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O ULTIMO ENCANTAMENTO - P.2 / Mary Stewart
O ULTIMO ENCANTAMENTO - P.2 / Mary Stewart

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ULTIMO ENCANTAMENTO

Segunda Parte

 

                                Livro III APPLEGARTH

Para o leste de Caer Camel o terreno é suavemente montanhoso i coberto de vegetação em tons de verde-claro, e aqui e ali, entre os arbustos e samambaias no cume das colinas, encontram-se vestígios de antigas cidades ou áreas fortificadas do passado.

Um desses lugares despertara minha atenção há algum tempo e agora, percorrendo a região, olhei mais uma vez para ele e achei que seria mesmo bom. Um local isolado, numa dobra entre dois morros, onde uma fonte rompia a turfa e criava um peque­nino riacho que descia apressado para o riozinho que corria pelo vale. Homens já tinham vivido ali num passado remoto. Quando os raios de sol incidiam sobre um determinado ângulo, podia-se ver o relevo de antigas muralhas sob o capim. Essa cidade de­saparecera desde muito tempo e um outro colonizador, em épocas mais difíceis, construíra sobre suas ruínas uma torre usando pe­dras romanas trazidas de Caer Camel, da qual restava uma boa parte. Os ângulos perfeitos dos blocos ainda apareciam sob as trepadeiras e touceiras de urtigas, que sempre marcam o lugar onde homens já viveram. Uma erva daninha, sem dúvida, mas perfeita para a cura de várias enfermidades e que eu via com bons olhos porque, quando a casa estivesse pronta, tinha a in­tenção de plantar uma horta, a principal das artes da paz.

E paz foi o que finalmente tivemos. A notícia da vitória em Badon me alcançou quando eu ainda fazia as primeiras medições para a construção de minha nova casa. Pela carta que recebera de Artur, tudo indicava que essa fora a batalha final e agora ele estava impondo seus termos, determinado a fixar de uma vez por todas os limites de seu reino. Não existia motivo para se supor que haveria outros ataques, nem mesmo resistência, dentro de um futuro próximo. Eu, que não estivera no campo de batalha, mas sabia o que iria acontecer, preparei-me para longo período de paz, onde talvez conseguiria viver no isolamento do qual tanto gostava, e acima de tudo precisava, a uma boa distância do centro buliçoso onde Artur estaria morando.

Também achei prudente me apossar de todos os pedreiros e artesãos dos quais iria precisar antes dos grandes projetos do rei começarem a ser postos em prática. Eles vieram, entenderam bem meus desenhos e depois se puseram a trabalhar alegremente na construção do que eu queria.

Era uma casa pequena, localizada num nicho da colina, de costas para Caer Camel e voltada para as verdes ondulações da longa planície, protegida dos ventos vindos do norte e leste e dos olhos dos poucos passantes que usavam a estrada do vale pelo relevo natural do terreno. A torre seria reconstruída e cons­tituiria um dos cantos da edificação separando as duas alas térreas da casa, uma que abrigaria meus aposentos e a outra onde ficaria a cozinha e cômodos de serviço. Esse conjunto formaria um ân­gulo e dois lados do pátio quadrado, ao estilo romano, e no canto oposto seriam erigidas oficinas e depósitos. Na face norte eu pre­tendia erguer um muro bem alto encimado por telhas, junto do qual cultivaria minhas plantas mais delicadas, cujo projeto, con­tudo, fora alvo de dúvidas por parte dos pedreiros. Há muito tempo eu pensava em fazer isso: a parede seria dupla e o hipocausto levaria o ar quente para dentro dela. No inverno, portanto, as videiras e pessegueiros ficariam a salvo e o pátio como um todo se beneficiaria com o calor. Era a primeira vez que estava pondo essa idéia em prática, mas posteriormente ela foi usada em Camelot e também no palácio de Caerleon. Um aqueduto em miniatura levaria a água da fonte para um poço que ficaria no centro do pátio.

Os homens, satisfeitos com um tipo diferente de construção depois de tantos anos de edificações militares, trabalharam rapi­damente. Aproveitando o inverno agradável que tivemos nesse ano, fui para Bryn Myrddin supervisionar o empacotamento de meus livros e medicamentos, e depois segui para Camelot, onde passaria o Natal com Artur. Os carpinteiros entraram em minha casa no começo do ano-novo e antes do início da primavera me entregaram a obra acabada, ficando livres para se dedicar à cons­trução de Camelot.

Eu ainda não tinha um criado particular e precisei me dedicar à procura de um, tarefa nada fácil, pois poucos homens se sentem felizes no tipo de isolamento que tanto bem me faz, e, além disso, eu jamais agiria como um patrão comum. Meus horários são desencontrados, preciso de pouco sono e comida, e tenho grande necessidade de silêncio. Eu poderia comprar um escravo, que teria de me obedecer em tudo sem reclamar, mas a idéia jamais me agradou. Todavia, dessa vez, como em tantas outras, tive sorte. Um dos pedreiros tinha um tio que era jardineiro e, como me informou, conversara com ele a respeito do muro duplo. Em­bora o homem tivesse balançado a cabeça e resmungado sobre bobagens estrangeiras, desde então se mostrara ansioso para saber todos os detalhes de sua construção. Convidei essa pessoa, Varro, para trabalhar para mim e pouco tempo depois o pedreiro veio me dizer que ele aceitaria com grande prazer e traria a filha, que sabia arrumar e cozinhar.

Estava tudo arranjado. Varro começou a carpir e escavar e Mora, sua filha, a escovar e arejar, e então, num desses dias claros e encantadores do final do inverno, com os primeiros botões de flor espiando por entre galhos secos e carneirinhos aconchegan-do-se em suas mães nos campos verdejantes, desmontei, coloquei meu cavalo na cocheira, desembrulhei a harpa grande e entrei em meu lar.

 

Logo depois Artur veio me visitar. Eu estava no pátio, sentado sob o sol num dos bancos situados entre os pilares de uma colunata em miniatura, escolhendo sementes coletadas no verão passado. Ouvi o tropel e o tilintar de armas da escolta do rei por trás dos muros, mas ele entrou sozinho. Varro, depois de um instante de hesitação e com a admiração estampada no olhar, fez uma saudação e afastou-se com sua pá. Levantei-me enquanto Artur estendia a mão para me cumprimentar.

— É muito pequeno aqui — foram suas primeiras palavras, enquanto olhava à volta.

— Tem o tamanho perfeito para um homem que mora sozinho.

— Talvez. — Ele sorriu, olhando novamente em torno de si. — Para quem gosta de viver em casinhas onde mal cabe um cachorro, como você, é bem agradável. Quer dizer então que aquele é o famoso muro? Os pedreiros me contaram sobre ele. O que pretende plantar ali?

Eu lhe contei e depois o convidei para uma excursão pelo meu pequeno pátio. Artur, que entendia tanto de plantas como eu de guerra, mas sempre se interessava por saber, olhou, tocou e per­guntou; passou um bom tempo examinando o muro aquecido e o aqueduto.

— Verbena, camomila, confrei e calêndula... — Ele leu os no­mes nos saquinhos de sementes quando voltamos para perto do banco. — Lembro-me que Drusilla costumava nos dar chá de calêndula quando tínhamos dor de dente. — Mais uma vez olhou à volta. — Sabe, aqui já se sente um pouco da mesma paz que havia em Galava. E mais, agora até estou gostando de sua idéia de não morar em Camelot. Sinto que terei um refúgio-aqui, quan­do precisar me afastar das pressões.

— Espero que faça isso. Bem, você já viu tudo. Plantarei flores aqui e já estou começando um pomar lá fora, onde já havia al­gumas árvores frondosas. Quer entrar para conhecer a casa?

— Um prazer.

Artur falara num tom tão diferente que me fez virar para ele, surpreso. Vi então que sua atenção não estava em mim, mas em Mora, que saíra por uma porta e sacudia uma toalha na brisa que começara a soprar mais forte. O vestido estava grudado ao seu corpo e os cabelos voavam rebeldes em torno do rosto bas­tante bonito. Ela parou para prendê-los, avistou Artur, corou, deu uma risadinha e voltou correndo para dentro. A porta não se fechou por completo, deixando uma fresta, pela qual a avistei olhando para nós. Ela percebeu meu movimento e fechou a porta. Estava claro que a mocinha não tinha a menor idéia de quem seria o rapaz que a olhara com tanta ousadia.

Artur ria de mim.

— Vou me casar dentro de um mês, portanto não precisa fazer essa cara. Serei o mais fiel dos maridos.

— Tenho certeza disso. E que cara eu estava fazendo? Não tenho nada com essas coisas, mas sinto que devo avisá-lo de que ela é a filha do jardineiro.

— E ele parece ser bem bravo. Está bem, manterei meu sangue esfriado até maio. Só Deus sabe o quanto ele me criou problemas antes e me criará no futuro.

— E o marido fiel?

— Eu estava falando de meu passado. Você me avisou que ele atingiria meu futuro.

O tom fora leve, brincalhão, o que me levou a acreditar que os pensamentos sobre Morgause não mais perturbavam seu sono. Ele me seguiu para dentro da casa e enquanto eu pegava a jarra de vinho e o servia, começou um passeio de reconhecimento.

Havia apenas dois cômodos. A sala ocupava dois terços do comprimento dessa ala e tinha janelas em ambos os lados, dando para o pátio e para a colina. A porta se abria para a colunata que cercava o pátio e pela primeira vez estava completamente aberta, deixando entrar o ar cálido e os raios de sol que faziam brilhar as lajotas de terracota do assoalho. Na extremidade final da sala ficava a lareira e, como na Bretanha precisamos não só de fogo, mas também de pisos aquecidos, eu mandara instalar diante dela uma grande pedra de ardósia, que transmitiria o calor para todo o ambiente. Nas paredes de pedra com primoroso aca­bamento eu pendurara ricos tapetes que comprara em minhas viagens. A mesa, bancos e banquetas eram de carvalho, mas eu mandara fazer minha grande poltrona e a arca onde guardava meus livros de madeira de olmo. Uma porta ao lado da lareira levava para meu quarto, mobiliado apenas com cama e baú de roupas. Incentivado, talvez, por uma recordação da infância, plan­tara uma macieira perto da janela.

Artur admirou tudo, cumprimentou-me pelo bom gosto e em seguida o levei para conhecer a torre. No térreo ficava a sala de trabalho ou laboratório, mobiliada apenas com uma grande mesa, banquetas e armários, e um fogão de lenha construído em um dos cantos; ali as ervas medicinais eram secadas e eu preparava os remédios. Uma escada de pedra encostada à parede levava para o andar de cima. Esse cômodo seria só meu e nele eu pre­tendia instalar meus aparelhos. Ali por enquanto havia apenas um braseiro, uma escrivaninha, uma cadeira e um armário onde eu guardara rolos de pergaminho, tabletes de argila e os instru­mentos matemáticos que trouxera de Antioquia. A janela se abria para o sul e nela não havia cortinas nem venezianas. Não sou muito friorento.

Artur caminhou pelo pequenino cômodo, inclinando-se, es­piando, abrindo caixas e armários, apoiando os punhos no peitoril da janela e olhando para fora, enchendo todo o espaço com sua imensa vitalidade, dando a impressão que nem as paredes de pedra da torre conseguiam contê-lo.

Quando voltamos à sala, ele pegou a taça de vinho e levantou-a num brinde:

— Para a sua nova casa. Como pretende chama-la?

— Applegarth.

— Gostei do nome. Certo. Então, para Applegarth, desejando que você tenha uma longa vida aqui!

— Obrigado. E eu brindo ao meu primeiro visitante.

— Eu? Estou contente por isso. Então, que haja muitos outros e que eles venham em paz. — Artur bebeu e colocou a taça na mesa, de novo examinando tudo a sua volta. — Aqui já está cheio de paz. Sim, entendo por que você escolheu este lugar... mas, diga-me, tem certeza que isto é tudo o que deseja? Você sabe, e eu sei, que meu reino inteiro é seu por direito e de bom grado eu lhe daria metade dele se me pedisse.

— Por enquanto vou deixá-lo com ele — disse e sorri. — Não tenho muito o que invejar. Ele lhe tem dado muito trabalho. Mas, mudando de assunto, quer comer alguma coisa? Sei que a simples idéia fará Mora ter um ataque, porque certamente já foi perguntar ao pai quem é o jovem estranho. Mesmo assim, ela terá algo para lhe servir.

— Não, obrigado, comi antes de vir. Você está só com dois criados? A moça cozinha?

Sim. E...

 

Bem, mais ou menos.

O que significa que você nem prestou atenção. Pelo amor de Deus, Merlin, deixe-me mandar-lhe um cozinheiro. Não me agrada pensar que você está vivendo de comida de aldeões.

— Por favor, não! Já chega ter esses dois aqui o dia inteiro e mesmo eles voltam para sua casa à noite. Estou passando muito bem, garanto.

— Está bem, mas eu gostaria de lhe dar alguma coisa, fazer...

— Quando eu precisar de alguma coisa, pedirei a você, pro­meto. Agora conte-me como vão as obras. Acho que estive ocu­pado demais com minha casinha de cachorro e nem prestei muita atenção nelas. Caer Camel ficará pronto para o casamento?

— Não. Creio que só poderei mudar definitivamente para lá no próximo verão. O casamento será em Caerleon, em maio, como já lhe disse. Estou contando com sua presença.

— Só irei se você ordenar. Para ser franco, prefiro ficar aqui. Sinto que andei viajando demais nesses últimos anos.

— Como quiser. Não, não quero mais vinho, obrigado — disse Artur, erguendo a mão. — Mas quero lhe perguntar uma coisa. Lembro-me de que quando começou a conversa sobre meu ca­samento... meu primeiro casamento, isto é, você me deu a im­pressão de ter dúvidas sobre ele, como pressentindo algo de mau. Diga-me, por favor... e desta vez, você tem as mesmas dúvidas?

Costumam dizer que quando fecho meu rosto, ninguém nesta terra consegue ler o que está em minha mente. Encarei Artur impassível.

— Nenhuma. Mas por que essa pergunta? Você tem algum pressentimento?

— Nenhum. — Ele deu um grande sorriso. — Pelo menos, não ainda. E como poderia ter dúvidas quando me dizem que ela é a imagem da perfeição? Linda como uma manhã de pri­mavera, prestimosa, alegre... só ouço elogios, mas você sabe muito bem como são esses velhos casamenteiros. Para mim é suficiente que ela tenha bom hálito e não seja geniosa... Oh, e uma voz bonita. Descobri que sou parcial a respeito de vozes. Se ela atender essas exigências, será perfeita para mim. E você, Merlin, como um galés, deve estar contente com esse casamento.

— E estou. Concordo com tudo o que Gwyl disse naquele discurso que fez no salão. E quando você irá a Gales?

— Como na outra vez, não poderei ir buscá-la pessoalmente.

Estão me esperando no norte e pretendo mandar Bedwyr de novo, com Gereint e, como uma homenagem especial para a família, o rei Melwas de Ynys Witrin.

Concordei com um gesto de cabeça e a conversa virou para os motivos que exigiam a presença de Artur no norte. Ele iria em especial para inspecionar as obras de defesa no nordeste. Tydwal, um parente de Lot, era quem governava de Dunpeldyr, ostensivamente em nome da rainha Morgause e o príncipe her­deiro, Gawain, e tudo indicava que a família real jamais deixaria as ilhas Orkney.

— O que me agrada muito — disse Artur com indiferença —, mas cria certas dificuldades na região.

Ele passou a me explicar. O problema era Aguisel, que man­tinha o castelo-fortaleza de Bremenium, no alto das montanhas de Northumbria, onde a Dere Street que sai de York encontra-se com a High Cheviot. No tempo de Lot, Aguisel se contentava em ser o aliado do rei de Lothian ou "seu chacal", como disse Artur com desdém, junto com Tydwal e Urien.

— Mas, agora que Tydwal está sentado no trono de Lot, Agui­sel começou a demonstrar suas ambições. Ouvi boatos, mas não tenho provas, de que, na última vez em que os anglos avançaram por barco no rio Alaunus, Aguisel foi ao seu encontro, não com a intenção de expulsá-los, mas para conversar com o chefe. Urien. continua aliado a ele, dois chacais fingindo ser leões. Parecem pensar que estão distantes demais de mim para me dar satisfações e por isso quero lhes fazer uma vista para pôr fim a essa ilusão. Minha desculpa é inspecionar as obras do Dique Negro. Por mim, eu arranjaria um pretexto para me livrar de Aguisel de uma vez por todas, mas não posso me arriscar a ver Tydwal e Urien cor­rendo em sua defesa. Não posso desfazer minha aliança com os reis do norte antes de ter plena certeza de que os saxões ocidentais não me darão mais trabalho. E mais: tirar Tydwal significa trazer Morgause de volta. E uma pequena coisa quando comparada com o resto, mas o dia em que ela voltar ao trono de Dunpeldyr só poderá ser um mau dia para mim.

— Esperemos que esse dia nunca chegue.

— Exatamente. Farei o melhor possível para que ele nunca aconteça. — Artur levantou-se para sair e mais uma vez olhou

à volta. — E mesmo uma casa muito agradável. Receio que não terei tempo de visitá-lo de novo antes de partir para o norte, Merlin. Irei na próxima semana.

— Então que todos os deuses o protejam, meu querido menino. Espero que eles também estejam ao seu lado no casamento. E venha me visitar de novo quando puder.

 

Us meses que se seguiram a esse encontro foram cheios de tran­qüilidade. Logo que Artur partiu para o norte fui ver como es­tavam indo as obras em Camelot e, satisfeito com que encontrei, deixei o acabamento a cargo de Derwen e retirei-me para meu pequeno castelo, e a sensação de bem-estar foi quase a mesma que eu experimentava ao voltar a Bryn Myrddin. Passei o resto da primavera cuidando de minha vida, plantando mudas e se­mentes, escrevendo a Blaise e percorrendo os arredores para co­letar ervas medicinais.

Não voltei a ver Artur antes do casamento. Um mensageiro me trouxe notícias, breves porém agradáveis. O Grande Rei en­contrara provas da vileza de Aguisel e o atacara em Bremenium, onde, depois da vitória, ele fora executado, sem que Tydwal, Urien ou qualquer outro partidário intercedesse a seu favor. De fato, Tydwal estava ao lado de Artur na investida final contra a fortaleza. O relatório não explicava o que causara essa mudança nas alianças, mas com a morte de Aguisel o mundo ficava mais limpo. Além disso, como não havia herdeiros diretos, quem agora manteria a fortaleza que comandava o passo Cheviot seria um homem da confiança do Grande rei. Artur escolhera para isso um de seus mais fiéis companheiros, Brewyn, e em seguida vol­tara para Caerleon.

A noiva, Guinevere, chegou à cidade escoltada pela nata da nobreza, tendo à frente Melwas, Bedwyr e um destacamento de Companheiros. Cei, agora senescal de Artur, ficara em Caerleon para preparar a cerimônia, que fora celebrada com grande es­plendor. Eu ouvi contar mais tarde que o pai da noiva sugerira a data de primeiro de maio e que Artur, depois de um segundo de hesitação, dissera enfaticamente que "não", o que causara um breve mal-estar. Essa, contudo, fora a única sombra na ocasião. O casamento aconteceu num glorioso dia de sol e, pela segunda vez o Grande Rei levou uma noiva para o leito matrimonial, dessa vez com dias e noites de tranqüilidade a sua frente. No início do verão eles foram a Camelot e tive a oportunidade de conhecer a nova rainha.

Guinevere de Northgalis era mais do que uma moça "com bom hálito e nada geniosa". Era simplesmente uma beleza. Para descrevê-la, qualquer um teria de emprestar dos bardos e trovadores as frases elogiosas reservadas às princesas de contos de fada: cabelos dourados, no tom sedoso do milho novo, olhos da cor do céu de verão, pele como pétala de rosa, corpo flexível de salgueiro... mas, para se ter idéia de seu fascínio, teria de ser acrescentada uma personalidade brilhante, um bom humor na­tural e uma capacidade notável de transmitir alegria em torno de si. Na noite da chegada do casal a Camelot observei-a aten­tamente durante os festejos e vi muitos olhos, além dos do rei, fixos nela, deixando claro que ela não seria apenas a rainha de Artur, mas de todos os Companheiros. Talvez com exceção de Bedwyr. Seus olhos eram os únicos que não se voltavam cons­tantemente para o alto da mesa. Ele parecia mais calado do que o habitual, imerso em seus pensamentos e, quanto a Guinevere, ela mal olhava em sua direção. Imaginei que devia ter acontecido algo, talvez na viagem desde Northgalis, que causara um certo estremecimento. Todavia, Melwas, sentado ao lado da rainha, parecia beber suas palavras e a olhava com o mesmo ar de ve­neração dos outros.

Foi um lindo verão, lembro-me bem dele. Fez muito calor, mas havia uma brisa agradável e de tanto em tanto caía uma chuva refrescante. Em resultado, as plantações vicejaram como nunca antes, o gado e outros animais engordaram e toda a terra amadurecia para uma abundante colheita. Por todos os lados, embora os sinos das igrejas tocassem alegremente nos domingos e a quantidade de cruzes cristãs aumentasse a cada dia, substituindo estátuas ou monólitos que antes ficavam à beira das es­tradas, o povo abençoava o jovem rei por lhe dar não apenas a paz, mas também a riqueza de colheitas porque recordavam que, durante o último ano de vida de Uther, a terra parecera imitar sua doença. Além disso, o povo esperava cheio de confiança, como os nobres de Camelot, pelo anúncio da concepção de um herdeiro. No entanto o verão terminou, chegou o outono e, apesar de a terra apresentar seus frutos, a rainha, que diariamente ca­valgava em companhia de suas damas, continuava tão ágil e ele­gante como sempre.

E, em Camelot, a memória da mocinha que concebera o her­deiro e morrera por sua causa não perturbava ninguém porque tudo era novo, brilhante ou estava em construção. A obra do palácio terminara e agora começara o trabalho dos entalhadores e marceneiros, enquanto mulheres teciam e bordavam, e peças de ouro, prata e louça chegavam diariamente, de modo que as estradas pareciam caminhos de formigueiro. Era um tempo de juventude e risos, de construção depois da conquista, e os anos sombrios haviam ficado para trás. Quanto à "sombra branca" de meu presságio, comecei a imaginar se não seria a sombra da falecida Guenever que havia escondido a luz e, para mim, ainda parecia pairar nos cantos como um espectro. Eu, porém, nunca o tinha visto e, se Artur recordava-se dela, nunca dissera nada a respeito.

Assim quatro invernos se passaram e as torres revestidas de dourado de Camelot agora brilhavam orgulhosamente no alto do morro. As fronteiras continuavam em paz, as colheitas boas se repetiam e o povo já se acostumara com a segurança e a paz. Artur completara vinte e cinco anos, e se tornara mais calado, todavia estava sempre viajando e cada vez parecia ficar mais tempo longe de casa. A duquesa de Cador deu à luz um filho e o rei foi à Cornualha para ser o padrinho de batismo, mas a rainha não o acompanhou. Por algumas semanas murmurou-se esperançosamente que talvez ela tivesse um bom motivo para não fazer a viagem, mas Artur e seu séquito foram e voltaram, depois partiram de novo, indo por mar para Gwynedd, e Guinevere continuava cavalgando, rindo, dançando e recebendo, tão esbelta como uma donzela e não parecendo ter preocupações.

Então, num dia chuvoso do início da primavera, quando es­curecia, um cavaleiro chegou galopando ao meu portão. O rei continuava em viagem e não se esperava sua volta antes de no mínimo uma semana, mas a rainha havia desaparecido.

 

O mensageiro foi o senescal, Cei, filho de Ector de Galava e irmão de criação de Artur. Três anos mais velho do que o rei, alto e encorpado, ele era corajoso e um bom guerreiro, mas lhe faltava a capacidade de liderança que era tão natural em Bedwyr, por exemplo, o poeta e sonhador entre os garotos de Galava.

Cei podia não ser brilhante, mas era de absoluta confiança e, como senescal do rei, ficava a cargo da organização da casa da família real. Viera me procurar acompanhado de apenas um cria­do e, quando chegou a minha porta, vi que tinha um braço numa tipóia improvisada e o rosto estava pálido de cansaço e preocu­pação. Contou-me o acontecido sentado junto ao fogo da lareira, que tingia de alaranjado as vigas do teto, falando muito rápido depois de aceitar uma caneca de vinho quente, e só me deixando examinar seu braço depois de muita insistência. Ele continuou falando enquanto eu apalpava a musculatura.

— Bedwyr mandou-me vir procurá-lo. Eu me machuquei e então ele quis que eu voltasse. Não, não fui ao médico. Com que tempo? Maldição! Poderia ter acontecido alguma coisa grave... Ela está sumida desde cedo. O dia nasceu prometendo muito sol e ela saiu com as damas, alguns pajens e dois soldados como escolta. Isso é comum, como você sabe.

— Sim.

Era verdade. Às vezes alguns cavaleiros acompanhavam a rai­nha, mas em geral eles estavam ocupados com coisas mais im­portantes do que escoltá-la em seus passeios matinais. Guinevere tinha sua própria guarda, mas atualmente, na região em torno de Camelot, não se encontravam mais bandoleiros perigosos como os que costumavam freqüentar lugares isolados no tempo em que eu era menino. Por isso, a rainha montara sua égua cin­zenta e saíra despreocupadamente com duas damas e quatro ho­mens, dois deles soldados. Tinham ido para o sul, onde havia uma faixa de terreno seco antes de começar a floresta fechada. A sua direita o grupo tinha os pântanos, onde os rios corriam para o mar formando inúmeros canais ladeados de juncos e à esquerda as primeiras elevações cobertas de vegetação que iam se tornando mais altas até chegarem à cadeia montanhosa. Eles haviam encontrado caça em abundância, deixando os pequenos galgos de Guinevere quase malucos de tanto latir e correr atrás das aves, e os pajens tiveram grande trabalho para reuni-los na hora da volta. Foi nesse momento que a rainha mandou seu pe­queno falcão, um merlin, perseguir uma lebre e saiu cavalgando atrás deles, embrenhando-se na floresta.

Cei fez uma careta de dor quando meus dedos encontraram o músculo distendido.

— Está vendo? Eu lhe disse que não era grave — resmungou ele. — Acho que foi só um mau jeito. Será que vai demorar para sarar? Ainda bem que não é o braço direito... Mas, continuando, ela entrou galopando na floresta e as mulheres ficaram esperando. A mais nova não monta bem e Lady Melissa não é mais uma mocinha. Os pajens continuavam distantes, terminando de reunir os cães. Ninguém se preocupou. Ela é uma amazona e tanto; sabe que até conseguiu montar o garanhão branco de Artur? Além disso, não era a primeira vez que fazia esse tipo de brincadeira com as damas, portanto todos se mantiveram calmos enquanto os dois soldados iam atrás dela.

O resto foi fácil de entender. Como estavam acostumados com situações parecidas, os soldados tinham avançado a um passo tranqüilo. Podiam ouvir a égua galopando no meio das árvores e o barulho de touceiras e folhas secas amassadas. A vegetação começou a se espessar e os dois tiveram de ir mais devagar, desviando-se dos galhos que ainda balançavam depois da pas­sagem da rainha, e orientando seus animais por entre os troncos caídos e buracos cheios de água que tornavam tão perigoso o solo dessa parte mais baixa da floresta. Meio praguejando, meio rindo, ocupados, só depois de alguns minutos se deram conta de que não ouviam mais o galope da égua cinzenta e de que o mato rasteiro não mostrava sinais de ter sido recentemente pi­sado. Eles pararam, prestando atenção aos ruídos. Nada, senão o canto áspero de um pássaro. Chamaram a rainha, mas não obtiveram resposta. Mais irritados do que alarmados, decidiram seguir rumos diferentes. Um foi para perto do pássaro e outro se aprofundou na floresta.

— Não vou encompridar mais a história — disse Cei. — Você pode imaginar o que aconteceu. Quando os dois soldados vol­taram a se reunir já estavam assustados. Chamaram mais algumas vezes pela rainha e os pajens, ouvindo os gritos aflitos, foram até eles. Depois de algum tempo ouviram novamente a égua, galopando e relinchando, e partiram atrás dela.

— E então? — falei, enfiando o braço machucado na tipóia, que acabara de ajustar.

— Assim está melhor. Obrigado. Bem, eles encontraram a égua depois de uns três minutos de cavalgada, mancando, arrastando uma rédea partida, mas nenhum sinal da rainha. Mandaram os pajens voltar com as mulheres para o castelo e continuaram pro­curando. Bedwyr e eu saímos com uma tropa e passamos o resto do dia inspecionando a floresta, mas não encontramos mais nada. — Cei fez um gesto de desânimo com a mão boa. — Você conhece o lugar. Onde não existe uma vegetação tão fechada que seria capaz de parar um dragão, tem um solo pantanoso onde um homem ou um cavalo poderia se afundar até a cabeça. E mesmo na parte baixa da floresta existem valas largas e fundas, difíceis de saltar. Foi numa delas que me machuquei. Estava coberta de folhas e galhos secos, uma verdadeira armadilha de lobos. Tive sorte de escapar apenas com isto. — Cei ergueu o braço doente com uma careta. — O coitado do meu cavalo está com um graveto enfiado na barriga. Duvido que conseguirá se recuperar.

— E a égua? Mostrava sinais de queda? De ter se atolado?

— Estava cheia de lama até os olhos, mas isso não significa muito. Ela deve ter galopado por valetas e charcos por mais de uma hora. Mas o pano da sela estava rasgado. Pode ter levado um tombo, mas não consigo imaginar a rainha caindo de um cavalo, a não ser... a não ser que tenha sido atirada longe por um galho. Mas acredite, Merlin, examinamos cada pedacinho da floresta naquela área e a teríamos encontrado se estivesse des­maiada em algum lugar... ou pior. Deus, se ela tinha de inventar uma coisa dessas, por que não brincou quando o rei estava em casa?

— E, naturalmente, alguém já foi avisá-lo.

— Bedwyr despachou um mensageiro antes de sairmos de Camelot. Chegaram mais homens para ajudar na busca. Está fi­cando escuro demais para se cavalgar pela floresta, mas vamos ficar por perto para o caso da rainha acordar do desmaio e gritar por socorro. O que mais podemos fazer? Bedwyr mandou vir redes. Algumas valas são muito fundas e existem correntes fortes no rio que vai para o oeste... — Cei parou de falar e olhou para mim com seu jeito meio simplório, como se estivesse me implo­rando um milagre. — Depois de minha queda Bedwyr me pediu para vir até aqui. Merlin, quer ir comigo agora e mostrar onde deveremos procurar pela rainha?

Olhei para minhas mãos e depois para o fogo, que agora di­minuíra para pequenas chamas que lambiam uma tora acinzentada. Eu não tivera oportunidade de testar meus poderes desde a previsão sobre Badon. E antes disso passara muito tempo sem me atrever a tentar até os mais simples deles, não procurava ver nas chamas, nem nos cristais ou nas gotas de água porque não queria importunar o deus conjurando um pequeno suspiro do grande vento. Esperei que viesse a mim. Cabia a ele escolher a hora.

— Ou me dizer qualquer coisa aqui mesmo? — a voz de Cei quebrou, cheia de súplica.

Houve uma época, pensei, que eu só precisava olhar para o fogo desse jeito, levantar a mão, assim e...

As pequenas chamas chiaram e cresceram subitamente, envol­vendo a tora com faixas de luz, emitindo um calor capaz de queimar a pele. Faíscas saltaram e queimaram, com a mesma e antiga cor bem-vinda. A luz, o fogo, todo o mundo vivente fluiu para o alto, envolto em chamas e fumaça, criando uma visão embaçada e eu imerso nela.

Um som vindo de Cei despertou minha atenção. Ele estava em pé, afastando-se do fogo. Tornara-se muito pálido sob a luz vermelha e havia suor em seu rosto.

— Merlin... — começou roucamente.

Ele recuava assustado, envolto em luz e escuridão. Ouvi-me dizendo:

— Vá. Apronte meu cavalo e espere por mim.

Não ouvi Cei sair. Eu já estava muito distante da sala iluminada pelo fogo da lareira, levado pela correnteza simultaneamente quente e fria que me depositou, como se eu fosse uma pequena folha levada pelo vento, nas trevas junto aos portões que se abriam para o Sobrenatural.

 

As cavernas se sucediam sem parar, os tetos perdidos na es­curidão, as paredes iluminadas com um brilho estranho e suba­quático que delineava cada aresta e protuberância das pedras. Longas estalactites pendiam de arcos, como se fossem cortinas de musgo em velhas árvores, e pilares subiam do chão para se encontrar com elas. Em algum lugar a água se derramava, eu ouvia seu eco a minha volta e a luz incomum se refletia nela, criando ondulações brilhantes no teto.

Depois, pequena e distante, uma luz forte se destacou. Vi a forma de uma porta entre pilares, bela e formal. Atrás dela algo... alguém... se mexia. No instante em que desejei me aproximar eu estava lá sem o menor esforço, um fantasma levado pelos ventos de uma noite tempestuosa.

A porta se abria num grande salão feericamente iluminado. O que eu avistara se mexendo ali havia desaparecido, só ficando grandes espaços fulgurantes, o piso colorido do palácio de um rei, os pilares dourados, as tochas seguras por bocas de dragões feitas de ouro. Vi também cadeiras de ouro encostados nas pa­redes reluzentes e mesas de prata. Numa delas estava um tabu­leiro de xadrez feito de prata em tons diferentes, com as peças espalhadas, como se um jogo tivesse sido interrompido. No centro do grande salão havia um enorme trono de marfim e a sua frente um outro tabuleiro, este de ouro, e sobre ele cerca de uma dúzia de peças, uma delas inacabada, tombada de lado junto a uma vareta de ouro e uma lima, como se alguém houvesse pouco a estivesse entalhando.

Eu sabia que não estava tendo uma visão verdadeira, mas apenas um sonho com o lendário salão de Llud-Nuatha, senhor do Sobrenatural. Era para esse palácio que vinham todos os he­róis, protagonistas de lendas e canções. Aqui ficara a espada e um dia talvez o graal e a lança seriam sonhados e levados. Aqui Macsen vira sua princesa, a moça com que se casara no mundo

acima, e em quem colocara a primeira semente de uma linhagem de governantes cujo representante mais jovem era Artur...

Como se fosse um sonho matutino, o palácio desapareceu, mas as grandes cavernas continuavam ali e nelas vi um trono onde estava sentado um rei moreno e, ao lado dele, uma rainha apenas meio visível nas sombras. Em algum lugar cantava um passarinho e a vi voltar a cabeça para essa direção e suspirar.

Por entre todas as visões eu sabia que eu, Merlin, dessa vez mais do que em qualquer outra, não queria ver a verdade, talvez porque já a conhecesse abaixo do nível do pensamento consciente. Eu construíra para mim mesmo o palácio de Llud, o salão de Dis e de Perséfone, sua prisioneira. Atrás dos dois estava a ver­dade e eu, como servo do deus e de Artur, tinha a obrigação de descobri-la.

O pássaro cantando, o som de água. Um cômodo pequeno, nada grandioso nem mobiliado com prata e ouro. Um cômodo com cortinas, mas bem iluminado, onde um homem e uma mu­lher estavam sentados jogando xadrez. Ela parecia estar ganhan­do, vi o homem franzir a testa e percebi a tensão em seus ombros enquanto se inclinava sobre o tabuleiro pensando no lance se­guinte. A mulher ria. Ele ergueu a mão, hesitou, voltou atrás e permaneceu sentado, imóvel. A mulher disse alguma coisa e o homem virou-se para ajustar o pavio de um dos lampiões a seu lado. Vendo-o distraído, a mulher estendeu a mão sorrateiramen­te e mexeu uma peça com a rapidez de um ladrão de mercado. Quando ele voltou a olhá-la ela estava sentada muito composta, com as mãos cruzadas no colo. O homem fitou novamente o tabuleiro, soltou uma risada e fez sua jogada. O cavalo comeu a rainha. A mulher fingiu surpresa, ergueu as mãos num gesto de falso desânimo, com extrema graça, depois começou a arranjar as peças para um novo jogo. O homem, porém, que subitamente se tornara o retrato da impaciência, levantou-se de um salto, pe­gou-a pela mão e puxou-a para ele. O tabuleiro caiu e as peças rolaram pelo chão. Vi a rainha branca, com o rei vermelho em cima dela, bater no pé do homem. Ele olhou para baixo, riu de novo e disse alguma coisa no ouvido da mulher. Seus braços se fecharam em torno dela. A barra do vestido da mulher espalhou as peças de xadrez e o homem pisou no rei branco, quebrando-o ao meio.

A visão também foi se quebrando, sumindo numa sombra que aos poucos clareou até aparecer a luz de um lampião e o último brilho do fogo que morria.

Levantei-me rigidamente, sentindo os membros doloridos. Ha­via cavalos inquietos junto ao alpendre da porta de entrada e em algum lugar do pátio cantava o mesmo pássaro que eu ouvira no sonho. Tirei minha capa do cabide e enrolei-a em torno do corpo enquanto saía rapidamente. Cei segurava as rédeas dos animais, ainda nervoso, e apressou-se a vir ao meu encontro.

— E então, conseguiu?

— Um pouco. Ela está viva e ilesa.

— Ah! Deus seja louvado! Onde, então?

— Ainda não descobri, mas logo vou saber. Só um instante, Cei. Vocês encontraram o merlin?

— O quê?

— O falcão da rainha. O merlin que ela soltou e seguiu pela floresta adentro.

— Não vimos nem sinal dele. Por quê? Ele nos ajudaria?

— Não tenho idéia. Foi só uma pergunta. Agora leve-me até onde está Bedwyr.

 

Por sorte Cei não fez mais perguntas, ocupado como estava com seu cavalo enquanto percorríamos o terreno acidentado. Em­bora ainda houvesse luz suficiente, apesar da chuva contínua, não estava sendo fácil escolhermos uma rota rápida e segura no campo encharcado, o caminho mais curto entre Applegarth e a floresta onde a rainha sumira.

Na última parte do trajeto nos guiamos pela luz de tochas e vozes de homens, distorcidas e aumentadas pela água e vento. Encontramos Bedwyr com água pelas coxas, a uns poucos passos de distância da margem de um canal ladeado de arbustos e cepos de troncos de carvalho, cortados por lenhadores ou rachados pela intempérie, que estavam voltando a brotar.

Os homens estavam reunidos junto a um desses cepos. Algu­mas tochas haviam sido amarradas a galhos secos e duas eram carregadas pelos homens que iluminavam o trabalho de Bedwyr, enquanto dragava o canal com uma rede. Na margem, um pouco mais adiante, havia uma pilha de detritos encharcados, que bri­lhavam à luz do fogo. Percebi que cada vez que a rede era puxada ela vinha bem pesada e imaginei a atitude dos homens, receando se deparar com o corpo afogado da rainha.

Uma dessas cargas acabara de ser depositada quando Cei e eu chegamos, parando bem perto da margem do canal. Bedwyr não notou nossa presença. Ouvi sua voz, rouca de cansaço, en­quanto mostrava aos homens onde deveria ser feito o próximo arrastão. Nesse instante, porém, alguém o chamou, avisando-o de nossa chegada e ele, pegando a tocha de um dos homens, avançou para a margem.

— Cei? — A exaustão de Bedwyr era tanta que ele não se deu conta de mim ao lado do seu amigo de infância. — Conseguiu falar com ele? O que ele disse? Espere um pouco, vou subir em seguida. — Falando por cima do ombro, ordenou aos homens:

— Continuem!

— Não é preciso, Bedwyr — falei. — Podem parar com a dragagem. A rainha está bem.

Agora ele estava junto da margem e seu rosto, virado para nós e iluminado pela tocha, mostrou uma expressão de tão imenso alívio e alegria, que poderíamos jurar que o fogo aumentara su­bitamente.

— Merlin? Graças a todos os deuses por isso! Você a encontrou?

Agora estávamos cercados pelos homens, que faziam pergun­tas ansiosas. Alguém estendeu a mão para Bedwyr saltar para a margem e ele aproximou-se de nós com a água barrenta escor­rendo das roupas.

— Ele teve uma visão — explicou Cei, sem rodeios.

Os homens se emudeceram diante disso. As perguntas se trans­formaram em murmúrios assustados. Bedwyr, porém, só disse:

— E onde ela está?

— Receio que ainda não tenha como lhe dizer. — Olhei à volta. A esquerda o canal lamacento entrava na escuridão da floresta, mas à direita, com o pouco de luz que ainda restava no horizonte, dava para ver que ele se abria num lago pantanoso.

— Por que estavam dragando aqui? Pelo que Cei me contou, imaginei que os soldados não tinham a menor idéia de onde a rainha caíra.

— E é verdade. Ela deve ter caído um pouco antes deles ou­virem a égua pela segunda vez. E tudo indica que foi aqui. O chão agora está todo pisoteado, mas quando chegamos havia sinais de uma queda, de um cavalo estrebuchando, depois le­vantando e entrando num galope por entre estes galhos. Ei, você, traga a tocha mais para perto! Ali, Merlin, está vendo? Marcas nos troncos e um pedacinho de pano, talvez da capa que ela usava... Havia umas gotas de sangue também. Mas se você diz que ela está bem... — Bedwyr ergueu a mão para afastar os cabelos da testa num gesto cansado e sujou o rosto de lama.

— Então era sangue da égua — disse alguém atrás de mim —, ela estava com as pernas cheias de arranhões.

— Sim, claro. Mas quando encontramos os sinais aqui na mar­gem e nos galhos, pensei... imaginei o que podia ter acontecido: a égua disparou, caiu e atirou a rainha na água. Um pouco mais à frente o canal é bem fundo. Calculei que ela houvesse ficado com as rédeas na mão e tentado fazer com que a égua a puxasse. Quando o couro partiu, a égua fugiu assustada. O que foi que realmente aconteceu?

— Não posso lhe dizer. O importante agora é encontrarmos a rainha e bem depressa. E, para isso, precisamos da ajuda do rei Melwas. Ele ou alguém de seu povo está aqui?

— Não vimos nenhum dos seus soldados, mas encontramos gente que mora nos pântanos, uns homens prestativos, que nos ensinaram a localização de algumas trilhas. — Bedwyr virou-se para o grupo, perguntando: — Os homens de Mere ainda estão aqui?

Eles deram um passo à frente, relutantes, extremamente as­sustados, empurrados pelos outros. Dois homens atarracados, barbudos e malcuidados, e com eles um garoto magrinho, que imaginei ser filho do mais moço. Dirigi-me ao mais velho:

— Vocês são mesmo de Mere, em Summer Country?

Ele fez que sim, torcendo os dedos nervosamente numa dobra da túnica encharcada.

— Foi muita bondade sua ajudar os homens do Grande Rei. Serão recompensados por isso, prometo. Vocês sabem quem eu sou?

Outro aceno, mais torcer de dedos. O menino engoliu em seco audivelmente.

— Muito bem. Agora, não tenham medo e você, responda o melhor que puder. Sabe onde está o rei Melwas neste momento?

— Não... não sei direito, meu senhor. — O homem falou de­vagar, com se estivesse usando uma língua estrangeira. Os mo­radores do pântano são muito calados e conversam entre si num dialeto só deles. — Mas o senhor não o encontrará no palácio da ilha. Nós o vimos caçando por aqui há dois dias. Ele costuma

fazer isso de vez em quando. Vem sozinho, ou com um ou dois amigos, e fica algum tempo.

— Caçando? Na floresta?

— Não, meu senhor, ele gosta de caçar aves. Sai pelos riachos e canais num barco, acompanhado apenas pelo remador.

— E você sabe para onde ele foi?

— Para lá — apontou o homem —, perto de onde o caminho do lago, que vem da ilha, termina no alagadiço. Como por ali existem algumas partes secas, sempre se encontram gansos sel­vagens. O rei tem uma cabana de caça mais além, mas não deve ter ninguém lá. Ela está fechada desde o inverno. Além disso, um pouco antes de começar a escurecer chegou a notícia de que o jovem rei está vindo de Caernavon de barco, de modo que vai ter de atracar na ilha, talvez com a próxima maré. Acho que o rei Melwas vai estar lá para recebê-lo, não é?

A chegada de Artur era novidade para mim e também, como pude ver, para Bedwyr e os outros. Jamais consegui entender como esses moradores de lugares remotos, como os pantaneiros, conseguem receber notícias tão rapidamente.

— Não vi nenhuma luz no alto do Tor. Você viu alguma, Merlin?

— Não. E também não vi fogo nas outras balizas. Não é pos­sível que já tenham avistado as velas. É melhor sairmos daqui, Bedwyr. Iremos diretamente para o Tor.

— Quer dizer que iremos falar com Melwas antes de conti­nuarmos a procurar a rainha?

— Acho melhor. Quer dar as ordens, por favor e cuidar para que estes homens sejam recompensados pela sua ajuda?

No alvoroço que se seguiu, toquei o braço de Bedwyr, cha­mando-o de lado.

— Não posso dizer nada agora, meu rapaz. A situação é muito grave e perigosa. Temos de ir sozinhos procurar a rainha.

Acha que conseguiremos nos afastar sem dar explicações? Ele franziu o cenho, olhou atentamente para o meu rosto, mas disse no mesmo instante:

— Claro. E quanto a Cei? Será que vai aceitar?

— Cei está machucado e, além disso, se Artur está para chegar ele deve voltar para Camelot o mais rápido possível.

Nós e os outros iremos todos para a ilha, para esperar a maré. Estará bem escuro e conseguiremos nos afastar sem chamar a atenção.

A tensão do dia ressoou na voz de Bedwyr.

— Você vai me contar o que está acontecendo?

— Explicarei enquanto estivermos indo, mas não quero que ninguém ouça, nem mesmo Cei.

Alguns minutos depois estávamos a caminho. Eu cavalgava entre os dois amigos e os homens vinham atrás de nós. Estes conversavam despreocupados, aparentemente convencidos de que tudo estava bem conforme eu dissera. Eu, contudo, sabendo apenas o que me fora dado ver no sonho, me sentia curiosamente leve e tranqüilo, acompanhando o passo apressado ordenado por Bedwyr, sem a menor preocupação com o terreno difícil, mal sentindo a sela. Não era uma sensação nova mas fazia anos que eu não sentia isso: a vontade do deus passando por mim e eu indo com ela, como uma faísca sendo soprada entre as estrelas. Eu não sabia o que me esperava nesse crepúsculo úmido, apenas sentia que a rainha e sua aventura formavam somente uma pe­quenina parte do destino que estava à nossa frente, sombras que iam sendo afastadas por essa onda formidável de poder que me impulsionava.

Minhas recordações sobre essa cavalgada atualmente são mui­to confusas. O grupo liderado por Cei separou-se de nós e pouco depois encontramos barcos e Bedwyr mandou metade de seus homens embarcarem, indo para a ilha pelo meio mais rápido. O restante ele dividiu, fazendo alguns tomarem a estrada que acom­panhava a margem do lago e outros atravessarem usando o ca­minho elevado, que levava diretamente para o cais. A chuva pa­rará e agora a névoa aumentava com a chegada da noite. O céu estava se enchendo de estrelas, parecendo uma rede apanhando peixes cintilantes. Tochas iam se acendendo e jangadas lotadas de pessoas e animais singravam lentamente o lago impulsionadas pelas varas dos barqueiros. Quando os homens que iriam pela estrada marginal começaram a se reagrupar, a névoa aumentando até quase atingir as ancas dos cavalos, avistamos o brilho de uma tocha distante subindo o Tor. As velas de Artur tinham sido avistadas.

Foi fácil para mim e Bedwyr nos afastarmos sorrateiramente. Nossos cavalos saíram do calçamento, trotaram pesadamente por um bom pedaço de relva encharcada e finalmente puderam au­mentar o passo na estrada que ia para sudoeste.

Logo as luzes e sons da ilha desapareceram atrás de nós. A névoa subia espessa nos dois lados de nosso caminho. Avançá­vamos à luz fraca das estrelas, que eram como lampiões distantes iluminando uma estrada para fantasmas a percorrerem. Os ca­valos foram ajustando os passos e pouco a pouco eu e Bedwyr estávamos lado a lado.

— Essa tal cabana de caça... — disse Bedwyr, ofegante. — É para lá que estamos indo?

— Espero que sim. Você sabe onde fica?

— Sim, creio que posso encontrá-la. Mas porque você precisa pedir ajuda a Melwas? Assim que ele souber do acidente da rainha porá todos os seus homens à nossa disposição para uma busca pelos pântanos. E se não estiver na cabana agora...

— Esperemos que não esteja.

— Por acaso estamos no meio de um quebra-cabeças? — Pela primeira vez, desde que o conhecia, Bedwyr falava com grosseria mal disfarçada. — Você disse que explicaria. Disse que sabia onde ela estava e agora está procurando por Melwas. Então, o que...

— Bedwyr, será que até agora você não entendeu? Penso que Guinevere está na cabana de caça. Melwas levou-a para lá.

O silêncio que se seguiu foi mais tempestuoso do que qualquer exclamação. Quando Bedwyr voltou a falar mal dava para ouvi-lo.

— Não preciso perguntar se você tem certeza. Se foi uma visão, só me cabe aceitar. Mas conte-me como e por quê.

— O porquê é óbvio. O como ainda não sei. Desconfio que ele esteve planejando isto há um bom tempo. Os passeios da rainha são de conhecimento público e freqüentemente ela vai à floresta que beira o pântano. Se os dois se encontraram ali, quando ela separou-se de seu grupo, nada mais natural do que parar para conversar com ele. Talvez isso explique o silêncio quando os dois soldados procuravam por ela.

— Sim... e se ele agarrou as rédeas, tentou agarrá-la e ela esporeou a égua... isso explicaria as marcas que encontramos na margem do canal. Por todos os deuses, Merlin! Você está falando de rapto! E acha que Melwas esteve planejando há algum tempo?

— Não tenho certeza, é só uma suspeita. É possível que tenha tentado outras vezes antes desta oportunidade: a rainha sozinha e o barco por perto.

Não adiantei mais nada. Recordava-me do cômodo com as cortinas, o jogo de xadrez, a rainha composta e sorridente. Pensei também nas longas horas que haviam se passado desde que ela desaparecera.

Bedwyr devia estar pensando a mesma coisa.

— Ele deve estar maluco. Um reizinho qualquer arriscando-se a ser o objeto da raiva de Artur! Que loucura!

— Talvez. Mas uma loucura comum quando se trata de mu­lheres — falei secamente.

Um outro silêncio, finalmente rompido por um gesto, que mal divisei no escuro, e uma mudança no passo do cavalo.

— Vá mais devagar. Daqui a pouco sairemos da estrada.

Obedeci sem perguntas. Bedwyr avançava lentamente, olhan­do atentamente para as margens da estrada. Então a avistamos, uma trilha que aparentemente levava para o pântano.

— É aqui?

— Sim, mas é um caminho ruim. Talvez tenhamos de fazer os cavalos nadarem. — Um olhar para mim. — Acha que você vai conseguir?

Uma lembrança emergiu em minha mente: Artur e Bedwyr na floresta Selvagem, apostando corrida, como fazem os meninos, mas sempre preocupados comigo, um mau cavaleiro trotando atrás deles.

— Pode ficar sossegado.

— Então vamos descer por aqui.

Os cavalos se enfiaram na estreita faixa de lama entre touceiras de junco e depois entraram num canal sem hesitação. Logo es­távamos com água até a coxa, avançando pela superfície tran­qüila. Foi um estranho tipo de progresso, porque a névoa escondia a água e até mesmo a cabeça de nossos animais. Imaginei como Bedwyr conseguia ver o caminho, mas acabei avistando, bem atrás do brilho da água, das placas de neblina e das formas escuras de árvores e arbustos, o pequenino ponto de luz que indicava uma moradia. O ponto de luz parecia aproximar-se de nós e minha mente corria de um lado para outro analisando as possi­bilidades do que teria de ser feito. Artur. Bedwyr, Melwas, Guinevere... e o tempo todo, como o murmurar profundo que uma harpa produz sob um acorde complicado, eu sentia o poder que me impelia para... o quê?

— E nenhum barco... — Ouvi Bedwyr praguejar baixinho. — É aqui que costumamos nadar.

— Bedwyr, terei de deixá-lo fazer essa última parte sozinho. Mas você...

— Sim, por Deus! — Ouvi o barulho da espada sendo desembainhada.

Estendi a mão e segurei as rédeas de seu cavalo junto do bridão.

— Mas você fará exatamente como eu mandar. Um silêncio. Depois a voz suave mas teimosa:

— Eu o matarei, claro.

— Nada disso. Você salvará o nome do Grande Rei e da rainha. Isto é uma questão para Artur resolver, não você.

Um outro silêncio, dessa vez muito longo.

— Está bem. Farei o que você disser.

— Ótimo. — Dirigi meu cavalo para o meio de uns arbustos onde não seríamos vistos facilmente. O de Bedwyr, que eu ainda segurava, me seguiu. — Agora espere. Olhe.

Apontei para o caminho por onde tínhamos vindo. Muito dis­tante de nós, por cima da grande extensão pantanosa, um pu­nhado de luzes brilhavam como estrelas. A fortaleza de Melwas, iluminada em sinal de boas-vindas. Só podia significar uma coisa: Artur estava chegando.

Então, o som tão ampliado pela água que chegou a nos as­sustar, veio o estalido e ranger de uma porta se abrindo e o murmúrio de um barco singrando a água. O barulho vinha de trás da casa, onde algo invisível para nós se afastava no meio do nevoeiro. Uma voz masculina disse alguma coisa, bem bai­xinho.

Bedwyr fez um movimento súbito e seu cavalo ergueu a cabeça tentando se livrar de minha mão.

— Melwas — disse com uma voz apertada de tensão. — Ele viu as luzes. Maldição, Merlin, ele a está levando...

— Não. Espere. Ouça!

Uma luz surgiu na casa. Uma voz de mulher chamou. Foi um grito num tom de súplica, mas se havia nele medo, saudade ou pena de ser abandonada, não pudemos decifrar. Os sons do barco sumiram. A porta se fechou.

Eu continuava segurando o bridão do cavalo de Bedwyr.

— Agora vá até lá e traga a rainha, para nós a levarmos para casa.

 

Eu mal tinha acabado de falar e Bedwyr já saltava do cavalo, atirando a capa pesada na sela e entrando na água, nadando com a facilidade de um castor para a margem oposta, onde havia um relvado em frente da porta de entrada. Escutei um resmungo de dor e um palavrão abafado.

— O que foi?

Ele não respondeu. Apoiou o joelho na margem e depois saiu da água com a ajuda de um galho de salgueiro. Parou para tirar o excesso de água dos ombros e em seguida se encaminhou para a porta com alguma dificuldade; tive a impressão de que man­cava. Enquanto ele andava, ouvi o silvar da espada saindo da bainha.

Bedwyr bateu na porta com o punho da espada e houve um eco como se a casa estivesse vazia. Nenhum movimento, nenhu­ma resposta; pensei com amargura: muito estranho para uma dama que espera socorro.

Bedwyr bateu de novo.

— Melwas! Abra para Bedwyr de Benoic! Abra em nome do Grande Rei!

Houve uma longa pausa e podia-se sentir que alguém na casa hesitava, segurando a respiração e com o coração aos saltos. Então a porta se abriu.

Não foi com um movimento brusco de desafio ou coragem, mas um bem vagaroso, apenas uma frestinha, que mostrou a luz fraca de uma lamparina e a sombra de alguém que olhava para

fora. Uma figura alta, esbelta e ereta, com cabelos soltos e um vestido acetinado.

— Senhora! — disse Bedwyr com a garganta apertada. — Mi­nha rainha, a senhora está bem?

— Príncipe Bedwyr. — A voz saiu um tanto ofegante, mas composta. — É você, graças a Deus. Quando ouvi os cavalos tive medo de que... Como chegou até aqui? Como me encontrou?

— Merlin me guiou.

Ouvi claramente o soluço de susto. A lamparina iluminou os contornos de seu rosto pálido quando ela virou a cabeça e me avistou na outra margem.

— Merlin? — Mas quando continuou, a voz voltou a sair macia e controlada. — Então dou graças a Deus pelas suas artes. Achei que ninguém passaria por aqui.

Claro, pensei, mas disse bem alto:

— Quer se aprontar, senhora? Viemos para levá-la de volta ao Grande Rei.

Ela não respondeu, mas virou-se para entrar. Fez uma pausa e falou algo para Bedwyr, baixo demais para eu poder captar. Ele respondeu e Guinevere abriu a porta, fazendo um gesto mandando-o entrar e pude ver a luz pulsante de uma lareira, que me mostrou alguma coisa da sala, um lugar muito mais luxuoso do que se esperaria em uma cabana de caça esquecida, com ban­quetas estofadas, almofadas e bandejas. Pude ver por uma porta interna bem aberta o canto de uma cama ou diva, com lençóis amassados e uma colcha caída ao lado dela. Sim, Melwas pre­parara muito bem esse ninho. Minha visão do cômodo iluminado pela luz de um fogo e o amigável jogo de xadrez fora bem correta. As palavras que seriam ditas a Artur giravam em minha cabeça e a névoa parecia fumegar em torno da casa, tomando a forma de fantasmas, sombras brancas...

Bedwyr apareceu na porta. A espada voltara para a bainha e agora ele carregava um lampião e uma vara comprida de bar-queiro. Chegou perto da beira da água, andando com cuidado.

— Merlin?

— Sim! Quer que eu leve os cavalos até aí?

— Não! Cuidado! Aqui tem facas escondidas sob a água. Es­queci-me dessa velha armadilha e enfiei o joelho numa delas.

— Está muito ferido?

— Não. Só pegou a carne e os outros cortes são menores. A rainha me colocou uma atadura.

— Então você não pode vir nadando. O que pretende fazer? Deve haver algum lugar onde há passagem para cavalos. Per­gunte a ela.

— ]á perguntei e ela não sabe. E também não tem nenhum barco aqui.

— Mas será que Melwas não tem alguma coisa que flutue?

— Era exatamente nisso que eu estava pensando. Vou encon­trar e espero que seja algo que custe muito caro para o canalha.

— E a rainha?

— Ela está se vestindo. — O tom foi claramente sofrido. — Ele colocou o lampião que segurava junto à margem e ficamos esperando.

— Príncipe Bedwyr?

A porta se abriu de novo e Guinevere apareceu em traje de montaria, com a capa dobrada no braço.

Bedwyr aproximou-se dela mancando. Segurou a capa e ela a vestiu, fechando-a bem no pescoço e puxando o capuz para cobrir os cabelos brilhantes. Bedwyr disse alguma coisa e entrou na casa para reaparecer segundos depois carregando uma mesa.

Imagino que o que se passou nos dez minutos seguintes seria motivo de grandes risadas se fosse uma cena de comédia. Eu e a rainha imóveis, cada um numa margem do canal, vendo Bedwyr improvisar uma jangada absurda e em seguida, como se tivesse tido uma outra idéia, voltar a entrar na casa e sair com algumas almofadas que atirou na mesa antes de convidar Guinevere a embarcar.

Eles começaram a atravessar a água num trajeto sem a menor dignidade, a rainha agachada e segurando-se numa perna capri­chosamente torneada da mesa enquanto o príncipe de Benoic, usando a vara de barqueiro, propelia a engenhoca.

A coisa acabou chegando à minha margem e eu a peguei por uma perna. Bedwyr desembarcou rapidamente e virou-se para ajudar a rainha. Ela veio até que com certa graça, sussurrou um agradecimento e começou a sacudir a capa amarrotada. Como o traje de montaria, ela parecia ter sido molhada e mal secada.

Uma coisa pequena caiu das dobras e rolou na relva encharcada. Inclinei-me para pegá-la. Uma peça de xadrez feita de marfim. O rei quebrado.

Guinevere não notou meus movimentos. Bedwyr empurrou a mesa para a água e pegou as rédeas do cavalo de minha mão. Entreguei-lhe a capa e dirigi-me formalmente à rainha, tão for­malmente que minha voz saiu gelada:

— Estou contente por vê-la ilesa, senhora. Passamos um mau dia, temendo por sua vida.

— Lamento muito. — O tom foi baixo e o capuz ocultou a expressão. — Levei um tombo feio quando minha água tropeçou. Eu... eu não me lembro muito do que aconteceu. Só sei que acordei nessa casa...

— E o rei Melwas estava ali?

— Sim. Sim. Ele me encontrou caída e me trouxe para cá. Creio que desmaiei. A criada cuidou de mim.

— Ele teria agido melhor se ficasse esperando a seu lado até nossos homens chegarem. Eles passaram o dia inteiro procurando-a na floresta.

— Sim, posso imaginar. — Tive a impressão de que a mão que ajeitou o capuz estava trêmula. — Mas a casa ficava perto e, pelo que o rei Melwas me contou, ele ficou preocupado comigo e achou melhor tomar o barco. Eu não poderia cavalgar.

Bedwyr já estava na sela. Peguei a rainha pelo braço para ajudá-la a subir e com surpresa, pois nada na vozinha composta me levara desconfiar disso, senti todo o seu corpo tremendo. Abandonei o interrogatório e disse apenas:

— É melhor irmos devagar. Sabe, senhora, o Grande Rei já voltou.

Senti um tremor forte percorrer seu corpo, mas ela não disse nada. Levantei seu corpo juvenil com facilidade e a acomodei na frente da sela de Bedwyr.

Prosseguirmos a passo lento. Quando começamos a nos apro­ximar da ilha vimos que o cais estava cheio de luzes e cavaleiros.

Ainda estávamos a uma certa distância quando avistamos, ilu­minado pelas tochas que carregavam, um grupo de cavaleiros que se separou da multidão e veio galopando pelo caminho ele­vado que cortava o lago. Um homem num cavalo preto os liderava, apontando para a frente. Foi então que nos viram. Houve gritos. Logo estavam chegando junto de nós. Agora era Artur que liderava o grupo, montado no cavalo branco sujo de lama. A seu lado, no garanhão preto, soltando grandes exclamações de alívio e de cuidado pela rainha, vinha Melwas, o rei de Summer Country.

 

Voltei para casa sozinho. Havia pouco a ganhar e muito a perder num confronto entre Artur e Melwas nesse momento. Fora o raciocínio rápido de Melwas que o fizera sair da cabana pela porta de trás e 'estar presente à chegada do Grande Rei, o que evitara um escândalo e dessa forma Artur não se vira forçado, fossem quais fossem seus sentimentos ou desconfianças, a brigar com um importante aliado em público. Melhor assim. Melwas levaria todos para seu palácio iluminado, lhes daria vinho e co­mida, e talvez hospedagem por uma noite, e no dia seguinte Guinevere já teria contado sua história ao marido. Eu não podia nem imaginar qual seria, mas havia certos elementos no aconte­cido que dificilmente poderiam ser explicados: a sala luxuosa­mente arrumada, o vestido ou robe acetinado, a cama desarru­mada, as mentiras contadas para mim e Bedwyr sobre Melwas. E, sobretudo, a peça de xadrez quebrada, prova de um sonho verdadeiro. Mas tudo isso teria de esperar até no mínimo estar­mos longe dos domínios de Melwas e não mais cercado por seus soldados. Quanto a Bedwyr, ele não dissera nada e no futuro, fossem quais fossem seus pensamentos, seu amor por Artur o manteria de boca fechada.

E quanto a mim? Artur era o Grande Rei e eu seu principal conselheiro. Eu lhe devia a verdade. Todavia, não ficaria com ele nessa noite, para enfrentar suas perguntas e ser obrigado a respondê-las com evasivas ou mentiras. "Mais tarde", pensei, meio tonto de exaustão, enquanto meu cavalo cansado percorria pesadamente a estrada que acompanhava a margem do lago.

 

Escolhi o caminho mais longo, sem perturbar o homem da balsa. Mesmo se estivesse disposto a me transportar tão tarde da noite, não sentia a menor disposição de ouvir seus mexericos ou os de soldados voltando para seus alojamentos. Precisava de silêncio, da noite e dos véus da neblina.

Meu cavalo, farejando seu lar e uma bela refeição, empinou as orelhas e acelerou o passo. Pouco depois tínhamos deixado os sons e luzes da ilha para trás, o Tor não mais do que uma forma escura na noite, destacando-se contra as estrelas. O cheiro da água, dos juncos e de lama remexida, o ruído constante das patas do cavalo e, infinitamente leve e vindo de muito distante, o sabor de sal na língua, o hálito da maré alta que atingira languidamente seu limite. Um pássaro noturno emitiu um grito rou­fenho e agitou a água, invisível para mim. O cavalo sacudiu o pescoço molhado e continuou em frente.

Silêncio e ar parado, a calma da solidão, criaram uma cortina, quase tão visível como a bruma, entre as tensões do dia e a tran­qüilidade da noite. A mão do deus se afastara, nenhuma visão surgia na escuridão. Recusei-me a pensar no dia seguinte e no papel que eu desempenharia nele. Eu fora levado a impedir um escândalo através de um sonho profético, mas não saberia dizer por que "motivos mais elevados" o poder voltara para mim e, além disso, estava cansado demais para pensar no assunto. Estalei a língua para o cavalo e ele apressou o passo. A lua que surgiu por trás de um bosque de olmos iluminou a noite. Um pouco à frente eu sairia da margem do lago e seguiria para casa pela estrada de cascalho.

O cavalo parou tão subitamente que fui atirado contra o seu pescoço. Se não estivesse tão esgotado, ele certamente teria empinado, me jogando no chão, mas agora estava empacado, com as patas da frente rigidamente apoiadas no chão.

Ali onde estávamos o caminho passava por cima de uma en­costa que acompanhava o lago e havia uma queda íngreme, com metade da altura de um homem, até a superfície da água. A neblina continuava espessa, mas algum movimento do ar ou da maré a fazia rodopiar e erguer-se em picos.

Ouvi um barulho na água e vi o que assustara meu cavalo. Um barco, sendo impelido com uma vara bem perto da margem e nele alguém em pé, equilibrando-se com a mesma delicadeza de um passarinho pousado num pequenino galho. Por entre uma abertura na névoa, divisei alguém que me pareceu jovem e magro, usando uma capa cuja bainha estava mergulhada na água. O garoto se abaixou e endireitou-se novamente, torcendo o pano. A neblina se movimentou mais com esses gestos e a luz pálida da lua incidiu em seu rosto. Senti um baque no coração como se fosse uma flecha atingindo seu alvo.

— Ninian!

Ele levou um susto, virou-se e parou o barco com perícia. Os olhos escuros pareciam enormes no rosto pálido.

— Sim? Quem é?

— Merlin. O príncipe Merlin. Não se lembra de mim? — No mesmo instante me dei conta da tolice que eu dissera. O choque me fizera esquecer de que quando eu viajara com o ourives e seu escravo eu estava disfarçado. — Falei rapidamente: — Você me conheceu como Emrys, que também é meu nome. Myrddin Emrys, de Dyfed. Havia motivos para isso. Lembra-se de mim agora?

O barco balançou. A névoa se espessou, escondendo-o de mim, e por um segundo senti um pânico cego. Ele se fora outra vez. Mas depois o vi, ainda ali, com a cabeça inclinada para um lado. Ele pensou por um instante e em seguida falou vagarosamente, como sempre:

— Merlin? O mago? Você é Merlin?

— Sim. Desculpe-me por tê-lo assustado, mas foi um choque encontrá-lo aqui. Pensei que tivesse se afogado em Cor Bridge quando foi nadar com os outros garotos. O que aconteceu?

— Eu nado bem, senhor. — A resposta veio depois de alguma hesitação.

Havia um segredo qualquer ali, mas não me incomodei. Nada mais me importava. Eu encontrara Ninian. Era para isso que a noite vinha me impelindo. Isso, e não o mau passo da rainha, era o "motivo mais elevado" para o qual o poder me impelira. Aqui estava o futuro. As estrelas cintilaram como um dia haviam cintilado no punho da grande espada.

Inclinei-me sobre o pescoço do cavalo, falando com urgência:

— Ninian, ouça. Se você não quiser responder perguntas, não farei nenhuma. Está bem, então você fugiu da escravidão, não tenho nada com isso. Posso protegê-lo, portanto não tenha medo de mim. Quero que fique comigo. Desde o momento em que o vi pela primeira vez soube o que você era: alguém igual a mim. E, pela vidência que o deus me deu, acredito que será capaz de fazer tudo o que eu faço. Você também percebeu, não é? E então, quer vir comigo e me deixar ensiná-lo? Não será fácil, mas eu era mais novo que você quando me apresentei ao meu mestre. Confie em mim. Responda: você quer vir morar comigo e me servir, e aprender tudo o que puder de minha arte?

Dessa vez não houve nenhuma hesitação. Foi como se a per­gunta tivesse sido feita e respondida há muito tempo. Em certas coisas existe essa inevitabilidade; elas estavam escritas nas estrelas desde o último dia do dilúvio.

— Sim. Irei com o senhor. Mas me dê um pouco de tempo. Tenho certas coisas para... para arranjar.

Eu me endireitei. Minhas costelas doíam devido à respiração ofegante.

— Você sabe onde eu moro?

— Todos sabem.

— Então venha quando puder e será bem-vindo. — E acres­centei baixinho, dizendo mais para mim mesmo do que para ele: — O deus também lhe dará as boas-vindas.

Não houve resposta. Quando ergui o olhar, não havia nada mais do que a neblina esbranquiçada pelo luar e, vindo de baixo de mim, o lamber das águas do lago na margem.

 

Só quando eu estava em minha casa me dei conta de uma verdade muito simples.

Muitos anos haviam se passado desde que eu viajara com o menino Ninian e me sentira atraído por ele porque sabia que era o único ser humano capaz de seguir meus passos. Quantos? Nove, dez? Na época ele devia estar com uns treze anos. Entre um adolescente de treze e um homem de vinte e três existe todo um mundo de mudança e crescimento. O menino que eu reconhecera com um imenso choque de alegria, de cujo rosto lembrara cen­tenas de vezes com intenso pesar, não ser a pessoa que eu vira no lago.

Naquela noite, deitado na cama, insone, observando as estrelas por entre os galhos da macieira como costumava fazer na infância, repassei a cena em minha mente. A névoa, a névoa fantasmagórica; o luar fraco; a voz vindo como se fosse um eco da água escondida de mim; o rosto do qual eu me lembrava tão bem e com o qual sonhara durante todos esses anos... esses aspectos que haviam se juntado subitamente para acordar uma fútil e es­quecida esperança, tinham me enganado.

Então eu soube, por entre lágrimas, que o menino Ninian es­tava realmente morto e que esse encontro na bruma só servira para zombar de meu cansaço com um confuso e cruel sonho.

 

Ele não veio, claro. Meu primeiro visitante depois daquela noite foi um mensageiro de Artur, chamando-me a Camelot.

Quatro dias tinham se passado e eu imaginava que seria con­vocado bem antes disso, mas calculei que Artur ainda não deci­dira qual seria sua próxima jogada ou se estava inclinado a abafar o caso, não tocando no assunto nem mesmo em reuniões do con­selho.

Normalmente o mensageiro vinha de três a quatro vezes por semana e além disso, os que eram obrigados a passar perto de minha casa no seu trajeto tinham se acostumado a dar uma parada em Applegarth para ver se eu desejava enviar uma carta ou para me informarem as últimas novidades.

E foi por um deles que fiquei sabendo que Guinevere conti­nuava em Ynis Witrin como convidada da velha rainha, o que me deixou boquiaberto. Bedwyr também estava no palácio por­que vários dos cortes em sua perna haviam inflamado, o que, somado à exaustão e à friagem, resultará numa febre violenta. Alguns de seus homens lhe faziam companhia. A rainha Guine­vere o visitava diariamente, como disse meu informante, e insistia em ajudar em seus cuidados.

Obtive um fragmento de informação através de meu jardineiro. O falcão da rainha fora encontrado morto, preso pelas correias das patas numa árvore muito alta, perto do lugar onde Bedwyr dragara o canal.

No quinto dia chegou a carta me convocando para uma conferência com o Grande Rei sobre o novo Salão do Conselho, que fora terminado enquanto ele permanecia em Gwynedd.

Artur esperava por mim no terraço ocidental do palácio, uma área ampla e calçada, com canteiros retangulares, onde eram cul­tivadas as rosas da rainha, violetas e pequeninas flores de verão. Todavia, nessa fria tarde de primavera, a única cor que quebrava o cinzento do jardim suspenso era o amarelo dos junquilhos.

Encontrei o rei junto ao muro do terraço, olhando para a linha brilhante no horizonte, o litoral do mar aberto. Ele não se virou para me cumprimentar e esperou até eu chegar junto dele, quando então lançou um olhar para trás certificando-se de que o criado que me conduzira já havia se afastado. Usou um tom abrupto quando falou:

— Imagino que você já adivinhou que nossa conversa não terá nada a ver com o novo salão. Quis conversar com você em particular.

— Melwas?

— Claro. — Ele virou-se e encostou no parapeito, olhando para mim com uma expressão sombria. — Você estava com Bed­wyr quando ele encontrou a rainha e quando a levou para Ynis Witrin. Eu o vi, mas quando o procurei você já tinha ido embora. Também estou informado de que foi você quem disse a Bedwyr onde estava a rainha. Se sabia de qualquer coisa sobre este caso da qual não tenho conhecimento, por que não esperou e falou comigo ali mesmo?

— Não havia nada que eu pudesse lhe contar naquele mo­mento que não teria resultado em problemas sérios que você bem podia dispensar. Tempo era o que necessitávamos. Tempo para a rainha descansar, para você conversar com ela, tempo para acalmar os gênios dos homens e não inflamá-los. E parece-me que foi o que você vez. Informaram-me que Bedwyr e a rainha ainda estão em Ynys Witrin.

— Sim, Bedwyr ficou doente. Estava gelado quando entrou no palácio e pela manhã surgiu uma febre.

— Foi o que me contaram e eu me culpo por isso. Deveria ter ficado para cuidar daqueles cortes. Você conversou com ele?

— Não, não houve condições.

— E a rainha?

— Ela está bem.

— Mas ainda não pronta para fazer a viagem de volta?

— Não — disse Artur laconicamente e de novo virou-se para fora, olhando para o distante brilho do mar.

— Imagino que Melwas lhe ofereceu algum tipo de explicação — arrisquei finalmente.

Eu esperava que a afirmação fosse resultar numa centelha de raiva, mas Artur só me pareceu cansado, um semblante cinzento numa tarde cinzenta.

— Oh, sim. Conversei com Melwas. Ele me contou o que acon­teceu. Estava caçando aves nos pântanos, acompanhado apenas por um criado, um homem chamado Berin, e os dois foram de barco até a beirada da floresta, subindo o rio que você viu. O rei ouviu a movimentação do grupo da rainha e logo em seguida viu a égua cinzenta tentar saltar o canal, errar e escorregar na lama da margem. A rainha foi atirada na água. Não havia nenhum acompanhante por perto. Os dois remaram para perto dela e a tiraram da água, inconsciente como se tivesse batido a cabeça. Enquanto a socorriam ouviram os gritos da escolta, mas os sol­dados não se aproximaram do rio. — Uma pausa pesada. — Sem dúvida, nessa altura Melwas devia ter mandando seu criado atrás deles, mas a pé ele não os teria alcançado, e como a rainha estava ensopada, meio desmaiada e tremendo de frio, achou melhor mandar o criado remar até a cabana de caça e acender a lareira o mais rápido possível. Lá havia vinho e comida porque seu plano original era passar a noite ali.

— Muita sorte.

Fiz o máximo para controlar a secura em minha voz, mas Artur me lançou um olhar tão afiado como uma lâmina de pu­nhal.

— Foi mesmo. Mas depois de um pouco ela começou a recu­perar os sentidos. Melwas mandou o criado pegar o barco e ir para Ynys Witrin em busca de ajuda, devendo voltar com cavalos e uma liteira, ou com uma embarcação onde a rainha pudesse ser confortavelmente acomodada. Todavia, pouco depois de par­tir o homem voltou para dizer que era possível avistar as velas de meu navio e que tudo indicava que eu atracaria com a chegada da maré. Melwas então achou melhor ir pessoalmente para me receber no cais, como seria sua obrigação, e para me dar a notícia de que a rainha estava bem.

— Deixando-a sozinha na cabana — falei, num tom neutro.

— Deixando-a sozinha na cabana. A única embarcação que Melwas tinha era a canoa de couro, na qual não teria como trans­portar a rainha no estado em que ela estava. Você com certeza a viu e, mesmo horas depois, quando Bedwyr a trouxe para mim, ela não conseguia fazer nada senão tremer e chorar. Mandei as damas de companhia a levarem diretamente para a cama.

Artur afastou-se do parapeito num movimento cansado e foi para perto de um canteiro, onde cortou um galhinho de alecrim e voltou rolando-o entre os dedos. Pude sentir o aroma pungente, meio apimentado, de onde eu estava. Continuei em silêncio en­quanto ele andava de um lado para o outro. Então parou, com as pernas abertas, me observando, mas ainda mexendo com o alecrim.

— Bem, essa é a história.

— Entendo. — Encarei-o pensativo. — E então você passou a noite como convidado de Melwas, Bedwyr continua lá e a rainha também... até quando?

— Vou mandar buscá-la amanhã.

— E hoje me mandou chamar. Por quê? Parece-me que o caso está Resolvido e que você já tomou suas decisões.

— Você deve saber muito bem por que mandei chamá-lo. — Houve um súbito tom nervoso em sua voz que não combinou com a anterior calma. — Agora me conte o que teria causado "sérios problemas" se você tivesse conversado comigo naquela noite. Se tem algo a me dizer, fale agora, Merlin.

— Muito bem, mas primeiro quero saber se você conversou com a rainha.

— Que pergunta! — Um erguer de sobrancelhas, uma sombra de sorriso. — Um homem que ficou longe da esposa por quase um mês e ela precisando tanto de conforto?

— Mas, se a rainha estava doente, sendo atendida pelas mu­lheres...

— Ela não estava doente. Cansada e aflita, sim, e com muito medo.

Pensei na voz baixa e composta de Guinevere, na pose cuida­dosa, no corpo trêmulo.

— Não de minha chegada — disse Artur asperamente, res­pondendo uma pergunta que eu não fizera. — Estava com medo de Melwas e agora está com medo de você. Isso não é surpresa, claro. A maioria das pessoas tem medo de você. Mas Guinevere não sente medo de mim. Por que teria? Eu a amo. Ela, porém, ficou com medo de alguma língua maldosa me envenenar com mentiras... e foi por isso que não conseguiu descansar enquanto não me contou o que tinha acontecido.

— Não entendi por que ela estava com medo de Melwas. A história que os dois contaram não foram iguais?

Artur atirou o galhinho de alecrim para longe.

— Merlin. — A voz veio calma, mas com uma finalidade mal contida. — Merlin, não venha me dizer que Melwas mentiu e que houve um estupro. Se Guinevere feriu-se tão seriamente quando caiu, a ponto de passar o dia inteiro praticamente des­maiada e tivesse sido violentada à noite, ela não poderia ter vol­tando cavalgando com vocês nem estar ilesa como estava quando deitei com ela. Não houve nenhuma dor. Nada senão medo.

— Ela lhe disse que a história de Melwas era mentira?

— Sim.

Olhei atentamente para Artur e disse bem devagar.

— Quando ela falou comigo e Bedwyr, sua história era igual à de Melwas. Agora você está me dizendo que a própria rainha lhe contou que foi um rapto?

— Sim. — Ele franziu o cenho. — Você não acredita em ne­nhum dos dois, não é? E o que está tentando me dizer? Acha que... por Deus, Merlin, o que você acha?

— Ainda não ouvi a história da rainha. Conte-me o que ela disse.

Artur estava tão irado que pensei que fosse me deixar falando sozinho, mas depois de uma ou duas voltas pelo terraço, voltou para junto de mim. Sua expressão era a de um homem se apro­ximando de um combate corpo a corpo.

— Muito bem, Merlin. Você é meu conselheiro e eu estou pre­cisado de conselhos. — Uma inspiração profunda. O relato saiu em sentenças breves e sem expressão. — Ela não sofreu uma queda. Viu o falcão mergulhar e ficar preso pelas correias numa árvore, então freou a água e desmontou. Viu Melwas na canoa, próximo da margem, e pediu sua ajuda. Ele veio até ela, mas não fez nada a respeito do merlin. Começou a falar de amor, de como se apaixonara por ela durante a viagem que fizeram desde Gales. Não quis escutar quando a rainha tentou impedi-lo e, quan­do ela correu para montar, Melwas a agarrou e na luta a égua se soltou e disparou. Ela tentou chamar pelo seu pessoal, mas ele tampou sua boca e atirou-a na canoa. O criado saiu remando. Ela diz que o homem estava assustado e fez um tipo qualquer de protesto, mas não pôde desobedecer seu senhor. Melwas le­vou-a para a cabana, onde tudo estava pronto, como se a espe­rasse... Você a viu. O que me diz dela?

Pensei no fogo na lareira, na cama, nos ricos cortinados, no vestido que Guinevere usava.

— Vi alguma coisa. Sim, tive essa impressão.

— Melwas tinha isso em mente há muito tempo... só esperava uma^oportunidade. Já a seguira várias vezes e sabia que era comum ela deixar seus acompanhantes para trás. — Havia uma película de suor na testa de Artur. Ele a enxugou com a palma ia mão.

— Ele se deitou com ela, Artur?

— Não. Prendeu-a ali o dia inteiro, implorando, como diz a rainha, suplicando seu amor... Começou com doces palavras e promessas, mas quando elas não resultaram em nada, tornou-se colérico e violento, e pior, deu-se conta do perigo que corria, quando mandou o criado embora, a rainha teve certeza de que ria forçá-la, mas o homem voltou dizendo que meu navio fora visitado. Melwas então saiu dali em pânico e apressou-se a me contar suas mentiras. Antes disso ameaçou Guinevere, dizendo que, se ela contasse a verdade, ele afirmaria que os dois haviam dormido juntos por vontade própria, de modo que eu mataria ambos por me traírem.

Ela então contou a mesma história de Melwas para você.

— Sim.

— E você sabia que não era verdade? Sim.

Entendo. — Artur ainda me encarava com um misto de fúria e cautela. Eu estava começando a me dar conta, sem grande surpresa, contudo, que atualmente nem mesmo eu seria capaz de esconder segredos dele. — E achou que ela iria mentir para mim. Seria esse o "grande problema" que você previu.

— Em parte, sim.

— Mas ela mentir... e para mim? — Artur parecia falar de algo inimaginável.

— Se a rainha estava com tanto medo, quem pode culpá-la por ter mentido? Você afirma que ela não tem medo de você, mas, afinal, a rainha é uma mulher e qualquer mulher ficaria com medo do marido numa situação como essa. Você teria o direito de matá-la e a Melwas também.

— E continuo tendo esse direito, quer tenha havido um rapto violento ou não.

— E então... Ela pode ter acreditado que você a ouviria e agiria primeiro como rei, governante e político, e não como um marido traído, querendo lavar sua honra. Devo dizer que eu mesmo estou surpreso com sua atitude. E olhe que pensava conhecê-lo bem.

A sombra de um sorriso amargo bailou nos lábios de Artur.

— Com Bedwyr e a rainha na ilha, como verdadeiros reféns, eu me vi de mãos atadas, por assim dizer... Mas é claro que vou matá-lo e você sabe disso, não é? Mas será quando eu quiser e por uma outra causa, quando tudo estiver esquecido e a honra da rainha preservada. — Ele virou-se, apoiou as mãos no para-peito, de novo olhando para a distância. Um súbito raio de luz atravessou as nuvens, fazendo a linha que era o mar cintilar. Quando voltou a falar, continuava contemplando a distância. — Estive pensando na história que mandarei espalhar e calculo que deverá ser um meio-termo entre a mentira de Melwas e o que a rainha me contou. Afinal, ela passou o dia inteiro com ele... Vou dizer que ela caiu do cavalo, como afirma Melwas, e foi levada inconsciente para a cabana de caça, onde permaneceu o dia todo semi-inconsciente, febril e abalada. Você e Bedwyr terão de ser testemunhas disso porque, se ficarem sabendo que ela estava ilesa quando vocês a tiraram de lá, com certeza a culparão por não ter tentado fugir, mesmo sabendo que o criado vigiava o barco e que havia facas enfiadas na parte submersa da margem para impedir uma fuga a nado... Claro que a rainha poderia ameaçar Melwas e o criado com minha vingança, mas isso significaria um caminho sem volta. Melwas a manteria ali até satisfazer seus instintos e depois a mataria. Você sabe muito bem que o pessoal que saiu à procura dela já a dava como morta. Exceto você, e foi o que a salvou.

Permaneci em silêncio. Artur virou-se para mim.

— Sim. Exceto você. Você avisou que ela estava viva e foi buscá-la com Bedwyr. Agora conte-me como ficou sabendo. Foi uma... vidência?

— Foi — falei, abaixando o olhar. — Quando Cei me contou o que tinha acontecido, invoquei meus antigos poderes e eles voltaram. Eu a vi nas chamas. Com Melwas.

Artur olhava para mim com aguda concentração e eu, que nunca fora sondado por ele dessa maneira, pude sentir algo da qualidade que o tornava o que era.

— Entendo — disse depois de uma longa pausa. — Então vamos ao que interessa. Diga-me exatamente o que você viu.

— Vi um homem e uma mulher num cômodo ricamente mo-biliado. Por uma porta aberta atrás deles vi um quarto com uma cama desarrumada. Os dois riam e jogavam xadrez. A mulher usava um vestido solto, um robe de dormir, talvez, e tinha os cabelos soltos. Quando o homem a tomou nos braços, o tabuleiro caiu e ele pisou nas peças. — Estendi a mão para mostrar o rei branco quebrado. — Quando a rainha chegou perto de mim, na margem do canal, isto caiu das dobras de sua capa.

Artur pegou a peça, examinou-a atentamente e depois a jogou por cima do parapeito, como fizera com o galhinho de alecrim.

— Então foi um sonho verdadeiro. A rainha me contou que havia uma mesa com um tabuleiro e peças de xadrez em marfim e ébano. — Para minha surpresa, ele sorria. — Foi só isso?

— Só? É mais do que eu jamais lhe contaria se essa não fosse minha obrigação como conselheiro do rei.

— Certo, certo. — Ele continuava sorrindo, toda sua raiva parecia ter desaparecido. — Merlin, há pouco você disse "a rainha é uma mulher" e sempre afirmou, como bem me lembro, que não conhece as mulheres. Já lhe ocorreu que elas têm uma vida de tão completa dependência que isso só pode resultar em medo e incerteza? Que são como escravos ou animais, usadas por criaturas mais fortes do que elas, às vezes cruéis? Ora, até mesmo as mulheres de sangue real são compradas e vendidas, e criadas desde a infância para morar longe do lar e de parentes, como propriedade de homens que mal tiveram oportunidade de co­nhecer anteriormente.

Esperei para ver até onde ele pretendia ir. Não tinha como discordar, porque já vira mulheres sofrerem por causa de capri­chos de homens, inclusive as que, como Morgause, eram mais fortes e espertas do que eles. Só as de muita sorte encontravam maridos em que conseguiam mandar ou então que as amavam. Como Guinevere.

— Merlin, você mesmo disse agora há pouco que ainda devo ser um estranho para ela em muitos aspectos. Ela pode não ter medo de mim, mas às vezes penso que tem medo da vida em si, ou de viver. E com toda a certeza teve medo de Melwas. Está entendendo? Seu sonho foi verdadeiro. A rainha sorria e falava com ele, escondendo seu temor. O que ela poderia fazer? Pedir socorro ao criado? Ameaçar os dois com minha vingança? Isso seria chamar a morte. Quando Melwas a levou para o quarto para que trocasse as roupas molhadas... A propósito, fui infor­mado de que ele costuma levar mulheres para a cabana de caça sem o conhecimento da velha rainha, que é muito rabugenta, e que lá existe um armário cheio de trajes femininos. Bem, quando Melwas mostrou o quarto, Guinevere agradeceu e em seguida trancou a porta, deixando-o do lado de fora. Mais tarde, quando ele bateu oferecendo-lhe comida, ela fingiu estar dormindo ou desmaiada, mas passado algum tempo Melwas começou a des­confiar e bateu com violência. Temerosa de que a cólera o fizesse arrombar a porta e perder de vez a cabeça, ela decidiu comer na sala e conversar naturalmente, insinuando que com a chegada da noite se entregaria a ele, mas rezando em silêncio para ser salva a tempo.

— E foi o que aconteceu.

— Sim, e quando ela já estava perdendo as esperanças. Se não fosse você... Bem, essa é a história da rainha e eu acredito nela. — Um olhar atento para mim. — E você?

Não respondi imediatamente. Artur esperou, não mostrando nem irritação nem impaciência e nenhuma sombra de dúvida.

Quando finalmente falei, tinha plena certeza do que iria afir­mar:

— Sim. Ela contou a verdade. Por vários motivos, instinto, pela vidência ou pura fé, esteja certo disso. Lamento por ter du­vidado dela. Você agiu bem recordando-me de que não conheço bem as mulheres. Eu devia ter compreendido que ela estava com medo e, sabendo disso, adivinhado que possuía armas muito fracas contra Melwas... No que diz respeito ao resto, o silêncio que manteve até poder conversar com você em particular, o cui­dado com sua honra e segurança de seu reino, creio que agiu de maneira admirável. E você também, Grande Rei.

Vi que Artur notou a mudança no tratamento. O alívio que demonstrou veio acompanhado de bom humor.

— Por quê? Por que não me deixar por uma fúria realesca, exigindo cabeças? Se a rainha, por medo, conseguiu fingir durante um dia, por que não eu fingir por algumas horas, quando estavam em jogo a reputação dela e a minha honra? Mas isso já passou. Por Hades, já não agüento mais! — A força com que Artur socou o parapeito mostrou o quanto ele vinha contendo. Numa abrupta mudança de tom ele continuou:

— Merlin, você deve estar sabendo que o povo não... não gosta muito da rainha.

— Já ouvi rumores, mas não é por ela em si ou por algo que tenha feito. O motivo é que seus súditos procuram diariamente um sinal avisando da chegada de um herdeiro e já se passaram quatro anos. Isso causa desaponto e murmúrios, claro.

— Não haverá nenhum herdeiro. Ela é estéril. Não temos mais dúvidas sobre isso.

— Era o que eu temia. Lamento muito.

— Se eu não tivesse plantado minha semente em outros lugares — disse Artur com um sorrisinho amargo — poderia compartilhar da culpa com ela, mas houve a gravidez da falecida Guinevere e, naturalmente, o filho que fiz em Morgause. Portanto, as acu­sações caem sobre a rainha e, devido a sua posição, ela não pode externar seu sofrimento em público. Com isso, existem sempre aqueles que inventam boatos na esperança de me ver repudiá-la. O que — acrescentou rispidamente — jamais acontecerá.

— Nunca me ocorreria aconselhá-lo a tomar essa atitude — falei suavemente. — Essa situação só me faz imaginar se seria isso a sombra que uma vez vi sobre seu leito nupcial... Mas não falemos mais nisso. Agora devemos procurar um modo de fazer o povo voltar a gostar da rainha.

— Você faz parecer fácil, mas... se sabe como...

— Penso que sei. Agora há pouco você jurou por Hades e isso dissipou um sonho que tive. Quer me dar permissão para eu ir a Ynis Witrin buscar a rainha?

Artur ia começar a perguntar "por quê?" com um ar intrigado, mas interrompeu-se com um meio sorriso e um erguer de ombros.

— E por que não? Talvez para você seja de fato tão fácil com parece. Muito bem, vá. Mandarei preparar uma escolta real e a receberei aqui. Pelo menos não terei de ver Melwas de novo. Por acaso, você, com todos os seus sábios conselhos, pretende evitar que eu o mate?

— Seria uma atitude tão ineficiente como uma galinha pedir para um pequeno cisne sair da água. Você fará o que lhe parecer adequado. — Olhei para fora, vendo a grande extensão pantanosa, o Tor e as colinas mais baixas da ilha vizinha, onde ficava o porto, e acrescentei: — É uma pena Melwas achar certo cobrar taxas de embarque e desembarque, exorbitantes aliás, do guer­reiro que o protege.

Os olhos de Artur se arregalaram num ar de especulação e um sorriso curvou seus lábios. Ele disse vagarosamente:

— Sim, é mesmo. Além disso existe o problema da cobrança de pedágio na estrada que corre pelas terras altas. Se meus co­mandantes resolverem se recusar a pagar, Melwas certamente virá se queixar pessoalmente a mim e talvez até seja o primeiro a se apresentar no novo Salão do Conselho. E agora, já que foi esse o motivo que aleguei ao lhe mandar o mensageiro, quero que você o veja. E amanhã, na terceira hora, à frente do cortejo real, você irá buscar a rainha.

 

A comitiva era liderada por Nentres, um dos governantes da região oeste que tinham lutado sob as ordens de Uther e agora era, com os filhos, um fiel partidário de Artur. Um veterano de barba grisalha, cavalgava com a flexibilidade de um jovem. Man­dando o grupo esperar numa curva da estrada, sob as bandeiras com o dragão desfraldadas, subiu a trilha que levava a minha casa acompanhado apenas de um pajem que puxava um alazão enfeitado de prata. Os arreios cintilavam como o escudo de Nen­tres e jóias piscavam no peitoral do animal, seu tom combinando com os bordados da manta sob a sela.

— O rei lhe mandou isto — sorriu o velho guerreiro. — Man­dou dizer que o seu pareceria um pangaré perto dos outros. E não olhe para ele desse jeito. O pobre é muito mais manso do que parece.

O pajem me ajudou a montar. O cavalo sacudiu a cabeça e mordeu o bridão, mas seu passo era realmente macio e tranqüilo. Comparado com o meu parecia um barco a vela competindo com uma canoa.

A manhã estava fria devido ao vento norte que vinha conge­lando os campos desde os meados de março. Ao amanhecer eu subira no alto do morro que ficava atrás de Applegarth e sentira na pele a indefinível diferença que anuncia uma mudança de vento. A primavera estava ali, esperando, mas era contida pelos ventos frios que também impediam a abertura dos botões de flores. Apesar da época do ano, o céu continuava fechado, parecendo anunciar uma tempestade de neve, e eu dei graças pela capa que viera dobrada sobre a sela do cavalo que Artur mandara, com espessura e peles bem de acordo com o esplendor da co­mitiva.

Tudo estava pronto para nós no salão formal de Melwas. Ele usava trajes em tom de azul-escuro e estava, como rapidamente notei, completamente armado. O rosto bonito e viril exibia um simpático sorriso de boas-vindas, mas nos olhos havia uma ex­pressão de cautela e eles, com uma freqüência da qual o rei parecia não dar conta, voltavam-se para o grande número de soldados alinhados numa das extremidades da sala. No lado de fora, havia uma companhia inteira deles, sem dúvida trazida da fortaleza, ocupando todo o jardim do palácio. Bandeiras, panos coloridos e flâmulas davam um ar festivo ao ambiente, mas podia-se cla­ramente ver que todos os súditos de Melwas presentes usavam espada e punhal.

Ele, naturalmente, esperava que Artur viesse e quando me viu à frente do cortejo mostrou alívio na expressão, mas logo em seguida vi se aprofundar em seus olhos o brilho de cautela e surgirem linhas rígidas em torno de sua boca. Ele me cumpri­mentou com um sorriso, mas de maneira muito formal, como um jogador fazendo o primeiro lance num jogo de xadrez. Res­pondi com um longo e estudado discurso na qualidade de rep­resentante do rei e depois virei-me para a velha rainha, uma figura imponente ao lado do filho. Ela me cumprimentou com a autoridade que lhe era natural, e em seguida fez um sinal para uma porta que ficava a sua direita. Houve uma onda de mur­múrios quando a multidão se dividiu e a rainha Guinevere surgiu seguida de suas damas.

Ela também esperava Artur. Hesitou por um instante, procu­rando por ele no salão lotado, e seu olhar passou por mim sem me ver. Imaginei que deusa a inspirara a se trajar de verde-claro da primavera, com flores bordadas na frente do vestido. O manto era do mesmo tom, com uma grande gola de marta branca, que emoldurava seu rosto bonito e lhe dava um ar de fragilidade. Estava muito pálida, mas mantinha uma postura ereta e altiva.

Lembrei-me de como a sentira tremer quando a ajudara a sair da jangada improvisada e, levado por esse pensamento, como se tivesse levado um jorro de água fria, me dei conta de que Artur estava completamente certo no que me dissera sobre ela. Guinevere podia ser uma rainha na sua compostura e coragem, mas sob essa camada formal havia uma moça tímida, ansiosa por carinho. A alegria, o riso fácil, a boa disposição da juventude tinham mascarado a procura ansiosa de uma exilada por amizade entre os estranhos de uma corte faustosa, totalmente diferente daquela em que fora criada. Eu, concentrado em Artur por vinte anos, nunca me dera o trabalho de ver nela mais do que inte­ressava ao reino: um vaso para receber a semente do rei, uma parceira para lhe dar prazer e um pilar de beleza para brilhar ao seu lado, como prata ao lado do ouro, no cume de sua glória. Agora eu a via como nunca fizera antes. Uma mocinha bonita, de espírito simples, que tivera a sorte de se casar com o homem mais importante da época. Ser rainha de Artur era carregar um fardo pesado, pois implicava solidão, banimento para um local distante do reino natal e à exposição, devido às constantes au­sências do marido, aos bajuladores e intrigantes, os ansiosos por poder, os invejosos de sua beleza e posição e, talvez mais peri­gosos, os rapazes prontos a venerá-la. E sempre haveria aqueles, quem sabe em número muito maior do que eu imaginava, que sempre repetiam histórias sobre a "outra rainha", a bela Guenever que praticamente concebera na primeira noite do casamento e cuja morte fizera o rei sofrer com imensa amargura. Tudo isso, contudo, não seria nada e se dissolveria no amor de Artur e na satisfação de seu poder como rainha, se tivesse sido capaz de gerar um herdeiro para o reino. Sim, o fato de Artur não usar o caso com Melwas para repudiá-la, abrindo espaço para uma outra rainha, capaz de conceber, era mais do que prova de seu amor. Entretanto, ela ainda não tinha consciência disso e devia estar apavorada. Sim, Artur acertara quando me dissera que Guinevere tinha medo da vida, medo dos que a cercavam, medo de Melwas e, como agora eu podia ver claramente, um medo maior do que todos esses, o medo de mim.

Ela me viu. Os olhos claros se arregalaram e as mãos subiram para segurar a pele da gola num gesto de auto proteção. Houve um segundo de hesitação em seu passo, mas a força da compos­tura a fez continuar avançando com a mesma pose ereta até tomar seu lugar ao lado da rainha, no lado oposto ao de Melwas, sem olhar para ele.

Um longo silêncio caiu sobre o salão como se fosse um manto pesado. Um vestido qualquer farfalhou e o ruído foi tão claro como se uma árvore estivesse sendo soprada por um vendaval.

Eu me adiantei e curvei-me respeitosamente diante de Guine­vere, como se ela fosse a única pessoa presente.

— Saudações, senhora, é uma prazer vê-la recuperada. Eu vim, com outros de seus amigos e criados, para acompanhá-la até seu lar. O Grande Rei a espera em seu palácio em Camelot.

O sangue lhe subiu às faces. Já vi olhos como os dela em jovens veados atirados ao chão, esperando pelo golpe da lança. Ela murmurou alguma coisa e depois emudeceu. Para encobrir seu mal-estar e dar-lhe tempo para se refazer, virei-me para Mel­was e sua mãe, iniciando um discurso formal, elaborado, agradecendo-lhes por terem cuidado da rainha de Artur. Ficou patente para mim, enquanto eu falava, que a mãe de Melwas não tinha idéia de que havia algo de muito serio acontecendo. Enquanto seu filho me observava com um olhar ousado, tentando disfarçar a mistura de cautela e desafio que havia em sua expressão, a velha senhora me respondeu com agradecimentos igualmente po­lidos, mensagens para Artur, elogios a Guinevere e, finalmente, com um convite enfático para ela continuar aceitando sua hos­pitalidade. Ao ouvir isso a jovem rainha ergueu o olhar para mim, mas no mesmo instante escondeu-os de novo. Enquanto eu declinava do convite, vi suas mãos se relaxarem. Calculei que não houvera oportunidade para Melwas falar com ela desde a despedida na cabana de caça, de modo a descobrir o que contara a Artur. Penso que ele pretendia insistir em nossa estada em Ynys Witrin por algum tempo, mas algo em meu olhar o fez calar. Sua mãe, aceitando a decisão, virou-se para mim com óbvia ansiedade, fazendo a pergunta que mais a interessava:

— Procuramos pelo senhor na noite do acidente, príncipe Merlin. Soube que o senhor teve uma visão que o levou a encontrar a rainha Guinevere antes mesmo de meu filho voltar para cá em busca de ajuda. Tão emocionante! Poderia nos contar exatamente o que viu?

Melwas endireitou-se com um movimento brusco e me desafiou com o olhar. Sorri e o encarei até ele abaixar os olhos. Sem que eu procurasse forçar, a velha rainha fizera a pergunta que eu mais desejava responder.

— Com todo o prazer, senhora — disse em tom alto e claro. — É verdade que tive uma visão mas, se ela veio dos deuses do ar e do silêncio que tantas vezes me falaram no passado ou da Grande Deusa que é venerada aqui, não sei dizer. Foi uma visão dupla, um sonho colorido através do qual se vê um outro sonho, mais escuro. As cenas se confundiam, mas o significado estava claro. Eu poderia tê-los obedecido mais rapidamente, mas penso que os deuses desejavam outra atitude de minha parte.

Guinevere ergueu a cabeça ao ouvir minhas últimas palavras e voltou a arregalar os olhos. Vi outra vez a centelha de dúvida na fisionomia de Melwas.

— Outra atitude? — repetiu a velha rainha. — Eles não queriam que a rainha fosse encontrada? Trata-se de uma charada, príncipe Merlin?

— Vou explicar tudo, senhora, mas primeiro tenho de lhe con­tar sobre um sonho que tive. Vi um salão de rei com piso de mármore e colunas de ouro e prata, completamente vazio, mas onde queimavam lampiões e velas perfumadas, iluminando-o como se fosse dia... — Eu deixara minha voz tomar o ritmo do bardo que canta para uma platéia. Sua ressonância enchia o salão e levava as palavras por entre as colunas das portas de entrada até a multidão silenciosa que ocupava os jardins do palácio. De­dos se moveram para fazer o sinal contra a magia poderosa, inclusive os de Guinevere. A velha rainha ouvia com evidente prazer e satisfação; afinal, era a principal patrona do santuário da deusa. Quanto a Melwas, enquanto eu falava vi-o passar da desconfiança para a apreensão, depois para a perplexidade e fi­nalmente um temor assustado.

Para todos os que se encontravam ali, o sonho já tomara um padrão conhecido, o arquétipo da jornada de todos os homens para o mundo do qual raros viajantes retornam.

— ...e sobre a mesa havia um tabuleiro precioso com peças em ouro e perto estava um grande trono com os braços em forma de cabeças de leão esperando pelo rei e uma banqueta de prata, com pernas em formato de patas de pombas, para a rainha. Por isso soube que eu estava no salão de Llud, onde é guardado o cálice sagrado e onde uma vez esteve a espada que agora pende de uma parede em Camelot. E vindo do alto, no céu acima da colina oca, ouvi-os galopando, a Caçada Selvagem, onde os ca­valeiros do Sobrenatural perseguem sua presa e a levam bem para o fundo, para os corredores cravejados de pedras preciosas, de onde não existe volta. Mas, exatamente quando eu estava co­meçando a imaginar que o deus queria me dizer que a rainha Guinevere estava morta, a visão mudou...

A minha direita havia uma janela alta pela qual eu podia ver uma nesga de céu por entre os galhos das macieiras. Os brotos verdes muito claros se destacavam contra o cinza-chumbo das nuvens. Todavia, eu ainda sentia a mudança se aproximando, como acontecera de manhã. Com os olhos na janela continuei minha história, falando mais vagarosamente.

— ...vi-me num salão mais antigo, uma caverna muito pro­funda. Eu agora estava no outro mundo e tinha diante de mim o Rei das Sombras, que é ainda mais velho do que Llud, e sentada a seu lado a pálida e jovem rainha que um dia foi arrancada dos luminosos campos de Enna e levada para o mundo quente para se tornar a Rainha do Inferno: Perséfone, filha de Deméter, a Mãe de tudo o que cresce na face da terra...

As nuvens escuras moviam-se lentamente e de algum lugar começou a soprar uma brisa que fazia estremecer os galhos das macieiras.

A maioria dos presentes devia conhecer pelo menos parte da história, mas mesmo assim eu a contei para a óbvia satisfação da velha rainha que, como todos os devotos da Grande Mãe, sentia a ameaça contra seu culto até mesmo na ilha. Uma vez, quando Melwas fez menção de me interromper, ela o silenciou com um gesto e estendeu a mão para puxar Guinevere mais para perto de si. Fingi não ver nada e, olhando para a janela alta, contei a lenda do rapto de Perséfone por Hades, e a longa e exaustiva busca em que Deméter, a Deusa Mãe, se empenhara, enquanto a terra, de quem fora roubada o crescimento da pri­mavera, era tomada pelo frio e escuridão.

Os galhos foram tocadas pelos raios do sol, tornando-se su­bitamente dourados.

— E, quando a visão se desfez, eu já sabia o que ela significava. A rainha, nossa bela e jovem rainha, estava viva e ilesa, socorrida pela Deusa, esperando apenas que alguém viesse para levá-la de volta ao lar. E, com sua vinda, a primavera finalmente chegará, as chuvas frias cessarão e mais uma vez nosso solo nos dará ricas colheitas na paz trazida pela espada do Grande Rei e na alegria trazida pelo amor da rainha por ele. Esse foi o sonho que eu tive e que eu, Merlin, príncipe e profeta, interpretei para vocês. — Falei então diretamente para a velha rainha, não dando atenção a Melwas: — Portanto, eu lhe rogo agora, senhora, que me deixe levar a rainha de volta ao lar, com honra e júbilo.

E, naquele instante, o sol abençoado surgiu com toda sua força e lançou um raio que tocou o chão junto aos pés de Guinevere, deixando-a, toda ouro, branco e verde, numa poça de luz.

 

Voltamos para Camelot sob um céu azul e sentindo o aroma das prímulas que cresciam à beira da estrada. As nuvens tinham desaparecido e o lago mostrava-se azul e cintilante por trás dos salgueiros amarelados que pendiam em suas margens. Uma an­dorinha recém-chegada piou atrás de insetos, mergulhando perto da superfície espelhada. E a Rainha da Primavera, recusando-se a usar a liteira que fora providenciada para ela, cavalgava ao meu lado.

Ela falou comigo uma única vez, sendo breve:

— Eu menti naquela noite. O senhor sabe?

— Sim.

— Então o senhor vê? Vê mesmo? Vê tudo?

— Vejo muitas coisas, desde que me empenhe em ver e se for da vontade de meu deus.

Um leve rubor tomou conta de suas faces e seu olhar pareceu mais claro, como se algo a tivesse libertado. Anteriormente eu acreditava que ela era inocente. Agora eu sabia.

— Então o senhor contou a verdade ao meu senhor. Quando ele não veio para me buscar, senti muito medo.

— Você não precisa ter medo, nem hoje nem nunca, e jamais duvide de que Artur a ama. E posso lhe dizer também, Guinevere, minha prima, que mesmo que você não possa dar um herdeiro para a Bretanha, ele jamais pensará em repudiá-la. Seu nome estará ligado ao dele, enquanto o Grande Rei for lembrado.

— Vou tentar — disse ela tão baixinho que mal consegui ouvi-la.

Então avistamos as torres de Camelot e ela caiu em silêncio, preparando-se para o que estava por vir.

 

E assim foram lançadas as sementes da lenda. Durante as dou­radas semanas de primavera que se seguiram, mais de uma vez ouvi homens comentando baixinho sobre o "rapto" da rainha e como quase fora levada para os corredores sombrios de Llud, sendo salva por Bedwyr, o mais importante dos cavaleiros de Artur. Assim, o ferrão da verdade foi sendo removido, não per­sistindo nenhuma desonra para o rei nem para a rainha, e a Bedwyr, agora curado, foi creditada a primeira de suas muitas glórias, que aumentavam continuamente sua estatura de herói.

Quanto a Melwas, nesse contar e recontar do acontecido, ele acabou sendo igualado ao "Rei das Sombras", devido ao seu tipo moreno e ao fato de ter sua fortaleza no imponente e lendário Tor. Ninguém, contudo, sabia o que ele pensava. Deve ter-se dado conta de que Guinevere contara a verdade ao marido, ou cansou-se de ser o vilão da história, ou ainda de esperar, como todos, pelo primeiro movimento do Grande Rei contra ele. Talvez tenha até acalentado esperanças de que num futuro distante con­seguiria possuir a rainha.

Seja qual tenha sido o caso, foi seu o primeiro lance, dando a abertura para Artur. Numa manhã apresentou-se em Camelot, e deixando, sem dúvida a contragosto, sua escolta no lado de fora do Salão do Conselho, sentou-se na Cadeira do Queixoso.

 

O Salão do Conselho fora construído no estilo de um salão menor que Artur vira em uma das visitas que fizera ao pai de Guinevere em Gales, que, por sua vez, nada mais era do que uma versão aumentada da casa redonda dos chefes celtas. Em Camelot ele era um edifício grande e circular, com pilares de pedra polida separados por paredes de tijolos romanos trazidos de uma olaria há muito abandonada. Nele havia uma enorme porta dupla de carvalho, onde estava entalhada a figura do dragão. No interior, o espaço era totalmente livre e os ladrilhos do piso partiam do centro, como uma teia de aranha. E, como o anel externo de uma teia, as paredes não eram curvas, mas seccionadas com painéis planos. Estes estavam cobertos com esteiras de palha dourada para evitar correntezas de ar, mas com o tempo ostentariam ricas tapeçarias, que já estavam sendo bordadas sob a supervisão de Guinevere. Em cada uma dessas seções ficava uma poltrona com sua banqueta, e a do rei tinha o mesmo ta­manho de todas as outras, porque, segundo ele, aquele salão seria um local para conversas francas entre o Grande Rei e seus pares, e onde qualquer um dos líderes do reino poderia trazer seus problemas para serem analisados. A única coisa que marcava a poltrona de Artur era o escudo branco que pendia na parede acima dela; com o tempo, talvez, o dragão cintilaria ali em ouro e escarlate. Alguns painéis já exibiam os brasões dos Compa­nheiros. A poltrona diretamente oposta à do rei ficava vazia e sem ornamentos, e seria ocupada por qualquer pessoa que tivesse uma questão para ser resolvida pelo conselho. Artur a chamava de Cadeira do Queixoso, mas anos depois a ouvi chamarem de Cadeira Perigosa, talvez devido ao que aconteceu nesse dia.

 

Eu não estava ali quando Melwas apresentou sua queixa. Em­bora na época houvesse um lugar para mim no Salão Redondo, como veio a ser chamado, eu raramente o ocupava, porque acre­ditava que, se ali todos eram iguais, o rei também tinha de ser igual em conhecimento, julgando e opinando sem depender dos conselhos de um mentor.

Artur e eu, contudo, discutíamos os mais variados temas em particular, e falamos muito sobre o caso Melwas antes de ele chegar à mesa do conselho. De início Artur imaginava que eu tentaria impedi-lo de entrar em luta com o rei de Ynys Witrin, mas essa foi uma ocasião em que houve coincidência entre a frieza e o temperamento acalorado. Artur resolveu que se con­tentaria em ver Melwas sofrer em público pelos seus atos e eu pensava que esse seria o modo mais expedito de pôr um fim nessa história desagradável. O tempo que se passara e o silêncio do Grande Rei, complementados pela lenda que eu evocara, ga­rantiram que a honra de Guinevere não fosse questionada. O povo voltou a tratá-la com carinho e em suas saídas formais ela era homenageada com pétalas de rosa que transmitiam as bênçãos de seus súditos. Essa era sua rainha, a menina de seus olhos, da qual quase haviam sido privados pela morte, mas que fora salva pela mágica de Merlin. Era essa a história que corria entre o povo, mas, entre os mais mundanos, havia os que esperavam a ação do Grande Rei contra Melwas e o desprezariam se ele não lavasse sua honra. A disciplina que Artur se impusera no que dizia respeito ao rapto da rainha fora extremamente severa mas, quando descobriu que eu concordava com suas idéias, pôs-se, com feroz alegria, a elaborar seus planos.

Claro que ele poderia ter convocado o rei Melwas para se apresentar no Salão do Conselho usando um pretexto qualquer, mas isso não fazia parte de seu projeto.

— Se o perturbarmos até ele vir pessoalmente se queixar não haverá uma grande diferença. Todavia — acrescentou secamente —, para aplacar minha consciência, ou meu orgulho, se quiser, não usarei uma acusação falsa no Salão Redondo. Ele deve ser conhecido como um lugar onde nenhum homem precisará sentir medo de se apresentar a mim, a não ser que a falsidade seja dele.

Foi por isso que o perturbamos. Como a ilha estava situada entre a fortaleza do Grande Rei e o mar, não houve dificuldade para encontrarmos motivos, porque de uma ou outra maneira sempre haveria desentendimentos sobre taxas portuárias, direito de passagem, pagamento de pedágio e outros impostos decreta­dos arbitrariamente e acaloradamente contestados. Qualquer um dos reis menores teria ficado inquieto com a torrente constante de queixas de pouca importância, mas Melwas foi rápido em protestar. Segundo Bedwyr, a quem devo o relato sobre o que aconteceu na reunião do conselho, ficou claro desde o início que Melwas adivinhava que fora trazido diante do Grande Rei para responder a uma acusação mais antiga e muito mais perigosa. Todavia, ele não permitiu que nenhuma insinuação a respeito saísse de seus lábios, porque isso com certeza significaria uma sentença de morte por traição, que seria votada com unanimi­dade. E foi por causa disso que as reclamações sobre taxas e impostos, e o preço correto que deveria ser pago pela proteção oferecida por Camelot, correram seu curso enfadonho, enquanto os dois homens se observavam mutuamente, como espadachins esperando a oportunidade para o primeiro golpe.

Foi Melwas quem sugeriu um combate direto. Não ficou bem claro como ele se viu levado a isso, mas creio que não foi preciso muito. Jovem, impetuoso, bom guerreiro e sabendo que corria grave perigo, deve ter se agarrado à oportunidade de uma solução rápida e decisiva, que lhe dava pelo menos uma meia esperança de êxito. O fato é que ele disse:

— Um duelo para acertarmos esses assuntos aqui mesmo e de homem para homem, ou jamais resolveremos nossas diferen­ças como vizinhos! Você é a lei, Artur! Então prove isso com sua espada!

Houve um grande tumulto, com argumentos voando de um lado para outro do salão. Os mais idosos dos presentes conside­ravam impensável o Grande Rei se arriscar pessoalmente, mas a essa altura todos já tinham idéia de que havia mais em jogo do que taxas portuárias, e os cavaleiros mais jovens mostravam-se ansiosos por assistirem a uma luta. Vários deles, sendo Bedwyr o mais insistente, ofereceram-se para combater em lugar de Artur até que ele, finalmente e esperando o momento certo, levantou-se com um movimento decisivo. No súbito silêncio que se seguiu caminhou até a mesa redonda que ficava no centro do salão, pegou as placas de argila onde estavam listadas as queixas de Melwas, e atirou-as ao chão, quebrando-as em pedacinhos.

— Agora tragam minha espada — falou.

 

Era meio-dia quando os dois se enfrentaram num terreno pla­no, situado no canto nordeste de Caer Camel. O céu estava claro, sem nuvens, mas uma brisa fresca amainava o calor do dia. As bordas do campo fervilhavam de pessoas e havia grupos de es­pectadores até nos caminhos de ronda no alto da muralha. No terraço de uma das torres douradas avistei o colorido dos vestidos das mulheres que haviam se juntado para assistir ao duelo. A rainha usava branco, a cor de Artur, e imaginei como estaria se sentindo, mas adivinhando que esconderia o medo com sua ha­bitual compostura. Então uma trombeta tocou e o silêncio caiu.

Os dois combatentes apresentaram-se com lanças e escudos, tendo espada e punhal na cintura. Artur não usava Caliburn, a espada real. Sua armadura, constituída de um elmo leve e colete de couro, era absolutamente simples, sem nenhuma jóia ou bor­dado. Melwas vestia-se mais luxuosamente e era um pouco mais alto do que o rei. Em sua expressão havia ânsia e ferocidade, e o vi lançar um olhar para a torre do palácio onde estava a rainha. Artur não olhava para os lados. Mantinha uma aparência fria, denotando grande experiência, enquanto ouvia atenciosamente o anúncio formal do arauto.

Havia um sicômoro num dos lados do campo e Bedwyr, ao meu lado, sob a sombra bem-vinda, lançou-me um longo olhar e depois suspirou com alívio.

— Você não está preocupado. Graças a Deus!

— Isto iria acontecer mais cedo ou mais tarde. Assim é melhor. Mas, se houvesse perigo para ele, eu teria impedido o duelo.

— Mesmo assim, é loucura. Claro, sei que Artur sempre quis isso, mas não deveria jamais arriscar-se assim. Podia ter-me in­dicado como campeão do rei.

— E que tipo de exibição você faria? Ainda está mancando, seria facilmente derrotado e eu teria de começar toda a lenda de novo. Lembre-se de que o povo simples acredita que o direito está com a espada mais forte.

— E é o que está acontecendo hoje, ou você não ficaria tão calmo. Mas eu gostaria...

— Sei do que você gostaria e penso que verá seu desejo rea­lizado não uma, mas muitas vezes antes do fim de sua vida.

Bedwyr lançou-me um olhar rápido e começou a dizer alguma coisa, mas nesse momento o pendão foi baixado, dando início ao duelo.

Os dois andaram em círculo por um longo tempo, lanças em posição de ataque e escudos protegendo o corpo. Melwas atacou primeiro, atirando a lança com grande força e velocidade. O es­cudo de Artur subiu num átimo de segundo e desviou seu curso, e ela se enfiou inofensivamente no chão relvado. Melwas, levando a mão para o punho da espada, saltou para trás, mas Artur, no mesmo instante em que se defendia do primeiro ataque, atirou sua própria lança e assim cancelou a vantagem do adversário. Todavia, não puxou a espada. Estendeu o braço, pegou a lança inimiga espetada ao seu lado e a atirou toda a força. Melwas, esquecendo-se da espada, desviou a lança com o escudo e virou-se, rápido como uma raposa, para pegá-la. Os dois voltaram a se enfrentar em condições de igualdade.

A arma de Artur, acionada com mais força e aparada com maior desespero, saiu voando para um lado e parou longe da mão de Melwas. Não havia esperança de ele conseguir apanhá-la antes de Artur pegar a que ele atirara. Com o escudo, foi aparando os golpes e se dirigindo para a arma caída, na esperança de re­tomar a vantagem. Artur mexeu o braço e a lâmina da lança brilhou ao sol, atraindo o olhar de Melwas. Este abaixou-se, er­guendo o escudo para a linha de trajetória da lança, e, ao mesmo tempo, estirando o braço para apanhar a arma caída. O movi­mento do rei, contudo, fora um blefe e assim, no instante em que Melwas inclinou-se, a outra lança veio reta e baixa, atingin­do-o no braço esquerdo. A espada de Artur praticamente saltou em sua mão enquanto ele seguia a trajetória da lança.

Melwas cambaleou. Uma grande grito saído da multidão ecoou nas muralhas enquanto ele se reequilibrava, pegava a lança e a atirava direto para o rei.

Se fosse um bocadinho mais rápido, Artur teria se aproximado do adversário antes de ele atirar a lança, mas, do jeito que acon­teceu, a arma atingiu o alvo quando ele estava a meio caminho do espaço entre os dois. Artur pegou-a com o escudo, mas, devido à distância curta, a força foi grande demais para ser desviada. Ainda com a espada na mão direita, ele sacudiu o escudo, ten­tando tirar a ponta da lança dali, mas ela se enfiara perto de uma das tiras de metal e ficara presa nas rebarbas. Artur jogou o escudo no chão e correu para Melwas, com nada para defender seu lado exposto senão o punhal que carregava na mão esquerda.

Melwas não teve tempo de se recuperar e pegar a lança. Com o sangue escorrendo pelo braço, arrancou como pôde a espada da bainha e enfrentou o ataque do rei, corpo a corpo, com um impressionante ruído de metal contra metal. Eles continuavam como adversários equilibrados, pois o ferimento de Melwas con­trabalançava o lado não protegido do rei. Melwas era famoso pela sua habilidade com a espada e nos primeiros minutos do combate corpo a corpo concentrou todos os seus golpes nesse lado, mas eles sempre tocavam em metal, habilmente desviados.

Passo a passo o rei começou a pressioná-lo, passo a passo Melwas foi sendo forçado a recuar. A perda de sangue o enfraquecia. Artur parecia ileso e avançava sem piedade, atacando e se de­fendendo com o punhal, que sibilava com a rapidez de seus mo­vimentos. Atrás de Melwas estava a lança caída e ele sabia disso, mas não se atrevia a desviar o olhar para ver se conseguiria alcançá-la. O pensamento, contudo, afetou sua atenção e tornou-o mais vagaroso. Agora suava abundantemente e começara a resfolegar como um cavalo esgotado.

Houve um momento em que os dois, corpo a corpo, arma a arma, se entrelaçaram, totalmente imóveis. O rei disse alguma coisa em tom baixo, sem modificar sua expressão fria. Ninguém pôde ouvir o que ele falou, embora a multidão em torno do campo se mantivesse silenciosa, prendendo a respiração. Melwas não respondeu de imediato. Houve uma pausa, depois um gesto ágil, uma súbita pressão e então ele rosnou uma resposta. Artur desvencilhou-se com habilidade e, com outra frase em voz baixa, atacou de novo.

A mão direita de Melwas era uma massa coberta de sangue. Sua espada movia-se cada vez mais devagar, como se estivesse ficando pesada demais para ele. Com um grunhido de supremo esforço, ele usou o escudo como se fosse um machado para tentar atingir o rei. Artur agachou-se, mas escorregou e a beira do escudo golpeou o ombro direito, o que deve ter entorpecido seu braço. A espada voou para longe. Houve um soluço coletivo, seguido de um grande grito dos espectadores. Melwas soltou um berro e adiantou a espada para o golpe final.

Artur, porém, agora armado somente com o punhal, não re­cuou para se defender. Antes de qualquer um dos presentes con­seguir respirar, ele saltou pára a frente e a lâmina comprida do punhal picou o pescoço de Melwas na altura da garganta.

Ele permaneceu ali, extraindo apenas um fiozinho de sangue. Não houve o impulso que faria a lâmina entrar. Artur falou de novo, com a expressão feroz. Melwas parecia paralisado. A es­pada caiu da mão erguida e o escudo tombou ao chão.

O punhal se afastou. O rei deu um passo para trás. Bem de­vagar, diante da multidão, dos seus soldados e da rainha que a tudo assistia de sua torre, Melwas, o rei de Summer Country, ajoelhou-se na relva empapada de sangue e rendeu-se para o Grande Rei.

Não houve nenhum som.

Com um gesto lento, quase cerimonioso, Artur levantou o pu­nhal e atirou-o de ponta no chão, onde ficou enfiado, vibrando. Depois falou novamente, ainda mais baixo do que antes. Dessa vez, de cabeça abaixada, Melwas respondeu. Os dois conversaram por algum tempo. Finalmente o Grande Rei, com um floreio foi-mal, estendeu a mão e ajudou Melwas a se levantar. Fez então um sinal para que os homens do vencido viessem ajudá-lo e virando-se, caminhou altivamente para a porta do palácio.

 

Anos depois, comecei a ouvir diferentes versões da história do duelo. Umas diziam que Bedwyr, e não Artur, enfrentara o cavaleiro negro. Outras garantiam que a luta de fato não existira, pois nesse caso Melwas não escaparia com vida e algumas acres­centavam que os dois tinham usado os préstimos de um mediador no Salão do Conselho para chegar a um acordo.

Nada disso é verdade. Tudo aconteceu exatamente como es­crevi. Mais tarde Artur me contou sobre o que eles tinham con­versado no combate. Melwas, esperando a morte, admitiu que a história da rainha era a verdadeira. Isso teria permitido a Artur executá-lo ali mesmo, mas ele, com sabedoria (e sem me ter pe­dido opinião), agiu com uma grandeza digna de sua fama. O fato é que desde esse dia Melwas tornou-se completamente leal a ele e sua capital, Ynys Witrin, passou a ser considerada uma jóia entre as cidades sob a soberania do Grande Rei.

Atualmente é público e notório que os navios do rei não pagam mais taxas portuárias.

 

E assim o ano foi passando e chegou o mês mais encantador, setembro, mês de meu aniversário, mês do vento, mês do corvo e mês do próprio Myrddin, esse eterno viajante entre o céu e a terra. As macieiras estavam pesadas de frutos, as ervas colhidas secavam à sombra e em meu laboratório jarras e caixas esperavam a hora de serem enchidas. A casa inteira, o jardim, a torre, até o quarto de dormir estavam perfumados pelo aroma doce das plantas e frutos, do mel que escorria das colméias, em especial a que ficava num oco de carvalho bem no fundo do pomar. Applegarth refletia em suas pequenas dimensões a abundância dou­rada do verão do reino. Verão de rainha, diziam os camponeses, quando a colheita se seguiu ao corte do feno e ainda assim o solo continuava produzindo sob as bênçãos da deusa. Uma idade de ouro, comentavam. Para mim também era uma idade de ouro, mas agora, como nunca antes, eu tinha tempo para me fechar em solidão. Ao entardecer, quando soprava o vento sudoeste, eu podia senti-lo em meus ossos e dava graças pelo fogo em minha lareira. Os meses de indigência, fome e exposição aos elementos na floresta tinham me deixado uma herança que nem mesmo um organismo jovem teria condições de eliminar, a qual me em­purrava para a velhice.

Havia um outro legado dessa época: devido a um efeito re­tardado do veneno de Morgause, ou causado por algo desconhe­cido para mim, eu agora enfrentava de tempos em tempos breves ataques de uma doença que teria chamado de mal dos deuses ou epilepsia, se não soubesse que ela não pode surgir pela pri­meira vez na maturidade. Além disso, os sintomas eram bastante diferentes dos casos que eu vira ou tratara. Eu já tivera três ata­ques, sempre quando estava sozinho e ninguém os presenciara. Repousando calmamente, eu imaginava que estava pegando no sono, mas acordava horas depois com os membros gelados e rígidos, e fraco de fome, embora não sentisse vontade de me alimentar. Na primeira vez passaram-se doze horas, mas pela tontura e cansaço com que acordei calculei que não fora um sono normal. Na segunda fiquei desacordado por duas noites e um dia, e foi sorte eu sofrer o ataque quando estava seguro em minha cama.

Não contei a ninguém sobre eles. Quando o terceiro ataque estava iminente, reconheci os sinais: uma sensação de leveza, de fome, uma leve tontura, o desejo de ficar em silêncio e deitar. Aproveitei então para dispensar Mora, trancar a porta e reco­lher-me para o quarto. Quando ele terminou, tive a impressão de que saíra de um período de profecia, quando costumava voltar a mim renovado, com os sentidos claros como se tivessem aca­bado de ser criados. Naturalmente procurei esclarecimento em meus livros, mas não encontrando ajuda neles, resolvi não pro­curar mais, aceitando o mal como eu aprendera a aceitar as dores da profecia e de sua retirada como um toque da mão do deus. Talvez agora essa mão estivesse me puxando mais para perto. Não houve temor nesse pensamento. Eu fizera o que ele pedira de mim e, quando chegasse a hora, estaria pronto para partir.

O deus, porém, em sua bondade, não exigiu o sacrifício de minha honra. Que os homens se lembrassem do profeta e mago real que se aposentara do mundo e do serviço do rei na hora por ele mesmo determinada e não como um velho senil que es­perara demais para ser dispensado.

Assim me mantive em meu isolamento, ocupando-me com o jardim e minha medicina, escrevendo longas cartas a Blaise e sendo cuidado por Mora, cuja comida às vezes era enriquecida por presentes vindos das despensas de Artur. Eu também enviava presentes a Camelot: uma cesta de maçãs escolhidas, especial­mente saborosas, elixires estimulantes e medicamentos, perfumes para o prazer da rainha, temperos para a cozinha do palácio.

Coisas muito simples depois das fogosas dádivas de profecia e vitória, mas muito mais adequadas a uma idade de ouro. Pre­sentes de carinho e satisfação, porque agora todos tinham tempo para eles. Nada parecia turvar o brilho desses dias, mas às vezes eu sentia o formigamento que me avisava de uma mudança que se aproximava, algo que eu não temia, mas que era tão inevitável como a queda das folhas no outono e a chegada do inverno.

Não me permiti pensar no que viria. Agia como um homem sozinho numa sala, bastante satisfeito, mas prestando atenção a sons que poderiam vir de trás da porta fechada, esperando meio esperançoso a chegada de alguém, mesmo sabendo bem no âma­go que esse alguém não viria.

Mas ele veio.

Chegou num encantador início de noite, por volta dos meados do mês. Havia uma lua cheia, que surgira no céu muito antes do crepúsculo e parecia pender dos galhos das macieiras como um enorme lampião cuja luz criava anéis dourados. Eu estava no laboratório, amassando uma porção de hissopo seco, que exa­lava seu doce perfume. Uma mariposa, atraída pelo calor do cô­modo, voou vagarosamente até pousar no peitoril da janela. Ouvi os passos leves atrás de mim e me virei.

Costumam me chamar de mago e mago eu sou. Todavia, não esperava sua vinda nem o ouvi até vê-lo parado na porta, ilu­minado pelo dourado da lua. Poderia ser um fantasma pelo modo como fiquei ali fitando-o, como transfixado. O encontro na névoa da margem da ilha voltava-me à mente com freqüência, mas ja­mais como algo real, e quanto mais eu me esforçava para lembrar de seus detalhes, mais ele se tornava parecido com um sonho, algo imaginado, nada mais do que uma esperança.

Mas agora o menino estava ali, em carne e osso, corado, sor­rindo, mas não completamente à vontade, como se não tivesse certeza de que seria bem recebido. Segurava uma trouxa que, imaginei, devia conter suas coisas e vestia-se de cinzento, com uma capa castanha, sem armas nem enfeites.

Ele começou:

— Acho que não se lembra de mim, mas...

— E por que não deveria lembrar? Você é o rapaz que não é Ninian.

— Oh, mas eu sou. Quer dizer, esse é um de meus nomes, juro.

— Entendo. Então, quando o chamei...

— Sim. Assim que o senhor falou, achei que me conhecia, mas... quando disse quem era... Bem, eu sabia que o senhor tinha se enganado e... senti medo. Desculpe-me. Eu devia ter lhe dito desde o começo, em vez de fugir daquele jeito. Desculpe.

— Mas quando falei que queria lhe ensinar minha arte e lhe pedi para me procurar, você concordou. Por quê?

As mãos, muito brancas contra o tom escuro da trouxa, se contorceram em torno de uma dobra do tecido. Ele continuava parado na porta, mas parecia pronto a fugir.

— Foi porque... Quando o senhor disse que ele, esse outro menino, era... era o tipo de pessoa que poderia aprender com o senhor... Era algo que os dois sabiam... Bem... — Ele engoliu em seco. — Eu acredito que também sou capaz. Venho sentindo, ao longo de minha vida, que no fundo da mente existem portas que podem ser abertas. Basta alguém ter a chave. — Sua voz foi su­mindo, mas ele continuava com os olhos fixos nos meus.

— E então? — Não lhe ofereci ajuda.

— Então, quando o senhor falou comigo daquele jeito, sem mais nem menos, no meio da neblina, foi como um sonho se tornando realidade. O próprio Merlin, chamando-me pelo nome, oferecendo-me essa chave... Mesmo quando percebi que o senhor tinha me confundido com alguém que estava morto, um pensa­mento louco me disse que deveria procurá-lo para ocupar esse lugar... Depois, naturalmente, percebi que estava agindo como um tolo, imaginando que conseguiria enganar o senhor, de todas as pessoas neste mundo. Então não me atrevi a vir.

— Mas agora se atreveu.

— Fui obrigado. — Ele falou como se estivesse apenas rela­tando um fato. — Não consegui pensar em outra coisa desde aquela noite. Sentia medo porque... sentia medo, mas existem coisas que temos de fazer, coisas que não nos abandonam, que parecem nos impulsionar. Mais do que impulsionar, nos obrigar. O senhor entende?

— Muito bem.

Foi difícil manter a voz grave e segura. Mas deve ter havido nela uma nota da alegria que meu coração sentia, porque, vinda bem baixinho e doce do segundo andar, ouvi a resposta de minha harpa. Ele não ouvira. Continuava rígido, forçando-se ao papel de suplicante.

— Agora o senhor sabe a verdade. Não sou o menino que o senhor conheceu. O senhor não sabe nada a meu respeito. Apesar de tudo o que senti aqui — uma mão se levantou como para tocar o peito, mas voltou a se fechar em torno da trouxa —, talvez esteja pensando que não sou digno de ser ensinado nem de passar algum tempo a seu lado. Mas... mas se me permitir ficar aqui... posso dormir na cocheira, qualquer lugar... para aju­dá-lo em tarefas como essa... — Lançou um olhar para a pilha de hissopo. — Até me conhecer melhor... — A voz tremeu e dessa vez sumiu. Ele umedeceu os lábios secos e ficou mudo, me observando.

Foi meu olhar que baixou, não o dele. Virei-me para esconder a alegria que estava fazendo o sangue subir a minhas faces. Enfiei as mãos na erva perfumada e esfreguei uma pitada dos fragmen­tos entre os dedos. O aroma, limpo e pungente, subiu para me acalmar.

Falei vagarosamente, dirigindo-me aos jarros:

— Quando o vi no lago, pensei que você fosse um menino que viajou comigo para o norte há muitos anos atrás e que tinha um espírito que combinava com o meu. Ele morreu afogado e nunca me recuperei totalmente dessa perda. Quando o vi no bar­co, imaginei que ele havia se salvado de alguma maneira, mas, quando tive tempo de pensar no assunto, me dei conta de que não seria mais um menino, e sim um adulto. Foi, pode-se dizer, um erro estúpido. Em geral não cometo erros desse tipo, mas com o passar do tempo me convenci de que ele fora causado pelo cansaço e pela saudade, pela esperança que ainda estivesse viva em mim de que um dia, ele ou outro espírito similar, viria me procurar.

Parei de falar. Ele não disse nada. A lua agora havia se afastado e a porta estava às escuras. Virei-me para ele e continuei:

— Eu devia saber que não foi um erro, mas que foi a mão do deus que fez seu caminho cruzar com o meu e que agora o trouxe a mim, apesar de seu temor. Você não é o menino que eu conheci mas, se não fosse a pessoa certa, eu não o teria visto nem con­versado com você daquele jeito. Aquela foi uma noite de magia. Eu devia ter me lembrado disso e confiado.

— Eu também senti isso — apressou-se ele a dizer. — Podia sentir as estrelas como flocos de neve em minha pele. Eu saíra para pescar, mas desisti porque me pareceu que não era uma noite para mortes, nem mesmo de um peixe. — Percebi que ele sorriu, mas, quando voltou a falar, a voz saiu nervosa: — Quer dizer então que posso ficar? Que vou servir?

— Você vai servir. — Tirei as mãos do hissopo e esfreguei-as para deixar os fragmentos caírem no pano. — Quem somos nós, depois de tudo o que aconteceu, para contrariarmos o deus que nos impulsiona? Não tenha medo de mim. Você é bem-vindo. Saiba, contudo, que quando eu tiver tempo para ser cauteloso, o alertarei sobre a tarefa pesada que você tem à frente e sobre os espinhos que encontrará em seu caminho, mas por enquanto não me atrevo a dizer mais nada que o faça fugir novamente de mim. Agora entre e me deixe vê-lo sob a luz.

Enquanto ele me obedecia, tirei de uma prateleira o lampião maior que estava apagado. O pavio pegou fogo no ar e a luz forte se espalhou.

Vendo-o mais de perto, eu soube que nunca poderia tê-lo con­fundido com o escravo do ourives, mas havia certa semelhança entre os dois. O rosto não era tão fino, a pele era mais clara e macia, e as mãos, de dedos longos e com um formato que de­notava inteligência, nunca haviam feito trabalhos pesados. Os cabelos eram iguais, escuros e espessos, cortados retos à altura dos ombros. A boca era tão parecida que eu poderia de novo confundir os dois: as linhas suaves mascaravam uma grande fir­meza, até mesmo obstinação de propósito. O menino Ninian mos­trava um tranqüilo desprezo por tudo o que ele não queria notar; as arengas de seu amo passavam por cima de sua cabeça enquanto ele se refugiava em seus pensamentos. No rapaz diante de mim eu sentia a mesma teimosia suave e, nos olhos, o mesmo olhar meio ausente e sonhador que fechava o mundo para fora com a mesma eficácia de cílios fechados. Os olhos cinzentos tinham uma fina borda negra em torno da íris e, como vim a descobrir posteriormente, que, como a água de um lago, podiam refletir as cores e parecer verdes, azuis ou quase negros, de acordo com o estado de espírito de seu dono. Agora estavam fixos em mim com o que me pareceu um misto de fascínio e temor.

— O lampião? — falei. — Você nunca viu alguém chamar o fogo? Pois é uma das primeiras coisas que aprenderá; foi a pri­meira que meu mestre me ensinou. Ou são os jarros? Está olhando para eles como se eu estivesse engarrafando veneno. Na verdade, estou acondicionando as ervas para serem usadas no inverno.

— Hissopo — disse ele, e pensei ver um leve brilho zombeteiro em seu olhar. — Para ser queimado com enxofre para inflamações da garganta ou fervido com mel para combater a pleurisia.

— Ora, ora, quem diria, Galeno! — Sorri. — Tudo indica que andaremos rápido. Então você sabe ler? Sabe... Não, isso vai ter que esperar até amanhã cedo. Por enquanto, você já jantou?

— Sim, senhor, obrigado.

— Você disse que Ninian era "um de seus nomes". Como gostaria de ser chamado?

— "Ninian" está bem... isto é, se o senhor não se incomodar em usá-lo. Parece que ele se afogou...

— Sim. Estávamos em Corstopitum e ele foi nadar com outros meninos perto da ponte onde o rio Cor deságua no Tyne. Vieram nos avisar correndo que ele fora levado pela correnteza.

— Lamento.

Eu sorri para ele.

— Você vai ter de trabalhar duro para compensar essa perda. Agora venha, Ninian, precisamos encontrar um lugar para você dormir.

 

E foi assim que arrumei um assistente e o deus mais um servo. Sua mão nos estivera guiando. Hoje em dia tenho a impressão de que o primeiro Ninian foi apenas um precursor, como a sombra que vem à frente da pessoa, da criatura que mais tarde eu en­contraria no lago. Desde o início ficou claro que nossas intuições estavam corretas. Ninian do Lago, embora conhecendo pouco das artes que eu praticava, mostrou ser um adepto natural. Apren­dia depressa, embebendo-se tanto em conhecimento como na prá­tica como uma esponja absorve a água. Sabia ler e escrever fluen­temente e, embora não tivesse o dom das línguas como eu na juventude, falava um latim puro além do vernacular, e entendia o suficiente de grego para ler um rótulo ou seguir uma receita com exatidão. Contou-me que em certa época tivera acesso a uma tradução de Galeno, mas só conhecia Hipócrates de ouvir falar. Encarreguei-o de ler a versão latina que eu possuía e tive a impressão de estar voltando à escola, pela infinidade de per­guntas que fazia, cujas respostas eu conhecia há tanto tempo que não me lembrava mais como havia chegado a elas. De música ele não sabia nada e não queria aprender, e essa foi a primeira vez que me vi cara a cara com a delicada e inflexível teimosia que captara nele desde nossa primeira conversa. Ouvia atenta­mente e com um ar sonhador, quando eu tocava ou cantava mas, depois de algumas tentativas de lhe ensinar a tirar algumas notas da harpa grande, acabei desistindo. Seria bom se tivesse voz. Eu não gostaria de ficar sentado vendo outra pessoa tocar minha harpa, mas com a idade minha voz já não era a mesma e seria agradável ouvir uma voz jovem cantando as músicas que eu fi­zera. Mas não. Ninian sorria, balançava a cabeça com determi­nação e só concordava em afinar a harpa, o que aceitara aprender e o fizera com facilidade.

Em tudo o mais, porém, ele se mostrava ansioso para aprender. Recordando-me o melhor possível de como Galapas, meu mestre, me introduzira na magia, eu o conduzi, passo a passo, para o interior dos estranhos e nebulosos salões da arte. Ele já tinha um pouco de vidência, mas dificilmente iria ultrapassar o mestre, como acontecera comigo, e continuava um completo estranho nos vôos da profecia. Para mim, se Ninian conseguisse aprender metade do que eu sabia, já era suficiente. Como todos os velhos, me era impossível acreditar que um cérebro jovem e um corpo delicado seriam capazes de agüentar as tensões que eu suportara tantas vezes. Como Galapas fizera comigo, eu o ajudara com algumas ervas especiais, e em pouco tempo ele já era capaz de ver no fogo ou na chama de uma vela, e acordar depois da visão sem grande cansaço, embora às vezes voltasse perturbado com o que tinha visto. Ainda não conseguia interpretar as cenas cor­retamente e eu não quis interferir, deixando o dom seguir seu curso natural e, de fato, durante esses serenos meses de apren­dizado não aconteceu nada de marcante para ser profetizado no fogo. Uma ou duas vezes Ninian me falou, confuso, sobre a rai­nha, Melwas, Bedwyr e o rei, mas eu não dei grande atenção a essas visões, classificando-as de obscuras.

Ninian recusava-se terminantemente em me contar sobre ele mesmo ou de onde viera. Passara a maior parte da vida na ilha e suas vizinhanças e, pelo que me permitiu captar, seus pais tinham sido moradores pobres de uma das aldeias próximas ao lago. Chamava a si mesmo de Ninian do Lago, e afirmava que isso era suficiente e eu acabei aceitando. Afinal, seu passado não era importante e o que iria ser no futuro dependia de meus en­sinamentos. Não o pressionei porque eu sofrerá demais, como bastardo e criança sem pai conhecido, com esse tipo de interro­gatório. Portanto, eu respeitava os silêncios do rapaz e não per­guntava nada além do que ele se mostrava disposto a dizer.

O que mais o interessou desde o início foi o lado prático da arte da cura, o estudo da anatomia e uso dos remédios, em que se mostrou ser muito bom. Diferente de mim, que nunca tivera talento para isso, ele desenhava com perfeição e começou, nesse primeiro inverno, por puro prazer no trabalho, a compilar um herbário de plantas locais, retratando-as com exatidão, apesar de só contar com as ervas secas, já que a procura e identificação das plantas, que constitui mais do que a metade da arte do mé­dico, teria de esperar até a primavera. Mas ele não mostrava pressa. Achava que tinha, como me disse, a eternidade pela frente.

Assim o inverno se passou numa atmosfera de felicidade, onde cada dia pareceu ser curto demais para tudo o que poderia preen­chê-lo. Estar com Ninian era possuir tudo: minha própria juven­tude, cheia de ânsia para aprender, com a vida se desenrolando plena de brilhantes promessas, e ao mesmo tempo os prazeres do pensamento e da solidão. Ele parecia captar quando eu pre­cisava ficar sozinho e nessas ocasiões ou afastava-se fisicamente, indo para o seu quarto, ou mergulhava num profundo silêncio e abstração que deixavam meus pensamentos livres dele. Como se recusara a dividir a casa comigo, preferindo, como afirmara, ter aposentos só seus onde não seria obrigado a me perturbar, eu mandara Mora arrumar os cômodos que teriam sido usados pelos criados, se algum deles morasse em minha casa. Eles fica­vam sobre a oficina e despensa, dando para o oeste, e, apesar de serem pequenos e com pouca altura devido às vigas do teto, eram aconchegantes e ventilados. No começo imaginei se Mora e Ninian tinham chegado a algum tipo de entendimento, porque passavam muito tempo conversando na cozinha ou perto do ria­cho onde era lavada a roupa. Eu ouvia suas risadas e ficava mais do que claro que os dois se davam bem, mas não havia nenhum sinal de maior intimidade e, com o passar do tempo, percebi que Ninian conhecia tão pouco do amor como eu mesmo, o que não me causou surpresa, porque era natural diante do modo como o poder aumentava nele de forma quase palpável. Os deuses nunca concedem duas dádivas ao mesmo tempo e são ciumentos.

 

No ano seguinte a primavera chegou cedo, com dias ensola­rados em março e bandos de gansos selvagens voltando para o norte. Peguei um tipo qualquer de friagem e passava a maior parte do tempo dentro de casa, mas num dia mais agradável saí para sentar-me no pátio, onde as pombas já se ocupavam em namorar. Por causa do muro aquecido os marmeleiros estavam em flor e as íris de inverno coloriam de azul toda a extensão do canteiro da -base. Eu podia ouvir os golpes da pá de Varro nos jardins atrás da cocheira e pensei preguiçosamente no plantio que eu planejara. Nada passava por minha mente além de projetos vagos e tranqüilos relacionados com a casa e a visão das penas rosadas do peito das pombas...

Mais tarde, lembrando-me desse dia, achei que a doença pos­sivelmente havia me afastado da consciência do presente por cer­ca de uma hora. Seria mais agradável pensar isso, mas o mais provável era que estava doente de velhice, de fraqueza deixada pela friagem e entorpecido pelo contentamento.

Passos rápidos em degraus de pedra me acordaram sobres-saltado. Olhei para cima. Ninian vinha descendo de seu quarto com movimentos incertos, como se fosse ele, e não eu, que esti­vesse meio drogado ou doente. Mantinha uma mão contra a pa­rede de pedra, como se fosse cair se não tivesse apoio. Ainda cambaleando, chegou à colunata e entrou no sol. Fez uma pausa, agarrando-se a um dos pilares. Tinha o rosto pálido e seus olhos estavam enormes com as pupilas negras ocupando toda a íris.

Os lábios aparentavam estar secos, mas havia umidade em sua testa e duas profundas linhas de dor entre as sobrancelhas.

— O que foi? — Assustado, comecei a me levantar, mas ele estendeu uma mão para me acalmar e depois se aproximou e deixou-se cair sentado no piso ao meu lado.

— Tive um sonho — disse, e até mesmo a voz estava diferente. — Não, eu não estava dormindo. Estava lendo perto da janela. Havia uma teia de aranha ali perto, ainda cheia das gotas de água da noite passada. Eu a observava enquanto balançava ao sol...

Entendi o que acontecera. Coloquei a mão em seu ombro e a deixei pesando ali para prendê-lo à realidade.

— Não fale nada agora. Fique sentado. Calma, você não es­quecerá o sonho. Espere um pouco. Depois me contará.

Mas enquanto eu levantava ele me agarrou pela barra do rou­pão.

— Você não está entendendo! Foi um aviso! Tenho certeza! Há perigo...

— Estou entendendo muito bem, mas enquanto a dor de cabeça não passar você não se lembrará claramente de nada. Espere. Volto já.

Fui para o laboratório e, enquanto me ocupava preparando o estimulante, um único pensamento passava pela minha mente. Ninian, lendo e meditando, tivera uma visão que lhe fora trazida pela centelha de luz incidindo numa uma gota de orvalho. Eu, sentado sem fazer nada sob o sol, não vira nada. Percebi que minha mão tremia um pouco enquanto eu derramava a bebida num copo. Sim, seria preciso muito amor fraternal para ficar de lado vendo o deus tirar a sombra de suas asas sobre mim e pas­sá-la para um outro. Mesmo que o poder traga dor, medo e até mesmo ódio, ninguém deseja abdicar dele em favor de outra pessoa. De ninguém.

Levei o copo para o pátio. Ninian, ainda deitado nos ladrilhos aquecidos pelo sol, tinha a cabeça abaixada e pressionava o punho contra a testa. Parecia muito jovem e frágil. Ergueu a cabeça quan­do ouviu meus passos e olhou-me sem ver por entre lágrimas de dor. Sentei-me, peguei sua mão e guiei o copo até seus lábios.

— Beba. Você se sentirá melhor. Não, não tente falar ainda.

Ele bebeu e deixou cair novamente a cabeça, desta vez em meu joelho. Coloquei a mão em seus cabelos. Por algum tempo ficamos sentados ali enquanto as pombas, que haviam sido per­turbadas com sua chegada, voltavam aos seus arrulhos de amor. O som monótono da pá de Varro continuava vindo de trás da cocheira.

Ninian se mexeu depois de alguns minutos.

— Melhor? — perguntei, levantando a mão.

— Sim. — Ele ergueu a cabeça. As rugas de dor haviam de­saparecido. — Sim, passou. Foi mais do que uma dor de cabeça, parecia um prego entrando em meu cérebro. Nunca senti nada parecido. Será que estou doente?

— Não. Você é apenas um vidente, alguém que fornece os olhos e a voz para um deus tirano. Teve um sonho acordado, o que os homens chamam de visão. Agora conte-me como foi e veremos se ela teve substância.

Ninian dobrou os joelhos e segurou-os com as mãos. Falou olhando para o muro, com as pupilas ainda dilatadas, numa voz baixa e homogênea, como se recitasse algo que tinha decorado.

— Vi uma extensão de mar cinzento, agitado por ventos tem­pestuosos, quebrando-se em ondas brancas contra pedras que pareciam dentes de lobo. Vi também uma praia de seixos, também cinzenta, e molhada pela chuva. As ondas se quebravam na praia e com elas vinham restos de naufrágio e pessoas, corpos de ho­mens e mulheres afogados. Um deles, o de um homem, rolou para perto de mim e vi que ele não se afogara. Havia um profundo ferimento em seu pescoço, mas o sangue fora lavado pelo mar. Ele parecia um animal sangrado. Havia também três crianças mortas. Uma estava nua e fora ferida por uma lança. Então vi, bem depois das ondas, um navio, um navio inteiro com as velas enfunadas e os remos estendidos para equilibrá-lo. Ele esperava ali e percebi que estava muito carregado. Tinha uma proa alta e curva, com chifres de veado na ponta. Não tenho certeza se eram de verdade ou feitos de madeira. Mas vi perfeitamente o nome do navio: Veado-Rei. Os homens que estavam nele viam os corpos rolando para a praia e riam. Apesar de muito distantes de mim, eu podia ouvir o que diziam com toda a clareza... Você acredita?

— Sim. Continue.

— Eles diziam: "Por Deus! Você foi guiado pelos deuses. Quem imaginaria que essa velharia continha tanta riqueza? Com uma sorte como a sua e uma divisão justa do butim, ficaremos todos ricos!" Eles falavam com o comandante.

— Você ouviu o nome dele?

— Parece que o chamavam de "Heuil".

— E foi só isso?

— Não. Havia um tipo de escuridão, como uma neblina. Então o navio desapareceu e vi homens a cavalo perto de mim na praia. Alguns tinham desmontado e examinavam os corpos. Um deles levantou um pedaço de tábua onde devia estar escrito o nome do navio naufragado e levou-a para um homem que continuava montado. Era um homem moreno, sem nada que pudesse dis­tingui-lo, mas sem dúvida o líder do grupo. Ele parecia muito bravo. Falou alguma coisa e os outros montaram de novo e todos saíram galopando, saindo da praia, atravessando dunas e vege­tação rasteira. Fiquei ali e logo os corpos também tinham sumido e o vento soprava contra os meus olhos, fazendo-os lacrimejar... Foi isso. Eu estava olhando para a teia de aranha e a gotas de água tinham evaporado. Uma mosca se debatia nela e acho que foi o que me acordou. Merlin...

Ninian parou abruptamente e inclinou a cabeça para ouvir. Eu também ouvi, vindo da estrada, os sons de um grupo de cavaleiros e uma ordem para parar. Logo em seguida um deles se separou, aproximando-se num galope.

— Será que é um mensageiro de Camelot? — falei. — Quem sabe, talvez esteja relacionado com sua visão.

Ouvimos o cavalo parar e em seguida o tilintar dos arreios e uma saudação vinda de Varro. Artur entrou no pátio.

— Merlin, estou contente em vê-lo em pé. Fui informado de que você esteve doente e vim visitá-lo.

Ele fez uma pausa, olhando para Ninian. Sabia, claro, que o rapaz estava em minha casa, mas nunca o vira pessoalmente. Ninian jamais quisera ir comigo a Camelot e sempre que o rei me visitava arranjava uma desculpa para ficar em seus aposentos. Eu não o forçava, conhecendo bem a timidez dos moradores da região em torno do lago diante do Grande Rei.

Eu me levantara e estava começando a apresentar Ninian quando o rapaz me interrompeu. Ficou em pé com um único movi­mento ágil, tão rápido como uma cobra se desenrolando para o bote, e gritou:

— É esse o homem! Esse mesmo! Então foi um sonho verda­deiro, verdadeiro!

Artur ergueu as sobrancelhas, surpreso, mas eu sabia que não era pela falta de respeito e sim pelas palavras que ouvira. Seus olhos passaram de Ninian para mim.

— Um sonho verdadeiro? — disse baixinho. Conhecia esse termo há muito, muito tempo.

Ouvi Ninian segurar a respiração. Era como se estivesse saindo da névoa da visão, voltando ao presente, como alguém sendo subitamente empurrado para uma luz forte.

— É o rei. Então era o rei.

— Então era o rei? — repetiu Artur, num tom ríspido. Ninian, corando, começou a gaguejar.

— Nada. Isto é, eu estava falando com Merlin. Não o conheci à primeira vista. Eu lhe peço...

— Esqueça. Que história é essa sobre um sonho verdadeiro? Ninian lançou-me um olhar angustiado. Contar um sonho a um mestre era bem diferente do que fazer sua primeira profecia diante de um rei nela envolvido. Dirigi-me a Artur:

— Parece que um velho amigo seu está se divertindo com a pirataria ou qualquer outra vilania parecida com ela em suas águas natais. Assassinato e roubo, pacíficos mercadores sendo atirados ao mar, ninguém vivo para contar a história.

— Um velho amigo? — Artur franziu o cenho. — Quem?

— Heuil.

— Heuil? — Seu rosto tornou-se sombrio enquanto ele pensava por alguns instantes. — Sim, sim, está se ajustando. Há pouco tempo recebi notícias de Ector. Ele me contou que o rei Caw está ficando senil e que seu bando de chacais anda inquieto, procu­rando alguma coisa para morder. Três dias atrás Urbgen, o ma­rido de minha irmã, mandou um mensageiro com a notícia de que uma aldeia do litoral foi atacada e saqueada, e a maioria dos moradores morreu e o resto fugiu. Ele se mostrava inclinado a culpar os irlandeses, mas eu logo descartei essa idéia. O clima anda bem ruim para incursões distantes. Heuil, então? Não é uma grande surpresa. Devo ir até lá?

— Seria a melhor coisa a fazer. Minha impressão é de que Caw morreu ou está à morte. De outra forma, não consigo ima­ginar que Heuil se atreveria a fazer qualquer coisa que provocasse retaliações de Rheged.

— Sua impressão?

— Nada mais do que isso.

— Sim, parece bem provável. Bem, eu estava procurando um pretexto para dar uma olhada em nossas defesas no norte. Se Caw está perdendo a autoridade e esse cão negro do Heuil ar­ranjou uma corja para tentar contestar o direito de seu irmão ao trono de Strathclyde, eu gostaria muito de ver as coisas com meus próprios olhos. Pirataria, hein? Conseguiu ver onde?

Olhei para Ninian, que balançou a cabeça, negando.

— Não — falei —, mas você os encontrará. Irá à praia e ainda conseguirá ver os corpos e restos da embarcação naufragada. O navio dos piratas tem o nome de Veado-Rei. É tudo o que sabemos. Você encontrará os verdadeiros culpados.

— É o que farei, não tema. — Artur estava muito sério. — Hoje mesmo mandarei um mensageiro para o norte avisando Urbgen e Ector para me esperarem e partirei amanhã logo cedo. Andei procurando uma desculpa para cortar as asas de Heuil e agora você me presenteia com isso. Talvez seja exatamente a opor­tunidade para ratificar um outro acordo entre Strathclyde e Rhe­ged, e dar todo o meu apoio ao novo rei. Não sei quanto tempo ficarei por lá, mas só voltarei quando tudo estiver acertado. E quanto a você, Merlin? Já está completamente bom de saúde?

— Já, obrigado, Artur.

Ele sorriu. Entendera perfeitamente o olhar que eu e Ninian havíamos trocado.

— Parece que você finalmente encontrou alguém com quem compartilhar suas visões. Bem, Ninian, foi um prazer conhecê-lo.

Eu fiquei vendo a atitude dos dois enquanto Artur dizia al­gumas palavras de delicadeza e Ninian respondia, olhando fixa­mente para ele. Percebi que me enganara. O rapaz não estava assustado com a presença do rei. Havia uma qualidade diferente no modo como o olhava, algo que eu não conseguia nomear.

Não havia nele a veneração que eu via nos outros homens, mas apenas uma atenta avaliação. Artur notou, pareceu se divertir com isso e em seguida dispensou Ninian e virou-se para mim, perguntando se eu tinha recados para Morgan e Ector. Depois despediu-se e partiu.

Ninian aproximou-se de mim enquanto ouvíamos o cavalo se afastar.

— Sim, foi um sonho verdadeiro. O rei moreno no cavalo branco, o escudo branco também, sem nenhum brasão, brilhando apenas devido à claridade do céu. Sim, era Artur, sem dúvida. Mas conte-me, Merlin, quem é esse Heuil e por que o rei quer uma desculpa para cortar suas asas?

— Ele é um dos filhos de Caw de Strathclyde, que é rei em Dunbarton Rock desde que me conheço por gente. Ele está ve­lhíssimo e teve dezenove filhos com várias mulheres. Isso sem contar as filhas, que também são muitas. O seu caçula, Gildas, há pouco tempo foi mandando para a casa de meu velho amigo Blaise, você sabe quem é ele, para aprender a ler e escrever. Ele, pelo menos, será um homem de paz. Mas Heuil é o pior de todos entre um bando de selvagens. Ele e Artur jamais se deram bem e chegaram a brigar por causa de uma menina quando moráva­mos no norte. Desde que foi informado do estado do rei Caw, ele vem se preocupando com Heuil, porque o considera um pe­rigo para o equilíbrio da paz naquela região. Esse canalha faria qualquer coisa para prejudicar Artur, até se aliar aos saxões. Mas, como agora resolveu se envolver com roubo e assassinato, esse perigo maior será automaticamente evitado.

— E o rei leva um exército para o norte, sem mais nem menos, apenas confiando em sua palavra, Merlin? — Agora havia espanto na voz de Ninian, não por causa de reis nem de conselheiros. Ele sentia, pela primeira vez, o poder em si mesmo.

— Na minha palavra não — sorri. — Na sua. Desculpe-me se dei a impressão de que a visão tinha sido minha, mas o assunto era urgente e Artur talvez não acreditasse em você de imediato.

— Claro que não. Mas você também viu a cena, não?

— Não vi nada.

— Mas... mas você logo acreditou em mim.

— Naturalmente. Embora eu não a tenha visto, ela foi verda­deira.

Ninian pareceu preocupado e em seguida sua expressão foi de puro medo.

— Mas Merlin, você está mesmo dizendo que não sabia de nada antes de eu lhe contar meu sonho? Esse tal de Heuil virando pirata... ou pensando nisso? Quer dizer então que mandou o rei partir para o norte com base apenas em minhas palavras?

— Sim, foi exatamente o que aconteceu.

Houve um silêncio enquanto a preocupação, apreensão, emo­ção e depois a alegria foram se sucedendo em seu rosto com a mesma clareza com que o lago de onde viera refletia o céu e as nuvens. Ele ainda estava impressionado com o seu poder. Toda­via, quando veio a falar, me surpreendeu porque, como Artur, rapidamente entendeu o que isso significava.

— Merlin, você se incomodou com essa visão? Fui o mais singelo possível em minha resposta:

— Talvez. Um pouco agora, mas logo não me perturbará mais. E um dom cruel e pode ser que o deus tenha achado que era a hora de passá-lo a você, deixando-me em paz para gozar o sol e ficar vendo as pombas arrulhar.

Eu sorri enquanto falava, mas não havia humor no rosto de Ninian. Ele então teve uma atitude muito estranha. Pegou minha mão, encostou-a em sua face e em seguida soltou-a e voltou para os seus aposentos sem nenhuma palavra ou olhar. Eu fiquei ali parado, lembrando-me de um outro rapaz, muito mais jovem, descendo da caverna de Galapas com as visões rodopiando em sua cabeça e lágrimas nos olhos, com toda a solitária dor e perigo pairando nas nuvens a sua frente. Então encaminhei-me para meu quarto e fiquei lendo junto à lareira até que Mora veio trazer o almoço.

 

Artur partiu para o norte no dia seguinte e daí por diante não tivemos mais notícias. Ninian andava pela casa com um ar meio estranho, que imaginei ser um misto de encantamento consigo mesmo e com sua "visão verdadeira", e de surpresa por eu não aparentar aborrecimento por ter sido deixado de lado pelo deus. Quanto a mim, devo admitir que estava dividido. Olhando para o passado, hoje sei que na época eu ainda sofria os últimos efeitos do veneno de Morgause, mas mesmo depois da visita de Artur e da aceitação da profecia de Ninian, nada me veio da escuridão como prova ou negação dessa nova situação. Apesar de tudo, eu sentia na quietude daqueles dias uma tranqüila aprovação. Era como ver uma sombra que, à medida que as nuvens vão se movimentando, passa de um lugar para outro. Sim, de uma forma delicada, me fora mostrado onde eu agora encontraria a felici­dade. Por isso, atendendo a essa indicação, continuei preparando Ninian para ser o que eu fora até então e a mim mesmo para um futuro que antes me parecia sombrio, mas para o qual agora eu me encaminhava inexoravelmente, como um animal indo para a sua hibernação.

Ninian, ainda mais do que antes, pareceu se enfronhar em si mesmo. Em uma ou duas ocasiões, deitado sem sono em minha cama, ouvi-o atravessar o pátio com passos silenciosos e depois sair correndo para o vale como um uma criaturinha libertada de uma jaula. Nessas vezes tentei segui-lo usando minha mente, mas foi como se ele tivesse se precavido de mim, envolvendo-se numa nuvem, porque só consegui ver a estrada e nela a figura franzina correndo, correndo para a névoa que tudo encobria entre Applegarth e a ilha. Não me preocupou saber que Ninian tinha segredos, como jamais me incomodou vê-lo conversando longa­mente com Mora no laboratório ou na cozinha. Eu sabia que jamais fora uma companhia alegre e com a idade estava me tor­nando cada vez mais calado. Por isso me agradava ver que os dois jovens tinham interesses comuns e mostravam-se satisfeitos prestando serviços para mim.

Era mesmo um serviço. Eu fazia o rapaz trabalhar mais do que qualquer escravo. Penso que esse é o jeito do amor. Uma pessoa deseja tão ardentemente que seu amado seja bem sucedido que não hesita diante de nada. E não havia dúvida de que eu amava Ninian. O rapaz era eu mesmo e através dele eu conti­nuaria vivendo. Enquanto Artur precisasse das visões e do poder de um profeta real, ele continuaria encontrando-o tão perto de si como sua espada.

Numa certa noite de abril acendemos a lareira, fazendo um fogo bem forte para espantar o frio, e nos sentamos diante dele, olhando para as chamas. Ninian tomou seu lugar habitual, dei­tado de bruços sobre o tapete, com o queixo apoiado na mão, os olhos cinzentos estreitados contra a luz. Pouco a pouco vi surgir em seu rosto uma película de suor que captou o brilho do fogo e delineou suas feições, umedecendo a linha dos cabelos e fazendo surgir pequenos arco-íris nos cílios longos. Eu, como vinha acontecendo cada vez com maior freqüência, me surpreendi mais interessado nele do que em usar meu próprio poder. Era um misto de profundo contentamento e de um amor perturbadoramente cruel que eu não tentava impedir ou compreender. Eu, porém, aprendera as lições do passado e me deixava levar pelo tempo, acreditando que era suficientemente dono de mim e de meus pensamentos para não prejudicar o rapaz.

Houve uma mudança em seu rosto. Algo se moveu nele, um reflexo de dor, aflição ou desgosto. O suor escorria para os seus olhos, mas ele nem piscava nem se mexia.

Era hora de acompanhá-lo. Parei de observá-lo e voltei meus olhos para o fogo. Vi Artur imediatamente. Ele estava montado em seu cavalo branco, à beira-mar. Era uma praia de seixos e logo reconheci o castelo no alto dos penhascos: a torre de Rheged, que comanda o estuário do Ituna. Estava entardecendo e as nu­vens pesadas pairavam escuras sobre o cinzento do mar. As ondas estouravam em espuma contra as pedras e sibilavam ao subir a praia por entre os seixos. O cavalo, com água até os joelhos, enfrentava o movimento da água com firmeza e seus flancos molhados e o cinzento da capa encharcada de Artur me davam a impressão de que o rei vinha saindo do mar.

Um homem, um camponês pelo seu aspecto, estava junto de Artur segurando os arreios do cavalo branco, falando apressa­damente e apontando para o mar. O rei seguiu o gesto e levou a mão à testa."Vi o que ele estava vendo: uma luz, bem longe no horizonte, balançando com o movimento da água. Artur fez uma pergunta e o homem apontou de novo, dessa vez para a terra. Artur dirigiu o cavalo para a trilha estreita que levava para a torre e por entre as brumas da visão pude ver seus soldados partindo atrás dele. Um pouco antes da cena desaparecer vi, no alto do penhasco, as luzes se acendendo no castelo.

Voltei para a sala e vi que Ninian voltara antes de mim. Ele estava ajoelhado, não, agachado com a cabeça entre as mãos.

— Ninian?

Apenas um leve movimento de cabeça. Esperei alguns instan­tes e então peguei o elixir estimulante que atualmente sempre mantinha por perto.

— Vamos. Beba isto.

Ele tomou um gole e me agradeceu com os olhos, mas o silêncio continuou.

Fiquei observando suas reações por um ou dois minutos, e então disse:

— Bem, parece que o rei chegou às praias de Ituna e confirmou o caso dos piratas. Agora está descansando no castelo e amanhã cedo sairá no encalço de Heuil. Então, por que essa sua aflição? Sua visão foi verdadeira e o rei está cumprindo sua missão.

Ainda nada em seu rosto senão a clara aflição.

— Ora, Ninian, não fique assim. Para Artur é uma questão de pouca importância. O maior problema será punir Heuil sem ofender seus irmãos, mas mesmo isso não é impossível, porque faz muito tempo que ele se afastou deles. Portanto, mesmo se o velho Caw ainda estiver vivo, duvido que faça objeções. Quanto aos filhos mais velhos, tenho certeza de que a morte de Heuil será um alívio para eles. — Vendo que Ninian continuava do mesmo jeito, acrescentei num tom mais ríspido: — Olhe aqui, rapaz, se você viu alguma tragédia é ainda mais importante falar sobre ela. Foi a morte de alguém relacionado com a cena? A do rei Caw é coisa certa. Seria a de Morgan, a irmã do rei? Ou o conde Ector?

— Não. — Sua voz saiu estranha e trêmula. — Eu não vi o rei.

— Quer dizer que não estava me acompanhando? Olhe, Ni­nian, isso é normal. Aconteceu comigo quando Artur esteve aqui. Lembra-se? Não deixe isso perturbá-lo. Haverá muitas vezes em que você, por mais que tente, não conseguirá ver nada. Já lhe disse antes, é preciso esperar pelo deus. É ele quem escolhe a hora, não você.

— Não é isso. — Ele balançou a cabeça. — Eu vi. Mas não o Grande Rei. Vi outra coisa.

— Então me conte.

— Não posso. — Lançou-me um olhar cheio de aflição.

— Ouça, Ninian, como você não escolhe o que lhe será mos­trado, também não pode escolher o que vai contar. Chegará o tempo em que talvez venha a usar seu próprio julgamento quando estiver vendo para reis, mas para mim você tem de contar tudo.

— Não posso! Esperei um instante.

— Agora fale. Você viu alguma coisa nas chamas?

— Sim.

— E o que você viu contradiz o que veio antes ou o que penso que acaba de ver?

— Não.

— Não quer falar com medo de mim? De que eu possa me irritar...

— Nunca tive medo de você.

— Então, meu caro — falei, com a máxima paciência —, cer­tamente não existe um bom motivo para você calar e todos os motivos do mundo para você contar. Talvez não seja uma tragédia tão grande como imagina e é possível que esteja interpretando errado. Já lhe ocorreu isso?

Um lampejo de esperança que não durou mais do que um segundo. Ninian respirou fundo como se fosse falar, mas mordeu o lábio e baixou o olhar. Teria visto minha morte?

Inclinei-me, peguei seu rosto com as duas mãos e o obriguei a olhar para mim. Os olhos ergueram-se relutantemente para os meus.

— Ninian, você sabe que sou capaz de ir onde você esteve e ter a mesma visão. Então, por que me obrigar a enfrentar mais tensões? Agora me obedeça e conte-me o que viu nas chamas.

Ele umedeceu os lábios secos e quando falou sua voz saiu num sussurro, como se tivesse medo do som.

— Você sabe que o cavaleiro Bedwyr não viajou com o Grande Rei? Que ele ficou em Camelot?

— Não, mas não há nada de estranho nisso. O rei sempre deixa um de seus principais comandantes para cuidar da fortaleza e da guarda da rainha.

— Sim. — Ninian umedeceu os lábios de novo. — Foi o que eu vi. Bedwyr em Camelot... com a rainha. Eles estavam... penso que são...

Ele parou. Tirei minhas mãos de seu rosto e permiti-lhe abaixar o olhar, o que fez com alívio.

Só existia um único meio de entender sua aflição:

— Amantes?

— Acho que sim. — Então, numa torrente de palavras: — Merlin, como ela pode fazer uma coisa dessas? Depois de tudo o que aconteceu... de tudo o que ele fez por ela! O caso com Melwas... todos sabem o que aconteceu lá! E Bedwyr, traindo seu melhor amigo? Como pode a rainha olhar para outro homem com um marido como o seu, um homem tão especial, um rei tão... Oh, eu daria tudo para acreditar que não foi um sonho verdadeiro, mas sei que é a realidade! — Seus olhos estavam marejados de lágrimas. — E agora, Merlin, em nome do deus, o que devemos fazer?

— Não posso lhe dizer ainda — falei vagarosamente. — Mas procure esquecer, se puder. Esse é um tipo de carga que você não deve ser obrigado a compartilhar comigo.

— Vai contar a ele?

— Sou seu servo. O que você faria em meu lugar? Ninian mordeu novamente o lábio e ficou olhando para o fogo, mas dessa vez, eu sabia, não via nada. Seu rosto estava abatido, quase doentio. Lembro-me de que se senti vagamente surpreso com o fato de ele culpar mais Guinevere pela sua fraqueza do que Bedwyr pela traição. Finalmente falou:

— Como você conseguirá contar uma coisa dessas para ele?

— Ainda não sei. O tempo me dirá.

— Você não parece surpreso. — Foi quase uma acusação.

— Não. Penso que na verdade eu sabia há muito tempo. O desespero de Bedwyr na noite em que ela desapareceu, sua aflição enquanto dragava o canal, o modo como nadou até a cabana de caça... E a rainha ficou em Ynys Witrin enquanto ele estava doen­te... E mais, agora estou me lembrando de cenas que aconteceram quando Guinevere chegou a Caerleon para o casamento e durante as comemorações. Bedwyr era o único dos Companheiros que não a olhava com admiração, fazendo brincadeiras, e Guinevere também evitava olhar para o seu lado. Sim, creio que algo surgiu entre eles na viagem, antes mesmo de ela conhecer o rei. — Sus­pirei e acrescentei: — Creio que fui avisado claramente há muitos e muitos anos, quando os dois ainda eram rapazinhos e nenhuma paixão da juventude surgiu para separá-los, nenhuma mulher veio perturbar suas vidas, como sempre acontece nesses casos.

Ninian levantou-se abruptamente.

— Vou me deitar — falou, ainda trêmulo, e afastou-se sem hesitação.

Sozinho, voltei a olhar para as chamas e os vi quase imedia­tamente. Os dois no terraço onde eu tantas vezes conversara com Artur. Agora o palácio estava às escuras a não ser pelo brilho das estrelas e de um raio de luz amarelada que vinha de um lampião que pendia junto aos canteiros de rosas.

Os dois em pé, um diante do outro, calados e imóveis, de mãos dadas. Olhavam-se nos olhos e havia neles um brilho quase selvagem de desespero. Guinevere parecia temerosa e lágrimas rolavam em suas faces. O rosto de Bedwyr estava abatido, como se a sombra branca tivesse sugado seu espírito. Fosse qual fosse o tipo de amor que os tinha em suas garras, era uma amor cruel e, eu bem sabia, nenhum deles ainda se atrevera a deixá-lo matar sua fidelidade.

Eu vi, lamentei, depois afastei o olhar das chamas e para não mais me imiscuir em sua privacidade.

 

Artur voltou dois meses depois. Conseguira encontrar Heuil, vencera-o num combate justo, queimara seus navios e lhe impusera uma multa que o manteria quieto por muito tempo.

Novamente tivera que dominar seus instintos em favor da po­lítica. Quando chegara ao norte, recebera a notícia de que o rei Caw de Strathclyde havia morrido pacificamente em seu sono, depois de um dia agitado, no qual passara a maior parte do tempo caçando e em seguida comemorando, o que cobrara seu preço em um organismo de noventa anos. Pela madrugada, Caw expirara cercado pelos filhos e esposas que tinham conseguido chegar a tempo, não sem antes designar como seu herdeiro o segundo filho, Gwarthegydd, já que o primogênito ficara grave­mente aleijado num combate ocorrido alguns anos antes. O men­sageiro que trouxe a notícia a Artur também lhe transmitiu a garantia da amizade do novo rei, mas ele achou melhor não agir antes de conversar com Gwarthegydd para ver qual seria sua posição no que dizia respeito ao seu irmão, Heuil.

Não precisava ter tido tanto cuidado. Contam que quando o novo rei ouviu a notícia da derrota do irmão soltou uma risada tão grande como a famosa gargalhada de seu pai e bebeu um chifre cheio de aguardente em honra do Grande Rei. Terminada sua missão, Artur foi a Dumbarton em companhia de Urbgen e Ector, e ficou na cidade por nove dias, partindo depois da coroação de Gwarthegydd. Tomando rumo sul, pela estrada do leste que levava a Elmet, encontrou o vale e os territórios saxões tranqüilos e em seguida atravessou o país pelo Vão dos Peninos, indo parar em Caerleon. Ali ficou por um mês e, nos primeiros dias de julho voltou para Camelot.

Já não era sem tempo. Por muitas e muitas vezes eu vira os amantes no fogo, divididos entre o desejo e a fidelidade, Bedwyr pálido e calado, a rainha com olhos assustados e mãos trêmulas. Nunca mais tinham me aparecido sozinhos. Eu via Guinevere em companhia de suas damas, que costuravam ou bordavam, e Bedwyr sempre com alguns homens de sua idade. Todavia, em certas ocasiões eles se afastavam um pouco dos outros e conver­savam muito, falando sem parar como se, através das palavras e de um ou outro toque leve e desesperado, encontrassem um pouco de conforto.

Eles esperavam dia e noite pela volta de Artur; Bedwyr porque não podia abandonar o cargo que ocupava sem ordens expressas do rei; Guinevere com a angústia de uma mulher totalmente de­pendente de um marido, mas apaixonada por outro homem.

Artur veio me visitar cerca de dez dias depois de voltar a Camelot, numa manhã clara e fresca de junho. Eu me levantara logo depois do sol nascer, como de hábito, e fora passear sozinho pelas colinas que ficavam atrás de minha casa, pois raramente Ninian descia antes de Mora chamá-lo para o desjejum. Eu ca­minhava havia mais de uma hora, pensando e colhendo as ervas que procurava, quando ouvi patas de cavalo a distância. Não me pergunte como eu soube que era Artur. Não havia nenhum clima para previsões naquele dia, mas penso que o amor tem asas mais fortes do que a vidência e por isso simplesmente me virei e fiquei esperando por ele junto a um dos pequenos bosques que salpicam as colinas naquele lugar. Essas árvores coroavam o alto de um gracioso vale, por onde corria uma trilha tão antiga como a terra, e foi por ela que o vi subindo, sentado à vontade numa égua castanha e tendo a seu lado o cão perdigueiro que era o sucessor de Cabal.

Ele acenou para mim, subiu a encosta e desmontou com um sorriso.

— Como sempre, tudo aconteceu de acordo com sua visão. Como se eu tivesse de lhe contar! Já lhe ocorreu, meu querido Merlin, como pode ser tedioso ter um profeta que sabe de tudo antes de acontecer? Eu não posso mentir nem vir me vangloriar de minhas vitórias.

— Lamento, mas garanto-lhe que desta vez seu profeta esperou suas mensagens com a mesma ansiedade das outras pessoas. Ob­rigado pelas cartas... Como me encontrou aqui? Já esteve em Applegarth?

— Eu estava indo para lá quando encontrei um sujeito num carro de boi, um lenhador, e ele me disse que o tinha visto vindo para cá. Vai continuar em frente? Irei caminhando com você.

— Eu já estava para voltar... Suas cartas foram mais do que bem-vindas, mas ainda quero ouvir tudo de sua boca. É estranho imaginar que o velho Caw finalmente partiu. Acha que Gwarthegydd conseguirá manter Dumbarton?

— Contra os irlandeses e saxões, não tenho dúvida, mas quero ver como acertará as coisas com os outros dezessete pretendentes ao trono. — Artur sorriu. — Dezesseis, aliás, já que cortei as asas de Heuil.

— Mas, na verdade, quinze. Não esqueça que Gildas agora é secretário de Blaise.

— De fato. Um rapaz esperto esse Gildas, e foi sempre unha e carne com Heuil. Creio que quando Blaise morrer ele entrará para um mosteiro. Melhor assim, porque, como seu querido ir­mão, ele nunca gostou de mim.

— Então esperemos que ele cuide bem dos papéis de seu mes­tre. A propósito, Artur, você deveria designar alguns escribas para registrarem seus feitos.

— Que história é essa? — Ele ergueu a sobrancelha numa expressão zombeteira. — Um aviso de um profeta?

— Nada disso. Um pensamento, apenas. Quer dizer então que Gwarthegydd é mesmo seu aliado? Houve uma época em que ele afastou Caw do trono e andou de namoricos com os reis irlandeses.

— Isso foi há muito tempo, ele era jovem e Caw tinha mão pesada. Acabou. Penso que será um bom rei. O que mais importa nesta etapa é que ele concorda com Urbgen...

Artur continuou falando, me contando sobre o acontecido nas semanas que ficara fora, enquanto caminhávamos lentamente, seguidos pela égua e pelo cachorro que farejava em círculos a nossa volta. No final de sua narrativa, como se nossos pensa­mentos tivessem se comunicado, ele fixou os olhos em mim por um longo instante.

— E agora, quanto a você? Como passou estes últimos tempos? Ainda me parece cansado. Sua doença...

— Você não precisa mais se preocupar com minha saúde.

— Estou sempre pensando na última visita que lhe fiz. Você disse que foi seu... — Ele hesitou, procurando a palavra. — Seu assistente que viu Heuil e seus sicários.

— Ninian. Sim, foi ele.

— E você viu alguma coisa?

— Não. Nada.

— Sim, foi o que você me contou, mas ainda acho muito es­tranho. Concorda comigo?

— Creio que sim, mas você deve se lembrar de que eu não estava bem naquele dia, que ainda não me recuperara plenamente de um resfriado.

— Esse rapaz... há quanto tempo está com você?

— Ele chegou em setembro, portanto são... nove meses, não é?

— E você lhe ensinou tudo o que sabe?

— Longe disso — sorri —, mas já lhe ensinei bastante. Você não ficará sem um profeta, Artur.

Ele não sorriu. Continuava com o ar perturbado e ficou ca­minhando em silêncio por um bom tempo, imerso em seus pen­samentos. Então pareceu tomar uma súbita decisão.

— Você confia nele?

— Em Ninian? Claro. Por que não?

— O que sabe sobre ele?

— Sei o que preciso saber — falei um tanto rígido. — Eu lhe contei como ele veio me procurar e como desde o início tive certeza, como continuo tendo agora, que foi o deus quem nos aproximou. Eu não poderia encontrar um pupilo mais capacitado. Ninian se mostra sempre ansioso a aprender e progride de uma maneira extraordinária. — Lancei um olhar para Artur. — Mas por que está me perguntando? Você teve prova de seu talento. Sua visão foi verdadeira.

— Oh, eu não duvido de sua capacidade. — Artur falou se­camente e captei uma leve ênfase na última palavra.

— E então? O que está tentando me dizer? — Eu mesmo não estava preparado para o tom de desagrado que coloriu minha voz.

— Lamento, Merlin, mas tenho de dizer que duvido das in­tenções dele em relação a você.

Embora Artur tivesse sinalizado antes de dar o golpe, ele me atingiu com uma força paralisadora. Senti o sangue fugir de meu coração. Parei e virei-me para encará-lo. Não sou de me encolerizar com facilidade e nunca me irritava com Artur. Passaram-se apenas alguns instantes antes de eu poder falar num tom neutro:

— Seja o que você tem a dizer, é melhor falar agora. Ninian é mais do que meu assistente, ele já está se tornando meu segundo eu. Se um dia fui um cajado para sua mão, Artur, ele será um outro quando eu morrer. Você pode não gostar do rapaz, apesar de eu não ver motivos para isso, porque mal o conhece, mas vai ter de aceitá-lo, queira ou não. Eu não viverei para sempre e Ninian tem o poder.

— Sei disso, e é o que me aflige. — Artur virou-se, tirando o olhar do meu. — Será que você não entende, Merlin? Ele tem o poder, foi ele quem teve a visão e não você. Você me diz que estava cansado, doente, mas desde quando seu deus dá impor­tância a esse tipo de coisa? E não foi uma vidência trivial, algo que poderia passar desapercebido de você. Foi por causa dela que eu estava perto da fronteira de Rheged quando Caw morreu e pude apoiar Gwarthegydd, impedindo, por graça de Deus, uma guerra entre todos aqueles príncipes. Por que então a visão não veio para você?

— Será que tenho de ficar repetindo? Eu...

— Já sei, você estava doente. Por quê?

Eu não respondi. Um silêncio caiu entre nós. Uma brisa co­meçou a soprar, trazendo o cheiro de mel. A égua pastava ao nosso lado e o cachorro sentara-se junto aos pés de seu dono e olhava para ele com adoração, com a língua de fora. Artur se mexeu e começou a falar de novo, mas eu o impedi.

— Por que você insinua... Não, não responda. Sei muito bem o que está querendo dizer. Que acolhi esse rapaz, me encantei com ele, abri-lhe todos os segredos de minhas poções e um pouco de magia, e agora ele está tramando para tomar meu lugar e usurpar meu poder. É isso?

Um leve sorriso encurvou os lábios de Artur, mas seu olhar continuava sombrio.

— Você nunca gostou de ambigüidades, não é?

— Eu jamais escondi a verdade, especialmente de você.

— Então, meu querido, você nem sempre vê toda a verdade. Por algum motivo, a delicadeza do tom mexeu comigo, tocando-me com uma premonição. Olhei para ele, intrigado.

— Estou disposto a aceitar isso. Todavia, já que dificilmente posso imaginar que toda esta conversa derive de uma vaga sus­peita, devo supor que você saiba de alguma coisa sobre Ninian que eu não sei. Se for isso, porque não me contar e deixar a meu cargo a avaliação da importância dessa informação?

— Muito bem, mas... — Uma mudança em sua expressão me fez virar para acompanhar seu olhar. Ele olhava para um pequeno vale abaixo de nós, onde corria um regato ladeado por olmos e salgueiros, atrás do qual ficava a encosta relvada que protegia Applegarth. Por entre as ramagens vi algo azul se mexendo. Ni­nian. Ele devia ter se levantado cedo e se inclinava sobre a beira do riacho. Quando se endireitou, estava com coisas verdes nas mãos. Sim, ali crescia agrião e hortelã. Ele parou um instante, como se separando as plantas que tinha colhido, depois saltou o riacho e correu encosta acima, com a capa azul voando atrás de si como se fosse uma vela de navio.

— E então? — falei.

— Eu ia dizer que é melhor descermos para lá. Temos de conversar e com certeza existem meios mais confortáveis para isso do que ficarmos parados aqui, um diante do outro, no alto do mundo. Você ainda me deixa sem jeito, Merlin, mesmo quando sei que estou com a razão.

— Não foi essa minha intenção. Desçamos, se é o que você quer.

Artur puxou a cabeça da égua para ela parar de pastar e foi à frente, dirigindo-se para o bosque junto ao regato, onde havia um tronco caído. Prendeu as rédeas num arbusto e convidou-me a sentar nele a seu lado.

Ele começou sem rodeios.

— Ninian já lhe contou alguma coisa sobre sua família? Sua casa?

— Não, nunca lhe pedi isso. De início imaginei que viesse de uma família pobre de uma das aldeias do lago, mas ele não tem nem a aparência nem o modo de falar dos camponeses. Desconfio que é um bastardo e nós dois sabemos muito bem como perguntas são desagradáveis nessa situação.

— Bem, eu não tive seus escrúpulos e fiquei intrigado com Ninian desde que o vi em Applegarth, por isso quando voltei comecei a perguntar sobre ele.

— E o que descobriu?

— O bastante para saber que ele o vem enganando desde o princípio. — Em seguida, com um soco na coxa de pura exas­peração: — Merlin, Merlin, será que você é cego? Eu juraria que não existe um homem capaz de ser enganado desse jeito se não o conhecesse bem... Mesmo agora há pouco, vendo Ninian aqui, você não viu nada?

— E o que eu deveria ver? Imagino que veio pegar casca de bétula. Ele sabe que estamos precisando. Além disso, estava car­regando agrião.

— Está entendendo? Seus olhos são bons para isso, mas não para ver o que qualquer outro homem neste mundo teria visto, senão na hora, pelo menos alguns dias depois! Eu desconfiei assim que o vi em seu pátio, enquanto você me contava o "sonho ver­dadeiro" e as indagações que fiz só confirmaram minha suspeita. Olhe, Merlin, nós dois vimos a mesma pessoa correndo encosta acima, só que você viu um rapaz carregando agrião e eu vi uma moça.

Não consigo lembrar a que altura do sermão de Artur eu soube o que ele iria me contar, mas o fato é que bem antes dele terminar o conhecimento chegou a mim como uma verdade já conhecida: o calor antes das tempestades, o silêncio depois do raio, cheio do trovão que se aproxima. O que o sábio mago com suas visões enviadas pelo deus não percebera, o homem ainda jovem, versado nos modos das mulheres, vira desde o início. Era verdade. Só me restou a surpresa de ter sido tão fácil de enganar. Ninian. A figura mal vista na névoa, tão parecida com o menino perdido que eu a saudara e colocara as palavras "menino" e "Ninian" em sua mente antes mesmo de ela poder falar. Contei-lhe que era Merlin, ofereci-lhe a dádiva de meu poder e magia, dádivas que outra moça, a bruxa Morgause, tentara inutilmente extrair de mim, mas que eu me apressara ansioso para depositar nos pés de uma estranha.

Não era de admirar que ela precisara de bom tempo para pensar, arrumar sua vida, cortar os cabelos, providenciar outras roupas e reunir coragem antes de se apresentar a mim, que se recusara a dividir a casa comigo, que não mostrava interesse especial em Mora, embora estivessem sempre conversando e rin­do. Então Mora já sabia? Afastei esse pensamento enquanto ou­tros chegavam aos borbotões. A rapidez com que ela aprendera, o poder, com todo o sofrimento que causava, aceito com resig­nação e finalmente com alegria. O olhar, grave, delicado, os gestos de uma veneração cuidadosamente oferecida e contida. O modo como se afastara aborrecida quando eu dissera que as mulheres só serviam para perturbar os homens, a rápida condenação de Guinevere por se entregar a um amor sofrido, traindo um marido bom, grandioso. Depois, com as lembranças se acelerando, a seda de seus cabelos sob minhas mãos, as linhas suaves de seu rosto, os olhos cinzentos voltados para as chamas e o amor perturbador que tanto me afligia e com o qual agora não precisava mais me preocupar. Ocorreu-me, como se fosse o sol penetrando por entre as árvores, tocando as esquecidas florezinhas azuladas do bosque onde, muito tempo atrás, uma jovem me oferecera amor e depois caçoara de minha impotência, que desta vez nenhum deus ciu­mento precisaria se interpor entre nós. Finalmente eu estava livre para dar, somado a todo o poder, esforço e glória que eu podia oferecer, a virilidade que até agora pertencera apenas ao deus. A abdicação de meus poderes que eu tentava aceitar sem mágoa não seria uma perda, mas sim uma nova alegria recebida.

Voltei para o sol e para um outro bosque, para ver Artur olhan­do fixamente para mim.

— Você não parece surpreso. Já tinha adivinhado?

— Não, mas deveria. Senão pelos sinais tão óbvios para você, pelo modo que me sentia... como me sinto agora. — Sorri diante de seu olhar. — Oh, sim, um velho tolo, se quiser, mas agora sei com certeza que meus deuses são misericordiosos.

— Por que você pensa que ama essa moça?

— Porque a amo.

— Pensei que você fosse um sábio.

— E porque sou um sábio, sei bem demais que o amor não pode ser contestado. Aconteça o que acontecer daqui por diante, é tarde demais. Aconteceu e só... Não, ouça. Agora tudo está perfeitamente claro, como sol batendo na água. Todas as profecias que fiz, coisas futuras que eu antecipava com temor... Eu as vejo chegando a mim e o temor desapareceu. Sempre digo que a pro­fecia é uma arma de dois gumes, os deuses entregam em nossas mãos as ameaças e as promessas de boa sorte. — Ergui a cabeça e olhei o céu por entre as folhas que se moviam suavemente. — Uma vez eu lhe disse que tinha visto meu próprio fim nas chamas. Eu me vi na caverna em Gales e minha mãe, muito nova, cujo nome era Niniane, e o jovem príncipe, meu pai, deitados lado a lado. Então, através dessa cena, eu me vi de cabelos grisalhos tendo ao meu lado uma moça com uma cascata de cabelos escuros e brilhantes, de olhos fechados, que pensei também ser Niniane. E era mesmo. Está vendo? Se ela vier a ter alguma participação em meu fim, será algo bom.

Artur levantou-se com um movimento tão abrupto que seu cão, cochilando aos seus pés, ergueu-se de um salto como se tivesse pressentido um perigo. Ele deu três passos afastando-se de mim e depois voltou para me encarar. Bateu um punho fe­chado na outra mão com tal violência que a égua sobressaltou-se e imobilizou-se trêmula, com as orelhas empinadas.

— Você acha que vou ficar aqui sentado, ouvindo-o falar de sua própria morte? Uma vez você me disse que terminaria en­terrado vivo numa tumba, que imaginava ficar em Bryn Myrddin. Agora só falta me pedir permissão para voltar para lá com essa... essa bruxa, para ela poder prendê-lo lá!

— Não é bem assim. Você não entendeu...

— Entendi tão bem como você e creio que me lembro melhor das coisas! Já se esqueceu da maldição de Morgause: que você terminaria envolvido por magia de mulheres? E que a rainha Ygraine, minha mãe, lhe disse, num certo dia, que se Gorlois da Cornualha morresse ela passaria o resto da vida rezando a todos os deuses que existem para você morrer traído por uma mulher?

— E daí? — Sorri. — Eu não fui envolvido? Não fui traído, enganado? Aconteceu, só isso.

— Ter certeza? Desculpe-me, mas tenho de lembrá-lo de novo que você não conhece as mulheres. Morgause, por exemplo, ela tentou persuadi-lo a lhe ensinar sua magia e, quando não con­seguiu, procurou o poder de um outro jeito... o jeito que conhe­cemos. Agora essa Ninian foi bem sucedida onde Morgause fra­cassou. Diga-me, Merlin, se ela tivesse se apresentado como é na verdade, como mulher, você a teria acolhido e lhe ensinado sua arte?

— Não sei dizer. Provavelmente não. Mas a verdade é que não foi ela quem tramou esta situação. Isto aconteceu devido a um erro meu, causado pelo destino que me levou primeiro a encontrar e amar o menino Ninian, que morreu afogado. Se você não consegue ver o deus operando aqui, lamento.

— Sim, sim — disse Artur, impaciente. — Mas você mesmo acaba de dizer que a profecia é uma arma de dois gumes. Talvez o que agora você vê com alegria seja a morte que tanto receava.

— Não, você deve encarar a situação de outra maneira. Um futuro há muito temido pode, ao chegar, se mostrar agradável, como esta "traição". O meu constante pesadelo de terminar en­terrado vivo, no escuro, pode estar querendo me dizer algo bem diferente do que eu imaginava. Todavia, seja o que vier, não posso evitá-lo. O que terá de vir, virá. O deus escolhe a hora e o modo. Depois de todos esses anos, se eu não confiasse nele, seria mesmo o tolo pelo qual você me toma.

— Quer dizer então que pretende mesmo ficar com essa moça e lhe ensinar sua arte?

— Exatamente. Mesmo porque agora não posso mais parar. Lancei nela as sementes do poder e, como toda a certeza, como se fosse uma árvore germinando ou uma criança concebida, não posso impedir seu crescimento. E outra semente foi lançada, para o bem ou para o mal. Eu a amo de todo o coração e, se ela fosse dez vezes mais a bruxa que você imagina, eu só posso agradecer meu deus pela sua presença a meu lado.

— Não vou suportar ver você sofrendo.

— Ela não me fará sofrer.

— Mas, se o fizer — disse Artur mantendo o mesmo tom —, bruxa ou não, amante ou não, lidarei com ela da forma que me­rece. — Ele suspirou. — Bem, parece que não há mais nada a dizer. É melhor voltarmos.

— Não, espere um pouco. Tem mais uma coisa.

— Sim?

Artur estava em pé diante de mim e eu continuava sentado no tronco. Contra o rendado das folhagens que balançavam sua­vemente na brisa matutina, ele se destacava alto e poderoso, e as jóias que brilhavam em seu ombro e cinturão pareciam ter vida própria. Estava pleno da abundância da vida, um homem no auge de sua força, um líder de reis. Examinei seu rosto e não vi nele nada que pudesse me avisar do que diria, do que poderia fazer depois de eu ter lhe contado.

Eu falei vagarosamente:

— Já que estivemos falando de coisas derradeiras, preciso lhe contar sobre uma delas. Foi uma outra visão que tenho o dever de lhe revelar. É algo que vi, não apenas uma vez, mas várias. Bedwyr, seu amigo, e Guinevere, sua rainha, se amam apaixo­nadamente.

Eu desviara o olhar dele enquanto falava, não querendo ver como seria recebido o golpe. Suponho que esperava ira, uma explosão de violência, no mínimo uma surpresa e furiosa des­crença. Em vez disso houve silêncio, um silêncio tão longo que finalmente olhei para cima, para ver em seu rosto nenhuma das expressões que imaginava, mas um tipo de calma severamente mantida, temperada apenas pela compaixão e tristeza.

— Você sabia? — Eu mal podia acreditar nessa reação.

— Sim — disse ele simplesmente. — Eu sei.

Houve uma pausa enquanto eu procurava por palavras sem encontrá-las. Artur sorriu e havia algo nesse sorriso que não fa­lava de juventude e poder, mas de uma sabedoria talvez muito maior, por ser puramente humana, do que a atribuída a mim.

— Eu não tenho a vidência, Merlin, mas sou capaz de ver o que se passa diante de meus olhos. Você acha que outros, que adivinham e murmuram, não fizeram questão de vir me contar?

Às vezes penso que os únicos que não insinuam por meio de olhares ou palavras são os próprios Bedwyr e Guinevere.

— Há quanto tempo você sabe?

— Desde o caso com Melwas.

E eu nunca adivinhara. Sua bondade em relação à rainha, o alívio e a felicidade crescente que ela demonstrara...

— Então por que você deixou Bedwyr com ela quando foi para o norte?

— Para deixá-los ter alguma coisa, por mais pequena que fosse. — O sol batia em seus olhos, fazendo-o franzir o cenho. Ele mu­dou de posição e disse vagarosamente: — Há pouco você disse que o amor não pode ser governado ou impedido. Se você se sente preparado para aceitar o amor, mesmo que ele venha a lhe causar uma morte vergonhosa, por que não devo aceitar o que está acontecendo, sabendo que não pode destruir a amizade ou a confiança?

— Você acredita nisso?

— Por que não? Tudo o mais que você já me disse mostrou ser verdade. Pense em suas profecias sobre meu casamento, a "sombra branca" que viu quando Bedwyr e eu éramos meninos, a guenhwyvar que tocou nós dois. Você disse então que ela jamais macularia ou destruiria a confiança que tínhamos um no outro.

— Sim, lembro-me bem.

— Certo. Quando me casei com a primeira Guenever, você me avisou que esse casamento poderia ser mau para mim. Aquela menina, me fazer mal? — Artur riu sem alegria. — Bem, agora sabemos a verdade sobre a profecia. Já vimos a sombra branca e agora ela está caindo sobre Bedwyr e mim. Diga-me, Merlin, para não destruir a confiança que temos um no outro, que atitude você me aconselharia tomar? Tenho que dar ao meu mais querido amigo, meu irmão, a confiança e respeito que ele merece. Por acaso sou um aldeão, com nada em minha vida senão uma mulher e uma cama, das quais tenho ciúmes, como um galo cantando em seu monte de estéreo? Não, Merlin, eu sou um rei e vivo a vida de um rei. Guinevere é uma rainha e não tem filhos, portanto sua vida é pior do que a de outras mulheres. Deverá ficar espe­rando pelo marido meses após meses numa cama fria? Passear, cavalgar, comer com um lugar vazio a seu lado? Ela é jovem, Merlin, e tem necessidade de carinho e companheirismo. Terei muito que agradecer ao seu deus, ou qualquer outro, se nos inú­meros dias em que eu for obrigado a me afastar da corte, no caso de ela desejar levar um homem para sua cama, o escolhido seja Bedwyr. E o que mais posso fazer? Qualquer coisa que eu diga a ele atingirá a raiz da confiança profunda que temos um no outro e não seria nada diante do que já aconteceu. O amor, como você mesmo falou, não pode ser contestado. Por isso fico calado, e você também ficará, e esse silêncio manterá intactas a confiança e amizade. Dentro desse quadro, podemos considerar uma dádiva o fato de a rainha ser estéril. — Novamente o sorriso sem alegria. — Portanto, para nós dois, Merlin, o deus escreve direito por linhas tortas, concorda?

Eu me levantei. A brisa afastou as folhagem das árvores e os raios do sol incidiram diretamente no regato. O brilho feriu meus olhos, que começaram a lacrimejar.

— Você entendeu bem, Artur? — falei tranqüilamente. — Esta é a bênção final. Você provou que não precisa mais de minha força ou de meus conselhos. Se daqui por diante você tiver ne­cessidade de um aviso ou profecia, continuará encontrando-os aqui em Applegarth. No que me diz respeito, peço que permita que seu servo parta em paz, de volta ao meu lar e às minhas colinas, e ao que possa estar me esperando lá. — Peguei minha cesta com as plantas e toquei no ombro de Artur. — Mas, en­quanto isso não acontece, quer vir comigo e conversar com Ninian?

 

Quando chegamos a minha casa ela parecia deserta. Ainda era muito cedo, Varro não chegara para trabalhar e eu vira Mora de longe, com a cesta no braço, dirigindo-se para o mercado do vilarejo próximo.

Levamos a égua para a cocheira e em seguida entramos na casa. A moça estava ali, sentada na banqueta perto da janela, lendo. No peitoril, não muito longe dela, um passarinho comia as migalhas ali colocadas. Ela devia ter ouvido o cavalo e pensado que um mensageiro chegara de Camelot, porque mostrou clara­mente que não imaginava que iria se defrontar com o rei em pessoa. Quando entrei ergueu o rosto com um sorriso e um "bom dia" mas, ao ver Artur atrás de mim, levantou-se e ficou rolando o pergaminho nas mãos.

— Vou deixá-los à vontade para conversarem — disse e, sem pressa, virou-se para sair.

— Ninian! — chamei, querendo alertá-la, mas Artur passou rapidamente a minha frente e parou perto dela, examinando seu rosto.

Eu fiz o mesmo. Agora que sabia da verdade, imaginei como pudera me deixar enganar tão facilmente. Não era o rosto de um rapaz de dezoito anos. Todavia, um rapaz de dezoito anos, mas ainda imaturo, poderia ter as faces lisas e a boca suave, mas mãos e pés não eram de homem. Só posso pensar que a lembrança que eu tinha de Ninian me fizera apegar-me a sua imagens aos treze anos. Meu desejo de tê-lo a meu lado fora forte o bastante para eu recriá-lo, primeiro na figura que eu avistava vagamente por entre a névoa do lago, e depois nessa moça, tão perto de mim, tão atentamente observada, mas não realmente vista, nos longos meses que estava comigo. Talvez, imaginei, ela viesse usando um pouco de minha magia contra mim, para me manter cego até conseguir seus propósitos.

Ela estava ereta diante de nós, não precisando de magia para perceber o que sabíamos. Os olhos cinzentos encontraram-se com os meus por um átimo de segundo e voltaram-se para o rei.

E difícil descrever o que aconteceu. Lá estava a sala, com sua calma e sombra habituais, cheia dos sons e aromas de uma manhã de primavera: rosas precoces e os goivos que ela plantara junto à janela, os troncos queimados na lareira (as noites ainda eram frias e ela insistira em acender o fogo para me aquecer enquanto eu lia), o canto do passarinho enquanto voava entre os galhos das macieiras. Uma sala normal, num dia de verão, onde, para uma pessoa comum, não estava acontecendo nada de especial. Apenas três pessoas em silêncio, numa pausa da conversa.

Para mim, contudo, subitamente o ar esfriou e senti a carne se contrair em meus ossos e minha pele se arrepiarem. Nem o rei nem a moça pareciam notar. Ela o observava com um ar grave, sem temor, que para qualquer outro pareceria expressar apenas um vago interesse. Meu corpo, no entanto, todo captava as forças que rodopiavam entre os dois. Os olhos cinzentos enfrentavam os escuros que pareciam querer penetrá-la. O ar vibrava entre eles.

Então Artur fez um ligeiro aceno com a cabeça e levantou a mão para soltar a capa do ombro. Vi a boca da moça mover-se com uma sombra de sorriso. O recado fora dado. Por mim, Artur a aceitaria. E, por mim também, ela aceitaria o julgamento. A atmosfera da sala voltou ao normal e peguei a capa de Artur para colocá-la sobre um banco. A moça disse:

— Posso trazer o desjejum? Mora estava com tudo pronto, mas você se demorou e ela queria ir cedo ao mercado para pegar as coisas mais frescas.

A mesa já estava posta. Ela se afastou e voltou trazendo pão, mel, mingau de aveia, uma jarra de leite e uma de hidromel, que colocou perto do rei, antes de tomar seu lugar habitual, a minha frente. Continuava sem olhar para mim e, quando lhe servi uma caneca de leite, agradeceu sem erguer a cabeça.

— Seu nome — disse o rei. — É Niniane?

— Sim — respondeu ela, enquanto passava mel no pão. — Mas sempre me chamaram de Nimuë.

— Seus pais?

— O nome de meu pai era Dyonas.

— O rei das ilhas do Rio?

— Ele mesmo. Já morreu.

— Sei disso. Ele lutou ao meu lado em Viroconium. Por que você saiu de sua casa?

— Fui enviada para servir à dama, na ilha de Vidro. Era desejo de meu pai. — Uma sombra de sorriso. — Minha mãe era cristã e, quando estava à beira da morte o fez prometer que me man­daria para a ilha, embora eu só tivesse seis anos na época. Sei que ela queria me ver na igreja de lá, mas meu pai não aceitava o que ele chamava de novo deus. Era um iniciado de Mitra. Foi levado para lá por meu avô durante o reinado de Ambrosius. Assim, quando chegou a hora de ele cumprir o juramento que fizera, levou-me para a ilha, mas para servir a Boa Deusa no santuário ao sopé do Tor.

— Compreendo.

Eu também entendi. Como uma das ancillae do templo ela com certeza estava lá por ocasião da festa de ação de graças depois das batalhas de Caer Guinnion e Caerleon. Ao me ver ao lado do rei deve ter pensado que seria extremamente difícil para ela um dia se aproximar do príncipe-mago e aprender qualquer uma das grandes artes. Então, naquela noite eu colocara a chave em sua mão. Fora preciso muita coragem para usá-la, mas isso era algo que tinha de sobra.

Artur continuava o interrogatório:

— E você queria estudar magia. Por quê?

— Meu senhor, eu não saberia lhe dizer. Por que uma pessoa quer aprender música, por que um pássaro tenta voar? Quando fui para a ilha, encontrei um pouco de magia e aprendi tudo o que elas tinham para ensinar, mas continuava sedenta de saber. Então um dia eu vi... — Ela hesitou pela primeira vez. — Vi Merlin no santuário. O senhor sabe quando foi. Mais tarde ouvi contar que ele estava morando aqui e pensei que, se eu fosse um homem não hesitaria em procurá-lo, porque sendo um sábio veria que a magia está em meu sangue e não se negaria a me ensinar.

— Sim, lembro-me desse dia. Houve uma cerimônia de ação de graças. Mas, se você estava lá, como não me reconheceu na primeira vez que estive aqui?

Ela ficou vermelha como fogo. Pela primeira vez seu olhar desviou-se do de Artur.

— Na verdade eu não o vi lá, meu senhor. Como lhe disse, eu só tinha olhos para Merlin.

Houve uma pausa seca de silêncio, como acontece quando se coloca a palma da mão nas cordas da harpa, matando o som. Vi a boca de Artur abrir e fechar, e depois um lampejo de bom humor em seu rosto. Ninian, com os olhos fixos na mesa, não percebeu nada. Ele me lançou um olhar de moleque, esvaziou o copo e sentou-se na cadeira. Quando falou, sua voz continuava com a mesma expressão, mas o desafio terminara; ele abaixara a espada.

— Mas você sabia que Merlin dificilmente iria aceitá-la como pupila, mesmo se a dama do santuário aceitasse sua saída do claustro.

— Sim, sabia e não tinha esperanças, mas depois que vi Merlin passei a me conformar ainda menos com a vida entre todas aque­las mulheres. Elas se contentam em passar ano após ano fazendo suas pequenas mágicas, preces e encantamentos, sempre olhando para o passado, para o tempo das lendas... É difícil explicar, mas quando alguém sente algo dentro de si mesmo, uma coisa que queima para se libertar... O senhor deve saber do que estou fa­lando. Eu continuava não nascida, bicando aflita a casca do ovo, ansiosa por ar fresco. No entanto, sabia que o único modo de sair da ilha seria um homem fazer uma oferta por mim e isso eu não aceitaria, nem se meu pai estivesse vivo para me obrigar.

Artur balançou a cabeça, concordando e, pensei, compreen­dendo.

— Então?

— Não era fácil nem mesmo encontrar tempo para ficar so­zinha. Eu ficava observando e esperando a oportunidade para sair de lá de vez em quando, só para me entregar aos meus próprios pensamentos, ver a água e o céu... Então, na noite em que a rainha Guinevere desapareceu e a ilha estava em tumulto, eu... receio que eu só conseguia pensar que não haveria ocasião melhor para sair sem que notassem minha falta. Eu sabia onde havia um bote, já o tinha usado, e escapei de lá sabendo que ninguém me veria naquela neblina. Logo depois Merlin, que vi­nha pela estrada da margem, falou comigo. — Ela fez uma pausa. — Acho que o senhor já sabe do resto.

— Sim. Então, quando surgiu a oportunidade, o deus, como você diria, já que é pupila de Merlin, o fez confundi-la com o menino Ninian e convidou-a a aprender com ele.

— Sim. — Nimuë abaixou a cabeça. — Logo que ele falou, fiquei muito confusa. Era um sonho se tornando realidade, nem sei direito o que respondi naquela hora. Mais tarde me dei conta de que ele me tomara por um menino que conhecera anos antes.

— E como você acabou saindo do santuário? O que disse à dama?

— Que eu fora convocada para uma missão mais elevada. Não dei explicações, mas deixei que ela imaginasse que eu ia voltar para a casa de meu pai, onde tentaria me casar com meu primo, que agora é o rei das ilhas do Rio. Ela não fez objeções, não interferiu.

Claro que não, pensei, aquela senhora orgulhosa, cheia de si, ficara mais do que grata de se livrar de uma adepta que ameaçava brilhar mais do que ela. Sim, entre as mocinhas vestidas de bran­co, essa jovem fada devia brilhar como um diamante colocado sobre fibras de Unho.

Atrás de mim, o passarinho voltou a empoleirar-se no peitoril e ouvi-o bicando as migalhas de pão. Duvido que Nimuë ou Artur tivessem percebido sua presença. As perguntas tinham mu­dado de rumo:

— Você precisa de fogo para suas visões, ou, como Merlin, consegue ver até em gotas de água?

— Tive a visão com Heuil em gotas de orvalho.

— E foi uma e verdadeira visão. Certo. Parece-me então que você já possui algo do poder maior. Bem, não temos fogo aqui, mas quer olhar para mim de novo e ver se existe algum outro aviso nas estrelas?

— Não consigo ver nada por encomenda.

Mordi o lábio para não sorrir. Reconheci meu próprio tom quando eu era jovem, confiante e um tanto pomposo. Vi que Artur tivera a mesma impressão, mas ele disse gravemente:

— Desculpe-me. Eu devia saber.

Artur levantou-se e pegou a capa que eu colocara numa ca­deira. Houve uma falha perceptível na compostura de Nimuë enquanto se apressava para ajudá-lo. Ele estava se despedindo de mim, mas mal o ouvi. Minha própria compostura caíra em ruínas. Eu, que nunca me vira sem palavras, agora não conseguia pensar no que deveria dizer.

O rei chegou à porta. O sol bateu nas pedras preciosas do broche que prendia a capa no ombro.

— Rei Artur! — disse Nimuë rispidamente.

Ele virou-se. Se achou o tom peremptório, não demonstrou. Ela continuou:

— Se sua irmã, a rainha Morgan, vier a Camelot, tranque sua espada e esteja alerta para traições.

Artur pareceu surpreso e depois disse rispidamente:

— O que está querendo dizer com isso?

Nimuë hesitou, também surpresa com que acabara de dizer. Depois levantou as mãos num gesto de impotência.

— Não sei, meu senhor. E não posso dizer mais nada. Per­doe-me.

— Bem... — Artur virou-se para mim, ergueu as sobrancelhas, encolheu os ombros e depois saiu.

Houve um silêncio tão longo que o passarinho se atreveu a entrar na sala e comer as migalhas da mesa.

— Nimuë — falei.

Ela então olhou para mim e notei que, apesar de não ter mos­trado o menor receio do rei, estava com medo de me enfrentar. Sorri para ela e vi, para minha grande surpresa, os olhos cinzentos se encherem de lágrimas.

Estendi as mãos e as dela vieram encontrá-las. No final não houve necessidade de palavras. Não ouvimos o cavalo do rei descer a colina nem, muito mais tarde, Mora voltar do mercado para encontrar o desjejum praticamente intocado.

 

                                 Livro IV BRYN MYRDDIN

Assim, quando eu já estava caminhando para o final de minha vida, encontrei um novo começo, um começo no amor para nós dois. Eu não tinha prática e Nimuë, desde a infância destinada a ser uma das donzelas do lago, nunca pensara muito no assunto, mas o que tivemos foi o suficiente e muito mais, e ela, apesar de ser muitos anos mais nova do que eu, parecia feliz e satisfeita. Eu, que tantas vezes me xingara de velho tolo, caduco e impru­dente, sabia que tais termos não se aplicavam realmente a mim. Entre mim e Nimuë existia um vínculo muito maior do que po­deria existir entre um casal no auge da juventude e força. Éramos a mesma pessoa, fazíamos parte um do outro como noite e dia, crepúsculo e amanhecer, sol e sombra. Quando nos deitávamos juntos, ficávamos no limiar da vida onde os opostos se fundem, criando novas entidades, não de carne e osso, mas de espírito, resultando em um prazer da mente junto com o prazer do corpo. Não nos casamos. Hoje em dia, olhando para trás, creio que jamais pensamos em cimentar nosso relacionamento dessa ma­neira, primeiro porque não estava bem claro que ritos deveríamos usar e depois porque nenhum deles seria tão forte como o laço que nos unia. Com a passagem dos dias e noites daquele doce verão, fomos ficando cada ver mais íntimos, como se feitos de um molde comum. Acordávamos sabendo que tínhamos com­partilhado do mesmo sonho; conversávamos à noite sabendo o que o outro fizera e aprendera naquele dia e, durante todo o tempo, como eu acreditava, cada um abrigava dentro de si seu próprio e crescente júbilo, eu em vê-la experimentando as asas do poder, como um forte e jovem pássaro dominando pela pri­meira vez os ares; ela em perceber que eu me conformava sem mágoa com a diminuição de meu poder.

E assim se passou o agradável mês de junho e chegamos à época do alto verão, em que as abelhas zumbiam o dia inteiro sugando o néctar das flores de lavanda. Num deles Nimuë pediu a Varro para selar o cavalo castanho, que ganhara de Artur, des­pediu-se de mim com um beijo e tomou o rumo do lago. Aquela altura, é claro, já era de conhecimento geral que a antes serva da deusa agora vivia com Merlin em Applegarth. Houve muita especulação e mexericos, mas eu sabia que no fundo estavam todos impressionados com o impulso que levara a jovem e bela moça para a cama do idoso mago. A atitude do Grande Rei, deixando claro através de presentes, visitas e palavras que nosso relacionamento tinha sua aprovação, pôs fim a esses comentários e até mesmo a Dama do Lago mandou dizer que suas portas estavam abertas para Nimuë, talvez, como caçoava minha amada, na esperança de que um dia o santuário herdaria alguns dos segredos de Merlin. Nimuë não saía de casa com freqüência, mas gostava de ir à ilha, e não podia ser culpada por estar um pouco vaidosa de sua nova posição nessas primeiras semanas, querendo se mostrar para amigas que tinha entre as ancillae da deusa. Ainda não fora sem mim a Camelot e eu adivinhava o que ela não dizia: que, mesmo gozando do apoio do rei, tinha dúvidas sobre como seria recebida na corte ao apresentar-se sozinha.

Nimuë prometeu que me traria algumas plantas do jardim que cercava o poço sagrado e estaria em casa ao entardecer. Quan­do a vi desaparecer na estrada, coloquei um chapéu de palha, peguei meu saco de remédios e subi a colina para visitar uma mulher que se recuperava de um ataque de febre. O dia estava fresco e eu caminhava com passos leves, ouvindo o alegre canto dos pássaros e acompanhando a trilha ladeada de flores perfu­madas.

É só do que me recordo. Em seguida — como se tudo coubesse num único segundo — o mundo escureceu e as estrelas se apa­garam em fagulhas que se espetaram em meus olhos e cérebro. Eu estava deitado de costas na relva, olhando para elas. Os arbustos cheios de flores se fecharam sobre mim e, pouco a pouco, como se minhas sensações estivessem vindo de uma infindável distância, percebi que seus espinhos picavam meus braços e mãos. As estrelas cintilavam no chão à minha volta. Por todos os lados havia um grande silêncio, como uma respiração contida. Então, acima de mim, bem alto no céu negro, um outro ponto de luz começou a crescer. Eu não podia me mexer e continuava deitado ali, como se estivesse sozinho na curva do mundo, observando a estrela. Logo em seguida, com um brilho intolerável, ela des­creveu um arco, deixando atrás de si uma longa cauda de luz em forma de dragão.

— O dragão! O dragão! Vejam onde ele cai! — ouvi alguém gritar, mas logo soube que a voz era minha.

Luzes e mãos, e o rosto de Nimuë, branco sob a luz do lampião, com Varro atrás dela e um jovem que reconheci vagamente como um pastor que estava sempre perto de casa. E vozes.

"Está morto?" "Não, venha, vamos cobri-lo, está gelado." "Ele está morto, senhora." "Não! Nunca! Não acredito, não aceito! Faça o que estou mandando!" Depois, com angústia: "Merlin, Merlin!" E uma voz de homem, temerosa: "Quem vai avisar o rei?"

Depois um vácuo de tempo, minha cama e o sabor de vinho quente com ervas, e outro longo espaço, dessa vez trazido pelo sono.

 

Agora chegamos à parte de minha crônica que é a mais difícil de contar. Se é ou não verdade que o cometa com cauda de dragão veio anunciar o fim dos poderes mais elevados do mago Merlin, como afirma a crença popular, o fato é que não tenho certeza se o que me lembro foi real ou um sonho. Isso aconteceu no ano em que viajei com Nimuë. Olhando agora para o passado, vejo cena após cena, como reflexos passando ao lado de um barco, sendo quebrados pelos remos.

Ao longo da semana que se seguiu ao ataque que sofri no alto da colina, passei a maior parte do tempo sentado no pátio, não por fraqueza, mas por insistência de Nimuë e também porque eu precisava de tempo para pensar.

Então, no crepúsculo de um dia quente, chamei-a para perto de mim. Ela sentou-se no lugar habitual, uma almofada aos meus pés, e recostou a cabeça em meus joelhos. Acariciei os cabelos sedosos e espessos, que estavam crescendo, tendo passado dos ombros. Como acontecia com freqüência, perguntei-me como eu não conseguira ver desde o primeiro dia as curvas femininas de seu corpo e as linhas delicadas do pescoço e da testa.

— Você esteve muito ocupada esta semana — falei.

— Sim, tive de colher as ervas e pô-las para secar. Serviço caseiro, nada de grande importância.

— Terminou com elas?

— Quase. Por quê?

— Estive aqui sem fazer nada enquanto você trabalhava, mas pensei muito.

— Em quê?

— Entre outras coisas, em Bryn Myrddin. Você nunca esteve lá e, portanto, antes de o verão acabar, partiremos daqui e...

— Deixar Applegarth? — Ela afastou-se de mim com uma expressão de desgosto. — Você quer voltar a morar em Bryn Myrddin... nós dois...

— Não — sorri. — É interessante, mas nunca consegui ima­ginar nós dois vivendo lá. E você?

Ela voltou a repousar a cabeça em meus joelhos. Permaneceu em silêncio por alguns instantes e depois falou numa voz que saiu abafada:

— Não. Nunca vi o lugar, nem em sonhos, mas você me contou que vai morrer lá. E o que está querendo dizer?

— Não. — Voltei a afagar seus cabelos. — Sei que isso vai acontecer, mas ainda não tive nenhum aviso e nunca me senti tão bem como agora. Mas encare a situação desta maneira: quan­do minha vida terminar, a sua deve começar e, para que isso aconteça, você tem de fazer o que fiz um dia e entrar na caverna de cristal para ter a visão. Já falamos sobre isso, você sabe.

— Sim, sei. — Ela não pareceu ter se tranqüilizado.

— Muito bem — falei alegremente —, iremos para Bryn Myrd­din, mas só no final de nossa viagem. Primeiro veremos muitos lugares e coisas diferentes. Quero que você conheça onde passei parte de minha vida e que veja as coisas que eu vi. Já lhe contei o máximo que pude, agora chegou a hora de conhecê-las pes­soalmente. Entendeu?

— Acho que sim. Você está me dando a soma de sua vida, sobre a qual construirei a minha.

— Exatamente. Para você, as pedras com que edificará a vida que deseja ter. Para mim, a coroa e a colheita.

— E depois de eu ver tudo... — Ela ainda parecia tristonha.

— Só o deus sabe o que acontecerá. — Achando graça, acariciei novamente seus cabelos. — Vamos, menina, que cara é essa? Vamos partir numa viagem de núpcias, não numa procissão de funeral. Nossas viagens talvez tenham um propósito, mas en­contraremos prazer nelas, pode ter certeza. Faz tempo que eu vinha considerando isso, não pense que tem alguma relação com minha saúde. Temos vivido felizes aqui em Applegarth e será um prazer voltar para cá, mas você ainda é jovem demais para ficar aqui de asas fechadas, ano após ano. Por isso vamos viajar. Para ser sincero, desconfio que meu verdadeiro objetivo é apenas lhe mostrar os lugares que conheci e amei.

Nimuë endireitou-se, parecendo muito mais à vontade. Seus olhos começaram a cintilar. Era jovem, muito jovem.

— Um tipo de peregrinação? — disse entusiasmada.

— Sim, pode chamá-la assim.

— Você está falando de Tintagel e Rheged, do lugar onde encontrou a espada e do lago onde a deixou esperando pelo rei?

— Muito mais do que isso, minha querida. Por mais que me desagrade — fiz uma careta —, temos de navegar até a Bretanha Menor. Minha história e a do Grande Rei sempre estiveram li­gadas, como a sua também estará, à espada Caliburn. Quero lhe mostrar onde o deus se manifestou me dando o primeiro sinal sobre ela e, para isso, devemos partir logo. Os mares agora estão calmos, mas dentro de um mês, um mês e pouco, começarão os vendavais.

— Então vamos partir agora mesmo! — Subitamente ela era apenas prazer sem complicação, uma mocinha entusiasmada com uma viagem empolgante. — Oh, acho que não tenho nada ade­quado para usar...

Assim, no dia seguinte mandei um mensageiro a Camelot e uma semana depois Artur veio pessoalmente me dizer que os navios e escolta estavam prontos e que poderíamos partir quando quiséssemos.

No final de julho, quando zarpamos do ancoradouro da ilha, Artur e a rainha acenavam com votos de boa viagem. Bedwyr, ao nosso lado, mostrava no rosto um misto de sofrimento e alívio em se afastar de Guinevere. Ele fora designado para chefiar a escolta que nos acompanharia até a corte do rei Hoel da Bretanha Menor, primo de Artur, na cidade de Kerrec.

Nunca pretendi registrar nesta crônica nossa viagem, passo a passo, crônica e de fato, como já expliquei anteriormente, não seria capaz de fazê-lo. Fomos primeiro para a Bretanha Menor, disso eu me lembro bem, onde passamos o outono e inverno como hóspedes de Hoel. Mostrei a Nimuë as estradas que atra­vessavam a floresta e a humilde estalagem onde Ralf, meu pajem, cuidara do pequeno Artur durante aqueles anos perigosos. Mas já daqui por diante minhas recordações são confusas. Enquanto escrevo posso vê-las todas, passando umas pelas outras como fantasmas que assombram há séculos e séculos um castelo aban­donado. Cenas claras: Artur ainda bebê, dormindo numa manjedoura. Meu pai, olhando-me à luz da candeia, dizendo: "O que acontecerá à Bretanha?" Os druidas envolvidos em sua obra as­sassina em Nemet. Eu, apenas um menininho assustado, me es­condendo na estrebaria. Ralf galopando por entre as árvores vin­do me buscar a mandado de Hoel. Nimuë a meu lado, sentada na relva da mesma clareira por onde a corça branca passara como por mágica, atraindo o perigo para longe de Artur. E, por entre essas, outras lembranças mais confusas: os veados correndo por entre os carvalhos no santuário de Nodens, o animal branco, com olhos de rubi, magia sobre magia. Mas, permeando tudo, como uma tocha reacesa para uma nova busca, as estrelas, o deus sorridente, a espada.

Sei, e com certeza, que estivemos fora até o verão seguinte. Posso até registrar com bastante exatidão o dia de nossa chegada. Cador, duque da Cornualha, tinha morrido e desembarcamos num país em completo luto por um grande guerreiro e grande soberano. No entanto, não consigo lembrar qual de nós, Nimuë ou eu, recebeu o aviso de que era hora de voltarmos e onde deveríamos aportar. O fato é que ancoramos perto de Tintagel dois dias depois da morte de Cador, e logo avistamos Artur e seu séquito. Tendo visto nossas velas ele, que já estava na capital para o funeral, viera ao cais para nos saudar. Antes mesmo de saltarmos para a terra vimos os escudos cobertos, as flâmulas abaixadas e o branco não enfeitado do luto e entendemos o que nos trouxera de volta.

Cenas como essas surgem com facilidade e completamente ilu­minadas. Mas então aparece a capela onde Cador estava sendo velado pelos monges e o quadro se desfaz e mais uma vez me vejo diante do ataúde de seu pai, esperando pelo fantasma do homem que eu" traí. Tintagel, em luto pelo duque Cador, me parece menos real do que a fortaleza varrida pelas tempestades onde Uther, deitado com Ygraine, mulher de Gorlois, gerou Artur para a Bretanha.

E é assim que vejo o tempo que veio em seguida. Depois de Tintagel fomos para o norte. A memória ou o sonho aqui, nesta longa escuridão, me mostra as graciosas colinas de Rheged, as nuvens nos pontos mais altos da floresta, os lagos piscosos e refletido na superfície de seu próprio lago, Caer Bannog, onde escondi a grande espada que mais tarde deveria ser de Artur. Depois vejo a Capela Verde, onde naquela noite lendária, Artur finalmente a pegou na mão.

Dessa forma, como eu fizera anos antes, seguimos a espada, mas numa viagem alegre e sem compromissos, mas alguma coisa, uma intuição que eu não podia garantir se era profética ou pro­duto da prudência, me fez calar sobre a outra busca que às vezes eu divisava por entre as sombras. Essa não seria para mim e sua hora ainda não havia chegado, assim não falei nada sobre Segontium ou sobre o lugar onde jaziam profundamente enterrados os outros tesouros que tinham vindo com a espada para o Oci­dente.

Finalmente chegamos a Galava, um final feliz para uma agra­dável viagem. Fomos recebidos com grande alegria pelo conde Ector, agora gordo com a idade e boa vida devido ao longo pe­ríodo de paz, que com uma piscadela apresentou Nimuë para Drusilla como: "A esposa do príncipe Merlin, enfim". E ao lado dele estava meu fiel Ralf, corado de prazer, orgulhoso como um pavão de sua esposa bonita e quatro meninos robustos, ávido por notícias de Artur e do sul.

Fomos alojados no quarto da torre, onde eu ficara me recu­perando do veneno de Morgause. Passava um pouco da meia-noite e estávamos deitados, vendo o luar tocar o cume das colinas, quando Nimuë, acomodando o rosto no meu ombro, perguntou:

— E daqui, para onde iremos? Bryn Myrddin e a caverna de cristal?

— Acho que sim.

— Se sua terra for tão bonita como aqui, é possível que eu concorde em deixar Applegarth... — Ouvi um sorriso em sua voz. — ...pelo menos no verão.

— Eu não disse que chegaríamos a isso. Mas agora quero saber de uma coisa: para a última etapa de nossa viagem de núpcias, você prefere voltar pelas estradas do oeste ou pegar um navio em Glannaventa para chegar a Maridunum por mar?

Houve uma pausa e depois Nimuë disse:

— Mas por que você está me pedindo isso? Pensei...

— Pensou? Outra pausa.

— Pensei que você ainda tinha mais para me mostrar. Percebi que suas intuições eram tão confiáveis como as minhas.

— O que, minha querida?

— Você me contou tudo sobre a espada, me mostrou tudo o que aconteceu com essa maravilhosa Caliburn que é o símbolo do poder do rei e que dá a Artur o direito de reinar. Mostrou-me os lugares onde teve as visões que o levaram a encontrá-la, onde a escondeu até Artur crescer e onde finalmente ele a pegou nas mãos, mas nunca me contou como você a encontrou. Pensei que essa fosse a última coisa que você iria me mostrar antes de me levar para casa.

Não respondi. Ela ergueu-se, apoiou a cabeça na mão e ficou olhando para mim. O luar deslizou nela, tornando-a uma coisa feita de prata e sombra, iluminando os graciosos contornos do rosto, pescoço e seios. Sorri acompanhando o brilho do ombro com a ponta do dedo.

— Como posso pensar e responder, com você me olhando desse jeito?

— Não brinque — disse ela, respondendo ao meu sorriso. — Por que nunca me contou? Por acaso tem outras coisas lá, que pertencem ao futuro?

Sim, pela intuição ou vidência ela sabia. Comecei vagarosa­mente:

— Sim, ainda existe um mistério, só um, e sim, de novo, é para o futuro. Ainda não consegui vê-lo com clareza mas, antes de Artur se tornar rei, fiz uma profecia para ele. Aconteceu entre o encontro da espada e a hora em que foi retirada do altar, quando o futuro ainda me aparecia no fogo. Lembro-me bem do que eu disse...

— Sim?

— "Vejo uma terra próspera, com o milho crescendo rico nos vales e os lavradores arando seus campos em paz, como faziam no tempo dos romanos. Vejo uma espada esquecida e descon­tente, e os dias de paz de estendendo até se esgarçarem em que-relas e divisões, gerando a necessidade de uma empreitada para espadas indolentes e espíritos famintos. Talvez o deus tenha ti­rado o cálice e a lança de mim para voltar a enterrá-los para que você um dia venha a decidir procurar pelo resto dos tesouros de Macsen. Não, não você, mas Bedwyr... é o espírito dele, não o seu, que terá fome e sede e se saciará nas fontes erradas."

Um longo silêncio. Eu não podia ver os olhos de Nimuë porque estavam cheios de luar. Ela então sussurrou:

— O cálice e a lança? O tesouro de Macsen, de novo escondido no solo para ser objeto de uma empreitada, uma busca maior do que a feita pela espada?

Ela parecia ansiosa, não espantada, mas ansiosa, como um corredor avistando sua meta. Quando ela vir o cálice e a lança, pensei, inclinará a testa diante da magia que eles possuem. Mas, como é muito jovem, vê os instrumentos de força somente como armas em suas mãos. Achei melhor não lhe dizer: "E a mesma busca, porque para que serve a espada do poder sem a satisfação do espírito? Todos os reis agora são um único rei. Chegou a hora dos deuses se tornarem um único deus e é no cálice que está a unicidade que os homens procurarão e pela qual morrerão, e morrendo, viverão".

Calei-me por alguns instantes enquanto Nimuë me observava, imóvel. Eu podia sentir o poder emanando dela, meu próprio poder agora muito mais forte nela do que em mim. Experimentei apenas cansaço e um certo pesar.

— Conte-me, querido — sussurrou ela, decidida.

— Está bem — sorri e falei com suavidade. — Mas farei melhor ainda, eu a levarei até lá e lhe mostrarei o que existe para ver. O que resta do tesouro de Macsen está enterrado no templo ar­ruinado de Mitra em Segontium, que é chamado de Caer-y-n'a Von, próximo de Y Wyddfa. Por enquanto é só isso que posso lhe dar, exceto meu amor.

Lembro-me que ela disse: "E isso seria suficiente, mesmo sem o resto", enquanto se abaixava para me beijar.

Depois que Nimuë adormeceu, fixei meu olhar na lua cheia e luminosa, que me pareceu ficar por horas emoldurada pela janela do quarto, me recordando de como, muito tempo antes, quando era menino, acreditava que essa visão me traria tudo o que o coração desejasse. O que existira naqueles tempos: poder, profecia, dedicação, amor, eram coisas do passado e o desejo de meu coração agora estava ao meu lado, dormindo em meus bra­ços. E a noite enluarada estava vazia de futuro, vazia de visão. Todavia, como tênues fantasmas do passado, eu ainda ouvia as vozes.

A voz de Morgause, cuspindo sua maldição: "Tem mesmo certeza de que está protegido da magia das mulheres, Merlin? Ela acabará lhe agarrando".

E, por entre ela, a voz de Artur, furiosa, mas cheia de amor: "Não suporto ver você sofrendo" e "Bruxa ou não, amante ou não, eu a tratarei como merece".

Puxei o corpo jovem de Nimuë para mais perto de mim, beijei com infinita delicadeza as pálpebras cerradas e respondi aos fan­tasmas, às vozes, à lua vazia: "Era a hora, deixem-me em paz". Depois, entregando a mim e meu espírito a Deus, que por tantos anos me carregara nas mãos, acomodei-me para dormir.

Essa foi a última coisa que sei ter sido verdadeira, e não apenas um sonho na escuridão.

 

Quando eu era criança, em Maridunum, dormia com minha babá num quarto no andar térreo da ala dos serviçais do palácio de meu avô. Junto à janela havia uma macieira onde no fim da tarde um tordo vinha cantar, anunciando a chegada da noite. Depois as estrelas apareciam, espiando por entre os galhos da árvore, e eu, deitado na cama e quieto, muito quieto, tentava ouvir a música que elas produziam ao caminhar pelo céu, como me contaram.

Agora, afinal, tive a impressão de ouvi-la. Estava deitado e confortavelmente coberto e, pelo movimento que percebia, sendo transportado numa liteira. Uma grande escuridão me envolvia e, bem acima de mim, eu via o veludo da noite cheio de estrelas que saltitavam e rodopiavam, tilintando como pequenos sinos. Eu era parte do chão que se mexia, transmitindo a vibração para o meu corpo, e parte da imensa escuridão que me envolvia. Eu nem mesmo tinha certeza se meus olhos estavam abertos. Minha última visão, pensei debilmente, o desejo de meu coração, sempre fora esse, poder ouvir, antes de morrer, a música das estrelas...

Então descobri onde estava. Devia haver pessoas perto de mim. Eu ouvia vozes em tom baixo, mas parecendo vir de muito longe, como num quarto de doente. Criados carregavam a liteira e seus braços me transmitiam calor. A vibração no solo era resultado de seus passos lentos. Não, não era uma visão iluminada pelas esferas cantantes; eu era apenas um velho doente, ainda preso à terra, sendo carregado lentamente para casa, no silêncio impotente de minha enfermidade. A música que acreditara vir das estrelas eram apenas os sininhos em arreios de mulas.

Não sei quanto tempo levou, mas finalmente a liteira se nivelou no alto de uma longa subida e um arco de calor passou sobre mim. Mais pessoas, vozes por todos os cantos, alguém chorando. Sim, eu tivera um outro ataque da doença e fora trazido para Bryn Myrddin.

Mais confusão depois disso. As vezes eu achava que conti­nuava viajando com Nimuë, porque ora lhe mostrava as ruas de Bizâncio, ora caminhávamos pelas montanhas em torno de Berytus. Ela me trouxe a poção que preparara, tocando meus lábios com o copo. Então era sua boca que estava na minha, e nela eu sentia o gosto de morangos e ouvia os lábios murmurando doces encantamentos, enquanto a caverna se enchia de fumaça de pre­cioso incenso. Velas por todos os lados e a luz amarela e bruxuleante iluminando meu falcão, meu pequeno merlin, empoleirado numa saliência da rocha sobre a entrada da caverna, esperando pelo sopro do deus em suas penas. Galapas sentado perto do braseiro, desenhando os primeiros mapas para mim na areia fina do chão, e agora, perto dele, o menino Ninian ajoelhado, estudando-os com seus olhos graves e gentis. Ele olhou para cima e vi que era Artur, vivido e impaciente, com dez anos de idade... depois Ralf, jovem e emburrado... e finalmente era o menino Mer­lin, atendendo a uma ordem de seu mestre e entrando na caverna de cristal. E vieram as visões. Eu as vi de novo, os sonhos que haviam fervilhado em minha mente infantil nesta mesma caverna. Dessa vez Nimuë segurava minha mão e viu-as comigo, estrela por estrela, e então levou o elixir aos meus lábios, enquanto Ga­lapas, o menino Merlin, Ralf, Artur e o menino Ninian foram se dissipando e sumiram como os fantasmas que eram. Apenas as lembranças permaneceram e agora elas estavam trancadas no cé­rebro de Nimuë como haviam ficado trancadas no meu, e seriam dela para sempre.

Através de tudo, embora eu não tivesse a sensação de tempo, ele ia passando e os dias se sucederam e eu continuava deitado no estranho limbo criado por um corpo inerte e uma mente ativa, enquanto pouco a pouco, como uma abelha suga o néctar de uma flor, Nimuë, a maga, extraía de mim, gota a gota, a essência de todos meus dias de vida.

Então, numa madrugada, ouvindo os primeiros passarinhos cantarem e a brisa quente do verão trazendo para dentro da caverna o perfume das flores e do feno cortado, acordei de um longo sono e me descobri curado da enfermidade. O tempo de sonhos terminara e eu estava vivo, completamente acordado. Estava também completamente sozinho na escuridão, salvo por um estreito raio de sol que se infiltrava por uma fresta que ficara esquecida quando eles tinham puxado as pedras e cascalho para fechar a boca da caverna e ido embora, deixando-me vivo minha tumba.

 

Eu não tinha meios de saber por quanto tempo ficara deitado ali, naquela morte em vida. Tínhamos ido a Rheged em julho e, pelo que eu percebia, ainda era verão. Três semanas, no máximo um mês... Se tivesse sido por muito mais do que isso, eu certamente estaria mais fraco. Até o último longo e profundo sono, fora tratado com meus próprios elixires estimulantes e remédios, e por isso, embora ainda estivesse rígido e extremamente debilitado, tinha todas as probabilidades de viver. Não havia a menor esperança de mover as pedras que selavam minha tumba, mas eu talvez conseguisse atrair a atenção de alguém que passasse por ali. Esse local era um santuário desde tempos imemoriais e pessoas do vale subiam regularmente o monte levando oferendas para o deus que guardava a fonte sagrada ao lado da caverna. Era bem possível que agora esse ponto tivesse se tornado ainda mais santo, porque Merlin, o profeta do Grande Rei, mas que primeiro fora o médico dessa gente humilde, estava enterrado ali. Enquanto ele vivia, costumavam lhe trazer vinho e alimentos de presente e com certeza continuariam a vir com ofertas para aplacar o espírito do morto.

Portanto, engolindo o medo, ergui o corpo e, apesar da tontura e fraqueza, comecei a avaliar minha situação.

Eles tinham me posto em minha própria cama, que ganhara cortinados de um tecido que ao toque parecia rico e engomado, e que agora, visto sob a luz do pequeno raio de sol cintilava em bordados feitos em ouro e pedras preciosas. Apalpei a mortalha que me cobria; espessa e quente, com desenhos em alto-relevo. Acompanhei as linhas com a ponta do dedo: o dragão. Mais acostumado com a semi-escuridão, vi nos quatro cantos da cama pesados castiçais dourados, que, junto com o resto, me indicaram que eu fora encomendado com pompa e honras reais. Então o rei estivera ali? Gostaria de me lembrar. E Nimuë? Compreendi que eu devia dar graças às minhas próprias profecias por ter recebido esse tipo de funeral e não enterrado ou incinerado. O pensamento fez um arrepio percorrer todo o meu corpo, mas também me impeliu a agir. Olhei para as velas. Três delas tinham se acabado, mas a outra, que se apagara por um motivo qualquer, ainda estava com uns dois palmos de altura. Toquei a cera der­retida no castiçal mais perto de mim. Mole. Calculei que fazia doze horas, no máximo quinze, que haviam sido acesas antes de eu ser emparedado. O quarto ainda estava quente e, se eu quisesse me manter vivo, devia tomar providências para que continuasse assim. Recostei-me no travesseiro alto e duro, puxei a mortalha com o dragão dourado até o queixo, fixei o olhar na vela apagada e pensei: vamos tentar. Porém, a mais simples das mágicas, a primeira que aprendera nesse exato lugar, também fora tirada de mim. O esforço me deixou exausto e voltei a dormir.

Acordei para ver a luz do sol caindo rosada num canto distante da caverna principal, mas a que me servia de quarto estava cheia de lua. A vela queimava com uma chama quente e dourada, e um brilho me revelou duas moedas de ouro caídas sobre a mor­talha. Lembrei-me vagamente do peso que saíra de meus olhos quando eu acordara e me mexera, e calculei que o ritual tivera de se completar com os bolos e vinhos deixados ao lado do ataúde. Ao vê-los perto de mim, agradeci em voz alta a Deus por ter me guardado, e sentei-me para comer.

Os bolos estavam secos, mas tinham gosto de mel e o vinho forte correu pelas minhas veias trazendo-me nova vida. A luz da vela afastou os últimos vestígios de medo.

— Emrys — ouvi-me sussurrar. — Emrys, filho da luz, amado dos reis... você foi avisado de que seria enterrado vivo e ficaria na escuridão, privado de seus poderes, e agora veja: aconteceu mesmo e não é tão assustador como parecia. Você está enterrado, e vivo, mas tem luz e ar e, a não ser que tenham saqueado a caverna, água, alimentos, calor e remédios...

Tirei a vela do pesado castiçal e fui examinar as cavernas in­teriores que funcionavam como despensa. Tudo estava exatamen­te como antes, sem dúvida graças a Stilicho, um criado mais do que leal. Fossem quais fossem os motivos para preservar o lugar, lá estavam, fileiras após fileira, caixa em cima de caixa, meus precisos suprimentos e também jarros de ervas, poções e elixires, tudo o que eu não levara para Applegarth. Um verdadeiro tesouro de esquilo: frutas secas e nozes, favos de mel em vasilhas bem fechadas, um barrilete de azeitonas conservadas em azeite. Dentro de uma caixa encontrei as bolachas de aveia que um dia a mulher de Stilicho fizera para mim. Estavam duras como pedra, mas sem o menor sinal de mofo, e então coloquei algumas de molho no vinho. O bujãozinho de fubá estava quase cheio e, com o azeite eu poderia fazer um tipo qualquer de pão. Água havia em quantidade. Logo que eu viera morar na caverna mandara um homem instalar um cano para transportar água da fonte para um tanque escavado na pedra mantido sempre coberto, me ga­rantindo água potável mesmo em dias de tempestade e nevascas. O excesso de água, que saía por meio de um ladrão, corria para o canto de uma remota câmara interna, onde a pedra era cheia de fissuras, servindo de privada. No que dizia respeito à ilumi­nação, encontrei um bom estoque de velas e as iscas e pederneiras no seu lugar habitual, a estante formada por uma saliência da rocha. Embora eu tivesse uma boa pilha de carvão, hesitei em acender o braseiro com medo de fumaça e miasmas, e também pensando que precisaria muito mais do calor no futuro. Se meus cálculos sobre o tempo estavam corretos, em menos de um mês o verão estaria terminado e o outono chegando com seus ventos frios e umidade letal.

Portanto, de início, enquanto as brisas quentes do verão se infiltravam pela caverna, eu usava luz apenas quando precisava ver para preparar a comida e ir à privada. As horas se arrastavam na escuridão. Todos os meus livros haviam sido levados para Applegarth, mas os materiais para escrita continuavam na ca­verna e, à medida que os dias foram se passando e eu recuperei o suficiente de minhas forças para começar a me afligir com a inatividade do cativeiro, ocorreu-me a idéia de registrar na devida ordem a história de minha infância e dos tempos que vivera e ajudara a moldar. Era uma pena, porque a música podia ser criada na escuridão, mas a harpa grande fora junto com meus livros e a pequena, minha constante companheira, não fora trazida com as outras riquezas que tinham vindo para ornamentar a casa do morto.

Nem preciso dizer que pensei muito em sair de minha tumba, mas os que tinham me deixado ali e me dado como homenagem o monte sagrado e tudo o que havia em seu interior, tinham-no usado para me lacrar em seu ventre, porque me parecia que me­tade da encosta fora solta e usada como uma avalanche para fechar a boca da caverna. Tentei várias vezes, mas mal consegui raspar algumas pedras. Sem dúvida alguém com as ferramentas certas poderia abrir uma passagem com muito tempo de trabalho, mas eu costumava guardar as pás, martelos e picaretas na co-cheira que ficava abaixo do rochedo.

Explorei também outras possibilidades. Além das cavernas que eu usava, existiam outras menores interligadas, formando uma ramificação que avançava morro adentro. Uma delas era pouco mais do que um tubo vertical, como uma pequena chaminé, que atravessava as camadas de rocha até abrir-se num afloramento na superfície do monte. Nesse lugar, muitos anos antes, uma grande pedra se rachara com a intempérie e a pressão das raízes da vegetação, formando a abertura que deixava entrar a luz e às vezes pedrinhas e água de chuva, e através da qual os morcegos da caverna faziam seus vôos diários. Com o tempo a pilha de pedriscos caindo na câmara abaixo dela fora crescendo formando um tipo de plataforma, atingindo cerca de um terço da altura do chão até a "clarabóia" ou "lanternim", como se poderia chamar aquele buraco. Quando, me enchendo de esperanças, fui inspe­cionar a plataforma para ver se ela crescera um pouco mais, tive uma decepção, porque o espaço até o primeiro trecho do estreito túnel vertical ainda tinha no mínimo a altura de três homens, medida que se repetia no trecho inclinado que começava íngreme e depois se tornava mais suave até chegar à abertura. Uma pessoa magra e ágil teria uma pequena probabilidade de escalar esse poço, apesar de em certos pontos a rocha ser limosa e em outros flagrantemente insegura, mas para um homem idoso e recém-recuperado de uma terrível enfermidade era uma empreitada im­possível. O único conforto da descoberta foi o fato de ter encon­trado ali uma "chaminé", o que significava que nos dias frios que viriam eu poderia acender o braseiro nessa câmara.

Obviamente pensei em fazer uma fogueira, na esperança da fumaça atrair a atenção dos curiosos, mas duas coisas me impe­diram. Primeiro, as pessoas que viviam na redondeza estava acos­tumadas a ver os morcegos saírem do interior do monte ao anoi­tecer e de longe eles sempre davam a impressão de ser um fio de fumaça se elevando do meio das pedras. Em segundo lugar, e mais importante, eu precisava economizar combustível. Por­tanto, só me restava conservar meus preciosos suprimentos e esperar que alguém subisse do vale para visitar o poço sagrado.

Mas ninguém apareceu. Vinte, trinta, quarenta dias foram mar­cados na tábua que eu designara para isso. Reconheci com relu­tância que as pessoas que antes costumavam vir rezar para o espírito da fonte, e oferecer presentes para o curador em carne e osso que os atendia nas horas de necessidade, atualmente sen­tiam medo do mago recém-falecido e das assombrações da colina oca. Como a trilha que saía do vale não tinha outro destino senão a caverna de Merlin, não era utilizada por viajantes eventuais. Nada passava por ali exceto os pássaros, veados e pequenos ani­mais, como um lobo ou raposa que ouvi fungando à noite no entulho que bloqueava a entrada da caverna.

Assim os dias foram se arrastando e continuei vivo, procu­rando conter o medo de todas as maneiras que eu conhecia. Eu escrevia, elaborava planos para escapar, me enfronhava nos afa­zeres domésticos e não me envergonho em dizer que muitas vezes recorri ao vinho e aos opiatos para entorpecer meus sentidos e me ajudarem a matar o tempo. Todavia, nunca me entreguei ao desespero. Apesar desse longo período enterrado vivo, eu con­tinuava confiando no deus que sempre obedecera, que me dera e tirara o poder. Se eu estava vivo e recuperando a força e a vontade, ele devia ter algum desígnio para mim.

Penso que foi com isso em mente que me finalmente tomei coragem de subir para a caverna de cristal.

Durante um bom tempo, sabendo-me debilitado e sem poder, eu não me atrevera a enfrentar o lugar de vidência, mas, numa certa noite, depois de horas no escuro porque precisava econo­mizar velas, tomei a decisão de galgar as saliências no fundo da caverna principal e dobrando o corpo, me esgueirei para o interior daquele extraordinário geodo.

Creio que procurava apenas o conforto das lembranças do po­der passado e do amor. Não levei nenhum tipo de luz nem tentei ver nada. Fiquei deitado de bruços sobre os cristais ásperos do chão, deixando o pesado silêncio em envolver, enchendo-o com meus pensamentos.

Não me recordo deles. Suponho que foram orações mentais. Todavia, depois algum tempo tomei consciência, como se percebe, mais do que se vê, a chegada da madrugada depois de uma noite escura, de algo que respondia a minhas respirações. Não um som, apenas o levíssimo eco de um hálito, como se um fan­tasma estivesse acordando, para isso extraindo vida de mim.

Meu coração começou a bater forte, minha respiração se ace­lerou. Na escuridão o outro ritmo se apressou. O ar da caverna vibrou. Um sussurro bem conhecido ressoou pelas paredes cur­vas, cobertas de cristais.

Senti as lágrimas fáceis da fraqueza física encherem meus olhos. Disse em voz alta:

— Então a trouxeram de volta para cá? — E, falando da es­curidão, a pequena harpa me respondeu.

Arrastei-me na direção do tom e meus dedos tocaram a ma­deira sedosa, viva. O pilar anterior se aninhou em minha mão tal como Caliburn se aninhava na mão do rei. Comecei a recuar para sair, silenciando o levíssimo planger da harpa contra meu peito e, com o máximo cuidado, desci para a caverna principal.

Foi esta a música de compus. Eu a chamei de A Canção de Merlin em Sua Sepultura.

 

Para onde foram os iluminados?

Lembro-me da luz do sol

e de um grande vento soprando;

De um deus que me respondia,

Falando das estrelas distantes;

Na estrela que para mim brilhava,

 

Da voz que me falava,

Do falcão que me guiava,

Do escudo que me guardava;

E do claro caminho para o portão

Onde sou esperado.

Serei mesmo esperado?

 

O dia se vai.

O vento morre.

Eles se foram, os iluminados.

Só eu permaneço.

 

De que adianta me chamar,

Se agora não tenho luz para dar?

De que adianta pedir

A mim, que sou apenas a sombra

De minha sombra,

Apenas a sombra

De uma estrela que caiu

Há muito e muito tempo?

 

Uma canção leva tempo para ser composta, são necessárias várias versões de cada trecho até dá-la por terminada, por isso não consigo me recordar do dia exato em que a estava cantando e tomei consciência de um som incomum que vinha martelando em minha cabeça ao longo de vários compassos. Parei de tocar, encostei a palma da mão nas cordas para silenciá-las e me con­centrei para ouvir.

Os batimentos de meu coração soaram altos no ar parado da caverna, mas sob essa pulsação havia uma outra, parecendo vir do âmago do monte. Não é de admirar que depois de tanto tempo afastado do mundo comum, só consegui pensar em coisas rela­cionadas com as antigas lendas: Llud, os caçadores da noite, os habitantes das colinas ocas, a morte finalmente vindo me buscar... Em menos tempo do que duas respirações, cheguei à verdade, mas foi tarde demais.

O viajante que eu tanto esperara no começo. Sem dúvida subira o monte, passara pelo rochedo onde havia o lanternim e ouvira a música. O barulho eram as patas de um cavalo inquieto.

Eu já colocara a harpa de lado e avançava aos trambolhões para a câmara da clarabóia quando o ouvi gritar:

— Tem alguém aí?

Tentei responder enquanto me aproximava, mas a garganta seca e o coração aos saltos me impediram. Então finalmente gritei:

— Sou eu, Merlin! Não tenha medo, não sou um fantasma. Estou vivo e preso aqui. Abra uma saída para mim, em nome do rei!

Minha voz foi abafada pela súbita confusão de ruídos vindos de cima. Foi fácil adivinhar o que tinha acontecido. Homem e animal se assustando, o cavalo empinando, patas batendo no rochedo, pedrinhas caindo pela abertura. Gritei de novo e ouvi um galope em retirada. Não pude culpar o viajante pelo seu medo. Mesmo se não soubesse que estava sobre a tumba de Mer­lin, com certeza tinha conhecimento de que aquela era uma das colinas ocas e ouvir música saindo dela, ao anoitecer...

Voltei para pegar a harpa. Nenhum dano. Guardei-a, como guardei a esperança de salvamento, e fui preparar o que eu cha­mava, por falta de pior palavra, de meu jantar...

 

Cerca de duas ou três noites depois desse acontecimento, algo me acordou durante a noite. Abri os olhos na total escuridão, imaginando o que poderia ter perturbado meu sono. Então ouvi o barulho. Raspadas vigorosas, pedras rolando, terra caindo. Vi­nha do poço da clarabóia. Um animal qualquer, pensei, atraído pelo cheiro de comida. Puxei as cobertas, virei-me e fechei os olhos.

Mas os sons continuaram fortes, persistentes e foram se tor­nando impacientes, com ruídos que indicavam mais do que um propósito animal. Sentei-me de novo, tenso como uma corda de harpa. O cavaleiro teria voltado? Quem sabe contara sua história e outra pessoa, mais corajosa, se dispusera a investigar? Respirei para gritar mas me contive. Não deveria assustá-lo, como fizera antes. Sim, eu esperaria ele falar primeiro.

Ele não disse nada. Aparentemente só lhe interessava abrir caminho pela abertura no rochedo. Mais pedregulhos e terra, e depois o tilintar de uma ferramenta, seguido de palavrões. Uma voz de homem rude. Houve uma pausa e depois os sons reco­meçaram, mostrando que agora ele usava instrumentos mais pe­sados, uma pá ou picareta.

Nada me faria gritar nesse momento. Ninguém disposto a in­vestigar uma história estranha agiria em tanto silêncio. A atitude óbvia seria a do primeiro homem, que primeiro chamara antes de tentar entrar pela abertura. E mais, por que vir sozinho, na calada da noite?

Alguns minutos de reflexão me fizeram chegar à provável ver­dade. Um ladrão de tumbas, algum bandido que ouvira boatos sobre um sepultamento digno de rei no monte de Merlin e que, depois de uma olhada para a boca da caverna onde teria cons­tatado a impossibilidade de tentar cavar uma passagem, procu­rara uma abertura qualquer na superfície. Talvez até fosse alguém das redondezas, que sabia da existência da fenda no afloramento e cuja cobiça fora aguçada ao assistir a passagem do rico cortejo fúnebre. Poderia também ser um soldado que ajudara no fecha­mento da caverna depois da cerimônia, pretendendo voltar pos­teriormente para se apoderar das riquezas que vira de perto.

Fosse quem fosse, era um homem de poucos nervos, pois teria de estar preparado para enfrentar a visão e fedor de um cadáver apodrecido, e até mesmo manipulá-lo para tirar as jóias e as fran­jas de ouro da mortalha e do travesseiro. E se encontrasse, em vez de um cadáver, um homem vivo? Um velho, debilitado por longos dias passados abaixo da superfície do solo e, sobretudo, um homem que todos jurariam estar morto? A resposta era fácil. Ele me mataria e roubaria a tumba do mesmo jeito.

Levantei-me silenciosamente da cama e fui até a câmara da chaminé. Os sons de escavação continuavam, agora mais cons­tantes e pela abertura alargada agora eu podia ver luz. O homem tinha um tipo qualquer de iluminação, o que era bom, pois isso me permitiria acender uma lamparina para facilitar minhas ações sem despertar sua atenção. Voltei para a caverna e preparei-me para recebê-lo.

Se ficasse esperando com uma faca de cozinha ou alguma peça pesada, com certeza que não seria ágil e forte o bastante para atordoá-lo, e um ataque desse tipo significaria a morte para mim. Teria de encontrar um outro meio. Procurei pensar o mais fria­mente possível. Sim, a única arma que eu possuía era aquela que em muitas ocasiões do passado se mostrara muito mais poderosa do que punhais e lanças: o medo.

Tirei as cobertas da cama e escondi-as bem fora de vista. Cobri o colchão com a mortalha bordada com pedras preciosas e acertei a posição dos grandes castiçais folheados a ouro. Ao lado da cama coloquei a taça que antes contivera o vinho e a travessa de prata com a borda cravejada de ametistas. Fui buscar as moedas de ouro, o pagamento do barqueiro que me levaria para o reino das trevas, cobri-me com o manto de rei que tinham deixado para mim, apaguei a lamparina e deitei-me sobre a mortalha para esperar.

Um barulho forte vindo do poço vertical, de entulho caindo na câmara e uma lufada de vento frio me avisaram que o homem terminara sua tarefa. Fechei os olhos, alisei as dobras do manto, cruzei as mãos sobre o peito, controlando o melhor possível mi­nha respiração, e esperei.

Creio que foi a coisa mais difícil que já fiz na vida. Em muitas ocasiões anteriores eu me vira diante do perigo, mas sempre tinha pelo menos unia idéia dos riscos que corria, sabia que haveria uma dor para enfrentar, mas que no final viria a vitória. Dessa vez eu não podia antecipar nada. Uma morte na escuridão em troca de algumas jóias poderia ser o final ignominioso que os deuses, com seus sorrisos zombeteiros, tinham me mostrado nas estrelas. Então, que fosse feita sua vontade. No entanto, não pude evitar uma súplica: Deus, se um dia eu o servi bem, deixe-me sentir de novo o ar doce da superfície antes de morrer.

Houve um baque abafado quando o homem saltou para a câmara.

Devia ter amarrado uma corda a uma das árvores junto ao rochedo e, como eu imaginava, estava sozinho. Sob o peso das moedas consegui ver uma claridade. Ele vinha tateando sob a luz fraca de sua lâmpada, caminhando vagarosamente sob o chão desigual da caverna. Eu podia sentir o cheiro de seu suor e o fedor do óleo barato sendo queimado, o que, pensei com satis­fação, significava que ele não poderia captar de imediato os odo­res de comida e vinho, ou da lamparina que eu acabara de apagar. Sua respiração o denunciou. Com uma satisfação ainda maior, eu soube que valente ou não, o homem estava morrendo de medo.

Ele me viu e parou. Ouvi o ar entrando em seus pulmões com o barulho de um chocalho. Obviamente se preparara para en­contrar um cadáver em decomposição, e agora estava diante de um corpo intacto. Depois de alguns instantes, talvez se lembrando do que contavam sobre embalsamamento, praguejou baixinho e avançou pé ante pé. A luz balançava em sua mão.

Com o cheiro e som de seu medo minha calma aumentou.

Respirei raso, confiando que a chama bruxuleante e a fumaça o impediriam de notar algum movimento no cadáver. Ele parou de novo, como reunindo coragem e, finalmente, com outra res­piração barulhenta, chegou bem perto da cama. Uma mão trêmula e úmida tirou as moedas de ouro de minhas pálpebras.

Eu abri os olhos.

Num único e breve lampejo captei toda a cena: o rosto moreno, de feições célticas, a roupa áspera de camponês, a pele bexiguenta brilhando de suor, a boca mole, gananciosa, os olhos estúpidos, a faca em seu cinto, afiada como uma navalha.

Eu disse calmamente:

— Bem-vindo ao mundo dos mortos, soldado.

E do seu canto escuro, ao som de minha voz, a harpa mur­murou uma resposta.

As moedas caíram no chão, tilintando e rolando. A lâmpada as seguiu e seus pedaços se espalharam em óleo fumegante. O homem soltou um berro de medo como raramente eu ouvi em minha vida e, de novo, da escuridão, veio a nota fantasmagórica da harpa. Com um outro grito, ele virou nos calcanhares, saindo cegamente da caverna, dirigindo-se à câmara. Deve ter feito uma primeira tentativa para subir pela corda e soltou outro berro ao cair sobre o entulho. Depois o medo lhe deu forças; ouvi os so­luços arquejantes se afastando enquanto se esgueirava pelo túnel vertical. Depois os sons foram morrendo e eu me vi sozinho e seguro.

Seguro em minha tumba. O homem levara a corda, talvez te­mendo que o fantasma do mago o seguisse por ela. O buraco que fora aberto mostrou-me um bom pedaço de céu onde brilhava uma estrela, distante, pura e indiferente. Uma lufada de ar entrou por essa janela e com ele veio o aroma inconfundível da madru­gada se aproximando. Ouvi um tordo cantando por perto.

Deus ouvira minha súplica. Eu sentira de novo o ar doce da superfície. Mas a vida estava tão distante de mim como antes.

Voltei para a caverna principal como se nada houvesse acon­tecido e comecei os preparativos para passar um outro dia.

E outro. E um terceiro. Nesse terceiro dia, depois de ter comido, descansado, escrito e meditado o máximo possível, venci o medo de ter outra decepção e fui à câmara para inspecionar o poço. O maldito ladrão de tumbas me deixara um fiapo de esperança: a pilha de pedras caídas aumentara quase um metro e apesar dele ter puxado a corda, deixara uma outra, que encontrei caída em um canto. Mas minhas esperanças caíram por terra: a corda era de má qualidade, pouco mais de um barbante comprido, o que me fez supor que o homem pretendia usá-la para amarrar uma trouxa com as peças menores de seu butim.

O ladrão, contudo, me prestara um bom serviço. Antes eu perdera a esperança de escapar pela chaminé porque não con­seguiria vencer a distância nem alargar a fenda com mãos nuas. Agora o buraco era grande e eu tinha o pé de cabra que ele deixara cair e um bom pedaço de barbante, o que me deu idéia de construir uma estrutura de madeira, um tipo de andaime que me levaria até a seção inclinada do túnel, em cujas paredes es­cavaria pequenos degraus para me apoiar na subida. Eu usaria pedaços de móveis e, quando o cordão acabasse, rasgaria tiras estreitas do manto para amarrá-los.

No resto desse dia e no seguinte, trabalhando à luz vinda da janela, labutei na construção do andaime improvisado, com pen­samentos de agradecimento para Tremorinus, o principal enge­nheiro de meu pai, que me ensinara seu ofício. Ele soltaria boas gargalhadas se fosse capaz de ver o grande Merlin, o artífice-engenheiro que suplantara seu mestre, o mago que restaurara a Ciranda dos Gigantes, erguer uma estrutura que causaria pro­funda vergonha no pior dos aprendizes. Depois, caçoando de mim, diria que eu só tinha de pegar a harpa e, imitando Orfeu, tocar para os pedaços de madeira dançarem e se juntarem para construir sozinhos o andaime.

No entardecer do segundo dia de trabalho eu já estava com uma estrutura mais alta do que um homem, bem fixada por pilhas de pedra na base. Depois de admirar minha obra, acendi uma vela e preparei meu horrível jantar. Quando terminei de comer, como um homem procurando o conforto de uma amante, tomei a harpa nos braços e toquei até minhas pálpebras ficarem pesadas de sono e um acorde errado me avisar que era hora de dormir. Amanhã seria um outro dia.

Cansado de minha lida, dormi a sono solto e acordei mais tarde do que o habitual à luz de um alegre fiapo de sol e ouvindo alguém me chamar pelo nome.

Por um instante permaneci imóvel, imaginando que continua­va imerso nas brumas de um sonho que muitas vezes já zombara de mim, mas então me tornei plenamente consciente do descon­forto do chão da caverna (eu quebrara a cama para usar a ma­deira) e da voz. Vinha da abertura, uma voz de homem, afinada pelo nervosismo, mas que eu logo reconheci pelo sotaque incomum.

— Meu senhor? Meu senhor, Merlin? O senhor está aí?

— Aqui! Estou indo!

Apesar das juntas doloridas, levantei-me com a agilidade de um menino e corri para a câmara do lanternim.

O sol se derramava pela abertura. Corri o mais rápido que pude para o pé da estrutura grosseira e olhei para o alto.

O rosto e ombros de um homem contra um brilhante céu azul. De início quase não distingui nada devido à súbita claridade, mas ele devia estar me vendo perfeitamente, um velho desgrenhado, barbado, sem dúvida pálido como o fantasma que ele temia ver.

— Pelo amor de Deus, não fuja! — gritei. — Não sou um fantasma! Fique! Me ajude a sair daqui! Stilicho, fique!

Quase sem pensar eu identificara a pessoa pelo sotaque. Sti­licho, o siciliano, meu antigo escravo a quem eu dera a liberdade e se casara com Mai, a filha do moleiro. Infelizmente, eu conhecia bem a gente de seu povo: crédulos, supersticiosos, sempre as­sustados diante do que não conheciam. Agarrei-me ao andaime com mãos trêmulas e obriguei-me a manter uma compostura que o tranqüilizaria. Vi a cabeça voltar vagarosamente para a abertura. Os olhos muito escuros arregalados, a palidez do medo, a boca aberta. Com um autocontrole que resultou numa onda de fra­queza, falei na língua natal de meu criado, bem claro e devagar:

— Não tenha medo, Stilicho. Eu não estava morto quando me deixaram aqui. Foi um terrível erro. Estou preso aqui desde que acordei de um ataque. Não sou um fantasma, meu rapaz. Sou mesmo Merlin, vivo, e precisando desesperadamente de sua aju­da.

Ele inclinou-se mais sobre a abertura.

— Então o rei... todos os outros que estavam aqui... — Ouvi-o engolir com dificuldade.

— Você acha que um fantasma teria construído este andaime? Nunca perdi a esperança de me salvar e foi isso que me fez suportar todos esses meses, mas pelo amor do Deus de todos os deuses, se você fugir sem me ajudar juro que morrerei antes do fim do dia. — As lágrimas escorriam pelo meu rosto.

Stilicho pigarreou. Parecia abalado, mas o medo diminuíra.

— Então é mesmo o senhor? Disseram que estava morto e enterrado, e nós temos lamentado sua falta... mas deveríamos saber que sua mágica não o deixaria morrer.

Balancei a cabeça e obriguei-me a continuar falando, sabendo que a cada palavra ele chegava mais perto de aceitar minha so­brevivência.

— Não houve mágica, mas uma enfermidade que enganou todos vocês. Não sou mais um mago, Stilicho, mas agradeço a Deus por ser forte. Se não fosse assim, não teria suportado tanto tempo aqui. Agora, meu caro rapaz, quer me tirar daqui? Depois teremos muito tempo para conversar. Pelo amor de Deus, me ajude a sair daqui...

Foi difícil. Eu já estava quase sem voz quando Stilicho disse que ia buscar ajuda. Desesperado, implorei que não me abando­nasse mais um instante ali. Convencido, ele então deu alguns nós na corda que o ladrão deixara largada no chão, ainda presa à árvore, fazendo na extremidade livre uma alça para o pé e desceu cuidadosamente pelo poço. Em pouco tempo estava ao meu lado, na base do andaime. Teria dobrado o joelho e beijado minha mão, como costumava fazer, mas agarrei-me a ele com tanta ânsia que só lhe restou me abraçar, amparando-me com sua força de jovem. Em seguida me ajudou a voltar para a caverna principal.

Encontrou a única banqueta que tinha restado, me fez sentar nela, acendeu um lampião e me trouxe vinho. Depois de algum tempo consegui dizer com um sorriso:

— E então, agora sabe que sou uma criatura de carne e osso, não um espírito? Foi muita valentia sua ter vindo e mais ainda ter ficado. Mas conte-me, o que o fez vir até aqui? Você é a última pessoa que eu imaginaria visitando um túmulo.

— Eu não teria mesmo vindo, mas ouvi uma conversa que me deixou desconfiado — confessou ele sinceramente. — Eu sabia que o senhor era um grande mágico. Talvez por isso não fosse capaz de morrer como as outras pessoas.

— Você ouviu uma conversa? Que conversa?

— Bem, o garoto que me ajuda no moinho, Bran, é o nome dele, esteve ontem na cidade e contou que corria o boato de que o mago tinha ressuscitado e falado com um homem que estava bebendo numa das tavernas. Ele foi até lá e viu um monte de gente lhe pagando bebida enquanto o sujeito desfiava um monte de mentiras, mas fiquei intrigado... Mas o que aconteceu, meu senhor? Logo vi que alguém tinha estado aqui por causa da corda amarrada na árvore.

Contei rapidamente sobre os dois homens que tinham vindo e depois falei:

— O ladrão fugiu apavorado. Foi sorte você ficar sabendo de sua história e ter tido a coragem de vir antes dele mudar de idéia e voltar para tentar pegar o ouro.

— Não vou fingir, meu senhor — disse Stilicho, com um olhar envergonhado. — Não é certo o senhor ficar elogiando minha coragem. Estive aqui ontem à noite. Não queria vir sozinho, mas se chamasse alguém poderiam caçoar de minha covardia. Mai também estava apavorada... Bem, dei uma olhada na boca da caverna e vi que continuava do mesmo jeito e então... então ouvi a harpa. Fugi correndo para casa. Peço-lhe perdão, meu senhor...

— Mas você voltou.

— Sim, não consegui dormir a noite inteira. Lembra-se de quando me disse que eu não devia sentir medo se a harpa tocasse sozinha? Que ela era muito sensível e capaz de vibrar se uma brisa passasse pelas cordas? Como me contou sobre a caverna de cristal, dizendo que lá eu sempre ficaria seguro? Bem, pensei em tudo isso e em como o senhor tinha sido tão bom para mim, me dando a liberdade e a vida que tenho agora. Então me decidi. Mesmo se for apenas o fantasma de meu senhor ou a harpa to­cando sozinha na colina oca, nada de ruim pode me acontecer, meu amo nunca me faria mal... Então voltei e desta vez vim de dia. Pensei, se for um espírito, ele dormirá enquanto houver luz do sol.

"E eu estava mesmo dormindo", pensei, estremecendo. Se eu tivesse me embriagado ou tomado algum sonífero na noite an­terior, como fizera tantas vezes, não teria ouvido nada.

— Bem — continuou Stilicho —, desta vez subi ao alto do monte e foi então que vi o branco da rocha quebrada há pouco tempo e a corda amarrada na árvore.

— Stilicho, se algum dia fiz algo de bom para você, saiba que me recompensou mil vezes. Na verdade, você me salvou duas vezes. Se não tivesse deixado a caverna do jeito que a encontrei, eu teria morrido de fome e frio há muito tempo.

— Mas agora temos de tirá-lo daqui — disse ele, olhando à sua volta. — Acho que o melhor modo seria eu ir buscar homens e ferramentas para abrir a boca da caverna.

— Sim... Porém, agora que pude raciocinar, creio que enquanto eu não souber o que anda acontecendo nos vários reinos, seria melhor não "ressuscitar" de repente. Haveria muito falatório so­bre os poderes do príncipe Merlin e acho que o rei deve ser o primeiro a saber. Portanto, enquanto eu não conseguir fazer che­gar a ele um recado pessoal...

— Ouvi dizer que o rei está na Bretanha Menor.

— E mesmo? E quem ficou como regente?

— A rainha. Com Bedwyr.

Houve um silêncio enquanto eu olhava para minhas mãos. Stilicho estava sentado de pernas cruzadas no chão e à luz fraca do lampião ainda era muito parecido com o garotinho que eu conhecera há tantos anos. Os olhos escuros e brilhantes estavam fixos em mim, cheios de admiração.

Eu umedeci os lábios.

— E a senhora Nimuë? Sabe de quem estou falando? Ela...

— Oh, claro, o mundo inteiro a conhece. Ela tem mágica como o senhor costumava... como ainda tem, meu amo. Está sempre perto do rei. Dizem que mora perto de Camelot.

— Entendo. — Depois, recobrando minha compostura, falei: — Lamento, meu querido rapaz, mas não posso deixar que saibam que estou vivo antes de o rei voltar do continente, por mais que deseje que todos fiquem sabendo de sua dedicação e coragem.Vamos ter de sair sozinhos daqui. Se as ferramentas ainda estiverem na cocheira, será bem mais fácil.

Assim que voltou, Stilicho pôs-se a construir uma escadinha que ficaria no alto do andaime e logo que terminou escavou alguns degraus na seção inclinada da chaminé para pelo menos me dar apoio para os joelhos na hora da subida.

Quando tudo terminou, o rapaz testou sua obra e enquanto isso embrulhei a harpa num lençol, colocando junto meus manuscritos e algumas das drogas que eu poderia precisar para restaurar plenamente minhas forças. Stilicho puxou a trouxa com a corda. Finalmente peguei uma faca e cortei as franjas de ouro e as melhores pedras preciosas da mortalha, e as guardei numa sacola de couro onde já estavam as moedas. Amarrei-a à minha cintura e já estava no alto do andaime quando finalmente Stilicho reapareceu, segurou a corda e me disse para começar a subida.

 

Passei um mês no moinho de Stilicho. Mai, que em ocasiões anteriores jamais se aproximara de mim sem mostrar o pavor que sentia, ao constatar que eu não era um bruxo malvado, mas um velho doente, que passara por uma provação terrível, cuidou de mim com enorme devoção. Nesse período não me mostrei a Outras pessoas além dos dois, permanecendo sempre no quarto do segundo andar do moinho. Bran, o empregado, dormia no celeiro e só sabia que seu patrão estava hospedando um parente idoso. As crianças ouviram a mesma explicação e me aceitaram em perguntas, como é típico delas.

De início eu passava a maior parte do tempo na cama porque reação fora muito grave. A luz do dia me feria os olhos, os menores barulhos me pareciam insuportáveis e era difícil até conversar com meu salvador. Todavia, os dois mostraram toda a delicadeza e compreensão da gente simples e pouco a pouco fui melhorando até me habituar novamente com a civilização. Logo deixei o leito e comecei a passar o tempo escrevendo ou ensinando as primeiras letras ao filho mais velho de Stilicho. Com o passar do tempo passei a encontrar prazer até no jeito efusivo de meu antigo escravo e um dia lhe pedi que me contasse com detalhes tudo o que acontecera desde que eu fora encerrado na caverna.

Ele sabia muito pouco sobre Nimuë além do que já me contara, entendi que sua fama como maga crescera tão rapidamente depois de meu suposto falecimento que o posto de profeta do rei lhe caíra como uma luva. Ela passara algum tempo em Applegarth, mas desde a morte da Dama do Lago voltara para o santuário da ilha, para ser aceita por unanimidade como a nova dirigente do lugar. Um dos boatos parecia indicar que o comportamento habitual da Senhora do Templo iria mudar em sua gestão: ela não ficaria na ilha como uma donzela entre donzelas. Nimuë fazia freqüentes visitas a Camelot e havia rumores de um próximo casamento. Stilicho não sabia o nome do homem.

— Mas, com certeza — concluiu ele —, deve ser um rei.

Tive de me contentar com isso. A maioria das notícias que chegavam referiam-se ao povo do vilarejo, a quem pouca coisa interessava além do preço dos bens que vendiam. Fiquei sabendo apenas que a prosperidade continuava, o reino estava em paz e que os saxões respeitavam os tratados. Em conseqüência, o rei se sentira livre para fazer uma visita à Bretanha Menor.

Stilicho não conseguiu descobrir o motivo dessa viagem, que na verdade teria pouca importância para mim exceto pelo tempo que precisaria ficar escondido. Pensei muito nesse assunto depois de me recuperar por completo e continuava tirando as mesmas conclusões. Minha volta à corte não serviria para nenhum propósito relacionado com o reino e mesmo o "milagre da ressurreição" não faria mais pelo Grande Rei do que minha "morte" e a transmissão de meu poder para Nimuë. Eu não possuía mais a vidência para ajudá-lo e seria errado voltar sem qualquer coisa de novo ou útil para ele. Eu saíra do mundo e minha lenda estava sendo enriquecida com outros casos, como a história do ladrão de tumbas e o fantasma do mago.

Os mesmos argumentos se aplicavam a Nimuë. Eu não precisava de grande sabedoria para entender que nossa união já era coisa do passado. Não teria sentido eu voltar esperando dividir a mesma cama com ela ou tentar amarrar correias nos pés de um falcão que agora estava em pleno vôo. Uma outra constatação me continha, algo que eu não conseguia reconhecer à luz do dia, mas que caçoava de mim zumbindo nos sonhos que eu tinha com antigas profecias como uma mosca irritante. O que eu sabia sobre mulheres, mesmo agora? Quando me lembrava do meu poder se esvaindo num ritmo constante, as últimas e desesperadas fraquezas, o estado de transe em que eu caíra antes de ser abandonado na escuridão, perguntava a mim mesmo o que fora o amor que nos unira senão o vínculo que me prendia a ela e me obrigava a lhe dar tudo o que eu possuía? E, quando me lembrava de sua doçura, de sua veneração generosa, de suas juras de amor, eu sabia, e não precisava da vidência para ter certeza, que agora ela não mais abriria mão de seu poder, mesmo se fosse para me ter de volta.

Foi difícil fazer Stilicho entender minha relutância em reaparecer, mas ele aceitou sem objeções meu desejo de esperar a volta de Artur antes de elaborar planos. No que se referia à Nimuë, percebi que não sabia que ela fora para mim mais do que uma discípula que substituíra o mestre em sua ausência. .

Finalmente, completamente refeito e não querendo abusar da hospitalidade de Stilicho, preparei-me para partir para a Northumbria, tendo decidido que iria ao norte por mar. Uma viagem marítima é algo que jamais faço de bom grado, mas ir por terra seria exaustivo e exigiria um acompanhante. Meu salvador insistiria em ir comigo, mesmo sabendo que nessa época do ano faria muita falta no moinho. Ainda assim, quando contei que resolvera ir de navio, ele ofereceu-se para me acompanhar, mas no final acabou aceitando minha decisão, talvez porque ainda acreditasse que eu era o grande mago que ele servira no passado e enfrentaria os perigos com gestos miraculosos. O fato é que no final fiz o que eu queria e numa manhã embarquei numa das barcaças que voltavam para Maridunum e lá chegando tomei um navio costeiro para o norte.

Eu não mandara nenhuma carta a Blaise porque não poderia confiar a um mensageiro qualquer a notícia da "volta de Merlin dos mortos". Pensaria em algum modo de prepará-lo quando estivesse próximo de sua casa. Era até possível que ele ainda não soubesse de meu suposto falecimento, porque vivia isolado do mundo e não se passara muito tempo desde que recebera a última carta que eu lhe enviara.

Essa minha suposição provou ser verdadeira, mas só fui saber disso bem mais tarde. O fato é que não cheguei à Northumbria e minha viagem rumo norte terminou em Segontium.

O navio ancorou numa manhã clara. A cidadezinha aquecia-se ao sol na margem do estreito e o casario parecia minúsculo comparado com as grandes muralhas da fortaleza romana que fora o quartel general do imperador Maximus. Atrás da cidade, um pouco afastada da muralha, erguia-se a Torre de Macsen e perto dela encontravam-se as ruínas do templo de Mitra, onde muitos anos antes eu encontrara a espada Caliburn e onde, enterrado sob a pilha de entulho e restos do altar eu escondera o resto do tesouro de Macsen, o cálice e a lança. Era esse o lugar que eu prometera mostrar a Nimuë em nossa volta de Galava. De onde eu estava, via o grande monte Nevado, Y Wyddfa, elevando-se contra o céu azul. O primeiro branco do inverno cobria seu pico e as encostas escondidas pelas nuvens, mesmo num dia quente como aquele, mostravam faixas arroxeadas formadas pelos cardos em flor.

Quando aportamos fui comunicado de que havia muitas mercadorias a serem desembarcadas e então resolvi descer à terra e tomei a direção da estalagem junto ao cais, onde pretendia comer alguma coisa enquanto esperava.

Estava faminto e com certeza ficaria mais faminto ainda. Minha idéia sobre qualquer viagem marítima, por mais calma que seja, é descer para a cabina e ficar lá até tudo terminar. O mestre do porto me informara que o navio não partiria antes da maré da tarde, de modo que havia muito tempo para descansar e me preparar para a etapa seguinte da jornada. Pensei na possibilidade de visitar novamente o templo de Mitra, mas descartei a idéia, porque o trajeto aumentaria meu cansaço e eu não pretendia perturbar o tesouro. Ele não era para mim. O que eu realmente precisava naquele momento era uma boa refeição quente e por isso me dirigi para a estalagem.

Ela era construída em forma de "U", com o lado aberto voltado para as docas, facilitando o embarque da bagagem dos hóspedes e das mercadorias que eram armazenadas em galpões construídos nos fundos do terreno. Havia bancos e mesas de madeira no alpendre mas, como já havia uma nota invernal na brisa, apesar do dia ensolarado, achei melhor comer no salão. Entrei no cômodo aquecido por uma boa lareira e pedi comida e vinho. Eu pagara pela viagem de navio com uma das moedas de ouro que trouxera da caverna e ainda recebera bastante troco, não precisando fazer economia. Logo o criado voltou com uma travessa de carneiro assado, que veio acompanhado de pão fresco e uma jarra de vinho, e comecei a comer e beber enquanto aproveitava o calor do fogo e observava o ir e vir de pessoas no cais através do portão aberto.

O dia foi passando. Eu estava mais cansado do que imaginava de início. Cochilei, acordei, cochilei de novo. Havia pouco movimento na estalagem em si. Uma vez uma mulher atravessou o pátio carregando uma bacia de roupa lavada equilibrada na cabeça e um menino entrou correndo com uma cesta de pães. Pareceu-me que havia um grupo hospedado nos quartos que ficavam na ala direita. Um rapaz em trajes de escravo passou carregando uma bandeja coberta com uma toalha de linho e dirigiu-se para uma~das portas desse lado e logo em seguida por ela saíram alguns meninos, bem vestidos, mas barulhentos, falando com um sotaque que não consegui identificar no momento. Dois deles, gêmeos, sentaram-se no chão e começaram um jogo com pedrinhas e os outros dois, apesar do tamanho e compleição bem diferentes, envolveram-se num combate portando espadas de pau e escudos feitos de tampas de barril. Uma mulher bem vestida em cores discretas saiu pela mesma porta e sentou-se num dos bancos sob o sol observando os meninos. A governanta, sem dúvida. De tanto em tanto os meninos corriam para o portão para ver o movimento no cais, o que me fez imaginar que o grupo estava à espera de um navio.

Depois de um bom tempo levantei-me e, ao olhar pela janela, vi o mestre de meu navio erguer a cabeça, farejar o ar, umedecer a ponta do dedo e estendê-lo para testar a direção do vento, que vinha aumentando progressivamente. Uma rajada inesperada fez balançar os navios ancorados, cujos cordames cantaram no atrito contra a madeira. O mestre, com um gesto irado, apressou-se a voltar para a embarcação, gritando ordens para todos os lados. Senti um misto de irritação e alívio; com esse vento o mar ficaria rapidamente encapelado e não poderíamos prosseguir viagem.

Saí da estalagem e fui conversar com o mestre, que confirmou a impossibilidade de zarparmos até que o vento mudasse, o que não aconteceria tão cedo. Mandei um menino pegar minha pequena bagagem e entrei na estalagem para pedir um quarto. Com certeza haveria pelo menos um deles vago, porque o vento que nos prejudicava aparentemente estava sendo bem recebido pelos outros hóspedes. Os marinheiros de um outro navio mostravam-se atarefados e na estalagem houve um burburinho de preparativos. Os meninos, que tinham deixado o pátio, reapareceram com roupas quentes, o menorzinho segurando a mão da governanta, os outros saltitando em torno dela, obviamente entusiasmados com a perspectiva da viagem. Dois escravos saíram carregados de bagagem, enquanto um homem de libré dava ordens num tom autoritário. Eu ainda não conseguira identificar o sotaque dos meninos e o maior deles me parecia vagamente familiar. Parei sob a sombra da porta principal da estalagem, observando a movimentação. O estalajadeiro aproximou-se afobado do camareiro para receber o pagamento pela estadia e uma mulher veio correndo com um embrulho. Ouvi-a dizer "roupa limpa" e quase no mesmo instante os dois se afastaram da porta com mesuras e reverências, abrindo passagem para alguém, com certeza o hóspede principal.

Era uma mulher vestida de verde dos pés a cabeça. Apesar da constituição delicada, tinha um porte altivo e orgulhoso. Jóias cintilavam em suas mãos e pescoço. A capa era forrada de pele de raposa vermelha, que também ornamentava a borda do capaz caído sobre os ombros. Não pude ver seu rosto porque ela falava com alguém ainda dentro da estalagem.

Outra mulher saiu caminhando com cuidado, carregando uma caixa pesada embrulhada em linho, e seus trajes simples me fizeram pensar que devia ser uma camareira. Se a caixa continha as jóias de sua ama, sem dúvida tratava-se de gente de alta posição.

Então a dama virou-se e a reconheci no mesmo instante. Morgause, rainha de Lothian e Orkney. Os lindos cabelos haviam perdido o brilho rosa-dourado da juventude, escurecendo para um castanho avermelhado, e o corpo tornara-se mais robusto devido à maternidade. A voz, contudo, como os olhos levemente puxados nos cantos e as linhas graciosas da boca continuavam os mesmos. Portanto, os quatro garotos corados e barulhentos, com o sotaque que agora eu reconhecia, eram os filhos de Lot de Lothian, o inimigo de Artur.

Eu já não tinha olhos para eles. Observava ansiosamente a porta, imaginando se enfim veria o primogênito da rainha, o filho de Artur.

Ele apareceu. Bem mais alto do que a mãe, elegante, flexível, que eu teria reconhecido em qualquer lugar. Cabelos escuros, olhos escuros e corpo de dançarino. Sim, alguém antes dissera isso de mim e ele, muito parecido comigo, era Mordred, o filho de Artur. Quando dirigiu-se à mãe, ouvi que sua voz lembrava a dela, sonora e agradável. Captei as palavras "navio" e "calculo", diante das quais Morgause fez que sim. Em seguida colocou a mão graciosa na dele e o grupo tomou a direção do portão. Mordred olhou para o céu e falou de novo com uma expressão preocupada. Os dois passaram bem perto de onde eu estava.

Recuei para a sombra. O movimento, contudo, deve ter atraído a atenção de Morgause, porque ela virou-se e, por uma mera fração de segundo nossos olhares se cruzaram, mas não fui reconhecido. Todavia, enquanto se dirigia a passos mais rápidos para o navio, vi-a puxar a capa mais para perto do corpo, como se tivesse estremecido de frio.

O séquito de criados e escravos os seguiu, e entre eles caminhavam os filhos de Lot: Gawain, Agravaine, Gaheris e Gareth, que ao chegarem perto da embarcação subiram o passadiço correndo como alegres carneirinhos.

Estavam indo todos para o sul. Eu não tinha idéia do propósito de Morgause ao empreender essa longa viagem, mas, pelo que conhecia dela, só podia ser algo ruim. O que mais me afligia era minha impotência em impedi-la porque, mesmo se eu mandasse um mensageiro rápido a Camelot, quem acreditaria numa carta escrita por um morto?

 

No dia seguinte o vento norte continuou soprando, frio, forte e constante. O prosseguimento da viagem estava fora de questão. Pela manhã pensei de novo em mandar um aviso de perigo a Camelot, mas desisti da idéia definitivamente, porque não saberia a quem me dirigir. Nimuë? Bedwyr e a rainha? Nada poderia ser feito enquanto o Grande Rei não voltasse para a Bretanha mas, por outro lado, com Artur fora do país, Morgause não conseguiria lhe fazer grande mal. Fui ruminando esses pensamentos enquanto me dirigia para fora da cidade e tomava a trilha que levava à Torre de Macsen. A noite bem dormida refizera minhas forças e eu tinha o dia inteiro à minha disposição.

Na última vez que eu estivera em Segontium, a cidadela construída e fortificada por Maximus, ou Macsen, como dizem os galeses, ela estava bem conservada. Posteriormente, Cador da Cornualha ordenara que fosse restaurada para enfrentar ataques vindos da Irlanda. Depois de ter subido ao trono, Artur encarregara Maelgon, seu comandante no oeste, de mantê-la em perfeitas condições, e eu estava curioso para ver o que havia sido feito e que técnicas teriam sido usadas. Logo eu estava na encosta, bem acima da cidade. O sol brilhava no céu sem nuvens, embora o vento estivesse gelado, e eu via a cidade colorida abaixo de mim, aninhada numa curva do mar azul. A trilha agora se tornara mais larga e eu tinha a minha direita a espessa muralha da fortaleza e de seu interior vinha o tilintar e burburinho de uma guarnição alerta e bem preparada. Como se ainda fosse o engenheiro de Artur, visitando o lugar para apresentar um relatório, eu observava atentamente tudo o que via. Alcancei o lado sul da fortaleza, onde as ruínas permaneciam intocadas e ao sabor dos quatro ventos, e dali olhei para o alto da encosta na direção da Torre de Macsen.

Lá estava a trilha, antigamente usada pelos valentes legionários romanos e hoje talvez só percorrida por cabras e carneiros, levando para a parte mais íngreme de terreno que escondia entre suas rochas o antigo santuário de Mitra. O lugar estava em ruínas havia mais de um século mas, quando eu o visitara anteriormente, os degraus que desciam para a entrada subterrânea ainda eram transitáveis e o templo em si, embora claramente inseguro, mantinha-se reconhecível. Dirigi-me para o início da trilha, imaginando por que, afinal, eu viera usá-la mais uma vez.

Não estava mais lá. Não existia nenhum sinal da colina que escondia o teto do templo ou dos degraus que levavam a ele. Não precisei procurar muito para encontrar a causa. Ao retirarem as pedras das muralhas arruinadas para usá-las na restauração, os construtores haviam causado um grande desmoronamento de terra, agora coberto de vegetação e cheio de trilhas estreitas usadas pelos animais.

Pareceu-me ouvir de novo, vinda de muito longe, a voz vibrante do deus.

"Derrube meu altar. Chegou a hora de derrubá-lo."

Agora, altar, santuário e tudo o mais desaparecera e estava enterrado nas profundezas da nova face da encosta.

A mudança me parecia inacreditável. Fiquei parado ali algum tempo, tentando encontrar os marcos que eu conhecia, pois minha lembrança continuava cristalina: uma linha reta saindo da Torre de Macsen para o morro, daí para o canto sudoeste da antiga fortaleza, e a outra ligando a casa do comandante ao distante pico de Y Wyddfa. Na intersecção das duas ficava o santuário. Agora essas linhas imaginárias se cruzavam bem no meio do antigo deslizamento.

—            Perdeu alguma coisa? — perguntou uma voz.

Olhei à minha volta. Um menino estava sentado acima de mim, empoleirado na saliência de uma rocha. Não devia ter mais de dez anos e era desgrenhado e muito sujo, e mordiscava um pedaço de pão. Junto aos seus pés vi uma vara feita de madeira de hamamélis, com a qual devia tanger os carneiros que pastavam por perto.

—            Acho que um tesouro — informei.

Que tipo de tesouro? Ouro?

— Talvez. Por quê?

Ele engoliu a última migalha de pão.

—            O que ele vale para você?

— Oh, no mínimo metade de meu reino. Quer me ajudar a encontrá-lo?

— Já encontrei ouro aqui.

— E mesmo?

— Sim. E uma vez encontrei uma moedinha de prata e depois uma fivela de bronze.

— Parece que sua pastagem é mais rica do que aparenta — dei um sorriso. Antigamente passava por ali uma estrada que ligava a fortaleza ao templo e com certeza havia muitas coisas interessantes enterradas. — Bem, na verdade não pretendo escavar à procura de ouro mas, se puder me dar uma informação, eu lhe pagarei com uma moeda de cobre. Diga-me, faz tempo que você mora neste lugar?

—            Eu nasci aqui.

—            Você traz sempre seus carneiros para cá?

— Sim. Eu costumava vir com meu irmão, mas depois ele foi vendido e partiu num navio. Agora eu cuido dos carneiros, mas eles não são meus. O dono é um homem rico que mora atrás daquele morro.

— Você se lembra — comecei sem esperança, porque algumas das árvores que cresciam sobre a terra do desmoronamento já tinham mais de dez anos —, lembra como caiu esta barreira? Estavam reconstruindo o forte?

— Não, aqui foi sempre assim.

— Não foi não. Quando estive aqui, há muitos anos, havia uma trilha bem larga neste lugar e ali em cima a entrada de um templo. Antigamente os soldados vinham fazer oferendas ao deus Mitra. Já ouviu falar sobre isso?

— Não.

— Será que seu pai ouviu?

— Eu não tenho pai.

— Seu amo, então?

— Não, mas esse tal templo está aí embaixo. Eu sei onde. Tem água também. O lugar deve ser onde está a água.

— Não havia água quando eu... — Parei de falar quando um arrepio percorreu meu corpo. — Água onde?

— Embaixo das pedras. Ali, bem no fundo. Do jeito que sinto, deve ficar a uma altura de dois homens abaixo do chão.

Olhei atentamente para aquela figurinha suja, os olhos vibrantes e a vara de hamamélis.

— Você consegue encontrar água abaixo do solo? Com a vara?

— É mais fácil com ela, mas muitas vezes nem preciso.

— E metal? Foi assim que encontrou ouro?

— Foi. Um pedacinho de estátua ou qualquer coisa. A cabeça de um cachorrinho. Meu amo tirou de mim. Agora, se eu encontrar ouro, vou guardar bem escondido. Mas não vai ser fácil.

O que vivo achando lá em cima, nas ruínas, são moedinhas de cobre.

— Entendo. — Quando eu descobri o santuário, pensei, ele estava abandonado havia mais de um século, mas certamente fora construído junto a uma fonte. — Olhe, se você me mostrar onde tem água embaixo das pedras, eu o recompensarei com prata.

—           É onde está o tesouro que você procura? — disse o menino, com uma expressão que me pareceu cautelosa.

—           Espero que sim — sorri —, mas não é coisa que você possa encontrar sozinho, garoto. Só homens com ferramentas pesadas conseguiriam levantar essas pedras e, mesmo se você os guiasse para o lugar certo, não ficaria com nada do que seria achado. Agora, se você me mostrar, lhe dou a moeda de prata.

O menino calou-se por alguns instantes, esfregando a sola dos lês nus no chã. Depois, enfiando a mão nas dobras da roupa rasgada, extraiu uma moeda de prata que exibiu na palma da mão.

—           Desculpe, moço, mas já me pagaram. Tem gente que sabia do seu tesouro. Como eu podia saber que você era o dono? Mostrei onde deviam cavar e eles levantaram as pedras e pegaram a caixa.

Não consegui encontrar minha voz. O mundo parecia estar girando em volta de mim e tive de me sentar numa pedra.

— Moço? — O menino escorregou de seu poleiro e veio para junto de mim, mas parecia pronto para sair correndo. — Moço, você está bem? Olhe, eu não fiz por mal...

— Claro que não. Como poderia saber? Calma, não vou machucá-lo. Quero que fique e me conte direitinho o que aconteceu.

Quem eram eles e há quanto tempo tiraram a caixa dali?

Ele me lançou um outro olhar cheio de dúvida, mas já parecia convencido que eu não iria castigá-lo.

—           Faz só dois dias. Dois homens que não conheço, escravos, vieram com a senhora.

— A senhora?

Algo em minha expressão fez o menino recuar um passo.

—           Sim. Ela apareceu de repente e deve saber mágica, porque foi direto para o lugar como um gato indo para o prato de leite.

Apontou para o chão e falou: ""Cavem aqui!" Os dois sujeitos começaram a trabalhar e fiquei assistindo sentado na pedra. Quando depois de algum tempo vi que estavam cavando na direção errada, desci até lá e disse à mulher que eu podia encontrar coisas. "Bem", disse ela, "tem metal escondido por aqui. Eu perdi o mapa, mas sei que fica aqui. O dono me mandou pegá-lo. Se você me ajudar eu lhe darei uma moeda de prata." Então encontrei. E você não imagina que metal! Ele arrancou a vara da minha mão, como se fosse um cachorro roubando um osso.

— Entendo. Você os viu pegarem a caixa?

— Sim. Esperei pelo meu pagamento, sabe?

— Claro. E como era essa caixa?

— Quadrada, mais ou menos assim. — Ele esboçou o tamanho com as mãos. — Parecia pesada e não foi aberta. A senhora mandou que fosse posta no chão e colocou as mãos na tampa, assim. Eu lhe disse, moço, ela tinha mágica. Olhou bem para lá, para Y Wyddfa, como se estivesse falando com o espírito. Você sabe, o espírito que vive lá em cima, o senhor dos montes. Dizem que uma vez ele fez uma espada mágica, que agora está com o rei. Merlin veio buscá-la.

— Sim. E depois, o que a mulher fez?

— Eles levaram a caixa.

— Viu para onde foram?

— Para a cidade. — O menino me olhou de soslaio, esfregando os dedos dos pés na poeira do chão. — Ela falou que o dono tinha mandando pegar a caixa. É mentira? Mas a senhora usava roupas bonitas e os escravos tinham braceletes com uma coroa.

Pensei que fosse uma rainha.

— E era mesmo — falei, endireitando o corpo. — Não fique com essa cara, garoto, você não fez nada de errado. De fato, agiu melhor do que muito adulto em seu lugar: me contou a verdade. Poderia ter recebido outra moeda apenas me mostrando o local e ficando de boca fechada. Por isso vou lhe pagar como prometeu.

Aqui está.

— Mas é prata, moço, e eu não fiz nada.

— Fez muito mais do que imagina. Deu-me uma notícia que deve valer meio reino, até mais. — Levantei-me. — Não tente entender, garoto. Fique em paz, tome conta de seus carneiros e encontre sua fortuna. Que Deus esteja com você.

— E com você também, moço — disse ele, ainda me olhando com surpresa.

— Talvez esteja mesmo. Agora Ele só têm de arranjar bem depressa um navio que vá para o sul.

Deixei o menino olhando espantado para mim, segurando a moeda de prata na mão suja.

No dia seguinte aportou um navio que ia para o sul, que zarpou com a maré da tarde. Eu estava a bordo e como de hábito passei a maior parte do tempo deitado e sofrendo, até entrarmos no estreito de Severn, cinco dias depois.

 

Os ventos continuaram fortes, mas variáveis. Quando atingimos o canal o clima estava ameno, portanto não aportamos em Maridunum, seguindo diretamente pelo estuário.

Tinham me informado que o Ore, o navio de Morgause, partira para Ynis Witrin, portanto devia ter percorrido o dobro da distância. Por sorte, meu navio era ligeiro e talvez sua comitiva não estivesse muito à frente. Eu poderia ter subornado o comandante do navio para também aportar na ilha, mas ali, certamente, me reconheceriam, com o conseqüente escândalo que tentava evitar. Se eu soubesse, quando vi Morgause, que ela guardava consigo os objetos de poder do templo de Mitra e ainda era capaz de praticar alguma magia (já que o menino parecia ter um bom julgamento), teria preferido acompanhá-la no navio, fossem quais fossem os riscos, inclusive o de não sobreviver à viagem.

Eu não tinha meios de saber quando esperavam Artur no palácio e, se precisasse me esconder até sua volta, provavelmente Morgause o encontraria antes. Minha esperança, enquanto a seguia para o sul, era encontrar Nimuë, de alguma maneira. Já tinha pensado no que poderia resultar disso porque a volta dos mortos raramente é recebida com prazer. Mas ela agora tinha o poder. O cálice era para o futuro e este pertencia a ela. Eu precisava avisá-la que uma bruxa estava a caminha O roubo do tesouro de Macsen fizera soar uma estranha nota de perigo que eu não podia ignorar.

Para meu alívio, o navio passou pela boca do estuário que leva ao porto da ilha e seguiu pelo estreito canal do Severn. Finalmente aportou na foz do rio Frome, onde há uma boa estrada para Aquae Sulis, em Summer Country. Dessa vez, eu pagara minha passagem com uma das pedras preciosas da mortalha e com o troco comprei um bom cavalo. Depois de encher os alforges de comida e uma muda de roupa, parti pela estrada até a cidade.

Era muito pequena a possibilidade de me reconhecerem fora dos lugares que eu costumava freqüentar com maior assiduidade. Eu tinha emagrecido muito desde o funeral, tinha os cabelos quase brancos e não raspara a barba. Mesmo assim, decidi evitar as cidades e as vilas quando fosse possível, dormindo nas hospedarias rurais. Eu não podia passar as noites ao relento porque o frio se tornava mais forte a cada dia. Além disso, não era de admirar que me sentia exausto depois de andar horas a cavalo. Ao entardecer do primeiro dia estava ansioso para descansar e fiquei grato ao encontrar uma pequena taverna de aspecto decente, a uns sete ou oito quilômetros de distância de Aquae Sulis.

Antes de pedir comida quis saber as últimas novidades e me contaram que Artur estava em Camelot. Quando falei em Nimuë responderam logo, mas achei que a informação era vaga. Chamaram-na de "mulher de Merlin" e "maga do rei", relatando algumas histórias fantásticas, mas não souberam informar com certeza seu paradeiro. Um homem afirmou estava em Camelot com o rei, mas outro garantiu que partira um mês antes, acrescentando que havia surgido problemas em Rheged, relacionados com a rainha Morgan e a grande espada do rei.

Portanto, aparentemente seria impossível para mim entrar em contato com Nimuë antes da chegada de Morgause, mas Artur estava em casa. Mesmo que Morgause desembarcasse na ilha, talvez não tivesse pressa de se apresentar ao rei. Se eu não perdesse tempo, poderia vê-lo antes dela. Comi rapidamente, paguei a refeição e mandei preparar o cavalo, voltando logo à estrada. Apesar de cansado, eu percorrera uma pequena distância antes de chegar à estalagem e o cavalo continuava disposto. Se não o forçasse, poderia cavalgar a noite toda.

Havia luar e a estrada fora reparada pouco antes, o que facilitou a viagem, e cheguei a Aquae Sulis bem antes da meia-noite. Os portões já estavam fechados e tive de rodear as muralhas. Fui detido duas vezes: uma pelo guarda do portão, que queria saber qual era meu ofício, e outra por uma tropa de soldados com o emblema de Melwas. Nas duas ocasiões mostrei meu broche com o dragão e informei que estava a serviço do rei; não sei o que impôs mais respeito, se a jóia ou minha segurança, porque me deixaram passar. Mais à frente encontrei uma encruzilhada e rumei para o sul pela estrada do sudeste.

O sol surgiu, pequeno e vermelho no céu cor de gelo. À frente, a estrada cruzava as terras montanhosas e desoladas em que a pedra calcária é esbranquiçada como ossos e os ventos retorcem todas as árvores na direção nordeste. Meu cavalo passou a andar com mais dificuldade e eu me sentia tão exausto que meu corpo se tornara insensível e eu parecia cavalgar num sonho. Com pena de nós dois, desmontei quando chegamos ao bebedouro seguinte e joguei um punhado de feno na rede presa à sela. Depois sentei-me na cerca de pedra e comi pão preto e passas com hidromel.

A luz do sol, mais forte, refletia-se na relva molhada. Fazia muito frio. Quebrei a fina camada de gelo sobre a água e lavei o rosto e as mãos. Refresquei-me, mas fiquei tremendo. Para continuar vivos, o cavalo e eu precisávamos nos movimentar. Levantei-me e o puxei até a beira do bebedouro, onde eu ia subir para montar. Ele ergueu a cabeça atentamente e também ouvi o tropel vindo da cidade em galope rápido. Alguém tinha partido assim que abriram os portões e se aproximava rapidamente com um cavalo descansado.

Logo apareceu um moço montando um grande animal escuro. Quando estava a cem passos de distância, reconheci a insígnia de mensageiro real e corri para o meio da estrada com a mão erguida.

Ele não queria parar, mas naquele ponto a estrada é cercada de um lado por uma mureta de pedras e do outro por uma vala, com o bebedouro bloqueando a margem. Além disso, meu cavalo estava parado no caminho.

O cavaleiro puxou a rédea para conter o animal.

— O que é isto? — perguntou, impaciente. — Se está à procura de companhia, meu velho, não conte comigo. Não vê quem eu sou?

— Sim, um mensageiro do rei. Para onde vai?

—           A Camelot. — Era jovem, corado e falava com arrogância, como é costume entre seus companheiros, mas com cordialidade.

—            O rei está lá e preciso chegar amanhã. O que houve, meu velho? Seu cavalo está manco? É melhor você...

—           Não, eu me arranjo, obrigado. Não teria interrompido sua viagem sem motivo, mas o assunto é importante. Quero que transmita uma mensagem para mim. Deve ser dada ao rei.

Ele me olhou e começou a rir, soltando baforadas quentes no ar gelado.

—           Para o rei, diz ele! Meu bom velho, me perdoe, mas o mensageiro do rei tem coisas mais sérias a fazer do que levar recados dos passantes. Se quer fazer um pedido, sugiro que volte a Caerleon. O rei vai passar o Natal lá e talvez você chegue a tempo se andar depressa. — Ele ameaçou esporear o cavalo para partir

—            Portanto, fique de lado e deixe-me passar.

—            Acho que você devia me ouvir — respondi sem sair do lugar.

O mensageiro conteve o animal, mas irritou-se e brandiu o chicote. Pensei que ia me bater, mas nosso olhares se encontraram e ele se imobilizou. O cavalo avançou com medo do chicote, mas foi contido rapidamente e respirou tão fortemente que as lufadas de ar quente faziam-no parecer um dragão. O rapaz me olhou e ficou em dúvida, resolvendo fazer uma concessão.

— Bem... senhor... eu posso ouvir. Mas espero que a mensagem esteja à minha altura. Não sou um mensageiro comum e tenho prazos a manter.

— Eu sei e não o incomodaria, mas tenho urgência em me comunicar com o rei. Como você mesmo já disse, vai chegar bem antes de mim. A mensagem é a seguinte: um velho na estrada lhe deu um objeto para servir de prova e disse que está a caminho de Camelot para ver o rei. Mas ele só consegue ir devagar e, se o rei quiser vê-lo, precisa vir ao seu encontro. Conte qual é a estrada que estou seguindo e diga-lhe que paguei você com uma das moedas deixadas para o barqueiro das trevas. Repita, por favor.

Esses mensageiros têm prática e costumam decorar todas as palavras porque freqüentemente levam mensagens de homens que não sabem escrever. Ele me obedeceu sem pensar.

— Encontrei um velho na estrada que me deu um objeto e disse que está a caminho de Camelot para ver o rei. Mas ele só consegue ir devagar e se o rei quiser vê-lo, precisa... ora, que tipo de mensagem é esta? Você está louco? Falando desse modo, parece que está dando ordens ao rei.

— Talvez... — Sorri. — Você pode mudar a frase, se achar que facilita a mensagem. De qualquer maneira, sugiro que fale com ele em particular.

— É claro que terá de ser em particular! Olhe, não sei quem o senhor é, mas imagino que seja alguém de posição, apesar da aparência... mas pelo deus do caminho, é melhor que esse objeto seja um salvo-conduto poderoso e a recompensa muito boa, para eu me atrever a transmitir uma ordem para o rei, mesmo em particular!

— E são mesmo. — Eu tinha embrulhado o broche com o dragão num pedaço de linho e entreguei-o junto com a segunda moeda de ouro que fora colocada sobre minhas pálpebras. Ele olhou a moeda e virou o pequeno embrulho.

— O que está aqui?

— O objeto de que falei. Repito que é um assunto importante e tenho urgência que você fale com o rei em particular. Se Bedwyr estiver perto, não importa. Mas não fale diante de ninguém mais. Está compreendendo?

— Sim, mas... — ele fez um movimento com os joelhos afastando o cavalo e abriu o pequeno embrulho. Meu broche, com o dragão real, brilhou em sua mão. — Isto? Mas este é o símbolo real.

— Sim.

— Quem é você? — perguntou abruptamente.

— Sou primo do rei. Portanto, não tenha medo de transmitir a mensagem.

— O único primo do rei é Hoel da Bretanha Menor e ele não tem o direito de usar o dragão. Só o... — Ele calou-se e empalideceu.

— O rei vai saber quem sou — respondi. — Não pense que o culpo por duvidar de mim ou abrir o pacote. O rei está bem servido e é o que direi a ele.

— O senhor é Merlin — ele murmurou umedecendo os lábios, quando conseguiu falar.

— Sou. Agora você compreende por que deve falar com o rei a sós. Também será um choque para ele. Não tenha medo de mim.

— Mas... Merlin morreu e foi enterrado. — Ele estava branco como cera e a rédea escorregara entre seus dedos. O cavalo aproveitou e baixou a cabeça para pastar.

— Não perca o broche — falei rapidamente. — Olhe, rapaz, não sou um fantasma. Uma tumba não é sempre o portal da morte.

Eu procurava tranqüilizá-lo, mas ele parecia ainda mais assombrado.

—            Meu senhor, nós pensamos... Todos sabiam...

—           Sim, todos pensaram que eu tinha morrido — confirmei. — Mas eu sofri um mal parecido com a morte e depois sarei, só isso. Agora estou bem e voltarei ao serviço do rei... mas secretamente. Ninguém deve saber antes de ele receber a notícia e falar comigo. Eu não diria a ninguém, a não ser para um de seus próprios mensageiros. Você compreende?

Como eu esperava, as palavras serviram para o rapaz readquirir sua segurança. O rosto tornou a ficar corado e ele ergueu a cabeça.

—           Sim, meu senhor. O rei vai ficar... muito feliz. Quando o senhor morreu... isto é, quando o senhor... bem, quando aconteceu, ele trancou-se a sós durante três dias e não falou com ninguém, nem mesmo com o príncipe Bedwyr. Foi o que disseram.

A voz voltou ao normal enquanto ele falava e havia até uma certa excitação, pela alegria de dar a boa nova ao rei. O ouro não tinha a menor importância. Ele contou como todos tinham sentido a perda de Merlin.

— Em todo o reino, por toda parte, eu garanto, senhor. — Ele forçou o cavalo a erguer a cabeça da relva e me olhou com o rosto corado e animado — Então vou continuar a viagem.

— Quando espera chegar a Camelot?

— Se tiver sorte e encontrar boa muda de animais, amanhã ao meio-dia. Mas é mais provável que chegue ao acenderem as luzes. Não pode dar um par de asas ao meu cavalo enquanto está por perto?

—           Preciso me recuperar um pouco mais antes de ser capaz dessas coisas — respondi rindo. — Só mais um momento antes de você partir... Há uma outra mensagem que o rei precisa receber imediatamente. Talvez você já saiba. Teve alguma notícia da rainha de Orkney em Aquae Sulis? Ouvi dizer que ela estava seguindo de navio para o sul, até Ynys Witrin, e deve se apresentar na corte.

—           Sim, é verdade, ela chegou. Ou melhor, o navio aportou e ela está indo para Camelot. Alguns diziam que ela não atenderia a ordem do rei...

— Ordem? Quer dizer que o Grande Rei ordenou que ela viesse?

— Sim, senhor. Todos sabem, portanto posso contar. Para ser franco, ganhei uma pequena aposta: todos diziam que ela não viria, mesmo com salvo-conduto para os meninos. Apostei que viria. Com Tydwal tendo prestado juramento a Artur e estabelecido no outro castelo de Lot, onde ela poderia se esconder se o Grande Rei resolvesse mandar buscá-la à força?

— Realmente — respondi sem pensar. Aquilo eu não tinha previsto e não conseguia entender. — Desculpe-me por detê-lo, mas estou há muito tempo sem notícias. Pode me dizer por que o rei mandou chamá-la... e aparentemente sob ameaça?

Ele abriu a boca, mas tornou a fechá-la, indeciso. Finalmente, concluiu que não estava desobedecendo seu código de honra informando o primo do rei e seu conselheiro.

—           Acho que foi um assunto ligado aos meninos, senhor. Um especialmente, o mais velho dos cinco. A rainha vem com todos eles a Camelot.

O mais velho dos cinco. Então Nimuë fora bem-sucedida onde eu falhara... encontrara Mordred. Nimuë, que segundo os homens da taverna, viajara para o norte porque havia "problemas".

Agradeci ao rapaz e afastei meu cavalo do caminho.

— Agora, a caminho, meu caro Belerofonte! — exclamei. — Vá o mais rápido que puder e "cuidado com os dragões".

— Já tenho todos os dragões de que preciso, obrigado — ele firmou a rédea e ergueu a mão para me saudar. — Mas meu nome não é esse.

— E qual é, então?

— Perseus — ele respondeu e me olhou desconfiado quando comecei a rir. Depois também riu e chicoteou o cavalo, partindo a galope.

 

Já não havia necessidade de me apressar. Provavelmente, Morgause encontraria Artur antes do mensageiro, mas eu não podia fazer nada a esse respeito. Apesar de minha preocupação por saber se ela mantinha os objetos de poder, a pior de minhas preocupações estava solucionada. Artur se precavera: Morgause viera sob ordens expressas e seus filhos eram praticamente reféns. Também havia a possibilidade de nos vermos antes de ele resolver o assunto com Morgause e Mordred. Eu não tinha a menor dúvida de que Artur viria ao meu encontro no momento em que visse o broche e ouvisse a mensagem. O encontro com o mensageiro fora um extraordinário golpe de sorte porque, mesmo se eu estivesse no auge da mocidade, jamais conseguiria cavalgar como esses homens.

Também já não havia urgência em me comunicar com Nimuë e isso, de alguma forma, me alegrava. Existem certos testes que tememos fazer e algumas verdades que preferimos não ouvir. Se fosse possível, eu preferia que ela não soubesse de minha existência. Queria lembrar suas palavras de amor e sofrimento.ao me perder e não ver à luz forte do dia a expressão de desagrado quando me encontrasse vivo.

Continuei a viajar vagarosamente e à tarde, com frio, parei numa estalagem à beira da estrada. Alegrei-me porque não havia mais nenhum viajante hospedado e providenciei o estábulo e a forragem para meu cavalo. Depois me serviram uma boa refeição preparada pela mulher do dono e fui cedo para a cama, entregando-me a um sono sem sonhos.

Passei o dia seguinte dentro do estabelecimento, feliz por poder descansar. Passaram por ali uns dois camponeses, um boiadeiro com seu gado, um fazendeiro com a mulher voltando do mercado e um mensageiro seguindo para o noroeste. Mas à tardinha, novamente, eu era o único hóspede e tinha a lareira à minha disposição. Depois do jantar, quando o casal se retirou para dormir, fiquei a sós no pequeno aposento com vigas aparentes no teto, com meu catre forrado de palha perto do fogo e uma pilha de lenha para manter o ambiente aquecido.

Naquela noite não procurei dormir. Quando a estalagem ficou em silêncio, puxei uma cadeira para perto da lareira e coloquei mais achas no fogo. A dona da casa tinha deixado uma chaleira fervendo perto das chamas e misturei água quente com a sobra do vinho do jantar. Enquanto bebia ouvi os ruídos da noite: as toras estalando no fogo, o murmúrio das chamas, as corridas dos ratos e ao longe, o grito de uma coruja caçando na noite gelada. Depois fechei os olhos. Não sei por quanto tempo e nem qual foram as preces que umedeceram minha testa de suor e fizeram os ruídos noturnos sumirem num silêncio profundo e ilimitado. Finalmente, a luz das chamas nos olhos, e através da luz a escuridão e, através da escuridão, a luz...

 

Eu não via o grande salão de Camelot havia muito tempo, mas ali estava ele, todo iluminado na noite sombria de outono. Os trajes alegres das damas, as jóias e as armas dos cavaleiros brilhavam refletindo a profusão de velas. O jantar tinha acabado. Guinevere estava em seu lugar, no centro da mesa mais elevada, encantadora como sempre em sua cadeira de espaldar dourado. Bedwyr sentava-se à esquerda e achei que pareciam felizes e sorridentes. À direita da rainha, a grande cadeira do rei estava vazia.

Assim que senti um arrepio por não estar vendo quem eu queria ver, ele apareceu. Andava pelo salão, parando aqui e ali para falar com alguém enquanto passava. Estava calmo e sorridente, provocando risos em alguns convivas. Um pajem ia na frente, portanto o rei devia ter recebido algum recado importante e ia tratar pessoalmente do assunto. Ele chegou à grande porta de entrada, disse alguma coisa aos sentinelas, despediu o pajem e saiu. Dois soldados da guarda do portão ladeavam um homem que eu já vira: era o camareiro de Morgause.

Ele aproximou-se quando o rei apareceu, mas logo parou, parecendo constrangido. Evidentemente, não esperava ver o próprio Artur. Em seguida, disfarçou a surpresa e ajoelhou-se. Começou a falar com o estranho sotaque do norte, mas o rei o interrompeu.

— Onde eles estão?

— No portão, meu senhor. A senhora sua irmã me encarregou de pedir uma audiência com o senhor esta noite mesmo, no salão.

— Eu dei ordens para ela me encontrar amanhã no Salão Redondo. Ela não recebeu o recado?

— Sim, meu senhor. Mas ela viajou muito, está cansada e ansiosa para saber por que foi intimada a vir. Ela não pode descansar com os filhos até saber qual é sua vontade. Ela trouxe todos eles... e pede para ser recebida pelo senhor e pela rainha esta noite...

— Sim, eu vou recebê-los, mas não no salão. Vou vê-los no portão. Volte e avise para ela me esperar lá.

— Mas, meu senhor... — Vendo que o rei continuava em silêncio, o homem calou seu protesto e levantou-se com uma certa dignidade, fazendo uma reverência. Afastou-se na escuridão entre os guardas e Artur o seguiu mais lentamente.

Não havia umidade nem vento, mas uma fina camada de gelo cobria as arvorezinhas podadas que ladeavam os terraços e rei esbarrava o manto nelas enquanto andava. Caminhava vagarosamente, com a cabeça baixa e o cenho franzido, como evitara fazer no salão, diante de todos. Não havia ninguém ali além dos guardas. Um sargento o saudou, fez uma pergunta e ele sacudiu a cabeça. E assim, sem nenhum acompanhante ou escolta, ele atravessou os jardins do palácio, passou pela parede da capela e desceu os degraus perto da fonte silenciosa. Depois cruzou outro portão, sendo saudado pelos sentinelas e seguiu o caminho que levava ao portão sudoeste da fortaleza.

Sentado diante das chamas na taverna.distante, com a visão doendo nos olhos, eu o chamei e procurei avisá-lo da maneira mais simples:

 

Artur, Artur. Este é o destino que você gerou naquela noite em Luguvallium. Esta é a mulher que tomou sua semente para criar seu inimigo. Destrua os dois. Destrua agora. Eles são seu destino. Ela agora está com os objetos de poder e sinto medo. Destrua os dois agora. Eles estão em suas mãos.

 

Ele tinha parado no meio do caminho e ergueu a cabeça, como se pudesse ouvir alguma coisa no céu. Uma lanterna pendurada em um poste iluminou seu rosto e quase não o reconheci. Estava sombrio, duro, frio, era o rosto de um juiz ou carrasco. Continuou parado por alguns minutos e em seguida, como um cavalo esporeado, caminhou rapidamente até o portão principal da fortaleza.

Lá estavam eles, o grupo todo. Tinham trocado de roupa e os cavalos estavam descansados e bem ajaezados. As borlas douradas e os arreios verdes e vermelhos brilhavam à luz das tochas. Morgause usava um vestido branco debruado de prata e pequenas pérolas e um manto escarlate com um forro de pele branca. Os quatro meninos menores tinham ficado mais atrás, com dois criados, mas Mordred parará ao lado da mãe, num belo cavalo negro com arreios enfeitados de prata. Olhava em volta curiosamente. Ele ainda não sabe, pensei; ela ainda não contou. As sobrancelhas negras e macias pareciam asas; a boca, contida como a de Morgause, guardava seus segredos. Os olhos eram iguais aos de Artur e aos meus.

Morgause mantinha-se ereta em sua égua, aguardando. O capuz tombara para trás e a luz iluminava seu rosto inexpressivo e um pouco pálido. Mas os olhos verdes brilhavam sob os longos cílios e vi os dentes pequenos como os de uma gatinha maltratando o lábio inferior. Apesar da frieza aparente, eu sabia que ela estava sem jeito e até amedrontada. Tinha ignorado o mensageiro de Artur e chegara a Camelot com seu pequeno grupo naquela hora tardia, quando todos estavam reunidos no grande salão. Devia ter calculado que levaria sua prole real até os degraus do trono e talvez até apresentasse o filho de Artur em público, obrigando-o a aceitá-lo diante de sua rainha e de todos os nobres reunidos com suas damas. Ela tinha certeza de que eles seriam aliados de uma rainha solitária com seus filhos inocentes. Entretanto, tinham impedido sua entrada no portão, numa atitude sem precedentes, e o rei viera vê-la sozinho, sem outras testemunhas além de seus soldados.

Ele aproximou-se da luz da tocha e parou a poucos passos.

— Deixem-nos entrar — ordenou.

Mordred apeou do cavalo e ajudou a mãe a desmontar. Os criados levaram os animais de volta à casa da guarda no portão. Morgause aproximou-se do rei ladeada pelos filhos mais velhos, com os três menores mais atrás.

Era a primeira vez que se viam desde a noite em Luguvallium em que ela mandara a criada chamá-lo até seu quarto. Na época, Artur era um príncipe saído vencedor de sua primeira batalha, jovem, alegre e fogoso; Morgause, com vinte anos, sutil e experiente, usara o sexo e a magia para extasiar o menino. E agora, apesar dos anos dedicados à criação dos filhos, ela ainda conservava parte do fascínio que enlouquecera os homens. Porém, já não estava diante de um menino inexperiente, mas de um homem na plenitude de sua energia, com o julgamento e o poder de um rei, reforçado por alguma coisa formidável e perigosa, como o fogo baixo que precisa apenas de um bafejo para começar a queimar.

Morgause abaixou-se no solo gelado, mas não fez a profunda reverência de alguém que suplica por graça e perdão; ela ajoelhou-se e estendeu a mão direita para forçar Mordred a fazer o mesmo. Gawain, do outro lado, manteve-se em pé como os outros irmãos, observando a mãe diante do rei. Ela não se preocupou, pois eram declaradamente filhos de Lot, com ossatura grande, pele clara e cabelos loiros como o seu. Não importava o que Lot tivesse feito no passado, porque Artur não se vingaria em seus filhos. Mas o outro era diferente, com o rosto mais fino e os olhos escuros que herdara pela casa real do próprio Macsen... ela forçou-o a ajoelhar-se onde estava e ele manteve a cabeça erguida, querendo ver tudo o que acontecia a sua volta.

Morgause estava falando e conservara a mesma voz suave e delicada. Eu não consegui ouvir o que ela dizia. Artur ficou parado como uma estátua e duvido que tenha entendido uma palavra. Ele quase não a olhava, só tinha olhos para o filho. Morgause demonstrava urgência e ouvi quando falou em "irmão" e depois "filho". Artur ouvia com o rosto impassível, mas eu sentia que as palavras voavam como dardos entre os dois. A seguir, ele deu um passo à frente e estendeu a mão para erguê-la. O gesto diminuiu a tensão dos meninos e do homem aguardando no portão. As mãos de seus serviçais não se afastaram das espadas porque tinham mantido uma cuidadosa distância das armas, mas o efeito era o mesmo. Os dois meninos mais velhos trocaram um olhar quando a mãe se levantou e Mordred sorriu. Com certeza esperavam que o rei a beijasse, em sinal de paz e amizade.

Mas ele não a beijou. Apenas levantou-a e disse alguma coisa, levando-a a uma certa distância. Mordred virou a cabeça, como um cão de caça. Depois o rei falou com os meninos:

—            Vocês são bem-vindos. Agora voltem ao portão e esperem.

Eles obedeceram e Mordred olhou para a mãe. Por um momento, o rosto dela demonstrou terror, mas logo transformou-se numa máscara de calma. O camareiro deve ter recebido algum recado, porque adiantou-se com a caixa que traziam de Segontium. Os objetos de poder... inacreditavelmente, ela entregou ao rei. Inacreditavelmente, esperava comprar seus favores com o tesouro de Macsen...

O homem ajoelhou-se aos pés do rei e abriu a caixa. O tesouro brilhou na luz e vi claramente o que havia, como se estivesse a meus pés. Tudo era de prata: taças, braceletes e um colar feito de placas decoradas com os desenhos fluidos e interligados que os ourives do norte usam para invocar sua magia. Não havia sinal dos emblemas de poder de Macsen. Não vi o grande cálice decorado com esmeraldas, a ponta de lança ou o prato incrustado com safiras e ametistas. Artur olhou ligeiramente e, quando o camareiro se afastou, voltou a falar com Morgause, largando o presente no solo gelado. Ignorava o presente como ignorara tudo o que ela havia dito. Ouvi sua voz claramente.

—           Morgause, talvez não entenda as razões que tive para chamá-la, mas agiu certo ao me obedecer. Uma das razões é relacionada a seus filhos e você deve ter imaginado; mas não precisa temer por eles. Eu disse que não lhes causaria nenhum mal e manterei minha promessa. Quanto a você, não existe promessa alguma. Fez bem em ajoelhar-se para pedir misericórdia. E que misericórdia pode esperar? Você matou Merlin. Foi você que lhe deu o veneno que provocou sua morte.

Ela não esperava aquilo e susteve a respiração. Moveu levemente as mãos brancas como se quisesse proteger o pescoço, mas conteve o gesto.

— Quem lhe contou essa mentira?

— Não é mentira. Ele mesmo a acusou quando estava morrendo.

— Ele sempre foi meu inimigo!

— E quem pode dizer que ele estava enganado? Você sabe o que fez. Pretende negar?

— É claro que eu nego! Ele sempre me odiou, sempre! E você sabe por quê. Ele não queria que ninguém mais tivesse poder sobre você. Eu sei, nós pecamos, mas éramos inocentes...

— Se tiver juízo, não fale desse assunto — ele interrompeu friamente. — Você sabe tão bem quanto eu quais foram os pecados cometidos e quais os motivos. Se espera alguma misericórdia, agora ou sempre, não toque nesse assunto.

Morgause curvou a cabeça e apertou as mãos, numa atitude de humilhação.

—           Tem razão, meu senhor — respondeu baixinho. — Eu não devia ter falado. Não vou embaraçá-lo com lembranças. Obedeci sua ordem, trouxe seu filho e deixo a cargo de seu coração e sua consciência a escolha certa do que deve fazer com ele. Não pode negar que ele é inocente.

Artur não respondeu e Morgause tentou provocá-lo com o olhar, como no passado.

— Quanto a mim, admito que posso ser acusada de loucura.

Venho a você, Artur, como uma irmã que...

— Eu tenho duas irmãs — ele respondeu duramente. — A outra tentou me trair há pouco. Não me fale de irmãs.

Morgause ergueu a cabeça e já não tinha uma expressão .de súplica. Era uma rainha diante de um rei.

— Então, o que posso responder, a não ser que venho a você como a mãe de seu filho?

— Você veio como a assassina do homem que era mais que meu próprio pai para mim. Não é mais e nem menos que isso. Por esse motivo a chamei e a julgarei.

— Ele teria me matado. Teria feito você matar seu próprio filho.

— Isso não é verdade — disse o rei. — Ele evitou que eu matasse vocês dois. Sim, vejo que ficou chocada. Quando soube do nascimento do menino, a primeira coisa em que pensei foi mandar alguém matá-lo. Mas, se você se recorda, Lot adiantou-se... e Merlin, entre todos os homens, queria salvar o menino porque é meu filho — pela primeira vez ele demonstrou paixão ao falar. — Mas Merlin não está mais aqui, Morgause. Não vai protegê-la novamente. Por que acha que me recusei a recebê-la no salão esta noite, na presença da rainha e dos cavaleiros? Era o que você esperava, não? Você, com sua beleza e sua voz suave, os quatro filhos de Lot e esse jovem de olhos escuros, parecido com a família real...

— Ele não lhe fez mal algum!

— Não, não fez. Agora ouça, vou tirar de você os quatro filhos de Lot para serem treinados aqui em Camelot. Não deixarei que eles fiquem aos seus cuidados para crescerem como traidores, odiando seu rei. Quanto a Mordred, ele não me causou mal algum, mas eu lhe causei, assim como você. Não somarei um novo pecado ao outro. Fui avisado de que ele era uma ameaça, mas um homem precisa agir corretamente, mesmo contra si. E quem pode interpretar os deuses com exatidão? Você também o deixará comigo.

— E você mandará assassiná-lo assim que eu partir?

— E, se assim fosse, que escolha você teria?

— Você mudou, irmão — ela respondeu com despeito.

Artur sorriu pela primeira vez.

—           Sem dúvida. Se isso serve para acalmá-la, eu não vou matá-lo. Mas você, Morgause, que matou Merlin, o melhor homem em todo este reino...

Ele foi interrompido pelo tropel de um cavalo chegando ao portão. Os sentinelas o abriram, depois de rápidas palavras. O cavalo entrou com a boca espumando e parou perto do rei, com as pernas trêmulas e a cabeça baixa de cansaço. O mensageiro desmontou com dificuldade e ajoelhou-se para saudá-lo.

—           E então? — Artur perguntou, irritado com a interrupção.

Mas sabia que nenhum mensageiro se apresentaria naquele momento se não tivesse notícias importantes. — Espere, eu me lembro de você. Chama-se Perseus, não é? Que notícias tão extraordinárias você traz de Glevum para matar um bom cavalo e interromper minha conversa em particular?

—           Meu senhor... — o homem limpou a garganta, olhando para Morgause. — Meu senhor, é uma notícia urgente, muito urgente, mas devo transmiti-la apenas ao senhor. Perdoe-me.

Morgause, que estava parada como uma estátua, ergueu as mãos ao pescoço. Um leve vestígio de sua antiga magia devia tê-la prevenido.

O rei olhou o mensageiro por um momento e deu uma ordem a dois guardas, que se aproximaram de Morgause. Depois fez um sinal ao recém-chegado e caminhou de volta ao palácio, seguido por ele. Chegando à escadaria, parou e voltou-se.

—            Qual é a mensagem?

Perseus estendeu o embrulho do broche.

— Um velho na estrada me deu este objeto para servir de prova e disse que estava a caminho de Camelot para ver o rei. Mas ele só pode vir devagar, portanto, se o rei quiser vê-lo, precisa ir ao seu encontro. Ele está viajando pela estrada sobre os montes, entre Aquae Sulis e Camelot. Ele me disse...

— Ele lhe deu isto! — O broche do Dragão brilhava na mão de Artur, que empalidecera de espanto.

— Sim, meu senhor. — O mensageiro deu o resto do recado apressadamente e mostrou a moeda de ouro. — Ele disse que pagou meu serviço com o dinheiro para o barqueiro das trevas.

O rei examinou-a como alguém que está sonhando e a devolveu, tornando a observar o broche.

— Você sabe o que é isto?

— Claro, meu senhor. É o Dragão. Quando vi o que vi, perguntei que direito tinha para possuí-lo, mas depois o reconheci. Sim, meu senhor... — O rei o encarava com o rosto ainda mais pálido. O mensageiro umedeceu os lábios e conseguiu dar o resto da mensagem: — Ontem, quando me parou, ele estava perto do décimo terceiro marco da estrada. Se o senhor for encontrá-lo, acredito que não deve estar muito adiante de uma estalagem que existe logo depois. Ela fica afastada do caminho, do lado sul, e tem uma placa com um arbusto de azevinho.

— Um arbusto de azevinho — Artur repetiu como se estivesse falando no sono. Subitamente estremeceu e o sangue voltou às suas faces. Atirou o broche para o alto, fazendo-o rodopiar, apanhou-o e começou a rir.

— Eu devia saber! Eu devia saber... De qualquer modo, isto é real!

— Ele me disse que não era um fantasma — Perseus contou. — E que nem toda tumba é o portal da morte.

— Mesmo que fosse seu fantasma... — continuou Artur e virou-se e gritou, chamando alguém. — Mesmo que fosse seu fantasma... — Vários homens se aproximaram correndo e ele começou a dar ordens — Meu garanhão cinzento, e também meu manto e minha espada. Em quatro minutos. E você vai ficar em Camelot até minha volta, Perseus. Agiu muito bem, eu não vou esquecer. Agora vá descansar. Ah, Ulfin, diga a Bedwyr para trazer vinte cavaleiros e me seguir. Este homem explicará para onde vamos.

Dê-lhe comida, trate do cavalo e cuide dele até minha volta.

— E a senhora? — alguém perguntou.

— Quem? — Evidentemente, o rei se esquecera de Morgause. Respondeu com indiferença. — Segurem-na até eu ter tempo de conversar com ela e a não deixem falar com ninguém. Com ninguém, compreenderam?

Dois cavalariços trouxeram o garanhão e alguém chegou correndo com o manto e a espada. Os portões se abriram quando Artur montou. O grande cavalo cinzento relinchou e disparou com a velocidade de uma lança. Cavalgava pelo terreno acidentado como se estivesse numa planície à luz do dia. Era o mesmo estilo que Artur adotara desde as cavalgadas pela floresta Selvagem, e também o mesmo destino...

Morgause, com seu vestido de brancura virginal manchado de terra, manteve-se rígida entre os guardas enquanto os homens-de-armas levavam os meninos. Mordred estava entre eles e desapareceram na direção do palácio, sem um olhar para trás.

Pela primeira vez, desde que a conhecera, vi apenas uma mulher amedrontada fazendo um sinal contra um forte encantamento.

 

Na manhã seguinte, o dono da estalagem e sua mulher se espantaram e condoeram se assustaram, o me encontrar caído no chão frio, aparentemente desmaiado. Eles me carregaram para a cama e me aqueceram com pedras quentes e cobertores. Quando voltei a mim, essas pessoas bondosas cuidaram de mim como o carinho que teriam dado a um pai. Eu não estava tão mal, mas os momentos de visão sempre cobram seu preço: primeiro a dor da visão em si e a seguir o longo transe de sono e exaustão.

Considerando a distância em que me encontrava, resolvi descansar pelo resto do dia e, na manhã seguinte, apesar dos protestos dos estalajadeiros, mandei preparar meu cavalo. Eles ficaram mais tranqüilos quando informei que não iria muito longe. Pretendia apenas encontrar um amigo a pouca distância dali e, para acalmá-los ainda mais, pedi que preparassem um bom jantar para nós dois.

— Ele adora boa comida e garanto que a senhora prepara pratos tão gostosos quanto os cozinheiros da corte do rei, em Camelot.

Ela alegrou-se com o elogio e imediatamente começou a falar em frangos, portanto deixei o dinheiro para pagar os alimentos e parti.

Depois da geada, o clima ficara mais ameno e o sol brilhava, aquecendo um pouco. Mas já havia sinais do inverno se aproximando nas árvores desfolhadas no alto dos morros, nos tordos comendo os frutos de azevinho e voando entre os arbustos, e

nas avelãs maduras. As folhagens rasteiras mostravam folhas amareladas, que brilhavam como ouro ao sol e restavam poucas flores espiando por entre galho das cercas vivas.

Meu cavalo, com o longo descanso, estava animado e percorremos a primeira parte do trajeto em trote rápido. Não encontramos ninguém. Logo a estrada começou a descer dos cumes dos morros de calcário e a entrar na encosta de um vale. As árvores que se agrupavam nos pontos mais baixos ostentavam o colorido do outono; as faias, os carvalhos e castanheiros, o vidoeiro com seu amarelo dourado, o verde lustroso do azevinho. Um rio surgiu entre as árvores e, segundo me informara o estalajadeiro, logo eu encontraria uma encruzilhada. A estrada cruzava a correnteza e o outro caminho seguia à direita, pela floresta. Era mal pavimentado, indicando pouco uso e cortava uma grande curva do trajeto, voltando à estrada depois de certa distância, ao leste.

Sim, aquele seria o lugar ideal, porque já fazia tempo que eu não avistava nenhum sinal de moradia e nos daria a mesma privacidade que encontraríamos num quarto de dormir. Eu não me atrevia a ir mais adiante porque Artur sempre se apressava e procurava atalhos para encurtar o caminho. Não conhecendo o trajeto pela floresta, eu poderia desencontrar dele se tomasse outro caminho.

Ali era um bom lugar para esperar. O sol brilhante aquecia o desfiladeiro, e o ar estava fresco e perfumado pelos pinheiros. Dois passarinhos pousaram em um arbusto e depois voaram para o outro lado da estrada mostrando nas asas as penas azuis. Ouvi ao longe o ruído de um pica-pau bicando alguma árvore a sudeste. O rio corria suavemente sobre o calçamento romano naquele trecho da estrada, não alcançando mais que um pé de profundidade.

Tirei a sela do cavalo e prendi as rédeas no galho de uma aveleira, deixando-o a pastar. Havia um pinheiro caído perto do rio e sentei-me para esperar.

Meu cálculo de tempo estava certo. Não esperei nem uma hora e ouvi o tropel no cascalho da estrada. Ele devia ter escolhido a estrada principal em vez de cortar caminho pela floresta e parecia pouco apressado, talvez não querendo forçar demais sua montaria. Bedwyr, sempre ao seu lado, devia ser o acompanhante.

Caminhei até o meio da estrada e esperei.

Três homens vieram trotando pela floresta e percorreram o terreno ligeiramente inclinado que levava à passagem do rio. Os três eram estranhos e tinham, além disso, um aspecto que passara a ser muito raro. No passado, especialmente nas terras selvagens do norte e do oeste, as estradas eram muito perigosas para um viajante solitário. Mas Ambrosius, e depois Artur, tinham acabado com os bandidos e assaltantes. Mas não totalmente, pelo que vi. Os três tinham sido soldados e ainda usavam armaduras de couro. Dois conservavam seus amassados capacetes de metal. O mais novo e mais arrumado, com uma barba castanha já meio grisalha, tinha um porrete preso na sela. Os cavalos estavam sujos, mas bem alimentados e eram fortes. Um era preto, outro castanho e o terceiro mais claro. Não precisei de qualquer intuição profética para saber que aqueles homens eram perigosos.

Eles pararam à beira do rio, me olharam e retribuí, continuando onde estava. Eu tinha um punhal no cinto, mas a espada estava presa à sela. Além disso, com o cavalo preso ao arbusto, não poderia fugir. Mas não fiquei muito apreensivo. Tempos antes, ninguém ousaria encostar um dedo em Merlin, por mais desesperado que estivesse, e eu devia conservar um pouco da velha confiança no poder.

Eles se entreolharam e a mensagem foi de perigo. O chefe, com a barba grisalha e o cavalo preto, aproximou-se a passo e virou sorrindo para os companheiros.

— Olhem, aqui está um sujeito valente, disputando essa passagem conosco. Ou você é o próprio Hermes, que vem nos desejar boa viagem? Devo dizer que não se parece com ele — comentou e os três deram gargalhadas.

— Acho que não tenho os dons desse deus, meus senhores. E nem quero disputar o caminho. Quando ouvi seus cavalos pensei que era a tropa que está para chegar. Não viram nenhum sinal dela pela estrada?

Outra troca de olhares. O mais novo entrou com o cavalo na correnteza e espirrou água em mim.

—            Não havia ninguém na estrada — respondeu. — Uma tropa? Que tropa você está esperando? O Grande Rei, talvez? — Piscou Dará os companheiros.

—           O Grande Rei deve chegar logo — respondi serenamente - e gosta que a lei seja mantida nas estradas. Portanto, senhores, sigam em paz seu caminho e seguirei o meu.

Os três estavam atravessando o rio a vau e me rodearam, parecendo tranqüilos e bem humorados.

— Ora, vamos deixar você partir. Não é, Red? Ficará livre como o ar para partir, meu bom senhor, livre e leve como o ar.

— Leve como uma pena — Red respondeu rindo.

Era o que estava no cavalo castanho. Ele puxou o cinto para desembainhar o punhal mais facilmente enquanto o mais jovem se aproximava da sela pendurada no pinheiro caído.

Eu comecei a falar, mas o chefe aproximou o cavalo e, de repente, agarrou minha capa amarrada ao pescoço, erguendo-me do solo. Era incrivelmente forte.

—           E então? Quem você está esperando? Uma tropa? Isso é verdade ou mentiu para nos assustar?

Red aproximou-se do outro lado. Eu não tinha a menor possibilidade de escapar. O terceiro desmontou e não se preocupou em abrir os alforjes, rasgando o couro com uma longa faca. Ele nem olhou o que os outros estavam fazendo.

—           Claro que ele mentiu — disse Red empunhando a faca. —Não havia nenhuma tropa na estrada e nem sinal de ninguém. E eles não viriam pelo caminho da floresta, Erec. Você sabe disso.

Erec usou a mão livre para pegar o porrete preso à sela.

— Muito bem, então era mentira — falou. — Você não deve mentir, meu velho. Diga quem é e aonde vai. E essa tropa de que falou, de onde vem?

— Eu conto se você me soltar — respondi com dificuldade.

— E diga a seu amigo para largar minhas coisas.

— Vejam, o galo velho ainda canta! — Mas ele aliviou a pressão e pude ficar em pé novamente. — Então trate de dizer a verdade e será melhor para você. De onde veio e onde está essa tropa, afinal? Quem é você e aonde vai?

Comecei a arrumar minha roupa com as mãos trêmulas, mas procurei falar com firmeza.

—            É melhor que vocês me soltem e tratem de se salvar. Sou Merlinus Ambrosius, o primo do rei que chamam de Merlin, e estou indo para Camelot. Mandei antes uma mensagem e uma tropa deve vir ao meu encontro. Devem estar perto daqui. Se vocês fugirem rapidamente para o oeste...

As gargalhadas me interromperam e Erec virou-se na sela.

— Ouviu isto, Red? E você, Balin? Este é o Merlin, em pessoa, a caminho da corte de Camelot!

— Ora, até pode ser. — Red estremecia de tanto rir. — Ele parece mesmo um esqueleto, não é? Saído diretamente da tumba, não há dúvida!

— E voltando diretamente para ela — Erec subitamente se enfureceu e me sacudiu com violência.

— Ei, olhe aqui! — Balin o interrompeu.

— O que você achou? — os dois perguntaram.

— Ouro suficiente para comprar comida e uma boa cama por um mês, além de alguma coisa boa para aquecer a gente nela — Balin comentou alegremente. Atirando as sacolas no chão, ele ergueu a mão e duas das pedras preciosas.

— Ora, seja quem for, parece que você é nossa sorte! Examine a outra, Balin. Venha, Red, vamos ver o que o velho carrega com ele.

— Se me fizerem algum mal — avisei —, tenham certeza que o rei...

Calei-me, como se alguém cobrisse minha boca. Eu estava preso entre os cavalos, olhando para o rosto de barba grisalha com o céu ao fundo e naquele momento um pássaro passou. As penas pretas brilharam como bronze ao sol e vi que era um corvo. A ave da mensageiro Hermes, o pássaro da morte.

Ele me indicou o que devia fazer. Até então, instintivamente, eu procurara ganhar tempo como qualquer homem faria para afastar a morte. Mas se eu conseguisse, se contivesse os homens, Artur poderia chegar sozinho num cavalo cansado, pensando apenas em me encontrar e seriam três contra um naquele local ermo. Na luta eu não poderia ajudá-lo, mas via uma outra maneira de servi-lo. Devia a Deus uma morte e poderia dar uma outra vida a Artur. Precisava afastar aqueles selvagens rapidamente. Se ele encontrasse meu corpo assassinado, partiria para persegui-los, mas sabendo o que fazia e com que ajuda podia contar.

Portanto, calei-me. Balin começou a examinar a outra sacola. Erec tornou a me puxar para perto. Red chegou por trás e mexeu em meu cinto, onde estava presa a bolsa com o resto do ouro. O porrete ergueu-se acima de minha cabeça.

Se eu fizesse um gesto para pegar a arma, eles me matariam antes. Peguei o cabo do punhal preso ao cinto, mas Red agarrou meu pulso e ele caiu ao chão.

— Merlin, hein? — O rosto suado sorria sobre meu ombro. — Um mago tão famoso pode nos mostrar um truque ou dois, com certeza. Vamos, por que não se salva? Faça um feitiço para nos matar.

Os cavalos se afastaram. Alguma coisa brilhou como um raio cortando o céu. O porrete foi atirado para longe e Erec me soltou tão subitamente que perdi o equilíbrio e caí sobre seu cavalo. Ainda curvado sobre mim, demonstrava espanto e olhava fixamente. A cabeça cortada pelo golpe caiu sangrando no pescoço do animal e depois rolou no solo. O corpo escorregou lentamente enquanto o sangue espirrava no lombo do cavalo e me respingava. O animal relinchou, ergueu as patas dianteiras no ar e afastou-se com o corpo ainda sacudindo sobre a sela até cair sangrando na estrada.

Fui atirado sobre a relva com o coração aos saltos e pensei que a escuridão traiçoeira fosse me envolver de novo, mas logo se afastou. O terreno estremecia com o tropel dos cavalos. Olhei para cima.

Ele estava lutando contra os dois. Chegara sozinho em seu grande cavalo cinzento, deixando para trás Bedwyr e os cavaleiros. Contudo, não demonstrava nenhum sinal de cansaço e admirei-me de os três bandidos não terem fugido ao vê-lo. Não trouxera um escudo, mas usava uma túnica de couro com placas de metal e uma capa espessa jogada sobre o braço esquerdo, com a cabeça nua. Ele largara a rédea e controlava o garanhão com os joelhos e a voz, levando-o a participar da luta. E à volta deles, como um campo de luz impenetrável, brilhava a lâmina da grande espada. Era minha e dele, Caliburn, a espada do rei da Bretanha.

Balin saltou sobre o cavalo, esporeou-o e gritou pelo companheiro. Uma faixa de couro da túnica de Artur estava solta, mostrando onde um deles o atingira; provavelmente enquanto ele matava o barbudo. Depois, porém, não conseguiram mais atravessar o círculo mortal da espada em movimento e nem ousaram chegar perto das patas do garanhão.

— Saia do caminho — o rei me ordenou. Tentei levantar-me e insisti durante algum tempo, mas minhas mãos estavam sujas de sangue e meu corpo tremia. Vi que não conseguia ficar em pé e me arrastei até o pinheiro caído, tornando a sentar-me. A luta continuava e fiquei ali, desamparado, trêmulo, velho, incapaz de ajudá-lo, enquanto meu menino lutava pela própria vida e pela minha.

Alguma coisa brilhou perto do meu pé. Vi que era o punhal que Red arrancara de minha mão e apanhei-o. Ainda não conseguia me levantar, mas atirei-o com toda a força nas costas de Red. O impulso foi fraco, mas o brilho assustou o cavalo castanho, que se desviou, levando seu cavaleiro a soltar a espada. Com um ruidoso choque de metais, Caliburn a atirou para longe; Artur avançou com grande garanhão e matou Red com um golpe no coração.

A espada custou um pouco a sair e o corpo caiu, pesando no braço de Artur. Mas o garanhão cinzento também era treinado para combate. Quando Balin tentou atingir o rei pelas costas, encontrou os dentes e as patas do cavalo. A dentada abriu uma ferida no cavalo claro, que relinchou de dor e lutou para soltar-se. Mas Balin, valente, embora malfeitor, forçou a cabeça do animal para trás no momento em que Artur livrava a espada do corpo de Red e os dois entraram em luta.

Acredito que Balin, no último momento, reconheceu o rei. Mas nem teve tempo de falar para pedir misericórdia. Um novo golpe violento e Caliburn penetrou em seu pescoço, atirando-o na relva ensangüentada. Ele estremeceu, engasgou e afogou-se no próprio sangue. O cavalo ferido não fugiu, apesar de ficar livre. Baixou a cabeça e as pernas tremiam enquanto o ferimento sangrava. Os outros cavalos tinham sumido.

Artur saltou do garanhão e limpou a espada no corpo de Balin. Depois sacudiu o manto no braço esquerdo e se aproximou, trazendo o animal pela rédea. Tocou meu ombro manchado de sangue.

— Esse sangue é seu?

— Não. E você?

— Nem um arranhão — respondeu alegremente, com a respiração acelerada. — Mas não foi um massacre, propriamente.

Eles eram homens treinados, ou pelo menos foi o que pensei enquanto tinha tempo... Fique sentado mais um pouco, vou buscar água para você.

Ele me entregou a rédea do cavalo, pegou o chifre enfeitado de prata que sempre trazia na cinta e foi até o rio. No caminho, pisou em alguma coisa e soltou uma exclamação. Virei a cabeça e vi que ele estava observando o conteúdo de minhas sacolas. Entre os restos de comida e o couro rasgado, viu o pedaço tecido que envolvia as peças de ouro. Balin deixara uma das pedras preciosas, ainda presa ao bordado da mortalha, caída na relva.

Artur voltou-se, muito pálido.

— Pela Luz! É você!

— Quem mais poderia ser? Pensei que soubesse.

— Merlin! — Ele voltou, lutando para recobrar o fôlego — Pensei... eu nem tive tempo de olhar... vi apenas uns bandidos assassinos assaltando um velho... desarmado. Achei que era um pobre, com esse cavalo e essas roupas... — Então ajoelhou-se perto de mim — Ah, Merlin, Merlin...

E o Grande Rei de toda a Bretanha descansou a cabeça em meus joelhos e caiu num silêncio comovido. Depois de algum tempo, ergueu a cabeça.

—           Recebi o broche e o recado do mensageiro, mas acho que não acreditei muito nele. Quando ele me deu mais detalhes, achei que eu acertara em pensar... Nunca imaginei que você morreria com nós, homens comuns... mas no caminho para cá, sozinho e entregue a meus pensamentos, fiquei imaginando que não podia ser verdade. Não sei o que imaginei; talvez indo parar diante da entrada bloqueada da caverna, onde o enterramos vivo. — Ele estremeceu com um arrepio. — Merlin, o que aconteceu? Quando nós o deixamos lacrado na caverna, como morto, sua enfermidade nos enganou, era um verdadeiro cadáver. E depois? E quando voltou a si, sozinho e com a roupa do funeral? Deus sabe que isso seria suficiente para provocar outra morte! O que você fez? Como sobreviveu preso naquele morro? Como escapou? Quando? Você deve imaginar como senti sua perda. Por onde andou esse tempo todo?

— Não faz tanto tempo. Quando escapei, você estava fora. Disseram que tinha ido para a Bretanha Menor. Não contei nada a ninguém e resolvi esperar sua volta na casa de Stilicho, meu antigo servo, que cuida do moinho perto de Maridunum. Logo contarei tudo, se você for buscar um pouco de água.

— Ora, que bobagem, eu ia me esquecendo! — Ele correu até o rio e voltou com o chifre transbordando, ajoelhando-se para me dar de beber.

— Obrigado, mas agora estou bem — peguei o chifre. — Não foi nada, eu não me feri. Fiquei envergonhado porque não pude ajudar.

— Você me deu tudo o que eu precisava.

— O que não foi muito — comentei rindo. — Quase fiquei com pena daqueles coitados. Tinham uma morte tão fácil nas mãos e o próprio Artur surgiu como um relâmpago. Eu avisei, mas não quiseram acreditar. E quem pode culpá-los?

— Você contou a eles quem era e ainda assim o trataram daquele modo?

— Eu já disse, eles não acreditaram. E por que deviam acreditar? Merlin estava morto e o único poder que tive para usar foi seu nome, mas eles também não acreditaram. "Um velho, desarmado e pobre" — repeti sorrindo. — Ora, nem você me reconheceu. Eu mudei tanto?

— É a barba e... — Ele me observava atentamente. — Sim, você está com os cabelos quase brancos. Mas, se eu visse esses olhos... — Pegou o chifre e levantou-se. — Oh, sim. é você. E, em tudo o que importa, não mudou nada. Velho? Claro, nós todos precisamos envelhecer. A idade é apenas a soma da vida.

E você está vivo, voltou para ficar comigo. Pelo grande Deus do céu, está de novo ao meu lado. O que posso temer agora?

Levei o garanhão e o cavalo ferido, que pastava mansamente, até a água. Depois que eles beberam, amarrei os dois e peguei uma poção em minha sacola. Quando tratei do ferimento do animal ferido, ele arregalou os olhos e a pele tremeu, mas não demonstrou nenhum sinal de dor. O corte ainda sangrava levemente, mas o animal não estava mancando. Deixei os dois pastando enquanto fui procurar os objetos espalhados de minha sacola.

A maneira de Artur limpar a "confusão", como chamou a morte violenta dos três homens, foi arrastar seus corpos pelos calcanhares até um local escondido no começo da floresta. Depois levou a cabeça cortada pela barba, assobiando a melodia alegre de uma marcha de soldados que gabava as proezas sexuais do comandante. Por fim, olhou em volta.

— A próxima chuva vai lavar esse sangue. Mesmo que eu tivesse o tempo necessário e pás à disposição, não enterraria esses cadáveres. Os corvos que fiquem com eles. Mas podemos levar seus cavalos. Eles pararam para pastar ali adiante na estrada. Mas primeiro preciso lavar o sangue, ou não deixarão me aproximar. Deixe aí seu manto, ele não vai servir mais. Tome, use o meu. Não, eu insisto, é uma ordem. Pegue.

Ele largou-o no tronco do pinheiro e foi até o rio se lavar. Enquanto ele montava e ia buscar os animais, eu tirei o manto manchado de sangue e me lavei. Depois cobri os ombros com o manto púrpura real. Enrolei o meu e larguei perto dos homens

mortos.

Artur voltou a trote, trazendo os cavalos dos ladrões.

— E agora? — perguntou. — Onde fica a estalagem com o pé de azevinho na placa?

 

O filho do taberneiro estava me esperando na estrada. A mãe provavelmente queria que ele avisasse nossa chegada para saber quando deveria servir a "refeição digna da corte do rei". Quando ele nos viu, dois homens e cinco cavalos, ficou olhando durante algum tempo e correu para dentro da estalagem. Ao chegarmos a uns a setenta passos de distância, o próprio dono saiu para nos receber.

Ele reconheceu Artur quase imediatamente. Primeiro reparou na qualidade do animal que ele montava, depois observou o cavaleiro e ajoelhou-se na estrada.

—           Levante-se, homem — disse o rei alegremente. — Ouvi elogios sobre seu estabelecimento e quero experimentar sua hospitalidade. Houve uma pequena luta perto da passagem a vau. Não foi nada mortal, mas serviu para abrir o apetite. Mas isso pode esperar um pouco. Primeiro cuidem de meu amigo, você e sua mulher podem limpar suas roupas. E mande alguém tratar dos cavalos. Espero ansioso pela comida.

O homem começou a murmurar alguma coisa sobre a pobreza da casa e falta de acomodações.

—           Quanto a isso — prosseguiu Artur —, sou um soldado e já passei por momentos em que qualquer abrigo era considerado um luxo. Pelo que ouvi falar de sua taverna, é um paraíso. E agora, podemos entrar? Não podemos esperar mais pelo vinho e pelo fogo...

E não esperamos. Quando o taberneiro se recobrou da invasão real, cuidou logo dos assuntos mais imediatos. O menino foi tratar dos cavalos enquanto ele avivava o fogo e servia o vinho. Depois ajudou-me a limpar as manchas de sangue, trouxe água quente e roupas limpas da minha bagagem. A pedido de Artur, trancou a porta da estalagem para evitar a entrada de estranhos e foi para a cozinha, provavelmente deixando sua boa esposa em pânico.

Depois que troquei de roupa e Artur se lavou, o homem serviu vinho e nos sentamos perto da lareira. Apesar de ter viajado apressadamente e enfrentado aquela luta, Artur parecia descansado como se estivesse começando o dia. Tinha os olhos brilhantes e o rosto corado de um menino. Parecia ter readquirido a juventude com a alegria de me ver e a emoção da luta. Quando o casal trouxe a refeição e fez um certo movimento para servir os frangos, ele os recebeu tão alegremente que logo a mulher esqueceu-se de sua realeza e começou a rir das brincadeiras, respondendo com outras. O marido puxou-lhe o vestido e ela correu, mas ainda rindo.

Finalmente ficamos a sós. A tarde curta estava acabando e logo acenderiam as luzes. Voltamos a nos acomodar perto da lareira. Acho que estávamos cansados e com sono, mas não queríamos descansar até comentar as novidades que não podiam ser ditas diante dos hospedeiros. O rei me contou que tinha feito apenas uma parada para dormir poucas horas e descansar o cavalo.

— Se o mensageiro tinha dito a verdade, você estava em segurança e ia esperar por mim. Bedwyr e os outros me seguiram, mas também pararam para descansar. Eu disse que podiam ficar para trás, dando-me algumas horas de dianteira.

— Isso poderia ter saído muito caro — comentei.

— Aqueles bandidos? — perguntou com desprezo. — Se você não estivesse desarmado e distraído, teria enfrentado os três com uma mão nas costas.

E houve um tempo, pensei, em que seria capaz de enfrentá-los sem arma alguma. Se Artur pensou a mesma coisa, não deu sinal.

—           É verdade que eles não valiam uma espada como a sua. Falando nisso, ouvi alguma coisa sobre o roubo de Caliburn. Houve alguma relação com sua irmã Morgan?

—          Isso já passou e pode esperar — ele sacudiu a cabeça. — Agora o que importa é saber o que aconteceu com você. Conte. Conte tudo, não esqueça nada.

E assim contei minha história. O sol foi baixando e o céu adquiriu um tom azul mais profundo, depois ficou cor de ardósia. O aposento estava silencioso, ouvíamos apenas as achas estalando e o ruído das chamas. Um gato saltou de algum canto e enrodilhou-se perto do fogo. Era um ambiente estranho para o caso que eu ia relatar, sobre a morte e um funeral dispendioso, o medo, a solidão e a sobrevivência desesperada, o assassinato frustrado e finalmente a salvação. Ele ouviu como tantas outras vezes, com toda a atenção, franzindo o cenho em certas passagens, mas tranqüilo no calor e na satisfação daquela tarde. Essa é uma lembrança que se repete e é sempre muito vivida quando penso nele. Uma sala silenciosa, o rei ouvindo, o fogo colorindo seu rosto e brilhando no cabelo escuro, os observadores olhos escuros, atentos à história que eu contava. Mas dessa vez havia uma diferença: ele ouvia com um propósito, somava e julgava o que sabia, pronto a agir.

— Esse homem — disse por fim, levantando-se —, o ladrão de tumbas, precisamos encontrá-lo. Não será difícil, se ele está ganhando bebida em toda Maridunum com essa história... Quem será que ouviu você pela primeira vez? E o moleiro Stilicho, imagino que quer tratar da recompensa pessoalmente, não é?

— Sim. Mas se você passar por lá algum dia... Talvez na próxima ida a Caerleon, quem sabe... Mai vai morrer de terror e êxtase, mas Stilicho ficará encantado com a homenagem... e de pois falará nisso pelo resto da vida.

— É claro — ele disse. — Eu estava pensando, enquanto vinha pela estrada; vamos daqui para Caerleon. Acho que você ainda não está preparado para voltar à corte...

— Não estou agora e nunca estarei. Nem a Applegarth. Saí de lá para sempre. — Não falei em Nimuë, não tínhamos mencionado seu nome, evitando-o cuidadosamente em cada frase. — Sei que você lutará até a morte contra minha idéia, mas quero voltar a Bryn Myrddin. Todavia, ficarei felicíssimo em ficar com você em Caerleon até a caverna ficar novamente pronta para ser habitada.

Ele objetou, naturalmente, e discutimos durante algum tempo. Finalmente, porém, concordou com uma condição que achei muito razoável. Eu não devia viver lá sozinho, mas com criados para me cuidar.

— E se você precisa de sua preciosa solidão, pode ter. Vou construir uma casa para os criados fora da vista, abaixo do rochedo. Mas eles precisam ficar lá.

— E isso é uma ordem? — perguntei sorrindo.

— Certamente... Teremos tempo para tratar disso. Vou passar o Natal em Caerleon e você ficará comigo. Acho que não pensa em voltar a Bryn Myrddin antes do fim do inverno, não é?

— Não.

— Ótimo. Agora, há alguma coisa em sua história que não combina com os fatos... esse caso que você descreveu em Segontium. — Ele ergueu os olhos e sorriu — Então foi lá que você achou Caliburn? Na Capela da Luz, dos soldados? Bem, isso faz sentido. Lembro-me de que você disse, pouco antes de sairmos da floresta Selvagem, que tinham ficado outros tesouros. Falou de um cálice, ainda me lembro. Mas o presente que Morgause me trouxe não tinha nada de especial. São peças de prata, muito bonitas, feitas pelos artesãos do norte. Nada que poderia ser parte do tesouro que você descreveu.

— Entendo. Eu vi esse presente na visão. Mas quando o menino pastor me falou que uma mulher tinha desenterrado o tesouro de Macsen, imaginei que fosse Morgause.

— E acha que foi ela mesma?

— Não tenho certeza. Como poderia, sem meu pleno poder?

— Mas você teve a visão de Morgause chegando com os meninos a Camelot. Sabia que o mensageiro me daria o recado e que eu viria encontrá-lo.

— Mas não foi o poder — sacudi a cabeça. — Não o que nós conhecemos. Foi apenas o dom da vidência e provavelmente vou conservá-lo até a morte, mas é uma faculdade até comum, encontrada em maior ou menor grau nos adivinhos e curandeiros de qualquer vilarejo. O poder é mais que isso, é agir e falar com conhecimento; é comandar sem pensar, sabendo que vão obedecer. Isso acabou, mas não me lamento. — Prossegui depois de hesitar: — Nem você, espero. Ouvi alguns casos sobre Nimuë. Como ela se tornou a nova Dama do Lago, a senhora do santuário da ilha. Disseram que os homens a chamam de maga do rei, que o tem ajudado muito. É verdade?

— Sim, é verdade — ele desviou o olhar e curvou-se para arrumar a lenha no fogo. — Foi ela que resolveu o caso do roubo de Caliburn.

— Soube que ela continua no norte — comentei, vendo que ele não dizia mais nada. — Ela está bem?

— Muito bem — ele olhou satisfeito para o fogo mais forte, apoiando o queixo na mão. — Sendo assim, se Morgause estava com o tesouro quando embarcou, ele deve estar em algum lugar da ilha. Minha gente a impediu de descer do navio desde a partida de Segontium até aqui. Ela hospedou-se com Melwas, portanto nada me impede de averiguar. Morgause está detida pela guarda até minha volta. Se ela se recusar a falar, os meninos provavelmente responderão se forem cuidadosamente interrogados. Os mais novos ainda são muito inocentes e não acharão mal algum em contar a verdade. As crianças vêem tudo o que acontece, eles devem saber onde ela deixou o tesouro.

— Tive a impressão de que você pretende criá-los na corte. É fato?

— Viu isso também? Sim, é verdade. Então você viu que o mensageiro chegou no momento de salvar Morgause.

Pensei no esforço que fizera para alcançá-lo com meu poder de sonhar, temendo que ela usasse o cálice roubado contra ele.

— Você vai matá-la? — perguntei.

— Claro, envenenou você.

— Sem provas?

—            Não preciso de provas para condenar uma feiticeira.

Ergui uma sobrancelha e repeti a frase dita na inauguração do Salão Redondo.

— "Nenhum homem ou mulher será injustiçado ou punido sem um julgamento ou a prova manifesta de seu delito."

— Está bem — ele sorriu. — Eu tinha a prova. Tinha sua palavra de que ela tentou matá-lo.

— Foi que o ouvi dizer, mas pensei que era apenas para assustá-la. Eu não contei nada sobre ter sido envenenado por Morgause.

— Eu sei. E por que não contou? Por que fez segredo e não me disse que ela o envenenou para ir morrer na floresta Selvagem e foi a causa de sua doença, quase uma morte em vida?

— Você mesmo respondeu, pois teria mandado matá-la na mesma hora. Mas ela era a mãe de seu filho pequeno, estava esperando outro e eu sabia que um dia os filhos de Morgause seriam seus fiéis servidores. Portanto, me calei. Quem contou?

— Nimuë.

— Compreendo. E como ela ficou sabendo? Por adivinhação?

—            Não, foi alguma coisa que você disse quando delirava.

Ela arrancara tudo de mim, até o último segredo.

— Ah, sim... — respondi simplesmente. — E foi ela quem encontrou Mordred para você, não é? Ou Morgause resolveu trazê-lo abertamente porque Lot e eu estávamos mortos?

— Não, ele continuava escondido. Parece que ficou hospedado em algum lugar nas ilhas Orkney. Nimuë não teve nada a ver com isso. Ouvi falar nele por puro acaso, por meio de uma carta. Um ourives de York, que já trabalhou para Morgause, foi a Orkney pensando em vender-lhe outras jóias. Você sabe, essa gente viaja pelos quatro cantos do reino e está a par de todas as novidades.

— Esse homem... é Beltane?

— Você o conhece? — ele ergueu a cabeça surpreendido.

— Sim, é cego e precisa viajar com um criado...

— Casso — o rei respondeu e completou vendo meu espanto. — Eu disse que recebi uma carta.

— De Casso?

— Sim. Parece que ele estava em Dunpeldyr quando... Ah, compreendo. Eram as pessoas que estavam com você na noite do massacre. Aparentemente, Casso viu e ouviu muita coisa; as pessoas não dão atenção a um escravo e ele ouviu mais do que deveria. Seu amo, que jamais acreditara que Morgause tivera alguma coisa a ver com acontecimentos tão terríveis, foi até Orkney tentar a sorte novamente. Casso, que era menos crédulo, observou e ouviu tudo, conseguindo finalmente localizar a criança que desaparecera na noite do massacre. Mandou-me uma mensagem imediatamente. Por acaso Nimuë acabara de me contar que Morgause era responsável pela sua longa doença e morte. Mandei chamá-la e ordenei que trouxesse Mordred também. Por que você está tão abalado?

— Por dois motivos. Por que um escravo como Casso, que quando vi pela primeira vez servia como trabalhador braçal numa pedreira, resolveu escrever "diretamente" ao Grande Rei?

— Esqueci de contar, ele já trabalhou para mim. Lembra-se quando fui a Lothian para atacar Aguisel? Como foi difícil descobrir uma maneira de destruir aquele chacal imundo sem atrair a ira de Tydwal e Urien sobre minha cabeça, jurando vingança? Alguém deve ter pensado a mesma coisa, porque recebi uma mensagem desse mesmo escravo apresentando provas de coisa que descobrira contra Aguisel enquanto estava a seu serviço. O canalha abusou de um pajem, um dos filhos mais novos de Tydwal, e depois o matou. Casso informou onde poderíamos encontrar o corpo. Nós achamos, junto com outros. O menino tinha morrido exatamente como ele contou.

— E depois — prossegui secamente — Aguisel cortou a língua de todos os escravos que presenciaram o acontecido.

— Você está me dizendo que ele é mudo? Agora compreendo por que todos falam tão livremente diante dele. Mas Aguisel pagou caro por ignorar que seu pobre escravo sabia ler e escrever.

— Ele não sabia. Quando o conheci, em Dunpeldyr, era mudo e desamparado. Fui eu que pedi a Beltane para ensiná-lo, como recompensa por ter me prestado um serviço especial e também para fazer uma boa obra aos olhos de Deus.

— E eu que disse que descobri por "puro acaso"... — Artur sorriu, erguendo a taça de vinho. — Eu não devia esquecer de quem estava falando. É claro que recompensei Casso depois do caso Aguisel e lhe disse para mandar qualquer outra informação que lhe parecesse importante. Ele me foi bem útil, umas duas ou três vezes. E foi por isso que sua carta foi trazida imediata mente a mim.

Conversamos durante algum tempo, depois voltei ao assunto.

— O que pretende fazer com Morgause?

— Vou ter de resolver esse assunto com sua ajuda quando voltar. Enquanto isso, ordenarei que a mantenham sob guarda no convento de Amesbury. Os meninos vão ficar comigo e passarão o Natal conosco em Caerleon. Os filhos de Lot não darão problemas; são ainda pequenos e vão se entusiasmar com a corte, mas já cresceram o suficiente para não precisar mais dos cuidados maternos. Quanto a Mordred, apesar do que você sempre disse, quero lhe dar uma oportunidade. Receberá o mesmo tratamento dos irmãos.

Eu não disse nada. Durante a pausa, o gato ronronou mais fortemente e de repente suspirou, voltando a dormir.

— Bem, o que você quer que eu faça? — Artur perguntou. — Ele agora está sob minha proteção, portanto não poderia matá-lo ou encarcerá-lo sem um bom motivo aparente. Ainda não pude pensar bem no assunto e teremos tempo para conversar mais tarde. Mas sempre achei, depois que o menino sobreviveu ao expurgo assassino de Lot, que seria melhor ele ficar perto de mim, em vez de continuar escondido em algum lugar do país, sendo criado como meu inimigo. Diga que concorda comigo.

— Sim, eu concordo.

— Portanto, se ele ficar comigo e eu reconhecer seu direito de nascimento, o que provavelmente nunca esperou...

— Duvido que ele tenha pensado nisso — respondi. — Creio que Morgause não lhe contou a verdade.

— Não? Então eu mesmo contarei, o que é ainda melhor. Ele sabe que eu não precisaria reconhecê-lo como filho. Merlin, talvez dê certo. Você e eu sabemos como foi passar a juventude como bastardos, sabendo só mais tarde que tínhamos o sangue de Ambrosius. E quem sou eu para me dar o direito de desejar a morte de meu filho? Uma vez já foi demais. Deus sabe que paguei por isso. — Ele desviou o olhar para as chamas com expressão amarga. Pouco depois ergueu os ombros. — Você me perguntou de Caliburn. Parece que minha irmã Morgan arranjou um amante; era um de meus cavaleiros, um excelente guerreiro chamado Accolon. Um bom homem, mas incapaz de dizer não a uma mulher. Quando o rei Urbgen esteve aqui com Morgan, ela passou o tempo todo lançando-lhe olhares sedutores. Logo o pobre passou a segui-la como um cãozinho de estimação... Antes de vir para o sul, ela mandara um ferreiro fazer uma cópia de Caliburn e, enquanto estava em Camelot, sugeriu que Accolon trocasse as espadas. Como estamos em tempos de paz, ela provavelmente calculou que teria tempo de voltar ao norte antes da substituição ser descoberta. Não sei o que prometeu a Accolon mas, quando ela partiu para o norte com o rei Urgben, ele foi junto.

—            Mas por que Morgan fez isso?

O olhar surpreso demonstrou como era estranha minha pergunta.

— Ora, a razão de sempre, ambição. Morgan pretendia ver o marido no Grande Trono da Bretanha para ser sua rainha. Quanto a Accolon, não imagino o que esperava dela mas, seja o que for, custou-lhe a vida. Devia ter custado a dela também, mas não havia nenhuma prova concreta sobre sua participação no caso e, afinal, é a esposa de Urgben. O fato de ser minha irmã não a teria ajudado, mas Urbgen não tinha o menor conhecimento do plano e não posso me dar ao luxo de tê-lo como inimigo.

— Como Morgan pretendia conseguir o que queria?

— Você não estava mais conosco — respondeu Artur simplesmente. — Morgause deve tê-la informado de que você morreria a qualquer momento e Morgan preparou-se para novos tempos de grandeza. Acreditava que qualquer homem que erga a espada será seguido por todos e, empunhada pelo rei de Rheged... Mas primeiro eu teria de morrer, é claro. Eu usei a cópia da espada. O metal era quebradiço como vidro. Logo que senti o peso em minha mão, vi que havia alguma coisa errada, mas era tarde demais. No primeiro golpe, ela quebrou perto do punho.

— E então?

— Bedwyr e os outros gritaram "traição", querendo descobrir o culpado, mas nem precisei procurá-lo. Vi no rosto de Accolon que era ele o traidor. Apesar de estar com a espada inteira e eu com a minha partida, acho que ele ficou com medo. Atirei o pedaço em seu rosto e matei-o com minha adaga. Ele não ofereceu resistência; talvez fosse um homem sincero, afinal. Gosto de pensar assim.

— E a espada verdadeira? Como você descobriu onde estava?

— Nimuë — ele respondeu. — Foi ela que me contou o que tinha acontecido. Lembra-se daquele dia, em Applegarth, quando ela me disse para ter cuidado com Morgan e a espada?

— Sim, pensei que ela queria se referir a Morgause.

— Eu também. Mas ela estava certa. Durante todo o tempo em que Morgan ficou na corte, Nimuë manteve-se a seu lado, o que me causava uma certa surpresa, porque desde o início não houve simpatia entre as duas. — Artur soltou uma gargalhada. — Achei que era uma disputa entre as mulheres... ela também não gosta muito de Guinevere... mas acertou a respeito de Morgan. A bruxa a corrompeu quando ainda era uma menina. Não sei como Nimuë conseguiu a espada de volta. Ela seguiu para Rheged com uma escolta armada e não a vi mais desde então.

Eu ia dizer alguma coisa, mas ele ergueu a cabeça para ouvir alguma coisa.

— Bedwyr vem chegando, se não me engano. Não tivemos muito tempo para conversar, Merlin, mas continuaremos depois. Como Deus é bom, teremos novas oportunidades. — Ele me ajudou a levantar. — Agora vá descansar. Você prefere descansar e deixar que eu receba Bedwyr e os outros? Mas aviso que não será uma reunião tranqüila. Provavelmente, vão beber o estoque do taberneiro durante a noite toda, até acabar...

Preferi ficar com ele para receber os cavaleiros e bebermos juntos. Durante toda a longa e animada celebração, ninguém me falou em Nimuë e eu também não perguntei.

 

Passamos o dia todo descansando no "Pé de Azevinho". Um grupo voltou ao rio para enterrar os homens mortos, seguindo de lá para Camelot com mensagens do rei. Outro foi enviado a Caerleon para avisar sua chegada. Mais tarde, enquanto eu descansava, os homens mais jovens foram caçar. O esporte proporcionou um jantar excelente e os pajens e criados que chegaram naquele dia ajudaram o casal de estalajadeiros a preparar e servir a refeição. Não sei quando foram dormir àquela noite e suspeito que os cavalos tenham ficado ao relento, porque o estábulo estava mais cheio que a estalagem. No dia seguinte, com evidente tristeza dos donos da casa, a comitiva real partiu para Caerleon.

Mesmo depois da construção de Camelot, Caerleon continuava mantendo a posição de Artur. Chegamos com o dia claro e o vento agitando os estandartes do Dragão e fomos entusiasticamente saudados pelo povo até os portões do castelo. Insisti em viajar coberto com o manto e encapuçado, entre os últimos da comitiva. Artur finalmente aceitara minha decisão de não ocupar mais meu lugar a seu lado; uma abdicação não pode ser parcial, e aquela fora completa. Ele não mencionara a participação de Nimuë nesse assunto, mas devia imaginar (como os outros, que não tocavam no nome dela comigo) o quanto ela absorvera do meu poder. Ela, mais que ninguém, devia ter "visto" que eu estava novamente sobre a terra e na companhia do rei; na verdade, devia saber que tinham me enterrado vivo naquela tumba...

Mas ninguém fez perguntas e eu não estava preparado para dar as respostas que me pareciam verdadeiras.

Em Caerleon, prepararam meus aposentos ao lado dos de Artur. Dois jovens pajens me observavam com grande curiosidade enquanto me conduziam pelos corredores cheios de criados. Muitos me conheciam e evidentemente tinham ouvido histórias estranhas; alguns passavam apressadamente, fazendo o sinal contra feitiços fortes, mas outros se aproximavam para cumprimentar e oferecer seus préstimos. Finalmente chegamos aos suntuosos aposentos e um camareiro me aguardava para mostrar as roupas que o rei enviara, assim como as jóias dos cofres reais. Ele ficou um pouco desapontado quando afastei o traje bordado em ouro e prata, e tons de azul pavão, preferindo um manto quente de lã espessa e vermelha, chinelos do mesmo tecido.

—           Vou providenciar as luzes e a água para seu banho, meu senhor — anunciou ao retirar- se.

Já passava da hora de acender as luzes e me aproximei da janela para esperar os pajens, admirando o céu que variava do vermelho ao púrpura escuro.

Não me voltei quando abriram a porta, observando as primeiras estrelas. O pajem andava de um lado a outro acendendo velas até que todo o cômodo ficou iluminado.

Eu estava cansado depois de montar por tanto tempo e sentia o corpo pesado. Precisava me animar e me preparar para os festejos da noite. O menino saiu e deixou a porta aberta.

—            Obrigado — falei ao me voltar. — Agora, se for possível...

Calei-me, não era um pajem. Nimuë tinha entrado e se encostara na porta para me observar. Usava um longo vestido cinzento debruado de prata e enfeites de prata nos cabelos soltos, que caíam sobre os ombros. Seu rosto estava muito pálido e os olhos escuros muito abertos. Subitamente, eles se encheram de lágrimas.

Ela correu e me abraçou, rindo, chorando e me beijando. Ao mesmo tempo, murmurava palavras sem sentido. Só entendi que tinha chorado minha perda o tempo todo e eu estava vivo.

—           É magia — ela repetia com a voz um pouco assustada. — É magia, a mais poderosa que já vi. E você disse que tinha me dado toda a que possuía. Mas eu devia saber. Ah, Merlin, Merlin...

Não importava o que a mantivera afastada ou cega para o que acontecia. Eu a abracei com força e ela apoiou a cabeça em meu peito. Senti seu cabelo roçar em meu queixo enquanto ela murmurava repetidamente, como uma criança:

— Ah, é você. E você, de verdade. Você voltou. É a magia. Você ainda é o maior mago do mundo.

— Foi apenas uma doença, Nimuë. Ela enganou vocês todos. Não é magia. Eu dei toda a que tinha para você.

— Sim, e como deu! — Ela ergueu o rosto com expressão trágica. — Rezo para que você não se lembre! Você me disse que eu devia aprender tudo o que ia me contar. Disse que eu precisava conhecer todos os detalhes de sua vida e que depois de sua morte eu devia ser Merlin... Que você ia me deixar, fugiria no sono... Eu tive de obedecer. Precisava extrair todo o seu poder, mesmo que para isso sugasse o resto de suas energias. Usei todos os meios que conhecia... eu o induzi, briguei, ameacei, dei estimulantes para trazê-lo de volta, obrigando-o a repetir tudo novamente... quando gostaria de deixá-lo dormir e morrer em paz, como teria feito com qualquer outro homem. E, porque você era Merlin e não outro homem, sofreu para me responder e deu tudo o que tinha. E assim, eu o acordava de minuto em minuto, e aparentemente o salvei. — Ela passou a mão em meu peito e ergueu os olhos cinzentos — Você me dirá a verdade? Jura pelo deus?

— O que é?

— Lembra-se do quanto o atormentei até a morte, como uma aranha sugando a vida de uma abelha?

— Minha querida — menti, fixando os belos olhos —, não me lembro de nada, a não ser das palavras de amor e de Deus me levando em paz. Posso jurar, se você quiser.

O alívio transpareceu em seu rosto, mas ela se recusava a aceitá-lo.

— Mesmo assim, com todo o poder e conhecimento que você me transmitiu, não vi que o enterravam vivo e nem tive o impulso de libertá-lo. Merlin, eu devia saber, eu devia saber! Sonhei várias vezes, mas os sonhos eram confusos. Voltei uma vez a Bryn Myrddin, sabe? Fui até a caverna, mas a porta ainda estava bloqueada.

Chamei, chamei, mas não ouvi nenhum som...

— Calma, calma. — Ela estava tremendo e a abracei mais, beijando seu cabelo. — Isso já passou, estou aqui. Quando você voltou, eu ainda devia estar em transe. O que aconteceu foi por vontade de Deus, Nimuë. Se Ele quisesse me salvar da tumba, teria falado com você. Mas me trouxe de volta no momento que escolheu e para isso me salvou de ser enterrado ou cremado. Você deve aceitar tudo e agradecer, como eu.

— Era o que o Grande Rei queria. — Ela estremeceu novamente. — Artur queria uma pira digna de um imperador, para que sua morte servisse como uma fogueira de aviso aos vivos por toda a extensão das terras. Ele estava desesperado, Merlin, custou para me ouvir. Mas eu lhe contei que você tinha dito num sonho que queria ficar em paz na sua colina oca para ser parte da terra que amava. — Ela enxugou as lágrimas. — E era verdade. Tive mesmo esse sonho, entre outros. Mesmo assim, eu falhei. Quem fez o que eu devia ter feito e o ajudou a escapar de lá? O que aconteceu?

— Venha para perto do fogo, vou contar. Suas mãos estão frias, venha. Acho que ainda temos algum tempo antes de ir para o salão.

— O rei vai nos esperar — informou. — Ele sabe que estou aqui, foi quem me disse para vir vê-lo.

—            Ele disse? — Mas resolvi deixar o assunto para depois.

Em um canto do aposento havia um braseiro diante de um canapé baixo, coberto de tapetes e peles. Sentamos lado a lado e tornei a contar minha história.

Quando terminei, ela esquecera a tristeza e estava até um pouco corada. Apoiava-se em meu braço e segurava minha mão entre as suas. Mago ou mortal comum, não duvidei que aquela alegria fosse tão verdadeira quanto o brilho das brasas que nos aqueciam. Os tempos bons tinham voltado, mas, quer como mortal, quer como mago, eu ainda pressentia algum segredo.

—           Já contei o sonho que eu tive — disse Nimuë depois de algum tempo. — Fiquei inquieta e comecei até a duvidar de que você estava realmente morto quando o deixamos na caverna. Mas não havia nenhuma dúvida; você ficou tanto tempo sem fazer qualquer movimento e aparentemente sem respirar, que os médicos declararam sua morte. E assim o deixamos lá. Depois, quando os sonhos me levaram de volta à caverna, tudo parecia normal. Chegavam outros sonhos, outras visões e tudo se confundia...

Ela se afastou um pouco enquanto falava, mas continuou segurando minha mão. Virará o rosto e olhava fixamente as brasas.

— E Morgan e o roubo da espada? — sugeri.

— O rei lhe contou, não é? — ela respondeu, lançando-me um rápido olhar. — Você soube como a espada foi roubada. Precisei sair de Camelot e seguir Morgan para trazê-la de volta. Até lá o deus estava comigo. Enquanto fiquei em Rheged um cavaleiro chegou do sul para visitar a rainha e à noite, no salão de Urgben, contou um caso estranho. Seu nome é Bagdemagus, e é parente de Morgan e Artur. Lembra-se dele?

— Sim. Tratei de um filho dele durante o verão, há dois anos. O garoto escapou da doença, mas ainda persistia uma pequena inflamação nos olhos.

— E você lhe deu uma pomada e o aconselhou a usá-la se os olhos inchassem novamente. Contou que era feita com uma erva que você plantara em Bryn Myrddin.

— E verdade, um tipo de esclaréia selvagem que encontrei na Itália e da qual trouxe um bom suprimento para Bryn Myrddin. Mas como ele achou que ia consegui-la?

— Talvez tenha pensado que você a tivesse plantado, como fez em Applegarth. Naturalmente, ele sabia que você estava enterrado na colina. Não quis admitir, mas devia estar morto de medo. Ele nos contou sua história, como chegou a cavalo ao alto do monte e ouviu uma música que parecia sair da terra. O cavalo se assustou, disparou e ele não teve coragem de voltar. Confessou que não tinha contado a ninguém por receio que caçoassem dele, mas pouco antes de partir para o norte ouviu comentários sobre a caverna em Maridunum. Contaram que alguém vira e falara com seu fantasma... Bem, você sabe quem era, o ladrão de sua tumba. Reuni os fatos com meus sonhos repetidos e compreendi que você estava vivo na caverna. Eu teria partido de Luguvallium naquela noite, mas aconteceu uma coisa que me obrigou a ficar.

Ela me olhou, esperando que eu soubesse o que ia dizer e ficou tão surpreendida quanto Artur, mordendo o lábio quando perguntei apenas:

—            O que foi?

— Morgause chegou com os cinco filhos — explicou. — Eu não era exatamente uma visita bem-vinda, mas Urbgen me tratava com amabilidade e Morgan vivia praticamente agarrada em mim. Com certeza imaginava que o marido conteria sua fúria pelo que ela fizera enquanto eu estivesse lá. E, suponho que pensava que, mostrando-se minha amiga, eu intercedesse em seu favor com Artur. Mas Morgause... — ela ergueu os ombros, como se sentisse um arrepio.

— Você a viu?

— Rapidamente, não agüentei ficar perto dela. Saí, dizendo a todos que ia para o sul, mas não parti de Luguvallium. Enviei um pajem secretamente a Bagdemagus e ele veio me encontrar na casa em que eu me hospedara. É um bom homem e acha que deve a vida do filho a você. Eu não revelei que acreditava que você ainda estava vivo. Contei apenas que Morgause tinha sido sua inimiga e era a causa de sua ruína e morte que Morgan também era uma bruxa e inimiga do rei. Pedi-lhe encarecidamente que as espionasse para mim, vindo me informar os acontecimentos. Sabe, Merlin, eu muitas vezes tentara me ligar com a mente de Morgause, mas fracassara em todas. Minha única esperança era as irmãs conversarem sobre o acontecido revelando que veneno fora usado em você. Se meu sonho fosse certo e você ainda estivesse vivo, esse conhecimento poderia me ajudar a salvá-lo. Se não estivesse, eu teria mais uma prova para dar ao rei para condenar Morgause à morte. — Nimuë passou a mão em meu queixo com carinho, mas tinha os olhos sombrios. — Sentei-me e esperei Bagdemagus voltar cheia de aflição, sabendo o tempo todo que você podia estar morrendo, sozinho, naquela tumba. Tentei alcançá-lo ou ver alguma coisa, pelo menos, mas sempre que tentava a luz apagava a visão e aparecia um grande cálice flutuando, como a lua na névoa. Depois ele desaparecia e o sofrimento da perda acabava com o sonho. Eu acordava nervosa, chorando de saudade e tornava a dormir.

— Então você recebeu esse aviso? Minha pobre criança, ficou com a guarda desse tesouro... Bagdemagus avisou que Morgause ouvira falar dele e pretendia roubá-lo?

— O quê? —? ela me olhou sem compreender. — O que está dizendo? O que Morgause tinha a ver com o cálice? O próprio deus ficaria maculado se ela o visse, apenas. Como saberia onde encontrá-lo?

— Não sei. Mas foi buscá-lo. Alguém a viu pegar e me contou.

— Então você ouviu uma mentira! — Nimuë protestou com veemência. — Fui eu que o desenterrei.

— Foi você que pegou o tesouro de Macsen?

— Fui eu, sim. — Nos cândidos olhos cinzentos brilhavam dois pequenos focos vermelhos, como os que existem nos gatos.

— Você me contou onde ele estava enterrado, não se lembra? Ou já estava em sua névoa, meu querido?

— Sim, agora me lembro.

— Você me disse que o poder era de difícil domínio. E foi mesmo a tarefa penosa para mim: ir a Segontium em vez de voltar rapidamente a Bryn Myrddin. Mas eu sabia que fora escolhida para esse trabalho e obedeci. Chamei dois servos de confiança e descobri o lugar. Tinha mudado, a capela já não existia. Mas cheguei ao local que você descrevera e cavamos. Talvez fosse muito mais demorado, mas tivemos ajuda.

— Um pastorzinho sujo, que bateu o cajado na terra e mostrou onde o tesouro estava escondido.

— Ora, por que perco tempo em contar minha história? — Nimuë sorriu alegremente. — Sim, ele chegou e mostrou o lugar em que devíamos cavar para tirar a caixa. Em seguida dirigi-me à fortaleza, falei com o comandante e dormi lá, com um guarda vigiando meu quarto. Durante a noite, com a caixa embaixo da cama, tive algumas visões. Sabia que você estava vivo, livre e que logo encontraria o rei. Portanto, pela manhã, pedi uma escolta para trazer o tesouro e vim para o sul, diretamente a Caerleon.

— E por pouco não nos encontramos muito antes — falei.

— Nos encontramos? Onde?

— Você pensa que o pastorzinho me apareceu numa visão, mas a verdade é que estive lá pessoalmente. — Contei-lhe rapidamente minha passagem por Segontium e a visita ao santuário desaparecido. — E, quando o menino me contou que uma mulher bem vestida viera com dois escravos, eu, grande tolo que sou, imaginei que, se fosse Morgause...

Calei-me e ela apertou minha mão subitamente. Seu olhar já não era risonho, com uma estranha mistura de temor e súplica.

Eu não precisava da vidência para imaginar a parte da história que ela não tinha contado e nem o motivo que levara Artur e os outros a evitarem tocar em seu nome. Nimuë, minha amada, não usurpara meu poder, nem tentara me destruir. A única coisa que fizera, depois da morte do velho mago, fora dormir com um homem mais jovem. Eu senti que esperara aquele momento por muito tempo e sorri.

—            Quem é essa pessoa especial? — perguntei amavelmente.

Ela ficou muito corada e as lágrimas voltaram aos olhos.

— Eu devia ter lhe contado desde o primeiro instante. Eles falaram que não tinham tocado no assunto com você, mas me faltou coragem.

— Não me olhe assim, querida. O que houve entre nós dois foi algo muito nosso e ninguém pode tomar duas vezes o mesmo elixir do amor.. Se eu ainda fosse pelo menos meio mago, teria sabido há muito tempo. Quem é ele?

— Pelleas.

Eu o conhecia. Era um príncipe jovem, bonito, amável e com um tipo de alegria que serviria para animá-la quando ela ficasse um tanto sombria, uma sua característica. Procurei elogiá-lo e Nimuë logo se acalmou e começou a contar como o conhecera. Eu ouvia e observava, tendo mais tempo para reparar o quanto ela mudara. Era a mudança causada pelo poder, que ela assumira tão decididamente. Minha delicada Niniane tinha desaparecido comigo na bruma. Nimuë tinha uma agudeza que não existia antes; alguma coisa tranqüila, mas grandiosa, um tipo de brilho contundente que parecia o gume de uma faca. E na voz, às vezes, soava um eco sutil dos tons mais graves Deus usava quando, com autoridade e poder, empregava a linguagem dos mortais. Esses atributos antes eram meus. Mas, quando eu os aceitara, não pensava no amor carnal. Pelo bem de Pelleas, desejei que fosse um moço decidido, com idéias próprias.

—            Ele é, sim — disse Nimuë, lendo meu pensamento.

Ergui meu olhar para ela e a vi com a cabeça inclinada para o lado e rosto cheio de alegria.

Ri com ela e estendi os braços. Ela veio e me ofereceu os lábios. Beijei-a uma vez com paixão, depois com amor e a deixei partir.

Natal em Caerleon. Revejo imagens do sol, da neve e da luz das tochas, dos jovens e de risos, quando retiro do esquecimento aquele tempo de bravura e plenitude. Preciso apenas fechar os olhos; não, nem isso, basta olhar o fogo e elas estão todas comigo. Nimuë me apresentando Pelleas, que me tratou com deferência e demonstrou seu amor por ela, me fazendo pensar que tinha uma compreensão digna de um rei.

—           Ela pertence ao Grande Rei e a mim — ele me disse. — Bem, é a mesma coisa, não? Eu também pertenço ao rei antes de ser dela. Qual de nós é dono de si mesmo diante de Deus e do rei?

Bedwyr vindo ao meu encontro ao entardecer, na beira do rio, que corria cinzento entre as margens invernais. Um bando de cisnes na beirada lamacenta, deslizando entre os juncos. A neve tinha começado a cair, bem fina, flutuando no ar parado.

—           Disseram que eu o encontraria aqui — falou ele. — Eu vim buscá-lo. O rei o espera, vamos? Está frio e vai esfriar ainda mais.

— Depois, enquanto voltávamos juntos, contou: — Tivemos notícias de Morgause. Ela foi mandada a Lothian, para um convento de Caer Eidyn. Tydwal vai providenciar para que nunca saia de lá. E dizem que a Morgan vai ficar com ela. Parece que o rei Urbgen não consegue perdoá-la por querer envolvê-lo na traição e tem medo de ser considerado culpado, uma culpa que se estenderia aos seus filhos, se ela continuar em sua companhia. Além disso, sabe do caso com Accolon e é o motivo que vai usar para repudiá-la. Pediu a permissão do Grande Rei. Creio que Artur se sentirá muito mais à vontade sabendo que suas queridas estão distantes, presas nas celas do claustro. Foi Nimuë quem sugeriu esse castigo. — Ele riu, olhando-me de soslaio. — Desculpe, Merlin, mas agora que as maiores inimigas do rei são mulheres, faz-se necessário uma mulher para lidar com elas. E, se quer saber o que sinto, penso que tem sorte de ficar longe desses assuntos.

Guinevere, sentada diante do tear numa manhã em que o sol brilhava na neve, um passarinho cantando na gaiola sobre o peitoril da janela. As mãos pararam o trabalho e ela voltou-se para observar os meninos brincando.

— Poderiam ser meus filhos — comentou.

Mas notei que ela não seguia as cabeças louras dos filhos de Lot, olhando apenas para o moreno Mordred. Ele estava um pouco afastado e olhava o que os outros faziam, não como um rejeitado perto de irmãos mais favorecidos, mas como um príncipe observa seus súditos.

O próprio Mordred. Nunca falei com ele. Os meninos ficavam geralmente na ala infantil do palácio ou aos cuidados do mestre-de-armas incumbido de treiná-los na arte da guerra. Mas ao fim de uma tarde cinzenta eu o encontrei parado perto de um portão do jardim, como se esperasse alguém. Parei, imaginando como reagiria ao cumprimento de um inimigo de sua mãe, mas ele virou-se, sem perceber minha aproximação, voltando o olhar para Artur e Guinevere que surgiam entre os canteiros de rosas. O rapaz foi ao seu encontro e começaram a conversar. Vi a rainha sorrir e estender a mão. O rei disse alguma coisa, olhando-o com carinho. Mordred respondeu e, obedecendo a um gesto de Artur, posicionou-se entre os dois para recomeçar o passeio.

E finalmente Artur, uma noite, em seus aposentos particulares, quando Nimuë mostrou-lhe a caixa com o tesouro de Segontium.

A caixa estava sobre uma grande mesa de mármore que pertencera a meu pai. Era de metal, pesada e com a tampa amassada e partida, sem dúvida devido ao desmoronamento do santuário. O rei segurou-a e ela resistiu por um momento, mas abriu em seguida.

Dentro estavam as coisas exatamente como eu lembrava. O tecido podre e um rasgo mostrando o brilho da ponta da lança.

Depois um prato de ouro com a borda incrustada de pedras preciosas. E finalmente, envolta em um pedaço de linho sujo de poeira, a taça.

Era o tipo de taça que também chamam de copa ou cálice, larga e profunda seguindo o modelo grego. Era de ouro e parecia bem pesada. Havia um trabalho de ourivesaria na borda e no pé. As duas alças tinham o formato de asas de pássaro. Um pouco abaixo da borda havia esmeraldas e safiras incrustadas no metal. Artur ergueu-a com as duas mãos e me mostrou.

— Pegue e admire, é a coisa mais preciosa que já vi.

— Eu não devo tocá-la — respondi sacudindo a cabeça.

— Nem eu — disse Nimuë.

Ele admirou-a por mais algum tempo, depois tornou a colocá-la na caixa com a lança e o prato, envolvendo as peças no linho tão puído que parecia um véu.

—           Vocês também não querem dizer o que devo fazer este esplendor ou onde guardá-lo?

Nimuë me olhou em silêncio. Quando falei, foi apenas um eco do que eu dissera muito tempo atrás.

— Ele também não é para você, Artur. Você não precisa desse tesouro. Você mesmo será o cálice de seu povo e ele ficará satisfeito com o que lhe der de beber. Você nunca falhará com sua gente, nem vai abandoná-la. Não precisa do graal. Deixe-o para quem vier depois.

— Então, já que não é meu nem seu — disse Artur —, Nimuë deverá escondê-lo com algum encantamento para que só seja encontrado por quem verdadeiramente o mereça.

— Sim, é o que acontecerá — sorriu Nimuë, fechando a tampa sobre o tesouro.

Depois disso, outro inverno terminou e a primavera chegou lentamente. Fui para casa no fim de abril, com o vento mais quente, os carneiros balindo na colina e os amentilhos amarelos florindo.

A caverna voltara a ser um abrigo quente e um bom lugar para viver. Havia comida, pão fresco, leite e mel. Todas minhas coisas tinham sido trazidas de Applegarth: livros, instrumentos, remédios, a harpa grande. Ao chegar eu encontrara junto à fonte oferendas trazidas pelos bondosos habitantes das redondezas.

O retorno à vida foi mais fácil do que eu imaginava. Aparentemente, a gente simples e moradores das regiões mais distantes da Bretanha tinha aceitado a história de minha volta da morte, considerando-a mais uma lenda, não um fato verdadeiro. Na realidade, o Merlin de que tanto falavam e temiam estava mesmo morto. O Merlin que agora vivia na "caverna sagrada" e praticava magias menores era apenas o fantasma do mago que eles tinham conhecido. Talvez pensassem que eu, como tantos outros no passado, era apenas um curador querendo se passar pelo antigo profeta do rei. Na corte, nas grandes cidades e nas áreas mais populosas, as pessoas agora recorriam ao poder de Nimuë, mas os que moravam perto do monte me procuravam para curar seus males e acalmar suas dores. Era para mim que Ban, o pastor, trazia os carneiros doentes, e as crianças subiam desde a vila para me apresentar seus bichinhos de estimação.

E assim aquele ano passou tão suavemente e tão rápido que parecia apenas o entardecer de um dia sereno. Eram dias dourados, doces e tranqüilos, sem necessidade do uso do poder, sem grandes ventos, sem dor na terra ou sofrimento na carne. Os grandes feitos do reino pareciam distantes demais para me preocupar. Eu não procurava notícias, porque me eram transmitidas pelo próprio Grande Rei. Tal como o pequeno "Emrys" cavalgava até a capela da Floresta Selvagem para me contar tudo o que acontecera naquele dia, Artur, o rei, sempre que podia vinha descansar comigo ao pé da lareira, comentando seus atos, problemas e preocupações. Não sei em que imaginava que eu poderia ajudá-lo, mas para mim suas visitas representavam um enorme prazer e, depois de sua partida, eu ficava calado, saboreando uma grande satisfação.

O deus, que era Deus, concedera realmente a liberdade ao seu servo, deixando-o viver em paz.

 

Um dia eu peguei a pequena harpa e resolvi compor novos versos para uma canção que costumava tocar no passado.

 

Mago, descanse aqui enquanto o fogo se extingue.

Num suspiro, num pestanejar,

Você verá os sonhos;

A espada e o jovem rei,

O cavalo branco e a água correndo,

A candeia acesa e o menino sorrindo.

 

Os sonhos, mago, os sonhos! Sumiram

como o eco da harpa quando as cordas

emudecem; com a sombra da chama quando o fogo

se extingue. Fique quieto, ouça.

 

Distante, na escuridão

Ruge o grande vendaval, ergue-se

A onda ligeira, corre o rio cristalino.

Ouça, mago, ouça

Através da escuridão e do ar sonoro

A música...

 

Fui obrigado a abandonar a canção porque uma corda quebrou. Artur prometera trazer cordas novas quando viesse da próxima vez.

 

Ele chegou ontem. Disse que tinha um assunto a resolver em Caerleon e aproveitara para me fazer uma visita, mas poderia ficar apenas uma hora. Quando perguntei o que estava acontecendo, desviou o assunto, o que me deixou intrigado, pois me parecia um absurdo ele ter feito uma viagem tão longa apenas para me ver. Como sempre, chegou carregado de presentes: vinho, um cesto de alimentos preparados em sua cozinha, as cordas prometidas e uma manta nova de lã macia, tecida especialmente pelas damas da rainha. Ele mesmo entrou carregando tudo, como um serviçal, e guardou tudo para mim. Mostrou-se animado, falando de um jovem que chegara à corte recentemente, um nobre guerreiro primo distante do falecido March da Cornualha, e depois contou sobre um encontro que planejava ter com o "rei" saxão sucessor de Eosa, Cerdic. Conversamos até o anoitecer, quando a escolta subiu do vale para buscá-lo.

Ao levantar-se, como sempre, me beijou na face. Geralmente nos despedíamos e eu ficava perto da lareira, mas dessa vez o acompanhei até a porta da caverna para vê-lo partir. A luz, por trás, alongou minha sombra pelo terreno, chegando às árvores abaixo do morro onde a escolta o esperava.

Era quase noite, mas além de Maridunum, a oeste, uma faixa de luz acompanhava o sol poente e se refletia no rio até a parede do palácio em que nasci, brilhando como uma jóia a distância. As árvores próximas estavam desfolhadas pelo inverno e no solo surgia a primeira geada. Artur afastou-se pela relva, deixando marcas no chão gelado. Chegando à beira da descida mais íngreme, voltou-se e ergueu a mão.

—            Espere por mim — despediu-se como sempre. — Eu voltarei.

E, como sempre, respondi:

—           O que mais posso fazer a não ser esperá-lo? Estarei aqui quando voltar.

O ruído dos cavalos distanciou-se e sumiu. O silêncio voltou ao vale e a escuridão aumentou.

Uma brisa noturna passou como um suspiro pelas árvores cobertas de gelo, sem nenhum som propriamente dito, apenas um suave sussurro quase inaudível. Ergui a cabeça tornando a me lembrar do tempo de criança, quando todas as noites ficava atento à música das esferas, mas nunca conseguira ouvir. E naquele momento ela me envolvia, doce e etérea, como se a própria próprio monte fosse uma harpa para a brisa.

A noite escura chegou. Atrás de mim, o fogo baixou e minha sombra desapareceu. Mas eu continuava atento aos sons, invadido por uma grande calma e satisfação. O céu, pesado com a noite, aproximou-se da terra. O brilho do mar distante se movia, luz e sombra fazendo lembrar o arco vagaroso descrito por uma espada voltando à bainha ou um barco distante singrando a água longínqua.

A escuridão trouxe a quietude. Senti na pele um arrepio, como o toque frio do cristal.

Deixei a noite com suas remotas e cantantes estrelas, e voltei para o calor do fogo, para a cadeira que Artur ocupara antes e para a harpa sem cordas.

 

                                         A Lenda

Quando o rei Uther Pendragon estava moribundo, Merlin aproximou-se dele à vista de todos os nobres e o fez reconhecer seu filho Artur como o novo rei. Ele obedeceu e logo expirou, sendo enterrado ao lado de seu irmão, Aurelius Ambrosius, na Ciranda dos Gigantes.

Merlin mandara fazer uma grande espada e a fixara por meio de mágica numa grande pedra com o formato de um altar. Na lâmina da espada estava escrito: "Aquele que tirar esta espada da pedra será por direito o rei de toda a Bretanha". Quando finalmente todos os homens se convenceram de que somente o jovem príncipe fora capaz de removê-la, eles gritaram: "Que Artur se torne nosso rei sem mais delongas, pois todos vimos que isso é da vontade de Deus e aquele que se levantar contra ele será morto". Assim Artur foi aceito por todos, ricos e pobres. Ao ser coroado, fez de Sir Kay o senescal da Bretanha e de Sir Ulfius seu camareiro-mor.

Depois disso houve muitos anos de guerras e combates, mas um certo dia Merlin chegou montado num grande cavalo negro e disse ao rei: "Será que nunca consideras tua tarefa como terminada? Chegou a hora de dizer 'Alto!' e voltar à tua morada para repousares e recompensares teus bons cavaleiros com ouro e prata, pois eles bem os mereceram". "Muito bem falado", disse Artur, "e o que imaginaste será feito." Então Merlin despediu-se do rei e viajou para visitar seu mestre, Blaise, que morava em Northumberland, e Blaise registrou as batalhas, letra por letra, como Merlin foi ditando.

Um dia o rei Artur disse a Merlin: "Meus barões não me darão descanso enquanto eu não arranjar uma esposa". "Sim", concordou o mago, "será bom tu te casares. Existe alguém que amas mais do que qualquer outra?" "Sim", disse o rei, "amo Guinevere, a filha do rei Leodegrance, da terra de Cameliard, que guarda em sua casa a Távola Redonda que tu me disseste ter sido de meu pai, Uther." Merlin então avisou o rei que não seria bom ele se casar com Guinevere e o alertou que Lancelot iria amá-la e seria correspondido. Apesar de tudo o rei decidiu casar-se com Guinevere e mandou Sir Lancelot, o líder de seus cavaleiros e seu maior amigo, ir buscá-la em seu lar.

Durante a viagem a profecia de Merlin tornou-se realidade e Lancelot e Guinevere se apaixonaram, embora não pudessem concretizar seu amor. Pouco depois Guinevere estava casada com o rei, a quem seu pai enviara a Távola Redonda como presente de casamento.

A meia irmã de Artur, Morgause, dera à luz um seu filho bastardo, chamado Mordred. Merlin profetizara que um grande perigo, partindo dessa criança, ameaçaria o reino e ele próprio, por isso, quando o rei soube do nascimento mandou que todas as crianças nascidas por volta de primeiro de maio fossem colocadas num navio e abandonadas à deriva. Algumas tinham um mês, outras menos do que isso. Por acaso o navio bateu num rochedo onde havia um castelo. Todas as crianças morreram, exceto Mordred, que foi encontrado por um bom homem e criado por ele até os catorze anos de idade, quando foi apresentado ao rei.

Logo depois do casamento com Guinevere, Artur teve de deixar a corte e na sua ausência o rei Meleagant (Melwas) raptou a rainha e levou-a para seu reino, de onde ninguém voltava. O único modo de invadir a prisão cercada por um fosso era atravessar duas pontes muito perigosas. Uma delas era chamada de "a ponte de água", porque a ponte, muito estreita e invisível, ficava submersa. A outra era muito mais perigosa e jamais fora atravessada por um homem, por ser feita de uma lâmina afiada dos dois lados. Ninguém, a não ser Lancelot, se atreveu a tentar salvar a rainha. Ele viajou por território desconhecido até se aproximar da casa que Meleagant construíra para ela. Atravessou a ponte feita da lâmina de espada e sofreu vários ferimentos, mas conseguiu salvar a rainha e mais tarde, na presença do rei Artur e da corte, entrou em combate com Meleagant e matou-o.

Acontece que Merlin se apaixonou por uma das donzelas do Lago, cujo nome era Nimuë, e não lhe deu descanso, querendo ficar para sempre com ela. Merlin avisou o rei Artur que não ficaria muito tempo na face da terra e que, apesar de toda sua mágica, seria enterrado vivo, alertando-o também que deveria guardar muito bem sua espada e bainha, pois senão elas seriam roubadas pela mulher em que ele mais confiava. "Ah", disse o rei, "já que sabes de tua sina, porque não usas tuas artes mágicas para afastá-la de ti?" Merlin respondeu: "Isso não pode ser feito, porque está ordenado que tu terás uma morte honrosa e eu uma morte vergonhosa". Então ele deixou a presença de Artur. Logo depois Nimuë Va donzela do lago, partiu dali e Merlin a seguiu por todos os lugares que ela percorreu. Os dois atravessaram o mar para a terra de Benwick, na Bretanha Menor, onde o soberano era o rei Ban, que com sua esposa, Elaine, gerara um menino chamado Galahad. Merlin profetizou que um dia Galahad seria o homem mais dedicado a Deus em todo o mundo. Então Nimuë e Merlin deixaram Benwick e foram para a Cornualha. Nimuë tinha muito medo de Merlin por ele ser o filho de um demônio e não sabia como se livrar dele. Acontece que um dia Merlin lhe mostrou uma caverna num rochedo que podia ser lacrada com uma grande pedra e ela, usando todo o seu poder de sedução, convenceu Merlin a entrar nessa caverna para lhe mostrar a mágica que habitava ali, mas lançou-lhe um encantamento que não o deixou mais sair. Então ela foi embora abandonando-o preso na caverna.

Pouco tempo depois, um primo do rei, chamado Bagdemagus, deixou a corte para procurar um galho de uma erva santa usada na cura de doenças. Quando passou perto da caverna onde a Dama do Lago prendera Merlin, ouviu os lamentos do mago. Sir Bagdemagus quis socorrê-lo mas, quando tentou mover a pedra, viu que era tão pesada que nem cem homens conseguiriam tirá-la do lugar. Quando Merlin ficou sabendo que o cavaleiro estava ali, disse-lhe para poupar seus esforços, porque tudo o que fizesse seria em vão. Portanto, Bagdemagus partiu, deixando Merlin em sua prisão.

Enquanto isso, acontecera o que Merlin previra e a irmã de Artur, Morgana, a fada, roubara a espada Excalibur e sua bainha, dando-as a Sir Accolon ele as usar num combate contra o próprio rei. Quando Artur estava se arrumando para a luta, veio uma donzela a mando de Morgana, a fada, trazer-lhe uma espada igualzinha a Excalibur e ele a aceitou sem perceber o engano. A espada era falsa e quebradiça. Começou então o combate entre o rei e Accolon. A Dama do Lago foi assistir porque sabia que Morgana, a fada, desejava fazer mal a Artur e pretendia salvá-lo. A espada que ò rei carregava quebrou-se em suas mãos e foi só depois de uma terrível luta que ele conseguiu tirar Excalibur de seu oponente e vencê-lo. Então Accolon confessou a traição de Morgana, a fada, a esposa do rei Urien, e o rei lhe concedeu o perdão.

Depois disso a Dama do Lado tornou-se a amiga e guardiã do rei Artur, substituindo Merlin, o mago.

 

                                                                                Mary Stewart  

 

                      

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