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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ÚLTIMO DIA - P.2 / Glenn Kleier
O ÚLTIMO DIA - P.2 / Glenn Kleier

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ÚLTIMO DIA

Segunda Parte

 

Di Concerci ficou entravado. Ao tomar emprestado aos provérbios e à terminologia arcaica, Jeza conseguiu projetar uma imagem messiânica convincente. Foi esta postura cuidadosamente cultivada que o desafiou, não sua lógica. Sua Eminência não estava acostumado a conceder argumentações teológicas a homem algum. Muito menos a uma mulher, com um terço de sua idade! Ele se recusou a ceder.

— Talvez pudéssemos compreendê-la melhor, profetisa, se você falasse em inglês moderno, em vez de usar antigas construções bíblicas. — Havia uma rispidez na voz do frustrado cardeal que nem mesmo toda a sua disciplina conseguia mais esconder. — Você nos faria a gentileza de esclarecer mais um assunto irresoluto? — Seu cenho se franziu um pouco com a manobra seguinte. — A Bíblia nos diz que a homossexualidade é abominável aos olhos do Senhor. Você também condena a homossexualidade?

Jeza mais uma vez olhou para o austero jesuíta do alto de seu púlpito. Ela tornou a fazer uma pausa antes de falar e mais uma vez o humor do cardeal se elevou.

— Não importa o modo como falo — disse ela. — A verdade é a verdade, seja ela da forma que for. Se o seu coração quiser compreender erroneamente, você há de encontrar um meio. — Voltando-se, então, para a assembléia em geral, ela continuou: — Não condeno nada que Deus tenha criado na natureza.

Di Concerci, sentindo crescer-lhe a confiança, retomou:

— Mas a homossexualidade é antinatural. Vai de encontro à natureza. Ela é um simulacro do ato natural e sagrado da procriação e da continuidade da espécie, sendo clara e freqüentemente condenada na Bíblia!

Jeza balançou a cabeça para ele como um pai frustrado diante de um filho recalcitrante.

— O seu celibato não é um simulacro do ato natural e sagrado da procriação e da continuidade da espécie? — Então, virando-se para o público, proclamou em inglês franco: — O homossexual não é mais responsável por sua condição do que alguém que nasça surdo, ou cego, ou manco. A homossexualidade é tão invulnerável à proscrição moral quanto o fato de alguém ser canhoto ou destro. Os homossexuais devem encontrar o caminho do Senhor à sua própria maneira, acatando a Palavra de Deus, mantendo-se fiel ao seu coração, sem causar mal a ninguém, protegendo os inocentes. Em lugar de serem vilipendiados, os homossexuais devem ter a liberdade de buscar o seu caminho de Deus sem a interferência dos farisaicos.

Di Concerci ficou horrorizado, bem como o ficaram diversos outros ouvintes entre o público. Pela primeira vez, houve vaias e apupos isolados.

— E quanto ao Armagedon? — perguntou de súbito o imame do painel. — A sua chegada é realmente o prenúncio do Apocalipse, conforme estão dizendo?

O rosto de Jeza se obscureceu e ela fechou os olhos. O grande pavilhão ficou em silêncio mortal, aguardando solenemente a resposta.

Falando devagar, com a voz sombria, a Messias declarou:

 

“Israel, ó Israel, ouça as minhas palavras. Estão se erguendo entre vocês agora os falsos líderes; os traidores dos profetas. Eu lhes digo, aqueles que desejam enganá-los estão misturados a vocês, e a hora do desespero é chegada. No campo de batalha dos vexados, a hipocrisia encontrará a si mesma. Vocês brandirão a espada de dois gumes, Ignorância e Arrogância; irmão se voltará contra irmão, marido contra mulher, filho contra pai. A guerra será travada em todos os continentes, em todas as cidades e em todos os lares, e nenhuma família sairá incólume. Vocês derramarão sangue pelas ruas e até mesmo nos templos do Senhor. A morte e a dor transformarão a luz em trevas, e durante três dias a perdição e a confusão reinarão sobre a Terra. Agora mesmo os exércitos se reúnem, e tomam-se posições; é chegada a obscura hora da dissolução!"

(Apoteose 24:59-67)

 

Uma consternação medonha estava se formando no pavilhão e, na verdade, pelo mundo inteiro, onde bilhões de pessoas testemunhavam a medonha profecia. O imame que trouxera à baila essa terrível perspectiva tremia, horrorizado.

— Grande Senhora — soluçou ele em desalento — não há, então, esperança para nós? Teríamos faltado com Alá de forma tão... — ele se engasgou — assim... tão completa? Seremos todos destruídos?

Jeza abriu os olhos e fitou lá embaixo o homem desesperado, examinando-o.

— Somente os que abraçam a violência dela padecerão — disse. — Não será através das armas, mas somente de sua fé, que vocês prosseguirão. O que há de ser, será; e a profecia se cumprirá. Amém, amém eu lhes digo, conforme o homem rompeu seu acordo sagrado com o Senhor, a rocha se romperá; mas da fenda brotará a semente do novo caminho e ela florescerá outra vez.

Di Concerci se levantara de sua poltrona com o rosto enrubescido de indignação.

— Isto é simplesmente ultrajante demais para ser aceito — gritou ele. — Se quer que nós acreditemos em você, é preciso que nos dê um sinal. Prove para nós que você é quem diz ser.

Um silêncio se espalhou pela multidão uma vez mais.

Jeza pareceu cansada e frustrada.

— Vocês pedem um sinal para que possam acreditar — disse ela, pesarosamente. — Entretanto, de seus próprios seguidores pedem fé inquestionável. Eu lhes digo, o único sinal que receberão será a realização das minhas palavras.

Di Concerci ia desafiá-la ainda mais uma vez, porém ela o atalhou. Com os olhos chamejantes, ela baixou o braço direito com veemência na direção dele, apontando-lhe o dedo indicador a julgá-lo, estarrecendo toda a platéia com o volume de seu pronunciamento:

— Que se cumpra o desejo de Deus! — exclamou ela. — A desgraça para aqueles que não sabem ouvir a Sua Palavra! Vão-se embora daqui e não importunem mais a paciência do Senhor.

Exasperado e irritado, embora contendo-se com maestria, o prefeito reconheceu que maiores esforços para repudiar essa demagoga seriam em vão. Agora sabia que teria sido muito melhor se não tivesse travado discussão com ela. À revelia, sua invocação de Deus na defesa de qualquer argumento era um fato consumado. Para seu grande desalento, Di Concerci percebeu que só fizera piorar a imagem da Igreja com essa confrontação.

A algumas poltronas de distância do cardeal Di Concerci, um centrado irmão Elijah Petway levantou-se em nome dos mórmons, a fim de concluir os devastados procedimentos. Mas antes que pudesse falar, um braço firme, vestido de preto e carmim, esticou-se por trás dele e tomou-lhe o microfone.

Di Concerci ficou chocado ao observar o rosto energizado de Alphonse Litti. De maneira reverencial, sem sequer tomar fôlego, Litti se apresentou.

— Santíssima Filha de Deus! — começou ele, e Di Concerci trincou os dentes. — Sou Alphonse Bongiorno Litti, cardeal da Cúria e Magistério da Sagrada Igreja Católica Romana. E tenho uma solicitação humilde, porém urgente, a lhe fazer.

Jeza, do alto de seu púlpito, lançou um olhar carinhoso, que foi gradativamente substituindo a raiva em seu rosto.

— Ilustre Dama — prosseguiu Litti — fora a senhora, não há outro líder espiritual mais reconhecido no mundo do que o sumo pontífice da Igreja católica, Sua Santidade o Papa Nicolau VI. Como descendente direto de São Pedro e líder da mais antiga e contínua religião da cristandade é vital que o pontífice venha a conhecê-la e a ouvir suas palavras. A senhora concederia uma audiência pessoal com Sua Santidade?

Di Concerci inclinou-se para a frente, a fim de protestar ao microfone.

— Falando como membro da Cúria, em boas graças — disse o prefeito — devo advertir que a agenda do Papa está bastante repleta e não tenho certeza...

Litti não quis ouvir nada disso.

— O Papa não abdicará, não poderá, abdicar, de sua responsabilidade para com os fiéis — interrompeu. — Nicolau não poderá se recusar a ter com a proclamada Messias, que professa a revelada Palavra de Deus. É a sagrada obrigação do pontífice ouvir esta senhora especial e pessoalmente avaliar Sua importante mensagem.

Di Concerci não ousou protestar com força demasiada ou arriscar exibir a Igreja como fraca e temerosa. E talvez ele não devesse agir com tanta pressa, afinal. tal encontro, admitindo-se que essa mulher mercurial viesse a aceitar, talvez pudesse explorar maneiras de impedir esse perigoso desdobramento. Certamente a proposta conferência com o Papa iria, pelo menos, dar um fim ao presente dilema. E conseguiria tempo para que a Sacrossanta Igreja e suas religiões associadas do mundo inteiro se reagrupassem e combatessem o absurdo comando auto-destrutivo de Jeza; comando este que muitos clérigos na platéia estavam, obviamente, levando a sério.

Respondendo diretamente ao cardeal Litti, sem sequer reconhecer o aparte de Di Concerci, a Messias afirmou tranqüilamente:

— Eu irei, sim.

 

                                   Aeroporto de Salt Lake City, Utah

                                   18:19, domingo, 5 de março de 2000

Feldman acompanhou a reservada e pensativa profetisa até sua cabine no jato, onde ela se manteve reclusa até o fim do dia. Em seguida, colocando os óculos escuros e o boné que haviam lhe dado para se disfarçar, ele se recolheu com Hunter e Cissy a um salão de estar para refletir. O estado de espírito dos presentes em torno deles estava sombrio. Pedindo uma rodada de cerveja, os três repórteres escutaram atentamente os noticiários televisivos, qual uma história de comoção global que lhes contavam.

Oriundos de diversas cidades espalhadas pelo planeta, os relatos chegavam sem parar; todos estranhamente parecidos. Havia uma grande esquizofrenia religiosa em evidência. Apesar dos ditames de Jeza, muita gente estava assomando às igrejas, sinagogas e templos, procurando desesperadamente algum consolo, direcionamento, esperança. Com freqüência inusitada, essas pessoas eram recebidas por sacerdotes irritados, que desacreditavam vigorosamente a Messias e se opunham às suas postulações e profecias.

Não obstante, números consideráveis de eclesiásticos submetiam seus corações e almas aos comandos de Jeza, execrando suas igrejas. Particularmente a Igreja católica, que fora posta em situação mais notavelmente embaraçosa na convocação. Muitas congregações, atuais e antigas, compartilhavam um desespero e uma premissa comuns de que o fim do mundo se avizinhava rapidamente. Irrupções de pânico, ataques nervosos, suicídios e histeria em massa eram comuns, particularmente no Ocidente. Os níveis de tais incidentes excediam até os que ocorreram durante a infame Véspera Negra do milênio. Arroubos de violência, entretanto, eram relativamente poucos.

O mundo estava numa Grande Depressão, mais definitiva do que todas as ocorridas anteriormente: Nas regiões do mundo onde a manhã de segunda-feira já rompera, o não-comparecimento aos empregos dos setores público e privado se disseminava, resultando no fechamento de importantes indústrias e serviços governamentais, gerando uma barafunda na vida cotidiana.

Embora a RMN fosse levar Jeza de volta ao Cairo, conforme ela solicitara, centenas de milhares de pessoas planejavam peregrinações até a Terra Santa, prevendo o retorno da Messias a Jerusalém para o Dia do Juízo Final, conforme profetizava a Bíblia. Suas providências, entretanto, se viram frustradas pela falta de pessoal nas agências de viagem e reservas, vez que muitos haviam desertado de seus postos.

A deterioração progressiva da situação era uma séria preocupação para todos os governos, mas era particularmente desconfortável para o presidente norte-americano Allen Moore, que agora buscava desesperadamente distanciar-se de sua hóspede recente. Pelo aparelho de televisão situado na parede do bar, Feldman e seus associados assistiram ao pronunciamento feito por Moore no salão de imprensa da Casa Branca.

O presidente estava lendo suas anotações:

— ... Esta administração não foi avisada do conteúdo da mensagem dessa alegada profetisa para a convenção religiosa — disse ele, com o lábio superior úmido e os olhos encontrando grande dificuldade para fitar as câmeras. — Além disso, gostaríamos de ressaltar que, de acordo com as típicas histórias bíblicas, os vívidos comentários ouvidos hoje cedo são decerto alegóricos e não devem, repito, não devem ser tomados literalmente...

— Não está muito convincente, hein? — disse Hunter, com um sorriso afetado.

— E como poderia estar? — solidarizou-se Cissy. — Não há como contestar o que Jeza disse lá no pavilhão. E quem por acaso acreditar nela está com os joelhos tremendo agora, contando os minutos para o cataclismo.

— Não posso deixar de dizer — intercedeu Feldman — que alguns dos comentários dela me fizeram balançar. Como os pontos acerca da obsessão humana com as trivialidades e rituais religiosos... aquelas pedrinhas nas quais os teólogos sempre tropeçam.

Feldman recordou vividamente o quanto certas minúcias distintas nas religiões judaica e católica haviam contribuído para a dissolução do casamento de seus pais. Muitas vezes, ainda menino pequeno, amedrontado e sem discernimento, ele tentara interferir em amargas desavenças sobre questões insignificantes. No contexto geral que diferença fazia se o dia adequado para o sabá era sábado ou domingo?

Isso para não mencionar o grande e clássico pomo da discórdia entre seus pais: se Jesus Cristo foi ou não, de fato, o prometido Redentor! Feldman acabou resolvendo que esta questão tampouco tinha relevância. Afinal, o cerne dos princípios das duas fés eram os Dez Mandamentos e já que poucos eram os que, em qualquer das duas faces da moeda religiosa, conseguiam dominar até mesmo esses dogmas simples e diretos, Feldman não via razão para argumentar acerca da doutrina mais abstrata.

— Olhem só como todas essas religiões por aí ficam de intrigas entre si — ressaltou — cada qual se dizendo a fé verdadeira. Não há como qualquer crente, sincero e de boas intenções, no mundo inteiro, saber qual religião é a certa, se é que isso existe.

— Será que o verdadeiro Deus vai se levantar? — zombou Hunter, irreverentemente. — Onde está o Valdo Supremo?

Feldman balançou a cabeça e inclinou sua cadeira para trás.

— Querem saber de uma coisa? Eu sei que nós devemos ser profissionais, jornalistas imparciais e tudo o mais; entretanto, será que vocês conseguem continuar sentados aí, me dizendo que essa coisa toda da Jeza não está mexendo com vocês?

Não houve resposta.

— Pensem nisso — expôs Feldman. — Além de todas as espantosas capacidades que Jeza adquiriu no laboratório do Neguev, ainda tem um monte de coisas acontecendo que não há como computar. E quanto a todas essas pessoas que, durante os últimos dois meses, vêm dizendo que ela as curou? Algumas chegaram a ser bastante convincentes. Não pode ser tudo uma questão psicossomática, vocês não acham? E tem mais: todas essas coisinhas que ela parece saber de antemão. No vôo do Cairo para cá, ela me avisou, antes do piloto, que passaríamos por turbulências, pelo amor de Deus! E vocês nunca se perguntaram por que a RMN é a que sempre está no lugar certo e na hora certa? Já não está mais dando para explicar todas essas coisinhas como um monte de coincidências bizarras!

Hunter soltou uma risada curta.

— É bem mais fácil do que explicá-las todas como milagres.

Feldman redargüiu de pronto:

— Você vai acumulando um monte de coincidências e isto, por si só, já é um milagre.

— Bem — admitiu Cissy — eu não afirmo ter uma explicação para todas essas coisas, mas tenho uma teoria sobre essa missão do Pai com a qual ela vem amedrontando todo mundo. — Ela olhou ao seu redor para se certificar de que ninguém mais poderia ouvi-la e, em seguida, cautelosamente, diminuiu o tom de voz. — Acho que Jeza está reagindo a uma mensagem subliminar que Jozef Leveque plantou dentro dela para ajudá-la a lidar com a tal infusão militar. Sabe, uma válvula de segurança, ou um parâmetro básico de segurança, ou seja lá o que for neste sentido! Quero dizer, vocês não fariam o mesmo para proteger um filho seu contra esse tipo de lavagem cerebral? E aí, mais tarde, quando Jeza se misturou com o culto dos Samaritanos, ela simplesmente confundiu a mensagem de Leveque com todo o lixo do fim do mundo com que eles a alimentaram. De forma que ela agora acha que sua missão é preparar para o Apocalipse.

— Caramba, eu nem sei mais no que acreditar! — resmungou Feldman em voz alta. — Vivi a minha vida adulta inteira com essa coisa de Deus engavetada num canto. Eu não conseguia entender isso direito. Procurava por Deus, mas não conseguia encontrar. Eu estava cheio das rixas entre as religiões, das suas teologias contraditórias e da tagarelice de suas pregações. E eis que estou novamente tirando todas essas confusões do fundo do meu baú para limpar o pó! — Ele tirou o boné e correu os dedos pelos seus cabelos negros. — Não sei o que está acontecendo, gente, mas não posso deixar de dizer que tem algo muito estranho acontecendo e estou começando a ficar preocupado.

— Não venha me dizer que você está acreditando em todo esse palavrório amedrontador sobre o Último Dia? — perguntou Cissy, meio incrédula.

— Não — assegurou-lhe Feldman. — Pelo menos, não num Último Dia bíblico! — Seu rosto se ensombreceu. — Mas quando a gente olha para onde vai se encaminhando todo esse movimento milenarista, não falta elemento algum para um tremendo confronto. O nome que você dá a isso, suponho, depende apenas da sua perspectiva.

— Bem, eu posso lhe dar a perspectiva de um cinegrafista, se você quiser — ofereceu-se Hunter. — É um cataclismo, tudo bem. Um cataclismo de merda! Jeza é tão ensandecida quanto todos esses que surgem por aí. Eu concordo com Cissy. O cérebro de Jeza está todo distorcido por causa dessas experiências científicas malucas que fizeram com ela. A pobre realmente acredita que é algum tipo de Messias. E por que não? O que ela tem além disso? Não tem pais. Não tem família. Não tem infância. Não tem vida sexual. Nada! Nada além de um monte de ilusões de grandeza enfiadas em sua cabeça por um computador de merda e um bando de Samaritanos safados! Mas de uma coisa eu sei: seja ela responsável por seus atos ou não, se aquela mulherzinha continuar nesse caminho dos infernos que anda trilhando, vai se ver numa enrascada muito maior do que já está metida. Uma coisa é ter um monte de fanáticos religiosos a fim de pegar você. Outra coisa muito mais séria é mexer com a conduta das nações e dos negócios internacionais. E deixando de lado o resto do mundo, ela está desestabilizando o Oriente Médio, cara. Está ameaçando as linhas do petróleo. E quem faz um troço desses arranja complicações com a CIA e com o Serviço Nacional de Segurança... e coisas muito piores!

A agourenta observação não foi uma visão bem-vinda para Feldman. Ele soltou um suspiro. Apesar de suas incertezas quanto a Jeza, não tinha como negar um afeto estranho que se desenvolvia no seu âmago com respeito à desolada moça que ele deixara repousando no avião. Uma admiração por suas convicções, sua postura e seu misticismo!

E também uma grande pena! Ele não podia ignorar a grande verdade no pronunciamento de Hunter. Apesar da maravilha tecnológica de sua mente e de suas habilidades extraordinárias, ela era, afinal, apenas um ser humano. E, mais cedo ou mais tarde, precisaria encarar a desagradável verdade acerca de sua natureza de fato.

 

                                 Centro Mórmon de Convenções, Salt Lake City, Utah

                                 19:09, domingo, 5 de março de 2000

O cardeal Alphonse Litti não estava muito seguro de como lidar com toda aquela atenção. Numa questão de horas, passara de relativa obscuridade à aclamação internacional. Tornara-se, de súbito, o exegeta extraordinário oficial para os assuntos relativos à misteriosa Jeza.

No saguão do Centro de Convenções, Litti estava cercado de holofotes, câmeras, microfones e ávidos jornalistas, todos atentos a cada palavra sua. O que detonara todo esse tumulto fora sua entrevista, dada à TV antes da convocação. Ele proclamara Jeza uma autêntica Messias e declarara, tranqüilamente, que ela estaria conclamando a abolição de todas as religiões organizadas por serem instituições falhas e equivocadas. Quando, de todas as centenas de opiniões divulgadas pela televisão, a de Litti se confirmou como a única exclusiva e absolutamente correta, as redes de notícias e o mundo em geral se voltaram para ele, imediata e respeitosamente.

— Diga-nos quando e onde ocorrerá o encontro entre Jeza e o Papa!­ — gritou uma repórter, esticando um microfone diante do rosto do cardeal.

— Ainda não sabemos ao certo — respondeu Litti, transpirando copiosamente ao calor dos holofotes e sentindo—se um pouco atarantado. — Esperamos que seja daqui a duas semanas, possivelmente em Roma. Sei que as comunicações com o Vaticano já tiveram início faz pouco tempo, logo depois que a Messias saiu daqui do pavilhão.

— E quanto ao que se está falando sobre o Armagedon? — gritou outro repórter. — O senhor parece conhecer a mente de Jeza melhor do que todos. Estamos a caminho do Dia do Juízo Final?

— Não posso me dizer conhecedor da mente da Messias. — Litti sorriu, lisonjeado pelo exagero. — Mas posso dizer que tenho uma certa compreensão, um discernimento apurado, como queiram, a partir de cuidadosa reflexão acerca de Seus ensinamentos. Creio que um dia de considerações seja iminente, conforme Ela afirmou. O mundo dispôs de dois mil anos para absorver a mensagem de Cristo e responder adequadamente a ela. Neste sentido, infelizmente, fracassamos sumariamente.

— Então o senhor prevê uma guerra generalizada, batalhas mortais, pessoas voltando-se contra os seus próximos, conforme afirmou a profetisa? — perguntou ainda outro repórter.

— Não prevejo nada e realmente ainda não sei o que essa "sombria hora da dissolução" significa. Espero que tenhamos maiores esclarecimentos durante a audiência do Papa com a Messias.

As perguntas continuaram e, por ora, parecia que o cardeal Alphonse Litti seria um recurso espiritual muito solicitado por um mundo seriamente perturbado e confuso.

 

                               Aeroporto de Salt Lake City, Utah

                               6:07, segunda-feira, 6 de março de 2000

Jeza se levantara cedo, antes dos demais, muito antes do vôo previsto para as sete horas da manhã. Ao sair bocejando de sua cabine, Feldman a encontrou sentada, de pernas cruzadas, em seu assento, usando os fones de ouvido, olhos fechados, mãos cruzadas sobre o colo, meditando.

Embora tivesse feito uma aproximação silenciosa, Feldman mal chegara perto quando ela, ainda com os olhos fechados, falou:

— Bom dia, Jon!

— Bom dia, Jeza! — ele retrucou. — Você dormiu bem?

— Dormi. E você?

— Para ser franco, venho tendo uns sonhos estranhos ultimamente. Assim não dá para dormir em paz.

Ela abriu os olhos e fez uma boa avaliação dele.

— Não é hora de dormir em paz — disse ela, tirando os fones de ouvido.

Feldman teve a impressão de que a Messias acordara disposta a conversar.

— Posso ficar aqui com você? — perguntou.

Ela assentiu e ele se sentou, esperançoso, na poltrona ao lado.

— Ora — falou ele, sem saber exatamente por onde começar —, ontem foi um dia e tanto para você!

— Foi, sim — disse ela. — E agora devemos nos preparar para mais um dia importante. Você está tomando as providências para o meu encontro com o soberano da Igreja católica romana?

— Isso já está em andamento — respondeu Feldman. — Não é preciso dizer que a RMN terá enorme prazer em patrocinar esta viagem, também. Nosso pessoal está mantendo contato com todos os três representantes do Papa presentes à convocação. Esperamos conseguir marcar o encontro para daqui a duas semanas, domingo, 19 de março, se for conveniente para você.

— É sim. Obrigada!

Já que ela estava se mostrando disposta a conversar no momento, Feldman resolveu tentar jogar um pouco de luz sobre alguns pontos.

— Jeza — aventurou-se — você sabe que seus comentários de ontem trouxeram muita inquietude para o mundo inteiro? Principalmente suas profecias sobre o Armagedon. Muita gente ficou perturbada. Houve até quem chegasse a cometer suicídio.

— Saiba que o futuro traria muitas mortes mais e maior sofrimento sem os meus alertas — ela retrucou, com certa severidade despontando em sua voz.

— Você não pode fazer nada para evitar esse Apocalipse? — Feldman se recusou a abrir mão de sua linha de questionamento. — Você não pode simplesmente impedir isso? Perdoar o povo e dar-lhes mais uma chance? — Ele a estava bajulando, na esperança de conseguir um pronunciamento mais conciliador, capaz de mitigar as tensões globais. — Não é disso que trata a cristandade?

— Isto não é um desejo meu, nem foi gerado pelo Pai — respondeu ela. — O que deverá acontecer é uma conspiração do homem. Resulta de seu fracasso em escutar a Palavra. A teimosia e a arrogância do homem transformam a verdade de forma tal que o bem se torna o mal e o mal, o bem. Assim como uma infecção do corpo precisa se romper para purgar o veneno, também a ferida purulenta precisa ser lancetada para que possa ser limpa e curada.

Esta símile não caiu bem para Feldman antes do café da manhã. No afã do momento e com consideráveis reservas, ele resolveu que era hora de investir num tópico precário: a mesma questão que quase encetara no vôo de vinda, mas preferira não arriscar antes da convocação. Entretanto, diante das tumultuadas condições globais vigentes, ele achou que a cartada valeria a pena.

— Jeza — perguntou ele, escrupulosamente — quais são as lembranças mais remotas que você tem de si mesma?

Ela se mostrou pensativa.

— Minha lembrança mais remota é o meu primeiro momento de consciência, na noite da luz branca e do tremor da terra, quando o Pai deu alento à minha alma e me entregou Sua mensagem.

— Você sabe alguma coisa acerca dos seus pais? — indagou Feldman. — De onde você veio?

— Venho de Deus e do homem — disse ela.

— Você se recorda de uma explosão, Jeza, ou talvez de um grande incêndio antes da noite da luz branca e do tremor da terra?

— Não — disse ela, olhando distraidamente pela janela.

Feldman não conseguiu perceber nada nela. Não havia emoção alguma em suas respostas.

— Você se recorda de ter sido encontrada ferida num deserto por um casal de beduínos?

— Não.

Feldman parou, refletiu e resolveu tentar outra abordagem.

— Jeza, você parece ter um grande conhecimento sobre coisas com as quais nunca entrou em contato. Você tem alguma idéia de como obteve esse conhecimento?

Ela se voltou de forma a encará-lo de frente.

— Tudo que sei vem do Pai — respondeu.

Feldman ponderou cuidadosamente acerca do próximo movimento. Sua intenção calculada era confrontar Jeza com a realidade de suas origens e ele tinha a noção perfeita dos riscos inerentes ao lance que empreenderia. Independente do dissabor da discussão, aquilo era uma função sua. Como jornalista, ele tinha de buscar a verdade.

Ele olhou para o rosto angélico e infantil, embora sábio, enquanto ela o fitava atentamente. Surgiu uma ruga de apreensão no semblante de Jeza, como se ela estivesse prevendo o próximo passo dele.

Feldman abriu a boca e, subitamente, hesitou. Por uma razão qualquer, simplesmente não conseguiu contar—lhe quem ela realmente era. Arfando, ele piscou e se virou para o outro lado, decepcionado com a súbita covardia. Vasculhou a própria mente em busca de alguma explicação, sem êxito. Talvez tivesse se lembrado, de pronto, como o seu próprio mundo pessoal fora semelhantemente destruído. Mudou de assunto abruptamente.

— Jeza, como é que os seus olhos têm tamanho efeito sobre as pessoas? Basta fitá-las que você as deixa tontas e desorientadas!

— Deus olha para as pessoas através dos meus olhos — explicou ela, simplesmente. — E eu vejo dentro de suas almas. Conheço seus corações.

Por pura demonstração, ela focou os olhos intensamente em Feldman, e mais uma vez ele teve aquela conhecida sensação desconcertante de total invasão, confusão e vulnerabilidade. Sua alma se desnudou diante dela. Suas faces se ruborizaram de vergonha.

Os olhos dela foram se arregalando devagar e depois se estreitando com seu presumível discernimento. Entristecida, ela murmurou:

— Eis o filho que gerou os pais!

Seu rosto foi se abrandando, enquanto ela olhava através dele. Jeza pegou as mãos de Feldman nas suas.

— Saiba que os pais são responsáveis pelo filho e não o filho pelos pais. Para que você tenha capacidade para o amor maduro, seu coração deve primeiro ser esvaziado de fardos imaturos.

Uma campainha soou na cabine e a voz de um membro da tripulação deu o aviso de decolagem em vinte minutos. Interrompida, a Messias abandonou o olhar pensativo e as mãos do atônito companheiro.

Bastante abalado, Feldman logo pediu licença e voltou, inseguro, para a cabine. Assim que entrou, fechou a porta e se recostou nela, com a respiração ofegante.

Simplesmente não conseguia formar uma opinião acerca dessa estranha mulher. Havia uma grande afeição, um sentimento de enorme humanidade que dela emanava, atraindo-o irresistivelmente para ela. Contudo, esse poder messiânico que ela irradiava, essa magia que lançava sobre as pessoas, isso o perturbava profundamente. Feldman não conseguia compreender ou resignar-se com a contraditória atração e ansiedade que suas extraordinárias habilidades exerciam sobre ele.

 

                            Palácio do Sanctum Officium, Vaticano, Roma, Itália

                             11:51, terça-feira, 7 de março de 2000

A Congregação da Doutrina da Fé, presidida pelo próprio Papa, passara a manhã toda em alvoroço. Embora acaloradas discussões tivessem fugido freqüentemente do tópico principal - a proposta da visita de Jeza -, sobre este assunto, especificamente, a Congregação parecia irreconciliavelmente dividida.

Um idoso e culto cardeal da Letônia argumentou passionalmente:

— Um encontro com essa mística fanática é impensável! Impossível! Torna-se um confronto de supremacia, jogando o Santo Padre contra essa charlatona adventícia numa disputa de opinião pública sobre quem tem a maior autoridade divina. É degradante!

Um resoluto cardeal franciscano se levantou para apresentar sua concordância.

— Considerem as implicações: a simples permissão para que uma mulher venha até aqui já serve para legitimá-la. Não devemos santificar sua disseminação do medo, tampouco devemos reduzir a sagrada basílica de São Pedro ao nível de um tabernáculo mórmon.

Outro cardeal, um jesuíta da Malásia, visou toda a assembléia com um gesto de seus braços.

— Essa Messias, desorientada e auto-proclamada, é anátema à Sacrossanta Igreja e a todas as religiões organizadas. Vejam só a calamidade que nos trouxe! Pelo mundo afora, nossas dioceses estão aos frangalhos. Nosso apoio e contribuições se evaporam. Nossas congregações nos abandonam. Eu imploro, Santo Padre — um tom de urgência tomou sua voz — não se sujeite a tal humilhação.

— É precisamente devido ao desastre que nos espreita que o Santo Padre deve conceder uma audiência a essa tal de Jeza — afirmou um jovem cardeal da diocese de Roma. — Assim como nós estamos divididos aqui em nossa própria Cúria acerca desta questão, também o estão as ovelhas perdidas de nossas congregações. É a nossa oportunidade de assumir um papel mais assertivo. Devemos ser vistos como os inabaláveis porta-estandartes em torno dos quais os fiéis podem se reunir.

Outro cardeal jovem se levantou para apoiar.

— Concordo de pleno coração! Não posso acatar algumas das recomendações que ouvi aqui hoje. Não consigo aceitar que o nosso melhor curso de ação seja simplesmente esperar, na confiança de que o passar do tempo seja, por si só, suficiente para expor essa falsa profecia. Não aprendemos, a partir de experiências passadas, o poder de atração que o Apocalipse tem sobre as pessoas? Os Adventistas do Sétimo Dia são um exemplo perfeito. Sua própria existência se baseia num iminente Segundo Advento. E, contudo, a cada passagem da data por eles proclamada, seus patronos engendram um raciocínio qualquer e determinam outra. Não podemos permitir que essa emergência vigente continue sem ser interrompida. Sumo Pontífice, é preciso parar essa mulher. Pessoalmente e à força! De frente, com a razão e a coragem de nossa fé!

Durante toda essa discussão, o cardeal Antonio Di Concerci permanecera sentado, a tudo observando, calado. Ele juntou as pontas de seus dedos e aguardou que o Papa se satisfizesse com as opiniões ventiladas por todos.

Finalmente, Nicolau virou-se para o prefeito.

— Antonio, você não gostaria de expressar sua opinião para os nossos colegas? Ainda não deu sua contribuição.

Nicolau bem sabia a visão de Di Concerci acerca da questão, por conta das prolongadas conversas do dia anterior. Essa mesa-redonda fora simplesmente a esperança baldada do pontífice em atingir um consenso.

— Pois não, Santo Padre. Com a sua permissão, falarei também em nome do cardeal Santorini, que compareceu à convocação comigo. — E Santorini, com um gesto da cabeça, assentiu.

Di Concerci se levantou e estendeu os braços para a assembléia.

— Não creio que alguém aqui precise ser relembrado da seriedade da situação presente — disse ele, em tom relaxado e razoável. — Em suma, os severos pronunciamentos dessa auto-proclamada Filha de Deus criaram considerável antagonismo e animosidade para todas as religiões organizadas, não somente a Igreja. Não obstante, enquanto todas as religiões devem enfrentar essa ameaça comum, Nicolau, com linhagem direta até Cristo e a consagrada autoridade para administrar o Seu desejo sobre a Terra, é a única entidade religiosa com o mandato para sanar o problema.

A princípio, eu também achei um erro a proposta desse encontro. Entretanto, é minha fervorosa convicção agora que este desafio representa um teste de Deus. E uma oportunidade predestinada! Se conseguirmos superar este desafio... se obtivermos êxito num confronto com essa falsa profetisa, se pudermos liberar a humanidade da irracionalidade e do dissoluto emocionalismo desse destrutivo movimento milenarista, se pudermos restaurar a ordem e a paz espiritual para um mundo assolado pelo pânico e pela confusão... se pudermos conseguir todas essas coisas, teremos ao nosso alcance uma meta que a Igreja tão incessantemente buscou durante dois mil anos: a habilidade de tornar a reunir não somente as fés cristãs, como também a de converter todos os povos. Trazer todas as religiões sob os auspícios da única e verdadeira Igreja! Meus caros colegas cardeais, é nosso sagrado dever, como defensores da fé, confrontar isso, a maior de todas as cismas. Sua Santidade deve se reunir com essa mulher, Jeza. Aqui, no Vaticano! Diante de Deus e dos olhos do mundo! E juntos, com nossas preces e a grande bênção de Deus, a Sacrossanta Igreja encontrará um meio de resolver a apostasia que tanta angústia trouxe a este planeta.

Houve um momento de imobilidade no auditório do palácio. E, em seguida, das mãos do Papa, teve início um aplauso solitário. Ao que logo se somou o do jovem cardeal franciscano. E depois o do monsenhor da Letônia.

Outro cardeal se pôs de pé, e mais outro, e o aplauso se transformou numa aclamação, enquanto todos no salão, inclusive Nicolau, se levantavam para endossar o inspirado objetivo.

 

                                 Subdivisão de Brookforest, Racine, Wisconsin

                                 7:50, quarta-feira, 8 de março de 2000

Michelle Martin tirou uma batelada de panquecas do forno e levou-as rapidamente para a mesa da cozinha, supondo que um apetitoso desjejum poderia aplacar o mau humor do marido e do filho.

— Não me importa o que todos os seus amigos estão fazendo —­ grunhiu Tom Senior. — Não vou deixar que você se envolva em culto algum.

— Não é um culto, pai — protestou o filho. — São os Guardiões de Deus. Sabe, a organização que está tentando impedir que os fanáticos de Jeza tomem conta do mundo. Até o Papa está nos apoiando!

— Com ou sem o Papa, você não vai se misturar a esses bobocas religiosos. Eles só querem se meter em encrenca. Fique fora disso, filho, fique com os seus livros, que é onde você deve estar. Com o problema do banco e eu sem emprego, sinto muito, mas você vai ter que arranjar uma bolsa de estudos, como a Shelley, se quiser ir para a universidade no semestre que vem.

— E como foi que você deixou Shelley entrar para os Guardiões Messiânicos de Deus? — reclamou o filho, obstinadamente. — Foi por causa deles que o banco se deu mal... aqueles idiotas proclamando o fim do mundo por aí, enchendo todo mundo de medo!

Michelle Martin colocou mais uma panqueca fresca sobre a pilha intocada diante do filho.

— Quando você for para a faculdade, Tommy, poderá tomar mais decisões por conta própria. Mas o seu pai está certo, esses Guardiões de Deus também me dão medo. Eles são hediondos! Fique longe deles.

Aparentemente o pai não considerou aquilo um contra-argumento satisfatório.

— Eu também não gosto de ver Shelley envolvida com essa porcaria de culto, Michelle. — Seu rosto largo foi ficando vermelho e seus olhos azuis brilhavam qual luzes de advertência por trás dos óculos. — Eu nunca deveria ter deixado que vocês duas fossem para Salt Lake City. Foi isso que virou a cabeça de Shelley. E eu sei que você a anda encorajando a freqüentar essas reuniões dos Guardiões Messiânicos na faculdade. Quero que isso acabe já, agora, está ouvindo? — Dito isto, ele bateu com o enorme punho cerrado sobre a mesa, entornando o leite de Tom, que derramou no colo do rapaz.

Michelle Martin ficou assustada com a veemência nada peculiar do marido. Atormentada, ressabiada e tentando esboçar um sorriso conciliador ao mesmo tempo, ela se inclinou e pousou a mão sobre o ombro dele.

— Querido, se ao menos você estivesse lá no aeroporto conosco! Só de vê-la assim em pessoa já foi uma... experiência religiosa.

A raiva dele não abrandou.

— Passar a noite inteira ao volante, dirigindo centenas de quilômetros, ficar o dia inteiro ao ar livre sentindo frio... só para dar uma olhadela de cinco segundos na moça! E depois você age como se tivesse visto Deus ou algo que o valha!

— Mas foi como se eu tivesse visto Deus! — exclamou a sra. Martin. — ­Quando Jeza passou por nós diante da cerca, quando ela se virou e olhou bem para nós...! Talvez tenha sido só por um segundo, mas quando eu olhei nos olhos dela, vou lhe dizer uma coisa, Tom, não foi igual a nada que eu já tenha vivido antes.

— Eu jamais deveria ter deixado qualquer de vocês ir até lá. — O pai estava desanimado. — Essa tal de Jeza está virando todo mundo pelo avesso. Já me custou o emprego, e agora está me custando a família.

Pondo-se a limpar o leite derramado, ansiosa por remediar a situação, a sra. Martin mudou subitamente de assunto.

— Você votou nas primárias ontem, querido?

O marido lançou-lhe um olhar arregalado de incredulidade, exagerado ainda mais pela espessura de seus óculos.

— Votar? Votar? Quem se importa com isso?

Aproveitando a brecha para escapar, o rapaz subiu para o seu quarto, a fim de trocar as roupas molhadas. Parando diante do espelho para verificar se ninguém o estava seguindo, ele tirou a camisa e admirou uma tatuagem discreta, que há pouco mandara fazer sobre o coração. Eram dois ossos dispostos em T, ladeados por uma espada e um machado com os seguintes dizeres em latim: Custodes Dei.

 

                           Condomínio Na-Juli, Cairo, Egito

                           7:00, quinta-feira, 9 de março de 2000

Feldman, tendo um sonho desagradável, foi despertado por uma coceira no nariz e uma leve risadinha melodiosa. Em meio a uma cascata de luz matinal, que se despejava por cima dele, estava Anke. Deitada em diagonal sobre a cama, ela brincava de roçar a longa cabeleira negra sobre o rosto de Feldman, rindo maliciosamente.

— Seja bem-vindo de volta à Terra, seu sonhador! — gracejou ela, soltando outra risadinha.

Feldman não se conteve de alegria.

— Anke! De onde você saiu?

— Já faz tanto tempo desde que vi você pela última vez — disse ela — que eu achei que seria bom fazer gazeta por um dia!

— Eu sinto muito — respondeu ele, esfregando os olhos, reconhecendo que não falava com ela desde a partida para a convocação.

— Vou perdoá-lo — respondeu ela, complacentemente — se você me contar tudinho sobre a visita à Casa Branca.

Feldman riu e abraçou-a. Sem que ele se desse conta, as tensões e pressões da semana anterior haviam deixado suas marcas. Como sempre, seus momentos com Anke eram capazes de restaurá-lo de uma maneira que nada mais conseguia. Os dois passaram o resto da manhã juntos, até que um telefonema o trouxe forçosamente de volta à realidade. Ele tinha de deixá-la mais uma vez e voltar aos escritórios, para enfrentar o que se mostraria como mais um dia excessivamente longo.

A RMN, ele foi informado, não tivera a mesma facilidade para negociar com os católicos quanto com os mórmons. O Vaticano se posicionava como um participante relutante na reunião proposta entre Jeza e o Papa e estava exercendo controle total e estrito sobre todos os preparativos. A reunião não seria uma operação de cobertura fechada. Por insistência da Igreja, o evento seria aberto a toda mídia. Mas a RMN ainda tinha esperanças de uma presença proeminente.

A data de domingo, 19 de março, ao meio-dia no Vaticano, ficara acertada. Exatamente como Jeza assegurara a Feldman que seria quando ele a deixara no local clandestino do deserto na noite da segunda-feira anterior! Mas o Vaticano insistira que a profetisa chegasse uma hora antes, a fim de passar por uma programação de praxe; insistira também que a RMN tomasse as providências para que o agora mundialmente famoso cardeal Alphonse Litti viesse com Jeza e a acompanhasse ao palácio Papal.

 

                     Palácio Papal, Vaticano, Roma, Itália

                     14:09, segunda-feira, 13 de março de 2000

Assim que o Papa adentrou o recinto, os cardeais Antonio Di Concerci e Silvio Santorini se puseram de pé diante de uma mesa coberta por pilhas de cadernos, documentos e outros materiais de referência. Estavam na espaçosa biblioteca particular do Papa, lugar de decoração impressionante, onde ele costumava se reunir informalmente com seus assessores e convidados. Para a importante apresentação de hoje, a mesa e diversos quadros dispostos sobre grandes cavaletes haviam sido trazidos e colocados diante do trono elevado onde o pontífice recebia.

As enormes portas duplas da biblioteca foram fechadas após a sua passagem, enquanto Nicolau indicava aos dois cardeais os seus assentos e rapidamente subia os degraus de acesso ao seu. O Papa estava ansioso quanto a reunião de hoje. Ansioso em geral quanto à sua iminente audiência com a profetisa Jeza! Ele tivera mais sonhos perturbadores e fizera novas considerações.

Di Concerci, como que percebendo a incerteza de seu pontífice, passou imediatamente à sua introdução.

— Santidade, tenho o prazer de informar que concluímos nossas investigações e as informações que descobrimos superam em muito as nossas expectativas. Conforme verá em breve, nós agora temos tudo que é necessário para implementar um plano de êxito.

O Papa sinalizou sua aprovação, contendo o entusiasmo. Di Concerci fez um gesto indicando a Santorini que começasse. Este se levantou, caminhou até o primeiro cavalete e revelou uma fotografia colorida ampliada.

— Esta é a família Leveque, pontífice — explicou Di Concerci. — Jozef Leveque, sua mulher, Anne, e sua filha, Marie. Esta fotografia foi tirada há mais ou menos dez anos, quando a moça que aqui aparece tinha vinte e poucos anos de idade.

O Papa se levantou e desceu alguns degraus para ver mais de perto. Colocou os óculos e examinou atentamente a foto.

Di Concerci continuou.

— Pouco depois de tirada esta fotografia, a filha, Marie, se envolveu em um desafortunado incidente, no qual se tornou a inocente vítima de um bombardeio terrorista em Jerusalém. Ficou gravemente ferida e, embora tenha sobrevivido, entrou em coma e assim permanece até o dia de hoje.

O Papa franziu o cenho enquanto examinava a imagem da jovem sorridente.

— Horrível! — lamentou. — Será que nunca haverá paz na Terra Santa? Mas não estou conseguindo ver a associação com a reunião de hoje.

Quando Nicolau parou de examinar a imagem da jovem resplandecente, o cardeal Di Concerci tornou a apontar para o rosto dela, redirecionando a atenção do Papa.

— Papa, olhe outra vez para a fotografia. Não percebe algo familiar na moça?

Nicolau voltou a olhar para a fotografia, inclinou-se para a frente e forçou a vista mais atentamente, a fim de enxergá-la melhor. Seus olhos subitamente se arregalaram, e ele exclamou:

— É irmã de Jeza? Vejo que há alguma semelhança.

O prefeito sorriu.

— Clone talvez seja a explicação mais correta. Esta é a mulher cujos óvulos foram utilizados para criar um dublê genético que o mundo conhece como Jeza, conforme foi apresentado no programa televisivo acerca das origens de Jeza!

— Impressionante! — sussurrou o Papa, maravilhado, fitando intensamente aquele rosto. — Mas eu estou confuso. Embora esta mulher lembre a profetisa, as semelhanças não são tão pronunciadas! Elas se assemelham, sim, mas não são idênticas.

— Isto se deve, conforme nosso entendimento, aos processos gestacionais a que Jeza foi submetida — explicou Di Concerci.

O Papa gesticulou de forma a mostrar que compreendera e voltou pensativamente ao seu trono.

— Temos tudo que precisamos para expor a verdade, Santidade —­ assegurou Di Concerci. — Um contato secreto na Força de Defesa de Israel nos ajudou, fornecendo toda a documentação. E também ficamos sabendo, através da RMN, que o cardeal Litti aceitou nosso convite para conduzir Jeza à nossa cerimônia de boas-vindas.

— Excelente! — Nicolau agora se sentia consideravelmente melhor com relação aos desdobramentos. — Descreva-me todo o plano conforme o concebeu, Antonio.

— Certamente, Santidade. — Di Concerci retomou seu assento à mesa e juntou suas anotações todas diante de si, embora nem as consultasse. E começou:

— O cardeal Litti, Jon Feldman e essa mulher, Jeza, chegarão ao heliporto do Vaticano aproximadamente às onze horas de domingo, 19 de março. Serão acompanhados a pé pelo cardeal Santorini, com um pequeno contingente da Guarda Suíça e dos cavaleiros da corte Papal. Atravessarão os jardins, entrarão na capela Sistina, visitarão diversas galerias e depois seguirão pela praça até a frente da basílica. Entrarão em seguida, mais ou menos às onze e quarenta e cinco, onde aguardarão a sua chegada. Tudo isso será totalmente coberto por várias redes de televisão.

Durante o passeio, o objetivo do cardeal Santorini será exibir à mulher algumas das refinadas belezas e grandiosidades do Vaticano e imbuí-la da noção do significado histórico e religioso representado na cultura da Igreja. Queremos que ela aprecie totalmente a inspiração das grandes obras de arte encomendadas pela Igreja, ao longo dos séculos, para honra e glória a Deus. Quando Jeza, Jon Feldman e Alphonse, acompanhados pelo cardeal Santorini, atravessarem as portas frontais da basílica de São Pedro, o coro Juliano se apresentará e a catedral estará repleta com todos os membros da corte Papal e representantes de todas as ordens religiosas oficiais.

Jeza deverá ser afetada pela pompa e majestade da sagrada catedral. Por mais obstinada que seja, certamente seu coração não pode estar tão endurecido que tamanha apresentação de beleza e esplendor não venha a impressioná-la. Uma vez no tabernáculo, ela poderá meditar sobre as sagradas relíquias de São Pedro e São Paulo, momento em que Sua Santidade chegará. Seguiremos os procedimentos de praxe para uma cerimoniosa audiência oficial. O cardeal Santorini será anunciado à Sua Santidade primeiro. Ele subirá os degraus, Sua Santidade estenderá a mão, e ele se ajoelhará e beijará o anel de São Pedro.

Em seguida, Alphonse será anunciado, Sua Santidade lhe estenderá o anel e ele, sem dúvida, também se ajoelhará para beijar o anel. E, finalmente, Jeza será anunciada. Sua Santidade estenderá a mão mais uma vez e, se Deus quiser, ela procederá de acordo, ajoelhando-se e beijando também o anel.

Agora, deixe-me preveni-lo, Santidade. — O prefeito ergueu a mão em sinal de restrição. — Quando olhar para ela, o Santo Padre perceberá que seus olhos são bastante perturbadores. São de uma cor muitíssimo incomum... de azul vívido, azul-arroxeado... e podem exercer um efeito vertiginoso sobre quem os fita, a princípio. Eu sugiro que Sua Santidade permaneça sentado e se prepare para um momento de desconforto. Mas logo passará. O significado da participação de Jeza ao beijar o anel, claro, será o de demonstrar para o mundo inteiro a supremacia do trono Papal e a reconhecida subordinação de Jeza à Sua Santidade como autoridade espiritual dominante.

— E se ela se recusar? — indagou Nicolau.

— Isso não nos desviará de nossos propósitos — assegurou Di Concerci. — Caso em algum momento ela se mostre difícil ou confrontadora, nós simplesmente passaremos à fase seguinte de nosso plano. Nosso objetivo será o de conquistar uma retração de Jeza quanto à sua posição sobre o desmantelamento da religião organizada, pelo menos com relação à Sacrossanta Igreja. Sendo improvável que conquistemos isso — Di Concerci parou para pegar um item de cima da mesa — então daremos prosseguimento, com o mundo inteiro por testemunha, confrontando-a com isto!

O Papa se inclinou para a frente em seu trono, muito interessado. Exibindo um forte brilho de confiança em seus olhos, o cardeal Antonio Di Concerci levantou um grande livro marrom.

— Santidade, este é o diário pessoal, inalterado, do sr. Jozef Leveque, o homem responsável pela gênese de Jeza. — Ele parou para deixar sua revelação fazer efeito. — Neste diário consta toda a história por trás dessa estranha Jeza e seus misteriosos poderes. Uma história trágica e, em vários aspectos, muito tocante. Uma história de amor e obsessão exaustivos! De um homem brilhante, desesperado, determinado a reclamar aquilo sobre o que somente Deus tem autoridade; aquilo que Deus lhe tirou: a vida de sua filha única!

Porém, o mais importante — o rosto de Di Concerci estava cintilante de convicção — é que este diário é uma revelação completa de exatamente como essa dita Messias é na realidade. Aqui neste documento, Santidade, estão detalhes inenarráveis e chocantes que a RMN convenientemente omitiu de seu documentário televisivo. Detalhes que certamente convencerão o mundo que Jeza não pode ser uma profetisa, nem uma Messias, nem a Irmã de Jesus. Contrário ao que foi dito na reportagem da RMN, os poderes cognitivos de Jeza não são meramente o resultado de algum processo de construção maciça de memória passiva. A explicação para sua inteligência e habilidades notáveis é inteiramente inorgânica. Artificial e ímpia! Composta de microchips de silício fabricados, implantados cirurgicamente nas profundezas de seus hemisférios cerebrais!

Papa, essa mulher que o mundo aclama como Filha de Deus é, inquestionavelmente, uma impostura diabólica. Todo o fenômeno Jeza é um ardil bem calculado e profano, desenvolvido por agentes da Força de Defesa de Israel para algum propósito ainda indeterminado.

O Papa ficou boquiaberto, atônito. Os dois cardeais não conseguiram conter o seu contentamento.

— O que... o que vocês estão me dizendo? — gaguejou Nicolau.

— Pontífice, o que tenho o prazer de relatar-lhe é que Jeza não está cumprindo uma missão divina passada para ela sobre as ruínas daquele templo na virada do milênio. Pelo contrário, qual um robô previamente programado, ela está cumprindo algum tipo de missão secreta. Todas as provas estão bem aqui — proclamou Di Concerci, batendo com a ponta do dedo indicador sobre a capa do diário mencionado. — Evidências irrefutáveis que deixaremos absolutamente claras para a mídia mundial com ampliações de passagens-chave! Tudo documentado pela mão de Jozef Leveque!

O Papa ficou sem fala. Deixou-se cair para trás em seu trono com uma expressão cerrada de profundo alívio. Depois de um momento de recuperação, ele balançou a cabeça, admirado, e se dirigiu aos dois cardeais que aguardavam sua reação com sorrisos de expectativa.

— Vocês estão me dizendo que o pesadelo acabou? — arfou ele, a magnífica conscientização assomando-lhe. — Este pesadelo horrível finalmente acabou? — A conclusão foi tão súbita e anti-climática que Nicolau não conseguiu absorver prontamente todo o seu significado. Ele inclinou a cabeça para trás, repousando-a sobre o veludo macio do encosto de seu trono, e fechou os olhos.

Os dois cardeais trocaram acenos de cabeça, exultantes e calados.

O Papa se recobrou, esfregou os olhos com um lenço por baixo dos óculos e, em seguida, perguntou:

— Você precisa me contar, meu querido e impressionante Antonio, como teve acesso a essa dádiva divina?

— Com uma pequena intervenção do Todo-Poderoso, Santo Padre — respondeu Di Concerci. — E com um pouco de persuasão da Congregação para a Doutrina da Fé. Acontece que a mulher de Jozef Leveque é católica praticante em Tel Aviv. Depois do pânico em nossas dioceses pelo mundo afora em conseqüência do pronunciamento de Jeza na convocação de Salt Lake City, recebemos uma ligação do nosso padre da paróquia da sra. Leveque. Ele soubera de tudo numa confissão feita por Anne Leveque alguns meses antes.

Nicolau ficou desolado.

— Você quer dizer que o padre traiu a confiança do confessionário?

— Devido às circunstâncias, Santidade — ressaltou Di Concerci — e em sã consciência, ele considerou a defesa da Sacrossanta Igreja uma justificativa válida. Bem como nós, cardeais da Congregação! Afinal, essa é a nossa sagrada glorificação... defender a fé! 

Nicolau assentiu gravemente, não muito satisfeito com tal explicação.

— Por ele — continuou Di Concerci — também ficamos sabendo que a sra. Leveque viera a perder a posse de seu diário para o Ministério da Defesa israelense. Foi então que conseguimos obtê-lo das mãos de um simpatizante dentro do ministério, que soube de nosso interesse e o adquiriu para nós.

— E quem é esse misterioso simpatizante? — interrompeu Nicolau.

— Talvez nem venhamos a saber — respondeu Di Concerci. — Ele não quis se identificar.

— Não compreendo. — O Papa raciocinou sobre o ponto em questão. — Considerando toda a publicidade negativa em torno dessas experiências, por que o Ministério da Defesa israelense permitiria que detalhes tão prejudiciais assim viessem à tona?

Di Concerci limpou a garganta.

— O ministro da Defesa, Tamin, ainda não está ciente de que adquirimos o diário. O indivíduo que nos conseguiu o material não é amigo de Shaul Tamin nem se coaduna com essa falsa profetisa Jeza. Além do mais, considerando o tormento que o ministro da Defesa causou ao mundo com suas experiências infames, nenhum de nós deve se sentir mal, caso o sr. Tamin não sobreviva ao escândalo que se avizinha.

— Ainda assim — reclamou Nicolau, inconformado — não gosto de ver a Sacrossanta Igreja envolvida em tais intrigas políticas... — Ele parou, ponderando as questões. — Não obstante — disse, condescendendo afinal, as ondas de alívio subindo de suas profundezas para purgar sua consciência — devo parabenizar a ambos pela virada miraculosa e abençoada por Deus! — Ele não conseguiu deixar de se deleitar.

Os dois cardeais aceitaram a gratidão do pontífice com largos sorrisos estampados em seus rostos.

— Agora — perguntou o Papa — posso lhe pedir uma última consideração, Tony?

— Qualquer coisa, Santo Padre — concordou o prefeito.

— Supondo que Jeza se recuse a acatar nossos planos e torne-se necessário que a exponhamos, conforme meus receios, eu não gostaria de ver o Papado diretamente envolvido nas acusações. Embora eu vá ficar ao seu lado, apoiando, eu pediria que você conduzisse pessoalmente as denúncias, devido ao seu conhecimento apurado dos detalhes e à sua experiência anterior com essa mulher.

— De bom grado, Santidade — retrucou Di Concerci, com laivos de antecipação nos olhos.

Nicolau recostou-se no trono e arfou, com a alma aliviada.

— Terminou, Tony? — perguntou ele de novo. — Finalmente terminou?

— Terminou, sim, Santidade. — sorriu Di Concerci. — Terminou, sim!

 

                           Sede regional da RMN, Cairo, Egito

                           10:14, quarta-feira, 15 de março de 2000

Feldman bateu o dedo indicador sobre o artigo do Times de Londres e deixou o jornal cair sobre sua mesa, fitando—o pensativamente. O rosto de madre Bernadette, a Irmã dos Sofredores Silenciosos, sorria para ele da fotografia.

Segundo a história, a idosa freirinha ganhara recentemente a loteria do estado da Virgínia, no valor de aproximadamente nove milhões de dólares. O montante total, ela o estava empregando para salvar a precária instituição de caridade para os seus filhos da África. Um "anjo", dizia ela, soprara-lhe ao ouvido os números vencedores.

Antes de poder dedicar maiores pensamentos ao assunto, Feldman foi interrompido por uma batida à porta. Era Cissy, chegando de uma reunião, trazendo consigo um novo visitante e hóspede temporário da RMN. Feldman foi sumariamente apresentado a um sorridente cardeal Alphonse Litti.

O repórter simpatizou de imediato com o afável cardeal, achando-o inteligente, afetuoso e extrovertido, com um bom senso de humor e um coração cativantemente aberto. Durante o encontro, o cardeal se mostrou satisfeito em poder esclarecer para Feldman, Hunter e Cissy os protocolos e procedimentos papais, que Feldman precisaria compreender em seu papel de co-acompanhante. Cissy, muito contrariada, não recebera um convite do Vaticano. Entretanto, o bom cardeal prometeu ver o que poderia fazer por ela, bem como por Hunter, cuja posição ainda não estava definida.

— Vocês hão de compreender, é claro — disse ele, bastante entusiasmado — que o Vaticano é um Estado totalmente independente e soberano, tendo o Papa como monarca supremo e absoluto. É o único Estado do Ocidente onde o governante possui indiscutíveis poderes executivos, judiciários e legislativos, todos ao mesmo tempo. Vez que a audiência de domingo será conduzida como uma recepção formal de Estado — explicou ele — haverá uma cerimônia completa da corte Papal, com procissão pontifícia, insígnias reais e garbo. É uma bela apresentação, realmente impressionante, e estou certo de que vocês vão gostar.

— Acho que é melhor mandar lavar o meu smoking — brincou Feldman.

— Sem dúvida — respondeu Litti, aparentemente sem perceber que Feldman estava brincando. — A cor preta é apropriada.

Fora do alcance da vista do cardeal, Cissy arqueou as sobrancelhas e fez caretas para Feldman. Este, que não possuía um smoking, contraiu o cenho e tomou nota, mentalmente, para mandar fazer um na manhã seguinte.

Litti então se pôs a delinear a programação geral, com duração prevista para três horas, incluindo o encontro de uma hora e meia entre Jeza e o Papa. O cronograma era muito preciso, com um itinerário de cada passo a ser dado pelo grupo visitante desde a chegada até a partida.

Basicamente, parecia que Feldman não tinha papel algum a desempenhar, além do de observador. O que, do seu ponto de vista, embora fosse um papel algo reduzido, não lhe foi uma notícia desagradável. Ele estava emocionado por poder ter uma visão tão íntima desse auspicioso evento. Quando a reunião chegou ao fim, Feldman tomou a liberdade de fazer uma pergunta pessoal ao gregário cardeal.

— Eminência, não consigo deixar de ficar curioso acerca dos seus objetivos ao marcar esse encontro entre Jeza e o Papa. O que espera conseguir?

— Eu conheço Nicolau há mais de quarenta e cinco anos, meu filho — ­contou-lhe o cardeal — desde os meus primeiros dias como jovem seminarista em Roma. Posso lhe garantir, o pontífice é um homem bom e honesto. Ele busca a verdade. E eu acredito piamente que, tão logo seja apresentado a Jeza e ouça essa verdade diretamente da Messias, ele a reconhecerá e aceitará. Eu espero sinceramente que ainda haja tempo para uma reconciliação entre Deus e o homem. É o que se faz necessário aqui. Uma reaproximação entre Deus e Sua Igreja! Com o passar dos séculos, a Sacrossanta Igreja se afastou da verdade. Perdeu o significado total dos ensinamentos de Cristo. Deus está insatisfeito e sua raiva é justa. Porém, como na parábola do Filho Pródigo, estou convencido da misericórdia eterna de Deus e de Sua capacidade de perdoar. Rezo para que Deus aceite Sua Igreja de volta se ao menos Nicolau se arrepender e estiver disposto a aceitar o Novo Mundo de Jeza. Esta é a minha esperança.

 

                                      Periferia do Cairo, Egito

                                     6:30, domingo, 19 de março de 2000

Desta vez, Jeza já estava lá sentada, esperando por Feldman antes de sua chegada. Mais uma vez ela não trazia pertences nem acessórios consigo. Somente a túnica de algodão branco que lhe haviam dado, arrematada em vermelho e púrpura.

                   Na curta viagem até o local onde o helicóptero os aguardava para levá-los ao aeroporto, Feldman, remexendo-se desconfortavelmente dentro de seu smoking, mencionou para Jeza a formalidade da recepção que os esperava no Vaticano. Ele não tivera como informá-la antes deste encontro e, mais uma vez, sugeriu, com muito tato, uma troca de roupas durante o vôo no avião.

                   Jeza agradeceu a Feldman pela consideração, mas declinou da sugestão.

                   O helicóptero decolou e, enquanto sobrevoava o perímetro do aeroporto, Feldman pôde ver, às primeiras luzes da manhã, que as multidões que convergiam para a despedida de Jeza não haviam diminuído em tamanho. Entretanto, havia uma diferença drástica em sua composição.

                   Antes do comparecimento de Jeza à convocação, essas assembléias tinham sido praticamente unânimes no apoio à pequena Messias. Agora, um grupo considerável protestava, rejeitando Jeza, de forma desafiadora, em face da oposição dominante. Foi necessária a presença da polícia do Cairo para evitar que as duas facções abrissem confronto uma contra a outra. A situação não era exclusiva do Cairo. Acontecia pelo mundo inteiro. E algumas das confrontações haviam sido mais do que verbais. A violência estava em alta outra vez.

                   Na pista, afastado dos tumultos, o jato da RMN aguardava. O cardeal Litti, meticulosamente vestido, esperava impaciente nas proximidades, junto de Hunter e Cissy, para quem ele, afinal, conseguira convite especial.

                   A reação do cardeal ao conhecer a profetisa de perto foi impagável. Parecia um calouro em seu primeiro encontro com a rainha da turma dos formandos, falando incessante e esfuziantemente, gaguejando às vezes, adulando-a e bajulando-a como um filhote de cachorro buscando a atenção do dono. Ao embarcarem no avião, ele perguntou furtivamente a Feldman se poderia ficar sentado ao lado da Messias, e o jornalista generosamente concordou.

                   Feldman se divertiu ao ver a demonstração do cardeal e ficou satisfeito de ver que a Messias mostrava a máxima tolerância e até afabilidade, para com seu admirador. Não que a conversa do cardeal Litti fosse enfadonha ou banal. Muito pelo contrário. Ele continuava impressionando Feldman por ser um homem muito culto, envolvente, de grande clareza e muitas percepções. Suas questões filosóficas e religiosas eram intrigantes e provocadoras. O seu entusiasmo desenfreado era o que mais sobrepujava. Conforme Feldman comentou, rindo, com Hunter:

                   — Basta desligar o volume que dá até para jurar que ele tem treze anos de idade!

                   Durante o vôo, Cissy, Hunter e Feldman escutaram, fascinados, a ininterrupta torrente de teológicas bolas de efeito que Litti arremessou para a Messias. Feldman achou particularmente interessante uma discussão que visava ao há muito complicado e problemático relacionamento entre Deus e o homem, que começou quando Litti perguntou a Jeza como o homem seria absolvido do pecado original se, invalidada a religião organizada, não mais houvesse padres para conduzir as cerimônias.

                   Feldman lembrou-se, de sua formação católica, que o pecado original era uma desonra moral que todos herdavam em partilha ao nascer. Derivava da incapacidade de Adão e Eva em obedecer à ordem de Deus para que não comessem o fruto do conhecimento entre o bem e o mal. Ao serem expulsos do jardim do Éden, Adão e Eva, bem como todos os seus descendentes, haviam perdido o acesso ao paraíso, a menos que fossem libertados do pecado original pelo sacramento do batismo, devidamente administrado.

                   Jeza sorriu e balançou a cabeça ao ouvir isso.

                   — Você está enveredando demais na catequese de sua religião —­ ela repreendeu. — O batismo, como muitos dos rituais do Velho e do Novo Testamento, é um símbolo, que visa servir como manifestação física da espiritual. Ele representa a limpeza sagrada que ocorre quando o indivíduo toma a decisão consciente de rejeitar o pecado e aceitar a presença de Deus. O fato deste simbolismo ter assumido tal importância, ilustra plenamente por que o homem deve dissolver sua comunhão da fé. Ao longo dos tempos, as religiões do mundo inteiro vêm interpretando erroneamente a mensagem verdadeira. Elas colocaram ênfase demasiada no ato e na cerimônia, e não na substância.

                   — Mas — prosseguiu Litti com seu raciocínio — como pode o bebê indefeso ser libertado do pecado original? E quanto às crianças que morrem antes que tenham maturidade para compreender e aceitar a presença de Deus? A graça de Deus lhes será para sempre negada? O batismo não é necessário para sua salvação?

                   Jeza tornou a balançar a cabeça.

                   — A falácia está na doutrina do pecado original. Você considera o Pai tão imaturo e injusto a ponto de negar aos inocentes as recompensas do céu pelas ações de seus genitores? A redenção prometida no Velho Testamento é para redimir cada homem das conseqüências de suas próprias transgressões, não das de seus ancestrais. O homem, tendo ascendido do barro, em sua progressão em direção ao divino, precisa da instrução e assistência do Pai ao longo do caminho. Cristo veio mais para mostrar o caminho do que para redimir o homem do pecado.

                   — Você quer dizer — disse Litti, desalentado — que durante todos estes séculos as muitas fés do mundo vêm labutando sob tantos preceitos falsos?

                   — Os preceitos das religiões deste mundo não são todos falsos, de forma alguma — respondeu ela. — Os princípios baseados nos mandamentos e nos ensinamentos gerais de Abraão, Cristo, Maomé e os muitos grandes Messias continuam válidos. Só quando as autocracias da religião tentam complicar esses princípios é que existe erro. A necessidade que as religiões têm de articular o desejo de Deus fundamenta-se, invariavelmente, na sua necessidade de controle. Complicando o caminho, as religiões se tornam indispensáveis para os que buscam a salvação. Os fiéis ficam, assim, irrevogavelmente atados às suas religiões, caindo presos de ditames e dízimos.

                   — Você acha que todas as religiões são um fracasso? — indagou Litti.

                   — A religião que nada pede de seus membros para si, pode se dizer digna — respondeu a profetisa, sem inflexão alguma.

                   Por mais críveis que pudessem ser as idéias teológicas dela, Feldman teve de admitir que essa polêmica profetisa de pouca idade tinha lá seus pensamentos próprios. A animada discussão fez com que o vôo de três horas de duração parecesse encantadoramente mais curto.

 

                   Feldman nunca estivera na Itália antes, muito menos vira o famoso vicariato de Roma. Apesar de ter sido informado de antemão, ele ficou impressionado com o diminuto tamanho do Estado, visto do ar. E frágil, posto que ele agora estava cercado por uma multidão estimada em quatro milhões de pessoas.

                   Porém, a um exame mais minucioso, feito ainda no helicóptero, enquanto descreviam as breves piruetas até tocarem a plataforma de pouso, ele corrigiu a avaliação de fragilidade. O Vaticano era uma verdadeira fortaleza, protegido por altas e espessas muralhas. Feldman pôde ver os entusiasmados rostos das pessoas, que, circundando todo o Vaticano, acenavam e gritavam, apontando para cima. Alguns dos gestos, ele observo, não eram receptivos.

                   Uma vez concluído o pouso, Cissy fez um último ajuste na gravata ­borboleta de Hunter e todos pisaram em terra firme na radiante manhã de Roma. Foram saudados por um comitê formal de recepção, postado na outra extremidade de um comprido tapete dourado que se estendia desde os degraus do helicóptero até a borda da plataforma de pouso. Dele faziam parte doze integrantes da Guarda Suíça paramentados com seus uniformes nas cores amarelo, azul e vermelho, reluzentes capacetes e peitorais metálicos, engomados colarinhos brancos, cada qual portando uma comprida alabarda com ponteira de ferro.

                   Um homem de semblante pálido e sério, trajando batina preta e barrete carmim, foi apresentado por Litti como cardeal Silvio Santorini. Ele era assistido por todo um contingente papal, composto de cavaleiros e ecônomos.

                   Os guardas, apresentando as cores oficiais do Papa: amarelo e branco, deram meia-volta sobre os calcanhares e todo o grupo partiu para o longo passeio em direção à basílica de São Pedro, na extremidade oposta da cidade. Todo o trecho que deveriam percorrer estava isolado por cordões de veludo, além dos quais se encontravam centenas de jornalistas internacionais, câmeras sendo disparadas e vídeos rodando. Apesar da tentação, nenhum dos presentes ousava cruzar a barricada, sob pena de expulsão imediata.

                   Para a ininterrupta frustração e ressentimento da mídia mundial, a RMN continuava desfrutando de uma injusta vantagem. Ela não só estava dando a mesma cobertura ao vivo junto com as outras redes por fora do cordão de isolamento, como também Hunter e Cissy, bem no âmago da ação, tinham permissão para registrar toda a ocasião em videoteipe. O mundo estava prestes a ser agraciado com mais um especial personalizado e com índices máximos de audiência da RMN.

                   Desde o início, Santorini assumiu uma posição proeminente à direita da Messias, com Litti à esquerda dela. Embora Feldman viesse logo atrás, não conseguia distinguir o monólogo em voz baixa de Santorini com Jeza. De vez em quando, captava partes de uma dissertação histórica, conforme apresentada por um professor de boa têmpera. Cada passagem apresentava alguma refinada antiguidade, inestimável escultura ou famoso “objet d'art”, com relatos completos acerca de suas origens.

                   Sempre despontando majestosamente adiante deles, mostrando-se impossivelmente maior a cada passo, estava a altiva basílica de São Pedro. Passando, enfim, sob o enorme prédio dos fundos, Feldman, imbuído de um respeito genuíno, praticamente chegou a sentir "a venerável presença de uma espiritualidade que remonta direto ao alvorecer da cristandade", conforme Silvio Santorini tão habilmente colocou.

                   Entretanto, mal Feldman foi capaz de refletir sobre essa inquietante abstração e ele, Jeza e todo o grupo foram convidados a cruzar a irretocável entrada de uma edificação lateral, deixando para trás a Guarda Suíça, os ecônomos, os cavaleiros e um bando de repórteres frustrados. À medida que seus olhos gradativamente se ajustaram à escuridão do interior, Feldman ficou impressionado por se encontrar diante da celestial presença dos afrescos de Michelangelo, na capela Sistina. Ele observou curiosamente como Jeza se afastou de seus acompanhantes e foi para trás do altar, para olhar, fixa e pensativamente, o afresco do Juízo Final, do qual uma seção havia sido afetada por enorme rachadura, no momento sob cuidadosos reparos.

                   Deste ponto, o grupo foi conduzido para fora, passou por uma série de pátios artisticamente decorados, em seguida voltou para dentro e atravessou diversos corredores, onde eram exibidos requintados quadros, santuários e tapeçarias. Finalmente, saíram para a luz do sol e à vasta magnificência da Praça de São Pedro, onde tornaram a se juntar a eles os jornalistas, a Guarda Suíça e os demais integrantes da corte de cavaleiros que haviam ficado para trás.

                   Medindo aproximadamente o mesmo que meia dúzia de campos de futebol juntos, a imensa praça estava deserta, isolada na altura do gargalo das imponentes colunatas de Bernini por fileiras de policiais especialmente equipados para conter tumultos. Por trás do cordão de isolamento, um amontoado de entusiásticos observadores se espalhava até as distantes margens do rio Tibre.

                   O ponto aonde o grupo de Jeza chegou à praça foi mais ou menos a meio caminho entre as colunatas e a imperial basílica de São Pedro. Enquanto cruzavam o extenso espaço calçado por paralelepípedos, ouviram a explicação de que essa enorme propriedade pública fora antes um espetacular circo romano onde, por esporte, os gladiadores haviam lutado até a morte e onde os primeiros cristãos foram devorados por feras selvagens. Na verdade, exatamente nesse átrio, São Pedro, então um homem de oitenta anos, fora pregado à cruz, de cabeça para baixo, para morrer agonizando ao sol.

                   Aguardava-os na escadaria da catedral mais um contingente de paramentados integrantes da Guarda Suíça dispostos em forma, além de diversos cavaleiros da corte papal ostentando as insígnias reais. À medida que eram chamados, os guardas iam se postar cada qual sobre um degrau, formando fileiras opostas que se estendiam até o interior da basílica. Ainda liderados por Santorini, Jeza e companhia percorreram o túnel humano até o topo, atravessaram enormes portais brancos ornados com portões de ferro batido e adentraram as vastas e sagradas câmaras da maior igreja do mundo. Os guardas armados se deixavam cair ordenadamente ao chão, um a um, à medida que o último membro do grupo terminava de passar por eles.

                   Estava escuro e fresco no interior qual numa caverna. E igualmente sobrenatural. Ao percorrer a ampla nave central, Feldman ficou boquiaberto. Jamais vira tamanho esplendor. As vozes dos meninos do coro Juliano se propagavam pelos vãos das elevadas e prodigamente adornadas arcadas. Se fora a intenção do Papa impressionar seus visitantes, ele certamente o conseguira. Pelo menos no que dizia respeito a Feldman e seus associados da RMN, que estavam visivelmente estupefatos. A percepção da Messias, entretanto, era indeterminável, posto que seu rosto permanecia impassível, sua postura polida e inabalável.

                   Grandes como só, as espaçosas galerias da catedral estavam totalmente preenchidas por representantes de toda ordem religiosa e declinação católicas. Perfeitamente civilizada, em contraste com as alvoroçadas multidões do lado de fora dos portões do Vaticano, esta assembléia mostrava-se, ainda assim, decididamente hostil. Feldman percebeu mais do que umas poucas fisionomias desabonadoras nos rostos taciturnos das freiras e dos clérigos. E agora na retaguarda, destacado dos demais pelos cerra-filas, Feldman foi sentindo crescer uma inquietação a cada passo que o levava ainda mais para o interior da fortaleza eclesiástica.

                   Logo adiante da procissão, elevando-se a uma altura de vinte e sete metros, surgiu o gigantesco dossel de ouro e bronze, apoiado por quatro colossais pilares espiralados. Ele ficava no centro do domo da catedral, a meia altura do pé-direito de cento e vinte metros, encimando a plataforma elevada do altar-mor. Diante deste, havia um trono vazio aguardando a chegada do Papa.

                   Um único cardeal, um homem alto, vestido de branco e escarlate, estava de pé ao lado do trono, as mãos entrelaçadas às costas. Era o formidável Antonio Di Concerci, observando a aproximação do grupo com o olhar frio e inexorável de um experiente general de campo que avalia o inimigo antes da batalha.

                   Ao se aproximar do ponto de encontro, Feldman se surpreendeu ao descobrir ante uma inspeção mais minuciosa, que aquilo que tomara por uma tribuna cercada por um gradil diante do altar era, na verdade, uma passagem escura para uma câmara subterrânea. Ele subitamente a reconheceu como uma seção das catacumbas, o antigo altar que servia de repositório místico para os ossos do primeiro Papa de Roma. Ao olhar para as profundezas sombrias do compartimento, Feldman sentiu o sopro de uma corrente de ar frio.

                   Santorini prosseguiu em torno do gradil, fazendo a procissão parar nos degraus que se dirigiam para a esquerda do altar. Virando-se de frente para seus paroquianos, o cardeal elevou a mão espalmada, como que a evitar quaisquer perguntas, baixou a cabeça e os olhos e, em seguida, juntou as mãos à altura da cintura em oração. O cardeal Litti procedeu igualmente.

                   Feldman percebeu que Jeza também fechara os olhos, a meditar em silêncio. Sem muita alternativa, Feldman e os demais mantiveram suas posições, aguardando pacientemente o que viria a seguir. Algumas fileiras atrás de Feldman, Hunter focalizava o zoom de sua câmera em pontos de interesse dentro da basílica e Cissy se ocupava em ajustar os níveis do som do coro em seu gravador digital portátil.

                   Quando o coro silenciou abruptamente, Feldman tomou isto como um bom sinal da iminência de algo significativo. Em poucos instantes, abriram­-se estrondosamente as grandes portas de bronze de uma sacristia lateral. O coro irrompeu num jubiloso hino, os presentes se levantaram, voltando-se todos em reverência, e os representantes da imprensa se aproximaram dos cordões de isolamento o máximo que lhes permitiram os guardas.

                   O primeiro a surgir pelo vão das portas duplas foi o mestre-de-cerimônias da corte papal, usando uma túnica em branco e preto, ladeado pelos procuradores do colégio eclesiástico e dois integrantes da Guarda Suíça. Logo atrás, veio o capuchinho pregador da Santa Sé, vestido de marrom-escuro.

                   Em seguida, o confessor papal, de preto-azeviche; depois dele, uma série de monsenhores, de púrpura-escuro; um grupo de protonotários apostólicos, de branco; e um capelão portando a mitra papal.

                   Vieram mais seis juízes da rota e outras autoridades legais, trazendo velas; seguidos de dois diáconos, um ocidental, outro oriental; e ainda os abades, bispos, arcebispos e patriarcas, sucedidos por dois clérigos portando aduelas de flores; a seguir passou o Colégio de Cardeais, todos usando brilhantes túnicas carmim; depois deles, o príncipe assistente ao trono pontifical, vestindo preto e usando meias de seda e fichu de renda branca.

                   E finalmente, em uniformes de gala da corte, vieram os ecônomos papais, que portavam sobre os ombros a sedia gestatoria - a liteira real - trazendo Sua Santidade, o vigário de Roma, o ducentésimo sexagésimo nono sucessor de São Pedro, Papa Nicolau VI.

                   O pontífice estava espetacularmente paramentado, numa esvoaçante túnica branca da mais fina seda, com mozeta curta de veludo carmim. Sobre a cabeça, exibia uma tiara papal de três camadas, que fora propriedade de seu antecessor de mesmo nome, Nicolau V. Ela reluzia de ouro polido, incrustada com quase mil rubis, esmeraldas, safiras, diamantes e pérolas.

                   Flutuando acima da tiara, havia um pálio móvel branco, carregado por oito monsignori, enquanto dois ecônomos caminhavam ao lado com flabelli de brancas plumas de avestruz na ponta de varas compridas. Atrás da caravana, seguindo com uma almofada de cetim, vinha o decano da rota, cuja responsabilidade era segurar a pesada tiara papal, quando esta não estivesse em uso. Fechando a retaguarda vinha o mordomo papal e um seleto grupo de outras autoridades papais e, finalmente, os generalíssimos de todas as ordens religiosas nobres.

                   O requintado trem real evoluía devagar em direção ao altar-mor, enquanto o Papa, magnanimamente, concedia bênçãos aos fiéis e os saudava com breves acenos de suas pequenas mãos. Quando a liteira estava bem perto do altar, um mendicante surgiu do nada e colocou ao seu lado uma escadinha portátil acarpetada de dourado. Retirando a incômoda tiara, o Papa a entregou para o decano da rota segurar e, desajeitadamente, deixou a liteira. O coro prosseguiu com seus cânticos gloriosos até que o Papa tivesse subido ao altar e se sentado ao trono.

                   Decorreu um período de três minutos de respeitosos aplausos e clamores antes que o Papa erguesse levemente a mão esquerda do descanso e pedisse silêncio. Breck Hunter, junto com Cissy, deslocou-se impunemente para o lado do altar-mor, a fim de captar a imagem pelo ângulo que os acólitos desfrutam.

                   Assim que a magnífica catedral ficou em silêncio, o mestre-de-cerimônias papal subiu os degraus do altar e fez uma suave reverência a Nicolau.

                   — Santo Padre, podemos pedir suas bênçãos para a nossa assembléia?

                   Ao que o pontífice respondeu com um sinal da cruz feito no ar diante de seu coração e murmurou palavras em latim.

                   — Santo Padre, — continuou o mestre-de-cerimônias — com sua licença, apresento-lhe o cardeal Silvio Santorini, que preside a delegação de hoje.

                   Santorini subiu pela esquerda dos degraus e deixou-se cair sobre um dos joelhos diante do trono, enquanto Nicolau lhe estendia a mão. Santorini beijou o anel de Pedro, levantou-se, desceu pela direita e parou sobre um degrau na posição exatamente inversa à que se encontrava antes.

                   De pé ao lado do Papa, Di Concerci mantinha o rosto implacável. Mas às suas costas, as mãos entrelaçadas se apertavam rigidamente. As emoções do Papa se evidenciavam pelo semblante firmemente contraído.

                   — Apresento-lhe o cardeal Alphonse Litti, acompanhante — anunciou o mestre-de-cerimônias, e o corpulento cardeal subiu energicamente até o trono.

                   Conforme previra Di Concerci, Litti fez a genuflexão e beijou o anel papal.

                   Nicolau deu-lhe uma leve piscadela e Litti se levantou com um amplo sorriso estampado no rosto, descendo em seguida para ir se posicionar ao lado de Santorini. Em meio à comitiva papal, um ecônomo preparava uma poltrona, presumivelmente para Jeza. Aguardava para levá-la ao altar somente depois que a profetisa fosse apresentada.

                   — Sua Santidade — o mestre-de-cerimônias tornou a falar — solicito para sua audiência a senhora Jeza de Israel.

                   Até então, a Messias estava indiferente à cerimônia, com a cabeça voltada para baixo e levemente desviada para o lado, como que preocupada. Di Concerci descruzou as mãos às costas e deixou-as cair devagar ao longo do corpo. O Papa arrastou-se ansiosamente para a borda do trono, o anel pronto em sua mão.

                   Vendo todos esses desdobramentos, Feldman estava curioso para ver como Jeza reagiria a toda essa sobrepujante demonstração de pompa e poder. Não precisou esperar muito.

                   Tendo escolhido o seu momento, a profetisa subiu com lentidão os degraus. O pontífice se inclinou para a frente, em expectativa, estendendo totalmente o braço na direção da mulher que se aproximava. Câmeras de vídeo a tudo filmavam e os flashes das máquinas fotográficas disparavam incessantemente, enquanto a histórica união se fazia iminente.

                   Erguendo os olhos à medida que subia, a Messias os fixou, pela primeira vez, nos do Papa. Havia uma chama azul em seu olhar e ela a instigou com toda a sua força. Apesar do aviso de Di Concerci, Nicolau estava despreparado para o efeito desconcertante. Ficou abalado, pasmo e, por reflexo, recolheu o braço, desviando o rosto, esquivando-se e agitando as mãos espalmadas defensivamente diante dos próprios olhos.

                   Para a multidão de estupefatos observadores, o Papa parecia intimidado, numa reação submissa. Instintivamente, Di Concerci adiantou-se, a fim de assistir ao seu Papa, mas Nicolau já estava se recuperando. O pontífice deu uma espiadela furtiva para a profetisa por entre os dedos quando ela chegou ao topo do altar-mor e parou bem perto do trono. De pé, a poucos palmos de distância do assustado Papa, Jeza olhou-o de cima a baixo, sua cabeça levemente inclinada para o lado, como se o estudasse cuidadosamente.

                   A basílica ficara tão quieta quanto as catacumbas que se desfaziam em pó pela ação do tempo no andar de baixo.

                   — Não venho venerar o anel de Pedro — exclamou ela em voz alta, colocando as mãos desafiadoramente sobre os quadris. — Em nome do Deus vivo, venho reclamá-lo.

                   O Papa ficou absolutamente espantado. Alphonse Litti, ansioso e atormentado, deixara-se cair de joelhos aos pés do altar.

                   Di Concerci, com uma expressão de ultraje, tentou intervir, mas estava óbvio que Jeza não ia ceder lugar. Com os olhos flamejantes de paixão, ela advertiu o prefeito com a palma erguida de uma das mãos e, com a outra, apontou um dedo acusador para o desnorteado Papa.

                   — Sua Igreja rompeu com a fé no Deus Todo-Poderoso — declarou Jeza. — Traiu o pacto sagrado com Pedro. Durante dois milênios, abusou da confiança sagrada de Cristo. Ao longo dos séculos, corrompeu as Sagradas Escrituras para atender aos seus propósitos egoístas no afã de poder e controle. Em sua hipocrisia, conduziu seus seguidores por um caminho, mas viveu secretamente por outro. Em sua inveja e intolerância, emudeceu e destruiu os sagrados homens e mulheres que Deus enviou para iluminá-la. Em sua arrogância, ignorou as mensagens e avisos do Pai. E em sua ganância e busca pelo materialismo mundano, acumulou vastas riquezas à custa dos despossuídos que foi organizada para prezar e cuidar. — Jeza baixou um pouco o braço apontando o dedo acusador para a mão do Papa. — Qual é o valor desse anel de ouro que querem que eu beije?

                   O Papa não foi capaz de responder, conseguindo apenas lhe dirigir um olhar insípido.

                   — E qual é o valor de uma vida? — perguntou ela, mas ele não conseguiu responder. — Se a venda desse anel pudesse alimentar ao menos uma pessoa, salvar ao menos uma vida, tal valor não seria aumentado mil vezes? E se esse anel pudesse alimentar mil pessoas, seu valor não seria aumentado de mil vezes mil? Cristo não disse em Mateus dezenove, versículo vinte e um: “Se queres ser perfeito, vai vender o que tens e dar aos pobres e terás tesouros no céu?” Contudo, vocês, que se proclamam “escolhidos de Deus na Terra” e “a Única, Sagrada e Apostólica Igreja”, adquiriram enormes posses, cercando­-se da mais rica concentração de tesouros no mundo!

                   O pontífice permanecia cristalizado em seu trono, com um olhar de dor e choque profundos em seu rosto, sem ter respostas para o veneno que Jeza vociferava diante do mundo inteiro. Com o Papa incapacitado ou indisposto para conter o ataque, o cardeal Di Concerci, mostrando-se alarmado, deu um passo à frente, para confrontar a profetisa.

                   — A Igreja tem a mera custódia desses tesouros sagrados — ressaltou ele, enraivecidamente, assumindo o comando diante das lentes inquebrantáveis das câmeras. — As maravilhosas obras de arte que você vê ao seu redor são reverenciados símbolos religiosos, que inspiraram devoção e preces nos milhões de fiéis que meditaram sobre elas ao longo dos séculos. A própria criação de cada uma dessas obras-primas foi, por si só, uma expressão de dedicada fé por parte do artista, empreendida em honra e glória de Deus.

                   O aparte em defesa do Papa liberou uma frustração contida nas massas que ocupavam as galerias, e gritos de “Amém!" e "Aleluia!" ressoaram em apoio ao cardeal prefeito.

                   Jeza não se deixou dissuadir.

                   — Os famintos, enfermos e destituídos do mundo obtêm inspiração com suas obras de arte? — perguntou ela. — As inestimáveis relíquias dos gregos, romanos e egípcios no seu Museu Profano, seu Museu dos Profanos, são também ícones de inspiração religiosa? E como se justifica a enorme riqueza das instituições financeiras papais, cujas grandes fortunas estão acumuladas em sigilo profundo? Ou as imensas posses em imóveis que vocês detêm pelo mundo afora? Eu lhes digo, o Pai não valoriza bens, mas sim o bem. Ele não precisa dos seus tributos, nem os quer. O Todo-Poderoso não é inseguro nem vão, para que os atavios do homem mortal possam embelezá-Lo! Acaso Cristo buscou riqueza ou glória? Vocês adquirem esses adornos para enriquecer a si próprios, não a Deus. Como as gigantescas edificações que vocês constroem para o exercício da fé podem ser mais inspiradoras do que as catedrais das florestas e das montanhas, ou os altares dos campos e vales ao ar livre que o Próprio Deus criou para vocês?                    — Olhem — gritou ela, lançando os braços abertos num gesto em direção à vastidão da basílica. — Minha casa é a casa dos fiéis. Entretanto, vocês fizeram dela um templo para si próprios!

                   Di Concerci, cada vez mais furioso e desesperado, contra-atacou:

— Sua casa? — explodiu ele, indignado, fazendo uma pausa para que o seu ponto se firmasse, lançando em seguida um olhar solícito para as câmeras. — Não seriam essas as alegações de um megalomaníaco? Esta moça é uma hipócrita e absolutamente delusória. E tão mal-informada que só consegue se concentrar no superficial, sem conseguir ver o bem maior!

                   Tornando a se virar para Jeza, o prefeito declarou:

                   — Você está equivocada, mulher. Cega aos verdadeiros propósitos e à bondade da Sacrossanta Igreja! Desconhece sua vasta filantropia. Sua insubstituível generosidade que alimenta, veste, cuida, cura e educa e ergue as massas sofredoras do mundo! Suas missões de caridade, seus hospitais, seus orfanatos, suas escolas e organizações beneficentes!

                   Jeza voltou os olhos inabaláveis para o opositor.

— Não é que me falte informação acerca dos virtuosos feitos de sua Igreja — entonou. — É que isso não me toca. Os bons serviços que vocês prestam são apenas uma fração do que Deus lhes incumbiu e uma pitada do que seus vastos recursos lhes permitem. A paciência de Deus se esgota!

                   O cardeal Di Concerci, cuja paciência também se esgotava, acenou com a cabeça para um frenético cardeal Santorini, que se afastou imediatamente do campo da batalha.

                   Afinal, Nicolau VI saiu de sua paralisia.

                   — Senhora! — chamou ele, vacilante, e Jeza, que afastara os olhos do trono, virou-se lentamente para ouvi-lo. — Não compreendo. Devo dizer-lhe que os nossos esforços no serviço ao Senhor têm sido genuínos e fiéis. Por que exclui a Igreja católica sob tal égide? Como poderiam os honrosos esforços de tantas pessoas dedicadas ter desapontado Deus de maneira tão severa conforme você está sugerindo?

                   Feldman teve a impressão de detectar um leve esmorecimento na expressão de Jeza, que até o momento permanecera mortalmente séria.

                   — Se minhas palavras lhe parecem severas — ela retrucou — provavelmente é porque vocês não parecem capazes de compreender quando não o são. — Ela parou e soltou um suspiro. — Não digo que a sua religião seja a mais equivocada de todas. Há muitas mais que conduziram seus seguidores a caminhos de maior perdição. Entretanto, é a Igreja católica o vaso original da cristandade, a primeira Igreja ordenada por Cristo para levar a Sua Palavra. Portanto, é a Igreja católica que deve arcar com a maior responsabilidade pelos descaminhos da cristandade. Por não conseguir acatar as postulações dos mensageiros do Senhor ao longo dos séculos, por não conseguir abster-se de sua arrogância e materialismo, a Igreja católica é responsável por causar as maiores cismas que dividiram a cristandade nas inúmeras seitas fragmentadas que atualmente se espalham pela Terra. Após dois milênios e muitos avisos dos sagrados mensageiros de Deus, sua hora de reparação já passou. O Todo-Poderoso reclama aquilo que lhes deu. Tudo o que lhes resta são os seus beneficentes serviços de assistência às aflições físicas da humanidade. Sua autoridade espiritual não existe mais.

                   Ela ergueu a mão direita e o dedo indicador diante do próprio rosto em admoestação e bradou:

                   — Em nome do Deus Vivo, eu ordeno que entregue aos pobres tudo o que lhes foi dado ao longo dos tempos. Abra mão de sua vasta riqueza e de todas as suas posses. Abandone seu trono, desfaça-se de seus ministros e não apregoe mais a sua falsa catequese. Não insista mais em seus caminhos obstinados. Faço-lhe uma última advertência, obedeça ao desejo de Deus ou enfrente uma retribuição justa e devastadora.

                   O Papa, completamente pálido, se retraiu sobre o trono. Feldman, apesar de pessoalmente incomodado com a cena, ficou maravilhado com a indelével e desafiadora postura da Messias diante da força e contingente avassaladores de seus adversários. Ela estava só, com a possível exceção do cardeal Litti, que parecia estar incapacitado e perdido no momento. Ainda assim, tal qual na convocação, a profetisa assumira todo o controle.

                   Feldman não percebeu, entretanto, que Di Concerci estava prestes a desferir um golpe poderoso. O cardeal Santorini acabara de voltar, acompanhado por um ecônomo que trazia um pacote fino e grande, encoberto sob um pano preto. Santorini trazia oculto nas mãos um enorme livro marrom.

 

                                         Basílica de São Pedro, Vaticano, Roma, Itália

                                         13:17, domingo, 19 de março de 2000

                   O prefeito Antonio Di Concerci ansiara por este momento com um sentimento contido de vingança. Munido de sua evidência condenatória, ele saltou sobre a adversária qual um leão dando um bote sobre um carneiro.

                   — Jeza — bradou ele, assustando toda a platéia. — Sua Santidade recebeu-a aqui como uma convidada e mesmo assim você o cobre de insultos. Presta-lhe uma homenagem e você retribui com acusações. Apesar de tudo, ele permanece sentado, aturando pacientemente suas censuras. Censuras que você se recusa a consubstanciar! Você acusa somente com palavras. Palavras cujas implicações são vazias, falsas e repletas de amargura! Você se diz a única Filha direta de Deus, uma nova Messias com o direito divino de julgar as religiões mais duradouras do mundo. E agora você vem a Roma, diante da mais antiga, mais reverenciada instituição da cristandade, para ousar ameaçar o legado da sucessão de Cristo! Com algumas palavras e um simples gesto de sua mão, você resolve terminar com uma autoridade sagrada, apostólica, que remonta a dois mil anos, diretamente até Cristo!        Durante dois milênios, a Igreja combateu essa opressão e perseguição de muitas formas. E através da graça divina sempre prevalecemos. Hoje também através da graça divina, prevaleceremos mais uma vez.

                   Ele se encaminhou na direção de Jeza, com sua presença monumental acentuada pela pequena estatura dela.

                   — Jeza, já que você nos acusou, somos forçados a condená-la. Mas agiremos de forma diferente; consubstanciaremos nossas acusações com provas completas e irrefutáveis. Inegáveis evidências de que você não é o que diz ser! De que você não é uma Messias, uma profetisa! De que você não é de Deus! Provas que mostram, pelo contrário, que você é uma farsa enganadora, de uma grandeza que o mundo nunca viu antes!

                   Di Concerci com floreios teatrais, desfraldou a mão direita, requisitando com a palma estendida o objeto trazido pelo ecônomo.

                   — Olhe para esta fotografia, Jeza, e diga-me quem são essas pessoas.

                   O ecônomo rapidamente recolheu o pano. Os olhos de Jeza se haviam estreitado intensamente diante desse desafio e ela os foi desviando lentamente do cardeal para a fotografia ampliada que o assistente de Santorini exibia acintosamente. Houve tumulto na galeria, pois grande parte dos presentes não se encontrava em posição boa o suficiente para enxergar a imagem. Feldman emitiu um grunhido audível.

                   — Diga-nos, Jeza, quem são essas pessoas? — tornou a indagar Di Concerci.

                   Jeza não disse nada. Não se mexeu nem mostrou qualquer sinal de mudança em suas emoções, além do cenho franzido por conta de sua concentração inicial.

                   — Talvez seja bom que eu esclareça, Jeza — aguilhoou o cardeal. ­— Conforme o mundo está prestes a ver, existem muito mais coisas acerca da verdade de suas origens do que foram apresentadas naquela reportagem tablóide da televisão. Começarei apresentando você à sua família. Sua verdadeira família! A mulher à esquerda desta fotografia é a sua mãe genética, Anne Leveque. A mulher à direita é a sua mãe biológica e irmã gêmea idêntica, Marie Leveque. E o homem ao centro é o seu criador. A pessoa que inventou você, Jeza, a partir de tubos de ensaio, biologia e incubadoras. Esse é o seu pai verdadeiro. Seu pai genético! O falecido Jozef Leveque, um brilhante bio-­engenheiro a serviço do ministro da Defesa israelense, Shaul Tamin!

                   O rosto de Jeza foi se ensombrecendo gradativamente, seus olhos invasivos se derramando sobre a imagem do homem alto de cabelos brancos na foto.

                   O prefeito continuou, aumentando a vantagem.

                   — Jozef Leveque é o indivíduo responsável por seus afamados dotes mentais. O homem que encheu sua mente com vultosos lastros de informação... supostamente através de algum processo inédito de construção de memória passiva! Entretanto, tal explicação só está parcialmente correta. Conforme sabemos agora, há um segredo muito mais sinistro por trás dessa sua inteligência milagrosa.

                   Di Concerci fez um gesto dramático para Santorini.

                   — Eis a verdade, Jeza — asseverou ele. — Nas próprias palavras de Jozef Leveque, cuidadosamente registradas aqui, no seu diário pessoal, até pouco antes de sua morte, na explosão do laboratório do Neguev.

                   Santorini ergueu obsequiosamente o diário acima da própria cabeça, girando-o devagar. Com a mídia e a platéia estarrecidas, ele escancarou o livro, folheando rapidamente algumas páginas. Hunter, que já se insinuara até o segundo degrau do altar, acionou o zoom de sua câmera e focalizou exclusivamente o diário, enquanto o prefeito continuava com seu indiciamento.

                   — Conforme o que está aqui revelado, as ambições de Shaul Tamin foram muito além do sacrilégio da gestação artificial de seres humanos. — Lenta e metodicamente, Di Concerci começou a caminhar em círculos em torno da perturbada profetisa, estudando-a atentamente, qual um predador saboreia com sagacidade os espasmos de sua presa mortalmente ferida. — Este é o relato de como o seu pai a criou, Jeza. Não à imagem e semelhança de Deus, mas a partir de um projeto em conformidade com padrões e esquemas militares. Através deste diário ficamos conhecendo, afinal, o verdadeiro objetivo das sórdidas experiências de Tamin: um ambicioso plano para desenvolver computadores humanos para aplicações militares. Soldados sobrenaturais! Seres robóticos menos humanos do que máquinas! Blasfematórias experiências das quais você, Jeza, é a única sobrevivente! A realidade é que seu pai não mexeu apenas em sua mente, Jeza. Em franco desafio a Deus, ele tentou alterar a própria estrutura do seu cérebro! Embutindo cirurgicamente nas profundezas dos seus hemisférios cerebrais treze profanos dispositivos fabricados pela mão do homem! Treze microchips de silício através dos quais flui sua inteligência artificial.

                   Santorini, então, abriu o diário numa ilustração em página dupla, feita à mão, de um cérebro humano mostrado em três dimensões. Espalhados por toda a extensão da figura, viam-se treze quadrados, cada um do tamanho de um selo postal.

                   Sacudindo um rígido dedo indicador, Di Concerci fez menção de atrair a atenção de Jeza para o desenho, mas ela continuou fixada na imagem do falecido pai.

                   — São esses malfadados microchips — declarou o prefeito — a fonte das renitentes ilusões que você agora interpreta como uma missão divina qualquer. Contrariamente ao que a sua mente adulterada lhe diz, Jeza, você não recebeu chamado divino algum. E contrariamente ao que os seus seguidores possam crer, a perniciosidade daquele laboratório não lhe foi purgada pela ação de um raio divino na virada do milênio. Infelizmente, esse mal artificialmente implantado em você ainda reside no seu âmago.

                   Feldman sabia muito bem que mais cedo ou mais tarde esse momento de clímax teria de acontecer. Que essa inocente e desavisada moça, a quem ele aprendera a admirar e respeitar, teria de se confrontar com a dura e perturbadora verdade sobre si mesma! Mas ele não poderia ter imaginado um fim mais cruel e devastador para o seu sacerdócio. Aqui, no quartel ­general de seus inimigos, palco central diante do mundo inteiro. Cheio de pesar no coração, ele rezou para que o fim não tardasse.

                   Misericordiosamente, o prefeito parou de direcionar suas ruinosas acusações à aparentemente indefesa Messias. Deixando-a de lado, virou-se então para o júri de câmeras que para ele convergiam.

                   — Povo do mundo inteiro — exortou — é hora de encerrar toda essa balbúrdia, ansiedade e conflito. É hora de aceitar que isso foi um engodo disseminado entre todos vocês. As visões que essa mulher perturbada tem em sua mente, que ela crê divinas, são, na verdade, imagens artificiais implantadas por conta de um propósito sinistro que até seu próprio pai desconhecia. Afinal, que tudo isso acabe agora! Que cessem de uma vez por todas o medo, o tormento e a angústia! Esse plano inglório, sejam quais forem as suas intenções originais, está encerrado. Solapado. Destruído. Exposto. E tudo o que resta de suas cinzas é este pobre e defeituoso espécime de laboratório. Essa experiência malfadada! Esta mulher solitária, iludida, perdida, possuída por grandiosas fantasias messiânicas!

                   Ele interrompeu o ataque para permitir que a platéia absorvesse o impacto de sua revelação condenatória. Passados alguns momentos de reflexão proposital, o cardeal tomou fôlego, voltou-se para sua vítima e então lançou sobre ela um olhar gentil e benevolente de reconciliação.

                   — Não pretendo ser desmesuradamente cruel com você, Jeza, com estas perturbadoras revelações. Somos todos capazes de entender agora que você não é responsável por seus atos. Não obstante, a seriedade da conturbação e da violência mundial causadas por sua mensagem desorientada exigiu um clímax total e final para esta insanidade. — Ele se encaminhou para Jeza e estendeu-lhe ambas as mãos. — Jeza, em nome de Deus, você vai se ajoelhar comigo agora, aqui, juntos na mais sagrada das igrejas de Cristo, para que todos juntos rezemos pelas bênçãos de Deus e pelo encerramento definitivo deste prolongado pesadelo?

                   Jeza ficou calada. Não deu ouvidos ao adversário nem reagiu em resposta às suas divulgações. Afora os seus olhos melindrados, que se mantiveram em constante movimento perscrutando todo o material exibido, ela continuou imóvel.

                   Após um silêncio prolongado, Jeza terminou o exame das provas, lançou para o seu acusador um olhar de desdém, deu um passo para trás, afastando­-se de Di Concerci em direção ao centro do altar, virou-se de frente para o cerne do público ali presente. Fechando bem os olhos, trazendo os punhos cerrados firmemente de encontro ao peito, ela bradou a plenos pulmões, citando as escrituras do apóstolo Mateus 23:27-28; 33-34:

 

                   — Ai de vocês, escribas e fariseus hipócritas, que são semelhantes a sepulcros caiados, vistosos por fora, mas por dentro cheios de ossos dos mortos e de toda sorte de imundície. Assim também vocês por fora parecem justos aos outros, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e iniqüidade.

                   Serpentes, raça de víboras, como escaparão ao castigo do inferno? É por isso que lhes envio profetas e sábios. Mas vocês se recusam a recebê-los; fazem é persegui-los e açoitá-los em seus tabernáculos.

 

                   Ela abriu os olhos, mas sua voz manteve a ira e a intensidade.

                   — Eu lhes digo, não importa a origem da verdade, se ela é implantada artificialmente ou inspirada pelo próprio Deus. Só importa que seja verdade!

 

                   — "Nada há fora do homem que, entrando nele, possa manchá-lo. O que mancha o homem é o que sai do homem. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça!”

 

                   Com estas últimas palavras de Marcos 7:15-16, Jeza voltou-se arrebatadoramente para encarar o Papa, que se mantivera o tempo todo perplexo em seu trono. De braço erguido acima da cabeça e dedo indicador apontado para o céu, ela disse em voz alta:

                   — Assim como o bem pode vir do mal, e o mal do bem, que a verdade seja proclamada agora: Eis que neste dia, a esta hora, neste momento, Deus reclama para sempre desta Igreja Suas chaves para o Reino dos Céus. Seu concílio com Cristo não mais existe. Seus laços com Pedro estão desfeitos. E que a rocha sobre a qual se assenta esta Igreja, fundação da casa de Deus sobre a Terra, que se manteve inviolada durante dois mil anos, seja agora despedaçada!

                   Seu braço erguido baixou como num golpe, até que seu dedo condenador estivesse diretamente apontado para o altar-mor. Juntamente com seu gesto, cortou os ares um estrondo retumbante. Num estrondo tremendo, a enorme pedra de trinta centímetros de espessura no centro do altar se partiu ao meio e desabou, espatifando-se no chão e lançando lascas de mármore que se espalharam, rodopiando e quicando, por todo o lustroso piso da basílica.

                   Instantaneamente, toda a catedral se alvoroçou, mas Jeza não deu tempo para a poeira assentar.

                   — Venham, olhos do mundo — anunciou ela para a mídia espantada. — Venham testemunhar as revelações da verdade de Deus.

                   Jeza desceu os degraus da escadaria do altar a passos largos e rumou para a porta norte da sacristia, deixando para trás um Di Concerci alvoroçado e um Papa desgrenhado na enfumaçada esteira de sua destruição. Nervosos, os integrantes da Guarda Suíça buscaram no pontífice e em Di Concerci alguma orientação. A mídia, no afã da surpresa, seguiu atabalhoadamente no seu encalço.

                   Manter o passo da veloz Messias foi uma impossibilidade para as equipes de cobertura ao vivo, que não podiam se locomover com rapidez com seus volumosos equipamentos e câmeras de vídeo. O mesmo não se deu com as equipes da imprensa, que logo se puseram a segui-la. Feldman, Hunter e Cissy, que eram dos poucos a trazer aparato de vídeo totalmente portátil, viram-se, mesmo assim, perdendo terreno e precisaram de muito esforço para que não fossem passados para a retaguarda.

                   Jon Feldman estava absolutamente transtornado com o que acabara de acontecer. Hunter, ofegando logo atrás dele, com sua câmera e demais equipamentos pendurados desajeitadamente ao ombro, olhou espantado para o amigo.

                   — Puxa — arfou ele — nem dá pra acreditar! Assim que o cardeal acabou o maligno ataque, eu falei para Cissy: "Só um milagre vai salvar a mocinha desta vez!" Caramba!

                   E lá estavam eles, mergulhando de cabeça no encalço dessa incrível mulher outra vez, com toda a força dos eventos revertida de um só baque, voltando a seu favor. Sem saber para onde ela ia, nem a razão da investida, Feldman sentiu seu coração disparar descontroladamente dentro do peito. Não pelo esforço físico, mas pela excitação do momento. Sua mente girava, na frenética tentativa de manter o ritmo de seus pés.

                   Lá no altar enfumaçado, em meio ao turbilhão e à confusão, Di Concerci, com a fisionomia petrificada, pegou o braço estremecido do atormentado Papa, a fim de ajudá-lo a se levantar do trono.

                   — Papa — declarou o prefeito — vou dar ordens para que a Guarda Suíça a contenha.

                   — Não — retrucou o pontífice, com a voz estremecida e os olhos voltados para a direção que Jeza tomara ao sair. — Mande os guardas ficarem quietos. Não sabemos com o que estamos lidando, Antonio, e eu não quero me antagonizar ainda mais com essa mulher. Se ela for de fato a mensageira de Deus, que revele suas verdades, sejam quais forem. E que ela nos deixe com a máxima brevidade!

                            Depois de sair da grande basílica, Jeza virou à direita, passou pela capela Sistina e continuou rumo ao norte, adentrando as criptas, uma área do Vaticano que Feldman ainda estava por conhecer. Logo após a carrancuda estátua de Santo André, ela percorreu aceleradamente os corredores da biblioteca do Vaticano, passou por baixo da Torre dei Venti, a Torre dos Ventos, e prosseguiu através do Museu dos Profanos.

                   Jeza se deslocava pelos veneráveis espaços com uma altivez surpreendente para alguém de estatura tão pequena. Quando ela e a fileira dos que a seguiam foram se aproximando do fim do corredor, sua passagem se viu bloqueada por grandiosas portas duplas de bronze. A entrada contava com dois jovens e robustos vigias da Guarda Suíça, um de cada lado, que, ao avistarem a multidão se acercando, tiveram o reflexo de cruzar suas alabardas à frente do pórtico. Entretanto, depois de rápida verificação feita através de seus rádios intercomunicadores, os guardas, trocando olhares de incredulidade, destrancaram e abriram as portas enormes, voltaram às suas posições de sentido e retomaram a fisionomia impassível de antes.

                   — Oh, meu Deus! — Feldman ouviu uma voz feminina com sotaque italiano dizer em inglês logo atrás dele. — Esta é a Biblioteca Secreta! Ela está nos levando aos arquivos secretos do Vaticano!

 

                                 Arquivos secretos do Vaticano, Vaticano, Roma, Itália

                                 13:41, domingo, 19 de março de 2000

                   Além dessas portas ficava o Corredor de Bramante, o primeiro andar do que é o maior, o menos compreendido e o mais acobertado depositário de conhecimento do mundo. Era a fabulosa Biblioteca Secreta, um mistério papal oculto, cujas origens remontavam aos primeiros séculos d.C., até a própria presença dos quatro evangelistas.

                   Um murmúrio emitido pelos que a seguiam cercou a profetisa quando ela levou as mãos espalmadas de encontro às duas portas enormes e, com apenas um empurrão forte, escancarou-as, jogando-as violentamente contra os batentes. Diante deles descortinou-se a imagem empoeirada de eras há muito passadas. Um ambiente sombrio e taciturno, intercalado por feixes de luz solar que o penetravam em diagonal através das janelas altas dispostas a intervalos regulares. Espalhados por todos os vãos abobadados do teto, diabretes maliciosos e sátiros chifrudos sorriam nos murais desbotados.

                   Adentrando a escuridão bolorenta, Jeza percorreu inúmeras galerias de estantes de madeira esculpida à mão com quatro metros de altura, todas repletas de livros. Empilhados com uma meticulosidade monástica, encontravam-se milhares de cartas, autografias, caligrafias, manuscritos originais, transcrições únicas, documentos e códices de sabedoria inestimável, oculta, esquecida.

                   Um jovem jornalista, em melhor estado que seus colegas, conseguiu ultrapassar a veloz profetisa.

                   — Jeza! — arfou ele. — Onde estamos?

                   — Estamos entre os segredos obscuros das eras — anunciou ela, sem olhar para o inquiridor. Às cegas, ela apontou para uma ala à esquerda. ­— Ali, registrados em hebreu, encontram-se os originais do Evangelho de Mateus e os perdidos Apócrifos de Tomás. — Ela voltou o olhar para uma prateleira bem alta à sua direita. — Aqui, os desaparecidos Evangelhos de Tiago, o Senhorio. — E discorreu uma série de rápidas estocadas aleatórias com os dedos indicadores. — O perdido Livro do diálogo do Salvador; a última cópia do proibido Nekromanteia Echeiridion; o Livro da negação, de Tomás de Aquino; a ordem papal encriptada para a execução da Dama de Orleans; a biblioteca completa do Index Liborum Prohibitorum; o diário dos pogrons jesuítas das Índias Ocidentais...

                   Hunter, Feldman e Cissy mal conseguiam lançar desvanecidos olhares sobre a riqueza de manuscritos em processo de desintegração enquanto se apressavam para acompanhar o passo. Muitos dos volumes encadernados exibiam os brasões afixados pelos respectivos Papas que reinavam na ocasião de suas aquisições, com as datas gravadas em algarismos romanos sobre as lombadas das brochuras desbotadas e rachadas. Hunter parava esporadicamente para catalogar com sua câmera a maior quantidade de tomos proibidos que conseguisse antes de precisar desembestar novamente atrás do grupo.

                   Jeza nem ao menos reduziu o passo para pensar na direção a seguir, prosseguindo sempre adiante, virando para um lado e outro, atravessando arcadas, conduzindo seu séquito cada vez mais para o cerne das entranhas dos arquivos. Em pouco tempo eles chegaram a outro par de portas de bronze, guardadas por um único frade de fisionomia austera, vestido numa túnica marrom, sentado a uma escrivaninha. Conforme o monge se deu conta da estranha turba portadora de indizível autoridade que se avizinhava, seus olhos se arregalaram e ele se pôs ansiosamente de pé, deslocando-se em atitude protetora para diante das portas.

                   Jeza concentrou seu olhar irresistível sobre ele e exigiu com severidade:

                   — Destrave as portas. — O que ele fez, com dedos nervosos a burilar um molho de chaves, sem hesitar.

                   Abrindo as portas, o monge trêmulo deu acesso a um comprido e amplo lance de escada de pedra. O espaçoso repositório que os aguardava lá embaixo passara por reforma relativamente recente, tendo uma aparência mais aberta e contemporânea. Ficava nos subterrâneos da Cortile della Pigna, a extremidade menos acessível dos arquivos.

                   Aqui residia o reservatório mais privado e o mais zelosamente guardado da Santa Igreja Católica Romana. A enorme cripta continha mais de cinqüenta mil metros de arquivos metálicos alinhados; cada gaveta meticulosamente numerada e etiquetada. Dentro delas, cujos trincos estavam individualmente protegidos por um lacre de cera inviolado com o selo papal oficial, encontravam-se treze séculos de detalhados documentos do Vaticano. Listados ano a ano, eles continham todos os registros dos Papas em sucessão, desde os esparsos materiais de 692 d.C. até os dossiês completos do último ano do calendário vigente, ostentando o recentíssimo lacre de cera vermelha datado de 31 de dezembro de 1999.

                   Os arquivos estavam dispostos em compridas e infindáveis fileiras, interrompidas sistematicamente por cubículos onde se alojavam estações de trabalho com a última palavra em equipamentos de processamento de dados. O material e as informações de extrema confidencialidade aqui armazenadas incluíam todos os atos e documentos existentes referentes ao governo da Igreja. Tudo, desde as atas das reuniões particulares do Papa até cópias da correspondência Papal, notas e recados privilegiados, bem como todos os papéis operacionais a serviço do Papa e sua corte.

                   Prosseguindo por uma ante-sala aberta logo na entrada, Jeza se encaminhou para um grande quadro-negro na extremidade oposta. Quando finalmente as equipes de repórteres sobreviventes se agruparam à sua frente, ela ergueu a mão e todos fizeram silêncio, quando então só foram ouvidas as respirações ofegantes.

                   — Para chegar a este lugar — começou ela — vocês caminharam pelos antigos sepulcros da cristandade. Atravessaram as reminiscências de tempos passados, algumas delas dos próprios dias dos doze apóstolos. Aqui jazem os relatos de façanhas magníficas, buscas nobres, aprendizados grandiosos, pensamentos profundos e maravilhas de grande iluminação. As mais elevadas realizações da história, para o crédito de toda a humanidade! Contudo, aqui também jazem enterrados segredos medonhos. Respostas para vergonhosos mistérios obscurecidos pela mortalha do tempo! Registrados entre esses catálogos esquecidos encontram-se feitos profanos cometidos por cristãos em nome de Cristo. As inenarráveis perseguições da Inquisição! As conversões forçadas e a devastação impiedosa dos inocentes povos aborígines! Toda a abrangência das Cruzadas ilegítimas e o morticínio dos infiéis! As perseguições aos excêntricos e anormais! As execuções de profetas e professores, de abençoados homens e mulheres enviados por Deus, silenciados como hereges! A crueldade da superstição, a mesquinhez da inveja, a perfídia da autopreservação! Entretanto, tais histórias estão demasiadamente distantes para causar quaisquer conseqüências agora. Tais ossos, deixemos em paz. Em lugar deles, devo mostrar-lhes relatos mais condizentes de hipocrisia e ganância. Daqueles que, neste exato instante, se mostram a vocês como administradores da vontade de Deus na Terra! Eles lhes disseram que minhas palavras são vazias e não contêm verdade. Disseram que minhas acusações de avareza e libertinagem não têm fundamento. Eis que agora vocês testemunharão, de forma que o desejo do Pai possa ser cumprido!

                   A profetisa se virou para o quadro-negro e rapidamente começou a escrever números e letras. A princípio houve confusão no grupo quanto ao possível significado daquelas linhas de caracteres. Mas logo alguém discerniu que era uma lista de pastas, datas e gavetas de dados específicos contidos neste último arquivo. Dividindo entre si as tarefas, todos logo formaram equipes e começaram a procurar os conteúdos indicados.

                   — Estas gavetas estão lacradas com o selo papal — avisou um repórter, depois de localizar o gabinete que lhe coubera. — Isto não é ilegal?

                   — Estamos numa missão de Deus — retrucou outro. — Vamos romper os lacres. Vamos rompê-los todos, por Deus!

                   Feldman, Hunter e Cissy acudiram às pressas, rompendo lacres dos gabinetes designados, buscando os documentos especificados e registrando em vídeo seus conteúdos, sem se dar tempo de lê-los. Tão preocupado com a espionagem que empreendia, Feldman mal se deu conta de que Jeza concluíra a sua listagem e estava deixando silenciosamente o recinto. Ele cutucou Hunter e Cissy e o trio interrompeu a tarefa para partir ligeiro atrás dela, acompanhados por meia dúzia de outros jornalistas alertas. Deixaram para trás mais uma dúzia, ainda ocupados na absorvente gincana.

                   O monge que mantinha sentinela no alto do porão já não se encontrava mais lá. Quando eles chegaram à saída dos arquivos, dois membros da Guarda Suíça estavam à espera de Jeza e a avistaram com um certo alívio. Escancararam as pesadas portas antes que ela chegasse e deixaram que a Messias e seus seguidores passassem.

 

                                       Aposentos do Papa, Vaticano, Roma, Itália

                                       14:25, domingo, 19 de março de 2000

                   A princípio, não houve resposta para a sua batida barulhenta e ansiosa à porta. Então, o cardeal Di Concerci ouviu uma voz abafada chamá-lo para adentrar os aposentos papais. Ao entrar, o prefeito encontrou Nicolau VI a sós, sentado em sua poltrona preferida, olhando por uma janela que dava para o átrio de São Pedro.

                   A multidão do lado de fora da praça ficara ainda mais alvoroçada no curto período desde que Jeza apresentara seu verberante esconjuro na basílica. As barricadas da polícia resistiam contra a crescente esperança de mais um vislumbre da Messias. Embora nenhum aviso tivesse sido dado ao público acerca do paradeiro de Jeza, uma vez que seu helicóptero ainda não havia decolado, seus simpatizantes podiam presumir que ela ainda devia estar em algum lugar do Vaticano.

                   Na verdade, seu paradeiro era a questão premente por trás da visita de Di Concerci. O prefeito ficou agradecido por ter obtido permissão para entrar, depois de ter sido avisado pela madre auxiliar que o Papa não queria ser perturbado.

                   — Santidade — ensaiou o cardeal uma abertura — lamento por esta minha intrusão, mas há uma questão de uma certa urgência. — Di Concerci estava esperançoso de que um pouco de tempo a sós tivesse permitido que Nicolau se recompusesse, mas logo viu que este não seria o caso. O Papa mantinha a mesma fisionomia melancólica com que havia deixado os pés do altar partido.

                   — Papa — tentou outra vez Di Concerci e Nicolau finalmente virou-se para o assessor, exibindo o semblante conturbado. — Papa, eu sei que não é hora para mais notícias perturbadoras, mas devo alertá-lo de que a Guarda Suíça me informou que Jeza entrou na Biblioteca Secreta e levou consigo toda uma horda de repórteres com suas câmeras de vídeo.

                   Nicolau voltou-se novamente para a sua janela, nada disse, apoiou o cotovelo sobre o parapeito e o queixo sobre a mão em concha.

                   — Santidade, precisamos fazer alguma coisa.

                   — Ela nos transformou em seus escribas e fariseus — Nicolau falou para a janela, ignorando a emergência. — Somos os hipócritas agora. O terreno baldio onde a semente caiu e murchou! Deus nos desertou, Tony. Jeza virou tudo de pernas para o ar.

                   — Não, Papa, Deus não se voltou contra nós, como Sua Santidade há de ver em breve. Mas, por ora, precisamos resolver esta quebra do sigilo dos arquivos. Quem sabe do que é capaz essa mulher? Preciso de sua permissão para mandar a Guarda tirá-la de lá.

                   — Não posso erguer minha mão contra o desejo de Deus, Antonio. Você viu o que aconteceu hoje. Isto só confirma os sonhos conturbados que tive a respeito dela.

                   — Este não é o desejo de Deus, Santo Padre — afirmou Di Concerci, inflexivelmente — e vou provar isto. Mas, por ora, Santidade, não podemos deixar simplesmente que ela tome conta da cidade.

                   — Faça o que achar melhor, Antonio, mas não consigo resolver nada neste exato momento.

                   — Sim, Santidade — disse o prefeito, satisfeito. — E em breve voltarei a me apresentar com informações adicionais que, creio, ajudarão a restaurar suas esperanças.

                   O Papa não deu atenção àquilo, voltando ao espetáculo que assistia pela janela. Di Concerci fez uma reverência e saiu às pressas.

 

                                     Jardins do Vaticano, Vaticano, Roma, Itália

                                     14:29, domingo, 19 de março de 2000

                   Em vez de retomar os mesmos passos pelo centro dos Museus do Vaticano, Jeza cortou caminho por um corredor e foi ao encontro da luz vespertina nos jardins do Vaticano. Ela mantinha seu passo arguto, encaminhando-se para o que Feldman tomou como a direção genérica do heliporto.

                   Logo, à medida que eles foram se aproximando das cercanias do helicóptero, Jeza deu uma guinada e adentrou no panorama sereno da Gruta de Lourdes, perto da Torre de São João. Ali, Feldman deu com o fiel cardeal Litti sentado num banco, em silêncio consigo mesmo, aguardando por sua perdida Messias. Ao avistá-la, Litti arregalou os olhos e foi na direção dela, qual um cachorrinho saudando o dono que chega.

                   Jeza pegou a mão do cardeal e este se deixou cair de joelhos, beijando­ lhe o dorso da mão, com lágrimas nos olhos. A profetisa sorriu para ele e o fez levantar-se. Feldman, Cissy e Hunter se esparramaram sobre o gramado, a fim de recuperar o fôlego.

                   Seu repouso durou pouco. Em questão de minutos, um contingente de dez integrantes da Guarda Suíça chegou em marcha acelerada para confrontá-los.

                   — Senhora — anunciou o capitão da Guarda para Jeza — temos ordens de acompanhá-la até sua aeronave para que deixe o Estado do Vaticano imediatamente.

                   A Messias não protestou, deixando-se escoltar de bom grado.

                   Feldman e companhia não receberam autorização imediata para segui-la. Mantendo-os sob a mira das alabardas, os guardas instaram que todos os representantes da mídia entregassem suas fitas de vídeo, filmes fotográficos, anotações e quaisquer outros registros feitos durante a "intrusão criminosa e desautorizada à Biblioteca Secreta".

                   Apesar da preocupação, Feldman não conteve o sorriso quando Hunter, aproveitando-se da distração causada pelo alarido dos protestos dos demais repórteres, tirou rapidamente uma fita de dentro de sua mochila e, pegando Cissy distraída, puxou o capuz do casaco dela e jogou a fita por dentro de suas roupas. Soltando um guincho de surpresa, Cissy logo reconheceu o ardil do colega e suprimiu o ato reflexo, a fim de salvaguardá-lo. Enquanto ela continha a rejeição ao frio do plástico contra suas costas, Hunter entregou duas fitas virgens para o guarda, que as recebeu com olhar suspeito.

                   Terminando a revista, os guardas liberaram o grupo. Feldman, Hunter e uma Cissy indignada foram se juntar ao cardeal Litti e à Messias na plataforma de pouso ao lado do helicóptero, que já os aguardava com o motor ligado. Enquanto os remanescentes integrantes das equipes de notícias registravam a despedida, Feldman e Hunter ajudaram seus companheiros a subir na aeronave. Primeiro a Messias, depois o fiel cardeal Litti e, finalmente, Cissy, exibindo uma postura notavelmente inflexível ao curvar-se para passar pela porta do compartimento dos passageiros.

                   À medida que o aparelho foi se alçando aos ares, Feldman observou um teor notadamente diferente na multidão que assomava aos muros da cidadela. Embora ainda houvesse bolsões isolados de gente que protestava aos empurrões, a maioria mostrava-se agora bastante simpática à profetisa. O helicóptero foi subindo para o azul do céu de Roma, e os seguidores de Jeza se despediam dela com eufóricas saudações e flâmulas onde se lia "Jeza é Deus", "Domínio de Jeza" e "Leve-me ao êxtase".

 

                                         Céus de Roma, Itália

                                         15:14, domingo, 19 de março de 2000

                   A bordo do helicóptero na viagem de volta ao aeroporto de Roma, Feldman não conseguiu tirar os olhos de cima daquela incrível moça que mais uma vez, com uma só ação, acabara de perturbar o equilíbrio global. Mas Jeza não correspondeu ao seu olhar.

                   A mente de Feldman não parava, ordenando e reorganizando suas perspectivas dos eventos do dia. Não era difícil imaginá-la Filha de Deus. Ela tinha uma presença tão imponente; um controle e uma força internos diferentes de tudo que Feldman jamais vira. E aqueles olhos penetrantes! Eles emprestavam um ar de sabedoria infinita ao seu nobre rosto.

                   E, contudo, ainda havia uma pergunta inquietante a atormentá-lo. Como aqueles dispositivos bizarros e artificiais dentro da cabeça dela contribuíam para tudo isso? Ele simplesmente não conseguia se livrar desse incômodo. Havia algo demasiadamente perturbador e desumano neles para que se encaixassem adequadamente num quadro de divindade!

                   No vôo de volta para o Egito, Feldman não conseguiu descansar. Ficou sentado sozinho no compartimento dos passageiros do jato, pois Jeza deixara o assento logo após a decolagem e se recolhera aos seus aposentos. Antes de sua saída, entretanto, Feldman tentara, em vão, puxar conversa, mas ela se recusara terminantemente, mostrando-se muito cansada e contida.

         A várias fileiras de poltronas de distância, Litti permanecia sentado, lendo em silêncio. Hunter estava deitado, ocupando três assentos, roncando. Mas Cissy não estava com eles. Ficara em Roma, a fim de trabalhar na montagem de uma matéria sobre a expedição aos arquivos secretos. Depois das despedidas no aeroporto, com o videoteipe contrabandeado nas mãos de Cissy, Hunter afagara-lhe as costas e aconselhara-a a manter a fita preciosa em lugar seguro. Desta vez, ela não resistiu à tentação de acertar-lhe um murro no estômago. Mesmo que não admirasse o estilo de Hunter, Feldman tinha de reconhecer sua ardileza. Ele só podia torcer para que outros jornalistas também conseguissem salvaguardar alguns de seus tesouros obtidos nos arquivos.

                   Quando o comandante avisou aos passageiros que retornassem aos seus lugares e apertassem os cintos para a descida até o aeroporto do Cairo, Feldman anteviu outra oportunidade para sentar-se ao lado da Messias. Mas quando Jeza saiu de seus aposentos e tomou um assento à janela perto da cauda da aeronave, Feldman se viu suplantado. O bom cardeal mostrou-se um tenaz pretendente, ocupando o cobiçado lugar primeiro.

                   E então, depois da chegada ao Cairo, Litti continuou agarrado como uma sombra à silenciosa e pensativa mulher, insistindo, inclusive, em acompanhá-la durante sua última viagem de helicóptero para o carro de Feldman. Este até pensou que o possessivo cardeal insistiria em não largar mão de Jeza, indo deixá-la no seu ponto de despedida também. Mas, agradecida, a Messias rompeu o seu prolongado silêncio e determinou que ninguém, além de Jon Feldman, a acompanharia dali por diante. Extremamente relutante em se separar de sua Salvadora, Litti precisou receber dela diversas confirmações de que em breve tomaria a vê-la. Feldman também aplacou a ansiedade do cardeal propiciando-lhe acomodações num hotel do centro da cidade, como convidado da RMN.

                   Já era tarde quando, afinal, no Rover a caminho do local onde deixaria Jeza seguir para o seu recanto no deserto, Feldman finalmente teve a Messias só para si. Meio incerto quanto à melhor maneira de encetar o assunto em sua cabeça, ele guiou o veículo pela estrada de terra durante um bom tempo em silêncio, enquanto incubava os pensamentos.

                   De repente, ao se ver mais próximo ao ponto de destino do que percebera, Feldman diminuiu um pouco a velocidade do automóvel, a fim de recuperar algum tempo. Deu uma olhadela furtiva na pequena passageira. Seu rosto estava voltado para o outro lado, vendo através da janela a lua cheia. Suas mãos de marmórea tez repousavam tranqüilas sobre o colo.

                   — Jeza? — Feldman finalmente rompeu a calmaria. — Jeza, por que você escolheu a mim para conduzi-la nestas viagens?

                   Ela não se virou para ele, nem respondeu.

                   — Por que eu?

                   — Por que conheço seu coração — respondeu ela, após um longo silêncio.

                   — Você também conhece minha mente?

                   Não houve resposta.

                   — Você também sabe que eu tenho incertezas quanto a você? Que tenho dificuldades para aceitar que você seja quem diz ser?

                   Mais uma vez houve uma pausa prolongada.

                   — Isso não importa — resolveu ela, ainda sem virar o rosto na direção dele. — O plano de Deus está lançado e o Seu desejo será.

                   — E quanto ao seu desejo?

                   — Você estar nos planos de Deus não foi um desígnio seu ou meu. Eu o escolhi porque o reconheci.

                   — Você me reconheceu?

                   — Desde o momento em que o vi no monte das Beatitudes.

                   — Você quer dizer que me reconheceu da televisão?

                   — Não. Aquela foi a primeira vez que o vi. E eu reconheci você.

                   — Não estou entendendo — disse ele.

                   A Messias, ainda com o rosto voltado para o outro lado, não respondeu.

                   Feldman desligou o motor e se inclinou para a frente em seu assento, a fim de poder enxergar-lhe o rosto. Ficou espantado ao vê-la chorando. Os olhos arregalados, olhando fixamente na direção do deserto, com uma profunda melancolia estampada em seu cenho e as lágrimas reluzindo sobre suas faces!

                   — Jeza, eu sinto muito! Não quis magoá-la com aquele comentário estúpido sobre não aceitá-la como...

                   Ela cravou seus grandes olhos mais uma vez sobre ele e, sob a parca luz do luar, deu-lhe a impressão absoluta de ser uma criança perdida e solitária. Ou talvez um anjo.

                   — Eu sei — respondeu ela baixinho. — Não quis mesmo.

                   Feldman jamais vivenciara tamanha concentração de emoções complexas como as que se assomaram nele nesse momento: empatia, proteção, desespero, enternecimento, vazio, medo.

                   Amor.

                   Antes que Feldman se desse conta, Jeza já saíra do carro e ele percebeu que estava prestes a perdê-la mais uma vez, pois ela logo desapareceria no mato.

                   — Não, espere! — gritou ele, saindo atabalhoadamente porta afora.

                   Correndo até o lado dela, ele a segurou pelos braços esbeltos e puxou-a para si. Ela afastou o rosto com uma careta de angústia. Resistindo à tremenda tentação de abraçá-la, Feldman apenas secou-lhe as lágrimas com seu lenço, pegou-lhe a mão e caminhou devagar com ela até a trilha sinuosa que subia a montanha.

                   Ela agora parecia muito distante, olhando direta e mecanicamente para a frente, totalmente alheia à confusão do homem ao seu lado. Quanto mais se aproximavam do topo, mais ansioso ele ficava, com os olhos grudados nela, o estômago revirado diante da idéia de sua partida.

                   No cume da colina, ela parou para olhar para ele e seus olhos escuros o atingiram profundamente. E quanto mais ele olhava para aquele rosto instigante, mais atraído ficava.

                   — Quando tomarei a vê-la? — perguntou ele.

                   Surgiram traços de indistinta apreensão no rosto dela.

                   — Durante algum tempo, você não vai me ver — disse ela, devagar — e então, depois de algum tempo, você tornará a me ver.

                   — Mas eu quero estar com você. Eu preciso estar com você. — pressionou-a Feldman, sem gostar da resposta aberta que recebera.

                   A Messias evitou-lhe o olhar, virou-se e afastou-se alguns passos.

                   — Não deve ser assim — disse ela.

                   Feldman ficou desnorteado. Aproximou-se dela pelas costas e pegou­-lhe os ombros.

                   — Por favor, não me diga isso, Jeza. Eu não suportaria nem pensar nisso!

                   Ela voltou o rosto e viu a turbulência no olhar dele.

                   — Jon, há um grande vazio à sua frente. Um grande abismo que você terá de confrontar sozinho. Um salto grande e difícil. — Ela se virou de frente para ele e tomou-lhe as mãos nas suas. — E quando você pousar do outro lado, as coisas não serão mais como eram.

                   Ela apertou-lhe as mãos com força, os olhos rasos d'água outra vez, vasculhando as profundezas da alma dele.

                   — Mas nesse momento, não se esqueça, o Pai tem Seu propósito. E embora não possa modificar o que deve ser, você sempre terá o que já foi um dia. Não se esqueça disso. E lembre-se também de que guardo em meu coração um amor por você que é eterno.

                   Feldman não conseguiu mais controlar suas emoções. Deixou-se simplesmente perder por ela. Por seu pesar. Por sua sinceridade. Por sua espiritualidade.

                   Em devoção carinhosa, desapegada, pura e amorosa, ele se inclinou para beijá-la.

                   Mas os olhos dela o impediram. Chocaram-no, amorteceram-no com as trevas de suas gélidas águas azuis. Enquanto ele devaneava, insensato, ela soltou-lhe as mãos, e ele caiu pesadamente de joelhos. Jeza ficou parada, olhando para ele, com lágrimas a refletir o luar sobre suas faces. E então, qual uma ilusão, ela se foi, desaparecendo rápida e silenciosamente na escuridão da noite.

 

                               Condomínio Na-Juli, Cairo, Egito

                               10:00, segunda-feira, 20 de março de 2000

                   Antes de Feldman partir em sua viagem para Roma, ele e Anke haviam combinado de se encontrar hoje no apartamento dele, a fim de recuperar o tempo perdido. Foi uma decisão da qual Feldman estava se arrependendo. Seu estado de espírito depois da noite anterior não deixava lugar para associações interpessoais. Ele precisava desesperadamente de um tempo sozinho. Para repousar. Para refletir. Para consertar as avarias sofridas por sua psique.

                   Apesar de seus esmerados esforços, ficou óbvio para ele que Anke percebeu a distância tão logo chegou. Ele não conseguiu passar-lhe o carinho e as emoções habituais no momento do encontro. Seu abraço foi frugal, seu beijo, uma tarefa. Ele sorriu com os lábios, mas seus olhos estavam muito longe dali. Ela fechou a porta e tomou-lhe o rosto nas mãos, em busca de alguma pista. Ele não conseguiu suportar o exame minucioso e afastou o olhar.

                   — Eu não estou me sentindo bem comigo mesmo hoje, Anke. Os efeitos da viagem, talvez...

                   — Claro! — confortou-o ela. — Não consigo nem imaginar como devem ter sido as coisas para você! Foi demais para mim só de ver pela televisão! Nós não precisamos ir a lugar nenhum nem fazer nada de especial hoje. Vamos só ficar sentados, relaxando e conversando um pouco. Eu tenho tantas perguntas! — Ela tomou-lhe a mão e o conduziu até o sofá.

                   Relutante, Feldman aquiesceu. Estava se sentindo irremediavelmente culpado. Anke era uma mulher impressionantemente vivaz e graciosa. Uma força bastante positiva em sua vida! Tão cheia de otimismo e alegria! Tão diferente de Jeza! Entretanto, seus sentimentos românticos com relação a Anke haviam caído inexplicavelmente num hiato. Será possível que um homem possa amar duas mulheres tão diferentes, de maneiras tão diferentes?, indagou-se.

                   Abalado pela complexidade, ele fechou os olhos e sacudiu a cabeça, numa vã tentativa de limpar a mente.

                   Visivelmente preocupada, Anke se esforçou para conseguir descortiná-lo.

                   — Jon, o que aconteceu ontem o deixou realmente perturbado, não foi? — Ela se esticou e pegou-lhe o rosto, virando-o de frente para o seu, a fim de captar-lhe o olhar. — Será que você me deixaria entrar? Eu gostaria de ajudar.

                   Ele pegou a mão dela. Seus dedos macios eram pouca coisa maiores que os de Jeza, mas dificilmente teriam a mesma força. O que eu estou fazendo com estas comparações absurdas?, repreendeu Feldman a si mesmo. Esforçou-se para fitá-la nos olhos; mas sacudiu a cabeça outra vez, negando-a.

                   — Anke, eu sinto muito, mas não consigo falar sobre isso agora. Passei por muita coisa. Só preciso me recompor um pouco.

                   — Claro, Jon — aceitou ela, relutantemente. — Eu... eu só estava torcendo para que você pudesse me dizer um pouco de todas as coisas que aconteceram com Jeza. Há tantas delas que não compreendo!

                   — Eu tenho a impressão — continuou ele a driblá-la — de que muitas das suas perguntas estão sendo abordadas agora. Por que não damos uma olhada no que os últimos noticiários têm a dizer?

                   Sem esperar resposta, ansioso por saber se mais dados sobre os arquivos do Vaticano além daqueles da RMN teriam sobrevivido aos integrantes da Guarda Suíça, Feldman pegou o controle remoto e ligou a TV.

                   Anke se aconchegou a ele, empenhada em reduzir a distância, mas ele continuou preocupado, e a falta de conexão persistiu. Aquiescendo ao comportamento estranho de Feldman, ela soltou um suspiro e ajeitou-se no sofá. Desta vez, um pouco mais longe dele!

                   O noticiário da TV exibia as crônicas das reações aos eventos do dia anterior. Por todo canto, números cada vez maiores de pessoas aterrorizadas e tementes a Deus se polarizavam em linhas pró-Jeza e anti-Jeza. Cada vez mais simpatizantes se agrupavam em torno da bandeira hasteada dos Guardiões Messiânicos de Deus. Entrementes, a oposição estava dominada por seus ferrenhos arquiinimigos, os Guardiões de Deus. À medida que a reportagem se desenrolava, a crise vigente afetava todos os aspectos da sociedade global. Os governos dos países e suas atividades comerciais estavam aleijados, despedaçados, errantes, pois muita gente simplesmente cancelara a vida, retraindo-se, e se preparava para o desconhecido porvir.

                   Reportagens sobre os arquivos secretos do Vaticano não faltavam no tubo de imagens. Mas, conforme Feldman logo pôde comprovar, muitas das alegadas revelações acabaram não dando em nada: reedições de conhecidos escândalos do Vaticano que remontavam a séculos, disfarçadas como novas revelações. Histórias de intrigas papais: amantes, filhos ilegítimos, casamentos secretos, casos de homossexualidade, pedofilia, assassinatos, suborno e corrupção variada. E assim por diante.

                   Feldman ressaltou isto para Anke com irritação e ela fitou-o intrigada, surpreendida pelo nível de envolvimento emocional que não era típico dele.

                   Finalmente, o controle remoto de Feldman encontrou o canal que ele vinha procurando. Era o artigo genuíno. Embora não fosse uma produção da RMN, a reportagem apresentava créditos à RMN e a outras redes que haviam conseguido burlar a Guarda Suíça e saído com algum material.

                   Num espírito de cooperação inédito, as várias fontes de notícias haviam compartilhado seus espólios de preciosas informações, juntando as esparsas peças do quebra-cabeça para formar um quadro mais claro, embora incompleto, das revelações de Jeza. Feldman e Anke assistiram atentamente ao trajeto percorrido pela câmera de Hunter nos espaços do museu do Vaticano durante a perseguição a Jeza, atravessando as espessas portas de bronze do corredor de Bramante enquanto o repórter divulgava as descobertas:

                   — ... Penetrando o véu dos misteriosos e proibidos arquivos secretos da Igreja Católica Romana. Registros previamente ocultos de todos os olhos, exceto os dos monges encarregados da vigilância e presos a votos vitalícios de silêncio, são agora expostos ao mundo pela primeiríssima vez.

                   — Esta primeira série de documentos — explicou o repórter — é uma coleção de registros que detalham uma parte do vasto patrimônio financeiro do Vaticano.

                   E foi exibida uma sucessão de planilhas contábeis, com dados específicos ressaltados em negrito. O italiano era traduzido para o inglês em legendas.

                   As colunas mostravam os ativos da administração do patrimônio da Santa Sé. O espectador pôde ver todos os números, chegando finalmente a um resultado de trilhões de liras. Estabelecido esse valor, a enorme quantia foi convertida em dólares norte-americanos e afixada no centro da imagem, ao alto. Esse dado financeiro recebeu a legenda de "Ativos do Vaticano" e ficou na tela como um cômputo mobiliário, enquanto a reportagem prosseguia com a investigação de outros registros.

                   Em seguida, veio uma análise do valor em carteira do Banco Internacional do Vaticano, o Instituto per le Opere di Religione. Este conjunto de ações, títulos, cauções e notas também se provou substancial. Porém, ainda mais impressionante foi a exibição dos recibos que comprovavam grandes estoques de lingotes de ouro armazenados pelo Vaticano no depositário norte-americano de Fort Knox. As quantias fabulosas foram somadas ao número anterior.

                   — Parece uma maratona televisiva com vistas a angariar fundos para caridade — observou Feldman.

                   Voltando-se para uma análise dos bens corporativos da Igreja, o repórter se desculpou pelos dados incompletos, que, não obstante, propiciavam balancetes financeiros suficientes para documentar mais trilhões de liras em ativos. O cômputo ao topo da tela cresceu ainda mais.

                   Prosseguindo, o repórter apresentou uma compilação de registros financeiros de milhares de dioceses, bispados e cardinalatos católicos espalhados por todo o globo terrestre; registros dos bens imóveis eclesiásticos e não eclesiásticos do Vaticano, que a Igreja havia sistemática e discretamente acumulado durante os milênios, através de compras terceirizadas, doações particulares, legados estatais e caridosos presentes.

                   Em seguida, veio uma revelação ainda mais estonteante. Um relato fascinante de envolvimentos de longa data, interrompidos e retomados, diretos e indiretos, com a máfia siciliana. Foram citadas contribuições financeiras específicas e significativas feitas por La Cosa Nostra através dos anos, comprovadamente consentidas e aceitas pela Igreja.

                   Mas, conforme ressaltou o repórter, esse relacionamento disparatado ficou mais problemático.

                   — Em um relatório interno da Secretaria de Assuntos Econômicos da Prefeitura do Vaticano datado de 1988, desvenda-se grandiosa fraude financeira envolvendo vários investimentos desastrosos feitos pelo banco do Vaticano.

Mostra-se que, durante a década de 1980, o cardeal secretário do Banco do Vaticano atuou como pessoa física nas diretorias de diversas empresas italianas das quais o Vaticano detinha controle majoritário. Na posse de uma considerável quantidade de ações em duas dessas empresas, e com o conhecimento do Vaticano à época, havia uma entidade, chamada Finia C.C., controlada pela máfia.

                   A reportagem continuou explicando como o Vaticano permitira que a Finia consorciasse seus bens coletivos de maneira a adquirir parcelas de empresas internacionais através de transferências de lotes de ações. Mais tarde, os operadores financeiros da máfia manipularam esses bens dentro de um complicado esquema piramidal de câmbio de moeda estrangeira, numa tentativa hostil de tomada de uma firma de seguros que se encontrava em maus lençóis, chamada International Fidelity Trust of New York.

                   A empreitada acabou às voltas com a Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos. Mas o Vaticano, alertado de antemão por um simpatizante dentro da Comissão, fez soar o alarme para a Finia, que então liquidou todos os bens relevantes do conglomerado antes que a investigação viesse a público. Entretanto, as desafortunadas empresas e indivíduos que adquiriram esses bens problemáticos sofreram vultosas perdas e abriram processos jurídicos que se estendiam até o presente.

                   O repórter concluiu este relato exibindo um arquivo comprometedor do Vaticano, contendo datas e quantias, além dos nomes de alguns integrantes da máfia envolvidos nas transações ilegais.

                   As revelações continuaram.

                   Mais registros mostraram que, perto do fim da Segunda Guerra Mundial, o Vaticano aceitara muitos objetos de arte importantes e outros espólios de guerra da Alemanha nazista. Aí se incluíam cento e trinta e nove obras-primas da pintura, imensas coleções de jóias preciosas e variadas antiguidades raras, cuja propriedade de direito jamais foi questionada pelas autoridades da Cúria.

                   — Até o presente — explicou o repórter — todos esses valiosos itens eram tidos como perdidos ou nas mãos dos russos. Conforme detalhes constantes nesses arquivos secretos, entretanto, sabe-se agora que essa inestimável coleção de arte reside, atualmente, nos repositórios do tesouro de São Pedro.

                   E no tópico do tesouro de São Pedro, mais revelações. Uma catalogação incompleta de algumas modernas obras-primas da valiosa coleção do Vaticano: óleos de Matisse, Chagall, Gauguin; aquarelas e desenhos de Klee, Kandinsky, Moore, Dali e Modigliani. Ao todo, mais de oitocentas obras, assinadas por mais de duzentos e cinqüenta dos mais renomados e meritórios artistas do mundo. Além disso, uma riqueza fabulosa em estatuárias, tapeçarias, móveis raros e artefatos de valor inestimável.

                   Embora incompleto, o levantamento dos bens da Igreja apresentado pela reportagem, conforme o cômputo geral em dólares norte-americanos, chegou a uma soma astronômica na impressionante casa dos bilhões.

                   Feldman soltou um assobio de espanto. Restava-lhe imaginar que outras surpresas não teriam sido interceptadas pela Guarda Suíça e devolvidas à consignação da poeira e das teias de aranha da eternamente misteriosa       Biblioteca Secreta do Vaticano!

                   A reportagem chegou ao fim; Anke e Feldman nada disseram. Enfim, Anke olhou de soslaio para o companheiro e sugeriu:

                   — Talvez seja interessante afastarmos os nossos pensamentos de todas essas coisas desagradáveis!

                   Ela se virou, enfiou a mão devagarinho por dentro da camiseta dele, subindo desde a barriga musculosa até o peito largo e peludo. Acariciando-o lenta e amorosamente, seus dedos alcançaram os músculos tensos dos ombros e da nuca.

                   Mas nenhum dos arrepios comuns se fizeram sentir nele. Feldman captou o olhar convidativo de Anke e, embora sentisse a sensualidade dela, não foi capaz de corresponder. Ela o beijou, mas a resposta não veio espontânea. Ela recuou. Sem estimulação suficiente, os preâmbulos não vingaram.

 

                                 Igreja Nacional do Reino Universal, Dallas, Texas

                                 10:00, quinta-feira, 23 de março de 2000

                   Quando ouviu baterem à porta, o reverendíssimo Solomon T. Brady, DD, empurrou sua escrivaninha de mogno de forma a afastar a poltrona onde estava sentado e se recostou no estofamento de couro de cabra, com um olhar de paz e contentamento estampado no rosto. Correu a mão pelos cabelos perfeitamente brancos e penteados ao estilo pompadour e aguardou.

                   As magníficas portas de madeira inteiriça na outra extremidade de seu escritório se abriram. Uma atraente jovem bem vestida adentrou o recinto e, mal pisou o vasto soalho de mármore, foi falando com ele.

                   — Dr. Brady, o seu compromisso das dez horas.

                   — Obrigado, srta. Conners! — retrucou o reverendo alegremente para sua nova secretária, e a moça retrocedeu um passo para dar entrada a um macilento e bem-humorado cavalheiro grisalho, usando óculos espessos e terno folgado.

                   — Como vai, Walter? — cumprimentou o Reverendo, com um sorriso simpático, o chefe da contabilidade.

                   O contador correspondeu ao sorriso.

                   — Muito bem, senhor, não posso negar! — Ele caminhou até a escrivaninha de Brady e colocou sobre ela um volumoso relatório dos últimos números referentes às rendas do Reino Universal.

                   Brady não se deu ao trabalho de inspecioná-los.

                   — Basta que você me diga, Walter, em porcentagens redondas!

                   — Bem, subimos quase dezessete pontos. Sua empreitada com a linha direta mexicana de Jeza tem sido muito bem-sucedida. Devo acrescentar, senhor, que espero, sinceramente, que os próximos retornos batam todos os recordes.

                   Os olhos de Solomon Brady brilharam.

                   — Obrigado, Walter! Vou dar uma olhada no relatório durante o almoço e entro em contato com você, caso tenha alguma pergunta. Não deixe de pedir à srta. Conners que lhe entregue uma cópia emoldurada do projeto de arquitetura do novo Centro Jeza de Estudos da Bíblia quando estiver          saindo.      É uma maravilha.

                   — Sim, senhor. Estou ansioso para ver. Não deixarei de pedir. Bom dia!

                   Quando o visitante saiu, o clérigo girou a poltrona de frente para a janela, a fim de observar os espaços razoavelmente vazios do campus lá embaixo. Apesar do fato de as matrículas terem caído bastante, a fortuna do reverendo nunca estivera melhor. Ele exultava de alegria, olhando para o futuro, para além da era de Jeza, para o próximo ciclo, no qual o reverendo tornaria a presidir um próspero colégio de divindade e uma congregação nacional, ­quiçá internacional, em franco crescimento. Era só uma questão de tempo. Para os que tivessem visão.

 

                                 Palácio do Sanctum Officium,

                             Sede da Congregação para a Doutrina da Fé, Vaticano, Roma, Itália

                                 9:00, sexta-feira, 24 de março de 2000

                   O cardeal Antonio Di Concerci presidia uma reunião de pouquíssimo quorum em sua congregação. À cabeceira da mesa, logo ao lado do prefeito, sentado em sua costumeira poltrona de veludo, estava o Papa, pálido, cansado e abatido. Do outro lado, sentavam-se quatro autoridades do cardinalato. O restante da Cúria encontrava-se irregularmente disperso pelos outros assentos em torno da mesa comprida, confabulando sombriamente entre si, em pequenos grupos. Vários cardeais não estavam presentes hoje, tendo abdicado de seus postos depois do desenlace das revelações da semana passada, tanto por cumplicidade quanto por indignação.

                   — Fui informado de que a Igreja está sendo investigada por fraude de títulos internacionais — falou um cardeal, carrancudamente, para outro.

                   — Está, sim — retrucou seu confidente, com pesar, e acrescentou — e ainda somos o alvo de uma investigação criminal por roubo. Que problemas herdou o pobre Nicolau!

                   Eles balançaram as cabeças, em desgosto.

                   Di Concerci, entretanto, estava surpreendentemente relaxado e composto diante das circunstâncias.

                   — Sua Santidade — disse ele, levantando-se para iniciar sua fala — e meus distintos colegas cardeais! Que as bênçãos de Deus estejam conosco para que possamos atingir o propósito de nossa reunião de hoje!

                   Respondeu um coro de solenes “Améns”.

                   O prefeito fitou os olhos de seus colegas ali reunidos, um a um.

                   — Conforme estamos todos pesarosamente cientes — continuou ele, começando a apresentar o arcabouço do problema — nossa amada Igreja está atravessando o cerne do desafio mais formidável desde as perseguições romanas do século I depois de Cristo. Foram feitas alegações que concentram a acrimônia do mundo sobre nós e prejudicam a própria continuidade de nossa sagrada missão apostólica. É triste constatar que existem paroquianos pelo mundo afora dispostos a aceitar simplesmente o que vêem e ouvem pelo seu valor de face; no desespero, estão demasiadamente prontos a abandonar sua fé. Há, inclusive, clérigos desta doutrina. Alguns que já se sentaram a esta mesa conosco e não mais se encontram entre nós! A esses eu digo — e falou num tonitruante tom condenatório, assustando seus ouvintes — sua fé é pouca! Deus nos enviou esses percalços para nos testar, para apurar nossa crença e verificar nosso amor verdadeiro pelo nosso Senhor, Jesus Cristo! Da mesma forma que testou Jó, Isaac, os apóstolos e os mártires sagrados que perseveraram em sua fé ao longo dos séculos sob as mais horríveis aflições físicas e mentais que Satã lhes enviou! Teria a nossa grande religião resistido a tudo isso ao longo dos milênios para se resignar subitamente, de um dia para o outro, devido às acrimoniosas palavras de uma mocinha desconhecida que sequer foi testada? Estou aqui diante de vocês no dia de hoje para dizer que a Igreja Católica resistirá somente se nós acreditarmos verdadeiramente no poder e na glória de nosso Todo ­Poderoso. Desafio, pois, cada um de vocês. Será que todos têm a força e a fé para perseverar?

                            O prefeito se deparou com uma concordância muito pouco entusiasta.

                   — Vocês têm a força e a fé para perseverar? — tornou ele a perguntar, mas desta vez não esperou por uma resposta. — Pois venho à sua presença com a revelação mais perturbadora de todas. Uma revelação que trará medo aos seus corações e exigirá muito mais coragem do que a que lhes foi exigida até agora!

                   Ele fez uma pausa, satisfeito por ter atraído toda a atenção dos ouvintes.

                   — Na segunda-feira passada, à noite, após o ataque de Jeza, eu entrei sozinho na cripta de São Pedro. Levei isto comigo — e ele ergueu no ar um pequeno livro, velho e roto, com uma capa desbotada cor de vinho. — Isto é um manuscrito do século XV, em latim, do Evangelho de São João. Tendo pertencido a Joana d'Arc é o exato testamento que a dama de Orleans levou consigo no seio de sua armadura quando marchou para o campo de batalha. As manchas nestas páginas são de seu próprio sangue, quando ela foi ferida no combate. Uma camponesa que não sabia ler, Joana levou este Livro do Evangelho como um talismã sagrado, para inspirar seus triunfos contra as probabilidades aparentemente insuperáveis. Diante do túmulo de nosso primeiro Papa, eu me pus de joelhos c invoquei o poder sagrado desta Bíblia. Supliquei ao nosso amado Grande Pescador que nos livrasse de nossos inimigos nesta hora de trevas; roguei por um caminho para preservar o legado de Pedro, que já perdura há dois milênios. Implorei pelo amor de Jesus Cristo, pelas bênçãos de Deus Pai e pela sabedoria e orientação do Espírito Santo. Supliquei por uma resposta, e uma resposta me foi dada.

                   Diante disso, até o Papa se animou um pouco. Todos os olhos estavam postos no prefeito, em suma esperança.

                   — Ao fim de minhas orações — contou-lhes Di Concerci — subitamente entrou pelas catacumbas uma luz brilhante, em torno de mim ressoou o estrondo de um trovão e eu fiquei momentaneamente ofuscado e ensurdecido. Com o choque, soltei o testamento. E de dentro de mim ouvi uma voz tão profunda e antiga quanto os sepulcros. Ela proclamou: "Eis sua resposta!" Instantaneamente eu pude ver de novo e diante de mim encontrei meu testamento caído ao chão, sobre o consagrado pó dos mártires, aberto nesta página, capítulo e versículo.

                   Di Concerci estendeu a mão com o livro, mostrando-o deferente­mente, primeiro a Nicolau, girando-o em seguida para que todos pudessem inspecioná-lo. O pontífice e aqueles próximos o suficiente para traduzir o cabeçalho da página ficaram boquiabertos, enquanto os cardeais mais afastados se inclinavam e requisitavam aos vizinhos uma explicação.

                   — É esta a resposta que me foi dada, cavalheiros — anunciou Di Concerci, em meio à azáfama reinante. — No Apocalipse de São João, o Apóstolo! Como podem ver, esta página mostra a mancha marrom do sangue de Santa Joana, a mártir. É notável que a mancha tenha ressaltado todos os versículos do capítulo dezessete do Apocalipse, bem como uma única passagem do capítulo dois. Os demais capítulos e versículos em torno destes não apresentam uma mancha sequer!

                   Di Concerci baixou lentamente o livro e o ajeitou diante de si.

                   — Aqui, meu pontífice e meus colegas cardeais, está o versículo que nos foi dado. E nele encontramos nossa resposta especial. — Ele traduziu do latim:

 

                 O LIVRO DO APOCALIPSE DE SÃO JOÃO, O APÓSTOLO

                 Capítulo 17, Versículos 1-16

 

         A Mulher na Besta Escarlate:

 

                   Veio então um dos sete anjos que tinham as sete taças e falou comigo, dizendo: Vem e te mostrarei o juízo da grande prostituta sentada sobre as grandes águas, com quem os reis da terra fornicaram, e os habitantes da terra se embriagaram com o vinho de sua imoralidade. 

                   E me levou em espírito para o deserto. Vi uma mulher sentada numa besta de cor escarlate, cheia de nomes de blasfêmia, com sete cabeças e dez chifres. A mulher se vestia de púrpura e escarlate... Vi que a mulher estava embriagada com o sangue dos santos e com o sangue dos mártires de Jesus. E quando a vi, me enchi de grande assombro.

 

         A Explicação do Anjo:

 

                   E o anjo me disse: De que te admiras? Eu te explicarei o mistério da mulher e da besta com sete cabeças e dez chifres que a carrega. A besta que viste era, mas já não é, e está para subir do abismo e depois caminhar para a destruição. Os habitantes da terra, cujos nomes não estão escritos desde o princípio no livro da vida, ficarão admirados vendo a besta que era e já não é. Eis o significado para quem tem sabedoria: As sete cabeças são sete montes sobre os quais a mulher está sentada; são sete reis; cinco deles caíram, um existe e outro ainda não chegou, mas quando vier permanecerá por pouco tempo. A besta, que era e já não é, também é um oitavo, que é dos sete, e é o Mal e caminha para a perdição.

                   E os dez chifres que vês são dez reis, que ainda não receberam a realeza, mas com a besta receberão poder de reis por uma hora. Eles, de comum acordo, emprestarão à besta seu poder e autoridade. Lutarão contra o Cordeiro e o Cordeiro os vencerá, porque é o Senhor dos senhores e Rei dos reis. Aqueles que estão com Ele são os chamados, os escolhidos, os fiéis.

                   Disse-me ainda: As águas que vês, em que está sentada a prostituta, são os povos e as multidões, as nações e as línguas. E esses povos odiarão a prostituta e a deixarão desolada e nua e lhe comerão as carnes e a consumirão no fogo.

 

                   Houve um murmurar baixinho no salão, enquanto o significado pleno desta passagem bastante abstrata não se deixava entrever. Di Concerci olhou para os seus colegas com uma expressão de otimismo e fé.

                   — E agora, Santo Padre e meus colegas cardeais, dou-lhes a interpretação divina que me foi revelada nas catacumbas. Conforme já devem ter percebido por si próprios, Jeza não é o que alega. Pelo contrário, queiram vê-la, versículo por versículo, como realmente é:

                   Versículos um a seis: Jeza, a prostituta da besta... vestida em sua túnica de bordas púrpura e escarlate, colocando-se acima de todas as religiões do mundo, consorciando-se com presidentes e governantes de nações, intoxicando as massas com suas blasfematórias alegações e pregações... Ela própria embriagada de poder, frivolidade e atenções mundanas.

                   Versículos sete a onze: os sete montes são as sete colinas de Roma. Os sete reis são Papas soberanos da Igreja católica romana. Os cinco que caíram são os Papas Nicolau I a V. Aquele que "existe" é o nosso Santo Padre, Nicolau VI. E o "sétimo" é um Papa que ainda não veio. Um pontífice que permanecerá por pouco tempo. E o "oitavo" é a Besta, um que seria Papa, um antiPapa, e um que "caminha para a perdição".

                   Conforme Di Concerci tinha plena consciência, suas surpreendentes revelações estavam criando uma lenta corrente subliminar de incredulidade, espanto e excitação no ambiente. Ele prosseguiu.

                   — Versículos doze a quatorze: estas são as coisas que ainda hão de acontecer. Uma previsão de luta entre as forças do bem e do mal. Durante um curto período, o mal seduzirá pessoas poderosas para que apóiem uma causa iníqua. Os enganados se levantarão no Armagedon... uma luta armada contra as forças do bem. Mas através do poder do Todo-Poderoso e do Cordeiro de Deus, os apóstatas serão enfim subjugados. E, finalmente, versículos quinze e dezesseis: aqueles povos sobre quem a prostituta reina acabarão por vê-la como o Mal que ela é. Eles se levantarão contra ela e a destruirão. Afinal, o mundo retornará à paz e ao cumprimento da profecia apocalíptica na qual Cristo reinará sobre a Terra durante mil anos num glorioso novo milênio.

                   Todos à mesa ficaram emudecidos, espantados com a significância das revelações do prefeito. O cardeal Di Concerci tinha apenas mais uma correlação para lhes endereçar.

                   — O mundo já aceita o nome pelo qual essa mulher se apresenta, Jeza, como derivativo do nome bíblico de Cristo, uma forma do sagrado nome de Jesus no gênero feminino. Eu lhes digo que, embora o nome Jeza seja mesmo de origem bíblica, o mundo se equivocou quanto à sua fonte. Pois vejam vocês que o nome dessa falsa profetisa não se escreve J-E-Z-A, conforme se vê mais comumente. Ele é de fato J-E-Z-E. Uma forma encurtada, um disfarce para a sua verdadeira identidade agora revelada... O nome da prostituta mais vilipendiada, sedutora e enganadora do Antigo Testamento, Jezebel! Jezebel! A infame idólatra do Primeiro e Segundo Livro dos Reis. A bela moça pagã que, durante um curto e desastroso período, também desviou os fiéis na adoração de um falso ídolo, o deus Baal. Jezebel, a charlatona que, qual sua homônima moderna, reduziu o mundo à confusão. Até que, enfim, seu mal foi reconhecido e ela foi destruída em justa ira por seu próprio povo conforme a profecia.

                   Esta nova Jezebel, que agora vem à nossa frente e petulantemente exige que encerremos as sagradas instituições de nossa Igreja e nossa religião, esta Jeza não é profetisa. Ela não é uma Nova Messias. Não é mensageira de Deus. Segundo me foi revelado em minha visão sagrada, esta Jeza é a realização de todas as mais abomináveis e desprezíveis profecias do Livro do Apocalipse. Não a Filha de Deus, mas a Filha de Satã! A encarnação de         todo o mal! O Anticristo!

                   O impacto na assembléia foi profundo quando estas conexões, agora subitamente aparentes, se encaixaram em seus devidos lugares.

                   — E por fim — anunciou Di Concerci em triunfo — vou amarrar tudo isso para vocês com a citação final marcada pelo sangue de Joana no Livro da Revelação, capítulo dois, versículos vinte a vinte e três. Esta passagem profetiza claramente como a nova Jezebel foi enviada pelo demônio para tentar levar o mundo moderno à perdição:

 

                   Mas tenho contra ti, que toleras a mulher Jezebel, que se diz profetisa, para ensinar e seduzir meus servos, para cometer fornicação e comer das oferendas aos ídolos. E eu dei tempo para que ela pudesse se arrepender e ela não quer se retratar de sua imoralidade. Pois vou lançá-la sobre uma cama e àqueles que cometerem adultério com ela, em grande tribulação, a menos que se arrependam de seus feitos. E aos filhos dela atingirei com a morte, e todas as igrejas saberão...

 

                   O prefeito fechou a Bíblia e fitou solenemente os rostos empalidecidos de seus colegas.

                   — Deus nos apresentou o mais formidável teste de fé em dois mil anos. Meus caros cardeais, o Julgamento está aí. O tão temido Anticristo, esta Jezebel, finalmente chegou. E que não fraquejemos com a nossa responsabilidade de expor este mal! Pois se fracassarmos, colheremos as conseqüências do Apocalipse, horríveis demais para que as contemplemos.

                   O prefeito virou-se, a fim de apelar pessoalmente para o seu profundamente afetado pontífice.

                   — Nicolau, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, em nome da Igreja, em nome de dois mil anos de custódia papal na proteção ao Sagrado Concílio de Cristo, eu lhe suplico uma ordem imediata para a defesa formal da fé. Peço a emissão de um decreto ex-cathedra, declarando e condenando Jeza como o verdadeiro, revelado e confirmado Anticristo.

                   O salão ficou em absoluto silêncio. Di Concerci permaneceu de pé, com os braços cruzados, esperando sua resposta.

                   As mãos de Nicolau tremiam um pouco, cruzadas à sua frente em postura de oração. Seus olhos nada viam e se movimentavam rapidamente; seu cenho estava crispado, seus lábios se comprimiam com força. Seus olhos finalmente pararam de se agitar; ele piscou várias vezes e tomou fôlego profundo. Falando baixo e devagar, como que para si mesmo, o pontífice retrucou:

                   — Sem exceção, esta é a consideração mais difícil, e a de maior perturbação espiritual, a recair sobre um sucessor de Pedro. Há meses o assunto pesa em minha alma e por mais que eu peça diariamente que o fardo se alivie, ele segue somente se avultando cada vez mais. Eu escutei atentamente tudo que você nos revelou hoje, cardeal, e devo admitir que achei muito instigante. Praticamente não tenho dúvidas de que o restante de nossa Congregação está de acordo comigo.

                   Houve um murmúrio imediato de concordância da parte dos conselheiros religiosos em torno da mesa.

                   — Entretanto — continuou o Papa — esta questão é da maior gravidade e eu devo dizer que não estou enxergando com a clareza suficiente para me pronunciar ex-cathedra de imediato.

                   — Santidade — manifestou-se Di Concerci com um certo alarme — somente ao falar ex-cathedra é que o Santo Padre invoca a infalibilidade absoluta e inquestionável que os fiéis exigirão numa questão tão séria. É preciso que esteja convicto para se pronunciar com certeza aqui, ou toda a nossa sagrada missão não terá êxito. E simplesmente não temos tempo a perder; caso contrário, creio que tudo estará perdido!

                   O pontífice ergueu a mão, a fim de interromper o cardeal.

                   — Compreendo suas preocupações, prefeito. Não obstante, antes que eu me pronuncie ex-cathedra, uma decisão extremamente solene, que poderia detonar um Armagedon prematuro, vou me recolher aos meus aposentos em preces e meditação. Conforme você mesmo fez, Antonio, eu também pedirei a Deus um sinal incontestável. E até as seis horas, ao raiar do dia de amanhã, retornarei a este salão e apresentarei a minha decisão à Congregação.

                   Bastante contrariado, Di Concerci se curvou em reverência ao julgamento de seu Papa. Nicolau se pôs de pé com dificuldade e a assembléia toda respeitosamente também se levantou, assim permanecendo até que o Papa deixasse o recinto. Após a saída de Nicolau, os demais integrantes da Cúria o seguiram, parabenizando Di Concerci ao passar, com seus espíritos significativamente soerguidos devido à impressionante apresentação.

                   Silvio Santorini ficou para acompanhar Di Concerci na breve caminhada de volta aos seus escritórios.

                   — Você me permitiria verificar a Bíblia de Santa Joana, Antonio? — ­ requisitou Santorini, e Di Concerci facilitou sua procura localizando prontamente o capítulo e versículos exatos no antigo texto.

                   Santorini recebeu o livro de maneira reverencial e examinou a sagrada relíquia com minuciosa curiosidade.

                   — Em todos os meus anos junto à igreja — observou — jamais tive o          privilégio de passar por uma revelação pessoal. É uma grande honra para você — disse ele, aproximando dos olhos as páginas amarelecidas para ver as santificadas manchas marrons que ressaltavam as passagens. — Você deve ter ficado amedrontado e profundamente emocionado. Que dádiva para a sua fé!

                   Di Concerci ficou calado, continuando a recolher e arquivar seus papéis organizadamente em sua pasta. Sem ter obtido resposta, Santorini tornou a perguntar:

                   — Como a experiência o afetou, Antonio? — Ele fitou o prefeito com olhos indagadores.

                   Pressionado pelo olhar fixo, Di Concerci finalmente interrompeu seus afazeres pessoais e correspondeu ao olhar do amigo.

                   — Vou lhe contar algo em suprema confiança, Silvio — ao que Santorini          assentiu. — Senti a necessidade de acrescentar um certo drama ao meu comunicado de hoje.

                   O espanto de Santorini foi evidente.

                   — Não se preocupe — reassegurou Di Concerci. — As manchas de sangue são genuínas e eu de fato meditei nas catacumbas, tendo sido realmente agraciado com a revelação. Incluí o trovão e o relâmpago como meros adornos, a fim de incrementar a mensagem.

                   A esperança renovada que Santorini sentira anteriormente estava agora abalada.

                   — E a voz que você ouviu, Antonio? — perguntou.

                   — A voz de Pedro?

                   O prefeito segurou um dos ombros do amigo e apertou-o carinhosamente.

                   — Isto, posso lhe assegurar, Silvio, foi bastante real. Eu de fato ouvi a voz do Pescador e o resto foi exatamente conforme eu relatei.

                   A fé de Santorini só ficou parcialmente resguardada.

                   Di Concerci sorriu confiante, bateu amigavelmente no ombro do associado e virou-se para fechar a pasta, aconselhando-o:

                   — Às vezes os milagres de Deus são mais apreciados com um pouco de teatralidade. Eu só acrescentei um brilho inofensivo, nada mais do que isso.

                   Percebendo uma hesitação, Di Concerci voltou-se mais uma vez para o amigo, emitindo a voz em tom levemente mais forte:

                   — O Senhor ajuda aos que se ajudam, Silvio. E eu, pelo menos, não tenho a intenção de ficar sentado, sem fazer nada, enquanto vejo minha amada Igreja ser desmantelada por essa sofrível aberração da ciência. Precisamos congregar as tropas para a guerra que nos espera. Precisamos ficar unidos e precisamos atacar com força mortal.

 

                                 Salão do Bar Sombra das Pirâmides, Cairo, Egito

                                 22:17, sexta-feira, 24 de março de 2000

                   — Muito bem, já chega! — anunciou Hunter para Feldman, girando sobre o banquinho, a fim de encarar o amigo de frente. — Passei a noite inteira fazendo um monólogo. Tudo que ouvi de você foram alguns "é", "uh-huh" e “talvez". O que está acontecendo, Jon?

                   De cotovelos sobre o balcão e ombros encolhidos, Feldman olhou taciturnamente para o parceiro.

                   — Desculpe, Breck, não estou sendo uma companhia agradável hoje à noite, não é!

                   — Porra, Jon, companhia agradável! Você não está nem aqui. Não está aqui já faz uma semana, pelo amor de Deus! Não deu nem uma única contribuição nas reuniões de pauta desde que voltamos de Roma. É como se você tivesse perdido todo o interesse, logo agora que as coisas estão esquentando!

                   Feldman ficou calado e voltou a olhar para a sua bebida sobre o balcão.

                   — Ei, Feldman, pela última vez, fale comigo.

                   O macilento repórter deu de ombros e olhou para Hunter de soslaio. Tornando a fixar os olhos mais uma vez em seu copo de cerveja, agora quente, ele resmungou:

                   — Estou apaixonado por duas mulheres.

— O quê! — gritou Hunter, com um amplo sorriso insidioso tomando­-lhe todo o rosto enrugado. — Você está de sacanagem comigo! Seu malandro safado! Onde foi que você arranjou tempo para... — Ele interrompeu a frase e o sorriso se desfez. — Puta merda, Feldman! Jeza?

                   Feldman assentiu apenas com um gesto da cabeça.

                   — Puta merda! — repetiu Hunter consigo mesmo. Ficou quieto alguns instantes, como se precisasse deixar que o bizarro pensamento se acomodasse. — Quando foi que isso aconteceu?

                   — Já vem acontecendo. Mas acho que se materializou mesmo na noite em que chegamos de Roma. Eu levei Jeza de volta para o deserto. Ficamos juntos, a sós. Subi a pé com ela até o ponto onde normalmente nos despedimos no topo da colina, nós nos demos as mãos e...

                   As sobrancelhas de Hunter formaram um arco.

                   — Nada disso — esclareceu Feldman de imediato, ao ler a expressão de lascívia no rosto de Hunter. — Porra, por que você não me dá um tempo, hein?

As sobrancelhas de Hunter voltaram ao normal.

— E agora você acha que a ama — disse ele. Não foi uma pergunta. Foi mais um refraseamento das circunstâncias, numa tentativa de absorvê-las.

                   — Sei não, meu chapa! Eu não consigo ver você e a pequenina Jeza indo morar num subúrbio de Cincinnati para criar uma família. Não dá para computar, cara!

                   — Você não entende — tentou explicar Feldman, balançando a cabeça. — Nem eu mesmo estou entendendo isso direito. Não é exatamente uma atração física que eu sinto por ela. Quero dizer, ela é bonita e tudo mais. Mas é mais do que isso...

                   Hunter girou os olhos dentro das órbitas.

                   — Você foi enfeitiçado, cara. Ela cravou as garras milenaristas bem fundo em você, assim como em todos esses otários embevecidos por aí. Veja bem, camarada, eu não estou querendo diminuí-lo, mas você é bem mais inteligente do que essa turma toda para entrar numa dessas!

                   Feldman tirou os óculos, colocou-os sobre o balcão do bar e esfregou os olhos com as pontas dos dedos.

                   — Ah, meu Deus, Breck, eu não sei. Talvez seja parte da coisa. Realmente não sei o que pensar dela nesse nível. Sabe, como é que você explica o que aconteceu na basílica?

                   — Você quer saber se eu acredito que haja algum tipo de intervenção divina no que aconteceu lá? Porra, não!

                   — Então, como é que você explica a pedra do altar? Como é que, em nome de Deus, Jeza conhecia o caminho pelo meio dos arquivos daquele jeito? Como ela podia saber exatamente onde todos aqueles dados estavam escondidos? Você consegue me explicar isso? Por Cristo, ela até sabe coisas a meu respeito que eu nunca contei a ninguém, exceto ao meu analista.

                   — Não sei da pedra do altar, cara, mas encontrar o caminho por entre um monte de livros velhos e embolorados não é exatamente a mesma coisa que andar sobre a água. Como é que a gente sabe se o Leveque não programou o conhecimento de todos aqueles arquivos na cabeça dela?

                   Feldman não se mostrou impressionado e Hunter tentou outra tática.

                   — Olhe aqui, Jon, existem muitas coisas sobre a natureza humana que nós não compreendemos. Clarividência, telepatia. E quanto àquela pedra de altar, existem coisas como a psicocinese, telecinese... essa coisa de mexer as coisas com a mente, por exemplo. Você sabe, como esses fenômenos poltergeist, em que umas menininhas púberes de repente ficam esquisitonas e saem quebrando pratos e fazendo um monte de merda, e todo mundo põe a culpa nos sacanas dos fantasmas!

                   Ainda assim, Feldman não se deixou impressionar.

                   — Então, Jeza deu uma de David Copperfield — admitiu Hunter, com a voz exasperada. — Isso não quer dizer que a gente tenha de ficar maníaco por Jesus, se encher de emoções, cair de joelhos e tudo mais. Sabe, Jon, há alguns milhares de anos as pessoas adoravam o sol, pelo amor de Cristo! Estamos no século XXI. Se não conseguimos explicar uma coisa logo de cara, não precisamos ir buscar muleta em Deus.

                   Hunter deu um tapa no balcão do bar.

                   — Porra, já é hora das pessoas ficarem um pouco mais espertinhas! A sociedade é presa fácil para os curandeiros da fé e ilusionistas desde que a superstição foi inventada. A religião não passa de uma tramóia. Uma forma de ganhar dinheiro em cima dos crédulos. Você sabe disso e eu sei disso. É tudo um grande embuste. O conceito de Deus é um lenitivo psicológico para os inseguros. Papai Noel para adultos!

                   Feldman balançou a cabeça.

                   — Espere aí, Breck. Nem todas as religiões são tramóias. Há milhões de pessoas por aí que são absolutamente sinceras em sua fé e que tentam honestamente viver em paz com suas crenças.

                   Hunter soltou um suspiro de impaciência, pressionou os maxilares um contra o outro e franziu o cenho para Feldman.

                   — Mesmo que haja, Jon, a verdade da questão é que eu não estou nem aí, porra! Eu não gosto de religião. Acho que é maçante, que é uma coisa política, de manipulação. Não gosto de toda essa santimônia. E, acima de tudo, não gosto das regras, cacete! Eu gosto de pecar. Gosto de fazer todas as coisas que eles não querem que eu faça. Gosto de curtir a vida e se isso não servir, Deus que me leve para o inferno quando eu morrer, porque eu não estou nem um pouquinho a fim de mudar. Esses milenaristas que andam por aí são todos uns idiotas — exclamou ele, dispensando-os todos com um grande gesto enfático. — ­Um bando de ovelhas marchando para o matadouro!

                   Os dois ficaram calados durante um bom tempo. Feldman limpou os óculos com um guardanapo de papel e tomou a colocá-los. Passados alguns momentos, Hunter apoiou um braço sobre o ombro do amigo.

                   — E a Anke, Jon? O que você vai dizer para ela?

                   — Ela já sabe que alguma coisa anda mal — grunhiu Feldman. — Ela tentou me fazer falar, mas, caramba, eu mesmo não estou entendendo direito. Como é que vou explicar para ela uma coisa que para mim não faz sentido?

                   — Uma coisa é certa, meu amigo, você não está conseguindo fazer com que isso tenha algum sentido nem para mim! De um lado, você tem uma mulher fantástica; qualquer sujeito seria capaz de dar a vida por ela. Mas, de repente, você está disposto a abrir mão dela em troca de um relacionamento platônico com uma mulher que se diz Filha de Deus. Cara, você tem de abrir os olhos; Jeza tem uma fiação com defeito, sabe? Literalmente! Ela é uma experiência de laboratório que deu errado. Uma aberração!

                   Feldman deu um giro sobre o banquinho do bar e agarrou com força o antebraço de Hunter, derramando-lhe a bebida.

                   — Se eu ouvir mais uma coisa dessas saindo da sua boca, juro que vou encher você de porrada. Entendeu?

                   Não era de se esperar que Hunter, que já recebera propostas para se profissionalizar como beque de futebol americano, fosse se deixar intimidar, mas ele percebeu que havia ido longe demais.

                   — Você tem toda a razão, meu chapa — recuou. — Eu me excedi, mesmo. Desculpe!

                   Feldman soltou o amigo, fez uma careta de desprezo pelo acontecido e pegou a carteira.

                   — Olhe, está tarde. Nós dois já bebemos muito. Vamos embora.

                   Hunter franziu o rosto, indagativamente.

                   — Você não está chateado comigo? Já pedi desculpas por ter destrambelhado a falar daquele jeito. Eu só não quero ver você desperdiçando uma coisa legal entre você e Anke. Você nunca vai encontrar outra mulher como ela.

                   — Não, eu não estou chateado. E você tem razão a respeito da Anke. Ela é uma em um bilhão. Eu não quero que o nosso relacionamento termine como todos os outros. Só que eu estou precisando sair em busca da minha alma, suponho.

                   Ele jogou algumas cédulas sobre o balcão do bar e os dois foram embora em carros separados.

                   Mas Feldman não foi para casa. Dirigiu-se, sim, para o deserto, onde ficou sentado a sós em sua pedra no alto da colina, onde vira Jeza pela última vez. O mesmo local para onde fora sozinho durante várias noites e ficara sentado, calado, horas a fio, aguardando, esperando.

 

                                     Aposentos do Papa, Vaticano, Roma, Itália

                                     3:47, sábado, 25 de março de 2000

                   Escoltado por sua fiel Guarda Suíça, Nicolau VI voltou para o seu palácio na escuridão da madrugada, entrou em seus aposentos e sentou-se, cansado, à escrivaninha. Passara as últimas quinze horas abstendo-se de alimento e bebida, sozinho na basílica de São Pedro, depois de mandar que o deixassem totalmente a sós, a fim de meditar em absoluto isolamento.

                   Prostrara-se diante do altar-mor. Passara horas ajoelhado sobre a pedra fria das catacumbas diante do túmulo de São Pedro, implorando que seu predecessor lhe falasse, assim como o Grande Apóstolo escolhera falar com Antonio Di Concerci. Durante oito horas. Nicolau havia rezado com fervor, implorando ao Senhor, prolongada e apaixonadamente, por inspiração e orientação neste momento de desespero.

                   Lera e relera todas as pressagiosas passagens que Di Concerci mencionara no Livro do Apocalipse. De fato, Nicolau localizara mais três pistas relativas às Escrituras para si próprio no Evangelho de Marcos, 13:2-23; as Epístolas de Paulo, 2 Tessalonicenses. 2:3-4; e do Velho Testamento, o Livro do Deuteronômio, 13:2-6.

                   Contudo, antes de se forçar a fazer a seriíssima e terrível indiciação, Nicolau implorara por um sinal. Alguma coisa, qualquer coisa que pudesse lançar uma luz sobre este enigma, o maior de todos.

                   Ainda assim, nada! Nem ao menos o sussurro de um fantasma, sequer o lampejo de uma visão que o inspirasse!

                   Então ele retornara, relutante, aos seus aposentos, para continuar na vigília. A decisão mais importante na história da cristandade, e ele se encontrava privado de uma diretriz espiritual! A decisão suprema, e ele precisaria tomá-la sentindo-se distanciado de seu Deus! Tal possibilidade o estonteava.

                   Porém, havia ao menos mais uma coisa que ele poderia fazer. Embora a tivesse lido uma dúzia de vezes antes, precisava fazer uma consulta derradeira à fonte mais moderna de revelação divina que se sabia existir acerca do grave assunto do Último Dia.

                   Ele pegou a chave de ouro pendurada à corrente em seu cinturão. Enfiou-­a cuidadosamente na fechadura do cofre de sua escrivaninha. Girou os sólidos êmbolos e a porta de madeira maciça se abriu com um estalido lento. De dentro do vão amplo, Nicolau retirou uma pasta encadernada em couro marrom desbotado e pousou-a suavemente sobre a mesa. Devagar, ele desamarrou as tiras de couro que a prendiam e abriu a pesada capa. Retirou o santificado conteúdo, espalhando com delicadeza os pergaminhos amarelecidos por toda a superfície da escrivaninha.

                   Os documentos eram cartas, escritas em português, em apurada caligrafia. A primeira datava de 17 de novembro de 1929. A última, de 23 de novembro do mesmo ano.

                   E cada qual estava assinada por Maria Lúcia de Jesus, R.S.D.

                   Eram os originais das famosas Cartas de Fátima, que registravam as profecias da Virgem Maria para três crianças pastoras na encosta de um morro da região rural de Fátima, Portugal, em 1917. As palavras haviam sido escritas pela única visionária sobrevivente, Lúcia, mais de uma década depois de ocorridos os eventos.

                   Nessas cartas, Lúcia transcreveu as celebradas três Revelações - as portentosas palavras de augúrio e esperança da Virgem que foram reveladas uma em cada carta.

                   As duas primeiras revelações eram bem conhecidas do mundo todo, inclusive à época em que Lúcia as transcrevera. Ela as proclamara oralmente em diversas ocasiões após as visitas milagrosas. Entretanto, era a terceira revelação, o misterioso Último Segredo de Fátima, sobre a qual o mundo especulara ansiosamente durante todas essas décadas.

                   Na verdade, o Último Segredo era tão indistinto e agourento que Lúcia, uma mera criança com doze anos de idade à época em que o recebera, foi avisada pela Virgem para não se preocupar em entendê-lo ou dele se recordar, pois Maria voltaria algum dia, a fim de tornar a revelá-lo.

                   Isto a Virgem fez na manhã de 23 de novembro de 1929. Cumprindo sua promessa, nesta última e mais perturbadora aparição da Virgem para Lúcia, Maria repetiu o terrível Último Segredo de Fátima, que Lúcia transcreveu ipsis littens.

                   O que tornava essas três Revelações únicas e tão importantes era o fato de serem diferentes da maioria das profecias bíblicas, que geralmente vinham envoltas em nebuloso simbolismo. Estas previsões, mesmo que um tanto místicas, eram de linguagem muito mais precisa, escritas, além disso, para o futuro imediato.

                   Nicolau releu todas as cartas outra vez, começando pela primeira, determinado a encontrar quaisquer correlações possíveis nas três profecias.

                   No primeiro documento, Lúcia detalhara os afamados milagres das visitas de Fátima, tais como o dia do "sol dançante", no qual se diz que o sol passeou sobre as colinas de Fátima, deslocando-se de um lado para outro de forma misteriosa e prenunciadora. O fato foi confirmado por mais de cem mil espectadores, inclusive os anteriormente dúbios e anticlericais membros da imprensa.

                   Em seguida, Lúcia passou a transcrever a primeira profecia, bastante conhecida. Falou da tristeza da Virgem ao contemplar os infortúnios universais da era. As contínuas devastações da Grande Guerra. A Revolução Russa que, em estrita conformidade com a profecia, começou exatamente naquele ano. Bem como as precisas previsões da escalada do comunismo ateu e seu longo reinado de terror e agressões.

                   A Virgem previu a ascensão do fascismo e o horror da Segunda Guerra Mundial. Ela anteviu corretamente o holocausto, a fome, a doença e a miséria desenfreada do porvir.

                   Na segunda carta a Virgem fizera uma promessa condicional. Ela empenhara a queda do comunismo na Rússia e um período de relativa paz e tranqüilidade no mundo: se fossem feitas orações suficientes para a conversão da Rússia. De fato, as condições da Virgem foram satisfatoriamente atendidas e as promessas da segunda carta foram totalmente cumpridas.

                   Era a última carta do grupo que dizia respeito, direta e especificamente, ao Papa Nicolau e aos eventos do presente. A Carta Secreta. A única das três mantida em absoluto sigilo papal, cujos mistérios se mantinham confidenciais há mais de setenta anos. Nicolau era o único ser vivo que a lera até agora.

                   Pio XI, em 1929, foi o Papa a quem primeiro coube a carta. Conta-se que ele ficou bastante agitado, cobriu o rosto com as mãos e depois limpou todo o seu escritório, declarando que a carta seria lacrada durante o tempo em que estivesse sob o seu controle.

                   Seu sucessor, Pio XII, que serviu no Vaticano como secretário de Estado de Pio XI, estava presente quando ela foi apresentada ao seu antecessor. Tendo testemunhado a traumática reação de Pio XI, Pio XII recusou-se terminantemente a ler seu temeroso conteúdo.

                  A reação do Papa João XXIII, em 1958, foi descrita pelos presentes como traumática. Contam eles que seu rosto corado empalideceu e que ele resolveu imediatamente mantê-la no confinamento de seu cofre papal.

                   Em 1967, o Papa Paulo VI, depois de ler a carta, fez uma polêmica peregrinação até Fátima. Polêmica porque Portugal ainda era um regime fascista à época, sob a ditadura de Antônio Salazar. A visita do Papa foi interpretada como um endosso ao regime e, embora Paulo VI soubesse que a visita lhe custaria muito apoio pelo mundo inteiro, ninguém conseguiu dissuadi-lo de empreender a jornada.

                   Em Fátima, conforme Paulo VI relatou depois, ao observar uma multidão de mais de um milhão de pessoas - a maior aglomeração pública que iria presenciar em sua vida - ele teve uma visão do Armagedon. Foi como se as massas estivessem reunidas para o Dia do Juízo Final, disse ele, estupefato. A carta continuou lacrada.

                   O Papa João Paulo I sofreu o efeito mais devastador gerado pela carta. Embora as circunstâncias tenham sido oficialmente negadas, Nicolau conhecia bem a horrorosa verdade. Uma certa manhã, apenas um mês após sua posse, João Paulo foi encontrado morto, o cofre da escrivaninha papal aberto e a carta infame em sua mão inerte. As condoídas madres auxiliares conscienciosamente retiraram com dedos trêmulos a carta de sua mão e a devolveram ao confinamento e à confidencialidade de sua pasta de couro dentro do cofre papal.

                   Mas foi o Papa João Paulo II, antecessor imediato de Nicolau VI, que propiciou as maiores contribuições anedóticas. No dia 13 de maio de 1981, data de aniversário da primeira aparição da Virgem em Fátima, o Papa João Paulo II foi atingido por uma bala, em uma tentativa de assassinato na Praça de São Pedro. O fato de João Paulo ter sobrevivido ao ataque foi irrefutavelmente atribuído pelo Papa à Nossa Senhora de Fátima.

                   No décimo aniversário do atentado a João Paulo II, o septuagésimo quarto aniversário da primeira aparição da Virgem em Fátima, o Papa fez algo inédito nos anais do catolicismo. Ele consagrou toda a sua congregação espalhada pelo mundo à Nossa Senhora de Fátima. Ao fazê-lo, dedicou todos os católicos a orar em prol do cumprimento das estipulações secretas da carta, intimando que, caso contrário, permitir-se-ia a realização de uma profecia muito sinistra.

                   Quase detonando um pânico global, João Paulo II declarou: "Arrependei-vos e endireitai-vos, pois o fim do mundo se acerca." Presente à cerimônia, de pé ao lado do Papa, encontrava-se uma freira carmelita com oitenta e seis anos de idade, irmã Maria Lúcia de Jesus, R.S.D., a última sobrevivente das visionárias de Fátima.

                   A alarmante previsão do pontífice só serviu para obscurecer a ominosa nuvem do milenário que assomava no horizonte. Em 1995, talvez para assegurar aos fiéis que a humanidade poderia sobreviver à temida transição para o próximo século, João Paulo convocara "um Ano do Jubileu sagrado, a ter início na virada do novo milênio, no dia 1° de janeiro do ano 2000".

                   Mas agora, vencido o prazo de João Paulo e iniciado o novo milênio, o Papa Nicolau estava achando que o Ano do Jubileu 2000 era tudo, menos jubilar. A guarda da carta pressagiosa passara para ele. E por mais perturbador que o conteúdo tenha sido para seus antecessores, Nicolau tinha para si o infortúnio de ser o Papa sobre o qual recaíam, em última instância, as suas revelações.

                   Tudo isso lhe ocorreu nesse momento. Tomando fôlego profundo e com o coração a palpitar aceleradamente, Nicolau VI ergueu o pergaminho amarelecido em mais outra busca de uma resposta para sua estranha mensagem:

 

23 de novembro de 1929

                   Estas são as palavras de Nossa Abençoada Mãe, a Virgem Maria, que eu, sua humilde criada, fielmente registro:

 

                   Meu pesar é grande e fico profundamente amargurada com o pouco que se faz para dar um fim à decepção, ao egoísmo e à miséria no mundo. Por todo canto, a mensagem de meu Filho é corrompida e o espiritual é suplantado pelo material. A paciência do Todo-Poderoso se esgota. Meu Filho deseja retornar; mas até agora Seu caminho não está pronto.

                   Contudo, em breve se fará compreender que o momento se avizinha, quando mesmo vocês, sucessores de Pedro, conhecerão a violência, a injúria e a morte no cumprimento de minhas profecias. Quando essas coisas acontecerem conforme estou dizendo, vocês se recordarão de minhas palavras e saberão que é chegada a hora.

                   Mesmo assim, ainda não é tarde demais para o arrependimento e a preparação para o caminho do Senhor. Voltem às escrituras que lhes foram concedidas pelo Filho de Deus. Atenham-se meticulosamente à Palavra.

                   Mudem de caminho. Orem, pratiquem a penitência e levantem a voz contra o orgulho e a desigualdade.

                   Façam isso, pois poderão escapar à fúria de Deus. Entretanto, trago­-lhes ainda duas profecias, das quais somente uma há de se cumprir. E qual das duas há de ser, isso dependerá de vocês, pois a decisão ainda está ao seu alcance.

 

A Primeira Profecia — A Desolação

 

                   Se vocês não conseguirem manter a vigilância nem continuarem fiéis ao Senhor, então esta primeira profecia se realizará:

                   O Todo-Poderoso enviará Seu mensageiro trazendo a espada da verdade e aqueles que conhecerem a verdade, pela pureza de seus corações, também conhecerão o mensageiro. Mas a desgraça recairá sobre os de corações endurecidos, os que não conseguem ver nem ouvir. Aqueles que mantêm a cabeça erguida na arrogância hão de tropeçar sobre aquilo que jaz conspicuamente à sua frente. Seu povo há de se voltar um contra o outro, em perplexidade, acusações e ira. A Desolação terá início, e a espada os destruirá e despedaçará.

A morte e a abominação hão de reinar. Os grandes serão derrubados e os poderosos arruinados, e aquilo que vocês glorificaram deixará de ser. Pela espada da verdade, o enviado tentará novamente endireitar o caminho do Senhor. Pois é possível que vocês não sejam dignos. E os que sobreviverem não compartilharão da promessa das escrituras nem do Segundo Advento de Cristo — tampouco sua prole ou a prole de sua prole, até o crepúsculo dos tempos.

Na décima primeira hora essas coisas se cumprirão conforme eu profetizei. E nada do que haja sido revelado poderá ser modificado.

 

A Segunda Profecia — O Glorioso Reinado de Mil Anos

 

                   Não obstante, se vocês acatarem minhas admoestações e seguirem a Palavra, as promessas das escrituras ainda poderão ser cumpridas. Mas fiquem avisados: uma grande prova lhes será imposta. Em seu meio, o Mal há de penetrar, sob agradável disfarce, a fim de disseminar entre vocês o doce fruto da perdição.

                   Vocês precisarão escolher entre a fome do bem e a glutonia do mal. A decepção os abraçará, qual a cobra à sua presa; e vocês serão atingidos onde estiverem desprotegidos; e toda forma de confusão e tumulto os assolará. Mas nas trevas da noite, a luz do Senhor há de brilhar em seu caminho. Vocês se encorajarão para enfrentar o Mal e para conduzir os exércitos de Deus contra as legiões de Satã.

                   E, na mais escura das horas, o Salvador retornará em toda a Sua glória; e em Seu juízo divino Ele há de abater o Mal e separar o crente do descrente; Ele há de separar o reto do herege; o aliado do apóstata. E os infiéis serão afastados d'Ele para sempre e lançados juntamente com o Mal no fogo da danação eterna.

                   Mas os que são soldados no exército de Deus hão de ser soerguidos. E os que são generais hão de ser exaltados acima de toda a hierarquia do firmamento; hão de se sentar em júbilo à direita do Senhor para governar a Terra durante mil anos na glória à vida eterna.

 

                   Portanto, eu lhes trago esperança no porvir. Com a autoridade e o poder que lhes foram conferidos, ponderem cuidadosamente a verdade. Saibam que nos últimos dias o bem parecerá o mal e o mal parecerá o bem. Mas a vingar a primeira profecia, ela se cumprirá antes da virada do milênio; e a vingar a segunda profecia, ela se cumprirá daí por diante.

                   Entretanto, advirto que não falem dessas palavras para ninguém. Assim são as admoestações que o Pai faz a vocês, apóstolos ungidos, fiéis guardiões de Sua Palavra. Ouçam a verdade e ajam em conformidade, e o que houver de ser, estará ao seu alcance.

 

Conforme me foi revelado neste dia 23 de novembro, no ano de 1929 do Nosso Senhor.

 

Respeitosa criada de Deus, Maria Lúcia de Jesus, R.S.D.

 

                   E ali estava ele. O enigma maior.

                   Se essa estranha mulher, Jeza, fosse o que dizia ser, uma Nova Messias, então a primeira profecia estava se cumprindo. A humanidade fracassara diante de Deus e deixara de atender às estipulações da Virgem. Ao homem seria negada indefinidamente a prometida reunião com Cristo "até o crepúsculo dos tempos". E Jeza, irritada, anunciara um período de castigo e desolação divinos.

                   Por outro lado, se a segunda profecia fosse a correta, então Jeza era de fato Jezebel, o Anticristo, e travava violenta luta entre o bem e o mal. Armagedon. Depois disso, viria o Segundo Advento de Cristo e o início do tão esperado glorioso reinado de mil anos. A realização das escrituras.

                   Então, o que era ela, Messias ou Anticristo? Seguir-se-ia a desolação ou os mil anos de bem-aventurança? Em sua última reflexão sobre a carta, o pontífice não conseguira encontrar maior facilidade para a escolha. Sem dúvida, havia aspectos nas duas profecias que se equiparavam aos desdobramentos do presente, fazendo-o questionar qualquer decisão que viesse a tomar.

                   Entretanto, Nicolau não podia deixar de sentir que cada Papa de posse dessa portentosa Última Revelação, inclusive ele mesmo, fizera tudo ao seu alcance para atender aos requisitos da Virgem e merecer as bênçãos da segunda profecia. O principal trabalho do Papado de Nicolau, seu Decreto do Milênio, foi inteiramente consagrado a este propósito. Ele e seus sucessores certamente haviam conseguido atender às estipulações da Virgem, bem como a Igreja havia conseguido anteriormente acolher a queda do comunismo na Rússia.

                   Não é preciso dizer que Nicolau esperava com toda sua alma que Di Concerci estivesse correto. E havia indicações sutis na Carta Secreta que apoiavam os argumentos do prefeito. A passagem no segundo parágrafo da segunda profecia e sua referência a uma "cobra", por exemplo, remetia ao Livro do Gênesis e à serpente no Jardim do Éden. Isso levaria a entender Jeza como Eva, sedutora de Adão e precipitadora da queda do homem. E esta seria a única seção da carta que poderia refletir a questão do gênero. Mas isto não serviu como nova inspiração para Nicolau. Ele já ponderara sobre este aspecto antes.

                   Enfim, Nicolau se voltou para passagens mais conclusivas, as mesmas em que sempre se baseara ao usar este difícil documento como diretriz. Concentrou-se nas duas frases que pareciam deter a chave. As únicas linhas, em suas estimativas, que ofereciam fundamentos para uma decisão.

                   Referindo-se à primeira profecia, último parágrafo, primeira linha:

                   "Na décima primeira hora essas coisas se cumprirão conforme eu profetizei”.

                   E enveredou pelo penúltimo parágrafo da carta:

                   “Mas a vingar a primeira profecia, ela se cumprirá antes da virada do milênio; e a vingar a segunda profecia, ela se cumprirá daí por diante”.

                   Portanto, admitindo "cumprir", conforme se traduziria no português, como sendo a "conclusão", a "realização", então o surgimento de Jeza se deu após o vencimento do prazo. Diante desta interpretação, se Jeza fosse a Nova Messias, seu trabalho deveria ter sido concluído antes da transição milenar. Fora esta a razão pela qual Nicolau conseguira respirar aliviado, ainda que brevemente, no primeiro dia do ano-novo, apesar dos milenaristas em seu pátio, das rachaduras em seu afresco e altar e dos perturbadores acontecimentos na Terra Santa. Se esta perspectiva estivesse correta, Jeza não poderia ser a "Ungida". Teria de ser o Anticristo, significando, assim, que a segunda profecia estava se materializando e era hora de congregar as tropas para a derradeira guerra santa.

                   Por outro lado, conforme Nicolau considerara extenuantemente, a palavra “cumprir" poderia ser interpretada como "efetivar" ou "converter em realidade". Certamente, Jeza começara a existir antes do ano 2000. Ela foi "convertida em realidade" no Dia de Natal, na décima primeira hora do último ano. Acrescida a esta definição de "cumprir", a Desolação estava iminente e Nicolau sabia que, ao condenar Jeza, ele poderia ser culpado de indiciar o mensageiro vivo de Deus e ir de encontro à vontade do Ser Supremo!

                   Ainda assim havia, em favor do glorioso reinado de mil anos, o fato de que o termo "júbilo" por acaso aparecia na última linha da segunda profecia. Haveria alguma conexão com a convocação de um "Ano do Jubileu" por João Paulo II? Será que Nicolau tinha detectado uma pista velada, ou será que ele estava sendo meramente enganado por uma coincidência?

                   A ambigüidade era de enlouquecer. Apesar de suas intensas preces em meio ao maior acervo de ícones religiosos do mundo, o Papa ainda precisava inferir o mais ínfimo dos sinais de qualquer das fontes para as quais se voltara.

                   — Já chega! — gritou ele, enfurecido. — Meu Deus, por que me abandonastes?

                   Se ele precisava tomar esta decisão horrorosa só e desamparado, que assim fosse! Sua conclusão foi a seguinte:

                   Embora a chegada física de Jeza possa ter ocorrido antes da transição do milênio, inquestionavelmente, a essência da primeira profecia não fora cumprida anteriormente. Ela só entrou em atividade, no que tange ao seu ministério, depois do ano 2000. E, o que era mais importante, aceitá-la como a "Ungida" significava tornar-se fatalista e desolado, significava aceitar a Desolação, negar a esperança e o futuro do mundo. Do homem.

                   — Meu Deus! — O pontífice deixou-se escorregar da cadeira para o chão, de joelhos. Trêmulo, ele se reclinou por cima da carta, relendo a passagem sobre a qual o primeiro raio de luz da aurora se projetara através de sua janela:

 

                   “E qual das duas há de ser, isso dependerá de vocês, pois a decisão ainda está ao seu alcance”.

 

                   Com a graça de Deus! A carta significava exatamente o que dizia! Ele, Papa Nicolau VI, representante supremo de Cristo na Terra, era ele quem deveria decidir, sozinho! Era sua própria fé que estava sendo testada aqui!

 

                   "...E tudo que ligares na Terra será ligado nos céus, e tudo que desligares na Terra será desligado nos céus." (Mateus 16:19)

 

                   O Papa gemeu e fez o sinal da cruz diversas vezes. Afinal, com a primeira luz do dia, ele recebeu o seu sinal. Lágrimas grandes e volumosas despencaram de seus olhos, enquanto todo seu corpo estremecia e arfava com o alívio da compreensão. Então, sem se dar conta, ele detivera a resposta ao seu dilema o tempo todo. A decisão da profecia que deveria ser cumprida cabia a ele.

                   Ele agradeceu ao seu Senhor, pôs-se de pé, vacilando bastante, e, com as mãos em alvoroço, colocou as Cartas Sagradas na segurança de seu cofre. Demorando-se mais alguns instantes para se recompor, ele partiu direto para o palácio do Sanctum Officium onde a Congregação aguardava ansiosamente o seu pronunciamento.

 

                                     Sede regional da RMN, Cairo, Egito

                                     16:30, terça-feira, 28 de março de 2000

                   — Mais uma caçada infrutífera? — presumiu Bollinger, quando Feldman e Hunter entravam na sala de reuniões para tomar parte na discussão em que estavam envolvidos o chefe do escritório e o seu pessoal.

                   — É — respondeu Feldman, desanimado. – Jeza já tinha ido embora fazia muito tempo quando nós chegamos lá, mas conseguimos filmar setenta e duas pessoas que alegavam ter sido curadas por ela.

                   Os dois tinham acabado de averiguar mais um aviso de encontro com Jeza, apenas a sua segunda aparição em público depois do memorável episódio no Vaticano. Jeza fora vista pela primeira vez em um orfanato local na manhã anterior e, desta vez, em um hospital do Cairo, onde diziam que ela havia curado todos os pacientes de AIDS lotados numa ala.

                   O aspecto mais interessante, perturbador, segundo a perspectiva de Feldman, era que de ambas as vezes a Messias estava na companhia de um certo cardeal Alphonse Litti. Dava a impressão de que Feldman fora destituído de sua condição de elo de ligação preferido por Jeza. Ele concluiu que ela só poderia ter achado sua espalhafatosa mostra de afeição um tanto quanto ousada. E castigou-se mentalmente por isso.

                   — Ainda não se tem notícias de Litti? — quis saber.

                   — Não — respondeu Bollinger. — O cardeal não voltou ao seu hotel desde domingo de manhã.

                   Feldman balançou a cabeça desalentadamente.

— E agora, cavalheiros — Bollinger mudou para um assunto mais positivo — vou contar-lhes duas novidades sobre os desdobramentos: enquanto você e Hunter estavam fora, a RMN Europa nos informou que o Papa vai fazer um pronunciamento importante às nove horas da noite de segunda-feira, dia 3 de abril, horário deles. O Vaticano está convidando novamente a mídia do mundo inteiro para a basílica de São Pedro, a fim de cobrir o evento ao vivo, e estão concedendo à RMN ótima localização na primeira fileira. Além disso, estão nos concedendo uma entrevista exclusiva, ao vivo, com o cardeal prefeito Di Concerci imediatamente após o pronunciamento. Mais uma exclusividade da RMN.       

                   — Bastante gentil da parte deles, não é mesmo? — observou Feldman, desconfiado.

                   — Eles só estão querendo garantir o número máximo de telespectadores para o seu recado — declarou Cissy. — Nós somos apenas a rede que tem o maior alcance.

                   — Sobre o que vai ser o pronunciamento? — quis saber Feldman.

                   — Concessões — gracejou Hunter.

                   — É mais como um contra-ataque — opinou Bollinger. — Jeza os dilacerou de forma tamanha na semana passada que metade das paróquias católicas do mundo estão revoltadíssimas.

                   — Não conhecemos as minúcias do pronunciamento — esclareceu Sullivan — a não ser que se refere, naturalmente, à situação de Jeza.

                   — O Vaticano diz que vai ser um pronunciamento Papal importantíssimo — acrescentou Bollinger — um decreto ex-capita, seja lá o que isso for.

                   — Você quer dizer ex-cathedra — corrigiu-o Erin Cross, contendo um sorriso. — E isso é de fato um pronunciamento Papal importantíssimo.

                   — Correto — riu Sullivan. — Erin, como nossa especialista em questões religiosas, você nos faria a gentileza de esclarecer um pouco o assunto para Jon e Breck?

                   — Claro — concordou ela de bom grado. — Ex-cathedra é uma expressão em latim que equivale a "da cadeira". É uma designação exclusiva dada aos pronunciamentos mais sagrados da Igreja católica. Um decreto ex-cathedra, ao qual só o Papa pode recorrer, é algo extremamente raro, utilizado só para questões de fé ou de moral. Quando o Papa fala ex-cathedra, ele o faz de seu     trono Papal, com absoluta infalibilidade.

                   — Infalibilidade? — Hunter arqueou as sobrancelhas.

                   — Exato — reiterou Erin. — Um pronunciamento feito do trono de São Pedro, na condição ex-cathedra, é portador de autoridade divina. A decisão do Papa tem o mesmo efeito de ligação sobre os fiéis como se o Próprio Cristo estivesse falando. Todos os católicos, com base apenas na fé, deverão acatar e seguir a determinação, seja ela qual for.

                   — Você está querendo dizer — questionou Hunter, retorcendo o rosto largo de incredulidade — que se o Papa disser que, ahn — e ele buscou em volta um exemplo, afinal agarrando Robert Filson, literalmente pela gola do paletó — se o Papa decidir que o Filson aqui é Deus, então todos os católicos, mais de um bilhão pelo mundo, deverão se curvar diante dele?

                   Todos deram uma boa gargalhada, menos Filson, que ficou visivelmente amuado.

                   — Ora — explicou Erin — o Papa não vai fazer um decreto ex-cathedra sobre uma coisa tão teologicamente espúria quanto essa. — Hunter soltou Filson, que ajeitou o paletó amarfanhado e lançou um olhar carrancudo na direção do corpulento colega. Hunter nem ligou e Erin continuou. — Só se lança mão de um decreto ex-cathedra com propósitos religiosos sérios. A bem da verdade, não sei dizer se houve algum desde que eu nasci.

                   — Excelente, Erin — parabenizou-a Sullivan. — Gente, este é exatamente o tipo de material que eu quero ver transformado, com todos os requintes, em matéria de destaque na introdução do programa de segunda-­feira à noite. Jon e Erin ficarão emprestados à RMN Europa, trabalhando como anfitriões de apoio para o programa. Vocês dois vão tomar o vôo de volta para a Itália na segunda-feira de manhã.

                   — E quanto ao Breck? — indagou Feldman.

                   — Eu sinto muito, Breck — Sullivan virou-se para o cinegrafista, que estava visivelmente desapontado. — A RMN Europa estará usando suas equipes locais, uma vez que se trata de uma produção simples, com uma só locação.

                   Hunter aceitou o argumento, dando de ombros com toda a envergadura de suas costas.

                   — Pois bem! — Sullivan pôs mãos à obra. — Vamos reunir nossos pensamentos para ver que abordagens queremos utilizar na cobertura. Jon, que tal deixar o assunto ex-cathedra ao encargo da Erin e ficar com a entrevista de fechamento com o cardeal para você?

                   — Tudo bem — concordou ele, acatando a lógica da decisão.

                   Erin esticou a mão por cima da mesa e apertou a de Feldman em sinal de apreciação. Feldman reconheceu o gesto com um brevíssimo sorriso desconfortável, enquanto Sullivan prosseguia, envolvendo o grupo numa discussão acerca das estratégias e planos de pesquisa. Tudo isso foi conduzido sem a participação de Cissy, que se manteve sentada em sua cadeira, amuada e ressentida.

                   A assembléia deliberou rapidamente sobre um formato adequado para a aula de história de Erin, passando, em seguida, para uma estruturação da entrevista de Feldman. Este assunto, entretanto, exigiu alguma especulação quanto ao conteúdo do pronunciamento Papal.

                   — Pois bem — aventou Sullivan — eu tenho as minhas suspeitas, mas o que vocês acham que o Vaticano está querendo com esse negócio de ex-cathedra?

                   — Não é tão difícil assim — resmungou Hunter.

                   — É hora de virar o jogo. Eles vão aprontar uma para cima da Jeza e mandar que todos os seus seguidores a descartem, correto?

                   Houve concordância coletiva da parte de todos na roda. Particularmente de Feldman, cuja mente vinha rumando exatamente nesse sentido.

                   — A Igreja católica não tem escolha — disse ele, reforçando o consenso.

                   — A sobrevivência deles depende de conseguirem desacreditar Jeza. Eles vão fazer a pontaria direitinho e eu tenho a impressão de que isso vai causar muito mais tumulto e violência pelo mundo afora.

                   — Se é essa a posição que, podemos prever, será tomada pelo Vaticano — adiantou-se Sullivan — sugiro, no interesse de uma reportagem equilibrada, que estejamos preparados para dar prosseguimento, após o pronunciamento do Papa, com uma análise crítica. Admitindo que a Igreja vá se apoiar com força total nas escrituras bíblicas para desbancar Jeza, eis aí mais uma área em que precisaremos dos conhecimentos especializados de Erin.

                   Cissy se inclinou para a frente em sua cadeira, a fim de retornar à roda.

                   — Nós vamos é perder audiência com todos esses recitais sem sal! —­ protestou. — Precisamos colocar ênfase na entrevista de Jon com Di Concerci. A ação está com o cardeal. Ele, sim, é quente! Todo mundo vai querer ouvir o sujeito que enfrentou Jeza duas vezes e levou a pior em ambas. Além disso, Jon poderá criticar a fala do Papa com suas perguntas a Di Concerci.

                   Seguiu-se um acalorado debate, e Feldman levantou as mãos para ressaltar um argumento.

                   — Por mais que eu queira ficar com a bola da vez, nós temos de ser realistas a respeito do que estaremos encarando pela frente. Não há dúvida de que o propósito exclusivo dessa entrevista é dar um efeito positivo ao pronunciamento do Papa. O Vaticano está enviando o seu melhor taco para sair da sinuca das críticas que fizermos contra eles. É um jogo de manipulação. E eu não estou nem de longe à altura de um cardeal prefeito da Santa Sé. Não vou conseguir andar a par com ele nas questões das escrituras. E com todo o respeito a você Erin — ele trocou um olhar firme com a especialista da RMN para assuntos religiosos — não sei bem se quer ficar com essa tarefa!

                   O cenho de Erin se contraiu e ela apertou os lábios um contra o outro, contemplando, decerto, a idéia de se ver humilhada diante das luzes da televisão internacional.

                   Cissy aparteou:

                   — Então vamos nivelar a mesa do jogo e propiciar ao mundo um espetáculo de verdade. Vamos trazer à cena uma pessoa de peso, para servir de contra-parte e neutralizar Di Concerci. Jon pode ficar de árbitro e provocar um debate eletrizante.

                   Diante do argumento, todos fizeram uma pausa.

                   — Gostei, Cissy — admitiu Sullivan. — Em quem você está pensando?

                   — Ainda não faço idéia — foi dizendo ela, mas logo voltou atrás e agregou — mas sei que há vários candidatos bons por aí. Tenho certeza de que vamos conseguir um que seja absolutamente gabaritado. Se ao menos tivéssemos como encontrar o cardeal Litti!

                   Bollinger foi cuidadoso.

— Não temos muito tempo, pessoal. E não vai bastar alguém que seja só um milenarista a favor de Jeza. Precisamos é de um adversário de primeira linha.

                   — Um especialista bíblico mesmo — acrescentou Sullivan. — Alguém bastante respeitado. E admitindo que encontremos tal candidato, precisamos de sutileza para incluí-lo no programa. Não queremos que o Vaticano desconfie de nada e estrague os nossos planos.

                   — Independente disso — concluiu Sullivan com um sorriso presunçoso — eu acho que a noite de segunda-feira no Vaticano vai se tornar mais um triunfo nos índices de audiência da RMN.

 

                                       Sede regional da RMN, Cairo, Egito

                                       9:12, quinta-feira, 30 de março de 2000

                   Feldman estava sentado em seu escritório, olhando para o recado de um telefonema de Anke datado do dia anterior. "Ligue assim que possível, por favor." Ele sabia que já estava abusando da tolerância dela, passando tanto tempo sem dar qualquer tipo de explicação. Só que ainda não tinha uma explicação para dar.

                   Foi bem-vinda a distração propiciada por Cissy, que chegou ao seu escritório com um sorriso de satisfação estampado no rosto sardento e se deixou cair no sofá com ares de triunfo. Feldman deixou de lado o bilhete, fitando-a indagativamente.

                   — Eu consegui! — exclamou ela.

                   — Conseguiu o quê?

                   — Encontrei a pessoa! É a antítese do prefeito Di Concerci.

— Você encontrou o cardeal Litti! — o coração de Feldman deu um pulo.

— Não! — respondeu Cissy, momentaneamente chateada. — O rabino Mordachai Hirschberg.

                   Feldman vasculhou a memória em vão.

                   — Hirschberg é o atual chefe do movimento judaico Lubavitcher ­— elucidou Cissy, folheando recortes de jornais que trouxera consigo. — Mora na cidade de Nova York... é considerado um dos mais proeminentes conhecedores das escrituras do Velho Testamento que há no mundo... esteve presente nas duas convocações dos mórmons... e foi um dos primeiros rabinos a reconhecer Jeza como Messias.

— Parece bom — anuiu Feldman. — Vamos levantar o nome dele na reunião de hoje de manhã e ver se serve para todo mundo. Ele aceitou o compromisso?

                   A expressão de satisfação de Cissy se desfez levemente e ela mordeu o lábio inferior.

                   — Ainda não sei. Tivemos uma conversa rápida ontem à tarde para tocar no assunto e ele concordou em atender a uma ligação de teleconferência comigo hoje às três da tarde. Foi muito em cima da hora. Eu tinha esperança de que você viesse comigo para tentar convencê-lo.

                   — Claro — ofereceu-se Feldman sem hesitar, e Cissy zarpou logo, a fim de se preparar para a reunião de pauta.

                   Pouco antes das três da mesma tarde, Feldman acompanhou Cissy até o centro de teleconferência da RMN, e juntos eles se colocaram à mesa diante do enorme aparelho de TV e da câmera de vídeo para a conversa com o rabino. Feldman não sabia bem o que esperar desse professor de religião, tido como venenoso e dado a confrontações. Em instantes, Cissy e Feldman estavam conectados ao parceiro da teleconferência no outro lado do mundo, no Brooklyn, Nova York.

                   — Bom dia, Rabino — Cissy abriu a conversa quando os traços graves do versado líder Lubavitcher se configuraram na tela. O rabino era um homem grande, alerta, de setenta e sete anos de idade, cabelos brancos e barba cheia também branca, sobrancelhas espessas e olhos fundos que brilhavam apesar da fisionomia séria.

                   — Bom dia — respondeu Hirschberg.

                   — Eu lhe agradeço a gentileza de ter atendido ao nosso convite e vindo ao nosso estúdio de Nova York para conferenciar conosco tão cedo assim pela manhã — disse Cissy, em tom de desculpa, levando em consideração que o sol ainda nem saíra em Nova York.

                   — Não é cedo para mim, srta. McFarland — respondeu Hirschberg sem nenhuma inflexão na voz. — Já estou acordado há horas, conforme é o meu hábito.

                   — Fico feliz em saber disso, rabino — retrucou Cissy. — Eu gostaria de apresentar-lhe o meu amigo e colega, Jon Feldman.

                   — Muito prazer — cumprimentou Hirschberg Feldman com um delicado aceno de cabeça. — O sr. Feldman é uma figura bem conhecida por nós aqui, e tenho certeza de que também o é em todo lugar.

                   — É um prazer conhecê-lo, senhor — correspondeu Feldman, ainda sem conseguir fazer uma boa leitura da disposição do rabino. — Esperamos que o senhor esteja gozando de boa saúde e que esteja animado, também.

                   — Certamente, sr. Feldman, estou sim — prosseguiu o rabino de uma forma descomprometida. — Pelo menos, estou sempre animado. Mas suponho que vocês não estejam gastando oitenta dólares por minuto do dinheiro da sua empresa para conversar amenidades comigo. Vocês gostariam de discutir comigo os procedimentos para a minha participação na transmissão de segunda-feira à noite, não é mesmo?

                   Tanto Feldman quanto Cissy foram apanhados desprevenidos.

                   — O senhor quer dizer que aceita o nosso convite? — Cissy não conseguiu disfarçar sua surpresa e empolgação.

                   — Claro — respondeu ele como se jamais tivesse havido qualquer dúvida a respeito disso. — Eu só precisei fazer uma consulta ao meu médico antes. Tenho um pequeno problema de saúde que requer acompanhamento. Mas não é nada sério.

                   — Perfeitamente — arrematou Feldman, ligeiro. — Nós agradecemos a sua participação. Será que eu poderia lhe perguntar, Rabino, qual será, em sua opinião, a estratégia do Vaticano agora?

                   — Não tenho dúvida alguma de que a força motriz desse pronunciamento será colocar a Messias em descrédito e exigir que a comunidade católica do mundo inteiro A rejeite como impostora e falsa profetisa. O decreto ex-cathedra, indubitavelmente, mandará os fiéis renegarem Jeza, sob pena de pecado mortal e excomunhão.

                   — Como o senhor pretende responder a essa proclamação, rabino Hirschberg? — perguntou Cissy.

                   — Com profecias, é claro — ele retrucou. — Com a Palavra de Deus! É preciso combater fogo com fogo.

                   — Com a sua licença, rabino — interrompeu-o Feldman com uma observação pessoal que buscou envolver numa hipótese. — Posso fazer o papel de advogado do diabo por um instante?

                   — Claro.

                   — Não se poderia dizer que a fonte de toda essa polêmica em torno de Jeza recai sobre uma confiança indevida nas escrituras? E sobre todas as maneiras inconsistentes como essas profecias obscuras são interpretadas? Não seria o verdadeiro obstáculo para muitas pessoas o fato de as profecias em que vocês se baseiam serem simplesmente antigas e ambíguas demais para se estabelecer qualquer correlação?

                   O rabino assentiu com um movimento de cabeça, tamborilando impacientemente as pontas dos dedos umas contra as outras, como se tivesse previsto esta pergunta desde o princípio. Em seguida, comprimindo os lábios um contra o outro, ele se voltou para uma pilha de papéis ao seu lado, folheou-os e retirou um.

                   — Consegue distinguir isto, sr. Feldman?

                   — Estou vendo o que parece ser uma carta manuscrita, rabino. ­ Feldman fixou a vista na tela. — Mas não consigo ler o que está escrito.

                   — Isto aqui — explicou Hirschberg — não é uma profecia antiga. É uma previsão feita em 1937 pelo grande homem santo hasida, rabino Haim Shvuli. O documento contém uma profecia prevendo uma guerra no Oriente Médio a ser travada por um dos países árabes em 1990. Segundo o rabino Shvuli, essa guerra envolveria o uso de armas químicas e biológicas, além de envolver atentados a bombas lançadas do ar contra Jerusalém. Entretanto, prevê também que a cidade seria protegida pelo Todo-Poderoso. E observe este aspecto importantíssimo, sr. Feldman... o rabino Shvuli proclama que essa guerra sinalizaria o início da era messiânica! Conforme você sem dúvida pode reconhecer, meu jovem amigo — ­prosseguiu Hirschberg — o rabino Shvuli estava descrevendo precisamente a guerra do Iraque, conhecida como Tormenta do Deserto, prevendo com exatidão o ano, inclusive, com mais de cinqüenta anos de antecedência.

                   Não se esqueça, sr. Feldman, que esta previsão foi feita onze anos antes de o Estado judeu de Israel vir a existir. Quando a Terra Santa ainda estava totalmente sob o controle dos palestinos! Antes que as verdadeiras implicações desta profecia tivessem qualquer significado para os judeus! Como se vê, então, até mesmo a criação do Estado judeu, em 1948, prenunciava a vinda da Messias Jeza. O Velho Testamento previu a destruição de Jerusalém pelos romanos no ano de 70 d.C., bem como o Grande Exílio dos judeus. Contudo, as escrituras também prometeram que um dia haveria uma grande “reunião dos exilados judeus”. E que essa reunião marcaria o há muito prenunciado início da era messiânica. Depois de dois mil anos, essa profecia foi cumprida com a formação do moderno Estado judeu, que trouxe na esteira a imigração maciça de judeus, oriundos de suas moradias espalhadas por todo o globo, concentrando-se todos em Israel.

                  Mas, permita-me apresentar-lhe mais uma profecia recente, sr. Feldman, conforme se faz necessário. Em agosto de 1990, dois anos antes de sua morte, em resposta à invasão iraquiana do Kuwait naquele mesmo mês, meu estimado rabino, Menachem Schneerson, proferiu um sermão especial aqui em nosso templo no Brooklyn. Referindo-se à ameaça iraquiana contra Israel na época, ele previu o seguinte. — Hirschberg escolheu outra folha de papel de sua coleção e a ergueu diante da câmera para que Feldman pudesse observá-la. — Vou documentar isto para vocês com uma cópia publicada com as palavras exatas do rabino Schneerson:

 

                   “Esses eventos não deverão perturbar a paz espiritual nem física de um único judeu sequer, porque são uma preparação e um prefácio para a vinda de fato do Messias.”

 

                   Hirschberg devolveu a folha de papel ao seu lugar de origem.

                   — O rabino Schneerson foi mais adiante, dizendo que os israelenses não precisariam adquirir máscaras de gás nem armazenar alimentos, tampouco precisariam se preparar para um ataque. E que Israel jamais chegaria a ser realmente ameaçado por essa guerra travada logo à sua porta. E que o advento do Messias era iminente!

                   Cissy olhou para Feldman com as sobrancelhas erguidas, mostrando sua aprovação. Feldman assentiu com um movimento de cabeça. Esta renovadora perspectiva contemporânea não-cristã parecia ser exatamente o tipo de réplica sólida que a RMN vinha buscando. Cissy fizera um bom trabalho.

                   — Excelente, rabino! — parabenizou-o Feldman. — Se o senhor puder, eu gostaria que nos enviasse esses documentos pelo fax, para que possamos fazer cópias ampliadas a serem projetadas durante a transmissão do programa. Vamos precisar de material convincente como esse, a fim de podermos ir de encontro à posição do Vaticano.

                   O rabino sorriu pela primeira vez.

                   — Eu tenho a impressão, sr. Feldman, que de alguma forma vocês já tomaram partido.

                   O comentário aturdiu Feldman por um instante e, com o conflito interno, seus olhos dispararam em todas as direções. Ele então fitou os de Hirschberg e seu cenho se franziu.

                   — Não estou em busca de convicções religiosas pessoais, rabino. E certamente não pretendo endossar uma ótica teológica em detrimento de outra. Para ser franco, creio que a resolução de toda essa agitação do momento se situe em algum ponto do mundo temporal, não do espiritual. Mas tampouco desejo que Jeza sofra mal algum. E apóio qualquer coisa que se possa fazer em contra-partida a uma ameaça de retaliação contra ela.

 

                                 Aeroporto do Cairo, Egito

                                 11:30, segunda-feira, 3 de abril de 2000

                   Ao final da manhã de segunda-feira, Erin e Feldman foram levados para o aeroporto e depositados a bordo de um pequeno jato fretado para o vôo sobre o Mediterrâneo.

                   Esta foi a primeira vez que Feldman ficou de fato a sós na companhia de Erin, e não era uma coisa pela qual ele ansiasse com qualquer grau de comodidade. Não obstante, afora algumas infreqüentes trocas de amabilidades e meras indagações acerca da opinião de Feldman, Erin se manteve completamente absorta no projeto. Durante as três horas do vôo, ela manteve o seu afastamento profissional.

                   Os dois repórteres foram recebidos no aeroporto, por gente da equipe da RMN Europa, sendo, em seguida, primeiramente transportados até o seu hotel no centro da cidade, para que pudessem se recompor do vôo, e depois diretamente para o Vaticano, indo logo para a catedral a fim de se prepararem para a transmissão. Quando cruzou a conhecida Praça de São Pedro, Feldman sentiu aumentar o seu constrangimento.

                   Dentro da antiqüíssima basílica, Feldman e uma fascinada Erin Cross foram acompanhados até a área da filmagem que, conforme o prometido, era a ideal. Posicionado exatamente em frente ao altar-mor, Feldman percebeu que a sólida pedra da base fora consertada ou trocada. O set da RMN consistia num enorme tapete persa, quatro confortáveis poltronas fofas e uma mesinha de centro.

                   Em torno das seis horas da tarde, Feldman foi informado de que o rabino Hirschberg chegara. Durante todo o pronunciamento do Papa, Hirschberg seria mantido oculto numa seção separada, reservada para a mídia. Não seria trazido ao set da RMN até que a entrevista com Di Concerci estivesse em andamento. O fato de não saber como o cardeal reagiria à trama da RMN era ainda uma enervante preocupação a dar nós no estômago do repórter.

                   Feldman dispensou o jantar encomendado para eles, preferindo ir sentar-se em sua poltrona no set com suas notas, a fim de ficar em paz um pouco. Mas o que encontrou foi um crescente ajuntamento de pessoal do Vaticano, freiras e clérigos que o abordavam com uma lista de perguntas sobre a Messias.

                   Um diretor da RMN, já aborrecido com aquilo tudo, estava prestes a esvaziar o set quando, abruptamente, a pequena platéia de Feldman fez um silêncio estranho, colocando-se todos atentamente a olhar para trás da poltrona de Feldman na direção de uma presença imponente. Ao se virar para ver, Feldman deparou com um homem alto, de augusta postura e rosto implacável, o próprio cardeal prefeito Antonio Di Concerci. O cardeal entrara só, imperiosamente, vestido de batina branca e uma sobrepeliz carmim combinando com o barrete.

                   Di Concerci não disse nada, ficando parado, sereno, com as mãos cruzadas às costas, a cabeça ereta, os olhos imóveis a analisar primeiro o ajuntamento de pessoas e depois Feldman. Inicialmente aturdido, este logo se recobrou, levantou-se e estendeu-lhe a mão.

                   Sem modificar a fisionomia, o cardeal apertou lentamente a mão de Feldman, enquanto os demais presentes se recolheram timidamente ao segundo plano. Feldman se surpreendeu com a força do aperto e com o grau de controle e domínio projetados pelo olhar inalterável e analítico. Olhos tão sem expressão e paixão quanto os da estatuária de mármore mantida nas alcovas e labirintos cheios de mofo do palácio do Vaticano!

                   — É um prazer finalmente conhecê-lo em pessoa — conseguiu dizer Feldman.

                   — Pois não! — disse simplesmente o cardeal. — Pelo que vejo, cheguei cedo. Entretanto, achei que se pudesse me reunir consigo agora, em vez de no decurso do pronunciamento, conforme planejado, decerto seria uma interrupção a menos, e talvez eu pudesse assistir à íntegra da fala do pontífice. — Ele se apressou em acrescentar: — Se isto não lhe constituir uma imposição, é claro — admitindo que este não seria o caso.

                   — De forma alguma — concordou o repórter, embora atordoado com a idéia de ter de passar pelo crivo do prefeito durante as primeiras partes do programa. Feldman tinha suas dúvidas que o cardeal fosse apreciar certos aspectos da reportagem de fundo da RMN.

                   — Já providenciamos assento para o senhor — disse Feldman, mostrando com um gesto um grupo de poltronas numa ala ao lado do set. — E vou pedir que um dos nossos assistentes lhe explique os procedimentos e o ajude com o microfone. Depois que o Papa tiver concluído o seu pronunciamento, faremos uma pausa para a identificação da estação e os comerciais, intervalo no qual nos sentaremos para a entrevista subseqüente, se isto for de sua conveniência.

                   O prefeito assentiu.

                   — Presumo que as nossas acomodações lhes tenham servido adequadamente.

                   Excessivamente, pensou Feldman, mas respondeu:

                   — Perfeitamente, Eminência. Todos têm se mostrado muito prestativos.

                   Os olhos do cardeal assumiram um ar mais severo.

                   — Ótimo! Então, talvez a sua rede opte por uma abordagem mais simpática ao tratar da Igreja hoje à noite.

                   Mantendo o olhar firme o tempo suficiente para fixar o argumento, o cardeal fez uma leve reverência e pediu licença para tomar um assento na penumbra.

                   Aproximando-se a hora do programa ir ao ar, Erin Cross voltou na companhia de vários solícitos figurões italianos da RMN, que tinham ficado satisfeitíssimos em acompanhá-la nos passeios pelo Vaticano. Caindo de charme, ela se desincumbiu deles e foi se sentar ao lado de Feldman, cumprimentando-o com um alegre e ressonante "Olá!", que não foi suficiente para animá-lo.

                   Alguns minutos mais tarde, o casal recebeu a deixa de que estavam entrando no ar pela luz vermelha que começou a piscar e o conhecido logotipo da RMN surgiu em inúmeras telas de TV espalhadas pelo mundo inteiro, seguido imediatamente da imagem de Feldman e Erin. Uma voz em off anunciou:

                   — Com vocês, ao vivo da catedral de São Pedro, na cidade do Vaticano, os correspondentes de nossa Rede Mundial de Notícias: Jon Feldman e Erin Cross.

                   A câmera mostrou então um close de um Feldman pensativo.

                   — Boa noite senhoras e senhores! — abriu ele, sem o seu costumeiro meio-sorriso tímido. — A RMN tem o prazer de oferecer-lhes uma cobertura especial com a primeira transmissão ao vivo de um postulado papal. Antes do pronunciamento desta noite, a RMN preparou para vocês um documentário informativo sobre este raro mandado da Igreja católica, conhecido como “decreto ex-cathedra”. Após a mensagem do Papa, continuem ligados na RMN para uma entrevista exclusiva com o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Sua Eminência da Cúria do Vaticano, o cardeal Antonio Di Concerci. E agora, com uma retrospectiva histórica do pronunciamento papal desta noite, trazemos para vocês a especialista em assuntos religiosos da RMN, nossa correspondente de notícias Erin Cross.

                   A câmera se afastou para enquadrar o rosto cativante e sorridente de Erin.

                   — Obrigada, Jon! — disse ela, jogando para trás a encantadora cabeleira.

                   — Erin, você começaria nos falando algo a respeito do princípio da infalibilidade por trás desse decreto ex-cathedra? Seria, conforme eu presumo, um poder conferido originalmente por Cristo a São Pedro, o primeiro Papa, e passado adiante aos sucessivos Papas através dos milênios?

                   — Não, Jon — respondeu Erin. — Na verdade, a doutrina da infalibilidade só remonta mesmo a pouco mais de um século atrás, ao ano de 1870, durante a época em que o governo italiano ameaçava tomar as propriedades do Papa Pio IX.

                   — O Papa tinha propriedades? — Feldman fingiu ignorância, seguindo a estratégia elaborada de forma a acabar levando a informações contidas nos arquivos secretos que a RMN ainda não revelara.

                   — Correto. Durante mais de mil anos, os Papas detiveram o controle de reinos enormes — explicou ela.

                   A câmera foi lentamente se aproximando de Erin, deixando Feldman de lado, entregando o programa nas mãos dela.

                   — Até fins do século XIX, a Igreja Católica possuía mais de treze mil quilômetros quadrados de terras muito valorizadas na Itália central, protegidas por grandes exércitos e marinhas papais. — A câmera fazia cortes periódicos, a fim de pontuar a história de Erin com belas cartografias antigas das terras do Papa, bem como interessantes fotografias, litografias e ilustrações das forças armadas papais. — Terras que a Igreja Católica vinha reclamando para si havia muito tempo, acabaram sendo devolvidas a ela pelo imperador Constantino, no século IV d.C. A Igreja chegara a apresentar, em dado momento, um contrato antigo, que dizia ter sido assinado pelo próprio Constantino, a fim de comprovar seu pleito. — E uma fotografia de um pergaminho antigo e amarelecido foi mostrada pela câmera. — Mas acontece que, conforme se pode ver neste memorando de 1998, recentemente resgatado dos arquivos secretos do Vaticano, o contrato era falsificado.

                   Em seguida, foi revelado na tela um memorando interno do Vaticano, datilografado em italiano sobre papel timbrado da Cúria, com uma seção traduzida para o inglês. Erin leu:

                   — "...Recentes avanços nas técnicas científicas para a determinação de datas passadas permitem que se recomende a exclusão do pergaminho (o contrato de Constantino) dos estudos feitos por terceiros. Uma moderna análise do documento conseguiu revelar prontamente que o pergaminho fora produzido cinco séculos depois do que diz o selo real nele aposto...”

                   Surgiu na tela um quadro a óleo de um imperioso homem barbudo.

                   — Na primavera de 1869, o rei Vítor Emanuel, da Itália, agiu com base em suspeitas há muito levantadas acerca da legitimidade do contrato. Numa tentativa de finalmente unificar sua nação dividida, ele exigiu essas terras do Vaticano. O Papa que estava no poder na ocasião, Pio IX, rejeitou a exigência e declarou o contrato de Constantino como “genuíno por revelação divina”.

                   Ao lado do quadro de Emanuel surgiu o retrato de um homem de fisionomia severa em branco e carmim, usando a mitra papal.

                            — Pio IX declarou que todos os Papas tinham um poder de infalibilidade quando tomavam importantes decisões relativas à Igreja. Numa tentativa desesperada de solidificar sua posição, o Papa conclamou o Colégio de Cardeais do mundo inteiro a Roma para um sínodo oficial, a fim de endossar seus novos e polêmicos poderes. Em escrutínio aberto, em meio a uma violenta tempestade magnética e sob o brilho igualmente intimidativo do olhar perscrutador do Papa, todos, menos dois dos quinhentos e trinta e cinco cardeais, resolveram aceitar a vontade do Papa.

                   A câmera deu um close no penetrante olhar do Papa, dissolvendo a imagem em seguida e retornando, em contraste, ao rosto tranqüilo de Erin Cross.

                   — Então — indagou Feldman, enquanto a câmera se afastava de forma a incluí-lo novamente no enquadramento — todo esse esforço ajudou a salvaguardar as propriedades do Papa?

                   — Infelizmente, não — concluiu Erin. — A Itália procedeu à invasão e o exército do Papa não se equiparou às forças superiores de Emanuel. Após três semanas de lutas sangrentas, o obstinado Pio IX finalmente se rendeu. A Itália retomou as terras e as anexou definitivamente, deixando ao Papa o Vaticano e uma quantidade considerável de outros terrenos valiosos dentro de Roma, dos quais a Igreja é proprietária até hoje.

                   — E que reino magnífico! — reconheceu Feldman, gesticulando de forma a mostrar a gloriosa decoração da requintada catedral.

                   Para efeitos de uma breve demonstração, a câmera dissolveu a imagem e passou a apresentar instantâneos de pontos de interesse escolhidos na catedral de São Pedro e em diversos museus e salões do Vaticano. Assim foi preenchido o breve intervalo de tempo antes que o Papa, que acabava de adentrar a basílica, fosse instalado em seu trono. A câmera voltou então a apresentar a imagem de Feldman, que anunciou:

                   — E agora eu acredito que já estejamos prontos para ir até o trono de São Pedro e testemunhar o primeiro pronunciamento ex-cathedra feito ao vivo para o mundo. Senhoras e senhores, Sua Santidade, o supremo pontífice da Igreja Católica Romana, Papa Nicolau VI.

                   Fora do ar agora, Feldman pôde sentir os olhos de Di Concerci perfurando-lhe a nuca. Conscientemente, ele evitou olhar na direção do cardeal, pois estava certo da reação do prefeito à exposição de mais um dos segredos contidos nos arquivos.

 

                                   Basílica de São Pedro, Vaticano, Roma, Itália

                                   21:00, segunda-feira, 3 de abril de 2000

                   A câmera foi se aproximando lentamente do rosto de Nicolau VI. O pontífice estava relaxado em seu trono, vestido totalmente de branco: batina, capa e barrete; uma cruz peitoral dourada em torno do pescoço e uma faixa vermelha cruzada sobre o tórax. Trazia no rosto os óculos de armação de ouro. E sobre o colo repousava uma Bíblia e uma série de papéis datilografados que ele estava organizando.

                   Não era o mesmo Papa do qual Feldman se recordava da visita anterior. Este tinha tudo sob o seu controle; era deliberado e decidido. Exultava confiança e autoridade.

                   Falando em inglês para atingir o maior público possível no mundo inteiro, o Papa proferiu palavras poderosas que ecoaram pela catedral, cada sílaba ressaltada por ecos retumbantes.

                   — Irmãos e irmãs de Cristo — endereçou com a voz forte — que as bênçãos do Todo-Poderoso estejam com vocês e os seus nestes momentos de apreensão. Venho trazer-lhes hoje uma proclamação sagrada que a comunidade mundial de cristãos aguarda há aproximadamente dois mil anos. Uma mensagem divina, que traz consigo gravíssima importância e conseqüências para toda a humanidade. Há uma semana, Deus me revelou a razão suprema por trás dos eventos perturbadores que agora enfrentamos. Eu estava sozinho, em meus aposentos, após uma noite inteira de meditação e preces angustiadas, quando a luz da aurora se derramou sobre mim novamente e o propósito do Senhor preencheu minha alma. E o que Deus me revelou naquela manhã, eu agora divulgo para vocês.

                   A voz do Papa recaiu para um quase sussurrado tom grave e estupefato. Seus olhos pareceram enxergar além das câmeras, como se tornassem à milagrosa visão que tivera.

                   — O desafio ameaçador que ora nos confronta, nesses momentos de um conflito espiritual despedaçador, nestes dias de provação suprema. O grande momento do Juízo Final. Armagedon!

                   Instantaneamente, a catedral foi sacudida pelo delírio, mas o vigário de Roma não se deteve. Nicolau se pôs a desfiar, uma a uma, as compulsivas premissas escriturais que levaram às aterradoras conclusões de seu decreto. Qual um relógio em disparada, a lógica irrefutável dos indiciamentos escriturais de Di Concerci foram golpeando a Congregação até o ponto de ruptura. E à medida que os argumentos devastadores foram se desdobrando, Feldman, que ficara de pé para melhor enxergar por cima da floresta de microfones diante do Papa, sentiu todo o sangue abandonar-lhe o rosto. Ele foi se sentando devagar em sua poltrona.

                   Bastante afastado do altar, numa seção especial destinada ao pessoal da mídia, um trêmulo e suado rabino Hirschberg se mantinha sentado, confuso, contendo com as mãos crispadas as pontadas em seu peito. Dirigiu-se, cambaleante, até um sanitário público, onde se juntou a vários outros clérigos empalidecidos e igualmente suados perto das pias. Mexendo em seu frasco de medicamentos, Hirschberg foi acidentalmente acotovelado por um padre nauseado que passava às pressas. O frasco escapuliu de suas mãos, caindo sobre o soalho de mármore e rolando por baixo da porta de um dos compartimentos do toalete.

                   Lá fora, na basílica, o Papa estava chegando ao clímax de seu pronunciamento.

                   — Devo considerar desnecessário, para mim, invectivar esses pontos ainda mais — declarou ele. — A esta altura, espero que a verdade esteja se tornando bastante clara para vocês. A esta altura, vocês já podem ver que o paladino que se opõe ao Mal, e que aquilo que o Mal tenta destruir é certamente a Santa Madre Igreja. E, decerto, já conhecem a identidade do Mal. Vocês reconhecem a falsa profetisa que surgiu entre nós, executando feitos estranhos e mandando-os abandonar sua fé, afastar-se de suas igrejas, ignorar as tradições sagradas da comunidade religiosa que a humanidade cultiva com tanta reverência desde os primórdios da história registrada.

                   Não preciso lhes dizer que o nome do Mal é Jeza, ou Jezebel, conforme a identifica o Livro do Apocalipse. Mas preciso, sim, afixar-lhe mais um rótulo. Um título terrível que agora já deve estar claro para vocês.

                   Venho diante de vocês esta noite para fazer um solene decreto ex-cathedra, a primeira declaração deste tipo feita pela Igreja Católica em várias décadas. Venho até vocês como o sucessor supremo de São Pedro, invocando a infalibilidade da Igreja no juízo da fé e da moral que une todos os fiéis.

                   Portanto, eu decreto para vocês, ex-cathedra, que esta mulher, conhecida pelo mundo como Jeza de Israel, não é o Novo Messias; não é um Novo Cristo; não é uma profetisa de Deus. Pelo contrário, ela é a falsa que a Bíblia profetiza. É inimiga da verdade e a maior das imoralidades contra a qual os fiéis se preparam há dois milênios. Ela é a grande antagonista, a sedutora profana, a prostituta da Babilônia... Jeza de Israel é o Anticristo!

                   Diante desse pronunciamento terrível, o desespero e a histeria viscerais que vinham se contendo desde a virada do milênio foram de súbito liberados. A catedral desandou em pânico e desordem descontrolados.

                   — Precisamos reunir o exército de Deus! — exortou suas tropas o Papa, bradando em tom mais alto que o alarido vigente. — Precisamos nos opor a essa Jeza de toda e qualquer forma possível, combatendo esse mal até a morte, de corpo e alma, com todo ímpeto de nossas forças até que o Senhor Jesus Cristo venha em Juízo nos libertar!

                   Feldman enterrou o rosto nas mãos, enquanto a enorme basílica reverberava em frenética agitação. Por que deixara de perceber essa trama do Anticristo, ele não sabia. Talvez fosse a próxima etapa previsível nessa guerra bruta e ininterrupta de enaltecimento a um indivíduo exclusivo. E, infelizmente, pelo que parecia, enquanto essa bizarra batalha de vaivém prosseguia rumo ao seu desfecho, a Igreja acabava de desferir um golpe fulminante contra a Messias.

                   Feldman estava estarrecido e furioso. E preocupado. Não somente mais conflitos mundiais seriam doravante inevitáveis, como também Feldman sabia que a vida de Jeza corria agora sério perigo.

                   Ainda presidindo diante da balbúrdia reinante na catedral, o Papa se esforçava para retomar o controle. O que conseguiu, com muita mestria, ao invocar a promessa do "glorioso reino dos mil anos" de Cristo, ordenando que a multidão se acalmasse imediatamente para receber uma bênção especial de "expiação". Desesperadamente dependentes da Igreja para sua sobrevivência agora, os fiéis responderam prontamente, concordando, temerosos.

                   Dentre a miríade de emoções que lhe assomavam, Feldman estava levemente consciente de uma presença à sua direita. Em preparação para a entrevista a seguir, um funcionário da RMN colocara o cardeal Di Concerci sentado numa poltrona vazia ao lado de Feldman. O repórter, tomado de raiva e espanto pelo que acabara de ouvir, virou-se para encarar o olhar caracteristicamente imperturbável do prefeito. Um olhar desta vez marcado por um leve toque de vitoriosa satisfação.

                   Feldman não esperou que Nicolau concluísse sua bênção, nem que as câmeras se voltassem para a entrevista ao vivo. Em contrapartida direta ao pronunciamento ex-cathedra, Feldman confrontou o cardeal.

                   — Vocês têm alguma noção do que fizeram? — gritou ele. — Sua Igreja acaba de lançar o mundo de encontro a um derramamento de sangue. Uma violência! Esse seu decreto é uma sentença de morte contra Jeza.

                   Erin Cross, que estivera sentada à esquerda de Feldman, absorta pelo surpreendente mandado do Papa, foi arrastada de volta à realidade pela explosão espontânea ao seu lado. Ela colocou a mão sobre o braço de Feldman para acalmá-lo, sem efeito algum.

                   Como quem dita as regras a partir de uma posição de força superior, o prefeito respondeu calma e secamente.

                   — Trata-se de uma observação surpreendente vinda de um representante da RMN, considerando-se que a sua rede de notícias é, de maneira bastante singular, muito mais responsável por tensões mundiais do que qualquer outro fator.

                   Os diretores e as equipes de filmagens da RMN, apanhados de surpresa pelo início precoce da entrevista, estavam todos virados na direção oposta, para o Papa. Voltaram-se freneticamente, gesticulando uns para os outros, confusos, como que a se desculpar, incapazes de decidir se deveriam interromper o imbróglio e recomeçar a entrevista ou simplesmente dar continuidade à altercação em andamento. Mas o olhar de Feldman lhes fez ver que não havia como voltar atrás. As câmeras foram giradas para a posição pertinente, as luzes foram acesas, os cabos retirados do caminho aos pontapés e os microfones de teto baixados. Erin recebeu sinais para que saísse de cena, deixando os dois combatentes a sós no ringue.

                   — Não interessa quem é responsável pelas tensões no mundo­ — redargüiu Feldman, enquanto as câmeras davam um close de seu rosto contraído. — O que importa é que vocês estão numa posição de mitigar a violência. Mas, pelo contrário, vocês invocam o Armagedon! Pensem só no incrível sofrimento humano que isso irá causar.

                   O cardeal não hesitou.

                   — Se for a vontade de Deus que haja sofrimento humano, então não é da alçada da Igreja interferir.

                   O repórter ficou atônito.

                   — Decerto não é o desejo de Deus que haja mais violência e matança insensata.

                   — Nem você nem eu podemos presumir a intenção de Deus, tampouco tentar julgá-la — declarou o prefeito, terminantemente. — Você acha que Lot, do Antigo Testamento, compreendeu a aniquilação divina de Sodoma e Gomorra? Ou que Noé foi capaz de compreender totalmente a ira de Deus quando o dilúvio inundou todos os povos do mundo? Não cabe ao homem questionar os trabalhos do Todo-Poderoso!

                   Feldman não estava à altura de Di Concerci, e ele sabia disso. Sua ira o levara a um ataque prematuro nesta batalha, desarmado e impensado. Ele tentou ansiosamente avistar por trás do brilho ofuscante das luzes o seu parceiro de equipe, mas Mordachai Hirschberg não estava em lugar algum que ele visse.

                   Ele desviou o contra-ataque.

                   — Voltar um homem contra outro, tal qual vocês fizeram, não é um ato de Deus. Ninguém tem autoridade para fazer isso.

                   Di Concerci se reclinou na poltrona, no controle da situação.

                   — Sr. Feldman, a Igreja é um ato de Deus. A Igreja, com todas as falhas humanas que sua rede tanto gosta de ressaltar é, não obstante, o instrumento de Deus na Terra; estabelecida pessoalmente por Jesus Cristo para guiar os fiéis e instruí-los sobre os caminhos do Senhor. Se você se dispusesse a apreciar este aspecto em sua inteireza, perceberia que o decreto ex-cathedra não é um documento político. Não é emitido em defesa de propriedades ou posições, conforme não faltará quem argumente. É o resultado de intensa meditação espiritual, consagrada por revelação divina.

                   Enquanto o cardeal falava, Feldman pegou um bloco de cima da mesinha de centro e se pôs a escrever freneticamente "Onde está o Rabino? Achem-no agora!", passou a nota para um contra-regra fora do alcance das câmeras.

                   — Deus falou para Sua Igreja, sr. Feldman, direta e claramente — ­ continuou Di Concerci. — E o decreto, por mais inquietante que seja, é de fato o desejo de Deus.

                   O rosto de Feldman fora se ensombreando gradativamente e sua voz começava a soar estridente.

                   — Mesmo admitindo que o decreto seja o desejo de Deus — argumentou — seria necessário que o homem executasse a retribuição de Deus? A meu ver, "A vingança me pertence, disse o Senhor" era um conceito bastante decente. — Ele vasculhou a mente, buscando em seu parco acervo de conhecimento das escrituras. — E quanto a “Ama teu vizinho como a ti mesmo" e "Não matarás"? Ao proclamar Jeza como o Anticristo, a Igreja a condenou à morte. Como vocês poderão conviver com esse fato?

                   — Você deixa que as aparências o ceguem para a verdade diabólica, meu jovem amigo — retrucou o cardeal, com uma fisionomia de preocupação sincera se desenvolvendo em seu rosto. — Que ardil mais traiçoeiro poderia Satã elaborar do que o de forjar seu mensageiro como uma jovem e bela mulher? Uma moça aparentemente inocente e indefesa! Entretanto, uma mulher de um magnetismo impressionante, excelente capacidade de oratória e muita autoridade. Uma mulher capaz de olhar dentro de sua alma e conhecer tudo a seu respeito... suas fraquezas, simpatias, vulnerabilidades. — Seus olhos penetraram os de Feldman com acusação e sua voz entoou, sabedora: — ... de seduzi-lo e de manipulá-lo! 

                   Tal observação deixou o repórter cristalizado. A muito custo, Feldman conseguiu se desfazer das imagens desconcertantes que o prefeito implantara-lhe à força. Mas ele se deu conta de que tinha poucas reservas sobrando. Não conseguiria mais sustentar uma discussão teológica. Sem o rabino, Feldman só tinha uma esperança de reverter a direção aparentemente inexorável deste debate desigual. Tomando fôlego profundo, ele controlou a própria raiva, posicionou-se de frente para as câmeras e voltou o olhar resoluto para os excitadíssimos telespectadores grudados aos seus aparelhos de TV:

                   — Em toda a minha carreira de repórter — declarou Feldman, clara e vigorosamente — jamais tentei inserir minhas próprias opiniões editoriais em meu trabalho. A cobertura totalmente imparcial de notícias sempre esteve no âmago de tudo que valorizo como jornalista. Mas esta noite, diante do que acabo de testemunhar, não posso mais continuar impassível. Não posso mais ficar aqui sentado e deixar que o destino dessa inocente mulher, Jeza, e de seus seguidores, seja revirado pelas acusações provocadoras, falsas e feitas a serviço próprio contra ela.

                   Obviamente, não tenho o preparo adequado para discutir as escrituras com este sábio cardeal aqui presente. Não tenho formação religiosa formal, mas há uma habilidade relevante que trago comigo para este debate: meu conhecimento e minha perícia como um observador treinado. Sou um repórter. Um jornalista profissional, com experiência na busca e no reconhecimento da verdade. E no exercício desta qualificação que indubitavelmente possuo, eu gostaria de fazer uma observação importante para todos vocês que estão assistindo a estes desdobramentos perturbadores.

                   Devido a um notável lance de sorte, eu tive a oportunidade de uma convivência mais próxima e pessoal com Jeza do que qualquer outro ser humano vivo, que teve início na ocasião de sua primeira aparição pública há quase três meses. Com esta perspectiva exclusiva e privilegiada, vejo que estou muito mais qualificado para defini-la do que qualquer de seus acusadores. Posso solenemente atestar-lhes que nenhum dos argumentos levantados pelo Vaticano hoje à noite parece verdadeiro. Nenhum deles emana de observações diretas de Jeza. São todos teóricos. Acadêmicos. É tudo especulação teológica.

                   Nenhum desses argumentos serve para avaliar Jeza de uma maneira justa, em que se possa acreditar... Após algum convívio com ela; depois de ver o seu carinho com as crianças; a sua bondade com os idosos; a sua sensibilidade e generosidade para com os pobres, os doentes e os desassistidos. Nenhum desses argumentos leva em conta o carinho e a troca sincera que ela estabelece com as pessoas com quem compartilhou diretamente a sua mensagem. Não posso deixar de contar-lhes que a Jeza que conheci é uma Jeza muito diferente da imagem que este cardeal e o Papa pintaram para vocês hoje. A Jeza que conheci e aprendi a apreciar não é o Mal. Ela não ilude, não é ardilosa nem hedionda. A Jeza que conheci é amorosa: uma criatura adorável. Pessoa sensível, que se acha profundamente amargurada diante da hipocrisia, da auto-afirmação, do materialismo e da política que vê fixadas permanentemente nas estruturas das religiões estabelecidas do mundo...

                   Interrompendo-o audaciosamente, Di Concerci retomou o foco das câmeras, dirigindo-se diretamente ao público mundial agora.

                   — Vocês não devem se esquecer de que Satã é o artífice mor dos ardis. Ele fala através de meias-verdades convincentes, de forma a atingir seus propósitos ulteriores. Embora possa parecer que Jeza se preste a um propósito mais elevado ao expor as falhas humanas das religiões mundiais, com que finalidade ela faz isso? Não é a verdadeira reforma. Ela não busca "limpar o templo", conforme fez Cristo. Ela busca destruí-lo. Destruir a religião que conhecemos! Vejam os resultados de seu trabalho. Acaso o mundo está melhor agora? As pessoas têm mais moralidade? Estão mais felizes? Em melhor situação que antes da chegada dela? Certamente que não! De fato, ao analisarem a deterioração disseminada que ocorreu ao mundo como resultado de seu breve ministério, vocês poderão constatar a perigosa ardileza e a verdadeira genialidade de Satã. E é por isso que está claro, inquestionavelmente, que o Segundo Advento se faz presente. As circunstâncias estão de tal forma degeneradas que só há uma pessoa com o poder e a glória para fazer esta comunidade terrena voltar à normalidade. E esta pessoa certamente não é Jeza!

                   Os olhos de Feldman imploravam às câmeras por razão.

                   — Não posso ficar aqui sentado e dizer-lhes que sei ao certo se Jeza é ou não um novo Messias enviado por Deus. Apesar de todo o tempo que convivi com ela, de todos os nossos afazeres juntos, ainda não conheço a resposta para esta grande pergunta. Mas o que posso lhes dizer é aquilo que creio no fundo do meu coração. E é o seguinte: na pior das hipóteses, esta pequena mulher, isolada, não é merecedora de todo o ódio e violência que se levantou em torno dela. Na pior das hipóteses, ela nada mais é do que um ser humano inteligente, de boas intenções e tragicamente enganado. Não é uma criatura sinistra e diabólica, mas sim uma pessoa única e extraordinária... Uma vítima inocente, privada de sua infância, separada de sua família; a quem sua humanidade e identidade foram negadas. Iludida e presa a uma trama que lhe confere um papel impossível! Um papel trágico, com conseqüências desastrosas, para si própria e para toda a humanidade — a raiva se impôs em sua voz e ele apontou acusadoramente para o cardeal ao seu lado — se vocês derem ouvidos a este homem!

                   Consciente, ele se recompôs, apelando diretamente para a câmera.

                   — Tudo o que lhes peço é algo bastante razoável e simples: peço apenas que esperem. Só isso. Que esperem, apenas! Não façam nada. Não ajam nem tomem decisões; esperem apenas. Se Deus estiver de fato exercendo o Seu Juízo sobre nós, tudo isto ficará claro muito em breve. Sem que haja violência nem derramamento de sangue, provocados pelo homem de forma a obscurecer essa verdade!

                   — Já está claro — voltou Di Concerci à carga, com os olhos chamejantes.

                   — Não está claro. Não! — fez-se ouvir uma voz sôfrega e arfante fora do enquadramento das câmeras, insistindo com veemência. — Os sinais finais não estão evidentes ainda.

                   Precisando da ajuda de dois contra-regras da RMN, um aflitíssimo e empalidecido, mas determinado, rabino Hirschberg chegou à sua poltrona.

                   Feldman teria se sentido aliviado, não fosse pela aparência alarmante do parceiro.

                   — Rabino! — Feldman deu um salto, em socorro do rabino.

                   — Agora está tudo bem — assegurou-—lhe Hirschberg com uma careta, tomando escrupulosamente o seu assento e gesticulando para que Feldman retomasse o seu. — Temos questões mais importantes no momento.

                   Feldman não se sentiu reconfortado com isso, mas acabou aquiescendo, ainda que vacilante, ao desejo do rabino.

                   — Senhoras e senhores — anunciou ele para o seu público mundial — tenho o prazer de apresentar-lhes uma autoridade bíblica notável, o líder espiritual do movimento Lubavitcher dos judeus Hasidas, o rabino Mordachai Hirschberg.

                   Se o prefeito ficou surpreso com a chegada inesperada e não-anunciada deste intruso, ou se viu no adversário com melhores credenciais um desafio a mais, não deixou nada disso transparecer. Di Concerci reconheceu com um aceno sumário a presença do rabino, que correspondeu, desconfiado. Apesar da enfermidade aparente, ficou óbvio que Hirschberg não estava disposto a retroceder em sua missão.

                   — Devo dizer-lhe, cardeal Di Concerci — esforçou-se ele para falar entre uma tomada de ar e outra, com a indignação a substituir-lhe o desconforto expresso no rosto — com toda a sinceridade que, embora eu respeite o seu pontífice e seu ofício, estou pasmo diante do que ouvi aqui hoje. Devo concordar com as observações deste jovem. Não há razão para acirrar o confronto. Por que vocês não podem agir conforme sugere o sr. Feldman? Por que vocês não podem simplesmente aguardar e esperar que os sinais finais previstos em seu Apocalipse se manifestem antes de incitar esta linha de ação destrutiva?

                   Di Concerci deixou passar um intervalo dramático de tempo, fazendo com que a catedral inteira caísse no mais absoluto silêncio antes de responder.

                   — Porque, meu bom rabino — afirmou ele, com uma voz de convicção inabalável— os sinais finais estão evidentes.

                   — Besteira! — chacoteou Hirschberg. — Há muitos sinais críticos que ainda não foram revelados. Onde está a marca do demônio? Você e o seu Papa se apressaram em rotular Jeza de Anticristo, criada de Satã. Mas eu os desafio, mostrem-me a marca do demônio sobre Ela! O seu Livro das Revelações requer que a marca da besta seja claramente visível sobre o Anticristo. Onde Satã está escondendo seu selo maldito?

                   Di Concerci se inclinou para a frente e estreitou o foco de seu olhar sobre o desafiante.

                   — A marca da besta se encontra precisamente onde diz a profecia. Na cabeça do Anticristo. Se analisar atentamente o vídeo em que filmaram Jeza no monte das Beatitudes, você vai perceber, totalmente visíveis sob os cabelos dela, no couro cabeludo, as queimaduras deixadas pelas pontas dos dedos de Satã onde o Maligno a ordenou. Ela foi reclamada pelo diabo. Ela é o Anticristo ungido.

                   O rabino se assustou.

                   — Essas marcas não são as de Satã! — exclamou. — Meu Deus, homem, isso de que você fala são apenas as queimaduras deixadas na pobre moça pelos eletrodos que Ela foi forçada a usar durante a Sua cruel gestação! Você distorce as coisas para que se ajustem aos seus desígnios.

                   — Eu não distorço nada — sustentou o cardeal. — É você que racionaliza.

                   Hirschberg não estava disposto a ceder.

                   — Há outros sinais finais, muito mais críticos, que você ignora conforme a sua conveniência — insistiu o rabino. — Ainda falta identificar para nós os sinais da batalha do Armagedon! O seu Papa alega que estejamos às vésperas do Juízo. Mas onde, eu lhe pergunto, estão os exércitos de Gog e Magog, os profetizados exércitos do Armagedon?

                   Di Concerci pressionou os lábios um contra o outro, em triunfo contido. Virando-se para a câmera, ele pegou um bloco de papel em branco sobre a mesinha de centro.

                   — Será que posso trazer à atenção do meu estimado colega — disse ele, escrevendo sobre o bloco com um marcador de ponta grossa uma palavra que não deixou ver — uma observação bastante conspícua que parece não ter sido notada por ele?

                   O rabino abriu as mãos diante de si e arqueou as sobrancelhas, com ar indagador.

                   — Rabino — falou Di Concerci — você acaba de fazer referência aos exércitos apocalípticos de Gog e Magog?

                   — Sim — confirmou o rabino, desdenhosamente. — São dois importantes sinais de Armagedon que ainda não foram revelados. Na profecia do Antigo Testamento, Ezequiel 38 e 39: Gog é o príncipe da terra de Magog que atacará Israel na batalha de Armagedon e será destruído. Desta forma, os nomes de Gog e Magog aparecem novamente em seu Livro da Revelação, capítulo vinte, versículo oito. Este representante temporal de duas entidades separadas de Satã, os dois perniciosos exércitos do Anticristo.

                   Di Concerci exultou com a certeza do outro.

                   — Teria você se esquecido, Rabino — perguntou ele, marcadamente — de que os nomes das duas maiores facções que atualmente se opõem entre si quanto à questão da divindade de Jeza são conhecidas como os Guardiões de Deus e os Guardiões Messiânicos de Deus, respectivamente?

                   Hirschberg caiu para trás em sua poltrona como se um raio o tivesse atingido.

                   O prefeito prosseguiu com o que agora era óbvio.

                   — Quando se subdividiram em suas siglas separadas — disse ele, pleno de satisfação, virando o bloco de forma que tanto Hirschberg quanto a câmera pudessem ver as duas frases que escrevera — tanto os Guardiões de Deus quanto os Guardiões Messiânicos de Deus revelaram os dois nomes apocalípticos do Livro da Revelação, GOG e MEGOG... ou Magog, se assim preferir. São estes os dois exércitos que a profecia diz que descerão sobre Jerusalém, vindos do norte, das antigas montanhas da cidade de Meguido, Israel. — ­Ele tornou a escrever sobre o bloco. — Em hebraico, “HAR” significa “montanha”. Portanto, tem-se “Har Megido”, ou “H-A-R-M-E-G-I-D-O-N”. Ou seja, “Armagedon”, conforme todos conhecemos.

                   Hirschberg afundou em seu assento. Os nós dos dedos de Feldman estavam esbranquiçados pelo esforço com que seguravam os braços da poltrona.

                   — E agora — falou Di Concerci, virando-se de lado para encarar Feldman de frente, — deixe-me chamar sua atenção para outra informação convenientemente ignorada, sobre a qual você também deveria estar ciente. Conforme já sabe, sua Jeza traz no cérebro alguns neuromicrochips sofisticados, que lhe propiciam variadas e espetaculares funções. Deixe-me relembrar-lhe que um desses chips... e eu estudei pessoalmente as descrições registradas nos diários de Leveque... Um desses chips por acaso é um avançadíssimo dispositivo de transmissão e recepção de comunicações. Conforme as explicações do próprio Jozef Leveque, esse microchip exclusivo é acionado pelas correntes eletroquímicas normais do cérebro e foi projetado tanto para transmitir quanto para receber mensagens em forma de telepatia silenciosa.

                   O cardeal concedeu algum tempo para que tais fatos assentassem nos ouvintes.

                   — Digo, então, que tudo que sua profetisa precisa fazer é virar a cabeça na direção certa para enviar ou sintonizar mensagens em qualquer freqüência de rádio ou microondas; enviar e receber mensagens via satélite; entrar em qualquer banco de dados de computador e vasculhá-lo conforme sua vontade, no momento que quiser, para obter qualquer informação que lhe interesse. Toda a rede computacional do mundo é o cérebro dela, sr. Feldman. Jeza pode acessar qualquer inteligência, todo o conhecimento coletivo da humanidade, sempre que desejar, bastando apenas pensar. Tudo isso explica sua mente aparentemente onisciente. O que também explica como Jeza foi capaz de penetrar nos arquivos secretos do Vaticano com tanta eficácia. Ela conhecia tudo sobre os registros papais na Biblioteca Secreta porque todos esses dados haviam sido inseridos nos arquivos dos computadores do Vaticano.

                   O que também explicava, teve de admitir Feldman para si mesmo, ainda que aturdido e desanimado, como Jeza poderia ter ficado sabendo acerca de seu trauma na tenra infância: acessando os registros no computador de seu terapeuta.

                   Di Concerci não parou para saborear sua performance, executada com maestria. Continuou, visando atingir seu ponto final.

                   — O que é ainda mais perturbador, cavalheiros — disse, com o comportamento mais intenso e a voz assumindo um timbre pressagioso — é a enorme probabilidade de que a sua chamada Messias não esteja no controle absoluto de seus pensamentos ou ações. Eu suponho que esteja acontecendo justamente isto: ela ainda está recebendo instruções especiais, que lhe são enviadas através do dispositivo cerebral que traz dentro da cabeça. Ela é, ouso dizer, um robô vivo. Um escravo cibernético, obediente aos mandados de forças do Mal. Não uma mensageira de Deus, mas apenas uma mensageira. Uma mensageira enviada por indivíduos de dentro do Ministério da Defesa israelense! Jeza e seus supervisores secretos, sejam eles quem forem, são agentes do demônio.

                   — O que o mundo enfrenta aqui, meus bem-intencionados amigos — ­assegurou Di Concerci, bombasticamente — é a última palavra em perversão de deus ex-machina. Jeza não é a entidade inocente e benigna que aparece para vocês sob o disfarce de uma mocinha doce. Ela é, de fato, o Anticristo. A Falsa! Seja ela feita pelo homem ou enviada dos infernos, os principais sinais da profecia apocalíptica estão agora evidenciados.

                   Não houve tempo para rebate; o período de programação alocado para a RMN pelo Vaticano se esgotara. Não que Feldman ou Hirschberg tivessem qualquer defesa para apresentar em contrapartida à totalidade desses argumentos. Os dois ficaram simplesmente prostrados em suas poltronas, no mais abjeto desânimo, enquanto Erin entrava novamente em cena para resgatar o sinal de fechamento.

 

                                         Vaticano, Roma, Itália

                                         22:53, segunda-feira, 3 de abril de 2000

                   Parado na Praça de São Pedro, sobre os paralelepípedos umedecidos pela névoa, Feldman viu a ambulância abrindo um estreito caminho através da massa de gente aglomerada diante dos portões do Vaticano. Mordachai Hirschberg estava sendo levado para um hospital das redondezas, acometido de angina aguda.

                   Feldman sentiu-se culpado por ter enviado funcionários da RMN, quando deveria tê-lo acompanhado pessoalmente. Mas o rabino não era o único cujo coração padecia. Os eventos da noite haviam deixado o repórter profundamente amargurado e ansioso. Tendo se recusado a jantar com seus associados europeus, ele estava sozinho e preocupado perto da van, impacientemente esperando por uma carona para o hotel, onde o aguardava um banho quente e o abençoado alívio do sono. Batidas de saltos de sapatos foram se aproximando por suas costas e Feldman sentiu um braço consolador envolver-lhe a cintura com suavidade.

                   — Você foi absolutamente cavalheiresco hoje, Jon — elogiou-o Erin, chegando mais para perto dele. — Estou orgulhosíssima da maneira como você se colocou contra aquele cardeal.

                   Ele olhou ao redor, bufou e voltou a esquadrinhar a multidão.

                   — Que diabo de bem que eu fiz! — reclamou ele, causticamente. ­— Jeza está completamente vulnerável agora. Só Deus sabe quanto tempo ela sobreviverá daqui para a frente.

                   — Você e o rabino fizeram tudo o que puderam — assegurou-lhe Erin com um aperto. — Como é que você poderia saber os trunfos que o Vaticano estava escondendo?

                   — Eles foram mais espertos do que nós — reconheceu Feldman. — Di Concerci nos preparou uma armadilha perfeita, guardando aqueles malditos sinais finais para depois e nos pegando de emboscada. Nós caímos direto, fomos... — Ele se desnorteou, erguendo as mãos para a frente com as palmas voltadas para cima numa expressão de absoluta futilidade.

                   — Sabe, Jon, o que a gente precisa é de se recolher para refazer as forças. E pensar em alguma coisa. Outra reportagem especial, talvez. Mas neste exato momento, você precisa afastar os pensamentos de tudo isso. Você está todo tenso. Não comeu nada o dia inteiro. — A voz dela assumiu o tom de uma mãe dando sermão. Ela girou em torno dele, jogando os cabelos, colocando­-se entre os braços ainda estendidos, até que ele não conseguiu mais evitar seu olhar. — O que você precisa é de um jantar quentinho e de um drinque forte.

                   Ele balançou a cabeça, afastou-se e virou-se para o lado, mas ela o acompanhou.

                   — Vamos encontrar uma pequena e sossegada trattoria onde você possa relaxar — insinuou ela — jantar...

                   Ele foi se encolhendo até que encostou na lateral da van, o que o retirou da inoperância. Segurando-a pelos ombros com firmeza, ele a afastou até que seus braços estivessem esticados.

                   — Não! — declarou Feldman bruscamente, com um olhar carrancudo estampado no rosto.

                   Ela mostrou-se magoada, virou-se e ficou olhando para o chão. Lembrando-se da história que Hunter lhe contara sobre a infância dela, Feldman imediatamente se arrependeu. Fez-lhe um rápido carinho nas costas em sinal de desculpas e abrandou o tom.

                   — Erin, queira me desculpar. Eu não queria gritar com você desse jeito; é que agora eu estou muito chateado.

                   Ainda desviando o olhar, ela aceitou as desculpas.

                   — Sabe — ele sugeriu, apontando para um grande número de repórteres e jornalistas que se protegiam da garoa sob os beirais da enorme catedral. — Tem uma dúzia de figurões da RMN que dariam a vida para mostrar-lhe a cidade. Isso tem boas conseqüências em termos de carreira. Vá lá e se divirta.

                   Ela voltou a ficar de frente para ele, com a garoa formando gotículas nas pontas das franjas do cabelo, sobre as quais se refletiam as luzes da catedral de São Pedro que, vindas por trás, davam-lhes o aspecto de pérolas. Havia o fulgor de uma nova consciência nos olhos de Erin.

                   — Você ficou realmente envolvido por aquela menina, não é mesmo? — arriscou, estudando-lhe o rosto com atenção. — Ela o dominou, conforme disse o cardeal...

                   Feldman evitou o olhar dela.

                   — Estou preocupada com você, Jon — falou ela, arfando. — Eu gostaria de ajudar. — Mas a expressão dela era de curiosidade, não de compaixão.

                   Feldman voltou para o seu quarto no hotel. Bateu a porta, tirou logo as roupas, embolou-as e jogou-as num canto do banheiro, como se estivessem contaminadas. No demorado banho quente que se permitiu tomar, ele tentou se livrar dos resíduos da noite.

                   Ao terminar, enrolou uma toalha em torno da cintura e puxou outra para a cabeça a fim de secar os cabelos. Saiu do banheiro e caminhou às cegas para o outro aposento, na intenção de ligar a televisão e ver como o mundo reagira à sua última transmissão incendiária. Mas acontece que ele tropeçou num objeto inesperado.

                   Feldman sentou-se no chão e ficou balançando o corpo para a frente e para trás, esfregando os doloridos dedos do pé. Por debaixo da toalha que pendia de sua cabeça, ele conseguiu ver o tapete todo salpicado de cubos de gelo, que se esparramavam para além de um tripé, um balde de gelo prateado, com uma enorme garrafa de champanhe dentro, e um bilhete. Ele pegou o envelope, abriu e leu:

                   “Vamos comemorar. Erin.”

                   Ela certamente tomara tais providências antes da transmissão do programa. Ele jogou o cartão fora e pegou a garrafa. Tirou a rolha e se escondeu embaixo da toalha enquanto a espuma jorrava. Assim que a efervescência passou, ele ligou a televisão e voltou a sentar-se no chão, entre as pedras de gelo espalhadas e os salpicos de champanhe, tirando bons goles diretamente da garrafa.

                   Os últimos relatos não eram reconfortantes. O decreto ex-cathedra fora levado à risca por uma quantidade considerável de público. Entretanto, ainda não havia notícias de Jeza, nem de seu paradeiro atual.

                   Apontando acusadoramente uns para os outros, tanto os Guardiões de Deus quanto seus ferrenhos rivais, os Guardiões Messiânicos de Deus, tinham renovado o ímpeto para aniquilar cada qual o seu adversário. Um estava firmemente convencido de que o outro era o profetizado exército de Satã, e vice-versa.

                   Além disso, ficou sabendo Feldman, líderes milenaristas dos dois campos estavam mobilizando suas forças, instigando seus seguidores fanáticos a voltarem imediatamente à Terra Santa para o agora iminente Segundo Advento.

                   O repórter ficou ainda mais alarmado assistindo às cenas de descontrolado fervor religioso. Eram as Novas Cruzadas, pensou consigo mesmo, desesperançado.

                   Ele se pôs de pé com a intenção de eliminar um pouco do líquido que consumira, mas percebeu que estava ligeiramente tonto. Tornou a sentar-se sobre a cama, tendo à mão uma garrafa de champanhe pela metade. A intensidade dos noticiários, concluiu, o reduzira a um estado de fixação oral. Ele tomara o champanhe em grandes goles, como se fosse água mineral.

                   Uma vez que o seu equilíbrio se estabilizou, ele levantou o tripé, encaixou o balde e devolveu a garrafa ao seu lugar de origem. O simples esforço deixou-o nauseado, devido à falta de alimento o dia inteiro.

                   Ele colocou os óculos sobre a mesinha-de-cabeceira, deixou a toalha cair ao chão e se enfurnou debaixo dos lençóis fresquinhos. Com o rosto enfiado no travesseiro, ele correu a mão sobre o batente da cama contra a parede em busca do interruptor da luz e inundou o apartamento numa escuridão muito bem-vinda.

                   Feldman dormiu profundamente por um bom período antes de começar a ter mais um sonho. Desta vez, estava só no deserto, à noite; um nômade a vaguear. Perdido, solitário e confuso. E desesperadamente cansado. Ele cambaleou e caiu, exausto, com o rosto enterrado na areia. Subitamente, surgiu uma luz forte à sua frente e ele levantou os olhos, deparando com uma visão etérea de Jeza, pairando acima do solo, flutuando, de braços estendidos, com a silhueta ressaltada pela luz da lua cheia, com os panos de sua túnica, extraordinariamente comprida, esvoaçando ao redor. Ela falou com ele, mas Feldman não conseguiu entender.

                   De repente ele se deu conta de uma mancha vermelha sobre a areia do deserto bem diante de seu rosto, como se o sol estivesse nascendo por trás. Ele olhou para cima e Jeza também estava banhada por um brilho róseo. Ela fixou o olhar na direção da luz. Ele se virou de lado e olhou por cima do próprio ombro. Mas não era o sol que estava brilhando ali atrás, era um meteoro; um enorme fogo dos infernos, apontado diretamente para ele. Feldman ficou petrificado.

                   O meteoro o atingiu, mas ele nada sentiu. Houve um tilintar qual a campainha de um telefone, bem alto; o ruído parou e logo tornou a soar, e mais uma vez. Uma chuva de fagulhas, uma luminosidade à sua volta, e um sentimento de confusão e desamparo. Ele girou o corpo por reflexo, deitando-se de costas, mantendo uma das mãos esticadas à frente para se proteger, escondendo o rosto na dobra do outro braço. Alguém chamava seu nome, baixinho. E, finalmente, Feldman percebeu que aquilo nada mais era do que outro sonho. Relaxou, despertou e tirou o braço da frente do rosto para abrir os olhos.

                   Estava em seu quarto no hotel. Mas não estava acordado. Ali, flutuando no ar, na escuridão, logo além da borda de sua cama, encontrava-se a figura reluzente de Jeza. Maior do que seu tamanho real. Mais luminosa do que o real. Seus braços estavam esticados para ele, a túnica aberta, revelando uma nudez divina, surreal, fosforescente.

                   — Jon — ela tornou a chamar seu nome. Ele se recostou sobre os cotovelos e tentou focalizar os olhos míopes, amortecidos pelo álcool, naquela aparição. Jeza desceu do espaço, pisando sobre a cama dele, pondo­-se de joelhos, montando-o.

                   Aquilo não era um sonho! Ele conseguiu sentir a movimentação da cama quando ela pisou sobre o lençol e deixou seu peso se apoiar nele, os seios nus roçando-lhe o peito. Ela o abraçou, afagando-lhe o rosto com as mãos úmidas, cálidas, carinhosas. Ele sentiu os lábios molhados dela envolvendo os seus.

                   Deixando de se apoiar nos cotovelos, recostando-se novamente, ele liberou o movimento dos braços e pegou o rosto luminoso na palma das mãos. Aquela enorme cabeleira revolta era certamente a de Jeza. Era certamente o brilho de Jeza, embora reluzisse ali ainda mais. Mas não era Jeza!

                   — Venha me amar — sussurrou-lhe a voz.

                   Ele recolheu as mãos e as palmas luziram na escuridão.

                   — Erin? — engasgou-se.

                   — Venha me amar, Jon — sussurrou-lhe ela, novamente.

                   — Erin, o que você está fazendo? Como você entrou aqui?

                   Ela se abaixou, esfregando-se contra o pescoço dele, e começou a se enroscar em seu corpo.

                   — Entregue-se a mim. Vamos, relaxe.

                   Agarrando-lhe os pulsos com firmeza, ele a desenroscou, desprendendo­-se dela à força, enquanto ela desmoronava ao seu lado em relutante resignação. Os lençóis da cama estavam manchados de uma luminescência.

                   — Porra, Erin! Como foi que você conseguiu entrar aqui? — Ele acendeu as luzes e apanhou os óculos.

                   Deitada de lado, com a cabeça descansando submissamente sobre o braço estendido, os cabelos caídos sobre o rosto, ela ficou calada durante algum tempo e logo disse, num suspiro:

                   — Eu falei para o recepcionista que nós éramos casados.

                   Exasperado, Feldman pegou a ponta do robe dela para cobrir-lhe a nudez desavergonhada.

                   — Caramba! O que foi que deu em você para fazer uma loucura dessas?

                   Ela afastou a mecha de cabelos que escorria sobre o seu rosto com um sopro para o alto.

                   — Se você ainda não percebeu, Jon — disse ela, girando os olhos para ele — "loucura" é a situação predominante no mundo atualmente. Uma pequena inoculação de loucura é exatamente aquilo de que você precisa para conseguir lidar com tudo isso.

                   — O que eu não preciso é de maiores complicações na minha vida — ele ­retrucou, irritado. — Por favor, deixe-me em paz.

                   — Não precisa haver complicações — assegurou-lhe ela, aproximando­-se mais um pouquinho. — Ninguém precisa saber de nada. — Ela se apoiou sobre o cotovelo e tornou a se inclinar para ele. — Eu posso levá-lo para bem longe de toda essa agitação — sussurrou baixinho. — Posso ser a mulher que você quiser que eu seja. Posso desobstruir sua mente e aliviar sua alma. E tudo que você precisa fazer é se entregar a mim. Basta se entregar — ronronou ela; o robe escorregou outra vez e seus seios pintados tornaram a reluzir, apontados para ele.

                   Não foi a sensualidade, mas a noção de se entregar que o atraiu. Sua psique, exausta das semanas a fio de desgaste emocional e frustrações, pedia uma fuga. Para deixar-se flutuar, sem peso, sem objetivo, nos éteres da irresponsabilidade. Feldman ficou calado, deixando que o conceito se apoderasse dele.

                   — Eu compreendo o que o está perturbando — declarou ela, sua confiança aumentando com a indecisão dele. — A maneira como você enfrentou aquele cardeal hoje! A maneira como você a defendeu dele! Ela o seduziu, não foi? — Erin sentou-se ereta, a fim de envolvê-lo mais diretamente, com os olhos se estreitando juntamente com a certeza de sua perseguição. — Você está apaixonado por ela. Está sob os seus encantos. Ela comprometeu sua relação com Anke e você não sabe o que fazer!

                   Encurralado pela verdade, Feldman continuou calado.

                   — Eu posso ajudar. — Ela avançou, persistentemente, correndo os dedos de uma das mãos suavemente sobre o relevo da musculatura peitoral dele. — Eu posso quebrar esse encanto, se você deixar.

                   Foi uma situação irônica para ele.

                   Durante toda a sua vida, sempre abdicara dos relacionamentos que ficavam difíceis ou complicados, indo rapidamente buscar consolo nos braços de outra mulher. Agora, emaranhado no mais complicado dos triângulos com Anke e Jeza, ele se recusava a fugir.

                   Tirando-a de perto de si, Feldman concluiu decisivamente a questão.

                   — Não. Você não compreende. Não tem nem como! Sejam quais forem os meus problemas, ninguém pode me ajudar com eles. Agora, Erin, vou lhe falar pela última vez: saia!

                   Ela soltou um profundo suspiro, recolheu as pernas para junto do corpo e girou graciosamente da cama para o chão, caindo sobre os pés, virada para o outro lado. Sem voltar o rosto, ela lamentou:

                   — Poderíamos ter sido perfeitos juntos. A quintessência dos casais da mídia... — Sua voz desapareceu, ela envolveu-se no robe e caminhou para a porta, saindo silenciosamente.

                   Vasculhando o quarto antes de apagar as luzes, Feldman percebeu a cadeira na extremidade da cama onde Erin se pusera de pé. Ele balançou a cabeça, entristecido, desligou o interruptor e enxergou manchas de tinta luminescente espalhadas ao léu por todo o quarto: na maçaneta, em fantasmagóricas pegadas deixadas sobre o tapete, encaminhando-se até a cama; uma impressão deixada por dedos da mão sobre o receptor do telefone da mesinha-de-cabeceira, nos lençóis, nele próprio. Ele desligou a mente e deixou-se cair sobre o travesseiro, entorpecido.

 

                                 Subdivisão de Brookforest, Racine, Wisconsin

                                 20:40, terça-feira, 4 de abril de 2000

                   — Esse negócio das escrituras é uma balela — disse o amigo de Tommy Martin. — Vamos para a seção das armas.

                   Tom Martin, Jr. estava sentado na penumbra de seu quarto com um amigo, diante da tela do computador, percorrendo rapidamente as páginas de fogo e enxofre do inferno no site dos Guardiões de Deus na Internet.

                   — Aí — indicou o amigo, e a imagem de um castelo medieval surgiu na tela. — É essa!

                   Movido pela impaciência, ele tomou o mouse da mão de Tommy e deu um clique sobre a figura. Imediatamente eles entraram num grande cômodo virtual, depois viraram para a direita num corredor iluminado por tochas em direção a uma porta onde se lia "Guarda das Armas".

                   Os olhos de Tommy se arregalaram.

                   — Olhe só — o menino apontou para a tela — eles dão todas essas armas radicais e basta dar um clique na que você preferir que eles mostram exatamente como construir.

                   Ele direcionou a atenção de Tommy para um porrete curto, grosso e pontudo, com o punho esculpido e uma bainha.

                   — Está vendo, tem essa coisa aqui chamada tronchoun. A gente usa para bater no inimigo e também para dar estocadas. É feita de madeira, como aquelas estacas ritualísticas de matar vampiros. Só que com essa aí a cerimônia é diferente. Você antes tem que consagrar a arma com preces especiais, água benta e um monte de coisa para ela funcionar no Anticristo!

                   — Legal! Gostei — concordou o jovem Tom. — Vamos construir essa daí.

 

                                   Salão Oval, Washington, D.C.

                                   9:30, quarta-feira, 5 de abril de 2000

                   Edwin Guenther, dirigente da campanha presidencial, e Brian Newcomb, presidente do Comitê de Reeleição Presidencial do Partido Democrático, se puseram respeitosamente de pé quando o quadragésimo-terceiro presidente dos Estados Unidos adentrou o Salão Oval.

                   Esboçando um leve sorriso, Allen Moore fez um gesto indicando-lhes que retomassem os seus assentos e sentou-se atrás de sua escrivaninha. Esta manhã, o dia após a Superterça-feira, o presidente, normalmente de aspecto bastante jovial, aparentava muito mais do que os seus cinqüenta e seis anos.

                   O dia anterior fora um desastre. Dos nove estados conduzindo as primárias presidenciais, nem um sequer apoiara o titular. Isto era uma avalanche para Billy McGuire, o tenaz opositor de Moore.

                   — Que noite difícil, hein, pessoal? — O presidente quebrou o incômodo silêncio.

                   — Sem dúvida! — respondeu Guenther, taciturnamente.

                   — Não vejo como possamos dar crédito aos resultados de ontem quando somente onze por cento do eleitorado aparece para votar — disse Newcomb.

                   — Foi esse o cômputo final? — perguntou Moore, com um suspiro.

                   — Foi — confirmou Guenther — e somente sete por cento compareceram na Califórnia. Ora, que diabos de primárias são estas?

                   — As mais caras que já se fez — calculou Newcomb.

                   — Tem que haver uma forma de invalidarmos os retornos com base em número insuficiente de comparecimentos — sugeriu Guenther. — Já mandei os advogados começarem a estudar o assunto. Dada a crise nacional sem precedentes, acho que temos como...

                   Moore ergueu a mão para interromper aquele andar da carruagem.

                   — Não — disse ele, balançando a cabeça. — Não é isso que vai mudar as coisas. Vamos analisar as pesquisas. Estamos em queda constante desde o início de março.

                   — Desde o fiasco com Jeza — Newcomb concluiu o raciocínio, com frieza.

                   — E então, o que você quer que façamos? — cuspiu Guenther. — Que o Al nasça de novo e que vá beber da fonte de extrema-direita que se coloca contra Jeza, como esse oportunista safado do McGuire?

                   — Já é um pouco tarde demais para isso — cuspiu Newcomb de volta. — Vocês sabem que McGuire conseguiu o endosso da Confraternização dos Bispos Católicos dos Estados Unidos. Porra, a Igreja chegou até a mandar que os seus rebanhos participassem das pesquisas para apoiá-lo.

                   — Mas eles já estavam mesmo se inclinando nesse sentido! — O rosto rotundo de Guenther estava ficando vermelhíssimo. — Foi tanto a postura de McGuire contra o aborto quanto o decreto papal.

                   Newcomb já ia respondendo, mas percebeu a fisionomia abatida de Moore e resolveu repensar o que dizer.

                   — Al, — disse ele, tentando dar um tom encorajador — falta um bom tempo até a convenção. E com o clima político tumultuado assim, muita coisa pode acontecer até lá...

                   Moore tornou a erguer a mão e forçou um sorriso parco.

                   — Não, senhores, por favor. Já chega. Os resultados estão aí. McGuire está com uma margem de dois delegados contra um. Está à frente em quatorze dos vinte estados restantes. Eu conversei sobre isto com Susan ontem à noite. É um esforço que já está fadado ao fracasso, gente. É hora de tirar a tomada da parede.

                   Guenther e Newcomb lançaram olhares magoados de descrença para o presidente. Embora a decisão de Moore já devesse parecer inevitável a essa altura, nenhum dos dois dirigentes da campanha estava realmente preparado para aceitar essa incrível virada dos fatos: a rejeição mais decisiva de qualquer presidente em exercício de toda a história da união.

                   — Às duas da tarde de hoje — informou-lhes Moore — vou dar uma coletiva de imprensa para anunciar a minha retirada.

                   — Al, por favor — implorou Guenther — tudo pode acontecer entre agora e a convenção. Ou mesmo durante a convenção. Você não pode abandonar o partido ao bel-prazer de McGuire!

                   — Sinto muito, Ed. — Moore se levantou para tomar sua decisão final. — Para ser franco, mesmo, não me é tão difícil assim largar a responsabilidade deste posto. Nada mais faz sentido para mim. Sinto como se tivesse perdido completamente as rédeas do país. E tenho pena do pobre coitado que vai herdar este pesadelo. Estou começando a achar que aquela mulherzinha está certa. Talvez seja mesmo o Último Dia.

 

                                 Condomínio Na-Juli, Cairo, Egito

                                 21:39, sexta-feira, 7 de abril de 2000

Retornando ao seu apartamento depois de um dia difícil, Feldman encontrou a fita de sua secretária eletrônica totalmente cheia. Mas desta vez não havia recado algum de Anke. Havia diversos telefonemas relativos ao seu trabalho, todos de pouca importância e, em seguida, uma série quase contínua de breves e ansiosas ligações feitas pelo ressurgido cardeal Alphonse Litti.

O cardeal não deixara número algum, mas dizia ser importante contatar Feldman, informando o momento de sua ligação, acrescentando que tornaria a chamar a cada hora, até conseguir. Litti foi perfeitamente pontual. Às dez horas, precisamente, o telefone tocou e Feldman ouviu uma voz familiar e bem-vinda:

— Jon, graças a Deus que o encontrei!

— Alô, cardeal! Como vai? Por onde tem andado?

— Isto não é importante agora, Jon. Digamos apenas que andei meditando, estudando e aprendendo com a Messias.

— Como vai Jeza? — A preocupação ficou aparente em sua voz.

— Ela vai bem, Jon. Tivemos que mantê-La escondida o máximo possível em vista das perigosas circunstâncias, você sabe. Não que tenhamos como sustentar esta situação durante muito tempo! Ela tem um jeitinho incontrolável para escapulir sempre que sente vontade.

— Pois é! — Feldman sorriu em tom de galhofa. — Eu passei por essa experiência algumas vezes. Quando poderei vê-la novamente?

— Em breve, Jon, eu suponho. Não sei muito bem dos Seus planos; Ela mantém um certo mistério. Mas é esta a razão pela qual estou ligando para você. Eu... Ela... precisa de sua ajuda.

O coração de Feldman deu um pulo.

— Jon, eu preciso contar com toda a sua confiança.

— E sabe que pode, Alphonse.

— Jeza quer deixar o Cairo e voltar para Jerusalém. Preciso de sua ajuda para levá-La em sigilo.

— Jerusalém? Por quê? É perigoso demais. Todos os inimigos dela estão por lá. Todos os que acham que o mundo está prestes a acabar estão convergindo para lá, a fim de conseguir lugar na primeira fileira. Aqui no Cairo é mais seguro.

— Ela precisa "cuidar dos negócios de Seu Pai", conforme diz. Não sei o que o Todo-Poderoso possa estar pedindo a Ela, mas Jeza está determinada a voltar, de uma forma ou de outra.

— Você se dá conta, Alphonse, de que a RMN está na lista negra em Israel? As nossas instalações de lá estão confiscadas e a nossa entrada no país está proibida.

— Por favor, Jon, eu não tenho a quem recorrer.

— Jeza lhe pediu para me contatar? — Ele conteve o fôlego.

— Ela nem sabe que estou ligando.

Feldman soltou um suspiro.

— Parece que Ela pretende partir em uma ou duas semanas — prosseguiu o cardeal. — Não quer que eu vá junto; diz que é perigoso demais. Mas eu insisto para que você tome as providências necessárias para mim também.

— Tudo bem — concordou Feldman. — Vou ver o que consigo fazer. Como posso entrar em contato com você?

— Nunca sei para onde Ela vai me levar, Jon. Apenas me diga quando e onde, e eu farei o contato.

Foi o que Feldman fez, desligando em seguida e ligando imediatamente depois para Sullivan. Em pouco tempo, eles estavam em conferência telefônica com Bollinger, Hunter e Cissy, elaborando um plano de ação. Enquanto ainda discutia detalhes com Cissy, ele ouviu uma batida à sua porta. Pedindo licença a ela, Feldman depositou o aparelho sobre a mesa e foi correndo até a porta, soltou o trinco e gritou:

— Entre — voltando ligeiro para o telefone.

Olhando de relance sobre o próprio ombro, ele viu a esbelta figura de uma mulher jovem, vestida com uma capa de chuva comprida e uma boina branca combinando com o cachecol, a cabeça abaixada. Desvencilhando-se da conferência, Feldman desligou o telefone e se virou para receber a visita.

Quando ela ergueu a cabeça, ele se assustou. Anke! Ela parecia cansada, com os olhos vermelhos, o maxilar delicado demonstrando uma raiva determinada. Ela cruzou os braços e se recostou à porta, fechando-a.

— Anke! — murmurou ele, com a culpa solapando-o por dentro.

Ela ficou calada, atendo-se a fitá-lo com um olhar férreo.

— Entre, por favor. Deixe que eu guardo a capa. — Ele se aproximou dela, passando a mão pelos próprios cabelos numa estabanada tentativa de se fazer mais apresentável. 

Ela não se mexeu.

— Anke, eu sei que você está chateada comigo e não a culpo por isso, diante de toda a minha negligência...

— É muita compreensão da sua parte, sr. Feldman! — ela falou, e ele se retraiu diante da desusada rispidez.

Tentou outra vez, abrindo os braços para ela:

— Minha querida, nem sei direito o que...

Ela não lhe deu ouvidos e cortou-o prontamente.

— Eu posso perder a minha paciência com você, Jon — falou ela entre os dentes. — Posso perder a minha compostura. Até a cabeça! Mas uma coisa que jamais pensei ser capaz de perder foi o meu respeito por você. Ao menos uma coisa você me devia, Jon Feldman, e essa coisa era a honestidade. Eu teria ficado ao seu lado até no inferno. Mas isso que você fez! Isso é... é... ­— ela começou a chorar — é uma crueldade!

Feldman ficou sem saber o que fazer.

— Anke, eu não quis magoá-la.

Ele se aproximou novamente, mas ela o manteve afastado com a fisionomia ferrenha, sua raiva a cauterizar-lhe as lágrimas.

— Já que você parece incapaz da verdade, deixe que eu tome a iniciativa de ser direta e objetiva com você. — Ela fechou os olhos com força, como se os estivesse espremendo para fazer sair a resposta. — Eu sei o que está acontecendo, Jon. Eu... eu sei que há outra pessoa.

Ele se sentou pesadamente no sofá, entorpecido.

— O que eu não sei — continuou ela — é por que você não teve a decência de ser sincero comigo. Eu simplesmente não vou conseguir ir embora sem saber isso. Depois de tudo que vivenciamos juntos, depois de tudo que significamos um para o outro, por que você não teve a dignidade de me contar a verdade em vez de me largar desse jeito? Como foi que eu pude me enganar tanto a seu respeito? — As lágrimas voltaram a rolar.

— Anke — implorou ele — eu não sei como explicar. Eu amo você, mesmo. E quero resolver as coisas. Na minha cabeça, e com você.

— Você tem um ego incrível — disparou ela. — Não há mais nada a resolver. Você se acha tão irresistível assim? Acha que a minha auto-estima é tão baixa que eu vou simplesmente aceitar isso de você? Honestidade é uma coisa para a qual eu dou um certo valor, sr. Feldman. Não pense você que pode pôr a minha confiança a perder e depois se redimir assim tão descomprometidamente!

Feldman ficou consternado.

— Mas Anke, não aconteceu nada de fato. Foi mais uma... coisa espiritual Eu honestamente não sei como explicar. Foi uma coisa... enganosa.

— Jon, não piore esta situação ainda mais e não insulte a minha inteligência. Eu sei que vocês dois passaram a noite juntos.

Feldman ficou mais confuso ainda. Balançou a cabeça, levantou-se e tentou se aproximar dela.

— Anke, por favor, eu não sei do que você está falando. Estou lhe dizendo a verdade.

— E eu suponho que você vá me dizer que ela não esteve no seu quarto no hotel?

— Não, Anke, não esteve. Honestamente.

Anke baixou a cabeça em desespero.

— Jon, para seu governo, eu liguei para o seu quarto em Roma na noite de segunda-feira... madrugada de terça, melhor dizendo. — Ela se virou de costas para ele, de frente para a janela. — Depois de ver você combatendo aquele cardeal na TV eu não consegui dormir. Eu... eu precisava conversar com você. Quis contar-lhe que estava orgulhosa de você. — Ela se engasgou com a emoção. — Fiquei tão tocada com o que você tentou fazer! Você foi tão... tão... galante. Fiquei tentando completar a ligação durante horas a fio. As linhas internacionais estavam todas ocupadas com a imensa agitação! E quando finalmente consigo falar com o seu quarto, Erin atende ao telefone! Ela estava sussurrando, mas eu reconheci a voz dela. Eu não consegui dizer nada, só fiz desligar.

A mente de Feldman deu voltas, sem conseguir solucionar o quebra­-cabeça com aquelas informações. Anke se voltou contra ele, com olhos acusadores.

— Resolvi falar com a recepção do hotel para verificar se eu tinha ligado para o quarto certo. O funcionário que atendeu me disse que tanto o sr. quanto a sra. Feldman já haviam se recolhido. Então pedi que me transferissem para o quarto reservado em nome de Erin Cross. Ninguém atendeu.

— Mas você está falando de Erin? — As coisas finalmente fizeram sentido na cabeça de Feldman. Tirando os óculos e cobrindo os olhos com a mão, ele balançou a cabeça. — Não, Anke, você entendeu tudo errado. ­Ele foi se deixando cair novamente no sofá, devagarinho. — Por favor, venha até aqui e me deixe explicar tudo, desde o começo.

— Para quê, Jon? Para que você possa me contar mais histórias e me magoar ainda mais?

— Não, Anke — ele disse, tristemente, olhando-a firme nos olhos. — Para que eu possa lhe contar toda a verdade. Embora você tenha o direito de estar furiosa comigo, não é pelas razões que está pensando. Por favor! Por tudo que nós já significamos um para o outro, pelo menos me escute.

Ela vacilou um instante, em seguida foi se sentar, rígida, na cadeira mais distante que havia. Cruzando braços e pernas, ela ficou olhando desconfiada para ele.

— Primeiramente — Feldman se inclinou na direção dela, com as mãos afastadas num gesto de quem implora — eu vou lhe contar a história toda sobre Erin...

E ele começou pelo princípio, relatando-lhe os primeiros flertes e suas suspeitas acerca da mulher. Depois descreveu a viagem para Roma. Contou a recusa ao convite feito por Erin para que jantassem juntos após o debate, tendo preferido ir para o quarto tomar um bom banho e depois dormir sem jantar. Contou que, num esforço para abrandar a frustração da desastrosa entrevista, ele acabou bebendo o champanhe que Erin enviara para lá.

Feldman estava excessivamente constrangido, sentindo um enorme desconforto ao narrar a bizarra seqüência da sedução. Observou a movimentação de Anke, sentada, ajeitando a saia sempre que mudava de posição, pasma. Quando ele chegou à parte em que Erin confessava como tinha conseguido a chave do quarto, Anke começou a relaxar.

— Tudo que eu consigo imaginar — explicou Feldman — é que você tenha ligado depois de Erin ter entrado no meu quarto e antes de ela ter mexido comigo... — Ele se retraiu diante da má escolha de palavras e se apressou em consertar a frase. — ... antes de ela ter me acordado. Talvez por ter bebido todo aquele champanhe eu estivesse dormindo mais profundamente do que o meu normal, e ela simplesmente atendeu antes que eu pudesse ouvir. Mas Anke, eu juro, assim que a reconheci, mandei-a embora. Juro por Deus! Não aconteceu nada, sinceramente.

Os olhos de Anke se arregalaram diante de uma conscientização súbita.

— Mas você acabou de me dizer que Erin nunca esteve no seu quarto — disse, desconfiada. — Você não está conseguindo manter a coerência entre as suas histórias, sr. Feldman!

Ele soltou um suspiro e balançou a cabeça.

— Não — disse ele, pesarosamente. — Você está confundindo as questões. Eu não estava me referindo a Erin.

Anke, que vinha descambando para a borda da cadeira, parou de repente e se recolheu novamente, boquiaberta. — Você está me dizendo que existe outra pessoa além de Erin? — Ela ficou estarrecida.

Feldman balançou a cabeça, que já pendia, afirmativamente.

— Por favor, me diga que não é a Cissy.

— Caramba! Não, não é a Cissy.

Anke o analisou durante alguns instantes. E então seus olhos se arregalaram ainda mais. Baixinho e lentamente, ela exclamou:

— Ah, meu Deus! — Ela se levantou e olhou para um Feldman amarguradíssimo. — Não me diga! — Ela começou a perambular pelo quarto, sem direção. — Ah, meu Deus! — ficou repetindo, cada vez mais alto.

Do nível em que estava, Feldman ergueu os olhos para ela, com o semblante pesado.

Depois de um bom tempo, ela parou de andar e foi se sentar perto dele, colocando uma das mãos sobre seu ombro.

— Jon, você... você a ama?

Ele mordeu o lábio e lançou um olhar furtivo para Anke, com o rosto contorcido pela confusão.

— Honestamente, eu não sei. Sinto algo muito forte por ela. Mas não é... não é igual ao que eu sinto por você. Sabe, é... ora, bolas! Eu não sei. Sinto muito carinho e tenho também uma coisa de proteção por ela.

— E você não se sente assim com relação a mim? — perguntou Anke, magoada.

Feldman olhou para ela, perplexo, e então se deu conta do que acabara de dizer. Ele comprimiu o rosto.

— Não, não. Não foi isso que eu quis dizer, de forma alguma! — Ele balançou a cabeça e virou o rosto para o lado. — Já nem sei mais o que eu quero dizer. Não é amor romântico que eu sinto por ela, acho que não. Mas... eu estou tentando ser totalmente sincero com você... eu tenho vontade de estar com ela. Eu sinto falta dela. — Ele se virou para Anke outra vez. — Eu não sei como explicar nada disso. Nunca me senti assim antes. Quero ser absolutamente correto com você porque, mesmo que você não ache, eu a respeito muito, Anke. Muito, mesmo! E não gostaria de magoar você por nada deste mundo, mas é claro, eu sei que já magoei. E estou muito sentido por isso. Veja bem, estou me sentindo ligado a vocês duas. Sinto saudades das duas. Preocupo-me com as duas. Quero estar junto de ambas ao mesmo tempo. Pois é! — Resolveu-se. — Eu amo vocês duas.

Anke deixou a mão cair de cima do ombro dele como se fosse um peso morto.

— Isso é inacreditável — arfou ela, enquanto se levantava novamente.

Ela tornou a perambular em pequenos círculos, remoendo a história toda, enquanto Feldman a olhava, num dilema sem solução. Por fim ela parou e olhou para aquele homem desesperado.

— Sabe, Jon, eu não sei se isso já aconteceu com você antes, mas você simplesmente não pode ter as duas ao mesmo tempo. Isso é uma coisa que você vai ter de resolver sozinho. Para mim, já basta de insanidade. — Ela partiu em direção à porta. — Vou embora.

Feldman deu um pulo e agarrou o braço dela por trás.

— Anke, por favor, eu não sei o que dizer, mas falei a verdade.

Ela deu meia-volta e fitou-lhe os olhos, conturbados e acinzentados.

— Eu sei disso, Jon. — Ela estava chorando novamente. Tocou-lhe o rosto delicadamente com a ponta dos dedos. — Não estou mais zangada com você. E decerto entendo por que você se sente tão atraído por Jeza. Ela é... ela é tão...! Mas Jon, eu não consigo ver você feliz assim. — Ela afastou a mão, colocou-se na ponta dos pés para dar-lhe um beijo de leve sobre os lábios, voltou a apoiar-se sobre a planta dos pés e se afastou.

Enquanto destrancava a porta, ela olhou para ele, com uma expressão de resignada derrota no rosto.

— Você é uma pessoa muito especial, Jon. Eu amo você. E sempre vou amá-lo. Foi tudo muito perfeito com você. Mas isto! Como é que se lida com isto? — As emoções voltaram a toda. — Como é que eu posso competir com uma, com uma deusa!

Ela deu meia-volta e partiu porta afora. Feldman começou a correr atrás dela, chamando-a de volta. Mas Anke não lhe deu atenção. Desceu pelas escadas, entrou em seu carro e se foi.

 

                                   Salas de reuniões do Centro de Comando da FDI,

                                 campo de pouso militar israelense de UVDA, sul do Neguev

                                   10:37, sábado, 8 de abril de 2000

O chefe do comando da inteligência, David Lazzlo, estava sentado, pouco à vontade, ao lado do solene ex-chefe do estado-maior, general Mosha Zerim. Os dois conferenciavam de maneira tensa com seus colegas oficiais do Alto Comando Unido de Israel, agora sob os auspícios do recém-nomeado chefe do estado-maior, o general-de-exército Alleza Goene.

O general chegara em boa hora, no desagradável auge da reunião. Finalmente se desvinculando de outros afazeres, recostou-se em sua poltrona e cruzou os braços vigorosos sobre o peito.

— Conforme já sabem, senhores — dirigiu-se Goene aos colegas — antes de sair de licença, o ministro da defesa, Tamin, resolveu que o seu último ato oficial de então seria me nomear chefe do estado-maior. Eu gostaria de enfatizar mais uma vez que tal ação não visava de forma alguma apequenar os serviços irrepreensíveis do general Zerim. — Ele acenou com um movimento informal da cabeça para o ex-chefe do estado­-maior, que manteve o semblante sisudo. — A decisão foi simplesmente uma questão de logística. Dado o atual estado de coisas em Israel, o ministro da defesa achou que a minha experiência mais prolongada no comando de guerra poderia ser útil. Como parte das diretrizes do ministro Tamin, o general Zerim foi designado novamente para o comando das divisões do norte.

Lazzlo deu uma olhadela de relance para o implacável Zerim.

Goene continuou:

— Eu também estou dando novas designações para alguns. — Ele se virou para Lazzlo. — Comandante, dadas as nossas atuais dificuldades com a quebra das normas de segurança, o senhor estará se desligando de suas responsabilidades como chefe das operações de inteligência, o que passa a vigorar imediatamente.

Houve murmúrios de surpresa por parte dos demais presentes no recinto.

O rosto de Lazzlo se ruborizou de raiva.

— Você não tem autoridade para me tirar do comando! — esbravejou ele. — Somente o ministro da Defesa ou o parlamento israelense podem tomar tais providências.

Um sorriso de desprezo se formou nos lábios de Goene.

— Eu não o estou retirando do comando. Mas na falta de um ministro da Defesa em exercício, eu tenho, sim, a autoridade para redirecionar o seu comando.

Lazzlo parou abruptamente, suas iradas objeções desfazendo-se na garganta.

— De agora em diante — ordenou Goene — o general Roth assumirá a responsabilidade pelas operações de inteligência. E você, comandante Lazzlo, assumirá a chefia das nossas forças de defesa em Jerusalém. Conforme deve reconhecer muito bem, está encarregado da mais sagrada responsabilidade da FDI... a de proteger a Cidade Santa e seus sagrados santuários contra as crescentes facções de milenaristas extremados.

O que o comandante reconhecia muito bem era que Goene o estava colocando no meio da situação mais impossível e incendiária com que se defrontava a Força de Defesa de Israel.

O general se inclinou para a frente e seus olhos se estreitaram.

— Esta missão será um grande desafio, em vista das recentes revelações acerca do diário de Leveque, não é mesmo? — Ele fez uma pausa para que sua insinuação se fizesse sentir e se levantou em seguida, sinalizando um fim para a reunião.

Lazzlo e Zerim saíram juntos, absortos numa conversa, marchando taciturnamente pela pista em direção aos helicópteros que os conduziriam para os seus novos postos.

— Eles só podem estar sabendo da gente, David — opinou o general.

— Não — garantiu Lazzlo. — Se Tamin achasse que fomos nós os responsáveis pela entrega do diário ao Vaticano, estaríamos às voltas com uma corte marcial, não com um mero rebaixamento. Pode confiar em mim, as pistas que espalhei não deixavam dúvidas. Eles estão convencidos de que foi obra de um oficialzinho desconhecido envolvido com alguma seita anti-Jeza.

— Não importa! — As ansiedades de Zerim não se dissiparam. — Nosso plano de acabar com Tamin e seu maldito experimento no Neguev deu para trás. No mínimo, Israel está pior do que estava antes. Embora Tamin esteja fisicamente fora do circuito enquanto o parlamento israelense o investiga, ele ainda exerce controle sobre a FDI através de Goene... e eu tenho mais medo daquele maluco que do Tamin. David, nossos esforços para neutralizar essa ameaça maligna de Jeza foram por água abaixo. Em vez de conseguirmos colocá-la em descrédito através da revelação do diário de Leveque, só fizemos dividir o mundo ainda mais. Agora há milhões de fanáticos baixando em Jerusalém para travarem a batalha do Armagedon entre si.

— Pois é, meu amigo! —concordou Lazzlo, relutantemente. — E agora é minha responsabilidade tentar impedi-los. Deus é poético em Sua justiça, não é mesmo? Estou começando a colher as conseqüências do meu envolvimento nisso tudo.

 

                              Sede regional da RMN, Cairo, Egito

                             8:00, segunda-feira, 10 de abril de 2000

A telefonista do escritório passou uma chamada para a mesa de Feldman e o repórter a atendeu cheio de expectativa.

— Bom dia, cardeal!

— Olá, Jon! Como vai?

— Bem, obrigado! — Feldman não lhe revelou seus sentimentos verdadeiros. — Acho que temos alguma coisa arranjada para vocês.

— Excelente! Que Deus o abençoe! — Litti mostrou-se aliviado e grato. — Qual é o seu plano?

— Olhe, consegui um carro e um motorista profissional de confiança. Cardeal, você vai sob o disfarce de um diplomata egípcio enviado para tomar parte nas conversações de paz dos palestinos em Hebron. Jeza passará como sua filha. Você vai usar um turbante e Jeza deverá ficar com um véu cobrindo­-lhe o rosto inteiro o tempo todo. Temos papéis, credenciais e tudo o mais de que vocês necessitarão. Vai dar tudo certo, se vocês deixarem todas as conversas com o motorista e se ativerem às poucas frases em árabe que vamos lhes fornecer. Se conseguirmos atravessar a fronteira a salvo chegaremos a Jerusalém sem problemas.

— Que bom! Excelente!

— E mais uma coisa...

— Pois não?

— Breck e eu vamos viajar com vocês, como adidos.

— Vocês acham uma boa idéia, diante dos seus problemas com os israelenses? — disse Litti, com um tom de preocupação na voz.

Feldman tentou emprestar um tom de segurança:

— Nós também estaremos disfarçados, cardeal. Não se preocupe, ninguém vai nos reconhecer. Além disso, as autoridades egípcias não viajam sem os seus adidos e eu não confio em mais ninguém para realizar esta tarefa. Nem mesmo o nosso motorista saberá quem você e Jeza realmente são.

Litti vacilou um pouco, mas acabou concordando.

— Ora, pois bem, então! Se você acha que vai funcionar...

— Quando partimos? — perguntou Feldman, ansioso por logo tomar a ver a Messias.

— Eu acho que sábado pela manhã — falou Litti. — Volto a ligar assim que tenha conseguido marcar data e local com exatidão.

 

                                        Conjunto habitacional Ali'im, Oeste do Cairo, Egito

                                         6:00, sábado, 15 de abril de 2000

Na hora e local marcados, os repórteres chegaram numa limusine comprida e escura, equipada com vidros fumê, estampas do governo egípcio e um corpulento chofer árabe que não queria saber de conversa fiada.

Quando entraram na última viela de modestas casas de adobe caiado, encontraram o cardeal andando de um lado para o outro da rua de chão batido, esperando ansiosamente por eles. Feldman já ia repreendê-lo por ficar passeando à vista de todos sem o seu disfarce, quando percebeu a expressão de estresse em seu rosto ruborizado.

— Ela sumiu! — gritou ele, correndo em sua direção antes mesmo que o carro parasse.

Feldman ficou estupefato.

— Sumiu? Quando? Onde?

Litti colocou a mão sobre o coração, sem fôlego.

— Quando acordei, nossos anfitriões me disseram que Jeza desaparecera ontem à noite, depois que eu me recolhi para dormir. Ela mandou que eles não me acordassem e simplesmente saiu. Ninguém sabe para onde, mas eu tenho certeza de que Ela foi para Jerusalém. Mas que atitude descuidada Ela foi tomar!

— Cacete! — Feldman não conseguiu conter a decepção. — Sugiro que vamos para Jerusalém de qualquer jeito. Se ela foi para lá, talvez possamos encontrá-la pelo caminho. Vale tentar, porque se ela saiu do Cairo, ficar aqui não vai adiantar porra nenhuma.

Passou pela cabeça de Feldman que isto não eram modos de falar na frente de um cardeal católico da Santa Sé, mas o repórter estava desapontado demais para levantar a questão.

— Você tem razão — concordou, dando uma última olhadela nas casas do conjunto, constatando que todos ainda dormiam. — Vamos embora.

Litti entrou na limusine e eles partiram em direção à fronteira israelense.

— Você pode me contar como encontrou Jeza e o que vem acontecendo com ela desde a última vez que eu a vi? — perguntou Feldman quando eles começaram a colocar os disfarces.

Litti assentiu.

— Sabe, quando voltei ao meu hotel depois de nossa viagem ao Vaticano, achei que jamais tomaria a ver Jeza. Três dias de orações se passaram e eu não soube de nada. Então, na quarta manhã, estava sentado em meu quarto, meditando, e senti uma violenta compulsão de me dirigir à janela. Olhei para a rua e fui tomado repentinamente por uma vertigem. Quando recobrei o equilíbrio, eis que lá estava Jeza, quatro andares abaixo, de pé, na calçada, olhando para cima, para mim. Desci imediatamente e, sem dizer uma palavra sequer, Ela me levou pelas ruas até a periferia do Cairo, para um pequeno acampamento de beduínos. É com eles que Ela fica quando está no deserto. Ela se desloca com eles e seus rebanhos. Fica dormindo em tendas e ensinando.

— E eles sabem quem ela é? — quis saber Feldman.

— Ah, claro que sim! — confirmou Litti. — Eles têm televisores e rádios portáteis que levam para todo canto. São absolutamente devotos. Ela já curou vários deles de doenças sérias.

Feldman demonstrou que estava compreendendo. Afinal, foram os beduínos que primeiro descobriram Jeza no deserto, depois que ela escapou do desastre no Neguev. De uma certa forma, eles foram sua primeira família.

— Pois — continuou Litti — Jeza me convidou para ir morar e viajar com Ela e os beduínos, que é o que tenho feito desde então. Ficamos vagando por toda esta região, visitando lugares diferentes, onde Jeza se hospeda na casa de algum morador do local, prega, opera alguns milagres ocasionais e depois nós nos vamos.

— E você ainda está convencido de que Jeza é a Messias de fato? —­ indagou Feldman.

— Absolutamente convencido! — exclamou Litti sem vacilar. — É certo que Ela é uma Messias. Assim como Jesus. Ela é a única Filha direta de Deus, enviada para cá em Sua missão especial.

Ajeitando o turbante sobre a cabeça de Hunter para esconder-lhe os cabelos louros, Feldman lançou um olhar de soslaio para Litti.

— Além de desmantelar as religiões organizadas e causar um tumulto mundial inenarrável, exatamente qual seria a missão dela?

O cardeal mostrou-se desapontado.

— Jon, diga-me, depois de tudo que você viu, ainda não acredita?

— Eu não sei no que acreditar, cardeal — admitiu Feldman. — Vejo diversas ocorrências estranhas com laivos messiânicos que poderiam ter diferentes explicações. Inclusive satânicas, se você está tão inclinado a interpretar as escrituras dessa forma!

O rosto de Litti se entristeceu.

— Jon, fora estas últimas semanas, em que tive a bênção de conviver com Ela, você passou mais tempo observando Jeza do que qualquer outra pessoa. O que você viu? O que o seu coração lhe diz?

Feldman se sentiu envergonhado.

— É tudo tão confuso, Alphonse. Eu a acho incrível. Adoro sua bondade, sua convicção, sua força, sua beleza, sua coragem. São coisas divinas que vejo nela. Mas aí vejo toda a destruição, dor e sofrimento que resultaram de sua vinda.

Litti se recostou, pensativamente.

— Você já considerou, Jon, que às vezes os afazeres de Deus nem sempre são amor e bondade? Deus é como o bom pai criando o filho amado. Ele precisa encontrar o equilíbrio entre a afeição e a disciplina, aplicando ambas, em medidas apropriadas, conforme o necessário. Existe tanto amor no castigo quanto no abraço. Deixar que o mau comportamento passe sem uma punição resulta numa criança malcriada.

— Essa perspectiva é bastante condescendente — observou Feldman.

— Em comparação com a perfeição de Deus, o homem é uma criança — sustentou Litti. — Não obstante, Jeza diz que é o desejo de Deus que a humanidade cresça, amadureça e se torne, em última instância, independente de Deus. Mas que a estrada que tomamos se desviou do Seu caminho e se tornou circular. Ela diz que não estamos mais crescendo. Que estamos estagnando no atual ambiente religioso.

— Então Deus quer nos punir acabando com o mundo? Isso vai um pouco além da disciplina corretiva, você não acha?

— É verdade, Ela nos advertiu que o Armagedon chegou. Mas isso não significa que vamos todos morrer. Talvez alguns venham a ser levados, em corpo e alma, para o céu e a vida eterna.

— O Êxtase, hein? — Hunter identificou a doutrina familiar.

— Ou talvez — continuou Litti, inflexível — Cristo venha outra vez e juntos, Ele e Jeza, venham a separar o bem do mal e a governar lado a lado durante mil anos de paraíso absoluto sobre a Terra.

— E quanto às acusações do cardeal Di Concerci... os sinais? — questionou Feldman. — Como você explica os sinais? E se Jeza não for o Anticristo, quem será?

Litti sorriu, seguro de si.

— Você se lembra dos conselhos de Jeza acerca de interpretar as escrituras? Esses sinais são a ótica do cardeal Di Concerci. Eles não provam que Jeza seja o Impostor. Quem sabe a forma que o Anticristo tomará? Ou mesmo que seja uma pessoa, e não todo um grupo de pessoas? Há que se admitir, Jeza não se encaixa dentro da noção convencional de como um Messias deva se comportar ou do aspecto que deva ter, mas só poderemos compreender o desígnio de Deus quando Seu plano nos for totalmente revelado, se conseguirmos.

— Você decerto perguntou a Jeza o que vai acontecer, não? — indagou Feldman.

— Perguntei, sim. Ela só disse que a Dissolução está próxima e que tudo o que Ela predisse ocorrerá em breve. De fato, se voltar mesmo para Jerusalém, Ela estará colocando em andamento as últimas profecias do Apocalipse. Tenho um pressentimento ominoso quanto a isso. Como se já estivéssemos nos Últimos Dias!

 

                                     Monte da Ascensão, Jerusalém, Israel

                                     21:17, sábado, 15 de abril de 2000

Já escurecera havia muito tempo quando Feldman, Hunter e o cardeal Litti subiram a colina onde ficava a pequena chácara reservada pela RMN para eles, no lado oeste do monte da Ascensão. A travessia da fronteira fora realmente menos difícil do que a viagem para Jerusalém. As estradas ao norte estavam superlotadas de peregrinos, militantes e comboios militares, e havia sinais de destruição e surtos de violência ao longo de todo o percurso. Certa feita, tiros haviam sido disparados contra o carro quando o trio se recusou a parar para um grupo de saqueadores Gogs.

Ao chegarem, eles encontraram poucas mudanças em Jerusalém; contudo a cidade estava totalmente diferente. Muitas das edificações avariadas pelo terremoto mais de três meses atrás ainda estavam por consertar. Aparentemente, houvera desordem popular em demasia para que se pudesse parar para cuidar desses detalhes. O famoso Portal Dourado da Cidade Velha, notou Feldman, ainda estava parcialmente desmontado, coberto por andaimes, com muitas pedras grandes empilhadas sobre paletas em torno da base.

Os acampamentos improvisados dos milenaristas, que agora estavam separados em seções pró-Jeza e anti-Jeza num vão esforço para conter as disputas, haviam crescido desproporcionalmente ao redor dos muros da cidade. Havia militares israelenses por toda parte, e os mercados, abarrotados de gente, eram assolados por altercações o tempo todo.

A chácara na encosta do morro que Feldman e companhia ocupariam não ficava longe de onde ele e seus associados haviam testemunhado a noite da transição do milênio. Ficava mais perto do sopé da colina, com uma varanda que dava para Jerusalém desta vez, propiciando uma esplêndida vista da Cidade Velha.

Preocupado com a segurança de Anke nestas condições tão incertas, Feldman tentou contatá-la tanto em sua casa de Jerusalém quanto em seu apartamento de Tel Aviv, conseguindo apenas ouvir a mensagem gravada em sua secretária eletrônica. Deixou um recado contrito, prometendo ligar novamente em breve, mas não deixou número algum, pois não ousava revelar seu paradeiro.

 

                                 Monte da Ascensão, Jerusalém, Israel

                                 8:58, domingo, 16 de abril de 2000

Em seu sonho, Feldman estava nu, pendurado ao tronco de um macilento e solitário arbusto, no alto de uma colina desértica. Agarrava-se para salvar a própria pele, escapando por um triz das mandíbulas afiadas de uma matilha de ferozes cães amarelos. Eram monstros infernais. De pêlo imundo, nojento! Olhos vermelhos, ensandecidos! Escorriam fiapos da baba hidrofóbica de seus focinhos. E as mãos de Feldman já não agüentavam mais, sujeitando-o a uma proximidade cada vez maior das presas que abocanhavam. Com muito esforço, ele conseguia içar-se repetidas vezes, mas a cada enervante tentativa seus dedos cediam em intervalos mais breves e os ciclos tornavam-se mais curtos.

De algum lugar distante, ele ouviu a voz de Hunter chamando com entusiasmo:

— Ei, gente! Vejam só isto aqui. Onde está a minha câmera?

Feldman voltou a si, ofegante, na segurança de seu próprio quarto, com os dedos ainda desesperadamente agarrados ao batente de sua cama. A voz de Hunter soou de novo:

— Ei, você tem de ver isto aqui... não dá para acreditar! Ande logo.

Rolando para fora da cama, nu em pêlo, Feldman cambaleou até conseguir pôr-se de pé, tateando em busca dos óculos e das calças. Hunter ainda gritava e Feldman transformou a gritaria num dueto quando se beliscou ao fechar o zíper. Aos palavrões e tropeções, o repórter enfrentou a estupenda luminosidade de uma maravilhosa manhã de primavera para tentar enxergar Hunter da beira da varanda. Com uma câmera teleobjetiva nas mãos, este já se encontrava acompanhado de um desgrenhado cardeal Litti, que também estava assoberbado pela excitação.

— Jon! — O cardeal acenava para Feldman, repetindo um gesto circular com o antebraço. — Olhe!

Protegendo os olhos com a mão, Feldman se inclinou sobre o parapeito da varanda e fitou o sopé do Monte. Uma caravana de beduínos, montando camelos e mulas, serpenteava desde o deserto, contornando a base do Monte das Oliveiras por uma trilha de chão batido que levava até a cidade. Uma multidão se aglomerava para recebê-los perto das muralhas da Cidade Velha. De um acampamento vizinho, partiam inúmeras pessoas em marcha acelerada para dar as boas-vindas aos recém-chegados.

Na frente da caravana, uma figura pequena e solitária, montada sobre uma mula, era conduzida por um nômade a pé. Mesmo à distância, não havia como confundir, pelo forte contraste da cabeleira negra com a pele branca, quem era a ilustre amazona. Feldman desencavou um par de binóculos de dentro de seu embornal e o focalizou no espetáculo.

— Eu sou um idiota! — Litti declarou para si mesmo, batendo com as costas da mão repetidas vezes contra a testa. — Um bobo de marca maior!

Hunter estava demasiadamente absorto no empenho com a câmera para reagir. Feldman respondeu sem tirar o binóculo da frente dos olhos.

— Como assim?

— Ela está cumprindo a profecia mais uma vez! — exclamou Litti. —­ Seguindo as pegadas de Cristo e cumprindo uma previsão do Velho Testamento. Você sabe que dia é hoje?

Ainda sem conseguir afastar o olhar, Feldman balançou a cabeça, sorrindo para si mesmo, enquanto a profetisa passava diante da aclamação das massas em direção à cidade.

Litti cantarolou:

— É o Domingo de Ramos, claro!

O sorriso de Feldman se expandia à medida que ele se regozijava com o triunfal retorno de Jeza à Cidade Santa. A multidão crescia e os espectadores se manifestavam, em júbilo, dançando, cantando e gritando, liberados em alegre comemoração.

Mas por um momento Feldman detectou uma interrupção na periferia da massa humana. Focalizando o binóculo no ponto do distúrbio, ele cerrou abruptamente o amplo sorriso.

— Hunter! — chamou pelo amigo, com a voz apreensiva. — Olhe para a esquerda.

Hunter enquadrou a câmera e imediatamente captou a fonte do alarme de Feldman. Inquestionavelmente, o ajuntamento inicial fora composto de manifestantes favoráveis a Jeza. Entretanto, tudo levava a crer que as informações haviam se disseminado rapidamente para os acampamentos adversários e um contingente considerável de algozes se acercava do povo ali reunido. Mas até o momento, não havia indícios de soldados israelenses nem policiais para proteger a caravana indefesa. Irrompera uma briga e dois carros de guerrilheiros armados varavam o miolo da massa em pânico, tentando chegar à Messias.

Litti emitiu um grunhido abafado e os dedos de Feldman apertaram o binóculo. À distância em que se encontravam, não havia o que fazer. Os atacantes atingiriam sua meta em questão de segundos, muito antes que os três, desarmados como estavam, pudessem acudir em defesa de Jeza.

Eles ficaram assistindo, em desespero, à medida que a caravana começava a se dispersar. A multidão histérica se comprimiu em torno da mula de Jeza, empurrando-a de lado para fora da trilha, atabalhoadamente, de encontro às muralhas da Cidade Velha. Jeza se virou e viu aproximarem-se os veículos que, aparentemente já a haviam localizado. Um passageiro de um dos carros se levantou através do teto solar e apoiou um rifle sobre a capota do veículo sacolejante.

O coração de Feldman disparou. Jeza estava encurralada contra as muralhas e a massa de gente se dispersava, cedendo passagem para os veículos. Comprimidos de encontro ao Portal Dourado, os desesperados beduínos acorreram com Jeza para os montes de pedras empilhadas sob os andaimes da obra. Mas este ponto, que oferecia apenas uma cobertura limitada, já fora tomado por hordas de pessoas em frenesi. Sem mais para onde recorrer, Jeza saltou de sua montaria e se colocou em posição de enfrentar os adversários. O carro já se encontrava dentro da faixa de alcance do rifle e o franco-atirador se inclinava para fazer pontaria.

Calmamente, Jeza se virou na direção de Feldman. Pelos binóculos, ele teve a impressão de que ela o fitava diretamente nos olhos. Ele não foi capaz de assistir à cena e escondeu o rosto contra o ombro.

O barulho de uma saraivada de tiros de rifles retumbou a distância.

— Ai, meu Deus! — gritou Hunter e Feldman cerrou os punhos, amarguradíssimo. — Filho da puta! — gritou Hunter e Feldman deixou-se cair de joelhos.

— Ela desapareceu! — Hunter urrou de alegria. — Ela escapou!

Este fato não ficou registrado nem em Feldman nem em Litti.

— Ei, gente! — Hunter nem mesmo olhou para eles, mas desferiu às cegas um tapa na cabeça do cardeal. — Está tudo bem. Ei, olhem!

Incrédulos. Feldman e Litti foram erguendo os olhos devagar, na direção do ocorrido. Eles viram que o carro do ataque havia parado perto dos montes da muralha de pedra e os ocupantes estavam vasculhando o entulho por baixo dos andaimes.

— O que aconteceu? — perguntou Feldman, sua voz entrecortada e quase inaudível.

— Ela se esgueirou por uma brecha na parede que eles estão consertando — explicou Hunter, maravilhado. — Ela é tão pequenina que conseguiu passar pela fresta e deixou os salafrários chupando o dedo.

— Macacos me mordam! — arfou Feldman.

— Mais um milagre, mais ou menos — concluiu Hunter.

 

                                   Monte da Ascensão. Jerusalém, Israel

                                   20:18, segunda-feira, 17 de abril de 2000

A arrebatadora filmagem que Hunter fez da fuga de Jeza pelo Portal Dourado foi levada de Jerusalém por um emissário especial ainda pela manhã. Ao cair da noite, a RMN conseguiu mais um triunfo de audiência.

Pelo mundo afora, as repercussões da reportagem foram devastadoras. Forças pró-Jeza, ultrajadas pelo brutal ataque à sua indefesa Messias, repreenderam severamente os adversários durante toda uma noite sangrenta.

Em Jerusalém, entretanto, a situação foi logo contida pela FDI, que montara um rígido anel de segurança em torno da Cidade Velha. O governo Bem-Miriam, apesar de ferrenha oposição da FDI, concedera abrigo intra­-muros a Jeza. Embora a administração não favorecesse o seu retorno à cidade, Jeza era uma cidadã israelense, ainda que isto fosse questionável. De fato, apesar das chocantes revelações do diário de Leveque, muitos judeus israelenses, especialmente os Lubavitchers e as seitas ortodoxas, inclusive alguns membros do parlamento israelense. Ainda apoiavam Jeza como uma pessoa santa, mesmo que não fosse o Messias prometido.

O novo chefe da FDI em Jerusalém, comandante David Lazzlo, havia conseguido implantar uma política para diminuir as tensões. Mandara que todo aquele que perpetrasse alguma violência em Jerusalém fosse preso e transportado para a cidade de Afula, aproximadamente cem quilômetros ao norte. Dois grandes campos de refugiados foram montados lá com verbas da ONU: um acampamento separado para cada uma das duas facções opostas. A iniciativa tivera o êxito de afastar alguns dos militantes mais agressivos e perigosos.

Feldman e Hunter tinham tribuna de honra para toda a operação. Não obstante, sem seus vistos, os assentos não estavam garantidos. Antes que Alphonse Litti os deixasse naquela manhã do Domingo de Ramos para ir em busca de sua Messias na Cidade Velha, o bom cardeal se comprometera a não abandonar seus amigos repórteres. Fiel à sua palavra, comparecera rapidamente na tarde de segunda-feira, para dar a boa notícia de que conseguira se reencontrar com Jeza. Ela estava a salvo, bem escondida no interior da cidade, protegida dia e noite por legiões de leais simpatizantes.

Depois que o cardeal saiu e com a chegada da noite. Feldman foi se reunir a Hunter na varanda, sob o crepúsculo primaveril. Lá embaixo, os efeitos de sua filmagem do Domingo de Ramos se faziam ver no fluxo ininterrupto de peregrinos que chegavam. Os números haviam dobrado, facilmente.

— Meu Jesus, deve haver milhões de pessoas aí! — Feldman falou, maravilhado, para Hunter, que estivera sondando a multidão com o binóculo. — Achei que a FDI conseguiria fechar as fronteiras.

— Mesmo com a ajuda da ONU agora — argumentou Hunter, deixando de lado o binóculo —, os israelenses não têm o poderio para lidar com esta situação. Quando a moçada acredita que está prestes a encarar o seu criador, como esses pobres coitados acreditam — ele inclinou a cabeça na direção das fileiras intermináveis — aí vai ser necessário muito mais do que uma meia dúzia de barricadas para impedir.

Os dois ficaram ali juntos, debruçados no parapeito da varanda, observando em silêncio a maciça procissão.

— Veja só — refletiu Hunter — todo esse fanatismo convergindo dos vários cantos do mundo, se canalizando para este pobre lugarzinho! É, rapaz, estamos seguindo mesmo em direção a um tremendo confronto! E, mais uma vez, eu e você estamos tendo uma visão grande-angular. — Ele se virou para entrar. — Que pena que não tenhamos uma programação dos eventos! Eu me canso de ficar sentado, esperando que alguma coisa aconteça.

— Talvez nós tenhamos uma programação — arriscou Feldman.

O cinegrafista parou.

— Como assim?

— Você se lembra do que Alphonse falou sobre Jeza estar cumprindo as profecias bíblicas?

— Lembro, e daí?

— Talvez haja uma outra ótica para se ver isso tudo. E se ela estiver emulando Cristo?

— Ora, essa! Todos queremos ser um pouco como Cristo, não é mesmo? — respondeu Hunter sarcasticamente, com a curiosidade decrescendo.

— Não. — Feldman contraiu a fisionomia. — Quero dizer, e se ela estiver copiando o que Cristo fez? Sabe, fazendo um paralelo da vida d'Ele. Como a chegada dela em Jerusalém no Domingo de Ramos. Como o Sermão da Montanha que ela fez. Como os seus milagres. Seu vôo para o Egito. Suas parábolas. A onda toda! Sabe, não é absolutamente idêntico, mas segue o padrão geral.

— O único padrão verdadeiro que eu vejo — ressaltou Hunter — é que ela parece escolher os piores lugares e os piores momentos para suas aparições, para criar o maior pandemônio possível.

— Acompanhe o meu raciocínio um minutinho só — apelou Feldman. — Vamos admitir que os Samaritanos tenham convencido Jeza de que ela é um Novo Cristo, está bem? Então foi em quem ela se baseou para fazer o seu modelo próprio. E ela dispõe desse incrível microchip da mais avançada tecnologia das comunicações na cabeça, que lhe permite acesso instantâneo a todas as escrituras e profecias. Assim, ela estuda a Bíblia e quando precisa de alguma orientação, basta consultar a vida de Cristo, como um mapa rodoviário.

— Tudo bem, e onde você quer chegar?

— O negócio é o seguinte: se ela estiver usando as escrituras como orientação, qual será o seu próximo passo?

— Sei lá, eu não ia ao culto dominical!

— Olhe para o calendário, Breck. O que vai acontecer no dia 21 de abril?

— Desisto.

— Sexta-Feira da Paixão, cara! Lembre-se, a Crucificação!

Este argumento calou Hunter, que ficou boquiaberto.

— Eles vão pregá-la a uma cruz?

Feldman balançou a cabeça rapidamente.

— Não, não. Literalmente, não. — Mas logo, alarmado, voltou atrás. — Porra, sei lá!

Hunter começou a formular a lógica da situação.

— Então é isso o que está apoquentando Litti. Ele sabe o que ela vai fazer. Ela está deixando o tempo passar até chegar a sexta-feira para se entregar aos Gogs para ser crucificada. Auto-martírio para poder cumprir o seu destino. Doentio, meu chapa!

A cabeça de Feldman girava com imagens abomináveis.

— Os Gogs podem ser fanáticos o suficiente para executar Jeza, mas eles não ousariam cruci... — Ele não conseguiu dizer a palavra toda. — Eles não seriam idiotas! — insistiu. — Isso seria a cartada certa para ela... a validação final de todos esses paralelos com Cristo. É uma auto-derrota.

— A menos que — sugeriu Hunter, em contrapartida — eles estejam realmente convencidos de que ela é o Anticristo. Então uma crucificação seria justiça poética. O troco pela maneira cruel como Cristo foi executado. Revanche. Sabe, existe maluco para tudo por aí; eu não duvidaria deles.

Mesmo sem querer, Feldman teve de aceitar o raciocínio.

— Puta merda! — sussurrou ele, e os dois deram meia-volta, apoiando­-se de costas contra o parapeito da varanda, lado a lado. Feldman levou a mão à testa, pensativo. — Nós temos de entrar na Cidade Velha, Breck. Temos de tirar Jeza de lá.

Hunter estava balançando a cabeça.

— De jeito nenhum, cara! Os israelenses fecharam tudo. A única maneira de entrar agora seria com uma foto de residente. E eles só vão dar credenciais dessas para pessoas como Litti, que já estavam lá dentro antes.

— Então vai ser preciso usarmos um helicóptero — concluiu Feldman.

— Não. – Hunter balançou a cabeça outra vez. — Espaço aéreo restrito. Os israelenses vão abater qualquer aeronave não autorizada antes mesmo que você consiga se aproximar. Olhe só — ele ofereceu o binóculo para Feldman — eles têm artilharia e tropas estacionadas em todo canto. Estão preparados para o Armagedon.

Feldman rejeitou o binóculo.

— Porra, então nós precisamos conseguir a cooperação dos israelenses! E os nossos vistos de volta.

— Concordo.

— Vou ligar para Sullivan e saber se ele conseguiu mais alguma coisa. Talvez a nossa apreensão quanto à Sexta-Feira da Paixão lhe dê mais um incentivo. E vamos torcer para que Litti venha nos visitar amanhã! Vamos precisar dele.

Hunter assentiu e já ia se levantando, mas teve uma última suspeita.

— Mas e se Jeza se recusar a sair?

Feldman mordeu o lábio diante desta possibilidade.

Então, um sorriso maroto percorreu os lábios de Hunter.

— Pensando bem... três homenzarrões e uma garotinha! Acho que temos todas as ferramentas de persuasão de que vamos precisar.

Feldman olhou pensativamente para o amigo.

— Talvez seja melhor reconsiderar essa abordagem, meu caro. Não vamos nos esquecer do que ela fez com aquela pedra do altar-mor!

 

                                   Monte da Ascensão, Jerusalém, Israel

                                   10:11, terça-feira, 18 de abril de 2000

Ao chegar para a sua visita matinal, conforme o prometido, o cardeal Litti, perturbado, não foi capaz de conter suas ansiedades.

— Há algo no ar meus amigos — começou a dizer com a voz apreensiva. — A Messias me enviou aos israelenses com uma solicitação especial. Ela quer permissão para transmitir uma fala que fará, aberta ao público, diante do Muro das Lamentações na tarde desta sexta-feira.

Feldman e Hunter trocaram olhares de confirmação.

— O que os israelenses disseram? — quis saber Feldman.

— Eu conferenciei com um comandante chamado David Lazzlo —­ explicou Litti. — Ele disse que voltaria a falar comigo ainda hoje, mas deu a entender que a FDI talvez nos permita realizar a assembléia, se nós concordarmos com uma permuta. Jeza teria de exigir que nossos seguidores depusessem as armas e abrissem mão de qualquer violência. Mas isso não é problema algum, pois é o que ela vem pedindo o tempo todo.

Feldman ficou perplexo.

— Não estou entendendo. Deixar que Jeza faça uma aparição em público no meio deste barril de pólvora é uma coisa insana! Só vai resultar em derramamento de sangue! Por que os israelenses estariam dispostos a isto?

— Jeza está a salvo enquanto permanecer dentro das muralhas da Cidade Velha — ressaltou Litti. — O apoio a ela é sólido lá. Do lado de fora, a FDI cercou tudo. E, ainda bem, todos os militantes extremistas já foram removidos para os acampamentos de Afula.

— Mas, então, qual seria o propósito do discurso? — indagou Feldman.

— Jeza não quer dizer. — Litti soltou um suspiro. — Só aquilo, outra vez, que tem afazeres de Seu Pai por concluir.

Feldman considerou o argumento durante alguns instantes.

— Alphonse, eu não preciso lhe dizer que dia será esta sexta-feira. — Os olhos furtivos de Litti responderam por ele.

Feldman agarrou o antebraço do cardeal.

— Nós também estamos apreensivos com a segurança dela. E temos uma idéia. Um plano para resgatá-la.

Litti olhou para Feldman com um ar interrogativo. Sorrindo, Hunter roubou o impacto de Feldman.

— A RMN está conversando com os israelenses neste exato momento sobre um plano para tirar vocês dois daqui. Os israelenses estão mais do que interessados em desativar essa bomba-relógio. E com a sua ajuda, talvez consigamos tirá-los daqui e levá-los para algum lugar um pouquinho mais estável.

O cardeal balançou a cabeça para eles.

— Vocês não estão entendendo. Não há onde se esconder do que está vindo. Não é só com a segurança de Jeza que eu estou preocupado.

A empolgação de Feldman e Hunter se esvaiu.

— Vocês se lembram — disse Litti, olhando alternadamente para os dois repórteres — de como Jeza escapou do ataque na manhã do Domingo de Ramos?

Eles assentiram.

— Ela fugiu através do Portal Dourado. E vocês se lembram da profecia sobre o Portal Dourado? — O cardeal respondeu às expressões vazias.

— Está previsto que nos Últimos Dias o Messias entrará na Cidade Velha pelo Portal Dourado. Isto será mais um dos sinais finais do Juízo iminente.

Feldman se recordou vagamente de ter ouvido isso em algum lugar, e seu estômago deu um nó.

— Até o terremoto — detalhou Litti — o grande Portal Dourado estivera fechado durante séculos. Os muçulmanos construíram um muro em torno dele como garantia contra o alerta das escrituras. Mas Jeza os desafiou a todos. Ela cumpriu mais uma das últimas profecias.

— E você acha que sexta-feira é o dia D? — perguntou Hunter.

— Que dia mais apropriado para o Senhor retornar do que no aniversário de Sua morte? — arrazoou Litti.

Até a fisionomia corada de Hunter empalideceu diante de tal constatação.

— Há alguma outra coisa que o leve a esta conclusão, cardeal? —­ perguntou Feldman.

— Somente a minha interpretação do estado de espírito da Messias — ­acrescentou ele. — Ela tem andado ainda mais pensativa e triste ultimamente. Vem comendo pouco e dedicando uma quantidade inusitada de seus ensinamentos a temas escatológicos.

— Escato...? — tentou Hunter.

— Escatológicos, Breck — Feldman concluiu por ele. — Coisa do Dia do Juízo Final.

Hunter pestanejou. O rosto de Feldman ficou sombrio. Ele esticou a mão e encostou na manga da batina do cardeal.

— Alphonse, será que ela virá conosco se você lhe pedir?

— Não, Jon, acho que não — retrucou ele, com resignação. — Ela está determinada a vir a público na sexta-feira e eu não ouso interceder junto a Ela neste aspecto. Ela segue o Desejo do Pai.

Os ombros de Feldman se abateram e sua testa se enrugou de frustração. Depois de pensar alguns instantes, ele se animou um pouco.

— Então, será que ela sairia depois da aparição pública?

— Não sei.

— Eu proponho o seguinte — disse Feldman. — Nós conseguimos que os israelenses nos arranjem um helicóptero para ficar no local, à espera, pronto para decolar. Logo depois da fala dela... ou ao primeiro sinal de confusão... nós metemos vocês dois a bordo e vamos embora daqui. Concorda?

Talvez um pouco mais consolado, Litti olhou para o bem-intencionado amigo.

— Às vezes é uma bênção não crer — disse ele, batendo carinhosamente no braço de Feldman. — Concordo. E só posso rezar para que você esteja certo e eu, errado. Mas, se assim não for, pedirei então que nós todos sejamos escolhidos para juntos nos unirmos ao Senhor no paraíso.

Hunter sorriu melancolicamente e estendeu a mão.

— Pois então, padre, só para o caso de eu não ser incluído no reduzido rol dos escolhidos, foi um prazer conhecê-lo. Você é o único sujeito religioso de quem eu gostei até hoje.

Litti apertou a mão do homenzarrão e deu-lhe um sorriso paternal.

— Nunca é tarde demais para se arrepender, meu rapaz. Eu acho que Deus ficaria orgulhoso de tê-lo ao Seu lado.

 

                           Monte da Ascensão, Jerusalém, Israel

                           8:44, quinta-feira, 20 de abril de 2000

O telefone tocou. Era Sullivan.

— Boas notícias, Jon. Eles nos restituíram nossos vistos.

— Ótimo! — gritou Feldman, deixando de lado o Novo Testamento, que estivera folheando em busca de indicações acerca dos planos de Jeza.

— Estão concedendo o retorno de um número limitado do nosso pessoal para Jerusalém, mas ainda não estão liberando a sede do nosso escritório — especificou Sullivan. — Tenho vistos para você e Hunter e eu estarei partindo para Jerusalém com Arnie, Cissy e a equipe um em breve.

— Excelente!

— Os israelenses também estão permitindo que Jeza faça o seu discurso em público — acrescentou. — Está marcado para as duas e trinta da tarde de sexta-feira. Estão montando um palanque grande para ela perto da extremidade norte do muro leste e estão cercando toda a plataforma com uma proteção de vidro à prova de balas.

— Que bom! E quanto ao helicóptero?

— O ministro da defesa concordou em ceder um helicóptero do exército para ficar de prontidão para retirar Jeza e o cardeal após o discurso, ou na eventualidade de uma emergência. Eles vão colocá-lo o mais perto possível do palco e conduzirão os dois diretamente para o Cairo, admitindo que Jeza queira ir. Nós providenciamos para que a ONU os tome sob custódia no Cairo, com esperanças de conseguir asilo na Suíça.

— E você conseguiu que eu e Hunter fiquemos com ela durante o discurso e na retirada também?

— Bem, não foi exatamente assim. A FDI não nos quer... especialmente você... envolvidos na operação. Eles querem que a missão inteira fique nas mãos deles. E não estão permitindo nenhuma mídia no palco nem no helicóptero. A bem da verdade, nós sequer temos privilégios de acesso à Cidade Velha desta vez.

— Não estou gostando disso, Nigel — queixou-se Feldman. — O envolvimento da FDI me deixa apreensivo. Goene é o chefe do estado-maior agora e não acho que ele seja muito melhor do que os Gogs. Estou com um mau pressentimento quanto a isso.

— É tudo o que conseguimos por ora, Jon.

— E por que diabos eles não estão nos deixando entrar para o discurso? Todas as demais mídias estarão lá.

— Alegaram que o espaço está concorrido e que todos os locais para instalação de câmeras já foram reservados.

— Isso é uma besteira — expressou Feldman. — Goene está pisando na bola conosco.

— Eu presumo que você tenha ouvido falar de um grande distúrbio nos acampamentos em Afula.

— Não.

— Os militantes dos Guardiões de Deus se revoltaram e fugiram. Atacaram um depósito de armas nas cercanias de Meguido, onde capturaram um enorme carregamento. E agora estão avançando para o acampamento dos Guardiões Messiânicos. Existem no momento mais ou menos cem mil guerrilheiros. Tanto a ONU quanto os israelenses enviaram forças para tentar impedi-los.

— Meu Deus! Os exércitos de Gog e Magog! — arfou Feldman.

— É o que parece, não é mesmo? — concordou Sullivan. — Então, como você pode ver, a administração tem problemas maiores no momento do que nos arranjar lugares para a fala de amanhã. Mas nós vamos continuar exercendo pressão neste sentido.

Desligando, Feldman engoliu a forte dose de realidade e ligou a TV para assistir aos últimos desdobramentos da revolta. Consolou-se por saber que ao menos Jeza e Litti teriam agora um meio de escapar.

Às quatro da tarde, Feldman finalmente recebeu um telefonema do cardeal. Havia uma agitação considerável ao fundo.

— As coisas estão um bocado tensas por aqui, Jon — gritou o clérigo para se fazer ouvir, numa ligação bastante ruim. — Tive muita dificuldade para conseguir completar a chamada; os Gogs andam cortando as linhas. Suponho que você já esteja sabendo que o discurso está marcado!

Feldman confirmou.

— Bem, a Messias está em reclusão, meditando, e todos estão convencidos de que amanhã será o Último Dia. Já tem gente reservando os seus lugares no pátio e estão montando vigílias por toda a Cidade Velha. Estão disputando o espaço palmo a palmo até o palco. Ah, e tem mais, eles montaram uma plataforma de pouso para helicópteros.

— Correto — confirmou Feldman. — Eles nos prometeram um. Vai estar lá antes do discurso e se a qualquer instante você e Jeza correrem algum perigo, os israelenses têm ordens para retirá-los de imediato. Independente disso, vão levá-los embora assim que acabe o discurso. Vocês serão levados para o Cairo e depois, tomara, para a Suíça.

— Que bom, Jon! Eu perguntei a Jeza se ela havia considerado a possibilidade de sair da cidade depois da assembléia... não lhe contei exatamente o que tínhamos em mente... e ela disse simplesmente que isso não seria necessário. Isto não quer dizer que não, ou quer?

— Pela minha ótica, não — concluiu Feldman.

— E quanto a você e Breck?

— Bem, até agora obtivemos os nossos vistos de volta, mas a FDI não está querendo deixar que entremos na Cidade Velha. Ainda temos a esperança de conseguir um lugar no pátio ou em algum telhado para filmarmos o discurso. Nada é definitivo, mas, pelo visto, não vamos poder estar juntos de vocês no palco nem na saída.

— Vocês vão nos encontrar no Cairo, então? — perguntou o cardeal, nervoso.

— Não tenho certeza, Alphonse. Se conseguirmos chegar lá a tempo, sim. Mas não queremos retardar a sua partida. Tampouco achamos que o Cairo seja exatamente um porto seguro. Mas, de qualquer forma, nós nos reuniremos a vocês o mais breve possível.

Feldman ficou satisfeito ao ouvir o clérigo falando positivamente a respeito do futuro. Talvez até o próprio Litti estivesse se afastando de sua tendência em favor do Dia do Juízo Final.

— Tente dormir bem agora, Alphonse — recomendou — vai ser bom estar descansado amanhã.

— Vai ser difícil com todas as cerimônias planejadas para hoje à noite, mas vou tentar. E você também. Telefonarei amanhã de manhã, se for possível. Caso contrário, boa sorte! E que Deus o abençoe por todos os seus esforços! Tornaremos a nos ver em breve, tenho certeza.

— Tem sido um prazer, Eminência — disse Feldman, sentindo um aperto na garganta. — Por favor, tome muito cuidado amanhã. Não estou me sentindo à vontade com certos militares israelenses por trás da partida de vocês; portanto, fique alerta.

Quatro horas depois, a equipe da RMN subiu para a chácara da colina num veículo de passeio, com um integrante a menos. Erin Cross, conforme Feldman foi informado por uma satisfeitíssima Cissy, estava se sentindo mal e não se juntaria aos demais.

Pouco depois, Feldman recebeu um estranho telefonema. A voz do outro lado da linha soou-lhe assustadoramente familiar.

— Alô, sr. Feldman! Eu sou da Força de Defesa de Israel.

— Como você conseguiu o meu número aqui? — indagou Feldman, alarmado e aborrecido.

— Ah, eu estou sabendo do seu paradeiro desde que chegou, no sábado à noite — respondeu a pessoa, sem se deixar intimidar. — Mas não se incomode, não há perigo. Você está completamente a salvo.

— De onde eu o conheço? — perguntou Feldman. — Estou reconhecendo a sua voz.

— Bem, já faz algum tempo desde que nos falamos, sr. Feldman. Da última vez, eu creio que você estava com pressa de sair de Israel.

Feldman fez a conexão. Imediatamente, ele abrandou o tom.

— Eu nunca tive a oportunidade de agradecer-lhe. Prestou-nos um grande favor. Somos-lhe todos muito gratos.

— Não é necessário agradecer — tranqüilizou-o a voz. — E agora eu gostaria de lhes prestar mais um serviço. Tomei as providências para conseguir-lhes acesso à Cidade Velha para o evento de amanhã.

— Que maravilha!

— Ora, não é bem assim. A localização que consegui não é das melhores. Fica um pouco afastada do palco, mas não haverá nada que lhes obstrua a visão. Com lentes teleobjetivas, você e o seu cinegrafista, o sr. Hunter, conseguirão dar um jeito. Infelizmente, só pude arranjar acesso para os dois. E vocês terão de se encontrar com representantes da FDI perto do Portão do Esterco antes do meio-dia e meia de amanhã. Procurem a cabo Illa Lyman. Ela lhes dará os papéis necessários e os escoltará até a posição que lhes foi reservada. Uma vez lá, não saiam da área sob circunstância alguma até que o discurso termine.

Feldman tomou nota das informações.

— Fico-lhe muito agradecido. Agora, o senhor se importaria em me dizer o seu nome e por que está correndo estes riscos para nos ajudar?

— Queira me perdoar, mas eu vou preferir manter a minha discrição por ora. — Ele desligou.

— Quem era? — quis saber Hunter, deixando de lado a TV:

Feldman sorriu.

— Ora, foi só mais uma intervenção divina, eu diria.

 

                                       Monte da Ascensão, Jerusalém, Israel

                                       6:03, sexta-feira, 21 de abril de 2000

Feldman dormiu um sono intermitente e não deixou de ter a sua cota de sonhos estranhos, o último dos quais o despertou de vez.

Uma luz branda e lúgubre banhava o chão da sala de estar onde ele estava deitado a um canto, enrolado em sua roupa de cama. O único acordado, ele enfiou as calças e atravessou na ponta dos pés um verdadeiro campo minado de corpos adormecidos para chegar até a varanda. Em todas as direções, o espaço ao redor estava absolutamente coberto por peregrinos até onde a vista alcançava. Ele pensou consigo mesmo que aquela devia ter sido a visão que o faraó havia tido quando os israelense se reuniram para o seu êxodo em direção à terra prometida. E fez uma prece para que a história não estivesse se repetindo.

Uma vez que ninguém mais estava sendo admitido à praça do Muro das Lamentações, que já estava cheia além de sua lotação máxima, foram colocados enormes telões em vários locais estratégicos do lado externo da Cidade Velha, possibilitando que as massas assistissem ao discurso de Jeza. Enormes alto-falantes foram dispostos regularmente sobre muros altos, virados para os trezentos e sessenta graus. Mesmo que não pudesse vê-la, a multidão pelo menos conseguiria ouvir sua fala ansiosamente esperada por tantos: o primeiro discurso de Jeza para o público em geral desde sua primeira aparição, no monte das Beatitudes.

O dia não prometia muito. O sol raiara, mas o céu estava encoberto e soprava uma brisa forte do leste.

Bom, pensou Feldman com seus botões, enquanto observava as nuvens ameaçadoras. Não faria mal algum se chovesse um pouco na hora dos eventos de hoje.

Durante todo o resto da manhã, Feldman, Hunter e a equipe da RMN trabalharam nos preparativos para a transmissão de logo mais. Após a última verificação do equipamento, a equipe se reuniu na sala da frente para dar as despedidas aos dois colegas. Parecia que ele e Hunter eram soldados deixando as famílias, em partida para a frente de batalha. A frivolidade e a irreverência de sempre haviam desaparecido. A solenidade dos apertos de mão e abraços que recebeu disseram a Feldman que, apesar das convicções seculares que seus associados vinham defendendo, os temores milenaristas haviam se infiltrado.

Eles partiram num carro com Bollinger ao volante, descendo a colina e passando pelo meio da multidão. Quanto mais perto da Cidade Velha, mais lento o deslocamento. Chegaram afinal ao Portão do Esterco, assim chamado devido aos montes de lixo e excrementos de cavalo que os romanos e bizantinos acumulavam ali nos tempos antigos.

Bollinger fez uma parada para avaliar a situação.

— Alguém está vendo um cabo do sexo feminino por aí?

— Estou vendo soldados da FDI guardando o portão ali e eles não parecem estar deixando ninguém entrar ou sair — informou Hunter, virando-se em seu assento para ter melhor ângulo de visão. — Mas ainda não vi nenhum soldado do sexo feminino.

— Temos cinco minutos. — Feldman verificou o relógio. — Eles disseram meio-dia e meia; não vamos ficar nervosos. — Foi um conselho hipócrita.

— Espero que vocês tenham trazido suas capas de chuva — advertiu Bollinger, olhando para o céu. — Parece que o tempo vai mudar. Talvez esta maldita seca esteja prestes a terminar.

— É, que dia bom para um Juízo, hein? — opinou Hunter.

— Ou um Êxtase! — acrescentou Feldman.

Ao meio-dia e meia em ponto, chegou um grupo de soldados para render o outro. O oficial no comando era uma jovem direta e objetiva, com ar competente, cabelos e olhos escuros. Ela bateu continência para os soldados que encerravam o plantão e posicionou os seus diante do portão, com suas metralhadoras a postos.

Feldman saiu do carro, agarrou sua sacola de equipamento e enfiou o rosto pela janela.

— Lá vou eu, Arnie. Se tudo der certo, farei um sinal para Breck. Manteremos contato pelo telefone celular quando estivermos lá dentro.

— Boa sorte! — Bollinger levantou os dois polegares para Feldman. — ­Tome cuidado. Eu não preciso lhe dizer que as coisas podem não ser tão fáceis assim lá dentro.

Feldman retribuiu o gesto, sorriu com severidade e marchou na direção da cabo. Em poucos minutos, estava recebendo papéis e acenando para que Hunter se juntasse a ele.

Depois de repetir as formalidades com o cinegrafista, a cabo pegou o que parecia ser uma lata de café vazia e, em companhia de três soldados, escoltou silenciosamente os dois repórteres portão adentro. Uma vez no interior da cidade, os repórteres puderam ver, por cima da densa multidão, uma plataforma montada na extremidade nordeste da praça, alinhada contra a parte leste do enorme muro. Infelizmente, Feldman e Hunter estavam sendo conduzidos no sentido inverso.

— Eu acho que não há uma forma de influenciá-la para nos conseguir uma posição melhor, há? — Hunter sugeriu à jovem suboficial, dedilhando os cantos de um grosso maço de notas. Sem perder o passo, ela olhou primeiro para o dinheiro, depois para Hunter, puxou o ferrolho do rifle e continuou em marcha, calada. — Talvez eu devesse ter oferecido o meu corpo — sussurrou Hunter para Feldman, alto o suficiente para que ela ouvisse.

A travessia pela vastidão de milenaristas que cantavam e rezavam de pé foi lenta. A praça era um mar de cultos, etnias e idades misturados. Feldman se lembrou da eclética multidão que testemunhara na véspera do milênio, só que o estado de espírito aqui era consideravelmente mais intenso.

Cruzando a praça e chegando ao coração da Cidade Velha, o grupo atravessou diversos becos estreitos, tomou uma rua lateral e parou em frente ao que parecia ser um armazém de quatro andares. À porta, uma placa distinta, com inscrições em amarelo em várias línguas, dizia o mesmo que outras iguais nos prédios vizinhos: “Acesso ao telhado proibido desde 20/04/2000 por ordem da FDI. Infratores sujeitos a prisão em flagrante.”

A suboficial tirou uma chave do bolso do peito e destrancou a porta.

— Por aqui — disse ela, sinalizando com o cano da arma em direção a uma escada escura e úmida. Seus comandados se postaram nos dois lados, a fim de guardar a entrada, e os dois repórteres a acompanharam, subindo quatro lances de degraus até o telhado. Abriram uma porta e receberam uma lufada da brisa fresca. — O telhado está ruim aqui. — Ela gesticulou com a arma para a esquerda. — Portanto, mantenham a sua direita e estarão seguros. A porta da rua só abre por dentro, de forma que vocês não deverão ser perturbados. Quando terminarem, saiam conforme entraram. Não há banheiros aqui. — Ela deixou a lata de café cair sobre o telhado. — Usem isso aí para as suas necessidades e levem-nas com vocês quando forem embora. Alguma pergunta?

— Você vai voltar para nos escoltar para casa? — brincou Hunter. Ela olhou para o homenzarrão de alto a baixo com uma sobrancelha levantada e grunhiu:

— Eu preferiria enfrentar o Dia do Juízo Final! — Tanto Hunter quanto Feldman soltaram uma gargalhada, apreciando a quebra da tensão. O mesmo não se deu com a cabo Lyman, que não perdeu tempo em retomar a escadaria e ir embora.

Hunter apontou para a direção dela com o polegar invertido.

— Da mesma escola de carisma de Goene! — disse ele, com um sorriso afetado e começou a descarregar o equipamento.

Feldman caminhou até a borda do telhado, na direção do palco, para analisar o quadro geral. Viu que seu prédio era conectado ao da frente, um andar abaixo, que, por sua vez, era conectado ao da frente, e assim por diante. Pelo visto, os dois poderiam ir de prédio em prédio até chegarem à fileira frontal no perímetro do enorme quadrilátero. Caso surgisse a oportunidade! Além dos telhados, adjacente ao palco, Feldman se tranqüilizou ao avistar um helicóptero militar pousado sobre a plataforma.

Conforme a misteriosa voz ao telefone prometera, o palco na praça do Muro das Lamentações era visível dali, mas ficava a bem uns cem metros de distância! Todas as outras equipes de reportagem estavam muito mais bem situadas na periferia da praça, tanto nos muros ao redor quanto nos topos dos prédios circunvizinhos.

— Não vamos conseguir um áudio decente daqui — afirmou Feldman o óbvio.

— Não — concordou Hunter. — A sede vai ter que lançar mão de retransmissão de áudio de outra rede, conforme havíamos previsto. Mas pelo menos eu e você talvez consigamos ouvir o discurso. O equipamento de som que está montado no palco é bom — ele apontou para uma série de caixas de som de sessenta centímetros por dois metros dispostas horizontalmente ao longo da borda frontal da plataforma.

— O que você acha daqueles telhados vazios lá? — perguntou Feldman. Ele supôs que estivessem na sexta fileira de telhados depois da praça e ficou surpreso ao ver que não havia espectadores nos telhados adiante deles. Toda a vista estava desimpedida.

Hunter pousou uma caixa de câmera no chão e foi até onde Feldman estava.

— Hum! Telhados ruins, conforme nos disse a cabo? Ou talvez segurança. Veja como a plataforma fica meio embaixo daqui. Seria fácil lançar um foguete ou uma granada por cima do escudo de vidro. Todas as janelas que dão para a praça provavelmente estão ocupadas pela milícia. Mas não sei por que diabos eles não nos colocaram um pouco mais perto!

— Acho que temos sorte de estar aqui — aquiesceu Feldman.

Hunter tirou um tripé e posicionou a câmera em cima.

— É, só que eu não estou gostando do ângulo. Estou baixo demais. Não dá para pegar você e a plataforma no mesmo enquadramento.

Feldman foi até lá dar uma olhadela pela lente.

— O que você sugere?

— Sabe, com todo esse acesso aberto aí adiante de nós, talvez devêssemos tentar nos aproximar um pouquinho, hein?

Feldman considerou a sugestão por um instante e depois observou o grande número de militares israelenses estacionados em torno das áreas perimetrais.

— Não — disse ele, com um suspiro. — Se nós formos expulsos daqui, a RMN vai ficar totalmente sem cobertura deste evento. É melhor ficarmos do lado da segurança.

Hunter olhou em volta e fixou-se no telhado mais alto que ficava atrás deles, à esquerda.

— Ali — propôs. — Deixe-me ver como fica dali. Você me passa a câmera.

Antes que Feldman pudesse objetar, Hunter já se fora.

— Cuidado com o telhado — gritou ele.

A nova posição funcionaria perfeitamente, verificou Hunter. Ele poderia pegar Feldman de corpo inteiro e depois, com habilidade, dar um bom zoom por cima de seu ombro para enquadrar o palco e a Messias falando.

— Eu não estou gostando nada daquelas nuvens — observou Feldman, voltando o olhar para o céu. — Vai ser uma brincadeira de tiro ao alvo em você se começarem a pipocar raios, você sabe.

— Não tem problema. Eu caio fora rapidinho, se for o caso — assegurou-lhe Hunter. — Vamos lá, me dê uma ajuda com o resto do equipamento.

Quando já se aproximava a hora marcada para a chegada de Jeza, Feldman fez mais uma tentativa para falar com Anke pelo telefone celular. Desta vez ele conseguiu, mas quem atendeu foi a secretária eletrônica. Feldman deixou um recado detalhado de onde estava, números telefônicos e como poderia ser encontrado depois. Pediu para que ela o contatasse logo, considerando que ele poderia estar a caminho da Suíça ainda hoje à noite. Frustrado, fechou a aba do aparelho e colocou-o de volta no bolso.

Em seguida, sem qualquer aviso, os dois repórteres foram subitamente alertados da presença de Jeza pelo rompante de excitação da platéia. Aparentemente do meio do nada, a profetisa surgira sobre a plataforma sem ser anunciada e já estava tomando o seu lugar no palco, atrás de um conjunto de microfones. Em pânico, Hunter subiu atabalhoadamente para o seu posto no outro telhado. Feldman, mais uma vez arrebatado pela imagem cativante, precisou fazer um grande esforço para evitá-la e conseguir retomar o seu trabalho. Assumiu o seu devido lugar perto da borda no nível em que se encontrava, logo à frente do cinegrafista.

— Que tal o meu áudio? — disse Feldman, experimentando o microfone sem fio preso à sua lapela.

— Bom — a palavra chegou-lhe pelo fone de ouvido. — Espere um segundo para eu limpar o nosso sinal.

O fone de Feldman ficou em silêncio durante um momento e logo a voz de Hunter soou novamente.

— Tudo bem! Recebemos sinal verde. Pode começar com a introdução e vá improvisando até ela começar o discurso.

Isso poderia levar algum tempo, visto que a multidão não parecia ter a intenção de diminuir o volume da algazarra de boas-vindas. Feldman, de costas relutantemente voltadas para o palco, esfregou o paletó, limpou a garganta e dirigiu-se à câmera. Recebeu a deixa com um gesto manual de Hunter e começou.

— Aqui fala Jon Feldman, ao vivo para a RMN, da histórica praça do Muro das Lamentações, em Jerusalém. Conforme vocês podem ver pelas massas que se acumulam aqui atrás de nós, este é o maior evento na contínua história da jovem visionária que se auto-denomina Jeza.

Quando Feldman abriu a boca para tomar o próximo fôlego, um enorme brado ecoou da multidão. Ele se virou e viu Jeza levantando as mãos por trás do escudo de vidro transparente no que ele assumiu ter sido uma saudação para o público, ou talvez um pedido de silêncio.

O clamor por Jeza ficou ensurdecedor. Elevou-se do meio da praça e retumbou numa reação em cadeia por todas as colinas circunvizinhas de Jerusalém, totalmente recobertas pela presença de cinco milhões de testemunhas a este evento supremo. Jeza estendeu os braços para as massas e finalmente, qual a esteira de uma explosão, a algazarra se retraiu em quietude absoluta.

Ela afinal baixou os braços e falou em voz alta, cheia de autoridade, que se projetou pelos alto-falantes e ecoou pela paisagem da Terra Santa.

— Em nome do Pai, eu venho a vocês! — começou ela, com sua bastante conhecida introdução.

A multidão irrompeu outra vez, mas ela prosseguiu, sem encorajar uma interrupção. Desta vez a fala foi somente em inglês, como se ela tivesse tanto a dizer que não devesse atribular seu discurso. A multidão tornou a se calar imediatamente.

— Eu lhes falei sobre a libertação da alma — bradou ela, com uma voz repleta de autoridade. — Eu lhes falei da necessidade de abolir sua dependência de uma instrução espiritual baseada em outras pessoas para que vocês possam chegar ao seu próprio significado das escrituras. E eu os adverti para que deixassem suas igrejas, templos e mosteiros e para que abandonassem seus líderes religiosos, pois o direcionamento que eles lhes dão os afasta das verdades de Deus. Hoje, eu lhes trago a Palavra Final para que vocês possam compreender.

Ela parou e tomou bastante fôlego, assim como a multidão.

— No início, Deus os preparou para grandes bênçãos — continuou ela, com sua voz angelical. — Uma unidade do céu, e da terra, e da vida eterna. Era o plano de Deus, então, que a humanidade compartilhasse para sempre a glória e as alegrias do paraíso. Mas o homem não estava pronto para esta grande dádiva. Em seu orgulho, a humanidade deixou de reconhecer o sacramento dessa unidade. De sua livre e espontânea vontade, o homem rejeitou Deus.

E assim, da graça houve a queda, quando Deus separou a vida da morte, e a terra dos céus, e a humanidade da divindade. E o homem foi banido, para vagar a esmo, perdido e só.

Contudo, mesmo depois da queda, Deus preparou um plano de redenção, de forma que um dia vocês pudessem tornar a compartilhar completamente da maravilha de Sua divina perfeição. Esse plano Deus colocou diante de vocês nas visões dos profetas. E nas mensagens dos Messias, Deus revelou algo mais de seus desígnios:

Que o homem deveria aprender e crescer nos caminhos do Senhor e trabalhar em prol do Dia do Juízo Final, quando os dignos poderiam tomar a vivenciar a unidade de Deus na vida. Deus deixou o homem com a promessa de que, no juízo, Ele voltaria para reinar com os justos sobre a terra. Até esse momento, somente na morte o homem poderia se reunir ao Todo-Poderoso.

Mas o homem tardou muito a se preparar para o juízo. Tem-se perdido em sua jornada para a justeza. Ele não compreendeu e ignorou os mensageiros de Deus. Soçobrou e se debateu em sua compreensão dos desígnios de Deus.

Pois assim eu venho para trazer-lhes a Palavra, de forma que vocês possam finalmente encontrar o caminho de volta ao Pai. Pois só conhecendo a Palavra vocês cruzarão o abismo que ainda os separa.

Na Palavra, vocês reconhecerão a duradoura desarmonia que os separa de vocês mesmos! Ouçam a Palavra e compreendam. Pois eis que eu sou o Mensageiro Ungido. Eu sou o Novo Significado. Eu sou o capítulo final do Novo Testamento...

Eu sou o Livro da Apoteose!

Diante desta retumbante declaração, as turbulentas nuvens que pairavam acima da profetisa foram rasgadas por um enorme raio. As multidões se deixaram cair ao chão no mais abjeto terror, enquanto a terra reverberava com o repique apocalíptico e ensurdecedor. Mas Jeza não se abalou nem titubeou.

— Eu falo a vocês das grandes iniqüidades que prolongam sua desgraça — bradou ela para todos, enquanto o trovão esmaecia e os gritos de alarme aumentavam. — Falo do afastamento do homem e da humanidade, numa separação alheia a Deus!

Recolhendo-se e acalmando-se diante do sermão ininterrupto da Messias, as massas se recompuseram e tornaram a se concentrar.

— Nessa queda — prosseguiu ela —, Deus ordenou a separação entre Ele e a humanidade. Entretanto, e depois de tudo, o homem resolveu criar por si próprio ainda mais separações, de concepção antinatural e orgulhosa, ofensivas aos olhos do Senhor. Em tais separações antinaturais, o homem primeiro preferiu se colocar acima de sua companheira, separando-se da mulher, a quem Deus criara como igual e contraparte.

Ao longo dos milênios, o homem buscou emprestar sanções a esta separação errônea corrompendo a própria Palavra de Deus. No Livro do Gênesis, capítulos dois e três, a mulher é mostrada como secundária na criação; subserviente a Adão; perpetradora do pecado original; sedutora que tenta Adão a experimentar do fruto proibido, trazendo com isso a desgraça da humanidade.

Eu lhes digo, o significado adulterado desse livro é a mais proeminente das muitas corruptelas das escrituras. Essas passagens lhes foram apresentadas primeiramente como uma mensagem sagrada do geral e do simbólico. Entretanto, o significado verdadeiro foi abandonado, reduzido ao específico e literal.

Fiquem todos sabendo que, no verdadeiro progresso da vida sobre esta terra, foi a forma feminina que veio antes. No início, Deus criou os organismos primitivos. E em Seu desígnio, Ele os criou, a todos, fêmeas. Célula reproduzindo célula, fêmea reproduzindo fêmea. Somente mais tarde foi que o masculino emergiu, o macho sendo reproduzido a partir da fêmea.

E foi só mais tarde que o homem veio, enquanto caçador e protetor, a superar a mulher em força e bravura. E então ousa lançar mão de seus poderes para manter domínio sobre a mulher. Entretanto, quando a mulher tenta suplantar a força com a inteligência, ela é condenada por sua esperteza.

Nos escritos da Bíblia e em todas as escrituras antigas, o símbolo da mulher sofre da pena tendenciosa do homem. Ao longo de todas as eras, esses falsos significados foram usados para santificar a escravização e o abuso sobre as mulheres. Através dos milênios, o homem negou à mulher acesso à sua espiritualidade e autoridade religiosa, mantendo-a em desalmada submissão pela arrogância e teimosia, pelo ciúme e pela insegurança.

Olhem ao redor de si, em seu próprio meio — exortou ela, varrendo a multidão com o dedo em riste. — Vejam entre vocês mesmos quantas mulheres ainda restritas por doutrina a se esconder sob compridos véus, desvalorizadas, diminuídas em sua presença e importância.

Houve um desconforto generalizado na multidão quando as reclusas mulheres, sujeitos das observações de Jeza, foram trazidas à baila.

— Olhem para as hipocrisias das religiões ocidentais — continuou ela. — E olhem para o sucessor do Apóstolo Pedro da Igreja romana, que nega à mulher controle sobre seu corpo na propagação; contém sua condição dentro de sua casa de adoração; nega-lhe a satisfação no desempenho dos sacramentos.

Saibam que, através de mim, Deus libertará a mulher de suas restrições espirituais. Pois, agora, através de mim, Deus dá ao homem uma nova lei.

Um novo Mandamento, separado, distinto, que todo homem deverá seguir.

Eu lhes digo, filhos de Adão, ouçam e obedeçam o Desejo de Deus:

 

Deverás honrar a mulher como tua igual; e deverás prezá-la em unidade com teus iguais. (Apoteose 25:15)

 

Assim será a nova Lei de Deus para o homem em prol da igualdade para com aquelas a quem já estão unidos.

Portanto, vocês deverão voltar às escrituras para corrigir as desigualdades. Onde encontrarem passagens de aviltamento, façam o que lhes digo: onde encontrarem masculino, escrevam feminino; onde encontrarem feminino, escrevam masculino. E tornem a ler a Palavra desta Nova Maneira, mulher aprendendo confiança e homem aprendendo desapego, em todas as medidas.

Eu lhes ordeno, mulheres, livrem-se dos grilhões espirituais que as subjugam. Tirem os véus e sua falsa vergonha e ergam-se... Não contra o homem, mas ao lado do homem, em equilíbrio.

Advirto ainda que não abriguem em seus corações amargura nem ressentimento pelos seus iguais. Pois, tais paixões são vazias e só as dividirão ainda mais. Pelo contrário, mulher, aceite o seu parceiro e compreenda as forças das eras dentro dele, assim como ele deverá se esforçar para compreendê-la. Trabalhem juntos em prol da resolução e da harmonia através das quais vocês e todos os seus filhos poderão ascender em direção à divindade e à exaltação.

Como se a exaustão se tivesse apoderado dela, a Messias pareceu murchar um pouco, deixando cair o queixo contra o peito, trazendo o punho direito ao encontro do coração e deixando-se cair no silêncio.

As massas aproveitaram essa oportunidade para se maravilharem e conjeturarem entre si. Observando a ausência de qualquer referência a um chamado iminente para o Juízo, muitos dos fiéis começaram a se animar com o que acabavam de ouvir, na esperança de que a mensagem de Jeza viesse a se concluir sem incidentes.

Mas a profetisa ainda não terminara. Reunindo suas forças mais uma vez, Jeza alinhou os ombros, ergueu o rosto, que aparentava estar ainda mais pálido do que antes, tomou fôlego e recomeçou.

— Agora eu lhes falo da separação maior entre Deus e o homem ­bradou ela, dispondo todos outra vez na mais ferrenha atenção. — Eu lhes falo da maior separação que afasta o homem de si próprio.

Suas mãos pequenas agarraram a borda do atril e a testa se enrugou com o esforço de suas convicções.

— No Livro do Gênesis, capítulo quatro — continuou ela — esta separação é revelada. Entretanto, mais uma vez o figurativo foi corrompido para o particular e o significado correto se perdeu.

Esta passagem da escritura fala de Caim e Abel, uma alegoria na qual se esconde o significado maior da mais maldita secessão do homem. É a história da auto-traição. Do homem se voltando contra o seu igual; violando sua própria humanidade; negando ao seu irmão a santidade e a vida num ato de suprema deslealdade.

Tão abominável é este pecado que Deus marcou Caim e os seus com um sinal, de forma que todos pudessem reconhecê-los e rejeitá-los! Contudo, vocês também corromperam este significado. Tentam encontrar essas marcas de Caim nas dessemelhanças físicas daqueles que diferem de vocês. Mas estão enganados. A marca pela qual conhecerão Caim não é um sinal físico. Ela não está na cor da pele, nem nos traços de seu rosto, nem numa marca sobre seu corpo. A marca está em suas ações. Através das palavras e feitos dele, vocês o conhecerão. Inimizade é a marca de Caim. Ódio pelos iguais. Uma marca que se encontrará evidente em todos os povos, em todos os lugares. É o duradouro traço do mal que mais os separa de si mesmos. Se não removerem de si essa marca, vocês não atingirão a unidade para conhecer Deus.

Durante dois milênios, vocês receberam esta mensagem clara e certa dos profetas que me antecederam. Ainda assim, continuam a usar essas diferenças para infligir pesar, sofrimento e morte ao seu irmão. Ainda se distinguem por raça, credo, cor, idade, situação, riqueza, posses; enfim, por todas as diferenças que consigam perceber entre si.

Jeza se afastou e inclinou a cabeça um pouco, mordendo o lábio inferior, sua fisionomia se enchendo de ira crescente à medida que o rosto descrevia um semicírculo até voltar-se novamente para frente. E ela liberou para o público sua fúria acumulada.

— E agora vocês ousam fazer pouco da Palavra de Deus e desmoralizar o mensageiro d'Ele, abusando e destruindo-se entre si em meu nome!

Pelo binóculo, Feldman prontamente percebeu as lágrimas assomando-­lhe aos olhos. Ela estava com o mesmo rosto atormentado, a mesma paixão desenfreada da qual Feldman se recordava tão indelevelmente do vídeo da virada do milênio, quando Jeza fora filmada sobre os degraus do antigo templo.

— Por que vocês não escutam? — ela gritou, olhou para baixo e balançou a cabeça, deprimida. — Por conta disto, não lhes dou um novo Mandamento. Pois alguém que veio antes de mim já lhes deu esse Mandamento. É a Lei Perfeita: eu lhes digo: “Amem ao próximo como a si mesmos e aos outros como gostariam que eles os amassem.” Nesta lei, portanto, estão contidos todos os outros Mandamentos que governam a conduta do homem com relação ao homem. Nesta lei está a Palavra para guiá-los de volta à unidade que vocês perderam.

Ela tornou a fazer uma pausa para fitar profunda e intensamente a multidão. E mesmo à distância em que se encontrava, Feldman achou ter detectado um lampejo de esperança a restaurar-lhe um pouco do resplendor de seu rosto angustiado.

— Eu olho para dentro de cada uma de suas almas, individualmente— falou ela, quase num sussurro — e vejo os resquícios da doce inocência que Deus lhes concedeu ao nascerem; um tesouro perfeito e precioso que agora jaz perdido e esquecido, oculto sob os sedimentos da injúria e da suspeita. Onde uma vez vocês já olharam maravilhados e contentes para o mundo ao seu redor e encheram seus corações de esperança e alegria, agora se recolhem para construir muralhas em torno de si e reforçar suas defesas, distanciando-se de seus iguais, afastando-se do contato, da compreensão e da dedicação.

Mas eu lhes digo, vocês precisam retomar a visão de sua juventude. Precisam todos ver novamente através dos olhos de uma criança, de forma que possam reconhecer no rosto do inimigo a criança que ali também existe. Vocês precisam tornar a aprender a ver todos os homens como Deus os vê. Mesmo ao seu inimigo, vocês devem amar e salvaguardar como se ele fosse sua estimada carne e sangue, pois certamente ele é isso para o Pai.

Façam isso à sua própria maneira, de sua espontânea vontade. Façam isso com a maior fé e confiança, e com amor absoluto. Façam isso sem ressentimento ou considerações quanto a sacrifício ou custo. Abandonem suas apreensões ao Pai e saibam que o Pai, em troca, alimentará suas almas e liberará sobre vocês a abundância do céu que Ele há muito prometeu. Vocês podem e devem fazer isto, pois mesmo que evoluam em corpo, também precisam evoluir em mente e alma para que atinjam o equilíbrio que é a unidade.

Torno a dizer, a maior separação sofrida pelo homem com relação a Deus é aquela onde ele se afasta de si mesmo. Portanto, vocês não serão dignos de união com Deus enquanto não atingirem a união com seu próprio espírito. Este é o caminho pelo qual vocês se elevarão. Através de Deus, vocês poderão se tornar iguais a Deus... a expressão máxima de sua evolução. E somente desta forma virão a conhecer Deus e atingir Sua perfeição final: a Apoteose!

Jeza tornou a parar e o céu, em fúria, hesitou junto com ela, contendo suas rajadas de vento momentaneamente, enquanto ela erguia um dedo de alerta.

— Ouçam as minhas palavras, Ó Filhos de Israel! — gritou ela, com o rosto assumindo uma fisionomia mais solene. — Pois o desprazer de Deus para com vocês é grande e Sua raiva justa. Neste exato momento o Grande Juízo se faz presente em vocês e ninguém pode impedir o que há de ser: a Tribulação vem, e é chegada a hora das trevas de sua Dissolução!

— Porra! — Feldman ouviu pelo seu fone de ouvido a blasfêmia de Hunter.

Feldman, que fora se sentar sobre um duto de ventilação fora do alcance da câmera de Hunter, baixou os binóculos e arriscou um olhar de relance para o parceiro.

Hunter estava apontando na direção do palco, irado.

— Tem um babaca atrasado que está colocando o equipamento de vídeo dele bem na linha da minha câmera! Olhe!

Efetivamente, cerca de quatro prédios adiante, bem dentro do seu campo de visão, um cinegrafista chegava, atrasado, e às pressas montava um tripé e uma câmera de vídeo. Feldman focalizou o binóculo nele.

— Porra! — gritou para Hunter. — Ele é um dos nossos! Olhe só para a jaqueta dele.

Nas costas do casaco do intruso enxergava-se o vistoso emblema da RMN.

— Dá para filmar sem pegá-lo? — perguntou Feldman, esperançoso.

— Mal. Posso filmar, sim, mas ele não deixa de estar no primeiro plano. Vou ligar para ver se Bollinger consegue mandar tirá-lo de lá. Sullivan deve ter conseguido mais alguma permissão! Mas que porra de beneficio isso nos traz agora?

Enquanto Hunter tentava em vão contatar a equipe de campo, Feldman tornou a focalizar o binóculo na inflamada oradora. Ela parecia estar chegando a um fechamento agora. E o público estava ficando cada vez mais nervoso e pouco à vontade com essa consciência.

O desconforto generalizado era exacerbado pelo acúmulo crescente de tempestuosas nuvens baixas de um verdor enegrecido que pairavam nas alturas. Feldman ficou surpreso quando se deu conta de que os relâmpagos haviam sido poucos até o momento, mas um surto deles se fazia iminente. Tal formação celestial era evidência mais do que clara para todos os presentes de que o Apocalipse se avizinhava.

Jeza ergueu a palma de uma das mãos para silenciar a multidão. Então, varrendo toda a assembléia com um gesto de seu braço em gigantesca bênção, ela gritou em voz alta:

— É o fim!

A Messias desceu do pódio e parou, sua cabeça solenemente curvada, os braços soltos ao longo do corpo e os punhos cerrados como se ela estivesse reunindo toda a sua coragem e determinação. Após uma pausa prolongada, ergueu os olhos desesperançados e foi para fora da proteção do escudo, caminhando muito lenta e deliberadamente em linha reta para a beira da plataforma. Quando ela ultrapassou o painel de vidro, o vento, vindo por suas costas, pegou-lhe os cabelos e roupas, agitando-os em forte rodopio.

À medida que Jeza se deslocava para a borda frontal do palco, Hunter ia enquadrando a câmera suavemente no seu encalço. Mas o trajeto dela levou-­a exatamente para trás do recém-chegado cinegrafista da RMN, obstruindo por completo a visão de Hunter.

Filmagem arruinada, Hunter xingou por entre os dentes e focalizou sua câmera exatamente no intruso, a fim de identificá-lo. Instantaneamente, Hunter gritou ao microfone:

— Puta merda! Feldman, ele está armado!

Feldman, com os ouvidos zumbindo, franziu o semblante na direção da figura ensandecida e agitada do parceiro, cuja silhueta se ressaltava contra um céu tortuoso ao fundo. Hunter gesticulava freneticamente para ele do topo do telhado, num palavrório indecifrável e incoerente aos ouvidos atordoados de Feldman. Finalmente, a barulhada começou a fazer o sentido de palavras reconhecíveis.

— Porra, Feldman! Ele está armado. O sujeito da câmera... olhe. — Hunter apontou com ambos os braços.

Feldman se voltou na direção do sujeito e forçou a vista para enxergar direito.

— Feldman! — Hunter lutava para se livrar do equipamento. — Pelo amor de Deus, Pegue o sujeito!

Afinal, a mensagem foi captada. Feldman partiu a toda, pulando de um prédio para o outro, saltando por cima dos exaustores dos telhados em louco frenesi. Toda e qualquer apreensão acerca de telhas em mau estado se perdera.

Ele ainda ouvia Hunter pelo fone de ouvido, instigando-o a continuar:

— Corra, Feldman. Corra!

Numa questão de segundos apenas, o repórter subira o que achava ser o último telhado e acelerara instantaneamente à velocidade máxima. Dentro de seu deficitário campo de visão, conseguiu enxergar o franco-atirador logo adiante. E de repente percebeu, quando já era tarde demais, que o pistoleiro se encontrava num prédio totalmente diferente, separado dele pelo abismo descomunal de um beco.

Embora parecesse uma tentativa suicida, Feldman não vacilou. Quando chegou ao fim do prédio, num ímpeto de força compelida pela ira, ele se atirou, com mãos e pernas remando no ar em busca de mais propulsão. Ele se projetou por cima do abismo, caindo com todo o peso bem em cima do atirador, num impacto terrível. Tudo se espatifou e Feldman rolou bastante até parar, completamente aturdido. Ambos ficaram momentaneamente imóveis. Em poucos instantes, Feldman começou a se apoiar sobre um cotovelo, tonto, balançando a cabeça, tentando desesperadamente clarear a visão.

Ele estava ciente de que o franco-atirador também se mexia, gemendo enquanto tentava se levantar para fugir. Ainda com a vista enevoada, Feldman se lançou contra um par de pernas que tentavam deslocar um corpo. Eram pernas grossas, fortes, mas ele as deteve, derrubando-as.

Nesse instante, o esperado rojão de relâmpagos começou, rebrilhando continuamente e embranquecendo todo o panorama. Abaixo dos dois que se engalfinhavam, a assembléia se recolhia, acovardada pelo medo desenfreado, numa gritaria quase tão ensurdecedora quanto a trovoada que se seguiu.

Feldman, com os sentidos um pouco mais nítidos agora, pôde ver os olhos negros de um homem de grande estatura e muito forte. Havia uma máscara recobrindo-lhe parte do rosto, deixando à mostra apenas os olhos febris e peçonhentos de um assassino impiedoso. O homem xingou Feldman no que parecia ser italiano, recuou o suficiente para livrar uma das pernas e desferiu um tremendo pontapé contra o ombro do repórter. Os óculos de Feldman voaram longe e ele caiu para trás, encolhendo-se na queda, mas conseguindo se recobrar de imediato, com os pés no chão.

E também o seu adversário. Feldman, sem saber, se pusera entre ele e sua rota de fuga, uma escada externa que descia até o beco. O homem, com os braços estendidos, aproximou-se ameaçadoramente. Destreinado nas artes marciais, Feldman imitou o franco-atirador, inclinando-se para a frente, de punhos cerrados.

Mas Feldman não conseguiu, com isto, o efeito desejado, de vez que o pistoleiro, sem se deixar intimidar, desferiu um cruzado de esquerda que o acertou bem no queixo. O que faltava ao repórter em técnica de combate compensava-se pela raiva e a coragem. Quando o arco do golpe levou o franco-atirador para além de Feldman, o repórter juntou as mãos e desceu um violento murro duplo sobre a nuca do adversário. Emitindo um urro de dor, o enfurecido pistoleiro titubeou, recuperou-se e atirou-se de corpo inteiro contra Feldman, derrubando-o de costas sobre as telhas, tirando­-lhe totalmente a respiração.

Antes que Feldman conseguisse recuperar o fôlego, o homem chutou­-o novamente, com força, contra as costelas, arremessando o repórter para a borda do prédio. Recebendo mais um pontapé, desta vez no estômago, Feldman escorregou para trás pelo telhado e, subitamente, ele estava balançando, preso apenas pelos dedos das mãos, a três andares do chão da rua.

O agressor se postou acima do adversário indefeso, com a imagem de um triunfo cruel estampada nos olhos. Sob o rodopio estonteante das nuvens esverdeadas no céu e com o vento a agitar-lhe a cabeleira escura e gordurosa, o pistoleiro ergueu a bota para esmigalhar os dedos que, tenuamente, retinham Feldman à beirada do telhado.

Mas o ar de vitória do franco-atirador se dissolveu instantaneamente numa expressão estapafúrdia quando uma violenta bordoada o acertou no pé da orelha, fazendo-o espatifar-se sobre o telhado. A mão forte que agarrou o pulso de Feldman conseguiu içá-lo de volta para cima do prédio. Era Hunter, com o rosto largo ruborizado e a respiração arfante.

— Por que você demorou tanto? — disse Feldman, ofegante.

Hunter lançou um olhar de intolerância para o amigo.

— Ahn, por causa de um vão livre de uns dez metros, a três andares de altura do chão! Como foi que você conseguiu pular?

Feldman, exaurido e aliviado, colocou carinhosamente o braço em torno do amigo:

— Só Deus sabe, Hunter! Só Deus sabe! Eu cheguei a tempo?

— Cacete, nem sei! Eu estava ocupado demais em correr atrás de um amigo canguru.

Eles olharam para a praça, preocupados, e viram o palco infestado por milenaristas, polícia e milícia. Não havia sinal de Jeza e Litti, e o helicóptero sumira. Trovões e relâmpagos disparavam incessantemente e pesados pingos de chuva começavam a cair. As massas que lotavam a praça continuavam em total desordem, aos gritos, em pânico absoluto.

Do telhado de um prédio adjacente, uma tropa de militares israelenses vinha se aproximando, brandindo armas.

— Podem ficar tranqüilos — gritou Hunter para eles — o meu amigo aqui já fez o serviço por vocês. — O pistoleiro ainda estava desmaiado, com um grave corte a jorrar sangue de sua cabeça. Ao lado dele, jazia um tripé de câmera estraçalhado.

Assim que os militares tomaram o franco-atirador sob custódia, um desconfiado sargento-ajudante começou a confrontar Hunter e Feldman. Mas uma voz familiar interveio.

— Tudo bem, Manny. Eles são limpos.

Feldman reconheceu a cabo Lyman, sua escolta feminina do início da tarde.

Hunter sorriu:

— Eu sabia que você voltaria.

Ela o ignorou e disse a Feldman que eles estavam liberados para partir.

— E quanto a Jeza? — perguntou Feldman. — Ela está bem?

— Não sei — respondeu a cabo. — Não conseguimos ver.

A chuva desabava agora e um raio enorme estourou nas proximidades.

A cabo Lyman, com filetes de água escorrendo-lhe pelo rosto, gesticulou para que os dois repórteres fossem embora.

— Vamos sair logo do telhado. Os raios!

Nenhum dos dois precisou de uma segunda advertência. A caminho, Hunter agachou-se rapidamente para pegar os óculos tortos de Feldman. Quando eles encontraram a escadaria para descer até o beco, Feldman ficou boquiaberto de ver o vão que transpusera de um pulo só. Tinha tranqüilamente uns dez metros! Ele estremeceu e Hunter o agarrou para fazê-lo continuar. Feldman se encolheu de dor, coisa que Hunter nem percebeu.

— Vamos. Temos que pegar o meu equipamento antes que se estrague — gritou Hunter contra o vento forte.

— Eu não vou deixar que você suba lá nesta tempestade! — gritou Feldman de volta para o amigo, enquanto corria pelas ruas no seu encalço.

— Eu quero pegar a fita do vídeo — gritou Hunter por cima do ombro. — Eu deixei a câmera rodando.

Normalmente mais ágil do que o corpulento cinegrafista, Feldman, cheio de dor em conseqüência do salto e da contenda, mal conseguia manter o passo. Até chegarem ao seu prédio, nenhum dos dois se lembrou de que a porta estava trancada por dentro. Sem hesitar, Hunter a derrubou com um violento chute.

Ao chegar ao topo da escada, apesar da insistência de Feldman, Hunter forçou a porta e se aventurou por cima do telhado. Feldman parou sobre a soleira, preparou-se e logo o seguiu, abaixando-se para evitar os raios e rezando para que eles conseguissem passar a salvo.

A câmera, entretanto, não se avistava mais. Se fora atingida por um raio ou derrubada pelo vento, não dava para dizer até que Hunter terminasse de escalar a parede. Entrementes, Feldman recolheu o resto do equipamento e o jogou para o corredor seco.

Hunter logo surgiu ao seu lado, segurando uma câmera molhada e avariada.

— O vento derrubou a câmera! — gritou ele, empurrando Feldman pela porta adentro. — Está encharcada! Espero que a fita aí dentro esteja em bom estado!

Eles sacudiram tudo para tirar o máximo de água que puderam, e Feldman tentou contatar Bollinger pelo telefone celular. Não conseguiu nada, além de estática. Entrementes, Hunter começou a conectar a câmera a um pequeno monitor. Miraculosamente parecia estar funcionando e Hunter conseguiu rebobinar a fita.

— O quê? — disse Feldman, impressionado. — Você vai tentar ver a fita aqui?

— Por que não? — respondeu Hunter. — Nós não vamos a lugar nenhum por enquanto, vamos?

A tela tremeluziu, a imagem se distorceu, piscou, tentou se equilibrar e acabou se fixando num quadro identificável. Era a imagem de Jeza falando na plataforma, de forma que Hunter acelerou a fita até o ponto em que ela saiu do pódio. Nesse ponto ele reduziu a velocidade, deixando-a bastante lenta.

Mais uma vez, a imagem imaculada de Jeza os transfixou. Movimentando-se graciosa e poeticamente, ela começou a flanar em direção à beira do palco, com a câmera a acompanhá-la. Foi como se ela os estivesse fitando diretamente o tempo todo, o rosto composto, determinado. O franco-atirador começou a ser enquadrado na filmagem neste ponto, uma mancha fora de foco em primeiro plano, no canto inferior direito. Por um instante, a imagem de Jeza ficou totalmente obscurecida pela do pistoleiro e a câmera de Hunter enquadrou exatamente as costas do homem, ajustando automaticamente o foco. As letras brancas "RMN" de sua jaqueta ficaram bem visíveis. Então, aos poucos, o franco-atirador foi se afastando de sua câmera e a coronha e logo todo o corpo de um rifle puderam ser claramente divisados.

— Está vendo? —observou Hunter. — A arma estava embutida dentro da câmera! Ele provavelmente conectou a alça de mira e a culatra depois que chegou ao telhado.

A imagem sofreu alguns espasmos e depois se acertou.

— É! — indicou Hunter. — Foi aqui que eu larguei a câmera ligada para sair correndo atrás de você.

Os dois se aproximaram à medida que os eventos foram se desenrolando.

— Olhe. Lá está Jeza de novo! — exclamou Hunter, quando uma imagem branca e difusa surgiu à direita da tela, à distância. — Parece que ela está em pé em cima de alguma coisa na frente do palco. Está muito fora de foco, não dá para ver direito.

O franco-atirador, entretanto, estava perfeitamente focado. Em câmera lenta, ele se ergueu para olhar por cima da mira, ajustou alguma coisa no rifle, tornou a olhar por cima da mira e voltou a se acocorar por atrás da arma.

— O que ela está fazendo? — quis saber Hunter à medida que a imagem difusa foi aumentando de tamanho na tela.

— Ela está esticando os braços — sugeriu Feldman. — Meio como se estivesse abraçando a multidão, ou dando uma bênção, ou algo assim!

O franco-atirador se concentrava na mira.

— Vamos logo, rápido! — murmurou Hunter para si próprio, enquanto Feldman pronunciava palavras iguais.

De repente, do canto superior direito, um sapato fora de foco emergiu no enquadramento e, nos quadros que se seguiram, Feldman desabava em cima do pistoleiro enquanto a imagem difusa de Jeza sumia da tela.

Hunter começou a gritar de entusiasmo, mas Feldman segurou com força o ombro do amigo.

— Espere — disse ele. — Volte alguns quadros e congele a imagem.

Hunter obedeceu à ordem, revertendo a ação até que as pernas de Feldman fossem novamente eliminadas da tela.

— Pare — mandou Feldman. — Pare exatamente aí! — Ele apertou o ombro de Hunter como um controle remoto. — Agora vá para um quadro e volte para o outro algumas vezes rapidamente.

Hunter viu o que o amigo estava apontando, e seu rosto desmoronou. Ali, bem em frente à câmera-arma, durante a passagem de um quadro apenas, surgia um brevíssimo risco de fumaça antes que o vento o dissipasse.

— Ele conseguiu fazer um disparo — confirmou Hunter, com a voz embargada.

Adiantando a fita, eles viram a imagem desfocada da Messias, com os braços ainda estendidos, retrocedendo para fora do campo de visão.

— Jon, isso não quer dizer que ela foi atingida — declarou Hunter, enquanto Feldman se afastava devagar do monitor, fitando o chão com o olhar perdido.

Enquanto os dois se sentavam calados, o vídeo prosseguia, mostrando passagens esparsas da batalha de Feldman, à medida que a luta se deslocava de um lado para o outro, entrando e saindo do enquadramento. Nem Hunter nem Feldman prestavam atenção, até que Hunter finalmente percebeu a imagem obscura de um helicóptero se alçando ao ar no fundo da tela.

— Ei, Jon! Parece que eles conseguiram tirá-la de lá.

Feldman se animou com a possibilidade.

— Eu preciso saber, Hunter — disse ele, afinal, tentando se pôr de pé e caindo de dor sobre o parceiro.

— Ei, amigão! — Hunter percebeu a agonia no rosto de Feldman. — Você está bem?

Feldman puxou a perna da calça e um tornozelo bastante inchado respondeu-lhe a pergunta.

— Caramba! Você está sentindo dor em algum outro lugar?

Ele olhou para o rosto de Feldman com atenção pela primeira vez e se surpreendeu ao constatar o queixo também inchado e um olho ficando roxo.

Feldman ergueu a mão direita túmida.

— E nas costelas e no ombro. — Ele se encolheu de dor quando Hunter cutucou o edema em seu tornozelo.

— Você não vai longe assim! E olhe só para aquilo lá. O inferno está à solta.

Rajadas de vento forte e uma chuva torrencial atacavam a janela da escada. Todo o prédio vibrava. Os relâmpagos eram praticamente ininterruptos.

— Ora — disse Feldman — eu não vou ficar aqui para ser eletrocutado! Preciso descobrir o que aconteceu com ela. — Ele se encostou contra a parede e foi escorregando para cima, até que desta vez se pôs de pé.

Hunter deu de ombros, retirou a fita do aparelho, enfiou-a dentro da camisa e deu a mão a Feldman. Lá fora, encharcados até os ossos, com os braços entrelaçados, eles enfrentaram as ruas desérticas, varridas pela tempestade. Menos de uma hora antes, toda essa área estivera ocupada por gente de pé apenas. Agora, fantasmagoricamente, a cidade estava destituída de vida.

— Ora, se isto for o fim do mundo — gritou Hunter no ouvido de Feldman — parece que vamos ter outro Dilúvio!

Feldman não respondeu, concentrado que estava em seu atormentado esforço de percorrer lentamente o caminho para sair da cidade, passando pelos inadequados abrigos dos milenaristas e subindo o Monte da Ascensão para chegar à chácara na encosta do morro.

À porta, Robert Filson, estupefato, assistiu à chegada dos dois encharcados repórteres.

— Ai, Jesus! Nós achávamos que vocês tinham morrido!

Hunter baixou Feldman cuidadosamente até o chão na base da escadaria. Dos quartos no andar de cima, chegaram as vozes de Cissy, Bollinger e dos demais, chamando entusiasticamente os seus nomes.

— Meu Deus! Vocês devem ter passado um mau bocado! — gritou Cissy, enquanto Bollinger e Hunter ajudavam Feldman a subir. Eles colocaram o repórter ferido sobre o sofá, e Cissy chegou de pronto com toalhas.

Ela se pôs logo a esfregar Feldman para secá-lo, o que o fez gritar de dor.

— Devagar com ele — advertiu Hunter. — Está bastante machucado.

— Jeza! — gritou Feldman por trás da toalha com que Cissy lhe secava o rosto. — O que aconteceu com Jeza?

Ele tirou a toalha da frente e imediatamente localizou a TV, que estava ligada e funcionando, apesar da tempestade. Embora a sintonia não estivesse muito boa, o noticiário sobre Jeza estava bem mais claro do que a imagem desfocada que Feldman assistira no monitor de Hunter na escada úmida do prédio.

A sala ficou em silêncio mortal, enquanto os dois repórteres assistiam ao relato completo do episódio ao qual só tinham visto de relance.

O vídeo tinha sido filmado de outro ângulo. Conforme Hunter conjeturara, ao chegar à plataforma, Jeza subira no que parecia ser a caixa de um alto-falante. Ela se postou ali, elevada diante do público durante alguns momentos, impávida ao vento, com o rosto tranqüilo e as nuvens num turbilhão ao céu. Sua boca articulou várias palavras ininteligíveis.

No momento final, ela sorriu. Docemente. Inocentemente. Sua pele estava radiante, seus olhos brilhantes, de um azul profundo e reluzente. Da maneira como Feldman sempre se lembraria dela.

E então o impacto da bala a empurrou para trás, tirando-a de seu palanque, atirando-a nos braços de seus discípulos e do fidelíssimo cardeal Litti. Caída naquele abraço receptivo, ela fechou os olhos lentamente e uma grande mancha vermelha foi se formando em seu peito.

Hunter se levantou e deixou a sala. Feldman deixou pender a cabeça e soluçou.

 

                                    Universidade de Wisconsin, Madison

                                     8:38, sexta-feira, 21 de abril de 2000

Como que formadas pela fumaça negra emitida do estádio de Camp Randall, nuvens baixas e escuras pairavam sobre a cidade de Madison, no estado de Wisconsin. Ansiosos e temerosos, Michelle e Tom Martin foram se aproximando lentamente, parando o carro a toda hora devido ao tráfego intenso.

— Porra! — Tom se manifestou quanto à demora. — Nós nunca vamos chegar lá neste passo.

— Com todo esse trânsito, talvez Tommy nem tenha chegado lá — disse Michelle, com otimismo.

— Se ele e os amigos saíram às três da manhã, chegaram, sim. É a confusão reinante por lá que está causando o engarrafamento. De qualquer forma, nós sabemos que Shelly estava na passeata. Eu falei para aquela menina não ir! — Michelle resmungou, preocupada.

Os Martin estavam acordados desde as 5:30 da manhã, despertados que foram por um incômodo telefonema dos pais do melhor amigo de seu filho. Contra as ordens do pai, o jovem Tom saíra às escondidas, no meio da noite, com alguns de seus colegas de escola. Eles, e dezenas de milhares iguais a eles, haviam empreendido uma jornada até Madison, para participar de uma assembléia marcada para as sete horas no enorme estádio de futebol americano de Camp Randall, na Universidade de Wisconsin.

Patrocinada pelos Guardiões Messiânicos de Deus, a manifestação pró­-Jeza fora organizada para que todos assistissem ao discurso que ela faria na Sexta-Feira da Paixão. O evento seria transmitido ao vivo, às 7:30, horário local, no gigantesco telão do estádio.

Infelizmente, conforme os Martin ficaram sabendo pelas alarmantes reportagens do rádio durante a demorada e frenética viagem de Racine até lá, o número de simpatizantes de Jeza que compareceu foi praticamente igual ao de seus opositores. A participação no evento era gratuita e, por isso, não eram necessários bilhetes de entrada, não havendo também mecanismo de controle ou revista do público. O grupo anti-Jeza adentrou o estádio com a mesma liberdade que o de seus defensores, cada qual se deslocando para as extremidades opostas das enormes arquibancadas, cuja capacidade era de 76.129 lugares, ultrapassando a lotação e tendo que se escoar para as áreas externas dos estacionamentos.

O pequeno destacamento da guarda do campus designado para o evento não deixara de dar ouvidos aos diversos sinais de desastre iminente. Logo cedo, à luz da aurora, enquanto a multidão aumentava significativamente de tamanho, a guarda, nervosa, resolvera apelar para a polícia municipal, que logo também detectou a gravidade da situação. Tendo concluído que qualquer tentativa de cancelar o evento detonaria um tumulto, a polícia resolveu convocar reforços substanciais. A Guarda Nacional foi levada de helicóptero às pressas para o local, montando rapidamente uma falange no centro do campo, todos de costas uns contra os outros, de forma a encarar ambos os lados antagônicos. Com equipamento para controle de tumultos a postos, os integrantes da Guarda Nacional aguardaram o discurso de Jeza em meio à crescente apreensão.

Uma indicação do que estava por vir se deu no instante em que a profetisa apareceu pela primeira vez no telão do estádio. Enquanto os manifestantes pró-Jeza irrompiam em exultante aclamação, a facção oposta pôs-se imediatamente a vaiar e gritar epítetos do Anticristo. Quando a Messias começou o discurso, os protestos ficaram ainda mais altos, na tentativa de abafar-lhe a voz.

Enfurecidos por verem sua assembléia violada e a mensagem de Jeza obscurecida, os Guardiões Messiânicos de Deus já estavam prontos para lutar. Mas então, no final, no momento de clímax em que a profetisa foi impiedosamente atingida por um disparo, eles se viram demasiadamente ultrajados. Irromperam em frenesi incontrolável e deram início ao ataque, descendo pelas arquibancadas, detonando nos adversários uma resposta igual e contrária.

Os desafortunados membros da Guarda Nacional, qual soldados do faraó pegos no meio das águas divididas do mar Vermelho, ficaram absolutamente boquiabertos, horrorizados, enquanto as duas ondas gigantescas se abatiam sobre eles. E todos, sem exceção, abandonaram a formação e fugiram, cada um por si, em direção às saídas.

Os exércitos combatentes se encontraram no meio do campo, entregando-se de corpo e alma ao ataque, ferindo inconscientemente vários de seus correligionários na confusão desenfreada. A tragédia resultou em milhares de vítimas.

Cenas semelhantes estavam ocorrendo ao redor do globo, conforme revelavam as últimas notícias divulgadas pelo rádio do carro dos Martin. A reação à morte de Jeza estava criando um irredutível pesadelo de violência entre as duas facções milenaristas antagônicas.

Tom Martin não conseguiu mais agüentar. Frustrado, ele desligou o rádio. Quando outra ambulância passou com a sirene ligada pelo centro da estrada que levava ao coliseu, ele espontaneamente desviou o carro e seguiu na sua esteira, adentrando os portões de acesso, ignorando todas as ordens da polícia para que parasse.

Estacionando ao lado da ambulância, os Martin assistiram, horrorizados, aos membros da Guarda Nacional, da polícia e do corpo de bombeiros a correr de um lado para outro, transportando os feridos e/ou presos.

— Oh, meu Deus! — Michelle Martin desatou a chorar quando viu dois paramédicos carregando uma moça de maca para a traseira da ambulância.

— Não é Shelley — assegurou o marido. — Eu vi cabelos louros.

— Que Deus nos ajude! Nós nunca vamos encontrá-los no meio de toda esta bagunça — gritou a sra. Martin.

Entretanto, miraculosamente, em pleno caos, a filha os encontrou. Segurando um lenço empapado de sangue contra a nuca, Shelley Martin irrompeu em lágrimas ao avistar o carro dos pais.

— Papai! Mamãe! — berrou ela, e o pai saiu correndo do carro para tirar a filha do meio da confusão.

— Oh, graças a Deus que vocês estão aqui! — choramingou ela, enquanto o pai a colocava no banco dianteiro do veículo entre ele próprio c a mulher. — Foi uma coisa horrível!

— Shelley! — disse o pai, com voz entrecortada, ao perceber o sangue: — Você está muito machucada?

Ela balançou a cabeça, ainda chorosa.

— Minha querida — implorou Michelle Martin, acariciando-lhe a cabeça — você viu Tommy? Nós achamos que ele está por aqui também. Ele partiu hoje cedo com alguns amigos e...

O rosto de Shelley se contorceu.

— Vi, sim! — gritou ela. — Ele estava com um porrete na mão! Parecia estar em transe ou algo que o valha. Estava com um monte de amigos, sua camisa estava aberta e ele tinha um desses emblemas horríveis dos Guardiões de Deus tatuado no peito. Um amigo dele me bateu e ia bater de novo quando Tommy pulou em cima dele. Eles foram engolidos pela multidão e desde então eu perdi Tommy de vista.

A mãe soltou um gemido e afundou no assento, já aos prantos. Ela olhou pela janela, para as nuvens de fumaça negra que ainda subiam de dentro do estádio.

De alguma forma, ela pressentiu que jamais tornaria a ver o filho com vida.

 

                                    Monte da Ascensão, Jerusalém, Israel

                                     2:12, sábado, 22 de abril de 2000

Feldman estava sentado, só, na varanda da chácara, olhando para a cidade quieta. As chuvas haviam caído incessantemente até a meia-noite em ponto, quando enfim pararam de repente, como que desligadas por um interruptor.

Agora as nuvens se haviam dissipado e as estrelas surgiam timidamente, uma a uma, em meio à escuridão imaculada da noite.

Naquele momento, não havia multidões nas ruas. Não havia gritaria. Não havia violência. Ironicamente, estava tudo em paz na Terra Santa. Os milenaristas estavam todos parados, recolhidos ao abrigo de suas barracas, incapazes de atracar um ao outro devido às enchentes consideráveis e à lamaceira imperiosa.

E Feldman jamais se sentira tão desanimado.

Ainda bem que seus associados estavam demonstrando bastante respeito por seus sentimentos, concedendo-lhe o distanciamento de que precisava. Somente agora suas emoções haviam se apaziguado o suficiente para que ele pudesse refletir sobre a cobertura televisiva do covarde assassinato.

Jeza fora de fato retirada prontamente no helicóptero militar israelense e levada diretamente para o Hospital Hadassah, a pouca distância ao norte de Jerusalém. Foi dada como morta ao chegar. O corpo estava sendo mantido sob a estrita segurança de toda uma divisão da Força de Defesa de Israel. O primeiro-ministro, Eziab Bem-Miriam, anunciara um dia de luto e convocara uma sessão especial de todo o parlamento israelense assim que as estradas estivessem transitáveis. Seria um inferno explicar o serviço precário de segurança, conforme se estava dizendo.

Feldman ficou estarrecido com as inúmeras histórias de vingança impensada que irrompiam por todo canto do planeta como marco pela morte de Jeza. Finalmente, sucumbindo à exaustão e aos dolorosos ferimentos, ele se refugiou na misericordiosa graça do sono.

Horas depois, quando o sol já ia alto, numa manhã clara e de ar purificado pela chuva torrencial da véspera, Feldman acordou. Virando-se dolorosamente para a direita, ele se surpreendeu ao encontrar Hunter esparramado numa poltrona ao seu lado, dormindo. Todos na chácara acordaram cedo e, saindo de seus ninhos aos bocejos, ficaram algum tempo indagando entre si sobre o bem-estar dos dois repórteres.

Cissy trouxe café e petiscos da padaria e verificou a temperatura de Feldman com a mão carinhosa.

— Temos de levá-lo para um exame médico agora de manhã — disse ela, tentando se fazer passar por uma típica mãe judia. — Talvez você tenha algum osso quebrado por aí.

Ele sorriu, assentiu, e ela colocou-lhe os óculos sobre o nariz, depois de tê-los desentortado.

O telefone tocou e Filson gritou da sala de estar:

— Ei, Jon, você falaria com alguém da Força de Defesa de Israel?

Feldman sentiu dores ao tentar repousar cuidadosamente o seu pedaço de pão com requeijão sobre a mesinha de centro.

— Ai, porra!

— Isso quer dizer que sim?

— Sim.

Filson trouxe o telefone e Feldman percebeu que era a voz de seu misterioso conhecido.

— Sr. Feldman, espero que eu não esteja ligando cedo demais.

Feldman detectou uma tensão na voz que nunca estivera presente antes.

— Não está. Eu não tive a oportunidade de expressar-lhe toda a minha gratidão por sua ajuda ontem.

A voz hesitou um instante e em seguida respondeu simplesmente:

— De nada!

— Em que posso lhe ser útil? — perguntou Feldman.

— Preciso vê-lo, sr. Feldman. Agora de manhã. Imediatamente, se for possível.

— Onde você está? — indagou Feldman, sem estar muito certo de poder locomover-se.

— Este encontro deverá ser absolutamente confidencial — insistiu a voz. — Existe perigo considerável.

— Pode contar com a minha palavra — empenhou-se Feldman.

— Estou no Hospital Hadassah. Vou mandar um helicóptero para buscá-lo. E também gostaria de convidar o seu associado, o sr. Hunter, se ele fizer a gentileza de trazer sua câmera.

— Pode me dizer do que se trata? — perguntou Feldman, impressionado ao saber que a ligação telefônica estava sendo feita de dentro das quatro paredes onde jazia agora o corpo da Messias.

— Sinto muito, não posso dizer mais do que isto ao telefone. Tudo que posso dizer é que o deslocamento até aqui valerá a pena.

Deixando de lado o seu estado de espírito e todo o desconforto, Feldman não vacilou mais.

— Podemos partir quando quiser. Nós nos encontramos agora...

— Eu sei onde vocês estão.

— É claro — sorriu Feldman, encabulado. — Estaremos aguardando.

Hunter olhou para ele com perguntas embutidas em seus olhos avermelhados.

— É confidencial até que estejamos no ar — explicou Feldman — mas eu e você vamos dar uma voltinha de helicóptero. E você vai precisar do seu equipamento.

Hunter fez uma careta e rolou para fora da poltrona, soltando um grunhido.

O helicóptero sequer chegou a ficar trinta segundos em terra. Sob um capacete de vôo cinza e azul, um dos membros da tripulação pareceu familiar. Era a cabo Lyman, a guarda de segurança do portão do Esterco. Ela cumprimentou os repórteres com sóbrio aceno de cabeça e eles retribuíram a saudação.

Os dois, munidos de seu equipamento, foram rapidamente levados a bordo e a aeronave partiu. O hospital, localizado no lado norte e mais aberto da cidade, ficava a pouca distância. Feldman pôde ver um espesso ajuntamento de milenaristas se formando do lado externo das altas muralhas de pedra do perímetro urbano. A chuva e a lama não os haviam desencorajado por muito tempo. Uma estreita fileira de guardas israelenses os mantinham afastados.

— Olhe. — Hunter apontou para o lado de dentro, onde pacientes e pessoal médico estavam sendo levados por veículos de transporte militar. — Parece que eles estão evacuando o hospital. — Hunter prontamente registrou a cena em vídeo.

Os dois repórteres foram recebidos no heliporto do telhado por quatro militares armados, que carregaram o equipamento de Hunter para ele, enquanto o cinegrafista ajudava Feldman. Aguardava-os lá dentro um bem­ apresentado homem de meia-idade, trajando uniforme militar de comandante da Força de Defesa de Israel. O oficial tinha estatura mediana, a fisionomia cansada e tensa, e preocupados olhos azuis.

Ele estendeu a mão direita para Feldman, que teve de apertá-la com a esquerda.

— Comandante David Lazzlo — apresentou-se. — É um prazer conhecê-lo. — Mas não houve prazer em sua voz.

— Da mesma forma — retribuiu Feldman. — Este é o meu associado, Breck Hunter.

— Com certeza — Lazzlo apertou-lhe a mão. — Queiram me acompanhar, senhores, por gentileza.

Concedendo pacientemente o tempo de que Feldman precisava para caminhar devido aos seus ferimentos, Lazzlo os conduziu por um comprido corredor até uma área de escritórios, onde os convidou a ficar a portas fechadas e ofereceu-lhes assentos.

— O senhor poderia me dizer, comandante — perguntou Feldman — se o cardeal Litti se encontra aqui e se ele está bem?

— A resposta é afirmativa para ambas as perguntas, sr. Feldman. E, se quiser, poderá vê-lo em breve. Entretanto, sinto dizer que não dispomos de muito tempo, e realmente devo acelerar o andamento de várias questões.

— Fique à vontade — dispôs Feldman, sentando-se de imediato em sua cadeira. — Nós estamos às suas ordens.

Lazzlo mostrou-se taciturno.

— Pois bem. Cavalheiros, deixem-me informar-lhes logo de início que, devido ao que estou prestes a revelar-lhes, eu poderia ser fuzilado. E se algum de vocês for pego com a informação que vou lhes fornecer, isso poderá custar­ lhes as próprias vidas também.

— Pego por quem? — quis saber Hunter.

— Vou explicar desde o princípio, para que tudo faça mais sentido para vocês — respondeu Lazzlo. — Primeiramente, para sua informação, sou um veterano com doze anos de FDI e, nos últimos quatro, fui o encarregado das operações de inteligência, até bem pouco tempo atrás.

Além disso, o que estou prestes a lhes dizer irá aborrecê-los enormemente. A mim, também aborrece bastante, pois há muitas coisas em que estive pessoalmente envolvido e que sei serem terrivelmente erradas. Peço apenas que contenham o seu julgamento e escutem-me até o fim.

Hunter e Feldman entreolharam-se e concordaram.

— Confesso logo de início que sempre estive ciente dos experimentos secretos do ministro da Defesa, Tamin, no laboratório do Neguev. Entretanto, além do alto comando da FDI e dos cientistas que trabalhavam no instituto, ninguém mais sabia da natureza do que ali ocorria. Tamin precisava estar absolutamente certo de que nem a administração Bem-Miriam nem o parlamento israelense seriam informados dos fatos. Procedimentos experimentais, tais como implantes de neurochips e infusões de inteligência, são proibidos pela Constituição israelense, a menos que primeiramente sancionados pelo corpo de autoridades médicas de Israel. Coisa que, é claro, estes não eram.

— O senhor se importa se eu fizer algumas anotações, comandante? — perguntou Feldman, ajeitando-se com uma caneta e um bloco de notas.

Ao perceber a mão direita enfaixada, o oficial sorriu com secura.

— Esta opção não me parece viável para o senhor. Mas pode gravar, se preferir. Já não estou mais preocupado com as conseqüências.

— E por que isso, comandante? — indagou Feldman, enquanto Hunter disparava sua câmera.

— Vocês hão de sabê-lo em breve. — Lazzlo manteve o controle da pauta. — Tem havido muita especulação acerca da verdadeira causa da destruição do instituto do Neguev. Devo dizer que, como oficial chefe das investigações, eu não consegui levantar uma resposta definitiva. Mas pelo menos posso dizer quais não foram as causas. Não foi sabotagem, conforme alguns órgãos da imprensa alegaram. A destruição foi causada por um projétil oriundo de fora das fronteiras de Israel, rumo ao leste. Não foi um míssil. Pelo menos, não um dos convencionais que já tenhamos visto! Não houve sistema de propulsão ou ogiva detectável. Sabemos que o projétil foi uma massa sólida e superaquecida, com aproximadamente sessenta centímetros de diâmetro máximo, composta de sessenta por cento de ferro, seis por cento de níquel e cinqüenta e quatro por cento de silicatos, pesando cerca de um quarto de tonelada. A explicação mais lógica a que chegamos foi a de que o projétil foi lançado por um supercanhão, como os que o Iraque vinha desenvolvendo numa época antes de o seu país tê-lo generosamente destruído.

— E quanto à teoria do meteorito? — quis saber Hunter.

— Não tivemos como excluí-la — admitiu Lazzlo. — Mas o consenso no Ministério da Defesa foi de que o projétil havia sido criado intencionalmente para ter a composição parecida com a de um meteorito, como forma de disfarçar seu desígnio verdadeiro. Não obstante, nós não conseguimos encontrar traços de um canhão ou de outro sistema qualquer de lançamento que propiciasse uma explicação melhor do que a teoria do meteorito para o fenômeno. Quando determinamos efetivamente que a explosão do Neguev foi, na pior das hipóteses, um ataque aleatório e não uma invasão, mudamos o enfoque de nossas apreensões.

Tendo em vista o objeto dos experimentos, Shaul Tamin ficou desesperado para evitar que a informação vazasse. O controle dos danos passou a ser sua prioridade. À época, acreditamos que toda evidência física e todo registro promissor haviam sido destruídos na explosão. Todos os cientistas envolvidos estavam mortos... à exceção da sra. Leveque e de uns poucos assistentes de nível inferior do laboratório, que pouco sabiam e seriam facilmente intimidados a manter silêncio.

Tudo parecia bem ajeitado quando, de repente, você veio com aquela história da sobrevivente. A princípio, Tamin resistiu à idéia de que algum dos sujeitos de teste pudesse ter escapado à explosão. Mas depois, quando suas testemunhas japonesas identificaram definitivamente Jeza como a sobrevivente, ele não teve outra escolha, além de tomar providências. Tamin viu a sobrevivência de Jeza como uma responsabilidade e uma oportunidade. Embora apresentasse uma ameaça enquanto prova viva de seus experimentos, ela também lhe dava a perspectiva de recuperar os inestimáveis microchips de Leveque que trazia dentro do corpo. Os últimos chips daquele tipo ainda existentes. Seu valor só para aplicações médicas era astronômico... sem contar os usos militares! Tamin tencionava recuperá-los a qualquer custo. E então veio a sua bomba. A reportagem televisiva sobre “As verdadeiras origens da Nova Messias". Tamin ficou furioso! Conforme vocês sabem, a RMN ainda arca com as conseqüências de ter levado aquela história ao ar.

— Nós tínhamos as nossas suspeitas — reconheceu Hunter, sarcasticamente.

Lazzlo assentiu contritamente e prosseguiu.

— Depois da sua reportagem, os microchips passaram a ser considerados secundários. Tamin estava em desespero quanto à sua sobrevivência política e queria Jeza simplesmente fora do caminho. Mas, claro, ela já havia se tornado mais do que um ícone internacional.

Conforme vocês sabem, a infame proposta de Tamin de trazer Jeza sob "custódia protetora" foi um desastre, tendo gerado manifestações em Israel e pelo mundo afora. O governo Bem-Miriam passou a sofrer intensa pressão política dos muitos judeus influentes, tanto aqui como no exterior, que acolhiam a crença de Jeza enquanto Messias. Os membros do parlamento israelense que pediam o afastamento de Tamin vinham aumentando em número e sua base política começou a desmoronar.

E então, como por milagre, os nossos problemas praticamente desapareceram! Jeza fugiu do país e a ameaça parecia estar se desfazendo. O descanso não durou muito, é claro. Após o temeroso pronunciamento na segunda convocação mórmon, recomeçou a enxurrada de milenaristas extremados. Radicais de ambos os lados da questão Jeza afluíram para Jerusalém, prevendo o retorno de Jeza e/ou Cristo e o cumprimento das profecias do Juízo Final. Israel estava passando por nova hemorragia. Eu e outro integrante do alto comando decidimos tomar providências drásticas para desativar o pesadelo que Tamin lançara sobre nosso país. Às escondidas, entregamos o diário de Leveque para o Vaticano, na esperança de que a sacrílega verdade acerca dos implantes de microchips em Jeza e os emaranhados segredos militares viessem a desacreditá-la perante o mundo. Mas com sua incrível performance no Vaticano, ela conseguiu derrotar facilmente a nossa tática.

E então, de repente, com Israel já ultrapassando os seus limites, Jeza reapareceu em Jerusalém. A FDI não tinha como comportar a emergência durante muito tempo, apesar da ajuda de muitas agências internacionais, inclusive a ONU. Nós sabíamos que algo decisivo precisava ser feito. A atitude passou a ser "Jeza ou Israel". Não podíamos mais coexistir.

Feldman captou uma aparente contradição.

— Não estou compreendendo. Então por que, quando Jeza voltou, vocês lhe deram tanta proteção? Com todo o ferrenho sentimento anti-Jeza que havia se desenvolvido na ocasião, eu deveria supor que Tamin e Goene simplesmente teriam optado por recuar e deixar que os Gogs a destruíssem. Em vez disso, vocês cercaram a Cidade Velha de tropas e a protegeram.

— A situação era muito mais complicada do que isso — explicou Lazzlo. — Em primeiro lugar, se nós não tivéssemos tomado providências para controlar as facções opostas, a guerra civil resultante teria assolado a Cidade Santa e todos os santuários sagrados nela existentes. Religiosa e politicamente, a FDI não tinha como deixar isso acontecer. Porém, mais importante do que isso, nós não tínhamos como arcar com o envolvimento de qualquer israelense num ato de violência contra Jeza. Nossa pequena nação jamais sobreviveria às repercussões mundiais. Portanto, embora Tamin concluísse que Jeza precisava ser eliminada, o fim precisaria advir de uma fonte politicamente aceitável.

O estômago de Feldman deu voltas diante do raciocínio frio e calculista por trás disso. Mas o desejo de saber toda a verdade suplantou sua revolta.

— A solução a que se chegou —continuou Lazzlo — foi a de posicionar a FDI como defensora da paz. A FDI protegeria a profetisa e começaria a separar as facções beligerantes o mais que pudesse. Mas a idéia era a de ser seletiva na proteção a Jeza. A FDI defenderia a Messias de toda seita que pudesse levantar problemas políticos para Israel, caso Jeza viesse a ser ferida por suas mãos. Entrementes, a FDI, especificamente as minhas antigas operações do Departamento de Inteligência, identificaria as seitas e conspirações que melhor atendessem aos nossos propósitos. O ideal seriam aquelas de origens árabes. Uma vez selecionadas as conspirações apropriadas, seria somente uma questão de deixar que uma delas tivesse êxito. De fato, foram muitos os ardis engenhosos.

— Presumo que tenha sido esta a razão para vocês se mostrarem tão receptivos ao sermão de Jeza na Sexta-Feira da Paixão... para facilitar uma tentativa de assassinato.

— Exatamente — admitiu Lazzlo. — Inclusive a ponto de fornecermos um escudo à prova de balas e um helicóptero para retirá-la dali, de forma a dar a impressão de que fizéramos todo o possível para proteger a Messias. Esforços de boa-fé para reduzir quaisquer recriminações internas ou internacionais!

— Vocês sabiam — Feldman estava se contendo, mas as veias de seu pescoço traíam sua raiva — que um franco-atirador profissional não teria dificuldade para atingir Jeza quando ela finalmente saísse de trás da tela. Foi por isso que tomaram todas as precauções para manter a mídia afastada do palco e os telhados vazios para ele!

— E para incluir o senhor e o sr. Hunter como testemunhas — acrescentou Lazzlo.

Feldman ficou pasmo diante desta revelação.

— Nós fomos incluídos na trama? — exasperou-se, incrédulo.

A vergonha no rosto de Lazzlo estava evidente.

— Nós nos demos ainda ao trabalho de propiciar uma jaqueta da RMN ao assassino, de forma que vocês não tivessem como deixar de vê-lo. Sabíamos quando e por qual portão ele entraria na Cidade Velha. Quando apresentou suas credenciais falsas, ele foi informado de que teria de usar uma jaqueta de identificação de representante da mídia, e lhe entregamos uma da RMN. Ele foi, inclusive, escoltado até sua posição diretamente à frente de vocês, para garantir que ficaria em evidência.

— Então o pistoleiro era um Gog muçulmano? — quis saber Feldman.

— Não — disse Lazzlo. — Embora estivéssemos nos concentrando a princípio em vários grupos de extremistas árabes, em última análise optamos por uma operação da máfia.

— Máfia? — Feldman estava perplexo.

— Correto. Uma das tramas que descobrimos tinha laços diretos com a máfia. Provavelmente uma represália contra as revelações feitas por Jeza a partir dos arquivos secretos sobre o escândalo Vaticano-Finia C.C. De qualquer forma, o esquema da máfia se mostrou mais simples e mais engenhoso do que todos os outros. A câmera-rifle era perfeita. E conseguimos juntar um dossiê bastante abrangente sobre o franco-atirador... um homem com histórico de sucessos e uma reputação de pontaria infalível. Seu modus operandi era o de sempre desferir uma saraivada rápida e ininterrupta contra a parte superior do torso, o que resulta em ferimentos fatais no coração e pulmões. Isto era perfeito para os nossos propósitos, claro, porque Tamin e Goene não queriam que os neurochips fossem danificados, se possível.

— E vocês queriam que nós servíssemos de testemunha, ou até que registrássemos tudo isso, de forma que o pistoleiro pudesse ser preso, identificado e condenado — concluiu Feldman por Lazzlo. — Com rastros óbvios e laços documentados conectando-o à máfia, a FDI sairia absolutamente limpa.

— Precisamente. O pessoal da segurança foi posicionado de forma a prender o assassino mediante ordens dadas em cima da hora. Tínhamos todas as suas rotas de fuga cobertas. Entretanto, o senhor quase aniquilou nossos planos de uma só feita, sr. Feldman. Ninguém previra sua capacidade sobre-humana de salto em distância. Se o primeiro tiro não tivesse sido perfeito...

Lazzlo fez uma pausa e seu rosto ensombreceu tanto quanto o de seus companheiros.

Feldman já ouvira o bastante. Sem se importar em disfarçar sua raiva e angústia, ele se levantou ligeiro.

— Eu gostaria de ver Jeza uma última vez — requisitou.

— Certamente — concedeu Lazzlo. — Mas devo preveni-lo de que não dispomos de muito tempo. Logo em seguida, se vocês não se importarem,        temos mais algumas coisas importantes a discutir.

Feldman concordou.

— Enquanto eu tomo as providências para sua visita — disse Lazzlo — talvez vocês queiram estar com o cardeal católico.

— Litti? — o rosto de Feldman se animou um pouco. — Claro que sim, por favor.

O cardeal Alphonse Litti estava razoavelmente composto, à espera de Feldman e Hunter numa outra ala do hospital. Feldman sentiu uma onda de ânimo ao tornar a vê-lo.

Aparentando cansaço, mas sob controle, o cardeal abraçou Feldman como a um irmão há muito afastado. Apesar da dor, Feldman aceitou o abraço sem reclamar.

— Jon, graças a Deus! Que bom ver seu rosto outra vez! Mas você está machucado.

— Parece muito pior do que na verdade é, Alphonse — retrucou Feldman. — É bom vê-lo de novo, também.

Litti repetiu a cerimônia com Hunter, que bateu afetuosamente nas costas do cardeal.

— As coisas acabaram de uma forma bastante diferente do que qualquer um de nós teria previsto, não é mesmo, meus amigos? — falou Litti, enquanto oferecia cadeiras para os visitantes, contendo para si suas precárias emoções. — Francamente, eu nunca pensei que Deus deixaria que uma coisa dessas acontecesse a Ela.

— Eu sei, Alphonse — respondeu Feldman, admirando a fachada de coragem do clérigo. — Simplesmente não parece possível que ela tenha partido!

Os três ficaram calados durante algum tempo, cada qual repassando suas lembranças individuais.

— É claro — Litti soltou num suspiro — que ela sabia de tudo isto, o tempo todo.

Feldman olhou para ele.

— Ela profetizou isto várias vezes — prosseguiu o cardeal. — Só que eu me enganei. Vi as coisas através de uma ótica totalmente errada, da maneira que eu quis enxergar. Que presunção a minha! Mas assim é com aquele que tenta prever os caminhos misteriosos do Senhor!

Hunter reagiu ao argumento, interrompendo um prolongado silêncio.

— Eu não tinha dúvidas de que ela estava totalmente ciente do que aconteceria. Foi como se ela soubesse que aquela arma estava apontada contra si e tivesse caminhado justo em sua direção.

— Certamente — concordou Litti. — E sem dúvida, em retrospectiva, tudo fica muito claro. Ela jamais alimentou, no fundo, a noção de um final feliz para a sua jornada.

Feldman deixou cair a cabeça e disse em voz baixa:

— Alphonse, ela... será que... foi breve?

O cardeal segurou a mão sã de Feldman entre as suas e apertou-a carinhosamente. Seu rosto assumiu o semblante de um homem em paz com sua visão de Deus. Num sussurro, ele falou:

— Foi muito breve. Ela já estava morrendo quando caiu em nossos braços. Ficou ali, quieta, incrivelmente bela. Tão corajosa e tão nobre! — Litti fechou os olhos e inclinou a cabeça para o céu, transportando-se espiritualmente. — Ela simplesmente fechou os olhos e a vida a deixou. Eu cheguei a sentir. Como se um fardo enorme Lhe tivesse sido retirado! Tive a impressão de haver um resquício de sorriso em seus lábios, e Ela se foi.

Ele parou de falar durante um longo tempo e então abriu os olhos. Estavam cheios de lágrimas.

O maxilar de Feldman ficou rígido, seus olhos fitando o passado.

— E em seguida os israelenses vieram ajudar?

Litti assentiu.

— Os israelenses foram maravilhosos. Vieram logo, pegaram-Na, nos levaram rapidamente para o helicóptero e nos trouxeram para cá. A Messias estava na sala de emergência em questão de minutos. Mas, é claro, foi tarde demais.

— Alphonse? — Ainda havia mais uma coisa que Feldman precisava saber. — Pouco antes do fim, enquanto ainda estava de pé, ela sussurrou algo. Você se lembra de quais foram suas últimas palavras?

O cardeal ficou pensativo.

— Não sei dizer, Jon. A bem da verdade, não me lembro se Ela falou qualquer coisa depois que saiu do pódio.

Feldman assentiu, desapontado.

— Onde ela está agora, Alphonse?

— Ainda está aqui, Jon. Eles a colocaram numa câmara mortuária separada no necrotério. Há uma certa questão quanto à liberação do corpo e quanto a quem têm direitos. Estão tentando entrar em contato com a sra. Leveque, pelo que sei. Tive receio que eles fossem fazer uma autópsia. Felizmente, a lei judaica dificulta esses procedimentos, embora nas investigações de assassinato eles obtenham a permissão de uma corte rabínica. Mas eu não tenho intenção alguma de permitir um sacrilégio desses. Exigi custódia temporária até amanhã de manhã.

Feldman franziu o cenho.

— Por que amanhã de manhã, cardeal?

Litti olhou para Feldman como se o repórter fosse de outro planeta.

— Jon! — ralhou ele. — Amanhã de manhã Jeza será devolvida a nós. É o Domingo de Páscoa. A Ressurreição! Você precisa ter fé.

Feldman fitou o clérigo com firmeza e tornou a assentir. Lazzlo apareceu à porta. Levantando-se, Feldman se curvou para o cardeal e, cheio de compaixão, pegou-lhe o braço.

— Alphonse, eu gostaria de prestar minha homenagem a Jeza agora. Você nos daria licença por alguns instantes?

Litti olhou interrogativamente para os olhos do amigo.

— Quando você a vir, saberá. Você precisa acreditar, Jon. Você precisa acreditar.

Ao saírem. Feldman virou-se para Hunter e os dois trocaram suspiros.

Caminhando a passo lento em atenção às dificuldades físicas de Feldman, o comandante Lazzlo conduziu-o, juntamente com Hunter, por um comprido corredor até um elevador de serviço guardado pelo pessoal armado da segurança. Lazzlo apertou o último botão, para o nível inferior do complexo hospitalar. Enquanto estavam descendo. Feldman olhou para o oficial com uma apreensão despontando em sua mente.

— Eu presumo que o plano contava com a recuperação dos neurochips sob o disfarce de uma autópsia?

— Correto.

Feldman engoliu em seco e perguntou:

— Isto já foi feito?

— Não — respondeu Lazzlo. — Eu afrontei Tamin e Goene e impedi os procedimentos post mortem, e é por isso que temos pouco tempo. Eles estão me considerando como amotinado. Uma divisão blindada está a caminho neste exato momento.

Saindo do elevador e passando por uma fileira de guardas, eles atravessaram diversos corredores compridos, ainda com mais guardas, e adentraram um enorme necrotério, cheio de colunas com pequenas portas metálicas dispostas ao longo de paredes opostas entre si.

Feldman sentiu-se pouco à vontade e suas mãos começaram a transpirar. Eles passaram deste recinto para outro corredor, que terminava numa porta metálica grande, de uma folha só, que lembrava bastante a entrada de um cofre de banco. Lazzlo parou diante dela.

— Gostaria de ficar a sós com ela durante alguns minutos. sr. Feldman? — ofereceu gentilmente.

Feldman olhou para Hunter, que assentiu com um gesto solene, mal conseguindo fitar o amigo diretamente.

Lazzlo abriu a porta e Feldman hesitou, depois entrou. Uma barreira de ar frio recebeu seu rosto e, nas circunstâncias, propiciou uma sensação refrescante. A porta se fechou depois que ele já estava lá dentro e Feldman precisou de um momento até que seus olhos se ajustassem à pouca claridade da iluminação indireta.

O recinto estava completamente vazio, exceto por uma única mesa no centro e pelas câmeras de segurança colocadas em cantos opostos do teto. A mesa estava totalmente coberta por um pano branco, sob o qual jazia a inconfundível forma de um corpo feminino de reduzida estatura. Uma mancha escura aparecia distintamente acima da área do busto.

Feldman aproximou-se devagar, com o coração extremamente pesaroso. Parou ao lado da forma imóvel e curvou a cabeça em prece. Após um minuto, ele tomou coragem e, nervosa e delicadamente, levantou o pano.

Foi demais para ele e as lágrimas rolaram em abundância de seus olhos estáticos. Ele a achou, cada pedacinho, tão nobre e preciosa quanto fora em vida. Mas o esplendor se fora. Sua pele de porcelana já não brilhava; manifestava, sim, agora, a grandiosidade eterna do mármore branco.

Feldman ficou olhando para ela durante um período prolongadíssimo, sua mente revolvendo imagens e recordações. Ele se deu conta de que estava excedendo o tempo de visita, mas não conseguiu se afastar, sabendo ser esta a última vez que estaria com ela. Acariciou-lhe os cabelos macios e, em seguida, tornou a cobri-la carinhosamente com o pano.

Lazzlo e Hunter aguardaram pacientemente o repórter até que este saiu da sala. Feldman se recompusera, mas pôde ver pela expressão dos outros dois que sua fisionomia trazia marcas do que acabara de vivenciar. Ele não se encabulou.

Lazzlo falou, gesticulando na direção de Hunter:

— Eu já perguntei ao sr. Hunter se ele gostaria de ver os restos mortais e sua resposta foi negativa. Talvez possa me conceder mais alguns minutos de seu tempo, sr. Feldman?

— Eu também tenho mais perguntas a lhe fazer — retrucou Feldman, solenemente.

— Pois não.

— Primeiro, quero saber por que se deu ao trabalho de nos avisar sobre: a investida de Goene contra a RMN ainda em janeiro.

Lazzlo cravou o olhar no chão.

— Embora possa achar difícil de aceitar o que vou lhe dizer, sr. Feldman, eu estava realmente tentando ajudá-los. Gostaria apenas de dizer que eu e outro integrante do alto comando da FDI estávamos ficando cada vez mais apreensivos com os efeitos devastadores que os experimentos de Tamin no Neguev estavam exercendo sobre o nosso país. O nosso mundo! Não podíamos nos opor a Tamin diretamente. Ele é poderoso e tem muitos amigos influentes. Tivemos de trabalhar em segredo para ir de encontro a ele. A ordem que deu para prendê-los, por exemplo, foi simplesmente uma vendeta pessoal. Tudo que a FDI precisava fazer em resposta à sua reportagem sobre as verdadeiras origens era expulsar a RMN de Israel. Eu tentei conseguir o que era necessário sem colocar gente inocente atrás das grades.

— Mais uma vez — disse Feldman, balançando a cabeça —, eu não estou entendendo. Você resiste contra Tamin e Goene ao tentar nos ajudar, mas se dispõe de bom grado a participar deste assassinato covarde.

Feldman ficou impressionado com a rápida deterioração da fisionomia de Lazzlo. Qual um balão de gás murchando, ele se encolheu, tanto em estatura quanto em postura.

— Queira entender, sr. Feldman, que eu agora reconheço todo o peso de minhas ações. E embora reconheça que jamais poderei compensar o que fiz, estou fazendo o que me resta fazer.

O repórter quase sentiu pena do comandante.

— Queira, por gentileza, compreender também — tentou explicar Lazzlo — que, na ocasião, eu realmente acreditava que nossas ações estavam do lado dos melhores interesses de Israel. Eu não desejava pessoalmente nenhum mal a Jeza. Considerava-a meramente mais um dos incontáveis fanáticos ensandecidos que assolaram esta cidade durante quatro milênios. Só que, desta vez, a fanática conquistara seguidores ao redor do globo que ameaçavam nosso país, e talvez nosso mundo.

Feldman não conseguiu mais conter sua solidariedade, reconhecendo que, no passado, ele próprio acalentara precisamente os mesmos temores. O repórter então colocou a mão gentilmente sobre o ombro do oficial.

— Talvez isto possa lhe servir de consolo, comandante: eu tenho certeza de que Jeza o perdoaria. Acho que a conheci bem o suficiente para dizer o que estou dizendo.

O efeito foi positivo sobre Lazzlo, que estudou o rosto do repórter durante algum tempo.

— Isto significa mais para mim, sr. Feldman, do que possa imaginar! — Recompondo-se, ele sinalizou na direção do corredor. — Mas venham, há algo mais que eu gostaria de lhes mostrar e que, tenho certeza, vocês hão de querer levar a público. Sr. Hunter, vai precisar de sua câmera.

Depois de deixarem a sala, enquanto percorriam o corredor que os levaria a um laboratório lateral, Feldman teve uma última pergunta a fazer.

— E quanto às alegações de que Jeza era controlada por aquele chip neurotransmissor? Havia alguém se comunicando com ela? Ou exercendo algum tipo de influência sobre ela?

— Eu gostaria de obter alguma satisfação a este respeito, também­ — acrescentou Hunter. — A maneira como ela se sacrificou para aquele pistoleiro ontem! Ela caminhou para a beira do palco e simplesmente se ofereceu, como se estivesse sob o comando de alguém ou em transe ou...

— Estou prestes a responder a esta pergunta para os dois — retrucou Lazzlo.

Eles entraram numa sala com portas de vidro e um senhor de idade, vestindo um jaleco branco e comprido de laboratório, se levantou para cumprimentá-los.

— Cavalheiros — apresentou-os Lazzlo — este é o chefe de medicina legal aqui do Hadassah. Dr. Goldberg, será que eu poderia incomodá-lo um pouco?

Como se tivesse cumprido esta obrigação várias vezes antes, o doutor se dirigiu lepidamente para um telão na parede, apagou as luzes do ambiente e acionou um interruptor. Hunter ligou sua câmera, a fim de registrar a demonstração. Iluminou-se instantaneamente sobre a tela a imagem transparente e multicolorida de um corpo humano em tamanho real, deitado de lado.

Feldman olhou para aquela imagem fascinante, curioso por saber sua relevância.

— Dr. Goldberg — pediu Lazzlo — o senhor poderia explicar o que estamos vendo?

— Pois não, comandante — respondeu Goldberg e passou pela frente deles, indo até o centro da tela. — Cavalheiros, o que estão vendo é uma tomografia com emissão de pósitrons intensificada de um corpo humano. Uma geração de imagens E-PET, se preferirem. Podem perceber que todos os órgãos internos estão completamente visíveis.

— Vamos ter de acreditar na sua palavra, doutor — disse Feldman, deixando clara a falta de conhecimentos médicos dos repórteres.

— Agora — o dr. Goldberg começou a manipular alguns controles sob a tela — estamos avançando para a área cranial e eu estou ampliando a imagem e girando-a de forma que vocês possam ver todos os ângulos e aspectos do cerebelo. Pronto! Estão vendo?

Feldman e Hunter assentiram, com um certo ar de ignorância, observando atentamente a exibição de anatomia.

— Agora me digam — o médico falou qual um professor a conduzir um aluno — o que estão percebendo?

Os dois repórteres estudaram a imagem durante um momento, sem resposta.

— Não sei doutor— admitiu Feldman por fim. — Será que eu deveria estar vendo algo inusitado?

— Não — respondeu o médico. — A bem da verdade, este cérebro é completamente normal em todos os aspectos. — O médico acionou outro botão na base da tela e depois deu um passo para trás, a fim de propiciar uma visão mais clara.

Como mágica, o cérebro giratório começou a mudar, a se preencher, a acrescentar traços, a se tornar inteiro: uma cabeça humana completa, com um rosto. Uma imagem tridimensional em cores de uma bela mulher jovem com cabelos negros revoltos e uma perfeita pele de alabastro.

Feldman arfou, à medida que as enormes implicações começaram a tomar forma para ele. Ficou calado, com os olhos a fitar aquele rosto adormecido, em paz. Finalmente, ele perguntou bem baixinho:

— É... por acaso... Jeza?

— É, sim — disse Lazzlo — em todos os seus mínimos detalhes. Até as ranhuras de suas impressões digitais. Este procedimento foi feito ontem à noite, como preliminar de uma autópsia.

O médico reverteu a seqüência da imagem de maneira a exibir, de novo, os aspectos internos do crânio.

— Conforme podem ver — apontou com uma caneta — não há microchips internos. Não há fios. Não há eletrodos. Não há nada artificial. Simplesmente um cérebro humano natural, normal e saudável.

— Não — corrigiu-o Lazzlo. — Não exatamente humano.

Hunter sussurrou para si mesmo:

— Macacos me mordam!

Estarrecido, incapaz de afastar os olhos da fantástica imagem, Feldman precisou se sentar.

O médico continuou com sua demonstração, fazendo uma varredura total do corpo para revelar os órgãos internos da cavidade torácica.

— Aqui vocês perceberão — indicou com a caneta — um único trauma invasivo do músculo cardíaco...

Mas Feldman não estava mais prestando atenção. Tremia por dentro. Em voz alta, para si mesmo, expressou seus pensamentos.

— Então Jeza não era o sujeito de testes principal do laboratório do Neguev, afinal de contas. Sequer era um espécime aprimorado. Era o controle. A filha inalterada. A pura, intocada. O que significa... que todos os argumentos de Di Concerci eram falsos. O que significa... que nenhuma das habilidades ou conhecimentos de Jeza era resultado do processo de infusão, ou de telecomunicações com computadores, nem nada disso. O que significa...

A mente de Feldman desandou e ele entrou praticamente em estado de catatonia. Só começou a se recuperar quando Lazzlo, que saíra da sala temporariamente, voltou e entregou-lhe um envelope selado nas mãos.

— Tome — disse Lazzlo. — Aqui está tudo que vocês vão precisar para indiciar todo o comando da FDI... Tamin, Goene, eu, todos nós. São documentos da inteligência e memorandos internos que expõem tudo... as corrupções, as conspirações, o que foi acobertado. E eu incluí também um CD completo com a tomografia E-PET da Messias para servir de autenticação do que vocês acabaram de ver. Agora, sinto dizer, é hora de os dois irem embora. Goene convocou suas tropas para tomar este hospital e livrar Israel de um traidor. Um destacamento avançado de helicópteros da base do Neguev deverá chegar a qualquer minuto, e posso assegurar-lhes que nada os impedirá de obter o corpo de Jeza.

— Entretanto, a apreensão maior — advertiu Lazzlo — deverá estar por conta de contingentes ainda maiores de forças anti-Jeza que se aproximam de Jerusalém agora, vindas do norte. Foram abordadas pela divisão norte de nosso exército a vários quilômetros da cidade, e uma batalha sangrenta está sendo travada neste exato momento. Eu acho que o general Zerim não será capaz de contê-los durante muito tempo e este hospital certamente será seu próximo alvo.

O olhar estupefato de Feldman se transformou num olhar de solidariedade pelo oficial, cujo destino estava traçado.

— O que vai fazer agora, comandante?

Lazzlo ficou quieto um instante, olhando tranqüilamente para o rosto do repórter.

— Vou ficar aqui, sr. Feldman — disse ele, sem inflexão alguma — e defender minha Messias.

Hunter colocou uma das mãos sobre as costas do oficial. 

— De que vale isso? Parece suicídio. Por que não evacuar o prédio e levar o corpo de Jeza junto no helicóptero? Poderemos conseguir-lhe asilo em algum lugar, eu tenho certeza.

— Você não compreende — retrucou Lazzlo, com o rosto mais severo. — Sabe, eu... eu pessoalmente... tenho grande responsabilidade pelo que aconteceu ontem. A encomenda do crime mais deplorável que já foi cometido em dois mil anos. Eu conspirei para a morte de minha Messias. O pecado mais grave contra Deus. O pecado de todos os pecados. Com todo o meu coração, devo acreditar que Jeza se erguerá amanhã, aqui em Jerusalém, conforme prevêem as escrituras. E devo também acreditar que terei a oportunidade de Seu perdão. A proteção ao templo sagrado de Seu corpo é agora a única esperança que resta para a minha alma eterna. Eu não posso ir embora!

Feldman respirou profundamente.

— Eu lhe desejo sorte, comandante — disse ele, estendendo-lhe a mão sã. — Dou-lhe a minha palavra de que levarei estas informações ao ar o mais breve que me for possível. 

— Obrigado, sr. Feldman! — Lazzlo apertou a mão do repórter com ambas as suas. — E ao sr. Hunter, também! — repetiu o gesto com o cinegrafista.

— Comandante... — Feldman parou a caminho da porta. — Preciso levar o cardeal Litti comigo.

— Por favor, não deixe de levá-lo — instigou-os Lazzlo. — Conforme vocês já devem ter percebido, nós praticamente já concluímos a evacuação do hospital, mas o cardeal se recusa a partir. Levem-no, mas apressem-se. Vocês devem deixar que as informações que levam consigo, especialmente a tomografia PET, sejam veiculadas para o público imediatamente. Talvez a verdade possa interromper a loucura.

Assim dizendo, Lazzlo deixou os repórteres e foi retomar seus preparativos de defesa. Feldman enfiou o precioso pacote de provas dentro de sua camisa e um guarda os escoltou até a sala onde haviam deixado o cardeal Litti. Encontraram-no de joelhos, rezando, com um pequeno instantâneo da Messias sobre a cadeira à sua frente.

— Alphonse — chamou-o Feldman — vamos embora.

O cardeal colocou uma das mãos sobre a cadeira e se levantou devagar.

— Vocês vão voltar para se juntar a mim antes da aurora para a Ressurreição? — perguntou ele, exibindo um sorriso de perfeita tranqüilidade.

— Não, Alphonse, você não está compreendendo. — Feldman o agarrou pelo ombro. — Nós vamos embora. Todos nós. Você, eu, Hunter. Dois exércitos ensandecidos estão a caminho e vai se estabelecer o pandemônio por aqui. Vamos embora enquanto podemos.

Litti balançou a cabeça, resoluto.

— Não, Jon. É você quem não está compreendendo. Não há lugar mais seguro do que este. Eu tentei avisar ao comandante Lazzlo que ele está desperdiçando os seus esforços com as providências de defesa. Você acha mesmo que Deus deixaria alguém interferir no desfecho de Seu Grande Propósito?

Como que a sublinhar o argumento de Feldman, fizeram-se ouvir subitamente os alarmantes estampidos de armas automáticas do lado de fora do prédio e, em seguida, o barulho de uma pequena explosão.

— Alphonse — implorou Feldman, aproximando-se e olhando com firmeza nos olhos do clérigo — eu não sei quais são as intenções de Deus, mas não podemos esperar mais. Você tem de ir conosco. Agora!

A resposta do cardeal foi um olhar de absoluta convicção.

— Senhores! — gritou o guarda de escolta da porta. — Precisamos ir.

Hunter agarrou o bíceps de Feldman:

— Vamos, cara, você está desperdiçando o seu tempo. Se não sairmos daqui agora, o pacote jamais verá a luz do dia.

Entristecido e frustrado, Feldman abraçou o corpulento cardeal com o braço são, apertou-o com força e disse:

— Que Deus o proteja!

— E que Deus o proteja, também, meu bom amigo! — retrucou o cardeal.

Afastando-se do cardeal, Feldman partiu desajeitadamente pelo corredor com o auxílio de Hunter. Quando chegaram ao teto, os dois repórteres perceberam que haviam perdido sua breve oportunidade. O ar tinha o cheiro acre de fumaça. Balas zuniam por todo canto. Apesar disso, o helicóptero continuava com os motores funcionando em marcha acelerada, com o piloto a esperar pelos seus passageiros e a inabalável cabo Lyman agachada à entrada, acenando agitadamente para que eles subissem a bordo.

Ao avistar os repórteres, o piloto levou os motores ao giro máximo, e os dois se jogaram para dentro do aparelho, que então se inclinou para a frente e alçou vôo, descrevendo um arco de noventa graus e partindo em direção à área dos fundos do hospital. O piloto manteve a aeronave intencionalmente em vôo rasante, a fim de evitar que se tornassem um alvo fácil contra o azul-claro da alvorada, mas isto de pouco lhes serviu. O helicóptero foi imediatamente atingido por diversos disparos contra a parte inferior da fuselagem, descambou violentamente para a direita e teve boa parte do lado direito do teto rasgada por um forte impacto. Uma fumaça negra começou a invadir a cabine.

O piloto desandou a falar em hebraico e Lyman gritou várias vezes para que Feldman e Hunter apertassem os cintos de segurança, que os dois sequer haviam encontrado. No meio da fumaceira e turbulência, foi um esforço vão. O helicóptero estava vibrando e inclinando-se violentamente para a direita. Feldman escorregou de encontro ao anteparo da porta e sentiu a mão forte de Hunter segurá-lo pelo braço.

Ele sabia que estavam caindo.

 

                                      Um campo deserto, norte de Jerusalém

                                       9:22, sábado, 22 de abril de 2000

Feldman não se lembrava da queda. Quando voltou a si, tossindo e golfando, ele sentiu uma umidade espessa e fria sobre o rosto, obstruindo-lhe parcialmente a respiração. Quando conseguiu limpar a mente e os olhos, deu-se conta de que estava deitado de lado em um lamaçal. Olhando para trás, por cima do ombro, avistou os fumacentos destroços do helicóptero, com a cauda voltada para cima e a hélice traseira ainda girando. O desastre poderia ter sido pior. Não havia fogo. O combustível que vazava e cujo cheiro ele sentia ainda não se incendiara.

De alguma forma, Feldman fora lançado para fora no momento do impacto, caindo a pouco mais de cinco metros do aparelho, numa profunda poça de lama resultante das chuvas. À medida que o seu raciocínio retornava, ele foi sendo arrebatado por uma apreensão frenética quanto a Hunter e os dois membros da tripulação. Arrastando-se pela lama, alheio aos próprios ferimentos, ele começou a se aproximar do helicóptero, chamando pelos sobreviventes.

Um pé grande e um gemido baixinho saíram de uma cavidade abaixo dos destroços da fuselagem. Sentando-se no meio do atoleiro, Feldman colocou os próprios pés contra a estrutura retorcida, pôs o pé que saía da cavidade sob a axila esquerda, agarrou a panturrilha com a mão esquerda e empurrou com toda a força de suas pernas. O corpo foi surgindo lentamente à sua frente. Feldman subiu o ponto de pega da sua mão para o joelho e, com mais alguns esforços, o rosto ensangüentado de Hunter acabou vindo à tona.

Feldman chupou a lama de um dos dedos e abriu uma das pálpebras fechadas de Hunter. Havia movimento por baixo dela.

— Breck — chamou. — Você está me ouvindo?

O cinegrafista gemeu de dor.

— Vamos, Breck, acorde. Eu tenho de tirar você daqui antes dessa coisa explodir e preciso de sua ajuda.

No meio da lama, e com os ferimentos prévios, bem como quaisquer outros novos que pudessem ter ocorrido e ainda estivessem por descobrir, Feldman não tinha força suficiente para arrastar o homenzarrão mais para longe.

Os olhos de Hunter finalmente pestanejaram e ele fez uma careta para o amigo.

— Merda! — disse ele.

— Você está muito machucado? Dá para se mexer?

— Estou sentindo uma dor terrível aqui do lado direito, mas se você conseguir me rolar para o outro lado, eu acho que dá para me arrastar ­— respondeu ele, com o rosto contraído. — E os outros?

Feldman se apoiou à fuselagem para ficar de pé e olhou em torno. O helicóptero caíra numa região pouco habitada da cidade, numa área aberta à cerca de um ou dois quilômetros ao norte do hospital. O repórter avistou diversas pessoas atravessando o atoleiro a pé, vindo na direção deles. Aparentemente o piloto tentara um pouso forçado ali, mas não conseguira manter o controle do aparelho. A parte dianteira da aeronave estava totalmente esmigalhada, enterrada na lama. Ficou óbvio para Feldman que o piloto não tinha sobrevivido.

Apoiando-se com as mãos contra a cauda erguida do helicóptero na tentativa de refrear os escorregões, Feldman deu a volta e encontrou uma porta aberta do outro lado. Vasculhando o interior, em meio à penumbra e fumaça, ele avistou a base posterior de um capacete de vôo azul e cinza com cabelos negros saindo por baixo. Ele entrou e escorregou no piso liso da cabine, caindo ao lado do corpo imóvel da cabo Lyman.     

Cuidadosamente ele estava tentando enfiar o braço esquerdo são por baixo quando sentiu uma massa de sangue quente. Inclinando-se para poder ver o estado dela, ele se retraiu, horrorizado, ao ver que o outro lado do capacete estava esmigalhado qual a casca de um ovo. Ele se afastou, chocado, subitamente tomado de uma náusea terrível, e foi soltando o corpo desfalecido devagar.

Lá fora, vozes se fizeram ouvir. Feldman não tinha tempo para relutar com suas emoções, precisava considerar Hunter. Mal conseguira se virar a duras penas na direção da abertura por onde entrara, um rosto barbudo e desgrenhado o confrontou, apontando-lhe uma pistola.

— Quem são vocês? — perguntou o indivíduo, com um forte sotaque alemão.

O coração de Feldman gelou. Pelo menos, percebeu ele, o homem não era um soldado israelense. Recordando-se das importantes informações que trazia consigo, levou a mão machucada contra o estômago. O pacote ainda se encontrava lá, graças a Deus, ainda que pudesse estar avariado pelo acidente e pela lama.

— Por favor, eu não estou armado — disse Feldman.

— Gog ou magog? — perguntou o guerrilheiro.

— O quê? — Feldman não compreendeu o alemão.

— Você é Gog ou Magog? — a pergunta foi feita mais devagar. — Você é a favor de Jeza ou é contra Ela?

Feldman finalmente compreendeu. Mas sem saber em que mãos caíra, saiu pela tangente.

— Ahn, eu sou... eu sou jornalista. Jon Feldman, da Rede Mundial de Notícias — falou, e tirou a lama de cima de uma carteira de identificação que retirara do bolso do colete.

Os olhos do militante se arregalaram de repente e o homem exclamou com alegria:

— Jon Feldman! Meu bom amigo Jon Feldman! Nem o reconheci com toda essa lama.

Ajudando o repórter a sair dos destroços, o alemão gritou para os seus companheiros:

— Ya! Vejam, temos aqui o meu bom amigo Jon Feldman, da Rede Mundial de Notícias!

— Meu associado está ferido — apelou Feldman para seu captor. ­— Por favor, ajudem-nos.

— Ya, Jon! Você se lembra de mim? — perguntou o desconhecido. — ­Fredrich Vilhousen, de Hamburgo! Nós nos conhecemos no laboratório do Neguev na noite do Martelo de Deus!

Ainda um tanto incerto, Feldman não estava disposto a estragar sua boa sorte.

— Claro. Que bom revê-lo! Fomos derrubados pelos israelenses. Você tem de nos ajudar.

— Ya — Vamos ajudá-lo. Venha.

Feldman ficou feliz de ver que Hunter conseguira se arrastar até uma distância segura e estava sentado agora, conversando com dois dos três companheiros de Vilhousen.

— E então, o que vocês são, Gog ou Magog? — perguntou Feldman, apreensivamente, enquanto o alemão o ajudava, oferecendo-lhe o ombro como apoio.

— Magog, é claro! — foi a resposta bem-vinda. — Estamos aqui para o Armagedon! Os Gogs estão vindo para nos atacar e levar o corpo de Jeza. Eles acham que vamos fingir a Ressurreição, roubando-a daqui. Mas nós vamos derrotá-los, conforme prevê a Bíblia.

Embora já houvesse um pouco de cor no rosto de Hunter, estava óbvio que ele levara uma boa pancada. Pelo menos, tinha lanhos profundos na coxa direita e também na têmpora, onde os Magogs tentavam improvisar um curativo.

— Você poderia nos ajudar a voltar para a sede dos nossos escritórios? — voltou a implorar Feldman. — Dispomos de informações extremamente importantes sobre a Messias, que temos de levar adiante.

— Ya, ya, mas olhem. Temos problemas.

Feldman se virou e olhou para o alto, na direção apontada por Vilhousen. Um helicóptero militar israelense contornara os edifícios por trás deles e vinha direto para o local do acidente.

Hunter também o avistara.

— Porra, Feldman! Vá embora daqui, rápido.

Feldman olhou para o amigo, depois para o helicóptero se aproximando, e novamente para o amigo.

— Não, não vou deixá-lo aqui. Não que eu fosse conseguir, de qualquer maneira. Não nessa lamaceira, nem nas condições em que estou.

Sob os protestos de Hunter, Feldman desabotoou a camisa e tirou um pacote flácido. Agarrou fortemente o braço de Vilhousen com sua mão direita, apesar da dor.

— Fredrich, me escute — implorou, com olhos penetrantes cravados nos do alemão. — Este pacote é uma mensagem para o mundo sobre Jeza. Uma mensagem extremamente importante! Você não pode deixar de entregá-la na RMN, para Nigel Sullivan no monte da Ascensão, número 419-A, imediatamente. Está entendendo? Tudo depende disto. Você está entendendo?

Aturdido, Vilhousen aceitou o pacote, assentindo, com os olhos arregalados diante da responsabilidade. Esticando-se com muito sofrimento, Hunter também acenou com uma fita de vídeo para o alemão perplexo.

— Ei, eu salvei esta fita aqui. É melhor levá-la também.

— Vá — Feldman gritou, colocando o alemão a caminho com um forte empurrão. — Ande, corra! Monte da Ascensão, 419-A. Nigel Sullivan. Não nos deixe na mão! Não deixe Jeza na mão! Corra!

Vilhousen e seus companheiros partiram laboriosamente pelo terreno encharcado, quando o helicóptero fez uma curva e apertou o cerco.

— Porra, Jon! — Hunter ralhou com o amigo. — Não dá para confiar essas informações a eles. Você também tem de ir.

Cheio de dores, Feldman se aproximou lentamente do parceiro.

— Sinto muito, meu chapa, mas eu mal posso andar na melhor das circunstâncias. Jamais conseguiria atravessar este lamaçal. — Ele protegeu os olhos contra o sol e os armamentos que se acercavam, a apreensão crescente tomando conta de seu rosto. — E também não tenho muita certeza se Vilhousen conseguirá!

Diante da escapada dos Magogs, o helicóptero ficou pairando entre a indecisão de investigar a aeronave espatifada no solo e a perseguição aos fugitivos. De repente ele se pôs no encalço do bando de Vilhousen e uma arma de grosso calibre surgiu por baixo da fuselagem, descarregando uma saraivada de balas e espirrando lama ao redor dos guerrilheiros espalhados pelo campo. Um dos tiros atingiu seu alvo e um homem caiu de cabeça no atoleiro.

Feldman começou a agitar os braços freneticamente para o helicóptero e a apontar para os destroços.

— Mas que canalhas! — gritou Hunter. — Eles pegaram o nosso mensageiro?

— Não — conseguiu detectar Feldman de seu ponto de observação mais elevado que o do colega, enquanto continha o fôlego. — Ainda não!

Mas o helicóptero finalmente decidiu interromper a perseguição e deu meia-volta para pousar ao lado dos dois repórteres. Feldman deixou-se cair deitado perto de Hunter.

— Você está muito machucado, Breck?

— Não sei. Estou vendo tudo triplicado, meus ouvidos estão zunindo como um despertador e minha perna tem uma cratera aberta. Acho que não estou tão mal assim!

Três militares israelenses chegaram até os repórteres, apontando-lhes rifles contra os rostos.

— Venham conosco — disse um deles.

Foram necessários quatro homens para colocar o pesadíssimo Hunter dentro do helicóptero. Dois outros foram vistoriar os destroços, balançaram a cabeça para os colegas e depois voltaram a bordo para a decolagem.

Feldman e Hunter foram destituídos de suas carteiras de identificação e ficaram proibidos de falar enquanto estavam sendo transportados diretamente para um centro de comando da FDI no outro lado da cidade, a oeste de Jerusalém. Foram brutalmente jogados para dentro de um quartel e arrastados até a porta de um escritório onde, apesar de seu estado, tiveram de esperar, apoiando-se precariamente um no outro.

Finalmente a porta do escritório se abriu e os prisioneiros foram levados até a malévola presença de seu antigo nêmesis, o próprio general-de-exército Alleza Goene. Ao lado de Goene, outro homem estava sentado numa poltrona de encosto em couro vermelho. Era um sujeito baixo, um pouco troncudo, aparentando talvez sessenta anos, de cabelos grisalhos muito bem penteados. Vestia um requintado terno civil. Embora jamais tivessem se encontrado, Feldman o reconheceu de imediato.

Os guardas mantiveram os dois repórteres em posição de sentido, segurando-os com força pelos braços.

— Ora essa!— Goene deixou de lado a conversa que estava tendo, sem se mostrar desagradavelmente surpreso com a aparência enlameada dos repórteres. — Nós não estamos demonstrando tanta altivez e força hoje, ou será que estamos? — caçoou.

Feldman e Hunter ficaram olhando em silêncio.

Goene fez um gesto para o homem ao seu lado.

— Senhores, vou apresentá-los ao estimado ministro da Defesa de Israel, Shaul Tamin.

Tamin nem se deu ao trabalho de se levantar. Estudou os repórteres com um olhar metódico e arrogante, analisando-os com a frieza que lhe vinha por detrás das pálpebras pesadas.

— Sua ambição não tem consciência, não é mesmo, cavalheiros? ­— ressaltou Tamin, falando com a voz retumbante quase sem sotaque.

Os repórteres o fitaram com apreensão.

— Obrigado por sua ilustre reportagem! — prosseguiu ele. — Israel está prestes a confrontar o Armagedon. Suponho que estejam orgulhosos de seu trabalho.

— Somos apenas dois jornalistas no desempenho de nossas atribuições profissionais, Tamin — retrucou Feldman, secamente.

— Jornalistas? — desdenhou o ministro. — É assim que vocês se caracterizam? Colocando a segurança nacional de Israel em perigo; incitando tumultos e rebeliões; criando um clima mundial de medo e desespero... tudo em nome do bom jornalismo! Estou entendendo. Mas que profissionais dedicados vocês são!

Hunter sacudiu-se e soltou-se do guarda que o segurava.

— E eu suponho que vocês dois sejam nada mais do que um par de leais patriotas, não é isso? Tramando o inescrupuloso assassinato de uma mulher indefesa, tudo em nome da boa política! Mas que calhordas dedicados vocês são!

Feldman agarrou o braço do amigo em sinal de advertência.

O olhar malicioso de satisfação até então demonstrado por Goene se desfez, mas Tamin não se deixou trair.

— Ora — disse o ministro após um breve intervalo — vamos ver que proveito os seus talentos de investigadores lhes trouxeram hoje.

­Ele se levantou, alisou o paletó e deu a volta em torno de sua mesa, recostando-se suavemente contra a borda oposta, encarando os repórteres enlameados.

— Eu tenho apenas algumas perguntas a lhes fazer a respeito da segurança do Estado de Israel — afirmou em tom prosaico. — Se vocês falarem tudo o que sabem dessas questões com honestidade, mandarei tratar de seus ferimentos e tomarei as providências para que sejam soltos imediatamente. Vocês parecem estar bastante machucados. — Ele se mostrou genuinamente apreensivo.

Hunter se endireitou um pouco mais e cruzou os braços.

— Agora — começou Tamin — eu gostaria de saber, primeiramente, o que os dois estavam fazendo no Hospital Hadassah.

— Visitando um amigo doente? — respondeu Hunter.

Goene afastou sua cadeira da mesa.

— Vocês não estão na segurança de sua agência de notícias, meu caro espertalhão! — grunhiu ele, mas Tamin ergueu a palma da mão para o marechal e Goene se conteve.

— Vou repetir a pergunta — disse o ministro, calmamente. — Por que vocês estavam no Hadassah?

— Sabe — recomeçou Hunter, e Feldman deu-lhe uma cutucada, que de nada adiantou — eu estava pensando em fazer uma circuncisão, para ter alguma coisa que me fizesse lembrar de Goene...

O rosto de Goene ficou rubro de raiva e ele fez um sinal para um guarda, que imediatamente agrediu Hunter na base da espinha com a coronha da arma. O cinegrafista caiu pesado e quando Feldman foi em seu socorro, o guarda responsável por ele o segurou pelo braço ferido e o forçou a ficar de pé.

Feldman gritou com raiva para Goene.

— Seu covarde filho da puta!

— Sua vez — Goene apontou para Feldman e o guarda de Feldman ergueu o rifle, ameaçadoramente.

Entre dentes crispados, Hunter poupou o amigo.

— Fomos ver os restos mortais de Jeza.

— Hunter, não! — ganiu Feldman.

— Não temos nada a ganhar se ocultarmos a verdade — grunhiu Hunter. — Vamos contar para eles.

Goene relaxou em sua cadeira e Tamin balançou a cabeça, satisfeito, olhando para Hunter com uma expressão distante e alheia.

— O comandante Lazzlo os convidou? — perguntou o ministro.

— Convidou, sim — falou Feldman, assumindo com relutância.

— E ele os trouxe de helicóptero de manhã bem cedinho? — Tamin não olhou para Feldman, mas continuou fitando Hunter no chão com a expressão vazia e desinteressada de um burocrata.

— Correto.

— E você viu os restos mortais?

— Vi. 

— E, na ocasião, o corpo já sofrera autópsia?

— Não.

— Como sabe?

— Porque, conforme disse, eu vi o corpo.

— A resposta não é definitiva — declarou Tamin, inexpressivamente.

— E vi uma tomografia PET de Jeza.

Esta afirmativa conseguiu atrair toda a atenção de Tamin. Ele se virou para Feldman com um laivo de emoção invadindo sua voz.

— Isso é o passo preliminar de uma autópsia. Então foi feito um exame post mortem!

— Não. Eles interromperam o processo depois da tomografia.

Tamin olhou para os dois repórteres com sagacidade.

— Eles interromperam o processo? Por quê?

— Porque descobriram com a tomografia que afinal não havia micro­chips no cérebro dela.

Goene se levantou de um pulo, enfurecido.

— Mentiroso!

Ele fez novamente um gesto para o guarda e Feldman caiu com o violento golpe que lhe foi desferido contra a região lombar. Seu corpo inteiro foi sacudido, como que percorrido por uma descarga de eletricidade. Feldman conseguiu ouvir, em algum ponto além dos limites de sua dor, os impropérios que Hunter desatou a proferir. Tamin disciplinou Goene:

— Chega, general, primeiro eu vou assumir o comando disto à minha maneira.

À medida que as ondas de dor foram se amenizando, Feldman detectou a presença próxima de alguém. Era Tamin, de joelhos, bem perto de seu rosto.

— Sr. Feldman, peço desculpas pelo ocorrido. Acho que o general não está bem certo da honestidade de suas declarações.

Feldman rebateu enfaticamente:

— Eu só estou dizendo que não vi nada estranho na tomografia. Eu não sou médico!

— É claro. Então você diz que viu as imagens internas do cérebro dela e que não havia indicação alguma de microcircuitos ou fiações?

— Isso mesmo — arfou Feldman, verificando cuidadosamente o movimento de seus membros amortecidos.

— Como você sabe se os microchips não haviam sido retirados antes, ou se vocês não estavam vendo o cérebro de um outro corpo?

Feldman se ergueu sobre um cotovelo e, contendo a raiva, mostrou um olhar carrancudo para o ministro.

— Porque a tomografia era abrangente. Irretocável. Fez uma cobertura completa do corpo inteiro, por todos os ângulos, em três dimensões. E mostrou todos os órgãos internos, exibindo o interior, camada por camada, permitindo a visualização ampliada de qualquer detalhe que quiséssemos. Sem sombra de dúvida, o que eu vi foi o corpo de Jeza.

— Mas como você pode ter certeza de que os chips não haviam sido retirados?

— Eu vi o rosto e o crânio dela em close. Eu teria visto, pelo menos, as marcas das incisões. Ela estava absolutamente normal. Não havia incisões, nem chips. Nada!

Tamin se levantou, refletindo sobre o que fora dito, e voltou a se recostar à mesa.

— Ele está mentindo! — gritou Goene. — Eles estão de conluio com Lazzlo. Tenho certeza de que foi Lazzlo quem lhes deu a informação sobre a operação de janeiro. E, com toda a certeza, foi Lazzlo quem entregou o diário para o Vaticano. Ele vem conspirando contra nós o tempo todo, jogando nos dois lados. E agora o traidor está com os chips, e esses canalhas estão nessa com ele!

Como que municiado de um novo raciocínio, Tamin voltou para perto dos dois homens caídos.

— O comandante Lazzlo lhes deu alguma coisa com a qual vocês saíram do hospital?

— Não — mentiu Feldman.

Tamin se inclinou sobre Feldman, com as mãos sobre os joelhos. ­ 

— Pense bem — advertiu. — Alguém lhe deu um pacote qualquer? Um envelope? Uma revista? Qualquer coisa?

— Nada! — reafirmou Feldman.

— Vocês sabem do paradeiro dos microchips?

— Eu estou lhe dizendo — protestou Feldman — não existem microchips!

Tamin se ergueu novamente e virou-se na direção da porta.

— Perfeitamente. E eu suponho que a habilidade de falar uma centena de línguas e seu vasto acervo de conhecimentos eram simples manifestações da divindade de Jeza, correto?

Feldman ficou calado.

Goene foi para o lado de Tamin.

— Estamos fazendo um levantamento das outras vítimas do acidente e do próprio helicóptero neste exato momento.

O ministro assentiu.

— Muito bem, general. Os prisioneiros são seus. Se estiverem escondendo os chips, quero que sejam encontrados. Faça o que for necessário.

Tamin saiu e Goene virou-se para os prisioneiros com um ar de absoluta supremacia. Ele sorriu sinistramente quando se dirigiu aos seus guardas.

— Levem-nos para baixo. Dispam-nos totalmente e vasculhem cada milímetro quadrado de suas roupas, fio por fio. Desmontem seus sapatos, seus relógios, tudo. Revistem seus corpos. Cada fresta, cada orifício. Mantenham­-nos sob guarda constante. Dêem-lhes eméticos e coem o vômito deles na peneira. Dêem-lhes laxantes e verifiquem todas as evacuações minuciosamente durante as próximas doze horas. Encontrando ou não os chips até o raiar do dia de amanhã, levem-nos para o pátio e executem-nos como espiões. Em seguida, incinerem seus cadáveres. E quero a mais absoluta discrição.

Goene foi para perto deles e se agachou ao lado dos dois alquebrados repórteres. Sua boca se arreganhou numa risada brutal de escárnio.

— Em última análise, cavalheiros, eu diria que a espada é, de fato, mais poderosa do que a pena. Vocês não concordam?

 

                               Base militar da FDI em Dyan, Jerusalém, Israel

                               4:13, domingo, 23 de abril de 2000

Feldman e Hunter estavam sentados, nus, com frio, no chão molhado de sua cela, abraçados aos próprios joelhos, tentando resguardar o calor de seus corpos. A noite fora longa, desagradável, nojenta e humilhante. Além de suas feridas desprotegidas, os dois estavam sofrendo de desidratação aguda, como resultado dos purgativos.

Mesmo naquela masmorra sem janelas, no subsolo, eles conseguiam ouvir o barulho das manobras militares do lado de fora. A metralha pesada não parara a noite inteira.

— Como é que você está indo, Breck? — perguntou Feldman por entre os joelhos.

Não houve resposta.

Feldman se virou para observar o companheiro de cela, que estava acabrunhado ao seu lado, remoendo os próprios sentimentos.

— Ei, cara — encorajou-o Feldman — pare com isso. Por que você não canaliza a sua raiva para me ajudar a encontrar uma forma de sair desta?

— Porque a gente não vai sair desta, cara — a resposta veio num grunhido. — Pelo menos, vivos é que não vamos!

— É esse o espírito! — repreendeu-o Feldman.

— Puta merda! — A raiva contida de Hunter se soltou. — Juro por Deus que eu daria minha alma imortal para ter cinco minutinhos com aquele filho da puta do Goene!

Feldman soltou um suspiro, pressionado pela necessidade iminente de oferecer algum tipo de consolo em vista das circunstâncias.

— Ei, cara, não vale a pena...

— Canalha filho da puta! — Hunter trovejou outra vez, desferindo um violento murro contra o chão da cela. — Juro por Deus, Jon, se eu sair desta, vou perseguir aquele calhorda, mesmo que eu vá parar nas profundezas do inferno. E com a ajuda de Deus, vou matar aquele filho da puta! — Hunter olhou para Deus através do teto da cela. — Eu só quero uma chance... só peço isto... e você pode levar a minha maldita alma. Só uma chance!

O arroubo de Hunter atraiu a atenção de um dos guardas.

— Calem a boca aí, senão eu vou dar uma mangueirada em vocês —­ bradou ele.

— Por favor — pediu Feldman — alguém poderia nos dizer que horas são?

— Quinze para as cinco — respondeu o guarda.

O romper do dia, e o pelotão de fuzilamento, estavam se aproximando rapidamente. Mais uma vez, Feldman tentou dobrar a determinação dos guardas.

— Não haveria uma possibilidade de vocês nos darem um pouco de café quente e um cobertor agora? Vocês já sabem que não temos nada escondido em nossos corpos. E estamos totalmente vazios por dentro.

Os dois guardas, que estavam sentados a uma mesa do lado de fora da cela, trocaram olhares entre si. Houve rumores de uma conversação e dois pedaços de pano sujo foram jogados para dentro. Alguns instantes depois, duas xícaras de café quente foram passadas por entre as barras. Enrolados em seus lençóis, os dois esticaram as pernas como puderam e foram alvoroçadamente tomar o café, agradecendo enfaticamente aos seus algozes e implorando por mais logo em seguida. Seus pedidos foram atendidos, e eles também receberam dois pãezinhos duros para comer. Seus últimos pedidos, presumiu Feldman!

Sua curiosidade foi logo sanada. Assim que eles terminaram a refeição, o momento que temiam chegou: várias passadas rápidas foram ouvidas descendo as escadas, juntamente com o sacolejar de chaves. Os ruídos de sua execução iminente!

 

                             Hospital Hadassah, Jerusalém, Israel

                             4:47, domingo, 23 de abril de 2000

O cardeal Litti se ajoelhou sobre o frio e duro piso de concreto em frente à porta do recinto onde Jeza se encontrava de corpo presente. Qual um par de suportes de livros combinados, dispostos um em cada lado da porta, duas sentinelas israelenses armadas mantinham seus postos, a fim de garantir que o corpo de Jeza não fosse perturbado durante a noite.

Em resposta aos apelos incessantes de Litti, o comandante Lazzlo finalmente aquiescera e concedera ao cardeal acesso à área restrita. Litti estava ali desde o pôr-do-sol, orando, aguardando fielmente a Ressurreição. A prolongada vigília não fora fácil para os ossos cansados do pobre. O idoso clérigo estava tendo câimbras, com frio e profundamente fatigado. Mas ele não se sentia incomodado por sofrer essas inconveniências de somenos. Testemunhar esse triunfo sobre a morte e o mal era a maior honra que Deus poderia conceder ao homem!

Entretanto, à medida que a aurora se aproximava, Litti foi ficando cada vez mais nervoso. Durante toda a noite, com a artilharia e a violência à solta lá fora, o cardeal se mantivera afeito à sua certeza sobre a Messias. Isto, apesar das incômodas dúvidas alojadas nos recônditos de sua alma por um demônio matreiro!

As outras únicas distrações de Litti ficaram por conta do comandante Lazzlo, que vinha ocasionalmente durante breves intervalos da fuzilaria. Compartilhando as sinceras esperanças de Litti acerca da Ressurreição, o oficial se mantinha a par da situação.

Esta visita, entretanto, não era social. O cardeal ouviu um tumulto se avizinhando pelo corredor adentro e Lazzlo, assoberbado, dobrou a esquina com vários de seus comandados.

— Eminência, eu sinto muito — falou ele, arfando, com um ar de desgosto a contrair-lhe a fisionomia. — Os Gogs tomaram a ala oeste. É preciso sair daqui até que tenhamos o corredor sob controle.

Alarmado, Litti empalideceu.

— Sair agora? Isto está fora de cogitação. O alvorecer não tarda.

— Eu sei, cardeal, e compartilho os seus sentimentos, mas se não protegermos este corredor, pode não haver Ressurreição. Os Gogs não são como as forças de Goene. Eles querem destruir o corpo de Jeza. Vão usar explosivos. É preciso evacuar esta área até que a retomemos. Eu o trarei de volta o mais rápido que for possível. Ainda temos meia hora antes do alvorecer.

Lazzlo sinalizou para os guardas da porta e eles pegaram o desesperado Litti pelas axilas para ajudá-lo a se por de pé.

— Eu lhe imploro, comandante! — resmungou o cardeal, mas já era tarde demais. Lazzlo se fora correndo em direção à ala oeste, acompanhado por seus homens.

De fato, Litti e sua escolta mal haviam chegado à escada quando uma explosão percorreu os corredores. O cardeal fez uma rápida prece quando as paredes de sustentação do pavimento no subsolo vibraram ameaçadoramente.

 

                                               Base militar da FDI em Dyan, Jerusalém, Israel

                                               5:15, domingo, 23 de abril de 2000

Do lado de fora da cela de Feldman e Hunter, houve uma conversa agitada em hebraico entre os guardas e os quatro soldados que acabavam de chegar. A animada discussão durou vários minutos.

Eles ouviram muita movimentação de tropas no exterior da edificação e acima do nível da cela, mas os ruídos da batalha haviam cessado. Então, de repente, um dos guardas destrancou a porta e anunciou sem mais nem menos:

— Vocês estão livres. Podem ir embora.

Sem maiores cerimônias, Feldman e Hunter foram liberados, enquanto os quatro soldados partiam em marcha e os guardas começavam a recolher às pressas seus pertences, como se estivessem evacuando o local.

— Por favor — inquiriu Feldman — o que está acontecendo?

Sem tirar os olhos do embrulho que estava fazendo, um dos guardas explicou:

— Estamos sob lei marcial. O parlamento israelense se reuniu em sessão de emergência nesta madrugada e a FDI foi dissolvida. Emitiram um mandado de prisão contra o ministro da Defesa, Tamin, e o general Goene.

— Oooobaaa! — gritou Hunter de alegria.

— Do que eles estão sendo acusados? — perguntou Feldman.

— Traição, conspiração e cumplicidade em assassinato, dentre outras coisas, segundo me contaram. Vocês dois receberam a liberdade por ordem direta do parlamento israelense. Goene e Tamin fugiram. Nós recebemos ordens de entregar a base e nos apresentar para revista.

Pasmados com a oportuna inversão de sua sorte, Feldman e Hunter subiram aos tropeções para o primeiro andar, percorreram o corredor principal e tomaram a primeira saída que encontraram. Encarquilhados pela lama, sangue e sujeira ressecados sobre seus corpos, ainda sem o que vestir, além dos lençóis imundos recebidos instantes antes, Feldman e Hunter saíram do quartel sob os fortes raios de um sol deslumbrante.

Nos campos da base, tropas residentes se reuniam e alinhavam ao comando de novos superiores. Equipes e veículos militares recém-chegados afluíam para a base num grande afã.

— Não acredito que tenha acabado! — respirou Hunter.

— Alguma coisa me diz que não acabou ainda — retrucou Feldman.

Logo adiante dos repórteres, um oficial de comando, passando a toda num jipe, avistou Feldman e gritou para o seu motorista, que freou bruscamente e deu marcha-a-ré até o portão. O oficial vociferou uma ordem em hebraico para um pelotão e os dois repórteres foram instantaneamente cercados.

— Meu Deus! — gemeu Hunter. — De novo, não!

Mas desta feita, em vez de serem levados para uma cela, os dois foram parar na enfermaria da base, onde lhes deram o que beber, além de um bom banho quente e um lauto café da manhã. Fizeram curativos em seus ferimentos, administraram-lhes antibióticos, forneceram-lhes roupas novas, e eles foram conduzidos prontamente à presença do oficial de comando que os descobrira.

Ao deparar com os visitantes, o oficial deixou de lado a papelada, vociferou uma ordem ao interfone, levantou-se e estendeu a mão para os dois. Eles recusaram o ato de civilidade.

— Que diabo está acontecendo? — exigiu Hunter. — Você não tem o direito de nos deter aqui.

— Somos cidadãos norte-americanos — acrescentou Feldman.

O oficial, com a mão ainda estendida à espera do cumprimento, assentiu compreensivamente e indicou-lhes assentos.

— Vocês não estão detidos — informou o comandante, voltando a se sentar. — Só estão sob custódia temporária para sua proteção, na dependência de uma ligação que acabo de mandar fazer. Aguardo uma resposta a qualquer instante.

Acalmando-se um pouco, Feldman perguntou:

— Você se importaria de nos contar o que está acontecendo?

— Não disponho de todos os detalhes — informou-lhes o oficial. ­ Há muita confusão reinante neste exato momento. Mas posso lhes dizer tudo que sei.

Os dois repórteres aceitaram as cadeiras que lhes foram oferecidas e o comandante prosseguiu.

— Vocês estão cientes, quero crer, de que toda a cidade está em guerra há quase vinte e quatro horas ininterruptas. Já morreram milhares de pessoas. As batalhas mais violentas têm ocorrido no Hadassah, tendo o hospital ficado sob cerco triplo durante a noite inteira. Começou quando os homens do general Goene atacaram ontem pela manhã.

O maxilar de Feldman se contraiu com a lembrança. Hunter cerrou os punhos.

— As tropas do comandante Lazzlo conseguiram manter Goene afastado durante todo o dia, com a ajuda de forças da resistência pró-Jeza do lado de fora do hospital. Então, por volta das oito e meia da noite, as forças anti­-Jeza responsáveis pelo massacre de Meguido atravessaram as nossas defesas nas circunvizinhanças da zona norte de Jerusalém e avançaram sobre o hospital. Começaram a atacar todo mundo, indiscriminadamente. Na escuridão da noite, foi uma confusão infernal.

Goene trouxe reforços, mas se recusou a bombardear o hospital. Sabemos agora que ele estava atrás dos neurochips de Leveque e não queria correr o risco de destruí-los. Portanto, todo o confronto se desenrolou numa prolongada e ininterrupta batalha durante toda a noite. Em torno das quatro da madrugada, a RMN transmitiu uma reportagem especial com as informações que vocês haviam conseguido repassar de dentro do Hadassah.

Feldman e Hunter levantaram os punhos em triunfo com a notícia de que as evidências de Lazzlo haviam chegado ao seu destino.

— Mas, aparentemente, — o oficial retomou sua narrativa — a administração Bem-Miriam já havia sido notificada diretamente pela sua rede e convocara uma sessão de emergência do parlamento israelense no meio da noite. Com base nas provas dos documentos internos do comandante Lazzlo, a FDI foi colocada sob ordens diretas e foram emitidos mandados de prisão contra todo o alto comando da FDI, inclusive Tamin e Goene. Quando as ordens foram repassadas, Goene abandonou suas tropas e fugiu, e suas forças foram então retiradas do hospital. Isso deixou uma brecha para as forças anti-Jeza, que atacaram uma ala do hospital e o invadiram. Mas logo em seguida, contudo, essas forças retraíram subitamente o ataque; presumivelmente, reagindo à reportagem da RMN. Lazzlo e seu regimento ainda estão entrincheirados no hospital e o primeiro-ministro, Bem-Miriam, está tentando negociar com eles neste exato momento.

— Onde estão Tamin e Goene? — Hunter quis saber.

— Não sabemos ao certo. Tamin abandonou seu posto antes mesmo da emissão do mandado, sem dúvida alertado por seus asseclas! Alega-se que ele tenha sido recolhido por Goene num helicóptero da FDI, com destino desconhecido. Por ora, não se sabe mais do paradeiro de nenhum dos dois.

Hunter balançou a cabeça, assertivamente.

— É por isso que estamos sob custódia de proteção. Você acha que ainda estamos correndo perigo por parte de Tamin e Goene?

— Em parte — reconheceu o oficial. — O primeiro-ministro, Ben­-Miriam, desviou minhas tropas para cá, a fim de controlar esta base. Minhas ordens são para garantir a sua segurança e notificar a administração assim que vocês sejam capazes de...

Ele foi interrompido por uma voz falando em hebraico ao interfone.

Ao erguer os olhos, o comandante anunciou:

— Cavalheiros, esta é a ligação que eu estava aguardando. É para o sr. Feldman. O primeiro-ministro, Eziah Bem-Miriam, deseja falar-lhe pessoalmente.

O oficial girou o aparelho em frente a Feldman e apertou um botão que piscava. O repórter retirou o fone do gancho.

— Alô! 

— Alô, sr. Feldman — cumprimentou-o o primeiro-ministro — Estou imensamente aliviado em saber que o senhor e seu associado, o sr. Hunter, estão sãos e salvos. Estivemos muito preocupados com vocês.

— E nós lhe somos gratos pelos seus esforços em nosso favor. O senhor salvou nossas vidas.

— Infelizmente — observou Bem-Miriam com sobriedade — não conseguimos agir a tempo de salvar diversos homens e mulheres que foram desnecessariamente mortos nesta luta insensata. E é por isso que desejo lhe falar. O Estado de Israel precisa de sua assistência uma última vez, para dar um fim a todo este derramamento de sangue.

Feldman respirou profundamente e, apreensivo, respondeu ao olhar inquisidor de Hunter com uma testa franzida.

— De que o senhor precisa, primeiro-ministro?

— Sr. Feldman, neste exato momento, nós estamos tentando negociar um acordo pacífico com as forças estacionadas no Hadassah. O comandante Lazzlo não quer se render às nossas tropas e estamos temendo um desfecho ruim. O comandante se recusa a lidar com qualquer pessoa que não sejam o senhor e o sr. Hunter. São os únicos indivíduos em quem ele confia. Eu sei que vocês acabam de passar por uma severa provação, mas simplesmente não dispomos de outro recurso, pelo que parece.

 

                                 No céu de Jerusalém, Israel

                                 9:55, domingo, 23 de abril de 2000

— O que você acha que Lazzlo quer? — perguntou Hunter, inquieto, enquanto inspecionava a câmera que lhe fora fornecida pelos militares a bordo do helicóptero no caminho de volta para o hospital. — Uma declaração gravada antes de deixar-se cair sobre a própria espada?

— Talvez ele só queira que monitoremos a rendição, de forma a garantir a segurança de suas tropas — Feldman retrucou hesitantemente, evitando o assunto sobrenatural que nenhum dos dois quis abordar.

Sobrevoando uma divisão de militares israelenses no cerco ao hospital, o helicóptero pousou sobre o telhado e os repórteres foram rapidamente conduzidos de volta à casamata de Lazzlo no subsolo, posicionada estrategicamente perto das instalações do necrotério. Lazzlo os aguardava do lado de fora da porta, no corredor, recostado à parede, de braços cruzados, aparentando tanto cansaço quanto os seus visitantes. Ele dispensou os guardas para que pudesse ficar a sós com os repórteres.

— Fico enormemente grato por terem vindo, cavalheiros — começou a dizer, com o rosto deprimido. — Especialmente em vista do que vocês passaram quando de sua última visita!

— O cardeal Litti está são e salvo? — perguntou Feldman, apreensivo.

— Está, sim. Está descansando confortavelmente agora. Eu receio que esta noite tenha sido bastante dura para ele, também.

— Sinto muito pela perda de sua tripulação no desastre do helicóptero — pronunciou-se Feldman. — Eram soldados corajosos, os dois.

— Eram, sim. — Lazzlo ficou calado um instante, com um ar de profunda tristeza. — Vocês não sabiam, é claro, mas a cabo Illa Lyman era minha filha. Filha única.

Feldman olhou para Hunter, cujo rosto era uma máscara sombria.

— Nós lhe damos os nossos mais sinceros pêsames, senhor — ele conseguiu dizer com a garganta apertada. — Ela salvou nossas vidas. Se não fosse por ela e seu piloto, jamais teríamos conseguido passar aquelas informações vitais para o parlamento israelense.

— Infelizmente — Lazzlo recuperou a compostura — de ambos os lados, muitas boas vidas se perderam.

— Isto é bem verdade, comandante. — Feldman encontrou sua abertura. — E agora, não acha que seja hora, afinal, de fechar a última folha de toda esta tragédia insensata?

— Decerto — concordou Lazzlo. — Foi por esta razão que eu pedi o seu retorno até aqui. Há mais uma coisa que eu preciso que vocês documentem antes de me dar por satisfeito. Depois disso, estou preparado para... para me render.

O comandante exibiu um ar de desânimo que deixou Feldman apreensivo.

— Por favor, venham comigo — falou Lazzlo, conduzindo-os mais uma vez à cripta mortuária.

Ele parou, mandou que as sentinelas se afastassem e, em seguida, deu licença para que Feldman e Hunter passassem pela grande porta metálica entreaberta.

Vasculhando a escuridão da câmara, com o coração palpitando, Feldman não ficou totalmente surpreso ao ver que o recinto estava vazio. O corpo de Jeza não se encontrava mais lá. Não havia nada ali dentro, além da mesa sobre a qual ela estivera e os lençóis que a recobriram.

Sentindo faltar-lhe o fôlego, Feldman saiu da câmara e estudou com olhar atento o rosto do comandante.

— Onde está ela? — perguntou com a voz incerta.

— Eu não sei — retrucou Lazzlo baixinho. — Vasculhamos todo o hospital. Ela não está aqui.

— Alguém testemunhou a Ressurreição dela? — perguntou Hunter. — Ou a viu de fato viva?

— Não — admitiu Lazzlo. — Ninguém estava presente quando aconteceu e ninguém de fato a viu. Desta vez, infelizmente, não tenho provas conclusivas. Mas tenho algo bastante interessante para lhes mostrar. — Ele apontou para os cantos do teto onde duas câmeras de segurança a tudo assistiam sem pestanejar.

As sobrancelhas de Feldman descreveram um arco de interesse.

Eles voltaram para o escritório de Lazzlo onde dois monitores de vídeo estavam montados.

— Tenho as gravações feitas pelos dois ângulos, por cada uma das câmeras de segurança — explicou Lazzlo e colocou as duas fitas para rodar.

Duas imagens de uma forma feminina envolta em lençóis se firmaram num preto-e-branco surreal; a mesma imagem vista de ângulos opostos, uma em cada monitor.

— Vocês perceberão — disse Lazzlo, apontando para o canto inferior esquerdo das duas telas — que cada fita tem um código para data e horário, de forma que é possível dizer exatamente quando os eventos ocorrem.

A data e o horário apresentados eram "4.23.00, 3:17:24".

Lazzlo então avançou ambas as fitas e o horário pulou rapidamente para a frente. Ele voltou para a velocidade normal às 5:14:30, alertando:

— Agora, observem com atenção.

Exatamente às 5:14:54, houve um clarão brilhante no recinto, cegando as câmeras e deixando as telas totalmente esbranquiçadas durante um período prolongado. Entrementes, o relógio continuou sua marcha regular. Finalmente, às 5:15:46, as lentes das câmeras voltaram ao normal, retomando a imagem. Só que esta havia mudado. Os lençóis sobre a mesa estavam jogados para trás, a porta estava entreaberta e Jeza desaparecera.

— Existe algum áudio acompanhando estas filmagens? — perguntou Feldman.

— Não — retorquiu Lazzlo. — São câmeras de segurança padrão.

Lazzlo tornou a passar as fitas, diminuindo a velocidade para dar maior ênfase ao último quadro antes de a imagem ser obliterada pela luz.

— Deste ângulo — ele apontou para o monitor — é possível ver a porta. Vocês podem perceber que ela parece segura. O clarão começa enquanto a porta ainda está fechada!

Os repórteres estavam bem cientes deste ponto.

Depois que a fita fora passada novamente, Feldman lançou um olhar indagador para o parceiro.

Hunter franziu o cenho, balançando a cabeça, meio dormente:

— Ora, essa! Não pode ter sido uma falha de corrente; os relógios estão funcionando ininterruptamente durante toda a seqüência. A perturbação, seja lá qual for, só pode ter sido alguma fonte intensa de luz.

Tanto Feldman quanto Hunter se calaram. Finalmente, Feldman rompeu o silêncio.

— Quando o senhor deu pela falta dela pela primeira vez, comandante?

— Só depois de decorridos vinte minutos da hora em questão — disse Lazzlo. — Uma ala do hospital fora tomada pelas facções anti-Jeza e nós direcionamos todos os nossos homens para lá; só os devolvemos às suas posições anteriores depois de resolvida a situação. Eu precisei trazer os guardas da cripta e dos corredores adjacentes e removi o cardeal Litti para a ala leste. Quando meus soldados voltaram, o corpo de Jeza desaparecera e a câmara estava tal qual vocês a viram. Não encostamos em nada e os guardas voltaram imediatamente aos seus postos em frente à porta.

— Espere um minuto — interrompeu Hunter. — Se o hospital foi invadido, não é possível que alguém tenha chegado até aqui e roubado o corpo?

— Não posso dizer que isto não seja possível— admitiu Lazzlo. — Mas que eu saiba, ninguém passou pelas nossas defesas. Mesmo assumido que estávamos sendo invadidos, eles precisariam passar pelas nossas linhas mais uma vez para escapar. Isto já seria um feito suficientemente difícil sem carregar junto consigo o fardo de um corpo. Ainda assim, resta a questão da perturbação luminosa nas fitas de segurança.

— Se alguém entrou — sugeriu Feldman — talvez tenha conseguido abrir a porta da sala de Jeza um pouquinho indetectável, inserir uma fonte de luz...

— Sim, há outras explicações — interrompeu Lazzlo, olhando para Feldman como se não houvesse. — Independente disso, peço que você e seu associado documentem todas as provas que encontrarem aqui antes que outros que venham depois de mim destruam e distorçam a verdade, intencionalmente ou por qualquer outra razão. Vocês têm credibilidade com o público. Eles confiarão em vocês, em quaisquer dados que vocês coletem. Eu também quero que vocês assumam a posse das duas fitas de segurança.

— Claro — concordou Feldman.

Enquanto Lazzlo pegava as fitas e Hunter filmava a câmara mortuária, Feldman deixou-se adentrar ao seu próprio espaço, repassando os eventos dos últimos dias. Não conseguia chegar a uma conclusão quanto às circunstâncias. Balançando a cabeça, emaranhado na confusão de coisas por demais insondáveis, ele finalmente catalogou seus pensamentos e voltou-se para a situação presente.

— Comandante — disse ele, recebendo as fitas de Lazzlo — o que podemos fazer para auxiliá-lo em suas negociações com o governo?

Lazzlo fitou Feldman com um pesaroso sorriso de resignação.

— Não há nada mais que você possa fazer por mim agora, meu amigo. O meu destino já está selado. Devo encarar as conseqüências dos meus atos. — Ele soltou um profundo suspiro. — Já não importa mais. Cheguei tarde demais para pedir a absolvição da Messias. As autoridades podem fazer o que desejarem com o meu corpo mortal; é uma autoridade mais elevada que me interessa.

— Acho que você sabe que Tamin e Goene desapareceram — mencionou Feldman.

— Eles não desapareceram — afirmou Lazzlo, factualmente. — A administração só não sabe onde procurá-los.

— E você sabe? — Hunter parou de filmar e caminhou na direção de Lazzlo.

— Tenho uma boa idéia. Goene e Tamin provavelmente partiram para a região sul do Neguev. Goene conhece o território muito bem e tem acesso a esconderijos militares de veículos e suprimentos mantidos no deserto. Eles vão abandonar o helicóptero e tentar uma fuga para o Egito por terra hoje à noite e, depois disso, não terão dificuldade alguma para entrar na França ou na Espanha.

— Porra! — blasfemou Hunter, dando um tapa com força sobre a escrivaninha, seu rosto ruborizado pela persistência. — Não sou eu quem vai deixar aqueles dois calhordas escaparem assim sem mais nem menos! Quero que o senhor me mostre num mapa exatamente onde eles estão, comandante.

— De jeito algum! — objetou Feldman, imediatamente. — Acabou para nós, Breck. Agora está nas mãos dos israelenses.

— Pode ter acabado para você, meu chapa, mas ainda não acabou para mim, não! — Ele cravou um olhar irredutível no parceiro. — Estou trocando as informações do comandante para os israelenses por uma passagem nesse ônibus. Eu vou estar lá quando aqueles filhos da puta forem pegos!

Feldman fitou o cinegrafista bem nos olhos e contraiu a fisionomia. Em todo o tempo que passaram juntos, ele jamais vira Hunter tão irretratavelmente enfurecido! Tão inabalavelmente resoluto! Após um bom período, Feldman soltou um suspiro e se virou para Lazzlo.

— Comandante, ainda deseja que eu o ajude nas negociações para a transferência de poder aqui? — Ele evitou o termo "rendição" de propósito.

— Não confio em mais ninguém.

Feldman virou-se para o resoluto cinegrafista, balançando a cabeça.

— Estou com um mau pressentimento sobre isso, Breck. — E soltou outro suspiro. — Tudo bem, guarde a câmera, vamos partir para o Neguev.

 

                                     Aposentos do Papa, Vaticano, Roma, Itália

                                     16:51, domingo, 23 de abril de 2000

Nicolau VI permanecera em reclusão durante a maior parte do fim de semana. Só viera a público duas vezes. A primeira, para conduzir os serviços da Sexta-Feira da Paixão. A segunda, para presidir a celebração mais importante da cristandade, a missa a céu aberto ao nascer do sol neste Domingo de Páscoa, na Praça de São Pedro. Chovera durante todo serviço e ainda estava chovendo.

Nas três semanas desde o pontifício decreto ex-cathedra, Nicolau fora ficando cada vez mais deprimido diante da crescente discórdia e derramamento de sangue no mundo. A situação o fizera estabelecer uma distância entre ele próprio e sua Cúria e, em particular, com relação a Antonio Di Concerci. Apreensivo e agitado, o pontífice passara horas a sós em seu gabinete, diante de sua TV, obcecado pelos fluxos ininterruptos de perturbadoras notícias oriundas da Terra Santa.

Suas ansiedades haviam começado a se avolumar uma semana antes, com o retorno inesperado de Jeza para Jerusalém. Os paralelos bizarros entre Cristo e o Domingo de Ramos haviam apanhado o pontífice totalmente desprevenido. Bem como a fuga miraculosa da profetisa através do Portão Dourado, cujas implicações messiânicas o pontífice não deixara de perceber! Entretanto, ele se recusara terminantemente a assistir o portentoso sermão proferido por Jeza na Sexta-Feira da Paixão, tendo advertido seus fiéis para que evitassem a mensagem dela por serem "as enganadoras palavras de Satã".

A notícia da morte de Jeza chegara para Nicolau quando ele estava rezando em seus aposentos. Uma madre auxiliar o informara. Nicolau fora imediatamente para o seu aparelho de TV e assistira ao replay contínuo do chocante assassinato. Apesar de suas convicções, ele ficara atônito e perturbado com o crime patético e impiedoso. Por reflexo, começara a fazer uma prece pelo repouso da alma de Jeza, até que lhe ocorrera que isso não era apropriado. Então, resolvera oferecer suas preces para as almas das inúmeras vítimas que caíam pela guerra civil religiosa do Armagedon, agora disseminada por todo o planeta.

Nicolau previra convictamente que o Juízo Final começaria esta manhã. Entretanto, ao voltar desapontado dos serviços matinais da Páscoa, o Papa deparou com as inquietantes revelações da tomografia PET. A mente de Jeza era inalterada! Ele se acalmou com o conhecimento de que, embora talvez esta notícia refutasse o argumento de Di Concerci sobre Jeza ser controlada por mensagens de rádio da FDI, nada dizia que jogasse no descrédito a doutrina de Nicolau de que Jeza era o produto de uma força mais sinistra, sobrenatural. Mas as revelações do dia ainda estavam longe de acabar. Ainda de manhã, mais tarde um pouco, o pontífice foi afastado de seus pensamentos pelo súbito aviso das Fitas da Ressurreição. Ele ficou mais uma vez grudado à tela do seu aparelho de TV; com as mãos firmemente entrelaçadas, enquanto a seqüência da alegada volta de Jeza do mundo dos mortos passava diante de seus olhos. Sua respiração foi aumentando gradativamente e ele começou a transpirar. Como poderia Deus lhe pedir para agüentar mais desses assaltos às suas convicções?

— Não — advertiu a si mesmo em voz alta. — Minha fé está sendo testada! — Ele não sucumbiria! Levantou-se e caminhou, decidido, até a janela, onde, lá fora, o sol já começava a despontar entre as nuvens.

O pontífice estudou o céu durante um prolongado período e, com bastante cuidado, buscou quaisquer sinais de que o Filho de Deus pudesse estar fazendo agora a Sua aparição. Embora ainda não houvesse indicação alguma, havia, sim, mais um raio de sol sobre o horizonte. Na TV; Nicolau ouviu um comunicado de que o cataclisma dos tumultos mundiais estava finalmente retrocedendo. A maioria dos milenaristas parecia estar abrindo uma trégua no meio de sua violência; o tempo suficiente, pelo menos, para reconsiderar suas posições à luz dessas últimas informações ambíguas sobre Jeza.

Por mais que tivesse previsto e se preparado para o Segundo Advento durante as últimas semanas, até mesmo Nicolau teria apreciado um adiamento da execução. Ele soltou um suspiro, sentindo as pontadas de seu confinamento auto-impingido. Estava com vontade de dar mais um passeio pelos Jardins do Vaticano. Sentir o cheiro das flores e o ar purificado pelas primeiras chuvas da primavera.

Proibiu seu encarregado pessoal da Guarda Suíça de acompanhá-lo. Ao sair do palácio, o Papa percebeu que esta era a primeira vez, desde a sua coroação, que caminhava desembaraçadamente em seu reino. Era uma libertação. Seu despreocupado passeio vespertino pelos jardins o conduziu a todos os grandes e adorados tesouros da arte sacra, da arquitetura e da inestimável beleza que dois mil anos de cristandade haviam conferido a ele e à sua Igreja. Deixou-se ficar entre suas posses durante horas, deleitado, sem ser reconhecido por não estar acompanhado do séquito. Com a chegada do crepúsculo, ele começou a refazer o caminho de volta aos seus aposentos.

O céu estava totalmente limpo agora e, antes de se retirar, o pontífice resolveu aproveitar a rara oportunidade para desfrutar de um de seus panoramas favoritos. Não existia vista mais bela de Roma do que a que se tinha do antigo observatório Papal, no alto da Torre dos Ventos, no Vaticano.

Quando entrou no museu, no térreo da edificação, ele foi cumprimentado por diversos clérigos, que foram arrancados de seus estudos e empalideceram com a surpresa de ver seu monarca sem os guardas costumeiros. Não obstante, alegraram-se por ver o pontífice saindo bem disposto outra vez.

Nicolau se cansou com a difícil subida pela íngreme espiral com degraus de pedra que dava no topo da torre. Lá em cima, o Papa deparou com um jovem monge arquivista, que ficou chocado além da conta ao encontrar seu soberano desta maneira.

O frade estava sentado ao chão, reproduzindo num bloco de desenho as inscrições e ilustrações das veneráveis paredes do velho observatório. Impressionado, o monge pôs-se atabalhoadamente de pé e curvou-se o máximo que pôde, ficando com o rosto vermelho.

— Santo Padre, queira me perdoar, eu não fazia idéia de que viria aqui esta noite.

Nicolau colocou as mãos sobre as faces do nervoso frade e delicadamente forçou-o a endireitar-se.

— De forma alguma, meu filho, você não tem com o que se preocupar. Não avisei ninguém sobre esta minha visita. Estava simplesmente passeando pelas proximidades e resolvi subir para dar uma olhadela na minha Cidade Eterna. Vinha sempre aqui quando era um padre jovem a serviço do Papa João XXIII. Por favor, não deixe que eu interrompa o seu trabalho.

— Não, Santidade — contestou o monge. — O que faço não tem conseqüência alguma. Vou sair e deixá-lo em paz.

Nicolau ficou comovido pela deferência do homem e sorriu.

— Diga-me, meu filho, qual é o seu nome?

— Sou... sou Pietri Dominici, Sua Santidade. Sou arquivista do museu, estou aqui documentando as informações deixadas sobre estas paredes há séculos, quando a torre funcionava como observatório astronômico do Vaticano.

Nicolau achou a companhia deste homem despretensioso bastante agradável em comparação com a pompa e a política de sua comitiva.

— Por favor, fique e faça-me companhia durante algum tempo, Pietri. Não vou afastá-lo de seu trabalho durante muito tempo. Diga-me, o que aprendeu com o seu trabalho aqui?

— Bem — Dominici refletiu sobre os seus estudos — como se pode ver nesta parede aqui — e ele apontou para uma inscrição — isto são cálculos sobre o movimento dos astros e dos planetas, que datam de fins do século XVI, eu suspeito. E aqui — ele indicou um desenho bem marcado do sol e sete planetas em órbitas elípticas — há uma ilustração do sistema solar visível aos telescópios primitivos da época.

— Que maravilha! — admirou o pontífice. — E estas figuras de cá? ­ — o Papa gesticulou na direção de uma série de números dispostos em colunas.

— Estas, Santidade, datam de cerca de 1580, e são alguns dos primeiros cálculos em preparação do famoso calendário gregoriano, cujas computações foram desenvolvidas exatamente aqui neste observatório.

— Impressionante! — exclamou Nicolau. — Quem teria acreditado naquela época que, quatrocentos anos depois, esta torre ainda estaria de pé e que o sucessor do Papa Gregório XIII estaria vindo aqui, a fim de olhar para o terceiro milênio!

— Certamente — acrescentou o monge, despreocupadamente — Sua Santidade terá de me visitar novamente no ano que vem para fazer isso.

Nicolau ficou confuso.

— Como assim, meu filho?

— Ora — sorriu Dominici — embora o mundo não comemore desta forma, a verdadeira virada do milênio só ocorrerá no dia 10 de janeiro do ano que vem...

Todas as cores se esvaíram imediatamente do rosto do pontífice.

— O que você disse?! — exclamou.

O monge deu um passo para trás.

— Santidade, por favor, eu não quis ofender! Eu...

— Explique-me o significado disso — gritou o Papa, agarrando o desafortunado frade pela frente de sua túnica marrom.

O trêmulo monge, com os olhos a saltar-lhe das órbitas, estudou a fisionomia do Papa, como a procurar indícios do significado daquela inexplicável atitude.

— S...santo Padre, me perdoe, eu só quis dizer que, em termos do calendário, estamos, neste momento, completando o milésimo ano do milênio anterior. O primeiro ano do terceiro milênio só começa no ano 2001.

A mão do Papa já afrouxara e ele olhava agora através do monge humilhado, deixando a vista passear pelos telhados de sua Cidade Eterna.

— Claro! — sussurrou Nicolau para si mesmo, em choque. — Eu sabia disso! Como pude fechar os olhos para algo tão óbvio?!

O frade continuou com sua explicação, tentando redimir-se.

— Da mesma forma como o número dez completa uma dezena e o número onze é o que inicia a dezena seguinte, e...

Mas Nicolau não estava mais escutando. Quando o significado de tal revelação o arrebatou totalmente, ele soltou o pobre monge assustado, deixou-se cair de encontro à parede e escorregou até o chão, com os olhos vidrados.

Ao ver isso, o frade ficou histérico. Largou o bloco e o lápis no chão e fugiu gritando escadaria abaixo em busca de socorro.

Antes que ele conseguisse chegar, Nicolau já se recuperara o suficiente para empreender uma retirada súbita e desajeitada pela mesma escadaria torre abaixo. Deparou com um fluxo de voluntários ao socorro que subiam, mas estes pararam imediatamente ao vê-lo e abriram passagem, estarrecidos, enquanto o Papa se esgueirava por entre eles. Quase ao pé da escadaria, Nicolau confrontou um punhado de bem-intencionados padres e freiras que, afobados, não sabiam o que fazer em meio à própria confusão. Sequer olhou para eles, gesticulando apenas para que saíssem de sua frente e continuou em sua descida desenfreada.

Nicolau abriu os portões principais do museu com veemência e saiu para a noite. Caminhou sem interrupção até a basílica, com um grupo de desesperados funcionários do Vaticano a segui-lo desordenadamente.

Abrindo caminho com vigor por entre os guardas da catedral, Nicolau adentrou o silencioso santuário, que ainda estava cheio de fiéis nesta noite do Domingo de Páscoa. Todos foram arrebatados de imediato pela inesperada distinção. Exceto pelos que se encontravam diretamente no caminho do atormentado Papa, os demais sofreram um corte abrupto em sua alegria quando perceberam o ar angustiado e tresloucado no rosto do pontífice.

Os fiéis foram se retirando do caminho, intrigados, sem acreditar no que viam, para que ele passasse atabalhoadamente. Sem dar atenção ao distúrbio que deixava na esteira de seus passos, Nicolau se aproximou do vão de acesso às catacumbas, onde ficava o túmulo de Pedro. Ele parou de encontro ao gradil, ainda cambaleando devido ao esforço físico e às emoções. Ofegante, com os braços trêmulos estendidos ao longo do corpo, ele fitou as profundezas silenciosas, chamando com uma voz retumbante que sacudiu toda a basílica.

— Por quê? Por quê? Por quê? Por quê?

Nicolau esperou por uma resposta, mas não houve resposta alguma. Ele se debruçou com ambas as mãos apoiadas ao gradil, respirando rapidamente agora. Mudando então o foco de seus olhos para o altar-mor e, numa voz um pouco mais submissa, mais branda, gemeu:

— Já houve Papas piores! Já houve Papas menos sinceros, menos conscienciosos, menos fiéis. Por quê? Onde foi que eu falhei? Onde fiz por merecer Seu desagrado?

Continuou sem resposta.

Frustrado, ele bradou mais uma vez para o interior das catacumbas:

— Simão Pedro! — E as palavras ecoaram infinitamente. — Escute­-me, Pedro. Não quero mais isto. — E depois, numa voz apaixonada de resignação: — Não quero mais isto!

Assim dizendo, Nicolau arrancou do dedo o anel papal e segurou-o bem alto, onde a luz das velas do altar o atingiu com lampejos dourados.

— Eu devolvo tudo isto a você, Pedro — gritou ele. — O fardo, a agonia e o mistério, eu devolvo isto tudo a você! — Ele parou por um instante e, em seguida, atirou o anel para o interior escuro das catacumbas, onde o objeto desapareceu, tilintando a cada batida das várias etapas de sua queda.

Os estupefatos presentes haviam se acercado e testemunharam, por menos que pudessem entender, o acesso inédito. Nicolau, transpirando em profusão, deu súbita meia-volta, que, pegando-os de surpresa, mais que depressa os afastou. Sem se importar com eles, o atribulado Papa cruzou a nave principal da catedral e saiu pelos portões afora, caminhando outra vez pela Praça de São Pedro.

A população do Vaticano já formara um considerável ajuntamento ali. Em pouco tempo, a notícia da crise se espalhara por toda a cidade, Nicolau percorreu a etapa final para chegar aos seus aposentos arduamente, por um corredor de chocados, embaraçados, mas irresistivelmente curiosos, espectadores. Foi tudo o que a desesperada Guarda Suíça pôde fazer para abrir o caminho para ele.

Enquanto as sirenes das ambulâncias se aproximavam, Nicolau, suado e pálido, entrava em seu apartamento e chegava aos seus aposentos, imediatamente colocando em pânico abjeto as suas madres auxiliares. Entrando afinal na santidade de sua biblioteca, ele trancou a porta e cambaleou até sua escrivaninha. Deixando-se cair pesadamente em sua poltrona, ele recostou a cabeça entre os livros e papéis, fechando olhos e ouvidos para as batidas incessantes à sua porta.

Sem nunca terem sido obrigadas a lidar com uma emergência como esta, as desoladas madres auxiliares levaram dez minutos para encontrar uma chave que abrisse os aposentos do Papa. Vários ansiosos cardeais e o médico Papal residente, com um guardanapo ainda preso ao pescoço, sinal de seu jantar interrompido, foram abrindo, lenta e cuidadosamente, as pesadas portas de madeira.

— Papa! — arriscou-se temerosamente um dos cardeais, olhando ao redor, sem conseguir localizar o pontífice de imediato.

Nicolau sequer ergueu a cabeça.

— Saiam e tranquem a porta. É uma ordem.

Os cardeais se entreolharam e depois buscaram alguma pista no médico, que lhes lançou com um olhar pouco à vontade, também curioso, e limpou a garganta:

— Santo Padre — falou — estamos apreensivos com a sua saúde. Sua Santidade não nos parece o mesmo.

Nicolau levantou-se de um pulo.

— Eu não sou eu mesmo! — gritou ele, contraindo e descontraindo os punhos sobre a mesa à sua frente, com o rosto totalmente contorcido. Em seguida, assoberbado, deixando a cabeça pender com pesar, ele soltou um gemido atormentado: — O meu eu agora se perde para os tempos. Estou reduzido a uma metáfora, um... um Caifas!

Assomando-lhe novamente a fúria, ele gritou:

— Saiam daqui.

Houve uma barafunda de passadas e a porta se fechou com um rangido.

Nicolau enterrou o rosto nas mãos.

— Meu Deus! Meu Deus! — lamentou-se diversas vezes. Seu telefone tocou e, com uma braçada, ele o arremessou ao chão, enviando junto um punhado de papéis de cima da mesa.

Seus olhos estavam febris, seu rosto ruborizado e úmido. Tremendo muito, suas mãos buscaram na cintura a algibeira. Encontrando a grande chave dourada, ele a enfiou na fechadura de sua escrivaninha, errando o alvo diversas vezes antes de, afinal, conseguir. Os êmbolos correram, a porta do cofre se abriu, e Nicolau agarrou a pasta de couro desbotado de seu jazigo escuro e colocou-a sobre a mesa. Desfez os laços da capa e abriu-a, revelando seu conteúdo familiar de pergaminhos descoloridos.

Mais deliberadamente agora, ele pôs de lado as folhas de cima com gestos deselegantes da mão até que chegou à página que procurava. Pedindo que um milagre o atingisse, com um trêmulo dedo indicador ele seguiu as passagens manuscritas até as linhas:

 

“... aqueles que conhecerem a verdade, pela pureza de seus corações também conhecerão o mensageiro. Mas a desgraça recairá sobre os de corações endurecidos, os que não conseguem ver nem ouvir. Aqueles que mantêm a cabeça erguida na arrogância hão de tropeçar sobre aquilo que jaz conspicuamente à sua frente”.

 

                 E...

 

“... Mas a vingar a primeira profecia, ela se cumprirá antes da virada do milênio; e a vingar a segunda profecia, ela se cumprirá daí por diante”.

 

Desastrosamente, Nicolau aceitara sem questionar a convocação feita pelo Papa João Paulo II de "um Ano do Jubileu sagrado, a ter início na virada do novo milênio, no dia 1° de janeiro do ano 2000". Nicolau deixara passar o agora conspícuo fato de que o ano 2000 (e não 1999) era, na verdade, o último ano do milênio antigo.

A despeito de como o mundo pudesse celebrar este advento, o novo milênio, na verdade, ainda não havia chegado, um ponto que mesmo Nicolau, por mais isolado que pudesse ter estado em sua torre eclesiástica de marfim, certamente havia sido avisado. Ainda assim, de algum modo, fatidicamente, ele havia suprimido este conhecimento. As passagens obscuras da carta secreta reafirmaram as terríveis convicções do Papa. Fora a primeira profecia que se cumprira: Jeza era a Messias.

Os lábios de Nicolau se contorceram num sorriso grotesco de descrença e dor traída. Ele começou a rir, com lágrimas escorrendo-lhe dos olhos. Deixando a página amarelecida onde estava, ele afastou a poltrona e se levantou, cambaleante. A chave do cofre, ainda na fechadura, desprendeu­-se da algibeira do pontífice, mas Nicolau estava impávido.

— Meu Deus! Meu Deus! — repetia o pontífice ao passar da biblioteca para o quarto, e aqueles que mantinham seus ouvidos colados à sua porta pularam de medo.

Deixando-se cair na cama, Nicolau sentiu a pressão de seu sangue aumentando dentro das veias. Girou sobre as costas e tentou acalmar-se, mas o barulho da porta de seus aposentos se fechando o alertou para a indesejada presença de alguém.

— Você! — o Papa se virou e deparou com a figura sombria de Antonio Di Concerci movendo-se furtiva e silenciosamente em sua direção. Nicolau se ergueu sobre um cotovelo, o esforço e a raiva aparecendo qual fogo em seu rosto. — Que conselho você me traz agora, cardeal conselheiro? — gritou ele. — Está aqui novamente para me informar sobre mais algumas de suas errôneas concepções e os seus esquemas?

A meio caminho da beira da cama do Papa, Di Concerci diminuiu o passo e parou. Franzindo as sobrancelhas, ele levou a mão ao queixo e ficou calado.

— A verdade está ali! — Nicolau apontou para sua escrivaninha com a mão tremendo bastante. — Eu não quis ver. Deixei minha visão se turvar pelo poder e o orgulho, pela teimosia e o medo!

Os olhos do prefeito seguiram a direção do dedo do pontífice, até onde estavam as páginas amarelecidas.

— O que faço agora, meu cardeal prefeito? — A voz ansiosa do Papa ficou ainda mais alta e estridente. — Para onde vou com minha alma agora? Você vai compartilhar comigo o meu fracasso e a minha vergonha? Você vai ficar ao meu lado agora diante do trono do Senhor? — Nicolau contraiu os dedos trêmulos formando um punho rígido e bradou em ira desesperada: — Você vai me defender diante de Deus pelo assassinato de Sua única Filha gerada?

O Papa, com estas últimas palavras, foi tomado por uma dor pungente. Enrijeceu-se e inclinou-se para trás, sobre a cama, com as mãos sacolejando convulsivamente ao longo do corpo, os olhos revirando para cima dentro das órbitas. Ficou ali tremendo, só, num tormento incontrolável. Em seguida, num gargarejo prolongado, lento e doloroso, ele deu seu último alento.

Durante tudo isto, o prefeito ficara imóvel, com rugas profundas se pronunciando ainda mais em sua testa. Devagar, afastou-se do quarto de dormir, chegando silenciosamente até a escrivaninha do Papa. Pegando nas mãos a carta, ele a leu atenciosamente, parando somente uma vez para fitar a forma imóvel sobre a cama.

Ao terminar, o cardeal-prefeito Antonio Di Concerci recolheu todos os pergaminhos, colocou-os cuidadosamente dentro de sua batina e aproximou-se do Papa para tomar-lhe o pulso.        .

Não tendo sentido pulsações, ele recuou, parou, depois saiu dos aposentos para ir buscar o médico papal.

 

                                   Em algum lugar sobre o sul do deserto do Neguev

                                  18:34, domingo, 23 de abril de 2000

A mil pés de altura, sobre o deserto, em um dos seis helicópteros israelenses de reconhecimento noturno, Feldman, Hunter, um piloto, um co-piloto e dois policiais militares passavam a toda sobre o depósito de suprimentos que o comandante Lazzlo identificara mais cedo para eles.

O plano de Feldman funcionara perfeitamente. O governo de Ben­-Miriam tinha várias questões delicadas para resolver rapidamente, e Jon Feldman tinha a chave de duas delas. Ele poderia propiciar uma rendição rápida e pacífica do Hadassah, bem como revelar o paradeiro dos dois mais procurados de Israel: Goene e Tamin.

E tudo que Feldman exigira em troca fora:

Primeiro, clemência absoluta para o comandante David Lazzlo e suas tropas leais. Eles tinham, afinal, prestado um grande serviço a Israel. Ao desafiar Goene, eles haviam defendido o corpo da Messias e apresentado para o mundo as verdades sagradas que impediram o Armagedon. Além disso, argumentara Feldman, se o governo aceitasse a premissa de que Jeza voltara ao mundo dos vivos, quaisquer acusações pendentes de assassinato teriam mesmo de ser abandonadas.

E segundo, cedendo às exigências de Hunter, Feldman insistira para que ele e o cinegrafista tivessem permissão para acompanhar a equipe de busca israelense, a fim de registrar a captura de Goene e Tamin, admitindo-se que ainda não fosse tarde demais. As negociações, interminavelmente lentas, haviam custado horas preciosas a Feldman.

Assim que a aeronave dos repórteres ultrapassou um pequeno amontoado de picos, o piloto sinalizou que estavam chegando ao depósito que Lazzlo visara como um dos prováveis esconderijos dos dois fugitivos. Pela janela frontal do helicóptero, à luz fraca do crepúsculo, era impossível ver muita coisa. Mas o cenário estava eminentemente visível na tela esverdeada do rastreador noturno dentro da cabine.

Parecia que as suspeitas de Lazzlo estavam corretas. Feldman conseguiu distinguir facilmente o contorno de um único helicóptero israelense pousado em frente do que poderia ser uma grande formação rochosa com uma porta de acesso.

— Ali! — O co-piloto identificou a aeronave, batendo com o dedo indicador sobre a tela.

Mas logo ficou claro que eles haviam chegado tarde demais. Uma rápida inspeção no solo indicou que o depósito fora desativado e havia marcas das rodas de um caminhão saindo em direção ao sudeste, a área menos guardada da fronteira egípcia. Também em conformidade com as deduções de Lazzlo.

— Deveremos interceptá-los em breve — prometeu o piloto, alçando vôo novamente.

A projeção provou-se otimista. Uma hora mais tarde, tendo as marcas desaparecido sobre terreno rochoso, o esquadrão se dividiu, na esperança de conseguir detectar o calor das emissões feitas pelo cano de descarga do veículo através dos sensores de infravermelho. Mas não encontraram nada, além de comboios de milenaristas a caminho do novo santuário sagrado da Ressurreição de Jeza.

— Não há como eles terem já chegado à fronteira — informou o piloto aos seus passageiros. — Vou dar meia-volta e verificar aquele acampamento beduíno que passamos alguns quilômetros atrás. Talvez eles tenham visto alguma coisa.

Poucos minutos depois, o grupo de captura atravessou uma elevação e chegou a um campo espraiado.

— Provavelmente uns cento e cinqüenta ou duzentos, ao todo — ­estimou o piloto, avaliando pelo tamanho das grandes tendas, semelhantes às de circo, usadas pelos beduínos. — Vamos ficar um pouco afastados para não perturbar os seus rebanhos.

Eles pousaram sobre um morro achatado, cerca de vinte metros a favor do vento, o helicóptero levantando uma densa nuvem de poeira. Quando a velocidade das hélices diminuiu e a poeira baixou, um grupo de aproximadamente quarenta homens carrancudos, portando rifles, foi se materializando devagar no meio da escuridão, pouco além do raio de alcance direto do rotor. Um dos milicianos israelenses saiu por baixo do helicóptero, aproximou-se dos nômades com os braços erguidos, conversou durante alguns instantes e voltou em passo acelerado.

— Senhor — disse ele ao oficial encarregado — eles estão aqui. Os beduínos os pegaram há cerca de uma hora. Reconheceram os dois pelos noticiários da televisão. Dizem que Jeza certa vez passou algum tempo com o clã e que eles ficaram profundamente desgostosos com o que aconteceu com sua Messias. Estão querendo tirar a pele de Goene e Tamin vivos.

O sargento crispou os dentes.

— Não vão, não! Chame os outros helicópteros. Quero dois destacamentos de ataque padrão atrás daquela duna lá — ele começou a dar ordens, mas Feldman ofereceu uma alternativa.

— Sargento, se eles assistem TV; talvez me reconheçam também. E saibam que eu era amigo de Jeza. Talvez eu consiga me entender com eles.

Hunter acertou uma forte cotovelada sobre as costelas machucadas de Feldman e sussurrou:

— Não! Deixe que eles destrocem os salafrários. — Ele estava falando absolutamente sério.

Feldman ignorou o parceiro e o sargento aquiesceu.

De fato, Feldman foi recebido imediatamente com grande cerimônia e fanfarra. Os nômades se ajoelharam diante dele e tocaram a bainha de sua calça, chamando-o de "Apoutü", ou "Apóstolo", conforme ele foi logo informado pelo militar que estava servindo de tradutor. Feldman sentiu-se muito pouco à vontade com isso, particularmente com Hunter registrando o episódio.

Ele ficou sabendo que esta tribo de beduínos também estava bastante familiarizada com o "Apoutü" Litti, que falara de Feldman com freqüência e apreço. O líder tribal mostrou-se ansioso por acomodar o famoso repórter, oferecendo-lhe inúmeras cabras e camelos para sua escolha.

Municiado com um elemento de troca agora, além do seu prestígio, Feldman conseguiu barganhar as cabras e os camelos recebidos, pelas pessoas de Goene e Tamin. Os dois foram entregues com mãos e pés amarrados, além de mordaças.

Enquanto tudo isso transcorria, Feldman, que mantivera o olho atento em Hunter, percebeu quando o homenzarrão começou a se esgueirar furtivamente na direção do par de prisioneiros. Colocando-se prontamente no meio do caminho para impedi-lo, Feldman agarrou o ombro do cinegrafista.

— Não, Breck! — advertiu ele. — Você sabe que eu não posso deixá-lo fazer isso.

Hunter fitou o amigo como se o estivesse vendo pela primeira vez. Feldman conseguiu detectar a batalha que se travava dentro do parceiro e durante algum tempo não conseguiu ter a certeza do desfecho. Mas depois de um bom tempo, Hunter pestanejou. Feldman olhou firme em seus olhos.

— Você vai se vingar com a câmera, Breck, e não com os punhos. Jura?

Hunter hesitou, virou o rosto para o lado e fez uma careta para o chão. Afinal, assentiu.

Foi só então que Feldman saiu da frente. Hunter se aproximou com a câmera e captou todos os humilhantes detalhes quando o ex-ministro da FDI e seu general, ambos vestidos agora com roupas civis, foram depositados, sem cerimônia, no chão de terra aos seus pés.

Concentrando-se firmemente no rosto avermelhado e ebuliente de Goene, Hunter documentou cuidadosamente a captura.

— Que bom cruzar minha pena com sua espada outra vez, general! — ­regozijou-se ele, com ódio fumegante. — Seus canalhas safados, vocês vão dar um ótimo espetáculo no noticiário de amanhã, rolando ali no esterco dos camelos!

No instante em que sua mordaça foi retirada, Goene se colocou sentado com as costas eretas e apelou desesperadamente para seus antigos subordinados israelenses:

— Eles têm os microchips! Isto é uma conspiração. Soltem-nos, ainda não é tarde demais para recuperarmos os chips! A tecnologia pertence a Israel!

Hunter endireitou a postura, balançando a cabeça e olhando de relance por cima do ombro para Feldman.

— Idiota até o fim! — observou. — Ao se voltar para o general desafiador, Hunter estava com a raiva à flor da pele. — Quando é que você vai enfiar nessa merda densa que existe dentro do seu crânio que não existe chip nenhum? Você mandou que a matassem por nada, seu calhorda! E de que porra aqueles microchips iriam lhe servir agora, hein? Seus canalhas, vocês vão passar o resto de suas vidas miseráveis transformando pedras grandes em pedras pequenas!

Tamin, com o rosto tão pálido quanto a lua cheia na noite alta do deserto, não tinha o que dizer. Os dois prisioneiros foram desamarrados, imediatamente algemados e, em seguida, conduzidos para o helicóptero que os levaria dali.

Feldman voltou os olhos cansados e aliviados para o parceiro.

— Está se sentindo um pouco melhor agora? — perguntou, saboreando o seu próprio sorriso de satisfação.

Hunter não retribuiu o sorriso.

— Eu só quero uns minutinhos de "treinamento de sensibilidade” pessoal com esses filhos da puta; aí eu vou me sentir melhor!

Feldman e Hunter obtiveram permissão para fazerem o vôo de volta no mesmo helicóptero em que foram os prisioneiros, que ficaram algemados às alças internas da fuselagem. Dois milicianos israelenses os acompanharam, juntamente com o piloto e o co-piloto.

Os beduínos gritaram e ergueram bem alto os rifles num gesto de vitória, enquanto, um a um, os helicópteros foram alçando vôo pelo céu estrelado do deserto. Feldman viu os celebrantes ficando rapidamente para trás e já estava se acomodando em seu assento quando se assustou com um grito do guarda que estava mais perto dele. Ao virar-se, uma arma de fogo disparou e o soldado tombou, com uma mancha vermelha se alargando perto da cartucheira vazia.

Quase no mesmo instante, o segundo guarda foi jogado para trás de encontro à parede interna do aparelho por um tiro desferido contra o seu peito e caiu ao lado do colega inerte. Goene, com o revólver fumegante numa das mãos, algema desbaratada pendendo da outra, confrontou os dois repórteres desarmados.

— Produção padrão israelense — escarneceu Goene, jogando fora as algemas. Quando o co-piloto tateou num gesto frenético por sua arma no coldre lateral, Goene friamente desferiu mais um tiro. A desafortunada vítima se inclinou para a frente e desfaleceu. O piloto imediatamente deu a volta no helicóptero, enquanto soltava um chamado de alerta no microfone de seu capacete.

— Fique quieto ou eu lhe dou um tiro aí mesmo onde você está sentado — gritou Goene para o piloto, que imediatamente obedeceu.

Tamin, ainda algemado à estrutura metálica, só pôde observar com olhos arregalados e horror crescente.

Em presunçosa vingança, Goene voltou-se para Feldman.

— Agora você! — grunhiu ele, gesticulando com a arma para que o repórter se pusesse de pé.

Hunter foi saindo de seu assento, mas Goene interrompeu-lhe o movimento, agarrando Feldman pelo braço e encostando a arma contra o pescoço do repórter. O veterano de guerra era durão e manteve o braço machucado do repórter bem apertado em sua mão. Sem afastar a arma um instante sequer e monitorando o frenesi de Hunter, Goene puxou Feldman com rudeza até a porta dos fundos da cabine, largando-o apenas o tempo necessário para destravar o fecho e girar a alavanca.

— Pelo amor de Deus, Goene! — implorou Hunter. — Ele acabou de salvar a sua vida ali atrás. Aqueles nômades iam fazer picadinho de vocês!

A resposta de Goene foi engatilhar o revólver. Afastando-se de Feldman um passo, o general colocou o cano da arma entre os olhos do repórter com um olhar triunfal.

— Você aprontou demais contra mim, seu emergentezinho arrogante! — disse ele entre os dentes. — Mas agora eu vou fechar a sua boca de uma vez por todas. Sem últimas preces por você, eu tenho a última palavra!

Tangido por um sentimento de incendiária vingança, o general deu um pontapé na porta, que se abriu, e Feldman, desequilibrado pela violenta sucção, agarrou-se com a mão sã a uma das alças da fuselagem, escorando-­se contra a força da torrente de ar. O vento girou-o e ele ficou cara a cara com o chão do deserto, a mil pés de altura.

— Agora — declarou Goene em tom definitivo de vitória — vou mandá-lo para junto da sua falsa Messias... no inferno!

Com a velocidade do bote de uma serpente, o general desferiu um violento murro com a coronha do revólver contra a têmpora de Feldman. Instantaneamente, Hunter partiu para cima de Goene, embora tarde demais. O soldado girou e acertou a planta do pé contra o estômago de Feldman, que, já semiconsciente, foi arremessado pela porta para fora da aeronave e voou pelos ares.

 

                                Em algum lugar sobre o sul do deserto do Neguev

                                 21:44, domingo, 23 de abril de 2000

Berrando em ira selvagem diante da perda do amigo, Hunter liberou toda a fúria de seu ódio, jogando violentamente contra a fuselagem o corpo parrudo do general, que, com isso, soltou o revólver.

Mas o soldado com vasta experiência de guerra demonstrou grande resistência. Recobrando-se rapidamente, ele partiu para o ataque a Hunter com uma seqüência de golpes marciais. Enquanto se digladiavam, debatendo-se pela cabine, a maior apreensão de Hunter era a de evitar que Goene recuperasse a arma. O revólver ficou longe, deslizando e batendo de um lado para o outro, imprevisivelmente, escapando por pouco às mãos de Hunter, várias vezes, enquanto o piloto embicava desesperadamente o helicóptero para chegar logo ao solo.

Shaul Tamin, ansioso, com um braço ainda algemado à fuselagem, esticava o pé tentando alcançar a arma cada vez que ela passava por perto. Não conseguindo, ele concentrava suas atenções em Hunter, atingindo-o com um chute sempre que possível.

Mas, lentamente, a força e a resistência superiores do ex-beque foram ganhando o controle. Ele enfim atingiu Goene com um cruzado violento. Quando o general foi ao chão, Hunter pulou imediatamente para pegar a arma. No exato momento em que seus dedos estavam se fechando em torno da coronha, a aeronave pousou com um solavanco que jogou o revólver justamente nas mãos de Goene.

Hunter se encolheu diante da saraivada de tiros desferidos dentro da cabine. Foram necessários vários momentos até que ele se desse conta de que tinha saído ileso. Abrindo os olhos intrigados, ele avistou a forma lívida de Goene desfalecido, com o rosto voltado para cima, mortalmente ferido, e o sangue a jorrar de três furos em seu peito. Na dianteira do helicóptero, com o rosto empalidecido, o piloto, estupefato e suado, segurava uma pistola fumegante. Tamin, desesperado, soltou um grunhido.

Cuidadosamente, Hunter se aproximou do corpo inerte. Colocou uma bota sobre o braço caído do general, inclinou—se e pegou a arma. Goene, teimoso até o último instante, tentava se apegar à vida, mas esta o deixava. Sua boca se escancarou de choque e sua respiração veio em arfadas curtas quando ele se concentrou no enorme cinegrafista que se aproximava.

Hunter, ofegante de cansaço, fitou com desprezo o odioso adversário. Ele estreitou o olhar, buscando sinais de remorso no rosto implacável e atroz. Não havia. Pelo contrário, os lábios de Goene começaram a se curvar naquele detestável, vil e desprezível sorriso de escárnio.

Todas as emoções mais puras de dor e amargura que Hunter tinha sofrido nas mãos daquele homem hediondo sobrevieram-lhe de chofre. Ele ergueu a arma e seu dedo envolveu o gatilho. Mas ao fitar com ódio primal os olhos maliciosos do inimigo, Hunter parou de súbito, entontecido por uma visão absolutamente extraordinária. Bem ali, no rosto daquela criatura abominável, surgiu a inconfundível imagem de um menino solitário e assustado, vítima de abusos.

Hunter arfou e a arma escapuliu de seus dedos. Enquanto o piloto e Tamin olhavam atônitos, sem poder acreditar no que viam, o homenzarrão deixou-se cair de joelhos. Ele parou, com as mãos trêmulas, e então, cuidadosa e carinhosamente, pegou Goene nos braços e ficou ali embalando­-lhe a cabeça entre os braços, acariciando-lhe a têmpora, confortando e consolando o soldado moribundo em sua última batalha.

 

                           Em algum lugar sobre o sul do deserto do Neguev

                           21:44, domingo, 23 de abril de 2000

Feldman estava caindo. Flutuando no ar, de costas, no frescor da noite, sob o céu do deserto. Seus olhos estavam fechados e não havia ruído algum, salvo o silvo constante do ar e um coro de anjos à distância.

Exercendo um grande esforço, ele abriu os olhos e avistou o céu purpúreo lá em cima. Olhando para ele, a lua alçava-se plena e pálida. De sua face tremeluzente, surgiu a sombra crescente de uma forma celestial, caindo mais rápido do que ele, correndo em sua direção num túnel de luz branca.

Era Jeza. Jeza diferente de todas as formas que ele já vira! Ainda mais divina, se possível, do que antes. Transformada. Transfigurada. Sua pele brilhava qual ouro polido. Sua túnica deixava esteiras de línguas chamejantes. Seus cabelos, negros como a fumaça do breu, esvoaçavam livremente, graciosos qual plumas infinitas!

Ela ultrapassou sua queda, deixando-se ficar acima logo em seguida, deslizando, flutuando, manobrando perto dele. Estava a poucos centímetros de distância agora, fitando-lhe as profundezas da alma outra vez.

Muito lentamente, um sorriso começou a se formar em suas requintadas feições. Suave e doce. Farto. Divino. Fitando-a em fascínio arrebatador, Feldman foi mais uma vez arrastado para aquela clareza exigente, honesta, safírica.

Para um lugar onde reside a origem de todos os mistérios! Para um lugar onde seus conflitos e confusões amorfos não mais o iludiriam! Ele agora compreendia as emoções intensas, perturbadoras, profundamente tocantes que sentia com relação a este ser incrível. Aqueles turbilhões desconhecidos, inexplorados, que Ela havia despertado nele!

Vinham da alma. O amor sobrenatural do homem pelo deífico! Aquele desejo eterno, irresistível e inevitável de se unir ao seu pai supremo! Um desejo sagrado de unidade espiritual!

E, claramente agora, ele compreendeu que a grande afeição que sentia por Anke vinha do coração. O amor natural do homem por sua própria espécie! Uma compulsão humana pela unidade emocional e física!

A equação equilibrada!

Suas paixões não estavam mais entrelaçadas e caóticas. Afinal, ele estava em paz consigo mesmo.

Baixinho, a Messias sussurrou:

— Mors vita est. — A morte é vida. E

E ele percebeu que ela estava repetindo suas últimas palavras.

As dele também!

Ele não sentiu medo. Havia compreendido o sentido mais profundo das palavras dela: para liberar o potencial maior da vida, você precisa, primeiro, superar o restritivo medo da morte. Uma conscientização que fez uma brilhante onda de energia cruzar sua mente! Uma Nova Luz que iluminou o caminho dele!

Embora Feldman conseguisse aceitar o seu destino, ainda havia um grande ressentimento que levaria consigo. Se ao menos pudesse ter visto Anke mais uma vez! Para contar-lhe o que agora sabia! Para abraçá-la uma última vez antes de soltá-la para sempre!

Ele percebeu o solo aproximando-se rapidamente. Fechou os olhos, aguardando, mas não houve impacto. Apenas o silvo ritmado e contínuo do ar passando. Cuidadosamente, arriscou uma olhadela.

Feldman se viu deitado numa cama de hospital. Num quarto particular, tranqüilo, absolutamente abarrotado de cestas de flores, buquês e cartões de melhoras! Ao pé de sua cama, encarapitado sobre uma cadeira, dormia Hunter, a fonte do silvo.

Lá fora, o sol nascia, ou se punha, Feldman não pôde dizer ao certo. A um canto elevado do outro lado do quarto, uma reportagem da RMN era transmitida sem volume pela tela de um televisor suspenso no teto.

Feldman sentiu-se desorientado e, ao mesmo tempo, impressionantemente lúcido. Tentando sentar-se, ele se surpreendeu ao deparar com um braço engessado e o peito e um tornozelo pesadamente enfaixados. Entretanto, para sua surpresa, não sentia muitas dores.

Ele tateou até encontrar o controle da cama e apertou um botão para subir a cabeça e os ombros até uma posição mais vertical. Pestanejando, Feldman teve curiosidade de saber o que estava fazendo ali. Ou, mais especificamente, por que ainda estava vivo. É mais um milagre, pensou consigo mesmo. Jeza voou até lá e Ela me salvou!

Sentindo sede, ele sussurrou com a voz fraca e instável, hesitando um pouco em perturbar o sono do amigo:

— Ei, Breck? Será que eu posso tomar um pouco de água?

Hunter roncou e abriu os olhos com uma expressão conturbada, indistinta.

— Hein? Ahn, claro, cara, espere aí. — Seus olhos se arregalaram de repente, o queixo caiu e o rosto se alegrou. — Jon, meu Deus, você voltou!

Feldman sorriu e o cinegrafista o envolveu com seus braços compridos e fortes. Doeu.

Parecendo perceber isso, Hunter conseguiu se controlar melhor.

— Graças a Deus! — gritou ele. — Nós não sabíamos se você voltaria a acordar! Que incrível! Incrível, mesmo! Eu tenho de ir chamar o resto do pessoal.

— Breck, espere — impediu-o Feldman. — Primeiro você tem de me contar o que aconteceu.

Hunter se conteve e, com o rosto ruborizado e os olhos úmidos de emoção, serviu um copo trêmulo de água para Feldman.

— Ah, claro! Mas é claro! Conto, sim. Você se lembra de alguma coisa?

— A última coisa de que me lembro é de Goene me acertando o rosto e me jogando para fora do helicóptero com um pontapé no estômago. E então eu tive uma visão de Jeza vindo se despedir de mim.

— Um tanto prematuramente! — sorriu Hunter.

— Então, como foi que eu não morri?

Hunter balançou a cabeça.

— Jon, você caiu direto em cima de uma das tendas dos beduínos. Ela amorteceu a sua queda, como se fosse um airbag gigante. Aparou a sua queda e salvou a sua vida. Você quebrou alguns ossos e sofreu um traumatismo craniano... da porrada de Goene ou da queda, ou de ambas. Enfim, esteve inconsciente. Ninguém sabia dizer se você sairia dessa. Sabe, o mundo inteiro está aí fora da janela, rezando por você.

Hunter caminhou até as cortinas e afastou-as ligeiro. O sol ia um pouco mais alto agora, de forma que já amanhecera. Apesar da hora, toda a paisagem ao fundo estava preenchida por gente. Muitos dormiam sobre colchões ou sacos de dormir, a céu aberto ou em barracas. Mas outros tantos estavam acordados, mantendo vigília silenciosa com velas acesas na escuridão esvanecente. Reagiram com excitação à breve aparição de Hunter na janela. Do outro lado do quarto, o televisor silencioso exibia um vídeo de milhares de milenaristas fazendo as malas e indo embora de Jerusalém. Uma filmagem mais ampla mostrou fluxos constantes que se fundiam a vastas caravanas, que serpenteavam pelas estradas da Cidade Sagrada afora. Soldados israelenses sorriam para as câmeras enquanto dirigiam o tráfego. Nas redondezas, grupos de mulheres árabes comemoravam aos risos, acenando com seus véus erguidos por cima de suas cabeças em sinal de liberação. Uma manchete projetada na tela dizia: "Terra Santa Volta à Normalidade.”

— Quanto tempo eu fiquei inconsciente? — perguntou Feldman.

— Cinco dias — informou Hunter.

Na TV, uma cena de comemoração na Times Square mais parecia a vitória dos Yankees no Campeonato Mundial de Basquete. Uma enorme fogueira crepitava no meio da multidão. Embaixo de uma placa com a sigla ''ARA", brigadas de pessoas carregando baldes alimentavam as chamas com rifles e pistolas descarregados, facas e armamentos variados. Uma flâmula bem no alto da tela dizia: "A Associação dos Rifles da América Muda de Nome para Associação de Rechaço às Armas.”

— Cinco dias? — Feldman ficou impressionado.

— É, a gente vem se revezando aqui ao seu lado.

— A gente?

— Eu, Cissy, Alphonse e Anke. Eu hoje fiquei com o plantão da manhã.

— Anke? Anke esteve aqui? — Toda dor que Feldman sentira desapareceu.

— Ela ainda está aqui — explicou Hunter. — Está aqui desde as três da manhã de segunda. Veio assim que ficou sabendo do acontecido. Ela e Cissy estão num quarto no final do corredor agora, dormindo. Estão exaustas.

— Eu preciso vê-la — insistiu Feldman. — Assim que ela acordar, está bem? É muito importante.

— Não tem problema, cara. Ela certamente vai querer ver você. Mas que tal eu ir chamar o médico agora?

— Espere um instante — interrompeu-o Feldman. — Primeiro me diga o que aconteceu com Goene e Tamin.

Hunter soltou um suspiro e tornou a se sentar em sua cadeira, balançando a cabeça sobriamente, olhando para o infinito.

— Tamin está numa prisão israelense, aguardando julgamento. Goene está morto.

Percebendo a expressão incomumente sombria de Hunter, Feldman assentiu lentamente, com um aperto na garganta. Ele arriscou a pergunta:

— E como foi que ele morreu?

— O piloto atirou nele. Salvou a minha vida...

Aliviado, Feldman dispôs-se a averiguar o assunto mais a fundo, porém percebeu a expressão estranha e conturbada no rosto de Hunter e achou melhor mudar de idéia.

A TV estava transmitindo uma entrevista feita por um correspondente de notícias com um padre em frente a um furgão em movimento. Na tela, apareceu a manchete: "Mais Igrejas Fecham." O vídeo sofreu um corte para mostrar, em seguida, pessoas fechando caixas na sacristia e retirando a mobília. O segmento terminou com o pároco trancando a porta da frente da igreja.

Nesse momento, Alphonse Litti, entrando no quarto para substituir Hunter, teve uma alegre surpresa. Ficou muito feliz, agarrando Feldman e abraçando-o repetidas vezes, animadíssimo.

— Graças a Deus, Jon! Você nos foi trazido de volta, conforme Jeza prometeu!

— Jeza? — Feldman retribuiu os abraços da melhor maneira que seus braços incapacitados permitiram. — Você A viu?

— Vi, sim. — Litti estava exultante. — Ela me disse ontem de manhã...

Feldman prendeu a respiração.

— ... Em meus sonhos! — acrescentou Litti.

Feldman soltou o ar. Mas transformou a decepção em sorriso.

Na TV, Feldman ficou surpreso ao ver um clipe de Hunter e Litti apertando as mãos do primeiro-ministro Eziah Bem-Miriam, acompanhados do rabino Lubavitcher, Mordachai Hirschberg, do comandante Lazzlo, em trajes civis, e de Cissy McFarland, com um aspecto hesitante. Uma legenda dizia: "Israel Promete Verbas para Centro Internacional de Estudos de Jeza em Jerusalém.”

De olhos arregalados, Feldman apontou para a tela.

— O que é isso, gente?

Litti e Hunter se juntaram e reagiram com sorrisos de orgulho.

— É isso mesmo, Jon — respondeu Litti. — Breck, o rabino Hirschberg, o ex­-comandante Lazzlo, a srta. Cissy, todos nós resolvemos trabalhar juntos para divulgar a mensagem do Novo Caminho. Para proclamar as palavras de Jeza! A verdade d'Ela!

Feldman ficou boquiaberto de ver o enorme cinegrafista.

— Breck? Breck, você, um missionário?

— Não um missionário — corrigiu-o Litti. — Simplesmente um "disseminador de informações". Vamos montar um centro aqui em Jerusalém, dedicado a fatos e informações associados a Jeza. Uma faculdade dos trabalhos e da sabedoria d'Ela! Um arquivo da mensagem d'Ela!

Feldman estava para lá de impressionado. Ele examinou minuciosamente o rosto do amigo de longa data.

— Eu não acredito! Breck, um ministro! Mas Jeza não era contra as igrejas, contra as pregações?

Hunter balançou a cabeça.

— Eu não vou virar ministro, Jon. Administrador, talvez, mas isso não é uma igreja. Não vamos interpretar as escrituras de Jeza. Só vamos divulgar o Seu evangelho. E vamos divulgar os outros livros de escrituras também. A Bíblia, o Alcorão, o Talmude, todos eles. Só que nós vamos consertar todas as passagens corrompidas, exatamente como Ela instruiu. E vamos juntar todos os registros que eu tenho em vídeo para montar uma coleção das fitas de Jeza, para ser dada a quem quiser. De graça!

— Embora — acrescentou Hunter, voltando-se reflexivamente para Litti — talvez fosse bom considerar algumas doações corporativas para ajudar no custeio... — Ao perceber os olhares de reprovação de Feldman e Litti, Hunter parou de falar e exibiu um sorriso de desculpas. — Tudo bem, então não vai haver patrocinadores. Mas enfim, Cissy e eu vamos levar tudo para a Internet, vamos montar um sistema de comunicações... modem, fax, tudo a que temos direito! Vai ser ótimo!

Feldman jamais poderia prever que Hunter, o Hedonista, viesse a fazer uma coisa dessas!

— Está tudo acabado entre você e Erin, então? — presumiu ele, esperançoso.

— Pois é! — Hunter deu de ombros, aparentemente despreocupado. — E ela conseguiu um emprego novo agora. — Ele se virou, pegou o aparelho de controle remoto do televisor e mudou o canal. Lá estava ela, ajeitando-se carismaticamente diante das câmeras, jogando a cabeleira para o alto: — Erin Cross, âncora do Noticiário Matinal da UBN.

Feldman sorriu e assentiu.

— E quanto a você e Cissy agora?

Hunter deu de ombros outra vez e sorriu.

— Não se pode dizer que ela já esteja confiando em mim, mas anda dizendo que está disposta a me colocar à prova numa de "condicional". Vamos ver. Enfim, temos grandes planos para o centro. E queremos que você venha se juntar a nós, também.

Litti postou-se radiante ao lado de Hunter, sacudindo a cabeça positivamente para encorajá-lo.

— Eu? — Feldman engasgou. — Eu sou um repórter. O que eu iria fazer?

— Você poderia narrar os nossos vídeos — sugeriu Hunter. — Dar palestras de inspiração sobre Jeza. Responder às perguntas que o povo todo vai fazer sobre o jeito d'Ela, suas experiências pessoais com Ela, coisas assim. Jon, você é um dos escolhidos!

Enquanto Feldman balançava a cabeça para tudo aquilo, mais um noticiário atraiu sua atenção. "Cessam as Hostilidades pelo Mundo Inteiro", dizia a manchete, e a tela exibiu uma série de clipes de apoio com as seguintes faixas: "Hutus e Tutsis Declaram Trégua em Ruanda"; "Servos, Croatas e Muçulmanos Formam Aliança"; e "Castro se Dirige ao Congresso dos Estados Unidos".

Em seguida, apareceu na tela a imagem de equipes de limpeza em Belfast, na Irlanda do Norte, enquanto retiravam das ruas os detritos resultantes do cataclismo do fim de semana da Páscoa. A câmera fez um corte, passando para um encontro histórico entre antigos adversários, com a seguinte manchete: "Reconciliação entre Lideranças de Ex-Católicos e Ex-Protestantes”.

— Impressionante! — exclamou Feldman, deleitado.

— Pois é! — reconheceu Hunter, com entusiasmo, acompanhando os olhos de Feldman. — Coisas assim estão acontecendo em todo canto. Inimigos de toda uma vida andam se cumprimentando com simpatia. De repente, sem terem sido provocados, atos aleatórios de bondade e gentileza entre totais desconhecidos surgem por todo o globo. Em todos os lugares, caridosas contribuições vêm sendo feitas, muito além do que já se viu. É incrível!

Litti não conseguiu conter o seu entusiasmo.

— Pois é, Jon. É inacreditável! Durante os últimos cinco dias, não houve registro algum de hostilidades entre os países do mundo inteiro. Imagine só isso. Nem um país sequer! Paz absoluta! Jamais aconteceu nada igual antes. Você precisa tomar parte nisto, Jon.

— Gente — disse Feldman, tentando subjugar o entusiasmo dos amigos — vocês não precisam de mim. O mundo inteiro está convergindo para Jeza.

Litti balançou a cabeça.

— Não, Jon. Infelizmente, o mundo ainda continua a vê-La como uma mulher enganadora... só mais uma das falsas profetisas que assolaram a Cidade Santa ao longo dos séculos! E grave as minhas palavras, embora a Igreja católica esteja aleijada, ela está longe de terminar. Com Antonio Di Concerci assumindo o comando como Papa Nicolau VII, pode estar certo de que as intrigas vão continuar.

Mas o nosso novo movimento conta com o apoio de muitas das comunidades cristãs do mundo. Além disso, podemos incluir em nossas fileiras a grande maioria dos integrantes da fé judaica, inclusive o Estado de Israel, que agora abraça Jeza oficialmente como a sua Messias. E com vários países árabes aceitando Jeza como uma nova profetisa, quando não a própria filha de Alá, finalmente temos a base para uma paz duradoura e equilibrada aqui no Oriente Médio. Uma grande base sobre a qual fundar e construir o nosso centro para o Novo Caminho!

Feldman permaneceu ali recostado, refletindo, pensando. Ficou absolutamente entusiasmado com todas as maravilhosas energias e desdobramentos positivos que estavam em andamento pelo mundo afora. Afinal, depois de todo o tumulto, conflito, ódio e angústia, talvez agora a humanidade estivesse pronta para mudar. Pronta para aproveitar o momento! Para liberar os potenciais espirituais e sociais, há tanto contidos, que esta oportunidade única em dois mil anos propiciava!

Depois de dois milênios vendo o homem se afastar cada vez mais de seu caminho, Deus nos enviara uma mensagem. Uma importantíssima "averiguação espiritual"! Ele enviara uma Messias para nos lembrar, mais uma vez, do grande amor e sacrifício próprio de que nós, seres humanos, somos capazes. Para nos lembrar, de fato, do grande amor de Deus!

Feldman costumava indagar-se onde estava Deus. Porque não conseguia encontrá-Lo, por que não conseguia vê-Lo, independente da intensidade de sua busca? E agora ele sabia.

Tudo reside na maneira como se olha para Ele.

Ver Deus é algo que todos nós algum dia soubemos fazer, e de alguma forma conseguimos esquecer há muito, muito, muito tempo. Ver Deus é simples. É exatamente como Jeza disse. Devemos olhar com os olhos de uma criança. Sem tensionar ou forçar, nem invadir Deus com o pé-de-cabra da teologia! Mas relaxadamente, com inocência, admiração e fé! Tal qual uma criança admira as imagens tridimensionais de um caleidoscópio!

Deus é fácil de achar, pois Ele se encontra em todos os lugares. Mas, acima de tudo, percebeu Feldman, Deus está dentro de nós. E é aí o melhor lugar para encontrá-Lo. Em nosso próprio templo pessoal! Na igreja de cada um! 

Feldman sorriu. Talvez desta vez a mensagem de Deus se fixasse. E talvez agora, em algum distante momento do futuro, o homem viesse a poder prestar contas de si com dignidade quando finalmente chamado para o inevitável Dia do Juízo Final.

Feldman deixou a visão se dissipar para poder fitar seus bons amigos nos olhos.

— O seu centro para o Novo Caminho não deixará que nenhum de nós esqueçamos da mensagem de Jeza — falou ele, endossando-lhes os planos — mas temo que eu não possa tomar parte. Essa não é a forma correta para mim.

Hunter soltou um suspiro e Litti assentiu compreensivamente.

— Decerto, estamos errados ao tentar influenciar a sua escolha, Jon­ — admitiu Litti. — Você sabe que nós adoraríamos tê-lo conosco. Mas seja lá o que for que Deus deseje de você, isso é entre você e Jeza. E só você poderá determinar o que será.

Um médico, ao ver que Feldman tinha recuperado a consciência, pediu que evacuassem o quarto para fazer um exame completo no repórter.

Feldman pediu para os amigos, ao saírem:

— E não se esqueçam, assim que Anke acordar, digam-lhe que preciso vê-la imediatamente.

— Hunter fez-lhe um sinal de que estava de acordo e saiu com Litti, a fim de informar ao mundo sobre a recuperação milagrosa.

Enquanto o médico desconectava o soro intravenoso de Feldman, apalpando-o de várias formas, o repórter ficou recostado em sua cama, seus pensamentos girando em torno do melhor plano para as desculpas que iria apresentar à mulher que amava.

Na TV apareceu uma reportagem sobre a campanha presidencial nos Estados Unidos e Feldman aumentou o volume. O comentarista relatava o total colapso da candidatura do democrata Billy McGuire. Havia um movimento crescente em prol da reeleição de Moore, embora este não se colocasse à disposição e dissesse estar mais interessado em seguir um "Novo Caminho" próprio, pessoal e não-político.

Mudando para um canal local de Israel, Feldman viu que chegara a Jerusalém um conglomerado de evangélicos norte-americanos, cujo líder se chamava reverendíssimo Solomon T. Brady, DD. Eles tencionavam requisitar os direitos para abrir nos Estados Unidos uma franquia do centro para o Novo Caminho, a ser construído em Dallas, Texas. O reverendo queria denominá-lo Instituto para Estudos de Jeza da Universidade Brady. Feldman pestanejou, tirou o volume e fechou os olhos.

Voltou a dormir. Desta vez, seu sonho foi tanto agradável quanto real. Anke chegara ao lado de seu leito e acariciara-lhe a mão com lágrimas a transbordar-lhe dos olhos. E quando ele acordou, se Anke ainda tinha quaisquer dúvidas quanto aos verdadeiros sentimentos que Feldman nutria por ela, a reação dele as eliminou por completo.

— Anke! Anke! Anke! — gritou ele e abraçou-a com toda a dificuldade que lhe impedia o livre movimento dos braços. Beijou-a diversas vezes, incapaz de saciar seus sentimentos. — Eu sinto muito! Sinto muito, mesmo!

Embora não tivesse sido a eloqüente desculpa que havia ensaiado e agora esquecido, a sinceridade de Feldman foi indiscutível. Ele se empurrou mais para cima da cama, ansioso por explicar-lhe melhor.

— Anke — começou dizendo — eu quero que você saiba que os meus sentimentos por Jeza e os meus sentimentos por você, eles são sentimentos totalmente diferentes, eles são...

Ela o calou pousando suavemente o dedo indicador sobre os lábios dele e, sorrindo, sussurrou:

— Jon, Jon. Está tudo bem. Eu sei.

Eles ficaram arrebatados em sua carinhosa intimidade até que uma voz familiar os interrompeu à porta.

— Ora, ora! — Foi logo dizendo Cissy sem maiores constrangimentos. — Posso considerar que isto signifique que vocês dois estão juntos de novo? — O brilho alegre em seus olhos traiu-lhe as emoções e Anke generosamente afastou-se para o lado, a fim de abrir espaço para mais uma reunião lacrimosa.

Depois de dizer a Feldman que ele estava com um aspecto horrível, Cissy limpou os olhos com o lençol da cama e informou ao casal que havia visitantes especiais à espera. Duas pessoas que, ela achava, seriam particularmente bem-vindas para eles.

Feldman assentiu e Cissy voltou à porta, gesticulando para que os visitantes entrassem.

Uma mulher idosa, bem vestida, de cabelos grisalhos e um sorriso resplandecente, espiou pelo vão da porta com certa hesitação e soltou um alegre:

— Olá!

Feldman e Anke instantaneamente reconheceram Anne Leveque e retribuíram-lhe o cumprimento, convidando-a para entrar. Mas assim que ela entrou, o coração de Feldman deu um salto e seu deleite imediatamente se transformou num choque de descrença.

Seguindo-a timidamente de perto, segurando a mão da sra. Leveque, veio uma pequena mulher, muito bonita, de aspecto frágil e olhos azuis, pele clara e cabelos escuros. Durante um brevíssimo instante, Feldman ficou eletrificado pelo engano de ter achado tratar-se de Jeza. Em seguida, com o coração em disparada, ele percebeu quem era a moça tímida.

— Marie! — sussurrou ele, estupefato.

A semelhança era impressionante, mas, decerto, inexata. Marie era mais velha do que Jeza. E embora fosse atraente, não tinha a perfeição de Jeza. Não tinha os seus olhos luminescentes. Mas seu rosto era doce e delicado. E ao ser apresentada, Marie exibiu um sorriso cativante, absolutamente igual ao de Jeza.

— Quando? Como? — gaguejou Feldman.

Exultante, a sra. Leveque se pôs atrás da filha e carinhosamente a abraçou pela esguia cintura.

— Na tarde da Sexta-Feira da Paixão — disse ela, levando o rosto ao encontro da cabeça de Marie, com os olhos rasos d'água. — Eu estava em casa — explicou — assistindo ao último discurso da minha Jeza, ao vivo na televisão. Então veio aquele instante horrível em que ela foi jogada para trás e todos os comentaristas começaram a dizer que ela fora atingida por um tiro. Eu não consegui agüentar a dor de mais uma perda. Deixei-me simplesmente escorregar da poltrona para o chão, caindo de joelhos, balançando para a frente e para trás, aos prantos e gritos, pedindo a Deus que, por favor, não levasse de mim a minha filha outra vez.

E então, de repente, ouvi uma voz vinda de trás, me chamando baixinho: “Mamãe! Mamãe! Mamãe!” — A pobre mulher não conseguiu mais se conter e começou a soluçar e Marie voltou o rosto para ela, apertando-lhe as mãos com um sorriso consolador. — Deus me tirou a minha Jeza, mas Ele me devolveu a minha Marie. — A sra. Leveque se recompôs, fitando a filha na mais total adoração. — Ele a devolveu, com Seu grande amor e perdão, completa e inteira como ela era antes do acidente.

Feldman só conseguiu ficar olhando maravilhado para a cena incrível.

Ao canto, na TV, uma imagem de Feldman foi lançada na tela junto com a manchete: "Repórter Recuperado!" Ao mesmo tempo, Hunter e Litti voltaram para o quarto, justamente quando um tumulto irrompia lá fora. A multidão estava reagindo à notícia, comemorando e gritando.

— O seu público — anunciou Cissy para Feldman, curvando-se e esticando um braço na direção da janela.

Deparando com a surpreendente visão de Marie Leveque, Hunter e Litti pararam de chofre, absolutamente atônitos. Enquanto os dois eram apresentados a ela e colocados a par do que se passava, Feldman experimentou se levantar sobre as próprias pernas, com Anke a apoiá-lo de um lado e Cissy do outro, e andou, apesar do calcanhar dolorido, até a janela.

Ao vê-lo, a multidão o ovacionou. Havia centenas de milhares de pessoas acampadas do lado de fora do pátio do hospital, espalhando-se pelas ruas adjacentes. Voltando-se para a janela do repórter, todos se empurraram para chegar mais perto, gritando, acenando, levantando faixas e comemorando a maravilhosa recuperação de Feldman.

O repórter ficou tocado.

— Esse pessoal todo ficou aí esperando eu me recuperar? — perguntou ele, incrédulo.

— Você é, para eles, um elo importante com Jeza — disse Alphonse Litti, chegando por trás dele para admirar a multidão. — Você teve um relacionamento especial com a Messias, uma proximidade que, confesso, até eu invejo.

Uma flâmula, trazida tão alto quanto o invisível autor conseguiu elevá-la, dizia: "Jon, Você É o Escolhido de Jeza." Outra dizia: "Mostre-nos o Caminho." E mais outra proclamava: "Ela Está de Volta Entre Nós.”

Ao avistarem o ex-cardeal à janela com Feldman, as pessoas ficaram ainda mais veementes.

Feldman fitou as distantes colinas israelenses, sem conseguir focar direito os olhos, acenando abstraidamente para as massas, enquanto Anke o observava, atenta e calada.

Temeroso de um abuso da energia de Feldman, o médico voltou para esvaziar o quarto. Os visitantes foram forçados a rápidas despedidas, mas Feldman não estava disposto a deixar que Anke se fosse. Assim que todos foram saindo, Feldman agarrou-a pelo braço e a deteve.

— Anke — falou ele sinceramente, enquanto mantinham as mãos dadas e os olhares entrelaçados, numa tentativa de enxergar o coração um do outro. — Tudo está bem mais claro para mim agora. Muito mais claro do que jamais esteve! Eu sei o que quero da vida. E agora sei que jamais seria feliz sem você.

Ela não respondeu de imediato, levando algum tempo para poder considerar mais do que as palavras dele.

— Eu amo você — sussurrou ele.

— Meu querido, eu amo você, também — disse ela por fim. — Mas durante esses dias estranhos, tive muito tempo para pensar. E agora as coisas estão muito mais claras para mim, também. Eu sei que o nosso amor é muito importante, mas isso não é uma resposta completa. É só um começo. Veja só tudo o que você passou. Olhe para as incríveis experiências que traz consigo. Olhe pela sua janela e veja agora o que está acontecendo ali fora. Jon, você precisa lidar com todas essas coisas antes. Pela minha própria paz de espírito, eu preciso saber exatamente para onde isso tudo vai levá-lo. Eu preciso que você me diga para onde você está indo, antes que nós possamos decidir para onde nós estamos indo. Talvez possamos chegar lá juntos e talvez não. Mas eu preciso dos fatos para decidir por mim.

Feldman assentiu e olhou para a janela.

— Você está certa, Anke. Eu sei que preciso fazer alguma coisa disso tudo. Preciso lidar com isso de alguma maneira. Mas não da maneira como Breck e Alphonse estão lidando. Eu sou jornalista, não arquivista. Talvez eu tenha sido escolhido, mas pretendo ter voz ativa no que vou fazer com essa responsabilidade. E agora eu sei que está tudo perfeitamente bem com Jeza, isso é parte de Sua mensagem. Sou eu quem decide o meu próprio caminho. Preciso aliviar a minha carga, mas vou fazer isso da maneira como faria qualquer jornalista que se preze. Vou escrever. Vou colocar no papel tudo o que vivi.

Anke seguiu os olhos dele janela afora e assentiu, plena de apreço e aprovação pelo que ouvia.

— Posso fazer a minha parte na divulgação do evangelho do Novo Caminho — explicou Feldman — transcrevendo todas as experiências e revelações que vivenciei. Mas Anke, eu não quero mais ficar sem você.

— Isto é uma proposta de casamento, sr. Feldman? — perguntou ela, fingindo desconfiança.

Tentando ajoelhar-se para aumentar a formalidade do momento, Feldman colocou um peso indevido sobre o pé machucado. Gemeu de dor, soltando as mãos de Anke no exato momento em que iria levá-la consigo ao chão. Apesar da pesada aterrissagem, ele não fugiu da pergunta.

— É, sim — gemeu. — Você quer se casar comigo?

Depois de se certificar de que ele estava bem, Anke deu um passo para trás, contendo o sorriso. Apertou os lábios um contra o outro e começou a fazer um minucioso levantamento das ataduras e curativos espalhados pelo corpo dele.

— Ora, não posso dizer que este seja o ideal de uma romântica proposta de casamento! — declarou ela.

Feldman fez uma careta para a ponderação, enquanto esfregava o tornozelo, ainda à espera de uma resposta afirmativa.

Contraindo então o semblante, ela levou a mão ao queixo e esfregou-o com o polegar e o dedo indicador.

— Não estou bem certa a respeito desse negócio de casamento, sr. Feldman — vacilou ela. — Você está mais com cara de mercadoria danificada. Eu não gostaria de me ver às voltas com um bem estragado pelo resto de minha vida.

Feldman acabou relaxando o sorriso. Anke o ajudou a se pôr de pé e ele colocou o braço são em torno dos ombros dela.

— Mas, então — ela mudou de assunto — como é que você vai escrever essa história? Como um livro de memórias? Uma biografa! Uma autobiografia?

Feldman soltou um suspiro, impaciente com a matreira escapatória à proposta.

— Não sei ao certo. Ainda não tive uma chance de pensar no assunto. Provavelmente como um tipo de diário.

— Que bom! — Anke aprovou a escolha. — Um diário seria o veículo perfeito para contar a história de Jeza da maneira como ela gostaria que fosse contada. Eu vou ajudá-lo a se manter mais objetivo e a evitar uma interpretação pessoal.

— Mas ora essa! — Feldman voltou com um sorriso impressionado. — Essa é a mesma mulher que uma vez me atazanou a paciência porque o meu jornalismo era objetivo demais? Essa é a mesma mulher que uma vez me chamou de processador de textos humano, que disse que eu deveria injetar um pouco mais de opinião pessoal nas minhas reportagens? Ora, vejam só!

Ela retorceu o rosto, divertida, fingiu um ar de irritação e lançou-lhe um olhar depreciativo.

— Não há nada mais chato do que um homem que se acha certo o tempo todo!

— Ei!— advertiu-a ele com as sobrancelhas erguidas, fingindo, por sua vez, um ar de superioridade — você está se esquecendo de que eu sou recebedor de revelações divinas?

Ela estreitou os olhos e se inclinou mais para perto dele.

— Esse casamento vai ser muito interessante, não vai, sr. Feldman?

Ele se aproximou ainda mais, estreitando os olhos para ela também.

— Sim, senhora — profetizou — eu creio que sim. — E beijou-a.

Lá fora, a ovação aumentou de volume, elevou-se e espalhou-se pela verdejante paisagem primaveril da Terra Santa.

 

                                                                                Glenn Kleier  

 

                      

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