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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ÚLTIMO ELFO / Silvana de Mari
O ÚLTIMO ELFO / Silvana de Mari

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ÚLTIMO ELFO

 

Chovia havia vários dias. A lama chegava-lhe aos tornozelos. Até as rãs teriam se afogado naquele mundo transformado em pân­tano, se não tivesse parado de chover.

Ele certamente morreria se não conseguisse, depressa, um lugar seco para ficar.

O mundo estava frio. A lareira da sua avó era um lugar quente. Mas isso fora muito tempo atrás. O coração do peque­no elfo se apertava de saudade.

A avó dele dizia que, quando se sonhava bem forte, as coi­sas se tornavam verdadeiras. A avó, no entanto, já não conseguia sonhar. Um dia, a mãe fora para o lugar de onde nunca se volta e a avó não tinha conseguido sonhar nada. E ele era muito pequeno para sonhar. Ou talvez não.

O pequeno elfo fechou os olhos por alguns instantes e sonhou o mais forte que podia. Sentiu na pele a sensação de secura, de um fogo aceso. Sentiu que os pés se aqueciam... Alguma coisa para comer.

O pequeno elfo tornou a abrir os olhos. Os pés lhe parece­ram ainda mais gelados e o estômago, ainda mais vazio. Não tinha sonhado com força suficiente. Ajeitou o capuz molhado sobre os cabelos molhados. Estava com o manto amarelo de elfo. O abrigo amarelo de cânhamo, de trama aberta, era pesa­do, rústico e não protegia nada. Mais água lhe caiu pelo pesco­ço e começou a escorrer ao longo da espinha, por baixo da roupa, até as calças. Tudo o que ele vestia era amarelo, rústico, molhado, sujo, gasto e frio.

Um dia, ele teria roupas macias como as asas de um passari­nho e quentes como as penas de um pato, coloridas como a aurora e como o mar.

Um dia, ele teria os pés secos.

Um dia, a Sombra iria embora, o Gelo ficaria para trás. O sol voltaria.

As estrelas recomeçariam a brilhar. Um dia.

O sonho com alguma coisa de comer voltou a preencher-lhe os pensamentos.

Tornou a pensar nas tortas da sua avó. De novo, a sua alma se apertou com a emoção.

A avó tinha feito tortas uma única vez na vida do pequeno elfo. Tinha sido na última festa da lua nova, quando se distri­buiu meio saco de farinha aos elfos também, quando a lua ainda brilhava.

Protegendo os olhos com as mãos, o pequeno elfo tentou esticar o olhar para além da chuva.

A claridade estava diminuindo. Não faltava muito tempo para escurecer completamente. Era preciso encontrar um lugar onde ficar, antes que a noite caísse. Um lugar onde ficar e algu­ma coisa para comer. Mais uma noite na lama, com o estômago vazio, e ele não conseguiria permanecer vivo até de manhã.

Seus grandes olhos apertaram-se, pelo esforço, enquanto vagueavam entre os tons de cinza das árvores, que se alternavam com os da terra e os do céu, até pararem sobre uma sombra mais densa que se entrevia. Seu coração palpitou. A esperança renas­ceu. Apressou-se o quanto podia, com as pernas cansadas, que afundavam até os joelhos, com os olhos fixos naquela sombra. Por um instante, enquanto a chuva apertava, ele temeu que fosse apenas uma mancha mais escura formada pelas árvores. Depois, o telhado e as paredes se tornaram mais distinguíveis. Sufocada pelas árvores, afogada pelas trepadeiras, havia uma minúscula construção de madeira e pedra.

Devia ter sido um refugio de pastores ou de carvoeiros.

A avó tinha razão. Se você sonhar bem forte, durante bas­tante tempo, se a fé tomar conta de você, a sua esperança se rea­lizará.

Novamente a cabeça do elfo se encheu com o sonho de um fogo que o aquecia. O odor de fumaça quente com o perfume da resina dos pinheiros tomou-lhe a mente, a ponto de aquecê-lo por alguns segundos. Um latido ameaçador despertou-o bruscamente. Ele ficou confuso. Não era um sonho. Lá estavam realmente o calor da fumaça e o perfume do fogo de pinheiros. Não era apenas na sua cabeça. Tinha se aproximado de uma fogueira de homens.

Agora era tarde.

As fantasias podem matar.

O latido do cão explodiu-lhe nos ouvidos. O pequeno elfo começou a correr. Talvez pudesse fazê-lo. Se conseguisse correr bem depressa, poderia pôr bastante terra e lama entre ele e o cão. Do contrário, os homens o pegariam e aquilo de poder morrer em paz, livre do frio e da fome acabaria como um sonho impossível. Um dos seus pés enganchou numa raiz, encaixou-se nela. Caiu com o rosto na lama. O cão partiu para cima dele. Estava acabado.

O pequeno não ousava sequer respirar.

Os instantes se passavam. O cão bufava no seu pescoço, cercando-o, mas ainda não lhe tinha enfiado os dentes em parte alguma.

- Deixe-o em paz - disse uma voz.

Era uma voz seca, autoritária. O cão largou a presa. O pequeno elfo voltou a respirar. Elevou o olhar. O humano era muito alto. Tinha cabelos amarelados em cima da cabeça, enro­lados como um cordão de cortina. Não tinha nenhum pêlo na cara. E a vovó tinha sido categórica: “Os homens têm pêlo na cara.” É a barba. É uma das muitas coisas que os distinguem dos elfos. O pequeno elfo concentrou-se para relembrar, então se iluminou.

- Tu ser um homem-fêmea - concluiu, triunfante.

- É mulher que se diz, imbecil — disse o humano.

- Oh, eu pedir perdão, mulher imbecil, eu prestar mais atenção, então te chamo certo, mulher imbecil - disse o peque­no, voluntarioso. A língua dos humanos era um problema. Ele a conhecia pouco e eles eram sempre assim, terrivelmente susce­tíveis, e a suscetibilidade lhes desencadeava a fúria. A avó tinha sido categórica também sobre isso.

- Garoto, quer acabar mal? - ameaçou o humano. O pequeno elfo ficou perplexo.

Segundo a avó, a falta absoluta de qualquer tipo de pensa­mento lógico - mais facilmente resumida no termo “estupidez” - era a característica fundamental que diferenciava a raça huma­na da élfica, mas, mesmo que a avó tivesse procurado preveni-lo, a imbecilidade da pergunta era de tal forma abissal que o desorientou.

- Não, eu não desejar isso, mulher imbecil - assegurou o pequeno elfo -, eu não querer acabar mal. Isso não estar nos meus planos - insistiu.

- Se você falar mais uma vez a palavra “imbecil”, eu lhe atiço o cão em cima. Isso é um insulto - explicou a mulher, injuriada.

- Ah, agora eu compreender - mentiu o pequeno elfo, pro­curando desesperadamente entender qual poderia ser o sentido do discurso. Por que o humano quis ser insultado?

- Você é um elfo, não é?

O pequeno assentiu. Era melhor falar o menos possível. Deu uma olhada preocupada para o cão, que respondeu rosnando.

- Eu não amo os elfos - disse o humano.

O pequeno assentiu de novo. O medo misturou-se ao frio. Começou a tremer. Nenhum humano ama os elfos. A avó sem­pre dizia isso.

- O que você quer? Por que se aproximou? - perguntou a mulher.

- Frio. - A voz do pequeno elfo estava sumindo. O frio, o cansaço e o medo se juntaram. A voz começou a tremer. — A cabana... - A voz sumiu de novo.

- Não se finja de morto de frio. Você não é um elfo? Tem os seus poderes. Os elfos não sofrem de frio nem de fome. Podem não sentir frio nem fome quando quiserem.

O pequeno levou um tempão para entender o sentido daquelas palavras, depois se iluminou.

- Verdade? - perguntou, contente. - É verdade eu saber fazer estas coisas? E como se faz para fazer?

- Eu sei lá! - urrou a mulher. - É você o elfo. Somos nós, os humanos esquálidos, os tontos, os subdesenvolvidos, os que não são feitos para o frio e para a fome. - A voz do humano parecia realmente perversa.

O pequeno elfo sentiu o medo invadi-lo, chegando-lhe à garganta, seca como um deserto, até os olhos que começaram a chorar. Era um pranto sem lágrimas, feito de lamentos e de soluços aterrorizados. A mulher sentiu-lhe o desespero e o medo, como uma sensação de gelo entre as vértebras e a pele da coluna.

- Mas o que fiz eu de mal? - perguntou ela a si mesma. O pequeno continuava a chorar. Era um som dilacerante, que penetrava na alma, com toda a dor do mundo. - Você é uma criança, não é? - perguntou, então.

- Um nascido há pouco - confirmou o pequeno. - Senhor humano - acrescentou, depois de ter procurado um termo que não soasse ofensivo.

- Você tem poderes? - perguntou a mulher. — Diga-me a verdade.

O elfo continuou a olhar para ela. Nada do que ela dizia fazia sentido.

- Poderes?

- Tudo o que você pode fazer.

- Ah, isto. Bem, muitas coisas. Respirar, caminhar, olhar, eu saber também correr, falar... comer, quando ter alguma coisa pára comer... — O tom do pequeno elfo tornou-se nostálgico e vagamente esperançoso.

A mulher sentou-se na soleira da cabana. Inclinou a cabeça e ficou ali. Depois, levantou-se.

- Pois eu não terei mais coragem de deixar você aqui fora. Pode entrar. Pode ficar perto do fogo.

Os olhos do pequeno elfo se encheram de pavor e ele se pôs a andar para trás.

- Eu suplicar, senhor humano, não...

- E agora, o que o segura?

- O fogo, não: eu tenho sido bom. Eu suplicar, humano senhor, não me comer.

- O quê?

- Não me comer.

- Comer você? E como?

- Com rosmaninho, eu acho. A minha avó dizer isso, quan­do era viva: “Se você não for bom, chega um humano e come você com rosmaninho.”

- A sua avó dizia isso de nós? Muito gentil!

A palavra “gentil” entusiasmou o pequeno elfo. Essa, ele conhecia. Teve a impressão de estar seguro. Iluminou-se e sorriu.

- Sim, é verdade, é isso mesmo. A vovó dizer: “Humanos também canibais e essa ser a coisa mais gentil que poder dizer sobre eles.”

Dessa vez, saíra-se bem. Conseguira dizer a coisa certa. O humano não se zangou. Olhou-o longamente, depois começou a rir.

- Para esta noite, eu já tenho o que comer - garantiu a mulher. - Pode entrar.

Lentamente, o pequeno elfo arrastou-se para dentro. Lá fora, o frio o mataria. Morto por morto...

O fogo de pinhas ardia, soltando o perfume da resina.

Pela primeira vez, em muitos dias, ele encontrava um lugar seco.

Em cima do fogo, tostava uma bela espiga. O pequeno olhou fixamente para ela, quase em transe. Então, aconteceu o milagre.

O humano puxou uma faca e, em vez de usá-la para descar­ná-lo e fazer picadinho, cortou a espiga e lhe deu um pedaço.

Ficaram algumas dúvidas na cabeça do pequeno elfo a res­peito do humano. Talvez não fosse tão mau, mas podia ser que fosse mantê-lo na engorda, enquanto arranjava o rosmaninho. Comeu a espiga, de qualquer maneira. Comeu-a grão por grão, para fazê-la durar o mais possível. Era noite alta quando acabou. Roeu até o talo, depois envolveu-se no seu manto rude e úmido e adormeceu como um filhote de arganaz, próximo às chamas que bailavam.

 

A aurora foi cinzenta, como todas as auroras. A luz filtrou-se entre os troncos da cabana, em lâminas finas, atravessando as espirais de fumaça que ainda se elevavam das brasas.

O pequeno elfo despertou com uma sensação curiosa. Levou tempo para entender, até que conseguiu: não sentia frio, não tinha muita fome e não tinha os pés enregelados.

A vida podia ser maravilhosa.

E o humano não o comera.

O pequeno levantou-se, todo contente.

Estava com um xale de lã verdadeira que o cobria. Era uma lã grossa, acinzentada, mais buracos do que lã. O humano o cobrira.

Eis por que não estava com os pés gelados. Perguntou-se por que o humano o cobrira. Talvez porque, se tivesse tosse, não fosse tão bom para ser comido.

O humano já estava desperto. Manejava as brasas. Com uma espécie de pá diminuta, as espalhava um pouco dentro de uma bola de ferro toda furada, onde havia palha e um bom pedaço de madeira seca.

Toda aquela operação pareceu ao pequeno de uma tolice despropositada, isto é, esquisitamente humana.

Não fez comentários e se limitou a devolver o xale.

- Pode ficar com ele - resmungou o humano. - Você tremia esta noite.

Pendurou a bola de ferro fumegante num pau, protegida por uma espécie de pequeno telhado de peles costuradas, e colocou-a no ombro.

- Eu vou em direção ao condado de Daligar - disse-lhe bruscamente. - Fica lá em cima, no planalto. Dizem que a água escorreu para a parte baixa e que lá ainda existem campos e plantações.

Silêncio. O pequeno elfo perguntava-se o sentido daquelas informações.

Talvez fosse uma forma de cortesia e ele teria de responder informando o lugar para onde iria.

Pena que ele não tivesse lugar algum para ir. Limitava-se a ir embora do lugar onde estivera antes e que simplesmente já não existia, ou melhor, podia até existir, sob uma dezena de palmos de água, lama e folhas podres.

- O que foi? O gato comeu a sua língua?

- Não existir gatos aqui, Excelência - disse o pequeno. Conseguira, finalmente, lembrar do tratamento respeitoso que se devia dar aos humanos. O que ele vinha usando, além do mais, parecia de uma loucura infinita: era melhor se manter em segurança, com respeito. E prosseguiu: - Aquele se chamar cão, Excelência... e se ele comer a minha língua, agora estar sangue no... - começou a explicar, respeitoso e paciente, mas o huma­no o interrompeu:

- Está bem, está bem, deixe para lá.

O humano olhou para ele e deu um suspiro mais comprido do que os outros, enquanto balançava a cabeça. Talvez tivesse alguma doença que não o deixava respirar bem.

- Talvez a inteligência e a magia cheguem mais tarde. Como os dentes do siso.

- Os o que, Alteza? — indagou o pequeno, alarmado com a palavra “dentes”. Se ele, pelo menos, estivesse seguro a respeito de qual era a fórmula de cortesia certa!

- Os dentes aqui de trás, aqueles que vêm depois de todos os outros. - E mostrou-os ao pequeno, que recomeçou a chorar.

- Você dizer que não me comer, Majestade - choramingou. O humano deu outro daqueles suspiros longos. Ele devia ter mesmo alguma doença.

- Certo, eu disse isso - respondeu alegremente. - Então, nada a fazer. Não posso mais comer você.

Estalou os dedos para o cão e se apressou em direção à porta. O pequeno elfo sentiu tristeza. Ainda que imprevisível e louco, o humano era sempre alguma coisa, sempre melhor do que só ele mesmo, dali até o horizonte. Depois, talvez ainda houvesse algum pedaço de espiga. O coração do pequeno elfo apertou-se de novo e ele sentiu a tristeza preencher tudo, como o barulho da noite quando chega.

A porta era grossa, de tábuas de pinho mal esquadrejadas e mal unidas, mas tinha boas dobradiças de bronze.

- Esta deve ser uma cabana de caçadores ou mercadores de peles - disse o humano. - Não é de simples carvoeiros.

O cão saiu correndo, todo feliz, debaixo da chuva.

Mas o humano ficou parado na soleira, observando a caba­na. Levantou o olhar para as telhas de pedra em boas condições e para os pedaços de madeira enfiados entre as pedras, pela parte de baixo, para limitar as correntes de ar. Estavam bem secos, sem mofo e com as arestas cheias de lascas e não aparadas.

- Esta cabana não está abandonada - comentou. - De um momento para outro, os proprietários podem voltar.

O pequeno elfo começou a entender o sentido do discurso.

- Eles comer os elfos?

- Com certeza, não os amam. Se eu fosse você, não ficaria para perguntar a eles - disse o humano.

O pequeno elfo saiu correndo mais rápido que o cão. Apressaram-se.

- Você tem um nome?

- Sim - respondeu o pequeno, convencido. O humano deu mais um suspiro cômico.

- E qual seria esse nome?

As lições de gramática humana da avó começaram a lhe vir à memória.

- Não, não é “seria”. “Seria” é para coisas incertas, enquan­to um nome é coisa certa. Qualquer um ter certeza do seu próprio nome, por isso tu não dever perguntar “qual seria”, Exce­lência, mas “qual ser”...

- E qual é esse nome? - gritou a mulher. - Está bem, está bem, eu não grito mais, prometo. Não comece a chorar outra vez. Não grito e não como você. Como você se chama?

- Yorshkrunsquarkljolnerstrink.

- Pode repetir? - perguntou a mulher.

- Sim, posso - confirmou o pequeno, com satisfação.

O humano suspirou outra vez. Devia mesmo estar doente.

- Então, repita.

- Yorshkrunsquarkljolnerstrink.

- Não tem um diminutivo?

- Sim, eu ter.

Pausa e novo suspiro engraçado do humano.

- E qual é esse diminutivo?

- Yorshkrunsquarkherzljolnerstrink.

- Está bem, está bem - disse o humano, que de repente pareceu muito cansado.

Sem dúvida, ele devia estar doente.

- Vou chamar você de Yorsh - concluiu o humano. Balançou de novo a cabeça. - Provavelmente, devo ter feito alguma coisa terrível na minha vida anterior e agora estou pagando - resmungou.

Isso, pelo menos, fazia sentido. Aí está por que o humano era tão estúpido e maluco: usava oito perguntas só para saber como ele se chamava. Mas ficar sozinho naquela charneca alaga­da era realmente terrível. Além disso, ele tinha conseguido o xale de lã e um pouco de calor antes de se encharcar.

- Eu me chamo Sajra - disse a mulher.

Yorsh apressou-se atrás dela, contente com aquela apresen­tação.

- O cão como se chama?

- Não tem nome - respondeu a mulher. - Chama-se cão e basta. É um som curto e eu não tive de pensar muito para encontrá-lo.

Ao pequeno, pareceu uma completa tristeza que uma cria­tura ficasse sem nome, qualificada com um substantivo comum, como uma árvore ou uma cadeira, mas ele já conhecia a impre­visível irascibilidade da mulher e decidiu manter as suas obser­vações para si mesmo. Em todo caso, ele não deixaria a criatura sem nome. Na sua cabeça, ele lhe daria um nome. Só devia estar atento para uma coisa: um nome não se escolhe por acaso. O nome é o nome. Uma responsabilidade importante.

A chuva continuava a cair.

Caminhavam lentamente, pela lama.

A mulher tinha as pernas mais compridas do que as dele. Assim, Yorshkrunsquarkljolnerstrink tinha de correr para manter-se logo atrás dela e o cansaço era terrível. Quase não tinha mais medo do cão e algumas vezes tinha até mesmo ousa­do tocá-lo, para apoiar-se nele. E o cão deixara-o fazer isso.

- Você ter ainda alguma daquelas coisas com os grãos ama­relos? - indagou discretamente o pequeno.

- Tenho ainda uma espiga, mas queria guardá-la para esta noite.

- Se nós morrer na lama antes desta noite, quem come a espiga?

- Você está com fome agora?

- Sim, eu ter fo... não, eu tenho fome agora.

- Muito bem, você aprende logo. Então, aprenda isto: se comermos a espiga agora, será terrível não ter nada esta noite.

- Talvez o mundo acaba antes desta noite. Talvez nós acaba­mos antes desta noite.

Talvez eu acabo antes desta noite.

- Fique quieto e ande. Use o fôlego para caminhar.

- Eu conseguir, não, eu consiga... hummm, não, consigo fazer duas coisas ao mesmo tempo, caminhar e falar da espiga. Aliás, cansa menos, se nós não fala.

- Quieto - disse a mulher. O tom tinha mudado.

- Mas...

- Quieto — sussurrou a mulher. Ajoelhou-se perto do pequeno elfo, para ficar mais baixa, menos visível. O cão ros­nou. Os olhos da mulher continuaram a explorar os caniçais e os charcos que circundavam o caminho.

- Está bem, nós comer esta noite. Você não ficar com raiva.

- Corra! — gritou a mulher. Levantou-se e se pôs a correr, depois de ter pegado o pequeno pelo braço.

- Aqui! — gritou para o cão, que também começou a correr com eles. O pequeno elfo caiu, tornou a se levantar, caiu de novo. Começou a chorar.

- Não ficar com raiva, não ficar com raiva, nós comer esta noite.

- Estão nos seguindo - explicou a mulher, sem parar de cor­rer, com o último fôlego que lhe restava. - Vê aquela colina lá embaixo? Eu tenho as pernas mais compridas. Passo por baixo e vou para trás deles. Você vai pelo meio dos arbustos e leva o fogo a salvo. Tome. Nos vemos na colina.

A mulher entregou-lhe o bastão com a bola de metal e se pôs a correr. Quebrava ramos, emitia sons rouquenhos. O pequeno elfo agachou-se entre os arbustos e ficou ali, até que o seu coração voltasse ao normal.

Perguntou-se quem os seguia. Talvez os proprietários da cabana onde haviam passado a noite. Talvez tivessem ficado ofendidos pela intrusão. Talvez tivessem rosmaninho e lhes fal­tasse um elfo pequeno para comer junto.

O medo contraiu-lhe as vísceras.

Sob a chuva fina perscrutou a mata, mas não viu ninguém. O medo começou a se diluir lentamente e virou tristeza. Estava de novo sozinho. De novo, até o horizonte, havia só ele.

Lembrou-se da avó, que o segurava nos braços enquanto castanhas cozinhavam na panela.

A tristeza tomou conta de todo o seu ser, depois foi se tor­nando desespero.

Pensou no humano mulher que o aterrorizava, porém lhe tinha dado a espiga e sempre era alguma coisa. Melhor aquele ser de novo do que ele sozinho. Ele sozinho, até o horizonte. Voltou a lamentar-se, calado, sem nenhum ruído, só dentro da própria cabeça, sem arranhar nem um pouco o sussurro da chuva caindo leve.

Pensou que, se tornasse a ver o cão, poderia chamá-lo de “Alguém que respira perto de você”, mas a mulher dissera que, para um cão, fica bem um nome curto e esse não era.

 

Estava escurecendo quando a mulher chegou à colina.

O pequeno sentiu um alívio no coração.

A mulher estava sem fôlego. Deixou-se cair na lama. O cão estava com ela.

- Era um caçador — disse a mulher, arquejando. — Com um arco. Eu o vi. Consegui “semeá-lo”.

- Ohhhhhhhh - disse o pequeno, realmente impressiona­do. - Quer dizer que depois lhe cresce milho em cima?

- Não - explicou a mulher, exasperada -, é modo de falar, quer dizer apenas que eu o deixei para trás.

- Ahhhhhhhh, entendi - mentiu o pequeno. Por que a con­fusa língua dos humanos previa mais de um significado para o mesmo som? Mas é lógico! A estupidez! Ele devia se lembrar.

- O que é um arco? - perguntou, ainda. O cão começou a rosnar.

- Segure o cão — disse a voz.

O pequeno elfo entendeu o que era um arco: um galho curvo, com uma corda amarrada tão esticada capaz de poder lançar a varinha com ponta de ferro contra o coração da mulher.

O caçador era mais alto ainda do que a mulher, tinha cabe­los escuros por todo lado, em volta e em cima do rosto, e - ele sim - tinha barba. Tinha roupas que pareciam quentes, mais quentes do que as de pano e, na cintura, uma impressionante coleção de punhais e um machado. Chegara por trás das costas do pequeno elfo. Enquanto a mulher acreditava tê-lo semeado, ele tinha dado a volta, pelo meio do bosque.

Ele e a mulher ficaram se encarando, depois a mulher cha­mou o cão.

O caçador abaixou o arco.

- Eu só quero um pouco de fogo. O meu apagou. Só quero reacender a minha mecha. Eu vi que você tem um.

A mulher olhou para ele.

- Mais nada?

- Mais nada.

Deram-se ainda uma longa olhada, depois a mulher con­cordou.

- Dê fogo a ele - disse. - Ei, estou falando com você. Dê-lhe fogo. Mas onde você o meteu?

- Eu o escondi lá embaixo - disse o pequeno.

- Verdade? - perguntou a mulher. - Bem, boa idéia. Onde, exatamente, você o escondeu?

- Ali, no pântano, dentro da água; assim, ninguém conse­gue ver - disse o pequeno, todo feliz.

Era tão bonito ser aprovado. Lembrou-se de quando a avó o segurava no colo e lhe dizia que ele era o pequeno elfo mais corajoso do mundo. Encheu-se de felicidade, como quando o vento da primavera espalhava as nuvens, quando ainda existia primavera.

Troteou, alegre, colina abaixo. A chuva tinha parado. Uma pálida faixa de azul apareceu entre as nuvens e se espelhou na água do pântano, onde o pequeno se inclinou para tirar, triun­fante, o bastão com a sua bola de ferro. Pequenas torrentes de água escorreram dela.

O homem e a mulher o tinham seguido e esperavam, sem palavras. A mulher sentou-se num tronco e apoiou a cabeça entre as mãos.

- Você o apagou - disse ela, com a voz estrangulada.

- Sim, lógico, assim é mais fácil de esconder!

Fez um gesto com os braços, indicando o ato de esconder. O xale caiu, revelando as suas roupas amarelas.

- É um elfo - disse o caçador, perturbado.

- Sim, com efeito é um elfo - confirmou a mulher, com voz inexpressiva.

- Você está procurando encrencas? - perguntou o homem.

- Não, ele apareceu por acaso.

- Tem poderes?

- Não, é uma espécie de criança.

- Um nascido há pouco — confirmou o pequeno.

O homem não tinha intenção de desistir. Dirigiu-se ao pequeno:

- Você sabe fazer fogo?

- Siiiiim, acho que sim. Nunca fiz isso, mas todos sabem acender um fogo.

A mulher levantou a cabeça e o encarou, estarrecida.

- Então, acende - ordenou o caçador. Tinha a voz mais grave do que a da mulher.

O pequeno pousou a mão na bola de ferro seca que o caça­dor tinha tirado do alforje. Havia palha dentro. Fechou os olhos. A imagem do fogo ocupou-lhe a mente. O cheiro do fogo tomou o seu olfato. A tepidez do fogo aflorou-lhe pela memória.

Quando abriu os olhos, o fogo brilhava dentro da bola.

A mulher nem respirava.

- Você sabe acender o fogo sem isca?

- Siiiiiiiiiim.

- Por que não me disse?

- Você não perguntou.

- Perguntei se você tinha poderes.

- Sim. Eu respondeu: grandes poderes: respirar, comer, ficar vivo. O fogo acendido é um pequeno poder. Basta elevar a tem­peratura e fogo nasce. Todos saber fazer isso.

- Eu não - disse a mulher.

- Nããaããão? - O pequeno estava admirado. - Não é possí­vel. Todos saber...

- E, se sabemos acender o fogo, por que carregamos a chama?

- Porque são humanos - explicou o pequeno, serenamente.

- Vocês são estúpidos.

- Você está pagando pelos erros de uma vida anterior ou existe algum outro motivo para estar levando um elfo com você?

- O homem parecia cada vez mais perplexo. - Apesar do prazer da companhia, no primeiro vilarejo vocês dois se separarão. Quem acende fogo com o pensamento não agrada às pessoas.

- Por que não? Ser mais cômodo do que carregar uma bola com fogo dentro.

- Você poderia queimar uma pessoa, uma casa. Uma casa com uma, duas ou quinze pessoas dentro.

A idéia era tão atroz que os olhos do pequeno elfo se fecha­ram e ele gemeu de dor. Viu, dentro da sua mente, os corpos queimados, sentiu até mesmo o cheiro da carne queimada. O horror o transtornou. Começou a vomitar. Depois, finalmente, conseguiu parar e se pôs a chorar. Não a habitual seqüência de ganidos e chiados, mas um longo pranto, cheio de gemidos agu­dos e uivos lancinantes.

- Faça-o parar! - gritou o homem. - Faça-o parar! É insu­portável!

- Viu o que você fez? — gritou a mulher. - Pare, pequeno, eu lhe peço, está tudo bem, não aconteceu nada. Foi só uma maneira de dizer.

- Maneira de dizer! - O pequeno estava indignado. De qualquer modo, funcionou. Parou de chorar.

- Maneira de dizer. Como ousar, como poder ousar dizer coisa com toda aquela dor, maneira de dizer.

Recomeçou a chorar. Dessa vez, era a mesma seqüência de ganidos lancinantes.

O homem sentou-se num tronco. Também devia ter algu­ma doença, porque ele também dava aqueles suspiros compri­dos, como a mulher. O céu continuou se abrindo. Começaram a aparecer as primeiras estrelas que se viam depois de semanas.

- Eu tenho um coelho - disse o homem. - Eu o cacei esta manhã. Vocês me deram fogo, eu tenho um coelho e parou de chover. Agora, acampamos e comemos alguma coisa. Eu me chamo Monser.

Houve um pouco de silêncio, só um pouco.

- Sajra - disse a mulher.

O pequeno parou de se lamentar e fez ouvir a sua voz.

- Está resfriado? - perguntou o homem.

- Não, não espirrou: isso que ele falou é o nome dele.

- O coelho também tem grãos, como as espigas? - pergun­tou Yorsh, rapidamente reanimado pela palavra “comer”.

O homem se pôs a rir.

- Não - respondeu -, o coelho tem uma bela pele, assim pode-se ter, depois, os pés aquecidos, olhe! - Abriu o alforje, para que o pequeno pudesse olhar.

Yorsh pousou as mãos na beira da bolsa e olhou para dentro dela, feliz. A idéia de alguma coisa que lhe enchesse o estômago e também aquecesse os pés era simplesmente paradisíaca: nem mesmo a avó, que sabia tudo, tinha falado de tesouro parecido. Talvez os humanos não fossem, então, tão... Um grito longo atravessou o pântano.

Um grito longo e atroz, carregado de toda a dor do mundo.

- É um cadáver - gritou o pequeno elfo. - Olha: atingiu-o com a vareta de ponta. E agora está morto. Querem comer um cadáver?

- Por quê? Você come os coelhos vivos? - O homem estava irritado.

- Os elfos não comem nada que um dia pensou, correu, teve fome e teve medo da morte. A vovó dizia isso, que os homens comem quem esteve vivo. Com rosmaninho. Há ros­maninho por aqui? Eu não quero ser comido. - O pequeno entregou-se outra vez ao seu lamentoso e lancinante guincho.

A mulher tomou a cabeça entre as mãos.

- Na sua vida anterior, o que fez você de atroz? Vendeu a sua mãe? - perguntou o homem.

- Acho melhor você ir embora daqui. Obrigada pelo ofereci­mento do coelho. Não importa. Você já tem o fogo. Bem, adeus.

- Você não vai querer renunciar a um pedaço de coelho por aquele ali...

- Eu sei, é uma loucura, mas não suporto ouvi-lo chorar. Peço-lhe que vá.

- Eu não posso ir embora daqui - disse o homem, inseguro.

- Por quê?

- Não posso deixar uma mulher jovem no pântano. Já seria bastante perigoso se você estivesse sozinha, quanto mais com esse aí atrás!

- Obrigada, nobre mestre, mas me saí muito bem sozinha até aqui, não tenho necessidade de ajuda. Pegue o seu...

- Mas o que ele está fazendo?

A mulher virou-se para olhar. O pequeno tinha tomado o coelho nos braços e o acariciava, lentamente. Os seus dedos se detinham onde os pêlos tinham sangue. Tinha os olhos fecha­dos e um ar sonhador. Parara de chorar.

- Mas o que você está fazendo? - perguntou a mulher.

- Penso.

- Pensa? Em quê?

- Nele, no “coelo”.

- Coelho.

- Coelho. Pensava em como respirava. Corria. Ele... sim, ele sentia os cheiros torcendo o nariz. O último cheiro que ele sen­tiu foi de folhas molhadas e cogumelos. Havia cheiros de capim molhado e de cogumelos, sim, um cheiro bom... Penso em como respirava... No sangue correndo dentro dele...

O coelho tremeu, abriu os olhos e os manteve abertos e assustados durante o tempo de alguns suspiros, depois se sacu­diu, pulou para o chão e saiu correndo. Evitou os pés do caça­dor, passou entre as pernas do cão, saltou sobre o tronco em que a mulher estava sentada e, então, depois de uma última finta, desapareceu para sempre no mato.

O pequeno elfo perguntou-se se “Coelho” poderia ser um bom nome para o cão. Talvez não. Pareciam-se um pouco, mas a forma do rabo não combinava exatamente em nada.

Durante um longo tempo, o homem e a mulher ficaram olhando para o ponto onde o rabinho branco do coelho desapa­recera. O pequeno elfo parecia esgotado. Estava agachado no chão, tremendo, então lentamente começou a se recuperar. O cão deitou-se ao lado dele e ele o abraçou.

A escuridão chegou, definitiva.

As estrelas começaram a brilhar sobre o charco, como um segundo firmamento descontínuo e interrompido pelos tufos de caniço.

Era a primeira noite límpida, de inumeráveis luas.

- Além da sua mãe, você vendeu também algum dos seus irmãos menores? - quis saber o homem.

Em vez de responder, a mulher dirigiu-se ao elfo:

- Você sabe fazer isso também com as pessoas?

- Os humanos, os elfos ou os trolls? Claro que não. Só é possível fazer com as criaturas que têm pouca coisa na cabeça: o cheiro da água, a cor do céu. O que é fácil, mesmo, é fazer revi­ver moscas, mosquitos e pequenos insetos; basta alisar e sonhar um instante que se está voando e eles voltam a zumbir.

- Verdade? - perguntou o homem. - Que beleza! No verão, alguém que salva mosquitos é uma companhia preciosa. Alguém que sabe ressuscitar os mosquitos anima o jantar... uma vez que tenha um. Você é o sonho da minha vida. Como é que eu consegui viver sem você até hoje?

- Você sabe fazer outra coisa? - perguntou a mulher. - Eu não sei. Sabe multiplicar as espigas? Nós temos uma: pode fazê-la virar três? Ou cinco?

Eram mesmo bobos. O pequeno pareceu desanimado.

- Mas é claro que não, claro que não é possível multiplicar a matéria.

- E fazer viver outra vez um coelho morto?

- Aquilo se pode fazer. Uma criatura morre quando gasta a sua energia...

- A sua o quê?

- A sua força. O fogo também se apaga quando perde a força. Fazer reviver uma criatura é como reacender o fogo: uma pequena transferência de energia, de dentro da minha cabeça para fora da minha cabeça.

O caçador dirigiu-se à mulher:

- Vamos embora. Vamos embora, é perigoso. Deixe-o aqui e vamos embora.

- Não posso. É... bem, sim... é um menino.

- Um filhote - corrigiu o homem.

- Um nascido há pouco - precisou o pequeno. Fez-se silêncio. A mulher balançou a cabeça.

- Bem, senhores - disse o homem -, foi um verdadeiro pra­zer conhecê-los, ousaria dizer um autêntico divertimento. Eu não gostaria que toda essa felicidade me viesse a fazer mal, por isso volto a seguir o meu caminho de horrível caçador, que des­pedaça os mosquitos por diletantismo, alimenta-se de coelhos e prospera vendendo as suas peles. Mas juro que, se o meu cami­nho tornar a se cruzar com o de vocês, farei o possível para esca­par antes que me vejam.

O pequeno elfo parecia interessado naquela descoberta.

- Ah, é verdade? A felicidade não faz bem aos humanos? Por isso vocês se esforçam tanto para estar mal! Não é só por serem estúpidos!

- Não - respondeu o caçador. - Os homens, em geral, pro­curam ser felizes. O que eu disse chama-se “ironia”. Eu vou embora porque a companhia de vocês me impede a felicidade ou até mesmo de comer o meu coelho. Mas, em vez de eu dizer uma coisa, digo o seu contrário. Os humanos, às vezes, fazem assim. Entendeu?

- Sim, lógico — mentiu o pequeno. Eram mesmo estúpidos. Loucos e estúpidos. Sem esperança.

- Espere - disse a mulher -, eu lhe dou a minha espiga. Por culpa nossa você perdeu o seu coelho. - Tirou do alforje a últi­ma espiga e ofereceu-a ao homem. O pequeno olhou para os grãos amarelos que mudavam de proprietário. Os olhos deixaram de brilhar e a tristeza ocupou-lhe todo o rosto, mas não ousou dar um pio.

- É a única que você tem?

- Sim - respondeu a mulher. Ela também exibia uma expressão de quem acabara de matar a mãe. A mãe e os irmãos menores.

O caçador pensou no assunto, então tirou o arco e a aljava do ombro e sentou-se na única pedra chata que havia em toda a colina.

- Bem, então o coelho se foi. Eu fico aqui esta noite e come­mos um pedaço cada um.

O céu tornou a escurecer, mas a chuva não recomeçou. Acamparam sobre uma rocha seca. A espiga corou ao fogo. O caçador cortou-a em três e eles a comeram lentamente, grão por grão, e então o pequeno adormeceu, como um filhote de mar­mota. Antes de adormecer, por um instante pensou num nome para o cão. “Aquele que corre ao vento” pareceu-lhe bonito, mas não tinha certeza de que, comprido desse jeito, esse nome seria aceitável. Depois que o sono o colheu, o caçador cobriu-o com o seu casaco de pele, para que ficasse aquecido.

Tirou o colete de pele e colocou-o na cabeça do pequeno, cobrindo os olhos, as orelhas e o nariz. Depois, pegou um alfor­je menor, que trazia sob a aljava, e dele tirou uma codorna: depenaram-na com movimentos furtivos e silenciosos. A mulher o ajudava como podia. Puseram o pássaro no fogo, que estava a favor do vento em relação ao pequeno elfo e, quando estava assado ou, pelo menos, não tão cru para ser comível, finalmente o comeram. Dessa vez, comeram rápido - em silên­cio e depressa -, como dois ladrões, com freqüentes olhadas preocupadas para o pacote constituído pelo pequeno que dor­mia. Quando acabaram, deram os ossinhos ao cão, que, feliz, os fez desaparecer no estômago, juntaram todas as penas e o caça­dor se afastou para cavar um pequeno buraco e fazê-las desapa­recer.

Depois, finalmente, adormeceram.

 

A aurora surgiu um pouco menos pálida do que de costume. Outra vez não chovia e havia alguns mesquinhos trechos de azul tênue.

O homem levantou-se primeiro. Espreguiçou-se, respirou profundamente e percebeu que o ar tinha um cheiro bom. Folhas molhadas e cogumelos. Um cheiro bom. Olhou a mulher e o pequeno elfo que dormiam. Juntou as suas coisas, colocou no ombro o bastão com a isca, recolheu o colete que colocara sobre o pequeno elfo e foi embora. Descendo a colina, voltou-se e olhou para eles mais uma vez, a mulher e o pequeno elfo, dois pacotes, perto do que restava do fogo. O pequeno elfo tremia de frio. Dava para ver daquela distância. O homem vol­tou e repôs o colete em torno do pequeno, atiçou o fogo e, enfim, retomou o seu caminho. No meio da colina, parou de novo e olhou para os dois pacotes ao lado do fogo. Andou mais uns quinhentos metros e tornou a se virar. A luz das chamas fundiu-se à do sol nascente, que apareceu no horizonte pela pri­meira vez em meses: mesmo àquela distância, ainda os via. O homem ficou longo tempo parado, olhando para eles, depois, lentamente, tornou a voltar para a cabana.

Sentou-se numa pedra e esperou.

O primeiro a despertar foi o pequeno elfo.

Um longo uivo atravessou o palude, cheio de toda a dor do mundo.

O pequeno elfo gritou longamente contra aquele horrível trapo feito de pele de cadáveres que o cobria. O grito prolongou­se e depois se dispersou entre outros gritos que se misturavam com o eco dos anteriores, ao mesmo tempo que o sol aparecia, depois desaparecia, depois aparecia de novo, até começar a chover.

Puseram-se a caminho. Uma das penas da codorna esvoaçou e foi imediatamente identificada - pelo cheiro ou, talvez, pelos pensamentos que ela fazia ressoar (isso não ficou claro) —, como se tivesse sido perdida por uma codorna falecida, e seguiu-se uma série interminável de torturantes lamentações.

Abatido pelo desconforto, o pequeno não enxergou uma raiz e deu uma topada, a que se seguiu um choramingo surdo, que se prolongou até o meio-dia. A essa altura, o caçador amea­çou espetá-lo como se fosse num espetinho, se não parasse com o choramingo, o que desencadeou uma série de guinchinhos aterrorizados que chegaram até a noite.

Começava a ficar escuro, quando o pequeno elfo percebeu que estava com uma fome intensa. Era um tipo de fome que nascia dentro da barriga e chegava à cabeça, passando pelos pés frios e, de algum modo, também pelas orelhas geladas. Ele foi extremamente loquaz na descrição da sensação que tinha por dentro, não conseguindo estabelecer bem se era simplesmente um vazio, uma falta ou uma verdadeira entidade negativa.

Daí, o discurso se deslocou para um sofrimento generaliza­do, que, nesse caso, também não estava claro se era uma entida­de negativa em si ou simplesmente a falta de alegria, ainda que só do bem-estar, para ser exato, porque... não, a falta de bem-estar é, em geral, um sofrimento maior do que a simples falta de alegria, falta de alegria essa que, aliás, pode constituir uma situa­ção estável, quase normal. Geralmente. No entanto, a propósi­to do sofrimento como entidade em si, nunca lhe contara quan­do enfiou uma lasca sob a unha do dedão do pé direito? Ou seria o esquerdo...? Ah, não, era o da direita mesmo, agora que pensara bem no caso tinha certeza, tinha enfiado um espinho e a avó o arrancara com uma agulha, UMA AGULHA. Sentia-se mal só em pensar, era terrível, TERRÍVEL. E depois, aquela vez que tinha caído e abrira uma ferida no tornozelo. O sangue lhe saíra lá de dentro para se espalhar por fora. Uma coisa horrível, HORRÍVEL. O tornozelo esquerdo. E a unha foi mesmo do dedão direito, agora tinha certeza. E queria dizer que tinha fica­do uma cicatriz. Queriam ver? A cicatriz. Tinham certeza de que não a queriam ver?

Enquanto o pequeno se alongava, descrevendo a terceira vez que tivera um resfriado e sobre quanto muco, de que cor e de que densidade lhe saía do nariz, nos vários momentos da evolu­ção do resfriado, encontraram moitas verdes que tanto a mulher quanto o caçador identificaram como rosmaninho. A partir daquele momento, pela primeira vez, desde a aurora, o pequeno aquietou-se.

De repente, quando atravessavam um bosque de castanhei­ras e salgueiros, no flanco da colina, avistaram Daligar. Ficava no fundo de um pequeno vale, nas duas margens de um peque­no rio transbordante de água. Parecia um lugar de fábula. Havia casas e mais casas, todas com as luzes nas janelas prontas a ilu­minar os paus pontiagudos e cortantes que lhe protegiam os muros externos. Todas as janelas se refletiam na água escura e, como se não bastasse, havia outros pontos de fogo, um sobre cada uma das torres que se distribuíam pelos paredões da cerca, onde ficavam os arqueiros. E, sobre as muralhas, havia outras tochas, uma a cada seis passos, correspondendo aos pares de lanceiros, e todas essas luzes se refletiam nas águas do fosso. A ponte levadiça estava erguida e, como as muralhas e as torres, era dotada de paus pontiagudos apontados para o exterior, o que dava à cidade inteira um aspecto de mastodôntico porco-espinho.

O caçador ficou contemplando o conjunto.

- Não parecem muito amigáveis - comentou.

- Ao contrário! - objetou o pequeno. - As pessoas acendem as luzes quando esperam os amigos. Onde há tantas velas há também espigas. Deve ser bonito ali. Mesas com espigas e também castanhas e depois as velas! Talvez tenham até pratos. Talvez uma cama de verdade. Grandes lareiras. Vamos lá?

- Não, agora vamos dormir e amanhã vamos embora, pas­sando ao largo.

- Por quê?

- Porque a amistosa ponte levadiça deles, iluminada como uma festa de aniversário, está fechada como um marisco. Parece um daqueles lugares onde é difícil entrar e dos quais é ainda mais difícil sair.

- O que é um marisco?

- Uma coisa que fica no mar, a água que está do outro lado das montanhas das trevas.

- Come-se?

- Você? Nunca! Os mariscos são seres vivos; nascem, mor­rem, pensam e servem até de inspiração para poesias. Ponte levadiça e paliçada à parte, você é um elfo e os elfos só podem ficar num “Lugar para Elfos” e esse não é um deles. Se chegar­mos lá com você, acabaremos pendurados numa daquelas torres antes da próxima aurora. Sobre o fim que você terá, eu prefiro não perguntar. Aqueles como você, que se deixam pegar fora de um Lugar para Elfos, têm um fim triste, sabe? Mas muito feio mesmo.

Puseram as suas coisas no chão e começaram a catar madei­ra e pinhas para o fogo. O caçador cortou dois galhos grandes e os colocou um contra o outro, formando, assim, uma pequena cabana, uma espécie de toca que os protegesse um pouco duran­te a noite. A mulher catou musgos, samambaias e capim seco para acolchoar e, então, poder dormir no macio.

- A propósito - disse a mulher -, os elfos já são levados para dentro dos Lugares para Elfos desde tempos remotos. Acho que existem penalidades de fazer rir se pegam um de vocês fora deles. O que faz você aqui, dando a volta ao mundo?

- O Lugar para Elfos onde eu estava foi inundado - respon­deu o pequeno. A lembrança apertou-lhe a alma. O rosto fechou-se outra vez e os olhos se descoloriram pela tristeza, ficando com uma coloração acinzentada indistinta, onde o azul se diluía como a cor do céu numa poça.

- Foi inundado? Havia água por todo lado?

- Sim, ficou tudo dentro da água; então a vovó me disse para ir embora.

- Ir para onde?

- Não sei. Ir embora.

- Mas a sua avó não sabia fazer alguma mágica? Sei lá, fer­ver a água e fazê-la desaparecer, como desaparecem as poças no verão, alguma coisa do gênero.

- Ela pode fazer isso com uma água pequena. De uma tige­la. Não quando a água é bastante para afogar o mundo. E depois a mamãe também tinha ido embora para o lugar de onde não se volta. Para mim, ela era a minha mãe e, para a vovó, ela era a filha. E depois a vovó não fez mais mágicas. Quando alguém tem muita tristeza, a magia se afoga dentro, como as pessoas na água. Acontece que a vovó sabia como se faz. Se você pensa forte nas coisas, elas se tornam verdadeiras. Mas se você tem tristeza lá dentro, tudo o que sai da sua cabeça é tristeza. Você fica tris­te e nem o fogo consegue acender. Nós tínhamos fogo porque o aquecedor estava sempre aceso. Se apagasse, ficaríamos sem, porque a vovó já não tinha força suficiente e eu era muito pequeno. Depois, veio a água e o fogo do aquecedor também se apagou e depois veio outra água, depois outra e a vovó me disse: ‘Vá embora.’ ‘Embora? Para onde?’, perguntei. ‘Qualquer lugar que não seja este’, respondeu ela. A água arrastou também os postos de guarda, ninguém vai parar você. Vá. Eu estou muito velha, mas você pode fazer isso. Vá embora e não olhe para trás.’

“E eu fui. Um passo depois do outro, dentro da lama e den­tro da água. Mas olhei para trás. Nos Lugares para Elfos, as casas não têm portas nem janelas, apenas grandes buracos abertos, assim podia ver a vovó sentada na sua cadeira e a água subindo, e ela ficava ali, e a água subia, e depois a gente via só a água.»

O pequeno se pôs de novo a chorar, numa série sufocada de ganidos leves, quase imperceptíveis.

O homem e a mulher acenderam o fogo, usando a isca do caçador. Depois, cataram no chão do bosque uma braçada de castanhas. Assaram-nas e deram quase todas ao pequeno elfo, pois eles perceberam, estranhamente, os dois, que não tinham fome.

O pequeno comeu-as, lentamente, uma migalha de cada vez, para fazer com que durassem mais, e a sua tristeza se dissol­veu dentro da polpa clara das castanhas.

Antes de adormecer, pensou num nome para o cão, que era da mesma cor das castanhas, mas corria e latia, enquanto as cas­tanhas ficavam paradas, caladas e nunca vinham lamber a sua cara, nem sabiam balançar o rabo. “Castanha” também não caía bem. Devia pensar em algo melhor. Antes que conseguisse pen­sar, adormeceu ao lado do fogo, entre o homem e a mulher, enrolado no seu xale de lã.

 

Foram despertados pelos lanceiros. Eram da patrulha.

Não apenas Daligar, mas também os seus arredores eram proibidos a quem quer que não fosse residente ou de algum modo bem-aceito pelos residentes. E eles não faziam parte de nenhuma dessas categorias.

A patrulha se informou sobre a existência, o montante dos seus eventuais bens e sobre os meios de sustento em geral e a res­posta que obteve, “coisa nenhuma, salvo as roupas que usávamos e três moedas pequenas”, tornou-a ainda menos cordial.

A patrulha assegurou-se detalhadamente sobre o estado de saúde deles. Tinham carrapatos, piolhos, pulgas? Tinham tido contato com portadores de cólera, leprosos, perebentos, escrofulo­sos, alguém com vômito, gente com peste, disenteria, febre, man­chas de qualquer tipo, ulcerações, olhos remelentos, vermes intes­tinais? Porque, nesse caso, seriam abatidos no lugar para evitar qualquer forma de contágio. O filho deles também estava bem? Por que a mãe o tinha no colo, apertado, enrolado naquele xale, se ele estava bem? Porque estava cansado? Era pequeno e chorão? Não, crianças pequenas, cansadas e choronas não eram proibidas.

Depois, foi a vez das armas. Tinham armas de corte, de lance, de tiro, incendiárias, contundentes, penetrantes, calcinantes, para caça, de combate a pé, de combate a cavalo ou em mula, de gatinhas, em duelo, para guerra em bando, em trin­cheira, para assédio e contra-assédio, para tiro ao alvo, para deleite? Siiiiim? Um arco, um punhal, um machado, uma pequena foice, uma faca de cortar pão? Tudo confiscado. Até as duas bolas de ferro para levar fogo: armas incendiárias.

Foram eles que cortaram dois ramos inteiros de proprieda­de do condado de Daligar e arrancaram quatro samambaias para fazer um abrigo? Isso se encaixava na definição de “crime contra o patrimônio do Estado”, para o qual havia um processo apropriado. Seria incômodo para eles segurar o cão, enquanto o engaiolavam? Eram proibidos todos os tipos de animal, tanto domésticos como selvagens, e a fera deles se encaixava em ambas as categorias.

Agora se podia ir.

Entraram em Daligar escoltados pelos lanceiros. Era o lugar mais esquisito e incrível com que o pequeno elfo já sonhara. Havia humanos por toda parte: grandes e pequenos, machos e fêmeas, armados e desarmados, com roupas de todas as cores possíveis.

Muitas vozes. Parecia que todos vendiam de tudo. Tortas, espigas, grandes maçãs, panelas para cozinhar, lenha para quei­mar, madeira para fazer cadeiras. Havia por toda parte animais engraçados andando entre as pessoas. Eram pássaros estranhos, grandes, gordos, com asas pequenas demais para poder voar, que faziam um som curioso em que se repetia continuamente um có-có.

Os lanceiros os escoltaram até o centro da praça, onde havia uma espécie de baldaquim recoberto por uma série de tecidos vermelhos e dourados, que davam a curiosa impressão de um enorme berço, e, dentro dele, um sujeito, vestido com uma roupa branca com bordados, que lhe cobria até a cabeça, dando a impressão de um enorme recém-nascido.

O enorme neonato declarou que respondia pelo curioso nome de JUIZ ADMINISTRADOR DE DALIGAR E LOCALIDADES LIMÍTROFES, que não era exatamente um nome bonito como Yorshkrunsquarkljolnerstrink, mas era, de qualquer maneira, um bonito nome.

O JUIZ ADMINISTRADOR DE DALIGAR E LOCALIDADES LIMÍTROFES informou-se sobre os seus nomes, idades, atividades ou o que quer que soubessem fazer e, acima de tudo, o que tinham vindo fazer em Daligar, embora não fossem residentes, parentes de residentes, hóspedes de residentes ou sequer bem-aceitos pelos residentes.

O caçador respondeu que não lhe importava nada de Daligar e dos seus residentes, parentes de residentes, hóspedes de residentes ou simpatizantes ou o que fossem e que tudo o que queriam era ir embora o mais cedo possível de Daligar e seus arredores, pelo seu caminho.

Pareceu magoado com essa resposta. Ficou de cara emburrada e a multidão em volta murmurou em desaprovação. Não é cortês dizer a alguém que não lhe interessa a casa dele: essas coisas, a avó lhe explicara.

Observou que, se não amavam Daligar, os seus arre­dores e os seus residentes, incluindo os parentes, hóspedes e simpatizantes, teria bastado que houvessem permanecido em suas casas, onde quer que estivessem situadas, a fim de poupar aos lanceiros o trabalho de ter de surrá-los, interrogar e prender e a ele, o JUIZ ADMINISTRADOR, o distúrbio de vir ao encontro deles, julgá-los, condená-los e expulsá-los, para não falar do crime contra a pro­priedade do Estado, a indenização de dois ramos inteiros e a extração de quatro samambaias que, na sua barbárie, tinham infligido à comunidade.

A multidão murmurou em aprovação. Àquela altura, reco­meçou a chover e os humores não melhoraram.

A condenação foi de três pequenas moedas, que era justa­mente o que eles tinham (no momento em que se deu o encon­tro fortuito), o confisco de todas as suas armas e das iscas com fogo. Deixaram o cão com eles.

- Bem - murmurou a mulher, enquanto começavam a se afastar -, podia ser pior.

- E como? - perguntou o caçador.

Naquele momento, começava o segundo caso do dia para Sua Excelência, o JUIZ ADMINISTRADOR.

Era uma mulher cuja carrocinha tinha acabado de matar um dos engraçados pássaros que fazem có-có, que acabou chamando-se “galinha”. A mulher a trazia nos braços e se podia ver-lhe o pescoço quebrado. Quando passava ao lado de Sajra, um minúsculo dedo preso a uma mãozinha, projetando-se da man­ga de inconfundível cor amarela, saiu de sob o xale de lã cinzen­ta para pousar sobre as penas macias em torno da fratura e ficar parado ali. O pescoço da galinha retomou a curvatura normal e lentamente os seus olhos se arregalaram.

Depois disso, foi uma balbúrdia: a galinha fugindo, a pala­vra “elfo” ecoando entre a multidão, todos gritando e se chocan­do uns contra os outros e depois os três em meio às lanças dos lan­ceiros, com as pontas apoiadas precisamente em suas gargantas.

- Pronto! - respondeu a mulher. - Agora está piorando.

Depois da ressurreição da galinha, a atmosfera tinha se tornado verdadeiramente incandescente.

Desta vez tinha antipatizado mesmo com Yorshkrunsquarkljolnerstrink, que, ainda assim, o tinha achado benévolo e simpático e que tinha também um bonito nome, bem, sim, o caçador tinha sido um pouco brusco ao falar junto com ele. Não se diz a uma pessoa que a sua terra não é grande coisa e que você não quer bem àquele lugar. Não é cortês. Não se faz.

- Você é um elfo - disse o juiz, severamente.

As palavras eram lentas. O tom era solene e definitivo. A língua tinha sido vagarosa na palavra “elfo”, dissecando-a: e-l-f-o. As letras caíram como pêras sobre a multidão emudecida.

- É apenas um filhote - disse o caçador.

- Um pequeno - disse a mulher.

- Um nascido há pouco - precisou o pequeno, todo conten­te. Ele também queria fazer saber que tinha um bonito nome, Yorshkrunsquarkljolnerstrink, e se apresentou, fazendo uma pequena mesura.

- É proibido arrotar diante da corte - disse o juiz, entristeci­do. - E eu, o juiz-administrador de Daligar e localidades limítro­fes, proíbo-o também de mentir. - Ao pronunciar estas últimas palavras, o juiz se pusera de pé, com ar cada vez mais solene.

O pequeno ficou perplexo. Os elfos não podem dizer nada diferente daquilo que está dentro da sua cabeça. Bem, sim, uma pequena cortesia: dizer que entendeu quando os discursos são incompreensíveis - porque tratar os estúpidos como estúpidos é uma falta de educação —, mas isso é tudo. O que está dentro da cabeça está também fora. Da perplexidade passou à desilusão. Mesmo tendo um bonito nome humano, não era menos esqui­sito do que os outros.

- E exijo que você me chame com o respeito que mereço. Como era mesmo o tratamento de cortesia? O pequeno elfo começou a se agitar.

- Imbecil!

Não, não devia ser esse.

- Imbelência, não, Excecil. - Como era mesmo?

- Silêncio! - gritou o juiz à multidão que ria aos berros. -E você, me chame de JUIZ ADMINISTRADOR DE DALIGAR E LOCALIDADES LIMÍTROFES - concluiu o homem, dirigindo-se ao elfo.

- Certo, certo! - respondeu o pequeno, entusiasmado, enquanto um enorme sorriso lhe iluminava o rosto. – JUIZ ADMINISTRADOR DE DALIGAR E LOCCALIDADES LIMÍTROFES é um nome belíssimo. Podemos dar ao cão! - acrescentou, triunfante.

A multidão se descontrolou para valer. Um velho senhor quase explodiu de tanto rir e um lanceiro deixou cair a lança no pé. Isso fez recomeçar a hilaridade geral. Contagiado, o peque­no também se pôs a rir: quando riam, os humanos eram mesmo bonitos.

O único que permaneceu sério foi o juiz.

- Responda - disse, dirigindo-se ao pequeno. - Você conhe­ce este homem e esta mulher?

- Sim - disse o pequeno, indeciso.

- Além da culpa gravíssima de conduzir um elfo consigo e da culpa ainda mais grave de tê-lo, com tal engano, introduzido na nossa bem-amada cidade, cometeram algum outro crime?

- Siiiiiim! O humano macho come cadáveres, acho que com rosmaninho, e ainda ganha dinheiro vendendo as suas cas­cas; o humano fêmea vendeu a mãe e os irmãos grandes, não, os pequenos... hummmmm... sim, primeiro os pequenos, não me lembro bem.

O silêncio foi de novo total. Depois explodiu uma balbúr­dia infernal: não se entendia verdadeiramente nada.

- Eu lhe tinha dito que costumo tropeçar nas dificuldades -disse a mulher ao caçador. - Por que você não seguiu o seu caminho?

- Na minha vida anterior, eu devo ter vendido o meu pai -respondeu ele.

Enquanto os levavam embora dali, o pequeno elfo tornou a ver a galinha, empoleirada numa reentrância de janela, onde havia uma espécie de ninho com dois ovos dentro. Olharam-se por um instante e se cumprimentaram, já que, por um instante, tinham sido a mesma mente e isso os unia para sempre.

O pequeno se perguntou se “Galinha” ou “Frango” poderia vir a ser um bom nome para o cão. A forma não era a mesma, mas a cor das penas e do rabo da galinha pareciam um pouco com o rabo e as pernas traseiras do cão. Depois, ocorreu-lhe que o cão não botava ovos e que a galinha não lambia a cara de alguém, se o via triste, e por isso esse nome também não lhe caía bem.

 

Eles foram postos num lugar que se chamava prisão. Era realmente muito bonito. Todo de pedra, sólido, com colu­nas grossas que sustentavam abóbadas e arcos. Aquele tipo de coluna era da terceira dinastia rúnica, percebia-se isso porque os arcos não eram redondos, mas compostos de dois semi-arcos que se cruzavam em ângulo agudo, enquanto os arcos redondos são da primeira dinastia rúnica e os alongados para cima, da segunda.

E havia palha de verdade para dormir em cima. E ainda lhes deram uma tigela de grãos de espiga e ervilhas, que era mesmo boa. Boa e farta. Alguns grãos e algumas ervilhas o pequeno elfo deu de presente a um bando de ratos de uma bela cor preta luzi­dia, que surgiram de todas as partes, quando o odor de comida se espalhou agora, corriam em todas as direções, no chão de pedra.

Aquele lugar era realmente um paraíso. E não havia chuva em lugar algum, a não ser no rosto da mulher, que estava estra­nhamente chovendo por conta própria.

- Por que você está gotejando? - perguntou o pequeno elfo à mulher.

- Chamam-se lágrimas - respondeu o homem. - É a nossa maneira de chorar.

- Verdade? E a coisa que escorre do nariz e que ela está enxugando com a manga?

- Faz parte do choro.

- Quando nós ficamos tristes, lamentamos, assim os outros ouvir o nosso triste e fazer alguma coisa para diminuir o nosso tormento - disse o pequeno, com orgulho mal disfarçado. -Mas ficar sentado no chão, gotejando os olhos e o nariz, assim depois fica com os olhos vermelhos e tem de respirar com a boca, é como fazer vir o resfriado de propósito.

- Com efeito - comentou o homem, seco.

- Por que você está chorando?

Foi o homem de novo que respondeu:

- Porque amanhã de manhã nos enforcarão.

- Ah, é mesmo? E o que quer dizer isso?

- Não - disse a mulher -, eu lhe peço, não, senão ele come­ça a chorar e eu não quero ouvir o pranto dele.

- Bem, é mérito todo dele se...

- Não - repetiu a mulher -, não suporto ouvi-lo chorar.

- Está bem. Ouça, pequeno: amanhã nos enforcarão; será belíssimo; vão nos pendurar no alto e nós poderemos ver toda a multidão lá de cima e os telhados das casas. Será como ser pas­sarinho e voar.

- Oooooooooooh. Verdade? E então, por que ela está cho­rando?

- Ela chora porque sofre de vertigens. Quando fica muito no alto, passa muito mal e começa até a vomitar. Amanhã, para ela, será horrível. Um verdadeiro pesadelo.

- Oooooooooooh. Verdade? - O pequeno elfo estava real­mente sem palavras. Nunca se pára de aprender. - Então, não. Não, não, não, não e não. Se faz passar mal, nada de enforca­mento - disse o pequeno, resoluto. Aquela coisa de esvoaçar lá no alto, acima dos telhados, devia ser maravilhosa, mas não se faz alguém passar mal.

- Não mesmo?

- Não mesmo.

- E o que fazemos? Eles já decidiram nos enforcar.

- Podemos ir embora daqui.

- Está certo, boa idéia. - O caçador parecia mesmo impres­sionado. - Uma boa idéia, mesmo. Você é muito bom em pen­sar. Tem alguma solução para os ferrolhos?

- Vamos abrir - explicou o pequeno, entusiasmado.

- É isso. Absolutamente genial! E as chaves?

- Aquelas coisas compridas que giram e fazem clanc e as portas se abrem?

- Exato, aquelas coisas compridas que fazem clanc e as portas se abrem.

- Estão penduradas oito passos atrás da esquina que se pode ver olhando pelas barras.

O caçador, que estava deitado, sentou-se num único movi­mento.

Também a mulher, que estava agachada num canto, com os braços em volta dos joelhos, enxugou o rosto e se levantou.

- Como é que você sabe?

- Está na cabeça deles — disse o pequeno, apontando para os ratos. - Eles passam na frente delas um monte de vezes por dia. Não sabem o que são as chaves, mas têm a figura dentro da cabeça.

- Você pode fazer alguma coisa para pegar as chaves? Sei lá... fazê-las voar até aqui?

- Mas nãããããão, lógico que não, essas coisas não são absolu­tamente possíveis! A gravidade é inviolável.

- A o quê?

- O princípio pelo qual vai tudo para baixo - explicou o pequeno. - Veja! - Ele fez cair os dois últimos grãos de ervilha, enquanto os ratos se precipitaram em sua direção.

O homem e a mulher sentaram-se de novo.

- É o motivo pelo qual os nossos corpos irão para baixo, enquanto o pescoço ficará no alto, amarrado à corda - explicou a mulher, retomando o choro.

- Eu posso mandar os pequenos e engraçadinhos animais pegar as chaves. As chaves estão logo acima do banco, na pare­de; é um lugar fácil de alcançar para um animalzinho tão engra­çadinho.

De novo, todos em pé.

— De verdade?

- Mas é lógico - confirmou serenamente o pequeno. -Onde é que está o problema? Eles agora são amigos - acrescen­tou calmamente, indicando os ratos. — Se eu penso com força em um pequeno animalzinho engraçadinho desses pegando as chaves e trazendo-as aqui, esse pensamento é uma figura que passa dentro da minha cabeça e da cabecinha do animalzinho engraçadinho e depois ele faz isso.

O pequeno inclinou-se e os seus dedinhos alisaram a cabeça dos ratos. Os animais enxamearam, passando pelas barras da cela para fora, e, depois de um clanc mais forte e de uma série de barulhinhos de ferragens se arrastando, eles reapareceram, puxando um grande molho de chaves. O pequeno elfo o pegou, escolheu uma chave no grande maço e clanc!, o pesado ferrolho se abriu.

— Está feito - disse o pequeno.

A mulher e o homem se esgueiraram rapidamente para fora da cela.

- E agora, para onde vamos?

- A partir daqui, está tudo dentro da cabeça desses animaizinhos engraçadinhos. Dez passos à esquerda, depois outra vez à esquerda, depois as escadas. Aí, um portão. — Mais uma vez, o pequeno elfo escolheu a chave certa na primeira tentativa. -Outra escada, outro portão... oba! De novo para baixo, escada, portão, chave, clanc, está feito, agora passamos para os subterrâ­neos e, depois, o rio. É bonito aqui, olhe, estes são arcos redon­dos, primeira dinastia rúnica.

- Verdadeiramente esplêndido. Depois voltamos, numa outra vez, para olhar com calma. Agora vamos. Sabe, eles podem se ofender por lhes termos frustrado o enforcamento.

— Ooooooh, olhe!

— Aqueles sinais?

- Não são sinais, são letras.

- São marcas: uma decoração.

- Não. São letras. Runas da primeira dinastia. Eu sei ler. A vovó me ensinou. Ela também sabia como ler. Is... to fo... i cons... truí... do... Isso foi construído embaixo do lugar onde corre o rio... Que sorte que eu li. Se passamos daqui, morremos afogados. Para cima, depois contornar. Aí está, vejam, o ultimo portão, a última chave e estamos fora. Clanc. Que ruído bom: são sitenas, não, sinetas. São sinetas, não é?

- São as armaduras dos armígeros. Acho que estão irritados de verdade. Devem estar ofendidos.

- Ei, olhe! Esses arcos do alprendado...

- Alpendrado.

- Esses são arcos alongados: segunda dinastia rúnica. São os primeiros que vejo.

- Estou verdadeiramente impressionado. Podemos procurar nos apressar? As sine... sim, os armígeros estão nos nossos calca­nhares.

- Essas aqui já são runas da segunda dinastia rúnica... distinguem-se porque a parte alta das letras tem aquela forma circular em espiral.

- Fascinante! Mas isso é o melhor que você pode fazer com as pernas ou pode andar mais depressa?

- Aquele tipo de espiral é o símbolo do infinito... não, do tempo em que se enrola de novo: esta é uma profecia!

- A emoção me sufoca. Quer que pegue você no colo, assim corremos mais velozes?

- Q... uan... do a... á... gua co... bri... rá a ter... ra... Quando a água cobrir a terra...

- Mas agora daremos uma boa corrida. Estão nos seguindo. Estão mesmo ofendidos. Eu pego você no colo, assim você pode ler com mais comodidade, enquanto corremos.

- Ei! Fala de elfos! Quando a água cobrir a terra, o sol desapa­recerá, as trevas e o gelo virão. Quando o último dragão e o últi­mo elfo quebrarem o círculo, o passado e o futuro se encontrarão,

o sol de um novo verão resplandecerá no céu... Ei, espere, vá deva­gar. Dizia mais alguma coisa, mas não consegui ler. Dizia alguma coisa de alguém grande e... potente... grande e potente, se casará... deve se casar com uma menina que se chama como a luz nascen­te e que enxerga no escuro e que é a filha... não li de quem!

- Podemos deixar isso de lado - disse o homem, com o últi­mo fôlego que tinha na garganta. - Certamente não será filha nossa: será filha de algum rei ou de algum mago. Aqueles como nós nunca são mencionados nas escrituras em paredes.

Estavam fora do palácio. O caçador corria com o elfo no colo e a mulher ao lado. As ruas eram estreitas, cheias de curvas e, por sorte, quase desertas, à parte eles e os armígeros que os seguiam.

Os armígeros estavam verdadeiramente ofendidos com aquela história do enforcamento e tinham começado a atirar neles as varinhas com ponta, o que não é agradável não, não, não, não, não, e depois alguém pode se machucar.

O pequeno elfo começou a ficar farto deles. Eram realmen­te muito suscetíveis: os três tinham apenas se recusado a deixar-se enforcar!

Um dos armígeros parou diante deles e apontou o seu arco. O pequeno elfo desejou com todas as suas forças que isso não estivesse acontecendo. A imagem se formou na sua cabeça e voou para a cabeça de quem tinha estado com ele. O coelho, que naquele momento estava correndo entre as varas, parou, completamente perplexo. A galinha, que estava chocando num nicho entre as colunas, no alto, justamente sobre o arqueiro, afastou-se da palha e, com todas as forças das suas asas, caiu, como de pára-quedas, bem na cara do guerreiro, que balançou e caiu, deixando a passagem livre.

No fundo da praça, estavam as gaiolas dos animais seqües­trados. O cão da mulher latia com todo o fôlego. Por sorte, não havia ferrolhos: só um grande gancho, que a mulher fez saltar.

Uma rua, uma esquina, mais uma rua, os muros de prote­ção, a ponte levadiça: salvos!

Não, ainda não: fecharam a ponte levadiça bem na cara deles. O caçador, com o pequeno nos braços, esgueirou-se para as escadas que se erguiam nas muralhas. O cão, que o precedia, arrastou um homem de armas que estava parado no caminho dele. Uma vez lá em cima, o homem pegou a mulher pelo pulso e, sempre com o pequeno no braço, passou sobre o parapeito e lançou-se para a água gelada do rio, lá embaixo. O cão atrás.

- Talvez um pequeno enforcamento não fosse assim tão ter­rível! - objetou o pequeno. Mas era tarde.

A lei da gravidade não tem remédio.

Caíram todos, ruidosamente, na água escura.

O pequeno elfo se perguntou se “Força da gravidade” não poderia ser um bom nome para o cão, mas, pensando bem, não era curto nem dava idéia de alguma coisa macia que soubesse brincar.

 

A água entrou pela boca e pelo nariz. Estava terrivelmente gela­da. O ar faltava. O pequeno elfo sentiu o frio e o desespero preencherem tudo. O medo e o desespero podem encher a cabe­ça e a magia se afoga lá dentro.

Depois, de repente, lhe veio à mente ser um peixe. Pensou, bem, como dizer, no estado de peixe, na pura essência da anima­lidade aquática. Pensou na sensação de ter guelras, no prazer da água fria, na alegria de se sentir deslizando, voando sob as ondas como um pássaro voa sob as nuvens. O ar encheu-lhe os pul­mões, o gelo da água tornou-se delicioso.

Deixou-se deslizar por baixo da superfície da água, para evi­tar as varetas pontudas que choviam lá em cima, arremessadas pelos arqueiros da guarnição de Daligar. Nadou para perto dos outros. O cão estava se saindo muito bem, mas o homem e a mulher, como de costume, estavam fazendo coisas estúpidas: ela metia a cabeça dentro d’água e ele procurava mantê-la fora. O pequeno elfo procurou dizer-lhes que aquele não era o momen­to certo para brincar de luta e depois explicar a metodologia correta: a imagem de peixe que se forma na cabeça, depois a atenção concentrada nas guelras, mas o caçador não queria ficar escutando e, em vez disso, foi incrivelmente descortês.

Por sorte, a correnteza ia na direção certa, para longe, cada vez mais longe de Daligar, dos seus lanceiros e dos seus enforca­mentos, em direção aos planaltos e às colinas.

A paisagem ia ficando mais suave. Nas margens, as rochas começavam a rarear e aumentavam os caniçais. A água tornou­se menos alta, a correnteza, menos impetuosa. Finalmente, con­seguiram atingir a margem e arrastar-se para fora.

A mulher não respirava bem: o ar, ao passar, fazia um ruído de água. Uma espécie de gargarejo, que lembrava o ruído de favas ferventes, desde que alguém tenha uma panela, fogo, água e favas, mas também, se não se têm as favas, a água pura quan­do ferve faz aquele ruído.

O homem parecia desesperado. Um monte de água e lama escorria dos cabelos do caçador pelo rosto e por isso o pequeno elfo não estava certo, mas poderia jurar que o nariz e os olhos do homem também gotejavam.

- Faça alguma coisa! - gritou-lhe o homem. - Se você pode, faça alguma coisa, eu lhe peço. Você pode fazer alguma coisa, não é? Ela está morrendo.

- Oh, verdaaaaaaaaaaade?!

O pequeno elfo estava espantado: os humanos, quando morrem, fazem o mesmo ruído que favas no fogo. Esticou o braço e pousou a mão no rosto da mulher.

Foi como levar um murro no estômago. Aliás, um murro nos pulmões e na garganta. O pequeno elfo sentiu a água bor­bulhando por dentro e a garganta ardia como se uma das vare­tas com ponta tivesse chegado lá dentro. Porém, a coisa mais horrível estava na cabeça: aquela sensação de que são os últimos minutos, de que tudo está para acabar. O medo estava por arrastá-lo, mas conseguiu contê-lo, o que foi uma sorte, pois a magia se afoga no medo.

O pequeno se concentrou na respiração, com todas as suas forças: no ar que entra e no ar que sai, no perfume de capim molhado, dos caniços, dos cogumelos.

O ar entra: tem um cheiro bom. Os pulmões se expandem. O ar sai. A cabeça se enche do cheiro do ar e nós sabemos que a respiração que estamos fazendo não é a última, que depois have­rá outra, depois outra e depois outra ainda.

A mulher tossiu uma boa golfada de água lamacenta, depois abriu os olhos e respirou. O pequeno elfo também tossiu.

Ambos estavam muito pálidos e tremiam. O caçador sorriu, feliz, depois correu para recolher caniços e ramos secos. Isso havia em abundância. Mesmo não tendo mais o seu machado e tendo que pegá-los com as mãos, agia depressa. Quando o monte já estava grande o bastante, o pequeno tocou-o com o dedo e o fogo estalou, alegremente. Estavam gelados e molhados, mas o caçador continuava catando caniços e gravetos e o fogo continuava a crepitar e, aos poucos, o gelo e a umidade foram diminuindo. A mulher adormeceu. O caçador encontrou algu­mas nozes num ninho de esquilos e as dividiu com o pequeno.

- Não temos mais armas, mas não nos enforcaram - disse o homem.

- Que pena! Tivemos de renunciar a ficar pendurados, a nos balançar no alto! Teria sido tão bom!

O homem desandou a rir.

- Se você ainda quer, pode-se fazer. Não me tiraram a corda, olhe: ainda a tenho. Agora eu lhe mostro. Esse galho é bastante forte. Amarro aqui... depois ali. Aqui, passo a corda dobrada. Aí está: quer experimentar? Segure com força. Agora, eu levanto.

Era lindo. Para cima, para baixo. Caniços, rio, céu, depois céu, rio, caniços.

Lá longe, as colinas; atrás delas, a luz do sol que se punha. O pequeno elfo nunca tinha visto o sol se pôr. Sempre havia nuvens. Agora estava tudo cor-de-rosa e uma ou outra pequena nuvem comprida e fina brilhava como um colar de ouro. Ao final da luz solar, viam-se bosques de castanheiras alternados com pequenos campos cultivados.

A coisa mais bonita que se podia sonhar. Bonito como voar. A felicidade encheu o pequeno elfo.

A mulher acordou sorrindo.

O pequeno ria como um bobo.

- Olhe, isso é um enforcamento - disse, todo contente, ao humano fêmea.

- Não - replicou ela -, é um balanço. Parou de rir.

- Ser enforcado é uma coisa horrível - continuou. - Põem uma corda em volta do seu pescoço e a esticam, usando o peso do seu próprio corpo. A corda se retesa, o ar não passa na sua garganta e você morre, como eu estava fazendo com a água, ainda há pouco.

O pequeno parou, estarrecido.

Depois, desceu do seu balanço improvisado.

Tinha os olhos arregalados pelo horror.

Ficou cinzento.

O ar começou a lhe faltar.

Enroscou-se no chão e começou uma longa série de lamen­tações entrecortadas.

O homem e a mulher sentiram gelar as vértebras.

- Por que disse isso a ele? - O homem estava furioso. -Estava feliz. Pela primeira vez, feliz.

- Porque ele vai encontrar outros homens e porque os pró­ximos que ele vir poderão também querer enforcá-lo, já que é um elfo. E eu não quero que ele vá ao encontro deles todo feliz, convencido de que a forca seja um balanço.

- Eu posso protegê-lo.

- Eu notei. Se não fosse pelos ratos, agora estávamos numa forca.

- Se não tivesse sido pelos ratos, agora estaríamos numa forca - corrigiu o pequeno, entre lamentos.

A mulher tomou-o nos braços e o apertou contra si. Pouco a pouco, os lamentos cessaram. As primeiras estrelas começaram a brilhar. O perfil suave das colinas se delineava contra o céu azul-safira.

Ela pôs o pequeno no balanço e começou a empurrá-lo devagar.

- Pode começar a ser feliz, se quiser. É preciso apenas que se lembre de que os homens vão enforcá-lo se o pegarem.

- E aí, me comem com rosmaninho?

- Não.

- Sem rosmaninho?

- Os homens não comem os elfos. Nunca.

- E por que querem me enforcar, se nem ao menos me comem? Não é gentil, não, não, não, não, não, não, e depois, o que os faz fazer isso?

O balanço se movia, suavemente.

- Porque todos os humanos odeiam os elfos.

- E por quê?

Seguiu-se um longo silêncio. O balanço oscilava suavemen­te. O cão bocejou.

- A culpa é de vocês.

- Culpa nossa o quê?

- Tudo.

- Tudo o quê?

- Bem, as coisas que não estão bem. A sombra. A chuva. E isso mesmo, a chuva. A água que inunda a terra. A falta de ali­mentos. As nossas crianças estão morrendo de fome por culpa de vocês*Aldeias inteiras têm sido destruídas pela água.

- Nós fazemos chover? E como? - O pequeno estava indig­nado. - E como?

- E que sei eu? Talvez sonhando com a chuva.

- Se sonhando com a chuva eu a pudesse provocar, então eu sonharia com um belo sol, que me enxuga os pés. E depois -prosseguiu o menino - seríamos mesmo estúpidos, porque a água e a miséria nos arrastam como a muitos de vocês. Por que a vovó não pensou no sol enquanto a água subia? Por que a mamãe não pensou em ficar comigo enquanto ia para o lugar de onde não se pode voltar?

O pequeno começou a chorar de novo. Um soluçar bai­xinho.

- Bem. - O caçador parecia perplexo. - Todos dizem que é culpa...

Virou-se para a mulher, procurando socorro.

A mulher estava de pé, ao lado do balanço. Tinha a testa ligeiramente franzida, mas não estava com raiva nem triste, só com a expressão de quem tenciona pensar.

- Nós odiamos vocês porque são mais bravos. Insupor­táveis, mas mais bravos - concluiu. - Vocês têm magia. Sabem mais coisas. O que para nós são desenhos, para vocês são pala­vras... Acho que temos medo de vocês. E, assim como não sabe­mos exatamente o quanto podem ser potentes, achamos que o são muitíssimo. A nossa impotência é tão... total... que quem quer que...

O pequeno tinha parado de chorar.

- ... A propósito de saber fazer as coisas - continuou ela -, como é que você fazia para sempre escolher a chave certa a enfiar na fechadura?

O pequeno pareceu perplexo.

- A chave certa em que sentido? - perguntou, interessado. Agora, era a mulher que estava perplexa.

- Bem, aquela que se encaixa perfeitamente na engrenagem da fechadura em questão e que a abre.

- Para enfiar? - O pequeno estava pasmo. - Aaaaaaaah, é isso? É preciso enfiá-la lá dentro? E que se enco...

- Encaixa. Quer dizer, que combina. Entendeu?

O pequeno estava radiante. E se pôs a pensar com tal inten­sidade que enrugou a testa. Depois, iluminou-se.

- Entendi! - gritou, eufórico. - Há uma chave para cada fechadura: enfia-se lá e, se é a chave certa, combina com o meca­nismo e, quando gira, faz mover o peso de ferro horizontal que trava a porta. É engenhoso. Verdadeiramente engenhoso! Incrivelmente inteligente para humanos! Realmente! A vovó sempre dizia que o máximo a que vocês poderiam chegar seria pousar um capitel no alto de uma coluna e, no entanto, podem, também, ser engenhosos. É entusiasmador!

- Obrigado - disse o caçador, muito secamente.

O pequeno balançava-se, todo contente, no seu balanço, orgulhoso dos novos conhecimentos adquiridos.

- Mas como é que você fez para abrir se não conhecia o encaixe? - perguntou a mulher.

- Eu encostava a chave na fechadura, aparecia na minha cabeça a porta se abrindo e depois... clanc: a porta se abria.

O homem e a mulher ficaram alguns instantes sem respirar, depois recomeçaram:

- Mas então você sempre soube abrir as fechaduras! Sem chaves, sem ratos. Sem nada!

O pequeno ficou se embalando, preguiçosamente, sempre com a testa enrugada.

- Sim, é verdade! - Yorsh explodiu numa risada. - Que engraçado! Estávamos arriscados a ser enforcados e eu sempre fui capaz de abrir as fechaduras!

- Realmente divertido - comentou o caçador. - Essas risa­das me sufocam.

Tinha o tom de voz de quem tem um pedaço de espiga atra­vessado na garganta.

Enquanto ficava se embalando, o pequeno elfo continuava a pensar na fuga deles. De repente, uma outra coisa lhe voltou à mente:

- A profecia!

- Os cachinhos dos pórticos?

- Sim, as letras em espiral. Segunda dinastia rúnica. Agora me lembro.

QUANDO A ÁGUA COBRIR A TERRA, O SOL DESAPARECERÁ, AS TREVAS E O GELO VIRÃO. QUANDO O ÚLTIMO DRAGÃO E O ÚLTIMO ELFO QUEBRAREM O CÍRCULO, O PASSADO E O FUTURO SE ENCONTRARÃO, O SOL DE UM NOVO VERÃO RESPLANDECERA NO CÉU.

- Depois dizia ainda alguma coisa sobre o último elfo que devia se casar com alguém...

 

- E o que quer dizer?

- Não sei. Acho que poderia querer dizer... Interrompeu-se. O cão se levantara e rosnava.

- Ooooooohh, veja, é uma árvore que se move! — disse o pequeno.

- Não é uma árvore, é um troll.

- Verdade? Aquilo é um troll? É o primeiro que vejo! — O pequeno parecia eufórico. - Não me diga! Os arcos da segunda dinastia rúnica e um troll de verdade, tudo no mesmo dia. Hoje é um dia de descoberta! Se escaparmos depressa, talvez nos sal­vemos de novo.

“O que são aquelas duas moitas atrás do troll? São filhotes de troll? Até os trolls têm filhos?

“Aqueles, atrás dele, são os dois humanos maiores e mais cheios de armas que eu já vi.”

Não deu tempo. Os dois gigantes foram mais velozes. Eles estavam cercados.

Eles também se pareciam um pouco com caçadores: tinham as mesmas roupas feitas de trapos e peles de animais e alguns punhais, ainda que, no caso deles, realmente generosa era a quantidade de machados: havia pequenas machadinhas, do tamanho de mãos, enormes cutelos que cortariam uma cabeça de um só golpe, machadinhas de dois gumes, de vários tama­nhos e com o cabo de madeira de diversos feitios, mas todas cui­dadosamente afiadas.

O troll era enorme: elevou-se sobre eles, dominante, e, à última luz oblíqua, a sua ciclópica sombra envolveu a árvore com o pequeno e o balanço que oscilava acima deles. O rosna­do do cão transformou-se num ganido aterrorizado.

- Não se aproximem - ordenou o caçador, ameaçador. Era sempre assim, brigão.

- E por que não? Vocês estão desarmados! — zombou o menor, ou seja, o menos gigantesco dos dois homens, que, de todo modo, pareciam dois anõezinhos perto do troll.

- Não estamos desarmados - replicou o caçador, com voz firme. - Ele é um elfo, um elfo de verdade - prosseguiu, indi­cando o pequeno. - A sua magia pode fazê-los queimar, como um fogo, e arrastá-los, como um furacão. Pode fechar as suas gargantas até que lhes falte ar, como a um enforcado, ou pode atochá-las de água, como a de um afogado.

- Não, não é verdade, não é verdade, não é verdade, não é verdade, não é verdade, não, não, não, não, não, não, não.

Mas por que o caçador continuava a dizer coisas tão arre­piantes, repugnantes e falsas? Falsas. Falsas. Falsas. O pequeno estava indignado, sentia-se desdenhado e ofendido.

- Não é verdade que fazemos essas coisas! Nós não fazemos mal a ninguém! Nós nunca fizemos mal a ninguém! Nós não podemos fazer mal a alguém, porque, se lhe fizermos mal, o mal que lhe fizemos, que está fora da nossa cabeça, entra, depois, na nossa cabeça, pois tudo o que está fora da cabeça está dentro da cabeça, e tudo o que está dentro da cabeça está fora da cabeça!

O pequeno estava farto de ser maltratado por todos e de todos falarem mal dele e da sua estirpe. Bem, quando é preciso é preciso.

Pela primeira vez, o caçador ficara sem palavras. Os dois gigantes também.

Olharam para o caçador, depois para o pequeno, depois de novo para o caçador, de novo para o pequeno, de novo para o caçador.

- Notável a sua arma de defesa - disse o maior dos dois gigantes para o caçador. — Você está pagando pela culpa de uma vida anterior ou é outro o motivo para que você se esconda atrás de um elfo?

Os dois humanos que chegaram primeiro pareciam verda­deiramente perplexos.

- Eu devo ter vendido o meu pai - confirmou o caçador.

- Troll comer elfos - balbuciou o troll, aproximando-se.

O cão ganiu, cada vez mais aterrorizado, mas, valorosamen­te, acrescentou um rosnado ao ganido.

- Não pode comê-lo, é apenas um filhote - disse o caçador.

- Um pequeno - disse a mulher.

- Um nascido há pouco - disse, com exatidão e ousadia, o pequeno.

- Troll comer elfos - repetiu obstinadamente o troll. O pequeno se pôs a rir.

- Sim, lógico, com rosmaninho. Isso se chama “ironia”! -regozijou-se o pequeno elfo, cheio de triunfante cumplicidade.

O troll ficou fulgurante. Imóvel, fixou o rosto do pequeno elfo, com o seu sorriso estampado, como teria olhado um asno voar ou a lua descer e vir jogar bola.

Os dois humanos que chegaram por último estavam imó­veis e ainda tiveram que se esforçar para lembrar que tinham de respirar.

O pequeno se aproximara do troll. O rosto enorme era completamente desprovido de expressão, como a máscara de um ídolo de pedra. O pequeno estava de tal maneira habituado a se encontrar diante de testas enrugadas, enraivecidas ou preo­cupadas que, diante daquela inexpressividade granítica, sentiu-se seguro.

A pele do troll era escamosa como a dos lagartos, que são animais graciosos e a quem o pequeno elfo, além do mais, amava particularmente, porque os lagartos viviam à luz do sol e 1 o sol é bonito. A cara do troll também lembrava muito o lagar­to e, como a pele dos lagartos, a do troll também tinha lumines­cências verdes e roxas, que, além de tudo, eram as cores preferi­das do pequeno elfo, porque eram as cores das cortinas da vovó, quando ainda era permitido aos elfos ter cortinas.

As grandes presas que se projetavam para fora do maxilar, apontando para cima, eram cintilantes como meias-luas e não inquietaram o pequeno nem um pouco, que - na convicção de que qualquer coisa que sirva para morder está dentro da boca — tomou-as por elementos decorativos, a menos que servissem para enfiar as rosquinhas, tanto na função de despensa portátil, como em outra, mais festiva, de servir de pino para algum tipo de brincadeira em que se devem atirar argolas.

Esse pensamento encheu-lhe a alma de júbilo. E o júbilo borbulhou como a água fervendo numa panela e depois, justa­mente como faz a água que ferve numa panela, transbordou, para que todos pudessem se alegrar com ele.

- Como você é bonito - disse o pequeno elfo ao troll. A sua voz era tão bem-humorada que soava sonhadora. O seu som ecoou cheio de ternura e alegria e a sua alegria ressoou na men­te de quem a ouvia.

Transmitiu-se a todos os presentes um instante de glória, de confiança na vida, que tinha produzido uma criatura bonita como o troll.

- Como você é grande! Você é o primeiro troll que eu vejo, sabe? Você é... imponente. Sim, imponente. Vovó não me disse que um troll podia ser tão bonito...

- Bo... bo... bonito? - O troll começou a se recuperar da ful­guração.

Ele não ousava sequer respirar. Por alguns instantes, pareceu ligeiramente ter mudado de expressão ou talvez fosse mais certo dizer que assumia uma expressão.

- Bonito. É. Talvez a vovó nunca tivesse visto um. Um troll, quero dizer. O que dizia a vovó? Que o primeiro troll que você encontra é também o último. Talvez ela tenha querido dizer que não existem muitos trolls então, se você vê um troll na vida; já é muito! Por isso, é uma sorte ver um troll. Mas como eu estou feliz! FELIZ. Eu não só encontrei um deles, mas, melhor do que isso, tão bonito. BONITO.

- Bo... bo... bonito? - choramingou o troll.

- É verdade que você viaja sempre e não pára nunca - con­tinuou o pequeno. - É verdade que já viu o mundo? O mundo todo, até além das colinas? É verdade que você viu o mar? É ver­dade que o mar existe? Sabe, aquela grande água, água por toda a parte, como um campo, só que, no lugar da relva, é água. Deve ser bonito ser um troll. Deve ser belíssimo.

- Bo... bo... bonito? - balbuciou o troll.

- Sim, verdadeiramente bonito. É uma honra conhecer você. Eu me chamo Yorshkrunsquarkljolnerstrink.

- Eu não gosto você com tosse. Você ainda diz eu bonito.

- Você é belíssimo. BELÍSSIMO. BE-LÍS-SI-MO. - O pequeno estava mesmo encantado. A voz dele estava cada vez mais sonha­dora. - Tão grande. Deve ser tão bom ser assim tão grande.

A voz do pequeno elfo era suave e arrebatadora como a brisa de primavera. Era uma suavidade que entrava na alma e a embalava.

- Elfo boa comida, mas esse elfo dizer eu bo... bo... bonito.

- Ei! Eu não acredito mais nessas histórias. - O pequeno elfo parecia o menos impressionado. — Eu sei que você nunca me comeria! Você está só fazendo ironia.

A mulher estava lívida. Até o caçador, que normalmente não se descompunha nunca, estava muito pálido.

- Tinha sido melhor ficarmos em Daligar - disse ela. — Tí­nhamos direito a uma última refeição, antes do enforcamento.

- Teria sido melhor se tivéssemos ficado em Daligar, teríamos tido direito et cetera — corrigiu o pequeno, automaticamente.

- Você vendeu o seu pai por muito? - perguntou o maior dos dois gigantes.

- Mau negócio - respondeu, desconsolado, o caçador.

O pequeno se aproximara dos gigantes. Quem quer que andasse com alguém equipado para o transporte de rosquinhas doces ou para o uso de tudo já mencionado para tiro ao alvo, não podia ser outra coisa senão infinitamente pacífico e bom, jamais como aquele terrível caçador, que andava carregado de arco, flechas e punhais e que, de mais a mais, era tão irritadiço.

- Vocês são cortadores de lenha, não é? - perguntou.

- Corta o quê????

- Quem, nós???? - Os dois gigantes estavam cada vez mais estarrecidos.

- Lenhador, marceneiro! - O pequeno passava a mãozinha, todo feliz, ao longo do fio mortífero dos machados, machadinhas e cutelos. - Transformam os galhos de árvores mortas em coisas para as pessoas vivas. Berços, cadeiras de balanço. A minha avó tinha uma cadeira de balanço, sabem? Era uma cadeira de balanço com o meu berço amarrado; assim, quando ela se balançava, eu também me balançava. Vocês fazem cadei­ras de balanço?

Enquanto pensava nas cadeiras de balanço e nos brinque­dos, a alma do pequeno enchia-se de ternura. Veio-lhe uma vontade infinita de normalidade, do cotidiano, de casa, voltou-lhe a saudade da mãe que jamais conhecera, da avó que tinha deixado.

E toda aquela ternura transbordou da sua alma para a voz.

Todos os presentes tiveram a impressão de que o mel lhe corria nas veias. Todos tiveram vontade de que aquilo conti­nuasse, aquele mel correndo nas veias, aquela sensação de sentir-se bom, amado, de repente.

- Bem... - Os dois carpinteiros ficaram no vácuo. - Mais ou menos.

- Brinquedos também? Vocês fabricam brinquedos? Bo­necas, cavalos de balanço?

- Brin... o quê?

- Quem? Nós? Bonecas?

- Nunca fizeram uma cadeira de balanço, que é uma coisa só, com um berço?

- Hummmmmmmm, não, não, ainda não, não tínhamos pensado nisso.

- Poderiam fazer, é uma boa idéia, uma idéia graciosa.

- Hummmmmmmm, uma idéia graciosa.

- Nunca cortaram árvores que ainda não estivessem mortas?

- Hummmmmmmm, não, nunca - disse o gigante maior.

- Nós as matamos primeiro - confirmou o gigante peque­no -, assim não fazem mal.

- Deve ser bonito ser lenhador. Também lavrador deve ser um trabalho muito bonito. Onde primeiro existe a terra, depois existe o grão. Foi muito bonito conhecer vocês. Ele é muito bonito e vocês são bons.

- Bons?

- Bo... bo... bonito?

Os dois gigantes se levantaram, depois deram de ombros.

A escuridão ficava cada vez mais intensa. Começou a chuviscar, levemente.

Durante aquela noite, ficaram todos juntos, em torno da pequena fogueira que o pequeno acendera, sob uma espécie de cobertura improvisada com galhos que os dois “lenhadores” tinham cortado com seus machados mortíferos.

O cão e o pequeno dormiam enroscados um no outro, como duas vírgulas abraçadas, depois vinham, em seqüência, os três montanheses: o menor dos dois gigantes, o maior dos dois gigantes e, por fim, com o dobro do volume dos outros dois somados, o troll.

O caçador e a mulher estavam do outro lado do fogo. Os dois gigantes roncavam. O troll resmungava, no sono: “Bo... bo... bo... bo... bo...”

- Mas vai continuar choramingando a noite toda? - per­guntou o caçador, irritado.

- Assim que pára de choramingar, começa a nos esfolar -replicou Sajra. - No seu lugar, eu não me lamentaria.

O caçador parou de se lamentar.

O choramingo do troll fundiu-se com o ronco dos outros dois.

Durante o sono, a mulher virou-se e chegou quase a roçar no caçador, que ficou imóvel até o amanhecer, com receio de que ela acordasse e tornasse a se afastar.

Encolhido entre as pernas do cão, o pequeno perguntou-se se “Pequeno Troll” poderia ser um bom nome para um cãozi­nho. Pareceu-lhe gracioso, mas o cão não tinha os porta-argolas nos lados da boca.

Depois, adormeceu e sonhou com o mar.

 

A aurora surgiu cheia de rosa e dourado, que substituíram o escuro do céu, e o brilho das estrelas desapareceu, perdendo-se na claridade, que aumentava. O céu ficou límpido. A paisagem das colinas alternava cumes verdejantes, que resplandeciam ao sol, e minúsculos vales, ainda invadidos pela neblina. Alguns passarinhos cantavam.

O troll foi o primeiro a acordar, seguido do pequeno elfo, que não parou um só instante de comentar-lhe a beleza, a potência e a grandeza.

O pequeno comentou o esplendor das cristas violáceas que ele tinha sob o pescoço, sobre as quais pousava o orvalho, que agora brilhava ao sol. Depois, elogiou os dedos dos pés, que pareciam meia-luas de uma noite de verão, e o nariz redondo e avermelhado, que parecia a lua cheia de uma noite de inverno. Depois, falou demasiadamente da bondade dos dois gigantes­cos humanos, que transformavam as árvores mortas, e também as agonizantes, em fogo quente, em berços, mesas e brinque­dos. Lágrimas de emoção brilharam nos olhos do troll e dos lenhadores.

Um dos gigantes sacou o alforje, para oferecer a refeição matinal a toda a comitiva.

O caçador olhou para ele com total perplexidade, com uma expressão aluada, como se tivesse encontrado o fantasma do próprio pai. O alforje continha seis espigas, isto é, a astronômi­ca cifra de uma para cada um, e um pedaço de presunto defu­mado.

Yorshkrunsquarkljolnerstrink olhou com dor para o pedaço de presunto e gemeu um pouco. Não era muito, em relação à gemedeira por causa do coelho, porque, no caso atual, a partida da criatura já fora há muito tempo para poder sentir ainda a dor do bicho e o seu medo da morte.

- Então, podemos comê-lo?

-Jamais! - respondeu o pequeno, escandalizado. Dirigiu-se aos três: - Querem comer uma criatura que esteve viva? Vocês? Vocês, que são tão bonitos e bons?

- Hummmmmmmmmm, quem, nós?

- Hummmmmmmmmm, nós não.

- Quem sabe como foi que ele foi parar no alforje...?

- Nós, bonito e bom, não come esta coisa que você não quer.

O caçador estava cada vez mais perplexo, com toda aquela conversa, que parecia ao pequeno - finalmente, depois de dias de absurdo - uma conversa normal e a ele, por algum motivo, parecia estranha.

Enquanto as espigas tostavam no fogo, o pequeno elfo ca­vou um buraquinho e sepultou o pedaço de presunto. Cobriu-o bem e o decorou - na falta de flores - com um pequeno ramo de frutinhas vermelhas. Durante toda a operação, o caçador não deixou, nem por um instante, de olhar fixamente para o presun­to, com a cara de alguém que vê o enterro de um parente próxi­mo. Talvez tenha conhecido o porco e se comovesse com a lem­brança... No fim das contas, não era tão mau.

A idéia de uma espiga para cada um foi ilusória. O troll comeu três delas, os gigantes, uma cada um, e o homem, a mulher e o pequeno elfo dividiram a sexta. Mas, mesmo assim, foi uma festa.

No fim, quando o sol estava alto - um verdadeiro sol que resplandecia num verdadeiro céu azul -, os dois grupos se cum­primentaram e cada um se afastou por seu próprio caminho.

O homem, a mulher e o pequeno elfo caminharam acompanha­dos pelo cão, à luz do sol cintilante. Numa pequena clareira, encontraram um pedaço de pergaminho verdadeiro pendurado numa árvore. Marcava a passagem de dois bandidos perigosos que estavam acompanhados de um troll - um dos mais feios jamais vistos por um ser humano. Prometia-se uma recompen­sa. O pequeno achou que era uma verdadeira sorte que os ban­didos não os tivessem encontrado! Porque a eles, aliás, coube encontrar os dois lenhadores e o troll mais bonito jamais visto no universo! Curioso como havia um troll naquela região...

- Alguém pode explicar por que é que ainda estamos vivos e com boa saúde? - perguntou o caçador.

Sajra exibia o sorriso sábio de uma pessoa que entendera.

- O que está na cabeça do pequeno vem para fora e entra na cabeça de quem o ouve - explicou. - Quando Yorsh está deses­perado, é, para nós, insuportável, e quando está com medo, começamos a entrar em pânico, mas, de algum modo, conti­nuamos a pensar. Com a mente... simples, o que o menino diz é uma espécie de inundação: nos enche a cabeça. Ele disse “bonito” e “bons” e eles se adequaram à definição.

- Mente simples? - perguntou Monser.

- Mente simples - confirmou ela.

- Mente simples - ele repetiu. Depois, parou e bateu com a mão na testa. - Esquecemos a corda. Estava amarrada à árvore, como balanço. Esperem aqui, dou uma corrida e a pego.

A mulher, o pequeno e o cão sentaram-se ao sol numa cla­reira. O sol era uma verdadeira alegria.

O caçador correu como o vento. Chegou aonde estava o acampamento improvisado, mas a tumba do presunto já tinha sido aberta e esvaziada. A simplicidade das mentes tem limites: ele não tinha sido o único a ter a idéia de recuperar os despojos.

Pegou a corda, enrolou-a, arrumou-a no alforje e retomou o caminho.

Enquanto caminhava, voltou-lhe à mente o discurso que fi­cara em suspenso. Como era mesmo aquela história da profecia?

Alcançou-os na clareira e perguntou a eles.

Yorshkrunsquarkljolnerstrink se lembrou, procurou na memória e falou:

- Quando a água cobrir a terra, o sol desaparecerá, as trevas e o gelo virão. Quando o último dragão e o último elfo quebra­rem o círculo... o sol de um novo verão resplandecerá no céu.

- E o que quer dizer isso?

- Não sei.

- A sua avó nunca lhe falou da chuva?

- Lógico que me falava da chuva.

- E o que dizia?

- Dizia “Hoje está chovendo de novo” ou “Cubra-se bem, que está chovendo” ou “As cobertas estão ficando mofadas...” Uma vez, disse: “O telhado perde...” Outra vez, ela disse: “Aqui virão viver as rãs.” Depois, quando eu tive resfriado pela tercei­ra vez... eu já lhes contei quando tive resfriado pela terceira vez? Foi quando o muco que me tampava o narizinho tornou-se...

- Não, eu queria dizer se a sua avó nunca lhe falou alguma coisa sobre por que começou a fazer tanto frio e a chover tanto assim nos últimos anos. Nunca lhe disse se isso acabaria, mais dia, menos dia, se é possível fazer alguma coisa para acabar com isso? Ou coisas do gênero.

- Ah, aquilo. Não, nunca me disse nada disso.

- Tem certeza?

- Tenho.

- Está bem - disse a mulher. - O que sabe você sobre os dragões?

- São grandes, têm asas. Voam. Têm um temperamento difícil, principalmente quando os homens os massacraram, e são os detentores dos antigos segredos do mundo e sabem ler as escritas rúnicas, não como gente que eu conheço... não vou dizer os nomes... que as toma por simples garranchos.

- Devemos encontrar o último dragão e o último... — O homem se interrompeu, como se lhe tivesse vindo alguma coisa à mente. Olhou para o pequeno e não ousou continuar.

- O último elfo - completou o pequeno. - Pobrezinho! O último elfo. Deve ser terrível ser o último elfo. Estar sempre sozinho. Além disso, significa que não haverá mais elfos. É atroz. ATROZ. Me faz mal à mente só em pensar nisso. Ei, assim poderei conhecer outro elfo. Eu só conhecia a minha avó e a mim mesmo. E, quando eu o tiver conhecido, ele não será mais o último, pois seremos dois, e será muito boni... - O pequeno parou. - Mas se eu existo, ele não pode ser o último...

Fez-se silêncio. Um longo silêncio.

- Eu sou o último elfo.

Silêncio. Longo silêncio. De repente, o sol desapareceu e ergueu-se a neblina. Um pássaro gritou, rouco. A mulher inclinou-se, envolveu o pequeno com os braços e segurou-o, apertado, como nunca havia feito antes.

- É uma profecia. Nós não sabemos a que época se refere. Talvez aconteça daqui a três mil anos... Talvez nem seja verda­deira; pois nem sempre as profecias se realizam; aliás...

O pequeno ficou amarelo-esverdeado. Os seus olhos verde-azulados perderam completamente a luz.

- Talvez dentro de dois mil anos... - confirmou o homem. - Talvez nunca aconteça.

Ele também se inclinara, para envolver o pequeno com os braços.

Ficaram ali, um bloco só, na neblina. Começou a cair uma chuva fina. Nem assim eles se moveram.

O cão se aproximou, assim ficaram os quatro, todos juntos, agarrados sob a chuva. A mulher moveu-se primeiro.

- Podemos nos abrigar sob as árvores.

- Há uma torre aqui perto. Ouço o ruído de água: estamos perto de um riacho, um pouco distante da cidade de Daligar, com o rio às costas. Eu sei onde estamos. Por esses lados, deve haver uma torre abandonada, com uma árvore em cima.

- Como é que você sabe?

- Ouço o ruído da água do riacho e, depois, eu vi o dese­nho. Eu lhes disse. Eu sei onde estamos.

- Mas que desenho? De que está falando?

- Depois eu explico. Agora, vamos procurar um lugar onde ficar.

O pequeno parecia muito cansado. O seu olhar já não tinha nenhuma luz.

Transpuseram arduamente densas moitas de sarça espinhenta. Lá estava o riacho. A água era límpida e as margens eram recobertas de relva verde e macia. Um pouco distante do ponto onde saíram do sarçal, abria-se uma pequena clareira, sobre a qual se erguia uma torre semi destruída. Em cima da torre, cres­cia um enorme carvalho.

Refugiaram-se lá dentro. A dependência central da torre estava intacta e havia até um feixe de lenha quase seca, que o pequeno, ainda que com imenso esforço, conseguiu acender.

O caçador encheu o cantil de água e houve água para todos. Depois, o homem conseguiu capturar uma pequena truta e explicou ao pequeno que não havia escolha: ou a morte do pei­xinho ou a morte deles - dele próprio, da mulher e do cão - por fome.

O pequeno concordou. O cão ficou ali, enroscado em torno dele, tépido, silencioso.

Permitiu que o seu desespero se distraísse, para encontrar, finalmente, um nome para o cão. “Confiável” poderia ser um bom nome. Aquele que nunca o abandona, nunca o deixa, está sempre ao seu lado para bater-se por você. Talvez apenas encur­tar um pouco. Confiável, fiel... FIDO. Finalmente, o nome per­feito: FIDO; confiável, fiel; eis o nome certo. O meu fiel com­panheiro, o meu cão fido. Perfeito.

Encontrado o nome para o cão, o pequeno voltou ao deses­pero. Sobrara só ele. Os outros elfos, perseguidos, caçados, deportados, escarnecidos, as vezes enforcados, outras vezes sim­plesmente abandonados para morrer de fome, estavam mortos, todos, expulsos do reino dos vivos. Não havia mais nenhum, exceto ele. Era o último.

 

O homem e a mulher comeram a sua meia truta, sentindo-se como dois algozes, num canto, enquanto o pequeno agonizava, no canto oposto. O caçador levara para ele um pouco de cogu­melos que encontrara, mas o pequeno não queria saber deles. O cão aconchegou-se a ele e o pequeno o abraçou. Depois, o pequeno pediu aos dois humanos que saíssem e sepultassem o que sobrara da pequena truta, bem longe e de maneira decente. Sentindo-se um pouco os piores dos idiotas e um pouco os pio­res dos criminosos que já existiram, os dois atenderam.

Quando voltaram, o pequeno levantou-se do seu canto e tirou, de sob a sua roupa amarela, a gasta sacola bordada. Esvaziou-a, virando-a pelo avesso, e de dentro dela saíram, na ordem: um peão de madeira colorido, azul-claro e escuro, um pequeno livro encapado de veludo azul, bordado em prata, for­mando caracteres élficos, um pedaço de pergaminho enrolado e fechado por um laço de veludo azul.

- A cor dos elfos é o azul - explicou o pequeno -, mas agora nos é proibido. Nós odiamos o amarelo.

Os dois humanos assentiram.

O pequeno desfez o lacinho e abriu o pergaminho.

- Sabem o que é isso? - perguntou o elfo.

- Um pedaço de pergaminho.

- Sim, concordo, mas sabem o que são esses sinais?

- Desenhos? - propôs o homem.

- Letras? - propôs a mulher.

- É um mapa! Quando me disse para ir embora, vovó me fez pegar também este livro de poesia e o mapa. O livro era da mamãe e o mapa, do meu pai. Ele era viajante. Por isso, morreu. Os elfos não podem estar fora dos Lugares para Elfos. Quando tentou voltar para casa, para o Lugar para Elfos onde nós estáva­mos, uma patrulha o prendeu e havia pena de morte. Por isso, eu nunca conheci o meu pai. Este é o mapa de todo o caminho que fizemos e o que ainda temos de fazer. Mas... não sabem ler um mapa? Este é fácil: os nomes estão escritos tanto em língua de elfos como na língua humana.

Silêncio. Uma dúvida atroz percorreu a mente do pequeno elfo.

- Vocês não sabem ler! Não sabem ler nada! Não apenas as antigas runas, mas também a língua corrente! Silêncio.

O homem deu de ombros. A mulher concordou. Era terrível!

O pequeno elfo sentiu piedade daqueles dois pobres-coitados, dispersos num mundo onde não havia como conservar as palavras. Ocorreu-lhe que tinha de ser paciente com eles, cor­tês e paciente, porque eles estavam perdidos num mundo onde as palavras se perdiam no tempo e ficavam apenas na memória.

O pequeno explicou o mapa: tinha de um lado as Montanhas Escuras e, além das Montanhas Escuras, o mar. Embaixo, à esquerda, estava desenhado um grande grupo de casas cercado por muros, atravessado por um rio, e aquilo era Daligar - esta­va escrito ali. O rio se chamava Dogon - isso também estava escrito. Onde eles estavam naquele momento era aquele riacho ali, um riacho sem nome; perto dele, estava desenhada uma torre inteira, com um pequeno carvalho em cima. Aquela em que eles estavam era uma meia torre com um enorme carvalho em cima: evidentemente, desde que o seu pai passara por ali, as coisas tinham corrido bem para o carvalho e menos bem para a torre, mas o lugar era certamente o mesmo. O riacho se juntava pouco depois com o Dogon, o rio de Daligar, e depois prosse­guia para além de Arstrid, que era o último vilarejo assinalado, no sentido das Montanhas Escuras. O rio as atravessava, num vale profundo, desenhado tão bem no mapa que se percebia até a rocha que se sobrepunha ao passo. Era uma rocha com um filete de fumaça desenhado em cima e uma escrita que dizia HIC SUNT DRACOS, língua da terceira dinastia rúnica: “Aqui estão os dragões.”

Depois da rocha, havia um estranho desenho sobre o rio.

Então, bastava seguir o riacho para chegar ao rio. E bastava seguir o rio para chegar ao dragão.

Era ele o último elfo.

Era ele que devia fazer isso.

- Como é que você tem tanta certeza? - perguntou a mulher.

- O meu nome; está dentro do meu nome. Yorshkrunsquarkljolnerstrink é o meu nome. Nerstrink quer dizer “o últi­mo”, em élfico.

- Talvez não queira dizer nada. Talvez seja um som como qualquer outro, sem significado verdadeiro. Eu me chamo Sajra, que é o nome que, no meu vilarejo, dão a uma flor que cresce nos muros, mas eu não sou uma flor.

- O que quer dizer o resto do nome? - perguntou o homem.

- Grande e poderoso.

- Com certeza, é somente um monte de sons - confirmou o homem.

- Shk é um elemento reforçador de maioria absoluta.

- Um o quê?

- Quer dizer “o mais”, o absoluto. Runsq quer dizer “gran­de” e uarkljol, “poderoso”. O maior, o mais potente e o último, aquele depois do qual não haverá mais nenhum.

O pequeno pareceu diferente. Novamente, os seus grandes olhos brilhavam em verde e azul, as cores dos elfos, iluminando o rosto como se viessem de dentro. Parecia até mesmo mais alto.

- Partimos amanhã - disse, calmo. - Vamos procurar o últi­mo dragão. Eu e ele devemos romper um círculo. Não sei que círculo. Não sei o que significa. Mas, depois, o sol voltará.

Então, o pequeno elevou os olhos e olhou em redor. Os muros da antiga torre o circundavam.

- O meu pai esteve aqui - disse, comovido. Olhou demora­damente para as pedras antigas e as alisou com a mão. - Meu pai também tocou nestas pedras - acrescentou. Depois, tornou a olhar para o mapa. — Há este desenho estranho no mapa; como se indicasse alguma coisa que está mais embaixo.

Indicava alguma coisa que estava mais para baixo. Indicava que, no subsolo, abaixo dos pés deles, a torre continuava terra adentro. As achas de lenha escondiam um pequeno alçapão que levava a uma pequena cela escondida, onde estavam guardados uma espada, um machado e um arco. Tudo tinha incrustações de prata que formavam letras élficas inconfundíveis. As flechas do arco eram três, elas também incrustadas de prata que envol­via as espirais de palavras misteriosas.

- Como se chamava o seu pai? - perguntou o homem, quan­do conseguiu recuperar a voz.

- Gornonbenmayerguld.

- O que significa?

- Aquele que encontra o caminho e o mostra aos outros. Na aljava havia, ainda, um saquinho de veludo azul com três moedas de ouro dentro.

- O seu pai lhe deixou uma verdadeira herança - concluiu o homem.

O pequeno elfo teve a impressão de ter se tornado menos órfão. Era uma sensação curiosa. Como se a solidão fosse uma parede de vidro que, pela primeira vez, mostrava rachaduras e fendas.

Ele era o último de uma estirpe destruída, mas lhe chegava do passado um pouco do afeto que o presente lhe negava.

Ele passava e repassava os dedos sobre os objetos: tinham sido feitos para ele, tinham sido deixados para ele.

Alguém o tinha querido bem enquanto os fazia e quando os deixou.

Esperou que a morte fosse um lugar de onde o seu pai pudesse vê-lo.

 

Ao amanhecer, a neblina subiu. Apressaram-se a caminhar, a bom passo, seguindo a corrente. Depois de algumas horas, começou a cair uma chuva leve, que não atrapalhou a marcha.

No fim da manhã, avistaram o rio. O sarçal dera lugar a grandes castanheiras, o que significava poder caminhar, céleres e de barriga cheia. Comiam as castanhas cruas, andando, para não parar para cozinhar.

O rio ficou mais largo. O céu clareou. A chuva parou. Numa reentrância, encontraram um grupo de três casas ladean­do um campo de milho e uma vinha. Só podia ser Arstrid, a última aldeia que figurava no mapa. Havia prados, um bosque de castanhas e, ao fundo, começavam as elevações. As Mon­tanhas Escuras não estavam longe. Entre as casas, havia treliças encimadas por uma grande panela de cobre, em que se defuma­vam umas doze trutas. Em torno das casas, um grupo de maciei­ras deixava cair maçãs. Em meio à reentrância, amarrados com grossas cordas a pilares de madeira, três barquinhos balançavam na correnteza. Espalhadas entre as filas de castanheiras, em meio aos prados, havia uma dezena de belas ovelhas e algumas cabras. Cada uma das casas tinha uma chaminé produzindo fumaça.

- Antes das chuvas sem fim, todo o mundo devia ser assim, rico e belo - disse a mulher.

Os habitantes, cerca de uma dúzia entre homens e mulhe­res, mais um grupo impreciso de crianças, reuniram-se à chega­da deles. Usavam roupas feitas de lã grossa e crua ou tingida de índigo. Olharam para a túnica amarela do pequeno e para o arco de elfo que o caçador levava, mas não demonstraram medo nem cautela.

O caçador falou primeiro. Cumprimentou com cortesia, disse como se chamava, perguntou se era possível comprar comida, um dos barcos e roupas.

O grupo não respondeu logo. Houve uma longa conversa­ção entre eles; depois, aquele que parecia o mais velho, um homem idoso, de barba branca e curta, perguntou o que tinham para pagar.

- Um verdadeiro pedaço de ouro de verdade - ofereceu o caçador. Seguiu-se uma negociação interminável. Não houve nada a fazer: o velho quis três moedas. O caçador teve de ceder.

Por fim, o negócio foi feito. O barco escolhido era pequeno, mas sólido. O caçador carregou um odre de leite de cabra, um saco grande de maçãs, um saco menor de espigas de milho e dois outros, ainda menores, de trutas defumadas e de uvas-passas. Depois, comprou uma túnica, um par de calças e um grande manto de lã índigo para Yorsh, para que ele pudesse se livrar dos seus andrajos amarelos toscos e rasgados.

Yorsh iluminou-se ao vê-los.

- O outro elfo também estava vestido de azul - disse o velho. - Aquele que passou por aqui, há alguns anos. Aquele que nos vendeu, por essas três moedas de ouro, a panela da abundância e da concórdia.

-A... o quê?

- A panela da abundância e da concórdia - explicou o velho, indicando o panelão da defumação. Era uma panela estranha, com uma espécie de fundo duplo, onde ficava o car­vão, e alguns buracos em cima, por onde saía a fumaça. - En­quanto a panela funciona, nós estamos protegidos contra a miséria e as disputas. A chuva cai na medida certa e, desde que o elfo passou por aqui, não há mais rixas: antes, eram pelo menos três, todos os dias. Acabavam sempre bem: por estas ban­das, somos todos bons na faca. As três moedas de ouro eram jus­tamente estas. Uma um pouco oval e outra meio amassada de um lado. O pequeno elfo é filho dele, não é? Bem, foi um pra­zer fazer negócio com vocês. Não é só porque recuperamos o ouro da aldeia, mas é que, se vocês também espalham concórdia e abundância, foi bom tê-los ajudado.

- Você não acredita que reaver uma das três moedas de ouro nos ajudaria mais tarde? - tentou o caçador.

- Tenho certeza de que vocês são capazes de se sair bem mesmo assim - disse o velho, serenamente. — O outro elfo, antes de partir, aprendeu a lição sobre as leis do comércio e da nego­ciação. Ele era um ser realmente extraordinário.

Andar de barco foi delicioso. Era só ficar estendido de costas, enquanto a corrente fazia todo o trabalho de levá-lo na direção certa. O barco era deliciosamente confortável. Tinha uma pequena cobertura de madeira para proteger da chuva e um bra­seiro de ferro, onde se podia manter o fogo para aquecer os pés e assar espigas. Pela manhã e à tarde, desceram à margem para deixar o cão correr um pouco e para recolher arbustos e lenha seca. As margens eram às vezes rochosas, às vezes orladas de praias estreitas, mas sempre mansas e desertas. Pela primeira vez na vida, a companheira constante deles — a fome - os abando­nara. O pequeno elfo concordou em permitir aos três carnívo­ros alguns bocados de truta defumada.

As montanhas se aproximavam cada dia mais. E, a cada dia, era mais longo o tempo em que permaneciam à sombra dos cumes. O pequeno elfo ficava silencioso, ao lado do braseiro, com o seu livrinho na mão.

- O seu pai devia ser dono de uma magia extremamente poderosa - disse Monser, certa manhã.

- A vovó dizia que não. Que a magia não é igual para todos: há quem tenha mais, há quem tenha menos. E vovó dizia que papai era, com certeza, o elfo menos mágico que conhecera. Dizia que a única coisa que ele sabia fazer com a magia era acen­der fogo. Quando estava bem e o vento soprava na direção certa.

Enquanto a vovó sabia muito bem fazer a água ferver e curar verrugas com ervas.

- Então, como fez o seu pai para tornar aquele lugar rico e pacífico? Como pôde fazer a chuva diminuir?

- Não sei. Nada faz sentido!

Agora, a sombra os cercava por todos os lados. O rio corria pacífico no centro de uma enorme garganta.

As paredes caíam a prumo sobre a água, de uma altura ver­tiginosa. Acima deles, o céu se transformara num corredor para­lelo ao rio, entre duas gigantescas muralhas de rocha que os ladeavam.

No alto, na parte mais elevada das duas paredes, tornara-se visível um monte de rochas, mas talvez fosse uma construção. O que não deixava qualquer dúvida eram o penacho de fumaça que sobressaía a tudo e a escrita, esculpida embaixo, em enor­mes caracteres:

HIC SUNT DRACOS.

Aqui estão os dragões. Caracteres da segunda dinastia rúnica. Era para o que o pequeno estava apontando.

A correnteza era veloz, mas o barco tinha um remo e o homem conseguiu aproximar-se da margem e amarrá-lo, alcan­çando com a sua corda um espigão de rocha. A corda se retesou, o barco virou de lado bruscamente e girou velozmente para trás do espigão. A proa encaixou-se num montículo de pequenas plantas. Escondida por esse montículo, havia uma praia minús­cula, de um ou dois passos de comprimento. Era o único ponto de desembarque de toda a garganta e se abria para uma escada muito estreita e muito íngreme, escavada na rocha clara.

O pequeno abriu o mapa e olhou.

- Entendi o que significa este sinal: uma cachoeira. Daqui eu posso ouvir o ruído. Não se pode voltar atrás e, à frente, está a cachoeira. É melhor subir pela escada!

Apressaram-se. Os degraus eram estreitos e íngremes. Em alguns pontos, tinham ruído parcialmente. Em outros, o musgo os tornara escorregadios e não confiáveis. Depois das primeiras horas de marcha, o sol apareceu. Chegaram a um ponto sufi­cientemente alto para ver a cachoeira: era um verdadeiro pare­dão de água, que compunha, com o sol, um arco-íris. O esforço começou a ficar excessivo. Paravam cada vez com mais freqüên­cia. Quando, finalmente, a escada terminou, já eram as primei­ras horas da tarde. Além das Montanhas Escuras havia uma pla­nície e, além da planície, uma longa faixa azul separada do céu pelo horizonte. O mar! Estavam vendo o mar! O pequeno elfo recuperou a coragem. Até o seu cansaço sumiu. Tinha visto o mar, como o seu pai. Acima dele, reinava a inscrição

HIC SUNT DRACOS.

Depois, o caminho fazia uma curva e chegava ao espigão de pedra que — agora podia-se ver - era uma enorme rocha escava­da no interior, tornando-a, assim, uma construção. O cume da rocha perdia-se na fortemente densa camada de nuvens baixas que sempre o contornava. Tinha conseguido. Chegara.

O homem segurava o arco com a flecha pronta para o tiro, com o fio tenso. A mulher empunhava a machadinha. Até o cão parecia pouco à vontade: farejava em volta, circunspecto.

O pequeno atingiu o topo. Havia um enorme portão, ladea­do de inscrições. Eram caracteres da primeira dinastia rúnica.

- O que está escrito? - perguntou o homem. O pequeno começou a decifrar a inscrição.

O terror o atormentava e, ao mesmo tempo, lhe provocava uma espécie de exultação. O seu destino estava prestes a se cum­prir. A profecia estava diante dele.

- Proi... betur, proibetur... sputaz... zel... lis. Proibido cuspir.

- Proibido cuspir? Não é possível. Tem certeza?

- Sim. - Yorsh também estava perplexo.

- Ei, espere aí, atravessamos meio mundo, cuspimos os pul­mões naquela maldita escada...

- A escada não era tão terrível!

- Não era terrível porque eu carreguei você no colo! Subi mais degraus do que as gotas que existem no mar para vir aqui ler que é proibido cuspir? Não tinha de haver um círculo, o futuro, o sol da nova primavera? Veja se não está escrito mais alguma coisa, ali há mais garranchos.

- É proibido cuspir, correr, atirar migalhas e falar alto -confirmou o pequeno elfo. - É obrigatório lavar as mãos antes de entrar — acrescentou.

Naquele momento, a porta se abriu e apareceu o dragão.

 

O dragão parecia irritado.

Era velho de verdade, e não é fácil decifrar a expressão de um dragão, acima de tudo se é um dragão muito velho e quan­do é a primeira vez que se encontra um. Porém, era evidente que estava irritado.

O portão de madeira era altíssimo, tão alto quanto uns dez tipos como o troll, um nos ombros do outro. Abrira-se com um ruído impressionante e mostrara uma enorme sala, onde cachos de estalactites e estalagmites se projetavam e se encontravam, criando infinitos trançados de sombras e luzes. O dragão estava no centro. A luz vinha do alto, filtrada por dezenas de pequenas janelas fechadas por finas lâminas de âmbar, que davam a tudo uma claridade dourada.

- Em que mal incorreis, ó imprudentes estrangeiros, que até a minha porta chegastes para fazer o vosso despudorado tumul­to e violar a paz destas plácidas paragens?

A voz do dragão, de qualquer maneira, colheu-os de impro­viso. Ficaram sobressaltados. Depois, olharam uns para os ou­tros, procurando estabelecer, com o olhar, qual dos três era o mais indicado para responder.

Monser foi o que primeiro tomou coragem:

- Pois bem, senhor, eu sou um homem e ele, um elfo.

- Ninguém é perfeito neste mundo - comentou, magnâni­mo, o dragão, que não pareceu impressionado pela notícia. -Nem todas as criaturas podem nascer dragões, que é a melhor forma da natureza - concluiu, condescendente.

O caçador ficou um instante perplexo pela interrupção; engoliu em seco, respirou fundo e depois recomeçou:

- Ele, o pequeno elfo, quero dizer, se chama Yorshkrunsquarkljolnerstrink.

Essa informação também não pareceu impressionar o dragão.

- É cuidadosamente indicada a interdição de cuspir - sen­tenciou o dragão.

- Eu não cuspi. Esse é o nome dele. O pai dele se chamava Gornonbenmayerguld.

- Cada um tem o seu nome - rebateu o dragão, cada vez menos impressionado.

Houve um silêncio embaraçoso. O destino parecia incerto e a profecia, evidentemente, devia ter se perdido pelo caminho.

Yorshkrunsquarkljolnerstrink procurou recomeçar o dis­curso:

- Nós lemos uma profecia, que falava de vós, imbec... não, Excelência.

- Quem foi que fez essa profecia?

- Os humanos da segunda dinastia rúnica, na cidade de Daligar.

- Bastante difícil é a arte de o futuro predizer e nunca se soube que os humanos nela se tivessem saído bem e sempre se jul­gou tolo quem acreditou naquelas garatujas feitas numa parede. Agora, cavalheiros, eu vos convido ao incômodo de vos retirardes e isso quer dizer que deveis ir embora - concluiu o dragão.

O portão se fechou. O estrondo foi tão ensurdecedor que algumas pequenas pedras rolaram do alto do pináculo e eles tiveram de se esquivar. Depois, novamente o silêncio.

- Mas em que diabo de língua ele falou? O que disse? - per­guntou Monser.

- Disse que a profecia era uma tolice e que podíamos ir embora - traduziu o pequeno, desanimado.

Deixou-se cair sentado pesadamente numa grande pedra. O cão veio lamber-lhe a cara.

Até o homem estava petrificado. Acocorou-se exatamente onde estava. Com a cabeça entre as mãos. A mulher permaneceu de pé, pensativa.

- Como é que ele sabia que a profecia estava escrita na pare­de? - perguntou ela, por fim. Era a única que ficara de pé. -Muito mais provável que fosse num pergaminho, numa tábua de madeira, num escudo, num ícone: os lugares em que normal­mente se escreve.

A mulher abaixou-se, pegou uma pedra e atirou-a contra o portão.

- Ei, você - berrou a plenos pulmões -, abre essa porta, se não quer que a derrubemos a pedradas!

- Você enlouqueceu? Quer morrer?

- Não, ao contrário, não quero morrer. Estamos em cima de uma montanha em que só se chega por um rio que é muito veloz para ser navegado contra a corrente e que segue para a cachoeira mais fatal que se pode imaginar. Se existe um cami­nho de saída, passa pela gruta daquele sujeito, por isso tanto faz tentar, ou ficaremos aqui pela eternidade, para servir de comida aos corvos. E depois, não se pode voltar deste ponto. Chegamos até aqui e, de qualquer maneira, temos de enfrentar o dragão.

- Ele nem precisa fazer muita coisa para nos fazer em peda­ços! Basta urrar.

A mulher não o escutou. Virou-se outra vez para o portão e dessa vez acertou-o com uma flecha élfica. Voaram lascas para todo lado.

- Ei! - tornou a gritar. - Estou falando com você!

O portão tornou a abrir-se, dessa vez não completamente.

- Como pudeste tu ousar... - começou o dragão.

- Você também sabia da profecia, não é?

- Ouvi alguma coisa - admitiu vagamente o dragão -, mas isso não significa nada.

- Você está com medo? — perguntou a mulher. — Há alguma coisa na nossa vinda que lhe dá medo, que pode pôr você em perigo? Alguma coisa que não sabemos? É muito estranho que você não está nem um pouco curioso...

- Não esteja - corrigiu automaticamente o pequeno. A mulher o fuzilou com o olhar.

- É muito estranho que você não esteja nem um pouco curioso. E a mítica hospitalidade dos dragões? Nem nos convi­dou a entrar!

- A veneranda idade - começou o dragão a se justificar a dor que me causam os ossos dos pés meus...

- Não tenha medo - disse ela.

- Não tenha medo? - resmungou o caçador. - De quem? De nós? Basta que ele tussa e acabamos em brasas, como as espigas.

Houve um longo silêncio.

- Mas vocês não entendem? Ele é velho, cansado, sozinho e não tem mais poderes. É ele que tem medo de nós. Mas será possível que não entendam nada, nunca? - A mulher estava realmente irritada. - Não tenha medo - repetiu ela para o velho dragão.

Mais um longo silêncio. O único ruído era, muito distante, o da cachoeira.

Então, o dragão começou a chorar. Foi uma longa série de soluços convulsos, que se transformaram numa choradeira de filhote assustado.

- Começo a entender por que os dragões foram extintos -resmungou Monser. Desviou-se por um triz de um chute na canela que lhe foi endereçado e, finalmente, o portão tornou a se abrir totalmente.

Era uma sala enorme. Entre estalactites e estalagmites, teias e mais teias de aranha, refletia-se a luz âmbar que entrava pelas janelas, dando um aspecto mágico ao ambiente. Uma fumaça densa enchia tudo, o calor era sufocante e uma viçosa vegetação de favas douradas se estendia pelo chão, agarrando-se até nas paredes. No fundo, havia miríades de outras aberturas, que davam para outras salas, elas também socadas de teias e mais teias de aranha macias, pelas quais ondeavam espirais de fuma­ça, em meio às favas carregadas.

- De onde sai essa fumaça? - perguntou o pequeno elfo.

Os lamentos do dragão aumentaram de intensidade e volu­me enquanto as estalactites começaram a tremer com as vibra­ções dos guinchos mais agudos. O caçador se pôs a olhar em volta, preocupado, e pela primeira vez, desde que entrara na gruta, a mulher também parecia espantada.

Foi o cão que resolveu o problema: aproximou-se do dragão e o lambeu, ganindo suavemente, como fazem os cães quando consolam alguém. O dragão parou de chorar. Ergueu a enorme cabeça lentamente e trocou olhares longamente com o cão, que abanava a cauda. O dragão se acalmava. A sua respiração voltou ao normal. As estalactites pararam de tremer.

Confiável. Fiel. Todas as vezes em que havia necessidade dele, lá estava ele. Fido. Era, sem dúvida, o nome perfeito para o cão.

O pequeno elfo se pôs a girar e olhar em volta: tudo verda­deiramente extraordinário. O dragão era enorme, as suas esca­mas formavam complicadas e suntuosas espirais cor-de-rosa e douradas, que estavam descascadas em alguns pontos acinzenta­dos. Faltavam muitas, arrancadas em alguns ferimentos antigos, cicatrizados em sulcos profundos, onde seria até possível enfiar a mão. As patas tinham garras que deviam ter sido enormes, mas que agora eram gastas e achatadas. A cabeça do dragão estava apoiada nas pernas da frente e, quando ele a erguia, era percor­rida por um ligeiro tremor.

Era um velho.

Uma pobre criatura já sem forças. A mulher tinha razão.

Yorsh continuou a dar voltas. Aproximara-se da parte mais funda da caverna dourada.

Aquilo que viu tirou-lhe o fôlego. Lá no fundo havia uma gigantesca cratera, de onde saía uma fumaça intensa, com a velocidade do raio, para o também gigantesco furo, no ápice da caverna, de modo a se projetar para fora e formar o penacho de fumaça que se via de longe. Era um vulcão. Um vulcão de fuma­ça! A vovó lhe havia falado dele.

O pequeno lembrou-se da tarde em que a avó lhe falou do coração quente do mundo, dos vulcões, dos terremotos. Ela fez desenhos no chão da cabana - pois não tinham pergaminho - e lhe mostrou como o coração quente do mundo dá calor aos vul­cões. Tinha ainda esquentado numa vela um frasquinho quase cheio de água e mostrou como o fogo fazia saltar a tampa de madeira com um leve plop e uma baforada de fumaça. Ele rira desbragadamente, até a avó riu muito e depois tirou três nozes que tinha reservado para grandes ocasiões, dizendo que quando se ri é sempre uma grande ocasião. Foi uma boa idéia, porque depois não tiveram mais nozes, mas também a avó nunca mais sorrira, nada mais houvera para festejar.

O pequeno deixou as suas lembranças e olhou para a colu­na de vapor que tinha diante de si.

Sabia o que era: um longo poço que se comunicava com o coração quente do mundo, o centro da Terra, onde ainda quei­ma o antigo fogo do qual nasceu a vida. Não um vulcão de lava e fragmentos de rocha. Um vulcão de fumaça. Antigos rios sub­mersos encontram o calor e se transformam em vapor, que sobe, sobe, até sair da terra, como um penacho de nuvem. Eis por que uma enorme nuvem sempre ficava estacionada sobre o cume do monte! Nascia dele, do monte. Aliás, do centro da Terra, e ape­nas atravessava o monte. Depois, o vapor atingia o céu e se libe­rava, até encobrir as estrelas. Nuvens. E depois ainda mais nuvens e nuvens e nuvens. As estrelas encobertas durante anos. Nuvens e mais nuvens. Chuva e mais chuva.

- Isso é um vulcão, não é? - O pequeno elfo parecia ter, de repente, recuperado a voz. - Um vulcão de fumaça. A fumaça vem do centro da Terra, sai por aqui, sobe e escurece o céu, aí vira nuvem, que se transforma em chuva.

Olhou para os outros. O seu rosto se iluminara: agora ele sabia.

- Eis por que fica muito escuro e chove! - explicou, exultan­te. Bastaria deslocar aquela pedra enorme para cá, bloquear o buraco e tudo voltaria a ser como antes: sol e chuva se alternan­do. Nada mais de lama. De mais a mais, essa pedra parece feita para ene... como é que se diz?... ah, sim, encaixar na cratera. Tem as protuberâncias e as reentrâncias que correspondem a ela.

O pequeno continuou a observar, girando em volta da enorme cratera e do enorme pedregulho.

Ei, correspondem mesmo. Até os veios da pedra corres­pondem!

O pequeno ficou sem palavras. No lugar do interesse cien­tífico, veio a indignação:

- Esta rocha já esteve aqui antes, tampando a cratera, e você a deslocou!!! - disse ao dragão. - Você abriu o vulcão! - Agora, o tom do pequeno elfo era verdadeiramente indignado. - Como é que você pôde fazer uma coisa tão estúpida? Custou anos de lama e chuva! Está custando anos de lama e chuva!

- Aí está outro que fez escola de diplomacia - resmungou Monser. - Afastem-se da frente das fauces - disse aos outros dois. - Mas entendem que, se ele cuspir, acabamos todos no espeto?

Mas o dragão não parecia pretender exterminá-los. Evi­dentemente, os dragões são terríveis somente quando novos e esse parecia muito velho. Velhíssimo, cansadíssimo, desespera­do. Recomeçou a ganir e guinchar, algumas estalactites treme­ram perigosamente. O cão ganiu baixo, tentando consolá-lo.

A mulher permaneceu calma. Aproximou-se do dragão e ousou até acariciar-lhe uma perna.

- Não é nada, não é nada, agora ajeitamos tudo. Não tenha medo. Mas é preciso que nos explique bem ou não entendemos nada. Explique tudo, desde o começo.

Os soluços começaram a se acalmar. As estalactites pararam de oscilar. O dragão ainda choramingou um pouco, depois começou a sua história.

 

- Eu conheci este lugar há muito tempo, quando ainda era menino - começou o dragão.

- Um filhote — corrigiu o caçador.

- Um nascido há pouco - melhorou o pequeno.

- Era o tempo em que eu ainda tinha um nome. Agora escorregou-me para fora da memória, pois durante séculos e séculos ninguém o pronunciou. Eu vim até aqui porque neste lugar existe o mais precioso tesouro de toda a Terra - continuou o dragão.

- Verdade? - perguntou Monser, entusiasticamente interes­sado. - Um tesouro? Onde está?

-Todo aqui em volta.

O caçador olhou em volta: só viu estalactites e teias de aranha.

- As aranhas da segunda dinastia rúnica eram consideradas de valor? - perguntou, desiludido.

- Admire isso - disse o dragão. Estufou as bochechas e soprou suavemente. Séculos de pó e teias de aranha voaram, revelando milhões de livros. - Esta era a grande biblioteca da segunda dinastia rúnica. Este era o templo do saber e aqui se ficava como se fica num templo, em silêncio e sem cuspir, com as mãos limpas e os calçados sem pó. E, para certificar-se de que ninguém bancava o desentendido, havia sempre dragões aqui, esse é o motivo da inscrição de que aqui existem dragões. Esta era a maior coletânea do conhecimento. Depois, os homens per­deram a escrita. Esqueceram como se lê. A barbárie submergiu o mundo. Até a lembrança deste lugar se dissolveu. Muitos nunca acreditaram na sua existência, mas, com as minhas asas, eu finalmente o encontrei. Quando os encontrei, grande foi a minha alegria. Todos os livros do mundo eram para mim. Até me vêm lágrimas aos olhos, quando me lembro.

“Quando senti a velhice chegar e minar as minhas forças, quando o meu fogo não mais se acendeu e as minhas asas não se abriram mais, nem me lembrei mais do meu nome, então vim até aqui e aqui passei a viver.

“Eu estava muito cansado, muito envelhecido para voar.

“Tudo o que eu tinha para não sucumbir à fome era um punhado de favas douradas no fundo do meu alforje, que eu tinha colhido lá longe, em lugares onde o sol brilha forte e a chuva cai intensa, e, para não morrer, eu só tinha de cultivar as favas, que precisam, porém, de mais calor e mais água do que aquilo que se pode ter aqui no cimo desta montanha.

“Mas esta montanha é um vulcão. Eu desloquei o pedregu­lho e um belo tepor e uma bela fumaça vieram aquecer os meus ossos e as minhas favas, assim os ossos não me doem e as favas crescem muito bem.

“E, de repente, me veio o medo de que toda aquela fumaça que se elevava ao céu escurecesse o sol e tornasse a terra fria, mas era muito difícil tampar a cratera e ficar fechado aqui, para estourar de frio e de fome, gelado e sem nada para mastigar.”

- Mas por sua culpa existem fome e miséria! - disse o pequeno, indignado, enquanto o caçador procurava tirá-lo da direção das narinas do dragão.

O dragão recomeçou a se lamentar. Foi um choramingo quieto e leve. As estalactites permaneceram em seus lugares.

- Mas todo mundo que nós encontramos passa o tempo chorando? - perguntou Monser.

- Não, nem todos - respondeu a mulher, alegremente. - Só aqueles que não passam o tempo procurando se enforcar.

- Você pode repor no lugar aquele pedregulho? - perguntou o pequeno ao dragão, num tom firme mas cortês.

- E depois morro de frio, por depressão e por escassez?

- Não - disse o pequeno, cada vez mais firme, mais calmo, mais decidido -, eu não o deixarei morrer. Juro que estarei sem­pre com você e o alimentarei. Aquecerei este lugar queimando lenha que catarei no bosque. Se não crescerem mais favas, plan­tarei espigas. Matarei a sua fome. Aquecerei você. Juro pela minha honra de elfo.

Houve um longo silêncio. Yorshkrunsquarkljolnerstrink estava calmo e sério. Quase dava a impressão de ser mais alto. O dragão falou primeiro:

- Eu estou velho e fraco demais. Não sei mais voar, não sei mais queimar. Nada posso fazer se você me engana, a não ser morrer gelado e com o ventre vazio.

Estendeu-se no chão, com o grande focinho por terra. Fechou os olhos. Houve um logo silêncio.

Yorshkrunsquarkljolnerstrink aproximou-se dele. Pousou-lhe a mão na testa. Grossas escamas enrugadas roçaram-lhe as pontas dos dedos. Um cansaço infinito. O pequeno sentiu-o na cabeça dele, pelos dedos. Um cansaço total e absoluto.

- Eu o protegerei de tudo - disse o pequeno -, mas, agora, reponha as coisas nos lugares.

O dragão concordou. Pousou o focinho na parte central do pedregulho e empurrou com todas as forças.

O deslocamento foi lento: um passo de cada vez, mas, antes da noite, a cratera estava tampada.

O caçador e o pequeno também empurraram. A mulher tostou as favas junto com as espigas. Um calor e o cheiro da comida boa espalhou-se por toda parte. O cão arrumou-se sobre um tapete de folhas de fava macio como o veludo e dormitava, tranqüilo.

Yorsh começou a falar. Pela primeira vez na vida, sentia-se forte, sabia o que fazer, por que fazer e como fazer.

- Ficarei com você e irei procurar o que comer - prometeu o pequeno. - Você gosta de espigas? Está bem, eu tenho algumas nos bolsos. Enquanto consumimos as favas, plantamos os grãos das espigas e fazemos um campo de espigas aqui na frente. Elas crescem mesmo sem calor e sem fumaça. E depois, lemos. Você vai ver, vai ser bom.

- Eu acho que é esse o círculo que devemos romper: a água vira vapor, que vira nuvem, que vira chuva, que vira água. Agora, o círculo está rompido. Eu ficarei com você e não o dei­xarei morrer de fome.

O dragão parecia encantado.

Concordou, feliz.

Quis ver as espigas e conhecer a história do seu cultivo. Depois chorou de novo, só um pouco, dessa vez de alegria, e, enfim, saiu-se com o discurso mais estranho de todo o dia. Contou que o outro elfo, aquele que tinha passado havia algum tempo, também lhe tinha dito para manter a cratera fechada, porque temia que fosse aquela a causa da escuridão e das chuvas, e se oferecera, também, para ajudar a lhe matar a fome. Porém, depois de alguns dias, o elfo foi embora para cumprir o seu des­tino, todo contente, dizendo-lhe que podia também deixar a cratera aberta, se quisesse, o que faria bem às favas. Aliás, melhor ainda, o penacho estaria lá em cima, o caminho seria mais fácil de ser encontrado pelo filho dele, que também deve­ria passar por ali, mais cedo ou mais tarde, para cumprir o pró­prio destino. Ele, o pobre dragão, acreditou nele. Quando eles bateram à porta, porém, toda aquela história tornou a cair sobre ele, o medo de ser acusado, tudo... e assim...

O silêncio que se seguiu foi terrível.

O único ruído era da balançante cauda do cão, que, na ale­gria de estar finalmente no calor e num tapete de folhas de favas, não parava de bater contra uma estalagmite, soltando pequenas nuvens de teia de aranha e pó.

O pequeno elfo nem conseguia respirar.

O pai dele estivera ali.

O pai dele estivera naquele lugar, tivera a possibilidade de acabar com as trevas, devolver a chuva, devolver o sol, acabar com a falta de alimentos e a miséria do mundo e não o fizera.

Era tremendo, horrível, atroz, inimaginável, indizível, incrível...

- Espantoso - disse a mulher.

- Enregelante - confirmou o homem.

O pequeno elfo estava experimentando uma das emoções mais tristes da criação: envergonhar-se de seus antepassados.

Suas feições desmoronaram. Os olhos se apagaram, a alma se encheu de sofrimento e a magia sufocou-se. Não teria sido capaz de ressuscitar nem mesmo uma mosquinha.

- Por quê? — perguntou a mulher.

- Bem, como se faz para vender panelas do bom tempo por três moedas de ouro cada uma num mundo onde o sol brilha? Os elfos sempre foram levados pelos negócios, não é? — respon­deu o caçador. Uma fúria fria enchia-lhe a voz e o semblante. Começou a andar a passos largos pela caverna. Deu um chute na fogueira, fazendo voar espigas em todas as direções. O cão parou de abanar o rabo e ganiu, assustado. - Anos de miséria, de falta de alimento, de escuridão, de desespero, por causa de um dragão idiota e de um elfo que... que... — O caçador procurou na memória um insulto bem pesado. E encontrou o pior: - ... um elfo que se comporta como elfo.

Yorshkrunsquarkljolnerstrink soltou um soluço leve. Dessa vez, porém, só o cão veio consolá-lo.

- Existe algum modo de sair daqui? — perguntou o homem ao dragão, num tom que era um misto de seco e cansado. — Quero dizer, sem se matar naquela cachoeira e que esteja acessível até para pessoas sem asas - acrescentou.

Havia. Do outro lado. Aqueles da segunda dinastia rúnica que vinham consultar os livros depois de ter lavado as mãos, limpado os sapatos e empenhado a honra em não cuspir no chão, muito menos em qualquer pergaminho, por algum lado deviam passar bem. No fundo da clareira, desconhecida de todos, ausente de todos os mapas, havia um caminho que ser­peava pelas Montanhas Escuras, na vertente sul, e se afastava do rio e da cachoeira, perdendo-se depois no denso da floresta, ao norte das Montanhas Escuras.

Quando saíram, a noite já tinha caído, mas estava tão clara, tão cheia de estrelas luminosas e com uma lua também tão luminosa, que eles decidiram prosseguir.

O caminho começava exatamente na parte oposta ao ponto em que eles tinham chegado. Não dava para ver, escondido como estava entre os cedros e parcialmente invadido por arbus­tos de pequenas margaridas, mas ainda era reconhecível, por­que, nos bons tempos, tinha sido calçado com lajotas e ainda restava alguma coisa da antiga pavimentação.

As lajotas eram pequenas, hexagonais, encaixadas umas nas outras como os alvéolos nos favos das colmeias. Escondidas entre as margaridas, havia pequenas colunas que, no passado, devem ter sustentado os corrimãos para ajudar na subida e na descida. De quando em quando, o caminho se alargava em pequenos terraços, onde se podia interromper a caminhada com pequenos repousos. Enquanto desciam, os cedros foram substi­tuídos por lariços e, depois, por enormes castanheiras e alguns carvalhos.

A noite era tão clara, que Sajra catou castanhas até tarde. Ela as metia no alforje, uma a uma, procurando não machucar as mãos com os espinhos. Colheu-as às dezenas, enchendo as mãos de espinhos, apesar da precaução. Depois se pôs a choramingar.

— Bem, é sempre melhor do que ser enforcada — murmurou o caçador.

O choro durou pouco. Sajra levantou-se, virou-se e voltou para o ponto de onde vieram.

- Vou voltar para o pequeno - disse, decidida. Suave e calma, mas decidida. Em tom de quem não pretende voltar atrás. - Não era nada culpa dele — continuou. — Ele não fez nada. Pelo contrá­rio. Está sacrificando a vida junto ao dragão para que o sol possa voltar a brilhar. Está salvando o mundo. E nem lhe agradecemos! Bem, o pai dele talvez tenha sido um mau caráter, e se fosse? Isso não impede que o pequeno seja uma pessoa direita. E depois, não é que o pai dele tenha sido o causador da era da lama. Ele simples­mente não a evitou. É diferente. Não quis sacrificar a própria vida para ficar com o dragão e salvar o tempo. Talvez não tenha podi­do. Talvez estivesse doente. Talvez tivesse outras coisas para fazer. Voltar para o filho, talvez, procurar avisá-lo de alguma coisa. O que sabemos? E como é que nós podemos nos permitir julgar? Todos sempre acusaram os elfos de tudo e não nos parece certo nos unir ao coro. Em todo caso, ele não provocou a escuridão. Apenas limitou-se a não nos salvar...

O caçador acompanhou-a, silencioso. De vez em quando, emitia um grunhido de desaprovação, mas nunca diminuiu o passo; na verdade, até o apertou o quanto pôde, apesar de todo o cansaço que sentia nas pernas.

Chegaram de volta aos cedros, quando a lua sumiu. Os dois se enroscaram um no outro, num dos terraços destinados a des­canso dos antigos viajantes, e ali, junto com o cão, passaram o resto da noite.

As primeiras luzes da aurora surgiram e eles recomeçaram a subida, sem perder tempo, com a angústia de quem cometeu uma injustiça, a urgência de quem não controlou a raiva e pre­cisa remediar depressa, porque magoou um pequeno, uma criança, um nascido há pouco.

Quando, finalmente, chegaram à biblioteca, o sol resplandecia em todo o seu fulgor e a cachoeira, a distância, brilhava com todas as cores do arco-íris. O portão estava aberto e o dragão dormia à luz dourada do seu antro. A biblioteca fora cuidadosa­mente limpa: todos os pergaminhos reluziam, ordenados e livres de pó.

O pequeno elfo estava sentado numa das pequenas salas internas, cercado de pergaminhos cobertos de inconfundíveis caracteres élficos prateados, onde se viam estranhos desenhos de bolas e círculos. Estava feliz como um filhote de águia que acaba de aprender a voar e no meio de uma série de bolas que giravam no ar em círculos diferentes, oblíquos e alongados, em torno de uma bola central, que, por sua vez, rodava sobre si mesma.

- O meu pai escreveu isso para mim - disse o pequeno, feliz, mostrando a escrita e os desenhos. — Mas isso aqui fui eu que fiz! - acrescentou, eufórico, indicando todas as bolas que giravam no meio do ar. - Usei uma velha pele de dragão. Sabe, eles a trocam como as serpentes, para fazer os globos, e agora eu os estou fazendo simular os planetas. Como são coisas pequenas e giram sobre si mesmas, eu consigo fazer com que fiquem no ar, mesmo contra a gravidade.

Seguiu-se uma longa e enigmática explicação.

Havia pergaminhos e mais pergaminhos a respeito dos movimentos das estrelas nas salas laterais. O dragão, porém, nunca os tinha reunido. Em vista das dimensões das aberturas entre uma sala e outra, tudo aquilo que não estava na sala cen­tral era, para ele, tão impossível de reunir como o ar aberto lá fora.

Se o dragão nunca foi capaz de estudar os movimentos astrais, o pai do pequeno elfo - aquele que encontra o caminho e o mostra aos outros, Gornonbenmayerguld — o foi e consegui­ra entender. Tinha lhe deixado explicações de tal maneira claras, que ele, Yorsh, pudera captar tudo no período de uma só noite!

A conclusão era que a variação do clima tinha acontecido porque tinha acontecido, sem que houvesse qualquer culpado, e estava desaparecendo porque era chegado o momento de tudo voltar ao normal, sem mérito de ninguém. O penacho de fuma­ça branca não era tão forte que pudesse transformar a região numa terra de lama! O pequeno elfo usou um grande número de palavras sem sentido, como meteoritos e variação do eixo ter­restre; citou de novo a lei da gravidade, mesmo não havendo ali nada que pudesse cair, nem ninguém que devesse ser enforcado.

O resumo de toda essa história era que os anos de chuva e lama tinham chegado por acaso, por causa de uma enorme pedra que passou pelo céu, onde ninguém a poderia ver, e que agora estavam terminando, porque a tal pedra enorme se afasta­va e isso repunha uma coisa que se chamava “angulação do eixo da Terra” para uma posição em que o clima é mais favorável. Ou, pelo menos, não tão fedorento. Em suma, o habitual. Um pouco de sol, um pouco de chuva, de vez em quando um belo dia, com uma brisa leve, em que se possa soltar pipa ou semear os grãos.

O caçador e a mulher não entenderam muito bem. Não o interromperam, nem para perguntar o que era um planeta ou se “globo” queria dizer a mesma coisa que “bola”. O pequeno che­gou até a afirmar que a Terra é redonda e que o Sol não lhe gira em volta, mas o contrário, o que era a coisa verdadeiramente mais estúpida entre todas as coisas estúpidas que foram ditas. Basta ter olhos e olhar em volta para perceber isso, mas os dois humanos, por cortesia, decidiram deixar passar sem comentar.

Com efeito, deviam reconhecer que, nas últimas duas luas, o tempo tinha, pela primeira vez em anos, começado a melho­rar. Tinham ressurgido o azul, o sol, as estrelas. Pedaços de pôr-do-sol. Fragmentos de aurora tinham aberto caminho, depois de anos, em meio às nuvens e aos aguaceiros.

O que pareceu mais claro, na explicação astronômica, foi a lingüística. A língua da segunda dinastia rúnica é extremamen­te precisa. A profecia dizia:

QUANDO O ÚLTIMO DRAGÃO E O ÚLTIMO ELFO QUEBRAREM O CÍRCULO, O PASSADO E O FUTURO SE ENCONTRARÃO, O SOL DE UM NOVO VERÃO RESPLANDECERÁ NO CÉU.

Quando, e não cuando. Na segunda dinastia rúnica, quando quer dizer ao mesmo tempo, concomitantemente. E cuando indica uma casualidade, ou seja, em conseqüência de. Simplesmente, teria acontecido no mesmo período, ao mesmo tempo, não por causa. E o círculo que o pequeno e o dragão tinham de romper não era o círculo água - vapor - nuvem - chuva - água, mas outro círculo, o do horizonte que se fecha em torno de você, e dentro do qual só existe você. O círculo da solidão. O pequeno elfo tinha de encontrar o último dragão para saldar o passado e o futuro: para recuperar os conhecimentos do glorioso passado dos homens, quando a ciência e o conhecimento preenchiam a vida, e recuperá-los para o futuro. Estava tudo tão claro... tão bonito... e o pai dele tinha entendido tudo e deixado uma pista para seguir, como uma esteira de pedrinhas que brilham à luz da lua.

- E a panela do tempo bom? - perguntou o caçador.

- É uma panela comum para defumar. A melhora da chuva começaria pelas terras mais próximas das Montanhas Escuras, que são protegidas pelo vento oeste. Meu pai tinha previsto isso.

- Vender uma panela de defumar por três moedas de ouro chama-se trapaça, na língua humana - comentou o homem, seca­mente, que evitou por um triz um pontapé na canela e se sentou comodamente numa cadeira de braços entalhada na rocha viva.

- Em língua élfica, chama-se gênio - replicou o pequeno, todo alegre -, não apenas porque assim o meu pai me deixou um meio de chegar até aqui, mas também porque, vendendo a preço alto, levou-lhes a concórdia. Na convicta expectativa de uma magia superior, que além de tempo bom lhes levaria tam­bém a paz, pararam de se esganar entre si e isso vale muito mais do que um pouco de ouro. A regra-chave do comércio é que, quando você paga caro por alguma coisa que não tem preço, faz, de todo modo, um negócio. Creio que o líder do vilarejo tam­bém tenha entendido assim!

Fez-se um longo silêncio, depois o homem se pôs a rir. Foi um longo riso de desabafo. A mulher se pôs a chorar e abraçou o pequeno demoradamente, apertando-o fortemente, para poder, depois, se lembrar.

- Talvez ainda nos encontremos - disse o pequeno, com o coração cheio de esperança. Talvez ainda os encontrasse, mas agora deviam deixar-se. Eles tinham de viver as suas vidas, que eram feitas de campos, prados e gansos para criar, talvez de filhos para fazer e criar, por certo não de livros e favas douradas. Ele tinha jurado ficar com o dragão. A tristeza tomou conta dele e as esferas que rodavam no meio do ar rolaram pelo chão, sua­vemente. O cão seguiu algumas delas.

- Mais cedo ou mais tarde, acontecerá - disse a mulher. Ficaram abraçados por um bom tempo, enquanto o sol subia cada vez mais alto e a biblioteca ficava cada vez mais inun­dada de luz dourada. As favas resplandeciam como jóias em meio as antigas prateleiras.

- Eu gostaria de dar um nome ao cão - disse o pequeno elfo. Sajra apertou-o ainda mais forte.

- Certamente.

Yorshkrunsquarkljolnerstrink estava emocionado. Encheu o peito de orgulho.

- FIDO - disse, triunfante.

- Fido? - perguntou o caçador. - Fido? Os cães costumam chamar-se Rabo, ou Mancha, ou Perna, ou simplesmente Cão. Fido é um nome engraçado para um cão, é bizarro. Será, sem dúvida, o primeiro e último cão a se chamar...

Não deu tempo de terminar. O costumeiro pontapé na canela impediu-o de falar.

- É um nome muito bonito - disse Sajra -, vai cair muito bem.

Ainda ficaram abraçados mais um pouco e depois um pouco mais ainda.

Depois separaram-se. Olharam-se uma vez mais e cum­primentaram-se para sempre. Nesse meio-tempo, o dragão acordara. Espreguiçou-se uma meia dúzia de vezes e, em segui­da, foi informado de que podia reabrir o seu vulcão e manter os seus velhos e doloridos ossos no calor, em meio às favas doura­das, por todo o tempo vindouro. A alegria foi tamanha que o velho dragão balançou a velha cauda, abatendo com ela três estalagmites e um pedaço de prateleira. Além disso, a alegria lhe revolveu a memória, como uma mexida de colher de pau numa sopa, e alguma coisa aflorou. Não o seu nome, pois isso ele já perdera para sempre, mas outra coisa. Lembrou-se de que, embaixo do portal grande, havia um cofre com alguma coisa parecida com favas, mas que quebrava os dentes ao se tentar comer. Como é mesmo que se chamava? É, em suma, aquela coisa que serve para fazer os cetros, as coroas e as moedas impor­tantes. Entenderam, não é mesmo? Pouca coisa: uma centena de peças. Eles sabiam o que fazer com elas? Bem, então podiam fazer o favor de tirá-las, pois ali atrapalhavam.

Enquanto desciam a longa estrada, seguidos pelo cão, o caçador ajudou Sajra freqüentemente, nos pontos mais difíceis, dando-lhe a mão. Depois, continuou segurando-lhe a mão, mesmo quando não havia nada que atrapalhasse, nada para saltar. Ela não a retirou. O cão os seguiu, contente.

- Se você quiser, com os pedaços de ouro que o dragão nos deu, podemos comprar um pouco de terra e viver felizes - disse o homem.

A mulher não respondeu.

- Com uma vinha, um pouco de trigo, algumas espigas -acrescentou ele.

A mulher parou.

- Algumas galinhas... - propôs.

O homem sorriu, feliz, e lhe ofereceu a mão. Continuaram em silêncio.

Estavam quase chegando ao fim da descida, quando o homem falou de novo:

- Sabe, esta manhã, quando veio a primeira luz e iluminou você, bem, olhe... eu... queria dizer... pedir a você... bem, é que eu... você... isto é, ahmmm, nós... nós poderíamos, eu estava pensando... Você sabe quando o céu fica cor-de-rosa, all’Alba, ou seja, na aurora, quero dizer... se temos uma filhinha, pode­mos “chiamarla” de Rosalba.

Nem mesmo nesse ponto a mulher retirou a mão.

- É um bonito nome - aprovou ela, com um sorriso meio tímido. Depois, pensou a respeito. - Se tivermos uma menina, poderíamos chiamare de Rosalba - corrigiu.

Desviou-se de um pontapé que lhe ia atingir a canela e se pôs a rir.

Depois, abraçaram-se. E ficaram um bom tempo nos braços um do outro. Sentindo o calor do corpo um do outro nos bra­ços. Sentindo os cabelos um do outro no rosto.

Ficaram um tempo abraçados sob o céu que os iluminava, mesmo porque eles tinham vontade de fazer isso desde o pri­meiro momento em que se viram.

 

                   O último dragão

Robi sentou-se num tronco. Respirou o ar fresco. Olhou para as árvores, no fundo do vale. As folhas estavam começando a ama­relar. À luz do sol nascente, brilhavam no prado as últimas flo­res do começo do outono. Lá estavam aquelas flores pequeninas, amarelas, que sua mãe chamava de “os botõezinhos do rei”, e aquelas outras azuis que parecem sinetas, e também aquelas que são uma espécie de bolinhas que, se você soprar, todos os pelinhos voam e a flor se desmancha.

O outono estava chegando. Isso significava que depois viria o inverno. Primeiro o outono, depois o inverno. Essa era a regra.

Outono: pouca castanha, quase nada de polenta, algum mel, pés frios e muco no nariz.

Inverno: nenhuma castanha, quase nada de polenta, mel nenhum, pés gelados, nariz com tanto muco que chega a descer para onde se respira e vira tosse; você podia se aquecer com a lenha. Não porque ia queimá-la, coisa proibida, mas por causa do esforço para cortá-la com o machado: depois de um tronco, outro tronco, depois mais outro e, por fim, isso lhe fazia mal à coluna e aos braços, e deixava com bolhas nas mãos, mas por um tempo você não rachava mais por causa do frio. Depois, o frio ia embora e as bolhas nas mãos ficavam. Se sobrevivesse, você teria de correr as fazendas e dar de comer aos animais, con­sertar as cercas e levar as vacas para pastar, e essa era uma coisa boa, porque um ovo ou um pouco de leite sempre se pode sur­rupiar, mas é preciso ser esperto, porque as fazendas agora eram todas do condado de Daligar e um furto, no condado de Daligar, mesmo de um único ovo, significava vinte bordoadas. Eles não sabiam contar, mas vinte queria dizer que contam uma bordoada por dedo do menino, primeiro os das mãos, depois os dos pés. Cala tinha um dedo a menos, porque, quando cortava lenha com o machado, errou na pontaria: assim, quando a espancavam, contavam uma bordoada a mais.

No verão, você tinha de disputar o seu sangue com os pio­lhos e os mosquitos, mas havia tanta coisa para roubar que todos conseguiam comer sem se deixar surpreender, até mesmo os menos experientes, os recém-chegados, os que ainda choravam.

Ela era esperta. Nunca se deixara surpreender. Pelo menos no último ano, não. Dois anos antes, logo que chegou à Casa dos Órfãos, tinham-na pegado três vezes, mas ela era pequena então. Bobinha como são as crianças pequenas. E depois, estava sempre com papai e mamãe na cabeça. Para ser um bom ladrão, é preciso concentrar-se. Quando você tem na cabeça o seu pai, a sua mãe e aquilo que foi a sua casa, a concentração nunca é suficiente. Mesmo quando procurava manter pai e mãe fora da cabeça, bastava se lembrar do seu barquinho de madeira rosa e verde ou da sua boneca de pano, que lhe vinham lágrimas aos olhos. Agora estava bem. Agora se concentrava. Ninguém a sur­preendia mais.

De repente, a lembrança das maçãs da mãe lhe ocupou a memória tão rapidamente que ela quase lhes sentiu o perfume. A mãe cortava as maçãs em fatias e as punha para secar no depó­sito de lenha. Fingia ficar zangada quando Robi roubava algu­mas fatias e então corria atrás dela por todo o depósito e, quan­do a pegava, a enchia de beijinhos e depois riam as duas, como bobas. Comia maçãs secas com leite quente, perto do fogo do pequeno braseiro de ferro do meio do cômodo, enquanto ela segurava a boneca no colo e a neve caía lá fora, farta, e o mundo ficava branco como as asas dos gansos selvagens quando o sol passa através delas. Depois, à noite, o pai chegava com alguma coisa boa de verdade para comer. O pai dela era caçador, além de lavrador, pastor de ovelhas, plantador de maçãs, criador de porcos, boiadeiro, carpinteiro, reparador de telhados, constru­tor de barracas e pescador e levava sempre coisas boas para a ceia. No inverno, eram trutas, porque eram fáceis de pegar: era só fazer um buraco no gelo que cobria o rio e esperar um pouco. A lembrança das trutas assadas com rosmaninho também lhe ocupava a lembrança e o estômago, com um espasmo. Robi afastou a recordação. Se a pegassem agora, não haveria beiji­nhos. Enxugou as lágrimas. São coisas de criança. Ela não era mais uma criança.

O sol apareceu e a iluminou. O ar tornou-se mais morno. No fundo da clareira, havia duas grandes nogueiras. As nozes são boas o ano inteiro quando são guardadas em sacos e melhor ainda quando estão frescas, no início do outono, quando são colhidas nas árvores. Levanta-se com a unha a película amarga e lá embaixo está a noz, que é branca como as asas do ganso quan­do a luz do sol passa através delas. Mas os pés de noz podiam ser vistos das janelas da casinha de pedra e madeira que se erguia na malfeita Casa dos Órfãos: era muito arriscado. Atrás das nozes havia os arbustos de amoras, que não se comparavam às nozes, mas já eram alguma coisa. As amoras, porém, ficavam às vistas dos arqueiros da guarita. É verdade que os guardas, àquela hora, provavelmente ainda estavam dormindo, porém não valia a pena correr risco por uma coisinha aquosa que não enchia o seu estômago, nem mesmo pelo tempo que os arranhões dos espi­nhos lhe doíam.

Robi fechou os olhos e, atrás das pálpebras fechadas, nasceu o sonho, aquele que ela sonhava todas as vezes que podia ficar em paz, com os olhos fechados, num lugar quentinho, desde que deixara a sua casa. Sonhou com um dragão e um príncipe, de cabelos tão louros que pareciam de prata, que o montava. Era um dragão enorme, com duas enormes asas verdes que enchiam o céu e através das quais a luz passava. O príncipe usava uma roupa branca como as asas dos gansos selvagens que passavam voando pelo céu, migrando. O príncipe sorria. O dragão voava em direção a ela. Estavam vindo pegá-la. Para levá-la embora dali. Para sempre. Era um sonho que se formava sozinho. No início, era indistinto: alguma coisa clara sobre alguma coisa verde. Cada dia que passava, porém, o sonho ficava mais nítido. Era como se o príncipe e o dragão estivessem voando na neblina e, dia após dia, se aproximassem dela. Não era um sonho que ela sonhava; formava-se dentro da cabeça dela, como por mágica.

Robi apagou o sonho. Era uma tolice. Os dragões não exis­tiam mais, tinham sido bestas cruéis, perversas e foram extermi­nados havia séculos. Também os príncipes benfazejos deviam estar extintos ou talvez avessem ido para outros condados, por­que deles também já não se tinha lembrança havia muito tempo.

Robi abriu os olhos. Um bando de perdizes elevou-se dian­te dela, à luz dourada do início do outono. Foi uma revoada que por um instante encheu o céu de azul-turquesa escuro. Saiu dos arbustos de espinheiro alvar, na parte baixa da clareira, aquela que não dava para se ver da Casa dos Órfãos nem das guaritas. O pai dela tinha sido caçador. Se ainda fosse vivo, ele teria pegado o seu arco e ela e a mãe teriam comido perdiz assada com ros­maninho. O pai dela se chamava Monser. Tinha os cabelos pre­tos como os dela e era grande e forte como um carvalho. A mãe dela teria depenado as perdizes e costurado as penas, uma por uma, na sua jaqueta, o que a tornaria esplêndida e bem quente. A mãe dela se chamava Sajra. Robi tentou puxar a saia suja, de cânhamo amarelo, para cobrir os tornozelos, mas não era bas­tante comprida. Sua mãe tinha os cabelos louro-escuros e fazia os melhores bolinhos de maçã de todo o vale.

Robi levantou-se. Não tinha o arco e as flechas do pai, mas as perdizes turquesa significavam comida mesmo assim. Punham seus ovos no início do outono, quando estavam bem gordas, depois de terem passado o verão fartando-se de borbole­tas, vermes e baratas. Até borboletas, baratas e vermes se podem comer, mas só quando não se tem mesmo nada melhor, enquan­to os ovos são uma das melhores coisas que existem no mundo. Quando você tem um ovo no estômago, não só a fome, mas também o frio e o medo desaparecem por algum tempo.

Robi olhou em volta, cautelosa. Tinha sido a primeira a se levantar, todos os outros ainda dormiam. Ouvia o sono baru­lhento das outras crianças, no interior do dormitório: havia gemidos e tosse, como sempre, e, da pequena casa, ouviu o ronco regular dos dois vigilantes “Ilustres Donos da Casa dos Órfãos”, Stramazzo e Tracarna, marido e mulher, chamados pouco afetuosamente de “as Hienas”, que dormiam em uma casa de verdade, com uma lareira de verdade.

Diante dela, o vale se abria sob o sol e as montanhas, a dis­tância, pareciam azuis. Nos cumes, brilhava a primeira neve. As guaritas dos armeiros eram afastadas e a parte baixa da clareira ficava fora da vista deles. Segundo “as Hienas”, os armeiros ser­viam para proteger as crianças da Casa dos Órfãos, caso algum mal-intencionado viesse fazer não se sabe bem o quê, talvez roubar-lhe os piolhos, que era a única coisa por ali abundante. Na verdade, sem os armeiros nas guaritas, nem sequer uma das crianças, nem mesmo aquelas menores e mais bobas, ficaria naquele casebre horrível, em companhia das duas Hienas e do seu bastão, vendo a polenta brigar contra os vermes, trabalhan­do até não conseguir mais ficar de pé, sendo estapeada, rachan­do de frio ou sendo comida viva pelos mosquitos, dependendo da estação.

Robi não se moveu, até estar segura de que todos dormiam e ninguém a estava olhando. Mesmo que você pegasse num ninho de perdiz no mato, num pé de nozes que não era de nin­guém ou num pé de amoras em meio aos espinhos, a comida era toda cobrada. Se você comesse por sua conta, era considerado furto. Furto e egoísmo. Até o egoísmo era um crime grave. Os pais de Iomir - que era a menina mais amiga de Robi - tinham sido egoístas, EGOÍSTAS, e-go-ís-tas, como soletrava Tracarna cada vez que pronunciava. Egoístas porque tinham procurado pagar menos taxas do que aquelas que lhes cabiam com a “risí­vel desculpa” de que, de outro modo, os filhos deles estariam mortos de fome e com o “ridículo pretexto” de que tinham pegado os feijões e o trigo da terra deles, deslocando a coluna e cuspindo sangue, que eram coisas deles e não do condado de Daligar.

No que dizia respeito aos pais... Robi preferiu não pensar nos seus. Apagou o pensamento. Não naquela manhã. Não depois de ter descoberto onde as perdizes tinham os seus ninhos.

Aproximou-se vagarosamente, sem andar em linha reta. Assim, se alguém a tivesse seguido, poderia dar a impressão de uma voltinha inocente, à toa. Ela não tinha certeza de que daria para acreditar que uma menina morta de fome fosse dar voltas à toa pelo mato ao amanhecer, mas Tracarna e Stramazzo não pri­mavam pela esperteza e ela sempre poderia dizer que acordara por causa de um pesadelo e que precisava esquecê-lo. Os sonhos ruins eram freqüentes.

O mato ficou mais alto. Robi se pôs de gatinhas para sumir dentro dele. Deslizou até os arbustos. O ninho estava à altura do seu nariz; quase esbarrou nele. Havia dois ovos dentro: dois momentos sem fome. Eram ovos pequenos, com as cascas pin­tadas de marrom pálido, que se tornava dourado nos pontos mais claros. Robi pegou um ovo entre as mãos e sentiu a suavi­dade e o calor contra a pele. Quando a apertava contra si, a mãe dela lhe dizia que, quando estamos felizes, as pessoas que nos queriam bem e que não existem mais voltam do reino dos mor­tos para ficar perto de nós. Talvez agora papai e mamãe estives­sem com ela. Robi abriu os olhos, olhou mais uma vez para o seu incalculável tesouro de dois ovos de perdiz e depois o desfal­cou. Comeu logo o que tinha na mão, fazendo um buraquinho, batendo-o num galho, e chupando, com uma alegria feroz, pri­meiro a parte branca e depois a amarela, a mais saborosa, que escorregou goela abaixo, lentamente, gota por gota, com um prazer que representava a alegria de viver.

O problema era o outro ovo. A primeira idéia era comê-lo logo. O que você tem no estômago não pode mais perder e não lhe podem roubar. Mas dois ovos é demais: algumas vezes, a barriga que está bem acostumada a ficar meio vazia não segura as coisas, você começa a passar mal e vomita. E depois, por mais que seja o que se põe dentro dela, depois de meio dia a barriga está novamente contraída pela fome. É melhor comer um pouco de cada vez. Robi envolveu o segundo ovo num torrão de terra, que enrolou, por sua vez, num punhado de capim, e o escondeu não no grande bolso que tinha na saia e que servia para as ferramentas de trabalho, mas no outro, aquele escondi­do, embaixo da bata de juta acinzentada e suja que ela fizera sozinha, usando grandes espinhos como agulhas e um pedaço de barbante roubado dos sacos onde se guardava a polenta -uma espécie de bainha, onde podia guardar as coisas.

Um dia sem fome! Robi respirou o ar da manhã: seria um bom dia.

 

O sol iluminou a aurora. As antigas janelas de âmbar filtraram a luz e a biblioteca ficou dourada.

Yorshkrunsquarkljolnerstrink, o menino elfo, acordou e se espreguiçou, esticando os compridos braços de adolescente.

O dragão continuou a dormir. As láminas de âmbar vibra­vam ao seu ronco calmo, impondo à luz nas paredes um movi­mento leve, como o da brisa num charco. O menino elfo levantou-se e tirou de cima de si, com uma sacudidela, uma cen­tena de borboletas azuis e douradas que, à noite, cobriam-no e o esquentavam com o seu leve tepor.

Ficou alguns instantes diante das trepadeiras que atapetavam os arcos antigos, derramando frutos, para decidir do que tinha realmente vontade para a refeição matinal. A doçura leve dos morangos com a aspereza decidida das laranjas? Não, não pela manhã. Melhor a doçura decidida de um figo, junto com a doçura fresca e redonda da uva rosada. Decididamente melhor. Até cromaticamente o efeito era melhor. O rosa-claro e o verde-escuro combinam. No prato de âmbar, formavam um contraste gracioso.

Tinha sido uma sorte descobrir dentro de um livro antigo as sementes e as instruções para cultivar as trepadeiras frutíferas. O seu perfume se exalava leve e delicado. O menino elfo suspirou. Era tudo tão perfeito. Tão agradavelmente perfeito. Tão impe­cavelmente perfeito. Tão incomparavelmente perfeito. Inegavelmente perfeito. Inevitavelmente perfeito. Obtusamente perfeito. Insuportavelmente perfeito.

O dragão era uma montanha roncante, que ocupava com o seu tamanho toda a enorme sala. As escamas acinzentadas e rosa se alternavam, formando complicados rabiscos e espirais. A cauda estava enrodilhada como um rolo de corda num cais. O menino elfo passou ao lado dele, depois se aproximou do anti­go portão de madeira marchetada que fechava a caverna: abriu-o delicadamente. Não conseguiu evitar o ruído, mas o dragão continuou a dormir.

Lá fora, o vento soprava. A distância, o horizonte se fechava sobre um mar escuro, que branqueava com a espuma. As gaivo­tas voavam. O menino elfo sentiu o cheiro do mar chegar até ele. Sentou-se e olhou as gaivotas. O vento desalinhou-lhe os cabelos. Às suas costas, as Montanhas Escuras se elevavam para além das nuvens. O odor do mar fundia-se com o dos pinheiros. O menino elfo fechou os olhos e sonhou que podia tocar o mar. Sentir a espuma no rosto. O sabor de sal. Sonhou ver as ondas quebrando. Sonhou navegar no mar, escalar as montanhas, atra­vessar cidades, ver rios. Sonhou sentir a terra sob os pés, passo após passo, enquanto via como era feito o mundo.

A voz do dragão cortou a manhã e lhe ribombou nos tím­panos:

- Você, jovem desalmado, como pode fazer uma coisa tão cruel como deixar aberto aquele portão que gela a mim, velho dragão demasiadamente doente, todos os meus ossos reumáti­cos? E esqueceu, ó desalmado, que, quando o ar faz corrente, o mal que me atazana o crânio bem piora? Você não relembra, você desalmado demais, quanto mal me pode fazer o ar quando passa pelo portão e me gela... Ar de fissura, ar de sepultura...

O menino elfo abriu os olhos. Suspirou. Uma vez, três anos atrás, tinha falado sobre a idéia de descer a escada para ver o mar mais de perto. Levaria metade de um dia para ir e voltar. Os lamentos duraram onze dias. Na fúria do grande pranto pelo horror do abandono projetado, o dragão passou a sofrer de sinu­site, que depois se complicara com uma doença de ambas as ore­lhas, do que resultavam penosíssimas vertigens, que nunca se curaram realmente e que pioravam nos dias ventosos. E quando as vertigens o abalavam, era como se o estômago lhe ficasse entre a garganta e a orelha direita, outras vezes até a esquerda -mas a direita era mais freqüente. Yorsh suspirou de novo.

Quando era criança, tinha jurado que cuidaria dele. Do dragão. Sempre.

Perguntou gentilmente ao dragão se estava com fome.

Respondeu-lhe com um longo uivo de sofrimento moral. A pergunta indignara o dragão. Fome? Fome? Ele? Ele não se lem­brava, o desnaturado, de que ele, o dragão, sofria de halitose, pirose, borborismo, eructações, dores no segundo, no terceiro e no sexto espaço intercostal direito, para não falar dos soluços? Como podia, com todos aqueles infortúnios, ter fome? O sim­ples pensamento já era irresponsável e bizarro.

— Então, não quer a sua refeição matinal? - perguntou Yorsh.

Dessa vez, o uivo fez tremer as vidraças de âmbar e a luz na parede ondeou como as ondas do mar. Como podia, com que crueldade, que maldade, podia ousar propor-lhe o desjejum? Todas as vezes que ficava mais de dois doze avos de dia sem comer vinha-lhe entre o estômago e o esôfago uma série de con­trações, como se fossem de minúsculas bolhas, para não falar do quinto, do décimo primeiro e do vigésimo espaço intercostal esquerdo...

O menino elfo objetou que lhe parecia que os dragões não tinham apenas vinte e quatro costelas. O dragão começou a chorar, porque ninguém o amava.

O menino elfo deixou-se cair sentado no chão e apoiou a cabeça entre as mãos. Depois, lembrou-se do juramento: ele cuidaria do dragão, sempre! Levantou-se, pôs uma fatia de melão rosa junto com um cacho de uvas rosadas sobre uma camada de morangos rosa, esperando que agradasse. Os lamen­tos se interromperam. Tinha dado certo. O cor-de-rosa sempre funcionava. O vento entrou pelo portão, que continuou aberto: o ângulo reduziu-o a uma brisa, os caniços pendurados no teto vibraram e uma música deliciosa se espalhou. Tudo malditamente perfeito.

Depois da refeição, o dragão voltou a dormir e o ronco superou a música.

Finalmente, podia-se ler em paz. Havia treze anos que Yorsh estava praticamente recluso na biblioteca, junto com um incal­culável número de borboletas e um dragão que era a quintessên­cia do tédio mais profundo, para não falar do fato de que a sua mente se perdia cada dia mais nos escuros meandros de uma fra­gilidade cada vez mais rancorosa.

Pelo menos, podia-se ler. Todo o saber humano e élfico, a história dos antigos reinos, os nomes dos grandes reis, a nefasta invasão dos ogros, até o estudo de ervas medicinais, a astrono­mia, a física estavam contidos na biblioteca.

Livro após livro, estante após estante, Yorsh tinha lido, estu­dado, ordenado e catalogado, sala por sala, estalactite por esta­lactite. Provavelmente, nenhuma outra criatura vivente, nem entre os elfos e, obviamente, muito menos entre os humanos, tinha, nem de longe, beirado o seu nível de conhecimento. Provavelmente, nem na sua feliz e distante idade de ouro -quando os sábios a visitavam em tão grande número que fora necessário proibir cuspir no chão - a biblioteca estivera em tal ordem. Só faltava a última estante da sala pequena, aquela no extremo sul, a mais distante do grande coração da biblioteca, onde roncava o dragão: era uma salinha, torta, onde as estalac­tites e as estalagmites eram tantas que mal se podia entrar nela.

Yorsh dirigiu-se até lá, elevando ao ar nuvens de borboletas à sua passagem, em meio às trepadeiras que derramavam flores. Na única estante, havia um livro de história, a enésima biogra­fia do grande Arduin, e um livro de zoologia verossímil e fantás­tica, visto que estavam representados na capa uma espécie de vaca magérrima e com um pescoço muito comprido, com man­chas amarelas e marrons, e um estranho animal acinzentado, grande como uma casa e com o nariz muito comprido, com o qual se coçava atrás das enormes orelhas. Depois, os habituais livros de astronomia élfica, um texto de astrologia humana e uma espécie de pergaminhos gastos, antiquíssimos, que o mofo tinha transformado num único bloco ilegível; aliás, nem mais possível de se desenrolar.

Nos seus treze anos de bibliotecário, Yorsh se tornara hábil em restaurar os pergaminhos antigos: requeriam tempo, vapor e óleo de amêndoas doces. Tinha tudo em abundância: o vapor do vulcão aquecia a biblioteca, as amêndoas doces lhe atapetavam o lado oeste. E ele tinha tanto tempo que não sabia o que fazer com ele e qualquer coisa com que conseguisse preenchê-lo era uma bênção.

Yorsh perguntou-se o que faria agora, que tudo o que era legível fora lido; o estudável, estudado, e o arquivável, arquiva­do, para passar os seus dias sem que a nostalgia o sufocasse.

Havia dias em que tinha de evitar que o seu pensamento escorregasse para o caçador e a mulher. Talvez, se estivessem vivos, houvessem se casado! Talvez tivessem filhos e lhes tives­sem falado dele. Talvez tivessem esperado que crescessem para começar a viagem e vir encontrá-lo. Talvez não pudessem dizer a ninguém que tinham conhecido um elfo de verdade e seria muito perigoso voltar. Talvez não viesse a saber mais nada sobre eles.

Não devia pensar nisso. Fazia-lhe muito mal.

O menino elfo pôs mãos à obra. Depois de ter submergido os pergaminhos no óleo de amêndoas, arrumou aquele monte de coisa mofada em torno de um bastão e o estendeu sobre a cratera. Não prendeu os pergaminhos ao bastão. Ele não era capaz de fazer levitar um objeto completamente, mas conseguia, com o pensamento, controlar-lhe o equilíbrio. O fluxo de vapor envolveu-o. Agora, bastava esperar.

Sentou-se comodamente sob a chuva de pétalas e apertou o bastão entre as mãos. Era rústico, descascado e nodoso. Tinha pertencido ao caçador. Yorsh fechou os olhos e as lembranças o absorveram. Com as lembranças, veio a saudade. Tinha um vis­lumbre de recordação da sua mãe, um instante do sorriso, um eco da voz. A avó, no entanto, estava inteira em sua memória, com toda a sua tristeza e tudo o que lhe tinha ensinado. E depois, lá estavam eles, Sajra e Monser, a sua alegria, a sua coragem...

Yorsh sorriu ao lembrar, mas depois a saudade o arrastou e o seu sorriso desapareceu, como a última relva à chegada do gelo. Ele foi tomado pela saudade da amizade, da ternura, com o predomínio de um sentimento leve e impalpável que lhe foi difícil definir. Era - como dizer - a insegurança das coisas, a sua imprevisibilidade. Começava-se pela manhã e não se sabia como iria acabar. Tudo e o inverso de tudo sempre poderiam acontecer.

O medo, a esperança, o desespero, a fome, a felicidade e a alegria estavam no dia-a-dia.

Enquanto, agora, o que estava no dia-a-dia, do amanhecer à noite, ano após ano, estação após estação, por uma seqüência infinita de estações sempre iguais, eram pétalas e perfeição cor-de-rosa.

A esperança da imperfeição transforma cada dia numa miragem muito distante. Até a lama, a chuva e a fome o en­chiam de saudade. Na verdade, ele tinha saudade deles: Sajra e Monser, a mulher e o homem que o acolheram e salvaram e que tinham acompanhado os seus passos com os deles e o quiseram bem. Com efeito, pensando melhor, não era a imperfeição que lhe faltava.

Faltavam-lhe Monser e Sajra.

Faltava-lhe ser livre.

- Que estar você a fazer? - indagou o dragão.

- Nada de importante - respondeu o elfo.

- Então poder você vir fazer isso aqui? Assim eu não estar em solidão e nós poder ler livro mesmo se já lemos; livro da bela princesa que se casa com o príncipe fascinante, o qual tinha sido perdido quando menino e todos acreditavam que era um outro...

Evidentemente, o cérebro dos dragões, depois do segundo milênio de vida, começa a apresentar falhas dramáticas. O dra­gão não se lembrava do próprio nome. De todas as deficiências possíveis, essa parecia ao menino elfo a mais mortalmente demente. Isso, no início, mas então ele não conhecia ainda a sua paixão pelos romances de amor. Só por aqueles absolutamente idiotas.

- Eu vou terminar aqui e vou aí - prometeu o menino.

O vapor já amaciara o mofo. Yorsh começou, bem devagar, a desenrolar os pergaminhos. Os movia lentamente, para não provocar rasgos, ungindo tudo com óleo de amêndoas antes de descolar suavemente as folhas umas das outras.

Logo o título estaria decifrável.

Impaciente, o dragão tornou a perguntar o que ele estava fazendo e, enquanto respondia, Yorsh decifrou o título: Dracos, língua da terceira dinastia rúnica, Os dragões. Um livro sobre dragões! Era a primeira vez que via um. Em toda a biblioteca, num total de quinhentos e vinte e três mil, oitocentos e vinte e seis, nem um outro livro falava de dragões. Quinhentos e vinte e três mil, oitocentos e vinte e seis livros, que iam da astronomia à alquimia, passando pela meteorologia, a geografia, instruções para pesca e conserva de bagas de murta no álcool, que incluíam ainda mil, cento e cinqüenta receituários de cogumelos e dezoi­to mil e quatrocentos e trinta e seis romances de amor, todos disputando o título de livro mais tolo do milênio, e nem um único tratado sequer que falasse dos dragões?

Depois eu entendi. A biblioteca de livros sobre dragões deveria contê-los às dezenas - se não às centenas -, mas, por qualquer motivo obscuro próprio, o dragão não queria que fos­sem lidos e os destruíra.

O dragão começou, moderadamente, a protestar pela soli­dão, pelo espasmo no estômago e por uma pontada à altura do quinto espaço intercostal esquerdo, irradiada à centésima qüinquagésima sétima vértebra... mas logo depois adormeceu e o seu ronco surdo encheu a biblioteca.

Os dragões (Dragosaurus igniforusj têm cento e cinqüenta e seis vértebras, começava o livro. Yorsh era meio lento com os caracteres da terceira dinastia rúnica, mas, de algum modo, saía-se bem.

 

Robi deslizou pelo dormitório. Era um grande salão que tinha sido destinado, no passado, à guarda de ovelhas. A luz da manhã se infiltrava pelas tábuas desencontradas; não tinha janelas e, na porta, havia uma velha pele de ovelha, à guisa de cortina. Lá dentro pairava um cheiro que misturava mofo, criatura humana sem tomar banho e ainda algum vislumbre do verdadeiro fedor de ovelha que era, com efeito, a parte mais decente de todo o conjunto. No chão, havia uma camada uniforme de feno, que se interpunha aos corpos das crianças adormecidas e à terra nua. A poeira dançava entre os raios do sol nascente.

Robi voltou ao seu lugar, entre Iomir e a parede norte, aque­la em que a madeira era um pouco mais úmida e um pouco mais podre. Cobriu-se com o manto que, à noite, tinha a função de cobertor, alisou com o dedo a minúscula protuberância que o ovo fazia embaixo da bata e fechou os olhos, feliz. Ime­diatamente, a imagem do príncipe e do dragão se formou e, dessa vez, ela não a apagou, ficou contemplando-a e deixou que lhe tomasse a cabeça e o coração.

Estava de tal modo absorta na sua fantasia que o som da campainha para despertar, ainda que previsto e esperado, provocou-lhe um sobressalto. Ela não foi a única. Era normal as crianças acordarem sobressaltadas dos seus sonhos agitados.

O dormitório ficou imediatamente de pé. A expectativa de uma refeição matinal, ainda que exígua, e a certeza da intolerân­cia das Hienas pelos atrasos deixavam todos nervosos, aliás, afli­tos. As capas foram dobradas e postas no chão de terra batida, segundo uma ordem precisa, que respeitava a posição da crian­ça durante a chamada. O feno foi amontoado nos cantos, para deixar nu o chão de terra batida, e ali as crianças se dispuseram, em pé, sempre seguindo a ordem das camas de palha.

Tudo acontecia em silêncio, depressa, com medo de não ser feito a tempo. A pele de ovelha da porta de entrada se deslocou e as Hienas entraram no dormitório. Os retardatários preci­pitaram-se para a formação, gritando assustados. Tracarna sorria sempre. Era bonita, ou talvez fosse mais correto dizer que devia ter sido, muito tempo atrás, e tinha-lhe ficado o costume de ser, ainda que, na verdade, não fosse mais. Era baixa, com o rosto oval. Tinha um penteado complicado, de trancinhas enroladas à nuca, com grampos de prata com pedras verdes. Naquele dia, vestia uma bata cor-de-rosa, onde bordados rosa-escuro se alter­navam com fileiras de contas de vidro. A saia era de uma cor um pouco mais escura do que a da bata, acompanhava a cor dos bordados. No pescoço, uma suntuosa gola redonda de renda branca, que fazia uma espécie de onda, que se curvava, forman­do um nó volumoso. Stramazzo era muito mais velho do que ela. Talvez, no passado, tivesse tido uma cara inteligente ou tal­vez tenha dito ou feito alguma coisa inteligente, mas isso, na verdade, se perdia na noite dos tempos. No momento, parecia um enorme sapo que engolira um enorme melão sem mastigar, trazendo na face a satisfação de ser bem-sucedido, que era a única expressão que se alternava ao tédio mais profundo e total.

- Bom-dia, adoradas crianças - disse Tracarna. Stramazzo concordou vagamente.

- Bom-dia para a senhora, madame Tracarna e cavalheiro Stramazzo.

Um dos menores não terminou bem a frase, interrompida pela tosse. Por um instante, Tracarna enrugou a testa com seve­ridade: o pequeno procurou recompor-se imediatamente.

- É a aurora de outro maravilhoso dia, em que poderão conhecer a bondade, magnanimidade, generosidade e doçura do seu benfeitor. Do nosso benfeitor. O benfeitor de todos nós. O nosso comandante. Aquele que nos defende. Nós amamos...

- O juiz-administrador de Daligar e localidades limítrofes -responderam as crianças a uma só voz. Aquele pequenino de novo não conseguiu terminar, porque a tosse o interrompeu. Ele estava atrás de Robi, que não ousava virar-se para ver quem era. Na rica e variada lista de faltas de Tracarna, virar-se durante o “diálogo” era classificado como “atitude impudica”, punida com um número de pescoções variável de um a seis, conforme as cir­cunstâncias. Robi tinha a impressão de que fora Iomir quem tossira, mas não tinha certeza.

- Nós estamos todos... — recomeçou Tracarna.

- Agradecidos - completaram as crianças.

- Ao nosso amado...

- Juiz-administrador de Daligar, nosso amado condado, único bem no mundo pelo qual valha a pena viver e morrer...

Principalmente viver: mais fácil e verossímil. Viver, naquele condado, tornara-se uma verdadeira empreitada e dia a dia cres­cia a quantidade de sorte e habilidade indispensáveis à simples sobrevivência.

A tosse interrompeu de novo. Agora, Robi tinha certeza: tratava-se de Iomir.

- Sem ele, vocês seriam... - recomeçou Tracarna, irritada. A cabeça de Robi encheu-se outra vez de papai e mamãe:

não fosse o juiz-administrador de Daligar e localidades limítro­fes, os seus pais ainda estariam vivos e ela agora estaria dormin­do embaixo das cobertas de lã da sua casa e depois acordaria para fazer a refeição matinal, com leite, pão, maçãs, um pouco de mel e algumas vezes também um pedaço de queijo.

—... dispersos e desesperados - respondeu o coro - filhos de pais desgraçados.

“Felizes e de barriga cheia”, pensou Robi; seguramente, ela e Iomir e, depois, todos aqueles que eram filhos de pais mortos pela miséria.

Antes de o juiz-administrador de Daligar e localidades limí­trofes chegar para reorganizar a vida de todos segundo os curiosos esquemas da sua justiça e amor pelo condado, era difícil haver fome numa terra pródiga em pomares, onde as hortaliças se alternavam com as vinhas e as vacas enchiam os pastos, junto com as flores. Nem durante as Grandes Chuvas, os pesados anos de escuridão, a necessidade tinha chegado ao condado. Agora, ela era o cotidiano, a normalidade, a regra. Carroças e mais car­roças de frutas e de grãos deixavam os campos, todos os verões, e se dirigiam à cidade de Daligar, onde talvez servissem para for­rar as ruas, pois era humanamente impossível que conseguissem comer tudo aquilo.

Não fosse o juiz, não teriam ficado órfãos. Sem o juiz, teriam vivido num mundo onde aquilo pelo que as pessoas achavam justo viver e morrer eram os próprios filhos.

- Ou pior... - retomou Tracarna. Nesse ponto, o coro calou-se.

- Filhos de pais egoístas - prosseguiu a voz de Iomir, sozi­nha, mas de novo a tosse cortou-lhe as últimas sílabas.

Robi prendeu a respiração. Era a sua vez de solista:

- Ou egoístas e protetores de elfos - acrescentou depressa, na esperança de que fosse uma daquelas manhãs, em que tudo terminava logo.

A esperança foi em vão. Era uma daquelas manhãs em que as coisas se esticavam, entrando nos detalhes.

Tracarna aproximou-se e o seu sorriso se enterneceu, ino­portuno.

- Isso mesmo - começou a explicar -, os seus pais eram...

- Egoístas - murmurou Robi, preferindo limitar-se à coisa menos grave, porque se os seus pais tivessem realmente podido proteger um elfo, isso era de tal maneira repugnante que ela sen­tia horror só em pensar.

- Mais alto, querida, mais alto!

- E-go-ís-tas - soletrou Robi.

- E o que quer dizer?

- Que eram apegados à riqueza. - Robi tornou a pensar na riqueza: as maçãs secas da mamãe, os patos do papai, o pomar atrás da casa. Papai e mamãe começavam a trabalhar ao despon­tar da aurora, paravam à noite alta e o resultado era uma despen­sa cheia e longas fileiras de couve na horta. Até que chegaram os armígeros.

- É verdade, crianças queridas - explicou Tracarna, enquan­to Stramazzo concordava, entediado -, é uma coisa horrível, hor-rí-vel: não compartilhar os seus bens, manter-se agarrado às suas riquezas.

Tracarna fez uma pausa, irritada: o olhar de Robi estava fixo em suas botas de veludo violeta ponteado de fios dourados, com uma pequena pérola brilhante onde as linhas se cruzavam. Era realmente difícil olhar para babeo e evitar as botas e ela ainda se lembrava da única vez que tentara falar com Tracarna sem olhar para o chão.

- As botas douradas não são por mim — sibilou Tracarna, com o olhar frio. - São pelo funcionário de Daligar que eu represento. Eu apenas as levo na minha modesta e humilde pes­soa — explicou pausadamente, como se costuma falar com defi­cientes.

Tracarna suspirou e contemplou as crianças. Robi também deu uma olhada em volta e não lhe pareceu um grande espetá­culo. Estavam todos descalços, usando roupas de juta cor-de-lama, com os cabelos sujos e despenteados caindo pelos rostos magros e sujos. Uma vez, Robi fizera tranças em Iomir, mas isso foi considerado um “comportamento extravagante e frívolo”: uma hora de trabalho extra e nada de jantar para ambas.

Iomir recomeçou a tossir e Tracarna olhou para ela triste­mente, como que amuada pela forma de ingratidão irresponsá­vel da menina.

- Hoje você me interrompeu um monte de vezes, Iomir -disse docemente, aproximando-se da pequena.

Depois, virou-se e deu ordem aos dois garotos maiores, Creschio e Moron, para distribuírem uma maçã e um punhado de polenta por cabeça. A parte de Iomir podia ser dividida entre os dois. Creschio e Moron trocaram olhares triunfantes.

Tracarna acrescentou que, depois, eles deviam acompanhar as crianças aos prados, para cortar feno e catar um pouco de lenha. Iomir conseguiu esperar que as Hienas saíssem, antes de se pôr a chorar. Como num enxame, as crianças se reuniram ao ar livre, em fila, todas, menos Robi, que ficara junto de Iomir, que soluçava, agachada num canto do dormitório.

Robi pensou no ovo que tinha no estômago. Por aquele dia, a fome estava derrotada.

Olhou para Iomir, pequena e desesperada, com as mãozi­nhas no rosto.

Enquanto os outros corriam para a claridade, ela permane­ceu à sombra, pegou o ovo de perdiz no bolso escondido, livrou-o da terra, aproximou-se da menininha e deixou-o escorregar para as mãos dela.

- Não pare de chorar agora! - recomendou ela, num sussur­ro. - E coma a casca também, assim ela não fica por aí.

Depois, foi entrar na fila da maçã. Coube a ela uma maçãzinha murcha e meio podre e a polenta era menos do que de costume, mas, enquanto a comia, ouvia o choro de Iomir tornar-se cada vez mais alegre e fraco. Seria um bom dia.

 

O dragão quis que eu lesse para ele a historia da princesa das favas, desde o começo. Já devia saber de memoria. A princesa fora perdida quando ainda recém-nascida, durante a inundação, num campo de favas, e foi, depois, levada pela camponesa má. Um dia, a rainha a encontrou, mas, não sabendo que era a mãe dela, não a reconheceu. Nesse ponto, interrompia-se a história, para dar tempo ao dragão de chorar todas as suas lágrimas, antes de recomeçar. No ponto em que a princesa, que pensava ser pobre, diz ao príncipe mau que pode ficar com toda a riqueza dele, havia outra interrupção para cobrir de lágrimas o tapete cor-de-rosa que ficava estendido no chão. A exultação era na hora do reconhecimento: a jovem das favas e a rainha-mãe atiravam-se uma nos braços da outra e as lágrimas do dragão eram tão copiosas que não só o tapete cor-de-rosa, mas até as borboletas saíam molhadas. Fim. Silêncio.

Agitado pela intensidade do pranto e pela grande exultação, o dragão jazia, adormecido. O ronco calmo agitava pétalas e borboletas, num movimento regular, como o ondular da maré.

Os dragões têm cento e cinqüenta vértebras, vinte e quatro pares de costelas, quatro pulmões e dois corações. Entre a campainha e a tireóide, há as glândulas igníferas, que contêm a glucosioalcool-convertina, substância que converte a glucose em álcool. Quando uma emoção qualquer eleva a temperatura do dragão, o álcool se inflama e provoca uma emissão maciça de chamas que acompanha a expiração. A inalação de água misturada com uma infusão de flores frescas de aconitus albus, Digitalis purpurea e Arnica monta­na diminui a emissão do fogo, incontrolável no dragão recém-nascido. Mas devem ser poucos, porque muitos deles são venéficos e mortíferos. A inalação de simples...

A parte que falava da inalação simples que apagava o dragão tinha sido destruída pelo mofo e perdida quando foi feito o des­colamento dos pergaminhos. Mas não parecia uma informação importante. O dragão dele nunca tinha cuspido nada, nem uma única centelha. Talvez o fogo das fauces fosse uma regra sujeita a exceções.

A inalação de menta apimentada também pode fazer melhorar o hálito.

Onde seria possível plantar um pouco de menta apimenta­da? Uma plantação ou duas, talvez três.

A alma dos dragões também é fogo puro, prosseguia o texto do manual. A coragem deles é inigualável, a generosidade é ímpar, o seu conhecimento é vasto como o mar, a sua sabedoria abraça o céu. A única coisa comparável ao infinito do seu intelecto é o infinito amor pela liberdade e pelo vôo.

Yorshkrunsquarkljolnerstrink estava de tal modo perplexo, que foi conferir o título: sim, o assunto era dragões mesmo. O terror pelas correntes de ar lhe parecia ajustar-se pouco à cora­gem sem par. A inteligência de dimensões oceânicas lhe parecia destoar das lágrimas pela sorte das princesas trocadas, isso para não falar do esquecimento do próprio nome.

Decididamente, todas as regras estão sujeitas a exceções.

Só há uma palavra que pode descrever um dragão: MAGNÍ­FICO.

Bem, tudo no mundo é uma questão de opinião. Prova­velmente o autor do texto sofria de lamentações, era apaixona­do pelos resmungos intestinais. Ou aquilo que escrevera nos livros de “dragologia” valia para todos os dragões, menos para o nosso.

Talvez a biblioteca tivesse hospedado outros manuais de dragologia, mas o dragão os tivesse destruído, temendo que a sua, digamos, não-normalidade se tornasse manifesta. Talvez, ainda, desde criança — isto é, desde filhote -, sim; em suma, desde que era nascido de pouco, os outros dragõezinhos tives­sem zombado dele, por causa da sua preferência por histórias de princesas trocadas sobre a ciranda nos vulcões e o esconde-esconde entre raios e nuvens.

O coração do elfo se enterneceu. Deve ser terrível ser lamentoso, insuportável e trapalhão num mundo de gênios magníficos.

Descolou a página seguinte com menos sucesso em relação à anterior: em mais de um ponto a escrita apagou-se e ficou ile­gível.

Todos os dragões, no fim da vida, botam um ovo.

A da terceira dinastia rúnica não era a língua em que ele era mais forte. Yorsh releu três vezes, antes de estar seguro: todos os dragões, no fim da vida, botam um ovo. Todos? Mas os dragões são machos ou fêmeas? E o dele? Ele sempre tinha dado como certo que era um macho.

Como alguns peixes do mar, os dragões nascem machos e depois viram mães.

Interessante. Porém, não constava o nome científico nem o nome comum dos peixes em questão: como livro, era indecen­temente carente.

O choco dura treze anos, três meses e oito dias ou, às vezes, nove.

Treze anos de choco? Mais três meses e oito dias e meio?

Durante o choco, o dragão perde o fogo, a coragem, a vontade de voar, de ser livre. Tudo se perde no desejo espasmódico de um lugar quente onde possa ficar em paz.

Os conhecimentos do dragão se perdem num nada que engole tudo: primeiro, a matemática; depois, a geometria, a astronomia, a astrologia, a arte da profecia, a história, a biologia e a arte de apa­nhar borboletas: ê tudo engolido pelo nada. A penúltima coisa que desaparece é a gramática e o dragão passa a falar uma língua obs­cura, que parece a língua daqueles que bateram com a cabeça, ficando bem mal, e com aqueles que bateram com a cabeça, ficando bem mal da linha de pensamento. Nos últimos treze anos, até o próprio nome é esquecido, o nome, que é o conhecimento supremo, porque o nome ê a própria alma e, acima de tudo, para os dragões, que escolhem o próprio nome sozinhos, quando estão no máximo de sua potência, a menos que o nome lhe seja dado por quem o cria.

Yorsh engoliu em seco. Teve a impressão de que acabara de cair na água gelada.

Para chocar, é preciso bastante calor. Na época em que os dra­gões eram muitos e cobriam o mundo — como nos dias atuais acon­tece com as moscas e os gafanhotos —, antes de iniciar o choco, um dragão procurava outro dragão que lhe contasse histórias. Eram his­tórias cheias de sentimentos e emoções, porque esse é o único sistema que funciona para elevar a temperatura e permitir que o ovo seja chocado como deve. O dragão amigo do que está chocando, além de distraí-lo e aquecer o choco com histórias de crianças trocadas e princesas raptadas, terá outra tarefa bem mais importante: cuidar do filhote do dragão, porque ele não sobrevive ao choco mais do que umas poucas horas, apenas o tempo necessário para dar o seu último vôo, para sentir pela última vez a força do vento nas asas e, assim, afastar-se, evitando, portanto, que o filhote recém-saído do ovo veja o seu genitor sucumbir.

Sucumbir? Morrer? O dragão dele estava para morrer? Uma punhalada atravessou o coração do pequeno elfo.

Esse é o motivo pelo qual o dragão que choca é particularmente lamurioso, entediado, desinteressado e insuportável, para que seja testada, além de toda dúvida que a razão possa ter, a paciência do futuro tutor pela sua própria criatura, daquele que deverá amá-la, protegê-la e, acima de tudo, ensinar-lhe a voar, porque o novo dra­gão só deixa de ser recém-nascido quando aprender a voar.

Mas por que ele não disse isso? Por que manteve segredo? Provavelmente tivesse até destruído todos os manuais de dragologia para que o elfo não descobrisse. Tinha mantido escondido por medo. De ser abandonado? Que ele abandonasse o seu pre­cioso ovo?

Mas, agora que os dragões desapareceram, é cada vez mais difí­cil para o dragão encontrar um lugar tranqüilo, quente e com algu­ma coisa para comer, sem nunca poder se afastar, nem para um vôo ligeiro, pois, do contrário, o ovo se esfria e morre. E depois o dragão precisa de histórias que elevem a temperatura o bastante para o choco. E, mesmo que o dragão tenha encontrado isso, ainda precisa de alguém que adote o pequeno órfão, e é esse o motivo pelo qual os dragões existem cada vez em menor número e serão cada vez menos. O dragão que está chocando sabe que deve manter em segredo o seu estado a todo custo, porque criar um dragãozinho recém-nascido é terrivelmente... (mofo)... e ninguém aceitaria tal incumbência. Mesmo porque...

“Mesmo porque...” o quê? Não se pôde saber. O resto do texto estava comido pelo mofo.

O estômago do rapaz elfo contraiu-se pelo horror e pela comoção. E pelo sentimento de culpa. Não poderia ele ser mais gentil com o velho dragão? Sim, o dragão era estúpido, lamurioso, ditatorial e insuportável, mas era porque estava chocando!

Um choco terrivelmente longo, tão longo e cansativo a ponto de anular o espírito, diluir a mente, aniquilar a coragem. O último ato da vida. Depois, seria a morte.

 

                    A MORTE.

Yorsh deixou cair o pergaminho, que tocou o chão com um leve splash.

Não deu tempo de fazer mais nada: houve um crash assusta­dor, as próprias paredes da caverna tremeram.

Seguiu-se um curioso ruído de splash, splash, splash, como um pergaminho caindo ao chão, mas muito mais macio e amplificado. Como enormes asas batendo no céu.

Por fim, um mortífero e agudíssimo squeeeeeeeeeeek, que reduziu a migalhas metade das lâminas de âmbar que fechavam as janelas.

O rapaz elfo precipitou-se para a grande sala. Ao centro, um ovo enorme, onde o verde-esmeralda e o dourado se alternavam, criando as mesmas garatujas que havia na pele do dragão (ou dragoa?), seguindo-se o rosa e o cinza-claro. Estava com a casca quebrada de um lado, de onde saía a cabeça desesperada de uma versão reduzida, verde-esmeralda, do (ou dai) chocante. As cores eram verde e ouro, como o ovo, o tufo sobre os olhos era de um verde mais escuro, como o fundo do mar quando a superfície está límpida. Os olhos eram enormes, redondos, esbugalhados e desesperados.

Todos os livros das estantes ao norte, oitocentos e quarenta e seis livros de geometria analítica e de instruções para conserva­ção dos murtinhos e pimentões estavam em chamas. Evi­dentemente, ao squeeeeeeeeeeek seguira-se um borrifo de fogo. Yorshkrunsquarkljolnerstrink chegou a pensar que não fora uma boa idéia arrumar os livros do mesmo assunto na mesma estante. Agora, a análise da geometria plana tinha desaparecido da categoria das matérias estudáveis e a humanidade deveria redescobri-la, desde o começo, a menos que ele arranjasse um pouco de tempo - uns cinqüenta ou sessenta anos, mais ou menos - para reescrever pelo menos os fundamentos. Também as conservas de murtinhos e pimentões, colocadas todas juntas para macerar com o tomilho, tinham-se ido para sempre, mas, com um pouco de sorte, ninguém as tornaria a descobrir.

O crash com o correspondente tremor das paredes tinha sido o resultado da abertura do mastodôntico portão. Os dois batentes estavam escancarados e o vento do mar entrava, sacu­dindo pétalas, borboletas e as cinzas residuais de três séculos de estudos de geometria analítica em pequenos turbilhões pelo chão.

Do outro lado, no céu, as grandes asas do grande dragão batiam sobre o mar. O céu estava cheio do seu vôo. A luz do sol, já alto, passava através dos arabescos das suas asas. Os seus olhos dourados e os olhos azuis do rapaz elfo se encontraram. Havia toda a ternura do mundo naqueles olhos e todo o orgulho, todo o amor possível e toda a força, a altivez e a arrogância.

Toda a magnificência.

MAGNIFICÊNCIA.

MAGNIFICÊNCIA.

MAGNIFICÊNCIA.

MAGNIFICÊNCIA.

MAGNIFICÊNCIA.

MAGNIFICÊNCIA.

MAGNIFICÊNCIA.

- Erbrow - urrou o dragão, enquanto uma faixa de fogo lhe saía das fauces e rasgava o céu, tingindo-o de um cor-de-laranja intenso.

Yorsh entendeu que esse era o nome dele. Sinalizou que entendera e se curvou inteiramente.

As ondas se abriram e lentamente acolheram as grandes asas, que permaneceram ali, longamente, suspensas, bem no limite com o horizonte, sob nuvens de gaivotas.

Depois, as ondas tornaram a se fechar e nada mais restou do dragão.

Os olhos de Yorsh ficaram fixos no último ponto onde as asas tinham brilhado ao sol.

O coração do rapaz elfo foi sufocado pela dor. A dor lhe pene­trou na alma como uma lâmina e lá encontrou a outra dor, aquela que sempre lá esteve: a mãe, que tinha ido para o lugar de onde não se volta, quando ele ainda era muito pequeno para se lembrar dela; a avó, que ficara na água que subia, quando ele já era crescido demais para poder esquecer.

O coração do rapaz elfo estava sufocado pela saudade.

Desejou que ele ainda estivesse ali, o grande dragão, para poder ler ainda uma última vez a história da princesa dos grãos ou das ervilhas ou o que quer que fosse. Desejou com todas as forças ser advertido como o último dos criminosos, por ter subi­do no carvalho diante do portão de entrada ou por ouvir ainda contar todos os sintomas da otite externa, para não falar da gas­trite, da sinusite, da urticária e do espasmo na trigésima segun­da vértebra caudal, ou na décima sexta, ou na quadragésima.

Então, outro squeeeeeeeeeeek mortal ressoou às suas costas. O dragãozinho chorava de novo.

Até a física tinha se acabado em redemoinhos de cinza, no chão. A humanidade teria de redescobrir, desde o princípio, a termodinâmica e as leis sobre alavancas. Levariam milénios, com sorte.

Enquanto Yorsh pensava desesperadamente no que fazer, e como fazer, veio-lhe à mente um dos provérbios de Arduin, o Senhor da luz, Fundador de Daligar: “Quando os desastres incumbem alguém, não há tempo para pensar o quanto se está triste ou desesperado. Por isso, não fique triste.”

A primeira coisa a fazer era tirar o dragãozinho de dentro do ovo. A espessura da casca era de três polegadas. Yorsh procurou rompê-la, mas era como quebrar uma pedra com as mãos. Aproximou uma das mãos cuidadosamente, caprichando para fazer o movimento o mais lentamente possível, para não assus­tar o bichinho.

O movimento não foi suficientemente lento. Houve outro pequeno squeek com uma fogueirinha anexa: afortunadamente, entre as receitas para cozinhar fungos e as instruções para fazer má­quinas voadoras, havia um manual para cuidar de queimaduras.

Yorsh tentou de novo, desta vez com a mão esquerda, pois a direita parecia um dos porquinhos de Como assar os seus cogume­los na brasa, na quarta estante do lado sul da terceira sala. Aumentou a lentidão do movimento, para evitar o aumento da semelhança da sua cara com as figuras de Como não carbonizar os seus cogumelos na brasa, na terceira estante do lado sul da ter­ceira sala.

O movimento foi suficientemente lento. Dessa vez, Yorsh conseguiu pousar a mão na testa do pequenino. Garatujas de minúsculas escamas verde-esmeralda alternavam-se a faixas de pêlo macio como veludo, que eram de um verde mais escuro com dourado iridescente. Tudo era liso, macio e morno, mas o elfo sentiu na mão o medo desesperado do pequenino, um medo incontrolável e total como só o medo de um recém-nascido pode ser, um medo que ocupa um cérebro no qual ainda não existe nada e que, por isso, é um medo que pode ocu­par tudo. Dentro da cabecinha morna do enorme dragãozinho, havia uma angústia infinita e o medo de alguma coisa infinita­mente mais dolorosa do que a fome e infinitamente mais apavo­rante do que o escuro.

Yorsh arriscou-se a ser arrastado por aquele terror cego e abissal e lembrou-se dele, sozinho, sob uma chuva infinita, com ninguém mais além dele mesmo, até o horizonte.

O medo de estar só.

O medo de que ninguém o queira bem.

Entendeu o que devia fazer. Com todas as suas forças, pen­sou em si próprio e no pequenino, juntos. Imaginou-se com a cabeça do pequenino no colo, em meio a um prado infinito de margaridas. Depois, imaginou ele e o pequenino dormindo abraçados. Depois, dividindo entre si amêndoas doces e favas, metade para cada um. Depois, de novo num infinito campo de margaridas, o pequenino tinha a cabeça dele no colo.

O pequenino se acalmou, os seus traços fisionômicos perde­ram o desespero, os seus olhos tornaram-se serenos.

- Está tudo bem, pequenino, tudo bem.

Pequenino, por assim dizer. O dragãozinho era uma pequena montanha. Mas não lhe vinha à cabeça nenhum outro apelido.

Era um pequenino. Tinha grandes olhos úmidos, verdes e ouro, como um lago de montanha sobre o qual o sol brilha.

- Tudo bem, pequenino, eu estou aqui. - Funcionava bem. Os olhos verdes do dragão se perderam nos azuis do elfo.

- Pequeno, pequenino bonito, você é o meu pequenino bonito. É o meu pintinho bonito. Pintinho, pequenino, dragão­zinho bonito, dragãozinho pequenino, pintinho bonito.

O dragãozinho iluminou-se. Sorriu pela primeira vez na vida.

Era muito menos áspero do que um dragão adulto e tinha um sorriso quase desdentado, muito terno: nenhum traço das presas póstero-laterais, póstero-mediais, ínfero-caudais e ínfero-cranianas, apenas das centrais havia algum vestígio.

Pela primeira vez, o pequenino balançou o rabo e o seu ciclópico ovo se despedaçou. Eis como agiam para sair do ovo. Isso não estava escrito no livro: teria de acrescentar alguma coisa a respeito. Os pedaços de ovo foram arremessados para todas as direções, como uma explosão de fogos de artifício verde-esmeralda e ouro.

- Erbrow! - Eis como se chamaria. - Erbrow - repetiu o elfo, triunfante. O pequenino exultou de alegria. Saltitou, feliz. Um golpe mortal da sua cauda balançante abateu uma velhíssi­ma estalactite e algumas pedrinhas ruíram do teto da caverna. Seguiu-se um squeeeeeeek cheio de regozijo e afortunadamente Yorsh abaixou-se a tempo de salvar o rosto, mas os cabelos aca­baram em minúsculos redemoinhos de cinzas, que dançaram no chão, junto com o que restava de A arte dos meridianos. A huma­nidade não poderia saber sequer as horas, durante os séculos vindouros. Até a insignificante previsão da aproximação de um cometa ou de um eclipse seria uma empreitada.

Yorsh deixou-se cair sentado no chão. O dragãozinho sorriu outra vez. Tinha um sorriso todo desdentado e os seus olhos se iluminavam ainda mais quando sorria.

O pequenino colocou a cabeça no colo do jovem elfo e adormeceu imediatamente, exausto. Paz.

Yorsh tinha a mão direita ardendo. A testa também estava meio chamuscada pelo fogo.

Procurou traçar um rápido programa das coisas que tinha a fazer, por ordem de urgência: arrumar todos os livros e pergami­nhos, agrupando-os na estante central, de modo a protegê-los, tanto do dragão quanto das intempéries. Outra urgência: deve­ria procurar a arnica da montanha, o acónito e a digital purpú­rea e procurar o sistema de fazer as inalações no dragãozinho, de modo a torná-lo um pouco mais, digamos, manejável. Quando se tem sorte, a arnica da montanha serve também para medicar queimaduras. Teria de plantá-la por toda parte.

Movendo-se lentamente - para não perturbar o pequenino, que lhe dormia no colo -, Yorsh esticou-se no chão, em meio a um tapete de pequenas margaridas, estendeu a mão esquerda, a única que funcionava, e, espichando-se ao máximo, pegou o seu manual de dragologia, o livro mais importante da biblioteca, no momento.

Margaridas? Um prado de margaridas recobria o chão da caverna.

Várias informações úteis sobre os dragões não eram con­templadas no manual.

Nem o fato de que a mente de um dragãozinho, quando está feliz, realiza os sonhos, era mencionado.

Ou quem sabe tinha sido mencionado, mas o mofo o tinha comido.

 

Estavam trabalhando, pela manhã, colhendo uvas: o mais boni­to trabalho do mundo.

Não há como contar todos os cachos de uva de uma vinha, todas as uvas de um cacho. Era preciso cantar ininterruptamen­te, para demonstrar que se está com a boca vazia, mas era impos­sível perceber quando faltava uma voz. As notas da canção res­soavam, ininterruptas, pela vinha:

... todos nós o juiz amamos, nele nós confiamos, gratos nós lhe estamos, por nos querer bem tamanho...

As crianças descobriram o jeito de comer por turnos, só uma de cada vez: aquela que, no momento, estivesse mais dis­tante de Tracarna, que passava continuamente entre as filas, enquanto Stramazzo roncava lá embaixo, ao pé da encosta das vinhas, à sombra de uma figueira. Quando dormia, a boca se abria, a saliva escorria pelo lado, sobre a barba acinzentada, e mesmo assim tinha um ar menos estúpido do que acordado.

Nem mesmo Creschio e Moron representavam perigo: sem­pre empenhados em procurar comer a maior quantidade possível.

O sol brilhava nas alamedas. O verão estava seco: a uva era magnífica. A distância, nas Montanhas Escuras, brilhava a pri­meira neve. Dizia-se que do outro lado das Montanhas Escuras havia o mar, que é uma espécie de rio imenso, que não acaba nunca e continua para todos os lados, até que o horizonte o separe do céu.

Robi pensou no pai, que sempre lhe dizia que, mais dia, menos dia, ele a levaria para ver o mar, porque o espírito das criaturas livres as impele inevitavelmente para os lugares onde o horizonte não é interrompido por nada e o céu confina com o mundo ao longo da linha do horizonte.

Iomir estava ao lado de Robi e até ela exibia um ar quase ale­gre e, entre uma uva e outra, gritava de se esgoelar:

... de nos querer bem tamanho...

Depois, de repente, o seu rosto se imobilizou, levou a mão à boca e por pouco não deixou cair o cacho de uvas que estava colhendo. Passaram-lhe pela face, nesta ordem: o maior espanto do mundo, a maior felicidade do mundo, a maior infelicidade do mundo, o maior medo do mundo, o maior horror do mundo. Robi virou-se para olhar na mesma direção do olhar de Iomir e viu uma sombra se esconder entre as alamedas. Entendeu de estalo: um dos pais de Iomir, talvez os dois, viera pegar a filha e a pequena estava aterrorizada pela idéia de que Tracarna ou Stramazzo, ou um dos internos, pudesse vê-lo.

Podia-se entrar para a Casa dos Órfãos quando se era realmente órfão, isto é, filho de pais mortos, ou se fosse abandonado, isto é, filho de pais que seguiram os seus caminhos deixando a prole aos cuidados das Hienas.

Isso criava duas facções diferentes, inevitavelmente hostis, por conseguinte, inimigas. Os abandonados, que estavam soli­damente habituados ao abandono, eram, de qualquer maneira, sobreviventes à fome e à ferocidade desde a mais tenra idade, já as tinham selecionado e interiorizado como elementos consti­tuintes fundamentais da pessoa e da vida em geral, com um conseqüente e inevitável desprezo, além de ódio por quem quer que tivesse lembranças de ternura e abundância escondidas na memória. Os perdidos, que conheciam Tracarna e Stramazzo desde sempre, e eram quase benquistos por eles, dentro dos res­tritos limites da benevolência ao alcance do casal.

Os abandonados representavam, com a sua própria existên­cia, a prova de que os cuidados dedicados pelas Hienas podiam até ser compatíveis com a sobrevivência: eram, em certo senti­do, as meninas-dos-olhos da Casa dos Órfãos. E os perdidos eram guiados por um sonho inconfesso: um dia, alguém viria pegá-los, um rei ou uma rainha bateria à porta da Casa dos Órfãos para vir buscar a sua criatura, perdida durante um even­to terrível: extraviada num terremoto, arrastada numa cesta de vime durante uma enchente, raptada por pura maldade de um ogro, um troll, um elfo, um lobisomem ou similar e depois abandonada.

Havia muito tempo que ninguém batia àquela porta. Na verdade, não havia sequer uma porta em que um rei, uma rai­nha ou quem quer que fosse pudesse bater e perguntar se o seu adorado filho, a sua muito amada filha, por acaso, estava ali. Havia apenas uma pele de ovelha, que se abria unicamente para deixar entrar as Hienas e os eventuais “tutores provisórios”, que vinham alugar o trabalho das crianças, tratando o preço com Tracarna, enquanto Stramazzo ficava olhando, sentado à som­bra de um salgueiro, com um dos meninos menores abanando-o contra o calor e as moscas, enquanto o tédio lhe esticava o rosto, numa inequívoca expressão de estúpida idiotice.

Mas nunca se sabe. No fundo da mente, os abandonados — todos, os maiores, os mais carentes das mais elementares formas de ingenuidade e de fé - abrigavam o sonho de um rei e uma rainha que chegariam, um dia, à pele de ovelha, numa carrua­gem dourada, carregada de coisas de comer.

Os órfãos chegavam à Casa dos Órfãos - e para os cuidados das duas Hienas - sem uma preparação adequada, ou melhor, muitas vezes com uma preparação que se tornou inadequada devido à saudade e às lembranças. A isso juntavam-se as Hienas, entre cujos deveres fundamentais estava a tarefa de erradicar das jovens mentes qualquer sentimento de afeto que não fosse por Daligar.

E não era só isso. Qualquer criatura humana, mesmo a pior, ou seja, principalmente a pior, tem um desejo feroz de ser amada ou, pelo menos, não muito odiada. Havia ódio permean­do a desolação e a humilhação no olhar desesperado e aniquila­do da criança que deparava com as Hienas substituindo papai e mamãe e com polenta bichada no lugar do queijo com pão.

Freqüentemente, a partida dos genitores da criança em questão não era causada pela miséria, pela epidemia ou pela carência, mesmo sendo elas abundantes, mas por uma interven­ção mais direta do juiz-administrador, que era uma pessoa que nunca havia economizado o santo castigo do enforcamento para o seu povo ou em benefício dele.

Por um lado, isso aumentava o ódio que se via nos olhares das crianças e, por outro, aumentava a alegria transparente das Hienas ao infligir punições, reduzir as rações ou multiplicar o trabalho.

As intervenções diretas do juiz podiam ser a condenação ao enforcamento ou ao banimento para o exílio, este último acom­panhado da obrigação de deixar os filhos, considerados proprie­dade do condado.

É o que acontecera aos pais de Iomir, banidos e proibidos de tentar resgatar a filha, sob pena de incorrer no crime de rapto de menor, penalizado com a condenação à morte.

Como um chefe militar que estuda a estratégia de um embate, Robi localizou rapidamente a posição de Tracarna e dos representantes mais desastrados do partido dos abandonados, principalmente Creschio e Moron, e também a de Cala, a meni­na que tinha um dedo a menos, que detestava Iomir com todas as forças. Creschio e Moron estavam longe, do outro lado da vinha; Tracarna estava a meio caminho entre Robi e Iomir e a sombra escondida, porém, estava virada para a parte alta da coli­na, onde um dos meninos menores tinha caído e talvez estives­se machucado, mas o que era grave é que, na queda, ele tinha virado o cesto com as uvas já colhidas. O perigo era Cala: esta­va a poucos passos da sombra escondida. Por sorte, ela também estava distraída, por causa do trambolhão do menino e das con­seqüentes injúrias de Tracarna, mas isso não duraria muito. Robi pensou freneticamente, procurando fazer vir à mente algu­ma idéia, então começou a correr como uma louca, distanciando-se o mais possível da sombra escondida, e se pôs a gritar a plenos pulmões:

- Uma cobra, socorro, uma cobra!

- Deixe a cobra para lá e volte ao trabalho imediatamente, menina estúpida! - berrou Tracarna de volta. - Só pode ser uma cobrinha inofensiva.

Muito tarde. O pânico se espalhara pelas alamedas ou talvez fosse apenas um pretexto das crianças para cantar menos e comer mais uvas. As crianças pararam de colher uvas. Era uma gritaria de medo e todo mundo fugindo para todos os lados, trombando uns nos outros. Robi continuou correndo, fingindo-se aterrorizada, agitando os braços e soltando guinchinhos agudos. Tropeçou de verdade numa raiz e caiu em cheio contra um dos enormes cestos onde cada criança entornava as uvas que ia colhendo. O cesto oscilou algumas vezes, até se dese­quilibrar definitivamente, cair ao chão e sair rolando para baixo, deixando parte do conteúdo pelo caminho até bater numa pedra e levantar vôo, indo aterrissar sobre Stramazzo, ainda quase cheio. Foi um pandemônio. Todos gritavam. Tracarna correu para livrar o comparsa, mas as dimensões do cesto pare­ciam expandidas, com Stramazzo encaixado dentro dele. Creschio e Moron acudiram para dar uma mãozinha, o que deu à cena uma pincelada de comicidade involuntária, com os dois puxando de um lado e Tracarna do outro, Stramazzo no meio, dentro do cesto, gritando e espalhando suco de uva em volta.

Entre as alamedas, alguém começou a rir abertamente. Com o canto dos olhos, Robi viu Iomir desaparecer nas alame­das, nos braços de uma sombra escura.

Tinha ido embora.

Agora, porém, o problema era ela. Procurou ter outra idéia para escapar do castigo, mas a mente estava vazia, sem coisa alguma vibrando dentro, como a superfície do pequeno pânta­no que tinha atrás de sua casa, depois de os patos terem voado para o sul, por causa do inverno.

Finalmente fora do cesto, Stramazzo, pingando suco de uva como um lagar no outono, levantara-se e vinha de encontro a Robi, mostrando uma terceira expressão - que não lhe era habi­tual - além da complacência estúpida e da estupidez dura e pura: a fúria. Nem assim ele exibia um ar inteligente, mas que dava medo, dava.

— Você... você - começou a berrar, apontando o indicador para Robi. - Você... você. - A voz ficou estrangulada.

Robi não tinha a menor vontade de saber o que viria depois daquele “você”. Perguntou-se quais as possibilidades que tinha de tentar uma fuga e ela também: nenhuma. Creschio e Moron barravam-lhe o caminho.

Perguntou-se quantos golpes lhe dariam e quantas vezes seria retirada da fila para a polenta e a maçã e o medo da dor to­mou conta dela, junto com a desolação que a fome provocava.

Pela primeira vez, teve medo de verdade: talvez não conse­guisse chegar à primavera.

Robi ficou imóvel, aniquilada. Pela primeira vez na vida, até mesmo o menor vestígio de esperança parecia ter sumido.

De repente, o mundo ficou verde. Alguém gritou de medo. Robi levantou o olhar. Alguma coisa enorme, de cor esmeralda, estava no céu e a luz o atravessava. Robi foi a primeira a enten­der - talvez fosse mais correto dizer a reconhecer — o que estava acontecendo: as asas de um dragão tinham encoberto o sol.

 

Yorsh acordou e se espreguiçou. A queimadura do braço direito e a da testa estavam praticamente curadas e ele quase não as sen­tia, enquanto as das costas lhe faziam ver estrelas. Levantou-se mancando. A última estalactite que a cauda do dragão tinha feito cair em cima dele o atingira nos tornozelos. Em ambos. Estava ancilosado, enrijecido e dolorido.

O frio entorpecia-lhe os membros e os joelhos não respon­diam.

Sentia-se um caranguejo que dormira numa geleira.

Em Arstrid, o caçador tinha comprado para ele roupas quentes e confortáveis de lã cinza e azul, mas as roupas não cres­cem, enquanto os meninos, sim, sem contar o resto: rasgões, costuras desmanchadas e lugares onde o pano simplesmente não existia mais, pois tinha sido gasto. Agora, tudo o que lhe restava era um trapo em volta dos quadris e, no resto, rachava de frio.

Lembrou-se dos bons tempos em que dormia a uma tempe­ratura perfeita, com uma camada de borboletas perfeita, que o aquecia. E ainda se queixava! Um acontecimento bastante humorístico tinha realizado todos os seus desejos. Agora, a imperfeição e a insegurança abundavam, ou melhor, transbor­davam: ele daria tudo para ter alguns dias previsível e tediosa­mente iguais aos outros.

Lembrou-se de quando era pequeno, com quase três anos, quando estava morto de frio, de medo e de fome, dentro da escuridão e da chuva: pedira ao destino um pouco de calor e de abundância e os tivera durante treze anos, até enjoar. O destino não tinha meias medidas, evidentemente.

O dragãozinho ainda dormia. Uma neve rala cobria o bosque de lariços em que passaram a noite. Era melhor ficar fora da biblioteca: não só para salvar alguma coisa do saber humano, mas também porque o pequenino tinha um coração contente, sempre alegre: nunca deixava de abanar a cauda e as estalactites abatidas a golpe de rabo podiam também ser fatais.

O jovem elfo caminhou para a clareira, fora do bosque. A arnica da montanha crescia no limite com a geleira. Yorshkrunsquarkljolnerstrink fizera de tudo para transmitir ao dragãozinho o conceito de um campo de arnica da montanha, na esperança de que ele compreendesse o que era ver nascer um campo aos seus pés. Tudo o que obtivera fora um desolado squeeeek de incompreensão, acompanhado do inevitável e mortal lança-chamas: o seu ombro ainda ardia, quando pensava nisso.

Evidentemente, a materialização inflamável só funcionava quando havia emoções fortes: montes de júbilo ou braçadas transbordantes de afeto. A simples necessidade de um pouco de arnica para curar ou evitar as queimaduras não provocava a exultação afetiva necessária para isso.

No mais, as presas do pequenino estavam crescendo: as cen­trais já estavam de fora e os germes das póstero-laterais já apare­ciam, o que provocava prurido nas gengivas e ele se aliviava roendo alguma coisa. A julgar pela quantidade de livros que aca­baram na fogueira ou que foram roídos, o saber das futuras gerações corria o risco de ficar reduzido. Era como ter em casa um caruncho de mil e seiscentas libras (uns oitocentos quilos).

Yorsh conseguiu ir mancando até a arnica: havia umas poucas plantinhas, mas, para as costas e o ombro, bastariam. Para extin­guir o fogo do dragãozinho, ou pelo menos atenuar um pouco, seriam necessários também o acónito e a dedaleira, mas o pro­blema é que o livro não falava das doses. Recomendava que na infusão se pusessem poucas flores, porque muitas seriam tóxicas. Quantas seriam poucas e quantas, muitas*.

Na dúvida, ficava-se com as queimaduras. Só era recomen­dável procurar limitar um pouco, evitando ao pequenino qual­quer tipo de emoção repentina.

Yorsh terminara. Levantou-se. Atrás dele, os cumes nevados das Montanhas Escuras branqueavam no céu azul e, abaixo dele, abria-se o vale.

O seu olhar vagueou. O pequeno bosque de abetos-vermelhos, onde uma pequena raposa surgiu de repente, assustando Erbrow, ainda fumegava. Mas as sarças - os arbustos espinhentos — próximas ao laguinho onde Erbrow descobrira um magní­fico vôo de borboletas já estavam apagadas. Yorsh dirigiu-se, mancando, para o bosque de lariços. Se Erbrow acordasse e per­cebesse que estava sozinho, ficaria assustado e outra boa quanti­dade de árvores acabaria em tocos incandescentes.

O dragãozinho ainda dormia entre os lariços. Yorsh sentou-se e acariciou-o. Seus dedos passaram lentamente sobre o pêlo macio e morno, cor de esmeralda. Um dragão neonato pesa mil e seiscentas libras, dizia o livro.

Oitocentos quilos de desastres e destruição. Oitocentos qui­los de pêlo morno e ternura.

Oitocentos quilos de catástrofes e queimaduras. Oitocentos quilos de pequenas escamas brilhantes e de afeto.

O dragão acordou, espreguiçou-se e deu um enorme boce­jo, que reduziu a cinzas o topo de um pinheiro centenário, no limite da clareira.

Depois, Erbrow notou o elfo, olhou-o feliz e desatou a rir pela alegria de encontrá-lo. Yorsh conseguiu desviar-se a tempo: já adquirira reflexos de um felino, mas uma moita de rosmani­nho pegou fogo. Yorsh continuou a acariciar o dragãozinho, que balançava a cauda, feliz. Aconchegaram-se um ao outro, ao lado do rosmaninho que ardia, aquecendo o ar e dando reflexos dou­rados à neblina. O pequenino olhou para ele, extasiado, e o jovem deu-lhe um beijinho na ponta do nariz. Erbrow ficou verdadeiramente feliz, o balanço da cauda acentuou-se e um dos lariços, cortado em dois, ruiu ao solo. Dessa vez, Yorsh conse­guiu esquivar-se: sim, decididamente estava ficando ágil como um felino. Decididamente, era como ter um irmãozinho bem novo. Oitocentos quilos de irmãozinho.

Oitocentos quilos dos quais pelo menos meia dúzia eram glândulas igníferas.

Ele já não estava sozinho até o horizonte, como antes, mas indubitavelmente o destino - pelo menos o seu — não tinha talento para meias medidas. Se pelo menos a coluna lhe doesse menos...

Yorsh pegou o seu velho alforje bordado, que usava a tiraco­lo. Abriu-o, tirou o seu pergaminho e um punhado de favas douradas para o pequenino. Ele andava louco por elas e ficou todo contente, quieto, comendo uma por uma, muito lenta­mente, como todos os dragões filhotes.

O dragão deixa de ser um filhote cuando aprende a voar. Só então a sua infinita sabedoria se inicia, só então ele aprende a palavra, a escrita e a correlação entre o seu fogo e os danos que isso provoca...

“Cuando” e não “quando”. Depois e por conseqüência. Por conseqüência do fato de aprender a voar, depois do primeiro vôo, o dragão deixa de ser um nascido há pouco. Havia ainda uma figura ilustrando o conceito. São as emoções do vôo, soma­das aos movimentos dos músculos peitorais e dorsais, que per­mitem ao dragão a maturação definitiva do cérebro.

Assim, o tutor do dragão deveria ensinar-lhe a voar. E, até que conseguisse, era melhor manter um bom estoque de arnica da montanha.

O problema era simples: o vôo se aprendia por imitação.

Yorsh não sabia voar. O máximo que ele já se aproximara desse ato se reduzia a uma tarde no balanço. A primeira idéia que veio à cabeça de Yorsh foi simples e genial. Ele pousou a mão na enorme cabecinha do dragão e então se concentrou com todas as forças num grupo de passarinhos em revoada. Não fun­cionou. O dragãozinho fez algumas tentativas de chilrear (quei­madura no braço direito de Yorsh e destruição de oito pés de tangerina) e passou metade do dia saltitando, como quem está convencido de pesar como um passarinho, arrancando pela raiz três trepadeiras de toranja, ao saltar de pés juntos.

A segunda idéia foi mais pragmática. Yorsh fabricou duas asas mecânicas com folhas das trepadeiras abatidas no lugar de penas e tentou uma demonstração direta. O pequenino olhava para ele com perplexidade desinteressada, enquanto ele corria para cima e para baixo da clareira, agitando duas enormes asas de folhas de toranja.

Quando Yorsh estava prestes a desabar fulminado por um ataque cardíaco de tanto correr, Erbrow encontrou uma rãzinha. No começo, ficou assustado, pois era a primeira que ele via uma e o bafo flamejante resultante do susto destruiu um espi­nheiro selvagem próximo; depois, se pôs a brincar, todo conten­te, saltitando, ele também, por toda parte.

Em vista do insucesso, Yorsh procurou melhorar o seu desempenho, pendurando-se nas rochas e depois planando para o chão. O fato é que se passara algum tempo desde que ele lera o manual para fabricação de máquinas voadoras e não o podia reler, então, por ter sido carbonizado por um espirro do peque­nino, enquanto os testes sobre balões dirigíveis e sobre pipas tinham sido destruídos primeiro.

As asas, evidentemente, não eram suficientemente grandes, ou até mesmo, provavelmente, era a angulação das folhas que serviam de sustentação que fazia com que o balanceamento em relação ao impacto com o ar não fosse correto. Na primeira ten­tativa, esborrachou-se miseravelmente num prado coberto de gencianas e numa nuvem de folhas de toranjeira.

A expressão do dragãozinho passou do perplexo ao aterrori­zado. O flanco da montanha levaria para longe os sinais do seu pranto desesperado. Yorsh aprendera a apagar o fogo: aplicava invertida a transferência de energia com a qual conseguia acendê-lo. O fato é que a energia era transferida, não anulada. Ou seja, encontrava-se no interior da cabeça do rapaz, por trás da testa, acima do nariz, precisamente onde ainda ardia um pouco, dando a impressão de um meio-termo entre uma espécie de queimadura interna e uma dor de cabeça mortal, o que teria sido até suportável, se não se tivessem acrescentado às contusões dos tornozelos, às queimaduras das costas, às escoriações do joe­lho esquerdo, para não falar dos hematomas nos cotovelos e na luxação do dedão do pé esquerdo.

Os dedos e os olhos do rapaz percorriam os antigos pergami­nhos, cujo conteúdo ele já sabia de cor. Tinha nas mãos flores de arnica da montanha e neve fresca e as passava em todos os pon­tos doloridos: queimaduras, cortes, contusões, escoriações, luxa­ções, descascamentos e hematomas. De repente, teve um sobres­salto: havia uma última página, que ele não conseguira descolar, que começava a se abrir, tornando-se legível.

A mistura que tinha na mão, de arnica da montanha com neve, mais a fumaça de rosmaninho, funcionava poderosamen­te contra o mofo dos pergaminhos. Era uma descoberta interes­sante.

Poderia acrescentar isso ao Manual sobre conservação e salva­mento de pergaminhos antigos, se o pequenino já não o tivesse roído.

Havia só umas poucas linhas:

Se o dragão não tem ninguém que lhe conte histórias de prince­sas trocadas e muito belos príncipes, há ainda uma possibilida­de: lê-las nos livros. Existe uma nova linhagem de criaturas viventes, nascidas da união de gente élfica com gente humana. Elas não são como os elfos, que amam somente os livros de ciên­cia e aqueles que explicam como se fazem as coisas, nem são como os humanos, que não amam nenhum tipo de livro, por­que depois da queda do império e a chegada das populações bárbaras, camponeses tornaram-se como porcos e até piores.

Yorsh leu, depois leu outra vez, tornou a ler e depois conti­nuou a reler, até que teve certeza, além de qualquer dúvida pos­sível, de que cada palavra, cada letra ou sílaba estava gravada na sua mente, como marca de ferro em brasa na pele.

Erbrow acabara com as favas e viera fazer-se mimar, todo contente.

Criaturas nascidas de gente élfica e gente humana. Por isso, os casamentos entre os elfos e os humanos nem sempre foram punidos, nem sempre houve a condenação à fogueira. Com efeito, agora que ele pensava nisso, o simples fato de que eram proibidos significava que eram possíveis.

Ele sempre pensara sozinho. Era um rapaz sozinho. Um jovem sozinho, um homem sozinho, um velho sozinho, que morre sozinho, em meio aos seus livros. Sozinho ou em compa­nhia do dragão.

Mas não tinha de ser assim: ele se poderia unir a uma moça humana. Essa simples idéia lhe provocou um aperto no coração. Uma moça humana seria humana, isto é, em suma, sim, vale dizer com as características dos humanos. O pranto saindo de você como água, que escorre dos olhos e do nariz. Um não-elfo pode até mesmo ter os cabelos que não são louros e os olhos que não são azuis. Cáries nos dentes. Seria alguém que comia carne morta e esmigalhava os mosquitos com as mãos. Mais do que o seu coração, era o estômago que se contraía.

E, como se isso não bastasse, os filhos que nascessem fala­riam coisas sem nexo de princesas perdidas no meio do campo de favas, que seriam reencontradas na plantação de feijão.

Em compensação, se não destruísse agora a biblioteca, por combustão ou desmoronamentos, até o seu dragão poderia ter a sua incubação. Lugar restaurado, frutas e romances bobos e enfadonhos à vontade.

De repente, ele se lembrou da profecia de Daligar.

Dizia alguma coisa sobre um elfo mais poderoso, o último. Já sabia que era ele. O último e mais poderoso elfo encontraria o último dragão. Yorsh arrepiou-se ao pensar. O último? O último, no sentido de que já havia apenas um dragão de cada vez ou no sentido de que não conseguiria botar o seu ovo e com ele a sua raça seria extinta?

Parecera-lhe ainda que lá estava escrito que o seu destino era casar-se com uma menina com o nome da luz da manhã, filha do homem e da mulher que... Ainda havia quatro palavras, que ele não conseguira ler. Os caracteres da segunda dinastia rúnica não eram fáceis, principalmente quando se está nos braços de alguém que está correndo. Se pelo menos tivesse podido ler as três últimas palavras, aquelas depois do “que”. Se ao menos o caçador, que o levava no colo, tivesse diminuído um pouco a velocidade! Teria tido tempo de ler e agora não teria dúvidas sobre o seu destino. Mas eles teriam sido presos e enforcados, se a corrida tivesse sido menos veloz. Na realidade, o enforcamen­to teria sido um obstáculo para o destino: melhor limitar-se à dúvida. Se ele pelo menos tivesse entendido por que tinham ficado tão furiosos contra eles, em Daligar... Ele era um elfo, está certo, mas tudo o que tinha feito com a sua magia, naquela cidade, fora ressuscitar uma galinha. Era uma galinha muito bonita, com as penas do rabo marrons.

Não podia ser senão ele que devia se casar com alguém. Com uma menina que tinha no nome a luz do amanhecer.

Ele devia ensinar o dragãozinho a voar. Devia mesmo ensi­nar o dragãozinho a voar.

Ainda havia uma idéia que não tinha sido posta em prática, que poderia funcionar.

Yorsh saiu em direção aos picos nevados. Erbrow seguiu-o, trotando, bem aquecido, dentro da sua pele peluda com as suas escamas verde-esmeralda.

O jovem elfo arrepiou-se de frio. Concentrando-se com todas as suas forças na sensação de calor na pele, ele conseguia evitar o entorpecimento pelo frio, que era, ainda assim, terrível. A vegetação era cada vez mais escassa. A neve se tornou alta. Lá embaixo, no vale, a leve nevada dos últimos dias tinha se depo­sitado na relva e lá no alto, sobre a neve do inverno anterior.

Havia um ponto que era perfeito. Ele o vira do vale: uma grande laje de pedra perpendicular a um espigão de rocha que ficava uns vinte pés abaixo (uns seis metros). Mais embaixo ainda, o despenhadeiro: milhares de pés em queda vertical no meio de picos de granito da altura de dezenas de torres. Ao fundo, abriam-se os vales com os bosques de lariços que se alter­navam com clareiras e, mais ao fundo ainda, em toda a sua mag­nitude, o mar.

O frio estava insuportável. O lugar era perfeito. A idéia era ficar brincando com o dragãozinho e se fazer seguir, correndo, sobre a laje. No último instante, Yorsh se desviaria, jogando-se sob a borda, onde havia um ponto com uma espécie de nicho, que parecia feito de propósito. No ímpeto de segui-lo, Erbrow se projetaria no vazio e, uma vez caindo, abriria as suas grandes asas para planar até o espigão de rocha, uns seis metros abaixo. O espigão era grande. Para o pequenino, nenhum risco de cair no despenhadeiro. Um plano simples e genial.

Chegaram à laje. Yorsh agitava os braços, ria e chamava o pequenino. Erbrow estava todo feliz. Soltava guinchos de felici­dade. Pequenos esguichos de chamas, de alegria, derretiam a neve aqui e ali e aqueciam o ar.

Agora!, pensou o elfo. Começou a correr. Sentia atrás de si o chão ribombar sob os passos paquidérmicos do pequenino. Chegando à beira da laje, jogou-se para o nicho e se agachou, com o coração na garganta. Erbrow não parou a tempo, ultra­passou a beira, encontrou-se no vazio, caiu, aterrorizado, sem abrir as asas e se esborrachou contra o espigão de rocha, seis metros mais abaixo.

Ficou ali, estarrecido, porque era a primeira vez na vida que se machucava e se machucara muito. Até a sua pele e as escamas, que o protegiam de tudo, estavam descascadas, amassadas, sujas e cheias de sangue. O dragãozinho nem sequer chorou. Levan­tou a cabeça lentamente e procurou Yorsh com o olhar. O pior eram os olhos. Ficaram arregalados e fixos em Yorsh.

Oitocentos quilos de espanto. Oitocentos quilos de deses­pero, sofrimento e desilusão. Até o seu cérebro de recém-nascido entendia que tinha sido feito de propósito. Como tinha podido fazer isso? Mas por que tinha feito isso?

Depois, o dragãozinho baixou a cabeça. Dessa vez, se pôs a chorar: um ganido miúdo. Nem houve emissão de chamas: era como se o fogo se tivesse apagado.

Yorshkrunsquarkljolnerstrink estava muito mal. A cabeça caiu-lhe sobre o peito. Ele não agüentava mais.

Sentiu a sua tremenda solidão como uma capa de aço que lhe tolhia a respiração.

Sozinho, tinha se arrastado na lama e na chuva. Um homem e uma mulher o socorreram, mas não o consolaram, porque eles eram homens e ele, um elfo, e um muro de estranheza e incom­preensão permaneceu sempre entre eles.

Durante dez anos estivera com um dragão completamente perdido nas angústias da sua incubação e não dera a devida atenção a si mesmo e aos seus pensamentos e agora, de novo, não tinha ninguém. Queria alguém que o consolasse, que o abraçasse e lhe dissesse: “Você tem sido um bravo, meu filho, fez tudo o que podia, tudo o que sabia. Agora, não se preocupe: deixe que eu penso.”

As palavras “não se preocupe, deixe que eu penso” ele nunca havia ouvido na vida.

Ele queria que alguém o chamasse para dizer que o jantar estava pronto.

Queria alguém que lhe ajeitasse a coberta, à noite.

Queria que chegasse alguém suficientemente grande e valente para poder socorrer o pequeno dragão, alguém que sou­besse o que dizer e o que fazer para que ele sofresse menos.

E não havia nem sombra de alguém. Só ele. E um pequeno dragão desesperado.

Teria de se arranjar sozinho. Lembrou-se de ter curado um coelho e uma galinha danificados além da sobrevivência. Aju­dara os pulmões de Sajra a se esvaziar da água. Não havia ninguém maior e mais forte do que ele, mas havia ele. Melhor do que nada.

Havia ele. Bastaria. Devia ir até o dragãozinho, tirar-lhe o mal dos ferimentos, cicatrizá-los. Não era capaz de curar as pró­prias feridas, mas as dos outros, sim.

Depois, tinha de consolar o pequenino e também a si mesmo. Consolar-se é uma das coisas que alguém pode fazer mesmo sozinho, mas a dois é melhor: quando você consola alguém, também fica consolado.

E depois, tinha de lhe ensinar a voar. Conseguiria. Ele era apenas muito pequeno ainda.

Dentro de alguns meses, ele tentaria outra vez e o pequeni­no entenderia tudo. Sim, era isso, ele apenas errara o tempo.

Yorsh levantou a cabeça sobre o ombro que lhe doía e se movimentou para ir socorrer o pequenino. Pisou inadvertida­mente num ramo caído, o tornozelo contundido não agüentou e falseou: ele perdeu o equilíbrio e caiu fora da laje. Voou vinte pés para baixo e se estatelou sobre o pequenino. O ganido surdo transformou-se num berro convulso. Aterrorizado, Erbrow teve um sobressalto que lançou o jovem elfo ao espaço, descrevendo um semicírculo perfeito, como os arcos da primeira dinastia rúnica.

Yorsh aterrissou na borda do espigão, onde terminava a rocha, e continuou no vazio.

Conseguiu agarrar-se numa moita de sarça. O resto do corpo ficou balançando no vazio. Abaixo dele, um salto de milhares de pés e depois o granito.

- Ajude-me! - gritou para o dragãozinho. - Ajude-me! -repetiu com todo o fôlego que a garganta lhe permitiu. - A cauda. Jogue-me a sua cauda. Você pode me salvar!

O pequenino olhava para ele, imóvel, aterrorizado. Estava paralisado.

- A cauda! - gritou mais uma vez o rapaz. - Lance-me a sua cauda!

Ele ferira as mãos na queda. E mais, havia as queimaduras ainda não curadas e, para completar, os espinhos da sarça - não é à toa que também se chama espinheiro...

O elfo procurou se manter agarrado com todas as forças, mas as mãos cederam.

- Vou morrer. Não me deixe morrer. A cauda. Você pode conseguir, maldito bicho grande. Salve-me!

Oitocentos quilos de absoluta e atônita inutilidade.

Yorsh perdeu a força nas mãos.

Caiu no nada.

Procurou fazer aparecer alguma idéia, se não para se salvar, pelo menos para sofrer menos, quando chegasse o momento de se espatifar. Yorsh se perguntou quanto tempo se leva para mor­rer e se era o tempo suficiente para sentir dor. Procurou pensar em sua mãe. Agora poderiam reencontrar-se. Esse pensamento não o consolou. A única coisa em que conseguia pensar era que ainda queria viver, a todo custo.

O mundo ficou verde. O céu, o sol, as suas mãos, que ele mantinha abertas enquanto caía, o resto do seu corpo, a neve lá em cima, nos picos. Tudo. Duas enormes asas verdes estavam abertas sobre ele e a luz as atravessava.

O dragãozinho estava voando. Estava acima dele, com as asas escancaradas. Pelo menos, ele conseguira ensinar-lhe a voar.

Decidiu não se iludir.

“Está apenas me seguindo”, pensou ainda Yorsh. “Está voando só por imitação. De um momento para outro, ele fará squeeeeeeeeek e, em vez de me espatifar em pedaços, serei quei­mado vivo.”

Então, os seus olhos encontraram os de Erbrow. Oitocentos quilos de decisão. Oitocentos quilos de determinação. O peque­nino estava vindo salvá-lo. Na queda, tinha se machucado - e muito. Tinha entendido que caindo a gente se machuca. Tinha vindo para impedir o seu impacto com o chão. Voando com todas as suas forças, estava vindo pegá-lo. Já chegara até ele. Yorsh fechou os olhos e segurou a respiração, à espera de sentir as garras do dragãozinho agarrando-o e fazendo-o sangrar, ainda que para salvar-lhe a vida. Talvez se salvasse da queda e morres­se por causa das garras.

Oitocentos quilos de inteligência.

Sentiu a garra puxá-lo para o alto. Erbrow o pegara pelos pulsos, prendendo-os entre as duas garras das patas anteriores. A pegada era ao mesmo tempo segura, forte e... macia. As pernas de Erbrow eram ainda macias como a de todos os filhotes. Não tinha sequer arrastado as garras nele. O cérebro do dragãozinho tinha amadurecido e funcionava!

O pequenino virou-se decididamente para o alto, embican­do para as colinas além das Montanhas Escuras. Baixaram acima de uma paisagem suave, onde videiras se alternavam a macieiras. Yorsh reuniu toda a força que pôde, contraiu os músculos abdo­minais e jogou os pés para cima, numa espécie de cambalhota. Erbrow entendeu a manobra e facilitou-a, abaixando o ombro direito e, ao mesmo tempo e no momento adequado, soltando-lhe os pulsos. O jovem foi parar lá em cima, nas costas do dra­gão. Como dois acrobatas que tivessem praticado durante anos. Yorsh entreviu lá no chão, entre as alamedas de videiras, figuras minúsculas fugindo em todas as direções.

- Vamos sair daqui! - gritou.

Erbrow virou de novo, embicando para o mar, do outro lado das Montanhas Escuras, alternando vôos altíssimos, acima das nuvens, com vôos baixos, raspando nas pontas dos lariços. Yorsh descobriu que a sua biblioteca já estava completamente isolada. Tinha havido dois deslizamentos, provavelmente na penúltima primavera, quando as chuvas foram violentíssimas e simultâneas ao degelo: um dos deslizamentos fechou a escada que ele tinha percorrido com Monser e Sajra e o outro, o caminho que o casal usou para se afastar. Agora, a sua biblioteca só podia ser atingida por alguém com asas. Depois, finalmente, viu o horizonte que se lhe abria à frente, além do vale, sob as nuvens, interrompido ape­nas pelas gaivotas. Sentia o vento nos cabelos. Ao ruído do mar se misturavam o do vento e o das gaivotas.

As costas do dragão pareciam feitas para acolher um cavalei­ro: havia duas minúsculas asas internas, de pêlo macio e quente, entre as asas verdadeiras. O dragão percebeu que o jovem tremia e fechou em torno dele as duas asas menores. Era o lugar mais grandiosamente confortável que se podia imaginar.

Abaixo deles, o vale se abria em toda a sua magnificência. Erbrow baixou o vôo de maneira ousada, para roçar nos topos dos lariços, depois subiu de novo, desceu até o nível da relva da clareira, depois voltou para o céu.

Ouviu-se no ar o grito do dragão, muito mais grave e pro­fundo do que o costumeiro squeeeeek, e uma linha de fogo se formou diante deles. O dragão atravessou-a com tal velocidade que nem ele nem o rapaz puderam sentir-lhe o calor, como quando se passa o dedo rapidamente pela chama de uma vela.

A cada grito, o céu se tornava de chamas e de ouro, para logo voltar ao azul. O dragão baixou sobre o mar e roçou nas ondas. Yorsh sentiu no rosto e nos cabelos a espuma salgada. Em torno dele, as ondas seguiam umas às outras, as gaivotas voa­vam, o horizonte não era interrompido por nada.

Yorsh pensou que existem, na vida, um antes e um depois: antes e depois do momento em que, pela primeira vez, se toca o mar. As vidas em que esse momento não existe são vidas em que talvez falte alguma coisa.

Erbrow fechou em volta dele as suas asas internas, para protegê-lo e aquecê-lo, e depois mergulhou. Yorsh pensou outra vez em ser um peixe e a água salgada em torno dele tornou-se um grande prazer. Encontraram um grupo de golfinhos que os olharam, curiosos. Havia também uma mamãe golfinho com o seu filhote ao lado e o coração de Yorsh, por um instante, en­cheu-se de saudade da infância não vivida, mas depois Erbrow embicou outra vez para o céu, em meio a uma nuvem de gaivo­tas, e a saudade se dissolveu nas gotículas de espuma que fica­ram para trás, abaixo deles.

O dragão gritou de novo: o seu grito grave e forte como o som saído de um chifre de caça. Nenhuma chama se abriu dian­te deles.

Yorsh se pôs a rir: tinha encontrado o elemento faltante. Para apagar a chama de um dragão, a simplíssima água do mar era muito mais simples do que o acónito, a digital e a arnica.

Depois, não parou de rir, porque voar para o céu, para o horizonte e de novo para o céu, com o vento nos cabelos, as gai­votas perto e um golfinho filhote olhando para ele da água e fazendo piruetas para brincar com eles era a própria essência do ser feliz. Não parou de rir, porque a solidão estava quebrada e isso é a própria essência do ser feliz, ainda mais do que o vôo. Tinha ao seu lado - embaixo dele, para ser preciso - um verda­deiro irmão, grande, forte.

Era o círculo do horizonte o que ele e Erbrow tinham que­brado ao voar juntos, o da tristeza, o da solidão.

Inclinou-se, no alto do dragão, e o abraçou. Enfiou o rosto nos seus pêlos verde-esmeralda e ficou ali, assim. O dragão gri­tou de alegria. Dessa vez, a sua chama de cor dourada atravessou o céu como uma longa espada de luz.

O sol desceu no horizonte. Desapareceu. O céu encheu-se de estrelas. Uma ilha minúscula com uma enorme cerejeira sel­vagem era a única terra à vista: de resto, o horizonte era um arco perfeito onde o céu e o mar se encontravam. Nada o quebrava.

 

Robi estava estendida ao sol, o tempo lhe passava por cima como a água sobre uma pedra.

Desde que o dragão enchera o céu com o verde das suas asas, eles não tiveram mais nenhum dia de trabalho. Ninguém tinha pista de Iomir. Comiam até um pouquinho melhor e ela nem tinha sido punida. O inacreditável tinha acontecido. A bem da verdade, mesmo que não houvessem passado mais do que uns poucos dias, a lembrança do que acontecera realmente estava de tal maneira empastelada, distorcida e emaranhada em suas inúmeras versões sucessivas que já era impossível de se recu­perar.

A teoria mais acreditada, afinal, era que um dragão tivesse aparecido no céu, raptado a pobre Iomir e que o resto dos órfãos tivesse sido salvo pelo destemido enfrentamento de Stramazzo, que, no fim, sangrando heroicamente, o pusera em fuga. O lado divertido da coisa - desde que se veja o fato com bastante senso de humor - era que, depois da terceira repetição, acabavam real­mente acreditando nela. A verdade tinha se perdido no chão, como o suco da uva esmigalhada. Robi não tinha sequer sido punida. Ao contrário, nas várias repetições da história ela se tor­nara aquela que tinha dado o alarme: se não exatamente uma heroína, pelo menos uma das protagonistas. A poucos passos dela, apoiada no cercado, Tracarna contava a história ao envia­do de Daligar:

- E então, essa menina, Robi, deu o alarme. Ela é filha, na verdade, de gentalha, da pior... - suspiro - por sorte, a justiça já se ocupou deles, mas graças à moral que aprendeu aqui, agora Robi fez até mesmo uma coisa certa. Por certo, não foi somente por amor à justiça, foi também por medo do dragão, lógico... -risinho - mas, graças à nossa influência, de qualquer modo ela fez a coisa certa. E depois, deveria tê-lo visto, Stramazzo, quero dizer... - momento de comoção, com olhos perdidos no vazio e sorriso - ele se pôs de pé num salto, pegou um enorme cesto cheio de uvas e, brandindo-o como um escudo improvisado...

Assim, nenhuma punição a Robi, nenhum sabujo no encalço de Iomir - oficialmente defunta - e quatro honrarias para Stramazzo: coragem frente ao inimigo, generosidade em relação a menores, defendidos da fera, apesar de não serem dignos, des­prezo ao perigo e capacidade de honrar Daligar, porque no momento de caçar o monstro, lançando contra ele um cesto de uvas...

- ... Stramazzo gritou: “Por Daligar e pelo seu juiz-administrador” e se lançou contra o dragão. Isso mesmo, o meu esposo lançou-se com o seu cesto, gritando como um herói... - peque­no soluço de comoção, com lágrima. - O monstro estava de tal maneira aterrorizado, que fugiu: abriu as suas enormes asas, com o que restava de Iomir entre as fauces, e...

Robi estava contente por Iomir estar livre e com os seus, mas também sentia a sua falta, de forma aguda. Teria, como nunca teve antes, vontade de conversar com alguém, de recordar e entender o que tinha acontecido.

Um dragão verdadeiro aparecera no céu. Verde. Como no seu sonho. Os dragões não estavam extintos e o seu sonho não era uma fantasia. O dragão estava contra a luz, mas, apesar do sol nos olhos, Robi conseguira ver uma figura humana pendu­rada nas suas pernas, balançando perigosamente no vazio. Poderia parecer uma presa, uma criatura capturada, mas no momento em que Robi olhava, a figura pendurada fez uma acrobacia e se instalou comodamente na garupa do dragão. Permaneceu ali por alguns instantes. Negra, contra o sol resplandecente, abrira os braços, como para abraçar o mundo: fora a última imagem clara, depois o dragão virara em direção às Montanhas Escuras, desaparecendo rapidamente atrás delas.

O dragão existia, portanto, e estava levando alguém nas costas.

O príncipe! Quem, senão o príncipe? Robi tinha a mente dividida em duas partes: uma dizia que o sonho era verdadeiro, que o dragão viera socorrê-la e salvá-la, apenas com a sua pre­sença. Agora, voltaria para levá-la embora dali. A felicidade a inundava, a esperança esguichava, a lembrança da luz que ficava da cor da esmeralda a iluminava por dentro, como uma peque­na vela no escuro.

A outra parte da mente dizia que não tinha nenhum senti­do lógico: ela não era princesa nenhuma ou qualquer coisa do gênero. Ainda existia um dragão. Nada mais.

Ainda existia um dragão, com um sujeito em cima, que por mero acaso tinha chegado no momento em que ela estava deses­perada e em perigo, para salvá-la com a sua simples aparição, e que, por puro acaso, era realmente parecido com o dragão com que ela sonhava todas as noites, desde que a sua família fora des­truída. Uma coincidência?

Ainda havia um terceiro pensamento que não lhe saía da cabeça, era um pensamento-verme, um pensamento-lagarta: peludo e venenoso como aquilo que se encontrava, em junho, dentro das cerejas, que pareciam muito boas, mas não eram. Talvez fosse verdade o que Tracarna e Stramazzo diziam. Talvez não fossem só calúnias, só mentiras. Talvez ela não fosse uma pessoa qualquer. Talvez fosse verdade que a sua família era... má. Uma família que... Robi sentiu repugnância em pronunciar a frase, mesmo que só dentro da sua cabeça... Uma família que ajudara os elfos. Era horrível, não podia ser verdade. A sua mãe e o seu pai eram bons: não era verdade, não era possível que tivessem feito uma coisa tão suja como proteger um elfo e por dinheiro ainda por cima. Essa tinha sido a acusação: proteger um elfo em troca de moedas de ouro que serviriam, mais tarde, para comprar a casa, o sítio, a vaca, o cavalo, as ovelhas, as gali­nhas e o pomar. Quem protegeu um elfo pode ter relações com um dragão. E o protegido não era um elfo qualquer, mas o Elfo, aquele que viera aterrorizar Daligar no ano anterior ao seu nas­cimento. O juiz-administrador é que tinha salvado a cidade da fúria do terrível indivíduo, uma fera sedenta de sangue que se estaria divertindo, massacrando todos os armígeros, as mulhe­res, as crianças, os cães e até as galinhas se o juiz-administrador não o tivesse feito parar, com a sua coragem e o seu valor.

Os detalhes dessa façanha nunca foram esclarecidos. E até mesmo sobre o acontecimento em si, Robi tinha algumas dúvi­das. Em toda a sua vida, ela jamais conhecera alguém que fosse filho de alguém assassinado pelo terrível elfo de Daligar. E todos os órfãos de Daligar estavam ali, com ela...

Se o elfo fora tão poderoso para desbaratar os armígeros apenas com o som do seu nome horrível, como pudera o juiz-administrador enfrentá-lo? Teria sido como Stramazzo enfrenta­ra o dragão? Robi deu uma risadinha. A alegria voltou outra vez. E se tivesse sido falso que os dragões são maus, que os elfos são malévolos? E se tivesse sido tudo mentira, como a heróica bata­lha na colina da uva?

- Uma batalha heróica, he-rói-ca - continuou Tracarna -, o sangue escorria como o mosto para fora da tina.

Talvez os dragões fossem bons e o dragão tivesse vindo procurá-la. Robi fechou os olhos; a fome e a tristeza tornaram a desaparecer e, por baixo das pálpebras, a imagem se formou de novo: o dragão estava tão perto que as suas asas cobriam todos. Robi pôde distinguir os movimentos da pele dourada alternando-se às escamas de cor esmeralda.

Mesmo com os olhos fechados, percebeu a presença de alguém. Era a sensação inconfundível que se experimenta quan­do alguém está olhando. Robi abriu os olhos: estava nariz a nariz com Cala. Creschio e Moron estavam a poucos passos dela, em pé, com os braços cruzados no peito, enquanto Cala estava ajoelhada, observando-a como se olha para um formigueiro de formigas vermelhas: um pouco de desgosto e um pouco de medo.

Robi percebeu que ainda estava em desgraça. Ficou em pé e olhou para os três.

- Aonde foi Iomir? - sibilou Cala. Era baixa, os cabelos lou­ros lhe escorriam pelo rosto, acentuando o ar truculento. Sem os dois cães de guarda às costas, nunca teria enfrentado Robi, mas sentia-se forte com eles.

- O dragão a comeu, lembra? - respondeu Robi, serena­mente.

- Não é ver-da-de - disse Cala. - Você sabe de alguma coisa. O dragão apareceu justamente no momento certo. - Olhou-a de cima a baixo. - Na sua casa, eram amigos dos elfos — acres­centou, venenosa -, por que não dos dragões também?

- Bem, vamos perguntar a Tracarna se é verdade o que ela está contando ou se é tudo invenção — propôs Robi, cada vez mais angelical. E se voltou, como se fosse mesmo se dirigir ao cercado. Creschio e Moron olharam-na por alguns instantes, depois cerraram os lábios, deram de ombros e, depois de um último olhar, oblíquo e desconfiado, afastaram-se. Cala ficou sozinha com Robi.

- O dragão emitiu um gemido de terror, entre as suas pre­sas ainda se via um braço da pobre criatura... - Tracarna não desistia.

- Não é verdade - disse Cala, ainda desconfiada e cheia de ódio. Tinha os olhos cheios de lágrimas, demonstrando todo o rancor do mundo. Alguém tinha vindo arriscar a vida para abra­çar novamente Iomir, a sua filhinha. Nunca viria alguém procu­rar Cala.

Robi olhou para ela longamente. Depois, disse uma coisa absurda:

- Mais cedo ou mais tarde, alguém virá buscar você tam­bém. - Em certo sentido, isso lhe saíra da boca sem querer: ela se ouviu dizendo e ficou horrorizada. Era cruel e não fazia sen­tido, porque não ter nada é infinitamente melhor do que ter uma ilusão e depois vê-la esfacelar-se.

Simplesmente não conseguira evitar. Olhou o rostinho de Cala, meio escondido pela cabeleira loura e suja, para os olhos furibundos e desesperados. De novo, as palavras lhe vieram aos lábios, como que sozinhas:

- Mais cedo ou mais tarde, alguém levará você daqui - con­firmou.

Cala empalideceu sob a sujeira. Os olhos se arregalaram. Levou a mão à boca, como que para sufocar um grito. Ou um gemido. Na mãozinha esquerda, faltava o polegar, que é o dedo mais importante de todos. De repente, na cabeça de Robi, por trás das pálpebras, formou-se a imagem da mãozinha de Cala com todos os cinco dedos em seus lugares. Mordeu a língua com força, para não falar que aquela mãozinha poderia voltar ao normal, porque isso seria muito absurdo e muito cruel.

- Você é uma bruxa, não é? - perguntou Cala, sussurrando. - A sua família é de bruxas? É por isso que você é amiga dos elfos? Mas, escute aqui, você sabe mesmo das coisas, não é ver­dade?... Não é?

Robi não respondeu nada.

- Stramazzo escorria sangue e lama, vocês deviam ver, san­gue e lama... - continuava Tracarna. Depois, a sua narrativa foi interrompida por um grito estrangulado. Sobre a cabeça deles volteava, enorme, esplêndido e ameaçador, o dragão das asas verde-esmeralda. As costas dele, se entrevia uma figura branca minúscula. Gritos de terror espalharam-se por toda parte. Houve um corre-corre geral. Esquecido dos precedentes guer­reiros e heróicos, Stramazzo saiu de repente do seu ronco sober­bo para exibir-se numa corrida incrível até o palheiro mais pró­ximo. O enviado de Daligar, aquele que tinha levado as honra­rias, estava no firme propósito de escapar pelo lado oposto, em direção ao seu cavalo, e não notou a incongruência. Tracarna também acabou no palheiro, mas, antes de chegar lá, tropeçou num dos meninos menores e a sua túnica azul-poeira com pon­tos de fio de prata era agora um amontoado de lama e palha.

Creschio e Moron corriam a distância. Robi ficara imóvel, olhando o dragão. Um sorriso vago formara-se nos lábios dela. O dragão, depois do último volteio, virou outra vez para as Montanhas Escuras, sobrevoou-lhes os cumes e desapareceu atrás deles. Evidentemente, o seu refúgio não estava longe. Cala estava perto de Robi e continuava a olhá-la, estarrecida. Ela também não tinha fugido. Finalmente, ousou perguntar:

- Agora que Iomir não existe mais, posso dormir ao seu lado?

Robi nem precisou pensar:

- Mas é lógico - respondeu.

 

O problema era como.

O dragão dormia feliz, enroscado em duas voltas da própria cauda, como um passarinho no ninho. Lá fora, o vento uivava e, a bem da verdade, uivava também dentro da gruta, porque os squeek de Erbrow, recém-nascido, tinham destruído, uma por uma, todas as janelas de âmbar e Yorsh não tinha idéia de como consertá-las. De todo modo, uivava menos dentro do que fora e, de mais a mais, o vapor do vulcão aquecia o ambiente. A tem­peratura estava bem distante da perfeição, mas, no fim das con­tas, era compatível com a sobrevivência de um elfo seminu.

Empoleirado numa estalactite como uma coruja num ramo, Yorsh procurava avaliar a situação.

Como encontrar roupas? Não podia sair por aí meio nu. O inverno já estava às portas. A neve - que por enquanto aparecia só nos cumes mais altos - de um momento para outro submer­giria o mundo. Além disso, os humanos não gostavam dos elfos. Presumivelmente, gostariam ainda menos dos meio nus e, além do mais, os reconheceriam ainda mais depressa. Um capuz lhe esconderia a cor dos cabelos e as orelhas pontudas, o preservaria do resfriado e lhe protegeria a testa, no caso não improvável de o pegarem a pedradas.

Como ensinar ao dragão a ler e escrever? Procurou lembrar-se de como a avó lhe ensinara, mas a memória não ia tão longe a ponto de recordar o período em que a leitura lhe era desconheci­da. Mas teria mesmo havido tal período? Ou já se vem ao mundo sabendo ler? Provavelmente, não. Um elfo vem ao mundo sem saber fazer nada. Depois, aprende a falar e, só depois de ter apren­dido a falar, aprende a ler. É. Decididamente, a seqüência devia ser essa. Primeiro falar, depois ler. Monser e Sajra, de fato, não sabiam ler, mas pelo menos falavam. No caso deles, era um modo de falar meio rude, para dar uma idéia da irracionalidade do pen­samento que os animava, mas indubitavelmente compreensível. Como enfrentar o mundo dos humanos sem acabar apedrejado até a morte e/ou esfolado e/ou enforcado e/ou queimado vivo ou até morto por qualquer dessas maneiras e queimado depois de defunto? Por isso, a resposta era fácil: tinha de encontrar Sajra e Monser. Eles o acolheriam, ajudariam, protegeriam e aconselha­riam. Assim, o problema passava para o estágio seguinte: como encontrar Sajra e Monser? Poderia perguntar. Havia muitos anos que não falava com alguém que não fosse um dragão. Devia pra­ticar perguntas, preparar o que dizer.

“Com licença, Excelência... ou imbecil?” Qual era mesmo, dessas duas, a forma de cortesia correta? Continuava confun­dindo.

Não, ele deveria preparar uma maneira impecável para a fala, desde o começo. Em caso de erro, acabaria em pedradas, o que nunca é uma hipótese desejável.

“Com licença, nobre senhor (senhora), sabe onde vivem os ti­pos que se chamam Sajra e Monser, que são dois humanos?”

Não, é melhor tirar a parte sobre os humanos. Do contrá­rio, o interlocutor teria dúvida sobre a possibilidade de os tipos não pertencerem à humanidade e acabaria em pedradas.

“Com licença, nobre senhor (senhora), sabe onde moram uma mulher chamada Sajra e um homem de nome Monser?”

É, já podia ir. Com muita sorte e alguns anos à disposição, talvez até algumas dezenas deles, mais cedo ou mais tarde os encontraria.

O que fazer do dragão? Abandoná-lo era intolerável. Levar com ele?

Como fazer para esconder um dragão verde que já devia estar com cerca de uma tonelada e que teria o dobro disso, antes do fim do mês? Impossível. Teria de abandoná-lo. Mas não assim, como estava agora, perdido no silencioso deserto da falta de conhecimento. Tinha de ensiná-lo a falar e a ler. Uma vez suficientemente instruído, Erbrow poderia passar o tempo na própria aculturação. Mesmo tirando os livros carbonizados e os tostados, sobraram livros suficientes para passar o tempo praze­rosamente, sem sofrer de abandono ou de solidão.

Assim, Yorsh poderia deixar o dragão na biblioteca durante o tempo necessário para encontrar Monser e Sajra, achar uma esposa para si, evitar apedrejamentos, enforcamentos, fogueiras e voltar.

No máximo, uma ou duas décadas.

A sua esposa humana estaria certamente contente de passar a vida no alto de uma montanha inacessível, junto com um dra­gão, porque não se encontra um dragão todos os dias, e depois pode se tornar cômodo para acender o fogo e cozinhar uns fei­jões, pois os humanos sempre têm o problema da sua incapaci­dade no assunto. E depois, qual a situação que suscita mais idí­lio do que estar toda a vida numa biblioteca que reúne todo o conhecimento humano ou, pelo menos, o que restava, que era, de qualquer modo, notável? Poderia criar os filhos na leitura, na escrita, na astronomia, na geometria, na zoologia e na dança, alimentando-os com favas douradas e toranjas, de modo que, não comendo nunca coelhos mortos, poderia acontecer que crescessem menos rudes do que a mãe e até um pouco menos fedorentos do que habitualmente são os humanos.

O programa era perfeito: o problema era como.

Yorsh tentou descer da sua estalactite: não era fácil, porque Erbrow tinha lhe mastigado os sapatos de junco de tangerina selvagem trançado. Tinha sido alguns dias depois de ter saído do ovo, duas semanas atrás, quando lhe despontavam as presas laterais posteriores, o que deve incomodar muito. No mais, como se isso não bastasse, o tapete de borboletas amarelas e douradas tinha sido substituído por uma camada de excre­mento de pássaros.

Yorsh não fora o único a notar que a temperatura no inte­rior da gruta estava mais tépida do que o gelo externo e todos podiam procurar refúgio pelas janelas quebradas. Praticamente todo o topo das estalactites estava ocupado por ninhos de algu­ma coisa: havia cambaxirras e alguns estorninhos, mas a esma­gadora maioria era de pegas, o animal por excelência, como Yorsh não poderia ter deixado de notar, mais esvoaçante, grita­dor e briguento e o de maior produção de excremento.

Mancando e saltando de um ponto ainda limpo para outro, o jovem elfo chegou às trepadeiras de favas douradas. Num canto, um filhote de pega dava caça às últimas borboletas ater­rorizadas, que se debatiam valorosamente contra a extinção. O bichinho esvoaçava todo contente, quando uma enorme coruja o agarrou.

O filhotinho nem teve tempo de gritar, penas e sangue se espalharam para todo lado, sobre as favas douradas, no chão e no peito do jovem elfo, que por um instante sentiu o estômago se contrair, por uma mistura de exasperação e horror, que já se tornara o seu humor habitual.

O alarido acordara o dragão, que abriu os olhos e levantou a cabeça, que se apoiava na cauda. Yorsh chegou a ele saltando entre os acúmulos de excremento, penas e resíduos de ossinhos descarnados pelas corujas.

Depois do magnífico vôo sobre o mar, no dia anterior, vol­taram à biblioteca, mas o abandono fora suficientemente longo para transformá-la em uma espécie de caverna para animais. Só o salão central, isolado de tudo, fechado e entupido de livros, ainda permanecia limpo e decente, mas, a rigor, além dos livros não entrava ali nem um canarinho, imagine eles dois...

Yorsh organizou-se com calma. O dragão olhava para ele. Sonolento, mas atento. Yorsh lhe sorriu: o ensino deve ser uma experiência gloriosa para o discípulo.

Nenhum dos livros que ele lera era dirigido a crianças pequenas, mas uma boa parte dos testes de filosofia tratava de como ensinar. Cerca de dois terços recomendavam varadas nos dedos como corretivo dos processos de aprendizado, enquanto o terço restante confiava na teoria da brincadeira para atrair a atenção do discípulo. Os dragões não têm dedos para tomar varadas - uma criatura de uma tonelada ou mais - e sempre que ele resolvesse tomar alguma atitude que resultasse dolorosa para Erbrow, podia significar incompatibilidade com a sobrevivên­cia, por isso, Yorsh decidiu confiar nos sistemas suaves. O ensi­no deveria simular a brincadeira.

Colocou favas no chão: uma de um lado, duas de outro, depois as três juntas e assim por diante, até seis. Talvez pudesse fazer linguagem e matemática juntas.

- FAVA - disse ele, indicando a fava isolada. Sorriu e bateu palmas. - FA-VA, F-A-V-A.

Outro sorriso, um pulinho e uma batida de mão a cada letra.

Erbrow levantara a cabeça e olhava para ele, perplexo. Perplexo, mas interessado: funcionava!

- F-A-V-A - repetiu Yorsh. - F-A-V-A: uma fava, duas favas. Fava, favas. Um, dois. Uma fava. Duas favas. Muitas favas. Um pulinho, dois pulinhos, muitos pulinhos. Batida de mãos, risadinha.

O dragão não tirava os olhos de cima dele. Cada vez mais perplexo, mas cada vez mais interessado. Decididamente, era o sistema certo.

- Fava, favas. Um, dois. Uma fava, duas favas. Efe, a, vê, a: fava!

Yorsh deu um sorriso radiante e se regozijou. Então, o dragão se manifestou:

- Ocorreu-lhe esta noite a transformação em parvo, ó jovenzinho elfo, ou você já o era e eu não percebera? - pergun­tou, educadamente. - E, por favor, não haveria alguma coisa para comer, que seja outra, a não ser favas douradas e tangerinas cor-de-rosa? Se as torno a ver, poderia padecer do estômago, e este pavimento já é uma latrina indigna, da forma em que se encontra agora.

 

No incompleto livro de dragologia, havia muitas coisas pareci­das. As noções do jovem elfo sobre dragões eram limitadas, escassas, incompletas e fracas como folhas no inverno ou mel durante a escassez. Com a paciência dos dragões, grande e espa­çosa, seria preciso reexplicar-lhe tudo do começo.

- Através do ovo? - Yorsh estava estarrecido.

- Através da espessura do ovo - confirmou o dragão, pacientemente. A paciência dos dragões é ampla, como os pra­dos que se abrem nas montanhas, enquanto o intelecto do jovenzinho parecia estreito como os quartinhos onde se guar­dam as vassouras. O dragão ficou admirado: tinha na memória algum livro que afirmava categoricamente o quanto os elfos eram astutos e inteligentes. - De outro modo, por que, segundo você, um dragão ficaria sentado durante anos sobre um ovo?

- Para mantê-lo aquecido. Como fazem os pássaros - pro­pôs Yorsh.

A comparação gelou o dragão, como neve gelada nas costas. As escamas da cauda se eriçaram. Como os pássaros? Mas como ousava? O pai dele e o pai do elfo teriam lavado uma afronta dessas com sangue, ou melhor, com fogo. Um pouco de fogo, um pouco de rosmaninho. Fogo, sal e um pouco de rosmani­nho. Parecia um bom jovenzinho. Não. Decididamente, não. Por mais grosserias que ele possa dizer ou pensar, não se pode assar quem tirou você do ovo, ensinou-lhe a voar e distraiu, aqueceu e assistiu o seu pai enquanto ele estava chocando você. O dragão deu um suspiro e depois recomeçou a explicação, com voz baixa e calma, exaurindo completamente o que lhe restava de paciência, infinita nos dragões, como a beleza, a modéstia e o gênio. Explicou como os pássaros são exatamente pássaros, com o cérebro de um frango. Até a águia: cérebro de galinha. Olhar orgulhoso e idiotice abissal. Um pássaro mantém os seus pró­prios fundilhos sobre um ovo porque, sendo pássaro, ou seja, tolo incurável, não tem outro sistema para mantê-lo aquecido. Eles eram dragões. Dragões, D-R-A-G-Õ-E-S. O conceito esta­va claro para ele - o jovem elfo - ou seria necessário soletrar pelas garras? Bem, se o problema fosse esquentar o ovo, eles que eram dragões, DRAGÕES, calculariam a temperatura necessá­ria pelo tempo necessário e a obteriam por combustão, refração, desfrute do vapor sísmico do vulcão aí ao lado ou qualquer outro meio. Se ficam ali com o traseiro no ovo, em vez de sair por aí para explorar o universo e melhorar o mundo com a pre­sença deles, é porque, no choco, o pensamento se transfere dire­tamente do dragão pai para o dragão filho. Eles não pensavam com o traseiro. O fato era que o sistema reprodutivo do dragão era maravilhosamente intermediário entre o da fénix e o dos elfos, galinhas, homens, cães, gatos, canários, golfinhos, pin­güins e tubarões... sim, lógico, certamente até as borboletas e se Yorsh tivesse parado de lhe interromper o discurso continua­mente, teria sido melhor. Entre outras coisas, não gostaria o elfo de se encarregar de lhe ensinar o modo de falar? Isso mesmo, ele já estava apto, portanto, se usufruísse da coisa em silêncio! Onde tinha parado? Odiava ser interrompido. Uma coisa detes­tável. DETESTÁVEL! Ele já havia mencionado o fato de que os dragões são magníficos, a maior obra da natureza, a própria essência da Criação? Não gostaria de ter esquecido, continua­mente truncado por freqüentes e insípidas interrupções. Quem lhe tinha ensinado a falar? O pai dele, obviamente; quem, senão ele? “Sua Magnificência, o pai dele”, se queriam mesmo chamá-lo de maneira correta; tinha aprendido pela memória dele. O cérebro do dragão pai se concentra no do recém-nascido e lhe comunica todos os seus conhecimentos e lembranças, assim o recém-nascido, logo que saído do ovo e instruído sobre o vôo, já é, como dizer, bem, existe uma palavra só, “perfeito”.

Ele falava de maneira diferente de Sua Magnificência, o seu pai, vá lá: se Yorsh quisesse, mesmo, poderia chamá-lo simples­mente de Erbrow, o Velho, mas lhe parecia depreciativo, porque os dragões falam a mesma língua dos homens e a língua dos homens se modifica um pouquinho, ao longo das gerações. E a vida dos dragões é longa. Quando choca, o que quer dizer que está velho e cansado, o dragão volta à sua língua primitiva, a pri­meira que aprendeu quando criança, isto é, no caso de Erbrow, o Velho, a da segunda dinastia rúnica. Ele, Erbrow, o Jovem, falava a língua que o pai utilizara por último: a língua corrente.

- Vamos do começo - retomou o dragão. - O sistema reprodutivo do dragão é intermediário entre o da fénix e o dos elfos. Você conheceu alguma fénix? Não? Obviamente, não, as últimas ressaltam ao intermezzo entre a terceira dinastia rúnica e a era do meio e vocês, elfos, coitadinhos, não absorveram os conhecimentos dos seus avós. Pelo fogo, a fénix regenerava o seu próprio ser, sempre o mesmo indivíduo. O fogo era a sua pedra fundamental, entende, o seu caminho para a eterna juventude: até que alguém lhes cortasse o pescoço para fazer alimento, as fênices eram imortais. Por sorte, a comida era boa, o rosmani­nho era abundante e, assim, nós as extinguimos.

- Vocês as extinguiram? Vocês extinguiram as fênices? Que eram imortais? E vocês... extinguiram...

Mas o que acontecia agora com o jovenzinho: nem se lem­brava mais de como se fala?

Yorsh estava mesmo sem palavras. Parecia que tinha acabado de cair na água fria. Até respirava mal! O rapaz deu um passo para trás, um dos seus pés descalços escorregou num ossinho meio descarnado por coruja e ele caiu com o traseiro dentro da camada de excrementos de pássaros diversos, que cobriam o chão.

Talvez a inteligência dos elfos lhes chegasse quando fossem um pouco mais velhos.

- Você se sente bem? - perguntou Erbrow.

- Vocês extinguiram... - balbuciou de novo. - Como puderam?

- Bem, não foi difícil. - O dragão se comoveu ao lembrar. Não era uma recordação dele, ele a absorvera da memória pater­na, mas era, de qualquer maneira, uma coisa de dar água na boca. - Algumas folhas de louro e um pouco de sal do mar. Cozinhar pouco, como o peixe.

- Deviam ser pássaros magníficos...

- Isso mesmo; os frangos também são magníficos e nós os comemos. As fênices eram os pássaros mais ignobilmente obtu­sos, completamente insípidos, absolutamente sem cérebro e que nunca existiram em cativeiro. Quando alguém nasce tão despro­vido de juízo, não se deve lamentar se, depois, é extinto. A única coisa que uma fénix tem na cabeça são as penas da cauda e as rugas sob os olhos. Só quem as conheceu é que tem uma idéia.

“Falar com uma fénix é uma desolação, é como estar no meio de um prado de relva seca e flores que nunca nasceram. Só em recordar, a desolação me invade o cérebro. E foi um gesto de misericórdia, porque a existência delas foi puro sofrimento. Dispostas a se queimar vivas, para não envelhecer. Não nascia uma nova fénix, entende? Era sempre o mesmo frango com a cabeça cheia apenas de tolices que ressurgia!”

O dragão suspirou. E continuou:

- Para cães, gatos, canários, frangos, elfos, javalis e, agora que penso nelas, até borboletas, porém, o sistema é diferente: existem um pai e uma mãe e eles se unem e têm um filho ou dois ou cinco; no caso dos coelhos, até onze ou quinze, e esses filhos não são nem pais nem mães: cada um é uma criatura nova, o dedão do pé da mamãe, os dentes posteriores da outra avó. O filho é novo, único, não repetível e, para educá-lo, parte-se do zero. Dos elementos da comunicação escrita e oral, fazer xixi num urinol e cocô longe de casa é fruto de ensinamento. Acompanhou? A propósito de excrementos, filhinho, você tem idéia de onde está sentado?

Ele devia ter batido com a cabeça. Quando pequeno. Contra alguma coisa muito dura - o jovenzinho. E ainda há aqueles que escrevem que os elfos são as criaturas mais geniais do globo.

Yorsh assentiu. Tinha idéia plena de onde estava sentado.

Levantou-se com esforço e se encaminhou para fora da gruta: havia uma pequena poça d’água pouco distante, onde poderia lavar-se. O dragão o seguiu.

Se, por um lado, Yorsh estava aliviado, infinitamente alivia­do, por outro lado tinha uma estranha sensação. Como dizer: por algum motivo, afinal de contas, ele gostaria que Erbrow vol­tasse a ser recém-nascido. Chorão e catastrófico, e que o olhasse com olhos de adoração.

Agora, não guinchava e não queimava, mas, em matéria de adoração, estava, sem dúvida, em escassez.

A neve envolvia o mundo. O horizonte perdia-se no nevoei­ro. A poça era de água gelada, mas limpa. Yorsh despiu os seus andrajos rotos, sujos e fétidos e mergulhou com decisão.

- O dragão não é o próprio pai, mas uma cópia bem próxi­ma dele e absorve a ciência, os conhecimentos e a lembrança das fênices assadas através da casca do ovo. A Mãe-Natureza nunca deixa de se admirar com o seu “gênio” - concluiu o dragão, em tom inspirado e comovido. - Sendo o dragão uma criatura já perfeita, não faria sentido modificar nada, enquanto o sistema leva sempre a filhos diferentes, na esperança, bem... mais cedo ou mais tarde... de algum possível, como dizer - o dragão olhou para o elfo com bondade, enquanto procurava a palavra -, melhoramento - propôs, afinal, com um sorriso benevolente.

Decididamente, Yorsh deveria gozar mais da adoração, tama­nha era ela. Agora, assim pensando, concluía que o destino da vida dele era só perceber as coisas boas depois de tê-las perdido.

A água estava mesmo fria. Sonhou que era um peixe. O frio tornou-se agradável. A água escorreu sobre ele, acariciando-o.

O dragão já estava embalado.

- O ovo é posto e o choco começa, no fim da vida do dra­gão, justamente para que ele possa colocar todo o seu conheci­mento, toda a sua experiência, todas as suas lembranças, dentro da nova criatura - acrescentou, com tom inspirado. - Durante a incubação, o dragão utiliza apenas uma pequena parte do seu cérebro, a occipital, que é também a mais... como dizer...

- Tola? - propôs Yorsh. Ele começava, na verdade, a se can­sar daquilo.

- Você compreende que eu poderia queimá-lo como a um tordo, tostá-lo como num espeto, acendê-lo na glória de uma chama? - perguntou o dragão, aborrecido.

- Você nunca faria isso.

- Como é que você pode ter certeza? Você, seguramente, não pode ler o meu pensamento, não dessa distância, pelo menos!

- Você balança o rabo, quando olha na minha direção - res­pondeu secamente o rapaz.

O dragão ficou sem graça. Sentou-se sobre a cauda, a fim de impedir qualquer movimento.

-Acho detestável que você aprecie termos tão rudes - infor­mou, arrogante. - O cérebro occipital é o mais... primitivo, enquanto os lobos superiores, frontal, parietal, mediano e límbico, que são a sede da coragem, do conhecimento, da inteligên­cia, da magnificência e da... como dizer?...

- Insuportável bazófia? - propôs de novo Yorsh.

- Orgulho - corrigiu o dragão -, orgulho. Superioridade e consciência da própria superioridade.

Dessa vez, o dragão ficara mesmo aborrecido:

- Eu estava dizendo que o dragão usa para pensar, comer, dormir e viver apenas o seu cérebro inferior, porque o superior está constantemente em contato com o cérebro do dragão novo, para comunicar-lhe todo o saber. Assim, quando o dragão nasce, tem todas as lembranças do pai e não só o primeiro vôo, conectadas às várias partes do cérebro, e o dragão está pronto para ser...

- Para ser?

- Perfeito. Absolutamente perfeito! Desculpe, mas quando eu falo da nossa perfeição, bem, sim, me comovo! - Uma lágri­ma de emoção desceu pela bochecha do dragão. Chegando à beira do lábio, soltou-se, deu um pequeno salto no vazio e fez plop, caindo na água, onde originou uma série de círculos con­cêntricos.

Devia tê-lo mantido recém-nascido...

Já estava limpo. Yorsh saiu da água. O vento gelado investiu-lhe contra a pele molhada. Arrepiou-se. Os olhos do dragão, perdidos na autocelebração da própria magnificência, pousaram nele.

- Você está tremendo como uma folha no outono, batida por um vento gelado - notou. - Isso quer dizer sentir frio - con­cluiu, cheio de satisfação e triunfante pela própria sagacidade.

- Eu sabia que não conseguiria esconder isso de você - con­fessou Yorsh, que detestava aquele tom.

- Eu posso apenas imaginar e intuir, você sabe. Nós, dra­gões, não sabemos o que é sentir frio - continuou o grande ani­mal, cheio de satisfação e soberba. - As escamas são isolantes térmicos excepcionais, sem falar nas duas asas internas, inter-escapulares, revestidas de pêlo...

- A admiração me sufoca - retrucou o elfo, cada vez mais seco e gelado. Gelado em todos os sentidos. Tinha de sair do ar aberto e procurar se aquecer de qualquer maneira dentro de uma gruta fria e forrada de excrementos de pássaros. Talvez queimando os excrementos pudesse obter um pouco de calor, porém não era uma das perspectivas mais agradáveis. Se pelo menos conseguisse parar de bater os dentes...!

O dragão olhou para ele demoradamente, então abriu as asas e os dois enormes bolsos internos se abriram, quentes e muito macios, como um marsúpio duplo.

- Pula aqui dentro - propôs -, vamos voar.

- Voar? - Por alguns instantes, Yorsh ficou confuso. Estava tão irritado que tinha até mesmo se esquecido de como era bom voar. Bom? Magnífico!

- Voar - confirmou o dragão, piscando. Abriu um pouco mais as asas e pareceu mesmo um abraço. - Aqui você está quente — lembrou-lhe.

- Voar! - confirmou Yorsh, saltando no pêlo quente e macio. - Desta vez, para as montanhas.

O dragão tinha passado, bruscamente, de um insuportável irmão menor para um insuportável irmão maior, mas, afinal de contas, para alguma coisa como voar, por exemplo, ele era melhor agora do que quando recém-nascido! Enquanto subia na esplêndida garupa do dragão, retomou a conversa:

- Ouça, as borboletas...

- Ainda as borboletas? - retrucou o dragão.

- Eu lhe disse isso: eu tinha apenas elas para olhar. Enfim, queria perguntar: cães, gatos, canários, galinhas e elfos se repro­duzem como as borboletas, como você disse. Então, eu também nasci de um ovo? É verdade? A minha mãe o chocou ou a vovó, na sua opinião? A vovó, com certeza, pois eu logo perdi minha mãe... Será a minha esposa quem vai chocar o nosso ovo, quero dizer, o nosso filho, ou eu poderei fazê-lo?... Os elfos chocam, como os dragões e as galinhas, ou deixam o ovo em algum canto, para que se choque por si, como as borboletas? As rãs também! Uma vez eu vi uma rã botando...

O dragão bocejou.

- Desculpe, meu filho, mas nenhuma das pessoas que você conheceu, nenhum dos livros que você leu lhe explicou os fatos da vida?

Yorsh deu-se conta de que uma das coisas que mais detesta­va no mundo era ser chamado de “meu filho”.

- Está certo! - respondeu, aborrecido. - A minha avó me explicou bem o Decreto para Proteção dos Elfos e as Leis Especiais para os Elfos, sem falar dos doze livros de direito e nos quarenta e seis de história...

O dragão desatou numa longa e insuportável risadinha. De vez em quando, conseguia parar de rir, depois olhava para a cara dele e recomeçava. Insuportável.

- Ponha-se confortável, meu filho - disse, por fim -, eu explico uma porção de coisas enquanto voamos.

Decididamente: uma espécie de irmão mais velho.

 

O dia estava cinzento. A névoa tornava o mundo indistinto e mágico, com as sombras dos grandes pinheiros alternando-se com o claro dos seus ápices.

Erbrow embicou decididamente para o alto. Perguntou ao rapaz qual era o programa e essa pergunta foi interessante, por­que Yorsh foi obrigado a elaborar um.

Iriam procurar Monser e Sajra, os dois humanos que o tinham acolhido, salvado, protegido e reconfortado. E procurar roupas também... Não, era melhor inverter a ordem: primeiro as roupas, depois os humanos. Não era o caso de cair no meio dos humanos nu como uma borboleta. Talvez não se usasse dizer “borboleta”: nu como uma larva...

— Como um verme - sugeriu o dragão.

Como um verme, exato. Procuraria as roupas e, uma vez vestido, encontraria a mulher e o caçador, e depois, graças tam­bém à ajuda deles, encontraria uma esposa - humana, obvia­mente -, que ficaria feliz em ir viver com ele, a vida inteira, numa gruta batida pelos ventos, numa montanha inatingível, a não ser por alguém dotado de asas, comendo favas douradas ao lado de um dragão. Certamente não, não tinha nenhuma dúvi­da de que qualquer menina ficaria entusiasmada com essa pers­pectiva, por que teria?

Para procurar as roupas, pensara em ir até o vilarejo de Arstrid, que ficava logo depois das montanhas: acompanhando o rio, curva por curva, chegariam. Lá eles tinham sido gentis e não odiavam os elfos. Não era impossível que o caçador e a mulher estivessem instalados ali: era mesmo um bom lugar para se viver. O problema era como procurar as roupas. Ele teria de dar alguma coisa em troca, mas não tinha nada e ainda havia a dificuldade de negociar nu como uma larva.

- Como um verme - corrigiu o dragão novamente.

Seguiu-se uma complexa discussão a respeito de como se procurar algum tipo de encarregado do vestuário. Yorsh tinha pensado no livro Tratado de astronomia múltipla, de Gervásio, o Astrônomo, quarto rei da terceira dinastia rúnica, do qual eles tinham dois exemplares: poderiam trocar um deles pelas rou­pas... Não, veio-lhe à mente que uma humanidade miserável e analfabeta acharia o Tratado de astronomia múltipla, de Gervásio, o Astrônomo, um bem de valor duvidoso... Não, não tinha passado pela cabeça dele que quando alguém está tiritan­do de frio, e tudo o que tem para comer é polenta e castanhas, o senso estético se anula... E, em todo caso, roubar uma roupa nem pensar, a não ser que Erbrow insistisse, melhor que roubar deles seria continuar a andar nu como uma larva... Sim, está bem, um verme, era o que era...

Finalmente, o nevoeiro se abriu sob eles e perceberam estar sobre Arstrid.

Yorshkrunsquarkljolnerstrink preocupou-se em ser visto nu como uma borboleta, ou uma larva, ou um, hummmmm, sim, verme, enquanto volteava montado num dragão, mas percebeu que as preocupações não tinham fundamento: o que restava de Arstrid não era muito e a única coisa viva que tinha sobrado eram os corvos.

Havia mais casas do que ele se lembrava, mas estavam escu­recidas pelo fogo, com os telhados afundados, e o que restava das portas escancaradas balançava inutilmente nas dobradiças. O que tinham sido as vinhas estava reduzido a alguns pedaços de videiras selvagens, que continuavam a crescer no que sobrara das treliças carbonizadas. As maçãs tinham sido abatidas. Um barco jazia emborcado e afundado na pequena praia, junto da carcaça apodrecida de uma vaca e dos ossos mal escarnados de alguns animais menores: talvez ovelhas ou cães. No meio daqui­lo que tinha sido a praça do pequeno vilarejo, estava a panela da concórdia, amassada, enegrecida, inútil. O dragão pousou.

Yorsh sentia-se como se tivesse morrido um amigo. Em toda a sua longa permanência na gruta, tinha ininterruptamente imaginado o seu retorno ao mundo — o dos humanos, uma vez que o dos elfos só existia, agora, nos livros de história, e a sua imaginação começava dali, de Arstrid: chegaria lá, compraria roupas, dando em troca um livro antigo e algumas favas doura­das, perguntaria onde estavam Monser e Sajra, os habitantes de Arstrid indicariam, porque certamente não estariam muito longe. Seria o vilarejo mais gracioso que tinham encontrado e o mais remoto, em relação aos armígeros de Daligar: com certeza, os seus amigos teriam estado ali. Ele teria encontrado Monser e Sajra, que diriam: “Oh, mas como você está bonito, como cres­ceu, como estamos contentes em vê-lo.” E ele responderia: “E eu também estou muito contente em vê-los, vim agradecer-lhes por me haverem salvado a vida, quando eu era menino.” Depois, ele abriria o seu alforje e lhes mostraria as suas favas douradas e eles diriam que eram maravilhosas e então eles se abraçariam...

A voz do dragão provocou-lhe um sobressalto: ele se perde­ra novamente em suas fantasias.

Na sua vida, Erbrow tinha visto apenas uma gruta, algumas montanhas, um bosque e o mar, mas, de qualquer modo, era o bastante para saber que aquele em que se encontravam era um lugar - para não dizer muito - desolado. Para dizer um pouco mais, era horrível. Do interior da carcaça da vaca, saíam grumos de gordos vermes esbranquiçados e um bafio pestilento. Os cor­vos voejavam em círculos, grasnando. O nevoeiro se dissipou, empurrado por uma brisa leve que fez a meia porta bater contra a parede, mas, mesmo à luz vívida, o espetáculo não melhorou. A desolação parecia atormentá-lo e dominá-lo, como quando morre alguém a quem queremos muito bem. O dragão procurouou nas suas várias memórias - a do pai dele e as dos demais pais anteriores ao dele - para saber o que é preciso fazer para conso­lar alguém, mas não havia nada do gênero. Tentou fazer vir-lhe a mente o que o consolaria.

- As pessoas que viveram aqui não estão mortas - disse ele, decidido, e apontou em volta. - São ossos de vaca, ovelha e cão. Nenhum osso de humanos, nem adultos nem crianças. Ou então foram caçados. Ou os levaram para algum outro lugar. Disso eu me lembro: é um hábito dos humanos deslocar as pes­soas de um lado para outro e, se alguém diz “Não, obrigado, eu gosto daqui”, penduram-no a uma árvore com uma corda que passa pelo pescoço e isso não faz bem à respiração.

Funcionou. O jovem elfo saiu imediatamente do seu estado de imobilidade e desespero.

- É verdade! - disse. Depois, deu uma corrida pelo que res­tava das cabanas queimadas.

- Não há ninguém, nem vivo nem morto. Devem estar em algum outro lugar! Talvez tenham escapado ou talvez os tenham... Como é que se diz?... Hummmmm sim, deportado. Sabe, é verdade, é um hábito dos humanos deportar alguém, fizeram isso até com os elfos. Puseram-nos em alguns lugares horríveis, os Lugares para Elfos, como são chamados, e ali mor­reram, um depois do outro.

- E morreram de quê?

- De fome, eu acho, comidos vivos pelos piolhos.

- Mas os elfos não são mágicos?

- Bem, têm alguns poderes. E daí?

- Mas não podiam fazer alguma coisa? Queimar os agresso­res, fulminá-los, fazê-los ficar com peste, com urticária?

- Não é tão simples. Nem todos os elfos são mágicos. O meu pai não tinha nada de mágico. A maior parte de nós só sabe acender fogos muito pequenos e ressuscitar insetos.

- Ressuscitar insetos. Mas que raios de poder seria esse?

- Depende do ponto de vista: para o inseto, é importante. Você sente na cabeça o seu contentamento por estar de novo vivo e se sente muito bem. Insetos à parte, nenhum elfo sabe causar nenhum tipo de doença, nem gostaria de fazê-lo. Só alguns entre nós, algum caso raro, têm poderes que seriam úteis numa guerra, mas os homens têm medo de que isso seja um conhecimento geral e, assim, são rancorosos com todos.

“Não tendo poderes verdadeiros salvo exceções, os elfos não conseguiram evitar a deportação e, quando perceberam que a morte pela fome os esperava nos Lugares para Elfos, já era tarde: eram poucos, empobrecidos e entristecidos. A magia se afoga na tristeza, você sabe. Quando um filho morre, a mãe perde para sempre a capacidade de fazer coisas mágicas.”

- Vocês podiam usar as velhas armas: espadas, flechas, ala­bardas. Os elfos foram grandes guerreiros, excelentes arqueiros!

Yorsh ficou pensativo. Não sabia o que dizer. Foram guer­reiros, certo, mas isso tinha sido antes. Antes de aprenderem a ler a dor e a alegria na cabeça das pessoas. Se é tão grande a feli­cidade de um inseto por voltar a viver, imagine como é grande o horror de um homem por você o estar matando. Deve ter sido isso que os paralisou. E depois eram poucos, desunidos. Já tinham sido perseguidos nos séculos passados. Perseguições mortais. Da última vez, estavam apenas deslocando-os de um lugar para outro ou, pelo menos, era essa a impressão. Podiam levar livros com eles. Não lhes devia ter parecido tão grave. Quando perceberam o que estava acontecendo, estavam de tal maneira envolvidos... de nada adiantaria combater, seria apenas aumentar o sofrimento. E depois, havia outra coisa. E quanto mais pensava nela, mais percebia o quanto tinha sido funda­mental: Todos os queriam mortos...

- E vocês se deixaram matar por cortesia, no confronto com eles? Para não os desiludir? Muito cortês, realmente. - O tom do dragão voltava ao sarcasmo, mas dessa vez Yorsh não se ofendeu.

Ficou pensando, pois, agora que falava nesse assunto com alguém, o pensamento se tornava claro na sua cabeça. Falando, conseguia entender. O problema era que...

- A magia se afoga no ódio. Não, espere, o pensamento se afoga no ódio. A vontade de viver, a de combater... quando todos ladram para você, o caminho mais fácil é não ligar, é deixar-se escorregar... não, não o caminho mais fácil, mas o único a seguir... O caçador e a mulher arriscaram suas vidas para salvar a minha... isso quer dizer que eles... bem, sim, me que­riam bem; talvez me quisessem bem, apesar de eu ser um elfo, mas não importava, para eles valia a pena arriscar a vida para que eu vivesse... Aí está, sim, quando todos ladram para você, é suficiente um só bater-se por você para que você recupere as for­ças, a capacidade de se bater... Se isso não existir, você é morto e a sua gente é morta com você...

O rapaz balançou a cabeça. Depois, inclinou-a. A brisa transformou-se em vento. A meia porta bateu furiosamente. O jovem elfo arrepiou-se. O dragão se enterneceu.

- Assim que você tiver as roupas, procuraremos os habitan­tes desse vilarejo.

Yorsh se reanimou. Levantou a cabeça. Concordou.

- Aqui não há mais ninguém - acrescentou o dragão. -Talvez você pudesse apenas olhar em volta, se há alguma coisa para cobri-lo e que lhe fique bem.

- Não seria um furto?

- Não - o tom do dragão tornara-se suave -, lógico que não. Seria apenas pegar coisas que agora não servem mais para ninguém.

O jovem elfo deu outra volta pelo vilarejo. Estava tudo demolido ou queimado. Na que devia ter sido a cabana maior, ele encontrou o que restava de um barquinho de brinquedo e uma bonequinha de trapos, que levou consigo, e que lhe golpea­ram o coração com mais uma punhalada de tristeza. Alguma coisa branca se materializou, saindo da serração. Era um grande e muito velho cão macilento: estivera até aquele momento de emboscada entre os juncos, talvez assustado com o dragão, mas, quando Yorsh tocou nos brinquedos, conseguiu se pôr de pé e agora se arrastava para Yorsh, com um leve abanar de rabo. Uma das pupilas estava esbranquiçada pela cegueira, mas alguma coisa do seu faro ainda funcionava.

- Fido! - gritou Yorsh. - Fido, Fido, Fido. Era o cão deles! De Monser e Sajra, quero dizer. Fido, Fido, Fido!

O cão também o reconhecera. Yorsh ajoelhou-se no chão, passou os braços em volta do velho pescoço coberto de um pêlo ralo, acinzentado e sujo. O cão lhe cobriu o rosto de lambidas. Quando a mão de Yorsh tocou-lhe a cabeça, lembranças confu­sas atingiram-lhe a consciência: gritos, cheiros ásperos, fogo, medo. O cão lembrou-se ainda de um coice dado por um cava­lo, que o aleijara, enquanto o vilarejo queimava. Depois, havia outras lembranças, outros odores: a fome, a solidão, a nostalgia, os dias passados lutando contra os vermes pelas velhas carcaças, na esperança de que alguém voltasse.

Agora alguém voltara. A sua guarda terminara. Yorsh chega­ra, encontrara a casa, de algum modo reporia as coisas em seus lugares. Voltariam os cheiros de antes, os antigos. As maçãs secas, as perdizes assadas; cheiros bons, de gente a quem se quer bem. Yorsh reviu, por alguns instantes, as figuras da mulher e do caçador e, por um instante, uma sombra confusa e pequena, alguém que brincava com o barquinho e a boneca.

Foi um abraço demorado. Yorsh estava inclinado, envolven­do o cão com os braços ao redor do seu tórax. Yorsh percebeu um cansaço infinito: apenas um desejo, agora que a guarda ter­minara, o repouso. Sentiu a respiração do cão tornar-se cada vez mais lenta, até que parou de todo. Sentiu o coração dar uma batida, depois ainda outra, mais tênue, depois um intervalo, mais uma e, por fim, a última. Depois, mais nada. Ele permane­ceu imóvel com os braços em torno do cão, sentindo o calor ir sumindo aos poucos e os músculos começarem a enrijecer. Não fizera nada para entretê-lo, mas esperou um longo tempo, antes de soltar o abraço. Agora não podia mais ter dúvidas: Monser e Sajra tinham vivido ali, no vilarejo, na casa onde estavam os brinquedos. Alguma coisa terrível lhes acontecera e agora, mais que nunca, ele deveria procurá-los.

Yorsh soltou o cão, fez-lhe ainda uma carícia nos olhos, depois o enterrou num buraco na praia, cavado rapidamente por Erbrow com um golpe de cauda. A busca pelas roupas reco­meçou, espasmódica. Mais que nunca, agora lhe serviriam para circular no mundo dos humanos.

Ele estava prestes a renunciar à busca quando achou um velho baú, escondido embaixo de um pedaço de escada de uma casa, que as pedras dos degraus tinham protegido do fogo, permitindo-lhe resistir. Era um baú pequeno e bonito, de nogueira. A fechadura de ferro batido com flores gravadas esta­va fechada, mas o dragão resolveu o problema com as garras. Dentro, um roupa branca comprida, feita de linho verdadeiro e completamente coberta de bordados de pequenas flores. Devia ter custado anos de trabalho. Em volta das mangas e na bainha inferior da saia havia até mesmo pedaços de tecido com dese­nhos feitos com buraquinhos, que o dragão disse que chama­vam de rendas. Na parte da frente do corpete estava bordado um M.

Yorsh foi se encaixando entre os diversos véus que se sobre­punham e, por fim, conseguiu enfiar-se na roupa. Pelo menos um problema estava resolvido.

O dragão tinha a impressão de que, entre os humanos, os machos nunca usavam, por nenhum motivo, roupas brancas cheias de rendas e bordados e que as fêmeas as vestem só um dia na vida, precisamente aquele do matrimônio, mas não achou esse detalhe importante e deixou passar. Os dragões nascem nus e nus permanecem até o fim. Os complicados hábitos humanos de se vestir estavam, de qualquer maneira, engavetados nas suas várias memórias, mas como coisa insignificante e sem utilidade, uma tradição extravagante e discutível: nada pelo que valesse a pena instaurar uma discussão.

 

Não é que Robi soubesse mesmo ler. E não é que saber ler fosse mesmo proibido. Tracarna e Stramazzo sabiam. Era com extre­ma seriedade - na verdade, com autêntica arrogância - que, depois de ter inchado o peito como perus, eles liam os raros des­pachos que lhes chegavam de Daligar. Para todos aqueles que nada tinham a ver com a administração, ler era, como dizer... não recomendado, talvez fosse mais correto dizer desaconselha­do: era uma habilidade suspeita. Em Arstrid, o burgo onde Robi nascera, sabia-se ler apenas um pouquinho e havia até uma espé­cie de escola. Arstrid era um burgo delicioso, literalmente encas­toado em meio às coisas de comer: de um lado, as trutas do rio, do outro, as maçãs do pomar. No meio, as grandes hortas, onde também se criavam galinhas, e, atrás das colinas, as vacas, o que queria dizer leite, que depois virava manteiga.

Quando não se tinham trutas para pescar, maçãs para colher, vacas para ordenhar ou cercas para consertar, quer dizer, duas vezes por ano, o líder do vilarejo reunia a criançada com alarido e procurava, sem qualquer método, de maneira inacaba­da e caótica, ensinar-lhes o alfabeto, que era tudo o que ele sabia. As aulas aconteciam entre risos dos alunos às caretas cômicas do líder, que eram, a certa altura, interrompidos pelos gritos das mães, que vinham pegar os filhos para ordenhar as vacas ou recolher as maçãs. Ou para defumar as trutas. Ou pôr as uvas nas treliças para secar e virar passas para comer no pão de mel, na festa de inverno.

O conhecimento de letras do líder do vilarejo vinha de um misterioso e legendário personagem, de nome impronunciável, que freqüentara Arstrid anos antes do nascimento de Robi, e que lhe tinha fornecido a mítica panela de defumação.

Das absurdas aulas, Robi conservava as quatro letras do seu nome: ROBI.

“R” de rosa. As pétalas de rosa podiam-se mergulhar no mel e transformar em docinhos.

“O” de ovo. Comeram o último no dia anterior à chegada dos armígeros de Daligar que, como lobos esfaimados, preten­diam que eles entregassem o que tinham e o que não tinham, com uma história obscura de taxas atrasadas. Tinha sido no últi­mo verão. No inverno seguinte, o vilarejo seria destruído e os seus pais, presos. Ou melhor, na ordem, os seus pais presos e o vilarejo destruído, mas isso depois, quando ela já estava na Casa dos Órfãos: ela soube disso por Tracarna. No verão, vieram os armeiros, que queriam um monte de coisas: trigo que eles não tinham, uma quantidade exorbitante de trufas defumadas -tantas como eles não conseguiriam juntar em um ano inteiro — para o condado e o seu juiz-administrador. O líder do vilarejo não estava: morrera no inverno anterior, pouco depois do casa­mento da filha, e quem enfrentara os armígeros fora o pai de Robi, dizendo que nunca o condado de Daligar lhe tinha dado nada e que eles nada deviam e acrescentara ainda que, em todo caso, pode-se pedir às pessoas uma parte do que possuem, não tudo, muito menos mais do que nunca tiveram. E fora então que um deles, um dos armígeros, alto, soberbo, que parecia uma coruja, com uma espessa barba branca como a neve, olhara bem para a cara do pai e da mãe dela e os reconhecera: eram aqueles do elfo. Eram os protetores do terrível elfo que devastara Daligar anos antes. Robi não acreditava naquilo: os seus pais não poderiam ter protegido uma coisa nojenta como um elfo. Devia ser mentira.

“B” de bom de comer. Também como bom de beber, se qui­sesse, como o leite e o mosto frescos.

“I” de indigestão. Quando Marsya, a filha do chefe do vila­rejo, pusera o seu belíssimo vestido feito de véus sobre véus, com o M do seu nome bordado na frente, a gola de renda eriçada, tinham comido tanto que lhes sobreveio uma indigestão. Robi teve de renunciar à terceira porção de torta de nozes: quando pensava nisso, ainda lhe vinham lágrimas aos olhos, de saudade.

Sem o conhecimento daquelas quatro letras, aquela manhã teria sido como todas as outras, uma das tantas manhãs que só se tornou menos comum pela chegada da carroça de Daligar com a sua habitual carga de novos amados hóspedes. Os dois novos amados hóspedes eram dois menininhos magros e louros, evidentemente irmãos, os dois com orelhas de abano e sardas no rosto. Os dois estavam acocorados em meio a diversas provisões, uma panela de cobre amassada e suja, mas inteira, que vinha evidentemente substituir aquela em que era feita a eterna sopa, inúmeras vezes furada e inúmeras vezes consertada, já inutiliza­da. Em volta do caldeirão, várias cestas de vime fechadas, uma delas com alguma coisa escrita em cima. Tracarna adorava saber ler e não perdia ocasião de fazer alarde disso; além do mais, não deve ser conveniente pôr o queijo fresco na mesma cesta onde, na viagem anterior, foi transportado um ganso vivo: a cor e o cheiro do queijo se alteram e, para quem não aprecie excremen­to de ganso, não para melhor.

O coração de Robi se sobressaltou. Numa das cestas havia, sem dúvida alguma, o bem precioso por excelência: manteiga. Branca como o leite, macia como uma carícia. Era o que a mamãe punha na polenta, nos dias de festa.

A manteiga era o sonho de normalidade, o sabor da abun­dância. Com a manteiga, eram feitos - às vezes, nem sempre, quando as coisas iam bem — os biscoitos que se comiam no sols­ticio de inverno, para festejar, no dia mais curto do ano, o começo do aumento de luminosidade.

Robi nem podia imaginar qual seria a punição para furto de manteiga. Estava provavelmente além do alcance da sua mente, infelizmente não da mente de Tracarna. Ou será que estava? Quando alguém sai à caça até de quem põe na boca uma miserá­vel amora, talvez nem lhe ocorra que se possa ter a audácia de pôr as mãos no bem supremo, no prazer absoluto: a manteiga.

Um dos dois meninos, o menorzinho, começou a chorar. Robi re­cebeu ordem de ir ajudá-lo a descer da carroça e, como era terri­velmente estúpida e desajeitada, como depois Tracarna a chamou durante muito tempo, esbarrou no panelão de cobre, que caiu da carroça, fazendo um barulho infernal. Quando tudo foi recoloca­do em seus lugares, a manteiga tinha desaparecido. Tracarna inter­rogou todos, principalmente Robi, mas a cestinha com a mantei­ga tinha se evaporado. Por fim, a única explicação foi um erro: tal­vez não a tivessem mandado de Daligar. Robi foi interrogada de novo, até agredida, por via das dúvidas, e àquela altura o inciden­te foi encerrado, porque nada mais havia a fazer do que encerrá-lo.

Os dois meninos novos chamavam-se Merty e Monty. Quando caiu a tarde e se encontraram no curral sujo e em ruínas, os dois já não tinham mais lágrimas para chorar. Creschio e Moron tinham distribuído as maçãs e a polenta e as crianças estavam agachadas em sua pele de animal, procurando esticar o jantar o mais possível. Robi olhou para cada uma delas demoradamente: os dois novatos mais Creschio e Moron, Cala e todos os outros. Depois olhou para os seus próprios hematomas: os que tinha ganho à tarde. Olhou mais uma vez para cada um dos outros e para as suas manchas roxas. Merty e Monty recomeçaram a cho­rar e Cala tentou consolá-los, sem conseguir, e Creschio e Moron os mandaram parar, o que não funcionou; aliás, os dois aumentaram o choro. Enfim, Robi se cansou, levantou-se e saiu, antes que Creschio e Moron a pudessem impedir e, quando vol­tou, trazia na mão um tablete de manteiga.

- Para o inferno - disse. - Eu queria pegar e mereci. Olha que manchas... O truque é distrair a atenção: quando o panelão caiu, por um instante todos olharam para o outro lado e eu escondi a manteiga embaixo da carroça. Se você distrair a aten­ção deles por um instante, pode fazer qualquer coisa. Eu rouba­ria a coroa de um rei... Eu peguei a manteiga depois, quando ninguém estava mais olhando... Mas... Agora parem de chorar... Uma dedada de manteiga para cada um... Na polenta... Como lá em casa... Se eu tento comer sozinha, dura pouco tempo e, mais cedo ou mais tarde, me descobrem...

Foi uma ovação. Foi uma festa.

Não foi como estar em casa, mas, pelo menos por uma noite, nada de tristeza e nada de fome. Até Creschio e Moron ficaram muito espantados, muito admirados, mas depois, muito contentes, para agredir e importunar, ameaçar ou confiscar, como de costume.

Robi ainda explicou como se rouba e tornou a explicar. Fez também algumas demonstrações. Depois lhe perguntaram como tinha feito para saber onde estava a manteiga e ela explicou aque­la coisa, de ter visto o rótulo, escrito em italiano, BURRO: o “B” de bom de comer, os dois “R” de Robi, o “O” de ovo. Aquilo foi talvez ainda melhor do que quando explicou a dinâmica essen­cial do furto. O fato era que todos - uns mais, outros menos -sempre consideraram o saber ler como uma espécie de... Como dizer?... De mágica! Uma capacidade imperscrutável, inexplicá­vel e inata, que dividia o mundo em quem a conhecia — seres de algum modo superiores - e quem, como eles, a ignorava e sem­pre a ignoraria. Agora Robi, acocorada no chão de terra batida em que dormiam, continuava a riscar as quatro letras e a mágica tornou-se possível. Robi também conhecia o M, que era borda­do na roupa de esposa da filha do chefe do seu vilarejo e os dois pequenos recém-chegados pararam um pouco de chorar, dese­nhando na terra, com o dedo, as duas colinas formadas pela pri­meira letra dos nomes deles. Robi ainda se lembrou da letra “A” de Arstrid e as letras agora eram seis.

Todos desenharam durante algum tempo aquelas seis letras, antes de finalmente ir se deitar, e Robi teve a impressão de que aquelas marcas feitas na terra batida eram, de algum modo, importantes, talvez mais importantes do que a manteiga. Como se, naquele momento, todos tivessem ficado menos miseráveis.

Depois, apagaram as velas e adormeceram.

Assim que Robi fechou os olhos, tudo atrás das pálpebras se tornou verde, com complicados arabescos dourados.

 

Para evitar que a barra da roupa sujasse, Yorsh puxou para cima a borda inferior da anágua e prendeu à cintura com uma espécie de nó. Era a roupa mais incômoda que já usara. Até os horríveis farrapos de cânhamo amarelo “de elfo”, que usou no começo da vida, frios e muito pesados, eram mais confortáveis do que aquela esvoaçante nuvem de linho branco. Ainda assim, ele fize­ra o possível para evitar sujá-la ou rasgá-la e dormira sobre o parapeito de uma das janelas, onde o âmbar estava intacto, que ele limpara cuidadosamente da poeira com um espanador improvisado, feito de penas perdidas no vôo pelas numerosas pegas que freqüentavam assiduamente os velhos arcos.

Despertou de manhã com uma terrível angústia que lhe aperta­va o coração, depois de uma noite cheia de pesadelos em que vira o vilarejo incendiando e ouvira gritos de socorro se eleva­rem inutilmente, no escuro. A ansiedade de partir aumentava a cada instante. A sua magnífica roupa não sujara quase nada. O dragão estava lá fora, ao ar livre. O elfo foi até ele e informou-o da sua firme intenção de sair em busca da mulher e do caçador o mais cedo possível. Depois disso, com calma e com a ajuda deles, talvez pudesse procurar uma esposa. Era um pouco jovem, certamente, mas os elfos têm por costume começar a procurar, desde cedo, aquela que será a sua esposa, mesmo que depois esperem anos antes de se casar. E têm um único amor em toda a vida. Para sempre. Para eles, o amor é uma coisa muito elevada para não se dedicar a ele pela vida inteira. Freqüentemente, na história dos elfos havia um brinquedo que os pais compartilhavam desde crianças e com o qual depois brincariam as criaturas que eles pusessem no mundo. No seu caso, era o seu pião azul: o pai dele, ainda criança, o tinha dado à mãe dele e depois se tornara o seu brinquedo.

Yorsh estava cheio de dúvidas a respeito de como fazer. Perguntou ao dragão se a sua roupa estava boa para procurar uma esposa e Erbrow lhe garantiu que quem quer que o aceitas­se vestido daquele jeito não poderia ser senão uma jóia de tole­rância e dona de uma visão bem ampla.

Depois disso, o dragão baixou o olhar e começou a descar­nar as asas de pássaro assado.

- Que está fazendo? - perguntou o elfo, perplexo.

- Café da manhã - respondeu o dragão, todo alegre. Mostrou o longo espeto fabricado com o tronco inteiro de um abeto jovem, no qual jazia o que restava das carcaças de uma dúzia de pássaros, entre pegas, corujas e galos-da-montanha. -Desse modo, já estou colaborando para o seu casamento. Fiz metade do trabalho para desocupar a moradia e a sua senhora, quando você tiver uma, ficará mais confortável aqui. Eu já dei um jeito nos pássaros, ficou só o chão para você: dividi o trabalho.

Yorsh encarou-o pálido, horrorizado, estarrecido. Ele tinha comido as pegas! Até as corujas! Aquelas pequenas e esplêndidas corujas com ar tão pitorescamente feroz, aquelas ternas pegas. Faziam uma algazarra infernal, na verdade, sem falar na incrível quantidade de excrementos que produziam. Eram realmente insuportáveis, mas isso não autorizava ninguém a devorá-las, como uma série de pequenos grãos numa fava.

- Como pôde? — perguntou ao dragão com o que conseguiu reunir da sua voz.

- Com rosmaninho - respondeu-lhe Erbrow, serenamente. -Há uma moita de rosmaninho um pouco depois do portão.

O dragão bocejou, depois começou a limpar os dentes, usando como palito o que restava de um osso da coxa do galo-da-montanha.

- Bem, quando partimos?

- Nós? - perguntou Yorsh, perplexo.

- Nós - confirmou serenamente o dragão.

Por essa, Yorsh não esperava. Era a última coisa que poderia esperar. Ir ao mundo dos humanos com um dragão atrás? Como? Não era muito... digamos, “apresentável”, objetou, embaraçado.

- Você não é muito apresentável. É muito bonito, eu ousa­ria dizer até mesmo magnífico, mas eu devo passar despercebi­do no meio dos humanos, que já estarão assustados com a idéia de que eu seja um elfo, mesmo sem ter que acrescentar à descon­fiança deles o terror de um dragão. - Ele não queria ser descor­tês. Não queria ofender o dragão, sorriu para ele, radiante. -Agora, que você sabe voar, pode ir... como é que você disse, uma vez?... Sair por aí, para explorar o universo e melhorar o mundo.

- Explorar o universo sozinho não é divertido - objetou Erbrow, angelical. - Ficaremos atentos. Voaremos de noite e, de dia, ficarei escondido dentro de despenhadeiros e nas clareiras dos bosques maiores. Não se preocupe, conseguiremos que não me descubram. Se descobrirem, voamos para cima das nuvens. Tanto a estrada como a escada que dão acesso à biblioteca estão em ruínas, lembra? Nós as vimos quando voávamos. E depois, veja, eu sou um dragão. A minha presença nas proximidades, pode crer, limitará realmente, em muito, o número daqueles que podem degolar, enforcar ou ferir você.

Havia também em Daligar aquela estranha profecia que falava dele. Era um bom lugar para começar.

A profecia era o seu destino gravado no mármore para indicar-lhe o caminho. Ele não tinha pai nem mãe. Toda a sua família era um pião de madeira e a lembrança da avó, dizendo-lhe para ir embora e jamais olhar para trás, mas, em algum lugar nos séculos passados, houvera alguém que sabia sobre ele, que sonhara com ele, enquanto procurava as pegadas do futuro nas órbitas de constelações distantes.

Alguém que escrevera, esculpindo no mármore, que ele seria o último e também que não o seria. Que teria uma esposa. Talvez. Era assim que lhe parecia lembrar-se. Os primeiros ver­sos estavam corretos:

QUANDO A AGUA COBRIR A TERRA, O SOL DESAPARECERA, AS TREVAS E O GELO VIRÃO. QUANDO O ÚLTIMO DRAGÃO E O ÚLTIMO ELFO QUEBRAREM O CÍRCULO, O PASSADO E O FUTURO SE ENCONTRARÃO, O SOL DE UM NOVO VERÃO RESPLANDECERA NO CÉU.

E o condenavam a um destino de cruel solidão. O último é o último. Aquele que está sozinho.

A continuação, porém, dava uma esperança.

Ele não tinha certeza da continuação. Talvez estivesse escrito que ele deveria unir-se a uma esposa que deveria ter o nome da luz da manhã e que enxergasse no escuro, uma esposa que era...

... A FILHA DO HOMEM E DA MULHER QUE...

Que...?

E depois, havia aquele estranho livro de dragologia, que tinha alguma coisa escrita sobre os filhos de humanos e elfos, que se tornam os autores das estranhas histórias sobre princesas trocadas. Talvez os elfos e os humanos possam unir-se em casa­mento. Evidentemente já tinham feito isso e, dos seus filhos, nasciam os romances tão apreciados pelos dragões no choco. Talvez ser o último elfo não o condenasse à solidão.

Talvez ele tivesse um caminho e era um caminho de flores, não um beco escuro.

O seu caminho estava escrito na pedra de Daligar.

Houve uma breve consulta a respeito da direção a tomar. Tanto seu pai como o de Erbrow estiveram em Daligar, mas o fato é que, no choco, o senso de orientação tende a se perder um pouco, ao contrário da narração histórica, que permanece fulgu­rante. O dragão era capaz de mencionar nome, sobrenome, patronímico, ano de nascimento e quantidade de filhos de todos os entalhadores de pedras que erigiram as muralhas de Daligar, mas simplesmente não sabia onde era o condado. Yorsh tinha um mapa, mas era meio simplista e resumido: tudo o que conseguiu deduzir foi que Daligar ficava para o sul, o que era muito vago.

Decidiram sobrevoar o rio. Cedo ou tarde chegariam à cidade.

A água brilhava ao luar e era uma trilha razoável, mesmo à noite. Quando localizavam a luz quadrada da janela de uma choupana, baixavam e sobrevoavam o cimo dos lariços. Havia vários tipos de escuro: o preto do céu; o mais preto da floresta abaixo deles - cujo cimo, quando eles desciam para entre os troncos, ficava mais escuro do que o escuro do céu onde as estre­las cintilavam -, e depois havia o escuro mais preto ainda, o da terra, em que a trilha de água do rio se desenrolava com os refle­xos irisados do seu prateado.

Se Erbrow voava alto, não precisavam seguir todas as curvas do rio: bastava cortá-las para encurtar a viagem. Para se orientar, Yorsh recordava a longa e extenuante marcha a pé que fizera quando menino e seguia em sentido inverso. Extenuante, por assim dizer: quando ficava cansado, Monser o pegava no colo, mas tinha sido longa certamente.

Chegaram a Daligar antes da aurora. As muralhas densas, de troncos com pontas agudas como os aguilhões de enormes porcos-espinhos, erguiam-se impressionantes, projetando sua sombra na água do rio que cintilava, dourada, na luz da manhã. A cidade estava ainda mais cheia de torreões, ameias e seteiras do que Yorsh se lembrava.

Erbrow planou suavemente sobre uma pequena clareira recoberta de relva misturada com trevos, escondida entre gran­des castanheiras, fora da cidade. A profecia estava na parte sul, exatamente do lado oposto àquele onde ficava a grande porta com a ponte levadiça. O plano era simples: o dragão permane­ceria escondido na sombra, pouco visível à luz incerta e raiada da manhã, enquanto Yorsh iria intrometer-se na multidão, depois de evitar os guardas do acesso à ponte levadiça, passar pelos guardas da ponte, pela guarda depois da ponte e pelos que patrulhavam as ruas. Assim, atingiria o muro sul, aquele que era o antigo palácio da justiça, onde tinha lido a velha profecia.

Yorsh aproximou-se da ponte levadiça com ar indiferente. Um dos véus da sua complicada roupa branca cobria-lhe a cabe­ça, à guisa de capuz, escondendo as orelhas pontudas e os cabe­los muito claros. O coração batia apressadamente. Havia anos que ele vivia isolado em uma biblioteca situada no cume de uma montanha inacessível, tendo como única companhia um dra­gão. Agora, a presença de tal número de criaturas humanas o inquietava. No mais, o medo de ser agredido, a esperança de encontrar uma pista do seu destino e a lembrança de Monser e Sajra, que o angustiava de saudade.

Estava a poucos passos do portão quando lhe pareceu que, de algum modo, o haviam identificado. Todos pararam de fazer o que estavam fazendo. Quem estava conversando interrompeu-se, os que estavam atravessando a ponte pararam, dois vendedo­res ambulantes - respectivamente de maçãs e couve - calaram imediatamente seus pregões sobre o valor das mercadorias e viraram-se para olhá-lo. A palavra “elfo”, porém, não ressoou. Todos começaram, simplesmente, a rir e gargalhar. Um grupo de garotos maltrapilhos, chefiados por um chefe de bando com enormes orelhas de abano, apareceu de repente e começou a zombar dele. Falavam todos ao mesmo tempo e Yorsh não con­seguiu entender nada, mas continuou a não ouvir a palavra “elfo”. Mas então por que agiam assim com ele?

Voaram algumas pedradas, sem atingi-lo: concentrando-se na trajetória da pedra, Yorsh conseguiu desviá-la. Depois do primeiro momento de medo, entendeu o sistema e passou a achá-lo divertido. Um armígero da porta cansou-se da agitação e, com alguns gritos roucos, conseguiu interromper o apedreja­mento e obter um pouco de silêncio. Era um homem alto e magro, com uma grande barba grisalha. Voltou-se para Yorsh e fez sinal para que ele o seguisse: provavelmente, para procurar um superior e pedir-lhe conselho.

O rapaz entrou na cidade, seguido pelo guarda, o que o pre­servou de mais ataques. Para ele, encerrado durante tantos anos no interior de uma biblioteca, Daligar pareceu muito grande e, como lhe acontecia quando criança, aturdiu-o. Era cheia de edi­fícios imensos, com colunas antigas e grandes arcos que se entre­cortavam, dividindo o céu em estranha geometria. Muitos dos arcos estavam quebrados e as abóbadas, meio arruinadas. Alguns dos antigos edifícios abrigavam hospitais para leprosos e mercados miseráveis onde, diante de bancas desconjuntadas, alinhavam-se filas organizadas para comprar alguma couve ou poucas maçãs. Havia um cheiro insuportável: enormes jasmins que pendiam dos muros em ruínas misturavam o perfume de suas flores com o cheiro que estava no ar. Yorsh perguntou-se como podiam ainda estar floridos, no fim do outono.

Ele reconheceu o calçamento, as fachadas das casas pintadas de cores pastéis e os seus telhados pontudos, as persianas sempre com grandes faixas vermelhas e verdes que se alternavam, em diagonal, formando losangos, quando fechadas. Agora, porém, estava tudo descascado e não havia mais gerânios nas janelas, como quando ele era menino. Passaram perto de uma fonte, encimada por uma escultura de madeira de um urso em pé, que agora estava sem cabeça, enquanto a água era apenas um fiozinho malcheiroso. Em frente, havia um muro muito alto, de pedras quadradas que se alternavam com tijolos, sobre o qual cresciam pequenas samambaias de minúsculas flores cor-de-rosa. Era o palácio do juiz-administrador, que se prolongava até o tribunal, sob o qual estavam as prisões. Talvez Yorsh tivesse chegado ao lugar certo para procurar obter notícias da sua famí­lia humana.

O palácio ficava acima da cidade. A base era um polígono assimétrico qualquer, cuja forma exata não se identificava. Não havia torres: simplesmente, uma parte era mais alta do que a outra, dando ao conjunto um ar de coisa malfeita e provisória, um meio-termo entre alguma coisa cuja construção ficara inaca­bada e alguma coisa que já tinha começado a desmoronar.

Ao contrário da Daligar de que ele se lembrava, agora não havia galinhas no meio da rua. Apareceu uma de repente, che­gando por um portão semidestruído. Uma galinha muito velha, arrastando-se sobre as pernas com muita dificuldade, porém decidida, na direção de Yorsh, e ele a reconheceu. Ele a ressusci­tara, treze anos atrás. Evidentemente, esse seu curioso destino de ressuscitada a salvara da panela e do espeto, mas a ligação que se criara entre os dois a mantivera viva. Agora, não a podia mais manter. Ela sentira Yorsh: a mente do rapaz fundira-se com a dela ao voltar da morte e isso os ligara. Tinha-se arrastado até ele. Yorsh inclinou-se e a tomou nos braços: olharam-se pela última vez e, finalmente, ela se deixou morrer. O rapaz sentiu-a encher-se de paz e o seu coração parar. Levantou o rosto para olhar as pessoas à sua volta. Ele não era o único a conhecer a his­tória da galinha e a tê-la reconhecido. Além do soldado que o acompanhava, havia na rua quatro homens, duas matronas, uma menina e o eterno grupinho de garotos maltrapilhos e esqueléticos, perigosamente armados de fundas. Todos olhavam para ele. Agora, a palavra elfo ressoou, forte e clara. A chuva de pedras recomeçou, desta vez multiplicada. Impossível acompa­nhar todas as trajetórias.

Yorsh perguntou-se por onde escapar. Todas as vias de fuga estavam bloqueadas: não restava senão o muro. Precisou apenas sonhar que era um lagarto, pronto, já estava lá em cima, segui­do de gritos e pedras, envolto na sua roupa, como uma nuvem.

Do outro lado do muro, havia um jardim, com árvores enormes, fontes com esguichos e um laguinho onde cisnes se refletiam. Enormes glicínias se apoiavam no muro e os seus cau­les nodosos facilitaram a descida a Yorsh. Pendiam flores por toda parte, que lhe deram a impressão de estar numa espécie de paraíso, mas um paraíso estranho, exagerado, em certo sentido. Yorsh perguntou-se como era possível aquela incrível florescên­cia, às vésperas do inverno. Ele não entendia de glicínias, mas o perfume delas também lhe parecia exagerado. Pouco distante dele, uma mocinha vestida de branco - como ele - estava num balanço, cantando uma antiga canção que falava de mocinhas, rapazes e novos amores. Sempre escondido à sombra das glicí­nias, Yorsh aproximou-se: a menina era alta, esguia, muito boni­ta, a pele branca e grandes olhos verdes. Usava um vestido claro, com desenhos dourados, os cabelos louros formando uma série de trancinhas que se cruzavam como os pontos cheios da alta gola rígida, tendo em cada cruzamento um anelzinho de ouro. Tudo se parecia mais com um quadro ou uma representação tea­tral. De mais a mais, a mocinha lhe parecia um pouco adulta demais para passar o tempo de modo fútil, cantando.

Finalmente o encanto ambíguo da cena esfarelou-se. Perto da mocinha que se balançava havia uma menina pequena e escura, que, quando a outra acabou de cantar, tomou fôlego e coragem e ousou pedir alguma coisa. Houve uma altercação e Yorsh conse­guiu entender alguns pequenos trechos de uma conversa que se seguiu. O assunto era a possibilidade de elas se alternarem no balanço. Na verdade, tratava-se de um monólogo da mocinha loura e o tema era a impossibilidade da alternância no balanço que, ao que parecia, era um direito inalienável e permanente dela.

- Porque eu, entende, sou a filha do juiz-administrador, e como é que você... bruxinha insuportável, filha de... um qual­quer... insignificante e uma qualquer...

A pequenina chorava, desesperada.

- Você é gorda, feia e estúpida - prosseguiu a filha do juiz. - E é uma qualquer. O meu pai, está entendendo, o meu pai é aquele que...

Que franguinha insuportável... Mas quantos anos teria? Dois e meio mal vividos? E o que estaria querendo dizer com “qualquer uma”? Seria um insulto? Sem falar que balanços são coisas de criancinhas, a madamezinha já parecia em idade de procurar marido, Sua Alteza era uma verdadeira hiena. Yorsh sentiu-se tentado a ir defender a menininha, mas já tinha pro­blemas suficientes e não era o caso de aumentá-los.

Aquela era a filha do juiz-administrador? Um motivo a mais para não se deixar encontrar naquele jardim. Do outro lado do muro, começaram a ressoar gritos com a palavra “elfo”. Yorsh cal­culou que, se o muro norte, aquele que ele acabara de pular, dava para a rua principal, o muro do outro lado, o sul, deveria dar para o rio. Tarde demais: o portão se abrira e dezenas de armígeros precipitavam-se para dentro, enquanto a mocinha, aos gritos de terror, escapava para a construção, coberta de roseiras trepadeiras, que se abria ao fundo. Até as roseiras estavam floridas. Yorsh se perguntou se agora a menininha poderia andar de balanço.

O problema era como atravessar o jardim. Yorsh subiu no muro outra vez e tentava ficar lá em cima, mas prendeu um pé num ramo de glicínia e caiu, voltando ao ponto de partida, na rua principal. Os armígeros se dispersaram e agora estavam dentro do jardim, mas os meninos piolhentos aumentaram. A chuva de pedras recomeçou, mais forte. Cada vez mais numerosas, algumas o atingiram: a sua testa começou a sangrar, a sua roupa branca ensopou-se de sangue. Procurou correr. Correu como correm os elfos, sonhando, sonhando que era uma águia voando em picada. Faltava muito pouco para se livrar dos perseguidores, mas embaralhou-se na sua roupa espumejante e caiu desastrosamente. Conseguiu levantar-se e se arrastar até a parte alta da cidade, onde os casebres se amontoavam, uns sobre os outros, como um gigan­tesco cupinzeiro recoberto de alcaparras e algumas videiras raquí­ticas, com uns poucos cachos minguados de uvas. As casas eram de barro e casca de árvore, as ruas, cobertas de lama interrompida por pequenos regos e poças que se entrecortavam, formando uma rede ininterrupta de água suja, que refletia o branco das nuvens e o céu. Nas ruas de lama, meninos abandonados rolavam com cães vira-latas, lutando por talos de couve e miolos de maçã. Nenhum deles se distraiu, nem para farejar nem para segui-lo.

Yorsh correu por becos estreitíssimos onde, com esforço, passava uma pessoa, subindo em escadas capengas. Nenhum dos habitantes miseráveis com quem cruzou - uma velhinha encurvada, um homem jovem e desancado que usava uma muleta rús­tica e uma mulher com um menininho pela mão - fez qualquer movimento para que ele parasse, até se apertaram contra as pare­des para não o atrapalhar. Ele entendeu que se tratava da inviolá­vel solidariedade de quem, por aqueles lados, nutria estima por quem quer que tivesse problemas com a justiça do juiz.

Yorsh conseguiu livrar-se dos seus perseguidores e afastar-se o suficiente para chegar a uma esplanada que encimava a curva do rio. Dali, podia ver Erbrow. E o dragão podia vê-lo.

O mundo tornou-se verde. Os gritos se transformaram de triunfais em aterrorizados. Erbrow, o Jovem, tinha vindo salvá-lo. O dragão pousou. Houve um rugido e uma língua de fogo cruzou o ar. A esplanada era suficientemente grande para que Erbrow aterrissasse. Yorsh subiu-lhe as costas e eles sobrevoaram a cidade aterrorizada, até a porta sul. Yorsh reconheceu os pór­ticos e a escadaria, encontrou o arco com a profecia. O dragão descera a meia altura, onde passou a descrever círculos lentos, para lhe dar tempo de olhar e ler. A profecia não estava mais lá: fora raspada. Para não haver dúvida, ficaram os sinais da raspa­gem como cicatrizes abertas na pedra.

Um dos arqueiros recuperou-se do terror: colocou a flecha no arco e disparou. Erbrow estremeceu e do seu peito começou a escorrer sangue. Yorsh entendeu por que não havia mais nenhum dragão: a parte anterior, aquela que o dragão oferecia ao mundo durante o vôo, era completamente indefesa, recober­ta de pequenas escamas não mais duras que as de uma cobra ou um lagarto. O dragão subiu imediatamente.

Voaram diretamente para as Montanhas Escuras: sobrevoa­ram de novo as colinas de vinhas e pomares que tinham sobre­voado pela primeira vez, e, dessa feita, sem a luz nos olhos, Yorsh conseguiu distinguir numerosas figuras correndo no verde. Não exatamente todas: perto de um cercado, duas minúsculas pessoas ficaram paradas onde estavam, olhando para eles, acompanhan­do com a cabeça o seu vôo ao sol. Depois, a curva, e o dragão mergulhou atrás dos cumes das Montanhas Escuras: surgiu o pico no qual ficava a biblioteca e, por trás, o mar.

 

O ferimento de Erbrow não era grave nem profundo. Bastaram uns poucos instantes para Yorsh curá-lo. Quando o dragão se elevou sobre a cidade de Daligar, a flecha já havia sido expulsa e o sangue deixara de sair. Antes de chegar à biblioteca, a cicatriz já se formara e, pouco depois da chegada, desaparecera, deixan­do a pele do lugar absolutamente normal. Durante o resto do dia, Erbrow, que estava muito bem, passou o tempo nos cumes das montanhas nevadas, alegre como um franguinho, escorre­gando na neve e caçando galos-da-montanha, que depois assava num crepitante fogo de pinho e rosmaninho.

Yorsh estava deitado no chão da caverna. A sua falta de forças era total; tinha náuseas e um tremor febril o abalava. A energia necessária para expulsar a flecha e curar o ferimento de Erbrow era como se lhe tivesse saído do tórax, que ficara com uma dor aguda, como se a flecha tivesse atravessado o seu pró­prio peito. Para piorar as coisas, havia a atroz desilusão de não ter descoberto onde estavam Monser e Sajra, se é que ainda esta­vam vivos. Somente à noite, Yorsh se refez e caminhou para fora da caverna, até a poça d’água fresca, de onde bebeu. A sua roupa tinha a lama que lhe haviam jogado em cima, o que restava das pedradas, o sangue que lhe escorrera da testa e um pouco do que esguichara do peito de Erbrow e, pior que tudo, os excrementos de diversos pássaros, principalmente pegas e corujas, que esta­vam no chão da caverna, por onde, perturbado, tinha se arrasta­do, assim que desceu das costas do dragão. Da cor branca mesmo, ficaram apenas alguns pedaços da renda perto do pescoço. O resto da roupa ia do tijolo ao vermelho vivo, passando pelo marrom, o preto e o cinzento, incluindo, ainda, o incon­fundível verde-ervilha claro dos excrementos de toutinegra.

No dia seguinte, Yorsh estava bem melhor e a exploração foi retomada. Decidiram voltar a Arstrid.

Partiram ao pôr-do-sol, o que diminuía a possibilidade de serem vistos. A noite não era exatamente límpida, mas não che­gava a ser nebulosa. Voaram sobre as florestas de lariços, que lá estavam, imóveis como estátuas, aos últimos vestígios de luz. Depois, sobre as castanheiras, cujas folhas amareladas caíam como uma lenta e leve chuva que brilhava à luz fraca das poucas estrelas.

As asas do dragão abanavam preguiçosamente, enquanto, suavemente, ele perdia altura e começava a voltear, em grandes círculos, acima da planura de Arstrid. Uma lua pequena surgiu e brilhou na curva do rio. Os restos incinerados do vilarejo se destacaram em toda a sua desolação na luz que ricocheteava entre o céu e a água. Uma nuvem escondeu a lua e o mundo escureceu. Yorsh estava aquecido e cômodo nas costas do dra­gão. Desolado por não ter conseguido notícias. Estava indo em conquista do mundo e salvamento dos seus amigos, pena que não tivesse a mais pálida idéia da direção a tomar.

O dragão pousou. Os dois se consultaram sobre o que fazer. Não tinham nenhuma idéia.

A nuvem passou. A lua voltou a brilhar. Yorsh baixou o olhar. Meio escondida entre a relva, alguma coisa brilhava aos seus pés. Inclinou-se para pegar: era uma pedrinha branca que refletia a luz da lua. Ergueu o olhar e afastou a relva com as mãos a um passo da primeira, outra pedrinha, depois a terceira e outra ainda. Elas não eram vistas do alto, mas, uma vez que alguém se punha de quatro, as pedrinhas brilhavam sob o luar.

Yorsh mostrou a trilha ao dragão.

- Deixaram uma pista aqui - disse, triunfante.

- Para nós? Mas nem sequer têm uma idéia da nossa exis­tência no mundo!

- Bem, talvez não tenham deixado para nós, mas deixaram uma pista! - disse Yorsh, obstinado.

- Mas quem pode ter sido tão simplório a ponto de deixar uma linha de pedrinhas, sem saber bem para quem? Com que objetivo?

- Para encontrar o caminho de casa. Foi uma criança. Eu também, quando fui embora de onde a vovó estava, deixei uma linha de pedrinhas, para poder tornar a encontrá-la. A chuva as submergiu e, de algum modo, desapareceram antes da metade do dia. É uma coisa que a criança faz quando é forçada a deixar um lugar que não quer. Deixa para trás uma fila de pedrinhas, assim pode reencontrar o caminho e isso a tranqüiliza. Ou pode sonhar em reencontrar. Quando você está com medo de tudo, precisa muito mais de um sonho do que de alguma coisa para comer. Mas isso, agora, nos mostra o caminho. Devemos seguir a pé. As pedrinhas são muito pequenas para que as veja­mos do alto.

- Tem certeza? Eu detesto andar. Os dragões não andam. Não gostam de perambulações. São até capazes, lógico, mas a própria estrutura dos joelhos e dos metatarsos...

A lua brilhava. Diante deles abria-se o caminho que depois alargou-se numa picada de mulas. As pedrinhas estavam na relva, ao lado do caminho, desse modo não se confundiam com as pedras que ficavam no meio. Mas eram todas iguais, todas redondas e muito brancas. A criança que as deixara devia tê-las catado durante anos de exploração ao longo do rio: catado e conservado como um tesouro que depois semeara ao longo do caminho, em troca do sonho de poder voltar.

Inicialmente a picada de mulas ia na direção oposta às Montanhas Escuras, para a cidade de Daligar, depois se desviou para leste. As pedrinhas começaram a rarear, como se a pessoa que as semeara tivesse decidido economizar. Cada vez menos, cada vez mais raras.

O dragão não parou de se queixar de dor nas patas posterio­res nem por um instante, para não falar das costas, e de explicar o quanto o vôo era evidentemente superior em relação à mar­cha. Na verdade, as suas asas abertas no céu eram tão magníficas quanto o seu andar lembrava o de uma monumental galinha.

A lua se pôs e veio a aurora. Havia pedrinhas apenas nas raríssimas bifurcações: quando a picada de mulas se bifurcava, para indicar a direção certa. Estavam colocadas a alguns passos depois da bifurcação, do lado externo, de modo a não permitir equívocos.

O sol nascente brilhou na última pedrinha, indicando um caminho estreito, lamacento e meio bloqueado por moitas de espinheiro-alvar que lá cresciam. Depois de alguns passos, o caminho virou charco, tornando-se indistinto. Não havia mais pedrinhas. Um terreno pantanoso abriu-se diante deles. Nuvens de mosquitos os acolheram. O sol levantou-se decididamente e, com a luz do novo dia, as moscas despertaram.

Eles avançaram com esforço; o terreno era encharcado de água.

Finalmente uma espécie de vale se abriu diante deles e, ao fundo, no meio da lama, viram uma choupana feita de gravetos e lama e, a julgar pelo mau cheiro, de excrementos de vaca e de cabra. Não havia janelas. A porta era um buraco coberto por uma pele de ovelha.

- Não há mais pedrinhas - disse Yorsh - e chegamos a um lugar.

- Bem - disse o dragão -, esta é uma boa notícia: estou com as patas posteriores parecendo duas salsichas na grelha, os joe­lhos rangendo como um fecho de lenha rolando num barranco, sem falar nas costas. O meu estômago ronca como o vento entre o cimo dos lariços. Podemos acampar, repousar, dormir e recu­perar o fôlego. Melhor ainda: eu acampo, repouso, durmo e recupero o fôlego, você se aproxima e vê do que se trata.

Yorsh estava muito cansado, mas não havia cansaço que o pudesse deter. O dragão atocaiou-se contra o lado alto do minúsculo vale, embaixo de dois grandes carvalhos, conseguin­do parecer parte da paisagem. A longa caminhada noturna o deixara coberto de poeira e outras manchas de lama se acrescen­taram, enquanto se deitava. As complicadas voltas que as esca­mas formavam às suas costas, alternando nuances de verde dife­rentes, tornavam ainda mais difícil distinguir o dragão da vege­tação do pântano.

O jovem elfo foi em direção à choupana. De vez em quan­do, voltava-se para confirmar se o dragão era uma mancha indistinta no verde. Quando chegou mais perto, notou que, ao lado da choupana, havia uma graciosa construção em vistosa pedra branca e rosa, com uma viga de granito onde estava escul­pida uma longa fila de minúsculos gansos, cada um com uma borla no pescoço e um maço de flores no bico. Havia ainda uma porta de madeira na qual se via, pintada, uma longa fila de pequenos corações multicoloridos; uma chaminé da qual saía um penacho de fumaça e um cercado de junco, no interior do qual um pequeno grupo de gansos comia junto às galinhas. Do outro lado do cercado, havia uma clareira circundada por uma cerca cruel e miserável, densa, de velhas lanças enferrujadas, pedaços de madeira pontudos, moitas de sarça e espinhos, com duas guaritas para os arqueiros. Na clareira, uma cena estranha se ofereceu ao olhar do jovem elfo: um grupo de crianças sujas, de roupas iguais, muito magras e maltrapilhas, escavava longos fossos na terra lamacenta.

 

O medo tomara conta do mundo. Todos pareciam enlouqueci­dos. Um dragão com um elfo nas costas reaparecera em Daligar, onde haviam sido exterminadas todas as galinhas do condado. Milhares e milhares de galinhas mortas estavam amontoadas sob nuvens de moscas, numa atmosfera de putrefação. Essa era, pelo menos, a voz corrente.

Robi nunca estivera em Daligar, porque seus pais sempre evitaram ir até lá, mas Glamo, um dos meninos maiores, alto e magro, com os cabelos negros escorrendo pelo rosto, vinha jus­tamente de lá e dizia que em Daligar não havia galinhas propria­mente, porque o juiz-administrador não as queria por lá, pois faziam desordem nas ruas. Apenas sobravam algumas na parte alta da cidade, que era o lugar menos recomendável do conda­do, onde até mesmo os armígeros procuravam aparecer rara­mente. Mesmo lá, porém, havia apenas umas poucas galinhas, tantas quanto os dedos de uma criança, mais ou menos, não tantas que dessem para fazer um monte: juntando todas, não daria para encher um saco. O problema era que Glamo era o maior contador de mentiras. Era filho de pais andarilhos, que andavam de praça em praça vendendo bugigangas, antes que o frio e a tosse, num inverno mais miserável do que os outros, os matassem, e, como todos os andarilhos, Glamo tinha a fanfarronice de quem sabia tudo, porque os outros eram suficientemen­te tolos para acreditar em tudo o que ele dizia.

Era ele que afirmava que havia uma única galinha viva em Daligar e ninguém ousava arrancar-lhe o pescoço, por ser uma galinha mágica, que já morrera e ressuscitara.

Glamo tinha sido surrado várias vezes por gente exasperada pelas suas tolices, principalmente Creschio e Moron, mas ele resistia, impávido, contando sobre a galinha de Daligar, já no reino dos mortos e depois renascida, desde que não estivesse contando as suas outras lorotas e fanfarronices, do tipo que em Daligar existiam plantas que ficavam floridas durante o ano inteiro ou da vez que encontrara um troll que fazia as vezes de lenhador junto com dois gigantes, nas Montanhas Escuras, e que ajudaram o pai dele a consertar a carroça. O pai lhes dera meio presunto como recompensa e eles, antes de comê-lo, o enterraram e desenterraram. Por essa história, ele também tomara uns bons tapas...

Mesmo considerando Glamo inacreditável, a história das montanhas de galinhas mortas não fazia nenhum sentido. Se fosse verdade que o dragão exterminara pilhas delas, não podiam comê-las, em vez de deixar que apodrecessem? Ou dá-las a eles? Na Casa dos Órfãos, as galinhas seriam comidas até com vermes. Aquela história de pilhas de galinhas exterminadas, que apodreciam empestando o ar, parecia fazer par com o rapto de Iomir.

Ainda segundo a voz corrente, o dragão fora enfrentado pela guarnição de honra do juiz-administrador, que, depois de uma luta destemida, o pusera em fuga vertendo sangue, praticamen­te moribundo, mas, evidentemente, os dragões curam-se da agonia rapidamente, não como as crianças se curam das bolhas nas mãos, visto que o ser conseguira ainda sobrevoar a Casa dos Órfãos e ir cuidar da vida, veloz e poderoso, tão alto quanto as nuvens.

As notícias voavam, ricocheteavam, agigantavam-se. A única coisa certa é que o trabalho tinha aumentado, a polenta diminuído e, quando não estavam colhendo maçãs para mandar para Daligar, cavavam trincheiras na lama. O dormitório tinha sido fechado com uma porta de verdade, trancada com um fer­rolho. Depois que a pobre Iomir fora raptada pela fera, todos deviam trabalhar rigidamente, em dupla, ficando um responsável pelo outro e devendo depois responder diante de Tracarna e Stramazzo. Por sorte, Robi estava com Cala. De todos os traba­lhos horríveis que Robi tinha feito, as trincheiras eram o pior. A lama era muito mole, escorregava e tornava a escorregar. Havia vermes e um tipo de lagarta peluda, que parecia adormecida, mas que, quando tocada, dava mordidas que produziam feridas feias e ficavam doendo durante horas.

A idéia das trincheiras era de Stramazzo, que entendia de estratégia militar tanto quanto de astronomia, isto é, um imen­so nada. E só mesmo à mente de um desprovido, com um hábi­to de não raciocinar enraizado havia várias décadas, poderia vir a idéia de enfrentarem uma criatura alada afundados num lama­çal e completamente desprotegidos.

Quando o dragão apareceu pela segunda vez, a festa da vitó­ria fora substituída pelo terror mais profundo e total. Stra­mazzo, que já enfrentara o dragão, que o pusera para correr a golpes de cesto de uva e por isso já tinha experiência, foi nomea­do comandante-em-chefe encarregado da defesa dos “limítro­fes”, quer dizer, aquilo que estava fora dos muros da cidade de Daligar. O resultado fora uma série de sobressaltos histéricos que se alternavam à enésima narrativa da caçada ao dragão. Primeiro, cavaram trincheiras em volta dos pântanos, depois abandonaram a idéia e começaram a erigir uma elevação com aterro, nunca completada, abandonada pouco depois do início, para voltar à primeira idéia: as trincheiras em volta dos pântanos.

Robi ficou parada durante um instante. Não agüentava mais. Os braços doíam e tinha bolhas nas mãos. Além do mais, estava com fome. Não havia o que roubar escavando trincheiras. Estava cansada: realmente, não agüentava mais.

Dizia-se que o dragão fora ferido. Que talvez estivesse morto. Que talvez não voltasse mais. Talvez o dragão que tinha visto e revisto fosse apenas um sonho insensato. Talvez ninguém estivesse vindo, ninguém a salvasse, nem a ela nem a nenhum dos outros. Tudo ficaria como estava.

Subitamente uma imagem paradisíaca passou na lama como uma flecha, a esperança renasceu e o espírito se reanimou: era o maior rato que Robi jamais encontrara. Não só ela, Cala também vira. As duas meninas trocaram um olhar: carne. E muita. Um rato inteiro, daqueles grandes: um rato verdadeiro, uma autêntica ratazana.

Quando chegou à Casa dos Órfãos, tiraram-lhe as roupas, os calçados e o grande xale de lã rústica que a mãe tinha feito para ela, mas Robi conseguira salvar a funda. Havia sido feita pelo seu pai: era uma tira de couro dobrada que tinha no meio uma parte larga para colocar a pedra. Robi a salvara de todas as inspeções, costurando-a com fios de palha na parte interna do seu imundo casaco de juta.

Tracarna e Stramazzo estavam na outra extremidade da extensa trincheira e, além do mais, nem Robi nem Cala tinham ainda usufruído a permissão para “exigência corporal”, que cabia a todo “infante trabalhador” uma vez por dia. As duas meninas saíram como flechas atrás do rato, que conseguiu refugiar-se atrás dos arbustos de espinheiro-alvar e amora, que compunham a orla da clareira, antes do bosque, onde foi possí­vel a Robi pegar a funda, colocar uma pedra e atirar, sem que ninguém visse. Pam. Um tiro limpo e preciso. O rato tombou. As duas meninas correram para os seus lugares na trincheira. O dia continuou a passar, lento e inexorável, até o meio-dia, quan­do todos os trabalhadores entrariam na fila para receber as seis castanhas e a meia maçã previstas pela generosidade do condado de Daligar.

O rato era um alimento comunitário. Uvas, amoras, nozes, ovos e maçãs, cada um podia fartar-se de furtar por conta pró­pria, sem ter de dar bom dia ou dizer obrigado a ninguém. Mas um rato, para ser comido, precisava ser esfolado e assado, duas empresas factíveis somente pela comunidade inteira dos “ama­dos hóspedes” da Casa dos Órfãos. Deslocando-se como por acaso ao longo da trincheira, Robi conseguiu colocar-se ao lado de Creschio e Moron e avisá-los da caça. Doía-lhe o coração ter de fazer isso: isso queria dizer que os dois teriam, sozinhos, metade do rato. A outra metade seria repartida entre todos, por­que a esfoladura e o cozimento seriam feitos no dormitório, usando o pequeno braseiro do aquecimento, o que significava um pedacinho para cada um, mas um pedacinho é, de qualquer modo, melhor do que nada, sem contar que seria uma espécie de festa.

Quando chegou a hora da distribuição, Moron foi fazer sozinho, enquanto Creschio, com Robi e Cala, apressou-se em direção aos espinheiros, para buscar a presa. Levaram o saco vazio das castanhas para esconder o rato dentro e contrabandear à noite para o dormitório. Um rato não era “furto” e não previa punições, mas seria apreendido, do mesmo modo, por “distração do trabalho”, sem contar as acusações de ingratidão e barbárie.

- Como puderam? - perguntaria, espantada, Tracarna, escandalosa. - Com todas as coisas boas que se come na Casa dos Órfãos, tudo abundante e feito com capricho!

- São uns bárbaros - rosnaria Stramazzo, saído da tradicio­nal condição de cataléptico. - Filhos de bárbaros, com costumes bárbaros... por sorte, agora estão aqui e nós, que somos inteli­gentes, podemos lhes ensinar...

O rato defunto não estava mais na clareira. Ou, para ser exato, estar ainda estava, mas em vez de estar onde e do jeito como foi deixado, isto é, no chão, com aspecto de morto, estava no braço de um tipo que parecia uma nuvem de pernas peludas, porque usava um vestido de noiva sujo até não poder mais, puxado para cima e amarrado na cintura. O tipo era muito jovem, um rapa­zinho um pouco mais velho do que eles. Robi se perguntou se, no caso de estar com a roupa menos suja, o conjunto poderia ser menos ridículo.

O problema não era tanto a sujeira quanto o insuportável e inconfundível mau cheiro de excremento de pássaro que exala­va. Até eles, que acampavam num velho curral de ovelhas semi-demolido - e nunca era previsto tomar banho, a não ser quando precisavam trabalhar na chuva —, achavam insuportável. O desconhecido estava com o rato nos joelhos e falava com ele, enquanto o acariciava, como se tivesse sido um parente ou amigo muito querido. O rato olhava para ele com ar beato, enquanto a cauda se mexia, oscilando suavemente. Evidente­mente, Robi devia tê-lo feito apenas desmaiar, como também o fedor de excremento de pássaros lhe fazia bem. Os dois ficaram se olhando durante um longo momento cheio de ternura, depois o rato se deixou escorregar para o chão e se afastou pre­guiçosamente, internando-se no espinheiro.

Nem nos dois anos de convivência com Stramazzo, Robi presenciara uma cena tão carregada de idiotice, de um tipo tra­vestido de noiva suja e fedorenta de cocô de pássaros, ninando um rato como se fosse o seu próprio filho.

Cala deu um passo atrás, espantada pelo absurdo da cena; Robi segurou-a com um rápido aperto no braço: ela estava ali, não precisava ter medo de nada.

O estrangeiro notou o gesto e sorriu.

O primeiro a voltar à realidade foi Creschio:

- Estúpida meninota, criançola metida a grande, nem sabe quando matou um rato e quando não matou - disse entre den­tes, cheio de desprezo.

— Mas estava morto - protestou Robi, perplexa: a única coisa igual à humilhação era a perplexidade.

— Agora não está mais - disse o desconhecido, suavemente.

Cala se pôs a chorar. Havia horas que pensava naquele assa­do de rato, que sonhava com o momento da noite em que poria entre os dentes o seu pedacinho de carne e todos diriam que ela e Robi tinham sido bravas: duas verdadeiras caçadoras e todos estariam contentes e a carne assada do rato faria scrunch ao ser mastigada...

- Robi o matou - insistiu Cala. - Nós íamos comê-lo -acrescentou, desconsolada. Toda aquela tristeza pelo sonho des­feito do ínfimo e miserável banquete enfraqueceu-lhe a voz.

Robi permanecia sem palavras.

- Não se come nada que tenha pensado — censurou-a o des­conhecido, com suavidade.

A afirmação era de tal maneira bizarra que, pelo menos, Cala parou de chorar.

O desconhecido se pôs de pé, sem deixar de sorrir: era o rapaz mais bonito que Robi já tinha visto. Se pelo menos tives­se sido menos estúpido e tivesse um cheiro menos pestilento... E arranjasse alguma coisa de comer... Alguém com um sorriso tão grandiosamente insosso no rosto tinha cara daqueles que, se têm alguma coisa de comer, deixam que a tomem.

- Os ratos pensam? - perguntou Creschio, aparvalhado.

- Se Stramazzo pensa... - respondeu Robi, dando de ombros, com um gesto vago.

- Mas o que quer dizer? - perguntou ainda Creschio. Robi respondeu dando de ombros, com um gesto ainda mais vago.

- Pra você ele é um elfo? - perguntou, ainda, Creschio, bai­xando a voz. O véu tinha caído da cabeça do estrangeiro, reve­lando cabelos claríssimos e orelhas pontudas.

- Não - respondeu Robi, convicta.

- Como é que você tem certeza?

- Os elfos até para serem covardes são covardes, porém deveriam ser inteligentes — sussurrou Robi, justificando.

O desconhecido olhou para eles e sorriu ainda mais profun­damente, depois inclinou-se e disse:

- Yorshkrunsquarkljolnerstrink.

- Saúde! - respondeu Robi, educadamente, como sempre lhe dissera a mãe dela que falasse diante de um espirro.

- Saúde para você também - disse o estrangeiro. - Pode me chamar de Yorsh, se preferir. Estou procurando alguém que tenha vindo do vilarejo de Arstrid.

Cala e Creschio indicaram, ambos, Robi, o braço esticado e o indicador apontado. Uma, o esquerdo, e o outro, o direito, porque estava cada um de um lado da menina.

Os olhos do estrangeiro fixaram-se na mãozinha de Cala, onde faltava o polegar. Olhou-a demoradamente e disse a frase idiota:

- Está faltando o polegar!

Cala baixou o braço e depois o olhar, humilhada e mortifi­cada. O trêmito voltou ao lábio inferior e soluços abafados começaram a sacudi-la. Robi olhou o estrangeiro com ódio: desejou ser bastante grande e forte para poder pegá-lo a pescoções. O estrangeiro aproximou-se de Cala, tomou-lhe a mão esquerda entre as suas e a manteve assim demoradamente, com o olhar perdido no vazio. Cala estava espantada, mas estranha­mente não se afastou nem procurou retirar a mão. Ficou ali, ela também com o olhar perdido no azul dos olhos do estrangeiro, que, por sua vez, perdiam-se no vazio. O estrangeiro começou a empalidecer, tornou-se lívido e um frêmito difuso começou a sacudi-lo. Robi se perguntou se por acaso seria uma doença con­tagiosa e se aproximou, para puxar Cala. Não precisou. As gran­des mãos finas e compridas do estrangeiro abriram-se e a mão­zinha suja de Cala ficou de novo livre. Yorsh deixou-se cair ajoe­lhado na lama, não se sustentava mais de pé e, então, disse a segunda frase idiota:

- A sua mão ficará boa, sabe? Os adultos, não, mas os pequenos eu posso curar.

Cala ficou olhando para ele, fascinada. Robi estava cada vez mais furiosa: desejou ainda mais ser grande o bastante para pegá-lo a pescoções, a chutes e pescoções.

O estrangeiro, de joelhos e arquejante, voltou-se outra vez para Robi:

- Eu sabia que viera para cá uma criança vinda de Arstrid -disse-lhe, triunfante. - Alguém deixou uma fila de pedrinhas e essa é uma coisa que só uma criança pode fazer!

- Criança? - Creschio deu uma olhada para Robi: o olhar inconfundível com que se olham os deficientes e Robi sentiu que odiava o estrangeiro com toda a sua alma.

- Os meus cumprimentos, minha senhora. Peço-lhe que me diga o que aconteceu ao seu alegre vilarejo e por que você está aqui? E fazendo o quê?

Ao ouvir a palavra “senhora”, Robi virou-se rapidamente, pensando que Tracarna lhe estivesse as costas. Quando teve cer­teza de que não havia ninguém atrás dela e que, assim, o estran­geiro devia estar se dirigindo a ela mesmo, a raiva e a frustração por aquele insuportável bufão - Yorsh, como dissera que se cha­mava e, que depois de lhe ter roubado uma esperança de jantar, vinha zombar e rir dela - atingiram os já estreitos limites da sua paciência. Inclinou-se para pegar um pedaço de galho e o mos­trou, decidida, ao estrangeiro:

- Eu sou menor do que você, mas bato mais forte -informou-lhe, ameaçadora. - E não ouse tocá-la mais - acres­centou, indicando Cala com um movimento de cabeça, sem desviar o olhar dele.

O estrangeiro ficou muito mal. Continuava a tremer e a res­pirar mal e não estava em condições de se manter de pé. A ameaça de Robi e seu bastão pairavam sobre ele.

- Perdoe-me, minha senhora, se ofendi os costumes foi involuntário!... Hummm... Excel... Não!... Imbec... Não, tam­bém não!

A expressão de Robi tornou-se ainda mais ameaçadora; as mãos dela apertaram ainda mais o galho. O estrangeiro fez a expressão de quem acaba de se lembrar de alguma coisa, abriu um saquinho de veludo azul bordado, que trazia a tiracolo, e tirou dele um barquinho de madeira e uma bonequinha de pano com os cabelos feitos de pêlo de ovelha tingido com casca de nogueira, como se fossem cacheados e pretos como os de Robi.

- São seus, não é? - perguntou ele, oferecendo-os a ela. - Eu os achei em Arstrid. Trouxe-os para você!

Dessa vez, a olhada de Creschio foi realmente cheia de zom­beteira comiseração.

Por um lado, Robi desejou que o estrangeiro desaparecesse, que fosse tragado pelo pântano, afundasse na lama, que viesse um dragão e o levasse embora dali; por outro lado, olhou para o seu barquinho e para a sua boneca, com o desejo feroz de poder ainda tocá-los. Formou-se na sua mente a imagem do pai, escul­pindo o casco do barquinho num toco de faia, e a da mãe, cor­tando da própria saia o pano para o vestidinho da boneca. Era tudo o que lhe restava deles.

Aproximou a mão e os pegou, sem uma palavra.

- O que aconteceu em Arstrid? - perguntou o estrangeiro, com voz suave.

Robi continuou olhando para ele, amuada, depois, lenta­mente, baixou o bastão de galho.

- Foi destruído - disse, num suspiro.

- Por quê?

Robi ficou em silêncio. Não tinha vontade de lembrar. Não tinha vontade de falar.

- Por quê? - repetiu o estrangeiro.

- E-go-ís-mo - soletrou, em pequenos trancos.

- E o que quer dizer isso? Robi ficou em silêncio.

- Não pagaram impostos suficientes - explicou Creschio, intervindo na conversa. - Não quiseram pagar - explicou em seguida, com destaque, firmando o tom em “quiseram”, imitan­do Tracarna.

- Não podiam! - protestou Robi, desesperada. - Não era possível!

O estrangeiro concordou, penalizado, depois dirigiu-se outra vez a Robi:

- Os habitantes estão vivos? Robi assentiu.

- E onde estão?

- Fugiram para o outro lado das Montanhas Escuras, para lá da cascata. Agora, vivem à beira do mar. — Não era um segredo. Os armígeros sabiam. Nunca foram ao encalço dos fugitivos simplesmente porque a cascata lhes dava muito medo.

- Conhece um homem chamado Monser e uma mulher chamada Sajra?

Silêncio.

- Conhece um homem chamado Monser e uma mulher chamada Sajra? - repetiu o estrangeiro.

Silêncio. Robi sentiu os lábios começarem a tremer, os olhos se encherem de lágrimas. Apertou convulsivamente o barqui­nho e a boneca. Nem mesmo Creschio ousou fazer zombaria.

- Eram o meu pai e a minha mãe - disse, baixinho. Respirava profundamente e falava lentamente, talvez fizesse isso para não chorar.

- Eram? - insistiu o estrangeiro.

Não, ela não conseguira, nem falando lentamente e respi­rando fundo. Robi começou a chorar.

- Eles os enforcaram - disse Creschio. O estrangeiro ficou lívido.

- Por quê? - perguntou, com a voz estrangulada, quando conseguiu recuperá-la, depois de um longo momento em que a respiração lhe faltara. - Por quê?

Silêncio.

- Egoísmo - disse Robi, entre soluços. Não conseguia se acalmar. - E... - Robi não conseguiu continuar.

- E...? - disse o estrangeiro, encorajando-a.

- E depois dizem que eles protegeram um elfo, mas eu sei que não é verdade, não pode ser...

Robi não conseguiu terminar.

- Nãããããããããooo! - gritou Yorsh. - Não, não, não, não. Deram a vida, estão mortos, deixaram você órfã por terem me salvado!

O estrangeiro cobriu o rosto com as mãos. Estava ajoelhado no chão, recurvado sobre si mesmo como uma folha no ramo ao vento de inverno.

Creschio sorriu, triunfante.

- Porque é um elfo!

Robi parou de chorar. Ergueu a cabeça e baixou o olhar até a criatura chorosa que lhe estava aos pés. Mas aquele era mesmo um elfo? Aliás, o Elfo? Aquele pelo qual... Era verdade que os seus pais estavam mortos e a deixaram órfã para salvá-lo? Por aquele ali? Ela estava órfã por aquele ali? Papai e mamãe nunca mais, por causa daquele ali? Nunca mais as maçãs secas e perdi­zes no espeto e uma caminha quente e leite com mel pela manhã, por causa daquele ser ignóbil que tudo o que sabia fazer era zombar de um grupo de crianças esfaimadas e uma mãozi­nha mutilada? Não era verdade! Não era possível. Finalmente, depois que o estrangeiro mencionara Arstrid, Robi reconheceu a roupa que ele estava vestindo: horrivelmente sujo, era o traje de noiva da filha do chefe do vilarejo! Até a mãe dela tinha cola­borado, bordando o M na frente. A raiva superou a dor; um modestíssimo pontapé com o pé descalço abateu-se sobre Yorsh, que, ainda assim, não percebeu.

- Vá embora! — gritou Robi. - Nada do que você disse é ver­dade. Vá embora daqui! - Cuspiu-lhe em cima, mas Yorsh con­tinuou imóvel: estava desmaiado.

Robi não teve tempo de pensar em mais nada para dizer ou fazer: o grito de Tracarna fez com que soubesse que o recreio ti­nha terminado havia algum tempo e que o pior nunca tem fim.

- Ele é um elfo - gritou Creschio, apontando para a figura oprimida pelo desespero, aos pés deles.

De novo, a palavra ecoou e ricocheteou até os armígeros. Voaram algumas flechas. Robi, Cala e Creschio jogaram-se ao chão e cobriram a cabeça com as mãos. Yorsh continuou imóvel; apenas respirava. A colina que se entrevia atrás da Casa de Órfãos moveu-se, de repente. Havia um dragão emboscado no mato. Estava muito perto e era enorme. O corre-corre foi geral, menos dos três que estavam no chão, cuja visão estava bloquea­da, deitados que estavam com as mãos na cabeça, não tendo entendido o que acontecia. Só descobriram quando um vento quente e fedorento os atingiu e, erguendo os olhos, viram-se cara a cara com as fauces do dragão e finalmente ficou esclareci­do que o vento era o bafo que saía de uma boca em que as pre­sas eram tão compridas quanto um braço.

Por sorte, o dragão nem tinha olhado para eles: estava pro­curando um jeito de pegar Yorsh entre as fauces e uma presa, sem machucá-lo.

- Robi! - chamou Cala.

- Sssst. Quieta agora.

- Robi, me borrei...

- Não é grave, aliás, foi uma boa idéia - sussurrou Robi, tranqüilizando-a -, assim você é menos apetitosa. Agora, quieta.

Mas o dragão não estava nem um pouco interessado nelas. Continuava a se ocupar de como transportar Yorsh. Depois de algumas tentativas com as presas, decidira-se pelas garras: com as garras da pata esquerda ele o pegou pelos ombros, com as da direita, pelos pulsos. Assim, o dragão abriu as suas enormes asas verde-esmeralda e alçou vôo, lentamente.

Quando já estava alto no céu, mas realmente muito alto, outra leva de flechas voou em seu improvável encalço.

Robi continuou deitada no chão, sem saber o que fazer, até que as mãos de Tracarna pegaram-na pelos ombros e a fizeram levantar-se.

- Você... — começou, com a voz estrangulada pela fúria. -Você... Você, miserável patife, amiga dos elfos... Sim, é isso mesmo, amiga dos elfos... Como seu pai e sua mãe... Glória a Daligar por tê-los feito morrer... Miseráveis patifes, mas eu estou de olho em você, sabe... Eu sabia, você sabe... Foi você que procurou... É culpa sua, certo?

Robi nem tentou rebater. Sabia que apenas aumentaria a raiva de Tracarna e a fúria das pancadas. Procurava proteger-se como podia. Estava tão mal que os bofetões de Tracarna eram, na verdade, o menor dos problemas. Sua mãe e seu pai provoca­ram a própria condenação à morte e a infelicidade dela, por um miserável cretino. O sonho que a acompanhava desde que a sua vida e a sua família tinham sido destruídas — de um dragão com um príncipe vestido de branco - tinha se confirmado e um pati­fe élfico vestido de noiva, impregnado de cocô de passarinho e chorumes variados, sobre os quais era melhor não perguntar, tinha chegado de repente para emporcalhar com mais complica­ções ainda a sua já desastrada existência.

Quando Tracarna se acalmou, Robi estava coberta de hema­tomas. Stramazzo chegara e discutiam o que fazer. Ele mesmo iria a Daligar pedir os reforços necessários para transportar a pequena bruxa.

- Sim, é assim que chamamos as amigas de elfos...

Seria necessário metade de um dia. Por outro lado, não podia arriscar a sua preciosa vida escoltando-a ele próprio: o dragão e o elfo atacariam de novo. Certamente, tinham atacado para libertá-la...

Bem, pensou Robi, com amargura, estava prestes a voltar para Daligar, para uma cela de prisão, à qual provavelmente se segui­ria a forca, tão logo atingisse a idade mínima para receber tal punição, desde que fosse considerada já bastante adulta.

A segunda parte do seu sonho ainda estava por se tornar rea­lidade: graças ao dragão e ao príncipe, deixaria a Casa dos Órfãos para sempre.

Deixou-se conduzir até uma das guaritas, onde a acorrenta­ram. Os dois arqueiros ficaram montando guarda a ela, na espe­rança de virem outras guarnições. Robi encolheu-se em si mesma, com a cabeça entre os joelhos, o barquinho e a boneca apertados nas mãos, deixando apenas que o tempo fluísse, enquanto os mesmos pensamentos de sempre continuavam a lhe girar na cabeça, como um bando de corvos enlouquecidos.

O tempo passou. De vez em quando, os olhos de Robi se fechavam de cansaço, mas nenhuma imagem se formava, a não ser, às vezes, uma mãozinha esquerda com os seus cinco dedos bem à mostra. Stramazzo voltou: uma guarnição inteira estava com ele. Vieram buscá-la. Tiraram-lhe as correntes e puseram um tipo mais leve, próprio para a viagem. Depois, fizeram-na montar num asno: era a primeira vez que ela cavalgava, mas estava muito desesperada para se importar com aquilo.

Era um dia triste e nebuloso, que atenuava as cores do outono.

Os outros órfãos estavam enfileirados, em silêncio, na cla­reira, diante do velho curral de ovelhas. Uma mão ergueu-se em sinal de despedida e ficou aberta, exibindo os seus cinco dedos. Tracarna ladrou alguma coisa, mas a mãozinha ficou no ar, obs­tinada, e finalmente Robi percebeu que não era um aceno de despedida: Cala exibia a mão esquerda com os cinco dedos per­feitos.

Até o polegar, aquele que o machado lhe havia cortado anos atrás.

Robi olhou para as mãos de Cala, que agora estavam ergui­das juntas: faltou-lhe o ar, por um instante a vista se lhe turvou. Finalmente, entendeu: uma criatura poderosa e benévola, além do imaginável, tinha-lhe atravessado o caminho e tudo o que ela tinha feito fora dar-lhe pontapés e cuspir-lhe em cima! Con­tinuou a olhar fixamente para Cala, enquanto estava visível, enquanto o asno se afastava, escoltado por uma gurnição de armígeros que daria para enfrentar um exército de trolls.

 

Yorsh estava desesperado. Tinha sido um idiota, um absoluto idiota. Sentia náuseas em pensar no quanto tinha sido estúpido. De uma idiotice abissal, mundial, cósmica, titânica, ciclópica, épica, infinita, granítica, oceânica, vasta como a lua e tão invio­lável quanto ela. Incurável. Irreparável.

- Eu concordo, você foi um pouco tolo, mas não é verdade que não haja esperança; só para a morte não existe esperança e ontem, na verdade, não morreu ninguém.

As palavras do dragão perderam-se ao vento, que soprava furioso do mar tempestuoso.

Yorsh ainda estava muito mal para fazer alguma coisa dife­rente de ficar deitado, encolhido, tremendo como se fosse uma folha batida pela tempestade, enquanto a dor, insuportável como a lâmina de uma faca, enferrujada, atravessava os polega­res de ambas as mãos. Ele ardia em febre, o vento gelado era um alívio para a pele que queimava.

Yorsh foi para fora da caverna e lá se deixou ficar, deitado na relva molhada, com as mãos imersas na pequena poça d’água gelada que se formava entre as pedras, depois dos dias de chuva, em frente à caverna.

Era evidente que a menina não poderia ser outra que não a filha deles, de Monser e Sajra: tinha os traços da mãe encastoa­dos na pele escura do pai. Deveria ter percebido isso sozinho. Tinha a generosidade e a coragem do pai e da mãe. Não deixou um instante de proteger e dar segurança à menina menor. Pena que, como a mãe e o pai, passasse depressa à fúria e por motivos tão incompreensíveis! Yorsh deveria ter compreendido, sozinho, que a pequena estava desesperada, desnutrida, miserável, des­truída pelo cansaço e deveria, em primeiro lugar, protegê-la e colocá-la a salvo, em vez de abandoná-la onde estava, depois de tê-la posto em perigo mortal.

O fato é que a dor da outra menina, a menorzinha, que tinha a mãozinha mutilada, atingira-o como uma pedrada e ele não se deu logo conta da ordem em que seria sensato fazer as coisas: primeiro, levar as crianças para um lugar melhor, depois tratar dos ferimentos, curar as pragas e as desolações...

O dragão concordou com convicção, enquanto atacava o terceiro galo-da-montanha que enfiara no espeto feito de galho de salgueiro e que girava sobre um delicioso braseiro de rosma­ninho e pinheiro, para que os aromas dos ramos que queima­vam se fundissem ao sabor da carne assada.

- Como é que você pode comer aquela coisa? - perguntou o elfo, num lamento.

- Mordo com as presas anteriores e mastigo com as poste­riores - respondeu o dragão, com cordialidade. - Vamos adian­te com a história: por que você desmaiou?

- Reconstruir o dedo da menina foi terrível, eu deveria saber, deveria ter me lembrado do quanto foi massacrante curar aquele seu ferimento e o multiplicar por mil. Deveria ter previs­to que ficaria fora de combate e entendido que aquele não era o momento. Mas o pior veio depois: saber que eles tinham sido mortos por culpa minha... por culpa minha... - Os olhos de Yorsh perderam-se no nada. - Tudo isso é tão... tão... - Ele não encontrava a palavra.

- Tolo, ridículo e engraçado? - propôs Erbrow, o Jovem, encarando o quarto galo-da-montanha. E se pôs a rir com escár­nio. A raiva envolveu Yorsh de tal maneira que ele quase ficou bom.

- Mas como ousa?... Como pode?... - Gesticulou, procu­rando palavras que pudessem ser tão duras a ponto de ferir tanto quanto ele se sentia ferido. - Estúpido e inconsciente bestalhão, filho de um bestalhão ainda mais estúpido, mais inconsciente, mais abobalhado e escutador de fábulas idiotas. Como pode rir? Aquela maravilhosa menina está desesperada e órfã porque... Porque eu... Porque eles... Eles me salvaram!

O dragão não se alterou. Abocanhou serenamente o seu quinto galo-da-montanha.

- Estou rindo de você, não dela. Aquela maravilhosa meni­na está órfã e desesperada não por culpa sua, mas dos crimino­sos que puseram um laço no pescoço dos pais dela. E não con­tentes com isso, prenderam a pequena num lugar em compara­ção com o qual um fosso de serpentes é uma estação de águas. Nós somos responsáveis pelas nossas ações, somente por elas. Silla e Marsio, ou seja lá como for que aqueles dois se chama­vam, escolheram salvar você, o que era um direito deles. Uma escolha deles. De mais a mais, sem você talvez eles nunca tives­sem ficado juntos e a maravilhosa filhinha deles jamais existiria.

“Mas o ponto não é esse. Você se lembra da história dos anões, na segunda dinastia rúnica? Primeiro, foram perseguidos porque usavam barba; depois, porque não usavam mais barba. Sim­plesmente, queriam as minas deles. Estavam começando as explo­rações para a costa oriental e era preciso ter prata para os navios.”

O dragão interrompeu-se para engolir o sexto galo-da-mon­tanha. E prosseguiu:

- Daligar precisa de súditos estúpidos e miseráveis e aqueles dois não tinham vocação para a estupidez nem para a miséria. Se não fosse por você, teria sido por qualquer outra coisa e os teriam destruído da mesma forma. Ou seja: você pensa que lhes deve a vida, então deve usá-la e gozá-la. Pare de bater as asas como um galo-da-montanha que perdeu a cauda, levante o tra­seiro daí e vá salvar a menininha, como é mesmo que ela se chama?

- Robi. A outra menina chamou-a de Robi.

- Robi? Os humanos evidentemente têm um talento para nomes que não querem dizer coisa nenhuma. Foge-lhes o conceito de que o nome é importante. Qual é o plano? Como faze­mos para tornar a pegá-la?

Yorsh começava a se sentir realmente melhor.

- Vamos à noite. Uma noite sem lua. Uma noite como esta. - Yorsh notou que a sua força aumentava a cada instante. Nada estava perdido. O dragão tinha razão. - Voltamos lá esta noite. Vamos agora — disse, decidido.

- Vou acabar a merenda - suspirou o dragão. Era o sétimo galo-da-montanha. No salgueiro, havia vinte e um. - Nunca se pode comer em paz neste lugar.

Yorsh engoliu algumas favas douradas e reuniu de novo as suas coisas: o arco e as flechas élficas - porque Erbrow insistira: “nunca se sabe” -, a mítica sacola de veludo bordado com o livro de poemas da sua mãe e o pião de quando era menino, que tinha sido o brinquedo com que os seus pais brincaram quando criança, antes dele.

- Isso me parece uma bagagem fundamental; se os arqueiros nos atacam, você sempre poderá ler poesias e brincar de pião com eles - comentou Erbrow, sarcástico.

Yorsh não respondeu. O resto do espaço da sacola ele ocu­pou com favas douradas, de modo que pelo menos um dos pro­blemas das crianças, a fome, fosse logo resolvido.

A roupa de Yorsh cheirava sempre a excremento de pássaros, ainda que a noite passada na chuva e no vento tenha tornado o cheiro menos pestilento e, de mais a mais, Yorsh tinha a impres­são cada vez mais forte de que havia alguma coisa errada com aquela maneira de se vestir. Não tendo qualquer tipo de alterna­tiva, limitou-se a algumas variações. Tirou a camada externa da roupa, a que tinha os bordados e desenhos feitos de furinhos, que se chama de renda. Tirou as mangas bufantes que o empa­tavam e encurtou a saia até acima dos tornozelos, para não ter que mantê-la amarrada à cintura. O resultado foi uma espécie de batina, de uma cor indistinta, acinzentada, e de um cheiro quase passável, que lembrava um pouco os trajes dos alquimis­tas e dos velhos sábios.

A cada dia que passava, o dragão se tornava maior: já era quase do porte de Erbrow, o Velho, e as suas asas abertas tinham mais largura do que a clareira que continha as rochas com a pequena poça. Colocou o rapaz entre as asas e alçou vôo, estável e seguro no vento e na tempestade. No escuro total da noite em que a chuva formava verdadeiras muralhas de água, perderam a orien­tação, depois discutiram entre si para estabelecer a direção, depois se perderam de novo, então discutiram mais uma vez para estabelecer de quem fora a culpa por ter perdido o cami­nho. Perto da aurora, finalmente, a luz foi chegando e a pálida sombra das colinas emergiu do escuro, molhada, e o curral de ovelhas semi-arruinado, com a sua feroz paliçada, surgia no horizonte.

Yorsh estava seco, mas as asas de Erbrow estavam tão molhadas que quase não lhe era mais possível voar. Pousados atrás do pequeno bosque que circundava a famosa clareira onde Yorsh se exibira na ressurreição do rato, os dois se interrogaram a respeito de o que fazer.

Yorsh lera sobre táticas militares e foi com mal disfarçado orgulho que começou a ilustrar os seus dois planos, o principal e o reserva. A idéia era o mais... hummm... discreto dos dois, vale dizer, Yorsh, penetrar silenciosamente no interior do velho curral, enquanto o outro, Erbrow, ficaria na retaguarda, pronto para interceptar qualquer manobra envolvente e cobrir a linha de fuga.

Àquela altura, os gansos começaram a agitar as asas. Num mundo acinzentado, de lama e chuva, dentro do recinto do gali­nheiro de Tracarna e Stramazzo, diante da graciosa casinha deles, de madeira e pedra, por cujas paredes a uva subia, um grupo de quatro gansos refletia as asas numa poça, multiplicando-os. Assim que Yorsh se aproximou, começaram a emitir os sons mais fortes que ele já ouvira. O jovem elfo lembrou-se de que os antigos reis usavam gansos na guarda aos seus palá­cios, contra os intrusos, os ladrões e os invasores, e compreen­deu a sabedoria da coisa.

Tracarna e Stramazzo saíram voando para o quintal, em roupas de baixo, obviamente. Os armígeros se esgueiraram para fora das suas guaritas, obviamente de armadura e com os arcos apontados. Ficaram todos olhando por alguns instantes, até que o dragão saiu da imobilidade: abriu a boca e soltou um rugido terrificante, acompanhado da emissão de uma longa língua de fogo, que atravessou a chuva, transformando-se numa faixa contínua de neblina que todos seguiram, na fuga: Tracarna à frente, os armígeros embaraçados nas armaduras em segundo plano e, por último, Stramazzo, arrastando o seu enorme traseiro drapejado de um delicado sombreado verde-ervilha.

Ficaram só as crianças, ainda fechadas em seu sórdido dor­mitório.

- Qual era o plano reserva? - perguntou educadamente o dragão.

Para o cadeado, bastou o pensamento de Yorsh: clanc.

A porta se abriu; as criancinhas aterrorizadas - uma dúzia delas - estavam amontoadas num canto, olhando para Yorsh, mas, principalmente, para a sombra do dragão, do outro lado da porta.

- Eu me borrei - sussurrou um dos meninos menores, lamentoso.

- Bem, foi uma boa idéia - disse Cala, consolando-o. -Assim você fica ruim de ser comido.

- Eu me chamo Yorsh - apresentou-se o elfo. Já estava farto de tanto ouvir votos de “saúde”, por isso ele decidiu limitar-se ao diminutivo do nome.

As crianças continuaram amontoadas e aterrorizadas. O choramingo espantado continuou e passou para um tom mais estridente.

- Faça alguma coisa para tranqüilizá-los — disse o elfo ao dragão.

Erbrow ficou perplexo, gesticulou em busca de alguma idéia nas suas diversas lembranças, depois a sua boca alargou-se, na tentativa de um sorriso que revelou as presas intermediárias e as póstero-laterais, e o ganido preocupado das crianças subiu ime­diatamente de tom.

- Alguma coisa melhor! - gemeu Yorsh.

O sorriso alargou-se mais: apareceram também as presas póstero-inferiores, que, além de ser mais compridas, eram tam­bém mais recurvadas. Várias crianças jogaram-se ao chão, supli­cando para não serem comidas.

- Mas, afinal, que tolice, os dragões nunca comem pessoas!

- disse Yorsh, desesperado. Ele já notara a falta de Robi. Era pre­ciso acalmar alguém bem depressa, para fazê-lo dizer que fim levara Robi.

A algazarra continuou, mais alta ainda: os gemidos se alter­navam com as súplicas por piedade. Agora imploravam a Erbrow que não os comesse e a ele, o terrível elfo, que não os matasse com a sua raiva.

Yorsh não sabia o que fazer. Tudo o que lhe vinha à cabeça - gritar, agitar os braços, acender a pequena tocha pendurada à entrada - apenas assustava mais as crianças.

Finalmente, um rugido se sobrepôs ao barulho e uma nova lufada de fogo iluminou o escuro. Um cheiro de carne meio queimada encheu o ar. Houve um repentino e absoluto silêncio.

- Quem quer um pedaço de ganso assado? - perguntou o dragão. - Um belo ganso gordo. Vocês estão esqueléticos e mise­ráveis. Vocês acham que com um galinheiro à disposição eu iria me abaixar para roer sobras de ossos e piolhos? Ei, vocês dois, os maiores - disse, na direção de Creschio e Moron. - Um de vocês vá procurar um pouco de rosmaninho e o outro, um galho de salgueiro ou de pinheiro, que já enfiamos no espeto o resto do galinheiro.

Não deu tempo nem de ele terminar: os garotos dispararam para fora, na direção do cercado de onde vinha o cheiro inconfundível de alguma coisa quente em que pudessem cravar os cientes e sentir, depois, o estômago se encher, matando a fome, a nostalgia e a tristeza que sempre se acomodam nos estômagos vazios.

- A única coisa que se pode sobrepor ao medo é a fome -explicou o dragão, desembaraçado. - Isso vale para cães, gatos, humanos, peixes vermelhos, dragões e trolls. Não conheço os elfos o bastante para emitir juízo nesse sentido a respeito deles.

Cala não foi com os outros. Aproximou-se de Yorsh, deu um longo suspiro, engoliu em seco e ficou ali. Yorsh ajoelhou-se, para que a sua cabeça ficasse à altura da cabecinha dela.

- Para onde levaram Robi? - perguntou, com voz suave. Cala acalmou-se, engoliu mais uma vez, depois conseguiu falar:

- Para Daligar. Levaram ela para Daligar. Escutei Tracarna e Stramazzo falando. Levaram para um lugar que se chama “o subterrâneo do palácio antigo”.

- Eu sei onde é - disse Yorsh -, eu também estive lá, quan­do era pequeno.

Cala tornou a engolir.

- Disseram... disseram... acho que vão fazer mal a ela... Tracarna bateu nela... muito.

- Não tenha medo. Eu agora vou pegar a Robi. Não tenha medo. Vai ficar tudo bem.

Yorsh repetiu isso várias vezes; não apenas para tranqüilizar a pequenina, mas também para si mesmo. Ficaria tudo bem, por certo.

Cala concordou. Os olhos dela se encheram de lágrimas, mas segurou-as e não chorou.

Yorsh virou-se para ir. Já estava na porta quando Cala bal­buciou alguma coisa.

- Dá licença? - perguntou, virando para ele. Levantou timi­damente a mãozinha esquerda, com os dedos afastados, deu outro bom suspiro. - Obrigada pela minha mão - disse. Dessa vez, deu para compreender.

Nos poucos instantes em que Yorsh se deteve com Cala, Erbrow, o Jovem, tinha organizado as crianças. Pusera os meno­res protegidos dentro da casinha, a dos gansinhos e coraçõezinhos, que Tracarna e Stramazzo deixaram com a porta escanca­rada. Na casa das duas Hienas, as crianças acharam pão de ver­dade, feito com trigo de verdade, e uma coisa amarela com um cheiro muito especial, que chamavam de cerveja. Por toda parte, voavam penas de ganso e de galinha e Yorsh olhou com horror para as pobres criaturas a quem estavam por arrancar o pescoço.

- Alguém quer um pouco de favas douradas? - perguntou. Nem ao menos responderam.

- É verdade que algumas vezes vocês comem homens? -procurava informar-se um dos meninos menores.

- Só excepcionalmente - respondeu o dragão com ar de superioridade. - O sabor não é dos melhores e os calçados são uma complicação adicional...

- Você poderia comer Stramazzo? - perguntou o pequeno, esperançoso.

- É aquele com o traseiro verde-ervilha claro? - perguntou o dragão, vagamente interessado.

- Os dragões nunca comem humanos. NUNCA! - gritou Yorsh, que começava a ficar realmente irritado.

Pelo menos, conseguiu obter um instante de silêncio.

- Eu vou a Daligar, resgatar Robi - disse ao dragão.

- Daligar é aquele lugar simpático, onde os armígeros ati­ram flechas? Você se incomoda se eu ficar aqui para defender as crianças? Pode haver algum perigo. Eu não sei... não gostaria que os gansos as atacassem... - O dragão tornou-se vago.

Yorsh pensou a respeito.

- Sim, é uma boa idéia. Fique aqui e proteja as crianças. Os armígeros poderiam voltar ou aqueles dois horríveis humanos adultos a quem elas estavam, digamos, confiadas. - Dirigiu-se às crianças: - Quando eu voltar, quem quiser poderá ir até o mar, do outro lado das Montanhas Escuras.

Ele ainda não tinha pensado nisso, mas finalmente sabia o que fazer: resgatar Robi e depois levar todos em segurança para junto do mar.

- Na orla marítima existem conchinhas que talvez pensem e escrevam poesias, mas que podem ser comidas - disse, citando Monser, o caçador, e, mais do que uma fala, foi um pensamen­to em voz alta.

Cala se pôs a rir.

- Robi também dizia isso; o pai dela lhe tinha dito.

- Sei. Quanto tempo levo daqui a Daligar? Um dia de cami­nhada?

- Se você vai a pé, acho que é - respondeu Cala -, mas tem o cavalo: agora está amarrado embaixo do telheiro, do outro lado da casa.

- Então eu pego o cavalo, e é melhor ir depressa, antes que ele ajude a acabar com o rosmaninho - disse Yorsh, com uma última olhada para o dragão e a turma de crianças esfaimadas. -Agora vá você também... bem... comer o seu pedaço de carne.

- Mesmo ele tendo pensado?

Yorsh engoliu em seco rapidamente para diminuir a sensa­ção de náusea que lhe provocava o cheiro de carne no fogo. Olhou para as maçãs do rosto macilento da menina, as grandes olheiras, as pernas esqueléticas e pensou que os gansos e as gali­nhas seriam transformados em força, sangue e carne.

- Sim - disse ele, convicto -, mesmo tendo pensado. Cala sorriu para ele e saiu correndo, feliz.

Yorsh foi pegar o cavalo. Era um baio magnífico, de grandes olhos cor de avelã. Yorsh pousou-lhe a mão na testa e sentiu sob ela o pêlo macio, enquanto uma série de sensações lhe fluiu da mente: a saudade da mãe, de quando ele era um potro, o horror à sela e aos arreios, o rancor por aquela interminável viagem a Daligar sob o traseiro e o relho daquele indivíduo horrível, uma grande vontade de pegá-lo a coices.

- De acordo... - sussurrou o elfo. - Nada de sela ou arreios; nós, elfos, não precisamos disso.

O cavalo olhou-o nos olhos e entendeu: o que estava na mente do elfo estava na dele também. Yorsh subiu-lhe no dorso e partiram imediatamente. Era como ser um só, com a força e a velocidade do animal: a melhor sensação, nunca experimentada - o vôo em Erbrow à parte.

Era fácil orientar-se à luz da manhã, ainda que molhada.

Antes que o meio-dia chegasse, os ameaçadores muros de Daligar estavam à vista.

 

A prisão era muito mais fria do que a Casa dos Órfãos: porque era de pedra e não havia as outras crianças, pois respirando iodos juntos num lugar muito pequeno esquentam-se uns aos outros. Em compensação, era mais seca, o forro de palha era melhor para dormir e sempre traziam alguma coisa para comer. Também não havia nenhum trabalho a fazer. Se não fosse pela palavra “enforcamento”, que periodicamente ecoava, poderia ser uma espécie de estação de repouso.

Estava trancada ali desde a noite anterior. Pouco depois de ter chegado, começaram um vento gelado e uma chuva forte que não davam sinal de diminuir. Robi se perguntava se aquele temporal atrapalharia o príncipe ou se ele viria assim mesmo; agora sabia que o príncipe e o dragão não eram uma fantasia: existiam. O dragão era enorme e o príncipe era o elfo de quem, quando criança, os pais tinham salvado a vida!

O príncipe estava procurando por ela. Perguntou-se que poder ele usaria para chegar até ela. Talvez fizesse ruir o muro soando a sua trombeta, ou passasse através dos muros, como um espírito, ou voasse até ali sobre o dragão e este derrubasse o telhado a golpes de pedra. Ou...

Os seus sonhos eram verdade. Desde que as imagens come­çaram a se formar sob as suas pálpebras, Robi se questionara se poderia haver algum sentido, se não era uma loucura muda, insensata e consoladora. Se não era alguma coisa inócua para preencher a sua vida destruída, feita de frio, saudade e fome. Agora sabia que aquilo com que sempre sonhou estava acontecendo: não exatamente como ela sonhara, mas estava aconte­cendo. O príncipe existia e tinha um dragão, contrariando a teoria de que os dragões estavam extintos e os príncipes benfa­zejos também.

O príncipe existia e era bom, talvez um pouco difícil de se entender, mas, sem dúvida, uma ótima pessoa, e se dera bem com o pai e a mãe dela. O fato de que tinha uma dívida de reco­nhecimento com a sua família aumentava as probabilidades de que... Bem, em suma, mesmo que ela o tivesse pegado a ponta­pés e até cuspido nele, não estivesse levando isso muito a sério.

Os dois armígeros da prisão entraram: Meliloto, baixo e magri­nho, e Paládio, alto e robusto, com o rosto vermelho, à eterna busca de um pouco de cerveja. Eram dois homens de meia-idade, provavelmente pais de família que não tinham sido muito maus com ela; ao contrário, foram decididamente bene­volentes, com certeza mais gentis do que Tracarna e Stramazzo. Tinham até deixado com ela a boneca e o barquinho e lhe ofe­recido um cobertor para passar a noite.

Agora, estavam assustados e excitados: o juiz-administrador em pessoa estava descendo aos subterrâneos, para falar com ela. Era um evento extraordinário que não tinha registro na memó­ria do homem. Os dois armígeros andavam em círculos, como dois ponteiros, na desesperada tentativa de dar outro aspecto ao lugar, depois de anos de sujeira e abandono, algum vislumbre de decência. Dedicaram um tempo ridiculamente longo discutin­do se deviam deixar com Robi ou tirar dela o cobertor e os brin­quedos; se deixassem, ficaria evidente que cuidavam dos deten­tos, se tirassem, que não havia excesso de indulgência para com eles. Por fim, decidiram deixar tudo, com a ordem de que os brinquedos ficassem embaixo do cobertor, num canto escondi­do da cela. Acenderam as tochas, o que não era feito havia anos, por isso estavam parcialmente mofadas e úmidas, operação que levou também um tempo excessivo e encheu os subterrâneos de uma fumaça acre e repulsiva, de cor amarelada.

Com a luz, os montes de palha abandonados nos cantos e os grandes ratos que corriam de um lado para outro não melhora­ram. Os dois procuraram retirar pelo menos a palha; assim, talvez os ratos também decidissem debandar e tudo começaria a se parecer mais com um subterrâneo de palácio de pretensões nobres e menos com uma estalagem.

A discussão a respeito de qual dos dois era mais idôneo esticou-se longamente, e só no fim, quando já estava ficando tarde, os dois perceberam que a coisa absolutamente mais urgente a fazer era dar sumiço nas jarras de terracota vazias que se amontoavam ao lado do posto da guarda, prova indubitável de que a atividade principal durante o serviço de guarda se rela­cionava à cerveja.

Finalmente, Paládio, com os braços cheios de palha, e Meliloto, carregado de vasilhames vazios, precipitaram-se para a saída, no momento exato em que o juiz escolhera para entrar, o que fez com que trombassem os três. O juiz e Paládio acabaram no chão. Meliloto conseguiu ficar de pé, mas não foi bastante hábil para manter nas mãos as jarras vazias, que se precipitaram sobre os dois já mencionados e, como Paládio foi bastante astu­to para se esquivar, sobrou para o juiz. O penúltimo vasilhame a lhe cair em cima tinha ainda bastante cerveja dentro, o que fez a roupa do juiz passar do branco lírio — tendendo delicadamen­te ao marfim — para a inconfundível cor amarelo cerveja, e o humor do homem passou do “verdadeiramente furibundo” para o “dê-me alguém para estrangular e, por favor, antes do jantar”.

Robi deixou escapar o riso. Sabia que não devia e, depois, não era mesmo divertido: afinal, eram três pessoas que sofreram uma queda e talvez até se tivessem machucado, mas quando a tensão é grande e se está há muito tempo sem dormir, fazem-se coisas estú­pidas, como aquelas insuportáveis e intermináveis risadinhas agu­das que escapam quando alguém cai. Quando conseguiu con­trolar-se, o juiz estava diante dela, com as mãos apoiadas nas gra­des da cela, e - agora sim - estava realmente irado.

- Foi você, não é verdade? Você provocou isso! Eu sei! -disse ele, chiando.

O juiz era alto, magro, com bigodes, barba e cabelos cor de prata e estariam anelados uns aos outros, em macios cachos, se a cerveja rançosa não os tivesse empastado num malcheiroso amontoado amarelado.

- Você os enfeitiçou e os fez cair, não é verdade? Eu sei! Você veio aqui com o único objetivo de me levar ao descrédito e ao ridículo, não é verdade? Descrédito para o meu cargo e para mim, não é verdade? Eu sei!

Robi se perguntou se seria o caso de responder e se descul­par: de procurar dizer que ela não era capaz de enfeitiçar nin­guém, que nunca o fizera e nunca o faria. Além do mais, ela não tinha ido até o juiz espontaneamente, pois fora levada à força, e que se ela tivesse qualquer poder, poderia tê-lo usado para abrir a cela e acabar com o distúrbio no menor tempo possível, mas o juiz recomeçou a falar, sem deixar tempo para uma possível res­posta:

- Você sabe, pelo menos, quem eu sou, não é verdade? Robi ficou em dúvida por um instante. Sua mente estava dividida; pelo lado em que prevaleciam o orgulho e a coragem, gostaria de responder: “O assassino dos meus pais... Aquele que assinou sua sentença de morte, o criminoso miserável e cretino que espalha injustiça e miséria como uma vela espalha luz.” Por outro lado, o que queria, a qualquer custo, manter a vida que seus pais lhe tinham dado, pensava em submeter-se à autoridade oficial: “Vós sois o juiz...”, acrescentando, talvez, algumas outras caracterizações: “... grande... nobre...”

Ainda dessa vez não lhe foi necessário fazer qualquer esco­lha, pois o do juiz não era um diálogo, mas um monólogo anima­do por interrogações. Não estava previsto que ela respondesse.

- Eu sou aquele que veio para trazer a justiça a estas terras, erradicar a cobiça, a ambição e o orgulho. É uma tarefa muito elevada e muito nobre para se deixar obstar pela piedade. Eu sei! Como um cirurgião que valorosamente amputa um membro quando a gangrena o consome, eu tornarei sadio o corpo deste desventurado e amado condado. Sabe a razão de eu ter rebaixa­do a minha pessoa, que representa o condado de Daligar, para lhe vir falar?

Dessa vez, Robi não precisou fazer qualquer esforço para manter a boca fechada, porque, na verdade, não tinha nenhuma idéia. E ele continuou:

— Porque eu quero que você compreenda. Pode parecer cruel, eu sei, matar uma criança. Esse é o motivo pelo qual você não será enforcada em praça pública, como os seus desventura­dos e insignificantes pais, mas aqui, protegida de olhares que poderiam não entender, porém, quero que você compreenda, porque pelo menos eu sei, na sua desventurada e insignificante cabeça, que você poderia acusar a minha magnificência de injus­tiça, não é verdade? Isso seria intolerável para mim. Você sabe que o pobre do seu pai ousou dizer em alta voz que a única coisa no mundo que lhe interessava, entende?, mais do que Daligar e eu, entendeu?, mais do que eu, eram a sua desventurada e insig­nificante mulher e a sua ainda mais insignificante e desventura­da filha?

Robi ficava cada vez mais perplexa: na sua cabeça, tinha pensado com freqüência no juiz-administrador e o vira como uma espécie de Senhor do Mal, com algum orgulho pela sua própria ferocidade, mais ou menos como um ore, porém mais inteligente e civilizado. Erro: à parte os ores, ninguém se decla­ra “Senhor das Trevas”. O juiz-administrador - assim como Tracarna e Stramazzo - era muito bom, enquanto maus eram os outros, aqueles que procuravam salvar qualquer coisa para matar a fome dos seus filhos, aqueles que não queriam acabar mortos de fome, com os ossos descarnados pelos cães, em valas comuns. Um povo de escravos meio mortos de fome, que não gostasse de nada e que não estivesse mais disposto a combater por nada era o objetivo das suas leis. Aliás, o verdadeiro objeti­vo era um monte de gente que não gostasse de nada, exceto dele, o juiz-administrador, que o amasse verdadeiramente, que acre­ditasse nele verdadeiramente.

- Prendemos o seu elfo! - informou-lhe o juiz, com orgulho feroz. - Ele se entregou espontaneamente à nossa guarda, ainda há pouco. Sabe que somos invencíveis e nem sequer tentou combater. Eu sei: esse é o momento da nossa glória! Não é ver­dade?

Bem, eis o caminho escolhido pelo príncipe para chegar a ela: entregar-se. Um plano simples e genial. Robi respirou, ali­viada. Por sorte, a única coisa igual à ferocidade era a estupidez. Evidentemente, o juiz-administrador achava normal que um senhor de poderes extraordinários, que entre outras coisas caval­gava nada mais, nada menos do que um dragão, não desejasse outra coisa senão deixá-lo contente - o supracitado juiz-ad­ministrador -, entregando-se espontaneamente, permitindo assim o enforcamento, sem equívocos adicionais.

Nunca Robi se sentira segura como naquele momento: o príncipe estava vindo buscá-la. Ele certamente sabia o que fazer e como.

 

Yorsh não tinha a menor idéia sobre o que fazer e como fazer. Entregar-se aos armígeros da grande porta era a única idéia que lhe tinha vindo à cabeça e ele não tinha muita certeza de que fosse muito brilhante.

Tinha feito uma troca: ele se entregava, sem combater, em troca da vida da menina. Não apenas porque devia isso a Monser e Sajra, mas, porque desde que a vira, a única coisa que importava era ela. Entregar-se em troca da menina fora a única idéia que lhe ocorrera. Ele não sabia combater; o que mais pode­ria ter feito?

Freqüentemente, nas complicadas fábulas que lia para Erbrow, o Velho, durante o choco, alguém trocava alguma coisa com alguém: “Eu agora lhe dou meia libra de abobrinhas e um quarto de pinta de feijão e, quando nascer, a sua filha será minha.” Ou: “Se você me der três penas da cauda do falcão dou­rado, terá metade do meu reino ou, como alternativa, sete oita­vos do tapete mágico e cinco onze-avos da panela da abun­dância.” E todos respeitavam tudo. Faltava-lhes, então, a noção de que os pactos podem não ser respeitados e que é necessário contratar a partir de uma posição de força, antes de ceder pela posição passiva. Primeiro, deveria ter feito com que soltassem Robi, depois se entregaria. O fato era - e agora ele se dava conta - que lhe parecera descortês pressupor que pudessem não ser pes­soas honradas e tomar precauções nesse sentido.

Apresentar-se sozinho diante da guarnição da porta, armada até os dentes e com os arcos apontados não teria sido propriamente um gesto astuto. Deveria ter ameaçado represálias do dragão: provavelmente não passaria pela idéia de ninguém que o dragão não estivesse com ele, mas a antiga incapacidade de mentir e o intolerável embaraço pela possibilidade de ser desco­berto tinham-no paralisado. Agora, era tarde. Deixara-se pren­der e, portanto, o programa agora era: enforcamento para todos. Ele, na praça; Robi, no fundo do subterrâneo.

Yorsh tinha sobre si uma quantidade tal de correntes que mal conseguia respirar. O número de armígeros que o cercavam era tão grande, que ele não conseguia contar. O único consolo era que o estavam levando para o lugar certo: estava nos subter­râneos do palácio de Daligar e sabia que Robi estava ali. Alguma coisa lhe viria à mente. Em todo caso, não estava muito preocu­pado consigo mesmo, tinha certeza de que se sairia bem, de um modo ou de outro, pois, se uma antiga profecia dizia respeito ao seu futuro, isso queria dizer que ele teria um futuro. E ele não se salvaria sem levar Robi consigo.

Continuou descendo escadas cada vez mais estreitas e íngre­mes, atravessando corredores cada vez mais baixos, cada vez mais terra adentro, cada vez mais distante da luz do dia, até que as paredes se afastaram e, à luz das tochas, viu uma figura rica­mente vestida de branco e com um curioso cheiro de cerveja rançosa, em quem ele reconheceu o juiz-administrador.

Atrás do juiz, a escuridão além das grades escondia, permi­tindo apenas entrever, a figurinha de Robi.

O juiz não perdeu tempo:

- Eu o esperava, elfo - disse, com voz dura. - Você veio pro­curar a sua futura esposa, não é verdade? Eu sei.

Yorsh ficou sem palavras. Como iria saber? Robi era pouco mais do que uma menina e ele, ainda um rapazinho, mas os elfos escolhem suas esposas muito jovens — e é para sempre. Todas as vezes em que pensava em Robi, no rostinho dela, na ternura e na coragem com que procurara proteger e consolar a menina menor - aquela sem o dedo - ele sabia que seria ela ou nenhuma!

- Eu sei - prosseguiu o juiz. — Eu li a profecia antes de man­dar destruí-la, como a todas as escritas que emporcalhavam os muros deste lugar. Ler não é bom para o povo; não que alguém seja capaz disso! Evitei essa desventura. A profecia foi escrita por Arduin, o grande bruxo, o Senhor da Luz, o Fundador! Daligar foi uma cidade élfica, você sabia, não é verdade? Depois que os ores a destruíram, Arduin reconquistou-a e tornou a fundá-la. Ele era completamente louco, amava os elfos. Reconheço que ele era dono de uma certa visão militar. Certamente, libertar a cidade das mãos dos ores, que estavam no auge do seu potencial, atacar com um exército que não era nem metade do adversário e vencer com grande folga foi uma empreitada de certa habilida­de, de certa coragem, certa sagacidade até, eu reconheço, mas em nada comparável a mim! Sou eu o verdadeiro fundador de Daligar, o seu verdadeiro libertador: eu estou livrando Daligar da paixão, do egoísmo, eu a estou reconduzindo à virtude e à humildade, purgando-a com a minha justiça e a minha severi­dade. E a embelezando!

“Eu também sou um mago, muito maior do que Arduin, que tudo o que sabia fazer era prever o futuro e destruir o encan­to da Sombra com que os ores subjugavam o mundo. Eu fiz mais que isso, você não concorda? Não viu o meu extraordiná­rio feito? O meu triunfo!”

Silêncio. Um longo silêncio. Yorsh se perguntou se estava previsto que ele dissesse alguma coisa. Provavelmente, sim, mas honestamente ele não tinha idéia de qual era o extraordinário feito do juiz-administrador. A única coisa que lhe viera à cabeça era que Daligar lhe parecera um lugar de uma miséria extraordi­nária e que era realmente prodigioso que isso pudesse ter acon­tecido, depois de um passado tão esplendoroso.

O silêncio continuou, embaraçante, até que o juiz recomeçou:

- As flores! - prorrompeu, desesperado. - As glicínias sem­pre floridas, o perfume dos jasmins! Deixando apodrecer enor­mes quantidades de frutas e trigo, que nos mandam dos cam­pos, obtemos um fertilizante especial, que permite essa flores­cência permanente, esses perfumes magníficos. Não é extraordi­nário? Isso é realmente extraordinário, não é verdade?

Yorsh olhava fixamente para o juiz, fascinado. Era louco, completa e clamorosamente doido. Sobre a sua loucura não podia haver o mínimo de dúvida. O que ele não podia mesmo compreender era como aqueles numerosos e bem armados cir­cunstantes continuavam em posição de sentido diante dessa loucura, em vez de pegá-lo pela mão e acompanhá-lo - de maneira cortês, mas firme - a um lugar qualquer de tratamen­to, onde o delírio dele pudesse talvez ser sanado ou, pelo menos, tornado inofensivo.

- Até o antigo palácio de Arduin eu tive que mandar des­truir: arcos por toda parte, aqueles arcos e colunas insossos que se alternavam àqueles jardins insossos, circundavam aqueles cedros absurdos. Tudo coisa velha. Arduin construía como as dinastias rúnicas ou pior, como os elfos. Eu, o juiz, fiz demolir quase tudo, para que o “novo” finalmente surgisse: uma nova era. Uma era nunca vista antes, da qual o meu palácio é o pró­prio símbolo.

Houve silêncio. O juiz estava imerso na satisfação. E depois recomeçou:

- Antes de morrer, Arduin escreveu a sua profecia: que o último elfo receberá em matrimônio uma moça, descendente dele, herdeira do próprio Arduin. A mocinha será dotada, como o avô, do poder da clarividência e terá, no nome, a luz da manhã; será filha do homem e da mulher que esse elfo sempre... e aqui havia uma palavra faltando, apagada pelo tempo e pelas intempéries, que eu intuí ser “odiaram”. Quando me disseram que você penetrara no meu jardim e vira a minha dileta filha Aurora, entendi que seria levado a pegá-la e que então eu pode­ria e deveria destruí-lo.

Aurora? A filha do juiz? A filha do juiz se chamava Aurora! Aquela jóia de malquerença, arrogância e prepotência tinha no nome a luz da manhã?

- Minha filha, Aurora. No seu nome, a luz da manhã. Eu a eduquei para a perfeição absoluta. Ela é a moça perfeita. Toca alaúde, lê poemas antigos e canta, enquanto se balança como as princesas dos reinos passados. Pelo menos, assim a representam as imagens nos pergaminhos. Portanto, nada mais lhe foi permi­tido, a Aurora, quero dizer, desde que tem entendimento, a não ser tocar alaúde e se balançar, cantando no meio das flores, por­que isso, para uma mocinha, é a perfeição...

Alaúde, cantos, balanço e flores, de manhã à noite, dia após dia. Yorsh começou a experimentar um vislumbre de simpatia pela pobre Aurora, obrigada a viver como a perfeita imitação de algum conto absurdo de alguma princesa que talvez nunca tives­se existido! Eis por que ela era tão insuportavelmente oca: a per­feição deve ser um fardo insustentável.

- Aurora é minha filha, portanto herdeira de Arduin, por­que sendo eu, como ele foi, chefe da cidade, sou o seu sucessor.

O tom de voz do juiz se elevara e agora pronunciava melhor as palavras, como para aumentar-lhes a força. E prosseguiu:

— Além disso, Aurora tem a capacidade de prever o futuro, sabe? Uma vez, ela predisse que possuiria o colar de ouro da mulher do chefe da guarda, e adivinhe? Descobriu-se que ele era um traidor: foi enforcado, os seus bens foram confiscados e o colar agora pertence a Aurora... E também, quando predissera que, mais cedo ou mais tarde, a seca do verão passado termina­ria e que choveria no outono, ela teve razão.

Um vago sorriso de satisfação tentou tornar simpáticas, por alguns instantes, as feições do juiz. A mente de Yorsh fervilhava. Aurora! A insuportável e ignóbil idiota do balanço? Que tem a triste capacidade de fazer chorar uma criança pequena durante horas? Ele sentia pena dela: ao seu modo, tivera um destino difí­cil, até insuportável, mas, a respeito de fundar uma nova estirpe junto com ela, nem pensar. Nunca. Ele preferia a forca. Nunca. Por nada deste mundo. O destino dele terminava ali, paciência para Arduin e as suas profecias. Talvez até o pobre Arduin tives­se sentido o efeito da idade: a luz deve tê-lo cegado aos poucos e as sombras se tornaram confusas na cabeça dele. Guerrear contra os ores não deve ter sido brincadeira e ele deve ter batido com a cabeça, em algum combate, contra alguma coisa muito dura, e lhe passara pela mente que o elfo poderia se casar com Aurora.

Agora o problema era como resgatar Robi e resolver rapida­mente a situação, deixando o juiz e a sua dileta filha com as suas previsões geniais.

O juiz tinha nas mãos o arco de Yorsh com as três flechas e a sacola de veludo azul.

- Vejamos o que trouxe o elfo para nos destruir. O seu arco e as suas flechas estão nas minhas mãos. O que temos mais?

O juiz revirou a sacola de veludo. As favas douradas espa­lharam-se no chão.

O perfume delas era muito sutil para o nariz de um huma­no, mas não para o de um elfo.

Enquanto se espalhavam pelo chão, Yorsh sentiu-lhes o odor, um odor leve, mas inconfundível, doce e penetrante como o do pão que acaba de sair do forno.

Yorsh lembrou-se dos ratos.

Os grandes e graúdos ratos das prisões de Daligar já o tinham ajudado, quando era menino.

Eles também sentiram o cheiro das favas e as mentes deles se encheram dele. A mente do rato é fácil de controlar. Havia milhares deles. Yorsh os sentiu. Sentiu-lhes a eterna e insaciável fome, a raiva e o rancor pelos chutes, as pedradas, os dardos ati­rados por brincadeira, as iscas envenenadas. Em todos os subter­râneos, eram milhares, esfaimados, enraivecidos, maus.

Yorsh inspirou, sentiu o ar encher-lhe os pulmões e a sua força aumentar; sabia o que fazer. Usaria os ratos. Multiplicou o perfume das favas douradas e com ele procurou suas mentes e as guiou.

- Um brinquedo de criança. - O juiz deixou cair o pião no chão e quebrou-o com um chute. - E... Um livro! Interessante, não é verdade?

Os ratos começaram a sair do escuro, de trás das grades dos corredores laterais. Alguns corriam pelas paredes, usando as bar­ras decorativas em relevo entre as tochas. Ainda não eram mui­tos: algumas dezenas. Yorsh afastou o medo da mente deles. Vieram outros e, atrás deles, outros mais e mais outros. Diri­giam-se às favas, indiferentes aos armígeros, sem nenhum medo: uma onda de carne, pêlo e minúsculos dentes, que cobriam os pés dos homens como uma maré. Os armígeros ten­taram afastar-se, esquivar-se, trombando uns nos outros. O juiz estava com o livro de poesia da mãe de Yorsh nas mãos e muito absorto para perceber alguma coisa.

- O que são encantamentos? Poesias? Que tolices! Se... gue o ramo... segue o ramo da hera. Eu também conheço a sua língua, elfo, sabia? É sempre bom conhecer também a língua dos seus inimigos.

Segue o ramo azul da hera.

A hera é verde, eu sei, os elfos sempre mentem, não é verda­de? Até nas poesias.

Segue o ramo azul da hera: conduzir-te-á aonde o ouro brilha. Procura onde a água borbulha. O futuro depende da nossa força... e...

Os ratos começaram a morder, não só as favas douradas, tudo o que encontravam, isto é, os pés e as pernas dos soldados e do juiz, que deixou o livro cair, com um grito. Yorsh e Robi estavam incólumes: os pés deles estavam livres da camada uni­forme de ratos que forrava tudo como um tapete fervilhante, não confiável, móvel e munido de dentes.

Alguns começaram a fugir, apoiando-se nas paredes para não perder o equilíbrio.

Cianci O cadeado que prendia os pulsos de Yorsh abriu-se e as correntes caíram-lhe aos pés. Cianci Os tornozelos também estavam livres. O corre-corre era geral, enquanto a maré de ratos arrastava tudo. O juiz tropeçou no que restava do pião e caiu no chão. Os poucos armígeros que ainda estavam por perto se pre­cipitaram para procurar protegê-lo e levantá-lo, deixando intei­ramente desguarnecida a cela de Robi. Clanc.

Com a cela de Robi aberta, Yorsh tomou-a pela mão e puxou-a para fora dali, depois se afastaram devagar, andando de costas, de modo a não perder de vista os armígeros e o juiz, enquanto a maré de ratos abria-se obediente à passagem deles. Yorsh tirou uma tocha da parede e deu uma última olhada no grupo: o juiz estava de novo de pé, mas tinha mais o que fazer do que se preocupar com eles. As escadas fervilhavam de armí­geros e, em cima, havia outra escada com mais armígeros, depois mais armígeros e mais ainda.

Em compensação, na mente dos ratos havia a imagem de um mundo subterrâneo imenso, feito de labirintos, que se estendia sob a cidade e sob o rio. Ele e Robi viraram-se e come­çaram a correr na direção oposta à da escada. Uma grade barrou-lhes o caminho, afortunadamente fechada por um ferro­lho que se abriu e, além dela, o corredor continuava. Yorsh ia fechando todos os ferrolhos atrás de si, para retardar os even­tuais e prováveis perseguidores que, mais cedo ou mais tarde, aparecessem.

Ele esperava ardentemente ver uma lâmina de luz, um raio de sol que lhe indicasse alguma saída para voltar para cima, mas não havia nada do gênero. O corredor era inclinado para baixo, sempre para baixo, percorrendo túneis que se tornavam cada vez mais estreitos. Os ratos começaram a se dispersar.

Outros portões, outros ferrolhos, outros corredores, cada vez mais baixos, mais profundos e mais escuros. Quem mandou construir o antigo palácio, provavelmente Arduin, decidira des­frutar os antigos subterrâneos élficos, transformando uma parte deles em prisão, separada do resto pelos intransponíveis portões. O seu antigo palácio tinha depois sido demolido e, no lugar dele, surgia agora o curioso palácio do juiz, de forma incom­preensível, mas as prisões tinham sido mantidas intactas.

Yorsh e Robi pararam, sem fôlego. Yorsh estava com medo: não tinha certeza de saber sair dali. Mais cedo ou mais tarde os ratos se distrairiam ou alguém se lembraria de que basta uma tocha para fazê-los debandar e eles estariam discutindo com todo o exército de Daligar sobre as improváveis vantagens da sua sobrevivência, com respeito a sair daquele lugar. E não seria uma discussão amigável. Ou estariam simplesmente perdidos em meio a túneis semidestruídos, à espera de que a fome substi­tuísse a forca.

- Não sei para onde ir - confessou, assim que conseguiu falar.

Robi sorriu tranqüila. Limitou-se a fazer um gesto com a mão, indicando-lhe o teto do túnel, onde a luz incerta da tocha iluminava o longo afresco de uma linha de hera azul. O livro de poesias da mãe dele também era um mapa! Bastava ir em frente!

O fato é que a hera estava por toda parte: nas bifurcações, nos trívios, quadrívios, nos túneis que davam no nada — estreitando-se cada vez mais, como se fosse necessário voltar ras­tejando -, naqueles que terminavam bruscamente em paredes ricamente pintadas com afrescos de imagens de fontes e jardins.

Olhando atentamente, Yorsh percebeu que em alguns pon­tos o ramo de hera tomava a forma de letras élficas: quando a palavra escrita era VAI, o caminho não tinha interrupções. Eles estavam num antigo labirinto. Havia cruzamentos seguidos entre os túneis com o mesmo tipo de afresco e era preciso reconstituir a pista com as letras escondidas no desenho dos ramos. Às vezes aparecia a palavra NÃO, às vezes algum verso zombeteiro:

AGORA ERRASTE O CAMINHO E AUMEN­TASTE A DISTÂNCIA ou SE PRESTARES ATENÇÃO, O CAMINHO NÃO PERDERÁS.

Para quem quer que não conhecesse o élfico, era impossível deslindar o labirinto, mas um grupo adequado de pessoas muni­das de paciência, tempo e um fio para desenrolar e encontrar depois o caminho poderia explorá-lo e superá-lo. Agora era pre­ciso andar depressa: tinham gasto muito tempo e mais cedo ou mais tarde os armígeros do juiz chegariam.

O jogo complicou-se: a palavra VAI começou a conduzir a paredes cegas ou a escadas que não levavam a lugar nenhum. Uma das paredes representava um jogo de xadrez élfico: ninfas brancas e dois dragões pretos combatiam ao redor de uma rai­nha que usava uma coroa sobre a qual se enrolava a hera azul. A chave era o livro; nas poesias alternavam-se os enigmas:

 

         Somos quatro.

         Temos no coração

         uma coragem de guerreiro;

         espada em punho, olhar orgulhoso,

          a rainha protegemos.

 

As ninfas! Yorsh olhou com atenção: nos pontos em que as mãos das ninfas empunhavam as espadas, havia quatro finas e imperceptíveis fissuras, naquela que, no desenho, era a sombra do punho. Enfiando a mão na fissura, Yorsh achou alavancas que conseguiu tocar de leve com os dedos, não deslocar. Não era grave. O importante era que compreendesse qual deveria ser o movimento a fazer, exatamente como para os ferrolhos. Clanc. A parede era um painel e se deslocou. As alavancas, porém, danifi­cadas pelo tempo e pela terra, quebraram e não foi possível refa­zer o mecanismo ao sair: assim, abriam o caminho aos seus per­seguidores, guiando-os também, nos antigos subterrâneos.

Outra parede bloqueava bruscamente uma vertiginosa esca­da em caracol que os levara tão para baixo que Yorsh começava a pensar que estivessem bem abaixo do rio. Nessa parede, estava pintado o mar.

- Quando sairmos daqui, vamos viver junto ao mar - disse Yorsh a Robi, talvez mais para convencer a si mesmo do que a cia.

... Pequenos frutos amadurecidos ao sol, borrifados pelas ondas salgadas... recitava o livro. Olhando com atenção, Yorsh locali­zou a pequena ilha com uma cerejeira selvagem, que ele sobre­voara às costas de Erbrow. Será que já existia, séculos atrás, com uma cerejeira que deveria ser a bisavó da atual, ou simplesmen­te o pintor a imaginara e sonhara? As cerejas cintilavam num tom vermelho esmaltado, que ficava escurecido nos pontos de sombra, e aí ficavam as fissuras que escondiam o mecanismo. Clanc. De novo, o painel se abriu e, ainda dessa vez, foi impos­sível tornar a montar o mecanismo ao sair. A única coisa impor­tante, nesse ponto, era fazer depressa.

Desciam cada vez mais, abaixo das vísceras da cidade, naqueles que foram os subterrâneos do que fora o palácio real da capital dos elfos.

Enormes teias de aranha escondiam o caminho. Pequenos deslizamentos que o tinham limitado alternavam-se com as infiltrações que o alagaram: cada vez mais tinham que avançar arrastando-se na lama, o ar ficando mais raro e mais denso, car­regado de pó e de antigos cheiros - de terra, de água e de folhas podres. Yorsh estava aterrorizado. Talvez estivesse indo em dire­ção à morte e - o que era infinitamente pior - estava levando Robi também. Até aquele momento, não tinha tido realmente medo de nada, porque, em certo sentido, a profecia o protegia. O fato de que alguém - no caso específico, Arduin, o Senhor da Luz - tivesse feito hipóteses sobre o seu destino, indicava que, em todo caso, ele tinha um destino. Mas agora ele sabia que estava fora da profecia! Mais do que unir à sua vida a de Aurora, aquela gansa maléfica, preferia deixar-se devorar por um troll. Ou apodrecer nos subterrâneos de Daligar. Se a profecia fosse parcialmente verdadeira, até o seu direito à sobrevivência era uma questão de opinião: Arduin era favorável; o juiz-admi­nistrador, absolutamente contrário, e o segundo estava muito mais próximo do que o primeiro e dotado de uma companhia mais numerosa. Se pelo menos ele pudesse salvar Robi!

De repente, o túnel simplesmente acabou. Estavam avan­çando de gatinhas em meio à lama e depararam com uma grade. Do outro lado, a escuridão se ampliava e o ar era frio e limpo. Evidentemente, o túnel desembocava numa caverna. A grade era feita de complicadas curvas espiraladas que simulavam a hera: as folhas eram de prata; os caules, de ouro, e se agarravam em arcos entrelaçados. O artesanato era com certeza élfico e também certamente não tinha sido previsto nenhum tipo de abertura: não havia fechaduras nem cadeados. Tratava-se exclu­sivamente de uma grade, não de um portão.

- Eu preciso lhe fazer uma pergunta - disse Robi. À luz incerta da tocha, os seus olhos escuros brilhavam como estrelas e um sorriso tímido lhe iluminava o rosto. Yorsh esboçou um sorriso de assentimento e esperou que não se tratasse de um pedido de informação sobre a medida das esperanças deles de sobreviver, porque era um assunto sobre o qual ele preferia não se deter.

- Agora?

Robi disse que sim. A timidez invadiu-lhe o rosto, apagan­do o sorriso, mas, obstinada, assentiu.

- Está bem, o que quer saber?

-Aquilo que o juiz disse... humm... descendente, disse ele: quer dizer que faz o mesmo trabalho ou que tem o mesmo san­gue? Isto é, que é filha do neto da filha... alguma coisa assim. Entendeu?

Yorsh estava perplexo. Perplexo e comovido: a sede de conhecimento da menina era tão grande, que até agora, com a perspectiva de ter de escolher entre um novo encontro com o juiz e suas flechas e uma morte mais serena por abstinência ali­mentar, perdia-se em questões semânticas.

- Pode ter ambos os significados - explicou. Robi concordou, contente.

- Teve muitos filhos aquele senhor, o da luz?

- Você quer dizer Arduin? -É.

Yorsh procurou lembrar, embora os livros de história não costumem se deter sobre detalhes familiares.

- Hummmmm, sim, agora me lembro: teve um filho que o sucedeu e que depois foi morto sem ter tido filhos. Gesein, o Sábio, e pelo menos seis filhas, duas das quais foram viver fora de Daligar por motivos matrimoniais.

- E essas filhas tiveram filhos ou filhas que podem ter tido outros filhos ou filhas, de modo que hoje nenhum saiba mais que é um descendente de Arduin! Talvez haja descendentes dele que nem sequer saibam disso! - concluiu, triunfante.

Yorsh pensou um instante. Como conversa era, na verdade, um pouco absurda, mas pelo menos assim protelavam o momento em que teriam de dizer que não havia esperança.

- Sim. Acredito que sim - aprovou.

- Clari... hummm, vejo clari...

- Clarividência?

- Isso, clarividência: quer dizer, quando você fecha os olhos e as figuras daquilo que acontece depois se formam sozinhas?

- Sim - respondeu Yorsh, com convicção. Depois, cansou-se da conversa. - Não existe nenhum modo de se passar por essa grade.

- Mas é lógico que existe - rebateu Robi, tranqüila. - Deve existir. Nós apenas não pensamos bastante nisso. Há alguma coisa de comer? Mesmo coisa estúpida, se quiser!

- Coisa estúpida? - A conversa estava cada vez mais absurda.

- Coisa que não pensa!

Yorsh tinha feito dois bolsos internos e secretos na túnica, seguindo instruções de vinte e seis textos sobre costura e borda­do da sua biblioteca, e agora olhou dentro deles: havia ainda um punhado de favas douradas. Entregou-as a Robi e, na passagem, as suas mãos se tocaram. Yorsh sentiu uma estranha sensação no estômago, algo entre a fome e o soluço, e era a primeira vez que a experimentava.

Robi encheu a boca de favas. Yorsh sabia o quanto eram boas. Sorriu diante da expressão estática de Robi, da felicidade com que comia, sentiu dentro de si a alegria dela e foi como um furacão. Mas é lógico que conseguiria levá-la para fora dali. Estava fora da profecia, mas, ainda assim, ele era sempre um elfo. Ó último e o mais poderoso. E estava num antigo palácio élfico. O caminho existia, bastava encontrá-lo. E, para en­contrá-lo, bastava ter certeza de que podia fazê-lo. Ficou tenta­do a dizer a Robi o quanto já a queria bem, que no mundo, para ele, só havia ela, mas então, por sorte, parou: Robi não era um elfo, mas uma criatura humana e as criaturas humanas não esco­lhem os seus companheiros quando crianças, só depois de adul­tas. Devia esperar e ter esperanças de que Robi o aceitasse. Teria mais possibilidades, se protelasse por alguns anos. E, depois, ele era um elfo. A maioria dos humanos odiava elfos, até Monser e Sajra no começo! Deveria esperar que Robi o conhecesse me­lhor, se quisesse ter alguma possibilidade.

De repente, Robi lhe perguntou sobre Aurora. Ele a conhe­cia? Tinha visto o quanto era bonita? Yorsh estava prestes a res­ponder o quanto a achava uma franga odiosa e maléfica quando outro pensamento lhe veio à cabeça: Robi estava tão incrivel­mente pouco assustada porque estava certa de que ele tornaria a entrar na profecia e que, assim, a sua sobrevivência estava garan­tida. Se lhe tivesse dito a verdade, o medo a teria agarrado como um gavião. Limitou-se a um vago gesto de assentimento.

 

No momento em que o elfo entrara, cercado de guardas e mais guardas, o coração de Robi começara a bater mais veloz. Ele estava ainda mais bonito do que como ela o lembrava. Agora, usava uma túnica normal, que recordava um pouco a dos anti­gos sábios. Tinham-lhe acorrentado os pulsos atrás das costas e a pessoa dele irradiava uma aura de fragilidade e força.

Viera por ela: entregara-se para libertá-la. Desde que a sua mãe e o seu pai não existiam mais, Robi vinha experimentando o sofrimento agudo de não ser mais a filha de alguém. A sua vida, a sua morte, os seus joelhos esfolados não interessavam mais a ninguém. Agora, de repente, estava no centro do mundo. Um verdadeiro rapaz, grande e com poderes imensos, bonito como o sol, estava arriscando a vida por ela. Estava ali, com as mãos amarradas às costas, sem ter medo de nada, porque tinha certeza de poder salvá-la.

Depois, o juiz-administrador falara da profecia e então o coração de Robi se enchera verdadeiramente de luz. Era ela! Tinha as visões que lhe diziam o que estava por acontecer. Era ela que se chamava... estava para dizer, estava para gritar aquilo, Robi era um diminutivo, para abreviar. A mãe e o pai lhe deram um nome que contivesse o momento mágico da manhã, quan­do a luz começa a cobrir o mundo e a esperança de que será um belo dia ainda está intacta. A sua mãe lhe dizia isso todas as manhãs ao acordá-la, mesmo que lá fora estivesse chovendo ou nevando e não houvesse luz.

Ela era Rosalba, a luz com que renasce todos os dias a espe­rança de um dia bonito. Por sorte, a prudência a fizera calar-se e depois o juiz começou a falar da própria filha, Aurora. E o raio de sol que lhe inundava o coração transformara-se em um fio de lama gelada, deixando apenas uma sensação estranha na parte alta da barriga, como um meio-termo entre soluço e fome, como acontecia quando Tracarna percebia que ela roubara algu­ma coisa.

Robi conhecia Aurora. Ela a vira ao entrar, escoltada por metade do exército do condado, em Daligar. Cruzaram-se logo depois da porta, Robi, no seu asno, e Aurora, na sua liteira mar­fim e carmesim. Robi ficara emudecida: a outra era a menina mais bonita que ela já vira. Tinha um rosto angelical, emoldu­rado em cima pelos cabelos louros e embaixo, pela gola do ves­tido de brocado dourado. Estava penteada com uma série de trancinhas que se cruzavam, formando na cabeça um desenho de losangos que lembrava o bordado do corpete. Lançara a Robi, que olhava para ela de boca aberta, o olhar inconfundível de quem está olhando para uma barata. Bem, sim, em suma: ela era mesmo um pouquinho uma barata: tinham se passado dois anos desde a última vez que se penteara e o banho mais recente remontava ao penúltimo aguaceiro do verão anterior; o último acontecera à noite e ela o evitara. Já as chuvas de outono enso­pavam e gelavam os pés, mas continuava-se sujo na parte de baixo. E depois, Aurora era, pelo menos, dois palmos mais alta do que ela!

Quando os pais dela ainda eram vivos, a mãe lhe dizia que seus olhos eram iguais aos do pai e o pai lhe dizia que ela tinha o sorriso da mãe e ambos se iluminavam, quando olhavam para ela. Agora, porém, havia muito tempo que os seus pais não esta­vam mais ali para iluminar-se e lhe dizer aquelas coisas!

Até poucos instantes atrás, tudo o que ela queria era poder continuar a viver, agora não lhe bastava mais que Yorsh a salvas­se, queria que fosse seu. Mas a outra era infinitamente mais bonita do que ela! E maior!

Pois que se danasse.

Era ela, Robi, Rosalba, a esposa prenunciada pela profecia. Aquelas previsões que o juiz descrevera como “as previsões de Aurora” eram idiotices. Quem via as coisas era ela, sim: decidi­damente, “clarividência” queria dizer aquilo, ver as coisas antes que elas acontecessem. A filha do homem e da mulher que sem­pre o odiaram? Ora vamos! Que raio de profecia teria sido essa! Meio mundo odiava os elfos. Todos odiavam os elfos. Todos menos alguns. Todos menos pouquíssimos. Todos, menos Monser e Sajra. E era “salvaram”, não “odiaram”.

A filha do homem e da mulher que sempre o salvaram, a filha de Monser e Sajra, aquela que tem no nome a luz da manhã.

Evidentemente, ela era a neta de uma neta do Senhor da Luz! Entre os avós dos seus avós, ou dos seus bisavós, ou entre os bisavós dos avós dos seus bisavós, devia estar aquele senhor lá; por outro lado, quem é que sabe quem são os avós dos seus bisa­vós? Poderia ser qualquer um, por que não aquele da luz? (Como é que tinham dito que se chamava?) Robi pediu confir­mação a Yorsh: “descender” pode querer dizer “ter o mesmo sangue” e clarovi... sim, em suma, aquela coisa lá queria dizer que o futuro se formava dentro da sua cabeça e você o conhece antes que ele chegue. Agora que o jovem elfo lhe falara do mar, ela finalmente entendera o que era aquele azul que lhe enchia a cabeça, todas as vezes que fechava os olhos.

Enquanto eles escapavam por túneis cada vez mais estreitos e cada vez mais escuros, onde magníficos desenhos élficos seguiam-se pelas paredes, Robi sentia a alegria e a calma aumen­tando, de túnel em túnel, de folha de hera em folha de hera. Nunca Arstr... Ardu... - aquele sujeito da luz - tinha se dado o trabalho de sonhar com eles para que morressem pendurados numa forca ou no fundo das vísceras da terra, como dois ratos. Ela estava prestes a falar disso a Yorsh, do seu nome, das suas visões, quando, de novo, a alegria se contraiu dentro dela e virou uma espécie de pedra fria, na parte alta da barriga. Ele seria dela porque tinha vontade ou porque estava escrito na parede? Isto é, o Senhor da Luz, Ar... bem, aquele lá, via as coisas que alguém queria fazer ou aquelas que esse alguém devia fazer? E se ele, Yorsh, fosse passar a vida com ela pensando na outra? Aurora! De novo, aquele rosto passou-lhe pela memória. Quase tão bonita quanto um elfo! A outra não era apenas tornozelos, joe­lhos e dentes na frente! Uma vez, Tracarna a esquadrinhara e dissera em tom suave e desolado que, escura daquele jeito, pare­cia mesmo uma barata. Uma barata com dentes de rato. Depois, tinha suspirado, dizendo que nem todos podem nascer bonitos.

E também ela, Aurora, provavelmente sabia escrever e comia favas como uma senhora, nunca se empanturraria como ela fez! Quando Yorsh as dera a ela - as favas —, as suas mãos se haviam tocado: a mão dele, longa, pálida e perfeita, tocara a dela, pequena, suja, com as unhas roídas e enegrecidas. Robi olhou para os joelhos esqueléticos, enlameados e esfolados, e sentiu-se de novo uma barata. Perguntou a Yorsh sobre Aurora e o gesto dele, concordando, sufocou-a no desconforto.

Tornou a fechar a boca. Não lhe diria que era ela a sua futu­ra esposa. Nunca. Preferia não ser nem vir a ser do que saber que ele a escolhera “forçado”.

Finalmente, depois de examinar demorada e detalhadamen­te, Yorsh entendera como funcionava a grade. A parte central era ligada ao resto por quatro minúsculos pedúnculos de ouro finíssimo, enroscados num fio de cobre. Como ele lhe explicou, bastava aumentar a temperatura para que “fundisse”, o que quer dizer que se soltaria, como faz a última neve ao sol da primave­ra, e ele conseguia fazer o calor com a força da mente, não no sentido de dar cabeçadas nas coisas, mas no sentido de que ele pensava no calor e as pequenas hastes enroladas na grade esquen­tavam tanto que se soltavam, exatamente como a neve ao sol.

Retirado o miolo da grade, o mundo se abria; eles passaram para o outro lado: era uma gruta enorme, com grandes colunas de rocha, umas saindo do chão, outras penduradas no teto. Havia um forte barulho de água. Era toda incrustada de ouro e brilhava à luz da tocha como se estivesse salpicada de estrelas. Yorsh lhe explicara que aquelas colunas que vinham do chão se chamavam estalac alguma coisa e as que vinham do teto, não exatamente a mesma coisa. A caverna estava embaixo do rio Dogon. Tudo aquilo fora escavado pela água e, como o Dogon é um rio que contém ouro, a caverna foi sendo revestida, miga­lha por migalha.

Robi não entendeu bem como a água podia escavar, opera­ção para a qual são necessárias uma pá e duas mãos para segurar, e a água não tem nenhuma dessas três coisas. Ainda assim, não pediu explicações: a voz e o sorriso de Yorsh, ao explicar, eram, de todo modo, magníficos, mesmo se o que ele dissesse não esti­vesse no céu nem na Terra, e depois, provavelmente a “outra” teria entendido e ela não queria fazer papel de boba.

O inconfundível barulho de quinquilharia das armaduras dos armígeros ressoou atrás deles.

Paládio ficara entalado na grade e Meliloto o estava empur­rando com todas as suas forças.

Sempre entalado no meio das espirais de hera de ouro e prata, Paládio sorriu.

- Nós os seguimos passo a passo - comunicou, triunfante -, acompanhando as suas vozes.

- Do contrário, estaríamos perdidos naquele labirinto -concluiu Meliloto.

- O maluco queria nos mandar enforcar! - prosseguiu Paládio, vermelho pelo esforço. - Por causa de meia pinta de cerveja que lhe entornamos na cabeça!

- Algum problema, se nos unirmos a vocês? - perguntou Meliloto. - Só para escapar daqui de dentro; depois, seguimos os nossos destinos.

- Entre outras coisas, se alguém os seguia, nós os atrasáva­mos! - acrescentou Paládio, mostrando, feliz, o farto molho de chaves. - As chaves estão conosco! Eles vão ter que achar um fer­reiro e não é fácil. O último que sobrara foi enforcado há dois dias.

— Também trouxemos as suas coisas - disse Meliloto, mos­trando o barquinho, a boneca, o arco, as flechas e o livro. - Vão nos levar para fora a salvo também, não é verdade?

Yorsh e Robi estavam sem palavras. Ficaram em silêncio, olhando para os dois recém-chegados com a mesma cara com que veriam um peixe falante ou um burro dotado de asas. Meliloto, que continuava empurrando Paládio com todas as forças, sem, porém, conseguir deslocá-lo um palmo, perguntou com uma velada ponta de impaciência se, por acaso, em vez de ficar olhando para eles como duas graciosas estatuetas, não se incomodariam de dar uma mãozinha.

— Como lhes ocorreu vir atrás de nós? - perguntou Yorsh, assim que recobrou a voz.

Os dois começaram a falar juntos, um por cima do outro:

— Eu disse a você: ele nos teria enforcado... Meia pinta de cerveja no crânio... Você o conhece... Bem, não, pensando bem, você também o conhece... Nós não queremos morrer.

“E depois”, concluíram, finalmente, em uníssono, “você é mágico. Até Arduin sabia que você estava destinado a viver. Se ficarmos com você, nós também viveremos e sairemos vivos daqui de dentro!”, acrescentaram com voz triunfante.

Por algum motivo misterioso, Yorsh fez uma cara estranha: era, sem dúvida, a cara de quem não estava contente, mais ou menos de alguém que acabara de saber que a única coisa que tinha para comer acabara de ser ressuscitada ou que lhe dissera que há trincheiras para cavar. Isto é, a cara de quem não apenas não está contente, mas que também está com febre. Aproxi­mou-se da grade e se pôs a procurar outro ponto onde a pudes­se demolir, mas evidentemente a construção élfica original não previra a passagem de armígeros em forma de barril.

Por fim, tudo se resolveu com Yorsh puxando com todas as suas forças, enquanto Meliloto empurrava com todas as suas forças e Paládio proferia imprecações com todas as suas forças e, com as forças de todos, finalmente o armígero desencalhou, projetando-se ao solo com um barulho preocupante de ferra­gens, ao qual, afortunadamente, não corresponderam danos permanentes.

- Bem - disse Paládio, depois de, com muita sorte, ter sido recolocado de pé -, agora é preciso, por favor, andar bem depressa. Assim que estivermos fora daqui, nós os deixamos e seguimos os nossos destinos e os nossos destinos são que deve­mos passar por nossas casas e pegar as nossas famílias.

- Eu tenho quatro filhos e ele, cinco - explicou Meliloto. -lemos de passar em casa para pegá-los e escapar todos juntos ou, assim que perceber que rugimos, o maluco pegará os nossos filhos e as nossas mulheres.

A cara de Yorsh ficou ainda pior: parecia a cara de alguém que está com febre, bolhas que coçam e vontade de vomitar.

 

A caverna era imensa. A descrição dela estava escondida entre os versos:

... no escuro bosque petrificado, as rolas dormem o sono encantado...

Lá estava, à direita, a estalactite em que a água e o ouro tinham criado o perfil de quatro rolas. Era preciso chegar a ela e, a partir dali, dar o passo seguinte:

... o sonho virá de cima...

O sonho? O que pode ser o sonho? Sonho e véu, em élfico, eram representados pela mesma palavra: o véu dos sonhos, a estalactite muito fina e transparente, no fundo, à esquerda, e depois, ainda à direita, havia:

... o espelho da moça jovem e orgulhosa, o espelho da velhice sabia e altiva...

Era a pequena poça formada pelo gotejamento da água que transudava do alto, na qual se espelhavam as estalactites em forma de uma jovem mulher e de um grande velho de bengala! Yorsh sempre se perguntara o que queriam dizer as poesias que a mãe lhe deixara e que, a bem da verdade, sempre lhe parece­ram insípidas, mas que agora adquiriam o sentido preciso de mostrar o caminho.

À medida que prosseguia, ia adquirindo coragem. Houve um momento em que o horror prevalecera, transformando-lhe o estômago num grumo gelado face à idéia do número de vidas pelas quais se tornara responsável e à incalculável dor que o seu fracasso causaria. Não só estava colocando em risco a vida de Robi - que já era a luz dos seus olhos, se não bastasse ser a filha do homem e da mulher que o protegeram e o salvaram - como tam­bém a daqueles dois pobres homens, suas mulheres e seus filhos!

À medida que prosseguia pela enorme caverna escavada sob toda a cidade de Daligar pelas águas do rio Dogon, milênios atrás, Yorsh ia retomando a coragem. Aquele lugar o tranqüili­zava. Os antigos versos que descreviam a passagem entre as esta­lactites eram uma pista segura. Ele andava por toda parte com segurança. Estava passando por lugares onde os elfos estiveram. Era o último da sua estirpe, talvez o mais poderoso. Se não ele, quem?

O espelho d’água multiplicou as tochas, a dele e a de Meliloto, assim eles não perceberam logo que a luz estava aumentando. Finalmente um raio de sol surgiu, majestoso, entre as estalactites de ouro, iluminando a poeira como se fosse um enxame de estrelas. No meio da luz, um trono de ouro, sobre o qual a hera azul desenhava espirais que se alternavam a letras élficas.

Um antigo soberano ainda estava sentado no trono: o esqueleto estava recoberto de roupas de ouro; na cabeça, o ouro com folhas de hera azul esmaltadas, em baixo-relevo, se entrela­çava numa coroa que cintilava. Ainda tinha entre as mãos a sua espada, onde, de novo, o esmalte dos caules de hera ornava o ouro da concha protetora de mão da empunhadura. A lâmina estava cravada fundo no chão de pedra. Eram também de ouro com heras azuis o colar que ele tinha no pescoço e os anéis que ostentava em todos os dedos. Yorsh aproximou-se e a luz do dia também o iluminou, dando aos seus cabelos, por alguns instantes, o brilho de uma auréola de ouro. Desfez as teias de aranha em espirais de pó e leu:

 

         AQUI JAZ QUEM USOU A COROA,

         QUEM EMPUNHOU A ESPADA.

 

Quatro colunas de ouro ladeavam as estalactites. Também nelas se enroscava a hera azul, formando um alto-relevo tão des­tacado, que podia ser usado como escada helicoidal. Yorsh olhou para cima: a luz ofuscou-o, mas conseguiu entrever uma abertura circundada por samambaias. A extremidade superior da coluna mais próxima da abertura era coberta de musgo, com algumas samambaias pequenas cintilando ao sol.

- Parou de chover - disse Meliloto.

- Podemos ir por aí. Essas colunas são verdadeiras escadas -acrescentou Paládio, contente.

Robi aproximou-se também do sarcófago. A luz iluminou-lhe os olhos, que brilharam como estrelas. Com ela ao lado, Yorsh sentiu a sua força aumentar, o seu medo quase desapare­cer. Ou talvez fosse o antigo rei que emanava aquela estranha sensação de poder. Yorsh olhou para as órbitas vazias, cobertas de teias de aranha, e experimentou uma estranha sensação, como de integração. Passou a mão no protetor da empunhadura da espada, que continuou graníticamente imóvel. Experi­mentou com as duas mãos: nada a fazer. A espada estava enfia­da na rocha como se dela fizesse parte. Yorsh ficou perplexo, depois se pôs a rir. Lógico. Estava destinada a um elfo. Era ape­nas um truque para se certificarem de que somente a pessoa certa poderia extrair a espada dali, uma simples questão técnica: diminuindo a temperatura, reduz-se também o volume. Uma vez resfriada, a lâmina encolheria numa razão imperceptível, o suficiente para deslizar para fora da rocha, com a mesma facili­dade com que - também resfriada - tinha penetrado ali, séculos atrás. Felizmente, a necessidade de apagar os inúmeros incên­dios provocados por Erbrow recém-nascido o fizera praticar a subtração de calor. Pousou a mão no protetor, fechou os olhos, gelou a lâmina e então extraiu a espada. Foi um movimento leve, sem esforço: a antiga arma brilhou em suas mãos. O punho com suas espirais de hera adaptava-se à sua mão como se tivesse sido feito para ele. Talvez o truque de subtrair calor fosse excep­cional até mesmo para um elfo. Talvez a espada não tivesse sido feita simplesmente para um elfo, mas para o mais poderoso entre os elfos. O último. Era como se aquela espada o estivesse esperando, como se o rei a tivesse mantido reservada para ele.

Todos os vestígios do seu medo desapareceram. O cansaço, porém, o abateu e ele sentou-se aos pés do trono, esperando que a testa parasse de arder. Mas era menos doloroso do que apagar os incêndios de Erbrow, mas também precisava de algum tempo para se recuperar. Quando se levantou, contemplou mais uma vez o rei. A coroa, o colar e os anéis tinham desaparecido. Yorsh olhou perplexo para os dois armígeros, que olhavam de soslaio para ele.

- Quatro filhos... Eu e cinco filhos... Ele... Começaram, embaraçados.

- De nada servem ao morto, não levam alimento a nin­guém...

- Ele não sabe o que significa quando você volta para casa e não tem o que dar-lhes de comer e todos choram.

- Se não formos nós, estas coisas vão ser apanhadas por alguém...

- Talvez pelo juiz, porque o juiz pega tudo...

Yorsh fulminou-os com o olhar, mas não teve tempo de obrigá-los a devolver tudo. Livres dos portões, espalhados pelos labirintos, finalmente os armígeros do juiz tinham chegado. Eles não tinham entendido quais eram as pistas a seguir, mas tinham a vantagem do número: sendo tantos a ponto de ter o suficiente para seguir alguém em todas as bifurcações, acabaram encontrando o caminho. Começaram a chegar em grande número à parte mais baixa e profunda da gruta: ainda não dava para vê-los.

Usando a coluna como escada em caracol, um após o outro, Yorsh à frente e Meliloto por último, encarapitaram-se coluna acima. Paládio tirara a armadura e dessa vez não ficou entalado. Saíram por entre as samambaias, ao lado do rio. Estavam na parte sul da cidade. O Dogon corria, cheio, e o palácio do juiz ficava além da margem. Os armígeros da guarda os viram e apontaram os seus arcos, mas Meliloto e Paládio conseguiram dar a impressão de estar conduzindo, presos, os dois fugitivos: parecia mesmo que os estivessem escoltando. Passaram pela margem e se encaminharam para o palácio, os dois ao centro, com as mãos as costas, como se estivessem acorrentados, os dois armígeros nas laterais, exatamente como dois prisioneiros e sua escolta. Robi simulou uma queda e aproveitou para catar umas pedras. Yorsh tinha consigo a espada e o arco, que procurava manter escondidos entre as pregas de sua longa túnica: manti­nha as mãos às costas e tudo foi bem, até que ficaram diante do inimigo em potencial. Quando os primeiros perseguidores desembocaram às costas deles, em meio às samambaias da fenda do rio, a farsa se desvendou.

Um instante antes de as flechas começarem a voar, Meliloto e Paládio puseram-se a correr; foi um gesto astuto: todos esta­vam de olho nos dois jovens e ninguém os perseguiu. Eles eram particularmente velozes, mesmo Paládio, apesar da sua forma de barril.

Yorsh não considerou aquela fuga como traição e sim como libertação. Agora não precisava mais se preocupar com os dois fujões e suas famílias, porque, de qualquer maneira, estavam se defendendo sozinhos, portanto, ele teria de enfrentar apenas os oito armígeros que tinha pela frente, os seis que estavam no telhado e os que vinham às suas costas - em quantidade desco­nhecida - para depois se ocupar dos quatro cavaleiros que blo­queavam a estrada, vencer a grande porta e reaver o seu cavalo ainda sem nome, que ele esperava encontrar onde deixara.

Dessa vez, não podia usar o rio como meio de fuga, porque Robi não sabia nadar e era muito pequena e frágil para resistir ao frio da água, mas, de alguma maneira, ele conseguiria. Não tinha medo. Não com a sua espada em punho.

Inclinou-se sobre Robi para lhe dizer que não tivesse medo: a pequena tinha na mão uma funda de verdade e estava fazendo mira. Concordou, convicta, sem desviar o olhar.

Por pouco, uma flecha não a atingiu. Yorsh apertou a espa­da. A fúria o envolveu diante daqueles soldados pesados de armas e armaduras que apontavam os seus arcos contra dois pobres-coitados que não tinham feito mal a ninguém e queriam apenas ir embora. A raiva transformou-se numa tempestade. Um vento furioso abateu-se sobre os armígeros. Cegos pela poeira, os solda­dos não conseguiam fazer pontaria e as poucas flechas arremessa­das eram desviadas pela fúria do vento, antes de chegar ao alvo. Os cavalos se inquietaram e jogaram ao chão os cavaleiros. Yorsh conseguiu fazer contato com a mente de um dos animais, a gran­de jumenta negra, que era a mais próxima dele. Falou-lhe de liberdade e favas douradas. Criou na cabeça dela a imagem dos arreios se soltando. Durante um instante, a jumenta ficou inde­cisa, perplexa e, depois, se aproximou dele, lentamente.

Um grupo de três armígeros cercou os dois fugitivos: jovens, altos, armados de espadas, três normais e honestas espadas mili­tares de bom aço. A espada de Yorsh brilhava com luz própria: no encontro com a lâmina dele, as outras lascavam e se partiam. Yorsh sentiu dentro da cabeça a dor do homem cujo ombro ele ferira com a espada - o mais jovem dos três -, mas o ódio con­tra quem estava disposto a matar Robi anulou a dor. Outros sol­dados se juntaram e mais outros: um monte de elmos, escudos e espadas e Yorsh não conseguia mais distinguir rostos ou expressões. Abateu-os um após o outro. A cada espada que se cruzava contra a dele, ele adquiria mais coragem, enquanto os outros a perdiam. Um oficial cheio de condecorações estava prestes a golpeá-lo pelas costas, mas foi atingido em cheio por uma pedrada de Robi.

De repente, a jumenta se decidiu e empreendeu uma corri­da na direção deles, derrubando os armígeros. Yorsh conseguiu bloqueá-la e colocar-lhe Robi na garupa, pegando-a quase no colo e, para fazer isso, teve que babear a espada. Isso foi o sufi­ciente para que o soldado alto de barba grisalha que o prendera durante a sua última vinda se aproximasse o bastante para poder atingi-lo: o golpe da espada do soldado atingiu-lhe a perna, abrindo um longo ferimento, do qual o sangue esguichou, então o homem ergueu a espada em direção à cabeça de Robi. A espada élfica abateu-se sobre ele e Yorsh sentiu na cabeça o homem morrer: num relance, sentiu a infância dele, o medo do escuro e do vazio, a saudade de uma mulher com quem não se casara. Enquanto o horror e a dor lhe tomavam a cabeça, Yorsh conseguiu saltar sobre a jumenta, atrás de Robi. Tomou as rédeas e passou os braços em torno de Robi, incitando a jumen­ta em direção à grande porta.

Atravessaram a praça principal, onde as duas forcas já esta­vam preparadas: a grande para ele, a pequena para Robi. O juiz-administrador, no ímpeto da raiva, devia ter renunciado até ao seu vislumbre de decência ambígua de querer evitar a execução de uma criança em público. A visão da forca destinada a Robi devolveu ao jovem a vontade de combater a todo custo, até o de ferir, de matar. Deveria pô-la a salvo logo, antes que o seu feri­mento o enfraquecesse, teria de vencer a sua batalha depressa.

A jumenta voava pelas ruas de Daligar. A luminosa espada élfica estava desembainhada e suja de sangue e o seu brilho feroz bastou para intimidar e afastar quem quer que os pretendesse deter.

Chegaram à grande porta. A ponte levadiça começava a se erguer diante deles. Tinha um sistema rápido, feito de cordas, que agia antes do outro, de correntes e mais lento. Yorsh passou as rédeas a Robi, pegou o arco que trazia a tiracolo e uma das suas três flechas da pequena aljava presa à manga e a atirou: pra­ticara durante anos, derrubar a fruta mais alta cortando o pecío­lo com uma flecha atirada do chão. Sabia que tinha de ver o alvo com os olhos da mente e não com os do corpo. Assim que a fle­cha saiu do arco, ele lhe inflamou a ponta: uma das duas grossas cordas que comandavam a ponte foi atingida em cheio, parcial­mente cortada, e começou a queimar. Então foi a vez da segun­da corda. Parcialmente cortadas e queimadas pelas flechas fla­mejantes, as duas cordas cederam.

A ponte baixou violentamente à frente deles, com um arranco que fez ranger as velhas vigas e levantou uma nuvem de poeira avermelhada.

A jumenta atravessou-a como o vento. Os armígeros da grande porta se esquivaram, em vez de intervir. A intensa poei­ra, agora, impedia os arqueiros de fazer mira.

Estavam livres! Tinham conseguido! Estavam livres! Livres!

Yorsh tinha um ferimento na perna e uma espada élfica na mão, um cavalo - aliás, dois - e um arco com uma única flecha. E tinha Robi consigo. Tinha conseguido. Robi estava sã e salva e estava com ele. A dor pelo soldado morto voltou e Yorsh sabia que ela jamais o abandonaria, como era conveniente que acon­tecesse. Mas também sabia que estava disposto a combater de novo por Robi e pelos outros, por si mesmo e pelos seus filhos -quando os tivesse.

Atravessaram uma clareira e um pequeno bosque de castanhei­ras. Lá estava o cavalo. Yorsh não o amarrara, como prometido, e ele permanecera ali. O sol se punha e o vento esfriava. Yorsh teve uma sensação curiosa na boca do estômago, como não experimentava havia anos - treze anos, para ser preciso - e que identificou como fome. Uma fome terrível. Evidentemente, o seu destino não tinha meias-medidas. Desceu da jumenta com um movimento lento, mantendo-se apoiado. O ferimento não doía muito e a perna sustentava-o bem.

Arrancou um pedaço da túnica, felizmente feita de véus sobrepostos, e rasgou-o em tiras. Catou alguns punhados de cas­tanhas e dividiu-as com Robi, que continuara em cima da jumenta, para evitar o problema de ter que tornar a subir.

Yorsh sentia vontade de dizer alguma coisa. Queria dizer que tinham conseguido. Que tinham tido êxito. Estavam vivos. Estavam juntos. Estavam livres. Queria dizer o quanto estava feliz porque ela estava viva, porque estava livre, porque estava junto dele.

Por algum motivo que ele não conseguiu entender, os pen­samentos das coisas que poderia dizer se lhe embaraçavam na mente e esbarravam uns nos outros, como uma briga de pegas, e por fim, de todas as coisas a que saiu foi a menos importante, aquela com a qual, na verdade, ele não se importava muito.

- Devíamos ter deixado a coroa dele. Do rei.

- Mas ele estava morto - objetou Robi, com convicção. -Realmente muito morto — insistiu.

Yorsh sentia-se cada vez mais embaraçado e tolo. Como pudera, entre todas as coisas que queria dizer, ter se embrenha­do numa situação tão... bem... sem graça?

- No livro, estava escrito assim: - explicou - ... quem tem o destino de guerreiro terá a espada, quem tem o destino de reinante, a coroa... — recitou. - Ele era o rei; acho que deveríamos ter dei­xado a coroa para ele - acrescentou, inseguro.

- Ah, por isso? - disse Robi. - Então não é grave! Olhe! Enfiou a mão no seu grande bolso de lona suja e a coroa élfica com hera azul trançada surgiu, cintilando.

Yorsh olhou fixamente para a coroa, de boca aberta.

- Você a pegou?

- Não, o Paládio pegou, aquele maior dos dois. Subiu antes de mim, quando viemos para fora, e foi fácil surrupiá-la da saco­la dele. Mas os anéis ficaram com ele, para os filhos, e eram mui­tos; anéis, quero dizer. Eu sou boa, como ladra, você sabe? -acrescentou com um leve sorriso, timidamente orgulhoso. -Mas se você diz que é importante, da próxima vez em que pas­sarmos por lá, nós a restituiremos ao rei, assim ele fica mais con­tente. Ele também ressuscita, como o rato, ou fica morto?

- Fica morto.

“Sem graça” era dizer pouco. Mas, afinal, era a primeira vez que falava com Robi! E por que não lhe dizia... outra coisa? Yorsh continuou a se sentir bobo, mas consolou-se: haveria tempo. Depois. Naquele momento, eles não tinham tempo. Certamente estava sendo organizada, às costas deles, uma perse­guição: era preciso ir embora dali.

A jumenta chamava-se Mancha - Yorsh tinha lido na memória dela -, mas o seu cavalo estava ainda sem nome; devia ter mudado de dono com freqüência, houve confusões acerca dos nomes dele, nenhum dos quais ficara na sua memória.

Precisava dar um nome ao cavalo. Um nome que se adaptas­se perfeitamente, como foi Fido para o cão. Pensou em alguma coisa que desse idéia tanto da velocidade quanto da beleza. Um relâmpago de luz!

- Vou chamá-lo de Raio - disse bem alto.

Robi pensou que entre todos os nomes que se pode dar a um cavalo aquele era o mais esquisito. Um cavalo deve chamar-se Mancha, ou Pata, ou Cauda, ou, simplesmente, Cavalo. Achou que esse seria o primeiro e último cavalo a se chamar Raio, por­que era realmente um nome ridículo, mas não disse nada.

A mente do cavalo respondeu, concordando com o nome.

Yorsh em Raio e Robi em Mancha saíram em direção à Casa dos Órfãos, cada um comendo gostosamente o seu punhado de castanhas cruas, devagar, para fazê-las durar mais.

Durante a primeira parte da viagem, Yorsh sentia o seu can­saço atroz, aquele que o colhia depois de ter usado toda a sua força: uma fadiga mental, uma fadiga mental tão intensa que se tornava um sofrimento. Mas depois melhorou.

O céu se abriu. As luzes de algumas estrelas brilharam.

De vez em quando, ele e Robi trocavam uma olhada.

Yorsh carregava consigo a dor de ter matado um homem, um ferimento em uma perna e, às suas costas, um exército a persegui-lo, mas carregava também toda a sua vida até então, vida que incluía o vôo num dragão, que era o momento de feli­cidade mais intensa.

Chegaram à Casa dos Órfãos quando a aurora surgia: o céu estava nublado, mas não chovia. Uma névoa fina e gelada subia do chão. Estavam cansados, felizes, esfaimados e livres. Quando passavam por dentro de uma vinha de fulgurantes cores vermelho e ouro, dois salteadores de estrada pararam diante deles. Estavam mascarados, armados com os bordões de Tracarna e Stramazzo e vestidos com os inconfundíveis andra­jos da Casa dos Órfãos. Ameaçaram com horríveis represálias se não lhes cedessem imediatamente os cavalos. Houve um ins­tante de perplexidade recíproca, pois todos se reconheceram. Os assaltantes eram Creschio e Moron: estavam alegres, bêba­dos, felizes e declararam que fora o próprio dragão que, antes de adormecer totalmente por ação da cerveja, lhes deu o encar­go de procurar quanto mais cavalos pudessem, para transportar todos para a orla marítima. E eles eram os dois primeiros cava­leiros que passavam por ali.

Todos quem? Todos aqueles que se tinham unido a eles. Quando a chuva parou e um aroma de assado se espalhou pelas redondezas, passando por vilarejos miseráveis e sítios em que os coelhos eram mais bem alimentados do que as pessoas, todos os mortos de fome vieram juntar-se a eles. Os que não tinham nada. Os que não tinham ninguém. Reuniram-se todos os arruinados e miseráveis, os que não tinham mais terra e que sonhavam poder voltar a ter uma; e por serem muitos, eram tantos.

Sempre em seus cavalos, Yorsh e Robi chegaram à clareira da Casa dos Órfãos. Havia restos de fogo por toda parte, alguns ainda fumegavam e a fumaça subia, misturando-se à neblina. Penas de ganso, galinha e pato misturavam-se, no chão, às folhas do outono. Três barris de cerveja, vazios e virados, estavam perto do dragão, com gente dormindo dentro: figuras amontoa­das, com as mãos escuras e magras saindo de mangas rasgadas. Outras estavam dentro da casa de Tracarna e Stramazzo, alguns no quintal.

A Casa dos Órfãos não existia mais. No lugar dela, uma incrível quantidade de pedras formava quase uma pequena coli­na: tinha sido demolida a pedradas.

Com a ajuda de Creschio e Moron, Robi desceu da garupa de Mancha, a jumenta; parou para olhar a Casa dos Órfãos; depois abaixou-se; pegou uma pedra e a atirou contra o que restava da parede norte, perto de onde ela dormia. Ficou algum tempo imó­vel, com os olhos perdidos no nada. Cala localizou-a e correu-lhe ao encontro, gritando. Tinha guardado uma coxa de frango de verdade, defendendo-a valorosamente de tudo e de todos. As gali­nhas não pensam muito e são até melhores do que os ratos.

O dragão estava com o humor francamente fedorento e tinha uma dor de cabeça insuportável.

Yorsh perguntou-lhe, furibundo, como lhe pudera vir à cabeça transviar dois inocentes, fazendo-os de assaltantes de estrada e ladrões de cavalos. O dragão respondeu que a palavra inocente tem, evidentemente, um significado discutível e que aqueles dois já possuíam um talento natural de tal ordem que teria sido uma crueldade não deixar que eles o exprimissem. Em todo caso, Yorsh era suficientemente astuto para organizar o transporte de todas as pessoas que acorreram a Arstrid e ele esta­va disposto a ouvir conselhos. Havia as crianças da Casa dos Órfãos, cujos tamanhos iam do pouco mais que lactente ao quase adolescente: os meninos vão andando, os pouco maiores que lactentes não andam e é preciso que se os leve no colo.

Depois, havia o grupo de andarilhos, que apareceram do nada, de repente; não exatamente de repente: vieram quando o perfume de ganso assado começou a se espalhar pela planície e se instalaram, afirmando que uma das crianças da Casa dos Órfãos era sua parenta distante e portanto eles também faziam parte da comitiva. Os andarilhos eram dois avós, seis bisavós, sete pais ou mães, vinte e três crianças no total, essas também entre os pouco mais que lactentes e pré-adolescentes, com todas as possibilidades intermediárias e praticamente nenhum com possibilidade de andar mais de algumas léguas. Depois havia os velhinhos fugidos da fazenda ao norte, que era um lugar para onde os mandavam, ao que parece, assim como mandavam as crianças para a Casa dos Órfãos.

As pessoas comiam em proporção ao que ainda conseguiam trabalhar e, como os velhinhos estavam um pouco desgastados, em virtude dos anos que tinham nas costas, não faziam trabalho útil o bastante para comer mais do que uma rã, que é uma cria­tura que, em geral, come bem menos do que um ser humano.

Um dos soldados da Casa dos Órfãos voltou e perguntou se podia ficar. Era um rapazola ruivo, com espinhas, que, depois de ter sido um dos hóspedes da casa, tivera a honra de se tornar um dos seus monitores. Gansos assados à parte, ele voltou por­que não existia mesmo, não lhe vinha à cabeça, nenhum lugar para onde ele pudesse ir, nenhum outro onde pudesse ficar, e ele não tinha capacidade nem coragem de ficar sozinho e viver de aventura e por conta própria e não entendia por que tivera de viver a vida que sempre levara. Ele, pelo menos, podia se classi­ficar como homem capaz e o mesmo valia para os trabalhadores voluntários do condado de Daligar, dois escavadores armados de enxadas e um lenhador armado de machado e serra, que tinham escapado da mina de ferro, para lá da colina ao norte. Pois é, o cheiro do assado tinha chegado até lá: o vento soprava naquela direção e as pessoas ficam muito sensíveis aos odores que ficam anos inteiros sem sentir.

Esses três estavam na posição mais frágil, por assim dizer, porque tinham levado consigo os seus apetrechos, que todos afirmavam que sempre lhes pertenceram, desde antes de o juiz se meter a comandar e dizer que tudo o que estava sob o sol, entre as Montanhas Escuras e o vale do Dogon, pertencia a Daligar; aliás, que o lenhador tinha herdado o machado direta­mente do pai. O fato é que aquela coisa toda já tinha sido decla­rada como propriedade do condado de Daligar e, por isso, além de participar do furto de gansos, eles eram responsáveis também por furto de apetrechos de trabalho, assim tinham direito à forca duas vezes e não uma.

Por fim, tinha se esvaziado o hospital de leprosos que ficava a leste, do outro lado do fosso dos espinheiros-alvares. Ne­nhuma doença infecciosa, por sorte: só mancos, desancados, escrofulosos e indivíduos tão cansados que se mantinham em pé a duras penas e que declararam que preferiam morrer a voltar para o lugar de onde vieram. E com isso o quadro se completou.

Não, nem todos eram capazes de escapar. Se todo o grupo estivesse em condições de andar um dia inteiro, não teria sido necessário recorrer ao banditismo para tentar arranjar cavalos. Os mais velhos, os mais maltratados e a fila de crianças menores não podiam andar a pé até as Montanhas Escuras, não numa tirada só. E, com todo o exército do condado que talvez já esti­vesse em perseguição, não era o caso de parar para fazer pique­nique na relva e de passear entre as flores.

Não, ele não conseguiria voar, não antes de ter digerido a cerveja e de ter passado a dor de cabeça; na verdade, se ele esti­vesse em condições de voar, já teria voltado para as Montanhas Escuras, porque ele era um dragão, o último de sua estirpe, o último da sua espécie, e eles - os dragões - nunca se misturaram com ninguém mais que não fosse um dragão, e ele começava a se cansar bastante de crianças choronas, maltrapilhos fedoren­tos, elfos moralistas, para não falar da sua terrível dor de cabeça. Podia falar mais baixo, por favor? - tinha a impressão de que alguém lhe estivesse dando picaretadas por dentro e qualquer ribombo era um espasmo de dor, acolchoado, mas mortal, entre o quarto e o quinto osso parietal e, já que estavam tocando no assunto, nem a dor nas patas posteriores tinha passado ainda, para não falar da dor nas costas. Parecia que Yorsh se lembrava de que os dragões tinham três ossos parietais, no total, mas depois dos anos que passou com Erbrow, o Velho, no choco, adquirira uma sensibilidade notável para entender qual era o momento de manter a boca fechada.

A neblina se desfez e mostrou o topo da colina onde uma meia-dúzia de pequenas áreas queimadas interrompia o desenho regular da alamedas de videiras. Yorsh olhou aquelas áreas quei­madas com perplexidade. Creschio explicou que a cerveja cau­sava soluços ao dragão.

 

Desde quando o seu pai e a sua mãe deixaram de existir, Robi não punha as mãos numa coxa de frango. A carne se lhe desfia­va deliciosamente na boca, tinha o perfume da mamãe cozi­nhando, do papai caçando, tinham posto até rosmaninho! Não sabia se comia depressa, assim a fome passava logo, ou lenta­mente, uma migalha de cada vez, assim durava um pouco mais.

Havia gente por toda parte. Eram todos maltrapilhos. Pareciam cansados. Talvez houvesse alguém doente.

Yorsh estava tentando reuni-los: precisavam andar depressa. Mais cedo ou mais tarde - mais para cedo do que para tarde -, chegaria a cavalaria de Daligar e então todos teriam saudade da escravidão nas fazendas, como uma idade do ouro feliz, porque o que lhes aconteceria seria infinitamente pior. Yorsh estava feri­do. Mancava. Procurava manter as pessoas juntas, mas a impres­são que dava era a de um rebanho de ovelhas com um cão pastor aleijado. Quando parecia que estavam todos juntos, que podiam partir, alguém se desgarrava para ir buscar alguma coisa, pegar mais um cacho de uvas, um último pedaço de pão ou tomar um gole de cerveja que talvez tivesse ficado escondido em algum lugar.

Robi entendeu: estavam desesperados havia tanto tempo, que sequer tinham esperanças de se salvar. Quando você tem às costas anos de fome e prostração, o “amanhã” torna-se um pen­samento difícil. Tudo o que ocupa a sua cabeça é o “aqui e agora”. Ter um pouco menos de fome agora. Ficar aqui, porque andar é um sacrifício. Aqui você só recebeu ordens e foi chicoteado quando tentava fazer alguma coisa que não foi ordenada e não consegue fazer mais nada que não lhe seja mandado, nem salvar a própria vida!

O fato era que eles estavam de tal forma habituados a ter medo, que a ameaça do possível ataque da cavalaria de Daligar não os perturbava: não lhes parecia que pudesse ser pior do que o fato de eles não valerem nada, que sempre os oprimia. E depois eles acreditavam que não se matam os escravos; ao contrá­rio, é preciso trabalhar no lugar deles. Mas não era assim. Se não andassem depressa, não era o destino de escravos que os espera­va, mas o de cadáveres. Cadáveres sem nomes e sem túmulos, abandonados no meio da lama, aos vermes, gaviões, corvos e ratos. O juiz-administrador jamais permitiria que, depois de uma rebelião, mesmo que fosse apenas um banquete feito com os frangos do “seu” condado, alguém permanecesse vivo.

Além disso, não tinham nenhuma fé na possibilidade de sair dali de verdade, era evidente que não conseguiriam. Tudo o que queriam era procurar ainda alguma migalha para raspar e depois deixar a coisa correr, e que acontecesse o que tivesse de aconte­cer. Em compensação, sempre foram acostumados a passar fome, por isso, não deixar escapar nem mesmo o menor grão de trigo ou uma uva lhes parecia mais importante do que evitar o encontro com a cavalaria.

Robi fechou os olhos. O azul formou-se por trás das pálpe­bras. Agora podia distinguir as ondas e até ouvir o barulho e viu pássaros brancos voando para o horizonte. Viu uma praia e reconheceu algumas figuras: a velhinha que estava brincando com Cala, aquela meio curvada, de bengala, o homem de nariz adunco, que naquele momento estava no meio das alamedas de parreiras. Num barco, com uma rede, reconheceu Creschio e Moron. Estavam fadados a conseguir! Evidentemente, Yorsh era capaz de guiá-los. Ele não sabia, mas havia alguma coisa que ele podia fazer. Alguma coisa que ele achava sem importância, ou, de algum modo, sem utilidade naquele momento, mas que era fundamental!

- O que você sabe fazer? - perguntou Robi, bruscamente, a Yorsh, assim que o encontrou.

Yorsh ficou perplexo, depois começou a relacionar. A pri­meira coisa que lhe veio à cabeça foi dizer que sabia ressuscitar insetos e Robi teve de se concentrar em toda a sua fé, para não perder a coragem, e a lista passou a se enriquecer com... acender fogo sem pedra... abrir fechaduras sem as chaves... Sabia fazer levantar um vento que confundia os adversários, como fizera em Daligar, mas era extremamente extenuante, conseguira fazer apenas por poucos momentos e depois ficara incapaz durante metade do dia, para recuperar as forças. Sabia curar ferimen­tos... Não, não os dele próprio, só os dos outros... Sabia... Res­suscitar insetos, já o dissera? Também ratos, galinhas... Um coe­lho, uma vez... Nos últimos treze anos, o que ele mais fazia era ler. Ele lia muito bem, sabia ler em sete línguas diferentes, sem contar o élfico... Tinha passado treze anos numa biblioteca onde havia de tudo... Até livros de tática militar, mas aqueles explica­vam como vencer quando havia dois exércitos, e agora havia um de um lado e, do outro, um bando de... Bem, é melhor deixar para lá as táticas militares; depois, tinha lido livros de astrono­mia, alquimia, balística, biologia, cartografia, etimologia, filolo­gia, filosofia... Como fazer geléia de uva... Para não falar das his­tórias. Que histórias? As que ele lia para o dragão, não, esse dra­gão, não, o outro, o pai desse aí, enquanto chocava... Os dragões chocam... Fêmea? Ele não sabia, nunca entendera bem se era macho ou fêmea... De qualquer maneira, quando um dragão choca, o cérebro não lhe funciona muito bem, porque se esgota no choco... Não, os dragões não têm o cérebro nas nádegas, é na cabeça, como todo mundo, mas, quando estão chocando, não lhes funciona muito bem... Então é preciso fazer-lhes compa­nhia, contando-lhes histórias, como a história da princesa das favas... Como era a história da princesa das favas?...

Pois bem, era uma vez uma rainha que não podia ter filhos e era terrivelmente triste, porque a sua vida escoava, mês após mês, uma estação depois da outra, e ela não tinha ninguém para ninar.

O silêncio era absoluto. Até os que mordiscavam alguma coisa interromperam o que faziam. Até Robi esquecera-se de tudo, até mesmo de acabar de roer o seu ossinho de frango para ouvir. Pareceu-lhe que tudo o que estava acontecendo, incluin­do a cavalaria de Daligar, que devia estar chegando, fosse de algum modo menos importante do que a terrível tristeza daque­la desventurada rainha que agora lhe ocupava a atenção.

Yorsh parou de falar e olhou para ela, perplexo.

- Continue! - gritou ela.

- E depois? - perguntou alguém.

- Ei, não pare!

- E como é que acaba?

Os que tinham ouvido a história desde o início contavam para os outros, que não ouviram porque chegaram depois.

Yorsh ficou olhando para eles, demoradamente, cada vez mais perplexo, depois recomeçou.

Elevou o tom da voz e, sempre sem interromper, olhou em volta: todos se reuniam em torno dele, que continuou contan­do. Começou a contar as pessoas, sempre sem parar a narrativa, chegando a incluir a contagem que fazia na própria história: no ponto em que a rainha estava no campo de favas e começou a comê-las, fez com que os ouvintes as contassem, uma por uma. Estavam todos lá. Já se podia partir. Arstrid estava a menos de um dia de caminhada. Havia água ao longo do caminho, em forma de riachos e torrentes. Todos estavam de barriga cheia. Talvez conseguissem.

Sempre contando a sua interminável história, Yorsh acor­dou Erbrow, que recomeçara a roncar, colocou as duas crianças menores no lombo de Mancha, pegou Raio, pois o seu ferimen­to o impedia de andar, e montou-lhe a garupa, ao contrário, de costas para a frente, olhando para trás, para o seu grande rio de esfarrapados, e puxou a marcha.

O dragão fechava a fila. Não parou um instante de se lamentar pelo modo como a dor de cabeça se juntava à dor nas patas traseiras, para não falar da dor nas costas, mas manteve, de qualquer modo, a voz bem baixa, para que a história de Yorsh fosse audível.

A história era interminável: todas as vezes que dava a impressão de estar no fim, ela retomava com nova descoberta, novo arrebatamento, um reconhecimento adicional, outra mal­dade, outro duelo... O sol empinou. A lama diminuiu. Suas per­nas começavam a ficar cansadas. A vontade de se sentar à beira do caminho aumentava, passo a passo. As crianças menores se alternavam no lombo de Mancha, mas as outras tinham de mar­char. A voz de Yorsh estava rouca, mas não parava. Os andari­lhos tinham sacado suas flautas e sublinhavam com música os trechos mais marcantes: quando a princesa das favas tinha começado a fugir com a sua gente diante dos ogros, a música tornou-se mais forte e envolvente e Yorsh pôde interromper para beber um gole de água.

Quando recomeçou, a história que estava contando tornou-se curiosamente parecida com a deles. Havia um grande rio de fugitivos que somente se salvariam continuando a marchar. Robi ouviu o desespero deles, as esperanças, os medos, a cora­gem e sentiu dentro de si a vontade férrea de não parar, de con­tinuar, passo a passo, até o último palmo do caminho sonhado, aquele que não acaba até chegar ao mar. Olhou em volta: no rosto dos outros, o cansaço também chegara, afogado pela his­tória que estavam ouvindo, que os aquecia por dentro, como um fogo.

O único perturbado era Yorsh, não só pela voz - cada vez mais rouca —, mas pelo leve tremor que lhe surgira nas mãos. O sol começou a se pôr, no oeste: dentro de não muito tempo desapareceria atrás das Montanhas da Sombra, as Montanhas Escuras.

De repente, depois da última curva, quando os restos daqui­lo que tinha sido o vilarejo de Arstrid ficaram visíveis, todos entenderam finalmente por que a cavalaria de Daligar não os estava seguindo: estava diante deles, alinhada na direção de Arstrid, impedindo a passagem pela garganta.

 

Yorsh sentiu o horror tomar conta de si: arrastara todos, passo a passo, história após história, para a catástrofe.

Ficou aniquilado, olhando fixamente para o ultimo sol, cin­tilando sobre as armaduras.

Ele os levara a uma carnificina. O desejo de não ter de esco­lher, de decidir, era mais forte do que tudo. Mais forte do que tudo era a vontade de que alguém dissesse: “Não se preocupe, meu filho, eu estou aqui, deixe que eu penso.”

Yorsh ficou em silêncio. Todos estavam parados. O dragão percorreu o flanco da coluna, levando a sua dor de cabeça e a sua dor nas pernas até onde estavam Raio e Mancha.

O sol chegou ao cume das Montanhas Escuras e longas sombras se desenharam no chão, depois as nuvens engoliram tudo.

- Qual é o plano, agora? - perguntou, seco.

- Você tem alguma idéia? - perguntou Yorsh, esperançoso. -Eu vou pela direita; você, pela esquerda, e os cercamos? —

propôs o dragão, com ironia.

- Na guerra contra os trolls, um dragão incendiou a prada­ria, evitando o combate. Aconteceu no século quarto da segun­da dinastia rúnica.

- No quinto, da terceira - corrigiu o dragão. - E era verão. Um verão tórrido e seco: bastou um espirro. Agora, estamos no fim do outono. Está vendo aquela coisa marrom-escura, entre um caule e outro de capim? Chama-se lama, L-A-M-A. A lama tem numerosas propriedades, entre elas a de ser ignífuga, que é o contrário de “combustível”: não tosta e não pega fogo. Se você quiser, eu posso fazer uns círculos pequenos de capim queimado, desde que não chova, mas duvido de que eles se impressionem.

Yorsh e Erbrow ficaram se olhando. A noite desceu e um chuvisco fino começou a cair.

Robi fechou os olhos: ficou tudo azul. Viu contra o mar cin­tilante uma longa série de figurinhas: eram Yorsh, Cala, Creschio e Moron, aquele homem alto e capenga, a mulher pequena que mancava... Estavam todos ali. Conseguiram. Todos.

Aqueles dois poderiam conseguir; simplesmente não sabiam como. Deviam andar depressa. O desespero lhes percorria a espinha, como uma serpente no meio de ratos e, como uma ser­pente no meio dos ratos, engolia tudo o que encontrava pelo caminho. Os prantos se alternavam com os gritos e as maldi­ções: de um momento para outro, começariam as fugas, todos se dispersariam pela planície, presa fácil e miserável para os cavaleiros armados, como um grupo de rãs para os gaviões.

Robi interveio serenamente:

- Você sabe voar - disse ao dragão - e cospe fogo e ele tem uma espada invencível. Vocês conseguirão, com certeza.

- A espada dele não é invencível. Eu não quero dar a impressão de pedante e fanático por detalhes insignificantes, mas nenhum de nós dois é invulnerável. Ele já está ferido e as minhas escamas ântero-inferiores, aquelas da barriga, em suma, são... hummm... um pouquinho finas para flechas. Eu cuspo fogo pelas glândulas igníferas, que não são infinitas. E agora, como eu tive... os... os...

- Soluços de bebedeira? - sugeriu Robi pressurosamente.

- Digamos que eu não estou no meu melhor estado - res­pondeu secamente o dragão. - Posso carbonizar um ou dois cavaleiros, desde que o guerreiro aqui me permita fazê-lo, mas ainda sobrará o suficiente para nos demonstrar que eles não acharam divertido.

- Você pode assustá-los - sugeriu Robi -, eles não sabem que você está... está... vazio.

- Exaurido.

- Isso, exaurido. Eles não sabem disso e, se você não tostar nenhum deles, cada um terá medo de ser o escolhido para virar assado e todos recuarão. Veja, não é tão impossível: o dragão os distrai de um lado e nós escapamos e atravessamos pela gargan­ta. Alguns nos atacarão, mas serão poucos. Yorsh se sairá bem, enfrentou um monte deles em Daligar.

- E depois? Eu não posso distraí-los para sempre! Mais cedo ou mais tarde conseguirão entrar na garganta. E a cachoeira? A garganta se encolhe numa cachoeira vertiginosa, lembra-se? Chama-se Abismo do Dogon e é intransponível. A escada para a biblioteca está bloqueada por um desmoronamento: nós o vimos no dia do nosso primeiro vôo.

- A cachoeira não é intransponível, os habitantes de Arstrid passaram. Nós também passaremos.

- Bem - disse Erbrow -, então os soldados também passa­rão. Em vez de serem massacrados aqui, vocês serão massacrados numa praia.

Houve um longo silêncio. Robi teve uma sensação na parte alta da barriga que não era fome, mas medo. Aprendera a con­fiar nas suas visões, mas sabia que estavam incompletas. Talvez todos atingissem a água azul do mar - e era aquilo que ela via -, depois chegassem os armígeros do juiz e o azul passaria a vermelho-claro e cor-de-rosa bem escuro. Depois ela se recuperou. O mar era azul e assim continuava. Cintilava, límpido, ao sol.

- Nós passaremos e eles não - gritou, com segurança -, por­que nós somos inteligentes e eles, estúpidos. Nós estamos fugin­do para nos salvar e para viver e eles estão apenas cumprindo ordens. Alguma coisa nos virá à cabeça, coisa que eles não sabem. Nós conseguiremos. Agora. Eles têm capas e armaduras, a chuva atrapalha mais a eles do que a nós. Agora! Os cavalos deles escorregam mais, na lama, do que os nossos pés. Agora!

- Verdade? - perguntou Cala, que estava molhada como um pinto e no chão, na lama, tendo acabado de escorregar. - É verdade que a chuva dá mais canseira a eles do que a nós...? Tem certeza?... Então não estamos ainda mortos de verdade? Ainda podemos conseguir...? Robi não respondeu.

- Agora! - gritou ela, pela última vez, para o elfo e o dragão. Depois, virou-se e olhou para o seu bando miserável, que se dis­persava sob a chuva. Teve idéia de subir na garupa de Mancha, mas as três criancinhas estavam em cima dela e se agarraram com tanta tenacidade, que não foi possível desalojá-las. Pro­curou refazer a fila, para que, unidos, tivessem possibilidade de conseguir, enquanto que espalhados estariam perdidos.

Vieram todos correndo, um por um, escorregando na lama.

- Era uma vez - gritou Yorsh a plenos pulmões. A sua voz ricocheteou sobre os gemidos e choros. - Era uma vez, uma coluna de heróis que... que... tinham sido escravos. Era uma vez, um povo de escravos que... decidiu... partir... para se trans­formar num povo de gente livre e que, para fazer isso... para ser livre... quero dizer... eles chegaram ao mar.

Yorsh começou a contar uma história comprida e magnífi­ca. Inventou nomes, descreveu exércitos; descreveu os fugitivos, um por um, e cada qual achou a sua própria descrição, com outro nome e outra história. O medo começou a apertar. O can­saço começou a diminuir a trava que havia nas pernas cansadas e nas mentes exaustas.

A chuva parou. Um vento leve ergueu-se e abriu as nuvens. A luz da lua iluminou a planície e a garganta de Arstrid, do outro lado da qual estavam a liberdade e o mar. O bando de esfarrapados começou a se juntar.

- Era uma vez, um povo de escravos que se transformou num povo livre, atravessando o deserto e o mar... e depois uma garganta... Sigam Robi; fiquem juntos e andem em direção à garganta. Ela conhece o caminho, ela vivia ali. Eu e o dragão protegeremos a coluna. Vocês estão juntos, sigam Robi.

Robi precisava ficar o mais visível possível, à fraca luz da lua. A luz era pouca, muitos a confundiam com Cala e acompanha­vam um pouco uma, um pouco a outra. Robi ainda tinha a coroa do rei na sacola. Pegou-a e colocou-a na cabeça. A coroa cintilou no escuro, refletindo a luz da lua.

Naquele momento, a cavalaria se moveu. Yorsh sacou da espada. Raio estava exausto: já tinha um dia, uma noite e mais um dia seguidos de marcha nas pernas, mas reencontrou as for­ças. Empinou. Robi viu a espada de Yorsh brilhar ao luar, como a sua coroa.

Por um instante, foi como se a luz da lua tivesse cristalizado o tempo, como se a realidade e o sonho se tivessem fundido num instante de imobilidade; depois tudo se desfez.

Erbrow tinha decidido intervir, finalmente.

Um rugido terrificante ribombou.

Uma chama terrível cortou a escuridão, transformando a umidade numa névoa fina.

A cavalaria parou, indecisa. A armada dos esfarrapados reto­mou a coragem. Entre eles e as lanças dos soldados de Daligar, havia a espada luminosa de um guerreiro e a fulgurante chama do dragão. Dentro deles, a história de um povo de escravos que atra­vessara o mundo para se tornar um povo de gente livre e isso os transformara num povo de heróis. Diante deles, a coroa da pequena rainha cintilava no escuro, como a espada do guerreiro.

Creschio e Moron, armados de seus bordões, aproximaram-se de Yorsh para lhe proteger os flancos. Os dois homens que escaparam da mina - onde eram “trabalhadores de escavação do condado de Daligar”-, levando as suas pás as costas, agora as empunharam para combater. Até um lenhador, antes “trabalha­dor dos troncos”, levara o seu machado, acrescentando, como os outros dois, ao crime de “furto de instrumento de trabalho”, o de “abandono do posto”. Agora, tinha resolvido usar o instru­mento de trabalho. Todos os homens, as mulheres sem filhos e os meninos maiores se reuniram em torno de Yorsh, que nunca parou de falar. Agora estava contando a luta heróica de Pintrore e Farnuce, assaltantes de estrada transformados em lugar-tenentes, Prart, vindo das selvas com seu machado mágico, os Sapadores Corteses, recém-despertados de um encanto...

Veio uma saraivada de flechas, como um vôo de falcões, mas o dragão se interpusera entre eles e os cavaleiros e as flechas ricochetearam nas espessas e duras escamas das suas costas, como grãos-de-bico lançados de zarabatana.

- Estamos conseguindo - gritou Robi, feliz.

“Até quando?”, perguntou Yorsh a si mesmo.

O céu se abriu completamente. As nuvens se dispersaram. O frio aumentou. A lua iluminou em cheio os esqueléticos res­tos de Arstrid, na curva do rio que cintilava no escuro, prateada. Acima dela, de um lado, o despenhadeiro rochoso era cortado verticalmente; do outro, era um pouco mais suave, feito de terra e de um bosque de enormes e antigos carvalhos que seguravam, com as suas raízes negras, gigantescas pedras de granito branco, nas quais a luz da lua ricocheteava.

Protegidos por Yorsh, a sua pequena coluna de guerreiros improvisados e, acima de tudo, pelo ameaçador e granítico escu­do que era o dorso do dragão, eles entraram, um atrás do outro, na garganta. Robi passou por perto das cinzas daquilo que fora a sua casa, seus olhos se encheram de lágrimas, alisou com as mãos as paredes carbonizadas, que eram tudo o que restava. Lembrou-se de quando, dois anos antes, a tinham arrastado para fora dali e ela deixara uma fila de pedrinhas do rio, brancas, redondas e idênticas, para poder achar o caminho de volta. Desde então, nunca mais tinha chorado. O seu cão, Fido, tinha tentado protegê-la e ficara aleijado. Em todos os seus sonhos, quando voltava a Arstrid, Fido corria ao seu encontro, mancan­do. Agora, ela o procurou com o olhar, na esperança de que ele ainda estivesse ali, para tomar conta da casa e esperar por ela, mas evidentemente era uma esperança absurda, porque nenhum cão é fiel o bastante para esperar, ano após ano. A silhueta capenga do cão não apareceu em parte alguma. Outra vez, os seus olhos se encheram de lágrimas que não desceram pelo rosto: como sempre, elas escoaram por dentro.

Era preciso ir em frente.

Robi virou-se e viu todos os esfarrapados em segurança, na garganta. Yorsh e seus guerreiros fechavam a fila de heróis invo­luntários, que agora se destacava contra o rio prateado; o dragão fechava a garganta. Até quando? No momento em que ele saís­se dali, os cavaleiros atacariam e cairiam todos em cima deles. Os cavaleiros estavam descansados, mas eles estavam marchan­do desde cedo. Alguns começavam a se deixar cair no chão, de cansados. Não havia mais nenhuma história que lhes desse força para marchar. As crianças menores choramingavam de frio e fome. Até Mancha parecia não agüentar mais. Raio também tinha parado.

O dragão levantou vôo.

As suas asas se abriram. Magníficas espirais verdes de­senharam-se à luz da lua. Era magnífico. MAGNÍFICO. MAGNÍFICO. MAGNÍFICO. MAGNÍFICO. MAGNÍFICO. MAGNÍFICO. MAGNÍFICO. MAGNÍFICO.

Uma saraivada de flechas surgiu no ar e, mesmo à luz tênue da noite clara, Robi distinguiu as esteiras vermelhas do sangue que escorria dos ferimentos que se abriam, um após outro, nas escamas finas do tórax de Erbrow.

Como num sonho, Robi ouviu o longo “Nãããoooooooooooooooooooooooooo” de Yorsh perder-se na escuridão, como uma súplica inútil. Uma última língua de chama rasgou a noite, iluminando-a definitivamente. Os carvalhos foram toma­dos por uma onda de fogo mortal e, mesmo úmidos, in­cendiaram-se. Carbonizadas, as raízes desprenderam-se das enormes pedras de granito, que começaram a deslizar para baixo, arrastando pela lama o que restava dos troncos ainda em chamas. O dragão atingiu com todo o seu peso as últimas pedras que sustentavam o flanco da colina, mas, para fazer isso, precisou manter-se em vôo com o tórax voltado para os atacan­tes e mais e mais flechas o atingiram.

Formou-se uma enorme enxurrada de terra, pedras e fogo que, com um estrondo formidável, atingiu o fundo da garganta, fechando-a.

Havia pedras e lama e mais pedras e lama e ainda mais pedras e lama e árvores despedaçadas.

Todo o flanco da montanha ruíra, fechando a garganta de Arstrid para sempre. As asas do dragão bateram pela última vez, depois Erbrow mergulhou e desapareceu para sempre pelo outro lado do intransponível muro de terra, pedras, lama e árvo­res despedaçadas que agora os protegia.

Robi fechou os olhos. Tudo se tornou azul, com as figuras de todos eles destacando-se contra o mar cintilante.

Como não percebera antes? Não havia verde em parte alguma.

Na sua visão, nunca mais o dragão apareceu.

Eles se salvariam todos, porque o dragão morrera por eles.

Ela conhecia o dragão havia menos de um dia. Trocara com ele apenas umas poucas e insignificantes palavras, mas sabia que, sem ele, o sonho deles de ser livre não teria passado de loucura.

Desde dois anos antes, a imagem das grandes asas verdes a consolava do desespero.

Robi explodiu num longo pranto, que se uniu ao de Yorsh.

 

A lua iluminava o mundo. Um vento fresco viera refrescá-lo.

A dor de cabeça desaparecera: Erbrow estava de novo em condições de voar.

Podia, finalmente, sair dali. Um belo vôo vertical, voltando as costas aos arqueiros.

Não adiantaria de nada ficar ali: mais cedo ou mais tarde, eles os esmagariam, a todos. E era melhor agora do que nunca: as esperas são entediantes e as execuções proteladas são uma crueldade.

Ele, que era um dragão, iria para a biblioteca, onde, por ser um dragão, viveria alguns séculos, voando sobre o mar e devo­rando golfinhos e gaivotas. Quando chegasse o momento de chocar o seu choco de dragão, ele, que era um dragão, estaria entrincheirado na sua esplêndida biblioteca, onde favas doura­das, toranjas e uma inexaurível reserva de livros de contos o ale­grariam até o nascimento do seu descendente, que, sendo ele também um dragão, devoraria golfinhos e gaivotas durante séculos e assim por diante.

Porque ele era um dragão e eles eram apenas um bando de mendigos. Para sair voando dali, de costas para os arqueiros, porém, teria de sobrevoar Yorsh, Robi e os outros, olhando-os pela última vez, enquanto os abandonava. Paciência. A solidão era, desde sempre, o destino de um dragão e a traição sempre fora, para a sua raça, uma necessidade tolerável. Quem é um DRAGÃO não deve fidelidade a ninguém.

Erbrow lembrou-se de que não haveria ninguém para cui­dar do seu recém-nascido.

Ninguém para ensinar-lhe a voar.

O seu pequeno ficaria sozinho e desesperado. Talvez mor­resse em algum incêndio ateado por ele mesmo, espirrando ou choramingando, ou por ter tropeçado na própria cauda.

Lembrou-se de Yorsh quando o ensinara a voar.

Pensou que nunca conseguiria ir embora dali, deixando-os sozinhos diante de um exército. Na sua cabeça, vindo das suas várias lembranças, ressoou-lhe a reprovação do seu antepassado e dos seus avós, porque ele, um dragão, arriscava perder a pró­pria vida por criaturas quaisquer, que não passavam de um bando de mendigos.

Ele era um dragão. O último dragão. O senhor da criação. E um dragão não se deixa bater por nada, a não ser por si mes­mo, porque não pode existir ninguém que tenha um valor igual ao seu. Devia ir embora. Devia abandoná-los e se salvar.

Se ele fosse embora dali agora, continuaria a viver. Uma longa vida em odiosa e total solidão. Nasceria o pequeno dragão que viveria — ele também em total e odiosa solidão, desde que, de algum modo, lograsse sobreviver à sua própria infância, deso­lada e vazia. Mais triste ainda do que ser uma fénix.

Pensou que já não existiam mais dragões porque a solidão os extinguira.

Pensou que não se pode viver, século após século, chocando a própria magnificência e a própria solidão.

Pensou que o importante não são as coisas, mas é o sentido que damos a elas. Mais cedo ou mais tarde, a morte espera cada um. Mais importante do que protelar a morte é dar a ela um sentido.

No escuro, sob a lua, a espada de Yorsh e a coroa de Robi cintilavam com uma luz prateada. Erbrow pensou que as lendas falariam dele. Durante séculos e mais séculos, os poetas canta­riam o último dragão, aquele que tinha levado um grande guerreiro élfico e uma pequena rainha maltrapilha para o seu desti­no de fundadores de um lugar onde se pudesse ser livre.

O grande dragão alçou vôo e o seu vôo levou à salvação, uma grande avalanche de lama que fechou a garganta com uma enor­me parede, instável e intransponível, mas, ao fazer isso, desco­briu o ventre, a sua parte vulnerável, onde as flechas não ricocheteavam, mas se cravavam profundamente na carne, enquan­to grandes borbotões de sangue vivo manchavam o verde das escamas. O dragão voou com as suas grandes asas abertas à luz da lua, depois as flechas passaram a ser muitas, o sangue que lhe escapava exauriu-se.

Erbrow, o último dragão, foi ao chão e ficou ali, nos seus últimos momentos, na relva lamacenta.

Sonhou, até o fim, em não morrer, em poder viver ainda um pouco, mesmo assim, com o peito crivado de flechas e a lama em volta ensopando-se com o seu sangue.

Depois, outro sonho ocupou-lhe a mente, o primeiro que sonhara na sua vida. Sonhou consigo mesmo, recém-nascido, filhote, com a cabeça pousada no colo do seu irmão elfo, num prado infinito de margaridas. Abriu os olhos pela última vez. O milagre se repetira. Estava cercado por milhares de pequenas flores, iluminadas pela luz da lua, sob os pés dos soldados que, cautelosos, se aproximavam. Erbrow olhou para as pétalas e sen­tiu a felicidade invadi-lo, depois fechou de novo os olhos — e dessa vez se foi para sempre.

 

A aurora surgiu, fria, enevoada e cinzenta. Yorsh tremia. Não eram apenas o ferimento, o cansaço e o frio a que já não tinha energia para resistir.

Ter perdido Erbrow pesava-lhe como um rochedo.

Tinha sido a sua família, o seu irmão.

Todos aqueles que ele amava, ou que o amavam, pareciam destinados a morrer.

Todos, menos Robi.

Robi estava viva. Devia manter o pensamento fixo em Robi, na sua respiração, no seu sorriso, e então o peso que o sufocava se tornaria leve o bastante para lhe permitir respirar.

Depois do gigantesco deslizamento, os fugitivos se amon­toaram, uns sobre os outros, para ficar mais quentes, entre as ruínas das choupanas de Arstrid. Acenderam algumas fogueiras para se aquecer.

Para Yorsh, a noite fora um gotejamento ininterrupto de desilusões. A cada instante, ele esperara ver as asas reaparecerem, ver o sopro flamejante. Devia ser uma ilusão, um truque, uma espécie de burla. Talvez o tivessem ferido e capturado. Poderiam tê-lo levado acorrentado para Daligar e o manteriam prisionei­ro. Ele, Yorsh, iria libertá-lo com a sua espada, enfrentaria toda a guarnição e depois fugiriam juntos, Erbrow com as suas gran­des asas abertas, ele, em cima.

Ainda assim, ao mesmo tempo ele sabia. Uma parte do seu cérebro continuava a lhe contar fábulas; a outra sabia. A mente de Yorsh fora capaz de perceber a de Erbrow exatamente como os seus olhos podiam vê-lo e o seu olfato sentir-lhe o cheiro. A mente de Yorsh sabia que Erbrow estava morto. Onde antes havia a percepção do dragão, agora havia um buraco negro de gelada não-existência.

Yorsh estava aniquilado pelo fato de já estar num mundo em que os dragões não existem mais, onde Erbrow não vivia mais: não poria mais nenhum ovo.

Fez uma conta rápida, que foi como um balde de água fria: o hábito de considerá-lo uma espécie de irmão mais velho, com um complicado jogo de memórias múltiplas e hereditárias que lhe permitiam falar na primeira pessoa de eventos acontecidos anos ou séculos antes, fizera com que ele esquecesse que Erbrow, na verdade, vivera menos de dois meses. Fora como um meteo­ro. Lembrou-se de que, na antiga língua élfica, Erbrow quer dizer “cometa”.

Robi soluçara durante um bom tempo. Ela também, quan­do estava desesperada, vertia líquido pelos olhos. Um muco enchia-lhe o nariz, os olhos ficavam vermelhos e as pálpebras inchadas, como quando não se dorme durante dois dias. Por um lado, Yorsh continuava a achar isso extremamente extravagante, pouco higiênico e incômodo, por outro, gostaria, de todo o coração, de poder chorar ele também.

Como se tudo isso não bastasse, acrescentava ainda o horror de ter de matar.

Quando a aurora iluminara o mundo, impusera-se o problema da comida. Todos estavam com fome. Tudo o que tinha sido levado - o resto do banquete da Casa dos Órfãos - acabara havia algum tempo. As macieiras e videiras de Arstrid tinham sido abatidas e queimadas. A única coisa que sobrou foram as trutas. Naquele ponto, o Dogon pululava de peixes, as suas esca­mas prateadas brilhavam através da água e Yorsh tinha o arco com uma flecha élfica. Ninguém tinha ousado pedir a ele, mas, a certa altura, ele achou insuportável a fome de toda aquela pobre gente. A vida e a morte são uma única conexão, dissera Erbrow.

A morte de uns era conectada à vida de outros. Nunca mais o ouviria dizer isso. Nunca mais. Nunca mais o ouviria roncar. Nunca mais o veria respirar. Nunca mais, nunca mais. O que quer que fizesse, as duas palavras ressoavam dentro dele. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais.

Yorsh pôs a flecha na corda do arco e fez pontaria. Nunca mais ouviria a voz de Erbrow. A mira de um elfo era infalível, porque mirava com os olhos da mente, mas todas as vezes o desejo de errar a pontaria o afligia, para não sentir a dor do peixe morrendo. Atirou. Nunca mais veria as asas dele no céu. Yorsh viu a flecha atingir a truta e sentiu por dentro a desolação da truta pela própria morte. Isso o tocaria, ainda umas cinqüenta vezes, antes de terminar o dia. Tinha de matar a fome de umas noventa e nove pessoas e uma truta dava para um adulto ou dois meninos, ou três crianças pequenas. O lenhador jogou-se à água para pegar a truta. Ele e um dos dois sapadores eram os únicos que sabiam nadar e deviam alternar-se na gelada empreitada de resgatar da água a presa e a única flecha de que dispunham.

Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais. Nunca mais.

O lenhador recuperou a flecha e a restituiu. Yorsh recome­çou. Capturou ainda várias trutas e depois a coluna se pôs em marcha. Alternando marcha, pesca e um pouco de repouso, chegariam às cachoeiras. Yorsh lembrou-se de quando as sobrevoara nas costas de Erbrow. Nunca mais. De novo, dese­jou poder chorar.

Marchavam, pescavam, alguns conseguiram encontrar frutas. Antes do pôr-do-sol, montava-se o acampamento. O lenhador cortava grandes galhos de pinheiro ou abeto, com os quais improvisava uma cabana. Nos quatro cantos, havia lenha quei­mando, com trutas assando. Andaram em frente, dia após dia, com a curiosa impressão de que o tempo e a vida deles estives­sem, de algum modo, em suspenso, à espera.

Yorsh pensava na primeira vez que fizera aquele percurso. Estava num barco, deitado de costas, com duas pessoas maravi­lhosas que se esforçavam até mesmo para não comer à frente dele as suas trutas defumadas e ele tinha sacos cheios de milho e feijão para encher o estômago. Por terra, o caminho era mais longo, mais empedrado, mais cansativo, sem falar na fome. E tudo isso ainda não era nada, comparado à ferida que tinha no coração, àquelas duas palavras - “nunca mais” - que lhe ressoa­vam na cabeça a cada respiração e, no entanto, havia aquela incrível e inesperada riqueza - Robi - que caminhava ao lado dele.

Era preciso ir em frente. O outono já estava avançado. De um dia para outro, a neve chegaria e tudo se tornaria mais difícil.

Às vezes o caminho era fácil, podiam andar ao longo dos ressaltos da margem; outras vezes, tinham que subir em rochas íngremes e escorregadias, derrapando no musgo ou, se as mar­gens eram impraticáveis, dar longas voltas pelos bosques, evi­tando sempre se afastar da água, para não perder a orientação e o caminho.

De repente, as cachoeiras surgiram diante deles. Não foi realmente de repente: tinham sido anunciadas pelo fragor que a água produzia na queda, mas a visão causou vertigem. O chão como que acabava, a água se projetava num salto altíssimo e a luz criava irisação na sua superfície vertical.

Mais à frente, abria-se o mar. O horizonte tocava o céu com uma longa linha que nada interrompia, a não ser uma ilha minúscula, sobre a qual uma cerejeira selvagem estava perdendo as suas últimas folhas. Entre as rochas, à direita deles, partindo de uma praia minúscula, com acesso apenas pelas tumultuosas águas do rio, erguia-se uma escada muito estreita que chegava à altíssima rocha na qual se lia a escrita HIC SUNT DRACOS. Uma parte da escada estava agora irremediavelmente desmoro­nada e a escrita já era uma mentira. Isolada de tudo e de todos, no pico agora inacessível, a biblioteca guardava os seus inúteis tesouros.

Se mantivesse a atenção fixa em Robi, Yorsh conseguiria evi­tar que a angústia o envolvesse. HIC SUNT DRACOS. Nunca mais, até o fim dos séculos.

Mas havia Robi; no mundo, havia Robi. E os outros tam­bém. Ele já os conhecia. Todos, um por um. Era uma curiosa sensação, depois da sua vida passada na solidão.

Robi existia e estava com ele. Devia continuar a pensar nisso.

- O que fazermos para passar? - perguntou Creschio, per­turbado, diante daquele salto vertiginoso e magnífico.

- Não sei - respondeu Yorsh, honestamente.

- Não vamos conseguir nunca! - acrescentou Moron, em desconforto.

- Mas conseguiremos, com certeza - tranqüilizou-o Robi, serenamente -; não podemos deixar de conseguir. Os habitantes de Arstrid já passaram por aqui. Deve ser possível.

Yorsh readquiriu coragem. Erbrow não podia ter morrido por nada. Eles conseguiriam. Só precisava pensar um pouco mais. Olhou em volta de si. O mar era azul. À volta deles, as folhas resplandeciam, vermelhas e douradas, nas árvores já quase despojadas e os cumes das Montanhas Escuras estavam brancos de neve.

Devia haver um jeito.

Não lhe ocorreu nenhum.

- Ei, difícil nada, basta cavar! - resmungou uma voz, aliás, duas.

Eram os dois trabalhadores em escavações do condado de Daligar, rebatizados de Sapadores Corteses, para se identificar com uma história curiosa e heróica, personagens inventados por Yorsh, na verdade à imagem e semelhança deles. Desde então, depois de terem passado a vida considerando-se um pouco menos do que burros de carga, sentiram-se investidos de uma nova luz de dignidade e importância. Pela primeira vez nas suas vidas - que haviam passado resmungando entre si -, ousavam falar firmemente, para dizer qualquer coisa em público. Os dois Sapadores Corteses tinham escalado pela parte sul do despenha­deiro: não havia só rocha, sob a queda-d’água, mas terra tam­bém. Escorando com alguns galhos, podia-se escavar um cami­nho, rente à rocha, por baixo da queda-d’água, e esse caminho lhes permitiria atravessar para o outro lado da cachoeira, passan­do por trás da cortina d’água. Precisariam de um batalhão de gente que fosse tirando a terra dali, à medida que eles fossem escavando, de alguns homens para substituí-los nos momentos em que seus braços cansassem e de madeira reta, com ponta, para sustentar a escavação.

Se todos se dessem as mãos, eles poderiam conseguir.

 

Meio dia não bastou. Foram necessários três dias inteiros. No fim, não havia ninguém que não parecesse uma estátua de lama. Tiveram de esculpir o seu caminho, primeiro na terra, depois na rocha viva, usando pedras com ponta no lugar das picaretas, que eles não tinham.

Os braços estavam de tal forma cansados que lhes parecia inacreditável que pudessem voltar ao normal.

Foi uma tarefa lenta, cansativa e magnífica. O mar abria-se diante deles, a cachoeira rugindo ao lado, numa miríade de bor­rifos iridescentes. O ar tinha cheiro de sal, misturado com o da murta e o da erva-doce selvagem, que cresciam, teimosas, nas fissuras das rochas inóspitas, batidas pelo vento, junto com minúsculas orquídeas selvagens. À medida que progrediam com a escavação em descida pela encosta, tornava-se visível o laguinho de água doce que se formava lá embaixo da cachoeira, entre os pinheiros-marítimos, antes da extensa praia branca que for­mava a orla da baía, sob eles. De um dos lados da baía, a costa continuava plana e, do outro, era protegida e fechada por um promontório selvagem e muito verde, sobre o qual, à noite, bri­lhavam luzes minúsculas: as novas casas dos que tinham escapa­do de Arstrid.

Yorsh não tinha forças nem idéias para contar histórias, mas os andarilhos tiraram seus instrumentos e a música deu força a quem trabalhava para continuar. Cerraram os dentes e não afrouxaram. Hora após hora, palmo a palmo, escavaram o caminho.

Durante o trabalho, notaram pedaços de corda queimada pendurados nas rochas e nos ramos mais baixos das castanheiras que se projetavam para o horizonte.

Os antigos habitantes de Arstrid devem ter descido usando um sistema de escadas de corda, que depois iam queimando, atrás de si, uma vez em segurança.

Yorsh sabia que a chuva e as intempéries logo tornariam invisível - e principalmente impraticável - o caminho que eles estavam deixando para trás.

O seu ferimento tinha se fechado, mas não cicatrizado, por isso não fazia parte dos que, agarrados ao flanco da montanha, estavam abrindo o caminho, mas ficou lá no alto, ao lado das mulheres mais velhas, das crianças pequenas e dos que descan­savam depois de ter trabalhado. Quando os Sapadores Corteses encontraram uma rocha tão dura a ponto de ser indestrutível e intransponível, mandaram Cala chamá-lo. Yorsh chegou e ficou tentando ter uma idéia sobre alguma coisa para fazer. Lembrou-se de um livro de mecânica em que estudara as alavancas, mas não havia onde se apoiar para deslocar a rocha. Talvez com cunhas fosse possível tentar fazê-la rachar ao meio, mas não havia nenhuma fissura para enfiar as cunhas e tampouco algo que pudesse servir de cunha. Um vento leve trouxe, claro e forte, o grito das gaivotas. Desesperado com sua impotência, Yorsh sacou a espada e golpeou com toda a sua força o granito, que se quebrou ao toque da lâmina. A lâmina ficou inteira e o seu brilho aumentou, como se o golpe a tivesse reforçado ainda mais, enquanto o sorriso de Robi abria-se cada vez mais e uma ovação explodia em volta.

A descida foi lenta: um passo de cada vez, todos de mãos dadas, como uma única e extensa serpente, para terem certeza de que ninguém cairia.

Quando chegaram embaixo, a emoção e o cansaço foram tamanhos, que ficaram durante um longo tempo em silêncio, olhando as ondas e o movimento suave com que elas vinham morrer na praia. Alguns se abaixaram e beijaram a areia. Muitos foram tocar o mar.

Yorsh tinha sentido o sabor do mar pela primeira vez quan­do voava nas costas de Erbrow. Fora então que pensara que tocar o mar divide a vida em antes e depois, porque, depois que se toca nele, a vida nunca mais é igual.

O silêncio permaneceu por longo tempo, somente quebra­do pelas ondas e por um grupo de gaivotas voando sobre a orla.

Os primeiros a se mover foram as crianças. Correram pela praia, fascinadas com o movimento das ondas. Yorsh, que lera cinco tratados sobre conchas, ensinou-lhes encontrar sob a areia as comestíveis e começou uma alegre e feliz colheita.

Robi também estava acocorada na parte batida da praia, com as mãos enfiadas na areia encharcada e fina, que escoava rapidamente entre os dedos, deixando as lisas e alongadas cascas de grandes conchas rosadas em suas mãos.

- Meu pai dizia que o que está dentro das conchas é bom de se comer, mesmo que pense e talvez até entenda de poesia -disse ela, rindo, com seus grandes olhos brilhando como estre­las. Yorsh disse a si mesmo que mais cedo ou mais tarde diria a ela onde e como tinha sido gravada essa frase.

Acamparam no bosque de pinheiros próximo ao laguinho da base da cachoeira. Era um bom lugar e havia água em abun­dância. O barulho da cachoeira confundia-se com o das ondas, parecendo que alguém estava cantando uma canção de ninar.

Havia uma parede vertical de rocha clara que se sobrepunha a uma clareira. Yorsh pegou a espada e gravou na parede ERBROW, primeiro em caracteres élficos, depois nos atuais, os caracteres rúnicos. Um grupo de pessoas olhou-o, fascinado. Alguns se aproximaram o bastante para tocar as letras com as mãos. Perguntaram o que queria dizer e Yorsh lhes explicou.

- Bem - disse o lenhador, ex-”Trabalhador de troncos do condado de Daligar”. - Era o nome do dragão, não era? Esse será o nome da nossa vila. Vamos chamá-la de Erbrow.

Houve um coro de aprovações.

Então, falou um dos “Trabalhadores da zona do condado de Daligar”:

- Escreva também: AQUILO QUE ALGUÉM TIRA DA TERRA É SEU E NINGUÉM LHE PODE TIRAR.

Yorsh escreveu, em caracteres cuidadosamente nítidos, mas sem mudar uma sílaba, porque quem combateu para ter a pos­sibilidade de falar tem o direito de não ter trocado aquilo que disse.

Depois de terminar, acrescentou ainda tudo o que ouviu:

QUEM NÃO GOSTAR DAQUI PODE IR EMBORA E, SE DEPOIS VOL­TAR, TAMBÉM ESTARÁ BEM. NINGUÉM PODE BATER EM NINGUÉM.

A ENXADA COM QUE VOCÊ TRABALHOU SEMPRE E QUE ANTES

ERA DO SEU PAI É SUA

TAMBÉM NÃO É PERMITIDO ENFORCAR

É PERMITIDO APRENDER A LER

A ESCREVER TAMBÉM.

O QUE VOCÊ PEGA DO MAR É COISA SUA E NÃO DEVE PAGAR NADA A NINGUÉM.

SE UM PAI E UMA MÃE MORREM, OS MELHORES AMIGOS DELES TORNAM-SE O PAI E A MÃE DOS FILHOS DELES. NENHUMA CRIANÇA PEQUENA DEVE TRA­BALHAR

AS CRIANÇAS TRABALHAM MENOS DO QUE OS GRANDES E FAZEM COISAS FÁCEIS.

CAVAR NA LAMA NÃO É COISA FÁCIL E UMA CRIANÇA NÃO DEVE FAZER ISSO.

Houve um longo silêncio.

- Cada um pode procurar ser feliz como puder - disse uma mulher.

A voz de Moron acrescentou:

- Não é proibido ser um elfo.

Yorsh escreveu também o que Robi e Cala confabularam demoradamente, em meio a estranhas risadinhas, e que depois Cala, vermelha até as orelhas, enquanto Robi se escondia atrás dela, exprimiu, a última lei:

- Uma pessoa pode casar-se com quem quiser, mas exata­mente com quem quiser, mesmo se for um pouco diferente, e ninguém pode falar nada.

Quando terminou, Yorsh releu tudo e todos aprovaram. Depois todos se dispersaram para organizar a primeira noite deles em Erbrow, vila dos homens, mulheres e crianças livres. Cala e Creschio ficaram se olhando.

- Robi tinha dito que viria alguém me buscar e levar-me embora da Casa dos Órfãos.

- Vieram um elfo e um dragão.

- É, eu sei, mas eles vieram para todos. Eu pensava que viria alguém só para mim. Não é a mesma coisa.

Creschio sentou-se na areia.

- Eu também sonhei, durante anos, que alguém viria me buscar na Casa dos Órfãos. E ainda sonho com isso, de verdade, mesmo agora que estamos fora de lá.

Cala ficou em silêncio, depois Creschio recomeçou:

- Então, vamos fazer assim: eu busquei você e você me bus­cou; assim, nós também temos alguém que veio buscar exata­mente a nós.

Cala fez que sim com a cabeça e depois se sentou também na areia, ao lado dele.

O sol se pôs no mar. Uma faixa vermelha e dourada marcou o horizonte e o céu encheu-se de pequenas luzes, enquanto a leste, no começo do escuro, brilhavam as primeiras estrelas. Uma gai­vota vinha em direção a eles.

Robi e Yorsh aproximaram-se da água, onde as ondas batiam.

- Sabe - começou Robi -, o meu nome...

Não deu tempo de acabar. Yorsh interrompeu-a:

- O seu nome é muito bonito, eu gosto muito dele.

- Você gosta, de Robi?

- Sim, é como o som de uma gota que cai.

Robi ficou em dúvida, pensativa, com um vestígio de sorri­so no rosto, depois o seu sorriso ficou mais aberto e abriu-se de todo.

- E a profecia? - perguntou. - O seu destino? A moça com a luz da manhã dentro do nome?

Yorsh deu de ombros e olhou para ela. Enrubesceu viva­mente e fez um gesto vago.

- O nosso destino é o que nós quisermos, não o que está gravado na pedra; é a nossa vida, não o sonho sonhado por outros.

Robi concordou. Inclinou-se para a água e colocou o bar­quinho nela, com a boneca dentro, e ficou olhando-o boiar, sua­vemente. Eram os brinquedos que seus pais tinham feito para ela, tudo o que lhe restava deles, a não ser uma funda, o seu nome e ela mesma.

- Os meus filhos brincarão com eles - disse com segurança. Ela sabia. Tinha visto.

Perguntou-se se devia contar a Yorsh a respeito do seu nome, da profecia.

Podia pensar nisso com calma. Tinha a vida inteira.

 

                                                                                Silvana de Mari  

 

                      

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