Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ÚLTIMO CABALISTA DE LISBOA-P.2 / Richard Zimler
O ÚLTIMO CABALISTA DE LISBOA-P.2 / Richard Zimler

                                                                                                                                                 

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ÚLTIMO CABALISTA DE LISBOA

Segunda Parte

 

Fazia um esforço patético para se distanciar do seu inquilino. Na sua voz tranquila, Manuel diz: «Ele era o hazan desta parte da cidade, não sei se sabia.» Usa estas palavras próprias porque suspeita, tal como eu, que também ela era uma judia secreta. Usar a palavra hebraica hazan é uma maneira de Manuel lhe dar a entender que também sabemos hebreu e que somos cristãos-novos que não deve temer. Mas a mulher confunde «hazan», pelo modo como soa, com a palavra portuguesa «azango», mau augúrio ou enguiço. Faz um grande aceno de cabeça e replica num tom excitado: «Pois, pois, tem Vossa Senhoria toda a razão, todos os judeus são azango!»

Uma semana antes teríamos rido da sua ignorância. Mas neste momento, ambos respiramos fundo como quem cobra forças para uma luta que pode durar as nossas vidas. Encorajada pela aprovação que pensa ter conseguido, corre a abrir a porta. «já está! - diz ela ao ouvir-se o estalido da fechadura. Quando a porta se abre, a guinchar nos gonzos, escapa-se um odor bafiento. Numa voz humilde, a mulher diz-nos: «Ficava-lhes muito agradecida se não ficassem muito tempo - enfrenta o meu olhar por momentos - Não queria ser mal educada, caros senhores, mas as estrelas e os planetas dizem que hoje não devemos receber estranhos em casa. Estou certa que compreenderão.»

Uma passadeira gasta de couro leva da entrada de Mestre David à lareira apagada, a uma distância de cinco passos. Mas não ousamos mover-nos: a todo o seu comprimento vê-se a sua preciosa colecção de alaúdes, esventrados e despedaçados. Uma cítara feita da mais bela madeira de roseira e cerejeira, como uma ágata talhada pela Música, tinha sido partida em duas e pende de um prego na lareira como um caranguejo morto. Debaixo, jaz um pequeno monte de vidros e cacos de barro, encimado por um emaranhado de tallit que nunca mais sentirão o pulsar de nenhum braço. A senhoria aponta-nos um dedo espetado:

- Deviam ter visto isto antes de eu ter dado uma limpeza. As favas dele já tinham barbas. Como os rabinos deles! E o cheirete... Santo Deus, o fedor desse Povo, não acham?

- Diga-me só se viu os tamancos dele - pergunto eu. Ela alisa de novo a frente do avental.

- Desculpe, mas não sei onde é que ele tem as coisas dele. Não era pessoa das minhas relações. A verdade é que nunca nos...

Dirijo-me à arca da roupa, enquanto ela continua a parolar sobre a fria distância que ela insistia em manter com o «judeuzito da música», como agora se refere a David. Encontro os tamancos juntos debaixo de um amontoado de velhos gorros de veludo do tempo de El-Rei D. João. Depois de uma breve invocação e uma praga em hebraico, o tacão gira para o lado, deixando cair três chaves. A senhoria observa-me embasbacada.

- Muito antes de vocemecê morar aqui, vim a este quarto durante quatro anos para estudar a cultura grega e árabe com Mestre David. Não viu logo pelo meu cheirete?

- Ah, compreendo - murmurou ela, respirando sofregamente. Na sua voz lê-se uma admiração invej'osa: - Vocemecês sabem disfarçar tão bem!

- Não é disfarce nenhum - digo eu - É bruxedo! Recordando um velho truque que meu tio me ensinara, mostro~lhe uma mão vazia e logo em seguida saco do seu nariz as chaves de Mestre David. Ela engasga-se e persigna-se, caindo de joelhos numa posição de oração:

- Por favor, não me façam mal - geme, com as lágrimas nos olhos.

- Se o «judeuzito da música» voltar, diga-lhe que Pedro Zarco passou por cá.

- Sim, senhor - diz ela, fazendo uma vénia com a cabeça - Mas se calhar era melhor dizer-lho à noite nos seus sonhos. Nesta altura deve ser o único modo de Vossa Senhoria lhe fazer chegar uma mensagem.

A micva está húmida e viscosa, e as suas janelas foram fechadas com pregos por algum judeu previdente. Ao descermos, sinto faltar-me o pé, naquela total escuridão. O meu traseiro toma rudemente conhecimento com as arestas de granito dos degraus, ao mesmo tempo que uma dor aguda me perfura o ombro. Solto um grito.

- É melhor ir buscar uma candeia antes que te aleijes a sério - dizManuel, voltando para trás e saindo, encostando a porta atrás de si. Fico sentado, mergulhado no conforto desta escura solidão, enquanto à minha volta formas violetas se condensam, para de imediato se encolherem em sombras mosqueadas. «O barro da escuridão dá forma aos nossos medos e desejos» - ouço meu tio dizer. Espero, pois. Envolto no meu respirar leve, aparece-me Mardoqueu quando jovem, dissipando-se depois numa dança com o seu passo de corço. Um estalido arranca-me ao meu devaneio, fazendo-me sobressaltar. Som de pés?

O meu coração bate num código de alerta. Meu tio surge-me subitamente, azUl irisado de ouro, como uma iluminura pintada pela minha memória. A sua expressão é hesitante, pensativa, como se considerasse o significado de algum versículo dificil. Sem se deter a saudar-me, continua a flutuar, subindo e afastando-se da falsa noite do tecto até desaparecer. «Não lhe dês atenção - penso - Não era uma visão, mas uma ilusão.» Uma ligeira respiração vinda de baixo impele-me a avançar. Ou será apenas o vento escapando-se por alguma passagem invisivel do subterrâneo? Diz-se que há dúzias de túneis e passagens que vém dar aqui, os restos de uma rede subterrânea criada pelos nossos antepassados, para prepararem a vinda do Messias. «Judeu ou cristão?» - grItO em POrtuguês. Nestes tempos, parece ser a única pergunta que interessa. A respiração extingue-se. «Vennho em paz - digo. Só um silêncio expectante desafia o meu medo. Decido lançar um enigma à escuridão: um judeu saberá o que quer dizer. «Qual é o anjo que dá a mão a Abraão?» A resposta é «Raziel». Os dois nomes juntos, o de Abraão e do anjo, somam 288 em hebraico, uma língua em que as letras são também números. As mãos de Raziel são o sinal igual que os liga.

Subo silenciosamente dois degraus, para me defender de algum vulto que, guiado pela minha voz, subitamente se precipitasse para mim. Mas nenhum movimento fende a escuridão. De novo, lanço o meu enigma e subo mais alguns degraus. Ouve-se uma porta ranger e surge o rosto de Manuel aluMiado por uma chama. A escadaria abre-se em penumbra abaixo de mim.

- Desculpa a demora - diz ele - Mas ninguém...

- Schch... Parece-me que está aqui alguém. Ouvi uma respiração, e uM passo, pareceu-me.

- Judeu ou cristão? - pergunta num sussurro, enquanto desce em pontas de pés.

- Os passos não têm fé.

- Mas o que é...

Raziel - ouve-se um sussurro rouco - Raziel. Que diz ele? - pergunta Manuel. Levo um dedo aos lábios a pedir-lhe silêncio.

- Aparece! - grito para baixo, em hebraico. Um homem descarnado, olhos piscos e umas farripas ralas de cabelo por cima das orelhas surge descalço ao fundo das escadas. A grossa toalha que traz atada em volta da cintura faz parecer o seu peito mais encolhido. É o cirurgião Salomão Eli. Sem reflectir, precipito-me para ele.

- É impossível! - exclamo -. Vi-o no Largo do Limoeiro, manietado juntamente com a sua mulher e...

Ele dá-me palmadas no ombro, manifestando a sua alegria.

- Shalaat Chalom!- grita ele -. Um dos meus rapazinhos escapou com vida!

Salomão costuma pôr nomes a todas as crianças qUe cirCuncida. A mim chamou-me sempre «Shalaat Chalom», «sonho realizado», uma ref'erência às preces de meu pai, suplicando outro filho.

- Mas eu vi-O COM... Salomão 'interrompe as minhas palavras com um dedo nos lábiOs. A minha querida esposa Reina está morta - Diz ele num cicio, atirando a mão para o céu imitando o fUMo - SÓ eu escapei.

- Mas como foi isso?

- Como foi, perguntas? Foi um quisto, meu querido Shalaat. Operei um quisto a um dos celerados que nos levaram. Um pedreiro. Há cerca de um ano. Ele reconheceu-me, já Reina tinha... Obrigaram-me a assistir. Eu disse-lhe que queria ir atravessar com ela o Rio Jordão. Ele sorriu furtivamente e deu-me uma pancada. Quando despertei, estava deitado no telhado de uma casa acima da Igreja de São Miguel. Vi as flores silvestres que cresciam por entre as telhas debaixo das minhas pernas e pensei que era estranho. julgava que estava morto. Era de noite. Mas quando vi a lua... Quer dizer, eu nunca tinha ouvido dizer que o paraíso estivesse cercado de corpos celestes. Ou será a sabar só uma outra sobar, será a lua uma mera prisão? - Salomão encolhe os ombros e força-se a sorrir Talvez o tal pedreiro tivesse pensado que deixar-me vivo seria uma maior punição. Quando despertei estava sem roupas. Para onde havia de ir? Para casa não, já não havia lá ninguém. Vim dar aqui. A porta estava aberta. Passado algum tempo veio cá alguém que a fechou.

- Esteve cá mais alguém? - pergunta Manuel -. Uma rapariga?

- Ninguém - replica o cirurgião.

- Pode ter morrido antes da chegada de Salomão - digo eu a Manuel E de qualquer modo, deve ter ido daqui até minha...

- que rapariga?! - pergunta o mohel-. A Cinfa? Ela ... ?

- Não. Está bem - Pego nas mãos de Salomão, explico-lhe o que aconteceu a meu tio e o objectivo da nossa busca - Então não viu nada, nada mesmo? Nem jóias, ou roupas, ou comida? - insisto.

- Anda daí - diz ele numa voz grave.

O cirurgião conduz-nos', através da piscina ritual dos homens, até aos compartimentos onde as mulheres se vestem, que estão cobertos de azulejos com o símbolo de seis pontas do Rei David. Avança com passos atentos, infantis, próprios de alguém que não come há vários dias. Mas ainda assim, o eco dos seus passos soa nestas cavernas como um tambor. Chegados à pequena sala de vestir onde Salomão tem dormido, Manuel pega numa toalha que lhe serve de coberta. Levanta uma túnica enrolada a servir de almofada e sacode-a ao alto.

- Da Teresa? - pergunto. Um véu de sombra fecha-se sobre a face de Manuel quando ele baixa a candeia. Cai de joelhos e um amargo soluçar ecoa por todo o gélido lençol de azulejos.

- Estava nua quando a encontrámos - murmuro a Salomão - Não me parece que ela fosse atravessar assim a rua, se houvesse outro meio. Como é que... inesperadamente, Manuel passa a porta, descendo em seguida para a passagem que dá para o átrio centraL Chamo por ele repetidamente em vão. O meu eco vibra em torno a nós como uma voz a desvendar segredos. Seguindo para oriente, passa a correr uma rampa com uma sala de meditação ao fundo, descendo depois através de balneários há muito abandonados e grutas a tresandar a humidade. Finalmente atingimos a sala que serviu de escritório a Mestre David. As suas estantes torreadas estão derrubadas, com os registos do balneário espalhados pelo chão. No canto oposto, vê-se uma candeia no chão. Enquanto Manuel a observa, Salomão deixa-se cair no chão empedrado. Ouve-se a palpitação do seu peito no ar pesado e húmido do compartimento.

- Estou cansado das pernas - diz, com um encolher dos ombros.

- já lhe damos de comer, logo que sairmos daqui - tranquilizo-o. Ele levanta as mãos a mostrar que não há pressa.

- O que é que te deu? - pergunto a Manuel.

- Era a ver por onde teria descido a minha mulher ao fugir dos cristãos. Salomão olha em torno, fareja o ar como um coelho, inclina-se para o chão, levanta-se e põe-se em pontas dos pés como um gamo a esticar-se para chegar a um ramo mais alto. - Há um cheiro a podre no ar - resmunga, pondo a língua de fora Parece de estrume.

É verdade. Há uma fibra do mal a vibrar no ar.

- Algum esquilo morto, ou um rato - diz Manuel - Para aí afogados. Dentro de mim roda a chave do entendimento.

- Não, não é animal morto nenhum. Agora percebo. já lhes mostro o que é quando voltarmos à nossa cave.

Descemos, Manuel, Salomão e eu, as escadas debaixo do nosso alçapão secreto. O mohel aconchega-se sob o cobertor que lhe dei e estende a mão ao longo da parede para se amparar. Nunca estivera antes na nossa cave e pergunta numa voz curiosa:

- Desde quando têm isto aqui, rapaz?

- Já ninguém se lembra há quanto tempo - respondo.

O tapete de orações e as plantas de mirto dão a entender a Salomão que a cave se tinha tornado na nossa sinagoga secreta e ouvimo-lo entoar um cântico: «Abençoado seja Aquele que salva o Seu templo dos idólatras.»

Tia Ester está sentada à escrivaninha de meu tio ao fundo da cave, com os olhos fixos no Espelho que Sangra que lhe fica em frente. Tem a cabeça descoberta e o seu cabelo com hena, cortado ao acaso, dá-lhe uma aparência aterradora.

- Etti - chama Salomão, que gosta de chamar toda a gente pela alcunha. Ela não responde, nem estremece. Salomão estica os lábios e olha-me interrogativamente.

- Por agora não responde. Temos de lhe dar tempo.

O mohel acena compreensivamente, depois fareja o ar.

- O tal cheiro vinha desta cave - diz ele -. Este sítio cheira a... - Cala -se ao lembrar-se do invólucro do corpo putrefacto que meu tio abandonou ao deixar-nos.

Avancei direito aos ornatos de couro de Córdova que pendiam da pared ocidental da cave, por trás de tia Ester. Enrolando para cima um deles, des prendi-o dos ganchos e pu-lo no chão. Seguidamente fiz a mesma coisa com outro, Manuel acende os dois candelabros de prata com a sua candeia. Apalpando a parede com a ponta dos dedos debaixo das manchas de sangue que se interrompem abruptamente na borda de um dos azulejos, digo:

-Se Samir ou o meu tio aqui estivessem, poupávamos algum tempo. Ou um dos iniciados.

- O que procuras? - pergunta Manuel. - já vais ver - digo eu -. Acabo de descobrir como é que um homem ou até vários, pode desaparecer desta cave. E como é que um cheiro pode passar de um lado para o outro.

Comecei a bater com o punho em todos os azulejos ao longo de uma linha e até à altura da minha cabeça, do canto a sul da cave perto das cavidades aí existentes para norte, até onde estava tia Ester. Salomão murmura para Manuel - Pobre rapaz. A morte de Mestre Abraão deixou-o a pensar da esquerda para a direita.

É - um dito judaico, para dar a entender que não tinha o siso todo.

- Garanto-lhes que não me entrou no ouvido nenhum mosquito replico, aludindo à história de como o Rei Nimrod perdeu o siso -. Costumava ficar muito admirado como é que meu tio estava sempre a aparecer vindo de parte nenhuma. Frei Carlos às vezes até dava a entender que meu tio era um daqueles espíritos brincalhões. Mas agora já sei como é que ele fazia. E porque é que ele nunca me deixava entrar na cave sem autorização dele.

Continuei a bater e se até ao fim de cada fiada não ouvisse o som que pro curava, passava para a fiada de baixo. Na quarta fiada de baixo, a que atravessa a parede à altura do meu pescoço, encontrei o que procurava: o som oco de u azulejo, que mal se apoiava na parede.

Neste momento, Cinfa surge a correr ao fundo das escadas e fita-me com olhos atentos. Mais uns vinte toques e acabo por encontrar o contorno de azu lejos que dão o mesmo som a falso. Se se confirmar o que penso, um dos azulejos perto da borda de um dos lados deve mover-se quando o empurram. Passados uns momentos, acabo por o descobrir. Arranco-o, e parto mesmo a unha do polegar nessa tarefa, e passo-o a Cinfa. Por baixo, vê-se uma pega circular de ferro, na qual se lê toscamente gravada a palavra hebraica recbiza, banhos. Depois de respirar profundamente e de uma rápida oração pelo sucesso, agarrei-a e dei-lhe um empurrão. Imediatamente, a racha na parede torna-se numa porta que gira em torno de um eixo central. Perante nós surge um compartimento da mais pura escuridão. Salomão reúne-se a mim, põe-se de cócoras como um piedoso muçulmano e espreita para o interior com uma expressão de curiosidade.

- Dá cá a candeia - digo, voltando-me para Manuel - Vou ver lá dentro.

- Para onde dá? - pergunta ele.

- É o que já vamos ver. Mas para já, dá cá a candeia. Passa-ma e à nossa frente começa a vislumbrar-se um corredor de pedra.

- Vou atrás de ti - diz ele.

- Eu fico aqui - diz-me Salomão com uma palmadinha no ombro. E voltando-se para minha irmã pergunta-lhe: - Cinfa, porque não vais buscar um pouco de matza e água? E um copo de vinho casher também. E já agora a almofada mais fofinha que encontrares!

Guiados pela candeia de Manuel, penetramos na escuridão, enquanto Cinfa ,se precipita pelas escadas acima. A passagem húmida que se abre perante nós exala um cheiro a pedra fria e a solidão e vai-se estreitando à medida que o tecto baixa até nos vermos obrigados a caminhar de gatas. Avançamos como toupeiras e, depois de uns vinte pés, quando a passagem se alarga, levantamo-nos. De uma laje de pedra a fazer de porta, emerge uma argola de ferro ferrugento, igualmente gravada com a palavra rechiza. Manuel empurra-a, abrindo-a em torno do seu eixo. Somos recebidos por uma lufada de ar gélido. Levanto a candeia, fazendo brilhar os azulejos azuis e verdes. Pelo chão espalha-se uma infinidade de papéis. Estamos no escritório do hazan nos balneários.

Depois de Manuel e Salomão se terem recolhido a suas casas, vou ter com minha mãe, armado agora da certeza de que o assassino não era nenhum feiticeiro, mas sim um dos iniciados. Encontro-a na loja, a esfregar o chão à luz de uma candeia e de joelhos e mãos no chão. Conto-lhe o que acabo de descobrir.

- Conhecia a passagem secreta? - pergunto. Ela afasta a escova e põe-se de joelhos. - Antes de tu teres nascido - começa ela -, quando os cristãos-novos desta cidade eram judeus e o teu pai andava a ver se conseguia...

Fecho os olhos. Parece que a vejo abrir a primeira página de uma história infindável sobre meu pai e as suas tentativas de se estabelecer com um negócio rentável. Mas, sentindo a minha irritação, corta abruptamente: - A nossa cave era parte da micva. As nossas tinas faziam parte dela.

- Porque é que nunca mo disse? Volta-me as costas como se a minha presença a enfastiasse. Os músculos do rosto palpitam-lhe com a cólera:

- Julgas se calhar que tens direito a saber tudo?! A vida não é assim, seja o que for que meu irmão te dizia.

Observo-a com desagrado, ainda que compreenda que tem razão.

- Talvez ele pensasse que tu sabias e que não tinha de te falar no caso - acrescenta num tom conciliatório, recuperando a escova - De qualquer modo, não era importante - o breve gesto de desinteresse que ela me dirige denota o seu cansaço. De súbito, baixa o olhar e franze o cenho. Um sapo acastanhado todo inchado pula de algum esconderijo. - Que é que quer agora este, não me dizes?

Comida... alguma mosca. Quer viver. Deixe-o lá. Deixá-lo? Uma porcaria destas? Uma das dez pragas da Páscoa?! Que Deus enviou para punir os egípcios que nos mantinham na escravidão e eu ia deixá-lo na minha casa?!

Minha mãe parecia balançar entre o sonambulismo e uma espécie de loucura intermitente. Vendo-a agarrar a vassoura, tento voltar a sua atenção para questões mais importantes e digo:

- Sempre pensei que ele se deve ter escondido na geniza no meio dos livros. Como ele gostava de os tocar e de os cheirar!

- QUem? - pergunta ela, e franze as sobrancelhas como se eu tivesse ensandecido.

De repente possuiu-me o pressentimento de que era capaz de a esbofetear. Ela abre uma das portas desengonçadas da loja e varre o pobre sapo pelos ares para a Rua da Sinagoga.

- Por favor, não podia... - começo, mas interrompo-me, compreendendo que era inútil. A sua simples presença parece minar a minha energia. Observo-a a fitar o céu sonhadoramente. O desorientado sapo endireita-se cambaleante. Roseta surge não se sabe de onde, avança sorrateiramente, as garras prontas. «Não, nada disso!» - digo, saltando para a rua, agarrando o sapo e enfiando-o na minha bolsa. Preparo-me para ouvir os ralhos de minha mãe contra a porcaria. Mas as nuvens prateadas que rolam do ocidente, deixaram-na pregada ao chão: a noite, como tudo o resto, recordou-lhe Judas.

Liberto o sapo nos campos acima do rio, lavo as mãos, mordisco uma matza, e volto para casa a ver como está Farid. Uma fatia do crescente da lua ergue-se acima do horizonte e eu começo a delinear uma história, enquanto observo o seu palor. A mulher de Manuel está a banhar-se na micva. Ouve os brados dos cristãos-novos a serem massacrados na rua de címa. Correndo através do dédalo de piscinas e compartimentos, atinge o frio muro de estrelas do escritório do hazan. Estarão as portas de ligação abertas? Estará também meu tio nos balneários a purificar-se para as suas orações? Ou terá ela gritado ao aperceber-se da luz das tochas empunhadas pelos cristãos? Talvez meu tio a tenha ouvido, aberto a porta secreta, penetrado nos balneários e a tenha puxado para lugar seguro. Juntos, meu tio e a rapariga, esperam na cave o fim da loucura de Lisboa. Mas os criminosos, um iníciado e alguém que faz pesar sobre ele uma ameaça, chegam primeiro. Depois de terem atraído a morte a nossa casa, esgueiram-se através da passagem secreta para os balneários. Um deles passa a mão pela porta fechada, deixando o rasto de sangue dos seus dedos, e escapa-se através do túnel.

QUando entro, Farid está sentado na cozinha. A sua face parece causticada e pálida pelo esforço. Sei que deveria correr para ele, mas as minhas próprias energias tinham-se eclipsado pelo desespero.

- Não devias estar deitado? - pergunto com os nossos sinais, ao chegár à entrada.

- A minha casa estava vazia - explica o meu amigo com gestos pesados - Não sabes nada de meu pai, pois não? - os braços pendem-lhe brancos, como se os anjos o vestissem já para...

- Não. Perguntei por aquí, mas ninguém o viu. Amanhã de manhã cedinho vou à procura dele. As coisas agora acalmaram-se um pouco...

- Trouxeram uma mensagem para ti - indica ele, exibindo um rolo Para o teu tio, mais exactamente.

Desfaço o selo. É da Senhora Tamara, uma alfarrabista da Pequena Jerusalém, com quem muitas vezes fazíamos negócio.

«Mestre Abraão - dizia a mensagem - um rapazinho tentou vender-me um livro que me parece ser uma história do Egipto recentemente descoberto por si. Terá sido roubado durante os motins? Desculpe, se calhar devia tê-lo comprado, mas eu não tinha a cabeça no sítio e expulsei-o da loja aos berros. Mas acho que o posso descrever, o tal rapaz que veio cá. Talvez alguém saiba quem é e o possamos recuperar.»

Sinto-me como se tivesse pescado um grande peixe para o Shabat.- «a história do Egipto» é o código para a Haggada de meu tio que desapareceu! Esta informação mostra que o assassino fez um movimento em falso. E agora que sei como ele escapou... Parece que há uma balança na Esfera Celeste que começa agora a pesar a meu favor. E, no entanto, antes ainda que as minhas descobertas possam sequer começar a encher os meus pulmões com o ar fresco da esperança, Farid conduz-me novamente ao desespero. Depois de lhe ter lido com as mãos o recado da Senhora Tamara, ele observa:

- Temos pela frente um novo obstáculo. Quando chegou o recado, fui à cave para ver se te encontrava e vi a passagem secreta na parede. Bem sei o que estás a pensar. Mas o assassino não saiu por ali.

O quê?!

- Vai lá ver. Olha para o sangue. Vais ver que há marcas até ao ponto em que a passagem estreita. Como se ele fosse a apalpar a parede para achar o caminho. Mas as marcas acabam quando se é obrigado a avançar agachado. O assassino não conseguiu passar e voltou para a cave.

- Tens a certeza? - pergunto, respirando profundamente.

- Com o nascer do sol, podes verificar melhor o que estou a dizer. À luz da candeia, os teus olhos não conseguem distinguir o que eu vi. Mas é a verdade, não pode haver engano.

Mais uma vez me ocorre que não foi um acaso que Deus me tenha agraciado com Farid. Ele sabe que preciso da ajuda de um dos Seus retratos mais talentosos.

- Mas porque haveria o assassino de voltar para a cave, sabendo que tem uma porta por onde pode escapar? - perguntam os meus gestos.

- Talvez tenha ouvido vozes nos balneários... Mais cristãos. Ou então... talvez ele fosse demasiado grande ou desajeitado para conseguir penetrar na passagem. Quase de certeza que nunca tinha usado aquela saída antes e deve ter pensado que cabia lá. Só depois descobriu...

As mãos de Farid descaem-lhe para o lado. Faz-me um débil sinal de que a sua diarreia piorou. Com pejo da minha boa saúde, levo-o para fora. O ar da noite atinge-nos, seco e gélido. A face de Farid contorce-se de dor, enquanto eu lhe limpo o seu fraco traseiro. Para combater o meu medo, penso: «Não só não sei como escapou o intruso, como tenho de combater novamente pela vida de outrem.» Medindo interiormente a vida de Farid, vejo o Anjo da Morte, uma sombra com mil olhos abertos, especado à ilharga da cama do meu amigo. Umas mãos esqueléticas empunham uma espada com uma gota amarga suspensa na ponta estendida. Assim que Farid põe os olhos neste ser horrível diante dele, abre a boca aterrorizado e desenha o grito de estertor de um mudo. Num ápice, o Anjo da Morte enfia-lhe dentro a sua oferta corrompida. E com aquela gota Farid morre e empalidece e decompõe-se.

Não pode haver escapatória.

O corpo de meu amigo, como um boneco desconjuntado, repousa sobre mim quando nos arrastamos para dentro.

- Farid, mas então onde raio se meteu o assassino quando eu entrei de rompante? A porta estava fechada. Não estava ninguém na cave. Juro! Ninguém!

Vendo-o a gesticular uma frase poética sobre a vontade de Alá, agarro a candeia que pende da trave do tecto e enfio para baixo. Tal como ele dissera, há gotas de sangue e pegadas no chão e nas paredes do túnel e há dedadas, com marcas de cinco dedos, nos sítios onde o fugitivo pôs as mãos à procura da passagem. Assim que começa a ser preciso rastejar, vê-se um emaranhado de manchas de sangue, revelando as marcas da malha de um tecido, que devem ter sido impressas pelos joelhos contra a pedra. No ponto mais apertado, uma outra marca parece mostrar que uma mão tentou desesperadamente tactear o caminho para diante. Quando o túnel começa de novo a alargar-se, e eu posso caminhar em pé, já não há nada. Nem marcas de passos, nem dedadas com sangue.

O assassino voltara para trás. Ou desaparecera.

 

Farid apoia-se na parede para amparar os seus frágeis passos ao descer para a cave. Aproxima-se de mim, baixa-se e fica acocorado para evitar a dor que lhe trespassa as entranhas.

- Agora que sabemos que o assassino não saiu pela porta secreta, tenta lembrar-te da sequência dos teus movimentos depois de teres descoberto o corpo de teu tio... Tudo!

Foi a magia das palavras desenhadas pelos gestos do meu amigo que me dotaram de visão interior: depois de lhe ter contado tudo, a solução apareceu-me naturalmente. É como se desde sempre estivesse dentro de mim, escondida, enroscada como um gato adormecido num canto ignorado: «A geniza!»

Farid assente como se lesse um versículo de sabedoria.

- O assassino deve ter-se escondido lá - dizem as suas mãos - quando chamaste a tua família da porta. Quando irrompeste na cave, estava ele metido no meio dos livros, confundido com a escuridão. Depois, quando subiste para ir buscar os pregos e o martelo, demoraste a afastar um gatuno e a observar a turba ao fundo da rua. Como te sentias com vertigens, sentaste-te durante uns momentos. Foi quanto bastou para ele se escapar pela porta do quarto de tua mãe, que dá para a Rua da Sinagoga.

- Meu Deus... Nem reparei... Quer dizer, nem me passou pela cabeça ir ver, porque ao princípio pensei que tinham sido os cristãos quem o matara e esses não sabiam da geniza.

- Vamos confirmar - propõe Farid - Não podemos dar-nos ao luxo de cometer qualquer erro.

Abrindo a tampa do esconderijo com a chave guardada atrás do Espelho que Sangra, levanto os nossos manuscritos e cartas, e também o saco de moedas. Dentro da cavidade assim esvaziada vêem-se facilmente as marcas de sangue, que cobrem o fundo como sombras castanhas de folhas caídas, com a textura de um tecido gravada.

Quando me volto para Farid, dou-lhe por sinais a minha interpretação das manchas:

- O assassino estava deitado sobre o lado direito, com o corpo dobrado em torno da pilha de manuscritos. Por isso é que todas as manchas de sangue têm a marca das roupas. As pernas estavam encolhidas junto ao peito e as pontas das sandálias fizeram as nódoas na base do lado oriental. Tinha o cOtovelo contra a parede do lado norte, o que deixou aquela marca do tecido do tamanho de uma pétala perto da borda de cima. O braço direito, saído para fora, empunhava o cutelo de shohet. Enquanto ali estava, esperando que eu saísse, deve ter passado o gume algumas vezes na parede do lado sul, o que deixou aquelas linhas de sangue finas no revestimento.

Farid faz um sinal de aprovação. Para mim próprio, murmuro:

- Diego!

- Diego, o quê? - pergunta o meu amigo, lendo os meus lábios.

- Com o tamanho dele, não podia atravessar a passagem estreita que dá para os balneários.

- Sim, mas mesmo a Frei Carlos não seria fácil.

- Talvez não. Mas repara, Diego disse que voltava cá esta noite com um homem que queria vender a meu tio um manuscrito hebraico. E se me tivesse dito isso só para ganhar algum tempo? Tenho de o encontrar. Talvez neste mesmo momento esteja a tentar escapar-se. E prometo não me esquecer de teu pai. Vou passar na mesquita secreta, depois de ir à morada de Diego.

Quando volto a colocar os livros e as cartas na geniza, Farid desliza até mim e toma-me pelo braço: - Não devias aproximar-te do Rossio.

- Desço para a Mouraria pelos lados da Graça. Vai correr tudo bem!

- Fala só português. - Aceno que sim e as suas mãos insistem. - E leVa a minha melhor adaga. Aquela de Bagdad que pode partir em dois mesmo o mais fino pensamento de um Sufi. Vai buscá-la ao meu quarto.

- E tu com o que ficas? - pergunto.

- Com uma do meu pai. Aquela comprida de Safed. Ele gostava que...

Aceno compreensivamente, vendo os gestos de Farid caírem num silêncio marcado pela mágoa. Olhamos um para o outro através da distância da morte. Ambos sabemos que não demorará muito a que as minhas mãos já não o possam tocar. Ele ter-se-á despenhado, tal como aconteceu a Mardoqueu e a meu pai, nas chamas negras das mãos de Duma, o guardião das almas do mundo de lá. Farid leva as mãos ao ventre, o nosso sinal de terror, e depois bate no peito com um punho enfraquecido: é um modo de indicar que os seus diques espirituais estão a ceder e que não pode continuar só.

Quando nos abraçamos, é como se ele me comunicasse o mesmo brando sentimento de pétala de Mardoqueu. As suas costelas, duras e frias, ondeiam-lhe

a pele como se quisessem despontar. Conduzo-o de volta ao quarto de minha mãe, ouço o aviso de meu tio: «Berequias, não abandones os vivos por causa dos mortos!» e volto -me para Farid: Vou procurar um doutor. A busca de Diego pode esperar. Se te acontece...

- Doutores não! - interrompe Farid -. Tudo o que os cristãos sabem é fazer sangrias.

- Vou procurar um muçulmano.

- Onde? - leio nos seus gestos cépticos.

- Onde os houver... Vou onde for preciso. Discutimos durante alguns instantes. Mas é só para nos iludirmos: ambos sabemos que o Doutor Montesinhos era um dos últimos que seguiam fielmente os ensinamentos de Avicena e de Galeno. Quem iria eu agora encontrar capaz de se arriscar ao contágio, para ver um pobre surdo tecelão de tapetes? Farid afasta as minhas palavras com movimentos alados, e pede-me por ar fresco. Arrastamo-nos pois novamente para o exterior e sentamo-nos no fresco do pátio. Ele resmunga quando lhe lavo os braços e as pernas com água. Não tem chagas nenhumas, portanto peste não é. Está a ser sugado da sua vida.

- Vai procurar Diego! - diz subitamente, com um empurrão -. Estás só a perder tempo comigo.

- Farid, fazes o que eu te disser? - perguntam as minhas mãos. Ele detém o meu pedido com uma onda de gestos de desânimo:

- Não tens o óleo da vida que possas deitar na minha candeia.

- A tua poesia não vem nada a propósito neste momento - replico. E como ele continua a protestar, levanto a mão contra ele, a fingir que lhe bato. Ele sorri do absurdo. Deixando-me decair para o inevitável, penso: «É esta a última vez que o vejo feliz.» Fecho a geniza e ponho a chave de novo na bexiga de enguia.

- Anda daí comigo! - ordeno a Farid.

- O que é que te passou pela cabeça? - pergunta.

- Caluda! Na cozinha, faço um ovo cozido, ponho-lhe sal e forço Farid a comê-lo com chá de buxo e lúcia-lima. Fico ali durante longos momentos, assistindo ao seu mastigar maquinal e aos seus arquejos agonizantes. Dou-lhe cinzas de carvão e mais líquidos até ver a barriga distender-se. Seguindo as minhas instruções, dobra as pernas contra o peito, enquanto eu lhe dou um bom clister de uma decocção de linhaça em água de aveia e outro de água de aveia com uma única gota de arsénico. Uma vez assim limpo, Cinfa traz-nos da cave um incenso especial de papoilas e cânfora, muito bom para adormecer. Farid espirra quando o inala e eu arrasto-o para o sono com as fábulas de Kalila e Dinina que minha tia Ester me contava quando eu era criança.

Depois de ter tirado de debaixo do colchão de Farid a sua adaga de Bagdad, comecei a trepar no ar fresco da sexta noite da Páscoa as ruelas íngremes de Alfama para encontrar Diego. Mas, antes de chegar à morada, avistei um homem de estatura gigantesca recortado na escuridão do outro lado da rua. Está encostado à parede esbarrondada da oficina do sapateiro, usa um chapéu de aba larga e uma capa escura que lhe esconde o corpo até às botas. Tem pelo menos uma mão a mais da minha altura, bem acima dos seis pés, uma altura que quase nunca se vê entre portugueses. O cabelo escorrido cai-lhe sobre os ombros. A mão direita empunha um chicote de couro cru. Só pode ser o tal homem do Norte de que me falaram. Levanta a cabeça subitamente e endireita-se assim que me avista. Trocamos um olhar em que sinto que ele sabe quem sou. Mas nenhum de nós faz qualquer movimento. Parece que mil perguntas me colam à calçada: estará ele aqui para matar Diego ou simplesmente à espera que ele lhe pague o prometido pela morte de meu tio? Que estará ele a pensar de mim?

Não permaneço ali para saber as respostas. Essas, devem-me vir do próprio Diego. Mas, naturalmente não deve estar em casa, senão o homem do Norte não estaria ali tão diligentemente à espera. Recuo e dirijo-me apressadamente para a Mouraria, olhando de quando em vez por cima do ombro para ter a certeza de não ser seguido.

Nas ruas nocturnas de Lisboa, escoam-se das janelas das tabernas e dos bordéis uma luz crua alaranjada. Sempre que ouço um ruído, o meu coração dá um salto, como que à procura de um refúgio secreto. É aquela parte da noite em que todos os sons e objectos parecem ter-se tornado em oráculos a anunciar a morte.

A mesquita secreta que Samir costuma frequentar fica no segundo andar de uma oficina de ferreiro, perto do antigo bazar mourisco. A grande porta de madeira, gravada com um motivo entrançado tem uma ferradura no meio a servir de aldraba. Na calçada em baixo, vê-se um tentilhão morto, com uma gota de sangue no bico. Depois de bater uma segunda vez, na janela de cima despontou a luz de uma candeia.

- Quem é? - ouve-se o cicio sibilante de uma mulher.

- Pedro Zarco. Procuro Mestre Samir. As portadas fecham-se com um estrondo. Instantes depois, um homem num camisão, de compleição delgada, os olhos furtivos de um asceta Sufi, aparece numa fenda duvidosa da porta. Alumiadas pela chama vacilante da candeia, as suas faces surgem cavadas debaixo da meia lua dos seus maxilares.

- Procuro Mestre Samir - começo -. Ele costuma vir...

- Quem é vocemecê? - pergunta ele em português, com uma voz profunda-, sonora, como se cortada em granito.

- Um amigo. Pedro Zarco. Vivemos um em frente ao outro. Se ele está cá, diga-lhe que...

- Não está cá - fala asperamente, como se ser visto comigo representasse um risco.

- Sabe onde é que ele foi?

- Quando as fogueiras começaram, dispersámo-nos. Ele correu para casa a ver Farid. Espere. - Fechou a porta e correu o ferrolho. Ouvem-se as passadas a afastar-se, depois a voltar apressadamente. Quando a porta se abre com um rangido, estende-me umas sandálias pendentes. - Samir foi-se embora com tanta pressa que se esqueceu delas - explica ele.

Ao perceber que o pai de Farid pode também estar morto, decido-me a estugar o passo para ir ter com a Senhora Tamara, à casa onde mora e onde vende os livros na Pequena Jerusalém, a ver se descubro mais alguma coisa sobre a história do Egipto» que lhe tentaram vender. Mas as minhas pancadas na porta não recebem qualquer resposta. Os meus pés levam-me de volta a casa. Sinto o meu corpo oco como uma caverna e o ar da noite ressoa-me dentro do peito como dentro de um sino de chumbo. Tenho de comer qualquer coisa e rezar a pedir a neza, a inesgotável resistência que a todo o momento emana de Deus para a esféra Terrena.

Chegado a casa, lavo o rosto, como um pouco de matza já atrasada e duas maçãs, sentando-me depois à lareira a entoar cânticos. Sobrepondo-se às minhas preces, a solidão e a sonolência descem sobre mim e apanham-me na sua rede. Subitamente, vejo diante de mim as mãos de meu tio, gesticulando atrás da lareira numa linguagem que não atinjo. O suor perla a minha fronte. Uma face inclina-se para mim. Alongada pelas sombras dançantes, arde com uma luz alaranjada. O meu coração dá um salto. Recuo e ponho-me em pé de um pulo.

- Berequias, trouxe comigo o homem de que te falei. - Ouço Diego, que me surge à luz da lareira. Estende a mão: - Este é Isaac de Ronda.

Respiro profundamente para me acalmar. Reparo que o guarda-costas de Diego está à entrada da cozinha de costas voltadas para nós. Isaac tem a mesma face descarnada, baça, de tantos mercadores cristãos-novos. Vestido com uma túnica escarlate, o cabelo que lhe dá pelo pescoço está coberto por um boné púrpura de crista de onde emerge uma pluma voltada para trás. Quando nos saudamos, ele fita-me ostensivamente nos olhos, como a tentar convencer-me do seu poder ou a acenar-me para a cama dele. Os camponeses têm muitas vezes este comportamento, e apercebo-me que também ele só há pouco tempo se deve ter metido em negócios com dinheiro.

A minha descida repentina do reino dos sonhos meio-acordados deixaram-me embotado. Acendo mais duas candeias em cima da mesa para ganhar tempo e recuperar da minha sonolência.

- Viste a minha mãe ou minha tia Ester? - pergunto a Diego, ainda confuso quanto ao tempo e ao lugar onde me encontro.

- De certeza que estão a dormir - diz ele - Não falta muito para ser madrugada, mas pensei que era mais seguro vir agora. Pensei que podias ainda estar acordado.

A luz das candeias tinham dado às nossas sombras proporções menos assustadoras, mais humanas. Convido os meus hóspedes a sentarem-se.

Um pouco de aguardente? Aceitam a oferta. Isaac ferra os lábios na taça, deita a cabeça para trás e emborca a bebida como se fosse água.

- Dores de dentes - diz ele - Alivia o sofrimento.

- Tenho ali óleo de cravo, se prefere - dígo eu.

- Obrigado, mas também trago algum comigo. - Mete a mão na bolsa e tira um frasco e esfrega o líquido nas gengivas. Tem as mãos finas, elegantes, com as unhas imaculadamente polidas. Pelos vistos, parece que só as mãos é que tiveram tempo de se adaptar à nova riqueza. Em breve, os seus lábios hão-de apren' der a acariciar o vinho no copo e a saudar, deixando a sua vontade pairar como uma pena de faisão numa brisa suave.

- Diego, onde tens andado? - pergunto -. Andei à tua procura.

- Estive com um amigo. Achei que era mais seguro do que ir para casa. -E era. O tal homem do Norte... Vi-o à porta de tua casa.

- Um homem do Norte? - pergunta Isaac num tom surpreendido.

- Loiro, alto, com um chicote de couro cru daqueles que fazem em Castela - replico.

É melhor não ir para casa - diz Diego com um encolher de ombros - Talvez se canse de esperar por mim e se vá embora.

- Que quererá ele? - pergunta Isaac. Diego ergue as mãos diante do rosto e estremece, fixa-me directamente nos olhos com uma expressão de terror.

- Suspeitamos que me quer matar. Deve ser algum inimigo que nós, os amigos de Mestre Abraão, arranjámos sem dar por ela.

Isaac brinca nervosamente com o cabelo que lhe cai sobre as orelhas.

- Fez-me pena saber da morte de seu tio - diz ele. Tem um sotaque pronunciado, uma voz profunda, lenta e rolada, como tantos dos seus conterrâneos.

- Disseram-me que tem para vender uma «safira» talhada por Judas HaLevi.

«Não descansarei até o sangue do profeta Zacarias encontrar repouso» - diz, parafraseando um dos versos mais famosos do poeta. E fita-me com um ar de desafio, que parece procurar compreender os meus próprios motivos.

- Meu tio estava interessado? - Pergunto, pensando como deveria considerar este Isaac de Ronda.

Muito - responde Diego.

Disse que ia ver se arranjava o dinheiro para me pagar nestes dias -acrescenta Isaac - Mas agora, eu...

- Como trouxe a safira para Portugal? - indago.

- Sempre cá esteve. Comprei-a a um amigo no Porto. Ia queimá-la. Não podia permitir tal coisa, como bem compreende.

- Se não a compras, Berequias, acaba por ir parar às mãos de alguém que não tem a mesma compreensão da sua importância - observa Diego.

- Então tu já não estás interessado - pergunta Isaac a Diego.

- Eu a bem dizer só estava interessado para ajudar Mestre Abraão até ele arranjar dinheiro suficiente. Por mim, prefiro manuscritos em latim. É muito mais seguro. Dou a vez ao Berequias.

- Havia mais alguém interessado no livro? - pergunto.

- Fiz vários contactos - replica Isaac - Mas não vejo ninguém disposto a fazer uma oferta.

- Nem sequer a Senhora Tamara, a livreira da Pequena Jerusalém? indago.

- Não quis saber dele para nada. Não está a comprar nada em hebraico, de momento. Nem sequer traduções. Depois do que se passou, compreende-se.

- Simão e outros - diz Diego - acha que podiam dar por ele um preço elevado noutro sítio qualquer. Em Génova, ou Constantinopla, ou Ragusa. Ou mesmo em Marrocos.

Simão Eanes, o importador de tecidos? - pergunto. Sim - responde Diego.

O meu coração balança-me de um lado para outro. Andariam eles à porfia, por causa dos livros? Seria isso? Nas minhas entranhas debate-se um desejo perverso, que me sobe à boca numa prece diabólica para que o culpado não seja Simão, e assim não me seja roubado o prazer da vingança. Diego bate-me no ombro e prossegue num tom melancólico:

- Custa a crer, todo este trabalho por manuscritos que ainda há pouco podíamos encontrar nas nossas bibliotecas. A nossa herança parece que está a cair em mãos privadas. Um dia, todos os nossos escritos estarão nas mãos de fidalgos cristãos e encerrados em cofres dourados ou em mostruários de vidro.

- Estou disposto a vendê-lo barato - diz Isaac, alteando o tom da voz como para me tentar - Ou até a fazer uma troca. Já me contentava com um candelabro de prata. Não quero perder mais tempo, para voltar para Ronda.

- Como compreende, não posso responder por nenhum acordo verbal feito por meu tio - explico - . Precisamos de tudo o que temos só para comer. Mas diga-me uma coisa, ele alguma vez lhe falou em quem o ajudava a comprar e a levar de Portugal os manuscritos?

- Vocemecê não sabe? - pergunta Isaac.

- Não. Meu tio não mo dizia, para o caso de o descobrirem. Quanto menos sabemos, melhor, era a opiníão dele.

inesperadamente, Farid surge na cozinha.

- Não fazia ideia... - desculpa-se ele com as mãos.

- Não faz mal - respondo - Senta-te connosco se te sentes com forças.

Diego e Isaac levantam-se e fazem uma vénia a Farid. Ele inclina a cabeça, deixa-se cair junto de mim e fica com a mão no meu braço.

- O meu amigo é surdo - explico - Mas pode ler nos nossos lábios, Não há nada do que me dizem que ele não possa saber.

- Parece-me que ainda não falámos dos métodos de seu tio - retoma Isaac. Levanta-se. O seu sorriso parece ensaiado - E se não está interessado em comprar o livro...

- Não.

- Nesse caso, parece-me que o nosso encontro chegou ao fim. Obrigado pela aguardente.

Chegado à porta, aferra-me o braço. Num brando sussurro, como quem procura induzir uma criança a adormecer, recita-me os versos de um poema de Moisés Ben Ezra: «A minha noite está mergulhada num mar de escuridão silencioso e sem ondas, um mar que não tem costa, nem porto para aqueles que vejam. Não sei se a viagem é longa ou curta. Como o poderia saber um homem oprimido pela mágoa?» E de modo que só eu o possa ouvir, murmura: «Coragem!»

A rara cortesia deste estranho de quem eu duvidava deixa-me agarrado à minha tristeza como um viúvo solitário. Assim que Diego e Isaac se foram levo Farid para a cama. Minha mãe dorme na cama de meus tios, enrolada num novelo, com uma respiração irregular. Das mãos caíra-lhe um boião rolhado@. Apanho-o das dobras do cobertor e deposito uma gota viscosa no dedo. Tem o gosto amargo de um extracto de meimendro e mandrágora. Para se libertar tanto das suas próprias portas como das de Lisboa, minha mãe tinha provocado o seu sono crepuscular próximo do transe. Talvez seja melhor.

Na cave, deparo com tia Ester ainda sentada à escrivaninha de meu tio, tal uma estátua, com Cinfa a tiritar a seus pés. Trago de cima um cobertor para tapar a menina. Os seus olhos revelam o abandono, o medo. Porém, ao tentar tocá-la afasta-se com irritação. No meu quarto, sentado na cama, rezo pelo regresso de judas são e salvo antes de ousar encaminhar-me novamente para a Pequena Jerusalém a ver se acordo a Senhora Tamara. Mas antes que eu consiga convencer as pernas a obedecer-me, o meu cântico é envolvido pelo sono e cai como uma manta de lã sobre mim.

Acordo na cama. Cego a tudo o que me rodeia. A escuridão em redor parece um esconderijo do mal. Sinto contra o meu flanco um encosto tépido. Estremeço. É Cinfa, com o rosto velado pelo cabelo. À medida que me recomponho, ela acorda.

- Onde vais? - rabuja ela.

- Vou falar com a Senhora Tamara.

- Não vás!

- Não há perigo - digo, acariciando-lhe o rosto - Não te aflijas. - Ela senta-se, enfia a cabeça debaixo da minha camisa, fazendo-me sentir o seu hálito quente, como costuma fazer desde pequenina para se refugiar. - Volto pouco depois de amanhecer. Lembras-te de quando eu te levava à loja da Senhora Tamara para leres «As Fábulas da Raposa» enquanto eu fazia as entregas da manhã?

Ela acena a cabeça contra o meu peito.

- Ainda havemos de voltar a fazer isso. Agora, enquanto estou fora, olhas-me pelo Farid?

Ela tira a cabeça para fora, pronta para a tarefa, como eu tinha pensado.

- E faço o quê? - pergunta.

- Dá-lhe mais chá de buxo quando ele acordar. Está na cantarinha azul da mãe. E dá-lhe um ovo se ele puder comer. E lava as mãos a seguir com sabão.

Cinfa acena pensativamente, põe-se em pé em cima do colchão. Erguendo-se acima de mim, mostra-me uns olhos cientes, de adulta, com o ar grave de minha mãe. Será que secretamente a menina me odiará por estar assim a roubá-la à sua infância?

Lá fora, o alvorecer da quinta-feira ergue-se sobre nós. O carro do Sol começou já a subir no céu. Quando atingir o horizonte a ocidente, rogará à sétima noite de Páscoa que proteja a humanidade com a sua descida abençoada. A caminho da morada da Senhora Tamara, paro junto das lojas dos cristãos-novos na Rua dos Douradores para ver se passou alguém a tentar vender as folhas de ouro ou o lápis-lazúli roubados. Ao bater às portas, sou recebido por viúvas e orfãos recentes que me beijam e apertam as suas mãos nas minhas, como se eu tivesse o poder de convencer Deus a trazer-lhes de volta os seus entes queridos. Nestes últimos dias não passou ninguém a oferecer ouro ou lápis-lazúli, mas prometem manter-me a par, quando me liberto dos seus braços para me despedir. Entorpecido, com medo de me ver arrastado para grandes emoções, afasto-me em direcção ao nascente.

Quando toco a sineta da Senhora Tamara, ouço-a gritar: «A tinta está quase seca!» É o seu modo antigo de dizer que não demora. Ouve-se o correr de meia dúzia de ferrolhos. Uns olhos pálidos a encimar grandes olheiras espreitam por uma frincha da porta.

- Berequias! A Senhora Tamara mostra-me um sorriso- desdentado, desenfia a última corrente e puxa-me para dentro, como um catraio que quisesse arrastar o pai a ver um tesouro. A sua face mirrada é emoldurada por uma cabeleira grisalha.

- Deixa-me ver-te bem! - exclama, recuando em passinhos de rato e piscando os olhos para me fixar, enrugando as suas pálpebras pesadas. O buço escuro sobre o lábio superior eriça-se enquanto ela, ofegante, me diz: - Vê se vais ao barbeiro e se dormes um pouco - e volta o rosto de lado para um beijo.

Acordei-a? - pergunto. A mim? Estás a brincar?! Uma velha como eu nunca dorme profundamente - abana a mão amargamente - É a maldição da velhice, todas estas lembranças a chocalhar mantêm-nos longe do sono!

- Então onde estava? Vim cá a meio da noite e ninguém respondeu.

- Na porta ao lado - replica -. A dormir com uma vizinha. Nos dias que correm, um judeu que ainda se arrisca a dormir sozinho está a pôr um pé na cova!

Falamos da minha família. Suspira ao saber da morte de meu tio. «Anda! convida ela, propondo-me o banco junto à lareira. «Senta-te nesse mocho.» Mostra-me um rosto severo, mas distante como se procurasse conciliar esta morte com a ideia da presença de Deus. Com mãos trementes, põe de lado um tratado latino sobre flores que devia estar a ler Conduz-me ao meu lugar, acende duas velas nos braços de uma menora de prata com sete braços. Manuscritos em diferentes estádios de ruína alinham-se em estantes que se erguem até ao tecto, e formam torres vacilantes no chão. Puxa uma cadeira para junto de mim e senta-se com as mãos no regaço como que a espremer a força que lhe falta para evitar as lágrimas. Tanto ela como a sala tresandam a velino e ao cheiro particular que os livros antigos têm, talvez por as janelas se manterem sempre fechadas para evitar que se estraguem os seus livros gregos, romanos, bizantinos, persas e europeus. Como eu adorava a oculta estranheza desta loja quando era criança, como se ela albergasse a minha herança.

- Não passava de uma criança - diz ela com uma energia inesistente.

- Quem? - pergunto.

- O catraio que veio cá vender-me a Haggada de teu tio.

- Tinha algum sotaque?

- Não, era de Lisboa.

- Moreno?

Inclina-se para mim, as queixadas a remoer. O cheiro intenso de cardamomo paira em torno dela; está a mastigar sementes.

- De pele clara - diz - Miúdo, magro. Com cabelos rebeldes. Como cardos - roda em torno da sala como uma galinha, pega em papel, num aparo de junco, num tinteiro, depositando-os à minha frente - Começa a desenhar, Beri - diz ela, e posta-se como um mestre da Tora atrás de mim, sobre o meu ombro, enquanto me orienta o meu esboço: - Não, não, o nariz mais fino, as narinas como as hastes de uma lira, muito elegantes, percebes? E os lábios mais cheios, como se estivesse amuado. Mais curvos... mais forma... - Aperta-me o músculo tenso entre o pescoço e os ombros sempre que apanho qualquer pormenor e sussurra «perfeito!», como se desenhasse a palavra em fio de seda. Algum tempo depois, retira a mão satisfeita com o resultado.

- E as roupas? - pergunto.

- Pobres. Um pacóvio maltrapilho. O género de rapaz que anda pelos cais a apregoar esparto. Disse-me que vinha vender a Haggada para o amo. Dei-lhe um livro de fábulas para ele ver enquanto eu a examinava. Mas o desgraçado não sabia ler. - Franze as sobrancelhas como se não saber ler fosse um pecado cristão demasiado grave para poder ser tolerado. Conduz-me à porta com a sua mão na minha. - Desculpa, devia tê-la comprado. Mas deu-me um rompante e desatei aos berros como um papagaio! Sabes bem como eu sou! - Obriga-me a baixar-me para ficar com o rosto perto do seu, e fala com uma voz conspirativa. - Berequias, depois disto tudo... Quando achas que El-Rei D. Manuel ganha juízo e nos autoriza outra vez a ter livros judeus?

- Nunca mais - respondo.

- Então vou ter de me dedicar também a desviá-los - conclui ela num sussurro.

- quando descobrir como meu tio o fazia, digo-lhe. Enrolo o desenho e meto-o na bolsa. Damos um beijo de despedida. já na rua, ao olhar os telhados fulvos que se avistam à distância, ponho-me a imaginar quem poderia ser tão ousado ou tolo para mandar um mocinho iletrado vender uma Haggada roubada a uma livreira experiente da Pequena Jerusalém. O murmúrio da voz de meu tio ergue-se de um remoínho de poeira, ecoando o nome don Miguel Ribeiro, o nobre para quem minha tia Ester tinha há pouco copiado um "Livro dos Salmos". Quando pergunto «Ele, porquê? chega-me a resposta: exactamente porque os actos de um fidalgo português não podem ser postos em causa por um judeu.

Atravessara Rua Nova d'El Rei é um inferno, com o fedor a suor dos vendilhões e dos animais e das especiarias. Abro caminho por entre a turba rumo à Rua dos Douradores e viro em direcção ao solar de Miguel Ribeiro. No exterior perfilam-se dois guardas de armadura, com as alabardas empunhadas por mãos enluvadas. O mais baixo dos dois, um homem de ar doentio com um lábio leporino, segue-me com um olhar suspeitoso. Planto-me em frente dele e peço-lhe: «Vai dizer a teu amo que Pedro Zarco lhe quer falar.» Chamam um lacaio negro de cabeça rapada para levar o recado lá dentro. Volta a trote.

O guarda abre o portão. Nos degraus da frontaria, um criado atarracado, de cabelos oleosos, acobreados e uma testa suada cheia de borbulhas corre para mim. Usa perneiras azuis demasiado apertadas para as suas nádegas carnudas e o gibão de brocado verde está rasgado na gola. Toma-me pelo braço, como que a defender-me do perigo. De perto, apercebo-me de que o seu pescoço gordo tem umas arranhadelas abertas e vermelhentas. Estará atacado de sarna? Cheira a metal, como uma velha moeda. Talvez ande a tomar pílulas de antímónio, um tratamento receitado a torto e a direito pelos doutores cristãos feitos à pressa.

- Para dentro... Para dentro! - sussurra, agitando vivamente as mãos. Introduz-me numa sala de espera abobadada, pintada com frescos de deuses e deusas rosados num estilo florentino, depois observa-me de cima a baixo COM um ar extasiado, e olhos maliciosos. Num murmúrio conspirativo, pergunta-me:

- Deus é realmente um boi?

- O quê?

- O deus dos judeus é um boi? - Forma uns cornos sobre a cabeça com as mãos, fala como se eu não compreendesse o português. - Sabe?... O macho da vaca... O marido da vaca... Boi.

Já tinha ouvido falar de mestres de Coimbra que acreditavam que tínhamos caudas preênseis, de bispos de Braga que clamavam que usávamos sangue fresco de crianças cristãs nos nossos rituais da Páscoa, de doutores do Porto que diziam que tínhamos um odor idêntico ao da carne podre de baleia, o foetor judaiCus. Mas a crença de que rezávamos a um boi era uma calúnia nova. Só algumas semanas depois compreendi a origem de tal desacerto: o criado tinha confundido a palavra «touro» com «Tora». Limitei-me a dizer-lhe:

- Vai chamar o teu amo. Ele sabe quem eu sou. Ele limpa a fronte com a manga e diz numa voz premente:

- Não sabe onde ele está? Ele disse que precisava de encontrar Mestre Abraão Zarco. É o seu tio, não é?

É. Então devia sabê-lo. Estou-lhe a dizer que não - replico - E não creio que possa encontrar o meu tio. Morreu.

- Oh, meu Deus - diz, levando as mãos à cabeça.

- Que foi? - pergunto. Ele olha-me implorante e sussurra:

- Dom Miguel não aparece desde domingo. Ele tinha falado no nome de seu tio. Pensei que...

- Não o procuraram?

- E sair? Sair desta casa?! - o criado passeia na sala, aperta as mãos juntas, cruza e descruza os braços.

- Quando foi a última vez que o viu? - pergunto.

- Oh, meu Deus... No domingo à tarde. Estavam a começar os motins. Vieram cá uns homens à procura de marranos. Ele falou com eles e depois foi para Benfica. Tem lá uns estábulos. Mas desde então nem uma palavra. Não me parece que lá tenha chegado.

- Quem estava com ele?

- Ninguém. Mandei lá um homem. Mas ninguém o viu. - Começa a mexer no pescoço e desata a coçar com a ferocidade de um gato uma cicatriz irritada. Baixa-se como se se preparasse para aliviar as tripas ali mesmo no assento das calças e continua a coçar-se. - Se ele fosse judeu, ainda compreendia - resmunga -. Mas ele está inocente! Completamente inocente!

Lembro-me do comentário de meu tio sobre a aliança de Dom Miguel com o Senhor. Aparentemente, nem sequer o seu pessoal sabe que ele é um judeu secreto.

- Vai para o diabo que te carregue, seu campónio ignorante! - digo-lhe, voltando-me para sair. O criado endireita-se num pulo e agarra-me pelo braço. Sacudo-o. Furioso, os olhos saltam-lhe das órbitas como um peixe e lança-me com um silvo:

- Pois, tu és um deles! Até à ponta dos cornos!

- Não tenhas medo que não te vou mandar para o nosso deus touro digo-lhe com um riso escarninho.

Arqueia o dorso numa pose de comando, acima do seu nariz achatado olha-me de baixo: - Fora daqui, marrano! - grita numa voz arrogante. Mas sinto-me acima do desagrado de qualquer mortal. Quando lhe volto as costas, volta a chamar-me com uma voz aterrorizada:

- Não te vais embora, pois não?! Observo os seus olhos suplicantes. Está de novo agachado, a coçar o pescoço, que agora começa a sangrar. Olho-o de uma distância que, para minha surpresa, não me permite nenhuma simpatia pela angústia de um cristão.

A estrada de Benfica contorna a pedreira de Campolide, onde centenas de africanos de olhos amarelados extraem pedra de encostas esventradas. Tinham-se formado duas classes de escravos: os portadores, com cestos de vime atados às costas, que gemiam e se arrastavam sob o carrego de pedras; e os picadores, de ombros largos e músculos ágeis, que com as suas mãos rosadas empunhavam os cabos dos alviões que a pouco e pouco iam abatendo as colinas. Uma terceira classe vivia num nível mais baixo: as lebres, uns rapazitos escravizados, extremamente rápidos, que limpam os detritos e os retiram da área de trabalho em cestos de junco.

No largo principal de Benfica, uma mulher de idade, de olhos murchos e embrulhada numa mantilha negra, vende marmelada na escadaria da Igreja de São Domingos.

- Sabe onde são os estábulos de Dom Miguel Ribeiro? - pergunto-lhe.

- Nunca ouvi esse nome - replica.

- O ferreiro do sítio deve saber - digo eu - Podia dizer-me onde é que ele trabalha?

Ela aponta para o fundo de uma rua, para uma barraca coberta de pó e cacareja: - Então é o basco que você quer, é isso! - curva os ombros e ri-se sozinha como se lhe tivessem contado alguma indiscrição.

Um burro com um ar infeliz está preso à pega da porta da barraca. As moscas zumbem numa nuvem em torno de uma ferida assanhada no focinho do pobre animal. No interior, um gigante de cor pálida com um cabelo negro espesso e braços como ramos de carvalho está a dar ao fole, do tamanho de uma carruagem. Como única indumentária, umas sandálias e um avental comprido de Couro, que deixa à mostra dos lados as suas pernas possantes e mesmo as nádegas. A boca cilíndrica do fole brilha incandescente quando entra na forja. O ar cheira a fumo e a trabalho árduo. Dou uma tossidela para chamar a atenção do ferreiro e para lhe perguntar: «Sabe quem é Dom Miguel Ribeiro? Disseram-me que tem uns estábulos para aqui ... » Ele volta-se e com um sotaque basco cerrado inquire: «Quem o quer saber?» O encordoado de uma cicatriz percorre-lhe o rosto do lado esquerdo desde a orelha, do queixo pendem-lhe gotículas de suor, que, uma a uma, pingam para o chão.

- O meu nome é Pedro Zarco - digo - Trago um recado de Lisboa para ele. Da irmã dele.

Ele afasta-se e volta ao seu trabalho. Numa voz irritada, responde:

- Se trabalha para a irmã dele, então deve saber onde é que ele mora.

- Ela sofre de cataratas desde pequena e não me soube descrever o caminho.

A minha dificuldade em mentir de modo convincente está implícita no ar paciente e resignado com que ele baixa os braços e limpa o suor das mãos no avental.

Não é preciso ver para saber o caminho para os estábulos do irmão. diz ele.

Oiça, ela veio de Coimbra depois dos motins e está aflita. A única coisa que ela sabe é que o irmão está por aqui por Benfica. Tenho de lhe mostrar a minha árvore genealógica só para me responder? Ou bastará ver-me os dentes?

Ele solta uma boa gargalhada, mira-me de alto a baixo:

Nunca lhe disseram que é um rapaz bastante bem parecido? - Afasta as pernas, inclina-se para trás e com a sua mão enorme agarra as suas partes por baixo do avental. Enquanto vai fazendo estes tagatés, o seu olhar de lado revela claramente o que pretende. - Por um preço jeitoso, pode ser que lho diga.

- Por um preço jeitoso posso eu comprar a informação a outro.

- Tenho aqui um pássaro bem jeitoso - diz ele com um riso, que deixa à mostra os restos de uns dentes acastanhados - Grande como um corvo. E se visse a maneira como ele beija as faces traseiras! Acho que ia gostar, jovem amigo!

- Tenho um amigo que talvez gostasse. Mas eu não estou interessado. Ele desaperta o avental e atira-o para o lado. Por baixo, está completamente nu, todo suado, todo pêlos e músculos. O seu membro viril desponta erecto do seu ventre, grande e redondo como um rolo da massa.

- Podia ter-te sem a tua permissão - diz ele, como quem me concede uma advertência. Os olhos brilham-lhe com a antevisão tentadora.

- E eu podia cortar-lha - digo, exibindo a adaga de Farid. Ele ri-se, insinua-se para diante como um animal furtivo, passa o dedo convidativamente ao longo da cicatriz da cara.

Como sabes que não ias gostar, se nunca provaste? - pergunta.

O meu coração começa a bater num código de medo, à medida que recuo.

Provei uma vez, com o tal meu amigo. Mas prefiro outro género de relações. E faço muitíssima questão em ter o meu traseiro numa única peça, se não se importa.

Não sorri, mas leva os dedos aos lábios e molha-os de cuspo. Recuo para a porta aberta. Tentando seduzir-me com a sua luxúria, começa a afagar o seu membro viril. Eu canto: «Abençoado seja Aquele que me permitiu escapar dos sátiros» e corro para fora. Olhando para trás, avisto-o ao lado do burro, revelando ao pobre animal e a uma boa parte de Benfica as suas partes íntimas.

De regresso ao largo principal, não consegui saber nem de um vendedor de sabão nem de um cesteiro onde Dom Miguel Ribeiro tinha os cavalos. «Ninguém se importa com o ferreiro andar assim a exibir-se?» - pergunto-lhes, apontando para o fundo da estrada poeirenta. «É bom para o negócio - comenta o vendedor de sabão - Vem gente de todo o lado para o ver. Todos dizem: o ferreiro basco tem um falo que é maior que o de um cavalo!» Um vendedor de carqueja junta-se à conversa e informa-me que há vários estábulos no correr da estrada de Sintra. Dirijo-me pois para lá, e, depois de uma enfiada de moitas de sumagre, vejo surgir uma capela da Virgem Maria a abrir uma estrada empoeirada para norte. Uma mulher toda entrapada de negro reza de joelhos à imagem condescendente. A criança nazarena, nos braços de Maria, tem um ar frágil e solitário. A suplicante volta para mim um rosto delicado que revela a sua afabilidade: «Santo António rezou aqui uma vez» - diz ela.

Se fôssemos a somar tudo o que os cristãos afirmam sobre o seu Santo António, havíamos de chegar rapidamente à conclusão que ele cobriu com os seus joelhos um território mais vasto que o percorrido pelos barcos de Bartolomeu Dias, Vasco da Gama e Colombo todos juntos. «Então é um lugar sagrado - replico numa voz suave, benzendo-me. «Diga-me, minha senhora, sabe onde é que Dom Miguel Ribeiro terá os estábulos?»

- Acho que é mesmo ao fundo desta estrada - responde ela, apontando para norte - Para a esquerda aí a umas duzentas jardas. Passa-se primeiro o ribeiro onde há anos se afogou o filho do Melo durante as cheias, depois há aqueles gobos de granito que o padre Vasco diz que eram um templo das bruxas nos tempos antes de Ele nascer. É logo a seguir.

Benzo-me de novo e agradeço-lhe. Passo os sinais de que ela falou. Chega-me um cheiro húmido e pútrido. Torna-se cada vez mais insuportável, depois de passar a sombra nodosa de um roble gigantesco onde gravaram a caveira de olhos vazios que de costume se pinta nas casas dos leprosos, De súbito, uma lebre passa disparada por entre os meus pés. Com os sentidos concentrados no presente, tropeço numa roda de carroça no meio da estrada. Num dos lados, do caminho, um laranjal dá lugar a um pasto e avisto finalmente os estábulos, seis arcadas flanqueando uma casa de quinta caiada a branco e azul. No muro baixo que bordeja a propriedade, uma cancela de madeira franqueia a entrada e gira com um rangido quando a empurro. A meio do caminho imundo, chamo em voz alta: «Dom Miguel! Sou o sobrinho de Mestre Abraão! Venho por bem!»

A minha voz parece cortar perigosamente o ar fétido. Apenas o monótono rufo do martelar de um pica-pau ao longe ousa insinuar-se no silêncio reinante. Atravesso o campo seco fronteiro aos estábulos lutando contra a vontade de vomitar, respirando o menos profundamente possível. Todos os telheiros estão vazios, com excepção de um, onde se encontra a fonte do fedor, um cavalo de olhos arrancados comido por uma vaga fervilhante de vermes.

A porta da entrada da casa está fechada. Quando toco a aldraba, chega até mim uma voz abafada. A minha mão desliza a abrir a minha bolsa, acaricia o punho da adaga de Farid. A porta abre-se e um homem descarnado, de nariz curvo, com uma capa de linho áspero dá um passo para fora e aponta-me uma besta ao coração.

- Cristão velho ou novo? - pergunta.

- Velho - respondo. Surgem mais dois homens de dentro de casa. Braços agarram-me por trás, uma dor lanceia-me o ombro.

- Fideputa! - cospe-me uma voz ao ouvido.

- Se a minha mãe fosse uma zonà, andava muito mais bem vestido! replico, dizendo a palavra «puta em hebraico.

- Como é que disseste? - diz o homem descarnado, baixando a besta e aproximando-se.

As franjas azuis e brancas do seu xaile de orações pendem-lhe sob a capa. - O seu tzitzit está-se a ver - digo - Assim não vai enganar muita gente.

- Não quero enganar ninguém - diz ele. - jacob, deixa-o. Uma vez livre, saudamo-nos um ao outro e trocamos nomes.

- Ando à procura de Dom Miguel Ribeiro - explico - São estes os estábulos dele?

- São - responde, apontando com o braço para a porta. Lá dentro, um homem pouco mais velho que eu, de cabelo espetado e uma barba de vários dias a sombrear-lhe a cara, está sentado no chão ao fundo da entrada. Usa um gibão de brocado azul aberto no pescoço, calças de montar de couro dobradas na anca e umas botas alentejanas das mais grosseiras. Uma delas sem tacão. Com uma aceno de saudação, levanta-se e dirige-se para mim, manquejando ligeiramente por causa da bota sem salto.

- Dom Miguel Ribeiro? - pergunto.

Faz um gesto de confirmação. Vou para me apresentar, mas o guarda de nariz aquilino que empunhava a besta, e que agora se encontra a meu lado, exclama:

- É o sobrinho de Mestre Abraão Zarco! Dom Miguel abre os olhos desmesuradamente e pega-me nas mãos. Sinto o seu toque gelado.

Entra! - diz ele, a voz tremendo-lhe de impaciência. Conduz-me para uma cozinha aquecida onde paira o cheiro de carne grelhada e sentamo-nos os dois a uma mesa de granito junto da lareira de brasas crepitantes. - Onde está o teu tio? - inquire ele.

Quando lhe conto o que se passou, volta-se para a parede e benze-se.

- Para que é que ele o foi visitar há pouco tempo? - pergunto. Mas Dom Miguel continua a desviar o olhar.

- Talvez seja a falta de sono, mas ando confuso - acabo por dizer - Sabe que é judeu? Ou pelo menos que meu tio assim o considerava? Isso tinha alguma coisa a ver com a tal visita?

O fidalgo parece subitamente sobressaltado e pega num odre de vinho de cima da lareira. Enche duas taças de barro e mistura um pouco de água em ambas. Passa-me uma delas e diz:

- À tua saúde! - quase esvazia a taça de um só gole e deixa-se cair pesadamente na cadeira - Bebe! - convida-me ele com um gesto da mão, citando seguidamente um poema hebraico famoso - «Bebe ao longo do dia todo, até que o dia se desvaneça e o sol banhe de ouro a sua prata.» - Vendo-me beber um gole, observa: - O vinho é ainda a única coisa que me permite continuar. já deve ter substituído todo o meu sangue - E respondendo ao meu olliar interrogativo, prossegue: - Não, não acho que seja judeu... ainda não, mas estou a aprender. E de facto essa era uma das razões para a visita de teu tio.

- Não percebo bem.

- Nem eu - ri-se ele numa risada isolada, irónica - Para termos a certeza tínhamos de perguntar outra vez ao teu tio. E isso agora é impossível. Mas pelo que ele me disse, nasci em Ciudad Real de pais judeus. No ano de 1482. - Fez estalar os dedos - Foi como ganhei dois anos. Um milagre da sorte. Disse-me o teu tio que em 1484 os meus pais foram queimados no segundo auto-de-fé realizado em Ciudad Real - engole as últimas gotas da sua taça, coça a barbicha do queixo - Tinham sido considerados «negativos» por se terem recusado a confessar os nomes de outros judeus secretos. O teu tio, disse ele, tinha tudo arranjado para me trazerem para Portugal às escondidas. Parece que tinha andado a estudar com o meu pai, conhecia bem os meus pais. Disse-Me que a minha mãe o forçou a jurar que eu seria educado como um verdadeiro cristão, e que nunca me revelariam as minhas verdadeiras origens a não ser que algum dia mais tarde se tornasse absolutamente essencial. O teu tio disse-me que a atitude dele em relação a mim nessa altura era «Uma vez que te vais tornar num deles, ao menos que aproveites com isso o mais possível». Por isso ficou à espera até saber de uns fidalgos que não tinham filhos, que queriam um menino para lhes herdar os bens e que não punham muitas perguntas a saber as razões da minha circuncisão. Só há uma semana é que soube disto tudo, quando o teu tio foi a minha casa para me informar que o «Livro de Salmos» que a tua tia andava a copiar para mim estava quase pronto - Dom Miguel serve-nos mais vinho - Deu-me uma carta assinada por quem me serviu de pai, como prova.

- Porque acha que meu tio, depois de tantos anos, só agora lhe contou? pergunto.

- Não sei. - Inclina-se para mim e fixa-me nos olhos como se procurasse obter uma resposta tranquilizadora. Eu encolho os ombros, incapaz de lhe responder. Arrota ruidosamente e afasta o seu olhar. - Berequias, pensei muito nisto - diz ele sem se voltar - Achas que ele sabia que os cristãos iam desatar a matar os judeus de Lisboa ... que estava preocupado pela mínha segurança?

- Ele possuía poderes, mas eu ... Um calafrio serpenteia pela minha espinha acima, impondo silêncio às minhas palavras. Dom Miguel levanta as mãos como a evitar entrar no perigoso terreno da profecia.

- De qualquer modo, perdi a calma. Depois desse tempo todo, descobrir aquilo... Agora gostaria de ter a possibilidade de lhe pôr mais algumas perguntas. Não sei se estás a ver, quando penso no caso, não duvido da palavra dele. Suponho que agora nunca mais poderei saber nada sobre os meus verdadeiros pais. É engraçado como é que a compreensão às vezes chega um pouco tarde de mais - mais dois goles e a sua taça fica vazia mais uma vez -. Anda- diz ele, levantando-se -. Estão ali umas pessoas que gostava de te apresentar.

Observando os seus olhos ébrios, compreendo que meu tio presenteou este jovem fidalgo com uma verdade terrível. Seria a morte a sua punição por ter destruído uma ilusão?

- Mas antes, só umas perguntas - digo.

- Como queiras - diz, com uma vénia, como se fosse um criado meu.

- Disse-me que ficou furioso quando ele lho disse começo eu.

- Fiquei. Tu não ficavas? - replica ele.

- Por agora, Dom Miguel, o que eu possa responder é irrelevante. Onde estava no domingo quando começaram os motins?

Ah, estou a ver onde queres chegar - finge arrancar uma flecha espetada no peito, e ri-se com vigor exagerado -. Muito bem. Estava em casa. Depois, quando os dominicanos começaram as fogueiras no Rossio, vim para aqui. Berequias, acabavam de me dizer que era judeu. Se fosses tu, Não...

- Quem veio consigo?

- Ninguém.

- Então, não há testemunhas que possam confirmar o que me disse. Dom Miguel sorri, endireita-se e desata os atilhos fortes da braguilha de couro com a inépcia própria de quem tem o estômago afogado em vinho. Põe à mostra o seu membro, levanta a sua ponta circuncidada, como se me oferecesse uma rosa e diz:

- Este pode servir de testemunha!

- Não é o bastante. Esse não fala. Dom Miguel ri-se, um riso que lhe sobe das tripas. Rolo os olhos com a tolice deste bêbado. Despreocupadamente, começa a apertar o cordão da braguilha, os olhos piscos fixos nos dedos embaraçados a cumprir a tarefa. Seguidamente, deixa-se cair na cadeira com um grande suspiro, fita-me com uma expressão ansiosa durante um longo momento, como se tentasse penetrar nos meus pensamentos. Tudo neste fidalgo devasso me irritava. O que mais me desagradava era ele não ter nenhuma ideia de quem era realmente. Como disparado por uma flecha, ocorreu-me um pensamento: «É este o homem a quem meu tio se referia quando me disse para me precaver de um portador que não se rcconhecesse a si próprio de um dia para o outro.» Dando um pulo, gritei-lhe:

- O que o poderia impedir de matar meu tio com toda a impunidade, sendo um nobre como é?

- Ouve, meu amigo - começa ele - Achas que ia matar o único homem que me poderia dizer a verdade sobre os meus pais? Se pensas uma coisa dessas, és parvo!

- Meu tio era o único que sabia que era judeu... que o podia provar! Bastava matá-lo e a sua vida secreta ficava a salvo!

- Berequias, será preciso mostrar-te outra vez a minha aliança com o Senhor? Além disso, havia outros que também sabiam. Um rapaz que cresceu com criados... o povo vê. Não falam nisso, mas vêem. De facto, a aliança é uma prova mais certa que todos os arquivos reais - levanta-se, bate com o punho na mesa -. Não matei o teu tio! Se tivesse sido eu, então porque não te mataria agora a ti?

A isto, não tenho nada de jeito a contrapor.

- Anda daí! - diz ele - Quero mostrar-te uma coisa. Dom Miguel conduz-me a uma sala cheia de gente. Homens com olheiras, mulheres e crianças que me dirigem acenos solenes de saudação. Despontam sorrísos fugidios, que logo secam e se desvanecem. O meu anfitrião diz-me num sussurro:

- Não tens nada a temer, somos todos cristãos-novos aqui - e dirigindo-se a eles, anuncia: - Este é o Berequias, um amigo da Judiaria Pequena.

Um homem moreno, de olhos amendoados, com uma barba descuidada salpicada de flocos de aveia, levanta-se e pergunta:

- Conhece a Mira e a Luna Alvalade? Devem viver perto de si.

- Conheço, mas não as vejo há algum tempo - replico.

- São minhas primas. Elas... Eu... - as palavras apagam-se na sua garganta.

- Assim que voltar a Lisboa, vou ver como estão e mando-lhe dizer por Dom Miguel.

- E o Doutor Montesinhos? - pergunta uma formosa mulher com um xaile de renda castanho-avermelhada protegendo-lhe a cabeça.

- Lamento dizê-lo, mas morreu.

Com vozes trementes, quase todos eles acabaram por reunir a coragem para perguntar pelos seus amigos e familiares. Fui dando as informações que possuía e gravando na minha memória de Tora os nomes, para tirar inculcas sobre eles quando desembarcasse finalmente nas margens da vingança. Dom Miguel toma-me pelos ombros e sussurra-me:

- São todos de Carnide, da Pontinha e das aldeias vizinhas. Quando os motins estalaram, vieram para aqui à procura de refúgio. Fiz saber em redor que não recusaria ninguém e armei alguns dos homens assim que cá chegaram.

E aquele cavalo nos estábulos? - quero eu saber. É para desencorajar os curiosos e os atrevidos - ri-se ele - Assim como a caveira no carvalho. - Volta a arrotar. Bate no próprio peito. Estende a mão a mostrar os seus hóspedes e abana a cabeça. Chega-se ao meu ouvido e cicia-me: - Não querem ir-se embora. Um destes dias, se calhar, vou ter de os pôr a andar.

- E já acabou a mortandade em Lisboa? - pergunta inesperadamente uma rapariga de ar vivo.

Por instantes, foi como se Deus a tivesse escolhido para me pôr tal pergunta; a sala torna-se estranhamente silenciosa. Era como se nos tivéssemos tornado numa congregação reunida à espera de uma resposta do próprio Deus.

- Está razoavelmente segura - respondo. Bem sei que não é esta a resposta que pretendem, mas é o que posso arranjar.

- O que é que razoavelmente quer dizer hoje em dia?! - pergunta num tom irado o homem de barba hirsuta.

- Tão segura como o vai ser durante uns tempos - replico - Tão segura quanto o mundo o pode ser para os judeus até à vinda do Messias.

Um murmúrio percorre a sala, como se agora tivesse dado a resposta correcta. E então se a nossa fé na Sua vinda não for mais que a esperança dos eternos náufragos?

Dom Miguel e eu instalamo-nos num tapete perto da lareira enquanto os hóspedes voltam às conversas entre si.

- Se tivesse matado o teu tio - sussurra ele - achas que me punha a salvar toda esta gente?

- Para expiar o pecado de ter matado seria capaz de salvar todo o povo de Israel - replico.

Fecha os olhos com força, como quem procura ignorar o mundo. Compreendo que o feri. Mas no estado em que me encontro a angústia dos demais pouco significa para mim e qualquer que seja a simpatia que ainda me palpita no coração não vai além da minha voz.

- Meu tio escreveu-lhe uma carta - digo secamente - Levei-lha ao seu palácio na sexta-feira, mas tinha saído. Ele disse-me para só a mostrar a si.

O meu anfitrião abre os olhos. Estão vermelhos e cansados.

- Ele disse-te o que lá estava escrito? - pergunta-me num desencantado tom monocórdico.

- Trago a carta guardada na memória - respondo, e repito-lha palavra por- palavra.

Inexplicavelmente, assim que acabei ele soltou uma gargalhada que lhe saía das entranhas.

- O teu tio perguntava se eu estaria interessado em entrar num negócio com ele - exclama. Fixa-me como se de repente a minha presença o surpreendesse. É verdade que és donairoso. Seria dificil dar-te uma recusa. Era esperto,

O teu tio. A pergunta dele tinha alguma coisa a ver com encomendas. E com o anjo Metraton referido na carta. E viagens a Génova, acho eu. Algures na península itálica. Estou certo de ter respondido que não, mas nem sequer me lembra o que ele me propôs. O meu espírito corria entre o passado e o presente. Havia tantas coisas que começavam a fazer sentido - agarra-me pelos ombros - Berequias, sabes como é quando a certa altura deixas de traduzir uma língua estrangeira na tua cabeça e começas a compreender as palavras sem teres de pensar - Era a mesma coisa. De um momento para o outro compreendia a frieza dos meus pais adoptivos, as suas reticências em viajar comigo, os sussurros abafados atrás das portas fechadas assim que me deitavam.

- Então quando os motins estalaram...

- Entrei em pânico. Quer dizer, mal tinha acabado de descobrir que era judeu, começaram aquelas fogueiras no Rossio a erguer-se sobre os telhados de Lisboa. Até parecia que as tinham acendido por minha causa. Como são estranhos os nossos sentimentos quando o passado deixa de nos pertencer... quando mudou e a nossa história foi reescrita. Por isso é que me escapei para cá.

O meu tio falou em mais alguém quando falou consigo... noutros nomes?

Dom Miguel abana a cabeça com exagerada energia.

- Ninguém? Um frade... outros judeus? Pense bem.

- Eu não estava muito atento. Queria que eu fizesse umas viagens para ele. Com as minhas relações, não me é difícil viajar. Para lhe levar umas encomendas. Ah, era isso mesmo! Servir de correio... era isso que ele pretendia de mim.

- Foi essa a apalavra que ele usou, correio? - pergunto.

- Foi.

- E o que é que ele queria que levasse?

- Anjos - responde Dom Miguel com um sorriso - O teu tio disse-me, lembro-me agora, que era para levar anjos para um lugar seguro. Não faço ideia do que queria dizer com aquilo.

- Manuscritos judaicos - respondo - Provavelmente não queria dizer-lhe toda a verdade até descobrir como se sentia por ser judeu.... se a sua fidelidade poderia falhar.

- Não percebo... anjos... livros?

- Os livros são criados por letras sagradas. Tal como o são os anjos, há quem diga. Deste ponto de vista, através da janela da Cabala, digamos, um anjo não é mais do que um livro a que foi dada a forma celeste... a que foram dadas - asas, para usar uma metáfora corrente. Ao que parece, era a si que iria caber a tarefa de salvar das chamas esses manuscritos alados. Meu tio não queria chamá-lo de passador e usou uma palavra mais agradável, correio. O que suponho que quer dizer...

As minhas palavras abriram-me o caminho para uma melhor compreensão da traição que conduziu à morte de meu tio.

- O quê?! - pergunta Dom Miguel.

- O que quer dizer que havia alguém que lhe andava a transportar os livros e que o andava a trair. O correio da altura. Por isso é que meu tio tinha de arranjar um substituto. E devia andar desesperado, para se ter arriscado a revelar-lhe as suas origens judaicas. Se calhar o correio até conhecia a localização da nossa cave e da geniza. Ou se calhar trabalhava com um dos iniciados. Talvez tenham recrutado o homem do Norte que tem andado a vigiar a casa de Diego Gonçalves. - A expressão atónita de Dom Miguel revela-me que devo tê-lo confundido com as minhas explicações. - É simples. Meu tio precisava de si porque o correio que tinha andava a traí-lo. Como, não faço ideia. Nem porquê. Mas o correio, o passador, pode ser a chave.

- E quem era ele, até agora? - pergunta ele.

Não sei. Mas hei-de descobri-lo! - levanto-me - Agora tenho de voltar para Lisboa. Se precisar de lhe falar, encontro-o aqui ou vai voltar para o palácio?

- Fico aqui, que é onde faço falta - solta uma gargalhada - E é onde há vinho. Não é casher, mas o efeito é o mesmo.

-já na entrada, uma pergunta que hesitava em fazer retém-me junto à porta.

- Será que teria salvo todos aqueles judeus se não tivesse descoberto o meu verdadeiro passado? Era isso que querias saber, não era? - diz Dom Miguel.

- É uma pergunta desleal. O seu comportamento foi louvável, mais do que...

- Não, não tinha. Não é que aprovasse a mortandade, não penses. Não sou uma pessoa cruel, e nunca considerei os judeus diferentes de... Ia a dizer de nós. É, um caso de uma descoberta um pouco tardia, não é? O que eu faria era ficar sentadinho no meu palácio em Lisboa a ler à luz dos candelabros.

E quando os gritos atravessassem as janelas, mandava muito simplesmente fechar as portadas.

De volta a Alfama, irritado com o suado cansaço que me invadia e o sol ardente do entardecer de Lisboa, bato inutilmente à porta de Frei Carlos, depois pergunto por ele na Igreja de São Pedro. Mas ao que diz o sacristão, continua sem se saber nada dele. Quanto a Diego, não faço ideia por onde começar à procura dele; com aquele estrangeiro possante à espreita à porta dele, não estava em casa de certeza. E os únicos amigos que lhe conhecia eram os membros do grupo de iniciados.

Incitado pela esperança de descobrir os nomes dos passadores de meu tio ou pelo menos alguma referência menos clara a algum conhecido, decido ver a correspondência de meu tio que tinha descoberto no fundo da geniza. Mas perto da Igreja de São Miguel, ao passar pela casa do Rabi Losa, as dúvidas sobre o seu paradeiro no domingo empurraram-me em direcção à porta dele. Em resposta às minhas pancadas enérgicas, a sua face descarnada, tal uma gárgula, assomou à janela do segundo andar.

- Que queres? - pergunta num tom desagradável. É, estranho, mas sinto-me tranquilizado ao ver aquele rosto e ao ouvir a sua voz ríspida.

Era só para lhe falar, caríssimo Rabi - respondo. Volta mas é para a tua maldita Cabala! - corta ele, pensando talvez que estou a ser sarcástico.

Atira com as portadas. Bato à porta e, ao sentir defraudados os meus bons sentimentos, grito: «Não me vou embora sem termos falado!» Enquanto espero, uma fúria irracional começa a revolver-me as entranhas. Desato aos pontapés à porta. «Vou dar cabo de tudo! juro que dou cabo desta danada porta!» A raiva sobe-me à cabeça, queima-me o rosto e a testa. É como um álcool a ferver que tivesse subido ao cimo do alambique de um alquimista, e não posso parar com os pontapés. Era evidente que qualquer que fosse a ocasional construção que me sustinha, ela tinha subitamente derruído. Crianças maltrapilhas rodeavam-me a observar a cena. Um carreteiro de lenha andrajoso atira-me um olhar de desprezo e atreve-se a dizer: «Eh, marrano, que andas por aqui a fazer?!» Abaixa-se para pousar os cestos no chão. Os olhos, onde não se vêem nenhumas pestanas, são baços, sugerem apenas uma mais que vaga parecença com o entendimento humano. Quando se põe em pé, cruza os braços magros sobre o peito e inclina-se para trás numa pose de desdém. Devo ter enlouquecido porque avanço para ele atrás do prateado da lâmina da minha adaga. «Vou-te cortar essas orelhas! - digo, com veneno a espirrar de cada uma das minhas palavras. É isso que ando por aqui a fazer!» Num instante de lucidez, compreendo que estou a imitar Farid presente nos meus pensamentos. Será deste modo que nos tornamos bravos, abraçando-nos a uma imagem da coragem e tornando-a parte de nós?

Será que aprendemos passando para dentro de nós o que antes nos era exterior?

O carreteiro continua com os olhos fitos em mim mas não diz palavra;

O medo e o ódio emprestam-lhe um cheiro nauseabundo e coram-lhe as faces. Volto-me para a casa do rabino. Uma criança cor de oliva com mechas de cabelo como uma cortina a cair-lhe sobre a fronte olha-me e faz um aceno. Ocorre-me nesse momento que é Didi Molcho, filho de um dos nossos vizinhos. Abençoado seja Aquele que salva as crianças. Aceno-lhe em resposta. De repente, sobressaltado, aponta para trás de mim. Volto-me, a tempo de me desviar do voo de uma acha. Logo a seguir, uma outra avança já em direcção aos meus olhos. Apanha-me a orelha de résvés. Caio. O sangue mancha-me os dedos ao tocar o ferimento. O meu agressor deita-se para trás e ri-se contente de satisfação. A boca è uma ruína escura e bafienta. Cospe e tosse. Levanto-me, a fingir-me estonteado Quando o vejo rir-se, corro para diante, de corpo feito para ele. É mais fraco do que eu pensava, Só pele e osso e cabelo. Atirado ao chão, arqueja para respirar, depois grita: «Ah, cão marrano!»

De pé por cima dele em ar ameaçador, levo um dedo aos lábios: «Ainda tens as orelhas. Se queres continuar com elas é melhor ficares no silêncio de Deus.»

Levanta-se, sacode as calças, corre os olhos pelos circunstantes. «Não passa de um judeu - diz ele, para salvar a face - Para que me hei-de arreliar?»

Quando me volto para me ir embora, surpreendo o olhar de Didi. Ele compreende que me deve fazer sinal se o carreteiro de lenha se aproxmar. Quando chego junto dele, acena a dizer que está tudo bem. «Já se foi embora?» - pergunto.

- já lá vai ao fundo da rua. Mas olha uma coisa, Beri, o Rabino Losa pôs-se a andar enquanto andavas à porrada. Saiu de casa a correr.

Ao chegar a casa, avisto minha mãe a varrer as lajes do pátio. Não me pergunta onde estive. «Só porcaria por todo o lado!» - exclama, em resposta ao meu olhar interrogativo. Reza está à lareira a cozinhar ovos com bacalhau.

- Por acaso deste uma olhadela ao Farid? - pergunto.

- Ainda está na cama da mãe. Ah, olha o que está em cima da mesa acrescenta - É uma coisa que Mestre Salomão te trouxe.

Salomão, o mohel que descobri quando se escondia na micva, tinha-me deixado uma enorme tradução latina dos comentários de Averroes sobre Aristóteles, De Anima», talvez como agradecimento por o ter libertado dos balneários. Quando é que ele passou por cá?» - pergunto.

- Não há muito tempo.

- Ele disse porque é que deixou isto? Reza esboça um ligeiro sorriso: «Um presente para o meu pequeno Shalaat Chalom, foi o que ele disse.»

Levo o livro para o meu quarto e atiro-o para cima da cama. Através da janela interior, vejo Cinfa a esfregar o chão da loja: lança-me um olhar cansado qUando entro.

- Dei água ao Farid durante a noite, como tu me pediste - diz ela num tom seco - E comeu dois ovos que eu cozinhei.

- Obrigado. És muito bondosa. E tu como estás?

- Bem. Porque não ficas por casa durante uns tempos? Come alguma coisa.

- Ouve, vou lá abaixo à cave. Podes vir comigo se quiseres. Mas depois vou ter de sair outra vez.

- Para descobrir quem matou o tio? - pergunta.

- Quem é que to disse?

- Beri, não sou estúpida nenhuma. Ouço as conversas e sei o que... Uma pancada na porta suspende a explicação. Sem esperar pela nossa resposta, a Senhora Falam, a vizinha da frente, da Rua da Sinagoga, precipita-se para dentro. Traz o vestido preto rasgado na gola e a face apresenta o arco de um arranhão que vai até ao lábio.

- Os cristãos-velhos?! - grito, correndo para ela, pensando que a tinham atacado.

- Não, não - diz ela - nada disso - Agarra a minha mão. Os olhos baços estão vermelhos a toda a volta, de insónia, e com olheiras. - Vi-te de minha casa - continua ela - Lamento o que aconteceu a Mestre Abraão. - Quando ela colhe a minha mão para a levar aos lábios e lhe dar um beijo afectuoso, sínto o odor da ansiedade. - Beri, precisamos de ti - diz ela - Podes vir a minha casa? - E para que Cinfa não possa ouvir, puxa-me para junto de si e sussurra-me ao ouvido: - Traz talismãs. A minha Gemila está possessa por um ibbur e agora não a larga nem por nada - agarra-me a mão - E mais, Beri, o ibbur sabe quem é que matou o teu tio!

 

Nacave, retiro do armário do material tudo o que me era necessário para exorcisar um ibbur e dirijo-me a casa da senhora Faiam. Gemila, a sua enteada, está sentada, atada com cordas a um banco na cozinha. Tem as mãos manietadas, respira às golfadas, ávida de ar. Como descrever uma vítima de possessão? Já por duas vezes me tinha sido dado presenciar os sintomas: a pele branca como um pergaminho empapado, os olhos atormentados, os lábios e as narinas debruados a crostas de sangue. O caso de Gemila não é diferente, ou talvez seja até pior, pois cedeu já uma boa parte do seu envoltório humano, começando a tomar a forma do demónio. As madeixas cor de avelã estão encrostadas de excrementos, que se colam também ao rosto e ao pescoço. O mindinho da mão esquerda, partido, estica-se para o lado num ângulo impossível. A túnica branca solta, com nódoas por toda a parte, mais parece ter andado a nadar com ela numa poça de lama e sangue. «Um ser do Outro Lado insinuou-se na alma dela - penso, e o meu primeiro impulso é fugir dali. Mas meu tio ensinou-me que o ibbur não passa de uma metáfora, muito poderosa, é certo, mas que não chega a constituir um desafio para um cabalista, mesmo principiante. E se este demónio sabe realmente quem matou o meu mestre...

inesperadamente, Gemila deita a cabeça para trás como se fosse demasiado pesada para a poder dominar. Quando me fita, os olhos perdem o ar aterrorizado e apenas denotam a contemplativa profundidade da visão, fixando-se nas tranças de fumo do incenso que sobe do turíbulo.

Bento, marido de Gemila, toca-me no ombro e exibe um pálido sorriso como quem pede socorro. Tem o cabelo escuro rigidamente atado atrás com uma fita azul e o rosto semeado dos pêlos intonsos da barba de uma semana. A fronte e as mãos, calças e camisa, tudo revela os vestígios enegrecidos do suor e da gordura da tosquia. Ganha a vida como tosquiador ambulante e deve ter conseguido voltar a salvo para Lisboa para vir encontrar a mulher neste estado.

Belo, o cão deles, que tem apenas três patas, ligado a Gemila por uma fidelidade veemente, recua até à porta do quarto e fita-a com os olhos assustados.

- Sente-se bem? - pergunto a Gemila, em português. É uma pergunta estúpida, tenho de reconhecer, que apenas recebe o silêncio dela como resposta. Uns olhos gélidos como obsidiana resistem à minha insistência. Levanto-lhe as mãos atadas. O pulso palpita descompassado, como se os seus humores corressem em todas as direcções. Carrega o sobrolho e fita-me desgostada ao sentir-se tocada. Respira de novo em largos haustos. Encolhendo-se de medo, grita em hebraico: «É um sino que vai a cair dentro do meu Peito!» Os olhos rolam em alvo até se fixarem gelidamente em mim.

É como se andasse de ricochete entre o nosso mundo e a esfera demoníaca - sussurra a senhora Faiam. E, perante o meu assentimento, acrescenta:

Já percebemos que o ibbur não fala português, só hebraico.

Quando começaram estas dores? - pergunto a Gemila na língua sagrada.

O peito começa a arfar, depois acalma-se.

Não são dores; este barco é pequeno, mas adequado - ouve-se uma voz, mas não a de Gemila. É um som monótono, vazio de qualquer calor. O hebraico tem um sotaque castelhano.

- Quem és tu? -pergunto.

- O Maimon Branco de Duas Bocas. Afasto momentaneamente o olhar para recuperar energias; o que tenho pela frente não é um comum ibbur, mas um demónio.

- Porquê de duas bocas? - pergunto.

- Uma para devorar os filhos dos Anusim, os convertidos forçados. Feita de sangue. Com agulhas por dentes.

Mordendo o ar para respirar, subitamente lança-me um cuspo vermelho. A senhora Faiam sobressalta-se. Ao mesmo tempo que limpo o pescoço, Gemila abre a boca. Vêem-se-lhe os dentes destroçados cobertos de sangue, enquanto ela se ri.

Deus lhe perdoe - geme a senhora Faiam - Esteve a comer vidro pouco antes de eu te ir chamar. Ainda tentei detê-la, mas o ibbur só se alimenta de minerais. E um...

Suspendo a cascata de palavras da senhora e volto-me para Gemila.

- Porque vieste? - pergunto.

- Zedec separou-se de Rahamin. Este demónio conhece a Cabala! O que ele diz alude ao rompimento entre a justiça fêmea e a compaixão macho que deu origem ao reino do mal na nossa era.

Trago comigo Rahamin digo juntos, Rahamin e eu vamos casar esta mulher.

Poderás entrar e montar-me, mas não conseguirás emergir! - adverte o demónio.

É um jogo de palavras entre a condição de Gemila e o coche da visão mística; poucos dos que para ele sobem conseguem voltar ilesos. Pensando num sábio judeu do século II que regressou a salvo ao nosso mundo depois da viagem no coche, digo: «Venho em paz, como o Rabi Aklva. Passo o dedo médio por cima da rapariga e invoco o poder de Moisés. Ela recua. Com o desafio a sustentar-lhe a voz, o demónio dispara:

- Nem sou amalecita nem víbora nenhuma! E Moisés está morto!

- É sempre Páscoa, a festa da Passagem - replico - Mesmo no momento em que falamos, Moisés separa as águas do mar Vermelho.

- Então, também ele em breve estará no outro lado e não te poderá ajudar.

- Recusas-te então a deixar que a mulher conduza o seu próprio barco? pergunto.

- Ela deixou-me entrar, e eu hei-de ficar com ela e dar-lhe a consolação que o teu Deus lhe recusou. Senão seria um hóspede ingrato, não achas?

- Como queiras - volto-me então para Bento - Vou precisar de três coisas: água fresca do Tejo, enche a maior tina ou caldeiro que encontrares; uma coisa onde caiba a Gemila. Nós temos uma, se não...

- Também há cá uma! Que mais?

- Uma solha. Traz-me a mais pequena que arranjares. E por amor de Deus trá-la viva. E depois vai ter com a Cinfa e diz-lhe que te mostre onde está a nossa tinta mágica. Traz-ma e deita um pouco numa bandeja.

- Que vamos fazer? - pergunta a senhora Faiam.

- Tudo o que é impuro e sujo fortalece o Outro Lado. Está escrito no Zohar. E o demónio sabe-o. Temos de purificar a Gemila.

- Podes até aparar-me as unhas, não te vale de nada! - sibila o ibbur.

O Shabat é só mais um crepúsculo para mim, e tu não passas de uma sombra a tentar deter o fogo.

- E a solha? - sussurra a senhora Faiam, para que o demónio não a ouça.

- Os peixes são imunes aos semelhantes de Maimon - respondo. Serve-nos de ajuda neste combate.

Depois de Bento sair, ensino a senhora Falam a cantar o salmo noventa e um para prepararmos Gemila. Enquanto me escuta, agarra o íncensório com ambas as mãos. - Tira-me daqui esse fedor, cabra de merda! - grita repentinamente o demónio - E ficas já a saber, Berequias Zarco, se tentas arrancar-me de minha casa nunca mais hás-de encontrar o assassino de teu tio!

As palavras da criatura do mal deixam-me sem palavras. Fixo os olhos escuros de Gemila para entrar em comunicação. A cabeça gira-lhe num círculo lento, como se atacada de um sono irresistível. Ao endireitar-se, é sacudida por um riso que lhe sai das entranhas.

- Então, viste o assassino?! - pergunto.

- Vi! Mas se levantas de novo contra mim o dedo de Moisés, hei-de agarrar-me ao segredo com tanta força como agora a esta mulher.

- E dizes-me quem foi que matou se te deixar em paz? - pergunto.

- Digo.

- Sei lá se me posso fiar em ti.

- Maimon não mente - diz ele - Ousei mesmo dizer a verdade ao teu Senhor. Não o temo. Nada tenho a perder. Só os judeus como esta barregã pecadora precisam de mentir ao seu Senhor! Vais dar ouvidos a um ibbur, Berequias? - diz a senhora Faiam, pegando-me no braço.

- Mas ele sabe! - grito - Ele sabe quem foi!

- Desata-me! - pede o demónio. Liberto-me do aperto febril da senhora Faiam. Com os punhos erguidos à altura do rosto, ela grita:

- Será que servirás a Samael, o Diabo, para vingar o teu tio?!

A minha confissão aperta-me a garganta: É verdade! Faria tudo para o descobrir! Tudo!

Então, que será que me retém? A própria Gemila? Põe-se em pé com um grunhido, o pescoço esticado, levantando o banco a que está atada. Quando o deixa cair com grande ruído, contorce-se para se livrar dos liames como se empalada por uma espada em brasa. Morde o ar ofegante. Quando a maré dentro de si começa a baixar, fita-me com os seus olhos impenetráveis. «Desata-me!» pede.

Volto-me ao ouvir ladridos. Belo arranha desesperadamente a porta que dá para o pátio com a sua única pata dianteira.

A voz de meu tio ressoa dentro de mim: «Não abandones os vivos pelos mortos!» As suas mãos agarram o meu ombro como a voltar-me para o demónio. Começo a entoar o salmo noventa e um: «Ele te há-de proteger, debaixo das suas asas encontrarás refúgio. Não temas a armadilha do caçador à noite, nem a seta que voa durante o dia; nem a peste que alastra nas trevas ou o flagelo que assola ao meio dia ... »

- Nunca mais descobrirás o assassino! - grita Malmon. - Nunca!

A senhora Faiam secunda-me e as pregas das nossas vozes distintas são reunidas pela roca do salmo. Cantamos juntos: «Verás o castigo dos ímpios.

O Senhor é o teu único refúgio. Nenhum mal te acontecerá, a epidemia não tocará a tua tenda. Pois Ele ordenou aos Seus anjos que te protejam por onde quer que vás ... »

Para além das minhas palavras, afasto-me interiormente do demónio, ascendo os degraus da oração silenciosa. Ao chegar ao topo, a um patamar refulgente de vibração interior, suportado pelo arco do meu peito, levanto novamente o dedo por cima de Gemila. Ela olha em redor com os olhos dardejantes, luta com as cordas que a prendem, murmura obscenidades em hebraico, guincha. Ora solta gargalhadas, ora me fita com um sorriso de encantadora sedução raSgado pela sua língua vibrante. Mas vejo-a ao longe, abaixo, enredada na melodia do salmo que agora confio à senhora Faiam. Da minha garganta erguem-se os nomes secretos de Deus, fluindo fora e dentro das minhas narinas ao mesmo tempo que combino a respiração com o ritmo das palavras. A luz e as trevas confundem-se, separando-se depois num ímenso alívio. Acende-se o mundo como que por uma chama negra. O tempo desaparece na distância e, no elevado estado em que me encontro, vejo que é o medo do abandono que está na origem do riso de Gemila. Subindo ainda mais alto na melodia alada do salmo, estendo as mãos para lhe acariciar a face. Dor. Uma garra do mal. Vento gélido. Sangue correndo-me da mão. Guinchos. A senhora Falam limpa-me.

- O demónio mordeu-te! - grita ela. Afasto-a com um gesto, retomo o cântico até o quarto se assombrear e Malmon e eu ficarmos de olhos fitos um no outro através de um espaço carregado que respira vagarosamente. Bento aproxima-se do meu corpo, toca-o no ombro. «O banho está pronto» - diz ele.

Gemila defende-se como um animal quando a despimos. Volto-me para o quarto onde se encontra Menachim, o filhito de Gemila, sentado, abraçado a Belo, a chorar. «Tens de sair daqui!» - digo-lhe. Ele ergue-se de um salto, passa por nós a correr seguido pelo cão. Saem ambos disparados para fora de casa.

A água do rio está límpida e frígida. Os guinchos de Gemila cortam o ar.

Fecha os punhos, os tendões do pescoço retesam-se. Os braços gesticulam libertos das cordas, apanham a senhora Faiam que se estatela no chão. A face de Gemila contorce-se de uma alegria diabólica. Da sua boca escorre sangue, que mancha de fiapos róseos a água agitada. A rapariga contorce-se quando a seguramos, todos os músculos concentrados na fuga.

Encharcado de água glacial, mas aquecido pela oração interior, continuo os cânticos enquanto Bento segura a mulher mergulhada na tina até que o frio e a falta de ar lhe embotam o espírito de luta e ela fica a bater os dentes. Mantenho o fumo do incenso sob o seu rosto. Os lábios dela começam a ficar turvos e os olhos faíscam. Tiramo-la da água. A senhora Falam enxuga-lhe o cabelo com uma toalha, enquanto lhe sussurra palavras tranquilizadoras. Bento beija-lhe as mãos.

- Retirem-se, por favor - digo. Retiro o peixe do jarro onde está, com uma prece do Bahir. Mergulho-o a estrebuchar na tinta mágica. Gemila está a tiritar sentada numa cadeira. Pego na solha que se debate, tinta de vermelho, e encosto-a à linha da vida na sua testa.

Gemila estremece como se a queimassem. Rapidamente, esfrego o peixe pelos seus ombros e pelo peito, pelo abdómen, pelas partes e pelos pés, até cobrir de tinta cada um dos dez sefirot, os pontos essenciais. Depois do peixe se ter embebido das suas essências simbólicas, at'iro-o para o chão. Enquanto ele se agita nos tijolos, fecho os olhos e entoo as palavras mágicas de Josué: « Sol, detém-te sobre Gabaon, e tu, ó Lua, pára sobre o vale de Aialon.»

Com os olhos fechados, giro as pupilas até começar a ver as cores interiores, respiro sacudindo o ar para dentro e para fora até o sopro das asas de Metraton me fazer revolutear. Quando abro os olhos, as guelras da solha pulsam como um fole. Meto-a de novo no jarro de água; em troca da sua vida, o peixe escreveu uma mensagem na tijoleira, que eu leio o mais depressa que me é possível. Numa imagem fugaz da escrita arábica, decifro a palavra tair, pássaro. Neste caso, é uma referência velada à abertura por onde o demónio poderá ser extraído.

Chegam-me de trás os sons de passos. Frei Carlos aparece junto de mim, Acabado de descer do topo da montanha no vento interior das preces e dos cânticos, parece-me natural vê-lo aqui. Levo o dedo aos lábios. Os seus olhos requerem um parecer. Com um aceno confirmo a minha elevação. Ele volta-se para Gemila, ergue o dedo médio por cima dela e começa a entoar o nosso salmo na sua voz imperativa.

Com o sangue da ponta do meu dedo, gravo ao longo da linha do Destino na testa da moça o nome de Deus, Elohím, na escrita dos anjos, ketav einayim numa versão que aprendi com meu tio. A cabeça cai-lhe para trás, como se o pescoço tivesse murchado, ficando com os olhos em alvo. Antes que ela adormeça seguro-lhe o nariz entre o polegar e o indicador. «Ordeno-te - grito em nome do Deus de Israel que saias deste corpo e o libertes!» Em aramaico, grito a sequência dos nomes divinos.

E arranco o demónio do seu corpo. Ela guincha. jorra-lhe sangue das narinas. Tomba para mim, com a respiração opressa. Limpo-lhe o rosto com a manga. «Estás livre - murmuro -. O demónio já se foi.»

Tenta falar, mas cai inconsciente.

Frei Carlos e eu ficamos de vigília, juntamente com a senhora Faiam e Bento. O nariz de Gemila secou. Esfregámo-la com água quente e sabão.

O marido carregou-a para a cama como a um recém-nascido. O pulso tornou-se sereno e regular e a cor voltou ao seu rosto. Menachim, o filho dela, ajoelha-se a seu lado e afaga-lhe o cabelo. O monte de cobertores que respira suavemente a seus pés é Belo que se enroscou debaixo da coberta. Frei Carlos está sentado numa cadeira a rezar em voz baixa. Quando me é possível enfrentar a possibilidade de outra morte, pergunto-lhe num sussurro: «E Judas?»

Abana a cabeça, o rosto contorce-se num esgar. -Não sei onde está. Assim que ela acordar, explico-te onde é que o vi pela última vez.

Fecha os olhos e as lágrimas assomam-lhe aos olhos e pendem-lhe das pestanas. O desaparecimento do meu irmãozito e as palavras de tentação do demónio assombram-me com um calafrio gelado. Sento-me no chão no canto oriental do quarto, entoando a Tora como se fosse um mapa capaz de guiar Gemila e a mim próprio de regresso a Deus. Pouco depois, Frei Carlos abre as portadas de uma janela a ocidente. Uma luz pálida ilumina o céu. O sol, desaparecendo no horizonte, parece procurar um esconderijo para sempre.

É já perto da meia-noite quando Gemila desperta. Senta-se, fita com uma complacência maternal o filho Menachim que dorme a seu lado. Estremece quando me vê.

Beri, que estás aqui a fazer? - pergunta.

- Não te lembras? - pergunto eu.

- Não. Que... que é que queres dizer? Sinto como que um eclipse a cobrir o meu coração; a informação do demónio sobre a pessoa do assassino de meu tio esfumou-se. - Foi um sonho do Outro Lado, minha querida - diz a senhora Faiam, que se precipitou para a cama e acaricia as faces de Gemila - Estavas com um pesadelo e eu pedi ao Beri que viesse ver-te.

- Pois é - diz ela, evocando com um olhar vago alguns fragmentos esfumados - Foi um sonho.

- Agora já passou - diz Bento, comprimindo os lábios contra as mãos da esposa.

- Mas... mas no meu sonho aparecias tu - diz ela, voltando-se confusa para mim - Eu ia arrastada por um rio de sangue abaixo. Como o Nilo quando Moisés o tocou com ... E estava frio... tão frio. - Fala com cuidado, como se recuasse passo a passo para o pesadelo. - E tu e o teu tio estavam na margem a chamar por mim. Mas ambos vocês eram aves... ibis. E então começaram a grasnar qualquer coisa com força. E a bater as asas. Eu fui apanhada pela corrente e batia nos rochedos. E então, também eu, tornei-me num íbis. Voei para a margem, para os teus braços. - Fica de olhar vago. Encolhe os ombros, e faz-me um sorriso de escusa. - Acabou. É tudo de que me lembro.

- O mais importante é que já passou - digo.

- Nunca mais te pago isto - diz a senhora Falam, beijando-me as mãos.

- já estou pago - digo. Mas as minhas palavras são falsas e voltam-me como um eco vão. A caverna da morte de meu tio abre-se de novo diante de mim. Cada passo que der doravante será sempre a descer. Frei Carlos dá-me o braço.

- Vamos, temos de falar de Judas, agora - diz ele.

Será que se sente aliviado por ver que a rapariga não o poderá nomear como sendo o assassino?

- Está bem, vamos lá conversar - respondo secamente. Quando vamos a passar a porta, Gemila chama por mim.

- Beri, há outra coisa que vi no meu sonho - diz ela - Um ser branco com rosto humano. E uma parte de abutre, parece-me. Mas com duas bocas. A de baixo fechada com força e rodeada de sangue. Como o demónio Maimon, parece-me. Quando tu estavas a chamar por mim da praia, ele pôs-se a arranhar-te com as garras a ti e ao teu tio. E outra coisa, Berequias, Maimon tinha saído de tua casa, pela porta da loja. Eu não estava no rio. Estava a olhar por cima do nosso muro para a Rua da Sinagoga. A calçada estava coberta de sangue e eu amaldiçoava Deus por deixar tal coisa acontecer!

 

Detive-me com Frei Carlos à porta da casa da senhora Falam. Os recentes pecados de Lisboa parecem por agora adormecidos, velados pela graça sombria da sétima noite de Páscoa. Anelante de calor humano, mas sem querer desvendar a minha fragilidade a um homem que terá talvez ajudado a matar meu tio, puxo a campanula de uma das mangas da sua longa capa e digo:

- Fale-me de Judas. Preciso de saber tudo.

- Levaram-no. Um bando de cristãos-velhos. No domingo.

- Há alguma esperança de estar a salvo... de estar vivo?

- Quem me dera que estivesse. Mas... - o frade junta as mãos, no gesto de oração dos cristãos - Levei-o para São Pedro quando começou a matança. Escondemo-nos ambos em baixo, na cripta. Já lá estiveste. É onde estão as relíquias. Estavam lá muitos cristãos-novos. Mas chegou aquele bando. E começaram a ... - Frei Carlos faz um esgar e a voz, que vibra entre nós como uma chama soprada pelo vento, extingue-se num sopro de horror. Pega-me nas mãos, coloca os meus dedos sobre os seus olhos, suspira como se banhasse a sua alma no odor revigorante do mirto, e deixa-as cair de novo. - Enfiei-me com o miúdo pela saída que dá para o adro e encaminhámo-nos para o Tejo - continua ele - Moisés Jagos e a família juntaram-se a nós. Ele tinha na ideia alugar um barco para atravessar o rio, para o Barreiro. Tirou uns soberanos de ouro de dentro do gorro e um barqueiro aceitou levar-nos. Mas mal íamos a largar, apareceram mais cristãos-velhos. E... e então levaram judas e os outros. Ainda tentei opor-me, podes crer em mim. Mas eles atiraram-me ao rio. Nessa altura...

Encolhe-se, põe os braços à volta do corpo como se subitamente se sentisse gelado.

- Diga-me só para onde é que levaram o meu irmão - pergunto-lhe com uM abanão - Para as fogueiras do Rossio?!

- Não sei. Valha-me Deus, não faço ideia. Primeiro foram para o Palácio da Ribeira. Fui a correr atrás deles. Tinha de recuperar Judas fosse como fosse. Aquele menino... aquele lindo menino. Berequias, o teu lindo irmãozinho... Sabes onde é a taberna dos barqueiros, por trás da Igreja da Misericórdia? Encontrei-os lá à porta. judas viu-me. Sorriu-me e pôs a língua de fora como quando era para receber uma prenda. Não achas isto incrível? Que é que estaria a pensar? Corri para o dominicano que comandava o grupo. Disse-lhe que tinham levado um cristão-velho por engano, e apontei para judas, e que aquele miúdo estava à minha guarda e que não era judeu. O frade respondeu-me que Deus nunca se engana! Era como Herodes, aquele cristão, revestido daquela espécie de poder dos loucos. Mandou despir judas. Os homens riam-se mostrando o sinal da circuncisão. Mas Judas não chorava. Parecia o teu tio. Fitava-me para além de um silêncio que dir-se-ia jurado, como para me dizer que tudo estava a correr conforme previsto. Mestre Abraão e judas... Não compreendo. - Frei Carlos estremece, afasta uma recordação que lhe afoga a respiração.

- Então já sabe do meu tio. Como?!

- Cinfa contou-me, claro. Antes de vir ter contigo a casa da senhora Faiam. Contou-me o que aconteceu a Mestre Abraão e disse-me o que estavas a fazer - chega-se a mim e sussurra-me num tom confidencial: - Eles violaram-me, Berequias. Estavam bêbados. Abaixaram-me contra os rochedos à beira-rio enquanto eles... O riso deles era-me insuportável. Quando consegui aguentar-me em pé, corri para o Rossio. Mas não vi judas em parte nenhuma.

- Porque não veio logo dizer-nos?

- Estava aterrorizado. Estava magoado. Os ossos doíam-me, e então o cheiro avinhado deles... o fumo. Corri a refugiar-me no mosteiro das carmelitas. Berequias, eu não sou um homem de coragem. Olha-me para este hábito, estes ídolos - tira do peito o crucifixo, puxa-o até rebentar o fecho -. olha-me para A este lenho de traição que me queima por dentro! - As suas mãos contorcidas, enclavinhadas, arrancam com um sacão o Nazareno da cruz. Jesus, contorcido e rígido, tomba como um judeu inválido na calçada. Um grunhido animal sobe das entranhas de Frei Carlos e ele lança a cruz desnudada contra as paredes caiadas de minha casa. Mais calmo, ofegante, contempla os telhados e o espelho escuro do rio que se vê ao fundo. - Segunda-feira - murmura - andei à procura dele@, Cheguei até a ir ao covil de leões de São Domingos. Berequias, pela primeira vez em nove anos não sentia medo dos cristãos. Talvez fosse isso que sentia judas. Mas como é possível? Um miudito não pode sentir coisas dessas. Até pensei que se calhar ele ia simplesmente vir ter a casa. Que de qualquer modo...

A esperança é estranha; desafia toda a razão. Enquanto Frei Carlos continuava a falar, começo a pensar: «Não é, pois, certo que judas esteja morto.

Há-de estar escondido aí em qualquer canto.» Perguntei então ao frade: - Porque havia de acreditar no que me está a contar?

- Que queres dizer com isso? - pergunta ele.

- Como pode provar onde andou todos estes dias?

- Queres dizer que suspeitas de mim?!

- Suspeito de toda a gente até ao regresso do Messias - respondo.

- Podes perguntar às carmelitas - suspira ele, como quem cede a uma verdade que longamente se recusara a admitir.

Decido pô-lo à prova, lançando a acusação sobre Simão.

- Havia um fio de seda numa unha de meu tio. Seda preta... como a das luvas de Simão.

- Simão? Queres dizer que ... ?

- Isso mesmo. Porque não havia de ser ele?

- Meu caro Berequias, está-me a parecer que a morte te deixou a ler da esquerda para a direita. Simão estimava muito teu tio. Nunca levantaria uma mão para ele.

Mas pode ser que tenham tido alguma discussão grave no grupo de iniciados - observo.

- Uma discussão sobre o Talmud ou a Tora - contrapõe o frade com um gesto de recusa - pode desviar-nos para algumas palavras mais esbraseadas mas nunca para o sangue. já devias saber isso.

Frei Carlos tinha passado esta pequena prova. Mas, e se ele suspeitasse que eu sei que o fio de seda foi lá posto, não seria esta mesma a sua reacção? - E contou a minha mãe isto sobre Judas? - pergunto.

- Contei. Agora está sossegada. Cinfa está com ela. Quando a menina me disse que estavas a lutar com um ibbur em casa da senhora Faiam, pensei que podias precisar de ajuda - o frade inclina a cabeça - Berequias, sabes quem morreu?

Dá-me uma absurda vontade de rir. -Frei Carlos, nunca há-de deixar de me surpreender. Neste momento era-me mais fácil dizer quem não morreu.

- Dom João de Mascarenhas - diz ele.

- Claro - aceno compreensivamente. Dom João dirigia o porto e a casa da fazenda do rei, tinha sido ele o judeu da corte que pagou a ouro para tirar Reza da cadeia do Limoeiro no domingo anterior.

Os cristãos-velhos sempre se sentiram ressentidos com a ideia de um cristão-novo a enriquecer com os impostos sobre as suas mercadorias e de entre todo o nosso povo devia ser ele o mais odiado.

- Como é que se passou? - pergunto.

- Como? Como todos os demais. Apareceu um bando em casa dele. Deitaram abaixo os portões. Ele escapou pelos telhados da Pequena Jerusalém. Imagina, ele a fugir como qualquer judeu. Conseguiu...

- Frei Carlos, custa-me a crer que não perceba! - berro-lhe eu -. Para eles, todos nós temos cornos e caudas. Não há nenhum que escape. Não interessa se adubamos a sopa com folhas de ouro ou só com gema de ovo!

As nossas vozes unem-se numa prece pela alma de Dom João.

- Bem, basta de devoções - digo - Só umas perguntas... Sabe quem é que ajudava meu tio a levar livros hebraicos para fora de Portugal?

Frei Carlos abana a cabeça.

- Mas não tem nenhuma ideia? - pergunto.

- Nenhuma. A não ser que fosse algum dos iniciados. Mestre Abraão dizia que era melhor que ninguém soubesse. Para o caso de sermos apanhados. - Isso quer dizer que só resta Diego... Simão e Sansão foram mortos.

E,meu tio disse...

- Mortos?! - interrompe o frade - Mas ainda agora disseste que suspeitavas de Simão!

- Não, estão mortos. Era... era só para o pôr à prova.

- Berequias, tenho de saber a verdade. Os meus irmãos da Cabala estão mortos ou vivos? Agora diz-me a verdade!

- O senhorio de Simão disse-me que tinha sido levado pela turba e feito em cinzas. O sogro de Sansão disse-me que o tinha visto preso pela populaça.

Frei Carlos deixa descair os ombros, esfrega os olhos.

- Meu tio nunca lhe disse nada a propósito' de Aman? - pergunto Nem nunca mencionou nada de estranho sobre Diego?

- Agora também o Diego? - replica ele - Também achas que ele podia estar envolvido na...

- Meu tio foi morto com um cutelo de shohet. Por alguém que sabe onde fica o alçapão e a geniza. Só pode ter sido um dos iniciados. Ou algum dos passadores secretos de meu tio, se é que ele alguma vez lhes confiou também a eles o segredo@ - E a que vem isso de Aman? - pergunta o frade.

- A última Haggada de meu tio foi roubada. E eu estou convencido que ele tinha desenhado Aman com o rosto do passador que o andava a trair... ou que ele suspeitava de traição.

- Nunca me falou nisso - diz Frei Carlos.

- Alguma vez se queixou de alguém ultimamente?

- Não, de ninguém.

- Diego tinha recebido a iniciação completa no círculo? - pergunto.

- Queres saber se ele conhecia a existência da geniza?

- Isso e a passagem secreta da nossa cave para a micva.

- Ai descobriste?! Como? Ou foi alguém que te disse?

- Demorava muito a explicar, Frei Carlos. Foi uma outra morte que me levou lá. Diga-me só se Diego sabia disso - peço.

- QUe eu saiba não - replica.

- E da geniza?

- Não. Mestre Abraão deixou bem claro que não devíamos falar nisso com ele por enquanto.

Isso tornava quase impossível que tivesse sido Diego quem empunhou o cutelo de shohet. Portanto, se Frei Carlos dizia a verdade, todos os iniciados estavam inocentes. O assassino só podia ser um ou vários dos passadores secretos.

- Usavam muitas vezes a passagem secreta? - pergunto.

- A bem dizer nunca - responde o frade.

- Óptimo - comento.

- óptimo o quê?

- isso pode explicar porque é que o assassino ignorava que não cabia lá.

A passagem vai-se estreitando. Eu mal pude passar. Uma pessoa mais larga... Por isso ele deve ter recuado à pressa para a cave e quando me ouviu chamar lá em cima escondeu-se na geniza. Depois, quando eu fui ao pátio buscar pregos para fechar o alçapão, subiu as escadas e saiu de casa pela porta de minha mãe. Gemila viu-o na Rua do Templo, amaldiçoou o Senhor e abriu assim o caminho à intrusão de um ibbur. O assassino devia ter uma aparência demoníaca, porque ela chamou-o Maimon Branco de Duas Bocas. Devia ter um aspecto ligeiro. Talvez estivesse embuçado. Ou talvez se tapasse com um chapéu com uma presilha para o queixo que ela confundiu com outra boca - seguro o frade pelos ombros - Frei Carlos, tenho de ir ler a correspondência de meu tio a ver se ele fala nos passadores. E tenho um desenho que lhe quero mostrar. De um catraio que andou a ver se vendia a Haggada roubada. Mas precisamos de mais luz.

Vou a começar a subir a rua em direcção à nossa cancela, mas Frei Carlos segura-me pelo braço.

- E a teu ver quem é que teria a coragem de levar livros para fora do país?

- Não sei. Mas provavelmente é alguém nosso conhecido. Pode ser até que eles fingissem detestar-se.

Ao pronunciar estas palavras, ocorre-me um pensamento perverso. Quem é que, à parte El-Rei Dom Manuel e certos padres cristãos, meu tio mais desprezava neste mundo? O querido Rabi Losa! Mas, e se aquela animosidade não passasse de uma máscara? Com os seus negócios florescentes como fornecedor oficial do clero, Losa viajava para onde quisesse e podia muito bem transportar consigo manuscritos hebraicos para lugar seguro.

- Meu tio alguma vez se referiu ao Rabino Losa no círculo de iniciados? pergunto ao frade.

- Muito raramente. E quase sempre com desagrado.

- Frei Carlos, era capaz de vir agora comigo a casa do Rabi Losa? As cartas podem esperar por agora. Por qualquer maldosa razão que eu Ignoro, o rabino sempre gostou de si. E eu preciso muitíssimo de falar com ele.

- Gosta de mim porque me vê tão assustado como ele - observa Frei Carlos - De vez em quando gostamos de tremer juntos. - E quando nos dirigimos para casa do rabino, pergunta numa voz temerosa: - Então sempre me perdoas?

- Perdoo de quê? - pergunto.

- De não ter protegido Judas. Tenho de o saber.

- Claro que perdoo. Você é tanto vítima como... Oiça, Frei Carlos, não estou certo que ainda seja judeu, mas também não sou nenhum inquisidor cristão.

- Não és judeu?! Berequias, em alguma coisa tens de acreditar!

- Ai tenho? Acha que tenho?!

- Claro. Detenho-me. Do fundo das tripas até ao topo do meu peito aspiro os perfumes nocturnos que sobem da cerrada natureza que rodeia esta desgraçada povoação chamada Lisboa.

- Respire esta escuridão, Frei Carlos - digo - Há qualquer coisa de diferente nela, entre o cheiro a merda e a fumo e a bosque. Está a formar-se uma nova paisagem, uma região secular que nos dará refúgio das costas em chamas da religião. Para já só nos chega uma brisa. Mas está a chegar. E nada que os cristãos-velhos possam fazer há-de impedir que aí encontremos refúgio.

Frei Carlos responde num tom oratório, céptico:

- Diz-me uma coisa, meu caro Berequias, quais hão-de ser os alicerces dessa tal nova paisagem a não ser a religião?

Não faço a menor ideia, Frei Carlos. Essa nova paisagem ainda não se definiu. Haverá místicos e cépticos, disso não tenho dúvidas. Mas não padres nem frades, nem os diáconos ou os bispos ou os papas hão-de lá ter lugar. Se derem um passo para a nossa terra, deitamo-los logo ao chão. Também não haverá rabinos doutorais. No momento em que começarem a estender o rolo dos mandamentos, cortamos-lhes a garganta!

- Devias pedir perdão a Deus pelo que estás a dizer! - repreende-me Frei Carlos.

- Vá pentear macacos! Estou farto de implorar! O meu Deus nada tem que perdoar nem que punir.

- Ein Sof? pergunta o frade, aludindo ao conceito cabalístico de um Deus incognoscível que não possui quaisquer atributos reconhecíveis. E vendo o meu assentimento, continua: É pouco o conforto de um Deus que está para além de todas as coisas.

- Ah, conforto... Para isso, meu caro amigo, o que preciso é de uma mulher que se deite à noite comigo e filhos para abraçar, não um Deus. Pode ficar com o Senhor escrito nas páginas do Velho e do Novo Testamento para si. Eu fico com o que não está escrito.

Frei Carlos abana a cabeça como quem me abandona a um mundo que ele nunca compreenderá. Entretanto chegamos a casa do Rabi Losa. Fico à espera à esquina. O frade bate à porta e pouco depois Ester Maria, a filha moça de Losa, abre as portadas de cima, afasta o cabelo que lhe cai por cima dos olhos cansados.

- Perdoa ter-te acordado. O teu pai está? - pergunta Frei Carlos.

- Saiu. - responde ela.

- Para onde?

- Não sei.

- Podes dizer-lhe que preciso de falar com ele? Estou em casa de Pedro Zarco ou então em São Pedro. Diz-lhe que venha logo que possa. Mesmo que tenha de nos acordar. E diz-lhe que não é para lhe causar trabalhos.

Ela assente com um aceno. O frade e eu encaminhamo-nos para casa e sentamo-nos no pátio. Como uma mórbida melodia, invade-nos o sentimento de culpa por nos terem deixado viver. Penetro no interior para trazer uma candeia de azeite, desenrolo o desenho do catraio que andou a tentar vender a última Haggada de meu tio à senhora Tamara. Lançando um círculo de luz sobre o desenho, pergunto:

- Conhece-o de algum lado?

- Não - responde Frei Carlos, erguendo o desenho à altura do rosto. Vendo-me recolher o rolo, pergunta numa voz implorante: - Posso ficar aqui até amanhã? Não consigo estar sozinho.

- Não há por onde escolher. É melhor não aparecer por perto de onde mora ou em São Pedro. Anda por aí um mercenário, um homem loiro dos países do Norte, a mando do assassino para matar Diego. Pode também andar atrás de si.

- De mim?! - o frade estremece e os seus olhos fatigados abrem-se como se tivesse engolido veneno - Então, talvez isso explique... - Tira da capa um quadrado de pergaminho com umas pontas de fita cozida nos cantos como um tzitzit.

Assemelha-se a um brinquedo de crianças. - Lê - diz ele, estendendo-mo.

Vejo uma figura tosca de homem contornado por caracteres hebraicos minúsculos, não maiores que uma formiga. Escrita numa estranha mistura de hebraico e português, lêem-se as palavras do Livro de Job: Ela abandona os seus ovos no chão, deixando que a areia os aqueça. Esquece que um pé os pode esmagar, ou algum animal bravio os espezinhar.»

- Desde quando tem isto? - pergunto.

- Sexta-feira. Tinham-no enfiado por baixo da minha porta. A princípio pensei que fosse de teu tio. Pensei que era para ver se me assustava para conseguir o livro que queria que eu lhe cedesse - Frei Carlos sorri e continua -. Depois pensei que fosses tu.

- E agora que o seu espírito assentou depois da sua viagem à toa? - pergunto, com uma expressão de ironia.

- Agora não sei. Mas se alguém matou o teu tio e agora me quer matar a mim... Talvez este talismã seja dele. Talvez o meu livro tenha a ver com a morte de teu tio! Talvez seja mais valioso do que pensávamos.

- Pode mostrar-mo?

- Não. Está no meu quarto. E o homem do Norte... Beri, era a minha última página de judaísmo. Guardei-o porque tinha de ser. O teu tio estava a pedir-me que ficasse sem nada do que eu tinha sido.

- Está bem, Frei Carlos. Mas tem alguma ideia porque é que será tão valioso?

Existem outras cópias-diz ele, abanando a cabeça - Não é de modo nenhum um exemplar único.

- E está anotado nas margens?

- Não. Se calhar o passador do teu tio tinha pensado simplesmente em ficar com o livro para si próprio e não queria que saísse do país.

Não me parece provável. Depois de ter passado cento e tal livros preciosos na fronteira, não vejo nenhuma razão para de repente se voltar contra meu tio só por causa do seu manuscrito. E não é só isso; havia vários manuscritos valiosos na geniza que o assassino folheou antes de chegar à Haggada de meu tio. - Pego no talismã para o observar, reparo que a palavra «areia» está mal escrita. - Isto foi feito à pressa, provavelmente às escondidas - comento.

Por alguém que não possui uma formação completa na Tora. E que não tem um verdadeiro treino como escriba. Embora a tinta seja de muito boa qualidade. Um escriba amador que tem acesso ao melhor que há, diria eu. Escreve com a dextra, é evidente, por causa da inclinação das letras. Quanto à fita cheiro-a, rolo-a nos dedos -. Um pouco antiga, diria. Cheira a cedro. Talvez estivesse guardada numa caixa. Para sabermos mais precisamos da ajuda de Farid. Se calhar até a tinta tem algum cheiro particular - olho para Frei Carlos -. Quem fez este talismã é porque o queria ver assustado. Mas se o quisesse matar, não se tinha dado à canseira de lhe mandar um aviso. Posso ficar com ele?

Leva-o para longe de mim - exclama, assentindo. Inesperadamente deita a cabeça para trás e boceja. Às vezes penso que podia dormir durante um século ou dois - diz ele.

- Oiça, digo eu - pode ficar na minha cama. Tire mais um cobertor do baú.

- O pátio serve bem.

- O seu sacrifício não traz ninguém de volta.

- Beri, preciso de ver o céu, as estrelas. Deixa-me ficar aqui sentado. Hei-de adormecer quando Deus me der a sua graça.

Com um encolher de ombros enfastiado, desejo-lhe que durma bem. Quando me dirijo para a cave, avisto minha mãe em pé no quarto, como uma sombra, de vigília a Farid. Vou ter com ela, vejo-a apertar contra o peito um talismã em forma de magreifa, uma flauta mítica de dez furos. Olhamos um para o outro, transportados para um mundo que está para além das palavras. De comum acordo, desviamos o olhar para Farid. Respira já à vontade, como se reentrasse no nosso mundo. Terá havido uma espécie de troca? Farid por judas? Será por isso que minha mãe não tira os olhos dele?

- Obrigado por lhe ter dado a sua cama e por olhar por ele - digo-lhe num sussurro. Toma-me a mão, aperta-a. Está impregnada do odor de meimendro. Na sua voz dolente, diz:

- Se ao menos fosse um dos nossos.

- Isso deixou de ter importância - digo.

- Enganas-te, Berequias. Tem mais importância do que nunca. Parecemos espécimes de raças diferentes. Beijo-a no pescoço e deslizo para a cave. Mas nas cartas de meu tio pouco há que me dê esperança. Só duas das cartas me parecem prometedoras, ambas da mesma pessoa. A primeira está datada do terceiro de Shevat deste ano e está escrita em árabe. Meu tio deve tê-la recebido pouco antes da sua morte. Está assinada numa escrita floreada em forma de menora. Tanto quanto posso perceber, pois a geração de cabalistas mais velhos gostam de confundir o leitor ocasional, o nome do correspondente é TuBisvat. É evidente que se trata de um pseudónimo, pois Tu Bisvat é o nome de uma festa judaica que os nossos místicos associam à Árvore da Vida e a certas reparações operadas neste mundo e na Esfera Celeste de Deus. Infelizmente, os meus conhecimentos de árabe são tristemente insuficientes perante o estilo floreado da carta. Mas não há dúvidas que o autor faz pelo menos uma referência à safira» que meu tio lhe enviava. A segunda carta data quase exactamente de um ano antes e está também em árabe, mas não consigo decifrar nada que faça sentido. Se me obrigassem a fazer uma tradução, diria que meu tio andava a negociar a compra de «um azulejo para decorar o centro de um pôr-do-sol».

Vou precisar da ajuda de Farid para remover o emaranhado de gavinhas da cifra árabe em ambas as cartas.

Antes de fechar a geníza, volto a examinar todas as cartas, desta vez para comparar a letra com a do talismã de Frei Carlos. Mas não há nenhuma semelhante.

Em cima, dou com Farid a ressonar. A testa já não queima. Embora me sinta tentado a fazê-lo, decido não o acordar; é o seu primeiro sono a sério nos últimos dias. Vou para a cozinha à espera que ele se levante, levando as cartas na bolsa. Atiro umas pitadas de canela para o borralho ainda quente. Levanta-se uma chuva de faúlhas rubras cintilantes como estrelas cadentes. Apercebo-me de que estou todo sujo de pó e fuligem, mas sinto algum conforto neste fedor húmido. É como se fosse um cheiro judeu, como se tivesse acedido a morar para sempre na dor, como se a vingança, assim que encontrar o assassino de meu tio, tornasse mais intenso este odor almiscarado e o fizesse divinal.

Acordo cedo na manhã de sexta-feira à mesa da cozinha com o cheiro de água salgada salobra: enormes postas de bacalhau estão de molho num caldeiro de água junto à minha cabeça. Ouvem-se os galos a anunciar a alva. Cinfa e Frei Carlos preparam o chá de lúcia-lima.

Estamos no sétimo dia da Páscoa, e com o chegar da noite acabará o último dia das festas. O medo de se me ir o tempo sem ter apanhado o assassino acaba por me despertar completamente como se me abanassem. Cinfa fixa o meu olhar com uma face prazenteira. «A mãe diz que se consegue viver como um rei só com bacalhau e ovos» - comenta. Os seus olhos implorantes procuram uma confirmação para as suas fantasias de felicidade. Mas eu sinto o peso do sentimento de uma cilada. A casa é uma prisão; Cinfa e Frei Carlos improváveis profetas da sobrevida. Erguendo-me com um pulo, pergunto:

- O Rabi Losa ainda não veio, pois não?

- Ainda não - responde o frade.

- E Farid?

- Ainda ressona.

- Já dormiu que chegue! Vou acordá-lo. Assim que vou a sair, Cinfa corre para mim e aperta-se carinhosamente contra o meu peito.

- Por favor, não voltes a sair! Há uma coisa terrível que te vai acontecer hoje, pressinto-o!

Devia sentir-me comovido, mas a única coisa que quero é afastar de mim a menina. Encaminho-a para junto da lareira.

- Não me vai acontecer nada - murmuro - Prometo-te que nunca mais hei-de deixar que algum cristão me faça mal.

Posso ver na sua expressão vaga que a espessa camada de desconfiança que a protegia da mágoa tinha desaparecido. Seguro a mão dela, enquanto conduzo as orações da manhã dela e de Frei Carlos.

- Vou voltar a São Domingos - diz seguidamente o frade para tirar mais umas inculcas sobre Judas.

- Desista, Frei Carlos - aconselho - Se estiver vivo, há-de voltar. Eles não lhe vão dizer nada. Para eles não passa de mais um pouco de fumo judeu.

- Não, tenho de ir lá.

- Mas é perigoso. O homem do Norte pode andar à espreita.

- Se me esperar será em casa. Vou sair pela Rua da Sinagoga e descer até ao rio. Não há-de ser nada.

Frei Carlos faz-me um aceno como se necessitasse da minha aprovação. Parece que a coragem visitou finalmente o frade.

Muito bem - digo com um aceno de assentimento. Ele inclina-se numa saudação e desaparece. A sós com Cinfa, digo-lhe: - Deixa-me ficar com o Farid só por um momento, depois volto para junto de ti.

O seu rosto fica corado e entumescido. Fita-me como quem está prestes a rebentar em lágrimas. Estendo as mãos, mas ela afasta-se de mim e sai a correr pela porta da cozinha.

Farid está ainda a dormir, mas as cores voltaram-lhe ao rosto. A pele dos braços e das pernas é suave, tépida. Os talismãs de minha mãe balançam-se por cima dele como absurdas confirmações da sua saúde. Compreendendo que os anjos recuarariam, uma grata plenitude acode-me aos olhos, impele-me para a janela a oferecer a Deus os meus agradecimentos. Belo, de orelhas espetadas, observa a rua por cima do muro da casa da senhora Faiam, com a sua pata dianteira sustentando-o firmemente. «Benditos sejam os homens e as mulheres, as crianças e os cães - penso -. Com tanta beleza no mundo, será que a existência de um Deus pessoal interessa assim tanto? Não poderemos satisfazer-nos com o que temos? Quando olho para baixo, descubro o Nazareno de Frei Carlos, arrancado da sua cruz, ainda abandonado na calçada. A imagem e eu interrogamo-nos sobre um futuro impenetrável. Farid acorda, bate duas vezes na cama para atrair a minha atenção.

- Ouviste alguma coisa sobre meu pai? - quer saber.

- Nada. Perdoa-me. Só um momento... - Vou buscar as sandálias de SamÍr ao meu quarto, ajoelho-me junto ao meu amigo e estendo-lhas.

- Não me pareceu bem mostrá-las antes, quando ainda estavas tão...

O homem da mesquita disse que o teu pai saiu tão à pressa depois dos motins que se esqueceu delas - digo-lhe por gestos.

Quando Farid agarra as sandálias, os seus olhos cerram-se energicamente. Os polegares traçam o contorno das presilhas, enquanto ele cheira o couro. Ao sentir o odor de Samir, a sua face parece abrir-se. Os tendões do pescoço esticam-se como se dirigidos ao julgamento da ira de Deus. Começa a gemer. Enlaço as minhas mãos nas dele e procuro libertá-lo pela força do meu amor. Aos poucos, as vagas de mágoa de Farid vão minguando até a um fluxo silencioso. Quando se ergue apoiado num cotovelo e limpa os olhos ao lençol, eu limito-me a fazer um gesto para lhe dizer: - Lamento.»

Ele acena com a cabeça e assoa-se à manga da camisa. Sento-me a seu lado.

- Tiveste disenteria. Com tantas coisas à mistura, quase me enganei no diagnóstico. Acho que foi aquele arroz que compraste quando voltámos para Lisboa na segunda-feira.

Passa a mão pelos lábios para me agradecer, depois leva-a ao alto para louvar a generosidade de Alá. Os seus movimentos são seguros, tecidos pela sua fé recuperada. A inveja pela sua crença num Deus generoso impele-me a levantar-me.

- Que dia é hoje? - pergunta ele.

- Sexta-feira.

- Estamos já perto do Sabat. - Abana a cabeça e respira profundamente como se a despertar as energias do seu corpo longamente adormecidas. - Que mais descobriste sobre o assassino de teu tio?

Mostro-lhe o desenho do rapazelho que tentou vender a Haggada de meu tio e depois passo-lhe as cartas de Tu Bisvat.

Agora temos qualquer coisa - acena ele, enquanto passa os olhos pela primeira carta, e traduz as importantes informações que ela contém com uma facilidade cantante: «Esperei para lhe escrever, Mestre Abraão, na esperança de que chegassem mais "safiras". Mas como ultimamente não chegou nada, isso tem-me dado que pensar. Será que aconteceu alguma coisa ao nosso Zorobabel? Ou talvez você esteja doente. Por favor, mande-me dizer. Começo a estar preocupado.»

Há um momento em que o mundo em miniatura de um manuscrito Se torna real, quando os contornos da mão de um profeta ou o brilho nos olhos de uma heroína voltam a refulgir no interior do eterno presente que é a Tora. UM sentimento semelhante de suspensão do tempo apodera-se agora de mim, a minha visão torna-se interior. Perante mim desenrola-se uma vereda. Partindo de Lisboa, através de Espanha e de Itália, conduz ao Oriente. Meu tio caminha ao longo dela, transportando os seus amados manuscritos, sorrindo com a alegria de quem leva presentes. Estas imagens descem sobre mim porque esta carta parece revelar que o caminho dos livros escondidos de meu tio leva a Constantinopla, E que o seu cúmplice na capital turca, Tu Bisvat, não recebeu as encomendas combinadas e estava com medo que tivesse acontecido alguma coisa a meu tio. Estas informações devem tê-lo alertado para a possibilidade de andar a ser traído por um ou mais dos seus correios. Provavelmente, meu mestre guardou para si esta informação até poder estar certo da identidade do criminoso. Entretanto, foi ver Dom Miguel Ribeiro para tentar recrutar um novo cúmplice que pudesse levar os manuscritos para fora das fronteiras portuguesas com relativa facilidade. Quando o fidalgo se recusou a colaborar, meu tio escreveu a Sansão Tijolo, que, devido ao seu negócio de vinhos, podia também conseguir autorização para viajar para o estrangeiro.

Quanto a Zorobabel, referia-se, claro, a um dos personagens do Livro de Esdras, que quando era guarda do rei Dario da Pérsia convenceu o seu monarca a deixar reconstruir o Templo de Jerusalém, então em ruínas. Conseguiu tal decisão alegando que as mulheres eram mais fortes que o vinho e os legisladores, e que mais forte que as mulheres só a própria verdade. Depois da reconstrução do Templo, tornara-se num rico governador de Jerusalém.

Mas quem seria ele neste contexto? Um nome de código do homem que levava escondidos os manuscritos de meu tio para Constantinopla?

Na segunda carta, Tu Bisvat faz uma referência ao zulecha, azulejo, que andâ a comprar para meu tío em Constantinopla.

- Não compreendo - digo a Farid.

- Neste contexto - explicam-me os seus gestos -, penso que é uma referência velada à construção de uma casa. O teu tio pode ter começado a negociar a compra de uma casa no lado europeu do Bósforo, o lado do «pôr-do-sol» de Constantinopla.

 

COM que então meu tio nunca deixou de pensar em se mudar comento, por sinais, dirigindo-me a Farid - Estava à espera que o negócio se concluísse antes de nos falar em Constantinopla. Bizâncio, imagine-se... Uma terra muçulmana. Se ao menos tivesse falado disso comigo. Tenho a certeza que havíamos de trabalhar todos a sério para conseguir o dinheiro. Mas talvez tivesse medo de ser apanhado e ter de fazer compromissos...

A cascata de gestos de surpresa é interrompida pela voz de tia Ester chamando-me da cozinha. «Graças a Deus, a alma voltou-lhe ao corpo» - murmuro. Farid lê os meus lábios e faz um gesto instante: «Vai ter com ela! Pode ser que precise de ti para a puxares de volta ao nosso mundo!»

Quando me precipito para a cozinha, reparo que minha tia não está só. Segura Cinfa diante dela como um escudo humano. Ao lado, está um homem de idade. É descarnado e alto, muito pálido, de cabelo branco espetado e sobrancelhas espessas. Um homem feito de neve, dir-se-ia. Os olhos de tia Ester seguem-me com gravidade.

- Deves estar recordado de Afonso Verdinho - diz ela - Era do grupo de iniciados do tio.

O «Sinistro», o homem do Lado Esquerdo, como costumávamos chamar-lhe com uma certa afeição ambígua. Havia nisto um duplo sentido, que jogava com uma referência em italiano ao facto de Dom Afonso ser canhoto e com a sua estranheza austera. Meu tio apreciava-o como uma curiosidade, e costumava dizer que ele lia a Tora como se estivesse fixada com cola de peixe, aludindo ao ascetismo inflexível que ele adoptara quando andou a estudar com os Sufis na Pérsia. Mas agora onde estava tudo isso? Agora que sabia de quem se tratava, parecia-me ainda mais velho e definhado, como se tivesse vivido encerrado sem comer e apertado numa cela sem luz. Vêem-se manchas amareladas de suor debaixo dos braços da sua camisa branca amarrotada. Traz no braço uma capa preta rota forrada a seda azul poída. Quando os nossos olhares se encontram, os lábios contorcem-se-lhe desagradavelmente. Nenhum de nós faz um gesto de saudação.

- Lembras-te dele, não lembras? - sugere tia Ester - Eras ainda um rapazinho quando...

- Lembro - respondo abruptamente. O pressentimento de uma catástrofe iminente imobiliza-me como se fosse de cristal.

- Berequias, vou ficar com Afonso durante algum tempo - continua ela, falando lentamente e com delicadeza - Ele veio para cá assim que chegaram a Tomar notícias dos motins. Está alojado na estalagem do senhor Duarte, perto da casa de Reza. Ficamos lá. Por favor, diz isso a tua mãe. Não queria acordá-la. Mas se precisar de mim, pode vir ter comigo.

- Não percebo - digo. Minha tia passa as mãos pela fronte, esfregando@a como quem tenta fixar os pensamentos dispersos. Cinfa volta-se para a observar, depois dá um pulo para fora de casa. Tia Ester chama-a em vão. A expressão de Afonso assume um ar de delicada simpatia ao se dirigir em persa em voz baixa a minha tia. O seu braço protector rodeia os ombros dela. Ela abraça-o chamando-o a si. Falando para mim, diz numa voz seca:

- Tens de dar algum tempo a tua tia. Tenta compreender que a viagem é muito mais complexa do que sempre pensaste.

Dom Afonso conduz tia Ester para o pátio e vejo-os desaparecer enlaçados pelo portão. O ciúme, espesso e quente como pez, jorra-me pelo peito; é cruel a conclusão de que um quase desconhecido pode fazer reviver minha tia quando a mim não me foi possível fazer nada. E que ela fosse capaz de abandonar a família numa altura destas, parecia-me impossível!

Dom Afonso... será que a sua presença muda tudo? Estará envolvido na morte de meu tio, como passador dos livros? Mas ele saiu de Lisboa antes das conversões forçadas, muito antes de meu mestre e de meu pai terem cavado a geniza.

Sinto um absurdo desapontamento penetrar-me as entranhas, associado à descoberta de que a vida não é um livro, não tem notas à margem a explicar acontecimentos mais difíceis. Se assim fosse, Dom Afonso teria ficado em Timor sentado em frente à lareira. A sua vinda só serve para complicar o que já me escapa. Ouço meu tio dizer-me: «Caro Berequias, a vida propõe-nos muitas veredas que não levam a lado nenhum, portas que se abrem sobre meros abismos, escadas que sobem até portões fechados a cadeado». E recordo que ele costumava dizer-me que todas as vidas são uma peregrinação ao Shabat. «Mesmo que assim seja - penso -, então todos nós tomamos as estradas com mais desvios para lá chegar».

Volto para junto de Farid em passadas vagarosas.

- As pessoas são criaturas muito estranhas - comento.

- Porquê? Que aconteceu? QUando lhe explico, ele pergunta com os seus sinais:

- Não sabes, pois não?

- Não sei O quê? - pergunto.

- Em tempos, foram amantes. Foi meu pai quem mo disse.

- Estás doido! Afonso e...

- Há anos que tinham acabado. Não quer dizer nada. As suas palavras são demasiado simples para serem entendidas. O chão fica escorregadio, desliza como águas lamacentas. Os gestos de Farid servem-me de âncora num mundo que rodopia. Seria possível que tia Ester afinal pudesse estar envolvida na morte de meu tio? Talvez que inadvertidamente tenha confiado a Dom Afonso a existência da nossa geníza. Ele podia ter actuado por sua própria iniciativa, levado pela sua infatigável paixão por ela.

Farid adivinha os meus pensamentos e comenta:

- Um castelo de cartas numa mesa inclinada no meio de uma tempestade de areia.

- Mas não se ela não soubesse dos planos de Dom Afonso. Talvez ele lhe tenha escondido a sua trama. Mesmo agora, não suspeita que o homem que a conforta é o assassino do seu marido!

- Mas nós sabemos pelas cartas de Tu Bisvat que muito provavelmente há um dos iniciados implicado nisto. A não ser que aches que Dom Afonso era um deles... que Zorobabel era ele.

Ficamos os dois sentados em silêncio durante algum tempo. Continuo estupefacto com a partida de tia Ester. O meu amigo faz-me sinais de quando em vez, mas não lhe presto atenção até que ele me agarra o braço.

- Entrou alguém em casa com um passo esquisito - adverte -. Sinto as vibrações.

De repente ouço a voz de um homem chamar-me da cozinha. Corro para lá. À porta da cozinha, avisto o iniciado «morto», o importador de tecidos Simão Eanes, pesadamente apoiado nas suas muletas, com o seu xaile de veludo negro atirado sobre os ombros. Vê-se que não se lavou nem fez a barba e apresenta uma grande crosta na testa como um olho ferido. Cinfa está junto dele, abraçando-o como a uma criança abandonada. Enquanto passa a sua mão enluvada pelos seus cabelos, faz-me um aceno de simpatia.

- Berequias, contaram-me o que aconteceu a teu tio - diz ele. Involuntariamente, olho para o seu pé para ver se seria humano.

- Você não morreu! - exclamo. Abana a cabeça e sorri, um sorriso louco, grande de mais, como se os lábios tiVesseM sido repuxados por fios invisíveis manipulados por algum bonecreiro.

O poder da experiência comum de termos escapado vivos é algo que nos liga e dou um passo para ele. Mas as luvas! A da mão direita está rasgada nas costas. Será possível que o fio de seda na unha de meu tio seja realmente ... Recuo com desconfiança. Ele exibe no rosto uma nova caricatura de um sorriso.

- Como se sente? - pergunto - Que aconteceu? O seu senhorio disse que...

- Estou bem - acena ele - Fui eu que lhe pedi para dizer a quem me procurasse que tinha morrido. Pareceu-me mais seguro naquela ocasião. Depois fugi de Lisboa. Acabei de voltar agora.

«Meu Deus - penso -, será que também Judas voltará dos mortos? Ou será esperar demasiado?»

Simão aceita a matza seca que lhe ofereço com uma vénia graciosa.

- Meu tio não é o único membro do grupo que morreu - digo - Sansão também.

- já sei. Tinha estado na minha loja. Disse-lhe para ficar, para se esconder comigo. Mas ele queria voltar para junto de Rana e do menino. Foi apanhado a menos de cinquenta passos da porta... não podia escapar com toda aquela populaça dos cristãos por toda a parte.

O meu corpo parece ausente. Procuro uma maneira de o ludibriar, mas o que me sai da boca é apenas a verdade:

- Diego e Frei Carlos escaparam. E agora Dom Afonso Verdinho voltou para Lísboa.

Simão assente, sorri fugazmente como se não me tivesse ouvido e estivesse apenas a ser cortês. Estamos sentados um em frente ao outro. Cinfa murmura para si própria qualquer coisa sobre afazeres para me dar a entender que não tem estado a ouvir a nossa conversa. O meu olhar irritado força-a a escapar-se para o pátio. Na face de Simão desenha-se um sorriso tenso que mais parece desenhado por um iluminista sem talento.

- O que é que tem tanta graça? -pergunto.

- Nada.

- Está ferido - digo, apontando para a sua testa Alguém lhe bateu? Simão leva a mão à crosta, explica-me que tropeçou numa carreta quandO se escondia na loja de um estofador, ri-se mostrando-me mais feridas no joelho. Depois põe-se a contar uma graçola estúpida sobre um cão que mijou numa perna falsa que ele experimentou em tempos, ri-se e pisca os olhos, continua a rir-se. Os olhos movem-se nervosamente em torno da cozinha quando o silêncio acaba por se impor às suas palavras.

Na sua mágoa decidira tornar-se o bobo da corte de um Deus tirano.

- Estamos sem vinho - digo-lhe - Só se quiser aguardente. Temos ali. um pouco de incenso de Goa que ainda escapou que pode...

Não, não. Estou bem. Farid entra, aninha-se perto de mim. Responde ao sorriso de Simão com um aceno desconcertado, interrogativo. Não tendo recebido qualquer resposta, meu amigo comenta com os seus gestos: «É como um jasmim fanado que floresce antes de morrer.»

Mais para dissipar o seu falso contentamento do que por qualquer outra razão, conto a Simão o que se passa com minha mãe e com tia Ester e o desaparecimento de Judas e de Samir. Ele abana a cabeça como se tivesse já ouvido as minhas novas. Para experimentar as suas reacções, digo-lhe:

- Achei uma conta de rosário perto do corpo de meu tio. Estou convencido que foi Frei Carlos quem matou meu tio.

- Frei Carlos? Mas que razões poderia ele ter para matar Mestre Abraão?

- pergunta ele.

- Tiveram uma discussão sobre um manuscrito que o frade não queria dar a meu tio - replico.

Simão sorri como se condescendesse comigo, passeia os dedos como uma aranha por cima da mesa.

- Então, que é que me diz? - pergunto em tom irritado.

- Que queres que te diga? Acho que é um absurdo. Mas se é isso que queres acreditar, quem serei eu para te desfazer a ilusão? Estou cansado de procurar a verdade. As ilusões são maravilhosas. Todos deveríamos ser abençoados com um jardim de ilusões em flor, é muito mais fácil viver desse modo.

Cinfa volta para dentro. Aconchega-se nos braços de Farid.

- Não deves dar-me atenção - diz Simão com um suspiro -. Não passo de um velho louco que já não tem muita coragem. Mas em honra de Mestre Abraão vou tentar encarar a verdade, se quiseres. Diz-me uma coisa, achas que ele foi morto por alguém que o conhecia... por um cristão-novo?

Parece que os seus olhos inquisitivos quase o desejam, como se meu tio pudesse preferir a morte pela mão de um judeu a ser assassinado por um seguidor do Nazareno.

- É muito provável - respondo. Quando lhe falo no cutelo de shohet e no que nos roubaram, Simão morde os lábios. Olha furtivamente para Cinfa até eu perceber a sua intenção. Peço à menina que vá à loja buscar alguns frutos que tenham escapado para o nosso hóspede.

- já percebi - diz ela agitadamente -. Mas lembra-te que ele também era meu tio! - fixa os olhos em mim -. Vou buscar fruta para ajudar o Farid a ficar bom. Mas não é por tu me teres pedido!

Quando estendo as mãos, ela desvia-se e sai a correr.

- Não sei que faça com ela - confesso -. Num instante tem medo de mim, instantes depois já...

- O tempo encarrega-se disso - diz Simão com um sorriso.

- Você já me parece Dom Afonso Verdinho.

- Ah, é verdade, quando é que ele voltou?

- Acabou de chegar - digo eu -. É curioso, não é?

- Que queres dizer? Também achas que ele pode ter sido...

- É possível.

- Conta-me o resto sobre a partida de Mestre Abraão daqui da Esfera Terrena.

Num tom que caminha um passo adiante da emoção, descrevo a Simão como encontrei meu tio e a rapariga, a posição dos corpos, os golpes no pescoço.

Como resposta, sorri, mas os lábios tremem-lhe, como se dentro dele se travasse uma batalha pelas suas emoções. Interrompendo-me abruptamente, diz-me num tom instante:

- E não havia mais nada de invulgar no corpo de teu tio?

O meu coração começa a bater a um ritmo que soletra as palavras «fio de seda», mas limito-me a dizer:

- Como por exemplo ... ?

- Semente branca - conclui Simão num murmúrio, usando o termo cabalista para sémen, e encolhendo os ombros como que a rejeitar as suas palavras.

Como é que ele ... ? - Com um gesto da mão suspende a minha pergunta.

Em Sevilha, fui denunciado por um membro da comunidade judaica. Nunca vim a saber quem foi. Os inquisidores não dizem isso aos presos, é claro. Eu bem neguei, mas eles meteram-me dentro na mesma. Essas marcas no pescoço de teu tio eram feridas. Já vi o mesmo noutras ocasiões. Quando enforcam ou quando garrotam alguém - põe os olhos no chão, o sorriso esvai-se; limpa os olhos à manga da camisa -. o sémen aparece como uma reacção do corpo ao aperto da garganta e da traqueia - continua - Não é em todos os casos.

Mas acontece. Tenho cá na ideia que quando Deus se aproxima para recolher os justos, a felicidade sobe. Há um orgasmo. Talvez o próprio Deus tenha um orgasmo nesse preciso momento. O teu tio devia saber isso. De qualquer modo, a vítima vê-se em face do Criador no momento em que o êxtase aumenta para vencer a dor. Como Mestre dos Nomes de Deus, o teu tio deve ter alcançado sem dúvida um poderoso orgasmo quase de imediato.

Quer-me dizer que primeiro o enforcaram? Mas não havia nenhuma corda, nem...

- Ou garrotado, ou até estrangulado. Com uma corda ou com as mãos. E...

- Foi com um rosário - interrompo - Não estava a mentir quando falei na conta do rosário que achei.

- E então o teu shohet cortou-lhe a garganta - continua Simão - Como que por hábito. Ou para ter a certeza. Nunca se pode estar completamente seguro com um cabalista daquela envergadura. Há maneiras de...

- Tinha de ser alguém - dizem os gestos de Farid - que ele deixasse aproximar-se dele o bastante para o poder atingir. Zorobabel... quem quer que ele seja deve ter vindo cá.

Como pretendia manter o segredo sobre a minha descoberta de que um dos passadores que trabalhavam para meu tio devia estar implicado na morte, refreei o impulso de traduzir para Simão esta última frase. Solta uma gargalhada.

- Um homem como eu, quer dizer o Farid. A hesitação de gamo que Simão exibia desaparecera completamente para dar lugar a esta sua nova personalidade.

- Isso mesmo - digo - Como você.

- Berequias, não me vou sequer defender. O teu tio resgatou-me da morte cristã. Mais depressa me mataria a mim do que...

- E no entanto encontrámos uma coisa que talvez lhe pertença - digo.

- O quê?

- Passe-me uma das suas luvas e já lhe digo. Encolhe os ombros como se acedesse a uma extravagância, saca a luva rasgada e estende-ma. Meto a mão na bolsa e retiro o fio de seda. São semelhantes: a mesma seda preta, sem o mínimo matiz de diferença.

- Estava preso numa das unhas de meu tio. É seu. Depois de examinar o fio, Simão apoia-se na mesa para se levantar, lança-me um sorriso de simpatia.

- Pode ser que seja o mesmo, não sou um entendido. Mas podia ter sido obtido na minha loja, ou em qualquer uma das muitas lojas da Pequena Jerusalém. Mas tenho a certeza que te perguntas como é que as minhas luvas se rasgaram. - E vendo o meu aceno de assentimento, prossegue num tom melancólico: - Quando andamos numa só perna, temos uma certa tendência para caír. Quando caímos na pedra, a seda rasga-se. É um material maravilhoso, este tecido que os bichos fazem, mas quando o tecem para fazer casulos não adivinham a parvoíce dos homens.

Pega nas muletas, enfia as almofadas de couro debaixo dos braços. A vergonha que sinto de assim atormentar um homem estimado de meu tio mistura-se com o perverso desejo de prosseguir o meu assédio até ter arrancado da sua alma a mínima possibilidade de felicidade.

- Simão - digo -, vivemos num tempo de máscaras. E na realidade não sei o que se esconde debaixo da sua. Assim como você não sabe o que a minha esconde. Tanto quanto sei, o homem que você realmente é deve agora estar a dar-se palmadinhas nas costas por me ter enganado.

- A minha velha máscara - diz ele, ajustando as muletas com um pequeno salto - há muito tempo que ardeu na pira que queimou a minha mulher. A nova... não faço sequer ideia com o que ela se parece. - Põe a luva com um ar resignado. - Talvez tenha tido uma terrível contenda com teu tio numa altura em que ninguém estava a ver. Era isso que um inquisidor haveria de presumir. Mas será nisso que te tornaste? Um místico judeu transformado em inquisidor?! - sobe-lhe das entranhas um riso amargo - Não eras o primeiro, pois não? Tudo é possível em Portugal e Espanha. Abençoadas terras de milagres!

Será isto a cínica defesa dos cansados da vida ou a impostura de um assassino?

- Sabe quem passava para o estrangeiro os livros de meu tio? - pergunto. E quando ele abana a cabeça, continuo: - Nem tem nenhuma ideia?

- Nenhuma. Tornei-me muito habilidoso em não pensar certos pensamentos. De facto, não pensar é um talento especial que desenvolvemos em Castela e na Andaluzia. Se lá fores um dia vais ver como isso é apreciado nos bons cidadãos dessas negregadas províncias.

Desenrolo o desenho do miúdo que tentou vender a última Haggada de meu tio à senhora Tamara.

- Conhece-o?

- Não que me lembre - replica.

- E Tu Bisvat?

- Que é isso?

- Não é «isso». É um homem de Constantinopla que assina com este nome... e que recebia os manuscritos que meu tio fazia passar a fronteira.

- Deve haver uma centena de cabalistas em Constantinopla - diz Simão, abanando a cabeça - Esse tal Tu Bisvat pode ser um deles. Mestre Abraão dizia-nos que era melhor não nos metermos nessas suas actividades. E nós respeitávamos a sua vontade. Tal como tu, meu caro Berequias.

Quando mais uma vez ele exibe o seu sorriso lastimoso, a vontade de lhe dar uma estalada queima-me o peito.

- E Aman? - pergunto asperamente.

- Que é que tem?

- Alguma vez meu tio lhe disse que rosto tinha dado a Aman na sua última Haggada?

Simão abana a cabeça e caminha apoiado nas muletas em direcção à porta, Volta-se para mím com a mão a proteger-lhe os olhos. O bobo tinha desaparecido; tinha agora o olhar vazio de um homem cujas esperanças se tinham desvanecido. Numa voz veemente murmura:

- Berequias, vim cá dizer-te uma coisa. Há um fidalgo espanhol que está alojado no Palácio dos Estaus que anda por aí a procurar livros hebraicos, em especial manuscritos com iluminuras. No Shabat antes da morte de teu tio, fui abordado a ver se tinha algum para vender. Não sei onde é que soube o meu nome. Não me quis dizer. Desconfia de todos nós se quiseres. Mas desconfia sobretudo dele. Podes sentir-te tentado a vender alguns dos livros de teu tio para arranjar algum dinheiro para pagar as peitas para sair de Portugal. Mas não tenho confiança neste homem.

- E o nome dele?

- Intitula-se conde, Conde de Almira, mas cá para mim é mentira.

Depois de ter explicado a Simão e Farid que se tratava nem mais nem menos que do homem que levou Diego para o hospital quando o apedrejaram, ambos insistiram em me acompanhar para falar com ele. Caminhamos em silêncio, lentamente, de modo a que Simão possa seguir o nosso passo com as suas muletas. Tudo o que agora resta dos motins são os olhares astutos dos cristãos; suspeitosos, como quem marca o território, dizem-nos que não somos como eles. Como se não o soubéssemos já. Começam então com os seus murmúrios e desviam os olhos de nós como se fôssemos mortos-vivos. Como se não o soubéssemos já, também.

Ao entrarmos na sombra inclinada da manhã projectada pelas duas torres sineiras da Sé, Farid assinala-me que somos seguidos por um homem. «Desde que saímos - revelam os seus gestos -. É um homem dos países do Norte. Mas não olhes agora.»

Recomeçamos a caminhar descendo em dírecção da Igreja da Madalena rumo à Pequena Jerusalém. Aqui, mais do que caminhar, torneamos os bolos secos de excrementos atirados para a rua pelos cristãos. Ao longo da calçada, desenham-se linhas acastanhadas sinuosas e apagadas, rastos sangrentos deixados pelos corpos dos judeus arrastados para as fogueiras. Zumbem moscas à nossa volta, enfiam-se nas nossas narinas, pousam nos nossos olhos. Porém, os meus pensamentos continuam presos ao homem do Norte que nos segue. É como se uma corda invisível nos ligasse e me puxasse para trás pelos ombros. Ao passar na antiga escola, dou uma olhadela. O nosso perseguidor caminha em passadas largas junto às carretas de peixe seco. É o mesmo gigante loiro que avistei à porta da casa de Diego, estou certo disso.

Será ele o Maimon Branco de Duas Bocas, como parece indicar o seu aspecto pálido?

Tomo Simão pelo braço, falo-lhe nessa sombra que nos persegue.

- Deve andar atrás de mim - observo - Talvez alguma coisa que eu saiba sobre a morte de meu tio... sobre a trama para o matar. É melhor separar-se de mim.

Simão fita-me com um sorriso de aquiescência; deixara de se opor ao destino.

- Não era melhor fazer-lhe frente? - observa Farid - Somos três contra um.

- Não me parece boa ideia - digo, apontando as muletas de Simão com um aceno - Sozinho, posso despistá-lo nos becos da Pequena Jerusalém. Ele não é de cá. Nem sabe por onde anda. Vou ter com vocês ao Palácio dos Estaus. Esperem lá por mim.

Fazem um aceno de acordo e continuam em direcção ao Rossio. Eu volto-me para o nosso espia para me assegurar que me vê, depois atalho pelas lojas de passamanaria rumo ao antigo hospital judeu. Com um pulo, escondo-me no limiar da porta da Estalagem dos Dois Irmãos. Daqui posso passar por uma viela das traseiras para a Rua da Ferraria. Enquanto estou assim com as costas pregadas à porta, observo uma revoada de borboletas cor de creme a voltear para poisar nos excrementos recentes de cavalo. O homem do Norte estaca de repente no cruzamento adiante. Tira o chapéu, enquanto me fita. É alto, de maçãs do rosto proeminentes e olhos traiçoeiros. Passa a mão pelas mechas da frente do seu cabelo oleoso e volta a pôr o chapéu. Mas o seu primeiro movimento é errado; passa por mim e prossegue em direcção a Farid e Simão.

Sinto nas entranhas insinuar-se o gelo do meu erro. Deslizo para fora, silencioso como um gato. O perseguidor, no entanto, lança-me um olhar directo por cima do ombro, como se fosse dotado dos poderes de um bruxo. Fita-me com um olhar determinado e depois desata a correr. Corro atrás dele. Cai-lhe o chapéu. Um lampejo cintilante passa-lhe para o punho cerrado no momento em que retira algo da sua capa. Farid, também, pressentiu o perigo. Uns cem passos ao cimo da rua, vejo-o fazer sinais frenéticos para Simão. Arremetem pela Porta Setentrional da Pequena Jerusalém, através da sombra recortada pela cúpula da Igreja de São Nicolau. O andar manquejante de Simão torna-se desajeitado, desesperado. «Corra, Simão!» - grito. Mas é Impossível. Volta-se, larga uma das muletas. Vejo-o como que através de um tempo com a textura do mel: o rosto abrindo-se no momento em que o nosso perseguidor se atira a ele; o seu derrAdeiro apoio escapando-se-lhe, o corpo embatendo numa parede. Farid ajoelha-se junto dele, e o assassino louro escapa-se correndo com a capa drapejando de si.

 

SiMãO não consegue falar. Ou talvez já não valha a pena. Repousa nos braços de Farid e despede-se do mundo com os olhos. Uma adaga com um punho de ébano enfiada nas costelas separa-lhe agora o corpo da alma. Por sinais, digo a Farid: «Mais um que não verá o Shabat de hoje à noite.»

A mão esquerda de Simão segura o punho da adaga. «Tira-a» - geme ele. Farid puxa-a para fora. Como vinho que se escapasse de um batoque, o sangue jorra sobre nós. O velho iniciado solta um suspiro de alívio. «Obrigado» - murmura. Farid empunha a lâmina enquanto mete o braço por baixo da cabeça de Simão a servir-lhe de almofada. «Aguçada» - dizem os seus sinais. Aceno a confirmar a observação; a lâmina dos shohet é tradicionalmente quadrada na ponta, mas esta arma está cuidadosamente afiada.

- Desculpe ter suspeitado de si - murmuro em hebraico para Simão, Devia ter...

Ele acena como quem afasta a necessidade de falar em remorsos, deixa poisar a sua mão delicada no meu braço. Olha para o céu e sussurra orações. Reconheço nomes de Deus, depois os da sua família desaparecida. «Graça» - desenham os seus lábios.

Os dedos de Simão afagam o meu braço como se me consolasse. No instante em que a sua alma parte, ouve-se um gorgulhar no seu peito e há um estremecimento a percorrer-lhe as mãos como um bater de asas. Delicadamente, fecho-lhe as pálpebras. É seguramente um pecado para um homem como eu ver-se como sendo um profeta, ainda que por um instante. No entanto, aponho os meus lábios em Simão, os meus olhos nos seus olhos, as minhas mãos nas suas mãos. Deixo-me cair sobre ele como Eliseu sobre o filho morto da Sunamita. Depois, inserindo o polegar e o indicador na sua boca, mantive-a aberta ao meu sopro. Insuflei-lhe vida com a minha vida por sete vezes. Uma dor no ombro desce por mim em vagas enquanto os meus pulmões se esvaziam para dentro dele. Farid puxa-me para trás. Os seus olhos denotam desagrado, mas porém beija-me na testa. «Basta» - dizem os seus gestos.

Quando olho para Simão, perpassa um ligeiro movimento pelos seus cabelos tal a carícia de um anjo. «Estás a ver?!» - digo em voz alta.

- Está morto! - replica Farid com gestos enérgicos - Nunca mais acordará.

Puxa-me para os seus braços. O bater do seu coração cresce dentro de mim.

A tepidez encerra-me na escuridão atrás das minhas pálpebras.

Esperamos juntos. Choro por momentos. Depois a morte de Simão seca nos meus pensamentos, revela-me a realidade de Lisboa. À nossa volta, fecha-se um círculo de gente, todo curiosidade e cochichos, pois não há nada que fascine tanto os cristãos como o infortúnio dos judeus. Olho para o fundo da rua, faço sinal a Farid que não demoro. Recupero o chapéu do assassino. Um rapazito sem camisa com o mesmo olhar inocente de Judas veio-mo entregar.

Volto para junto de Farid, comunico-lhe:

- Vou ver que caminho ele tomou. Podes fazer frente a estes filisteus sozinho?

Acena que sim. Como se fosse empurrado de algum cimo gelado, saio a correr. À entrada do Largo do Rossio, páro, paralisado pela convulsa confluência de homens e mulheres, carruagens e cavalos. A ridícula vida do largo escondeu-MO. Um velho barbeiro num gibão esfarrapado chama-me numa voz preguiçosa com sotaque algarvio: «O senhor parece um pouco desmazelado. Não quer fazer a barba e cortar o cabelo? Estas mãos são tão ligeiras que era capaz de roubar a cor a um morcego.»

- Não viu um estrangeiro loiro?! - pergunto.

- Talvez a seca acabe com o mês novo - replica. Exibe a alegre indiferença dos surdos, agarra-me a mão e tenta conduzir-me à sua cadeira. Liberto-me dele. A mulher, a quem uma rapariguita cata as lêndeas do cabelo tufado, aponta um dedo recurvo em direcção à esquina a norte do largo. «Foi para ali - indica ela.

Interrogo em vão os lojistas próximos, até que um vendedor ambulante de tapetes aponta, com modos saltitantes e efusivos, para a esquerda da Igreja de São Domingos.

Corro pela rua poeirenta que costumávamos chamar Rua da Bruxa, por lá morar uma velha megera de olhos de gato que a troco de dinheiro reparava a virgindade das mulheres. Um aguadeiro de cabelo ruivo que se entretém a jogar cartas sozinho boceja indicando o caminho seguido pelo homem do Norte: «Por ali!» - grita ele, apontando para oriente. Entro na Mouraria, continuo a corrida até as casas azuis e brancas começarem a dar lugar a barracas de madeira. No ponto em que a rua acaba, deparo com os degraus de granito que conduzem como uma fita pregueada à grande cruz de pedra que assinala o limite inferior do Convento da Graça. Duzentos pés acima de uma encosta árida e batida fica a coroa de pedra das torres e muros que constitui o convento propriamente dito. Tinha atingido um impasse.

Vagabundos esfarrapados, de rostos sujos, falsos, mais anões do que crianças, dão pontapés numa péla de couro nas escadas. No topo, na crista da encosta, uma freira minúscula, a mais raquítica de entre todo o lixo religioso da sua espécie, invectiva-os aos guinchos com um sotaque galego:

- Xôô! Fora daqui, bando de ratos! Haveis de arder no Inferno antes de ter tempo de pedir perdão a Deus!

Aparentemente, o desrespeitoso objectivo do jogo dos rapazes é acertar em cheio na sua adorada cruz de pedra.

Ao dar pela minha presença, um rapaz escanzelado de olhos esverdeados grita para ela num tom de desafio:

- Vai-te foder, vaca! Os rapazelhos riem-se. A freira continua a guinchar: « Os vossos pecados hão-de levar-vos a casar com barregãs do Diabo! E os vossos filhos hão-de todos nascer sem olhos e surdos, com cornos e rabo. E haveis de...

Parece ser uma litania que tem de memória, com que responde dia após dia àquela tortura. Talvez seja esse o seu penar. Agarro a bola que me passa perto.

- Eh, atira isso! - gritam os catraios, as faces tumefactas e furiosas.

- Então digam-me se viram um estrangeiro - replico.

- Por aqui não há estrangeiros coisa nenhuma. Atira mas é a merda da bola!

- Um homem de cabelo loiro pelos ombros. De capa com...

- Subiu pela encosta acima como uma aranha - diz um deles, apontando um dedo curto e sujo.

Dou um pontapé na bola visando a cruz. Falha por pouco. Os miúdos festejam, depois correm atrás dela aos gritos, enquanto a bola rola pelo penhasco abaixo.

No topo da colina, ofegante, deparo com os contrafortes do Convento da Graça, como se me visse perante as Portas do Mistério. No lado fronteiro da rua há uma feira. Interrogo os tripeiros e mercadores de peneiras, vendedores de pentes, gaioleiros, e até uma família de corcundas castelhanos que vão em peregrinação a Santiago, mas ninguém o viu. Como último recurso, lá me atrevo a aproximar-me da freira vociferante. Tem um dente acastanhado espetado como uma adaga pôdre no lábio inferior, pálpebras como ameixas e um nariz cheio de escaras. Faz uma pausa na sua ladainha suficiente para exclamar num tom de sábio conselho: «Procura Deus, não estrangeiros.» Quando repito o que o miúdo vadio lhe mandou fazer, desata aos guinchos como um papagaio brasileiro.

De volta à Pequena Jerusalém, discuto com Farid o que havemos de fazer do corpo de Simão. Desgraçadamente, não sabemos ao certo onde fica a sua casa.

A partir das suas descrições ocasionais das vistas sobre o Tejo, sempre pensámos que morava nas escarpas encimadas pela Igreja de Santa Catarina fora das portas a ocidente da cidade. Pedimos pois um carro de mão a uma amiga de minha tia, e começamos a transportar o corpo ao sol da tarde.

As pessoas observam-nos quando passamos? Não sei; um mundo interior de perguntas e remorsos serve-me de refúgio. Farid conduz-nos. Tudo o que sinto é a penosa subida da colina, uma vaga, incómoda sensação de calor e suor, sol e poeira. Desperto apenas para os alvos ângulos estridentes de Lisboa quando se ouve gritar o nome de Simão. Para oriente, a torre sineira de Santa Catarina parece trespassar o céu azul. Uma mulher robusta de rosto sombrio, com um lenço branco pela cabeça, corre para nós aos berros. Detém-se horrorizada à vista do sangue nas roupas de Simão. Ajoelha-se aos vómitos. É a irmã mais velha da mulher de Simão, diz-me uma velhota. Aponta para uma casa a cair: «Moram no segundo andar.»

O meu sentimento de desesperança afunda-se e parece fazer-me desaparecer da cena. A mulher que vivia com Simão é magra, de pele escura, e mostra uma elegância natural e precisa quando nos convida a entrar, revelando um perfil inesperadamente decidido numa mulher tão jovem. Possui um olhar inteligente; veste uma túnica larga cor-de-rosa pálido. Emana uma dignidade que me faz pensar em Reza. Mas é ainda quase uma rapariga. «Esta é a Graça, a mulher de Simão» - diz-nos a irmã.

Graça corre para a janela para ver Simão quando lhe conto o que lhe aconteceu. As suas mãos agarram-se ao parapeito. Os seus uivos tornam-se quase animais na sua intensidade, como se estivesse a chamar o seu filhote perdido numa linguagem saída das tripas.

Agarra o ventre, e num momento de desespero profundo compreendo que está grávida. Assim que as primeiras vagas de horror diminuem, digo-lhe: «Foí o seu o derradeiro nome que os lábios dele desenharam.»

Descemos para a rua. As pessoas afastam-se. Graça deixa-se cair de joelhos e afaga o rosto de Simão. Consola-o a falar-lhe de Cristo e da criança por nascer.

Compreendo então o que devia ser evidente: era cristã-velha. Com uma energia desesperada, protectora, a irmã de Graça afasta-a, empurrando-a para Farid e para mim. «Conta-nos todos os pormenores da morte de Simão!» - pede ela.Com uma voz que parece pertencer a outra pessoa, explico o que se passou. Berequias tinha-se escondido no fundo da couraça do meu corpo. Graça é incapaz de falar. A sua boca fica aberta, os olhos revelam um desespero cavo. A irmã pergunta, cerrando os punhos: «Onde havemos de ir pedir justiça?»

- Quando encontrar aquele estrangeiro - digo, abanando a cabeça logo lho direi.

Farid e eu estamos cobertos de sangue. Vizinhos amigáveis ajudam-nos a limparmo-nos, dão-nos camisas lavadas e bolsas, dão-nos queijo e vinho. Demasiado fracos para recusar, aceitamos as ofertas. Entorpecidos pela bebida, com o passo balançado, descemos para o centro de Lisboa como quem abandona uma paisagem bíblica.

Depois de termos devolvido o carro de mão, vagueamos como espectros pela Pequena Jerusalém. Em frente da tinturaria onde dantes era o nosso tribunal judaico, comecei a soletrar com os meus passos «Abraão». Depois «Judas». Farid ao fim de algum tempo começa a ficar inquieto. Detém-se, volta-se para oriente como um catavento. «Vamos para casa» - acena ele.

Volto-me para oeste para seguir a descida do sol sobre esta cidade maldita. Esta noite, uma semana depois do começo da Páscoa, deveríamos escoltar o Zohar até à madrugada com as nossas leituras. Mas já não temos nenhuma cópia do texto sagrado. E ainda que tivéssemos... «Não, para casa não!» - grito na minha voz avinhada. Continuo em passadas arrastadas até ficar em cima das manchas do sangue de Simão na calçada da Pequena Jerusalém. «Ainda não há muito, estas crostas castanhas corriam no corpo dele» - dizem os meus gestos para Farid. Abana a cabeça, a confirmar o que lhe parece evidente. Mas eu não consigo simplesmente acreditar nisso e recordo o dia de trás para a frente, como quem lê um texto às avessas. A advertência de Simão sobre o Conde de Almira soa-me aos ouvidos como se acompanhada pela cadência de pandeiretas mouriscas.

Voltemos para Alfama - pedem as mãos de Farld -. Temos de arranjar maneira de falar com Diego... avisá-lo de que o homem do Norte o mata de certeza se o conseguir encontrar.

Não, Diego não vai aparecer por perto de casa e nós também não vamos conseguir localizá-lo. Vamos para o Palácio dos Estaus. - Ele abana a cabeça e eu tomo-o pelo braço. - Preciso que venhas comigo. Escusas de protestar.

Quando Farid e eu chegamos ao Rossio, as cinzas e lascas de lenha das fogueiras onde queimaram os judeus rodopiam em torno a nós. A princípio parece ser o único vestígio que resta da montanha dos pecados cristãos e eu penso: «Os nossos mortos moram agora apenas na nossa memória.» Farid no entanto repara que não é bem assim. Olha! - e aponta com o pé uma fenda entre as pedras. Dentes humanos. Deve haver milhares deles espalhados por todo o largo, enfiados nas rachas da calçada. Apercebo-me então que por toda a parte se vêem mulheres e crianças ajoelhados a apanhar estes restos, como se fosse a época das colheitas. Sem dúvida devem querer guardá-los como talismãs contra a peste.

Em frente de nós, na borda a nordeste do largo, um regimento de soldados do rei rodeiam a Igreja de São Domingos formando um semicírculo diante da entrada. Atrás deles, vê-se uma fila de cavaleiros, ao todo talvez uns vinte.

- Deve ter havido um acordo qualquer entre o governador e a hierarquia dos dominicanos para poderem ficar em Lisboa - comenta por gestos Farid.

- Quando a matança acaba, a Coroa manda as tropas - replico - É um grande conforto saber que ele nos apoia com tanta coragem, não achas?

Enquanto caminhamos, observamos a atitude respeitosa do povo da cidade, o mesmo povo que um dia ou dois antes era capaz de exigir a cabeça do rei. «Esta passividade está profundamente entranhada nas almas dos cristãos portugueses . penso - Nunca nenhuma revolta há-de aqui ter sucesso.»

Uma velhota de olhar astuto à procura de meter conversa como é costume das pessoas perante a autoridade real, detém-nos e diz:

- Dois dos frades dominicanos foram presos. Não é terrível?

- Que a tua alma amaldiçoada vagueie para sempre pela Esfera Terrena!

entoo eu passando o meu dedo médio por cima dela.

E vendo o desdém que os seus olhos cristãos me manifestam, cuspo-lhe aos pés. Apressamos o passo. Em frente do portão do Palácio dos Estaus, deparamos com dois besteiros corpulentos ladeando um porteiro todo ataviado, com uma pena no gorro. Atrás do gradeado do portão, à sombra de um laranjal, vêem-se três coches. Um deles, pintado a dourado, é o veículo do dia em que Diego foi ferido.

- O Conde de Almira há-de receber-me - digo ao porteiro - Por favor, informai-o que Pedro Zarco está aqui.

- Tendes alguma correspondência para o efeito? - pergunta, a face contorcida, como se tivesse cheirado alguma coisa podre.

Apercebo-me então que devemos ter o aspecto de vilãos regressados de um dia de labor nos campos.

- Não tenho cartas, mas ele há-de querer ver-me.

Como ele me olha de alto a baixo, seguro o chapéu cor de ametista do homem do Norte contra o meu peito e exibo uma pose de superioridade de um proprietário rural enfadado com a má criação de um criado. Volto-me para Farid e resmungo qualquer coisa no meu melhor sotaque castelhano sobre um anunciado banquete com um amigo fictício chamado Diaz; os castelhanos irritam, mas impressionam os portugueses, especialmente quando se podem dar ao luxo de ter criados. O meu esforço parece forçado, mas pelo canto do olho apercebo-me que o porteiro passa o recado a um criado de dentro. Esperamos sob o sol monstruoso de Lisboa, observando os lagartos a deslizar por entre as falhas da calçada. Farid lança um olhar saudoso para oriente sobre os telhados da Mouraria.

- Depois de sairmos daqui, vamos outra vez à oficina do ferreiro perguntar por Samir - digo-lhe por sinais - Talvez encontremos alguém que saiba alguma coisa.

Um criado só com uma mão dirige-se a mim: -Venho escoltar o Senhor Zarco até aos aposentos do Senhor Conde» - diz ele.

- Anda - digo a Farid, e juntos atravessamos o portão. Dentro do palácio, combinam-se o cheiro de mofo e do âmbar. Atravessamos um átrio pavimentado com mosaicos a imitar um tapete persa. As paredes são caiadas e não damos três passos sem que surja um nicho côncavo. No centro de cada nicho vê-se um pedestal suportando um grande jarro azul enfeitado com rosas vermelhas e brancas.

Por cima das nossas cabeças, os tectos abobadados estão pintados com arabescos dourados e brancos a servir de fundo aos desenhos finamente executados de pegas, poupas, rouxinóis e outros pássaros comuns. Não faço ideia do que pensará o criado dos movimentos floreados das nossas mãos enquanto eu e Farid desfiamos os nomes locais das várias espécies de aves. Os seus olhos denotam apenas um interesse passageiro.

Dentro de uma imensa gaiola de rede ao fundo da entrada vê-se uma árvore contorcida. Quando nos aproximamos, apercebemo-nos de que em torno dela voejam como setas de amarelo, laranja e negro, tentilhões da índia portuguesa e de África que nela têm ninho. Aponto para o monte de excrementos esbranquiçados com que eles desfeiam a beleza da exposição. Mostrando ter percebido a minha observação e considerando-a um caso perdido, Farid limita-se a replicar com os seus gestos: «Até um rei pode entender alguma coisa da beleza.»

- Se assim fosse, então não os metia em gaiolas - digo. - Para um rei, liberdade e beleza nunca andam juntas! - responde avisadamente o meu amigo.

Os aposentos do conde ficam no segundo andar. A antecâmara está pavimentada num padrão em xadrês. No centro da sala está uma mesa de mármore cor-de-rosa, rodeada por quatro cadeiras decoradas com as esferas armilares do rei.

Somos convidados a sentarmo-nos, mas na parede à direita da entrada avitamos um tríptico perturbante que atrai a nossa atenção. Representa um santo barbudo, prostrado, esmolando numa cidade em ruínas e povoada por padres com cabeça de rato e todo o género de esfinges. Com um sorriso disfarçado, Farid comenta: «Alguém que conhece bem Lisboa.»

De súbito a porta que dá para os quartos de dentro abre-se.

- Ah, vejo que gostam da minha pinturazita - diz o conde em castelhano. Franze os lábios como quem espera uma resposta interessante. O nariz recurvo e o cabelo negro espesso dão-lhe o perfil astuto, esperto, de um asceta, e também um ar enganadoramente 'jovem.

- Ainda não sei dizer se me agrada ou não - respondo - Mas não há dúvida que o artista tem talento.

- Gosto das pessoas que não se decidem depressa demais. Correm menos riscos de ser aldrabadas, não é?

- Não estou interessado em o regatear - digo. Ri-se com boa disposição. Não mostra sinais de me ter reconhecido do nosso anterior encontro. Inclina-se para o painel principal do tríptico depois de ter despedido o guarda com um aceno Imperceptível.

- É terrível o que os santos têm de passar - diz ele - Não vale a pena, acho eu. É de um flamengo chamado Bosch. El-rei Dom Manuel recebeu-o de presente, mas como o detesta, manda-o pendurar aqui quando venho a Lisboa.

Faz estalar os lábios. - Sempre gostámos dos restos do rei.

Faz-nos um gesto a convidar-nos a entrar na sala de estar, como alguém mais velho que convidasse a juventude para a prudência. Os dois anéis de esmeralda que coroam o seu indicador e o médio da mão direita parecem de súbito mergulhados num halo sagrado.

No interior, a rapariga do coche está em pé junto da janela fechada da parede oposta, com uma mão atrás das costas. Usa uma gona de seda cor de creme encimada por uma gargantilha de renda e uma gola franzida. Uma crespina violeta repuxa para trás os cabelos formando um cone cingido de filigrana de prata. O seu rosto pálido e suave, curiosamente ameninado, desenha-se em torno de uns olhos inquiridores. Talvez impelida pelo meu olhar de afectuosa simpatia, exibe o seu braço escondido. É pequeno, tosco e grosso, apenas lhe chegando à cintura. Um estremecimento dos seus dedos minúsculos, que agarram as suas pérolas, revelam a sua profunda hesitação, mas quanto mais longamente a fito, mais se define a sua expressão enternecida. Adivinho que gostaria de passar a ponta dos dedos pelos meus lábios.

- Minha filha joana - diz o conde. Com um misto de gratidão e de desejo, penso: «Louvado seja Deus por não ser mulher dele.» Faço uma vénia e declino o meu nome. Estendo o braço para Farid e apresento-o. «É surdo e não pode falar. Mas pode ler nos nossos lábios.» Farid inclina-se com uma profunda graça islâmica herdada de Samir, que se destina a recordar-nos que somos representantes de Alá e devemos tratar-nos com a seriedade correspondente às nossas origens.

- É uma grande alegria tê-los aqui - diz o conde -. Pouparam-me uma viagem a essa Alfama pestilenta. Mas vamos instalar-nos convenientemente, está bem?

Segura a filha pelo cotovelo do braço mais comprido e condu-la através da sala como se para uma dança. Farid e eu deixamo-nos afundar numas desconfortáveis cadeiras de brocado dourado e escarlate à volta de uma mesa de mármore com embutidos. Numa bandeja de estanho vê-se um jarro de cerâmica cor-de-rosa e quatro cálices de prata. Joana serve-nos vinho. O conde estuda-nos com um olhar insistente. Nós os dois parecemos pouco à vontade, hesitantes, como gaivotas em terra. Farid gesticula: «Quanto mais depressa daqui sairmos, melhor.»

- Imagino que quando fazem esses gestos estão a falar um com o outro - observa o conde. Volta o corpo de lado como fazem muitas vezes as pessoas desconfiadas, fitando-me por cima do nariz com um olhar tão curioso como sobranceiro.

- Crescemos juntos e inventámos esta linguagem - explico.

- A linguagem das mãos. E por razões óbvias - diz ele, acenando a cabeça para Joana - as mãos fascinam-me. Diga-me uma coisa, soletram as palavras? - Algumas. Mas temos um sinal para a maior parte das palavras.

- E quando as soletram, fazem-no em português ou em hebraico?

Perante o meu silêncio, o conde esboça um sorriso manhoso. O riso de um homem que gosta de se exibir e de perseguir, confundir a sua vítima antes de... Inesperadamente solta uma gargalhada e bate as palmas. «Vejam» - diz ele.

Inclina-se para a frente e coloca um objecto invisível sobre a mesa, como quem desfaz um embrulho puxa para o lado as pontas, tal como se estivesse a descobrir alguma peça de metal precioso. Com uma vénia da cabeça e murmurando algumas palavras, cobre-se até aos ombros com um xalle imaginário. Volta-se para oriente, entoa num murmúrio apagado o início das preces vespertinas judaicas. Assim que as suas palavras se desvanecem, volta-se com uma expressão delicada pedindo paciência. Diz num castelhano sussurrado: «Deste século em diante, a representação será uma boa profissão a estudar pelos judeus. Predigo que seremos os melhores, em todos os países, em todas as línguas, até à vinda do Messias, altura em que nunca mais representaremos papel nenhum.» Sorri com os lábios franzidos e acena como quem aprova a sua própria teoria, endireita-se e atira ao ar o seu xaile invisível como um mágico. «Por mais lucrativos que sejam tais papéis. Por isso perdoem esta pequena comédia. Um actor sem audiência não é nada, e eu tenho de aproveitar todas as oportunidades que se me deparam.» Faz-me um aceno, depois a Farid. «Lembro-me muito bem de vocês, de os ter visto na rua. E o seu tio de abençoada memória, quase a ser apanhado pelos guardas reais com os seus tefelins à mostra.» Inclina-se sobre a mesa para me pegar na mão. «De nada serve escondermo-nos quando nos encontramos entre os nossos. observa.

- Então é cristão-novo? - pergunto, esquivando-me ao seu contacto frio e suado.

- É - responde joana.

- E em parte não - acrescenta o conde com um encolher de ombros de quem se escusa.

Será que a rapariga respondeu por sentir que não confio no pai?

Sentindo o meu fraco por ela, Farid adverte:

- Não ponhas a tua confiança em nenhum deles.

Deixo a minha mão no braço de Farid para o tranquilizar, e voltando-me para o conde, digo:

- Terá de ser mais claro ao falar comigo.

- É muito simples - diz o conde - Somos e não somos cristãos-novos.Temos umas encantadoras cartinhas de perdão de El-rei Dom Fernando. Louvado seja O que cria uma mancha e a remove. E conferiu-me também, como é evidente, um belo titulozinho. Como é que consegui este delicioso pedaço de poderoso nada? Pelo casamento, meu jovem amigo. Lembre-se disso quando chegar a altura de semear a sua semente. A mãe de Joana, que Deus lá tem, brotou dos ramos da árvore de uma família importantíssima - acena em direcção a sua filha e ergue um dedo como quem se propõe dizer alguma verdade Importantíssima mas desendinheiradíssima. Foi assim, pelo dinheiro, que me tornei conde. Não me olhem como se fosse coisa de somenos. Não, senhor. De maneira nenhuma! Não sou em nada diferente do próprio rei de Castela. Todos os nobres são falsos. Olhem por baixo das suas finezas e encontram um aldeão invejoso excitado com o ver-se aninhado entre as pernas de alguma criada. E sempre a gastar de mais. Não se esqueçam disso! Eles nunca hão-de aprender. É um dos modos de descobrir que não são judeus. Se forem capazes de aprender alguma coisa, então os desmiolados dos nossos frades dominicanos hão-de exclamar: «Ah! Temos judeu!» e fazem-no em fumo. Por isso façam um montão de dinheiro e comprem o que lhes der na gana, e nunca cuidem de aprender o que quer que seja, e então, também vocês, se poderão tornar condes!» - humedece os lábios com um gole de vinho - Mas ao fim e ao cabo qual é o vosso negócio?

- Pai - diz joana -. de certeza que não é necessário.

- Claro que isso é o que tu pensas, minha querida. Para uma jovem como tu, tudo, a não ser o amor, é desnecessário.

- Isso é o que em Castela consideram ter espírito - dizem os sinais de Farid - Se calhar espera-se de nós um sorriso de admiração.

O conde volta-se para mim com as sobrancelhas erguidas interrogativamente:

- Perguntei-lhe a sua profissão, Senhor Zarco.

- A minha família possui uma loja de fruta. Mas eu na realidade...

- Por favor! - exclama, com um gesto de protesto. - Não me venha com a sua família! Os laços de família são a maldição de Portugal e de Espanha. Deve pôr-se a andar... ou antes a correr para longe dela, meu caro!

Olho para Farid a pedir-lhe uma opinião sobre o que devo responder. Ele suspira e comenta:

- Está a tentar confundir-nos por qualquer motivo.

- Tem razão - digo, levantando-me.

- Tem razão o quê? - pergunta o conde, confuso.

Diga-nos só porque é que queria comprar manuscritos a Simão Eanes digo eu.

- Mas já lhe disse, meu filho! Maravedis, cruzados, pretos, reis! Diga-me lá se o seu coração não bate um bocadinho mais depressa ao ouvir os gloriosos nomes do dinheiro! São como os nomes de Deus. Só que nada secretos. Louvado seja O que criou o óbvio. - Inclina-se para mim, sussurra: - Talvez não devesse falar nisto, mas... o seu tio sabia-o. Oiça, meu caro, compro cá os manuscritos por uma ninharia. Vocês, pobres desgraçados, estão mortinhos por se verem livres deles. E depois vendo-os por uma fortuna em Alexandria, Salonica, Constantinopla, Veneza. Até o Papa Júlio, louvada seja a pedra da Igreja, está interessado. Não há limites para os ganhos que se podem conseguir. Até sei que tem uns quantos belos poemas escondidos. Porque não os vende? Assim já podia deixar este inferno. Até o podia ajudar. Tenho alguns bons conhecimentos entre os mercadores. Em Faro há um...

Como é que este ratoneiro, este fuinha escorregadio saberá que meu tio tinha manuscritos hebraicos?

- É mesmo verdade? É tudo por dinheiro? - pergunto, dirigindo-me a joana.

Ela fixa os olhos em mim com uma expressão grave e acena afirmativamente.

Então este ricaço alvar quer sugerir que meu tio andava a levar para fora de Portugal as obras de Abulafia e de Moisés de Leão apenas pelo ouro? Como se tais obras da Cabala tivessem sequer um preço na Esfera Terrena!

- É tempo de falarmos claramente - digo ao conde, como se ditasse uma ordem - Mandou matar o meu tio?

Inclina-se para trás, ofendido, mas recupera e faz um gesto de apaziguamento.

- Claro que não. Nunca...

- Mas se o que diz é verdade, então devia considerá-lo sem dúvida um adversário. Podia ter tentado... - a raiva aumenta à medida que me faltam as palavras.

- Então, não me quer vender nada? - pergunta ele - Nem sequer uma Haggada? Um «Livro de Ester»? Ou até um...

- Pai, por favor - implora Joana.

- Nada! - digo - E se descubro que matou o meu tio, juro que lhe hei-de cortar a garganta.

- Que emocionante ser ameaçado. Espero que me tenha dado um pouco mais de cor ao rosto.

- Você mete-me nojo - digo.

O meu pescoço queima quando me volto e avanço em direcção à porta. Ouço atrás de mim uns passos que correm. A delicada mão de Joana aperta-me o pulso e ouço-a murmurar:

- Tem de encontrar a fidalga a quem meu pai chama Rainha Ester! Mas seja prudente com ela!

 

Deperto, o perfume do cabelo de Joana era como um prolongamento invisível dos meus próprios desejos. Ela estreitou a minha mão e depois saiu a correr. De dentro da sala, chegou-me o ruído de uma estalada. «Isto é uma coisa séria! - rosnou o pai dela - O que é que lhe disseste?!»

Voltei-me para ela, mas os seus olhos flamejaram a advertir-me que devia partir. Fora dos portões do palácio, respirando à luz dourada do crepúsculo, repeti por gestos a Farid as palavras dela. Ele respondeu:

- Cada nome acrescenta uma página ao nosso livro de mistérios.

- Pois é. E temos de ver a Haggada de meu tio para ver que página será. Agora começo a compreender. Zorobabel deve lá estar. E a Rainha Ester também. E quando os encontrarmos, estou convencido que hão-de ter o rosto dos passadores.

- Há uma coisa que tens que saber - dizem os gestos de Farid - Este conde é o mesmo Isaac que te queria vender um manuscrito hebraico.

- O quê?!

- São uma e a mesma pessoa, Isaac de Ronda e o conde de Almira.

- Porque dizes isso?

- Porque sim. Para já, os olhos. Não os pode mudar. E alguns gestos. Deves ter reparado nas mãos finas de Isaac de Ronda. Ele diz que é um bom actor. Deve ser capaz de mudar a voz, senão tinhas dado por ela. E o disfarce é excelente. Mas não é perfeito. E por baixo de todos os seus cheiros, há um que não desaparece. Essência de cravinho.

- Aquela abençoada dor de dentes! - gesticulo. Quando Farid aquiesce, continuo: - Mas porque haveria ele de querer vender um manuscrito numa altura e noutra comprar livros de meu tio?

- Não temos ainda versos suficientes para perceber o sistema da rima.

- Farid, vamos... temos de voltar a casa para vermos a velha Haggada de meu tio!

- Preciso de ficar - respondem as suas mãos, enquanto ele pede escusa inclinando a cabeça - Agora que me sinto mellior, queria continuar a procurar meu pai. Vou ter contigo logo que possa.

Os seus dedos acariciam o meu braço, com a delicadeza de uma pétala. Recordo-me como os anjos o tinham vestido de branco e as palavras de meu tio: «Não abandones os vivos pelos mortos.» Mas ainda assim não posso impedir-me de insistir. - Preciso da tua ajuda. Agora estamos tão perto.

- Beri, por favor não penses só em ti - gesticula Farid.

- Em mim?! Meu tio está morto! Que queres que eu faça? Que é que todos vocês querem que eu faça?

- Não quero que faças nada, mas deixa-me ir à procura de meu pai! É melhor ires embora!

Os gestos de Farid cortam o ar entre nós. Apesar disso, livre de culpa e de medo, sigo atrás dele até casa dos seus amigos na vizinhança. «Não demoro nada»

- diz ele.

Mas os seus esforços para me aplacar apenas serve para derramar ácido sobre a minha fúria.

Começamos a busca com o silêncio cravado entre nós. A única pista para o paradeiro de Samir vem de uma fabricante de anzóis desdentada que vive do lado oposto à antiga mesquita que foi confiscada. Num árabe que amalgama todas as consoantes, diz-nos ter visto Samir a rezar em cima do seu tapete azul na encosta abaixo do castelo. Teria ele parado uns instantes na sua corrida para casa a fim de pedir a Alá que poupasse o filho? A mulher aponta um dedo vermelho das cicatrizes, quase reduzido ao osso, a indicar o caminho seguido por ele. Umas plantas poeirentas e malmequeres mirrados assinalam o local. Farid pisa-os e olha, além dos telhados da Pequena Jerusalém e do centro de Lisboa, para o Tejo.

É largo de mais - comentam os seus gestos.

O quê? - pergunto.

O rio. Devíamos poder ver o outro lado. Como em Tavira ou Coimbra. Mesmo o Porto. Aqui não há intimidade. Não podemos abraçar esta cidade. A amplidão do rio faz-nos sentir que apenas estamos de visita. Que somos todos insignificantes. É a maldição da cidade.

- Vamos continuar a busca até encontrarmos mais pistas - digo. As minhas palavras cautelosas escondem a impaciência que me consome as entranhas. «Meu tio está morto e eis que este se põe a arengar sobre abraçar rios, penso.

Os olhos negros de Farid dardejam com um brilho apagado que esconde a sua raiva. Apercebo-me de que ambos voltámos a pôr máscaras. De um para o outro. Pela primeira vez em muitos anos. Mesmo assim, a despeito de toda a desilusão oculta nas minhas faces afogueadas, sinto cair sobre mim a certeza tranquilizante de que a nossa ligação não poderá nunca romper-se. Nesse momento, e durante muitos dias desde então, por várias vezes me acudiu o pensamento de que a minha vida teria sido muito mais simples se eu tivesse sido capaz de achar satisfação fisica nos seus braços.

Apressamo-nos a caminho de casa, absortos nos nossos pensamentos separados. A possibilidade de o conde de Almira ter estado a fazer de nós bonifrates torna a cidade nos bastidores recortados de um palco cinzento. Seria a voz segredada de Joana, também, apenas parte de uma intriga de bonecreiro?

À entrada da nossa loja, Farid afasta-se em direcção a sua casa sem sequer um gesto de despedida. Minha mãe e Cinfa estão a cuidar da fruta nas traseiras da loja. Miraculosamente, as portas que dão para a Rua da Sinagoga estão repostas nos gonzos e foram pintadas de azul-marinho. Vou a perguntar como foi, quando minha mãe diz num tom fatigado:

- Temos estado à tua espera. Estás pronto para dizer as orações? Tem o cabelo em desalinho, os olhos modorrentos. Deve ser do extracto de meimendro.

- Daqui a um bocado - respondo.

- O Shabat já esperou tempo que chegue! - grita ela.

- Eu venho já! Na cozinha, Aviboa está adormecida em cima de uma almofada. Reza está a cozer bacalhau num caldeirão de cobre.

- Esteve cá a Brites - diz ela em voz baixa - Dei-lhe o lençol sujo que tinhas escondido no pátio.

- Deus te abençoe - digo, beijando-a no rosto -. Por acaso apareceu por cá o Rabi Losa?

- Não.

- Quem pintou as portas da loja e as pôs no sítio?

- O Bento. Pediu-me para te dizer que era parte do agradecimento por teres expulsado o ibbur da Gemila.

- Está bem. Olha, podes ver se acalmas a minha mãe por uns momentos? Reza faz que sim com a cabeça. Precipitando-me para a cave, tiro a chave da geniza da bexiga de enguia e pego na Haggada de meu tio. Sento-me com ela no colo, o coração a bater como um tambor, folheio as ilustrações à procura de Zorobabel. A gravura encima a sexta página das iluminuras que prefaciam o texto. Na versão de meu tio, é um jovem de longos cabelos negros e olhos ardentes. Aparece numa atitude de justo orgulho perante o rei Dario, que tem a expressão decidida do Infante Dom Henrique, o Navegador. Ambos os personagens surgem diante da torre de pedra da Quinta das Amendoeiras. Zorobabel segura na mão direita o rolo da Tora, a essência da verdade. Na esquerda tem a letra hebraica Hé, um símbolo da mulher divina, Bina. No indicador e no médio da mão direita brilham dois anéis de esmeralda. As pedras preciosas revelam-me a verdadeira identidade de Zorobabel; o rosto dos homens pode envelhecer, mas não as esmeraldas. Zorobabel não é outro senão o Conde de Almira.

- A carruagem do sol está quase a desaparecer no horizonte - grita Reza para baixo - Estás a fazer esperar a noiva do Shabat pelos seus esponsais. E hoje é a última noite da Páscoa. Anda lá!

- Ela que se case sem mim! - grito.

- Não sejas casmurro!

- Reza, tu sabes as orações, não sabes? E também tens boca. Então fá-lo tu!

- Que serpente te terá engolido a razão, Berequias Zarco? Bem sabes que não posso ser eu a conduzir as orações.

- Então diz à minha mãe - digo -. Deixa-me em paz. Por favor!

- Precisamos de um homem, meu estúpido! É blasfemo, mas grito:

- A noiva do Shabat precisa da fala, não de um falo! A Cinfa que conduza, se tu tens medo.

Reza bate com a porta do alçapão. Agora reina a paz. Passo as gravuras da Haggada à procura da Rainha Ester. O seu rosto real fita-me logo na página seguinte. A sua identidade faz bater o meu coração apressadamente; Ester, a rainha judia que manteve secreta a sua religião e que mais tarde salvou o seu povo da ira do celerado cortesão Aman não é outra senão Dona Meneses! A gravura representa-a levando a Tora a Mardoqueu, o seu pai adoptivo. Sob o braço, parcialmente escondido, vê-se um manuscrito, provavelmente o Babir, o «Livro da Luz», pois meu tio mostra-o com um halo brilhante. A face de Mardoqueu é de alguém que não conheço. Mas usa uma cruz bizantina, um xaile ritual judaico e um albornoz azul debruado com arabescos verdes. Será uma referência a alguém da Igreja Oriental? Um amigo judeu num reino mouro? Um derviche turco? «Alguém que reconcilia todas as religiões da Terra Santa» - ouço meu tio dizer. Para mim próprio murmuro: «Ou um homem que usa as três máscaras. »

«Talvez - penso - seja Tu Bisvat.» Todas estes achados esvaziaram-me de outros pensamentos durante algum tempo. Mas compreendi então que descobertas tão importantes precisavam da confirmação dos olhos de falcão de Farid. Assim que a minha cabeça apareceu de fora do alçapão, Reza diz: «Então, Berequias Zarco, sempre ganhaste juízo?»

Passo a correr por ela, desviando o olhar da cerimónia do Shabat. Farid está no seu quarto. De joelhos, voltado para Meca, os olhos cerrados, inclina-se para o chão como uma folha de palmeira curvada pela brisa. Os olhos porém mantêm-se fechados. Inclina-se de novo. Sinto-me ficar rígido de fúria, vendo como se recusa a reconhecer a minha presença com algum gesto. A palavra «traição» grava-se no meu espírito. Com o calcanhar, bato três vezes no chão, depois uma, depois mais quatro vezes. Ele senta-se. Abre uns olhos passivos. Com um gesto peço. «Por favor, preciso da tua visão clara.» Levanta-se, o rosto fechado numa expressão seca de fingido desinteresse. Deslizando como um espectro, segue-me até minha casa. Reza diz numa voz delicada: «Ficas connosco agora?» Não a olho nem respondo. Enfiamo-nos na cave.

Farid dá uma olhadela a Zorobabel e comenta: «É o conde de Almira!» Quanto à Rainha Ester, não está tão seguro até lhe apontar o colar de esmeraldas e safiras que ela traz sempre ao pescoço. «É ela, - confirmam os seus gestos.

Uma alquimia imprevisivel para meu tio - penso - transformou o amor destes amigos em medo. Depois em ódio e finalmente em morte.» E quem poderia ser mais medroso que os cristãos-novos? E mais odiosos que os nobres portugueses? Quem mais indicado, pois, para trair meu tio senão os nobres antigos judeus que lhe serviam de passadores dos livros hebraicos, Zorobabel e Rainha Ester?

Teria alguma coisa corrido mal entre eles recentemente? Tu Bisvat escreveu que uma «safira» que meu tio lhe tinha enviado não tinha chegado ao destino. Talvez Dona Meneses tivesse começado a desviar os ganhos, destinados a comprar novos manuscritos. Ou talvez os juízos desassombrados de meu tio tivessem começado a constranger os métodos de negociar de Zorobabel. Teria ele começado a vender os livros noutra parte? O vil Aman, então, estaria retratado por meu tio na sua última Haggada, a que fora roubada da geniza, como um conde de Almira alguns anos mais velho. Era esse o rosto que meu tio procurava, e que ele tinha finalmente encontrado exactamente antes da ceia de Páscoa.

E no entanto, se o conde era culpado, se tivesse querido silenciar Simão e os demais iniciados que poderiam conhecer a sua identidade, então porque teria aceitado conduzir Diego ao hospital?

- Temos de encontrar a Haggada roubada para provarmos que o conde matou ou mandou matar meu tio - comunico por gestos a Farid.

- Como? - pergunta.

- Temos de arranjar um ardil qualquer para apanhar Dona Meneses e o conde. São eles quem a deve ter.

- Berequias! - chama Reza de súbito - tens aqui uma visita... Frei Carlos!

Será uma artimanha de minha mãe para me obrigar a subir?

- Diz-lhe que desça! - grito.

- Quem é? - pergunta Farid.

- O frade - respondo.

Enfio a Haggada e as cartas no esconderijo, fecho a tampa e meto a chave da geníza na bexiga de enguia. Frei Carlos desce as escadas às apalpadelas. Tem a fronte perlada de suor e a respiração é custosa, como se tivesse vindo a correr.

- O judas? - pergunto.

- Nada. - Aproxima-se de mim, toma-me as mãos. Numa voz tremente, diz: Tens de me ajudar!

É o estrangeiro? Anda atrás de si?! Não, não... não é isso. Mas, santo Deus... Estive a falar com os dominicanos... Devem ter invocado algum demónio para me matar. Berequias, cheguei a uma conclusão, é que o mal é invejoso. O Demónio quer destruir tudo o que há de bom. E a bondade de teu tio tinha tal poder que sarava tanto a Esfera Terrena como a Esfera Celeste. Se o Demónio quisesse... Acho que ele e os dominicanos mandaram outros demónios perseguir-nos. Maz'mon Branco. Gemila viu-o. Ela tinha razão!

Nos seus olhos frenéticos podia ver que a insânia de Lisboa tinha acabado por dominar o frade.

- Frei Carlos, por favor, pare com isso! Não tenho tempo para discursos por metáforas.

- Então olha-me para isto! - grita ele. Saca de outro talismã. Num quadrado de velino polido, letras hebraicas minúsculas formam dois círculos desenhados toscamente com citações dos «Provérbios». No círculo de fora pode ler-se: «A violência é o alimento e a bebida do traidor»; e no de dentro: «As brasas do ímpio apagar-se-ão».

- Encontrei-o no forro da capa! - grita Frei Carlos - Na minha capa! Como explicas uma coisa destas?! Como!?

- Caluda! - digo. Tiro da bolsa o talismã que ele me dera outro dia. A escrita deste, tal como o anterior, apresenta a mesma letra, precisa em certos pontos e noutros menos segura, como se executado por alguém enfraquecido pela doença ou por vinho a mais. Quando o passo a Farid, ele cheira-o, lambendo-o depois.

- Parece a tua tinta - dizem os seus gestos.

- A minha tinta?! - Ao dizer isto, a solução desce sobre mim e faz-me subir um ronco das tripas. Andei a evitar a resposta óbvia. - Frei Carlos, estes rabiscos nada têm a ver com a morte de meu tio - digo. Giro o pergaminho nas mãos, confirmando pela sua textura a identidade do artista. - Venha! - digo ao frade.

Ele e Farid seguem-me para a cozinha. Minha mãe está a dizer as orações numa voz fraca. Detém-se para me fitar com olhos resignados, pesados. Reza preenche o silêncio com o olhar fixo da sua justa desaprovação, uma expressão que Cinfa copia. Precipitamo-nos para o quarto de minha mãe. Do painel secreto por cima do umbral da porta, retiro os talismãs que ela anda a fazer. A escrita minúscula é idêntica.

- Não entendo - diz Frei Carlos.

- Minha mãe deve ter ouvido a sua discussão com meu tio. Pensou que podia ajudar. A razão assombrada pela mágoa e os cuidados provoca tais monstros. Este último, deve tê-lo enfiado na sua capa quando ficou cá a dormir a noite passada. Andou a tomar extracto de melmendro, por isso não consegue escrever normalmente, nem pensar com acerto. Perdoe. Tenho a certeza que não fez por mal. Era só para conseguir o livro de Salomão Ben Cabirol que meu tio tanto queria. No estado em que se encontra, pode até ter imaginado que isso lhe podia trazer o irmão de volta. Entrelaçaram-se dois mistérios e nós pensámos que eram uma e única coisa.

Se tivesse prestado bem atenção às minhas próprias palavras, talvez não viesse a cometer o erro em que estava prestes a cair.

Farid, Frei Carlos e eu próprio dirigimo-nos à loja onde não podíamos ser ouvidos pela minha família a discutir o que havia a fazer. Depois de ter explicado a Frei Carlos as identidades dadas a Zorobabel e à Rainha Ester na Haggada de meu tio, Farid diz com gestos decididos:

- Vamos voltar ao Palácio dos Estaus, enfrentar novamente o conde de Almira, e forçá-lo a reconhecer-se culpado.

- E se o conde recusa? - pergunta o frade quando lhe traduzo os gestos. Farid retira da sua bolsa a mais terrível adaga da sua colecção, seis polegadas de ferro mortalmente afiado, curvo como uma foice. Roda-o ameaçadoramente debaixo do nariz do frade.

- O conde não vai recusar! - assinala ele - E sabe porquê? Porque um actor precisa da sua voz. Encosto-lhe a ponta à maçã de Adão e se ele não nos responder a verdade tiro-lhe o caroço com um único golpe.

O frade dobra-se para trás e afasta a mão de Farid.

- Não sei o que é que ele esteve a dizer, mas não gosto disto - diz ele, voltando-se para mim - Dona Meneses... É mais capaz de nos dizer a verdade.

- Porquê? Por ser mulher? - replico, com sarcasmo - Se for judia secreta e tiver de esconder a sua identidade, não há-de hesitar em mandar os seus homens de armas cortar-nos a cabeça!

- joana, a filha do conde - diz Farid com os seus gestos - Ela ajuda-

- Se conseguirmos chegar até ela. Traduzo a nossa conversa para Frei Carlos, quando se ouve bater à porta de minha mãe que dá para a Rua da Sinagoga. Corremos para abrir e deparamos com um miudito de cara redonda e olhos protuberantes. Tira um bilhete da sua bolsa e estende-mo. «Um recado» - diz ele. Mal pego nele, desaparece a correr.

«Berequias - lê-se no recado - vem ter comigo à Estrada Real que vai para Sintra, mesmo antes de Benfica. Estou à tua espera junto das duas azenhas que ficam por trás das ruínas da igreja visigótica. Vem sozinho. Não fales nisto a ninguém. E vem imediatamente. Descobri uma coisa que tenho de te dizer sobre a morte de Mestre Abraão.»

O recado está assinado com a escrita recortada de Diego. Frei Carlos tira-me o recado das mãos. Depois de o ler, diz-me:

- Não vás, meu filho. É ainda muito perigoso andar sozinho em Lisboa.

O dever de pôr Diego de sobreaviso quanto aos passadores e de o informar das suas identidades pesa-me no peito. E talvez também ele tenha descoberto alguma coisa que me ajude a encurralar Zorobabel e a Rainha Ester.

- Não, tenho de ir - digo - É noite e agora também não há muito que eu possa fazer. - Volto-me para Farid, tomo-o pelo ombro e esboço uma desculpa pelo meu comportamento anterior. E acrescento: - Não me apetece nada ir sozinho, se me concederes a tua companhia...

Farid fecha os olhos e faz-me uma inclinação de anuência. Saímos antes de as súplicas da minha família se tornarem em choradeiras e maldições, antes de Cinfa me poder fixar completamente no interior do abandono dos seus olhos. Farid passa em sua casa para enfiar as sandálias do pai.

Esta noite de sexta-feira adensa-se com o áspero vento de leste, da amaldiçoada Espanha. Na estrada de Sintra, passados os arcos descobertos da igreja visigótica, começamos a descer uma vereda de terra batida que vai dar às azenhas abandonadas. As suas formas surgem estranhas e lúgubres ao luar. A seis léguas, a serra de Sintra recorta-se no horizonte como uma nuvem caída a apontar no céu uma resposta fora de alcance. Farid fareja o ar como um coelho, vigia as vizinhanças. Um falcão branco voa em círculos por cima de nós, pairando nas correntes de ar, uma criatura liberta da terra, para além da história.

- A atracção pelas aves será porque nos fazem antever a nossa libertação deste mundo? - pergunto por gestos ao meu amigo.

- Talvez porque partilham e ao mesmo tempo escapam à nossa jornada respondem as suas mãos. Fareja de novo em torno. - Passaram por aqui veados há pouco tempo. - E com movimentos reflectidos, cautos, acrescenta: - E mais alguma coisa. - Dá mais uns passos, agacha-se, passa os dedos por uma marca que os seus olhos de surdo enxergaram no chão. - Homens - conclui. Aponta para uma marca que os meus olhos não distinguiram - Um de botas. Corpulento, com passadas pesadas.

- Talvez o Diego - digo.

- E mais dois homens. Um pequeno que coxeia. O outro hesitante, sempre a voltar-se para olhar em torno.

- Esse é que é o Diego - sorrio eu -. Os outros são provavelmente os seus guardas.

Apressamo-nos. Uma figura em forma de barril na vereda antes de chegar às azenhas toma formas angulares, move-se repentinamente. A forma de um homem caído por terra começa a desenhar-se à luz argêntea do luar. De cabelos compridos e ombros largos, arrasta-se como uma lagarta, com a perna esquerda aparentemente ferida a arrastar-se atrás lastimosamente. A agonia dos seus roncos cortam os sons do vento na noite.

- É o homem do Norte que tirou Simão da sua concha! - diz Farid com gestos agitados.

Vendo-o de perto, as suas feições toscas, duras, não mentem. «É ele mesmo.»

Estacamos junto dele como torres. É enorme, corpulento, como um touro tornado humano. Ergue-se nos joelhos. Recuamos. As nossas adagas assomam aos nossos punhos. Uma mancha de humidade escura ensopa-lhe as coxas.

- Mataste o meu amigo - digo -. Porquê? Responde numa língua estrangeira que não compreendo.

- Inglês, francês, holandês ... ? - pergunto.

- Flamenco - responde num castelhano estropiado - De Bruges. Terá ele aprendido como shohet entre os judeus asquenazins do Norte? Aponto para ele e pergunto:

- Nuevo Crístiano?

- Viejo - responde ele, com uma gargalhada curta. Aponta para si próprio e murmura: - Muy viejo cristiano.

Porque mataste Simão? - E face ao seu encolher de ombros indecifrável, encolho a perna, com o pé encostado ao traseiro, a imitar o coto de uma perna. - Porqué él?

Solta uma risada, que lhe provoca um acesso de tosse. Fecha os olhos e dá um jeito à cabeça a indicar que era inevitável.

- Dona Meneses? - pergunto - Conhece-la? Sorri e acena afirmativamente. Quando me volto para perceber os gestos de Farid, o flamengo atira-se a mim. Sou derrubado pelo seu peso taurino. Esbracejo, mas as suas mãos calosas apertam-me a garganta. A minha faca enterra-se a fundo no seu ombro. Grito por Farid. Lutamos. Mas ele é muito forte. O torno das suas garras aperta-se. Arqueio. A tosse retida na garganta explode inundando de lágrimas os meus olhos. E apesar disso consigo ver claramente. Como um escaravelho apanhado no âmbar: olhos salientes, rosto congestionado, a boca contorcida de ódio.

Compreendo que há um momento em que a morte é aceite como inevitável. As minhas mãos abrandam o aperto em torno dos seus pulsos. Não me possui nem a raiva nem o medo. Só a distância. Como se me visse atrás de mim próprio e me voltasse para me ir embora. Como se meu tio me chamasse do outro lado da Rua da Sinagoga: «Berequias, vê se me ouves! Estou aqui à tua espera ... »

Uma dor acutilante. Queima-me a garganta uma constrição como a de uma corda. Da boca do flamengo saem esguichos de um líquido salgado. Vejo-me derrubado de costas. Os olhos ardem-me, os meus lábios estão ensopados de sangue. As suas mãos apartam-se como uma cancela que se abrisse. Sinto que retiram aquele peso de cima de mim. A face de Farid aproxima-se. Uma mão segura-me, a outra desenha o meu nome. Respirando em largos haustos, reparo na adaga de Farid enterrada na nuca do flamengo. «Estou bem» - digo com as mãos.

- Matei-o - dizem os seus gestos. Desta vez não há hesitação nas mãos de Farid: os dedos espetados, um punho cerrado, depois gira as mãos com as palmas para baixo como quem corta um ramo de um tronco de árvore.

Farid retira as nossas armas do corpo do assassino, limpa-as às calças. Suspendemo-nos sem gestos, a não ser os dos meus agradecimentos. Que mais dizer? Caminhamos para as azenhas. junto à base da mais próxima, na vereda, jaz um homem com a cara voltada para cima, os olhos de peixe esbugalhados fixando a fatia da lua no alto do céu. O pescoço está ainda quente da vida eclipsada. Quando me agacho para o ver mais de perto, desenha-se um rosto que eu reconheço: o do guarda que acompanhou Diego a minha casa. Murmuro uma prece para que Diego não tenha sido igualmente chamado à presença de Deus.

- Ouves alguma coisa? - perguntam os sinais de Farid - Sinto mexer aqui perto.

- Não. Subitamente, Diego surge de detrás da azenha. Traz uma capa grossa, forrada a pele que lhe cai até aos tornozelos. Mesmo a esta luz pálida, posso ver que o rosto está perlado de suor.

- Estás salvo - digo - Porque não...

- Berequias, eles... eles andam a matar todos os do grupo de iniciados! diz numa lamúria -.Todos nós. Não se está seguro em parte nenhuma. Temos... temos de...

- Calma. Matámos o flamengo lá atrás na vereda.

- Isso não basta - diz Diego, agarrando-me pelos ombros - já apanharam o teu tio e Sansão e Simão, e agora vieram atrás de mim! Não vês? O grupo de iniciados... Todos nós!

Não te aflijas - digo, colocando as minhas mãos no seu peito Agora sabemos quem eles são. É Dona Meneses. Ela e o conde de Almira estão por trás disto tudo. Devem pensar que os membros do grupo sabem quem eles são e podem acusá-los às autoridades reais.

- Dona Meneses?! É impossível! Ela nunca...

- Era ela quem passava os livros de meu tio lá para fora - digo.

- Mas ela é uma fidalga!

- Ainda melhor para passar livros hebraicos em segurança para fora de Portugal, não achas?

Diego fita a noite ao longe como se a sua resposta pudesse estar algures na escuridão do horizonte. Voltando-se novamente para mim, diz:

- Não sei. Nunca me passou pela cabeça... - põe os olhos no guarda morto - Fernando feriu o flamengo na perna, mas aquele sacana loiro tinha jeito para o punhal. Meu Deus! Não posso voltar para Lisboa.

- Então contas ficar aqui o resto da tua vida?

- Não vou deixar-me apanhar! Quando nos deitam em cima aquelas gotas de óleo fervente é como se nos tirassem a pele com uma lâmina enferrujada. Rezamos para que a nossa vida acabe. Estamos prontos a aceitar tudo. Não posso deixar que isso me volte a acontecer. Nunca! Estás a ouvir? Nunca mais!

Subitamente, recordo a linha espessa da cicatriz que lhe atravessa o peito que vi quando ele tombou na rua.

- Sofreste a tortura da pinga? - pergunto.

- Em Sevilha - responde ele -, havia um especialista que era capaz de fazer desenhos no nosso corpo com azeite a ferver e cinzas que ele esfregava nas feridas. Uma vez desenhou gota a gota toda uma cena da Paixão no peito de uma rapariga de dezanove anos que tinha cometido o crime de pôr lençóis lavados à sexta-feira. Mas sem que ela morresse. Os peitos dela tornaram-se nas colinas de Jerusalém, o umbigo o coração de Cristo. Era demasiado para...

- Diego, ouve. Eles também podem muito bem mandar alguém atrás de ti. Onde quer que vás. Estavas mais seguro na cidade. Com pessoas de confiança.

- Em minha casa não - irrompe ele aterrorizado. O vento despenteia-o e apercebo-me de que deixou de usar turbante. Estamos a perder cada vez mais a aparência de judeus, nestes últimos tempos. - Eles hão-de ir lá ver. E quando perceberem que o assassino que mandaram atrás de mim está morto, hão-de mandar outro.

- O que eu queria dizer é que ficas em nossa casa - digo eu. Observo-o, enquanto ele, de olhos no chão, considera a proposta. Dir-se-ia que a aceita, e por isso pergunto: - Já agora, porque me mandaste chamar para vir aqui?

- Berequias, lembrei-me de uma coisa importante... Aquele Dom Miguel Ribeiro, o fidalgo para quem tua tia Ester copiou o «Livro dos Salmos», teve uma discussão com teu tio há uma semana - toma-me pela mão, prossegue num murmúrio - O teu mestre referiu-se a isso por acaso no nosso grupo. Tirei inculcas e descobri que Dom Miguel está escondido nuns estábulos não muito longe daqui. Nos arredores de Benfica. Pensava mandar o meu guarda contigo. Para o apanhar durante a noite. Mas agora, não sei se... - As palavras desvanecem-se, enquanto ele olha em torno.

- Diego, sei tudo sobre essa discussão. Dom Miguel e o meu tio tiveram uma disputa por ele se recusar a aceitar o seu verdadeiro passado, o seu judaísmo. Soube-o por...

- Não é isso! Foi por causa do livro... o «Livro dos Salmos» que tua tia copiou. Ele não queria pagar o preço combinado. Ao que parece, ameaçava contar às autoridades que os teus tios tinham manuscritos hebraicos escondidos se não lhe dessem o livro. Agora estou a pensar que talvez estivesse ligado a Dona Meneses. Deve haver uma ligação qualquer.

- Não, não. Meu tio mandou-lhe um recado a pedir-lhe que servisse de passador - digo.

No escuro, Farid não consegue ler os lábios. Quando traduzo por gestos as palavras de Diego, ele contrapõe:

- Mas Dom Miguel é rico. Tinha meios para pagar o trabalho de tia Ester. E poupou-te a vida quando foste à procura dele. Podia ter-te matado com toda a impunidade.

- Que está ele a dizer? - pergunta Diego.

- Que isso não faz sentido.

O iniciado solta uma risadinha irónica e toma-me pela mão:

- Achas que há alguma coisa que faça sentido ao longo da semana que Passou? Deixa que te diga uma coisa, meu rapaz. A Esfera Terrena não é guiada por lógica nenhuma que tu possas encontrar escrita na Cabala.

Diego passa por cima do corpo do flamengo. Cospe-lhe na cabeça e dá-lhe um pontapé. Depois prossegue, suando como um animal de carga. No seu tom erudito, vai divagando sobre partir para Rodes e Constantinopla num barco que vai sair de Faro daqui a uma semana. Quer deixar Lisboa e começar a jornada para sul amanhã à noitinha.

- E Constantinopla é uma cidade tão bonita - diz ele - Nada que se pareça com Lisboa. Até lá chove. Grandes e belas gotas de chuva. Como pérolas. E boa para os cabalistas, também. É onde a Ásia se encontra com a Europa, onde dois se tornam em um, como dizia o teu tio. Lembras-te quando...

A poeira e a noite e a voz errática de Diego entrelaçam-se como uma corda em torno dos meus pensamentos. Por cima de nós volteiam abutres, que nos seguem até Lisboa. Quando descansamos, passadas as portas da cidade, no Chafariz da Esperança, molho a cara e o cabelo. Cogito qual poderia ser a secreta ligação entre Dom Miguel Ribeiro e os passadores. Fito Diego através da cortina de água que escorre. Penteia a barba recente que já lhe cobre as faces e o queixo. «A limpeza é uma tarefa sagrada» - lembra ele.

Talvez seja. Mas o que define o seu ser interior? Será ele o Judeu Errante em pessoa, um ser aterrorizado algo menos que humano, pronto para mais uma migração para mais uma terra hostil? Será nisso que todos nos tornámos, personagens inventados pela mitologia cristã? Quando chegamos a minha casa, o pequeno Didi Molcho corre ao nosso encontro da nossa cancela.

- Encontrei-o, Beri! Encontrei-o! - grita.

- Quem?

- O Rabi Losa!

- Onde está ele?! - pergunto.

- Na mi'cva. É o casamento de Murça Benjamim.

- O quê... agora? Era para ser amanhã. Já deve passar bastante da meia noite. E ainda estamos no Shabat.

- É para enganar os cristãos - murmura ele - Mudaram a boda para hoje à noite.

Caminhamos juntos para o pátio. Frei Carlos sai ao nosso encontro. Ele, Didi, Diego, Farid e eu, encontramo-nos junto do tronco decepado do nosso limoeiro. Tenho de tirar a limpo umas coisas com o Rabi Losa, certificar-me que não tem nada a ver com isto. Não demoro.

Começam todos a tentar dissuadir-me.

- É perigoso para os judeus estarem juntos em rituais - conclui Diego, falando em nome dos demais - E se os cristãos te descobrem?!

A minha falta de confiança em Losa é tão grande que não posso resistir ao impulso de o enfrentar.

- Mesmo assim - digo - tenho de ir. Além disso, não podemos fazer nada quanto à Rainha Ester e a Zorobabel durante a noite. Assim que romper a madrugada, começo a tirá-los da toca.

Deixo os meus amigos e dirijo-me à micva e à cerimónia do casamento de Murça Benjamim. Sendo uma viúva sem filhos, viu-se obrigada pela lei do casamento levítico a casar com o irmão mais velho do defunto marido agora que ele aceitara tomá-la como noiva.

Um homem magríssimo com o rosto escondido num capuz vigia a porta do balneário.

- Posso entrar? - pergunto - Sou amigo de Murça.

- Mexe-te.

As escadas são alumiadas por tochas nas paredes. Um pequeno grupo de testemunhas, com capas bruxuleantes de sombras e luz, está reunido no compartimento central, os homens à frente, as mulheres atrás. Mas à medida que desço, reparo que há qualquer coisa de anormal. O Rabi Losa está sentado no centro de um tribunal de cinco juízes. Estremece como se alguma coisa o queimasse quando me avista. Os seus olhos maldosos revelam um terror gélido. A raiva aperta-me as virilhas, quente e imperiosa.

Mas, afinal, que se passava? Murça está em pé em frente do seu cunhado Efraim. Tem o cabelo apanhado, protegido por um lenço de burel. Mostra um rosto cansado, desanimado e as mãos tremem-lhe. Entre os dois vê-se um prato de barro preto no chão. A haliza! Oh, meu Deus, quando nos alcançará enfim a Tua misericórdia? Depois dos motins contra os judeus, Efraim deve ter renegado o seu acordo de casamento. Vai já longa a cerimónia que o libertará dessa obrigação. Quanto a Murça, também ela, se verá libertada. Mas para que futuro? Com um dote reduzido e com metade dos jovens judeus de Lisboa feitos em cinza, são escassas as probabilidades de encontrar a felicidade que merece.

Efraim anuncia numa voz solene a sua recusa em casar com Murça. Com sílabas hesitantes, trementes, Murça replica em hebraico: «Meen yebamí lehakim leahiv sbem beyisrael lo aba yabm - e seguidamente repete as suas palavras em português, para que todos possam entender: «O irmão de meu marido recusou-se a firmar um nome em Israel para o seu irmão e não quer tomar-me em casamento segundo o ritual levítico.» Ouve-se um suspiro saído do fundo das entranhas, quando acaba.

- Compreendes o que ela disse? - pergunta o Rabi Losa a Efraim.

- Compreendo. Os juízes levantam-se. Murça camínha lentamente para Efraim, agacha-se, e com a mão direita começa a desapertar as presilhas da sandália de couro que dão três voltas à perna dele. A sua respiração arquejante arranha o ar. Quando as correias pendem livres, levanta-lhe o pé e descalça-o. Erguendo-se, inclina-se para trás para ganhar balanço e atira a sandália para o espaço entre Efraim e OS juízes. O Rabi Saba dá uma cotovelada a Losa e murmura qualquer coisa ao seu ouvido; aquele renegado idiota tinha-se esquecido do seu papel na cerimónia, tal o medo que me tem. Numa voz precipitada, diz a Efraim: «Repara no cuspo que sai da boca dela até chegar ao chão.» Murça treme, inclina-se para trás com um grande esforço e cospe no prato negro para simbolicamente humilhar o cunhado por se recusar a dar-lhe filhos. Com ar desafiador, Efraim recupera a sua sandália e passa-a ao Rabi Losa como quem estende uma convocação. Todos os cinco juízes entoam em uníssono: «Que seja vontade de Deus que as filhas de Israel nunca venham a precisar da halíza ou do casamento levítico.»

Acabada a cerimónia, Murça pende para o chão. Quando as mulheres se precipitam para ela, Losa rompe em direcção às escadas. «Todos os rabinos sabem como se mata como um shohet - penso - Era ele quem andava a atemorizar os passadores de meu tio. Foi essa a razão por que Deus me fez assistir a esta cerimónia!»

Empurro os homens da galeria, precipito-me atrás dele. No exterior, avisto-o a arrastar-se para sua casa. Alcanço-o em poucos instantes. As minhas mãos apertam-se em torno da seda da sua gola. Quando o esfrego contra a parede da casa de Samir, digo:

- Um grande sábio e o rabi dos rabis como você é não deve ter tanta pressa para se ir embora.

- Deixa-me passar, sodomita! - diz ele, procurando empurrar-me.

- Está a confundir-me com Farid, alguém que gosta de homens, mas você não é digno sequer de lhe pronunciar o nome.

- Será que me queres bater aqui mesmo na rua em frente de toda a gente?

- olha em torno para me forçar a reparar no pequeno grupo que se formou em volta de nós.

- Isso mesmo - digo eu - Não me interessa o que os outros pensam de mim. Mas vou ser justo. Não o mato pelos seus crimes contra o nosso povo, a não ser que chegue à conclusão que foi você quem matou meu tio.

- Matar o teu tio? Eu?!

- Que tem isso de surpreendente? Você traiu-o! Ousa negá-lo? Pegou no seu cutelo de shohet e cortou-lhe a garganta.

- Claro que nego. É certo que não gostávamos um do outro. Mas há todo o Mar Vermelho entre detestar e matar. E eu não o atravessei.

- Onde estava no domingo dos motins? - pergunto.

- Em casa a rezar. Tenho uma filha doente.

- A Deus ou ao Demónio?

- Pudesse um javali selvagem pôr a língua em...

Bato com a cabeça dele na parede. Guincha e rosna.

- E testemunhas?! - pergunto.

- Ambas as minhas filhas passaram o dia comigo!

- O dia todo?

- Sim.

- Então porque é que os dominicanos o pouparam?

- Porque agora trabalho para a Igreja, estúpido! - grita ele.

- As suas filhas estão em casa?

- Não te atrevas... Uma semana a dormir pouco e a comer menos começa a cobrar o seu preço sobre a minha razão e comedimento. Puxo o aterrorizado rabino pela Rua de São Pedro abaixo em direcção a sua casa. Uma parte recuada de mim apercebe-se que permiti que o meu desespero levasse a melhor de mim próprio. Estarei com medo de enfrentar a verdade, de ligar todas as pistas entre si até formarem um verso facilmente inteligível? Estão todas cuidadosamente guardadas na minha memória de Tora: o Maimon Branco de Duas Bocas o apedrejamento de Diego; o golpe de shohet na garganta de meu tio; as cartas de Tu Bisvat. Se fossem citações da Tora ou da Cabala, poderia tecer com elas um comentário sensato, uma resposta. Estarei apenas com medo de acabar a jornada para a vingança e passar através do último Portão do Vazio para a morte de meu mestre?

 

Segundo a cabala, o mel possui a sexagésima parte da doçura do maná; o sonho a sexagésima parte do poder da profecia; o Shabat a sexagésima parte da glória do mundo que há-de vir.

E o sono da doença, que fracção da morte possuirá? Raquel, a filha mais nova do Rabi Losa, está estendida sob um cobertor de lã, de lado, com as costas da mão curvada como uma barbatana sobre a fronte como se procurasse proteger-se de algum ogre. Tem os olhos fechados, mas estremece a todo o momento, parecendo que afasta uma algidez interior. Ester-Maria, a irmã mais velha, está sentada de vela aos pés da cama com os olhos tristes avermelhados da determinação que esmorece. Passa por entre os dedos um rosário. Saúda-me, como costumam fazer aqueles que estão para além das palavras, com um aceno, que parece de reconhecimento, mas também de distância. Observo a fraqueza do corpo da criança como que réplica da recusa de Murça por Efraim. As promessas rompidas da traição parecem constituir a cola que sela as nossas vidas conjuntamente.

- Há quanto tempo está assim? - pergunto.

- Desde sexta-feira passada - replica Ester-Maria - Mas a princípio não estava assim tão mal.

- E seu pai esteve com ela todo o dia de domingo?

- Isto é absurdo! - resfolega Losa. - A interrogar a minha própria...

- Esteve - murmura Ester-Maria, erguendo a mão a aquietar seu pai Todo o dia e toda a noite.

Levanta-se, comprime os punhos contra alguma parte dorida no fundo das costas - Pergunto por causa do que aconteceu a meu tio. Foi...

- Todos ouvimos falar no caso - interrompe ela, com um aceno de compreensão -. Não precisa de dar explicações. Oiça, quando os cristãos-velhos vieram, ficámos escondidos em casa. Meu pai disse que seríamos poupados, mas quem pode confiar em criminosos? Até... seria terça-feira? Parece que já nem sei bem os dias.

- Então porque não me deixou entrar quando cá vim procurá-lo? - pergunto, voltando-me para o Rabi Losa. - Ou porque não passou em minha casa?

E ainda agora na micva, quando...

- Estás a delirar?! Estavas aos pontapés à minha porta. Tinha aqui uma criança doente. Toda a gente sabe que queres vingar o teu tio. E agora se tu...

Mas espera... - Losa atravessa o quarto, desprega da parede um espelho baço e põe-no à minha frente. - Vê! - pede ele - Tu também não fugias disto?

Na prata fosca, à luz fraca da candeia, vislumbro uma figura cansada e aviltada com uma barba de dias a despontar nas faces e os cabelos desgrenhados e sujos.

- Tem razão - reconheço - Estou um susto. - Tiro da bolsa o desenho do rapazelho que andou a ver se vendia a Haggada de meu tio. - Algum de vocês conhece este rapaz?

Ester Maria inclina-se para a auréola que rodeia a chama da candeia e estuda o desenho. «Não» - diz ela e passa-o ao pai. Ele abana a cabeça.

- Então nunca ajudou o meu tio a passar livros hebraicos para fora de Portugal? - pergunto ao rabino. Quando ele nega, acrescento: - Tem de o jurar sobre a Tora.

Ele jura. Ouve-se Raquel ofegar no sono como um fole rasgado.

- Posso tocá-la? - pergunto. Losa acede. O pulso palpita freneticamente. A testa queima, mas curiosamente não transpira. - Que outros sintomas tem ela?

- Não consegue comer - diz Ester-Maria - E sangra dos intestinos quando vai... - A rapariga inclina-se para mim e os seus olhos expectantes mostram que o meu interesse despertou involuntariamente a sua esperança.

- Ou é disenteria ou febre espanhola - digo - Transmitida pelo ar viciado e pelo esterco. - Pelas páginas da minha memória de Tora perpassam passagens de Avicena: - chá de buxo e lúcia-lima, mas bastante - recomendo - Precisa de líquidos para suar os humores. E dêem-lhe clisteres de arsénico diluído em sumo de romã e água. Mas com pouco veneno. Umas gotas apenas. - Losa espreita-me por cima do seu nariz achatado de coruja com um olhar capaz de irritar até um profeta. E no entanto depois de tudo o que se passou a sua atitude surpreende-me por me parecer mais graciosa que insolente. - Poupe os seus olhares de louco para as cerimónias do Shabat- digo-lhe.

- Nunca mais farei essas cerimónias - diz ele tristemente - Nunca mais

- Ainda bem - respondo sarcástico.

- Que é que tu podes saber?! - grita ele. - A que renunciaste tu, a não ser ao teu nome judeu?! Eras capaz de fazer a promessa de nunca mais pores pé numa sinagoga se o Senhor salvasse o teu povo? Tiveste de renunciar a tudo o que tinhas de mais querido? Que podes tu saber do sacrifício?! Não passavas de um catraio de onze anos. Sim, ainda me lembro de ti agarrado ao teu pai. E tu lembras-te de mim a correr para a pia do baptismo. Alguma vez te iiiterrogaste porquê? Ou o teu tio? Ser,as capaz de entender que era para evtar que mais dos nossos morressem ou matassem os nossos filhos. Tinha feito um pacto com o Senhor: se Ele salvasse os judeus de Lisboa eu convertia-me. Seria errado? Quem o poderá dizer? Podes, tu? Poderia o teu tio?!

Losa limpa a saliva da boca com a manga, fita-me com anos de raiva a quelmarem-lhe as faces. Ester-Maria aproxima-se dele. Afaga-lhe os ombros e murmura:

- Acalme-se, meu pai.

- Meu tio está morto e não lhe poderá responder - replico numa voz

calma e seca que esconde a minha fúria - E se eu fosse um cabalista mais fiel

do que o que sou, talvez não o julgasse. Talvez nos tenha renegado por uma lealdade superior. Ou talvez seja isso que disse a si próprio para poder continuar a viver. Seja como for, os seus motivos já não me interessam. São as suas acçoes que contam tantos anos atrás, e que contam agora. Cheguei à conclusão que para pessoas como você e como eu, os nossos actos são mais importantes que as nossas palavras, que todos os nossos pactos secretos e orações sussurradas. Com meu tio, era diferente. Os seus cânticos chamavam os anjos ao nosso mundo. Para homens de prodígios como ele... - As minhas palavras apagam-se; o Rabi Losa, a explodir de fúria, tinha dado meia volta. As palavras de nada serviam. Toco

Ester-Maria no ombro para chamar a sua atenção: - Mantenha a Raquel limpa com água de rosas fervida com lúcia-lima e gema de ovo. E por amor de Deus, mude esses lençóis contaminados. Ou ainda Melhor, queime-os! - Ponho a mão sobre a sua cabeça e abençoo-a.

- A minha irniã vai morrer? - pergunta.

- Só Ele o poderá dizer - entoa o pai dela. O seu olhar piedoso para o Céu dos cristãos tem por fim recordar-me o sacrifício que ele alega ter feito.

- Provavelmente morrerá - respondo num tom endurecido de desafio; nesta altura, afirmações sobre a existência de um Deus morando no cimo das nuvens a vigiar-nos parecem-me cruéis e absurdas. Para Ester-Maria, para mim próprio, acrescento: - Mas se fizer o que lhe disse, ainda haverá alguma esperança.

A rapariga faz-me um aceno de agradecimento. O Rabi Losa dobra o queixo como sempre faz quando estou presente e suporta com desdém a minha vénia de despedida. Caminho lentamente de volta a casa olhando as constelações dispersas que enfeitam o céu, doravante consciente de que ele e todos os rabinos que a si próprios se consideram como justos deixaram de ter poder sobre mim. Para sempre. Isso, também, fora a minha jornada desta Passagem.

Por mais que se pense ter percebido a verdadeira forma de um versículo da Tora, há sempre uma maneira de rasgar as roupagens que o revestem e revelar novas camadas interiores. O mesmo se passa com os acontecimentos da vida de todos os dias.

Diego, Frei Carlos e Farid vieram ter comigo à cozinha com uma carta de Salomão Eli, o mohel que descobrira o segredo da entrada de nossa casa para os balneários. Num tosco papel de linho mal fabricado cuja superfície tem impresso um arco, lê-se rabiscado o meu nome «Berequias Zarco».

- Chegaram más notícias, enquanto estiveste lá fora - diz Diego - Salomão, o mohel, foi encontrado pendurado pelo seu tallit de uma das vigas da casa. Matou-se. Farid, Frei Carlos e eu fomos lá. Deixou um bilhete para ti.

- Mas ele tinha sobrevivido! - grito. As minhas palavras soam vãs entre nós. Afinal, que resistência tem o corpo comparado com a fragilidade de uma alma dolorida? - O bilhete não está selado - observo -. E escreveu o nome que me foi dado, Berequias. Ele nunca me chamou assim. Para ele, fui sempre Shaalat Chalom.

- Foi assim que nos foi entregue - diz Frei Carlos, com um encolher de ombros.

- Por quem?

- Pela irmã dele, Lena - responde Diego - Parece que foi ela quem encontrou o corpo e quando estava a ver as coisas dele encontrou o bilhete.

As palavras de Mestre Salomão surgem numa escrita apressada, quase infantil, emolduradas por uma impressão circular gravada no papel: «Poderá a aprendizagem como mohel tornar-nos insensíveis ao sofrimento da carne? Isto prova alguma coisa. O meu corpo é fraco. O Novo Mundo nunca chegará a sentir os meus passos. Demasiadas descobertas neste século. Seria bom que certas coisas permanecessem secretas. Denunciei cristãos-novos. Também denunciei Reza. Mas tinha de o fazer, a sério. A ameaça da pinga é uma sombra ardente, e o corpo é um tremendo cobarde quando revestido de trevas. Uma simples gota de azeite lançam-no numa fuga para os gritos que sobem das tripas como serpentes despeladas e... Mestre Abraão jurou que havia de me conduzir perante um tribunal judaico. Que acharia maneira de me ver punido. Discutimos nesse domingo de manhã. Medo. Deve ter sentido o seu cheiro em mim. Disse-me: "Trazes um cutelo e mesmo assim estás com medo?" E sorriu-me como se me convidasse para sua casa. "O ferro da tua lâmina irá fortalecer-me perante Deus e talvez sirva mesmo um propósito mais elevado, mas esta rapariga não está ainda pronta. Salomão, poupa-a e eu irei para ti como uma noiva." Mas a rapariga respira o fogo da Inquisição tanto como um homem. Ser como Adão... se ao menos fosse possível. Não queria roubar-lhe a vida. Nem à rapariga, de que ainda não sei o nome. Não posso pedir o teu perdão, nem o perdão de Ester e de Mira, mas quando eu tiver partido, digam por favor um kaddish por mim para que eu possa deixar a Esfera Terrena. Poderá haver paz para um homem como eu? Bençãos para ti. Salomão.»

- O que é que diz? - pergunta Diego, vendo-me ler. Os meus lábios estão selados por aquela confissão desordenada e pelas suas falhas. A morte explica o livro que ele me deixou como presente. Mas porquê as inesperadas dúvidas quanto à profissão que ele amava? Porque não havia nenhuma referência à sua mulher? Será que não estava lúcido nos seus últimos momentos? Será isto, então, um bilhete falso feito por Zorobabel ou pela Rainha Ester? Suspeitarão que caminho já nas suas sombras?

- Há quanto tempo tinha morrido quando a irmã o encontrou? - pergunto por sinais a Farid.

- Ela disse que o encontrou esta manhã. Mas o bilhete só agora. Não tinha coragem para mexer nas coisas dele antes.

- Que estão para aí os dois a gesticular? - pergunta Frei Carlos - E o que é que isso diz, caramba?!

Depois de eu ler em voz alta as palavras de Salomão, Farid toma o bilhete das minhas mãos e cheira-o, lambe-lhe as bordas.

- De muito má qualidade - diz ele.

- Como mohel Salomão era muito hábil com facas - observa o frade.

- Isso pode explicar algumas coisas - acrescenta Diego -. É certo que nunca desconfiámos que ele trabalhava com Mestre Abraão. Era isso mesmo que ambos pretendiam.

Tem razão. Mas ainda assim, será possível que Gemila tenha confundido um homem meio calvo, aquela fraca figura de homem escuro, com o Maimon Branco de Duas Bocas? E por que razão haveria ele de pagar ao flamengo para matar Simão e Diego?

«Abriste outra porta - ouço meu tio dizer-me - Agora, Berequias, enche os pulmões com o fôlego da Esfera Terrena e salta através dela antes que tenha tempo de se cerrar de novo.»

Recuperei a carta das mãos de Farid. Os meus passos conduzem-me à cave, onde posso meditar sobre aquilo. «Sozinho» - murmuro, e Farid deixa a minha mão deslizar pela sua.

Em baixo, tiro do armário do material o anel de sinete de topázio de meu tio e enfio-o no indicador direito. Sento-me no tapete de orações por cima da mancha do seu sangue. Depois de abrir as portas do meu espírito com alguns exercícios propiciatórios, transponho as letras escritas na nota de Salomão recorrendo à monotonia do cântico. Assim que as suas palavras se elevam do papel e se torcem no ar como as argolas de um malabar, começam a largar o seu significado como se fosse um peso inútil. Os meus braços e as minhas pernas tornam-se com a graça cada vez mais ligeiros.

Imagine-se que olhamos uma placa com caracteres cuneiformes. Quando os nós do espírito se desatam, o hebraico torna-se igualmente estranho. As letras surgem como formas desemparelhadas; música sem melodia; animais a que Adão não deu nome. A solidez do mundo torna-se translúcida e finalmente abre-se.

Através do maior espaço que Deus nos deu, o do vazio para além do pensamento, começaram a chegar-me palavras com a certeza da oração: «Esta deve ser a escrita do assassino de meu tio; é a confissão dele, não a de Salomão. Deixou-a na casa do mohel depois de ele se ter matado. Para que a sua irmã ou outra pessoa o encontrassem e mo trouxessem... para me tentar a abandonar a sua pista. Talvez tenha até matado o pobre Salomão para adiantar de algum modo os seus planos!»

Fico sentado sozinho; o esforço em convocar a visão interior foi difícil para o meu corpo enfraquecido. As minhas mãos têm um peso de chumbo. «Descansa até amanhã» - penso para comigo. Como resposta, as minhas pálpebras cerram-se. Meu tio fala comigo. «Dorme» - diz ele na sua voz plangente, sedutora «Tens de dormir em silêncio se queres completar a jornada».

- Não, agora não - respondo em voz alta. Abrindo os olhos, penso: «Tenho de ir ver a casa de Salomão, falar com a irmã dele. Depois voltar ao Palácio dos Estaus. Tenho de tentar falar com joana, a filha do Conde.»

- Sempre desafiador - replica meu tio. Fecho os olhos para ver o seu sorriso - Tens de ceder caminho ao sonho - prossegue ele - O deserto de Lisboa passou sob os teus pés. Estás realmente perto. Descansa a tua cabeça no meu regaço. Usa os teus sonhos para fazeres uma pergunta.»

- Não será pecado? - pergunto - Não devemos interrogar os mortos, diz o profeta.

- «Podemos sempre falar com Deus. É no Seu oceano que esta simples gota agora está. Tira do pulso a fita com os nossos nomes escritos a dourado e põe-na em cima dos olhos. Depois dorme.»

Obedeço ao meu mestre. E na verdade um sonho desce sobre mim. Sinto-me envolvido por uma tepidez próxima de uma saudação de boas-Vindas. Meu mestre está em pé diante de mim, enquadrado pelos azulejos da parede da cave, com o xaile ritual deitado sobre a cabeça e os ombros.

- Não acredito que Dom Miguel Ribeiro ou qualquer homem de armas vindo do Norte pago pelos seus passadores secretos tenha enfiado um fio de seda na sua unha ou o tenham matado como um shohet - digo - Mas quem mais poderá estar envolvido? Quem é que a Rainha Ester enviou para o matar?

- «Já sabes quem separou o meu corpo da minha alma - responde ele com um sorriso vivo - A questão é onde e quando te aperceberás disso.»

- Como sempre, tio, quer que eu me esforce para encontrar a resposta. Pois bem. Onde e quando saberei o nome dele?

Ao mesmo tempo que a asa alva das suas vestes se abre, uma brisa perfumada de mirto sopra sobre nós. O tecto adelgaça-se e desvanece-se. As paredes desaparecem. O céu abre-se, tingido de cor-de-rosa e violeta no horizonte a ocidente. Estamos ambos sentados na parte de baixo da torre da Quinta das Amendoeiras.

Porquê aqui? - pergunto. - Porquê ao pôr do sol? Meu tio lança-me um olhar dardejante, a indicar que o devo ouvir atentamente. Ergue a sua mão em benção sobre mim e diz: - O mapa de uma cidade está nos pés de um mendigo cego. Uma luz dourada brilha através dos postigos na extremidade do lado norte da cave. Estamos na manhã de sábado. O oitavo e último dia da Páscoa. Levanto-me e considero retrospectivamente o meu sonho como quem olha para um hóspede que se despede. Abrindo a geniza, procuro em vão uma escrita que se assemelhe à do falso bilhete de Salomão. Seguidamente, só para confirmar o meu raciocínio, folheio a Haggada pessoal de meu tio. Salomão, o mohel, não recebeu nenhum correspondente bíblico. Ao que tudo indica, não poderia estar envolvido em passar livros juntamente com Zorobabel e a Rainha Ester.

Em cima, Reza está a acender a lareira, com Aviboa ao colo, apoiada na sua ilharga. A menina tem um grande malmequer cor de laranja preso no cabelo. Diego e Frei Carlos estão sentados em frente um do outro à mesa da cozinha a beberricar umas taças de barro com água de cevada fumegante. Reza é a primeira a ver-me. O seu olhar trai o seu amuo por eu me ter recusado a conduzir as orações do Shabat na noite anterior.

- Vejo que dormiste - diz Frei Carlos - Ainda bem. Trocamos bençãos.

- Onde está Farid -pergunto.

- Em casa, a fazer as suas orações - responde Diego. Dirijo-me à porta que dá para o pátio.

- Onde pensas que vais assim? - pergunta Frei Carlos.

- Vou sair - replico.

- Vais a casa do mohel Salomão, não é isso? - pergunta Reza com azedume. Antes de lhe poder dizer o meu verdadeiro destino, acrescenta: - Não podes deixar as coisas como estão? Agora está morto. já temos a nossa vingança. Temos mas é de arranjar maneira de continuarmos, de cuidar da família que nos resta. Era isso que o teu mestre haveria de desejar. E acredita no que te digo, Berequias Zarco, há aí todo um barco de coisas para fazeres se quisesses unir-te ao mundo dos vivos!

Reza fita-me como se eu lhe fosse dar a resposta que ela espera.

- O meu destino é diferente do teu - digo - Se não sigo agora o meu, nunca mais poderei reunir-me a ti mais tarde. - O caminho que ela me apontou serve-me de mentira muito a propósito, por isso acrescento: - Além do mais, vou só lá apresentar condolências. Mesmo um homicida é digno das nossas orações.

Diego levanta-se e diz:

- Parto hoje ao fim da tarde para Faro a apanhar o barco para Constantinopla. Talvez seja melhor fazermos as nossas despedidas.

- Volto já. Agora não tenho tempo para adeuses. Farid está a rezar no quarto da frente quando entro em sua casa. Quando me avista, levanta-se de um salto como que puxado pelas mãos de Alá.

 

Quando Farid e eu subimos os caminhos coleantes da encosta salpicada de tufos de vegetação que leva às torres do Convento da Graça e ao sol nascente de Lisboa, a freira anã do dente espetado que vigia o cruzeiro de granito do santuário dá uma volta para nos observar.

O palacete de Dona Meneses está empoleirado no topo da estrada poeirenta que contorna a encosta a norte da colina. Uma fortaleza de pedra adaptada a partir de umas muralhas românicas abandonadas, cuja única fantasia moderna é uma varanda de mármore suportada por quatro contrafortes apoiados no calcário que a encosta em baixo deixa à mostra. já cá vim duas vezes, para entregar vestidos de seda que ela tinha encomendado a minha mãe. Encaminhamo-nos para a entrada lateral da casa guardada por dois portões, protegidos pela sombra de dois enormes cedros marroquinos. Daqui, podemos ver o canto da varanda nas traseiras. No extremo oposto vê-se um homem descarnado, com um gorro azul de plumas. Tem na mão um copo de vidro vermelho e conversa tranquilamente com alguém que não consigo ver do sítio onde me encontro. Quando se volta para o seu lado esquerdo para assinalar qualquer coisa ao longe, reconheço-o: o conde de Almira.

Zorobabel e a Rainha Ester estão reunidos. No portão, um guarda loiro com o característico chapéu côr de ametista dos homens de Dona Meneses leva o meu recado para o interior da casa. Quando nos afastamos, Farid comenta por gestos: «Talvez ela consiga um abatimento por encomendar todos estes monstros flamengos a granel.» Gostaria de me rir, mais que não fosse para confirmar que sou ainda o jovem moço que antes era, mas parece que perdi essa capacidade. Ao passarmos pela freira saturnina que continua de guarda ao convento, o coração parece querer saltar-me do peito. «Se a minha vida tivesse de acabar aqui - penso -, que sentido poderia ter ela?» Não há tempo para estudar uma réplica. Desatamos a descer a colina num verdadeiro corre-escorrega-corre. O alucinante emaranhado das ruas de Lisboa recebe-nos com indiferença.

De regresso a casa, tiro da geníza dois valiosos tratados filosóficos de Abraão Abulafia, «A Vida no Mundo do Futuro» e «o Tesouro do Paraíso

Escondido». Ambos possuem notas à margem escritas pela mão do próprio mestre.

- QUe estás a fazer? - pergunta Diego das escadas. Está ao lado de Frei Carlos, ao topo das escadas, contemplando-me com um olhar protector.

- Agora compreendo o que meu tio quer que eu faça. Se o que Dona Meneses pretende é comprar manuscritos hebraicos, então vou-lhos arranjar. Mas por um preço bastante alto. Quero a última Haggada de meu mestre. É a prova que preciso.

- Mas disseste-nos - observa o frade - que pensavas que tinha sido Salomão o responsável por...

- Que interessa o que eu disse?! - interrompo. - Acredita em tudo aquilo que ouve?

Ele franze o sobrolho como se tivesse cheirado alguma coisa podre.

- Uma troca? Os livros de Mestre Abraão por uma Haggada - pergunta Diego.

- Isso mesmo.

- Tens a astúcia do teu tio - diz Frei Carlos, no seu tom cansado - Isso não se discute. Mas talvez sejas um pouco esperto de mais.

- Estás a tentar o Diabo, não sei se sabes - adverte Diego.

- Vocês os dois começam a soar-me muito parecidos - observo - Acho que o medo faz todos os judeus dizerem as mesmas coisas. E começa a ser fatigante. De qualquer modo, não estou a tentar nada o Diabo. Dona Meneses não passa de uma judia tão assustada como o resto de nós. - Judia?! - exclama Diego. - Ela não é nada judia!

- É ela que está retratada como sendo a Rainha Ester na Haggada de meu tio... está representada a trazer a Tora a Mardoqueu.

- Isso não prova nada! - zomba ele.

- Para mim prova!

- Mesmo que tenhas razão - diz Diego no tom de alguém mais velho e conhecedor -, ela não é judia. É cristã-nova. E de dia para dia a diferença entre as duas coisas é maior. - E vendo o meu gesto de indiferença, prossegue: - Seja como for, as facas não têm religião. E os guardas dela têm algumas bem afiadas. Todos nós pudemos ver isso de perto ainda há pouco.

- E que queres que te diga? Sei isso tudo muito bem.

O frade desce até ao fundo das escadas e aproxima-se de mim. Com olhos suplicantes, diz-me:

- Berequias, agora que perdeste o teu pai e o teu tio...

- É escusado, Frei Carlos! Não preciso da sua protecção. Ele solta o mesmo suspiro sofrido que tenho ouvido toda a minha vida,

querendo significar que para meu mal sou demasiado teimoso. Enfio os manuscritos na caixa de couro que meu tio costumava levar para as suas digressões espirituais na Serra de Sintra.

- Então onde a vais encontrar? - pergunta Diego, aproximando-se.

- Na Quinta das Amendoeiras - replico.

- Porquê aí?

- Foi onde meu tio me mandou que fosse. Frei Carlos sobressalta-se. Ao passar por ele, agarra-me o braço:

- Mestre Abraão apareceu-te? - Aceno que sim e ele pergunta-me num murmúrio: - E falaste com ele?

- Fiz uma pergunta a Deus num sonho e meu tio apareceu-me.

- E... e que te disse ele?

- Que o último portão seria atravessado na Quinta das Amendoeiras.

- Berequias - diz Diego - se o que dizes está certo, então foram Dona Meneses e o conde de Almira quem mandou matar Mestre Abraão e Simão. Não devias ir. Vou chamar a tua mãe. Vejo que a nós não nos dás ouvidos.

- Não vás! Ela não é para aqui chamada! Simão não estava preparado. Nem, ao que parece, meu tio. Não sabiam até que ponto ela era realmente perigosa. Mas eu sei. - Ele continua a protestar num tom que se torna descomedido. Levanto a mão a pedir silêncio. - Se dizes a minha mãe, ela desata a fazer mais uns quantos desses horríveis talismãs. Deixa-a estar na loja. Vamos despedir-nos agora. Se calhar já estarás longe quando eu voltar.

Abraçamo-nos, mas é impossível às minhas emoções abeirarem-se das suas lágrimas; há em mim uma indiferença endurecida ligada à ideia de vingança.

- Espero que encontres as tais pérolas de chuva que querias dos céus de Constantinopla - digo, sorrindo o melhor que posso - E não te esqueças dos tratados que querias da Senhora Tamara. Não os consegues arranjar em mais parte nenhuma. Se precisares de dinheiro... - Pego na minha bolsa e estendo-lhe o anel de água-marinha da Senhora Rosamonte.

- Berequias - diz Diego, pegando no anel -, não sei o que...

- Não digas nada. Espero que tudo te corra bem na Turquia.

- Vou ter saudades das maravilhas de Portugal. E mais que tudo, dos judeus de Lisboa - abençoa-me colocando a mão sobre mim - Que tu e a tUa família encontrem a paz que tanto merecem.

QUando eu e Farid nos dirigimos para a Quinta das Amendoeiras, a erva cor de âmbar e as árvores em flor de Portugal parecem insinuar uma separação. Estamos, nós, os judeus, a dispersarmo-nos de novo, e estes tufos de silvas e de alfazema, estas papoilas e estas pegas não ouvirão durante os próximos séculos os seus nomes em hebraico, talvez para nunca mais. Talvez seja até uma boa coisa para elas.

O grande número de campas continuam livres de ervas por causa da seca.

As tabuletas de madeira rabiscadas em português brotam como mãos estendidas para a vida. Entramos na torre e subimos as escadas em espiral. Damos voltas e mais voltas sempre a subir, até à vigia, agora vazia, a não ser um amontoado de excrementos de pássaro. Contemplamos os tapetes de aveia dourada e a terra lavrada separada por fieiras de sobreiros, com os seus nobres troncos contorcidos descascados, deixando à mostra um vermelho vulnerável.

E esperamos.

O pôr-do-sol que assinala o fim da Páscoa surge com reflexos das grandes folhas de palmeira cor de topázio que recobrem o paraíso. Momentos depois, tal como pedira no meu recado, o coche de Dona Meneses aproxima-se, detendo-se no extremo da quinta. Sozinha, caminha em direcção a nós através do velho pomar de amendoeiras, segurando um guarda-sol escarlate aberto. Não traz, porém, nenhum manuscrito nas mãos. Os gestos de Farid dizem: «Chegou a altura.» Mete a adaga no cós das calças. Fazendo o possível por me manter calmo, levanto o pacote com os manuscritos de Abulafia. Descemos da torre, a mão de meu tio a guiar-me num passo mesurado completamente descompassado com a minha respiração nervosa.

Quando chegamos a baixo, Farid e eu estacamos no meio das pedras que aí estão e esperamos a fidalga.

Dona Meneses não nos desilude. Avança confiadamente pela entrada da torre e saúda--me com um aceno rígido, o género de gesto real que ela usa para mandar seguir os seus cocheiros. O rosto, ainda que não seja desagradável ao olhar, parece demasiado redondo e pequeno, talvez por as suas tranças castanhas estarem rigidamente puxadas para trás e enfiadas num grande cone negro debruado com uma fita amarela. As suas vestes de seda ondulantes, às riscas azul-marinho e verde-brilhante, estão tufadas à moda, à frente, para dar a impressão de prenhez. Ao olhá-la, era como se antes nunca a tivesse visto; tenho a impressão que a aterroriza o avançar da idade. As suas sobrancelhas arqueadas e as longas pestanas estão sublinhadas com um traço espesso, e um pó desagradavelmente rosado apaga a sua pele esverdeada. O franzido dos seus lábios de um vermelho de rubi denota a impaciência que a possui. Subitamente fecha a sombrinha, acaricia o seu colar de esmeraldas e safiras com delicada circunspecção. Dardeja um olhar sobre Farid. Voltando-se para mim, assume uma atitude de falsa e instante simpatia.

- Vim como me pediu - diz ela - Quer fazer o favor de me explicar o que...

- Não trouxe a Haggada de meu tio? - pergunto.

- Mas que brusco! - exclama, como se essa fosse a resposta adequada à minha pergunta.

- Onde está ela? - repito.

- Não sei - franze as sobrancelhas como se espantada com a minha preocupação - Mas pode estar certo de que eu não a tenho.

É impossível - digo. Mas verdadeiro - replica -. Diga-me uma coisa, falou em mim a alguém, sobre...

- Não se preocupe, Não vamos enviar nenhuns espias para a sua porta. Tanto quanto as pessoas sabem, a senhora é uma cristã tão velha como o próprio Grande Inquisidor de Castela.

- Pode-me dizer como é que descobriu? - pergunta. - A sua mãe, talvez?

- Ela sabe?!

- Ah, então a minha querida Mira respeitou a palavra e não disse nada. - Passa os dedos pelo pescoço com evidente alívio.

- Não, não foi ela que me disse - ao mesmo tempo que dizia estas palavras, compreendo tudo repentinamente - O cesto de fruta com que a senhora saía sempre da loja - digo -. os livros estavam escondidos no fundo. Ela sabia tudo.

- Uma vez o «Concílio dos Pássaros» de Attar ficou manchado das uvas.

O seu tio ficou furioso. - Dona Meneses exibe um sorriso falso, ensaiado. Vendo que não correspondo, pergunta-me numa voz arrogante: - Então como é que descobriu quem eu sou?

- A senhora está representada numa iluminura da Haggada pessoal de meu tio como sendo a Rainha Ester. Não deixava nenhuma dúvida quanto às suas origens religiosas. E na gravura, não só leva a Tora a Mardoqueu, como esconde uma cópia do Bahir debaixo do braço.

- Muito esperto - declama ela com uma vénia, palpando o colar - Os meus parabéns. Mas tenho de concluir que o seu tio arriscou muito na sua obra.

- Foi por isso que o matou?

- Matá-lo?! - sobressalta-se ela - Eu?!

- A sua surpresa é tão falsa como essas contas à volta do pescoço.

- Dá-se o caso de estas jóias valerem mais do que as vossas duas vidas juntas - exclama ela.

- Nos tempos que correm, isso quer dizer que não valem grande coisa, cara senhora.

- Estou a ver que é muito parecido com o seu tio.

- Mas não tão ingénuo -replico - Eu sei quem a senhora é e o que fez.

- Ai sabe? - Ela sacode a cabeça e sorri, como se divertida com as habilidades de um cãozito. - Então diga lá o que é que pensa que sabe!

- Não lhe digo nada - tiro os manuscritos do pacote - Vim cá para lhos dar em troca da última Haggada com iluminuras de meu tio. Bem sei que é a senhora que a tem. E estes livros valem muito mais. Ambos estão anotados pela própria mão de Mestre Abraão Abulafia, que o seu nome seja abençoado.

- Se está tão convencido de ter sido eu a matar o seu tio, porque não tentou antes tirar-me a vida?

- A sua morte não o trará de volta - digo.

- A razão nada tem a ver com a vingança. A sua hesitação deve querer dizer que não tem a certeza absoluta da minha culpa - faz-me um aceno como a procurar o meu assentimento.

- Preciso dessa Haggada!- grito - E não saio daqui enquanto não ma der!

- Porquê aqui? - pergunta ela numa voz calma, ignorando a minha ameaça -. Porquê na Quinta das Amendoeiras?

- Também fazia parte das iluminuras de meu tio, na mesma gravura em que estava Zorobabel. No meu sonho, ele disse-me que haveria de atravessar a última porta deste mistério neste lugar. Agora diga lá onde...

- Ele disse-lhe isso? Mestre Abraão? - Com os dedos acaricia os tendões esticados do pescoço. Está tão nervosa quanto eu próprio.

- Disse. Falei com meu tio - respondo.

- quando? - pergunta ela ansiosa.

- Isso pouco lhe interessa. A senhora está aqui apenas para...

- Sabia que foi aqui que selámos juntos o nosso fado? - interrompe ela numa voz que parece vinda das entranhas, do medo - Há quatro invernos, no décimo terceiro dia de Adar, um dia antes do Purim. Preparávamo-nos para comemorar a antiga vitória do povo hebreu sobre o exército sírio que se passou nesse dia - o seu olhar recolhe-se ao recordar -. O seu tio insistiu para que o encontrasse aqui na Quinta das Amendoeiras para combinarmos a nossa rede de passadores.

- Porquê aqui? - pergunto eu.

- Conhece a história de Aarão Poejo e da...

- Conheço - interrompo.

- E da visão que ele teve ... ? - pergunta ela.

- Os bárbaros de máscaras de ferro nas bocas que haviam de vir saquear Lisboa.

Máscaras de ferro para evitar a comunicação - diz ela, como quem sugere uma citação de sabedoria - Loiros porque são cristãos. Veja se compreende. Você era o escolhido de Mestre Abraão. Imagine-o como escritos.

- Sim. Era a visão de que os cristãos haveriam um día de nos tirarem as nossas palavras, os nossos livros.

- E era aqui, dizia o seu tio, que devíamos planear a queda deles. A resposta ao enigma que meu tio me propusera antes do seu derradeiro Shabat desponta dentro de mim. Tinha-me perguntado: «O que é que vive durante séculos, mas pode morrer antes ainda de ter nascido?» Um livro, compreendo agora; nasce a cada vez que algum de nós o lê. E pode morrer nas fogueiras da Inquisição tanto quanto cada um de nós.

Dona Meneses observa-me por cima do seu nariz.

Sabe uma coisa?, se não me tivesse pedido para vir ter consigo aqui podia tê-lo mandado matar também. Mas há qualquer coisa neste sítio...

- Onde está a Haggada? - pergunto com renovada insistência.

- Não a tenho. Berequias, deixe-me...

- Não lhe dei permissão para usar o meu nome verdadeiro! Use o nome cristão!

- Como queira. Pedro, eu trabalhava com o seu tio. Faz já mais de três anos. Diga-me, lembra-se da senhora Belmira? - pergunta ela.

- A judia que mataram à pancada no Chafariz da Madre de Deus meses atrás?

- Essa mesmo. Já imaginou porque é que a mataram?

- Lisboa está cheia de cristãos-velhos capazes de...

- Não! Foi o meu cocheiro. Lembra-se dele? Aquele moreno que trabalhava para mim. Nada destes flamengos que agora tenho.

- Foi o seu cocheiro quem a matou? - pergunto.

- Foi. Tinham-me mandado um recado. Um recado de ameaça. Ou eu entregava os livros que seu tio me ia dando ou o autor da ameaça revelava o meu passado judeu. Uma situação que não me agradava nada. E não só a mim, mas taMbém à minha família. Dizia-me que tinha de pôr um primeiro manuscrito num esconderijo perto do Chafariz da Madre de Deus. Assim fiz. Ou antes, fêlo o meu cocheiro. E ficou à espera. Ao cair da noite apareceu uma mulher. A senhora Belmira. O cocheiro apanhou-a, tentou saber a mando de quem andava. Mas ela não falou. Por mais que ele fizesse... Receio que se tenha excedido, levado pela lealdade que me tinha. Era um homem rude. Mandei-o de volta para a família em Toledo. Os castelhanos são assassinos natos. Nunca os ponha ao seu serviço, a não ser para touradas.

- Disse alguma coisa a meu tio? - pergunto.

- Não disse a ninguém - replica.

- Não tinha confiança nele?

- Na minha posição, não me posso dar ao luxo de confiar. Tanto quanto sei, ele é que me traiu.

- Meu tio nunca traiu ninguém.

- Talvez não. Mas num dilema daqueles... Pedro, confiar é uma coisa que poucos de nós se podem permitir nos nossos dias. Pode ser demasiado... demasiado caro.

Subitamente a sua face ensombra-se de tristeza ou de remorso. Dá um passo na minha direcção, mas eu levanto a mão a detê-la. É como se a sentisse contaminada por uma bondade perigosa.

- Comecei a mandá-lo vigiar, e também a sua família. - As palavras de Dona Meneses apagam-se quando ela respira fundo.- De qualquer modo, recebi mais um bilhete depois da morte da senhora Belmira. Dessa vez ameaçavam-me de que se eu tentasse descobrir quem era o autor das mensagens o meu segredo seria revelado à Igreja e ao próprio rei Dom Manuel. Dizia que tinha provas das minhas origens judias. Por isso comecei a deixar-lhe os manuscritos que seu tio me ia entregando.

- Ainda tem essas mensagens?

- QUer ver se consegue descobrir o autor pela escrita - assente ela com um gesto ladino - Também pensei nisso. Os bilhetes foram sempre garatujados, como se fossem escritos com a mão esquerda. Ou talvez por uma criança. Mas surgiu-me uma ideia. Tenho um velho amigo de infância, alguém acima de qualquer suspeita, que nos tem ajudado a passar livros pela fronteira de Espanha. Você conhece-o como...

- O conde de Almira - interrompo.

- Ele próprio. Ele veio...

- E Isaac de Ronda - acrescento.

- Ah, então também descobriu isso - diz ela, franzindo os lábios e lançando-me um olhar atónito.

- Foi o Farid - replico.

- Como? Farid aponta para o nariz e para os olhos.

- Parabéns - diz-lhe ela com uma vénia - Pensei então em pedir ao conde que viesse a Lisboa a oferecer-se para comprar livros num dos disfarces, e a vendê-los noutro. Esperávamos assim de um modo ou de outro fazer sair da toca o autor das ameaças. Para tirarmos a coisa a limpo. Eu sabia que o nosso homem tinha tentado vender a Haggada de seu tio à senhora Tamara. Um erro da parte dele. Deve ter entrado em pânico logo a seguir aos motins. Infelizmente, ela assustou o rapaz que levava o recado sem o ter feito falar. Foi então que o autor das ameaças se apercebeu do erro e se tornou mais cuidadoso. Seja como for, sei que se trata de alguém que pertencia, ou tinha pertencido, ao grupo de iniciados de Mestre Abraão. Só eles é que conheciam o segredo do tráfico de livros. Foi ele quem mo disse quando fizemos o nosso acordo. Comecei a trazê-los todos vigiados. O próprio conde se encarregou de seguir um deles, esse velho inadaptado do Diego, quando foi atacado por aqueles rapazolas cristãos na sexta-feira antes de tudo se ter começado a desfazer em Lisboa. Um dos cocheiros do conde salvou-o. E depois chegou o domingo... as fogueiras. Depois disso, com toda a gente a clamar por sangue judeu, eu já não podia esperar mais. O meu instinto dizia-me que era Simão Eanes, o importador de tecidos. Por isso mandei-o... relaxar.

Fala como se uma ordem para matar lhe ocorresse naturalmente, usando os termos próprios da Inquisição; como os eclesiásticos não podem verter sangue directamente, os condenados pela Igreja em Espanha eram passados ou «relaxados» às autoridades civis para serem queimados.

- Pensava que os meus problemas tinham acabado, mas recebi mais um bilhete - prossegue ela. Dá mais um passo em minha direcção, implorando-me com uma expressão doce no olhar que suspenda o meu juízo. - Tinha de deixar mais livros no esconderijo do Chafariz da Madre de Deus precisamente ontem. Mas não o fiz.

- Foi então que chegou a vez de Diego - digo.

- Foi, Deus me perdoe! - as mãos dela enrolam-se num punho - Que fazia você?!

- Eu?! Eu nunca mataria ninguém só por não ter coragem de admitir ser quem sou!

- Muito valoroso. Quando a Inquisição cair sobre Portugal e você sentir as suas garras no pescoço, veremos se ainda terá os mesmos sentimentos.

- Vai tentar de novo apanhar Diego?

- Vou. E Frei Carlos também. Não posso correr riscos... Depressa serão descobertos. E os meus homens têm ordens. Não posso esperar mais. Não tenho por onde escolher. Farid aponta para o colar e com gestos cortantes de fúria insinua:

- Demasiadas esmeraldas em jogo, sem dúvida! Quando traduzo esta sua condenação de Farid, ela grita:

- Você não tem coração! - Enrola os dedos no colar e puxa-o. As contas espalham-se pelo chão. - Fique com elas! - diz ela, oferecendo a Farid e a mim o que resta da fiada de jóias. - Isto nada tem a ver com dinheiro. É a minha vida! É a vida de nós todos! - Um esgar de angústia atravessa-lhe o rosto. A pancada que sinto é do colar que me atirou ao rosto.

Ficamos os três ali especados em silêncio, como prisioneiros que não se atrevem a escapar em palavras para longe da culpa e da vergonha. Fecho os olhos e sigo a minha respiração. Farid pega-me na mão e nomeia um suspeito com os seus dedos. «Pois é!» -respondo. - Ainda pode ser ele. Quando me volto, porém, acontece um momento mágico; o anel de pele de um branco marmóreo que sempre estivera escondido pelo colar de Dona Meneses confirma uma outra possibilidade espantosa.

- Só restam duas pessoas que podem ter assassinado meu tio - digo Dê-me até amanhã de manhã antes de mandar matar mais alguém.

É muito tempo! Então até à meia-noite. Anda a matar homens inocentes! Dona Meneses faz um aceno de assentimento, fita-nos por cima do nariz como uma princesa desafiadora a medir os homens que a tivessem violado. Levanta a cauda do vestido, atira-a para trás, dá meia volta e sai pela porta fora.

 

OS campos começam a ceder o lugar às barracas de madeira e aos montes de lixo dos bairros limítrofes da cidade na retirada apressada com que eu e Farid regressamos a Lisboa.

Na Estalagem do Corpo Santo, dirigimo-nos ao patrão, o Senhor Duarte, um homem baixinho com uns tufos de cabelo penteados para diante em franja, que está à mesa a enfiar colheradas de sopa numa boca sem dentes. As queixadas abrem e fecham como um fole apertado. Estacamos junto dele.

- Quando chegou Dom Afonso Verdinho? - pergunto. Ele fita-me com uns olhinhos piscos, um naco de pão de milho ensopado enfiado na boca.

- Quem pergunta?

- Pedro Zarco. Dom Afonso está cá com a minha tia. Quando é que ele chegou?

- Tenho de ir ver nos livros - diz ele, contorcendo a cara e fechando os olhos a cada colherada, a sopa a pingar-lhe dos lábios gretados - E como vossas senhorias podem ver, estou a comer.

Introduzo a mão na bolsa à procura do anel da Senhora Rosamonte, mas lembro-me com uma praga que o dera a Diego. Farid apercebe-se com um sorriso do meu olhar desesperado, pega numa das esmeraldas de Dona Meneses e dá-a ao homem. Os meus dedos desenham no braço de Farid «Deus te abençoe! e digo ao estalajadeiro:

- Esta jóia é sua se me disser quando é que chegou Dom Afonso Verdinho.

A língua agita-se entre os seus lábios como uma cobra. Com um aceno abjecto para mim, raspa a jóia na malga de barro. Uma lasca de esmalte salta de uma falha minúscula da esmeralda. Os olhos brilham-lhe.

- É uma maravilha - exclama com um sorriso de avidez.

- Estou-lhe a perguntar quando é que ele chegou.

- QUarta-feira - ergue a jóia contra a luz da candeia.

- Quarta-feira passada a seguir aos motins ou a da semana anterior?

- A desta semana.

- Tem a certeza absoluta?! - pergunto.

Enfia a conta na dobra interior do lábio inferior como se fosse uma semente de anis.

- Está a ver aqueles homens acolá? - pergunta, apontando para uns mercadores sentados a comer.

- Estou.

- O de barbas negoceia em açúcar, mas cheira que nem couve podre diz ele, por entre sorvos de sopa - Chegou ontem a suar como um padre com cio. Gosta de mulheres de mamas grandes e sem dentes. Aquele bem barbeado é de Évora, veio para comprár coisas de cobre. Chegou hoje. Gosta de carne preta, não sei se me entende - dá-me uma piscadela -. Aqui não se passa nada que eu não saiba. O seu homem chegou quarta-feira, com um aspecto e um pivete pior que o do cavalo dele.

- Em que quarto está ele?

- Ao cimo das escadas - aponta para uma porta aberta nas traseiras da sala de jantar - À esquerda. última porta do lado direito.

Minha tia Ester responde às batidas na porta com um sobressalto.

- Berequias! É o que mais... Afasto-a para passar. Dom Afonso está sentado na cama por fazer na sua longa camisa de dormir. Tem os pés rugosos e ásperos, como raízes de mandrágora arrancada. -Alguma vez ouviu falar de Simão, o importador de tecidos? - pergunto.

- Um amigo de seu tio - responde - Ester escreveu-me a dizer...

- Ah, então ela escrevia-lhe - volto-me para minha tia com uma vénia - Tem usado os seus talentos muito bem, querida tia.

- A tua opinião fica registada - diz ela, com uma expressão dura e fria Agora, fora daqui!

- Alguma vez se encontrou com ele? - pergunto a Dom Afonso.

- A que vem tudo isto? - pergunta ele, denotando no rosto o seu choque e surpresa.

- Limite-se a responder à minha pergunta!

- Francamente, não me recordo - responde ele, enquanto minha tia me vai empurrando - Pode ser que sim.

Inesperadamente minha tia dá-me uma estalada na cara. Quando lhe agarro o pulso, Dom Afonso dá um salto:

- Deixa-a em paz! - grita ele. Farid interpõe-se entre mim e tia Ester, afasta a minha mão. Fixa os olhos em mim e com os seus gestos intima: «Não te atrevas a pôr-lhe as mãos outra vez. - Em seguida leva-a para a cama. Ela senta-se e esfrega o pulso. Tem os olhos vítreos e as costas dobradas para diante, como se vergada ao peso de algum medalhão que encerrasse a sua mágoa. A minha fúria é tal, porém, que a sua imagem não extingue sequer as cinzas da ardente dedicação que antes sentia por ela.

-Então, não podia saber se ele tinha alguma deficiência - digo, voltando-me para Dom Afonso. - Que usava muletas, e luvas de seda preta para...

Farid faz-me sinal a dizer que falo de mais e de repente atira algumas das esmeraldas e safiras de Dona Meneses para Dom Afonso. O velho iniciado estende a mão e apanha uma. «Que é isto..?! - pergunta ele, mostrando-ma.

Farid agarra-me pelo ombro.

- Não penses mais nele! - diz-me com gestos cortantes. - Para já nem sequer estava na cidade, e depois não sei se reparaste na mão que usou!

- A esquerda! - respondo por sinais.

- E a inclinação do corte no pescoço de teu tio, era...

Cada passada da nossa corrida de volta a casa parece fixar no devido sítio os derradeiros versos de um poema perdido há muito tempo. Maimon Branco de Duas Bocas! Claro, Gemila tinha razão! Na sua exaltação, quem é que ela havia de ver sob a forma de um assassino embuçado com cicatrizes no rosto e sangue nas mãos? Tudo encaixava: a altura em que meu tio descobrira o modelo para Aman; a escolha da senhora Belmiira para memsageira do aUtor das ameaças; e mesmo as próprias palavras do criminoso ao confessar o seu medo de ser novamente torturado. E a data em que ele mandou Dona Meneses entregar-lhe os últimos manuscritos que deviam ser levados de Portugal, também isso apontava apenas para um suspeito. As roupagens do mistério caíam uma a uma até que não resta mais que uma face diante de mim.

No pátio, um burro com feridas abertas da sela afasta as moscas com a cauda. Da janela de dentro do Meu quarto, vejo que Cinfa, Reza e a minha mãe estão na loja com o meu primo Meir de Tavira. "Beri"! - grita ele e corre para mim de braços abertos.

Agora não! - digo eu, fazendo um gesto com as mãos para o afastar. Mãe, onde estão o Diego e Frei Carlos?

- Porquê? -Tens sempre de fazer perguntas! Onde estão eles?

O frade voltou para a Igreja de São Domingos. Diego está na cave. Foi para lá rezar as orações da noite. Que é que tu...

- Não -interrompe Cinfa -, o Diego já subiu, enquanto estávamos aqui. Há poucos momentos. A mãe não estava a olhar.

- Vamos! - ordenam os gestos de Farid.

- Espera, acho que sei porque é que ele foi à cave. E o que vamos descobrir talvez nos ajude a atravessar a última porta.

Tiro do prego uma das candeias que estão penduradas na viga mestra por cima da mesa. Depois de afastar o tapete persa, Farid abre o alçapão. Pego no meu punhal e desço. Mas a escuridão apenas revela o vazio. A geniza está fechada. «A limpeza é uma tarefa sagrada» - penso. Fora o próprio assassino a lembrá-lo. Com a chave que tirou da bexiga de enguia, Farid abre a tampa. Alumio o esconderijo com a candeia. Todos os manuscritos de meu tio desapareceram! Mesmo a nossa bolsa de moedas.

Precipitamo-nos pelas escadas acima, atravessamos o pátio e corremos para a Rua de São Pedro. Os dedos de Farid tacteiam a minha espádua.

- Sabes de onde é que ele partia? - perguntam as suas mãos. Abano a cabeça.

- Mas acho que sei onde é que ele foi. Não se ia arriscar a sair de Portugal com livros hebraicos. Se fosse apanhado... pinga com ele! Deve ter...

- Berequias! António Escaravelho, o mendigo novo-cristão, está esparramado no sítio do costume, do outro lado da rua, e chama por mim.

- Viste alguém sair de minha casa, pela cancela do pátio? - grito. Ele acena que sim e aponta para a rua que desce para a Sé.

- Foi por ali há bocadinho.

- Então onde é que ele foi? - pergunta Farid, agarrando-me o braço.

- Foi negociá-los. Com o que roubou mais o anel que lhe dei, podia ter o que quisesse. Podia até comprar os volumes de Platão que cobiçava.

A luz suave das candeias emolduram as portadas da loja da Senhora Tamara. «Louvado seja Aquele que abre a Porta da Vingança» - murmuro eu, enquanto rodo a maçaneta da porta. Farid chega ofegante. Entramos juntos.

Diego. A surpresa cruza a sua face apenas por breves instantes. Está em pé junto à escrivaninha ao fundo da loja, cansado, o impenetrável silêncio de um mocho a esconder os seus pensamentos. Os livros roubados da nossa geniza estão empilhados junto aos seus pés. A senhora Tamara está sentada numa cadeira, as mãos unidas no regaço. Díz qualquer coisa, mas não consigo ouvi-la. Por trás dela vê-se um escravo africano magríssimo com uma expressão obtusa e as faces chupadas de alguém esfomeado. A confusão e o medo vincam o seu cenho suado.

Fixo a cena na minha memória de Tora. Diego e eu continuamos a olhar-nos através de um espaço ritual de calor como que flamejante e de claridade. A Senhora Tamara levanta-se. Os seus lábios movem-se. As sombras nas roupagens brancas de Diego tremulam quando ele se endireita. As minhas pernas estão tensas como se me preparasse para voar. O bater do meu coração torna-se mais forte, quase a atingir a graça semelhante à energia da paixão amorosa. Sob a barba, adivinho a cicatriz no seu queixo branco de mármore. Avermelhada, com os sinais dos pontos verticais, uma segunda boca de traição e morte. «Malmon Branco de Duas Bocas» - murmuro.

Retira da capa um punhal, comprido, de ponta quadrada: um cutelo de shohet. O escravo saca um punhal fino da sua bolsa. Com a outra mão, empunha um bastão com uma ponta em forma de cabeça de serpente. As palavras da Senhora Tamara penetram a minha fúria nervosa pela primeira vez: «Berequias, que é que se passa?» Avança para mim.

- Saia! - ordeno-lhe, com os meus olhos faiscantes fixos em Diego.

- Que se passa, meu rapaz? Diz-me! - implora ela a Farid, encostando as suas mãos desesperadas ao seu peito.

- Ele matou o meu tio - digo.

- Diego?! - gira num rompante para o fixar. - É verdade?! Ele abre as mãos com as palmas para cima num gesto de pacificação.

- Claro que não - replica. Estendo as mãos para a Senhora Tamara e empurro-a em direcção à porta.

- Saia! - grito. Ela opõe-se com firmeza. Sempre com os olhos fitos em Diego, abro a porta. Ela resiste à minha pressão, afaga-me o queixo.

- Mas, meu querido, Diego disse-me que lhe deste permissão para negociar os livros... que a tua mãe estava demasiado assustada para ter livros hebraicos em casa.

- Por amor de Deus, saia! - digo.

- QUe vais fazer?! - pergunta.

- Fica aqui - faço sinal a Farid. Puxo para fora da porta a Senhora Tamara que esbraceja e guincha. Uma vez lá fora, grita-me a exigir uma explicação. Mas um gigante de capa, especado do outro lado da rua escondido na sombra do burel do luar atrai a minha atenção. Reparo no seu chapéu cor de ametista de aba larga. «Deus abençoe a Rainha Ester» - murmuro para os meus botões.

Falo com o homem num tom apressado. Ele aceita a minha proposta, agradece-me num castelhano hesitante.

Volto para a loja, tranco a porta atrás de mim. Diego faz uma vénia e diz:

- Cá estás tu, Berequias! Estava agora mesmo a dizer ao Farid como estava surpreendido e encantado por Dona Meneses vos ter deixado a ambos com vida. Mas nunca tenho a certeza de que ele entende o que lhe estou a dizer.

- Farid entende mais do que tu desde o dia em que nasceu - observo.

- Sempre tão condescendente - diz ele, com um lampejo de humor reflectido nos olhos - Mas a sério, quem havia de esperar que ela mostrasse piedade nesta altura? Deve ser o seu sangue judeu a vir ao de cima.

- Porque mataste meu tio? - pergunto.

- Porquê? Quer dizer que não adivinhaste isso, também? Ao que parece adivinhaste todo o resto. Muito esperto, que tu és, como eu sempre disse. Sevilha... Pensa em Sevilha.

- Sevilha o quê? A maçaneta da porta agita-se. A Senhora Tamara desata a bater à porta e a chamar por mim.

- Aquela não desiste - diz Diego com um sorriso.

- Nenhum de nós desiste - replico.

- Ela deve gostar de ti. Todos nós gostamos. Apesar de ti. Foi por isso que me esforcei tanto para te convencer a abandonar esta busca tão canseirosa. Quando me vê carregar o cenho, diz: - Onde é que eu ia?... Ah, pois, Sevilha. Foi lá, claro. Um acidente. O teu tio tinha-me visto. Demasiado volátil, ele, todo paixão e energia. Quando se é assim, há acidentes. Ele tinha ido lá para salvar Simão da Inquisição. Em minha casa, afastou os meus criados e entrou no momento errado, trazendo o resgate de lápis-lazuli. O conselheiro em leis do bispo estava a discutir comigo a minha... a minha paga. Por ter denunciado Simão e todos os demais. Claro que voltei imediatamente as costas a teu tio e saí da sala sem dizer uma palavra. Mas ele tinha uma boa memória de Tora. Não tão boa como a tua, mas ainda assim fora do vulgar.

- Nesse tempo não usavas barba - observo.

- Pois não. Também adivinhaste isso, não foi? A barba era para Lisboa. Uma máscara para cada cidade é essencial nos tempos que correm, não achas?

- Então nem sequer és levita?

- Não, isso sou. A mentira não tem assim tantas camadas. Mas tinhas razão. Nem todos usamos barba. Mesmo na ortodoxa Andaluzia. Sim, bem sei que nunca lá estiveste. E agora, se não tomas cuidado, nem sequer tens a oportunidade de lá ir. E há lá tanto que ver. A Alhambra, a grande mesquita de Córdova. Há lá jóias nas paredes que...

- Tu tratas do escravo e eu encarrego-me de Diego - diz a mão de Farid passando nas minhas costas -. Será um prazer para mim acabar-lhe com a vida.

- Espera - respondo com um gesto. Dirijo-me a Diego para lhe perguntar: Porque denunciaste Simão e os outros à Inquisição?

Que ingénuo que tu és! - range os dentes e cerra os punhos Quando a Igreja nos cerca, nos aperta, nós fazemos o que nos mandam. Tudo o que nos mandam! - sorri. As mãos abrem-se - Os judeus portugueses nem sabem a vida de mel e leite que têm tido!

- Mais fumo do que leite e mel nestes últimos tempos.

- Isso não passou de uma fogueirita - observa - Espera mais uns anos e então é que as coisas se vão acender a sério. E nessa altura fazes o que te mandarem... - Abre o gibão, desaperta a camisa. A linha da cicatriz no peito reflecte o brilho da luz da candeia. - Senão tens de o pagar na carne. já te contei como eles queimam a pele com desenhos. A minha gravura foi só um começo. Estás a ver a linha do horizonte? Se te aproximares, podes ver também as portas de Jerusalém. - Fecha a camisa. - O corpo mortal que temos é fraco. Achamos a dor bastante desagradável.

- Quando te cortaram a barba na semana passada, meu tio reconheceu em ti o denunciante que tinha visto em Sevilha - digo. - Aquela discussão no hospital... os gestos desabridos de meu tio... Por Isso é que estavas tão desesperado para não cortar a barba, por isso é que não te agradava a nossa visita.

- Isso foi outro acidente. A vida está cheia deles. Até acabamos por nos habituar. Mas espero que o acaso ainda te incomode. O teu tio também não o entendia. Muitas coisas escapavam-lhe. Não era um homem compassivo. Para se ser compassivo é preciso ser como os outros homens, e ele...

- Como te atreves?! - grito.

- Quem perdeu a família pode atrever-se a quase tudo! - responde Olha só para ti! Vingança de um cabalista? Que diria o teu tio?

- Diria que há muito que o caroço da tua alma se perdeu, que mandar-te de volta para o Outro Lado é uma mitzva. Metatron há-de registar a tua morte como uma boa acção.

- Convém-te enganares-te a ti próprio - diz ele.

- Os enganos convenientes são a tua especialidade - observo.

- A minha especialidade é a carne e a criação - diz ele, levantando o cutelo e fazendo uma vénia.

- Foste tu que assim quiseste.

- Não tinha por onde escolher - suspira. - A vida empurra-nos. Como uma corrente. Podes lutar contra o oceano, mas só durante algum tempo. Mas és novo de mais para...

- Descobriste a rapariga, Teresa, na cave, quando foste procurar o meu tio, não foi?

- Ele tinha-a arrastado para lá para a salvar. Tinha ido aos balneários. Havia uma fenda aberta na porta secreta que dava para lá e ele ouviu alguém a pedir socorro. Eu tinha vindo à procura dele quando os motins estalaram em Alfama. Andava com uma grande cruz de madeira para me proteger, cheguei até a abençoar uns quantos criminosos durante o caminho. É espantoso o que as pessoas se podem abençoar uns aos outros - benze-se e rola os olhos - Como um cristão devoto, esgueirei-me para dentro de tua casa.

- E então mataste-o.

- Mais devagar! Para ti as coisas são demasiado fáceis. A vida não é a Tora.

Não podes ler os versículos a toda a velocidade e voltar a lêllos se não apreendeste o que querem dizer. Ele não foi cordato. Disse que me havia de levar a julgamento num tribunal judaico por ter denunciado Simão há tantos anos, que havia de arranjar maneira de me castigar. Conhecia o teu tio muito bem. Havia de descobrir uma maneira de me tornar a vida num inferno. Mesmo quando lhe disse que tinha denunciado a Reza e os parentes dela, e que se ele não desistisse voltaria a fazê-lo, ele recusou-se a ouvir-me. Pensei que isso o convenceria. Fui estúpido por pensar que teu tio reagiria como um pai normal. E se ele dissesse a Dona Meneses que era eu quem a andava a ameaçar, que eu sabia que ela era judia, a minha vida passava a valer menos que um caracol! Só se jurasse em cima da Tora que não revelaria o nosso segredo é que lhe poupava a vida. Mas ele recusou.

- Então foste também tu o responsável pela prisão de Reza. - Tudo o que a situação exige. Temos de ser flexíveis... mudar o nosso aspecto consoante as circunstâncias. Barba e roupas sumptuosas em Lisboa... Em Constantinopla posso até tornar-me muçulmano: afinal, é o mesmo Deus.

Não é verdade, Farid?

As mãos de Farid respondem a Diego com uma obscenidade. Entretanto, penso: «Um correio que não pode reconhecer o seu próprio rosto. Meu tio estava a pensar em Diego, o Judeu Errante, um correio não de livros ou mercadorias, mas da sua própria alma.» - Portanto - digo -, o que escreveste na confissão falsa de Salomão era verdade... em relação a meu tio.

- Era. Calhou-me mesmo bem que o mobel se tivesse dado a morte. Quando mo disseram fui para lá, paguei a um rapazito para me ir comprar papel a uma bruxa que o faz de restos de linho, depois deixei o bilhete de modo que a irmã de Salomão o pudesse encontrar. A maior parte das pessoas são fáceis de enganar.

- Prometeste a meu tio poupar a rapariga se ele se entregasse?

- Prometi. Ele falava de sacrificio. Era uma coisa muito importante para ele. Acho que desejava morrer. «Por um maior objectivo bom e elevado», disse ele. Tinha uns raciocínios muito estranhos, não achas? Disse-lhe: «Podia matá-lo sem sequer bater uma pestana!» E ele respondeu-me: «E eu podia morrer sem bater a outra!» Vê lá bem isto! E imagina, nos tempos que correm, a querer reunir um conselho judeu! Ele nunca se apercebeu que estamos no ano de mil quinhentos e seis da era cristã, não no ano hebraico de cinco mil duzentos e sessenta e seis. E tu, meu caro Berequias, é tempo de te pores em dia antes que seja tarde de mais. Aceita o calendário cristão antes que o teu tempo se esgote.

- Não foste ter com meu tio só para discutir com ele. Deixaste lá aquele fio de seda de Simão. Devias saber já que o ias matar.

- Temos de ter tudo planeado. Não me podes criticar por ser prudente.

- Prudente? Querias até matar-me a mim e a Farid! Foi por isso que mandaste aquele recado para ir ter contigo às azenhas.

- Foi outra boa ideia que Dona Meneses e os seus homens de armas deitaram a perder. - E roubaste a Haggada de meu tio. O nosso lápis-lazúli e as folhas de ouro. Como um reles ladrão!

- Porque não? Sentes-te superior a tais impulsos? Acho que não. E os manuscritos. Pois, isso foi, afinal, como tudo isto começou. Por isso parece-me...

- Mas como sabias deles? Simão e Frei Carlos disseram-me que ainda não devias saber da existência da geníza.

- Mesmo um cabalista comete erros, meu caro. Os nossos amigos estavam simplesmente enganados. O teu tio veio ter comigo em segredo, explicou-me tudo sobre as suas actividades de tráfico de documentos, disse-me que estava para receber alguns manuscritos valiosos e que Ia precisar da minha vigilância para se assegurar de que os passadores não o enganavam, especialmente Dona Meneses, de quem ele começava a duvidar. Pensava que ela andava cada vez mais assustada com os riscos que corria. O teu tio receava uma traição. Comecei a segui-la, a aprender os seus métodos. Descobri tudo sobre Zorobabel, como é que ele levava os manuscritos para Cádis, passando a fronteira com eles. Mestre Abraão não queria que ninguém soubesse que me tinha ensinado o segredo da geniza e das suas actividades de passador para que eu não atraísse as suspeitas de ninguém.

- Ele tinha confiança em ti - digo.

- Receio que sim. Foi um erro. Nos tempos que correm ninguém merece confiança. Lembra-te disto, mesmo quando não te lembrares de mais nada.

- Devia ter-me pedido a mim. Se ao menos ele tivesse...

- Ainda não percebeste, pois não? - pergunta Diego.

- Perceber o quê, seu bastardo?

- Ele não queria pôr a tua vida em risco. Tu devias ser o seu herdeiro, cumprir os seus planos para sarar a Esfera Terrena e a Esfera Celeste... o maior cabalista que Lisboa jamais vira! Não se pode pôr a vida de um tal homem em risco, envolvendo-o em actividades de passador. Tal como as coisas estão, provavelmente serás tu o último cabalista de Lisboa. - Diego encolhe os ombros, lança-me um sorriso tímido, como quem aceita uma verdade inegável. - Acabaram-se os livros, os cabalistas, os judeus. É pena, mas é assim a vida.

«É engraçado, penso, este assassino foi capaz de compreender claramente o que para mim estava oculto. Estaria eu com medo das responsabilidades? Ou de ser o último da minha espécie?»

- Porque não levaste todos os livros da geniza quando o mataste?

- Estive a ver os manuscritos, a avaliá-los, com todo o vagar. Não estava preocupado, sabia que o motim lavrava lá fora e que sabendo o segredo da passagem para os balneários estava em segurança. Às tantas deparei com a Haggada pessoal de Mestre Abraão. Um belo trabalho. Folheei-a e encontrei a minha imagem como Aman. Rasguei-a, é claro, pus o livro na minha bolsa como precaução. Ver assim a minha face nas suas iluminuras, foi um choque... De repente senti-me em pânico. Estupidamente, acho eu. Ia já a entrar na passagem secreta, quando tu começaste a gritar pela tua família lá em cima. Avancei pelo túnel dentro, mas concluí que com esta medida de cintura não ia conseguir. Voltei para trás, entrei de novo na cave, fechei a porta atrás de mim. Mesmo antes de...

- Porque não te escondeste atrás da porta secreta, na passagem?

- Nunca a tinha usado antes. Tinha medo que se fechasse a porta, houvesse algum ferrolho secreto que a trancasse e eu ficasse ali emparedado. Não seria um destino muito brilhante! Por isso momentos antes de tu desceres, consegui enfiar-me na geníza e fechar a tampa. Tenho de dar graças por toda a barulheira que fazias. Quando desceste as escadas, já eu estava em segurança no meu nínho. Só estava com medo que pudesses ouvir o bater do meu coração, que tivesse que te matar também a ti. Mas estava perfeitamente confiante que a princípio te deixarias enganar, que irias pensar que tinham sido os cristãos. Quando subiste, saí do esconderijo, fechei a tampa e pus a chave novamente na bexiga de enguia. Esgueirei-me pela entrada da tua mãe para a Rua da Sinagoga. Pensava que ninguém me tinha visto. Mas aquela Gemila... Teve sorte em ser uma dessas vacas alucinadas, a ver demónios por todo o lado, senão tinha-a...

- E a Senhora Belmira? Porquê ela?

- Miriam? Tinha uma paixão por mim. Não faças essa cara de espanto. Sou um homem bastante donairoso para quem... Lembras-te das horas que passámos juntos a desenhar pássaros? De qualquer modo, era mais seguro assim. Se fosse apanhada, teria preferido morrer a denunciar-me. E foi o que aconteceu. As mulheres são mais fortes que os homens nessa altura. Aprendi isso nas masmorras de Sevilha. Preferiam que os cristãos lhes derretessem os pés a trocar Moisés nos seus corações.

- O miúdo que mandaste vender a Haggada à senhora Tamara, quem era ele?

- Receio bem que esse tenha sido o meu erro. Estava a ficar enervado. Tenho as minhas fraquezas, como já reconheci. Quanto à sua identidade, há coisas que devem continuar a ser mistério, não achas? Chama-se Isaac. É uma bela criança, gentil. É tudo o que te posso dizer.

- Aquela mensagem que caiu do teu turbante? Era realmente sobre o conde de Almira ou este Isaac?

- Outro mistério que não te vou desvendar. Perdoa.

- Então, agora que conseguiste o teu Platão ... ?

- Vou-me embora esta noite, como disse. De carruagem, para Faro. Podes esquecer-me. - Não te vou deixar partir - observo.

- Não tens por onde escolher - Diego bate a ponta do cutelo no ombro do escravo - O meu novo guarda é magro, mas desesperado - diz - Não lhe apetece nada voltar para o seu antigo dono. Punha-lhe um freio na boca. Batia-lhe e forçava-o a relações carnais estupidamente. Dizem que até sabe fazer feitiços. Um bom cabalista negro, se queres saber. -talvez de uma das nossas tribos perdidas. Será melhor afastares-te para o lado e deixar-nos sair. Ou ainda acabas com a alma separada do corpo como Mestre Abraão.

- E uma cortina de sangue a cobrir-me o pescoço. Nunca me hei-de esquecer do que lhe fizeste!

- Que palavras tão poéticas. Tuas ou de Farid? Diego pega em dois volumes encadernados em carneira de cima da escrivaninha. Manda o escravo seguir diante dele. O africano curva-se, empunha o punhal e o bastão diante do peito, desliza para fora.

- Encarrega-te do escravo, que eu... - propõe Farid, com os dedos nas minhas costas.

- Não - atiro ao chão o meu punhal, dou meia volta e agarro o braço erguido de Farid.

- Mas que é que estás a fazer? - pergunta a sua mão, enquanto me empurra.

- Vai-te! - grito para Diego - não o posso segurar por muito tempo! Passo os braços em torno de Farid, encosto-o a uma pilha de livros. Embora ainda empunhe a adaga, sei que nunca a usaria contra mim. Enquanto ele esbraceja para se libertar, grito de novo:

- Vai-te, demónio, antes que mude de ideias! Retenho Farid com a terrível força da minha vingança. O escravo e Diego precipitam-se para fora.

- Foi uma decisão ajuizada - sibila o assassino. Os meus olhos fecham-se com força como para encerrar o pecado e ouve-se o ferrolho da porta a abrir-se. A aragem da noite, cortante e gelada, afaga-nos. «Voa de volta para o inferno, Diego!» - murmuro para mim.

- Berequias! - a voz de Farid soa-me desfigurada, grasnada, mas clara como uma oração. Ao mesmo tempo, o seu punho atinge-me no ombro e abre a antiga ferida. Com uma rasteira, faço-o perder o equilíbrio. A porta fecha-se com estrondo. Ficamos sós. Sinto o peito invadido por uma amarga e tépida sensação de prazer. Farid levanta-se com um salto, olha-me furioso. Abro as mãos num gesto de paz, seguro-o pelos ombros.

- Falaste! - digo-lhe por gestos, sorrindo. É como um milagre a coroar toda esta horrível desolação, um sinal do Senhor, talvez, a indicar ter sido boa a escolha do fado de Diego.

- Porque ias deixá-lo partir - diz Farid, com gestos descompassados. Afinal não serviu para nada. Nada. A não ser que possamos...

- Não te aflijas - aceno-lhe -. Diego estava enganado. Há homens em quem se pode ter confiança. Vais ver.

Lá fora a senhora Tamara treme descalça e vestida apenas com a sua camisa de dormir. Enquanto Farid a envolve pelos ombros com os seus braços, avisto Diego a correr pela Rua dos Douradores abaixo seguindo o escravo em direcção à Rua Nova d'El-Rei. O luar ilumina-o como um animal furtivo, uma criatura da noite fugindo aos seus perseguidores. Para mim próprio, murmuro as palavras de Jeremias: «Temos de morar no meio das rochas no deserto árido, numa terra salobra onde nenhum homem pode viver.»

- Mas ele vai fugir! - resmunga a senhora Tamara, dirigindo-me um olhar implorante. As suas palavras gravam nas minhas entranhas um traço de dúvida ardente. Começo a caminhar, depois a correr como se à procura de meu tio. Subitamente uma sombra escura cruza o caminho vinda da direita. Durante alguns instantes segue Diego, vê-se o seu perfil, um chapéu na cabeça, aproxima-se mais. Um brilho de metal. Um braço erguido. Ao tombar, Diego confunde-se com a calçada. Um som como o bater à porta da mão enluvada de Simão chega-me aos ouvidos trazido pelo vento seco. Mas incapaz de atingir as portas da minha compaixão.

Farid que me tinha seguido a correr, estende a mão quando me vê abrandar o passo.

- Quem foi que... - perguntam os seus gestos.

- Um dos homens de armas de Dona Meneses - respondo - Estava à espera de Diego. Tinha ordens para não atacar antes da meia-noite, como tínhamos pedido - tiro da algibeira um punhado de safiras e esmeraldas que me ficaram do colar de Dona Meneses -. Mas consegui mudar o horário.

- Pagaste-lhe para matar Diego?!

- Era o que ele ia fazer, de todos os modos. Mas não me podia arriscar a esperar. Que Deus me perdoe.

- Bastou uma para o convencer a matar Diego agora - digo, mostrando algumas das jóias da fidalga - A vida de um judeu, a vida de um homem, nada vale.

Aproximando-nos de Diego em passos cautelosos, deparamos com ele agarrado aos volumes de Platão. Um fio de sangue corre-lhe do canto da boca para um lagarto pintalgado que dorme numa fenda da calçada. Na bolsa encontramos o pergaminho com a gravura de Aman.

Num silêncio de fora do tempo, contemplamos o corpo como se estivéssemos perante a arca vazia da Tora, que nunca será preenchida. Quando volto a mim, avanço para o meio da luz de um candelabro colocado a uma janela próxima e observo o desenho de meu tio. Sim, Aman é Diego. Não há engano possível. Um calafrio percorre-me a espinha ao pensar que o último acto de criação artística de meu tio fora o de retratar numa iluminura a face do seu próprio assassino.

No desenho, Diego-Aman está inclinado para diante numa atitude de abutre com a inconfundível cicatriz no queixo. Está representado a sussurrar ao ouvido do Rei Assuero o seu plano de exterminação dos judeus.

Apertados na mão esquerda, como uma garra, brilham uns quantos dos dez mil talentos de prata que prometera pagar ao Tesouro real em troca da aprovação do seu monstruoso plano. Na mão direita, simultaneamente, recebe o sinete real das mãos do rei, um sinal da permissão. O trato foi feito. A Rainha Ester não figura na gravura. Mas o seu padrasto, Mardoqueu, está lá. Humildemente postado a um canto, cobre-o um saco em sinal de luto, que vestira depois de ter ouvido o decreto da destruição do seu povo. A sua atitude é de orgulho, no entanto, e a sua expressão é maliciosa, quase jocosa. Sem dúvida por segurar junto ao peito o laço com que mais tarde Aman será enforcado. Um clarão esmeralda de paixão nos seus olhos convence-me que Mardoqueu teve como modelo o meu próprio tio.

Farid aperta o meu braço, aponta para o desenho e assinala:

- És tu.

- Onde?

- O homem no canto. Aquele com o laço. Mardoqueu.

O coração bate-me violentamente e desamparado. Não estará Farid enganado? Não me parece possível que meu tio me tenha representado como salvador dos judeus. E o Mardoqueu da gravura é simplesmente demasiado velho. As minhas mãos apertam o pedaço de pergaminho. As lágr'imas assomam aos meus olhos só de imaginar que ele pudesse representar-me como um herói judeu.

Tantas perguntas que poderia ter-lhe feito e que ficarão sem resposta.

O meu olhar é desviado para o céu por uma gaivota que o luar ilumina a atravessar a noite. Sinto os mosquitos a zumbir-me aos ouvidos como se procurassem penetrar nos meus pensamentos. A minha prece hebraica pela paz de Diego, pela paz do mundo, surge debruada com a textura das mãos de meu tio apertando com força a minha nuca, largando-a seguidamente. Os seus movimentos em direcção à ausência definitiva é tão imediato que me sobressalto e olho em redor. Os meus olhos vigiam a rua deserta até se fixarem na húmida luz esmeralda de duas candeias que me espiam da mais alta janela do quarteirãO.

 

No mundo vazio que resta depois da morte de Diego, dormi uma enfiada de dias. Protegido pelas portas aferrolhadas e as janelas seladas do meu quarto, no meio de uma atmosfera irrespirável a tresandar à minha própria decomposição. Só me ergui novamente da cama perante a visão de joana, a filha do conde, descendo como um véu de seda sobre o meu rosto. Os olhos brilham-lhe com a graça do reflexo das pérolas, e o seu cicio está para além de todo o entendimento. Como se a noite me apelasse, os meus pés conduziram-me através das vielas sinuosas de Lisboa, até que um destino se tornou óbvio. Deparei comigo aos brados junto da janela do Palácio dos Estaus que esperava que fosse a sua. Um anão com o cabelo eriçado abriu as portadas.

- Se não acabas já com esse cantar de galo ainda te mando capar! - gritou.

- Procuro Dona Joana, a filha do conde de Almira - explico.

- Não é aqui! - resmungou, batendo com as portadas. Fui seguido durante todo o caminho de regresso pelo fedor pútrido dos montões de lixo. Ansiando pelo vazio do Ein Sof, procurei novamente refúgio na cama. Seguiram-se dias de margens oscilantes, de uma sucessão musgosa de luz e trevas, até que a voz de joana atravessou as paredes como se trazida pelas asas de uma oração. Quando entrou no quarto, estava vestida de negro. Eu jazia sob as cobertas.

- Não posso ficar muito tempo - disse ela. Os olhos estavam vítreos, como se as lágrimas devessem brotar a qualquer momento. - Estiveste doente?

perguntou ela numa voz hesitante.

- Estive - respondo, sentando-me na cama - Acho que sim. Onde tens estado? Fui procurar-te.

- Aqui em Lisboa, mas não me atrevi a vir antes.

- Nunca desejei uma mulher tanto como agora te quero - confessei É como se só tu me pudesses sarar... ou salvar.

Ela sentou-se na borda da cama e apoiou delicadamente a sua minúscula mão deformada contra os meus lábios. Ia a implorar-lhe que ficasse comigo para sempre, mas ela abanou a cabeça como se a impedir-me que profanasse o silêncio entre nós. Começou a desatar o seu vestido. Eu estava já nu. Quando se deitou a meu lado e me abriu os braços, afundei-me neles. Confinado dentro da sua tepidez, protegido pela suavidade do seu corpo, uma tensão vizinha da de uma corda represa rompeu dentro de mim e vi-me romper num choro vindo de tão fundo de mim que parecia rasgar-se nas minhas partes. Joana sussurrou: «Não posso ficar. Estou prometida a outro. Não esperes por mim. Parto amanhã de Lisboa. Perdoa-me e esquece-me.» Quando o bálsamo dos seus dedos se retirou do meu rosto, voltou a dizer: «Não esperes por mim. Não negues o teu amor a uma outra ... »

Na minha mão, deixou o seu colar de pérolas. Quando os que amamos partem para sempre, tudo o que nos resta é o brilho dos seus olhos capturado nas suas jóias. Para além da memória, é a única recordação que retemos.

Loucura: se não nos engolir inteiros, pode ser que um dia abrande o aperto das suas garras em torno do nosso pescoço. E ainda assim é preciso que alguma coisa, ou alguém, nos ajude a desembaraçarmo-nos delas.

Quando de manhã emergi, vazio de Joana, Farid leu nos meus olhos o que acontecera. Arrastou-me para a Estalagem da Flor da Rapariga. Durante vários meses ali vivi, mergulhado no calor das tentadoras de Lisboa, sem mais esperar, aferrando-me e forçando o meu caminho para as suas vidas tentando recuperar o meu. Farid ia pagando, embora não saiba dizer onde é que arranjava o dinheiro. Talvez tenha vendido algumas das safiras e esmeraldas de Dona Meneses; restavam apenas três quando finalmente dissemos adeus à judiaria Pequena.

O milagre, afinal, foi não ter sido atacado por nenhuma das doenças dos bordéis. Talvez seja preciso ter um coração desejoso de sofrer por amor para conhecer tais males. Quando não estava anichado dentro de alguma mulher ou a enfiar na boca o jorro de algum odre de vinho, caminhava. Uma vez até às montanhas de âmbar acima de Mafra. Através de áridas estradas poeirentas, ia parando para recitar em voz alta cada um dos cinco livros da Tora: O Génesis diante do templo de Monte Abraão perto de Belas; o Êxodo debaixo da ponte de um pinheiro derrubado depois de Montelavar; o Levítico em cima de um mosaico romano em Odrinhas; os Números enquanto me balançava num ramo de alfarrobeira em frente da igreja visigótica de Igreja Nova; e o Deuteronómio com um favo de mel que me foi oferecido por uma rapariga cristã dentro dos portões de Linhó. O ritmo dos passos é bom para rezar, descobri. Dormir também. As estrelas saudavam-me de noite sem qualquer protesto ou juízo.

Acordo pela manhã com as flechas dos pica-paus tamborilando de árvore para árvore. Durante uma quinzena, senti-me a salvo fora dos confins de Lisboa.

Gradualmente, uma energia semelhante à impetuosa expectativa de um cântico começou a crescer dentro de mim e pareceu-me possível trabalhar na nossa loja durante o dia. Cinfa vigiava-me com uma dedicação feroz. Chegava a deitar-se à noite na minha cama a meu lado, mirando-me com um olhar isento de censura quando eu saía para ir às meninas da estalagem às primeiras horas da madrugada.

Reza e a minha mãe travavam comigo as suas batalhas moralizantes em silêncio, os seus olhares de condenação tão fechados como as grades de uma prisão. Tal como o mundo para além das minhas fronteiras...

Segunda-feira, vinte e sete de Abril, entrou no porto de Lisboa uma flotilha de barcos de guerra, que impôs o domínio da Coroa sobre a cidade. Nenhuma justiça foi feita, é claro. El-Rei Dom Manuel, o nosso melekh hasid, o nosso bom rei, falou da matança como «certas negligências». Mais para desenfado dos burgueses e camponeses do que qualquer outra razão, o querido falecido Dom Manuel, que o seu nome e a sua sombra sejam para sempre apagados, mandou prender quarenta dos desordeiros cristãos-velhos escolhidos ao acaso pelo seu real juiz, João de Paiva. Perante uma multidão de vários milhares de pessoas dispostas em bancadas em pleno sol do Rossio, os prisioneiros foram garrotados e queimados.

O cheiro da carne queimada dos cristãos-velhos será diferente da dos judeus? Tenho de reconhecer que não consegui sentir nenhuma diferença. «Ah, mas se tivesses estado no Rossio ... », ouvi mais de um cristão-novo dizer-me com um sorriso cáustico no rosto.

QUanto aos eclesiásticos da Igreja de São Domingos e do Convento, El-Rei ordenou que os bons dos frades fossem espalhados pelo reino nos fins de Maio. Mas que ninguém tema pelos seus corações desfeitos; pelos fins de Outubro já eles estavam de volta para os braços das suas barregãs em Lisboa, graças à intercessão do Papa Júlio 11, que o seu nome e a sua sombra sejam igualmente apagados para sempre. Salvo dois deles, devo dizer. Frei João Moucho e Frei Bernaldez, os dois que exortaram a plebe a lançar-se na matança aquela tarde fatídica em frente da Igreja de São Domingos. Presos e levados para Évora, ficaram durante algum tempo por lá a definhar nas masmorras da cidade. Em Outubro, quando já poucas pessoas se lembravam do que tinham feito, foram garrotados e feitos em cinza.

A nove de Maio, finalmente, a chuva voltou. Mas de pouco disto me recordo. O primeiro de Março de mil quinhentos e sete é a única data que se recorta nitidamente no meu espírito. Tenho de confessar que por algum tempo habituei-me a pensar segundo o calendário nazareno. Tomo isso como um sintoma da minha loucura. Possa eu extirpar o cristão de dentro de mím para sempre!

Nessa manhã, o pequeno Didi Molcho puxou-me para fora da loja como se me arrastasse para um tesouro. «Corre!» - gritava ele. Precipitamo-nos em direcção à voz de um pregoeiro nas escadas da Igreja de São Miguel. Estava a ler o pergaminho de um decreto de El-Rei Dom Manuel: «Assim, será permitido aos cristãos-novos deixar o meu reino, e não haverá ... »

A esperança de outras paragens orientou a minha cabeça para o sol. Pela primeira vez depois da morte de Diego respirei a plenos pulmões.

Um barbeiro ocupava-se da minha barba, enquanto a filha me despiolhava. Nas suas mãos delicadas, o pente a esquadrinhar a minha cabeleira, comecei a meditar pela primeira vez como tinha pagO pelo assassínio de Diego. Deveria ter sentido as garras do pecado no meu peito? Não senti. Nem agora sinto. Talvez isso faça de mim um homem privado de uma alma mais elevada. Pouco me interessa. Não olho para os espelhos e há algo no meu rosto que parece despertar a discrição dos cabalistas que poderiam ser capazes de se aperceberem de alguma terrível falha na minha aura. E no entanto um outro pecado que cometi há muito tempo perturba-me por vezes, chegando mesmo a interferir com as minhas orações. Aquele jovem fidalgo que empurrei do telhado abaixo na Mouraria. Será que sobreviveu? Duvido. Por vezes, em sonhos, vejo-o a olhar para cima, para mim, do fundo de um poço pútrido.

Minha mãe e eu entregámos todos os livros de meu tio a Dona Meneses. Como era de esperar, livrou-se da morte de Simão. Não só não estava em posição de lhe poder atirar pedras, como também sabia que quaisquer acusações que fizesse teriam consequências nefastas para mim e para a minha família. Guardada pela sua comitiva de loiros flamengos, continuou na sua vida encantada de cristã-velha do cimo das suas varandas de mármore na Graça. Pelo que me disseram, morreu há quatro anos, na Primavera de mil quinhentos e vinte e seis, de uma infecção causada por um sangrador idiota com dedos inábeis.

Depois de ter visto meu tio num sonho, Frei Carlos pediu a Dona Meneses que levasse para lugar seguro a sua cópia meio árabe, meio hebraica da Mekor Hayim, a Fonte da Vida, de Salomão Ben Cabirol. Tanto quanto sei, está agora em Salonica.

Será que algum dos nossos livros sobreviverá aos séculos, ou terá sido em vão a luta de meu tio?

Com todos os cristãos-novos que deixavam Portugal, as casas só conseguiam atingir uma pequena parte do seu real valor. Em vez de a vendermos por uma ninharia, preferimos oferecê-la a Brites, a nossa lavadeira, que vivia numas barracas fora da Porta de Santa Catarina, em condições inadequadas a uma pessoa da sua elevação espiritual. Quando lho díssemos bateu o pé e disse:

- Não posso aceitar tal coisa!

- Tem de aceitar - insistiu tia Ester.

- Não!

- Então emprestada - sugeri - Se Reza um dia quiser voltar, vem cá ter. As lágrimas corriam-lhe dos olhos. O trato foi selado com abraços. Desde essa altura que ela lá vive.

Semanas depois, pouco antes de partir, ia eu entregar fruta a uma loja no Bairro Alto, avistei o rapaz do meu desenho, o que tinha tentado vender à senhora Tamara a Haggada de meu tio. Tinha um rosto naturalmente delicado, cabelo escuro cortado rente.

- Como te chamas? - perguntei.

- Diego - respondeu.

- O meu nome judeu é Berequias Zarco -murmurei. - Gostava de saber como te chamam na língua sagrada.

- Isaac Belmiro Gonçalves - disse ele.

- Foste adoptado por um homem chamado Diego Gonçalves, não foste?

- Fui - respondeu, os olhos abertos de surpresa - Como o sabe?

- Conhecia-o bem. Numa estalagem próxima, falámos, diante de pão de canela fumegante e vinho diluído em água, do amor que seu pai adoptivo alimentara pelos pássaros e pergaminhos antigos. O rapaz vivia com a irmã da senhora Belmira. Era tímido, mas os seus lábios tremiam de breve paixão quando falava de combates. Queria ser cruzado. Nunca hei-de entender por que razão os jovens estão sempre com tanta pressa de morrer. Antes de nos separarmos, beijei-o na fronte e abençoei-o em silêncio.

Rabi Losa, o convertido convicto e inimigo de meu tio, vive ainda na sua casa perto da Igreja de São Miguel. À custa de vénias e bajulação insinuou-se no coração do bispo de Lisboa e tornou-se mesmo num dos seus conselheiros em direito canónico. Ambas as suas filhas estão crescidas e casadas, vivendo juntas em Santarém, ao que me consta.

Frei Carlos decidiu igualmente ficar em Portugal. «Que Deus faça de mim um bom cristão ou um melhor actor» - disse-me ele a última vez que o vi, há vinte e três anos. As suas palavras fizeram-me lembrar Zorobabel, Isaac de Ronda, o conde de Almira. Nunca soube nada do seu destino. Talvez que o seu verdadeiro nome seja completamente diferente. Talvez não fosse sequer castelhano ou cristão-novo. Talvez Joana não fosse sequer sua filha.

Como é de adivinhar, nada soube dela. Se bem que, em certas ocasiões, ainda hoje me surpreenda nos meus sonhos. A amargura desapareceu-lhe dos lábios, porém, e eu cessei há muitos anos de me forçar a comparações com a minha mulher. Mesmo uma memória de Tora se funde com as lágrimas.

Nunca mais me chegaram tampouco novas de Helena, a rapariga a quem muitos anos antes fora prometido e com quem perdi a virgindade. Será melhor assim.

Em Maio de mil quinhentos e sete, quando fazíamos planos para partir, apresentou-se em nossa casa um mercador de vestes brancas e escarlates, trazendo-nos uma carta do mendigo cristão-novo, António Escaravelho. Logo a seguir aos motins, muito antes do decreto de El-Rei Dom Manuel permitir a saída de Portugal aos cristãos-novos, ele conseguiu uma permissão para ir visitar o seu amado Papa Júlio.

- Sabeis dizer-me se ele se sente bem em Roma? - perguntei ao portador da carta.

- Mas qual Roma?! Está em Jerusalém. Já conseguiu montar uma loja de ourives no velho bairro judeu.

Rompi o selo de cera da carta: «Meu caro Berequias, bem vos dizia, a ti e a Mestre Abraão, que deviam pensar em vir comigo. Este burro velho afinal não era tão louco como isso, não achas? Ao diabo o Papa Júlio! Cuspo na Península Itálica inteira. Que uma praga de serpentes venenosas caia sobre Roma e morda todos os seus residentes cristãos nos seus gordos cus. Serás sempre bem-vindo a minha casa. Até para o ano em jerusalém.»

Para o ano não, mas talvez em breve. Afinal, agora estamos mais próximos. E mais novo é que eu não estou a ficar. Se tenho de ir...

Em Julho de mil quinhentos e sete, Farid apanhou um barco para Constantinopla, levando a morada de Tu Bisvat e todo o dinheiro que pudéramos poupar. Minha mãe, Cinfa, tia Ester, Afonso Verdinho e eu seguimo-lo em Agosto, tendo o nosso navio largado de Belém no décimo nono dia de Av. Para surpresa nossa, tínhamos à nossa espera uma periclitante casa de dois andares no pequeno bairro judeu; com a ajuda de Tu Bisvat, cujo verdadeiro nome não posso tomar a liberdade de revelar, meu tio tinha conseguido fazer adiantar uma pequena soma para a compra da propriedade.

Roseta foi deixada com Reza; estava à espera do seu primeiro filho - Reza, não Roseta, entenda-se - e mudara-se com o marido e Aviboa para uma quinta perto de Belmonte, nas montanhas do nordeste de Portugal. Nunca mais os vi, desde que os deixei na doca de Belém. Têm três filhos, Mardoqueu, Judas e Berequias, e uma filha, Mira. Aviboa casou com um cultivador de castanhas e vinho. Vive nas proximidades e tem dois filhos. A unha nunca lhe cresceu e nunca mais teve notícias dos seus pais.

Rezamos para que o fogo da Inquisição esqueça o vale onde vivem quando alastrar de Castela para Portugal. Temo que não seja agora mais que uma questão de meses. Tão breve é o tempo de que dispomos para a paz neste mundo.

Judas. Quando consegui arrancar a minha mãe as calças e as camisas dele, enterrei-as na Quinta das Amendoeiras junto à campa de meu tio. Rezámos um kaddish para assegurar que a sua alma se libertaria da Esfera Terrena.

Vinte e quatro anos são passados desde o seu desaparecimento e no entanto não o sinto mais longe que um sussurro. Há coisa de três anos, pareceu-me reconhecer os seus olhos de pedra lunar num homem envergando os trajos de um mercador português a apanhar sol no jardim por baixo do minarete a sudoeste da mesquita de Hagia Sophia. O meu coração batia como se disparado de um canhão. Sentia-me entontecido. Pensei: «Foi tudo um engano. Ele está vivo, educado por cristãos-velhos. E agora há-de explicar por onde andou. Avancei para ele e disse: «És tu, Judas?» Para seu grande embaraço, tomei-o pelo braço: «Não me reconheces? Sou o Berequias. O teu irmão!»

Deu-me uma palmadinha no ombro, como se eu fosse um velho louco bêbado. «É melhor ires para casa, antes que a tua mulher te venha buscar» aconselhou ele, rindo-se de mim.

É assim que a nova geração trata as nossas mágoas. De Samir, o pai de Farid, nunca mais se ouviu nada. Recordo o Rabi Verga dizendo-me na nossa cozinha que devemos lembrar os mortos e de como eles perderam a vida. As suas palavras fazem-me sorrir; haverá realmente pessoas capazes de esquecer?

Parece que Sansão Tijolo, que riscara todos os nomes de Deus no seu Velho Testamento, tinha razão quando dizia que os judeus não podiam falar no futuro em Portugal. Tivesse meu tio sobrevivido, poderia ele ter feito alguma coisa quanto a issso? Há certos poderes que os grandes cabalistas possuem e talvez que se ele se concentrasse...

Ou será tudo mentira? Muito da minha fé esvaiu-se-me juntamente com o sangue de meu tio.

Rana, mulher de Sansão e minha antiga vizinha e amiga, vive ainda na sua quinta fora de Lisboa. Miguel, o filho dela, aprendeu o mister de ourives. Pela calada da noite, atrás das portadas fechadas, disseram-me, faz ponteiros para a Tora e outros objectos sagrados.

A nossa Vizinha, a senhora Faiam, morreu em mil quinhentos e doze.

Gemila e a família vivem na sua antiga casa como judeus secretos. O cão, Belo, morreu sem nunca ter achado o osso da perna que perdera, claro. Certos vestígios da vida nunca mais se podem recuperar. Embora isso não nos impeça de prosseguir a busca.

Penso muitas vezes no limoeiro que cresce sobre a mão da senhora Rosamonte. Tão bom se me atirassem um limão!

Terá crescido muito a amendoeira de meu tio? A sua morte cava ainda profundos sulcos dentro de mim pela madrugada, quando o orvalho se deposita na minha fronte e a minha resistência fraqueja. Ultimamente, compreendi que sou como uma árvore cujos ramos principais foram cortados com um cutelo de shohet. Lá fui conseguindo, a partir das cicatrizes, ir lançando novos ramos o melhor que pude. Floresci até Muitas vezes. Mas a árvore não é exactamente a mesma que poderia ter sido. Quão mais aprumado não teria crescido se ele...

Quarenta e quatro anos passaram por mim. Sou um homem envelhecido, com filhos. E no entanto quanto não daria eu para ter os olhos de esmeralda de meu tio fixos em mim, para sentir a asa protectora das suas vestes alvas a envolver-me. Beijar os seus lábios. Nunca será possível. Nem que eu entoasse o Zohar todas as noites durante um ano inteiro.

Murça Benjamim insistiu depois de lhe ser recusado satisfazer o seu desejo de ver cumprida a obrigação do casamento levítico. Casou com um abastado cristão-novo tanoeiro no Porto - um bom homem, como ela me escreveu - e trabalha como tradutora para os mercadores de São João da Foz.

Manuel Monchique, cuja mulher, Teresa, morreu ao lado de meu tio, emigrou para Amsterdão e é um dos directores de uma instituição bancária local. Contaram-me que se dedicou às viagens marítimas, tendo viajado mesmo para o Brasil, onde fez magníficos desenhos das borboletas nativas. E deixou-se de andar às voltas com a espada.

Talvez seja possível, assim, encontrar a nossa própria casa noutro país. Antes de deixarmos Lisboa, minha mãe deu-se ao trabalho de costurar um novo albornoz para Attar, o homem que me emprestou roupas quando tive de fugir através da Mouraria naquele fatal domingo de morte judaica.

Recebeu-me com um abraço. E antes que deixasse a sua casa, tinha comido um frango inteiro num banho de ameixas e limão. Demos as mãos para rezarmos em silêncio, e seguidamente recitámos juntos suras do Alcorão.

Isaac Ben Farraj, o asceta que salvou da fogueira do Rossio a cabeça do amigo, acabou por ir dar a Valona onde é um escriba considerado. Encontrei-o uma vez acidentalmente em Rodes depois da sua tomada pelos turcos, e parecia que não comia desde que saíra de Lisboa. Com as costelas à mostra. Com uma barba que parecia um fungo esbranquiçado. Aparentemente tinha aprendido uma coisa ou outra sobre os novos frutos que iam chegando do Novo Mundo, porque não parava de me repetir: «Cuidado com os tomates!»

Dom Miguel Ribeiro, o fidalgo que soubera das suas origens hebraicas pelo meu tio, vive ainda em Lisboa como judeu secreto. Perdeu um olho num desastre de caça pouco depois da nossa partida. Ao que me parece não conseguiu abandonar aquele último vício cristão.

Ah, aconteceu uma coisa curiosa a Didi Molcho. Foi subindo na escala do sistema dos tribunais portugueses até se tornar secretário real. Foi então, como ele conta, que apareceu perante El-Rei Dom João, o sucessor de El-Rei Dom Manuel, um judeuzito escuro com uns olhos faiscantes parecidos com os do meu tio, declarando ser um representante da tribo de Rubem que se perdera nos bravios desertos da Arábia. Dizia chamar-se David Reubini e fora a Portugal na esperança de conseguir tropas para se lançar na reconquista de Jerusalém aos turcos. Embora El-Rei se tenha enfadado com ele, Didi ficou cativado. Voltou a abraçar o judaísmo e circuncidou-se a si próprio. Os seus estudos da Cabala originaram visões que resultaram em profecia.

Usando o seu nome judaico de Salomão, Didi viajou para Itália para pregar e a precisão das suas predições tornaram-no famoso tanto entre cristãos como judeus. Em Maio de mil quinhentos e vinte e nove, depois de uma troca de correspondência, recebi-o em minha casa em Constantinopla e, durante os seis meses que se seguiram, ajudei-o a aprender as técnicas de Abulafia para desatar os nós do espírito. O seu livro de sermões, parcialmente baseado nos nossos estudos conjuntos, foi publicado em Salonica nesse mesmo ano. Encontra-se agora de volta a Roma, seguindo as suas visões, e ganhou mesmo os favores do Papa Clemente. Temo, porém, pela sua vida. Os papas invejam os homens de fé genuína com a avidez e a perfidia de um furão. E Didi, que Deus o abençoe, ficou com a sua visão das coisas terrenas embaçada por horizontes mais elevados.

Farid vive aqui na rua perto de nós. Conseguiu publicar e ver bem recebida a sua poesia aqui em Constantinopla. O seu amigo, de dezassete anos, é um ferreiro chamado Shamsi que toca alaúde e canta com a voz de uma flauta rústica. É um homem notável, bem humorado com músculos rijos e pestanas semelhantes a pétalas de rosa negras. Sem ser dotado das dimensões do ferreiro basco, é certo, parece porém trazer Farid satisfeito. Anos atrás, adoptaram dois miúdos órfãos, Samir e Rumi que foram sempre bons, ainda que um pouco rudes, companheiros de brincadeira da minha filha, Zuleikha, e meu filho, Ari.

Ceamos juntos todas as noites. É uma grande alegria para mim poder conversar com Farid com as minhas mãos. Por vezes, quando as lembranças me assaltam e me falta a vontade de ouvir as minhas palavras...

A última vez que estivemos juntos em Lisboa, perguntei a Farid:

- Estará Deus à nossa espera em Constantinopla, que achas? Daqui de Lisboa desapareceu sem deixar rasto.

As mãos dele giraram para cima e em círculo, citando meu tio:

- Tens de procurar em ti como quem bate a uma porta. É aí que O encontrarás se ainda existir para ti.

Tenho estado à espera de uma resposta a todos estes anos que continuo a bater à porta. Ao que parece, temos de ser como o persistente pica-pau para este Deus duro de ouvido, e a mim falta-me simplesmente o bico.

Por isso talvez tenha chegado àquelas paragens seculares que predissera tantos anos atrás. É para aí que sinto que o mundo se move, sem rabinos nem padres, apenas povoada por místicos e descrentes. Qual destes grupos acabará por conquistar o trono do meu coração, não o poderia dizer.

Minha filha Zuli tem agora dezoito anos e quer ser escriba como tia Ester.

Mas eu vejo nela mais de Reza. Naturalmente nobre, com uns olhos apaixonados que dançam quando fala. E quando se zanga, deixa-me intimidado com o brilho flamejante que costuma ensaiar diante do espelho.

Ari, que tem dezasseis anos, é de compleição forte, tem o cabelo escuro encaracolado de minha mulher, os olhos inteligentes e penetrantes de meu tio.

Estudou para desenhar iluminuras e poderia vir um dia a tornar-se num artista refinado. Mas desde criança que sonha navegar para a aventura do Novo Mundo.

- Um judeu a trabalhar em iluminuras de pergaminho nas selvas do Brasil seria como uma matza na lua - costumava dizer-lhe.

Há dias, retorquiu-me com a sua réplica:

- Mas alguns dos índios estão circuncidados. Tu Bisvat diz que são judeus. Soa um pouco como eu quando tinha a idade dele, não é? Ponho-me a adivinhar o que faria dele meu tio. Parece-me que se ele realmente quer ir para o Brasil, talvez devesse tornar-se num mohel.

As perdas de Judas e de meu tio condenaram minha mãe a uma vida nas margens da emoção. Começou a costurar roupas para a aristocracia turca de Constantinopla e ocupou-se sem falhas da loja de frutas que abrimos, mas manteve-se afastada de qualquer gesto de aproximação. Conversar, mesmo com tia Ester, era coisa que fazia com dificuldade. Surpreendi-a muitas vezes, às primeiras horas da manhã, de vigia junto da minha cama com o inumano estoicismo de uma deusa esculpida na proa de um navio. Sempre que eu tinha de viajar para longe de casa, vinha dar-me uma palmadinha na mão, afastando-se em seguida rapidamente, como se fosse já tarde de mais para ter esperança no meu regresso. As orações e os cânticos só contribuíam para a tornar mais ansiosa. O meimendro ajudava por vezes. Morreu durante a Páscoa de mil quinhentos e vinte e dois.

Quanto a minha tia Ester, reconciliámo-nos um com o outro, logo após a morte de Diego. Porque haveria de guardar rancor contra ela e Afonso Verdinho? Teria eu o direito de lhe negar o pouco de companhia que o mundo podia ainda oferecer-lhe? Pouco antes de partirmos para Constantinopla, ele precipitou-se para a Pequena Judiaria exibindo um anel de ouro de noivado. Exactamente como um cavaleiro saído de alguma lenda árabe. Casaram-se assim que atingimos a costa turca.

Como a minha própria vida o prova, o amor não está, pois, limitado a um único objecto. E não tenho dúvidas que minha tia Ester amava meu tio e teria dado a vida por ele. Certa vez, estava ela a banhar-se, abri a tampa do seu medalhão de prata e deparei com alguns dos longos cabelos prateados de meu tio. Roubei-lhe um desses fios e engoli-o.

Minha tia Ester é hoje uma mulher de avançada idade, perto de setenta anos. Mas o seu trabalho como escriba em hebraico, árabe, persa, castelhano e português continua a não ter igual. Completámos recentemente, ela e eu, uma cópia do «Concílio dos Pássaros» para o sultão Suleimão, o Magnífico, que Deus o abençoe todos os dias da sua vida. Não me ficaram nenhumas notas nem desenhos das minhas antigas expedições de observação de aves nas montanhas fora de Lisboa, mas trago ainda na minha memória de Tora o bastante para me inspirar a curva de um bico de grua e os matizes do colo de um mocho. Os pavões que incluí são da lavra de meu tio. Gosto de imaginar que haveria de se orgulhar da nossa obra.

Cinfa. A vida não lhe tem sido leve. Mal acabara de ser abençoada com uma menina a que deu o nome de Mira, há seis anos, ficou viúva. O marido era um médico dos olhos de Alexandria. Um homem delgado e de pele suave, com o olhar doce de quem sempre perdoa. E, porém, não demorou muito a apercebermo-nos que bebia aguardente anisada como um marinheiro grego. E que não gostava que eu iniciasse a mulher na Tora e no Talmud. Nada disto era evidente antes de se casarem. A bem dizer, tinha já esquecido o que aprendera sobre máscaras depois de deixar Lisboa.

Quando Cinfa estava grávida de sete meses, bateu-lhe com uma cana na cara.

- A tua irmã corrigiu as minhas orações do Shabat- disse-me ele, quando eu observava as pisaduras de um azul e amarelo ténues que lhe entumesciam os olhos e o rosto. O tom da sua voz era como se insinuasse que se vira obrigado a fazê-lo.

- E fez ela muito bem, seu truão - repliquei - O Shabat é mais importante que o teu orgulho mesquinho!

Ele pediu-me desculpa devido à minha reputação espiritual na comunidade de cabalista excêntrico mas culto, mas via-se nos seus olhos desafiadores que não estava nada arrependido. Não sou muito dado a brigas nem sou dotado para artimanhas, mas enquanto lhe passava a mão pela cabeça num gesto de bênção, deilhe um tal pontapé nas partes que ele ficou a contorcer-se no chão durante um bom bocado de tempo.

- E se voltas a fazer isso... - gritei-lhe. Quando contei a tia Ester o que tinha feito, ela tronizou: «E é essa a prática onde a Cabala consegue chegar! Lindo trabalho!»

Mas talvez não devesse tê-lo tentado com aquele aviso. O brutamontes repetiu a sua feia acção no dia a seguir. Farid acompanhou-me então a casa deles. Apontou a sua adaga ao queixo do médico dos olhos e disse-lhe:

- Voltas a pôr-lhe as mãos com outra intenção que não seja a do amor e arranco-te esses olhos!

Mais tarde, Farid haveria de me dizer: «Temos de ameaçar as pessoas com alguma coisa de que elas conheçam o valor.» Parecia ser um bom conselho. Mas os brutos não mudam sem a graça de Deus. Durante o seu oitavo mês, Cinfa foi precipitada pelas escadas abaixo pelo médico dos olhos. Partiu a perna direita e o osso do pescoço. A menina nasceu com ela assim estatelada no chão. Os seus gritos alertaram Zuli e a vizinhança. Se não fosse o terem andado depressa, teríamos perdido a pequena Mira.

Acompanhado por Farid, lancei-me à procura daquele médico danado. Não conseguia encontrá-lo em parte nenhuma, até que um mês depois apareceu morto num bordel das imediações. Ao que parece, tinha-se tornado um pouco atrevido com uma apreciada iemenita. Como minha tia Ester observou : «Não há grande risco em espancar uma esposa judia. Mas erga-se a mão contra alguma cara barregã muçulmana e não se vive por muito mais tempo.»

Leci, a minha mulher, foi também dotada da mesma maneira irónica de pensar. Não foi, porém, dessa maneira que as coisas começaram. É filha de um sapateiro que se tornou no nosso primeiro amigo aqui em Constantinopla. Quando a conheci, usava cabelos compridos, negros com fulgores avermelhados de hena, olhos verdes espelhando uma ânsia contida que pareciam estar permanentemente receosos de fazer alguma pergunta secreta. Os lábios selados pelo silêncio. Talvez tivesse sido a morte da mãe quando ela não passava dos cinco anos. Vivia angustiada quando a conheci, espiritualmente arrepiada. Possuía no entanto a maciez sensual de um gato húmido. Quando caminhava, parecia arrastar com ela o chão e o ar.

Fui ter com ela um dia que o seu pai tinha ido à cidade. Surgiu-me recortada no umbral da porta. Tinha estado a ler. Depois de trocarmos um olhar que denunciava uma secreta aventura, ela depositou o livro sobre o peito e soprou a candeia. Sem uma palavra, despi a camisa e desembaracei-me das calças. Quando os nossos desejos se ergueram além das explorações das bocas e das mãos, ela deitou-se por cima de mim. Dispondo-se como se estivesse perante um altar, deixou-se deslizar ao longo do meu corpo.

Poderá a perfeita concordância das íntimas partes de um casal tornar-se num símbolo do acordo espiritual?

Sentindo-a revolver a sua humidade quente sobre o meu corpo, revia a minha velha amiga Rana Tijolo a amamentar o seu filhinho Miguel. Enfiei a minha cabeça no mais fundo da tepidez dos peitos de Leci e pensei: «É esta a mulher a quem me vou entregar.»

E assim foi. Mais que os meus manuscritos, mais que os meus estudos da Cabala, considero que a plenitude da minha vida foi o que lhe dei a ela e aos meus filhos. Nem sempre foi bom, nem sequer o bastante, mas ofereci o que tinha sem qualquer máscara.

E chego assim à razão que me levou a retomar a minha pena de junco e a contar-vos esta história.

Como disse no início desta narrativa, recebi ontem por volta do meio-dia uma visita: Lourenço Paiva, o filho da nossa velha lavadeira e amiga, Brites. Antes de morrer, sua mãe pedira-lhe que viesse e me devolvesse a propriedade da nossa velha casa na esquina da Rua de São Pedro com a Rua da Sinagoga, para ver se eu pretendia regressar.

Com as chaves da nossa velha casa a morder-me o interior do meu punho cerrado, senti-me divagar numa visão de Portugal: sobreiros e papoilas. Roseta e o seu colar de cerejas. Mardoqueu e meu pai. As casas brancas e azuis de Lisboa.

O Rossio. O espelho do rio por trás da nossa velha sinagoga. O doce aroma dos arbustos de loendro no nosso pátio. judas e meu tio. As campas na Quinta das Amendoeiras.

E então, abriu-se dentro de mim uma visão, na qual meu tio me atirava letras portuguesas atadas em cadeia e formando uma frase: «As nossas andorinhas ainda estão nas mãos do faraó.» Quando o meu olhar ia a passar uma segunda vez sobre estas palavras em código novo-cristão, vi-as subir no ar e depois quebrarem-se com um som tilintante.

Quando voltei a mim, o meu peito batia ao ritmo de um versículo que dizia: «É uma oportunidade de voltar para casa.»

E foi então que na minha memória de Tora começaram a ligar-se alguns acontecimentos isolados numa leitura do passado que julgo que meu tio tinha contado que eu fizesse muitos anos antes.

Peguei no jarro de vinho e agarrei a fita de velino que minha tia Ester tinha escrito com o meu nome e o de meu tio, a fita que ele me dera pouco antes de morrer, prometendo vir em minha ajuda quaisquer que fossem as circunstâncias.

A sós, no quarto de orações, recordei os terríveis versos do Génesis sobre o sacrifício de Isaac que meu tio me tinha mandado recitar a Judas naquela Páscoa fatídica... Tinha-nos explicado então que para atingirmos o mais elevado dos fins, o nosso ser tinha de se extinguir. Queria significar o seu ser.

Antes da sua morte, na cave, meu tio tinha-me questionado sobre a minha disposição de sair de Portugal. Falou-me dos seus temores, que minha mãe e Reza não quisessem nunca partir. Esses receios traíam a sua motivação; estava a querer dizer-me que só a mais terrível das tragédias poderia separar minha mãe e Reza, a sua única filha, de Portugal.

Mesmo as palavras de meu tio que Diego citara na falsa mensagem que escreveu na morte do mobel Salomão aludiam a uma oculta razão para a sua morte: «O ferro da tua lâmina irá fortalecer-me perante Deus e talvez sirva mesmo um propósito mais elevado.»

A que propósito mais elevado serviu a sua morte? Que estaria meu mestre a pensar?

Ao correr das últimas vinte e quatro horas, deixei que as minhas especulações se confundissem com as minhas perguntas até formarem uma rede de nós que se recusa a deixar-me livre. Foi então que retirei da prateleira o tinteiro e comecei a escrever a nossa história para todos vós.

Mesiras nefesh, a vontade de arriscar tudo por um objectivo que sirva para reparar faltas na Esfera Terrena e na Esfera Celeste. Só agora me parece compreender como essa silenciada coragem alumiava os olhos de esmeralda de meu tio, e movia as suas mãos numa benção do mundo.

«Prometo proteger-te dos perigos que espreitam ao longo do caminho» - jurara ele, tinha eu oito anos. E na verdade, a sua vida fora o cumprimento da sua palavra. Pois aqui estava eu, a salvo, em Constantinopla!

O que estou a tentar dizer, neste modo hesitante, vacilante, tanto pela energia que me falta como pelo demasiado vinho da Anatólia que bebi, é que meu tio se ofereceu em sacrificio. Em parte, talvez, para tentar salvar a rapariga, Teresa, que foi assassinada junto a ele. Mas, o que é mais importante, creio que se deixou matar pelas gerações vindouras. Para forçar minha mãe e Reza, a nossa família toda, a sair de Portugal. Para permitir que a árvore da nossa família ganhasse raiz em segurança noutra terra. Uma terra onde pudessem aceitar os judeus sem máscaras.

Não quero com isto dizer que meu tio tenha atraído Diego à cave ou o tenha levado lá através de práticas cabalísticas. Não é isso. Mas talvez meu tio suspeitasse que ia ter uma visita. De qualquer modo, houve um momento, talvez quando Diego descia as escadas da cave, em que o meu mestre começou a compreender o verdadeiro significado dos motins contra nós, em que viu as possibilidades que podiam surgir da sua morte às mãos de um assassino. Para o melhor e para o pior, concluiu que a nossa família, o nosso povo, tinha chegado a um terrível impasse, e que só a sua morte violenta poderia compelir-nos a rompê-lo.

Será esta ideia uma insanidade? Talvez o seja. Talvez só Deus soubesse que meu tio seria sacrificado aquela Páscoa. E ainda assim há mais provas em apoio da minha ideia, um pequeno indício que talvez vos possa convencer de que o que digo é pelo menos possível.

Anos atrás, Farid afirmava que o desenho de Mardoqueu na última Haggada de meu tio se inspirara na minha própria face, que eu fora escolhido para representar o salvador dos judeus no «Livro de Ester». Achei que não era possível; o Mardoqueu do desenho era demasiado velho. Pensei também que mesmo que meu tio tivesse usado o meu rosto como modelo do herói bíblico era por ter tido uma premonição mística de que eu me haveria de vingar do seu Aman-Diego.

Mas ontem, ao examinar a gravura da iluminura, descobri algo de surpreendente. Mardoqueu assemelha-se muitíssimo a mim, tal como sou hoje, vinte e quatro anos depois de meu tio o ter desenhado. O mesmo cabelo cinzento aparado, os mesmos olhos cansados, como sobreviventes que ambos somos, mas também testemunhas de uma tragédia.

Estais a ver? Meu tio tinha um olhar tão perspicaz que era capaz de me pintar com a aparência que eu viria a ter quase um quarto de século mais tarde.

Assim, só agora comecei a aceitar que o meu mestre me destinou um propósito elevado, tinha pressentido que eu, tal como o antigo herói judeu, haveria um dia de salvar o nosso povo. E estou convicto de que foi essa a razão por que, na visão que ontem tive, meu tio me chamou «Mardoqueu. Não era o nome de meu irmão mais velho, como antes pensara, mas o do salvador bíblico do nosso povo. Mas como poderia salvá-lo, eu, Berequias Zarco, um homem que nem sequer já acredita num Deus pessoal?

A resposta está nas vossas mãos: acho que meu tio pressentiu que só o pesadelo da sua morte me poderia levar a escrever este livro que vós agora lêdes. Que só a sua partida violenta da Esfera Terrena poderia mostrar-me que o nosso futuro na Europa estava acabado. Que só a mais terrível das tragédias poderia convencer-me a pedir a todos os judeus, até ao derradeiro de entre nós, cristãonovo ou não, que partissem para onde estivéssemos a salvo da Inquisição ou de quaisquer outros horrores que os reis cristãos pudessem algum dia vir a conceber contra nós. Pois se há alguma coisa que podemos dizer sobre os monarcas europeus é que não lhes hão-de faltar os sonhos sobre os judeus. Assombramo-los nas trevas espirituais em que vivem.

Se não admitis que há uma, ainda que reduzida, possibilidade de estas especulações serem uma leitura válida das suas acções, então desejo que passeis bem na vossa solidão; é claro que nunca passou pela vossa vida alguém com a energia espiritual de meu tio, com o seu desinteressado e incondicional amor por vós, capaz de se sacrificar a si próprio pela vossa sobrevivência.

Ou talvez seja mais apropriado lamentar a minha falta de talento; a minha narrativa não foi suficiente para vos convencer que Mestre Abraão Zarco era real.

Perdoai-me. Mas deixai que vos diga, e reuni a coragem de me crer: existem homens e mulheres com uma tal apaixonada determinação que voluntariamente darão as suas próprias vidas pelas de gerações de filhos que nunca hão-de conhecer.

Estava pois enganado quando tantos anos antes disse à minha amiga Rana Tijolo que meu tio acreditava que os judeus podiam ainda conjugar o futuro em Portugal. Já então ele sabia que não nos restava senão o tempo passado, na Ibéria e em todas as terras cristãs da Europa. Podereis conceber que foi por mero capricho que ele planeou a nossa mudança para uma terra muçulmana, para a Turquia?

Não há acasos, não há coincidências. Será possível? Até agora, apenas ousei expor estas ideias a Farid e a resposta que os seus gestos me deram foi: «Mas não achas que teu tio podia servir melhor o povo judeu vivo do que morto?»

Boa pergunta. Talvez os acontecimentos se tenham precipitado tão rapidamente que o meu mestre deixou de os poder dominar. Mas ainda que a minha ideia esteja redondamente enganada, continuo a não ter coragem de poisar a minha pena e de rasgar estas páginas. Não posso arriscar a vida dos judeus fiando-me na equidade dos reis da Europa que já mostraram vezes sem conta que desconhecem o que seja a justiça. Pois, ainda que esteja enganado, ainda que esteja a ler da esquerda para a direita, ainda que meu tio estivesse tão cansado da sua vigília por causa de Reza que nem forças tinha para erguer uma mão contra Diego, podereis estar certos que os reis cristãos não virão um dia buscar-vos, e a todos os nossos? E que traidores como Diego não os ajudarão?

E assim, acabamos por falar também em Diego e no real significado que a sua traição poderá ter. Muitas vezes me interroguei sobre isto, claro. A chave da minha interpretação das suas acções reside na definição cabalística do mal: «o bem que se afastou do seu justo lugar». Creio que Diego era um homem que poderia ter brilhado entre o seu próprio povo. Ao viver com os cristãos-novos, contudo, ao ter de lutar contra o terror que a Igreja e a Inquisição deles lhe inspiravam, voltou-se para o mal. E por isso acredito que haverá muitos outros como Diego que conspirarão contra nós a não ser que deixemos a Europa. Isso, também, faz parte do significado da morte de meu tio.

Quanto às minhas hesitações em falar de tudo isto... Não é de surpreeender que uma parte de mim gostasse de rebater as minhas palavras como sendo tolices. Pois que se a minha fé aponta para a verdade, então terei falhado meu tio vergonhosamente. Há vinte e três anos, consenti que minha prima Reza ficasse em Portugal. Que meu tio me perdoe. Pois se ele está certo, se a leitura que faço dos versículos do passado está correcta, então a família dela está condenada.

E é por isso que devo pegar nas chaves que este caro Lourenço me deu e reentrar as portas de Portugal. Este manuscrito é a arma que levarei comigo. Possam as suas palavras ligarem-se umas às outras e formar o laço que possa enforcar Aman.

Farid diz que me acompanhará, que preciso da sua protecção. Talvez tenha razão. juntos, iremos buscar Reza e a família e trazê-los para Constantinopla.

Possam todos os cristãos-novos e judeus acompanhar-nos. E possam minha mulher e meus filhos compreender as minhas razões para partir.

Os primeiros pálidos alvores da madrugada acabaram de romper através das portadas da minha janela, e o meu punho dói-me. É tempo de pela última vez estender o braço para o tinteiro para escrever algumas derradeiras palavras. Que os anjos que se escondem sob as minhas palavras inspirem o entendimento na minha alma e nas vossas. Como disse logo no início desta narrativa, vós que lêdes estas palavras, sejais judeus ou cristãos-novos, sefarditas ou asquenazins, se as fronteiras da Europa ainda vos rodeiam, estareis em grande perigo. A Inquisição há-de alastrar, e muito em breve o nosso Espelho que Sangra sangrará como nunca antes. Foi essa a razão por que meu tio me apareceu agora. A matança mal começou. Podeis estar certos de que os reis europeus e os seus bispos odiosos nunca deixarão de sonhar com o nosso povo. Nunca permitirão que vós ou os vossos filhos possam viver. Nunca! Mais tarde ou mais cedo, este século ou daqui a cinco séculos, hão-de vir procurar-vos ou aos vossos descendentes. Não há aldeia, por mais longínqua que seja, que esteja a salvo. Nenhum fidalgo ou exército estrangeiro hãode vir para vos socorrer. Este é o significado que atribuo à morte de meu tio. Retirai pois as vossas máscaras. Voltai-vos para Constantinopla e Jerusalém. E começai a caminhar.

Arrancai a Europa cristã do vosso coração e não olheis nunca para trás!

Abençoados sejam os que são um retrato de Deus.

 

                                                                                Richard Zimler  

 

Glossário de alguns termos hebraicos utilizados nesta obra

 

Aman - Cortesão persa que conspirou para massacrar os judeus («Livro de Ester»)

Anusim- Judeus forçados a converterem-se ao cristianismo.

Asmodeu- Rei dos demónios judeus.

Av - Décimo primeiro mês do calendário lunar hebraico, geralmente parte de Julho e parte de Agosto.

Ba'al Shem - Título aplicado, nos textos cabalísticos, aos místicos que possuem o conhecimento secreto dos nomes sagrados de Deus e que podem fazer um uso mágico de tal conhecimento.

Bahir - «Livro da Luz», um importante texto cabalístico descoberto na Provença no século XII.

Casher - Próprio para consumo humano segundo as regras alimentares judaicas.

Challa - Pão judeu feito com ovos.

Chametz - Alimentos interditos aos judeus durante a Passagem (Páscoa), especialmente o pão levedado.

Ein Sof - O Deus oculto que não pode ser apreendido, descrito ou abordado. A existência e a natureza de Deus apenas se pode deduzir das suas emanações ou atributos reflectidos no nosso mundo.

Flohim - Um dos nomes de Deus.

Gematria - Técnica utilizada pelos místicos judeus para discernir os significados secretos contidos na Tora e noutros textos sagrados. Neste Sistema, a cada letra hebraica corresponde um determinado valor numérico. Os estudiosos e os místicos judeus analisam os textos para descobrir conexões matemáticas entre diferentes nomes, palavras ou frases.

Geniza - Um depósito para guardar textos sagrados.

Gilgul - O conceito cabalístico de transmigração das almas ou de reencarnação

Golem - Criatura, normalmente de forma humana, criada por processos mágicos através do uso de nomes sagrados, particularmente oTetragramaton.

Haggada- Texto que inclui a história do Êxodo e o cerimonial da refeição ritual da comemoração da Passagem (Páscoa).

Haliza - Cerimónia prescrita pela Bíblia, que se realiza quando um homem recusa casar-se com a viúva sem filhos de um irmão.

Hanukka - Festa judaica que se realiza no Inverno, que celebra a vitória dos Macabeus, uma tribo judaica, contra os sírios em 165 A.C.

Hazam - Sacerdote que conduz as orações e é o cantor principal nas liturgias realizadas na Sinagoga.

Heshvan - Segundo mês do calendário lunar judaico, que em geral coincide com parte de Outubro e parte de Novembro.

Haroset - Mistura de pedaços de fruta, nozes e especiarias, que se come na Passagem (Páscoa) e que representa a argamassa utilizada pelos judeus nas construções ordenadas pelos faraós durante o cativeiro no Egipto.

Ibbur - Um mau espírito ou alma penada de uma pessoa morta que entra no corpo de um vivo passando a comandar o seu comportamento.

Kaddish - Oração pelos mortos recitada pelos enlutados.

Kétuba - Contrato de casamento que estabelece os direitos e deveres do futuro marido.

Kislev - Terceiro mês do calendário lunar judaico, correspondente a parte de Novembro e parte de Dezembro.

Lez - Um demónio judeu traquinas ou um «poltergeist».

Levita - Pessoa pertencente à casta religiosa de sacerdotes descendentes de Levi, filho de jacob.

Lilit -Demónio fêmea, que, segundo as lendas judaicas, estrangula as crianças e seduz os homens. Muitas vezes considerada como a rainha do Mal.

Maimon - Poderoso demónio judaico.

Mardoqueu - Cortesão judeu que frustrou o plano de Aman para massacrar os judeus persas (Livro de Ester).

Matza - Pão ázimo cozido pelos israelitas durante o Êxodo do Egipto, que leva farinha e água como únicos ingredientes, e que se come durante as festas da Passagem (Páscoa).

Menora - Candelabro de nove braços que se acende para celebrar a festa de Hanukka.

Metraton - O anjo celeste que regista as boas acções.

Mezzuza - Pequena caixa que contém uma folha de pergaminho no qual foi escrita a oração judaica que começa com «Ouve, ó Israel». Esta caixa encontra-se no umbral das casas judaicas e era frequentemente considerada uma protecção contra os ataques dos demónios.

Micva - Banho ritual de imersão, praticado pelas mulheres a seguir à menstruação.Também praticado pelos homens em rituais de purificação

Mitzva - Mandamento divino. Há 613 mandamentos na Tora. Pode também significar uma boa acção.

Mohel - Pessoa apta para realizar circuncisões rituais. As crianças judias do sexo masculino são geralmente circuncidadas no oitavo dia a seguir ao nascimento.

Neshama - A centelha divina de Deus que existe no homem; a alma.

Neza - Resistência divina.

Nísan - Sétimo mês do calendário lunar hebraico, em geral correspondente a parte de Março e parte de Abril.

Passagem - Festas judaicas que comemoram a fuga do povo hebraico da escravidão no Egipto, tradicionalmente celebrada durante oito dias na Primavera. Páscoa judaica (Pessá).

Ptirim - Festa judaica que celebra a derrota do plano de Aman para massacrar os judeus persas.

Rahamin - Compaixão divina.

Samael - Nome de Satã para o judaísmo.

Seder - Refeição ritual tradicional que tem lugar na primeira e por vezes segunda noite da Páscoa. A última ceia de Cristo era uma «seder» judaica.

Sefer - Livro, em hebraico.

Sefirot Os- dez aspectos das manifestações de Deus, por vezes representados como luzes divinas e frequentemente associadas com a Árvore Cósmica, os nomes de Deus e as várias partes do corpo humano.

Sitra Ahra - Termo cabalístico que designa o domínio das emanações maléficas e os poderes demoníacos (o Outro Lado).

Shefa - Influxo divino ou um momento de presença divina.

Shevat - Quinto mês do calendário lunar hebraico, que em geral coincide com parte de janeiro e parte de Fevereiro.

Shofar - Chifre que se sopra para produzir um som semelhante ao da trombeta durante certos rituais judaicos.

Shohet - Talhante judeu especialmente apto nas técnicas de abate de animais

Tallit - Xaile ritual de forma rectangular.

Tefellim - Tira estreita de pergaminho, que tinha escrita uma passagem da Escritura, e que os judeus traziam enrolada no braço ou sobre a testa.

Talmud - Antiga compilação da Lei oral judaica que inclui comentários rabínicos

Tisbri - Primeiro mês do calendário lunar judeu, correspondente a parte de Setembro e parte de Outubro.

Tora - O Pentateuco, ou seja os cinco primeiros livros do Antigo Testamento. Numa acepção mais lata, pode referir-se a todo o Antigo Testamento ou mesmo a todos os ensinamentos judaicos.

Tref - Alimento impróprio para consumo humano e que deve ser rejeitado segundo as regras alimentares judaicas.

Tzitzit - Franjas que pendem dos quatro cantos do xaile ritual judaico (Tallit.)

Tu Bísvat - Festa judaica relacionada com a Árvore da Vida e os frutos comestíveis associados à terra de Israel.

Yom Kíppur - A mais sagrada das festas judaicas, na qual os judeus jejuam para expiar os seus pecados.

Zedec - justiça divina.

Zohar - «O Livro do Esplendor». O livro fundamental do misticismo cabalístico escrito em Guadalajara, Espanha, entre 1280 e 1286, pelo místico judeu Moisés de Léon.

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Voltar à Página do Autor