respeito. Não tenho qualquer dúvida em afirmar que, se tivesse a menor oportunidade de o fazer, ela os eliminaria aos dois, César e Cleópatra.
- Mas como poderia ela fazer semelhante coisa?
- Arsínoe tem aliados na cidade? Com a rede de agentes de que dispões, é mais provável seres tu a saber tal coisa do que ser eu.
- Mas que impressão tens tu dessas egípcias, Descobridor? O que te dizem os teus instintos?
Que pergunta, vinda de Calpúrnia, a mulher que no passado se mostrara sempre tão racional! Teria ela abandonado por completo a frieza da lógica, para se dedicar à adivinhação e à intuição?
Suspirei.
- Vou dizer-te o que penso. É quase certo que Cleópatra teria oportunidade para matar César, se quisesse, mas provavelmente não quer. Arsínoe matá-lo-ia sem hesitar se pudesse, mas quase de certeza não pode.
- O que significa que César sobreviverá ao triunfo de amanhã?
- Calpúrnia olhou para o tio, para o arúspice, e finalmente para mim - Queria que lhe confirmássemos a esperança.
- Não tenho qualquer razão para pensar o contrário - respondi eu, e enderecei uma oração à Fortuna para não me enganar.

Rupa e eu atravessámos o Palatino ao lusco-fusco. As ruas estavam quase desertas. Para muitas pessoas, tratara-se de um dia destinado a recuperar das festividades do Triunfo Gálico, e a preparar o Triunfo Egípcio, que teria lugar amanhã. Os únicos que trabalhavam eram os escravos que, empoleirados em escadas à porta da casa dos respectivos amos, metiam as tochas acesas nos suportes, para alumiarem as entradas e iluminarem parcelas da rua.
Dobrámos uma esquina. Avistámos a minha casa, um pouco mais adiante, a seguir a uma ligeira curva. À minha porta, encontrava-"se

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uma pequena companhia de lictores armados. Rupa apertou-me o braço para me avisar.
- Estou a vê-los, Rupa. Lictores à porta de casa. Nunca é bom sinal. - Tentei dar um tom ligeiro às minhas palavras, mas o coração batia-me com toda a força no peito.
Quanto mais me aproximava, maiores me pareciam os lictores. Todos eles tinham mais meia cabeça de altura do que Rupa e eram consideravelmente mais corpulentos. Eram verdadeiros gigantes, estes sujeitos; muito possivelmente gauleses, pensei, e comparados com eles os romanos são gente pequena. Senadores gauleses, lictores gauleses - uma das principais queixas que circulavam actualmente contra César era a de que tinha infestado a cidade de gauleses. Exterminara os gauleses que se lhe opunham - Vercingetorix fora provavelmente o último -, de maneira que os que haviam sobrevivido eram leais apenas a César. Mas seriam mesmo? Nos últimos tempos, para onde quer que olhasse, eu procurava em toda a parte ameaças contra César. Os lictores dele seriam de confiança?
Mas centrando-me agora no que verdadeiramente interessava: o que estavam os guarda-costas do Ditador a fazer à porta de minha casa?
Quando me aproximei, sem nunca fazer abrandar o passo, um dos homens avançou para me impedir a passagem.
- Sai-me da frente - ordenei eu, tentando evitar que a voz me tremesse. - Chamo-me Gordiano. Sou cidadão. Esta casa é minha.
O homem acenou com a cabeça. Lançou um olhar cauteloso a Rupa, mas desviou-se.
Estava eu a estender a mão para a porta de minha casa, quando esta se abriu para trás. E ali na minha frente, enquadrado pelo arco da entrada, vi César em pessoa.
Não o via face-a-face desde a altura em que nos tínhamos encontrado em Alexandria, onde o sol egípcio lhe conferira à pele um aspecto macio e bronzeado. Nesta altura, estava magro e pálido, quase tão branco como a toga, e os escassos cabelos que ainda lhe cobriam a testa estavam abundantemente salpicados de fios brancos. Por um instante apenas, vi-lhe uma expressão desprotegida, os cantos da boca voltados para baixo, os olhos levemente vazios, o sobrolho franzido;

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dava a impressão de ser um homem sobrecarregado por preocupações. Mal me viu, porém, a expressão transformou-se-lhe num sorriso luminoso.
- Gordiano! Era mesmo contigo que eu queria falar. Disseram-me que tinhas saído e que não sabiam quando regressarias. Ainda assim, esperei algum tempo. Que simpático, que pacífico é o teu peculiar jardinzinho. Estava para me ir embora, mas eis que tu chegas!
- Sim, eis que chego!
- E quem é esse que vem contigo? Ah, sim, Rupa. Lembro-me dele, de Alexandria.
- Foram tempos memoráveis, Ditador. César soltou uma gargalhada.
- Não precisas de me tratar pelo título, Gordiano. Já passámos por muitas coisas juntos.
- Apesar disso, eu sou cidadão romano, e tu és o meu Ditador. Trata-se de um cargo venerável, não é verdade? Os nossos antepassados instituíram a ditadura para que os homens fortes pudessem proteger o estado em alturas de perigo. A curta lista dos cidadãos que ocuparam esse cargo é altamente distinta.
O sorriso dele estremeceu a um canto.
- É certo que a ditadura foi manchada por Sula. Eu tenho a esperança de ser capaz de lhe devolver o antigo lustro no coração do povo romano. Muito bem, visto que chegaste, não queres convidar-me a descansar mais algum tempo no teu jardim?
- Claro que sim, Ditador. Se os teus lictores me deixarem passar. A bem dizer, nenhum deles estava a impedir-me a passagem; mas,
a um leve aceno de cabeça de César, os lictores recuaram em conjunto. O próprio César se desviou para o lado para me dar passagem.
Betesda, Diana e Davo encontravam-se no vestíbulo, Mopso e Androcles espreitando por detrás deles. Estavam todos com um ar constrangido; ao que parecia, acabavam de se despedir formalmente de César. Quando eu passei por ela, tendo convidado César a avançar à minha frente, Diana sussurrou-me ao ouvido:
- Em nome do Hades, o que quer ele de ti, papá?
Eu respondi-lhe com um encolher de ombros, porque não fazia ideia nenhuma. A não ser que ele tivesse tido conhecimento das acti-

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vidades da mulher, e se preparasse para me confiar o que achava das investigações que eu andava a fazer por indicação de Calpúrnia.
Dentro de casa, as lamparinas já tinham sido acesas, mas o jardim estava praticamente às escuras. Disse a Rupa que fosse buscar umas lamparinas, mas César abanou a cabeça.
- Não é necessário, Gordiano. A escuridão não me incomoda, se não te incomodar a ti. Está bastante agradável assim, a cheirar a jasmim e a rosas neste calor do lusco-fusco.
Sentámo-nos voltados um para o outro. Não se vendo bem, eu tinha dificuldade em perceber que expressão era a dele. Talvez fosse isso mesmo que ele pretendia. Ocorreu-me que devia cansá-lo estar constantemente a ser observado por terceiros, ansiosos por lhe lerem os pensamentos e lhe conhecerem as intenções.
E foi então que o coração me deu um salto no peito, e a boca se me secou, porque me ocorreu de repente que César podia ter vindo trazer-me notícias de Meto. Teria acontecido alguma coisa em Espanha, onde se dizia que os restos dispersos dos inimigos de César estavam a reunir-se, na esperança de conseguirem voltar a pôr em causa a supremacia do ditador? Levei a mão ao peito, como se com isso pudesse acalmar o coração. Mas com certeza que César não me teria acolhido com um sorriso tão aberto se tivesse vindo trazer-me más notícias...
Devo ter murmurado o nome de Meto, porque César voltou a sorrir - percebi que o fizera, apesar do escuro - e repetiu o nome:
- Meto! Ah, sim, o caro Meto. As saudades que eu tenho daquele rapaz! E tu também deves ter. Bem, na verdade, ele já não é propriamente um rapaz.
- Fez trinta e três anos em Quintílio - respondi eu, com a boca seca.
- Exactamente! Sabes uma coisa, acho que me esqueci de lhe enviar uma saudação. Dá-me a impressão de que agora já tarde. Quem me dera que ele aqui estivesse, mas o que está a fazer em Espanha é muitíssimo importante. Preciso de contar com homens em quem possa confiar, pelo que a dedicação que o teu filho tem por mim é uma verdadeira dádiva dos deuses.
Descontraí-me. Afinal, ele não tinha vindo trazer-me más notícias.

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- Espanta-me que tenhas disponibilidade mental para te lembrares de uma coisa tão trivial como os aniversários dos teus homens. Deves ter muito em que pensar.
- E tenho de facto. Razão pela qual me esqueci por completo de ti ontem, Gordiano.
- E por que haverias de te ter lembrado de mim, Ditador? Ele fez estalar a língua, censurando-me por insistir em o tratar formalmente.
- Por causa de Meto, evidentemente. O teu filho devia ter estado comigo ontem, a comemorar o Triunfo Gálico. Ele acompanhou todos os passos que eu dei na Gália, esteve comigo em praticamente todos os momentos. Estava sempre presente, sempre disposto e ansioso por escrever o que eu lhe ditava, por vezes a meio da noite.
Eu pigarreei. Meto e eu nunca tínhamos discutido explicitamente a relação que ele mantinha com César, mas há muito que eu presumira que o meu filho não era apenas o secretário do Ditador. As intimidades que eles tivessem tido não eram, naturalmente, da minha conta, e fosse como fosse pareciam ter arrefecido com o passar dos anos, como acontece quase invariavelmente a este tipo de atracções. Quanto à relação de autor e amanuense, segundo Meto, tinha sido ele a escrever uma parte considerável das memórias da campanha na Gália que César produzira, anotando as indicações a cru do imperador e transformando-as numa prosa com estilo, tendo-se César limitado a emendar e aprovar uma versão definitiva antes de a obra ser copiada e distribuída.
A expressão de César tornou-se ilegível devido à escuridão, mas a segurança do político deixou de lhe ser audível na voz, substituída por um tom melancólico.
- Posso falar-te com toda a franqueza, Gordiano? Dizer que Meto foi um secretário leal é dizer muito pouco sobre o que ele significou para mim durante anos. Meto combateu por mim, espiou a meu pedido, chegou mesmo a correr risco de vida por minha causa, não uma, mas múltiplas vezes. Esteve a meu lado na Gália, em Farsalo, em Alexandria; esteve comigo na Ásia e em África. Devia estar em Roma a comemorar estes triunfos. Mas não, encontra-se em Espanha, desempenhando uma missão vital, o que constitui mais um testemunho da sua inabalável lealdade.

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César suspirou.
- Meto viu-me no meu melhor, e no meu pior. Com o passar dos anos, aprendi a confiar nele, a despir a armadura na presença dele, por assim dizer; coisa nada fácil para um velho guerreiro como eu. Ele é como se fosse meu filho, e contudo de modo algum presumi eu jamais substituir-lhe o pai.
- Meto não é do meu sangue. Foi adoptado.
- E no entanto, não podia ser mais teu filho se tivesse sido obra tua. Invejo-te isso, Gordiano, o facto de teres um filho, em especial um filho como Meto.
- E César não tem um filho? - Eu estava a pensar em Cleópatra. Ele manteve o silêncio durante longos momentos.
- Isso... é uma questão complicada. É irónico, não é? Um homem produz finalmente um filho, mas hesita em afirmar que é o pai da criança; e outro homem adopta um filho que não é do seu sangue e torna-se pai em todos os sentidos relevantes para deuses e mortais.
Queria então dizer que Cesarião era de facto filho dele - ou que, pelo menos, ele estava convencido disso. César inspirou profundamente.
- Sabes que há muito tempo, nem sei quanto, que não paro assim, por completo? No jardim de minha casa, não posso descansar como aqui. Os criados não me largam, os suplicantes enchem-me o vestíbulo, os senadores vêm bater-me à minha, a minha mulher anda sempre à minha roda, preocupada...
- A tua mulher? - Estaria César a par dos receios de Calpúrnia e das adivinhações do arúspice dela?
- Calpúrnia, a minha velha e querida mulher. Homem algum poderia ter desejado esposa melhor em tempo de guerra. Enquanto eu estive longe de Roma, Calpúrnia fez o que era necessário para que a minha casa fosse bem gerida. Vigiou as outras mulheres de Roma com um olhar atento; impediu que as conspirações contra mim resultassem. Existe o mundo sangrento do campo de batalha; e existe o mundo do lar e do tear; e qualquer guerra, em especial uma guerra civil, tem de ser travada nas duas arenas. Calpúrnia foi o meu comandante na frente doméstica, e portou-se de forma brilhante.

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- Agora, porém, que conquistámos a paz... - César abanou a cabeça. - Tornou-se outra. Tem a cabeça cheia de disparates supersticiosos. Atormenta-me com sonhos e portentos. Pergunto-me se não será tudo influência do doido do tio dela. Ultimamente, Gneu Calpúrnio passa a vida lá em casa. O velhote é sacerdote, e leva-se muito a sério; tem muito orgulho em descender do Rei Numa!
Eu acenei com a cabeça, considerando a ironia que consistia em o senhor do mundo ignorar o que se passava na sua própria casa. Por aquilo que eu tinha observado, o tio Gneu não se mostrava muito satisfeito com a obsessão da sobrinha pelos "disparates supersticiosos" promovidos pelo arúspice Porsena, cuja existência César parecia desconhecer.
Ele soltou uma suave gargalhada.
- Mas por que motivo estou a contar-te tudo isto? Deve ser esse dom que tu possuis.
- Dom?
- Esse teu dom especial, esse poder de levar os outros a contar-te a verdade. Cícero avisou-me de que assim era, há já muito tempo. Catilina dizia a mesma coisa (lembras-te dele?), e Meto confirmou-ma. O dom de Gordiano; deve ter sido isso que me soltou a língua. Ou talvez... talvez eu esteja simplesmente cansado.
A Lua tinha-se erguido acima da linha do horizonte, a luz azul reflectindo-se na cabeça calva de César. Ele ergueu a face para o alto, na direcção do luar, e eu vi que tinha os olhos fechados. Calou-se e inspirou de forma tão intensa, que eu pensei que tivesse adormecido - até ele soltar um suspiro e voltar a falar.
- Ah, mas desviei-me do motivo da minha visita. Queria dar-te isto.
E apresentou-me um quadrado de osso fino. Eu peguei nele e, estreitando os olhos, coloquei-o sob os raios do luar e percebi que tinha uma letra e um número pintados.
- O que é isto, Ditador? A que se refere o "F XII"?
- E a secção reservada para ti e para a tua família na tribuna. Disseram-me que os lugares são bastante bons. Ficam lá no alto, mas é daí que se vê melhor o espectáculo, não é verdade? A uma certa distância? Tu não gostarias de ficar muito perto; não és do género de correr

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para os prisioneiros quando eles passam, ou de lançar coisas aos animais exóticos. Mostra esse quadrado ao arrumador, e ele conduz-te ao teu lugar, mais a tua família. Estão reservados para o triunfo de amanhã, e também para os dois triunfos seguintes.
- Isto é por Meto?
- É porque Meto não pode cá estar, sim; por isso, presto homenagem ao pai e à família de Meto. Mas tu mereces um lugar por direito próprio, Gordiano, pelo menos para o Triunfo Egípcio de amanhã. Afinal, também estiveste em Alexandria. Assististe ao fazer da História. Agora, assistirás à respectiva comemoração.
Fiz menção de objectar, mas César calou-me com um gesto.
- Não, não me agradeças! Conquistaste este favor, Gordiano. É o mínimo que eu posso fazer. - Levantou-se e endireitou a toga. - Diz-me uma coisa: arranjaste bons lugares para assistir ao Triunfo Gálico?
- Na verdade, arranjei. Há uma pequena plataforma saliente no Templo de Fortuna de Lúculo, de onde se tem uma excelente perspectiva do percurso.
- Ah, sim. - César acenou com a cabeça, e depois pôs-se muito sério. - Se estavas instalado no Templo da Fortuna, deves ter presenciado... aquela interrupção inesperada.
- Quando o eixo do carro se partiu? Sim, presenciei. Mas achei que tu tinhas lidado muito bem com a situação. O episódio foi uma espécie de momento de descontracção daquela formalidade grandiosa. Os teus soldados devem amar-te muito, para se meterem contigo de forma tão implacável.
- Sim - replicou ele com uma ligeira frieza. - Foi estranho o eixo partir-se daquela maneira. Quando mais tarde o observámos, quase dava a impressão de aquilo ter sido preparado.
- Preparado?
- De que alguém tinha feito com que se partisse intencionalmente. Deu-me a impressão de que a madeira tinha sido parcialmente serrada. Mas era impossível, claro, porque o pau estava todo estilhaçado.
- Sabotagem? Mas quem teria feito semelhante coisa? Ele abanou a cabeça.

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- Deve ter sido um simples acidente. E agora tenho mesmo de me ir embora. Calpúrnia fica muito preocupada se eu não estou em casa ao cair da noite.
Acompanhei-o pela casa, até ao vestíbulo, onde a minha família continuava reunida, tendo suspendido as suas normais actividades enquanto o Ditador se encontrava entre nós. Diana deu uma cotovelada a Davo, que deu uma cotovelada a Mopso, que deu um pontapé ao irmão mais novo. Ândrocles correu a abrir a porta, e César, que já estava a pensar noutra coisa, foi-se embora sem dizer mais nada.
A família reuniu-se à minha volta, atormentando-me com perguntas. Eu observava o quadrado de osso que tinha na mão. Teria preferido ficar em casa no dia seguinte, e não assistir ao Triunfo Egípcio; porém, tendo-se César dado ao trabalho de vir presentear-me com estes lugares, não podia de maneira nenhuma deixar de estar presente. No dia seguinte, teria uma excelente perspectiva do último passeio que a princesa Arsínoe, e Ganimedes, o ministro dela, dariam neste mundo.

CAPÍTULO TREZE

Betesda ficou bastante satisfeita quando eu lhe mostrei o presente que César me tinha dado e lhe expliquei para que servia. Estes favores de pessoas socialmente superiores tinham sempre muito mais importância para ela do que para mim, talvez devido às origens da minha mulher. Betesda nascera escrava, e fora estrangeira; era agora uma matrona romana, e tinha orgulho nisso, apesar de não ter abandonado por completo certos hábitos.
A minha atitude relativamente à elite e aos favores que ela podia conceder era mais problemática. Embora fosse romano de nascimento, tinha-me apercebido desde muito cedo de que nunca faria parte da chamada nobilitas, "aqueles que são conhecidos" por terem conquistado cargos públicos; e não tinha sequer a expectativa de ser jamais convidado para casa dessas pessoas. Agora, após ter passado a vida a trabalhar para eles, continuava a não ser o tipo de indivíduo que eles gostavam de convidar para jantar. As famílias nobres de Roma são em número reduzido, e protegem ciosamente os seus privilégios, embora haja gente de fora - de excepcional competência e ambição - que ocasionalmente adere às suas fileiras; Cícero era o exemplo acabado deste último tipo de pessoas. Homem Novo, fora o primeiro membro da família Túlio a ser eleito para um cargo e a empreender o Curso de Honra, que o levaria a ocupar o lugar de cônsul durante um ano.
Muitos destes nobres, que me haviam considerado muito pouco digno de os servir, e certamente indigno de partilhar da sua amizade, já tinham morrido; ao passo que eu, humilde cidadão sem distinções, continuava a respirar. E que significado tinha actualmente, para os aristocratas que sobreviveram, o próprio Curso de Honra, tendo em

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consideração que o cume do poder era ocupado por um homem que não fazia tenções de o abandonar?
E o que significava para mim este símbolo do favor do Ditador? Ponderei na questão enquanto examinava, à suave luz da manhã que inundara o vestíbulo, a pecinha de osso que tinha na mão. Já tinha vestido a toga, e metido no estômago um pequeno-almoço simples, de farinha e compota de fruta. Menénia acabava de chegar, acompanhada pelos gémeos. Betesda insistira para que saíssemos cedo, embora eu tivesse tentado explicar-lhe que a vantagem de ter aquele quadradinho de osso era justamente a de nos permitir chegar quando nos apetecesse, porque os lugares estavam reservados para nós. Tenho a impressão de que ela queria ir cedo, para que a nossa presença naquele local cobiçado pudesse ser detectada pela multidão.
Rodeado pela família, incluindo Mopso e Androcles "Vamos precisar deles para irem buscar a comida e as bebidas", tinha insistido Betesda, saí de casa, descendo do Palatino directamente para o Fórum, que já tinha mais gente do que eu estava à espera a hora tão precoce. Os nossos lugares ficavam situados perto do final do percurso, diante da base do Monte Capitolino, a uma altura que nos proporcionava uma visão panorâmica dos acontecimentos. Mesmo à nossa frente, ficava a bancada com os lugares mais prestigiantes, onde tinham sido erigidos camarotes de cortinas, com lugares estofados, para conforto dos dignitários importantes. Esses lugares ainda estavam vazios.
Para além dos camarotes dos dignitários, e por entre eles, avistava-se claramente o trilho que subia a encosta do Capitolino, até ao Cárcere. Mais tarde, se quisesse, não me seria certamente difícil ver Arsí-noe e Ganimedes serem conduzidos à porta da prisão, para além da qual encontrariam a morte, no poço do Tuliano.
Enquanto esperávamos que se iniciasse a procissão, pensei naquilo que César me tinha dito a respeito do acidente que ocorrera durante o Triunfo Gálico. Se alguém lhe tinha serrado o eixo do carro, a sabotagem confirmaria as desconfianças de Calpúrnia, de que existia uma conspiração contra César? Não se percebia bem como; quem tivesse cometido tal acto não podia ter a expectativa de que César ficasse ferido - e muito menos de que morresse - em consequência de um

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acidente daquele calibre. Talvez tivesse sido concebido com o simples fito de o envergonhar; mas por quem, e com que motivação? É possível que alguns gauleses renegados tivessem desejado estragar a comemoração da vitória do Ditador sobre Vercingetorix, mas como podiam eles ter tido acesso ao carro sagrado? Os veteranos de César não haviam hesitado em o arreliar com versos de gosto duvidoso; seria possível que algum deles se atrevesse a serrar-lhe o eixo do carro para se divertir à custa dele?
Teria César imaginado os sinais de intervenção maldosa e, se assim era, que indicações davam tais acessos imaginativos a respeito do estado de espírito em que ele vivia? Seriam as especulações de César um estratagema? Ele dera-me a impressão de me estar a revelar as suas preocupações num momento de genuína franqueza, mas seria possível que um homem como ele falasse jamais com genuína franqueza? Podia bem ser que César andasse a disseminar este rumor de sabotagem com a intenção de dissipar a ideia de que o acidente fora um mau presságio, resultado do descontentamento divino, e não de intervenção humana.
- Marido!
Betesda interrompeu-me o fio dos pensamentos, dirigindo-se a mim num murmúrio excitado.
- Marido, é ela?
Eu pestanejei e olhei em redor. Enquanto eu contemplava distraidamente o vazio, as bancadas que ficavam diante de nós tinham-se enchido de pessoas. Mais abaixo, a multidão formava um ajuntamento compacto ao longo do percurso. O Fórum era um mar de espectadores, divididos a meio pela ampla via por onde passaria o triunfo.
- Ali adiante - dizia Betesda insistentemente -, nos lugares especiais. É mesmo ela?
Eu olhei em frente. Os camarotes dos dignitários também se tinham enchido. Por entre os embaixadores e emissários berrantemente vestidos, no meio dos chefes de estado que haviam querido estar presentes, via-se uma mulher solitária e resplandecente, envergando um vestido roxo e ostentando um diadema de ouro. As paredes e o elevado parapeito do camarote resguardavam-na dos olhares da multidão que se amontoava em redor e abaixo dela; como, porém, os nossos

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lugares ficavam mesmo em frente do camarote, nós víamo-la sem dificuldade.
- Sim - respondi eu. - É Cleópatra.
A Rainha tinha chegado sem fanfarra. Entre a multidão, ninguém parecia estar ciente da sua presença. Impedida por César de participar no triunfo, Cleópatra mais não era do que um espectador como os restantes, contando-se entre os milhares que ali se encontravam presentes nesse dia.
Betesda franziu os olhos, inclinou a cabeça para um lado e franziu o sobrolho.
- Não é tão bonita como eu tinha imaginado. Eu olhei para a minha mulher de esguelha e sorri.
- Podes ter a certeza de que não é nada que se compare contigo. Fiz bem em dizer aquilo; Betesda não foi capaz de reprimir um
sorriso de triunfo. E era verdade. Nos seus tempos áureos, Betesda fora muito mais bonita do que Cleópatra, e quando eu olhava para ela, quem eu via era ainda a rapariga que ela fora.
Ouviu-se um aplauso ensurdecedor. A procissão tinha começado.
Na frente, vinham os senadores e os magistrados. Voltei a ver Cícero e Bruto lado a lado, conversando um com o outro e ignorando a multidão, como se não estivesse a passar-se nada de especialmente relevante.
Seguiam-se os corneteiros, cuja fanfarra tinha um efeito nitidamente egípcio, carregando o ambiente de expectativa. Que maravilhas do longínquo Nilo apresentaria César ao povo de Roma?
Os despojos da Gália tinham sido abundantes e impressionantes, mas os produtos do Egipto eram de outra ordem de magnificência. Não se tratava de um saque, em sentido estrito, dado que César não tinha conquistado o país; o papel dele tinha consistido em pôr fim à guerra civil entre os reais irmãos e em colocar um deles no trono. Muitos dos objectos exibidos neste dia haviam sido presentes que a Rainha Cleópatra oferecera a César e ao povo de Roma, como prova da sua gratidão por ele ter tomado o partido dela na guerra contra os irmãos.
Surgiu um gigantesco obelisco preto coberto de hieróglifos e decorado com saliências de ouro com a forma de flores de lótus. Surgi-

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ram estátuas de bronze de deuses diversos, entre as quais se contava uma encarnação do Nilo, representado sob a figura de um velho rodeado por ninfas do rio, com criaturas das profundezas entrelaçadas na barba flutuante. Seguia-se uma gloriosa procissão de esfinges magníficas, esculpidas em granito e mármore, que desfilaram uma após outra.
Os carros que transportavam estes maciços objectos não eram puxados por animais, mas por escravos de aspecto exótico, provenientes dos abundantes mercados de Alexandria. Eram escravos vindos de terras longínquas, cujos nomes - Núbia, Arábia, Etiópia - bastavam para suscitar o espanto, e cujos corpos escuros e brilhantes suscitavam quase tantos comentários como os tesouros por eles rebocados.
A multidão abriu a boca de pasmo ao ver chegar a última esfinge que, puxada por uma enorme fileira de escravos, parecia, vista de longe, muito maior do que as outras. Tratava-se de uma ilusão de óptica. Não era a esfinge que era gigantesca, eram os escravos que eram muito mais pequenos: pertenciam ao povo chamado pigmeus que, segundo se diz, habita um território de densas florestas situado perto da fonte do Nilo. A incongruência da combinação combinava com o sentido de humor dos Romanos, tendo por isso suscitado enormes gargalhadas.
Foi igualmente apresentada uma réplica do sarcófago de Alexandre, juntamente com diversas estátuas do conquistador. A fundação de Alexandria fora a sua mais duradoura realização, sendo o local onde se encontrava sepultado um dos principais locais de culto da cidade.
Seguia-se um catálogo visual dos empreendimentos municipais dos Ptolemeus, os sucessores de Alexandre. Uma maqueta espantosamente pormenorizada de Alexandria, esculpida em marfim, dava a conhecer os muros da cidade, a notável biblioteca e o museu, o palácio real e o teatro, as amplas avenidas decoradas com monumentos antigos e os molhes que contornavam o enorme porto. (Fora por pouco que César não conhecera a morte nesse porto, quando o navio em que seguia fora afundado durante um recontro naval, e ele se vira forçado a nadar para terra.)
Passou também uma maqueta gigantesca do farol de Faros, completada com um fogo aceso no alto. Seguia-se-lhe uma maqueta do

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gigantesco Templo de Serápis, e uma estátua do deus que os Ptolemeus - que eram gregos de origem - tinham erigido à categoria de principal divindade da cidade; Serápis, que se assemelhava a Zeus, ou a Júpiter, aparecia sentado num trono com um ceptro na mão, mas tinha na cabeça, por coroa, um cesto de trigo, e a seus pés rastejava um cão de três cabeças, que representava Cérbero mas fora esculpido num estilo que o tornava mais parecido com Anúbis, o deus egípcio da cabeça de chacal.
Seguia-se um bestiário exótico, em que figuravam as criaturas fabulosas do Nilo e de regiões ainda mais remotas. Desfilaram crocodilos açaimados, com arreios presos a coleiras, conduzidos pelos tratadores; estas criaturas eram de tal maneira fortes e imprevisíveis, que dava a impressão de que os tratadores tinham de empenhar toda a sua força para as impedir de se atirarem à multidão. Viram-se imagens do hippos potamios, o famoso cavalo do rio Nilo, bem como do rinokeros, que parece um javali muito grande, de pele dura, com uma presa só, mas uma presa monstruosa.
O desfile dos animais terminou com um genuíno doce para a multidão: uma trupe de pigmeus, montando os gigantescos pássaros a que os gregos chamam strutokamelos, "pardais-camelos", essas aves que não voam, e que se tornaram famosas pela magnífica plumagem e os absurdamente compridos pescoços. Dizem que, quando se assustam, estes animais enterram a cabeça na areia.
Desfilaram a seguir amostras dos diversos produtos que se cultivam no Nilo, o grande celeiro do Mediterrâneo, graças à inundação anual. As belas jovens egípcias que, envergando vestidos de linho pregueados, exibiam os feixes de espigas não seriam tão sugestivas como os crocodilos açaimados, mas nem por isso deixaram de merecer os aplausos da multidão, a que se seguiram vivas a César quando um arauto anunciou que, no final do triunfo, haveria uma distribuição de cereais a toda a população.
A procissão assumiu um tom mais marcial quando começaram a ser exibidos os quadros representando incidentes da guerra (César tinha prometido contar a história com pormenor nas suas memórias, mas o volume correspondente ainda não fora publicado). Os quadros representavam cenas das batalhas travadas no porto de Alexandria, em

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que os céus se haviam enchido de mísseis em chamas, lançados pelas balistas instaladas a bordo dos navios. Outras cenas ilustravam o prolongado cerco ao palácio real pelos egípcios, que durante meses haviam tentado penetrar as defesas de César ou, em alternativa, cortar-lhe o fornecimento de água, sempre sem êxito. Viam-se diversas cenas da batalha final, a batalha decisiva que fora travada nas margens do Nilo, em que a barcaça real do jovem Ptolemeu fora voltada pelos soldados egípcios em fuga. Nunca se conseguiu encontrar o corpo do Rei; mas tinham sido retirados do Nilo diversos objectos que lhe pertenciam, entre os quais as armas e a armadura cerimonial, peças magníficas que foram exibidas como troféus.
Noutras cenas, estavam representadas as mortes dos principais inimigos de César no Egipto. O camareiro-mor do Rei Ptolemeu, o eunuco Potino, tinha sido obrigado por César a ingerir veneno por ter conspirado contra o Ditador; o homem morrera na minha frente, amaldiçoando Cleópatra e o irmão. O quadro que ilustrava a morte dele retratava-o com um exagero de seios e coxas (que ele não tinha) e com maquilhagem feminina (que ele não usava); Potino fora reduzido a uma caricatura romana de um eunuco. A multidão riu-se e aplaudiu ao ver o quadro em que ele agonizava, agitando-se aos pés de César, ainda com a taça do veneno na mão.
Noutro quadro, fora representada a morte de Aquilas, o general egípcio que montara cerco contra César; fora Arsínoe quem o mandara executar, por traição. Aquilas era um nome infame em Roma, porque se contara entre os assassinos de Pompeu; tinha sido ele a desferir o golpe que decepara o Grande, ainda antes de ele conseguir acostar no Egipto.
Curiosamente, não fora pintado quadro algum representando a morte de Pompeu, ou a subsequente apresentação da cabeça de Pompeu a César, um presente oferecido pelo Rei Ptolemeu. A derrota de Pompeu em Farsalo, a sua fuga desesperada para o Egipto, e a morte ignominiosa do Grande não viriam a figurar em nenhum dos triunfos de César. Fosse por receio de ser culpado de hubris, fosse por deferência para com a ligação sentimental que muitos romanos ainda tinham por Pompeu, a verdade é que César não aproveitou a ocasião para se regozijar com o cadáver profanado do seu rival.

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Não fui o único a aperceber-me desta omissão; e era manifesto que nem todos se mostravam tão sentimentais como isso em relação a Pompeu.
- Onde está a cabeça de Pompeu? Mostra-nos a cabeça! - gritou um homem lá do meio.
Outros se lhe juntaram, mas houve muitos outros que resmungaram contra a ideia, mandando calar os vizinhos e apupando-os. A multidão foi percorrida por uma onda de discórdia, que fez deflagrar a inquietação e libertou as línguas.
- E já agora, mostra-nos também Cleópatra! - berrou alguém.
- Exacto, onde está Cleópatra? Vamos lá a ver a ninfazinha que tanto perturbou e animou César!
- Mostra-nos a Rainha! Mostra-nos a Rainha!
- Tem de haver pelo menos um quadro com ela...
- De preferência despida!
Os basbaques ainda não se tinham apercebido de que Cleópatra se encontrava no meio deles, sentada entre os dignitários. Eu olhei em frente, e percebi que ela tinha recuado ligeiramente, como que para se ocultar ainda mais. O seu rosto mantinha-se impassível.
Seguiram-se os inevitáveis cantos, especulando sobre as actividades de César e da Rainha egípcia durante o prolongado passeio de barco que haviam dado juntos pelo Nilo. Muitos já conheciam estes versos licenciosos, e aderiram imediatamente ao coro, batendo as palmas em uníssono à medida que iam recitando uma quadra após outra. Os homens contavam estes versos macarrónicos uns aos outros no Fórum; as mulheres ouviam-nos no mercado; e não tardou que até as crianças os soubessem de cor. Apesar de toda a sua glória terrena, César não tinha poder para impedir a propagação de uma piada de mau gosto ou de um trocadilho galhofeiro à custa dele.
Voltei a olhar para Cleópatra, cujo rosto permanecia inexpressivo; no entanto, mesmo à distância, apercebi-me de que tinha corado ligeiramente. A Rainha não estava habituada a ser objecto de troça.
Foi então que, de repente, os cantos cessaram e as palmas se silenciaram. Como que atraída pela vontade da multidão, Cleópatra apareceu subitamente; ou antes, o que apareceu subitamente foi a imagem de Cleópatra, uma estátua de cortar a respiração, montada sobre uma plataforma e puxada por um grupo de escravos núbios.

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Era em tamanho superior ao natural, e dava a impressão de ser em ouro maciço, embora fosse provavelmente de bronze dourado. O metal faiscava ao sol, e eu fiquei encadeado com os raios de luz dourada. A Rainha não envergava o peculiar trajo dos faraós, de que os Ptolemeus se tinham apropriado quando haviam assumido o governo do Egipto; trajava um elegante vestido grego, e trazia um diadema simples na testa. O rosto da estátua tinha uma expressão severa, quase masculina; o escultor tinha retratado uma Rainha mais velha e menos bela do que era na realidade, talvez com o fito de lhe salientar as qualidades de governante de homens, em detrimento das suas qualidades de objecto do desejo masculino. Apesar disso, a face projectava, com os brilhantes olhos lápis-lazúli e o sorriso esquivo, um intenso encanto feminino; percebia-se que um homem como César se tivesse sentido encantado por uma mulher como esta.
Eu inspirei profundamente. Com a inclusão desta estátua - teria sido um presente da própria Rainha? -, César corria um risco considerável. A reacção da multidão era imprevisível. Teria ele decidido fazer desfilar a estátua para isso mesmo, para avaliar o estado de espírito dos Romanos? Se a estátua fosse uma peça capturada, e Cleópatra um inimigo derrotado, não haveria qualquer controvérsia; mas a guerra de César no Egipto confirmara a pretensão de Cleópatra ao trono, pelo que o surgimento da estátua dava a impressão de ser uma celebração da própria Rainha. Aqui estava, à vista de todos, em dourado esplendor, a exótica criatura que afirmava ter dado à luz um filho de César, e que muitos consideravam estar a promover as ambições reais de César. Se a multidão se sentisse ofendida pela estátua, poderia muito bem provocar um tumulto em grande escala.
Olhei em redor, perguntando a mim mesmo se aqueles lugares seriam a causa da nossa salvação ou do nosso destino trágico. Permaneceríamos acima da multidão em fúria, ou seríamos empurrados mais para cima, caindo do alto das bancadas e estatelando-nos no solo? E também podia acontecer que a multidão se apercebesse de que Cleópatra ali se encontrava e voltasse a sua fúria contra ela.
Olhei para a Rainha e os nossos olhos cruzaram-se. Cleópatra fez-me uma ligeira inclinação de cabeça, mostrando que me tinha reconhecido. Vendo a minha expressão alarmada, ela própria deu mostras

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de ter ficado apreensiva, erguendo ligeiramente uma sobrancelha e franzindo a testa.
A reacção da multidão, porém, esteve longe de ser violenta. Um grande silêncio cobriu a ralé. Não se ouviram ditos trocistas, nem gritos de indignação, nem piadas de mau gosto. Dava a impressão de que a estátua dourada tinha lançado um feitiço, que levava as pessoas a olharem-na de olhos espantados.
A minha frente, a Rainha do Egipto sorriu. Voltou-se ligeiramente para trocar umas palavras com alguém que tinha a seu lado. Em seguida, endireitou-se e fez menção de se levantar. Tencionaria chamar as atenções sobre si mesma, dar a conhecer à multidão a sua presença naquele local?
Antes de que isso pudesse acontecer, a oportunidade passou. De repente, o estado de espírito da multidão alterou-se. O ar voltou a encher-se de piadas, gritos e insultos, porque logo a seguir à estátua de Cleópatra entrou a procissão de prisioneiros egípcios. A atenção dos assistentes foi transferida, da glória dourada da Rainha, para a abjecta miséria e desventura dos inimigos que ela vencera.
Cleópatra sentou-se. O sorriso desapareceu-lhe do rosto. Os poucos oficiais sobreviventes do exército de Ptolemeu desfilaram diante de nós acorrentados, vestidos de farrapos, com os toucados egípcios praticamente desfeitos. Alguns deles eram eunucos, e a multidão espreitava-lhes os corpos quase despidos com curiosidade doentia, na esperança de avistar características distintivas desse estado. Como seria de esperar, os eunucos não eram tão hirsutos como alguns dos seus compatriotas, mas os corpos deles nada tinham da voluptuosidade tipicamente feminina; talvez por estarem mal alimentados, todos os prisioneiros tinham um ar escanzelado. E os eunucos também não expressavam as suas emoções de maneira distinta da dos companheiros. Uns e outros davam mostras da mesma gama de emoções: alguns olhavam a multidão em atitude de desafio; outros escondiam a cara; e muitos deles tremiam e choravam, quebrados por aquela humilhação e pela iminência da morte.
O penúltimo dos prisioneiros era Ganimedes. A última vez que o vira, ele envergava um vestido brilhante, de mangas largas, ostentava um elegante toucado, e tinha os olhos contornados a khol. Agora, trazia

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apenas uma tanga nojenta, e o cabelo pendia-lhe em madeixas em redor da face pálida e enrugada; as correntes que lhe prendiam os tornozelos e os pulsos obrigavam-no a andar curvado e a dar uns passos trôpegos. Vinha descalço e sangravam-lhe os pés.
De entre a multidão, atiraram-lhe um fruto - um figo verde - que lhe acertou entre as pernas. Ganimedes estremeceu, mas não gritou. Seguiram-se mais peças de fruta, e mesmo pedras, sempre dirigidas ao mesmo ponto. Estavam a troçar dele com golpes que teriam feito um homem intacto gritar de agonia, mas que apenas serviam para humilhar o eunuco, chamando a atenção para a parte da anatomia dele que tinha sido amputada.
A seguir a Ganimedes, a uma distância que permitia distingui-la claramente, vinha Arsínoe. Também a princesa vinha descalça e vestida de farrapos, trazendo à mostra zonas das pernas e dos braços que não era considerado decente uma mulher bem-nascida dar a ver em público, convidando à inspecção lasciva por parte da multidão. Vinha acorrentada de uma maneira que parecia ter sido concebida com o objectivo expresso de lhe enfatizar a humilhação; tinha os tornozelos ligados por uma corrente de curto alcance e as mãos firmemente presas atrás das costas, o que a obrigava a avançar a passos curtos com os ombros para trás e os seios lançados para diante. Mas essa posição também lhe permitia manter o queixo erguido. Via-se-lhe claramente o rosto, cuja expressão era surpreendentemente composta. Não se mostrava temerosa nem provocadora; nos seus olhos não se lia, nem o pânico, nem o ódio. Apresentava um rosto de esfinge, desprovido de emoção, como se estivesse a pensar numa coisa completamente diferente, como se se encontrasse muito longe da degradação a que o seu corpo estava a ser submetido.
Enquanto Arsínoe se ia aproximando lentamente de nós, eu olhei para Cleópatra. Deu-me a impressão de que as duas irmãs tinham afivelado exactamente a mesma expressão, apesar da diferente situação em que se encontravam. Cleópatra via a irmã desfilar à sua frente em direcção à morte sem dar o menor sinal de pena, ou de júbilo. Arsínoe avançava ao encontro do seu destino com uma expressão semelhante à que teria se estivesse a contemplar o lento, constante e interminável fluxo do Nilo. De que matéria seriam feitos estes Ptolemeus?

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O que teria César presumido que se passaria, quando decidira fazer desfilar no seu triunfo uma jovem desamparada? Ele presidira ao assalto a muitas cidades; assistira à implacável reacção dos seus soldados perante mulheres na flor da idade e totalmente desprotegidas. Estaria convencido de que a multidão romana reagiria da mesma maneira à vista de Arsínoe acorrentada, permitindo que o desejo de rejubilar com o aviltamento dela se sobrepusesse por completo aos impulsos de compaixão?
Eu não me teria surpreendido se os assistentes começassem a lançar frutos a Arsínoe, fazendo-lhe cruelmente pontaria aos seios, inco-modando-a com observações lascivas, e talvez mesmo estendendo a mão para lhe arrancar do corpo os poucos farrapos que ainda a cobriam, obrigando-a a caminhar despida para a morte.
Mas não foi isso que aconteceu.
A multidão, que tão ansiosa se mostrara por insultar os militares e os ministros de estado, quedou-se em silêncio diante da passagem de Arsínoe. Os mais eloquentes ficaram sem palavras.
No súbito silêncio que se fez, o único som que se ouvia era o do suave tilintar das correntes de Arsínoe. Em seguida, um murmúrio percorreu a multidão. Eu não conseguia perceber que palavras eram ditas, chegando-me aos ouvidos apenas uns resmungos, cujo tom era, no entanto, perfeitamente claro. Isto não se fazia. Aquilo a que estávamos a assistir era um desfile impróprio, indecente, uma coisa que estava mal - que talvez fosse mesmo uma afronta aos deuses. O murmúrio aumentou de volume, a multidão mostrava-se cada vez mais incomodada.
Foi Rupa quem passou à acção.
Ele estava sentado a meu lado. Quando o vi levantar-se, pensei que fosse por outra razão qualquer - para ir aliviar-se, ou muito simplesmente para estender as pernas. Mas os movimentos dele tinham uma premência que me chamou a atenção, ao vê-lo passar por cima dos espectadores e dirigir-se à coxia mais próxima. Houve mais quem o visse, e se apercebesse do mesmo que eu; havia na atitude dele uma determinação que chamava a atenção, em especial no meio daquela multidão hesitante e subitamente perturbada.
Rupa chegou à base das bancadas e - uma cabeça acima de todos os presentes - abriu caminho por entre os espectadores à força de

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cotoveladas. Avançou para a avenida triunfal e correu para junto de Arsínoe.
Ouviram-se exclamações de surpresa e gritos de apreensão. Rupa era tão maior do que a princesa, e os movimentos dele eram de tal maneira decididos, que alguns espectadores devem ter pensado que ele se preparava para atacá-la. Porém, antes de chegar junto de Arsínoe, ele voltou-se para trás e ergueu os braços, acenando para chamar a atenção do povo. Ao mesmo tempo, abriu a boca e emitiu um estranho zurro, um grito lamentoso que ecoou por todo o Fórum.
O comportamento dele suscitou reacções entre a multidão.
- Quem é aquele sujeito enorme?
- É bem lindo...
- O que quer ele?
- Está a tentar dizer qualquer coisa...
- Não estás a ver? O rapaz é mudo.
- Mas faz bastante barulho.
- O que terá ele em mente?
- Dá a impressão de ter tamanho que chegue para fazer o que quiser à princesita!
Os lictores de César, que precediam o carro triunfal, não vinham muito atrás de Arsínoe. Ao verem Rupa, os que iam nas primeiras filas avançaram a correr para ele. O coração deu-me um salto no peito. A semelhança de todos os que me rodeavam, pus-me de pé em sobressalto.
Por entre o tumulto que de repente se formou, algumas vozes ouviam-se melhor do que outras.
- Os lictores protegem a princesa!
- De quê? O mudo não quer fazer-lhe mal. Quer fugir com ela!
- Fugir para onde? Ela vai direitinha para o Tuliano, juntamente com o eunuco dela!
Este último comentário era uma referência a Ganimedes que, apercebendo-se de que se estava a passar qualquer coisa atrás dele, se tinha voltado. Com uma expressão de susto no rosto enrugado, esforçava-se freneticamente por recuar na direcção de Arsínoe, como se pudesse de alguma maneira protegê-la, apesar das correntes.
Mas Arsínoe não corria perigo nenhum. Com os olhos de todos poisados sobre ele, Rupa voltou-se para a princesa. Por momentos,

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agigantou-se diante dela. Depois, ajoelhou-se e fez uma profunda vénia e, com um delicado gesto dos compridos braços, depositou um beijo nos pés nus de Arsínoe.
A expressão - ou ausência de expressão - da princesa egípcia não se alterou minimamente durante todo este episódio. Quando, porém, os lábios de Rupa lhe tocaram o pé, um sorriso iluminou-lhe a face, transformando-lha por completo. O rosto de Arsínoe assemelhava-se ao da Vénus de Milo de Alexandros - era um rosto sereno e elevado, sublime e majestoso.
A reacção da multidão foi instantânea e devastadora, mais se assemelhando a um raio de Júpiter. O povo ergueu as mãos, tonto de excitação, rindo-se e guinchando, bramindo e gritando. Alguns imitavam o zurro lamentoso que Rupa emitira; não estavam a fazer troça dele, mas a prestar-lhe homenagem.
Eu olhei para Cleópatra, perguntando-me se Rupa lhe teria sido alguma vez apresentado? Parecia-me que não, e aliás nada indicava que ela soubesse quem era o homem que beijara o pé da irmã na presença de Roma inteira. O que não impedia que o rosto da Rainha tivesse tomado uma expressão tão carregada como o sorriso da irmã era luminoso.
Tendo chegado ao pé de Arsínoe e percebido que ela não corria perigo, Ganimedes ajoelhou-se ao lado de Rupa. Com um gesto deselegante, devido às correntes, também ele se inclinou profundamente, beijando o outro pé da princesa.
A multidão mostrou-se ainda mais jubilosa.
Os lictores obrigaram Rupa a levantar-se. Eu sustive a respiração, esperando o pior, mas os lictores limitaram-se a empurrá-lo energicamente para o meio da multidão, obrigando os espectadores a recuar atrapalhados em todas as direcções, como se ele fosse um pedregulho lançado por uma catapulta.
Os lictores voltaram-se então para Ganimedes, mas o eunuco conseguiu escapar-lhes, continuando de joelhos, prostrado diante de Arsínoe.
- Poupem a princesa! - gritou alguém.
- Isso, poupem a princesa! - gritaram outros. O grito transformou-se rapidamente num canto:

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- Poupem a princesa! Poupem a princesa! Poupem a princesa!
- E o eunuco? - gritou alguém.
- Matem o eunuco! - respondeu um terceiro, grito a que se seguiu um coro de gargalhadas.
E esta sugestão foi acrescentada ao canto:
- Poupem a princesa, matem o eunuco! Poupem a princesa, matem o eunuco!
Ganimedes foi finalmente posto de pé e empurrado para diante, os lictores batendo-lhe com os bastões para o obrigarem a andar depressa. Tinha no rosto uma expressão que era um misto de triunfo e desespero. Arsínoe, de cabeça bem erguida, o sorriso ainda a iluminar-lhe a face, recuperou o passo miúdo a que estava obrigada pelas correntes.
A princesa desapareceu da nossa vista, começando a desfilar diante de nós a comprida fila de lictores, mas o canto prosseguia:
- Poupem a princesa, matem o eunuco! Poupem a princesa, matem o eunuco!
Por um desses actos de magia que atingem os grupos, a multidão dividiu espontaneamente o canto entre as duas alas do percurso triunfal. Os que se encontravam do lado oposto ao Monte Capitolino gritavam: "Poupem a princesa!" Ao que os que se encontravam do outro lado respondiam: "Matem o eunuco!" Os dois lados competiam entre si, para ver quem conseguia gritar mais alto. Foi no meio deste ensurdecedor fogo cruzado que César apareceu, no seu carro triunfal. Os cantos prosseguiam, quais mísseis de catapultas rivais:
- Poupem a princesa!
- Matem o eunuco!
- Poupem a princesa!
- Matem o eunuco!
César mostrava-se incomodado e perplexo, e não estava a conseguir disfarçar lá muito bem; tal como não conseguira disfarçar o desconforto que sentira quando, durante o Triunfo Gálico, os soldados se tinham metido com ele por causa da ligação que mantivera com Nicomedes na sua juventude. A certa altura, ergueu a cabeça para o camarote dos dignitários e trocou um olhar de consternação com Cleópatra. César e Cleópatra deviam estar, por estar altura, a partilhar

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ainda a satisfação da reacção do povo à passagem da estátua dourada da Rainha; em vez disso, estavam a ouvir aclamações a Arsínoe.
Nas bancadas, estava toda a gente de pé, e também os membros da minha família se tinham juntado ao canto. Felizmente, estávamos do lado em que se pedia que a princesa fosse poupada; duvido de que a minha mulher, a minha filha e a minha nora tivessem feito coro a pedir a morte de Ganimedes, mas é possível que Davo o tivesse feito, e os jovens escravos, sedentos de sangue como eram, nem teriam hesitado em o fazer. Por mim, mantinha-me calado.
Como se estivesse a tentar compreender o fervor da multidão, César passou lentamente os olhos pelas bancadas, poisando-os num rosto após outro. Avistou a minha família, que cantava como os restantes; e também me viu, de pé, em silêncio. Por instantes, o olhar dele cruzou-se com o meu. César não tinha maneira de saber que fora o meu filho adoptivo a suscitar a reacção da multidão.
O carro triunfal passou, seguido por fileira após fileira de veteranos da campanha egípcia. Contaminados pelo entusiasmo da multidão, também os soldados tinham começado a entoar o ensurdecedor canto:
- Poupem a princesa, matem o eunuco! Poupem a princesa, matem o eunuco!
- Oh Rupa - murmurei eu para mim mesmo -, o que foste tu
fazer!

CAPÍTULO CATORZE

- Rupa, o que foi que te passou pela cabeça? Podias estar morto! Os lictores podiam ter-te arrastado para o Cárcere, juntamente com aqueles infortunados egípcios, e ter-te atirado ao Tuliano, e nunca mais voltávamos a ver-te a respirar!
O Sol tinha-se posto. A Lua tinha-se erguido no céu. De vez em quando, chegavam-me aos ouvidos, aqui ao jardim de minha casa iluminado pelas lamparinas, ecos da música e dos divertimentos que tinham ainda lugar no Fórum, onde prosseguia a festa que se seguira ao Triunfo Egípcio, com intermináveis iguarias egípcias oferecidas aos presentes. Mas eu não estava com disposição para comer e beber. Sempre que pensava no terrível risco que Rupa tinha corrido naquele dia, gelava-se-me o sangue nas veias.
- Mas, papá - interveio Diana -, Rupa cometeu algum acto ilegal?
- Tenho a certeza de que não é permitido um cidadão interromper o andamento de um triunfo.
- Mas ele não interrompeu. Ele participou no triunfo! As pessoas fazem imenso este género de coisas. Avançam em direcção aos prisioneiros para fazerem troça deles, aproximam-se dos troféus para os verem melhor, dão beijos aos soldados. Já todos assistimos a coisas dessas. A não ser que César tenha feito aprovar alguma lei que proíba que se beijem os pés às raparigas...
- Rupa envergonhou o Ditador!
- Tenho a certeza de que isso também não é ilegal, papá! César não é um Rei. Nós não respiramos a bel-prazer dele.
- Por enquanto - resmoneei eu.

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- E não houve incómodo nenhum. Os lictores vieram a correr, empurraram Rupa para fora do percurso, ele desapareceu no meio da multidão, e a coisa ficou por ali. Ao que parece, César nem sequer sabe que foi Rupa que salvou a princesa.
- Que salvou a princesa! - repeti eu em tom de incredulidade, espantado com a enormidade do feito. Arsínoe tinha sido poupada, e Rupa fora o responsável por isso. - Um liberto de origem estrangeira não se dedica a frustrar os desejos de um ditador romano e a anular uma sentença de morte declarada pelo estado romano. Essas coisas não acontecem!
- Aparentemente acontecem, papá!
- Foi um acto de loucura.
- Eu acho que foi tremendamente heróico - insistia Diana.
- E eu também - interveio Betesda.
E, aproximando-se as duas de Rupa, beijaram-no nas faces. O meu filho que estivera de rosto franzido e olhar baixo enquanto ouvia o sermão, sorriu e enrolou o corpo com os braços. As minhas advertências haviam sido totalmente inutilizadas.
- Além disso - prosseguiu Diana -, Rupa agiu impulsivamente. Não fez aquilo de forma deliberada. Não podia de maneira nenhuma prever que resultado teriam os seus actos.
Eu tinha algumas dúvidas. Na sua juventude, Rupa e Cassandra, a irmã dele, tinham sido actores de rua em Alexandria. Ele não era propriamente um actor, era mais um mimo, e representava as personagens mudas (e corpulentas); mas deve ter aprendido a prever e a manipular as reacções do público. Curvar-se diante de Arsínoe para lhe beijar o pé era um gesto bem calculado, destinado a explorar o sentimento da multidão, e cujo resultado foi exactamente aquele que Rupa tivera a expectativa de obter. No final do triunfo, César vergara-se aos desejos do povo; os arautos tinham vindo anunciar que a princesa seria poupada e enviada para o exílio, sendo Ganimedes e os restantes prisioneiros executados, conforme havia sido previamente decidido.
Eu olhei intensamente para os olhos de Rupa, que não se desviaram dos meus. É certo que ele não era o jovem mais brilhante que eu conhecia, mas ter-se-ia dado o caso de eu lhe ter subestimado a inteli-

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gência pelo simples facto de o rapaz ser mudo, para além de corpulento? É possível que ele não tivesse as competências verbais de um Cícero, que era capaz de dar a volta a um júri por via das palavras, mas tinha demonstrado que era capaz de despertar uma multidão compacta com um único gesto, um gesto ousado e perfeitamente oportuno.
- Além disso, papá, tu também não querias que Arsínoe fosse morta, como ninguém queria. Confessa!
- Pobre rapariga! - Betesda abanava a cabeça. - Uma princesa egípcia, à mercê daqueles brutamontes romanos. Que horror! - Desde que havíamos regressado do Egipto que a minha mulher se dedicava a desempenhar o papel da alexandrina cosmopolita escandalizada com a barbárie romana.
- Pobre rapariga? - ecoei eu, lançando as mãos ao ar. - Arsínoe é uma fedelha real, que foi responsável por centenas, por milhares de mortos no Egipto. Ela condenou à morte os generais que lhe eram leais! É uma víbora, tal como a irmã.
- Apesar disso, César não tinha nada que ameaçar matar uma criança, só para dar nas vistas - insistiu Betesda. - Não lhe ficou nada bem. Caiu mesmo muito mal, fazer desfilar a pobre rapariga acorrentada.
Não pude deixar de concordar. E, tudo bem visto e pensado, não lamentava nada que Rupa tivesse tido aquele impulso e agido em consequência.
- Vamos mudar de conversa - ordenei eu. - E não quero que andem a gabar-se disto às outras mulheres no mercado, ouviram? Podem fazer todos os elogios a Rupa que quiserem aqui dentro de casa, mas não dizem uma palavra que seja sobre o assunto a mais ninguém. Se César descobre...
- E se César descobre, papá? - interrompeu Diana. - O que achas que o grande Ditador, esse mauzão, vai fazer?
- É melhor não virmos a descobrir.
César tinha sobrevivido aos dois primeiros triunfos. As únicas lesões que havia sofrido tinham sido na sua dignidade, e tratavam-se de lesões menores. A troça dos soldados tinha acabado por fazer com

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que o amassem ainda mais, e a clemência de que dera mostras relativamente a Arsínoe não o fizera parecer fraco e hesitante, mas antes sensato e decidido, tornando-o ainda mais apreciado pela plebe.
Mas, se não provinha dos gauleses nem dos egípcios, se não provinha do distanciado António nem da ambiciosa Fúlvia, se não provinha de Cícero - desorientado pelo amor - nem do verboso Bruto, de onde provinha a ameaça contra César que Jerónimo detectara? Longe de me sentir aliviado com o facto de o Ditador ter saído ileso dos dois primeiros triunfos, eu sentia-me mais apreensivo do que nunca. Com que perigos se confrontaria César nos dois próximos triunfos?
O primeiro seria a comemoração da vitória que obtivera recentemente na Ásia, onde o Rei Fárnaces de Punt se tinha aproveitado da guerra civil que opunha Pompeu a César para tentar recuperar o reinado de seu pai, o Rei Mitrídates. A crueldade de que Fárnaces dera mostras fora chocantes, pelo menos para a sensibilidade romana; ao conquistar cidade após cidade, não se limitara a pilhar as propriedades de numerosos cidadãos romanos; também recorrera à prática de castrar os jovens mais belos - entre os quais se contavam muitos romanos -, antes de os vender como escravos. Estas atrocidades tinham causado escândalo em todo o mundo romano, mas os sucessos militares de Fárnaces haviam prosseguido, até que o próprio César, depois de ter resolvido o problema egípcio, avançou para a reconquista da região. Fárnaces fora derrotado na batalha de Zela, fugira, e acabara por ser capturado e morto por um dos seus, que o atraiçoara.
Morto Fárnaces - que poucos haviam chorado -, era difícil imaginar quem escolheria o Triunfo Asiático para matar César. Mas não é certo que Jerónimo afirmara que o perigo viria de fonte inesperada?
Nessa noite, já tarde, enquanto analisava os escritos de Jerónimo à procura de alguma coisa que se relacionasse com o iminente Triunfo Asiático, deparei com uma passagem do diário que ainda não tinha lido:
E que dizer das especulações que circulam a propósito de Gaio Octávio, o sobrinho-neto de César? António repete a lenda com enorme satisfação e, tanto quanto sei,

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foi ele que lançou o boato (se é que se trata de um simples boato). António sente-se, naturalmente, picado por César, mas por que motivo havia de se entreter a espalhar boatos salames sobre Octávio, a não ser que ache que César tenciona fazer do rapaz seu herdeiro, imaginando António que ele próprio merece mais do que o rapaz (embora não tenha ligações de sangue com o Ditador). Mas... será verdade o que se conta? Decidi ir conhecer o rapaz para tentar perceber se ele seria tentador para um homem como César. Não foi difícil combinar um encontro. Octávio é um rapazinho brilhante, que se aborrece com facilidade, pelo que anda sempre à procura de distracções; e ficou bastante fascinado comigo.
Estará ele à altura de César? Bem, eu diria que é bastante bonito, embora não seja o meu género; tem o rosto largo de mais e os olhos excessivamente afiados - parece-me mais provável que um homem se corte naqueles olhos do que se deixe perder
por eles. Mas quem sabe aonde terá César chegado com o rapaz Octávio é ambicioso, e os rapaces ambiciosos são maleáveis. César percorre o mundo qual Colosso de Rodes, mas até os gigantes lamentam a juventude perdida, e não posso negar que o rapaz tem uma frescura que atrai. Como diz António, César faz de Nicomedes, e Octávio
faz de César.
Ou será tudo uma invenção de António? Ele adora mexericar sobre terceiros, nunca conheci outro como ele para isso, e Citéris incita-o constantemente...
Esta história era nova para mim. Era manifesto que Jerónimo não sabia bem se havia ou não de lhe dar crédito. A primeira vista, a ideia de que César andasse atrás dos favores sexuais de um jovem não me parecia improvável. Eu estava convencido de que César fizera o mesmo com Meto, embora não conhecesse, nem nunca tivesse querido saber pormenores. E tinha motivos para acreditar que César tinha tido a mesma atitude relativamente ao jovem Rei Ptolemeu do Egipto, com quem mantivera uma relação de grande intimidade, antes de se terem oposto irrevogavelmente um ao outro e de César ter optado por tomar o partido de Cleópatra, a irmã de Ptolemeu, com quem também viria a partilhar o leito. E, tanto quanto eu sabia, também era possível que César tivesse tido esse género de intimidades com Bruto, o que poderia explicar a natureza - duradoura, mas estranhamente volátil - da relação que os dois homens tinham um com o outro.
Eu não conhecia Gaio Octávio. Tentei recordar-me do que sabia sobre ele.
O jovem era sobrinho-neto de César, por ser neto de uma das irmãs do Ditador. Tinha nascido no ano em que Cícero fora cônsul

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e desmantelara a chamada conspiração de Catilina); o que significava que Octávio teria agora uns dezasseis anos.
O pai dele era um Homem Novo, tal como Cícero, o primeiro da família a ascender a senador; Gaio Octávio pai era banqueiro e financiador, e dera início à sua carreira política distribuindo subornos aos bandos nos dias das eleições. Se viesse a ser recordado, seria por ter perseguido um grupo de escravos fugitivos, constituído pelos últimos restos dos exércitos, há muito desbaratados, de Espártaco e Catilina. Estes fugitivos haviam andado à solta durante treze anos, vivendo do que conseguiam arrebanhar, sem nunca serem capturados. Octávio pai conseguira cercar os fugitivos nas proximidades de Túrio e havia-os eliminado a todos. Tal feito permitira-lhe firmar as suas credenciais de sério defensor da lei e da ordem. Parecia destinado a uma carreira política particularmente implacável; contudo, um ano depois de ter começado a desempenhar o cargo de governador da Macedónia, morrera em consequência de uma doença súbita.
Se os meus cálculos estavam correctos, o jovem Gaio Octávio tinha apenas quatro anos aquando da morte de seu pai. Talvez isso explicasse a devoção de que dava mostras às mulheres que o criaram. Quando a avó morrera, Octávio, então com doze anos, proferira uma oração fúnebre que, segundo se dizia, arrancara lágrimas ao próprio César. A parte as competências oratórias, o rapaz nunca fora visto em combate, e ainda não tinha idade para ter deixado a sua marca no mundo. Mas devia estar a chegar à maturidade, pensei, e voltei à leitura. Jerónimo confirmou esta minha impressão:
Por outro lado, Octávio tem actualmente devasseis anos, que é a idade que alguns homens adultos consideram ser a mais atraente. Pergunto a mim mesmo se César perderá o interesse quando o bezerro se transformar em touro. Octávio vai fazer dezassete anos e vestir a toga da masculinidade no próximo dia 23 de Setembro (ou, de acordo com os cálculos dos romanos, nove dias antes das Calendas de Outubro). E gaba-se de que o tio-avô poderá deixá-lo desfilar num dos triunfos, para comemorar a sua maturidade. Claro que o rapaz não participou em nenhuma das campanhas (duvido de que tenha sequer pegado alguma vez numa espada), mas César tenciona fazê-lo desfilar como conquistador, apresentando-o formalmente ao povo romano - o que reforça a ideia de que poderá estar a preparar o jovem Octávio para vir a ser o herdeiro dele. "

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Devido à ligação familiar? Porque César acha que o rapaz tem qualquer coisa de extraordinário? Ou porque o catamito merece uma recompensa generosa?
Dei um ligeiro assobio, espantado com o atrevimento de Jerónimo. Pelo menos tinha confinado estas especulações temerárias ao diário, não as fazendo constar dos relatórios que entregava a Calpúrnia; ainda assim, surpreendia-me que as tivesse escrito de todo. De repente, ocorreu-me que poderia ter sido o próprio César a mandar matar Jerónimo. Mas, se assim fosse, César não teria procurado e destruído este documento ofensivo? Abanei a cabeça. Tanto quanto eu podia perceber, César ignorava por completo a existência, quer do arúspice etrusco da mulher, quer do espião massiliano de Calpúrnia.
Se Jerónimo não se tinha enganado nas datas, o aniversário de Octávio era amanhã. O Triunfo Asiático de César teria lugar no dia seguinte, seguindo-se o Triunfo Africano, dois dias mais tarde. Octávio participaria em algum deles?
Jerónimo afirmava que o rapaz tinha ficado fascinado com ele. E se Jerónimo tivesse compreendido mal a reacção do rapaz? O meu amigo nem sempre era o mais hábil dos diplomatas, e nem sempre conseguia esconder os seus pensamentos; teria revelado a Octávio as suspeitas que alimentava a propósito da relação que César mantinha com o jovem? Ter-se-ia Octávio sentido embaraçado, ofendido, escandalizado mesmo? Teria desconfiado de que Jerónimo andava a espalhar rumores maliciosos sobre ele? António era poderoso de mais para ser morto por uma coisa dessas, mas Jerónimo não. Cá estava outro motivo para alguém assassinar o massiliano.
E, caso a história fosse verdadeira, seria um motivo para Octávio conspirar com vista à morte do tio-avô? A ideia de o sobrinho-neto e possível herdeiro de César, um rapaz de dezasseis anos, conspirar para o matar era realmente forçada - estando por isso totalmente de acordo com a advertência de Jerónimo, segundo a qual a ameaça proviria de onde menos se esperava. Mas seria tal ideia assim tão improvável? É sabido que os catamitos se voltam contra os amantes adultos por todo o género de motivos. Talvez Octávio fosse loucamente ciumento. Ou talvez lhe desagradasse estar sujeito ao domínio de um homem mais velho, considerando que era uma forma de degradação,

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e ansiasse por se vingar, independentemente de o seu destino pessoal se encontrar nas mãos de César.
Enquanto eu não conhecesse melhor Gaio Octávio, estas ideias não passavam de especulações ociosas. Tal como Jerónimo fizera, também eu decidi que precisava de conhecer este rapaz, para poder avaliá-lo pessoalmente.

CAPÍTULO QUINZE

A casa da viúva Ácia, a mãe de Octávio, ficava situada na encosta do Palatino, relativamente perto da minha. Na manhã seguinte, enverguei a minha toga de cerimónia, chamei Rupa, e fui fazer-lhe uma visita - e encontrei à porta da casa de Ácia uma multidão tão numerosa, que bloqueava a circulação na rua.
A maioria dos homens estava de toga. Outros apresentavam-se vestidos com os seus atavios militares. Por entre o mar de caras, reconheci senadores, magistrados, oficiais de alta patente e banqueiros abastados. Via-se também um bom número de estrangeiros, entre os quais se contavam diplomatas, comerciantes e mercadores. Fiquei com a impressão de ter tropeçado numa reunião da alta elite de Roma.
Eu estava à espera de encontrar uma multidão, mas nunca com esta dimensão. Era tradicional as pessoas virem cumprimentar o jovem cidadão e a respectiva família no dia em que ele chegava à idade adulta e passava a envergar a toga da masculinidade. Em geral, os convidados vão circulando pela casa durante o dia. Neste caso, porém, o jovem era o sobrinho-neto de Júlio César, e os que queriam cumprimentá-lo eram uma legião. Dado que Ácia vivia numa casa modesta, que não tinha espaço para albergar mais do que uma mão-cheia de convidados em simultâneo, a porta era guardada por um escravo de ar solícito, que mantinha a ordem, não dando entrada a mais do que uma ou duas pessoas de cada vez, ao ritmo da partida dos convidados anteriores.
- Bem, Rupa - observei eu -, por este andar, nunca mais lá chegamos. E a referência a Jerónimo não terá qualquer valor neste caso.

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A situação ainda era pior do que me tinha parecido inicialmente. Depois de ficar a observar durante algum tempo, percebi que as visitas não entravam por ordem de chegada; em vez disso, os convidados menos importantes davam a vez aos mais importantes. Enquanto observava, Dolabela, o agitador da ralé e favorito de César, surgiu. Com um porte arrogante, o jovem nemesis de Marco António (e ex-genro de Cícero) passou pela multidão compacta. Não precisou de abrir caminho à força; a multidão separou-se para lhe dar passagem como que por instinto. Passou pelo porteiro e entrou na casa sem sequer fazer uma inclinação de cabeça.
Se se entrava naquela casa por ordem de influência, eu seria o último a ser admitido, a não ser que conseguisse convencer o pisoeiro ou o sapateiro do jovem Gaio Octávio a deixarem-me passar à frente deles.
- Anda, Rupa - disse eu -, vamos para casa.
E preparava-me para me ir embora, quando senti uma mão apertar-me o ombro.
- És o Gordiano, não és? O pai de Meto Gordiano?
Voltei-me e vi um homem de quarenta e poucos anos, de face rechonchuda mas agradável, olhos brilhantes, e uns vestígios de cinzento nas têmporas. Uma barba bem aparada tornava-lhe mais quadrado o queixo redondo. Os contornos da toga davam a entender que tinha um físico robusto, com um toque de obesidade que condizia com a da cara. A bainha roxa da toga, e o facto de estar acompanhado por um grupo de lictores, indicavam que se tratava de um pretor, um dos magistrados especialmente escolhidos por César encarregados de manter a ordem na cidade.
O sujeito parecia-me vagamente familiar, mas não consegui lembrar-me de quem se tratava. Percebendo que eu estava hesitante, ele deu-me uma palmada no ombro e soltou uma gargalhada.
- Chamo-me Hírcio. Não tenho a certeza de que tenhamos sido formalmente apresentados, mas conheço muito bem o teu filho, e já te tinha visto. Deixa-me pensar; terá sido à entrada da tenda de César em Brudísio, no dia em que expulsámos Pompeu de Itália? Não? - Deu umas palmadinhas nos lábios com a ponta dos dedos. - Se calhar foi numa das propriedades de Cícero. Tu dás-te bem com Cícero,

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não dás? Eu também. Somos grandes amigos, Cícero e eu; somos vizinhos em Túsculo, as nossas propriedades ficam ao lado uma da outra, vemo-nos lá com mais frequência do que cá em Roma. Ele anda a dar-me aulas de oratória. Em troca, eu revelo as minhas receitas preferidas ao cozinheiro dele; e supliquei a César que não lhe cortasse a cabeça quando o palerma insistiu em escolher o lado dos vencidos!
O sujeito tinha um bom humor contagiante. Eu sorri e acenei com a cabeça.
- Não, não me parece que tenhamos sido apresentados, mas claro que eu sei quem é Aulo Hírcio. - Fora um dos oficiais de César na Gália e combatera com César em Espanha, no começo da guerra civil. Na arena política, tinha sido o autor de diversas leis destinadas a limitar os direitos dos apoiantes de Pompeu a ocuparem cargos públicos, e a legitimar alguns dos actos menos consensuais de César. Hírcio era um dos homens mais fiéis de César.
- Vieste cumprimentar o jovem Octávio, foi? - perguntou ele.
- Vim. Mas dá-me a impressão de que somos muitos.
- Quer dizer que o conheces? A Octávio?
- Não - confessei eu. - Mas tenho a impressão de que tínhamos um amigo comum, um massiliano chamado Jerónimo.
- Ah, o Bode Expiatório. Sim, ouvi dizer que ele tinha morrido.
- Também conhecias Jerónimo? - Eu ainda não tinha deparado com nome de Hírcio nos escritos de Jerónimo.
- Na verdade, conheci o Bode Expiatório nesta casa, no dia em que ele veio visitar Octávio. Ultimamente, tenho vindo bastante por cá, passar umas tardes com o rapaz, a pedido de César. Venho dar-lhe instruções, compreendes, porque conheço bem Espanha, e Octávio deve partir para lá em breve, uma vez que já tem idade para se desempenhar destas tarefas. O teu filho já está em Espanha, segundo sei.
- Está, de facto.
- Exacto. Meto deve andar a reunir informações, a apreciar a lealdade dos chefes locais, a avaliar forças e a verificar resistências, a colocar as bases para César avançar e obliterar por completo o inimigo. Meto é bom nesse género de coisa. Uma campanha em Espanha será uma oportunidade para o jovem Octávio conquistar experiência no campo de batalha, derramar

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que massa é feito. Eu tenho andado a ensinar ao rapaz tudo o que sei sobre a disposição do território e os costumes locais, a rever estratégias e tácticas de base, a treiná-lo na utilização de diferentes armas. E lá estou eu a chamar-lhe rapaz! A partir de hoje, Gaio Octávio é um cidadão de corpo inteiro, e o paterfamilias desta casa.
Hírcio passou os olhos pela multidão, que tinha aumentado ainda mais desde a chegada dele. Em seguida, pondo as mãos à cintura, comentou, abanando a cabeça:
- Bem, não vou ficar aqui à espera de que chegue a minha vez. Tenho imenso que fazer hoje, para preparar o triunfo de amanhã. Lictores, abram caminho até à porta. Vão com jeito. Com firmeza mas sem brutalidades!
E avançou, lançando-me um sorriso de despedida por cima do ombro. Porém, ao ver a minha expressão de desalento, inclinou-se para trás e agarrou-me no braço.
- Anda, vem comigo, Gordiano.
- Tens a certeza? - Ao mesmo tempo que fingia hesitar, fiz um sinal a Rupa, indicando-lhe que não saísse dali, e avancei ao lado de Hírcio. - É muito simpático da tua parte, pretor.
- É um prazer, Gordiano. É o mínimo que posso fazer pelo pai de Meto.
Quando chegámos à porta, estava Dolabela a sair. O ferrabrás radical, que devia ir a meio dos vinte anos, tinha uma cara tão infantil, que dava a impressão de ter passado há muito pouco tempo pelo seu próprio dia de toga. Ele e Hírcio trocaram uma saudação, breve mas animada, com muitos sorrisos e palmadas nos ombros, mas depois de nos termos afastado Hírcio comentou em voz baixa:
- Não percebo o que vê César neste agitador.
Fomos recebidos no vestíbulo por Ácia, a mãe de Octávio, que envergava uma estola sumptuosa, de um tecido muito trabalhado, e estava coberta de jóias. Devia estar a receber visitantes desde o nascer do dia, mas o sorriso com que acolheu Hírcio pareceu-me completamente genuíno. Cumprimentou-o com um beijo na cara.
- Bem-vindo, desconhecido! - disse ela. Hírcio soltou uma gargalhada.

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- Tanto como o sujeito que acaba de sair, espero. Ácia estreitou os olhos.
- O jovem Dolabela? É um encanto de rapaz! Hírcio fez estalar a língua.
- Mas não o deixes aproximar-se muito de Octávia. Agora que se libertou da filha de Cícero, jovem alguma estará em segurança perto dele. Ou és tu que andas a deitar o olho ao malandro?
Ácia riu-se.
- Conheces bem a minha fama de viúva casta. As mulheres do Ditador têm de estar todas acima de qualquer suspeita; tanto a mulher de César como a sobrinha de César.
Hírcio acenou com a cabeça.
- E onde está o teu tio? Pensei que estivesse cá em casa.
- E devia estar. Mas deve andar ocupado de mais a resolver crises. Há-de acabar por aparecer. Espero eu! Não posso ser eu a levar Gaio a dar o passeio pelo Fórum com a nova toga vestida, para depois ir com ele ao alto do Capitolino ler os auspícios. Eles estão a pensar realizar o ritual diante da estátua nova do tio. Nem podíamos pedir tempo melhor. E quem é este sujeito?
Hírcio apresentou-me. Ácia assumiu imediatamente uma atitude mais formal, suavizada por um sorriso obviamente sintético. Talvez tivesse sido o tio quem lhe ensinara a afivelar uma cara de político quando tinha de receber uma horda de desconhecidos.
Passámos a um pequeno jardim. Por entre os arbustos, via-se um jovem de toga, de ar modesto, em cujo rosto se lia uma expressão pensativa, quase carregada. Tinha a testa alta, mas tapada por uma cabeleira bastante farta e espessa, as sobrancelhas extensas e pronunciadas. A boca de lábios finos era quase excessivamente pequena em comparação com o comprido nariz. Quando avistou Hírcio, os lábios curvaram-se-lhe num sorriso, mas os olhos permaneceram distantes - o que resultou numa expressão irónica, que parecia precoce para a idade.
Os dois homens cumprimentaram-se calorosamente, apertando-se os cotovelos num quase abraço. Hírcio curvou-se, pareceu-me que num impulso, e beijou Octávio nos lábios, dando-lhe depois um beliscão na face.

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- Meu rapaz, meu rapaz! Ou melhor, meu homem! Olha para ti, de toga! O teu tio vai ficar muito orgulhoso quando te vir.
- Achas que sim? Eu só sei é que isto é muito mais quente do que eu estava à espera. Acho que, se tiver de estar à torreira do sol enquanto me lêem os auspícios, desmaio.
- Que disparate! Vais portar-te com a maior graciosidade, como sempre te portas. - Hírcio poisou-lhe uma mão pesada sobre o cachaço, familiaridade a que o jovem se submeteu sem embaraço nem prazer aparente. Depois voltou para mim aquele olhar curiosamente distante.
- Este é Gordiano - disse Hírcio -, o pai de Meto Gordiano, o amanuense do teu tio.
Octávio ergueu uma sobrancelha.
- Estou a ver.
- Conheces o meu filho?
- Só de fama.
O que quereria Octávio dizer? A atitude distanciada sugeria pensamentos que não chegavam a ser proferidos, juízos feitos em silêncio. Ou seria eu que estava a imaginar coisas?
- Cumprimentos por este dia tão especial, cidadão - disse eu.
- Obrigado, Gordiano.
- Vocês têm um conhecido comum - informou Hício. - Ou tinham.
- Jerónimo de Massília - ajuntei eu rapidamente, interessado em observar a reacção de Octávio.
Por momentos, Octávio não teve qualquer expressão. Depois, ergueu ambas as sobrancelhas.
- Ah, o Bode expiatório. Perdoa-me, mas foram tantos os nomes que hoje me passaram pela mente, que de repente não estava lembrar-me. Como está Jerónimo?
- Não ouviste dizer? - perguntou Hírcio. - O sujeito foi esfaqueado e morreu. Algures no Palatino, não foi, Gordiano?
- Foi.
- Que notícia tão triste - comentou Octávio. - Que crime terrível, no coração da cidade. Quem foi que o matou?
- Não se sabe - respondi eu.

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- Isso é um escândalo. O meu tio já sabe? Ele tem de fazer alguma coisa.
- Eu tenho a esperança de que o assassino, ou assassinos, venham a ser descobertos - expliquei eu. Octávio correspondeu com um aceno de cabeça, mantendo inalterada a expressão. - Mas perdoa-me, cidadão, por vir perturbar este dia com uma notícia destas. Hoje é um dia de festa.
- E é mesmo! - Era Ácia, que entrava no jardim a passos largos. - Um dia de alegria, que tem de ser partilhada. Temos lá fora muitos mais visitantes que querem cumprimentar-te.
Hírcio fingiu-se amuado.
- Quer dizer que temos de nos ir embora?
- Tu? Nem pensar! Mas, se queres ser útil, fazes-me o favor de ir à procura do meu tio e de o trazeres cá! - Ácia sorriu, e foi-se embora.
- Nesse caso, adeus. - Hírcio lançou um olhar melancólico a Octávio, inclinando a cabeça para um lado. - Meu rapaz, meu rapaz, que bem que te fica essa toga! - Avançou na direcção de Octávio, e por momentos pareceu-me que o beijaria de novo. Mas Octávio encolheu-se e recuou ligeiramente, e o abraço com que se despediram foi menos descontraído e intenso do que seria de esperar.
Abandonámos o jardim e regressámos ao vestíbulo, onde Ácia já cumprimentava os visitantes seguintes.
Os lictores de Hírcio estavam à espera dele à entrada. Enquanto nos dirigíamos ao local onde eu tinha deixado Rupa, os lictores abrindo caminho para nós passarmos, um murmúrio atravessou a multidão, e todas as cabeças se voltaram na mesma direcção. O nome "César" passou de boca em boca num sussurro, e em seguida foi lançado em alta voz: "César! Avé, César!"
O tio-avô de Octávio tinha finalmente chegado, acompanhado por uma comitiva considerável e rodeado de lictores. César, porém, avançou, sozinho e sem protecção, ao encontro do grupo que se encontrava reunido à porta da casa de Ácia.
Dava a impressão de que toda a gente que era alguém em Roma sabia que hoje era o dia da toga do sobrinho-neto de César, e que, mais cedo ou mais tarde, o próprio Ditador havia de aparecer por ali.

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Se alguém desejasse atingir César em local público, tinha aqui a oportunidade ideal. Quantos punhais estariam escondidos entre aquela multidão? Bastava um para matar um homem. Com que rapidez seria um assassino decidido capaz de atacar, antes de ser possível detê-lo?
Eu pus-me em bicos de pés, para observar o lento progresso de César pelo meio da multidão. Os homens empurravam-se uns aos outros para conseguirem tocar-lhe, proferiam cumprimentos e saudações, e diziam quem eram, na esperança de que ele se recordasse deles. Sempre que César se voltava ou acenava com a cabeça, eu estremecia. Foi pelas batidas do meu coração que contei o número de vezes que ele escapou a uma morte possível.
César viu Hírcio e aproximou-se dele.
- Aulo Hírcio! Como está o nosso rapaz a sair-se neste dia especial?
- Esplendidamente, César! Octávio nasceu para andar de toga.
- Óptimo, óptimo. E será Gordiano, quem está aqui a teu lado? Diz-me, Descobridor, gostaste dos vossos lugares no triunfo de ontem?
- Conseguimos ver tudo muito bem, Ditador. Ele acenou com a cabeça, e apertou os lábios.
- Incluindo a cena com Arsínoe e o admirador anónimo?
Eu fiquei com a boca seca. Rupa estava a poucos passos de distância -de nós, e eu fiz o possível por não olhar para ele.
- Foi uma cena completamente inesperada - comentei.
- Pois foi. Depois de ter dedicado toda a vida à política, um homem julga que conhece o povo de Roma, mas ele continua a surpreendê-lo. Esperemos que não haja mais surpresas nos próximos triunfos.
Eu acenei com a cabeça.
- O teu sobrinho vai participar em algum deles? César animou-se.
- Vai de facto. Não será no de amanhã, mas será no último, no triunfo final, o Triunfo de África. Gaio Octávio receberá honras militares e seguirá a cavalo à frente das minhas tropas; após a procissão, estará a meu lado quando eu proceder à dedicação do novo templo; ambos somos descendentes de Vénus. Tenho esperança de que o povo de Roma o ame tanto como eu, e como aqui o Hírcio.

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- Hão-de amá-lo, César - disse Hírcio. - Não podem deixar de o fazer.
- Confio em ti, Hírcio. Compete-te velar para que o rapaz se apresente equipado na perfeição e saiba conduzir-se no triunfo. Não queremos que ele maneje as armas como um recruta acabado de entrar, nem que deixe por apertar alguma peça da armadura.
- Tenho a certeza de que o rapaz, o jovem!, corresponderá às tuas expectativas - garantiu Hírcio.
César fez um aceno de cabeça e prosseguiu caminho. Momentos depois, desaparecia dentro de casa de Acia, ileso, e eu senti-me mais aliviado.
Mas continuava a ser assaltado por dúvidas irritantes. Voltavam-me à ideia os boatos registados por Jerónimo, que me tinham levado a formar uma imagem de Octávio mesmo antes de ter oportunidade de o conhecer. Parecera-me que as carícias - descomprometidas mas insistentes - de Hírcio ao rapaz, e a reacção - passiva, mas desprovida de emoção - com que ele as recebera, não eram inocentes e ternas, mas estranhamente perturbadoras. Qual seria exactamente a natureza da relação entre César e Octávio, e entre Octávio e Hírcio?
Estaria eu a permitir que as coscuvilhices e as insinuações maldosas me toldassem a capacidade de observação? Ser induzido em erro por via de preconceitos era uma falta comum, uma falta muitas vezes perigosa, cometida por amadores como Jerónimo, quando empreendiam investigar mistérios.
Recordei a mim mesmo que Octávio tinha apenas dezassete anos, que era um jovem muito protegido, órfão de pai, praticamente sem qualquer experiência do mundo. Devia sentir-se muito constrangido pelo facto de viver à sombra do tio-avô, e é bem possível que se sentisse ligeiramente intimidado com o enorme impacto público que o seu aniversário estava a ter. O que me parecera distanciamento e altivez era, muito provavelmente, a expressão cuidadosamente resguardada de um rapaz que ainda não se conhecia bem a si mesmo e não sabia que lugar ocupava exactamente neste mundo.
Quando cheguei a casa, tinha o mensageiro de Calpúrnia à minha espera.

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Ela perguntava-me novamente com quem tinha eu falado e o que tinha descoberto. Apesar das frases deliberadamente crípticas por que optava, eu percebi que se sentia cada vez mais angustiada.
Voltei a responder-lhe dizendo que nada tinha de significativo a relatar.
Passei o resto do dia num peculiar estado de espírito, praticamente sem me mexer do jardim. Estava um dia brutalmente quente. Pensei no jovem Octávio, a cozer dentro da toga enquanto os augures observavam o voo das aves no alto do Capitolino, garantindo certamente a César que os auspícios eram óptimos. Apenas bebi água, abstendo-me de vinho, e dormi uma série de curtas sestas. De vez em quando, estendia a mão para os relatórios de Jerónimo, mas a letra dele parecia-me mais indecifrável, a prosa mais inutilmente prolixa do que nunca. Havia uma série de material que eu ainda não tinha lido, ou por que apenas tinha passado os olhos sem lhe prestar a devida atenção.
Por fim, as sombras começaram a alongar-se, mas o calor do dia não dava mostras de recuar.
A minha filha veio juntar-se a mim.
- Estás a sentir-te bem, papá? - perguntou Diana. Pensei na pergunta.
- Não me sinto mal.
- É do calor! Davo e eu viemos agora do mercado à beira-rio. A cidade está completamente mergulhada numa espécie de sonolência.
- Ainda bem, pensei que fosse só eu. Ela franziu o sobrolho.
- A investigação não está a correr-te bem, pois não? Encolhi os ombros.
- Nunca se sabe. Posso ter uma súbita revelação a qualquer momento. Já tem acontecido. Neste momento, porém, não faço a menor ideia de quem matou Jerónimo, nem porquê.
- Hás-de vir a perceber. Bem sabes que sim. Mas há mais qualquer coisa que te incomoda.
Eu acenei com a cabeça.
- Não consigo esconder-te nada; herdaste isso da tua mãe.
- Talvez. Pela tua expressão, vejo que te sentes perturbado.
Eu coloquei a mão em pala na testa e estreitei os olhos por causa do Sol. O astro dava a impressão de ter estacionado sobre a linha do

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horizonte; eu estava capaz de jurar que se encontrava imóvel naquela posição.
- Quando aceitei esta missão de que Calpúrnia me encarregou, disse-lhe que o fazia com um único objectivo: fazer justiça a Jerónimo. Mas deixou de ser assim, se é que alguma vez foi. Acabei por me deixar apanhar no zelo pela salvaguarda da vida de César. Hoje de manhã, estava uma grande multidão à porta da casa de Gaio Octávio. César atravessou o ajuntamento sozinho, sem lictores a protegê-lo, sem amigos sequer à volta dele. E eu dei por mim quase em pânico, quando pensei no perigo que ele estava a correr. Comecei a ofegar, o coração a bater-me muito depressa. E senti um alívio indescritível quando ele atravessou a multidão sem que nada lhe tivesse acontecido e desapareceu dentro de casa.
- E estava mais seguro dentro de casa? - perguntou Diana. - Aquela gente não se preparava toda para entrar atrás dele, só que uma de cada vez, ou aos pares, para ir cumprimentar o jovem? E o próprio Gaio Octávio não seria uma ameaça a César? Tu devias achar que sim, senão não tinhas ido visitá-lo.
- Eu realmente não consigo esconder-te nada! Nunca falámos sobre nada disto.
Ela sorriu.
- Eu tenho maneiras de saber as coisas, papá. Mas a questão é que nem tu, nem ninguém, pode estar constantemente a velar por César, em especial se algum dos que lhe são próximos estiver empenhado em lhe fazer mal.
- Tens razão, filha. Mas não estás a perceber o fulcro da questão.
- Que é?
- Por que motivo me há-de incomodar que César viva ou morra? Eu prometi a Calpúrnia que estudava estes documentos, e seguia as pistas que eles me sugerissem, mas apenas com o fito de descobrir quem tinha matado Jerónimo. A vida de César não me diz respeito.
- Isso não é verdade. A vida de César tem importância para todos nós. Para o bem ou para o mal, ele pôs fim à guerra civil e a todo o sofrimento que a acompanhou.

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- Grande parte do qual foi infligido pelo próprio César.
- Mas agora isso acabou, pelo menos aqui em Roma. As pessoas voltaram a viver, a ter esperanças, a fazer planos, a pensar no futuro. A pensar na vida, em vez de pensar na morte. Ninguém está interessado num regresso à dor e às mortes dos últimos anos. Se César fosse assassinado, especialmente antes de ter nomeado um herdeiro, recomeçaria a matança. Não é preciso ter grande amor a César para querer que ele continue a respirar. Nem sequer é preciso gostar dele. A pessoa pode ter desprezo por ele, e apesar disso querer que ele continue vivo, para se manter a paz, para bem de todos nós.
- Foi a isto que as coisas chegaram? A termos de nos sujeitar a um Rei, e a querer que ele dure para sempre, porque a alternativa é demasiado terrível para conseguirmos sequer concebê-la?
Diana inclinou a cabeça.
- Deve ser tremendo ser homem e ter de pensar nestas coisas, ainda por cima com um calor como o de hoje. Para nós, que não temos direito de voto, nem podemos ir para a guerra, ou ter propriedades em nosso nome, ou sequer de ter a esperança de virmos algum dia a fazer qualquer dessas coisas dos homens, a vida é muito mais simples. Quantas mais pessoas terão de morrer, antes de o mundo ficar em paz? Se César fosse assassinado, não me parece que viesse daí algum bem, mas tenho a certeza de que se seguiriam muitos males. É isso que tu receias, papá. É por isso que te importa o que aconteça a César.
Ergui os olhos e apercebi-me de que o Sol se tinha escondido para além da linha do horizonte. Afinal, sempre vinha aí o lusco-fusco, a que se seguiria a noite, e a seguir um novo dia.
Fechei os olhos.
Devo ter adormecido, porque tive a impressão de que me encontrava no Tuliano, cuja escuridão húmida e fria era quase agradável, em comparação com o calor brutal do dia. Por entre as sombras, só via lémures em meu redor - os lémures de Vercingetorix e de Ganimedes, e de inúmeros gauleses e egípcios, a que em breve se juntariam mais vítimas da Ásia e de África e de terras ignotas que ficavam ainda para além. Mas o lémure de Jerónimo não se contava entre eles.

CAPÍTULO DEZASSEIS

No dia seguinte, chegámos ligeiramente tarde ao Triunfo Asiático, e não íamos todos. Bet tinha feito uma pequena birra e, após muitas discussões, Diana conseguiu convencer a mãe a vir connosco, ficando ela em casa. Tínhamos os nossos lugares à nossa espera. Perdemos a procissão inaugural dos senadores e magistrados - não foi grande perda! -, mas já estávamos a sentar-nos quando os corneteiros assinalaram o início da parada dos troféus.
O Rei Fárnaces, o monarca rebelde, tinha dominado a Capadócia, a Arménia e o Ponto. Todas estas regiões, que César recuperara posteriormente, eram representadas por objectos preciosos, doados pelos respectivos habitantes, agradecidos pela intervenção romana. Exibia-se igualmente uma coroa de ouro e outros tesouros, com que Fárnaces tentara aplacar César aquando da chegada do Ditador à Ásia, a par de uma estátua de Belona, a deusa da Lua, a principal divindade dos Capadócios, a quem César tinha oferecido sacrifícios antes de dar início à campanha.
Por entre as armas e máquinas de guerra capturadas, desfilou diante de nós o carro do próprio Fárnaces. Tratava-se de um veículo impressionante, o assento revestido por uma espessa placa metálica, projectando-se das rodas umas lâminas de aspecto assustador.
Num quadro, era retratada a fuga de Fárnaces na batalha de Zela. Via-se o Rei no carro, a coroa a cair-lhe da cabeça, na face uma máscara de pânico. Ao lado dele, erguia-se um César de expressão severa, com as mãos na cintura. Do outro lado, via-se Asandro, o homem de confiança do Rei, que o havia traído e acabaria por matá-lo, exibindo

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um sorriso maldoso. A multidão irrompeu em gargalhadas ao ver estas caricaturas, exageradas mas bem conseguidas.
Seguia-se um quadro enorme, que se estendia a toda a largura da vereda, e tinha o dobro da altura dos homens que o transportavam. A vista dele, a multidão irrompeu em aplausos, que acompanharam toda a sua passagem. Percebi porquê quando chegou à nossa frente. César tinha derrotado Fárnaces numa única batalha, travada cinco dias depois de ter chegado ao território, e quatro horas depois de ter avistado o inimigo. Tratava-se de uma vitória de impressionante magnitude e espantosa rapidez. Em gigantescas letras douradas, estava escrito neste quadro: cheguei, vi, venci.
Sempre desejosa de cantar em coro, a multidão começou a entoar a frase de alarde pessoal de César. Um dos lados gritava: "Cheguei!", o outro respondia: "Vi!", e os dois concluíam, num coro ensurdecedor: "Venci!"
Eu sentia o apelo da natureza desde que me tinha sentado, e já não aguentava mais.
- Acho que vou aliviar-me.
- Leva Rupa contigo - replicou Betesda.
Ele levantou-se para me acompanhar, mas eu fiz-lhe sinal que se deixasse estar.
- Não, Rupa, há certas coisas que eu posso fazer sozinho sem correr riscos. Deixa-te ficar aí, e vê se não te metes em sarilhos!
Betesda lançou-me um olhar exasperado, mas eu ignorei-a. Encaminhei-me para a coxia, desci os degraus da bancada e avancei por entre a multidão. As latrinas públicas mais próximas, erigidas directamente por sobre a Cloaca Máxima, não ficavam longe.
O local era um dos maiores edifícios públicos do Fórum mas, quando lá entrei, dei por mim completamente sozinho. Aproximava-se aquela que era, para muitos dos espectadores, a parte mais animada do triunfo - o desfile dos prisioneiros - e ninguém devia querer perdê-la. Eu pude escolher entre as dezenas de orifícios disponíveis. Segui as indicações do meu nariz até à zona menos malcheirosa do compartimento, e postei-me diante do receptáculo. O rugido da multidão ecoou pela câmara de pedra, dando a estranha impressão de ter lugar a enorme distância.

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Estava mesmo a começar quando alguém entrou na câmara.
Pelo canto do olho, vi que era um homem que envergava as vestes sacerdotais. Observei-o melhor e percebi que se tratava de Gneu Calpúrnio, o tio de Calpúrnia. Devia ter abandonado o lugar que ocupava na procissão para vir aliviar-se. Lançou-me um resmungo, mostrando que me tinha reconhecido, dirigiu-se a um receptáculo próximo do meu, e preparou-se para a função, erguendo as vestes. Tinha-me interrompido, e eu levei algum tempo a retomar o acto. Ele tardava a começar, o que não era surpreendente num homem com a idade dele. Deixámo-nos estar em silêncio durante longos momentos.
- Está calor hoje - disse ele por fim, olhando em frente.
- Pois está - respondi eu, ligeiramente surpreendido com o facto de ele se dignar conversar comigo, mesmo que apenas sobre o tempo. - Embora me pareça que não está tanto como ontem.
Ele soltou um resmungo. Polidamente, eu evitei olhar para ele mas, pelo canto do olho, percebi que o tio Gneu dava a impressão de estar a esforçar-se, porém sem efeito, porque eu continuava a não ouvir qualquer ruído de líquidos a correr.
- A minha sobrinha tem uma grande confiança em ti - prosseguiu ele.
- Tem?
- E fará bem em ter? - Ele voltou ligeiramente a cabeça e poisou sobre mim um olho solitário. - Ou serás tão bom como o anterior, aquele que se deixou matar, depois de a ter feito perder tempo e de lhe ter enchido a cabeça de mais disparates?
- Jerónimo era meu amigo - repliquei eu calmamente. - Preferia que não dissesses mal dele na minha presença. - Comecei a fazer. - Diz-me uma coisa, alguma vez discutiste astronomia com ele?
- O quê?
- Jerónimo fez umas anotações relativas ao movimento das estrelas, e por aí fora. Tu és um dos guardas do calendário, não és? Ocorreu-me que talvez lhe tivesses ensinado alguma coisa.
Ele resfolegou.
- Achas realmente que eu ia perder tempo e feitio a dar instruções sagradas a um criado da minha sobrinha, que ainda por cima era estrangeiro? Diz-me uma coisa, Descobridor, tu não andarás a fazer Cal-

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púrnia perder tempo? Já descobriste alguma coisa com interesse? Estás perto de descobrir alguma coisa com interesse?
- Estou a fazer o que posso - respondi eu. E em certos aspectos estou a sair-me muito melhor do que tu, pensei, porque o tio Gneu continuava a não conseguir aliviar-se. Não era de espantar que se mostrasse tão irritável!
Ele resfolegou.
- Bem me parecia. Não descobriste nada, porque não há nada a descobrir. A ameaça contra César que consome a minha sobrinha é totalmente imaginária, criada do nada por aquele arúspice, o tal Porsena.
- Se assim é, por que foi que mataram Jerónimo?
- O teu amigo andava a meter o nariz na vida dos outros, na vida de gente poderosa, de gente perigosa. Quem sabe que informações embaraçosas ou incriminadoras terá ele desenterrado, informações que nada têm a ver com César? O Bode Expiatório deve ter ofendido alguém, mas a morte dele não é propriamente uma prova de que existe uma conspiração contra César.
O que ele dizia fazia sentido, mas eu não conseguia deixar de me recordar da críptica "pista" a que Jerónimo tinha feito referência no diário. Dei por mim a repetir as palavras dele em voz alta:
- "A verdade não se encontra nas palavras, mas as palavras poderão encontrar-se na verdade."
- Em nome do Hades, o que significa isso?
- Quem me dera saber - respondi eu. Depois, ocorreu-me uma recordação, aparentemente vinda do nada, e eu tive um súbito arrepio.
- Que cara é essa? - perguntou o tio Gneu. Eu estremeci.
- Há muito tempo, por pouco não fui assassinado numa latrina pública, aqui no Fórum. Por Hércules, quase me tinha esquecido disso! Já se passaram trinta e cinco anos, foi durante o julgamento de Sexto Róscio, da primeira vez que trabalhei com Cícero. Um assassino contratado seguiu-me para o interior de uma latrina, ao pé do Templo de Castor. Estávamos sozinhos, e ele tirou um punhal...
- Tudo isso é muito interessante, mas talvez seja melhor esquecer o sujeito!

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Voltei-me e fui-me embora, quase com pena do tio Gneu. A avaliar pelo silêncio, ele ainda não tinha conseguido começar a aliviar-se.
A multidão era ainda mais compacta do que quando eu saíra. Em vão procurei maneira de passar por ela. O ruído de gritos e gargalhadas era ensurdecedor.
Percebi que não tinha vontade nenhuma de voltar para o meu lugar nas bancadas. Já estava farto de ver prisioneiros humilhados e condenados, César no carro cerimonial, lictores e oficiais de cavalaria, e legionários a pé.
Subitamente, apeteceu-me muito estar noutro sítio, e comecei a andar, para longe do triunfo, para longe do ruído e da excitação. Por fim, depois de ter dado uma grande volta, dei por mim na Porta Flamínia, na antiga muralha da cidade.
Continuei a andar. Atravessando a Porta, encontrei-me fora dos limites da cidade propriamente dita, no Campo de Marte. Quando eu era miúdo, esta zona ainda era, literalmente, uma zona de campo, com enormes terrenos de parada. Algumas áreas do Campo de Marte continuavam no mesmo estado mas, ao longo do meu tempo de vida, a maior parte tinha sido preenchida com novos prédios de habitação, bem como templos e edifícios públicos, tornando-se um dos bairros mais animados de Roma.
Hoje, porém, as ruas estavam praticamente desertas. Proveniente do lado de lá do Monte Capitolino, que agora se elevava entre mim e o Fórum, continuava a chegar-me aos ouvidos o rugido da multidão, mais e mais esbatido à medida que eu continuava a avançar em direcção à grande curva do Tibre. Estava com uma profunda sensação de liberdade e libertação - do altivo tio Gneu, de César, de Calpúrnia, da minha mulher, que tanto se preocupava comigo, e mesmo de Rupa, o meu companheiro inseparável dos últimos dias.
Cheguei finalmente ao novo bairro de lojas e apartamentos que se tinha erguido em redor do Teatro de Pompeu, onde eu tinha vindo visitar Arsínoe. Ainda ali estaria a princesa, devolvida à prisão do alto, mas agora sozinha, sem um Ganimedes que dela cuidasse?
Vagueei por entre os pórticos desertos. As lojas estavam todas fechadas. Cheguei à entrada do teatro, cujo portão estava aberto. Entrei.

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As fileiras de assentos estavam desertas. Ergui os olhos para bancada após bancada, fascinado com o jogo da luz e das sombras sobre os semicírculos repetitivos, até lá ao alto, até onde se erguia o Templo de Vénus. Perdido nos meus pensamentos, subi lentamente os degraus.
Recordei a enorme controvérsia que havia surgido quando Pompeu anunciara que tencionava construir este teatro. Durante séculos, os sacerdotes e os políticos mais conservadores haviam impedido a construção de um teatro permanente em Roma, argumentando que semelhante extravagância conduziria os Romanos a uma decadência semelhante à dos Gregos, esse povo apaixonado pelo palco. Pompeu contornara-lhes as objecções juntando um templo ao complexo, por forma a que a estrutura, no seu todo, pudesse ser consagrada como um edifício religioso. A concepção era inteligente; as fileiras de lugares para o teatro funcionavam simultaneamente como degraus, que iam dar ao santuário, localizado lá no alto.
- Estás a ouvir-me?
Não estava sozinho. Subira ao palco uma figura solitária, de barba branca, envergando uma túnica multicolor.
- Perguntei-te se me ouvias aí de cima. Não basta acenares com a cabeça. Diz qualquer coisa.
- Sim! - gritei eu.
- Não precisas de gritar. A ideia é mesmo essa: acústica. Eu estou a falar pouco acima do volume normal, mas tu ouves-me perfeitamente, não ouves?
- Ouço.
- Óptimo. La-la-la, la-la-la. La-li-lo, la-li-lo. - O sujeito continuou a proferir uma série de ruídos sem sentido. Percebi que se tratava de um actor, e que estava a aquecer a voz, mas apesar disso dei uma gargalhada.
- Estou a ver que vais ser um público fácil - observou ele. - Senta-te e ouve. Podes ajudar-me a encontrar o ritmo.
Fiz o que ele me mandou. Afinal, tinha vindo à procura de evasão. E não havia melhor evasão do que uns momentos de teatro.
Ele pigarreou, assumindo em seguida uma pose dramática. Quando voltou a falar, fê-lo num tom completamente diferente, num tom

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escuro e carregado, cheio de peculiares inflexões. Tratava-se de uma voz de actor, treinada para fascinar.
- Amigos e compatriotas, bem-vindos a esta peça. Eu sou o dramaturgo. Isto é o prólogo... - a minha oportunidade de vos dizer o que penso sobre a história a que vão assistir. Podia deixar-vos ver a peça sem mais, e deixar-vos formar a vossa opinião; mas, como este público é constituído por romanos, e os romanos são inconstantes, prefiro não confiar na vossa apreciação. Bom, está bem, protestem e insultem-me à vontade... - E, desfazendo a pose: - Então? Protesta e insulta-me.
Eu fiz-lhe a vontade, lançando-lhe o que presumi que fosse um insulto adequadamente obsceno, com uma referência à mãe dele.
- Exactamente - aprovou ele, e prosseguiu o monólogo. - Bem sei o que vieram aqui fazer: celebrar o destino favorável de um homem excelente. Não se trata do destino favorável de um homem bom; isso seria uma questão diferente. E o homem também seria diferente.
Eu ri-me obsequiosamente da graça, que era nitidamente dirigida a César, o patrocinador das peças que se preparavam. A gargalhada deve ter-me saído um tanto forçada, mas fiquei com a impressão de que a Décimo Labério - reconhecia-o agora, era um dos principais dramaturgos e actores dos palcos romanos - pouco importava que as minhas reacções fossem ou não sinceras; o que lhe interessava era que eu reagisse nos momentos esperados, para lhe permitir marcar o ritmo da apresentação.
- Mas afinal o que estou eu aqui a fazer? - prosseguiu ele. - Serei completamente sincero, preferia de longe estar em casa, bem recostado, a ler um livro. Já estou farto de tantas comemorações; isto enerva um homem da minha idade. E no entanto aqui estou, a apresentar uma peça nova, produzida por encomenda. E porquê? Porque estou desejoso de passar à frente do imbecil do Publílio Siro, e de ficar eu com o prémio? Não! Não preciso de prémio nenhum para ter a certeza de que sou melhor dramaturgo do que aquele liberto.
"Não! Se aqui estou é porque a Deusa da Necessidade a tal me obriga. Para que profundezas de indignidade me lançou ela agora, no final da vida! Aqui onde me vêem, com duas vezes trinta anos, sou

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um homem derrotado. Quando tinha trinta, ou, melhor ainda, quando tinha metade de trinta, que jovem e orgulhoso eu era! Nem súplicas nem subornos, nem insistências nem ameaças, nada seria capaz de me fazer mover um iota que fosse. Agora, porém, vejam como salto! - E Labério deu subitamente um pulo, e por pouco não batia com o traseiro no chão; a falta de jeito era tão convincente, que eu dei uma grande gargalhada. Ele fez uma pausa, como quem espera que uma vasta audiência recupere de um ataque de riso. - É uma actividade muito pouco própria para um homem da minha idade! E porque salto eu? Porque certo homem mo exige.
"Não, não estou a ser justo. O sujeito não mo exige. Pede-me. Faz-me uma solicitação polida. Diz-me ele: "Libério, caro amigo, o melhor e o mais ousado dos dramaturgos, queres ter a fineza..." E Libério... salta - E executou um salto ainda mais arriscado que o primeiro, recuperando por ainda menos.
"E aqui é que está o busílis; e tanto me faz queixar-me, como não; para ele, os meus resmungos são cumprimentos. Olhem, está a rir-se! - Labério apontou para o camarote de honra, erigido no meio dos assentos, vazio como o resto do teatro. Depois, abanou a cabeça. - Amargas são as reviravoltas da Fortuna! Foi o sucesso que fez de mim escravo de outro homem. A ofuscante jóia da Fama transformou-me no ornamento de outro homem. O meu dom de palavras tornou-me... mudo. Mas oh, se eu salto! - E deu novo salto, mas teve uma hesitação de movimentos que tornou o pulo mais patético do que absurdo, mais deplorável do que divertido. Desta vez, não me ri.
Ele inclinou a cabeça para um lado.
- Lembram-se daquele jogo de quando éramos miúdos, a que chamávamos o Rei do Monte? Pois bem, durante algum tempo eu imaginei que era esse rei; mas depois tropecei, e vim parar cá bem ao fundo, à mesma posição em que todos se encontram, e cá de baixo ergo o olhar para o vencedor, que se encontra bem lá no alto, acima de mim, tão acima que eu tenho de franzir os olhos para conseguir avistá-lo - E, em voz trémula, em tom infantil, num tom de tal maneira estranho que eu me arrepiei todo, repetiu a canção que os miúdos cantam quando jogam a esse jogo:

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Hás-de ser Rei Se te aguentares la bem no alto. Mostra que és Rei Manda-os cá para baixo há bem do alto.
Eu inclinei-me para diante. Tinha deixado de fingir que era um espectador atento; sentia-me realmente fascinado. A voz dele conjurava memórias de miúdos a brincar, aparentemente inocentes naquela ânsia de competir. Mas também me fazia evocar campos de cadáveres, cabeças espetadas em estacas, os aterradores resultados daquelas brincadeiras de rapazes, quando eram transportadas para o mundo dos homens. Era espantosa a capacidade que um actor tinha de exercer completo domínio sobre o palco, de controlar as emoções do público com uma mudança de tom, com um simples encolher de ombros.
- Ah, mas suponhamos agora que eu estava a ficar tão grande, que já não cabia na toga - prosseguiu Labério com um suspiro. - Fazia-me bem uma certa redução. Não nos faria bem a todos, oh gente de toga? Já não sabemos como funciona o mundo. Nem todos podem ser o primeiro, e os postos mais elevados são os que custa mais manter. Do pináculo do sucesso, o único caminho é para baixo. Um homem tem o seu ponto alto, e depois cai; e o sucessor dele há-de cair quando chegar a sua vez, e o sucessor dele também, e por aí fora. Só os imortais conseguem segurar o lugar que detêm no universo, enquanto tudo aquilo que os rodeia muda num piscar de olhos de um deus.
"Tememos os deuses, e fazemos bem. Tememos certos homens, e fazemos bem. Mas oiçam bem o que vos digo: o homem mais temido é aquele que mais tem a temer....
Uma voz aguda, vinda de trás de mim, interrompeu-o.
- Labério, minha velha fraude! Tu nunca te atreverás a lançar essa frase do palco. Não percebo por que te entreténs a ensaiá-la.
Olhei para trás e vi uma figura impressionante, um homem que devia andar pelos quarenta anos, com uns veios brancos na barba escura. Pareceu-me ser o tipo de sujeito que é bastante elegante na

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juventude, mas que começa a engordar quando chega à meia-idade. Dirigia-se a passos largos para o palco, seguido por um grupo de actores.
- Eu ensaio o prólogo como o escrevi! - replicou Labério energicamente. - Se vou ou não dizê-lo tal e qual é outro assunto, e é um assunto que não te diz respeito, Publílio Siro. Se o temperamento do público e as exigências do espectáculo pedirem umas emendas espontâneas...
- E que tal uma saída espontânea? - O recém-chegado tinha passado por mim e aproximava-se rapidamente do palco. - Tu nem sequer devias aqui estar. Esta hora ficou reservada para o ensaio da minha trupe, e tu sabes perfeitamente que nós ensaiamos em segredo. Não posso permitir que andem por aí espiões a plagiar as minhas melhores deixas.
- Como te atreves, Siro? Como se eu roubasse uma só que fosse das tuas platitudes gastas. Seu... seu liberto!
- Isso mesmo, insulta um homem que abriu caminho nesta profissão à custa do mérito! Vamos, vamos, Labério, põe-te a andar! Desaparece! Manda uma nuvem de vapor pelo ouvido traseiro e desaparece por uma porta fingida!
- Tu é que costumas recorrer a esses efeitos vulgares de palco, Siro. Eu recorro às palavras e ao instrumento que é o meu corpo...
- Pois então leva o instrumento daqui para fora! E leva também o assistente!
Eu pigarreei.
- Na verdade, eu não sou assistente dele. Estava só...
- Sejas quem fores, sai daqui! Senão mando Ajax pôr-te na rua. - E Siro apontou para um dos actores. Não sei se o sujeito se chamava mesmo Ajax, ou se desempenhava esse papel, mas o certo é que o nome condizia com a corpulência do homem. De repente, tive pena de ter dito a Rupa que não viesse comigo.
Não tinha qualquer interesse em me envolver numa disputa entre dramaturgos rivais, mas confesso que tinha uma certa curiosidade a respeito das respectivas pessoas. Quer Labério, quer Siro, eram referidos por Jerónimo como convidados frequentes das festas de Marco António. Siro devia ter conhecido Jerónimo, porque tinha enviado uma mensagem de condolências para minha casa.

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Saí dali por onde tinha entrado, e já atravessava o comprido pórtico quando senti uma mão poisar-me no ombro. Voltei-me e vi que se tratava de Labério.
- O que achaste do meu prólogo, cidadão? Encolhi os ombros.
- Achei que era divertido. E também provocatório. Não sou grande frequentador do teatro...
- Mas riste-te quando era para te rires, e naquela parte sobre a brincadeira dos miúdos arrepiaste-te, não foi? Confessa!
- Confesso.
- Vem comigo, cidadão. - Deu-me o braço e conduziu-me a uma porta que ficava ali perto. Tratava-se de uma porta simples, sem adornos, mas o compartimento a que dava acesso era bastante grandioso. Tínhamos entrado por uma porta lateral na enorme sala de reuniões do complexo do teatro, que Pompeu tinha mandado erigir com o objectivo expresso de albergar as reuniões do Senado. Tratava-se de um anfiteatro oval, com assentos de ambos os lados, descendo em socalcos até ao centro. Via-se mármore por toda a parte, de muitas cores e padrões. A concepção e a execução eram extremamente refinadas, até nos mais pequenos pormenores.
Um cidadão comum como eu raramente tem oportunidade de entrar num lugar como este. Devo ter aberto a boca de espanto como um turista, porque Labério soltou uma gargalhada e deu-me uma palmadinha amigável nas costas.
- É uma sala e tanto, não é? Vem ver o homem que a construiu.
Descemos até ao centro. Labério permitiu-se umas palhaçadas, erguendo os braços e fazendo-os revolutear, como se fosse um orador a dirigir-se aos colegas. Terminou o curto espectáculo fazendo meia volta e curvando-se diante de uma estátua colocada em lugar de destaque, de encontro à parede, de onde podia ser avistada de qualquer ponto do anfiteatro. Não precisei de ler a inscrição do pedestal para reconhecer Pompeu, o homem que tinha mandado erigir este complexo e o oferecera à cidade, fazendo dele o feito mais notório da sua carreira.
Pompeu estava de toga, apresentando-se como estadista e não como soldado. O seu rosto suavemente elegante tinha uma expressão

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amável, quase serena. A recordação mais duradoura que eu tinha das feições de Pompeu era muito diferente. Certa vez, num ataque de raiva, o Grande tinha tentado matar-me, estrangulando-me com as próprias mãos, e a expressão que tinha no rosto nessa altura estava longe de ser serena. Eu ainda tinha pesadelos onde aquela expressão figurava. Nesta estátua, o Grande estava com um inofensivo, contemplando com um sorriso a enorme sala de reuniões que tinha oferecido aos colegas.
- Um grande patrono do teatro - observou Labério. com um suspiro. - Embora se deva reconhecer que César promete ser ainda mais generoso. O prémio que oferece ao dramaturgo que vencer esta competição é de um milhão de sestércios. Um milhão! Seria um grande contributo para uma velhice descontraída.
- Quer então dizer que não participas neste festival só porque o Ditador te obriga - observei eu.
- Não? Não vejo grande diferença entre saltar porque tenho medo do homem que me manda saltar, e saltar porque todo o ouro do mundo lhe pertence e ele prometeu atirar-me umas quantas moedas.
- Palavras fortes, dramaturgo!
- Quando os políticos eliminam a liberdade, compete aos poetas preservá-la. Ou escrever o respectivo epitáfio.
- Não sei sobre que é a tua peça, mas com um prólogo daqueles, estás mesmo à espera de que César te atribua o prémio?
- Porque não? Seria uma prova de que não condena as divergências, de que ama a liberdade, de que tem excelente gosto. Em que posso eu prejudicar César? No meu pior, não passo de um mosquito que lhe zumbe ao ouvido. As minhas arengas mais não são do que elogios para um homem como ele. Estava a falar a sério quando disse: "Tanto me faz queixar-me, como não; para ele, os meus resmungos são cumprimentos."
- Ainda assim, aquela última parte... Como é que tu dizias: "O homem mais temido..."
- "... é aquele que mais tem a temer."
- Não há tirano nenhum que goste de ouvir esse género de coisa. - Calpúrnia não teria gostado nada, pensei.

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- É preferível essas palavras serem gritadas em público do que serem sussurradas em privado - retorquiu Labério. - Pelo menos não sou um hipócrita, como aquela Barriga de Porco sem talento nenhum!
- Quem?
- Siro. É a alcunha dele. Desde que chegou a Roma, come barriga de porco a todas as refeições.
- O que talvez faça dele um sibarita, mas não faz dele um hipócrita.
- Não há pessoa que fale do Ditador com mais sarcasmo, nas costas dele, do que Siro. E contudo, aquilo a que ele chama a peça dele nada mais é do que um conjunto de platitudes insípidas em louvor de César.
- Um milhão de sestércios permite comprar uma quantidade interminável de barrigas de porco. Mas como é que tu sabes? Siro não ensaia em segredo?
Labério resfolegou.
- Conheço todas as deixas babadas da peça dele. "Um presente dignamente oferecido é um presente para quem o oferece." "Quando se argumenta de mais, perde-se de vista a verdade." "Uma recusa rápida é uma gentileza a meio." Banalidades, uma após outra, de fugir!
- Mas como é que tu sabes? Ele sorriu.
- Viste aquele sujeito, o Ajax? Dá a impressão de ser um sujeito forte, discreto; mas tem um fraquinho pela bebida, e quando bebe canta como uma cotovia!
Abanei a cabeça. Na Roma de César, até os dramaturgos se espiavam uns aos outros!
- Deixa-me ver se te compreendi, Labério. Estás a dizer-me que criticas César sem dó nem piedade, mas não és uma ameaça real para ele. Enquanto que um homem como Siro, que dá a impressão de ser completamente obsequioso...
- Tem muito mais probabilidades de ter planos pouco simpáticos. Mas César sabe disso. Ele avalia bem as pessoas. Se assim não fosse, já lhe tinham cortado a cabeça há muito tempo.
- Estás realmente a sugerir que Siro pode ser um perigo?

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- Um enorme perigo! Um homem que escreve uma deixa como "Ninguém vence o perigo recusando-se a encará-lo" pode assassinar por completo o teatro!
- Estou a ver. Diz-me uma coisa, quem é este Publílio Siro?
- Nasceu na Síria, como escravo, de onde o invulgar cognome. O nome Publílio vem-lhe do senhor que o libertou. Ninguém sabe como aqui chegou, mas dizem que era um belo rapaz. Não teria sido o primeiro escravo a ascender socialmente graças à sua beleza física. Veio para Itália, e apresentou-se como dramaturgo. Tem tido algum êxito no interior, no circuito das cidades pequenas. E agora convenceu-se de que será capaz de fazer nome na grande cidade. Pois sim! Aquilo que na Calábria é considerado uma grande esperteza nem sequer faz sorrir em Roma. Claro que, perante um público de senadores gauleses e quejandos, quem sabe o que passa actualmente por gosto popular...
Eu soltei um suspiro.
- De facto, as pessoas de verdadeiro gosto são cada vez mais raras. E desapareceu recentemente mais uma. Estou a pensar num amigo meu, que foi assassinado há poucos dias, um sujeito muito culto, um verdadeiro apreciador do teatro. Talvez o tenhas conhecido: Jerónimo de Massília.
Labério olhou para mim com uma face desprovida de expressão.
- Numa daquelas famosas festas que Marco António costuma dar? - sugeri eu.
- Ná. Não aprecio essa gente. Costumo chegar cedo a essas reuniões, recitar umas deixas, comer e beber o que consigo, e pôr-me a andar para casa, para me deitar cedo.
- Mas vais sempre a essas festas. Uma refeição de graça sempre é uma refeição de graça.
- Esse é um dos artigos de fé dos dramaturgos!
- E não te lembras de ter conhecido o meu amigo Jerónimo? Ele encolheu os ombros.
- Esse nome é-me vagamente familiar. Mas se era um sujeito que costumava chegar tarde e deixar-se ficar até de madrugada, é mais provável que Siro o tenha conhecido. Siro é que costuma sair a cambalear da Casa dos Bicos, ao romper do dia. - Franziu o sobrolho. - Mas tu disseste que o teu amigo tinha sido assassinado...

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- Não vale a pena falarmos nisso, visto que não o conhecias. Labério fez uma inclinação de cabeça respeitosa, e em seguida
apertou-me o braço.
- Ora bem, cidadão, faz-me um favor, senta-te num desses lugares aí a meio do anfiteatro. Eu fico aqui em baixo, e acabo de te recitar o meu prólogo. A acústica não é tão boa como no teatro, mas posso praticar os movimentos e afinar o ritmo...
- Lamento imenso, mas tenho de me ir embora.
- Sem ouvires o resto?
- Hei-de ouvi-lo quando o recitares para César.
- Cidadão! Estou a proporcionar-te a rara oportunidades de assistires a um momento decisivo da história do teatro, de ouvires a versão não censurada...
- O problema é mesmo esse! Sabes, Labério, eu abandonei o desfile e vim por aí fora, na esperança de escapar a tudo aquilo. Quando me sentei a ouvir-te, pensei que era isso que me esperava. E afinal, o que me ofereceste tu? Uma sátira sobre a situação em que Roma se encontra, com referências veladas ao Ditador; ou seja, aquilo mesmo de que eu estava a fugir! Não, obrigado, dramaturgo. Se não há em Roma lugar nenhum de onde uma pessoa possa descansar do Ditador, nem sequer o teatro, prefiro passar o dia com a minha família. A propósito, por esta altura, a minha mulher deve estar horrivelmente preocupada. Hércules me proteja, vou ter de enfrentar a ira de Betesda! Ora aí está um bom tema para uma peça!
E, lançando um derradeiro olhar a Pompeu, que contemplava o horizonte acima de nós com um sorriso plácido, despedi-me de Décimo Labério.

CAPÍTULO DEZASSETE

Quando voltei para o meu lugar, César já tinha passado, sem incidentes. Estavam a desfilar os legionários que o haviam servido na Ásia.
Fiquei um tanto desiludido com a reacção de Betesda, que mal parecia ter-se apercebido da minha ausência. Talvez perversamente, senti-me obrigado a explicar que me tinha ausentado ainda bastante tempo.
- Foi? - perguntou ela. - Há tanta coisa que ver, que o tempo voa. Perdeste os acrobatas da Capadócia. Digo-te uma coisa, aqueles miúdos devem ter asas, para conseguirem elevar-se a alturas daquelas!
- E os arqueiros da Bitínia! Eram mesmo impressionantes! - acrescentou Davo.
- Arqueiros? - perguntei eu.
- Dispararam centenas de setas para o ar - explicou Betesda -, de onde saíam galhardetes multicolores. Depois, as setas foram descendo, inofensivas como uma chuva de pétalas de rosa. Foi um espectáculo e tanto!
- Sabes que eu corri um certo perigo - disse eu.
- Correste perigo? Com Roma inteira aqui a assistir ao triunfo?
Que perigo?
- Não sei. Podiam ter tentado apunhalar-me pelas costas. Já aconteceu...
- Oh, isso foi há muito tempo! - retorquiu Betesda.
- O que não quer dizer que não possa voltar a acontecer. Não te
passou pela cabeça mandar Rupa ou Davo à minha procura?
Ela encolheu os ombros.

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- Calculei que tivesses encontrado algum conhecido e tivesses ficado à conversa. Não gosto de te interromper quando estás a pôr a conversa em dia com algum desses malandrins da Subura ou um desses anões dos esgotos das docas...
- Perdão, mulher, mas ultimamente grande parte das minhas conversas tem sido com pessoas situadas em posições consideravelmente bem mais elevadas na escala social. Tenho conversado com senadores e magistrados, com parentes do ditador e com dramaturgos famosos...
- Está bem, está bem - interrompeu ela. - Mas agora cala-te. Os soldados estão a cantar uma daquelas histórias de que eu tanto gosto. Pela Bona Dea, não é outra vez sobre César e o Rei Nicomedes, pois não? Devem ter sido os arqueiros da Bitínia que lha recordaram...
Se isto era material para uma peça, era certamente para uma comédia, e à minha custa. Passei o resto do triunfo em amuado silêncio.
As festas que se seguiram ao triunfo deixaram-me apático e sonolento. Tinha planeado ler mais alguns relatórios de Jerónimo quando chegasse a casa, para ver se encontrava alguma coisa relacionada com os dramaturgos, Labério e Siro, mas mal consegui manter-me acordado tempo suficiente para me despir. Dormi como uma pedra. Na manhã seguinte, Betesda queixou-se de que eu tinha ressonado.
Enquanto tomava o pequeno-almoço, recebi outra mensagem de Calpúrnia:
Vem imediatamente! Estou desesperadamente assustada! O meu sábio conselheiro garante-me que o perigo aumenta à medida que o tempo se vai reduzindo. Não descobriste nada? Limpa estas palavras mal as leias, e vem contar-me pessoalmente o que andaste afazer.
Ora aqui está, pensei eu, uma mulher que se preocupa com o marido. Levando Rupa comigo, dirigi-me imediatamente a casa dela.
Porsena, o arúspice, também lá estava, com o seu habitual ar de grande importância. Sentado de braços cruzados, o tio Gneu abanava

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a cabeça de vez em quando, para frisar que, em sua opinião, que todos estes movimentos eram inúteis. Calpúrnia encontrava-se num estado de grande agitação.
- Tens consciência de que só falta um triunfo? - perguntou-me.
- Tenho, é amanhã, o Triunfo Africano - respondi eu -, destinado a comemorar a derrota e a morte do Rei Juba, mas também a assinalar o triunfo de César sobre os seus adversários que fugiram para África depois da batalha de Farsalo. Romano algum celebrou jamais em triunfo a morte de compatriotas seus...
- O que faz com que esta seja uma ocasião ainda mais perigosa para César - interrompeu Calpúrnia. - Os inimigos dele haviam de adorar deitá-lo abaixo no próprio momento em que ele atinge o pináculo da sua glória!
- Foi o que te disse o teu arúspice?
- As advertências de Porsena são terríveis. Mas para isto bastava-nos o bom senso.
- Nesse caso, o teu marido tomará certamente todas as precauções. Homem algum foi jamais tão sensato como César. Ainda ontem me diziam que César sabe avaliar bem as pessoas...
- Chega de palavreado! - decretou Calpúrnia. - Descobriste alguma coisa que nos possa ser útil? Seja o que for?
Eu soltei um suspiro.
- Não estou mais perto de ser capaz de te dizer quem matou Jerónimo, ou porquê. Como te disse desde o princípio, esse é o verdadeiro motivo pelo qual me dedico a este assunto.
- Quando virás a saber alguma coisa?
- Não te posso dizer. E contudo...
Eles inclinaram-se na minha direcção, todos três.
- Diz! - ordenou Porsena.
- Ao longo dos anos, fui adquirindo um certo instinto. Assim como há pessoas que cheiram a aproximação da chuva, eu cheiro a aproximação da verdade.
- E...?
- O nariz começou-me a dar comichões.
- O que quer isso dizer? - largou o tio Gneu.
- Tenho a impressão de que estou a aproximar-me da verdade, embora não tenha nada que me indique o que é a verdade, nem de onde,

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ou como, surgirá a revelação. É uma espécie de primeira sugestão de um odor. A pessoa sabe que o reconhece, embora não consiga identificá-lo. Pelo menos por enquanto... mas dentro em breve...
- Estás tão místico como Porsena - observou Calpúrnia. - Pensei que te baseavas mais na lógica e nas deduções, como os filósofos gregos.
- E baseio. Só que às vezes dou um saltito na cadeia dos raciocínios e chego à verdade por uma espécie de atalho. Tem alguma importância a maneira como lá chego?
- O que tem importância é quando lá chegas - respondeu ela. - Que seja a tempo de salvar César.
Eu inspirei profundamente.
- Farei o que puder.
Voltei para casa, onde me dediquei novamente à leitura dos relatórios e do diário pessoal de Jerónimo. Embora fosse cedo, o dia já estava bastante quente. O calor intenso que se fazia sentir no jardim não era aliviado por nenhuma espécie de brisa.
Não encontrei nada de novo, que me picasse o interesse, mas deparei com uma passagem que ainda não tinha lido, a respeito do porteiro do prédio onde Jerónimo vivia, o escravo Agápio. Jerónimo observava de passagem: "Este rapaz não pára de namoriscar! Hoje até me piscou o olho. E certo que, ontem à noite, Citéris serviu vinho de Quios, e dizem que essa colheita devolve a quem a bebe o encanto da juventude perdida."
- Jerónimo! Jerónimo! - murmurei eu. - Eras mesmo um velhote vaidoso! Com que facilidade te deixavas lisonjear. - Para dizer a verdade, fiquei ligeiramente decepcionado ao ler aquela passagem. Agápio também tentara namoriscar comigo, mas era manifesto que o jovem se dedicava a essa actividade de forma promíscua, e portanto sem a menor sinceridade. Há escravos que adquirem o hábito de tentar seduzir os seus superiores, captando assim as boas graças por reflexo.
Diana trouxe-me uma taça de água, e ficou a olhar para os rolos e bocados de pergaminho que me rodeavam. Depois de hesitar uns momentos, perguntou-me:

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- Papá, achas que estás a conferir suficiente importância à nota que Jerónimo deixou a quem lhe descobrisse os escritos privados? Refiro-me àquela parte em que ele diz: "Olha em teu redor! A verdade não se encontra nas palavras..."
- Filha! Andaste a ler estes documentos nas minhas costas?
- Tu não me proibiste de os ler, papá.
- Mas também não te pedi que o fizesses. - Olhei para ela de sobrolho franzido. O calor estava a tornar-me irritável.
- Jerónimo também era meu amigo - disse ela calmamente.
- Claro que era. - Dei um golinho na água.
- Quero saber o que foi que lhe aconteceu, quero tanto como tu - acrescentou ela. - E, já que tu achas que não é próprio eu andar por aí a fazer perguntas a desconhecidos, como tu fazes, tenho de me limitar a ler os relatórios dele e a tentar imaginar qual destas pessoas haveria de querer matá-lo.
- Concedo-te que tens a vantagem de ter uns olhos mais jovens e mais resistentes. Até onde é que leste?
- Li uns bocados soltos. Não consigo perceber por completo o grego dele, e também há partes em que a letra é difícil de decifrar.
- E eu não sei! Mas o que estavas tu a dizer, que eu passei por alto não sei quê?
- Não sei se passaste por alto, papá. Mas dá-me a impressão de que deve ser significativo. É esta parte aqui. - Estendeu a mão para um pedaço de pergaminho e leu em voz alta. - "Nem aqui me atrevo a anotar a minha suposição; e se este diário fosse descoberto? Tenho de o esconder. E se eu for silenciado? Deixo aqui uma pista ao investigador que descobrir estas palavras e queira detectar a verdade. Olha em teu redor! A verdade não se encontra nas palavras, mas as palavras poderão encontrar-se na verdade."
Fiz um aceno de cabeça.
- Sim, sim, reparei imediatamente nessa passagem quando lhe descobri o diário. Não encontrei pista nenhuma, e olhei de facto em volta com atenção. Revistei-lhe todos os cantos do apartamento.
- Rupa estava contigo?
- Não, foi antes de a tua mãe ter decretado que eu não posso sair de casa sozinho. Porquê?

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- É possível que um segundo par de olhos tivesse detectado alguma coisa que a ti te passasse despercebida.
- Achas que eu devia lá voltar, e levar Rupa comigo?
- Não, acho que me devias levar contigo.
- Diana, bem sabes o que eu acho do teu interesse por este género de...
- Mas, papá, tu acabas de reconhecer que os meus olhos são mais jovens e mais fortes que os teus. Não achas possível que eu detectasse alguma coisa que a ti te tivesse passado despercebida? Quatro olhos vêem melhor do que dois.
- Um aforismo digno de Publílio Siro!
- Vais então levar-me ao apartamento de Jerónimo?
- Eu não disse que ia fazer semelhante coisa. Mas foi o que fiz.
Uma hora mais tarde, chegávamos os três - Rupa, Diana e eu - ao prédio da Subura. Agápio, o escravo que guardava a porta, não se via em parte nenhuma, mas nós também não precisávamos dele; eu tinha a chave do apartamento de Jerónimo. Diana avançou à minha frente pelas escadas acima; percebi que se sentia muito entusiasmada com o facto de vir acompanhar o pai nesta tarefa.
Contudo, à medida que fomos examinando o apartamento, o entusiasmo dela foi diminuindo gradualmente. Revistámos a mobília de uma ponta à outra, procurámos compartimentos ocultos nas paredes e no chão, revirámos os parcos objectos pessoais de Jerónimo. Abrimos os diversos rolos de pergaminho que ainda se encontravam na estante, em busca de mais pedaços escritos pelo punho e letra de Jerónimo. Demos a volta à varanda, procurando compartimentos escondidos nas paredes exteriores.
Não descobrimos nada de interesse.
Finalmente, Diana soltou um suspiro.
- E eu que tinha tanta certeza de que ia encontrar alguma coisa.
- Já passei pelo mesmo - respondi eu, acenando com a cabeça.
- Mas estava enganada.

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- Também já passei pelo mesmo. Este género de actividade gera muitas frustrações e muitas desilusões. Acontece que, quando não há nada que ver, quatro olhos valem o mesmo que dois.
- Deves ter razão. Mas acho que me sentiria ainda mais frustrada se não tivesse podido cá vir. Obrigada, papá.
Quando começámos a descer as escadas, ouvi vozes provenientes do vestíbulo do edifício. Quando chegámos lá abaixo, deparámos com o jovem Agápio, à conversa com Gneu Calpúrnio. O velho sacerdote mostrou-se surpreendido por me ver ali, mas ainda mais por ver Rupa e Diana.
- O que está esta gente aqui a fazer?
Agápio, que habitualmente se apresentava muito bem-disposto, estava completamente dominado pelo tio Gneu, que era indubitavelmente imune aos poderes de sedução do jovem escravo.
- O que se chama Gordiano tem a chave do apartamento lá de cima - explicou ele.
- E como foi que ele a adquiriu?
- Tirou-ma. Mostrou-me o selo da senhora... O tio Gneu deu-lhe uma palmada num ouvido.
- Que bem que tu guardas esta propriedade. Devia mandar-te para as minas de sal. - Mal Agápio se recompôs, Gneu deu-lhe outra palmada.
- Pára com isso! - intervim eu. - O escravo está a dizer a verdade. Fui eu que lhe tirei a chave, porque Calpúmia me deu autoridade para o fazer. E que tens tu a ver com o assunto?
- Há vários meses, a minha sobrinha delegou em mim a gestão deste edifício. Anda demasiado ocupada para poder incomodar-se com inquilinos e rendas. O escravo não te devia ter dado a chave sem minha autorização.
- Gneu Calpúrnio, julgo que estás ciente da importância que a tua sobrinha confere ao meu trabalho, quer tu próprio o respeites, quer não. Ter-me-ias negado esta chave? Não me parece. Por amor de Numa, deixa o rapaz em paz e sossego!
- Como te atreves a invocar o nome do meu antepassado a favor de um escravo, Descobridor!

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- Toma lá a chave, já não preciso dela. - Lancei-lha aos pés, mas foi Agápio quem acorreu a pegar nela. O adulador escravo estendeu o objecto a Gneu Calpúrnio, que deu um pontapé no jovem.
Eu apressei-me a sair dali, com Diana e Rupa no meu encalço.
- E viste agora outra faceta do meu trabalho, filha. - Percebi que Diana tinha ficado abalada com a conversa. - Isto não é só beber vinho na companhia de Citéris e trocar graças afiadas com Cícero. Quando se esquecem das boas maneiras, os nossos melhores sabem ser bastante desagradáveis.
- Que homem horrível! - E Diana estremeceu.
- Já encontrei pior - respondi eu, mas naquele momento não me lembrava quando, nem onde.
Depois de ter tomado a refeição do meio-dia com a família, sentia-me inclinado a fazer uma sesta, mas Diana insistiu em que nos sentássemos os dois no jardim e continuássemos a ler as notas de Jerónimo. Tendo conquistado o direito de partilhar o meu trabalho, estava agora ansiosa por prosseguir.
Foi Diana quem deparou com uma passagem que nenhum de nós tinha ainda lido:
Terei saudades de viver em casa de Gordiano? Tenho indubitavelmente saudades dos pratos de Betesda. Tenho saudades da generosidade e das conversas de Gordiano. Mas eles foram-se embora os dois, quem sabe se para sempre. Claro que também tenho saudades dos outros, mas tem um certo atractivo a pessoa partir sem olhar para trás. Eu estou a viver a minha aventura.
- A aventura dele - sussurrei eu -, que terminou tão mal. Diana acenou com a cabeça.
- Também há aqui uma passagem sobre o arúspice, Porsena.
Divirto-me imenso a ver até que ponto consigo trapacear outro trapaceiro, Porsena, levando-o a confiar em mim (e a induzir Calpúrnia a pagar-me). O sujeito é

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provavelmente um charlatão dos pés à cabeça, mas pergunto a mim próprio se não se terá convencido de que tem de facto poderes de adivinhação. Se eu confirmasse a previsão dele, de que há uma conspiração contra o Ditador, o poder que ele tem sobre Calpúrnia aumentaria. Mas, se eu demonstrasse que ele é um palerma, ou que é uma fraude, nem ela seria capaz de me proteger da fúria dele.
- Achas que ele exagera, papá, quando diz que Porsena é muito perigoso? Tu conheceste o sujeito. Eu não.
- Não sou capaz de te responder.
- Mas é uma ideia, não é? Jerónimo poderá ter sido morto porque estava prestes a provar que não havia conspiração nenhuma contra César.
Eu olhei fixamente para ela e abanei a cabeça.
- Tu tens a beleza da tua mãe, graças aos deuses, mas receio bem que tenhas herdado a mente retorcida do teu pai.
Ela sorriu ao ouvir isto.
- Também estava cá a pensar, papá, se não devíamos reflectir melhor sobre a cerimónia de dedicação do novo Templo de Vénus.
- O que é que tem?
- Está previsto que tenha lugar pouco depois de terminar o triunfo de amanhã. Não seria a ocasião ideal para alguém se aproximar de César, alguém que quisesse fazer-lhe mal?
- Talvez. Presumo que as obras do templo já tenham sido concluídas, mas não sei se a área circundante já está acabada. Estão a ser construídos vários edifícios novos. Presumo que haja muitos locais de onde se possa lançar uma emboscada, atentados a que se possa dar a impressão de terem sido acidentes, esse género de coisas.
- Talvez não fosse má ideia irmos lá dar uma vista de olhos.
- Irmos.
- Fui eu que tive a ideia, papá. Eu soltei um suspiro.
- Muito bem. Vai chamar o Rupa. Vamos lá dar uma vista de olhos ao novo templo de César.

CAPÍTULO DEZOITO

Com característica modéstia, César tencionava dar a designação de Grande Fórum ao novo complexo de edifícios que mandara erigir, a fim de o distinguir do antiquíssimo Fórum (oficialmente designado por Fórum Romano) criado pelos nossos antepassados. De momento, porém, do Grande Fórum apenas se conseguiam discernir os contornos; à excepção do Templo de Vénus, já concluído e proeminentemente situado na extremidade do perímetro, a área era um enorme estaleiro, cujas partes constituintes se encontravam em diversas fases de acabamento.
Quando estivesse concluído, o Grande Fórum seria o centro das actividades legais de Roma, com salas para audiências, salas para julgamentos, escritórios para os advogados e os arquivos legislativos, tudo agrupado em redor de uma grande praça, contornada por um pórtico de colunatas. No centro da praça, seria instalada uma monumental estátua equestre de César (por enquanto, só o enorme pedestal se encontrava no lugar), sendo a zona em frente do Templo de Vénus agraciada com um elaborado fontanário (de que ainda só tinham sido construídas as canalizações).
O local pululava de operários. Em antecipação da cerimónia de dedicação que teria lugar no dia seguinte, a esplanada que ficava diante do templo estava a ser limpa e preparada para acomodar um grande número de espectadores. Muitos deles teriam de ficar de pé. Mas estavam a ser para aqui trazidos bancos, que eram dispostos em fileiras diante da escadaria do templo; neles se sentariam as personagens mais importantes. Na base dos degraus, estava a ser erigido um altar em mármore para o sacrifício.

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O templo, todo em mármore, era magnífico. Fora construído sobre um pódio elevado, a que se tinha acesso por uma comprida escadaria, com as colunas muito próximas umas das outras. Todos os pormenores da fachada - desde as cornijas e os capiteis, passando pelo frontão e.as esculturas decorativas - tinham sido delicadamente trabalhados.
Tratava-se do templo que César prometera erigir na véspera da batalha de Farsalo, se dela saísse vitorioso, em honra da deusa de quem descendia. Era o Templo de Vénus Genitrix. O templo que Pompeu erigira no alto do teatro que mandara construir fora oficialmente consagrado a Vénus Victrix, mas fora a César que Vénus concedera a vitória.
Inspeccionei o estaleiro, na medida em que os operários nos permitiram, em busca de possíveis locais para emboscadas ou armadilhas. Não me parecia provável que alguém conseguisse montar semelhante ataque em segredo, com tantos homens ali ocupados a limpar o local.
- Vamos dar uma vista de olhos ao interior - sugeriu Diana.
- Achas que podemos? O templo ainda não foi inaugurado.
- Que disparate! As portas estão escancaradas! Além disso, tens o selo de Calpúrnia, não tens? E ela é da família de Vénus, por afinidade, não é?
Sem esperar pela minha autorização, Diana encaminhou-se para a escadaria. Eu segui-a e fiz sinal a Rupa para que viesse connosco. A minha filha deteve-se à entrada, para me permitir apanhá-la, e entrámos juntos pela espaçosa porta.
O interior era ainda mais sumptuoso do que a fachada. O chão, as paredes, o tecto e as colunas de mármore exibiam uma espantosa gama de cores e padrões, e como estava tudo recém-acabado, as superfícies brilhavam que pareciam espelhos. Como decoração para as paredes do vestíbulo, César tinha adquirido dois dos quadros mais famosos do mundo, a Medeia e o Ajax, da autoria do famoso artista Timómaco. Numa sequência de elaboradas vitrinas, estava em exposição uma extraordinária colecção de jóias e pedras, que César fora adquirindo no decorrer das suas viagens. Entre elas contava-se - e não seria talvez a mais bela, mas era certamente a mais exótica de todas - uma couraça de aspecto selvático, coberta de minúsculas pérolas; uma

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placa anexa informava que provinha da ilha da Britânia, situada na extremidade do mundo.
Vindo do interior do santuário, chegou-me aos ouvidos o som do martelo e do cinzel de um escultor. Diana também o ouviu, e trocámos um olhar de curiosidade.
- Achas que ainda estão a trabalhar na estátua, na véspera da dedicação do templo? - perguntou ela.
- Vamos ver - sugeri eu. E avançámos para o santuário.
Arcesilau, o escultor a quem César tinha encomendado a obra, tinha fama de ser o artista mais bem pago do mundo. Jerónimo referia-se a ele de passagem num dos relatórios, e o sujeito mandara uma nota de condolências a minha casa. Muitos anos antes, eu tinha-o conhecido em casa do já falecido Lúculo, que fora um grande patrono das artes. Nessa altura, Arcesilau era um jovem bastante belo, famoso pela sua vaidade e pelo seu mau génio. Estava agora grisalho, mas continuava a ter ombros largos e bíceps de escultor; como continuava também a ter mau génio, a avaliar pela reacção que teve ao ver-nos entrar no santuário.
- Em nome do Hades, o que estão vocês aqui a fazer? - berrou. A estátua de mármore de Vénus estava colocada no alto de um pedestal, encostado à parede do fundo. Arcesilau estava empoleirado numa plataforma de elevação, que lhe dava acesso à base da estátua, onde estava a acabar um pormenor, com a ajuda de um pequeno martelo e de um cinzel.
Eu pigarreei.
- Chamo-me Gordiano...
- E eu Diana, sou filha dele. E este é Rupa, o filho dele. Franzi o sobrolho perante a iniciativa de Diana. Arcesilau ergueu
uma sobrancelha. Não gostei nada da maneira como retorceu o canto dos lábios, olhando Diana de alto a baixo.
- Nós conhecemo-nos - prossegui eu -, embora já tenhamos sido apresentados há muito tempo...
- Lembro-me do teu nome. Sei quem tu és. E lembro-me da altura em que nos conhecemos. Mas não foi isso que eu perguntei. O que estão vocês aqui a fazer? A não ser que a resposta seja: "Foi César que nos enviou, é uma emergência", podem pôr-se os três a andar!

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Bem, pelo menos os dois homens! - Voltou a olhar para Diana, estreitando os olhos.
- É por causa de César que eu aqui estou - repliquei eu. Estava a dizer mais ou menos a verdade.
- E o que será que o homem quer desta vez? - Arcesilau atirou com o martelo e o cinzel. Eu encolhi-me antecipando o impacto dos projécteis, mas a estátua estava coberta por uma tela de protecção contra objectos caídos. Os instrumentos tombaram sobre a tela com um ruído seco.
Arcesilau lançou-se numa arenga.
- Primeiro, disse-me que queria a estátua pronta no final do ano. "Muito bem", respondi eu, "é possível." Depois, disse-me que a queria pronta em Setembro. "É impossível!", disse-lhe eu, "não é possível fazer tal coisa." "Tem de ser", respondeu ele, "trata disso." Quando eu comecei a protestar, ele desatou-me a recitar os milagres que tinha conseguido no campo de batalha, que tinha construído uma armadilha com os barcos para apanhar Pompeu em Brundísio, que tinha aberto um túnel por debaixo das muralhas de Massília, e um nunca mais acabar de coisas, tornando possível o impossível por efeito da vontade. "Estamos a falar de arte, não estamos a falar de batalhas", disse-lhe eu. "Isto é uma estátua, não é um massacre. Eu estou a criar uma deusa, não estou a pilhar a Gália!"
Saltou da plataforma e, soltando um sonoro queixume, inclinou-se para apanhar os instrumentos. Depois de se endireitar, olhou para mim por momentos, voltando em seguida a distrair-se com Diana. O fogo que trazia nos olhos tornou-se ainda mais intenso. Os lábios curvaram-se-lhe numa expressão obscena. Quando era mais jovem, Arcesilau fora um amante; hoje em dia, era um velho lascivo. Eu fiz estalar os dedos para lhe chamar a atenção.
O sujeito voltou para mim um olhar sem expressão, que depois se transformou em deprimida resignação.
- Então? O que deseja César desta vez? Diz lá! - Ao ver-me hesitar, em busca de uma resposta, ele voltou a atirar com os instrumentos. - E não me digam que está relacionado com aquela abominação! - E apontou para além de nós, para um dos cantos do santuário que ficava perto da entrada, onde se encontrava, parcialmente envolvida em

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cordas e tela, deitada de lado, a estátua dourada de Cleópatra que havia desfilado no Triunfo Egípcio.
- O que está aquilo ali a fazer? - perguntei eu.
- Isso gostava eu de saber! - Arcesilau avançou a passos largos, detendo-se diante da estátua da Rainha egípcia. Por momentos, tive a impressão de que ia dar-lhe um pontapé. Mas ficou a olhar para ela, bateu com o pé no chão, e voltou para junto de nós com a mesma passada. - Perguntas muito bem, o que está aquilo, aquela atrocidade, a fazer neste templo? Mas não me perguntes a mim! Pergunta a César!
- Quer dizer que César tenciona mandar colocá-la aqui, no Templo de Vénus?
- "O mais perto possível da estátua da deusa", em palavras dele. "Sem fazer diminuir a integridade da tua obra, naturalmente"; também são palavras dele. "Sem fazer diminuir"! Como se tal coisa fosse possível! O templo foi construído para albergar a estátua; a estátua foi concebida para cumprir o propósito sagrado do templo. As duas coisas são inseparáveis, são uma só coisa. Introduzir aqui outro elemento, em especial uma porcaria como aquela...
- Os espectadores do triunfo gostaram bastante dela - interveio Diana. - As pessoas ficaram bastante impressionadas.
Ele olhou fixamente para ela.
- Gostava mais de ti calada.
- Isso não é maneira de falar! - repliquei eu.
- Quer dizer que concordas com a tua filha? Achas que uma multidão embriagada é capaz de fazer uma adequada apreciação artística? Foi a isso que chegámos? No meio dos cantos obscenos, eles abriram a boca de espanto diante de uma estátua pirosa, de maneira que a coisa merece ser instalada num templo sagrado, ao lado da obra do maior escultor do mundo! Graças aos deuses que Lúculo já morreu, se não morria mesmo só de assistir a isto!
Estava à beira das lágrimas. Agarrou-me no braço. Rupa fez menção de se atirar a ele, mas Arcesilau não queria fazer-me mal. Arrastou-me para junto da estátua de Vénus.
- Olha para ela! - ordenou. - E ainda nem sequer está acabada; há umas zonas que ainda falta polir, e falta pintá-la. Mas olha para ela, e diz-me o que vês.

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Eu avaliei a estátua durante longos momentos.
- Vejo a deusa Vénus, de pé, com um braço flectido e a mão assente no ombro, o outro braço ligeiramente estendido...
- A pose é delicadíssima, não achas? Eu acenei com a cabeça.
- É de facto. Tem um dos seios a nu...
- E o seio nu capta com exactidão o peso e a textura da carne, não te parece? Quase se sente a pele macia e quente com a ponta dos dedos. Quase se lhe vê o peito subir e descer, como se estivesse a respirar.
- É verdade - sussurrei eu.
- E a face?
- Serenidade. Sabedoria. Beleza. - Pensei na face de Arsínoe, quando Rupa lhe beijara o pé.
- E a veste, as pregas e as dobras da veste? Abanei a cabeça de puro encantamento.
- Dão a sensação de que a mais pequena brisa as faria agitar.
- Exactamente! Tens diante de ti um objecto de pedra, que no entanto, quanto mais se olha para ela, mais viva parece estar, viva e a respirar, vigilante, como se pudesse descer do pedestal a qualquer momento.
O efeito era realmente perturbador. Eu tinha de facto a sensação de que a estátua de Vénus estava a olhar para mim. Enervado, baixei os olhos. Na base da estátua, reparei no pormenor que Arcesilau tinha estado a acrescentar quando nós entrámos. Tratava-se da famosa imagem de marca do artista, a representação de um sátiro aos pulos.
- Agora vem cá. - Agarrou-me no braço e levou-me até junto da estátua de Cleópatra. - Diz-me o que vês.
Eu franzi o sobrolho.
- Não é assim muito justo compará-las. Vendo bem, esta estátua está deitada.
- E achas que, se estivesse direita, dava a impressão de ser menos rígida, menos sem vida?
- É uma estátua de um género diferente - argumentei eu. - Para já, não retrata uma deusa, mas um ser humano que está vivo.
- E contudo, dá a impressão de estar menos viva, menos presente nesta sala do que a imagem de Vénus!

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Ele tinha razão. A estátua de Cleópatra era, decididamente, fruto de um artista de qualidade inferior. O bronze dourado, que tão estonteante parecera sob os raios do Sol, era menos impressionante ali, à luz difusa do santuário; a bem dizer, ficava com um ar um tanto espalhafatoso. A estátua tinha a sua beleza mas, comparada com a de Vénus, não passava de uma peça de metal sem vida.
- Fere-me a vista olhar para ela! - declarou Arcesilau. - E, no entanto, César quer vê-la instalada aqui no templo, onde vai alterar por completo o equilíbrio.
- Talvez ajude a reforçar a superior natureza da tua Vénus - sugeri eu.
- Não é assim que as coisas funcionam! - largou ele. - A arte de má qualidade faz diminuir o valor da arte de boa qualidade. Quanto maior é a proximidade, maiores são os danos.
- Falaste nisso a César?
- "Tu estás a trabalhar na Vénus há muito tempo", disse-me ele. "Percebo que estejas exausto, e eu venho colocar-te mais um desafio. Mas tu hás-de estar à altura, Arcesilau! Hás-de encontrar o local ideal para a imagem da Rainha. Tu és capaz!" Como se se tratasse apenas de mais um elemento da encomenda que ele me fez, de mais uma oportunidade de criar uma coisa harmoniosa e bela, uma oportunidade pela qual eu devia sentir-me grato. Como se não fosse antes um insulto a tudo aquilo que eu realizei numa vida inteira dedicada à arte!
Inspirou profundamente. A arenga de Arcesilau seria inofensiva? Ele teria alguma vez expressado este rancor contra César? E tê-lo-ia Jerónimo ouvido? Não me lembrava de ter encontrado, nos relatórios do meu amigo, qualquer referência à animosidade do escultor contra César.
- Por que motivo achas que César quer esta estátua aqui no templo? - perguntei. - Será por alguma razão de natureza religiosa? Cleópatra está ligada à deusa egípcia Isis...
- Pois está - concordou Arcesilau. - Mas Isis é uma manifestação da deusa grega Ártemis, a nossa deusa Diana, e não Vénus. Não, a imagem de Cleópatra não pode, de maneira nenhuma, ser vista como uma imagem de Vénus. Não é óbvio por que motivo César quer esta estátua no templo dedicado à deusa de quem descende? Pretende prestar homenagem à mãe do filho dele.

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- Tenho a impressão de que estás enganado - sugeri eu, recordando-me da conversa que tivera recentemente com César e da ausência de Cesarião do Triunfo Egípcio. E contudo, um homem como César gostava de deixar todas as alternativas em aberto. Como também gostava de não dar explicações muito precisas.
- Talvez tu saibas melhor do que eu o que César pensa - concedeu Arcesilau. - Mas afinal porque foi que ele te mandou cá? Não foi por causa daquilo, pois não? - E apontou para outro canto, onde se via, encostado à parede, um enorme quadro de pano, montado numa estrutura de madeira. Aproximei-me para o examinar. Tratava-se da imagem de um calendário, pintado ao estilo tradicional, com os nomes abreviados dos meses no topo e colunas de numerais por baixo, a assinalar os dias, tendo ainda a indicação das Calendas, dos Idos, dos Nonos e de diversas festividades. Era uma imagem muito artística, com diversas cores, e as letras delicadamente trabalhadas.
- Um calendário? - perguntei eu.
- O calendário - emendou Arcesilau. - Não será propriamente um tema digno do meu talento, mas como pretende anunciar o novo calendário na mesma altura em que dedicar o templo, César queria apresentar uma imagem que pudesse tornar pública, de maneira que fui eu que fiz isto. O que te parece?
- É um lindo objecto. Muito elegante.
- Presumo que não tenhas vindo verificar se está correcto, não? Deve vir alguém fazê-lo ainda hoje.
- Não, não vim.
Ele franziu o sobrolho.
- Mas afinal porque foi que César te mandou cá?
- Que César me mandou cá?
- Tu disseste que César te tinha mandado cá.
- Não, não, eu disse que é por causa de César que eu aqui estou.
- E qual é a diferença? - perguntou Arcesilau com ar carrancudo.
- Queria verificar se o percurso que César vai fazer entre o Fórum e o templo era seguro...
- É esse o teu encargo? Pensei como havia de responder.

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- A bem dizer, é o género de coisa que o meu filho Meto está encarregado de fazer; mas, como Meto não se encontra em Roma, e como eu cá estou, resolvi vir dar uma vista de olhos ao interior do templo. - Não disse mentira nenhuma.
Arcesilau estava indignado.
- Queres tu dizer que eu estive a perder o meu tempo aqui a conversar contigo, sem ter razão nenhuma para isso? Saiam imediatamente daqui para fora os três!
Eu peguei em Diana por um braço e voltei-me para a saída. A expressão de Arcesilau era de tal maneira ameaçadora, que Rupa se deixou ficar para trás, como que para ter a certeza de que o artista não nos seguiria. Mas, quando eu virei a cabeça, já ele tinha voltado para junto da estátua de Cleópatra, para a qual estava a olhar atentamente. Deu-lhe um enorme pontapé, e a seguir gritou uma praga a Vénus. Com o som oco do metal ainda a ecoar pela câmara, Arcesilau desatou aos pulos apoiado só num pé, agarrado ao que magoara.

CAPÍTULO DEZANOVE

Diana e eu passámos o resto do dia a rever e a ler as anotações de Jerónimo. Ela fazia-me perguntas sobre o material que eu já tinha lido, e eu fazia o mesmo com o dela. Tínhamos dividido entre nós o material que faltava examinar, decididos a lê-lo todo até ao final do dia.
Fosse contra a minha vontade, ou não, o certo é que Diana se tinha insinuado no meu trabalho, de maneira que me parecia inútil não a introduzir por completo no processo, aproveitando o interesse dela, e a intuição, por vezes surpreendentemente aguçada, de que dava mostras. Ela detectava nos jogos de palavras de Jerónimo sentidos que me tinham passado completamente despercebidos e, estando mais a par das coscuvilhices correntes do que eu, apercebia-se de certas alusões a relações pessoais que eu tinha deixado passar. Mas nenhuma dessas intuições fez aumentar o nosso conhecimento efectivo de quem tinha matado Jerónimo, ou se essa pessoa constituiria uma ameaça para César, ou se, e quando, voltaria o assassino a atacar.
Apesar dos nossos esforços combinados, e de muitas discussões e especulações, nessa noite eu fui-me deitar convencido de que não estava mais perto de conhecer a verdade do que nos dias anteriores.
No dia seguinte, tal como todos os habitantes de Roma, também os membros da minha família saíram de casa para ir assistir ao Triunfo Africano. Dado que, posteriormente, assistiríamos à cerimónia de dedicação do Templo de Vénus Genitrix - um ritual sagrado -, enverguei a minha melhor toga.

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Suspeito de que muitos terão decidido assistir a este quarto e último triunfo de César mais por perseverança do que por prazer. É um traço dos Romanos - levar as coisas até ao fim; a determinação obstinada que faz de nós possuidores de um vasto império aplica-se igualmente a todos os outros aspectos da vida. Assim como os nossos generais não levantam um cerco, nem se rendem no campo de batalha, por muito significativas que sejam as baixas, assim também os romanos não abandonam o teatro a meio de uma peça, por muito entediante que ela seja; e os que sabem ler não começam um livro, que não o terminem. E, por Júpiter, por muito repetitivos que fossem a pompa e o espectáculo, o povo de Roma não assistiria a três triunfos consecutivos de César, sem assistir também ao quarto e último.
Desfilaram os senadores (Bruto e Cícero com uma expressão mais entediada e superior do que nunca); soaram as trombetas; desfilaram os touros, em ritmo pachorrento, juntamente com os sacerdotes e os camilos, os rapazes e raparigas que participariam nos sacrifícios.
Foram apresentados tesouros e troféus capturados. César não se atreveu a exibir as armas romanas que tinha conquistado - nem os mais leais dos seus partidários aprovariam semelhante coisa -, mas fez desfilar uma série de quadros ilustrativos do fim que haviam tido os seus opositores em África. Tivemos de apreciar uma sucessão de suicídios, cada um mais dramático que o anterior.
Depois de ter sido derrotado por César na batalha de Tapso, Metelo Cipião - o sucessor de Pompeu à frente do exército - enterrou um punhal no corpo e lançou-se ao mar. O quadro correspondente apresentava o salto por entre vagas tumultuosas, com o sangue a escorrer-lhe do ferimento.
Marco Petreio, outro dirigente da oposição, fugiu na sequência da batalha de Tapso, tendo-se refugiado durante algum tempo na corte do Rei Juba. Quando se aperceberam ambos de que estavam perdidos, deram um sumptuoso banquete e envolveram-se num combate ritual, a fim de que pelo menos um deles pudesse morrer de forma honrosa. Foi Juba quem venceu a competição. No quadro, via-se Petreio coberto de feridas, já morto, e o Rei a deixar-se tombar sobre a própria espada, suja com o sangue de Petreio.
O suicídio de Catão fora o mais confuso. Catão podia ter sido perdoado por César, mas não quis. Após ter passado um serão calmo, na

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companhia dos amigos, retirou-se para os seus aposentos e tentou suicidar-se. Não foi inteiramente bem-sucedido, talvez porque estava ferido numa mão; tendo derrubado uma mesa, ao cair, os criados acorreram ao ruído e encontraram o seu senhor caído no chão, de abdómen aberto, a sangrar, mas com as entranhas intactas. Chamaram um médico, que voltou a meter-lhe as entranhas para dentro e o coseu, uma indignidade a que Catão, que se encontrava desorientado, se submeteu. Quando, porém, recuperou a consciência e viu o que se tinha passado, abriu o ferimento, puxou as entranhas para fora com as mãos, e ali ficou a agonizar até morrer.
O quadro onde era retratada a morte de Catão era obscenamente gráfico. A multidão já se sentia inquieta, por ter visto as ilustrações anteriores, de maneira que, quando a imagem de Catão desfilou, começaram todos a resmungar com ar carregado, chegando muitos a protestar.
A inquietação do povo foi de certa forma aliviada pelo desfile dos animais, onde foi introduzido um animal africano que nunca se vira em Roma. Tratava-se de umas criaturas de pescoço comprido, que se elevavam acima do ajuntamento; as mais altas ficavam ao nível dos assistentes que - como a minha família - se encontravam instalados nas bancadas superiores. Um arauto explicou que se tratava de camelopardos, assim designados por se parecerem com os camelos - dado que têm patas compridas e esguias e focinho de camelo -, mas terem a pele às manchas como os leopardos. São, porém, os compridos pescoços que tornam estas criaturas verdadeiramente singulares. As crianças riam-se e os adultos abriam a boca de espanto. O espectáculo proporcionado pelos camelopardos contribuiu em muito para restabelecer o bom humor da multidão.
Não havia romanos entre os prisioneiros que desfilaram, mas apenas africanos, númidas e outros estrangeiros que haviam sido aliados da oposição. Mas também aqui César apresentou uma novidade inesperada. Assim como Arsínoe havia sido a primeira mulher a desfilar num triunfo e Ganimedes e os outros os primeiros eunucos, também neste triunfo houve uma estreia: um bebé. O último prisioneiro, o mais valioso de todos, não vinha a pé como os restantes; talvez tivesse conseguido gatinhar, mas não teria sido, de maneira nenhuma,

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capaz de acompanhar o ritmo. Este vinha reclinado numa pequena liteira, transportada por outros prisioneiros. Ouviram-se gritos e exclamações de espanto quando as pessoas se aperceberam do que estavam a ver: tratava-se do filho do falecido Rei Juba.
Eu observei as expressões dos dignitários que ocupavam o camarote que ficava diante dos nossos lugares, curioso em ver como reagiriam. Por entre os embaixadores e diplomatas de ar severo, avistei uma bela mulher: Fúlvia. A mulher que tencionava casar-se com Marco António continuava a ser identificada pela maior parte das pessoas como a viúva de Cúrio, o lugar-tenente de César, cuja cabeça o Rei Juba havia tomado como troféu no começo da guerra. César concedera a Fúlvia um lugar de honra entre o público que assistia a este triunfo, destinado a celebrar a queda do Rei africano. E Fúlvia olhava o minúsculo Juba que seguia na cauda do desfile de prisioneiros com uma expressão de lúgubre satisfação.
Contudo, a maior parte das mulheres que formavam a multidão - bem como muitos homens - teve uma reacção diferente. As pessoas franziram o sobrolho, murmurando entre si e abanando a cabeça. Algumas mostravam-se escandalizadas. Tencionaria César mandar matar a criança no final do triunfo? Acharia que semelhante acto seria agradável a Júpiter?
Não ficámos em suspenso durante muito tempo. Um arauto veio anunciar que César tencionava ser clemente com o filho do Rei Juba. Tal como Arsínoe, também esta criança seria poupada.
Um suspiro de alívio percorreu a multidão. "César é clemente!", gritaram as pessoas. E também "César faz muito bem!"
Olhei para Fúlvia, cuja face registava outra reacção; a mulher baixou os olhos e cerrou os maxilares.
Quando teria César decidido poupar o jovem Juba? Tudo dava a entender que havia planeado executar Arsínoe, tendo mudado de opinião à última da hora, para corresponder à reacção da multidão. Teria igualmente planeado matar o filho de Juba, tendo-lhe o caso de Arsínoe dado a entender que os assistentes não aceitariam semelhante coisa? César não era pessoa que hesitasse em eliminar crianças. Quantos haveria entre as quarenta mil vítimas de Avárico, na Gália? O ditador não tinha tomado qualquer medida para poupar essas crianças, nem que fosse para as vender como escravos.

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Por fim, chegou César, transportado no seu veículo dourado; até ele parecia ligeiramente cansado de tantos triunfos. Travar batalhas e derrotar os inimigos políticos fatiga um homem; mas a pompa e a cerimónia também são cansativas. César ostentava um sorriso que parecia forçado e volátil.
Atrás de César, à cabeça dos veteranos da campanha africana, vinha o jovem Gaio Octávio. Vinha equipado como se fosse um oficial condecorado, embora não tivesse participado na campanha africana, nem em qualquer outra operação militar. O público recebeu-o com aplausos; Octávio era uma figura extremamente atractiva, e por vezes são as aparências que contam. O sorriso que trazia nos lábios era ambíguo. Estaria embaraçado pelo facto de estar a receber louvores que não merecia? Sentiria desprezo pelas massas, que o aplaudiam sem motivo? Ou tratar-se-ia, muito simplesmente, do sorriso de um jovem que se sente feliz por desfilar atrás de um parente mais velho e extremamente distinto, que se sente satisfeito consigo mesmo e com o lugar especial que ocupa no mundo?
O triunfo terminou sem incidentes. Os prisioneiros foram devidamente executados (à excepção do jovem Juba), e foi oferecido um sacrifício de gratidão a Júpiter no alto do Capitolino. Logo depois, sem intervalo, César começou a descer a colina, seguido por uma vasta comitiva de oficiais, senadores e sacerdotes, dirigindo-se para o novo Templo de Vénus.
Terminado o triunfo, a minha família e eu deixámo-nos ficar mais algum tempo sentados nos nossos lugares, à espera de que a multidão dispersasse. íamos começar a descer, quando veio ao nosso encontro uma figura que já se me tornara familiar. Tratava-se do mensageiro de Calpúrnia, e não trazia uma expressão nada jubilosa. Vinha tão ofegante, que nem conseguia respirar. Sem dizer uma palavra, estendeu-me uma tabuinha de cera. Eu peguei nela, desfiz as tiras e abri-a.
As letras tinham sido traçadas com tão pouco cuidado - como se tivessem sido escritas à pressa, ou num estado de grande agitação - que, por momentos, não consegui perceber o que diziam. Foi então que, de repente, me saltaram à vista:
Porsena morreu. Vem imediatamente ter comigo. O mensageiro traste.

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Baixei a tabuinha. Betesda olhava fixamente para mim.
- É dela? - perguntou.
- É. Tenho de ir com este sujeito.
- Leva Rupa contigo.
- Levo pois. E tu e a família?
- Vamos assistir à dedicação do templo, como tínhamos planeado. Ficaremos na zona da assistência, presumo eu. - Embora nos tivesse arranjado lugares de bancada para os triunfos, César não tinha tomado medida idêntica para a dedicação. Eu tentei explicar a Betesda que os lugares sentados para a cerimónia eram rigorosamente limitados, mas ela não estava nada satisfeita.
- Se se despacharem - disse eu -, talvez ainda consigam encontrar um bom lugar, que não fique muito para trás.
Diana aproximou-se de mim.
- O que te manda dizer Calpúrnia? Passa-se alguma coisa?
- O arúspice morreu. Presumo que tenha sido assassinado.
- Eu devia ir contigo, papá.
- Não me parece. Esta mulher não recebe quem não mandou chamar.
- Mas Rupa vai contigo.
- Rupa é o meu guarda-costas.
- Se eu fosse um rapaz, e não uma rapariga, levavas-me contigo sem discussões.
Quer fosse verdade, quer não, eu não estava com disposição para entrar em discussões, e o mensageiro começava a mostrar-se impaciente. Tirou-me a tabuinha de cera da mão com agilidade, limpou as letras e puxou-me pela toga.
- Temos de nos despachar, por favor! - disse.
- Davo, toma conta de Diana - disse eu, receoso de que ela tentasse seguir-me, contrariando as minhas ordens. - Rupa, vem comigo.
Seguimos o homem pelas bancadas abaixo, embrenhando-nos por entre a multidão.
Eu tinha presumido que o mensageiro me conduziria a casa de Calpúrnia, mas ele virou na direcção contrária.

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- Onde nos levas? - perguntei, subitamente desconfiado.
- À senhora, naturalmente. - Ele voltou a agarrar-me na toga, mas eu sacudi-lhe a mão.
- Por aqui não vamos dar ao Palatino.
- Ao Palatino?
- É onde ela vive.
- Ela não está em casa. Está no Templo de Vénus. Por favor,
despacha-te!
Claro, pensei eu; a mulher do Ditador tinha de estar presente na cerimónia da dedicação, independentemente do que tivesse acontecido ao arúspice. Segui-o a toda a pressa, pensando que Diana e a minha família podiam, afinal, ter vindo pelo menos uma parte do caminho comigo. Agora, porém, era tarde de mais. Estávamos separados pela multidão.
A praça que ficava diante do templo já estava a abarrotar de pessoas, e continuavam a chegar sempre mais, provenientes de todas as direcções. Os assistentes não pareciam lá muito confortáveis e eu não pude deixar de perguntar a mim próprio se Diana e a família arranjariam lugar. Já os bancos instalados mais perto do templo estavam ainda por preencher por completo; os dignitários costumam ser os últimos a chegar. Alguns deles já se tinham sentado, mas outros circulavam por ali, conversando. A atmosfera era muito semelhante à que se vivia num teatro, antes de o arauto anunciar o começo da peça.
Diante da zona dos bancos, aos pés da escadaria do templo, ficara a descoberto um grande espaço, guardado por uma fileira de lictores. Era aqui que tinha sido erigido um altar de mármore destinado ao sacrifício ritual. Ao pé do altar, fora montada uma comprida tenda cerimonial, dentro da qual os que participavam na dedicação do altar poderiam reunir-se e preparar-se, longe dos olhares da multidão.
O mensageiro conduziu-me à tenda. O lictor que guardava a entrada recusou-se a deixar passar Rupa. Pareceu-me inútil discutir. O interior daquela tenda era provavelmente a zona mais segura de Roma.
Eu passei da luz intensa e agressiva do Sol para a luz difusa e quente do interior da tenda. Cheirava a incenso e a flores. Quando os meus olhos se adaptaram, a primeira coisa que vi foi o touro destinado ao sacrifício, um magnífico animal branco, de cornos decorados com grinal-

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das de flores e folhas de louro. Estava rodeado pelos jovens camilos, que tinham na mão as taças rasas da libação, onde receberiam o sangue e os órgãos do animal, que seriam depois oferecidos à deusa. Alguns dos miúdos estavam a lavar os flancos do touro com panos de lã, que haviam sido previamente embebidos em água tépida, perfumada com jasmim; outros pintavam as patas do animal com cinábrio, tingindo-as de vermelho. O touro não se mexia, os olhos de pálpebras pesadas olhando em frente, dando a impressão de estar a apreciar estas atenções.
Enquanto os meus olhos continuavam a adaptar-se à luz, fui avistando outras pessoas. Eram, na sua maioria, sacerdotes e lictores, mas também se viam alguns criados e outros homens de toga vestida. Arcesilau também ali se encontrava, envergando uma túnica coberta de pó e de nódoas de tinta. O enorme quadro onde fora pintado o novo calendário tinha sido colocado num suporte, onde era possível trabalhar nele, e o artista parecia estar a fazer alterações de última hora com as tintas, sob o olhar de outro homem - que, a avaliar pelas jóias egípcias que usava e pela veste de linho pregueado que trazia vestida, não era romano.
O artista olhou para trás, viu-me e franziu o sobrolho.
- Olha quem ele é! - observou.
Era um cumprimento que me dispensava de me pôr com preâmbulos.
- Deixa-me adivinhar - disse eu. - O calendário contém um erro, e este sujeito é um astrónomo de Cleópatra, um sábio de Alexandria, que veio instruir-te sobre as necessárias correcções.
- E que não tem nada que fazer! - completou Arcesilau com sarcasmo. - O sujeito era para aparecer ontem, mas não apareceu. E só hoje é que me dizem que o dia que tem de ser acrescentado a Februário no ano bissexto é acrescentado seis dias antes das Calendas de Márcio, e não oito. Ridículo! O que significa que, depois dos incríveis esforços que eu empreendi, esta linda apresentação vai dar a impressão de ter sido feita de um dia para o outro, às três pancadas. O que César me paga não compensa estes tormentos!
A medida que ia falando, a voz ia-lhe subindo de tom. Começou a tremer, vibrando como a corda de um instrumento, e ergueu os punhos

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ao ar, as veias dos bíceps tão inchadas como a veia da testa. O alexandrino olhava para ele assustado, mas Arcesilau estava totalmente concentrado no quadro, que dava a impressão de ter vontade de esmurrar. Não era difícil imaginar o delicado objecto a ser totalmente demolido em poucos momentos.
Conteve-o uma mão que lhe poisou no ombro.
- Não faças isso, artista! - disse Calpúrnia. - Nem sequer penses nisso! - A voz dela tinha uma entoação estridente, que me provocou um calafrio. Até Arcesilau, o temperamental Arcesilau, ficou impressionado. A veia que lhe pulsava na testa desapareceu, qual serpente que se mete pela terra dentro. O artista voltou-se novamente para o quadro, retomando o trabalho com um resmungo.
Antes de eu poder dizer fosse o que fosse, Calpúrnia agarrou-me num braço e conduziu-me a um local discreto.
- O meu escravo entregou-te a mensagem?
- Entregou. Porsena morreu?
- Foi assassinado! Apunhalado, tal como Jerónimo.
- Quando e como?
- O meu mensageiro descobriu o corpo de Porsena em casa dele, no Aventino, há menos de uma hora. Tinha ficado combinado que ele viria ter comigo antes do final do triunfo, para virmos juntos para o templo...
- Tencionavas aparecer em público com Porsena, permitindo que César vos visse juntos? Pensei que não querias que César tivesse conhecimento de que andavas a consultar um arúspice.
- Já não me interessa o que César sabe ou deixa de saber. O perigo é grande de mais, como fica demonstrado por esta morte! Ontem, Porsena estava mais seguro do que nunca de que César corria riscos. Disse-me que hoje era o dia de maior perigo, e que o local de maior perigo seria aqui, na dedicação do templo. E agora Porsena está morto!
- Foi o teu mensageiro que descobriu o corpo?
- Foi.
- Chama-o. Deixa-me falar com ele. Ela mandou chamar o escravo.
- A tua senhora mandou-te ir à casa de Porsena, no Aventino. Já lá tinhas estado?

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- Já - respondeu ele -, muitas vezes. - Tinha recuperado o fôlego, mas olhava para mim com uma expressão assustada. Era manifesto que ainda estava a recuperar do choque.
- Porsena vivia sozinho?
- Vivia, tinha apenas um escravo.
- E o que foi que descobriste quando entraste hoje em casa dele?
- A porta não estava trancada, o que era muito estranho. Quando entrei, encontrei o escravo de Porsena caído no vestíbulo. Tinham-lhe cortado o pescoço. Tive de fazer apelo a toda a minha coragem para não fugir!
O mensageiro atreveu-se a lançar um olhar de esguelha à sua senhora, desejoso de que ela tomasse nota da bravura de que dera provas, mas Calpúrnia não se deixou impressionar.
- Continua! - ordenou.
- Chamei Porsena, mas não obtive resposta, e avancei até ao jardim. Porsena estava deitado de costas, numa poça de sangue. Tinham-lhe espetado um punhal no coração.
- No coração? - perguntei eu. - Tens a certeza?
- O ferimento era aqui. - E o escravo levou a mão ao lado esquerdo do peito.
- O sangue já estava seco? Ele pensou por momentos.
- Estava quase todo seco, mas havia uns pontos onde ainda estava líquido.
- Tinha havido luta?
- Não vi sinais disso. Meditei naquilo.
- Se o escravo deixou entrar o visitante para o vestíbulo, é possível que o assassino fosse conhecido naquela casa. E Porsena não devia ter receio dele, dado que deixou o homem entrar para o jardim e que estava voltado para ele, uma vez que o assassino lhe espetou o punhal no peito.
- Conjecturas! - comentou Calpúrnia.
- Gostas mais de conjuras, como as que Porsena te proporcionava? Se ele tinha assim tantos poderes proféticos, como explicas que tenha tido uma morte tão inesperada?
Calpúrnia não respondeu. O desespero subiu-lhe aos olhos.
- Gordiano, o que podemos nós fazer? - sussurrou.

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- César terá certamente tomado todas as precauções. Vejo lictores por toda a parte...
- Não chega! Ontem, Porsena disse-me: "Os escudos não poderão protegê-lo. As armas não poderão protegê-lo. Os amuletos e os talismãs não poderão protegê-lo. Nenhum círculo de homens poderá deter aquele que quer fazer-lhe mal. Só eu posso ajudar-te!"
- Pois bem, Porsena já não pode ajudar-te. O que achas que eu posso fazer?
Ela agarrou-me no braço e puxou-me para uma pequena abertura na tenda, de onde espreitou para a multidão que continuava a aumentar com movimentos nervosos de cabeça; parecia um passarinho.
- Qual deles será? Qual deles tenciona matar César, Gordiano?
- Não sei.
- Vai para o meio deles. Ouve o que estão a dizer. Olha-os nos olhos.
Eu abanei a cabeça.
- Calpúrnia, fiz o melhor que sabia. Não apenas por ti, mas por Jerónimo. Quem me dera...
- Chamam-te Descobridor, não chamam? Ou chamavam. Porque tu descobres a verdade.
Eu suspirei.
- Às vezes.
- Outros vêem, porém estão cegos, mas tu, quando vês a verdade, sabes reconhecê-la! É esse o teu dom. A verdade pode ser vista. A culpa já está escrita na face de alguém. Observa. Ouve.
Eu inspirei profundamente.
- Vou dar uma volta por entre a multidão - acedi, em parte porque começava a sentir-me ansioso por me escapar a Calpúrnia, mas em parte porque havia de facto uma hipótese, por muito pequena que fosse, de ver ou ouvir alguma coisa que tivesse importância.
- Vai! - disse ela. - Mas volta cá antes de a cerimónia começar. Se alguma coisa... correr mal... quero ter-te a meu lado.
Voltei-me para me ir embora. Calpúrnia atravessou a tenda a passos largos, ao encontro do tio Gneu, que acabava de entrar. Ele abraçou-a e ela escondeu a cara no ombro dele. O tio Gneu apertou-a com força contra si e lançou-me um brusco aceno de cabeça, como que para me mandar à minha vida.

CAPÍTULO VINTE

Deixei Rupa à entrada da tenda, do lado de fora, com a indicação de que ficasse ali à espera do meu regresso, e fui misturar-me com os dignitários. Como tinha vestido a toga de cerimónia, não me senti completamente deslocado entre gente tão importante.
A primeira fila de assentos tinha sido reservada para os sacerdotes, os camilos e outros participantes na cerimónia do sacrifício e da dedicação, bem como para a família mais chegada do Ditador. Estes lugares estavam quase todos vazios, dado que as pessoas que viriam a ocupá-los se encontravam no interior da tenda; por esse motivo, o jovem Gaio Octávio e a família chamavam um pouco a atenção. Envergando uma armadura impecável que ainda não fora usada no campo de batalha, Octávio estava sentado entre a mãe, Ácia, e a irmã, Octávia. Aulo Hírcio estava de pé diante dele, a mexer nas tiras da couraça do jovem; aparentemente, não tinham sido atadas exactamente conforme os regulamentos. De repente, Octávio perdeu a paciência e afastou Hírcio com um gesto de mão. Por pouco não me ri, ao ver o ar petulante com que o fez; mas, quando os seus olhos se cruzaram com os meus, percebi que havia neles uma expressão malévola, muito pouco infantil. Afastei-me rapidamente dali.
A secção principal dos assentos estava reservada aos dignitários superiores, entre os quais se contavam os senadores. Reparei que Cícero tinha um excelente lugar numa coxia, e que Bruto estava sentado ao lado dele. Mas talvez não se tratasse de um lugar assim tão excelente, porque a seguir a Bruto a fila estava toda preenchida com senadores gauleses. Os ruidosos recém-chegados conversavam animadamente uns com os outros, num dialecto em que combinavam o seu idioma

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nativo com o latim. Deu-me a impressão de que Cícero e Bruto estavam a fazer os possíveis por tentar ignorar os novos colegas, apesar de o sujeito que se encontrava ao lado de Bruto lhe dar bastantes cotoveladas.
Cícero avistou-me e lançou-me um sorriso de cortesia, fixando em seguida o olhar numa figura para além de mim. Voltei-me e vi que se tratava de Labério, o dramaturgo.
- Andas à procura de lugar, Labério? - perguntou Cícero. O dramaturgo encolheu os ombros.
- Nesta fila não, Senador. Para um sujeito humilde como eu, terá de ser lá mais para trás.
- Ora, seria um gosto ter-te aqui entre nós, se não estivéssemos já tão apertados! - disse Cícero, erguendo a voz e olhando de esguelha para os enormes gauleses, que continuaram a conversar no mesmo tom, ignorando por completo o sarcasmo dele.
Labério sorriu.
- Espanta-me que, logo tu, te sintas apertado, Senador. Tens tanta habilidade para estabelecer pontes. - Bruto soltou uma grande gargalhada, mas tapou imediatamente a boca com a mão. Cícero fez cara de poucos amigos. Tratava-se de uma piada acerca dos indecentes esforços que ele tinha feito para se manter em boas relações com ambos os lados da guerra civil.
Labério, que parecia muito satisfeito consigo mesmo, olhou em redor e detectou um conhecido na secção reservada aos homens ricos.
- Queiram desculpar-me, vou ali cumprimentar Publílio Siro.
Olhem para ele, a conversar com os milionários! Como se estivesse a prever juntar-se ao grupo dentro em breve. Acham que o ditador já lhe prometeu o grande prémio, mesmo antes de as peças terem subido à cena? Bem, o barriga de Porco não devia estar já a contar com os sestércios!
E Labério afastou-se a passos largos.
Fiz menção de me dirigir aos dois senadores, mas apercebi-me de que eles não estavam a prestar-me atenção.
- Em nome do Hades, o que estão eles a cacarejar? - perguntou Bruto em voz baixa a Cícero, referindo-se aos gauleses.
- Embora seja difícil compreender aquele dialecto primitivo - respondeu Cícero no mesmo tom -., tenho a impressão de que ouvi

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um deles dizer: "Poupou a princesa egípcia e poupou o filho do Rei Juba; também podia ter poupado Vercingetorix!" Mas não percebi se o sujeito estava a brincar ou a falar a sério. - E soltou um resmungo. - Hércules me dê forças, quanto mais cedo isto acabar, mais cedo posso voltar para os braços da minha querida Publília.
Farto daquela obsessão de Cícero, que o levava a esquecer-se de tudo o mais, afastei-me dali.
Numa zona especial, reservada para a comitiva que a acompanhava, avistei a Rainha do Egipto, resplandecente num fato multicolor, usando o toucado com a coroa de uraeus com a forma de uma serpente arqueada. Dado tratar-se de uma ocasião solene, Cleópatra estava sentada em pose formal, com os emblemas do seu estatuto real - o mangual e o bastão - cruzados sobre o peito. Rodeavam-na muitos acompanhantes. Talvez não fosse surpreendente que a Rainha ali se encontrasse, e de forma tão aparatosa; vendo bem, César tencionava instalar a estátua dela no templo, e haviam sido os sábios da biblioteca de Alexandria a conceber o novo calendário, que seria formalmente apresentado neste dia. Foi contudo com alguma surpresa que vi que o pequeno Cesarião estava sentado ao lado da mãe, envergando - como qualquer criança romana - uma túnica simples de mangas compridas. César devia ter aprovado a presença da criança. Dava-me a impressão de que a luta de vontades entre César e a Rainha, a respeito do estatuto do rapaz, ainda não tinha sido decidida.
Onde estaria a irmã da Rainha? Arsínoe ainda devia estar em Roma, e devia continuar presa. Tendo estado tão perto da morte, a que sobrevivera, que papel viria ela a desempenhar no futuro?
- Gordiano! - Ouvi chamarem-me de muito perto e, ao voltar-me, vi Fúlvia acenar-me. César tinha-lhe concedido um lugar especial no triunfo e, ao que parecia, também na dedicação do templo. Fúlvia parecia estar invulgarmente bem-disposta. Olhando para o lado dela, percebi porquê: ali estava Marco António, de toga senatorial, com ar bastante distinto e surpreendentemente sóbrio.
Cumprimentei-os aos dois. Fúlvia sorriu.
- Não percebo por que te mostras tão surpreendido, Descobridor. António e eu somos velhos amigos. Não somos, António? E, de vez em quando, Citéris solta-lhe a trela.

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- Fizeste falta nos triunfos - comentei eu, dirigindo-me a António, com o simples fito de fazer conversa. - O povo estava à espera de te ver.
- Foi exactamente o que eu lhe disse! - interveio Fúlvia. - Foi um disparate perder esta oportunidade de dar nas vistas, em especial porque ele tinha direito a um lugar de distinção em todos estes triunfos.
António fez um sorriso pelo canto da boca.
- Tecnicamente, não participei na campanha egípcia, nem...
- Nem Gaio Octávio pôs jamais os pés em África - interrompeu Fúlvia -, e no entanto César achou por bem cobrir o rapaz de honras e exibi-lo ao povo, como se tivesse sido Octávio a matar o Rei Juba. Está bem que não estiveste ao lado de César a todo o momento, nem participaste em todas as batalhas, mas estiveste sempre ao serviço dele. Foi graças a ti que ele pôde ir combater pelo mundo fora, porque foste quem manteve o nome e a autoridade dele viva aqui em
Roma...
António apertou a cabeça entre as mãos.
- Por favor, tenho de ouvir isso tudo outra vez? Não te basta eu estar aqui, como me pediste?
- César mandou-te um convite especial para esta cerimónia. Teres recusado teria sido um insulto. Não estás a perceber? É a maneira de ele dar início a uma reconciliação contigo. Não podias voltar as costas a uma oportunidade destas. Como também não podias trazê-la contigo, para Roma em peso ficar a olhar para ti de boca aberta! - Aparentemente, Citéris tinha ficado na Casa dos Bicos; teria ficado amuada, furiosa, estaria a planear o próximo passo? Dava a impressão de que Fúlvia estava a ter sucesso na campanha que empreendera para se tornar mulher de António. Até onde os levaria a ambição dela?
Olhei para António, para lhe observar a reacção, mas ele estava distraído com outra pessoa. Seguindo-lhe a direcção do olhar, percebi que se tratava de Cleópatra, que ele observava mais com curiosidade do que outra coisa qualquer. Lembrei-me de que a tinha conhecido anos antes, no Egipto, quando ela pouco mais era do que uma criança. Tendo-se distanciado de César, António não tinha ido visitar a Rainha à villa de César. Era, pois, a primeira vez que via Cleópatra ao fim de muitos anos.

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Fúlvia também lhe seguiu o olhar.
- A Rainha dos agitadores, é o que ela é - sussurrou. - Não tarda a ir-se embora para o Egipto, e não conseguiu nenhuma das coisas que veio cá fazer. A irmã continua viva; o filho continua a ser bastardo. Mas aposto que não foi a última vez que lhe pusemos a vista em cima!
- Espero bem que não - murmurou António, e Fúlvia olhou para ele de esguelha.
Deixei-os e prossegui o meu passeio por entre a multidão, observando cada face pela qual passava.
O Sol continuava no alto do céu. O calor do dia engolia-me as forças. Nem do instinto nem da razão me vinha qualquer pista. Por detrás de cada par de olhos espreitava uma consciência com planos próprios, que me eram desconhecidos. Aquelas faces podiam ser a própria face da inocência; mas também era possível que uma delas fosse a de um assassino.
Observei os ricos e poderosos, que circulavam por entre os assentos, mas também a gente comum que fazia parte da multidão. Este povo tinha sofrido muito, com a guerra e os reveses da fortuna, bem como em resultado dos caprichos dos seus maiorais. Quantos deles tinham perdido um ser amado em combate, a favor de César ou contra ele? Quantos deles albergariam sentimentos de ódio e ressentimento contra o ditador? Quantos teriam matado César, se pudessem fazê-lo com um simples pensamento?
Nos degraus do templo, um sacerdote tirou de uma flauta uma fanfarra de sons agudos, dando a saber que a cerimónia estava prestes a começar. Os assistentes sentaram-se. A multidão que permaneceria de pé apertou-se mais. Eu passei os olhos por ela, a ver se via Betesda, Diana e os restantes membros da minha família, mas não vi nenhum deles.
Calpúrnia tinha-me dito que regressasse para junto dela, e eu assim fiz. Ela saíra da tenda e tomara lugar na primeira fila, não muito longe de Gaio Octávio e da família dele, mas eu não vi nenhum lugar vazio perto dela. Começava a fazer-se silêncio, de maneira que eu me dirigi a ela em voz baixa.

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- Calpúrnia, se queres que eu fique ao pé de ti, posso ficar de pé aqui atrás, ao lado da tenda. Isto é, se os lictores mo permitirem. - Depois franzi o sobrolho. - Para onde foi Rupa? Eu deixei-o à entrada da tenda.
- Mandei-o embora - respondeu ela. - Não podia ficar ali.
Agora cala-te e senta-te aqui ao meu lado. Eu chamei a atenção para um facto óbvio.
- Ao teu lado está sentado o teu tio Gneu.
- Mas vai já sair. É ele que vai oferecer o sacrifício, por isso vai passar a maior parte do templo diante do altar.
- O sacrifício?
- A matança do boi. E porque não? O tio Gneu é um sacerdote com o mesmo nível que os outros, e pareceu-nos razoável que algum membro do meu lado da família também participasse na cerimónia. Este dia não devia ser exclusivamente reservado a César, e aos Júlio, e à deusa de quem eles descendem... e àquela Rainha cuja estátua ele insiste em mandar colocar no templo, ao lado de Vénus.
Com um floreio altivo, o tio Gneu levantou-se e ofereceu-me o lugar dele. Eu sentei-me entre Calpúrnia e um homem que nunca tinha visto, e que devia ser outro dos parentes dela. O tio Gneu dirigiu-se ao altar a passos largos, puxando para a cabeça o capuz do fato.
A meu lado, Calpúrnia não parava quieta: agitava-se, resmoneava, apertava as mãos.
A multidão calou-se por completo. Teve início a cerimónia.
Os camilos trouxeram o boi da tenda. Tal como o animal, também as crianças vinham enfeitadas com grinaldas de flores e coroas de louro. Enquanto o boi avançava lentamente, alguns dos camilos soltavam gargalhadas, cantado e dançando em redor dele; outros traziam tabuleiros de incenso. Tendo persuadido a criatura a subir a rampa, os sacerdotes deitaram o animal de lado sobre o altar, com o auxílio de uns ganchos, e amarraram-lhe rapidamente as patas. O boi, assustado, começou a bramir. Alguns dos miúdos juntaram-se nos degraus do templo, entoando um hino a Vénus, que os sacerdotes acompanharam à flauta. O tio Gneu avançou, erguendo ao alto o punhal da cerimónia.

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O calor do dia, o fumo do incenso e os cantos das crianças tiveram sobre mim o efeito de uma droga. Senti-me tomado por uma enorme fadiga e, deixando tombar a cabeça, fechei os olhos...
Tive um sobressalto e abri os olhos. Olhei em volta, estonteado, e vi uma coisa espantosa.
O desconhecido que estava sentado a meu lado tinha desaparecido. No lugar dele encontrava-se agora o meu amigo Jerónimo.

CAPÍTULO VINTE E UM

O canto prosseguia, mas parecia-me agora estranhamente distante e apagado. O fumo do incenso tornava o ar cada vez mais espesso e menos respirável. Eu pestanejei e esfreguei os olhos, mas não havia dúvida nenhuma: era Jerónimo quem estava sentado a meu lado.
Envergava a sua veste favorita: uma túnica azul-clara de rebordo preto, com um padrão de estilo grego. Dava a impressão de estar em boa condição física, e mostrava-se mais jovem do que eu me lembrava; tinha perdido por completo, quer os cabelos brancos, quer as rugas faciais. O meu amigo olhava para mim com uma expressão sardónica.
- O que estás tu aqui a fazer? - sussurrei eu. Aparentemente, mais ninguém se tinha apercebido da presença dele, nem sequer Calpúrnia.
- Isso é maneira de receber um homem que regressou de entre os mortos?
- Mas... isto é inacreditável!
- Inacreditável é a maneira como tu tens levado a cabo aquilo a que chamas a investigação para descobrir quem me matou. Francamente, Gordiano, não fazia ideia de que fosses capaz de ser tão incompetente. Estás velho de mais para este género de actividade. Chegou o momento de passares o bastão à tua filha, que se mostra ansiosa
por herdá-lo.
- Não fales de Diana!
- É uma bela rapariga, não é? E esperta! Nada parecida com aquele marido dela, o pobre Davo, que tem um tijolo entre as orelhas. Mas é bastante forte. Hão-de constituir uma boa equipa os dois. Ele

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vai com ela, para a proteger quando ela andar a meter o nariz na vida das pessoas, como o jovem Rupa tem andado a proteger-te a ti. - Esticando o comprido pescoço, olhou em volta. - A propósito, aonde foi Rupa? E, já agora, onde está Diana?
- Pára com essa conversa! - sussurrei eu, lançando um olhar de esguelha a Calpúrnia, que retorcia as mãos e murmurava sabe-se lá o quê.
- A pobre mulher não aguenta mais.
- Jerónimo fez estalar a língua. - É casada com o homem mais poderoso do mundo, mas não consegue usufruir desse facto. Ouve adivinhos, chora no ombro do tio e contrata gente como eu para descobrir a verdade. O certo é que eu descobri a verdade, e descobri-a sozinho; o mesmo não se pode, infelizmente, dizer de ti, Gordiano.
- Se descobriste a verdade, porque não a deixaste escrita?
- Não leste a passagem do diário em que eu escrevi: "Mas posso estar enganado. Consequências de uma falsa acusação... impensável! Tenho de ter a certeza. Até essa altura, nem uma palavra nos relatórios oficiais que entrego à dama e ao vidente dela?" Pois bem, acontece que as minhas suspeitas estavam correctas. E foi por estarem correctas que isto aconteceu - concluiu com um suspiro.
Voltei a olhar para ele, e vi que tinha uma enorme mancha de sangue no peito, por cima do coração. A pele tornara-se-lhe da cor do marfim, mas a expressão mantinha o carácter sardónico de sempre. Jerónimo apercebeu-se da minha consternação e soltou uma gargalhada.
- Mas quem foi que te fez isto, Jerónimo?
- Era precisamente isso que tu estavas encarregado de descobrir, Gordiano! - replicou ele, revirando os olhos.
O sarcasmo dele irritou-me.
- Ajuda-me! - pedi-lhe.
- Já te dei todas as informações de que precisas.
- Que disparate! O material que deixaste escrito é totalmente inútil. É pior do que inútil, porque é excessivo. Relatório após relatório, todos eles escritos naquela prosa críptica e complicada, palavras e mais palavras, sem substância a que eu possa agarrar-me!
- Acalma-te, Gordiano. A emoção não te leva a lado nenhum. Pensa!

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- Tu não és Jerónimo. És um daimon, um espírito maligno que foi enviado para me torturar.
- Não, Gordiano, eu sou Jerónimo; pelo menos sou a soma de todas as coisas que tu sabias sobre Jerónimo. O máximo que podemos conhecer acerca dos outros seres humanos é a imagem que temos diante dos olhos e a voz que nos soa aos ouvidos. Aquilo que vês e ouves neste momento a teu lado é aquilo que sabias acerca de Jerónimo, tão real como o próprio! Aqui estou eu!
- Grego doido! Confundes-me com a tua filosofia!
- Romano simplório! Sempre tão literal, tão centrado em factos e em números!
- Diz-me quem te matou. Diz-mo sem rodeios!
Ele suspirou.
- Em primeiro lugar, aceita a tese de que Calpúrnia tem razão. De que alguém quer matar-lhe o marido. Eu percebi quem era essa pessoa, e também discerni que motivação tinha. E foi por tê-lo deduzido que fui morto.
Fui distraído pelos bramidos do boi. O tio Gneu preparava-se para cortar o pescoço à criatura. De frente para a multidão, ergueu o punhal à vista de todos. Reflectindo a luz do Sol, a lâmina parecia enorme e muito afiada. O sacerdote infligiu o golpe: o metal cortou a carne. O boi agitou as patas amarradas. Da ferida começou a escorrer vermelho. Os camilos acorreram com as taças rasas da libação, a fim de recolherem o sangue derramado.
- Reflectiste no estranho comportamento de Agápio, o escravo porteiro do prédio onde eu morava? - perguntou Jerónimo, observando a matança sem ponta de emoção. Ele nunca tinha sido um homem excessivamente sensível.
- O que queres dizer com isso?
- Francamente, Gordiano! Quando um miúdo daquela idade tenta namoriscar um sujeito da tua idade, só pode ser porque tem uma qualquer motivação oculta.
- Não necessariamente. Os caprichos da natureza humana...
- ... são irredutíveis aos estreitos parâmetros do interesse pessoal. O jovem Agápio é um espião. Para além da tarefa de porteiro, também tinha a função de me espiar. Passava a vida a deter-me nas esca-

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das para conversar, em especial quando eu voltava para casa ligeiramente tocado, vindo de uma festa. Quem sabe que informações me terá arrancado? E desconfio de que também passava ocasionalmente os olhos pelo meu diário, apesar dos esforços que eu fazia por escondê-lo.
- Queres tu dizer que ele era espião a soldo de Calpúrnia? - Olhei para ela de esguelha; Calpúrnia observava o tio a proceder ao sacrifício. Que género de louca contrata um espião para espiar outro espião que contratou?
Jerónimo abanou a cabeça.
- Agápio pertence a Calpúrnia, mas não era a ela que respondia. Respondia ao tio Gneu. Foi por isso que o velho sacerdote se mostrou tão irritado quando descobriu que Agápio te tinha dado a chave do meu apartamento sem ele saber.
O sacrifício prosseguia. Com o enorme punhal nas mãos manchadas de sangue, Gneu Calpúrnio remexia nas entranhas do boi, de onde retirava sucessivamente os órgãos. Os camilos tinham-se reunido em volta dele com as taças rasas da libação, a fim de receberem os rins, o coração, o fígado e os restantes órgãos. Estes foram sendo oferecidos a Vénus, um de cada vez, ao som de orações e cânticos, sendo em seguida colocados sobre uma pira. Os órgãos saltavam e estalavam, transformados pelas chamas em sustento da deusa.
- Eu encontrei o teu diário, Jerónimo. Por esta altura, já o devo ter lido do princípio ao fim, e Diana também o leu. E não descobrimos nada!
- Isso é falso! Descobriste a pista! Não te lembras? Deixo aqui uma pista ao investigador que descobrir estas palavras e queira detectar a verdade..."
- Sim, sim, lembro-me muito bem. "Olha em teu redor! A verdade não se encontra nas palavras, mas as palavras poderão encontrar-se na verdade." Mas que pista era essa? Não consegui descobri-la.
- A pista eram as próprias palavras. Onde foi que as descobriste?
- No teu diário, evidentemente! - respondi eu, exasperado.
- Mas onde foi que descobriste o diário? O que havia em volta dele?
- As páginas estavam dentro de um rolo.

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- E que rolo era esse?
Tentei recordar-me, mas acabei por abanar a cabeça.
- Pensa, Gordiano! Eu estava contigo nessa altura. Falei contigo por dentro. O que foi que eu te disse?
Lembrei-me então. Eu tinha descoberto o diário porque tinha avistado o meu exemplar da Vida do Rei Numa, de Mânio Calpúrnio, entre os livros que se encontravam nas prateleiras de Jerónimo. Incomodado com o facto de ele se ter apoderado do livro sem minha autorização, tinha pegado nele para o levar comigo, e encontrara lá dentro as páginas do diário pessoal do meu amigo. Tivera a sensação de que Jerónimo estava a ver-me. Tinha mesmo imaginado que o ouvia dizer-me: És tão previsível, Gordiano! Viste o teu precioso exemplar de Numa e tiveste de ir imediatamente verificar se eu não o teria danificado; fizeste exactamente o que eu queria que fizesses! Descobriste as minhas anotações privadas que, em vida minha, não deviam ser lidas por mais ninguém. Agora que eu morri, contudo, queria que encontrasses o meu diário, Gordiano, metido entre as páginas do teu precioso Numa...
Fora o livro que me levara a descobrir o diário. Afinal, o livro é que era a pista - era a verdade dentro da qual se encontravam as palavras. O autor do livro era um Calpúrnio, tal como a mulher de César e o tio dela. Ninguém dava tanta importância ao legado de Numa como o tio Gneu, e Numa não deixara legado mais importante do que o seu calendário, destinado a fixar para sempre os dias sagrados e a maneira de os calcular...
- E as minhas anotações sobre os movimentos celestes? - perguntou Jerónimo. - Relacionaste-as com o meu interesse pelo calendário?
- Relacionei, mas onde foi que aprendeste tudo aquilo?
- Foi o tio Gneu que me ensinou, evidentemente. Foi quando percebi que ele andava furioso com o facto de César querer alterar o calendário que comecei a desconfiar dele. Depois disso, o facto de eu continuar a mostrar-me interessado pelo calendário levou-o a desconfiar de mim.
- Mas eu perguntei ao tio Gneu se ele te tinha ensinado alguma coisa de astronomia e ele negou, dizendo-me que nunca perderia tempo e feitio a dar instruções sagradas a um criado da sobrinha, que ainda por cima era estrangeiro.

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Jerónimo resfolegou.
- E tu acreditaste nele? Aquele sujeito teria todo o gosto em dar lições intermináveis sobre o calendário a qualquer pessoa que lho pedisse, fosse um escravo, um liberto, um estrangeiro, ou mesmo uma mulher! - Abanando a cabeça com ar pesaroso, prosseguiu. - Antigamente, tu gostavas de mistérios, Gordiano; e, quanto mais intrincados, melhor. O que é feito dos teus poderes de dedução? Devem ter ido para o Hades, fazer companhia à tua capacidade de observação, não?
- E isso quer dizer exactamente o quê?
- E Calpúrnia que te colocou nos píncaros da Lua! Como é que ela dizia? "Outros vêem, porém estão cegos, mas tu, quando vês a verdade, sabes reconhecê-la!" E no entanto, ainda hoje, no triunfo, o importante foi aquilo que tu não viste. Nessa altura, não reparaste, e agora passou-te por completo do pensamento.
- De que estás tu a falar?
- Quem foi a pessoa que não participou na procissão e que devia ter participado?
Encolhi os ombros.
- Marco António?
- Por favor, mostra-te mais inteligente!
Reflecti uns momentos. Cícero e Bruto tinham desfilado entre os senadores. Gaio Octávio desfilara à frente das tropas, conforme fora planeado. E, entre os sacerdotes...
- Por Hércules! O tio Gneu não desfilou com os outros sacerdotes esta manhã. Eu vi passar os sacerdotes, e ele não estava lá. Tens razão; na altura, não reparei nisso. Vi, mas não observei! Só agora, revendo os acontecimentos, é que percebo que ele não estava lá!
- E onde estaria?
- Em casa de Porsena, a assassinar o arúspice!
Diante do altar, o tio Gneu limpava a lâmina com um pano de lã, depois de ter completado o desmembramento do boi, tingindo o pano de um vermelho-vivo e preparando o punhal para a vítima seguinte. Com as vestes cobertas de sangue e vísceras, o tio Gneu abandonou a zona do altar e entrou na tenda, onde os camilos lhe lavariam as mãos e lhe vestiriam um traje novo, um traje impecável.

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Jerónimo acenou com a cabeça.
- Foi exactamente com aquele punhal que ele matou Porsena hoje de manhã; e foi com aquele punhal que me matou a mim, quando eu me dirigia a casa de Calpúnia naquela noite, para falar com ela. A bem dizer, eu ainda não me sentia em condições de lhe revelar as minhas suspeitas relativamente ao tio Gneu, mas ele apercebeu-se de que eu as tinha, e sabia que eu estava a chegar lá, de maneira que esperou por mim no escuro da viela. O velhote é mais forte do que parece. Sabe usar aquela arma, e sabe exactamente onde fica o coração de um indivíduo.
Eu desviei os olhos de Jerónimo.
- Compreendo por que motivo ele te matou a ti. Mas porque foi que matou Porsena?
- Podemos conjecturar que eles estavam coligados desde o princípio, ambos procurando conquistar a confiança de Calpúrnia, a fim de conhecerem as intenções de César. O tio Gneu estava convencido de que o vidente etrusco estava do lado dele, que também ele queria manter a religião antiga e defender o velho calendário. Competia a Porsena encher a cabeça de Calpúrnia de falsas suspeitas, a fim de lhe desviar a atenção da verdadeira ameaça: o próprio tio. Mas Porsena agia por conta própria. E se, no derradeiro momento, ou seja, hoje, o arúspice revelasse aquilo que o tio Gneu se preparava para fazer, salvando a vida a César e demonstrando, quer os seus poderes de adivinho, quer a sua dedicação ao Ditador? Calpúrnia deixar-se-ia dominar ainda mais por ele; e o etrusco podia mesmo chegar a conquistar a confiança de César. Que adivinho não anseia por ter semelhante poder e influência?
Eu acenei com a cabeça.
- Foi então que o tio Gneu começou a desconfiar do parceiro...
- Exactamente. Porsena era a única pessoa que poderia vir a pôr-lhe em causa os planos. Por isso, o tio Gneu decidiu acabar com ele. Durante o triunfo, abandonou discretamente a procissão, foi a casa do arúspice assassiná-lo e voltou para cá a correr, chegando a tempo à cerimónia.
Eu franzi o sobrolho.
- A única pessoa que podia vir a pôr-lhe em causa os planos? Então e eu?

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- O tio Gneu pensou em matar-te. E esteve prestes a fazê-lo.
- Quando?
- Há dois dias, na latrina pública, durante o Triunfo Asiático. Achas que foi por acaso que ele se juntou a ti? Ele seguia na procissão e viu-te entre o público. Quando percebeu que tinhas ido às latrinas, seguiu-te. Tu pensaste que ele estava a levantar as vestes, na tentativa de se aliviar, mas o que ele estava a fazer era a pegar no punhal, tentando decidir se te matava ou não.
- E porque foi que não matou?
- Estiveste muito perto da morte, Gordiano. Nunca tinhas estado tão perto como desta vez. Sentiste-a e estremeceste. Mas Gneu Calpúrnio decidiu que tu eras inofensivo. Que nada sabias. Ou antes, que sabias o que tinhas de saber, mas que não suspeitavas dele. De maneira que optou por não te matar. - Jerónimo olhou para mim com ar triste e abanou a cabeça.
- O acidente que teve lugar durante o primeiro triunfo, quando o eixo do carro de César se partiu... foi da responsabilidade de Gneu Calpúrnio?
- O que te parece, Gordiano? O próprio César suspeitou de que tinha sido sabotagem.
- Na sua qualidade de sacerdote, o tio Gneu teve acesso ao carro sagrado. Mas não consigo imaginá-lo a meter-se debaixo do veículo para serrar o eixo.
- Talvez não, mas podia ter subornado um camilo malévolo para lhe fazer esse trabalho
- Mas para quê? César não ficou ferido. Não era um acidente daqueles que o mataria.
- A intenção do tio Gneu não era ferir César, era voltar o povo contra ele. O tio Gneu é um homem muito religioso, e esperava que a multidão se deixasse abalar por um mau presságio daquele calibre. Deve ter-se sentido imensamente frustrado ao ver que o incidente acabou por contribuir para aligeirar o estado de espírito dos assistentes. E ainda mais decidido a tratar pessoalmente do assunto.
Jerónimo voltou o olhar para a tenda e sorriu.
- Olha! - disse. - Ali está César, saindo da tenda e subindo as escadas. Ouve os aplausos do povo!

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César, que envergava ainda a toga bordada a ouro e a coroa de louros própria do general triunfante, subiu ao alto da escadaria, de onde poderia ser visto pela multidão. Os aplausos eram ensurdecedores. César ergueu os braços e o tumulto acalmou.
O Ditador proferiu um breve discurso. Não consegui perceber o que ele disse; as palavras chegavam-me abafadas e truncadas, como se tivesse a cabeça metida debaixo de água. Só conseguia ouvir fragmentos - "Vénus, de quem descendo", qualquer coisa sobre "a promessa que fiz em Farsalo" e "a aurora de um novo mundo, de uma nova era, de uma nova maneira de calcular os dias que são sagrados para os deuses".
O quadro onde tinha sido pintado o novo calendário foi trazido da tenda pelos sacerdotes, e colocado na escadaria, uns degraus abaixo de César. O povo de Roma observava o Ditador e o novo calendário. A imagem transmitia uma verdade temível: César, o descendente da deusa, era o senhor, não apenas do espaço, mas também do tempo. Nos degraus do templo que ele próprio mandara erigir, diante do calendário que ele próprio havia decretado, manifestava-se toda a grandeza do seu poder divino.
Mas nem os semideuses são imortais. E agora, César ia morrer, pagando pelo crime de sacrilégio, pelo crime de se ter atrevido a substituir o venerável calendário de Numa; e o agente da ira dos deuses seria Gneu Calpúrnio.
O velho sacerdote, envergando as suas vestes imaculadas, saiu da tenda e subiu rapidamente os degraus. Ninguém tentou detê-lo; ele fora o sacerdote encarregado do sacrifício. Nem César se deixou perturbar pela rápida aproximação do parente de sua mulher.
O tio Gneu tirou o punhal sagrado do interior das vestes e espetou-o com toda a força. César nem sequer titubeou.
Basta um golpe no coração para matar um homem. César poderia ter morrido com a mesma facilidade com que haviam morrido todos os homens, as mulheres e as crianças que ele próprio matara durante uma longa vida de matanças - de gauleses, massilianos, egípcios, romanos e povos de toda a Ásia; de Reis, príncipes e Faraós; de cônsules e senadores, de oficiais e soldados, de gente comum e de pedintes.

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Todos os homens têm de morrer e César não seria excepção; o tio Gneu se encarregaria de o demonstrar.
César poderia ser perdoado por todas as mortes, por todo o sofrimento que infligira a terceiros; pensando bem, a guerra é o estado natural do mundo. Mas não lhe seria permitido viver por aquilo que tinha feito ao sacrossanto calendário de Numa - por tê-lo corrompido com a feitiçaria e a falsa religião do Egipto.
César cambaleou, deu um passo para diante e deixou-se cair por sobre o quadro. O peso do seu corpo já morto fez partir a estrutura de madeira e rasgar o tecido a meio. César foi rolando pelos degraus do templo abaixo. Num gesto de triunfo, o tio Gneu ergueu o punhal e enterrou a lâmina ensanguentada no que restava do calendário, destruindo o odiado objecto com frenesim religioso, ao mesmo tempo que proclamava em altos brados o nome do Rei Numa, seu antepassado.
Os espectadores olharam espantados, depois soltaram queixumes, aplausos e gritos. Calpúrnia soltou um lancinante guincho e correu para o corpo sem vida de César, arrancando os cabelos como uma louca. Imperturbável, Jerónimo fixou em mim o olhar sardónico.
- Gordiano, Gordiano! Como se explica que não tenhas conseguido prever este acontecimento, e evitar que ele se desse? Até a tua filha, dando voltas e mais voltas aos factos na sua mente, conseguiu chegar à verdade. Eu bem te disse que ela era esperta! Sem saber onde tu estás, não conseguindo encontrar-te entre a multidão, ocorre-lhe avisar o próprio César. Olha, ali está ela, à entrada da tenda!
E o certo é que eu avistei Diana, suplicando a um lictor que a deixasse entrar na tenda. Por sobre o tumulto, consegui ouvir a voz dela e apanhar umas frases soltas:
- Mas tens de me deixar... para o avisar... César conhece-me. Diz-lhe que sou a irmã de Meto Gordiano...
Jerónimo poisou a mão dele sobre a minha, mas eu não o senti.
- Eu nunca aqui estive, velho amigo - disse-me. - Mas estou sempre contigo.
Cego pelas lágrimas, eu fechei os olhos.
Tive um sobressalto e, quando voltei a abrir os olhos, Jerónimo tinha desaparecido. Pestanejando, olhei à minha volta, aturdido.

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O sacrifício tinha terminado. Os sacerdotes e os camilos tinham desaparecido. Os degraus do templo estavam desertos.
- Onde está o tio Gneu? - sussurrei.
A meu lado, Calpúrnia ergueu uma sobrancelha.
- Está dentro da tenda, evidentemente, a mudar de roupa. Saiu-se muitíssimo bem com o sacrifício. Não tens estado a ver?
- Devo ter... fechado os olhos... uns momentos. E César?
- Também está dentro da tenda. Deve estar a sair, para proferir o discurso. - Calpúrnia franziu o sobrolho. - Mas... não é a tua filha que está ali a discutir com o lictor?
E era mesmo Diana quem se encontrava à entrada da tenda. Devia ter sido a voz dela que me tinha acordado.
- Para o avisar - ouvi-a dizer. - Não compreendes? Se o meu pai aqui estivesse, César havia...
O impassível lictor não se deixou comover. Diana acabou por desistir. Deixando cair os ombros, derrotada, recuou. O lictor baixou a guarda e Diana passou por ele de um tiro e entrou na tenda.
César estava dentro da tenda. Como também lá estava o tio Gneu, mais o seu punhal.
Eu levantei-me e corri para a tenda. O lictor seguira atrás de Diana, abandonando o posto, de maneira que ninguém me impediu de entrar.
Os meus olhos demoraram a adaptar-se à luz filtrada. Vi uma confusão de pessoas e objectos - sacerdotes, camilos, grinaldas, vasos sagrados. Na extremidade da tenda, vi o calendário, a que Arcesilau dava ainda os últimos retoques. César encontrava-se ao lado do artista, de costas para mim, com os braços cruzados, batendo impacientemente com um pé no chão.
- Papá!
Diana tinha sido presa pelo lictor, que a conduzia agora à entrada da tenda. Mas o tio Gneu, envergando ainda as vestes manchadas de sangue, agarrou-a por um braço quando a minha filha passou por ele.
- Deixa esta rapariga a meu cargo, lictor. - Expressava-se numa voz baixa, mas insistente.
- Tens a certeza, pontífice?
- Tenho. Vai pôr-te novamente de guarda à entrada.

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- E este sujeito? - perguntou o lictor, apontando para mim.
- Ele vai-se já embora, e sem fazer barulho nenhum. Não vais, Gordiano? - O tio Gneu dirigia-se a mim de dentes cerrados, apertando firmemente o braço de Diana, com o punhal na outra mão.
O coração batia-me com toda a força dentro do peito. Tive uma sensação de irrealidade, de uma irrealidade muito superior à que presidira à minha conversa com Jerónimo. Num sussurro, disse:
- Gneu Calpúrnio, não o farás. Eu não to permitirei. Basta-me gritar a avisar César.
- Mas não vais gritar. Pelo menos enquanto eu estiver a agarrar a tua filha. Muito bem, Gordiano, vai-te embora. E não digas nada!
Eu abanei a cabeça.
- Se fizeres mal a Diana por eu gritar... Não estás a perceber que já não podes fazer o que tinhas planeado, como tinhas planeado, no meio da apresentação de César, diante dos olhos de Roma inteira? Não vês que o teu gesto grandioso não pode ter efeito?
Ele reflectiu por momentos, depois acenou com a cabeça.
- Tens razão. Não vai poder ser como eu planeei. Nesse caso, vai ser aqui dentro da tenda. O importante é fazê-lo; pouco importa onde, quando ou diante de quem. Desde que tu e a rapariga estejam calados, não farei mal a nenhum de vós. Demoro apenas um momento a atravessar a tenda e a fazer o que tem de ser feito. Não digas nada, Gordiano. E tu também não, menina, enquanto avançamos para César.
Eu não consegui mexer-me. O que devia eu a César? Nada. Ele valia a vida da minha filha? Certamente que não. Quantos crimes tinha César cometido? Quantas mortes tinha causado, quanto sofrimento tinha infligido a terceiros? Haveria alguma razão, alguma que fosse, para eu tentar salvar-lhe a vida?
Ouvi a resposta de Diana na minha cabeça: "As pessoas voltaram a viver, a ter esperanças, a fazer planos, a pensar no futuro... Se César fosse assassinado... recomeçaria a matança."
Gneu Calpúrnio atravessava a tenda, com Diana atrás de si, passando por entre sacerdotes distraídos e camilos que conversavam uns com os outros, preparando-se para a parte da cerimónia que se seguiria.

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César estava de costas para nós, trocando palavras acesas com Arcesilau a propósito do calendário, César perguntando por que motivo não estava acabado, e quem era o responsável pelo erro cometido. Que coisa tão estranha, o conquistador do mundo passar os últimos momentos da sua vida concentrado em pormenores tão insignificantes!
Eu estava mudo e calado. A coisa ia acontecer; não como eu tinha sonhado, mas conforme fora decretado pelas circunstâncias e pela vontade de Gneu Calpúrnio. Dentro de muito poucos momentos, César estaria morto, e o destino do mundo divergiria do curso que ele
havia planeado.
- Gordiano! Tio Gneu! O que se passa aqui? Tendo passado pelo lictor, Calpúrnia entrou de rompante na tenda, dirigindo-se a nós num sussurro abrupto e sonoro. César não a ouviu, mas o tio Gneu ouviu-a e voltou-se, distraído pela voz da sobrinha.
Ou era num instante, ou já não era. Eu agi sem pensar. Quando uma pessoa faz uma coisa destas, dizemos que foi a vontade de um deus que a animou, mas eu nada senti, de nada tive a experiência, em nada pensei, no momento em que me apoderei da taça de libação que um camilo que se encontrava perto de mim tinha na mão e a lancei ao homem que apertava o braço da minha filha.
A taça atravessou os ares a grande velocidade, acertando em cheio na testa do tio Gneu, que largou Diana; a minha filha afastou-se rapidamente dele. Com uma expressão de estupefacção, o sacerdote cambaleou para trás, depois para diante, deixando-se cair de encontro a César, ainda de punhal na mão. Durante um momento terrível, pareceu-me que seria capaz de espetar a lâmina no peito de César, porque o Ditador tinha-se virado e estava agora voltado para ele, com ar confuso. O tio Gneu, porém, passou por César, passou por Arcesilau e chocou violentamente de cabeça contra o calendário.
O quadro foi rasgado de cima a baixo - pelo menos essa parte do meu sonho realizou-se. O tio Gneu caiu de cabeça no chão e o punhal escapou-lhe da mão. E o sacerdote ali ficou caído, a gemer, por entre os restos do calendário destruído.
Arcesilau, vermelho até não poder mais, cuspindo impropérios, parecia prestes a explodir. Calpúrnia soltou um gritinho e desfaleceu

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nos braços do lictor. Diana correu para mim, tremendo como uma corça. Os sacerdotes e os camilos gritavam, completamente baralhados. E César...
De entre todos os presentes no interior daquela tenda, César foi o único que apreciou o carácter totalmente absurdo do momento. Resplandecente na sua toga bordada a ouro, com a coroa de folhas de louro na cabeça, o descendente de Vénus e senhor do mundo levou às mãos à cintura, lançou a cabeça para trás e desatou a rir-se à gargalhada.

CAPÍTULO VINTE E DOIS

Eu estava sentado no jardim de minha casa.
De acordo com o calendário - o novo calendário de César -, tinha passado exactamente um ano desde a dedicação do Templo de Vénus Genitrix.
Na realidade, haviam decorrido bastantes mais dias; antes de se poder dar início ao novo calendário, tinha sido necessário acrescentar cerca de sessenta dias ao antigo calendário de Numa, que depois expirara para sempre.
A correcção voltara a alinhar os dias com as estações do ano. E assim, no vigésimo sexto dia de Setembro, seis dias antes das Calendas de Outubro, no primeiro ano do calendário de César, eu estava sentado no jardim de minha casa, a usufruir da suave temperatura do começo do Outono, observando melancolicamente que os dias começavam a diminuir.
De certa maneira, era estranho que Setembro tivesse voltado a ser um mês outonal, tendo deixado de calhar a meio do Verão; lá no fundo, porém, uma parte de mim sentia-se profundamente grata por esse facto. O calendário dos homens e o calendário do cosmo haviam-se reconciliado. Fora corrigido um erro do mundo humano, e era a César que tínhamos de estar gratos por isso.
Sentado no jardim de minha casa, recordei os acontecimentos que se tinham dado um ano antes.
Logo a seguir à involuntária destruição do quadro por Gneu Calpúrnio, reinou a confusão. César ria-se. Arcesilau berrava. Os lictores

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tentavam levar-me, e a Diana, para fora da tenda, mas eu consegui aproximar-me de Calpúrnia e, num sussurro apressado, contei-lhe tudo quanto havia percebido sobre o tio Gneu. Ela encontrava-se num estado tal, que não tive a certeza de que tivesse percebido o que eu lhe disse. Depois, os lictores levaram-me dali.
A cerimónia prosseguiu. Nos degraus do templo, sem dar mostras do menor vestígio de atrapalhação, César anunciou a introdução do novo calendário, mas fê-lo sem o quadro e na ausência do tio Gneu, que não se via em parte nenhuma. Calpúrnia também tinha desaparecido.
Passaram os dias. Eu tentei falar com Calpúrnia, mas não fui recebido, nem voltei a receber notícias dela.
Também não recebi notícias de César - que podia, pelo menos, ter-me agradecido por eu lhe ter salvado a vida.
Fiquei a matutar num silêncio amuado, até que finalmente decidi escrever uma mensagem a Calpúrnia, em que lhe fazia notar que a minha primeira e principal motivação para a ajudar fora descobrir o assassino de Jerónimo e fazer justiça ao meu amigo. Ela tinha compreendido o que eu lhe dissera dentro da tenda? César tinha compreendido o que se passara? O que tencionavam eles fazer com essa informação? Com certa ousadia, talvez, exigi que o assassino de Jerónimo fosse punido, acrescentando que não fazia tenções de permitir que o assunto fosse varrido para debaixo do tapete.
No dia seguinte, recebi uma resposta:
Lamento informar-te de que o tio Gneu já não se encontra entre nós.
Na noite da dedicação do templo, sucumbiu a uma doença repentina - uma febre acompanhada de delírio, de abundantes suores, seguida de um ataque que lhe fez parar o coração. Morreu como romano que se orgulhava de ser, louvando até ao último suspiro os feitos dos nossos antepassados. A última palavra que disse foi "Numa".
Talvez te recordes a lamentável queda que deu no interior da tenda, na tarde desse dia. Há quem diga que alguém lançou um objecto ao tio Gneu; César não assistiu ao começo da queda do meu tio, mas eu assisti, e expliquei a César que ela parecia ter sido provocada por um ataque ou um espasmo súbito. César pediu muitas desculpas por se ter rido da aparatosa queda do tio Gneu, e está convencido de que este estranho espasmo terá sido o primeiro sintoma da doença que vitimou o meu tio. César tem indubitavelmente razão, e estou certa de que também concordarás, caso César venha alguma vez a discutir o assunto contigo.

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O funeral foi privado, porque o meu tio assim teria desejado. Não anunciei publicamente a sua morte, porque não queria que esta triste notícia estragasse a alegria que as pessoas sentiram com as diversões que César tão generosamente lhes proporcionou.
Quanto à questão que suscitaste na tua última mensagem, nunca mais voltaremos a falar sobre ela.
Juntamente com esta resposta, o mensageiro trazia-me uma caixa, pequena mas bastante pesada. Pensei em mandá-la para trás - tinha dito a Calpúrnia que não aceitaria qualquer pagamento -, mas Betesda tinha visto a caixa, e exigiu saber o que tinha dentro. Eu deixei-a contar as moedas e apreciar-lhes o valor, tarefa que lhe proporcionou
grande satisfação.
A justiça tinha afinal, de certa maneira, prevalecido. Passara um ano e, ao longo desse período, eu não voltara a receber nenhuma visita de Jerónimo, fosse em sonhos, fosse de outra maneira qualquer. Significaria isso que o lémure dele se encontrava em paz? Eu esperava que sim.
Os triunfos de César assinalaram o final do velho mundo e o começo do novo, mas a dedicação do Templo de Vénus Genitrix nem por sombras foi o encerramento das festividades. Os dias que se seguiram foram cheios de mais festas e celebrações, tendo o povo de Roma sido presenteado com uma estonteante gama de diversões, entre as quais várias peças de teatro, levadas à cena por toda a cidade. Siro venceu a competição dos dramaturgos, arrebatando o prémio de um milhão de sestércios. Labério - que apresentou a sátira que escrevera sem cortes, incluindo as referências mal veladas a César - ficou em segundo lugar, tendo recebido meio milhão de sestércios. Quer o adulador de César, quer o crítico do Ditador se tornaram assim homens abastados, graças à generosidade do próprio.
No novo Circo Máximo, recentemente alargado, tiveram lugar corridas de carros, competições atléticas e exibições equestres; bem como lutas de gladiadores contra animais selvagens. Num recanto especial do Campo de Marte, foram encenadas batalhas famosas, em que centenas de prisioneiros e condenados combateram até à morte.

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Num lago artificial, especialmente criado para esse efeito, foi encenada uma batalha naval, em que participaram mil homens de cada lado - muitos dos quais acabaram por morrer no combate, ou afogados, quando os navios se incendiaram e se afundaram.
Os cidadãos de Roma ficaram saciados de espectáculos. Os violentos combates de gladiadores e as batalhas encenadas provocaram uma carnificina tal, que alguns espectadores começaram a perguntar a si mesmos se César não teria já causado sangue que chegasse. Outros mostraram-se indignados com os gastos excessivos do Ditador, observando que ele tinha roubado e saqueado o mundo inteiro, e estava agora a gastar a fortuna criminosamente adquirida como se fosse um salteador embriagado.
A maioria dos críticos limitava-se a resmungar; a certa altura, porém, um grupo de soldados insatisfeitos chegou mesmo a ensaiar um pequeno tumulto no Fórum. César, que ia a passar por ali com os seus lictores, prendeu pessoalmente um dos chefes do grupo. O sacerdote de Marte declarou que três dos revoltosos deviam ser mortos, e as execuções assumiram a forma de rito religioso, constituindo nova ocasião para celebrações. Os homens foram sacrificados no Campo de Marte e as cabeças deles espetadas em estacas no Fórum. Esta macabra punição teria feito recordar ao povo as atrocidades de Sula? Tais pensamentos só foram comunicados em sussurros.
Mas as celebrações acabaram finalmente, e a vida voltou ao normal.
César partiu para Espanha, para tratar dos últimos rebeldes leais a Pompeu. Gaio Octávio tinha adoecido, de maneira que não pôde ir com ele. No mês de Márcio (de acordo com o novo calendário), teve lugar uma batalha decisiva na planície de Munda, em que César perdeu um milhar de homens, tendo o inimigo perdido trinta mil. A oposição foi assim esmagada. O jovem Octávio chegou tarde de mais, pelo que já não participou na matança.
Em Roma, Marco António desistiu de Citéris e casou-se com Fúlvia, que o encorajou a partir para a frente de Espanha, onde António se colocou à disposição de César, o que conduziu à reconciliação entre ambos.

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Bruto completou o seu período de governador da Gália Cisalpina, sendo em seguida nomeado por César pretor de Roma. Numa altura em que parecia ocupar uma posição sólida no campo de César, e estar cada vez mais nas boas graças do ditador, Bruto decidiu casar-se com Pórcia, a filha de Catão - uma união que terá certamente desagradado a César. O certo é que, por detrás daquela volúvel fachada, havia em Bruto uma veia de independência e imprevisibilidade.
Cícero teve um ano horrível. Primeiro, a filha, a quem muito amava, morreu de parto. Tendo Publília feito um comentário de mau gosto sobre o assunto, Cícero divorciou-se dela de forma sumária. Sozinho e profundamente infeliz, com a vida pessoal de rastos e as ambições políticas em ruína, retirou-se para uma das suas casas de campo, para onde foi procurar o consolo da filosofia.
Cleópatra regressou ao Egipto onde, tanto quanto se sabia, era uma governante competente e uma aliada leal de Roma. Dizia-se que planeava regressar à capital no ano seguinte. César continuava a não lhe reconhecer o filho.
Arsínoe estava exilada em Éfeso. Por insistência de Rupa, eu mandei-lhe uma carta a perguntar como estava, a que ela nunca respondeu. É possível que a carta tivesse sido interceptada pelos guardas.
Apesar da aparente invencibilidade de César, os mórbidos receios da mulher dele continuaram tão prementes como sempre. Na sequência da morte de Porsena, Calpúrnia arranjou outro arúspice. Este chamava-se Espurina, e dava a impressão de ter sobre ela um poder semelhante ao do primeiro.
César estava agora de regresso a Roma, onde começavam a fazer-se os preparativos para o Triunfo Espanhol. Seria um evento estupendo, que faria esquecer os próprios triunfos do ano anterior. Eu teria receado a pompa e as cerimónias que se preparavam, não fosse o facto de o meu filho Meto estar para regressar à cidade; vinha adiante de César, a fim de acompanhar os planos para o triunfo.
Eu estava à espera dele a qualquer momento. Diana tinha prometido trazê-lo ao jardim mal ele chegasse, para que eu pudesse estar com ele a sós uns momentos, antes de o resto da família lhe tomar todas as
atenções.
As sombras alongavam-se. O ar de Setembro estava fresco. Aconcheguei-me melhor na capa. Começava a desesperar de que ele chegasse,

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quando Diana apareceu. Trazia um sorriso no rosto e Meto consigo. Diana foi-se embora e deixou-nos aos dois.
Eu levantei-me para o abraçar. Durante longos momentos, nenhum de nós disse nada. Quando finalmente me afastei, fiz o que fazia sempre depois de uma ausência prolongada: percorri-lhe o corpo com o olhar, à procura de novas cicatrizes, verifiquei se continuava a caminhar bem. Mas os deuses não tinham deixado de proteger o meu filho, apesar dos tremendos riscos que ele corria no campo de batalha. Vinha inteiro.
E estava espantosamente belo! Posso dizê-lo sem ponta de vaidade, porque Meto não é do meu sangue.
Mopso trouxe-nos vinho e água. Meto perguntou como estavam todos.
- Estão todos bem - respondi eu. - Daqui a nada estão aí. Até o teu irmão está em Roma, acredites ou não. Ultimamente, quase não vejo Eco. Voltou ontem de Atenas, onde tinha ido tratar de um caso.
Meto soltou uma gargalhada.
- Eco, o Descobridor! Deve andar ocupadíssimo, a investigar a verdade e a justiça, enquanto tu ficas aqui sentado no jardim, papá, a usufruir da reforma.
Eu limitei-me a acenar com a cabeça.
Meto perguntou-me como iam as coisas em Roma. Eu contei-lhe as últimas novidades, e perguntei-lhe como lhe corriam as coisas no campo de batalha.
- A bem dizer, agora que terminou a guerra, poisei a espada e peguei no estilete - respondeu ele. - Tenho passado grande parte do tempo a trabalhar no último volume das memórias de César.
- Deve ser um enorme desafio, condensar experiências tão intensas em poucas palavras.
- E é mesmo! Mas o maior desafio é a investigação que é necessário fazer.
- A investigação? Mas aquilo são memórias, ou é uma obra de história? Tu viveste aqueles acontecimentos; ou melhor, César viveu-os.
- Pois foi, mas César insiste em verificar todas as declarações factuais que faz, e as diversas afirmações que produz. Por exemplo, sabias que ele travou um total de cinquenta batalhas campais? Cinquenta!

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É um recorde, tanto quanto sei; em toda a história de Roma, comandante algum travou jamais tantas batalhas. O competidor mais próximo que encontrei foi Marco Marcelo, o conquistador de Siracusa, que viveu há cento e cinquenta anos. Mas esse só participou em trinta e nove batalhas.
- Espantoso - comentei eu. - Cinquenta batalhas... - Quantos homens teriam morrido nessas batalhas? Quantos teriam ficado aleijados para sempre? Quantas mulheres e crianças teriam sido reduzidas à escravatura? Cinquenta era um número muito elevado. Teria bastante impacto nas memórias de César.
- E há outro número igualmente espantoso - prosseguiu Meto, agora num tom sussurrado. Entusiasmava-o partilhar comigo o trabalho que fazia, e eu sentia-me emocionado com isso. - Não se trata, evidentemente, de um número exacto, porque um cálculo destes levanta uma série de dificuldades e possibilidades de erro; pode-se contar a mais, contar a menos, e por aí adiante. Mas eu fiz o melhor que pude, e acho que não me saí mal.
- O melhor que pudeste em quê?
- César pediu-me que calculasse o número de pessoas que tinham morrido em consequência de todas as campanhas dele; isto é, daqueles que foram efectivamente mortos em combate, sem contar os cidadãos que morreram de doenças e com outros problemas do género; embora tenhamos uma ideia deste último número, com base no censo que ele encomendou o ano passado, e que mostra que a população da cidade é hoje metade do que era antes da guerra civil.
- Metade? - sussurrei eu. Metade da população de Roma varrida da superfície da terra...
- Bem, depois de ter reunido todas as informações possíveis, e de ter feito os meus cálculos com base em várias estimativas, o número que obtive foi um milhão e cento e noventa e dois mil.
Eu franzi a testa.
- E o que representa exactamente um número desses?
- É o número de pessoas mortas por César nas cinquenta batalhas que ele travou.
- Extraordinário - comentei eu, ainda que, na realidade, o número nada representasse para mim. Era um número incompreensível.

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Tentei imaginar as caras do milhão e cento e noventa e dois mil homens que tinham morrido, uma de cada vez. Mortal algum seria capaz de conceber semelhante número. Morreram muitas pessoas; no fundo, isso era o máximo que se podia dizer.
Aparentemente, César também achava, porque Meto acrescentou, abanando a cabeça com pesar.
- E, depois de todo o trabalho que eu tive, dos meus preciosos cálculos, César decidiu que não quer que esse número figure nas memórias. Alguém o percebe?
- Bem, para dizer a verdade, eu percebo - repliquei suavemente.
- Ah, pois, mas é bem possível que, no futuro, este número venha a ser ultrapassado - prosseguiu Meto. - Agora que conquistou o Mediterrâneo, é quase inevitável César voltar-se para leste e invadir a Partia. Vai ser preciso montar uma enorme expedição, provavelmente através do Egipto, talvez já no próximo ano.
- Mais batalhas, que vão estragar a perfeição desse número cinquenta? - perguntei eu.
- Sim, muito mais batalhas.
- E mais mortes?
- Muito mais mortes, sem dúvida nenhuma - retorquiu Meto. Exactamente um ano antes, eu tinha tomado uma opção que havia
salvado a vida a César. Recordando esse momento, senti algo parecido com o arrependimento. Quantos homens teriam ainda de morrer, antes de César parar de respirar?
Mas tal sentimento dissolveu-se rapidamente, porque Betesda veio ter connosco, com um grande sorriso no rosto. Ao ver Meto, estremeceu de alegria.
- Marido, não podemos esperar mais. É a nossa vez de dar as boas-vindas a Meto!
Momentos depois, chegavam todos a correr ao jardim - Diana e Davo, e os filhos deles, guinchando a plenos pulmões, Eco e Menénia e os gémeos de cabelos louros, o silencioso Rupa e os jovens escravos, em grandes gargalhadas.
Aqueles que eu amava continuavam vivos, e estávamos todos juntos.

 

 

                                                                  Steven Saylor

 

 

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